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1984

O livro é a porta que se abre para a realização do homem


.
Jair Lot Vieira
GEORGE ORWELL

1984

Tradução

Alexandre Barbosa de Souza


Copyright da tradução e desta edição © 2021 by Edipro Edições Profissionais Ltda.
Título original: Nineteen Eighty-Four
. Publicado pela primeira vez em Londres em 1949, pela
Secker and Warburg. Traduzido com base na 1ª edição.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida de
qualquer forma ou por quaisquer meios, eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocópia, gravação ou
qualquer sistema de armazenamento e recuperação de informações, sem permissão por escrito do
editor.
Grafia conforme o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
1
a
edição, 2021.
Editores:
Jair Lot Vieira e Maíra Lot Vieira Micales
Coordenação editorial:
Fernanda Godoy Tarcinalli
Produção editorial:
Carla Bettelli
Edição e preparação de textos:
Marta Almeida de Sá
Assistente editorial:
Thiago Santos
Revisão:
Viviane Rowe
Diagramação:
Estúdio Design do Livro
Capa:
Carlo Giovani

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Orwell, George, 1903-1950.


1984 [livro eletrônico] / George Orwell; tradução de Alexandre Barbosa de Souza. – São Paulo:
Via Leitura, 2021. – (Clássicos da Literatura Universal) 2 Mb ; e-pub

Título original: Nineteen Eighty-Four


.

ISBN 978-65-87034-21-8 (e-pub)

ISBN 978-65-87034-20-1 (impresso)

1. Ficção inglesa I. Título. II. Série.

20-48079 CDD-823

Índice para catálogo sistemático:

1. Ficção: Literatura inglesa 823


Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427
PARTE UM
Capítulo 1

Era um dia claro e frio em abril, e os relógios estavam marcando uma da tarde.
Winston Smith, com o queixo enfiado no peito numa tentativa de escapar do vento
cruel, deslizou rápido através das portas de vidro das Mansões Vitória, mas não
rápido o bastante para evitar que uma lufada suja de poeira entrasse junto dele.
O corredor exalava um cheiro de repolho cozido e tapetes velhos. Em uma das
extremidades, um cartaz colorido, grande demais para ser mantido ali, fora
pendurado na parede. Continha simplesmente um rosto enorme, com mais de um
metro de largura: o semblante de um homem de uns quarenta e cinco anos, com um
bigode preto espesso e feições irregulares, porém belas. Winston foi até a escada.
Não adiantava tentar usar o elevador. Mesmo nos melhores tempos, raramente o
elevador funcionava, e naqueles dias a energia elétrica era cortada de manhã. Fazia
parte do plano de economia que envolvia os preparativos para a Semana do Ódio. O
apartamento ficava no sétimo andar, e Winston, que tinha trinta e nove anos e uma
úlcera varicosa no tornozelo direito, subiu devagar, parando para descansar algumas
vezes no caminho. A cada andar, do lado oposto ao poço do elevador, o mesmo
cartaz com o rosto enorme o contemplava da parede. Era uma daquelas figuras feitas
de tal maneira que os olhos pareciam continuar seguindo a pessoa enquanto ela se
movia. O GRANDE IRMÃO ESTÁ DE OLHO EM VOCÊ, dizia a legenda sob a
imagem.
No apartamento, uma voz harmoniosa lia uma lista de números que tinha algo a
ver com a produção de ferro-gusa. A voz saía de uma placa alongada de metal como
um espelho fosco que fazia parte da superfície da parede do lado direito de quem
entrava. Winston apertou um botão, e o volume da voz diminuiu um pouco, embora
as palavras ainda fossem claramente discerníveis. O volume do aparelho
(telemonitor, como se chamava) podia ser diminuído, mas não havia como desligá-
lo completamente. Ele se aproximou da janela: uma figura pequena, frágil, cuja
magreza era um pouco mais enfatizada pelo macacão azul, que era o uniforme do
Partido. Seu cabelo era muito claro, o rosto, naturalmente sanguíneo, a pele era
enrugada em consequência do uso frequente de um sabão áspero, da navalha cega e
do frio do inverno, que acabara de terminar.
Lá fora, mesmo através das cortinas fechadas, o mundo parecia frio. Nas ruas,
sutis lufadas de vento faziam rodopiar poeira e papéis em espirais, e embora o sol
brilhasse e o céu fosse de um azul intenso, parecia não haver cor em mais nada,
exceto nos cartazes colados em toda parte. Em cada esquina, o semblante de bigode
preto na foto olhava para baixo com um ar autoritário. Havia um cartaz daquele na
fachada da casa, bem em frente à janela. O GRANDE IRMÃO ESTÁ DE OLHO
EM VOCÊ, dizia a legenda, enquanto os olhos negros fitavam profundamente os
olhos de Winston. Na rua, outro cartaz, rasgado em um canto, tremulava
espasmodicamente ao vento, alternadamente cobrindo e descobrindo a palavra
INGSOC. Acima, um helicóptero sobrevoava os telhados, parando por um instante
como uma mosca e em seguida disparando de novo em um voo curvo. Era a
patrulha da polícia, espiando pelas janelas das pessoas. As patrulhas, contudo, não
tinham tanta importância. O que contava mesmo era a Polícia do Pensamento.
Atrás de Winston, a voz do telemonitor ainda tagarelava a respeito do ferro-gusa
e da superação das metas do Nono Plano Trienal. O telemonitor recebia e transmitia
o som simultaneamente. Qualquer ruído que Winston emitisse, mesmo na altura de
um sussurro muito baixo, era captado pelo telemonitor, e, sobretudo se ficasse no
campo de visão que a placa de metal abarcava, ele podia ser visto e também ouvido.
Não havia, evidentemente, como saber se a pessoa estava sendo vigiada o tempo
todo. Acerca da frequência e do sistema que a Polícia do Pensamento usava para
vigiar cada indivíduo havia meras conjecturas. Era possível até que vigiassem todas
as pessoas o tempo inteiro. Contudo, de todo modo, sabia-se que eles podiam
grampear qualquer um sempre que quisessem. Tinha-se de viver — todos viviam,
por um hábito que se tornara um instinto — com a constante suposição de que cada
som que se fizesse seria interceptado, e, exceto no escuro, cada movimento seria
rastreado.
Winston ficou de costas para o telemonitor. Era mais seguro, embora, como ele
bem sabia, mesmo as costas pudessem ser reveladoras. A um quilômetro dali, o
Ministério da Verdade, onde ele trabalhava, erguia-se imenso e alvo acima da
paisagem encardida. Esta — ele pensou com um vago desgosto —, esta era Londres,
principal cidade da Pista de Pouso Um, terceira província mais populosa da
Oceania. Ele tentou extrair alguma lembrança da infância que lhe indicasse se
Londres sempre havia sido assim. Teria sempre existido aquelas casas deterioradas
do século XIX, com as laterais cobertas de tapumes, as janelas tampadas com
papelão por dentro e os telhados de ferro fundido e cercas tortas de jardim
despencando em todas as direções? E os locais bombardeados onde a poeira de
gesso pairava no ar e os epilóbios
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brotavam das pilhas de lixo? E os lugares em
que as bombas haviam aberto uma imensa clareira, onde brotaram sórdidas colônias
de barracos de madeira que pareciam galinheiros? Porém, não adiantava, ele não
conseguia se lembrar: nada restara de sua infância exceto uma série de imagens
coloridas que surgiam contra um fundo branco, quase ininteligíveis.
O Ministério da Verdade — Miniver, na novilíngua
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— era incrivelmente
diverso de qualquer outro edifício conhecido. Tratava-se de uma enorme estrutura
piramidal de concreto branco e brilhante que se erguia, terraço sobre terraço, a
trezentos metros acima do chão. De onde Winston estava era possível ler,
destacados na fachada branca em letras elegantes, os três lemas do Partido:

GUERRA É PAZ.
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO.
IGNORÂNCIA É FORÇA.

O Ministério da Verdade englobava, diziam, três mil salas acima do piso térreo e
ramificações correspondentes no subsolo. Em Londres, havia apenas três outros
edifícios de aparência e tamanho similares. Eles apequenavam tanto a arquitetura de
seus arredores que do telhado das Mansões Vitória dava para ver os quatro edifícios
simultaneamente. Eram as sedes dos quatro ministérios, entre os quais se dividia
todo o aparato governamental: o Ministério da Verdade, que se ocupava da
imprensa, de entretenimentos, da educação e das belas-artes; o Ministério da Paz,
que se ocupava da guerra; o Ministério do Amor, que mantinha a lei e a ordem; e o
Ministério da Fartura, que era responsável pelos assuntos econômicos. Seus nomes
na novilíngua eram, respectivamente, Miniver, Minipaz, Miniamor e Minifarto.
O Ministério do Amor era realmente o mais assustador. Não havia nenhuma
janela. Winston jamais entrara no Ministério do Amor, nem mesmo se aproximara a
menos de quinhentos metros. Era um lugar de difícil acesso, exceto em missões
oficiais, e, mesmo assim, só era possível adentrá-lo depois de atravessar um
labirinto de emaranhados de arame farpado, portas de aço e nichos de metralhadoras
ocultos. Até as ruas que levavam às suas barreiras externas eram patrulhadas por
guardas com semblantes de gorila em uniformes negros, armados com cassetetes
articulados.
Winston se virou abruptamente. Ele havia se forçado a assumir uma expressão
passiva de otimismo, que era a recomendada a se adotar quando se olhava para o
telemonitor. Atravessou a sala e foi até a minúscula cozinha. Ao deixar o Ministério
naquela hora do dia, ele havia sacrificado o almoço no refeitório, e estava ciente de
que não havia comida em casa, exceto um pedaço de pão escuro, que devia ser
deixado para o desjejum da manhã seguinte. Então, ele tirou da prateleira uma
garrafa de um líquido incolor com um rótulo branco escrito GIM VITÓRIA. A
bebida exalava um cheiro apodrecido, rançoso, como de aguardente de arroz chinês.
Winston serviu-se de uma xícara de chá quase cheia, preparou-se para um choque e
engoliu de uma vez como se fosse um remédio.
Instantaneamente, seu rosto ficou vermelho e escorreram lágrimas de seus olhos.
A bebida era como um ácido nítrico, e, sobretudo, ao engoli-la, tinha-se a sensação
de ter sido atingido na nuca com um porrete de borracha. No momento seguinte,
contudo, a queimação no estômago se atenuou e o mundo começou a parecer mais
animado. Ele tirou um cigarro de um maço amarrotado escrito CIGARROS
VITÓRIA e de um modo desastrado ergueu-o de ponta-cabeça, o que fez com que o
tabaco caísse no chão. Com o cigarro seguinte, ele se saiu melhor. Voltou para a sala
e se sentou diante da escrivaninha, que ficava à esquerda do telemonitor. Da gaveta
da escrivaninha, ele tirou uma caneta, um tinteiro e um livro grosso, in-quarto, em
branco, com quarta capa vermelha e capa marmorizada.
Por algum motivo, o telemonitor da sala ficava em uma posição incomum. Em
vez de se localizar, como era normal, na parede dos fundos, onde podia dominar o
ambiente inteiro, este ficava na parede maior, oposta à janela. De um dos lados do
telemonitor havia um recanto estreito onde Winston estava agora sentado, e onde,
quando os apartamentos foram construídos, provavelmente se planejava instalar
estantes de livros. Sentado nesse nicho, e mantendo-se bem encolhido, Winston
conseguia permanecer fora do espectro do telemonitor, pelo menos do campo visual.
Ele podia ser ouvido, evidentemente, mas, desde que continuasse naquela posição,
não podia ser visto. Em parte, foi essa geografia incomum da sala que lhe
possibilitou a ideia do que estava prestes a fazer.
Mas também fora sugerido pelo livro que ele acabara de tirar da gaveta. Era um
livro especialmente bonito. Seu papel liso, cor de creme, um pouco amarelado pelo
tempo, era de um tipo que não se fabricava mais havia pelo menos quarenta anos.
Ele o encontrara na vitrine de uma pequena loja de segunda mão em um bairro
pobre da cidade (exatamente onde, ele não se lembrava mais) e ficara
imediatamente tomado por um desejo arrebatador de possuí-lo. Os membros do
Partido supostamente não deviam frequentar lojas comuns (“comprar no mercado
livre”, como se dizia), porém essa regra não era estritamente observada, pois havia
muitas coisas, como cadarços e lâminas de barbear, por exemplo, que eram
impossíveis de se obter de outra forma. Ele olhara rapidamente para os lados, ainda
na calçada, e então se esgueirara para dentro da loja e comprara o livro por dois
dólares e cinquenta centavos. Na ocasião, não tivera consciência de havê-lo
comprado por nenhum motivo em particular. Levara-o para casa dentro de sua pasta
sentindo culpa. Embora não houvesse nada escrito no livro, este era um objeto
comprometedor.
Ele estava prestes a iniciar um diário. Não era ilegal (nada era ilegal, uma vez
que não existia mais nenhuma lei), mas, caso o livro fosse detectado, era
praticamente certo que ele seria condenado à morte, ou pelo menos a passar vinte e
cinco anos em um campo de trabalhos forçados. Winston prendeu uma pena na
caneta e chupou-a para remover a oleosidade acumulada. A caneta-tinteiro era um
instrumento arcaico, raramente usado até mesmo em assinaturas, e ele procurara
uma, furtivamente e com certa dificuldade, simplesmente pela sensação de que
aquele belo papel cor de creme merecia ser escrito com uma pena de verdade em
vez de ser raspado com um lápis. Na verdade, ele não estava habituado a escrever à
mão. Afora bilhetes muito curtos, o costume era ditar tudo no transcritor, o que
evidentemente era impossível para seu atual propósito. Ele mergulhou a pena no
tinteiro e então hesitou por um segundo. Um tremor percorreu suas vísceras. Marcar
o papel era o ato decisivo. Em letras pequenas e hesitantes, ele escreveu:
4 de abril de 1984.

Ele se recostou na cadeira. Um sentimento de desolação completa se instaurou


dentro dele. Pra começar, ele não tinha nenhuma certeza de que o ano era 1984.
Devia ser algo por volta dessa data, pois ele tinha quase certeza de que tinha trinta e
nove anos, e acreditava ter nascido em 1944 ou 1945; mas não era possível nessa
época mensurar alguma data com precisão de um ou dois anos.
Para quem — de súbito lhe ocorreu se perguntar — ele estava escrevendo esse
diário? Para o futuro, para os não nascidos. Sua mente divagou por um momento em
torno da data ambígua na página, e então lhe ocorreu de modo abrupto a palavra da
novilíngua DUPLIPENSAR. Pela primeira vez, a magnitude da empreitada se
esclareceu para ele. Como seria possível se comunicar com o futuro? Era
naturalmente impossível. Ou o futuro seria semelhante ao presente e, portanto, não
lhe dariam ouvidos, ou o futuro seria diferente, e seu dilema não faria sentido.
Por algum tempo, ele ficou sentado, contemplando o papel com um ar estúpido.
O telemonitor começara a tocar uma música militar estridente. Curiosamente, ele
parecia não apenas ter perdido o poder de se expressar, mas tinha esquecido até o
que de início pretendia dizer. Nas semanas anteriores, ele havia se preparado para
esse momento, e jamais lhe passara pela cabeça que seria necessário outra coisa
além de coragem. A escrita em si seria fácil. Ele só precisava transferir para o papel
o incessante e interminável monólogo que se passava em sua cabeça, literalmente,
fazia anos. Naquele momento, no entanto, até mesmo esse monólogo havia
desaparecido. Além do mais, sua úlcera varicosa começara a coçar de uma forma
insuportável. Ele não ousava coçar porque, quando coçava, sempre inflamava. Os
segundos foram se passando. Ele não tinha consciência de mais nada além do vazio
da página diante de si, da coceira no tornozelo, do estrondo da música e de uma
ligeira embriaguez causada pelo gim.
De repente, ele começou a escrever em pânico, sem saber exatamente o que
estava escrevendo. Sua caligrafia miúda e infantil oscilava para cima e para baixo na
página, a princípio usando maiúsculas e depois omitindo até os pontos finais:
4 de abril de 1984. Ontem à noite fui ao cinema. Só filmes de guerra. Um muito bom de um
navio cheio de refugiados sendo bombardeado em algum lugar do Mediterrâneo. O público
ficou muito entusiasmado com as cenas de um gordo imenso que tentava fugir nadando de um
helicóptero que o perseguia; primeiro, ele aparecia chafurdando na água como um cetáceo;
depois, era mostrado pela mira das armas do helicóptero; então, ele ficou cheio de furos, e o
mar ao redor ficou rosa e ele afundou de repente, como se os furos tivessem deixado entrar
água, e o público gritava e gargalhava quando ele afundou. Nesse momento, apareceu um bote
salva-vidas cheio de crianças e um helicóptero que pairava por cima delas; havia uma mulher
de meia-idade que podia ser uma judia, sentada na proa com um garotinho de uns três anos de
idade no colo. O garotinho gritava de medo e escondia a cabeça entre os seios dela como se
tentasse se enterrar dentro do seu corpo, e a mulher o abraçava e o consolava, embora também
estivesse azul de pavor, o tempo todo cobrindo o menino o máximo possível, como se achasse
que seus braços podiam protegê-lo das balas. Então o helicóptero soltou uma bomba de 20
quilos em cima deles e se fez um clarão terrível, e o bote foi destruído. Depois veio uma cena
maravilhosa de um braço de criança subindo muito alto no ar, um helicóptero com uma
câmera na frente deve ter filmado aquilo, e então muitos aplausos no camarote do Partido,
mas uma mulher lá nas fileiras proletárias de repente começou uma confusão e gritou dizendo
que eles não deviam mostrar aquilo na frente das crianças, que eles não tinham esse direito,
não na frente das crianças, até que a polícia a pegou e a levou, e acho que não aconteceu nada
com ela, quem se importa com o que dizem os proletários? Aliás, típica reação proletária
porque eles nunca…

Winston parou de escrever; em parte, porque estava sentindo cãibras. Ele não
sabia o que o levara a despejar aquele fluxo de lixo no papel. Mas o curioso foi que,
enquanto escrevia, uma lembrança muito diversa surgiu em sua mente, a tal ponto
que ele sentiu que era quase como se a tivesse escrito. Ele agora se dava conta de
que fora por causa desse outro incidente que ele de súbito decidira ir para casa e
começar o diário naquele dia.
Havia acontecido algo naquela manhã no Ministério, se é que se podia afirmar
que algo tão nebuloso tivesse acontecido.
Eram quase onze horas, e no Departamento de Registros, onde Winston
trabalhava, estavam tirando as cadeiras dos cubículos e as agrupando no meio do
salão, diante do grande telemonitor, para os preparativos dos Dois Minutos de Ódio.
Winston havia acabado de pegar seu lugar nas fileiras do meio quando duas pessoas
que ele conhecia de vista, mas com quem jamais falara, inesperadamente entraram
no recinto. Uma dessas pessoas era uma garota que ele costumava encontrar nos
corredores. Ele não sabia o nome dela, mas sabia que trabalhava no Departamento
de Ficção. Provavelmente — como ele algumas vezes a vira com as mãos sujas de
óleo e carregando uma chave inglesa — ela devia ter um emprego de mecânica em
uma das máquinas de escrever romances. A garota tinha um visual ousado,
aparentava ter uns vinte e sete anos, cabelos grossos, rosto sardento e movimentos
ágeis e atléticos. Uma faixa vermelha estreita, emblema da Liga Júnior Antissexo,
dava várias voltas em sua cintura, por cima do macacão, justa o bastante para
acentuar o contorno de seus quadris. Winston havia antipatizado com ela desde o
primeiro momento em que a vira. Ele sabia o motivo. Era por causa da atmosfera de
campos de hóquei e banhos frios e caminhadas comunitárias e de higiene mental
generalizada que ela fazia questão de carregar consigo. Ele antipatizava com
praticamente todas as mulheres, especialmente as jovens e bonitas. Eram sempre as
mulheres, e sobretudo as jovens, as filiadas mais fanáticas do Partido, as
devoradoras de lemas, espiãs amadoras e alcaguetes de heterodoxias. No entanto
essa garota em particular lhe dera a impressão de ser mais perigosa que a maioria.
Um dia, quando se cruzaram no corredor, ela olhou de relance para ele com uma
expressão que pareceu penetrá-lo, e por um momento isso o invadiu de terror. Ele
chegou a cogitar que ela podia ser uma agente da Polícia do Pensamento. Isso, se
fosse verdade, seria muito improvável. Mesmo assim ele continuou a sentir uma
inquietação peculiar, mesclada com medo e hostilidade, sempre que ela estava por
perto.
A outra pessoa era um homem chamado O’Brien, membro do Alto Escalão do
Partido e detentor de algum cargo importante e remoto de cuja natureza Winston só
fazia uma leve ideia. Um alvoroço momentâneo se formou num grupo de pessoas
em torno das cadeiras quando viram o macacão preto — que caracterizava os
componentes do Alto Escalão do Partido — se aproximando. O’Brien era um
homem alto, corpulento, tinha um pescoço grosso e um rosto áspero, expressivo,
brutal. Apesar de sua aparência espetacular, trazia um certo encanto em seus modos.
Tinha um jeito de ajustar a posição dos óculos no nariz que era curiosamente
desconcertante — de alguma maneira indefinível, parecia surpreendentemente
civilizado. Era um gesto que, se alguém ainda pensasse nesses termos, poderia
lembrar um nobre do século XVIII oferecendo a caixa de rapé. Winston tinha visto
O’Brien talvez uma dúzia de vezes ao longo de uma dúzia de anos. Sentia-se
profundamente atraído por ele, e não apenas por ficar intrigado com o contraste
entre os modos urbanos de O’Brien e seu físico de pugilista. Era muito mais por
uma crença secreta — ou talvez nem mesmo uma crença, mas meramente uma
esperança — de que a ortodoxia política de O’Brien não seria perfeita. Algo em seu
semblante sugeria isso de um modo irresistível. E, também neste aspecto, talvez não
fosse exatamente heterodoxia o que transparecia em sua expressão, mas
simplesmente inteligência. De todo modo, porém, ele tinha a aparência de alguém
com quem se podia conversar se, de alguma forma, fosse possível enganar o
telemonitor e ficar a sós. Winston jamais fizera qualquer tentativa de comprovar
essa hipótese: na verdade, não havia como fazer isso. Naquele momento, O’Brien
olhou de relance para o relógio de pulso, viu que eram quase onze horas e
evidentemente resolveu ficar no Departamento de Registros até o encerramento dos
Dois Minutos de Ódio. Ele pegou um lugar da mesma fileira de Winston, a duas
cadeiras de distância. Uma mulher pequena, de cabelos grisalhos, que trabalhava no
cubículo vizinho ao de Winston, ficou entre eles. A garota de cabelos castanhos
estava sentada bem atrás.
No instante seguinte, um discurso hediondo, interminável, como o de uma
máquina monstruosa operando sem lubrificação, explodiu do grande telemonitor da
extremidade do recinto. Era um ruído de fazer a pessoa ranger os dentes e eriçar os
pelos da nuca. O Ódio havia começado.
Como sempre, o semblante de Emmanuel Goldstein, o Inimigo do Povo,
apareceu rapidamente no telemonitor. Houve assobios aqui e ali na plateia. A
pequena mulher grisalha soltou um grito agudo de temor e desprezo mesclados.
Goldstein era o renegado e traidor que um dia, muito tempo atrás (quanto tempo
exatamente, ninguém se lembrava), fora uma das principais figuras do Partido,
quase no nível do próprio Grande Irmão, e então passara às atividades
contrarrevolucionárias, fora condenado à morte e misteriosamente havia escapado e
desaparecido. Os programas de Dois Minutos de Ódio variavam a cada dia, mas
sempre Goldstein era a principal figura. Ele era o traidor fundamental, o primeiro
conspurcador da pureza do Partido. Todos os crimes subsequentes contra o Partido,
todas as traições, as sabotagens, as heresias, os desvios brotaram diretamente de
seus ensinamentos. Provavelmente ele ainda devia estar vivo e gestando suas
conspirações em um lugar qualquer: talvez em outro país, sob a proteção de seus
financiadores estrangeiros, talvez até — segundo rumores ocasionais — em algum
esconderijo na própria Oceania.
O diafragma de Winston estava contraído. Ele não conseguia ver o semblante de
Goldstein sem sentir uma dolorosa mistura de emoções. Era um semblante de judeu
magro, emoldurado por uma grande auréola difusa de cabelos brancos e um
pequeno cavanhaque — tinha um aspecto inteligente e, no entanto, de alguma
forma, intrinsecamente desprezível, com uma espécie de estupidez senil que
transparecia em seu longo nariz fino, em cuja ponta se apoiava um par de óculos.
Parecia a cara de uma ovelha, e a voz também tinha uma qualidade caprina.
Goldstein fazia seu venenoso ataque como sempre às doutrinas do Partido — uma
ofensiva tão exagerada e perversa que até uma criança conseguiria perceber e,
contudo, suficientemente plausível para infundir uma sensação de pavor de que
outras pessoas, menos equilibradas, pudessem se deixar levar por ele. Ele criticava o
Grande Irmão, denunciava a ditadura do Partido, exigia a imediata conclusão da paz
com a Eurásia, defendia a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a
liberdade de assembleia, a liberdade de pensamento, gritava de um modo histérico
afirmando que a revolução tinha sido traída — e tudo isso em um discurso
polissilábico veloz, que era uma espécie de paródia do estilo habitual dos oradores
do Partido e continha algumas palavras da novilíngua: mais palavras da novilíngua,
aliás, do que qualquer membro do Partido normalmente usaria de fato. E o tempo
todo, para que ninguém tivesse dúvidas relativas à realidade que a conversa fiada e
enganosa de Goldstein encobria, atrás de sua cabeça no telemonitor, marchavam
infinitas filas do exército eurasiano — tropas e mais tropas de homens de aparência
sólida com inexpressivos semblantes asiáticos, que emergiam na superfície do
telemonitor e desapareciam, dando lugar a outros exatamente iguais. O tropel
ritmado e indiferente das botas dos soldados formava o pano de fundo da voz balida
de Goldstein.
Antes que o Ódio fosse processado por trinta segundos, exclamações
incontroláveis de fúria começaram a surgir por uma parte das pessoas que se
encontravam no salão. O semblante caprino, aparentemente satisfeito consigo
mesmo no telemonitor, e o terrível poder do exército eurasiano ao fundo eram
demais para suportar; além disso, a imagem de Goldstein ou apenas o fato de pensar
nele geravam temor e raiva imediatamente. Ele era um objeto de ódio mais
constante até que a Eurásia ou a Lestásia, pois, quando a Oceania entrava em guerra
com uma dessas potências, geralmente estava em paz com a outra. O estranho,
porém, era que, embora Goldstein fosse odiado e desprezado por todos, ainda que
todo dia e mil vezes por dia, apesar de, nas plataformas, nos telemonitores, nos
jornais e livros, suas teorias serem refutadas, demolidas, ridicularizadas, mostradas
para o público como as sandices lamentáveis que eram, apesar de tudo isso, sua
influência nunca diminuía. Jamais passava um dia sem que espiões e sabotadores
agindo sob orientação dele fossem desmascarados pela Polícia do Pensamento. Ele
era o comandante de um vasto exército de sombras, uma rede clandestina de
conspiradores dedicada a derrubar o Estado. A Irmandade, este era supostamente
seu nome. Havia também histórias sussurradas de um livro terrível, um compêndio
de todas as heresias, do qual Goldstein era o autor, que circulava clandestinamente
aqui e ali. Era um livro sem título. As pessoas se referiam a ele, quando o faziam,
simplesmente como O LIVRO. Mas só se sabia dessas coisas por rumores. A
Irmandade e O LIVRO não eram assuntos que um membro do Partido mencionaria,
se houvesse como evitá-los.
No segundo minuto, o Ódio cresceu até se tornar um frenesi. As pessoas
pulavam em suas cadeiras e berravam a plenos pulmões em um esforço de abafar a
enlouquecedora voz balida que vinha do telemonitor. A mulherzinha grisalha havia
ficado muito corada, e sua boca se abria e fechava como a de um peixe em terra
firme. Até o semblante de O’Brien enrubesceu. Ele estava sentado muito ereto em
sua cadeira, seu tórax avantajado inflava-se e estremecia como se ele enfrentasse
uma onda com o corpo. A garota de cabelos castanhos atrás de Winston havia
começado a gritar “Porco! Porco! Porco!” e subitamente apanhou um pesado
exemplar do Dicionário da Novilíngua e o atirou contra o telemonitor. O livro
acertou o nariz de Goldstein e caiu ao chão; a voz continuou de forma inexorável.
Em um momento de lucidez, Winston percebeu que estava gritando com os outros e
chutando a cadeira de um modo violento com o salto do sapato. A coisa mais
horrível dos Dois Minutos de Ódio não era o fato de que todos eram obrigados a
representar um papel, mas, pelo contrário, que era impossível evitar participar.
Depois de trinta segundos, não havia mais nenhuma necessidade de fingir. Um
êxtase hediondo de medo e sentimento de vingança, um desejo de matar, de torturar,
de esmagar alguns rostos com uma marreta pareciam fluir por todo o grupo de
pessoas como uma corrente elétrica, transformando-as mesmo contra a vontade em
lunáticos convulsivos e histéricos. E, no entanto, a raiva que se sentia era uma
emoção abstrata, não direcionada, que podia mudar de um objeto para outro como a
chama de um lampião. Assim, agora o ódio de Winston não era de maneira nenhuma
contra Goldstein, mas, pelo contrário, era contra o Grande Irmão, o Partido e a
Polícia do Pensamento; e nesses momentos seu coração se aproximava do solitário e
difamado herege que aparecia no telemonitor, o único guardião da verdade e da
sanidade em um mundo de mentiras. Contudo, no instante seguinte, ele estava do
lado da multidão à sua volta, e tudo o que diziam sobre Goldstein parecia ser
verdade. Nesses momentos, seu ódio secreto contra o Grande Irmão se convertia em
adoração, e o Grande Irmão parecia se agigantar, invencível e destemido protetor,
como um rochedo contra as hordas da Ásia, e Goldstein, apesar de seu isolamento,
de seu desamparo e da dúvida que pairava sobre a própria existência, parecia um
feiticeiro sinistro, capaz de, apenas com o poder da própria voz, arruinar toda a
estrutura da civilização.
Era possível até mesmo, às vezes, mudar o objeto do ódio por um ato voluntário,
conforme o caso. De repente, como no violento esforço com que afastamos a cabeça
do travesseiro durante um pesadelo, Winston conseguiu transferir seu ódio do
semblante no telemonitor para a garota de cabelos castanhos atrás de si. Alucinações
nítidas, esplêndidas, lampejaram em sua mente. Ele a açoitaria até a morte com um
porrete de borracha. Ele a amarraria nua a uma estaca e a transpassaria de flechas
como São Sebastião. Ele a violaria e a degolaria no instante do clímax. Mais do que
antes, sobretudo, ele compreendeu POR QUE ele a odiava. Ele a odiava porque ela
era jovem e bonita e assexuada, porque ele queria ir para a cama com ela e jamais o
faria, porque ao redor de sua cintura delicada e firme, que parecia implorar para ser
abraçada, havia apenas a odiosa faixa vermelha, agressivo símbolo da castidade.
O Ódio chegou ao clímax. A voz de Goldstein havia se tornado efetivamente um
balido de ovelha, e por um instante seu rosto se converteu na cara de uma ovelha.
Depois o semblante caprino se fundiu à figura de um soldado eurasiano que parecia
avançar, imenso e terrível, com sua submetralhadora rugindo, parecendo saltar da
superfície do telemonitor, tanto que algumas pessoas da primeira fila efetivamente
recuaram nas cadeiras. Contudo, no mesmo instante, extraindo um profundo suspiro
de alívio de todos, a figura hostil se fundiu ao semblante do Grande Irmão, de
cabelos e bigodes pretos, emanando poder e uma misteriosa calma, tão imenso que
enchia quase o telemonitor inteiro. Ninguém ouviu o que o Grande Irmão estava
dizendo. Eram apenas palavras de encorajamento, o tipo de palavra que se dizia no
clamor da guerra, particularmente indistintas, mas que restauravam a confiança pelo
fato de serem ditas. Então, o semblante do Grande Irmão sumiu novamente, e em
seu lugar os três lemas do Partido se destacaram em letras garrafais:
GUERRA É PAZ.
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO.
IGNORÂNCIA É FORÇA.

O semblante do Grande Irmão, entretanto, permaneceu por alguns segundos no


telemonitor, como se o impacto que ele causara nos globos oculares de todos fosse
vívido demais para desaparecer imediatamente. A mulherzinha grisalha havia se
atirado sobre o encosto da cadeira à sua frente. Com um murmúrio trêmulo que
soava como “Meu salvador!”, ela estendeu os braços em direção à tela. Então, ela
cobriu o rosto com as mãos. Parecia que estava rezando.
Nesse momento, o grupo inteiro começou a entoar um canto grave, lento,
ritmado… “Gê-I!… Gê-I!”, incessante, bem devagar, com uma longa pausa entre o
primeiro “Gê” e o segundo — um som pesado, murmurado, de alguma forma
curiosamente selvagem, por sob o qual era possível ouvir o tropel de pés descalços e
um rufar de tambores. Por cerca de trinta segundos, isso continuou. Era um refrão
muitas vezes ouvido em momentos de arrebatadora emoção. Em parte, era uma
espécie de hino à sabedoria e à majestade do Grande Irmão; porém, mais do que
isso, era um ato de auto-hipnose, um entorpecimento voluntário da consciência
através de um som ritmado. Winston sentiu como se suas vísceras tivessem esfriado.
Nos Dois Minutos de Ódio, ele não conseguia evitar de tomar parte no delírio geral,
mas aquele canto sub-humano de “Gê-I!… Gê-I!” sempre o enchia de terror.
Evidentemente, ele cantava com o restante das pessoas: era impossível fazer
diferente. Dominar os sentimentos, controlar o semblante, fazer o que todo mundo
fazia eram reações instintivas. Mas havia um intervalo de alguns segundos em que a
expressão de seus olhos podia supostamente traí-lo. E foi exatamente nesse
momento que uma coisa importante aconteceu — se é que, de fato, realmente
aconteceu.
De repente, ele cruzou o olhar de O’Brien. O’Brien tinha se levantado. Ele havia
tirado os óculos e estava em pleno ato de ajustá-los no nariz com seu gesto
característico, mas por uma fração de segundo seus olhos se encontraram, e no
tempo que isso levou para acontecer Winston percebeu — sim, ele PERCEBEU! —
que O’Brien estava pensando a mesma coisa que ele. Um recado inconfundível fora
passado. Era como se as duas mentes tivessem se aberto e os pensamentos
estivessem flutuando de um para o outro através de seus olhos. “Estou com você”,
O’Brien parecia estar dizendo a ele. “Sei exatamente o que você está sentindo. Eu
entendo o seu desdém, o seu ódio, o seu desgosto. Mas não se preocupe, estou do
seu lado!” Então, o lampejo de inteligência passou, e a expressão de O’Brien ficou
tão insondável quanto a de qualquer outra pessoa.
Isso foi tudo, e ele já não tinha mais certeza de que aquilo havia mesmo
acontecido. Esses incidentes nunca tinham continuidade. A única coisa que faziam
era manter viva dentro dele a crença ou a esperança de que outros além dele eram
inimigos do Partido. Talvez os rumores de diversas conspirações clandestinas
fossem verdade, afinal — talvez a Irmandade realmente existisse! Era impossível,
apesar das infinitas prisões e confissões e execuções, ter certeza de que a Irmandade
não era simplesmente um mito. Um dia, ele acreditava nisso; no outro, não. Não
havia evidências, apenas lampejos fugazes que podiam significar alguma coisa ou
nada; ruídos de conversas entreouvidas, rabiscos apagados nas paredes dos
lavatórios — uma vez, até, em que dois desconhecidos se encontraram, houve um
pequeno movimento da mão que parecia um sinal de reconhecimento. Eram apenas
conjecturas; muito provavelmente ele havia imaginado tudo isso. Então, ele voltou
para seu cubículo sem olhar de novo para O’Brien. A ideia de dar continuidade
àquele contato momentâneo mal passou pela sua cabeça. Teria sido perigoso, algo
inconcebível, mesmo que ele soubesse como agir. Por um ou dois segundos, eles
haviam trocado um olhar ambíguo, e só, ponto final. Contudo até isso era um
acontecimento memorável, na solidão confinada em que era preciso viver.
Winston despertou e se endireitou na cadeira. Ele arrotou. O gim estava se
revirando em seu estômago.
Seus olhos tornaram a se concentrar na página. Ele descobriu que, enquanto
divagava ali sentado, também estivera escrevendo, meio automaticamente. E a
caligrafia não tinha mais a mesma letra trêmula e torta de antes. Sua pena havia
deslizado com desenvoltura, de forma voluptuosa, pelo papel liso, registrando em
maiúsculas caprichadas: ABAIXO O GRANDE IRMÃO ABAIXO O GRANDE
IRMÃO ABAIXO O GRANDE IRMÃO ABAIXO O GRANDE IRMÃO ABAIXO
O GRANDE IRMÃO repetidas e inúmeras vezes, enchendo meia página.
Ele não conseguiu evitar sentir uma pontada de pânico. Aquilo era absurdo, uma
vez que a escrita daquelas palavras em particular não era mais perigosa do que o ato
de iniciar um diário, mas, por um momento, ele sentiu a tentação de rasgar as
páginas usadas e abandonar a empreitada de uma vez.
Ele não fez isso, contudo, porque sabia que não adiantava nada. Se ele escrevia
ABAIXO O GRANDE IRMÃO, ou se tentava manter o controle para não escrevê-
lo, não fazia diferença. Se continuasse com o diário, ou se não continuasse, não
fazia diferença. A Polícia do Pensamento acabaria conseguindo pegá-lo de um jeito
ou de outro. Ele havia cometido — e teria cometido mesmo se não tivesse encostado
a pena no papel — o crime essencial que continha em si todos os outros.
Crimepensar, como eles chamavam. O crimepensar não era uma coisa que podia se
esconder para sempre. Era possível se esquivar por algum tempo, até mesmo por
anos, mas cedo ou tarde eles acabariam conseguindo pegá-lo.
Era sempre à noite — as prisões invariavelmente aconteciam à noite. O súbito
solavanco em meio ao sono, a mão áspera puxando seu ombro, as luzes ofuscantes
em seus olhos, o círculo de semblantes rígidos em volta da cama… Na imensa
maioria dos casos, não havia julgamento, nem boletim de ocorrência. As pessoas
simplesmente desapareciam, sempre durante a noite. O seu nome era removido dos
registros, cada registro de cada coisa que você já havia feito na vida era apagado,
sua inteira existência era negada e, então, esquecida. Você era abolido, aniquilado:
EVAPORADO era a palavra mais comum para isso.
Por um momento, ele foi tomado por uma espécie de histeria. Então, começou a
escrever com garranchos apressados e desconexos:
Eles vão atirar em mim não me importa vão atirar na minha nuca não me importa abaixo o
grande irmão sempre atiram na nuca não me importa abaixo o grande irmão…
Ele se recostou na cadeira, um pouco envergonhado de si mesmo, e largou a
caneta. No momento seguinte, teve um violento sobressalto. Alguém estava batendo
na porta.
Já?! Ele ficou imóvel como um camundongo, na fútil esperança de que, quem
quer que fosse, iria embora após a primeira tentativa. Mas não, as batidas na porta se
repetiram. A pior coisa seria postergar. Seu coração batia como um tambor, mas sua
face, bastante habituada, provavelmente não tinha expressão nenhuma. Ele se
levantou e caminhou lentamente até a porta.
Capítulo 2

Quando pôs a mão na maçaneta, Winston se deu conta de que havia deixado o diário
aberto na mesa. Escrito várias vezes em suas páginas se via ABAIXO O GRANDE
IRMÃO em letras grandes o suficiente para serem legíveis do outro lado da sala.
Era uma coisa inconcebível, estúpida de se fazer. No entanto ele se lembrou, mesmo
em pânico, de que não queria borrar o papel cor de creme fechando o livro enquanto
a tinta ainda estivesse fresca.
Ele respirou fundo e abriu a porta. De súbito, uma onda quente de alívio
percorreu seu corpo. Uma mulher pálida, abatida, de cabelos crespos e rosto vincado
estava em pé ali fora.
— Oh, camarada — ela começou com uma voz triste, lamentosa —, achei
mesmo que tinha ouvido você chegar. Você acha que poderia vir aqui e dar uma
olhada na pia da cozinha? Está entupida e…
Era a senhora Parsons, a mulher do vizinho do mesmo andar. (“Senhora” era
uma palavra um tanto desestimulada pelo Partido — o certo era chamar todo mundo
de “camarada” —, mas com algumas mulheres usava-se a palavra de modo
instintivo.) Era uma mulher de uns trinta anos, que, porém, parecia muito mais
velha. Tinha-se a impressão de que havia poeira nas rugas de seu rosto. Winston
acompanhou-a pelo corredor. Esses serviços amadores de conserto eram um
incômodo quase diário. As Mansões Vitória eram formadas por apartamentos
velhos, construídos em 1930 ou por volta disso, e estavam caindo aos pedaços. O
gesso despencava constantemente dos tetos e das paredes, os canos estouravam a
cada geada mais forte, o telhado vazava sempre que nevava, a calefação geralmente
só funcionava com metade da potência, quando não estava desligada por questão de
economia. Os consertos, quando a própria pessoa não conseguia resolver sozinha,
precisavam ser aprovados por remotos comitês, pelos quais era possível esperar dois
anos para se consertar uma janela.
— Claro, é só porque o Tom não está em casa — disse lentamente a senhora
Parsons.
O apartamento dos Parsons era maior que o de Winston, e melancólico de um
modo diferente. Tudo tinha um aspecto de devastação, de estragado, como se um
grande animal violento tivesse acabado de sair dali. Havia materiais esportivos —
tacos de hóquei, luvas de boxe, uma bola de futebol murcha, um calção suado
virado do avesso — espalhados por toda parte, e na mesa tinha uma pilha de louça
suja e livros de exercícios com as pontas das páginas dobradas. Nas paredes, viam-
se faixas vermelhas da Liga Jovem e dos Espiões, e um cartaz imenso do Grande
Irmão. Sentia-se também o cheiro de repolho cozido, comum a todo o edifício, mas
permeado por um fedor mais incisivo de suor, que — era possível saber na primeira
farejada, embora fosse difícil explicar como — era o suor de alguém que não estava
presente no momento. Em outro cômodo, alguém soprando em um pente e um
pedaço de papel higiênico tentava tocar no tom da música militar que ainda era
transmitida pelo telemonitor.
— São as crianças — disse a senhora Parsons, lançando um olhar um tanto
apreensivo pelo vão da porta. — Elas não saíram de casa o dia inteiro hoje. E, é
claro…
Ela tinha o costume de interromper as frases no meio. A pia da cozinha estava
cheia até a borda de uma água esverdeada, asquerosa, que tinha um cheiro ainda
pior do que o de repolho. Winston se ajoelhou e examinou a dobra do sifão. Ele
odiava usar as mãos, odiava se abaixar, o que sempre o fazia tossir. A senhora
Parsons olhou para ele desolada.
— Claro, se o Tom estivesse em casa, ele arrumaria isso em um minuto — ela
disse. — Ele adora esse tipo de coisa. Ele é muito habilidoso com as mãos, o meu
Tom.
Parsons era colega de Winston no Ministério da Verdade. Era um homem
gorducho, mas ativo, de uma estupidez paralisante, uma massa imbecil de
entusiasmo — um daqueles burros de carga completamente devotados que nunca
fazem perguntas, dos quais, mais do que da Polícia do Pensamento, a estabilidade
do Partido dependia. Aos trinta e cinco anos, ele havia acabado de ser expulso
contra sua vontade da Liga Jovem, e, antes de se formar na Liga Jovem, havia
conseguido ficar nos Espiões por um ano além da idade-limite. No Ministério,
trabalhava em algum cargo subordinado para o qual a inteligência não era pré-
requisito, mas, por outro lado, era uma figura importante no Comitê Esportivo e em
todos os outros comitês envolvidos na organização de caminhadas comunitárias,
demonstrações espontâneas, campanhas de economia e atividades voluntárias em
geral. Ele informava a todos com um orgulho conciso, entre baforadas de seu
cachimbo, que havia comparecido ao Centro Comunitário todas as noites nos
últimos quatro anos. Um cheiro de suor repugnante, uma espécie de testemunho
inconsciente de sua vida de esforços, acompanhava-o aonde quer que ele fosse, e
permanecia em seu rastro depois que ele ia embora.
— Você tem uma chave inglesa? — disse Winston, tentando desenroscar o sifão.
— Uma chave inglesa? — disse a senhora Parsons, imediatamente convertida
em um invertebrado. — Não sei, não tenho certeza. Talvez as crianças…
Ouviram-se um tropel de botas e outro sopro no pente quando as crianças
passaram a invadir a sala. A senhora Parsons trouxe a chave inglesa. Winston
deixou a água escorrer e, com asco, removeu o acúmulo de cabelos que havia
bloqueado o cano. Ele limpou os dedos o melhor que pôde na água fria da torneira e
voltou para a sala.
— Levante suas mãos! — berrou uma voz selvagem.
Um menino lindo, de aparência rude, de uns nove anos, havia saltado de trás da
mesa e agora o ameaçava com uma pistola automática de brinquedo, ao lado da
irmãzinha, cerca de dois anos mais nova, que fazia o mesmo gesto com um pedaço
de madeira. Ambos usavam calções azuis, camisas cinzentas e lenços vermelhos no
pescoço, que compunham o uniforme dos Espiões. Winston ergueu as mãos sobre a
cabeça, mas com uma sensação incômoda, pois a atitude do menino era tão cruel
que não parecia se tratar de uma brincadeira.
— Você é um traidor! — berrou o menino. — Seu crimepensador! Seu espião
eurasiano! Vou atirar em você, vou evaporar você, vou mandar você para as minas
de sal!
De repente, as duas crianças saltaram sobre ele em meio aos berros de
“Traidor!” e “Crimepensador!”; a garotinha imitava cada movimento do irmão. Era,
em certo sentido, um pouco assustador, como as brincadeiras de filhotes de tigre,
que logo crescem e viram devoradores de homens. Havia uma espécie de ferocidade
calculada no olhar do menino, um desejo muito evidente de bater em Winston ou
chutá-lo e uma consciência de ser quase grande o bastante para fazê-lo. Ainda bem
que a pistola que ele segurava não era de verdade, pensou Winston.
Os olhos da senhora Parsons oscilavam, de um modo nervoso, de Winston para
as crianças e depois de novo para ele. À luz mais forte da sala, ele percebeu
intrigado que havia de fato poeira nas rugas do rosto dela.
— Eles estão muito agitados — ela disse. — Ficaram decepcionados porque não
puderam ir ao enforcamento, por isso estão assim. Estou ocupada demais para levá-
los, e o Tom não vai voltar do trabalho a tempo.
— Por que a gente não pode ir ver o enforcamento? — rugiu o menino com seu
vozeirão.
— Queremos ver o enforcamento! Queremos ver o enforcamento! — entoou a
garotinha, dando cambalhotas pela sala.
Alguns prisioneiros eurasianos, culpados de crimes de guerra, seriam enforcados
no parque aquela noite. Winston se lembrou. Acontecia cerca de uma vez por mês, e
era um espetáculo popular. As crianças sempre queriam ser levadas para assistir. Ele
pediu licença à senhora Parsons e foi em direção à porta. Mas ainda não tinha dado
seis passos no corredor quando algo atingiu sua nuca, causando-lhe uma dor
agonizante. Era como se um ferro em brasa tivesse se cravado em sua carne. Ele se
virou a tempo de ver a senhora Parsons puxando o filho de volta para dentro de casa
enquanto o menino guardava no bolso o estilingue.
— Goldstein! — berrava o menino quando a porta se fechou, mas o que mais
impressionou Winston foi a expressão desolada de desamparo no semblante
cinzento da mãe.
De volta ao apartamento, ele rapidamente passou pelo telemonitor e tornou a se
sentar à escrivaninha, ainda esfregando a nuca. A música no telemonitor havia
cessado. Em vez disso, uma voz militar, articulada e rápida, lia, com uma espécie de
prazer brutal, uma descrição de armamentos da nova Fortaleza Flutuante que havia
acabado de ancorar entre a Islândia e as Ilhas Faroe.
Com aquelas crianças, pensou ele, aquela mulher desgraçada devia levar uma
vida de horror. Mais um, dois anos, e os próprios filhos a estariam vigiando dia e
noite em busca de sintomas de heterodoxia. Quase todas as crianças atualmente
eram horríveis. E o pior de tudo era que, por intermédio daquelas organizações,
como os Espiões, as crianças estavam sistematicamente se tornando pequenos
selvagens ingovernáveis; no entanto, isso não produzia nelas nenhuma tendência à
rebeldia contra a disciplina do Partido. Pelo contrário, as crianças adoravam o
Partido e tudo o que se relacionava a ele. As canções, os desfiles, os estandartes, as
caminhadas, os exercícios com rifles de mentira, a gritaria dos lemas, a idolatria ao
Grande Irmão — para elas, era tudo uma espécie gloriosa de jogo. Toda a ferocidade
das crianças era exteriorizada contra os inimigos do Estado, contra estrangeiros,
traidores, sabotadores, crimepensadores. Era praticamente normal que pessoas com
mais de trinta anos tivessem medo dos próprios filhos. E com bons motivos, pois
quase nunca passava uma semana sem que O Tempo
trouxesse um parágrafo
descrevendo como uma “criança heroica” — como se costumava dizer —,
intrometida em conversas de adultos, entreouvira um comentário comprometedor e
denunciara os próprios pais à Polícia do Pensamento.
A dor causada pelo projétil do estilingue havia passado. Ele pegou a caneta,
ainda indeciso, perguntando-se se teria mais alguma coisa para escrever em seu
diário. De súbito, começou a pensar em O’Brien outra vez.
Anos atrás — quanto tempo fazia? uns sete anos —, ele havia sonhado que
estava em um quarto completamente escuro, andando, e que alguém sentado disse, a
seu lado, quando ele passou: “Nós nos encontraremos de novo no lugar em que não
existe escuridão…”. Foi uma frase dita em voz muito baixa, quase por acaso — uma
afirmação, não uma ordem. Ele continuou caminhando, sem parar. O curioso é que,
dessa vez, no sonho, as palavras não o haviam impressionado muito. Só mais tarde,
e aos poucos, as palavras assumiram algum significado. Ele não conseguia lembrar
se fora antes ou depois do sonho que vira O’Brien pela primeira vez, nem se
lembrava se, a princípio, havia identificado a voz como sendo a de O’Brien. No
entanto, de todo modo, houve uma identificação. Era O’Brien quem havia falado
com ele naquela escuridão.
Winston jamais chegara a ter certeza — mesmo depois de trocar olhares com
O’Brien naquela manhã, ainda era impossível saber se ele era um amigo ou um
inimigo. Tampouco isso parecia ter muita importância. Havia um vínculo de
compreensão entre eles mais importante do que o afeto ou a camaradagem. “Nós
nos encontraremos de novo no lugar em que não existe escuridão”, ele dissera.
Winston não sabia o que isso significava, apenas achava que de uma forma ou de
outra aquilo se realizaria.
A voz no telemonitor fez uma pausa. Um toque de clarim, límpido e magnífico,
pairou no ar estagnado. A voz continuou de um modo ríspido:
“Atenção! Um minuto da sua atenção, por favor! Uma notícia acaba de chegar do front
de
Malabar. Nossas forças no Sul da Índia conquistaram uma vitória gloriosa. Estou autorizado a
dizer que a ação que agora passamos a reportar pode muito bem trazer a guerra a uma
distância considerável de seu final. Segue a reportagem…”

Más notícias, pensou Winston. E, com toda a certeza, após a descrição sangrenta
da aniquilação do exército eurasiano, com números estupendos de mortos e
prisioneiros, viria o aviso de que, a partir da semana seguinte, a ração de chocolate
seria reduzida de trinta gramas para vinte.
Winston arrotou outra vez. O gim estava perdendo o efeito, deixando uma
sensação de vazio. O telemonitor — talvez para celebrar a vitória, talvez para
apagar a lembrança do chocolate perdido — atacou Oceania, isto é por ti
. Era
obrigatório ouvir o hino em posição de sentido. No entanto, em sua atual
localização, ele estava invisível.
Oceania, isto é por ti
cedeu lugar a músicas mais leves. Winston caminhou até a
janela, de costas para o telemonitor. O dia ainda estava frio e claro. Em algum lugar
distante, bem longe, um foguete explodiu e produziu um rugido surdo, reverberante.
Cerca de vinte ou trinta desses foguetes atualmente caíam sobre Londres toda
semana.
Lá embaixo, na rua, o vento fazia tremular o cartaz rasgado, e a palavra
INGSOC aparecia e desaparecia como se fossem espasmos. Ingsoc. Os princípios
sagrados do Ingsoc. A novilíngua, o duplipensar, a mutabilidade do passado. Ele se
sentiu como se vagasse por uma floresta no fundo do mar, perdido em um mundo
monstruoso, onde ele mesmo também era um monstro. Estava sozinho. O passado
estava morto, o futuro era inimaginável. Que certeza ele tinha de que haveria uma
única criatura humana atualmente viva que estava do seu lado? E como saber se o
domínio do Partido não duraria PARA SEMPRE? Como em resposta, os três lemas
na fachada branca do Ministério da Verdade voltaram à sua lembrança:

GUERRA É PAZ.
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO.
IGNORÂNCIA É FORÇA.

Ele pegou uma moeda de vinte e cinco centavos do bolso. Também na moeda,
em letras minúsculas e nítidas, os mesmos lemas estavam inscritos, e do outro lado
havia a cabeça do Grande Irmão. Mesmo na moeda os olhos também eram
perscrutadores. Em moedas, selos, capas de livros, estandartes, cartazes, nos maços
de cigarro — em toda parte. Sempre aqueles olhos a vigiar e a voz a envolver a
todos. Dormindo ou acordado, trabalhando ou comendo, dentro ou fora de casa, no
banho ou na cama — não havia escapatória. Nada era seu, exceto os poucos
centímetros cúbicos dentro de seu crânio.
O sol havia mudado de posição, e a miríade de janelas do Ministério da Verdade,
com as luzes já apagadas, parecia sombria como as seteiras de uma fortaleza. Seu
coração se acovardou diante da enorme massa piramidal. Era gigantesco demais,
não podia sequer ser atacado. Ele tornou a se perguntar para quem estaria
escrevendo seu diário. Para o futuro, para o passado — para uma época que talvez
fosse imaginária. E diante dele o que se projetava não era a morte, mas a
aniquilação. O diário seria reduzido a cinzas; e ele, a vapor. Apenas a Polícia do
Pensamento leria o que ele viesse a escrever, antes de apagar tudo da existência e da
lembrança. Como era possível fazer um apelo ao futuro quando nenhum vestígio,
nem mesmo uma palavra anônima rabiscada em um pedaço de papel, poderia
sobreviver fisicamente?
O telemonitor informou que eram duas da tarde. Ele precisava sair em dez
minutos. Tinha de estar de volta ao trabalho às duas e meia.
Curiosamente, o toque das horas parecia ter lhe dado nova coragem. Ele era um
fantasma solitário dizendo uma verdade que ninguém jamais ouviria. Porém,
contanto que ele a dissesse, de alguma forma obscura, a continuidade não seria
rompida. Não era se fazendo ouvir, mas se mantendo são, que o patrimônio da
humanidade seria levado adiante. Ele voltou à escrivaninha, mergulhou a pena no
tinteiro, e escreveu:
Ao futuro, ou ao passado, a um tempo em que o pensamento seja livre, quando os homens
forem diferentes uns dos outros e não viverem sozinhos — a uma era em que a verdade exista
e o que for feito não possa ser desfeito: da era da uniformidade, da era da solidão, da era do
Grande Irmão, da era do duplipensar — saudações!

Ele já estava morto, refletiu. Parecia-lhe que só agora, quando conseguia


formular os pensamentos, ele dava o passo decisivo. As consequências de cada ato
estão inclusas no ato em si. Então, ele escreveu:
O crimepensar não leva à morte: o crimepensar É a morte.

Agora que ele havia se identificado como um homem morto, tornou-se


importante permanecer vivo o maior tempo possível. Dois dedos de sua mão direita
estavam manchados de tinta. Era exatamente o tipo de detalhe que poderia entregá-
lo. Algum fanático intrometido do Ministério (provavelmente uma mulher, alguém
como aquela mulherzinha grisalha ou a garota de cabelos castanhos do
Departamento de Ficção) podia começar a se perguntar por que ele andara
escrevendo no intervalo do almoço, por que ele havia usado uma caneta antiquada,
O QUE ele andaria escrevendo — e então registraria uma suspeita no setor
correspondente. Ele foi ao banheiro e cuidadosamente esfregou a tinta com o áspero
sabão marrom-escuro que raspava a pele como uma lixa e era, portanto, apropriado
a tal propósito.
Depois, guardou o diário na gaveta. Era totalmente inútil pensar em escondê-lo,
mas ele podia ao menos saber se sua existência seria descoberta ou não. Um fio de
cabelo deixado sobre a margem das páginas era óbvio demais. Com a ponta de um
dedo, ele pegou uma pitada de pó branco de extração de digitais e depositou no
canto da capa, de onde a poeira seria espanada caso o livro fosse movido.
Capítulo 3

Winston estava sonhando com a mãe.


Ele devia, achava, ter dez ou onze anos quando a mãe desapareceu. Ela era alta,
escultural, uma mulher um tanto reservada, de movimentos lentos e magníficos
cabelos claros. Do pai, ele se lembrava mais vagamente; era moreno e magro,
sempre vestido com roupas escuras impecáveis (Winston se lembrava especialmente
das solas muito finas de seus sapatos), e usava óculos. Os dois deviam ter sido
evidentemente engolidos por um dos primeiros grandes expurgos dos anos 50.
Naquele momento, a mãe estava sentada em algum lugar muito abaixo dele, com
sua irmã mais nova nos braços. Ele não se lembrava da irmã, exceto quando era um
minúsculo e frágil bebê, sempre silenciosa, com olhos grandes e atentos. Ambas
olhavam para ele. Elas estavam em uma espécie de subsolo — no fundo de um
poço, por exemplo, ou uma cova muito profunda —, mas era um lugar que, além de
ser muito abaixo de onde ele estava, também se movia para baixo. Elas estavam no
salão de um navio que afundava, olhando para cima, para ele, através da água que
escurecia. Ainda havia ar no salão, elas podiam vê-lo e ele a elas, mas o tempo todo
estavam afundando nas águas verdes que no momento seguinte as ocultariam para
sempre. Ele estava fora da água, na luz e no ar, enquanto elas eram sugadas para a
morte, e elas só estavam lá embaixo porque ele estava ali em cima. Ele sabia disso e
elas sabiam disso, e ele podia ver esse entendimento no rosto delas. Não havia
censura em seus semblantes ou em seus corações, apenas sabiam que precisariam
morrer para que ele continuasse vivo, e que isso era parte da ordem inevitável das
coisas.
Ele não conseguia se lembrar do que aconteceu depois, mas sabia nesse sonho
que de alguma forma a vida da mãe e da irmã havia sido sacrificada pela sua. Era
um desses sonhos que, embora mantendo o típico cenário de sonho, são uma
continuação da vida intelectual da pessoa, e em que nos tornamos conscientes de
fatos e ideias que parecem continuar novos e valiosos mesmo depois que
acordamos. O que agora subitamente impressionava Winston era o fato de que a
morte da mãe, quase trinta anos atrás, havia sido trágica e triste de um modo que
hoje não seria mais possível. A tragédia, ele percebeu, pertencia a um tempo antigo,
a um tempo em que ainda existiam privacidade, amor e amizade, e em que os
membros de uma família ficavam juntos sem que se precisasse saber o motivo. A
lembrança da mãe rasgou seu coração porque ela morrera amando-o numa época em
que ele era jovem e egoísta demais para amá-la também, e porque, de alguma forma,
ele não se lembrava como, ela havia se sacrificado a uma concepção de lealdade que
era particular e inalterável. Esse tipo de coisa, ele entendeu, não aconteceria hoje em
dia. Agora havia medo, ódio e dor, mas nenhuma dignidade da emoção, nenhuma
tristeza profunda ou complexa. Tudo isso ele parecia ver nos olhos arregalados da
mãe e da irmã, olhando para cima, para ele, através da água verde, a centenas de
braças e ainda afundando.
De repente, ele estava em meio a um gramado rasteiro, em uma tarde de verão,
num momento em que os raios inclinados do sol douravam o chão. A paisagem para
a qual ele olhava era tão recorrente em seus sonhos que ele nunca tinha plena
certeza de que a havia visto no mundo real. Quando acordava, ele a chamava de
Campo Dourado. Era um velho pasto roído pelos coelhos, com uma trilha que o
atravessava e tocas de toupeira aqui e ali. Na cerca torta do outro lado do campo, os
ramos dos olmos balançavam levemente à brisa, com as folhas farfalhando em
densas massas, como os cabelos de uma mulher. Em algum lugar, ao alcance da
mão, mas longe dos olhos, havia um riacho de águas claras, lento, onde os peixes
dourados nadavam nas piscinas sob os salgueiros.
A garota de cabelos castanhos estava vindo em direção a ele pelo campo.
Aparentemente com um só movimento, ela rasgou as roupas e as atirou com desdém
para os lados. Seu corpo era branco e liso, mas não despertava nenhum desejo nele;
na verdade, ele mal olhou para ela. O que o arrebatou naquele instante foi a
admiração pelo gesto com que ela jogou as roupas no chão. Com graça e descuido,
aquele gesto parecia aniquilar toda uma cultura, todo um sistema de pensamento,
como se o Grande Irmão e o Partido e a Polícia do Pensamento pudessem ser
varridos para o nada com um único movimento esplêndido do braço. Esse também
era um gesto que pertencia a um tempo antigo. Winston acordou com a palavra
“Shakespeare” nos lábios.
O telemonitor estava emitindo um apito ensurdecedor que continuou na mesma
nota por trinta segundos. Eram quase 7h15, hora de acordar para todos os
trabalhadores dos escritórios. Winston obrigou seu corpo a sair da cama — nu, pois
um membro do Baixo Escalão do Partido recebia apenas 3.000 cupons anuais para
roupas, e um pijama custava 600 — e pegou uma camiseta suja e um calção que já
estavam sobre a cadeira. As Atividades Físicas começariam em três minutos. No
instante seguinte, ele foi acometido por um violento acesso de tosse que quase
sempre acontecia logo depois que acordava. A tosse esvaziou seus pulmões tão
completamente que ele só conseguiu voltar a respirar após se deitar de costas e
ofegar profundamente algumas vezes. Suas veias ficaram inchadas com o esforço da
tosse, e a úlcera varicosa começou a arder.
“Grupo de trinta a quarenta!”, latiu uma voz feminina agudíssima. “Grupo de
trinta a quarenta! Às suas posições, por favor. Trinta a quarenta!”
Winston se levantou sobressaltado e se postou à frente do telemonitor, no qual a
imagem de uma mulher jovem, magra, mas musculosa, usando uma túnica e
calçados esportivos, já havia aparecido.
“Dobrando e esticando os braços!”, ela ordenou. “Sigam a minha contagem.
UM, dois, três, quatro! UM, dois, três, quatro! Vamos, camaradas, ponham mais
vida nisso! UM, dois, três, quatro! UM, dois, três, quatro!…”
A dor sentida no acesso de tosse não havia apagado da mente de Winston a
impressão causada pelo sonho, e os movimentos ritmados do exercício de alguma
forma a trouxeram de volta. Enquanto movia mecanicamente os braços para trás e
para a frente, adotando em seu semblante a expressão de prazer sombrio que era
considerada a adequada durante os Exercícios Físicos, ele se esforçava para voltar o
pensamento àquele período obscuro de sua primeira infância. Foi
extraordinariamente difícil. O que ocorrera antes do final dos anos 50 ficara
apagado. Como não havia nenhum registro externo que pudesse servir de referência,
até mesmo o contorno da própria vida perdia a nitidez. Você se lembrava de
grandiosos acontecimentos que provavelmente nunca haviam ocorrido, se lembrava
de detalhes de incidentes sem ser capaz de recapturar sua atmosfera, e havia longos
períodos vazios aos quais você não conseguia associar nada. Era tudo diferente
naquela época. Até os nomes dos países, e seus desenhos no mapa, eram diferentes.
A Pista de Pouso Um, por exemplo, não se chamava assim naquele tempo:
chamava-se Inglaterra ou Grã-Bretanha, embora Londres, ele tinha quase certeza,
sempre tenha se chamado Londres.
Winston não se lembrava de nenhum momento em que seu país não estivesse em
guerra, mas evidentemente devia ter havido um longo intervalo de paz durante sua
infância, porque uma de suas primeiras lembranças era de um ataque aéreo que
pareceu pegar todo mundo de surpresa. Talvez isso tenha ocorrido quando a bomba
atômica caiu em Colchester. Ele não se lembrava do ataque aéreo em si, mas se
lembrava do pai agarrando sua mão enquanto desciam correndo, descendo muito,
até um lugar muito profundo dentro da terra, dando voltas em uma escada em
espiral, cujos degraus faziam barulho quando ele pisava, e que finalmente cansaram
tanto suas pernas que ele começou a chorar e eles precisaram parar e descansar. Sua
mãe, à sua maneira tranquila, sonhadora, vinha muito atrás deles. Ela carregava a
filha ainda bebê — ou talvez estivesse levando apenas uma trouxa de cobertores; ele
não tinha certeza de que a irmã já havia nascido nessa época. Finalmente, eles
saíram em um lugar barulhento e cheio de gente, que ele deduziu ser uma estação de
metrô.
Havia pessoas sentadas por toda parte sobre o chão de pedra, e outras,
amontoadas, sentadas nos bancos de metal, umas sobre as outras. Winston e a mãe e
o pai encontraram um lugar no chão, e, perto deles, um velho e uma velha estavam
sentados num banco. O velho estava com um terno escuro elegante e usava uma
touca preta sobre o cabelo muito branco: seu rosto era avermelhado e seus olhos
azuis estavam cheios de lágrimas. Ele cheirava a gim. Parecia transpirar gim pela
pele em vez de suor, e era possível imaginar que até as lágrimas que jorravam de
seus olhos fossem puro gim. No entanto, embora estivesse um pouco bêbado, ele
também sofria uma dor que era genuína e insuportável. A seu modo infantil,
Winston conseguira compreender que alguma coisa terrível, algo além do perdão e
que jamais seria remediado, havia acabado de acontecer. Também lhe pareceu que
ele sabia o que era. Uma pessoa que aquele velho amava — uma netinha, talvez —
havia morrido. A cada tantos minutos, o velho repetia:
Não dava para confiar neles. Bem que eu falei. Não foi, meu bem? Isso que dá confiar neles.
Bem que eu tinha falado. A gente não devia ter confiado naqueles canalhas.
Mas quem eram os canalhas em quem eles não deviam ter confiado, Winston
não conseguia se lembrar.
Desde essa época, a guerra vinha sendo literalmente contínua, embora
rigorosamente falando não tivesse sido a mesma guerra. Durante vários meses, em
sua infância, aconteceram estranhos conflitos de rua em Londres, algumas lutas de
que ele se lembrava com nitidez. No entanto, reconstruir a história inteira do
período, dizer quem lutava contra quem em determinado momento teria sido
totalmente impossível, uma vez que nenhum registro escrito, e nenhuma palavra
dita, jamais mencionara outro alinhamento além do agora existente. Neste momento,
por exemplo, em 1984 (se o ano fosse mesmo 1984), a Oceania estava em guerra
com a Eurásia e era aliada da Lestásia. Em nenhum pronunciamento público ou
privado jamais foi admitido que essas três potências algum dia estiveram agrupadas
em outro alinhamento. Na verdade, como Winston bem sabia, quatro anos atrás
apenas, a Oceania estava em guerra com a Lestásia, e era aliada da Eurásia. Mas
isso era apenas uma informação furtiva que por acaso ele tinha porque sua memória
não estava controlada de um modo satisfatório. Oficialmente, essa troca de aliados
nunca existiu. A Oceania estava em guerra com a Eurásia: portanto a Oceania
sempre estivera em guerra com a Eurásia. O inimigo do momento sempre
representava o mal absoluto, e consequentemente qualquer tipo de acordo com ele,
passado ou futuro, era impossível.
O mais assustador, ele refletiu pela milésima vez, forçando dolorosamente os
ombros para trás (com as mãos na cintura, eles estavam girando o corpo com os
quadris fixos, rígidos, um exercício que supostamente fazia bem para os músculos
das costas) —, a coisa mais assustadora era que podia ser tudo verdade. Se o Partido
conseguisse pôr as mãos no passado e declarar que este ou aquele acontecimento
NUNCA HAVIA EXISTIDO… isso não era mais aterrorizante que a mera tortura e
o assassinato?
O Partido afirmava que a Oceania nunca fora aliada da Eurásia. Ele, Winston
Smith, sabia que a Oceania havia sido aliada da Eurásia até quatro anos atrás. Mas
onde estava essa informação? Apenas em sua consciência, que, de todo modo, devia
ser aniquilada a qualquer momento. E se todos os outros aceitassem a mentira que o
Partido impunha — se todos os registros contassem a mesma história —, então, a
mentira passaria para a história e se tornaria verdade. “Quem controla o passado”,
dizia o lema do Partido, “controla o futuro; quem controla o presente controla o
passado.” E, no entanto, o passado, embora alterável por natureza, jamais havia sido
alterado. O que quer que fosse verdade agora era verdade do início ao fim da
eternidade. Era muito simples. Só requeria uma série interminável de vitórias sobre
a própria memória. “Controle do real”, eles chamavam; em novilíngua,
“duplipensar”.
“Relaxem!”, latiu a instrutora, um pouco mais cordial.
Winston soltou os braços ao longo da lateral do corpo e lentamente tornou a
encher os pulmões de ar. Sua mente deslizava pelo mundo labiríntico do
duplipensar. Saber e não saber, ser consciente da completa verdade enquanto diz
mentiras cuidadosamente construídas, ter simultaneamente duas opiniões que se
excluem mutuamente, sabendo que são contraditórias e acreditando nas duas, usar
lógica contra a lógica, repudiar a moralidade e ao mesmo tempo fazer uso dela,
acreditar que a democracia era impossível e que o Partido era o guardião da
democracia, esquecer tudo o que fosse necessário esquecer e, então, trazer isso de
volta à lembrança novamente no momento em que fosse preciso, e logo depois
esquecer outra vez; e, sobretudo, aplicar o mesmo processo ao processo em si. Esta
era a suprema sutileza: conscientemente induzir à inconsciência, e depois, mais uma
vez, tornar-se inconsciente desse ato de hipnose que acabou de praticar. A própria
compreensão da palavra “duplipensar” envolvia o uso do duplipensar.
A instrutora havia chamado a atenção outra vez. “E agora vamos ver quem
consegue tocar os dedos dos pés!”, ela disse toda entusiasmada. “Dobrando a
cintura, por favor, camaradas. UM-dois! UM-dois!…”
Winston odiava esse exercício, que lhe causava uma dor lancinante desde os
calcanhares até o traseiro e, muitas vezes, acabava provocando mais um acesso de
tosse. A ideia de algo semiagradável sumiu de seus pensamentos. O passado, ele
refletiu, não fora apenas alterado, ele havia sido destruído, de verdade. Pois como se
poderia estabelecer até o fato mais óbvio se não houvesse um registro fora da
própria memória? Tentou se lembrar de que ano era quando ele ouvira falar no
Grande Irmão pela primeira vez. Ele achava que devia ter sido nos anos 60, mas era
impossível ter certeza. Nas histórias do Partido, é claro, o Grande Irmão aparecia
como líder e guardião da Revolução desde os primeiros dias. Seus feitos foram
gradualmente recuados no tempo até chegarem ao fabuloso mundo dos anos 40 e 30,
quando capitalistas de estranhos chapéus cilíndricos ainda percorriam as ruas de
Londres com automóveis reluzentes ou carruagens de vidro puxadas por cavalos.
Não havia como saber quanto dessa lenda era verdade e quanto era inventado.
Winston não se lembrava sequer da data da fundação do Partido. Ele achava que não
tivesse ouvido a palavra Ingsoc antes de 1960, mas era possível que em sua forma
em Língua Velha — isto é, “socialismo inglês” — talvez fosse corrente antes disso.
Tudo se desfazia em brumas. Às vezes, na realidade, você acabava descobrindo uma
mentira grosseira. Não era verdade, por exemplo, como alegavam os livros de
história do Partido, que o Partido havia inventado os aviões. Ele se lembrava de
aviões desde a mais tenra infância. Contudo, não se podia provar nada disso. Não
existiam nunca evidências de nada. Só uma vez em toda a sua vida ele pusera as
mãos em uma prova documental indiscutível de falsificação de um fato histórico. E
nessa ocasião…
“Smith!”, gritou a voz furiosa do telemonitor. “6079 Smith W.! Sim, VOCÊ!
Mais baixo, por favor! Você pode fazer melhor do que isso. Você não está se
esforçando. Mais baixo, por favor! ASSIM está melhor, camarada. Agora, fique à
vontade, a equipe inteira, e faça como eu.”
Um súbito suor quente encharcou o corpo inteiro de Winston. Seu semblante
continuou completamente inescrutável. Nunca demonstre desânimo! Nunca
demonstre ressentimento! Um piscar de olhos poderia entregá-lo. Ele continuou
assistindo e viu a instrutora erguendo os braços sobre a cabeça e — não seria o caso
de dizer de um modo gracioso, mas com notável precisão e eficiência — inclinando-
se e dobrando a primeira articulação dos dedos sob a ponta dos pés.
“PRONTO, camaradas! É ASSIM que eu quero ver vocês fazerem. Assim, mais
uma vez. Eu tenho trinta e nove anos e quatro filhos. Agora, vejam.” Ela se inclinou
de novo. “Viram? EU não dobro os joelhos. Vocês também conseguem se
quiserem”, ela acrescentou enquanto se endireitava. “Qualquer um com menos de
quarenta e cinco anos é perfeitamente capaz de encostar na ponta dos pés. Não é
todo mundo que tem o privilégio de lutar na linha de frente, mas pelo menos nós
podemos manter a forma. Lembrem-se dos nossos rapazes do front
de Malabar! E
dos marinheiros da Fortaleza Flutuante! Imagine o que ELES precisam suportar.
Agora vocês, mais uma vez. Assim está melhor, camarada, assim está MUITO
melhor”, ela acrescentou, de um modo encorajador, quando Winston, com uma
arremetida violenta, conseguiu tocar a ponta dos pés sem dobrar os joelhos pela
primeira vez em muitos anos.
Capítulo 4

Com um suspiro profundo, inconsciente, que nem a proximidade do telemonitor


poderia impedi-lo de emitir quando o dia de trabalho começava, Winston puxou o
transcritor para perto de si, soprou a poeira do microfone e colocou os óculos. Então
desenrolou e prendeu juntos quatro pequenos cilindros de papel que já haviam
saltado do tubo pneumático do lado direito de sua escrivaninha.
Nas paredes do cubículo, havia três orifícios. À direita do transcritor, um
pequeno tubo pneumático para mensagens escritas; à esquerda, um tubo grande para
os jornais; e na parede lateral, ao alcance do braço de Winston, uma grande fenda
oblonga protegida por uma grade. Esta última servia para dispensar o lixo de papel.
Havia milhares ou dezenas de milhares de fendas semelhantes àquelas por todo o
edifício, não só em cada sala como também em pequenos nichos em todos os
corredores. Por algum motivo, eram apelidadas de buracos da memória. Sempre que
alguém ficava sabendo que um determinado documento devia ser destruído, ou
mesmo quando alguém via qualquer pedaço de papel usado pelo chão, era um ato
automático levar o papel até o buraco da memória mais próximo e jogá-lo ali, de
onde seria levado por uma corrente de ar quente até as enormes fornalhas que
ficavam escondidas em algum lugar recôndito do edifício.
Winston examinou as quatro tiras de papel que ele havia desenrolado. Cada uma
delas continha uma mensagem de apenas uma ou duas linhas no jargão abreviado —
não exatamente na novilíngua, mas em grande medida composto de palavras da
novilíngua — que era usado no Ministério para assuntos internos. Eles diziam:

times 17.3.84 discurso gi áfrica menosbomrrelatado retificar


times 19.12.83 previsão trien ult quadrim 83 erros ver exemplar hoje
times 14.2.84 minfar menosbomcitado chocolate retificar
times 3.12.83 relatório ordem dia gi duplidesbom refere impessoa reescrever inteiro
suprasubmeter antearquivo

Com um breve sentimento de satisfação, Winston deixou a quarta mensagem de


lado. Era uma tarefa intrincada e de muita responsabilidade, e ele achou que seria
melhor executá-la por último. As outras três eram questões de rotina, embora a
segunda fosse certamente gerar uma tediosa conferência em listas de números.
Winston discou “números antigos” no telemonitor e solicitou os exemplares em
questão do Times
, que vieram deslizando pelo tubo pneumático com um atraso de
apenas alguns minutos. As mensagens que ele recebera se referiam a artigos ou
notícias que, por um motivo ou outro, julgou-se necessário alterar, ou, segundo a
expressão oficial, retificar. Por exemplo, havia saído no Times
de 17 de março que o
Grande Irmão, em seu discurso do dia anterior, havia previsto que o front
do Sul da
Índia permaneceria em paz, mas que uma ofensiva eurasiana em breve seria lançada
no Norte da África. Na prática, o Alto Comando da Eurásia havia lançado uma
ofensiva no Sul da Índia e deixado o Norte da África em paz. Era, portanto,
necessário reescrever um parágrafo sobre o discurso do Grande Irmão, de modo a
fazê-lo prever aquilo que efetivamente havia acontecido. Também, o Times
de 19 de
dezembro havia publicado a previsão oficial da produção de diversos bens de
consumo no quarto trimestre de 1983, que era também o sexto trimestre do Nono
Plano Trienal. O jornal de hoje continha uma afirmação sobre a produção real com
base na qual ficava parecendo que a previsão estivera, em todos os aspectos,
grosseiramente errada. O trabalho de Winston era retificar os números originais de
modo a fazê-los concordar com os últimos. Quanto à terceira mensagem, referia-se a
um erro muito simples, que poderia ser corrigido em alguns minutos. Pouquíssimo
tempo antes, em fevereiro, o Ministério da Fartura divulgara uma promessa (um
“juramento categórico” foram as palavras oficiais) de que não haveria nenhuma
redução da ração de chocolate em 1984. Na verdade, como Winston bem sabia, a
ração de chocolate seria reduzida de trinta gramas para vinte no fim da semana. Era
preciso apenas substituir a promessa original por um alerta de que provavelmente
seria necessário reduzir a ração em algum momento de abril.
Assim que Winston atendeu a cada uma das ordens, ele anexou as correções
feitas no transcritor aos respectivos exemplares do Times
e as inseriu no tubo
pneumático. Então, com um movimento em grande medida automático, amassou a
mensagem original e as anotações que ele mesmo havia feito e as inseriu no buraco
da memória para que fossem devoradas pelas chamas.
O que acontecia no labirinto invisível a que os tubos pneumáticos levavam ele
não sabia em detalhe, mas sabia em termos gerais. Assim que todas as correções que
por acaso fossem necessárias em qualquer número em particular do Times
eram
reunidas e emendadas, aquele número do jornal era reimpresso, o original era
destruído e o exemplar corrigido era colocado no arquivo em seu lugar. Esse
processo contínuo de alterações era aplicado não apenas aos jornais, mas aos livros,
às revistas, aos panfletos, cartazes, folhetos, filmes, às trilhas sonoras, aos cartuns,
às fotografias — a todo tipo de literatura ou documentação que pudesse
minimamente conter qualquer relevância política ou ideológica. Dia após dia e
quase minuto a minuto, o passado era atualizado. Dessa forma, cada previsão feita
pelo Partido poderia ser comprovada por evidências documentais como tendo sido
corrigida, e nenhuma notícia, nem expressão de opinião, que conflitasse com as
necessidades do momento jamais permanecia nos registros. Toda a história era um
palimpsesto, apagado e reescrito exatamente sempre que necessário. Em nenhuma
circunstância teria sido possível, depois que o feito fosse um fato, provar que
qualquer falsificação tivesse ocorrido. A maior seção do Departamento de Registros,
muito maior do que aquela em que Winston trabalhava, consistia simplesmente de
pessoas cujo dever era localizar e recolher todos os exemplares de livros, jornais e
outros documentos que haviam sido suplantados e deviam ser destruídos. Uma
edição do Times
que houvesse, em virtude de mudanças do alinhamento político ou
de profecias equivocadamente proferidas pelo Grande Irmão, sido reescrita dezenas
de vezes ainda permaneceria nos arquivos com sua data original, e nenhum outro
exemplar existiria para contradizê-la. Livros também eram recolhidos e reescritos
muitas vezes, e eram invariavelmente relançados sem que se admitisse qualquer
alteração. Mesmo as instruções por escrito que Winston recebia, das quais
invariavelmente ele se livrava assim que terminava de lidar com elas, jamais
confirmavam ou implicavam que um ato de falsificação devia ser cometido: as
referências eram sempre a lapsos, erros, gralhas, equívocos de citação, que
precisavam ser corrigidos no interesse da exatidão.
Contudo, de fato, ao reajustar os números do Ministério da Fartura, ele
considerava que o que fazia não chegava a ser falsificação. Tratava-se meramente da
substituição de um absurdo por outro. A maior parte do material com que lidava não
tinha qualquer conexão com o mundo real, nem mesmo o tipo de conexão contida
em uma mentira. As estatísticas eram tão fantasiosas na versão original quanto na
versão retificada. Muitas vezes, era preciso criá-las na própria cabeça. Por exemplo,
a previsão do Ministério da Fartura havia estimado a produção de botas para o
trimestre em 145 milhões de pares. A produção real foi divulgada; eram 62 milhões.
Winston, contudo, ao reescrever a previsão, baixou o número para 57 milhões, de
modo a permitir a alegação comum de que a meta havia sido superada. Em todo
caso, 62 milhões não era mais próximo da verdade que 57 milhões ou que 145
milhões. Muito provavelmente, nenhuma bota fora produzida. Ainda mais
provavelmente, ninguém sabia quantas botas haviam sido produzidas, e tampouco se
importava. A única coisa que se sabia era que a cada trimestre um número
astronômico de botas era produzido no papel, enquanto, talvez, metade da
população da Oceania andava descalça. E era assim com todo tipo de fato
registrado, grande ou pequeno. Tudo se apagava em um mundo de sombras no qual,
enfim, até as datas dos anos se tornavam incertas.
Winston olhou de relance para o outro lado do corredor. No cubículo exatamente
do outro lado, um homem miúdo, de aparência firme, com um queixo escuro,
chamado Tillotson, trabalhava concentrado, com um jornal dobrado sobre o joelho e
a boca muito próxima ao microfone do transcritor. Tinha o ar de quem guardava
para si o que se passava entre ele e o telemonitor. Ele ergueu os olhos, e seus óculos
dispararam um reflexo hostil na direção de Winston.
Winston mal conhecia Tillotson, e não tinha ideia do tipo de trabalho que ele
fazia. As pessoas no Departamento de Registros não eram de falar muito sobre o
serviço que executavam. No corredor comprido e sem janelas, com sua dupla fileira
de cubículos e o farfalhar incessante de papéis e o murmúrio de vozes nos
transcritores, havia mais de dez pessoas que Winston não conhecia nem de nome,
embora as visse todos os dias, apressadas, para lá e para cá, pelos corredores ou
gesticulando durante os Dois Minutos de Ódio. Ele sabia que no cubículo ao lado do
seu uma mulher pequena de cabelos cor de areia dava duro diariamente,
simplesmente localizando e apagando da imprensa os nomes de pessoas que haviam
sido evaporadas e seriam doravante consideradas como se nunca tivessem existido.
Havia uma certa coerência nisso, uma vez que seu marido havia sido evaporado
alguns anos antes. E, a alguns cubículos dali, uma criatura meiga, ineficaz e
sonhadora chamada Ampleforth, com orelhas muito peludas e um talento
surpreendente para fazer malabarismos com rimas e metros, estava absorta em
produzir versões adulteradas — textos definitivos, como eram chamados — de
poemas que haviam se tornado ofensivos no âmbito ideológico, mas que, por um
motivo ou outro, deviam ser conservados nas antologias. E esse corredor, com seus
cerca de cinquenta empregados, era apenas uma subseção, uma única célula, na
verdade, na imensa complexidade do Departamento de Registros. Além deles, acima
e abaixo, havia outros enxames de empregados envolvidos em uma miríade
inimaginável de serviços. Havia imensas máquinas impressoras com seus
subeditores, seus especialistas em tipografia e seus estúdios elaboradamente
equipados para a falsificação de fotografias. Havia a seção dos teleprogramas, com
seus engenheiros, produtores e suas equipes de atores especialmente escolhidos por
sua habilidade de imitar vozes. Havia exércitos de funcionários de checagem, cuja
tarefa era simplesmente redigir listas de livros e periódicos que deviam ser
recolhidos. Havia vastos depósitos onde os documentos corrigidos eram arquivados,
e fornalhas ocultas onde os exemplares originais eram destruídos. E algures, alhures,
em local deveras incógnito, encontravam-se os cérebros dirigentes que coordenavam
toda a empreitada e definiam as linhas da política que tornava necessário que este ou
aquele fragmento do passado fosse preservado, aquele outro, falsificado, e um
terceiro, apagado da existência.
E o Departamento de Registros, afinal, era apenas um único braço do Ministério
da Verdade, cuja atribuição primordial não era reconstruir o passado, mas fornecer
aos cidadãos da Oceania jornais, filmes, manuais, teleprogramas, peças de teatro,
romances — com todo tipo concebível de informação, instrução ou entretenimento,
de uma estátua a um slogan
, de um poema lírico a um tratado de biologia, e de uma
cartilha para crianças a um dicionário de novilíngua. E o Ministério tinha não
apenas que atender às múltiplas necessidades do Partido, mas também repetir toda a
operação em um nível mais baixo para transmitir ao proletariado. Havia toda uma
cadeia de departamentos separados lidando com a literatura proletária, a música
proletária, o teatro proletário e o entretenimento proletário em geral. Ali eram
produzidos jornais malfeitos que não traziam nada além de esportes, crimes,
horóscopo, noveletas sensacionalistas baratas, filmes transbordantes de sexo e
canções sentimentais compostas inteiramente por meios mecânicos em uma espécie
de caleidoscópio conhecido como versificador. Havia até mesmo uma subseção —
Pornosec, como se dizia na novilíngua — dedicada a produzir o tipo mais baixo de
pornografia, que era enviado em embalagens lacradas e que nenhum membro do
Partido, além dos empregados envolvidos, tinha permissão de ver.
Três mensagens haviam chegado pelo tubo pneumático enquanto Winston estava
trabalhando, mas eram assuntos muito simples, e ele já as despachara antes de ser
interrompido pelos Dois Minutos de Ódio. Quando o Ódio acabou, ele voltou a seu
cubículo, pegou o dicionário de novilíngua da estante, afastou o transcritor para o
lado, limpou os óculos e se dedicou ao principal serviço da manhã.
O maior prazer da vida de Winston era o trabalho. A maior parte era uma rotina
entediante, mas incluía serviços tão difíceis e intrincados que era possível se perder
em meio a eles, como nas profundezas de um problema matemático — peças
delicadas de falsificação em que não havia nada para guiá-lo além do próprio
conhecimento de Ingsoc e de sua estimativa do que o Partido gostaria que fosse dito.
Winston era bom nesse tipo de coisa. De tempos em tempos, ele recebia a
incumbência de retificar os principais artigos do Times
, que eram escritos
inteiramente na novilíngua. Ele desenrolou a mensagem que havia posto de lado
antes. Dizia o seguinte:
times 3.12.83 relatório ordem dia gi duplidesbom refere impessoa reescrever inteiro
suprasubmeter antearquivo

Na Língua Velha (ou padrão tradicional), a mensagem poderia ser traduzida


assim:
O relatório sobre a Ordem do Dia do Grande Irmão no Times
de 3 de dezembro de 1983 é
extremamente insatisfatório e faz referência a pessoas inexistentes. Reescrever na íntegra e
submeter sua versão às autoridades superiores antes de arquivar.

Winston leu inteiro o artigo ofensivo. Aparentemente, a Ordem do Dia do


Grande Irmão havia sido basicamente dedicada a elogiar o trabalho de uma
organização conhecida como FFCC, que fornecia cigarros e outras comodidades aos
marinheiros na Fortaleza Flutuante. Um certo Camarada Withers, proeminente
membro do Alto Escalão do Partido, havia sido destacado para receber uma menção
honrosa e uma condecoração, a Ordem do Mérito Conspícuo, Segunda Classe.
Três meses depois, a FFCC subitamente foi dissolvida sem nenhuma explicação.
Podia-se supor que Withers e seus sócios agora tinham caído em desgraça, mas não
saíra nenhum relatório sobre o caso na imprensa ou nos teleprogramas. Isso era
previsível, pois raramente um infrator político era levado aos tribunais ou sequer era
denunciado publicamente. Os grandes expurgos envolvendo milhares de pessoas,
com julgamentos públicos dos traidores e crimepensadores que faziam confissões
abjetas de seus crimes e eram depois executados, eram espetáculos especiais que só
ocorriam uma vez a cada dois anos. O mais comum era pessoas que caíam no
desagrado do Partido simplesmente desaparecerem e nunca mais se ouvir falar nelas
de novo. Ninguém fazia a menor ideia do que havia acontecido a elas. Em alguns
casos, talvez nem estivessem mortas. Cerca de trinta pessoas que Winston
conhecera, sem contar os pais, haviam desaparecido em algum momento.
Winston coçou delicadamente o nariz com um clipe de papel. No cubículo do
outro lado do corredor, o Camarada Tillotson ainda estava furtivamente encurvado
sobre seu transcritor. Ele levantou a cabeça por um momento; mais uma vez, o
reflexo hostil dos óculos. Winston se perguntou se o Camarada Tillotson estaria
envolvido no mesmo tipo de serviço que ele. Era perfeitamente possível. Um tipo de
serviço tão ardiloso jamais seria confiado a uma única pessoa; por outro lado,
entregar tal tarefa a um comitê seria admitir abertamente que um ato de falsificação
estaria ocorrendo. Muito provavelmente uma dúzia de pessoas estaria naquele
momento trabalhando em versões rivais daquilo que o Grande Irmão efetivamente
disse. E então algum cérebro supremo do Alto Escalão do Partido escolheria essa ou
aquela versão, reeditaria e poria em movimento os complexos processos de
checagem cruzada de referências que seriam necessários, e então a mentira
escolhida passaria aos registros permanentes e se tornaria verdade.
Winston não sabia por que Withers havia caído em desgraça. Talvez fosse por
causa de corrupção ou incompetência. Talvez o Grande Irmão estivesse meramente
se livrando de um subordinado popular demais. Talvez Withers ou alguém próximo
a ele fosse suspeito de tendências heréticas. Ou talvez — o mais provável de tudo —
aquilo simplesmente tivesse acontecido porque expurgos e evaporações eram partes
necessárias da mecânica do governo. A única verdadeira pista estava nas palavras
“refere impessoa”, que indicavam que Withers já estava morto. Não se podia sempre
supor ser esse o caso quando alguém era preso. Às vezes, a pessoa era liberada e
permitiam que ficasse em liberdade até um ano ou dois antes de ser executada.
Muito raramente, alguém que você julgava ter morrido havia tempos reaparecia de
modo fantasmagórico em um julgamento público, em que a pessoa implicava
centenas de outros com seu testemunho antes de desaparecer, dessa vez para sempre.
Withers, contudo, já era uma IMPESSOA. Ele não existia; ele nunca tinha existido.
Winston decidiu que não bastaria reverter a tendência do discurso do Grande Irmão.
Era melhor fazer o discurso abordar algo totalmente distinto de seu tema original.
Ele podia transformar o discurso na denúncia usual dos traidores e
crimepensadores, mas isso era um pouco óbvio demais, ao passo que inventar uma
vitória no front
, ou algum triunfo da superprodução no Nono Plano Trienal, poderia
complicar demais os registros. O que se fazia necessário era uma obra de pura
fantasia. De súbito, surgiu em sua mente, pronta na verdade, a imagem de um certo
Camarada Ogilvy, que morrera recentemente em combate, em heroicas
circunstâncias. Havia ocasiões em que o Grande Irmão dedicava sua Ordem do Dia
a celebrar a memória de algum membro humilde da base do Partido cuja vida e
morte ele usava como exemplo digno de ser seguido. Hoje ele celebraria o
Camarada Ogilvy. Na realidade, não existia tal pessoa, o Camarada Ogilvy, mas
algumas linhas na imprensa e duas fotografias forjadas logo o trariam à existência.
Winston pensou por um momento; então, puxou o transcritor para perto e
começou a ditar no estilo costumeiro do Grande Irmão: um estilo ao mesmo tempo
militar e pedante, e que, valendo-se do truque de fazer perguntas e rapidamente
respondê-las (“Que lições aprendemos com esse fato, camaradas? A lição — que é
também um dos princípios fundamentais do Ingsoc — de que…” etc. etc.), era fácil
de imitar.
Quando tinha três anos de idade, o Camarada Ogilvy recusara todos os
brinquedos exceto um tambor, uma submetralhadora e um mini-helicóptero. Aos
seis — um ano antes do padrão, em virtude de uma flexibilização das regras —, ele
se filiou aos Espiões; aos nove, já era líder de tropa. Aos onze, ele denunciara o tio à
Polícia do Pensamento depois de entreouvir uma conversa que lhe parecera ter
tendências criminosas. Aos dezessete anos, ele fora organizador distrital da Liga
Antissexo Júnior. Aos dezenove, projetara uma granada de mão que seria adotada
pelo Ministério da Paz e que, no primeiro teste, matara trinta e um prisioneiros
eurasianos de uma vez. Aos vinte e três, sucumbira em combate. Perseguido por
jatos inimigos enquanto sobrevoava o Oceano Índico com despachos importantes,
ele saltou do helicóptero com o peso de sua metralhadora no mar profundo, levando
consigo os despachos — um fim, diria o Grande Irmão, que era impossível
contemplar sem sentir inveja. O Grande Irmão acrescentaria mais alguns
comentários sobre a pureza e a obstinação da vida do Camarada Ogilvy. Ele era um
abstêmio completo e não fumava, não tinha nenhum lazer além de uma hora no
ginásio, e fizera voto de celibato, acreditando que o casamento e os cuidados para
com uma família eram incompatíveis com uma devoção ao dever vinte e quatro
horas por dia. Ele não tinha outro assunto exceto os princípios do Ingsoc, e nenhum
objetivo na vida exceto a vitória sobre o inimigo eurasiano e a perseguição aos
espiões, sabotadores, crimepensadores e traidores em geral.
Winston debateu consigo mesmo se deveria conceder ao Camarada Ogilvy a
medalha da Ordem do Mérito Conspícuo; por fim, decidiu não condecorá-lo por
causa das desnecessárias checagens cruzadas de referências que isso acarretaria.
Mais uma vez, ele olhou de relance para seu rival no cubículo oposto. Algo
parecia lhe dizer que, com certeza, Tillotson estava ocupado com a mesma tarefa
que ele. Não havia como saber qual versão acabaria sendo adotada, mas ele sentiu
uma profunda convicção de que seria a sua. O Camarada Ogilvy, jamais imaginado
até uma hora atrás, agora era um fato. Ocorreu-lhe que era curioso ser possível criar
homens mortos, mas não homens vivos. O Camarada Ogilvy, que jamais existira no
presente, agora existia no passado; e, assim que o ato da falsificação fosse
esquecido, ele existiria de um modo bem autêntico, e com as mesmas evidências
que um Carlos Magno ou um Júlio César.
Capítulo 5

No refeitório de teto baixo, em um subsolo profundo, a fila do almoço avançava


lentamente, aos trancos. O salão já estava muito cheio, e o barulho era ensurdecedor.
Do fogão, visto através do balcão, emanava o vapor do cozido com um aroma
metálico que não chegava a superar o odor do Gim Vitória. Do outro lado do
refeitório havia um pequeno bar, um mero buraco na parede, onde se podia comprar
gim por dez centavos a garrafa.
— Justamente quem eu estava procurando — disse uma voz atrás de Winston.
Ele se virou. Era seu amigo Syme, que trabalhava no Departamento de Pesquisa.
Talvez “amigo” não fosse exatamente a palavra. Ninguém tinha amigo hoje em dia,
você tinha camaradas; porém havia camaradas cuja companhia era um pouco mais
agradável. Syme era filólogo, especialista em novilíngua. Na verdade, ele era um
membro de uma enorme equipe de especialistas então envolvidos na compilação da
décima primeira edição do Dicionário da Novilíngua. Era uma criatura minúscula,
menor que Winston, de cabelos castanhos e olhos grandes e protuberantes, ao
mesmo tempo melancólica e irônica, que parecia examinar intimamente o seu rosto
quando falava com você.
— Eu queria saber se você ainda tem uma lâmina de barbear — ele disse.
— Nenhuma! — respondeu Winston com um espécie de pressa que omitia sua
culpa. — Procurei em toda parte. Não existem mais.
Todo mundo vivia pedindo lâmina de barbear. Na verdade, ele tinha duas
lâminas novas guardadas. Havia ocorrido uma escassez de lâminas de barbear meses
atrás. De quando em quando, havia um artigo básico que as lojas do Partido não
conseguiam fornecer. Às vezes, eram botões; outras vezes, linha para cerzir, ou
cadarços; no momento, eram lâminas de barbear. Você só conseguia arranjar
alguma, na melhor das hipóteses, pechinchando, mais ou menos furtivamente, nas
feiras “livres”.
— Estou usando a mesma há seis semanas — ele acrescentou, obviamente
mentindo.
A fila deu outro tranco para a frente. Ao estagnar de novo, ele se virou e olhou
para Syme outra vez. Cada um tirou uma bandeja metálica meio engordurada de
uma pilha na extremidade do balcão.
— Você foi, ontem, ver os prisioneiros enforcados? — perguntou Syme.
— Fiquei trabalhando — respondeu Winston, indiferente. — Depois, vou acabar
vendo mesmo no noticiário.
— Não é a mesma coisa — retrucou Syme.
Seus olhos zombadores pairavam sobre o rosto de Winston. “Eu te conheço”, os
olhos dele pareciam dizer, “você é transparente para mim. Sei muito bem por que
você não foi assistir ao enforcamento.” De um modo intelectual, Syme era um
ortodoxo venenoso. Ele era capaz de falar com a mesma satisfação ávida e
desagradável sobre ataques de helicóptero em vilarejos inimigos, julgamentos e
confissões de crimepensadores e execuções nos porões do Ministério do Amor. A
conversa com ele, em grande medida, era uma luta para afastá-lo desses assuntos e
atraí-lo, se possível, para aspectos técnicos da novilíngua, sobre os quais ele era
categórico e interessante. Winston virou a cabeça um pouco de lado para evitar o
escrutínio daqueles olhos grandes e escuros.
— Foi um bom enforcamento — disse Syme, com um ar retrospectivo. — Acho
que perde a graça quando amarram os pés. Eu gosto quando chutam. E sobretudo,
no final, a língua para fora, roxa… um roxo até vivo, pode-se dizer. Esse detalhe é
que me fascina.
— Próximo, por favor! — berrou o proletário de avental branco com a concha.
Winston e Syme passaram as bandejas pela fresta. Para cada um foi rapidamente
despejada uma porção do almoço regular — uma caneca de metal com um cozido
cinza-rosado, um pedaço de pão, um cubo de queijo, uma xícara de Café Vitória
sem leite e um tablete de sacarina.
— Ali tem uma mesa, embaixo do telemonitor — disse Syme. — Vamos pegar
gim no caminho.
O gim foi servido em xícaras de porcelana sem asa. Eles atravessaram a
multidão do refeitório e depositaram as bandejas sobre a mesa de metal, no canto da
qual alguém havia derramado uma poça de cozido, uma asquerosa mistura líquida
que parecia vômito. Winston pegou sua dose de gim, parou por um instante para
tomar coragem e engoliu de uma vez a bebida oleosa. Depois de enxugar as
lágrimas dos olhos, subitamente ele descobriu que estava com fome. Começou a
engolir colheradas do cozido, que, com todos os seus defeitos, tinha cubos
esponjosos rosados que eram provavelmente algum tipo de carne. Nenhum dos dois
falou nada até terminarem a refeição contida em suas canecas. Da mesa à esquerda
de Winston, quase às suas costas, alguém falava depressa e ininterruptamente; uma
tagarelice abrupta quase como o grasnar de um pato, que se destacava no rumor
geral do ambiente.
— Como está indo o dicionário? — perguntou Winston, elevando a voz para
sobrelevar o barulho.
— Devagar — disse Syme. — Estou nos adjetivos. É fascinante.
De imediato, seu semblante se iluminou à menção da novilíngua. Ele afastou a
caneca, pegou seu pedaço de pão delicadamente com uma mão e o queijo com a
outra e se inclinou sobre a mesa para tentar falar sem ter de gritar.
— A décima primeira edição será a definitiva — ele disse. — Estamos dando a
forma final à língua; a forma que ela terá quando ninguém mais falar outra língua.
Quando terminarmos, pessoas como você terão de aprender tudo de novo. Talvez
você pense que nosso principal trabalho é ficar inventando palavras novas. Mas não
é nada disso! Nós estamos destruindo palavras; dezenas e dezenas, centenas de
palavras todos os dias. Estamos cortando a língua até chegar ao osso. A décima
primeira edição não conterá nenhuma palavra que cairá em desuso até o ano 2050.
Ele mordeu avidamente seu pão e engoliu alguns bocados, depois continuou
falando com uma espécie de paixão pedante. Seu semblante magro e moreno
pareceu se animar, seus olhos haviam perdido a expressão de zombaria e se
tornaram quase sonhadores.
— É uma coisa linda destruir palavras. É claro, o grande desperdício é nos
verbos e adjetivos, mas também há centenas de substantivos de que podemos nos
livrar. Não só sinônimos; mas também alguns antônimos. Afinal, o que justifica
haver uma palavra que é simplesmente o oposto de outra? A palavra já contém em si
seu oposto. Veja “bom”, por exemplo. Se você tem uma palavra como “bom”, qual é
a necessidade de haver uma palavra como “ruim”? “Desbom” já resolve; e é melhor,
porque é o oposto exato, coisa que “ruim” não é. E, outra coisa, se você quiser uma
versão mais forte de “bom”, qual é o sentido de haver toda uma lista de palavras
vagas e inúteis como “excelente” e “esplêndido” e tudo mais? “Maisbom” abarca
esse sentido, ou “duplimaisbom” se você quiser dar ainda mais ênfase.
Evidentemente, nós já usamos essas formas, mas na versão final da novilíngua
haverá apenas essas formas. Enfim, toda a noção de bondade e ruindade será
abarcada por apenas seis palavras; na verdade, apenas uma palavra. Você não
percebe a beleza disso, Winston? Foi originalmente uma ideia do G. I., é claro —
ele acrescentou, refletindo melhor.
Uma espécie insípida de ansiedade percorreu o semblante de Winston diante da
alusão ao Grande Irmão. Não obstante, Syme imediatamente detectou uma certa
falta de entusiasmo.
— Você não aprecia devidamente a novilíngua, Winston — ele disse, quase com
tristeza. — Mesmo quando escreve, você continua pensando em Língua Velha. Leio
aqueles artigos que você escreve para o Times
de vez em quando. São bons, mas são
traduções. No fundo, você preferiria ficar com a Língua Velha, com toda a vagueza
e todos aqueles matizes inúteis de sentidos. Você não percebe a beleza da destruição
das palavras. Você sabia que a novilíngua é a única língua no mundo cujo
vocabulário diminui a cada ano?
Winston sabia disso, evidentemente. Ele sorriu, tentando ser simpático, mas não
arriscou dizer nada. Syme mordeu outro pedaço de seu pão preto, mastigou um
pouco e prosseguiu:
— Você não vê que o objetivo geral da novilíngua é reduzir o espectro do
pensamento? No limite, tornaremos o crimepensar literalmente impossível, porque
não haverá palavras para expressá-lo. Todo conceito que um dia possa ser necessário
será expresso exatamente por uma palavra, com seu sentido rigidamente definido e
todos os sentidos subsidiários apagados e esquecidos. Já na décima primeira edição,
não estamos longe disso. Contudo, o processo ainda continuará por muito tempo
depois que você e eu tivermos morrido. A cada ano, haverá cada vez menos
palavras, e o espectro da consciência será sempre um pouco menor. Mesmo hoje, é
claro, não há motivo para cometer o crimepensar. É uma mera questão de
autodisciplina, de controle do real. Entretanto, no final do processo, não haverá
nenhuma necessidade nem disso. A Revolução estará completa quando a língua
estiver perfeita. Ingsoc é novilíngua e novilíngua é Ingsoc — ele agregou com uma
espécie de satisfação mística. — Já lhe ocorreu, Winston, que em 2050, no máximo,
nenhum ser humano compreenderá uma conversa como a que estamos tendo agora?
— Exceto… — Winston começou hesitante e parou.
Estava na ponta da língua dizer “Exceto o proletariado!”, mas ele se conteve,
pois logo percebeu que o comentário poderia ser pouco ortodoxo. Syme, contudo,
percebeu o que ele esteve prestes a dizer.
— Os proletários não são seres humanos — ele disse, despreocupadamente. —
Em 2050, provavelmente antes disso, todo o conhecimento da Língua Velha terá
desaparecido. Toda a literatura do passado terá sido destruída. Chaucer,
Shakespeare, Milton, Byron… estes existirão apenas em versões em novilíngua, não
apenas transformados em algo diferente, mas em algo completamente contrário ao
que costumavam ser. Até a literatura do Partido será transformada. Até os slogans
serão transformados. Como você poderá ter um slogan
como “liberdade é
escravidão” quando o conceito de liberdade tiver sido abolido? Todo o clima do
pensamento será diferente. Na verdade, não haverá mais pensamento; nem
necessidade de pensar. Ortodoxia significa não pensar; não haver necessidade de
pensar. Ortodoxia é inconsciência.
Mais dia, menos dia, pensou Winston com súbita, mas profunda convicção,
Syme seria evaporado. Ele era inteligente demais. Compreendia tudo com muita
nitidez e falava de um modo muito claro. O Partido não gostava de gente assim. Um
dia, ele iria desaparecer. Estava escrito em seu semblante.
Winston havia terminado de comer seu pão e o queijo. Ele se virou um pouco de
lado na cadeira para beber a caneca de café. Na mesa à sua esquerda, o homem de
voz estridente ainda falava impiedosamente sem parar. Uma mulher jovem que
talvez fosse secretária dele, que estava sentada de costas para Winston, ouvia o que
ele dizia e parecia bastante disposta a concordar com tudo. Em alguns momentos,
Winston pescava um comentário do tipo “Você está coberto de razão, eu concordo
muito…” dito numa voz feminina, jovial e de uma maneira um tanto fútil. Mas a
outra voz não parava um instante, nem quando a moça falava. Winston conhecia o
sujeito de vista, mas não sabia nada a seu respeito além do fato de que ocupava um
cargo importante no Departamento de Ficção. Era um homem de uns trinta anos, de
pescoço musculoso e boca grande e expressiva. A cabeça dele estava um pouco
inclinada para trás e, devido ao ângulo em que estava sentado, seus óculos captavam
a luz e apresentavam a Winston dois discos em branco em vez de olhos. Um tanto
horrível era que, do fluxo de sons despejados de sua boca, era quase impossível
distinguir uma única palavra. Só uma vez Winston conseguiu ouvir uma frase inteira
— “a eliminação total e definitiva do goldsteinianismo” — proferida com muita
rapidez e, aparentemente, de uma vez só, como uma linha de tipos fundidos. De
resto, foi tudo um barulho indistinto, um quá-quá-quá grasnado, contínuo e
constante. E, no entanto, embora não fosse possível efetivamente escutar o que o
sujeito dizia, não havia a menor dúvida sobre a natureza geral do assunto. Ele devia
estar denunciando Goldstein e exigindo medidas mais duras contra os
crimepensadores e sabotadores, devia estar lançando disparos fulminantes contra as
atrocidades do exército eurasiano, devia estar elogiando o Grande Irmão ou os
heróis do front
de Malabar — não fazia diferença. Fosse o que fosse, era possível ter
certeza de que cada palavra era pura ortodoxia, puro Ingsoc. Enquanto observava o
rosto de olhos brancos com a mandíbula subindo e descendo sem parar, Winston
teve a curiosa sensação de que não se tratava de um ser humano de verdade, mas de
algum tipo de boneco. Não era o cérebro de um homem falando, era sua laringe. As
coisas que saíam dele constituíam palavras, mas não se tratava realmente de uma
fala; era um ruído emitido a partir da inconsciência, como o grasnar de um pato.
Syme havia se calado por um momento, e com o cabo da colher traçava padrões
na poça de cozido. A voz da outra mesa grasnava sem parar, facilmente audível,
apesar do barulho em volta.
— Existe uma palavra na novilíngua — disse Syme —, não sei se você conhece:
GRASFALA, grasnar como um pato. É uma dessas palavras interessantes que têm
dois sentidos contraditórios. Aplicada a um oponente, é uma ofensa; aplicada a
alguém com quem você concorda, é um elogio.
Indiscutivelmente, Syme seria evaporado. Winston tornou a pensar. Pensou
nisso com uma certa tristeza, embora soubesse muito bem que Syme o desprezava e
não gostava muito dele, e era plenamente capaz de denunciá-lo por crimepensar se
visse algum motivo para fazer isso. Havia algo sutilmente errado com Syme. Algo
lhe faltava: discrição, alheamento, uma espécie de estupidez que o salvasse. Não se
podia dizer que ele não era ortodoxo. Ele acreditava nos princípios do Ingsoc,
venerava o Grande Irmão, rejubilava-se com as vitórias, odiava os hereges não
apenas com sinceridade, mas com uma espécie de fervor incansável, uma atualidade
de informações de que o membro comum do Partido nem chegava perto. No
entanto, havia sempre sobre ele um ar um tanto infame. Ele dizia coisas que era
melhor não serem ditas, lia livros demais e frequentava o Café Castanheira, reduto
de pintores e músicos. Não havia nenhuma lei, nem mesmo uma lei tácita, proibindo
que se frequentasse o Café Castanheira; no entanto o lugar tinha uma aura de mau
agouro. Os velhos líderes desacreditados do Partido costumavam se reunir ali antes
de serem expurgados definitivamente. O próprio Goldstein, diziam, fora visto lá
algumas vezes, anos ou décadas atrás. Não era difícil prever o destino de Syme.
Entretanto, era fato que, se Syme compreendesse, mesmo que por três segundos, a
natureza das opiniões secretas de Winston, ele o entregaria imediatamente à Polícia
do Pensamento. Assim como qualquer um faria, a bem dizer, porém, Syme, mais
seguramente do que a maioria. Não bastava o fervor. Ortodoxia era inconsciência.
Syme ergueu os olhos e disse:
— Lá vem o Parsons.
Algo no tom de sua voz parecia acrescentar “aquele maldito idiota”. Parsons,
vizinho de Winston nas Mansões Vitória, vinha de fato acotovelando a multidão
para atravessar o refeitório — um sujeito roliço, de estatura mediana, cabelos claros
e cara de sapo. Aos trinta e cinco, ele já tinha acúmulos de gordura no pescoço e na
cintura, mas seus movimentos eram bruscos e infantis. Sua aparência geral era a de
um garotinho que crescera demais, tanto que, apesar de estar usando o macacão
regulamentar, era quase impossível não pensar nele como alguém de calças curtas
azuis, camiseta cinza e lenço vermelho dos Espiões. Ao vê-lo, era inevitável
imaginar joelhos ralados, mangas arregaçadas e antebraços rechonchudos. Parsons,
de fato, invariavelmente recorria às bermudas quando uma caminhada comunitária
ou outra atividade física lhe servia de pretexto para tanto. Ele os cumprimentou com
um “Oi, oi!” e se sentou à mesa exalando um intenso aroma de suor. Gotas de
transpiração porejavam de seu rosto rosado. Sua capacidade de transpirar era
extraordinária. No Centro Comunitário, sempre se sabia quando ele havia jogado
tênis de mesa pela umidade do cabo da raquete. Syme segurava uma tira de papel
em que havia uma longa coluna de palavras e as estudava com uma caneta entre os
dedos.
— Olha só para ele, trabalhando no horário do almoço — disse Parsons,
cutucando Winston. — Dedicado, não? O que você está fazendo aí, meu velho?
Imagino que seja intelectual demais para mim. Smith, meu velho, vou lhe dizer por
que eu estava atrás de você. É sobre aquela doação que você esqueceu de fazer.
— Que doação era essa mesmo? — questionou Winston, automaticamente
tateando o bolso em busca de dinheiro. Cerca de um quarto do salário de todos tinha
de ser reservado para doações voluntárias, que eram tantas que era difícil se lembrar
de todas.
— Para a Semana do Ódio. Você sabe… Fomos de casa em casa, arrecadando.
Sou o tesoureiro do nosso bloco. Estamos fazendo um esforço geral… Vamos
produzir um espetáculo e tanto. Vou lhe dizer, a culpa não vai ser minha se as
Mansões Vitória não fizerem a maior exibição de bandeiras da rua inteira. Você
prometeu doar dois dólares.
Winston encontrou e estendeu duas notas amassadas e imundas, que Parsons
registrou em um caderninho com a caligrafia cuidadosa dos iletrados.
— Por falar nisso, meu velho — ele disse —, fiquei sabendo que o meu pequeno
tratante acertou você com aquele estilingue dele ontem. Passei-lhe uma
descompostura. Na verdade, falei que ia arrancar dele o estilingue se ele fizesse isso
de novo.
— Acho que ele estava chateado por não ter ido ao enforcamento — disse
Winston.
— Ah, bem, era o que eu queria dizer… Ele está no caminho certo, não? Esses
meus pequenos são levados, mas como são dedicados! Eles só pensam nos Espiões e
na guerra, é claro. Sabe o que a minha menina fez domingo passado, quando faziam
uma caminhada na direção de Berkhamsted? Ela e mais duas outras meninas se
separaram do grupo e passaram a tarde inteira seguindo um desconhecido. Elas
ficaram seguindo o sujeito por duas horas, no meio do bosque, e aí, quando
chegaram a Amersham, entregaram o homem aos patrulheiros.
— Por que elas fizeram isso? — indagou Winston, um tanto impressionado.
Parsons respondeu num tom triunfante:
— Minha filha se certificou de que ele devia ser algum tipo de agente inimigo;
que podia ter sido lançado ali de paraquedas, por exemplo. Mas eis a questão, meu
velho. O que você acha que lhe chamou a atenção antes de tudo? Ela percebeu que
ele estava usando uns sapatos engraçados; ela disse que nunca tinha visto alguém
usando sapatos como aqueles. De modo que, com toda a probabilidade, devia ser um
estrangeiro. Ela é muito esperta para uma garotinha de sete anos, não?
— E o que aconteceu com o homem? — perguntou Winston.
— Ah, isso eu não posso contar, é claro. Mas não ficaria nada surpreso se… —
Parsons fez como se apontasse um rifle e emitiu um clique com a língua para
representar o disparo.
— Muito bom — disse Syme, meio disperso, sem tirar os olhos do pedaço de
papel.
— Evidentemente, não podemos correr esse risco — concordou Winston de
modo obediente.
— O que eu quero dizer é que… bem, estamos em guerra — disse Parsons.
Como se confirmasse isso, um toque de clarim emanou do telemonitor acima de
suas cabeças. No entanto, não era a proclamação de uma vitória militar dessa vez,
apenas um comunicado do Ministério da Fartura.
— Camaradas! — exclamou uma voz jovem e altiva. — Atenção, camaradas!
Temos notícias gloriosas! Os resultados agora completos sobre a produção de bens
de consumo demonstram que o padrão de vida subiu no mínimo 20% ao longo do
ano passado. Por toda a Oceania, esta manhã, houve manifestações espontâneas de
trabalhadores em passeata saindo das fábricas e dos escritórios e desfilando pelas
ruas com faixas expressando sua gratidão ao Grande Irmão pela vida nova e feliz
que sua sábia liderança nos concedeu. Eis aqui alguns números consolidados.
Alimentos…
A expressão “vida nova e feliz” era recorrente. Tornara-se recentemente uma
expressão favorita do Ministério da Fartura. Parsons, tendo a atenção desviada pelo
toque do clarim, ficou sentado ouvindo boquiaberto e com um ar de solenidade, uma
espécie de tédio civilizado. Ele não era capaz de acompanhar os números, mas
percebia que eram de alguma forma motivo de satisfação. Sacou um cachimbo
enorme e imundo cheio até a metade de tabaco já chamuscado. Com a ração de
tabaco de 100 gramas por semana, raramente era possível encher o cachimbo até a
boca. Winston estava fumando um Cigarro Vitória que ele mantinha
cuidadosamente na horizontal. A nova ração só chegaria no dia seguinte, e ele só
tinha mais quatro cigarros. Por ora, ele fechara os ouvidos aos ruídos mais remotos e
prestava atenção no que se passava no telemonitor. Aparentemente haviam ocorrido
manifestações em agradecimento ao Grande Irmão por aumentar a ração de
chocolate para vinte gramas por semana. E ontem mesmo, refletiu, fora anunciado
que a ração seria REDUZIDA a vinte gramas por semana. Seria possível que as
pessoas engolissem aquilo, vinte e quatro horas depois? Sim, elas engoliam. Parsons
engoliu fácil, com a estupidez de um animal. A criatura sem olhos da outra mesa
engoliu de um modo fanático, apaixonado, com um furioso desejo de rastrear,
denunciar e evaporar qualquer um que sugerisse que na semana passada a ração de
chocolate fosse de trinta gramas. Syme também — de forma mais complexa,
envolvendo duplipensar; Syme engoliu. Seria possível então que APENAS ele
tivesse memória?
As fabulosas estatísticas continuaram sendo despejadas do telemonitor.
Comparado com o ano passado, havia mais comida, mais roupas, mais casas, mais
móveis, mais panelas, mais combustível, mais navios, mais helicópteros, mais
livros, mais bebês — mais de tudo, exceto doenças, crimes e insanidade. Ano a ano,
minuto a minuto, todo mundo e todas as coisas vinham aumentando com rapidez.
Como Syme fizera antes, Winston pegara a colher e estava rabiscando na poça de
molho ralo escorrido na mesa, desenhando uma longa faixa, até formar um padrão.
Ele refletiu de um modo ressentido sobre a tessitura física da vida. Será que sempre
havia sido assim? Será que a comida sempre tivera esse gosto? Ele observou o
refeitório. Um salão de teto baixo, lotado, de paredes encardidas pelo contato de
inúmeros corpos; mesas e cadeiras velhas de metal dispostas de um jeito tão
compacto que você sentava encostando os cotovelos; colheres tortas, bandejas
amassadas, canecas brancas lascadas; todas as superfícies engorduradas, todas as
rachaduras encardidas; e um cheiro azedo mesclado de gim ruim e café ruim e
cozido metálico e roupa suja. O estômago e a pele pareciam estar sempre
protestando, com uma sensação de que você havia sido trapaceado em alguma coisa
a que teria direito. Ele não tinha lembrança de nada muito diferente disso. Em
nenhuma época de que ele tivesse lembranças precisas houvera comida suficiente,
ninguém tinha meias ou roupas íntimas que não estivessem cheias de furos, os
móveis eram todos velhos e bambos, os tetos eram mal aquecidos, os trens lotados,
as casas estavam caindo aos pedaços, o pão era escuro, chá era uma raridade, o café
era intragável, não havia cigarros suficientes — nada era barato e farto, exceto o
gim sintético. E embora, evidentemente, tudo fosse piorando conforme o corpo
envelhecia, não seria isso sinal de que essa NÃO era a ordem natural das coisas,
uma vez que o coração se apertava com o desconforto e a sujeira e a escassez, os
invernos intermináveis, as meias grudentas, os elevadores que nunca funcionavam, a
água fria, o sabão áspero, os cigarros que se esfacelavam, a comida com o gosto
estranho e ruim? Por que alguém acharia tudo isso intolerável se não tivesse algum
tipo de memória ancestral de que as coisas algum dia tivessem sido diferentes?
Ele tornou a observar o refeitório. Praticamente todos ali eram feios, e
continuariam feios mesmo que se vestissem com outras roupas além do macacão
azul do uniforme. Do outro lado do salão, sentado sozinho à mesa, um homem
pequeno, com a curiosa aparência de um besouro, bebia uma xícara de café, com
seus olhinhos lançando olhares desconfiados para todos os lados. Como era fácil,
pensou Winston, quando não se enxergava a realidade à sua volta, acreditar que o
tipo físico estabelecido pelo Partido como ideal — jovens belos, altos e musculosos
e moças voluptuosas, loiras, vivazes, bronzeadas, felizes — existia e até mesmo
predominava. Na realidade, até onde ele conseguia avaliar, a maioria das pessoas na
Pista de Pouso Um era composta de indivíduos pequenos, morenos, pouco atraentes.
Era curioso como aquele tipo abesourado proliferava nos ministérios: homenzinhos
atarracados, engordando ainda muito jovens, de pernas curtas, gestos rápidos e
discretos e rostos rechonchudos e inescrutáveis com olhos muito pequenos. Era o
tipo que parecia se propagar melhor sob o domínio do Partido.
O pronunciamento do Ministério da Fartura terminou com outro toque de clarim,
e a música de fundo retornou. Parsons, comovido com um vago entusiasmo gerado
pelo bombardeamento de números, tirou o cachimbo da boca.
— O Ministério da Fartura certamente fez um bom trabalho este ano — ele disse
balançando a cabeça como quem sabe o que está dizendo. — Por falar nisso, Smith,
meu velho, imagino que você não tenha uma lâmina de barbear sobrando para mim.
Ou teria?
— Nenhuma — disse Winston. — Eu também estou usando a mesma há seis
semanas.
— Ah, bem… Eu só queria saber se você tinha, meu velho.
— Sinto muito — disse Winston.
A voz grasnada da mesa ao lado, temporariamente silenciada durante o
pronunciamento do Ministério, havia voltado mais alta do que antes. Por algum
motivo, Winston subitamente se pegou pensando na senhora Parsons, com seus
cabelos espetados e a poeira nas rugas do rosto. Dali a dois anos aquelas crianças a
estariam denunciando à Polícia do Pensamento. A senhora Parsons seria evaporada.
Syme seria evaporado. Winston seria evaporado. O’Brien seria evaporado. Parsons,
por sua vez, jamais seria evaporado. A criatura sem olhos de voz grasnada jamais
seria evaporada. Os homenzinhos abesourados que percorriam com indiferença os
corredores labirínticos dos ministérios, eles também jamais seriam evaporados. E a
moça de cabelos castanhos — a moça do Departamento de Ficção —, ela também
jamais seria evaporada. Era como se ele soubesse por instinto quem sobreviveria e
quem sucumbiria; embora, de fato, não fosse fácil saber com precisão o que tornava
possível a sobrevivência.
Nesse momento, ele foi tirado de seu devaneio por um violento solavanco. A
moça da mesa ao lado havia se virado e olhava para ele. Era a moça de cabelos
castanhos. Ela estava olhando para ele com o canto dos olhos, mas com curiosa
intensidade. No instante em que seus olhares se cruzaram, ela desviou os olhos outra
vez.
O suor começou a escorrer pela coluna de Winston. Uma pontada horrível de
terror percorreu seu corpo. A sensação passou quase instantaneamente, mas deixou
uma espécie de inquietude incômoda em seu rastro. Por que ela estaria olhando para
ele? Infelizmente, ele não conseguia se lembrar se ela já estava na mesa ao lado
quando ele chegou, ou se fora para lá depois. Mas ontem, de todo modo, durante os
Dois Minutos de Ódio, ela havia se sentado imediatamente atrás dele, quando não
havia aparentemente nenhuma necessidade disso. Muito provavelmente seu
verdadeiro objetivo teria sido prestar atenção nele para ter certeza de que ele estava
gritando alto o suficiente.
O pensamento anterior tornou a lhe ocorrer: provavelmente ela não era na
verdade membro da Polícia do Pensamento, mas ainda assim, justamente, o espião
amador era o mais perigoso de todos. Ele não sabia quanto tempo fazia que ela o
estava observando, mas talvez fossem uns cinco minutos, e era possível que a
expressão em seu semblante não estivesse perfeitamente sob controle. Era
terrivelmente perigoso deixar o pensamento divagar quando se estava em um lugar
público ou nas imediações de um telemonitor. O menor detalhe poderia entregá-lo.
Um tique nervoso, uma expressão inconsciente de angústia, um costume de
resmungar consigo mesmo… qualquer coisa que contivesse alguma sugestão de
anormalidade, de ter algo a esconder. De todo modo, um semblante com uma
expressão inapropriada (aparentar incredulidade diante do anúncio de uma vitória,
por exemplo) era em si mesmo uma infração passível de pena. Havia até uma
palavra para isso na novilíngua: FACECRIME, era como chamavam.
A moça voltou a se virar de costas para ele. Talvez, afinal, ela não o estivesse
realmente seguindo, talvez fosse uma coincidência que ela tivesse se sentado tão
perto dele dois dias seguidos. O cigarro dele havia apagado, e ele o deixou
cuidadosamente na borda da mesa. Terminaria de fumá-lo depois do trabalho, se
conseguisse manter o tabaco dentro da ponta. Provavelmente a pessoa da mesa ao
lado era uma espiã da Polícia do Pensamento, e provavelmente ele estaria nos
porões do Ministério do Amor dali a três dias, mas uma ponta de cigarro não podia
ser desperdiçada. Syme havia dobrado sua tira de papel e a enfiara no bolso. Parsons
começara a falar de novo.
— Eu já lhe contei, meu velho — ele disse, gargalhando com o cachimbo
próximo à boca —, que os meus pequenos puseram fogo na saia de uma velha
feirante porque a viram embrulhar salsichas com um cartaz do G.I.? Eles se
esgueiraram atrás dela e puseram fogo em sua saia com uma caixa de fósforos. Deve
ter queimado feio. Que pestes, não é? Mais ardidos que pimenta! A formação que
eles têm nos Espiões hoje em dia é até melhor que na minha época. Sabe o que
deram para eles agora? Funis auriculares para ouvir pela fechadura! A minha
garotinha trouxe um funil desses para casa outro dia; eu experimentei na porta da
sala de casa, mas acho que ela consegue ouvir melhor colocando o próprio ouvido
na fechadura. Claro, é só um brinquedo, você sabe. Ainda assim, a ideia é boa, não
é?
Nesse momento, o telemonitor emitiu um apito ensurdecedor. Era o sinal para
voltar ao trabalho. Os três se levantaram e se juntaram à disputa por uma vaga nos
elevadores, e o resto do tabaco caiu do cigarro de Winston.
Capítulo 6

Winston estava escrevendo em seu diário:


Faz três anos. Era uma noite escura, em uma rua estreita próxima às grandes estações de trem.
Ela estava perto de uma porta, apoiada à parede, embaixo da luz de um poste que quase não
iluminava. Tinha um rosto jovem, muito maquiado. Na verdade, foi essa maquiagem que me
chamou a atenção, a brancura do rosto, como uma máscara, e os lábios muito vermelhos. As
mulheres do Partido nunca se maquiavam. Não havia mais ninguém na rua, e nenhum
telemonitor. Ela disse dois dólares. Eu…

Nesse momento, seria muito difícil continuar. Ele fechou os olhos e os apertou
com os dedos, tentando espremer para fora deles a visão recorrente. Sentiu uma
vontade quase imperiosa de berrar a plenos pulmões uma série de palavrões
imundos. Ou de bater a cabeça contra a parede, chutar a mesa até derrubá-la e
arremessar o tinteiro pela janela — de fazer qualquer coisa violenta ou barulhenta
ou dolorosa que pudesse apagar a lembrança que o atormentava.
Seu pior inimigo, refletiu, era seu próprio sistema nervoso. A qualquer
momento, a tensão interna acabaria se traduzindo em algum sintoma visível. Pensou
em um homem por quem havia passado na rua algumas semanas antes; um homem
de aparência bastante comum, membro do Partido, de seus trinta e cinco ou quarenta
anos, mais para alto e magro, levando uma pasta. Eles estavam a poucos metros de
distância quando o lado esquerdo do homem subitamente se contorceu em uma
espécie de espasmo. Aconteceu mais uma vez quando se cruzaram; foi um mero
esgar, um tremor rápido como o clique do obturador de uma câmera, mas
obviamente casual. Ele se lembrou de pensar na ocasião: esse pobre diabo está nas
últimas. E o mais assustador foi que aquele gesto muito provavelmente havia sido
inconsciente. O perigo mais mortal de todos era falar durante o sono. Não havia
como se proteger contra isso, até onde ele podia ver.
Ele respirou fundo e continuou a escrever:
… passei com ela por uma porta e atravessamos um quintal e chegamos a uma cozinha no
subsolo. Havia uma cama junto à parede e uma luminária sobre a mesa, com a luz muito
fraca. Ela…

Ele estava muito irritado. Sentiu vontade de cuspir. Ao mesmo tempo em que
pensou na mulher na cozinha subterrânea, lembrou-se também de Katharine, sua
esposa. Winston era casado — havia sido casado, na verdade; provavelmente ainda
estava casado, na medida em que sabia que a esposa não estava morta. Sentiu como
se respirasse outra vez o odor quente e abafado da cozinha subterrânea, um odor
misto de insetos e roupas sujas e perfume terrivelmente barato, mas mesmo assim
excitante, porque nenhuma mulher do Partido jamais usava perfume, ou podia ser
pega usando. Apenas as proletárias usavam perfume. Na cabeça dele, aquele cheiro
estava inextricavelmente associado à fornicação.
Ele foi para a cama com aquela mulher, sua primeira vez em cerca de dois anos.
Relacionar-se com prostitutas era proibido, evidentemente, mas era uma daquelas
regras que eventualmente você podia arriscar infringir. Era perigoso, mas não era
uma questão de vida ou morte. Ser pego com uma prostituta podia significar cinco
anos em um campo de trabalhos forçados; não mais, se você não tivesse cometido
nenhuma outra infração. E era muito fácil, desde que você evitasse ser pego em
flagrante. Os bairros mais pobres estavam repletos de mulheres dispostas a se
vender. Algumas podiam ser compradas com uma garrafa de gim, que os proletários
supostamente não deviam beber. De um modo tácito, o Partido estava até inclinado
a encorajar a prostituição como uma válvula de escape para instintos que não
podiam ser completamente suprimidos. A mera devassidão não importava tanto,
desde que fosse furtiva e sem prazer e envolvesse apenas mulheres de classes
irrelevantes e desprezíveis. O crime imperdoável era a promiscuidade entre
membros do Partido. No entanto — embora esse fosse um dos crimes que os
acusados nos grandes expurgos invariavelmente confessavam — era difícil imaginar
esse tipo de coisa efetivamente acontecendo.
O objetivo do Partido não era meramente impedir que homens e mulheres
formassem lealdades que talvez não fossem possível controlar. O propósito real,
jamais declarado, era retirar todo o prazer do ato sexual. O inimigo não era tanto o
amor, mas o erotismo, no casamento e fora dele. Todos os casamentos entre
membros do Partido deviam ser aprovados por um comitê formado para esse
propósito, e — embora o princípio nunca fosse explicitamente declarado — a
permissão era sempre recusada quando os noivos davam a impressão de se sentir
fisicamente atraídos um pelo outro. O único propósito reconhecido do casamento
era a geração de crianças para o serviço do Partido. A relação sexual devia ser vista
como uma operação menor e levemente repulsiva. Isso também jamais era posto em
palavras claras, mas de modo indireto era esfregado na cara de cada membro do
Partido desde a infância. Existiam até mesmo organizações como a Liga Júnior
Antissexo, que defendia o celibato total para ambos os sexos. Todas as crianças
deveriam ser geradas por inseminação artificial (INSEMART, como se dizia na
novilíngua) e criadas nas instituições públicas. Isso, Winston sabia, não era levado
inteiramente a sério, mas de alguma forma combinava com a ideologia geral do
Partido. O Partido estava tentando matar o instinto sexual, ou, se não conseguisse
matá-lo, então distorcê-lo e manchá-lo. Ele não sabia por que isso era assim, mas
parecia natural que fosse assim. E, no tocante às mulheres, os esforços do Partido
eram em grande medida bem-sucedidos.
Ele pensou de novo em Katharine. Já deviam ter passado uns nove, dez… quase
onze anos desde que se separaram. Era curioso como ele pensava nela raramente.
Durante dias inteiros, às vezes, ele era capaz de se esquecer até de que um dia fora
casado. Eles viveram juntos apenas durante uns quinze meses. O Partido não
permitia o divórcio, mas até estimulava a separação quando o casal não tinha filhos.
Katharine era uma moça alta, de cabelos claros, muito elegante, que se
movimentava de uma forma esplêndida. Tinha uma expressão ousada, um rosto
aquilino, que talvez pudesse se dizer nobre, até que se descobrisse não haver
praticamente nada por trás. Logo no início da vida de casado, ele se deu conta —
embora talvez fosse apenas porque ele a conhecia mais intimamente do que a
maioria das pessoas — de que ela tinha a mente mais estúpida, vulgar e vazia, sem
exceção, que ele já havia encontrado. Ela não tinha nada na cabeça além de slogans
, e não havia uma única imbecilidade que ela não fosse capaz de engolir se o Partido
lhe propusesse. “Papagaia humana”, ele a havia apelidado para si mesmo. No
entanto, ele teria conseguido suportar viver com ela não fosse uma única coisa —
sexo.
Quando ele a tocava, ela parecia se encolher e enrijecer. Abraçá-la era como
abraçar uma boneca articulada de madeira. E o estranho era que, quando ela o
apertava contra si, ele tinha a sensação de que ela estava ao mesmo tempo o
empurrando para longe com todas as forças. A rigidez de seus músculos transmitia
essa impressão. Ela ficava ali deitada de olhos fechados, sem resistir nem cooperar,
mas se SUBMETENDO. Era deveras constrangedor, e, depois de algum tempo, se
tornava horrível. Ainda assim, ele teria suportado viver com ela se chegassem a um
acordo de conservar o celibato. Mas curiosamente foi Katharine quem se recusou a
isso. Eles precisavam, ela dissera, produzir uma criança, se possível. De modo que
aquela encenação continuou acontecendo, uma vez por semana, regularmente,
sempre que não era impossível. Ela até costumava lembrá-lo disso de manhã, como
algo que devia ser feito naquela noite e que não podia ser esquecido. Ela tinha dois
nomes para aquilo. Um era “tentar fazer um bebê”, e o outro era “nosso dever para
com o Partido” (sim, ela realmente usava essa frase). Logo ele passou a sentir
verdadeiro pavor quando chegava o dia marcado. No entanto, por sorte, nenhum
bebê apareceu, e no final ela concordou em desistir de tentar, e logo depois eles se
separaram.
Winston soltou um suspiro inaudível. Ele tornou a pegar a caneta e escreveu:
Ela se jogou na cama e, de uma vez, sem nenhum tipo de preliminar, da maneira mais bruta e
horrível que se possa imaginar, levantou a saia. Eu…

Ele se viu ali parado, à luz fraca do abajur, com aquele cheiro de insetos e
perfume barato nas narinas, e sentindo no coração a derrota e o ressentimento, que
mesmo naquele instante eram mesclados à lembrança do corpo branco de Katharine,
congelado para sempre pelo poder hipnótico do Partido. Por que sempre precisava
ser assim? Por que ele não podia ter uma mulher, em vez daquelas escapadelas com
o intervalo de anos? No entanto um verdadeiro caso de amor era algo quase
impensável. As mulheres do Partido eram todas parecidas. A castidade era tão
profundamente entranhada nelas quanto a lealdade ao Partido. Desde cedo, com um
condicionamento cuidadoso de jogos e banhos frios, com o lixo que era inculcado
nelas na escola e nos Espiões e na Liga Jovem, com palestras, desfiles, canções,
slogans
e música marcial, o sentimento natural era arrancado de dentro delas. Sua
razão lhe dizia que devia haver exceções, mas seu coração não acreditava nisso.
Elas eram todas impenetráveis, como o Partido queria que fossem. E o que ele mais
queria, mais até do que ser amado, era romper aquela muralha de virtude, mesmo
que fosse apenas uma vez na vida. O ato sexual desempenhado com sucesso era
rebeldia. Desejo era crimepensar. Até mesmo despertar Katharine desse torpor, se
ele conseguisse, teria sido uma forma de sedução, embora ela fosse sua esposa.
Contudo, o resto da história precisava ser escrito. Então ele escreveu:
Acendi o abajur. Quando a vi naquela luz…

Depois da escuridão, a luz fraca do lampião de parafina lhe parecera muito clara.
Pela primeira vez, ele pôde ver melhor a mulher. Ele dera um passo em sua direção
e em seguida parara, repleto de volúpia e terror. Teve a consciência dolorosa do
risco que correra indo até ali. Era perfeitamente possível que os patrulheiros o
pegassem na saída; além do fato de que podiam estar atrás da porta naquele exato
momento. Se ele fosse embora sem sequer fazer o que fora lá fazer…!
Era preciso escrever, era preciso confessar. O que ele viu subitamente à luz do
abajur era que a mulher era VELHA. A maquiagem era tão espessa em seu rosto que
parecia querer rachar, como uma máscara de papel machê. Havia mechas brancas
em seu cabelo, mas o detalhe mais assustador foi que seus lábios se entreabriram um
pouco, revelando nada menos que uma escuridão cavernosa. Ela não tinha nenhum
dente na boca.
Ele escreveu apressadamente, em garranchos:
Quando a vi naquela luz, percebi que era uma mulher bastante velha, de cinquenta anos no
mínimo.

Ele tornou a comprimir as pálpebras com os dedos. Finalmente, havia escrito,


mas não fazia diferença. A terapia não funcionou. A necessidade de berrar
impropérios a plenos pulmões continuava forte como nunca.
Capítulo 7

“Se ainda existe esperança”, escreveu Winston, “ela está nos proletários.”
Se havia esperança, ela DEVIA estar nos proletários, porque apenas naquelas
massas proliferativas e desconsideradas, 85% da população da Oceania, a força para
destruir o Partido poderia ser gerada. O Partido não poderia ser derrubado em seu
núcleo. Seus inimigos, se é que o Partido continha inimigos, não tinham condições
de se reunir ou sequer de se reconhecer uns aos outros. Mesmo que a lendária
Irmandade existisse, como era bem possível, era inconcebível que seus membros
algum dia se reunissem num grupo de mais de dois ou três. Uma rebelião exigiria o
olhar nos olhos, uma inflexão da voz e até uma palavra sussurrada ocasionalmente.
Contudo, os proletários, ainda que de alguma forma se tornassem conscientes da
própria força, não teriam nem necessidade de conspirar. Eles só precisariam se
insurgir e se agitar como um cavalo espantando as moscas. Se assim o decidissem,
eles poderiam explodir o Partido em pedaços amanhã de manhã. De modo seguro,
cedo ou tarde, não lhes ocorreria a possibilidade de fazê-lo? Mas até então…!
Ele se lembrou de uma vez em que vinha caminhando por uma rua movimentada
quando um tremendo alarido — de centenas de vozes de mulheres — explodiu,
vindo de uma travessa mais adiante. Era um rumor de ódio e desespero, grandioso e
formidável, um “Oh-ooo-ooo!” grave e altivo, que seguia formando um murmúrio,
como a reverberação de um sino. Seu coração saltara no peito. “Começou!”, ele
chegou a pensar. Uma rebelião! Os proletários finalmente estão se libertando!
Quando ele chegou ao local, viu uma multidão de duzentas ou trezentas mulheres
em volta das bancas de uma feira, com expressões trágicas, como se fossem
passageiros condenados de um navio naufragando. Mas, nesse momento, o
desespero geral se desfez em inúmeras discussões individuais. Aparentemente, uma
banca estava vendendo frigideiras de alumínio. Eram utensílios péssimos, frágeis,
mas era sempre difícil encontrar qualquer tipo de panela. No entanto, logo as
panelas acabaram, de uma hora pra outra. As mulheres que deram sorte, abordadas e
empurradas pelas outras, tentaram escapar com suas frigideiras enquanto dezenas de
outras reclamavam em volta da banca, acusando o dono de favoritismo e de ter mais
frigideiras estocadas em algum lugar. Houve outro acesso de gritaria. Duas mulheres
muito inchadas, uma delas já descabelada, haviam agarrado a mesma frigideira e
tentavam arrancá-la das mãos uma da outra. Por um tempo, ficaram as duas
puxando, até que o cabo se soltou. Winston ficou a observá-las com repugnância. E,
no entanto, só por um instante, ele pensou: que poder quase assustador havia soado
naqueles gritos de algumas centenas apenas! Por que eles nunca gritavam daquela
maneira por algo que realmente importava?
Ele escreveu:
Enquanto eles não se tornarem conscientes, jamais se rebelarão; e enquanto eles não se
rebelarem, jamais se tornarão conscientes.

Isso, ele refletiu, podia ser quase uma transcrição de um manual do Partido. O
Partido alegava, é claro, ter libertado o proletariado da servidão. Antes da
Revolução, eles eram oprimidos de forma hedionda pelos capitalistas, passavam
fome e eram açoitados, as mulheres eram obrigadas a trabalhar nas minas de carvão
(as mulheres ainda trabalhavam em minas de carvão, a bem da verdade), as crianças
eram vendidas para as fábricas aos seis anos de idade. Porém, simultaneamente, fiel
aos Princípios do Duplipensar, o Partido ensinara que os proletários eram
naturalmente inferiores, que deviam ser sujeitados, como animais, com a aplicação
de algumas poucas regras simples. Na verdade, sabia-se muito pouco sobre o
proletariado. Não era necessário saber muito. Contanto que eles continuassem a
trabalhar e a se reproduzir, suas outras atividades não tinham importância. Deixados
em paz, como gado criado solto nos pampas da Argentina, eles teriam regredido a
um estilo de vida que lhes pareceria natural, a uma espécie de padrão ancestral.
Nasciam, cresciam na sarjeta, iam trabalhar aos doze, passavam por um breve
período de desabrochar da beleza e do desejo sexual, casavam-se aos vinte,
chegavam à meia-idade aos trinta, morriam, a maioria, aos sessenta. O trabalho
físico pesado, os cuidados com a casa e com os filhos, as discussões mesquinhas
com os vizinhos, filmes, futebol, cerveja e, sobretudo, os jogos de apostas
preenchiam o horizonte mental do proletariado. Não era difícil mantê-los sob
controle. Havia sempre alguns agentes da Polícia do Pensamento entre eles,
espalhando falsos rumores e anotando e eliminando os poucos indivíduos
considerados capazes de se tornar perigosos; mas não se tentava nunca os doutrinar
com a ideologia do Partido. Não era desejável que os proletários tivessem
sentimentos políticos fortes. A única coisa que se exigia deles era um patriotismo
primitivo a que se podia recorrer sempre que fosse necessário fazê-los aceitar
jornadas de trabalho maiores ou rações menores. E mesmo quando eles ficavam
insatisfeitos, como às vezes ficavam, essa insatisfação não levava a nada, pois,
desprovidos de ideias gerais, só conseguiam se concentrar em injustiças específicas
e mesquinhas. Invariavelmente, eles não percebiam o mal maior. A grande maioria
dos proletários sequer tinha telemonitores em casa. Até mesmo a polícia civil
interferia pouco na vida deles. Havia uma vasta criminalidade em Londres, todo um
universo dentro de outro universo — de bandidos, prostitutas, traficantes e ladrões
de todo tipo; mas, como eram coisas que aconteciam entre os próprios proletários,
não tinham importância. Em todas as questões morais, eles tinham permissão de
seguir seu código ancestral. O puritanismo sexual do Partido não foi imposto a eles.
A promiscuidade continuou impunemente, o divórcio era permitido. Até o culto
religioso teria sido permitido se o proletariado tivesse manifestado essa necessidade
ou esse desejo. Eles ficavam abaixo de qualquer suspeita. Como dizia o slogan
do
Partido, “Proletários e animais são livres”.
Winston esticou a mão e cuidadosamente coçou sua ferida na perna. A úlcera
varicosa começara a arder de novo. A questão a que chegava invariavelmente se
referia à impossibilidade de saber como era de fato a vida antes da Revolução. Ele
tirou da prateleira um livro de história para crianças que pegara emprestado da
senhora Parsons e começou a copiar uma passagem no diário:
Nos velhos tempos (dizia o livro), antes da gloriosa Revolução, Londres não era a bela cidade
que conhecemos hoje. Era um lugar escuro, sujo e miserável, onde quase ninguém tinha o que
comer e onde centenas e milhares de pobres não tinham botas nem um teto sobre as cabeças
num lugar em que pudessem dormir. Crianças da sua idade precisavam trabalhar doze horas
por dia para patrões cruéis que as açoitavam com chicotes se trabalhavam muito devagar e só
lhes davam para comer cascas velhas de pão e água. Além de tudo, em meio a toda essa
pobreza terrível, havia apenas algumas casas grandes e bonitas que eram habitadas por ricos
que tinham até trinta empregados para cuidar deles. Esses ricos eram chamados de
capitalistas. Eram homens gordos e feios com semblantes cruéis, como o da figura da página
ao lado. Você pode ver que ele está vestindo um casaco preto comprido que chamavam de
sobretudo, e um chapéu estranho, lustroso, como uma chaminé, que se chamava cartola. Esse
era o uniforme dos capitalistas, e ninguém mais podia usá-lo. Os capitalistas eram os donos de
tudo no mundo, e todas as outras pessoas eram suas escravas. Eles eram donos de todas as
terras, todas as casas, todas as fábricas e todo o dinheiro. Se alguém os desobedecia, eles
podiam prender a pessoa, ou tirar seu emprego e fazê-la morrer de fome. Quando uma pessoa
comum falava com um capitalista, precisava bajulá-lo e se curvar diante dele e tirar o chapéu
e chamá-lo de “senhor”. O chefe de todos os capitalistas era tratado como um rei, e…

Mas ele já conhecia o resto da história. Haveria menção aos bispos em suas
túnicas de linho, aos juízes com suas capas de arminho, aos pelourinhos, troncos,
moinhos humanos nas prisões, aos chicotes de nove tiras, aos banquetes dos nobres
prefeitos de Londres e ao costume de beijar a mão do papa. Havia até algo chamado
JUS PRIMAE NOCTIS,
1
que provavelmente não seria mencionado em um livro
para crianças. Era a lei segundo a qual todo capitalista tinha direito a se deitar com
qualquer mulher que trabalhasse em uma de suas fábricas.
Como se poderia saber o quanto daquilo era mentira? TALVEZ fosse verdade
que o ser humano médio estivesse melhor agora do que antes da Revolução. A única
evidência em contrário era o protesto silencioso nos próprios ossos, a sensação
instintiva de que as condições em que se vivia eram intoleráveis e de que em alguma
outra época deviam ter sido diferentes. Ocorreu-lhe que a coisa verdadeiramente
característica da vida moderna não era a crueldade e a insegurança, mas
simplesmente a nudez, a obscuridade, a apatia. Se você olhasse à sua volta,
perceberia que a vida não tinha nenhuma semelhança não apenas com as mentiras
divulgadas nas telas, mas também com os ideais que o Partido tentava alcançar. Boa
parte das pessoas, inclusive as que compunham o Partido, era neutra e despolitizada,
envolvida em meras questões como se arrastar entre tarefas monótonas, disputar um
lugar no trem, cerzir meias velhas, arranjar um tablete de sacarina, guardar uma
ponta de cigarro. O ideal montado pelo Partido era algo imenso, terrível e brilhante
— um mundo de aço e concreto, de máquinas monstruosas e armas aterrorizantes
—, uma nação de guerreiros e fanáticos marchando sempre em frente, em perfeita
união, todos pensando os mesmos pensamentos e berrando os mesmos slogans
,
perpetuamente trabalhando, lutando, triunfando, perseguindo — trezentos milhões
de pessoas, todas com a mesma expressão no semblante. A realidade era decadente,
cidades sombrias, em que pessoas subnutridas se arrastavam para lá e para cá, com
sapatos furados, em casas remendadas do século XIX sempre cheirando a repolho e
banheiro sujo. Parecia que ele estava tendo uma visão de Londres, imensa e
arruinada, a cidade de um milhão de lixeiras, e mesclada a isso uma imagem da
senhora Parsons, uma mulher de rosto enrugado e cabelo ralo, mexendo inutilmente
em um sifão entupido.
Ele esticou a mão e coçou novamente o tornozelo. Dia e noite, os telemonitores
feriam os ouvidos com estatísticas provando que o povo hoje em dia tinha mais
comida, mais roupas, casas melhores, diversões melhores — que as pessoas viviam
mais tempo, trabalhavam menos horas, eram mais altas, saudáveis e fortes do que
cinquenta anos atrás. Nenhuma palavra daquilo jamais poderia ser comprovada ou
desmentida. O Partido alegava, por exemplo, que atualmente 40% dos proletários
adultos eram alfabetizados; antes da Revolução, dizia-se, esse número era de apenas
15%. O Partido declarava que a mortalidade infantil era agora de 160 a cada mil
crianças, e que antes da Revolução eram trezentas — e assim por diante. Era como
uma mesma equação com duas incógnitas. Era perfeitamente possível que
literalmente cada palavra daqueles livros de história, inclusive referente às questões
que se aceitavam sem discussão, fosse pura fantasia. Até onde ele sabia, podia
nunca ter existido uma lei como a JUS PRIMAE NOCTIS, ou uma criatura como o
capitalista, nem mesmo nada parecido com aquela tal de cartola.
Tudo desaparecia em um nevoeiro. O passado era apagado, o apagamento era
esquecido, a mentira se tornava verdade. Apenas uma vez em sua vida ele tivera nas
mãos — DEPOIS do ocorrido, era isso que contava — evidências concretas e
inconfundíveis de um ato de falsificação. Ele tivera essa prova entre seus dedos por
cerca de trinta segundos. Em 1973, deve ter sido — de todo modo, foi por volta da
época em que ele e Katharine haviam se separado. Mas a data realmente relevante
foi sete ou oito anos antes disso.
A história, na verdade, começava em meados de 1960, o período dos grandes
expurgos em que os líderes originais da Revolução foram eliminados de uma vez
por todas. Em 1970, não havia sobrado mais nenhum deles, exceto o próprio Grande
Irmão. Todos os outros haviam sido àquela altura expostos como traidores e
contrarrevolucionários. Goldstein havia fugido e estava escondido ninguém sabia
onde, e os outros, alguns poucos simplesmente sumiram, enquanto a maioria fora
executada ao final de julgamentos públicos espetaculares em que todos confessaram
seus crimes. Entre os derradeiros sobreviventes havia três homens, chamados Jones,
Aaronson e Rutherford. Deve ter sido em 1965 que esses três homens foram presos.
Como costumava acontecer, eles haviam desaparecido por um ano ou mais, de modo
que não se sabia se estavam vivos ou mortos, e de repente foram trazidos de volta
para se confessarem culpados como sempre. Eles confessaram ter prestado serviços
de inteligência para o inimigo (naquela época, também, o inimigo era a Eurásia),
desviado verbas públicas, assassinado diversos membros de confiança do Partido,
feito intrigas contra a liderança do Grande Irmão, que haviam começado muito antes
de a Revolução acontecer, e executado atos de sabotagem que causaram a morte de
centenas de milhares de pessoas. Depois de confessar tudo isso, eles foram
perdoados, readmitidos no Partido, e receberam cargos que eram na verdade
sinecuras,
2
mas que soavam importantes. Os três escreveram longos artigos abjetos
no Times
, justificando os motivos de sua traição e prometendo se regenerar.
Algum tempo depois da absolvição desses três homens, Winston chegou a vê-los
no Café Castanheira. Ele se lembrava de ter ficado observando o trio com o canto
dos olhos, sentindo uma espécie de fascínio terrível. Eram homens muito mais
velhos que ele, relíquias do mundo antigo, praticamente as últimas grandes figuras
dos tempos heroicos do Partido. O glamour
da luta clandestina e da guerra civil
ainda pairava sutilmente sobre eles. Ele tinha a sensação, embora já nessa época os
fatos e as datas estivessem começando a ficar borrados, de que já conhecia o nome
deles anos antes de ouvir falar no Grande Irmão. Mas também eles eram infratores,
inimigos, párias intocáveis, e seriam condenados com absoluta certeza à extinção
dentro de um ou dois anos. Ninguém que caía nas mãos da Polícia do Pensamento
escapava no final. Eram cadáveres à espera de que os mandassem de volta para a
sepultura.
Não havia ninguém nas mesas perto deles. Não era prudente sequer ser visto nas
imediações daquelas pessoas. Eles estavam sentados em silêncio diante de copos de
gim temperado com cravos, que era a especialidade do café. Dos três, a aparência de
Rutherford foi a que mais impressionou Winston. Rutherford havia sido um famoso
caricaturista cujos cartuns brutais ajudaram a inflamar a opinião popular antes e
durante a Revolução. Mesmo atualmente, com longos intervalos, seus cartuns ainda
eram publicados no Times
. Eram simplesmente imitações de seu estilo anterior,
curiosamente desvitalizadas e pouco convincentes. Eram sempre os mesmos temas
antigos requentados — cortiços, crianças famintas, brigas de rua, capitalistas de
cartola —, até nas barricadas os capitalistas apareciam de cartola em um esforço
infinito, desesperado, de voltar ao passado. Era um homem monstruoso, com uma
longa cabeleira grisalha e ensebada, o rosto inchado e enrugado e grossos lábios.
Algum dia, ele devia ter sido imensamente forte; agora, seu tronco imenso estava
murcho, flácido, estufado, escapando por todos os lados. Ele parecia estar
desfalecendo aos olhos de todos, como uma montanha que desmorona.
Eram três da tarde, e não havia movimento. Winston não conseguia se lembrar
agora de como havia ido parar no café naquele horário. O lugar estava praticamente
vazio. Uma música de fundo saía dos telemonitores. Os três homens sentados no
canto, quase imóveis, não conversavam. Sem ser solicitado, o garçom trouxe mais
três copos de gim. Havia um tabuleiro de xadrez na mesa ao lado deles, com as
peças posicionadas, mas para uma partida ainda não iniciada. Então, por cerca de
meio minuto, algo aconteceu nos telemonitores. A música mudou, e o tom da
música mudou também. Então começou — mas era algo difícil de descrever. Era um
tom peculiar, rachado, zurrado; em seu pensamento, Winston chamou de um tom
covarde. E então a voz no telemonitor começou a cantar:
Embaixo da frondosa castanheira
te traí e me traíste da mesma maneira.
Lá ficarão eles, nós aqui, a vida inteira,
embaixo da frondosa castanheira.
Os três homens nem se mexeram. No entanto, quando Winston olhou de novo
para o rosto arruinado de Rutherford, viu que seus olhos estavam cheios de
lágrimas. E pela primeira vez ele se deu conta, com uma espécie de estremecimento
íntimo, e ainda sem saber DIANTE DO QUE estremecia, que ambos — Aaronson e
Rutherford — tinham narizes fraturados.
Um pouco mais tarde, os três foram presos de novo. Aparentemente, eles
haviam se envolvido em novas conspirações desde o momento da saída da prisão.
No segundo julgamento, eles confessaram novamente todos os seus antigos crimes e
mais uma série de novos. Eles foram executados, e seu fim foi registrado nos anais
do Partido como um aviso para a posteridade. Cerca de cinco anos depois, em 1973,
Winston havia acabado de abrir um rolo de documentos que havia sido ejetado do
tubo pneumático sobre sua escrivaninha quando deparou com um pedaço de papel
que evidentemente havia sido guardado por engano entre os outros e esquecido ali.
No momento em que o abriu e o esticou na mesa, ele compreendeu o que
significava. Era meia página arrancada do Times
de cerca de dez anos antes — a
metade superior da página, de modo que incluía a data — e continha uma fotografia
dos delegados em algum evento do Partido em Nova York. Com destaque no meio
do grupo estavam Jones, Aaronson e Rutherford. Não havia como confundi-los; em
todo caso, seus nomes estavam na legenda embaixo da fotografia.
A questão era que, nos dois julgamentos, os três haviam confessado estar
naquela data em solo eurasiano. Eles teriam decolado de uma pista secreta no
Canadá rumo a uma reunião em algum lugar da Sibéria, e conversado com membros
do Estado-Maior Eurasiano, aos quais, em traição, teriam transmitido importantes
segredos militares. A data ficara na memória de Winston porque, por acaso, era o
primeiro dia do verão; mas a história completa devia estar registrada também em
inúmeros outros lugares. Só havia uma conclusão possível: as confissões eram
mentiras.
É claro, isso, em si, não seria novidade. Mesmo naquela ocasião Winston não
imaginava que as pessoas eliminadas nos expurgos tivessem efetivamente cometido
os crimes de que eram acusadas. Mas aquela era uma evidência concreta; era um
fragmento do passado abolido, como um osso fossilizado que aparece no estrato
errado e destrói uma teoria geológica. Já seria o suficiente para explodir o Partido
em átomos se de alguma forma isso pudesse ser publicado para que o mundo
soubesse seu significado.
Ele imediatamente começou a trabalhar. Assim que viu o que era a fotografia, e
o que ela representava, ele a cobriu com outra folha de papel. Por sorte, quando ele
a desenrolou, a página de jornal apareceu de ponta-cabeça do ponto de vista do
telemonitor.
Ele pôs a prancheta de escrever sobre os joelhos e afastou a cadeira para trás, de
modo a ficar o mais distante possível do telemonitor. Não era difícil manter o
semblante inexpressivo, até mesmo a respiração podia ser controlada, com esforço;
mas não era possível controlar os batimentos cardíacos, e o telemonitor era sensível
o suficiente para captá-los. Ele deixou passar algo como dez minutos, segundo lhe
pareceu, atormentado com o temor de que algum acidente — um vento súbito sobre
a escrivaninha, por exemplo — pudesse traí-lo. Então, sem descobri-la, ele inseriu a
fotografia no buraco da memória, assim como outros papéis inutilizados. Dali a um
minuto, a imagem virou cinzas.
Isso faz dez… onze anos. Hoje, provavelmente, ele teria guardado aquela
fotografia. Era curioso que o fato de tê-la nas mãos lhe parecesse fazer diferença
agora, quando a fotografia em si, assim como o acontecimento registrado, havia
virado apenas uma lembrança. O controle do Partido sobre o passado ficaria menos
forte, ele se perguntou, porque uma evidência que já não existia mais OUTRORA
existiu?
Agora, no entanto, supondo-se que pudesse de alguma forma ressurgir das
cinzas, a fotografia talvez nem fosse mais uma evidência. Àquela altura, quando ele
fizera essa descoberta, a Oceania já não estava mais em guerra com a Eurásia, e
devia ter sido para os agentes da Lestásia que os três homens mortos haviam
revelado os tais segredos em traição. Desde então, houve outras alterações — duas
ou três, ele não se lembrava mais quantas. Muito provavelmente, as confissões
foram reescritas e reescritas até que os fatos e as datas originais não tivessem mais a
menor relevância. O passado não era simplesmente alterado; mas era alterado
continuamente. O que mais o afligia, com uma sensação de pesadelo, era o fato de
ele jamais entender claramente o motivo de ter de empreender tamanha fraude. As
vantagens imediatas de falsificar o passado eram óbvias, porém o motivo primordial
era misterioso. Ele tornou a pegar a caneta e escreveu:
Eu entendo COMO; eu não entendo POR QUÊ.

Ele se perguntou, como se perguntara muitas vezes antes, se ele mesmo não
seria um lunático. Talvez um lunático fosse simplesmente uma minoria em um único
grupo. Houve uma época em que teria sido sinal de loucura acreditar que a Terra
girava em torno do Sol; agora, era loucura acreditar que o passado era inalterável.
Talvez ele fosse o ÚNICO a acreditar nisso e, nesse caso, então, talvez fosse um
lunático. Entretanto a ideia de ser um lunático não o incomodava muito; o horror era
que ele também podia estar errado.
Ele pegou o livro de história para crianças e olhou para o retrato do Grande
Irmão que aparecia no frontispício. Os olhos hipnóticos enfrentavam os seus. Era
como se uma força imensa se impusesse sobre ele — algo que penetrava o seu
crânio, chocando-se com seu cérebro, espantando as próprias crenças, persuadindo-
o, praticamente, a negar as evidências de seus sentidos. No final das contas, o
Partido anunciaria que dois mais dois são cinco, e você teria de acreditar. Era
inevitável que cedo ou tarde eles alegassem algo assim: a lógica da posição deles
exigia isso. Não apenas a validade da experiência, mas a própria existência da
realidade externa era tacitamente negada pela filosofia deles. A heresia das heresias
era o bom senso. E o que o aterrorizava não era a possibilidade de que o matassem
por pensar diferente, mas o fato de que talvez eles tivessem razão. Pois, afinal, como
sabemos que dois mais dois são quatro? Ou que a força da gravidade realmente
existe? Ou que o passado é inalterável? E se o passado e o mundo exterior só
existirem na mente? E se a mente for controlável?
Mas não! A coragem dele subitamente se fortaleceu sozinha. O semblante de
O’Brien, evocado por alguma associação nada óbvia, flutuara em sua mente. Ele
sabia, com mais certeza do que antes, que O’Brien estava do seu lado. Ele estava
escrevendo o diário por causa de O’Brien — PARA O’Brien; era como uma carta
interminável que ninguém jamais leria, mas que era endereçada a uma pessoa em
particular e que obtinha seu brilho desse fato.
O Partido dizia para você rejeitar a evidência dos próprios olhos e ouvidos. Era
o seu comando final, o comando mais essencial. Ele sentiu um aperto no coração ao
pensar no enorme poder organizado contra ele, na facilidade com que qualquer
intelectual do Partido poderia derrotá-lo em um debate, nos argumentos sutis que ele
não conseguiria sequer entender, quanto mais se opor a eles. E, no entanto, ele
estava certo! Eles estavam errados, e ele estava certo. O óbvio, o singelo, o
verdadeiro precisavam ser defendidos. Truísmos são verdades, não se esqueça! O
mundo sólido existe, suas leis não mudam. As pedras são duras, a água é úmida,
objetos sem sustentação caem em direção ao centro da Terra. Com a sensação de
que estava falando com O’Brien, e também de que estava revelando um importante
axioma, ele escreveu:
Liberdade é a liberdade de dizer que dois mais dois são quatro. Se isso for considerado certo,
todo o resto é consequência.
Capítulo 8

De algum lugar embaixo de um viaduto, o cheiro de café torrado — café de


verdade, não Café Vitória — veio flutuando até a rua. Winston parou
involuntariamente. Por cerca de dois segundos, ele voltou ao mundo quase
esquecido de sua infância. Então, uma porta bateu, interrompendo o aroma tão
abruptamente como se fosse um som.
Ele havia percorrido alguns quilômetros de calçada, e sua úlcera varicosa estava
latejando. Essa era a segunda vez em três semanas que ele perdia um evento noturno
no Centro Comunitário: um ato temerário, uma vez que se podia ter certeza de que o
seu número de frequências no Centro era cuidadosamente conferido. A princípio,
um membro do Partido não tinha tempo livre, e nunca estava sozinho, exceto na
cama. Supunha-se que, quando não estavam trabalhando, comendo ou dormindo,
estivessem participando de algum tipo de lazer comunitário; fazer qualquer coisa
que sugerisse um gosto pela solidão, até mesmo caminhar sozinho, era sempre um
pouco perigoso. Havia uma palavra para isso na novilíngua: VIDAPROPISMO, era
como diziam, referindo-se ao individualismo e à excentricidade. Mas naquela noite,
quando saiu do Ministério, a temperatura de abril estava tão amena que ele se sentiu
tentado. O céu estava do azul mais claro que ele já vira aquele ano, e, de repente, o
período longo e barulhento no Centro Comunitário, os jogos tediosos e exaustivos,
as palestras, a camaradagem ruidosa embalada pelo gim pareceram insuportáveis.
Por impulso, ele deu meia-volta no ponto de ônibus e perambulou a esmo pelo
labirinto de Londres; a princípio, para o sul, depois, para o leste, então, para o norte
outra vez, perdendo-se em ruas desconhecidas e mal se importando com a direção
em que ia.
“Se ainda existe esperança”, ele havia escrito no diário, “ela está nos
proletários.” Essas palavras continuavam voltando, afirmação de uma verdade
mística e de um absurdo palpável. Ele estava em algum ponto entre os vagos
cortiços acinzentados da zona norte, a leste do que outrora fora a estação Saint
Pancras. Subia uma rua de paralelepípedos com casinhas de dois andares e portas
descascadas que davam diretamente na calçada e que, de alguma forma,
curiosamente lembravam buracos de rato. Havia poças de água suja aqui e ali entre
as pedras do calçamento. Entrando e saindo por portões escuros e estreitas vielas
que se bifurcavam, havia um número impressionante de pessoas — meninas
viçosas, com bocas mal pintadas de batom, e rapazes que caçavam garotas, e
mulheres inchadas, rebolando, que mostravam como aquelas garotas estariam dali a
dez anos, e velhas criaturas encurvadas arrastando os pés tortos, e crianças descalças
e esfarrapadas que brincavam nas poças e fugiam de suas mães com berros
irritantes. Talvez um quarto das janelas que davam para a rua estivesse quebrado e
coberto com tapumes. A maioria das pessoas não prestava atenção em Winston;
alguns apenas olharam para ele com uma espécie de curiosidade contida. Duas
mulheres monstruosas de braços vermelhos cor de tijolo, cruzados sobre o avental,
conversavam à porta de casa. Winston ouviu partes da conversa ao se aproximar.
— Sim, eu falei para ela “muito bem”, eu disse. “Mas você, no meu lugar, teria
feito a mesma coisa. É fácil criticar!”, eu falei, “mas você não passa o mesmo apuro
que eu”.
— Ah — disse a outra —, mas isso é assim mesmo. É sempre a mesma coisa.
As vozes estridentes pararam de súbito. As mulheres olharam para ele com um
silêncio hostil enquanto ele passava. Mas não era exatamente hostilidade; apenas
uma certa cautela, um enrijecimento momentâneo, como à passagem de um animal
desconhecido. Os macacões azuis do Partido não deviam ser uma visão comum
naqueles lugares, a não ser que se tivesse um assunto específico. Os patrulheiros
podiam detê-lo se o encontrassem ali. “Posso ver seus documentos, camarada? O
que você está fazendo aqui? A que horas você saiu do trabalho? Esse é o seu
caminho usual na volta para casa?” — e assim por diante. Não que houvesse uma
regra contra voltar andando para casa por um caminho pouco usual, mas era o
suficiente para chamar atenção se a Polícia do Pensamento ficasse sabendo.
De repente, a rua inteira se agitou. Havia gritos de alerta vindo de todos os
lados. As pessoas correram para seus portões feito coelhos. Uma moça saiu
correndo por uma porta um pouco à frente de Winston, agarrou uma criança que
brincava na poça, deu meia-volta e correu de novo para dentro de casa num instante.
Ao mesmo tempo, um homem com um paletó preto que parecia uma sanfona, que
emergira de uma travessa, correu na direção de Winston, apontando com excitação
para o céu.
— Vapor! — ele berrou. — Cuidado, patrão! Vai explodir na nossa cabeça!
Abaixe depressa!
“Vapor” era o apelido com o qual, por algum motivo, os proletários se referiam
aos mísseis aéreos. Winston se atirou de bruços no chão bem rápido. Os proletários
quase sempre tinham razão quando davam esse tipo de alerta. Eles pareciam ter uma
espécie de instinto que lhes dizia alguns segundos antes quando um míssil estava
vindo, embora os mísseis voassem supostamente acima da velocidade do som.
Winston cruzou os braços acima da cabeça. Houve um rugido que parecia fazer a
calçada tremer; uma chuva de objetos leves caiu em suas costas. Quando ele se
levantou, viu que estava coberto de fragmentos de vidro da janela mais próxima.
Ele continuou andando. A bomba havia demolido um grupo de casas daquela
rua a uns duzentos metros dali. Havia uma coluna de fumaça preta pairando no céu,
e logo abaixo uma nuvem de poeira de gesso em meio à qual uma multidão já se
formava ao redor das ruínas. Ele viu um pequeno amontoado de gesso na rua à
frente dele, e no meio desse amontoado, ele pôde vislumbrar um fio vermelho
escorrendo. Quando chegou mais perto, percebeu que era uma mão humana
decepada do pulso. Além de ensanguentada, a mão estava completamente coberta de
poeira branca, parecendo um molde de gesso.
Ele chutou aquela mão para a sarjeta e, então, para evitar a multidão, dobrou
uma esquina à direita. Dali a três ou quatro minutos, ele estava fora da área afetada
pela bomba, e a sórdida proliferação da vida das ruas continuava como se nada
houvesse acontecido. Eram quase oito da noite, e os bares que o proletariado
frequentava (“botequins”, como eles chamavam) estavam abarrotados de fregueses.
Das portas engorduradas de vaivém, incessantemente abrindo e fechando, vinha um
cheiro de urina, serragem e cerveja azeda. Em um ângulo formado por uma fachada
proeminente, três homens estavam parados muito próximos; o do meio segurava um
jornal aberto, que os outros dois liam por sobre seus ombros. Mesmo antes de
chegar perto o suficiente para ver a expressão em seus semblantes, Winston
conseguiu notar que estavam absortos, conforme a posição de seus corpos. Era
óbvio que se tratava de alguma notícia grave a que estavam lendo. Ele se encontrava
a alguns poucos passos deles quando subitamente o grupo se desfez e dois dos
homens deram início a uma violenta altercação. Por um momento, pareceram
prestes a trocar socos.
— Você não está ouvindo o que eu estou dizendo? Estou falando que não sai
nenhum número terminado em sete há mais de catorze meses!
— Mas saiu, sim!
— Não saiu nada! Faz dois anos que eu estou anotando todos os números num
papel que tenho em casa. Eu sempre anoto, é certo como um relógio. E posso
afirmar: não sai um número terminado em sete…
— Sim, SAIU um sete, sim! Eu estou quase me lembrando o maldito número
para lhe dizer. Quatro, zero, sete, terminava assim. Foi em fevereiro… na segunda
semana de fevereiro.
— Fevereiro é a sua mãe! Eu anotei todos, preto no branco. Eu estou dizendo,
nenhum número…
— Ora, calem a boca! — disse o terceiro homem.
Eles estavam se referindo à loteria. Winston olhou para trás depois de passar uns
trinta metros do trio. Ainda estavam discutindo com expressões exaltadas,
passionais. A loteria, pagando semanalmente enormes prêmios, era o único
acontecimento público no qual o proletariado prestava seriamente atenção. Era
provável haver milhões de proletários para os quais a loteria era o principal, senão o
único, motivo para continuarem vivos. Era seu prazer, sua loucura, seu analgésico,
seu estimulante intelectual. Em se tratando de loteria, até pessoas que mal sabiam
ler ou escrever pareciam capazes de cálculos complicados e impressionantes proezas
da memória. Havia toda uma tribo de homens que ganhavam a vida simplesmente
vendendo sistemas, previsões e amuletos da sorte. Winston não tinha nada a ver com
a realização dos sorteios, que eram organizados pelo Ministério da Fartura, mas ele
sabia (na verdade, todo mundo do Partido sabia) que os prêmios eram praticamente
uma ilusão. Apenas pequenas quantias eram de fato pagas, os ganhadores dos
grandes prêmios eram pessoas inexistentes. Na ausência de qualquer
intercomunicação real entre uma parte da Oceania e outra, não era difícil fazer esse
arranjo.
No entanto, se ainda existia esperança, ela estava nos proletários. Era preciso se
agarrar a isso. Quando se refletia sobre esse tema, parecia razoável: era quando se
olhava para os seres humanos na calçada que isso se tornava um ato de fé. A
travessa em que ele entrou era uma descida. Ele teve a sensação de já ter estado
naquele bairro antes, e havia um grande cruzamento um pouco mais adiante. De
algum ponto à sua frente ouvia-se um ruído de vozes gritando. A rua fazia uma
curva abrupta e então terminava em um lance de escada que descia até uma viela
onde alguns feirantes vendiam verduras murchas. Nesse instante, Winston se
lembrou de onde estava. A viela saía na rua principal e, virando a primeira esquina,
a cinco minutos dali, ficava a loja de objetos usados onde ele havia comprado o
livro em branco que era agora seu diário. E em uma pequena papelaria, não muito
longe dali, comprara a caneta e o tinteiro.
Ele parou por um momento no alto da escadaria. Do outro lado da viela, havia
um botequim obscuro, cujas janelas pareciam cobertas de neve, mas na verdade era
uma camada de poeira. Um homem muito velho, encurvado, mas ativo, de bigodes
brancos espetados para a frente como um camarão, empurrou a porta vaivém e
entrou. Enquanto Winston ficou observando, ocorreu-lhe que aquele velho, que
devia ter pelo menos oitenta anos, já estava na meia-idade quando a Revolução
aconteceu. Ele e alguns poucos como ele eram os últimos elos com o mundo extinto
do capitalismo. No próprio Partido não sobraram muitos membros cujas ideias
tivessem sido formadas antes da Revolução. A geração mais velha fora praticamente
eliminada nos grandes expurgos dos anos 50 e 60, e os poucos sobreviventes, fazia
muito tempo, haviam sido aterrorizados até chegar a uma total submissão
intelectual. Se havia ainda alguém vivo capaz de fornecer um relato fiel das
condições da primeira parte do século, só poderia ser um proletário. De súbito, a
passagem do livro de história que Winston copiara no diário voltou à sua mente, e
um impulso lunático o dominou. Ele entraria no botequim e se apresentaria àquele
velho e o questionaria. Ele diria: “Conte-me sobre sua vida quando era menino.
Como era naquela época? As coisas eram melhores do que são hoje em dia, ou eram
piores?”.
De um jeito apressado, para não ter tempo de se apavorar, ele desceu os degraus
e atravessou a rua estreita. Era evidentemente uma loucura. Como de costume, não
havia nenhuma regra definida que proibisse conversar com proletários e frequentar
seus bares, mas era muito incomum que tais ações passassem despercebidas. Se os
patrulheiros aparecessem, ele poderia alegar uma súbita fraqueza ou uma vertigem,
mas não era provável que acreditassem nele. Ele empurrou a porta, e um cheiro
hediondo e nauseante de cerveja azeda o atingiu em cheio. Quando entrou, o volume
das vozes diminuiu pela metade. Pelas suas costas, ele sentiu que todos reparavam
em seu macacão azul. Uma partida de dardos em andamento, do outro lado do salão,
foi interrompida por uns trinta segundos. O velho que ele vinha seguindo estava
parado junto ao balcão, discutindo algo com o barman
, um rapaz grande, robusto,
de nariz curvo, braços enormes. Um grupo de outros sujeitos, em volta, com seus
copos na mão, assistia à cena.
— Eu pedi com educação, não pedi? — dizia o velho, erguendo os ombros com
intenção beligerante. — Você está me dizendo que não tem nenhuma caneca de pint
nesta maldita espelunca?
— E o que diabos é um pint
? — disse o barman
, inclinando-se para a frente,
com as pontas dos dedos no balcão.
— Olhe só para ele! Você se diz um barman
e não sabe o que é um pint
! Ora,
um pint
é metade de um quart
, e um galão são quatro quarts
. Você quer que eu lhe
ensine também o ABC, agora?
— Nunca ouvi falar nisso — disse o barman
, sendo sucinto. — Tem litro e
meio litro; só servimos assim. Só temos os copos que estão aí na prateleira na sua
frente.
— Eu preferiria um pint
— insistiu o velho. — Você podia pedir um pint
sem
nenhum problema. Nós não tínhamos esses malditos litros quando eu era jovem.
— Quando você era jovem, todo mundo vivia em árvores — disse o barman
,
olhando de relance para os outros fregueses.
Houve uma explosão de gargalhadas, e o incômodo causado pela entrada de
Winston aparentemente passou. O rosto do velho, com a barba grisalha por fazer,
enrubesceu. Ele se virou, resmungando consigo mesmo, e esbarrou em Winston.
Winston segurou-o delicadamente pelo braço.
— Posso lhe pagar uma bebida? — ele disse.
— O senhor é um cavalheiro — disse o homem, tornando a aprumar os ombros.
Ele parecia não haver reparado no macacão azul de Winston. — Um pint
! — ele
retrucou agressivamente para o barman
. — Um pint
de wallop
.
O barman
serviu meio litro de uma cerveja marrom-escura em dois copos
grossos que ele havia lavado em um balde embaixo do balcão. A cerveja era a única
bebida que havia nos botequins proletários. O proletariado supostamente não
deveria beber gim, embora na prática todos tivessem fácil acesso a essa bebida. A
partida de dardos agora estava no ápice, e o grupo de homens no balcão começara a
falar de bilhetes de loteria. A presença de Winston foi esquecida por um momento.
Havia uma mesa junto à janela onde ele e o velho poderiam conversar sem receio de
ser ouvidos pelos outros. Era terrivelmente perigoso, mas de todo modo não havia
nenhum telemonitor no salão; ele se certificara disso ao entrar.
— Ele podia me servir um pint
— resmungou o velho ao se sentar com seu
copo. — Meio litro não é suficiente. Não me satisfaz. E um litro inteiro é um pouco
demais para mim. Minha bexiga começa a sentir. Sem falar no preço.
— Você deve ter visto muitas mudanças desde a sua juventude — disse Winston,
hesitante.
Os olhos azul-claros do velho se moviam do alvo dos dardos até o balcão, e do
balcão até a porta do toalete, como se esperasse que aquelas mudanças tivessem
ocorrido no salão do bar.
— A cerveja era melhor — ele disse, por fim. — E mais barata! Quando eu era
moço, a cerveja leve… costumávamos chamar de wallop
; custava quatro pennies
o
pint
. Isso, antes da guerra, é claro.
— De qual guerra você está falando? — indagou Winston.
— De todas as guerras — disse vagamente o velho. Então, ele apanhou o copo, e
seus ombros se aprumaram de novo. — Desejo ao senhor toda a saúde do mundo!
Em seu pescoço magro, o pomo de adão proeminente fez um movimento rápido
de subir e descer, e a cerveja sumiu. Winston foi até o balcão e voltou com outros
dois copos de meio litro. O velho aparentemente esquecera seu preconceito contra
beber um litro.
— O senhor é muito mais velho que eu — disse Winston. — Com certeza, já era
adulto antes de eu nascer. Deve se lembrar de como eram os velhos tempos, antes da
Revolução. As pessoas da minha idade, em sua maioria, não sabem nada sobre essa
época. Nós apenas lemos sobre isso nos livros, e o que está nos livros pode não ser
verdade. Eu gostaria de saber sua opinião. Os livros de história dizem que a vida
antes da Revolução era completamente diferente do que é hoje em dia. Havia a mais
terrível opressão, injustiça, pobreza, pior do que tudo o que pudermos imaginar.
Aqui em Londres, uma grande massa de indivíduos nunca tinha nada para comer
desde o nascimento até a morte. Metade das pessoas nem tinha botas para calçar.
Trabalhavam doze horas por dia, saíam da escola aos nove anos, dormiam dez
pessoas em um mesmo quarto. E, ao mesmo tempo, havia pouquíssimos cidadãos,
apenas alguns milhares… os capitalistas, como eram chamados… que eram ricos e
poderosos. Eles eram os donos de tudo que havia para possuir. Viviam em casas
imensas e magníficas com trinta empregados, circulavam em automóveis e
carruagens de quatro cavalos, bebiam champanhe, usavam cartolas…
O semblante do velho subitamente se iluminou.
— Cartolas! — ele disse. — Engraçado você falar em cartola. Ontem me
ocorreu a mesma coisa, não sei por quê. Eu estava pensando nisso. Não vejo uma
cartola há anos. Elas sumiram, não se usam mais. A última vez em que eu usei uma
cartola foi no enterro da minha cunhada. E isso faz… bem, eu não saberia dizer a
data exata, mas deve ter sido uns cinquenta anos atrás. Claro, era uma cartola
alugada para a ocasião.
— A cartola nem é tão importante assim — disse Winston pacientemente. — A
questão é que esses capitalistas… eles e alguns poucos advogados e padres e assim
por diante, que viviam nessa época… eles eram os senhores da Terra. Tudo existia
para o benefício deles. Vocês, as pessoas comuns, os trabalhadores, eram escravos
deles. Eles podiam fazer o que quisessem com as pessoas. Eles podiam mandá-las
para o Canadá feito gado. Podiam dormir com as filhas de vocês, se quisessem. Eles
podiam mandar açoitá-las com chicotes de nove tiras. Vocês precisavam tirar a
boina quando passavam por eles. Todos os capitalistas viviam com um bando de
lacaios que…
O semblante do velho se iluminou novamente.
— Lacaios! — ele disse. — Eis aí uma palavra que eu não ouvia há muito
tempo. Lacaios! Isso realmente me lembrou do passado; agora, sim. Eu me lembro,
oh, faz muito tempo… Eu costumava ir ao Hyde Park no domingo à tarde para ouvir
gente discursando. Exército da Salvação, católicos, judeus, indianos… tinha de
tudo. E havia um sujeito… bem, eu não saberia dizer o nome dele agora, mas era
um orador e tanto. Ele não usava meias palavras para criticar! “Lacaios!”, ele dizia.
“Lacaios da burguesia! Serviçais da classe dominante!” “Parasitas!”, eis outra
palavra que ele usava. E “hienas”. Justamente, ele os chamava de hienas. É claro,
ele estava se referindo ao Partido Trabalhista, você sabe…
Winston teve a sensação de que eles estavam falando de coisas diferentes.
— O que eu realmente queria saber é o seguinte — ele disse. — Você acha que
tem mais liberdade hoje do que tinha naquela época? Você é tratado mais como ser
humano agora? Nos velhos tempos, os ricos, as pessoas que estavam no topo…
— A Câmara dos Lordes — disse o velho com ar retrospectivo.
— A Câmara dos Lordes, se você preferir assim. O que eu gostaria de saber é se
esses lordes podiam tratá-lo como inferior simplesmente porque eram ricos e você
era pobre. É verdade, por exemplo, que você tinha de chamá-los de sir
e tirar o
chapéu quando passava por eles?
O velho parecia estar pensando profundamente. Bebeu um quarto de sua cerveja
antes de responder.
— Sim — ele disse. — Eles gostavam que a gente prestasse continência. Que
demonstrasse respeito. Eu pessoalmente nunca concordei com isso, mas costumava
fazer o gesto. Era obrigatório, digamos assim.
— E por acaso era comum… Estou citando o que vi em livros de história. Era
comum que essas pessoas e seus empregados empurrassem vocês para fora da
calçada?
— Um deles me empurrou na sarjeta uma vez — disse o velho. — Lembro
como se fosse ontem. Era a noite da Regata Oxford-Cambridge. Eles costumavam
ficar muito agitados na noite da regata; e eu trombei com um rapaz na avenida
Shaftesbury. Era um cavalheiro… camisa de colarinho, cartola, sobretudo preto.
Todo mundo estava zanzando pela calçada, e nos trombamos acidentalmente. Ele
falou: “Por que você não olha por onde anda?”. Então, eu respondi: “Você acha que
é o dono da maldita calçada?”. E ele retrucou: “Vou arrancar a sua maldita cabeça se
você tomar liberdades comigo!”. Aí eu disse: “Você está bêbado. Vou chamar a
polícia agora mesmo!”. Nesse momento, você não vai acreditar, mas ele pôs a mão
em meu peito e me empurrou, e eu caí na rua e quase morri atropelado por um
ônibus. Bem, eu era moço na época, e estava pronto para dar o troco, só que…
Uma sensação de desamparo tomou conta de Winston. A memória daquele velho
não passava de um monte de lixo de detalhes. Ele poderia interrogá-lo o dia inteiro
sem obter nenhuma informação de fato. As histórias do Partido talvez ainda fossem
verdadeiras, de certa forma; podiam até ser completamente verdadeiras. Então, ele
fez uma última tentativa.
— Talvez eu não tenha me feito entender claramente — ele disse. — O que
estou tentando dizer é o seguinte. Você viveu muito tempo; metade da sua vida foi
antes da Revolução. Em 1925, por exemplo, você já era adulto. Você diria, pelo que
se lembra, que a vida em 1925 era melhor que agora ou pior? Se você pudesse
escolher, preferiria viver naquela época ou hoje?
O velho ficou olhando pensativo para o alvo dos dardos. Ele terminou sua
cerveja mais lentamente do que antes. Então, com um ar filosófico e tolerante, como
se a cerveja o houvesse enternecido, ele disse:
— Eu sei o que você espera que eu fale. Você espera que eu admita que
preferiria ser jovem de novo. A maioria das pessoas diria que preferiria voltar a ser
jovem, se você perguntasse. Quando se chega à minha idade na vida, você nunca
está bem. Sofro de dores horrendas nos pés, e a minha bexiga é simplesmente
terrível. Seis ou sete vezes à noite, ela me obriga a levantar da cama. Por outro lado,
há grandes vantagens em ser um velho. Você não tem as mesmas preocupações, não
tem problemas com mulheres, e isso já é uma grande coisa. Não tenho nada com
nenhuma mulher faz uns trinta anos, acredite. Nem quero, para falar a verdade.
Winston se recostou no parapeito da janela. Não adiantava continuar. Ele estava
prestes a comprar mais cerveja quando o velho subitamente se levantou e caminhou
rápido até o mictório fedorento do outro lado do salão. O meio litro extra já estava
fazendo efeito no homem. Winston ficou sentado mais um ou dois minutos
contemplando o copo vazio e mal reparou quando seus pés o levaram de volta para a
rua. Dali a vinte anos, no máximo, ele refletiu, a imensa e simples questão “A vida
era melhor antes da Revolução do que agora?” deixaria, de uma vez por todas, de
ser passível de resposta. Contudo, na prática, não havia resposta para ela mesmo
agora, pois os poucos sobreviventes do mundo antigo eram incapazes de comparar
uma época com a outra. Eles se lembravam de milhões de coisas inúteis: de uma
discussão com um colega de trabalho, uma busca por uma bomba de bicicleta
perdida, da expressão no rosto da irmã morta muito tempo atrás, das espirais de
poeira de uma manhã de muito vento há setenta anos… porém todos os fatos
relevantes estavam fora de seu espectro de visão. Eram como a formiga, capaz de
ver os objetos pequenos, mas não os grandes. E, quando a memória falhava e os
registros históricos eram falsificados, quando isso acontecia, a alegação do Partido
de ter melhorado as condições da vida humana tinha de ser aceita, porque não
existiam, e nunca mais poderiam existir, quaisquer outros padrões com os quais
compará-las.
Nesse momento, sua linha de raciocínio se interrompeu abruptamente. Ele parou
e ergueu os olhos. Estava em uma rua estreita, onde havia algumas poucas lojas
escurecidas intercaladas entre residências. Bem acima de sua cabeça havia três bolas
de metal desbotadas que pareciam ter sido douradas um dia. Aparentemente, ele
conhecia aquele lugar. É claro! Ele estava parado em frente à loja de usados onde
comprara o diário.
Uma pontada de medo percorreu seu corpo. Já havia sido um gesto intempestivo
o suficiente comprar aquele livro em branco, e ele havia jurado jamais voltar àquele
lugar. No entanto, bastou ele deixar o pensamento divagar, e seus pés o levaram de
volta até ali por vontade própria. Havia sido justamente para se contrapor a esse tipo
de impulso suicida, do qual ele esperava se proteger, que ele iniciara o diário. Ao
mesmo tempo, ele percebeu que, embora fossem quase nove horas da noite, a loja
ainda estava aberta. Com a sensação de que ficaria menos exposto lá dentro do que
parado na calçada, ele empurrou a porta e entrou. Caso fosse questionado, poderia
se justificar dizendo que estava tentando comprar lâminas de barbear.
O proprietário havia acabado de acender uma lamparina de querosene que
exalava um aroma impuro, mas familiar. Era um homem de cerca de sessenta anos,
frágil e encurvado, com um nariz comprido e um ar benevolente, e olhos amistosos
distorcidos por óculos de lentes grossas. Seu cabelo era quase todo branco, porém as
sobrancelhas eram espessas e ainda escuras. Os óculos, os movimentos delicados,
embora agitados, e o fato de estar usando um velho paletó de veludo preto davam-
lhe um vago ar de intelectualidade, como se ele tivesse sido uma espécie de literato,
ou talvez músico. Sua voz era suave, meio enfraquecida, e seu sotaque era menos
degradado que o da maioria dos proletários.
— Eu o reconheci na calçada — ele disse imediatamente. — Você é o cavalheiro
que comprou o álbum de recordações para moças. Era um belo papel, aquele.
Costumávamos chamar de papel-creme. Já não se fabrica mais esse tipo de papel…
hum… arrisco dizer que há uns cinquenta anos — ele observou Winston por cima
dos óculos. — Há algo em especial que o senhor esteja procurando? Ou o senhor
quer apenas dar uma olhada?
— Eu estava de passagem — disse Winston vagamente. — Então, resolvi entrar.
Não estou procurando nada em especial.
— Não importa — disse o homem —, porque eu acho que não poderia ajudá-lo,
de todo modo. — Ele fez um gesto delicado com as palmas das mãos, como se
quisesse se justificar. — Como o senhor mesmo pode ver, pode-se dizer que a loja
está praticamente vazia. Cá entre nós, o comércio de antiguidades está com os dias
contados. Já não há mais demanda nem estoque. Móveis, porcelanas, vidros, aos
poucos foram todos se quebrando. É claro, os objetos de metal foram quase todos
derretidos. Não vejo um candelabro de latão há anos.
O exíguo interior da loja estava, na verdade, abarrotado de coisas, o que tornava
o ambiente até desconfortável, mas não havia quase nada ali que tivesse o mínimo
valor. O espaço de circulação era muito restrito, pois todas as paredes estavam
cobertas de inúmeras molduras de quadros empoeiradas. Na vitrine, havia caixas de
porcas e parafusos, formões
1
cegos, canivetes com as lâminas quebradas, relógios
foscos que nem se poderia fingir que estivessem funcionando e mais uma
miscelânea de artigos usados. Sobre uma única mesinha num canto havia um
conjunto de objetos avulsos — tabaqueiras laqueadas, broches de ágata e coisas do
gênero — que pareciam talvez despertar algum interesse. Quando Winston se
aproximou da mesa, seus olhos se depararam com um objeto redondo, liso, que
cintilava suavemente à luz da lamparina; então, ele o tomou nas mãos.
Era uma massa pesada de vidro, curva de um dos lados, achatada do outro, que
formava praticamente um hemisfério. Havia uma suavidade peculiar, como de gotas
de orvalho, tanto na cor quanto na textura do vidro. No cerne da peça, ampliado pela
superfície curva, havia um elemento estranho, rosado, retorcido, que lembrava uma
rosa ou uma anêmona marinha.
— O que é isso? — perguntou Winston, fascinado.
— É um coral — disse o velho. — Deve ter vindo do Oceano Índico. Eles
costumavam cravar corais em peças de vidro assim. Isso não foi feito há menos de
cem anos. Talvez mais, a julgar pela aparência.
— É um objeto muito bonito — disse Winston.
— É um objeto muito bonito — disse o homem, satisfeito. — Mas não existem
mais muitos desses hoje em dia. — Ele tossiu. — Agora, se por acaso o senhor
quiser comprá-lo, vai custar quatro dólares. Eu me lembro de quando um objeto
desses chegava a sair por oito libras, e oito libras eram… bem, eu não saberia fazer
a conta, mas era um bocado de dinheiro. Mas quem se importa com antiguidades de
verdade hoje em dia… mesmo com as poucas que sobraram?
Winston imediatamente pagou os quatro dólares e guardou o objeto cobiçado no
bolso. O valor do objeto para ele não estava tanto na beleza, mas na aura que parecia
conter, pelo fato de pertencer a uma época muito diferente da atual. O vidro
delicado, turvo como água de chuva, não se parecia com nenhum vidro que ele já
tivesse visto. O objeto era duplamente atrativo em virtude de sua aparente
inutilidade, embora ele pudesse imaginar que aquilo um dia tivesse sido usado como
peso de papel. Parecia muito pesado em seu bolso, mas por sorte não formava um
volume muito grande. Era um objeto estranho, até mesmo comprometedor, para um
membro do Partido levar consigo. Qualquer coisa antiga, e ainda por cima bonita,
era sempre vagamente suspeita. O velho ficou nitidamente mais animado após
receber os quatro dólares. Winston se deu conta de que ele teria feito por três ou até
mesmo por dois.
— Há outro cômodo no andar de cima que talvez o senhor queira ver também —
ele disse. — Não tem muita coisa lá. Apenas algumas peças. Podemos subir com
uma lamparina.
Ele acendeu outra lamparina e, com as costas curvadas, subiu na frente a escada
íngreme e velha e seguiu por um estreito corredor até chegar a um quarto que não
dava para a rua, mas para um pátio de paralelepípedos e uma floresta de chaminés.
Winston reparou que os móveis ainda estavam arrumados como se o quarto ainda
estivesse ocupado por alguém. Havia um pequeno tapete no chão, um ou dois
quadros nas paredes e uma poltrona afundada, suja e velha, perto de uma lareira.
Um antiquado relógio de vidro com mostrador de vinte e quatro horas ainda batia
sobre um aparador. Embaixo da janela, ocupando cerca de um quarto do cômodo,
encontrava-se uma cama enorme ainda com o colchão.
— Nós moramos aqui até minha esposa morrer — disse o velho, como se
quisesse se justificar. — Estou vendendo os móveis aos poucos. E essa é uma bela
cama de mogno, ou ao menos seria se fosse possível livrá-la de todos os percevejos.
Mas eu acho que isso seria um pouco trabalhoso demais.
Ele estava erguendo a lamparina bem alto, para que iluminasse o quarto inteiro,
e, naquela luz quente e fraca, curiosamente, o lugar parecia bem aconchegante. Um
pensamento passou pela cabeça de Winston: provavelmente, seria fácil alugar o
quarto por alguns dólares por semana se ele se dispusesse a correr o risco. Era uma
ideia extravagante, impossível, que devia ser logo abandonada; no entanto aquele
quarto despertara nele uma espécie de nostalgia, uma espécie de memória ancestral.
Ele parecia saber exatamente como era a sensação de se sentar num ambiente como
aquele, em uma poltrona ao lado de uma lareira, com os pés na grade e uma chaleira
pendurada sobre o fogo; totalmente só, totalmente seguro, sem ninguém vigiando,
nenhuma voz chamando por ele, nenhum ruído de nada exceto o assobio da chaleira
e um amistoso tique-taque do relógio.
— Não tem telemonitor! — ele não pôde evitar murmurar.
— Ah — disse o velho —, eu nunca tive essas coisas. É muito caro. E, pelo
visto, nunca tive necessidade disso. Olhe, ali no canto você tem aquela bela mesa
dobrável. Claro, você vai precisar trocar as dobradiças se quiser abrir as abas do
tampo.
Havia uma pequena estante de livros no outro canto, e Winston logo gravitou até
lá. Só tinha lixo. Foram realizadas uma busca e a destruição de livros nos bairros
proletários com o mesmo rigor que em todos os outros lugares. Era muito
improvável que existisse em qualquer parte da Oceania um único exemplar de um
livro impresso antes de 1960. O velho, ainda sustentando a lamparina, estava diante
de um quadro com moldura de jacarandá, pendurado na parede oposta à lareira, na
frente da cama.
— Agora, se o senhor se interessa por gravuras antigas… — ele começou a
dizer com delicadeza.
Winston se aproximou para examinar o quadro. Era uma gravura em metal de
um edifício oval com janelas retangulares e uma pequena torre na frente. Havia uma
cerca em volta do edifício e, no fundo, algo que parecia ser uma estátua. Winston
ficou observando a gravura por alguns minutos. Parecia-lhe vagamente familiar,
embora ele não se lembrasse da estátua.
— Essa moldura está presa à parede — disse o velho —, mas eu posso
desparafusá-la para você, se for o caso…
— Eu conheço esse edifício — disse Winston, enfim. — É uma ruína hoje em
dia. Fica na rua do Palácio da Justiça.
— Isso mesmo. Na frente do tribunal. Foi bombardeado em… oh, muitos anos
atrás. Era uma igreja, numa época, Saint Clement Danes, era como se chamava. —
Ele sorriu, desculpando-se, como se tomasse consciência de ter dito algo um tanto
ridículo; depois, acrescentou: — Laranjas e limões, dizem os sinos de Saint
Clement!
— O que quer dizer isso? — disse Winston.
— Oh… “Laranjas e limões, dizem os sinos de Saint Clement…” Era uma
cantiga da época em que eu era menino. Não me lembro mais do resto, mas sei que
terminava assim: “Lá vem a vela vê-lo dormir. Lá vem o cutelo cortar sua
cabeça…”. Havia uma espécie de dança. As crianças levantavam os braços, e você
passava por baixo e, quando chegava no “Lá vem o cutelo cortar sua cabeça…”, as
crianças abaixavam os braços e prendiam você. Eram só nomes de igrejas. Todas as
igrejas de Londres… as principais, melhor dizendo.
Winston ficou refletindo e tentando imaginar a que século aquela igreja
pertencia. Era sempre difícil determinar a idade de um edifício em Londres. Tudo
que fosse grande e impressionante, se tivesse aparência de razoavelmente novo, era
automaticamente considerado posterior à Revolução, enquanto tudo que fosse
obviamente anterior era atribuído a um período obscuro chamado de Idade Média.
Considerava-se que os séculos de capitalismo não haviam produzido nada de
nenhum valor. Não era mais possível aprender história com base na arquitetura,
como também não era possível aprender coisa alguma nos livros. Estátuas,
inscrições, memoriais de pedra, os nomes das ruas… tudo que pudesse lançar luz
sobre o passado havia sido sistematicamente alterado.
— Eu nunca soube que tinha sido uma igreja — ele disse.
— Na verdade, ainda existem muitas — disse o velho —, embora hoje tenham
outra serventia. Ora, como era o resto da cantiga? Ah! Lembrei! “Laranjas e limões,
dizem os sinos de Saint Clement. Você me deve três vinténs, dizem os sinos de Saint
Martin…”. Ora, só me lembro até aí. Um vintém era uma moedinha de cobre,
parecida com a moeda de um centavo.
— Onde era a igreja de Saint Martin? — perguntou Winston.
— Saint Martin? Ainda está em pé. Fica na Praça Vitória, do lado do museu. Um
edifício com uma espécie de alpendre triangular e com colunas na frente, e uma
escadaria.
Winston conhecia bem o lugar. Era um museu usado para modelos de
propaganda de diversos tipos — maquetes de mísseis e fortalezas flutuantes,
bonecos de cera ilustrando atrocidades do inimigo e coisas do gênero.
— Saint Martin-in-the-Fields
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era como se chamava antes — completou o velho
—, embora eu não me lembre de nenhum campo naquela região.
Winston não comprou o quadro. Teria sido uma aquisição ainda mais descabida
do que o peso de papel de vidro, e seria impossível levá-lo para casa, a não ser que a
moldura fosse removida. Entretanto ele ficou ali mais alguns minutos, conversando
com o velho, cujo nome, ele descobriu, não era Weeks — como se poderia deduzir
da inscrição na entrada da loja —, mas Charrington. O senhor Charrington,
aparentemente, era um viúvo de sessenta e três anos e morava naquela loja fazia
trinta anos. Todo esse tempo ele teve vontade de mudar o nome na vitrine, mas
nunca chegou ao ponto de fazê-lo. Enquanto conversavam, a cantiga lembrada pela
metade continuou ecoando na cabeça de Winston. Laranjas e limões, dizem os sinos
de Saint Clement. Você me deve três vinténs, dizem os sinos de Saint Martin! Era
curioso, mas, quando você dizia isso para si mesmo, tinha a ilusão de ouvir
realmente os sinos, os sinos de uma Londres perdida que ainda existia aqui e ali,
disfarçada e esquecida. De campanário em campanário, ele parecia ouvir o badalar
de seus sinos. Embora, até onde se lembrava, ele nunca tivesse ouvido na vida real
um sino de igreja tocar.
Ele deixou o senhor Charrington e desceu a escada sozinho, de modo a não
permitir que o velho o visse voltar à rua. Já havia decidido que, após um intervalo
conveniente — digamos, de um mês —, ele se arriscaria a visitar a loja outra vez.
Talvez não fosse mais perigoso do que passear à noite pelo centro. A grande loucura
já havia sido voltar ali, depois de comprar o diário e sem saber se o proprietário da
loja era alguém confiável. No entanto…!
Sim, tornou a pensar, ele voltaria. Compraria mais daqueles belos cacarecos.
Compraria a gravura de Saint Clement Danes, tiraria a moldura e a levaria para casa
embaixo do casaco. Ele conseguiria extrair o resto do poema da memória do senhor
Charrington. Até mesmo o lunático projeto de alugar o quarto do andar de cima se
acendeu instantaneamente em seus pensamentos mais uma vez. Por cerca de cinco
segundos, a euforia deixou-o relaxado, e ele pisou na calçada sem sequer olhar para
os lados antes. Ele havia até começado a cantarolar uma melodia improvisada.
— Laranjas e limões, dizem os sinos de Saint Clement. Você me deve três
vinténs, dizem os…
Subitamente, seu coração pareceu congelar e suas entranhas pareceram derreter.
Um vulto de macacão azul vinha descendo pela calçada, a menos de dez metros
dele. Era a garota do Departamento de Ficção, a garota de cabelos castanhos. A luz
era fraca, mas não houve dificuldade em reconhecê-la. Ela olhou bem para ele e,
então, continuou caminhando rapidamente, como se não o tivesse visto.
Por alguns segundos, Winston ficou apavorado demais para sair do lugar. Então,
ele se virou para a direita e começou a caminhar em passos pesados, sem reparar
naquele momento que estava indo na direção errada. De todo modo, uma questão
estava resolvida. Não havia mais dúvida de que a garota o estava espionando. Ela
devia tê-lo seguido até ali, porque não era plausível que, por acaso, ela estivesse
caminhando, na mesma noite, pela mesma travessa obscura, a quilômetros de
distância de qualquer bairro onde moravam membros do Partido. Era uma
coincidência grande demais. Se ela era, de fato, uma agente da Polícia do
Pensamento, ou simplesmente uma espiã amadora, agindo como voluntária, pouco
importava. Bastava que o estivesse espionando. Provavelmente, ela também o vira
entrar no bar.
Ficara mais difícil caminhar. O objeto de vidro no bolso batia em seu quadril a
cada passo, e ele chegou a pensar em arrancá-lo dali e jogá-lo fora. O pior foi a dor
de barriga. Por alguns minutos, ele teve a sensação de que morreria se não chegasse
a um banheiro logo. Mas não havia banheiros públicos em um bairro daqueles.
Então, o espasmo passou, deixando uma dor difusa como resquício.
A rua era sem saída. Winston parou e ficou por alguns segundos se perguntando
vagamente o que fazer, então deu meia-volta e começou a refazer o próprio trajeto.
Ao se virar, ocorreu-lhe que a garota só havia cruzado com ele três minutos atrás,
portanto, se ele corresse, provavelmente conseguiria alcançá-la. Ele poderia segui-la
até chegarem a um local tranquilo e então esmagar seu crânio com um
paralelepípedo. A peça de vidro em seu bolso também seria pesada o suficiente para
o serviço. Mas ele abandonou a ideia imediatamente, porque a mera ideia de
qualquer esforço físico era insuportável. Ele não conseguiria correr, nem conseguiria
golpear alguém. Além do mais, ela era jovem e vigorosa, por isso saberia se
defender. Ele pensou também em ir depressa ao Centro Comunitário e ficar lá até
fechar, a fim de estabelecer um álibi parcial para aquela noite. Porém isso também
era impossível. Uma lassidão mortal tomara conta dele. Tudo o que ele queria era
voltar para casa o mais depressa possível e se sentar e ficar quieto.
Já passava das dez da noite quando ele voltou ao apartamento. As luzes da
entrada seriam desligadas na central às dez e meia. Ele foi até a cozinha e engoliu
praticamente uma xícara de chá inteira de Gim Vitória. Então, foi até a mesa no
quarto, sentou-se e tirou o diário da gaveta. Mas não o abriu imediatamente. Do
telemonitor, uma voz feminina metálica gania uma canção patriótica. Ele ficou
sentado olhando fixamente para a capa marmorizada do livro, tentando sem sucesso
calar a voz da própria consciência.
Era à noite que essa voz vinha, sempre à noite. A coisa mais certa a fazer teria
sido se matar antes que as vozes começassem. Vez ou outra, algumas pessoas se
matavam. Muitos dos desaparecimentos eram na verdade suicídios. Mas era preciso
ter muita coragem e um grande desespero para se matar em um mundo onde as
armas de fogo, ou qualquer veneno rápido e seguro, eram praticamente inacessíveis.
Ele pensou, com uma espécie de perplexidade, na inutilidade biológica da dor e do
medo, na deslealdade do corpo humano, que sempre se congela na inércia no exato
momento em que um esforço especial é necessário. Ele poderia silenciar a garota de
cabelos castanhos apenas se agisse depressa o suficiente, mas, precisamente em
consequência da extremidade do perigo, ele perdera o poder de agir. Ocorreu-lhe
que nos momentos de crise nunca se está combatendo um inimigo externo, mas
sempre o próprio corpo. Mesmo agora, apesar do gim, a dor difusa em seu estômago
tornava impossível um pensamento consequente. E acontecia o mesmo, ele
percebeu, em toda situação aparentemente heroica ou trágica. No campo de batalha,
na câmara de torturas, no navio naufragando, as questões pelas quais você está
lutando são sempre esquecidas, porque o corpo se expande até preencher o universo,
e mesmo quando você não fica paralisado de medo ou gritando de dor, a vida é uma
luta, momento a momento, contra a fome ou o frio ou a insônia, contra uma
indigestão ou uma dor de dente.
Ele abriu o diário. Era importante escrever alguma coisa. A mulher no
telemonitor havia começado outra canção. Sua voz parecia grudar no cérebro dele
como afiados cacos de vidro. Ele tentou pensar em O’Brien, por quem ou para quem
o diário estava sendo escrito, mas, em vez disso, começou a pensar nas coisas que
lhe aconteceriam quando a Polícia do Pensamento o levasse embora. Não importava
se eles o matariam na hora. Morrer era o esperado. No entanto, antes da morte
(ninguém falava dessas coisas, porém todo mundo sabia), havia a rotina da
confissão pela qual era preciso passar: rastejar e gritar implorando perdão, os estalos
de ossos quebrados, dentes esmagados e mechas de cabelo ensanguentadas.
Por que suportar tudo isso se o final seria o mesmo? Por que não eliminar logo
aqueles dias ou aquelas semanas da vida? Ninguém nunca escapou de ser detectado,
e ninguém nunca deixou de confessar. Depois que você sucumbia ao crimepensar,
era certo que dentro de algum tempo estaria morto. Por que, então, esse horror, que
não mudava nada, precisava ficar impregnado no tempo futuro?
Ele tentou com um pouco mais de sucesso do que antes evocar a imagem de
O’Brien. “Nós nos encontraremos de novo no lugar em que não existe escuridão”,
O’Brien dissera a ele. Ele sabia o que aquilo significava, ou pensava que sabia. O
lugar em que não existia escuridão era o futuro imaginado, que não se conseguiria
ver, mas que, por meio de previsões, poderíamos compartilhar de um modo místico.
Contudo, com a voz do telemonitor ferindo seus ouvidos, ele não conseguiu mais
acompanhar esse raciocínio. Ele pôs um cigarro entre os lábios. Metade do tabaco
logo grudou em sua língua, uma poeira amarga, difícil de cuspir. O semblante do
Grande Irmão invadiu sua mente, substituindo o rosto de O’Brien. Como havia feito
alguns dias antes, ele tirou uma moeda do bolso e olhou para a efígie. O rosto olhou
para ele, pesado, calmo, protetor; mas que tipo de sorriso se escondia embaixo do
bigode escuro? Como um dobre plúmbeo de finados, as palavras voltaram:

GUERRA É PAZ.
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO.
IGNORÂNCIA É FORÇA.
PARTE DOIS
Capítulo 1

Era quase meio-dia, e Winston havia saído de seu cubículo para ir ao banheiro.
Uma figura solitária vinha em sua direção, da outra extremidade do corredor
comprido e bem iluminado. Era a garota de cabelos castanhos. Quatro dias haviam
se passado desde aquela noite em que ele a encontrara na saída da loja de usados.
Conforme ela veio se aproximando, ele viu que o braço direito dela estava amarrado
em uma tipoia, imperceptível a distância, por ser da mesma cor do macacão.
Provavelmente, ela havia machucado a mão girando um daqueles grandes aparelhos
caleidoscópicos em que os enredos dos romances eram concebidos. Era um acidente
comum no Departamento de Ficção.
Eles estavam a cerca de quatro metros um do outro quando a garota tropeçou e
caiu praticamente com o rosto no chão. Um grito agudo de dor escapou de sua boca.
Ela devia ter caído bem em cima do braço machucado. Winston parou perto dela. A
garota agora estava ajoelhada. Seu rosto havia adquirido um tom amarelado e
leitoso, em contraste com o qual sua boca se destacava mais vermelha do que nunca.
Ela olhou fixamente para ele com uma expressão tão espantada que parecia mais de
susto do que de dor.
Um misto de emoção e curiosidade se agitou no coração de Winston. À sua
frente estava o inimigo que tentava matá-lo; mas ali, diante dele, também havia uma
criatura sofrendo de dor e talvez com um osso fraturado. Instintivamente, ele já
havia avançado para ajudá-la. No momento em que ele a viu cair sobre o braço
enfaixado, foi como se sentisse a dor no próprio corpo.
— Você se machucou? — ele disse.
— Não foi nada. Meu braço… Em um segundo ficará bom de novo.
Ela falava como se seu coração estivesse aos pulos. Sem dúvida, ela estava
muito pálida.
— Não quebrou nada?
— Não, eu estou bem. Só doeu na hora em que eu caí.
Ela estendeu a mão livre, e ele a ajudou a se levantar. Então, ela retomou parte
da cor, e sua aparência melhorou.
— Não foi nada — ela repetiu de um modo brusco. — Foi só uma pontada no
meu pulso. Obrigada, camarada!
Depois disso, ela continuou na direção em que estava indo de um jeito tão rude
que pareceu realmente não ter acontecido nada. O incidente todo não durou mais de
meio minuto. Não permitir que os sentimentos transparecessem na expressão do
rosto era um hábito que haviam adquirido por instinto, e, de todo modo, eles
estavam diante de um telemonitor quando tudo aconteceu. Não obstante, fora muito
difícil disfarçar a surpresa momentânea, pois, nos dois ou três segundos em que ele
tentou ajudá-la a se levantar, a garota deixou alguma coisa na mão dele. Não havia
dúvida de que ela fizera aquilo intencionalmente. Era um objeto pequeno e
achatado. Quando ele entrou no banheiro, passou o objeto para o bolso e o tateou
com as pontas dos dedos. Era um pedaço de papel dobrado em forma de quadrado.
Enquanto permaneceu na cabine do mictório, ele conseguiu, tateando mais um
pouco, desdobrá-lo. Obviamente deveria haver algum tipo de mensagem escrita. Por
um momento, ele se sentiu tentado a tirá-lo logo do bolso, sentar-se na privada e ler
de uma vez. Mas isso seria uma loucura extrema, como ele sabia muito bem. Não
havia lugar onde se pudesse ter mais certeza de que os telemonitores eram
continuamente assistidos.
Ele voltou a seu cubículo, sentou-se, deixou casualmente o pedaço de papel
entre outros papéis da escrivaninha, pôs os óculos e puxou o transcritor para perto
de si. “Cinco minutos”, ele disse consigo mesmo, “cinco minutos, no mínimo!” O
coração batia em seu peito num volume assustador. Por sorte, o trabalho em que ele
estava envolvido era meramente rotineiro: a retificação de uma longa lista de
números que não exigia muita atenção.
Qualquer coisa que estivesse escrita no papel certamente teria algum significado
político. Até onde ele conseguia prever, havia duas possibilidades. Uma, muito mais
provável, era que a garota fosse uma agente da Polícia do Pensamento, como ele
temia. Ele não imaginava por que a Polícia do Pensamento entregaria mensagens
daquela maneira, mas talvez houvesse algum motivo. O que estava escrito no papel
podia ser uma ameaça, uma intimação, uma ordem para ele cometer suicídio, algum
tipo de armadilha. Entretanto, havia outra possibilidade, mais temerária, que
continuava a se insinuar, embora ele tentasse em vão descartá-la. Era a de que a
mensagem não fosse da Polícia do Pensamento na verdade, mas de alguma
organização clandestina. Talvez a Irmandade existisse afinal! Talvez a garota fizesse
parte dela! Sem dúvida, a ideia era absurda, mas surgira em sua mente no instante
em que sentira o pedaço de papel em sua mão. Apenas alguns minutos depois lhe
ocorreria outra explicação mais provável. E, mesmo agora, embora seu intelecto lhe
dissesse que a mensagem provavelmente significaria morte, ainda assim, não era
nisso que ele acreditava, e a esperança insensata persistiu, e seu coração bateu mais
forte, e ele teve dificuldade para evitar que sua voz saísse trêmula enquanto
murmurava os números no transcritor.
Ele enrolou todos os papéis de trabalho e os inseriu no tubo pneumático. Oito
minutos haviam se passado. Ele reajustou os óculos sobre o nariz, suspirou e puxou
a próxima pilha de trabalho para si, com o pedaço de papel no topo. Ele o abriu.
Sobre a folha estava escrito, em letras grandes e imprecisas:

EU AMO VOCÊ.

Durante alguns segundos, ele ficou perplexo demais até mesmo para jogar o
papel incriminador no buraco da memória. Quando ele o jogou, embora soubesse
muito bem do risco de demonstrar interesse excessivo, não conseguiu evitar lê-lo
mais uma vez, só para ter certeza de que as palavras realmente estavam lá.
Foi muito difícil trabalhar no restante da manhã. Ainda pior do que ter de se
concentrar em uma série de atividades minuciosas era a necessidade de esconder sua
agitação dos telemonitores. Ele sentia como se houvesse um fogo ardente no
estômago. O almoço no refeitório barulhento, quente, lotado foi um tormento. Ele
ansiava por um pouco de solidão durante o horário do almoço, mas, por azar, o
imbecil do Parsons sentou-se ao seu lado exalando seu característico cheiro de suor
que quase superava o aroma metálico do cozido; e ele não parou mais de falar sobre
os preparativos para a Semana do Ódio. Parsons se mostrou especialmente
entusiasmado com um modelo da cabeça do Grande Irmão feito de papel machê, de
dois metros de largura, que estava sendo produzido para a ocasião pela tropa de
Espiões da filha dele. O mais irritante era que, em meio ao ruído de vozes, Winston
mal conseguia distinguir o que Parsons estava dizendo, então ele precisava pedir
que repetisse seus comentários fúteis. Apenas uma vez ele conseguiu ver de relance
a garota do outro lado do refeitório. Ela não parecia tê-lo visto ainda, e ele não
olhou mais para aquela direção.
A tarde foi mais tolerável. Imediatamente após o almoço, chegou um trabalho
delicado e difícil, que tomaria muitas horas e exigiria que ele deixasse todo o resto
de lado. Consistia na falsificação de uma série de relatórios de produção de dois
anos atrás, por meio da qual ele deveria gerar um descrédito a respeito de um
proeminente membro do Alto Escalão do Partido, sobre o qual no momento pairava
uma nuvem. Esse era o tipo de coisa em que Winston era bom, e por mais de duas
horas ele conseguiu tirar a garota totalmente da cabeça. Então, a lembrança de seu
rosto voltou, e, com ela, um desejo furioso e incontrolável de ficar sozinho.
Enquanto ele não ficasse sozinho, seria impossível pensar direito nesse novo
desdobramento da situação. Aquela noite seria uma das noites dele no Centro
Comunitário. Ele devorou outra refeição insípida no refeitório, correu até o Centro
Comunitário, participou da solene tolice de um “grupo de discussão”, jogou duas
partidas de tênis de mesa, tomou várias doses de gim e ficou meia hora sentado,
ouvindo uma palestra intitulada “Ingsoc e xadrez”. Sua alma se contorceu de tédio,
mas dessa vez ele não sentiu nenhum impulso de abandonar a reunião do Centro
Comunitário no meio. Diante da visão das palavras EU AMO VOCÊ, o desejo de
continuar vivo cresceu dentro dele, e correr riscos menores subitamente lhe pareceu
uma estupidez. Só às onze da noite, quando estava em casa, na cama — no escuro,
onde ficava a salvo até do telemonitor desde que ficasse em silêncio —, ele
conseguiu pensar sem ser interrompido.
Havia um problema prático que precisava ser resolvido: como entrar em contato
com a garota e marcar um encontro. Ele não considerava mais a possibilidade de
que ela pudesse estar preparando alguma espécie de armadilha. Ele sabia que não se
tratava disso em virtude da inconfundível agitação com que ela lhe passara o bilhete.
Obviamente, o medo a deixara fora de si, como era de esperar. Nem lhe passava pela
cabeça agora a ideia de recusar as investidas dela. Apenas cinco dias atrás, ele
chegara a pensar em esmagar o crânio dela com um paralelepípedo, mas isso não
tinha importância. Agora ele imaginava o corpo nu e jovem dela, tal como vira em
seu sonho. Ele a havia considerado tola como todas as outras pessoas; a cabeça
cheia de mentiras e ódio, o ventre gelado. Uma espécie de febre o dominou ao
pensar que poderia perdê-la, que aquele corpo jovem e branco poderia lhe escapar!
O que o apavorava mais do que tudo era a possibilidade de ela simplesmente mudar
de ideia caso ele não entrasse rapidamente em contato. Contudo, a dificuldade física
do encontro era imensa. Era como tentar fazer um movimento de xadrez quando já
se estava em xeque. Para qualquer lado que se virasse, o telemonitor estaria diante
dele. Todos os meios possíveis de se comunicar com ela lhe ocorreram cinco
minutos após a leitura do bilhete; mas agora, com tempo para pensar, ele os
repassou um por um, como se expusesse uma fileira de instrumentos sobre uma
mesa.
Obviamente, o tipo de encontro ocorrido naquela manhã não deveria se repetir.
Se ela trabalhasse no Departamento de Registros, teria sido relativamente simples,
mas ele só tinha uma pálida ideia da localização do Departamento de Ficção no
edifício, e não havia nenhum pretexto para ir até lá. Se ele soubesse onde ela
morava, e a que horas saía do trabalho, seria possível dar um jeito de encontrá-la no
caminho para casa; mas tentar segui-la até em casa não seria seguro, pois
significaria ficar à toa do lado de fora do Ministério, o que acabaria sendo
percebido. Enviar-lhe uma carta pelo correio estava fora de questão. Segundo uma
rotina que não era nem segredo, todas as cartas eram abertas antes de serem
entregues. Na verdade, poucas pessoas ainda escreviam cartas. Para as mensagens
que eventualmente fossem necessárias, havia cartões impressos com longas listas de
frases, e você riscava as frases que não se aplicavam. Em todo caso, ele não sabia o
nome da garota, muito menos seu endereço. Enfim, ele concluiu que o lugar mais
seguro era o refeitório. Se ele conseguisse ficar sozinho com ela em uma mesa, em
algum ponto no centro do refeitório, não muito perto dos telemonitores, e com um
ruído suficiente de vozes conversando ao redor… Se essas condições durassem,
digamos, trinta segundos, talvez fosse possível trocar algumas palavras.
Durante uma semana inteira, depois disso, a vida foi como um sonho agitado.
No dia seguinte, ela não apareceu no refeitório até a hora em que ele estava saindo,
depois que o sinal já havia tocado. Provavelmente, ela tinha sido transferida para um
turno posterior. Eles passaram um pelo outro sem nem trocar um olhar. No dia
seguinte, ela estava no refeitório na hora de costume, mas com outras três garotas e
bem embaixo de um telemonitor. Então, durante três dias aflitivos, ela não apareceu
em nenhum momento. A mente e o corpo dele foram aparentemente acometidos de
uma sensibilidade insuportável, uma espécie de transparência que tornava cada
movimento, cada som, cada contato, cada palavra que ele precisasse dizer ou ouvir
uma agonia. Nem no sono ele conseguiu escapar da imagem dela. Ele não tocou em
seu diário ao longo desses dias. Se houve algum alívio, foi em seu trabalho, no qual
ele conseguia às vezes se esquecer de si mesmo durante dez minutos. Ele não tinha
absolutamente nenhuma pista sobre o que poderia ter acontecido com ela. Não podia
fazer nenhuma pergunta a ninguém. Ela podia ter sido evaporada, podia ter se
suicidado, podia ter sido transferida para o outro extremo da Oceania; e o pior e o
mais provável de tudo, ela podia simplesmente ter mudado de ideia e decidido evitá-
lo.
No dia seguinte, ela reapareceu. O braço não estava mais na tipoia, mas ela tinha
um gesso no pulso. O alívio de vê-la foi tão grande que ele não conseguiu resistir a
olhar diretamente para ela por alguns segundos. No dia seguinte, ele quase
conseguiu falar com ela. Quando ele entrou no refeitório, ela estava sentada a uma
mesa longe da parede, sozinha. Era cedo, e o lugar não estava muito cheio. A fila
logo avançou, e Winston já se aproximava do balcão; então, ele foi detido por dois
minutos porque alguém na frente dele começou a reclamar que não havia recebido
seu tablete de sacarina. Contudo, a garota continuava sozinha quando Winston
pegou sua bandeja e começou a se aproximar da mesa dela. Ele caminhou
discretamente na direção dela, como se procurasse um lugar em alguma mesa por
perto. Ela estava a cerca de três metros dele. Mais dois segundos, e ele teria
conseguido. Mas nesse momento uma voz atrás dele chamou: “Smith!”. Ele fingiu
não ter ouvido. “Smith!”, repetiu a voz, mais alto. Não teve jeito. Ele se virou. Um
rapaz loiro com uma expressão tola chamado Wilsher, que ele mal conhecia,
convidava-o para se sentar, sorrindo, em um lugar vago perto de sua mesa. Não era
seguro recusar. Depois de ter sido reconhecido, ele não poderia seguir em frente e se
sentar a uma mesa com uma garota sozinha. Ficaria muito evidente. Ele se sentou
dando um sorriso amistoso. O loiro de semblante tolo abriu um sorriso para ele.
Winston teve uma alucinação em que cravava uma picareta bem no meio daquele
sorriso. A mesa da garota ficou cheia minutos depois.
No entanto ela devia tê-lo visto caminhando em sua direção, e talvez tenha
percebido sua intenção. No dia seguinte, ele teve o cuidado de chegar cedo. Não
ficou surpreso quando a viu na mesma mesa, praticamente na mesma posição, e
mais uma vez sozinha. A pessoa imediatamente à frente dele na fila era um homem
baixo, ágil, abesourado, de rosto achatado e olhos minúsculos e desconfiados.
Quando Winston deixou o balcão com a bandeja, ele reparou que o sujeito estava
indo diretamente para a mesa da garota. Suas esperanças naufragaram outra vez.
Havia um lugar vago em uma mesa um pouco afastada, mas algo na aparência
daquele homenzinho sugeria que ele seria suficientemente atento ao próprio
conforto para escolher a mesa mais vazia. Sentindo um gelo no coração, Winston foi
atrás dele. Não daria certo se ele não conseguisse ficar sozinho com a garota. Nesse
momento, houve um tremendo barulho. O homenzinho estava estatelado de quatro,
a bandeja voara, dois rios de sopa e café escorriam pelo chão. Ele se pôs em pé,
lançando um olhar maligno para Winston, de quem evidentemente desconfiava que
o tivesse feito tropeçar. Mas estava tudo bem. Cinco segundos depois, com o
coração aos pulos no peito, Winston se sentou à mesa da garota.
Ele não olhou para ela; retirou o conteúdo de sua bandeja e logo começou a
comer. Era importante falar logo, antes que chegasse mais alguém, mas então um
medo terrível o dominou. Havia se passado mais de uma semana desde que ela o
abordara pela primeira vez. Ela podia ter mudado de ideia, ela devia ter mudado de
ideia! Era impossível que aquele caso terminasse bem; essas coisas não aconteciam
na vida real. Ele talvez tivesse desistido de falar se nesse momento não tivesse visto
Ampleforth, o poeta de orelhas peludas, perambulando a esmo pelo refeitório com
uma bandeja, procurando um lugar para se sentar. À sua maneira vaga, Ampleforth
era ligado a Winston, e certamente se sentaria à sua mesa se o visse. Havia, talvez,
um minuto para agir. Winston e a garota continuavam comendo. A comida era um
cozido ralo; na verdade, uma sopa de feijão branco. Com um murmúrio baixo,
Winston começou a falar. Nenhum dos dois ergueu os olhos; regularmente levavam
suas colheres do caldo aguado até a boca e entre colheradas trocavam algumas
poucas palavras necessárias com voz baixa e inexpressiva.
— A que horas você sai do trabalho?
— Seis e meia.
— Onde podemos nos encontrar?
— Praça Vitória, perto do monumento.
— Está cheia de telemonitores.
— Não importa se estiver cheio de gente.
— Algum sinal?
— Não. Não se aproxime enquanto não houver bastante gente. E não olhe para
mim. Só fique perto de mim.
— A que horas?
— Sete.
— Combinado.
Ampleforth não viu Winston e se sentou em outra mesa. Eles não se falaram e,
na medida do que era possível para duas pessoas sentadas em lados opostos de uma
mesma mesa, nem se olharam mais. A garota terminou seu almoço rapidamente e
foi embora, e Winston ficou mais um pouco para fumar um cigarro.
Winston chegou à Praça Vitória antes da hora marcada. Ficou perambulando em
volta da base da enorme coluna canelada, no topo da qual a estátua do Grande Irmão
contemplava o sul, em direção aos céus, onde ele havia derrotado os aviões
eurasianos (até alguns anos antes, eram os aviões lestasianos) na Batalha da Pista de
Pouso Um. Na rua em frente à coluna havia um estátua de um homem montado em
um cavalo que supostamente devia representar Oliver Cromwell. Cinco minutos
depois do horário combinado, a garota ainda não havia aparecido. Mais uma vez,
um medo terrível dominou Winston. Ela não vinha mais, ela havia mudado de ideia!
Ele caminhou lentamente até a face norte da praça e sentiu uma espécie de prazer
sutil ao identificar a Igreja de Saint Martin, cujos sinos, quando havia sinos, diziam
“Você me deve três vinténs”. Então ele viu a garota parada na base do monumento,
lendo ou fingindo ler um cartaz que subia em espiral pela superfície da coluna. Não
era seguro se aproximar até que houvesse mais pessoas reunidas. Havia
telemonitores em todas as fachadas ao redor. Mas nesse momento começou uma
gritaria e uma fila de veículos pesados veio se aproximando pela face sul. De
repente, todo mundo na praça começou a correr para lá. A garota ficou espremida
entre os leões na base do monumento e acabou se juntando à multidão. Winston foi
atrás. Enquanto corria, ele entendeu pelos comentários gritados por alguém que um
comboio de prisioneiros eurasianos estava passando.
Já havia uma densa massa de pessoas bloqueando o lado sul da praça. Winston,
que em situações normais era o tipo de pessoa que gravitava pela órbita externa de
qualquer tipo de enfrentamento, empurrou, acotovelou e se espremeu em direção ao
centro da multidão. Logo ele se encontrava a um passo da garota, mas o caminho
estava bloqueado por um proletário enorme e uma mulher quase tão enorme quanto
ele, provavelmente sua esposa, que pareciam formar uma muralha de carne
intransponível. Winston se esgueirou de lado e, com uma violenta investida,
conseguiu passar à distância de um ombro entre eles. Por um momento, ele sentiu
como se suas entranhas estivessem sendo moídas até virar uma polpa entre aqueles
quadris musculosos, então ele atravessou, transpirando um pouco. Agora ele estava
ao lado da garota. Seus ombros se roçavam, ambos olhavam fixo para a frente.
Uma longa fila de caminhões, ladeada de guardas de semblantes pétreos,
armados com submetralhadoras, postados bem eretos em cada lado, passava
lentamente pela rua. Nos caminhões, homenzinhos amarelos usando velhos
uniformes verdes estavam agachados, bem apinhados. Seus tristes semblantes
mongóis observavam por sobre as laterais dos caminhões sem nenhuma curiosidade.
Ocasionalmente, quando um caminhão dava um solavanco, ouvia-se um tranco de
metal contra metal: todos os prisioneiros estavam com os pés algemados.
Carregamentos e mais carregamentos de rostos tristonhos passaram. Winston sabia
que eles estavam lá, porém mal conseguiu prestar atenção neles. O ombro da garota
e o braço direito dela, até o cotovelo, estavam pressionando seu corpo. O rosto dela
estava perto o bastante para que ele sentisse seu calor. Ela imediatamente dominou a
situação, como fizera no refeitório. Começou a falar com a mesma voz inexpressiva
de antes, quase sem mover os lábios, um mero murmúrio facilmente afogado pelo
rumor das vozes e o ronco dos caminhões.
— Você está me ouvindo?
— Sim.
— Você consegue tirar folga domingo à tarde?
— Sim.
— Então, preste atenção. Você vai precisar lembrar. Vá até a estação
Paddington…
Com uma espécie de precisão militar que o deixou impressionado, ela descreveu
o trajeto que ele deveria fazer. Meia hora de trem até lá; virar à esquerda na saída da
estação; dois quilômetros pela estrada; um portão sem a barra de cima; um caminho
através de um campo; uma alameda tomada pelo mato; uma trilha entre arbustos;
uma árvore caída coberta de musgo. Era como se ela tivesse um mapa dentro da
cabeça.
— Você consegue se lembrar disso tudo? — ela murmurou, por fim.
— Sim.
— Você vira à esquerda, depois à direita, e depois novamente à esquerda. E o
portão está sem a barra de cima.
— Sim. Que horas?
— Por volta das três da tarde. Talvez você precise esperar. Eu vou chegar por
outro caminho. Tem certeza de que vai se lembrar de tudo?
— Sim.
— Então, afaste-se de mim o mais depressa que puder.
Ela nem precisaria dizer isso para ele. No entanto, por um momento, ele não
conseguiu se desvencilhar da multidão. Os caminhões continuavam passando, as
pessoas continuavam insaciavelmente observando boquiabertas. A princípio, houve
algumas vaias e assobios, mas vinham apenas dos membros do Partido em meio à
multidão, e logo cessaram. A emoção predominante era simplesmente a curiosidade.
Estrangeiros, fossem da Eurásia ou da Lestásia, eram uma espécie de animal raro.
Literalmente, não se viam estrangeiros, exceto na forma de prisioneiros, e mesmo
prisioneiros eram vistos apenas de relance. Tampouco se sabia o que acontecia com
eles, além dos poucos enforcados como criminosos de guerra; os outros todos
simplesmente desapareciam, provavelmente em campos de trabalho forçado.
Aqueles rostos mongóis ovalados foram dando lugar a um tipo mais europeu, sujo,
barbado, exaurido. Acima de maxilas esfoladas, aqueles olhos fitavam os olhos de
Winston, às vezes com estranha intensidade, e iam embora em seguida. O comboio
estava chegando ao fim. No último caminhão, ele viu um homem de idade, seu rosto
era uma massa de pelos grisalhos, em pé, bem ereto, com os punhos cruzados na
frente do corpo, como se estivesse acostumado a tê-los algemados. Estava quase na
hora de Winston e a garota se separarem. Mas no último momento, enquanto a
multidão ainda os envolvia, a mão dela procurou a dele e rapidamente a apertou.
Não deve ter durado dez segundos e, no entanto, pareceu longo o tempo em que
suas mãos estiveram unidas. Ele conseguiu sentir cada detalhe da mão dela.
Explorou os dedos compridos, as unhas bem cuidadas, a palma calejada de trabalho,
a polpa macia embaixo do pulso. Meramente pelo tato, ele saberia reconhecer
aquela mão se a visse. No mesmo instante, ocorreu-lhe que ele não sabia a cor dos
olhos da garota. Eram provavelmente castanhos, mas pessoas de cabelos castanhos
às vezes tinham olhos azuis. Virar a cabeça e olhar para ela teria sido uma loucura
inconcebível. De mãos dadas, invisíveis sob a pressão dos corpos, eles olhavam
fixamente para a frente, e, em vez dos olhos da garota, os olhos tristes do velho
prisioneiro olharam para Winston por entre ninhos de cabelos desgrenhados.
Capítulo 2

Winston seguiu caminhando pela alameda por meio de um trecho permeado de luz e
sombra, pisando em poças douradas nos intervalos entre os galhos. Próximo às
árvores, à esquerda, o chão estava coberto de jacintos. Parecia que o ar beijava sua
pele. Era o segundo dia de maio. De algum ponto no meio do bosque vinha um
arrulho de pombos.
Ele estava um pouco adiantado. Não houvera nenhuma dificuldade na vinda, e a
garota — era evidente — tinha tanta experiência que ele ficou menos assustado do
que normalmente ficaria. Com certeza, ele podia confiar nela para encontrar um
local seguro. Em geral, não se podia supor ser mais seguro no campo do que na
cidade de Londres. Não havia telemonitores, é claro, mas existia sempre o perigo
dos microfones ocultos que captavam a sua voz, e depois você acabava sendo
identificado; além disso, não era fácil viajar sozinho sem chamar atenção. Para
distâncias de menos de cem quilômetros, não era necessário receber o visto no
passaporte, mas às vezes havia patrulheiros nas saídas das estações que examinavam
os papéis de qualquer membro do Partido que encontravam e faziam perguntas
constrangedoras. No entanto, não apareceu nenhum patrulheiro, e, na saída da
estação, ele verificou se não estava sendo seguido, olhando para trás uma vez ou
outra. O trem estava cheio de proletários com espírito festivo em virtude do bom
tempo. A cabine com assento de madeira em que ele viajava estava completamente
ocupada por uma família enorme — que ia da bisavó desdentada a um recém-
nascido com um mês de vida —; eles haviam saído para passar a tarde com os
parentes do interior e, como explicaram sem nenhum pudor para Winston, para
arranjar um pouco de manteiga no mercado negro.
A alameda se ampliou, e dali a um minuto ele chegou à trilha que ela
descrevera, um mero caminho de bois que sumia no meio dos arbustos. Ele estava
sem relógio, mas ainda não deviam ser três da tarde. Os jacintos eram tão
abundantes que era impossível não pisar neles. Ele se ajoelhou e começou a colher
alguns, em parte para passar o tempo, mas também com uma vaga ideia de levar um
buquê de flores para oferecer à garota quando se encontrassem. Ele já havia colhido
um grande ramalhete e estava aspirando seu perfume quase enjoativo quando um
som atrás de si o imobilizou, o inconfundível estalido de gravetos pisados. Ele
continuou colhendo os jacintos. Era a melhor coisa a fazer. Podia ser a garota, ou ele
podia mesmo ter sido seguido, afinal. Olhar para trás seria demonstrar culpa. Ele
recolheu mais um e mais outro. Uma mão pousou de leve em seu ombro.
Ele ergueu os olhos. Era a garota. Ela balançou a cabeça, evidentemente
sugerindo que ele devia continuar em silêncio, então afastou os arbustos e
rapidamente mostrou o caminho pela trilha estreita, bosque adentro. Obviamente,
ela já havia feito aquele caminho, pois desviou de todos os trechos pantanosos como
se estivesse acostumada. Winston foi atrás, ainda segurando o buquê de jacintos.
Seu primeiro sentimento foi de alívio, mas, conforme observava aquele corpo
esguio e forte se mover à sua frente, com a faixa vermelha que era justa o suficiente
para revelar a curva de seus quadris, a sensação da própria inferioridade pesou sobre
ele. Até mesmo naquele momento parecia-lhe provável que, quando ela se virasse e
olhasse para ele, acabaria desistindo, afinal. A doçura do ar e o verde das folhagens
o desencorajavam. Já na saída da estação, o sol de maio fizera com que ele se
sentisse sujo e exausto, uma criatura dos espaços fechados, com a poeira fuliginosa
de Londres nos poros da pele. Ocorreu-lhe que até agora ela provavelmente jamais o
vira ao ar livre em plena luz do dia. Eles chegaram à árvore caída que ela havia
mencionado. A garota saltou por cima do tronco e forçou passagem entre os
arbustos onde não parecia haver nenhuma brecha. Depois que Winston passou, ele
viu que estavam em uma clareira natural, uma minúscula elevação do terreno
gramado cercada por árvores altas que a isolavam completamente. A garota parou e
se virou.
— Chegamos — ela disse.
Ele estava de frente para ela, a alguns passos de distância. A partir dali, ele não
ousou se aproximar mais.
— Eu não queria dizer nada enquanto estávamos na alameda — ela continuou
—, pois poderia haver algum microfone oculto. Não creio que haja, mas poderia
haver. Sempre existe a chance de um daqueles porcos identificar a sua voz. Aqui nós
estamos bem.
Ele não tinha coragem de se aproximar dela.
— Aqui nós estamos bem? — ele repetiu de um modo estúpido.
— Sim. Veja estas árvores… — Eram jovens freixos que em algum momento
haviam sido cortados e cresceram de novo, formando uma floresta de mastros,
nenhum mais grosso que um punho. — Aqui não há nada grande o suficiente para
esconder um microfone. Além do mais, eu já estive neste lugar antes.
Eles ficaram conversando um pouco. Então, ele conseguiu chegar mais perto
dela. Ela ficou parada na frente dele, ereta, com um sorriso no rosto que parecia
vagamente irônico, como se ela estivesse se perguntando por que ele era tão lento
para agir. Os jacintos haviam se espalhado pelo chão. Pareciam ter caído por
vontade própria. Ele segurou a mão dela.
— Você acredita — ele disse — que até este momento eu não sabia a cor dos
seus olhos? — Eram castanhos, ele reparou, um tom mais claro de castanho, com
cílios negros. — Agora que você viu como eu sou realmente, você continua
suportando olhar para mim?
— Sim, facilmente.
— Tenho trinta e nove anos. Tenho uma esposa da qual não consigo me livrar.
Tenho varizes. Tenho cinco dentes postiços.
— Eu não poderia me incomodar menos com isso — disse a garota.
No instante seguinte, seria difícil dizer por iniciativa de quem, ela estava nos
braços dele. No início, ele não sentiu nada além de pura incredulidade. Aquele
corpo jovem estava colado ao seu, aquela massa de cabelos castanhos estava rente
ao seu rosto e… sim! Realmente ela havia erguido a cabeça e ele estava beijando
aquela boca grande e vermelha. Ela passou os braços em volta do pescoço dele, ela
o chamava de meu querido, precioso, meu amor. Ele a deitou no chão, ela não
resistiu, ele poderia fazer o que quisesse com ela. Mas a verdade é que ele não tinha
nenhuma sensação física, exceto a do mero contato. A única coisa que ele sentia era
incredulidade e orgulho. Ele estava contente pelo fato de aquilo estar acontecendo,
mas não tinha nenhum desejo físico. Era muito cedo, a juventude e a beleza dela o
haviam assustado, ele estava muito acostumado a viver sem mulheres — ele não
sabia o motivo. A garota se recompôs e retirou um jacinto dos cabelos. Ela se sentou
de frente para ele e passou o braço pela cintura dele.
— Não tem importância, querido. Não temos pressa. Temos a tarde inteira. Esse
esconderijo não é incrível? Encontrei quando me perdi uma vez em uma caminhada
comunitária. Se houvesse alguém vindo, você escutaria a uns cem metros de
distância.
— Como você se chama? — perguntou Winston.
— Julia. Eu sei o seu nome. É Winston… Winston Smith.
— Como você descobriu?
— Imagino que eu seja melhor em descobrir coisas do que você, querido. Diga:
o que você achava de mim antes de eu lhe entregar o bilhete?
Ele não sentia nenhuma vontade de mentir para ela. Era até mesmo uma espécie
de demonstração de amor começar contando logo o pior.
— Eu odiei a sua aparência — ele disse. — Quis estuprá-la e depois quis matá-
la. Duas semanas atrás, pensei seriamente em esmagar o seu crânio com um
paralelepípedo. Se você quer mesmo saber, eu imaginei que você tivesse algo a ver
com a Polícia do Pensamento.
A garota riu divertida, evidentemente considerando aquilo um tributo à
excelência de seu disfarce.
— Não, da Polícia do Pensamento, não! Você pensou mesmo isso de mim?
— Bem, talvez não exatamente isso. Mas a sua aparência geral… Como você é
jovem e viçosa e saudável, você sabe… pensei que provavelmente…
— Você achou que eu fosse um membro exemplar do Partido. Pura, em palavras
e atos. Faixas, marchas, slogans
, jogos, caminhadas comunitárias, todas essas
coisas. E você achou que na primeira oportunidade eu o denunciaria por
crimepensar e você seria executado?
— Sim, pensei algo assim. Há muitas garotas jovens assim, você sabe.
— É esta maldita faixa que dá essa impressão — ela disse, arrancando a faixa
vermelha da Liga Júnior Antissexo e atirando-a sobre um galho. Então, como se o
toque da própria cintura a lembrasse de algo, ela tateou os bolsos do macacão e tirou
um pequeno tablete de chocolate. Ela o partiu ao meio e deu um pedaço a Winston.
Mesmo antes de tocá-lo, ele soube pelo cheiro que era um chocolate incomum. Era
escuro e brilhante e estava embrulhado num papel prateado. Normalmente, o
chocolate era uma coisa marrom, fosca e quebradiça, com um gosto, na descrição
mais próxima possível, de fumaça de lixo queimado. Porém, algumas poucas vezes,
ele havia provado chocolates como o do pedaço que ela lhe dera. A primeira
sensação de seu aroma despertou alguma lembrança que ele não conseguia
identificar, mas que era poderosa e perturbadora.
— Onde você conseguiu isto? — ele perguntou.
— No mercado negro — ela disse, com indiferença. — Na verdade, eu sou
desse tipo de garota, pensando bem. Eu sou boa em esportes. Eu fui líder de tropa
nos Espiões. Faço trabalho voluntário três noites por semana na Liga Júnior
Antissexo. Passo horas e horas colando esses malditos cartazes por Londres inteira.
Sempre carrego uma das pontas das faixas nas passeatas. Sempre estou animada e
nunca me esquivo de nada. Sempre grito com a multidão. É disso que estou falando:
é o único modo de se manter seguro.
O primeiro fragmento de chocolate derreteu na língua de Winston. O sabor era
delicioso. Mas ainda havia aquela lembrança se movendo nos limites de sua
consciência, algo sentido com intensidade, mas não redutível a uma forma definida,
como um objeto visto com o canto do olho. Ele afastou esse pensamento ciente de
que era apenas uma lembrança de alguma atitude que ele teria preferido não ter
tomado e não conseguiu evitar.
— Você é muito jovem — ele disse. — Deve ser dez ou quinze anos mais nova
que eu. O que viu em um homem como eu que poderia atraí-la?
— Foi algo em sua expressão. Pensei em correr esse risco. Sou boa em
identificar pessoas que não se enquadram… No momento em que o vi, eu sabia que
você estava contra ELES.
ELES, aparentemente, eram o Partido, e sobretudo o Alto Escalão do Partido,
sobre o qual ela falou com um ódio tão sincero e sarcástico que fez Winston se
sentir inquieto, embora soubesse que estavam seguros ali, na medida em que era
possível estar seguro em algum lugar. Uma coisa que o impressionou nela foi a
crueza de seu linguajar. Os membros do Partido não deviam xingar, e o próprio
Winston raramente xingava — em voz alta, pelo menos. Julia, no entanto, parecia
incapaz de mencionar o Partido, e especialmente o Alto Escalão do Partido, sem
usar o tipo de palavra que se via escrita com giz nas paredes das vielas mais
obscuras. Isso tinha lá sua graça. Era meramente um sintoma da revolta dela contra
o Partido e seus métodos, e de alguma forma parecia natural e saudável, como o
espirro do cavalo que fareja feno podre. Eles saíram da clareira e estavam passando
outra vez pela sombra enxadrezada, abraçados pela cintura sempre que o caminho
era largo o bastante para dois. Ele reparou então que a cintura dela era muito mais
macia sem a faixa. Eles falavam aos sussurros. Fora da clareira, Julia disse, era
melhor ficarem em silêncio. Então chegaram ao limite do pequeno bosque. Ela o
deteve.
— Não vá para fora deste arvoredo. Pode ter alguém vigiando. Ficaremos
seguros se não sairmos de perto destas árvores.
Estavam à sombra de aveleiras. A luz do sol, filtrada por inúmeras folhas, ainda
aquecia seus rostos. Winston olhou para o campo aberto e sentiu um leve choque de
espanto ao reconhecer a região. Ele reconhecia aquela vista. Um pasto velho e
devastado, contornado por uma trilha, com alguns montículos de terra ao lado de
buracos espalhados feitos pelas toupeiras. No arvoredo irregular do lado oposto, os
galhos dos olmos balançavam com a brisa, e suas folhas se agitavam levemente em
densas massas, como se fossem os cabelos de uma mulher. Será que, em algum
lugar perto dali, mas ainda fora de seu campo de visão, havia um riacho com
piscinas naturais verdes e peixes dourados…?
— Não há um riacho perto daqui? — ele sussurrou.
— Sim, há um riozinho. Fica depois do próximo pasto, na verdade. E tem uns
peixes, dos grandes. Eles ficam parados nas piscinas embaixo dos salgueiros,
balançando só a cauda.
— É o Campo Dourado… certamente — ele murmurou.
— O Campo Dourado?
— Não é nada, na verdade. É uma paisagem que eu vi algumas vezes em
sonhos.
— Olha! — sussurrou Julia.
Um tordo havia pousado num galho a menos de cinco metros deles, quase na
altura de suas cabeças. Talvez o pássaro não os tivesse visto. Ele estava ao sol, e
eles, à sombra. Abriu as asas, depois fechou-as com cuidado no mesmo lugar,
abaixou a cabeça por um instante, como se fizesse uma espécie de reverência ao Sol,
e então começou a emitir uma sinfonia de cantos. No silêncio da tarde, na mata, o
volume daquele som era impressionante. Winston e Julia se abraçaram e o
contemplaram fascinados. O canto continuou por alguns minutos, com incríveis
variações, nunca se repetindo, como se o pássaro estivesse deliberadamente
exibindo seu virtuosismo. Às vezes, o tordo se interrompia por alguns segundos,
abria e fechava as asas, então inflava o peito colorido e voltava a cantar. Winston
assistiu a tudo com uma espécie de sutil reverência. Para quem e por que aquele
pássaro estava cantando? Nenhuma parceira, nenhum rival lhe assistia. O que o
fizera pousar nos limites daquele bosque solitário e lançar sua música no vácuo? Ele
imaginou que, afinal, talvez houvesse microfones ocultos ali por perto. Ele e Julia
falavam apenas aos sussurros, que eles não captariam, mas poderiam captar o canto
do tordo. Talvez na outra extremidade do aparelho algum homenzinho abesourado
estivesse ouvindo atentamente — ouvindo aquilo. No entanto, aos poucos, o fluxo
daquela cantoria expulsou qualquer especulação de sua mente. Era como se aquilo
fosse uma espécie de líquido despejado sobre ele que se misturava à luz do sol
filtrada pela folhagem. Ele parou de pensar e apenas sentiu. A cintura da garota em
seu braço era macia e quente. Ele a puxou para si, de modo que ficaram de frente
um para o outro; o corpo dela parecia se derreter no seu. Onde quer que suas mãos
tocassem, era macio como a água. Suas bocas se encaixaram; foi muito diferente
dos beijos frios trocados antes. Quando se afastaram um pouco, ambos suspiraram
profundamente. O pássaro se assustou e voou para longe.
Winston pôs os lábios no ouvido dela.
— AGORA — ele sussurrou.
— Não aqui — ela sussurrou de volta. — Vamos voltar para a clareira. É mais
seguro.
Rapidamente, quebrando apenas alguns gravetos no caminho, eles voltaram para
a clareira. Quando estavam de novo no círculo entre as árvores, ela se virou e olhou
para ele. Estavam ambos com a respiração ofegante, mas o sorriso reapareceu nos
cantos da sua boca. Ela ficou parada olhando para ele por um instante, então puxou
o zíper de seu macacão. E, sim! — foi quase como no sonho dele. Quase de modo
tão ágil quanto ele havia imaginado, ela tirou toda a roupa e, quando as atirou para o
lado, fez um gesto magnífico com o qual toda uma civilização poderia ser
aniquilada. Seu corpo branco reluzia ao sol. Mas, por um momento, ele não olhou
para o corpo dela; seus olhos ficaram ancorados naquele rosto sardento com um leve
sorriso ousado. Ele se ajoelhou diante dela e segurou suas mãos.
— Você já fez isso antes?
— É claro. Centenas de vezes… bem, dezenas de vezes, pelo menos.
— Com membros do Partido?
— Sim, sempre com membros do Partido.
— Com membros do Alto Escalão do Partido?
— Não, não com aqueles porcos. Mas muitos deles GOSTARIAM, se tivessem
alguma chance. Eles não são tão santos quanto dizem.
O coração dele saltou no peito. Ela já havia feito aquilo dezenas de vezes; ele
desejou que tivessem sido centenas… milhares. Tudo que sugerisse decadência
sempre o enchia de uma fúria selvagem. Quem sabe, talvez, o Partido estivesse
deteriorado por baixo da fachada, o culto do esforço e da abnegação fosse
simplesmente uma farsa ocultando a iniquidade. Se ele pudesse infectar todos eles
com lepra ou sífilis, como ele o teria feito de bom grado! Qualquer coisa que
apodrecesse, enfraquecesse, minasse! Ele a puxou para baixo, a fim de que ficassem
ajoelhados de frente um para o outro.
— Escute… Quanto mais homens você tiver tido, mais eu te amo. Você
entende?
— Sim, perfeitamente.
— Odeio a pureza, odeio a bondade! Não quero que exista mais nenhuma
virtude em lugar nenhum. Quero que todos sejam corrompidos até os ossos.
— Bem, nesse caso, devo servir para você, querido. Eu sou corrompida até os
ossos.
— Você gosta de fazer isso? Não me refiro apenas a mim… quero dizer, da coisa
em si?
— Eu adoro.
Era isso, sobretudo, o que ele queria ouvir. Não lhe interessava apenas o amor de
uma pessoa, mas o instinto animal, o simples desejo indiferenciado: era essa a força
que destroçaria o Partido. Ele a pressionou contra a grama, entre os jacintos caídos.
Dessa vez, não houve dificuldade. Até que o sobe e desce de seus seios voltasse à
velocidade normal, e numa espécie de desamparo prazeroso, eles se afastaram. O sol
parecia ter ficado mais quente. Estavam ambos relaxados. Ele estendeu o braço,
recolheu os macacões e a cobriu um pouco com eles. Quase imediatamente, eles
adormeceram e dormiram por cerca de meia hora.
Winston acordou primeiro. Ele se sentou e observou aquele rosto sardento, ainda
pacificamente adormecido; ela usava a palma da própria mão como travesseiro.
Com exceção da boca, não se podia dizer que ela era bonita. Havia uma ou duas
rugas ao redor dos olhos, se você olhasse de perto. Os cabelos castanhos curtos eram
extraordinariamente espessos e macios. Ocorreu-lhe que ainda não sabia seu
sobrenome ou onde ela morava.
Aquele corpo jovem, forte, agora desamparado a dormir, despertou nele uma
compaixão, um instinto de proteção. Entretanto, a ternura irrefletida que ele sentira
embaixo das aveleiras, enquanto o tordo cantava, ainda não havia voltado. Ele
afastou os macacões e analisou seus quadris brancos. Nos velhos tempos, ele
pensou, um homem olhava para o corpo de uma mulher e via que era desejável, e
ponto final. Contudo, hoje em dia, não se podia ter um amor puro ou apenas sentir
uma pura volúpia. Nenhuma emoção era pura, pois tudo era mesclado ao medo e ao
ódio. Seu abraço havia sido uma batalha; o clímax, uma vitória. Aquele havia sido
um golpe duro contra o Partido. Fora um ato político.
Capítulo 3

— Podemos voltar outro dia — disse Julia. — Geralmente é seguro usar um mesmo
esconderijo mais de uma vez. Mas só depois de um ou dois meses, é claro.
Assim que ela acordou, sua atitude mudou. Ela se tornou alerta e pragmática,
vestiu a roupa, amarrou a faixa vermelha na cintura e começou a organizar os
detalhes da volta para casa. A ele pareceu natural deixá-la encarregada dessa parte.
Ela obviamente tinha uma sagacidade prática que faltava a Winston, e parecia ter
também um conhecimento minucioso dos arredores rurais de Londres, acumulado
em inúmeras caminhadas comunitárias. O trajeto que ela sugeriu para ele era muito
diferente do caminho pelo qual ele viera, e levou-o a uma estação diferente.
— Nunca volte pelo mesmo caminho da ida — ela disse, como se enunciasse
um princípio geral importante.
Ela partiria na frente, e Winston deveria esperar meia hora para segui-la.
Ela definiu um local onde eles poderiam se encontrar depois do trabalho, dali a
quatro dias. Era uma rua de um dos bairros mais pobres, onde havia uma feira
geralmente tumultuada e barulhenta. Ela estaria esperando entre as bancas, fingindo
procurar cadarços ou linha para cerzir. Se julgasse não haver perigo, ela assoaria o
nariz quando ele se aproximasse; do contrário, ele deveria passar por ela sem
cumprimentá-la. Mas, com sorte, no meio da multidão, seria seguro conversar por
quinze minutos e marcar outro encontro.
— E agora eu preciso ir — ela disse assim que ele entendeu as instruções. —
Devo voltar às nove e meia. Hoje, fico duas horas com a Liga Júnior Antissexo,
distribuindo panfletos, ou algo assim. Não é um horror? Você pode me limpar?
Estou com algum graveto no cabelo? Tem certeza? Então, adeus, meu amor, adeus!
Ela se atirou nos braços dele, beijou-o quase com violência e, no momento
seguinte, avançou entre as árvores e sumiu bosque adentro quase sem emitir um
ruído. Até agora ele não havia perguntado seu sobrenome ou endereço. No entanto,
não fazia diferença, pois era inconcebível que eles pudessem se encontrar em casa
ou trocar qualquer tipo de comunicação escrita.
Na verdade, eles não voltariam mais à clareira no bosque. Durante o mês de
maio, só haveria uma única outra ocasião em que eles conseguiriam fazer amor. Isso
foi em outro esconderijo que Julia conhecia, no campanário de uma igreja arruinada,
em uma região quase deserta, onde uma bomba atômica havia caído trinta anos
antes. Era um bom esconderijo depois que se chegava, mas o trajeto até lá era muito
perigoso. De resto, eles só podiam se encontrar na rua, em um lugar diferente a cada
noite e nunca por mais de meia hora a cada vez. Na rua, era geralmente possível
conversar, de certa maneira. Conforme perambulavam pelas calçadas lotadas, nunca
exatamente lado a lado e jamais olhando um para o outro, entabulavam uma
conversa curiosa, intermitente, que se acendia e se apagava como os fachos de um
farol, subitamente obrigada ao silêncio pela aproximação de um uniforme do Partido
ou a proximidade de um telemonitor, retomada novamente minutos depois no meio
de uma frase, abruptamente interrompida quando se separavam no local combinado,
depois continuada quase sem preâmbulos no dia seguinte. Julia parecia bastante
acostumada a esse tipo de conversa, que ela chamava de “conversa em prestações”.
Ela era também, de um modo surpreendente, apta a falar sem mover os lábios.
Apenas uma vez em quase um mês de encontros noturnos eles conseguiram se
beijar. Estavam passando em silêncio por uma pequena rua (Julia jamais falava
quando saíam das ruas principais) quando se ouviu um barulho ensurdecedor, a terra
tremeu e o ar escureceu, e Winston se viu deitado no chão, ferido e aterrorizado. Um
míssil devia ter caído bem perto dali. De repente, ele percebeu o rosto de Julia a
alguns centímetros do seu, com uma palidez mortiça, branco como giz. Até os lábios
dela estavam brancos. Ela estava morta! Ele a abraçou com força e percebeu que
estava beijando um rosto vivo e quente. Mas havia poeira nos lábios dos dois. Os
rostos de ambos estavam cobertos com uma camada grossa de pó de gesso.
Houve noites em que eles chegavam ao ponto de encontro e então precisavam
continuar sem dar nenhum sinal porque um patrulheiro acabava de virar a esquina
ou um helicóptero vigiava do alto. Ainda que fosse menos perigoso, mesmo assim
seria difícil arranjar tempo para se encontrarem. A semana de trabalho de Winston
era de sessenta horas, a de Julia, ainda mais longa, e seus dias de folga variavam de
acordo com a pressão do trabalho e nem sempre coincidiam. Julia, em todo caso,
raramente tinha uma noite inteira livre. Ela passava um tempo absurdamente grande
em palestras e manifestações, distribuindo material para a Liga Júnior Antissexo,
preparando faixas para a Semana do Ódio, fazendo coletas para as campanhas de
economia e esses tipos de atividades. Valia a pena, ela dizia, pois era uma
camuflagem. Se você seguia as pequenas regras, conseguia quebrar as grandes. Ela
até convenceu Winston a dedicar uma noite da semana ao trabalho de meio período
de produzir munição, realizado voluntariamente por fervorosos membros do Partido.
Então, uma noite por semana, toda semana, Winston passava quatro horas de um
tédio paralisante, aparafusando pequenos pedaços de metal que eram provavelmente
partes de rastilhos de bombas, em uma oficina fria e mal iluminada, onde as batidas
dos martelos se mesclavam de um modo triste à música dos telemonitores.
Quando se encontraram na torre da igreja, as lacunas em sua conversa
fragmentada foram preenchidas. Foi uma tarde quentíssima. O ar no cômodo escuro
acima dos sinos estava quente e estagnado, e havia um cheiro opressivo de fezes de
pombos. Ficaram sentados por horas no chão empoeirado, coberto de gravetos, e de
vez em quando um deles se levantava para olhar pela seteira a fim de ver se alguém
estava vindo.
Julia tinha vinte e seis anos. Morava em uma pensão com trinta outras garotas
(“Sempre aquele fedor de mulher! Como odeio mulher!”, ela comentou, entre
parênteses) e trabalhava, como ele havia imaginado, nas máquinas de escrever
romances do Departamento de Ficção. Ela gostava do trabalho, que consistia
basicamente em operar um poderoso — porém complexo — motor elétrico e fazer
sua manutenção. Ela não era do tipo “inteligente”, mas gostava de usar as mãos e se
sentia à vontade com as máquinas. Era capaz de descrever todo o processo de
composição de um romance, da orientação geral emitida pelo Comitê de
Planejamento até o retoque final do Esquadrão de Reescrita. Contudo, não se
interessava pelo produto final. “Não gosto muito de ler”, ela disse. Livros eram só
uma mercadoria que precisava ser produzida, como geleia ou cadarços.
Ela não tinha nenhuma lembrança anterior ao início dos anos 60, e a única
pessoa que ela conhecera que costumava falar sobre o período anterior à Revolução
era um avô que havia desaparecido quando ela tinha oito anos. Na escola, ela havia
sido capitã do time de hóquei e ganhara o troféu de ginástica dois anos seguidos.
Também tinha sido líder de tropa dos Espiões e secretária regional da Liga Jovem
antes de se juntar à Liga Júnior Antissexo. Sempre demonstrara um excelente
caráter. Inclusive (sinal infalível de boa reputação), fora escolhida para trabalhar na
Pornosec, a subseção do Departamento de Ficção que produzia pornografia barata
para ser distribuída ao proletariado. O setor era apelidado de Casa da Sujeira pelas
pessoas que trabalhavam lá, ela comentou. Ali ela permaneceria por um ano,
ajudando a produzir brochuras em embalagens lacradas com títulos como “Histórias
de Surras” ou “Noite na Escola das Meninas”, para serem compradas furtivamente
por jovens proletários que acreditavam estar adquirindo algo ilegal.
— Como são esses livros? — perguntou Winston com curiosidade.
— Oh, é uma porcaria horrorosa. Na verdade, são maçantes. São sempre os
mesmos seis enredos, mas com algumas poucas mudanças. Claro, eu só trabalhava
nos caleidoscópios. Nunca participei do Esquadrão de Reescrita. Eu não sou
literária, meu bem… nem para esse tipo de coisa.
Ele ficou sabendo, para sua surpresa, que todos os funcionários da Pornosec,
com exceção dos diretores dos departamentos, eram garotas. A teoria era que os
homens, cujos instintos sexuais seriam menos controláveis que os das mulheres,
corriam mais riscos de ser corrompidos pela sujeira com a qual estavam lidando.
— Eles não queriam nem mesmo mulheres casadas por lá — ela acrescentou. —
Sempre se supõe que as garotas sejam puras. Eis uma aqui que não é, pelo menos.
Ela tivera seu primeiro caso amoroso aos dezesseis anos, com um membro do
Partido de sessenta anos, que mais tarde cometeu suicídio para evitar ser preso.
— E foi bom que ele tenha feito isso — disse Julia. — Do contrário, eles teriam
arrancado dele o meu nome quando ele confessasse.
Desde então, houvera vários outros. A vida, aos olhos dela, era muito simples.
Você queria ter prazer; “eles”, no caso, o Partido, queriam impedir você de ter
prazer; você quebrava as regras da melhor forma possível. Ela aparentemente
achava natural que “eles” quisessem privá-la de seus prazeres, assim como era
natural que ela quisesse evitar ser pega. Ela odiava o Partido, e dizia isso com as
palavras mais cruas, mas não fazia críticas genéricas a “eles”. Exceto no tocante à
própria vida, ela não tinha nenhum interesse pela doutrina do Partido. Winston
reparou que ela nunca usava palavras da novilíngua, exceto aquelas que haviam
entrado no uso cotidiano. Ela nunca tinha ouvido falar da Irmandade, e se recusou a
acreditar na sua existência. Qualquer revolta organizada contra o Partido, fadada ao
fracasso, parecia-lhe uma estupidez. A coisa mais inteligente a fazer era quebrar as
regras e continuar vivendo apesar de tudo. Ele se perguntou vagamente quantas
outras pessoas como ela poderiam existir na geração mais jovem, pessoas que
haviam crescido no mundo da Revolução sem conhecer outra realidade, aceitando o
Partido como algo inalterável, como o céu, sem se rebelar contra sua autoridade,
mas simplesmente fugindo, como um coelho foge de um cachorro.
Eles não discutiram a possibilidade de se casarem. Era algo remoto demais para
valer a pena sequer pensar sobre. Nenhum comitê imaginável jamais aprovaria tal
casamento, mesmo que Katharine, esposa de Winston, pudesse de alguma forma ter
desaparecido. Era algo tão sem esperança quanto um devaneio.
— Como ela era, a sua esposa? — perguntou Julia.
— Ela era… Você conhece a palavra da novilíngua BENIPENSANTE? No
sentido de naturalmente ortodoxo, incapaz de um mau pensamento?
— Não, eu não conhecia essa palavra, mas conheço bem esse tipo de pessoa.
Ele começou a contar a história de sua vida de casado, mas curiosamente ela
parecia já saber de algumas partes essenciais. Ela descreveu para ele, quase como se
tivesse visto ou sentido, o corpo frio de Katharine assim que ele a tocava, o jeito
como ainda parecia querer afastá-lo de si com todas as forças mesmo quando seus
braços estavam apertados em torno dele. Com Julia, ele não sentia nenhuma
dificuldade em falar sobre essas coisas. Katharine, de todo modo, havia muito
tempo, deixara de ser uma lembrança dolorosa e se tornara apenas uma memória
desagradável.
— Eu poderia ter suportado não fosse uma única coisa — ele disse. Então,
contou sobre o breve ritual de frigidez ao qual Katharine o obrigava a se submeter
na mesma noite marcada toda semana. — Ela odiava aquilo, mas nada a fazia parar.
Ela costumava chamar de… você jamais adivinharia!
— Nosso dever para com o Partido — disse Julia prontamente.
— Como você sabe?
— Eu também fui à escola, meu bem. Conversas sobre sexo uma vez por mês
para garotas de mais de dezesseis. E no Movimento de Juventude. Eles obrigam
você a participar disso durante anos. Devo dizer que funciona em muitos casos.
Mas, evidentemente, nunca se sabe como; as pessoas são muito hipócritas.
Ela começou a se estender sobre o assunto. Com Julia, tudo se resumia à própria
sexualidade. Quando esse assunto era abordado de alguma maneira, ela era capaz de
grande exatidão. Diferentemente de Winston, ela havia captado o sentido íntimo do
puritanismo sexual do Partido. Não se tratava meramente do fato de que o instinto
sexual criava um mundo próprio que ficava fora do controle do Partido e que,
portanto, precisava ser destruído se possível. O mais importante era que a privação
sexual induzia à histeria, que era desejável porque podia ser transformada em fervor
bélico e em idolatria do líder. Nas palavras dela:
— Quando você faz amor, está usando energia; e depois você se sente feliz e não
se importa com nada. Eles não suportam que você se sinta assim. Eles querem que
você esteja transbordando de energia o tempo inteiro. Todas essas marchas para
cima e para baixo e aplausos e agitações de bandeiras servem simplesmente para
azedar o sexo. Se você estiver feliz consigo mesmo, por que haveria de se excitar
com o Grande Irmão e os Planos Trienais e os Dois Minutos de Ódio e todo o resto
desse maldito lixo deles?
Isso era a pura verdade, ele pensou. Havia uma conexão íntima e direta entre a
castidade e a ortodoxia política. Pois como o medo, o ódio e a credulidade lunática,
de que o Partido precisava em seus membros, seriam mantidos no tom certo, a não
ser convertendo um instinto poderoso em uma força motriz? O impulso sexual era
perigoso para o Partido, e o Partido passou a se beneficiar dele. Eles haviam feito
um truque semelhante com o instinto paternal. A família não poderia ser abolida
efetivamente, e, na verdade, as pessoas eram estimuladas a gostar dos filhos quase à
moda antiga. Os filhos, por outro lado, eram postos contra os pais de um modo
sistemático e eram ensinados a espioná-los e incitados a denunciar seus desvios. A
família havia se tornado efetivamente uma extensão da Polícia do Pensamento. Era
uma estrutura por meio da qual todo mundo podia viver cercado noite e dia por
informantes que o conheciam intimamente.
De súbito, seus pensamentos voltaram a Katharine. Katharine, sem dúvida, o
teria denunciado à Polícia do Pensamento se não fosse tão estúpida a ponto de não
perceber a heterodoxia de suas opiniões. Mas o que o levou a pensar em Katharine
naquele momento foi o calor opressivo daquela tarde, que fazia sua testa transpirar.
Ele então começou a contar a Julia algo que havia acontecido, ou melhor, tinha
deixado de acontecer, em outra tarde abafada de verão, onze anos antes.
Fazia três ou quatro meses que estavam casados. Haviam se perdido em uma
caminhada comunitária nos arredores de Kent. Ficaram para trás do grupo apenas
alguns minutos, mas viraram na trilha errada e, então, se viram na borda de uma
antiga pedreira de calcário. Era uma queda livre de dez ou vinte metros, com
grandes rochas lá embaixo. Não havia ninguém a quem pudessem perguntar o
caminho. Assim que percebeu que estavam perdidos, Katharine ficou muito
inquieta. O afastamento da multidão barulhenta dos companheiros de caminhada,
mesmo que apenas por um instante, lhe deu uma sensação de estar fazendo algo
errado. Ela quis voltar logo pelo caminho por onde vieram e começar a procurar na
outra direção, mas, nesse momento, Winston avistou um tufo de salicárias crescendo
nas fendas das rochas abaixo deles. Havia flores de duas cores, magenta e vermelho-
tijolo, aparentemente nascidas da mesma raiz. Ele nunca tinha visto nada assim
antes, então, chamou Katharine para dar uma olhada.
— Veja, Katharine! Veja estas flores. Aquele tufo perto da base. Você está vendo
que tem duas cores diferentes?
Ela já havia se virado para ir embora, mas voltou um tanto irritada para olhar por
um momento. Ela se inclinou junto ao penhasco para ver o que ele estava
mostrando. Ele ficou em pé, um pouco atrás, e colocou as mãos na cintura dela para
equilibrá-la. Nesse momento, subitamente, ele se deu conta de que estavam
completamente sozinhos ali. Não havia nenhuma criatura humana em parte alguma,
nem uma folha se mexia, nem mesmo um pássaro acordado. Em um lugar assim, o
risco de haver microfones ocultos era muito pequeno, e, mesmo que houvesse algum
microfone ali, só captaria sons. Era a hora mais quente e sonolenta da tarde. O sol
flamejava sobre eles, o suor escorria em seu rosto. E ocorreu-lhe um pensamento…
— Por que você não a empurrou? — disse Julia. — Eu teria empurrado.
— Sim, querida, você teria. Eu também teria se fosse a mesma pessoa que sou
hoje. Ou talvez eu tivesse… não tenho certeza.
— Você se arrepende de não a ter empurrado?
— Sim. Pensando bem, me arrependo.
Eles estavam sentados lado a lado sobre o chão empoeirado. Ele a puxou para
perto de si. Ela apoiou a cabeça no ombro dele; o perfume agradável dos cabelos
dela se sobrepôs ao odor das fezes de pombo. Ela era muito jovem, pensou ele,
ainda esperava alguma coisa da vida, não entendia que empurrar uma pessoa
inconveniente de um penhasco não resolvia nada.
— Na verdade, não teria feito diferença — ele disse.
— Então, por que você se arrepende de não ter empurrado?
— Só porque prefiro dizer sim a dizer não. Neste jogo que estamos jogando, nós
não podemos vencer. Alguns tipos de fracasso são melhores que outros, só isso.
Ele percebeu que ela contorceu os ombros como se discordasse. Ela sempre se
mostrava contrariada quando ele dizia algo assim. Não aceitava como uma lei da
natureza que o indivíduo fosse sempre derrotado. De certo modo, ela se deu conta
de que também estava condenada, que cedo ou tarde a Polícia do Pensamento a
pegaria e a mataria, mas, em outra parte de sua mente, ela acreditava que, de alguma
maneira, era possível construir um mundo secreto, onde seria possível viver como
ela quisesse. Só era preciso sorte e astúcia e audácia. Ela não entendia que não
existia algo como felicidade, que a única vitória estaria muito distante no futuro,
muito depois que tivessem morrido, que, a partir do momento em que se declarava
guerra ao Partido, era melhor pensar em si mesmo como um cadáver.
— Nós somos os mortos — ele disse.
— Ainda não morremos — disse Julia de um modo prosaico.
— Não fisicamente. Mas dentro de seis meses, um ano… cinco anos até… quem
sabe? Eu tenho medo da morte. Você é jovem; por isso, suspostamente, você deveria
ter mais medo do que eu. Obviamente, devemos manter a morte longe de nós o
máximo que pudermos. No entanto a diferença é muito pequena. Enquanto o ser
humano for humano, a morte e a vida serão a mesma coisa.
— Oh, quanta bobagem! Com quem você preferiria dormir: comigo ou com um
esqueleto? Você não gosta de estar vivo? Você não gosta de sentir “este sou eu, esta
é a minha mão, esta é a minha perna…”? “Sou real, sólido, estou vivo!” Você não
gosta DISSO?
Ela se virou e pressionou os seios contra o corpo dele. Ele sentiu os seios dela,
maduros e firmes, através do macacão. O corpo dela parecia estar transferindo um
pouco de sua juventude e de seu vigor para o corpo dele.
— Sim, eu gosto disso — ele disse.
— Então, pare de falar em morrer. E, agora, preste atenção, meu bem,
precisamos combinar nosso próximo encontro. Também podemos voltar para aquele
lugar no bosque. Já faz tempo que estivemos lá. Mas dessa vez você precisa ir por
outro caminho. Já planejei tudo. Você vai pegar o trem… mas, veja, vou desenhar
para você.
E, à maneira prática dela, juntou um quadrado de poeira e, com um graveto de
um ninho de pombo, começou a tracejar um mapa no chão.
Capítulo 4

Winston avaliava o quartinho velho na sobreloja do senhor Charrington. Ao lado da


janela, a enorme cama estava arrumada com cobertores esgarçados e a cabeceira
sem travesseiros. O relógio antiquado, com mostrador de vinte e quatro horas,
tiquetaqueava sobre o aparador. Num canto, sobre a mesa dobrável, o peso de papel
de vidro, que ele havia comprado na última visita, reluzia suavemente na penumbra.
Próximo à grade da lareira havia um velho fogareiro a óleo e uma chaleira e
duas canecas fornecidas pelo senhor Charrington. Winston acendeu o fogo e pôs a
chaleira de água para ferver. Ele havia trazido um pacote de papel cheio de Café
Vitória e alguns tabletes de sacarina. Os ponteiros do relógio marcavam dezessete e
vinte: eram dezenove e vinte na verdade. Ela chegaria às dezenove e trinta.
Loucura, loucura, seu coração continuava dizendo: loucura deliberada, gratuita e
suicida. De todos os crimes que um membro do Partido poderia cometer, esse era o
mais difícil de ocultar. Na verdade, a ideia, a princípio, flutuou em sua cabeça na
forma de uma visão do peso de papel de vidro espelhado pela superfície da mesa
dobrável. Como ele havia previsto, o senhor Charrington não criara nenhuma
dificuldade para alugar o quarto. Ele ficou claramente satisfeito com os poucos
dólares que receberia em troca. Não pareceu se chocar, nem se intrometeu de modo
ofensivo quando ficou claro que Winston queria o quarto para um caso amoroso. Em
vez disso, ele desviava os olhos para o vazio e falava de amenidades com um ar tão
sutil que dava a impressão de que Winston se tornara quase invisível. A privacidade,
ele disse, era uma coisa muito valiosa. Todo mundo queria um lugar onde pudesse
ficar sozinho às vezes. E quando se obtinha um lugar assim, era uma cortesia
comum de quem compartilhava o segredo guardar essa informação para si. Ele até
acrescentou, parecendo quase desaparecer da existência ao dizê-lo, que havia duas
entradas na casa, uma delas pelo quintal dos fundos, que dava em uma viela.
Embaixo da janela havia alguém cantando. Winston espiou, protegido pela
cortina de musselina. O sol de junho ainda estava alto no céu, e, no pátio ensolarado
lá embaixo, uma mulher monstruosa, sólida como um pilar normando, de antebraços
vermelhos e musculosos e avental de aniagem amarrado acima da cintura,
cambaleava pesadamente entre o tanque e o varal, pendurando uma série de
quadrados brancos que Winston reconheceu como fraldas de bebê. Quando sua boca
não estava cheia de pregadores de roupa, ela cantava com uma poderosa voz de
contralto:

Foi só uma fantasia passageira;


passou como um dia de outono,
mas um olhar, uma palavra, que sonhos despertaram!
Roubaram meu coração sem dono!
Essa canção vinha assombrando Londres havia semanas. Era uma daquelas
incontáveis canções genéricas, produzidas para uso do proletariado por uma
subseção do Departamento de Música. As letras dessas canções eram compostas
sem nenhuma intervenção humana em um aparelho conhecido como versificador.
No entanto a mulher cantava aquilo de um jeito tão melodioso que transformava
aquele lixo pavoroso em um som quase agradável. Ele podia ouvir a mulher
cantando e o arrastar de seus sapatos na pedra do quintal, e os gritos das crianças na
rua, e algures ao longe o rumor baixo do trânsito, e, no entanto, o quarto parecia
curiosamente silencioso graças à ausência de um telemonitor.
“Loucura, loucura, loucura!”, ele tornou a pensar. Era inconcebível que
pudessem frequentar aquele lugar por mais do que algumas semanas sem serem
descobertos. Porém a tentação de ter um esconderijo que fosse de fato só deles dois,
um teto, e que ficava perto, havia sido grande demais para ambos. Durante algum
tempo depois que estiveram no campanário, foi impossível marcar outro encontro.
As horas de trabalho foram drasticamente aumentadas em antecipação à Semana do
Ódio. Faltava mais de um mês para a data, mas os preparativos complexos e
grandiosos que a ocasião exigia obrigaram todo mundo a trabalhar mais. Por fim,
ambos conseguiram uma tarde livre no mesmo dia. Haviam concordado em voltar à
clareira no bosque. Na noite anterior, encontraram-se brevemente na rua. Como
sempre, Winston mal olhou para Julia enquanto se aproximavam em meio à
multidão, mas, com um olhar de relance, ele a achou mais pálida.
— Precisamos cancelar — ela murmurou quando se sentiu segura para falar. —
Amanhã, quero dizer.
— O quê?
— Amanhã à tarde. Não vou conseguir.
— Por que não?
— Oh, o motivo de sempre. Veio mais cedo este mês.
Por um momento, ele ficou violentamente irritado. Naquele mês em que ele a
conhecera, a natureza de seu desejo por ela já havia mudado. A princípio, havia
pouca sensualidade genuína entre eles. Fizeram amor pela primeira vez
simplesmente como um ato da vontade. Mas depois da segunda vez foi diferente. O
cheiro dos cabelos, o gosto de sua boca, a sensação da pele dela pareciam ter se
inserido nele ou no ar à sua volta. Ela se tornou uma necessidade física, algo que ele
não só desejava, mas também a que considerava ter direito. Quando ela disse que
não poderia ir, ele sentiu como se ela o estivesse traindo. Mas nesse exato momento
a multidão os aproximou e suas mãos se tocaram acidentalmente. Ela apertou
rapidamente a ponta dos dedos dele como um convite não ao desejo, mas ao afeto.
Ocorreu-lhe que, quando se vivia com uma mulher, essa frustração em particular
devia ser algo normal, recorrente; e uma profunda ternura, como ele nunca havia
sentido por ela antes, subitamente o dominou. Ele desejou que fossem um casal que
já vivesse junto há dez anos. Desejou que estivesse andando pela rua com ela como
estavam agora, mas abertamente e sem medo, conversando amenidades e
comprando coisas para a casa. Desejou sobretudo que tivessem um lugar onde
pudessem ficar juntos sem a obrigação de fazer amor toda vez que se encontravam.
Na verdade, não foi nesse momento, mas um pouco depois, no dia seguinte, que a
ideia de alugar o quarto do senhor Charrington lhe ocorreu. Quando ele sugeriu isso
a Julia, ela concordou com inesperada prontidão. Ambos sabiam que era loucura.
Era como se deliberadamente dessem um passo em direção à sepultura. Sentado na
cama, ele tornou a pensar nos porões do Ministério do Amor. Era curioso como esse
horror predestinado entrava e saía da consciência das pessoas. Lá estava o horror,
marcado para uma data futura, precedendo a morte com tanta certeza quanto 99
precede 100. Não se podia evitar esse horror, mas talvez fosse possível postergá-lo;
no entanto, em vez disso, de tempos em tempos, por um ato consciente, deliberado,
escolhia-se abreviar o intervalo antes de o horror acontecer.
Nesse momento, ele ouviu passos apressados na escada. Julia entrou correndo
no quarto. Ela trazia uma sacola de ferramentas de lona marrom, como ele a havia
visto carregar na entrada e na saída do Ministério tantas vezes. Ele se aproximou
para abraçá-la, mas ela se desvencilhou um tanto apressadamente, em parte porque
ainda estava segurando a sacola de ferramentas.
— Só um segundo — ela disse. — Só quero antes lhe mostrar o que eu trouxe.
Você trouxe um pouco daquele Café Vitória horroroso? Eu imaginei. Pode jogar
fora, porque não vamos precisar. Veja só isso.
Ela se ajoelhou, abriu a sacola e afastou algumas chaves de boca e de fenda que
estavam por cima. Por baixo, havia uma série de pacotinhos de papel alinhados. O
primeiro que ela passou para Winston pareceu-lhe estranho ao toque e, no entanto,
vagamente familiar. Continha uma espécie de substância pesada, arenosa, que cedia
à pressão dos dedos.
— Isso não é açúcar? — ele disse.
— É açúcar de verdade. Não é sacarina, é açúcar. E eis aqui um filão de pão!
Pão branco de verdade, não aquela maldita porcaria… e um potinho de geleia. E
aqui uma lata de leite… mas veja! Isto aqui é o meu verdadeiro motivo de orgulho.
Tive de embrulhar na aniagem
1
porque…
Ela não precisou contar a ele por que havia embrulhado na aniagem. O cheiro já
estava exalando por todo o quarto, um aroma caloroso e perfumado que parecia uma
emanação da infância, mas com o qual, às vezes, ele se deparava, soprado de
alguma viela ao bater de uma porta, ou difuso misteriosamente em uma rua
movimentada, aspirado por um instante e então outra vez perdido.
— É café — ele murmurou. — Café de verdade.
— É o café do Alto Escalão do Partido. Aqui tem um quilo — ela disse.
— Como você conseguiu pegar tudo isso?
— É tudo do Alto Escalão do Partido. Não há nada que aqueles porcos não
tenham. Nada! Mas é claro que os garçons e as empregadas e outras pessoas pegam
coisas e… Veja, também trouxe um envelope de chá.
Winston havia se agachado ao lado dela. Ele rasgou o canto do envelope.
— É chá de verdade. Não são folhas de amoreira.
— Tem aparecido muito chá ultimamente. Eles conquistaram a Índia, ou algo
assim — ela disse vagamente. — Mas, preste atenção, meu bem. Agora quero que
você fique de costas para mim por três minutos. Vá se sentar do outro lado da cama.
Não fique muito perto da janela. E não se vire enquanto eu não mandar.
Winston ficou olhando distraído pela cortina. Lá no quintal a mulher de braços
vermelhos ainda se arrastava entre o tanque e o varal. Ela pegou mais dois
pregadores da boca e cantou com profundo sentimento:
Dizem que o tempo cura toda ferida,
que sempre é possível esquecer;
mas sorrisos e lágrimas, ao longo dos anos,
tocam as cordas
do meu coração ainda!

Aparentemente, ela sabia de cor toda aquela canção delirante. Sua voz flutuava
para o alto com o doce ar do verão, muito melodiosa, carregada com uma espécie de
melancolia feliz. Tinha-se a sensação de que ela viveria perfeitamente contente se
aquela noite de junho fosse infinita e a quantidade de roupas fosse interminável…
por mil anos ali, pendurando fraldas e cantando bobagens. Ele achou curioso o fato
de nunca ter ouvido um membro do Partido cantar sozinho e espontaneamente. Teria
parecido pouco ortodoxo, uma excentricidade perigosa, como falar sozinho. Talvez
apenas na iminência de morrer de fome a pessoa tivesse algo por que cantar.
— Você pode se virar agora — disse Julia.
Ele se virou e, por um segundo, quase não a reconheceu. O que ele esperava na
verdade era vê-la nua. Mas ela não estava nua. A transformação ocorrida foi muito
mais surpreendente que isso. Ela havia se maquiado.
Ela devia ter passado em alguma loja do bairro proletário e comprado um estojo
completo de maquiagem. Seus lábios estavam pintados de um vermelho bem escuro,
as faces, coradas com ruge, o nariz empoado; havia até mesmo o toque de alguma
coisa embaixo dos olhos para que parecessem mais brilhantes. A maquiagem não
estava muito bem feita, mas o padrão de Winston nesse campo não era elevado. Ele
jamais vira ou imaginara antes uma mulher do Partido usando cosméticos. A
melhora em sua aparência foi espantosa. Com apenas alguns toques de cor nos
lugares certos, ela ficara não apenas muito mais bonita, mas, também, muito mais
feminina. O cabelo curto e o macacão de menino meramente aumentavam o efeito.
Quando ele a abraçou, uma onda de violetas sintéticas inundou suas narinas. Ele se
lembrou da penumbra daquela cozinha no subsolo e da boca cavernosa daquela
mulher. Era exatamente o mesmo perfume que ela usava, mas no momento isso não
parecia ter importância.
— Até perfume! — ele disse.
— Sim, meu querido, até perfume. E você sabe o que eu vou fazer depois? Vou
arranjar um vestido de mulher de verdade em algum lugar e vou usá-lo, em vez
desse maldito macacão. Vou usar meias de seda e sapatos de salto! Neste quarto,
serei uma mulher, não uma camarada do Partido.
Eles arrancaram as roupas e se jogaram na imensa cama de mogno. Foi a
primeira vez que ele se despiu na frente dela. Até então, ele ficara envergonhado
demais de seu corpo pálido e magro, com as varizes aparecendo nas canelas e a
mancha descorada no tornozelo. Não havia lençol, mas o cobertor que estenderam
estava puído e liso, e ambos acharam impressionantes o tamanho e a elasticidade do
colchão.
— Sem dúvida, deve estar cheio de percevejos, mas quem se importa? — disse
Julia.
Atualmente, não se viam mais camas de casal, exceto nas casas do proletariado.
Winston se lembrava de ter dormido uma vez em uma na infância. Julia nunca se
deitara em uma cama assim antes, pelo que se lembrava.
Então, eles dormiram um pouco. Quando Winston acordou, os ponteiros do
relógio marcavam quase 21h. Ele não se mexeu porque Julia estava dormindo com a
cabeça na dobra de seu braço. A maior parte da maquiagem havia se transferido
para o rosto dele ou para a cabeceira da cama, mas uma leve mancha de ruge ainda
destacava a beleza do rosto dela. Um raio amarelado do sol se pondo caía aos pés da
cama e iluminava a lareira, onde a água na chaleira fervia borbulhante. Lá no
quintal, a mulher havia parado de cantar, porém os gritos das crianças ao longe
vinham flutuando da rua. Ele se perguntou vagamente se no passado abolido haveria
sido uma experiência normal ficar deitado na cama assim, numa noite fresca de
verão, um homem e uma mulher sem roupas, fazendo amor quando bem
entendessem, sem nenhuma compulsão de se levantar, simplesmente ficar deitado
ali, ouvindo sons pacíficos vindos lá de fora. Decerto jamais, em tempo algum,
aquilo teria sido algo corriqueiro. Julia acordou, esfregou os olhos e se apoiou no
cotovelo olhando para o fogareiro.
— Metade da água já evaporou — ela disse. — Vou levantar e fazer café daqui a
pouco. Temos uma hora. A que horas eles desligam a luz no seu prédio?
— Vinte e três e trinta.
— Na minha pensão, desligam às vinte e três. Mas é preciso chegar antes,
porque… Ah! Fora, bicho imundo!
Ela subitamente se virou na cama, pegou um sapato do chão e o atirou com força
em direção a um canto do quarto, com um gesto de menino, exatamente como ele a
havia visto atirar o dicionário contra a imagem de Goldstein naquela manhã durante
os Dois Minutos de Ódio.
— O que foi? — ele perguntou surpreso.
— Um rato. Vi quando ele pôs o focinho asqueroso para fora do painel de
madeira. Tem um buraco ali. Pelo menos, dei um bom susto nele.
— Ratos! — murmurou Winston. — Neste quarto!
— Eles estão por toda parte — disse Julia, com indiferença, deitando-se outra
vez. — Na pensão, temos ratos até na cozinha. Algumas partes de Londres estão
infestadas de ratos. Você sabia que eles atacam as crianças? Sim, eles atacam. Em
algumas dessas vielas, as mulheres não podem deixar um bebê sozinho por dois
minutos. São os grandes, marrons, que atacam. E a coisa mais asquerosa é que esses
bichos sempre…
— NÃO QUERO SABER! — disse Winston, de olhos bem fechados.
— Meu querido! Você está pálido. O que foi? Você ficou enjoado?
— De todos os horrores do mundo… um rato!
Ela o abraçou e passou as pernas em volta dele para confortá-lo com o calor de
seu corpo. Ele não reabriu imediatamente os olhos. Durante um longo instante, ele
tivera a sensação de estar de volta a um pesadelo recorrente ao longo de sua vida.
Era sempre muito parecido. Ele estava parado diante de uma parede em meio à
escuridão e do outro lado havia algo horrível, algo pavoroso demais para ser
enfrentado. No sonho, o sentimento mais profundo era sempre o seu autoengano,
porque na verdade ele sabia o que havia atrás do umbral escuro. Com um esforço
mortal, como se soltasse um parafuso do próprio cérebro, ele poderia até trazer
aquilo para a luz. Ele sempre acordava ao descobrir o que era; mas, de alguma
forma, aquilo estava conectado com o que Julia estava dizendo quando ele a
interrompeu abruptamente.
— Desculpe-me — ele disse. — Não é nada. Não gosto de ratos, só isso.
— Não se preocupe, meu bem, não vamos deixar que esses bichos sujos entrem
aqui. Vou tampar o buraco com aniagem antes de irmos embora. E, da próxima vez
que viermos, trago um pouco de gesso e vedo melhor.
O instante tenebroso de pânico já estava quase esquecido. Sentindo um pouco de
vergonha de si mesmo, ele se sentou e encostou na cabeceira. Julia saiu da cama,
vestiu o macacão e preparou o café. O aroma que subiu da chaleira era tão poderoso
e excitante que eles fecharam a janela para que ninguém lá fora o sentisse e ficasse
curioso. Melhor ainda que o sabor do café era a textura sedosa formada pelo açúcar,
algo de que Winston já havia quase se esquecido depois de anos ingerindo sacarina.
Com uma mão no bolso e um pedaço de pão e geleia na outra, Julia ficou andando
pelo quarto, olhando com indiferença para a estante de livros, sugerindo a melhor
maneira de consertar a mesa dobrável, sentando-se na poltrona velha para ver se era
confortável e examinando o absurdo relógio de vinte e quatro horas no limite do
espanto. Ela trouxe o peso de papel de vidro para a cama a fim de observá-lo sob
uma luz melhor. Ele pegou-o de sua mão fascinado, como sempre, pela aparência
delicada de água de chuva do vidro.
— O que você acha que é isso? — perguntou Julia.
— Não acho que seja alguma coisa… Quero dizer… não creio que tenha alguma
utilidade. É disso que eu gosto nele. É um pedacinho da história que eles se
esqueceram de alterar. É uma mensagem de cem anos atrás, se soubermos
interpretar.
— E aquele quadro ali? — Ela indicou com a cabeça a pintura na parede oposta.
— Será que tem cem anos também?
— Mais… Duzentos, eu diria. É impossível saber. Não temos como descobrir a
idade de mais nada hoje em dia.
Ela se aproximou do quadro.
— O rato pôs o nariz para fora bem aqui — ela disse, chutando o painel de
madeira da parede logo abaixo do quadro. — Que lugar é esse? Eu já vi esse cenário
antes em algum lugar.
— É uma igreja, ou pelo menos era. Chamava Saint Clement Danes. — O trecho
da cantiga que o senhor Charrington lhe ensinara voltou à sua mente, e ele
acrescentou, um tanto nostálgico: — Laranjas e limões, dizem os sinos de Saint
Clement!
Para sua perplexidade, ela continuou:
Você me deve três vinténs, dizem os sinos de Saint Martin.
Quando você vai pagar?, dizem os sinos do tribunal…

— Não lembro como continua. Mas lembro pelo menos como termina: “Lá vem
a vela vê-lo dormir. Lá vem o cutelo cortar sua cabeça!”.
Eram como duas metades de uma contrassenha. Mas devia haver outra estrofe
depois de “os sinos do tribunal”. Talvez ele conseguisse puxar pela memória do
senhor Charrington, caso se sentisse disposto a tanto.
— Com quem você aprendeu isso? — ele perguntou.
— Com meu avô. Ele costumava entoar essa canção quando eu era menina. Ele
foi evaporado quando eu tinha oito anos… Seja como for, ele desapareceu. Eu
sempre quis saber como é um limão — ela acrescentou sem pensar. — Laranja eu já
vi. É uma fruta amarela redonda com a casca grossa.
— Eu me lembro do limão — disse Winston. — Era comum nos anos 50. Era
tão azedo que dava aflição só de cheirar.
— Aposto que está cheio de percevejos atrás desse quadro — disse Julia. — Vou
tirá-lo da parede e limpá-lo qualquer hora dessas. Acho que precisamos ir embora.
Vou começar a tirar essa maquiagem. Que chatice! Depois, vou limpar esse batom
do seu rosto.
Winston continuou deitado por mais alguns minutos. O quarto estava ficando
escuro. Ele se virou para a luz e ficou olhando para o peso de papel de vidro. A
coisa incrivelmente interessante não era o fragmento de coral, mas o interior do
vidro em si. Havia muita profundidade naquilo e, no entanto, era quase tão
transparente quanto o ar. Era como se a superfície do vidro fosse o arco do céu,
encerrando um mundo minúsculo com atmosfera própria. Ele teve a sensação de que
podia entrar no vidro e de que, na verdade, estava dentro do vidro, assim como a
cama de mogno e a mesa dobrável e o relógio e a gravura em metal e o próprio peso
de papel de vidro em si. O peso de papel era o quarto onde ele estava, e o coral era a
vida de Julia e a sua, fixas em uma espécie de eternidade no coração do cristal.
Capítulo 5

Syme havia desaparecido. Numa certa manhã, ele não foi ao trabalho; algumas
pessoas comentaram sua ausência de um modo imprudente. No dia seguinte,
ninguém mais o mencionou. No terceiro dia, Winston entrou no vestíbulo do
Departamento de Registros para ler o quadro de avisos. Um dos avisos era uma lista
impressa dos membros do Comitê de Xadrez, ao qual Syme pertencia. Parecia quase
exatamente idêntica à lista anterior — nenhum nome fora riscado —, mas faltava
um nome. Era o suficiente. Syme havia deixado de existir: ele jamais existira.
O tempo estava quente demais. No labiríntico Ministério, as salas sem janelas,
com ar-condicionado, mantinham a temperatura normal, mas do lado de fora as
calçadas tostavam os pés das pessoas e o odor dos trens subterrâneos nos horários de
pico era um horror. Os preparativos para a Semana do Ódio continuavam a todo
vapor, e as equipes de todos os ministérios faziam horas extras. Marchas,
assembleias, desfiles militares, palestras, réplicas de cera, cenários, filmes,
programas de televisão, tudo tinha de ser organizado; havia palanques para erguer,
efígies para construir, slogans
para cunhar, canções para compor, rumores para
difundir, fotografias para falsificar. A unidade de Julia no Departamento de Ficção
havia sido encarregada de produzir romances e estava lançando uma série de
panfletos sobre atrocidades. Winston, além do serviço normal, passava longos
períodos, todos os dias, revendo arquivos antigos do Times
e alterando e enfeitando
notícias que deveriam ser citadas nos discursos. Tarde da noite, quando multidões de
proletários barulhentos percorriam as ruas, a cidade adquiria um ar curiosamente
febril. Os mísseis caíam mais do que nunca e, às vezes, bem ao longe, ouviam-se
enormes explosões que ninguém conseguia explicar e sobre as quais havia rumores
assustadores.
A nova canção que seria o tema da Semana do Ódio (a Canção do Ódio, como
se chamava) já havia sido composta e vinha sendo reproduzida incessantemente em
todos os telemonitores. Tinha um ritmo latido, selvagem, que não podia exatamente
ser chamado de música, mas parecia um toque de tambor. Rugida por centenas de
vozes seguindo a batida de pés em marcha, era aterrorizante. Os proletários
começaram a gostar da canção, e nas ruas, à meia-noite, ela passou a competir com
a ainda popular “Foi só uma fantasia passageira”. Os filhos dos Parsons tocavam
aquilo dia e noite, num ritmo insuportável, com um pente e papel higiênico. As
noites de Winston ficaram mais ocupadas do que nunca. Esquadrões de voluntários,
organizados por Parsons, estavam preparando a rua para a Semana do Ódio,
costurando faixas, pintando cartazes, erguendo mastros nos telhados e, de um modo
perigoso, pendurando fios pela rua para fixar enfeites. Parsons se gabava de que as
Mansões Vitória sozinhas exibiriam quatrocentos metros de bandeirolas. Ele estava
em seu ambiente natural e feliz como um passarinho. O calor e o trabalho manual
lhe deram pretexto para voltar a usar bermuda e camisa aberta à noite. Ele estava em
toda parte ao mesmo tempo, empurrando, puxando, serrando, martelando,
improvisando, incentivando todo mundo com palavras camaradas e lançando de
cada dobra de seu corpo o que parecia ser um estoque inesgotável de suor azedo.
Um novo cartaz subitamente apareceu por toda a Londres. Não tinha legenda;
representava simplesmente a monstruosa figura de um soldado eurasiano, de três ou
quatro metros de altura, marchando com seu inexpressivo semblante mongol e botas
enormes, carregando uma submetralhadora apontada na altura da cintura. De
qualquer ângulo que se olhasse para o cartaz, o cano da arma, ampliado pela
perspectiva, parecia apontar diretamente para o observador. A imagem havia sido
colada em todo espaço vazio de cada muro da cidade, superando em número até
mesmo os retratos do Grande Irmão. Os proletários, normalmente apáticos em
relação à guerra, estavam sendo instigados a mais um de seus acessos periódicos de
fervor patriótico. Como em harmonia com o estado de espírito geral, os mísseis
vinham matando mais pessoas do que nunca. Um deles caíra em um cinema lotado
em Stepney, soterrando centenas de vítimas entre as ruínas. Os vizinhos realizaram
uma longa marcha fúnebre que durou horas e foi, na prática, uma grande reunião de
moradores indignados. Outro míssil caíra em um terreno baldio que era usado como
parque infantil, e várias dezenas de crianças foram pulverizadas. Ocorreram
manifestações furiosas, queimaram uma imagem de Goldstein, centenas de cópias
do cartaz do soldado eurasiano foram rasgadas e incendiadas e diversas lojas foram
saqueadas durante a baderna; então correu o boato de que espiões estavam
controlando os mísseis por meio de ondas de rádio, e um casal de idosos, que
supuseram ser de origem estrangeira, teve a casa incendiada e morreu asfixiado.
No quarto da sobreloja do senhor Charrington, assim que puderam voltar, Julia e
Winston estavam deitados na cama desfeita sob a janela aberta, sem roupas, para se
refrescar. O rato nunca mais voltara, mas os percevejos haviam se multiplicado
terrivelmente no calor. Isso não parecia importante. Sujo ou limpo, o quarto era um
paraíso. Assim que chegavam, eles espalhavam pimenta comprada no mercado
negro, tiravam a roupa e faziam amor com os corpos suados, depois pegavam no
sono e, quando acordavam, viam que os percevejos haviam se reagrupado e se
preparavam para o contra-ataque.
Quatro, cinco, seis… sete vezes eles se encontraram no mês de junho. Winston
havia abandonado o costume de beber gim a toda hora. Ele não sentia mais essa
necessidade. Engordou, sarou da úlcera, e apenas uma mancha marrom permaneceu
na pele acima de seu tornozelo; os acessos de tosse matinal passaram. O decorrer da
vida havia deixado de ser intolerável, ele já não tinha nenhum impulso de fazer
caretas para as telas ou gritar impropérios a plenos pulmões. Agora que eles tinham
um esconderijo seguro, quase um lar, não parecia tão duro que só pudessem se
encontrar de vez em quando e sempre apenas por algumas poucas horas. O
importante era que o quarto na sobreloja existia. Saber que estaria ali, inviolado, era
quase o mesmo que morar naquele lugar. O quarto era um mundo, um enclave do
passado onde animais extintos podiam viver. O senhor Charrington, pensou
Winston, era outro animal extinto. Ele geralmente parava para conversar com o
senhor Charrington por alguns minutos antes de subir. O velho parecia raramente,
ou nunca, sair de casa, e, por outro lado, quase não tinha clientes. Ele levava uma
existência espectral entre a loja exígua e escura e a cozinha dos fundos, ainda
menor, onde preparava suas refeições, e onde havia, entre outras coisas, um
gramofone incrivelmente antigo com um megafone enorme. Ele parecia contente
por ter a oportunidade de conversar. Perambulando em meio a seu estoque de
inutilidades baratas, com seu nariz comprido e óculos de lentes grossas, e seus
ombros encurvados dentro do paletó de veludo, ele sempre tinha um certo ar de
colecionador, mais que de comerciante. Com uma espécie de entusiasmo passageiro,
ele apontava para este ou aquele cacareco — uma rolha de garrafa de porcelana,
uma tampa pintada de uma tabaqueira quebrada, um relicário de pechisbeque
1
contendo um cacho de cabelos de um bebê que havia morrido muito tempo atrás —
sem jamais pedir que Winston comprasse alguma coisa, meramente para que ele
admirasse o objeto. Conversar com ele era como ouvir o tilintar de uma caixa de
música muito antiga. Ele havia tirado dos cantos de sua memória mais fragmentos
de cantigas esquecidas. Havia uma sobre vinte e quatro pássaros pretos, e outra
sobre uma vaca do chifre torto, e outra ainda sobre a morte de um pobre pintarroxo.
“Achei que você talvez pudesse se interessar”, ele dizia exibindo um sorrisinho de
deboche quando surgia com outro fragmento, mas sempre se lembrava de apenas
alguns poucos versos a cada vez.
Eles sabiam… de certa forma, jamais se esqueciam totalmente de que o que
estava acontecendo agora não iria durar muito. Houve momentos em que a morte
iminente parecia tão palpável quanto a cama onde estavam deitados, e eles se
abraçavam com uma espécie de sensualidade desesperada, como uma alma
condenada se agarrando ao último bocado de prazer quando o relógio está a cinco
minutos de tocar. No entanto, houve também momentos em que tiveram a ilusão não
só de que aquilo era seguro, mas permanente. Enquanto estivessem dentro daquele
quarto, ambos sentiam, nada de mau poderia lhes ocorrer. Chegar lá era difícil e
perigoso, mas o quarto em si era um santuário. Era como quando Winston olhava
para o núcleo do peso de papel com a sensação de que seria possível entrar naquele
mundo vítreo, e que, uma vez lá dentro, o tempo poderia parar. Frequentemente se
deixavam divagar imaginando uma fuga. A sorte deles duraria indefinidamente, e
eles continuariam com seu caso, exatamente assim como vinham fazendo, pelo resto
de suas vidas naturais. Ou Katharine morreria e, por meio de sutis manobras,
Winston e Julia conseguiriam se casar. Ou cometeriam suicídio juntos. Ou
desapareceriam, passariam por transformações a ponto de ficarem irreconhecíveis,
aprenderiam a falar como os proletários, arranjariam emprego em uma fábrica e
viveriam incógnitos em alguma daquelas travessas. Era pura bobagem, eles sabiam.
Na realidade, não havia escapatória. E o único plano factível, o suicídio, eles não
tinham nenhuma intenção de levar adiante. Seguir em frente dia após dia, de semana
em semana, prolongando um presente que não tinha futuro, parecia um instinto
incontrolável, assim como os pulmões continuariam respirando enquanto houvesse
ar disponível.
Às vezes, também falavam de se envolver em uma rebelião ativa contra o
Partido, mas não sabiam como dar o primeiro passo. Mesmo que a fabulosa
Irmandade fosse real, ainda existia a dificuldade de descobrir como ingressar nela.
Ele contou a ela sobre a estranha conexão que existia, ou parecia existir, entre ele e
O’Brien, e o impulso que ele às vezes sentia de simplesmente se aproximar de
O’Brien, dizer que era contra o Partido e pedir sua ajuda. Curiosamente, isso não
pareceu a ela uma coisa absurdamente arriscada de se fazer. Ela estava acostumada a
julgar as pessoas pela expressão facial, e lhe pareceu natural que Winston
acreditasse que O’Brien seria confiável com base em um único lampejo em seus
olhos. Além do mais, ela considerava óbvio que todo mundo, ou quase todo mundo,
secretamente odiasse o Partido e pudesse quebrar as regras se achasse seguro fazê-
lo. Porém ela se recusava a acreditar que existisse, ou pudesse existir, uma oposição
organizada e difundida. As histórias sobre Goldstein e seu exército clandestino, ela
dizia, eram simplesmente um monte de mentiras que o Partido inventava para seus
próprios interesses e nas quais as pessoas tinham de fingir acreditar. Inúmeras vezes,
nos comícios do Partido e nas manifestações espontâneas, ela havia berrado com
toda a força incentivando a execução de pessoas cujos nomes jamais ouvira e de
cujos supostos crimes não tinha a menor convicção. Quando ocorriam julgamentos
públicos, ela fazia parte de um dos destacamentos da Liga da Juventude que
cercavam o tribunal dia e noite entoando de modo ritmado “Morte aos traidores!”.
Durante os Dois Minutos de Ódio, ela sempre superava os outros ao berrar insultos
a Goldstein. No entanto, ela tinha apenas uma leve ideia de quem era Goldstein e no
que consistiam as doutrinas que ele supostamente representava. Ela havia crescido
na Revolução e era jovem demais para se lembrar das disputas ideológicas dos anos
50 e 60. Algo como um movimento político independente estava fora das cogitações
dela; e, em todo caso, o Partido era invencível. O Partido existiria para sempre, e
seria sempre o mesmo. Só era possível se rebelar contra o Partido por meio da
desobediência secreta ou, no máximo, com atos isolados de violência, como matar
alguém ou detonar uma bomba.
Em certos aspectos, ela era muito mais séria que Winston, e muito menos
suscetível à propaganda do Partido. Uma vez, quando ele por acaso mencionou a
guerra contra a Eurásia, ela o surpreendeu dizendo casualmente que, na opinião
dela, não estava ocorrendo guerra nenhuma. Os mísseis que caíam diariamente em
Londres eram provavelmente lançados pelo próprio governo da Oceania, “só para
manter o povo apavorado”. Essa era uma ideia que literalmente jamais lhe ocorrera.
Ela também despertou nele uma espécie de inveja ao dizer que, durante os Dois
Minutos de Ódio, a grande dificuldade para ela era evitar cair na gargalhada. Mas
ela só questionava os ensinamentos do Partido quando, de alguma forma, estes
interferiam em sua vida. Muitas vezes, ela se mostrava disposta a aceitar a mitologia
oficial simplesmente porque a diferença entre a verdade e a mentira não lhe parecia
importante. Ela acreditava, por exemplo, no que aprendera na escola, que o Partido
havia inventado o avião. (Em sua época de escola, Winston se lembrava, no final
dos anos 50, era apenas o helicóptero que o Partido afirmava ter inventado; doze
anos depois, quando Julia estava na escola, já estavam afirmando ter inventado o
avião; mais uma geração, e estariam reivindicando a invenção do motor a vapor.) E,
quando ele contou a ela que o avião já existia antes de ele ter nascido, e muito antes
da Revolução, ela achou o fato totalmente desinteressante. Afinal, que importância
tinha quem havia inventado o avião? Foi mais chocante ainda para ele quando
descobriu, por um comentário casual, que ela não se lembrava de que a Oceania,
quatro anos antes, estivera em guerra contra a Lestásia e em paz com a Eurásia. Era
bem verdade que ela considerava a própria guerra uma fraude; mas, aparentemente,
não notara que o nome do inimigo havia mudado. “Pensei que estivéssemos em
guerra contra a Eurásia desde sempre”, ela dissera distraída. Isso o assustou um
pouco. O avião havia sido inventado muitos anos antes de ela nascer, mas a
mudança de posições na guerra ocorrera apenas quatro anos antes, quando ela já era
adulta. Ele discutiu com ela sobre isso talvez durante uns quinze minutos. Por fim,
ele conseguiu forçar a memória dela até que se lembrasse vagamente de uma época
em que a Lestásia, e não a Eurásia, era o inimigo. Mas a questão em si continuou
parecendo irrelevante para ela. “Quem se importa?”, ela disse com impaciência. “É
sempre uma maldita guerra em seguida da outra, e todo mundo sabe que os jornais
estão sempre mentindo de qualquer modo.”
Às vezes, ele falava sobre o Departamento de Registros e sobre as falsificações
despudoradas que ele cometia lá. Essas coisas não pareciam horrorizá-la. Ela não
sentia o abismo se abrindo sob os pés ao pensar nas mentiras virando verdades. Ele
contou a história de Jones, Aaronson e Rutherford e da decisiva incineração do
papel que tivera em suas mãos. Ela não se impressionou muito com isso. A
princípio, a bem dizer, ela não conseguiu captar o sentido da história.
— Eram seus amigos? — ela perguntou.
— Não, nunca os conheci. Eram membros do Alto Escalão do Partido. Além
disso, eram homens muito mais velhos que eu. Eles pertenciam aos velhos tempos,
anteriores à Revolução. Mal os conheci de vista.
— Então, qual o motivo de sua preocupação? As pessoas estão sendo
assassinadas o tempo todo, não estão?
Ele tentou fazê-la entender:
— Esse foi um caso excepcional. Não era só uma questão de alguém ser
assassinado. Você se deu conta de que o passado, desde então, foi efetivamente
abolido? Se o passado ainda sobrevive, é em alguns poucos objetos sólidos sem
palavras associadas a eles, como este pedaço de vidro. Nós já não sabemos quase
nada sobre a Revolução e sobre os anos anteriores à Revolução. Todos os registros
foram destruídos ou falsificados, todos os livros foram reescritos, todos os quadros
foram repintados, todas as estátuas e todas as ruas e todos os edifícios foram
renomeados, todas as datas foram alteradas. E esse processo continua dia a dia e
minuto a minuto. A história parou. Nada existe exceto um presente interminável em
que o Partido está sempre certo. Eu sei, que fique claro, que o passado foi
falsificado, mas jamais seria possível prová-lo, até quando eu mesmo faço essa
falsificação. Depois que a falsificação é feita, não sobra nunca nenhuma evidência.
A única prova está na sua própria lembrança, e não sei ao certo se outro ser humano
compartilha minhas lembranças. Aquele foi o único caso, em toda a minha vida, em
que tive uma evidência concreta depois do ocorrido… anos depois.
— E o que adiantou isso?
— Não adiantou nada, porque minutos depois joguei o papel fora. Mas, se
acontecesse a mesma coisa hoje, eu não jogaria.
— Bem, eu jogaria fora! — disse Julia. — Estou disposta a correr risco, mas só
por algo que valha a pena, não por jornais velhos. O que você poderia ter feito com
isso se tivesse guardado?
— Não muito, talvez. Mas era uma prova. Poderia ter semeado algumas dúvidas
aqui e ali, supondo-se que eu ousasse mostrá-la a alguém. Não creio que possamos
alterar nada enquanto vivermos. Mas podemos imaginar pequenos grupos de
resistência surgindo aqui e ali… pequenos grupos de pessoas se agregando, e
crescendo aos poucos, e deixando alguns registros, de modo que a geração seguinte
possa continuar a partir de onde paramos.
— Não estou interessada na geração seguinte, meu bem. Estou interessada em
NÓS.
— Você só é rebelde da cintura para baixo — ele disse a ela.
Ela achou a frase brilhantemente espirituosa e o abraçou deliciada.
Ela não tinha o menor interesse nas ramificações da doutrina do Partido. Sempre
que ele começava a falar dos princípios do Ingsoc, de duplipensar, da mutabilidade
do passado, da negação da realidade objetiva e do uso de palavras da novilíngua, ela
se entediava e ficava confusa e afirmava nunca ter prestado atenção nesse tipo de
coisa. Todo mundo sabia que era tudo mentira, então por que se preocupar com
aquilo? Ela sabia a hora de saudar e a hora de vaiar, e isso era tudo o que se
precisava saber. Quando ele insistia em falar daqueles assuntos, ela tinha o hábito
desconcertante de adormecer. Ela era o tipo de pessoa capaz de adormecer a
qualquer hora e em qualquer posição. Conversando com ela, ele se deu conta de
como era fácil aparentar ortodoxia mesmo sem ter nenhuma ideia do significado
dessa ortodoxia. Em certo sentido, a visão de mundo do Partido se impunha com
mais sucesso sobre pessoas incapazes de entendê-la. Elas podiam aceitar as
violações mais flagrantes da realidade porque nunca compreendiam plenamente a
importância do que lhes era exigido, e não estavam suficientemente interessadas nos
acontecimentos públicos a ponto de perceber o que estava acontecendo. Por falta de
consciência, elas permaneciam sãs. Simplesmente engoliam tudo, e o que engoliam
não lhes fazia mal, porque não deixava resíduos, assim como um grão de milho
pode passar sem ser digerido pelo corpo de uma ave.
Capítulo 6

Finalmente aconteceu. A esperada mensagem havia chegado. A vida inteira, ao que


lhe parecia, ele estivera esperando aquilo acontecer.
Ele estava andando pelo longo corredor do Ministério, quase chegando ao local
onde Julia lhe passara o bilhete, quando se deu conta de que alguém maior do que
ele vinha logo atrás. A pessoa, quem quer que fosse, pigarreou, evidentemente como
um prelúdio a uma conversa. Winston parou de súbito e se virou. Era O’Brien.
Enfim ficaram frente a frente, e seu primeiro impulso foi simplesmente fugir
correndo. Seu coração batia violentamente. Ele não teria conseguido falar. O’Brien,
contudo, continuou o mesmo movimento, pousando amistosamente a mão no braço
de Winston por um momento, de modo que seguiram andando lado a lado. O’Brien
começou a falar com a cortesia grave e peculiar que o diferenciava da maioria dos
membros do Alto Escalão do Partido.
— Eu estava esperando uma oportunidade para falar com você — ele disse. —
Outro dia, li um artigo seu sobre a novilíngua no Times
. Você tem um interesse
erudito pela novilíngua, não é?
Winston recuperou parte de seu autocontrole.
— Eu não diria erudito — ele respondeu. — Sou apenas um amador. Não é a
minha área. Nunca tive nenhuma relação concreta com a formação da língua.
— Mas você escreve em novilíngua com muita elegância — disse O’Brien. —
Essa opinião não é só minha. Estive conversando recentemente com um amigo seu
que certamente é especialista. Esqueci o nome dele agora…
Mais uma vez, o coração de Winston se agitou, lhe causando uma pontada de
dor. Era inconcebível que isso fosse outra coisa senão uma referência a Syme.
Porém Syme não estava apenas morto, ele havia sido abolido, era uma impessoa.
Qualquer referência identificável a ele teria sido fatalmente perigosa. O comentário
de O’Brien devia obviamente ter sido um sinal, um código. Ao compartilhar um
pequeno ato de crimepensar, ele os convertera a ambos em cúmplices. Continuaram
caminhando lentamente pelo corredor até que O’Brien parou, com a curiosa e
desconcertante amabilidade que sempre conseguia imprimir ao gesto com que
reposicionava os óculos sobre o nariz. Então, ele continuou:
— O que eu realmente queria dizer era que, no seu artigo, reparei que você usou
duas palavras que ficaram obsoletas. Mas elas só caíram em desuso muito
recentemente. Você consultou a décima edição do Dicionário da Novilíngua?
— Não — disse Winston. — Achei que não tivesse saído ainda. No
Departamento de Registros, ainda estamos usando a nona edição.
— A décima edição só deve sair daqui a alguns meses, eu acredito. Mas alguns
exemplares de divulgação chegaram a circular. Eu mesmo tenho um. Você teria
interesse em dar uma olhada?
— Teria muito interesse — disse Winston, vendo imediatamente aonde aquilo
levaria.
— Algumas das novas melhorias são muito engenhosas. A redução do número
de verbos… esse ponto certamente vai lhe interessar, creio. Deixe-me pensar, posso
enviar um mensageiro com o dicionário para você? Mas sempre me esqueço desse
tipo de coisa… Você poderia ir buscar no meu apartamento em algum horário que
lhe seja mais conveniente? Espere. Vou lhe dar meu endereço.
Eles estavam parados na frente de um telemonitor. Meio distraído, O’Brien
tateou os bolsos e sacou uma pequena caderneta de capa de couro e uma caneta-
tinteiro dourada. Imediatamente embaixo do telemonitor, em uma posição na qual
qualquer um que estivesse assistindo do outro lado do aparelho poderia ler o que ele
estava escrevendo, ele anotou o endereço, arrancou a página e a entregou a Winston.
— Geralmente estou em casa à noite — ele disse. — Se eu não estiver, meu
empregado lhe entregará o dicionário.
Ele foi embora deixando Winston com o pedaço de papel na mão, que àquela
altura ele nem precisaria mais esconder. Não obstante, ele memorizou com cuidado
o que estava escrito e, algumas horas depois, inseriu o papel no buraco da memória
com mais outros tantos papéis.
Eles ficaram conversando por alguns minutos no máximo. Aquele episódio só
podia significar uma coisa. Tudo fora planejado para que Winston ficasse sabendo o
endereço de O’Brien. Isso era necessário porque, exceto por um questionamento
direto, era impossível descobrir onde as pessoas moravam. Não havia nenhum tipo
de catálogo de endereços. “Se um dia você quiser me visitar, eis onde me
encontrar”, era o que O’Brien estava dizendo a ele. Talvez houvesse uma mensagem
oculta dentro do dicionário. No entanto, de qualquer modo, uma coisa era certa. A
conspiração, com a qual ele sonhara, existia, e ele atingira seus limites externos.
Ele sabia que, cedo ou tarde, atenderia ao chamado de O’Brien. Talvez no dia
seguinte, talvez dali a mais tempo… ele não tinha certeza. O que estava
acontecendo era apenas o desenvolvimento de um processo iniciado anos antes. O
primeiro passo havia sido um pensamento secreto, involuntário; o segundo fora o
início do diário. Ele passara do pensamento à palavra, e agora da palavra à ação. O
último passo era algo que ocorreria no Ministério do Amor. Ele havia aceitado. O
fim estava contido no princípio. No entanto, era assustador; ou, mais exatamente,
era um prenúncio da morte, como estar um pouco menos vivo. Mesmo enquanto
estava falando com O’Brien, quando o sentido das palavras ficou claro, uma espécie
de calafrio tomou conta de seu corpo. Ele sentiu como se pisasse na umidade
lamacenta de uma sepultura, e não havia grande alívio no fato de ele sempre ter tido
consciência de que a sepultura estava lá, e aguardando por ele.
Capítulo 7

Winston havia acordado com os olhos cheios de lágrimas. Julia se aconchegou


sonolenta junto a ele, murmurando algo como “O que foi?”.
— Sonhei… — ele começou a falar e logo parou. Era complexo demais para
expressar em palavras. Havia o sonho em si, e havia uma lembrança relativa ao
sonho que flutuava em sua mente nos primeiros segundos depois que ele acordou.
Ele se recostou na cabeceira, de olhos fechados, ainda impregnado da atmosfera
do sonho. Era um sonho vasto, luminoso, em que sua vida inteira parecia se estender
diante de si como uma paisagem em uma noite de verão depois da chuva. Tudo
havia ocorrido dentro do peso de papel de vidro, mas a superfície do vidro era o
domo do céu, e, do lado de dentro do domo, tudo era banhado por uma lua clara e
suave na qual se podia enxergar a distâncias intermináveis. O sonho também era
definido por — na verdade, em certo sentido, o sonho consistia em — um gesto com
o braço que a mãe fazia, e que fora feito outra vez trinta anos depois pela mulher
judia que ele havia visto nos cinejornais, tentando proteger o garotinho das balas,
antes que o helicóptero explodisse ambos.
— Você sabia — ele disse — que até este momento eu achava que havia matado
a minha mãe?
— Por que você a matou? — disse Julia, quase dormindo.
— Eu não a matei. Não fisicamente.
No sonho, ele havia se lembrado da última vez em que olhara para a mãe, e dali
a alguns momentos, depois de acordar, todos os pequenos acontecimentos que
envolveram aquele instante lhe voltaram. Era uma lembrança que ele mesmo devia
ter deliberadamente expulsado de sua consciência por muitos anos. Não tinha
certeza sobre a data, mas ele não devia ter mais de dez anos, possivelmente doze,
quando aquilo aconteceu.
Seu pai havia desaparecido algum tempo antes; o quanto antes, exatamente, ele
não se lembrava. Ele se lembrava melhor das circunstâncias agitadas, inquietantes
da época: os pânicos periódicos com os bombardeios aéreos e os abrigos nas
estações subterrâneas, as pilhas de escombros por toda parte, os avisos
incompreensíveis afixados nas esquinas, os bandos de jovens com camisas da
mesma cor, as filas enormes nas padarias, o fogo intermitente das metralhadoras ao
longe — sobretudo, o fato de que nunca havia comida suficiente. Ele se lembrou de
longas tardes passadas com outros meninos vasculhando latas de lixo e escombros,
escolhendo folhas de repolho, cascas de batatas, às vezes, até restos de pão velho,
dos quais depois removiam cuidadosamente as cinzas; e também de esperar a
passagem de caminhões que seguiam por um determinado trajeto e transportavam
ração para o gado, e que, quando sacolejavam nos trechos esburacados da rua,
algumas vezes deixavam cair alguns fragmentos de torta de óleo de algodão.
Quando o pai desapareceu, a mãe não demonstrou nenhuma surpresa, nem
nenhuma tristeza mais intensa, mas passou por uma súbita transformação. Ela
demonstrava ter perdido completamente o ânimo. Ficou evidente para Winston que
ela estava esperando alguma coisa que ela achava que iria acontecer. Ela fazia tudo
o que era necessário — cozinhava, lavava, costurava, arrumava a cama, varria o
chão, espanava o aparador — sempre muito lentamente e com uma curiosa e sutil
ausência, como um manequim articulado que se movia sozinho. Seu corpo
volumoso e torneado parecia voltar naturalmente à imobilidade. Durante horas, ela
ficava sentada quase imóvel na cama, cuidando da filha menor, uma menina
minúscula, adoentada, muito silenciosa, de dois ou três anos, com um semblante
simiesco de tão magro. Às vezes, ela pegava Winston no colo e o abraçava
longamente sem dizer nada. Ele sabia, apesar da pouca idade e de seu egoísmo, que
aquilo estava associado à tal coisa que estava prestes a acontecer.
Ele se lembrou do quarto onde viviam, um cômodo escuro, abafado, que,
embora tivesse apenas uma cama e uma colcha branca, parecia abarrotado de coisas.
Havia uma grelha sobre a lareira e uma prateleira para guardar comida; e na área
externa, uma pia marrom de cerâmica, comum aos vários quartos. Ele se lembrou da
silhueta da mãe inclinada sobre o fogo mexendo algo na caçarola. Sobretudo, ele se
lembrou de sua fome constante e das disputas atrozes e sórdidas durante as
refeições. Ele perguntava insistentemente à mãe, a toda hora, por que não havia
mais comida, ele berrava com ela e a atacava (lembrou-se até do tom da própria voz,
que estava começando prematuramente a mudar e, às vezes, estrondeava de modo
peculiar), ou tentava assumir um tom lamuriante de compaixão em seus esforços
para receber mais do que seu quinhão. A mãe estava sempre disposta a dar mais
para ele. Ela considerava justo que ele, “o menino”, recebesse uma porção maior;
porém, por mais que ela lhe desse, ele invariavelmente pedia mais. A cada refeição,
ela implorava que ele não fosse egoísta e se lembrasse da irmãzinha que estava
doente e também precisava comer, mas não adiantava. Ele gritava de raiva quando
ela parava de servi-lo, ele tentava tirar a caçarola e a colher da mão da mãe e
roubava pedaços do prato da irmã. Ele sabia que estava matando as outras duas de
fome, mas não conseguia evitar; achava até mesmo que tinha direito a isso. O
apetite clamoroso de seu estômago parecia justificá-lo. Entre as refeições, se a mãe
não ficasse de guarda, ele constantemente saqueava a escassa prateleira de comida.
Um dia, foi distribuída uma ração de chocolate. Era algo que não ofereciam
havia semanas ou meses. Ele se lembrou claramente daquele precioso pedaço de
chocolate. Era um tablete de pouco mais de cinquenta gramas (na época, ainda se
dizia duas onças) para os três. Era óbvio que o tablete deveria ser dividido em três
partes iguais. Subitamente, como se ouvisse outra pessoa, Winston ouviu a si
mesmo declarando em voz alta e retumbante que deveria receber o tablete inteiro. A
mãe disse que ele não deveria ser tão ganancioso. Houve uma longa e exaustiva
discussão que continuou interminavelmente, com berros, ganidos, lágrimas, queixas,
barganhas. Sua irmãzinha minúscula, agarrada à mãe com as duas mãos, idêntica a
um filhote de macaco, ficava olhando para ele por cima do ombro da mãe, com seus
olhos grandes e tristonhos. Por fim, a mãe partiu o chocolate em quatro, deu três
pedaços a Winston e o outro para a irmãzinha. A garotinha pegou seu pedaço e o
observou de modo inexpressivo, talvez sem saber o que era. Winston ficou
observando por um momento. Então, com um salto ágil e rápido, ele arrancou o
pedaço de chocolate da mão da irmã e saiu pela porta.
— Winston, Winston! — a mãe chamou. — Volte aqui! Devolva o pedaço da
sua irmã!
Ele parou, mas não voltou. Os olhos angustiados da mãe estavam fixos em seu
rosto. Então, ele começou a perceber; ele não sabia o que estava prestes a acontecer.
A irmã, consciente de ter sido roubada, começou a chorar bem baixinho. A mãe
abraçou a menina e apertou-a contra o peito. Algo naquele gesto lhe disse que a
irmã estava morrendo. Ele se virou e desceu a escada correndo, com o chocolate
derretendo na mão.
Ele nunca mais viu a mãe. Depois de devorar o chocolate, ele sentiu vergonha de
si mesmo e perambulou pelas ruas durante horas, até que a fome o levou de volta
para casa. Quando ele voltou, a mãe havia desaparecido. Na época, isso já estava se
tornando algo normal. Nada havia sumido do quarto além da mãe e da irmã. Elas
não haviam levado nenhuma roupa, nem o sobretudo da mãe. Até hoje ele não sabia
ao certo se a mãe havia morrido. Era perfeitamente possível que tivesse apenas sido
enviada para um campo de trabalhos forçados. Quanto à irmã, ela podia ter sido
levada, como o próprio Winston, a uma das colônias para crianças abandonadas
(Centros de Regeneração, como se chamavam), que haviam surgido em decorrência
da guerra civil, ou podia ter sido enviada para o campo de trabalhos com a mãe, ou
simplesmente deixada em algum lugar para morrer.
O sonho ainda estava vívido em sua mente, especialmente o gesto protetor do
braço em que o significado inteiro do sonho parecia contido. Sua mente divagou
para outro sonho que tivera dois meses antes. Exatamente como a mãe se sentara na
cama obscura coberta pela colcha branca, com a criança abraçada a ela, também ela
estava no navio que naufragava, muito abaixo dele, e afundando cada vez mais a
cada minuto, mas sempre olhando para ele através da água escura.
Ele contou a Julia a história do desaparecimento da mãe. Sem abrir os olhos, ela
se afastou e se ajeitou numa posição mais cômoda.
— Aposto que você devia ser um verdadeiro porquinho nessa época — ela disse,
indiferente. — Todas as crianças são porcas.
— Sim. Mas o ponto dessa história, na verdade…
Pela respiração dela, ficou evidente que ela havia voltado a dormir. Ele teria
gostado de continuar falando da mãe. Não supunha, pelo que se lembrava dela, que
tivesse sido uma mulher incomum, muito menos uma mulher inteligente; no
entanto, ela tinha uma espécie de nobreza, uma espécie de pureza, simplesmente
porque os padrões que ela seguia eram únicos. Seus sentimentos eram
exclusivamente seus, e não podiam ser alterados por outros. Não lhe teria ocorrido
que uma ação ineficaz fosse, portanto, sem sentido. Se você ama uma pessoa, você
ama, e quando não tem mais nada a oferecer, você ainda assim continua lhe dando
amor. Quando o chocolate acabou, a mãe pegou a filha no colo. Não havia o que
fazer, não mudaria nada, não produziria mais chocolate, não evitaria a morte da filha
nem a dela; porém lhe pareceu natural agir assim. A mulher refugiada no navio
também cobria o filhinho com o braço, que tinha a mesma eficácia contra as balas
que uma folha de papel. A coisa mais terrível que o Partido havia feito fora
convencer as pessoas de que meros impulsos, meros sentimentos, eram irrelevantes,
e, também, roubar todo o poder das pessoas sobre o mundo material. Depois que
você caía nas garras do Partido, o que sentia ou deixava de sentir, o que fazia ou
deixava de fazer literalmente não faziam a menor diferença. Tudo o que houvesse
ocorrido com você desapareceria, e jamais se ouviria falar de você nem de suas
ações. Você era completamente extirpado do fluxo da história. No entanto, para
pessoas de duas gerações anteriores, isso não parecia tão importante, porque elas
nunca tentaram alterar a história. Eram governadas por lealdades privadas as quais
elas não questionavam. O importante eram as relações individuais, por isso um
gesto de completo desamparo, um abraço, uma lágrima, uma palavra dita a um
moribundo eram o que continha valor em si. Os proletários, subitamente lhe
ocorreu, haviam permanecido nessa condição. Não eram leais ao Partido ou a um
país ou a uma ideia, eram leais uns aos outros. Pela primeira vez em sua vida, ele
não desprezou os proletários ou pensou neles apenas como uma força inerte que um
dia entraria em ação e regeneraria o mundo. Os proletários haviam permanecido
humanos. Não haviam endurecido por dentro. Haviam se agarrado às emoções
primitivas que ele mesmo precisava reaprender a sentir por meio de esforços
conscientes. E, ao pensar nisso, ele se lembrou, sem aparente relevância, que
algumas semanas antes tinha visto uma mão decepada na calçada e a havia chutado
para a sarjeta como se fosse um talo de repolho.
— Os proletários são seres humanos — ele disse em voz alta. — Nós não somos
humanos.
— Por que não? — perguntou Julia, que havia acordado de novo.
Ele ficou refletindo mais um pouco.
— Você já pensou — ele disse — que o melhor para nós dois seria simplesmente
irmos embora daqui antes que seja tarde demais e nunca mais nos vermos de novo?
— Sim, querido, já pensei nisso várias vezes. Mas, mesmo assim, eu não
pretendo fazer isso.
— Nós estamos com sorte — ele disse —, mas isso não deve durar muito. Você
é jovem. Você parece normal e inocente. Se você se mantiver longe de pessoas
como eu, pode sobreviver por mais cinquenta anos.
— Não. Eu já pensei em tudo. O que você fizer, eu vou fazer também. E não
fique tão desanimado. Eu sou boa em sobreviver.
— Podemos ficar juntos mais seis meses… um ano… Não há como saber. Em
algum momento, certamente, vão nos separar. Você faz ideia de como ficaremos
completamente separados? Depois que eles nos pegarem, não haverá nada,
literalmente nada, que um possa fazer pelo outro. Se eu confessar, eles a executarão,
e se eu me recusar a confessar, eles a executarão do mesmo jeito. Nada que eu possa
fazer ou dizer, ou evitar de dizer, livrará você da morte por mais de cinco minutos.
Não saberemos sequer se o outro estará vivo ou morto. Estaremos totalmente sem
poder. A única coisa que importa é que um não traia o outro, embora isso também
não faça a menor diferença.
— Se você está pensando em confessar — ela disse —, vamos confessar, tudo
bem. Todo mundo sempre acaba confessando. Não dá para evitar. Eles torturam as
pessoas.
— Eu não pretendo confessar. E confissão não é traição. O que você diz ou faz
não importa; só o sentimento importa. Se eles pudessem me impedir de te amar,
isso, sim, seria a verdadeira traição.
Ela pensou um pouco.
— Isso eles não podem fazer — ela disse por fim. — Essa é a única coisa que
eles não podem fazer. Eles podem fazer você dizer qualquer coisa. QUALQUER
COISA. Mas não podem obrigá-lo a acreditar em algo. Eles não podem entrar na
pessoa.
— Não — ele disse, um pouco mais esperançoso. — Não; isso é verdade. Eles
não podem entrar na pessoa. Se você SENTIR que permanecer humano vale a pena,
mesmo que isso não leve a nenhum resultado, você os terá derrotado.
Ele pensou nos telemonitores com seus ouvidos sempre despertos. Eles podiam
espionar noite e dia, mas, se você mantivesse o sangue-frio, ainda era possível
enganá-los. Com toda a inteligência deles, eles nunca desvendaram o segredo de
descobrir o que outro ser humano estava pensando. Talvez isso valesse menos
quando a pessoa estivesse entregue nas mãos deles. Ninguém sabia o que acontecia
no Ministério do Amor, mas era possível imaginar: torturas, drogas, minuciosos
aparelhos que registravam as reações nervosas, a exaustão gradual por privação de
sono e isolamento e a insistência dos interrogatórios. Os fatos, de todo modo, não
podiam permanecer ocultos. Eles precisavam ser rastreados por intermédio de
perguntas, e podiam ser extraídos da pessoa por meio de tortura. Contudo, se o
objetivo não era sobreviver, mas permanecer humano, que diferença fazia em última
análise? Eles não podiam alterar seus sentimentos; assim como você também não
poderia alterar os próprios sentimentos, mesmo que quisesse. Eles podiam expor
cruamente, nos mínimos detalhes, tudo o que você fez ou disse ou pensou; porém o
mais íntimo do coração, cujos caminhos seriam misteriosos até para si mesmo,
permanecia inacessível.
Capítulo 8

Eles tomaram uma atitude, finalmente eles conseguiram ir!


A sala onde estavam era ampla, e a iluminação era suave. O volume do
telemonitor estava baixo, quase um murmúrio; a riqueza do tapete azul-escuro dava
a impressão de que pisavam em veludo. Na outra extremidade da sala, O’Brien
encontrava-se sentado à mesa sob uma luminária verde com uma pilha de papéis de
cada lado. Ele não se dera ao trabalho de erguer os olhos quando o empregado
trouxe Julia e Winston até a sala.
O coração de Winston batia com tanta força que ele duvidou que conseguiria
falar. Eles haviam tomado essa iniciativa, finalmente, era a única coisa que passava
por sua cabeça. Fora um passo precipitado ir até ali, e uma loucura chegarem juntos,
embora tivessem ido por caminhos diferentes e só tivessem se encontrado em frente
à porta do apartamento de O’Brien. Mas até mesmo entrar em uma residência como
aquela era um empreendimento de coragem. Apenas em raríssimas ocasiões alguém
via o interior de uma casa do Alto Escalão do Partido, ou sequer adentrava o bairro
da cidade onde eles viviam. A atmosfera daquele imenso bloco de apartamentos, a
riqueza e a amplidão, os aromas pouco familiares de boa comida e bom tabaco, os
elevadores silenciosos e incrivelmente velozes deslizando para cima e para baixo, os
empregados uniformizados indo para lá e para cá… tudo era intimidante. Embora
ele tivesse um bom pretexto para estar ali, continuava assombrado, a cada passo,
pelo temor de que um guarda de uniforme preto subitamente virasse a esquina,
pedisse seus documentos e o mandasse ir embora. O empregado de O’Brien, no
entanto, admitiu a entrada dos dois sem hesitar. Era um homem pequeno, moreno,
de paletó branco, com um rosto em formato de diamante, completamente
inexpressivo, que podia até ser chinês. O corredor por onde os conduziu tinha
tapetes macios, papéis de parede creme e painéis brancos de madeira, tudo
extremamente limpo. Isso também era intimidador. Winston não se lembrava de ter
visto em algum momento de sua vida um corredor cujas paredes não estivessem
sebosas do contato de corpos humanos.
O’Brien estava com um pedaço de papel nas mãos e parecia estudá-lo
atentamente. Seu semblante pesado, inclinado a ponto de expor a linha do nariz,
parecia formidável e inteligente. Por cerca de vinte segundos, ele ficou sentado sem
se mover. Então, puxou o transcritor para perto e proferiu a mensagem no jargão
híbrido dos ministérios:

Itens um vírgula cinco vírgula sete aprovados plenamente ponto sugestão contida item seis
duplimais ridícula beirando crimepensar cancelar ponto desproceder construtivamente
anteaquisição maisplena estimativa custofixo máquina ponto fim da mensagem.
Ele se levantou lentamente da cadeira e foi até eles andando sobre o tapete sem
emitir ruído algum. Um pouco da atmosfera oficial parecia ter se desprendido dele
com as palavras da novilíngua, mas sua expressão era mais sombria que de costume,
como se não tivesse gostado de ser interrompido. O terror que Winston já sentia de
repente se intensificou com uma dose de constrangimento. Pareceu-lhe bem possível
que tivesse simplesmente cometido um erro estúpido. Pois que evidência ele tinha
de que O’Brien fosse algum tipo de conspirador político? Nada além de um brilho
nos olhos e um único comentário ambíguo; além disso, apenas sua própria
imaginação secreta, fundamentada em um sonho. Ele não podia sequer recorrer ao
pretexto de ter ido buscar o dicionário, porque, nesse caso, seria impossível
justificar a presença de Julia. Quando O’Brien passou pelo telemonitor, foi como se
um pensamento lhe ocorresse. Ele parou, virou de lado e apertou um botão na
parede. Houve um estalido agudo. O telemonitor ficou mudo.
Julia emitiu um breve ruído, uma espécie de gemido de surpresa. Mesmo em
meio ao pânico, Winston continuava assustado demais para controlar a língua.
— Você pode desligar?! — ele disse.
— Sim — disse O’Brien. — Nós podemos desligar. Nós temos esse privilégio.
Ele estava parado diante deles agora. Sua forma sólida pairava acima dos dois, e
a expressão em seu rosto ainda era indecifrável. Ele esperava, com um ar um tanto
austero, que Winston falasse, mas o quê? Até aquele momento, ainda era plausível
que ele fosse simplesmente um homem ocupado que estivesse irritado por causa de
uma interrupção. Ninguém falava. Depois de o telemonitor ter sido desligado, a sala
caiu num silêncio mortal. Os segundos se estenderam, ficaram enormes.
Constrangido, Winston continuou com os olhos fixos em O’Brien. Então, de
repente, o semblante sombrio se abriu no que parecia ser o traço de um sorriso. Com
seu gesto característico, O’Brien reposicionou os óculos sobre o nariz.
— Devo começar, ou você começa? — ele perguntou.
— Eu começo — disse Winston prontamente. — Esse telemonitor está
realmente desligado?
— Sim, está tudo desligado. Estamos sós.
— Nós viemos aqui porque…
Ele fez uma pausa, percebendo pela primeira vez a inconsistência dos próprios
motivos. Como, de fato, ele não sabia que tipo de ajuda esperava de O’Brien, não
era fácil dizer por que fora até ali. Ele prosseguiu, consciente de que aquilo que
dizia devia soar ao mesmo tempo frágil e pretensioso:
— Nós acreditamos que existe uma espécie de conspiração, uma espécie de
organização secreta trabalhando contra o Partido, e que você está envolvido nela.
Nós queremos participar disso e trabalhar para vocês. Somos inimigos do Partido.
Não acreditamos nos princípios do Ingsoc. Somos crimepensadores. Somos também
adúlteros. Estou dizendo isso porque queremos nos entregar às suas ordens. Se você
quiser que nos engajemos de alguma outra forma, estamos prontos.
Ele parou e olhou por cima do ombro, com a sensação de que a porta se abrira.
Sem dúvida, o pequeno empregado de rosto amarelo havia entrado sem bater.
Winston viu que ele trazia uma bandeja com um decantador e taças.
— Martin é um dos nossos — disse O’Brien com tranquilidade. — Traga as
bebidas para cá, Martin. Deixe-as na mesa redonda. Nós temos cadeiras para todos?
Então, podemos nos sentar e conversar à vontade. Traga uma cadeira para você,
Martin. Isso é importante. Você pode deixar de ser um empregado pelos próximos
dez minutos.
O homenzinho se sentou muito à vontade, mas ainda com um ar de serviçal, o ar
de um pajem desfrutando um privilégio. Winston observou-o com o canto do olho.
Ocorreu-lhe que a vida inteira daquele homem era representar um papel, e que ele
considerava perigoso abandonar aquela personalidade fingida até mesmo por um
instante. O’Brien pegou o decantador pelo pescoço e encheu as taças com um
líquido vermelho-escuro. Aquilo despertou em Winston memórias quase apagadas
de algo visto muito tempo antes em uma parede ou em um armazém — uma garrafa
enorme composta de luzes elétricas que parecia subir e descer e despejar seus
conteúdos em um copo. Visto de cima, o líquido parecia quase negro, mas no
decantador cintilava como um rubi. Tinha um aroma agridoce. Ele observou Julia
pegar sua taça e cheirar com franca curiosidade.
— Chama-se vinho — disse O’Brien dando um leve sorriso. — Vocês devem ter
lido a respeito em livros, sem dúvida. Infelizmente, é raro que chegue aos escalões
inferiores. — Sua expressão tornou-se solene outra vez e ele ergueu a taça dizendo:
— Creio que o mais apropriado é começar por um brinde. À saúde do nosso líder! A
Emmanuel Goldstein!
Winston pegou a taça com certa ansiedade. Vinho era uma coisa sobre a qual ele
havia lido e com a qual sonhara. Como o peso de papel de vidro ou as cantigas
lembradas pela metade pelo senhor Charrington; era algo que pertencia ao passado
aniquilado, romântico, aos tempos de outrora, como ele gostava de dizer em seus
pensamentos secretos. Por algum motivo, ele sempre imaginara que o vinho tivesse
um gosto intensamente doce, como o de geleia de amora, e um efeito inebriante
imediato. Na verdade, quando ele o engoliu, ficou distintamente desapontado. De
fato, depois de anos bebendo apenas gim, ele mal conseguia sentir o sabor do vinho.
Ele devolveu a taça vazia.
— Então, Goldstein existe mesmo? — ele disse.
— Sim, ele existe e está vivo. Onde, eu não sei.
— E a conspiração… a organização? É verdade? Não é apenas uma invenção da
Polícia do Pensamento?
— Não, é verdade. A Irmandade, como nós chamamos. A única coisa que vocês
saberão sobre a Irmandade é que ela existe e que vocês pertencem a ela. Em breve,
voltaremos a falar disso. — Ele olhou para o relógio de pulso. — Não é prudente
mesmo para membros do Alto Escalão do Partido desligar o telemonitor por mais de
meia hora. Vocês não deviam ter vindo juntos, e deverão partir separados. Você,
camarada… — Ele fez um gesto para Julia. — Você deve sair primeiro. Temos
cerca de vinte minutos à nossa disposição. Vocês devem compreender que preciso
começar fazendo algumas perguntas. Em termos gerais, vocês estão preparados para
fazer que tipo de coisa?
— Qualquer coisa que estiver ao nosso alcance — disse Winston.
O’Brien se ajeitou na cadeira de modo a ficar de frente para Winston. Ele quase
ignorou Julia, aparentemente tomando como certo que Winston podia falar por ela.
Por um momento, ele cerrou os olhos. Então, começou a fazer perguntas com a voz
baixa e inexpressiva, como se aquilo fosse uma rotina, uma espécie de catecismo, e
ele já soubesse a maioria das respostas.
— Vocês estão preparados para dar suas vidas?
— Sim.
— Vocês estão preparados para matar?
— Sim.
— E para cometer atos de sabotagem que possam causar a morte de centenas de
inocentes?
— Sim.
— Para trair, falsificar, chantagear, corromper a mente das crianças, distribuir
drogas viciantes, encorajar a prostituição, disseminar doenças venéreas… fazer
qualquer coisa capaz de causar a desmoralização e enfraquecer o poder do Partido?
— Sim.
— Se, por exemplo, de alguma forma, servir aos nossos interesses jogar ácido
sulfúrico no rosto de uma criança… vocês estão preparados para fazer isso?
— Sim.
— Vocês estão preparados para perder a identidade e viver o resto da vida como
garçonete ou estivador?
— Sim.
— Vocês estão preparados para cometer suicídio se nós ordenarmos e no
momento em que nós ordenarmos?
— Sim.
— Vocês estão preparados, os dois, para se separar e nunca mais se reencontrar?
— Não! — interveio Julia.
Para Winston, foi como se um longo tempo tivesse se passado antes de
responder. Por um momento, ele se sentiu privado da capacidade de falar. Sua língua
se movia sem fazer som, formando as sílabas primeiro de uma palavra, depois da
outra, e assim sucessivamente. Até o momento em que ele falou, ele não sabia a
palavra que iria dizer.
— Não — ele disse finalmente.
— Vocês fizeram bem em me contar isso — disse O’Brien. — É necessário que
nós saibamos de tudo.
Ele se virou para Julia e acrescentou com a voz um pouco mais expressiva:
— Você entendeu que, mesmo que ele sobreviva, ele pode se tornar uma pessoa
diferente? Podemos ser obrigados a dar a ele uma nova identidade. Seu rosto, seus
movimentos, a forma das mãos, a cor do cabelo… até a voz dele pode mudar. E
você também pode vir a se tornar uma pessoa diferente. Nossos cirurgiões podem
alterar as pessoas até que se tornem irreconhecíveis. Às vezes, é necessário. Às
vezes, até amputamos um membro de alguém.
Winston não conseguiu evitar olhar de relance outra vez para o semblante
mongol de Martin. Não havia nenhuma cicatriz visível. Julia havia ficado pálida, de
modo que suas sardas se tornaram mais evidentes, mas ela encarou O’Brien de um
jeito corajoso. Ela murmurou algo que parecia ser uma concordância.
— Muito bem. Então estamos combinados.
Havia uma cigarreira de prata sobre a mesa. Com um ar um tanto distante,
O’Brien a ofereceu, pegou um cigarro, então se levantou e começou a andar
lentamente pela sala, como se conseguisse pensar melhor em pé. Eram cigarros
muito bons, grossos e bem embalados, cujo papel era estranhamente sedoso ao
toque. O’Brien olhou novamente para o relógio de pulso.
— É melhor você voltar para a copa, Martin — ele disse. — Vou ligar o
telemonitor daqui a quinze minutos. Olhe bem para esses dois camaradas antes de ir.
Você os encontrará de novo. Eu talvez não.
Exatamente como fizera diante deles na entrada, os olhos escuros do
homenzinho percorreram seus semblantes. Não havia nenhum sinal de amabilidade
em sua atitude. Ele estava memorizando a aparência deles, mas não tinha nenhum
interesse por eles, ou parecia não ter. Ocorreu a Winston que um rosto sintético
talvez fosse incapaz de mudar de expressão. Sem dizer nada ou fazer qualquer tipo
de saudação, Martin saiu, fechando a porta da sala silenciosamente atrás de si.
O’Brien continuava andando pra lá e pra cá, com uma mão no bolso do macacão
preto e a outra segurando o cigarro.
— Vocês entenderam — ele disse — que estarão combatendo no escuro? Vocês
ficarão sempre no escuro. Receberão ordens e terão de obedecê-las sem saber por
quê. Mais tarde, enviarei um livro por meio do qual vocês aprenderão a verdadeira
natureza da sociedade em que vivemos, e a estratégia segundo a qual nós a
destruiremos. Depois que vocês tiverem lido o livro, se tornarão membros efetivos
da Irmandade. Mas, entre os objetivos gerais pelos quais estamos lutando e as
tarefas imediatas do momento, vocês nunca ficarão sabendo de nada. Estou lhes
dizendo que a Irmandade existe, mas não saberia dizer se existem cem membros ou
dez milhões. Pessoalmente, vocês jamais conhecerão mais do que uma dúzia de
membros. Terão três ou quatro contatos, que serão renovados de tempos em tempos,
conforme forem desaparecendo. Como eu fui o primeiro contato, isso se manterá.
Quando vocês receberem ordens, elas virão de mim. Se acharmos necessário nos
comunicar com vocês, será por intermédio de Martin. Quando vocês, enfim, forem
pegos, terão de confessar. Isso é inevitável. Mas vocês terão muito pouco para
confessar além de suas próprias ações. Não terão como trair mais do que um
punhado de pessoas sem importância. Provavelmente, não trairão nem mesmo a
mim. Quando isso acontecer, talvez eu esteja morto, ou tenha me tornado uma
pessoa diferente, com um rosto diferente.
Ele continuou caminhando pela sala sobre o tapete macio. Apesar do volume de
seu corpo, ele se movia com uma elegância notável. Isso transparecia até no gesto
de enfiar a mão no bolso, ou ao manipular o cigarro. Mais até do que força, ele
passava uma impressão de confiança e de compreensão disfarçada de ironia. Por
mais convicto que ele fosse, não havia aquela obstinação própria do fanático.
Quando ele falava em assassinato, suicídio, doenças venéreas, membros amputados
e rostos transfigurados, era com um leve ar de bravata. “Isso é inevitável”, sua voz
parecia dizer; “é o que precisamos fazer, sem hesitação, mas não há de ser o que
faremos quando a vida voltar a valer a pena ser vivida”. Uma onda de admiração,
quase de idolatria, fluiu de Winston em direção a O’Brien. Naquele momento, ele se
esqueceu da figura sombria de Goldstein. Quando você via aqueles ombros
poderosos de O’Brien, e seu rosto de feições rústicas, tão feio e, no entanto, tão
civilizado, era impossível acreditar que ele pudesse ser derrotado. Não havia
estratagema que ele não pudesse enfrentar, nem algum risco que ele não pudesse
prever. Até Julia parecia impressionada. Ela deixara o cigarro apagar e ficara
ouvindo atentamente. O’Brien continuou:
— Vocês devem ter ouvido rumores da existência da Irmandade. Sem dúvida,
devem ter formado uma imagem da Irmandade. Provavelmente, imaginaram um
vasto mundo clandestino de conspiradores, encontros secretos em porões,
mensagens escritas nas paredes, reconhecendo-se por códigos ou movimentos
especiais das mãos. Nada disso existe. Os membros da Irmandade não têm como se
reconhecer na rua, e é proibido aos membros descobrir a identidade de mais do que
algumas poucas outras pessoas. O próprio Goldstein, se cair nas mãos da Polícia do
Pensamento, não poderá fornecer a eles uma lista completa dos membros, ou
qualquer informação que os leve à lista completa. Não existem essas listas. A
Irmandade não pode ser aniquilada porque não é uma organização no sentido
comum. Nada a mantém unida além de uma ideia que é indestrutível. Vocês não
terão nada para sustentá-los além dessa ideia. Não haverá nenhuma camaradagem e
nenhum encorajamento. Quando finalmente vocês forem pegos, não terão nenhuma
ajuda. Nós nunca ajudamos nossos membros. No máximo, quando é absolutamente
necessário que alguém seja silenciado, eventualmente conseguimos fazer chegar
uma lâmina de barbear à cela de um prisioneiro. Vocês terão de se acostumar a viver
sem resultados e sem esperança. Vocês vão trabalhar um pouco, ser pegos, confessar
e depois morrer. Esses são os únicos resultados que vão ver na vida. Não há
nenhuma possibilidade de que uma mudança perceptível venha a ocorrer enquanto
ainda estivermos vivos. Nós somos os mortos. Nossa única vida genuína é no futuro.
Faremos parte disso como punhados de poeira e lascas de ossos. Mas quão distante
ainda está esse futuro, não há como saber. Pode ser daqui a mil anos. No momento,
nada disso é possível, exceto expandir a área de sanidade pouco a pouco. Não
podemos agir coletivamente. Só podemos difundir nosso conhecimento de indivíduo
em indivíduo, geração após geração. Diante da Polícia do Pensamento, não há outra
opção.
Ele parou e olhou pela terceira vez para o relógio de pulso.
— Está quase na hora de você ir, camarada — ele disse a Julia. — Espere. O
decantador ainda está na metade.
Ele encheu as taças e ergueu a sua pela haste.
— Ao que brindaremos agora? — ele disse, ainda com o mesmo ar de ironia. —
À confusão da Polícia do Pensamento? À morte do Grande Irmão? À humanidade?
Ao futuro?
— Ao passado — disse Winston.
— O passado é mais importante — concordou O’Brien, sério.
Eles esvaziaram as taças e, no momento seguinte, Julia se levantou para ir
embora. O’Brien tirou uma caixinha de cima de um gabinete e entregou a ela uma
pastilha branca que ele disse a ela para colocar em sua língua. Era importante, ele
disse, não sair na rua cheirando a vinho; os subordinados eram muito observadores.
Assim que a porta se fechou atrás dela, ele pareceu ter esquecido de sua existência.
Caminhou mais um pouco para lá e para cá e então parou.
— Há alguns detalhes a serem combinados — ele disse. — Suponho que vocês
tenham algum tipo de esconderijo; estou certo?
Winston contou sobre o quarto na sobreloja do senhor Charrington.
— Isso bastará por ora. Mais tarde, arranjaremos outro lugar para vocês. É
importante mudar de esconderijo com frequência. Enquanto isso, vou lhes enviar
um exemplar d’O LIVRO… — Até mesmo O’Brien, Winston percebeu, parecia
pronunciar as palavras como se estivessem em itálico. — O livro de Goldstein, você
sabe, envio assim que possível. Talvez leve alguns dias até eu conseguir um
exemplar. Não há muitos, como você pode imaginar. A Polícia do Pensamento os
persegue e os destrói tão rápido quanto conseguimos produzi-los. Não faz muita
diferença. O livro é indestrutível. Se o último exemplar fosse destruído, nós
poderíamos reproduzi-lo quase palavra por palavra. Você tem uma pasta? — ele
perguntou.
— Sim, quase sempre estou com ela.
— Como é essa pasta?
— Preta, bem velha. Com duas alças.
— Preta, duas alças, muito velha… Ótimo. Um dia desses, em breve… não
consigo determinar a data… uma mensagem chegará de manhã no seu trabalho, com
um erro de grafia em uma palavra, e você terá de pedir para repetir. No dia seguinte,
você irá ao trabalho sem sua pasta. Em algum momento do dia, na rua, um homem
tocará no seu braço e dirá “Acho que você deixou cair sua pasta!”. A pasta que ele
lhe dará conterá um exemplar do livro de Goldstein. Você deverá devolvê-lo dentro
de duas semanas.
Eles ficaram em silêncio por um instante.
— Faltam dois minutos para você ir embora — disse O’Brien. — Nós nos
encontraremos de novo… Se voltarmos a nos ver…
Winston olhou para ele.
— No lugar em que não existe escuridão? — ele perguntou com a voz hesitante.
O’Brien assentiu sem aparentar surpresa.
— No lugar em que não existe escuridão — ele respondeu, como se tivesse
identificado a alusão. — E, até lá, há alguma coisa que você deseja dizer antes de ir
embora? Alguma mensagem? Quer fazer alguma pergunta?
Winston pensou um pouco. Parecia não haver mais nenhuma pergunta que ele
quisesse fazer; tampouco sentiu impulso de dizer generalidades altissonantes. Em
vez de algo diretamente ligado a O’Brien e à Irmandade, veio-lhe à mente uma
espécie de imagem do quarto escuro onde a mãe passara os últimos dias, e do
quartinho na sobreloja do senhor Charrington, e do peso de papel de vidro, e da
gravura em metal com sua moldura de jacarandá. Quase distraído, ele disse:
— Você por acaso se lembra de uma velha cantiga que começa assim…
“Laranjas e limões, dizem os sinos de Saint Clement…”?
Mais uma vez, O’Brien assentiu. Com uma mistura de gentileza e seriedade, ele
completou a estrofe:
Laranjas e limões, dizem os sinos de Saint Clement.
Você me deve três vinténs, dizem os sinos de Saint Martin.
Quando você vai pagar?, dizem os sinos do tribunal.
Quando for rico, dizem os sinos de Shoreditch.

— Você se lembra do último verso! — disse Winston.


— Sim, eu me lembro do último verso. E agora, infelizmente, está na hora de
você ir embora. Mas espere. Fique com um desses tabletes.
Quando Winston se levantou, O’Brien estendeu a mão. Seu poderoso aperto de
mão esmagou a palma de Winston. Na porta, Winston olhou para trás, mas O’Brien
aparentava já estar no processo de tirá-lo da cabeça. Ele estava esperando com a
mão no botão que controlava o telemonitor. Atrás dele, Winston podia ver a
escrivaninha com a luminária verde e o transcritor e as cestas aramadas cheias de
papéis. O incidente estava encerrado. Dali a trinta segundos, ocorreu-lhe, O’Brien
estaria de volta a seu trabalho, incessante e importante, a favor do Partido.
Capítulo 9

Winston sentia-se gelatinoso de tanto cansaço. Gelatinoso seria a palavra exata.


Surgiu em sua cabeça espontaneamente. Seu corpo parecia ter não só a moleza de
uma gelatina, mas também sua translucidez. Ele achava que, se erguesse a mão
contra a luz, conseguiria enxergar através dela. Todo o sangue e a linfa haviam sido
extraídos dele por uma enorme carga de trabalho, deixando apenas uma frágil
estrutura de nervos, ossos e pele. Todas as sensações pareciam ampliadas. O
macacão arranhava nos ombros, a calçada fazia cócegas em seus pés, até mesmo
abrir e fechar o punho era um esforço que fazia as articulações estalarem.
Ele havia trabalhado mais de noventa horas em cinco dias. Assim como todo
mundo no Ministério. Agora tudo estava encerrado, e ele não tinha literalmente nada
para fazer, nenhum serviço do Partido de nenhum tipo, até a manhã do dia seguinte.
Ele poderia passar seis horas no esconderijo e mais nove na própria cama.
Lentamente, sob o sol ameno da tarde, ele caminhou por uma rua sombria na
direção da loja do senhor Charrington, sempre de olho nos patrulheiros, mas
irracionalmente convencido de que naquela tarde não haveria o risco de alguém vir
incomodá-lo. A pasta pesada que ele carregava batia em seu joelho a cada passo,
produzindo uma sensação de formigamento para cima e para baixo sobre a pele da
perna. Dentro da pasta estava o livro, que ele já trazia consigo havia seis dias; e ele
ainda nem o abrira nem o olhara.
No sexto dia da Semana do Ódio, depois dos desfiles, dos discursos, da gritaria,
da cantoria, das faixas, dos cartazes, dos filmes, dos bonecos de cera, do rufar dos
tambores e dos guinchos dos trompetes, do tropel das botas marchando, do peso das
esteiras dos tanques, do rugido dos aviões, do estrondo das armas… depois de seis
dias disso tudo, quando o grande orgasmo estava chegando ao clímax e o ódio geral
à Eurásia fervilhou em tal delírio que, se a multidão pudesse pôr as mãos nos dois
mil prisioneiros de guerra eurasianos que seriam enforcados publicamente no último
dia do processo, sem dúvida, os teria destroçado, nesse exato momento, foi
anunciado que a Oceania, enfim, não estava em guerra contra a Eurásia. A Oceania
estava em guerra contra a Lestásia. A Eurásia era aliada.
Evidentemente, ninguém admitiu que houvesse ocorrido alguma mudança.
Apenas tornou-se público, de repente e em toda parte ao mesmo tempo, que a
Lestásia e não a Eurásia era o inimigo. Winston estava em uma manifestação numa
praça no centro de Londres no momento em que isso aconteceu. Era noite, e os
rostos brancos e as faixas vermelhas pareciam estranhamente iluminados. A praça
estava repleta de milhares de pessoas, inclusive havia um grupo de mil crianças com
o uniforme dos Espiões. Em um palanque adornado de vermelho, um orador do Alto
Escalão do Partido, um homenzinho magro com braços desproporcionalmente
compridos e uma cabeça grande e calva sobre a qual alguns poucos cachos grisalhos
se agarravam, discursava para a multidão. Como um pequeno duende, contorcido de
ódio, ele pegou o microfone com uma mão enquanto a outra, enorme ao final do
braço esquelético, agarrava o ar de uma forma ameaçadora acima de sua cabeça.
Sua voz, tornada metálica pelos alto-falantes, ribombava um catálogo interminável
de atrocidades, massacres, deportações, saques, estupros, torturas de prisioneiros,
bombardeamentos de civis, propagandas mentirosas, agressões injustas, tratados
rompidos. Era quase impossível ouvi-lo sem se convencer e, então, enlouquecer. A
cada momento, a fúria da multidão fervilhava mais e a voz do orador era afogada
por um rugido bestial que se erguia incontrolavelmente de todas as gargantas. Os
gritos mais selvagens de todos eram os das crianças. O discurso já se estendia por
cerca de vinte minutos quando um mensageiro subiu apressado ao palanque e
entregou um papel ao orador. O homenzinho abriu o papel e o leu sem interromper o
discurso. Nada se alterou em sua voz ou em sua atitude, ou no conteúdo do que ele
estava dizendo, mas, de repente, os nomes eram diferentes. Sem palavras, uma onda
de compreensão percorreu a multidão. A Oceania estava em guerra contra a
Lestásia. No momento seguinte, houve uma tremenda comoção. As faixas e os
cartazes com os quais a praça fora decorada estavam todos errados! Metade tinha os
rostos errados. Era sabotagem! Os agentes de Goldstein tinham agido! Houve um
interlúdio rebelde em que cartazes foram arrancados dos muros e as faixas foram
rasgadas em pedaços e pisoteadas. Os Espiões desempenharam prodígios de
atividade subindo em telhados e cortando as bandeirolas amarradas nas chaminés.
No entanto, dali a dois ou três minutos, tudo havia acabado. O orador, ainda
segurando o microfone, com os ombros curvados para a frente e a mão livre
agarrando o ar, continuou seu discurso. Mais um minuto, e os rugidos ferozes de
fúria novamente surgiram em meio à multidão. O Ódio continuou exatamente como
antes, só que o alvo havia sido alterado.
A coisa que mais impressionou Winston, em retrospecto, foi o fato de o orador
mudar de uma frase para outra, na verdade no meio de uma frase, sem quebrar a
sintaxe. Contudo, no momento, havia outras coisas que o preocupavam. Foi nesse
instante de desordem, enquanto os cartazes eram arrancados, que um homem cujo
rosto ele não viu tocou em seu ombro e disse: “Com licença, acho que você deixou
cair sua pasta!”. Ele pegou a pasta sem pensar, sem dizer nada. Sabia que levaria
dias até ter uma oportunidade de olhar o conteúdo. No momento em que a
manifestação terminou, ele foi direto para o Ministério da Verdade, embora já
fossem vinte e três horas. A equipe inteira do Ministério fez o mesmo. As ordens já
emitidas pelos telemonitores, chamando-os de volta a seus postos, não continham
nenhuma urgência.
A Oceania estava em guerra contra a Lestásia; a Oceania sempre estivera em
guerra contra a Lestásia. Uma grande parte da literatura política dos últimos cinco
anos agora estava completamente obsoleta. Relatórios e registros de todos os tipos,
jornais, livros, panfletos, filmes, gravações sonoras, fotografias… tudo precisava ser
retificado com a rapidez de um raio. Embora nenhuma diretriz tivesse sido enviada,
sabia-se que os chefes de departamento queriam que, dentro de uma semana,
nenhuma referência à guerra contra a Eurásia ou à aliança com a Lestásia
continuasse existindo em parte alguma. O trabalho era excessivo, ainda mais porque
os processos envolvidos não podiam ser chamados por seus nomes verdadeiros.
Todo mundo no Departamento de Registros trabalhou dezoito horas por dia, com
dois turnos de três horas de sono. Colchões foram trazidos dos porões e espalhados
pelos corredores: as refeições consistiam em sanduíches e Café Vitória que
passavam em carrinhos conduzidos por funcionários do refeitório. A cada vez que
Winston parava para seu turno de sono, ele tentava deixar a escrivaninha sem
nenhum trabalho em cima, e toda vez que voltava se arrastando, sonolento e
dolorido, encontrava outra pilha de cilindros de papel sobre a mesa, como um
acúmulo de neve, quase soterrando o transcritor e se espalhando pelo chão, de modo
que a primeira tarefa era sempre empilhar os papéis de um jeito adequado que
proporcionasse espaço para trabalhar. O pior de tudo era que o trabalho estava longe
de ser exclusivamente mecânico. Muitas vezes, bastava substituir um nome pelo
outro, mas todo relato detalhado dos acontecimentos exigia mais cuidado e
imaginação. O conhecimento geográfico necessário para transferir a guerra de uma
parte do mundo para outra era considerável.
No terceiro dia, seus olhos doíam de um modo insuportável e seus óculos
precisavam ser limpos a todo instante. Era como uma tarefa braçal exaustiva, algo
que tinham o direito de se recusar a fazer e que, no entanto, estavam ansiosamente
aflitos para terminar. No pouco tempo que teve para pensar nisso, ele não se
incomodou com o fato de que cada palavra murmurada no transcritor, cada
movimento de sua caneta-tinteiro, era uma mentira deliberada. Ele estava nervoso
como todo mundo no Departamento para que a falsificação ficasse perfeita. Na
manhã do sexto dia, o volume de cilindros diminuiu um pouco. Durante cerca de
meia hora, nada chegou pelo tubo; então mais um cilindro, e depois mais nada. Em
toda parte, ao mesmo tempo, o trabalho foi diminuindo. Um suspiro profundo e
secreto percorreu o Departamento. Um feito grandioso, que jamais poderia ser
mencionado, fora alcançado. Agora era impossível para qualquer ser humano provar
por meio de evidências documentais que a guerra contra a Eurásia houvesse
acontecido. Às doze horas, foi inesperadamente anunciado que todos os
funcionários do Ministério estariam dispensados até a manhã seguinte. Winston,
ainda levando a pasta onde estava o livro, que permanecera entre seus pés enquanto
trabalhava e embaixo de seu corpo enquanto dormia, foi para casa, barbeou-se e
quase adormeceu na banheira, embora a água estivesse pouco mais do que morna.
Com uma espécie de estalo voluptuoso das articulações, ele subiu a escada da
sobreloja do senhor Charrington. Ele estava cansado, mas já não sentia mais sono.
Abriu a janela, acendeu o pequeno fogareiro sujo e pôs a chaleira com água para
fazer café. Julia logo chegaria; enquanto isso, ele se dedicaria ao livro. Sentou-se na
poltrona velha e abriu a pasta.
Era um volume preto e pesado, de encadernação amadora, sem nome de autor ou
título na capa. A tipografia também parecia levemente irregular. As páginas estavam
gastas nas margens e se soltavam com facilidade, pois o livro já havia passado por
muitas mãos. A inscrição na página de rosto dizia:
TEORIA E PRÁTICA DO

COLETIVISMO OLIGÁRQUICO

de

Emmanuel Goldstein

Winston começou a ler:


Capítulo I
Ignorância é força

Ao longo do tempo histórico, e provavelmente desde o final do Neolítico, têm existido três
classes de pessoas no mundo — alta, média e baixa. Essas classes foram subdivididas de
muitas maneiras, receberam inúmeros nomes diferentes, e os números de seus membros,
assim como suas atitudes em relação umas às outras, variaram conforme a época: porém a
estrutura essencial da sociedade nunca se alterou. Embora tenham ocorrido grandes rebeliões
e transformações aparentemente irreversíveis, o mesmo padrão sempre se reafirmou, assim
como um giroscópio sempre voltará ao equilíbrio, por mais longe que tenha ido, para um lado
ou para outro.
Os objetivos desses três grupos são totalmente irreconciliáveis […]

Winston parou de ler principalmente para apreciar o fato de que estava lendo
com conforto e segurança. Ele estava sozinho: não havia telemonitores, ninguém
ouvindo pela fechadura, nenhum impulso de olhar de relance sobre o ombro ou
cobrir a página com a mão. O doce ar do verão brincava em seu rosto. De algum
lugar remoto, flutuavam no ar os gritos indistintos das crianças; no quarto em si, não
havia outro som além da voz de inseto do relógio. Ele se aconchegou mais na
poltrona e pôs os pés sobre a grade da lareira. Aquilo era um êxtase, uma eternidade.
Subitamente, como se faz com um livro do qual se sabe que se lerá muitas vezes até
a última palavra, ele abriu em outro ponto e encontrou o Capítulo III. Ele prosseguiu
a leitura:
Capítulo III
Guerra é paz

A divisão do mundo em três grandes superpotências foi um acontecimento que poderia ter
sido — e na verdade foi — previsto antes da metade do século XX. Com a absorção da
Europa pela Rússia e do Império Britânico pelos Estados Unidos, duas dessas três
superpotências, a Eurásia e a Oceania, efetivamente já existiam. A terceira, a Lestásia, só
emergiu como unidade distinta após mais uma década de lutas confusas. As fronteiras entre as
três superpotências são em alguns lugares arbitrárias, e em outros são flutuantes de acordo
com os acasos da guerra, mas em geral elas seguem linhas geográficas. A Eurásia compreende
todo o norte do continente europeu e o continente asiático, de Portugal ao Estreito de Bering.
A Oceania compreende as Américas, as ilhas atlânticas, inclusive o Arquipélago Britânico, a
Australásia e o sul da África. A Lestásia, menor que as outras potências e com uma fronteira
ocidental menos definida, compreende a China e os países ao sul da China, o Arquipélago do
Japão e uma grande parte, embora flutuante, da Manchúria, da Mongólia e do Tibete.
Em uma combinação ou outra, essas três superpotências estão constantemente em guerra, e
isso tem sido assim nos últimos vinte e cinco anos. A guerra, contudo, já não é mais a luta
desesperada, aniquiladora, que era nas primeiras décadas do século XX. Trata-se de uma
guerra de objetivos limitados entre combatentes incapazes de se destruir, que não têm motivos
concretos para lutar e não estão divididos por diferenças ideológicas genuínas. Isso não
significa que a condução da guerra, ou que a atitude dominante em relação à guerra, tenha se
tornado menos sangrenta ou mais cavalheiresca. Pelo contrário, a histeria da guerra é contínua
e universal em todos os países, e atos como estupro, saque, massacre de crianças, redução de
populações inteiras à escravidão e torturas contra prisioneiros, que chegam a ser fervidos e
enterrados vivos, são considerados normais e, quando são cometidos por um lado e não pelo
inimigo, até meritórios. Contudo, em um sentido físico, a guerra hoje envolve um número
muito pequeno de pessoas; a maioria, especialistas altamente treinados, e causa
comparativamente poucas baixas.
O combate, quando acontece, ocorre em vagas fronteiras cuja localização o homem comum
só imagina, ou em torno de Fortalezas Flutuantes que protegem pontos estratégicos do tráfego
marítimo. Nos centros da civilização, a guerra gera apenas uma escassez contínua de bens de
consumo e uma queda ocasional de um míssil que pode causar algumas poucas dezenas de
mortes. A guerra, na verdade, mudou seu caráter. Mais exatamente, os motivos pelos quais as
guerras são travadas mudaram de ordem de importância. Motivos que já existiam em menor
medida nas grandes guerras do início do século XX hoje se tornaram dominantes e são
reconhecidos conscientemente como tais, e as decisões são tomadas com base neles.
Para compreender a natureza da guerra atual — pois, apesar das recombinações ocorridas a
cada tantos anos, é sempre a mesma guerra —, deve-se perceber em primeiro lugar que é
impossível que ela seja decisiva. Nenhuma das três superpotências poderia ser
definitivamente conquistada ainda que fosse pelas duas outras em aliança. Elas são muito
parecidas, e suas defesas naturais são formidáveis. A Eurásia é protegida por suas vastas
terras; a Oceania, pela extensão do Atlântico e do Pacífico; a Lestásia, pela fecundidade e pela
engenhosidade de seus habitantes. Em segundo lugar, não existe mais, do ponto de vista
material, razão pela qual lutar. Com o estabelecimento das economias autossuficientes, em
que a produção e o consumo estão ligados, a disputa por mercados, que era uma das principais
causas das guerras anteriores, já não é uma questão de vida ou morte. De todo modo, cada
uma dessas superpotências é tão vasta que é capaz de obter quase todas as matérias-primas de
que precisa dentro de suas próprias fronteiras. Na medida em que a guerra tem um propósito
econômico direto, é uma guerra pela força de trabalho. Entre as fronteiras das superpotências,
e não necessariamente em uma propriedade de nenhuma delas, há um quadrilátero irregular
com alguns ângulos entre Tânger, Brazzaville, Darwin e Hong Kong, contendo em si cerca de
um quinto da população da Terra. É pela posse dessas regiões densamente povoadas, e da
calota polar norte, que as três potências estão constantemente em luta. Na prática, nenhuma
potência controla a totalidade da área em questão. Partes dela estão sempre mudando de mãos,
e é a oportunidade de capturar este ou aquele fragmento por um súbito golpe traiçoeiro que
dita as infindáveis mudanças de alinhamento.
Todos os territórios disputados contêm minerais valiosos, e alguns deles são ricos em
importantes produtos vegetais, como a borracha, que, em climas mais frios, precisa ser
sintetizada por métodos comparativamente caros. Entretanto, acima de tudo, eles contêm uma
reserva infindável de mão de obra barata. A potência que controlar a África equatorial, ou os
países do Oriente Médio, ou o sul da Índia, ou o arquipélago da Indonésia disporá também
dos corpos das dezenas ou centenas de milhões de trabalhadores chineses ou hindus
1
mal
pagos e dedicados ao trabalho. Os habitantes dessas áreas, reduzidos mais ou menos
abertamente à condição de escravos, vão passando de conquistador em conquistador, e são
explorados como o carvão ou o petróleo na corrida por mais armas, pela conquista de mais
territórios, pelo controle de mais força de trabalho, para obter mais armamentos e munições,
para conquistar mais territórios, e assim indefinidamente. Deve-se observar que o conflito
nunca se desloca realmente para além das fronteiras das áreas em disputa. As fronteiras da
Eurásia flutuam entre a baía do Congo e a costa norte do Mediterrâneo; as ilhas do Oceano
Índico e do Pacífico estão sendo constantemente conquistadas e reconquistadas pela Oceania
ou pela Lestásia; na Mongólia, a linha divisória entre Eurásia e Lestásia nunca é estável; em
torno do Polo, as três superpotências reivindicam enormes territórios que, na verdade, são em
grande medida desabitados e inexplorados, mas o equilíbrio de poder sempre continua
praticamente o mesmo, e o território que constitui o cerne de cada superpotência continua
inviolado. Além disso, o trabalho de povos explorados na região do Equador não é realmente
necessário à economia mundial. Não agrega nada à riqueza do mundo, uma vez que tudo o
que produzem é usado na guerra, e o objetivo de travar uma guerra é sempre estar em uma
posição melhor para se travar outra guerra. Com esse trabalho, as populações escravizadas
permitem que o ritmo da guerra contínua seja acelerado. Entretanto, se essas populações
escravizadas não existissem, a estrutura da sociedade mundial, e o processo pelo qual ela se
mantém, não seria essencialmente diferente.
O principal objetivo da guerra moderna (segundo os princípios do DUPLIPENSAR, esse
objetivo é simultaneamente reconhecido e não reconhecido pelos cérebros dos dirigentes do
Alto Escalão do Partido) é usar os produtos da máquina sem elevar o padrão de vida geral.
Desde o final do século XIX, saber o que fazer com o excedente de bens de consumo já era
um problema latente na sociedade industrial. No momento, quando poucos seres humanos têm
o suficiente para comer, esse problema, é claro, não é urgente, e poderia não ter se tornado
urgente mesmo que nenhum processo artificial de destruição estivesse em ação. O mundo
hoje é um lugar inóspito, árido, dilapidado, se comparado ao mundo que existia antes de
1914, e ainda mais se comparado ao futuro imaginário com o qual as pessoas daquele período
sonharam. No início do século XX, a visão de uma sociedade futura inacreditavelmente rica,
ociosa, organizada e eficiente — um mundo antisséptico, reluzente, de vidro e aço e concreto
branco como a neve — fazia parte da consciência de praticamente toda pessoa alfabetizada. A
ciência e a tecnologia vinham se desenvolvendo em uma velocidade prodigiosa, e parecia
natural supor que continuariam se desenvolvendo. Isso deixou de acontecer, em parte, graças
ao empobrecimento causado por uma longa série de guerras e revoluções, em parte porque o
progresso científico e tecnológico dependia do hábito empírico do pensamento, que não
poderia sobreviver em uma sociedade de disciplina estrita. Como um todo, o mundo é mais
primitivo hoje do que há cinquenta anos. Certas regiões atrasadas avançaram, e diversos
artefatos, sempre de alguma forma associados à guerra e à espionagem policial, foram
desenvolvidos, mas a experimentação e a invenção, em grande medida, foram interrompidas,
e os estragos causados pela guerra atômica da década de 1950 nunca foram plenamente
reparados. Não obstante, os riscos inerentes no interior da máquina ainda estão aí. A partir do
momento em que a máquina apareceu, ficou claro para todas as pessoas pensantes que a
necessidade da escravização humana, e, portanto, da desigualdade humana, havia
desaparecido. Se a máquina fosse usada deliberadamente com essa finalidade, a fome, o
excesso de trabalho, a sujeira, o analfabetismo e a doença poderiam ser eliminados dentro de
poucas gerações. E, na verdade, mesmo sem ser usada com essa finalidade, mas por uma
espécie de processo automático — ao produzir uma riqueza que às vezes era impossível não
distribuir —, a máquina elevou muito o padrão de vida do ser humano médio durante um
período de cerca de cinquenta anos, no final do século XIX e no início do século XX.
Entretanto também ficou claro que um aumento geral da riqueza ameaçava destruir — na
verdade, em certo sentido era a própria destruição — uma sociedade hierárquica. Em um
mundo onde todo mundo trabalhasse poucas horas, tivesse o suficiente para comer, vivesse
em uma casa com um banheiro e um refrigerador, e possuísse um automóvel ou até um avião,
a forma mais óbvia e talvez mais importante de desigualdade já teria desaparecido. Se um dia
se tornasse geral, a riqueza não conferiria nenhuma distinção. Era possível, sem dúvida,
imaginar uma sociedade em que a RIQUEZA, no sentido de propriedades pessoais e luxos,
fosse igualmente distribuída, enquanto o PODER permanecesse nas mãos de uma casta
privilegiada. Mas, na prática, uma sociedade assim não poderia permanecer muito tempo
estável. Pois, se o ócio e a segurança fossem desfrutados por todos igualmente, a grande
massa de seres humanos, normalmente estupefata pela pobreza, acabaria se alfabetizando e
aprenderia a pensar por si mesma; e, a partir do momento em que fizessem isso, eles cedo ou
tarde se dariam conta de que a minoria privilegiada não tinha nenhuma função, e se livrariam
dela. No longo prazo, uma sociedade hierárquica só seria possível com base na pobreza e na
ignorância. Voltar ao passado agrário, como alguns pensadores do início do século XX
sonharam em fazer, não era uma solução prática. Conflitava com a tendência à mecanização,
que se tornara quase instintiva em quase todo o mundo, e, mais do que isso, qualquer país que
continuasse industrialmente atrasado ficaria indefeso no âmbito militar e estaria fadado a ser
dominado, direta ou indiretamente, por seus rivais mais avançados.
Tampouco seria uma solução satisfatória manter as massas na pobreza restringindo a
produção de bens de consumo. Isso aconteceu em grande medida na fase final do capitalismo,
aproximadamente entre 1920 e 1940. A economia de muitos países se deixou estagnar, a terra
deixou de ser cultivada, não foram acrescentados capitais em equipamentos, grandes grupos
populacionais ficaram impedidos de trabalhar e foram mantidos vivos pela caridade do
Estado. Contudo, isso também engendrou um enfraquecimento militar e, como as privações
aplicadas eram obviamente desnecessárias, uma oposição inevitável. O problema era como
manter as rodas da indústria em funcionamento sem aumentar a riqueza real do mundo. Os
bens de consumo deviam ser produzidos, mas não deviam ser distribuídos. E, na prática, a
única maneira de obter isso era por meio de uma guerra permanente.
O ato essencial da guerra é a destruição não necessariamente de vidas humanas, mas dos
produtos do trabalho humano. A guerra é uma forma de despedaçar, de explodir na
estratosfera ou de naufragar no fundo do mar materiais que de outra forma seriam usados para
deixar as massas confortáveis demais, e assim, no longo prazo, inteligentes demais. Mesmo
quando as armas da guerra não são efetivamente destruídas, sua produção é ainda um modo
conveniente de usar a força de trabalho sem produzir algo que possa ser consumido. Uma
Fortaleza Flutuante, por exemplo, contém em si o trabalho que seria necessário para construir
centenas de navios cargueiros. Em última análise, ela se torna obsoleta, sem ter trazido
nenhum benefício material para ninguém, e, com mais uma quantidade enorme de trabalho,
outra Fortaleza Flutuante é construída. Por princípio, o esforço de guerra é sempre planejado
para absorver qualquer excedente que possa existir depois de satisfeitas as necessidades
básicas da população. Na prática, as necessidades do povo são sempre subestimadas, com o
resultado de que passa a haver uma escassez crônica de metade das necessidades vitais; mas
isso é visto como uma vantagem. É uma política deliberada manter até mesmo os grupos
favorecidos próximos ao limite da pobreza, pois um estado geral de escassez aumenta a
importância de pequenos privilégios e, assim, amplifica a distinção entre um grupo e outro.
Pelos padrões do início do século XX, até mesmo um membro do Alto Escalão do Partido
vivia uma vida austera e laboriosa. Não obstante, os poucos luxos de que ele desfruta — seu
apartamento amplo e bem localizado, a textura melhor de suas roupas, a qualidade melhor de
sua comida, de sua bebida e de seu tabaco, seus dois ou três empregados, seu automóvel ou
helicóptero particular — colocam-no em um mundo diferente do mundo do membro do Baixo
Escalão do Partido, e o membro do Baixo Escalão do Partido tem uma vantagem semelhante
se comparado às massas submissas a quem ele chama de “os proletários”. A atmosfera social
é de uma cidade sitiada, onde a posse de um pedaço de carne de cavalo faz a diferença entre
riqueza e pobreza. E, ao mesmo tempo, a consciência de estar em guerra, e, portanto, em
perigo, faz com que a entrega de todo o poder a uma pequena casta pareça uma condição de
sobrevivência natural e inevitável.
A guerra, como poderemos concluir, gera a destruição necessária, mas a promove de um
modo psicologicamente aceitável. A princípio, seria muito simples utilizar o trabalho
excedente do mundo construindo templos e pirâmides, cavando buracos e tornando a enchê-
los, ou mesmo produzindo vastas quantidades de bens e depois os incinerando. Mas isso
forneceria a base econômica, e não a base emocional, para uma sociedade hierárquica. O que
está em questão aqui não é a moral das massas, cuja atitude é irrelevante contanto que
continuem trabalhando, mas a moral do Partido em si. Espera-se até do membro mais humilde
do Partido que ele seja competente, aplicado e até inteligente, dentro de limites estreitos, mas
é também necessário que ele seja um fanático crédulo e ignorante, cujos humores
predominantes sejam o medo, o ódio, a adulação e o triunfo orgiástico. Em outras palavras, é
necessário que ele tenha a mentalidade apropriada a um estado de guerra. Não importa que
uma guerra esteja realmente em curso, e, como nenhuma vitória decisiva é possível, não
importa que a guerra esteja indo bem ou mal. A única coisa necessária é que exista um estado
de guerra. A cisão da inteligência que o Partido requer de seus membros, que é mais
facilmente obtida em uma atmosfera de guerra, é hoje quase universal, mas, quanto mais alto
o escalão do Partido, mais evidente ela se torna. É justamente no Alto Escalão do Partido que
a histeria da guerra e o ódio ao inimigo são mais fortes. Em sua condição de administrador, é
necessário ao membro do Alto Escalão do Partido saber que esta ou aquela notícia sobre a
guerra não é verdadeira, e ele pode às vezes perceber que a guerra como um todo é espúria, ou
não está acontecendo, ou está sendo travada por propósitos muito diferentes do que os
declarados: mas esse conhecimento é facilmente neutralizado pela técnica do
DUPLIPENSAR. Sendo assim, nenhum membro do Alto Escalão do Partido duvida sequer
por um instante de sua crença mística de que a guerra é real, e que está fadada a terminar com
a vitória, com a Oceania como senhora incontestável do mundo inteiro.
Todos os membros do Alto Escalão do Partido acreditam nessa conquista vindoura como
uma questão de fé. Ela será alcançada pela aquisição gradual de cada vez mais territórios,
construindo, assim, uma preponderância de poder extraordinária, ou pela descoberta de
alguma arma nova e insuperável. A pesquisa de novas armas continua incessantemente, e é
uma das poucas atividades remanescentes em que a mente inventiva ou especulativa ainda
pode encontrar alguma realização. Na Oceania, atualmente, a Ciência, no sentido antigo,
quase deixou de existir. Em novilíngua, não existe palavra para “ciência”. O método empírico
de pensamento no qual todas as realizações científicas do passado se basearam opõe-se aos
princípios mais fundamentais do Ingsoc. E o progresso tecnológico só ocorre quando seus
produtos de alguma forma podem ser usados para a diminuição da liberdade humana. Em
todas as artes úteis, o mundo está estagnado ou retrocedendo. Os campos são cultivados por
arados puxados por cavalos enquanto os livros são escritos por máquinas. Mas em questões de
importância vital — ou seja, na prática, guerra e espionagem policial — a abordagem
empírica ainda é estimulada, ou ao menos tolerada. Os dois objetivos do Partido são
conquistar toda a superfície da Terra e extinguir de uma vez por todas a possibilidade do
pensamento independente. Há, portanto, dois grandes problemas que o Partido se dedica a
resolver. Um é como descobrir, contrariando a própria vontade do indivíduo, o que um ser
humano está pensando, e o outro é como matar várias centenas de milhões de pessoas em
poucos segundos sem aviso prévio. Na medida em que a pesquisa científica ainda continua,
este é o seu objeto de estudo. O cientista hoje é uma mistura de psicólogo com inquisidor,
estudando com verdadeira minúcia o significado das expressões faciais, dos gestos e dos tons
de voz, e testando o efeito de extrair a verdade com drogas, terapias com choque elétrico,
hipnose e tortura física; ou o cientista é um químico, um físico ou um biólogo, dedicados
apenas aos aspectos de seu objeto associados à supressão da vida. Nos vastos laboratórios do
Ministério da Paz, e nas estações experimentais escondidas nas florestas brasileiras, ou no
deserto australiano, ou nas ilhas perdidas da Antártida, equipes de especialistas estão
trabalhando incansavelmente. Alguns se dedicam simplesmente a planejar a logística das
guerras futuras; outros projetam mísseis cada vez maiores, explosivos cada vez mais
poderosos e blindagens cada vez mais impenetráveis; outros, ainda, pesquisam gases novos e
mais mortíferos, ou venenos solúveis que podem ser produzidos em quantidades que
destruiriam a vegetação de continentes inteiros, ou cepas de germes imunes a qualquer
anticorpo possível; há os que se empenham em produzir um veículo que consiga andar
embaixo da terra como um submarino embaixo da água, ou um avião autônomo como um
veleiro; outros exploram possibilidades ainda mais remotas como a concentração dos raios do
sol através de lentes suspensas a milhares de quilômetros no espaço, ou a produção de
terremotos artificiais e ondas gigantescas, por meio de controle do calor no centro da Terra.
No entanto, nenhum desses projetos chega a se realizar, e nenhuma das três superpotências
jamais conquistou uma preponderância significativa em relação às outras. O mais notável é
que as três superpotências já possuem, na forma da bomba atômica, uma arma muito mais
poderosa do que qualquer pesquisa atual provavelmente descobrirá. Embora o Partido, como
de hábito, reivindique para si a invenção, as bombas atômicas apareceram já nos anos 1940 e
foram usadas pela primeira vez em grande escala cerca de dez anos depois. Naquela época,
centenas de bombas foram lançadas em centros industriais, principalmente na Rússia
europeia, na Europa Ocidental e na América do Norte. O efeito foi convencer os grupos
dominantes de todos os países de que mais algumas bombas atômicas significariam o fim da
sociedade organizada e, portanto, de seu próprio poder. Desde então, embora jamais tenha
havido um acordo formal ou mesmo uma sugestão de tal acordo, mais nenhuma bomba foi
lançada. As três superpotências simplesmente continuam a produzir bombas atômicas e a
armazená-las à espera da oportunidade decisiva que acreditam que virá cedo ou tarde. E,
nesse meio-tempo, a arte da guerra permaneceu estagnada por trinta ou quarenta anos. Os
helicópteros são mais usados do que antes, os aviões bombardeiros foram amplamente
substituídos pelos projéteis de autopropulsão, e o navio de guerra de movimentos frágeis deu
lugar à quase inaufragável Fortaleza Flutuante; mas, afora isso, tem havido poucos
desenvolvimentos. O tanque, o submarino, o torpedo, a metralhadora, até o rifle e a granada
de mão ainda estão em uso. E, apesar dos intermináveis massacres relatados na imprensa e
nos telemonitores, as batalhas desesperadas das guerras anteriores, em que centenas de
milhares ou mesmo milhões de homens muitas vezes morriam em algumas semanas, nunca
mais se repetiram.
Nenhuma das três superpotências jamais tentou uma manobra que envolvesse o risco de
uma derrota séria. Quando alguma grande operação é empreendida, é geralmente um ataque
surpresa contra um aliado. A estratégia que as três superpotências estão seguindo, ou que
fingem para si mesmas estarem seguindo, é a mesma. O plano é, por uma combinação de
combates, negociações, e traições súbitas e oportunas, adquirir um círculo de bases aliadas
cercando um ou outro país rival, e então assinar um pacto de amizade com esse rival e
permanecer em termos pacíficos por muitos anos até que toda desconfiança adormeça.
Enquanto isso não acontece, os mísseis carregados de explosivos atômicos podem ser
posicionados em todos os pontos estratégicos; por fim, todos serão disparados
simultaneamente, com efeitos tão devastadores que tornarão qualquer retaliação impossível.
Então chegará a hora de assinar um pacto de amizade com a superpotência restante, em
preparativo para um outro ataque. Esse esquema, seria necessário dizer, é um mero devaneio,
de impossível realização. Além de tudo, nunca mais houve combates, exceto nas áreas
disputadas na região do Equador e do Polo: nenhuma invasão de território inimigo jamais foi
tentada. Isso explica o fato de que, em alguns lugares, as fronteiras entre as superpotências
são arbitrárias. A Eurásia, por exemplo, poderia facilmente conquistar o Arquipélago
Britânico, que geograficamente faz parte da Europa, ou por outro lado seria possível para a
Oceania avançar suas fronteiras até o Reno ou até Vístula. Porém isso violaria o princípio,
seguido por todas as partes, embora jamais formulado, da integridade cultural. Se a Oceania
quisesse conquistar as áreas que outrora foram conhecidas como França e Alemanha, seria
necessário ou exterminar seus habitantes, tarefa de grande dificuldade física, ou incorporar
uma população de cerca de cem milhões de pessoas, que, em termos de desenvolvimento
técnico, estão em nível mais baixo. O problema é o mesmo para as três superpotências. É
absolutamente necessário para a estrutura dessas superpotências que não tenham contato com
estrangeiros, exceto, de um modo limitado, com prisioneiros de guerra e escravos de cor. Até
mesmo o aliado oficial do momento é sempre observado com a mais profunda desconfiança.
Com exceção dos prisioneiros de guerra, o cidadão médio da Oceania nunca vê um cidadão da
Eurásia ou da Lestásia, e é vetado a ele o conhecimento de línguas estrangeiras. Se fosse
permitido o contato com estrangeiros, ele descobriria que são criaturas semelhantes a si
mesmo e que a maioria das coisas que lhe ensinaram sobre eles era mentira. O mundo
blindado em que ele vive se quebraria, e o medo, o ódio e a hipocrisia de que o seu moral
depende poderiam evaporar. Percebe-se em toda parte que, por mais que a Pérsia, o Egito, ou
Java ou o Ceilão troquem de mãos, as fronteiras principais não deveriam jamais ser
atravessadas por nada além de mísseis.
Subjacente a isso, um fato nunca mencionado em voz alta, mas compreendido tacitamente e
com consequências: a saber, que as condições de vida nas três superpotências são muito
parecidas. Na Oceania, a filosofia predominante é chamada Ingsoc; na Eurásia, é o
Neobolchevismo; e na Lestásia é denominada por uma expressão chinesa geralmente
traduzida como Idolatria da Morte, mas talvez mais bem definida como Obliteração de Si
Mesmo. Ao cidadão da Oceania não é permitido conhecer nada a respeito das duas outras
filosofias, mas ele aprende a execrá-las como ultrajes bárbaros à moralidade e ao bom senso.
Na verdade, essas três filosofias são praticamente indistinguíveis; e os sistemas sociais que
elas sustentam são totalmente indistinguíveis. Em toda parte, há a mesma estrutura piramidal,
a mesma idolatria do líder semidivino, a mesma economia voltada para a guerra contínua e
mantida pela guerra contínua. Disso decorre que as três superpotências não só não conseguem
conquistar umas às outras, como não obteriam nenhuma vantagem se conseguissem. Pelo
contrário, enquanto permanecem em conflito, elas se sustentam umas às outras, como três
feixes de milho. E, como de costume, os grupos dominantes das três superpotências são
simultaneamente conscientes e inconscientes do que estão fazendo. Suas vidas são dedicadas
à conquista do mundo, mas eles também sabem que é necessário que a guerra continue
eternamente e sem vitória. Nesse meio-tempo, o fato de NÃO haver risco de conquista torna
possível a negação da realidade, que é o traço característico do Ingsoc e de seus sistemas de
pensamento rivais. Aqui é preciso repetir o que foi dito antes: que, ao se tornar contínua, a
guerra mudou fundamentalmente de caráter.
Em eras passadas, uma guerra, quase por definição, era algo que cedo ou tarde chegava ao
fim, geralmente com uma vitória ou uma derrota inequívocas. Também no passado a guerra
era um dos principais instrumentos pelos quais as sociedades humanas se mantinham em
contato com a realidade física. Todos os governantes de todas as eras tentaram impor uma
visão falsa do mundo sobre seus subordinados, mas não podiam se dar ao luxo de estimular
qualquer ilusão que tendesse a limitar a eficiência militar. Como a derrota significava a perda
da independência, ou outro resultado geralmente considerado indesejável, as precauções
contra a derrota precisavam ser sérias. Os fatos físicos não podiam ser ignorados. Em filosofia
ou religião, em ética ou política, dois mais dois podem ser cinco, mas, quando se está
projetando uma arma ou um avião, dois mais dois precisam ser quatro. Países ineficientes
eram sempre conquistados cedo ou tarde, e a luta pela eficiência era inimiga das ilusões.
Além disso, para ser eficiente era necessário ser capaz de aprender com o passado, o que
significava ter uma ideia bastante exata do que havia acontecido no passado. Os jornais e os
livros de história eram, evidentemente, sempre fantasiosos e parciais, mas falsificações como
se praticam hoje teriam sido impossíveis. A guerra era uma garantia segura de sanidade e, no
tocante às classes dominantes, era provavelmente a mais importante das garantias. Enquanto
as guerras pudessem ser vencidas ou perdidas, nenhuma classe dominante podia ser
completamente irresponsável.
Contudo, quando a guerra se torna literalmente contínua, também deixa de ser perigosa.
Quando a guerra é contínua, não existe isso de necessidade militar. O progresso técnico pode
ser interrompido, e os fatos mais palpáveis podem ser negados ou desconsiderados. Como
vimos, as pesquisas que poderiam ser chamadas de científicas ainda prosseguem com o
propósito da guerra, mas são essencialmente uma espécie de devaneio, e seu fracasso em
mostrar resultados não é importante. A eficiência, mesmo a eficiência militar, já não é mais
necessária. Nada é eficiente na Oceania, exceto a Polícia do Pensamento. Como as três
superpotências são todas elas inconquistáveis, cada uma é na prática um universo à parte, no
interior do qual praticamente qualquer perversão do pensamento pode ser praticada em
segurança. A realidade só exerce sua pressão através das necessidades da vida cotidiana — a
necessidade de comer e beber, de se abrigar e se vestir, de evitar engolir veneno ou de sair
pela janela de andares altos e coisas do gênero. Entre a vida e a morte, e entre o prazer físico e
a dor física, ainda existe uma distinção, mas é só isso. Excluído do contato com o mundo
exterior, e com o passado, o cidadão da Oceania é como um homem no espaço interestelar,
que não tem condições de saber qual direção é para cima ou para baixo. Os governantes
desses Estados são absolutos de um modo que nem os faraós nem os césares conseguiram ser.
Eles são obrigados a evitar que seus subordinados morram de fome em uma escala
inconveniente e são obrigados a permanecer no mesmo nível baixo da técnica militar de seus
rivais; mas, assim que esse mínimo é atingido, eles podem distorcer a realidade da forma que
quiserem.
A guerra, então, se julgarmos pelos parâmetros das guerras anteriores, é meramente uma
impostura. Como os enfrentamentos entre certos ruminantes cujos chifres ficam em
determinado ângulo que os torna incapazes de ferir um ao outro. Mas, embora seja irreal, não
é desprovida de sentido. A guerra absorve o excedente de bens de consumo e ajuda a
preservar a atmosfera mental específica de que uma sociedade hierárquica necessita. A guerra,
como veremos, é hoje uma questão puramente doméstica. No passado, os grupos dominantes
de todos os países, embora pudessem reconhecer seu interesse comum e, portanto, limitar a
destrutividade da guerra, combatiam uns contra os outros, e o vitorioso sempre saqueava o
derrotado. Em nossos tempos, eles não combatem contra os outros de maneira nenhuma. A
guerra é travada pelos grupos dominantes contra seus subordinados, e o objetivo da guerra
não é fazer ou evitar conquistas territoriais, mas manter intacta a estrutura da sociedade. A
própria palavra “guerra”, portanto, tornou-se equivocada. Provavelmente, seria mais exato
dizer que, ao se tornar contínua, a guerra deixou de existir. A pressão peculiar que a guerra
exercia sobre os seres humanos entre o Neolítico e o início do século XX desapareceu e foi
substituída por algo muito diferente. O efeito seria o mesmo se as três superpotências, em vez
de lutar entre si, concordassem em viver em paz perpétua, invioladas dentro de seus próprios
limites. Pois, nesse caso, cada uma continuaria a ser um universo contido em si mesmo, livre
para sempre da influência sóbria do risco externo. Uma paz que fosse de fato permanente
seria o mesmo que uma guerra permanente. Este — embora a vasta maioria dos membros do
Partido só o compreenda em um sentido superficial — é o significado interno do lema do
Partido: GUERRA É PAZ.

Winston parou de ler por um momento. Em algum lugar remoto um míssil


explodiu. A sensação de beatitude por estar sozinho com o livro proibido, em um
quarto sem telemonitores, ainda não havia passado. A solidão e a segurança eram
sensações físicas, mescladas de alguma forma ao cansaço de seu corpo, à maciez da
poltrona, ao toque da brisa leve em seu rosto, que entrava pela janela. O livro
deixou-o fascinado, ou, mais exatamente, confirmou suas expectativas. Em certo
sentido, não dizia nada de novo, mas isso era parte de seu fascínio. Dizia o que ele
teria dito se lhe tivesse sido possível organizar seus pensamentos confusos. Era o
produto de uma mente semelhante à sua, mas incrivelmente mais poderosa, mais
sistemática, menos movida pelo medo. Os melhores livros, ele percebeu, são
aqueles que dizem aquilo que você já sabe. Ele havia voltado ao Capítulo I quando
ouviu os passos de Julia na escada e se levantou da poltrona para recebê-la. Ela
deixou a sacola de ferramentas no chão e se atirou nos braços dele. Fazia mais de
uma semana que eles não se viam.
— Estou com O LIVRO — ele disse quando se afastaram.
— Oh, está aí? Que bom… — ela disse, sem muito interesse, e quase
imediatamente se ajoelhou diante do fogareiro a óleo para fazer o café.
Eles só voltaram a falar no assunto depois de meia hora na cama. A noite estava
fria o suficiente para fazer valer a pena puxarem a colcha e se cobrir. Lá de fora
vinha o som familiar da cantoria e das botas arrastadas nas pedras do quintal. A
mulher de braços vermelhos musculosos, que Winston vira na primeira visita,
praticamente era parte integrante daquele lugar. Aparentemente, não havia uma hora
do dia em que ela não estivesse pra lá e pra cá entre o tanque e o varal, ora com a
boca cheia de pregadores de roupa, ora desatando a cantar canções sentimentais.
Julia havia se acomodado em seu lado da cama e parecia prestes a cair no sono. Ele
estendeu o braço para pegar o livro do chão e se recostou na cabeceira.
— Precisamos ler isto — ele disse. — Você também. Todos os membros da
Irmandade devem ler.
— Você lê — ela disse de olhos fechados. — Leia em voz alta. É a melhor
maneira. Assim, você vai me explicando conforme for lendo.
Os ponteiros do relógio marcavam seis, ou melhor, dezoito horas. Eles tinham
três ou quatro horas pela frente. Ele apoiou o livro nos joelhos e começou a ler:

Capítulo I
Ignorância é força

Ao longo do tempo histórico, e provavelmente desde o final do Neolítico, têm existido três
classes de pessoas no mundo — alta, média e baixa. Essas classes foram subdivididas de
muitas maneiras, receberam inúmeros nomes diferentes, e os números de seus membros,
assim como suas atitudes em relação umas às outras, variaram conforme a época: porém a
estrutura essencial da sociedade nunca se alterou. Embora tenham ocorrido grandes rebeliões
e transformações aparentemente irreversíveis, o mesmo padrão sempre se reafirmou, assim
como um giroscópio sempre voltará ao equilíbrio, por mais longe que tenha ido, para um lado
ou para outro.

— Julia, você está acordada? — disse Winston.


— Sim, meu amor, estou ouvindo. Continue. Está maravilhoso.
Ele continuou a ler:

Os objetivos desses três grupos são totalmente irreconciliáveis. O objetivo da classe alta é
permanecer onde está. O objetivo da classe média é trocar de lugar com a classe alta. O
objetivo da classe baixa, quando seus componentes têm algum objetivo — pois é uma
característica permanente da classe baixa viver esmagada demais em prol da luta pela
sobrevivência para ter consciência mais do que momentânea de algo além de suas vidas
cotidianas —, é abolir todas as distinções e criar uma sociedade em que todos os homens
sejam iguais. Assim, ao longo da história, uma luta que é a mesma em termos gerais tem sido
recorrente repetidas vezes. Por longos períodos, a classe alta parece estar segura no poder,
mas, cedo ou tarde, sempre chega um momento em que seus elementos perdem a crença em si
mesmos ou a capacidade de governar com eficiência, ou as duas coisas. Eles são, então,
derrubados pela classe média, que arregimenta a classe baixa para o seu lado fingindo estar
lutando por liberdade e justiça. Assim que conquistam seus objetivos, os indivíduos da classe
média devolvem a classe baixa à antiga posição servil, e eles próprios se tornam a classe alta.
Nesse momento, um novo grupo da classe média se separa de uma das outras classes, ou de
ambas, e a luta começa de novo. Das três classes, apenas a classe baixa nunca realiza com
sucesso, sequer temporário, algum de seus objetivos. Seria um exagero dizer que em toda a
história nunca tenha havido nenhum progresso do tipo material. Mesmo hoje, em um período
de declínio, o ser humano médio está fisicamente melhor do que alguns séculos atrás. Mas
nenhum avanço em riqueza, nenhuma melhoria dos costumes, nenhuma reforma nem
revolução jamais trouxe a igualdade humana um milímetro mais perto de nós. Do ponto de
vista da classe baixa, nenhuma mudança histórica jamais significou mais do que uma
mudança do nome de seus patrões.
Ao final do século XIX, a recorrência desse padrão se tornou óbvia para muitos
observadores. Então, surgiram escolas de pensadores que interpretaram a história como um
processo cíclico e alegaram demonstrar que a desigualdade era uma lei inalterável da vida
humana. Essa doutrina, evidentemente, sempre teve seus defensores, mas a forma como ela é
hoje aplicada representou uma mudança significativa. No passado, a necessidade de uma
sociedade hierárquica havia sido uma doutrina específica da classe alta. Fora pregada pelos
reis e pelos aristocratas e pelos sacerdotes, advogados e afins, que viviam como parasitas dos
reis, e geralmente era atenuada por promessas de compensação em um mundo imaginário
além-túmulo. A classe média, enquanto lutava pelo poder, sempre fez uso de termos como
liberdade, justiça e fraternidade. Hoje, contudo, o conceito de irmandade entre os homens
começa a ser atacado por pessoas que ainda nem estão em posições de comando, mas que
apenas têm esperança de ocupá-las o quanto antes. No passado, a classe média fez revoluções
sob a bandeira da igualdade e depois estabeleceu uma nova tirania assim que a antiga foi
derrubada. Os novos grupos da classe média, na verdade, já proclamam de antemão sua
tirania. O socialismo, uma teoria que apareceu no início do século XIX, e era o último elo de
uma corrente de pensamento que remontava às rebeliões de escravos da Antiguidade, ainda
era profundamente infectado pelo utopismo de eras passadas. No entanto, nas diversas
variantes do socialismo que apareceram de 1900 em diante, o objetivo de estabelecer a
liberdade e a igualdade foi sendo cada vez mais abertamente abandonado. Os novos
movimentos que apareceram em meados do século XX — o Ingsoc na Oceania, o
Neobolchevismo na Eurásia, a Idolatria da Morte, como se diz comumente, na Lestásia —
tinham o objetivo consciente de perpetuar a Antiliberdade e a Desigualdade. Esses novos
movimentos, evidentemente, desenvolveram-se a partir dos antigos e tenderam a conservar
sua nomenclatura e seguir sua ideologia apenas da boca para fora. Mas o propósito de todos
eles era deter o progresso e congelar a história em um determinado momento. O famoso
movimento pendular deveria acontecer mais uma vez e, então, parar. Como sempre, a classe
alta seria derrubada pela classe média, que então se tornaria a classe alta; mas, dessa vez, por
uma estratégia consciente, a classe alta conseguiria se manter naquela posição de modo
permanente.
As novas doutrinas surgiram, em parte, em virtude do acúmulo de conhecimento histórico e
do crescimento da consciência histórica, que mal existia antes do século XIX. O movimento
cíclico da história se tornou então inteligível, ou aparentemente inteligível ao menos; e, se era
inteligível, então seria alterável. Mas o motivo principal, subjacente, era que, desde o início
do século XX, a igualdade humana havia se tornado tecnicamente possível. Ainda era verdade
que os homens não eram iguais em talentos inatos e que as funções precisaram ser
especializadas de modo a favorecer alguns indivíduos em detrimento de outros; mas não havia
mais nenhuma necessidade real de distinções de classe ou grandes diferenças de riqueza. Em
épocas anteriores, as distinções de classe haviam sido não só inevitáveis, mas desejáveis. A
desigualdade era o preço da civilização. Com o desenvolvimento da produção da máquina, no
entanto, a situação mudou. Mesmo que ainda fosse necessário que os seres humanos tivessem
tipos de trabalho diferentes, já não era necessário que vivessem em níveis sociais e
econômicos diferentes. Portanto, do ponto de vista dos novos grupos que estavam a ponto de
tomar o poder, a igualdade humana já não era um ideal pelo qual se esforçar, mas um risco a
ser evitado. Em tempos mais primitivos, quando uma sociedade justa e pacífica não era de
fato possível, havia sido muito fácil imaginá-la. A ideia de um paraíso terrestre onde os
homens viveriam juntos em estado de irmandade, sem leis e sem trabalhos braçais, assombrou
a imaginação humana durante milhares de anos. E essa visão teve certa influência até em
grupos que efetivamente se beneficiavam com cada mudança histórica. Os herdeiros das
revoluções francesa, inglesa e americana, em parte, acreditavam nas próprias palavras sobre
direitos do homem, e liberdade de expressão, igualdade perante a lei e coisas do gênero, e até
permitiam que sua conduta fosse, até certo ponto, influenciada por elas. Entretanto, por volta
da quarta década do século XX, todas as principais correntes do pensamento político eram
autoritárias. O paraíso terrestre foi desacreditado justamente no momento em que se tornava
realizável. Toda a nova teoria política, pelo nome que quisessem chamar, levou de volta à
hierarquia e à disciplina. E, no endurecimento geral de perfil que se instaurou por volta de
1930, práticas que haviam sido abandonadas muito tempo atrás, em alguns casos havia
centenas de anos — prisões sem julgamento, o uso de prisioneiros de guerra como escravos,
execuções públicas, torturas para extrair confissões, o uso de reféns e a deportação de
populações inteiras —, não só se tornaram comuns outra vez, mas passaram a ser toleradas e
até defendidas por pessoas que se consideravam esclarecidas e progressistas.
Só depois de uma década de guerras nacionais, guerras civis, revoluções e
contrarrevoluções em toda parte do mundo, o Ingsoc e seus rivais emergiram com teorias
políticas plenamente desenvolvidas. Mas haviam ficado à sombra dos vários sistemas,
geralmente chamados de totalitários, surgidos anteriormente no mesmo século, e as linhas
gerais do mundo que emergiria do caos predominante já eram óbvias havia muito tempo. O
tipo de pessoa que controlaria esse mundo era igualmente óbvio. A nova aristocracia seria
formada em sua maioria por burocratas, cientistas, técnicos, sindicalistas, publicitários,
sociólogos, professores, jornalistas e políticos profissionais. Essas pessoas, cujas origens estão
na classe média assalariada e nos estratos superiores da classe trabalhadora, foram formadas e
unidas pelo mundo duro da indústria monopolista e do governo centralizado. Em comparação
com seus opositores em épocas anteriores, eram menos avarentas, menos tentadas pelo luxo,
menos ávidas pelo poder puro e, sobretudo, mais conscientes do que estavam fazendo e mais
objetivas no propósito de esmagar a oposição. Essa última diferença foi decisiva. Em
comparação com o que existe hoje, todas as tiranias do passado eram um tanto indecisas e
ineficazes. Os grupos dominantes sempre foram impregnados, em certa medida, por ideias
liberais, e se contentaram em deixar brechas em toda parte, em considerar apenas os atos
declarados e não se interessar pelo que seus subordinados estavam pensando. Até a Igreja
Católica na Idade Média era tolerante se considerarmos os parâmetros modernos. Parte do
motivo para isso era que, no passado, nenhum governo tinha o poder de manter seus cidadãos
sob constante vigilância. A invenção da imprensa, contudo, tornou fácil manipular a opinião
pública, e o cinema e o rádio levaram esse processo adiante. Com o desenvolvimento da
televisão, e o avanço técnico que tornou possível receber e transmitir informações
simultaneamente pelo mesmo aparelho, a vida privada chegou ao fim. Todo cidadão, ou ao
menos todo cidadão importante o suficiente para justificar a vigilância, podia ser mantido
vinte e quatro horas por dia sob os olhos da polícia e ao som da propaganda oficial, com todos
os outros canais de comunicação fechados. A possibilidade de impor não apenas a completa
obediência à vontade do Estado, mas a completa uniformidade de opinião sobre todos os
assuntos, agora existia pela primeira vez.
Após o período revolucionário dos anos 1950 e 1960, a sociedade se reagrupou e se
dividiu, como sempre, em classe alta, média e baixa. Contudo, o novo grupo da classe alta,
diferentemente de seus antecessores, não agiu com base no instinto, mas sabia o que era
necessário para garantir sua posição. Havia muito tempo que se dera conta de que a única
base segura para a oligarquia seria o coletivismo. A riqueza e o privilégio são mais facilmente
defendidos quando retidos por uma classe. A chamada “abolição da propriedade privada”
ocorrida em meados do século XX significou, na verdade, a concentração da propriedade nas
mãos de menos indivíduos do que antes, mas com a diferença de que os novos proprietários
eram um grupo em vez de uma massa de indivíduos. Isoladamente, nenhum membro do
Partido possui nada exceto os pertences pessoais. No âmbito coletivo, o Partido possui tudo o
que existe na Oceania, porque controla tudo e dispõe dos produtos como bem entender. Nos
anos seguintes à Revolução, o Partido conseguiu ocupar essa posição de comando quase sem
oposição, porque todo o processo foi representado como um ato da coletividade. Sempre se
supôs que, se a classe capitalista fosse expropriada, o socialismo se seguiria necessariamente;
e, de um modo inquestionável, os capitalistas foram expropriados. Fábricas, minas, terras,
casas, transportes… tudo foi tirado deles; e, como essas coisas já não eram propriedade
privada, obrigatoriamente deviam ser propriedade pública. O Ingsoc, que surgiu a partir do
movimento socialista anterior e herdou sua linguagem, na verdade, realizou o principal
objetivo do programa socialista; com o resultado, previsto e almejado de antemão, de que a
desigualdade econômica se tornou permanente.
Mas os problemas da perpetuação de uma sociedade hierárquica são mais profundos do que
isso. Existem apenas quatro maneiras de um grupo dominante perder o poder. Ou ele é
conquistado externamente, ou governa com tanta ineficiência que as massas se agitam e se
revoltam, ou ainda ele permite que um grupo da classe média, forte e descontente, venha a
existir, ou ele perde sua própria confiança e a disposição para governar. Esses fatores não se
operam isoladamente; em geral, os quatro ocorrem em alguma medida. Uma classe dominante
que conseguisse se proteger contra esses quatro fatores permaneceria no poder
permanentemente. Em última análise, o fator determinante é a atitude mental da própria classe
dominante.
Na segunda metade do século XX, o primeiro perigo havia, de fato, desaparecido. Todas as
três superpotências que hoje dividem o mundo são de fato inconquistáveis, e só se tornariam
conquistáveis por meio de lentas mudanças demográficas que um governo com amplos
poderes é capaz de impedir facilmente. O segundo perigo, também, é um risco apenas teórico.
As massas nunca se revoltam por vontade própria, e nunca se revoltam apenas por serem
oprimidas. Na verdade, enquanto as massas não tiverem parâmetros de comparação, elas
nunca se tornarão conscientes de que são oprimidas. As crises econômicas recorrentes do
passado foram totalmente desnecessárias e são, hoje, permitidas, mas outros deslocamentos
igualmente grandes podem ocorrer e ocorrem sem resultados políticos, pois não há como o
descontentamento se tornar articulado. Quanto ao problema da superprodução, que vem sendo
latente em nossa sociedade desde o desenvolvimento da técnica da máquina, foi resolvido
com o recurso da guerra contínua (ver Capítulo III), que também é útil para ajustar o moral
público ao tom necessário. Do ponto de vista de nossos atuais governantes, portanto, os
únicos verdadeiros riscos são a dissidência de um novo grupo capaz, subempregado, de
pessoas com fome de poder, e o crescimento do liberalismo e do ceticismo entre seus próprios
quadros. O problema, equivale a dizer, é educacional. Trata-se de uma questão de moldar
continuamente a consciência tanto do grupo dirigente quanto do grande conjunto de
executivos imediatamente abaixo. A consciência das massas só precisa ser influenciada no
aspecto negativo.
Nesse cenário, poderíamos inferir, se já não o soubéssemos, a estrutura geral da sociedade
da Oceania. No ápice da pirâmide está o Grande Irmão. O Grande Irmão é infalível e todo-
poderoso. Todo sucesso, toda realização, toda vitória, toda descoberta científica, todo
conhecimento, toda sabedoria, toda felicidade, toda virtude parecem emanar diretamente de
sua liderança e inspiração. Ninguém nunca viu o Grande Irmão. Ele é um rosto em painéis,
uma voz dos telemonitores. Podemos ter praticamente certeza de que ele jamais morrerá, e já
existe considerável incerteza sobre o ano em que ele nasceu. O Grande Irmão é o disfarce em
que o Partido escolheu se mostrar para o mundo. Sua função é agir como ponto de
convergência para o amor, o medo e a reverência, emoções mais facilmente sentidas por um
indivíduo do que por uma organização. Logo abaixo do Grande Irmão está o Alto Escalão do
Partido. O número de membros é limitado a 6 milhões, ou pouco menos de 2% da população
da Oceania. Abaixo do Alto Escalão encontra-se o Baixo Escalão do Partido; considerando
que o Alto Escalão é descrito como o cérebro do Estado, o Baixo Escalão pode ser
considerado como as mãos. Abaixo do Baixo Escalão do Partido vêm as massas silenciadas a
quem habitualmente nos referimos como “os proletários”, que chegam a 85% da população.
Nos termos de nossa classificação anterior, o proletariado é a classe baixa; pois a população
escravizada das terras equatoriais que passam constantemente de conquistador a conquistador
não faz parte permanente ou necessária da estrutura.
A princípio, a participação nesses três grupos não é hereditária. O filho de pais do Alto
Escalão, em teoria, não nasce no Alto Escalão do Partido. A admissão nos quadros do Partido
é realizada por meio de um exame feito com o indivíduo aos dezesseis anos. Não há
discriminação racial nem o predomínio de uma província sobre outra. Judeus, negros e sul-
americanos de puro sangue indígena se encontram nos mais altos postos do Partido, e os
administradores de uma região são sempre escolhidos entre os moradores dessa região. Em
nenhuma parte da Oceania os habitantes se sentem uma população colonial dominada por
uma metrópole distante. A Oceania não tem uma capital, e seu principal dirigente é uma
pessoa cuja localização ninguém sabe. Além do inglês como LÍNGUA FRANCA e a
novilíngua como idioma oficial, a Oceania não é centralizada. Seus governantes não são
unidos por laços consanguíneos, mas por adesão a uma doutrina comum. É verdade que nossa
sociedade é estratificada, e muito rigidamente estratificada, segundo o que, a princípio,
parecem ser linhagens hereditárias. Há muito menos mobilidade entre os diferentes grupos do
que acontecia sob o capitalismo ou mesmo na era pré-industrial. Entre os dois setores do
Partido, há uma certa troca, mas apenas quando membros mais fracos são excluídos do Alto
Escalão e membros ambiciosos do Baixo Escalão são neutralizados para que possam
ascender. Os proletários, na prática, não têm permissão de ascender ao Partido. Os mais
talentosos, que podem vir a constituir núcleos de descontentamento, são simplesmente
marcados pela Polícia do Pensamento e eliminados. No entanto essa situação não é
necessariamente definitiva, não é uma questão de princípio. O Partido não constitui uma
classe no antigo sentido da palavra. O Partido não visa a transmitir o poder propriamente aos
filhos de seus membros enquanto tais; e, se não houvesse outra maneira de manter os mais
capazes no topo, o Partido estaria perfeitamente preparado para recrutar toda uma nova
geração das camadas do proletariado. Nos anos cruciais, o fato de o Partido não ter um corpo
hereditário influenciou muito a neutralização da oposição. Os socialistas mais velhos, que
haviam sido formados para lutar contra algo chamado “privilégio de classe”, supuseram que o
que não era hereditário não podia ser permanente. Eles não viram que a continuidade de uma
oligarquia não precisava ser física, nem pararam para refletir que as aristocracias hereditárias
sempre tiveram vida curta, enquanto organizações de adesão como a Igreja Católica às vezes
duravam centenas ou milhares de anos. A essência do domínio oligárquico não é a herança de
pai para filho, mas a persistência de uma certa visão de mundo e de um determinado modo de
vida imposto pelos mortos sobre os vivos. Uma classe dominante é uma classe dominante
enquanto puder nomear seus sucessores. O Partido não se preocupa em perpetuar seu sangue,
mas em perpetuar a si mesmo. QUEM detém o poder não importa, desde que a estrutura
hierárquica permaneça sempre a mesma.
Todas as crenças, todos os hábitos, gostos, as emoções e atitudes mentais que caracterizam
nossa época são realmente projetados para sustentar a mística do Partido e impedir que se
perceba a verdadeira natureza da sociedade atual. A rebelião física, ou qualquer movimento
preliminar em direção à rebelião, não é possível na atualidade. Do proletariado, não há nada a
temer. Entregues a si mesmos, eles continuarão, de geração em geração, século após século,
trabalhando, proliferando e morrendo não apenas sem qualquer impulso de rebeldia, mas sem
a capacidade de conceber que o mundo possa ser diferente do que é. Eles só se tornariam
perigosos se o avanço da técnica industrial tornasse necessário lhes oferecer uma educação
superior; mas, como a rivalidade militar e comercial não são mais importantes, o nível
educacional do povo vem, na verdade, diminuindo. As opiniões que as massas têm ou deixam
de ter são consideradas questões irrelevantes. As massas podem ter liberdade intelectual
porque não têm intelecto. No membro do Partido, por outro lado, nem a menor divergência de
opinião sobre o assunto mais desimportante pode ser tolerada.
Um membro do Partido vive do nascimento até a morte sob o olhar da Polícia do
Pensamento. Mesmo quando está sozinho, ele nunca tem certeza de que está sozinho. Onde
quer que esteja, dormindo ou acordado, trabalhando ou descansando, no banho ou na cama,
ele pode ser inspecionado sem aviso ou sem saber que está sendo inspecionado. Nada do que
ele faça é indiferente. Suas amizades, suas diversões, seu comportamento com a esposa e com
os filhos, a expressão de seu semblante quando está sozinho, as palavras que murmura durante
o sono, até os movimentos característicos de seu corpo, tudo é minuciosamente vasculhado.
Não apenas qualquer deslize, mas também qualquer excentricidade, por menor que seja,
qualquer mudança de hábitos, qualquer maneirismo nervoso que possa ser sintoma de um
conflito interior certamente serão detectados. Ele não tem liberdade de escolha em nenhuma
direção. Por outro lado, suas ações não são reguladas pela lei, nem por nenhum código de
conduta claramente formulado. Na Oceania, não existe a lei. Os pensamentos e as ações que,
quando detectados, significam morte certa não são formalmente proibidos, e os expurgos
intermináveis, as prisões, as torturas, os encarceramentos e as evaporações não são aplicados
como pena por crimes efetivamente cometidos, mas são meramente a aniquilação de pessoas
que talvez viessem a cometer um crime em algum momento futuro. Exige-se que o membro
do Partido tenha não apenas opiniões corretas, mas também instintos corretos. Muitas das
crenças e das atitudes exigidas dele nunca são simplesmente formuladas, e não poderiam ser
formuladas sem expor as contradições intrínsecas do Ingsoc. Se ele for uma pessoa
naturalmente ortodoxa (em novilíngua, BENIPENSANTE), irá em todas as circunstâncias
saber, sem precisar pensar, qual é a crença certa ou a emoção desejável. Mas, em todo caso,
um treinamento mental elaborado, percorrido desde a infância e compreendido com base nas
palavras em novilíngua ANTICRIMINAR, PRETOBRANCAR e DUPLIPENSAR, faz com
que ele não tenha disposição nem capacidade de pensar profundamente sobre nenhum
assunto.
Espera-se que o membro do Partido não tenha emoções privadas nem quedas de
entusiasmo. Supostamente, ele deve viver em um frenesi constante de ódio contra os inimigos
externos e os traidores internos, de triunfo com as vitórias e de prostração diante do poder e
da sabedoria do Partido. Os descontentamentos produzidos por sua vida dura, insatisfatória,
são deliberadamente externados e dissipados por recursos como os Dois Minutos de Ódio, e
as especulações que possam induzir a uma atitude cética ou rebelde são exterminadas de
antemão por sua disciplina interna adquirida desde cedo. A primeira e mais simples etapa
dessa disciplina, que pode ser ensinada até às crianças menores, chama-se, em novilíngua,
ANTICRIMINAR. ANTICRIMINAR significa a faculdade de interromper antes, como por
instinto, em seu limiar, qualquer pensamento perigoso. Isso inclui a incapacidade de perceber
analogias, de detectar erros de lógica e de compreender os argumentos mais simples se forem
inimigos do Ingsoc, e de se entediar ou de repelir qualquer linha de raciocínio que possa
conduzir a uma direção herética. No entanto a estupidez não é o suficiente. Pelo contrário, a
ortodoxia em sentido pleno exige um controle sobre os próprios processos mentais tão
completo quanto o de um contorcionista sobre o próprio corpo. A sociedade da Oceania se
fundamenta em última análise na crença de que o Grande Irmão é onipotente e de que o
Partido é infalível. Contudo, como na realidade o Grande Irmão não é onipotente e o Partido
não é infalível, é necessária uma flexibilidade incansável, a todo momento, no tratamento dos
fatos. A palavra-chave aqui é PRETOBRANCAR. Como tantas palavras da novilíngua, essa
palavra tem dois significados mutuamente contraditórios. Aplicada a um oponente, significa o
hábito de alegar sem pudor que preto é branco, em contradição com os fatos concretos.
Aplicada a um membro do Partido, significa uma disposição leal para dizer que preto é branco
quando a disciplina do Partido assim o exigir. Mas significa também a capacidade de
ACREDITAR que preto é branco, e mais, de SABER que preto é branco e esquecer que
sempre se acreditou no contrário. Isso exige uma alteração contínua do passado, possibilitada
pelo sistema de pensamento que abarca efetivamente todo o resto, e que é conhecido em
novilíngua como DUPLIPENSAR.
A alteração do passado é necessária por dois motivos; um deles, subsidiário e, por assim
dizer, uma precaução. O motivo subsidiário é que o membro do Partido, assim como o
proletário, tolera as condições do presente, em parte, porque não tem parâmetros
comparativos. Ele deve ser excluído do passado, assim como do contato com os países
estrangeiros, pois é necessário que ele acredite que está melhor que seus ancestrais e que o
nível médio de conforto material está constantemente aumentando. Porém, sem dúvida, o
motivo mais importante para a retificação do passado é a necessidade de salvaguardar a
infalibilidade do Partido. Não se trata apenas de que todos os discursos, as estatísticas e os
registros de todo tipo precisam ser constantemente atualizados para mostrar que as previsões
do Partido estavam sempre certas. Trata-se também do fato de que nenhuma mudança na
doutrina ou do alinhamento político jamais poderá ser admitida. Pois mudar de ideia, ou
mesmo de política, é uma confissão de fraqueza. Se, por exemplo, a Eurásia ou a Lestásia
(qualquer uma delas) é o inimigo hoje, então, esse país deverá sempre ter sido o inimigo. E se
os fatos dizem o contrário, então os fatos precisam ser alterados. Assim, a história é
continuamente reescrita. Essa falsificação diária do passado, empreendida pelo Ministério da
Verdade, é tão necessária à estabilidade do regime quanto o trabalho da repressão e da
espionagem empreendidas pelo Ministério do Amor.
A mutabilidade do passado é um dos princípios fundamentais do Ingsoc. Os
acontecimentos passados, segundo o Partido, não têm uma existência objetiva, mas
sobrevivem apenas em registros escritos e na memória humana. O passado é qualquer coisa
sobre a qual os registros e as memórias concordem que seja. E como o Partido tem pleno
controle de todos os registros e igualmente controla as mentes de seus membros, em
decorrência disso, o passado é o que o Partido decidir que deve ser. Outra decorrência disso é
que, embora o passado seja alterável, ele nunca é alterado em algum caso específico. Pois,
quando o passado é recriado segundo a necessidade do momento, então essa nova versão É o
passado, e nenhum passado diferente pode ter algum dia existido. Isso vale inclusive quando,
como costuma ocorrer, o mesmo acontecimento precisa ser alterado até se tornar
irreconhecível, diversas vezes no mesmo ano. Em todas as circunstâncias, o Partido tem o
controle da verdade absoluta, e evidentemente o absoluto não pode jamais ter sido diferente
do que é agora. Como veremos, o controle do passado depende, sobretudo, do treinamento da
memória. A garantia de que todos os registros escritos concordem com a ortodoxia do
momento é meramente um ato mecânico. Mas é também necessário LEMBRAR que os
acontecimentos ocorreram da maneira desejada. E se for necessário rearranjar as memórias ou
falsificar registros históricos, então é necessário ESQUECER que se falsificou. O truque para
se fazer isso pode ser aprendido como qualquer outra técnica mental. Esse truque é aprendido
pela maioria dos membros do Partido, e certamente por todos aqueles que forem tão
inteligentes quanto ortodoxos. Em Língua Velha, chama-se, com franqueza, “controle da
realidade”. Em novilíngua, chama-se DUPLIPENSAR, embora DUPLIPENSAR também
abranja muitos outros sentidos.
DUPLIPENSAR significa o poder de comportar duas crenças contraditórias
simultaneamente, e aceitar ambas. O intelectual do Partido sabe em que direção suas
memórias precisam ser alteradas; portanto, ele sabe que está fazendo truques com a realidade;
mas, pelo exercício do DUPLIPENSAR, ele também satisfaz a si mesmo com a ideia de que a
realidade não está sendo violada. O processo deve ser consciente, ou não será realizado com
precisão suficiente, mas também deve ser inconsciente, ou acarretaria uma sensação de
falsidade e, consequentemente, de culpa. O DUPLIPENSAR está bem arraigado no coração
do Ingsoc, uma vez que o ato essencial do Partido é usar a ilusão consciente, mantendo, ao
mesmo tempo, uma firmeza de propósito que seja condizente com um completa honestidade.
Contar mentiras deliberadas acreditando genuinamente nelas, esquecer qualquer fato que se
torne inconveniente e, então, quando for necessário outra vez, resgatá-lo do esquecimento
enquanto for necessário, negar a existência da realidade objetiva, mas sempre se dando conta
da realidade que se nega… isso tudo são necessidades indispensáveis. Até mesmo ao usar a
palavra DUPLIPENSAR é necessário exercer o DUPLIPENSAR. Pois ao usar a palavra se
admite que se está falsificando a realidade; e por um novo ato de DUPLIPENSAR se apaga
esse conhecimento; e assim indefinidamente, com a mentira sempre uma volta à frente da
verdade. Em última instância, é por intermédio do DUPLIPENSAR que o Partido tem
conseguido — e pode continuar, pelo visto, conseguindo por milhares de anos — deter o
curso da história.
Todas as oligarquias do passado perderam o poder, ora porque se solidificaram, ora porque
esmoreceram. Em todos os casos, seus membros tornaram-se estúpidos e arrogantes, falharam
em se adaptar às novas circunstâncias e foram derrubados; ou se tornaram liberais e covardes,
fizeram concessões quando deveriam ter usado a força e, mais uma vez, foram derrubados.
Ou seja, caíram ora por consciência, ora por inconsciência. A grande realização do Partido é
ter produzido um sistema de pensamento em que ambas as condições possam existir
simultaneamente. E sobre nenhuma outra base intelectual o domínio do Partido poderia ser
permanente. Quem quiser dominar, e continuar dominando, deve ser capaz de deslocar a
noção de realidade. Pois o segredo do domínio é a combinação da crença na própria
infalibilidade com o poder de aprender com os erros do passado.
Não é preciso dizer que os praticantes mais sutis do DUPLIPENSAR são aqueles que
inventaram o DUPLIPENSAR e sabem que se trata de um vasto sistema de trapaça mental.
Em nossa sociedade, aqueles que sabem melhor o que está acontecendo são os que estão mais
longe de enxergar o mundo como ele é. Em geral, quanto maior o entendimento, maior a
ilusão; quanto mais inteligente, menos sensato. Uma clara ilustração disso é o fato de que a
histeria da guerra aumenta em intensidade conforme se ascende na escala social. Aqueles cuja
atitude em relação à guerra é mais racional são os povos subjugados dos territórios em
disputa. Para esses povos, a guerra é simplesmente uma calamidade contínua que varre seus
corpos para lá e para cá como uma onda gigantesca. Quem está vencendo é uma questão
completamente irrelevante para eles. Eles sabem que a mudança de dono significa apenas que
farão o mesmo trabalho de antes para novos patrões que os tratarão da mesma maneira dos
antigos patrões. Os trabalhadores um pouco mais favorecidos que chamamos de “proletários”
têm uma consciência intermitente da guerra. Quando necessário, eles podem ser estimulados a
manifestar frenesis de medo e ódio, mas, se deixados à vontade, são capazes de ficar longos
períodos sem se lembrar de que a guerra está acontecendo. É nas fileiras do Partido, e
sobretudo no Alto Escalão do Partido, que o genuíno entusiasmo da guerra se encontra. A
conquista do mundo é uma crença mais firme para aqueles que sabem que ela é impossível.
Essa associação peculiar de opostos — conhecimento com ignorância, cinismo com fanatismo
— é um dos traços mais característicos da sociedade da Oceania. A ideologia oficial abunda
em contradições mesmo quando não há motivos práticos para elas. Assim, o Partido rejeita e
vilifica todos os princípios defendidos originalmente pelo movimento socialista e decide fazê-
lo em nome do socialismo. Ele prega um desprezo pela classe trabalhadora nunca visto nos
séculos passados e veste seus membros com um uniforme que outrora foi típico dos
trabalhadores braçais e que é adotado por esse motivo. Ele sistematicamente enfraquece a
solidariedade da família e chama seu líder por um nome que é um apelo direto ao sentimento
de lealdade familiar. Até os nomes dos quatro ministérios que nos governam exibem uma
espécie de desfaçatez na deliberada reversão dos fatos. O Ministério da Paz lida com a guerra;
o Ministério da Verdade, com mentiras; o Ministério do Amor, com torturas; e o Ministério da
Fartura, com a fome. Essas contradições não são acidentais nem resultam de uma hipocrisia
comum; são exercícios deliberados de DUPLIPENSAR. Pois, apenas reconciliando
contradições, o poder pode ser conservado indefinidamente. De nenhuma outra forma o ciclo
antigo poderia ser quebrado. Se a igualdade humana deve ser evitada para sempre — se a
classe alta, como os chamamos, deve conservar seu posto permanentemente —, então a
condição mental predominante deve ser a insanidade controlada.
Contudo, há uma questão que até o momento quase ignoramos. É o seguinte: POR QUE a
igualdade humana deveria ser evitada? Supondo que a mecânica dos processos foi descrita
corretamente, qual é o motivo para esse esforço imenso, cuidadosamente planejado, para
congelar a história em um determinado momento do tempo?
Aqui chegamos ao segredo central. Como vimos, a mística do Partido, e sobretudo do Alto
Escalão, baseia-se no DUPLIPENSAR. Porém, mais profundamente, existe um motivo
original, o instinto nunca questionado que levou primeiro à tomada do poder e gerou depois o
DUPLIPENSAR, a Polícia do Pensamento, a guerra contínua, e toda a parafernália necessária.
Esse motivo na verdade consiste…

Winston se deu conta do silêncio como às vezes alguém se dá conta de um novo


som. Pareceu-lhe que Julia estava imóvel havia muito tempo. Ela estava deitada de
lado, nua da cintura para cima, com o rosto apoiado na mão e um cacho de cabelo
castanho caído sobre os olhos. Seus seios se elevavam e desciam de um modo lento
e contínuo, acompanhando a respiração.
— Julia.
Não houve resposta.
— Julia, você está acordada?
Ela não respondeu. Estava dormindo. Ele fechou o livro, depositou-o com
cuidado no chão, deitou-se e puxou a colcha sobre os dois.
Ele ainda — refletiu — não havia descoberto qual era o segredo principal. Ele
entendia COMO; mas não entendia POR QUÊ. O Capítulo I assim como o Capítulo
III não diziam na verdade nada que ele já não soubesse; apenas sistematizavam
teorias que ele já compreendia. No entanto, depois de ler, ele percebeu claramente
que não estava louco. Pertencer a uma minoria, mesmo que uma minoria composta
de um só indivíduo, não fazia de ninguém um louco. Um raio amarelado do Sol
poente penetrava pela janela e se projetava no travesseiro. Ele fechou os olhos. A
luz do Sol em seu rosto e o corpo macio da garota encostado ao seu deram-lhe uma
sensação de força, sonolenta, confiante. Ele se sentia seguro, tudo estava bem.
Então, ele adormeceu murmurando “A sanidade não é estatística” com a sensação
de que essa frase continha uma sabedoria profunda.

Ele acordou com a sensação de ter dormido por muito tempo, mas, ao olhar para o
relógio antigo, descobriu que eram apenas 20h30. Ficou cochilando mais um pouco;
então, a vigorosa cantoria de costume começou no quintal lá embaixo:
Foi só uma fantasia passageira;
passou como um dia de outono,
mas um olhar, uma palavra, que sonhos despertaram!
Roubaram meu coração sem dono!

A canção melosa parecia ter conservado a popularidade. Ainda era ouvida em


toda parte. Havia sobrevivido à Canção do Ódio. Julia acordou com a cantoria,
espreguiçou-se de um modo sedutor e saiu da cama.
— Estou com fome — ela disse. — Vamos fazer mais café. Droga! O fogo
apagou e a água esfriou! — Ela apanhou o fogareiro de lata e o sacudiu. — Está sem
óleo.
— Acho que podemos conseguir um pouco com o velho Charrington.
— Engraçado… Eu tinha certeza de que estava cheio. Vou me vestir — ela
acrescentou. — Parece que esfriou.
Winston também se levantou e se vestiu. A voz incansável continuava cantando
lá fora:
Dizem que o tempo tudo cura,
que sempre se pode esquecer a ilusão,
mas sorrisos e lágrimas, depois de anos,
ainda tocam as cordas do meu coração!

Enquanto apertava o cinto sobre o macacão, ele foi até a janela. O sol devia ter
se posto atrás das casas; já não brilhava lá fora. As pedras do quintal estavam
molhadas como se tivessem acabado de ser lavadas, e ele teve a sensação de que
também o céu havia sido lavado, tão fresco e pálido era o azul entre as chaminés.
Incansavelmente, a mulher ia e vinha, curvando-se e erguendo-se, cantando e se
calando e pendurando mais fraldas, e cada vez mais. Ele se perguntou se ela viveria
de lavar roupa ou se era apenas uma escrava de seus vinte ou trinta netos. Julia se
aproximou dele; juntos, contemplaram com uma espécie de fascínio a figura robusta
lá embaixo. Enquanto observava a mulher em sua atitude característica, seus braços
fortes erguidos para o varal, suas nádegas firmes como as de uma égua, ocorreu-lhe
pela primeira vez que ela era bonita. Jamais lhe ocorrera que o corpo de uma mulher
de cinquenta anos, de dimensões monstruosas, depois de parir tantos filhos, e depois
endurecido, fortalecido pelo trabalho até se tornar rijo como um nabo maduro,
pudesse ser bonito. Mas era, e afinal, ele pensou, por que não seria? O corpo sólido,
sem curvas, como um bloco de granito, e a pele grossa e avermelhada tinham a
mesma relação com o corpo de uma menina que a baga da rosa tinha com a rosa.
Por que o fruto deveria ser considerado inferior à flor?
— Ela é bonita — ele murmurou.
— Ela tem um metro de quadril — disse Julia.
— Esse é o estilo de beleza dela — disse Winston.
Ele abraçou a cintura fina de Julia, facilmente contornável com um braço. Do
quadril ao joelho, o corpo dela se encostou ao dele. De seus corpos jamais nasceria
uma criança. Essa era a única coisa que não poderiam jamais fazer. Apenas de boca
em boca, indivíduo por indivíduo, eles poderiam passar o segredo adiante. A mulher
lá embaixo não tinha consciência, ela só tinha braços fortes, um coração ardente e
um ventre fértil. Ele se perguntou quantos filhos ela teria dado à luz. Podia ter tido
facilmente uns quinze filhos. Ela tivera seu desabrochar momentâneo, um ano,
talvez, de uma beleza de rosa silvestre e então subitamente engordara como um
fruto fertilizado e depois endurecera e se avermelhara e se embrutecera, e sua vida
virara lavar, esfregar, cerzir, cozinhar, varrer, lustrar, remendar, esfregar, lavar,
primeiro para os filhos, depois para os netos, durante trinta anos ininterruptos.
Depois de tudo isso, ela ainda estava cantando. A mística reverência que ele sentiu
por ela foi um tanto mesclada ao aspecto do céu pálido e sem nuvens, que se
estendia por detrás das chaminés por uma distância interminável. Era curioso pensar
que o céu era o mesmo para todos, na Eurásia ou na Lestásia, ou ali. E as pessoas
embaixo do céu eram também praticamente iguais — em toda parte, no mundo
inteiro, centenas de milhares de milhões de pessoas como aquelas, pessoas
ignorantes da existência dos outros, separadas por muros de ódio e mentira, e no
entanto quase exatamente iguais —, pessoas que nunca aprenderam a pensar, mas
que acumulavam em seus corações e estômagos e músculos a força que um dia
viraria o mundo de cabeça para baixo. Se havia esperança, estava nos proletários!
Mesmo antes de ler O LIVRO até o fim, ele sabia que essa devia ser a mensagem
final de Goldstein. O futuro pertencia aos proletários. Mas poderia ele ter certeza de
que, quando essa hora chegasse, o mundo que eles construiriam não seria tão alheio
a ele, Winston Smith, quanto o mundo do Partido? Sim, porque ao menos seria um
mundo de sanidade. Só onde houver igualdade pode haver sanidade. Cedo ou tarde,
essa hora chegaria, a força se transformaria em consciência. O proletariado era
imortal, ninguém duvidaria se visse aquela valente figura no quintal. No final, o
despertar do proletariado viria. E, até que isso acontecesse, ainda que levasse mil
anos, eles sobreviveriam, contrariando todas as expectativas, como pássaros,
passando de corpo em corpo uma vitalidade que o Partido não tinha e não podia
destruir.
— Você se lembra — ele disse — do tordo que cantou para nós, naquele
primeiro dia, na borda da mata?
— Ele não estava cantando para nós — disse Julia. — Estava cantando para si
mesmo. Nem isso. Ele estava só cantando.
Os pássaros cantavam, os proletários cantavam, o Partido não cantava. No
mundo inteiro, em Londres e em Nova York, na África e no Brasil, e nas misteriosas
terras proibidas além das fronteiras, nas ruas de Paris e de Berlim, nas aldeias das
intermináveis planícies russas, nos bazares da China e do Japão… em toda parte se
erguia aquela mesma figura sólida e inconquistável, que ficara monstruosa de tanto
trabalhar e parir, na labuta do nascimento até a morte e ainda por cima cantando.
Daqueles ventres poderosos, uma raça de seres conscientes há de vir um dia. Vocês
eram os mortos, o futuro era deles. Mas era possível fazer parte daquele futuro se
você mantivesse viva a mente como eles mantinham vivo o corpo, e passasse
adiante a doutrina secreta de que dois mais dois são quatro.
— Nós somos os mortos — ele disse.
— Nós somos os mortos — ecoou Julia concordando.
— Vocês são os mortos — disse uma voz metálica atrás deles.
Eles se afastaram de repente. As entranhas de Winston pareceram congelar. Ele
viu o branco em volta das íris dos olhos de Julia. O rosto dela adquiriu um tom
amarelo leitoso. As manchas de ruge ainda nas faces se destacaram nitidamente,
quase como se estivessem soltas da pele.
— Vocês são os mortos — repetiu a voz metálica.
— Está vindo do quadro — sussurrou Julia.
— Está vindo do quadro — disse a voz. — Permaneçam exatamente onde estão.
Não façam nenhum movimento até receber ordens.
Estava acontecendo, estava finalmente acontecendo! Não havia o que pudessem
fazer senão continuar olhando fixamente para os olhos um do outro. Tentar sair
correndo, fugir da casa antes que fosse tarde demais… nada disso lhes ocorreu. Era
impensável desobedecer à voz metálica vinda do quadro. Houve um estalido como
se um prego tivesse sido torcido e um ruído de vidro se quebrando. O quadro havia
caído no chão, revelando o telemonitor aceso atrás.
— Agora, eles podem nos ver — disse Julia.
— Agora, podemos vê-los — disse a voz. — Caminhem até o centro do quarto.
Fiquem de costas um para o outro. Juntem as mãos atrás da cabeça. Não se toquem.
Eles não estavam se tocando, mas era como se ele sentisse o corpo de Julia
estremecer. Ou talvez fosse apenas seu próprio tremor. Ele conseguiu evitar que os
dentes batessem, mas os joelhos ficaram bambos sem que ele pudesse controlar.
Ouviram um tropel de botas lá embaixo, dentro e fora da casa. O quintal parecia
estar cheio de homens. Algo estava sendo arrastado pelas pedras. A cantoria da
mulher havia parado abruptamente. Houve um longo estrondo, como se o tanque
tivesse sido arremessado para o outro lado do quintal, e então uma confusão de
gritos alarmados que terminou em um alarido de dor.
— A casa está cercada — disse Winston.
— A casa está cercada — disse a voz.
Ele ouviu Julia ranger os dentes.
— Pelo visto, é melhor dizermos adeus — ela disse.
— Vocês podem dizer adeus — disse a voz. E então outra voz muito diferente,
uma voz fina e refinada que Winston teve a impressão de já ter ouvido antes,
começou: — E, por falar em adeus, já que tocamos no assunto, “Lá vem a vela, vê-
lo dormir. Lá vem o cutelo cortar sua cabeça!”.
Algo caiu na cama atrás das costas de Winston. A parte de cima de uma escada
dobrável havia se chocado contra o vidro e penetrava a janela. Alguém vinha
subindo para entrar por ali. Ouviram o estampido das botas que subiam pela escada
de dentro da casa. De repente, o quarto estava repleto de homens fortes de
uniformes pretos, com botas de cravos de ferro nas solas e cassetetes nas mãos.
Winston já não estava mais tremendo. Até seus olhos mal se moviam. Só uma
coisa importava: ficar parado, ficar parado e não dar motivo para que lhe batessem!
Um homem com uma mandíbula caricata de pugilista, na qual a boca era apenas
uma fenda, parou diante dele o encarando e segurando o cassetete entre o polegar e
o indicador. Winston cruzou o olhar dele. A sensação de nudez, com as mãos atrás
da cabeça e com o rosto e o corpo expostos, era quase insuportável. O homem pôs a
ponta de uma língua branca para fora, lambeu o lugar onde deveriam ficar seus
lábios, e depois saiu. Houve outro choque. Alguém havia pegado o peso de papel de
vidro de cima da mesa e estilhaçou-o na pedra da lareira.
O fragmento de coral, um minúsculo pedaço enrugado e rosado, como um botão
de rosa de confeitaria, foi parar sobre o tapete. Como era pequeno, pensou Winston,
todo esse tempo, era um coral bem pequeno! Houve um arquejo e um choque atrás
dele, e ele recebeu um violento chute no tornozelo que quase o derrubou no chão.
Um dos homens havia socado o plexo solar de Julia, fazendo-a se curvar como uma
fita de medir dobrável. Ela estava se contorcendo no chão, tentando respirar.
Winston não ousou virar a cabeça nem um milímetro, mas às vezes o rosto ofegante
dela entrava em seu campo visual. Mesmo aterrorizado como estava, era como se
ele pudesse sentir aquela dor no próprio corpo, uma dor mortal que, no entanto, era
menos urgente que o esforço dela para voltar a respirar. Ele sabia como era; a dor
terrível e agonizante que estava sempre presente, mas ainda não podia ser sofrida,
porque antes de tudo era necessário conseguir respirar. Os dois homens ergueram-na
do chão pelos joelhos e pelos ombros e levaram-na para fora do quarto como se
fosse um saco. Winston viu o rosto dela de relance, de cabeça para baixo, amarelado
e contorcido, de olhos fechados, e ainda com uma mancha de ruge nas faces; e esta
foi a última vez que ele a viu.
Ele se manteve imóvel como um cadáver. Ninguém havia batido nele ainda.
Pensamentos que vinham involuntariamente, mas pareciam totalmente
desinteressantes, começaram a passar por sua cabeça. Ele se perguntou se teriam
pegado também o senhor Charrington. Ele se perguntou o que teriam feito à mulher
no quintal. Reparou que precisava urgentemente urinar e sentiu uma leve surpresa,
pois urinara duas ou três horas antes. Reparou que o relógio no aparador marcava
nove, como se fossem 21 horas. No entanto, a luz parecia forte demais. Não deveria
estar escuro às 21 horas de uma noite de agosto? Ele se perguntou se, afinal, ele e
Julia não teriam perdido a hora… e dormido a noite inteira, e achavam que eram
20h30 quando na verdade eram quase oito e meia da manhã seguinte. Mas ele não
prosseguiu nesse raciocínio. Era irrelevante.
Ouviram-se outros passos, mais leves, no corredor. O senhor Charrington entrou
no quarto. A atitude dos homens de preto subitamente se tornou mais contida. Algo
também havia mudado na aparência do senhor Charrington. Seus olhos depararam
com os cacos do peso de papel de vidro.
— Recolha esses cacos — ele disse com rispidez.
Um homem obedeceu. O sotaque londrino havia desaparecido. Winston de
repente percebeu de quem era a voz que ouvira momentos antes vinda do
telemonitor. O senhor Charrington ainda usava seu velho paletó de veludo, mas o
cabelo, que era quase todo branco, havia ficado preto. Tampouco estava usando os
óculos. Ele olhou de relance para Winston, com frieza, como se estivesse
verificando sua identidade, e depois não prestou mais atenção nele. Ele ainda estava
reconhecível, mas não era mais a mesma pessoa. Seu corpo havia se aprumado e
parecia ter ficado maior. Seu rosto havia passado apenas por algumas mínimas
alterações, que, mesmo assim, produziram nele uma transformação completa. As
sobrancelhas negras estavam menos espessas, as rugas haviam desaparecido, toda a
sua face parecia mudada; até o nariz parecia menor. Era o semblante alerta e frio de
um homem de seus trinta e cinco anos. Ocorreu a Winston que pela primeira vez na
vida ele estava olhando, com conhecimento de causa, para um membro da Polícia
do Pensamento.
PARTE TRÊS
Capítulo 1

Ele não sabia onde estava. Provavelmente, estava no Ministério do Amor, mas não
tinha como ter certeza. Encontrava-se em uma cela de teto alto, sem janelas, com
paredes de ladrilhos brancos reluzentes. Lâmpadas embutidas ocultas inundavam a
cela de luz fria, e havia um rumor grave, constante, que ele supôs ser associado ao
sistema de ventilação. Um banco, semelhante a uma prateleira, largo apenas o
suficiente para sentar-se, estendia-se por toda a parede, interrompido apenas pela
porta; e na parede oposta à porta existia um vaso sanitário sem tampa. Havia quatro
telemonitores, um em cada parede.
Ele sentia uma dor difusa no estômago. Estava lá desde que o empurraram para
dentro do furgão fechado e o levaram embora. Mas ele também sentia fome, uma
fome que o corroía por dentro, uma fome insalubre. Fazia talvez vinte e quatro horas
que ele não comia, talvez trinta e seis. Ele ainda não sabia, provavelmente jamais
saberia se era manhã ou noite quando o prenderam. Desde que fora detido não lhe
deram nada para comer.
Ele se sentou da maneira mais confortável possível no banco estreito, com as
mãos entrelaçadas sobre o joelho. Ele já havia aprendido a esperar sentado. Se você
fazia movimentos inesperados, eles berravam pelos telemonitores. Mas o desejo de
receber comida gritava dentro dele. O que ele desejava, sobretudo, era um pedaço de
pão. Ele achou que talvez tivesse algumas migalhas no bolso do macacão. Era até
mesmo possível — ele pensou nisso, pois, de vez em quando, parecia sentir algo
coçando sua perna — que houvesse um bom pedaço de casca de pão ali. Por fim, a
tentação de descobrir suplantou seu medo; então, ele enfiou a mão no bolso.
— Smith! — berrou uma voz do telemonitor. — 6079 Smith W.! Mãos fora dos
bolsos nas celas!
Ele voltou a esperar sentado, com as mãos entrelaçadas sobre o joelho. Antes de
ser levado para lá, ele fora conduzido a outro lugar, que devia ser uma prisão
comum ou uma cela temporária usada pelos patrulheiros. Ele não saberia dizer
quanto tempo passou ali, algumas horas pelo menos; sem relógio e sem a luz do dia,
era difícil acompanhar o tempo. Era um lugar barulhento, fedido. Puseram-no em
uma cela semelhante àquela em que estava agora, mas imunda e lotada o tempo todo
com dez ou quinze pessoas. A maioria era composta de criminosos comuns, mas
havia alguns presos políticos entre eles. Ele ficara sentado, calado, junto à parede,
acotovelado por corpos sujos, preocupado demais com o medo e a dor no estômago
para se interessar muito pelo entorno, mas ainda reparando na impressionante
diferença de atitude entre os prisioneiros do Partido e os outros. Os prisioneiros do
Partido estavam sempre calados e aterrorizados, mas os criminosos comuns
pareciam não se importar com ninguém. Berravam insultos para os guardas,
revidavam de um modo feroz quando seus pertences eram confiscados, escreviam
palavras obscenas no chão, comiam comida contrabandeada que tiravam de
misteriosos esconderijos em suas roupas e até gritavam de volta para os
telemonitores quando as vozes tentavam restaurar a ordem. Por outro lado, alguns
deles pareciam se dar bem com os guardas, chamavam-nos por apelidos e tentavam
filar cigarros pela fechadura da porta. Os guardas também tratavam os criminosos
comuns com certa tolerância, mesmo quando precisavam ser duros. Falava-se muito
sobre os campos de trabalhos forçados, para onde a maioria esperava ser enviada.
Esses campos eram considerados “uma boa opção”, ele deduziu, desde que você
tivesse bons contatos e conhecesse os esquemas. Havia suborno, favoritismo e todo
tipo de extorsão; havia homossexualismo e prostituição; havia até álcool ilícito
destilado de batatas. As posições de confiança eram dadas apenas aos criminosos
comuns, especialmente membros de gangues e assassinos, que formavam uma
espécie de aristocracia. Todo serviço sujo era feito pelos presos políticos.
Havia um constante ir e vir de prisioneiros de todos os tipos: traficantes, ladrões,
bandidos, contrabandistas, bêbados, prostitutas. Alguns dos bêbados eram tão
violentos que os outros prisioneiros precisavam se unir para contê-los. Uma mulher
enorme, arruinada, de seus sessenta anos, com grandes seios flácidos e grossas
mechas de cabelo branco, soltas em suas tentativas de resistir, foi trazida para a cela,
chutando e gritando, por quatro guardas que a mantiveram presa, dois de cada lado.
Eles arrancaram as botas com as quais ela tentava chutá-los e a atiraram no colo de
Winston, quase quebrando as coxas dele. A mulher se virou e berrou para eles:
“Bastardos desgraçados!”. Então, reparando que estava sentada sobre algo
incômodo, ela deslizou dos joelhos de Winston para o banco.
— Desculpe, meu bem — ela disse. — Eu não me sentaria em seu colo se esses
desgraçados não tivessem me jogado. Eles não sabem mesmo como tratar uma
dama, não é? — Ela fez uma pausa, bateu no peito e arrotou. — Perdão — ela
continuou. — Estou um tanto abalada.
Então, ela se inclinou para a frente e vomitou copiosamente no chão.
— Agora estou melhor — ela disse, recostando-se no banco de olhos fechados.
— Nunca deixe para vomitar depois, é o que eu sempre digo. Vomite enquanto está
fresco no estômago.
Ela se recompôs, virou-se para olhar para Winston e pareceu imediatamente
gostar dele. Colocou o braço imenso sobre o ombro dele e o puxou para si, exalando
um hálito de cerveja e vômito no rosto dele.
— Como você se chama, meu bem? — ela perguntou.
— Smith — disse Winston.
— Smith? — reiterou a mulher. — Engraçado. Eu também sou Smith. Ora… —
ela acrescentou num tom sentimental. — Eu poderia ser sua mãe!
Ela poderia mesmo, pensou Winston, ser sua mãe. Tinha a idade e o físico que
ela teria, e era provável que as pessoas mudassem depois de vinte anos em um
campo de trabalhos forçados.
Ninguém falou com ele. Era surpreendente como os prisioneiros comuns
ignoravam os prisioneiros do Partido. “Os PRESOPOL”,
1
como os chamavam,
eram vistos com um misto de desprezo e desinteresse. Os prisioneiros do Partido
pareciam aterrorizados demais para falar com os outros, e sobretudo entre eles
mesmos. Apenas uma vez, quando dois membros do Partido, ambos mulheres,
ficaram apertados no banco, ele entreouviu, em meio ao burburinho, palavras
sussurradas às pressas; e, em particular, uma referência a algo chamado “sala um-
zero-um”, que ele não compreendeu na hora.
Talvez tivesse sido levado para aquela cela vazia duas ou três horas atrás. A dor
difusa no estômago não passava — ora melhorava, ora piorava —, e seus
pensamentos se expandiam e se retraíam de acordo com a intensidade da dor.
Quando a dor piorava, ele só pensava na dor em si, e em seu desejo de comida.
Quando a dor melhorava, o pânico o dominava. Havia momentos em que ele previa
as coisas que lhe aconteceriam com tamanha precisão que seu coração galopava no
peito e ele perdia o fôlego. Ele sentia o impacto dos cassetetes em seus cotovelos e
das botas com cravos de ferro nas canelas; ele se via rastejando pelo chão,
implorando compaixão com os dentes quebrados. Ele mal pensava em Julia. Não
conseguia se concentrar nela. Ele a amava e não a trairia; mas isso era um mero fato
que ele conhecia do mesmo modo como conhecia as leis da aritmética. Naquele
momento ele não sentia nenhum amor por ela, nem se perguntava o que estaria
acontecendo com ela. Ele pensava mais em O’Brien, com uma esperança oscilante.
O’Brien talvez soubesse que ele havia sido preso. A Irmandade, ele dissera, nunca
tentava salvar seus membros. Mas havia a lâmina de barbear; eles enviariam a
lâmina de barbear se pudessem. Talvez houvesse cinco segundos antes que o guarda
entrasse na cela. A lâmina o atingiria com uma espécie de frieza ardente, e mesmo
os dedos que a seguravam seriam cortados até os ossos. Tudo isso se revolvia em
seu corpo adoecido, que estremecia diante da mínima dor. Ele não tinha certeza de
que usaria a lâmina de barbear mesmo que tivesse uma oportunidade. Era mais
natural resistir de momento em momento, aceitando mais dez minutos de vida,
mesmo com a certeza de que haveria tortura depois.
Às vezes, ele tentava calcular o número de ladrilhos nas paredes da cela. Teria
sido fácil, mas ele sempre perdia a conta em algum ponto. O que mais fazia era se
perguntar onde estava, e que horas seriam. A certa altura, ele teve certeza de que era
dia lá fora, e no momento seguinte teve igualmente certeza de que estava escuro.
Naquele lugar, ele sabia instintivamente, as luzes jamais eram apagadas. Era o lugar
onde nunca havia escuridão; ele entendeu então por que O’Brien aparentemente
havia captado a alusão. No Ministério do Amor, não havia janelas. Sua cela podia
ficar no centro do edifício ou em sua muralha externa; podia estar entre os dez
andares do subsolo ou entre os trinta andares acima do nível da rua. Ele se
transportou mentalmente de lugar a lugar e tentou determinar pela sensação corporal
se estava suspenso no ar ou soterrado no subsolo profundo.
Ouviu-se o estampido de botas marchando do lado de fora. A porta de aço se
abriu com um som estridente. Um jovem oficial, uma figura de uniforme preto
impecável, que parecia todo lustroso, de couro polido, cujo rosto pálido, de traços
retos, se assemelhava a uma máscara de cera, entrou rapidamente pela porta. Ele fez
um sinal para os guardas lá fora trazerem o prisioneiro que vinham conduzindo. O
poeta Ampleforth entrou envergonhado na cela. A porta bateu outra vez.
Ampleforth fez um ou dois movimentos hesitantes para os lados, como se
imaginasse haver outra porta por onde sair, e então começou a perambular pela cela.
Ele ainda não notara a presença de Winston. Seus olhos perturbados contemplavam
a parede a cerca de um metro acima da cabeça de Winston. Estava descalço; dedos
grandes e sujos apareciam através dos furos em suas meias. Também fazia vários
dias que ele não devia se barbear. Uma barba desgrenhada cobria seu rosto até as
maxilas, dando-lhe um ar marginal que não combinava com seu corpo alto e frágil e
seus movimentos neuróticos.
Winston saiu um pouco de sua letargia. Ele precisava falar com Ampleforth e
correr o risco de ouvir os berros dos telemonitores. Era possível até que Ampleforth
fosse o portador da lâmina de barbear.
— Ampleforth — ele disse.
Não veio nenhum grito dos telemonitores. Ampleforth parou, discretamente
surpreso. Seus olhos lentamente se concentraram em Winston.
— Ah, Smith! — ele disse. — Você também!
— Por que você foi preso?
— Para dizer a verdade… — Ele se sentou de um modo desajeitado no banco
em frente a Winston. — Só existe uma infração, não é mesmo? — ele disse.
— E você a cometeu?
— Aparentemente, sim.
Ele pôs a mão na testa e apertou as têmporas por um momento, como se tentasse
se lembrar de algo.
— Essas coisas acontecem — ele começou vagamente. — Lembro-me de uma
única vez… um possível exemplo. Foi uma indiscrição, sem dúvida. Estávamos
fazendo uma edição definitiva dos poemas de Kipling. Permiti que a palavra “Deus”
ficasse no final de um verso. Não pude evitar! — ele acrescentou, quase indignado,
erguendo o rosto para olhar para Winston. — Era impossível mudar esse verso. Era
uma rima com “meus”. Você sabe quantas rimas existem para “meus” na nossa
língua? Durante dias, vasculhei meu cérebro. Eu não ENCONTREI outra rima.
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A expressão em seu rosto mudou. A irritação passou e, por um momento, ele
pareceu quase satisfeito. Uma espécie de fervor intelectual, a alegria do erudito que
descobriu um fato inútil, brilhou através dos cabelos sujos e da barba desgrenhada.
— Já lhe ocorreu — ele disse — que toda a história da poesia inglesa foi
determinada pelo fato de que à língua inglesa faltam rimas?
Não, esse pensamento em particular jamais havia ocorrido a Winston.
Tampouco, naquelas circunstâncias, pareceu-lhe algo importante ou relevante.
— Você sabe que horas são? — ele perguntou.
Ampleforth pareceu surpreso outra vez.
— Eu nem havia pensado nisso. Eles me prenderam… pode ter sido há dois
dias… talvez três. — Seus olhos percorreram as paredes, como se esperasse
encontrar uma janela. — Não há diferença entre noite e dia aqui dentro. Não vejo
como alguém poderia medir o tempo.
Conversaram de modo aleatório por alguns minutos; então, sem motivo
aparente, um berro veio dos telemonitores mandando se calarem. Winston ficou
sentado em silêncio, com as mãos entrelaçadas. Ampleforth, grande demais para
ficar à vontade no banco estreito, ficava se mexendo sem parar, mudando de lado,
com as mãos esguias primeiro segurando um joelho, depois o outro. O telemonitor
gritava com ele ordenando que não se mexesse. O tempo passou. Vinte minutos,
uma hora… era difícil saber. As entranhas de Winston se contraíam. Em breve,
muito em breve, talvez dali a cinco minutos, talvez nesse instante, o estampido das
botas indicaria que havia chegado a sua vez.
A porta se abriu. O jovem oficial de rosto frio entrou na cela. Com um breve
movimento da mão, ele apontou para Ampleforth.
— Sala 101 — ele disse.
Ampleforth caminhou cambaleante entre os guardas; sua expressão vagamente
perturbada, como se não compreendesse o que estava acontecendo.
Pareceu passar muito tempo. A dor no estômago de Winston voltara. Sua mente
divagava em círculos em torno do mesmo truque, como uma bola caindo sempre na
mesma série de buracos. Ele só tinha seis pensamentos. A dor no estômago; um
pedaço de pão; o sangue e os gritos; O’Brien; Julia; a lâmina de barbear. Sentiu
outro espasmo em suas entranhas, as botas pesadas se aproximavam. Quando a porta
se abriu, a onda de ar frio gerada trouxe um forte cheiro de suor. Parsons entrou na
cela. Usava uma bermuda cáqui e uma camisa esportiva.
Dessa vez, Winston levou um susto que lhe fez esquecer de si mesmo.
— VOCÊ aqui! — ele disse.
Parsons olhou de relance para Winston sem interesse nem surpresa, apenas com
angústia. Ele começou a andar com movimentos espasmódicos pela cela,
evidentemente incapaz de ficar parado. A cada vez que esticava os joelhos
rechonchudos, ficava aparente que estavam trêmulos. Seus olhos estavam
arregalados e vidrados, como se ele não conseguisse evitar olhar para algo à média
distância.
— Por que você foi preso? — perguntou Winston.
— Crimepensar! — disse Parsons, quase chorando. O tom de voz implicava ao
mesmo tempo uma admissão completa da culpa e uma espécie de horror incrédulo
com o fato de que tal palavra pudesse se aplicar a ele. Ele parou diante de Winston e
começou avidamente a questioná-lo: — Você não acha que vão me fuzilar, não é,
meu velho? Eles não fuzilam se você não fez nada… se só pensou, sem querer, não
é? Sei que eles fazem um julgamento justo. Oh, eu espero que sim! Eles vão ver o
meu histórico, não vão? VOCÊ sabe que tipo de pessoa eu sou. Não sou tão ruim
assim. Não sou inteligente, é claro, mas sou esforçado. Eu sempre tentei fazer o
melhor para o Partido, não é? Eu vou sair em cinco anos, você não acha? Ou será
que em dez? Um sujeito como eu poderia ser muito útil num campo de trabalho
forçado. Será que eles vão me fuzilar por ter saído da linha apenas uma vez?
— Você é culpado? — perguntou Winston.
— Claro que sou culpado! — exclamou Parsons com um olhar servil de relance
para o telemonitor. — Você não acha que o Partido prenderia algum inocente, acha?
— Seu semblante de sapo pareceu mais calmo e adquiriu até uma expressão
levemente hipócrita. — O crimepensar é uma coisa pavorosa, meu velho — ele
disse como se fosse uma sentença. — É uma coisa insidiosa. Ele pode dominá-lo
sem que você perceba. Você sabe como ele me dominou? Enquanto eu dormia. Sim,
é verdade. Lá estava eu, trabalhando sem parar, fazendo a minha parte… sem saber
que havia tanta porcaria na minha cabeça, afinal. E então comecei a falar durante o
sono. Você sabe o que eles me ouviram dizer?
Ele baixou a voz, como alguém obrigado por razões médicas a dizer uma
obscenidade.
— “Abaixo o Grande Irmão!” Sim, eu disse isso! Parece que eu disse isso
diversas e repetidas vezes. Cá entre nós, meu velho, fico contente que eles tenham
me pegado antes que piorasse. Sabe o que eu vou dizer para eles quando chegar ao
tribunal? “Obrigado”, eu vou dizer, “… obrigado por me salvarem antes que fosse
tarde demais!”.
— Quem o denunciou? — perguntou Winston.
— Foi a minha filhinha — respondeu Parsons com uma espécie de orgulho e
tristeza. — Ela ficou escutando pelo buraco da fechadura. Ouviu o que eu estava
dizendo e contou aos patrulheiros no dia seguinte. Espertinha para uma espiã de sete
anos, não? Eu não guardo nenhum rancor dela. Na verdade, sinto orgulho dela. Isso
mostra que eu a eduquei no espírito correto, pelo menos.
Ele fez mais alguns movimentos espasmódicos para cima e para baixo, várias
vezes, lançando um olhar nostálgico para o vaso sanitário. Então, subitamente,
abaixou a bermuda.
— Com licença, meu velho — ele disse. — Não posso evitar. É a espera.
Ele posicionou seu largo traseiro sobre o vaso sanitário. Winston cobriu o rosto
com as mãos.
— Smith! — berrou a voz do telemonitor. — 6079 Smith W.! Descubra o rosto.
Nada de rostos cobertos nas celas.
Winston tirou a mão do rosto. Parsons usou o sanitário de modo ruidoso e
abundante. Então, se descobriu que o vaso estava entupido e a cela ficou com um
fedor abominável durante horas.
Parsons foi removido. Mais prisioneiros entraram e saíram, misteriosamente.
Um deles, uma mulher, foi mandado para a “Sala 101”, e, Winston reparou, ela
pareceu estremecer e perder a cor ao ouvir essas palavras. Chegou uma hora em que,
se ele tivesse sido trazido de manhã, seria à tarde; ou se ele tivesse sido trazido à
tarde, seria meia-noite. Havia seis prisioneiros na cela, homens e mulheres. Todos
sentados em silêncio. Na frente de Winston, havia um homem sentado, com um
rosto sem queixo, de dentes protuberantes, exatamente igual ao de alguns roedores
grandes, inofensivos. Seu rosto rechonchudo e sardento era tão cheio na papada que
não era difícil imaginar que ele tivesse pequenas reservas de alimento escondidas ali
por baixo. Seus olhos claros e cinzentos passavam assustados de rosto em rosto e
novamente se desviavam depressa quando cruzavam outro olhar.
A porta se abriu, e outro preso foi trazido, cuja aparência fez Winston sentir
instantaneamente um calafrio. Era um sujeito comum, de semblante fechado, que
podia ser um engenheiro ou algum tipo de técnico. No entanto a palidez de seu rosto
era impressionante. Ele parecia uma caveira. Devido à esqualidez, a boca e os olhos
pareciam desproporcionalmente grandes, e os olhos aparentavam conter um ódio
assassino, insaciável, por alguém ou por alguma coisa.
O homem se sentou no banco a pouca distância de Winston. Winston não olhou
mais para ele, mas o semblante atormentado, cadavérico, continuou vivo em sua
mente como se estivesse ainda diante de seus olhos. De repente, ele se deu conta do
problema. O homem estava morrendo de fome. O mesmo pensamento ocorreu quase
simultaneamente a todo mundo que estava na cela. Houve uma breve agitação
discreta em todos os que estavam sentados no banco. Os olhos do homem sem
queixo continuaram se voltando para o homem cadavérico, depois se desviando com
ar de culpa e, em seguida, voltando a ele como se atraídos de um modo irresistível.
Então ele começou a se remexer no banco. Por fim, levantou-se, cambaleou pela
cela de um jeito desastroso, enfiou a mão no bolso do macacão e, com um ar
abatido, estendeu um pedaço de pão sujo ao homem cadavérico.
Então, veio um rugido furioso e ensurdecedor do telemonitor. O homem sem
queixo parou onde estava. O homem cadavérico rapidamente levou as mãos às
costas, como se demonstrasse ao mundo que recusava a oferta.
— Bumstead! — rugiu a voz. — 2713 Bumstead J.! Solte esse pão!
O homem sem queixo soltou o pedaço de pão no chão.
— Fique parado onde está — disse a voz. — Olhe para o chão. Não faça
nenhum movimento.
O homem sem queixo obedeceu. Suas bochechas gordas tremiam de uma
maneira incontrolável. A porta foi escancarada. Quando o jovem oficial entrou e deu
um passo para o lado, surgiu de trás dele um guarda baixo e atarracado com braços e
ombros fortes. Ele se posicionou diante do homem sem queixo e, então, a um sinal
do oficial, desferiu um soco pavoroso em cheio na boca do homem sem queixo, com
todo o peso de seu corpo. A força desse soco quase o levantou do chão. O corpo foi
lançado ao outro lado da cela e parou na base do vaso sanitário. Por um momento,
ele ficou ali parado, atordoado, com o sangue escuro escorrendo da boca e do nariz.
Um choro ou um ganido muito baixo, que parecia inconsciente, vinha do corpo
caído. Então ele rolou de lado e se levantou, apoiando-se nas mãos e nos joelhos
bambos. Em meio a um fluxo de sangue e saliva, duas metades de uma dentadura
caíram de sua boca.
Os presos ficaram sentados sem se mexer, com as mãos entrelaçadas sobre os
joelhos. O homem sem queixo voltou a seu lugar. Um dos lados de seu rosto estava
começando a escurecer. A boca havia inchado até virar uma massa informe cor de
cereja com um buraco negro no meio.
De quando em quando, um pouco de sangue pingava no peito de seu macacão.
Seus olhos cinzentos iam de rosto em rosto, mais culpados do que nunca, como se
ele estivesse tentando descobrir o quanto os outros o desprezavam por suas
humilhações.
A porta se abriu. Com um breve gesto, o oficial apontou para o homem
cadavérico.
— Sala 101 — ele disse.
Houve um sobressalto e uma agitação ao lado de Winston. O sujeito então se
atirou de joelhos no chão, com as mãos unidas.
— Camarada! Oficial! — ele gritou. — Vocês não precisam me mandar para lá!
Eu já não contei tudo? Não há nada mais para confessar, nada! Basta me dizer o que
é e eu confesso na hora. Escrevam que eu assino… qualquer coisa! Menos a sala
101!
— Sala 101 — disse o oficial.
O rosto do homem, já muito pálido, ficou de uma cor que Winston não
acreditaria ser possível. Era definitivamente, indiscutivelmente, um tom de verde.
— Não me façam mais nada! — ele berrou. — Vocês já estão me matando de
fome há semanas. Terminem logo com isso e me deixem morrer. Fuzilem-me.
Enforquem-me. Sentenciem-me a vinte e cinco anos. Vocês querem que eu entregue
mais alguém? Basta dizer quem, e eu vou contar tudo o que vocês quiserem. Não
me importa quem seja ou o que vocês vão fazer com as pessoas. Eu tenho mulher e
três filhos. O mais velho não tem nem seis anos de idade. Vocês podem pegar todos
eles e degolá-los na minha frente, e eu vou ficar parado assistindo. Mas não me
levem para a sala 101!
— Sala 101 — reiterou o oficial.
O homem olhou ao redor, para os outros presos, com um ar de delírio, como se
houvesse tido uma ideia que colocaria outra vítima em seu lugar. Seus olhos
pararam no rosto ferido do homem sem queixo. Ele estendeu um braço magro.
— Vocês deviam levar esse aí no meu lugar! — ele berrou. — Vocês não
ouviram o que ele falou depois que lhe bateram no rosto. Deem-me uma chance, e
eu vou dizer palavra por palavra o que ele disse. ELE, sim, é contra o Partido, eu
não! — Os guardas deram um passo à frente. A voz do homem virou um guincho:
— Vocês não ouviram o que ele falou! — ele repetiu. — Aconteceu algum problema
com o telemonitor. É ELE que vocês querem. Levem-no em meu lugar!
Os dois guardas robustos haviam parado para erguê-lo pelos braços. Mas nesse
exato momento ele se atirou ao chão e se agarrou em uma das pernas de ferro do
banco. Ele soltou um uivo sem palavras, como se fosse um animal. Os guardas
puxaram-no para fazê-lo se soltar, mas ele se agarrava com uma força
impressionante. Por cerca de vinte segundos, eles ficaram puxando o sujeito. Os
outros presos ficaram sentados em silêncio, com as mãos entrelaçadas sobre os
joelhos, olhando bem para a frente. O uivo cessou; o homem não tinha mais fôlego
para nada além de se agarrar. Então, ouviu-se um grito diferente. Um chute com a
bota de um dos guardas havia quebrado os dedos de uma de suas mãos. Eles o
arrastaram pelos pés.
— Sala 101 — disse o oficial.
O homem foi levado para fora, caminhando com dificuldade, com a cabeça
baixa, protegendo a mão fraturada; toda a sua resistência fora abandonada.
Passou-se um longo tempo. Se fosse meia-noite quando o homem cadavérico foi
levado, agora seria de manhã; se fosse de manhã, agora seria à tarde. Winston estava
sozinho, e ficara sozinho durante horas. A dor de ficar sentado naquele banco
estreito era tamanha que, às vezes, ele se levantava e caminhava um pouco, sem ser
repreendido pelo telemonitor. O pedaço de pão continuava caído onde o homem sem
queixo o deixara cair. A princípio, foi preciso um grande esforço para não olhar para
o pão, mas agora a fome dava lugar à sede. Sua boca estava pegajosa e com um
gosto horrível. O rumor constante e a invariável luz branca induziam a uma espécie
de vertigem, uma sensação de vazio em sua cabeça. Ele se levantava porque a dor
em seus ossos ficava insuportável, e depois tornava a se sentar quase imediatamente
porque estava tonto demais para conseguir se manter em pé. Quando ele conseguia
controlar um pouco suas sensações físicas, o terror voltava. Algumas vezes, com
uma esperança efêmera, ele pensava em O’Brien e na lâmina de barbear. Era
possível que a lâmina de barbear viesse escondida em sua comida se um dia lhe
dessem comida. Mais vagamente, ele pensava em Julia. Em algum lugar, talvez ela
estivesse sofrendo ainda mais do que ele. Ela podia estar gritando de dor naquele
exato momento. Ele pensou: “Se eu pudesse salvar Julia dobrando a intensidade da
minha própria dor, será que eu faria isso? Sim, eu faria isso!”. Mas isso era
meramente uma decisão de seu intelecto, tomada porque ele sabia que deveria fazê-
lo. Ele não sentia aquilo. Naquele lugar, você não sentia nada, exceto dor e o
pressentimento da dor. Além do mais, seria possível, quando se estava efetivamente
sofrendo, desejar que por algum motivo a sua própria dor aumentasse? De todo
modo, não havia como saber.
As botas estavam se aproximando outra vez. A porta se abriu. O’Brien entrou.
Winston ficou em pé. O choque de vê-lo ali afastou toda a precaução. Pela
primeira vez em muitos anos, ele se esqueceu da presença do telemonitor.
— Eles o pegaram também! — ele exclamou.
— Eles me pegaram muito tempo atrás — disse O’Brien com uma leve ironia,
quase pesarosa. Ele deu um passo para o lado. De trás dele emergiu um guarda de
ombros largos com um longo cassetete preto na mão.
— Você sabe muito bem disso, Winston — disse O’Brien. — Não se engane.
Você já sabia… você sempre soube.
Sim, agora ele via, ele sempre soubera. Mas não havia tempo para pensar nisso
agora. Ele só tinha olhos para o cassetete na mão do guarda. O cassetete poderia
atingir qualquer coisa; o crânio, a ponta da orelha, o antebraço, o cotovelo…
O cotovelo! Ele caiu de joelhos, quase paralisado, segurando o cotovelo atingido
com a outra mão. Tudo explodiu na luz amarela. Inconcebível, era inconcebível que
um golpe pudesse causar tanta dor! A luz clareou e ele viu os outros dois olhando
para ele. O guarda zombava de suas contorções. Uma pergunta ao menos estava
respondida. Jamais, por nenhum motivo neste mundo, você poderia desejar um
aumento da própria dor. Da dor, você só poderia desejar uma única coisa: que
parasse. Nada no mundo era pior que a dor física. Diante da dor, não há heróis, não
existem heróis, ele pensava continuamente enquanto se contorcia no chão,
segurando inutilmente o braço esquerdo.
Capítulo 2

Ele encontrava-se deitado em algo que parecia ser uma cama de acampamento, só
que mais alta, e estava amarrado de algum modo que o impedia de se mexer. Uma
luz que parecia mais forte do que o usual se projetava em seu rosto. O’Brien estava
em pé a seu lado, olhando atentamente para ele. Do outro lado havia um homem de
jaleco branco segurando uma seringa hipodérmica.
Mesmo depois que seus olhos se abriram, ele só foi percebendo aos poucos onde
estava. Ele teve a impressão de ter chegado nadando àquela sala, vindo de um
mundo muito diferente, uma espécie de mundo subaquático muito profundo. Quanto
tempo passara lá embaixo, ele não sabia. Desde o momento em que o prenderam,
ele não via nem o escuro da noite nem a luz do dia. Além disso, suas lembranças
não eram contínuas. Haveria momentos em que a consciência, até mesmo o tipo de
consciência que se tem durante o sono, morreria e recomeçaria de novo após um
intervalo em branco. Mas se esse intervalo foram dias ou semanas, ou apenas alguns
segundos, não havia como saber.
Com aquele primeiro golpe no cotovelo, o pesadelo havia começado. Mais tarde,
ele se daria conta de que tudo então havia sido meramente uma preliminar, um
interrogatório de rotina a que todo prisioneiro era submetido. Havia uma longa série
de crimes — espionagem, sabotagem e coisas do gênero — que todo mundo
precisava confessar obrigatoriamente. A confissão era uma formalidade, mas a
tortura era real. Quantas vezes ele foi espancado, quanto tempo duravam as surras,
ele não conseguia se lembrar. Havia sempre cinco ou seis homens de preto com ele
simultaneamente. Às vezes, eram punhos; às vezes, cassetetes; às vezes, porretes de
aço; às vezes, botas. Houve momentos em que ele se arrastou pelo chão, sem
pudores, como um bicho, contorcendo-se, em um esforço incessante e inútil de se
esquivar dos pontapés, e com isso apenas os convidando a mais chutes, nas costelas,
no estômago, nos cotovelos, nas canelas, na virilha, nos testículos, nos ossos, na
base da espinha. Houve momentos em que aquilo continuou sem parar até que lhe
pareceu que o mais cruel, maligno e inesquecível não era que os guardas
continuassem a espancá-lo, mas que ele não conseguisse se obrigar a perder a
consciência. Houve momentos em que sua coragem o abandonou tão
completamente que ele começou a berrar por compaixão antes mesmo de
começarem a lhe bater, quando a mera visão de um punho cerrado se preparando
para socar foi o bastante para levá-lo a fazer uma confissão de crimes reais e
imaginários. Em outros momentos, ele começava decidido a não confessar nada,
cada palavra era arrancada dele entre arquejos de dor, e houve momentos em que ele
tentou, hesitante, chegar a um meio-termo, em que dizia a si mesmo: “Vou
confessar, mas não agora. Tenho de me controlar até a dor ficar insuportável. Só
mais três pontapés, só mais dois pontapés, e então vou confessar o que eles
quiserem!”. Algumas vezes, ele apanhava até mal conseguir ficar em pé, então
desabava no chão de pedra de uma cela como um saco de batatas, e o deixavam se
recuperar por algumas horas, e depois o levavam e o espancavam outra vez. Houve
também períodos mais longos de recuperação. Ele se lembraria vagamente disso,
porque foram horas principalmente de sono ou estupor. Ele se lembrava de uma cela
com um tábua como cama, uma espécie de prateleira presa a uma parede, e de uma
bacia de lata, e de sopa quente e pão e, às vezes, café. Ele se lembrava de um
barbeiro rude, chegando para raspar seu queixo e cortar seu cabelo, e de homens
formais, frios, de jaleco branco, medindo seu pulso, testando seus reflexos,
erguendo suas pálpebras, percorrendo com rispidez seu corpo com os dedos em
busca de ossos fraturados, e espetando agulhas em seu braço para fazê-lo dormir.
Os espancamentos foram ficando menos frequentes, e se tornaram
principalmente uma ameaça, um horror para o qual ele seria levado de volta a
qualquer momento quando suas respostas não fossem satisfatórias. Seus
interrogadores agora não eram mais carrascos de uniforme preto, mas intelectuais do
Partido, homenzinhos roliços de movimentos rápidos e óculos reluzentes, que se
revezavam trabalhando nele em períodos que duravam — ele achava, ele não tinha
certeza — dez ou doze horas seguidas. Esses outros interrogadores garantiam que
ele estivesse constantemente sentindo alguma dor, mas não se baseavam
principalmente na dor. Eles davam tapas em seu rosto, torciam suas orelhas,
puxavam seu cabelo, obrigavam-no a ficar parado em uma perna só, se recusavam a
deixá-lo sair para urinar, projetavam luzes fortes em seu rosto até seus olhos
lacrimejarem; mas o objetivo disso tudo era apenas humilhá-lo e destruir sua
capacidade de argumentar e raciocinar. A verdadeira arma desses outros torturadores
era o interrogatório impiedoso, que prosseguia indefinidamente, hora após hora,
fazendo-o hesitar, colocando armadilhas para ele, distorcendo tudo o que ele dizia,
incriminando-o a cada passo por meio de mentiras e contradições, até que ele
começasse a chorar, tanto de vergonha quanto de fadiga nervosa. Às vezes, ele
chegava a chorar seis vezes em uma única sessão. A maior parte do tempo, eles
berravam insultos e o ameaçavam, a cada hesitação, de entregá-lo de volta para os
guardas; mas, às vezes, eles mudavam de repente de tom, chamavam-no de
camarada, apelavam para ele em nome do Ingsoc e do Grande Irmão, e lhe
perguntavam com tristeza se nem mesmo agora ele tinha alguma lealdade ao Partido
para desejar desfazer o mal que havia feito. Quando seus nervos já estavam
arrasados, depois de horas de interrogatório, até esse tipo de apelo era capaz de levá-
lo às lágrimas. No final das contas, aquelas vozes irritantes quebraram-no mais
completamente do que as botas e os punhos dos guardas. Ele se tornou
simplesmente uma boca que dizia e uma mão que assinava qualquer coisa que lhe
fosse pedida. Sua única preocupação era descobrir o que eles queriam que ele
confessasse, para em seguida confessá-lo rapidamente, antes que a violência
começasse de novo. Ele confessou o assassinato de membros eminentes do Partido,
a distribuição de panfletos subversivos, o desvio de verbas públicas, a venda de
segredos militares, sabotagens de todos os tipos. Confessou ter sido espião a soldo
do governo da Lestásia desde 1968. Confessou-se fanático religioso, admirador do
capitalismo e pervertido sexual. Confessou ter matado a esposa, embora soubesse, e
seus interrogadores devessem saber também, que a esposa estava viva. Confessou
ter mantido durante anos contato pessoal com Goldstein e ter sido membro de uma
organização clandestina que incluía praticamente todo ser humano que ele já
conhecera na vida. Era mais fácil confessar tudo e envolver todo mundo. Além
disso, em certo sentido, era verdade. Era verdade que ele era inimigo do Partido, e
aos olhos do Partido não havia distinção entre pensamento e ato.
Havia também lembranças de outro tipo. Elas se destacavam em sua mente,
desconexas, como imagens com trevas ao redor.
Ele estava em uma cela que podia ser escura ou iluminada demais, porque ele
não conseguia enxergar nada além de um par de olhos. Perto de seu rosto, havia
algum aparelho que fazia um clique de forma lenta e regular. Os olhos ficavam
maiores e mais luminosos. De repente, ele flutuava no ar, mergulhava naqueles
olhos e era engolido.
Ele estava amarrado em uma cadeira, cercado de medidores, sob luzes
ofuscantes. Um homem de jaleco branco lia os medidores. Ouvia-se um estampido
de botas pesadas lá fora. A porta era escancarada. O oficial de rosto de cera entrava,
seguido por dois guardas.
— Sala 101 — dizia o oficial.
O homem de jaleco branco nem se virava. Ele também não olhou para Winston;
ele só olhava para o painel dos medidores.
Ele percorria um longo e vasto corredor, de um quilômetro de largura, glorioso,
com luzes douradas, gargalhando e gritando confissões a plenos pulmões. Estava
confessando tudo, até coisas não reveladas sob tortura. Ele relatava a história inteira
de sua vida a uma plateia que já a conhecia. Com ele, estavam os guardas, os outros
interrogadores, os homens de jaleco branco, O’Brien, Julia, o senhor Charrington,
todos percorrendo juntos aquele corredor e gritando e gargalhando. Alguma coisa
pavorosa, inserida no futuro, de alguma forma havia sido evitada e não acontecera.
Estava tudo bem, não havia mais nenhuma dor, o último detalhe de sua vida fora
exposto, desnudado, compreendido e perdoado.
Ele se levantara da cama de tábua com uma quase certeza de ter ouvido a voz de
O’Brien. Durante todo interrogatório, embora ele jamais o visse, ele tivera a
sensação de que O’Brien estava ao seu lado, fora de seu campo de visão. Era
O’Brien quem estava orientando tudo aquilo. Era ele quem mandava os guardas
para cima de Winston e que os impedia de matá-lo. Era ele quem decidia quando
Winston devia gritar de dor, quando devia descansar, quando devia comer, quando
devia dormir, quando as drogas deviam ser aplicadas em seu braço. Era ele quem
fazia as perguntas e sugeria as respostas. Era ele quem o atormentava e quem o
protegia, era o inquisidor e o amigo. E uma vez — Winston não conseguia se
lembrar se durante um sono dopado, ou um sono normal, ou mesmo se estava
acordado — uma voz murmurou em seu ouvido: “Não se preocupe, Winston; você
está sob os meus cuidados. Durante sete anos eu fiquei de olho em você. Agora
chegou a hora da virada. Vou salvá-lo, você ficará perfeito!”. Ele não tinha certeza
se era a voz de O’Brien, mas era a mesma voz que lhe dissera “Nós nos
encontraremos de novo no lugar em que não existe escuridão…” naquele outro
sonho, sete anos atrás.
Ele não se lembrava de ter havido um final em seu interrogatório. Houve um
período de escuridão e depois a cela, ou a sala, que agora se materializava
gradualmente à sua volta. Ele estava quase deitado, e incapaz de se mover. Seu
corpo estava preso em todos os pontos essenciais para evitar que ele se mexesse.
Até sua nuca estava presa de alguma maneira. O’Brien olhava com seriedade para
ele, um tanto triste. Seu rosto, visto de baixo, parecia gasto e envelhecido, com
bolsas embaixo dos olhos e rugas de cansaço do nariz até o queixo. Ele era mais
velho do que Winston havia imaginado; talvez tivesse quarenta e oito ou cinquenta
anos. Havia um painel de medidores embaixo de sua mão, com um ponteiro e um
seletor graduado com números.
— Eu tinha dito — disse O’Brien — que, se fôssemos nos encontrar, seria aqui.
— Sim — disse Winston.
Sem nenhum aviso, além de um movimento da mão de O’Brien, uma onda de
dor inundou seu corpo. Era uma dor assustadora, pois ele não sabia o que estava
acontecendo, e ele teve a sensação de que algum ferimento fatal lhe estava sendo
infligido. Não sabia se aquilo estava mesmo acontecendo ou se era um efeito
produzido pela eletricidade; mas era como se seu corpo estivesse sendo retorcido e
deformado, as articulações, lentamente separadas. Embora a dor tivesse provocado o
suor em sua testa, o pior de tudo era o medo de que sua coluna fosse se partir. Ele
cerrou os dentes e respirou com força pelo nariz, tentando se manter o mais
silencioso possível.
— Você está com medo – disse O’Brien, observando seu rosto — de que a
qualquer momento algo possa se quebrar. O seu principal medo é de que seja a sua
coluna. Você tem uma imagem nítida das vértebras se partindo e do líquido espinhal
escorrendo. É nisso que você está pensando, não é, Winston?
Winston não respondeu. O’Brien girou o seletor no painel. A onda de dor passou
quase tão depressa quanto havia começado.
— Isso foi quarenta — disse O’Brien. — Veja que os números no seletor vão até
cem. Lembre-se, por favor, que tenho o poder de lhe causar dor a qualquer
momento, e na intensidade que eu quiser. Se você me contar uma mentira, ou tentar
prevaricar de algum modo, ou mesmo se reagir abaixo do seu nível normal de
inteligência, você vai chorar de dor instantaneamente. Você entendeu?
— Sim — disse Winston.
O’Brien, então, tornou-se menos severo. Ele reposicionou os óculos sobre o
nariz daquele seu jeito pensativo e deu alguns passos. Quando voltou a falar, sua voz
foi gentil e paciente. Ele tinha o ar de um doutor, um professor, até mesmo de um
padre, mais propenso a explicar e persuadir do que a punir.
— Estou me demorando no seu caso, Winston — ele disse — porque você vale a
pena. Você sabe perfeitamente qual é o seu problema. Você já sabe disso há anos,
embora tenha lutado contra esse conhecimento. Você tem uma perturbação mental.
Você está com amnésia temporária. Você não consegue se lembrar de
acontecimentos reais e está convencido de que se lembra de outros que nunca
aconteceram. Felizmente, isso tem cura. Você mesmo nunca procurou se curar disso,
porque preferiu não se curar. Seria um pequeno esforço de vontade, mas você não
estava preparado para fazê-lo. Até mesmo agora, tenho plena consciência disso,
você se agarra à própria doença sob a impressão de que é uma virtude. Agora
vejamos um exemplo. Neste momento, contra qual superpotência a Oceania está em
guerra?
— Quando fui preso, a Oceania estava em guerra contra a Lestásia.
— Contra a Lestásia. Muito bem. E a Oceania sempre esteve em guerra contra a
Lestásia, não é?
Winston prendeu a respiração. Ele abriu a boca para falar, mas não disse nada.
Ele não conseguia tirar os olhos do seletor.
— A verdade, Winston, por favor. A SUA verdade. Diga-me: do que você acha
que se lembra?
— Lembro que, até uma semana antes de eu ser preso, não estávamos em guerra
contra a Lestásia. Eles eram nossos aliados. A guerra era contra a Eurásia. E isso
durou quatro anos. Antes disso…
O’Brien interrompeu-o com um movimento da mão.
— Outro exemplo — ele disse. — Alguns anos atrás, você teve um delírio grave
na verdade. Você achava que três homens, três ex-membros do Partido chamados
Jones, Aaronson e Rutherford… homens que foram executados por traição e
sabotagem depois de fazerem as confissões mais completas possíveis… Você
achava que eles não eram culpados dos crimes de que foram acusados. Você
acreditava ter visto evidências documentais irrefutáveis, que provavam que as
confissões deles eram falsas. Você teve uma alucinação com uma certa fotografia.
Você acreditava ter tido essa fotografia em suas mãos. Era uma fotografia parecida
com esta.
Um recorte de jornal surgiu entre os dedos de O’Brien. Por cerca de cinco
segundos, o papel ficou no ângulo de visão de Winston. Era uma fotografia, e não
havia dúvida quanto à sua identidade. Era A FOTOGRAFIA. Era outra cópia da
fotografia de Jones, Aaronson e Rutherford num evento em Nova York, que ele
encontrara por acaso onze anos antes e que logo depois destruíra. Apenas por um
instante a fotografia ficou diante de seus olhos, e em seguida desapareceu outra vez.
Mas ele a viu, indiscutivelmente ele a viu! Ele fez um esforço desesperado para
soltar a parte de cima de seu corpo. Era impossível se mover um centímetro em
qualquer direção. Nesse momento, ele se esqueceu até do seletor. A única coisa que
ele queria era segurar aquela fotografia nas mãos mais uma vez, ou ao menos vê-la.
— A fotografia existe! — ele gritou.
— Não — disse O’Brien.
Ele caminhou pela sala. Havia um buraco da memória na parede oposta. O’Brien
abriu a grade. Sem ser visto, o frágil pedaço de jornal foi levado pela corrente de ar
quente e sumiu inflamado em uma labareda. O’Brien se afastou da parede.
— Virou cinza — ele disse. — Cinzas nem ao menos identificáveis. Pó. Não
existe. Nunca existiu.
— Mas a fotografia existiu! Ela existe! Existe na memória. Eu me lembro. Você
se lembra.
— Eu não me lembro — disse O’Brien.
O coração de Winston afundou no peito. Aquilo era o duplipensar. Ele teve a
sensação de um desamparo mortal. Ainda que ele pudesse ter certeza de que
O’Brien estava mentindo, isso não parecia fazer diferença. Mas era perfeitamente
possível que O’Brien de fato tivesse se esquecido da fotografia. E se a tivesse
esquecido, então já teria se esquecido também da negação dessa lembrança, e se
esquecera até do próprio ato de esquecê-la. Como seria possível ter certeza de que
era um simples truque? Talvez aquele deslocamento mental lunático pudesse
realmente acontecer; esse foi o pensamento que o derrotou.
O’Brien olhava para ele com um ar inquisitivo. Mais do que nunca, tinha o ar de
um professor dedicado diante de um aluno rebelde, mas promissor.
— Existe um slogan
do Partido sobre o controle do passado — ele disse. — Por
favor, repita esse slogan
.
— Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente
controla o passado — repetiu Winston obedientemente.
— Quem controla o presente controla o passado — disse O’Brien, balançando a
cabeça com aprovação. — Em sua opinião, Winston, o passado realmente existe?
Mais uma vez, a sensação de desamparo desabou sobre Winston. Seus olhos
procuraram o seletor. Ele não só não sabia se a resposta que o salvaria da dor seria
“sim” ou “não”; ele não sabia sequer a resposta que ele mesmo acreditava ser
verdadeira.
O’Brien sorriu discretamente.
— Você não é nenhum metafísico, Winston — ele disse. — Até agora você
nunca considerou o significado da existência. Vou colocar em termos mais exatos. O
passado existe concretamente no espaço? Existe em algum lugar um mundo de
objetos sólidos em que o passado ainda esteja acontecendo?
— Não.
— Então, será que o passado existe, afinal?
— Nos registros. O passado está escrito.
— Nos registros. E…?
— Na mente. Na memória humana.
— Na memória. Muito bem, então. Nós, o Partido, controlamos todos os
registros, e controlamos todas as memórias. Então, nós controlamos o passado, não
é?
— Mas como você pode impedir as pessoas de se lembrar das coisas? —
exclamou Winston, esquecendo o seletor momentaneamente outra vez. — Lembrar
é involuntário. É algo alheio à própria pessoa. Como você pode controlar a
memória? Você não controlou a minha!
O’Brien mudou sua atitude e tornou-se austero novamente. Ele pôs a mão sobre
o seletor.
— Pelo contrário — ele disse. — VOCÊ não a controlou. Foi isso que o trouxe
aqui. Você está aqui porque lhe faltou humildade e autodisciplina. Você não quis
realizar o ato de submissão que é o preço da sanidade. Você preferiu ser um
lunático, uma minoria de um só. Apenas a mente disciplinada é capaz de enxergar a
realidade, Winston. Você acredita que a realidade é algo objetivo, externo, existente
por si mesmo. Você também acredita que a natureza da realidade é autoevidente.
Quando você se ilude por pensar ter visto alguma coisa, você supõe que todo mundo
veja a mesma coisa. Mas estou lhe dizendo, Winston, que a realidade não é externa.
A realidade só existe na mente humana, e em mais nenhum outro lugar. Não na
mente individual, que é capaz de cometer erros, e em todo caso é perecível: apenas
na mente do Partido, que é coletiva e imortal. A verdade é tudo o que o Partido
considera ser verdade. É impossível enxergar a realidade, exceto por intermédio dos
olhos do Partido. Esse é o fato que você precisa reaprender, Winston. É necessário
um ato de autodestruição, um esforço da vontade. Você precisa se humilhar antes de
se tornar são.
Ele parou por alguns instantes, como se quisesse dar tempo para que fosse
compreendido o que dissera.
— Você se lembra — ele prosseguiu — de ter escrito em seu diário “Liberdade é
a liberdade de dizer que dois mais dois são quatro”?
— Lembro — disse Winston.
O’Brien ergueu a mão esquerda, com o dorso voltado para Winston, com o
polegar escondido e quatro dedos estendidos.
— Quantos dedos estou mostrando, Winston?
— Quatro.
— E se o Partido disser que não são quatro, mas cinco… então, nesse caso,
quantos dedos seriam?
— Quatro.
A palavra terminou com um sobressalto de dor. O ponteiro do seletor disparara
para cinquenta e cinco. O suor se espalhou por todo o corpo de Winston. O ar
entrara à força em seus pulmões e saíra outra vez em meio a graves gemidos que
nem cerrando os dentes ele conseguiria conter. O’Brien ficou assistindo, com os
quatro dedos ainda estendidos. Ele reduziu a carga. Dessa vez, a dor diminuiu
apenas um pouco.
— Quantos dedos, Winston?
— Quatro.
O ponteiro foi a sessenta.
— Quantos dedos, Winston?
— Quatro! Quatro! O que mais posso dizer? Quatro!
O ponteiro deve ter subido outra vez, mas ele nem viu. O rosto pesado, austero,
e os quatro dedos erguidos ainda ocupavam todo o seu campo de visão. Os dedos se
erguiam diante de seus olhos como pilares, enormes, borrados, e pareciam vibrar,
mas eram inconfundivelmente apenas quatro.
— Quantos dedos, Winston?
— Quatro! Pare com isso! Por que você continua? Quatro! Quatro!
— Quantos dedos, Winston?
— Cinco! Cinco! Cinco!
— Não, Winston, não adianta. Você está mentindo. Você ainda acha que são
quatro. Quantos dedos, por favor?
— Quatro! Cinco! Quatro! Como você preferir. Apenas pare com isso, pare de
me provocar essa dor!
De um momento pro outro, ele encontrou-se sentado, com o braço de O’Brien
sobre seus ombros. Talvez tivesse perdido a consciência por alguns segundos. As
amarras que prendiam seu corpo haviam sido afrouxadas. Ele estava com muito frio,
tremia incontrolavelmente, seus dentes batiam, escorriam lágrimas em seu rosto. Por
um momento, ele se agarrou a O’Brien como se fosse um bebê, curiosamente
confortado pelo braço pesado a envolvê-lo. Ele teve a sensação de que O’Brien era
seu protetor, que a dor era algo que vinha de fora, de outra fonte, e de que era
O’Brien quem o salvaria da dor.
— Você custa a aprender, Winston — disse O’Brien de um modo gentil.
— O que eu posso fazer? — ele resmungou. — Como posso evitar de ver o que
está diante dos meus olhos? Dois mais dois são quatro.
— Às vezes, Winston. Às vezes, são cinco. Às vezes, são três. Às vezes, são
todos ao mesmo tempo. Você precisa se esforçar mais. Não é fácil manter a
sanidade.
Ele fez Winston deitar-se de novo na cama. As amarras nos braços e nas pernas
foram apertadas de novo, mas a dor havia passado e o tremor também, deixando-o
apenas com fraqueza e frio. O’Brien fez um aceno com a cabeça em direção ao
homem de jaleco branco, que ficara em pé imóvel durante todos os procedimentos.
O homem de jaleco branco se inclinou e olhou de perto nos olhos de Winston, sentiu
seu pulso, aproximou o ouvido de seu peito, tocou aqui e ali, então acenou de volta
para O’Brien.
— Mais uma vez — disse O’Brien.
A dor inundou o corpo de Winston. O ponteiro deve ter chegado a setenta,
setenta e cinco. Dessa vez, ele fechou os olhos. Sabia que os dedos ainda estavam
erguidos, e ainda eram quatro. A única coisa que importava era de alguma maneira
sobreviver até que o espasmo passasse. Ele já não sabia mais se estava chorando ou
não. A dor diminuiu outra vez. Ele abriu os olhos. O’Brien havia reduzido a carga.
— Quantos dedos, Winston?
— Quatro. Suponho que sejam quatro. Eu veria cinco se pudesse. Estou
tentando ver cinco.
— O que você quer: me convencer de que está vendo cinco ou realmente ver
cinco?
— Realmente ver cinco.
— Mais uma vez — disse O’Brien.
Talvez o ponteiro tenha chegado a oitenta… noventa. Winston conseguia se
lembrar apenas em alguns momentos da razão daquela dor. Por trás de suas
pálpebras cerradas, uma floresta de dedos parecia se mover em uma espécie de
dança, serpenteante… os dedos desapareciam uns atrás dos outros e tornavam a
aparecer. Ele estava tentando contá-los, mas não se lembrava por quê. Percebeu
apenas que era impossível contá-los, e que isso se devia, de alguma forma, à
misteriosa identidade entre o cinco e o quatro. A dor passou outra vez. Quando ele
abriu os olhos, descobriu que ainda estava vendo a mesma coisa. Inúmeros dedos,
como árvores móveis, ainda serpenteavam em todas as direções, cruzando-se e
tornando a se cruzar. Ele fechou os olhos de novo.
— Quantos dedos estou mostrando, Winston?
— Eu não sei. Eu não sei. Você vai acabar me matando se fizer isso de novo.
Quatro, cinco, seis… honestamente, eu não sei.
— Melhorou — disse O’Brien.
Winston sentiu uma agulha espetando seu braço. Quase instantaneamente, um
calor gratificante, restaurador, espalhou-se por todo o seu corpo. A dor já estava
quase esquecida. Ele abriu os olhos e olhou com gratidão para O’Brien. Ao ver
aquele semblante pesado, marcado, tão feio quanto sábio, seu coração pareceu se
revirar no peito. Se pudesse se mover, ele teria estendido o braço e pousado a mão
no antebraço de O’Brien. Ele nunca o amara tão profundamente quanto naquele
momento, e não só porque ele havia interrompido sua dor. Aquele velho sentimento,
de que no fundo não importava se O’Brien era amigo ou inimigo, havia voltado.
O’Brien era uma pessoa com quem se podia conversar. Talvez as pessoas quisessem
não tanto ser amadas, mas compreendidas. O’Brien o havia torturado até o limite da
loucura, e dali a pouco, era certeza, o condenaria à morte. Não fazia diferença. Em
certo sentido, mais profundo que a amizade, eles eram íntimos: em algum momento,
embora as palavras talvez nunca fossem ditas, haveria um lugar onde eles poderiam
se encontrar e conversar. O’Brien estava olhando para ele com uma expressão que
sugeria que o mesmo pensamento estava passando em sua cabeça. Quando
finalmente falou, foi num tom ameno, coloquial.
— Você sabe onde está, Winston? — ele perguntou.
— Não sei. Posso imaginar. No Ministério do Amor?
— Você sabe há quanto tempo está aqui?
— Não sei. Dias, semanas, meses… Eu acho que meses.
— E por que você acha que trazemos as pessoas para cá?
— Para fazê-las confessar.
— Não, não é esse o motivo. Mais uma tentativa.
— Para puni-las.
— Não! — exclamou O’Brien. Sua voz se transformou de um modo
extraordinário, e seu semblante subitamente se tornou austero e entusiasmado. —
Não! Não apenas para extrair a sua confissão, nem apenas para puni-lo. Será que
preciso dizer por que trouxemos você aqui? Para curá-lo! Para torná-lo são! Você
entende, Winston, que ninguém que trazemos para cá vai embora sem ter sido
curado? Não estamos interessados nos crimes estúpidos que você cometeu. O
Partido não se importa com o ato declarado; só nos importamos com o pensamento.
Nós não apenas destruímos nossos inimigos, nós os transformamos. Você entende o
que isso quer dizer?
Ele estava inclinado sobre Winston. Seu rosto parecia enorme devido à
proximidade, e de uma feiura hedionda visto de baixo. Além disso, seu semblante
estava carregado de uma espécie de exaltação, uma expressividade lunática. Mais
uma vez o coração de Winston se apertou no peito. Se fosse possível, ele teria se
afundado mais na cama. Ele tinha certeza de que O’Brien estava prestes a girar o
seletor por puro capricho. Nesse momento, contudo, O’Brien se afastou. Deu um ou
dois passos para os lados. Então, continuou com menos veemência:
— A primeira coisa que você precisa entender é que aqui não há mártires. Você
leu sobre as perseguições religiosas do passado. Na Idade Média, houve a
Inquisição. Foi um fracasso. Queriam erradicar heresias, e acabaram por perpetuá-
las. Para cada herege que queimaram na fogueira milhares de outros surgiram. E por
quê? Porque a Inquisição matava seus inimigos abertamente, e os matava antes
mesmo que se arrependessem. Homens morriam porque não abandonavam suas
crenças. Houve os nazistas alemães e os comunistas russos. Os russos perseguiam
heresias de um modo mais cruel até que o da Inquisição. E imaginavam ter
aprendido com os erros do passado; eles sabiam, de todo modo, que não pode haver
mártires. Antes de expor suas vítimas aos julgamentos públicos, eles
deliberadamente se empenhavam em destruir sua dignidade. Eles as exauriam com
tortura e isolamento até convertê-las em pessoas arruinadas, obedientes,
desprezíveis, que confessavam qualquer coisa que lhes pusessem na boca, cansadas
de abusos, acusando-se umas às outras e se escondendo, amontoadas, ganindo,
implorando por compaixão. E, no entanto, poucos anos depois, a mesma coisa
tornava a acontecer. Os mortos se tornavam mártires e sua degradação era
esquecida. Mais uma vez: por quê? Em primeiro lugar, porque as confissões que
tinham feito haviam obviamente sido manipuladas e eram falsas. Nós não
cometemos esse tipo de erro. Todas as confissões proferidas aqui são verdadeiras.
Nós as tornamos verdadeiras. E, sobretudo, não permitimos que os mortos se
sublevem contra nós. Você precisa parar de imaginar que a posteridade irá vingá-lo,
Winston. A posteridade jamais ficará sabendo a seu respeito. Você será excluído do
fluxo da história. Nós o transformaremos em gás e o soltaremos na estratosfera. Não
restará nada de seu, nenhum nome em nenhum registro, nem lembrança em nenhum
cérebro humano. Você será aniquilado tanto no passado quanto no futuro. Você
nunca terá existido.
“Então, por que me torturar?”, pensou Winston, sentindo uma amargura
momentânea. O’Brien parou de andar pela sala como se Winston tivesse dito o que
pensava em voz alta. Seu rosto feio e grande se aproximou, com os olhos um pouco
franzidos.
— Você está pensando — ele disse — que, já que pretendemos destruí-lo
completamente, de modo que nada do que você diga ou faça irá fazer a menor
diferença… nesse caso, por que nos daríamos ao trabalho de interrogá-lo antes? Era
nisso que você estava pensando, não era?
— Sim — disse Winston.
O’Brien deu um leve sorriso.
— Você é uma falha no padrão, Winston. Você é uma mancha que precisa ser
removida. Eu não acabei de dizer que nós somos diferentes dos perseguidores do
passado? Nós não nos contentamos com a obediência negativa, nem mesmo com a
mais abjeta submissão. Quando finalmente você se render, deverá ser por seu livre-
arbítrio. Nós não destruímos o herege porque ele resiste; enquanto ele resistir, nós
jamais o destruiremos. Nós o convertemos, nós capturamos sua mente, nós o
reformulamos. Nós queimamos todo o mal e todas as ilusões que houver dentro
dele; nós o trazemos para o nosso lado não na aparência, mas genuinamente, de
coração e alma. Nós o transformamos em um dos nossos antes de matá-lo. É
intolerável para nós que um pensamento errôneo exista em algum lugar no mundo,
por mais secreto e impotente que esse pensamento seja. Até mesmo no instante da
morte nós não podemos permitir nenhum desvio. Nos velhos tempos, os hereges iam
caminhando para a fogueira ainda como hereges, proclamando sua heresia,
exultantes. Até as vítimas dos expurgos russos podiam dar continuidade à sua
rebelião trancafiada no próprio crânio enquanto seguiam pelo corredor à espera da
bala. Mas nós aperfeiçoamos o cérebro antes de explodi-lo. O mandamento dos
antigos despotismos era “Não farás!”. O mandamento dos totalitarismos era
“Farás!”. O nosso mandamento é “TU ÉS!”. Ninguém que trazemos para cá jamais
se colocará contra nós. Todo mundo é lavado e limpo. Até mesmo aqueles três
traidores desgraçados em cuja inocência você chegou a acreditar… Jones, Aaronson
e Rutherford… no final, nós os dobramos. Participei pessoalmente do interrogatório
deles. Vi como eles foram aos poucos ficando exauridos, ganindo, rastejantes,
chorosos… e no final não estavam mais com dor ou medo, mas apenas
arrependidos. Quando nós terminamos, eram apenas cascas de homens. Não havia
sobrado mais nada dentro deles além de tristeza pelo que fizeram, e amor pelo
Grande Irmão. Foi comovente ver como eles o amavam. Imploraram para ser logo
fuzilados, para que pudessem morrer enquanto suas mentes ainda estavam limpas.
A voz dele era quase delirante. A exaltação e o entusiasmo lunático ainda
pairavam em seu semblante. “Ele não está fingindo”, pensou Winston, “ele não é
hipócrita, ele acredita em cada palavra do que diz.” O que mais o oprimia era a
consciência de sua inferioridade intelectual. Ele ficou observando sua forma pesada,
porém graciosa, andando para os lados, entrando e saindo de seu campo de visão.
O’Brien parecia em todos os sentidos maior do que era. Não havia uma ideia sua, ou
uma ideia que pudesse ter tido, que O’Brien não tivesse conhecido, examinado e
rejeitado. A mente de O’Brien CONTINHA a mente de Winston. Contudo, nesse
caso, seria possível que O’Brien estivesse louco? Devia ser ele, Winston, quem
estava louco. O’Brien parou e olhou para ele. Seu tom de voz era austero de novo.
— Não pense que você vai conseguir se safar, Winston, ainda que você se renda
completamente. Ninguém que um dia se extraviou foi poupado. E, mesmo que
decidamos deixá-lo viver até o fim natural de seus dias, ainda assim, você não
escaparia de nós. O que acontecer aqui com você será para sempre. Entenda isso
antes de tudo. Vamos aniquilá-lo a ponto de não haver mais retorno. Acontecerão
coisas das quais você não conseguirá se recuperar, nem que vivesse mais mil anos.
Nunca mais você será capaz de ter sentimentos humanos comuns. Por dentro, estará
tudo morto para você. Você nunca mais será capaz de sentir amor, afeto, a alegria de
viver, de rir, de ter curiosidade, coragem ou integridade. Você será oco, vazio.
Vamos espremê-lo até ficar vazio, e depois nós seremos o seu conteúdo.
Ele fez uma pausa e sinalizou para o homem de jaleco branco. Winston percebeu
que um aparelho pesado foi trazido e posicionado atrás de sua cabeça. O’Brien
sentou-se ao lado da cama, de modo que seu rosto ficou quase na altura do rosto de
Winston.
— Três mil — ele disse, falando por cima da cabeça de Winston, ao homem de
jaleco branco.
Duas ventosas macias, as quais ele sentiu que eram meio úmidas, grudaram-se
às têmporas de Winston. Ele ficou apreensivo. A dor viria em breve, um novo tipo
de dor. O’Brien pôs a mão sobre a sua, quase com bondade, tentando reconfortá-lo.
— Dessa vez, não vai doer — ele disse. — Fique olhando para os meus olhos.
Nesse momento, houve uma explosão devastadora, ou algo que pareceu ser uma
explosão, embora não fosse certo sequer ter havido algum barulho.
Indiscutivelmente, houve um clarão ofuscante. Winston não estava ferido, apenas
prostrado. Embora já estivesse deitado de costas quando aquilo aconteceu, ele teve a
curiosa sensação de ter sido derrubado naquela posição. Um golpe terrível e indolor
o deixara muito calmo. Algo também ocorrera dentro de sua cabeça. Quando seus
olhos recuperaram o foco, ele se lembrou de quem era e de onde estava, e
reconheceu o rosto que o encarava; mas, de alguma forma, havia um vasto trecho
vazio, como se um pedaço de seu cérebro tivesse sido arrancado.
— Logo vai passar — disse O’Brien. — Olhe nos meus olhos. Contra qual país
a Oceania está em guerra?
Winston pensou um pouco. Ele sabia o que significava Oceania e que era
cidadão da Oceania. Ele também se lembrava da Eurásia e da Lestásia; entretanto,
quem estava em guerra contra quem, ele não sabia. Na verdade, ele não sabia de
nenhuma guerra em andamento.
— Não me lembro.
— A Oceania está em guerra contra a Lestásia. Você se lembra agora?
— Sim.
— A Oceania sempre esteve em guerra contra a Lestásia. Desde que você
nasceu, desde o surgimento do Partido, desde o início da história, a guerra tem
continuado sem interrupção, sempre a mesma guerra. Você se lembra disso?
— Sim.
— Agora há pouco, eu mostrei os dedos da minha mão para você. Você viu
cinco dedos. Você se lembra disso?
— Sim.
O’Brien ergueu os dedos da mão esquerda com o polegar escondido.
— Aqui estão cinco dedos. Você está vendo os cinco dedos?
— Sim.
E ele os viu, por um instante fugaz, antes que o cenário em sua mente mudasse.
Ele viu cinco dedos, e não havia nenhuma deformidade. Então, tudo voltou ao
normal, e o velho medo, o ódio e a perplexidade voltaram a se acumular. Mas houve
um momento — ele não sabe quanto tempo durou, talvez trinta segundos — de
luminosa certeza, em que cada nova sugestão de O’Brien preenchia um trecho de
vazio e se tornava a verdade absoluta, e em que dois mais dois poderiam ser tão
facilmente três como cinco, se isso fosse necessário. Esse momento havia passado
antes de O’Brien baixar a mão; e, embora não pudesse recuperá-lo, ele podia se
lembrar daquele momento como quem se lembra de uma experiência vívida em
algum período da vida quando era efetivamente uma pessoa diferente.
— Você percebe, agora — disse O’Brien —, que isso é ao menos possível?
— Sim — disse Winston.
O’Brien se levantou com um ar de satisfação. À sua esquerda, Winston viu o
homem de jaleco branco quebrar uma ampola e encher uma seringa. O’Brien se
virou para Winston com um sorriso. Quase à sua maneira antiga, ele reposicionou os
óculos sobre o nariz.
— Você se lembra de ter escrito em seu diário — ele disse — que não importava
se eu era amigo ou inimigo, já que eu era ao menos alguém que o compreendia e
com quem você podia conversar? Você estava certo. Eu gosto de conversar com
você. Sua mente me fascina. Lembra a minha própria, exceto pela sua insanidade.
Antes de encerrarmos a sessão, você pode me fazer algumas perguntas, se quiser.
— Qualquer pergunta que eu quiser?
— Qualquer coisa. — Ele notou que os olhos de Winston se voltaram para o
seletor. — Está desligado. Qual é a primeira pergunta?
— O que você fez com a Julia? — disse Winston.
O’Brien sorriu de novo.
— Ela o traiu, Winston. Imediatamente… de um modo irrestrito. Raramente
vejo alguém se passar para o nosso lado tão depressa. Você mal a reconheceria.
Toda a rebeldia, todo o subterfúgio, toda a loucura, toda a sujeira… foi tudo
queimado. Foi uma conversão perfeita, um caso clássico.
— Você a torturou?
O’Brien não respondeu.
— Próxima pergunta — ele disse.
— O Grande Irmão existe?
— Claro que existe. O Partido existe. O Grande Irmão é a personificação do
Partido.
— Mas ele existe da mesma forma que eu existo?
— Você não existe! — disse O’Brien.
Mais uma vez, a sensação de desamparo o atingiu. Ele sabia, ou podia imaginar,
os argumentos que provavam sua inexistência; mas eram absurdos, eram apenas um
jogo de palavras. Afinal, a afirmação “Você não existe!” não continha um absurdo
lógico? Mas de que adiantaria dizer isso? Sua mente se retraiu ao pensar nos
argumentos incontestáveis e insanos com que O’Brien o demoliria.
— Eu acho que existo — ele disse exausto. — Tenho consciência da minha
própria identidade. Nasci e vou morrer. Tenho braços e pernas. Ocupo um
determinado ponto do espaço. Nenhum outro objeto sólido pode ocupar este ponto
ao mesmo tempo. Nesse sentido, o Grande Irmão existe?
— Isso não tem importância. Ele existe.
— O Grande Irmão vai morrer algum dia?
— Claro que não. Como ele poderia morrer? Próxima pergunta.
— A Irmandade existe?
— Isso, Winston, você jamais saberá. Se decidirmos libertá-lo depois de
terminarmos com você, e se você viver até os noventa anos, ainda assim, você
jamais saberá se a resposta a essa pergunta é “sim” ou “não”. Enquanto você viver,
isso será um enigma sem solução na sua cabeça.
Winston ficou deitado em silêncio. Seu peito subiu e desceu um pouco mais
depressa, ofegante. Ele ainda não tinha feito a primeira pergunta que lhe viera à
cabeça. Ele precisava perguntar e, no entanto, era como se sua língua não fosse
capaz de articular a pergunta. Havia um traço de ironia no semblante de O’Brien.
Até seus óculos pareciam exibir um brilho irônico. Ele sabe, pensou Winston de
repente, ele sabe o que eu vou perguntar! Ao pensar nisso, as palavras escaparam:
— O que é a sala 101?
A expressão no rosto de O’Brien não se alterou. Ele respondeu com rispidez:
— Você sabe o que é a sala 101, Winston. Todo mundo sabe o que é a sala 101.
Ele ergueu o dedo para o homem de jaleco branco. Evidentemente, a sessão
estava sendo encerrada. Uma agulha foi espetada no braço de Winston. Ele
mergulhou quase de imediato em um sono profundo.
Capítulo 3

— Há três estágios na sua reintegração — disse O’Brien. — Há o aprendizado, a


compreensão e a aceitação. Chegou a hora de você dar início ao segundo estágio.
Winston permanecia deitado de costas, mas recentemente as amarras haviam
sido afrouxadas. Ele ainda estava preso à cama, mas podia mover um pouco os
joelhos e conseguia virar a cabeça para os lados e levantar os antebraços. O seletor
também passara a ser menos aterrorizante. Ele conseguia evitar as pontadas se fosse
suficientemente sagaz; era sobretudo quando demonstrava estupidez que O’Brien
aumentava a carga. Algumas vezes, eles passavam uma sessão inteira sem usar o
seletor. Ele não se lembrava quantas sessões teriam sido. O processo inteiro parecia
se estender por um período longo e indefinido — possivelmente semanas —, e os
intervalos entre as sessões podiam, às vezes, ser de dias, outras vezes, de apenas
uma ou duas horas.
— Enquanto você está aí deitado — disse O’Brien — deve ter se perguntado…
você perguntou até para mim… por que o Ministério do Amor gastaria tanto tempo
e trabalho consigo. E quando estava livre você ficava intrigado com algo que era
essencialmente a mesma questão. Você conseguia entender a mecânica da sociedade
em que vivia, mas não os motivos subjacentes. Você se lembra de ter escrito em seu
diário “Eu entendo COMO; eu não entendo POR QUÊ”? Ao pensar no “porquê”,
você começou a duvidar da própria sanidade. Você leu O LIVRO, o livro de
Goldstein, ou partes dele, ao menos. Esse livro lhe mostrou alguma coisa que você
ainda não sabia?
— Você leu? — perguntou Winston.
— Eu o escrevi. Isto é, colaborei na escrita. Nenhum livro é produzido
individualmente, como você sabe.
— É verdade o que o livro diz?
— Como descrição, sim. O programa que o livro propõe é absurdo. A
acumulação secreta de conhecimento… uma expansão gradual do esclarecimento…
em última análise, uma rebelião proletária: a derrubada do Partido. Você já previa
que era isso que o livro diria. É puro absurdo. Os proletários jamais se revoltarão,
nem em mil nem em um milhão de anos. Eles não são capazes. Nem preciso lhe
dizer o motivo; você já sabe. Se você já acalentou sonhos de insurreição violenta,
deve abandoná-los. Não existe a possibilidade de o Partido vir a ser derrubado. O
domínio do Partido deve durar toda a eternidade. Tenha isso como ponto de partida
para os seus pensamentos.
Ele se aproximou da cama.
— Toda a eternidade! — ele repetiu. — E agora voltemos à questão do “como”
e do “por quê”. Você entende muito bem COMO o Partido se mantém no poder.
Agora me diga POR QUE nos agarramos ao poder. Qual é a nossa motivação? Por
que deveríamos querer o poder? Vamos, fale — ele acrescentou diante do silêncio
de Winston.
No entanto, Winston continuou sem falar ainda durante um ou dois minutos.
Uma sensação de exaustão o dominara. O brilho discreto e enlouquecido de
entusiasmo havia voltado ao rosto de O’Brien. Winston sabia de antemão o que
O’Brien diria. Que o Partido não buscava o poder como um fim em si, mas apenas
pelo bem da maioria. Que buscava o poder porque os homens da massa eram fracos,
criaturas covardes que não suportariam a liberdade ou encarar a verdade, e deviam
ser dominados e sistematicamente enganados por outros mais fortes. Que a escolha
da humanidade era entre liberdade ou felicidade, e que, para a grande maioria da
humanidade, a felicidade era melhor. Que o Partido era o eterno guardião dos fracos,
uma seita dedicada a fazer o mal para que o bem pudesse existir, sacrificando a
própria felicidade pela felicidade dos outros. A coisa mais terrível, pensou Winston,
a coisa mais terrível era que O’Brien dizia isso acreditando no que dizia. Dava para
ver no rosto dele. O’Brien sabia de tudo. Mil vezes melhor que Winston, ele sabia
como o mundo era realmente, conhecia a degradação em que vivia a massa de seres
humanos e as mentiras e as barbaridades com que o Partido os mantinha assim. Ele
havia entendido tudo, ponderado tudo, e não fazia diferença: tudo era justificado
pelo propósito final. O que ele poderia fazer, pensou Winston, contra um lunático
que era mais inteligente do que ele, que ouvia atentamente seus argumentos, mas
simplesmente persistia em sua loucura?
— Vocês nos dominam para manter o poder — ele disse com sua voz debilitada.
— Vocês acham que os seres humanos não são aptos a governar a si mesmos e,
portanto…
Ele teve um sobressalto e quase gritou. Uma pontada de dor percorreu todo o
seu corpo. O’Brien girara o seletor até trinta e cinco.
— Isso foi uma estupidez, Winston, uma estupidez! — ele disse. — Você
deveria saber que não se deve dizer uma coisa dessas.
Ele desligou novamente o seletor e continuou:
— Agora, vou lhe dar a resposta à minha pergunta. É o seguinte: o Partido busca
o poder apenas pelo poder. Não estamos interessados em fazer o bem para os outros;
estamos interessados exclusivamente no poder em si. O que significa o poder em si,
você vai entender agora. Nós somos diferentes de todas as oligarquias do passado,
no sentido de que nós sabemos o que estamos fazendo. Todas as outras oligarquias,
mesmo aquelas parecidas conosco, foram hipócritas e covardes. Os nazistas alemães
e os comunistas russos se aproximaram muito de nós em seus métodos, mas nunca
tiveram coragem de admitir seus próprios motivos. Eles fingiram, talvez até tenham
acreditado, que haviam tomado o poder involuntariamente e por tempo limitado, e
que, ao virar a esquina, haveria um paraíso onde os seres humanos seriam livres e
iguais. Nós não somos assim. Nós sabemos que ninguém assume o poder com
intenção de abrir mão dele em seguida. O poder não é um meio, é um fim. Não se
estabelece uma ditadura para garantir uma revolução; o que se cria é uma revolta
para se estabelecer a ditadura. O objetivo da perseguição é a perseguição. O objetivo
da tortura é a tortura em si. O objetivo do poder é o poder. Agora você está
começando a me entender?
Winston ficou impressionado, como ficara impressionado antes, com a exaustão
do semblante de O’Brien. Era um rosto forte e musculoso e brutal, cheio de
inteligência e uma espécie de paixão controlada diante da qual ele se sentia
desarmado; mas estava exausto. Havia bolsas embaixo dos olhos, a pele pendia
flácida nas maxilas. O’Brien inclinou-se sobre ele, deliberadamente aproximando o
semblante exaurido.
— Você está pensando — ele disse — que o meu rosto está velho e cansado.
Você está pensando que eu falo em poder e, no entanto, não consigo nem evitar a
decadência do meu próprio corpo. Você não percebe, Winston, que o indivíduo é
apenas uma célula? O cansaço da célula é o vigor do organismo. Você morre quando
apara as unhas?
Ele se afastou da cama e começou a andar pra lá e pra cá, com as mãos no bolso.
— Nós somos os sacerdotes do poder — ele disse. — Deus é o poder. Mas hoje
o poder é só uma palavra para você. Chegou a hora de você entender um pouco mais
o que o poder significa. A primeira coisa que você deve entender é que o poder é
coletivo. O indivíduo só tem poder à medida que deixa de ser um indivíduo. Você
conhece o slogan
do Partido “Liberdade é escravidão!”? Já lhe ocorreu que o lema é
reversível? Escravidão é liberdade. Sozinho… livre… o ser humano é sempre
derrotado. Isso deve mesmo ser assim porque todo ser humano está condenado à
morte, que é o maior de todos os fracassos. Mas, se ele for capaz de uma submissão
completa, total, se puder escapar da própria identidade, se for capaz de se fundir ao
Partido de modo que passe a SER o Partido, então ele será todo-poderoso e imortal.
A segunda coisa que você precisa entender é que poder é o poder sobre os seres
humanos. Sobre o corpo… mas, sobretudo, sobre a mente. O poder sobre a
matéria… a realidade externa, como você diria… não é importante. Nosso controle
sobre a matéria já é absoluto.
Por um momento, Winston ignorou o seletor. Ele fez um violento esforço para se
levantar e tentar se sentar, mas só conseguiu contorcer seu corpo de um jeito que lhe
causava dor.
— Mas como vocês controlam a matéria? — ele explodiu. — Vocês não
controlam nem o clima nem a lei da gravidade. E existem doenças, dores, mortes…
O’Brien silenciou-o com um movimento da mão.
— Nós controlamos a matéria porque nós controlamos a mente. A realidade está
dentro do crânio. Você vai aprender aos poucos, Winston. Não há nada que
possamos fazer. Invisibilidade, levitação… qualquer coisa. Eu posso flutuar acima
do chão como uma bolha de sabão se eu quiser. Você precisa se livrar dessas ideias
do século XIX sobre as leis da Natureza. Nós fazemos as leis da Natureza.
— Não, vocês não fazem! Vocês não dominam nem mesmo este planeta. E a
Eurásia e a Lestásia? Vocês não as conquistaram ainda.
— Isso é irrelevante. Vamos conquistá-las quando for melhor para nós. E, se não
o fizermos, que diferença isso faria? Nós podemos excluí-las da existência. A
Oceania é o mundo.
— Mas a Terra em si mesma é só um punhado de poeira. E o homem é ínfimo…
impotente! Há quanto tempo existe o homem? Durante milhões de anos a Terra foi
inabitada.
— Bobagem. A Terra é tão antiga quanto nós, não é mais velha. Como poderia
ser mais velha? Nada existe exceto por intermédio da consciência humana.
— Mas as pedras estão cheias de ossos de animais extintos… mamutes e
mastodontes e répteis enormes que viveram aqui muito antes de haver qualquer
notícia do homem.
— Você já viu esses ossos, Winston? Claro que não. Os biólogos do século XIX
inventaram isso. Antes do homem, não havia nada. Depois do homem, se o homem
algum dia deixar de existir, não haverá nada. Fora do homem não há nada.
— Mas o Universo inteiro está fora de nós. Olhe para as estrelas! Algumas delas
estão a milhões de anos-luz daqui. Elas estão fora do nosso alcance para sempre.
— O que são as estrelas? — disse O’Brien com indiferença. — São focos de
incêndio a alguns quilômetros de nós. Nós poderíamos alcançá-las se quiséssemos.
Ou poderíamos apagá-las. A Terra é o centro do Universo. O Sol e as estrelas giram
ao redor da Terra.
Winston fez outro movimento convulsivo. Dessa vez, ele não disse nada.
O’Brien continuou como se respondesse a uma objeção falada:
— Para determinados propósitos, é claro, isso não é verdade. Quando
navegamos pelo oceano, ou quando prevemos um eclipse, geralmente julgamos
conveniente supor que a Terra gire em volta do Sol e que as estrelas estejam a
milhões e milhões de quilômetros de distância. Mas e daí? Você acha que nós não
podemos produzir um sistema duplo de astronomia? As estrelas podem estar
próximas ou distantes, de acordo com a nossa necessidade. Você acha que nossos
matemáticos seriam incapazes disso? Você se esqueceu do duplipensar?
Winston se retraiu novamente na cama. Qualquer coisa que dizia, a rápida
resposta o agredia como uma bordoada. E, no entanto, ele sabia, ele SABIA que
estava certo. A crença de que não existia nada fora da mente — decerto haveria um
modo de demonstrar que era falsa. Isso já não havia sido exposto muito tempo atrás
como uma falácia? Havia até mesmo um nome para isso, mas ele esquecera. Um
discreto sorriso retorceu os cantos da boca de O’Brien quando Winston olhou de
novo para ele.
— Eu dissera, Winston — ele retomou —, que a metafísica não era o nosso
forte. A palavra que você está tentando lembrar é solipsismo. Mas você está
enganado. Isso não é um solipsismo. Um solipsismo coletivo, se você preferir. Mas
se trata de algo diferente; na verdade, de algo oposto. Tudo isso é uma digressão —
ele acrescentou, num tom diferente. — O verdadeiro poder, o poder pelo qual
combatemos noite e dia, não é o poder sobre as coisas, mas o poder sobre os
homens. — Ele fez uma pausa e, por um momento, assumiu de novo o ar de um
professor questionando o aluno promissor: — Como um homem declara seu poder
sobre outro, Winston?
Winston pensou um pouco e então disse:
— Fazendo-o sofrer.
— Exatamente. Fazendo-o sofrer. A obediência não é suficiente. A não ser que
ele esteja sofrendo, como você pode ter certeza de que está obedecendo à sua
vontade ou à vontade dele próprio? Alcança-se o poder infligindo-se dor e
humilhação. O poder está em despedaçar mentes humanas e recompor esses pedaços
em novas formas de sua própria escolha. Você está começando a entender, então,
que tipo de mundo estamos criando? É o exato oposto das estúpidas utopias
hedonistas que os antigos reformadores imaginaram. Um mundo de medo e traição e
tormento, um mundo de pisotear e ser pisoteado, um mundo que não ficará menos,
mas, sim, MAIS impiedoso em seu refinamento. O progresso em nosso mundo será
um progresso em direção à disseminação da dor. As antigas civilizações alegavam
ter sido fundadas no amor e na justiça. A nossa civilização é fundada no ódio. Em
nosso mundo não haverá emoções além do medo, da fúria, do triunfo, da auto-
humilhação. Todo o resto será destruído… tudo! Já estamos destruindo os hábitos
do pensamento que sobreviveram desde antes da Revolução. Nós cortamos os
vínculos entre filhos e pais, e entre homem e homem, e entre homem e mulher.
Ninguém mais se arrisca a confiar na esposa ou no filho ou no amigo. No futuro não
haverá nem esposas, nem amigos. Os filhos serão tirados das mães no nascimento,
como se tiram os ovos de uma galinha. O instinto sexual será erradicado. A
procriação será uma formalidade animal como a renovação do cartão do vale-
alimentação. Nós aboliremos o orgasmo. Nossos neurologistas estão trabalhando
nisso agora. Não existirá lealdade além da lealdade ao Partido. Não haverá amor
além do amor ao Grande Irmão. Não haverá risos além dos risos de triunfo sobre o
inimigo derrotado. Não haverá arte, nem literatura, nem ciência. Quando nós formos
onipotentes, não teremos mais necessidade de ciência. Não haverá diferença entre
belo e feio. Não haverá mais curiosidade, nem prazer no processo da vida. Todos os
prazeres da competição serão destruídos. Mas sempre… não se esqueça disso,
Winston… sempre haverá a embriaguez do poder, constantemente aumentando e
constantemente se tornando mais sutil. Sempre, em todo momento, haverá o frenesi
da vitória, a sensação de pisotear um inimigo impotente. Se você quiser uma
imagem do futuro, imagine uma bota pisando um rosto humano… para toda a
eternidade.
Ele fez uma pausa como se esperasse que Winston fosse dizer alguma coisa.
Winston tentou outra vez se encolher na cama. Ele não conseguia dizer nada. Seu
coração parecia congelado. O’Brien continuou:
— E lembre-se de que isso será assim para sempre. O rosto estará sempre ali
para ser pisoteado. O herege, o inimigo da sociedade, sempre estará ali para ser
derrotado e humilhado constantemente. Tudo que você passou desde que caiu nas
nossas mãos… tudo isso vai continuar e piorar. A espionagem, as traições, as
prisões, as torturas, as execuções, os desaparecimentos nunca vão deixar de
acontecer. Será um mundo de terror, mas também um mundo de triunfo. Quanto
mais o Partido for poderoso, menos será tolerante; quanto mais fraca a oposição,
mais forte o despotismo. Goldstein e suas heresias viverão para sempre. A cada dia,
a cada momento, os indivíduos serão derrotados, desacreditados, ridicularizados,
cuspidos, e, no entanto, sempre sobreviverão. Esse drama que encenei com você
durante sete anos será encenado incessantemente, geração após geração, sempre em
formas mais sutis. Nós teremos sempre aqui um herege à nossa disposição, gritando
de dor, dobrado, abjeto… e, no final, totalmente arrependido, salvo de si mesmo,
rastejando aos nossos pés por vontade própria. Esse é o mundo que estamos
preparando, Winston. Um mundo de vitória atrás de vitória, triunfo atrás de triunfo;
uma infinita pressão, pressionando, pressionando sobre o nervo do poder. Você está
começando, pelo visto, a entender como será esse mundo. Mas, no final, você fará
mais do que apenas entender. Você irá aceitá-lo, você dará boas-vindas e fará parte
desse mundo.
Winston havia se recuperado o suficiente para falar.
— Vocês não podem! — ele disse quase sem forças.
— O que você quer dizer com isso, Winston?
— Vocês não conseguiriam criar um mundo como o que você acabou de
descrever. É um sonho. É impossível.
— Por quê?
— É impossível fundar uma civilização com base no medo e no ódio e na
crueldade. Ela jamais duraria.
— Por que não duraria?
— Ela não teria vitalidade. Iria se desintegrar. A população cometeria suicídio.
— Bobagem. Você acha que o ódio é mais exaustivo que o amor. Por que seria?
E, se fosse, que diferença isso faria? Imagine que tenhamos escolhido nos esgotar
mais depressa. Imagine que aceleramos o ritmo da vida humana para que os homens
estejam senis aos trinta anos. Ainda assim, que diferença isso faria? Você não
percebe que a morte do indivíduo não é a morte em si? O Partido é imortal.
Como das outras vezes, a voz de O’Brien oprimiu Winston e o fez se sentir
indefeso. Mais do que tudo, ele estava com medo de que, se insistisse em sua
discordância, O’Brien girasse o seletor outra vez. E, no entanto, ele não conseguia
se manter calado. De um modo débil, sem argumentos, sem nada a sustentá-lo além
do horror inarticulado diante do que O’Brien dissera, Winston voltou ao ataque.
— Eu não sei… não me importa. De alguma maneira, vocês acabarão
fracassando. Alguma coisa irá derrotá-los. A vida irá derrotá-los.
— Nós controlamos a vida, Winston, em todos os níveis. Você está imaginando
que existe uma coisa chamada natureza humana que ficará ultrajada pelo que
fazemos e que se insurgirá contra nós. Mas nós criamos a natureza humana. Os
homens são infinitamente manipuláveis. Ou talvez você tenha voltado à sua velha
ideia dos proletários ou dos escravos que se insurgirão e nos derrubarão. Você pode
esquecer isso. Eles não podem fazer nada, são como animais. A humanidade é o
Partido. Os outros estão fora… são irrelevantes.
— Não me importa. No final, eles irão derrotá-los. Cedo ou tarde, eles os verão
como vocês realmente são e, então, irão destruí-los.
— Você vê alguma evidência de que isso esteja acontecendo? Ou algum motivo
para que isso acontecesse?
— Não. Eu apenas acredito nisso. Eu SEI que vocês acabarão fracassando.
Existe uma coisa no Universo… eu não sei, algum espírito, algum princípio… que
vocês jamais superarão.
— Você acredita em Deus, Winston?
— Não.
— Então, o que é esse princípio que vai nos derrotar?
— Eu não sei. O espírito do Homem.
— E você se considera um homem?
— Sim.
— Se você fosse um homem, Winston, você seria o último homem. O seu tipo
está extinto; nós somos os herdeiros. Você percebe que está SOZINHO? Você está
fora da história, você não existe. — Sua atitude mudou e ele disse com mais
rispidez: — E você se considera moralmente superior a nós por causa de nossas
mentiras e de nossa crueldade?
— Sim, eu me considero superior.
O’Brien não disse nada. Duas outras vozes começaram a falar. Após um
instante, Winston reconheceu uma delas como sua própria voz. Era uma gravação da
conversa que ele tivera com O’Brien na noite em que se alistara na Irmandade. Ele
ouviu a si mesmo prometendo mentir, roubar, falsificar, matar, estimular o uso de
drogas e a prostituição, disseminar doenças venéreas, jogar ácido sulfúrico no rosto
de uma criança se fosse preciso. O’Brien fez um breve gesto de impaciência, como
se dissesse que não valia a pena protestar. Então, ele apertou um botão e as vozes
pararam.
— Levante-se dessa cama — ele disse.
As amarras haviam se afrouxado. Winston desceu da cama e ficou tentando se
equilibrar em pé no chão.
— Você é o último homem — disse O’Brien. — Você é o guardião do espírito
humano. Você agora se verá como é realmente. Tire suas roupas.
Winston desamarrou o cordão que prendia o macacão. O abridor de zíper havia
sido arrancado muito antes. Ele não se lembrava de ter tirado toda a roupa nenhuma
vez em todo o tempo desde sua prisão. Por baixo da roupa, seu corpo estava
enrolado em trapos amarelados asquerosos, mal reconhecíveis como suas roupas de
baixo. Ao deslizá-las até o chão, ele viu que havia um espelho de três faces na outra
extremidade da sala. Ele se aproximou do espelho, então parou. Um grito
involuntário escapou de sua garganta.
— Continue — disse O’Brien. — Fique entre as três faces do espelho. Veja-se
também de perfil.
Ele gritou porque ficara apavorado. Uma criatura encurvada, cinzenta,
cadavérica se aproximou. Sua aparência era em si assustadora, não apenas o fato de
saber que era ele mesmo. Ele se aproximou mais do espelho. O rosto da criatura
parecia saliente em consequência das costas curvadas. Um presidiário miserável
com uma testa protuberante, calvo, nariz torto e maxilas aparentemente fraturadas
sobre as quais os olhos eram ardentes e atentos. As bochechas estavam vincadas, a
boca parecia envelhecida. Certamente, era o seu rosto, mas parecia mais modificado
por fora do que ele se sentia por dentro. As emoções registradas em seu rosto eram
diferentes das que ele sentira. Ele havia ficado parcialmente calvo. A princípio,
pensara que também tinha ficado grisalho, mas era o topo da cabeça que estava
cinza. Com exceção das mãos e de um círculo em seu rosto, seu corpo estava todo
cinzento, de uma sujeira antiga, impregnada. Aqui e ali, por baixo da sujeira, havia
cicatrizes vermelhas de feridas, e perto do tornozelo sua úlcera varicosa era uma
massa inflamada com pedaços de pele descascando. Contudo, a coisa realmente
apavorante era a magreza extrema de seu corpo. Sua caixa torácica estava estreita
como a de um esqueleto; as pernas haviam encolhido, de modo que os joelhos
estavam mais grossos que as coxas. Ele entendeu, então, o que O’Brien quisera
dizer sobre se ver de perfil. A curvatura de sua espinha era impressionante. Os
ombros magros estavam curvados para a frente de modo a formar uma cavidade no
peito, o pescoço esquelético parecia dobrado ao meio sob o peso do crânio. Se
tivesse de adivinhar, ele diria ser o corpo de um velho de sessenta anos sofrendo de
algum tumor maligno.
— Algumas vezes, você achou — disse O’Brien — que o meu rosto… o rosto
de um membro do Alto Escalão do Partido… parecia velho e exaurido. O que você
acha agora de seu próprio rosto?
Ele segurou o ombro de Winston e o girou de modo que ficasse de frente para o
espelho.
— Veja a condição em que você está! — ele disse. — Veja a sujeira asquerosa
do seu corpo. Veja a sujeira entre seus dedos. Olhe essa ferida purulenta em sua
perna. Você sabia que está fedendo como um bode? Provavelmente, você nem
percebe mais. Veja a sua magreza. Está vendo? Eu pego o seu bíceps com o polegar
e o indicador. Eu poderia quebrar o seu pescoço como se fosse uma cenoura. Você
sabia que perdeu vinte e cinco quilos desde que caiu em nossas mãos? Até o seu
cabelo está saindo aos tufos. Veja! — Ele puxou um punhado do cabelo de Winston
e arrancou um tufo. — Abra a boca. Nove, dez, onze dentes apenas sobraram.
Quantos você tinha quando chegou aqui? E os poucos dentes que lhe restam estão
caindo. Veja isso!
Ele pegou um dos poucos dentes da frente da boca de Winston com seu
poderoso polegar e o indicador. Uma pontada de dor percorreu a mandíbula de
Winston. O’Brien arrancou o dente com a raiz. Ele atirou o dente para o outro lado
da cela.
— Você está apodrecendo — ele disse. — Você está caindo aos pedaços. Sabe o
que você é? Um saco de lixo. Agora, se vire e se veja no espelho outra vez. Você
está vendo esta coisa olhando para você? Este é o último homem. Se você for
humano, esta aí é a humanidade. Agora, pode se vestir de novo.
Winston começou a se vestir com movimentos lentos e rígidos. Até esse
momento, ele não parecia ter se dado conta de como estava magro e fraco. Apenas
um pensamento se agitava em sua mente: que ele devia estar naquele lugar há mais
tempo do que havia imaginado. Então, de súbito, enquanto se cobria com seus
trapos miseráveis, uma sensação de piedade de seu corpo arruinado o dominou. Sem
se dar conta, ele desabou em um banco ao lado da cama e desatou a chorar. Estava
ciente de sua feiura, de sua aparência repulsiva — um feixe de ossos coberto de
trapos nojentos sentado, chorando sob aquela luz branca intensa; no entanto, ele não
conseguia parar. O’Brien pôs a mão em seu ombro quase de um modo gentil.
— Isso não vai durar para sempre — ele disse. — Você pode escapar quando
quiser. Tudo depende de você.
— Você fez isso! — soluçou Winston. — Você me reduziu a esse estado.
— Não, Winston, você mesmo se reduziu a isso. Isso é o que você aceitou
quando se indispôs contra o Partido. Tudo isso estava contido naquele primeiro ato.
Não aconteceu nada que você não tivesse previsto.
Ele fez uma pausa e então prosseguiu:
— Nós batemos em você, Winston. Nós o dobramos. Você viu como ficou o seu
corpo. A sua mente está no mesmo estado. Não creio que tenha sobrado muito do
que se orgulhar. Você foi chutado e chicoteado e insultado, você gritou de dor, você
rolou no chão em cima do próprio sangue e do próprio vômito. Você ganiu,
implorando compaixão, você traiu a tudo e a todos. Você é capaz de imaginar
alguma degradação que não lhe tenha acontecido?
Winston havia parado de chorar, embora as lágrimas ainda saíssem de seus
olhos. Ele ergueu o olhar para O’Brien.
— Eu não traí a Julia — ele disse.
O’Brien o encarou como se estivesse refletindo.
— Não — ele disse. — Não; isso é a mais pura verdade. Você não traiu a Julia.
A reverência peculiar que sentia por O’Brien, que nada parecia capaz de
destruir, inundou novamente o coração de Winston. Como O’Brien era inteligente,
ele pensou, como era inteligente! O’Brien nunca deixava de compreender o que lhe
diziam. Qualquer outra pessoa teria respondido prontamente que ele HAVIA traído
Julia. Pois o que mais existiria que eles não tivessem arrancado dele sob tortura? Ele
lhes contara tudo o que sabia sobre ela — seus hábitos, seu caráter, sua vida
pregressa —; ele confessara com os detalhes mais triviais tudo o que havia
acontecido em seus encontros, tudo o que ele lhe dissera e o que ela lhe dissera, suas
refeições obtidas no mercado negro, seus adultérios, suas vagas conspirações contra
o Partido — tudo. E, no entanto, no sentido que ele dava ao termo, ele não a havia
traído. Ele não deixara de amá-la; seus sentimentos por ela continuavam os mesmos.
O’Brien entendera o que ele queria dizer sem que houvesse a necessidade de ser
explicado.
— Diga-me — Winston perguntou —, falta muito para me fuzilarem?
— Pode ser que demore muito tempo — disse O’Brien. — Você é um caso
difícil. Mas não perca a esperança. Todo mundo é curado, cedo ou tarde. No final,
nós o fuzilaremos.
Capítulo 4

Ele estava muito melhor. Estava engordando e ficando mais forte a cada dia, se é
que era apropriado falar em dias.
A luz branca e o rumor constante eram os mesmos de sempre, mas a cela era
mais confortável do que as outras em que ele estivera. Havia travesseiro e colchão
na cama de tábua, e um banco onde se sentar. Deram-lhe banho, e deixaram que ele
se lavasse com frequência em uma bacia de lata. Deram-lhe até água quente para se
limpar. Deram-lhe novas roupas de baixo e um macacão limpo. Haviam passado
uma pomada balsâmica em sua úlcera varicosa. Extraíram seus últimos dentes e lhe
deram uma dentadura nova.
Semanas ou meses devem ter se passado. Seria possível agora acompanhar a
passagem do tempo se ele tivesse algum interesse em fazer isso, uma vez que agora
ele estava sendo alimentado aparentemente a intervalos regulares. Ele vinha
recebendo, segundo avaliou, três refeições a cada vinte e quatro horas; às vezes, ele
se perguntava vagamente se as recebia de noite ou de dia. A comida era
surpreendentemente boa, com carne a cada três refeições. Uma vez, veio até um
maço de cigarros. Ele não tinha fósforos, mas o guarda sempre mudo que trazia sua
comida lhe emprestaria o fogo. Da primeira vez em que ele tentou fumar, sentiu
náuseas, mas insistiu, e fez o maço durar bastante tempo, fumando meio cigarro
depois de cada refeição.
Eles haviam trazido uma lousa com um toco de giz amarrado. A princípio, ele
não a usou. Mesmo quando estava acordado, ele se sentia completamente prostrado.
Muitas vezes, ficava deitado entre uma refeição e outra, quase sem se mexer; às
vezes, dormindo, às vezes, em vagos devaneios em que não se dava ao trabalho de
abrir os olhos. Havia muito tempo que ele se acostumara a dormir com a luz forte no
rosto. Parecia não fazer diferença, exceto pelos sonhos, que ficavam mais coerentes.
Ele sonhou um bocado durante todo esse tempo, e eram sempre sonhos felizes. Ele
estava no Campo Dourado, ou sentado entre ruínas enormes, gloriosas, ensolaradas,
com sua mãe, Julia, O’Brien — sem fazer nada, simplesmente sentados ao sol,
conversando sobre coisas pacíficas. Esses pensamentos, que tinha quando acordava,
eram principalmente sobre esses sonhos. Ele parecia ter perdido a capacidade de
esforço intelectual, agora que o estímulo da dor havia sido removido. Ele não ficava
entediado, não tinha vontade de conversar nem de se distrair. Simplesmente estar
sozinho, não ser espancado ou interrogado, ter o suficiente para comer e ficar
totalmente limpo era completamente satisfatório.
Aos poucos, ele começou a passar cada vez menos tempo dormindo, mas ainda
não sentia nenhum impulso para sair da cama. A única coisa que lhe importava era
ficar quieto e sentir a força se acumular em seu corpo. Ele tateava o corpo aqui e ali,
tentando ter certeza de que não era uma ilusão que seus músculos estavam
crescendo e sua pele ficando mais firme. Enfim, ficou estabelecido, sem nenhuma
dúvida, que ele estava engordando; suas coxas agora estavam definitivamente mais
grossas que seus joelhos. Depois disso, a princípio com relutância, ele começou a se
exercitar regularmente. Em pouco tempo, conseguia andar três quilômetros,
medidos a passos dentro da cela, e seus ombros encurvados estavam se aprumando.
Ele tentou exercícios mais elaborados, e ficou perplexo e sentiu-se humilhado com
as coisas que não conseguia mais fazer. Ele não conseguia se mexer depois de
caminhar, não conseguia segurar o banco com o braço esticado, não conseguia se
equilibrar em uma perna só sem cair. Após se agachar sobre os calcanhares,
descobriu, com dores agonizantes nas coxas e nas panturrilhas, que só tinha forças
para se manter em pé. Deitou-se de bruços e tentou erguer o próprio peso com as
mãos. Em vão; ele não conseguiu se mover um centímetro. No entanto, após alguns
dias — e algumas refeições depois —, até mesmo essa proeza foi realizada. Chegou
um momento em que ele conseguia fazer seis flexões seguidas. Ele passou a se
sentir de fato orgulhoso de seu corpo, e a alimentar uma ilusão intermitente de que
também seu rosto estaria voltando ao normal. Só quando, por acaso, tocou com a
mão o topo da cabeça calva, ele se lembrou do rosto vincado, arruinado, que o
contemplara do espelho.
Sua mente se tornou mais ativa. Ele ficava sentado na cama de tábua, encostado
na parede, com a lousa nos joelhos, e se punha a trabalhar deliberadamente na tarefa
de sua própria reeducação.
Ele se rendera, não havia dúvida. Na realidade, ele percebia agora, ele já estava
pronto para se render muito antes de ter tomado a decisão de se entregar. A partir do
momento em que ele entrou no Ministério do Amor — e, sim, mesmo naqueles
minutos em que ele e Julia ficaram paralisados no quarto, enquanto a voz metálica
do telemonitor lhes dizia o que fazer —, percebeu a frivolidade, a inutilidade de sua
tentativa de se insurgir contra o poder do Partido. Ele agora sabia que durante sete
anos a Polícia do Pensamento o vigiara como um besouro sob uma lupa. Não havia
nenhum ato físico, nenhuma palavra dita em voz alta, que eles não tivessem
captado, nenhuma linha de raciocínio que eles não pudessem inferir. Até a poeira
esbranquiçada na capa de seu diário eles haviam cuidadosamente reposto no mesmo
lugar. Eles reproduziram gravações, mostraram-lhe fotografias. Algumas fotografias
de Julia com ele. Sim, até mesmo… Ele não podia mais lutar contra o Partido. Além
disso, o Partido estava certo. Devia mesmo ser assim; como o cérebro coletivo
imortal poderia estar errado? Com que padrão externo seria possível refutar o
julgamento do Partido? A sanidade era estatística. Era uma mera questão de
aprender a pensar como eles pensavam. Somente…!
O giz parecia grosso e estranho em seus dedos. Ele começou a escrever os
pensamentos que lhe vinham à cabeça. Ele escreveu primeiro com maiúsculas
grandes e mal traçadas:
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO.

Então, logo em seguida, escreveu embaixo:


DOIS MAIS DOIS SÃO CINCO.

Depois, contudo, sentiu uma espécie de bloqueio. Sua mente, como se evitasse
alguma coisa, parecia incapaz de se concentrar. Ele sabia que sabia o que viria a
seguir, mas naquele momento não foi capaz de se lembrar do que era. Quando ele se
lembrou, foi apenas deduzindo racionalmente o que deveria ser: não lhe veio
naturalmente. Ele escreveu:
DEUS É PODER.

Ele aceitou tudo. O passado era alterável. O passado nunca fora alterado. A
Oceania estava em guerra contra a Lestásia. A Oceania sempre estivera em guerra
contra a Lestásia. Jones, Aaronson e Rutherford eram culpados dos crimes de que
foram acusados. Ele nunca tinha visto a fotografia que desmentia a culpa deles. A
fotografia jamais existira, ele havia inventado aquilo. Ele se lembrava de ter
lembrado de coisas contraditórias, mas essas lembranças eram falsas, produtos do
autoengano. Como tudo era fácil! Bastava se entregar, e todo o resto era
consequência. Era como se estivesse nadando contra a corrente, sendo levado para
trás, por mais força que fizesse, e então, subitamente decidido, se virar e seguir a
correnteza em vez de se opor. Nada mudara exceto sua própria atitude; o que havia
sido predestinado aconteceu de todo modo. Ele mal sabia explicar por que havia se
rebelado. Tudo era fácil, exceto…!
Qualquer coisa podia ser verdade. As chamadas leis da Natureza eram bobagens.
A lei da gravidade era besteira. O’Brien dissera: “Eu posso flutuar acima do chão
como uma bolha de sabão se eu quiser.”. Winston entendia agora. “Se ele PENSAR
que está flutuando acima do chão, e se eu simultaneamente PENSAR que estou
vendo-o flutuar acima do chão, então a coisa acontece.” Subitamente, como um
pedaço de um navio naufragado emergindo da superfície da água, o pensamento
invadiu sua mente: “Não acontece de verdade. Nós imaginamos. É uma
alucinação!”. Ele soterrou esse pensamento instantaneamente. A falácia era óbvia.
Pressupunha que em algum lugar, fora de si mesmo, existisse um mundo “real”,
onde coisas “reais” aconteciam. Que conhecimento nós temos do que quer que seja,
exceto através da nossa própria mente? Todos os acontecimentos ocorrem dentro da
mente. Qualquer coisa que aconteça em todas as mentes acontece de verdade.
Ele não teve dificuldade para se livrar da falácia, e não corria o risco de
sucumbir a ela. Ele se deu conta, não obstante, de que aquela falácia jamais deveria
ter lhe ocorrido. A mente deveria desenvolver um ponto cego sempre que um
pensamento perigoso se apresentasse. O processo deveria ser automático, instintivo.
ANTICRIMINAR, eles diziam em novilíngua.
Ele se pôs a trabalhar para se exercitar em anticriminar. Ele apresentou a si
mesmo algumas proposições — “o Partido diz que a Terra é plana”, “o Partido diz
que o gelo é mais pesado que a água” — e se treinou para não compreender ou não
entender os argumentos que as contradissessem. Não era fácil. Era necessário um
grande poder de argumentação e de improvisação. Os problemas aritméticos
suscitados, por exemplo, por uma afirmação como “dois mais dois são cinco”
estavam além de seu alcance intelectual. Exigia-se uma espécie de atletismo mental,
uma capacidade de usar a lógica mais refinada em um momento e, no momento
seguinte, ser inconsciente dos erros lógicos mais crassos. A estupidez era tão
necessária quanto a inteligência, e igualmente difícil de alcançar.
Todo esse tempo, com uma parte de sua mente, ele se perguntava se demoraria
muito para que o fuzilassem. “Tudo depende de você”, O’Brien lhe dissera; mas ele
sabia que nenhum ato consciente seu aceleraria o processo. Poderia ser dali a dez
minutos, ou dali a dez anos. Eles podiam mantê-lo durante anos confinado na
solitária, podiam mandá-lo para um campo de trabalhos forçados, podiam libertá-lo
por algum tempo, como às vezes faziam. Era perfeitamente possível que
reencenassem todo o drama de sua prisão e seu interrogatório antes de fuzilá-lo. A
única certeza era que a morte nunca vinha no momento esperado. A tradição — a
tradição secreta; de alguma forma, todos sabiam, embora nunca fosse dito — era um
tiro pelas costas; sempre na cabeça, sem aviso, quando você estava no corredor indo
de uma cela para outra.
Um dia — mas “um dia” não era a expressão correta; era também igualmente
provável que fosse no meio da noite — certa vez, ele teve um sonho acordado,
estranho, um felicíssimo devaneio. Ele caminhava pelo corredor esperando a bala.
Sabia que a bala viria no momento seguinte. Tudo estava acertado, resolvido,
combinado. Não havia mais dúvidas, argumentos, dor ou medo. Seu corpo estava
saudável e forte. Ele andava com desembaraço, com uma leveza de movimentos e a
sensação de estar caminhando ao sol. Ele não estava mais nos corredores brancos
estreitos do Ministério do Amor; estava em uma enorme passagem ensolarada, de
um quilômetro de largura, que ele percorria num delírio induzido por drogas. Estava
no Campo Dourado, seguindo a trilha, no meio do pasto roído por coelhos. Podia
sentir a relva baixa espetar seus pés e o sol suave em seu rosto. No limite do pasto
ficavam os olmos, levemente agitados, e, além do bosque de olmos, havia o riacho
onde os peixes dourados nadavam em piscinas verdes sob os salgueiros.
Subitamente, ele teve um sobressalto de horror. O suor escorreu em suas costas.
Ele se ouviu exclamar em voz alta:
— Julia! Julia! Julia, meu amor! Julia!
Por um momento, ele teve uma irresistível alucinação em que sentia a presença
dela. Ela parecia estar não apenas com ele, mas dentro dele. Era como se ela tivesse
penetrado a textura da pele dele. Naquele instante, ele a amou mais do que nunca,
muito mais do que quando estavam juntos e livres. Ele também soube, naquele
instante, que ela ainda estava viva em algum lugar e que precisava da ajuda dele.
Ele se recostou na cama e tentou se recompor. O que ele havia feito? Quantos
anos teria acrescentado àquela servidão por aquele momento de fraqueza?
No momento seguinte, ele ouviria o estampido das botas do lado de fora. Eles
não poderiam permitir que aquele extravasamento passasse impune. Eles agora
saberiam, se é que já não sabiam, que ele estava quebrando o acordo. Ele obedecia
ao Partido, mas ainda odiava o Partido. Nos velhos tempos, ele havia ocultado uma
mente herética sob uma aparência de conformidade. Agora ele recuava mais um
passo; em sua mente, ele havia se entregado, mas esperava conservar o coração
inviolado. Ele sabia que estava errado, mas preferia estar errado. Eles haveriam de
entender isso — O’Brien entenderia. Tudo isso foi confessado naquele único grito
insensato.
Ele teria de começar tudo outra vez. Talvez levasse anos. Ele passou a mão no
rosto, tentando se familiarizar com a nova forma. Havia sulcos profundos em suas
faces, as maxilas estavam ressaltadas, o nariz achatado. Além disso, depois da
última vez que se vira no espelho, lhe deram uma dentadura nova. Não era fácil se
manter indevassável quando não se sabia como estava o próprio rosto. Em todo
caso, o mero controle das expressões não bastava. Pela primeira vez ele percebeu
que, se quisesse esconder um segredo, seria preciso escondê-lo também de si
mesmo. O tempo todo era necessário saber que o segredo estava ali, mas até o
momento preciso jamais deveria permitir que emergisse na consciência sob qualquer
forma que se pudesse nomear. De agora em diante, ele deveria não apenas pensar
corretamente; ele precisaria sentir corretamente, sonhar corretamente. E a todo o
tempo ele precisaria conservar o ódio trancafiado dentro de si como uma bola de
matéria que fizesse parte de si mesmo e, no entanto, fosse desconectada do resto
dele, como uma espécie de tumor.
Um dia, eles decidiriam fuzilá-lo. Não era possível saber quando isso
aconteceria, mas alguns segundos antes talvez fosse possível adivinhar. Era sempre
pelas costas, andando no corredor. Dez segundos bastariam. Nesse meio-tempo, o
mundo dentro dele poderia se revirar. E então, subitamente, sem dizer nada, sem
interromper o passo, sem nenhuma mudança nas rugas em seu rosto… subitamente
a camuflagem seria tirada e bang! As baterias de seu ódio disparariam. O ódio o
inflamaria por inteiro como uma chama enorme e trovejante. E, quase no mesmo
instante, bang! — viria a bala, tarde demais, ou cedo demais. Eles explodiriam seu
cérebro em pedaços antes de conseguirem reivindicá-lo. O pensamento herético
passaria impune, sem remorso, para fora do alcance deles, para sempre. Eles
abririam um buraco na própria perfeição. Morrer odiando todos eles, isso era
liberdade.
Ele fechou os olhos. Era mais difícil do que aceitar uma disciplina intelectual.
Era uma questão de se degradar, de mutilar a si mesmo. Ele precisaria chafurdar na
imundície das imundícies. O que seria mais horrível, mais nauseante que tudo? Ele
pensou no Grande Irmão. O rosto enorme (por vê-lo constantemente em cartazes,
ele sempre pensara nele como um rosto de um metro de largura), com o espesso
bigode preto e os olhos que seguiam aonde quer que o observador fosse, parecia
flutuar em sua mente com vontade própria. Quais eram seus verdadeiros
sentimentos em relação ao Grande Irmão?
Ouviu-se o estardalhaço de botas pesadas no corredor. A porta de aço foi
escancarada com estrondo. O’Brien entrou na cela. Atrás dele vinham o oficial de
rosto branco e os guardas de uniforme preto.
— Levante-se — disse O’Brien. — Venha cá.
Winston parou diante dele. O’Brien segurou os ombros de Winston com as mãos
firmes e olhou bem para ele.
— Você andou pensando em me enganar — ele disse. — Isso foi uma estupidez.
Fique ereto. Olhe nos meus olhos.
Ele fez uma pausa; então, continuou num tom mais gentil:
— Você está melhorando. Intelectualmente, quase não há nada de errado com
você. Só emocionalmente você não tem feito progresso. Diga-me, Winston… e
lembre-se: sem mentir! Você sabe que eu sempre consigo detectar uma mentira…
Diga-me, quais são seus verdadeiros sentimentos em relação ao Grande Irmão?
— Eu o odeio.
— Você o odeia. Muito bem. Então, chegou a hora de você dar o último passo.
Você precisa amar o Grande Irmão. Não basta lhe obedecer. Você precisa amá-lo!
Ele liberou Winston com um leve empurrão na direção dos guardas.
— Sala 101 — ele disse.
Capítulo 5

A cada etapa de sua prisão, ele sempre soubera, ou parecera saber, o lugar onde
estava no interior do edifício sem janelas. Possivelmente, havia pequenas diferenças
na pressão atmosférica. As celas onde os guardas o espancavam ficavam no subsolo.
A sala onde ele era interrogado por O’Brien era perto do último andar. Esse lugar
onde ele estava agora se localizava a muitos metros abaixo da terra, num espaço tão
profundo quanto era possível chegar.
Era maior que a maioria das celas onde ele estivera. No entanto, ele mal reparou
onde estava. A única coisa que ele percebeu foi que havia duas mesas pequenas bem
à sua frente, ambas cobertas com feltro verde. Uma delas estava a um metro ou dois
dele; a outra, um pouco mais adiante, perto da porta. Ele estava amarrado a uma
cadeira, tão apertado que não conseguia mover nada, nem a cabeça. Uma espécie de
almofada prendia sua cabeça por trás, forçando-o a olhar diretamente para a frente.
Por um momento, ele ficou sozinho; então, a porta se abriu e O’Brien entrou.
— Uma vez você me perguntou — disse O’Brien — o que havia na sala 101. Eu
disse que você já sabia a resposta. Todo mundo sabe. O que há na sala 101 é a pior
coisa do mundo.
A porta se abriu outra vez. Um guarda entrou, trazendo algo feito de arame —
uma caixa ou um cesto de algum tipo. Ele deixou o objeto na mesa mais distante.
Em virtude da posição em que O’Brien estava parado, Winston não conseguiu ver o
que era.
— A pior coisa do mundo — disse O’Brien — varia de indivíduo para
indivíduo. Ora é ser enterrado vivo, ora morrer queimado, ou afogado, ou empalado,
ou cinquenta outros tipos de morte. Há casos em que se trata de algo bastante trivial,
nem mesmo fatal.
Ele se movera um pouco para o lado, de modo que Winston pôde ver melhor o
objeto sobre a mesa. Era uma gaiola oblonga com uma alça em cima para que
pudesse ser transportada. Afixado na frente da gaiola, havia algo que parecia uma
máscara de esgrima, com a parte côncava virada para fora. Embora a gaiola
estivesse a três ou quatro metros, ele podia ver que era dividida em dois
compartimentos, e que havia uma criatura em cada uma dessas partes. Eram ratos.
— No seu caso — disse O’Brien —, a pior coisa do mundo, por acaso, são ratos.
Uma espécie de tremor premonitório, um medo de algo que ele não sabia ao
certo o que era, percorrera o corpo de Winston assim que ele vira de relance a gaiola
pela primeira vez. Mas, nesse momento, o significado da máscara acoplada na frente
subitamente se revelou para ele. Suas entranhas pareciam ter virado água.
— Você não pode fazer isso! — ele gritou com voz aguda e esganiçada. — Você
não poderia, você não poderia! É impossível!
— Você se lembra — disse O’Brien — do momento de pânico que costumava
ocorrer em seus sonhos? Havia uma parede de escuridão à sua frente, e um rugido
em seus ouvidos. Havia algo terrível do outro lado da parede. Você sabia que sabia o
que era, mas não ousava revelar abertamente. Eram os ratos do outro lado da parede.
— O’Brien! — disse Winston, fazendo um esforço para controlar a voz. — Você
sabe que isso não é necessário. O que você quer que eu faça?
O’Brien não deu nenhuma resposta direta. Quando ele falou, foi à maneira
professoral que ele às vezes adotava. Ele olhou pensativamente para o vazio, como
se estivesse se dirigindo a uma plateia atrás de Winston.
— Em si mesma — ele disse — a dor nem sempre é o suficiente. Há ocasiões
em que o ser humano consegue suportar a dor, chegando a ponto de morrer. Mas,
para cada um, existe sempre algo insuportável… algo que não pode ser sequer
contemplado. A coragem e a covardia não têm nada a ver com isso. Se você está
caindo de uma altura, não é covardia se agarrar a uma corda. Se você emergiu de
águas profundas, não é covardia encher os pulmões de ar. É meramente um instinto
que não pode ser destruído. É a mesma coisa com ratos. Para você, é insuportável. O
rato é uma forma de opressão que você não pode suportar, mesmo que você queira.
Você fará tudo o que lhe for exigido.
— Mas fazer o quê? Como posso fazer algo que não sei o que é?
O’Brien pegou a gaiola e a trouxe para a mesa mais próxima. Ele a colocou
cuidadosamente sobre o feltro. Winston podia ouvir o sangue latejando em suas
orelhas. Ele se sentia ali sentado em profunda solidão. Estava no meio de uma
grande planície vazia, um deserto plano e ensolarado, através do qual todos os sons
lhe chegavam de distâncias imensas. No entanto, a gaiola com os ratos estava a
menos de dois metros dele. Eram ratos enormes. Estavam na idade em que o focinho
se achatava e ficavam ferozes e o pelo cinza se tornava marrom.
— O rato — disse O’Brien, ainda se dirigindo à sua plateia invisível —, apesar
de ser um roedor, é carnívoro. Você sabe disso. Você deve ter ouvido sobre as coisas
que acontecem nos bairros pobres da cidade. Em algumas vielas, uma mulher não
arrisca deixar um bebê sozinho em casa nem por cinco minutos. Os ratos certamente
atacariam o bebê. Em pouco tempo, os ratos vão devorá-lo até os ossos. Os ratos
também atacam doentes e moribundos. O rato tem uma inteligência impressionante
para perceber quando o ser humano está indefeso.
Escutou-se um acesso de guinchos vindo da gaiola. Esses guinchos pareciam
chegar aos ouvidos de Winston como se viessem de muito longe. Os ratos estavam
brigando entre si; estavam tentando alcançar um ao outro através de uma divisória.
Ele ouviu também um gemido grave de desespero. Esse gemido também parecia vir
de fora dele.
O’Brien pegou a gaiola, e, ao fazê-lo, empurrou algo para dentro. Houve um
estalido agudo. Winston fez um esforço frenético para se soltar da cadeira. Foi
inútil; todas as partes de seu corpo, até a cabeça, estavam imobilizadas. O’Brien
aproximou a gaiola. Estava a menos de um metro do rosto de Winston.
— Abri a primeira trava — disse O’Brien. — Você sabe como funciona esta
gaiola. A máscara será colocada em sua cabeça sem deixar nenhuma saída. Quando
eu pressionar a segunda trava, a porta da gaiola subirá. Esses bichos famintos irão se
lançar como duas balas de canhão. Você já viu um rato saltando no ar? Eles pulam
em seu rosto e entram rasgando. Às vezes, atacam primeiro os olhos. Às vezes,
cavam as bochechas e devoram a língua.
A gaiola ficou mais próxima; parecia cada vez maior. Winston ouviu uma
sucessão de guinchos agudos que aparentemente pairavam no ar sobre sua cabeça.
Mas ele tentava combater furiosamente o pânico. Pensar, pensar, mesmo faltando
uma fração de segundo… pensar era a única esperança. De repente, o odor azedo
asqueroso dos ratos se impregnou em suas narinas. Houve uma violenta convulsão
de náusea dentro dele, e ele quase perdeu a consciência. Tudo ficou escuro. Por um
instante, ele se tornou insano, um animal gritando. No entanto ele saiu da escuridão
se agarrando a uma ideia. Só havia uma única saída para se salvar. Ele precisaria
interpor outro ser humano, o CORPO de outro ser humano, entre ele e os ratos.
A máscara era grande o bastante para vedar a visão de qualquer outra coisa. A
porta da gaiola estava a alguns palmos de seu rosto. Os ratos agora sabiam o que
estava acontecendo. Um deles estava pulando; o outro, um velho e miserável avô
dos esgotos, estava ereto, com as mãos rosadas agarradas às barras, e farejava com
ferocidade o ar. Winston podia ver os bigodes e os dentes amarelos. Mais uma vez, o
pânico escuro tomou conta dele. Ele ficou cego, impotente, entorpecido.
— Era um castigo comum na China Imperial — disse O’Brien de um modo
didático como sempre.
A máscara estava se fechando em seu rosto. A grade roçou sua face. E então —
não, não foi um consolo, apenas uma esperança, um minúsculo fragmento de
esperança. Tarde demais, talvez. Mas, de repente, ele entendeu que no mundo inteiro
só havia UMA pessoa para quem ele poderia transferir seu castigo — UM corpo que
ele poderia interpor entre o seu e os ratos. E ele começou a berrar freneticamente,
sem parar.
— Façam isso com a Julia! Façam isso com a Julia! Não comigo! Com a Julia!
Não me importa o que vocês fizerem com ela. Rasguem o rosto dela, roam até os
ossos. Comigo, não! Julia! Comigo, não!
Ele estava caindo de costas, em uma profundidade enorme, longe dos ratos. Ele
ainda estava amarrado à cadeira, mas era como se tivesse caído e atravessado o
chão, através das paredes do edifício, atravessando a terra, os oceanos, a atmosfera,
penetrando o espaço sideral, e os espaços vazios entre as estrelas — sempre
distante, cada vez mais distante dos ratos. Ele estava a anos-luz de distância, mas
O’Brien ainda estava parado a seu lado. Ainda havia a sensação do toque frio da
grade da gaiola em seu rosto. Contudo, em meio à escuridão que o envolvia, ele
ouviu outro clique metálico, e soube que era a porta da gaiola que agora se fechava,
e não que se abria.
Capítulo 6

O Café Castanheira estava quase vazio. Um raio de sol entrava pela janela e se
espalhava sobre as mesas empoeiradas. Era a solidão das três horas da tarde. Uma
música metálica escorria dos telemonitores.
Winston estava sentado em seu canto de sempre, contemplando um copo vazio.
De quando em quando, ele erguia os olhos para um rosto imenso que o fitava da
parede oposta. O GRANDE IRMÃO ESTÁ DE OLHO EM VOCÊ dizia a legenda.
Sem avisar, um garçom veio e encheu seu copo com Gim Vitória, sacudindo
algumas gotas de outro frasco com um bico espetado em uma rolha. Era sacarina
aromatizada com cravos, especialidade do café.
Winston ouvia o telemonitor. No momento, havia apenas uma música tocando,
mas existia a possibilidade de, a qualquer instante, ser divulgado um boletim
especial do Ministério da Paz. As notícias do fronte africano eram extremamente
perturbadoras. Um exército eurasiano (a Oceania estava em guerra contra a Eurásia;
a Oceania sempre estivera em guerra contra a Eurásia) vinha se deslocando rumo ao
sul a uma velocidade aterrorizante. O boletim do meio-dia não havia mencionado
nenhuma área específica, mas era provável que a foz do Congo já fosse um campo
de batalha. Brazzaville e Leopoldville estavam sob risco. Não era preciso olhar o
mapa para entender o que aquilo significava. A questão não era meramente a perda
da África Central; pela primeira vez em toda a guerra, o território da Oceania era
ameaçado.
Uma emoção violenta, não exatamente um medo, mas uma espécie de excitação
indefinida acendeu-se dentro dele, e logo passou. Ele parou de pensar na guerra.
Naqueles dias, ele não conseguia fixar a mente em nenhum assunto por mais do que
alguns segundos. Ele pegou seu copo e o esvaziou num gole só. Como sempre, o
gim fez com que ele estremecesse e sentisse uma ligeira ânsia de vômito. A bebida
era horrível. Os cravos e a sacarina, em si mesmos asquerosos o suficiente para
provocar náuseas, não conseguiam disfarçar o cheiro intenso de óleo; e o pior de
tudo era que o cheiro de gim, que convivia com ele noite e dia, era
inextricavelmente mesclado em sua mente com o cheiro daqueles…
Ele nunca os nomeava, nem em pensamento, e, na medida do possível, jamais os
visualizava. Era algo de que ele tinha uma semiconsciência, algo próximo de seu
rosto, com um cheiro que se impregnava nas narinas. O gim lhe subiu à boca e ele
arrotou entre os lábios arroxeados. Ele engordara desde que o haviam libertado, e
retomara a antiga cor — na verdade, mais do que isso. Seus traços haviam se
tornado mais grosseiros, a pele do nariz e das faces estava brutalmente avermelhada,
até a cabeça calva havia adquirido um tom rosa-escuro. Um garçom, mais uma vez
sem ser chamado, trouxe o tabuleiro e o exemplar diário do Times
, dobrado na
página do desafio de xadrez. Então, vendo que o copo de Winston estava vazio, ele
trouxe a garrafa de gim e o encheu. Não era necessário pedir. Eles conheciam seus
hábitos. O tabuleiro de xadrez estava sempre esperando por ele, sua mesa no canto
estava sempre reservada; mesmo quando o lugar estava cheio, sua mesa ficava
sempre livre, pois ninguém queria se sentar muito perto dele. Ele nunca se dava ao
trabalho de contar quantas doses bebia. Esporadicamente, eles lhe apresentavam um
papel sujo que diziam ser sua conta, mas ele tinha a impressão de que sempre lhe
cobravam menos. Não teria feito diferença se fosse o contrário. Naqueles dias, ele
estava sempre cheio de dinheiro. Tinha até um trabalho, uma sinecura, com salário
maior do que em seu antigo emprego.
A música do telemonitor parou e uma voz começou a falar. Winston ergueu a
cabeça para ouvir. Mas não era um boletim do fronte africano. Era apenas um breve
comunicado do Ministério da Fartura. No quadrimestre anterior, aparentemente, a
meta de produção de cadarços estabelecida no Décimo Plano Trienal havia sido
superada em 98%.
Ele examinou o problema de xadrez e dispôs as peças. Era um final ardiloso
envolvendo dois cavalos. “Vantagem das brancas e mate em dois movimentos.”
Winston olhou para o retrato do Grande Irmão. As brancas sempre vencem, ele
pensou com uma espécie de misticismo nebuloso. Sempre, sem exceção, arranjam
tudo para que seja assim. Em nenhum desafio de xadrez, desde os primórdios, as
pretas venciam. Será que aquilo simbolizava o eterno e invariável triunfo do Bem
sobre o Mal? O rosto enorme olhava de volta para ele, repleto de um poder sereno.
As brancas sempre vencem.
A voz do telemonitor fez uma pausa e acrescentou num tom diferente e muito
mais grave: “Estejam todos avisados: fiquem a postos para ouvir um importante
pronunciamento às quinze e trinta. Quinze e trinta! São notícias da mais alta
relevância. Cuidado para não perder. Quinze e trinta!”. A música tilintante voltou a
tocar.
O coração de Winston se agitou. Agora, seria o boletim do fronte africano;
instintivamente, ele sabia que viriam más notícias. O dia inteiro, com breves surtos
de excitação, a ideia de uma derrota esmagadora na África entrara e saíra de sua
mente. Era como se ele já pudesse ver o exército eurasiano invadindo a fronteira
jamais ultrapassada e enxameando o sul da África como uma fileira de formigas.
Por que não fora possível cercá-los de alguma forma? O contorno da África
Ocidental se destacava nitidamente em seu pensamento. Ele pegou o cavalo branco
e o moveu pelo tabuleiro. ALI seria o melhor lugar. Ao mesmo tempo, ele via as
hordas pretas correndo para o sul, e também outra força, misteriosamente
arregimentada, subitamente plantada na retaguarda das hordas, cortando suas
comunicações por terra e por mar. Ele sentiu que, ao desejar que aquilo ocorresse,
estava trazendo essa outra força à realidade. Mas era preciso agir depressa. Se eles
assumissem o controle de toda a África, se instalassem pistas de pouso e bases de
submarinos na Cidade do Cabo, isso racharia a Oceania ao meio. E poderia
significar qualquer coisa: a derrota, o colapso, a reconfiguração do mundo, a
destruição do Partido! Ele respirou fundo. Uma mistura extraordinária de sensações
— não exatamente uma mistura; eram, antes, sucessivas camadas de sentimentos,
das quais ele não sabia dizer qual camada era a mais profunda — revolvia-se dentro
dele.
O espasmo passou. Ele devolveu o cavalo branco à posição, mas por ora não
seria capaz de se dedicar a uma análise séria do problema de xadrez. Seus
pensamentos divagaram de novo. Quase inconscientemente, ele passou o dedo na
poeira do tampo da mesa:

2+2=5

“Eles não podem entrar na pessoa”, ela tinha dito. Mas eles podiam. “O que
acontece com você aqui é PARA TODA A ETERNIDADE”, O’Brien dissera. Essa
era a verdade. Havia coisas — seus próprios atos — das quais era impossível se
recuperar. Algo morrera em seu peito: queimado, cauterizado.
Ele a vira; até falara com ela. Não havia nenhum perigo. Instintivamente, ele
sabia que eles agora quase não se interessavam pelo que ele fazia. Ele poderia ter
marcado de encontrá-la uma segunda vez se quisessem. Na verdade, eles se
encontraram por acaso. Foi no parque, em um dia horrível de março, de frio
cortante, em que a terra parecia de ferro e toda a grama parecia morta e não havia
nenhum botão de flor exceto os de alguns açafrões que brotaram e foram
desmembrados pelo vento. Ele vinha apressado, com as mãos congeladas e os olhos
lacrimejantes, quando a avistou a menos de dez metros de distância. Ele ficou logo
impressionado ao ver que ela havia mudado de algum modo indefinido. Eles quase
não se reconheceram, mas ele se virou e a seguiu sem muita ansiedade. Ele sabia
que não havia perigo, ninguém se interessava mais por ele. Ela não disse nada;
continuou caminhando a esmo pela grama como se tentasse se livrar dele, até que se
resignou em tê-lo ao lado. Então, pararam próximo a uns arbustos desfolhados,
inúteis tanto como esconderijo quanto como proteção contra o vento. Ficaram ali
parados. Estava um frio medonho. O vento assobiou entre os gravetos e acabou
trazendo ao acaso uns açafrões enxovalhados. Ele passou o braço pela cintura dela.
Ali não havia telemonitores, mas devia ter microfones ocultos; além do mais,
eles podiam ser vistos. Eles poderiam ter se deitado no chão e feito AQUILO se
quisessem. Ele sentiu sua carne se congelar de horror ao pensar nisso. Ela não
reagiu ao seu abraço; também não tentou se desvencilhar. Ele então percebeu o que
havia mudado nela. Seu rosto estava mais amarelado, e havia uma longa cicatriz, em
parte escondida pelo cabelo, cruzando a testa e a têmpora; mas não era essa a
diferença. Era a cintura que se alargara e, surpreendentemente, endurecera. Ele se
lembrou de quando, uma vez, após a explosão de um míssil, ajudara a arrastar um
cadáver do meio dos escombros, e ficara impressionado não só com o peso
inacreditável do corpo, mas com sua rigidez e a estranheza ao manuseá-lo, que o
tornava mais parecido com uma pedra do que com carne. O corpo dela estava assim.
Ocorreu-lhe que a textura da pele dela devia estar diferente.
Ele não tentou beijá-la, e eles não se falaram. Enquanto voltavam pelo gramado,
ela olhou diretamente para ele pela primeira vez. Foi apenas um olhar de relance,
cheio de desprezo e desgosto. Ele se perguntou se era um desgosto puramente pelo
passado ou se era por causa de seu rosto inchado e pelas lágrimas que o vento
arrancava de seus olhos. Eles se sentaram em dois bancos de ferro, lado a lado, mas
não muito próximos. Ele percebeu que ela estava prestes a falar. Ela moveu
desajeitadamente o sapato alguns centímetros e deliberadamente esmagou um
graveto. Seus pés pareciam mais largos, ele reparou.
— Eu te traí — ela disse diretamente.
— Eu também te traí — ele disse.
Ela olhou para ele, outra vez de relance, com desgosto.
— Às vezes — ela disse —, eles ameaçam com alguma coisa que é impossível
suportar, algo que você não suporta nem pensar. E aí você fala “Não façam isso
comigo, façam com outra pessoa, façam isso com fulano de tal…”. E talvez mais
tarde você possa fingir que foi só um truque e que só disse isso para fazê-los parar, e
que não queria realmente dizer aquilo. Mas não é verdade. Na hora que acontece,
você realmente quer dizer aquilo. Você acha que não tem outro jeito de se salvar, e
você quer na verdade se salvar dizendo aquilo. Você QUER que aquilo aconteça
com outra pessoa. Você não se importa que o outro sofra. Nesse momento, você só
se importa consigo mesmo.
— Sim, nesse momento, você só se importa consigo mesmo — ele repetiu.
— Depois disso, você não sente mais a mesma coisa pelo outro.
— Não — ele disse. — Você não sente mais a mesma coisa…
Aparentemente, não havia mais nada a dizer. O vento colava seus macacões
finos contra o corpo. Quase imediatamente se tornou embaraçoso ficar ali sentado
em silêncio; além disso, estava frio demais para que continuassem parados. Ela
disse alguma coisa sobre pegar o trem e se levantou para ir embora.
— Precisamos nos ver de novo — ele disse.
— Sim — ela disse —, precisamos nos ver de novo.
Ele a acompanhou indeciso por mais algum tempo, meio passo atrás dela. Eles
não se falaram mais. Ela não tentou, na verdade, se livrar dele, mas prosseguiu
caminhando a uma velocidade que impediu que ele a acompanhasse. Ele havia
decidido que iria até a estação, mas, de repente, todo o processo de acompanhá-la
naquele frio lhe pareceu sem sentido e insuportável. Ele se sentiu dominado por um
desejo não tanto de se livrar de Julia, mas de voltar ao Café Castanheira, que nunca
lhe parecera tão atraente quanto naquele instante. Veio-lhe uma imagem nostálgica
de sua mesa no canto, com o jornal e o xadrez e o gim ilimitado. Sobretudo, lá
dentro estaria quente. No momento seguinte, não por acaso, ele se deixou separar
dela por um grupo de pessoas. Ele fez uma tentativa desanimada de alcançá-la,
depois diminuiu o passo, virou e seguiu na direção oposta. Quando havia se afastado
uns cinquenta metros, ele olhou para trás. A rua não estava cheia, mas ele já não
conseguiu mais distingui-la. Ela podia ser qualquer uma em meio àquele grupo de
pessoas. Talvez seu corpo, agora mais largo e mais rígido, não fosse mais
reconhecível de costas.
“Na hora que acontece”, ela tinha dito, “você realmente quer dizer aquilo”. Ele
quisera. Não apenas dissera, ele desejara. Desejara que ela, e não ele, fosse entregue
aos…
Algo mudou na música que vinha do telemonitor. Um tom rachado e fingido, um
tom covarde soou. E então… talvez não estivesse acontecendo, talvez fosse apenas
uma lembrança assumindo a aparência de um som… uma voz estava cantando:
Embaixo da frondosa castanheira
te traí e me traíste da mesma maneira…

Vieram-lhe lágrimas aos olhos. Um garçom, de passagem, reparou que seu copo
estava vazio e voltou com a garrafa de gim.
Ele pegou o copo e o cheirou. A bebida não se tornava menos, mas cada vez
mais horrível a cada gole que ele dava. No entanto, havia se tornado seu elemento.
O gim era sua vida, sua morte e sua ressurreição. Era o gim que o mergulhava no
estupor todas as noites, e o gim que o ressuscitava a cada manhã. Quando ele
acordava, raramente antes das onze, com as pálpebras grudadas e a boca seca e as
costas que pareciam quebradas, seria impossível até mesmo se levantar se não fosse
a garrafa e a xícara ao lado da cama. Do meio-dia em diante, ele ficava sentado com
o olhar vazio, com a garrafa à mão, ouvindo o telemonitor. Das quinze até a hora de
fechar, ele estava sempre no Castanheira. Ninguém mais se importava de saber o
que ele tinha feito, ninguém assobiava para acordá-lo, nenhum telemonitor gritava
com ele. De vez em quando, talvez duas vezes por semana, ele ia até um escritório
empoeirado e esquecido no Ministério da Verdade e trabalhava um pouco, ou fazia o
que chamavam de serviço. Ele havia sido nomeado membro de um subcomitê de um
subcomitê que fora criado a partir de um dos inúmeros comitês que lidavam com
pequenas dificuldades surgidas na compilação da décima primeira edição do
Dicionário da Novilíngua. Eles estavam envolvidos na produção de algo chamado
Relatório Periódico, mas sobre o que eram os relatórios ele nunca descobriu
exatamente. Tinha algo a ver com uma questão de aspas dentro ou fora de
parênteses. Havia quatro outros membros do comitê, todos pessoas similares a ele.
Havia dias em que se reuniam e então logo se dispersavam de novo, francamente
admitindo para si mesmos que não havia na verdade nada a ser feito. Contudo havia
outros dias em que eles se punham a trabalhar quase intensamente, fazendo um
tremendo estardalhaço ao preencher suas minutas e redigir longos memorandos que
nunca terminavam — quando o assunto sobre o qual supostamente discutiam ficava
extraordinariamente complexo e abstrato, com sutis diferenças sobre definições,
enormes digressões, disputas —, ameaçando até recorrer a autoridades superiores.
E, então, de repente, a vida se esvaía de dentro deles e eles se sentavam em volta da
mesa olhando uns para os outros com seus olhos apagados, como espíritos que se
vão com o cantar do galo.
O telemonitor silenciou por um momento. Winston ergueu a cabeça outra vez. O
boletim! Mas não, estavam apenas trocando de música. Ele tinha o mapa da África
fixo em suas retinas. O movimento das tropas era um diagrama: uma seta preta
rasgando verticalmente para o sul, e uma seta branca horizontalmente para o leste,
atravessando a base da primeira. Como se buscasse confirmação, ele ergueu os
olhos para o rosto imperturbável no retrato. Seria possível que a segunda seta nem
sequer existisse?
Seu interesse se dissipou de novo. Ele bebeu outro gole de gim, pegou o cavalo
branco e fez um movimento hesitante. Xeque. Mas evidentemente não era o
movimento certo porque…
Sem ser evocada, uma lembrança flutuou em sua mente. Ele viu um quarto
iluminado à vela com uma imensa cama branca, e ele mesmo, ainda um menino de
nove ou dez anos, sentado no chão, chacoalhando dados em um copo e rindo
animado. A mãe estava sentada na frente dele e também ria.
Devia ter sido cerca de um mês antes de ela desaparecer. Foi um momento de
reconciliação, quando a fome insistente em seu estômago foi esquecida e seu afeto
anterior por ela temporariamente reviveu. Ele se lembrava bem desse dia, um dia
opressivo de chuva, em que a água jorrava contra a janela fechada e a luz dentro de
casa era insuficiente para ler. O tédio das duas crianças no cômodo escuro, apertado,
ficou insuportável. Winston chiou e choramingou, fez exigências inúteis de comida,
ficou correndo pelo quarto, tirando tudo do lugar, chutando o painel da parede até os
vizinhos baterem na parede, enquanto a irmãzinha tinha acessos de choro. Por fim, a
mãe falou “Agora, fique bonzinho, e vou lhe comprar um brinquedo. Um lindo
brinquedo… você vai adorar!”; e então ela saiu na chuva, foi até uma loja de
utensílios gerais que, às vezes, estava aberta no bairro, e voltou com uma caixa de
papelão com um tabuleiro de Cobras e Escadas. Ele ainda se lembrava do cheiro do
papelão molhado. Era um brinquedo miserável. O tabuleiro estava rachado e os
dados de madeira minúsculos eram tão malfeitos que mal paravam deitados.
Winston olhou para o brinquedo com frieza e sem interesse. Mas, então, a mãe
acendeu um toco de vela e eles se sentaram no chão para jogar. Logo ele ficou muito
animado e começou a rir bem alto, conforme as fichas de cada um subiam
esperançosas as escadas e depois desciam escorregando pelas cobras, voltando
quase ao ponto de partida. Eles jogaram oito vezes, com quatro vitórias para cada
um. A irmãzinha, muito pequena para entender o jogo, ficou sentada em uma
almofada, rindo porque os dois estavam rindo. Durante uma tarde inteira foram
todos felizes, como no início de sua infância.
Ele expulsou essa imagem de sua mente. Era uma falsa lembrança. Ele era
perturbado por falsas lembranças de vez em quando. Elas não eram relevantes na
medida em que se sabia que eram falsas. Ele voltou ao xadrez e pegou novamente o
cavalo branco. Quase no mesmo instante, ele deixou a peça cair sobre o tabuleiro.
Ele teve um sobressalto, como se um alfinete o espetasse.
Um toque estridente de clarim atravessou o ar. Era o boletim! Vitória! Sempre
eram vitórias quando o noticiário começava com clarins. Uma espécie de perfuratriz
elétrica atravessou o café. Até os garçons levaram um susto e apuraram os ouvidos.
O toque do clarim liberou um enorme volume de ruído. Uma voz excitada já
tagarelava no telemonitor, porém, mal começara, e um rumor de outras vozes vindo
de fora do café a afogou. A notícia percorreu as ruas como por um passe de mágica.
Ele conseguiu ouvir o suficiente do que estava sendo informado para perceber que
tudo acontecera tal como ele havia previsto; uma imensa armada naval secretamente
atacara a retaguarda do inimigo, a seta branca atravessara a base da seta preta.
Fragmentos de frases triunfantes se destacaram em meio à balbúrdia: “Ampla
manobra estratégica… perfeita coordenação… derrota cabal… meio milhão de
prisioneiros… completa desmoralização… controle de toda a África… traz a guerra
a uma distância mensurável de seu desfecho… vitória… maior vitória na história
humana… vitória, vitória, vitória!”.
Por baixo da mesa, os pés de Winston fizeram movimentos convulsivos. Ele não
saiu de seu canto, mas em sua mente ele estava correndo depressa, estava lá fora
com as massas, saudando até ficar surdo. Ele ergueu os olhos outra vez para o
retrato do Grande Irmão. O colosso que cavalga o mundo! A rocha contra a qual as
hostes asiáticas se batiam em vão! Ele pensou em como dez minutos antes — sim,
apenas dez minutos — ainda havia dúvidas em seu coração, porque ele não sabia se
a notícia do fronte traria uma vitória ou uma derrota. Ah, não era só o exército
eurasiano que havia sido derrotado! Muita coisa havia mudado dentro dele desde
aquele primeiro dia no Ministério do Amor, mas a transformação final,
indispensável, curativa não havia acontecido, até aquele momento.
A voz do telemonitor ainda despejava sua história de prisioneiros e saques e
massacres, porém a gritaria lá fora diminuíra um pouco. Os garçons estavam
voltando ao trabalho. Um deles se aproximou com a garrafa de gim. Winston,
sentado em glorioso devaneio, nem prestou atenção enquanto seu copo era servido.
Ele não estava mais correndo e saudando. Estava de volta ao Ministério do Amor,
com tudo perdoado, a alma branca como a neve. Estava no arsenal, confessando
tudo, entregando todo mundo. Ele estava percorrendo o corredor de ladrilhos
brancos, com a sensação de caminhar ao sol, e com um guarda armado atrás de si. A
bala longamente esperada estava entrando em seu cérebro.
Ele ergueu os olhos para o rosto gigantesco. Quarenta anos ele levou para
aprender que tipo de sorriso se escondia embaixo do bigode escuro. Oh, equívoco
cruel, desnecessário! Oh, exílio obstinado, voluntário, do peito amante! Duas
lágrimas com aroma de gim escorreram ao lado de seu nariz. Mas estava tudo bem,
tudo estava bem, a luta havia terminado. Ele havia conquistado uma vitória sobre si
mesmo. Ele amava o Grande Irmão.
Apêndice

OS PRINCÍPIOS DA NOVILÍNGUA
A novilíngua é a língua oficial da Oceania e foi planejada para ir ao encontro das
necessidades ideológicas do INGSOC, ou Socialismo Inglês. No ano de 1984, ainda
não havia ninguém que usasse a novilíngua como único meio de comunicação, nem
oral nem escrito. Os principais artigos do Times
eram escritos nela, mas isso era um
TOUR DE FORCE que só era possível para especialistas. Esperava-se que a
novilíngua finalmente fosse substituir a Língua Velha (o inglês-padrão, como
chamavam) por volta do ano 2050. Nesse ínterim, ela foi ganhando terreno
constantemente; todos os membros do Partido costumam usar palavras e
construções gramaticais da novilíngua cada vez mais em sua comunicação
cotidiana. A versão usada em 1984, e fixada na nona e na décima edição do
Dicionário da Novilíngua, era provisória e continha muitas palavras supérfluas e
formações arcaicas que deveriam ser suprimidas posteriormente. É a versão final,
aperfeiçoada, tal como fixada pela décima primeira edição, que nos interessa aqui.
O propósito da novilíngua é não apenas fornecer um meio de expressão para a
visão de mundo e para os hábitos mentais apropriados aos devotos do Ingsoc, mas
impossibilitar a existência de todos os outros modos de pensar. A intenção era que,
quando a novilíngua fosse adotada de uma vez por todas e a Língua Velha fosse
esquecida, um pensamento herético — isto é, um pensamento divergente dos
princípios do Ingsoc — fosse literalmente impensável, partindo do pressuposto que
o pensamento depende das palavras. Seu vocabulário era construído de maneira a
fornecer uma expressão exata e, muitas vezes, sutil de cada significado que um
membro do Partido poderia apropriadamente pretender expressar, ao mesmo tempo
excluindo todos os outros significados e também a possibilidade de se chegar a eles
por métodos indiretos. Isso foi feito, em parte, por meio da invenção de novas
palavras, mas principalmente da eliminação de palavras indesejáveis e da proibição
de palavras de significados heterodoxos remanescentes; e, na medida do possível,
também de qualquer outro sentido secundário. Vamos ver um único exemplo. A
palavra LIVRE ainda existia na novilíngua, mas só podia ser usada em afirmações
do tipo “este cachorro está livre de pulgas” ou “este campo está livre de pragas”. Ela
não poderia ser usada em seu sentido antigo de “politicamente livre” ou
“intelectualmente livre”, uma vez que a liberdade política e a liberdade intelectual
não existiam mais nem como conceitos, e eram, portanto, necessariamente
inomináveis. Para além da supressão definitiva de palavras heréticas, a redução do
vocabulário foi considerada um fim em si mesmo, e não se permitiu a sobrevivência
de nenhuma palavra que não fosse indispensável. A novilíngua foi planejada não
para expandir, mas para REDUZIR o espectro do pensamento, e esse propósito foi
indiretamente auxiliado pela redução do número de palavras a um mínimo.
A novilíngua se baseou na língua inglesa tal como nós a conhecemos, embora
muitas expressões da novilíngua, mesmo quando não contêm palavras recém-
criadas, sejam quase incompreensíveis a um falante de inglês de nossa época. As
palavras da novilíngua se dividem em três classes distintas, conhecidas como
vocabulário A, vocabulário B (as chamadas palavras compostas) e vocabulário C. É
mais simples discutir cada classe separadamente, mas as peculiaridades gramaticais
da língua poderão ser abordadas na seção dedicada ao vocabulário A, uma vez que
as mesmas regras valem para as três categorias.

VOCABULÁRIO
A
O vocabulário A é composto de palavras necessárias para os assuntos da vida
cotidiana — para coisas como comer, beber, trabalhar, vestir, subir e descer escadas,
viajar em veículos, cuidar de jardins, cozinhar e coisas do gênero. Ele é composto
quase exclusivamente de palavras que nós já conhecíamos, palavras como BATER,
CORRER, CACHORRO, ÁRVORE, AÇÚCAR, CASA, CAMPO — mas, em
comparação com o vocabulário inglês de hoje em dia, o número de palavras é
extremamente pequeno, embora seus significados sejam muito mais rigidamente
definidos. Todas as ambiguidades e todos os matizes de sentido foram expurgados.
Na medida do possível, uma palavra da novilíngua dessa classe era simplesmente
um som em staccato
,
1
expressando UM conceito claramente compreendido. Seria
praticamente impossível usar o vocabulário A com propósitos literários ou para
discussões políticas ou filosóficas. Ele foi projetado para expressar apenas ideias
simples, propositivas, geralmente envolvendo objetos concretos ou ações físicas.
A gramática da novilíngua tem duas peculiaridades notáveis. A primeira delas é
uma quase completa equivalência entre diferentes partes da frase. Qualquer palavra
da novilíngua (a princípio, isso se aplica até a palavras abstratas como SE ou
QUANDO) pode ser usada como verbo, substantivo, adjetivo ou advérbio. Entre um
verbo e um substantivo, quando têm a mesma raiz, não há nunca variação, regra que
em si envolve a destruição de muitas formas arcaicas. A palavra PENSAMENTO,
por exemplo, não existe na novilíngua. Seu lugar foi ocupado por PENSAR, que
vale tanto como substantivo quanto como verbo. Aqui não se seguiu nenhum
princípio etimológico: em alguns casos, foi o substantivo original a forma
conservada na língua, em outros casos, o verbo. Até nos casos em que um
substantivo e um verbo de sentido similar não tinham relação etimológica, um ou
outro seria frequentemente suprimido. Não havia, por exemplo, uma palavra como
CORTE; seu sentido é suficientemente abarcado pelo substantivo-verbo FACA. Os
adjetivos foram formados pelo acréscimo do sufixo -COM aos substantivos-verbos,
e os advérbios, pelo acréscimo de -BEM. Assim, por exemplo, VELOCOM
significaria “rápido” e VELOBEM significaria “rapidamente”. Alguns dos nossos
adjetivos atuais, como BOM, FORTE, GRANDE, PRETO, MOLE, foram
conservados, mas seu número total seria muito reduzido. Havia pouca necessidade
deles, pois praticamente todo significado adjetivo poderia ser obtido com o
acréscimo de -COM ao substantivo-verbo. Nenhum dos atuais advérbios foi
conservado, exceto alguns que já terminavam em -BEM: a terminação -BEM seria
invariável. A palavra BEM, por exemplo, foi substituída por BEMBEM.
Além disso, qualquer palavra — isso mais uma vez se aplicou em princípio a
todas as palavras da língua — poderia ser negativada pelo acréscimo do prefixo
DES-ou reforçada pela partícula MAIS, ou, para ênfases maiores, DUPLIMAIS.
Assim, por exemplo, DESFRIO significava “quente”, enquanto MAISFRIO e
DUPLIMAISFRIO significavam, respectivamente, “muito frio” e “extremamente
frio”. Também era possível, como no inglês de hoje, modificar o significado de
praticamente qualquer palavra com prefixos preposicionais como ANTE-, PÓS-,
IM-, A-, etc. Por tais métodos descobriu-se que era possível realizar uma enorme
diminuição do vocabulário. Considerando, por exemplo, a palavra BOM, não havia
necessidade de uma palavra como RUIM, uma vez que o significado desejado
estaria igualmente — na verdade, melhor — expresso por DESBOM. A única coisa
necessária, em todo caso, quando duas palavras formavam um par natural de
opostos, era decidir qual delas suprimir. ESCURO, por exemplo, poderia ser
substituído por DESCLARO, ou CLARO por DESESCURO, conforme a
preferência.
A segunda característica marcante da gramática da novilíngua era sua
regularidade. Com algumas exceções mencionadas abaixo, todas as inflexões
seguiam as mesmas regras. Assim, em todos os verbos, o pretérito e o particípio
passado seriam idênticos e terminariam em -DO. O pretérito de FAZER seria
FAZIDO, o pretérito de DIZER seria DIZIDO, e assim por diante, em toda a língua,
todas as formas como FEITO, DITO, MORTO, POSTO, ESCRITO, etc. foram
suprimidas. Todos os plurais seriam formados pelo acréscimo do S apenas. Os
plurais de QUALQUER, CÔNSUL, ÁLCOOL seriam QUALQUERS, CÔNSULS,
ÁLCOOLS. Os graus dos adjetivos seriam invariavelmente formados pelo
acréscimo de MAIS, DUPLIMAIS (BOM, MAISBOM, DUPLIMAISBOM), sendo
suprimidas as formas irregulares MELHOR e ÓTIMO.
As únicas classes de palavras que tiveram a flexão irregular permitida foram os
pronomes relativos e demonstrativos e os verbos auxiliares. Todos esses seguiram o
uso antigo, exceto O QUAL, que foi suprimido como sendo desnecessário, e
DEVER SER, DEVERIAM SER, que foram abandonados, seus usos sendo
abarcados por SERÃO e SERIAM. Havia também certas irregularidades na
formação das palavras surgidas da necessidade de falar depressa e com facilidade.
Palavras difíceis de pronunciar, ou passíveis de serem ouvidas incorretamente,
foram consideradas ipso facto
palavras ruins; eventualmente, portanto, pelo bem da
eufonia, outras letras seriam inseridas em uma palavra ou uma expressão arcaica
que acabaram se conservando. Contudo essa necessidade foi sentida principalmente
em relação ao vocabulário B. POR QUE se atribuiu tanta importância à facilidade
da pronúncia será esclarecido mais adiante neste ensaio.

VOCABULÁRIO
B
O vocabulário B é composto de palavras que haviam sido deliberadamente
construídas com propósitos políticos: isto é, palavras que não apenas tinham sempre
uma implicação política, mas que visavam impor uma atitude mental desejável à
pessoa que as usava. Sem uma plena compreensão dos princípios do Ingsoc, era
difícil usar corretamente essas palavras. Em alguns casos, elas podiam ser
traduzidas em Língua Velha, ou mesmo em palavras tiradas do vocabulário A, mas
isso geralmente exigia uma longa paráfrase e sempre envolvia a perda de certas
implicações. As palavras do vocabulário B eram uma espécie de estenografia verbal,
muitas vezes, compactando espectros inteiros de ideias em poucas sílabas, e ao
mesmo tempo mais precisas e impositivas que as palavras da linguagem comum.
As palavras do vocabulário B eram em todo caso palavras compostas. [Palavras
compostas como TRANSCRITOR, evidentemente, eram encontradas no
vocabulário A, mas eram apenas contrações convenientes e não tinham nenhuma
coloração ideológica.] Elas consistiam em duas ou mais palavras, ou partes de
palavras, fundidas em uma forma facilmente pronunciável. O amálgama resultante
era sempre um substantivo-verbo que se flexionava segundo as regras comuns. Para
darmos um único exemplo: a palavra BENIPENSAR, que significava, grosso modo
, “ortodoxia”, ou, se quisermos considerá-la como verbo, “pensar de maneira
ortodoxa”. A flexão era a seguinte: substantivo-verbo, BENIPENSAR; passado e
particípio passado, BENIPENSADO; particípio presente, BENIPENSANTE;
adjetivo, BENIPENSIM; advérbio BENIPENSABEM; substantivo verbal,
BENIPENSADOR.
As palavras B não foram construídas segundo um plano etimológico. As
palavras das quais elas eram formadas podiam vir de qualquer estrutura da língua, e
podiam ser posicionadas em qualquer ordem e mutiladas de qualquer forma que as
tornasse mais fáceis de pronunciar, ao mesmo tempo indicando sua derivação. Na
palavra CRIMEPENSAR (crimepensado), por exemplo, PENSAR vem depois, ao
passo que em POLIPEN (Polícia do Pensamento) vem antes, e a palavra POLÍCIA
perdeu as duas últimas sílabas. Devido à grande dificuldade de garantir a eufonia, as
formas irregulares seriam mais comuns no vocabulário B que no vocabulário A. Por
exemplo, as formas adjetivas de MINIVER, MINIPAZ e MINIAMOR seriam,
respectivamente, MINIVERDADEIRO, MINIPACÍFICO e MINIAMOROSO,
simplesmente porque MINIVERCOM, MINIPAZCOM e MINIAMORCOM seriam
difíceis de pronunciar. Em princípio, contudo, todas as palavras B podiam ser
flexionadas, e todas se flexionavam exatamente da mesma maneira.
Algumas palavras B tinham significados altamente sutis, quase
incompreensíveis para quem não dominava a língua como um todo. Consideremos,
por exemplo, uma sentença típica de um artigo do Times
VELHOPENSANTES
DESVENTRENTENDEM INGSOC. A versão mais simples dessa frase na Língua
Velha seria: “Aqueles cujas ideias foram formadas antes da Revolução não
conseguem ter uma compreensão emocional plena dos princípios do Socialismo
Inglês”. Mas essa não é uma tradução adequada. Para começar, para alcançar o
sentido total da frase na novilíngua citada acima, seria preciso ter uma ideia clara do
que significa INGSOC. E, além disso, apenas uma pessoa completamente inserida
no Ingsoc saberia apreciar toda a força da palavra VENTRENTENDER, que
implicava um aceitação cega, entusiástica, difícil de imaginar hoje em dia; ou da
palavra VELHOPENSAR, que era indissociável da ideia de crueldade e decadência.
Mas a função específica de certas palavras da novilíngua, das quais
VELHOPENSAR era uma, não era tanto expressar sentidos, mas destruí-los. Essas
palavras, que eram poucas, tiveram seus significados expandidos até conter em si
baterias inteiras de palavras que, por serem suficientemente abarcadas por um único
termo abrangente, poderiam então ser eliminadas e esquecidas. A maior dificuldade
para os compiladores do Dicionário da Novilíngua não era inventar novas palavras,
mas, depois de inventá-las, garantir seu significado: garantir, a bem dizer, quais
palavras seriam canceladas por sua existência.
Como já vimos no caso da palavra LIVRE, palavras que um dia tiveram
significado herético foram algumas vezes conservadas por uma questão de
conveniência, mas apenas depois de expurgadas de seus sentidos indesejáveis.
Inúmeras outras palavras, como HONRA, JUSTIÇA, MORALIDADE,
INTERNACIONALISMO, DEMOCRACIA, CIÊNCIA e RELIGIÃO,
simplesmente deixaram de existir. Alguns hiperônimos as abarcaram e, ao abarcá-
las, acabaram por aboli-las. Todas as palavras agrupadas em torno dos conceitos de
liberdade e igualdade, por exemplo, foram contidas em uma única palavra,
CRIMEPENSAR, enquanto todas as palavras agrupadas em torno dos conceitos de
objetividade e racionalismo foram contidas em uma única palavra,
VELHOPENSAR. Uma precisão maior teria sido perigosa. O que se exigia de um
membro do Partido era um perfil similar ao dos antigos hebreus, que sabiam, sem
saber muito mais do que isso, que todas as outras nações idolatravam “falsos
deuses”. Eles não precisavam saber que esses deuses se chamavam Baal, Osíris,
Moloque, Astarô, entre outros; provavelmente, quanto menos eles soubessem a
respeito deles, melhor para a ortodoxia. Eles conheciam Jeová e os mandamentos de
Jeová. Praticamente da mesma maneira, o membro do Partido sabia o que constituía
a conduta correta, e em termos extremamente vagos e genéricos sabia que tipos de
desvios a partir dela eram possíveis. Sua vida sexual, por exemplo, era inteiramente
regulada por duas palavras da novilíngua, CRIMESEXO (imoralidade sexual) e
BENISEXO (castidade). CRIMESEXO englobava qualquer tipo de desvio sexual.
Abrangia fornicação, adultério, homossexualidade e outras perversões, e, além
disso, a prática do sexo pelo sexo. Não havia necessidade de enumerá-las
separadamente, uma vez que eram todas igualmente criminosas e, a princípio, todas
punidas com a pena de morte. No vocabulário C, que consistia em palavras
científicas e técnicas, talvez fosse necessário fornecer termos especializados para
certas aberrações sexuais, mas o cidadão comum não tinha necessidade de aprendê-
las. Ele sabia o que significava BENISEXO — isto é, a relação normal entre o
marido e a esposa, com o exclusivo propósito de gerar filhos, e sem prazer físico da
parte da mulher: todo o resto era CRIMESEXO. Em novilíngua, raramente era
possível prosseguir um raciocínio herético sem a percepção de que ERA herético:
além desse ponto, as palavras necessárias seriam inexistentes.
Nenhuma palavra no vocabulário B era ideologicamente neutra. Muitas delas
eram eufemismos. Palavras, por exemplo, como JUBICAMPO (campos de trabalhos
forçados) ou MINIPAZ (Ministério da Paz, isto é, Ministério da Guerra)
significavam o exato oposto do que pareciam significar. Algumas palavras, por
outro lado, representavam uma interpretação franca e desdenhosa da verdadeira
natureza da sociedade da Oceania. Um exemplo era PROLECULT, que representava
todo tipo de entretenimento barato e notícias espúrias que o Partido distribuía às
massas. Outras palavras, mais uma vez, eram ambivalentes, tendo a conotação de
“bom” quando aplicadas ao Partido e “ruim” quando aplicadas a seus inimigos.
Mas, além destas, havia um grande número de palavras que, à primeira vista,
pareciam ser meras abreviaturas, e sua conotação ideológica não aparecia em seu
significado, mas em sua estrutura.
Na medida do possível, tudo o que tivesse ou pudesse ter significado político de
algum tipo era incluído no vocabulário B. Os nomes das organizações, ou de grupos
de pessoas, ou doutrinas, ou países, ou instituições, ou edifícios públicos, eram
invariavelmente reduzidos a esse formato familiar; isto é, uma única palavra fácil de
pronunciar com o menor número de sílabas que preservasse sua derivação original.
No Ministério da Verdade, por exemplo, o Departamento de Registros, onde
Winston Smith trabalhava, chamava-se REGDEP, o Departamento de Ficção,
FICDEP, o Departamento de Teleprogramas, TELEDEP, e assim por diante. Isso não
foi feito apenas para poupar tempo. Mesmo nas primeiras décadas do século XX,
palavras e frases abreviadas eram um aspecto característico da linguagem política; e
foi observado que a tendência ao uso de abreviaturas desse tipo era mais marcada
em países totalitários e organizações totalitárias. Por exemplo, em palavras como
NAZI, GESTAPO, COMINTERN, INPRECORR, AGITPROP. No passado, a
prática fora adotada instintivamente, mas na novilíngua seria usada com propósito
consciente. Percebeu-se que, ao abreviar um nome, reduzia-se e sutilmente se
alterava seu significado, eliminando a maior parte das associações que, de outra
forma, ficariam ligadas a ele. As palavras INTERNACIONAL COMUNISTA, por
exemplo, evocam uma imagem complexa de uma irmandade humana universal,
bandeiras vermelhas, barricadas, Karl Marx e a Comuna de Paris. A palavra
COMINTERN, por outro lado, sugere apenas uma organização firmemente
integrada e um conjunto doutrinário bem-definido. Refere-se a algo facilmente
reconhecível, e com propósitos limitados, quase como uma cadeira ou uma mesa.
COMINTERN é uma palavra que pode ser dita quase sem pensar, ao passo que
INTERNACIONAL COMUNISTA é uma expressão que nos obriga a nos deter ao
menos por algum tempo. Da mesma maneira, as associações despertadas por uma
palavra como MINIVER são em menor número e mais controláveis que as
associações evocadas por MINISTÉRIO DA VERDADE. Isso explicou não apenas
o costume de abreviar sempre que possível, mas também o cuidado quase exagerado
para tornar cada palavra facilmente pronunciável.
Na novilíngua, a eufonia, exceto pela exatidão do significado, superava todas as
outras considerações. A regularidade da gramática era sempre sacrificada à eufonia
quando parecia necessário. E justificadamente, uma vez que o que se exigia,
sobretudo por propósitos políticos, eram palavras encurtadas de significado
inconfundível que pudessem ser ditas com rapidez e que despertassem o mínimo de
ecos na mente do falante. As palavras do vocabulário B ganharam força pelo fato de
quase todas serem muito parecidas. Quase invariavelmente estas palavras —
BENIPENSAR, MINIPAZ, PROLECULT, CRIMESEXO, JUBICAMPO, INGSOC,
VENTRENTENDER, POLIPEN, e inúmeras outras — eram sintéticas, de três ou
quatro sílabas, com ênfases regularmente distribuídas entre a primeira e a última
sílaba. Seu uso estimulou um estilo espasmódico de discurso, ao mesmo tempo em
staccato
e monótono. E esse era exatamente o objetivo. A intenção era tornar o
discurso, e especialmente sobre assuntos que não fossem ideologicamente neutros, o
máximo possível, independente da consciência. Para os propósitos da vida
cotidiana, sem dúvida, era necessário, ou às vezes necessário, refletir antes de falar,
mas um membro do Partido solicitado a fazer um juízo político ou ético devia ser
capaz de proferir opiniões corretas automaticamente, como uma metralhadora
proferindo balas. Seu treinamento o capacitava a fazer isso, a novilíngua lhe dava
uma ferramenta quase infalível, e a textura das palavras, com seus sons ríspidos e
uma certa feiura intencional que combinavam com o espírito do Ingsoc, ajudava
ainda mais.
Assim também o fato de haver pouquíssimas palavras dentre as quais escolher.
Em relação ao nosso, o vocabulário da novilíngua era minúsculo, e novos modos de
reduzi-lo estavam constantemente sendo inventados. A novilíngua, na verdade,
diferia da maioria das outras línguas pelo fato de seu vocabulário se tornar menor,
ao invés de maior, a cada ano. Cada redução era um ganho, pois, quanto menor a
área de escolha, menor a tentação de pensar. Em última instância, esperava-se que o
discurso articulado partisse da laringe sem envolver estruturas cerebrais superiores.
Esse objetivo era francamente admitido na palavra em novilíngua GRASFALA, no
sentido de “grasnar como um pato”. Como várias outras palavras do vocabulário B,
GRASFALA tinha significado ambivalente. Se a opinião grasfalada era ortodoxa, a
palavra só implicava louvores, e quando o Times
se referia a um dos oradores do
Partido como DUPLIMAISBOM GRASFALANTE, era um elogio caloroso e
valioso.

VOCABULÁRIO
C
O vocabulário C era suplementar aos outros e consistia inteiramente em termos
científicos e técnicos. Essas palavras se pareciam com os termos científicos que
usamos hoje, e foram construídas a partir das mesmas raízes, mas com o cuidado de
sempre, ao defini-las rigidamente, privá-las de sentidos indesejáveis. Elas seguiam
as mesmas regras das palavras dos outros dois vocabulários. Pouquíssimas palavras
do vocabulário C eram correntes na fala cotidiana ou nos discursos políticos.
Qualquer trabalhador científico ou técnico podia encontrar todas as palavras de que
precisaria na lista dedicada à sua especialidade, mas raramente havia mais do que
algumas poucas que ocorriam em outras listas. Apenas raríssimas palavras eram
comuns a todas as listas, e não havia um vocabulário que expressasse a função da
ciência como um hábito mental, ou como um método de pensamento, que não fosse
relativo a seus ramos particulares. Não havia, na verdade, nenhuma palavra para
“ciência”, pois todo sentido que pudesse ter já seria suficientemente abarcado pela
palavra INGSOC.
Pelo que se relatou anteriormente, veremos que na novilíngua a expressão de
opiniões heterodoxas, acima de um nível muito baixo, era praticamente impossível.
Era evidentemente possível proferir heresias de um tipo bastante cru, uma espécie
de blasfêmia. Teria sido possível, por exemplo, dizer que o GRANDE IRMÃO É
DESBOM. Mas essa afirmação, que ouvidos ortodoxos entenderiam meramente
como um absurdo evidente, não se sustentaria diante de uma argumentação racional,
porque não haveria palavras necessárias disponíveis. Ideias inimigas do Ingsoc só
podiam se articular de forma vaga e sem palavras, e só podiam ser denominadas em
termos muito amplos que amontoavam e condenavam grupos inteiros de heresias
sem defini-las no processo. Na verdade, só era possível usar a novilíngua para
propósitos heterodoxos traduzindo ilegitimamente algumas palavras em Língua
Velha. Por exemplo, TODOS OS HOMENS SÃO IGUAIS era uma frase possível
na novilíngua, mas apenas no mesmo sentido que TODOS OS HOMENS SÃO
RUIVOS é uma frase possível na Língua Velha. Ela não continha um erro
gramatical, mas expressava uma falsidade palpável — isto é, todos os homens são
iguais em tamanho, peso ou força. O conceito de igualdade política não existia mais,
e esse sentido secundário justificadamente foi expurgado da palavra IGUAL. Em
1984, quando a Língua Velha ainda era o meio normal de comunicação, era
possível, teoricamente, usando palavras da novilíngua, alguém ainda se lembrar de
seus significados originais. Na prática, não era difícil para uma pessoa formada no
DUPLIPENSAR evitar fazê-lo, mas em duas gerações até a possibilidade de tal
lapso desapareceria. Uma pessoa que cresceu com a novilíngua como única língua
não saberia mais que IGUAL um dia teve um sentido secundário de “politicamente
igual”, ou que LIVRE um dia significou “intelectualmente livre”, como, por
exemplo, uma pessoa que nunca ouviu falar em xadrez tampouco saberia os sentidos
secundários associados a RAINHA e TORRE. Muitos crimes e erros estariam além
da capacidade das pessoas de cometê-los simplesmente porque não tinham nome e,
portanto, eram inimagináveis. E seria previsto que, com a passagem do tempo, as
características distintas da novilíngua se tornariam cada vez mais pronunciadas —
haveria cada vez menos palavras, seus sentidos seriam cada vez mais rígidos, e a
probabilidade de dar a elas usos impróprios seria cada vez menor.
Quando a Língua Velha fosse de uma vez por todas substituída, o último vínculo
com o passado estaria rompido. A história já havia sido reescrita, mas fragmentos da
literatura do passado sobreviveram aqui e ali, imperfeitamente censurados, e,
enquanto se conservasse o conhecimento da Língua Velha, seria possível lê-los. No
futuro, esses fragmentos, mesmo que tivessem a oportunidade de sobreviver, seriam
incompreensíveis e intraduzíveis. Era impossível traduzir qualquer texto da Língua
Velha na novilíngua que não se referisse a algum processo técnico ou a alguma ação
cotidiana muito simples, ou que já não fosse um texto de tendência ortodoxa
(BENIPENSANTE seria a expressão em novilíngua). Na prática, isso significa que
nenhum livro escrito antes de 1960, aproximadamente, poderia ser traduzido na
íntegra. A literatura pré-revolucionária só poderia ser submetida a traduções
ideológicas — isto é, alterações de sentido e de linguagem. Tomemos como
exemplo a conhecida passagem da Declaração da Independência:
NÓS CONSIDERAMOS EVIDENTES AS SEGUINTES VERDADES: QUE TODOS OS
HOMENS SÃO CRIADOS IGUAIS, QUE ELES SÃO DOTADOS POR SEU CRIADOR
DE CERTOS DIREITOS INALIENÁVEIS, QUE ENTRE ESSES DIREITOS ESTÃO A
VIDA, A LIBERDADE E A BUSCA DA FELICIDADE. QUE, PARA GARANTIR ESSES
DIREITOS, GOVERNOS SÃO INSTITUÍDOS ENTRE OS HOMENS, DERIVANDO SEUS
PODERES DO CONSENTIMENTO DOS GOVERNADOS. QUE, SEMPRE QUE
ALGUMA FORMA DE GOVERNO SE TORNAR DESTRUTIVA DESSAS
FINALIDADES, É DIREITO DO POVO ALTERAR OU ABOLIR ESSE GOVERNO E
INSTITUIR NOVO GOVERNO…

Seria praticamente impossível traduzir isso em novilíngua conservando o


sentido original. O mais próximo que se poderia fazer seria abarcar o trecho inteiro
em uma única palavra: CRIMEPENSAR. Uma tradução total só poderia ser uma
tradução ideológica, em que as palavras de Jefferson seriam transformadas em um
panegírico do governo absoluto.
Boa parte da literatura do passado já foi, na verdade, transformada dessa
maneira. Considerações de prestígio tornaram desejável conservar a memória de
certas figuras históricas, ao mesmo tempo alinhando suas obras à filosofia do
Ingsoc. Diversos escritores, como Shakespeare, Milton, Swift, Byron, Dickens e
alguns outros, passaram, portanto, pelo processo de tradução; quando a tarefa
estivesse terminada, os textos originais, e todo o resto do que sobreviveu da
literatura do passado, seria destruído. Essas traduções foram um processo lento e
difícil, e não se esperava que se completassem antes da primeira ou da segunda
década do século XXI. Havia também grandes quantidades de literatura utilitária —
manuais técnicos indispensáveis e coisas do gênero — que precisavam ser tratadas
da mesma forma. Principalmente no intuito de dar tempo ao trabalho preliminar de
tradução, a adoção definitiva da novilíngua foi postergada para o remoto ano de
2050.
Notas

Capítulo 1
1.
O epilóbio (Epilobium
) é um gênero botânico pertencente à família Onagraceae. (N. E.)
2.
Novilíngua era a língua oficial da Oceania. Para um relato sobre sua estrutura e etimologia, ver
Apêndice. (N. E.)

Capítulo 7
1.
Do latim, “o direito da primeira noite”. (N. E.)
2.
Sinecura é um emprego ou um cargo que proporciona renda e exige pouco trabalho. (N. E.)

Capítulo 8
1.
O formão é uma ferramenta manual própria para cortar madeira, com uma extremidade embutida
num cabo e a outra chata, que se encerra numa lâmina afiada; é usado especialmente em obras de
arte, para fazer entalhes, mas pode ser utilizado também para cortar pedras não muito rígidas, como
ardósia, por exemplo. (N. E.) 2.
São Martinho dos Campos. (N. T.)

Capítulo 4
1.
Tecido grosseiro de juta, linho cru ou outra fibra vegetal, usado especialmente na confecção de
sacos e fardos. (N. E.)

Capítulo 5
1.
Liga de cobre e zinco que imita o ouro; ouro falso. (N. E.)

Capítulo 9
1.
No original, coolies
. (N. E.)

Capítulo 1
1.
“Presos políticos”, em novilíngua. (N. E.)
2.
Rudyard Kipling (1865-1936). Aqui o personagem deve se referir ao poema “McAndrew’s Hymn”
(de 1894), versos 3-4. (N. T.)
Apêndice
1.
Tipo de articulação sonora que resulta em notas muito curtas. (N. E.)
Sumário
Capa
Citação
Folha de rosto
Créditos
Parte Um
1. Capítulo 1
2. Capítulo 2
3. Capítulo 3
4. Capítulo 4
5. Capítulo 5
6. Capítulo 6
7. Capítulo 7
8. Capítulo 8
Parte Dois
1. Capítulo 1
2. Capítulo 2
3. Capítulo 3
4. Capítulo 4
5. Capítulo 5
6. Capítulo 6
7. Capítulo 7
8. Capítulo 8
9. Capítulo 9
Parte Três
1. Capítulo 1
2. Capítulo 2
3. Capítulo 3
4. Capítulo 4
5. Capítulo 5
6. Capítulo 6
7. Capítulo 7
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desenvolvidas pelo artista plástico Carlo Giovanni.

Publicado em 1945, A revolução dos bichos


alçou o posto de um dos maiores
clássicos da literatura moderna e projetou seu autor, George Orwell, como um
dos mais influentes da história. Esta é uma fábula atual, que satiriza o
totalitarismo, a tirania e a busca pelo poder.

Às vésperas de sua morte, o velho porco Major reúne os animais de uma fazenda
para compartilhar seu sonho de ver os bichos governando a si próprios, sem a
opressão dos homens, em uma sociedade igualitária.

Depois da morte de Major, a revolução é instaurada pelos porcos Snowball e


Napoleon, mas a utopia não dura muito.

Eleito pela revista Time


como um dos cem melhores livros já publicados em
língua inglesa, A revolução dos bichos
é um alerta contra os perigos da
corrupção humana até mesmo nos mais bem-intencionados projetos políticos.

Após sua publicação, foi interpretado no Ocidente como uma crítica ao


comunismo, fato negado pelo próprio Orwell, adepto do socialismo e avesso a
manipulações políticas.

Mais de sessenta anos depois de escrita, a obra mantém o vigor inabalável de


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Patrocínio, passa a fingir uma grande devoção religiosa que encobre sua vida
libertina.
Dessa forma, pretende satisfazer às carolices da tia e obter sua herança. Uma
inesperada viagem à terra santa de Jerusalém, entretanto, trará uma reviravolta
aos planos de Teodorico.

Autor de Os maias
, O primo Basílio
e O crime do padre Amaro
, entre outros
clássicos da literatura portuguesa, Eça compôs em A Relíquia
uma obra
polêmica, de forte crítica social, e ainda assim recheada de humor.

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A ilha do Doutor Moreau
Wells, H. G.
9786587034072
144 páginas

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Romance de ficção científica de H. G. Wells, A ilha do doutor Moreau


foi
publicado pela primeira vez em 1896.

Nesta obra, Wells alia à sua característica crítica social considerações particulares
a respeito da teoria da evolução das espécies.

Nesta narrativa, o náufrago Charles Prendick é levado a uma pequena ilha do


Pacífico.
Nela, conhece o doutor Moreau, expulso da Inglaterra por suas polêmicas
experimentações com animais.

Religião, ética científica, moralidade e a dicotomia do instinto versus a


consciência são alguns dos temas trabalhados brilhantemente por Wells em A
ilha do doutor Moreau
.

Mais de cem anos após sua publicação, ainda é considerado um dos livros mais
representativos da ficção científica.

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Mensagem
Pessoa, Fernando
9788567097770
96 páginas

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Mensagem
reúne 44 poemas do português Fernando Pessoa que retratam o
passado glorioso de seu país.

Publicado em 1934, um ano antes da morte de seu autor, o livro representa uma
valorização cultural da nação em busca da regeneração de seu império.

Os poemas exaltam o estilo camoniano, maior representante das letras de


Portugal, e símbolos históricos como o mítico Dom Sebastião e o Infante Dom
Henrique.
A primeira parte, Brasão
, trata dos heróis lendários e históricos.

A segunda, Mar Português


, relembra as aventuras e conquistas do império.

Por fim, O Encoberto


é uma afirmação do sebastianismo - a crença no retorno do
antigo rei como um messias salvador.

Mensagem
recebeu o prêmio do Secretariado de Propaganda Nacional apenas
um mês após sua publicação.

Também acabou tendo as ideologias que defendia em parte apropriadas pela


ditadura salazarista mais tarde.

O poema O infante
, que abre o livro, acabou musicado pela cantora Dulce
Pontes.

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