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SETH
40 ANOS DE
ESPIONAGEM SOVIÉTICA
EDIÇÕES BLOCH
Copyright © 1965 Ronald Seth Primeira edição brasileira: 1968
Traduzida de Forty Years of Soviet Spying, publicada por Canel & Co. Londres
Capa de Enio Damazio
O motivo que me levou a escrever este livro é simples. Desde o fim da Segunda
Guerra Mundial, a atenção pública tem sido despertada por uma série de
incidentes dramáticos. Exemplo: as defecções de Gouzenko, no Canadá; de
Pavlov, na Austrália; e, em particular, os casos de Nunn May, Fuchs, Pontecorvo,
Lonsdale, Blake e Vassal. Todos esses incidentes vieram evidenciar a imensa
ramificação da espionagem soviética. As autoridades responsáveis não perderam
a oportunidade de demonstrar, através de intensiva divulgação dos fatos, o que
os espiões russos e os traidores pró-comunismo representam para nós na era
nuclear. E somente os espíritos extremamente displicentes não se deixaram
impressionar pelas informações, tornadas públicas.
Não são somente os políticos e a imprensa que têm sido culpados dessa situação.
Muitos livros sobre a espionagem soviética surgiram, nestes últimos vinte anos,
e não há um só deles que se revele isento, até certo ponto, de sensacionalismo.
Em muitos casos, mostram-se deturpados até no que diz respeito aos fatos. Nos
Estados Unidos, uma importante obra foi publicada: A Espionagem Soviética —
escrita por David J. Dallin. Talvez por que se trate de um trabalho de erudição,
destinado mais a especialistas e a estudiosos do que ao público em geral, não
teve a virtude de ser largamente difundido. O Mundo Ocidental, portanto, não
dispõe, cm circulação, de qualquer relato das atividades da espionagem
soviética, do qual se possa valer. Foi para preencher essa lacuna, pois, que
escrevi, este livro.
Primeira Parte
DESENVOLVIMENTO E
ORGANIZAÇÃO
1. A Tradição do Serviço Secreto na Rússia
Esse período histórico foi encerrado por uma invasão tártara, desencadeada por
Batu Khan. Os invasores se infiltraram no império consolidado e o governaram
por dois séculos e meio, quando, por sua vez, foram expulsos, em 1492, por Ivã,
o Grande. O neto desse herói foi Ivã, o Terrível — contemporâneo da Rainha
Elizabeth I, da Inglaterra — e do seu reinado nasceram os princípios do governo
autocrático, ao lado dos quais a teoria do direito divino dos reis, dos Stuarts,
parece um simples arremedo.
Ivã conquistou esse cognome, o Terrível, por sua dureza e crueldade, embora
tenha sido, na realidade, um administrador de larga visão. Em face da
perseguição que desencadeou contra as classes privilegiadas, sempre viveu
ameaçado de morte. Como medida de proteção pessoal, organizou, então, uma
Guarda Pretoriana, denominada Oprichniks.
Em face do que até aqui dissemos, duas conclusões podem ser tiradas. Em
primeiro lugar, o medo de ser assassinado e a forte possibilidade de que isso
pudesse ocorrer tornaram essencial, para os czares, que fossem protegidos por
uma Polícia Secreta, capaz de descobrir as conspirações antes que viessem a
furo. E a segunda conclusão — um corolário da primeira — é que os longos
séculos de subjugação, em que viveu a Rússia, condicionaram de tal maneira a
massa de sua população à aceitação da tirania da Polícia Secreta que essa carga,
que lhe tem pesado nos ombros desde o advento de seus novos líderes até o fim
da era stalinista, acabou por lhe parecer tolerável. De fato, os habitantes do
império moscovita nunca viveram livres dessa opressão. O que lhes aconteceu
foi, tão-somente, a troca de um despotismo por outro, sem qualquer diferença
entre ambos.
Nicolau I não possuía qualquer das tendências liberais que seu irmão, Alexandre,
foi tentado a dar expressão. A revolta dos Dekabristi — como posteriormente
ficou conhecida, ocorrendo logo no início do seu reinado, teria eliminado
certamente qualquer tendência de semelhante conteúdo, se, por acaso, uma idéia
liberal jamais houvesse germinado em seu espírito. Sufocou a revolta rápida e
brutalmente. Enforcou os seus chefes. E enviou mais de uma centena de pessoas
— todos, oficiais e membros de boas famílias — para o exílio na Sibéria.
Esta foi a primeira vez que o exílio na Sibéria — que se iria tornar uma das mais
importantes armas de todas as subsequentes organizações de segurança da
Rússia — foi empregado como punição. E parece ter sido ele o precursor de
outras inovações, nas tentativas czaristas de governar pela eliminação.
Existiram outros agentes na Rússia como Azeff — embora não tão afortunados
— e, através desse trabalho em conjunto, a Okhrana conseguiu descobrir a
identidade de quase todos principais chefes da Revolução, como, por exemplo,
Lenin, Trotsky e o casal Zhitlovsky. Quando esses líderes foram libertados, ou
fugiram da prisão ou do exílio na Sibéria, viram-se obrigados a buscar refúgio no
exterior, a fim de não terem suas atividades interrompidas.
Após ter sido libertado de seu exílio de dez anos na Sibéria, Lênin fugiu da
Rússia para a Alemanha. Nesse último país, fundou o Iskra — A Faísca, da qual
a labareda nasceria — e, através de suas colunas, divulgava tudo quanto se
relacionava com os interesses do Partido, particularmente a sua doutrina. Dez
mil exemplares do periódico — juntamente com panfletos de propaganda,
instruções, armas e explosivos — com intervalos irregulares, eram
contrabandeados para o interior da Rússia. E esse material subversivo, após
haver cruzado, em segurança, a fronteira, era então distribuído, através de uma
rede de agentes especializados, por toda a extensão do território russo.
Embora Lenine não tivesse em mente uma data certa para o desencadeamento de
uma revolução que colocasse o comunismo na chefia do poder em todos os
países, esse retardamento determinou enorme alteração em seus planos. Se a
Cheka não se podia transformar, de imediato, num instrumento da revolução
mundial, enquanto isso acontecesse, outra organização deveria ser criada, a qual,
congregando todos os comunistas estrangeiros, preparasse o terreno para um
trabalho mais intenso da própria Cheka, quando a hora H soasse. E foi assim
que, em 1919, nasceu a Internacional Comunista, ou o Comintern. Como
instrumento de congregação, esse novo órgão representou um fracasso. Como
veículo de lançamento das bases da espionagem externa, porém, obteve certo
êxito, embora, mesmo nesse terreno, sua capacidade de ação não se houvesse
revelado particularmente eficiente.
Todas essas alterações, tanto em seu status como em suas designações, não
afetaram, porém, o papel que a organização desempenha na cena política russa,
muito embora essa sucessão de siglas, mais ou menos enigmáticas, venha
constituindo como como que quebra-cabeça para os não iniciados no
denominado regime das democracias populares. Nos regimes ocidentais, duas
organizações distintas, funcionando isoladamente e com uma bem determinada
divisão de responsabilidades, estão encarregadas de assegurar um perfeito
serviço de segurança: uma para capturar espiões que agem dentro do país —
contraespionagem — e outra para realizar espionagem em países estrangeiros.
Na França, a primeira dessas organizações é representada pelo Deuxième
Bureau; e a segunda, pela Intelligence. Nos Estados Unidos, essas organizações
são representadas, respectivamente, pelo FBI e pela CIA; e na Grã-Bretanha,
pelo MI 5, o qual, apesar de seu prefixo militar, é autônomo e só responsável
perante o Primeiro-Ministro —, como acontece com o Deuxième Bureau, e, às
vezes, com o Cinquième Bureau, na França — e pela Intelligence, popularmente
conhecida como o Serviço Secreto Britânico.
Foi nesse período — que pareceu ser uma fase de grave perigo para a concepção
de uma revolução mundial — que o colapso da contrarrevolução dos Russos
Brancos aliviou a Cheka da maior parte da pressão que ela vinha exercendo
sôbre o povo, no interior da Rússia, e lhe proporcionou a oportunidade de voltar
sua atenção para o exterior. Ainda sob a integral liderança de Dzerjinsky, o
recém-criado Departamento Estrangeiro (INO) foi colocado sob a direção do
Primeiro Vice-Presidente da Cheka, M. A. Triliser, um veterano comunista, com
longa experiência de operações secretas.
Pode-se dizer, entretanto, que, desde 1924, a espionagem russa nunca olhou para
trás. Concebido em ampla escala para criar uma envergadura mundial, o Serviço
Secreto Soviético, até recentemente, ultrapassava, em volume de pessoal,
qualquer outra agência nacional de espionagem. (Segundo parece, a CIA, agora,
se lhe iguala numericamente.) Os resultados apresentados por esse Serviço, pelo
menos durante os últimos 15 anos, por incrível que pareça, não corresponderam,
entretanto, ao esforço feito. De fato, nada realmente importante fora por ele
realizado, antes que a traição de Nunn May e de Fuchs lhe proporcionasse a
oportunidade de entregar, ao seu Governo, vitais segredos atômicos, com os
quais os cientistas russos puderam compensar o atraso de dez anos em que se
encontravam, em relação aos seus colegas dos Estados Unidos e da Grã-
Bretanha, no terreno da tecnologia nuclear. Foi a existência de uma organização
assim tão vasta, mas de capacidade de ação aparentemente tão falha, que levou
as potências não-comunistas a ridicularizarem as tentativas soviéticas de realizar
uma perfeita espionagem. E essa atitude escarnecedora foi a causa do grande
erro, cometido por aquelas mesmas potências, de não se conservarem atentas aos
padrões da espionagem soviética e de se mostrarem descuidadas em relação aos
recursos da sua própria contraespionagem.
Em antecipação aos reparos dos meus leitores mais inclinados a críticas, julgo
que devo adiantar que não ignoro a existência de uma outra e muito importante
organização de espionagem da União Soviética. Trata-se do Quarto
Departamento do Estado-Maior do Exército Vermelho, mais amplamente
conhecido como a Administração Central de Inteligência (GRU). Este
Departamento foi criado por Trótski quando, entre 1918 e 1925, desempenhava
as funções de Comissário de Guerra, e era sua intenção fazer da GRU a principal
Agência de Informação da União Soviética. Êsse órgão se assemelha muito aos
departamentos de Inteligência militar de outras potências, usando os diversos
adidos à representação diplomática, e seus auxiliares, como seus principais
agentes.
Mas, aqui, nós nos deparamos, novamente, com um estranho estado de coisas. A
linha divisória entre a GRU e o KGB — para usar suas atuais siglas — nunca foi
claramente definida, e há muitos casos em que as atividades das duas
organizações se entrelaçam. O KGB sempre foi considerado como a agência
“principal” já que lhe tem cabido o direito de fazer a triagem do pessoal da GRU
e de manter seus próprios agentes dentro das fileiras daquela organização,
enquanto à GRU é negado o direito de reciprocidade, em relação ao KGB.
O Exército tem relutado em aceitar essa situação, mas nunca se mostrou capaz
de corrigi-la. Por diversas vêzes, entretanto, ergueu-se em desafio ao KGB. O
único período em que houve alguma cooperação entre as duas agências foi
durante a Segunda Guerra Mundial. Terminado o conflito, porém, o KGB
readquiriu novamente a sua superioridade. Justamente porque o KGB sempre
desfrutou dessa superioridade, é que me concentrei nêle, mas haverá um ou dois
casos, nos quais irei referir-me às atividades da GRU. Quando isso acontecer,
terei o cuidado de identificá-las.
3. Organização e Administração
A seção mais interessante, dentro dessa Divisão, é, sem dúvida alguma, o Index
que, provavelmente, será única no mundo, pelo menos no que se refere à sua
minuciosidade. A Gestapo nazista possuía uma organização mais ou menos
semelhante, mas não era, nem de longe, tão apegada a detalhes e de alcance tão
vasto quanto essa seção do KGB.
Calcula-se que cerca de 250 pessoas são empregadas para manter o Index em
dia. A exatidão em todas as suas informações tem sido testada em diversas
ocasiões.
O Segundo Diretório, como já foi dito, não encontra similar fora da Rússia
Soviética e dos seus países satélites, pela simples razão de que a maior parte de
suas funções nunca seria tolerada numa democracia.
O sistema de que a espionagem soviética lança mão para operar “no campo”,
pode-se dizer que é constituído de dois compartimentos estanques e separados,
embora os resultados, obtidos por ambos, atinjam aos mesmos objetivos. No
primeiro deles encontram-se os membros das embaixadas, o pessoal das
legações e dos consulados e os integrantes de muitas delegações, como, por
exemplo, as missões comerciais e culturais, que vêm constituindo o recurso
favorito de que se utiliza a Rússia para manter relações com as potências
estrangeiras.
Este núcleo central é integrado mais ou menos por cinco por-cento do total dos
funcionários, mas representa ele a espinha dorsal do serviço. São os Diretores-
Residentes, os organizadores, os homens que dão as ordens transmitidas por
Moscou.
Quando teve início a guerra civil espanhola, ele foi admitido na Brigada
Internacional, por recomendação de dois influentes comunistas ingleses.
Desempenhou, ali, as funções de encarregado dos transportes de batalhão, mas,
como não era membro do Partido, não lhe foi conferido um posto de confiança.
Como encarregado dos transportes, serviu por dois anos, sendo então mandado,
em férias, para a Inglaterra, a fim de assistir ao Congresso do Partido Comunista,
realizado em Birmingham, em 1938.
Embora ninguém lhe pudesse dizer nada, além de que havia sido convocado para
aquela missão, Foote aceitou a proposta. Houvesse recusado, e não há dúvida de
que sua associação com o Partido Comunista teria acabado ali. Apresentando-se
num endereço em St. John’s Wood, foi recebido por uma respeitável dona de
casa, que logo o recrutou para a Inteligência Soviética, embora ele não o
percebesse e só viesse a descobri-lo algum tempo mais tarde. Sabia que não
estava trabalhando para os comunistas ingleses, mas acreditava que pudesse
estar servindo ao Partido Comunista Alemão ou ao Comintern.
Seguindo as instruções, que lhe foram dadas pela dona de casa, Foote viajou
para Genebra e, no dia seguinte à sua chegada, entrou em contato com uma
mulher, em frente ao edifício do Correio-Geral. Estabelecido o contato, a mulher
se apresentou com o nome falso de Sônia e, enquanto tomavam um café, disse-
lhe que novos encontros entre eles deveriam realizar-se. Num desses encontros
— por sinal, o último —, foi informado de que deveria ir para Munique, a fim de
preparar relatórios políticos sobre a Alemanha, e, ao cabo de três meses,
apresentar-se de novo a ela, Sônia, em Genebra.
Por essa época, a rede soviética que operava na Suíça era controlada pelo
Diretor-Residente Alexander Rado. Tratava-se de um húngaro de nascimento,
comunista de longa data, e que havia sido membro do grupo de Bela Kun.
Quando a revolução de Kun fracassou, ele tinha apenas dezenove anos. Fugiu,
então, para Moscou, onde foi bem recebido nos altos círculos do Comintern.
Desde essa época, ou seja, a partir de 1919, encarregou-se de serviços secretos,
extremamente valiosos para a Rússia. Em 1936, foi designado Diretor-Residente
na Suíça.
Para a rede de Rado é que Foote fora escalado, assim que se tornou um eficiente
rádio-operador. Aí — e só aí — soube que era membro da espionagem soviética.
Não existe qualquer indicação em suas memórias, publicadas após sua deserção,
de que lhe tivesse ocorrido a idéia de recusar aquele perigoso trabalho.
Foote obteve tanto êxito em sua atividade de agente russo que, no devido tempo,
foi promovido a substituto eventual de Rado como Diretor-Residente. Esse fato,
entretanto, se deveu apenas às exigências impostas pela guerra, porque, desde
1930, os agentes de alta categoria sempre haviam sido russos, que tinham
passado por uma das escolas de treinamento da União Soviética. Rado deveu sua
indicação, em 1936, à conjunção de duas circunstâncias: ter sido treinado em
Moscou e possuir longo e excelente acervo de atividades clandestinas.
Quando o candidato de qualquer dos grupos não está em contato com uma
organização simpatizante, esforços são feitos para que um encontro ocorra, de
forma social. Os agentes, utilizados nesse gênero de abordagem, são
especialmente treinados e, embora muitas vezes fracassem no envolvimento de
suas vítimas, aparentemente não julgam que tais tentativas sejam inócuas, pois
que têm lançado mão dessa técnica, por muito tempo, e ainda a empregavam há
cerca de um ou dois anos.
5. Treinamento e Técnica
Os cursos que o recruta deve seguir são ministrados por escolas especializadas.
Cada uma delas tem uma especialização. Por exemplo: se o candidato se destina
a operar em determinado país, passará a ser aluno de uma escola, especializada
em proporcionar o mais completo conhecimento daquele país — seus aspectos
caraterísticos, sua política e sua economia, os costumes do povo, etc. Ou então,
se ele deve aprofundar-se em certos pormenores da espionagem — coleta de
informações técnicas ou econômicas, por exemplo —, frequentará a escola que
irá prepará-lo para desempenhar as tarefas especiais, com o máximo de sucesso
possível. Se terá de ser um rádio-operador ou um especialista em códigos, será
então matriculado em estabelecimentos que só ensinem essas matérias.
O sistema soviético de treinamento dos seus agentes difere muito pouco, nesse
aspecto, das outras agências de espionagem, com exceção talvez do sistema
britânico. Este se baseia no bom senso e nas qualidades pessoais de seus agentes
e, com esses elementos, apresenta resultados tão satisfatórios que intrigam e
despertam a admiração dos dirigentes de muitas outras organizações. Se há
necessidade de um preparo técnico de qualquer espécie — rádio-operador, por
exemplo, —, os ingleses proporcionarão aos seus recrutados apenas o
treinamento que lhes permita executar essas funções de maneira toleravelmente
boa. Ser-lhes-á dada, também, instrução elementar sobre o que é preciso fazer
para preservar sua segurança. Na maior parte das vezes, todavia, o recrutado
deverá valer-se de sua própria iniciativa, para contornar os obstáculos. O fato de
o serviço secreto inglês ocultar, atrás de sua fachada de verdadeiro sigilo, alguns
dos maiores golpes de espionagem da História, indica que esse sistema de
formação casual de seus agentes ajusta-se perfeitamente ao temperamento
britânico e funciona com perfeito rendimento.
O sistema soviético, por outro lado — e nisso ele se parece bastante com o
sistema nazista e, mesmo, com o do Kaiser —, forma agentes tão altamente
especializados que, se forem postos em face de uma situação que não esteja “no
livro”, não saberão como agir. O sistema de treinamento, empregado pelo
Coronel Walter Nicolai e pelo Dr. Elsbeth Schragmuller, na Primeira Guerra
Mundial, e o de várias agências nazistas de espionagem da década dos trinta e da
Segunda Guerra Mundial, determinavam absoluta obediência a ordens superiores
e os agentes assim formados acabavam por se revelar incapazes de usar a própria
iniciativa. Só por essa razão, perderam-se numerosos agentes.
Mas, se os nazistas exigiam obediência absoluta, os russos, por seu lado, são, a
esse respeito, ainda muito mais exigentes. A submissão à disciplina do Partido e
do Estado controla a vida russa, em todos os sentidos. O Manual de
Organização, publicado pelo Comitê Central do Partido Comunista Russo,
determina: “O Partido exige tudo de seus camaradas. . . O revolucionário
profissional não pode ser indisciplinado. Nada o pode abalar. O que dele for
exigido, ele o fará.” E os cidadãos soviéticos estão tão profundamente
influenciados por esses princípios, e se revelam tão condicionados pelos castigos
que têm sofrido por demonstrações de fraqueza ou de desobediência, que já
eliminaram de suas mentes qualquer noção de iniciativa.
O russo obedecerá a ordens, mas, se elas não forem contínuas, não agirá por si
mesmo. Até 1941, esse medo acusava reflexos mesmo no Exército. No dia 21 de
junho de 1941, quando as divisões de Hitler atravessaram o rio Bug, as unidades
russas, do lado oposto, enviaram insistentes mensagens, não-cifradas, dizendo,
em tom de lamento: “Estamos sendo atacados. Que devemos fazer?” Um dia
depois, as tropas alemãs encontraram intacta a vital ponte de Kodena e, quando
interrogaram o oficial russo, responsável por sua defesa — que fora feito
prisioneiro — por que não a havia destruído, assim que avistou as primeiras
unidades alemãs, ele respondeu: “Não tinha ordens para fazê-lo e não pude
encontrar um oficial superior disposto a me dar tal ordem, sem permissão do
Comando.”
Esse espírito de obediência é ressaltado ainda por um terceiro curso geral que
todos os recrutas devem seguir — um curso intensivo de doutrinação política,
aliado a um estudo das atividades revolucionárias. Essa dupla preparação é
destinada tanto a impregnar o candidato com a idéia do “patriotismo acima de
tudo” — como uma arma contra a sedução das ideologias democráticas e contra
o sistema de vida do Ocidente — quanto a permitir a formação de homens
altamente treinados em atividades subversivas, os quais, ao mesmo tempo em
que cumprem seus deveres de espiões, possam, se uma oportunidade se lhes
apresentar, levar à frente os objetivos da revolução.
Não é possível dizer-se com certeza qual o número de escolas mantidas pela
Divisão de Recrutamento e Treinamento, embora se calcule que se elevem a
cerca de vinte ou trinta. Os recrutados são reunidos em pequenos grupos, e todos
os membros desses grupos são treinados para tarefas específicas.
Iguais medidas estritas de segurança são aplicadas dentro do próprio grupo. Cada
agente tem um nome-de-guerra pelo qual é conhecido entre os demais figurantes
do grupo, e também por seus instrutores. É-lhe proibido, sob pena de demissão
ou de severo castigo, divulgar seu verdadeiro nome a quem quer que seja. Todas
as cartas que lhe são escritas, endereçadas para a escola, são abertas por um ou
dois censores, os únicos que conhecem a sua verdadeira identidade. Essas cartas
são lidas e, se aprovadas, entregues ao destinatário, sem envelope. Se, ao
contrário, é o recrutado quem escreve, suas cartas são submetidas aos censores,
os quais se encarregam de enviá-las, caso o conteúdo seja aprovado.
Uma vez matriculado na escola, o estudante não mais poderá ausentar-se dela
sozinho. Só deverá fazê-lo com os demais companheiros de grupo, e sempre
acompanhado de um dos membros da direção do estabelecimento. Pode receber
a visita de dois parentes uma vez ao mês, e as esposas — a organização admite
agentes casados, já que suas esposas e filhos constituem excelentes reféns,
garantidores do bom comportamento do agente que trabalhe no exterior —
podem frequentar o baile mensal, realizado no salão da escola. Namoradas,
entretanto, não têm permissão para visitar o estabelecimento — proibição esta
que parece ser uma consequência da impossibilidade de se testar uma pessoa
num prazo curto. Nos bailes, a hospitalidade é generosa, e assim o fazem com o
objetivo de manter o estudante materialmente feliz, tanto quanto possível. Nesse
sentido, é aliviado das responsabilidades financeiras de sustentar a família e de
atender às próprias despesas. Os encargos familiares são pagos diretamente pelo
Ministério do Interior, e suas despesas pessoais cobertas por um pequeno
ordenado, que lhe é facultado.
Tendo vencido com êxito esse estágio, o recrutado é submetido a outra junta.
Nesta, são-lhe expostas novamente as condições do seu serviço, quando então
assinará um juramento de que as observará. Nessa ocasião, já lhe fora também
amplamente esclarecido que, se violar quaisquer daquelas condições, poderá
perder a vida, e a mesma sorte recairá sobre todos os seus parentes.
Terminado todo esse treinamento, o recrutado está apto para entrar em função.
Pode ser designado para uma embaixada, como assessor, ou para substituir
algum elemento de uma rede. Onde quer que vá, entretanto, terá de adotar não só
um novo nome, mas uma identidade inteiramente nova. Essa identidade deve ser
tão profundamente assimilada que, às vezes, poderá ter dificuldade em se
lembrar de quem realmente seja.
Quando os salários não são pagos no local em que o agente exerce sua atividade,
são creditados na conta particular do espião, aberta num banco em Moscou.
Acontece então que, se o agente tem uma longa carreira de atividades, um
razoável pé-de-meia estará acumulado para quando ele se aposentar, uma vez
que essa quantia está acima e é independente da quota paga à sua família, se for
casado.
Em vista de todas essas circunstâncias, não pode haver dúvida de que, hoje, a
espionagem soviética é uma das mais poderosas armas não apenas da URSS,
mas também do mundo comunista. Estende seus tentáculos por todo mundo, a
cada ano que se passa, introduz, em sua estrutura, novos instrumentos de
agressão, sempre concebidos tendo em vista a imposição de uma eventual
supremacia do comunismo no mundo. Se esses objetivos têm de ser frustrados,
um violento antídoto deve, então, ser aplicado, e de maneira drástica.
Segunda Parte
ENTRE AS GUERRAS
1. França
Para o leitor cuja memória dos acontecimentos de logo após a Primeira Guerra
Mundial já se tenha quase dissipado, constituirá certamente uma surpresa a
recordação de que, no início de 1922, a União Soviética e a Alemanha assinaram
o tratado de Rapalo. Por esse documento, os dois países desistiam de qualquer
indenização de guerra e se ofereciam mutuamente a posição de “país mais
favorecido” na esfera econômica. A União Soviética tinha a intenção de incluir,
naquele tratado, algumas cláusulas relativas a uma cooperação militar entre os
dois países; essa pretensão, entretanto, não pôde ser concretizada, em face da
intervenção da França.
Essa situação durou até os fins de 1925, quando o Centro designou um Diretor-
Residente para a França. Tratava-se de um agente de alguma experiência,
chamado Uzdanski, que, anteriormente, servira em Varsóvia e em Viena.
Em Paris, Uzdanski passava por ser um artista e usava o falso nome de Abraham
Bernstein. Seu emissário-isolador era um jovem estudante lituano, de nome
Stefan Grodnicki.
Tudo correu bem por espaço de quase um ano, quando Cremet passou a
enfrentar dificuldades, criadas por um comunista francês da linha “ortodoxa”,
chamado Cochelin. Este, que trabalhava nos arsenais de Versalhes, fora
abordado por Cremet, que lhe pedira para obter informações, em seu local de
trabalho, sobre tanques e explosivos. Na primeira entrevista, Cochelin recusou-
se a cooperar. Cremet, porém, determinado a obter o que desejava, tentou uma
segunda aproximação. Novamente Cochelin negou-se a cooperar, mas não de
maneira tão peremptória como o fizera da primeira vez. A impressão que Cremet
teve foi a de que Cochelin havia refletido e, se fosse outra vez abordado, apesar
de ser um comunista militante, levaria o fato ao conhecimento do Ministério da
Guerra. E foi o que aconteceu.
Tendo desmascarado essa secreta ameaça, o governo francês decidiu que poderia
ser clemente com os culpados. Entretanto, parece que subestimou a relativa
importância das funções desempenhadas por Uzdanski e por Grodnicki, uma vez
que este ultimo só foi condenado a cinco anos de prisão, enquanto o primeiro
recebeu apenas três de reclusão. Uma pequena sentença foi, também, aplicada, à
revelia, a Cremet e a Louise Clarac, os quais também haviam conseguido fugir
para a Rússia.
Essa rede, que fora implantada por Cremet, na oficina de impressão do Colégio
Militar de Versalhes, transmitia cópias de todos os documentos militares
secretos, que lhes passavam pelas mãos, à Inteligência Soviética. Seus
integrantes vieram a perder-se, consequentemente, por falta de experiência no
julgamento do caráter de um dos elementos de quem se aproximaram, a fim de
conseguir informações adicionais sobre as ordens de mobilização do Exército e
da Força Aérea.
Era conhecido, apenas, como Paul. Foi a ele que a rede de St. Cyr entregara o
resultado de seu trabalho. Mais tarde, fora identificado como um homem que se
fazia chamar General Muraille, mas, mesmo essas circunstâncias não
conduziram a qualquer indicação sobre o seu verdadeiro nome.
As ordens que Paul recebia do Centro eram idênticas àquelas que haviam sido
dadas a Cremet e Uzdanski. Teria de descobrir tudo quanto pudesse sobre a
situação militar francesa, com atenção especial dispensada às novas armas,
particularmente à aviação. Apesar de sua natural aversão ao Partido Comunista
Francês, e das ordens de Moscou no sentido de se evitar a utilização das
agremiações políticas locais para fins de espionagem, Paul julgou que, se não lhe
fosse possível convocar sua própria mão-de-obra, nada de eficiente poderia
fazer. Nessas condições, com a permissão de Moscou, fez contato com o chefe
do Partido Francês, Henri Barbé, a quem explicou que estava encarregado de
selecionar jovens interessados em fazer um curso de estudos de marxismo-
leninismo, na capital russa. Não tendo razão para duvidar dele, Barbé colocou-o
em contato com certas organizações juvenis.
Em pouco tempo, Paul já havia organizado algumas redes, integradas por jovens
que encontrara naquelas associações juvenis, os quais, embora não tivessem o
mesmo descortino dos agentes mais velhos, mostravam-se, em compensação,
entusiasticamente dispostos a cooperar. Conquanto mantivesse espiões nas
fábricas de aviões e nos estaleiros navais, o que mais lhe interessava era a
indústria de munições, situada em Lyon. Dessa fábrica, conseguiu obter plantas
dos mais modernos tipos de avião.
Sob Thorez e Duelos, foi posto em prática, na França, novo sistema para coleta
de informações, de uma forma que se mostrara eficiente na Rússia, embora ali
realizado com finalidades inteiramente diferentes. Quando os comunistas
tomaram as rédeas do governo da Rússia, suprimiram todos os antigos jornais e
fundaram outros. Com os antigos jornais, desapareceram, igualmente, os velhos
jornalistas, e os novos periódicos logo descobriram que lhes faltavam fontes de
informação. Para suprir essa lacuna, instituíram então um esquema, denominado
Rabcor — Correspondentes dos Trabalhadores. De acordo com esse esquema,
todas as pessoas — se assim o desejassem — poderiam mandar para as redações
qualquer notícia que julgassem poder interessá-las. Um sistema Rabcor foi então
inaugurado na França, e os correspondentes operários eram estimulados a colher
e a remeter para a sede da organização qualquer tipo de informação,
especialmente as relacionadas com a indústria bélica francesa. Recebida a
informação, era ela cuidadosamente arquivada, e todos aqueles itens que
acusavam particular interesse para a Inteligência enviavam-se para a embaixada,
enquanto os inocentes, ou sem importância, eram reproduzidos nos jornais. Essa
iniciativa provou ser uma fonte de informações da maior relevância para a
Inteligência.
Sob a direção desses dois homens, a organização soviética, na França, pôde ser
recuperada, com rapidez, dos danos sofridos por ocasião do affaire Paul, sendo
justo dizer-se que esse êxito foi baseado, quase inteiramente, nas informações
fornecidas pela insuspeitada Rabcor.
Bir recebeu uma sentença de três anos de prisão, e seus cúmplices franceses,
outras pelo período de um ano. O lugar-tenente de Bir, Alter Strom, sofreu o
castigo de três anos de reclusão.
Nos últimos anos da década dos vinte e nos primeiros da década dos trinta, a
situação de hegemonia, em que a França se encontrava no plano internacional,
começara então a deteriorar-se e, muito cedo, sua política interna atingira aquele
ponto a que se referia Will Roger, quando dizia que seu maior divertimento, em
Paris, era ir ao Quai d’Orsay para ter a oportunidade de ver as mudanças de
governo. Em consequência dessa desorganização interna, o poderio militar
francês começou igualmente a declinar, sendo, pouco depois, sobre pujado pelo
da Inglaterra e pelo dos Estados Unidos. De qualquer forma, porém, a presença
de comunistas no governo francês passara a tornar a espionagem quase
desnecessária para a União Soviética.
Em face desse ambiente de inquietação geral, não seria de admirar que os líderes
soviéticos, certos de que a revolução mundial estava prestes a estourar,
julgassem a Alemanha um local de especial atração para o estabelecimento, em
seu território, de um posto avançado revolucionário. Dessa base, dentro das
fronteiras alemãs, os líderes vermelhos julgavam que poderiam planejar suas
atividades subversivas e dirigir sua espionagem mais diretamente contra a
Europa Ocidental e de modo mais eficaz do que conseguiriam fazê-lo da
longínqua Moscou. No último capítulo, referimo-nos ao fato de como o Centro
controlava, de Berlim, a espionagem na França. A França, porém, não deixava
de ficar em plano secundário quando se comparava o que ali fora feito com o
que se operou na própria Alemanha, pois, embora àquele país fosse, na época, a
potência líder da Europa, a Alemanha, contudo, apresentava possibilidades
diferentes e mais sedutoras — possibilidades nas quais a União Soviética,
fazendo desesperados esforços para instituir uma fase industrial, estava mais
egoisticamente interessada.
A espionagem militar tinha duas linhas de atividades, uma das quais não podia,
de fato, ser classificada como de espionagem. Tratava-se do plano russo de
organizar um novo exército alemão. Antigos oficiais deveriam ser conquistados
pelos soviéticos e, sob a orientação do golem de Moscou, iriam formar, então, o
núcleo de uma poderosa organização militar. A Alemanha foi dividida em seis
distritos militares, cada um deles sob o controle de um comunista alemão,
assessorado por um conselheiro russo, designado pelo Centro. A idéia da
organização desses distritos era, justamente, a de constituir uma força militar
subterrânea, a qual, quando estivesse completamente estruturada, poderia
emergir, juntar-se aos russos, impor um regime comunista à Alemanha e, então,
enfrentar o resto da Europa. Tratava-se de um plano bem urdido e
admiravelmente concebido, mas que fracassou em outubro de 1923, quando as
greves e os levantes ocorridos nesse mês encontraram as forças alemãs
completamente leais a seu governo. Procurando reduzir suas perdas, os russos
reconsideraram seu critério na maneira de realizar a espionagem militar e,
prontamente, instituíram uma nova agência, com instruções tanto para colher
informações militares propriamente ditas como para operar nas linhas normais
da espionagem.
Durante os poucos anos que se seguiram à adoção dessa diretriz, esse plano foi
seguido à risca e, embora seu êxito inicial fosse de pouca monta — exceto no
que se referia ao volume de informações obtidas —, os dois últimos anos
anteriores ao advento do nazismo trouxeram-lhe resultados compensadores.
Como havia acontecido na França, também a indústria de aviões, na Alemanha,
constituía o alvo de maior interesse, do ponto-de-vista militar, para a União
Soviética, já que, nesse campo, vinham-se verificando, com frequência,
surpreendentes descobertas.
Hammerstein tinha duas filhas que possuíam uma visão política bem mais
avançada do que a sua, a de um militar conservador. Naturalmente, a tendência
política dessas moças era conhecida nos círculos da Inteligência soviética, e
Werner Hirsch, editor do jornal A Bandeira Vermelha, órgão do Partido
Comunista Alemão, foi designado para se aproximar delas e procurar conhecê-
las bem. Se, através desses contatos, julgasse que eram de fácil receptividade,
deveria doutriná-las e alistá-las como agentes.
Hirsch obteve tamanho êxito no desempenho de sua missão que, num espaço de
tempo relativamente reduzido, as duas moças já haviam ingressado no GRU,
fornecendo aos seus agentes todos os documentos militares de valor que o pai
trazia consigo para casa. Ocuparam-se elas nessas atividades por vários anos e,
na opinião de elementos dos círculos soviéticos, “estavam classificadas entre os
melhores agentes que operavam junto ao Exército alemão”.
Outro fator que muito auxiliou a espionagem industrial na Alemanha foi a boa
vontade demonstrada pelo Partido Comunista Alemão em cooperar.
Contrariamente ao que fez o Partido Comunista Francês, seu homônimo alemão
estava preparado, e mesmo ansioso, para fornecer pessoal para os serviços da
espionagem soviética que operavam no país. E, com efeito, os agentes, que o
Partido forneceu, representavam o que havia de melhor em suas fileiras.
Possuíam a tradicional eficiência alemã e eram capazes de conduzir uma
operação secreta com o maior êxito possível. Entre os principais agentes que
trabalhavam naquele período, devem ser citados Hans Kippenburger, um antigo
líder da Organização Estudantil Comunista; Leo Flieg; Wilhelm Zaisser, que por
muitos anos, desde a guerra, fora Chefe de Polícia da Alemanha Oriental; Arthur
Illner, que se tornara famoso como sequestrador e assassino; e Ernst Wollweber,
Ministro de Segurança do Estado, na Alemanha Oriental.
Baseada nas redes comunistas locais, dirigida por membros do Partido na própria
Alemanha, mas controlada por profissionais russos de primeira classe, a
espionagem soviética, no campo industrial, de ano para ano crescia e se
expandia. Era possível que a contraespionagem estivesse a par do que ocorria no
país, mas, mesmo levando em conta essa circunstância, embora se mantivesse
em permanente vigilância, quase nada podia fazer, já que lhe faltavam meios e
recursos para impedir o trabalho dos agentes clandestinos. O que as forças de
segurança apenas conseguiam realizar era arranhar a superfície daquela broca
que, incessante e pertinazmente, solapava o país, assistindo, sem poder evitá-lo,
a que cada vez mais ela se aprofundasse nos filões das conquistas industriais
alemãs e retirasse deles o que era de interesse para o desenvolvimento da
nascente industrialização soviética. Diante dessa realidade, algumas fabulosas
empresas alemãs, como, por exemplo, a I. G. Farben, a fim de aliviar as despesas
do governo e, ao mesmo tempo, para se protegerem, organizaram seus próprios
serviços de segurança. Essa providência sempre ajudou, mas os reflexos que teve
sobre o esforço e as realizações da espionagem soviética escassamente foram
notados.
Com esse intento, instruíram um de seus agentes, um russo chamado Luri, para
que se aproximasse de Meyer, um químico experiente, que conhecia todos os
novos segredos da Solvay, e lhe oferecesse o posto de gerente-geral da fábrica de
Moscou. O salário que lhe reservaram era excepcionalmente elevado. Meyer
aceitou a oferta, mas necessitava de maiores conhecimentos do que aqueles que
já possuía e, antes de viajar para a Rússia, tentou obtê-los de antigos colegas.
Um desses compreendeu o intuito que ele secretamente alimentava, e o
denunciou à polícia. Meyer foi preso, julgado e sentenciado a quatro meses de
prisão.
Mais uma vez, o fracasso de uma rede soviética foi motivado por ausência de
capacidade de julgamento, por parte dos seus chefes, do caráter de um dos
agentes que integravam a organização. Karl Kraft fora solicitado a fornecer certa
fórmula secreta, relacionada com a amônia e o ácido carbólico, e imediatamente
participou aos seus superiores a proposta que lhe havia sido feita. Instruíram-no,
então, para que mantivesse contato com o agente Heinrich Schmid, enquanto as
investigações eram levadas a efeito. A apuração do que ocorria levou cerca de
dez semanas, com os seguintes resultados: a) a rede possuía ramificações
extensas; b) suficientes provas foram obtidas para que a contraespionagem
pudesse prender Steffen, Dienstbach e grande número de integrantes da rede.
Numa busca, realizada na residência de Steffen, foram encontradas fórmulas,
listas dos nomes de seus agentes e seus endereços e, como resultado dessa
proveitosa diligência, somente alguns poucos membros da rede puderam escapar.
Pouco tempo após sua prisão, Dienstbach confessou tudo quanto sabia, mas nada
informou sobre a participação dos russos na questão. Quando tentaram descobrir
quem estava por trás de Steffen, ficou decidido que uma busca seria realizada
nos escritórios da Handelsvertretung. O Ministério do Exterior, entretanto, não
permitiu que essa drástica providência fosse tomada, sob a alegação de que a
delegação soviética possuía imunidades extraterritoriais. Como era de se esperar,
a Handelsvertretung apressou-se em oficialmente negar que, de qualquer forma,
pudesse estar implicada no caso.
Esta última tarefa, ele a desempenhou com pleno êxito. No que diz respeito à sua
atuação no tribunal, porém, ela se revelou inferior ao que Alexandre esperava, já
que as provas coligidas contra os acusados eram indiscutíveis e esmagadoras.
Essas sentenças tiveram o efeito de levantar tal clamor público que, em março de
1932, foi baixado um decreto presidencial, tornando mais rigorosas as penas
para os crimes de revelação de segredos industriais, as quais passaram a ser de
três anos de prisão, caso esses segredos fossem entregues a firmas competidoras;
e de cinco anos, se revelados a representantes de firma ou de governo
estrangeiros.
Essas providências mal haviam sido tomadas, e eis que, em janeiro de 1933,
Hitler assume o poder. No governo, uma das suas primeiras preocupações foi a
de extinguir o Partido Comunista, com uma celeridade e uma rudeza raramente
antes vistas na História. Embora os líderes, no momento, se achassem a salvo,
por se encontrarem em seus esconderijos e acobertados por falsas identidades, o
Partido, como expressão de um movimento ideológico, em poucos meses,
praticamente deixara de existir. Conquanto muitos dos colaboradores da
espionagem russa pudessem ainda andar à solta, era por demais perigosa para
eles uma retomada de suas antigas atividades e, de qualquer maneira, se o
tentassem, nada conseguiriam fazer por falta de auxiliares e de contatos. Por
outro lado, se bem que as precauções tomadas, com a devida antecedência,
houvessem evitado que as agências russas fossem desmascaradas, também elas
passaram a se sentir tolhidas, em face da aterradora atividade da nova força de
segurança criada pelos nazistas, a Geheimestaatspolizei, ou seja, a Gestapo. Os
líderes clandestinos, por seu lado, não estariam em segurança por muito tempo.
Sob tortura e ameaça de morte, muitos dos que conheciam os esconderijos
daqueles líderes logo revelaram o que sabiam, e os que escaparam de ser presos
foram compelidos a salvar suas vidas, fugindo para o exterior.
Algumas das agências russas foram varejadas pela Gestapo, mas nada ali foi
encontrado que as comprometesse, no que diz respeito a espionagem. Essa
violência provocou protestos da Rússia, com ameaças de represálias nas relações
comerciais, mas a Gestapo não se impressionou com a reação. Ela tateava o
caminho que trilhava, pois, sem experiência em assuntos de espionagem,
procurava aprender como os cordéis deviam ser manipulados. Bons alunos, cedo
seus agentes agiam com desenvoltura, infiltrando-se mesmo nos círculos mais
fechados das agências soviéticas.
Em face dessa situação, a espionagem soviética, que sempre se apoiara na
extensa cooperação do Partido Comunista Alemão — sabido que é que o sucesso
russo, nesse terreno, sempre foi devido, em qualquer país, à eficiente
colaboração dessas agremiações locais —, decidiu que deveria sustar a ampla
atividade que desde muito vinha desenvolvendo na Alemanha. A reorganização
— como essa nova tática foi denominada — só deixou uma pequena rede
funcionando na Alemanha, e mesmo esta foi reduzida mais tarde, quando Stálin
efetuou os expurgos de 1936 e 1937, ocasião em que foram afastados do serviço
ativo os mais capazes agentes profissionais russos.
Essa rede conseguiu sobreviver, apesar das diversas incursões realizadas pela
contraespionagem, até 1941, quando Wollweber e seus associados suecos foram
presos, recebendo ele a sentença de três anos de prisão. Por essa época,
entretanto, a guerra não só havia dado origem a outras redes de grande atividade,
mas também projetado um ou dois agentes, os quais, agindo isoladamente, iriam
adquirir tal reputação que, cedo, figurariam entre os mais brilhantes ases da
espionagem internacional.
3. Grã-Bretanha
Por um par de anos, a Arcos operou em suas duas esferas de ação, sem ser
perturbada por qualquer oposição, da parte das autoridades britânicas, tendo em
vista o que naquela ocasião vinha ocorrendo na França. Parecia, de fato, que o
inglês, simplório, honesto e confiante, não alimentava qualquer suspeita de que a
Arcos não era, absolutamente, o que aparentava ser, e que aquele estado de
coisas poderia ter, assim, continuado, se o governo soviético, ou melhor, o
Partido Comunista Russo, não houvesse, em 1926, cometido um grave erro.
Durante a greve geral ocorrida naquele ano, o Partido Russo mandou mais de um
quarto de milhão de libras para que os mineiros ingleses pudessem sustentar seu
movimento. Essa atitude provocou um profundo ressentimento no seio do
governo inglês, que o considerou imperdoável interferência nos assuntos
internos do país. O Congresso dos Sindicatos Ingleses interpretou da mesma
forma a atitude russa, e o dinheiro foi devolvido. Winston Churchill, que era
então Ministro da Fazenda, e reconhecido antigrevista, ameaçou, em face do
acidente, romper todas as relações comerciais com a Rússia.
Esse incidente serviu para que todo interesse se voltasse para a Arcos, pois logo
surgiu na mente das pessoas que haviam entrado em contato com a organização
que o reduzido volume de negócios mantido pela Inglaterra com a União
Soviética não justificava a manutenção, nos escritórios da agência, em Moorgate,
de um corpo de funcionários de mais de trezentas pessoas. Foi também
descoberto, pelo M I 5, que pelo menos um dos chefes da delegação comercial,
N. K. Jilinsky, era membro da espionagem russa, e que o Conselheiro Comercial
da Embaixada, Igor Khopliakin, trabalhava também como agente secreto. Em
consequência de todas essas descobertas foi que o governo britânico retirou de
L. B. Khinchuk, sucessor de Khopliakin, as imunidades diplomáticas de que
desfrutava — fato este que parece ter preocupado, de certa forma, os chefes das
agências soviéticas na Inglaterra, pois um despacho — que, aliás, caiu em mãos
do M I 5, — do Encarregado de Negócios para o Subcomissário Soviético para
os Assuntos Estrangeiros, Litvinov, pedia autorização para suspender,
temporariamente, a remessa para Moscou de todos os documentos relacionados
com espionagem.
Verificou-se, entretanto, outro incidente, independentemente das investigações
realizadas pelo MI 5, nos negócios da Arcos, que inspirou esse pedido. Um
jovem técnico da Real Força Aérea fora surpreendido roubando desenhos e
cálculos secretos, descobrindo-se, depois, que tinha a intenção de enviá-los à
Arcos, como, aliás, antes já tinha feito.
Não muito depois desse inquietante episódio, ocorreu ainda outro, envolvendo,
mais uma vez, o setor aeronáutico — aviões, armas e particularmente um novo
tipo de monoplano, todos ainda em lista secreta —, bem como uma metralhadora
fabricada pela Vickers. O indivíduo envolvido nesse incidente era um inglês que,
aparentemente, se tornara espião mercenário e procurava vender suas
informações a quem mais lhe pagasse, acabando por se ver integrado nas fileiras
da organização soviética na Alemanha.
Miller lutou para não ser preso, mas foi subjugado e, quando o revistaram,
encontraram, em seu poder, uma lista dos esconderijos dos agentes e das “caixas-
postais”, relativas não só à Europa, como também às Américas do Norte e do
Sul, e um bom número de países do Commonwealth. O documento justificou a
apreensão, pela Divisão Especial e pelas autoridades da contraespionagem, de
toda a documentação encontrada na agência, e um vasto acervo de papéis foi
levado para ser examinado.
Esses documentos provaram, além de qualquer dúvida, que a Arcos vinha sendo
usada para encobrir atividades de espionagem, pois, entre os papéis ali
recolhidos, foram encontradas cópias de diversos documentos do governo
britânico e uma lista de alguns agentes russos, que vinham agindo na Grã-
Bretanha. O documento que provocou a incursão policial, entretanto, não foi
encontrado. Acreditou-se, na ocasião, que um membro da organização tivesse
fugido com ele, através de um túnel secreto, construído pela Arcos e só muito
mais tarde descoberto.
Um dos pacientes de Burtan era um certo E. Dachow von Bülow, alemão não-
comunista e ex-oficial do Exército alemão — que tentara ganhar a vida, na
América do Sul, contrabandeando armas. Burtan tinha certa ascendência sobre
von Bülow, pois, de tempos em tempos, o socorria em suas dificuldades
financeiras. Em face disso, e prevalecendo-se desses antecedentes, obteve a
cooperação de von Bülow para a distribuição do dinheiro falso.
Von Bülow tinha um plano, tão temerário quanto fácil de ser operado. Entre seus
muitos amigos ambíguos, encontrava-se o Ministro das Finanças da Guatemala,
e estava certo de que esse ilustre personagem, se convenientemente
recompensado, seria capaz de trocar os dólares falsos por outros verdadeiros, por
intermédio do Banco Nacional da Guatemala.
Dozenberg escapara para o exterior e foi transferido para a Romênia. Por volta
de 1939, desertara, retornando à América, onde passara algum tempo na prisão,
por haver feito falsas declarações, com o intuito de obter um passaporte. Nessa
ocasião, mudou o nome e desapareceu no anonimato.
Sem que Zilbert desconfiasse, entretanto, Disch, após sua primeira entrevista,
procurara seus patrões e contara-lhes o que estava ocorrendo. Os industriais, por
sua vez, levaram o fato ao conhecimento do Departamento de Inteligência
Naval.
Nessa época, esse Departamento, embora fosse integrado apenas por uma dúzia,
quanto muito, de agentes, aos quais competia a missão de proteger a Marinha
dos Estados Unidos das manobras de espiões estrangeiros, já se revelava uma
organização inteiramente dedicada ao serviço, e os seus homens eram todos
altamente capacitados. Desde a dissolução do serviço secreto de Lafayette Baker,
em 1865, após o escândalo atrás referido, esse Departamento constituía o único
serviço secreto norte-americano em funcionamento — com exceção do Serviço
Secreto do Tesouro —, e não fora ele formado senão quando a América entrara
em guerra contra a Alemanha do Kaiser. Nas décadas dos vinte e dos trinta, o
DIN desempenhou seu papel com admirável perfeição, numa ininterrupta batalha
contra a quase esmagadora superioridade das espionagens japonesa e soviética.
Quando o FBI extinguiu a ameaça dos gangsters de Chicago e de outros de
menor importância, recebeu instruções para realizar, igualmente, serviço de
contraespionagem. Nessas condições, essas duas agências, entre si, passaram a
representar um formidável obstáculo para quem quer que, secretamente,
procurasse causar danos aos Estados Unidos.
Até hoje, não foi explicada a razão por que os policiais não o agarraram, mas,
segundo tudo faz crer, o FBI desejava obter provas mais tangíveis para
incriminar Zilbert. Os agentes do FBI acharam muita graça, entretanto, quando
souberam que a falsificação das informações, que Disch passava a Zilbert,
acabara por se tornar conhecida dos técnicos da espionagem em Moscou. O
inevitável aconteceu: Zilbert rompeu seu contato com Disch, e, embora não
houvesse deixado logo os Estados Unidos, nem assim foi detido.
Tudo correu bem até que, certo dia, uma carta endereçada a Herman Meyers, em
Nova York, não pôde ser entregue, sendo devolvida para o Panamá. Ali, o
envelope foi aberto, e verificou-se que continha cópias de documentos de caráter
secreto, relativos às instalações e fortificações na Zona do Canal. Uma
investigação se realizou, constatando-se que as cópias datilografadas daqueles
documentos haviam saído da máquina de escrever de Osman. Este recebeu
ordem de prisão e, sendo julgado por uma corte marcial, acabou condenado a 20
anos de prisão, ao pagamento de uma multa de 10 000 dólares, e sofreu dispensa
desonrosa. A sentença foi suspensa, entretanto, por um novo julgamento nos
Estados Unidos. Mas, quando isso aconteceu, Switz já viajara para a França.
Neste ponto, torna-se necessária uma referência a uma final diferença que existe
entre a organização soviética e a de qualquer outro país. Trata-se do
funcionamento da Nona Seção da Divisão Especial do Segundo Diretório, que é
conhecida como a Seção do Terror e do Desaparecimento.
A criação dessa Nona Seção parece haver sido inspirada por uma ficção, tipo
James Bond, tão estranha é sua concepção para o modo de pensar e de agir dos
ocidentais. Na verdade, entretanto, não se trata de uma invenção, imaginada por
um novelista de espionagem, mas de uma força muito ativa e poderosa que se
destaca no cenário das atividades políticas da União Soviética. Instituída numa
época em que o criador de James Bond não passava de um simples rapaz, essa
seção funcionou originalmente entre 1918 e 1920, — ou seja, durante os anos do
Terror — como a agência encarregada das execuções. Nessa condição, era um
dos principais departamentos da Comissão Extraordinária, dirigida por
Dzershinsky, para combater a Contrarrevolução e a Sabotagem. Mais tarde,
porém, tornou-se uma seção separada, adida ao Comitê Executivo Central. Suas
funções, nesse período, estavam quase inteiramente restritas ao trabalho da
comissão de execuções dentro da Rússia. Mais tarde, por volta de 1932, isto é,
depois da demissão de Zinoviev, Rykov e Bukharin das suas posições de mando,
ela se tornou um instrumento pessoal de Stálin, e, quando levada a efeito a
reorganização das agências de espionagem, em 1934, foi então incorporada ao
novo NKVD.
Muito antes disso, porém, a Nona Seção, independentemente da forma com que
se apresentasse, tinha sido empregada, fora da Rússia, para eliminar agentes
considerados indignos de confiança, e para liquidar destacados comunistas, quer
eles se houvessem envolvido, ou não, em atividades de espionagem. O método
era tanto o rapto quanto a remoção para a Rússia, onde se realizava a execução,
após um julgamento secreto. Às vezes, verificava-se uma alteração nas normas,
sendo adaptado o assassínio no próprio local em que se encontrava a vítima. As
funções dessa Nona Seção eram, igualmente, de duplo caráter: silenciar, para
sempre, os agentes que poderiam trair importantes segredos de espionagem,
transmitindo-os aos inimigos do comunismo, e, pelo terror, fazer com os agentes
secretos ou preeminentes comunistas desistissem de tentar qualquer deserção.
Juliet Poyntz, por exemplo, tinha sido, de fato, preeminente membro do Partido
Comunista, antes que concordasse, em 1934 em fazer espionagem para a Rússia.
Depois de um período de treinamento em Moscou, voltou para Nova York com a
incumbência de descobrir novos agentes para a rede norte-americana. Mas
alguma coisa, na certa, lhe acontecera, quando ainda se encontrava na Rússia,
pois, ao retornar aos Estados Unidos, já não era uma convicta da ideologia, como
o havia sido nos doze precedentes anos. Não obstante isso, aparentemente tentou
levar a efeito, da melhor maneira que lhe permitiam suas habilidades, a tarefa de
que fora encarregada, até que o expurgo e os julgamentos, realizados em Moscou
em 1936, finalmente cristalizaram suas dúvidas. Assim, abandonou a
espionagem — tornando-se um agente, seguira a praxe tradicional, pedindo
demissão do Partido — e retirou-se para a vida privada, a fim de redigir suas
memórias. Com a primeira palavra que escreveu, assinou, porém, a própria
sentença de morte.
Certo dia, na primavera de 1937, deixou seu apartamento e, desde então, nunca
mais foi vista. Cario Tresca, líder trabalhista americano, acusou abertamente o
NKVD pelo seu assassínio e, cinco anos mais tarde, ele, por sua vez, foi morto
no que pareceu um acidente, na esquina da Quinta Avenida com a Rua Quinze.
Juliet Poyntz fora apenas um dos destacados agentes da década dos trinta, nos
Estados Unidos, que se havia desiludido. Outro foi Whittaker Chambers. Este,
como Juliet Poyntz, filiara-se ao Partido na década dos vinte, sendo introduzido
no serviço de espionagem pelo OGPU. Inicialmente, trabalhara para o Daily
Worker e era, então, o editor do New Masses. Em 1932, passara a colaborar com
o movimento clandestino e, dois anos mais tarde, recebera a incumbência de
reorganizar alguns comunistas, funcionários do governo em Washington, numa
nova rede.
Entre os seus contatos, segundo declarou mais tarde, achava-se Harry Dexter
White, assistente do secretário do Tesouro; Abraham George Silverman, da Junta
de Aposentadorias das Estradas de Ferro; o Dr. Gregory Silvermaster, do
Departamento de Agricultura, e Alger Hiss, do Departamento de Estado. Como
outro ramo de suas atividades, Chambers — segundo informou, posteriormente
— formara, com dois outros comunistas, John Sherman e Max Lieber, o
Sindicato dos Escritores Americanos, do qual a verdadeira finalidade era, de
acordo com seu próprio depoimento, dar cobertura legal a determinadas
operações clandestinas soviéticas no exterior.
Esse rápido esboço da ficha de Chambers toma bem claro como a espionagem
soviética, no terreno militar, obtivera êxito em se infiltrar nos Estados Unidos,
durante os meados e o final da década dos trinta. Por volta de 1938, ela penetrara
na administração dos Estados Unidos de forma realmente extensa, e não pode
haver dúvidas de que essa infiltração fora grandemente auxiliada pela atitude
oficial, que Chambers havia experimentado. O descaso parecia vir de cima, da
cúpula, talvez porque Roosevelt, que implicitamente acreditava em sua
habilidade para “manobrar” Stálin, mostrava-se pouco disposto a tomar qualquer
atitude que pudesse ser interpretada como antissoviética. Temia que uma
providência drástica viesse a prejudicar suas chances de negociar, com Stálin,
em termos proveitosos.
Nas mãos do FBI, Gorin violou outro regulamento da espionagem, que todos os
agentes soviéticos eram ensinados a obedecer. (O caso Gorin ilustra muito bem
como os supertreinados agentes russos podem revelar fraquezas, quando têm de
enfrentar situações embaraçosas.) Já em mãos da polícia, solicitou permissão
para telefonar à embaixada russa em Washington. Concedida a permissão, pediu
para falar ao embaixador, Constantin Oumansky, a quem perguntou o que
deveria fazer. Oumansky, também grandemente perturbado, decidiu enviar o
vice-cônsul soviético — que, na realidade, era um agente do NKVD em Nova
York — para se avistar com Gorin na prisão de Los Angeles. Enquanto isso, ele
próprio procurou Summer Welles, que exercia, na ocasião, o cargo de secretário
de Estado, para protestar energicamente contra a prisão de Gorin, acusando o
Departamento de Justiça de se comportar de maneira que não era estritamente
legal, embora a base dessa alegação tenha constituído outro problema para
Welles resolver.
Nos dias que se seguiram, o embaixador fez sucessivas tentativas para obter a
soltura de Gorin mediante fiança, mas o Departamento de Estado recusou-se a
intervir. O detido não gozava de imunidades diplomáticas, e tratava-se, portanto,
de assunto a ser resolvido pelos tribunais civis. Em maio de 1939, ambos foram
julgados e considerados culpados do crime de espionagem. Gorin recebeu uma
sentença de seis anos de prisão e Salich, uma de quatro. Imediatamente, os
soviéticos apresentaram um recurso em favor de Gorin e, durante os dois anos
seguintes, a causa se arrastou através da Corte de Apelação, até que, em janeiro
de 1941, a Suprema Côrte manteve o veredicto do julgamento da primeira
instância.
O efeito, neste caso, foi o mesmo que o verificado no Exército, no fim dos
primeiros seis meses da guerra entre a Alemanha e a Rússia, quando uma nova
elite de jovens oficiais, divorciados das técnicas ultrapassadas dos Voroshilov e
dos Budenny, se formou e se projetou. Sob o impulso do recém-nomeado chefe
dos serviços de segurança, Lavrenti Béria, uma nova geração de agentes foi
rapidamente formada.
Para aqueles que caíram vítimas das suas forças desintegradoras, esses expurgos
representaram um vento mau que soprou através do NKVD, mas foi ele seguido
por uma brisa benigna de mudança, que trouxe, com suas novas técnicas, a
possibilidade de um êxito até então não experimentado por qualquer agência
soviética dedicada a atividades clandestinas.
2. As Redes na Bélgica e na Holanda
A rede holandesa possuía sua estação de rádio própria, operada por um indivíduo
chamado Wilhelm Vogeler, enquanto quatro dos seus agentes ativos eram três
homens — Lutterman, Nagel e Gouloose — e uma mulher, Hendrika Smit.
Embora independente, essa rede era obrigada a manter estreita ligação com a sua
irmã belga, e três correios se encarregavam de preservar essa vinculação: Jacob e
Hendrika Hilboling e Maurice Peper.
A rede belga era muito mais extensa, tanto em organização quanto em relação às
suas finalidades, e, considerada em conjunto, revelava-se mais importante do
que sua vizinha do Norte. Tratava-se de uma deliberada política do Centro, como
se pode verificar pelo fato de que o indivíduo designado para dirigi-la era um
judeu polonês de notável experiência em espionagem, chamado Leopold
Trepper, que iria ser, consequentemente, nomeado Diretor-Residente de todas as
redes que operavam na Europa Ocidental.
Entre um exército de agentes de menor importância, menção deve ser feita a Leo
Grossvogel, alemão que organizou os disfarces comerciais; a amante de
Grossvogel, Simone Phelter, funcionária da Câmara de Comércio Franco-Belga,
que agia como correio entre Bruxelas e Paris; August Sesee, notável técnico e
rádio-operador; e Abraham Raichman, polonês, especialista em falsificação de
documentos de identidade.
Essa rede era uma organização complexa e, portanto, algum tempo foi necessário
para que sua instalação pudesse efetivar-se. Quando, porém, a guerra irrompeu
no Ocidente, ela já se achava em condições de entrar em ação. O plano original
do Centro fora o de utilizar essa rede somente em caso de guerra entre a
Alemanha e a Rússia. Com exceção das ordens dadas, no sentido de que as
agências alemãs e, em particular, a organização Todt, sofressem infiltração após
a invasão da Bélgica, o plano foi aprovado. Para realizar essa tarefa, Trepper
fundou a firma Simexco, cuja finalidade era fornecer materiais de construção à
organização Todt e, por esse meio, conquistar a confiança dos funcionários
alemães dessa organização e obter acesso aos segredos relativos à ofensiva
alemã. Durante o reduzido espaço de tempo em que funcionou, as realizações
dessa rede foram de grande monta.
Sophie Poznanska, por sua vez, aproveitou a confusão e tomou seu tablete de
cianeto, antes que os excitados alemães percebessem o que ela estava fazendo.
Makarov morreu sob torturas, sem trair um simples pormenor, mas Rita Arnould
não somente contou tudo o que sabia, mas igualmente entregou,
voluntariamente, à Abwehr uma fotografia de Trepper, que ela nunca deveria ter
possuído. Quando sua utilidade chegou ao fim, foi decapitada. Trepper,
conhecido como o “Grande Chefe”, e Sukulov, chamado o “Pequeno Chefe”,
fugiram para a França, onde a rede local, sob a direção geral de Trepper,
funcionava na Zona Não-Ocupada, enquanto Yefremov, não comprometido por
Rita Arnould, assumiu a direção do que restou da rede belga, sendo Johann
Wenzel levado da Holanda para ajudá-lo.
Essa iniciativa representou, mais tarde, uma atitude das mais infelizes tomadas
pelo Centro. É que Rita Arnould havia também denunciado Wenzel. Com
frequência, ele ia a Bruxelas e visitava a villa da Rua Attrebates. Não obstante a
denúncia, continuou a operar, com sucesso, pelo período de seis meses, até que,
em junho de 1942, quando localizado seu transmissor pela Abwehr, foi preso.
Por essa ocasião, a Abwehr tivera a idéia do que, mais tarde, se transformaria no
Spiel. Embora seus agentes tivessem fracassado na tentativa de decifrar os
códigos, utilizados nas transmissões da villa, mais tarde, quando uma busca mais
rigorosa ali foi levada a efeito, os alemães encontraram alguns papéis rasgados,
contendo grupos de letras. Através desse material, recorrendo a cuidadosa e
persistente paciência, seus técnicos conseguiram reconstituir o código, ocorrendo
então a Canaris que essa descoberta seria valiosa, não somente para descobrir
quais as informações que os russos haviam obtido, mas, igualmente, pelo
prejuízo que poderia ser feito à espionagem soviética, se mensagens falsas
fossem transmitidas, em código, para o Centro. Quando, entretanto, estavam
prontos para realizar esse programa, Makarov, que poderia ter sido usado nessa
tarefa — e, de fato, devia ser usado * —, estava morto, e o Centro já mudara
seus códigos.
De qualquer forma, parece que Wenzel não traiu Yefremov, pois este último foi
preso, em julho de 1942, quando Raichmann, técnico em falsificação de
documentos, entregou um retrato dele a um inspetor de polícia belga, chamado
Mathieu, em quem confiava, mas que, na realidade, estava então colaborando
com os alemães. Em face da desorganização em que caíra o departamento de
falsificação, com a apreensão, no interior da villa, de seus cunhos de borracha,
Raichmann solicitara a Mathieu que pusesse um carimbo oficial naquela
fotografia de Yefremov, o que se fazia necessário para a obtenção de um novo
passaporte. É que o agente russo decidira mudar sua nacionalidade, deixando de
ser finlandês para se tornar holandês. Mathieu concordou em entregar, ele
próprio, o passaporte a Yefremov, quando lhe fosse possível carimbá-lo, e,
quando os dois se encontraram, o agente russo foi preso.
Fazia parte do seu grupo certo número de destacados agentes. Ali estavam:
Maurice Aenis-Hanslin, engenheiro, que atuava como correio entre o grupo e a
rede suíça; Louis Mourier, que desempenhava as vitais funções de “caixa-
postal”; e, por fim, Medardo Griotto, gravador, cuja arte e habilidade eram
grandemente apreciadas por todos os integrantes do grupo.
Vasili e sua irmã Anna Maximovich eram filhos de um nobre russo emigrado
para Paris após a derrota dos russos "brancos” em 1922, ali morrendo, viúvo e na
miséria. A criação e a educação dos dois filhos, que deixara na orfandade,
ficaram a cargo do bispo de Paris, Monsenhor Chapital, que dispunha de fundos
para socorrer estrangeiros necessitados. Vasili formou-se em Engenharia; Anna,
em Medicina, especializando-se em Psiquiatria e em Neurologia.
Ao irromper a guerra, Anna, que fundara uma casa de saúde para doentes
mentais, passara a financiar, com os lucros que ali obtinha, os simpatizantes da
organização União dos Defensores. Em consequência disso, foi presa, mas,
tendo conseguido provar que cuidava de pacientes legítimos, logo a libertaram.
Vasili, durante algum tempo, não fora incomodado pelas autoridades. Por volta
de outubro de 1939, entretanto, a polícia o internou num campo em Bernet, perto
de Toulouse, que primitivamente havia sido criado para recolher comunistas
espanhóis, fugidos da truculência de Franco, e que então passara a ser um centro
de detenção de russos.
Nesse campo permaneceu até que se deu a invasão da França, quando foi
libertado, sob o compromisso de servir de intérprete a um general alemão, de
tendências anti-hitleristas.
Por essa ocasião ou, mais exatamente, alguns meses antes dessa data, Trepper
estava organizando seu próprio grupo na França e tinha sido nomeado para o
posto de Diretor-Residente da espionagem russa em território francês. Com a
assistência de Feo Grossvogel, fundara, em 1939, uma firma de produtos têxteis,
mais ou menos idêntica às que haviam sido estabelecidas em Bruxelas e
Ostende, como se pode ver pela semelhança dos nomes — Simexco, na Bélgica,
e Simex, na França — , e que serviria como disfarce para suas operações.
Funcionando em escritórios, instalados nos Campos Elíseos, a Simex dispunha,
igualmente, de uma filial no Bulevar Haussmann e ainda de uma outra em
Marselha. Após a queda da França, foi instalada uma terceira filial na Zona Não-
Ocupada.
O noivado, aprovado pelo Centro, foi comemorado com uma festa esplêndida, na
qual, com exceção do noivo, todos os presentes eram violentamente
anticomunistas. Seus chefes alemães encararam igualmente aquela ligação com
prazer, tendo Maximovich recebido então uma permissão especial para visitar o
quartel-general da Administração Militar, quando quisesse e tantas vezes quantas
desejasse. Poucos agentes soviéticos, talvez somente com duas notáveis
exceções — Rudolf Rössller, que operava com a rede de Genebra, e Richard
Sorge, em Tóquio —, tiveram melhores facilidades para realizar seu trabalho do
que Vasili. Não somente tinha acesso pessoal a praticamente tudo o que ocorria
no quartel-general da Administração Militar, mas sua esposa revelou-se ansiosa
por ajudá-lo, levando-lhe todos os rumores que suas colegas femininas lhe
transmitiam.
Ali, ela atendia aos seus pacientes verdadeiros, assistida pelo Dr. Jean Darquier,
cujo irmão era o Comissário-Geral para os Assuntos Judaicos no governo do
Marechal Pétain. Como Jean Darquier era pessoa de sua confiança, essa ligação
abriu uma fonte de informações não somente relativas às questões judaicas, mas
também relacionadas com uma larga variedade de assuntos de ordem geral,
todos de grande interesse para Moscou. Desde que o casamento de seu irmão
com Fraulein Hoffmann-Scholtz realçara grandemente a posição de Maximovich
com os alemães, não tardou que oficiais do exército de Hitler procurassem tratar-
se com Anna, de suas enfermidades nervosas, provocadas pelo esforço de
subjugar um povo orgulhoso e agitado. Esses oficiais constituíram também nova
fonte de informações. Nessas condições, levando-se em conta todas essas
circunstâncias, a rede de Maximovich adquiriu considerável importância no
fornecimento de Inteligência ao Centro.
A maior ameaça à rede soviética na França veio dos ex-integrantes da rede belga,
que haviam concordado em colaborar com os alemães. Esse fato revela, de
maneira expressiva, a falta de habilidade de alguns dirigentes do Centro, que,
permitindo a existência de um chefe na direção ou relacionado com duas
organizações, funcionando em dois países separados, comprometiam a segurança
de ambas as redes. Em outubro de 1942, oficiais da Abwehr, que haviam sido
responsáveis pela apreensão da rede belga, chegaram a Paris, levando em sua
companhia alguns daqueles agentes-colaboradores. Logo após o desembarque
desses elementos na capital francesa, umas duas vintenas de agentes soviéticos,
ou de pessoas suspeitas de serem agentes, foram presas.
Trepper caiu, finalmente, nas mãos dos alemães, em consequência de sua própria
falta de cuidado. Num diário, que deixara em sua secretária, na Simex, anotara
uma hora marcada com seu dentista. Para um agente da sua experiência, esse
fato constitui falta inadmissível, e ainda pareceu quase incrível, ao saber-se que
o Grande Chefe compareceu ao encontro marcado, mesmo sabendo da deserção
dos Kalinin. Dessa forma, foi preso, no dia 16 de novembro de 1942, quando se
achava sentado na cadeira do dentista.
O primeiro assistente que denunciou foi seu secretário, Hillel Katz, a quem pediu
que o encontrasse na estação do metrô da Madeleine. Quando Katz foi acareado
com Trepper, este lhe ordenou revelasse tudo o que sabia. Katz obedeceu e,
quando já havia dito tudo, os alemães o executaram.
Entre os dois, Trepper e Katz, também foi atraiçoado Henry Robinson, o chefe
da rede, que, depois de Maximovich, era que operava com maior êxito. Robinson
foi preso no dia 21 de dezembro de 1942.
Esses fatos, entretanto, não significam que tenha chegado ao fim a espionagem
soviética na França. Victor Sukulov, o Pequeno Chefe, que escapara ao cerco das
tenazes da Abwehr em Bruxelas, transferira-se para Marselha, onde vinha
dirigindo com êxito uma excelente organização. Existia ainda outra que operava
em Lyon — um dos centros da resistência francesa —, dirigida por Jezekiel
Schreiber. Em poucos meses, essas duas redes também haviam sido
desmanteladas, e a mesma desprezível história de traição fora repetida.
Trepper colaborou com a Abwehr em seu “jogo do rádio” e, por meses e meses,
operou uma estação transmissora para os alemães. Como resultado dessa sua
atividade, a Resistência Comunista Francesa, um dos grupos de resistência mais
poderosos e ativos em toda a França, foi tornada praticamente sem eficiência.
Com permissão para viver numa residência particular, situada à Avenida Foch,
com sua amante, Geórgia de Winter, conseguiu ludibriar a guarda que o vigiava,
em junho de 1943, e nunca mais foi visto pelos alemães. Chamado de volta a
Moscou, no término da guerra, obedeceu submissamente, embora devesse saber
que seu destino seria a execução — fato este que lhe toma a deserção ainda
enigmática.
Um dia, porém, foi acareado com sua amante, Margarete Barcza. De acordo com
o Der Stern, que publicou, no dia 17 de junho de 1951, declarações feitas por
agentes da Gestapo, relativas ao desmantelamento das redes francesas e ao “jogo
do rádio”, o que aconteceu foi o seguinte: “Ao ver Barcza, Sukulov mostrou-se
furioso. Avançou para ela e a abraçou, com uma ternura de que só um russo é
capaz. Voltando-se, então, para o Comissário, exclamou: Deixe que ela vá em
liberdade, e eu lhe contarei tudo. . . Ajoelhou-se diante do oficial e chorou como
uma criança.”
Embora não por culpa sua, Victor Sukulov foi, igualmente, envolvido na
apreensão e na supressão de uma das notáveis organizações da espionagem
soviética que operavam durante a guerra. Conhecida como a Orquestra Vermelha
— Die Rote Kapelle * —, era admirável, tanto por seus membros integrantes
quanto pelas informações que pôde transmitir para Moscou, durante os quatorze
meses de sua existência.
Quando atingiu a idade de vinte e seis anos, Schultze-Boysen casou-se com uma
neta do Príncipe Philip von Eulenberg — Libertas Haas-Heye —, que lhe iria ser
de grande ajuda, já que iniciou efetivamente suas atividades de espionagem no
mesmo ano do seu casamento, isto é, 1936. Nessa época, enviava informações
aos vermelhos espanhóis, relativas à Inteligência alemã.
Harnack era bem diferente de Schultze-Boysen: dez anos mais velho e membro
de uma famosa família de filósofos alemães. Como Schultze, entretanto, cedera,
a princípio, aos grupos de extrema-direita, no fim da Primeira Guerra Mundial, e
então derivara para o comunismo. Era, porém, um verdadeiro comunista, um
marxista.
É óbvio que Harnack era uma dessas raras criaturas — um espião de nascença.
Embora não houvesse recebido qualquer treinamento, durante sua longa carreira,
sempre observou os princípios básicos da segurança, e nem uma só vez deixou
escapar a mais leve insinuação sobre suas atividades secretas. Tanto êxito obteve
que logo passara a ser considerado, no Ministério da Economia, como modelo do
que um oficial deve ser — um burocrata consciencioso e trabalhador.
No fim da década dos vinte, passara dois anos nos Estados Unidos, através de
uma bolsa de estudos da Fundação Rockefeller. Durante sua permanência ali,
conheceu Mildred Fish, conferencista de literatura, com ela se casando. A Sr.a
Harnack não necessitara de muita persuasão para adotar as idéias do marido.
Quando ele retornou de Moscou, ela se mostrava tão entusiasmada quanto ele
em relação a suas novas funções. Ao ser desmantelada a Orquestra Vermelha,
pelos alemães, foi presa, juntamente com o marido, e julgada, embora nunca
fosse confirmado que alguma vez se tivesse empenhado em atividades de
espionagem.
O grupo que realizava espionagem ativa era constituído de uma pequena fração
do conjunto e guardava seu segredo com discrição, embora isso não tivesse sido
suficiente para salvar os demais, quando a tragédia os avassalou. Os dois
principais líderes — Schulze-Boysen e Harnack —, o primeiro na Inteligência
do Ministério da Aeronáutica, e o segundo no Ministério da Economia,
encontravam-se em excelentes posições para coletar informações da maior
importância. Os demais integrantes do grupo achavam-se, igualmente, bem
situados. Horst Heilmann trabalhava no departamento de decifração de códigos
na Wehrmacht; Johann Graudenz, viajante de fábricas de freios que fornecia à
Luftwaffe, fazia os registros da produção aeronáutica dos nazistas; Erwin Gehrts
trabalhava em outro departamento do Ministério da Aeronáutica; Herbert
Gollnow tinha acesso aos segredos da contraespionagem da Wehrmacht; Gunther
Weisenborn era funcionário do serviço nacional de rádio; enquanto outros se
encontravam firmemente entrincheirados no Ministério do Exterior, no
Ministério da Propaganda, no Ministério do Trabalho, na Administração
Municipal e em vários departamentos importantes.
O resultado foi que uma mulher, agente da Gestapo, apresentando-se como Ilse
Stöbe, se encontrava no apartamento de Schelihä, quando o chantagista,
Heinrich Koenen, chegou. Tiveram uma conversa esclarecedora, antes que os
oficiais da Gestapo o detivessem. Ilse recusara-se a falar, mas Koenen concordou
em colaborar, resultando daí que Schelihä fosse preso; e ambos, Schelihä e Ilse
Stöbe, foram executados no dia 22 de dezembro de 1942.
Com a remoção de Kummerow e de Schelihä do cenário alemão, a importância
da Orquestra Vermelha cresceu proporcionalmente e, por quatorze meses, o
grupo mais do que compensou os desastres sofridos em consequência da
eliminação daqueles dois agentes. Conseguiu a Orquestra enviar para Moscou
informações de vital importância, como, por exemplo: planos estratégicos do
Alto Comando alemão; movimentos e localização dos esquadrões aéreos de
Goering; planos para ataque aos comboios ingleses que seguiam para a Rússia;
estatísticas da produção aeronáutica mensal; a situação dos exércitos, que se
encontravam na Rússia, em relação a combustíveis; e muitas outras de menor
relevância, mas sempre dignas de serem sabidas.
Nessas condições, ao mesmo tempo que Victor Sukulov fora enviado para
descobrir o que se passava com Schelihä, recebeu instruções também para
examinar que ajuda poderia prestar à Orquestra Vermelha, de Schulze-Boysen e
Harnack. Sukulov encontrou os dois agentes em Berlim, verificando então que a
maior dificuldade com que lutavam se relacionava igualmente com a falta de
facilidades para transmissões e recepções radiotelegráficas de primeira categoria.
Sukulov removeu essas dificuldades e retornou à Bélgica, somente para, dentro
de poucos dias, escapar de ser preso e ter de fugir para a França.
Entre as mensagens captadas pela Abwehr, estava aquela que lhe havia sido
enviada, dando-lhe instruções para ir à Alemanha e entrevistar-se com Schulze-
Boysen e seus companheiros. Nela, o endereço de Adam Kuckhoff era dado, e
algumas particularidades foram reveladas em relação aos outros dois. Essas
pequenas informações, entretanto, mostraram-se perfeitamente suficientes para
que eles pudessem ser identificados, e, com base nessa apresentação, os três
foram presos. Schulze-Boysen, no dia 30 de agosto de 1942; sua mulher, alguns
dias mais tarde; e os Harnack, no dia 3 de setembro.
Antes de prender Schulze-Boysen, a Gestapo tinha controlado seu telefone e,
como resultado dessa providência, pôde entrar em contato com cerca de uma
centena de outras pessoas do grupo maior. Nem todos eles, porém, caíram nessa
armadilha. Alguns membros, entre os quais Libertas Schulze-Boysen,
concordaram em colaborar. No período de alguns dias, a Orquestra Vermelha
tinha deixado de existir na Alemanha.
De que esse medo era justificado não resta a menor dúvida, levando-se em conta
as subsequentes atitudes da Rússia nesse campo. O técnico incumbido de
estabelecer uma organização desse tipo na Rússia foi o misterioso Alexander
Erdberg, que trabalhara na embaixada russa em Berlim. Os agentes que deveriam
integrar a organização eram escolhidos, em sua maioria, entre os muitos mil que
tinham fugido dos exércitos alemães em ofensiva e se mostravam
suficientemente fortes e jovens para se submeterem a um rigoroso curso de
treinamento em armas e paraquedas, enquanto os selecionados para atuar na
Alemanha eram jovens comunistas emigrados.
Tudo faz crer que os russos não compreenderam exatamente as dificuldades que
teriam de enfrentar para instituir missões dessa natureza. A necessidade desses
agentes era urgente, e o seu treinamento, portanto, foi acelerado. A grande
maioria deles constituía, na realidade, riscos de segurança de primeira classe, no
momento em que tocasse a teria. E isso porque havia sido demasiadamente
apressada a instrução que receberam para as funções de agentes secretos. Rádio-
operadores foram postos em atividade, dotados de uma instrução que só serviria
para atirá-los, de saída, nas garras das unidades de detectação de emissoras que,
cada dia, se revelavam mais eficientes. Seus códigos, necessariamente simples,
eram, entretanto, tão rudimentares que as mensagens neles transmitidas
poderiam ser perfeitamente sem cifra. Nessas condições, os russos nenhuma
tentativa fizeram — ou assim parece — para instituir o tipo de organização de
“recepção” em campo, que tanta significação tinha para esse tipo de agente, e
que os ingleses, utilizando o mesmo gênero de pessoal e a mesma qualidade de
organização de resistência clandestina, com tanto sucesso haviam construído.
Tudo faz crer, igualmente, que as autoridades de Moscou, responsáveis por essa
organização, não mereciam fé e encaravam sua tarefa com um cinismo raro,
mesmo entre os russos. Talvez dispusessem de vastos recursos humanos, aos
quais podiam recorrer, mas, se isso era verdadeiro ou não, o fato é que usavam
seus homens e suas mulheres com uma prodigalidade quase inacreditável.
Eu mesmo caí vítima da Abwehr, mas isso não foi devido a qualquer falta da
OSE, nem por culpa minha. Durante os primeiros estágios de convívio com a
Abwehr, três acontecimentos deveriam revelar a atualidade de todos os pontos
acima referidos. Em primeiro lugar, passei minha primeira noite de prisão numa
cela ocupada por um jovem agente russo, que seria fuzilado na manhã seguinte.
Descobrimos uma linguagem comum, e eu, em conversa que se prolongou por
grande parte da noite, soube que ele não completara ainda dezenove anos, que
recebera um treinamento de cinco semanas antes de ser lançado atrás das linhas
alemãs e fora preso, dois dias mais tarde, quando operava seu rádio. Não se
tratava de um traidor. Havia sido, entretanto, rigorosamente torturado, e disso
possuía provas evidentes no corpo. Era, antes de tudo, leal ao seu país, aos seus
dirigentes e à sua ideologia.
Em segundo lugar, uma moça agente, com a idade de dezoito anos, foi posta em
minha cela, com a insinuação de que devíamos aproveitar bem o pequeno tempo
que nos restava. Embora desconfiássemos um do outro, suspeitando um truque, e
apesar de eu ter alegado, com veemência, que preferia ficar sozinho, deixaram-
nos juntos por algumas horas. Vencendo nossa recíproca repulsa, conversamos
um pouco.
A moça não era russa, mas natural de um dos países orientais subjugados pelos
alemães. Fora treinada, durante seis semanas, para servir como rádio-operadora
— os cursos mínimos de rádio da SOE eram de três meses —, e atirada, num
paraquedas, com um grupo de cinco homens. Acabara presa, dentro de uma
semana, através das transmissões do seu rádio. Sentia-se desiludida. Sabia não
ter sido convenientemente treinada e, mais tarde, conseguiu prolongar a vida, por
curto espaço de tempo, aderindo ao “jogo do rádio”.
Desde que a Alemanha estava fora do alcance dos aviões de longo curso da
Rússia — e mesmo que tivessem aviões capazes de voar as distâncias em
questão, a maior parte do voo teria de se realizar sobre território inimigo, sempre
bem provido de barragem aérea —, os dirigentes soviéticos solicitaram aos
ingleses que colaborassem com eles, fazendo o transporte de seus agentes. Os
ingleses concordaram. Embora nunca houvessem sido reveladas as cifras do
número de agentes efetivamente entregues, elas, segundo se supõe, não devem
ter sido elevadas, já que o número de espiões postos dentro da própria Alemanha
não era grande. Quase todos os que foram atirados não escaparam de ser presos
em curto prazo, e uma boa proporção dos que não foram apanhados se rendeu.
Por outro lado, os sabotadores, que eram treinados e transportados pela mesma
organização, desempenharam importante papel. Sua tarefa, porém, não era tão
difícil. Sendo enviados, em largos grupos, para trás das linhas alemãs, competia-
lhes uma tarefa simples ou dupla: teriam de provocar o maior estrago possível ou
iriam juntar-se aos guerrilheiros, ocultos nas florestas, para treiná-los e liderá-los
em operações de sabotagem. Os arquivos alemães demonstram que esses bandos
valiam certamente o esforço requerido para colocá-los em atividade.
* A Orquestra Vermelha foi o nome que os alemães deram à rede. Esse nome foi
tirado do jargão da espionagem russa, que chamava certo tipo de
radiotransmissor de “caixa de música” e ao rádio-operador “músico”. O nome
cobria todas as redes germânicas, na Europa ocupada pelos nazistas, mas era
especialmente aplicado à que funcionava no interior da própria Alemanha.
5. A Grande Rede Suíça
Em primeiro lugar, e acima de tudo, Foote era um inglês de bom senso, que
possuía, além disso, a habilidade de apreender e avaliar qualquer situação, com
perfeita segurança. Já que o bom senso e um seguro julgamento são
considerados as mais altas qualidades que um espião deve possuir — por isto
que inatas, não podendo ser adquiridas —, ele constituía um elemento humano
de importância, principalmente levando-se em conta que, na época do seu
recrutamento, a rede suíça não passava de modesta ramificação da espionagem
soviética. Em 1938, ninguém, nem mesmo o Diretor do onisciente Centro,
poderia prever que, três anos mais tarde, a Suíça iria transformar-se na mais
importante base da ofensiva dos espiões russos contra a Alemanha e que
prestaria, por fim, à estratégia soviética de guerra, um serviço que,
provavelmente, seria sem paralelo, em relação aos levados a efeito por qualquer
outra de suas redes.
Até 1937, a pequena rede do GRU, na Suíça, fora dirigida por uma bonita
mulher, de trinta anos, conhecida pelo nome de Vera, já que sua verdadeira
identidade nunca foi descoberta. O Centro a promovera para a seção suíça no fim
da Segunda Guerra Mundial e mais tarde ela se vira envolvida no escândalo da
espionagem no Canadá — de certa forma, por culpa de uma mulher chamada
Rahel Dubendorfer —, quando, então, foi executada.
Tivera como sucessores alguns bons agentes, destacando-se, entre eles, Sônia,
com quem Foote entrara em contato, como já foi dito, num encontro realizado,
em frente ao edifício do Correio Geral, em Genebra. O verdadeiro nome de
Sônia era Úrsula-Maria Hamburger. Foi ela a primeira agente soviética a operar
um radiotransmissor na Suíça. Sônia e seu marido Rudolf haviam sido membros
do Partido Comunista Alemão e, juntos, trabalharam, por muitos anos, como
agentes soviéticos no Extremo Oriente e na Polônia, além de outros países, até
Rudolf ser preso na China. Sônia foi enviada, então, para a Suíça, a fim de
reorganizar ali a rede, prejudicada pelos grandes expurgos russos de 1937 e
1938, durante os quais a Inteligência Militar sofrera pesadamente. Tratava-se de
uma mulher inteligente, bonita e extremamente devotada ao comunismo.
Quando Foote a conheceu, Sônia estava-se fazendo passar por uma mulher de
recursos, vivendo com seus dois filhos e uma ama-seca numa vila alugada em
Caux, perto de Montrcux. Do Centro, recebia um salário de aproximadamente
cento e dez libras. Da sua vila fazia transmissões para Moscou, o que, naquela
época de tão rudimentar detectação de emissões, era perfeitamente seguro,
mesmo que os suíços se houvessem tornado interessados em suas atividades.
Ao irromper a guerra, o Centro dera instruções a Sônia para retirar todos os seus
agentes da Alemanha. (Trata-se de um bom exemplo da técnica soviética — ter o
Diretor-Residente de uma rede vivendo fora do país no qual essa mesma rede
operava.) Deveria ela, porém, permanecer na Suíça, a fim de orientar Foote e um
outro inglês, William Phillips, sobre normas de transmissões. Nessa época, seu
salário passara a lhe chegar às mãos sem a devida pontualidade, o que lhe
causava algumas dificuldades. Quando o volume de suas informações reduziu-se
para apenas uma transmissão por mês, Sônia fora transferida para a Inglaterra,
onde chegou em dezembro de 1940. Trabalhou na embaixada soviética até o fim
da guerra, quando a mandaram servir na Zona Russa da Alemanha.
Como agente, Rado acusava muitas deficiências. Era um sibarita, e isso o levava
a comprazer-se em atividades de certo tipo que normalmente os agentes de
primeira categoria evitam. Em qualquer crise, como acontecia também com
muitos dos seus colegas, mostrava-se inclinado a perder os nervos, tornando-se
agitado. Com frequência, violava as estritas normas de segurança impostas pelo
Centro. Também, desrespeitava regulamentos que prevalecem no mundo das
finanças, e essas transgressões levaram-no, consequentemente, a ser executado.
Dessa forma, no outono de 1939, Rössler entrara para o serviço do ND, embora
não tivesse a intenção de trabalhar para essa organização. É que estava sempre
disposto a colaborar com todos quantos se mostrassem antinazistas. Possuía
excelentes contatos na Alemanha e, embora fornecesse algumas das mais
fantásticas informações já encaminhadas a qualquer agência de espionagem, até
a sua morte, ocorrida em 1962, sempre se recusara a revelar quais as suas fontes.
Condenado duas vezes, pelos suíços, por crime de espionagem na Suíça,
também, sustentara, com igual firmeza, que não era culpado. Mas, quaisquer que
fossem essas fontes, elas deviam situar-se nos mais elevados círculos do Alto
Comando Nazista e do Ministério do Exterior, pois, de outra forma, nunca
poderia ter tido acesso às informações que fornecia.
A informação passada por Rössler não era somente fabulosa quanto à precisão e
relevância, mas também no que dizia respeito ao seu conteúdo. No princípio, os
russos julgaram a informação boa demais para ser verdadeira e suspeitaram que
se tratasse de um estratagema dos nazistas. Rössler, porém, não se sentiu tolhido
pelo ceticismo dos soviéticos e prosseguiu fornecendo outras informações.
Resultou daí que o Centro, pouco a pouco, foi sendo conquistado e, por fim,
tornara-se tão excitado em relação a essas informações que até se mostrara
pouco russo no tratamento que dispensava a esse brilhante agente.
Tão logo a espionagem soviética contratou Rössler, seus dirigentes julgaram que
tudo o que faziam em seu benefício nunca era suficiente. Pagavam-lhe um
salário superior ao de qualquer outro agente: 425 libras por mês. Quando as
dificuldades materiais de remeter fundos para a Suíça se tornaram quase
intransponíveis, a ansiedade, demonstrada pelo Centro — temeroso de que
Rössler se mostrasse tão mercenário ao ponto de dizer que, sem dinheiro, não
enviaria mais informações — era, às vezes, patética.
Finalmente, existia Christian Schneider, cujo nome falso era Taylor. Schneider
era amigo de Rössler e trabalhava no Escritório Internacional do Trabalho, e
através de Rahel Dubendorfer — igualmente ali empregada — foi posto em
contato com a rede de Rado. A importância de Schneider na rede era tal que,
independentemente de ser um agente e descobridor de talentos, serviu, com
Rahel Dubendorfer, como emissário entre Rado e Rössler. Foote declarava que
somente ele, de todo o pessoal que integrava a rede, sabia a identidade de
Rössler. Schneider obtinha suas informações de Rössler e as passava a
Dubendorfer, e esta, por sua vez, as transmitia a Rado. Nem Rado, nem Foote,
nem ninguém, na rede ou no Centro, jamais soube quem fosse Lucy, até que a
guerra terminasse.
Ao ser Foote aprovado em seus testes preliminares, o Centro pensara em treiná-
lo em Moscou. Quando estava preparado para seguir, a situação se agravara tanto
que ficara decidido conservá-lo na Suíça. Isso ocorreu em agosto de 1939.
Sônia não tivera qualquer idéia de que a rede de Rado estivesse operando, até
que se tornou essencial para o Centro dar instrução às duas organizações para
que entrassem em contato uma com a outra. Essa necessidade de trabalho em
conjunto fora imposta pelo desmantelamento das comunicações, em
consequência da desorganização temporária da rede de Trepper, que funcionava
na França. Até então, Rado não dispusera de um rádio-operador próprio.
Gravava suas informações em microfilmes e os enviava a Trepper, para que este
os fizesse chegar a Moscou.
O operador, selecionado pelo Centro, era Edmond Flamel, que, não obstante ser
eficiente mecânico de rádio, não conhecia o sistema Morse nem as normas do
telégrafo-sem-fio russo. O transmissor de Sônia foi mudado para o quarto que
ficava em cima da loja de Hamel, e Foote começou a instruir Flamel, que,
estranhamente, não se revelava aluno apto.
Seguramente instalado, por fim, com a sua linha para Moscou estabelecida, ele,
Foote, teve então de vencer outra dificuldade. O cristal de seu transmissor
recusava-se a oscilar. Não havendo feito qualquer curso de mecânica de rádio,
pensou em ir a Genebra, a fim de obter orientação de Hamel sobre o que deveria
fazer. Já que essa atitude importaria em quebra das precauções necessárias à
segurança, resistiu à tentação da viagem e, subitamente, sem qualquer razão
aparente, no dia 12 de março, Moscou respondeu, declarando que estavam
recebendo ali suas mensagens, de forma clara e alta.
Foote fingiu-se rico e obteve tanto êxito nessa empresa que, breve, todos diziam
ser ele um milionário excêntrico, fugido da Inglaterra em face das perturbações
causadas pela guerra. Além de explicar sua vida sem profissão, sua atitude teve,
igualmente, o efeito de satisfazer ainda mais a polícia. Embora olhado por
muitos como um solitário, Foote, de fato, adquirira um pequeno círculo de
conhecidos, que aliviava sua solidão.
A queda da França, por seu lado, causara às finanças de Rado um terrível golpe.
A Suíça era, na realidade, uma ilha de neutralidade, isolada num mar de
hostilidades, e as comunicações, de qualquer gênero, se revelavam
extremamente difíceis. Para conservar sua rede em funcionamento, tomou
dinheiro emprestado do Partido Comunista suíço, mas essa agremiação não se
achava em condições de desembolsar qualquer quantia, a não ser a curto prazo.
Nessas condições, o Partido passara a insistir, pouco depois, na liquidação do
empréstimo feito. Em consequência disso, o grosso das comunicações de Rado
com o Centro, através de Foote, passara a ser relacionado com assuntos de
dinheiro.
O plano funcionou bem durante todo o tempo em que Foote esteve trabalhando
para a rede. Ninguém — nem o suíço que o apresentou nem os norte-americanos
que o ajudavam — jamais suspeitou que aquele dinheiro estava financiando a
espionagem soviética.
Rado e Foote, nessa ocasião, encontravam-se somente cerca de duas vezes por
mês. Tinha sido intenção original do Centro que o pequeno grupo reunido em
torno de Foote se conservasse inteiramente separado da rede de Rado. À medida,
porém, que a invasão da Rússia pela Alemanha se tornara mais iminente e o
volume do tráfego, com o qual o grupo suíço tinha de se confrontar, aumentou,
aquela separação claramente iria fazer-se impossível. Assim, em princípio de
janeiro de 1941, Foote recebeu ordens no sentido de entrar em contato com
Rado, pelo menos duas vezes por semana, de forma que pudesse aliviar os rádio-
operadores de Rado de uma parte do serviço. Como Foote possuía seu código
exclusivo, e poderia reduzir o tempo entre o recebimento e a remessa das
informações para Moscou a algumas horas, em comparação com as vinte e
quatro horas ou mais que Hamel e Bolli levavam para fazê-lo, o Centro passara a
confiar cada vez mais nele — para a transmissão de informações urgentes. Esse
fato fez com que passassem a chegar a Foote as informações vitais que, a partir
de junho de 1941, Rössler diariamente começara a fornecer.
Quando Rössler informou que a invasão alemã estava marcada para o dia 22 de
junho, Rado intimou Foote a se encontrar com ele. Foote encontrou-o, perplexo
e indeciso. Não poderia acreditar que aquela informação fosse verdadeira, e
estava inclinado a não a enviar para Moscou, onde já o haviam feito saber que se
mostravam céticos em relação às fontes de Rössler. Foote argumentou, por seu
lado, que o Centro se achava em muito melhor posição para aquilatar o valor
daquela informação do que eles, que viviam no horizonte restrito da Suíça. Se
retivessem a informação e, depois, ela se revelasse verdadeira, o Centro poderia,
com toda razão, acusá-los de criminosa negligência. Rado concordou com a
argumentação, e a mensagem foi enviada.
Com a invasão da Rússia, a rede suíça adquiriu imediatamente uma significação
inteiramente nova. Juntamente com uma exortação para lutar contra “as feras
nazistas com o melhor da sua capacidade”, Foote foi informado de que, dali por
diante, o Centro manteria uma vigilância de vinte e quatro horas em seus canais
de irradiação e de que organizara um sistema de prioridades.
Desde que Foote, para todos os intentos e propósitos, era uma mão isolada e,
portanto, não perturbado por outras considerações que o funcionamento de uma
rede envolve, estava ele em condições de dedicar todo o seu tempo às
transmissões de rádio, o que, por outro lado, reduzia ainda mais o tempo para a
remessa das informações; essas circunstâncias fizeram com que o Centro tivesse
tanta confiança nele que, correspondentemente, outras tarefas lhe foram dadas.
Entre essas, constava uma tentativa de fazer cessar as rivalidades que, desde
algum tempo, separava o Partido Comunista suíço. Outra tarefa foi a de
descobrir dois agentes — George e Joanna Wilmer —, com os quais o Centro
perdera contato, e entender-se com eles. Os Wilmer eram agentes de grande
experiência e haviam trabalhado no Japão, antes que Richard Sorge assumisse a
direção da rede que ali funcionava. Técnicos em fotografia e microfotografia,
tinham, antes da guerra, trabalhado na Alemanha. Quando a guerra irrompera,
deixaram de manter contato com o Centro.
Foote descobriu-os numa vila bem provida, logo acima de Lausanne. Alegaram
estar em contato com duas fontes na Alemanha e manter também contato com a
contraespionagem francesa. Foote providenciou no sentido de os visitar
periodicamente, a fim de recolher informações que seriam transmitidas para
Moscou.
Esses e outros assuntos, sobre o trabalho normal de Foote, que era então de
considerável vulto, transformaram-no num espião ocupadíssimo, e se tornou
cada vez mais difícil para ele sustentar seu donaire de gentleman inglês em
vilegiatura. Transmitia, como praxe, duas horas todas as noites, e qualquer
pessoa com experiência em radiotransmissões dará valor ao esforço que essa
tarefa representa. Mas, além das transmissões, tinha de cifrar todo o material em
seu próprio código, trabalho que exigia paciência e dedicação. Por fim, havia
ainda o encargo de receber e decifrar as longas mensagens vindas do Centro.
Além das normais dificuldades das condições de recepção, com as quais todos os
rádio-operadores têm de se confrontar, Foote conheceu muitas outras frustrações.
Todas as vezes que a Luftwaffe fazia um raide contra Moscou, o Centro
imediatamente cessava de transmitir. Então, quando o governo soviético mudou-
se para Kuibishev, ele silenciou subitamente, interrompendo a transmissão de
uma mensagem e, embora Foote e Rado tentassem restabelecer o contato, o
Centro só apareceu seis semanas mais tarde. Nessa ocasião, sem qualquer
explicação, o parágrafo que se seguiu na mensagem interrompida foi
transmitido.
Foote sempre sustentara que George e Joanna Wilmer haviam sido os grandes
responsáveis pelo desmantelamento definitivo da rede. Existiam diversas coisas,
em relação ao casal, que provocaram suas suspeitas. O Centro, porém, quando
recebeu um relatório seu, expondo o que pensava do casal, respondeu dizendo
que ele se equivocava. Antes de junho de 1943, entretanto, foi descoberto que os
Wilmer estavam, de fato, colaborando com a Abwehr. Haviam desertado antes
de deixar a Alemanha, e seguiram para a Suíça com o objetivo expresso de
descobrir o que pudessem sobre a rede, de forma a atraiçoá-la.
Por causa do seu contato com os Wilmer, Foote achava-se comprometido, tanto
quanto possível, no que dizia respeito à Abwehr; e o desmantelamento da rede
francesa complicara a posição de Rado, embora nem ele nem o Centro o
tivessem sabido. Foote recebeu instruções, pois, para não manter qualquer
vínculo pessoal com Rado e para sempre utilizar intermediários, nos contatos
com o seu próprio grupo. Suas transmissões para Moscou foram reduzidas para
duas vezes por semana e as mensagens tratavam principalmente da liquidação de
um grupo ou de assuntos financeiros, os quais, por volta do fim de junho de
1943, chegaram a novos picos de dificuldades.
Rado não conseguia transmitir todo o seu material, com os próprios operadores,
e Foote recebera instruções para entrar em contato outra vez com ele. Mas Rado,
por sua vez, achava-se em dificuldades com a Abwehr. Tinha encontrado um
antigo agente soviético, então trabalhando para a Abwehr, num restaurante, e
estava perfeitamente certo de que agentes da organização o observavam.
Acreditava igualmente que eles vinham vigiando também Margaret Bolli, de
quem haviam tomado, por algum tempo, o radiotransmissor.
Essas descobertas haviam sido feitas quase um ano antes de Rado começar a
suspeitar que estava sendo vigiado. Os suíços, porém, nada fizeram até que a
Abwehr os pressionou, ameaçando criar um escândalo diplomático, se não
agissem com rigor. Em setembro de 1943, portanto, tomaram providências
enérgicas. Em princípios de outubro, os Hamel e Margaret Bolli foram presos.
Os Hamel viram-se surpreendidos quando operavam seu transmissor e Margaret
Bolli foi retirada da cama que partilhava com Hans Peters, o agente da Abwehr.
O próprio Rado escapara por pouco. Quebrando mais uma vez as normas de
segurança, dirigira-se ao apartamento dos Hamel, ignorando que seus moradores
haviam sido presos. A polícia ainda ali se achava, dando busca, mas,
afortunadamente, ele pôde ser advertido sobre o que acontecera, por um sinal
pré-combinado, que os Hamel tinham conseguido deixar.
Aquelas prisões atiraram Rado num estado próximo do pânico. Telefonou para o
apartamento de Foote e confessou que, pouco antes da prisão dos Hamel,
temendo por sua própria pele, depositara em seu apartamento, num esconderijo
secreto, todos os seus registros financeiros, assim como as cópias das mensagens
não cifradas, que haviam sido enviadas para Moscou — deviam ter sido
queimadas —, e, pior ainda, também o livro do seu código. É difícil achar nos
anais da espionagem, em qualquer parte um agente, que tenha violado tantas
normas de segurança quanto Rado.
Foote, que então dirigia a rede, não compreendeu seu próprio perigo. Prosseguiu,
quietamente, como o fazia antes, mas, na noite de 19 para 20 de novembro de
1943, quando se encontrava no meio da sua regular transmissão para Moscou, a
porta do seu apartamento foi arrombada. É que essa porta era mais resistente do
que a polícia calculara e, nessas condições, a força teve de ser usada. A demora
proporcionou a Foote alguns breves, mas preciosos momentos, durante os quais
pôde queimar todos os seus papéis e avariar seu transmissor, de forma a não
permitir que funcionasse mais.
Deixando a prisão, Foote foi para Lausanne e, hospedado num hotel, considerou
o que lhe poderia acontecer no futuro. Quando se sentiu seguro de que não
estava sendo vigiado, começou a percorrer os vários pontos de encontro, na
esperança de entrar em contato com Rahel Dubendorfer, Otto Pünter ou Pierre
Nicolc, filho de Léon Nicole. O primeiro contato que estabeleceu foi com
Nicole; este logo lhe disse que Rado e sua esposa nunca tinham sido encontrados
e somente alguns dias antes haviam partido para Paris, já libertada dos alemães.
Ali, segundo afirmou, iria procurar o adido militar soviético.
Foote reestabeleceu contato, igualmente, com Otto Pünter, que não se deixara
comprometer e fora deixado em paz. Disse-lhe Pünter que suas fontes ainda
permaneciam disponíveis e estava ansioso para recomeçar o trabalho.
Finalmente, Rahel Dubendorfer fez sua aparição. Fora presa com seu amante, o
antigo e destacado comunista germânico Paul Boettcher, e sua filha Tamara, em
maio de 1944, mas libertada após três meses de confinamento. Suas fontes
estavam igualmente intactas e, como acontecia com Pünter, achava-se
desesperada por obter algum dinheiro. De acordo com o que lhe declarara Rahel,
Foote percebeu ser absolutamente imperativo que tivesse um encontro com
Rössler, preso ao mesmo tempo em que o fora Rahel. Esse encontro foi
arranjado e, no decorrer da entrevista, Rössler dissera-lhe que, apesar do expurgo
levado a efeito, após o atentado contra a vida de Hitler, ocorrido no dia 20 de
junho, suas principais fontes ainda permaneciam em condições de fornecer
informações e que se achava ansioso para reiniciar seu trabalho, tanto mais cedo
quanto possível.
Como resultado desse encontro, Foote decidiu que devia ir a Paris, a fim de
entrar em contato com o Centro, através da embaixada soviética. Desejava saber
se a rede iria operar uma vez mais. Realizou a viagem e, após algumas
dificuldades iniciais, foi instruído pelo Centro a seguir para Moscou, para
consultas.
Rado surgiu então na cena, embora, de fato, houvesse chegado a Paris um mês
antes de Foote. Ele também recebeu ordens para regressar a Moscou. Foote nada
tinha que temer em face de qualquer investigação — suas declarações poderiam
ser averiguadas em quaisquer circunstâncias —, mas a situação de Rado não
deixava de ser grave, já que, de certo modo, desertara seu posto.
Foote e Rado deixaram Paris num avião russo, no dia 6 de janeiro de 1945.
Como a batalha da Alemanha estava ainda em desenvolvimento, o piloto seguiu
a rota que passava pelo Cairo. Durante um pernoite na capital egípcia, Rado
concluiu que, retornando a Moscou, literalmente apontava um revólver para a
própria nuca. E, assim raciocinando, desapareceu antes que amanhecesse. Nessas
condições, Foote prosseguiu na viagem sozinho.
O tratamento que recebera em Moscou fizera com que Foote logo mudasse seu
modo de sentir em relação à União Soviética. À medida que os dias passavam,
tornava-se cada vez mais desiludido. Chegara à conclusão de que já era tempo de
dizer um “basta” tanto à Rússia quanto ao comunismo. Compreendera,
entretanto, que, para escapar com vida, deveria prosseguir fingindo-se leal à
União Soviética e, através desse recurso, procurar fazer com que o diretor do
Centro lhe desse nova tarefa no exterior.
Antes que isso pudesse ser feito, entretanto, e que a rede conseguisse, realmente,
entrar em ação, foi declarada a cessação das hostilidades, tanto na Europa como
no Japão. As atividades dos agentes de Zabotin serão descritas, em detalhe,
portanto, na parte quarta deste livro, sob o título Espionagem Atômica.
7. A Rede de Sorge no Extremo Oriente
O avô de Sorge, pelo lado paterno, Adolf Sorge, tinha sido, por muitos anos,
secretário particular de Karl Marx. Para matar o tempo, enquanto aguardava que
seu ferimento sarasse, Richard Sorge começou a estudar as obras de Marx e
descobriu que as idéias expostas em Das Kapital o seduziam. Ao se alistar no
exército, estudara Economia Política e História e, ao ser desmobilizado, no fim
da guerra, matriculou-se nas universidades de Kiel e de Hamburgo, graduando-
se, pela última, na primavera de 1920. Era, então, doutor em Ciências Políticas.
No mesmo dia em que se formou, filiou-se ao Partido Comunista Alemão.
Durante algum tempo, lecionou numa escola de Hamburgo, mas foi dispensado
quando o diretor do estabelecimento descobriu que ele estava não somente
lecionando comunismo, mas recrutando membros para o Partido, nas horas das
aulas. Tornou-se, então, mineiro de carvão, e prosseguiu em sua evangelização,
no interior da mina, com tão grande êxito que a produção dos mineiros caiu e de
novo ele foi dispensado.
Quando estudava em Kiel, Sorge tomara parte nos distúrbios ali ocorridos e que
haviam constituído um prolongamento do famoso motim da Marinha alemã.
Esses fatos e suas atividades últimas fizeram com que passasse a ser olhado com
interesse pelos líderes comunistas. Julgando-o um eficiente agitador,
selecionaram-no para especial consideração.
No dia em que deixou a mina de carvão, Sorge voltou para casa, e ah encontrou
Henry Tollman, chefe secreto de segurança do Comunismo em Hamburgo, que o
aguardava em seu quarto. Tollman sugeriu-lhe que fosse a Moscou, a fim de
realizar um curso de treinamento. Três semanas mais tarde, Sorge já estava na
capital russa. Antes de viajar, porém, vira-se envolvido com uma mulher — o
que seria típico de seu comportamento em toda a extensão de sua carreira —,
que, por acaso, era agente da polícia. Entre espasmos de amor, a que se
entregava com o objetivo de aliviar a monotonia de esperar pela partida, falou-
lhe da sua atração por Marx e pelos comunistas.
Como teste, Sorge foi enviado, sozinho, por um ano, para Los Angeles, a fim de
descobrir tudo o que pudesse sobre a indústria cinematográfica norte-americana.
Nesse teste, foi aprovado summa cum laude. Após rápida visita a Moscou, foi
submetido, então, a uma prova final. Em 1928, desembarcou na Inglaterra,
alojando-se num quarto de uma pensão em Bloomsbury.
Em todas as suas viagens, Sorge sempre usara seu próprio nome e o disfarce de
um estudante de Ciências Políticas. Nem na Escandinávia, nem nos Balcãs, nem
na Califórnia, encontrara alguém que recordasse seus dias agitados em
Hamburgo e Kiel. Pouco depois de chegar a Londres, porém, foi visitado por
oficiais da Divisão Especial — esquecera-se de se registrar como estrangeiro —,
os quais, no curso do interrogatório, perguntaram-lhe se já morara em
Hamburgo.
Sorge teve permissão de escolher os homens que deveriam trabalhar para a sua
nova Unidade Chinesa. Conservou os agentes que já se encontravam na área e
que, em sua opinião, lhe serviriam de assistentes, dispensando o resto. De uma
lista fornecida pelo Centro, selecionou dois técnicos de rádio de primeira classe
para acompanhá-lo. Em princípios de 1930, a Unidade Chinesa já estava
firmemente estabelecida em Xangai. Pela primeira e única vez em sua carreira,
Sorge abandonou a própria identidade e tornou-se William Johnson, jornalista
norte-americano.
Uma das grandes virtudes de Sorge era o seu fascínio pessoal. Não que fosse um
homem fisicamente bonito: nariz chato, fronte profundamente pronunciada,
olhos pequenos e separados, sulcos profundos, do nariz aos cantos da boca, e
lábios grossos. Esse conjunto de detalhes fisionômicos emprestavam-lhe uma
aparência nada teutônica. Contudo, apesar do comportamento boêmio, das
bebedeiras e da concupiscência, existia muita coisa em sua personalidade,
socialmente atrativa. Sorge não ignorava esses predicados e nunca hesitou em
utilizá-los quando sentiu que eles o ajudariam a conseguir o que desejasse.
Quase desde o primeiro momento em que conheceu Ozaki, decidiu que desejava
ter o jovem japonês em sua rede e, nessas condições, aplicou seu poder de
sedução contra o jovem erudito, que imediatamente se deixou envolver. Pela
primeira vez, concordara em se empenhar em espionagem ativa e, breve, iria
prestar tão relevantes serviços à Unidade Chinesa que com dificuldade seria
sobrepujado pelo próprio Sorge.
Tendo organizado seu trabalho em Xangai, Sorge realizou uma excursão pela
região que lhe fora destinada como campo de ação e, no fim de seis semanas,
chegou a Harbin, na Manchúria, onde se encontrou com um homem de negócios
alemão, Max Klausen, o melhor rádio-operador contratado pelo Centro. Quando
Klausen chegou a Harbin, Sorge já se fizera amigo do jovem vice-cônsul norte-
americano ali credenciado e o persuadira a alugar, a um seu amigo alemão, seus
dois quartos no Consulado. Nessas condições, sob a proteção da bandeira dos
Estados Unidos, Klausen instalou o radiotransmissor. Sorge, por outro lado,
contratou um agente para ajudá-lo e, com a célula definitivamente organizada,
retornou a Xangai, a fim de prosseguir na estruturação do seu serviço
clandestino.
Sorge e Beldin trocaram impressões pelo período de vários meses e, quando suas
conversações chegavam ao fim, elaboraram um plano para obter todos os
segredos do governo japonês. Sorge, mais uma vez, teve permissão para escolher
todos os agentes soviéticos e, nessas condições, deu preferência aos dois homens
que julgava capazes de ser de maior utilidade para o seu trabalho. Pediu a Ozaki
que se transferisse para o Japão e fez com que Klausen também mudasse a sede
do seu negócio-disfarce. Para completar a rede, selecionou dois outros agentes:
Branko de Voukelich, antigo oficial do Exército Real da Iugoslávia e então
correspondente de diversos jornais, e um artista japonês, Myagi Yotoku, que
havia conhecido quando estivera na Califórnia.
Antes que regressasse, para levar a efeito a organização de sua rede no Japão,
Sorge retornou à Alemanha. Constitui um mistério até hoje indecifrado a
maneira como conseguiu insinuar-se junto aos nazistas, ao ponto de obter sua
filiação no Partido e ser acreditado como correspondente do Frankfurter Zeitung
no Extremo Oriente. Alemães, que viviam no exterior e dos quais se fizera
amigo, certamente o auxiliaram nessa difícil tarefa, dando-lhe cartas de
recomendação para destacados membros do Partido Nazista. Essa hipótese,
porém, não explica suficientemente como, pouco depois de chegar à Alemanha,
obteve tão excelente cobertura para suas atividades em Tóquio e conseguiu ser
convidado para funções só exercidas pelos mais íntimos associados com a
liderança do Partido. Igualmente, ela não esclarece porque, às vésperas de sua
partida para Tóquio, o Clube da Imprensa Nazista ofereceu um jantar em sua
honra, o qual contou com a presença de Bohle, chefe da Divisão Nazista para o
Exterior, e de Josef Goebbels. Esse jantar certamente foi de grande utilidade para
Sorge, tanto por ocasião da sua chegada a Tóquio como durante os anos que se
seguiram.
Uma base, de onde possa operar, é essencial para qualquer rede de espionagem.
Essa base deve ser de tal natureza que todos os membros da organização
abertamente a possam frequentar, com motivos ostensivamente legítimos para
suas visitas. Ainda mais, precisa estar defendida e salva dos bisbilhoteiros, caso
os membros da rede tenham de se encontrar de qualquer modo, sendo
inconveniente a utilização de intermediários. Sorge havia resolvido restringir sua
rede ao mínimo de integrantes e adotar o método acima mencionado, para fazer
seus contatos.
Dessa forma, escolheu como sua base uma casa em ruínas, cujo aluguel estava
bem de acordo com seu salário de correspondente estrangeiro.
Tão logo se instalou nessa casa, Sorge deu uma festa que chocou tanto seus
respeitáveis vizinhos como os membros do corpo diplomático, que haviam sido
convidados, juntamente com jornalistas, artistas, oficiais do Exército japonês e
um punhado de homens de negócios. Quando os convidados menos íntimos
saíram, por volta das dez horas, algumas gueixas passaram a participar da festa
e, durante algumas horas, o barulho, que se filtrava através da frágil estrutura do
tugúrio, refletia, de maneira eloquente, o que estava acontecendo no interior.
A vizinhança ouviu com irritação aquela algazarra até que amanhecesse, quando
então as gueixas saíram, acompanhadas pelos convidados remanescentes.
Permaneceram no interior apenas Voukelich, Ozaki, Klausen e Miyagi, com
quem Sorge insistira para que terminassem juntos a última garrafa. Na relativa
quietude que se seguiu, e antes que os quatro visitantes saíssem, por fim, com a
primeira claridade do dia, Sorge fornecera aos seus espiões seu primeiro
memorando.
Um espião normalmente procura, tanto quanto possível, não ser notado. Sorge,
porém, já se comportava de maneira diametralmente oposta. Não somente suas
ruidosas festas eram motivo de conversas em Tóquio, mas, igualmente,
tornaram-se notórias suas relações com um punhado de mulheres. Sua
necessidade de satisfação sexual estava verdadeiramente bem acima do normal,
porém a atitude que assumia, em relação às infelizes que sucumbiam sob a ação
do seu irresistível charme, era essencialmente de desprezo. Depois da posse,
mostrava-se enojado da companheira e, dentro de algumas semanas,
abandonava-a e saía em busca de nova excitação.
Essa reputação servia-lhe de valiosa cobertura, pois o que se alegava era que um
indivíduo que, como ele, atraísse tanto atenção para si próprio, não poderia, em
hipótese alguma, ser um espião.
Com a célula bem estabelecida, Sorge iniciou então o seu trabalho. Não demorou
muito, e ele passou a justificar a grande confiança que o General Beldin nele
depositara, por uma série de brilhantes golpes.
O primeiro deles foi levado a efeito pela atuação de Ozaki. Tão grande era a
reputação desse jovem erudito como comentador político que as autoridades
japonesas logo se interessaram em conhecer-lhe a opinião sobre diversos
problemas de relevância. Assim é que, quando, por volta do fim de 1935, o
ministro do Exterior preparou um relatório para o Gabinete sobre os objetivos
políticos e econômicos do Japão para o ano seguinte, o Príncipe Konoye, que era
então o primeiro-ministro, prontamente concordou com uma proposta de que a
Ozaki fosse permitido ver uma cópia do esboço, de forma que ele pudesse dar
seu parecer sobre a parte daquele trabalho que se referisse à China.
Tais êxitos no início de sua carreira poderiam ter contribuído para que qualquer
outro espião dormisse sobre os louros conquistados. Quanto a Sorge, apenas
serviram para estabelecer o padrão a ser obedecido em suas futuras atividades.
A Gestapo deu sinal verde para ambos e, embora Osaki soubesse como essa
organização era eficiente, mesmo assim conservara um instintivo sentimento de
que Sorge não era, de forma alguma, o que aparentava ser, e, em consequência
desse raciocínio, passara a dar-lhe atenção especial. Como não conhecia Sorge,
providenciou um encontro com o agente soviético, através dos bons ofícios de
um integrante do funcionalismo da embaixada alemã.
O local que Sorge frequentava, por essa ocasião, era o Fuji Club, em Tóquio, e
ali foram apresentados um ao outro. Sorge achou Osaki um japonês típico, com
acentuada inclinação para os prazeres proporcionados pelo saquê e pelas
mulheres. Durante a troca de opiniões em relação ao último assunto, o japonês
declarara que, no seu modo de entender, a mais bonita mulher de Tóquio era uma
bailarina que devia fazer sua estreia aquela noite, naquele mesmo clube. A
princípio, Sorge não se mostrou interessado em conhecê-la, mas o coronel
elogiou tão insistente e extravagantemente seus predicados femininos, que, por
fim, a curiosidade do agente se aguçara.
Pouco depois, iniciou-se o show, e a bailarina Kiyomi fez o seu número. Usava a
máscara tradicional, de forma que a beleza de seu rosto não pôde ser julgada,
mas o resto do corpo era suficientemente arrebatador para ficar impresso na
consciência de Sorge.
Durante uma ou duas semanas, o agente visitou o Fuji Club e, todas as noites,
enviava flores e bilhetes a Kiyomi, solicitando que lhe marcasse uma entrevista.
Invariavelmente, Kiyomi rasgava os bilhetes e devolvia as flores.
Certa noite, a mesa de Sorge estava vazia. Temerosa de que houvesse ido longe
demais, ela, após terminar seu número, correu ao camarim, a fim de telefonar
para Osaki e perguntar-lhe o que deveria fazer. Mas, quando voltou do camarim,
viu Sorge sentado em sua mesa, aguardando-a. Em poucos minutos, ela
capitulava.
Enquanto isso, na Alemanha, embora Hitler tivesse ficado irritado com a recusa
japonesa de desfechar um ataque contra a Sibéria, quando ele invadisse a Rússia,
nem por isso perdera todas as esperanças de ainda conseguir persuadir o governo
de Tóquio a distrair os russos, por intermédio dessa agressão no Oriente. Durante
todo o verão e o outono de 1941, procurou seduzir Konoye e seus ministros; mas
Moscou, por seu lado, julgava, também que esse ataque à Sibéria seria levado a
efeito, e, nessas condições, a tarefa de Sorge era a de colher informações sobre
as quais a data do ataque pudesse ser calculada. Ozaki e Miyagi ficaram
encarregados da obtenção desses informes, mas, até então, não haviam
apresentado qualquer coisa que indicasse a probabilidade daquela agressão.
Esse incidente fez com que os russos hesitassem, mais do que nunca, sobre a
conveniência de retirar suas desesperadamente necessitadas tropas da Sibéria,
mas, em outubro, Ozaki entregou uma informação de que os japoneses,
finalmente, tinham tomado uma decisão. Toda a idéia de invadir a Sibéria fora
abandonada. Os exércitos japoneses deveriam marchar na direção do Sul. Em
confirmação, todos os homens de nacionalidade japonesa, entre vinte e cinco e
trinta e cinco anos, haviam sido convocados e, em grande parte, o Coronel Ott
admitira que Tóquio resistira a todas as pressões dos alemães para que se
movimentasse contra os russos. Sorge, acreditando que aquela fosse sua mais
bela hora, fez questão de ver Klausen transmitir a mensagem que, finalmente,
deveria mudar a sorte na guerra da Rússia.
Uma das razões por que o Coronel Osaki não conseguira localizar aquele
radiotransmissor clandestino, que tantas preocupações lhe causava, foi devida,
em parte, à sua instalação. Sorge, além da sua casa em ruínas na cidade, alugara
também uma vila num subúrbio de Tóquio, à beira-mar. Tinha ali um bote
pesqueiro, que alugara de um velho pescador analfabeto. Às vezes, reunia
amigos em festas a bordo, durante suas excursões de pescaria, e, enquanto os
convidados se divertiam no convés, mal imaginavam que, embaixo, na cabina do
piloto, Klausen estivesse transmitindo mensagens para Moscou.
Embora Sorge houvesse alcançado seu objetivo com sua última mensagem
remetida para Moscou e tivesse trabalhado, de maneira estupenda, pelo período
de oito anos, concentrou-se na realização de um objetivo final. Descobriria onde
e quando os japoneses desfechariam seu ataque no rumo meridional e, então, a
rede se dissolveria, pois estava ciente de que, durante as duas ou três últimas
semanas, Osaki vinha intensificando sua vigilância sobre todos os estrangeiros
que viviam em Tóquio. Essa atitude da polícia japonesa fizera Sorge
compreender que Osaki se tornara, por fim, cônscio de que agentes estrangeiros
operavam em seu país.
Mas, enquanto aguardava a informação que desejava, Sorge julgou não haver
mal algum em prosseguir no seu jogo amoroso com a bela Kiyomi. De todas as
coisas estranhas, em relação a esse admirável espião soviético, talvez a mais
curiosa tenha sido a sua incompreensão de que Kiyomi fosse uma amante
contratada por Osaki, já que o chefe da Kempeitai não se revelara
excessivamente astucioso ao empurrá-la para os seus braços. Se Sorge acusava
qualquer fraqueza fundamental, essa só poderia ser sua permanente exaltação
sexual. Duas noites mais tarde, após haver enviado a mensagem decisiva para
Moscou, ele se encontrava em sua mesa de sempre, observando a bailarina fazer
aquele número, que já vira uma porção de vezes. Seus pensamentos, entretanto,
estavam longe. Sentia-se preocupado. Havia já uma semana que Miyagi não
dava qualquer notícia. Voukelich, por seu lado, achava-se profundamente
apreensivo, pois descobrira que estava sendo seguido, onde quer que fosse.
Num almoço com Klausen, Sorge o avisara para que estivesse a bordo do barco
de pesca naquela noite, pois iria enviar sua última mensagem para Moscou.
Mostrava-se animado, como não se sentira desde algum tempo. Vestiu seu
dinner-jacket à noite e foi ao Fuji Club, onde ocupou sua mesa,
permanentemente reservada, à beira da pista de dança. Enquanto dançava,
Kiyomi viu o garçom aproximar-se outra vez de Sorge e deixar cair uma bola de
papel na mesa. Como da vez anterior, Sorge leu o que estava escrito no papel e o
guardou no bolso. A mensagem era de Miyagi e o avisava de que a Kempeitai
estava também em seu rastro e que ele e os demais companheiros deveriam fugir
tão cedo quanto possível.
Kiyomi era uma bailarina, e não uma agente treinada da contraespionagem; não
obstante, tratava-se de uma moça viva e inteligente. Quando passaram pela
primeira cabina de telefone, pediu a Sorge que parasse, a fim de telefonar aos
pais, avisando-os de que passaria a noite fora, com uma amiga. Sorge aguardou
no carro, enquanto ela chamou o Coronel Osaki e explicou rapidamente o que
houvera e onde poderia encontrar os pedaços de papel rasgado.
Chegando à vila, Sorge ali deixou Kiyomi para preparar alguma comida e saiu,
dizendo que tinha um negócio particular para tratar. Foi à praia, tomou um bote e
remou para o barco pesqueiro, onde Klausen o esperava. A bordo, entregou a
Klausen duas mensagens: a primeira, comunicando a Moscou o que Ozaki lhe
transmitira; a segunda, fazendo uma advertência de que a rede já estava
comprometida e, por isso, ia fazê-la debandar, dali por diante.
Sorge não dormiu muito tempo. O novo dia — 15 de outubro de 1941 — mal
começara, quando acordou Kiyomi e a possuiu outra vez. Deixou o quarto, indo
para a sala, onde misturou para si próprio uma bebida forte. Ao erguer o copo,
ouviu pancadas na porta. Ao abri-la, o Coronel Osaki e dois assistentes entraram
na sala.
O coronel nada disse. Apenas entregou a Sorge uma folha de papel, na qual os
pedaços da mensagem de Miyagi, espalhados na estrada, tinham sido colados
juntos. Sem uma palavra e sem um olhar dirigidos a Kiyomi, já que subitamente
compreendera haver sido traído por ela, engoliu a bebida, vestiu-se e saiu com o
coronel.
Miyagi não suportou as torturas da Kempeitai; Klausen fugiu, não muito depois.
Mas nenhum dos dois homens soube o que a última mensagem de Sorge
continha. Voukelich comportou-se com a coragem e a lealdade de um antigo
oficial, e nenhuma tortura conseguiu fazê-lo falar. Sorge e Ozaid não foram
torturados, mas, quando viram as confissões de Miyagi e de Klausen,
compreenderam que já não lhes restava qualquer esperança. Fizeram então suas
confissões, embora sem revelar o texto da última mensagem que haviam
transmitido.
Será conveniente lembrar que, até 1939, as redes soviéticas, nos Estados Unidos,
haviam-se mostrado extremamente ativas. Entretanto, como acontecera com a
maioria dessas organizações em qualquer parte — com a única exceção, talvez,
da rede de Richard Sorge, que funcionava no Japão —, foram elas
profundamente afetadas pelo grande expurgo de 1938. Isso custou à maioria
dessas organizações dois ou três anos para serem reestruturadas, como já vimos
na Europa Ocidental. Por volta de 1941, coincidindo fortuitamente com o
desencadear da Operação Barbarossa e com o ataque a Pearl Harbor, as redes
que operavam nos Estados Unidos começaram outra vez a se aprumar.
Que os Estados Unidos tivessem sido escolhidos para uma blitz de espionagem
— mesmo antes do advento daqueles dois aniquiladores golpes — pode-se
concluir pelo fato de que, após alguns anos de vacância, o posto de adido militar
à embaixada da Rússia, em Washington, afinal tenha sido preenchido. Merece
ser ressaltado, ainda, que a pessoa escolhido para o cargo não fora outra senão o
General Ilya Sarayev, espião-chefe profissional, que deveria desempenhar
grande papel na atividade da espionagem soviética, a qual iria tornar os Estados
Unidos seu alvo número um até a eclosão do Caso dos Espiões Canadenses,
ocorrido três ou quatro anos mais tarde.
Outro fator que facilitou grandemente o esforço russo nos Estados Unidos foi a
característica cordialidade dos norte-americanos. Os russos eram, então, seus
aliados. Quaisquer que tenham sido suas relações no passado, dissipavam-se
pelo fato de que então estavam lutando, lado a lado, contra um inimigo comum.
Em todos os lugares onde os russos apareciam eram saudados com a
espontaneidade da tradicional hospitalidade norte-americana. Esse estado
emocional incluía também o fornecimento de informações que, anteriormente,
seriam cuidadosamente interditadas aos russos. Essas informações, naturalmente,
não satisfaziam o imenso estômago dos soviéticos, que tudo queria digerir. O
esforço de obter maior e mais detalhado conhecimento do que se passava nos
Estados Unidos foi tornado, entretanto, bem mais suave pelo amistoso contato
que os russos logo estabeleceram com os homens que guardavam esses segredos.
O problema que os físicos tiveram de resolver, neste ponto, era que um esforço
enorme seria necessário para provocar a modificação em alguns poucos átomos,
o que tornava o processo impraticável, embora a operação fosse de alto interesse
científico. Fermi não havia reconhecido a importância da sua experiência com o
urânio pesado e acreditara que o que fizera não passara de uma repetição da
realização de Rutherford, isto é, conseguira apenas tirar minúsculas lascas do
núcleo atômico.
Provocar a fissão nuclear num material que fosse de fácil desintegração e que, ao
mesmo tempo, libertasse o maior volume possível de energia, constituiu uma
preocupação que, por volta da década dos trinta, havia-se tornado para os físicos
a mesma coisa que a descoberta da pedra filosofal fora para os alquimistas da
Idade Média. Em consequência, os físicos, nos Estados Unidos, na França, na
Alemanha, na Rússia e no Japão, assim como na Grã-Bretanha e na Itália,
concentraram-se em suas pesquisas, tendo em vista realizar esse objetivo. Como
existe uma tradição científica, no sentido de que as experiências, coroadas de
êxito, devem ser comunicadas (em tempos de paz) aos demais cientistas do
mundo, independentemente de sua nacionalidade, tudo o que fora descoberto no
Ocidente tornara-se, pois, conhecido dos cientistas russos.
Não se descobriu até hoje quem teve a idéia de não tornar disponível para os
russos os progressos realizados pelos cientistas anglo-norte-americanos. A
própria Rússia não demorou a descobrir que estava sendo posta de lado na
corrida nuclear e, daquele momento em diante, ao invés de perder tempo com
tentativas de persuasão, tomara logo providências para obter as informações, que
lhe eram negadas, através da espionagem. Desse modo, um departamento
especial foi organizado — conhecido como Divisão Atômica — para organizar a
coleta dos segredos atômicos.
Foi Boyer quem forneceu a Moscou as seguintes informações: uma nova fábrica
estava sendo construída em Grand Mère, * em Quebec, para a produção de
urânio; os engenheiros que nela iriam trabalhar seriam recrutados na
Universidade McGill; e experiências já realizadas haviam provado que o urânio
podia ser usado para “encher bombas”.
Entretanto o que tornou a tarefa dos russos ainda mais fácil foi o fato de que,
tanto nas fábricas norte-americanas como nas canadenses, existiam cientistas, de
alta categoria, que eram comunistas ou tinham simpatia pelos comunistas, e se
mostravam dispostos a entregar qualquer segredo que os russos solicitassem. Em
primeiro lugar, deve ser citado o inglês Dr. Allan Nunn May. Nunn May nascera
em 1912 e, quando atingira a maturidade, a depressão econômica da década dos
trinta refletia-se de maneira desastrosa na Inglaterra, como, aliás, em todas as
regiões do mundo. Seus efeitos negativos se faziam sentir de diferentes
maneiras. Muitas pessoas perderam a esperança de qualquer recuperação e
deixaram-se vencer pelo cansaço. Outras decidiram-se pela luta e se
reabilitaram, reabilitando a nação. Nunn May, porém, tornou-se um comunista
secreto.
Em segundo lugar, vinha o Dr. Klaus Fuchs, que fugira da Alemanha por ser
antinazista. Fora para a Inglaterra e, dada a escassez de físicos ali, foi, em
meados da década dos trinta, recrutado para trabalhar numa das equipes atômicas
britânicas. Exercia sua atividade, primeiro em Glasgow e, depois, em
Birmingham, sob a direção de outro refugiado alemão e antigo conhecido de
Fuchs, Rudolf Peierls.
Esses dois homens se encontraram pela primeira vez em maio ou junho de 1942
e, durante os dezoito meses decorridos daquela data até o dia em que o cientista
foi enviado para trabalhar nos Estados Unidos, Fuchs entregava a Kremer cópias
dos seus relatórios mensais. Fuchs desembarcou nos Estados Unidos, em
dezembro de 1943, com a luz verde que os ingleses lhe haviam concedido, sendo
designado, a princípio, para a Universidade de Columbia, em Nova York, e,
depois, para a fábrica atômica em Los Alamos. Nos Estados Unidos, mantinha
contato com a espionagem soviética, através de um membro da rede americana,
Harry Gold, de Filadélfia, e, até que retornou à Inglaterra, em 1946, passou
regularmente informações secretas para os russos.
Harry Gold nascera em Berna, mas seus pais eram russos. Sua família emigrara
para a América, quando ele ainda era criança. Nos Estados Unidos, o nome da
família foi mudado de Golodnotzky para Gold. Harry recebera boa educação
universitária e técnica nos Estados Unidos. Desenvolveu tendências esquerdistas
e, em 1935, abordado por uma agência de espionagem soviética nos Estados
Unidos, concordara em cooperar. Durante a juventude, Gold especializara-se em
roubar segredos químicos industriais. Por esse motivo, Yakovlev o escolhera
para agir como intermediário entre a rede e Fuchs.
Gouzenko permanecera no Canadá por dois anos e, segundo tudo faz crer,
convertera-se, durante esse período, em admirador dos ideais da democracia
ocidental. Essa mudança em seu modo de pensar provocou nele uma
correspondente alteração de sentimentos. Daí a razão por que decidiu abandonar
tanto os russos quanto seus trabalhos secretos.
Seguiu então para o seu apartamento e, não ignorando o que lhe poderia
acontecer, logo que os representantes soviéticos notassem sua ausência,
juntamente com a falta dos arquivos — o que seria uma questão de horas —,
passou o dia seguinte percorrendo diferentes departamentos do governo
canadense e, nessa via crucis, só foi recebido com aquela espécie de riso
complacente habitualmente concedida aos que alegam ser Napoleão. Tarde,
nessa noite, voltou outra vez ao jornal que visitara na véspera e teve idêntica má
acolhida. Sem saber o que fazer, fechou-se com a família no apartamento. Mal
tinha tomado essa providência, ouviu baterem na porta. Fez sinal à esposa para
que se conservasse sem fazer qualquer ruído, de modo a dar a impressão de que
o apartamento estivesse vazio. Desgraçadamente, seu filho, de quatro anos,
correu, com algazarra, através do assoalho de tacos. O homem que se encontrava
à porta gritou então chamando-o, e Gouzenko reconheceu a voz. Era um dos
motoristas da Embaixada. O chofer retirou-se, quando verificou que ninguém lhe
respondia.
Por volta das onze e meia dessa mesma noite, Main ouviu vozes do lado de fora,
no corredor. Pensando que era a polícia que voltava, chegou à porta e viu quatro
homens que se esforçavam por arrombar a entrada do apartamento de Gouzenko.
Deu o sinal de pedido de socorro, que combinara com a polícia, e, quando esta
chegou, encontrou os quatro homens dando uma busca no apartamento.
Interpelados, responderam que eram funcionários da Embaixada soviética e
tinham permissão de um colega, que se encontrava ausente, em Toronto, para
entrar em seu apartamento, a fim de apanhar alguns papéis importantes. Os
policiais mandaram chamar o inspetor.
O inspetor, ao chegar, pediu aos quatro homens que se identificassem, o que eles
fizeram sem protesto. Pedindo-lhes para se conservarem onde estavam, retirou-
se, a fim de fazer algumas investigações. Enquanto estava ausente, os soviéticos
saíram, e a polícia, que vigiava o apartamento, nenhuma tentativa fez para detê-
los.
1 — Local:
2 — Tempo:
3 — Sinais de identificação:
Alek levará sob o braço esquerdo um exemplar de The Times e o contato terá,
em sua mão esquerda, a revista Picture Post.
4 — Senha:
O contato dirá: "Qual o caminho mais curto para o Strand?” Alek responderá:
"Bem, venha comigo. Também vou para lá.” Ao iniciar a conversa, Alek dirá:
"Cumprimentos de Mikel.”
Burt não permaneceu muito tempo com Nunn May, mas o conservou sob
vigilância nos cinco dias seguintes, durante os quais o vigiado nada fez que o
pudesse comprometer. Entrementes, mais informações chegaram às mãos do
comandante, vindas do Canadá, e, nessas condições, fez uma segunda visita ao
Edifício Shell-Mex. De maneira perfeitamente brusca, Burt declarou a Nunn
May que tinha motivos para acreditar que ele devia encontrar-se com um contato
russo, perto do Museu Britânico, mas que não comparecera à entrevista. Em face
dessa declaração, e antes mesmo que qualquer gesto pudesse ser feito, no sentido
de prendê-lo, Nunn May disse que desejava confessar tudo.
Embora a maioria dos agentes que operavam no Canadá tivesse sido recolhida,
nada, porém, nas revelações de Gouzenko nem nas confissões feitas pelos
espiões detidos, dava a entender que o Dr. Klaus Fuchs tivesse qualquer conexão
com a rede. Nessas condições, ele poderia nunca ter sido descoberto, não fosse
um terrível disparate cometido pelo delegado soviético, numa reunião da
Comissão de Energia Atômica das Nações Unidas. Esse delegado revelara, em
discurso, que a Rússia tinha acesso aos segredos que os Estados Unidos
acreditavam estarem absolutamente seguros. A caçada teve logo início.
Não foi senão em 1949, entretanto, que o FBI conseguiu colocar os ingleses no
encalço do Dr. Fuchs. Como Nunn May, ele era vigiado, mas nada que fazia
podia comprometê-lo. Quando, porém, as autoridades da Divisão Especial
efetivamente o interrogaram, fez uma confissão completa. Foi condenado a
quatorze anos de prisão.
Harry Gold já havia atraído a atenção do FBI, em 1947, e seus policiais tinham
mesmo realizado com ele uma entrevista, em sua residência de Filadélfia. Gold,
porém, conseguira convencê-los de que tudo não passava de equívoco, e os
agentes do FBI acreditaram em suas palavras. Não foi senão depois de Fuchs ter
sido preso e falado que Gold surgiu outra vez em cena, o que não teria sido
possível, sem o fato de Yakovlev, cerca de quatro anos antes, haver
negligenciado importantes normas de segurança.
Quando Fuchs foi preso, mencionou Gold como sendo o seu intermediário. Em
consequência disso, ele foi detido e, por causa dessa sua única ida a Los Alamos,
fez referência a Greenglass. Este, pressionado pela polícia, também confessou e
mencionou Julius e Ethel Rosenberg. O FBI, então, entrou em atividade. Com
Rosenberg, seus policiais detiveram também a maioria dos membros da rede.
Quando os julgamentos terminaram, os Rosenbergs foram condenados à morte,
sendo executados em 1953; Gold e Sobell tiveram uma sentença de trinta anos
de prisão; Greenglass, de quinze; Abraham Borthman, de sete; e Miriam
Moskowitz, de dois anos de encarceramento.
Nos Estados Unidos, logo que Gold fora detido, Yakovlev fugira. Mesmo
ausente, figurou no processo, ao lado de Gold, como aconteceu também ao seu
antecessor, Semion Seminov. Tratava-se, entretanto, de mera formalidade.
Embora seja uma opinião pessoal minha, simpática ou contrária aos russos, o
que digo é que ninguém, honestamente, pode deixar de reconhecer que as
realizações da espionagem soviética, no campo atômico, revelaram-se dignas de
admiração.
É possível que a resposta a essa pergunta, pelo menos em parte, possa ser
encontrada na realidade. Com efeito, por estranho que pareça, McCarthy baseou
sua campanha em verdades provadas. Como já vimos atrás, a espionagem
soviética nos Estados Unidos, por volta do término da década dos trinta, havia
atingido não só um extraordinário volume como um amplo campo de atividade.
No terreno da espionagem industrial, da espionagem militar e, por fim, da
espionagem atômica, os êxitos soviéticos inegavelmente foram fabulosos. Deve-
se ressaltar, entretanto, que a maior parte desse sucesso foi devida a certas
atitudes do governo, que podem ser definidas através de apenas um exemplo.
Quando os russos solicitaram, em 1942, que lhes fossem cedidas algumas
toneladas de urânio, tendo sua solicitação rejeitada pelo Departamento de
Guerra, a Comissão Soviética de Compras recorrera ao mercado industrial.
Fizera encomendas de pequenas quantidades e, quando requerera uma licença de
exportação, o diretor do Projeto Distrito de Manhattan — que era violentamente
anti-russo — foi solicitado a dar seu parecer. Esse alto funcionário concedera a
licença e — como explicou perante o Comitê do Congresso que investigava as
atividades antiamericanas, relacionadas com o embarque de material atômico
para a União Soviética, durante a Segunda Guerra Mundial — “seria melhor
apontar com o dedo aquele material do que negar a licença”. Esse diretor
acreditava ingenuamente que, ao conceder a licença, a União Soviética não seria
levada a concluir, erroneamente, que o urânio era de grande importância para os
Estados Unidos. Foi com base em idêntica espécie de lógica, infantil em excesso
para ser crível, que as autoridades dos Estados Unidos acabaram por ser vítimas
do escandaloso roubo de seus segredos industriais e da sua produção bélica, o
que tanto comprometeu a segurança do mundo livre.
O Sr. Burnham organizou essa lista de acordo com vários relatórios das
comissões de inquérito que funcionaram após a guerra, quando a Administração
e o Congresso tornaram-se cientes de que uma grave infiltração soviética se
realizara nas agências governamentais.
Esta lista, entretanto, não está completa. Foi somente por acaso que três das
células de Washington tornaram-se conhecidas depois da guerra. Esse acaso foi
determinado pela deserção de pessoas que haviam servido como elemento de
ligação, entre as células e a Inteligência soviética. Não há dúvida de que, em
adição ao nomes já citados, existiram outros, provavelmente mais numerosos e
não menos importantes. . .
A extensão da infiltração soviética, revelada mesmo por essa pequena lista, torna
evidente que existia muito pouca coisa, ocorrendo em Washington, que não fosse
remetida para Moscou. A maioria das informações poderia ter sido realmente de
valor, mas a maioria delas era Inteligência de pouca valia. Tomemos, por
exemplo, Harry Dexter White, que, como promotor do Plano Morgenthau —
destinado a restringir, depois da guerra, a indústria da Alemanha e a estimular a
sua agricultura, a fim de prevenir a ressurreição do militarismo —, encontrava-se
nos conselhos secretos dos responsáveis pela planificação do pós-guerra e podia
informar os soviéticos de todas as intenções dos aliados com muita antecedência;
ou Maurice Halperin, que fornecia relatórios oficiais emanados do Departamento
de Estado e informações secretas do embaixador norte-americano em Moscou,
comentando os negócios internos da Rússia, dos quais uma parte das atividades
da Inteligência americana, agindo no interior da Rússia, podia ser avaliada; ou,
então, o Major William Ullman, que obteve, através da Inteligência do Exército
dos Estados Unidos, planos de guerra e relatórios do FBI. Esses três somente
podiam — e o fizeram — fornecer informações da mais alta importância.
Deve ser recordado que, quando Chambers decidiu reduzir sua associação com a
espionagem soviética, em 1938, fora a Washington, numa tentativa para alertar
as autoridades sobre a infiltração que haviam sofrido alguns departamentos do
serviço público, e que, dois anos mais tarde, entrara em contato com o FBI. Em
ambas as ocasiões, reteve partes de sua história, resultando dessa atitude que
seus interlocutores não se mostraram impressionados e nenhuma providência
tomaram. Finalmente, ele se mostrava disposto a contar tudo.
Desde que a situação havia sido controlada, tanto pelas autoridades como pelo
público, teve início, então, uma grande campanha no sentido de se pôr ordem na
casa norte-americana. Denúncias seguiram-se a denúncias. Entretanto, uma
sincera, genuína crença intelectual — como os mártires cristãos demonstravam
tão bem — não pode ser extirpada por providências administrativas. As
autoridades podem provar, expurgar e desmascarar, mas, para cada homem ou
mulher que trazem à luz do sol, quem poderia dizer quantos inimigos disfarçados
do Estado permaneciam escondidos atrás do muro de seus pensamentos mais
secretos?
O Senador McCarthy acreditava que ainda existiam muitos riscos. Talvez ainda
existissem, mas, se assim fosse, seus métodos de tentar extirpar o mal — o
método de caçar bruxas — reagiram, no fim, mais em favor do que contra eles.
De qualquer modo, conquanto sua campanha houvesse sido vil, os alicerces em
que ela se apoiava eram sólidos argumentos. Essa campanha teve, entretanto, um
bom resultado: tomou bem claro que pouca coisa pode ser feita para se defender
de um espião ideológico, a não ser o exercício de uma constante, incansável
vigilância. E essa atitude, por seu turno, deverá ser tomada não apenas contra
essa espécie de espião, mas contra os espiões de todos os gêneros. No entanto,
constitui uma característica da nossa época o fato de que esse imperativo de
defesa seja, com a maior frequência, esquecido.
2. O Caso “Amerásia”
Apesar do fato de que todos aqueles documentos haviam sido encontrados onde
não deviam estar, a primeira reação da administração foi a mesma que
manifestara em todas as anteriores oportunidades em que o FBI solicitara
permissão para agir contra os espiões. O promotor do embargo a qualquer ação
do FBI foi o Secretário da Marinha, James Forrestal, embora se encontrassem,
entre os papéis apreendidos, vários documentos pertencentes aos arquivos da
Inteligência Naval. Forrestal chegou ao ponto de apelar para o Departamento de
Justiça, no sentido de dar instruções a J. Edgar Hoover, chefe do FBI, proibindo-
o de tomar qualquer providência. O Departamento de Justiça atendeu à
solicitação de Forrestal, mas somente naquela oportunidade e até que a reunião
das Nações Unidas, em São Francisco, tivesse sido encerrada.
Poucas semanas após o General Bedell Smith ter feito sua observação, o chefe
da Divisão de Segurança do Departamento de Justiça informou que, naquela
ocasião, 766 casos de espionagem e 261 de sabotagem estavam sendo
investigados. Essas declarações foram seguidas de outras, quase em idênticos
termos, feitas pelo diretor do FBI: “As teias de espionagem inimigas estão
operando agora de maneira muito mais intensa do que em qualquer outro período
da História deste país.”
Judith Coplon, diplomada em nível universitário, tinha vinte e sete anos. Era
fisicamente atraente e se mostrava competente em seu trabalho, que envolvia
assuntos de segurança, tanto interna como externa. Naquela ocasião, seu nome
fora posto numa lista de servidores recomendados para promoção. A promoção,
de fato, ocorrera, quando ela fora nomeada para um cargo de 1 750 libras anuais,
em maio de 1948, após haver recebido um elogio do procurador-geral por um
brilhante trabalho de análise política.
Judith Coplon descendia de boa família. Seu pai fora um próspero industrial,
com nítidas características de filantropo. A Sra. Coplon era quieta e retraída.
Estava escuro, quando Judith ali chegou, pois as lâmpadas da rua já se achavam
acesas. Caminhou ao longo da calçada durante uns dez minutos, e então parou e
olhou a vitrina de uma joalheria. Permaneceu olhando aquela vitrina por sete
minutos. Valia-se, claramente, de um velho truque de espionagem: observava o
que se passava na rua, através dos reflexos no vidro. Pouco depois, um homem
baixo, mas forte, bem vestido e moreno, apareceu. Não falou com Judith.
Quando se afastou, porém, ela o seguiu. Entraram juntos num restaurante, onde
ocuparam o mesmo reservado. O que disseram ali não pôde ser ouvido pelos
agentes do FBI que os seguiam, porque, continuamente, punham dinheiro num
caça-níqueis, e o barulho da máquina abafava a conversação. Permaneceram
naquele restaurante pelo período de uma hora. Durante todo o tempo, Judith
falara animadamente, e ainda se mostrava excitada quando saíram. Outra vez,
tomaram o subway. Quando o trem estava para deixar a estação da Rua 125, o
homem se ergueu subitamente, espremeu-se através das portas que se fechavam
e saiu, com apenas um agente do FBI em seu encalço. O sistema de segurança de
que se valeu era, incontestavelmente, digno de elogios. Ignorava estar sendo
seguido, mas, mesmo assim, usara da maior cautela. Tomando uma série de
táxis, de bondes e de ônibus, conseguiu escapar á vigilância do agente.
O FBI fez uma advertência a Foley, no sentido de que não mais deixasse Judith
Coplon ter acesso aos chamados documentos “secretíssimos”. Em consequência
desse aviso, ela foi transferida para outra repartição. Não se conformara, porém,
com a transferência, alegando que só sairia se lhe dissessem a razão daquela
medida. Responderam-lhe que o novo trabalho, de que fora incumbida, precisava
ser feito, sendo ela a pessoa mais adequada para fazê-lo.
A razão do seu violento protesto tornou-se evidente para o FBI. No novo cargo,
não teria acesso a qualquer documento de valor para os seus parceiros de
espionagem, e, em face disso, o FBI concluiu que se encontrava na pista certa.
Por sua parte, Judith Coplon, quando obrigada a aceitar o inevitável, passara a
revelar persistência em não se desvincular da antiga repartição, o que, se ela de
fato fosse uma boa agente, deveria ter compreendido que iria atrair para si a
atenção de todos. Com efeito, visitava diariamente seu ex-escritório e dava uma
assistência mais do que a necessitada ao seu sucessor. Estava certa de que, assim
agindo, talvez lhe fosse possível inspecionar os arquivos. Com exceção dessa
atitude, comportou-se normalmente, só saindo da sua conduta exemplar para a
realização de alguns encontros amorosos com seu amigo advogado.
No dia 18 de fevereiro, Judith Coplon foi mais uma vez a Nova York. Nessa
ocasião, tomou o trem das quatorze horas. Os agentes que a seguiram levaram
uma mulher policial que a acompanhou até o interior do toalete de senhoras e,
depois, no subway. Judith Coplon, como acontecera das outras vezes, levou seus
acompanhantes através de uma excursão pelas ruas. Da Broadway, entrou numa
rua lateral, onde Gubitchev a esperava. Estiveram juntos somente por alguns
minutos e, embora já fosse noite, os agentes ficaram convencidos de que alguns
papéis haviam sido passados entre eles. Como da vez anterior, Gubitchev
despistou a perseguição.
No dia 3 de março, Judith pediu para trabalhar somente meio dia e seguiu para
Nova York, a fim de passar o fim de semana com seus pais. Na semana seguinte,
solicitou autorização para examinar alguns dos documentos “secretíssimos”.
Foley perguntou-lhe, então, se ainda se lembrava dos três empregados da
Amtorg que eram agentes do FBI. Acrescentou que conseguira obter maiores
informações sobre o caso e, para prová-lo, deu-lhe para ler uma carta, escrita por
J. Edgar Hoover ao assistente do procurador-geral, comunicando que a Amtorg,
não havia muito, fizera indagações sobre certos instrumentos chamados
geofones, que mediam a pressão das explosões, poucos dos quais tinham sido
fabricados em conexão com os primeiros testes atômicos. Hoover solicitava uma
orientação do procurador-geral sobre o que poderia constituir uma violação dos
regulamentos de comércio, por parte da Amtorg. A carta era uma armadilha
imaginada para resolver, de uma vez por todas, se Judith Coplon estava
passando, ou não, informações aos agentes soviéticos.
Pouco depois dessa entrevista com Foley, Judith viajou, mais uma vez, para
Nova York. Ali se repetiu tudo o que acontecera nas viagens anteriores, apenas
com algumas variações sem maior importância. Nessa oportunidade, entretanto,
o FUI dera o bote. Tanto Judith quanto Gubitchev tudo fizeram para escapar,
mas, por fim, foram presos na esquina da Rua 16 com a Terceira Avenida.
Judith Coplon, que tivera permissão para prestar fiança, quando completadas as
investigações preliminares, apelou da sentença. (Dois meses após a sentença,
casou-se com um dos seus advogados, Albert H. Socolov.) Sua apelação foi
julgada no dia 5 de dezembro de 1950 e, já que sua prisão se efetuara sem
mandado, o tribunal tornou sem efeito a sentença. A acusação, entretanto, ficou
de pé. Embora livre, em obediência a detalhes de formalística processual, sua
culpabilidade perante a lei subsistiu. Judith Coplon vive agora tranquilamente,
transformada em esposa e mãe.
Por esse tempo, o Centro realizara um levantamento geral das suas redes nos
Estados Unidos e afastara os velhos contatos, que ficaram inativos, à espera de
nova oportunidade. As agências de contraespionagem norte-americanas, por seu
lado, passaram a se comportar mais de acordo com o papel que sempre lhes
competiu representar, pois finalmente se convenceram — como, aliás, ninguém
ignora — de que o comunista clandestino continua sendo o maior e o mais
traiçoeiro inimigo.
Sexta Parte
OS PRINCIPAIS DESERTORES
1. Gouzenko, Petrov e Companhia
Na realidade, devem-se mais aos agentes que desertam do que à habilidade dos
serviços de contraespionagem tanto o desmantelamento de diversas redes de
importância e a captura de muitos grandes espiões quanto uma melhor
compreensão, por parte dos ocidentais, dos métodos e das técnicas de que lança
mão a espionagem russa. Nessas condições é provável que hoje se conheça mais
sobre os detalhes íntimos das atividades do Centro do que sobre as do resto dos
serviços de espionagem do mundo, considerado em conjunto, excetuada a
Agência Central de Inteligência — a CIA —, que é a moderna organização de
espionagem dos Estados Unidos, criada no após-guerra. Deve ser ressaltado,
entretanto, que esse conhecimento da CIA não foi obtido através de desertores.
Resultou tanto da própria estupidez do Centro como, particularmente, da sua
falta de insistência numa observância absoluta das normas de segurança.
Sob um regime que impõe uma lealdade da boca para fora, por temor de prisão,
no mínimo, ou de morte, entre as criaturas submetidas a tão atroz tratamento,
dada a própria natureza humana, sempre existe uma preocupação de fuga.
Somente entre os que se encontram na cúpula e que controlam e inventam os
castigos por deslealdade, ou entre os fanáticos, é que se poderá observar um
sentimento que se aproxime da lealdade. E isso porque o regime, sem exceção,
foi a eles imposto, c não livremente aceito e aprovado. Não pode haver qualquer
vínculo entre um regime dessa natureza e o país sobre o qual ele exerce o seu
poder. Da mesma forma, não deve existir fé em instituições das quais se tem
medo. Esses dois aspectos da vinculação do homem à sua pátria é que
constituem a base do seu sentimento de lealdade.
Não foi senão em janeiro de 1953, quase oito anos após o desmantelamento do
sistema de espionagem no Canadá e nos Estados Unidos, que a polícia de
Montreal por acaso descobriu que, pelo menos, uma rede "paralela” prosseguia
em suas atividades no país, enquanto os agentes, que haviam trabalhado com
Zabotin, estavam sendo julgados. No dia 5 de janeiro de 1953, o grego
Constantin Stathopoulos, de 60 anos, que vivera no Canadá desde 1927, fora
encontrado morto em sua residência em Montreal. Morrera após uma longa
enfermidade, e não havia qualquer desconfiança de jogo sujo. Num bem
disfarçado esconderijo em sua residência, foram encontradas caixas de aço
contendo centenas de papéis, os quais o chefe da Divisão Contra a Subversão, da
polícia canadense, Louis Champagne, descreveu como sendo "a mais importante
coleção de documentos de espionagem descoberta em Montreal”. Entre a
papelada recolhida, estavam livros de notas contendo referência a muitas pessoas
envolvidas na rede de espionagem do Canadá, inclusive Fuchs. De acordo com
essas informações, quando postas lado a lado, tornou-se claro que Stathopoulos
tinha em seu poder parte dos arquivos de uma rede de espionagem perfeitamente
independente da de Zabotin, mas que procurara atingir, pelo menos, alguns alvos
relacionados com a espionagem atômica.
O primeiro desertor de importância foi Igor Gouzenko, o encarregado do serviço
de códigos da embaixada soviética em Ottawa. Já relatamos sua história, na
quarta parte deste livro. Os documentos que levou consigo e as revelações que
subsequentemente fez revelaram não somente a existência da rede de Zabotin,
mas proporcionaram um retrato, quase completo, do modus operandi da
espionagem soviética. Muito daquilo era sabido ou suspeitado — a nota de
surpresa estarrecedora que corre através das setecentas páginas do relatório da
Comissão Real, particularmente a noção de que diplomatas ou quase diplomatas,
gozando de imunidades, pudessem rebaixar sua profissão a ponto de usá-la como
cobertura para espionagem, não devia iludir ninguém —, mas a confirmação da
primeira informação e o que se ficou sabendo em relação ao segundo item
foram, naturalmente, de grande valor.
O ruído que se fez em torno da deserção de Vladimir Petrov, ocorrida três meses
depois, produziu efeito diametralmente oposto. Qualquer intelectual que se
encontrasse de posse de um jornal em alguma parte do mundo ficaria
surpreendido pela história que não somente pareceu representar uma repetição
do escândalo do Canadá, mas pôs em foco, como os casos de Gouzenko, de
Gold-Rosenberg e o julgamento de Klaus Fuchs nunca haviam conseguido, o
papel universal da espionagem soviética. O grande tumulto de publicidade que
acompanhou a deserção de Petrov não foi provocado pelas autoridades
australianas, que provavelmente teriam preferido guardar sigilo sobre o assunto,
mas pelo comportamento, em lugares públicos, de certo número de agentes
soviéticos.
O resultado dessas críticas — que deveria ser previsto por qualquer diretor que
soubesse como lidar com agentes — foi implantar em Petrov uma crescente
amargura. Essa amargura, ele a manifestou a um amigo que fizera na Austrália,
um imigrante polonês chamado Mikhail Bialogusky, o qual, segundo acreditava,
era um dos membros do Clube Social Russo mais exaltados em favor da Rússia,
embora, na realidade, não passasse de um elemento da contraespionagem
australiana.
No dia 3 de abril, Petrov desapareceu. Por alguma razão, não levou a esposa.
Após três semanas, como ele não reaparecera, chegara uma ordem para que ela
fosse repatriada. O avião em que viajava aterrissou no aeroporto de Darwin para
se reabastecer, e ela, com sua guarda de três ou quatro agentes, foi levada até o
edifício da estação, a fim de tomar um refresco. Sua marcha fora observada pela
contraespionagem australiana e, de uma forma ou de outra, o marido conseguira
falar-lhe pelo telefone. Em Camberra e na aterrissagem em Darwin, ela se
mostrara perfeitamente dócil. De súbito, porém, mudou. Gritou para as
autoridades do aeroporto que não desejava voltar a Moscou e pediu que lhe
dessem asilo.
A tradição, porém, existe. E, se houve uma necessidade real para criá-la, não
resta dúvida de que pouca hesitação deverá existir para que um dia ela seja
ressuscitada.
Sétima Parte
A EUROPA DE PÓS-GUERRA
1. Desde a Morte de Stálin
Lavrenti Béria, como Stálin, era georgiano. E, também como seu mestre e
amigo, possuía toda a brutalidade, a astúcia e a ambição de poder que
caracterizaram o sucessor de Lênin. Filho de um humilde funcionário público,
nascera em Tíflis, em 1898. Havendo feito um curso para ser professor, alistara-
se, mais tarde, no exército czarista. Alegava que, no exército, procurara incitar
seus companheiros de armas, levando-os à sublevação e, por isso, fora julgado
por uma corte marcial e condenado à morte. Conseguira, porém, fugir. De
qualquer forma, não surgiu, até hoje, qualquer prova de que tenham sido
verdadeiras essas alegações.
Logo depois, Béria demonstrava ter vocação tanto para as atividades secretas
como para aprender línguas — dominava perfeitamente o alemão, o francês e o
tcheco —, e essas duas qualificações lhe conquistaram um posto na legação
soviética em Praga. Ali, devia dar informações sobre oficiais do antigo exército
do czar que se encontravam em exílio na Tchecoslováquia.
Béria foi o responsável pelo regime de terror que, durante muitos anos, imperou
na Rússia — com o qual concordara Stálin —, pois compreendeu que a Polícia
Secreta constituía a mais poderosa arma para a conquista do poder. Insistiu por
isso, em ter seus agentes em todas as unidades das forças armadas. Eram
investigadores que faziam espionagem, apurando a "lealdade” de cada homem,
de general a simples soldado. Quando a guerra russo-germânica se iniciou, as
fronteiras da Rússia com a Alemanha eram, em sua maior extensão, guardadas
por tropas do NKVD. Descobriu-se, então, que seus agentes nas linhas de frente
enviavam as informações diretamente a ele. De posse dessas informações, Béria
transmitia a Stálin, e ao Alto Comando apenas o que julgasse conveniente.
Retinha, assim, muita coisa que teria sido de grande valor para os estrategistas
militares, pelo menos durante os primeiros seis meses do conflito.
Como seria de esperar, procurou colocar homens de sua confiança nos mais
importantes postos da organização — homens que não deixavam de ser
discípulos seus, como Merkulov, chefe de Segurança do Estado durante todo o
período da guerra e ministro da Segurança do Estado e do Controle até 1953;
Dekanosov, chefe do Departamento do Exterior do Primeiro Diretório; Pavel
Mesnik, chefe da Divisão Especial e diretor do Departamento do Terror e do
Desaparecimento (o Esquadrão do Assassinato); Nicoforovich Kruglov, que
salvou as vidas de Roosevelt e de Churchill, ao descobrir um complot para
assassiná-los em Teerã, e sobreviveu a cinco chefes, inclusive ao próprio Béria.
Somente um fato Béria não levou em consideração em sua ascensão para o ápice
do poder: a oposição que lhe faziam os comandantes do Exército. Cometeu
igualmente um grave erro, subestimando a astúcia do seu mais próximo rival —
Malenkov. Muito antes da morte de Stálin, Malenkov, que fora o mais íntimo
amigo do autocrata, chegara a um acordo com o Exército, no sentido de que os
militares o apoiassem, no momento que julgasse oportuno. Quando esse
momento chegou, e o cadáver de Stálin se achava exposto no Hall das Colunas,
o destino de Béria estava selado.
Embora a horrível sombra de Béria e de sua polícia tivessem sido afastados, por
fim, do cenário russo — o que não quer dizer naturalmente, que uma vigilância
estreita ainda não seja mantida em relação a qualquer atitude subversiva —, a
reorganização burocrática desses serviços não se refletiu, de forma sensível, nos
métodos ou nas atividades de espionagem soviética. Na realidade, segundo tudo
indica, os efeitos foram contraproducentes.
Não tardou que a presença desses agentes nas embaixadas se tornasse conhecida.
E o fato se deu de maneira muito desagradável. A mesma e numerosa gente que
fugira ante o avanço dos exércitos russos e que, a princípio, fora recolhida aos
campos de pessoas deslocadas, na Alemanha, e então selecionada para viver e
trabalhar numa democracia ocidental, constituiu um dos principais alvos das
agências-satélites. A maioria dos integrantes desse grupo humano deixara
parentes em seus próprios países e, sob a ameaça de prisão desses parentes, eles
se submeteram à chantagem e se transformaram em espiões.
Sem que Gudkov o soubesse, seu colega Pupyshev fora incumbido de idêntica
tarefa. A abordagem que realizou foi, entretanto, diferente. Estabeleceu laços de
amizade com um oficial da RAF e tentou persuadi-lo a obter as informações que
o governo russo desejava. O oficial fingiu-se disposto a cooperar, mas deu parte
à polícia, e a contraespionagem agiu, adotando o mesmo processo que tivera
êxito no desmascaramento de Gudkov. Pupyshev foi devolvido à Rússia,
juntamente com seu colega da Embaixada.
Dois anos apenas antes desses pequenos incidentes, o público inglês havia sido
informado das atividades da espionagem soviética na Grã-Bretanha, através da
prisão de um funcionário do Foreign Office, William Marshall. Em 1950,
Marshall fora removido para a Embaixada britânica em Moscou, onde exercia as
funções de encarregado do serviço de cifragem da correspondência. Como
Vassall uma década mais tarde, Marshall não se “ajustou” com o resto do pessoal
da Embaixada. Em sua solidão, procurou travar relações com alguns russos,
embora, na realidade, seja mais verdadeiro dizer que os russos, sabendo de sua
infelicidade, dele se aproximaram.
Não resta dúvida de que o MI 5 foi parcialmente culpado pelo que aconteceu na
Grã-Bretanha. Ao lado do seu fracasso, porém, verificava-se, simultaneamente,
alarmante falta de precaução por parte das agências de segurança de muitos
departamentos governamentais, que guardavam segredos estratégicos. Nem
mesmo a revelação dos lamentáveis lapsos da segurança do Almirantado,
tornados públicos no caso Lonsdale-Houghton- Gee, impediram que Blake e
Vassall operassem, com sucesso, por algum tempo, mesmo depois de aquele trio
ser detido pela contraespionagem. Pode-se admitir que a contraespionagem luta
com muito maiores dificuldades do que o faz a espionagem. Entretanto, uma
hábil organização, cujo objetivo é desmascarar espiões, desde que seja bem
treinada e esteja sempre vigilante, pode sobrepujar, com facilidade, a maioria das
agências de espionagem, uma vez que uma pista inicial tenha sido descoberta. O
mesmo acontece em relação aos casos dos comunistas encapuzados.
Praticamente em todos os casos dessa natureza, verifica-se a existência de uma
indicação qualquer, no início da carreira do suspeito, que o torna passível de ser
considerado um risco de segurança. Essa indicação pode conduzir a provas
concludentes, se ao menos um escrutínio bem orientado for levado a efeito em
cada caso.
Quem quer que converse com um russo — seja uma autoridade ou um homem
da rua — sobre a possibilidade do irrompimento de uma terceira guerra mundial,
não pode deixar de se impressionar com a sinceridade com a qual a Alemanha
Ocidental é tida, por ele, como a mais perigosa ameaça à paz mundial. Baseados
na História, os soviéticos estão convencidos de que o militarismo se acha tão
solidamente arraigado no caráter nacional teutônico que as sucessivas alegações
de Bonn, de desinteresse pela guerra, não podem ser sinceras. Julgam-nas
simples cortina de fumaça, tendo por objetivo disfarçar uma futura tentativa de
restauração do prestígio militar do país — tão achincalhado por duas
esmagadoras derrotas no período de vinte e cinco anos —, a ser levada a efeito
no momento oportuno. Trata-se de um ponto-de-vista esposado por largos
setores da opinião pública no Ocidente. Embora todos os governos,
indubitavelmente, mantenham estrita vigilância sobre qualquer manifestação
dessa ambição germânica de reconstituir seu poderio militar — com a intenção
de suprimi-la tão logo ela se concretize —, os russos, entretanto, não se mostram
dispostos a cruzar os braços e a aguardar até que os acontecimentos ocorram, no
que diz respeito a problemas dessa natureza, no campo internacional.
Essa tarefa, entretanto, não justificaria ou requereria uma tão grande atividade
como a que está sendo levada a efeito a oeste da curva Travemünde-Hof.
Existem, porém, outras razões para essa preocupação, e que mergulham suas
raízes no próprio oportunismo russo. Em primeiro lugar, as forças que os norte-
americanos e os britânicos conservam na República Federal constituem fato que
um antagonista em potencial não pode deixar de levar em consideração. Essas
forças dispõem das mais modernas armas e dos mais aperfeiçoados
equipamentos — aviões, artilharia e centenas de outros instrumentos de luta. Por
outro lado, importantes segredos políticos ali estão guardados em arquivos e
grandes manobras são levadas a efeito nas florestas e nas montanhas. Tudo isso
está ao alcance de qualquer agente, ali colocado, sem maiores dificuldades.
Nos últimos anos, os alemães não têm divulgado as cifras dos comunistas presos
e condenados como espiões. Entretanto, através de estatísticas antigas, pode-se
ter uma idéia do volume da atividade desenvolvida, pelas agências soviéticas e
suas aliadas, na Alemanha Ocidental. Entre 1949 e 1955, não menos de oitenta e
seis causas de espionagem foram levadas aos tribunais, e o número dos acusados
se elevou a 174. Desde que os espiões presos só representam uma pequena
fração do total que se encontra em atividade, pode-se presumir que o número de
agentes comunistas no país deve orçar por muitas centenas.
Klein revelou aos ingleses que recebia ordens de um oficial russo — certo
Capitão Grabowski — que controlava uma das redes soviéticas. Durante seu
período de atividade, obtivera informações sobre o exército britânico do Reno,
sobre alguns objetivos militares, como pontes, acampamentos e outras
instalações, e tirara numerosas fotografias, as quais tinham sido entregues ao
Partido de Unidade Socialista, ao Partido Comunista — que funcionavam na
região que mais tarde seria o Setor Soviético —, a fim de serem remetidas a
Grabowski.
Três anos mais tarde, descobriu-se uma célula, em pleno funcionamento, quando
um ferreiro local informou às autoridades britânicas que certo Werner Berg
tentara persuadi-lo a obter informações secretas, prometendo-lhe, em
recompensa, pagar-lhe setecentos marcos por mês. Berg passou a ser vigiado, e
sua atividade levou as forças de segurança a outros membros da célula — três
homens e duas mulheres, todos alemães — dirigidos por Robert Koch, viajante
comercial que cruzava frequentemente a fronteira “em sua jornada de negócios”,
passando para o Setor Russo.
Embora tendo por sede a Tchecoslováquia, essa rede era controlada por um
oficial tcheco, que vivia sob o falso nome de Capitão Burda. Em 1950, Burda
travou relações com Hans Pape, rapaz bem-educado e inteligente, filho de um
alemão muito rico. Pape, entretanto, acusava evidentes sintomas de
anormalidade psíquica. Instável de caráter, vivia trocando de empregos antes da
guerra e, durante o conflito, imaginara passar a maior parte do seu tempo em
hospitais, bem distante das linhas de frente.
Encontrava-se ele num hospital do Leste, quando a ofensiva russa passou por ali,
não lhe dando tempo para fugir, e, nessas condições, fora preso. Solto em 1947,
retornou para a Alemanha Ocidental e ali obteve um emprego na base aérea
norte-americana de Rhine-Main. Em 1950, recebeu uma intimação para ir ao
Setor Soviético e, em Weimar, avistou-se com um oficial russo, este o
incumbindo da tarefa de obter informações sobre os alemães que trabalhavam
para os norte-americanos na contraespionagem e na polícia militar. Nessa
viagem, Pape conheceu logo Burda, que tinha igualmente uma proposta para lhe
fazer.
Em qualquer fase, Pape jamais conseguira ganhar o suficiente para fazer frente
ao seu sistema de vida. A proposta de Burda, entretanto, rasgara-lhe novos
horizontes: os tchecos estavam dispostos a pagar-lhe oitenta libras mensais por
seu serviço. Em complemento à sua missão soviética, os tchecos pediram-lhe
que lhes fornecesse relatórios sobre os norte-americanos e logo lhe deram os
nomes e os endereços de alguns alemães que poderiam ajudá-lo. Recebeu
também instruções sobre o método que deveria adotar em seu trabalho.
Em 1948, Karl Kunze e sua amante Luise Frankenberg foram instruídos, por
uma agência polonesa, a organizar uma rede em Berlim Ocidental. Abriram uma
galeria de arte, como disfarce, e, enquanto Kunze agia recrutando membros entre
os alemães contrários aos aliados, Frankenberg procurava mulheres que
pudessem ser de alguma utilidade. O mais notável sucesso que essa agente
obteve foi o recrutamento de Maria Knuth, mulher de quarenta e dois anos, sem
filhos, inteligente e separada do marido, o conhecido aviador Manfred Knuth.
Maria Knuth fora levada para Berlim, a fim de assumir a direção da rede. Frau
Knuth revelou-se ótima agente, e a rede, sob sua liderança, tornara-se
rapidamente uma das de maior êxito entre as que operavam na Alemanha
Ocidental.
Margarete Schmidt, que era uma bonita jovem, estabeleceu seu primeiro contato
importante com o pessoal da Força Aérea em Berlim Ocidental, através das
relações íntimas que mantinha com um oficial graduado da Inteligência. Esse
affair teve início no verão de 1953 e parece haver-se prolongado pela maior parte
do ano. Julga-se que ela manteve outro "caso” simultânea ou subsequentemente
com uma autoridade civil ou oficial da Força Aérea de patente inferior.
Não obstante essa demissão, Margarete Schmidt conseguira obter outro emprego
de secretária na base aérea norte-americana de Tempelhof, em Berlim Ocidental.
Enquanto exercera esse cargo, mantivera contato com pessoas de quem se fizera
conhecida durante seu emprego no setor da Inteligência. Sua prisão ocorreu
porque tentara fazer grande pressão sobre um alemão, que trabalhava para seus
antigos empregadores da Inteligência norte-americana, no sentido de que ele lhe
fornecesse segredos de contra-inteligência.
Ignora-se, até hoje, como foi obtida a permissão das autoridades da Alemanha
Ocidental para a instalação dessas organizações em Francforte e Hamburgo. A
real significação desse Instituto e dos seus apêndices não escapara, porém, à
argúcia da nova agência de contraespionagem política. Dentro de pouco tempo, a
Amt havia-se infiltrado tanto na célula de Francforte como na de Hamburgo. Ao
lado disso, um agente seu, Gotthold Kraus, obtivera um posto no quartel-general
de Berlim Oriental — onde treinava recrutas que deveriam operar no Ocidente
—, o qual, antes de retornar a Bonn, em 1953, acumulara suficientes provas
documentais que iriam permitir aos seus superiores desmascarar toda a rede, que
funcionava sob o falso nome de Vulkan.
Entretanto, antes que isso acontecesse, Weiss, chefe da célula de Francforte, fora
preso, em consequência do depoimento de outro agente do Ocidente, Wilhelm
Ruschmaier, que lhe fornecera falsos documentos, preparados pela Amt. Mas
somente quando Weiss se tornara perigoso, ao obter informações genuínas sobre
segredos militares e políticos dos aliados, julgaram que deveria ser silenciado.
Após a prisão de Weiss, a rede continuou a operar, até que Kraus retornou de
Berlim Oriental, na primavera de 1953. Então, a agência do Ocidente atacou, e
arrebanhou os restantes trinta e cinco membros da Vulkan.
Ao terminar a guerra, Rudolf Rössler, que, sob o nome falso de Lucy, realizara
verdadeiros milagres em favor da espionagem soviética durante o conflito,
recusou-se a prosseguir em suas atividades clandestinas. Não desejava trabalhar
para a Rússia, nem queria auxiliar a Suíça. Os russos o haviam recompensado
generosamente, pagando-lhe um altíssimo salário. Os suíços, por seu lado, não
se tinham mostrado parcimoniosos. Nestas condições, o acervo da renda dessas
duas fontes, ele o empregou em sua empresa editora — Vita Nova. Essa revista
entrara numa fase de dificuldades. Extinto o nazismo, a liberdade de imprensa
tornara-se uma das características da Alemanha Ocidental e, em face disso, não
existia, realmente, mercado para aquele gênero particular de propaganda.
Deve ser recordado que Rössler fora apresentado, em primeiro lugar, ao serviço
de Inteligência da Suíça por um jovem jornalista — Xaver Schnieper. Schnieper,
depois da guerra, confessara abertamente suas simpatias pelo comunismo e se
tornara presidente do diretório regional de Lucerna, do Partido Comunista Suíço.
Quando, porém, a agremiação se dividira, em 1946, em consequência de um
escândalo financeiro interno, vira-se expulso das fileiras partidárias e aderira a
algumas organizações anticomunistas.
Rössler morreu em 1962, ainda negando que, alguma vez, tivesse realizado
qualquer serviço de espionagem. Deixou o mundo dos vivos sem dizer quais os
seus contatos alemães e sem ao menos fazer qualquer insinuação em relação à
identidade deles.
5. França
Não fosse a ação de um ou dois dos seus líderes políticos, mais perspicazes que
os demais e temporariamente dispostos a cooperar para um propósito e tão-
somente um propósito — evitar que o comunismo assumisse o poder —, não há
dúvida de que a França se haveria tornado a primeira nação comunista da Europa
Ocidental. De qualquer forma, tratava-se de uma situação excessivamente
complexa.
Por algum motivo, que por certo intrigará os historiadores futuros, a França, foi
salva do comunismo apesar de si mesma. Um breve esboço da sua situação
política, nos primeiros dois ou três anos do pós-guerra, mostrará como esse país
esteve próximo do desastre.
O sucessor de Gouin foi George Bidault, líder do MRP, que assumiu o poder no
dia 23 de junho. Este também pouco depois renunciava, de acordo com a praxe,
quando a nova administração nacional iniciou suas funções, no dia 10 de
novembro. Tornou-se difícil, então, a constituição de um Ministério. Nem o
MRP nem os Socialistas queriam colaborar com o mais forte partido na
Assembléia, o Comunista. Finalmente, a fim de aguardar a eleição de um novo
presidente da República, o veterano socialista Léon Blum formou um Ministério
puramente socialista, com duração limitada a seis semanas. Não obstante seu
curto período de existência, esse governo imprimiu vigorosa orientação à
política francesa. Reprimiu a tendência para uma generalizada elevação dos
preços e iniciou negociações para um tratado de aliança com a Grã-Bretanha. No
dia 16 de janeiro de 1947, o primeiro presidente da Quarta República, Vincent
Auriol, foi eleito.
Além dos comunistas que ocupavam elevadas posições, muitos outros políticos
da mesma filiação ideológica infiltravam-se em numerosos cargos, embora sem
grande relevo, mas que constituíam peças vitais da administração. Entre as
primeiras missões diplomáticas junto à Quarta República, a russa tomou a
dianteira, logo se estabelecendo em Paris. Chegou com um pessoal enorme, o
que só poderia significar uma coisa: que a espionagem soviética tinha a intenção
de lançar um assalto global aos segredos franceses. Algumas das suas atividades
e certas operações já planejadas tornaram-se desnecessárias durante os primeiros
três anos. E isto por que a infiltração legal, que os comunistas haviam levado a
efeito em pontos-chaves da administração, dera-lhes acesso a todos os segredos
da França e, também, a muitos da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos.
As atividades dos comunistas franceses eram bem conhecidas dos políticos e dos
estadistas da França, e não tardou que todos compreendessem que alguma coisa
deveria ser feita no sentido de reprimi-las. O dilema era o seguinte: agir, ou pelo
menos dar a impressão de que se agia, pois, mesmo quando a decisão foi
tomada, verificou-se grande relutância, por parte das autoridades, em se fazer
qualquer coisa que pudesse parecer provocação à Rússia. Mesmo quando a
contraespionagem apresentou irrefutável prova de que certos indivíduos vinham
entregando segredos franceses aos soviéticos, ordens lhe foram dadas para não
tomar outras providências além das relacionadas com a conservação desses
suspeitos sob vigilância. Isto, naturalmente, muito convinha às redes soviéticas.
Embora o Partido Comunista Francês tenha perdido muito terreno nos últimos
anos, é certo que a espionagem soviética não afrouxou sua atividade na França,
que constitui ainda excelente campo de caça, em relação aos segredos da OTAN.
Uma indicação disso foi a prisão de um oficial francês, de alta patente, adido ao
quartel-general da OTAN, o qual admitiu que, durante alguns anos, mantivera
estreito contato com agentes soviéticos. Desde a ascensão de De Gaulle,
entretanto, verificou-se grande endurecimento na linha de ação da segurança
francesa, mas, se o passado é algo que se esquece, essa certeza tem sido
considerada, pelo Centro, como um estímulo para atividade ainda maior.
6. Em Outras Nações
A situação na Itália não era muito diferente da da França. Nas primeiras eleições
gerais realizadas após a Libertação, um sistema de representação proporcional
deu aos democratas cristãos 207 cadeiras, aos socialistas 115 e aos comunistas
104. Os dois últimos partidos, portanto, asseguraram, juntos, maioria contra os
democratas cristãos. Nenhuma das agremiações políticas, entretanto, dispunha
isoladamente de maioria segura. Em face dessa fragmentação partidária, o
governo teria forçosamente de se formar através de uma coalizão, com os
comunistas ocupando postos que lhes permitissem ter acesso àqueles segredos
que os italianos certamente não desejariam fossem conhecidos em Moscou. Para
o governo soviético, entretanto, a Itália não exercia a mesma atração que a
França. Em vista disso, a atividade de sua espionagem nesse território não se
mostrou muito intensa. Mesmo assim, ocorreram ali alguns casos, cuja gravidade
demonstrou que o Centro estava ativo na península, com células instaladas nas
repartições governamentais, nas unidades militares, e em muitas fábricas e em
cada sindicato. Um desses casos, em particular, revelou que o Centro levara sua
infiltração até mesmo ao interior do Vaticano. Em 1952, tornou-se público que
um professor da Academia Gregoriana, padre Aligheri Tondi, era, na realidade,
agente soviético. Constitui mistério indecifrável a razão por que o religioso
tomou essa atitude, já que, como é sabido, o catolicismo romano e o comunismo
se odeiam e se consideram, reciprocamente, inimigos irreconciliáveis.
O caso que tornou público esse seríssimo estado de coisas foi o relacionado com
um oficial da Marinha, Ernst Anderson. No princípio de setembro de 1951, esse
oficial solicitou — lhe foram concedidos — cinco dias de férias, a fim de poder
tratar de assunto de natureza privada. Entretanto, ao invés de seguir para a sua
casa, ele viajou para Karlskrona, a principal base naval da Suécia, e, quando suas
férias terminaram, regressou a Estocolmo.
Enquanto Enbom e seus oito colegas estavam sendo julgados, não menos de
vinte e dois membros da Delegação Comercial Russa e quatro funcionários da
Embaixada deixaram precipitadamente a Suécia, voltando para Moscou. Com
eles, seguiram igualmente Gustav Gohansson, editor do Ny Dag, e o destacado
comunista sueco Seth Persson.
Raro é o país, integrante da Aliança Ocidental, que não tem feito realizar esses
inquietadores julgamentos por espionagem. Na Grécia, em 1952, uma larga rede
de trinta e dois agentes foi desmantelada, ficando demonstrada, então, a grande
eficiência com que o Centro organizara ali suas operações. A rede, dirigida por
Nicholas Beloyannis, estava equipada com dois radiotransmissores e fornecia
informações sobre as instalações norte-americanas, tanto nas ilhas gregas como
nas costas da Turquia. Dois outros julgamentos, desarticulando duas outras
redes, seguiram-se ao de Beloyannis, mas as autoridades da contraespionagem
grega não se mostram seguras sobre se conseguiram exterminar toda a atividade
de espionagem em seu país.
Por essa mesma época, uma grande rede fora descoberta na Holanda e na
Bélgica. De fato, para onde quer que se olhe — seja para o Oriente Próximo,
para o Extremo Oriente, para o Oriente Médio, para os agitados países da Ásia,
para as nações do Pacífico e, sobretudo, para a América do Sul —, a partir de
1952 verificaram-se, em todos os países, julgamentos periódicos relacionados
com espionagem.
A escala em que o Centro opera é responsável, até certo grau, pelo seu
indubitável sucesso. Em toda parte, têm-se verificado graves erros, cometidos
pelas agências de contraespionagem. Mesmo assim, a tarefa que elas têm
realizado não deixa de ser formidável. Quando um imenso exército de espiões
assola um país, os resultados iniciais podem ser idênticos aos conseguidos pelo
rolo compressor russo nos campos de batalha da Europa Oriental. Somente uma
vigilância inteligente e incessante impediria que uma nação pudesse ser
inundada pelas hordas dos espiões do Centro. Embora essa realidade já tenha
sido apreendida pelas agências de contraespionagem, o fato é que o homem da
rua ainda não compreendeu inteiramente a situação, nem descobriu que lhe cabe
desempenhar, também, um papel definitivo nessa luta para conservar secretos os
segredos de sua pátria, o que, em última análise, constitui um dever tão
patriótico quanto o de vestir um uniforme, no momento em que a luta se inicia.
Oitava Parte
AS ÚLTIMAS CAUSES CÉLEBRES
1. O Coronel Abel
Rudolf Ivanovich Abel fora agente secreto por muitos anos. Possuía um instinto
admirável do valor da segurança e, embora houvesse servido com distinção na
Alemanha e em outros países, antes da guerra, nunca atraíra a atenção de
qualquer das agências de contraespionagem. Este fato foi devidamente levado
em conta, por ocasião de sua escolha para operar nos Estados Unidos
Durante a guerra, esse agente fora retirado do trabalho clandestino e servira com
tão grande eficiência no Exército que recebera altas condecorações. A coragem e
a habilidade que revelara no campo de batalha, assim como sua alta reputação
como agente, antes da guerra, contribuíram para que o Centro considerasse esses
antecedentes como uma indicação de que sua lealdade estaria acima de qualquer
dúvida. E o fato de ser leal representou, por sua vez, uma qualificação a mais —
talvez a mais alta qualificação —, quando passou a ser considerado para exercer
as importantes funções de Diretor-Residente de uma rede que deveria ter por
objetivo a obtenção dos mais importantes segredos militares dos Estados Unidos.
O Coronel Abel não deveria ter a mais leve conexão com a Embaixada soviética
ou com os consulados nos Estados Unidos, nem com qualquer outra agência
clandestina que estivesse operando em território norte-americano. Em face disso,
deveria descobrir seu próprio caminho. Planejou tudo, pois, com grande
eficiência, sozinho, já que a única assistência que lhe deu o Centro foram alguns
documentos falsos, que o identificavam como sendo um deslocado de guerra, de
descendência germano-irlandesa.
Os agentes que iriam trabalhar sob suas ordens já tinham sido escolhidos pelo
Centro e se encontravam in situ. Agindo através de “isoladores” somente,
elaborou instruções para a transmissão de informações, especificando o número
de “caixas-postais”. Estabeleceu-se, enfim, para dirigir sua rede, desconhecido
de todos, com exceção do seu “isolador”.
Como disfarce, o Coronel Abel tomou o nome de Emil Goldfus, e a profissão era
a de artista. Embora não sendo um pintor de talento, podia pintar suas telas e
sabia o suficiente a respeito de arte para reunir, ao seu redor, um bando de
artistas boêmios e de amigos. Sendo artista, podia desaparecer quando lhe desse
na veneta, viver irregularmente e comprazer-se num comportamento
inconvencional, sem provocar comentários. Em seu estúdio de Erlington, em
Nova York, que era uma confusão de telas e de bugigangas, revelava-se um
generoso anfitrião.
Se Abel não era pintor, não deixava de ser artista em outro campo. Tocava
guitarra com tal habilidade que, em circunstâncias diferentes poderia viver de
sua música. Era, também, um matemático quase genial. Seu código para
irradiações para Moscou, ele o inventara, utilizando como base o cálculo
diferencial.
Ao chegar a Moscou, Hayhanen fora informado de que outra tarefa estava à sua
espera. Treinaram-no em códigos e em fotografia e lhe deram a identidade de
Eugene Nicolai Maki, sendo então enviado para a Finlândia, a fim de estabelecer
o background da sua nova personalidade. É interessante notar a escolha desse
nome falso, pois iremos surpreender a utilização da mesma técnica, mais tarde,
em outro caso. Os Maki eram uma família finlandesa que tinha vivido em
Enaville, Idaho — a mãe, americana; e o pai, finlandês — e voltara para a
Europa na década dos vinte, estabelecendo-se na Estônia, quando Eugene tinha
cerca de oito anos de idade. O que aconteceu com os Maki, quando a Estônia se
tornou uma república soviética, ninguém pode dizer, mas será seguramente justo
admitir que não se encontravam em situação de comprometer o novo Eugene.
Em 1954, Hayhanen Maki conheceu seu chefe, Abel Goldfus, e este último teve
um choque ao encontrá-lo. O Diretor-Residente, que era cônscio da necessidade
de uma obediência cega às normas de segurança, descobriu, com espanto, que
seu assistente não somente esquecera a maior parte do seu treinamento em
código, mas que, também, suas idéias em relação à segurança eram, na verdade,
rudimentares. Parecia mesmo que não as tinha de todo — o que constituía um
perigo, tanto para ele próprio quanto para toda a rede.
Nas circunstâncias em que se viu colocado, Abel entretanto, tentou fazer o que
lhe era possível. Instalou Hayhanen numa loja e deu-lhe instruções sobre como
devia operar. Nunca, porém, deixara de se mostrar apreensivo em relação à
segurança da rede.
Por volta de 1955, completavam-se seis anos que Abel vinha trabalhando
ininterruptamente e sob considerável pressão, e, nessas condições, o Centro lhe
deu instruções para que regressasse a Moscou, em férias por seis meses — o que
ele penhoradamente aceitou, embora com considerável temor.
Em todo esse incidente com Hayhanen, o coronel Abel havia observado as mais
estritas precauções de segurança, exceto numa única ocasião. Por algum motivo,
tivera de examinar certo material que Hayhanen lhe trouxera, e o fez na presença
do seu substituto, de forma que ele pudesse responder às perguntas que lhe
fizesse. Assim, Abel o levou a um armazém que alugara, distante do seu estúdio,
onde guardava seu material fotográfico.
Hayhanen recordou então esse encontro, mas, como não sabia o nome falso do
seu superior, pôde somente dizer ao FBI que esse armazém estava situado perto
das Ruas Clark e Fulton, em Brooklyn. Uma busca geral foi dada naquela região
e revelou que existia, de fato, o armazém e fora alugado por um indivíduo de
nome Emil Goldfus. Abel, ao assinar o contrato de aluguel, dera o endereço do
seu estúdio. Esse lapso foi o único em que incidiu o agente soviético, que sempre
agia com a maior segurança. Deveria ter alugado o armazém em outro nome e
dado um endereço falso. Quando os agentes do FBI compareceram ao estúdio,
descobriram que Emil Goldfus se achava fora da cidade, por alguns meses.
Como nada aconteceu no período de dois meses, e como sua presença em Nova
York era inestimável para o Centro, Abel teve ordem para retornar e reassumir
suas funções. Ao chegar, foi preso pelo FBI, sob a acusação de entrada ilegal nos
Estado Unidos.
Quando Powers já havia cumprido vinte meses de sua sentença de dez anos, o
que o defensor de Abel tinha previsto aconteceu. Os dois condenados foram
trocados.
2. Gordon Arnold Lonsdale
Tudo correu bem, pelo período de quatro anos. Lonsdale fizera muitos amigos e
ganhara suficiente dinheiro para custear sua luxuosa maneira de viver. Ao lado
disso, porém, tornara-se autoconfiante em suas habilidades de vendedor.
Persuadira seus colegas diretores a expandir a produção da empresa, mas, não se
materializando suas previsões sobre um aumento de vendas no Ultramar, a firma
logo se encontrou em sérias dificuldades. Em março de 1960, entrou em
liquidação, com um passivo de trinta mil libras.
Em 1951, Houghton fora enviado para Varsóvia como secretário de adido naval.
Tratava-se de um posto importante, pois lhe dava acesso a todo o material
secreto enviado e coletado pelo adido. Houghton, entretanto, começara logo a
passar por dificuldades domésticas. Gostava de promover festas, e a mulher, com
quem se casara em 1934, começara a fazer objeções às suas frequentes crises de
alcoolismo, decorrentes da generosa hospitalidade dos anfitriões poloneses. As
objeções da esposa evoluíram para constantes brigas, e muitas dessas discussões
se desenvolveram em público. As autoridades britânicas foram imediatamente
informadas do que estava ocorrendo e Houghton se viu chamado de volta para a
Inglaterra, onde o Almirantado cometeu uma dessas estranhas ações das quais,
de tempos a tempos, os governos são culpados.
Houghton provara não ser digno de uma posição de confiança, em face do seu
comportamento em Varsóvia, e deveriam, então, dar-lhe um posto “seguro”. Ao
invés disso, foi nomeado para o Instituto de Portland, com acesso a todas as
informações sobre os mais modernos desenvolvimentos do radar submarino —
informações pelas quais a espionagem russa pagaria qualquer preço.
Nessas condições, pelo período de nove meses, o MI5 acumulou provas contra
Houghton e, quando seus chefes julgaram o momento oportuno, entregaram o
caso à Divisão Especial da Scotland Yard, para ação posterior. Aconteceu,
entretanto, que, na tarde de sábado, de 7 de janeiro de 1961, o superintendente da
Divisão Especial, George Smith, e alguns outros policiais prenderam Lonsdale,
Houghton e a Srta. Gee, em frente ao teatro Old Vic.
Numa cesta de palhinha que a Srta. Gee trazia, foram encontrados, entretanto,
dois embrulhos contendo documentos dos arquivos do Almirantado. Nos bolsos
de Lonsdale achavam-se dois envelopes: um, contendo quarenta libras em
dinheiro — o que representava o “salário” de Houghton —, e no outro achavam-
se quinze notas de vinte dólares americanos.
Desde que não obtinha qualquer cooperação por parte de Lonsdale, Smith
decidiu recorrer às pessoas que o conheciam. Por mera coincidência, escolheu
para sua primeira visita um bangalô, situado em Cranley Drive, em Ruislip,
cujos donos eram um casal de meia-idade — Pater e Helen Kroger — que,
segundo acreditavam seus vizinhos, constituía-se de canadenses que haviam
vivido, durante algum tempo, na Suíça, antes de virem estabelecer-se na
Inglaterra, em dezembro de 1954. Kroger, especialista em livros antigos,
estabelecera um lucrativo serviço de reembolso postal, que operava do seu
próprio bangalô.
A Sra. Kroger recusou-se a fazê-lo, e somente após uma luta feroz ele conseguiu
apoderar-se da bolsa. Em seu interior, escondidos no rebordo interno, o
superintendente encontrou um envelope, sem quaisquer dizeres, dentro do qual
havia uma carta em russo, de seis páginas, um slide contendo três micro-pontos e
uma folha de papel datilografada em código. Smith prendeu então os Kroger, sob
suspeita de espionagem.
Lonsdale recusou-se a falar durante o tempo todo, nada dizendo, mesmo, sobre
sua verdadeira identidade. Até alguns anos mais tarde, tudo o que as autoridades
de segurança sabiam a seu respeito era que não se tratava de um canadense e que
seu verdadeiro nome não era Gordon Arnold Lonsdale. Inquéritos realizados
revelaram que existiu, de fato, um Gordon Arnold Lonsdale, nascido no dia 27
de agosto de 1924, em Kirkland Lake, em Ontário. Seu pai, canadense, fora
negociante de madeiras e biscateiro; e sua mãe, finlandesa, imigrara para o
Canadá com a família, antes do casamento com Lonsdale.
O falso Lonsdale, ao ser preso, tinha um passaporte canadense, e tratava-se de
um passaporte legítimo. Quando os ingleses solicitaram às autoridades do
Canadá que investigassem a emissão daquele passaporte em favor de Lonsdale,
em 1954, descobriu-se que fora obtido através da apresentação de um certificado
de nascimento, emitido pouco tempo antes, em Kirkland Lake. O pai do
verdadeiro Lonsdale declarou à polícia que se separara da esposa um ano após o
nascimento de seu filho Gordon Arnold. A Sra. Lonsdale permanecera no
Canadá até 1932, quando retornara à Finlândia com o filho, então de oito anos.
Desde a ocasião, ele nunca mais tivera notícias tanto da antiga esposa quanto do
filho.
Uma circunstância, de certo modo bizarra, fez com que as autoridades britânicas
concluíssem que seu prisioneiro não era o verdadeiro Lonsdale. Durante as
investigações, a Real Polícia Montada do Canadá descobrira o médico que
assistiu ao nascimento do filho da Sra. Lonsdale. Esse ginecologista, Dr. W. E.
Mitchell, que clinicava em Toronto em 1961, recordara-se bem desse parto, pois
tivera de viajar muitas milhas em estradas intransitáveis para chegar à isolada
casa dos Lonsdale. Essa circunstância levou-o a rever velhos registros, e neles
estava anotado que, poucos dias após o nascimento da criança, foi necessário
circuncidá-la.
O Lonsdale, mais tarde trocado pelo homem de negócios britânico, Wynne, não
é circuncidado.
O volume exato das informações que George Blake, funcionário público inglês e
antigo agente da Inteligência Militar, transmitiu à espionagem soviética
provavelmente nunca será conhecido. E se isso, um dia, vier a ser sabido, só o
será pelos historiadores do futuro, quando o próprio agente já houver sido
esquecido e, talvez, a União Soviética tenha desistido de fazer espionagem.
“Sua confissão, inteiramente escrita, revela que, por alguns anos, o acusado
trabalhou continuamente como agente secreto e espião para uma potência
estrangeira. Além disso, as informações que transmitiu, embora não fossem de
natureza cientifica, eram da maior importância para aquela potência e tornaram
inúteis muitos dos esforços realizados por este país. Na verdade, como o acusado
revelou em sua confissão, não havia qualquer documento oficial de relevância ao
qual não tivesse acesso, e todos foram transmitidos aos seus aliados russos.
Quando se pensa que o acusado é um súdito britânico — muito embora não o
seja por nascimento — e, enquanto exerceu suas atividades em favor da Rússia,
era funcionário do governo da Grã-Bretanha, que é a sua pátria, ocupando
posição de responsabilidade e de confiança, torna-se evidente que seu
comportamento deve ser classificado como traição. De fato, é um dos casos de
maior gravidade que podem ocorrer, exceto em tempo de guerra. Seria
claramente contrário ao interesse público se, ao condená-lo, eu revelasse o texto
integral de sua confissão. Entretanto, posso dizer, sem hesitação, que qualquer
pessoa que houvesse lido esse documento chegaria a idêntica conclusão. Ouvi
tudo o que, com tanto brilho, foi dito a favor do acusado e plenamente lamento
que muitas atenuantes não possam igualmente ser divulgadas; devo, porém,
declarar que estou perfeitamente convencido de não ter sido por dinheiro que o
acusado cometeu todos esses crimes. O que o levou a praticá-los foi sua genuína
crença no sistema comunista. Julgo que cada um tem o direito de possuir suas
próprias opiniões, mas a agravante, que pesa contra o acusado, é que ele nunca
pediu demissão do cargo, que procurou conservar a posição de confiança que
ocupava, com o objetivo de atraiçoar sua pátria. O acusado ainda não tem trinta e
nove anos de idade. Deve saber calcular a gravidade dos crimes pelos quais
responde. Indubitavelmente, em muitos outros países, uma conduta idêntica
acarretaria a pena de morte. De acordo com a nossa legislação, não tenho outra
opção, pois, senão condenar o réu à prisão, e, dada a sua ação de traidor, estendê-
la por muitos anos, de forma que possa ser uma sentença pesada. Por um simples
crime dessa natureza, a mais alta penalidade imposta pela lei é de quatorze anos
de prisão, e a Corte não pode, portanto, mesmo se assim o quisesse, condená-lo à
prisão perpetua.”
Seguiu-se, então, uma das mais estranhas sentenças jamais impostas por um
tribunal inglês, em tempo de paz; sentença que, na opinião de muitos, e inclusive
na do autor deste livro, foi absolutamente injusta. Ela revela o caráter de uma
condenação política — uma iniciativa para aplacar as críticas dos norte-
americanos, que ameaçavam interromper o intercâmbio de informações atômicas
com os ingleses, caso a contraespionagem britânica não tomasse medidas
rigorosas de segurança, embora a própria contraespionagem nos Estados Unidos
não se mostrasse nada eficiente.
E Lorde Park concluiu: “Existem, entretanto, cinco pontos dos quais o acusado
se confessou culpado, e cada um está relacionado com um diferente período de
sua vida, durante a qual vinha atraiçoando a pátria. A Corte o condenará, então, a
uma sentença de quatorze anos de prisão para cada um desses pontos. Em
relação aos pontos um, dois e três, a sentença será consecutiva, e, no que diz
respeito aos pontos quatro e cinco, será concorrente, perfazendo um total de
quarenta e dois anos de prisão.”
George Blake, que nasceu no dia 11 de novembro de 1922, em Roterdã, era filho
de Albert e Catherine Behar. Seu pai descendia de antiga e aristocrática família
judaica e sua mãe pertencia, igualmente, a boa linhagem holandesa Depois de
frequentar, por algum tempo, uma escola holandesa, após a morte do pai, em
1936, e obediente aos desejos paternos manifestados na agonia, foi enviado para
viver com parentes no Egito, onde frequentou a Escola Inglesa, no Cairo.
Depois de dois anos ali, voltou para a Holanda, matriculando-se numa escola
superior de Roterdã. Frequentava ainda essa escola quando, em maio de 1940, os
nazistas invadiram a Holanda. No primeiro dia da invasão, a Sra. Behar e suas
duas filhas fugiram para a Inglaterra. A família combinara tomar essa atitude
antes que a invasão fosse desencadeada e, nessa ocasião, George havia decidido
permanecer no país, a fim de concluir seu curso na escola. A permissão lhe fora
dada, já que um seu tio assumira o compromisso de por ele zelar. George
prosseguiu então em seus estudos e, quando completou o curso, tornara-se um
dos primeiros membros da Resistência Holandesa. Nessa atividade, adquirira a
reputação de ter coragem e de ser astucioso. A Gestapo, porém, logo se pôs em
seu encalço, e ele escapou para a Inglaterra, viajando via França e Espanha. Ao
chegar à Inglaterra, mudou seu nome para Blake, incorporando-se, como
voluntário, à Marinha Real. Sua ambição, entretanto, era fazer parte da
Inteligência, e os esforços que realizou nesse sentido obtiveram êxito. Foi
designado para o SOE, e ali recebeu o devido treinamento. Ao concluir o estágio
preparatório, deram-lhe, para seu desapontamento, um cargo de amanuense.
Logo depois da cessação das hostilidades na Europa, ele foi transferido para
Hamburgo. Era encarregado, ali, de uma pequena unidade de Inteligência, com
instruções para prender e interrogar todos os comandantes de submarinos que
pudesse encontrar. Levou a efeito essa tarefa com brutal eficiência. Quando esse
trabalho terminou, foi chamado de volta à Inglaterra e, por recomendação do
Foreign Office, obteve seu desligamento do RNVR e se matriculou na
Universidade de Cambridge, onde aprendeu russo, ostensivamente para exercer
um cargo no Serviço Exterior, mas, de fato, para ser agente secreto sob ordens
do MI 6.
Havendo concluído esse curso com êxito, foi designado para servir em Seul, na
Coréia, como vice-cônsul, sob as ordens do encarregado de Negócios, que era o
Capitão (mais tarde Sir) Vyvyan Holt.
Certa vez, tramou uma fuga, mas foi preso. Esteve diante de um pelotão de
fuzilamento, acusado de ser espião. Quando a ordem de “fogo” estava para ser
dada, gritou em russo: “Não sou espião. Sou um civil internado, um diplomata
britânico. Saí do campo de Man-po e perdi o caminho de volta.” Por um golpe
de sorte, o oficial norte-coreano, encarregado do fuzilamento, havia sido
treinado na Rússia e entendeu o que ele dissera. Imediatamente, dispersou o
pelotão e, levando Blake para um canto, manteve com ele longa conversa em
russo. Discutiram sobre o que julgavam certo ou errado no desenvolvimento da
guerra. Após essa entrevista, o norte-coreano o devolveu ao campo, com uma
advertência no sentido de que não tentasse fugir outra vez.
Assumiu suas novas funções em abril de 1955, e seu primeiro filho nasceu no
ano seguinte, na antiga capital do Reich. Em Berlim, os Blake se conservavam
afastados da vida social que esplendia em torno deles. E, quando acontecia que
George chegasse tarde a casa, embora explicasse à esposa que aqueles atrasos
eram impostos pelo desempenho das suas funções, ela nunca aceitava as
explicações, e esses fatos começaram a ter reflexos sobre a harmonia do casal.
Com efeito, suas ausências de casa não eram impostas por suas funções. Logo
que chegara a Berlim, vira-se envolvido com um agente duplo, o qual, embora
trabalhando ostensivamente para os russos, tinha seu nome igualmente na folha
de pagamento dos britânicos. O próprio Blake fizera diversas viagens ao Setor
Oriental de Berlim, para se avistar com esse agente. Se tivesse recebido um
adequado treinamento para desempenhar as funções de agente secreto, saberia,
com toda certeza, que aquele comportamento não deixava de ser perigoso. De
fato, essa conduta, na Alemanha, e principalmente em Berlim — avassalada,
naquela época, pela espionagem soviética —, resultou fatal.
Blake, porém, não deve ser inteiramente responsabilizado pelo que aconteceu.
De acordo com as instruções de seus superiores, estabelecera contato também
com outro suposto delator, chamado Horst Eitner. Logo uma amizade aproximou
os dois agentes, e isso ocorreu não muito antes que Blake, que fora submetido a
uma súbita conversão ao comunismo, enquanto se achava na Coréia, em 1951, e
planejara tornar-se agente soviético quando as circunstâncias o permitissem, se
tornasse, ele próprio, em realidade, um agente duplo.
Pouco depois de Blake chegar a Beirute, embora não o soubesse, seu velho
amigo Horst Eitner fora desmascarado, e os ingleses o haviam prendido. Durante
seu interrogatório, por volta de meados de fevereiro de 1961, revelara que Blake
era um agente que trabalhava para os russos. E o pior: apresentara provas de que
estava falando a verdade.
Se, com sua atitude, tornou infrutíferas todas as tentativas realizadas para se
chegar a um acordo na Conferência de Cúpula, mesmo assim não justificava a
estranha sentença que o condenou. Na atmosfera que prevalecia na época, talvez
essa sentença pudesse ser considerada; justa. Por outro lado, a influência daquela
atmosfera impedia igualmente que os russos pudessem fazer qualquer concessão
em relação ao problema de Berlim ou procurassem chegar a uma solução,
mesmo sem a intervenção de Blake.
Não deixou de constituir uma coincidência que tal coisa tivesse acontecido no
caso de George Blake, embora outro departamento governamental estivesse
envolvido. Qualquer pessoa que, como aconteceu a Blake na Coréia, tenha
sofrido uma lavagem cerebral, não deveria ser recrutada pelos serviços de
Inteligência e, muito menos, ser designada para operar em Berlim,
principalmente naquela época. Essa designação só se poderia dar depois de ficar
absolutamente provado que o recrutado não fora, de fato, afetado por tal
tratamento.
Vassall revelava uma deficiência que deveria ter impedido sua escolha para
servir em Moscou. Era homossexual. Embora ninguém carregue um rótulo com
indicações dos seus desvios sexuais, Vassall, entretanto, era o tipo do
homossexual que qualquer pessoa com experiência do mundo logo reconheceria.
Por causa dessa anomalia, tornou-se um homem solitário em Moscou. E, por ser
um solitário e um homossexual, automaticamente se revelava o tipo de homem
ao qual a espionagem soviética sempre dá grande importância. Assim, os
dirigentes russos logo exploraram a solidão em que ele vivia. Convidaram no
para festas; colocaram-no em comprometedoras situações sexuais, nas quais foi
fotografado; e, então, sob a ameaça de divulgar aquelas fotografias, fizeram com
que concordasse em trabalhar para eles.
Essa é a história de Vassall, e não existem razões para que não se deva julgá-la
verdadeira. Por outro lado, a ameaça de chantagem não desculpa seu acordo em
espionar para os russos. O Centro apoderara-se dele. Antes que desembarcasse
em Moscou e antes mesmo que a segurança britânica o soubesse, já os dirigentes
do Centro tinham informações das suas tendências homossexuais e de que se
tratava, também, de um homem fraco e pretensioso, que tentava compensar as
falhas de sua existência, movimentando-se num ambiente social que se pode
descrever como “acima dele”. Para fazer frente ás despesas nesse ambiente
superior, Vassall necessitava de um salário maior do que as 15 libras semanais
que percebia na embaixada. O Centro prometeu-lhe, então, uma boa recompensa
financeira, caso lhe fornecesse informações valiosas.
Depois de haver cuidado do conforto pessoal do Lord Civil por dois anos e seis
meses, em outubro de 1959 Vassall foi transferido de novo e, desta vez, para um
departamento que iria torná-lo ainda mais útil para o Centro. Designaram-no
para a seção que tratava dos assuntos da Esquadra na Segunda Divisão Militar
— o Secretariado do Pessoal Naval — e ali mais uma vez passara a ter acesso à
maioria dos segredos do Almirantado. Transitavam por suas mãos informações
referentes a radar, a torpedos, a armas antissubmarinos e a experiências de
artilharia, assim como boletins sobre táticas e manobras dos aliados e,
igualmente, instruções táticas e operacionais da Armada.
Não foi possível a Vassall negar o que vinha fazendo. Em seu apartamento — ao
ser revistado — encontraram-se cópias de dezessete documentos do Almirantado
e, naturalmente, seu equipamento de fotocópia. Por outro lado, segundo se diz,
ele próprio confessou tudo o que sabia.
Após haver sido julgado pelo tribunal de Old Bailey, Vassall acabou condenado a
dezoito anos de prisão — sentença esta que focalizou, mais uma vez, a injustiça
dos quarenta e dois anos de prisão impostos a George Blake.
O escândalo do caso Vassall foi salutar por dois motivos. Fez com que o público
tivesse consciência de que os políticos não são os modelos de virtudes que
habitualmente procuraram aparentar, de forma que o povo possa admirá-lo; e,
em segundo lugar — e de forma mais construtiva —, esse caso provocou um
endurecimento na observância das normas de segurança, por parte das
autoridades britânicas. Espera-se, agora, que a lição aprendida seja lembrada por
muito tempo, embora se deva levar em conta que a memória oficial geralmente
se revela de tão breve duração quanto pouco merecedora de confiança.
Nona Parte
ALGUMAS BREVES
OBSERVAÇÕES
Algumas Breves Observações
A primeira coisa que desejo declarar é que não existiriam espiões, se a tarefa de
capturá-los fosse relativamente fácil. Devemos descobrir um bom processo de
nos livrarmos da presença desses indesejáveis. E isso deve ser feito antes que
qualquer potência se antecipe a nós, na consecução desse objetivo. É muito fácil
dizer-se, depois que os espiões foram apanhados e que todas as provas contra
eles tenham sido recolhidas: "Se houvesse sido incumbido de prendê-los, teria
agido com muito maior presteza.”
Digo-lhes que todos os casos provam o contrário, isto é, que, na realidade, é
muito difícil apanhar um espião e, provavelmente, é muito maior o número dos
que fogem que o dos que são apanhados. E isto acontece em quase todas as
nações do mundo.
O ministro foi muito criticado pelo tom displicente e quase chistoso desse
discurso. No entanto, revelou, de fato, o mais alto sentimento de ponderação,
durante todo o debate, e o trecho citado é de evidente bom senso. Apanhar
espiões é, na realidade, muito difícil, e nem todos os espiões são descobertos.
Esta, a realidade que não se pode negar.
Por outro lado, não se deve relaxar nos esforços para capturá-los. A esse
respeito, a seguinte norma deve ser obedecida: se tanta gente quanto possível
conhecer como o inimigo age, haverá menor probabilidade de abrandamento das
normas de vigilância, como tem sucedido até aqui, já que a tarefa de apanhá-los
vem sendo confiada exclusivamente a profissionais. O grande perigo da
espionagem soviética repousa não nas atividade dos agentes profissionais, mas
nos simpatizantes camuflados que se encontram em situação de poder passar-lhe
segredos vitais. Os homens e as mulheres que se acham em posições-chaves
deviam estar permanentemente sob investigação.
A realidade a que não podemos escapar é esta: mesmo fazendo tudo o que
pudermos, o Centro sempre tirara de nós um grande número de segredos. O que
deve ser feito, portanto, é trabalhar, de forma que o número dos segredos
roubados se mantenha tão baixo quanto possível.
Livro que vai às raízes de uma atividade que não se inicia com a revolução
leninista, mas em recuados tempos da vida política russa, 40 Anos de
Espionagem Soviética constitui um precioso repositório de informações de
inteligência, colhidas nas mais variadas e respeitáveis fontes. Ronald Seth
escreve, praticamente, um manual de contra-espionagem. Define o campo de
ação e os processos utilizados pelas forças interessadas em infiltração, com
intuitos desagregacionistas, nas democracias ocidentais. Relaciona táticas e
estratégias, das mais usuais como das menos conhecidas, calcando a teoria em
fatos comprovados. Todos os mais famosos casos da espionagem moderna são
aqui examinados, bem como a modificação de métodos que a modernização de
técnicas tem imposto àquelas táticas e estratégias. Com diversos cursos
especializados, Seth, graduado na Universidade de Cambridge, serviu por longo
tempo, durante a Segunda Guerra Mundial, no Special Operations Executive, o
que lhe confere ampla visão dos problemas aqui tão bem versados.