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RONALD

SETH

40 ANOS DE
ESPIONAGEM SOVIÉTICA

Tradução de CAIO DE FREITAS

EDIÇÕES BLOCH
Copyright © 1965 Ronald Seth Primeira edição brasileira: 1968

Traduzida de Forty Years of Soviet Spying, publicada por Canel & Co. Londres
Capa de Enio Damazio

Contratados todos os direitos de edição por BLOCH EDITORES S. A.

Rua Frei Caneca, 511 — Rio de Janeiro, GB — Brasil Printed in Brazil


PREFÁCIO

O motivo que me levou a escrever este livro é simples. Desde o fim da Segunda
Guerra Mundial, a atenção pública tem sido despertada por uma série de
incidentes dramáticos. Exemplo: as defecções de Gouzenko, no Canadá; de
Pavlov, na Austrália; e, em particular, os casos de Nunn May, Fuchs, Pontecorvo,
Lonsdale, Blake e Vassal. Todos esses incidentes vieram evidenciar a imensa
ramificação da espionagem soviética. As autoridades responsáveis não perderam
a oportunidade de demonstrar, através de intensiva divulgação dos fatos, o que
os espiões russos e os traidores pró-comunismo representam para nós na era
nuclear. E somente os espíritos extremamente displicentes não se deixaram
impressionar pelas informações, tornadas públicas.

Examinando a questão com isenção de ânimo, pareceu-me, entretanto, que o


quadro exibido se mostrava, de alguma forma, destorcido. Fui levado a essa
conclusão ao verificar, em conversa com amigos, que apenas alguns deles — que
não eram peritos em espionagem — julgavam que, embora tivesse sido maciço o
esforço da espionagem soviética no pós-guerra, contudo, ele mal ultrapassou o
que fora realizado no período anterior ao conflito.

Penso, também, que o sensacionalismo, que tem acompanhado as revelações


sobre a espionagem soviética, venha constituindo, igualmente, um erro de
julgamento. Todas as vezes que é dado um alarma sobre as atividades de um
espião nuclear, uma atmosfera de quase pânico logo o envolve, à guisa de
transparente cortina de fumaça, criada não pelo público em geral — embora
inevitavelmente ele seja afetado —, mas por diferentes tipos de políticos. O
medo deturpa o julgamento. Em face de tal ameaça, é essencial que se tenha
serenidade, para que o movimento de reação possa ser eficiente. Pessoalmente,
acredito que, se o público tivesse um exato conhecimento da espionagem russa,
o pânico — ou mesmo qualquer tendência para a formação de um ambiente de
pânico — poderia ser facilmente neutralizado.

Não são somente os políticos e a imprensa que têm sido culpados dessa situação.
Muitos livros sobre a espionagem soviética surgiram, nestes últimos vinte anos,
e não há um só deles que se revele isento, até certo ponto, de sensacionalismo.
Em muitos casos, mostram-se deturpados até no que diz respeito aos fatos. Nos
Estados Unidos, uma importante obra foi publicada: A Espionagem Soviética —
escrita por David J. Dallin. Talvez por que se trate de um trabalho de erudição,
destinado mais a especialistas e a estudiosos do que ao público em geral, não
teve a virtude de ser largamente difundido. O Mundo Ocidental, portanto, não
dispõe, cm circulação, de qualquer relato das atividades da espionagem
soviética, do qual se possa valer. Foi para preencher essa lacuna, pois, que
escrevi, este livro.

Não posso alegar que tenha tratado, exaustivamente, da espionagem soviética.


Para se realizar essa tarefa, muitos volumes seriam necessários. Espero, não
obstante, que tenha alcançado meu duplo objetivo. Procurei apresentar meu
material, de maneira desapaixonada; e esforcei-me por dar uma impressão, tão
minuciosa quanto possível, da espionagem soviética nos quarenta anos de sua
atividade.


Primeira Parte
DESENVOLVIMENTO E
ORGANIZAÇÃO

1. A Tradição do Serviço Secreto na Rússia

Segundo a lenda, nos meados do século IX depois de Cristo, os russos,


concentrados na comunidade comercial de Novgorod, enviaram a seguinte
mensagem a Rurik, chefe dos Varangianos: “Nosso país é grande e bonito, mas
nele não existe ordem. Venha e nos governe!” Lenda ou não, o fato é que um
Rurik fundou uma dinastia e esta, no decorrer de um período de quinhentos anos,
fundiu os numerosos pequenos principados, ali existentes, numa única nação,
sob a égide de Moscou.

Esse período histórico foi encerrado por uma invasão tártara, desencadeada por
Batu Khan. Os invasores se infiltraram no império consolidado e o governaram
por dois séculos e meio, quando, por sua vez, foram expulsos, em 1492, por Ivã,
o Grande. O neto desse herói foi Ivã, o Terrível — contemporâneo da Rainha
Elizabeth I, da Inglaterra — e do seu reinado nasceram os princípios do governo
autocrático, ao lado dos quais a teoria do direito divino dos reis, dos Stuarts,
parece um simples arremedo.

Ivã conquistou esse cognome, o Terrível, por sua dureza e crueldade, embora
tenha sido, na realidade, um administrador de larga visão. Em face da
perseguição que desencadeou contra as classes privilegiadas, sempre viveu
ameaçado de morte. Como medida de proteção pessoal, organizou, então, uma
Guarda Pretoriana, denominada Oprichniks.

Os Oprichniks ocupam um lugar de relevo nesta narrativa. Foram os precursores


da Okhrana, da Cheka, da OGPU, da NKVD e da MGB, enfim da polícia secreta
russa, e cuja única função, através dos séculos, tem sido a de proteger
fisicamente os governantes do país, quer o regime tenha sido autocrático-
despótico, quer despótico-socialista. Que os ditadores da Rússia tivessem
necessidade da proteção dos Oprichniks é perfeitamente compreensível, quando
se leva em conta que só dificilmente se descobre um deles que não houvesse
governado sem qualquer excesso. Em sua maioria, sempre se comportaram em
oposição ao bem-estar e à felicidade de seus súditos.
Essa característica da realeza russa torna-se particularmente relevante, no que diz
respeito aos Romanovs — a dinastia fundada pelo boiardo Miguel Romanov, em
1612, e que, ininterruptamente, reteve as rédeas do poder até o advento dos
bolchevistas. Durante os cento e cinquenta anos que precederam o fuzilamento
do último czar, em 1918, três dos seus antecessores haviam sido assassinados e,
mesmo os que morreram de morte natural, nunca estiveram livres da
possibilidade de um fim violento.

Em face do que até aqui dissemos, duas conclusões podem ser tiradas. Em
primeiro lugar, o medo de ser assassinado e a forte possibilidade de que isso
pudesse ocorrer tornaram essencial, para os czares, que fossem protegidos por
uma Polícia Secreta, capaz de descobrir as conspirações antes que viessem a
furo. E a segunda conclusão — um corolário da primeira — é que os longos
séculos de subjugação, em que viveu a Rússia, condicionaram de tal maneira a
massa de sua população à aceitação da tirania da Polícia Secreta que essa carga,
que lhe tem pesado nos ombros desde o advento de seus novos líderes até o fim
da era stalinista, acabou por lhe parecer tolerável. De fato, os habitantes do
império moscovita nunca viveram livres dessa opressão. O que lhes aconteceu
foi, tão-somente, a troca de um despotismo por outro, sem qualquer diferença
entre ambos.

Provavelmente nenhum outro país — excluída talvez a Prússia, durante o


predomínio do grande Guilherme Stieber, como chefe da Inteligência de
Bismarck — já sofreu maiores pressões do Serviço Secreto do que a Rússia. Em
relação, então, aos últimos cento e cinquenta anos, essa assertiva não comporta
dúvidas. Os czares, desde Ivã, o Terrível, sempre procuraram preservar suas
vidas, lançando mão da espionagem protetora dos seus guardas secretos. Não foi,
portanto, Nicolau I quem lançou as bases do sistema que, ainda hoje, influencia a
máquina de espionagem da União Soviética.

Nicolau I não possuía qualquer das tendências liberais que seu irmão, Alexandre,
foi tentado a dar expressão. A revolta dos Dekabristi — como posteriormente
ficou conhecida, ocorrendo logo no início do seu reinado, teria eliminado
certamente qualquer tendência de semelhante conteúdo, se, por acaso, uma idéia
liberal jamais houvesse germinado em seu espírito. Sufocou a revolta rápida e
brutalmente. Enforcou os seus chefes. E enviou mais de uma centena de pessoas
— todos, oficiais e membros de boas famílias — para o exílio na Sibéria.

Esta foi a primeira vez que o exílio na Sibéria — que se iria tornar uma das mais
importantes armas de todas as subsequentes organizações de segurança da
Rússia — foi empregado como punição. E parece ter sido ele o precursor de
outras inovações, nas tentativas czaristas de governar pela eliminação.

Determinado a estar preparado, no futuro, para fazer frente a qualquer


sublevação, que lhe pudesse ameaçar o trono, Nicolau instituiu, então, um Corpo
Especial de Segurança, no comando do qual colocou o Conde Constantino
Benckendorff. Esse aristocrata não deve ser confundido com seu filho, o Conde
Alexandre Benckendorff, que foi embaixador russo em Londres, de 1908 até sua
morte, em 1917. Benckendorff realizou os desejos do seu senhor, de maneira tão
eficiente, que não tardou a criar uma atmosfera de terror, não somente no espírito
do homem das ruas, mas, igualmente, no seio das autoridades administrativas.
Mesmo assim, Nicolau não se mostrou satisfeito. Pouco depois, criou uma outra
organização, conhecida como a Terceira Seção, cujo chefe dispunha do poder de
enviar para o exílio, no prazo de algumas horas qualquer cidadão russo,
independentemente de sua posição, e sem ter de explicar as razões para tão
drástica medida. E o pior: não havia recurso contra as decisões da Terceira
Seção.

O sucessor de Nicolau foi, talvez, o mais humano de todos os ocupantes do trono


russo. Começou a reinar, como já vimos, com as melhores intenções e, mesmo,
tentou pô-las em prática, adaptando-as, tanto quanto possível, à sua interpretação
das funções da monarquia. Dissolveu o Corpo Especial de Segurança e a
Terceira Seção e libertou todos os prisioneiros que ainda estavam vivos nas
masmorras da última organização. O liberalismo de Alexandre II, porém, não
chegou a minorar o sofrimento da grande massa de seus súditos. Ao ser vítima
de uma tentativa de assassinato, reagiu, instituindo um governo tão impiedoso
como havia sido o do seu antecessor. Quando, em consequência de seus
violentos métodos de repressão, explodiu um movimento revolucionário, mais
amplo e mais ativo que qualquer outro anteriormente planejado, decidiu lançar
mão da mesma espécie de proteção, com que os últimos czares se haviam
cercado. Mas isso de nada serviu. No dia 13 de março de 1881, uma bomba
explodiu sob a carruagem imperial e, embora o czar ficasse ileso, alguns
membros da sua comitiva foram mortos ou saíram feridos. Quando desceu da
carruagem, para verificar a extensão do atentado, outro petardo foi atirado contra
ele. Como resultado da segunda explosão, seu filho Nicolau II ascendeu ao trono
russo.

Nicolau II, talvez levando em conta o completo fracasso do liberalismo paterno,


revelou-se um reacionário, da maior violência. Uma das suas primeiras
providências foi converter a administração numa autocrática forma de governo,
nunca ultrapassada por outro czar. Para combater os revolucionários, que
intensificavam suas atividades à medida que se enriquecia o regime, organizou, à
custa de fabulosas despesas e com tremendo esforço, uma força policial secreta,
denominada Departamento Oficial de Proteção. Do nome desse Departamento,
em russo — Ikhrannoye Otdyelyenye —, surgiu a sigla com que passou à
História: Okhrana.

Por essa ocasião, os revolucionários não apenas haviam-se organizado no


interior da Rússia, mas, também, no exterior, e cabia à Okhrana a
responsabilidade de manter sob vigilância esses conspiradores. Para realizar esse
objetivo, ela introduziu um drástico regulamento relativo à concessão de
passaportes e enviou agentes a todos os conhecidos refúgios de revolucionários,
exilados por vontade própria. Essa última providência, constituindo uma
característica raramente observada nas atividades das Polícias Secretas,
permaneceu como uma indelével marca da espionagem soviética. É que, mesmo
hoje, as responsabilidades pelo serviço de vigilância no exterior estão afetas, em
todos os países, às Secretarias de Estado mais usualmente relacionadas com a
segurança interna — os Ministérios ou os Conselhos de Segurança Nacional.

No plano doméstico, a Okhrana desenvolveu sua atividade, lançando mão de um


sistema de vigilância em massa. Essa orientação, por sua própria natureza, exigia
não só a mobilização de um gigantesco número de agentes das mais variadas
espécies, mas, também, a existência de uma organização bem maior do que
qualquer outra, anteriormente ou desde então criada. Mas, tanto no que dizia
respeito ao modo de realizar o seu trabalho, quanto à natureza de seus objetivos,
a Okhrana sempre se revelou uma instituição ridícula. Permanentemente,
removia montanhas para, no final, dar à luz grotescos ratos. Seus dirigentes eram
membros da aristocracia e da burocracia e, para eles, o objetivo principal não
estava na defesa do regime. Preocupavam-se apenas com sua permanência nos
cargos, ou com a obtenção das promoções, que aspiravam. Esse comportamento,
como seria de esperar, deu origem a rivalidades, em detrimento dos resultados
positivos que, por sua importância, a organização naturalmente deveria obter.
Além disso, a não-cooperação dos adversários constituía uma causa de
permanente inquietação para o egoísmo desses policiais. Embora os
revolucionários viessem crescendo em número à medida que se enrijecia o
regime de Nicolau, só ocasionalmente assumiam atitudes que poderiam ser
consideradas perigosas e ameaçadoras. Desde que — na opinião deles — um
homem podia demonstrar seu valor tanto por conservar-se no cargo, como pelas
promoções que recebesse, os longos períodos de quietude revolucionária não
poderiam ser, de forma alguma, do agrado dos dirigentes da Okhrana. Assim,
numa tentativa de criar um ambiente de ação, passaram eles a lançar mão, com
frequência, de um tipo de agente que as organizações de segurança que se
respeitam, só em último recurso empregam — o agente provocador. Esse
repugnante tipo de policial tem por tarefa aparentar amizade, com o objetivo de
realizar a traição, ou provocar inconfidências que possam ser interpretadas como
subversivas, muito embora ele próprio soubesse que suas vítimas não passavam
de honrados e pacatos cidadãos. Esses agentes eram postos em atividade pela
Okhrana, tanto no plano interno, como no exterior.

A extensão do caminho que a Okhrana percorreu, para poder apresentar alguns


resultados, foi, de modo geral, digna de riso. Quando os bolchevistas — suas
antigas vítimas — assumiram o poder da Rússia, divulgaram os arquivos
secretos da organização, e o que veio a público, então, dava a impressão a quem
se deu ao trabalho de examiná-lo — de não passar de um amontoado de
fantasias, criadas por um idiota de aldeia. Mas, fantasia ou não, a Okhrana, pela
iniquidade mesma do seu trabalho, sempre inspirara terror e apreensão no seio
dos inocentes.

A história que Vassal contou, relativa ao início do seu envolvimento pela


espionagem soviética — que é perfeitamente crível para quem conheça alguma
coisa sobre a maneira como essa organização opera —, indica que, a esse
respeito, a influência da Okhrana ainda empresta certo colorido às forças russas
de segurança. Não se limita a isso a semelhança que existe entre a organização
do passado e a que, ali, funciona nos tempos modernos. A atual espionagem
soviética, como fazia a Okhrana, também se apoia, para seu êxito, num número
fabuloso de agentes.

A Okhrana expandiu-se através da Rússia e pesou sobre a sua cena doméstica


pelo período de trinta e cinco anos. Não estava preparada, porém, para os
objetivos, para os quais havia sido criada. E um deles era justamente prevenir ou
evitar atentados. Dessa forma, ela extinguiu no desastre que coroou todos os seus
fracassos — o fuzilamento do czar Nicolau, em 1918, na adega de Ekaterinburg.

Apesar de toda a sua deficiência, a Okhrana, entretanto, preservou uma tradição


de séculos — tradição que, embora nunca houvesse sido seguida por qualquer
outro país da Europa, não iria extinguir-se nem mesmo com a sua dissolução.

2. Início da Espionagem Soviética no Exterior

Os homens que assumiram a responsabilidade de ordenar e conduzir os negócios


da Rússia em 1917 já dispunham de uma longa experiência das coações
peculiares à Polícia Secreta. É que haviam sido eles, antes da Revolução, suas
principais vítimas. Nessas condições, estavam a par das deficiências da Okhrana,
mas sabiam, por outro lado, que deveriam proteger-se. Com efeito, revelar-se-
iam inapelavelmente ineptos se não reconhecessem que, embora já livres do
punho de ferro do czarismo, tinham pela frente grande número de compatriotas
seus que não concordava com a ideologia que pregavam, nem aceitava o regime
que impuseram ao país.

Durante o período de suas atividades clandestinas, os revolucionários haviam


adquirido certa experiência prática de espionagem, visto que, para
contrabalançar as investidas da Okhrana, tiveram de se empenhar em vastas
operações secretas. Como não lhes fora possível obter qualquer instrução
profissional, viram-se obrigados a aprender muitas coisa de segunda mão ou a
recorrer ao próprio bom senso. Como o bom senso constitui a base desse gênero
especial de segurança, representando mesmo o elemento mais importante para
uma espionagem bem sucedida, temos de concluir que aos revolucionários não
escasseariam meios para fundar uma organização que possuísse todos os méritos
de um bom serviço secreto, sem acusar qualquer dos defeitos da tradicional
espionagem russa. Já que não realizaram qualquer dessas coisas, necessário se
faz que procedamos, aqui, a um breve exame do trabalho que levaram a efeito, e
nos estendamos numa apreciação, de certo modo detalhada, sobre o que parece
ser o procedimento característico, ou a concepção, dos russos no que diz respeito
à espionagem.

Muito embora as atividades da Okhrana houvessem sido na maioria das vezes


ridículas, o partido revolucionário, dentro da Rússia, frequentemente era, por
elas, perturbado em suas tentativas de se fundir numa agremiação de força e de
ação eficiente. A maior dificuldade que se apresentava a esses conspiradores era
descobrir qual poderia ser o agente de segurança que, por acaso, se houvesse
infiltrado em seus conselhos, com o objetivo de denunciar, a seus superiores,
tudo o que pudesse saber sobre a identidade dos revolucionários e dos planos
que tinham em mente executar. O desprezível duplo-agente Eugene Azeff — que
começou sua carreira como um agente provocador da Okhrana, quando ainda
estudante — obteve sucessivas promoções enquanto foi considerado, por seu
chefe, como um dos seus mais eficientes operadores. Por mais de vinte anos, ele
liderou a organização terrorista Narodnaya Volya, para a qual planejava
assassinatos e fabricava bombas com as próprias mãos e, ao mesmo tempo, traía
os companheiros revolucionários, denunciando-os aos seus patrões da Okhrana.

Existiram outros agentes na Rússia como Azeff — embora não tão afortunados
— e, através desse trabalho em conjunto, a Okhrana conseguiu descobrir a
identidade de quase todos principais chefes da Revolução, como, por exemplo,
Lenin, Trotsky e o casal Zhitlovsky. Quando esses líderes foram libertados, ou
fugiram da prisão ou do exílio na Sibéria, viram-se obrigados a buscar refúgio no
exterior, a fim de não terem suas atividades interrompidas.

A esses homens e mulheres preeminentes juntaram-se hostes de membros menos


importantes do Partido, os quais se consideravam planejadores ou formuladores
de teorias — mais instigadores de ação do que propriamente homens de ação —,
que deveriam traçar diretrizes, guiar os destinos da agremiação, dirigir a
Revolução e retornar à pátria para se encarregarem dos negócios do país sob o
novo regime. A sabedoria de terem buscado refúgio no exterior, de onde podiam
orientar suas atividades revolucionárias, é evidente em excesso para exigir
explicação. Os grupos de emigrados se concentraram, em sua maioria, nas
capitais e nas grandes cidades européias, entre as quais Viena, Munique, Paris,
Zurique e Londres, e nelas instalaram seus escritórios.

Como inevitavelmente acontece quando um novo movimento, dirigido por


homens de espírito simples, mas de decisão, passa do estágio incipiente da
conspiração para uma face convida de realizações, surgiram logo, no seio dos
exilados, numerosas divergências de opinião. Divergências quer de fórmula, quer
de ação. Ocioso será considerá-las neste momento, exceto que essas
discrepâncias de ponto-de-vista impuseram a necessidade de um maior contato
entre os diversos grupos e de um mais estreito intercâmbio entre grupo e o
Partido, no interior da Rússia, que deveria ser o exército da Revolução.

Essa situação exigia, pois, uma constante movimentação de emissários e, dessa


maneira, as duas seções do Partido adquiriram sua primeira experiência na
realização de uma verdadeira espionagem. Por consenso geral, as atividades do
Partido, no interior da Rússia, seguiam uma linha clandestina. E essa atitude de
cautela — precária, como era — não poderia ser classificada, realmente, como
sendo espionagem. Era tão importante, porém, que as mensagens dos líderes
emigrados alcançassem seus seguidores na Rússia — para que suas reações
fossem conhecidas no exterior — que todas as precauções eram tomadas, no
sentido de que os portadores enviados obtivessem pleno êxito em suas missões.
De todas as atividades desse gênero, as desempenhadas pelo jornal Iskra,
dirigido por Lênin, foram as que se revelaram de maior envergadura e acusaram
mais proveitosos resultados.

Após ter sido libertado de seu exílio de dez anos na Sibéria, Lênin fugiu da
Rússia para a Alemanha. Nesse último país, fundou o Iskra — A Faísca, da qual
a labareda nasceria — e, através de suas colunas, divulgava tudo quanto se
relacionava com os interesses do Partido, particularmente a sua doutrina. Dez
mil exemplares do periódico — juntamente com panfletos de propaganda,
instruções, armas e explosivos — com intervalos irregulares, eram
contrabandeados para o interior da Rússia. E esse material subversivo, após
haver cruzado, em segurança, a fronteira, era então distribuído, através de uma
rede de agentes especializados, por toda a extensão do território russo.

A experiência de cada seção do Partido não era utilizada apenas em atividades de


espionagem. A Okhrana fazia frequentes e bem sucedidos esforços para se
infiltrar nos vários grupos revolucionários existentes tanto no país como no
exterior e, a esse respeito, dois relevantes êxitos da organização devem ser
ressaltados. O primeiro deles foi representado pelo comparecimento de agentes
da Okhrana, disfarçados em delegados, ao Congresso do Partido Social
Democrático Russo, realizado em Zurique, em 1897. E o segundo concretizou-se
através da eleição, em 1910, de Kukushkin — um agente da polícia — para as
funções de presidente do Comitê Revolucionário de Moscou. Os revolucionários
estavam cientes dos esforços, realizados pela Okhrana, no sentido de introduzir
seus agentes secretos nas fileiras do Partido e se mantinham em permanente
vigilância. Desse modo, acabaram por adquirir valiosa experiência no campo da
contraespionagem.

Os revolucionários, contra-atacando, adotaram uma tática idêntica a empregada


pela Okhrana. Assim é que, muitos anos antes da época calculada para o
irrompimento da Revolução, já dispunham de numerosos agentes ocultos em
todos os departamentos do governo czarista, mas excluindo a própria Polícia, o
Ministério da Guerra e grande número de unidades do Exército. Dessa forma,
quando assumiram o poder, puderam contar, desde logo, com uma vasta
corporação de homens especializados nas atividades de espionagem — embora
essa experiência fosse de certa forma restrita —, para formar o embrião do
primeiro Serviço Secreto Soviético.

Quanto ao conceito que faziam dos requisitos de precauções que a situação em


que se encontravam requeria, os revolucionários, quando assumiram o comando
do controle nacional, encararam a Rússia como uma vastidão sem limites, de
incalculável população, no seio da qual se ocultavam numerosos inimigos seus,
cuja quantidade, nem de longe, poderiam avaliar. Faltando lhes uma verdadeira
experiência profissional nesse campo — como, aliás, em quase todos os demais
aspectos de governo — acreditavam que, para protegê-los, e também ao novo
regime, um vasto corpo de agentes se tornava necessário. Em face disso, quando
julgaram oportuno, instituíram uma organização que, em relação a esse objetivo,
não só ultrapassou a própria Okhrana, mas se revelou, mesmo, bem mais
complexa do que esta outra organização, notável pelas mesmas características: o
Serviço Secreto Prussiano, criado por Guilherme Sileber.

Dentre os membros fundadores do bolchevismo — os "velhos bolchevistas” —


havia um homem que se destacou dos demais por sua experiência em todos os
gêneros de atividades clandestinas. Era Félix Dzerjinsky — antigo aristocrata
polonês e filho de um grande proprietário rural. Inicialmente, juntou-se ao
movimento como estudante, tornando-se membro do Partido Revolucionário
Socialista, que abandonou pouco depois, para aderir ao Partido Social
Democrático do Trabalho, ideologicamente mais aceitável. Quando, em 1903, se
deu a cisão entre os bolchevistas e os menchevistas, uniu-se aos primeiros, que
constituíam a facção de Lênin. Foi a Dzerjinsky que Lênin deu ordens, em 1917,
para que organizasse o Serviço Secreto Soviético.

Coube a Dzerjinsky, em primeiro lugar, controlar todas as linhas de


comunicação. Desempenhou com tal sucesso essa tarefa que numerosos
membros da administração Kerensky só souberam que tanto eles como seus
partidários, os menchevistas, não mais estavam no poder, somente algumas horas
após Lenine e os bolchevistas haverem assumido o controle do governo.

Desse momento em diante, Dzerjinsky dedicou-se, de corpo e alma, a seus


deveres, trabalhando com rapidez. No dia 20 de dezembro de 1917, dois meses
depois de ter as rédeas na mão e seis semanas após seu partido haver assumido o
poder, elevou o status da Subcomissão de Segurança, transformando-a na
poderosa Comissão Extraordinária de Combate à Contrarrevolução e à
Sabotagem. Das iniciais das duas primeiras palavras de seu título em russo —
Chrezvychaynaya Komisiya (Ch-k) — foi tirado o diminutivo Cheka.

As funções desempenhadas pela Cheka eram de dupla finalidade. Devia


organizar, em primeiro lugar, uma força política, que controlasse as atividades
dos contrarrevolucionários — isto é, de todos os indivíduos hostis ao novo
regime —, estabelecendo, simultaneamente, um Serviço de Inteligência para
fazer frente às atividades dos espiões do Exército Branco e dos agentes secretos
estrangeiros, como Sir Paul Duke e Sir Robert Lockhart e seus colegas,
originários dos dois principais países “intervencionistas”: os Estados Unidos e a
França. Competiria à Cheka, em segundo lugar, instituir um Serviço Secreto
exterior. Tão grande foi, porém, a oposição que o novo regime sofreu, no interior
da Rússia, que o principal esforço dessa Comissão, nos seus seis primeiros anos
de atividade, teve de se concentrar na manutenção da segurança interna,
resultando daí que a organização de um Serviço Secreto, no exterior, fosse
grandemente retardada.

Embora Lenine não tivesse em mente uma data certa para o desencadeamento de
uma revolução que colocasse o comunismo na chefia do poder em todos os
países, esse retardamento determinou enorme alteração em seus planos. Se a
Cheka não se podia transformar, de imediato, num instrumento da revolução
mundial, enquanto isso acontecesse, outra organização deveria ser criada, a qual,
congregando todos os comunistas estrangeiros, preparasse o terreno para um
trabalho mais intenso da própria Cheka, quando a hora H soasse. E foi assim
que, em 1919, nasceu a Internacional Comunista, ou o Comintern. Como
instrumento de congregação, esse novo órgão representou um fracasso. Como
veículo de lançamento das bases da espionagem externa, porém, obteve certo
êxito, embora, mesmo nesse terreno, sua capacidade de ação não se houvesse
revelado particularmente eficiente.

A luta contra as forças da Rússia Branca cessou em princípios de 1922, e, no dia


11 de fevereiro desse mesmo ano, a Cheka foi rebatizada com o nome de
Administração Política do Estado (Gosudarstvennoye Politicheskoye
Upravlenye) — a GPU — uma organização que, enquanto existiu, deveria ser
mais temida do que jamais o foram a Okhrana e a Cheka. Tendo suas tarefas, no
campo interno, sido suavizadas em consequência do término da guerra civil, ela
imediatamente se voltou para o terreno internacional, onde suas atividades desde
logo foram grandemente intensificadas.
Nos dois anos seguintes, a GPU experimentou a possibilidade de uma estreita
cooperação com o Comintern, mas, em 1924, quando tiveram início as relações
diplomáticas entre a União Soviética e a Grã-Bretanha, ela procurou instalar sua
rede própria de espionagem e aprimorou sua organização interna. Desse modo,
podemos dizer que a espionagem russa no estrangeiro, na forma em que já nos
habituamos a analisá-la, realmente começou naquele ano. O desenvolvimento,
registrado nesse serviço, deu origem, também, à necessidade de uma alteração
em sua designação, por isso que, em substituição ao nome primitivo, ela passou
a ser chamada "Obiedinennoye Gosudarstvennoe Politicheskoye Upravlenie”,
ou, simplesmente, OGPU.

A OGPU operou pelo período de 10 anos, mas, ao ser dissolvida, em julho de


1934, suas funções foram absorvidas pelo Departamento do Comissariado do
Povo para Assuntos Internos, ou seja, o NKVD. Essa fusão se prolongou até
cinco meses antes do começo da guerra germano-russa, quando o Departamento
foi elevado a Comissariado, tornando-se conhecido como Comissariado do Povo
para Segurança do Estado, cuja sigla era NKGB. Essa organização, entretanto,
teve curta duração. Exatamente um mês após a invasão do território russo por
Hitler, foi ela rebaixada de categoria, voltando a constituir um departamento do
NKVD. Funcionou, assim, por dezoito meses e, então, novamente ascendeu ao
status de Comissariado, em abril de 1943. Quando, em março de 1946, todos os
Comissariados se transformaram em Ministérios, alterou-se, também, sua sigla,
que passou de NKGB para MGB. Após a queda de seu infame chefe, Lavrenti
Béria, que se seguiu à morte de seu protetor Stálin, em 1953, o MGB foi
novamente unido ao Ministério do Interior. Essa situação se prolongou por um
ano — até março de 1954 —, quando se tornou, mais outra vez, uma unidade
separada, sob um novo título — Comitê de Segurança do Estado (KGB) — e,
assim, continua funcionando.

Todas essas alterações, tanto em seu status como em suas designações, não
afetaram, porém, o papel que a organização desempenha na cena política russa,
muito embora essa sucessão de siglas, mais ou menos enigmáticas, venha
constituindo como como que quebra-cabeça para os não iniciados no
denominado regime das democracias populares. Nos regimes ocidentais, duas
organizações distintas, funcionando isoladamente e com uma bem determinada
divisão de responsabilidades, estão encarregadas de assegurar um perfeito
serviço de segurança: uma para capturar espiões que agem dentro do país —
contraespionagem — e outra para realizar espionagem em países estrangeiros.
Na França, a primeira dessas organizações é representada pelo Deuxième
Bureau; e a segunda, pela Intelligence. Nos Estados Unidos, essas organizações
são representadas, respectivamente, pelo FBI e pela CIA; e na Grã-Bretanha,
pelo MI 5, o qual, apesar de seu prefixo militar, é autônomo e só responsável
perante o Primeiro-Ministro —, como acontece com o Deuxième Bureau, e, às
vezes, com o Cinquième Bureau, na França — e pela Intelligence, popularmente
conhecida como o Serviço Secreto Britânico.

O que surpreende e parece singular ao observador ocidental, no que diz respeito


ao sistema russo, é que a responsabilidade pela espionagem no exterior é
atribuída a um departamento de Estado, ao qual estão afetos os problemas da
segurança "interna”. Os russos sempre argumentaram que sua espionagem no
exterior não é uma atividade externa, isto é, ofensiva, mas levada a efeito
simplesmente com o objetivo de defender a segurança do Estado, ou, por outras
palavras, que é uma atividade defensiva. Logicamente, essa argumentação não
deixa de ter fundamento. Entretanto, seja qual for a definição ou de que forma
são controlados seus órgãos de espionagem, a ação final do sistema soviético não
se tem revelado inferior, no que diz respeito à eficiência, à do duplo sistema, em
uso em qualquer outra parte do mundo. De fato, uma boa razão poderia
demonstrar sua superioridade em relação ao sistema duplo, uma vez que a
contraespionagem e a espionagem se apoiam em bases comuns. A
contraespionagem mobiliza seus agentes meramente para desmascarar espiões, e
esses agentes, por sua vez, empregam os mesmos métodos de operar, utilizados
pelos espiões, no encalço dos quais são postos a agir.

Se os chefes soviéticos alguma vez tivessem tido a intenção de transformar seu


Serviço Secreto num sistema de dupla linha de ação — o que nunca aconteceu
—, a experiência que adquiriram no desdobramento das atividades do
Comintern, sem dúvida, os teria forçado a pensar duas vezes sobre o assunto.
Com efeito, o Comintern não somente fracassou em sua tarefa de atrair, em
quantidade compensadora, os trabalhadores mundiais para o campo comunista,
como, também, os controladores e planejadores das operações clandestinas, que
ele deveria empreender, revelaram-se particularmente ineptos para levar a efeito
a tarefa que lhes competia.

Concentrando-se na rápida tomada do poder pelos comunistas, em antecipação à


revolução mundial, preconizada por Lenine, o Comintern apoiou todos os
movimentos subversivos que tiveram lugar em alguns países europeus.
Lamentavelmente para os objetivos russos, esses levantes falharam, resultando,
desses fracassos, o quase completo aniquilamento das hostes comunistas, levado
a efeito tanto pelas forças da democracia como pela reação dos regimes
totalitários. Esses acontecimentos — a supressão da rebelião spartaquista em
Berlim; o aniquilamento, em três semanas, da República Soviética Bávara; o
colapso do regime de Bela Kun, na Hungria; a derrota infligida por Mussolini e
seus fascistas aos comunistas italianos que pretendiam provocar uma guerra
civil, na Itália — redundaram numa imensa nódoa nos anais do Comintern, tão
grande mesmo que deu margem a uma situação de mal-estar, próxima do pânico,
em Moscou.

Foi nesse período — que pareceu ser uma fase de grave perigo para a concepção
de uma revolução mundial — que o colapso da contrarrevolução dos Russos
Brancos aliviou a Cheka da maior parte da pressão que ela vinha exercendo
sôbre o povo, no interior da Rússia, e lhe proporcionou a oportunidade de voltar
sua atenção para o exterior. Ainda sob a integral liderança de Dzerjinsky, o
recém-criado Departamento Estrangeiro (INO) foi colocado sob a direção do
Primeiro Vice-Presidente da Cheka, M. A. Triliser, um veterano comunista, com
longa experiência de operações secretas.

O INO, sob as mãos e os aguçados olhos de Triliser, transferiu-se para o campo


de ação do Comintern e, gradualmente, retirou dele a maior parte das atividades
exclusivamente de Inteligência que, anteriormente, lhe competiam. As únicas
atividades clandestinas que, efetivamente, permaneceram na esfera de ação do
Comintern foram as de divulgar propaganda e provocar agitação.

Enquanto o INO da OGPU — como, então, passou a ser conhecido — operava


por si mesmo, certa transformação — considerada na ocasião, como devendo ser
temporária — simultaneamente se verificava na maneira dos soviéticos tratarem
as potências não-comunistas, transformação esta que deveria ter reflexos na
consequente estrutura do INO, uma vez que se lhe abriam novos campos para a
espionagem. A situação econômica da Nova Rússia e, particularmente, a
extremamente grave escassez de víveres compeliram Lenine e seus co-líderes a
abandonar alguns dos princípios básicos do comunismo revolucionário. Cerca de
três a quatro mil fábricas tiveram de ser devolvidas á iniciativa privada e, para
reestruturar a indústria, tornou-se necessário que se atraíssem capitais e técnicos
estrangeiros. Em face dessa situação, negociações foram automaticamente
entabuladas com os capitalistas, que iriam fornecer os recursos financeiros e o
know how técnico de que os russos precisavam, e a adoção dessa política —
como será detalhadamente explicado em outra parte deste livro — abriu novos
rumos para a atividade do INO.
O abandono do isolacionismo, entretanto, iria criar a necessidade não só da
criação de missões diplomáticas no exterior, mas, também, a da promoção de
encontros com delegações do comércio, e, em face disso, a OGPU viu-se-lhe
abrirem, igualmente, novas oportunidades. O Comintern nunca poderia ter tirado
partido dessas oportunidades — não era objetivo seu —, mas ao INO caberia
fazê-lo. A despeito do fato de que essa última organização houvesse posto sob
seu controle os agentes do Comintern, algum tempo lhe foi necessário ainda para
organizar seus novos equipamentos e, assim, dois anos se passaram antes que o
INO pudesse entrar em ação, numa frente mais ampla.

Pode-se dizer, entretanto, que, desde 1924, a espionagem russa nunca olhou para
trás. Concebido em ampla escala para criar uma envergadura mundial, o Serviço
Secreto Soviético, até recentemente, ultrapassava, em volume de pessoal,
qualquer outra agência nacional de espionagem. (Segundo parece, a CIA, agora,
se lhe iguala numericamente.) Os resultados apresentados por esse Serviço, pelo
menos durante os últimos 15 anos, por incrível que pareça, não corresponderam,
entretanto, ao esforço feito. De fato, nada realmente importante fora por ele
realizado, antes que a traição de Nunn May e de Fuchs lhe proporcionasse a
oportunidade de entregar, ao seu Governo, vitais segredos atômicos, com os
quais os cientistas russos puderam compensar o atraso de dez anos em que se
encontravam, em relação aos seus colegas dos Estados Unidos e da Grã-
Bretanha, no terreno da tecnologia nuclear. Foi a existência de uma organização
assim tão vasta, mas de capacidade de ação aparentemente tão falha, que levou
as potências não-comunistas a ridicularizarem as tentativas soviéticas de realizar
uma perfeita espionagem. E essa atitude escarnecedora foi a causa do grande
erro, cometido por aquelas mesmas potências, de não se conservarem atentas aos
padrões da espionagem soviética e de se mostrarem descuidadas em relação aos
recursos da sua própria contraespionagem.

Essa atitude, agora, está alterada. O impacto da humilhação é um eficiente


professor. Atualmente a “ameaça de espionagem soviética" tornou-se uma
manifestação de supercautela em relação ao poder oculto da Rússia. Conquanto
essa precaução represente uma providência útil e necessária, ainda há pessoas
que veem na atual sensibilidade das nações um perigo, que deve ser controlado.
Julgam que, dela, emerge um medo, que pode limitar as liberdades fundamentais
do homem, e, no desenvolvimento desse processo, vai-se preparando — de
maneira mais segura do que pelo roubo de segredos muito bem guardados - o
terreno para a concretização daquele antigo ideal de Lênin, em favor da
instituição de um mundo inteiramente comunista.
Lênin almejava conseguir rapidamente a realização desse seu mais caro desejo.
Quando viu que isso não ocorreria, profetizou então — sem abandonar seu
ponto-de-vista — que a dominação do mundo, pelo comunismo, seria atingida
em época oportuna. Como um instrumento para a realização desse desígnio, a
espionagem soviética adquiriu, nos dias atuais, um papel preeminente —
situação esta que foi construída em mais de quarenta anos de atividade. Quarenta
anos, porém, representam apenas uma fração de segundo na História da
Humanidade e, portanto, essa realização da espionagem soviética,
correspondentemente, não deixa de ser notável.

A verdadeira medida da altura em que se encontra atualmente a espionagem


soviética pode ser avaliada somente se seu progresso em sentido ascendente for
seguido; e é isso o que este livro tentará fazer.

Antes de entrarmos em considerações sobre as atividades especificas, através das


quais esse crescente progresso foi conseguido, torna-se necessário, porém, que
tomemos conhecimento do trabalho de estaqueamento que lançou os alicerces,
sobre os quais a inteira estrutura do sistema, hoje, repousa — assuntos de
natureza variada, como, por exemplo, organização, recrutamento e treinamento
e, pelo menos, um componente mais característico desse serviço secreto, cuja
singularidade mais expressiva é a promoção da expansão de suas atividades,
através de uma única linha de ação. *

* Neste livro deverei revelar, de nôvo, a história da OGPXJ, do NKGB, do


MVD, ou do KGB — ou como quer que o serviço seja denominado.

Em antecipação aos reparos dos meus leitores mais inclinados a críticas, julgo
que devo adiantar que não ignoro a existência de uma outra e muito importante
organização de espionagem da União Soviética. Trata-se do Quarto
Departamento do Estado-Maior do Exército Vermelho, mais amplamente
conhecido como a Administração Central de Inteligência (GRU). Este
Departamento foi criado por Trótski quando, entre 1918 e 1925, desempenhava
as funções de Comissário de Guerra, e era sua intenção fazer da GRU a principal
Agência de Informação da União Soviética. Êsse órgão se assemelha muito aos
departamentos de Inteligência militar de outras potências, usando os diversos
adidos à representação diplomática, e seus auxiliares, como seus principais
agentes.

A superioridade da GRU sôbre outros serviços de espionagem nunca foi


estabelecida, já que o KGB sempre fôra considerado a principal das agências. A
GRU só se tomou preeminente, entretanto, durante a Segunda Guerra Mundial,
quando a obtenção de Inteligência verdadeiramente militar se tomou essencial
para a segurança da Rússia.

Mas, aqui, nós nos deparamos, novamente, com um estranho estado de coisas. A
linha divisória entre a GRU e o KGB — para usar suas atuais siglas — nunca foi
claramente definida, e há muitos casos em que as atividades das duas
organizações se entrelaçam. O KGB sempre foi considerado como a agência
“principal” já que lhe tem cabido o direito de fazer a triagem do pessoal da GRU
e de manter seus próprios agentes dentro das fileiras daquela organização,
enquanto à GRU é negado o direito de reciprocidade, em relação ao KGB.

O Exército tem relutado em aceitar essa situação, mas nunca se mostrou capaz
de corrigi-la. Por diversas vêzes, entretanto, ergueu-se em desafio ao KGB. O
único período em que houve alguma cooperação entre as duas agências foi
durante a Segunda Guerra Mundial. Terminado o conflito, porém, o KGB
readquiriu novamente a sua superioridade. Justamente porque o KGB sempre
desfrutou dessa superioridade, é que me concentrei nêle, mas haverá um ou dois
casos, nos quais irei referir-me às atividades da GRU. Quando isso acontecer,
terei o cuidado de identificá-las.
3. Organização e Administração

A organização do KGB foi erigida através dos anos. Seu desenvolvimento se


processou à medida que se ampliavam os objetivos de suas atividades e a
experiência tornava evidente tanto o que era preciso ser feito, de tempos a
tempos, para a execução de sua política, como quais as providências que
deveriam ser tomadas para a realização das finalidades exigidas pela hierarquia
soviética. Em várias ocasiões, nos últimos quarenta anos, verificaram-se
alterações de rumo. Estas, entretanto, tiveram pouco efeito no funcionamento
geral da organização, exceto, talvez, em relação à sua eficiência operacional.
Conquanto não seja possível dar-se uma detalhada descrição da atual
organização do KGB, as linhas gerais da sua estrutura, sem dúvida, podem ser
revelados, e a revelação dessa síntese estrutural, aliás, representa tudo quanto
nos é necessário para tornar compreensível a expansão desse órgão, já que suas
atividades constituem assunto da maior parte deste livro.

O quartel-general do Serviço Secreto Soviético — comumente conhecido como


o Centro — está dividido em dois Diretórios, cada qual sob a responsabilidade
de um chefe, que tem a categoria de subministro.

O primeiro Diretório, como é chamado, assemelha-se mais ou menos às


Agências de Informações, existentes em qualquer país. O Segundo Diretório,
porém, é adaptado apenas às peculiaridades da Rússia Soviética.

Conquanto o Primeiro Diretório tenha o subtítulo de Diretório de


Contraespionagem, suas funções são — um tanto paradoxalmente para a
compreensão dos ocidentais, pelas razões já enumeradas no capítulo precedente
—, entre outras, as de empregar agentes no estrangeiro para colher informações
estratégicas em geral, e de coordenar e calcular os resultados obtidos pelas
agências de informações, menores e mais especializadas, do Ministério das
Relações Exteriores e do Ministério do Comércio Externo.

O Primeiro Diretório é constituído de seis divisões principais, das quais a


primeira é a Divisão Estrangeira, cujas atribuições fazem com que ela seja a de
maior importância. Compete-lhe controlar todos os agentes secretos, estabelecer
tarefas e coletar os resultados obtidos pelas redes. Além disso, cabe-lhe orientar
as buscas de informações secretas e distribuir as que houverem sido obtidas.

A Segunda Divisão é a Divisão Operacional. Sob a orientação da Divisão


Estrangeira, ela dirige como o nome indica, as operações em curso realizadas
pelos agentes, controla as redes, seleciona os espiões a serem mandados para o
exterior, ou aconselha sobre processos de recrutamento. Por outro lado, essa
Divisão opera sobre o possível material de espionagem que seus funcionários
recrutadores, espalhados pelo mundo, lhe submetem. Mantém agentes especiais
em todas as embaixadas russas, nos consulados e em qualquer missão oficial ou
delegação soviética no exterior. Estabelece, ainda, contatos entre as redes, onde
essa providência se faz necessária, e organiza as comunicações.

A Divisão de Comunicações é responsável pela manutenção prática dos contatos.


Além disso, se um agente se deixou comprometer e tem de empreender uma
retirada às pressas da cena ou, se escapa após ter sido preso, é esta Divisão que
traça a rota da fuga. Coube a essa seção do Serviço Secreto Russo a organização
do itinerário da fuga de Pontecorvo e de Burgess e Maclean para a Rússia.

A Divisão Secreta é, de fato, um serviço de documentação. É função sua suprir


qualquer espécie de documento forjado de que um agente possa necessitar e,
com esse objetivo, mantém o que se pode considerar a mais importante coleção
de documentos autênticos que possa existir.

Além de seu departamento de falsificações, essa Divisão está aparelhada para


confeccionar qualquer tipo de uniforme, fazer mapas ou condecorações que lhe
possam ser solicitados. Uma de suas seções é incumbida de inventar estórias
fictícias, enquanto que outra fornece os indispensáveis códigos, as tintas
secretas, a aparelhagem para micropontos e os conjuntos de rádio de que os
agentes possam necessitar.

A seção mais interessante, dentro dessa Divisão, é, sem dúvida alguma, o Index
que, provavelmente, será única no mundo, pelo menos no que se refere à sua
minuciosidade. A Gestapo nazista possuía uma organização mais ou menos
semelhante, mas não era, nem de longe, tão apegada a detalhes e de alcance tão
vasto quanto essa seção do KGB.

O Index, em síntese, não passa de uma vasta seleção de biografias de


personalidades que possam, mesmo remotamente, ser de algum uso, em qualquer
época, para a espionagem soviética. Além de informações sobre a filiação, lugar
exato do nascimento, grau de instrução, carreira, detalhes de família, amigos e os
elementos que, comumente, podem ser utilizados para se fazer uma idéia do que
tenha sido o passado de um homem ou de uma mulher, essas biografias
registram, igualmente, o pensamento e as simpatias políticas dos biografados,
com detalhes sobre suas relações com os empregados, o estado de suas finanças
— quanto ganham, se têm casa própria, se possuem automóvel etc. — e a
relação das suas dívidas, o que é de grande importância. Nesses arquivos,
existem, também, informações sobre se o indivíduo é casado, se é bom chefe de
família ou se é namorador — seja casado ou solteiro —, se bebe (e quanto?), se
sua mulher tem alguma influência em suas ações e, por fim, toda a “sujeira” que,
em relação a ele, possa ser recolhida, o que, na opinião desses técnicos, é quase
tão importante quanto uma lista completa de suas dívidas ou um relato de suas
inclinações políticas ou da maturidade de seu senso de julgamento. O objetivo
principal é descobrir tanto as fraquezas como as resistências desses indivíduos,
uma vez que a fraqueza pode ser aproveitada ou usada como chantagem para
induzir um elemento relutante a colaborar.

O Index foi, inicialmente, introduzido no Serviço Secreto Russo pela Okhrana,


quando esta tentava ter sob controle os revolucionários, e estes, mais tarde, o
copiaram e o empregaram em suas tentativas de aferir a lealdade dos membros
do Partido e de desentocar possíveis infiltrações da Okhrana. Foi adotado e
expandido por Mikhail Triliser, quando este se tornou o primeiro chefe do INO,
já que, nas duas décadas anteriores à Revolução de 1917, ele fora encarregado
dos arquivos do Partido. Da expansão, comparativamente reduzida, levada a
efeito por Triliser, o Index passou a crescer rapidamente, até se transformar
numa poderosíssima arma nas mãos do famoso Béria, constituindo a base de seu
tremendo poder sobre todos os demais membros da hierarquia soviética, sem
exceção, mesmo, de Stalin.

O Index contém os nomes e as particularidades não somente de homens e


mulheres que possam ser úteis à espionagem soviética, mas, também, daqueles
cuja integridade é absoluta e cuja lealdade, ao próprio país, não pode ser posta
em dúvida. Tal fato pode ser considerado como um indiscutível sintoma de que a
preocupação do domínio mundial é, ainda, um importante dogma do
comunismo, caso uma prova dessa natureza fosse necessária. O que resta saber é
se esses homens e mulheres, insuspeitos quanto à sua integridade e lealdade, não
seriam justamente as primeiras vítimas do expurgo, que, com certeza, se seguiria
à revolução mundial, se essa, por acaso, algum dia fosse levada a efeito.

Calcula-se que cerca de 250 pessoas são empregadas para manter o Index em
dia. A exatidão em todas as suas informações tem sido testada em diversas
ocasiões.

A sexta, e menos importante Divisão do Primeiro Diretório é a Divisão de


Treinamento e Recrutamento, cujo trabalho será objeto de referência nos
subsequentes capítulos.

O Segundo Diretório, como já foi dito, não encontra similar fora da Rússia
Soviética e dos seus países satélites, pela simples razão de que a maior parte de
suas funções nunca seria tolerada numa democracia.

A Divisão de Propaganda possui funções que seu inocente nome pretende


encobrir. Seu principal objetivo é enfraquecer, quebrar e, consequentemente,
destruir as forças da lei e da ordem em países não-comunistas e, por essa forma,
preparar o caminho para um governo comunista. Para atingir esse fim, essa
Divisão mantém contato com os partidos comunistas nos diferentes países e se
revela especialmente ativa naqueles em que essas agremiações políticas foram
suprimidas por ação das autoridades. Utiliza-se de seus próprios agentes, cuja
principal missão é angariar informações políticas e criar grupos subversivos que
entrarão em ação quando se fizer necessário e que, enquanto esperam, estarão
trabalhando silenciosa, mas ininterruptamente, para minar as instituições em
vigor.

A Divisão Individual é a doublé daquela Seção de Segurança de Estado que, por


ordem do Partido, fiscaliza a fidelidade dos cidadãos soviéticos que vivem na
própria Rússia.

Essa Divisão controla, igualmente, o comportamento dos cidadãos soviéticos


que trabalham no exterior, desde os embaixadores até os motoristas das
embaixadas (estes, às vezes, são altos membros da Divisão de Estrangeiros do
Primeiro Diretório). Cada missão diplomática ou consular, toda delegação,
quaisquer grupos de atletas, de atores, de dançarinos, de cantores ou de músicos,
que viajam para fora da União Soviética, levam, como adidos, agentes da
Divisão Individual. Às vezes, esses agentes se veem na situação de passarem por
néscios, em face da atitude assumida por alguns elementos sob o seu controle, os
quais, como, por exemplo, o bailarino Nureyev e outros conseguem iludir essa
vigilância e pedir asilo político. Elementos dessa Divisão vigiam, também, os
agentes que trabalham para qualquer das outras divisões ou seções do serviço de
espionagem soviética.

A expansão do comunismo pelos países da Europa Oriental, no pós-guerra,


constitui a razão de ser da Divisão Aliada. A polícia de segurança e os serviços
de espionagem da Polônia, Tchecoslováquia, Romênia, Hungria e Bulgária são
supervisionados pelos representantes russos do KGB. Em relação à Alemanha
Oriental, esses departamentos são, atualmente, dirigidos por oficiais russos, e o
mesmo acontecia na Albânia, até que surgiram, dentro do bloco comunista, as
divergências com o governo de Moscou, sobre a questão de se retirar o nome de
Stálin da lista dos heróis nacionais. Embora cada um desses países realize
espionagem por sua própria conta, eles operam, igualmente, em favor da
espionagem soviética, do que resulta ter esta última aumentado enormemente o
escopo de suas atividades. Em muitos casos, a informação obtida por um agente
de um país satélite vai, diretamente, a Moscou, e pode acontecer que a nação da
qual o agente é originário nunca tenha conhecimento do fato.

A Divisão Aliada entrou em ação na retaguarda dos exércitos russos de


libertação. A razão por que isso pôde ser feito é que os russos assim o
planejaram, através de programas de execução a longo prazo, o que nos fornece
um expressivo exemplo do profundo e obstinado propósito com que eles buscam
a dominação mundial pelo comunismo. Pode-se afirmar, com segurança, que o
Serviço Secreto Russo já está treinando homens em todos os países, que estarão
em condições — quando chegar a hora — de assumir o poder. Assim aconteceu
com Boleslav Rutkovski, o primeiro presidente comunista da Polônia, com
Piotyr Groza, o Primeiro-Ministro da Romênia, e com Klement Gottwald, o
Presidente da Tchecoslováquia — todos treinados, com antecedência, pelo KGB,
para o assalto ao poder, e que, durante algum tempo, foram ativos agentes
secretos.

Por um longo período, a espionagem soviética manteve, também, um olho


vigilante sobre os chineses, através da Divisão Estrangeira, do Primeiro
Diretório, e da Divisão Aliada, da Segunda Diretoria. Essas duas Divisões
repartiram as responsabilidades na tarefa de controlar a Seção Chinesa, a qual
emprega certo número de comunistas chineses, mais obedientes a Moscou do
que a Pequim. Postos avançados da Seção Chinesa operam, igualmente, no
Vietnam do Sul e no do Norte, no Laus e no Camboja, enquanto que o posto
avançado de Harbin — tradicional centro de espionagem da Rússia no Extremo
Oriente — controla as redes de Xangai, de Nanquim e de Fuchow, a fim de
colher e de selecionar as informações fornecidas pelas redes do Japão e de
Formosa.

A quarta maior divisão do Segundo Diretório é a Divisão Especial. Trata-se de


um dos mais antigos departamentos da espionagem soviética, implantado por
Dzerjinsky para eliminar, pela violência e por assassinatos, os inimigos da
Revolução, nos casos mais complexos em que outras formas de persuasão não
surtiram efeito. Entre 1932 e 1936, essa Divisão constituiu o instrumento de que
Stálin lançou mão, pessoalmente, para ficar livre de seus adversários. Nesse
desempenho, era ela dirigida por Nicolai Yezhov. Na Segunda Guerra Mundial,
era conhecida como Bureau I, competindo-lhe executar a política de “terra
arrasada”, adotada por Stálin em face do avanço dos exércitos alemães. Dadas as
suas funções especializadas, essa Divisão tem-se conservado como um
departamento independente, mesmo depois de sua formal incorporação ao grupo
OGPU-KGB, fato este que ocorreu, em 1934, durante a reestruturação dos
serviços de espionagem, feita sob a orientação de Genrik Yagoda.

A seção responsável pelos raptos e pelos assassinatos dos divisionistas e de


outros inimigos em potencial do comunismo é a infame Seção Nove — a Seção
do Terror e do Desaparecimento. Embora possa haver algo de verdadeiro na
figura de Bond — isto é, outros serviços secretos chegam, vez por outra, a matar
e a raptar para atingir seus objetivos —, o Serviço Secreto Soviético é o único
que, atualmente, possui — com a possível exceção da China Vermelha — uma
organização especial para fazer desaparecer seus inimigos. Detalhes dos
trabalhos realizados por essa Seção serão dados em capítulos subsequentes.

O sistema de que a espionagem soviética lança mão para operar “no campo”,
pode-se dizer que é constituído de dois compartimentos estanques e separados,
embora os resultados, obtidos por ambos, atinjam aos mesmos objetivos. No
primeiro deles encontram-se os membros das embaixadas, o pessoal das
legações e dos consulados e os integrantes de muitas delegações, como, por
exemplo, as missões comerciais e culturais, que vêm constituindo o recurso
favorito de que se utiliza a Rússia para manter relações com as potências
estrangeiras.

O segundo é representado pelo trabalho das redes de espionagem e o dos agentes


individuais. No que diz respeito à organização das redes, o sistema segue, tanto
quanto possível, as linhas clássicas, isto é, uma rede é integrada por uma ou duas
células, que operam inteiramente independentes, uma da outra, e que
reciprocamente se ignoram.

A célula se compõe de três ou quatro agentes, e cada um deles — ou delas —


tem sua própria função especial: coletar Informações, enviar mensagens, operar
radiotransmissores, etc.

Entre o Centro, em Moscou, e todas as agências de espionagem que operam em


determinado país, há sempre uma figura-chave: o Diretor-Residente. Apesar de
seus poderes reais serem limitados, desempenha ele relevante papel, uma vez
que é uma espécie de guia central e o canal através do qual, com algumas
exceções, todas as instruções e fundos, vindos do Centro, são transmitidos às
redes e aos agentes individuais. Igualmente, por intermédio dele, é feito o
serviço de remessa, no mesmo Centro, das informações obtidas por todas as
redes. Ele mantém, por outro lado, ligações com a Embaixada Soviética e o
Partido Comunista locais, por intermédio dos quais permanece em contato com
as sociedades culturais e de amizade que o suprem de determinado gênero de
informações que, ordinariamente, não se poderia classificar como sendo de
espionagem. Num país de grande extensão, podem operar dois ou mais
Diretores-Residentes.

Na maior parte das organizações de espionagem, os documentos são reduzidos


ao mínimo possível. Se qualquer registro escrito puder ser dispensado, tanto
melhor. Este princípio é obedecido, tendo em vista a necessidade de se obter o
maior grau de segurança. A esse respeito, a organização soviética se mostra,
igualmente, diferente. É exigido que o Diretor-Residente guarde um completo
registro de todas as suas transações, já que, ao ser transferido de sede — o que
parece acontecer muito comumente —, seu substituto não tenha dificuldades em
executar as funções que lhe cabiam. Essa característica da espionagem soviética
constitui uma indicação da organização geral do serviço, o qual,
fundamentalmente, é uma burocracia um reflexo do sistema administrativo do
Governo Russo, considerado como um todo.

O enorme amontoado de papel oficial exigido das redes e agentes individuais é,


parcialmente, a causa da necessidade do grande número de agentes, de todas as
categorias, para a obtenção de qualquer informação. Uma vez que todo
documento oficial apresentado pelas redes deve ser estudado — se é que tem
uma razão de ser —, os quartéis-generais devem, necessariamente, recrutar um
corpo de funcionários de adequada proporção. Tem-se calculado que, ao todo, a
espionagem soviética empregue cerca de cem mil funcionários de várias
categorias. Nesse número, estão incluídos os agentes profissionais e todo o
pessoal de retaguarda necessário para mantê-los em atividade. (Calcula-se que a
CIA americana também empregue, aproximadamente, o mesmo número de
funcionários.) No caso do Serviço russo, entretanto, devem ser acrescentadas
diversas centenas de milhares de amadores, espalhados pelo mundo, e de cujos
serviços os soviéticos podem valer-se em caso de necessidade. Calcula-se que o
número desses amadores se eleve acerca de três quartos de milhão, mas há quem
julgue essa avaliação muito baixa, já que as cifras verdadeiras, segundo tudo
indica, devem ser bem mais elevadas.

De qualquer forma, a atividade da espionagem soviética abrange o mundo


inteiro, e, se o êxito fosse proporcional ao número das pessoas nela engajado, o
mundo estaria hoje completamente dominado pelo comunismo. Felizmente, para
as potências não-comunistas, verificaram-se falhas na organização desse serviço
e no treinamento de seus agentes, o que teve como consequência a
transformação de muitos êxitos num conjunto de fracassos espetaculares.
Levando-se em consideração, porém, a perseverante determinação e a paciência
quase oriental dos soviéticos, tem-se a impressão de que os resultados, a longo
prazo, daquelas atividades ainda estão por se fazer sentir. E aí é que reside o
grande perigo. É por isso que cada vez mais se impõe a necessidade de uma
constante vigilância.
4. Recrutamento

A espionagem soviética, como já se viu, é controversa no tratamento que dá a


suas atribuições, à sua organização e às suas atividades, sobretudo quando a
comparamos com as organizações análogas, existentes em outras nações. Na
seleção de seus agentes, ela apresenta, ainda, uma nova característica.

O emprego de tão grande quantidade de agentes requer, naturalmente, um


método de recrutamento que não teria sido necessário numa organização de
âmbito menor. Mas esse método é favorecido pelos objetivos que a espionagem
soviética estabeleceu para si mesma, e em favor da lealdade ideológica que o
comunismo inspira — lealdade esta que se impõe mais a seus seguidores do que
a que a democracia exige de seus adeptos. Dada a indefinição dos princípios
democráticos — tais como liberdade de palavra, liberdade individual, governo
parlamentar, etc. —, o comunismo, ao contrário, se apoia, com inflexível
firmeza, exatamente onde o homem se situa, isto é, em sua vida privada e em
suas relações com o Estado. Não há nuanças no comunismo. Um comunista nos
Estados Unidos, na Inglaterra e na China — apesar das divergências ideológicas
que separam chineses e russos — é fundamentalmente indistinguível do
comunista russo. Este fato oferece possibilidades, ao bloco comunista, para um
recrutamento em massa de seus agentes, o que, de forma alguma, é
proporcionado às demais organizações de espionagem.

O pessoal atuante de espionagem soviética divide-se em três categorias. Há um


sólido núcleo central, formado por agentes profissionais, treinados, de
nacionalidade russa. Existe o setor estrangeiro, integrado por agentes cuja
sincera adesão ao comunismo foi posta à prova, durante um longo período, e
cujos trabalhos os recomendam para proveitosas oportunidades de espionagem.
E há, por fim, os amadores que podem ser convocados para tarefas específicas,
se a necessidade assim o exigir.

O recrutamento para a primeira categoria não oferece qualquer dificuldade. Em


todas as facetas organizadas da vida na Rússia — serviço militar, universidades e
colégios, Faculdades para os Trabalhadores, órgãos do Partido e,
particularmente, na Liga da Juventude Comunista (Komsomol) —, há
comissários políticos, cuja missão é manter um olhar vigilante sobre a “lealdade
política” daqueles cidadãos, que se encontram sob a sua direção. Este é o método
usado, pelo Estado, para evitar que qualquer descontentamento possa dar ensejo
a uma apostasia contagiosa. Ou, por outras palavras, ele preserva a segurança do
Partido e do Governo, ao impedir que algum comunista “fraco” seja guindado a
uma posição em que possa exercer má influência sobre os outros, e, também, ao
fazer com que os melhores cargos sejam sempre ocupados pelos mais leais
comunistas.

Em aditamento a essa tarefa, o Comissário deve conservar-se atento, para


descobrir moças e rapazes que possam apresentar qualidades em potencial, para
o seu aproveitamento como agentes. Quando um Comissário descobre uma moça
ou um rapaz com esses predicados, comunica a descoberta à Divisão de
Observação e de Distribuição. Em qualquer parte — seja no Index ou nos
registros da polícia local —, deve haver um dossiê sobre ele, e se do exame
dessa ficha for constatado que, além de suas qualificações pessoais, o candidato
ainda descende de uma família de passado inatacável, segundo os padrões
comunistas, pode ele — ou ela — ser considerado como já tendo ultrapassado o
primeiro estágio.

O candidato, assim selecionado, fica sujeito, então, a um mês de observação


especial, levada a efeito por um agente do KGB, agregado à instituição da qual
ele faça parte. Até que o agente apresente seu relatório sobre o que observou —
mesmo que suas conclusões sejam negativas —, o candidato não saberá que
estivera sendo submetido a um processo de seleção, tendo em vista o seu
recrutamento para o serviço de espionagem. Se, entretanto, as informações
forem favoráveis, ele será levado à presença de uma Comissão de Seleção. Aí
saberá que está sendo experimentado para servir num dos departamentos do
KGB e, em consequência de haver sido julgado em condições, receberá a notícia
com entusiasmo. Poucos casos se verificaram, nos quais a reação do candidato
causou desapontamento entre os membros da Comissão. Nessas oportunidades,
não somente lhe comunicam que a entrevista terminou, mas o próprio candidato,
por seu lado, imediatamente compreenderá que sua carreira chegou ao fim. É
que a falta de entusiasmo, demonstrada por um candidato, na ocasião, constitui,
na opinião dos dirigentes soviéticos, uma evidência de sua fundamental
incapacidade de ser intransigentemente leal ao Partido. Sendo aprovado pela
Junta, o candidato é cientificado de que terá um período probatório e passará por
um treinamento que durará de dois a quatro anos. Até aí, continuará a ignorar
que está sendo treinado para ser espião, e espera-se que não revele curiosidade
em saber o que possa estar sendo para ele reservado. O candidato só começa a
ter conhecimento oficial de sua situação quando é mandado servir em algum
posto sem importância, numa missão diplomática no exterior. Sua promoção
subsequente depende, daí em diante, de como venha a se comportar em cada
estágio da carreira.

Este núcleo central é integrado mais ou menos por cinco por-cento do total dos
funcionários, mas representa ele a espinha dorsal do serviço. São os Diretores-
Residentes, os organizadores, os homens que dão as ordens transmitidas por
Moscou.

A segunda categoria é composta, em sua maior parte, de homens e mulheres de


diferentes nacionalidades — todos leais comunistas — e que operam quer em
sua pátria, quer num país estrangeiro. O Index os classificou como dignos de
confiança, do ponto-de-vista político, e são convocados para tarefas específicas,
no desempenho das quais seus contatos e experiência os fazem candidatos
apropriados. Não podem demonstrar preferência em relação às missões que lhes
são confiadas. Ordens lhes são dadas, e espera-se que eles as cumpram. Se, por
acaso, um deles recusa uma tarefa, sua filiação a qualquer Partido Comunista lhe
será negada, devendo-se dar ainda por muito feliz se não eliminado.

A experiência do inglês Alexander Foote, que, depois de uma notável carreira


como espião soviético na Suíça, renunciou ao comunismo e retornou à
respeitabilidade na Inglaterra, é expressiva a esse respeito. Filho de uma família
inglesa, da classe média, Foote nasceu em 1905, e os primeiros tempos de sua
maioridade coincidiram, portanto, com os anos incertos do entreguerra. Teve
uma boa educação, mas a inquietação, gerada pela insegurança dos tempos, o
afetou e, como aconteceu com muitos outros jovens, passou a derivar de
emprego para emprego; em consequência, também se deixou empolgar pelo
comunismo. Mas, conquanto frequentasse as palestras de grupos e os meetings,
nunca ingressou no Partido Comunista. Na realidade, embora devesse tornar-se
um agente soviético por dez anos, nunca foi, em qualquer tempo, membro do
Partido.

Quando teve início a guerra civil espanhola, ele foi admitido na Brigada
Internacional, por recomendação de dois influentes comunistas ingleses.
Desempenhou, ali, as funções de encarregado dos transportes de batalhão, mas,
como não era membro do Partido, não lhe foi conferido um posto de confiança.
Como encarregado dos transportes, serviu por dois anos, sendo então mandado,
em férias, para a Inglaterra, a fim de assistir ao Congresso do Partido Comunista,
realizado em Birmingham, em 1938.

Antes de entrar em férias, foi-lhe comunicado que, quando retornasse, deveria


fazê-lo como motorista de uma viatura da Cruz Vermelha que faria o percurso
entre a Espanha e a Inglaterra, em intervalos regulares, transportando
suprimentos médicos e auxílio. Na verdade, Foote não mais voltou à Espanha.
Quando, findo o Congresso, se apresentou na sede do Partido Comunista, em
King Street, em Londres, para receber instruções, foi informado de que havia,
ali, uma requisição para alguém que dispusesse das indispensáveis qualificações
para executar uma missão perigosa no exterior. Os chefes do Partido haviam
examinado alguns nomes, e o escolhido fora justamente o dele.

Embora ninguém lhe pudesse dizer nada, além de que havia sido convocado para
aquela missão, Foote aceitou a proposta. Houvesse recusado, e não há dúvida de
que sua associação com o Partido Comunista teria acabado ali. Apresentando-se
num endereço em St. John’s Wood, foi recebido por uma respeitável dona de
casa, que logo o recrutou para a Inteligência Soviética, embora ele não o
percebesse e só viesse a descobri-lo algum tempo mais tarde. Sabia que não
estava trabalhando para os comunistas ingleses, mas acreditava que pudesse
estar servindo ao Partido Comunista Alemão ou ao Comintern.

Seguindo as instruções, que lhe foram dadas pela dona de casa, Foote viajou
para Genebra e, no dia seguinte à sua chegada, entrou em contato com uma
mulher, em frente ao edifício do Correio-Geral. Estabelecido o contato, a mulher
se apresentou com o nome falso de Sônia e, enquanto tomavam um café, disse-
lhe que novos encontros entre eles deveriam realizar-se. Num desses encontros
— por sinal, o último —, foi informado de que deveria ir para Munique, a fim de
preparar relatórios políticos sobre a Alemanha, e, ao cabo de três meses,
apresentar-se de novo a ela, Sônia, em Genebra.

Se se considerasse o que Foote apresentava então como qualificação para o


serviço de espionagem, a conclusão seria que ela, de fato, quase nada
representava. Antes de ingressar na Brigada Internacional, fora apenas mecânico
de motores e vendedor de motocicletas. Não falava fluentemente qualquer
idioma, embora pudesse expressar-se num mau francês e num espanhol ainda
pior. Conhecia, também, algumas frases elementares em alemão. Ao chegar a
Munique, e mesmo depois, não recebeu qualquer treinamento de segurança,
ignorava tudo sobre códigos ou correspondência secreta e era completamente
inexperiente em operar com um radiotransmissor.

Tinha a seu crédito, entretanto, ser um inglês de bom senso, dotado da


capacidade de apreender, rápida e acuradamente, qualquer situação. Esses
predicados devem ter constituído a razão por que os diretores do KGB a ele
recorreram e, nessas condições, não poderia ser considerado mais que um
razoável agente. O valor desses predicados, porém, foi confirmado pelos
resultados de suas investigações em Munique e, também, pela correção e
concisão do relatório que então apresentou. Essa missão parece ter sido uma
espécie de teste, a que fora submetido. Se houvesse falhado, irremediavelmente
teria sido demitido do serviço.

Pouco depois da volta de Foote a Genebra, estourou a Segunda Guerra Mundial


e Sônia recebeu instruções para retirar todos os seus agentes da Alemanha. O
verdadeiro nome de Sônia era Ürsula-Maria Hamburger, membro do Partido
Comunista Alemão, e que, juntamente com seu marido, Rudolf, trabalhara,
durante muitos anos, como agente soviético no Extremo Oriente e na Polônia.
Era responsável por uma rede que operava na Alemanha, mas, por motivo de
segurança, estabelecera sua base na Suíça. Sônia recebera ordem para
permanecer na Suíça e fornecer a Foote e a um outro inglês, William Phillips,
instruções sobre a arte e os segredos de se operar um radiotransmissor.

Foote se revelou aluno aplicado e logo se tornou eficiente operador de rádio,


aprendendo com rapidez os mistérios de codificar e decifrar mensagens.
Entretanto, com exceção de uma rápida instrução sobre os métodos de
segurança, não fora submetido a qualquer outro treinamento.

Por essa época, a rede soviética que operava na Suíça era controlada pelo
Diretor-Residente Alexander Rado. Tratava-se de um húngaro de nascimento,
comunista de longa data, e que havia sido membro do grupo de Bela Kun.
Quando a revolução de Kun fracassou, ele tinha apenas dezenove anos. Fugiu,
então, para Moscou, onde foi bem recebido nos altos círculos do Comintern.
Desde essa época, ou seja, a partir de 1919, encarregou-se de serviços secretos,
extremamente valiosos para a Rússia. Em 1936, foi designado Diretor-Residente
na Suíça.

Para a rede de Rado é que Foote fora escalado, assim que se tornou um eficiente
rádio-operador. Aí — e só aí — soube que era membro da espionagem soviética.
Não existe qualquer indicação em suas memórias, publicadas após sua deserção,
de que lhe tivesse ocorrido a idéia de recusar aquele perigoso trabalho.

Foote obteve tanto êxito em sua atividade de agente russo que, no devido tempo,
foi promovido a substituto eventual de Rado como Diretor-Residente. Esse fato,
entretanto, se deveu apenas às exigências impostas pela guerra, porque, desde
1930, os agentes de alta categoria sempre haviam sido russos, que tinham
passado por uma das escolas de treinamento da União Soviética. Rado deveu sua
indicação, em 1936, à conjunção de duas circunstâncias: ter sido treinado em
Moscou e possuir longo e excelente acervo de atividades clandestinas.

Os amadores da terceira categoria são os Nunn May, os Fuch, os George Blake,


os Vassall e, porque representam a maior parte dos agentes apanhados em
armadilhas, são os mais amplamente conhecidos do grande público.

Há dois tipos de amadores que atraem os chefes da espionagem soviética. O


primeiro é o homem que se encontra numa posição de poder fornecer
informações importantes e vantajosas e que revele, também, uma boa dose de
simpatia pela ideologia comunista. O segundo é o homem, também em
condições de fornecer valiosas informações, mas que, como se diz, guarda um
cadáver tão aterrador, dentro do seu armário, que se torna suscetível de ser
chantageado. Os primeiros são os Blake, e os segundos os Vassall.

O método de recrutar agentes varia em cada um dos dois tipos acima


mencionados. O primeiro pode já estar vinculado a algum grupo, que confesse
abertamente suas simpatias pelas idéias comunistas, embora não as estenda até o
próprio comunismo, como por exemplo, as sociedades de amizade, os grupos
culturais e outros. Nesses casos, a maneira de agir é simples. A “vítima” é
convidada a se juntar a um grupo de estudo e, aí, sem que o perceba, habilmente
condicionada. Se sua reação a esse condicionamento for satisfatória, a tarefa
para a qual foi escolhida lhe é, aos poucos e por partes, apresentada, e essa
catequização é levada a efeito com tanta astúcia que se pode descrevê-la como
subliminar. Então, quando a vítima já se acha plenamente “desenvolvida”, a
franqueza entra em cena. Nessa altura, o recrutado já se encontra tão
profundamente condicionado a pensar de maneira ambígua que, sinceramente,
acredita que, revelando os segredos de que tem conhecimento, estará mais
ajudando ao seu país do que servindo á espionagem soviética.

Naturalmente, essa espécie de “desenvolvimento” só pode registrar êxito quando


o candidato já tenha alguma simpatia pelos ideais comunistas ou, então, seja
violentamente contra a forma de governo de seu próprio país.

Não há necessidade de se entrar em minúcias sobre o método de recrutamento


empregado para o segundo tipo. A pessoa que está sendo objeto de observação é
explorada em sua fraqueza. É colocada, propositadamente, em situações
comprometedoras. Por fim, ameaças de denúncias lhe são feitas, com a
alternativa de exploração de sua fraqueza, se o candidato é sensível e concorda
em cooperar.

Quando o candidato de qualquer dos grupos não está em contato com uma
organização simpatizante, esforços são feitos para que um encontro ocorra, de
forma social. Os agentes, utilizados nesse gênero de abordagem, são
especialmente treinados e, embora muitas vezes fracassem no envolvimento de
suas vítimas, aparentemente não julgam que tais tentativas sejam inócuas, pois
que têm lançado mão dessa técnica, por muito tempo, e ainda a empregavam há
cerca de um ou dois anos.

O treinamento a que se submete um agente amador não passa de simples e


rudimentar instrução técnica, para estabelecer contatos e passar material de
informação. Seu elemento de ligação será um bem treinado agente profissional,
de maneira que é muito pequena a possibilidade de que alguma coisa possa sair
completamente errada. De qualquer forma, o bom senso regula, hoje, a maior
parte das atividades de espionagem, nas quais essa classe de espião é posta a
operar. Como quase todos os integrantes dessa categoria são sempre homens e
mulheres inteligentes, cuja utilidade será provavelmente limitada a um curto
período de tempo, a direção soviética mostra-se realista ao adotar o ponto-de-
vista de que seria descabido submeter-se essa espécie de agente a um prolongado
treinamento.

Quando a utilidade potencial do agente é de importância e o período, durante o


qual ele poderia operar — caso fosse convenientemente treinado — pudesse ser
prolongado além da sua média normal de atividade, aí, então, um treinamento
mais intensivo lhe será dado. Embora jamais esse fato tenha sido revelado,
presume-se que Vassall — que nunca tivera qualquer experiência de espionagem
antes de começar a trabalhar para a Inteligência Soviética — haja recebido esse
treinamento mais intensivo. O fato de se haver mostrado capaz de evitar ser
descoberto pelo prolongado período de oito anos constitui uma segura indicação
nesse sentido. De fato, nenhum amador, que não tenha recebido senão
rudimentos de espionagem e, especialmente, não conhecesse as técnicas de
segurança, poderia desempenhar, por tão longo tempo, o papel que lhe cabia,
como o fez Vassall.

O preparo profissional, entretanto, é que contribui, em maior parte, para o


sucesso da espionagem soviética. O número de cidadãos russos apanhados em
flagrante delito de espionagem é extraordinariamente reduzido. Somente três
deles vêm à nossa lembrança: Valentin Gubitchev, que era o elemento de contato
de Judith Coplon, na América; o Coronel Abel, que foi preso pelo FBI; e Gordon
Lonsdale, que caiu nas mãos dos agentes do MI 5 e da Seção Especial, na
Inglaterra. Pode-se dizer que Gubitchev nunca teria sido apanhado se Judith
Coplon não estivesse sob suspeita; o Coronel Abel operou durante trinta anos,
antes que o FBI se pusesse em sua pista; e Gordon Lonsdale deve agradecer sua
perda tanto à estupidez de Harry Houghton quanto ao seu próprio descuido.

Esses fatos levam à conclusão de que o treinamento dispensado aos agentes


profissionais soviéticos é perfeito. E, na realidade, o é. Esse treinamento, porém,
dá origem a uma espécie de agente que nunca seria aceito pelos mestres da
espionagem britânica. Nas páginas que se seguem, explicaremos a razão do não
enquadramento dessa técnica soviética nos padrões do serviço secreto inglês.


5. Treinamento e Técnica

Os candidatos que passam pela Comissão de Seleção são naturalmente de duas


categorias — os que estudam em algum instituto de nível superior (universidade,
escola técnica, academia de oficiais ou a escola de treinamento do NCO); e
aqueles cuja educação está sendo feita ou concluem seu curso na Faculdade dos
Trabalhadores, ou em qualquer estabelecimento de padrão equivalente, como os
cursos noturnos de Engenharia, de Fotografia, de Rádio, etc. Os da primeira
categoria são, automaticamente, reservados para treinamento mais elevado, mas
devem concluir o curso que, no momento, estejam frequentando, antes de serem
submetidos ao treinamento para o serviço de espionagem. Em relação aos da
segunda categoria, cuida-se que um curso intermediário de treinamento lhes seja
ministrado.

O recrutado para um treinamento mais elevado é destinado a se tornar membro


do corpo de agentes de elite, os quais vão preencher postos em embaixadas,
serão diretores-residentes ou chefes de redes, e aos que possuem alguma
especialização caberá a tarefa de obter informações secretas da mais alta
importância. O exercício da espionagem requer, entretanto, certo número de
assistentes camuflados — homens que nunca são vistos, que não participam
diretamente das atividades de espionagem, mas que, de qualquer forma, são
elementos importantes. São eles os especialistas em rádio, em microfotografias,
os decifradores de códigos, que integram a equipe dos técnicos da organização.
Todas essas funções são desempenhadas por recrutas de treinamento
intermediário.

Acertadamente, o Centro exige que seus operadores, independentemente de sua


categoria, sejam jovens e gozem ótima saúde, já que a condição física do
candidato é a primeira a receber atenção das autoridades. O treinamento — seja
o candidato um estudante de grau elevado ou intermediário — se inicia por um
curso intensivo de educação física, em escolas especializadas. Aí o corpo do
recrutado é levado à mais alta forma física de que seja capaz. Ao mesmo tempo,
aprende noções de combate desarmado, adestra-se na utilização de armas de
fogo e em tudo mais que lhe possa ser de uso prático, como dirigir um
automóvel ou uma motocicleta. Posteriormente, em qualquer escola que esteja
frequentando, empregará boa parte do tempo em conservar seu físico em forma.
A espionagem soviética tem produzido alguns dos mais completos atletas da
Rússia.

Quando o treinamento físico estiver completo, o recruta iniciará, então, seus


estudos especializados. O que irá fazer no futuro já está decidido pela Divisão de
Recrutamento e Treinamento, do Primeiro Diretório. Essa Divisão, ao examinar
o candidato, leva em consideração não só os conhecimentos de que ele dispõe,
mas também outros predicados, como, por exemplo, a aparência física e as
habilidades naturais que nele possam ter descoberto. Dois cursos gerais, todavia,
devem ser completados por todos os candidatos: um, das línguas estrangeiras
que lhe foram atribuídas; e o outro, de técnica de espionagem.

Os cursos que o recruta deve seguir são ministrados por escolas especializadas.
Cada uma delas tem uma especialização. Por exemplo: se o candidato se destina
a operar em determinado país, passará a ser aluno de uma escola, especializada
em proporcionar o mais completo conhecimento daquele país — seus aspectos
caraterísticos, sua política e sua economia, os costumes do povo, etc. Ou então,
se ele deve aprofundar-se em certos pormenores da espionagem — coleta de
informações técnicas ou econômicas, por exemplo —, frequentará a escola que
irá prepará-lo para desempenhar as tarefas especiais, com o máximo de sucesso
possível. Se terá de ser um rádio-operador ou um especialista em códigos, será
então matriculado em estabelecimentos que só ensinem essas matérias.

O sistema soviético de treinamento dos seus agentes difere muito pouco, nesse
aspecto, das outras agências de espionagem, com exceção talvez do sistema
britânico. Este se baseia no bom senso e nas qualidades pessoais de seus agentes
e, com esses elementos, apresenta resultados tão satisfatórios que intrigam e
despertam a admiração dos dirigentes de muitas outras organizações. Se há
necessidade de um preparo técnico de qualquer espécie — rádio-operador, por
exemplo, —, os ingleses proporcionarão aos seus recrutados apenas o
treinamento que lhes permita executar essas funções de maneira toleravelmente
boa. Ser-lhes-á dada, também, instrução elementar sobre o que é preciso fazer
para preservar sua segurança. Na maior parte das vezes, todavia, o recrutado
deverá valer-se de sua própria iniciativa, para contornar os obstáculos. O fato de
o serviço secreto inglês ocultar, atrás de sua fachada de verdadeiro sigilo, alguns
dos maiores golpes de espionagem da História, indica que esse sistema de
formação casual de seus agentes ajusta-se perfeitamente ao temperamento
britânico e funciona com perfeito rendimento.

O sistema soviético, por outro lado — e nisso ele se parece bastante com o
sistema nazista e, mesmo, com o do Kaiser —, forma agentes tão altamente
especializados que, se forem postos em face de uma situação que não esteja “no
livro”, não saberão como agir. O sistema de treinamento, empregado pelo
Coronel Walter Nicolai e pelo Dr. Elsbeth Schragmuller, na Primeira Guerra
Mundial, e o de várias agências nazistas de espionagem da década dos trinta e da
Segunda Guerra Mundial, determinavam absoluta obediência a ordens superiores
e os agentes assim formados acabavam por se revelar incapazes de usar a própria
iniciativa. Só por essa razão, perderam-se numerosos agentes.

Mas, se os nazistas exigiam obediência absoluta, os russos, por seu lado, são, a
esse respeito, ainda muito mais exigentes. A submissão à disciplina do Partido e
do Estado controla a vida russa, em todos os sentidos. O Manual de
Organização, publicado pelo Comitê Central do Partido Comunista Russo,
determina: “O Partido exige tudo de seus camaradas. . . O revolucionário
profissional não pode ser indisciplinado. Nada o pode abalar. O que dele for
exigido, ele o fará.” E os cidadãos soviéticos estão tão profundamente
influenciados por esses princípios, e se revelam tão condicionados pelos castigos
que têm sofrido por demonstrações de fraqueza ou de desobediência, que já
eliminaram de suas mentes qualquer noção de iniciativa.

O russo obedecerá a ordens, mas, se elas não forem contínuas, não agirá por si
mesmo. Até 1941, esse medo acusava reflexos mesmo no Exército. No dia 21 de
junho de 1941, quando as divisões de Hitler atravessaram o rio Bug, as unidades
russas, do lado oposto, enviaram insistentes mensagens, não-cifradas, dizendo,
em tom de lamento: “Estamos sendo atacados. Que devemos fazer?” Um dia
depois, as tropas alemãs encontraram intacta a vital ponte de Kodena e, quando
interrogaram o oficial russo, responsável por sua defesa — que fora feito
prisioneiro — por que não a havia destruído, assim que avistou as primeiras
unidades alemãs, ele respondeu: “Não tinha ordens para fazê-lo e não pude
encontrar um oficial superior disposto a me dar tal ordem, sem permissão do
Comando.”

O recrutado, portanto, é condicionado a obedecer, muito tempo antes de


ingressar na espionagem e, já que a mais estrita obediência lhe é exigida também
durante o seu treinamento para o serviço secreto, ao concluir o curso é um espião
altamente qualificado, mas acusando muitas e graves limitações. A preocupação
do detalhe, através da qual o treinamento lhe é dado, tem por objetivo justamente
fazê-lo vencer essas limitações. Convém ressaltar, entretanto, esta evidência: o
imprevisto, que se pode apresentar em qualquer campo da atividade humana,
acusa seu mais elevado índice de incidência justamente na prática da
espionagem. Dessa forma, e por não haverem recebido instruções no sentido de
enfrentar o inesperado, numerosos bons espiões soviéticos têm sido sacrificados.

Esse espírito de obediência é ressaltado ainda por um terceiro curso geral que
todos os recrutas devem seguir — um curso intensivo de doutrinação política,
aliado a um estudo das atividades revolucionárias. Essa dupla preparação é
destinada tanto a impregnar o candidato com a idéia do “patriotismo acima de
tudo” — como uma arma contra a sedução das ideologias democráticas e contra
o sistema de vida do Ocidente — quanto a permitir a formação de homens
altamente treinados em atividades subversivas, os quais, ao mesmo tempo em
que cumprem seus deveres de espiões, possam, se uma oportunidade se lhes
apresentar, levar à frente os objetivos da revolução.

Não é possível dizer-se com certeza qual o número de escolas mantidas pela
Divisão de Recrutamento e Treinamento, embora se calcule que se elevem a
cerca de vinte ou trinta. Os recrutados são reunidos em pequenos grupos, e todos
os membros desses grupos são treinados para tarefas específicas.

O grupo é conservado unido através de todo o treinamento e tomam-se


providências no sentido de que apenas um grupo frequente a escola, de cada vez.
O objetivo é restringir, tanto quanto possível, o contato do agente com seus
colegas, o que é feito como medida de segurança.

Iguais medidas estritas de segurança são aplicadas dentro do próprio grupo. Cada
agente tem um nome-de-guerra pelo qual é conhecido entre os demais figurantes
do grupo, e também por seus instrutores. É-lhe proibido, sob pena de demissão
ou de severo castigo, divulgar seu verdadeiro nome a quem quer que seja. Todas
as cartas que lhe são escritas, endereçadas para a escola, são abertas por um ou
dois censores, os únicos que conhecem a sua verdadeira identidade. Essas cartas
são lidas e, se aprovadas, entregues ao destinatário, sem envelope. Se, ao
contrário, é o recrutado quem escreve, suas cartas são submetidas aos censores,
os quais se encarregam de enviá-las, caso o conteúdo seja aprovado.

Uma vez matriculado na escola, o estudante não mais poderá ausentar-se dela
sozinho. Só deverá fazê-lo com os demais companheiros de grupo, e sempre
acompanhado de um dos membros da direção do estabelecimento. Pode receber
a visita de dois parentes uma vez ao mês, e as esposas — a organização admite
agentes casados, já que suas esposas e filhos constituem excelentes reféns,
garantidores do bom comportamento do agente que trabalhe no exterior —
podem frequentar o baile mensal, realizado no salão da escola. Namoradas,
entretanto, não têm permissão para visitar o estabelecimento — proibição esta
que parece ser uma consequência da impossibilidade de se testar uma pessoa
num prazo curto. Nos bailes, a hospitalidade é generosa, e assim o fazem com o
objetivo de manter o estudante materialmente feliz, tanto quanto possível. Nesse
sentido, é aliviado das responsabilidades financeiras de sustentar a família e de
atender às próprias despesas. Os encargos familiares são pagos diretamente pelo
Ministério do Interior, e suas despesas pessoais cobertas por um pequeno
ordenado, que lhe é facultado.

Tendo completado satisfatoriamente o curso, o estudante se torna então


aspirante, sendo enviado para servir numa das unidades da Polícia de Segurança
da Rússia. Durante esse período, é designado para desempenhar certas tarefas,
que o auxiliam a adquirir experiência prática e a iniciar-se, gradativamente, em
seu futuro trabalho e em sua vida. Nesse sentido, poderá ser designado, por
exemplo, para manter sob vigilância algum diplomata estrangeiro; fazer-se
passar por guia da Inturist, com a missão de acompanhar visitantes de outros
países — de forma a fazê-lo entrar em contato com a burguesia estrangeira —,
frequentar festas de comunistas de outras nações, ou de sindicatos; e fazer-se
presente às reuniões de delegados, representando o papel de guia e de orientar
geral. Poderá ser enviado, igualmente, para uma alfândega ou para um posto da
fronteira, onde seja submetido a testes e a tentativas de fraude, a fim de que
sejam conhecidas suas reações e posta a prova sua fidelidade política. Deverá,
ainda, participar de certas missões que revelem sua astúcia, como, por exemplo,
testar o sistema de segurança de um campo de aviação ou de uma fábrica
empenhada num trabalho secreto.

Tendo vencido com êxito esse estágio, o recrutado é submetido a outra junta.
Nesta, são-lhe expostas novamente as condições do seu serviço, quando então
assinará um juramento de que as observará. Nessa ocasião, já lhe fora também
amplamente esclarecido que, se violar quaisquer daquelas condições, poderá
perder a vida, e a mesma sorte recairá sobre todos os seus parentes.

Terminado todo esse treinamento, o recrutado está apto para entrar em função.
Pode ser designado para uma embaixada, como assessor, ou para substituir
algum elemento de uma rede. Onde quer que vá, entretanto, terá de adotar não só
um novo nome, mas uma identidade inteiramente nova. Essa identidade deve ser
tão profundamente assimilada que, às vezes, poderá ter dificuldade em se
lembrar de quem realmente seja.

Onde quer que operem, as redes obedecem, quase sempre, a um esquema.


Consiste ele num certo número de células, cada uma delas ocupando-se de uma
tarefa específica. Na chefia da rede está o Diretor-Residente, que é a via de
comunicação entre o Centro, cm Moscou, e os vários integrantes da respectiva
rede. Recebe as instruções destinadas aos agentes e as distribui entre as células.
Para ele é enviado, igualmente, o numerário necessário para a manutenção do
serviço, sendo-lhe exigido que mantenha uma perfeita contabilidade em relação
ao dinheiro gasto. São-lhe endereçadas ainda todas as informações obtidas pela
rede, as quais, progressivamente, ele transmite para Moscou. O contato com
Moscou é feito pelo rádio, embora, em certas circunstâncias, o seja por
mensagem verbal ou carta, utilizando-se um emissário. A ligação entre a célula
ou o agente com o Diretor-Residente é processada através de um intermediário
ou mensageiro. O Diretor não mantém contato com ninguém, exceto com seu
emissário-isolador, ou seu rádio-operador, embora, no último caso, possa
utilizar-se — e frequentemente o faz — de um emissário-isolador para entrar em
comunicação com seu rádio-operador.

Em tempo de paz, a menos que seja num caso de emergência, o rádio-operador


comunica-se, duas vezes por mês, com Moscou. Às vezes, age como técnico em
código da rede e, nesse caso, recebe o material que o Diretor-Residente lhe envia
em redação comum e o cifra para a transmissão, muito embora na maioria das
vezes esse material já lhe chegue às mãos no próprio código utilizado pelo
Residente. Nenhum código poderá ser utilizado por qualquer outro elemento da
organização.

Para os relatórios longos, o Serviço Soviético de Espionagem está usando,


atualmente, e de maneira extensa, a micro-fiImagem, o que requer a presença, na
rede, de um técnico nessa especialidade. Quando os microfilmes são utilizados, o
Diretor-Residente os coloca anexos a inocentes cartas e os envia para Moscou,
pelo correio comum, ou então são endereçados a um país vizinho, de onde o
adido militar se incumbirá de mandá-los para a Rússia no interior da mala
diplomática. Esse contato com o adido militar é feito através de linha dupla: o
Centro o utiliza quando julga que as comunicações radiofônicas são deficientes,
ou então para a remessa de fundos.
Normalmente, os agentes são pagos na moeda corrente do país em que estão
trabalhando, mas o valor é calculado em dólar americano. Um Diretor-Residente
recebe, aproximadamente, de 80 a 160 libras por mês, de acordo com a posição
social que seu disfarce requer. Um rádio-operador pode receber entre 30 a 60
libras mensais, mas a maioria dos agentes é paga na base das tarefas realizadas.
Ocasionalmente, um agente, já de longa estabilidade, pode ser remunerado
através de um salário fixo. As tarefas especiais geralmente dão direito a uma
gratificação extra. De modo geral, os níveis dos ordenados são baixos e,
frequentemente, quando o agente já ganha algum dinheiro, proveniente da sua
profissão simulada, só percebe a retribuição que lhe é devida por despesas
especiais que, por acaso, seja obrigado a fazer, quando em ação de espionagem.
Os soviéticos adotaram esse sistema, baseados na comprovação de que nada
desperta maior atenção do público do que um empregado ou um jornalista viver
acima do que possa ganhar em seu trabalho. Por outro lado, há casos em que
certos agentes recebem salários tão elevados que não estão em proporção com os
deveres que lhes competem. Vladimir Petrov, que desertou na Austrália, onde
era funcionário de categoria da embaixada russa, recebia o equivalente a 450
libras australianas, o que corresponde ao salário do Diretor do Serviço de
Segurança Britânico.

Quando os salários não são pagos no local em que o agente exerce sua atividade,
são creditados na conta particular do espião, aberta num banco em Moscou.
Acontece então que, se o agente tem uma longa carreira de atividades, um
razoável pé-de-meia estará acumulado para quando ele se aposentar, uma vez
que essa quantia está acima e é independente da quota paga à sua família, se for
casado.

Os métodos de operação utilizados pelos agentes, quando em ação, serão mais


bem compreendidos nos próximos capítulos, quando o trabalho das redes
específicas for descrito. Será útil revelar desde já, entretanto, alguns breves
detalhes de como, na prática, esses espiões desenvolvem as suas atividades.

Não obstante a ocorrência de alguns casos de importância — particularmente o


de Lonsdale, em que a não observância de certas normas de segurança resultou
na descoberta da inteira rede de espionagem; o de Harry Houghton, que, com
sofreguidão, esbanjava dinheiro nos bares em torno de Portland; e, por fim, o
próprio estranho comportamento de Lonsdale, ao estabelecer contato com
Krogers, ao invés de o fazer através de um emissário-isolador —, a insistência
dos soviéticos no que se refere a segurança parece quase uma obsessão.
Não nego que alimento grande admiração pelo Centro, no que diz respeito a essa
atitude. Muitos espiões soviéticos têm sido apanhados, mas isso vem ocorrendo
mais por falta de precaução do que por outro motivo. Qualquer pessoa que tenha
um conhecimento, superficial que seja, da história da espionagem, logo se
convence de que o cuidado, quase sempre desagradável, dispensado às normas
de segurança, é sobejamente compensado pela certeza de uma relativa
imunidade ao perigo do desmascaramento. No entanto, por maior que seja a
precaução que se tenha na articulação de um perfeito sistema de controle, o que
é exigido dos agentes soviéticos a esse respeito pode ser considerado fantástico.
Em face de tanta precaução, a teoria, que somos tentados a apresentar, é a de que
essa insistência oficial acaba sendo a causa do cansaço dos mais astuciosos
agentes, os quais, assim, se deixam colher, ao deixarem pistas que, mais cedo ou
mais tarde, os levam à ruína.

Essa insistência, em relação à segurança, aparece em todos os aspectos das


operações da espionagem russa. Provavelmente, porém, onde melhor ela pode
ser observada é nas providências tomadas por ocasião do estabelecimento do
contato entre dois agentes. Essas providências, em qualquer situação, são sempre
reduzidas ao mínimo possível, mas, quando planejadas, obedecem a um plano
minuciosamente concebido. Vejamos um exemplo. A respeitável dona-de-casa
de St. John’s Wood deu a Alexandre Foote as instruções, que ele devia seguir,
para encontrar seu contato em Genebra. Essas instruções eram as seguintes: “No
dia imediato à sua chegada a Genebra, você terá de estar em frente ao edifício do
Correio Geral, no momento exato em que o relógio soar as doze horas. Usará um
cachecol branco, por fora do casaco, de modo a que seja bem visível, e, em sua
mão direita — não na esquerda, e lembre-se disso —, deverá levar um cinto de
couro. Um segundo ou dois após a última badalada das doze, uma mulher se
aproximará de você. Em uma das mãos, ela levará uma bolsa de corda trançada,
no interior da qual você poderá ver um embrulho de papel verde, e na outra mão
terá uma laranja. A mulher se dirigirá a você e iniciará a conversa nestes termos:
“Desculpe-me, mas onde comprou esse cinto?” E você responderá: "Num
ferragista em Paris.” E tudo se passou como havia sido recomendado.

As maiores recomendações se fazem no sentido de que os agentes sejam


absolutamente pontuais em seus encontros. Se um ou outro não consegue chegar
na hora exata, o outro não deve esperar, para não atrair a atenção. Nesse caso,
novos entendimentos são feitos, de forma a que outro encontro se realize, mas
em local diferente.
Não apenas na realização dos contatos a segurança é imprescindível. Para evitar
frequentes reuniões, são inventadas "caixas de correio”. Trata-se de locais em
que informações escritas podem ser escondidas pelo agente e apanhadas, mais
tarde, pelo contato. Algumas dessas “caixas”, ideadas pelos soviéticos, são tão
melodramáticas que parecem retiradas de alguma novela fantástica. Certa vez, na
Suécia, essa “caixa de correio” era uma lata enferrujada, escondida num lugar
distante, situado num dos subúrbios de Estocolmo. Algumas vezes, as livrarias
públicas são usadas, e o agente deixa a sua mensagem, em código, num livro
predeterminado. O contato penetra na livraria mais tarde, e a copiará. Grampos
de cabelo, colocados em certa posição, numa cerca de arame, têm servido,
igualmente, para transmitir uma mensagem.

Todo o sistema de funcionamento, assim como a estrutura interna de uma rede, é


concebido para disfarçar, ao máximo, a identidade do maior número possível dos
agentes operadores. Esse cuidado tem se revelado de tanto êxito que, quando
uma rede é denunciada, em consequência da deserção de um agente, as
autoridades nunca estão certas de que poderão desmontá-la por inteiro. E, na
realidade, jamais o conseguem. Mesmo quando Igor Gouzenko exibiu um acervo
de documentos, relacionados com a existência de um anel de espionagem
atômica, no Canadá e nos Estados Unidos, só oito anos mais tarde é que a
política canadense descobriu que uma rede paralela havia continuado a funcionar
imperturbavelmente, apesar do desmantelamento da organização chefiada por
Zabotin.

Em vista de todas essas circunstâncias, não pode haver dúvida de que, hoje, a
espionagem soviética é uma das mais poderosas armas não apenas da URSS,
mas também do mundo comunista. Estende seus tentáculos por todo mundo, a
cada ano que se passa, introduz, em sua estrutura, novos instrumentos de
agressão, sempre concebidos tendo em vista a imposição de uma eventual
supremacia do comunismo no mundo. Se esses objetivos têm de ser frustrados,
um violento antídoto deve, então, ser aplicado, e de maneira drástica.

A aplicação desse antídoto não constitui, como se poderá supor, uma


responsabilidade das agências de contraespionagem.

Por ocasião do julgamento de Vassall, a Dame Rebecca West escreveu, em seu


sumário do processo: “O problema da segurança é tão agudo, hoje em dia, que o
público deve fazer o que lhe estiver ao alcance para preservar a sua salvação. O
Parlamento e a imprensa precisam também abandonar os interesses partidários e
orientar a comunidade, a una voce, sobre a extensão, a natureza e também os
prováveis efeitos da espionagem inimiga.”

Nossa intenção aqui é justamente realizar esse objetivo. Estudando as


realizações da espionagem soviética no passado, talvez possamos — segundo
esperamos — adquirir alguma noção do que nos espera no futuro, tendo sempre
em mente o aperfeiçoamento, tanto das técnicas das operações de espionagem,
como o da vulnerabilidade do ambiente político.


Segunda Parte
ENTRE AS GUERRAS
1. França

Para o leitor cuja memória dos acontecimentos de logo após a Primeira Guerra
Mundial já se tenha quase dissipado, constituirá certamente uma surpresa a
recordação de que, no início de 1922, a União Soviética e a Alemanha assinaram
o tratado de Rapalo. Por esse documento, os dois países desistiam de qualquer
indenização de guerra e se ofereciam mutuamente a posição de “país mais
favorecido” na esfera econômica. A União Soviética tinha a intenção de incluir,
naquele tratado, algumas cláusulas relativas a uma cooperação militar entre os
dois países; essa pretensão, entretanto, não pôde ser concretizada, em face da
intervenção da França.

Essa intervenção representou, apenas, mais um ato inamistoso da França à


Rússia. Foi com armamentos e assistência financeira da França que a Polônia
escapara de ser invadida pelos russos e de ser incorporada à União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas. A França, igualmente, protegeu a Romênia,
evitando que ela tivesse idêntica sorte. Foi a França, por fim, que, dominando o
cenário político europeu, além dos atos já citados, hostilizou, de maneira franca,
os planos de expansão da União Soviética. Só depois que a Grã-Bretanha e a
Itália reconheceram o governo da Rússia é que a França se decidira a trocar
credenciais com as autoridades de Moscou.

De todos os países aliados, que se viram envolvidos na guerra, a França fora a


que se revelara mais ativa na fabricação de armamentos e de aviões — material
este do qual a União Soviética sofria aguda escassez — e também no
aperfeiçoamento das técnicas de como produzi-los. Assim, em face da
hostilidade, que vinha demonstrando em relação a tudo o que era russo e ao
poderio militar que estava construindo, ela passara a ser um alvo altamente
interessante para a espionagem soviética.

Entre a decisão de espionar a França e a de levar a efeito, de modo prático, essa


tarefa, verificou-se, todavia, um prolongado hiato. Até o estabelecimento de uma
embaixada russa em Paris, a Inteligência Soviética teve de se valer, através do
Comintern, da cooperação do Partido Comunista Francês. E nessa situação
ambígua repousavam todas as dificuldades do problema.

A independência que os regimes de Tito e de Hodja revelam, hoje,


respectivamente na Iugoslávia e na Albânia, logo os colocou fora dos padrões
usuais de funcionamento dos governos comunistas. A Rússia, ou melhor, o
Partido Comunista Russo, sempre alimentara a ambição de dirigir a revolução
mundial de acordo com seus próprios desígnios e, nesse sentido, procurava
submeter, ao arbítrio de Moscou, todos os demais partidos comunistas do
mundo. Seria uma reprodução da situação que hoje configura as suas relações
com os países satélites — todos eles obrigados a seguir as pegadas da linha
traçada pelo Kremlin.

Logo após a Primeira Guerra Mundial, o Partido Comunista Francês


demonstrou, como Tito, que possuía idéias próprias. Não se poderia dizer que
fosse uma poderosa organização partidária, já que não contava, para fortalecer
seus quadros, com a cooperação de homens de projeção, de renomada
inteligência ou de profundas convicções marxistas-leninistas, que lhe pudessem
emprestar relevo intelectual ou prestígio político dentro de um país em que as
velhas instituições governamentais ainda não haviam sido influenciadas por
convulsões sociais internas, como as que se verificaram, por exemplo, na Itália e
na Alemanha.

De todas as principais agremiações da Internacional, o Partido Comunista


Francês representava uma exceção à regra geral. Seus delegados compareciam
aos Congressos e subscreviam as resoluções aprovadas, mas essa atitude não
passava de uma simples manifestação de solidariedade, sem implicar em
qualquer compromisso. De regresso à França, esses delegados e seu partido
procediam de modo próprio. Em face dessa situação, logo começaram a surgir
queixas de que o Comitê Central do partido francês estava-se desviando das
linhas traçadas pelo Comintern. Essas reclamações, entretanto, tiveram pouco ou
nenhum efeito sobre o ânimo dos líderes franceses, que, apesar da pressão de
Moscou, permaneciam fiéis ao ponto-de-vista de que a Internacional deveria ser
uma aliança, e não um instrumento para impor às agremiações políticas
nacionais uma atitude de subserviência ao Partido Comunista Russo.

O posto avançado da espionagem soviética — como será descrito nos próximos


capítulos — havia sido estabelecido em Berlim, e dali partiam as ordens
destinadas aos agentes recrutados pelos quartéis-generais, cuja missão era
trabalhar na Alemanha, na Bélgica e na França.
Nessa época, a organização se ressentia da falta de profissionais treinados e, por
isso, tornara-se imperativo que alguns deles — na maior parte, poloneses e
judeus — tivessem de receber a assistência de membros dos partidos locais. Em
relação a esse assunto, o partido internacional e o francês alimentavam,
igualmente, irreconciliáveis pontos de divergência. Fazer espionagem
contrariava os princípios das entidades sindicalistas da França e, desde que o
serviço secreto russo estava vivamente interessado em obter informações sobre o
que vinha sendo produzido nas fábricas do país, tornava-se muito difícil, para os
seus dirigentes, o recrutamento de subagentes, nos círculos trabalhistas, em
quantidade que fosse satisfatória. Isso não queria dizer, entretanto, que os russos
não obtivessem qualquer êxito nessas tentativas, mas explica, por outro lado, a
razão por que não foram brilhantes, naquela época, as realizações de espionagem
soviética, nos meios sindicais franceses. Além disso, os poucos que concordaram
em cooperar com os russos não possuíam qualquer capacidade técnica,
indispensável às atividades de espionagem, o que constituía um grande perigo, já
que as agências de contraespionagem se mostravam profissionalmente
aparelhadas e agiam segundo os melhores padrões universais.

Entre os que se dispuseram a cooperar, em época anterior a 1924, estavam Henri


Coudon e sua amante, Marthe Morrisonnaud, que se ofereceram para obter
informações sobre segredos da aviação francesa. Mal começaram a operar,
porém, e já a contraespionagem os prendera, descobrindo, em poder de ambos,
um relatório sigiloso sobre problemas de aviação. Outra operação, realizada
nesse mesmo campo, e coroada de melhor êxito, foi a desempenhada por Joseph
Tomasi, que era o secretário-geral do Sindicato dos Trabalhadores em
Automóveis e Aviões. Não se tratava de um agente de tempo integral e, por isso,
a colheita que fazia era reduzida. Conseguiu ele, entretanto, evitar qualquer
suspeita pelo período de dois anos, e quando, por fim, a contraespionagem se pôs
em sua pista, conseguiu evitar a captura, fugindo para Moscou, onde faleceu em
1926.

A primeira ocorrência de relevância, referente à espionagem soviética na França,


ocorreu em 1924. Jean Cremet, secretário da filial da União dos Construtores
Navais, que se localizava em St. Nazaire, e secretário da União dos
Metalúrgicos, fora designado para chefiar a rede francesa, o que, na época, não
passava de um eufemismo. Era ele, igualmente, membro do Comitê Central
Francês e, sendo um “homem de Moscou”, essa circunstância contribuiu,
provavelmente, para que os chefes moscovitas se mostrassem cegos em relação a
quaisquer deficiências que pudesse revelar.
No período de três anos, sem que seus colegas de Partido tivessem ciência,
Cremet organizou o que se poderia chamar, realmente, uma rede de espionagem,
com irradiação por todos os objetivos de importância, existentes na França,
inclusive fábricas de munição, indústrias aeronáuticas e estaleiros de construção
naval. Embora a embaixada soviética já estivesse, então, instalada em Paris, e a
direção do serviço secreto russo nela se encontrasse abrigado, tão conceituado
era Cremet, junto aos dirigentes do Centro, que, com frequência, viajava para
Moscou, a fim de, pessoalmente, fazer a entrega de seus relatórios. E as
informações, denominadas “intermediárias”, ele as enviava, por um mensageiro,
para Berlim, de onde logo eram retransmitidas para a capital russa.

Essa situação durou até os fins de 1925, quando o Centro designou um Diretor-
Residente para a França. Tratava-se de um agente de alguma experiência,
chamado Uzdanski, que, anteriormente, servira em Varsóvia e em Viena.

Em Paris, Uzdanski passava por ser um artista e usava o falso nome de Abraham
Bernstein. Seu emissário-isolador era um jovem estudante lituano, de nome
Stefan Grodnicki.

As instruções que Uzdanski recebera do Centro eram precisas. Teria de informar


às redes francesas que qualquer detalhe referente a artilharia, a granadas, a
aviões, a construção naval, a movimentos de tropas e de tanques deveria ser
remetido para Moscou. Tratava-se de uma ordem de relevância, e para a sua
execução seria necessária a existência de extensas redes. Uzdanski julgou,
entretanto, que apenas a existente organização de Cremet constituía uma
excelente base para apoio de futuras operações, e também que os contatos de
Cremet se mostravam tão amplos que ele quase poderia produzir, sozinho, o
resto do que era necessário ser feito.

Tudo correu bem por espaço de quase um ano, quando Cremet passou a
enfrentar dificuldades, criadas por um comunista francês da linha “ortodoxa”,
chamado Cochelin. Este, que trabalhava nos arsenais de Versalhes, fora
abordado por Cremet, que lhe pedira para obter informações, em seu local de
trabalho, sobre tanques e explosivos. Na primeira entrevista, Cochelin recusou-
se a cooperar. Cremet, porém, determinado a obter o que desejava, tentou uma
segunda aproximação. Novamente Cochelin negou-se a cooperar, mas não de
maneira tão peremptória como o fizera da primeira vez. A impressão que Cremet
teve foi a de que Cochelin havia refletido e, se fosse outra vez abordado, apesar
de ser um comunista militante, levaria o fato ao conhecimento do Ministério da
Guerra. E foi o que aconteceu.

O serviço de contraespionagem já tinha ciência de que espiões se achavam em


atividade no Colégio Militar de Versalhes e de que essa tarefa era executada
pelos russos. Em face dos naturais embaraços que, fatalmente, iriam causar à
recém-criada embaixada soviética, se fossem iniciadas sindicâncias sobre o caso,
as autoridades francesas julgaram melhor não intervir logo na questão.

As informações de Cochelin, entretanto, eram de suma gravidade para as


autoridades francesas se permitirem o luxo de levar em consideração os
sentimentos russos por mais tempo. Fora decidido então que, quando qualquer
providência tivesse de ser tomada, as provas a serem exibidas deveriam ser
insofismáveis, e Cochelin foi persuadido a apresentar essas provas.

No dia 5 de fevereiro de 1927, Cochelin concordou em responder a uma lista de


perguntas, que Cremet lhe formulara. As respostas foram preparadas por
técnicos do Ministério da Guerra. Foram elas levadas a Uzdanski, através do seu
“isolador” Grodnicki, por Cochelin, num encontro próximo da Madaleine, e
observado pela contraespionagem. Os agentes franceses seguiram Grodnicki,
que os levou a Uzdanski, sendo ambos presos. Nos dias que se seguiram, foram
detidos Cremet, sua amante Louise Clarac, bem como seus principais assistentes.

Essas prisões provocaram um daqueles escândalos muito do gosto dos franceses,


e o caso serviu como uma advertência às outras nações, no sentido de que os
protestos de amizade do governo da Rússia em relação aos demais países, bem
como sua total falta de interesse nos negócios internos das nações, não passavam
de pura mistificação.

Tendo desmascarado essa secreta ameaça, o governo francês decidiu que poderia
ser clemente com os culpados. Entretanto, parece que subestimou a relativa
importância das funções desempenhadas por Uzdanski e por Grodnicki, uma vez
que este ultimo só foi condenado a cinco anos de prisão, enquanto o primeiro
recebeu apenas três de reclusão. Uma pequena sentença foi, também, aplicada, à
revelia, a Cremet e a Louise Clarac, os quais também haviam conseguido fugir
para a Rússia.

O julgamento, que se realizou sob os maiores protestos dos comunistas, sob a


alegação de que todo o processo fora forjado, a fim de desacreditar o Partido e a
Rússia, veio revelar a que ponto tinham chegado, na França, as atividades da
espionagem russa. Apesar disso, porém, uma rede não foi perturbada pelo affaire
e continuou a operar, no país, pelo período de mais um ano.

Essa rede, que fora implantada por Cremet, na oficina de impressão do Colégio
Militar de Versalhes, transmitia cópias de todos os documentos militares
secretos, que lhes passavam pelas mãos, à Inteligência Soviética. Seus
integrantes vieram a perder-se, consequentemente, por falta de experiência no
julgamento do caráter de um dos elementos de quem se aproximaram, a fim de
conseguir informações adicionais sobre as ordens de mobilização do Exército e
da Força Aérea.

O cabo — tratava-se de um cabo — a quem ofereceram dinheiro por essa


informação levou o fato ao conhecimento das autoridades, e o agente que o havia
abordado foi preso. Este, interrogado, confessou tudo, revelando, inclusive, os
nomes dos outros dez membros da rede. O fato de que assim tenha procedido
demonstrou a ignorância da técnica de espionagem, por parte daqueles
amadores. Apenas o russo que substituíra Uzdanski conseguiu escapar e pôde
fazê-lo somente porque obedecera às normas que regem a espionagem e se
identificara tão-só por seu nome-de-guerra, Paul. Mesmo assim, procurara
sempre disfarçar-se de forma que nenhuma descrição de sua pessoa pudesse
coincidir com a de qualquer russo conhecido.

Embora a União Soviética houvesse sofrido um grande golpe em seu prestígio,


em virtude do caso Uzdanski, nem Cremet nem o Kremlin nem o Centro
julgaram houvesse qualquer motivo para que sua espionagem na França, ou em
qualquer outra parte, fosse sustada. Com efeito, certas modificações se
introduziram na organização desse serviço. As embaixadas, por exemplo, não
mais deviam ter entendimentos com as agências comunistas nacionais, mas,
mesmo assim, não deveria ser interrompida sua atividade, no sentido de estar
sempre a par dos segredos de importância.

Para substituir Uzdanski e Cremet, surgiu então no cenário francês um homem


cuja verdadeira identidade nunca foi descoberta, embora muitos fatos relativos
ao seu passado viessem a ser conhecidos. Tratava-se de um bolchevique da velha
guarda que havia sido exilado na Sibéria e se engajara em atividades
clandestinas, durante alguns anos, antes da Revolução. Em 1929, podia-se dizer
que estava nos meados da casa dos quarenta anos.

Era conhecido, apenas, como Paul. Foi a ele que a rede de St. Cyr entregara o
resultado de seu trabalho. Mais tarde, fora identificado como um homem que se
fazia chamar General Muraille, mas, mesmo essas circunstâncias não
conduziram a qualquer indicação sobre o seu verdadeiro nome.

Por haver sido um velho bolchevique da velha guarda ele se revelava


profundamente impregnado do ideal de uma revolução mundial, e todos os seus
esforços, no campo da espionagem, eram devotados a preparar o terreno para a
realização desse objetivo. Desde que o Partido Comunista Francês, em sua
opinião, não se mostrava suficientemente revolucionário, como ele desejava,
nunca o levou em consideração, e foi por isso talvez que teve a idéia de se
entregar à técnica da espionagem, isto é, ocultar-se sob nomes supostos, não
revelar a ninguém sua identidade, pois, em sua longa e brilhante carreira, sempre
conseguiu ludibriar a vigilância da contraespionagem, até que, um dia, foi traído.

As ordens que Paul recebia do Centro eram idênticas àquelas que haviam sido
dadas a Cremet e Uzdanski. Teria de descobrir tudo quanto pudesse sobre a
situação militar francesa, com atenção especial dispensada às novas armas,
particularmente à aviação. Apesar de sua natural aversão ao Partido Comunista
Francês, e das ordens de Moscou no sentido de se evitar a utilização das
agremiações políticas locais para fins de espionagem, Paul julgou que, se não lhe
fosse possível convocar sua própria mão-de-obra, nada de eficiente poderia
fazer. Nessas condições, com a permissão de Moscou, fez contato com o chefe
do Partido Francês, Henri Barbé, a quem explicou que estava encarregado de
selecionar jovens interessados em fazer um curso de estudos de marxismo-
leninismo, na capital russa. Não tendo razão para duvidar dele, Barbé colocou-o
em contato com certas organizações juvenis.

Em pouco tempo, Paul já havia organizado algumas redes, integradas por jovens
que encontrara naquelas associações juvenis, os quais, embora não tivessem o
mesmo descortino dos agentes mais velhos, mostravam-se, em compensação,
entusiasticamente dispostos a cooperar. Conquanto mantivesse espiões nas
fábricas de aviões e nos estaleiros navais, o que mais lhe interessava era a
indústria de munições, situada em Lyon. Dessa fábrica, conseguiu obter plantas
dos mais modernos tipos de avião.

Paul, entretanto, não se apoiava exclusivamente na nova geração. E foi


justamente sua associação com um antigo comunista, Vicent Vedovini, que
trabalhava como engenheiro naval nos estaleiros de Marselha, que,
consequentemente, o levou a ser descoberto. Tendo preenchido diversas listas de
perguntas, que lhe tinham sido formuladas por Paul, Vedovini — já que motivos
pessoais o haviam convencido de que era tempo de parar de espionar — decidira
entregar a última lista à polícia, com informações que a habilitaram a identificar
o agente. Este, entretanto, previamente avisado, conseguiu fugir para o exterior.
Na primavera do ano seguinte, confiando em poder escapar à vigilância da
contraespionagem francesa, voltou à França e foi imediatamente preso.

Em seu julgamento, em setembro de 1931, Paul negou que se houvesse


envolvido em espionagem e, quando solicitado a explicar as provas documentais
apresentadas pelas investigações, bem como o depoimento prestado por
Vedovini, alegou ser apenas um escritor e que se ocupara tão-somente em colher
informações para um romance. O tribunal não se deixou convencer por suas
alegações e o sentenciou a três anos de reclusão. Quando foi libertado, Paul
voltou para a Rússia, e nunca se teve notícia dele.

Em consequência desse caso, Elenri Barbe foi intimado a ir a Moscou, onde


tentaram induzi-lo a assumir a direção das atividades secretas na França.
Recusou-se firmemente a fazê-lo, sob a alegação de que se tratava de uma
atividade à qual os comunistas franceses não se deviam entregar. Dentro desse
ponto-de-vista, manteve-se irredutível, resistindo a todas as persuasões e
argumentos dos soviéticos. Ao proceder dessa forma, porém, assinara o seu
próprio atestado de óbito político. Pouco tempo depois, era substituído por
Thorez e Duelos, ambos homens da confiança de Moscou.

Sob Thorez e Duelos, foi posto em prática, na França, novo sistema para coleta
de informações, de uma forma que se mostrara eficiente na Rússia, embora ali
realizado com finalidades inteiramente diferentes. Quando os comunistas
tomaram as rédeas do governo da Rússia, suprimiram todos os antigos jornais e
fundaram outros. Com os antigos jornais, desapareceram, igualmente, os velhos
jornalistas, e os novos periódicos logo descobriram que lhes faltavam fontes de
informação. Para suprir essa lacuna, instituíram então um esquema, denominado
Rabcor — Correspondentes dos Trabalhadores. De acordo com esse esquema,
todas as pessoas — se assim o desejassem — poderiam mandar para as redações
qualquer notícia que julgassem poder interessá-las. Um sistema Rabcor foi então
inaugurado na França, e os correspondentes operários eram estimulados a colher
e a remeter para a sede da organização qualquer tipo de informação,
especialmente as relacionadas com a indústria bélica francesa. Recebida a
informação, era ela cuidadosamente arquivada, e todos aqueles itens que
acusavam particular interesse para a Inteligência enviavam-se para a embaixada,
enquanto os inocentes, ou sem importância, eram reproduzidos nos jornais. Essa
iniciativa provou ser uma fonte de informações da maior relevância para a
Inteligência.

Através dessa atividade do Rabcor, um jovem estudante comunista, chamado


Riquier, foi indicado, por Duelos, para trabalhar na redação de L’Humanité — o
jornal comunista francês —, a fim de servir ali de espia e de elemento de ligação
para a espionagem soviética. Esse cargo fora exercido, anteriormente pelo
polonês Izaia Bir, que, tendo sido exilado de sua terra, fora para Toulouse
estudar engenharia, sendo ali atraído pela rede soviética. O lugar-tenente de Bir
era outro polonês emigrado, jovem ainda, por volta de seus vinte e poucos anos,
chamado Alter Strom, que pela primeira vez fora a Paris em 1929.

Sob a direção desses dois homens, a organização soviética, na França, pôde ser
recuperada, com rapidez, dos danos sofridos por ocasião do affaire Paul, sendo
justo dizer-se que esse êxito foi baseado, quase inteiramente, nas informações
fornecidas pela insuspeitada Rabcor.

Não eram só os operários-correspondentes que ignoravam o fim dado a suas


informações. Por muito tempo, o próprio Riquier não chegara a desconfiar que
estava envolvido em espionagem. Quando, porém, descobriu a verdade, na
madrugada de um dia de fevereiro de 1932, comunicou-se imediatamente com a
polícia.

Cooperando com os agentes policiais, Riquier continuou a trabalhar em


L’Humanité, como se nada houvesse acontecido. Nesse meio-tempo, entretanto,
a polícia prosseguiu nas suas diligências em relação àquela organização e,
quando julgou que já havia obtido provas suficientes para esmagá-la, deu a
Riquier certos documentos para serem entregues a Bir, o qual foi, então, detido
com os mesmos em sua posse. Duelos desconfiou do que se estava passando e
fugiu para o exterior, onde ficou até que, em 1933, uma anistia ampla foi
concedida.

Bir recebeu uma sentença de três anos de prisão, e seus cúmplices franceses,
outras pelo período de um ano. O lugar-tenente de Bir, Alter Strom, sofreu o
castigo de três anos de reclusão.

Desastres, como os acima referidos, segundo parece, sempre estiveram nos


cálculos dos dirigentes do Centro. Certamente, eles nada fizeram para reduzir
suas atividades na França, e, embora seus agentes fossem apanhados com
frequência, não tiveram qualquer dificuldade em substituí-los. Os franceses, por
seu lado, mostravam-se irritados com aquela sucessão de julgamentos de
espiões, que parecia interminável, e a que os jornais, à força de divulgá-los, já
não emprestavam qualquer colorido de escândalo. A contraespionagem, no
entanto, continuava a manter, em relação a esses agentes, uma ininterrupta e
severa vigilância.

Enquanto se verificara esse verdadeiro desfile de espiões pelo cenário francês,


uma ou duas redes de importância vinham sendo organizadas, e ambas
integradas por agentes de alta classificação, bem diferentes, portanto, dos Paul e
dos Bir. Todos eles eram agentes formados de acordo com a técnica que o Centro
tinha aprendido, através dos seus sucessivos desastres, ocorridos nos últimos
anos da década dos vinte e nos primeiros da dos trinta.

Destacava-se entre esses novos agentes — muitos dos quais dispunham de


passaporte americano — Chkalov, pseudônimo de Lydia Stahl, russa de
nascimento e que emigrara para os Estados Unidos, por ocasião da Revolução,
naturalizando-se cidadã norte-americana, e, quando seu único filho morrera, em
1919, voltara para a Europa, estabelecendo-se em Paris. Na capital francesa,
entrou em contato com os comunistas e a eles aderiu, e, dentro de pouco tempo,
já estava empenhada em fazer espionagem para a União Soviética. Não durou
muito sua experiência como espiã. Em consequência da denúncia de um
americano, chamado Robert Switz, foi presa, e o mesmo aconteceu aos demais
membros dessa rede que era, efetivamente, profissional.

Switz, filho de abastada família americana, fora diletante de um idealismo sem


base, até que, atraído pelo comunismo, passou a frequentar os pseudo-
intelectuais esquerdistas de Greenwich Village. Ali foi habilmente doutrinado e,
quando passara a ser considerado um sincero convertido, recebera convite para
servir como agente da espionagem soviética, nos Estados Unidos. Após uma
viagem a Moscou, em 1931, casara-se com uma menina de dezenove anos,
Marjorie Tilly, que não só concordara em trabalhar para a rede, da qual o marido
era um dos integrantes, como também viera a ser, rapidamente, um de seus mais
importantes membros.

Ambos haviam sido treinados em fotografia, de forma que puderam substituir


Lydia Stahl, que operara nos Estados Unidos desde 1928 e recebera ordem para
voltar a Paris. Em julho de 1933, os Switz, como Lydia, seguiram igualmente
para a França, pois, em face da ascensão do nazismo ao poder, houve
necessidade de que o centro de operações de Berlim fosse reorganizado e,
consequentemente, todas as redes, que operavam na Europa Ocidental,
sofressem uma reestruturação.

Markovich, que era o Diretor-Residente da rede francesa, embora operando de


Berlim, visitou Paris no mês seguinte, a fim de explicar a projetada
reorganização a Switz e, também, para acertar com ele as novas funções que lhe
seriam atribuídas. Por essa ocasião, entretanto, a contraespionagem francesa já
descobrira que Lydia Stahl era uma espiã soviética. A denúncia fora feita por
uma de suas amigas, Ingrid Bostrom, que, tendo sido presa na Finlândia, tudo
confessara. Durante a investigação dos antecedentes de Stahl, a polícia descobriu
a existência da rede para a qual ela trabalhava, e, em virtude de Switz ter entrado
em contato com ela, assim que chegara a Paris, ele também foi posto sob
observação, tendo então sido notado seu encontro com Markovich. Como as
atividades de Markovich já eram muito conhecidas, as autoridades francesas
resolveram agir enquanto ainda podiam agarrá-lo. Markovich, entretanto, ainda
conseguiu fugir, mas o restante da rede, incluindo Stahl, o casal Switz e outros
agentes de importância, foi preso. Embora a maior parte dos agentes tivesse sido
encontrada na posse de material comprometedor, os franceses continuaram a
julgar que não dispunham ainda de provas suficientemente fortes para acusá-los
e, nessas condições, as investigações tiveram prosseguimento durante os três
meses que se seguiram. Um dia, porém, dois rolos de filmes foram entregues por
um desconhecido no consulado francês de Genebra, e num desses filmes
encontraram-se impressões digitais de Switz. Posto em face dessa evidência,
Switz decidiu falar. Desde algum tempo, ele se sentia desiludido daquela
aventura perigosa e não via razão por que devesse sofrer por uma causa em que
não mais acreditava. Fez, então, uma confissão completa, e mais cinco outros lhe
seguiram o exemplo. Resultou daí que vinte e nove agentes caíssem nas malhas
da polícia e as redes que comandavam ficassem completamente desmanteladas.

As relações da França com a Rússia haviam sofrido profundas alterações. O


governo de Paris decidira que seria de grande inconveniência se aquele affaire
fosse convertido num escândalo internacional. Nessas condições, o julgamento
processou-se em sigilo, e apenas sentenças leves foram aplicadas. Os Switz
obtiveram a absolvição, pelo auxílio que haviam prestado às autoridades.

Nos últimos anos da década dos vinte e nos primeiros da década dos trinta, a
situação de hegemonia, em que a França se encontrava no plano internacional,
começara então a deteriorar-se e, muito cedo, sua política interna atingira aquele
ponto a que se referia Will Roger, quando dizia que seu maior divertimento, em
Paris, era ir ao Quai d’Orsay para ter a oportunidade de ver as mudanças de
governo. Em consequência dessa desorganização interna, o poderio militar
francês começou igualmente a declinar, sendo, pouco depois, sobre pujado pelo
da Inglaterra e pelo dos Estados Unidos. De qualquer forma, porém, a presença
de comunistas no governo francês passara a tornar a espionagem quase
desnecessária para a União Soviética.

Alvos de maior importância a serem atingidos pela espionagem russa passaram a


ser, portanto, a Alemanha totalitária e rival, já que ela poderia constituir um
potencial inimigo, e os Estados Unidos, que ofereciam um campo de atividades
mais amplo e bem mais compensador.
2. Alemanha

Em 1918, na opinião dos líderes soviéticos, a efetivação da revolução mundial


não era um ideal de execução a longo prazo, mas que deveria ser conseguido o
mais rapidamente possível. No tumulto que se estabeleceu em larga área da
Europa, tanto Oriental como Ocidental, logo em seguida ao armistício,
acreditaram eles que o terreno já estava preparado para uma rápida vitória. E,
nesse sentido, nenhum outro país lhes pareceu mais propício para a realização de
seus desígnios do que a Alemanha.

O proletariado alemão tinha uma longa tradição de atividades clandestinas que,


considerada em termos de duração, quase igualava a dos trabalhadores da
Rússia. Já em relação à experiência de lutas de classe, inspiradas pela segunda
revolução francesa, ele se encontrava bem à frente dos russos. Embora a
tentativa de acabar com o jugo autocrático da dominação prussiana houvesse
falhado, os socialistas alemães, apesar desse fracasso, por cerca de meio século
mantiveram acesa a flama do ideal libertário e, assim, conservaram-se
revolucionários em potencial.

Essa realidade tornou-se evidente no primeiro mês do último ano da guerra,


quando levantes populares aconteceram em Hamburgo, Munique e outras
cidades, e, embora esses movimentos houvessem sido temporariamente
dominados, recrudesceram e tomaram vulto entre janeiro e novembro de 1918. A
3 de outubro de 1918, quando a derrota da Alemanha já era uma certeza e o
desespero das massas atingira um perigoso nível, outro tipo de revolução sem
sangue proporcionou à Alemanha seu primeiro governo parlamentarista, sob a
direção do Príncipe Max de Baden. Essa transformação política permitiu que os
socialistas participassem do Gabinete, mas, mesmo assim, ela não teve força
para evitar a revolta do proletariado, que, secretamente e desde muito, estava em
fermentação.

Essa revolução, que começou por criar sovietes de trabalhadores e de soldados,


nos moldes dos de Moscou, foi inspirada pelo Spartaknsbermegung (designação
derivada de Spartacus, que liderou a guerra dos escravos contra Roma, nos anos
de 73 a 71 antes de Cristo). Tratava-se de um movimento de socialistas da
extrema esquerda. Influenciados pelo sucesso dos bolchevistas na Rússia, os
espartaquistas tentaram estabelecer, na Alemanha, uma ditadura do proletariado.
O movimento fracassou, entretanto, pois os menos extremistas, os social-
democratas, havendo obtido o apoio de elementos de classe burguesa e
auxiliados pelo que restou das forças armadas, rapidamente esmagaram a
revolta.

Após a morte dos líderes espartaquistas, Karl Liebknecht e Rosa de Luxemburgo


— nas mãos de Noske, socialista de direita que, em 1919, era o Ministro do
Interior, o movimento declinou, já sem ímpeto e falho de orientação. Apesar
disso, surgiu, pouco depois, das cinzas da agremiação extinta, um poderoso
Partido Comunista Alemão. Embora a tentativa espartaquista houvesse sido
muito séria, e pudesse mesmo ter sido vitoriosa, caso mais bem organizada,
mesmo assim os comunistas alemães, nos dezoito meses que se seguiram,
fizeram sucessivos e inúteis esforços no sentido de persuadir o proletariado a
tomar, pela força, o poder. Essas tentativas não lograram êxito porque, embora
fosse respeitável o prestígio de que o movimento desfrutava, essa situação foi
inteiramente anulada pela descoordenação de seus levantes cheios de violência,
os quais proporcionaram ao governo razões justas para a supressão do
movimento, o que se realizou sem qualquer derramamento de sangue.

O próprio governo, entretanto, enfrentava dificuldades naquela época, embora de


outra natureza. Quando lhe foram apresentados os termos do Tratado de
Versalhes, os democratas se recusaram a assiná-lo e o Gabinete renunciou. Os
socialistas e o Partido Romano Católico de Centro puderam então formar uma
coalizão e, assim, o socialista Müller e Bell, do Partido Romano Católico do
Centro, assinaram o referido tratado.

A Assembléia Nacional que, desde as eleições da Constituinte em 1919, vinha-se


reunindo no teatro em Weimar, transferiu-se, então, para Berlim, e os democratas
tornaram a se aliar ao governo. Durante os nove meses seguintes, respirou-se um
clima de relativa paz no país, só perturbado por uma tentativa de tomada de
Berlim, levada a efeito, no dia 13 de março de 1920, por forças armadas
irregulares. Esse assalto ficou conhecido como o putsch de Kapp. Os membros
do Gabinete fugiram para Stuttgart e dali conseguiram fazer frustar-se o atentado
reacionário, proclamando uma greve geral. Seguiu-se uma revolta comunista no
Ruhr, e por que, para sufocá-la, as forças alemãs tecnicamente iriam violar as
cláusulas do armistício, tropas francesas logo ocuparam Francforte. Esse foi o
último e sério levante verificado naquele período, muito embora a vida do país
continuasse a ser ainda pontilhada, por algum tempo ainda, de frequentes
agitações industriais que, muitas vezes, chegaram à violência.

Em face desse ambiente de inquietação geral, não seria de admirar que os líderes
soviéticos, certos de que a revolução mundial estava prestes a estourar,
julgassem a Alemanha um local de especial atração para o estabelecimento, em
seu território, de um posto avançado revolucionário. Dessa base, dentro das
fronteiras alemãs, os líderes vermelhos julgavam que poderiam planejar suas
atividades subversivas e dirigir sua espionagem mais diretamente contra a
Europa Ocidental e de modo mais eficaz do que conseguiriam fazê-lo da
longínqua Moscou. No último capítulo, referimo-nos ao fato de como o Centro
controlava, de Berlim, a espionagem na França. A França, porém, não deixava
de ficar em plano secundário quando se comparava o que ali fora feito com o
que se operou na própria Alemanha, pois, embora àquele país fosse, na época, a
potência líder da Europa, a Alemanha, contudo, apresentava possibilidades
diferentes e mais sedutoras — possibilidades nas quais a União Soviética,
fazendo desesperados esforços para instituir uma fase industrial, estava mais
egoisticamente interessada.

Os objetivos russos na Alemanha, portanto, tinham dupla finalidade: fazer o que


lhe fosse possível para estabelecer ali um estado comunista e obter, por outro
lado, qualquer gênero de informação sobre os empreendimentos industriais,
através dos quais os técnicos alemães procuravam reconstruir o seu
desmantelado país. Foi para levar avante esses objetivos, e como medida
temporária para conseguir um amigo num mundo hostil, que a Rússia, em 1920,
sugeriu o reatamento de suas relações diplomáticas com a Alemanha, resultando
daí, dois anos mais tarde, o Tratado de Rapallo. Esses dois acontecimentos iriam
tornar possíveis os extraordinários sucessos que a espionagem soviética obteve
na Alemanha, e que se prolongaram até o advento do hitlerismo. Sem esses
acontecimentos, o êxito obtido pela Rússia não revelaria nem a metade da
dimensão que realmente teve.

O período em que a espionagem atingiu a sua maior intensidade pode ser


estabelecido entre os anos de 1920 e 1925. Talvez tenha sido uma coincidência o
fato de que, justamente nessa fase, os métodos e a organização da espionagem
soviética deixariam seu estágio de amadorismo, para se expandir e florescer em
padrões altamente profissionais e técnicos. Já que a intenção do comando
soviético era desencadear, o quanto antes, a revolução mundial, apoiando-se na
sólida base de uma Alemanha comunista, a GRU — a agência militar de
Inteligência — revelou-se, nesse país, muito mais ativa do que em qualquer
outra parte da Europa.

A espionagem militar tinha duas linhas de atividades, uma das quais não podia,
de fato, ser classificada como de espionagem. Tratava-se do plano russo de
organizar um novo exército alemão. Antigos oficiais deveriam ser conquistados
pelos soviéticos e, sob a orientação do golem de Moscou, iriam formar, então, o
núcleo de uma poderosa organização militar. A Alemanha foi dividida em seis
distritos militares, cada um deles sob o controle de um comunista alemão,
assessorado por um conselheiro russo, designado pelo Centro. A idéia da
organização desses distritos era, justamente, a de constituir uma força militar
subterrânea, a qual, quando estivesse completamente estruturada, poderia
emergir, juntar-se aos russos, impor um regime comunista à Alemanha e, então,
enfrentar o resto da Europa. Tratava-se de um plano bem urdido e
admiravelmente concebido, mas que fracassou em outubro de 1923, quando as
greves e os levantes ocorridos nesse mês encontraram as forças alemãs
completamente leais a seu governo. Procurando reduzir suas perdas, os russos
reconsideraram seu critério na maneira de realizar a espionagem militar e,
prontamente, instituíram uma nova agência, com instruções tanto para colher
informações militares propriamente ditas como para operar nas linhas normais
da espionagem.

Durante os poucos anos que se seguiram à adoção dessa diretriz, esse plano foi
seguido à risca e, embora seu êxito inicial fosse de pouca monta — exceto no
que se referia ao volume de informações obtidas —, os dois últimos anos
anteriores ao advento do nazismo trouxeram-lhe resultados compensadores.
Como havia acontecido na França, também a indústria de aviões, na Alemanha,
constituía o alvo de maior interesse, do ponto-de-vista militar, para a União
Soviética, já que, nesse campo, vinham-se verificando, com frequência,
surpreendentes descobertas.

Para preparar um esforço concentrado nesse setor, um preeminente engenheiro


soviético, Alexandrovski, foi enviado à Alemanha em 1927. Tinha por missão
procurar colher todo e qualquer gênero de informação sobre a engenharia
aeronáutica, tal como ela vinha sendo levada a efeito na Alemanha. Mesmo antes
de desembarcar em solo alemão, esse emissário russo tivera a oportunidade de
entrar em contato com aquela indústria, através de Eduard Ludwig, um jovem
técnico em aviação que, em 1924, trabalhara no escritório da Junkers, em
Moscou. Durante essa sua permanência na capital soviética, e que se prolongou
por cerca de um ano, fora abordado por elementos da Inteligência soviética, que
lhe prometeram animadora recompensa, se, quando de sua volta à Alemanha,
viesse a cooperar com os russos. Ludwig não hesitara em concordar. Assim, ao
regressar à pátria em 1925, deixou a Junkers e empregou-se na Dornier, onde
permaneceu o tempo justamente necessário para se informar sobre o que ali
estava acontecendo e inteirar-se dos planos em elaboração. Feito isso, obteve um
posto no Instituto de Pesquisas Aeronáuticas em Berlim. No ano de 1927, já
sabia tudo o que desejava saber sobre a indústria alemã de fabricação de aviões
e, quando Alexandrovski chegou a Berlim, encontrava-se preparado para lhe
fornecer todas as informações.

Infeliz ou felizmente, conforme o lado em que se coloque o leitor, essa


cooperação não durou muito. O intermediário entre Alexandrovski e Ludwig era
um letão de nome Scheibe, através de quem o engenheiro russo solicitava ao
técnico alemão os documentos que deveriam ser retirados dos arquivos do
Instituto de Pesquisa Aeronáutica, relativos aos motores de avião secretos.
Ludwig retirou os documentos e os passou a Scheibe e este, por sua vez, os
entregou a um homem chamado Ernst Huttinger para serem fotografados. Antes,
porém, que as cópias fossem tiradas, as autoridades do Instituto deram por falta
dos documentos. As subsequentes investigações levaram a Ludwig e, em julho
de 1928, ele, Huttinger e Scheibe foram presos. Alexandrovski, porém,
conseguiu escapar.

As autoridades alemãs discriminaram entre a espionagem militar e a espionagem


industrial, sendo que os réus da primeira classificação eram geralmente tratados
com penas severíssimas. Assim, Scheibe foi condenado a seis anos de prisão;
Ludwig, a cinco; e o fotógrafo, a três.

Alguns casos de menor importância passaram a alertar as autoridades alemãs


sobre a evidência de que os russos estavam realizando espionagem militar em
grande escala, no interior do país. A realidade, entretanto, não deixou de lhes
criar alguns embaraços. De acordo com o plano do governo soviético de atrair a
cooperação de técnicos estrangeiros para a organização da sua indústria, a
colaboração entre os dois países tornara-se muito estreita. De qualquer forma,
amizade não podia justificar que os alemães abrissem mão de segredos de
importância nacional e, nessas condições, o serviço de contraespionagem
conservou-se em permanente alerta, pegando o pessoal miúdo, pelo período de
um ou de dois anos, na expectativa de que um fato de relevância ocorresse.
O segundo grande golpe, sofrido pelos soviéticos, teve lugar em 1931, em face
da deserção do escritor comunista Hans Schirmer.

Em 1928, os alemães assentaram a quilha do primeiro cruzador a ser construído


de acordo com as cláusulas do Tratado de Versalhes. Uma vez que sua tonelagem
deveria ser limitada, os desenhistas navais consumiram muitos anos de estudo,
tentando criar um tipo de navio que, deslocando reduzido peso, compensasse
essa limitação, através da adoção dos mais modernos requisitos técnicos. O
cruzador era, obviamente, um alvo certo para a espionagem soviética e, logo na
primavera de 1929, um pequeno núcleo de agentes russos foi desmascarado.

No ano seguinte, a contraespionagem alemã nada conseguiu descobrir, e seria


bem possível que assim continuasse a acontecer, não fosse o caso criado por um
indivíduo chamado Hans Schirmer. Em fevereiro de 1930, Schirmer, tão
imprudentemente como poderia sê-lo, escreveu uma carta para O Chefe da
Divisão de Espionagem do Centro do Partido Comunista de Hamburgo, na qual,
declarando-se antigo operário das docas daquela cidade, afirmava estar em
condições de fornecer informações de interesse, que poderia obter através de
contatos de que, naquelas docas ainda dispunha.

Estranhamente, Schirmer recebera uma resposta, solicitando maiores detalhes


sobre o que poderia informar, antes que um contato direto fosse efetivado.
Rejeitou a proposta, dizendo que só forneceria informações pessoalmente.
Diante dessa recusa, foi combinado que ele deveria encontrar-se com um homem
chamado Herbert Sanger.

Sanger era o pseudônimo de Lother Hoffmann, um antigo agente russo, que,


quando os alemães prenderam os integrantes da primeira célula, fora mandado
para Hamburgo, com a incumbência de instalar ali outro núcleo revolucionário.
Tratava-se de um espião profissional e, conquanto isso conte para se
compreender a impunidade do seu grupo pelo período de dezoito meses, esse
fato faz com que se torne difícil compreender, por outro lado, as razões que o
levaram a marcar àquele encontro com Schirmer.

Nessas entrevista, Hoffmann declarara a Schirmer que “eles” já possuíam bons


contatos nos estaleiros, embora pudessem interessar-se por informações sobre as
tendências políticas dos trabalhadores e dos oficiais. Ao se encerrar a palestra,
nada havia ficado combinado entre os dois, embora Hoffmann houvesse dado a
Schirmer um endereço para o qual poderia escrever, evitando-se, assim, o
perigoso processo de que haviam usado, encontrando-se na rua. Meses se
passaram então, e Schirmer não tivera mais quaisquer notícias de Hoffmann.
Esse desinteresse parece que desagradou ao missivista, que, irritando-se, dirigiu-
se, em outubro de 1930, à contraespionagem naval, denunciando seu contato
com Hoffmann. Colocou-se, igualmente, à disposição das autoridades para
cooperar com elas no sentido de desmascarar Hoffmann, o que foi aceito.

Seguindo instruções que lhe foram dadas pelo serviço de contraespionagem,


Schirmer escreveu a Hoffmann, informando-o de que estava de posse de
documentos de grande importância. Hoffmann mordeu a isca e, nos meses que
logo se seguiram, passou a se encontrar com Schirmer para receber os falsos
documentos, que lhe eram fornecidos pelo serviço de contraespionagem.

Nesse ínterim, a contraespionagem conseguira desmascarar as atividades de


Hoffmann, identificando seus diversos agentes e, em maio de 1931, todo o lote
de conspiradores foi preso. Esse sucesso, entretanto, chegou tarde demais para
reparar o mal que a rede já causara. Nos dois anos em que ela estivera em
atividade, todos os detalhes do novo cruzador alemão haviam sido passados para
os russos.

Entre os agentes que mais concorreram para o êxito do GRU, na Alemanha,


devem ser incluídas as filhas do General Kurt von Hammerstein, um dos
representantes da hierarquia militar alemã, que, em 1930, fora nomeado chefe do
Oberkommando des Heeres (Alto Comando das Forças Armadas). Nessa época,
larga percentagem do corpo de oficiais alemães era favorável à colaboração
militar com a Rússia e, entre eles, se encontrava justamente o referido General
Hammerstein, que realizou muitas viagens a Moscou, para se entrevistar com os
líderes soviéticos.

Hammerstein tinha duas filhas que possuíam uma visão política bem mais
avançada do que a sua, a de um militar conservador. Naturalmente, a tendência
política dessas moças era conhecida nos círculos da Inteligência soviética, e
Werner Hirsch, editor do jornal A Bandeira Vermelha, órgão do Partido
Comunista Alemão, foi designado para se aproximar delas e procurar conhecê-
las bem. Se, através desses contatos, julgasse que eram de fácil receptividade,
deveria doutriná-las e alistá-las como agentes.

Hirsch obteve tamanho êxito no desempenho de sua missão que, num espaço de
tempo relativamente reduzido, as duas moças já haviam ingressado no GRU,
fornecendo aos seus agentes todos os documentos militares de valor que o pai
trazia consigo para casa. Ocuparam-se elas nessas atividades por vários anos e,
na opinião de elementos dos círculos soviéticos, “estavam classificadas entre os
melhores agentes que operavam junto ao Exército alemão”.

Embora a espionagem militar soviética se tivesse iniciado com grandes


esperanças na Alemanha, e conquanto houvesse obtido assinalado êxito no
recolhimento de informações úteis, os esforços requeridos para a consecução
desses objetivos foram relativamente pobres em relação aos que teve de fazer
para conseguir alguns resultados na coleta de segredos industriais. Neste terreno,
sua base de operações fora instalada na Delegação Soviética de Comércio, a
Handelsvertretung, que possuía seu quartel-general na Lindenstrasse, em Berlim.

Sempre que a União Soviética estabelece relações diplomáticas com um país,


julga da maior importância — acima, mesmo, da instalação de sua embaixada —
a criação imediata de uma organização permanente de comércio. A
Handelsvertretung de Berlim era uma réplica da Arcos, que funcionava em
Londres, e da Amtorg, que agia nos Estados Unidos. Dentro de sua função legal,
essas delegações de comércio eram da maior relevância para a União Soviética,
mas essa situação variava de acordo com o entusiasmo demonstrado pelos
líderes políticos do país em que elas eram instaladas e com o grau de interesse
do governo russo nas indústrias do mesmo país. Na Grã-Bretanha, em meados da
década de vinte, o entusiasmo por essas relações comerciais não era muito
grande, e a Arcos não chegara a ser uma instituição de importância. Na
Alemanha, entretanto, onde o retorno à normalidade repousava na reabilitação de
sua indústria destruída pela guerra, e, nessas condições, o incremento de suas
exportações para qualquer país apresentava-se como um fator essencial, a
Handelsvertretung já desempenhava um papel de incontrastável relevo. Em face
dessa situação, os alemães não desconfiaram — como os ingleses o haviam feito
em relação à Arcos — das intenções do governo soviético, ao abarrotar os
escritórios de sua delegação, que funcionava na Lindenstrasse, de numeroso
corpo de funcionários. Esse fato, aliado à maneira branda com que oficialmente
a espionagem industrial era encarada, foi de enorme ajuda para a espionagem
clandestina que a Handelsvertretung exercia dentro da indústria alemã.

Outro fator que muito auxiliou a espionagem industrial na Alemanha foi a boa
vontade demonstrada pelo Partido Comunista Alemão em cooperar.
Contrariamente ao que fez o Partido Comunista Francês, seu homônimo alemão
estava preparado, e mesmo ansioso, para fornecer pessoal para os serviços da
espionagem soviética que operavam no país. E, com efeito, os agentes, que o
Partido forneceu, representavam o que havia de melhor em suas fileiras.
Possuíam a tradicional eficiência alemã e eram capazes de conduzir uma
operação secreta com o maior êxito possível. Entre os principais agentes que
trabalhavam naquele período, devem ser citados Hans Kippenburger, um antigo
líder da Organização Estudantil Comunista; Leo Flieg; Wilhelm Zaisser, que por
muitos anos, desde a guerra, fora Chefe de Polícia da Alemanha Oriental; Arthur
Illner, que se tornara famoso como sequestrador e assassino; e Ernst Wollweber,
Ministro de Segurança do Estado, na Alemanha Oriental.

Calcula-se que cerca da metade dos secretários do Partido, em Berlim, eram


membros da organização clandestina do Handelsvertretung, enquanto haviam
sido mobilizados, igualmente, e tendo em vista as mesmas atividades, tanto os
membros da Organização Estudantil Comunista, como os filiados aos sindicatos
da mesma ideologia. Certamente que não havia falta de agentes em potencial
para os trabalhos a serem realizados, mas o Centro considerava tão importante
àquele tipo de espionagem que alguns dos seus melhores e mais experimentados
profissionais foram colocados em postos fictícios na Handelsvertretung, para
dirigir as operações. A contribuição alemã para a espionagem soviética, entre os
anos de 1922 e 1933, foi enorme, e o acervo de informações obtidas se revelou
ainda maior — tão grande e tão extenso que se torna impossível avaliar-lhe a
importância.

Baseada nas redes comunistas locais, dirigida por membros do Partido na própria
Alemanha, mas controlada por profissionais russos de primeira classe, a
espionagem soviética, no campo industrial, de ano para ano crescia e se
expandia. Era possível que a contraespionagem estivesse a par do que ocorria no
país, mas, mesmo levando em conta essa circunstância, embora se mantivesse
em permanente vigilância, quase nada podia fazer, já que lhe faltavam meios e
recursos para impedir o trabalho dos agentes clandestinos. O que as forças de
segurança apenas conseguiam realizar era arranhar a superfície daquela broca
que, incessante e pertinazmente, solapava o país, assistindo, sem poder evitá-lo,
a que cada vez mais ela se aprofundasse nos filões das conquistas industriais
alemãs e retirasse deles o que era de interesse para o desenvolvimento da
nascente industrialização soviética. Diante dessa realidade, algumas fabulosas
empresas alemãs, como, por exemplo, a I. G. Farben, a fim de aliviar as despesas
do governo e, ao mesmo tempo, para se protegerem, organizaram seus próprios
serviços de segurança. Essa providência sempre ajudou, mas os reflexos que teve
sobre o esforço e as realizações da espionagem soviética escassamente foram
notados.

Entre 1924 e 1929, verificou-se um fluxo quase constante de casos de


espionagem industrial — roubo ou entrega a países estrangeiros de segredos
industriais ou de outra natureza — em tramitação nos tribunais alemães. A
condescendente atitude oficial em relação a este tipo de espionagem, aliada à
política governamental de colaboração com a Rússia, resultou na imposição de
sentenças tão inócuas que tanto a União Soviética como o Partido Comunista
Alemão sentiram-se encorajados a prosseguir em seu trabalho. Assim é que, em
1928, a atividade dos espiões assumiu aspectos alarmantes e prosseguiu nesse
mesmo ritmo acelerado até o início da era nazista, em 1933. Durante esse
período, ela assumiu tais proporções que o governo alemão se viu na
contingência de adotar uma atitude mais severa.

Sob o regime czarista, a grande empresa alemã de produtos químicos Solvay,


situada em Bernburg, próximo de Dessau, mantinha uma filial em Moscou. Com
a ascensão dos bolchevistas, essa sucursal foi desapropriada e nacionalizada e,
em 1928, teve sua reconstrução programada de acordo com as exigências do
primeiro Plano Quinquenal. Como o governo soviético se recusara a atender às
reclamações de indenização, formuladas pela matriz, a única maneira que os
russos acharam para obter o know-how, através do qual poderiam atualizar e
fazer funcionar aquele conjunto industrial, foi tentar seduzir técnicos alemães,
altamente especializados, e levá-los para a Rússia, a fim de que lhes prestassem
assistência.

Com esse intento, instruíram um de seus agentes, um russo chamado Luri, para
que se aproximasse de Meyer, um químico experiente, que conhecia todos os
novos segredos da Solvay, e lhe oferecesse o posto de gerente-geral da fábrica de
Moscou. O salário que lhe reservaram era excepcionalmente elevado. Meyer
aceitou a oferta, mas necessitava de maiores conhecimentos do que aqueles que
já possuía e, antes de viajar para a Rússia, tentou obtê-los de antigos colegas.
Um desses compreendeu o intuito que ele secretamente alimentava, e o
denunciou à polícia. Meyer foi preso, julgado e sentenciado a quatro meses de
prisão.

Nos últimos meses de 1930, um oficial de segurança da Krupp, em Magdeburg,


deteve um dos principais desenhistas da fábrica, chamado Kallenbach, quando
deixava, certo dia, o escritório, e exigiu que sua pasta fosse examinada. Nessa
pasta foram encontrados detalhes de patentes secretas e desenhos de novas
máquinas. Subsequentes investigações revelaram que Kallenbach e mais dois
outros desenhistas estavam agindo sob instruções de seu antigo chefe, um
engenheiro de nome Russki, o qual, por sua vez, fora contratado para trabalhar
na Rússia — e sua partida já estava marcada. Kallenbach foi condenado a quatro
meses de prisão, e seus comparsas estiveram detidos por algumas semanas.

Poucas semanas mais tarde, um engenheiro russo, Feodor Volodichev, admitido


como empregado da Siemens, auxiliado por dois jovens assistentes alemães, foi
apanhado quando remetia para os escritórios da Handelsvertretung
especificações sobre as últimas invenções relativas à telegrafia, a microfones e a
teletipos. Volodichev foi condenado a quarenta dias de prisão.

Assim prosseguiu o serviço de espionagem até 1931, quando as autoridades


alemãs decidiram que não mais podiam mostrar-se indiferentes às atividades
clandestinas da Handelsvertretung, à qual acusaram abertamente da prática de
atos ilegais.

O caso que mais irritou a opinião pública, e obrigou o governo a tomar


conhecimento dele, foi o que envolveu um engenheiro austríaco de nome
Lippner. Lippner fora, de forma perfeitamente legal, contratado pela
Handelsvertretung, como conselheiro de petróleo, em que era perito. Mal
começara a desempenhar suas funções na delegação quando, certo dia, foi
abordado por um homem chamado Glebov, pertencente ao Centro, que lhe
solicitou fosse obter da I. G. Farben, em Friedrichshafen, determinada
informação secreta, relacionada com a exploração do petróleo. Lippner recusou-
se, demitiu-se imediatamente de seu emprego e processou a delegação, para
receber a soma de 9 000 marcos, pela qual haviam sido contratados seus
serviços. A Handelsvertretung depôs em juízo que desconhecia quem fosse
aquele Glebov, declarando, ainda, que não seria válido qualquer documento que
por ele estivesse assinado. Glebov não foi encontrado. A imprensa alemã reagiu
com certa violência e o governo não pôde mais se dar ao luxo de encolher os
ombros e continuar não tomando conhecimento de casos daquela natureza.

Na primavera de 1931, ocorreu um incidente que deu então ao governo alemão a


oportunidade de demonstrar que não poderia tolerar, por mais tempo, aquela
ultrajante, e quase aberta, espionagem. A rede que estava envolvida no caso era
relativamente grande. Tratava-se do Sindicato Revolucionário da Oposição —
uma extensa organização comunista —, composto de cerca de duas dúzias de
agentes, todos comunistas alemães, e dirigido por Erich Steffen. Tanto Steffen
como sua mulher eram empregados da Handelsvertretung. O objetivo que
tinham em mira: a obtenção das últimas descobertas químicas da empresa I. G.
Farben, sendo que numerosos elementos da rede eram engenheiros, químicos e
operários que trabalhavam para esse grande conjunto industrial. O chefe da
célula, em Ludwigshafen, era um homem chamado Karl Dienstbach, que,
anteriormente, fora empregado da Farben, cujos laboratórios estavam instalados
naquela cidade. Havia sido despedido da fábrica, mas, apesar disso, conseguira
manter relações íntimas com elementos que trabalhavam em todas as indústrias
situadas nos maiores centros industriais da região.

Cautelosos, em face das lições aprendidas na França, ao invés de apresentar


longos questionários aos seus contatos, os soviéticos passaram a adotar a política
de lhes extrair as informações, pouco a pouco. Entretanto, o grande número de
agentes que trabalhavam na rede constituía um perigo, já que cada um deles
tentava obter informações de vários contatos e, nessas condições, a quantidade
de pessoas envolvidas era bem mais elevada do que o aconselhado pelas boas
normas de segurança.

Mais uma vez, o fracasso de uma rede soviética foi motivado por ausência de
capacidade de julgamento, por parte dos seus chefes, do caráter de um dos
agentes que integravam a organização. Karl Kraft fora solicitado a fornecer certa
fórmula secreta, relacionada com a amônia e o ácido carbólico, e imediatamente
participou aos seus superiores a proposta que lhe havia sido feita. Instruíram-no,
então, para que mantivesse contato com o agente Heinrich Schmid, enquanto as
investigações eram levadas a efeito. A apuração do que ocorria levou cerca de
dez semanas, com os seguintes resultados: a) a rede possuía ramificações
extensas; b) suficientes provas foram obtidas para que a contraespionagem
pudesse prender Steffen, Dienstbach e grande número de integrantes da rede.
Numa busca, realizada na residência de Steffen, foram encontradas fórmulas,
listas dos nomes de seus agentes e seus endereços e, como resultado dessa
proveitosa diligência, somente alguns poucos membros da rede puderam escapar.

Quando o caso foi oficialmente anunciado, ficou claramente evidenciado que o


governo de Berlim, já desde algum tempo, estava a par do fato de que o Partido
Comunista Alemão vinha-se empenhando em obter segredos industriais,
utilizando-se, para isso, da colaboração de alguns técnicos, aos quais eram feitas
tentadoras ofertas de empregos na Rússia. Embora o comunicado oficial não se
houvesse referido abertamente ao papel representado pelos russos nesses
acontecimentos, não deixara de ficar implícito, no texto, que as autoridades
germânicas não ignoravam, igualmente, a atuação que nos mesmos eles tiveram.

Pouco tempo após sua prisão, Dienstbach confessou tudo quanto sabia, mas nada
informou sobre a participação dos russos na questão. Quando tentaram descobrir
quem estava por trás de Steffen, ficou decidido que uma busca seria realizada
nos escritórios da Handelsvertretung. O Ministério do Exterior, entretanto, não
permitiu que essa drástica providência fosse tomada, sob a alegação de que a
delegação soviética possuía imunidades extraterritoriais. Como era de se esperar,
a Handelsvertretung apressou-se em oficialmente negar que, de qualquer forma,
pudesse estar implicada no caso.

Na realidade, o responsável pelas atividades dessa rede era um cidadão russo,


conhecido só por Alexandre. Tratava-se de uma alta patente da espionagem
russa, embora figurasse, na lista da representação diplomática soviética, como
simples funcionário da embaixada. Por intermédio da organização Defesa do
Trabalho Internacional, Alexandre se encarregou de tentar inocentar os acusados.
O advogado por ele escolhido tinha não só a função de representar os
prisioneiros, mas também, a de visitar regularmente os demais contatos, que
ainda se achavam em liberdade, a fim de se assegurar de que não cometessem
qualquer indiscrição.

Esta última tarefa, ele a desempenhou com pleno êxito. No que diz respeito à sua
atuação no tribunal, porém, ela se revelou inferior ao que Alexandre esperava, já
que as provas coligidas contra os acusados eram indiscutíveis e esmagadoras.

Em face, entretanto, do que dispunham as leis relativas a espionagem industrial,


as sentenças tiveram de ser brandas. Steffen, Schmid e Dienstbach só foram
condenados a dez meses de prisão, e a sentença dos demais acusados não
ultrapassou o período de quatro meses.

Essas sentenças tiveram o efeito de levantar tal clamor público que, em março de
1932, foi baixado um decreto presidencial, tornando mais rigorosas as penas
para os crimes de revelação de segredos industriais, as quais passaram a ser de
três anos de prisão, caso esses segredos fossem entregues a firmas competidoras;
e de cinco anos, se revelados a representantes de firma ou de governo
estrangeiros.

Por volta de março de 1932, verificaram-se sintomas de alterações no panorama


político alemão. De semana para semana, os nazistas se mostravam mais ativos,
e um crescente apoio popular lhes reforçava a campanha pela posse do poder. Se
os governos ocidentais não davam mostras de estar pressentindo a próxima
transformação, já não acontecia o mesmo com os russos, que, em face do que
ocorria, começaram a se preparar para enfrentar a nova realidade. Através do
Comintern, todos os comunistas alemães de certa projeção receberam instruções
para se prepararem para um mergulho na clandestinidade, nela permanecendo
por um período de tempo razoavelmente longo. As agências soviéticas, por sua
vez, receberam ordem para se conservarem em estado de alerta, destruindo toda
a documentação que não fosse julgada imprescindível e enviando para Moscou a
considerada necessária.

Essas providências mal haviam sido tomadas, e eis que, em janeiro de 1933,
Hitler assume o poder. No governo, uma das suas primeiras preocupações foi a
de extinguir o Partido Comunista, com uma celeridade e uma rudeza raramente
antes vistas na História. Embora os líderes, no momento, se achassem a salvo,
por se encontrarem em seus esconderijos e acobertados por falsas identidades, o
Partido, como expressão de um movimento ideológico, em poucos meses,
praticamente deixara de existir. Conquanto muitos dos colaboradores da
espionagem russa pudessem ainda andar à solta, era por demais perigosa para
eles uma retomada de suas antigas atividades e, de qualquer maneira, se o
tentassem, nada conseguiriam fazer por falta de auxiliares e de contatos. Por
outro lado, se bem que as precauções tomadas, com a devida antecedência,
houvessem evitado que as agências russas fossem desmascaradas, também elas
passaram a se sentir tolhidas, em face da aterradora atividade da nova força de
segurança criada pelos nazistas, a Geheimestaatspolizei, ou seja, a Gestapo. Os
líderes clandestinos, por seu lado, não estariam em segurança por muito tempo.
Sob tortura e ameaça de morte, muitos dos que conheciam os esconderijos
daqueles líderes logo revelaram o que sabiam, e os que escaparam de ser presos
foram compelidos a salvar suas vidas, fugindo para o exterior.

Algumas das agências russas foram varejadas pela Gestapo, mas nada ali foi
encontrado que as comprometesse, no que diz respeito a espionagem. Essa
violência provocou protestos da Rússia, com ameaças de represálias nas relações
comerciais, mas a Gestapo não se impressionou com a reação. Ela tateava o
caminho que trilhava, pois, sem experiência em assuntos de espionagem,
procurava aprender como os cordéis deviam ser manipulados. Bons alunos, cedo
seus agentes agiam com desenvoltura, infiltrando-se mesmo nos círculos mais
fechados das agências soviéticas.
Em face dessa situação, a espionagem soviética, que sempre se apoiara na
extensa cooperação do Partido Comunista Alemão — sabido que é que o sucesso
russo, nesse terreno, sempre foi devido, em qualquer país, à eficiente
colaboração dessas agremiações locais —, decidiu que deveria sustar a ampla
atividade que desde muito vinha desenvolvendo na Alemanha. A reorganização
— como essa nova tática foi denominada — só deixou uma pequena rede
funcionando na Alemanha, e mesmo esta foi reduzida mais tarde, quando Stálin
efetuou os expurgos de 1936 e 1937, ocasião em que foram afastados do serviço
ativo os mais capazes agentes profissionais russos.

A espionagem levada a efeito na Alemanha, entre os anos de 1933 e 1939, não


passava, pois, de uma fração da que fora realizada na década anterior. Os agentes
que operavam dentro do país eram dirigidos de fora e não tinham contato algum
com o resto dos comunistas ainda existentes em território alemão. Tal atitude
acabou por introduzir no sistema russo uma nova concepção das atividades da
espionagem.

Destacando-se entre os líderes desse novo estilo de atividade subterrânea na


Alemanha, surgiu Ernst Wollweber, que granjeara grande reputação em Moscou,
pela capacidade e pela astúcia demonstradas no desempenho das funções de
chefe de atividades subterrâneas, desde o advento do nazismo. Sob o disfarce de
membro do Bureau do Comintern para a Europa Ocidental, localizado em
Copenhague, fora encarregado de organizar uma rede, que deveria recrutar seus
integrantes principalmente nos Sindicatos de Marítimos. Wollweber selecionou
entre trinta e quarenta homens — a maioria, de origem escandinava —, muito
embora entre eles houvesse incluído também alguns comunistas alemães. As
funções que deveriam desempenhar eram menos de espionagem que de
sabotagem — “diversionismo”, no jargão comunista —, e seus alvos seriam os
navios e quaisquer fábricas, em todos os países, fora da Alemanha, que
estivessem ajudando os nazistas a se rearmarem. Exemplo: as estações de força
que atendiam aos campos de minério de ferro da Suécia.

Essa rede conseguiu sobreviver, apesar das diversas incursões realizadas pela
contraespionagem, até 1941, quando Wollweber e seus associados suecos foram
presos, recebendo ele a sentença de três anos de prisão. Por essa época,
entretanto, a guerra não só havia dado origem a outras redes de grande atividade,
mas também projetado um ou dois agentes, os quais, agindo isoladamente, iriam
adquirir tal reputação que, cedo, figurariam entre os mais brilhantes ases da
espionagem internacional.
3. Grã-Bretanha

Provavelmente, pouco importava à Inglaterra que, ao ver dos soviéticos ou na


sua própria opinião, a França pudesse ser considerada a principal potência
européia, nos primeiros anos do pós-guerra, ou seja, na década dos vinte. Já
esclarecemos a extensão da espionagem russa no solo francês, e resta pouca
dúvida de que, caso Moscou achasse conveniente realizar, também na Grã-
Bretanha, um serviço de espia em escala semelhante, dadas as conquistas
industriais britânicas, ela não estaria, de fato, livre de tal espécie de conspiração
interna. Embora isso não tivesse ocorrido, nem assim os ingleses puderam
escapar ao interesse da espionagem russa.

Em 1924, a hostilidade, demonstrada pela Inglaterra capitalista em relação à


Rússia comunista já havia sido reduzida, e, quando Lênin anunciou que desejava
a cooperação dos países ocidentais, no campo industrial, de forma a poder
reorganizar sua própria indústria, a Grã-Bretanha foi a primeira a lhe estender a
mão. Assim, no dia 2 de fevereiro de 1924, as relações diplomáticas entre os
dois países foram estabelecidas. *

A cooperação industrial entre os dois governos importaria, inevitavelmente, na


instalação de uma delegação de comércio em Londres. Conhecida na Inglaterra
como Arcos Ltd., ela alugou dois grandes blocos de escritórios em Moorgate, na
City, e, assim instalada, deu início aos seus tradicionais dois tipos de atividade: o
legal, representado por transações comerciais, e o ilegal, através de incursões
clandestinas.

Na Inglaterra, a espionagem soviética sempre esteve em desvantagem. Como já


vimos, no período inicial das suas atividades, a organização soviética sempre
teve por base a cooperação dos Partidos Comunistas locais, e os êxitos que
obtinha dependiam, inteiramente, da força e do número de adeptos dessas
agremiações. Na Grã-Bretanha, o Partido Comunista, em comparação com o da
França ou o da Alemanha, não passava de uma filial da Internacional. Os
socialistas britânicos tanto se projetaram, desde o fim da guerra, e seus pontos-
de-vista eram considerados tão esquerdistas, no ambiente conservador da
Inglaterra, que pareciam satisfazer plenamente às aspirações políticas dos
trabalhadores. Desde o início, os ingleses estiveram protegidos, portanto, contra
qualquer espionagem, verdadeiramente intensa, que os soviéticos contra eles
pudessem ter desejado lançar. Mesmo assim, porém, não se haveriam de
conservar de todo imunes a esse tipo de atividade.

Por um par de anos, a Arcos operou em suas duas esferas de ação, sem ser
perturbada por qualquer oposição, da parte das autoridades britânicas, tendo em
vista o que naquela ocasião vinha ocorrendo na França. Parecia, de fato, que o
inglês, simplório, honesto e confiante, não alimentava qualquer suspeita de que a
Arcos não era, absolutamente, o que aparentava ser, e que aquele estado de
coisas poderia ter, assim, continuado, se o governo soviético, ou melhor, o
Partido Comunista Russo, não houvesse, em 1926, cometido um grave erro.

Durante a greve geral ocorrida naquele ano, o Partido Russo mandou mais de um
quarto de milhão de libras para que os mineiros ingleses pudessem sustentar seu
movimento. Essa atitude provocou um profundo ressentimento no seio do
governo inglês, que o considerou imperdoável interferência nos assuntos
internos do país. O Congresso dos Sindicatos Ingleses interpretou da mesma
forma a atitude russa, e o dinheiro foi devolvido. Winston Churchill, que era
então Ministro da Fazenda, e reconhecido antigrevista, ameaçou, em face do
acidente, romper todas as relações comerciais com a Rússia.

Esse incidente serviu para que todo interesse se voltasse para a Arcos, pois logo
surgiu na mente das pessoas que haviam entrado em contato com a organização
que o reduzido volume de negócios mantido pela Inglaterra com a União
Soviética não justificava a manutenção, nos escritórios da agência, em Moorgate,
de um corpo de funcionários de mais de trezentas pessoas. Foi também
descoberto, pelo M I 5, que pelo menos um dos chefes da delegação comercial,
N. K. Jilinsky, era membro da espionagem russa, e que o Conselheiro Comercial
da Embaixada, Igor Khopliakin, trabalhava também como agente secreto. Em
consequência de todas essas descobertas foi que o governo britânico retirou de
L. B. Khinchuk, sucessor de Khopliakin, as imunidades diplomáticas de que
desfrutava — fato este que parece ter preocupado, de certa forma, os chefes das
agências soviéticas na Inglaterra, pois um despacho — que, aliás, caiu em mãos
do M I 5, — do Encarregado de Negócios para o Subcomissário Soviético para
os Assuntos Estrangeiros, Litvinov, pedia autorização para suspender,
temporariamente, a remessa para Moscou de todos os documentos relacionados
com espionagem.
Verificou-se, entretanto, outro incidente, independentemente das investigações
realizadas pelo MI 5, nos negócios da Arcos, que inspirou esse pedido. Um
jovem técnico da Real Força Aérea fora surpreendido roubando desenhos e
cálculos secretos, descobrindo-se, depois, que tinha a intenção de enviá-los à
Arcos, como, aliás, antes já tinha feito.

Não muito depois desse inquietante episódio, ocorreu ainda outro, envolvendo,
mais uma vez, o setor aeronáutico — aviões, armas e particularmente um novo
tipo de monoplano, todos ainda em lista secreta —, bem como uma metralhadora
fabricada pela Vickers. O indivíduo envolvido nesse incidente era um inglês que,
aparentemente, se tornara espião mercenário e procurava vender suas
informações a quem mais lhe pagasse, acabando por se ver integrado nas fileiras
da organização soviética na Alemanha.

Isso aconteceu em 1926. Em princípios de 1927, foi notada a falta de um


documento secreto do governo, referente a planos estratégicos para bombardeios
aéreos. A Divisão Especial e o M I 5 comunicaram ao governo estarem
convencidos de que esse documento havia sido remetido, igualmente, para a
Arcos, recomendando assim, fosse feita uma diligência nos escritórios da
organização, em Moorgate. Após longas discussões sobre possíveis implicações
políticas dessa providência, o primeiro-ministro Stanley Baldwin autorizou que
se realizasse a investigação.

Na madrugada de 12 de maio, a polícia da City e a Polícia Metropolitana


cercaram os escritórios da agência, em Moorgate, e os policiais solicitaram
autorização para penetrar. Quando chegaram ao porão do edifício, encontraram
ali dois homens e uma mulher queimando papéis. Um deles era o cifrador-chefe
da embaixada soviética, Anton Miller, e o outro, um funcionário da Arcos,
chamado Robert Kopling.

Miller lutou para não ser preso, mas foi subjugado e, quando o revistaram,
encontraram, em seu poder, uma lista dos esconderijos dos agentes e das “caixas-
postais”, relativas não só à Europa, como também às Américas do Norte e do
Sul, e um bom número de países do Commonwealth. O documento justificou a
apreensão, pela Divisão Especial e pelas autoridades da contraespionagem, de
toda a documentação encontrada na agência, e um vasto acervo de papéis foi
levado para ser examinado.

Esses documentos provaram, além de qualquer dúvida, que a Arcos vinha sendo
usada para encobrir atividades de espionagem, pois, entre os papéis ali
recolhidos, foram encontradas cópias de diversos documentos do governo
britânico e uma lista de alguns agentes russos, que vinham agindo na Grã-
Bretanha. O documento que provocou a incursão policial, entretanto, não foi
encontrado. Acreditou-se, na ocasião, que um membro da organização tivesse
fugido com ele, através de um túnel secreto, construído pela Arcos e só muito
mais tarde descoberto.

O governo britânico não estava disposto a se mostrar complacente, como o


alemão o havia sido. Na verdade, a revelação de que “todos os nossos centros
militares e navais, Aldershot e Plymouth em particular”, haviam sido varejados
por agentes soviéticos proporcionou às autoridades maior estímulo no sentido de
que se mostrassem duras. Assim, as relações diplomáticas com a União
Soviética foram rompidas, a delegação comercial suspendeu seus negócios e, por
dois anos, nenhum russo teve permissão de entrar no país.

Os três anos de atividade da Arcos representaram a única tentativa séria, levada a


efeito pelos russos, de realizar espionagem na Inglaterra, no período anterior à
Primeira Guerra Mundial. E é possível que, após esse esforço, houvessem
chegado à conclusão de que a Grã-Bretanha, de fato, nada de valioso lhes
poderia fornecer, em matéria de informações secretas.

* Seguiu-se a França, dois dias depois, e, imitando o gesto dos franceses,


reataram relações diplomáticas com a Rússia a Itália, a Escandinávia, a Áustria,
a Hungria e a Grécia.
4. Os Estados Unidos

O reconhecimento diplomático da União Soviética, pelos Estados Unidos, não


foi levado a efeito senão em 1933, quando se iniciou a primeira administração
Roosevelt. Essa circunstância não impedia, entretanto, que, muito antes dessa
época, a Rússia já houvesse estabelecido duas organizações comerciais na
América, as quais, em 1924, se fundiram na Amtorg Trading Corporation.

A Amtorg era uma réplica da Arcos e da Handelsvertretung, e agia como um


disfarce para atividades subterrâneas nos Estados Unidos, como suas duas irmãs
vinham fazendo na Inglaterra e na Alemanha. A espionagem na América do
Norte, entretanto, teve um desenvolvimento moroso, antes de ser realizada em
larga escala, principalmente porque — ainda mais do que na Grã-Bretanha — o
Partido Comunista local era pequeno demais para poder fornecer os numerosos
contatos que tornassem compensador o esforço a ser feito. Na realidade, houve
mesmo uma razão adicional, no caso da América: durante muito tempo, os
comunistas norte-americanos foram olhados com suspeição por Moscou, já que
os anos de depressão nos Estados Unidos haviam levado para as fileiras do
Partido grande número de intelectuais, os quais emprestaram à agremiação antes
um caráter mais de arregimentação de desempregados do que o de um
movimento de verdadeiros proletários revolucionários, o que seria mais
desejável.

Esses fatores, entretanto, não impediram que alguma espionagem fosse


realizada, principalmente na área industrial, e mesmo no terreno militar, sendo
que as características do Partido, nesse período inicial, eram as convencionais de
qualquer agremiação de espionagem do mesmo gênero.

Entre os pioneiros da espionagem na América encontravam-se Lydia Stahl, que


já conhecemos na França, e Alfred Tilton. Lydia era fotógrafa, e competia-lhe
fotografar os documentos obtidos por Tilton. Já as funções de Tilton consistiam
em organizar um serviço de emissários para vender os documentos fotografados
por Stahl, e para isso recrutou marítimos comunistas. Tilton regressou a Moscou
em 1930 e Lydia foi transferida para a França em 1932.
O substituto de Tilton foi Nicholas Dozenberg, que, como seu antecessor, era um
imigrante letão. Filiara-se ao Partido Comunista norte-americano, logo que este
se organizara, e o deixou em 1927, ao ser recrutado para o serviço de
espionagem. A principal missão de Dozenberg era a de organizar uma empresa
de filmes romeno-americana, da qual a filial, em Bucareste, iria servir de
disfarce para a realização de espionagem naquele país. Desgraçadamente para a
Inteligência Soviética, essa empresa teve de enfrentar sérios problemas na
Romênia. Cem mil dólares seriam necessários para manter a filial em Bucareste
e, naquela ocasião, a União Soviética não dispunha de meios de lançar mão
dessa quantia em moeda norte-americana. Nessas condições, recorreu a um
processo ilegal. Dozenberg, encarregado da operação, falsificou, em Cuba e no
Brasil, notas de cem dólares, que logo foram passadas nesses dois países. Em
face desse êxito, recebeu instruções para arranjar 100 000 dólares, em notas
falsas, para serem postos em circulação em Nova York.

Para ajudá-lo nesse negócio, de alguma forma perigoso, Dozenberg procurou a


cooperação de um médico russo, Valentin Burtan, o qual embora sendo membro
de uma organização comunista anti-stalinista, era, igualmente, amigo de um líder
dos comunistas stalinistas, Jack Stachel. Burtan tornou-se então vice-presidente
da empresa romeno-norte-americana de filmes.

Um dos pacientes de Burtan era um certo E. Dachow von Bülow, alemão não-
comunista e ex-oficial do Exército alemão — que tentara ganhar a vida, na
América do Sul, contrabandeando armas. Burtan tinha certa ascendência sobre
von Bülow, pois, de tempos em tempos, o socorria em suas dificuldades
financeiras. Em face disso, e prevalecendo-se desses antecedentes, obteve a
cooperação de von Bülow para a distribuição do dinheiro falso.

Von Bülow tinha um plano, tão temerário quanto fácil de ser operado. Entre seus
muitos amigos ambíguos, encontrava-se o Ministro das Finanças da Guatemala,
e estava certo de que esse ilustre personagem, se convenientemente
recompensado, seria capaz de trocar os dólares falsos por outros verdadeiros, por
intermédio do Banco Nacional da Guatemala.

Auspiciosamente se iniciaram, então, as negociações entre Nova York e a


Guatemala. Pouco depois, porém, evidentemente alguma coisa errada ocorreu. A
Guatemala, subitamente silenciou e não pôde ser persuadida a falar de novo.
Esse fracasso, entretanto, não desviou von Bülow de seu intento. Lembrou-se,
então, de outro amigo, um detetive particular de Chicago, chamado Smiley.
Smiley concordou em cooperar e, imediatamente, contratou um grande número
de distribuidores.

O negócio prosseguia, com êxito satisfatório, quando um dos distribuidores foi


preso em flagrante, por um policial de Chicago, ao tentar passar uma nota falsa
de cem dólares. Interrogado, confessou o jogo, e o mesmo fez Smiley. Somente o
Dr. Burtan permaneceu calado.

Desde os dias do escândalo ocorrido em 1865, que provocara a dissolução do


Serviço Secreto, do qual Lafayette Baker havia sido o chefe, a administração só
dispusera de uma pequena força secreta, vinculada ao Departamento do Tesouro.
Competia a essa força exercer vigilância sobre possíveis moedeiros falsos, pois,
desde o início da existência da América como nação independente, falsificação
de dinheiro sempre fora considerada crime grave. Assim aconteceu até 1934,
quando o Dr. Burtan foi levado ao tribunal, resultando desse julgamento a
condenação do médico a 15 anos de prisão e ao pagamento de uma multa de 10
000 dólares.

Dozenberg escapara para o exterior e foi transferido para a Romênia. Por volta
de 1939, desertara, retornando à América, onde passara algum tempo na prisão,
por haver feito falsas declarações, com o intuito de obter um passaporte. Nessa
ocasião, mudou o nome e desapareceu no anonimato.

Em 1925-26, novo Diretor-Residente foi nomeado para os Estados Unidos. Seu


nome era Tschatzky e serviu como um dos integrantes do quadro do pessoal da
Amtorg. Chamado de volta a Moscou em 1928, nenhum substituto lhe foi dado
até 1931, já que os russos não conseguiram descobrir um agente adequado para o
posto. O escolhido nesse ano foi Mark Zilbert, um dos mais destacados líderes
da espionagem soviética.

Entre as tarefas de Zilbert encontrava-se a de obter segredos navais. Seu contato


para essa tarefa era um comunista chamado Solomon Kantor, que trabalhara
anteriormente como desenhista da Arma Engineering Corporation — firma
encarregada de atender a encomendas secretas da Marinha norte-americana.
Embora já não ocupasse uma posição que lhe permitisse obter, pessoalmente, as
informações de que Zilbert tinha necessidade, Kantor dispunha de um contato
que ainda trabalhava para a Arma — um indivíduo chamado Wiliam Disch — o
qual, havendo manifestado desejo de cooperar, fora entrevistado por Zilbert.
Após esse primeiro encontro, os dois passaram a se avistar com regularidade,
todas as semanas, durante os seis meses que se seguiram. Em cada encontro,
Disch entregava a Zilbert os documentos secretos que ele desejava e, em
recompensa, recebia entre cem e duzentos dólares.

Sem que Zilbert desconfiasse, entretanto, Disch, após sua primeira entrevista,
procurara seus patrões e contara-lhes o que estava ocorrendo. Os industriais, por
sua vez, levaram o fato ao conhecimento do Departamento de Inteligência
Naval.

Nessa época, esse Departamento, embora fosse integrado apenas por uma dúzia,
quanto muito, de agentes, aos quais competia a missão de proteger a Marinha
dos Estados Unidos das manobras de espiões estrangeiros, já se revelava uma
organização inteiramente dedicada ao serviço, e os seus homens eram todos
altamente capacitados. Desde a dissolução do serviço secreto de Lafayette Baker,
em 1865, após o escândalo atrás referido, esse Departamento constituía o único
serviço secreto norte-americano em funcionamento — com exceção do Serviço
Secreto do Tesouro —, e não fora ele formado senão quando a América entrara
em guerra contra a Alemanha do Kaiser. Nas décadas dos vinte e dos trinta, o
DIN desempenhou seu papel com admirável perfeição, numa ininterrupta batalha
contra a quase esmagadora superioridade das espionagens japonesa e soviética.
Quando o FBI extinguiu a ameaça dos gangsters de Chicago e de outros de
menor importância, recebeu instruções para realizar, igualmente, serviço de
contraespionagem. Nessas condições, essas duas agências, entre si, passaram a
representar um formidável obstáculo para quem quer que, secretamente,
procurasse causar danos aos Estados Unidos.

O Departamento de Inteligência Naval deu instruções a Disch, no sentido de que


mantivesse seus contatos com Zilbert, preparou os documentos que ele devia
entregar-lhe. Todas as vezes que Disch ia a um encontro com Zilbert, era
seguido, e a entrevista não deixava de ser observada, embora houvessem
fracassado todas as tentativas de se descobrir para quem Zilbert trabalhava.

Depois de algumas semanas, entretanto, o Departamento teve a sua atenção


despertada pela tentativa, feita por um japonês, para penetrar na base naval de
San Diego. Em face dessa ocorrência, o caso Zilbert-Disch fora transferido para
a área de vigilância do FBI, e este logo teve uma inspiração, no sentido de
descobrir quem eram os chefes ocultos do espião estrangeiro. Na primeira
ocasião em que Disch iria fazer a entrega de um punhado de documentos,
recebeu instruções para dizer a Zilbert que precisava de ter aqueles papéis de
volta, no período de uma duas horas. Zilbert concordou, e os agentes do FBI
então o seguiram, constatando que, após complicado percurso, ele entrara nos
escritórios da Amtorg. Ficaram, assim, sabendo que se tratava de um agente
russo.

Até hoje, não foi explicada a razão por que os policiais não o agarraram, mas,
segundo tudo faz crer, o FBI desejava obter provas mais tangíveis para
incriminar Zilbert. Os agentes do FBI acharam muita graça, entretanto, quando
souberam que a falsificação das informações, que Disch passava a Zilbert,
acabara por se tornar conhecida dos técnicos da espionagem em Moscou. O
inevitável aconteceu: Zilbert rompeu seu contato com Disch, e, embora não
houvesse deixado logo os Estados Unidos, nem assim foi detido.

Outro agente de Zilbert era o jovem norte-americano Robert Switz, que já


conhecemos da França. Embora treinado para realizar o trabalho fotográfico que
antes competira a Lydia Stahl, qualificou-se como piloto e, antes de ir para a
França, fora incumbido de obter informações sobre as bases norte-americanas no
Panamá. Uma célula entregava-lhe as informações, e os documentos eram
copiados por um escriturário do Exército norte-americano, Robert Osman, o
amante de uma das agentes de Switz, uma moça russa chamada Frema Karry.

Tudo correu bem até que, certo dia, uma carta endereçada a Herman Meyers, em
Nova York, não pôde ser entregue, sendo devolvida para o Panamá. Ali, o
envelope foi aberto, e verificou-se que continha cópias de documentos de caráter
secreto, relativos às instalações e fortificações na Zona do Canal. Uma
investigação se realizou, constatando-se que as cópias datilografadas daqueles
documentos haviam saído da máquina de escrever de Osman. Este recebeu
ordem de prisão e, sendo julgado por uma corte marcial, acabou condenado a 20
anos de prisão, ao pagamento de uma multa de 10 000 dólares, e sofreu dispensa
desonrosa. A sentença foi suspensa, entretanto, por um novo julgamento nos
Estados Unidos. Mas, quando isso aconteceu, Switz já viajara para a França.

No princípio da década dos trinta, a Amtorg transformara-se numa imensa


empresa, dando trabalho a cerca de setecentos a oitocentos empregados, a
maioria dos quais era de comunistas norte-americanos. Suas ramificações de
espionagem haviam-se tornado vastíssimas. Um dos seus funcionários era o
comunista norte-americano Robert Pitcoff. Ele deixara o Partido em 1934, e, em
1939, depusera perante o Comitê sobre Atividades Antiamericanas —
investigação relativa às atividades comunistas —, onde declarara: “Existiam
comissões que estavam estudando vidros; outras que se dedicavam à aviação; e
havia também uma que se preocupava com a indústria química e com diversos
tipos de indústria, como a manufatura de papéis e coisas desse gênero. Quase
todo o campo das atividades industriais vinha sendo estudado por essas
comissões.”

Esse foi, na realidade, o período da maior atividade desenvolvida pela


espionagem soviética no campo industrial dos Estados Unidos e, a despeito da
constante vigilância do FBI, que se achava a par de muito do que ocorria, e
frequentemente fazia prisões, os resultados desse trabalho devem ter sido
extremamente proveitosos. Por outro lado, entre 1930 e 1933, a espionagem
militar praticamente não existia.

A razão dessa disparidade residia no grande desejo, alimentado então pelos


líderes soviéticos, de assegurar o reconhecimento diplomático da Rússia pelos
Estados Unidos. Embora os aborrecimentos, criados pela Amtorg, pudessem ser
deixados de lado — já que a opinião pública norte-americana não se mostrava
impressionada com a perda de fórmulas ou desenhos secretos —, sabiam os
russos, naquela ocasião, que um escândalo, envolvendo algum objetivo militar,
teria toda probabilidade de obter uma repercussão bem diferente. Essa conclusão
fora imposta naturalmente pela experiência dos russos em relação a esses
assuntos, adquirida em outros países. O efeito do dinheiro falsificado e o caso de
Osman demonstraram que a reação norte-americana poderia ser igual à dos
ingleses e à dos franceses, em face de qualquer ameaça à segurança dos seus
segredos militares.

Nessas condições, os agentes profissionais foram retirados dos Estados Unidos e


transferidos para outros lugares e, embora as células e as redes fossem mantidas,
nenhuma espionagem militar foi levada a efeito, entre 1933 e 1935. Quando,
porém, os soviéticos deram início, de novo, ao seu trabalho, segundo tudo
indica, foram enviadas ordens para se reconquistar o tempo perdido. Com efeito,
por volta de 1936, essas atividades atingiram elevado nível, apesar das muitas
“liquidações” e defecções que obedeceram às normas gerais do primeiro grande
expurgo de Stálin, na Rússia. Na realidade, essas defecções e “liquidações”,
durante o período de 1936 a 1939, constituíram um exemplo muito ilustrativo de
causa e efeito — como esses dois fatores parecem afetar, periodicamente, a
espionagem soviética.

Neste ponto, torna-se necessária uma referência a uma final diferença que existe
entre a organização soviética e a de qualquer outro país. Trata-se do
funcionamento da Nona Seção da Divisão Especial do Segundo Diretório, que é
conhecida como a Seção do Terror e do Desaparecimento.

A criação dessa Nona Seção parece haver sido inspirada por uma ficção, tipo
James Bond, tão estranha é sua concepção para o modo de pensar e de agir dos
ocidentais. Na verdade, entretanto, não se trata de uma invenção, imaginada por
um novelista de espionagem, mas de uma força muito ativa e poderosa que se
destaca no cenário das atividades políticas da União Soviética. Instituída numa
época em que o criador de James Bond não passava de um simples rapaz, essa
seção funcionou originalmente entre 1918 e 1920, — ou seja, durante os anos do
Terror — como a agência encarregada das execuções. Nessa condição, era um
dos principais departamentos da Comissão Extraordinária, dirigida por
Dzershinsky, para combater a Contrarrevolução e a Sabotagem. Mais tarde,
porém, tornou-se uma seção separada, adida ao Comitê Executivo Central. Suas
funções, nesse período, estavam quase inteiramente restritas ao trabalho da
comissão de execuções dentro da Rússia. Mais tarde, por volta de 1932, isto é,
depois da demissão de Zinoviev, Rykov e Bukharin das suas posições de mando,
ela se tornou um instrumento pessoal de Stálin, e, quando levada a efeito a
reorganização das agências de espionagem, em 1934, foi então incorporada ao
novo NKVD.

Muito antes disso, porém, a Nona Seção, independentemente da forma com que
se apresentasse, tinha sido empregada, fora da Rússia, para eliminar agentes
considerados indignos de confiança, e para liquidar destacados comunistas, quer
eles se houvessem envolvido, ou não, em atividades de espionagem. O método
era tanto o rapto quanto a remoção para a Rússia, onde se realizava a execução,
após um julgamento secreto. Às vezes, verificava-se uma alteração nas normas,
sendo adaptado o assassínio no próprio local em que se encontrava a vítima. As
funções dessa Nona Seção eram, igualmente, de duplo caráter: silenciar, para
sempre, os agentes que poderiam trair importantes segredos de espionagem,
transmitindo-os aos inimigos do comunismo, e, pelo terror, fazer com os agentes
secretos ou preeminentes comunistas desistissem de tentar qualquer deserção.

A partir dos meados da década dos trinta, os raptos e as liquidações tornaram-se


tão frequentes que pouca atenção despertavam. Mas o primeiro rapto que chegou
ao conhecimento do público — o do General Kutyepov, ocorrido à porta do seu
apartamento em Paris, em 1930 — constituiu verdadeira sensação. Mesmo
assim, em pouco tempo já estava esquecido, pois, embora os raptos e os
assassínios continuassem a efetuar-se, durante os sete anos que se seguiram não
foi senão após o desaparecimento de Juliet Poyntz, em Nova York, e a morte de
Ignace Reiss — antigo agente profissional e que fora Diretor-Residente, durante
algum tempo, na França e na Suíça —, ocorridos ambos em 1937, aliados ao
assassínio de Trotsky, no México, em maio de 1940, que o interesse público se
mostrou excitado outra vez. Mas, como acontecera nos casos anteriores,
rapidamente os esqueceu. Se o público, porém não estava, de fato, preocupado
com esses atos de terror, cometidos dentro da soberania dos seus próprios países,
os desertores o estavam, muito embora, mesmo em face do que vinha ocorrendo,
diversos deles revelassem a coragem de desafiar a Nona Seção.

É verdade incontestável que alguns norte-americanos comunistas, nos meados da


década dos trinta, trabalharam, uma vez ou outra, como agentes da espionagem
soviética.

Juliet Poyntz, por exemplo, tinha sido, de fato, preeminente membro do Partido
Comunista, antes que concordasse, em 1934 em fazer espionagem para a Rússia.
Depois de um período de treinamento em Moscou, voltou para Nova York com a
incumbência de descobrir novos agentes para a rede norte-americana. Mas
alguma coisa, na certa, lhe acontecera, quando ainda se encontrava na Rússia,
pois, ao retornar aos Estados Unidos, já não era uma convicta da ideologia, como
o havia sido nos doze precedentes anos. Não obstante isso, aparentemente tentou
levar a efeito, da melhor maneira que lhe permitiam suas habilidades, a tarefa de
que fora encarregada, até que o expurgo e os julgamentos, realizados em Moscou
em 1936, finalmente cristalizaram suas dúvidas. Assim, abandonou a
espionagem — tornando-se um agente, seguira a praxe tradicional, pedindo
demissão do Partido — e retirou-se para a vida privada, a fim de redigir suas
memórias. Com a primeira palavra que escreveu, assinou, porém, a própria
sentença de morte.

Certo dia, na primavera de 1937, deixou seu apartamento e, desde então, nunca
mais foi vista. Cario Tresca, líder trabalhista americano, acusou abertamente o
NKVD pelo seu assassínio e, cinco anos mais tarde, ele, por sua vez, foi morto
no que pareceu um acidente, na esquina da Quinta Avenida com a Rua Quinze.

Juliet Poyntz fora apenas um dos destacados agentes da década dos trinta, nos
Estados Unidos, que se havia desiludido. Outro foi Whittaker Chambers. Este,
como Juliet Poyntz, filiara-se ao Partido na década dos vinte, sendo introduzido
no serviço de espionagem pelo OGPU. Inicialmente, trabalhara para o Daily
Worker e era, então, o editor do New Masses. Em 1932, passara a colaborar com
o movimento clandestino e, dois anos mais tarde, recebera a incumbência de
reorganizar alguns comunistas, funcionários do governo em Washington, numa
nova rede.

Entre os seus contatos, segundo declarou mais tarde, achava-se Harry Dexter
White, assistente do secretário do Tesouro; Abraham George Silverman, da Junta
de Aposentadorias das Estradas de Ferro; o Dr. Gregory Silvermaster, do
Departamento de Agricultura, e Alger Hiss, do Departamento de Estado. Como
outro ramo de suas atividades, Chambers — segundo informou, posteriormente
— formara, com dois outros comunistas, John Sherman e Max Lieber, o
Sindicato dos Escritores Americanos, do qual a verdadeira finalidade era, de
acordo com seu próprio depoimento, dar cobertura legal a determinadas
operações clandestinas soviéticas no exterior.

Em 1938, entretanto, Chambers renegou a ideologia comunista, mas não pôde


decidir que caminho deveria seguir em relação ao problema da própria
sobrevivência, com o qual então passara a se defrontar. Divisionistas desse tipo
tinham duas estradas para escapar às atenções da Nona Seção: procurar a
proteção das autoridades norte-americanas, contando-lhes tudo; ou tentar
comprar ao NKVD sua sobrevivência, através do recurso de procurar um
esconderijo e, em seguida, esforçar-se para convencer essa organização da sua
intenção de permanecer em silêncio.

Para enfrentar esse problema, Chambers escondeu-se pelo período de um ano e


decidiu, então, tentar um entendimento. Foi a Washington para ver o Presidente
Roosevelt, mas a pessoa mais importante com quem conseguiu entrevistar-se foi
o Sr. Adolf Berle Júnior, assistente do secretário de Estado, que se encarregava
do setor de segurança. Nesse encontro, Chambers não contou tudo o que sabia.
Ressaltou as ligações e simpatias comunistas de algumas autoridades, mas não
esclareceu se essas autoridades tinham sido agentes da espionagem soviética.
Nem mencionou Harry Dexter White e Silverman, que se encontravam entre os
mais ativos e importantes colaboradores.

Roosevelt não se mostrou impressionado, quando Berle Júnior transmitiu-lhe o


que Chambers lhe contara. Os indivíduos, que Chambers mencionara, eram
altamente conceituados em seus respectivos departamentos e possuíam excelente
folha de serviço. Nessas condições, nenhuma providência foi tomada.
Dois anos mais tarde, Chambers fêz nova tentativa. Desta vez, procurou o FBI,
mas, como anteriormente, só narrou parte do que sabia. Na realidade, dez anos
deveriam passar-se entre a data em que deixara de ser agente russo até o dia em
que, finalmente, revestindo-se de coragem, revelou sua história completa. Muitas
das pessoas denunciadas por ele ainda eram membros da administração norte-
americana, mas mantinham contatos com a espionagem soviética, e as
consequências dessas denúncias desaguaram numa das mais sensacionais
“causas célebres” de espionagem de todos os tempos.

Esse rápido esboço da ficha de Chambers toma bem claro como a espionagem
soviética, no terreno militar, obtivera êxito em se infiltrar nos Estados Unidos,
durante os meados e o final da década dos trinta. Por volta de 1938, ela penetrara
na administração dos Estados Unidos de forma realmente extensa, e não pode
haver dúvidas de que essa infiltração fora grandemente auxiliada pela atitude
oficial, que Chambers havia experimentado. O descaso parecia vir de cima, da
cúpula, talvez porque Roosevelt, que implicitamente acreditava em sua
habilidade para “manobrar” Stálin, mostrava-se pouco disposto a tomar qualquer
atitude que pudesse ser interpretada como antissoviética. Temia que uma
providência drástica viesse a prejudicar suas chances de negociar, com Stálin,
em termos proveitosos.

Se a contraespionagem norte-americana enfrentava qualquer caso de


espionagem, tratava-se, naturalmente, de outro assunto. Houve, por exemplo, o
caso de Mikhail Gorin. Gorin era um agente russo profissional. Chegara aos
Estados Unidos como funcionário da Amtorg, e dessa empresa fora transferido
para Los Angeles, como gerente da Intourist — a agência oficial de turismo da
União Soviética. Em Los Angeles, entrara em contato com um oficial da
Inteligência Naval dos Estados Unidos, chamado Hafis Salich, o qual, no
desempenho de seus deveres oficiais, tinha acesso a certas informações secretas
a respeito do Japão.

No primeiro encontro, Salich, que era de nacionalidade russa e ainda possuía


parentes na Rússia, recusou-se a aceitar quaisquer das sugestões de Gorin. Este,
então, no estilo tradicional, referiu-se aos seus parentes e obteve o resultado que
desejava. Daí em diante, esse oficial passou a entregar a Gorin os documentos
secretos da Marinha, muitos deles referentes à espionagem japonesa. Ao todo,
Salich entregou mais sessenta e dois documentos secretos, e poderia prosseguir
nesse fornecimento por mais tempo do que o que realmente fez, se Gorin não
cometesse o mais extraordinário disparate — verdadeiramente inexplicável —
que um agente da sua experiência poderia praticar. Esqueceu alguns dos
documentos, fornecidos por Salich, no bolso de um terno, que enviou para a
lavandaria. Esta, imediatamente, entrou em contato com a Inteligência Naval e,
em consequência desse descuido, ambos foram logo presos.

Hoje, no curso normal dos acontecimentos, ser desmascarado constitui um risco


ocupacional da espionagem, e os espiões-chefes são condicionados a enfrentar
descaradamente essas situações embaraçosas. Mas, no clima que se respirava em
1938, e levando-se em conta a provada habilidade profissional de Gorin como
espião, dúvidas surgiram no espírito dos dirigentes da espionagem soviética, nos
Estados Unidos, sobre a sua lealdade. Poderia estar acontecendo que ele, de fato,
preparasse sua deserção?

Nas mãos do FBI, Gorin violou outro regulamento da espionagem, que todos os
agentes soviéticos eram ensinados a obedecer. (O caso Gorin ilustra muito bem
como os supertreinados agentes russos podem revelar fraquezas, quando têm de
enfrentar situações embaraçosas.) Já em mãos da polícia, solicitou permissão
para telefonar à embaixada russa em Washington. Concedida a permissão, pediu
para falar ao embaixador, Constantin Oumansky, a quem perguntou o que
deveria fazer. Oumansky, também grandemente perturbado, decidiu enviar o
vice-cônsul soviético — que, na realidade, era um agente do NKVD em Nova
York — para se avistar com Gorin na prisão de Los Angeles. Enquanto isso, ele
próprio procurou Summer Welles, que exercia, na ocasião, o cargo de secretário
de Estado, para protestar energicamente contra a prisão de Gorin, acusando o
Departamento de Justiça de se comportar de maneira que não era estritamente
legal, embora a base dessa alegação tenha constituído outro problema para
Welles resolver.

Tendo apresentado seu protesto, Oumansky visitou então Loy Henderson, da


Divisão de Negócios Europeus do Departamento de Estado, a quem solicitou que
Gorin pudesse ser visitado pelo Vice-Cônsul Ivanushkin. Apesar do fato de que,
desde 1933, Roosevelt e Stálin haviam assinado um acordo, no sentido de que os
cidadãos norte-americanos, presos na Rússia, poderiam ser conservados
incomunicáveis, durante os três primeiros dias de sua detenção, e não obstante
esse documento reconhecer a reciprocidade do estabelecido em suas cláusulas,
Henderson concedeu a permissão solicitada.

Quando Gorin e Ivanushkin se encontraram, este último disse, de forma


perfeitamente clara: “Não admitiremos nada. Ignoraremos os papéis encontrados
no terno.” O FBI julgou essas expressões como sendo uma advertência oficial a
Gorin, no sentido de que nada revelasse do que sabia.

Nos dias que se seguiram, o embaixador fez sucessivas tentativas para obter a
soltura de Gorin mediante fiança, mas o Departamento de Estado recusou-se a
intervir. O detido não gozava de imunidades diplomáticas, e tratava-se, portanto,
de assunto a ser resolvido pelos tribunais civis. Em maio de 1939, ambos foram
julgados e considerados culpados do crime de espionagem. Gorin recebeu uma
sentença de seis anos de prisão e Salich, uma de quatro. Imediatamente, os
soviéticos apresentaram um recurso em favor de Gorin e, durante os dois anos
seguintes, a causa se arrastou através da Corte de Apelação, até que, em janeiro
de 1941, a Suprema Côrte manteve o veredicto do julgamento da primeira
instância.

Como os dias da guerra se aproximavam, a espionagem soviética nos Estados


Unidos adquiriu novo ímpeto, alcançando seu clímax de atividade. As
estatísticas demonstram como o esforço de guerra entre as redes e a
contraespionagem progrediu. Entre 1933 e 1937, o FBI investigou a média de 35
casos de espionagem por ano; em 1939, a cifra elevou-se para 250 nos
precedentes doze meses, isto é, de junho de 1938 a junho de 1939, enquanto que,
no último semestre de 1939, mais de 1400 casos foram investigados. Somente
em alguns poucos deles, naturalmente, as investigações determinaram que
prisões fossem feitas e que se instaurassem processos, mas a extensão da
atividade de espionagem é acuradamente refletida nessas duas ou três
estatísticas.

Os esforços feitos e os resultados alcançados, durante esse período, parecerão,


entretanto, quase insignificantes, se os compararmos com o que foi obtido
durante a década que se seguiu.
Terceira Parte
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
1. Adaptando-se à Mudança dos Tempos

Após o caso da Arcos, os russos não realizaram qualquer outra tentativa de


espionagem, em larga escala, na Grã-Bretanha, antes do rompimento da guerra.
Na França, igualmente, em fins de 1934, o esforço foi grandemente reduzido,
após o escândalo da denúncia da rede de Switz. As redes na Alemanha nazista
viram-se forçadas a sair da atividade, pela supressão do Partido Comunista
Alemão, e tanto pela crescente eficiência da contraespionagem, por parte da
Gestapo — a Sicherheitsdienst —, como pela reinstalação da agência de
contraespionagem militar, a Abwehr.

O meio e o fim da década dos trinta constituíram um período de calmaria para a


organização russa — um período alongado pelos expurgos de Stalin, os quais
atingiram, de maneira igualmente profunda, tanto as fileiras do NKVD como o
Exército e o Partido. Mas, dos três organismos, foi o NKVD o que mais
rapidamente se recuperou.

O efeito, neste caso, foi o mesmo que o verificado no Exército, no fim dos
primeiros seis meses da guerra entre a Alemanha e a Rússia, quando uma nova
elite de jovens oficiais, divorciados das técnicas ultrapassadas dos Voroshilov e
dos Budenny, se formou e se projetou. Sob o impulso do recém-nomeado chefe
dos serviços de segurança, Lavrenti Béria, uma nova geração de agentes foi
rapidamente formada.

Para aqueles que caíram vítimas das suas forças desintegradoras, esses expurgos
representaram um vento mau que soprou através do NKVD, mas foi ele seguido
por uma brisa benigna de mudança, que trouxe, com suas novas técnicas, a
possibilidade de um êxito até então não experimentado por qualquer agência
soviética dedicada a atividades clandestinas.

O principal objetivo dos soviéticos era a Alemanha, já que se fizera evidente


que, dentro em breve, Hitler, através de provocações, iria arrastar as potências
ocidentais para uma guerra. Além disso, pesava na balança o fato de que, a
despeito do comportamento peculiarmente dissimulador de Stálin, todos os
integrantes da hierarquia soviética, nas poucas semanas que antecederam o
desencadeamento da operação “Barbarossa”, já estavam convencidos de que,
mais cedo ou mais tarde, o ditador nazista voltaria sua atenção para o Leste.
Assim sendo, nada recomendava que a atenção de Hitler fosse atraída, pois
inúmeras coisas deviam ser feitas, a fim de colocar o país num potencial pé-de-
guerra, caso o julgamento da força tivesse de se inclinar, de qualquer jeito, a
favor da Rússia.

Desde que o estabelecimento de redes no território alemão seria certamente


julgado, por Hitler, provocação suficiente para desencadear uma guerra
defensiva contra o país ao qual essas redes pertencessem, o Centro decidiu
estabelecer certo número de organizações, cujos agentes operariam
individualmente dentro da Alemanha, mas recebendo instruções de uma base
instalada na Bélgica, na Holanda, na Dinamarca ou na Suíça — base esta que,
igualmente, controlasse essas organizações.

No nono mês de 1939 que precedeu o irrompimento da Segunda Guerra


Mundial, com discrição, mas com grande eficiência, essas bases foram
instaladas, portanto, nos países mencionados. Os chefes e os operadores
chegaram, e a estrutura de cada uma delas foi preparada para fazê-las entrar em
ação ao primeiro sinal, que, no caso, seria o rompimento das hostilidades.

Cada base era autossuficiente. Todas estavam equipadas com transmissores de


ondas curtas, rádio-operadores, técnicos em códigos, correios, intermediários e
agentes que deveriam operar dentro da Alemanha como “caixas-postais” —
dispondo, efetivamente, de todas as facilidades para a coleta, tão simples quando
possível, de informações, e sua transmissão para Moscou. A direção de cada rede
foi colocada em velhas e experientes mãos, que, por algum motivo, haviam
escapado ao holocausto das brutais eliminações de Stálin. Os homens que essas
mãos iriam controlar, entretanto, representavam, em sua maioria, gente nova,
treinada em obter, por eles mesmos, as informações ou em descobrir fontes de
informação, trabalhando ao longo de instruções, de caráter geral, fornecidas pelo
Centro.

O Centro ainda controlava todas as atividades da espionagem soviética.


Incumbia-lhe designar as tarefas; aprovar os agentes que seriam recrutados;
manietar, tanto quanto possível, os Diretores-Residentes, de forma a privá-los de
toda ação independente; e por fim, frustrar qualquer manifestação de espírito de
iniciativa. Uma grande inovação, entretanto, fora introduzida: não se achavam
ali representadas as três agências — NKVD, GRU e Comintern — que, no
passado, haviam mantido organizações separadas. Embora coubesse ao Centro a
última palavra, existia, então, para todos os intentos e propósitos, somente uma
agência soviética no exterior. Os espiões, independentemente da agência para a
qual pudessem trabalhar, caso fossem mandados para o exterior, deviam dar seu
esforço e sua obediência à rede da agência já estabelecida no local para o qual
eles haviam sido designados. E não havia como não fazê-lo, já que todos sabiam
que, no final, seria o Centro que receberia e avaliaria os resultados do seu
trabalho.

As redes entravam em atividade imediatamente, quando se tornou certo que a


guerra entre a Alemanha e a Polônia terminaria por uma vitória dos nazistas.
Durante todo o período da “guerra simulada’’, elas operaram com grande
acuidade e eficiência. Com sua sede instalada fora do território alemão, e
somente com os agentes locais operando no interior do Reich, essas redes
procuravam-se garantir, por isso que, se um desses agentes caísse nas mãos da
contraespionagem, pelo menos a principal estrutura da organização estaria salva.
O agente perdido poderia ser substituído, e o trabalho prosseguiria sem qualquer
interrupção.

Na realidade, tudo correu bem, embora os resultados obtidos escassamente


justificassem o esforço feito. Essa situação, porém, não parecia preocupar o
Diretor, o chefe do Centro. As redes se afirmariam, de fato, quando a guerra
irrompesse entre a Rússia e a Alemanha.

Antes que isso acontecesse, porém, a Bélgica, a Holanda e a Dinamarca


deixaram de ser nações neutras, sendo que a França fora dividida em duas partes.
Os verdadeiros alicerces do plano foram retirados, como os calços são
removidos por baixo do casco seco de um navio que vai ser lançado ao mar. Os
agentes da contraespionagem alemã se espalharam por toda parte e, como muitos
judeus se encontravam entre os proeminentes membros das redes, passaram eles
a representar um novo e imprevisto perigo. Não obstante todas essas
dificuldades, as redes tiveram de persistir, já que constituíam as únicas
organizações capazes de se infiltrar nos segredos alemães, e, até que ocorresse
um dos mais vergonhosos capítulos da história da espionagem russa, elas
trabalharam com coragem, determinação e razoável proporção de êxito.


2. As Redes na Bélgica e na Holanda

A rede que funcionava na Holanda, e era de importância secundária em relação à


que operava na Bélgica, foi organizada por Johann Wenzel, alemão de antiga
filiação ao Partido Comunista da Alemanha. Seu segundo no comando era um
comunista holandês, Anton Winterink. Este fizera parte do pessoal da agência do
Comintern encarregada de auxiliar os comunistas que estavam presos, mas,
quando houve a “reorganização”, e recebera ordem do Centro para servir na rede
holandesa, seguiu o modelo tradicional, afastando-se das atividades do Partido.

A rede holandesa possuía sua estação de rádio própria, operada por um indivíduo
chamado Wilhelm Vogeler, enquanto quatro dos seus agentes ativos eram três
homens — Lutterman, Nagel e Gouloose — e uma mulher, Hendrika Smit.
Embora independente, essa rede era obrigada a manter estreita ligação com a sua
irmã belga, e três correios se encarregavam de preservar essa vinculação: Jacob e
Hendrika Hilboling e Maurice Peper.

Durante o período em que a guerra caíra em ponto-morto, a rede holandesa


permaneceu inativa, de acordo com as instruções vindas do Centro. Quando,
porém, os alemães invadiram a Holanda, ela recebeu a incumbência de informar
sobre os movimentos realizados pelas tropas alemãs no interior do país. Como
será descrito mais adiante, essa organização não permaneceu em atividade por
muito tempo.

A rede belga era muito mais extensa, tanto em organização quanto em relação às
suas finalidades, e, considerada em conjunto, revelava-se mais importante do
que sua vizinha do Norte. Tratava-se de uma deliberada política do Centro, como
se pode verificar pelo fato de que o indivíduo designado para dirigi-la era um
judeu polonês de notável experiência em espionagem, chamado Leopold
Trepper, que iria ser, consequentemente, nomeado Diretor-Residente de todas as
redes que operavam na Europa Ocidental.

Além de ser um profissional muito experimentado, Trepper constituía,


igualmente, uma espécie de raridade na espionagem soviética. Possuía talento
especial para fazer rápidos e seguros julgamentos; estava preparado para agir por
sua própria iniciativa e era extraordinariamente audacioso. Escapara de um
expurgo por ter tido a capacidade de convencer Stálin sobre a sua lealdade, e o
fato de ser um dos poucos agentes, de maior experiência, a continuar vivo após o
segundo expurgo de 1938, automaticamente o credenciou para ocupar um
elevado cargo.

O segundo no comando, depois de Trepper, era um letão — antigo oficial do


Exército Vermelho —, Victor Sukulov. Na idade de dez anos, segundo se
afirmava, lera um livro, Diário de um Espião, que era o relato das atividades
imaginárias de um agente britânico, chamado Edward Kent, escrito pelo
novelista russo N. G. Smirnov, e ficara tão profundamente impressionado pela
brutalidade do caráter desse herói que decidira tomá-lo por modelo. Parece haver
algum fundamento nessa história, pois um dos falsos nomes de que Sukulov se
utilizou, em sua carreira, foi justamente o de Edward Kent.

Originalmente, fora escolhido para organizar a rede que operaria em


Copenhague, mas, em sua viagem para a capital dinamarquesa, indo de Paris
permaneceu alguns dias em Bruxelas, e, enquanto ali se encontrava, a guerra foi
declarada. Em consequência disso, o Centro deu-lhe instruções para ficar na
Bélgica, como assistente de Trepper.

Além desses dois agentes, os integrantes da rede eram um sobrinho de Molotov,


Mikhail Makarov; um tenente da Força Aérea Vermelha, que agia como técnico
em códigos e rádio-operador; Anton Danilov, oficial do Exército Vermelho, que
desempenhava as funções de “gerente” do quartel-general da rede; e Sophie
Pozanska, judia polonesa, técnica em chaves de cifras e guardiã da seção de
documentos falsos utilizados pela organização.

Entre um exército de agentes de menor importância, menção deve ser feita a Leo
Grossvogel, alemão que organizou os disfarces comerciais; a amante de
Grossvogel, Simone Phelter, funcionária da Câmara de Comércio Franco-Belga,
que agia como correio entre Bruxelas e Paris; August Sesee, notável técnico e
rádio-operador; e Abraham Raichman, polonês, especialista em falsificação de
documentos de identidade.

Deve ser acrescentado a essa já enorme lista de nomes o do Coronel Konstantin


Yefremov, engenheiro militar e especialista em gases venenosos. Tomou por
disfarce o papel de um estudante finlandês, e era tão perfeito em estabelecer sua
nova identidade que, segundo um relatório da Gestapo, “até os botões de suas
cuecas eram de fabricação finlandesa”.

O quartel-general da rede fora instalado na metade de uma villa, situada à Rua


Attrebates, n.° 101, em Etterbeck, subúrbio de Bruxelas. Na outra metade da
casa, morava uma idosa viúva — a proprietária da villa —, tão inocente que
nunca tivera qualquer suspeita sobre o verdadeiro papel que representavam seus
inquilinos.

Essa rede era uma organização complexa e, portanto, algum tempo foi necessário
para que sua instalação pudesse efetivar-se. Quando, porém, a guerra irrompeu
no Ocidente, ela já se achava em condições de entrar em ação. O plano original
do Centro fora o de utilizar essa rede somente em caso de guerra entre a
Alemanha e a Rússia. Com exceção das ordens dadas, no sentido de que as
agências alemãs e, em particular, a organização Todt, sofressem infiltração após
a invasão da Bélgica, o plano foi aprovado. Para realizar essa tarefa, Trepper
fundou a firma Simexco, cuja finalidade era fornecer materiais de construção à
organização Todt e, por esse meio, conquistar a confiança dos funcionários
alemães dessa organização e obter acesso aos segredos relativos à ofensiva
alemã. Durante o reduzido espaço de tempo em que funcionou, as realizações
dessa rede foram de grande monta.

Quando a Alemanha, finalmente, atacou a Rússia, em junho de 1941, a rede


belga entrou imediatamente em plena ação. Pode-se ter uma idéia da atividade
que as redes holandesa e francesa desenvolveram, naqueles primeiros dias,
analisando-se os relatórios da Gestapo e da Abwehr, nos quais foi declarado que,
em 1941, os postos de escuta dessas duas agências de contraespionagem
registraram nada menos de quinhentas mensagens, enviadas do Ocidente para o
Centro. Tão boas eram as técnicas de rádio, então utilizadas, que as tentativas,
realizadas pela contraespionagem alemã, no sentido de descobrir o local onde
esses aparelhos operavam, resultaram inúteis, embora deva ser ressaltado que,
naquela ocasião, o sistema de descoberta de emissões ainda se achava num
estágio de desenvolvimento que poderia ser considerado rudimentar. E isso não
foi tudo: os códigos usados resistiram a todas as tentativas de decifração
realizadas pelos técnicos alemães.

As autoridades em Berlim mostravam-se desorientadas e irritadas, e tanto


Himmler quanto Canaris, chefes respectivamente da Gestapo e da Abwehr,
enviaram ordens urgentes no sentido que as transmissões russas fossem
localizadas a qualquer custo e o mais rapidamente possível. Como resultado de
um esforço concentrado, no outono de 1941 a principal estação emissora foi
localizada “em algum lugar na Bélgica”, e os russos, na ignorância dos
progressos realizados pelos alemães nas técnicas de localização de transmissões,
efetivamente traíram a si próprios, ao fazerem remessas de mensagens tão
excessivamente frequentes e regulares, quanto demasiadamente longas — cinco
horas por dia.

Em consequência disso, na noite de 13 de dezembro de 1941, tropas alemãs, sob


a orientação da Abwehr, deram uma batida no número 101 da Rua Attrebates.
Descobriram o transmissor, certo número de documentos falsos, suprimentos de
tinta invisível e Mikhail Makarov, Sophie Poznanska e Rita Arnould.
Desgraçadamente, e para seu desapontamento, não descobriram quaisquer
detalhes dos códigos.

Enquanto a batida se realizava, Trepper chegara a casa, ignorante do que


acontecia. Pensando com rapidez, entretanto, conseguiu convencer os alemães de
que não passava de um vendedor ambulante de coelhos e, em face disso, teve
permissão para se retirar.

Sophie Poznanska, por sua vez, aproveitou a confusão e tomou seu tablete de
cianeto, antes que os excitados alemães percebessem o que ela estava fazendo.
Makarov morreu sob torturas, sem trair um simples pormenor, mas Rita Arnould
não somente contou tudo o que sabia, mas igualmente entregou,
voluntariamente, à Abwehr uma fotografia de Trepper, que ela nunca deveria ter
possuído. Quando sua utilidade chegou ao fim, foi decapitada. Trepper,
conhecido como o “Grande Chefe”, e Sukulov, chamado o “Pequeno Chefe”,
fugiram para a França, onde a rede local, sob a direção geral de Trepper,
funcionava na Zona Não-Ocupada, enquanto Yefremov, não comprometido por
Rita Arnould, assumiu a direção do que restou da rede belga, sendo Johann
Wenzel levado da Holanda para ajudá-lo.

Essa iniciativa representou, mais tarde, uma atitude das mais infelizes tomadas
pelo Centro. É que Rita Arnould havia também denunciado Wenzel. Com
frequência, ele ia a Bruxelas e visitava a villa da Rua Attrebates. Não obstante a
denúncia, continuou a operar, com sucesso, pelo período de seis meses, até que,
em junho de 1942, quando localizado seu transmissor pela Abwehr, foi preso.

Por essa ocasião, a Abwehr tivera a idéia do que, mais tarde, se transformaria no
Spiel. Embora seus agentes tivessem fracassado na tentativa de decifrar os
códigos, utilizados nas transmissões da villa, mais tarde, quando uma busca mais
rigorosa ali foi levada a efeito, os alemães encontraram alguns papéis rasgados,
contendo grupos de letras. Através desse material, recorrendo a cuidadosa e
persistente paciência, seus técnicos conseguiram reconstituir o código, ocorrendo
então a Canaris que essa descoberta seria valiosa, não somente para descobrir
quais as informações que os russos haviam obtido, mas, igualmente, pelo
prejuízo que poderia ser feito à espionagem soviética, se mensagens falsas
fossem transmitidas, em código, para o Centro. Quando, entretanto, estavam
prontos para realizar esse programa, Makarov, que poderia ter sido usado nessa
tarefa — e, de fato, devia ser usado * —, estava morto, e o Centro já mudara
seus códigos.

Naquela ocasião, entretanto, a Abwehr dispunha de novo operador em Wenzel e,


além disso, de um operador que conhecia os novos códigos. No princípio,
recusou-se a cooperar, mas, quando lhe foi exibido seu dossiê, em poder dos
alemães, e lhe propuseram a alternativa de ser morto ou fazer o que lhe fosse
ordenado, rendeu-se. Sendo um agente de longa prática e havendo sido Diretor-
Residente, as informações de que dispunha para oferecer à Abwehr eram
relevantes.

De qualquer forma, parece que Wenzel não traiu Yefremov, pois este último foi
preso, em julho de 1942, quando Raichmann, técnico em falsificação de
documentos, entregou um retrato dele a um inspetor de polícia belga, chamado
Mathieu, em quem confiava, mas que, na realidade, estava então colaborando
com os alemães. Em face da desorganização em que caíra o departamento de
falsificação, com a apreensão, no interior da villa, de seus cunhos de borracha,
Raichmann solicitara a Mathieu que pusesse um carimbo oficial naquela
fotografia de Yefremov, o que se fazia necessário para a obtenção de um novo
passaporte. É que o agente russo decidira mudar sua nacionalidade, deixando de
ser finlandês para se tornar holandês. Mathieu concordou em entregar, ele
próprio, o passaporte a Yefremov, quando lhe fosse possível carimbá-lo, e,
quando os dois se encontraram, o agente russo foi preso.

A princípio, Yefremov se recusou a dar qualquer tipo de informação à Abwehr,


mas, de uma forma ou de outra, a organização alemã descobriu que seu
prisioneiro tinha grande apego à família, que se encontrava na Rússia.
Ameaçaram-no, então, de enviar uma mensagem ao Centro, declarando que ele
denunciara Wenzel. Essa denúncia faria certamente com que os russos, em
represália, prendessem e, provavelmente, executassem sua família toda. Diante
de tal ameaça, Yefremov cedeu e, uma vez que começou a falar, tornou-se,
rapidamente, excelente colaborador.

Como resultado da confissão de Yefremov, Maurice Peper e Hendrika Hilboling


— os correios entre os grupos belgas e holandeses — foram presos. Madame
Hilboling recusou-se a colaborar e foi executada. Peper, porém, denunciou
Winterink, que dirigia a rede holandesa desde a partida de Wenzel para Bruxelas.
Winterink, também, inicialmente se recusou a falar, mas foi em seguida
convencido a fazê-lo e, em troca, traiu o resto dos integrantes da rede.

Assim, quase com um golpe só, as redes da Bélgica e da Holanda foram


inteiramente desmanteladas. A dinamarquesa nunca fora estabelecida e, nessas
condições, de toda a enorme organização soviética no Ocidente, só restaram em
funcionamento as redes da França e da Suíça.

* A técnica individual de transmissão de um rádio-operador é tão pessoal quanto


a sua caligrafia. Embora mensagens, contendo todos os sinais de identificação,
possam ser transmitidas, se ela não for operada pelo agente designado para agir
em determinada estação, os que as recebem saberão, imediatamente, que um
falso agente está fazendo funcionar o aparelho emissor. Era essencial para os
alemães, portanto, que agentes capturados pudessem transmitir, para eles, suas
mensagens falsas, embora, num período superior a dezoito meses, na Holanda,
no curso do que, posteriormente, se tomou notório como sendo o England spiel,
operadores alemães, de fato, transmitiram mensagens e o quartel-general das
comunicações do Departamento Executivo de Operações Especiais não
reconheceu que a “caligrafia" não era dos seus agentes na Holanda.
3. A Rede de Espionagem Russa na França

Quando Trepper assumiu a direção da espionagem soviética na França, já


funcionavam nesse país duas ou três redes, que agiam independentes umas das
outras, mas em contato direto com o Centro. De todas as redes ocidentais, a da
França havia-se tornado a mais importante para a União Soviética. Essa
importância se acentuara ainda mais durante a vigência do pacto nazi-soviético,
o qual, em grande escala, se parecia com a guerra, em ponto-morto, que Hitler
conduzia contra as potências ocidentais. Mesmo quando os alemães invadiram a
França em 1940, a rede francesa não se encontrou na mesma situação em que
estiveram suas irmãs da Bélgica e da Holanda. Mesmo após a divisão do país em
duas partes, foi-lhe possível, pelo período de alguns meses, fornecer bom
volume de informações exigidas pelo Centro. Essa central de Moscou desejava
ser informada sobre os seguintes assuntos: planos estratégicos dos exércitos
alemães; relações entre os líderes nazistas e o Alto Comando; o local em que se
encontrava Hitler e onde estava instalado seu quartel-general; o poderio da
Luftwaffe; a situação da Alemanha em relação a combustíveis; e os movimentos
realizados pelas tropas nas costas da Bélgica e da França.

Entre as redes estabelecidas na França, antes da chegada de Trepper, as de maior


importância eram o grupo do Comintern, chefiado por um indivíduo com nome
inglês, Henry Robinson — que, na realidade, era filho de um rico comerciante de
Francforte — e o grupo liderado por um russo aristocrata que se tornara
comunista, Vasili Maximovich. Esses dois grupos deveriam fornecer a Trepper a
maioria das informações mais valiosas obtidas por suas bases no país.

Apesar de sua formação de integrante da classe privilegiada, Henry Robinson


fora comunista desde a organização do Partido na Alemanha. De fato, fora um
“spartaquista”, o que, na realidade, significava haver sido um precursor da GCP,
à qual Clara Schabbel — sua amante — também pertencera. Por volta de 1930,
servira como chefe da seção secreta do Comintern, tendo adquirido, nessas
funções, largo círculo de amigos e conhecidos entre os políticos e as autoridades
administrativas da França. Adotou, então, a cidadania francesa. No início da
guerra, havendo-se separado de Clara Schabbel, residia num hotel de segunda
categoria, sendo considerado por todos um intelectual extremamente excêntrico.

Fazia parte do seu grupo certo número de destacados agentes. Ali estavam:
Maurice Aenis-Hanslin, engenheiro, que atuava como correio entre o grupo e a
rede suíça; Louis Mourier, que desempenhava as vitais funções de “caixa-
postal”; e, por fim, Medardo Griotto, gravador, cuja arte e habilidade eram
grandemente apreciadas por todos os integrantes do grupo.

Vasili e sua irmã Anna Maximovich eram filhos de um nobre russo emigrado
para Paris após a derrota dos russos "brancos” em 1922, ali morrendo, viúvo e na
miséria. A criação e a educação dos dois filhos, que deixara na orfandade,
ficaram a cargo do bispo de Paris, Monsenhor Chapital, que dispunha de fundos
para socorrer estrangeiros necessitados. Vasili formou-se em Engenharia; Anna,
em Medicina, especializando-se em Psiquiatria e em Neurologia.

Paradoxalmente, em face dos seus antecedentes, os Maximovich foram atraídos


pelo comunismo e, embora nunca se houvessem filiado ao Partido e tornado
públicas suas simpatias pela nova ideologia, frequentavam os círculos dos russos
“brancos” que, discretamente, no período de fins de 1920 até princípios de 1930,
vinham sendo cortejados pela embaixada soviética.

Ao irromper a guerra, Anna, que fundara uma casa de saúde para doentes
mentais, passara a financiar, com os lucros que ali obtinha, os simpatizantes da
organização União dos Defensores. Em consequência disso, foi presa, mas,
tendo conseguido provar que cuidava de pacientes legítimos, logo a libertaram.
Vasili, durante algum tempo, não fora incomodado pelas autoridades. Por volta
de outubro de 1939, entretanto, a polícia o internou num campo em Bernet, perto
de Toulouse, que primitivamente havia sido criado para recolher comunistas
espanhóis, fugidos da truculência de Franco, e que então passara a ser um centro
de detenção de russos.

Nesse campo permaneceu até que se deu a invasão da França, quando foi
libertado, sob o compromisso de servir de intérprete a um general alemão, de
tendências anti-hitleristas.

Por essa ocasião ou, mais exatamente, alguns meses antes dessa data, Trepper
estava organizando seu próprio grupo na França e tinha sido nomeado para o
posto de Diretor-Residente da espionagem russa em território francês. Com a
assistência de Feo Grossvogel, fundara, em 1939, uma firma de produtos têxteis,
mais ou menos idêntica às que haviam sido estabelecidas em Bruxelas e
Ostende, como se pode ver pela semelhança dos nomes — Simexco, na Bélgica,
e Simex, na França — , e que serviria como disfarce para suas operações.
Funcionando em escritórios, instalados nos Campos Elíseos, a Simex dispunha,
igualmente, de uma filial no Bulevar Haussmann e ainda de uma outra em
Marselha. Após a queda da França, foi instalada uma terceira filial na Zona Não-
Ocupada.

Entre os membros destacados do grupo francês de Trepper se encontravam seu


assistente e secretário, Hillel Katz, e sua secretária particular, Suzanne Cointe.
Os membros de fachada da Simex eram Alfred Corbin, o diretor-gerente
ostensivo, e Robert Breyer, os quais, ao mesmo tempo que cuidavam das
operações legais da firma — fornecendo materiais de construção às organizações
alemãs —, operavam no campo da espionagem, embora em escala de certo modo
reduzida. A cobertura proporcionada pela Simex deu a Trepper e a seus
assistentes entrada franca em todos os locais em que se realizavam construções,
inclusive em alguns trabalhos levados a efeito nas fortificações e, dessa maneira,
grande número de informações lhes chegaram ao conhecimento.

Trepper e Robinson não começaram a cooperar senão após a queda da França,


mas, durante seu breve contato, este último forneceu valiosas informações ao
primeiro. De todos, porém, o que obteve maior êxito foi Vasili Maximovich.
Trepper entrou em contato com Vasili logo depois de este assumir suas funções
de intérprete. Quando manifestou desejo de trabalhar para Trepper e o Centro
deu a indispensável permissão, embora recomendando que devia agir com
cautela, imediatamente numerosas informações, da mais alta importância,
começaram a ser levadas ao Grande Chefe.

Maximovich ampliou suas próprias fontes pessoais, ficando noivo de uma


solteirona, de 44 anos de idade, Anna Margarete Eloffmann-Scholtz, que era
uma das secretárias para assuntos confidenciais da Administração Militar Alemã
em Paris. Embora Vasili não pudesse ser considerado um homem bonito, ao
beirar a idade dos trinta e oito — na verdade, era atarracado, barrigudo, e sofria
de uma inchação na perna —, para Fraulein Hoffmann-Scholtz representava a
mais preciosa aquisição que uma solteirona de meia-idade poderia esperar para
marido.

O noivado, aprovado pelo Centro, foi comemorado com uma festa esplêndida, na
qual, com exceção do noivo, todos os presentes eram violentamente
anticomunistas. Seus chefes alemães encararam igualmente aquela ligação com
prazer, tendo Maximovich recebido então uma permissão especial para visitar o
quartel-general da Administração Militar, quando quisesse e tantas vezes quantas
desejasse. Poucos agentes soviéticos, talvez somente com duas notáveis
exceções — Rudolf Rössller, que operava com a rede de Genebra, e Richard
Sorge, em Tóquio —, tiveram melhores facilidades para realizar seu trabalho do
que Vasili. Não somente tinha acesso pessoal a praticamente tudo o que ocorria
no quartel-general da Administração Militar, mas sua esposa revelou-se ansiosa
por ajudá-lo, levando-lhe todos os rumores que suas colegas femininas lhe
transmitiam.

As informações que Maximovich enviava ao Centro, através de Trepper,


incluíam relatórios sobre as reações francesas em face dos seus intrusos
hóspedes; o inteiro esboço da economia militar alemã — tanto na França como
nos demais países ocupados —; a seriedade da situação de mão-de-obra;
detalhes do que ocorria nos campos de concentração e identidade dos que ali se
achavam recolhidos. Documentos secretos lhe eram “emprestados” por algumas
horas, os quais, depois de copiados, eram devolvidos, antes que dessem por sua
falta.

O esforço de espionagem realizado por Maximovich nem era um solo, nem um


dueto. Entre seus agentes se incluíam dois dos intérpretes que serviam ao
comandante alemão em Paris e, através deles, recebia detalhes exatos das forças
alemãs no interior da capital francesa e em seus arredores, seus suprimentos e
equipamentos, seus movimentos, os quais lhe proporcionavam, igualmente, um
retrato, de conjunto, da situação militar na França. Kathe Völkner, secretária do
chefe do Arbeitseinsatz, o Departamento de Trabalho Forçado, transmitia-lhe
informações de idêntica importância. Kathe, que fora acrobata de certa reputação
e viajara por toda a Europa — de norte a sul e de leste a oeste —, inclusive a
Rússia, com seu amante, Johann Podsiadlo, fora salva de ser internada pelos
franceses, no começo da guerra, graças aos bons ofícios da organização
soviética. Ambos aprenderam taquigrafia e datilografia e, quando os alemães
ocuparam Paris, Kathe conseguiu o emprego em que então se encontrava,
enquanto Johann foi tomado como intérprete por uma outra organização de
recrutamento.

Anna Maximovich, irmã de Vasili, integrara-se igualmente no grupo. Com a


ajuda de Trepper, abriu uma nova clínica na linha de demarcação entre as Zonas
Ocupadas e Não-Ocupadas. Essa localização transformara seu pequeno hospital
não somente num excelente ponto de encontro para os agentes clandestinos, mas,
igualmente, numa fazenda bem administrada e produtiva, em condições de
fornecer gêneros alimentícios para muitos dos que não dispunham de cartões de
racionamento.

Ali, ela atendia aos seus pacientes verdadeiros, assistida pelo Dr. Jean Darquier,
cujo irmão era o Comissário-Geral para os Assuntos Judaicos no governo do
Marechal Pétain. Como Jean Darquier era pessoa de sua confiança, essa ligação
abriu uma fonte de informações não somente relativas às questões judaicas, mas
também relacionadas com uma larga variedade de assuntos de ordem geral,
todos de grande interesse para Moscou. Desde que o casamento de seu irmão
com Fraulein Hoffmann-Scholtz realçara grandemente a posição de Maximovich
com os alemães, não tardou que oficiais do exército de Hitler procurassem tratar-
se com Anna, de suas enfermidades nervosas, provocadas pelo esforço de
subjugar um povo orgulhoso e agitado. Esses oficiais constituíram também nova
fonte de informações. Nessas condições, levando-se em conta todas essas
circunstâncias, a rede de Maximovich adquiriu considerável importância no
fornecimento de Inteligência ao Centro.

Tudo corria bem, até que ocorreram as prisões e o desmantelamento da rede da


Bélgica, o que, como era de se esperar, fez com que os alemães concentrassem
sua atenção no que se passava na França. Uma vez mais, foram os rádio-
operadores que caíram em primeiro lugar. Em junho de 1942, os técnicos da
Abwehr, encarregados de detectar a direção das irradiações clandestinas,
levaram os policiais alemães ao Dr. Herz Sokol e a sua esposa, Miriam. Essas
prisões colocaram Trepper, pessoalmente, em grande perigo, pois ele os havia
usado como seu principal veículo de comunicação com Moscou.
Afortunadamente, o doutor e Sra. Sokol, ambos poloneses e veteranos
comunistas, se recusaram a falar, durante algum tempo. Quando, porém, a Sra.
Sokol ouviu a ameaça, feita pelos alemães, de que seu marido seria fuzilado
diante dos seus olhos, fraquejou e confessou. Denunciou tudo o que sabia sobre
Trepper, mas não sabia o suficiente para comprometê-lo. Frustrada e irritada, a
Abwehr executou os dois, sem maior preocupação.

A maior ameaça à rede soviética na França veio dos ex-integrantes da rede belga,
que haviam concordado em colaborar com os alemães. Esse fato revela, de
maneira expressiva, a falta de habilidade de alguns dirigentes do Centro, que,
permitindo a existência de um chefe na direção ou relacionado com duas
organizações, funcionando em dois países separados, comprometiam a segurança
de ambas as redes. Em outubro de 1942, oficiais da Abwehr, que haviam sido
responsáveis pela apreensão da rede belga, chegaram a Paris, levando em sua
companhia alguns daqueles agentes-colaboradores. Logo após o desembarque
desses elementos na capital francesa, umas duas vintenas de agentes soviéticos,
ou de pessoas suspeitas de serem agentes, foram presas.

O objetivo principal que tinham em mira era, naturalmente, Trepper — o Grande


Chefe —, sobre quem já sabiam muitas coisa. Possuíam uma fotografia sua,
fornecida por Rita Arnould; não ignoravam o papel que desempenhara na rede
de Bruxelas; e estavam cientes também de que se encontrava na França. Só não
sabiam onde Trepper estava morando.

Numa tentativa de fazê-lo aparecer, os alemães levaram Raichmann a Paris e lhe


prometeram que, se conseguisse entrar em contato com Trepper, teria a vida
poupada. Raichmann comprometeu-se a fazer o que pudesse e, embora houvesse
tido a oportunidade de trair diversos agentes soviéticos, denunciando-os ao
serviço de contraespionagem alemã, no curso das suas “investigações”, não
conseguiu induzir Trepper a se mostrar.

Mas, se Raichmann fracassou, os dias de Trepper pareceram, entretanto,


contados, quando um intérprete que trabalhava na Simex — a firma que
organizara como disfarce para suas atividades —, uma antiga russa “branca”,
Maria Kalinina, e seu filho Evgeni, um dos motoristas da organização,
denunciaram o verdadeiro papel daquela empresa industrial. Avisado com
antecedência, Trepper mergulhou na clandestinidade e, embora muitas iscas
fossem postas para atraí-lo, nunca as mordeu.

Trepper caiu, finalmente, nas mãos dos alemães, em consequência de sua própria
falta de cuidado. Num diário, que deixara em sua secretária, na Simex, anotara
uma hora marcada com seu dentista. Para um agente da sua experiência, esse
fato constitui falta inadmissível, e ainda pareceu quase incrível, ao saber-se que
o Grande Chefe compareceu ao encontro marcado, mesmo sabendo da deserção
dos Kalinin. Dessa forma, foi preso, no dia 16 de novembro de 1942, quando se
achava sentado na cadeira do dentista.

No princípio, Trepper recusou-se a falar. Quando soube, porém, que, se insistisse


no mutismo, seria entregue à Gestapo, que utilizava métodos mais persuasivos
que a Abwehr para arrancar confissões, concordou em dar algumas informações,
que não repugnavam em demasia à sua consciência. Uma vez mais, torna-se
surpreendente que um agente de tão longa experiência não compreendesse que,
quando um homem na situação em que ele se encontrava começa a falar, não há
limite, de fato, para o que possa revelar. Quanto mais informações dava, mais o
parafuso se apertava, e, por fim, viu-se colaborando francamente com os
alemães.

O primeiro assistente que denunciou foi seu secretário, Hillel Katz, a quem pediu
que o encontrasse na estação do metrô da Madeleine. Quando Katz foi acareado
com Trepper, este lhe ordenou revelasse tudo o que sabia. Katz obedeceu e,
quando já havia dito tudo, os alemães o executaram.

Entre os dois, Trepper e Katz, também foi atraiçoado Henry Robinson, o chefe
da rede, que, depois de Maximovich, era que operava com maior êxito. Robinson
foi preso no dia 21 de dezembro de 1942.

A maior traição de Trepper, porém, foi sua denúncia de Vasili e Anna


Maximovich e de toda a rede de que dispunham. A prisão desses agentes
destruiu todas as organizações soviéticas que tinham Paris por base — redes tão
astuciosamente estruturadas e que tanto sucesso vinham alcançando.

Esses fatos, entretanto, não significam que tenha chegado ao fim a espionagem
soviética na França. Victor Sukulov, o Pequeno Chefe, que escapara ao cerco das
tenazes da Abwehr em Bruxelas, transferira-se para Marselha, onde vinha
dirigindo com êxito uma excelente organização. Existia ainda outra que operava
em Lyon — um dos centros da resistência francesa —, dirigida por Jezekiel
Schreiber. Em poucos meses, essas duas redes também haviam sido
desmanteladas, e a mesma desprezível história de traição fora repetida.

É difícil compreender o completo fracasso dos principais agentes russos —


homens cheios de bravura e com longos anos de serviço prestados à espionagem
soviética. Desgraçadamente, não dispomos de suficiente espaço para analisar, em
detalhe, o colapso moral e a quebra de lealdade, dos quais, segundo
razoavelmente se deveria esperar, deveriam estar isentos homens como Trepper,
Sukulov, Katz, Raichmann, os Kalinin, Máximovich, Henry Robinson e outros.
Todos eram comunistas veteranos e, nessas condições, dever-se-ia pensar que a
ideologia que professavam iria impedir que colaborassem com os fascistas.
Além disso, constituíam uma elite de agentes altamente treinados, e essa
circunstância também deveria tê-los condicionado a preferir a morte à desonra.
Enquanto estavam operando, revelaram todas as gamas de engenhosidade, todas
as escalas de coragem, uma completa devoção às incumbências que lhes foram
atribuídas. Tudo isso, sem dúvida, torna a traição que praticaram ainda mais
difícil de ser compreendida.

Trepper colaborou com a Abwehr em seu “jogo do rádio” e, por meses e meses,
operou uma estação transmissora para os alemães. Como resultado dessa sua
atividade, a Resistência Comunista Francesa, um dos grupos de resistência mais
poderosos e ativos em toda a França, foi tornada praticamente sem eficiência.

Com permissão para viver numa residência particular, situada à Avenida Foch,
com sua amante, Geórgia de Winter, conseguiu ludibriar a guarda que o vigiava,
em junho de 1943, e nunca mais foi visto pelos alemães. Chamado de volta a
Moscou, no término da guerra, obedeceu submissamente, embora devesse saber
que seu destino seria a execução — fato este que lhe toma a deserção ainda
enigmática.

Mais danosas, entretanto, foram as atividades de Sukulov, e os motivos que o


levaram à traição que praticou foram simples e pessoais. Ao ser preso, recusou-
se, firme e secamente, a dizer qualquer palavra. Nem ameaças nem torturas o
fizeram mudar de atitude. Ao contrário, pediu para ser executado.

Um dia, porém, foi acareado com sua amante, Margarete Barcza. De acordo com
o Der Stern, que publicou, no dia 17 de junho de 1951, declarações feitas por
agentes da Gestapo, relativas ao desmantelamento das redes francesas e ao “jogo
do rádio”, o que aconteceu foi o seguinte: “Ao ver Barcza, Sukulov mostrou-se
furioso. Avançou para ela e a abraçou, com uma ternura de que só um russo é
capaz. Voltando-se, então, para o Comissário, exclamou: Deixe que ela vá em
liberdade, e eu lhe contarei tudo. . . Ajoelhou-se diante do oficial e chorou como
uma criança.”

Os alemães aceitaram a proposta e, dentro de poucas semanas, Sukulov,


acompanhado de Margarete Barcza, estava de volta a Marselha, operando um
transmissor para o “jogo do rádio”. Iludiu completamente o Centro, o qual, por
sua vez, continuou a lhe enviar instruções, recebendo, em troca, informações
preparadas pelos alemães. Sukulov chegou mesmo a se oferecer para tentar
entrar em contato com a rede que operava na Suíça, mas o agente britânico que a
dirigia estava muito prevenido contra ele, e o golpe falhou. Essa tentativa pôs
termo à sua utilidade para os alemães, pois o relatório que Foote enviara ao
Centro fez com que seu diretor mandasse instaurar inquéritos, a fim de apurar o
que de fato ocorria na França. Em face das investigações realizadas, ficara
apurado que Sukulov tinha estado a serviço dos alemães nos últimos quatro ou
cinco meses.

Sukulov retirou-se com os alemães, quando a França foi libertada, enquanto


Barcza montou uma casa para ambos, em Bruxelas. Ali, ele a visitava, de tempos
a tempos, enquanto vivia clandestinamente, para escapar tanto à atenção dos
russos como à dos aliados. Pouco tempo depois da guerra, viajou para os Balcãs,
e ali desapareceu. A Segunda Seção do Terror e do Desaparecimento, segundo
tudo indica, conseguira, por fim, pegá-lo.
4. A Orquestra Vermelha e Outras

Embora não por culpa sua, Victor Sukulov foi, igualmente, envolvido na
apreensão e na supressão de uma das notáveis organizações da espionagem
soviética que operavam durante a guerra. Conhecida como a Orquestra Vermelha
— Die Rote Kapelle * —, era admirável, tanto por seus membros integrantes
quanto pelas informações que pôde transmitir para Moscou, durante os quatorze
meses de sua existência.

Durante o período da “cooperação” nazi-soviética, que se estendeu da assinatura


do Pacto Ribbentrop-Molotov até o irrompimento da guerra entre a Alemanha e
a Rússia em 1941 — e coincidiu, aproximadamente, com a eliminação das redes
soviéticas de antes da guerra, instaladas em território germânico, como em
outros países da Europa Ocidental —, verificou-se uma fase de calmaria na
política mundial. Mas, como aconteceu naqueles outros países, se uma
espionagem ativa não estava em curso, esse período de calmaria foi utilizado, na
Alemanha, para a instituição de uma organização que poderia operar quando a
guerra viesse a irromper entre as potências fascistas e comunistas.

Por motivos que se desconhecem, entretanto, a organização desse “aparelho” de


espionagem foi deixada a cargo de agentes profissionais, adidos à embaixada da
Rússia em Berlim. Esses agentes, ainda por outras razões que não puderam ser
descobertas, entraram em pânico ou retardaram o trabalho até 22 de junho de
1941, quando, então, procuraram realizá-lo, mas deixando apenas vagamente
concluído. O resultado foi que, quando a embaixada preparou sua mudança e
abandonou rapidamente o país, no dia seguinte à irrupção da guerra entre a
Alemanha e a Rússia, o pessoal da Inteligência a acompanhou, e ali foram
deixados apenas como que uns simples ossos de uma rede, e não o esqueleto
completo de uma organização dessa natureza.

Deve ser recordado naturalmente que, em face do desmantelamento dessas


organizações no período anterior ao nazismo e da quase supressão do Partido
Comunista Alemão, as reservas de talentos locais foram seriamente afetadas,
quer quanto à sua quantidade, quer no que diz respeito à sua disponibilidade.
Não obstante esses embaraços, levando-se em conta o caso da Rote Kapelle, não
há dúvida de que, se o esforço das agências soviéticas fosse mantido durante o
período de 1939 a 1941, uma rede poderia ter sido organizada e estaria em
condições de entrar em imediata e efetiva ação, tão logo o Dia D viesse. Isso não
aconteceu, porém. O pequeno grupo que foi recrutado não era apenas
inexperiente em técnicas de espionagem, mas também impropriamente
preparado para o que, nos melhores círculos de espionagem, se denomina grave
risco de segurança. Apesar dessas deficiências, esse grupo venceu a maior parte
das dificuldades que se lhe apresentaram e só caiu vítima dos detectores de
radiotransmissão da Abwehr.

Os líderes do grupo eram Harro Schultze-Boysen e Arvad Harnack, ambos


homens de reais qualidades. A tarefa que lhes competia era reunir, para a
execução de uma missão coletiva, certo número de colaboradores que
ultrapassassem, em qualidades, a maioria dos membros ordinários da
espionagem soviética daquele tempo. Originalmente, o círculo formado fora
constituído de uma pequena parte do grande grupo antinazista de Resistência
Comunista. Embora fosse tradicional que os comunistas russos e alemães se
limitassem a realizar apenas o papel de Resistência, aqueles novos recrutados se
mostraram bem menos importantes e eficientes nesse setor de que o foram em
suas atividades de espionagem.

Harro Schultze-Boysen, era filho de um oficial alemão aristocrata. Servira na


Marinha, durante a Primeira Guerra Mundial, e foi chefe do Estado-Maior do
General Der Flieger Friedrich Christiansen, comandante-chefe, na Holanda,
durante a Segunda Guerra Mundial. Quando atingira a idade de quinze anos,
Schultze aderira à ala direita do movimento antinazista, mas não por muito
tempo, pois breve passaria para o extremo oposto. Em 1932, quando tinha vinte
e dois anos, era o porta-voz de um grupo de jovens progressistas. Por causa
dessas atividades, foi preso e encarcerado pela Gestapo, quando os nazistas
assumiram o poder. Essas experiências empurraram-no naturalmente para a
extrema-esquerda e para o comunismo. Suas simpatias pelo comunismo não
impediram, entretanto, que se tornasse membro do Ministério da Aeronáutica da
Alemanha, no qual, em tempos de operação, esteve servindo como oficial da
Inteligência.

Quando atingiu a idade de vinte e seis anos, Schultze-Boysen casou-se com uma
neta do Príncipe Philip von Eulenberg — Libertas Haas-Heye —, que lhe iria ser
de grande ajuda, já que iniciou efetivamente suas atividades de espionagem no
mesmo ano do seu casamento, isto é, 1936. Nessa época, enviava informações
aos vermelhos espanhóis, relativas à Inteligência alemã.

Nesse ano, começou a reunir em torno dele um grupo de homens de orientação


política idêntica à sua. Nunca foi, entretanto, um comunista ortodoxo. Embora
suas simpatias estivessem cem por-cento com os soviéticos, seu caráter — era
instável e emocional em excesso — não lhe permitiria nunca obedecer em
qualquer circunstância, ao que fosse ditado por Moscou.

Imediatamente antes de Hitler invadir a Rússia, Schultze-Boysen foi apresentado


a um agente soviético que integrava o quadro do pessoal da embaixada e cujo
papel era assistir Bogdan Kobulov, que, sob o disfarce de conselheiro da
embaixada, estava encarregado de estabelecer uma rede que deveria operar na
Alemanha, após a irrupção da guerra. Esse agente, que disfarçara com êxito sua
identidade, sob o falso nome de Alexander Erdberg, viu imediatamente em
Schultze-Boysen o tipo de homem de que necessitava. Em breve, era ele
escolhido pelo Centro para ser um dos três diretores da referida rede. Seus
companheiros seriam Arvad Hamack e Adam Kuckhoff.

Harnack era bem diferente de Schultze-Boysen: dez anos mais velho e membro
de uma famosa família de filósofos alemães. Como Schultze, entretanto, cedera,
a princípio, aos grupos de extrema-direita, no fim da Primeira Guerra Mundial, e
então derivara para o comunismo. Era, porém, um verdadeiro comunista, um
marxista.

Quando um grupo de intelectuais comunistas alemães fundou, em 1931, uma


sociedade de propaganda do comunismo, denominada Sociedade Para Estudo da
Economia Planificada, Harnack destacou-se entre esses idealistas. Embora essa
sociedade, que dispunha de pleno apoio de Moscou, não tivesse sido criada,
originalmente, para fazer espionagem, acabou sendo solicitada, entretanto, a
fornecer certas informações a Moscou.

Em 1932, um pequeno número de sócios dessa entidade — entre eles, Harnack


— visitou a Rússia, numa viagem de estudo. Essa excursão, segundo tudo faz
crer, desempenhou papel importante em relação ao futuro desenvolvimento
político de Harnack. Suas qualidades intelectuais foram notadas pelos dirigentes
soviéticos, que logo o convidaram para realizar espionagem em favor do
governo de Moscou. Ele concordou com a proposta e, com a possível exceção de
George Blake, a espionagem soviética provavelmente nunca dispôs, em seus
quadros, de um agente, como ele, tão altruísta em seus motivos. De fato,
Harnack só se envolvera em espionagem por motivos puramente ideológicos, e
nela permaneceria pelos próximos dez anos, sem levar em consideração qualquer
outra circunstância.

Ao regressar de Moscou, Harnack solicitou e obteve um cargo no Ministério da


Economia da Alemanha. Constitui um mistério indecifrável o recurso de que se
valeu para ocultar sua visita à Rússia. Com efeito, ele não iria ser desmascarado
senão quando a Orquestra Vermelha fosse desmantelada — época em que o
papel que desempenhava na organização tornou-se conhecido.

É óbvio que Harnack era uma dessas raras criaturas — um espião de nascença.
Embora não houvesse recebido qualquer treinamento, durante sua longa carreira,
sempre observou os princípios básicos da segurança, e nem uma só vez deixou
escapar a mais leve insinuação sobre suas atividades secretas. Tanto êxito obteve
que logo passara a ser considerado, no Ministério da Economia, como modelo do
que um oficial deve ser — um burocrata consciencioso e trabalhador.

No fim da década dos vinte, passara dois anos nos Estados Unidos, através de
uma bolsa de estudos da Fundação Rockefeller. Durante sua permanência ali,
conheceu Mildred Fish, conferencista de literatura, com ela se casando. A Sr.a
Harnack não necessitara de muita persuasão para adotar as idéias do marido.
Quando ele retornou de Moscou, ela se mostrava tão entusiasmada quanto ele
em relação a suas novas funções. Ao ser desmantelada a Orquestra Vermelha,
pelos alemães, foi presa, juntamente com o marido, e julgada, embora nunca
fosse confirmado que alguma vez se tivesse empenhado em atividades de
espionagem.

O terceiro membro do triunvirato, Adam Kuckhoff, era conhecido escritor e


produtor de teatro. Tinha cerca de cinquenta anos quando a Orquestra Vermelha
foi organizada. Como os outros dois, iniciara a vida política como nacionalista-
direitista e, com o advento do nazismo, aderira ao comunismo, como o meio
mais efetivo de derrubar a ditadura. Sua esposa, Margarete, que o ajudara em
todas as suas atividades antinazistas, era funcionária do Departamento de
Política Racial, dirigido por Alfred Rosenberg. Kuckhoff, dos três, foi o que
desempenhou papel de menor importância.

Em torno desses três líderes, agruparam-se aproximadamente cem pessoas.


Viam-se, entre eles, alguns membros do Partido Comunista Alemão, embora não
dispusessem de muita influência. Os restantes eram jovens comunistas,
ideologicamente sem base, mas fanáticos em seu ódio a Hitler e a tudo o que ele
representava, e uma diminuta parte de não-comunistas — que não conheciam,
exatamente, por que ideais estavam lutando, a não ser que eram antinazistas.

O grupo que realizava espionagem ativa era constituído de uma pequena fração
do conjunto e guardava seu segredo com discrição, embora isso não tivesse sido
suficiente para salvar os demais, quando a tragédia os avassalou. Os dois
principais líderes — Schulze-Boysen e Harnack —, o primeiro na Inteligência
do Ministério da Aeronáutica, e o segundo no Ministério da Economia,
encontravam-se em excelentes posições para coletar informações da maior
importância. Os demais integrantes do grupo achavam-se, igualmente, bem
situados. Horst Heilmann trabalhava no departamento de decifração de códigos
na Wehrmacht; Johann Graudenz, viajante de fábricas de freios que fornecia à
Luftwaffe, fazia os registros da produção aeronáutica dos nazistas; Erwin Gehrts
trabalhava em outro departamento do Ministério da Aeronáutica; Herbert
Gollnow tinha acesso aos segredos da contraespionagem da Wehrmacht; Gunther
Weisenborn era funcionário do serviço nacional de rádio; enquanto outros se
encontravam firmemente entrincheirados no Ministério do Exterior, no
Ministério da Propaganda, no Ministério do Trabalho, na Administração
Municipal e em vários departamentos importantes.

A Orquestra Vermelha era a única rede que funcionava na Alemanha, mas, ao


lado dela, existiam também uns dois agentes isolados, independentes, que ali
estavam operando. Os mais importantes deles eram Hans Kummerow e Rudolf
von Schelihä, cuja antecipada remoção da cena, levada a efeito pela
contraespionagem, deixara o campo livre para a Orquestra Vermelha. Esses dois
agentes eram, entretanto, personalidades tão interessantes que merecem uma
menção especial.

Kummerow era destacado engenheiro e inventor. Participara da espionagem


industrial, realizada em pleno dia, na década dos vinte, quando enviara para
Moscou particularidades de sua invenção do radar primitivo e da guerra química.
Considerado ainda homem de grande utilidade quando a guerra irrompeu, os
russos tentaram enviar-lhe um rádio-operador, só para ele, já que não dispunha
de meios para se comunicar com o Centro. Desgraçadamente, esse operador,
atirado em paraquedas, foi preso ao tocar a terra e, sob torturas, confessou tudo.
Kummerow e sua esposa foram presos e executados em 1943.
Von Schelihä era um tipo bem mais agradável. Penetrou na órbita do Centro
quando conselheiro da embaixada da Alemanha em Varsóvia. Descendente de
uma família aristocrática e diplomata de carreira no velho estilo, casara-se com
uma mulher muito rica. Possuía, porém, hábitos excessivamente extravagantes,
particularmente no que dizia respeito a amantes. Nessas condições, apesar de a
sua própria renda não ser desprezível e da fortuna da esposa, logo se enredara
em grandes dívidas. Foi quando teve a idéia de vender os segredos do governo
que eram de seu conhecimento a quem mais oferecesse por eles. Os ingleses,
durante algum tempo, foram seus fregueses, mas, quando souberam que,
simultaneamente, ele cedia o mesmo material aos russos, interromperam as
transações. Os russos não se mostraram tão exigentes, e Von Schelihä continuou
a servi-los; poderia ter continuado a fornecer esses segredos ainda por muito
tempo, sem ser desmascarado, não fosse a falta de rádio-operadores. A partida da
embaixada soviética de Berlim, em junho de 1941, deixara Schelihä sem um
canal de comunicação com Moscou. Um especialista em rádio, Kurt Schulze,
recebera instruções para ajudar o diplomata e sua assistente, Ilse Stöbe. Mas,
quando isso aconteceu, parece que Schelihä tinha pensado no perigo que estava
correndo e se tornara relutante em prosseguir na sua cooperação com Moscou. O
Centro, por sua vez, não desejava perder os serviços que ele vinha prestando e
arranjou para enviar um correio, de paraquedas, para fazer uma chantagem
contra Schelihä.

O homem escolhido em primeiro lugar para investigar as razões da relutância de


Schelihä fora Victor Sukulov. Isso ocorreu antes que Sukulov tivesse sido preso
e começasse a colaborar com a Abwehr — na realidade, antes do
desmantelamento da rede belga. Tendo-se avistado com Schelihä e arranjado
para que Kurt Schulze fosse o vínculo radiofônico dele com Moscou, Sukulov
enviou um relatório, em código, para o Centro, dando conta do desempenho da
missão que lhe fora confiada. A Abwehr interceptou esse relatório, e seus
técnicos conseguiram decifrá-lo, com a ajuda do traidor belga, Wenzel. O Centro
ignorava o que se passava. Desconhecia, também, o fato de que Ilse Stöbe havia
sido presa, antes que a decisão de enviar um chantagista a Berlim fosse tomada.

O resultado foi que uma mulher, agente da Gestapo, apresentando-se como Ilse
Stöbe, se encontrava no apartamento de Schelihä, quando o chantagista,
Heinrich Koenen, chegou. Tiveram uma conversa esclarecedora, antes que os
oficiais da Gestapo o detivessem. Ilse recusara-se a falar, mas Koenen concordou
em colaborar, resultando daí que Schelihä fosse preso; e ambos, Schelihä e Ilse
Stöbe, foram executados no dia 22 de dezembro de 1942.
Com a remoção de Kummerow e de Schelihä do cenário alemão, a importância
da Orquestra Vermelha cresceu proporcionalmente e, por quatorze meses, o
grupo mais do que compensou os desastres sofridos em consequência da
eliminação daqueles dois agentes. Conseguiu a Orquestra enviar para Moscou
informações de vital importância, como, por exemplo: planos estratégicos do
Alto Comando alemão; movimentos e localização dos esquadrões aéreos de
Goering; planos para ataque aos comboios ingleses que seguiam para a Rússia;
estatísticas da produção aeronáutica mensal; a situação dos exércitos, que se
encontravam na Rússia, em relação a combustíveis; e muitas outras de menor
relevância, mas sempre dignas de serem sabidas.

Desde iniciadas suas operações, entretanto, as estações de detectação das


emissões de rádio da Abwehr e da Gestapo vinham tomando conhecimento das
atividades de transmissores clandestinos, dentro das fronteiras alemãs, e haviam
iniciado uma incessante busca para localizá-los. Como já vimos em páginas
anteriores, a espionagem soviética sofrera seu primeiro golpe com o
desmantelamento da rede belga e, quando a segunda rede — da qual Hermann
Wenzel era o operador — foi, igualmente, apreendida e Wenzel se tornara um
traidor, revelando a cifra dos seus códigos, muitas das mensagens, previamente
cifradas, puderam ser lidas.

Nessas condições, ao mesmo tempo que Victor Sukulov fora enviado para
descobrir o que se passava com Schelihä, recebeu instruções também para
examinar que ajuda poderia prestar à Orquestra Vermelha, de Schulze-Boysen e
Harnack. Sukulov encontrou os dois agentes em Berlim, verificando então que a
maior dificuldade com que lutavam se relacionava igualmente com a falta de
facilidades para transmissões e recepções radiotelegráficas de primeira categoria.
Sukulov removeu essas dificuldades e retornou à Bélgica, somente para, dentro
de poucos dias, escapar de ser preso e ter de fugir para a França.

Entre as mensagens captadas pela Abwehr, estava aquela que lhe havia sido
enviada, dando-lhe instruções para ir à Alemanha e entrevistar-se com Schulze-
Boysen e seus companheiros. Nela, o endereço de Adam Kuckhoff era dado, e
algumas particularidades foram reveladas em relação aos outros dois. Essas
pequenas informações, entretanto, mostraram-se perfeitamente suficientes para
que eles pudessem ser identificados, e, com base nessa apresentação, os três
foram presos. Schulze-Boysen, no dia 30 de agosto de 1942; sua mulher, alguns
dias mais tarde; e os Harnack, no dia 3 de setembro.
Antes de prender Schulze-Boysen, a Gestapo tinha controlado seu telefone e,
como resultado dessa providência, pôde entrar em contato com cerca de uma
centena de outras pessoas do grupo maior. Nem todos eles, porém, caíram nessa
armadilha. Alguns membros, entre os quais Libertas Schulze-Boysen,
concordaram em colaborar. No período de alguns dias, a Orquestra Vermelha
tinha deixado de existir na Alemanha.

O julgamento dos principais réus iniciou-se no dia 15 de dezembro de 1942. Os


Schulze-Boysen, os Harnack e os Schumacher, Hans Copp — o rádio-operador
—, Heilmann, Gehrts, Kurt Schulze — o operador de Schelihä —, Graudenz,
Gollnow e Erika von Brockdorf sentaram-se no banco dos réus. Desses quatorze,
onze sofreram a pena capital, mas Mildred Harnack e Erika von Brockdorf
viram-se condenadas à prisão. As sentenças de morte foram executadas poucos
dias após o veredicto, tendo as vítimas ficado penduradas em ganchos para
carne. De acordo com o princípio de que "aqueles que se metem na sombra da
traição põem em leilão suas vidas”, Hitler ordenou novos julgamentos para as
duas mulheres, que, consequentemente, foram condenadas à morte e
guilhotinadas.

Dos restantes, os Kuckhoff tiveram seu julgamento no dia 3 de fevereiro de


1943, juntamente com outros. Todos foram condenados à morte. Frau Kuckhoff,
porém — e isso não deixa de ser curioso —, foi absolvida. Considerando a
situação em conjunto, pode-se dizer que cerca de cinquenta desses agentes foram
presos e executados.

As autoridades nazistas envolveram todo o caso da Orquestra Vermelha em tão


profundo sigilo que somente quando a guerra terminou é que a completa história
desses julgamentos e dessas execuções pôde ser revelada. O Ministro das
Finanças, Walther Funk, segundo se diz, não soubera da prisão de Harnack senão
nas vésperas da sua execução.

A Orquestra Vermelha e os agentes isolados não constituíram o único esforço


realizado pela espionagem soviética no interior da Alemanha. As autoridades
russas ficaram impressionadas com a organização britânica, denominada
Departamento Executivo de Operações Especiais — SOE — e decidiram criar,
em seu próprio país, uma entidade similar. Nessas condições, antes que os norte-
americanos chegassem à Inglaterra para saber o que os ingleses lhes poderiam
sugerir em relação à sua projetada organização — Escritório de Serviços
Estratégicos (OSS) —, os russos já haviam enviado técnicos a Londres, com a
incumbência de recrutar alguns dos “cérebros” do SOE. Eu mesmo submeti-me a
treinamento pelo SOE, para uma subsequente missão na Europa Oriental, e até
hoje me recordo do mal-estar que assaltou os instrutores ingleses - quando os
russos chegaram —, em face daquela decisão de lhes permitir que tomassem
conhecimento dos segredos da organização.

De que esse medo era justificado não resta a menor dúvida, levando-se em conta
as subsequentes atitudes da Rússia nesse campo. O técnico incumbido de
estabelecer uma organização desse tipo na Rússia foi o misterioso Alexander
Erdberg, que trabalhara na embaixada russa em Berlim. Os agentes que deveriam
integrar a organização eram escolhidos, em sua maioria, entre os muitos mil que
tinham fugido dos exércitos alemães em ofensiva e se mostravam
suficientemente fortes e jovens para se submeterem a um rigoroso curso de
treinamento em armas e paraquedas, enquanto os selecionados para atuar na
Alemanha eram jovens comunistas emigrados.

Tudo faz crer que os russos não compreenderam exatamente as dificuldades que
teriam de enfrentar para instituir missões dessa natureza. A necessidade desses
agentes era urgente, e o seu treinamento, portanto, foi acelerado. A grande
maioria deles constituía, na realidade, riscos de segurança de primeira classe, no
momento em que tocasse a teria. E isso porque havia sido demasiadamente
apressada a instrução que receberam para as funções de agentes secretos. Rádio-
operadores foram postos em atividade, dotados de uma instrução que só serviria
para atirá-los, de saída, nas garras das unidades de detectação de emissoras que,
cada dia, se revelavam mais eficientes. Seus códigos, necessariamente simples,
eram, entretanto, tão rudimentares que as mensagens neles transmitidas
poderiam ser perfeitamente sem cifra. Nessas condições, os russos nenhuma
tentativa fizeram — ou assim parece — para instituir o tipo de organização de
“recepção” em campo, que tanta significação tinha para esse tipo de agente, e
que os ingleses, utilizando o mesmo gênero de pessoal e a mesma qualidade de
organização de resistência clandestina, com tanto sucesso haviam construído.

Tudo faz crer, igualmente, que as autoridades de Moscou, responsáveis por essa
organização, não mereciam fé e encaravam sua tarefa com um cinismo raro,
mesmo entre os russos. Talvez dispusessem de vastos recursos humanos, aos
quais podiam recorrer, mas, se isso era verdadeiro ou não, o fato é que usavam
seus homens e suas mulheres com uma prodigalidade quase inacreditável.

Eu mesmo caí vítima da Abwehr, mas isso não foi devido a qualquer falta da
OSE, nem por culpa minha. Durante os primeiros estágios de convívio com a
Abwehr, três acontecimentos deveriam revelar a atualidade de todos os pontos
acima referidos. Em primeiro lugar, passei minha primeira noite de prisão numa
cela ocupada por um jovem agente russo, que seria fuzilado na manhã seguinte.
Descobrimos uma linguagem comum, e eu, em conversa que se prolongou por
grande parte da noite, soube que ele não completara ainda dezenove anos, que
recebera um treinamento de cinco semanas antes de ser lançado atrás das linhas
alemãs e fora preso, dois dias mais tarde, quando operava seu rádio. Não se
tratava de um traidor. Havia sido, entretanto, rigorosamente torturado, e disso
possuía provas evidentes no corpo. Era, antes de tudo, leal ao seu país, aos seus
dirigentes e à sua ideologia.

Em segundo lugar, uma moça agente, com a idade de dezoito anos, foi posta em
minha cela, com a insinuação de que devíamos aproveitar bem o pequeno tempo
que nos restava. Embora desconfiássemos um do outro, suspeitando um truque, e
apesar de eu ter alegado, com veemência, que preferia ficar sozinho, deixaram-
nos juntos por algumas horas. Vencendo nossa recíproca repulsa, conversamos
um pouco.

A moça não era russa, mas natural de um dos países orientais subjugados pelos
alemães. Fora treinada, durante seis semanas, para servir como rádio-operadora
— os cursos mínimos de rádio da SOE eram de três meses —, e atirada, num
paraquedas, com um grupo de cinco homens. Acabara presa, dentro de uma
semana, através das transmissões do seu rádio. Sentia-se desiludida. Sabia não
ter sido convenientemente treinada e, mais tarde, conseguiu prolongar a vida, por
curto espaço de tempo, aderindo ao “jogo do rádio”.

Em terceiro lugar, encontrava-me num bloco de vinte celas, destinado a


confinamentos solitários. Cada cela, com exceção da minha, estava ocupada por
quatro ou cinco agentes russos. Um guarda me disse que tinham caído do céu
como folhas no outono. Em cada duas ou três manhãs da semana, as celas eram
esvaziadas, já que seus inquilinos, algemados juntos e levados para o pátio,
debaixo da minha janela, em grupos de doze ou mais, eram fuzilados a
metralhadora.

Na Alemanha existiam possibilidades para a organização “de comitês de


recepção”, mas pouca ou nenhuma tentativa foi feita para organizá-los e treiná-
los. Dada a suspeição dos seus chefes, os agentes nunca foram enviados em
menos de dois — exceto em casos raros —, com medo de que corressem para o
inimigo mais próximo e se rendessem. Tratava-se de uma base extremamente
precária para, sobre ela, construir uma força dessa natureza, pois, a menos que os
dirigentes soviéticos tivessem confiança em seus agentes, estes, por seu lado,
não podiam confiar naqueles a que serviam. Se uma análise pudesse ser feita do
número dos que colaboraram e das razões que, francamente, confessaram terem
dado motivo a essa colaboração, não seria surpreendente se essa falta de
confiança fosse encontrada na raiz mesma da maioria das deserções.

Desde que a Alemanha estava fora do alcance dos aviões de longo curso da
Rússia — e mesmo que tivessem aviões capazes de voar as distâncias em
questão, a maior parte do voo teria de se realizar sobre território inimigo, sempre
bem provido de barragem aérea —, os dirigentes soviéticos solicitaram aos
ingleses que colaborassem com eles, fazendo o transporte de seus agentes. Os
ingleses concordaram. Embora nunca houvessem sido reveladas as cifras do
número de agentes efetivamente entregues, elas, segundo se supõe, não devem
ter sido elevadas, já que o número de espiões postos dentro da própria Alemanha
não era grande. Quase todos os que foram atirados não escaparam de ser presos
em curto prazo, e uma boa proporção dos que não foram apanhados se rendeu.

O mais logo período de liberdade de que habitualmente gozavam os primeiros


agentes fora de cinco meses. Assim aconteceu com Wilhelm Fellendorf e sua
companheira Erna Eifeer, que chegavam a Hamburgo em maio de 1942, sendo
presos em outubro. Seus sucessores, Albert Hossler e Robert Barth, tendo sido
atirados em agosto de 1942, dois meses mais tarde já estavam presos. O terceiro,
Heinrich Ivoenen, enviado para chantagear Schelihä, chegou ao apartamento do
último seis dias após sua aterrissagem, sendo imediatamente detido. O próximo
par desceu em fevereiro de 1943, próximo de Freiburg, na Floresta Negra, e já
encontrou a Abwehr a aguardá-lo. Os dois tentaram escapar, abandonando o
equipamento, e conseguiram mesmo entrar em contato com um veterano
comunista alemão, Heinrich Müller. Apanhados pouco depois, foram
executados, juntamente com Müller e sua esposa.

Quando os russos começaram a empurrar de volta os exércitos nazistas e o seu


front foi-se aproximando da Alemanha e do alcance da sua aviação, a
cooperação dos ingleses foi sustada. Isso ocorreu mais ou menos em meados de
1943. Daí em diante, grande número de agentes foi posto no interior do território
germânico, e essa operação era realizada pelos próprios russos. Nenhum deles
comportou-se melhor do que seus antecessores. Desde que, por essa época, os
russos passaram a se utilizar de prisioneiros de guerra, confessadamente
antinazistas, a média de colaboração tornou-se mais elevada do que nunca.
Erdberg, segundo tudo indica, estava ciente dessa situação e, não obstante,
acelerou suas entregas, provavelmente baseado no princípio de que,
descarregando largo número de agentes, só alguns deles poderiam decidir-se pela
deserção, logo após a aterrissagem. Essas últimas remessas eram integradas por
agentes ainda pior equipados — especialmente no que dizia respeito à
documentação e às técnicas de segurança — do que os atirados em épocas
anteriores. O cinismo de Erdberg, segundo parece, aumentou, ao invés de
diminuir.

Considerada em seu conjunto, essa fase da espionagem soviética representa,


possivelmente, a menos fecunda de todas. Certamente, pouco contribuiu para as
subsequentes vitórias russas, e teria sido bem mais humano se os soviéticos
abandonassem o projeto, após os primeiros fracassos.

Por outro lado, os sabotadores, que eram treinados e transportados pela mesma
organização, desempenharam importante papel. Sua tarefa, porém, não era tão
difícil. Sendo enviados, em largos grupos, para trás das linhas alemãs, competia-
lhes uma tarefa simples ou dupla: teriam de provocar o maior estrago possível ou
iriam juntar-se aos guerrilheiros, ocultos nas florestas, para treiná-los e liderá-los
em operações de sabotagem. Os arquivos alemães demonstram que esses bandos
valiam certamente o esforço requerido para colocá-los em atividade.

Os arquivos de guerra da espionagem soviética revelam plenamente que ainda


havia muito para essa organização aprender em relação à escolha dos agentes e
ao seu treinamento, antes que sua reputação pudesse classificá-la entre as
grandes agências do mundo. Que a lição foi levada a sério, a experiência atual
cabalmente o demonstra!

* A Orquestra Vermelha foi o nome que os alemães deram à rede. Esse nome foi
tirado do jargão da espionagem russa, que chamava certo tipo de
radiotransmissor de “caixa de música” e ao rádio-operador “músico”. O nome
cobria todas as redes germânicas, na Europa ocupada pelos nazistas, mas era
especialmente aplicado à que funcionava no interior da própria Alemanha.
5. A Grande Rede Suíça

No capítulo 4 da primeira parte deste livro, descrevemos como Alexander Foote


foi recrutado pelo serviço soviético de espionagem. Fizemos ali também uma
ligeira biografia desse homem, realmente notável, até o momento em que
ingressou na rede suíça. Antes, porém, de prosseguirmos na descrição do
trabalho de espionagem desse grupo, será conveniente ressaltar as qualidades
humanas de Foote. Elas retratam melhor sua personalidade, já que se tratava de
um agente sem treinamento especializado em técnicas de espionagem.

Em primeiro lugar, e acima de tudo, Foote era um inglês de bom senso, que
possuía, além disso, a habilidade de apreender e avaliar qualquer situação, com
perfeita segurança. Já que o bom senso e um seguro julgamento são
considerados as mais altas qualidades que um espião deve possuir — por isto
que inatas, não podendo ser adquiridas —, ele constituía um elemento humano
de importância, principalmente levando-se em conta que, na época do seu
recrutamento, a rede suíça não passava de modesta ramificação da espionagem
soviética. Em 1938, ninguém, nem mesmo o Diretor do onisciente Centro,
poderia prever que, três anos mais tarde, a Suíça iria transformar-se na mais
importante base da ofensiva dos espiões russos contra a Alemanha e que
prestaria, por fim, à estratégia soviética de guerra, um serviço que,
provavelmente, seria sem paralelo, em relação aos levados a efeito por qualquer
outra de suas redes.

Até 1937, a pequena rede do GRU, na Suíça, fora dirigida por uma bonita
mulher, de trinta anos, conhecida pelo nome de Vera, já que sua verdadeira
identidade nunca foi descoberta. O Centro a promovera para a seção suíça no fim
da Segunda Guerra Mundial e mais tarde ela se vira envolvida no escândalo da
espionagem no Canadá — de certa forma, por culpa de uma mulher chamada
Rahel Dubendorfer —, quando, então, foi executada.

Tivera como sucessores alguns bons agentes, destacando-se, entre eles, Sônia,
com quem Foote entrara em contato, como já foi dito, num encontro realizado,
em frente ao edifício do Correio Geral, em Genebra. O verdadeiro nome de
Sônia era Úrsula-Maria Hamburger. Foi ela a primeira agente soviética a operar
um radiotransmissor na Suíça. Sônia e seu marido Rudolf haviam sido membros
do Partido Comunista Alemão e, juntos, trabalharam, por muitos anos, como
agentes soviéticos no Extremo Oriente e na Polônia, além de outros países, até
Rudolf ser preso na China. Sônia foi enviada, então, para a Suíça, a fim de
reorganizar ali a rede, prejudicada pelos grandes expurgos russos de 1937 e
1938, durante os quais a Inteligência Militar sofrera pesadamente. Tratava-se de
uma mulher inteligente, bonita e extremamente devotada ao comunismo.

Quando Foote a conheceu, Sônia estava-se fazendo passar por uma mulher de
recursos, vivendo com seus dois filhos e uma ama-seca numa vila alugada em
Caux, perto de Montrcux. Do Centro, recebia um salário de aproximadamente
cento e dez libras. Da sua vila fazia transmissões para Moscou, o que, naquela
época de tão rudimentar detectação de emissões, era perfeitamente seguro,
mesmo que os suíços se houvessem tornado interessados em suas atividades.

Ao irromper a guerra, o Centro dera instruções a Sônia para retirar todos os seus
agentes da Alemanha. (Trata-se de um bom exemplo da técnica soviética — ter o
Diretor-Residente de uma rede vivendo fora do país no qual essa mesma rede
operava.) Deveria ela, porém, permanecer na Suíça, a fim de orientar Foote e um
outro inglês, William Phillips, sobre normas de transmissões. Nessa época, seu
salário passara a lhe chegar às mãos sem a devida pontualidade, o que lhe
causava algumas dificuldades. Quando o volume de suas informações reduziu-se
para apenas uma transmissão por mês, Sônia fora transferida para a Inglaterra,
onde chegou em dezembro de 1940. Trabalhou na embaixada soviética até o fim
da guerra, quando a mandaram servir na Zona Russa da Alemanha.

O diretor regional da rede suíça era Alexander Rado. Em página anterior,


revelamos, em traços rápidos, sua biografia. Como já foi dito, ele havia sido
designado para esse posto em 1936, indo de Paris, e sua firma-disfarce tinha o
nome de Geopress. Em face do irrompimento da guerra, a Geopress adquirira
alta reputação, pois seu trabalho era excepcionalmente bom. O próprio Rado
desfrutava de largo prestígio no círculo de conhecidos que frequentava. Vivia em
Genebra com sua esposa alemã, Helene, e seus dois filhos, e certamente nunca
esteve sob suspeita de fazer espionagem, apesar de ser um preeminente agente
soviético.

Como agente, Rado acusava muitas deficiências. Era um sibarita, e isso o levava
a comprazer-se em atividades de certo tipo que normalmente os agentes de
primeira categoria evitam. Em qualquer crise, como acontecia também com
muitos dos seus colegas, mostrava-se inclinado a perder os nervos, tornando-se
agitado. Com frequência, violava as estritas normas de segurança impostas pelo
Centro. Também, desrespeitava regulamentos que prevalecem no mundo das
finanças, e essas transgressões levaram-no, consequentemente, a ser executado.

Sob o comando de Rado, no período que as operações da rede suíça haviam


chegado ao auge, estavam cerca de cinquenta agentes de todas as categorias. O
mais preeminente e, certamente, o de maior êxito entre todos, era o misterioso
Rudolf Rössler, cujo nome falso era Lucy.

Rössler, filho de um guarda-florestal bávaro, fora durante algum tempo editor de


um jornal antinazista, em Augsburgo. Em 1933, mudara-se para a Suíça, onde se
tornou chefe da firma de publicações Vita Nova, em Lucerna. Como acontecera
com a Geopress de Rado, Vita Nova tomou-se logo bem conhecida. Isso,
entretanto, por uma diferente razão — sua violenta orientação antinazista. A
linha política de Rössler era mais anticapitalista do que anticomunista, sendo ele
membro do Die Entscheidung — um grupo esquerdista católico.

Rössler iniciara-se em atividades de espionagem auxiliado por um jovem amigo


suíço, Xaver Schnieper, que o conhecera em Berlim pouco antes de se mudar
para a Suíça. Este era jornalista, e também filiado ao Die Entscheidung. Em
1939, fora recrutado pelo Serviço de Informações do Exército suíço, o
Nachrichtendienst, e, quando lhe pediram que indicasse outros elementos que
pudessem ser úteis, recomendou Rössler.

Dessa forma, no outono de 1939, Rössler entrara para o serviço do ND, embora
não tivesse a intenção de trabalhar para essa organização. É que estava sempre
disposto a colaborar com todos quantos se mostrassem antinazistas. Possuía
excelentes contatos na Alemanha e, embora fornecesse algumas das mais
fantásticas informações já encaminhadas a qualquer agência de espionagem, até
a sua morte, ocorrida em 1962, sempre se recusara a revelar quais as suas fontes.
Condenado duas vezes, pelos suíços, por crime de espionagem na Suíça,
também, sustentara, com igual firmeza, que não era culpado. Mas, quaisquer que
fossem essas fontes, elas deviam situar-se nos mais elevados círculos do Alto
Comando Nazista e do Ministério do Exterior, pois, de outra forma, nunca
poderia ter tido acesso às informações que fornecia.

Desde o começo da guerra, os aliados ocidentais vinham realizando um


intercâmbio de Inteligência, mas após a agressão de Hitler à Rússia, esta nação
fora incluída, igualmente, nessa troca de informações. Os russos, porém, nunca
se mostraram inclinados a qualquer reciprocidade. Stálin certamente não fora
surpreendido pelo desencadeamento da operação Barbarossa, pois, ainda, em
março de 1941, o Subsecretário de Estado norte-americano, Summer Welles,
fizera uma advertência ao embaixador soviético em Washington de que Hitler
estava concluindo seus preparativos para invadir a Rússia. Este fato foi
confirmado por Richard Sorge, o espião-chefe soviético no Japão, por Sir
Winston Churchill e, finalmente, por Rössler.

Com permissão do ND, Rössler passara a informação a Rado, por intermédio de


um amigo, Christian Schneider. Este entrara pessoalmente em contato com Rahel
Dubendorfer, uma das principais intermediárias de Rado. Esta foi a primeira
contribuição de Rössler para a Inteligência soviética, mas, daí por diante,
trabalhou regularmente para a rede de Rado e, segundo se presume, com
conhecimento dos seus chefes suíços e da Inteligência britânica.

A informação passada por Rössler não era somente fabulosa quanto à precisão e
relevância, mas também no que dizia respeito ao seu conteúdo. No princípio, os
russos julgaram a informação boa demais para ser verdadeira e suspeitaram que
se tratasse de um estratagema dos nazistas. Rössler, porém, não se sentiu tolhido
pelo ceticismo dos soviéticos e prosseguiu fornecendo outras informações.
Resultou daí que o Centro, pouco a pouco, foi sendo conquistado e, por fim,
tornara-se tão excitado em relação a essas informações que até se mostrara
pouco russo no tratamento que dispensava a esse brilhante agente.

O Centro teria, na verdade, cometido um grande erro se tivesse rejeitado os


serviços de Rössler. Depois que a guerra russo-germânica teve início, ele passou
imediatamente a fornecer-lhe informações seguras com a maior regularidade —
às vezes, até diariamente — sobre a estratégia de Hitler, o poderio, composição e
localização de todas as forças armadas alemãs, e sobre o que a Inteligência
alemã sabia a respeito das posições russas, do seu potencial bélico e dos seus
planos. Sem exagero, pode-se dizer que a Rússia deveu sua vitória tanto a
Rössler quanto a qualquer outro fator. Certamente, nenhum agente, trabalhando
para qualquer uma das outras agências de Inteligência dos aliados, poderia alegar
possuir, como Rössler, um tão direto e pessoal conhecimento de assuntos de
estratégia e de planos de guerra.

Tão logo a espionagem soviética contratou Rössler, seus dirigentes julgaram que
tudo o que faziam em seu benefício nunca era suficiente. Pagavam-lhe um
salário superior ao de qualquer outro agente: 425 libras por mês. Quando as
dificuldades materiais de remeter fundos para a Suíça se tornaram quase
intransponíveis, a ansiedade, demonstrada pelo Centro — temeroso de que
Rössler se mostrasse tão mercenário ao ponto de dizer que, sem dinheiro, não
enviaria mais informações — era, às vezes, patética.

No dia 9 de dezembro de 1943, o próprio diretor do Centro lhe enviou a seguinte


mensagem: “Diga Lucy não deve se preocupar respeito pagamento Ponto
Certamente pagaremos nossas dívidas até janeiro Ponto Peça-lhe prosseguir
fornecendo suas informações da maior importância. Diretor.”

No dia 8 de janeiro de 1944, chegara-lhe às mãos esta outra mensagem: “Favor


dizer Lucy ele e seu grupo receberão vultosos pagamentos tão cedo quanto
possível Ponto Deve ter paciência e não desperdiçar tempo e esforços nesta
importante hora da última batalha contra nosso comum inimigo Ponto Diretor.”

Além de Rahel Dubendorfer, cujo nome falso era Sissie, o principal


intermediário de Rado era Otto Pünter, sob o nome disfarce de Pakbo. Pünter
nunca fora membro do Partido Comunista, mas, desde a juventude, pertencera ao
Partido Democrata-Social Suíço. Tratava-se de um jornalista e, no clímax da
hostilidade que se verificou entre comunistas e socialistas, na década dos trinta,
ele se projetara como uma das principais figuras do socialismo. Seu eventual
trabalho para a rede soviética, na Suíça, teve origem em motivos quase idênticos
aos de Foote. Sendo violentamente antifascista, emprestara seu apoio aos
comunistas, porque estes lhe pareciam mais decididamente contrários ao
fascismo do que qualquer outro bloco.

A carreira de Pünter, como antifascista não-comunista, foi digna de registro. Em


meados da década dos vinte, aliara-se ao antifascista italiano Randolfo Pacciardi
e ajudara a organizar o sensacional voo, no dia 10 de julho de 1930, durante o
qual foram atirados sobre Milão panfletos contra Mussolini. Igualmente, aderira
aos republicanos espanhóis, durante a Guerra Civil, e realizara, para eles,
missões de espionagem na Itália, tendo por objetivo descobrir informações sobre
remessas de armamentos italianos para o General Franco. Foi essa sua atitude
que o tornou alvo da atenção da espionagem soviética.

Em 1940, o GRU aproximou-se de Pünter e de um grupo de cerca de meia dúzia


de amigos que o rodeavam. O resultado dos entendimentos que se seguiram foi
que o Grupo Pakbo, como era então chamado, aderira à rede de Rado. Pouco
depois, ampliou seu grupo e, durante todo o tempo em que trabalhou para a
espionagem soviética — igualmente com a aquiescência da Inteligência suíça
—, pôde fornecer informações só inferiores em importância às obtidas por
Rössler.

Os dois outros rádio-operadores da rede, além de Foote, que atuava em


Lausanne, eram os Hamel — marido e mulher —, que trabalhavam em Genebra,
e Margaret Bolli, cujo nome-disfarce era Rosie, também em atividade em
Genebra. Edmond e Olga Hamel tinham sido recrutados por recomendação do
líder comunista suíço Léon Nicole, sendo que Edmond fora treinado numa
escola de rádio de Paris e, em 1933, organizara uma firma para negociar nessa
especialidade, que obtivera grande sucesso em Genebra. Em 1940, por
solicitação de Rado, instalou um transmissor de ondas curtas num quarto que
ficava por cima da loja. De acordo com a legislação suíça, radiotransmissores
eram proibidos no país. Quando, porém, em 1941, seu aparelho foi descoberto
pela polícia de Genebra, Edmond era tão considerado pelas autoridades da
Inteligência suíça que apenas recebera uma condenação de dez dias de prisão.
De acordo com os regulamentos do Centro, a conexão dos Hamel com a rede
deveria cessar, daí por diante. Ao invés disso, porém, e por sugestão de Rado, ele
fabricara outro transmissor, que igualmente instalou no quarto por cima da sua
loja.

Margaret Bolli constituiu outro exemplo do desrespeito aos regulamentos, por


partes de Rado. Tinha ela vinte e um anos quando Rado a conheceu em 1941,
também através de Léon Nicole. Dentro de curto prazo de tempo, tornaram-se
amantes, e Rado a persuadiu a tornar-se rádio-operadora.

Finalmente, existia Christian Schneider, cujo nome falso era Taylor. Schneider
era amigo de Rössler e trabalhava no Escritório Internacional do Trabalho, e
através de Rahel Dubendorfer — igualmente ali empregada — foi posto em
contato com a rede de Rado. A importância de Schneider na rede era tal que,
independentemente de ser um agente e descobridor de talentos, serviu, com
Rahel Dubendorfer, como emissário entre Rado e Rössler. Foote declarava que
somente ele, de todo o pessoal que integrava a rede, sabia a identidade de
Rössler. Schneider obtinha suas informações de Rössler e as passava a
Dubendorfer, e esta, por sua vez, as transmitia a Rado. Nem Rado, nem Foote,
nem ninguém, na rede ou no Centro, jamais soube quem fosse Lucy, até que a
guerra terminasse.
Ao ser Foote aprovado em seus testes preliminares, o Centro pensara em treiná-
lo em Moscou. Quando estava preparado para seguir, a situação se agravara tanto
que ficara decidido conservá-lo na Suíça. Isso ocorreu em agosto de 1939.

O Pacto Ribbentrop-Molotov, assinado naquele mês, tivera efeito arrasador sobre


muitos agentes soviéticos. Sônia, particularmente, ficara indignada. Não
conseguia entender como Stálin pudesse chegar a um acordo com o nazismo,
tornando-se, assim, aliado de Hitler. Dois dias mais tarde, quando mal se
recuperara desse choque, recebera instruções no sentido de retirar todos os seus
agentes da Alemanha e dissolver a rede que tão pacientemente organizara. Entre
esses agentes, encontrava-se William Phillips, que passava as férias em Titisee.
Foote conseguiu comunicar-se com ele pelo telefone e o advertiu para que
retornasse à Alemanha. Assim, Phillips juntou-se a Foote e, desse modo, ficaram
aguardando novas instruções.

Durante esse período de espera, ambos aprenderam, sem frequentar qualquer


escola técnica, as complexidades das transmissões radiotelegráficas. Viviam
numa pensão em Montreux e, no princípio, visitaram Sônia em sua vila e com
ela se inteiraram da técnica destas transmissões. Como o Centro não lhes
incumbira qualquer tarefa, logo se tornaram proficientes operadores e
aprenderam muita coisa sobre construção de radiotransmissores.

Sônia não tivera qualquer idéia de que a rede de Rado estivesse operando, até
que se tornou essencial para o Centro dar instrução às duas organizações para
que entrassem em contato uma com a outra. Essa necessidade de trabalho em
conjunto fora imposta pelo desmantelamento das comunicações, em
consequência da desorganização temporária da rede de Trepper, que funcionava
na França. Até então, Rado não dispusera de um rádio-operador próprio.
Gravava suas informações em microfilmes e os enviava a Trepper, para que este
os fizesse chegar a Moscou.

Depois de estabelecido o contato, Sônia costumava coletar as informações de


Rado e ela própria as transmitia, da sua vila, em Caux. Em agosto de 1940,
entretanto, Foote recebera ordem do Centro para deixar Montreux e estabelecer-
se em Genebra, onde devia treinar um operador para trabalhar com a rede de
Rado. Foi assim que Foote e Rado se encontraram pela primeira vez.

O operador, selecionado pelo Centro, era Edmond Flamel, que, não obstante ser
eficiente mecânico de rádio, não conhecia o sistema Morse nem as normas do
telégrafo-sem-fio russo. O transmissor de Sônia foi mudado para o quarto que
ficava em cima da loja de Hamel, e Foote começou a instruir Flamel, que,
estranhamente, não se revelava aluno apto.

No outono, o Centro atendeu à solicitação de Sônia, no sentido de que ela


pudesse ir para a Inglaterra. Antes de partir, recebeu novas tabelas de horário de
transmissão e códigos, que entregou a Foote. Ao mesmo tempo, Foote tivera
ordem para voltar para Fausanne, a fim de instalar ali outro transmissor, e esse
aparelho deveria ser construído por Hamel, no mesmo modelo de um fornecido a
Sônia. De posse do transmissor, Foote partiu para Fausanne, encarregando
Phillips de prosseguir no treinamento de Hamel. *

Foote mudou-se para Fausanne no dia 15 de dezembro de 1940 e, após algumas


dificuldades iniciais, conseguiu instalar-se num apartamento privado, com o
transmissor. Seu disfarce era apresentar-se como um rico inglês colhido pela
guerra e que não podia regressar à pátria — papel este que as autoridades suíças
aceitaram sem muitas perguntas, desde que existiam muitas outras pessoas, no
país, em idênticas condições.

Seguramente instalado, por fim, com a sua linha para Moscou estabelecida, ele,
Foote, teve então de vencer outra dificuldade. O cristal de seu transmissor
recusava-se a oscilar. Não havendo feito qualquer curso de mecânica de rádio,
pensou em ir a Genebra, a fim de obter orientação de Hamel sobre o que deveria
fazer. Já que essa atitude importaria em quebra das precauções necessárias à
segurança, resistiu à tentação da viagem e, subitamente, sem qualquer razão
aparente, no dia 12 de março, Moscou respondeu, declarando que estavam
recebendo ali suas mensagens, de forma clara e alta.

No período de 12 de março a 22 de junho de 1941, Foote julgou que a vida,


como espião soviético, era tranquila e agradável. Competia-lhe fazer apenas duas
transmissões por semana, e o suprimento de material de que poderia dispor não
era grande. Já fora nomeado para as funções de substituto de Rado — ocorrência
pouco comum na espionagem soviética — e, nessas condições, teria de
permanecer, tanto quanto possível, em posição afastada.

Empregava seu tempo, entretanto, procurando instalar-se definitivamente em


Lausanne. Confessou que isso não era fácil, pois seus compatriotas ali residentes
variavam de oficiais e funcionários públicos que, aposentando-se, haviam ido
morar na Suíça, ao rebutalho da Riviera que fugira da Alemanha e vivia sem
saber como.

Foote fingiu-se rico e obteve tanto êxito nessa empresa que, breve, todos diziam
ser ele um milionário excêntrico, fugido da Inglaterra em face das perturbações
causadas pela guerra. Além de explicar sua vida sem profissão, sua atitude teve,
igualmente, o efeito de satisfazer ainda mais a polícia. Embora olhado por
muitos como um solitário, Foote, de fato, adquirira um pequeno círculo de
conhecidos, que aliviava sua solidão.

A queda da França, por seu lado, causara às finanças de Rado um terrível golpe.
A Suíça era, na realidade, uma ilha de neutralidade, isolada num mar de
hostilidades, e as comunicações, de qualquer gênero, se revelavam
extremamente difíceis. Para conservar sua rede em funcionamento, tomou
dinheiro emprestado do Partido Comunista suíço, mas essa agremiação não se
achava em condições de desembolsar qualquer quantia, a não ser a curto prazo.
Nessas condições, o Partido passara a insistir, pouco depois, na liquidação do
empréstimo feito. Em consequência disso, o grosso das comunicações de Rado
com o Centro, através de Foote, passara a ser relacionado com assuntos de
dinheiro.

O próprio Centro parecia sentir-se de todo incapaz de propor qualquer maneira


de obter fundos para Rado. A sugestão, que seus dirigentes fizeram, revelava
completa ignorância das condições em que poderia ser feita essa transação, e das
suas possibilidades. Então, Foote imaginou uma fórmula.

O Centro dissera não estar em situação de colocar fundos à disposição de Foote


em bancos, quer da Grã-Bretanha, quer da América do Norte, quer da Suécia.
Foote realizou, portanto, com muita discrição, diversos inquéritos entre seus
amigos suíços e descobriu um deles disposto a ajudá-lo a entrar em contato com
uma firma norte-americana que operava na Suíça. Essa firma, no desdobramento
de seus negócios, tinha de enviar dinheiro para os Estados Unidos e,
normalmente, essas remessas se faziam através do Banco Nacional da Suíça.
Foote propôs, então, que todo o estorvo das formalidades poderia ser evitado, se
ele transferisse fundos, que possuía nos Estados Unidos, para a conta da firma
em seu banco norte-americano, enquanto a firma lhe pagaria o equivalente em
francos suíços, na própria Suíça. Como chamariz a mais, declarou-se disposto a
aceitar as taxas do câmbio negro, o que iria significar que os norte-americanos
teriam razoável lucro na transação.
Tratava-se de um plano simples, e praticamente temerário. O Centro depositava
na conta de Foote em Nova York os dólares que, por sua vez, ele mandava
creditar na conta da firma norte-americana naquela cidade. Tão logo isso foi
feito, o banco de Nova York creditou, na conta suíça dos norte-americanos, a
quantia depositada, e a firma entregou a Foote o equivalente em francos suíços.
Sempre surgiam algumas dificuldades, mas comumente a transação poderia ser
completada dentro de dez dias.

O plano funcionou bem durante todo o tempo em que Foote esteve trabalhando
para a rede. Ninguém — nem o suíço que o apresentou nem os norte-americanos
que o ajudavam — jamais suspeitou que aquele dinheiro estava financiando a
espionagem soviética.

Rado e Foote, nessa ocasião, encontravam-se somente cerca de duas vezes por
mês. Tinha sido intenção original do Centro que o pequeno grupo reunido em
torno de Foote se conservasse inteiramente separado da rede de Rado. À medida,
porém, que a invasão da Rússia pela Alemanha se tornara mais iminente e o
volume do tráfego, com o qual o grupo suíço tinha de se confrontar, aumentou,
aquela separação claramente iria fazer-se impossível. Assim, em princípio de
janeiro de 1941, Foote recebeu ordens no sentido de entrar em contato com
Rado, pelo menos duas vezes por semana, de forma que pudesse aliviar os rádio-
operadores de Rado de uma parte do serviço. Como Foote possuía seu código
exclusivo, e poderia reduzir o tempo entre o recebimento e a remessa das
informações para Moscou a algumas horas, em comparação com as vinte e
quatro horas ou mais que Hamel e Bolli levavam para fazê-lo, o Centro passara a
confiar cada vez mais nele — para a transmissão de informações urgentes. Esse
fato fez com que passassem a chegar a Foote as informações vitais que, a partir
de junho de 1941, Rössler diariamente começara a fornecer.

Quando Rössler informou que a invasão alemã estava marcada para o dia 22 de
junho, Rado intimou Foote a se encontrar com ele. Foote encontrou-o, perplexo
e indeciso. Não poderia acreditar que aquela informação fosse verdadeira, e
estava inclinado a não a enviar para Moscou, onde já o haviam feito saber que se
mostravam céticos em relação às fontes de Rössler. Foote argumentou, por seu
lado, que o Centro se achava em muito melhor posição para aquilatar o valor
daquela informação do que eles, que viviam no horizonte restrito da Suíça. Se
retivessem a informação e, depois, ela se revelasse verdadeira, o Centro poderia,
com toda razão, acusá-los de criminosa negligência. Rado concordou com a
argumentação, e a mensagem foi enviada.
Com a invasão da Rússia, a rede suíça adquiriu imediatamente uma significação
inteiramente nova. Juntamente com uma exortação para lutar contra “as feras
nazistas com o melhor da sua capacidade”, Foote foi informado de que, dali por
diante, o Centro manteria uma vigilância de vinte e quatro horas em seus canais
de irradiação e de que organizara um sistema de prioridades.

Desde que Foote, para todos os intentos e propósitos, era uma mão isolada e,
portanto, não perturbado por outras considerações que o funcionamento de uma
rede envolve, estava ele em condições de dedicar todo o seu tempo às
transmissões de rádio, o que, por outro lado, reduzia ainda mais o tempo para a
remessa das informações; essas circunstâncias fizeram com que o Centro tivesse
tanta confiança nele que, correspondentemente, outras tarefas lhe foram dadas.
Entre essas, constava uma tentativa de fazer cessar as rivalidades que, desde
algum tempo, separava o Partido Comunista suíço. Outra tarefa foi a de
descobrir dois agentes — George e Joanna Wilmer —, com os quais o Centro
perdera contato, e entender-se com eles. Os Wilmer eram agentes de grande
experiência e haviam trabalhado no Japão, antes que Richard Sorge assumisse a
direção da rede que ali funcionava. Técnicos em fotografia e microfotografia,
tinham, antes da guerra, trabalhado na Alemanha. Quando a guerra irrompera,
deixaram de manter contato com o Centro.

Foote descobriu-os numa vila bem provida, logo acima de Lausanne. Alegaram
estar em contato com duas fontes na Alemanha e manter também contato com a
contraespionagem francesa. Foote providenciou no sentido de os visitar
periodicamente, a fim de recolher informações que seriam transmitidas para
Moscou.

Esses e outros assuntos, sobre o trabalho normal de Foote, que era então de
considerável vulto, transformaram-no num espião ocupadíssimo, e se tornou
cada vez mais difícil para ele sustentar seu donaire de gentleman inglês em
vilegiatura. Transmitia, como praxe, duas horas todas as noites, e qualquer
pessoa com experiência em radiotransmissões dará valor ao esforço que essa
tarefa representa. Mas, além das transmissões, tinha de cifrar todo o material em
seu próprio código, trabalho que exigia paciência e dedicação. Por fim, havia
ainda o encargo de receber e decifrar as longas mensagens vindas do Centro.

Além das normais dificuldades das condições de recepção, com as quais todos os
rádio-operadores têm de se confrontar, Foote conheceu muitas outras frustrações.
Todas as vezes que a Luftwaffe fazia um raide contra Moscou, o Centro
imediatamente cessava de transmitir. Então, quando o governo soviético mudou-
se para Kuibishev, ele silenciou subitamente, interrompendo a transmissão de
uma mensagem e, embora Foote e Rado tentassem restabelecer o contato, o
Centro só apareceu seis semanas mais tarde. Nessa ocasião, sem qualquer
explicação, o parágrafo que se seguiu na mensagem interrompida foi
transmitido.

Por volta do fim de 1942, Rado começou a enfrentar dificuldades —


dificuldades essas que continuaram a se fazer presentes através dos primeiros
nove meses de 1943. A rede suíça tinha dois principais antagonistas: a
contraespionagem suíça, conhecida pelas iniciais BUPO; e a Abwehr. O BUPO
estava disposto a não tomar conhecimento da rede, sob a alegação de que Rado,
Foote e seus amigos não conspiravam contra os interesses nacionais suíços.
Mostrava-se pronto, entretanto, a atacar, se a rede se tornasse excessivamente
ruidosa e pudesse ser “vista” violando a neutralidade do país. A Abwehr, por
outro lado, revelava-se naturalmente ansiosa por destruir toda a rede.

Foote sempre sustentara que George e Joanna Wilmer haviam sido os grandes
responsáveis pelo desmantelamento definitivo da rede. Existiam diversas coisas,
em relação ao casal, que provocaram suas suspeitas. O Centro, porém, quando
recebeu um relatório seu, expondo o que pensava do casal, respondeu dizendo
que ele se equivocava. Antes de junho de 1943, entretanto, foi descoberto que os
Wilmer estavam, de fato, colaborando com a Abwehr. Haviam desertado antes
de deixar a Alemanha, e seguiram para a Suíça com o objetivo expresso de
descobrir o que pudessem sobre a rede, de forma a atraiçoá-la.

Por causa do seu contato com os Wilmer, Foote achava-se comprometido, tanto
quanto possível, no que dizia respeito à Abwehr; e o desmantelamento da rede
francesa complicara a posição de Rado, embora nem ele nem o Centro o
tivessem sabido. Foote recebeu instruções, pois, para não manter qualquer
vínculo pessoal com Rado e para sempre utilizar intermediários, nos contatos
com o seu próprio grupo. Suas transmissões para Moscou foram reduzidas para
duas vezes por semana e as mensagens tratavam principalmente da liquidação de
um grupo ou de assuntos financeiros, os quais, por volta do fim de junho de
1943, chegaram a novos picos de dificuldades.

O arranjo de Foote com a firma norte-americana tinha-se tornado muito difícil, e


um novo canal, que esperava estabelecer, exigira provas de que o dinheiro
realmente lhe pertencia. Antes, porém, que pudesse apresentar essas provas,
muitas coisas teriam de acontecer.

Os Wilmer, em julho, através de um documento anônimo, denunciaram Foote à


polícia suíça, por intermédio do Consulado Geral da França. Afortunadamente, a
polícia não agiu, já que a única peça de identificação de Foote era uma
fotografia. Entrementes, o Centro lhe ordenara que se mudasse, o que era mais
difícil realizar do que mandar, pois não somente ele estava outra vez em contato
diário com o Centro, mas teria de obter uma licença da polícia para se mudar, e
certamente ela exigiria muito sólidas razões antes de atender à sua solicitação.

Rado não conseguia transmitir todo o seu material, com os próprios operadores,
e Foote recebera instruções para entrar em contato outra vez com ele. Mas Rado,
por sua vez, achava-se em dificuldades com a Abwehr. Tinha encontrado um
antigo agente soviético, então trabalhando para a Abwehr, num restaurante, e
estava perfeitamente certo de que agentes da organização o observavam.
Acreditava igualmente que eles vinham vigiando também Margaret Bolli, de
quem haviam tomado, por algum tempo, o radiotransmissor.

Rado estava perfeitamente certo em relação às suspeitas. A Abwehr concluíra


que sua amante deveria pagar os melhores dividendos, e preparou-se para
seduzi-la por intermédio de um agente jovem, chamado Hans Peters. Em face de
seu temperamento ardente — e levando em conta que não mais poderia contar
com a consolação da aparente habilidade de Rado em fazer amor —, ela se
mostrou perfeitamente disposta a aceitar as atenções do bonito jovem, que
conhecera aparentemente por acaso, mas, na realidade, através de astuciosas
manipulações dos alemães. Dentro de pouco tempo, as dificuldades de Rado
passaram a se encaminhar para um inevitável desastre.

Além das atividades da Abwehr, o BUPO suíço começara também a tomar


interesse nos negócios de Rado. Exclusivamente por acaso, um dos encarregados
do serviço de rádio no aeroporto de Genebra captara um forte sinal Morse,
transmitido num inconfundível procedimento de amador. Como as transmissões
de rádio por amadores eram proibidas na Suíça, o operador do aeroporto levou o
fato ao conhecimento das autoridades, que se viram obrigadas a investigar.
Localizaram então o transmissor em Genebra. Tratava-se do aparelho de Bolli.
No decorrer das investigações, entretanto, um segundo aparelho — o dos Hamel
— passara igualmente a transmitir da cidade.

Essas descobertas haviam sido feitas quase um ano antes de Rado começar a
suspeitar que estava sendo vigiado. Os suíços, porém, nada fizeram até que a
Abwehr os pressionou, ameaçando criar um escândalo diplomático, se não
agissem com rigor. Em setembro de 1943, portanto, tomaram providências
enérgicas. Em princípios de outubro, os Hamel e Margaret Bolli foram presos.
Os Hamel viram-se surpreendidos quando operavam seu transmissor e Margaret
Bolli foi retirada da cama que partilhava com Hans Peters, o agente da Abwehr.
O próprio Rado escapara por pouco. Quebrando mais uma vez as normas de
segurança, dirigira-se ao apartamento dos Hamel, ignorando que seus moradores
haviam sido presos. A polícia ainda ali se achava, dando busca, mas,
afortunadamente, ele pôde ser advertido sobre o que acontecera, por um sinal
pré-combinado, que os Hamel tinham conseguido deixar.

Aquelas prisões atiraram Rado num estado próximo do pânico. Telefonou para o
apartamento de Foote e confessou que, pouco antes da prisão dos Hamel,
temendo por sua própria pele, depositara em seu apartamento, num esconderijo
secreto, todos os seus registros financeiros, assim como as cópias das mensagens
não cifradas, que haviam sido enviadas para Moscou — deviam ter sido
queimadas —, e, pior ainda, também o livro do seu código. É difícil achar nos
anais da espionagem, em qualquer parte um agente, que tenha violado tantas
normas de segurança quanto Rado.

O BUPO foi hábil no desempenho de suas funções, pois conseguiu descobrir


todos esses papéis de vital importância. Se não era suficiente que os registros
financeiros revelassem à polícia todos os nomes dos agentes integrantes da rede,
foram descobertos também, entre a papelada apreendida, os detalhes de um novo
canhão suíço Oerlikon, que se encontrava ainda na lista secreta. Essa informação
só poderia ter vindo do seu próprio agente Rössler. Tanto Rado quanto Rössler
foram julgados culpados de trabalhar contra os interesses nacionais suíços.

O BUPO, entretanto, ignorava ainda a existência de Rado, pois acreditava ser


Foote quem dirigia a rede. De fato, essa presunção tinha sua razão de ser, já que
Rado mergulhara na clandestinidade em Berna e Foote recebera instruções para
assumir o cargo de Diretor-Residente.

Antes de se esconder, Rado colocara Foote em contato com Otto Pünter, do


grupo Pakbo, mas se recusara a fazer o mesmo em relação a Rahel Dubendorfer,
embora Foote descobrisse, mais tarde, que ela solicitara esse encontro. Rado
sugeriu que ele e toda a rede se refugiassem na Legação Britânica, o que
significaria naturalmente que os ingleses teriam de conhecer a verdade sobre o
trabalho que realizavam. Esse fato não apresentava qualquer perigo, porquanto a
Inglaterra era aliada da Rússia. Foote solicitou então ao Centro permissão para
tomar essa atitude e recebeu um inequívoco “não”, o que ainda mais aturdiu
Rado. Pouco depois, um incidente, ocorrido quando Rado tinha chegado para um
encontro com Foote, num parque público — seu motorista o reconhecera —, fez
o seu medo chegar ao auge. Daí por diante, recusou-se a deixar o esconderijo, e a
partir dessa época ficou praticamente inativo.

Foote, que então dirigia a rede, não compreendeu seu próprio perigo. Prosseguiu,
quietamente, como o fazia antes, mas, na noite de 19 para 20 de novembro de
1943, quando se encontrava no meio da sua regular transmissão para Moscou, a
porta do seu apartamento foi arrombada. É que essa porta era mais resistente do
que a polícia calculara e, nessas condições, a força teve de ser usada. A demora
proporcionou a Foote alguns breves, mas preciosos momentos, durante os quais
pôde queimar todos os seus papéis e avariar seu transmissor, de forma a não
permitir que funcionasse mais.

A princípio, Foote acreditara tratar-se da Abwehr, que tomara o negócio em suas


próprias mãos, mas logo verificou que os inesperados visitantes eram suíços.
Com exceção do fato de que estaria, então, fora de combate, Foote não se
mostrava preocupado com o que ocorria, pois, após a prisão dos Hamel e de
Margaret Bolli, estava preparado para o pior, havendo mesmo destruído, por
precaução, todos os documentos que possuía.

O Inspetor Knecht, chefe da Polícia Federal do Cantão de Genebra, foi


encarregado do seu interrogatório. Disse a Foote que os Hamel e Bolli tinham
feito uma confissão completa e o incriminado, juntamente com Rado; mas,
honestamente, acrescentou não existirem provas de que ele tivesse feito
espionagem contra os interesses nacionais suíços. O inspetor insistiu, pois, numa
confissão plena, já que tudo faria para que ele recebesse uma condenação leve.
Foote respondeu que nada poderia dizer e acrescentou que, se lhe fosse dada
somente uma sentença leve, Moscou interpretaria o fato como prova de que
confessara tudo, o que, em última instância, faria com que os russos o levassem
a um pelotão de fuzilamento. Insistiu, portanto, em que lhe fosse dada uma
sentença mais longa do que a de qualquer um dos outros. Preferiria passar dois
ou três anos numa prisão suíça — declarou ao inspetor — a ter de enfrentar a
sorte que o aguardaria na Rússia.

O BUPO não estava habituado a realizar tarefas desse gênero, e mostrou-se


perplexo em face das declarações de Foote. Desde que prosseguiu não
respondendo às perguntas que lhe eram feitas, e reiterasse sua solicitação no
sentido de ser condenado a um longo período de prisão, resolveu conservá-lo
detido, enquanto novas investigações eram feitas. Estas se prolongaram por dez
meses, quando, então, foi declarado a Foote que não havia qualquer prova de que
tivesse trabalhado contra os interesses nacionais suíços e, nessas condições,
cabia-lhe prestar fiança, a fim de aguardar o julgamento, que seria levado a
efeito por uma corte marcial.

Deixando a prisão, Foote foi para Lausanne e, hospedado num hotel, considerou
o que lhe poderia acontecer no futuro. Quando se sentiu seguro de que não
estava sendo vigiado, começou a percorrer os vários pontos de encontro, na
esperança de entrar em contato com Rahel Dubendorfer, Otto Pünter ou Pierre
Nicolc, filho de Léon Nicole. O primeiro contato que estabeleceu foi com
Nicole; este logo lhe disse que Rado e sua esposa nunca tinham sido encontrados
e somente alguns dias antes haviam partido para Paris, já libertada dos alemães.
Ali, segundo afirmou, iria procurar o adido militar soviético.

Foote reestabeleceu contato, igualmente, com Otto Pünter, que não se deixara
comprometer e fora deixado em paz. Disse-lhe Pünter que suas fontes ainda
permaneciam disponíveis e estava ansioso para recomeçar o trabalho.

Finalmente, Rahel Dubendorfer fez sua aparição. Fora presa com seu amante, o
antigo e destacado comunista germânico Paul Boettcher, e sua filha Tamara, em
maio de 1944, mas libertada após três meses de confinamento. Suas fontes
estavam igualmente intactas e, como acontecia com Pünter, achava-se
desesperada por obter algum dinheiro. De acordo com o que lhe declarara Rahel,
Foote percebeu ser absolutamente imperativo que tivesse um encontro com
Rössler, preso ao mesmo tempo em que o fora Rahel. Esse encontro foi
arranjado e, no decorrer da entrevista, Rössler dissera-lhe que, apesar do expurgo
levado a efeito, após o atentado contra a vida de Hitler, ocorrido no dia 20 de
junho, suas principais fontes ainda permaneciam em condições de fornecer
informações e que se achava ansioso para reiniciar seu trabalho, tanto mais cedo
quanto possível.

Como resultado desse encontro, Foote decidiu que devia ir a Paris, a fim de
entrar em contato com o Centro, através da embaixada soviética. Desejava saber
se a rede iria operar uma vez mais. Realizou a viagem e, após algumas
dificuldades iniciais, foi instruído pelo Centro a seguir para Moscou, para
consultas.

Rado surgiu então na cena, embora, de fato, houvesse chegado a Paris um mês
antes de Foote. Ele também recebeu ordens para regressar a Moscou. Foote nada
tinha que temer em face de qualquer investigação — suas declarações poderiam
ser averiguadas em quaisquer circunstâncias —, mas a situação de Rado não
deixava de ser grave, já que, de certo modo, desertara seu posto.

Foote e Rado deixaram Paris num avião russo, no dia 6 de janeiro de 1945.
Como a batalha da Alemanha estava ainda em desenvolvimento, o piloto seguiu
a rota que passava pelo Cairo. Durante um pernoite na capital egípcia, Rado
concluiu que, retornando a Moscou, literalmente apontava um revólver para a
própria nuca. E, assim raciocinando, desapareceu antes que amanhecesse. Nessas
condições, Foote prosseguiu na viagem sozinho.

O Centro não demorou, entretanto, em descobrir onde se encontrava Rado, e o


governo soviético solicitou ao do Egito a sua extradição, já que se tratava de um
oficial desertor do Exército Vermelho. Após prolongadas conversações tendo em
vista evitar a extradição, foi ele finalmente devolvido à Rússia, no verão de
1945.

Desde o momento em que chegaram à Rússia, Foote e Rado se empenharam


numa árdua batalha para salvar suas vidas. Foote, havendo provado a falsidade
da maior parte das acusações que lhe foram feitas, conseguiu, finalmente, salvar
o pescoço, e foi reabilitado. Relativamente a Rado, quanto mais sua situação era
examinada, mais evidente se tornava que esbanjara os recursos da rede em
benefício próprio; e, nessas condições, após um julgamento secreto, foi
executado.

O tratamento que recebera em Moscou fizera com que Foote logo mudasse seu
modo de sentir em relação à União Soviética. À medida que os dias passavam,
tornava-se cada vez mais desiludido. Chegara à conclusão de que já era tempo de
dizer um “basta” tanto à Rússia quanto ao comunismo. Compreendera,
entretanto, que, para escapar com vida, deveria prosseguir fingindo-se leal à
União Soviética e, através desse recurso, procurar fazer com que o diretor do
Centro lhe desse nova tarefa no exterior.

Sua oportunidade surgiu no momento em que o escândalo da espionagem no


Canadá trouxe, em sua esteira, outro expurgo. Quando este foi completado, todos
os agentes disponíveis, de lealdade comprovada, foram mobilizados para o
serviço. Nessa ocasião, Foote recebeu a incumbência de seguir para o México.
Em março de 1947, certo Major Granatov, do Exército Vermelho, chegou ao
setor soviético de Berlim e, três meses depois, transferiu-se para o Setor
Britânico e se apresentou às autoridades inglesas, pedindo asilo político. O
Major Granatov não era outro senão Alexandre Foote. Hoje, esse homem, que se
revelou um agente de primeira categoria, principalmente porque se utilizava do
tradicional bom senso de sua raça, vive uma existência quieta e obscura na
Inglaterra, trabalhando como amanuense.

* Phillips permaneceu na Suíça até março de 1941, quando retomou à


Inglaterra.
6. As Redes Canadenses

Enquanto o Canadá não entrou na guerra e, consequentemente, começasse a


fabricar munições, pouca coisa, segundo parece, ali existia que pudesse atrair a
atenção da espionagem soviética. Outro fator contribuiu igualmente para tornar
difícil a realização, ali, de qualquer operação de espionagem em larga escala: a
ideologia comunista — como acontecera na Grã-Bretanha — revelou possuir tão
pouco apelo para o operariado canadense que, embora no Canadá existisse um
Partido Comunista desde o princípio da década de vinte, não se mostrara nem tão
numeroso nem suficientemente ativo para desempenhar o papel distribuído a
essas agremiações locais no esquema geral da espionagem russa.

De qualquer forma, encontravam-se na direção do PCC duas figuras que mais


tarde se destacariam como grandes agentes e iriam atrair a atenção do mundo
pela parte que desempenharam na obtenção de segredos atômicos. Foram eles:
Sam Carr e Fred Rose.

Ambos tinham realizado trabalhos de espionagem sem maior importância — na


verdade a única espionagem feita no Canadá, quase desde a fundação do PCC,
por volta de 1920. As informações que transmitiam refletiam principalmente as
rixas internas que tumultuavam a vida do Partido, embora, de vez em quando,
contivessem algumas opiniões oficiais, sem maior significação, obtidas nos
círculos políticos de Ottawa.

Durante a década dos trinta, porém, verificou-se um aumento de interesse em


torno do comunismo no Canadá e, por algum tempo, o número de filiados ao
Partido se elevou vertiginosamente. Em consequência disso, avolumaram-se
igualmente as informações relativas à indústria do país — o que queria dizer
que, mesmo no auge da atividade da espionagem soviética nesse campo, na
Europa, a indústria canadense conseguira, por fim, atrair alguma atenção. As
principais fontes de informações localizavam-se nos denominados “grupos de
estudo’’ — um método tradicional da técnica soviética. Essa atividade
prosseguiu até a assinatura do Pacto Ribbentrop-Molotov, quando mesmo os
comunistas canadenses não conseguiam compreender — como acontecera a
Sônia, a primeira chefe de Alexander Foote — a ética ou a lógica daquele volte
face de Stálin. O acontecimento determinara grande dispersão nas fileiras do
PCC, dispersão essa ainda aumentada quando o governo declarou a agremiação
ilegal.

A invasão da Rússia por Hitler, entretanto, determinara ainda outra mudança.


Não somente a opinião pública se tornara mais simpática em relação aos
comunistas, mas o governo, por seu lado, relaxara as restrições impostas à
propagação da ideologia de Moscou. Ao tomar essa atitude, o governo fora
movido por motivos de lógica. A Rússia e o Canadá eram então aliados, e seria
estranho que as autoridades de Ottawa retardassem por mais tempo o já
demorado reconhecimento diplomático da União Soviética. Esse reconhecimento
— segundo parecia — era encarado pelos dirigentes soviéticos como um fato
perfeitamente sem importância, exceto por uma coisa: iria permitir o envio de
uma delegação comercial ao Canadá e o estabelecimento, em Ottawa, de uma
embaixada, ambos tendo por finalidade acelerar as operações de espionagem.

A delegação comercial ali chegou em 1942. Certo Major Sokolov figurava na


lista dos amanuenses da delegação, mas, na realidade, tratava-se de um agente
do GRU, cuja tarefa seria a de organizar uma rede de espionagem no país. Um
pouco mais tarde, juntou-se a ele Sergei Kudriavtsev, ostensivamente primeiro-
secretário da delegação. Esses dois agentes passaram a trabalhar de acordo com
o sistema convencional dos soviéticos, e a primeira providência que tomaram foi
entrarem em contato com Fred Rose, um dos dirigentes do PCC. O trabalho teve
início, mas o progresso veio lento. No primeiro ano, o número de agentes
recrutados foi pequeno, provavelmente menos de dez, ao todo, divididos em dois
grupos, sediados, respectivamente, em Ottawa e Montreal.

Por volta do meado de 1943, entretanto, a embaixada completara sua instalação


definitiva, e chegaram a Ottawa, para integrar o quadro do seu pessoal, o
Coronel Nicolai Zabotin, com o posto de adido militar, mas, de fato, enviado
para assumir a liderança que vinha sendo exercida por Sokolov. Entre seus vários
assistentes, encontrava-se um técnico em cifras, chamado Igor Gouzenko.

Com a chegada de Zabotin, o recrutamento se acelerou e, por volta do fim do


ano seguinte, uma rede de cerca de vinte operadores locais e de quinze
operadores soviéticos havia sido estabelecida. Os soviéticos desempenharam os
tradicionais papéis, distribuídos segundo a conveniência do trabalho secreto:
correspondentes da Agência Tass, amanuenses da delegação comercial e da
embaixada, motoristas e porteiros. Na opinião de Zabotin, esse pessoal não era
suficiente para levar a efeito as tarefas de que ele havia sido encarregado, e outro
plano, tendo por objetivo ampliar a rede, foi formulado, baseado numa expansão
da delegação comercial.

Antes que isso pudesse ser feito, entretanto, e que a rede conseguisse, realmente,
entrar em ação, foi declarada a cessação das hostilidades, tanto na Europa como
no Japão. As atividades dos agentes de Zabotin serão descritas, em detalhe,
portanto, na parte quarta deste livro, sob o título Espionagem Atômica.
7. A Rede de Sorge no Extremo Oriente

No curso de quarenta anos de espionagem, as agências soviéticas apresentaram


dois ou três agentes realmente de grande importância. Até o advento de Lonsdale
no affair da espionagem naval em Portland, em 1961, todos os agentes soviéticos
eram de nacionalidade estrangeira e, com exceção de Alexander Foote, alemães.
Rudolf Rössler, pelo valor das suas informações, deve figurar entre os grandes
espiões de todos os tempos, mas, pela mesma razão e pela audácia, e mesmo,
pela desfaçatez da sua maneira de agir, Richard Sorge deve ser considerado seu
par.

Richard Sorge nasceu em 1895, sendo o segundo filho de um alemão, perfurador


de petróleo e emigrado para os campos de Baku, onde os salários eram elevados.
Na época em que Sorge estava na idade escolar, sua família havia regressado a
Berlim e, pouco depois, seus professores alemães comentavam, com entusiasmo,
o elevado nível de sua inteligência.

Quando irrompeu a Primeira Guerra Mundial, ele se alistou no exército do


Kaiser e, logo em seguida, foi ferido na perna. Em 1916, voltou para a linha de
frente, onde descobriu que grande parte da confiança, com a qual seus
compatriotas haviam marchado nos primeiros dias do conflito, fora substituída
pelo medo. Outra vez, sua carreira, como combatente, se interrompeu, por um
segundo e muito mais grave ferimento.

O avô de Sorge, pelo lado paterno, Adolf Sorge, tinha sido, por muitos anos,
secretário particular de Karl Marx. Para matar o tempo, enquanto aguardava que
seu ferimento sarasse, Richard Sorge começou a estudar as obras de Marx e
descobriu que as idéias expostas em Das Kapital o seduziam. Ao se alistar no
exército, estudara Economia Política e História e, ao ser desmobilizado, no fim
da guerra, matriculou-se nas universidades de Kiel e de Hamburgo, graduando-
se, pela última, na primavera de 1920. Era, então, doutor em Ciências Políticas.
No mesmo dia em que se formou, filiou-se ao Partido Comunista Alemão.

Durante algum tempo, lecionou numa escola de Hamburgo, mas foi dispensado
quando o diretor do estabelecimento descobriu que ele estava não somente
lecionando comunismo, mas recrutando membros para o Partido, nas horas das
aulas. Tornou-se, então, mineiro de carvão, e prosseguiu em sua evangelização,
no interior da mina, com tão grande êxito que a produção dos mineiros caiu e de
novo ele foi dispensado.

Quando estudava em Kiel, Sorge tomara parte nos distúrbios ali ocorridos e que
haviam constituído um prolongamento do famoso motim da Marinha alemã.
Esses fatos e suas atividades últimas fizeram com que passasse a ser olhado com
interesse pelos líderes comunistas. Julgando-o um eficiente agitador,
selecionaram-no para especial consideração.

No dia em que deixou a mina de carvão, Sorge voltou para casa, e ah encontrou
Henry Tollman, chefe secreto de segurança do Comunismo em Hamburgo, que o
aguardava em seu quarto. Tollman sugeriu-lhe que fosse a Moscou, a fim de
realizar um curso de treinamento. Três semanas mais tarde, Sorge já estava na
capital russa. Antes de viajar, porém, vira-se envolvido com uma mulher — o
que seria típico de seu comportamento em toda a extensão de sua carreira —,
que, por acaso, era agente da polícia. Entre espasmos de amor, a que se
entregava com o objetivo de aliviar a monotonia de esperar pela partida, falou-
lhe da sua atração por Marx e pelos comunistas.

No dia seguinte da sua chegada a Moscou, Sorge encontrou-se com Dimitry


Manuilsky, então chefe da Divisão da Inteligência no Exterior do Comintern.
Como Foote, ele também não recebera qualquer indicação do que lhe estava
sendo reservado pelos russos. Sua entrevista com Manuilsky pôs um ponto final
em suas especulações. Iria submeter-se a um treinamento para ser espião.

Poucos espiões já foram tão adequadamente treinados como Sorge. Durante os


cinco anos que se seguiram, passava de uma escola para outra, até que se sentiu
integralmente impregnado de todos os aspectos da técnica de espionagem. Por
essa ocasião, fora enviado à Dinamarca e aos Balcãs para adquirir experiência,
sob orientação técnica. Entre suas muitas qualidades, revelava notável tendência
para línguas e, por volta de 1928, já falava o russo como um nativo e
conversava, com invejável fluência, em inglês e francês.

Como teste, Sorge foi enviado, sozinho, por um ano, para Los Angeles, a fim de
descobrir tudo o que pudesse sobre a indústria cinematográfica norte-americana.
Nesse teste, foi aprovado summa cum laude. Após rápida visita a Moscou, foi
submetido, então, a uma prova final. Em 1928, desembarcou na Inglaterra,
alojando-se num quarto de uma pensão em Bloomsbury.

Em todas as suas viagens, Sorge sempre usara seu próprio nome e o disfarce de
um estudante de Ciências Políticas. Nem na Escandinávia, nem nos Balcãs, nem
na Califórnia, encontrara alguém que recordasse seus dias agitados em
Hamburgo e Kiel. Pouco depois de chegar a Londres, porém, foi visitado por
oficiais da Divisão Especial — esquecera-se de se registrar como estrangeiro —,
os quais, no curso do interrogatório, perguntaram-lhe se já morara em
Hamburgo.

Essa pergunta o impressionou profundamente, e logo comunicou a Moscou: “A


Inglaterra sabe mais a respeito de espiões do que qualquer outra nação.”
Compreendeu, igualmente, que as autoridades inglesas não haviam acreditado
em sua negativa e abreviou a visita.

No ano seguinte, Sorge foi transferido do serviço do Comintern para o


Secretariado dos Negócios Exteriores. Tratava-se apenas de um disfarce, pois ele
passara, quase imediatamente, para o GRU. Por essa ocasião, gozava de tão alto
conceito junto aos chefes da espionagem soviética que, após rápida entrevista
com o diretor do Centro, foi nomeado Diretor-Residente para o Extremo Oriente,
com seu quartel-general instalado em Xangai. Era tanta a confiança que seus
superiores nele depositavam que, ao contrário de toda a prática usual, o Centro
lhe dera carta-branca para agir. Especificamente, só lhe solicitaram que enviasse
informações sobre o crescente Exército nacionalista de Chiang Kai-shek. Ficaria
inteiramente à sua discrição a escolha das notícias que julgasse dever submeter à
consideração do Centro.

A missão de Sorge não constituiu a primeira infiltração realizada no Extremo


Oriente pelos agentes soviéticos. Três anos antes, uma pequena rede havia
operado na China, mas faltara-lhe direção e, nessas condições, fornecera apenas
informações de pouco valor. No caso de Sorge, tudo indicava que aquela área
iria ter sua importância aumentada e, nessas condições, automaticamente,
requereria uma bem organizada rede, dirigida com imaginação.

Sorge teve permissão de escolher os homens que deveriam trabalhar para a sua
nova Unidade Chinesa. Conservou os agentes que já se encontravam na área e
que, em sua opinião, lhe serviriam de assistentes, dispensando o resto. De uma
lista fornecida pelo Centro, selecionou dois técnicos de rádio de primeira classe
para acompanhá-lo. Em princípios de 1930, a Unidade Chinesa já estava
firmemente estabelecida em Xangai. Pela primeira e única vez em sua carreira,
Sorge abandonou a própria identidade e tornou-se William Johnson, jornalista
norte-americano.

Entre os seus contatos proveitosos realizados em Xangai encontrava-se Agnes


Smedley, a escritora comunista norte-americana, e com a ajuda dela a rede pôde
entrar imediatamente cm ação. Ela permitiu ao rádio-operador vindo com ele que
instalasse o transmissor em seu apartamento, poupando-lhe, assim, dificuldades
e tempo, em busca de um “endereço seguro”. Mais do que isso, Agnes
apresentou-o a alguns moradores de Xangai que, embora não comunistas,
estavam dispostos a lhe fornecer informações de cunho militar. Entre eles
contava-se um brilhante professor e jornalista japonês, Ozaki Hozumi.

Ozaki descendia de uma rica família e se graduara pela Universidade de Tóquio.


Estudara Marx, Lênin e Engels, mas o dever filial impedira que tornasse pública
sua crença no comunismo. Vivia em Xangai como correspondente de um jornal
de Tóquio, e se tornara amigo de Agnes Smedley.

Uma das grandes virtudes de Sorge era o seu fascínio pessoal. Não que fosse um
homem fisicamente bonito: nariz chato, fronte profundamente pronunciada,
olhos pequenos e separados, sulcos profundos, do nariz aos cantos da boca, e
lábios grossos. Esse conjunto de detalhes fisionômicos emprestavam-lhe uma
aparência nada teutônica. Contudo, apesar do comportamento boêmio, das
bebedeiras e da concupiscência, existia muita coisa em sua personalidade,
socialmente atrativa. Sorge não ignorava esses predicados e nunca hesitou em
utilizá-los quando sentiu que eles o ajudariam a conseguir o que desejasse.

Quase desde o primeiro momento em que conheceu Ozaki, decidiu que desejava
ter o jovem japonês em sua rede e, nessas condições, aplicou seu poder de
sedução contra o jovem erudito, que imediatamente se deixou envolver. Pela
primeira vez, concordara em se empenhar em espionagem ativa e, breve, iria
prestar tão relevantes serviços à Unidade Chinesa que com dificuldade seria
sobrepujado pelo próprio Sorge.

Tendo organizado seu trabalho em Xangai, Sorge realizou uma excursão pela
região que lhe fora destinada como campo de ação e, no fim de seis semanas,
chegou a Harbin, na Manchúria, onde se encontrou com um homem de negócios
alemão, Max Klausen, o melhor rádio-operador contratado pelo Centro. Quando
Klausen chegou a Harbin, Sorge já se fizera amigo do jovem vice-cônsul norte-
americano ali credenciado e o persuadira a alugar, a um seu amigo alemão, seus
dois quartos no Consulado. Nessas condições, sob a proteção da bandeira dos
Estados Unidos, Klausen instalou o radiotransmissor. Sorge, por outro lado,
contratou um agente para ajudá-lo e, com a célula definitivamente organizada,
retornou a Xangai, a fim de prosseguir na estruturação do seu serviço
clandestino.

Dois anos após haver desembarcado em Xangai, a Unidade Chinesa estava


funcionando a plena força. Cobria Nanquim, Cantão e Pequim, enquanto agentes
isolados trabalhavam em setores tão meridionais quanto a Malásia e tão
setentrionais quanto as fronteiras com a Sibéria. A rede fornecia ao Centro
informações sobre o apoio dado por várias classes ao governo, aos comunistas e
a Chiang Kai-shek. Revelava, igualmente e com exatidão, o poderio militar que
correspondia a cada um desses três aspectos da situação chinesa, o equipamento
de que dispunha, suas condições de abastecimento e seus estoques, sem se
esquecer de ressaltar os grandes interesses comerciais que estariam dispostos,
em compensação por algumas concessões, a apoiar os comunistas quando
organizassem a sua revolução.

Com a ascensão de Hitler, a tradicional cordialidade da Alemanha em relação à


China começou a derivar desse país na direção do Japão, e os dirigentes russos,
tomando conhecimento dessa realidade, passaram a julgar que,
concomitantemente, se verificava idêntico afastamento do perigo que, segundo
acreditavam, pesava sobre os territórios da Sibéria.

Determinado a não ser colhido de surpresa, se a situação era, de fato, como se


julgava, o Centro promoveu seu diretor, Coronel Beldin, ao posto de general e o
colocou como encarregado de uma seção especial para os negócios do Extremo
Oriente. O primeiro ato de Beldin foi chamar Sorge a Moscou, para consultas.

Sorge e Beldin trocaram impressões pelo período de vários meses e, quando suas
conversações chegavam ao fim, elaboraram um plano para obter todos os
segredos do governo japonês. Sorge, mais uma vez, teve permissão para escolher
todos os agentes soviéticos e, nessas condições, deu preferência aos dois homens
que julgava capazes de ser de maior utilidade para o seu trabalho. Pediu a Ozaki
que se transferisse para o Japão e fez com que Klausen também mudasse a sede
do seu negócio-disfarce. Para completar a rede, selecionou dois outros agentes:
Branko de Voukelich, antigo oficial do Exército Real da Iugoslávia e então
correspondente de diversos jornais, e um artista japonês, Myagi Yotoku, que
havia conhecido quando estivera na Califórnia.

Antes que regressasse, para levar a efeito a organização de sua rede no Japão,
Sorge retornou à Alemanha. Constitui um mistério até hoje indecifrado a
maneira como conseguiu insinuar-se junto aos nazistas, ao ponto de obter sua
filiação no Partido e ser acreditado como correspondente do Frankfurter Zeitung
no Extremo Oriente. Alemães, que viviam no exterior e dos quais se fizera
amigo, certamente o auxiliaram nessa difícil tarefa, dando-lhe cartas de
recomendação para destacados membros do Partido Nazista. Essa hipótese,
porém, não explica suficientemente como, pouco depois de chegar à Alemanha,
obteve tão excelente cobertura para suas atividades em Tóquio e conseguiu ser
convidado para funções só exercidas pelos mais íntimos associados com a
liderança do Partido. Igualmente, ela não esclarece porque, às vésperas de sua
partida para Tóquio, o Clube da Imprensa Nazista ofereceu um jantar em sua
honra, o qual contou com a presença de Bohle, chefe da Divisão Nazista para o
Exterior, e de Josef Goebbels. Esse jantar certamente foi de grande utilidade para
Sorge, tanto por ocasião da sua chegada a Tóquio como durante os anos que se
seguiram.

O fato de que sua reputação o tinha precedido e de que ele era um


correspondente credenciado do Frankfurter Zeitung fizeram com que,
automaticamente, o Bergen Kurrier, o Tàchnishe Rundschau e o Amsterdam
Handelsblatt o considerassem persona grata do pessoal da embaixada da
Alemanha em Tóquio, desde o embaixador até ao mais humilde contínuo.

Dos cinco integrantes da rede, Sorge e Ozaki eram, inegavelmente, os de maior


êxito. Não havia muito que escolher entre suas respectivas qualificações, embora
derivassem elas de predicados diferentes. Enquanto Sorge era capaz de
apreender imediatamente a importância da informação que lhe chegava às mãos,
com tal penetração que nunca enviou para Moscou qualquer notícia considerada
inútil, e não deixava escapar, por outro lado, o que quer que fosse de real valor,
Ozaki, por sua vez, além de ser um técnico em interpretar as tendências políticas
de toda a extensão do Extremo Oriente, e da China em particular, dispunha,
igualmente, de contatos que o podiam introduzir nos mais elevados círculos
políticos do Japão.

O fato de Sorge, Ozaki e Voukelich terem sido credenciados como


correspondentes estrangeiros tornou possível para eles enfrentar, sem despertar
suspeitas da Kempeitai, as atividades da contraespionagem. Sorge não revelou
qualquer pressa em fazer sua rede operar, mas, através de encontros em cafés,
em restaurantes e em bares — no princípio, casualmente, e, depois, combinados
com antecedência —, permitiu que seus movimentos fossem considerados
normais e as ligações, surgidas desses encontro, parecessem haver sido
estabelecidas gradualmente.

A ocupação legal de Sorge levou-o automaticamente, com frequência, à


embaixada alemã, onde procurou fazer acreditar que ali encontrara, pela primeira
vez, Max Klausen. Os observadores que assistiram à cena julgaram
perfeitamente natural, igualmente, que aquele excêntrico correspondente de
jornais tivesse pena do solitário comerciante alemão e o convidasse para fazer
parte do seu círculo.

Miyagi foi-lhe apresentado mais ou menos do mesmo modo. Sorge e Voukelich


se achavam, certo dia, no Uneo Ari Museum, quando Voukelich reconheceu um
artista japonês, seu amigo. Apresentou-o então a Sorge e, pouco depois, uma
discussão se estabeleceu entre os dois, sobre os méritos da arte ocidental e os da
arte oriental. Miyagi foi convidado, por ambos, a prosseguir sua palestra num
café frequentado por artistas e jornalistas.

Uma base, de onde possa operar, é essencial para qualquer rede de espionagem.
Essa base deve ser de tal natureza que todos os membros da organização
abertamente a possam frequentar, com motivos ostensivamente legítimos para
suas visitas. Ainda mais, precisa estar defendida e salva dos bisbilhoteiros, caso
os membros da rede tenham de se encontrar de qualquer modo, sendo
inconveniente a utilização de intermediários. Sorge havia resolvido restringir sua
rede ao mínimo de integrantes e adotar o método acima mencionado, para fazer
seus contatos.

Dessa forma, escolheu como sua base uma casa em ruínas, cujo aluguel estava
bem de acordo com seu salário de correspondente estrangeiro.

Tão logo se instalou nessa casa, Sorge deu uma festa que chocou tanto seus
respeitáveis vizinhos como os membros do corpo diplomático, que haviam sido
convidados, juntamente com jornalistas, artistas, oficiais do Exército japonês e
um punhado de homens de negócios. Quando os convidados menos íntimos
saíram, por volta das dez horas, algumas gueixas passaram a participar da festa
e, durante algumas horas, o barulho, que se filtrava através da frágil estrutura do
tugúrio, refletia, de maneira eloquente, o que estava acontecendo no interior.

A vizinhança ouviu com irritação aquela algazarra até que amanhecesse, quando
então as gueixas saíram, acompanhadas pelos convidados remanescentes.
Permaneceram no interior apenas Voukelich, Ozaki, Klausen e Miyagi, com
quem Sorge insistira para que terminassem juntos a última garrafa. Na relativa
quietude que se seguiu, e antes que os quatro visitantes saíssem, por fim, com a
primeira claridade do dia, Sorge fornecera aos seus espiões seu primeiro
memorando.

As festas de Sorge tornaram-se alvo de comentários na capital japonesa e, se os


agentes da Kempeitai observavam que seus quatro melhores amigos sempre
permaneciam na casa, após a saída de todos os convidados, nunca chegaram a
alimentar qualquer suspeita em relação ao fato.

Um espião normalmente procura, tanto quanto possível, não ser notado. Sorge,
porém, já se comportava de maneira diametralmente oposta. Não somente suas
ruidosas festas eram motivo de conversas em Tóquio, mas, igualmente,
tornaram-se notórias suas relações com um punhado de mulheres. Sua
necessidade de satisfação sexual estava verdadeiramente bem acima do normal,
porém a atitude que assumia, em relação às infelizes que sucumbiam sob a ação
do seu irresistível charme, era essencialmente de desprezo. Depois da posse,
mostrava-se enojado da companheira e, dentro de algumas semanas,
abandonava-a e saía em busca de nova excitação.

Essa reputação servia-lhe de valiosa cobertura, pois o que se alegava era que um
indivíduo que, como ele, atraísse tanto atenção para si próprio, não poderia, em
hipótese alguma, ser um espião.

Com a célula bem estabelecida, Sorge iniciou então o seu trabalho. Não demorou
muito, e ele passou a justificar a grande confiança que o General Beldin nele
depositara, por uma série de brilhantes golpes.

O primeiro deles foi levado a efeito pela atuação de Ozaki. Tão grande era a
reputação desse jovem erudito como comentador político que as autoridades
japonesas logo se interessaram em conhecer-lhe a opinião sobre diversos
problemas de relevância. Assim é que, quando, por volta do fim de 1935, o
ministro do Exterior preparou um relatório para o Gabinete sobre os objetivos
políticos e econômicos do Japão para o ano seguinte, o Príncipe Konoye, que era
então o primeiro-ministro, prontamente concordou com uma proposta de que a
Ozaki fosse permitido ver uma cópia do esboço, de forma que ele pudesse dar
seu parecer sobre a parte daquele trabalho que se referisse à China.

Ozaki teve permissão, na oportunidade, para estudar o documento durante a


maior parte de um dia, numa sala separada, no Ministério do Exterior.
Inteiramente isolado ali, fotografou, uma por uma, todas as páginas do relatório.
Através desse texto, tornava-se perfeitamente claro que o Japão não tinha a
intenção de atacar a Rússia, em futuro próximo, e que a invasão da China
meridional dependeria do desenvolvimento da indústria pesada na Manchúria.

Em busca de prova confirmatória, Sorge, sob a alegação de ter de fazer uma


reportagem para os jornais que representava, obteve uma entrevista particular
com o embaixador alemão, Dr. Herbert von Dirksen. Através de um inteligente
interrogatório, pôde saber que o Alto Comando Japonês insinuara ao adido
militar da embaixada que a retirada dos oficiais alemães que instruíam os
exércitos chineses seria considerada uma demonstração de amizade pelo governo
de Tóquio.

Ao mesmo tempo, Miyagi descobrira, por intermédio de um coronel do Estado-


Maior Japonês, de quem pintava um retrato — tornara-se muito popular nos
círculos militares por sua habilidade de retratista —, que algumas maquetas em
larga escala, de certas regiões da China meridional, estavam sendo construídas
para finalidades de exercícios militares.

Todas essas informações, consideradas em conjunto, fizeram Moscou


compreender que seus agentes lhe tinham fornecido informações da maior
importância, e se, antes, os dirigentes soviéticos já consideravam Sorge como
um mestre, após a remessa dessas informações, passaram a julgá-lo verdadeiro
realizador de milagres.

Tais êxitos no início de sua carreira poderiam ter contribuído para que qualquer
outro espião dormisse sobre os louros conquistados. Quanto a Sorge, apenas
serviram para estabelecer o padrão a ser obedecido em suas futuras atividades.

Compreendendo a importância dos contatos de Ozaki nos altos círculos políticos


— ele se havia tornado então conselheiro privado e confidencial do próprio
primeiro-ministro —, Sorge começou a estabelecer idênticos contatos na
embaixada alemã. Assim é que logo se tornou confidente do adido militar, o
Coronel Eugene Ott, que mais tarde iria ser o embaixador, em substituição a
Dirksen.

Voukelich consolidou, igualmente, sua própria posição junto à embaixada da


França, enquanto Miyagi, agindo isoladamente como artista, ampliou o número
de seus amigos nos círculos militares mais jovens.

O caminho de Sorge, entretanto, nunca se revelava inteiramente desembaraçado.


Seus casos com mulheres comprometiam-lhe muitas vezes a segurança. Klausen,
embora rádio-operador de primeira classe, não possuía a estrutura de um bom
agente, pois em mais de uma ocasião escapara por pouco de ser preso. De
maneira incompreensível, a Kempeitai permanecia inativa e, nessas condições,
Sorge e sua minúscula rede, pelo período de sete anos, operaram no Japão,
dando golpes sobre golpes, cada um mais brilhante do que o anterior. Nessa
ocasião, advertiu Moscou sobre o iminente ataque da Rússia, por Hitler. A
informação lhe fora dada pelo Coronel Ott e confirmada por Ozaki. Coroou sua
carreira, mas fê-la chegar ao fim, ao obter a data aproximada do ataque japonês a
Pearl Harbour.

Esse golpe de espionagem ocorreu de maneira tão dramática e, ao mesmo tempo,


tão melodramática, que merece ser recordado. Desde 1939, a Kempeitai tinha
conhecimento de que um radiotransmissor clandestino estava operando do Japão,
mas as técnicas de detecção da época não eram capazes ainda de localizar
qualquer ponto de sua instalação. O Coronel Osaki, chefe da Kempeitai, vinha,
entretanto, alimentando suspeitas em relação a Sorge e seus associados, e
chegara mesmo a solicitar à embaixada alemã que apurasse, com a Gestapo,
quem eram Sorge e Klausen.

A Gestapo deu sinal verde para ambos e, embora Osaki soubesse como essa
organização era eficiente, mesmo assim conservara um instintivo sentimento de
que Sorge não era, de forma alguma, o que aparentava ser, e, em consequência
desse raciocínio, passara a dar-lhe atenção especial. Como não conhecia Sorge,
providenciou um encontro com o agente soviético, através dos bons ofícios de
um integrante do funcionalismo da embaixada alemã.

O local que Sorge frequentava, por essa ocasião, era o Fuji Club, em Tóquio, e
ali foram apresentados um ao outro. Sorge achou Osaki um japonês típico, com
acentuada inclinação para os prazeres proporcionados pelo saquê e pelas
mulheres. Durante a troca de opiniões em relação ao último assunto, o japonês
declarara que, no seu modo de entender, a mais bonita mulher de Tóquio era uma
bailarina que devia fazer sua estreia aquela noite, naquele mesmo clube. A
princípio, Sorge não se mostrou interessado em conhecê-la, mas o coronel
elogiou tão insistente e extravagantemente seus predicados femininos, que, por
fim, a curiosidade do agente se aguçara.

Pouco depois, iniciou-se o show, e a bailarina Kiyomi fez o seu número. Usava a
máscara tradicional, de forma que a beleza de seu rosto não pôde ser julgada,
mas o resto do corpo era suficientemente arrebatador para ficar impresso na
consciência de Sorge.

Durante uma ou duas semanas, o agente visitou o Fuji Club e, todas as noites,
enviava flores e bilhetes a Kiyomi, solicitando que lhe marcasse uma entrevista.
Invariavelmente, Kiyomi rasgava os bilhetes e devolvia as flores.

Certa noite, a mesa de Sorge estava vazia. Temerosa de que houvesse ido longe
demais, ela, após terminar seu número, correu ao camarim, a fim de telefonar
para Osaki e perguntar-lhe o que deveria fazer. Mas, quando voltou do camarim,
viu Sorge sentado em sua mesa, aguardando-a. Em poucos minutos, ela
capitulava.

Enquanto isso, na Alemanha, embora Hitler tivesse ficado irritado com a recusa
japonesa de desfechar um ataque contra a Sibéria, quando ele invadisse a Rússia,
nem por isso perdera todas as esperanças de ainda conseguir persuadir o governo
de Tóquio a distrair os russos, por intermédio dessa agressão no Oriente. Durante
todo o verão e o outono de 1941, procurou seduzir Konoye e seus ministros; mas
Moscou, por seu lado, julgava, também que esse ataque à Sibéria seria levado a
efeito, e, nessas condições, a tarefa de Sorge era a de colher informações sobre
as quais a data do ataque pudesse ser calculada. Ozaki e Miyagi ficaram
encarregados da obtenção desses informes, mas, até então, não haviam
apresentado qualquer coisa que indicasse a probabilidade daquela agressão.

Quando o outono começou a se fundir no inverno, os fantásticos avanços


alemães sobre a Rússia européia fizeram o governo japonês sentir-se ainda mais
indeciso sobre o que deveria fazer. Os russos tinham desfalcado seus exércitos
europeus de reservas, ao conservarem dois milhões de homens — tropas da
primeira linha — na Sibéria. O Incidente Nomohan, que foi, na realidade,
somente um choque de fronteira de grandes proporções, embora se tivesse
prolongado por diversos dias, fora considerado pelos russos, a princípio, como o
desde muito esperado ataque japonês, apesar de Sorge lhe haver dito que todas
as informações por ele obtidas apontavam em sentido contrário.

Esse incidente fez com que os russos hesitassem, mais do que nunca, sobre a
conveniência de retirar suas desesperadamente necessitadas tropas da Sibéria,
mas, em outubro, Ozaki entregou uma informação de que os japoneses,
finalmente, tinham tomado uma decisão. Toda a idéia de invadir a Sibéria fora
abandonada. Os exércitos japoneses deveriam marchar na direção do Sul. Em
confirmação, todos os homens de nacionalidade japonesa, entre vinte e cinco e
trinta e cinco anos, haviam sido convocados e, em grande parte, o Coronel Ott
admitira que Tóquio resistira a todas as pressões dos alemães para que se
movimentasse contra os russos. Sorge, acreditando que aquela fosse sua mais
bela hora, fez questão de ver Klausen transmitir a mensagem que, finalmente,
deveria mudar a sorte na guerra da Rússia.

Uma das razões por que o Coronel Osaki não conseguira localizar aquele
radiotransmissor clandestino, que tantas preocupações lhe causava, foi devida,
em parte, à sua instalação. Sorge, além da sua casa em ruínas na cidade, alugara
também uma vila num subúrbio de Tóquio, à beira-mar. Tinha ali um bote
pesqueiro, que alugara de um velho pescador analfabeto. Às vezes, reunia
amigos em festas a bordo, durante suas excursões de pescaria, e, enquanto os
convidados se divertiam no convés, mal imaginavam que, embaixo, na cabina do
piloto, Klausen estivesse transmitindo mensagens para Moscou.

Embora Sorge houvesse alcançado seu objetivo com sua última mensagem
remetida para Moscou e tivesse trabalhado, de maneira estupenda, pelo período
de oito anos, concentrou-se na realização de um objetivo final. Descobriria onde
e quando os japoneses desfechariam seu ataque no rumo meridional e, então, a
rede se dissolveria, pois estava ciente de que, durante as duas ou três últimas
semanas, Osaki vinha intensificando sua vigilância sobre todos os estrangeiros
que viviam em Tóquio. Essa atitude da polícia japonesa fizera Sorge
compreender que Osaki se tornara, por fim, cônscio de que agentes estrangeiros
operavam em seu país.

Mas, enquanto aguardava a informação que desejava, Sorge julgou não haver
mal algum em prosseguir no seu jogo amoroso com a bela Kiyomi. De todas as
coisas estranhas, em relação a esse admirável espião soviético, talvez a mais
curiosa tenha sido a sua incompreensão de que Kiyomi fosse uma amante
contratada por Osaki, já que o chefe da Kempeitai não se revelara
excessivamente astucioso ao empurrá-la para os seus braços. Se Sorge acusava
qualquer fraqueza fundamental, essa só poderia ser sua permanente exaltação
sexual. Duas noites mais tarde, após haver enviado a mensagem decisiva para
Moscou, ele se encontrava em sua mesa de sempre, observando a bailarina fazer
aquele número, que já vira uma porção de vezes. Seus pensamentos, entretanto,
estavam longe. Sentia-se preocupado. Havia já uma semana que Miyagi não
dava qualquer notícia. Voukelich, por seu lado, achava-se profundamente
apreensivo, pois descobrira que estava sendo seguido, onde quer que fosse.

Durante a dança, um garçom se aproximou da mesa e, discretamente, deixou cair


uma pequena bola de papel de arroz. Mas não tão discretamente quanto seria de
desejar. Sorge desdobrou o papel e viu que se tratava de uma mensagem de
Miyagi. Ele também estava sendo vigiado pela Kempeitai. Por trás da máscara,
os aguçados olhos Kiyomi haviam observado o garçom deixar cair a bola de
papel e Sorge apanhá-la, desamassá-la e ler o que continha, guardando-a em
seguida no bolso. Tão logo terminou sua dança, ela correu para o camarim e
telefonou ao coronel Osaki.

Uma investigação foi imediatamente levada a efeito para identificar o garçom.


Descobriu a polícia que ele visitava frequentemente o escritório de Ozaki, no
edifício-sede da Estrada de Ferro da Manchúria do Sul, da qual esse auxiliar de
Sorge era então diretor. Ficou apurado, igualmente, que fora visto em companhia
de Miyagi. O coronel já sabia que Sorge e Miyagi eram amigos.

Ninguém que conversasse com Sorge, no dia seguinte, desconfiaria de que


estivesse diante de um homem apreensivo e desesperado. Como fazia
diariamente, ele tomou o seu café da manhã com o Embaixador Ott e, então, saiu
para a atividade de correspondente estrangeiro.

No meio da manhã entretanto, tudo mudou. Recebera uma mensagem de Ozaki.


A ofensiva japonesa não seria desencadeada contra os chineses, mas contra os
norte-americanos, em Pearl Harbor, e a data provável do ataque seria o dia 6 de
dezembro.

Num almoço com Klausen, Sorge o avisara para que estivesse a bordo do barco
de pesca naquela noite, pois iria enviar sua última mensagem para Moscou.
Mostrava-se animado, como não se sentira desde algum tempo. Vestiu seu
dinner-jacket à noite e foi ao Fuji Club, onde ocupou sua mesa,
permanentemente reservada, à beira da pista de dança. Enquanto dançava,
Kiyomi viu o garçom aproximar-se outra vez de Sorge e deixar cair uma bola de
papel na mesa. Como da vez anterior, Sorge leu o que estava escrito no papel e o
guardou no bolso. A mensagem era de Miyagi e o avisava de que a Kempeitai
estava também em seu rastro e que ele e os demais companheiros deveriam fugir
tão cedo quanto possível.

Terminada a dança, e Kiyomi já estando vestida, Sorge disselhe que, ao invés de


irem para sua casa, preparariam eles próprios um jantar na vila da península Izu
e ali passariam a noite. A sugestão colheu Kiyomi de surpresa, pois era a
primeira vez que ouvia falar naquela vila.

Depois que já tinham deixado a cidade, Sorge estacionou subitamente o carro ao


lado da estrada e a possuiu. Satisfeito, tirou do bolso dois cigarros amassados,
um isqueiro e um pedaço de papel de arroz. Enquanto o via acender o isqueiro, o
coração de Kiyomi agitou-se. Estava certa de que, quando Sorge acendesse o
isqueiro, queimaria o papel, e Osaki lhe havia dito que, se alguma vez visse
Sorge receber qualquer mensagem, deveria apoderar-se dela, de qualquer
maneira. O isqueiro, porém, não funcionou e, Kiyomi fingiu ter esquecido o dela
no camarim.

Com um áspero gesto de aborrecimento, Sorge atirou os cigarros pela janela do


carro e, rasgando o papel em pedacinhos, jogou-o também fora, pondo o carro
logo em movimento.

Kiyomi era uma bailarina, e não uma agente treinada da contraespionagem; não
obstante, tratava-se de uma moça viva e inteligente. Quando passaram pela
primeira cabina de telefone, pediu a Sorge que parasse, a fim de telefonar aos
pais, avisando-os de que passaria a noite fora, com uma amiga. Sorge aguardou
no carro, enquanto ela chamou o Coronel Osaki e explicou rapidamente o que
houvera e onde poderia encontrar os pedaços de papel rasgado.

Chegando à vila, Sorge ali deixou Kiyomi para preparar alguma comida e saiu,
dizendo que tinha um negócio particular para tratar. Foi à praia, tomou um bote e
remou para o barco pesqueiro, onde Klausen o esperava. A bordo, entregou a
Klausen duas mensagens: a primeira, comunicando a Moscou o que Ozaki lhe
transmitira; a segunda, fazendo uma advertência de que a rede já estava
comprometida e, por isso, ia fazê-la debandar, dali por diante.

Quando o rádio-operador concluiu a transmissão das mensagens, os dois se


apertaram as mãos, desejaram que algum dia se encontrassem outra vez e se
separaram. Na vila, Sorge comeu o que Kiyomi preparara e, imediatamente,
levou-a para a cama. Se tinha algum pressentimento de que aquela seria a sua
última noite de liberdade, não o revelou. A bailarina, em depoimento prestado
muito depois, declarou que, naquela noite Sorge a possuíra com uma ferocidade
e uma frequência que julgara ser humanamente impossíveis. Era já madrugada,
quando se mostrou cansado e adormeceu.

Enquanto Sorge dormia, o Coronel Osaki se movimentava. Quando Klausen


chegou a sua casa, em Tóquio, já alguns agentes da polícia o aguardavam.
Voukelich foi arrancado dos braços da sua antiga amante japonesa, que nos
últimos tempos se tornara sua esposa. Miyagi tentou apunhalar-se, quando os
agentes lhe arrombaram a porta. Foi levado para um hospital, tratado e
recuperado. Ozaki, vestindo suas mais finas roupas, esperou a chegada da
polícia, com fatalismo oriental.

Sorge não dormiu muito tempo. O novo dia — 15 de outubro de 1941 — mal
começara, quando acordou Kiyomi e a possuiu outra vez. Deixou o quarto, indo
para a sala, onde misturou para si próprio uma bebida forte. Ao erguer o copo,
ouviu pancadas na porta. Ao abri-la, o Coronel Osaki e dois assistentes entraram
na sala.

O coronel nada disse. Apenas entregou a Sorge uma folha de papel, na qual os
pedaços da mensagem de Miyagi, espalhados na estrada, tinham sido colados
juntos. Sem uma palavra e sem um olhar dirigidos a Kiyomi, já que subitamente
compreendera haver sido traído por ela, engoliu a bebida, vestiu-se e saiu com o
coronel.

Miyagi não suportou as torturas da Kempeitai; Klausen fugiu, não muito depois.
Mas nenhum dos dois homens soube o que a última mensagem de Sorge
continha. Voukelich comportou-se com a coragem e a lealdade de um antigo
oficial, e nenhuma tortura conseguiu fazê-lo falar. Sorge e Ozaid não foram
torturados, mas, quando viram as confissões de Miyagi e de Klausen,
compreenderam que já não lhes restava qualquer esperança. Fizeram então suas
confissões, embora sem revelar o texto da última mensagem que haviam
transmitido.

Em face desses depoimentos, os processos instaurados contra eles estavam


completos. Miyagi revelou-se doente em excesso, para poder enfrentar um
julgamento, e recolheram-no indefinidamente a um hospital-prisão. Voukelich
foi condenado à prisão perpétua. Klausen, havendo sido recomendado para
perdão, teve sua sentença de morte transformada em prisão perpétua. Sorge e
Ozaki foram condenados à morte.

Embora, no Japão, as sentenças de morte habitualmente fossem efetuadas no


prazo de seis meses após a decretação, a execução desses dois agentes
soviéticos, por motivos até hoje não revelados, foi adiada por dois anos. No dia 9
de outubro de 1944, ambos morreram na mesma prisão, com uma diferença de
meia hora entre as duas execuções.
8. As Redes nos Estados Unidos

A circunstância de que os Estados Unidos e a União Soviética eram aliados e de


que os norte-americanos — como o faziam os ingleses — estavam-se
despojando de vital material de guerra para ajudar os russos, que se encontravam
mais duramente pressionados por Hitler, aparentemente não impedia que o
governo de Moscou, segundo pensava Stálin, se comprazesse na prática do que
normalmente é considerado um ato inamistoso, isto é, a espionagem. Com efeito,
a aliança dos dois países pareceu servir de pretexto para que as atividades da
espionagem soviética fossem expandidas em tão violento ritmo que chegaram a
atingir, durante os três anos de 1942 a 1945, um nível nunca antes alcançado, e
provavelmente, desde então, não ultrapassado.

Será conveniente lembrar que, até 1939, as redes soviéticas, nos Estados Unidos,
haviam-se mostrado extremamente ativas. Entretanto, como acontecera com a
maioria dessas organizações em qualquer parte — com a única exceção, talvez,
da rede de Richard Sorge, que funcionava no Japão —, foram elas
profundamente afetadas pelo grande expurgo de 1938. Isso custou à maioria
dessas organizações dois ou três anos para serem reestruturadas, como já vimos
na Europa Ocidental. Por volta de 1941, coincidindo fortuitamente com o
desencadear da Operação Barbarossa e com o ataque a Pearl Harbor, as redes
que operavam nos Estados Unidos começaram outra vez a se aprumar.

Que os Estados Unidos tivessem sido escolhidos para uma blitz de espionagem
— mesmo antes do advento daqueles dois aniquiladores golpes — pode-se
concluir pelo fato de que, após alguns anos de vacância, o posto de adido militar
à embaixada da Rússia, em Washington, afinal tenha sido preenchido. Merece
ser ressaltado, ainda, que a pessoa escolhido para o cargo não fora outra senão o
General Ilya Sarayev, espião-chefe profissional, que deveria desempenhar
grande papel na atividade da espionagem soviética, a qual iria tornar os Estados
Unidos seu alvo número um até a eclosão do Caso dos Espiões Canadenses,
ocorrido três ou quatro anos mais tarde.

O terreno em que a espionagem soviética fora posta a trabalhar dificilmente seria


mais favorável. O FBI e o Departamento de Inteligência Naval (ONI)
continuavam sendo as duas únicas agências empenhadas, naquele país, na
realização de serviços de contraespionagem. Nenhuma delas, porém, se achava
equipada com pessoal adequado, especialmente o ONI. De qualquer forma, os
maiores esforços dessas agências estavam concentrados em dois objetivos:
anular a espionagem japonesa — que se mostrava realmente inquietadora e que,
no início de 1950, ocupava dezenas de milhares de agentes na Costa Ocidental e
na América Central — e tentar romper o anel de espionagem nazista, dirigido
pelo Conde von Keitel.

Há a ressaltar, ainda, o comportamento, de certa forma ingênuo, revelado pelas


autoridades norte-americanas, em face de tão grave infiltração. Em face da
experiência passada, deviam ter desconfiado do que os russos estavam
planejando quando, em princípios de 1942, subitamente aumentaram tanto o
quadro do pessoal de sua embaixada em Washington, como o do seu serviço
consular, estrategicamente localizado em toda a extensão do país e, em
particular, o da sua nova Comissão de Compras. Essa ingenuidade, segundo tudo
leva a crer, persistiu por muito tempo, pois, em dezembro de 1943, o General
Wild Bill Donovan, chefe do recém-criado Departamento de Serviços
Estratégicos (OSS) — o equivalente ao SOE britânico — fizera uma visita a
Moscou, onde, em entrevistas com os dirigentes soviéticos, ressaltara a
conveniência de que a organização que chefiava trabalhasse em estreita
cooperação com a sua equivalente russa. Durante suas entrevistas com
graduados oficiais do GRU — aparentemente, não se avistara com Alexander
Erdberg —, o general norte-americano revelara todos os detalhes do modus
operandi do seu Departamento — a técnica de infiltração de seus agentes em
territórios ocupados pelo inimigo, assim como a natureza do seu equipamento,
inclusive os últimos modelos portáteis de radiotransmissores — concluindo por
sugerir que uma pequena unidade russa deveria ser instalada em Washington, a
fim de facilitar a ligação entre os dois serviços. Os norte-americanos somente
foram salvos dessa infantil ingenuidade — parece que, de todos os maiores
técnicos de planejamento dos Estados Unidos, somente o Almirante Leahy fora
contrário à idéia — por considerações de ordem política. O ano de 1944 era de
eleições gerais, e o Presidente Roosevelt julgara que a implantação daquele
esquema de cooperação com a Rússia poderia provocar uma reação na imprensa
e, nessas condições, pessoalmente o vetou.

O malogro dessa iniciativa, entretanto, não fez cessar a cooperação entre o


General Donovan e Moscou. O OSS insistiu em colocar à disposição dos russos
grande número de informações sobre a situação nos países ocupados pelos
nazistas juntamente com proveitosas informações neles colhidas pelos agentes
norte-americanos.

Outro fator que facilitou grandemente o esforço russo nos Estados Unidos foi a
característica cordialidade dos norte-americanos. Os russos eram, então, seus
aliados. Quaisquer que tenham sido suas relações no passado, dissipavam-se
pelo fato de que então estavam lutando, lado a lado, contra um inimigo comum.
Em todos os lugares onde os russos apareciam eram saudados com a
espontaneidade da tradicional hospitalidade norte-americana. Esse estado
emocional incluía também o fornecimento de informações que, anteriormente,
seriam cuidadosamente interditadas aos russos. Essas informações, naturalmente,
não satisfaziam o imenso estômago dos soviéticos, que tudo queria digerir. O
esforço de obter maior e mais detalhado conhecimento do que se passava nos
Estados Unidos foi tornado, entretanto, bem mais suave pelo amistoso contato
que os russos logo estabeleceram com os homens que guardavam esses segredos.

De acordo com as revelações feitas, perante vários comitês de investigação do


Congresso, nas últimas duas e meia décadas, tornou-se evidente que a maior
atividade desenvolvida pelos russos orientou-se no sentido da espionagem
industrial — particularmente no setor das indústrias responsáveis pela produção
de material bélico. Técnicos em artilharia e armas modernas, em aviões e
submarinos, eram encontrados entre o pessoal da Comissão de Compras — sem
dúvida, a principal agência da espionagem soviética, no que dizia respeito a esse
setor — e entre o funcionalismo da embaixada e dos consulados. Nada, porém,
parecia sem interesse para os russos. Nessas condições, o volume de
informações vitais, por eles obtido, durante os anos de guerra, certamente não
poderá ser avaliado.

Mas, se o esforço no campo industrial foi verdadeiramente estupendo, o


realizado no terreno da espionagem política não se revelou, por seu lado,
desprezível. Com efeito, quando se examina o que eles conseguiram, através de
infiltrações na própria administração norte-americana, torna-se difícil não sentir
uma emoção à qual não são estranhas certas características de medo. Neste
momento, não desceremos a maiores detalhes no que diz respeito à espionagem
política, já que ela estava intimamente vinculada a acontecimentos que tiveram
lugar nos anos imediatamente posteriores à guerra e que formaram a base do
Macartismo. O assunto será abordado, com maiores minúcias, na quinta parte
deste livro.
Provavelmente, nenhum outro país do mundo já foi vítima de um tão violento
assalto de espionagem como o que a Rússia desencadeou contra os Estados
Unidos, durante a guerra. * Calcula-se que cerca de dezoito redes separadas
operavam simultaneamente — e no auge da sua atividade, em território norte-
americano, naquele período, o que, por si só, já representa uma realização digna
de nota para qualquer serviço de espionagem. Entretanto, os resultados colhidos
por essas redes profissionais constituíram apenas uma fração das realizações
totais da espionagem soviética nos Estados Unidos, e os culpados dessa colheita
de informações secretas foram, apenas e exclusivamente, os próprios norte-
americanos.

* Embora o esforço japonês tenha sido grande, suas realizações revelaram-se


desprezíveis. Esse esforço cessou abruptamente nos dias que se seguiram a Pearl
Harbor, pois todos os japoneses residentes no país foram imediatamente
internados.
Quarta Parte
ESPIONAGEM ATÔMICA
1. Espionagem Atômica

Não é possível dizer-se, com exatidão, quando a espionagem soviética se tornou


interessada nos segredos atômicos dos demais países. De qualquer forma, esse
interesse teve início antes do fim de 1943, pois uma das acusações, feitas mais
tarde contra Klaus Fuchs, era a de que “durante o ano de 1943, o senhor passou
informações aos representantes de uma potência estrangeira, na cidade
Birmingham”.

A primeira grande fenda aberta na Física Nuclear ocorreu quando Rutherford e


Chadwick conseguiram “partir o átomo”, em 1931, nos laboratórios Cavendish,
em Cambridge. Rutherford, neozelandês de nascimento, sempre fora interessado
na estrutura atômica e havia realizado seu primeiro trabalho sobre
radioatividade, entre 1898 e 1907, quando professor de Física na Universidade
McGill, em Montreal. Em face da importância dessa pesquisa no campo da
estrutura atômica, ele foi agraciado, em 1908, com o Prêmio Nobel de Física.
Em 1919, foi nomeado professor de Física em Cambridge, e ali seu trabalho e o
do seu colaborador provaram definitivamente o que, desde muito tempo,
acreditava ser verdade, isto é, que o átomo poderia ser artificialmente
desintegrado.

Desejamos que os leitores nos perdoem se, em nome da clareza, recapitulamos


aqui, muito sucintamente e de forma apenas rudimentar, as bases da energia
atômica. Uma diminuta massa de substância representa uma enorme quantidade
de energia. Se uma onça de substância pudesse ser inteiramente convertida em
calor, ela seria capaz de transformar em vapor cerca de um milhão de toneladas
de água. Assim, quando se tem em vista qualquer libertação de energia, faz-se
necessária a produção da fissão nuclear. A desintegração é conseguida através do
processo de bombardear-se o átomo com nêutrons. Até que Rutherford
conseguisse quebrar o núcleo de certos materiais leves, bombardeando-os com o
que era conhecido como partículas “alfa” — produzidas espontaneamente pelo
núcleo de elementos específicos —, a maneira de se realizar a fissão nuclear
tinha dado dor de cabeça aos cientistas. Depois disso, os colegas de Rutherford,
que pesquisavam no mesmo campo, John Cockcroft e seu colaborador Walton,
imaginaram uma espécie de partícula “alfa” artificial, e que outra coisa não era
senão uma partícula eletrizada à qual era dada uma grande velocidade no interior
de tubo de escapamento. O resultado das experiências com essa partícula “alfa”
artificial representou um significativo passo à frente no conhecimento dos
segredos atômicos. Daí não tardou que o físico italiano Enrico Fermi
conseguisse quebrar átomos de urânio, reduzindo-os a átomos de lantânio, que,
comparativamente, são minúsculos. O trabalho de Fermi levou à descoberta de
que os nêutrons — partículas de idêntica constituição dos prótons, mas sem
carga elétrica — poderiam penetrar, com facilidade, o núcleo dos átomos mais
pesados e assim provocar transformações atômicas, e ao mesmo tempo, libertar
energia.

O problema que os físicos tiveram de resolver, neste ponto, era que um esforço
enorme seria necessário para provocar a modificação em alguns poucos átomos,
o que tornava o processo impraticável, embora a operação fosse de alto interesse
científico. Fermi não havia reconhecido a importância da sua experiência com o
urânio pesado e acreditara que o que fizera não passara de uma repetição da
realização de Rutherford, isto é, conseguira apenas tirar minúsculas lascas do
núcleo atômico.

Provocar a fissão nuclear num material que fosse de fácil desintegração e que, ao
mesmo tempo, libertasse o maior volume possível de energia, constituiu uma
preocupação que, por volta da década dos trinta, havia-se tornado para os físicos
a mesma coisa que a descoberta da pedra filosofal fora para os alquimistas da
Idade Média. Em consequência, os físicos, nos Estados Unidos, na França, na
Alemanha, na Rússia e no Japão, assim como na Grã-Bretanha e na Itália,
concentraram-se em suas pesquisas, tendo em vista realizar esse objetivo. Como
existe uma tradição científica, no sentido de que as experiências, coroadas de
êxito, devem ser comunicadas (em tempos de paz) aos demais cientistas do
mundo, independentemente de sua nacionalidade, tudo o que fora descoberto no
Ocidente tornara-se, pois, conhecido dos cientistas russos.

Os físicos russos, entretanto, mostravam-se surpreendentemente bem informados


em relação às tremendas possibilidades que poderiam resultar da fissão nuclear,
realizada de forma relativamente fácil. E, nesse sentido, conseguiram convencer
as autoridades que lhes proporcionassem os indispensáveis recursos técnicos
para a realização de tão relevante tarefa. Assim, a Rússia logo providenciou a
construção de novos laboratórios e adquiriu, no exterior, moderníssimos e
custosos equipamentos. Entre 1934 e 1939, seus físicos nucleares se destacaram,
em face das experiências que realizaram, distinguindo-se entre os pioneiros
dessa revolução tecnológica os seguintes cientistas: D. D. Ivanenko, G. N.
Tamm, N. K. Semionov e D. V. Skobeltsyn. Nenhum, porém, tinha maior
projeção que Peter Kapitsa.

Russo de nascimento, Kapitsa transferira-se para a Inglaterra quando muito


moço e, em 1921, se juntara a Rutherford, nos laboratórios Cavendish. Por volta
de 1933, tornara-se tão conceituado por suas experiências sobre os efeitos da
influência magnética sobre as propriedades da água que as autoridades de
Cambridge decidiram proporcionar-lhe todas as facilidades para as suas
pesquisas, fornecendo-lhe um equipamento especial no novo laboratório Mond.
Não sendo um refugiado político, as autoridades russas não criaram obstáculo à
sua viagem, quando desejou voltar à pátria. Assim, em 1935, Kapitsa seguiu para
Moscou, onde iria realizar uma conferência científica. Quando desejou regressar
à Inglaterra, porém, negaram-lhe o visto de saída, sob a alegação de que seus
conhecimentos eram necessários ao governo soviético. Embora, segundo se disse
na ocasião, ele preferisse muito mais ter retornado a Cambridge, vira-se
obrigado a aceitar um posto no Instituto de Problemas Físicos em Moscou, onde
logo pôs em prática sua cultura extremamente extensa e o seu know-how em
Física Nuclear, que havia adquirido em Cambridge. Será errôneo, portanto,
alegar-se, como às vezes tem acontecido, que a Rússia nenhuma experiência
possuía no campo da Física Nuclear e que, para iniciar suas pesquisas, tivera de
roubar todas as suas informações ao Ocidente.

O ano de 1939 assistiu, ainda, a outro passo à frente muito significativo, no


sentido da solução do problema que, naquela época, preocupava os físicos
nucleares. Na Alemanha, Otto Hahn descobrira o que é conhecido como a reação
em cadeia. Bombardeando o urânio com nêutrons, o núcleo fora dividido em
duas partes, e estas se separaram com grande energia, libertando, ao mesmo
tempo, os nêutrons, os quais, por sua vez e em certas circunstâncias, eram
capazes de dividir outros átomos. A possibilidade de dividir todos os átomos
num conjunto de urânio, o que significava a liberação de um enorme volume de
energia, estava, pois, à vista. A investigação dessas possibilidades tornara claro
que, tão logo um método de controlar a operação fosse descoberto, uma bomba
atômica poderia ser fabricada. E isso ocorreu quando a maior guerra de todos os
tempos acabava de irromper.

O urânio é integrado por três isótopos — isto é, átomos de diferente constituição,


tendo as mesmas propriedades químicas —, e a descoberta que se seguiu foi a de
que somente um urânio — o urânio 235 — seria adequado para a fabricação
dessa bomba. A separação desse isótopo constitui um processo dos mais
monótonos e custosos. O problema que os físicos tinham de enfrentar, então, era
o de separar do urânio um volume suficientemente grande do isótopo 235. Este é
o trabalho que, neste momento, está sendo realizado, em larga escala, nos
Estados Unidos.

O urânio, em si mesmo, é derivado, em grande parte, da pechblenda, da qual


existem largos depósitos no Canadá e no que foi o Congo Belga. Em 1940, um
comitê de investigações de cientistas foi instituído na Grã-Bretanha, tendo como
presidente Sir George Thomson. Em meados de 1941, o Comitê Thomson
apresentou um relatório que concluía pela exequibilidade de uma arma militar
baseada na energia atômica. Endossado pelo Gabinete da Guerra, o projeto foi
então confiado ao Departamento de Pesquisas Científicas e Industriais. Em
outubro de 1941, o Presidente Roosevelt sugeriu a Churchill que o trabalho
deveria ser levado a efeito, conjuntamente, pelos Estados Unidos e a Grã-
Bretanha. Uma missão norte-americana visitou a Inglaterra em novembro de
1941, enquanto cientistas britânicos estiveram nos Estados Unidos em fevereiro
de 1942. Como resultado desses contatos, um acordo foi estabelecido para a
manufatura conjunta de bombas atômicas. Enormes fábricas se instalaram, então,
nos Estados Unidos e no Canadá. Assim, os trabalhos tiveram início em
Montreal e Chalk River, no Canadá; e em Oak Ridge, no Tennessee, em Los
Alamos, no Novo México, e em outros lugares, nos Estados Unidos, tendo por
finalidade a realização do denominado Projeto da Energia Atômica. Os cientistas
britânicos passaram a cruzar o Atlântico para trabalhar, tanto nos
estabelecimentos canadenses quanto nos norte-americanos, e a colaboração dos
dois países obteve tão grande êxito que os estágios finais da fabricação da
bomba foram atingidos por volta de 1943.

Simultaneamente, porém, alguns cientistas alemães e outros japoneses tentavam


bater os anglo-saxões nessa corrida. Os alemães foram prejudicados em suas
pesquisas, em face da destruição das suas fábricas de água-pesada na Noruega,
levada a efeito pela Resistência Norueguesa, sob a direção do SOE. Os
japoneses, por sua vez, revelavam-se muito atrasados em suas pesquisas, para
constituírem qualquer ameaça. Os russos também tinha sofrido graves recuos em
face da guerra, pois seus principais laboratórios tiveram de ser fechados, quando,
poucas semanas após o irrompimento do conflito russo-germânico, Leningrado
— onde eles se achavam instalados — fora sitiada. Os alemães destruíram,
igualmente, os laboratórios de Carkov, embora os soviéticos houvessem
conseguido evacuar todo o seu equipamento antes da chegada dos nazistas.
Durante os seis meses seguintes, quando Moscou esteve ameaçada, os
laboratórios ali existentes ficaram também paralisados e, considerando a situação
em conjunto, esses acontecimentos fizeram com que a pesquisa nuclear soviética
ficasse bem atrás da do Ocidente.

Não se descobriu até hoje quem teve a idéia de não tornar disponível para os
russos os progressos realizados pelos cientistas anglo-norte-americanos. A
própria Rússia não demorou a descobrir que estava sendo posta de lado na
corrida nuclear e, daquele momento em diante, ao invés de perder tempo com
tentativas de persuasão, tomara logo providências para obter as informações, que
lhe eram negadas, através da espionagem. Desse modo, um departamento
especial foi organizado — conhecido como Divisão Atômica — para organizar a
coleta dos segredos atômicos.

A técnica adotada pelos russos responde, melhor do que qualquer argumento, à


pergunta sobre se o método da espionagem teria sido usado, caso eles não
tivessem a certeza de que a sua infiltração nos círculos científicos da Grã-
Bretanha e dos Estados Unidos havia tornado essa tarefa uma das mais fáceis de
ser executada. De fato, nenhuma rede especial foi estabelecida para realizar essa
tarefa. Mobilizaram-se as já existentes, tanto no Canadá como nos Estados
Unidos. A única coisa que seria necessário fazer era intensificar as atividades
dos anéis canadenses e, com esse objetivo, foram eles postos em conexão com as
redes que atuavam em território norte-americano. O Major Sokolov, responsável
pela organização canadense, era, por sua vez, dirigido por Pavel Mikhailov, que
operava do consulado russo em Nova York. Ele havia feito mais do que qualquer
outro, no período inicial, para estabelecer a rede canadense, pois estava equipado
com um transmissor e agia como veículo de comunicação entre Ottawa e
Moscou. Para Mikhailov fora fácil entrar em contato com a embaixada russa em
Ottawa, já que estava envolvido também na organização do Programa Canadense
de Ajuda Mútua à Rússia.

O diretor da espionagem militar era Sergei Koudrivtzev, cuja cobertura era o


posto de primeiro-secretário da legação. Era ele quem dera ordens a Sokolov, no
período inicial do estabelecimento da rede, até a chegada do Coronel Zabotin
como adido militar, em 1943. A chegada de Zabotin a Ottawa coincidira tanto
com a decisão russa de expandir suas redes como com a ida dos cientistas
britânicos para o Canadá. Zabotin seria quem, no final, iria projetar-se como o
verdadeiro vilão no drama canadense.
Com a extensão dada ao papel das redes canadenses, os velhos e fiéis Sam Carr e
Fred Rose, por fim, se sentiram em casa. O último era então membro do
Parlamento e, em face disso, encontrava-se em situação de ser muito mais útil
aos soviéticos do que o fora antes. Achava-se numa posição privilegiada para
obter informações oficiais sem despertar suspeitas. Foi Rose quem chamou a
atenção de Zabotin para David Lunan, editor do Canadian Affairs — jornal
dedicado a assuntos militares — e que se iria mostrar de incalculável valor, ao
sugerir recrutas para a rede. Graças aos esforços desse jornalista e à cooperação
de Rose, uma célula de cientistas fora organizada, num reduzido espaço de
tempo. Entre os integrantes dessa rede achava-se o maior técnico em explosivos
do continente americano, o Professor Raymond Boyer, da Universidade McGill.

Foi Boyer quem forneceu a Moscou as seguintes informações: uma nova fábrica
estava sendo construída em Grand Mère, * em Quebec, para a produção de
urânio; os engenheiros que nela iriam trabalhar seriam recrutados na
Universidade McGill; e experiências já realizadas haviam provado que o urânio
podia ser usado para “encher bombas”.

Essas informações, chegadas ao Centro em princípios de 1943, fizeram com que


Moscou passasse a solicitar, então, de forma perfeitamente franca, ao governo
dos Estados Unidos, através da Comissão Soviética de Compras, dezesseis
toneladas de urânio. Alegavam os russos que seus cientistas necessitavam
desesperadamente desse material, a fim de prosseguir em suas experiências. As
autoridades norte-americanas não atenderam à solicitação. Explicaram que havia
escassez de urânio no mercado e, por isso, nenhuma quantidade poderia ser
cedida. Essa resposta não detivera os russos, que passaram a repetir a solicitação,
com pequenos intervalos, durante todo aquele ano. Em abril de 1944, o
Secretário de Estado para a Guerra, Stimson, enviara a seguinte resposta ao
chefe da Comissão de Compras:

Prezado General Rudenko. Lamento informar-lhe que nos encontramos


impossibilitados de atender à solicitação, contida em sua carta de 31 de março,
de alguns componentes do urânio.

Fizemos um cuidadoso levantamento da situação e chegamos à conclusão de que


nossos estoques desse material não são suficientes para fazer frente a esse
pedido.
Asseguro-lhe que terei em mente as necessidades da Rússia e o informaremos de
qualquer alteração verificada no volume dos nossos estoques.

Os governos dos Estados Unidos e do Canadá, porém, não dispunham de


controle sobre os suprimentos de urânio, e inquéritos levados a efeito nos
mercados de ambos os países revelaram que, naquela época, existiam estoques
disponíveis desse precioso material. Por motivo hoje difícil de ser entendido —
o de que a proibição das exportações de urânio despertaria, sem necessidade, a
curiosidade soviética —, nenhum embargo foi imposto aos embarques de urânio.
Na realidade, por ocasião do encaminhamento da primeira solicitação soviética,
no volume de dezesseis toneladas, outro pedido fora simultaneamente feito,
pelos russos, ao diretor do estabelecimento atômico americano, no volume de
quatro quintais de urânio. Essa encomenda fora atendida, assim como acontecera
com uma segunda. No Canadá, a Comissão Soviética de Compras também
obtivera êxito, ao adquirir aproximadamente meia tonelada, valendo-se do
mesmo recurso. Esses fatos compõem um retrato muito nítido da confusão que
reinava nos círculos oficiais do Ocidente — confusão esta que contribuiu
enormemente para facilitar a tarefa de acelerar as pesquisas nucleares, a cargo da
Divisão Atômica do Serviço Secreto Soviético.

Entretanto o que tornou a tarefa dos russos ainda mais fácil foi o fato de que,
tanto nas fábricas norte-americanas como nas canadenses, existiam cientistas, de
alta categoria, que eram comunistas ou tinham simpatia pelos comunistas, e se
mostravam dispostos a entregar qualquer segredo que os russos solicitassem. Em
primeiro lugar, deve ser citado o inglês Dr. Allan Nunn May. Nunn May nascera
em 1912 e, quando atingira a maturidade, a depressão econômica da década dos
trinta refletia-se de maneira desastrosa na Inglaterra, como, aliás, em todas as
regiões do mundo. Seus efeitos negativos se faziam sentir de diferentes
maneiras. Muitas pessoas perderam a esperança de qualquer recuperação e
deixaram-se vencer pelo cansaço. Outras decidiram-se pela luta e se
reabilitaram, reabilitando a nação. Nunn May, porém, tornou-se um comunista
secreto.

Tratava-se de um brilhante físico, doutor em Filosofia por Cambridge, onde


cursara o Trinity College. Em 1942, tornara-se membro de uma equipe que
trabalhava nos Laboratórios Cavendish, em conexão com o que era chamado
Projeto Tubo de Liga (fissão nuclear). Em janeiro de 1943, acompanhou um
grupo de cientistas britânicos, chefiados pelo Dr. Halban — antigo colega do
renomado cientista francês Joliot-Curie que, mais tarde, se revelou comunista
—, ao Canadá. Posteriormente, visitou os Estados Unidos, onde colaborou com
cientistas norte-americanos que trabalhavam na fabricação da bomba.

Em segundo lugar, vinha o Dr. Klaus Fuchs, que fugira da Alemanha por ser
antinazista. Fora para a Inglaterra e, dada a escassez de físicos ali, foi, em
meados da década dos trinta, recrutado para trabalhar numa das equipes atômicas
britânicas. Exercia sua atividade, primeiro em Glasgow e, depois, em
Birmingham, sob a direção de outro refugiado alemão e antigo conhecido de
Fuchs, Rudolf Peierls.

Naturalmente, Fuchs fora vetado pelas autoridades britânicas, antes de ter


permissão para trabalhar naqueles projetos altamente secretos. Por alguma razão,
a Segurança não descobrira que ele, como jovem estudante, havia sido membro
de um grupo de comunistas clandestinos na Alemanha, e nem que, logo após
chegar à Inglaterra, entrara em contato com Semion Kremer, secretário do adido
militar russo em Londres.

Esses dois homens se encontraram pela primeira vez em maio ou junho de 1942
e, durante os dezoito meses decorridos daquela data até o dia em que o cientista
foi enviado para trabalhar nos Estados Unidos, Fuchs entregava a Kremer cópias
dos seus relatórios mensais. Fuchs desembarcou nos Estados Unidos, em
dezembro de 1943, com a luz verde que os ingleses lhe haviam concedido, sendo
designado, a princípio, para a Universidade de Columbia, em Nova York, e,
depois, para a fábrica atômica em Los Alamos. Nos Estados Unidos, mantinha
contato com a espionagem soviética, através de um membro da rede americana,
Harry Gold, de Filadélfia, e, até que retornou à Inglaterra, em 1946, passou
regularmente informações secretas para os russos.

Em terceiro lugar, vamos encontrar Bruno Pontecorvo, italiano, discípulo do


famoso físico Enrico Fermi e que, em 1927, transferiu-se para a França, a fim de
trabalhar sob a orientação de Joliot-Curie e de outro cientista comunista,
Longevin. Na França, aderiu a um grupo de refugiados italianos da ala esquerda
extremista. Quando era iminente a invasão da França pelos alemães, Pontecorvo
fugiu para os Estados Unidos, onde desembarcou no verão de 1940. Em 1943,
foi enviado ao Canadá para trabalhar em projetos atômicos, permanecendo ali
até 1949.
Embora as redes soviéticas, nos Estados Unidos e no Canadá, fossem
teoricamente duas entidades separadas, trabalhavam juntas, entretanto, no campo
da espionagem atômica, o que era uma atitude de perfeito bom senso. Enquanto
Zabotin permanecera no controle da rede canadense, trabalhara muito
estreitamente com o agente que o Centro enviara para Nova York, em princípios
de 1944, para assumir a direção da espionagem atômica nos Estados Unidos. Seu
nome era Anatoli Yakovlev, que recebeu, como cobertura, o posto de vice-cônsul
em Nova York. Ao desembarcar nos Estados Unidos, logo passara a
desempenhar as funções exercidas até então pelo homem que havia demonstrado
tremendo vigor e senso de julgamento ao organizar o “aparato” americano —
Semion Semionov —, a cujos trabalhos a Divisão Atômica muito devia.

A rede de Yakovlev nos Estados Unidos incluía quatro destacados espiões


comunistas norte-americanos — Harry Gold, David Greenglass e o casal Julius e
Ethel Rosenberg. O quarteto era integrado, pois, de comunistas e de agentes de
grande experiência, mas deve-se provavelmente mais à experiência de que
dispunham do que às posições que ocupavam e que os colocaram em boas
condições para a execução do seu trabalho, o fato de haverem sido selecionados
para cooperar com Yakovlev.

Harry Gold nascera em Berna, mas seus pais eram russos. Sua família emigrara
para a América, quando ele ainda era criança. Nos Estados Unidos, o nome da
família foi mudado de Golodnotzky para Gold. Harry recebera boa educação
universitária e técnica nos Estados Unidos. Desenvolveu tendências esquerdistas
e, em 1935, abordado por uma agência de espionagem soviética nos Estados
Unidos, concordara em cooperar. Durante a juventude, Gold especializara-se em
roubar segredos químicos industriais. Por esse motivo, Yakovlev o escolhera
para agir como intermediário entre a rede e Fuchs.

David Greenglass, na mocidade, fora membro da Liga da Juventude Comunista


da América. Esse pormenor parece ter escapado igualmente ao FBI, pois, quando
os Estados Unidos entraram na guerra, em dezembro de 1941, ele foi convocado,
recebeu treinamento técnico e, em julho de 1944, designaram-no para trabalhar
no Projeto Distrito de Manhattan, em Oak Ridge, no Tennessee. Sua irmã era
Ethel Rosenberg, sob cuja influência ele rapidamente assumiu o encargo de
divulgar os segredos do seu próprio trabalho.

Julius Rosenberg havia sido comunista — e um comunista extremamente ardente


— desde os primeiros dias do comunismo nos Estados Unidos. Fora, igualmente,
um dos pioneiros da espionagem naquele país e já obtivera grandes êxitos em
colher segredos sobre o radar antes que recebesse ordens para mergulhar na
clandestinidade — o que ocorreu após a designação do seu cunhado para Oak
Ridge —, a fim de se concentrar em espionagem atômica. Foi quem converteu
Ethel Greenglass ao comunismo, e então se casaram. Ethel haveria de se mostrar
inestimável em persuadir o irmão mais moço a fornecer os segredos vitais do seu
trabalho aos russos.

Adidos ao grupo Rosenberg achavam-se também Abraham Borthman, Miriam


Moskowitz e Morton Sobell. Esse grupo, porém, era apenas um dos três da rede
norte-americana. No Laboratório de Radiação da Universidade da Califórnia,
Vasili Zubilin, da embaixada soviética em Washington, organizara um grupo do
Partido Comunista e de comunistas secretos, que colocara sob a direção de dois
funcionários do consulado em São Francisco: Grigori Kheifets e Peter Ivanov.
Entre seus agentes destacados, achava-se Steve Nelson, chefe do grupo que
atuava no Laboratório de Radiação, do qual a principal fonte de informação era
Joseph Weinberg, físico de pesquisa. Ele tentou, mesmo, recrutar os serviços do
Dr. J. Robert Oppenheimer, que deveria ser o futuro diretor de Los Alamos, a
mais importante das fábricas atômicas norte-americanas. Oppenheimer recusou-
se a cooperar e levou o fato ao conhecimento do diretor do Projeto Distrito de
Manhattan, resultando daí que o FBI começou a vigiar Nelson, embora, por
considerável tempo, nenhuma providência fosse tomada.

O terceiro grupo achava-se concentrado em Chicago, onde as pesquisas atômicas


estavam igualmente em progresso. Na ausência de consulado naquela cidade, os
russos puseram um agente profissional como líder do grupo — Arthur Adams.
Adams era espião de longa experiência, mas, por volta de 1942, aproximando-se
dos sessenta anos, sofria intensamente de reumatismo e, nessas condições,
mostrava-se de certa forma prejudicado. Sua fonte principal era uma comunista
norte-americana, Clarence Hiskey, química que trabalhava nos Laboratórios
Metalúrgicos empenhados na produção, em larga escala, de plutônio para
bombas atômicas.

Em 1944, as atividades de espionagem de Hiskey chamaram a atenção do FBI.


Parece incrível, mas tudo o que aconteceu a essa química foi ser ela convocada
para o serviço ativo no Exército e enviada para o Alasca. Antes de partir,
conseguira convencer John Chapin, outro químico que trabalhava no mesmo
laboratório de Chicago, a assumir suas funções de espião para os russos. Chapin,
por sua vez, igualmente comprometido, fez com que as atividades de Adam
fossem reveladas. Naqueles dias, porém, a administração dos Estados Unidos
não processava conhecidos espiões soviéticos, e Adam teve permissão para
deixar o país.

No Canadá, Zabotin, com a assistência do Major Rogov, membro do seu Estado-


Maior, tinha organizado um pequeno mas compacto grupo integrado por quatro
funcionários do governo canadense. O chefe do grupo era Durnford Smith,
engenheiro pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisas; Ned Mazerall,
membro da mesma instituição; Isador Halperin, técnico em artilharia, que tinha
acesso às informações secretas enviadas pelo Estabelecimento do
Desenvolvimento e Pesquisa do Exército do Canadá; e David Lunan, já
mencionado, editor do Canadian Affairs. Lunan colhia as informações fornecidas
pelos outros três e as entregava a Rogov, que, por sua vez, as passava a Zabotin.

Entre os contatos desses quatro achava-se Raymond Boyer, também mencionado


anteriormente, que era considerado, por seus superiores, o astro do grupo.
Existia ainda James Benning, que trabalhava no Departamento de Munições,
com a tarefa de preparar as previsões trimestrais da produção de guerra, e o
cunhado de Benning, Harold Gerson, empregado numa empresa da Coroa
Britânica, especializada em fabricar produtos químicos e explosivos. Havia mais
Eric Adams, que ocupava um posto confidencial no Banco do Canadá,
investigando planos industriais para fins de financiamento; Matthias
Nightingale, que poderia fornecer informações sobre todas as bases aéreas
canadenses; David Shugar, técnico em radar; e, em escalão mais baixo, Agatha
Capman, funcionária do Banco do Canadá, que agia como intermediária.

Com exceção de Agatha Capman, todos os mencionados, embora não sendo


membros da rede, eram, como Nunn May e Fuchs, fontes de informação
extremamente valiosas, das quais procediam todos os segredos de relevância.

Constitui outro mistério o fato de que as atividades de qualquer dessas pessoas,


quer no Canadá, quer nos Estados Unidos, não tivessem sido conhecidas das
agências de contraespionagem de ambos os países, e talvez nunca o seriam, a
não ser por um estranho acidente, ao qual faremos referência. Todos eles
trabalhavam com incansável dedicação em suas tarefas e, mais ou menos na
época em que a bomba atômica fora detonada contra Hiroshima, haviam passado
para Moscou todas as informações importantes, tanto sobre a composição da
bomba como sua potência, com exceção talvez de apenas uma ou duas pequenas
características.
Somente no fim da guerra é que a Rússia pôde tirar vantagem dessas
informações no campo atômico. Não obstante isso, segundo se calcula, os
soviéticos ganharam pelos menos dez anos de esforço e de pesquisa, em face
dessa bem sucedida safra da sua espionagem. Esse período poderia ainda ser
maior, se não tivesse havido a deserção de Igor Gouzenko.

No dia 7 de setembro de 1945, as autoridades de Ottawa tomaram conhecimento


da existência de Igor Gouzenko. Tratava-se de um simples encarregado de
cifragem da correspondência da Embaixada soviética, e a polícia canadense só
soube de sua permanência no país porque ele solicitara, para si, para a esposa e
para o filho pequeno, a proteção do governo do Canadá. Quando lhe
perguntaram por que necessitava daquela proteção, respondeu que estava de
posse de provas documentais que evidenciavam, além de qualquer dúvida, a
existência de uma rede de espionagem atômica operando no país. Quando as
autoridades se certificaram de que ele roubara essas provas dos arquivos secretos
da Embaixada, a proteção solicitada lhe foi concedida.

Gouzenko permanecera no Canadá por dois anos e, segundo tudo faz crer,
convertera-se, durante esse período, em admirador dos ideais da democracia
ocidental. Essa mudança em seu modo de pensar provocou nele uma
correspondente alteração de sentimentos. Daí a razão por que decidiu abandonar
tanto os russos quanto seus trabalhos secretos.

Ao deixar a Embaixada soviética, na noite de 5 de setembro de 1945, fê-lo pela


última vez. Já havia planejado como agir. Levou consigo uma valise, repleta de
fichas secretas, todas relativas à rede de espionagem atômica que, por mais de
três anos, operava no país. Da Embaixada soviética seguiu diretamente para a
redação de um dos principais jornais de Ottawa, onde revelou seu drama e
ofereceu as provas que o confirmavam. Os jornalistas não acreditaram em sua
denúncia e lhe pediram que se retirasse.

Seguiu então para o seu apartamento e, não ignorando o que lhe poderia
acontecer, logo que os representantes soviéticos notassem sua ausência,
juntamente com a falta dos arquivos — o que seria uma questão de horas —,
passou o dia seguinte percorrendo diferentes departamentos do governo
canadense e, nessa via crucis, só foi recebido com aquela espécie de riso
complacente habitualmente concedida aos que alegam ser Napoleão. Tarde,
nessa noite, voltou outra vez ao jornal que visitara na véspera e teve idêntica má
acolhida. Sem saber o que fazer, fechou-se com a família no apartamento. Mal
tinha tomado essa providência, ouviu baterem na porta. Fez sinal à esposa para
que se conservasse sem fazer qualquer ruído, de modo a dar a impressão de que
o apartamento estivesse vazio. Desgraçadamente, seu filho, de quatro anos,
correu, com algazarra, através do assoalho de tacos. O homem que se encontrava
à porta gritou então chamando-o, e Gouzenko reconheceu a voz. Era um dos
motoristas da Embaixada. O chofer retirou-se, quando verificou que ninguém lhe
respondia.

Depois que o motorista já se havia afastado, Gouzenko chegou ao balcão da


janela e entrou em contato com seu vizinho de apartamento, um sargento da
Força Aérea Canadense, chamado Main. Disse-lhe que estava temeroso por sua
vida. Descreveu o que tinha havido e lhe pediu abrigo para a família, durante a
noite. O sargento acreditou no que ouviu e abrigou os Gouzenko. Mais tarde,
foram eles transferidos para o apartamento de outro vizinho, e Main saiu em
busca da polícia. Pouco depois, chegaram dois policiais e, após ligeiro
interrogatório, concordaram em manter o bloco de apartamentos sob vigilância.

Por volta das onze e meia dessa mesma noite, Main ouviu vozes do lado de fora,
no corredor. Pensando que era a polícia que voltava, chegou à porta e viu quatro
homens que se esforçavam por arrombar a entrada do apartamento de Gouzenko.
Deu o sinal de pedido de socorro, que combinara com a polícia, e, quando esta
chegou, encontrou os quatro homens dando uma busca no apartamento.
Interpelados, responderam que eram funcionários da Embaixada soviética e
tinham permissão de um colega, que se encontrava ausente, em Toronto, para
entrar em seu apartamento, a fim de apanhar alguns papéis importantes. Os
policiais mandaram chamar o inspetor.

O inspetor, ao chegar, pediu aos quatro homens que se identificassem, o que eles
fizeram sem protesto. Pedindo-lhes para se conservarem onde estavam, retirou-
se, a fim de fazer algumas investigações. Enquanto estava ausente, os soviéticos
saíram, e a polícia, que vigiava o apartamento, nenhuma tentativa fez para detê-
los.

No dia 8 de setembro, o Departamento para os Negócios Externos do Canadá


recebia uma nota da Embaixada soviética, explicando a visita de funcionários da
representação ao apartamento de Gouzenko, declarando ser o mesmo um ladrão
comum que havia roubado certa quantia em dinheiro da Embaixada e queixando-
se do comportamento da polícia, que se recusara a reconhecer as imunidades
diplomáticas daqueles funcionários. A Embaixada solicitava às autoridades
canadenses que tomassem todas as providências para prender Gouzenko, a fim
de que ele pudesse ser deportado para a Rússia.

Na manhã do dia anterior, entretanto, Gouzenko havia revelado toda a sua


história à Polícia Montada canadense, entregando-lhe a documentação que tinha
em seu poder. Desta vez, a polícia acreditou no que ele dissera, e as autoridades,
profundamente abaladas, viram-se na posse de detalhes do que tem sido descrito
como “a maior e a mais perigosa conspiração de espionagem já conhecida no
Canadá, quer em tempo de paz, quer em tempo de guerra”.

As revelações de Gouzenko puseram à mostra, pela primeira vez, o método e a


técnica da espionagem soviética. Os detalhes foram tornados públicos, através
do Relatório da Comissão Real, que o governo canadense subsequentemente
instituíra para apurar a questão. Outro resultado, igualmente importante, da
atitude de Gouzenko foi o fato de que, praticamente, toda a rede de espionagem
atômica em ação no Canadá ficara comprometida. A batida geral, para prender
os implicados, teve início no dia 15 de fevereiro de 1946, dia este em que o
Comandante Burt, chefe da Divisão Especial da Scotland Yard, fez uma visita a
Nunn May, no Edifício Shell-Mex, em Londres.

Após a detonação da bomba atômica sobre o Japão, os ingleses e os canadenses


começaram a desempenhar papéis menos importantes nos projetos atômicos
conjuntos, e Nunn May fora recambiado para Londres. Zabotin soubera da sua
iminente partida e comunicara o fato ao Centro, o qual, não desejando perder de
vista um homem que havia sido de tão grande utilidade para a organização,
tomou providências para que ele fosse procurado, por um dos seus agentes, em
Londres.

Na sua primeira entrevista com Nunn May, o Comandante Burt simplesmente


lhe perguntara se, em sua opinião, verificara-se qualquer transpiração de
informações atômicas, enquanto estivera no Canadá. Nunn May respondeu que
nunca soubera de tal coisa e negou que alguma vez tivesse sido abordado por
agentes soviéticos. Burt, porém, estava bem informado sobre o caso. Entre os
documentos entregues por Gouzenko á polícia canadense, encontravam-se os
seguintes telegramas, de Zabotin para o Centro:

31/7/45 Para o Diretor


Já estabelecemos as condições para um encontro com Alek (nome falso de Nunn
May) em Londres. Alek irá trabalhar no Kings College, no Strand. Será possível
encontrá-lo ali, através do catálogo de telefones.

Encontro: 7/17/27 na rua em frente ao Museu Britânico. Tempo: onze horas da


noite. Sinais de identificação: um jornal sob o braço esquerdo. Senha:
cumprimentos a Mikel (Maikl). Ele não pode ficar no Canadá. Em princípio de
setembro, deve seguir, de avião, para Londres. Antes da sua partida, irá à Fábrica
de Urânio, no distrito de Petawerwa, onde ficará cerca de duas semanas. Ele
prometeu, se possível, encontrar-se conosco antes da partida. Disse que deve vir,
no próximo ano, para o Canadá. Entregamos a ele 500 dólares.

Para Grant (_Zabotin)

Referência n.° 244

As providências tomadas para o encontro não são satisfatórias. Envio-lhe as que


devem ser tomadas.

1 — Local:

Em frente ao Museu Britânico, em Londres, em Great Russell Street, no lado


oposto da rua, perto da Museum Street, do lado de Tottenham Court Road, repito
Tottenham Court Road. Alek virá de Tottenham Court Road e o contato do lado
oposto — Southampton Row.

2 — Tempo:

Como indicado em seu telegrama, seria mais conveniente realizar o encontro às


20 horas, se for fácil para Alek, pois, às 23 horas é muito escuro. Em relação ao
tempo, entre em entendimento com Alek e me comunique a decisão. No caso de
que o encontro não deva realizar-se em outubro, a hora e o dia serão repetidos
nos meses seguintes.

3 — Sinais de identificação:

Alek levará sob o braço esquerdo um exemplar de The Times e o contato terá,
em sua mão esquerda, a revista Picture Post.

4 — Senha:
O contato dirá: "Qual o caminho mais curto para o Strand?” Alek responderá:
"Bem, venha comigo. Também vou para lá.” Ao iniciar a conversa, Alek dirá:
"Cumprimentos de Mikel.”

Informar sobre a transmissão das condições a Alek.

18/8 Diretor 22/8/45 Grant

Burt não permaneceu muito tempo com Nunn May, mas o conservou sob
vigilância nos cinco dias seguintes, durante os quais o vigiado nada fez que o
pudesse comprometer. Entrementes, mais informações chegaram às mãos do
comandante, vindas do Canadá, e, nessas condições, fez uma segunda visita ao
Edifício Shell-Mex. De maneira perfeitamente brusca, Burt declarou a Nunn
May que tinha motivos para acreditar que ele devia encontrar-se com um contato
russo, perto do Museu Britânico, mas que não comparecera à entrevista. Em face
dessa declaração, e antes mesmo que qualquer gesto pudesse ser feito, no sentido
de prendê-lo, Nunn May disse que desejava confessar tudo.

Seu julgamento se realizou no Tribunal Criminal Central, em Old Bailey,


Londres, no mês de março de 1946. Confessou-se culpado das acusações, que
lhe haviam sido imputadas, de “transmitir informações a pessoas não autorizadas
a recebe-las”, e foi condenado a dez anos de prisão.

Embora a maioria dos agentes que operavam no Canadá tivesse sido recolhida,
nada, porém, nas revelações de Gouzenko nem nas confissões feitas pelos
espiões detidos, dava a entender que o Dr. Klaus Fuchs tivesse qualquer conexão
com a rede. Nessas condições, ele poderia nunca ter sido descoberto, não fosse
um terrível disparate cometido pelo delegado soviético, numa reunião da
Comissão de Energia Atômica das Nações Unidas. Esse delegado revelara, em
discurso, que a Rússia tinha acesso aos segredos que os Estados Unidos
acreditavam estarem absolutamente seguros. A caçada teve logo início.

Estava claro, através da admissão do técnico soviético, que as informações não


haviam sido fornecidas por Nunn May, e, assim sendo, era igualmente claro que
as revelações de Gouzenko não tinham abrangido todos os agentes soviéticos
que trabalhavam sob as ordens de Zabotin. Por um processo de eliminação, o
FBI foi estreitando sua busca a duas ou três possibilidades, uma das quais era
Fuchs.
Fuchs retornara à Inglaterra em meados de 1946 e passara a trabalhar no
Instituto de Energia Atômica, em Harwell, sob a direção do Dr. Cockcroft.
Reabrira seus contatos com a rede soviética na Grã-Bretanha e prosseguira
entregando, aos agentes russos, informações de importância vital. No fim de
1947, entretanto, começou a alimentar dúvidas sobre a política e as intenções da
Rússia e, breve, deixava de comparecer aos encontros com os contatos
soviéticos. Nessa ocasião, porém, as rodas do destino haviam começado a girar
em seu desfavor.

Não foi senão em 1949, entretanto, que o FBI conseguiu colocar os ingleses no
encalço do Dr. Fuchs. Como Nunn May, ele era vigiado, mas nada que fazia
podia comprometê-lo. Quando, porém, as autoridades da Divisão Especial
efetivamente o interrogaram, fez uma confissão completa. Foi condenado a
quatorze anos de prisão.

O terceiro desse perigosíssimo trio de cientistas, Bruno Pontecorvo, continuava,


entretanto, em liberdade e operando. Durante o julgamento de Fuchs, trabalhava
ainda nos Estados Unidos, mas logo depois retornara à Inglaterra. Não tinha
voltado havia muito tempo, quando um seu amigo — que fora comunista — dos
Estados Unidos denunciou às autoridades todas as suas atividades e conexões em
favor da Rússia. O FBI não tomou qualquer providência, a não ser fazer uma
advertência aos ingleses, os quais, por sua vez, sem qualquer razão explicável,
permaneceram inativos.

Dois anos mais tarde, enquanto ainda trabalhando em tarefas secretas em


Harwell e passando informações regularmente para a rede soviética na Grã-
Bretanha, Pontecorvo solicitou licença para levar a família para umas férias no
continente. Tendo viajado de automóvel, através da França para Roma, ali tomou
um avião, de uma empresa aérea civil, seguindo para Helsinque. Na capital
finlandesa, autoridades soviéticas já o aguardavam, e foi levado para a Rússia.

Cabe, sem dúvida, a esses três cientistas, em grande parte, a responsabilidade


pelo progresso realizado pelos soviéticos em Física Nuclear. Muito da atual
tensão internacional deriva da espionagem levada a efeito por Nunn May, Fuchs
e Pontecorvo.

A despeito do fato de que existia estreita colaboração entre as redes que


operavam no Canadá e nos Estados Unidos, Gouzenko, ao fazer suas revelações,
nada dissera sobre a existência da organização que funcionava em território
norte-americano. Deve-se esse fato quase inteiramente à insistência de Yakovlev
— insistência a qualquer custo — sobre a necessidade de uma constante
observância das normas de segurança. Não pode existir, na realidade, melhor
comprovação da minha afirmativa de que “a segurança é o material de vida do
espião” — em razão da qual fui com frequência importunado por antigos colegas
profissionais — do que o que aconteceu no caso da rede de Yakovlev. Não deixa
de ser irônico que, ao se verificar, por parte dele, a primeira quebra na
observância dessas normas de segurança, toda a sua rede se desmantelou, como
um castelo de cartas.

Harry Gold já havia atraído a atenção do FBI, em 1947, e seus policiais tinham
mesmo realizado com ele uma entrevista, em sua residência de Filadélfia. Gold,
porém, conseguira convencê-los de que tudo não passava de equívoco, e os
agentes do FBI acreditaram em suas palavras. Não foi senão depois de Fuchs ter
sido preso e falado que Gold surgiu outra vez em cena, o que não teria sido
possível, sem o fato de Yakovlev, cerca de quatro anos antes, haver
negligenciado importantes normas de segurança.

Alguns dias antes da explosão da primeira bomba atômica em 1945, David


Greenglass, na fábrica de Los Alamos, preparara um relatório altamente
importante, que Yakovlev desejava desesperadamente enviar para Moscou. Um
correio, Ann Sidorovich, fora destacado por ele para ir receber esse documento,
mas, por qualquer razão, essa mulher não pudera realizar a tarefa. Ao invés de
esperar até que ela pudesse fazê-lo, e, aparentemente, não dispondo no momento
de outro intermediário, Yakovlev dera instruções a Gold, que era o emissário
para Fuchs, de se incumbir dessa missão.

Quando Fuchs foi preso, mencionou Gold como sendo o seu intermediário. Em
consequência disso, ele foi detido e, por causa dessa sua única ida a Los Alamos,
fez referência a Greenglass. Este, pressionado pela polícia, também confessou e
mencionou Julius e Ethel Rosenberg. O FBI, então, entrou em atividade. Com
Rosenberg, seus policiais detiveram também a maioria dos membros da rede.
Quando os julgamentos terminaram, os Rosenbergs foram condenados à morte,
sendo executados em 1953; Gold e Sobell tiveram uma sentença de trinta anos
de prisão; Greenglass, de quinze; Abraham Borthman, de sete; e Miriam
Moskowitz, de dois anos de encarceramento.

Em relação aos russos envolvidos no caso, Zabotin permaneceu no Canadá por


algum tempo, após a defecção de Gouzenko. Ignorava quantos documentos
Gouzenko retirara dos arquivos, já que grande número de fichas estava
assinalado no fichário como oficialmente queimadas. As autoridades canadenses,
por seu lado, sentiram-se em dificuldade para agir com presteza. É que, em todos
os documentos apresentados por Gouzenko, os agentes figuravam apenas com
seus nomes falsos. Nessas condições, muitos meses foram necessários para a
respectiva identificação. Somente quando as prisões tiveram início e que o
Centro fechou o quartel-general de Zabotin, integrado por quinze agentes, e os
chamou de volta à Rússia. Zabotin, ao chegar à pátria, foi julgado e condenado a
quatro anos.

Nos Estados Unidos, logo que Gold fora detido, Yakovlev fugira. Mesmo
ausente, figurou no processo, ao lado de Gold, como aconteceu também ao seu
antecessor, Semion Seminov. Tratava-se, entretanto, de mera formalidade.

Embora seja uma opinião pessoal minha, simpática ou contrária aos russos, o
que digo é que ninguém, honestamente, pode deixar de reconhecer que as
realizações da espionagem soviética, no campo atômico, revelaram-se dignas de
admiração.

* Não se pode dizer se se trata de um engano intencional, por parte de Boyer. A


fábrica estava localizada em Chalk River, e não em Grand Mère.
Quinta Parte
AS BASES DO MACARTISMO
1. Espiões em Altas Posições

O jovem senador por Wisconsin Joseph McCarthy era, indubitavelmente, um


homem sórdido. Não deixava de ser igualmente verdadeiro que se tratava de um
quase louco, despido de qualquer escrúpulo. Tinha a obsessão de que um espião
russo se ocultava atrás de cada mesa e de cada armário de todos os
departamentos da administração dos Estados Unidos. E essa preocupação se
fazia evidente para quem quer que o tenha visto ou ouvido, durante o tempo em
que dirigiu sua escandalosa investigação contra os que, em sua opinião,
tramavam contra a segurança norte-americana.

Enquanto não foi desmascarado, nenhum homem ou mulher, colocados em


elevadas ou subalternas posições, estava a salvo das suas perigosas acusações. E
ele as fazia, de forma selvagem, sem qualquer prova, ou simplesmente apoiadas
em falsos testemunhos. Quem o examinasse de uma posição neutra, teria a
impressão de que, enquanto ele vociferava, todas as pessoas — do Presidente ao
mais subalterno dos funcionários públicos dos Estados Unidos — tremiam. E o
mundo indagava por que o grande povo norte-americano o tolerava e aos seus
esbirros.

É possível que a resposta a essa pergunta, pelo menos em parte, possa ser
encontrada na realidade. Com efeito, por estranho que pareça, McCarthy baseou
sua campanha em verdades provadas. Como já vimos atrás, a espionagem
soviética nos Estados Unidos, por volta do término da década dos trinta, havia
atingido não só um extraordinário volume como um amplo campo de atividade.
No terreno da espionagem industrial, da espionagem militar e, por fim, da
espionagem atômica, os êxitos soviéticos inegavelmente foram fabulosos. Deve-
se ressaltar, entretanto, que a maior parte desse sucesso foi devida a certas
atitudes do governo, que podem ser definidas através de apenas um exemplo.
Quando os russos solicitaram, em 1942, que lhes fossem cedidas algumas
toneladas de urânio, tendo sua solicitação rejeitada pelo Departamento de
Guerra, a Comissão Soviética de Compras recorrera ao mercado industrial.
Fizera encomendas de pequenas quantidades e, quando requerera uma licença de
exportação, o diretor do Projeto Distrito de Manhattan — que era violentamente
anti-russo — foi solicitado a dar seu parecer. Esse alto funcionário concedera a
licença e — como explicou perante o Comitê do Congresso que investigava as
atividades antiamericanas, relacionadas com o embarque de material atômico
para a União Soviética, durante a Segunda Guerra Mundial — “seria melhor
apontar com o dedo aquele material do que negar a licença”. Esse diretor
acreditava ingenuamente que, ao conceder a licença, a União Soviética não seria
levada a concluir, erroneamente, que o urânio era de grande importância para os
Estados Unidos. Foi com base em idêntica espécie de lógica, infantil em excesso
para ser crível, que as autoridades dos Estados Unidos acabaram por ser vítimas
do escandaloso roubo de seus segredos industriais e da sua produção bélica, o
que tanto comprometeu a segurança do mundo livre.

Mas vejamos outro exemplo. A escritora norte-americana Elizabeth Bentley, que


era uma agente comunista arrependida, examinando o fato de o Major-General
Donovan, chefe do OSS, haver sugerido que um oficial de ligação russo fosse
mandado para Washington, a fim de estabelecer estreita cooperação entre a
organização que dirigia e a sua equivalente russa, e a que nem mesmo o FBI
fizera qualquer objeção, assinalara em seu livro Out of Bondage: “A opinião em
Washington parece ser a de que, já que o NKVD vinha rondando os Estados
Unidos por anos, seria muito mais simples, para nós, que ele já viesse rotulado.”

Trata-se de uma reação simplesmente extraordinária. Em face do que aconteceu


depois, só os próprios norte-americanos devem, pois, ser responsabilizados. E
essa circunstância não lhes dá o direito de fazer qualquer crítica aos ingleses,
quando um Blake ou um Vassall surge em cena, muito embora eles não
houvessem hesitado em fazê-las.

O que aconteceu nos campos militar e industrial ocorreu também no terreno


político. Neste campo, porém, o êxito pode ser visto com uma clareza incomum
em qualquer esforço de espionagem. esse êxito foi devido, em pequena parte, à
circunstância de que a rede empenhada na espionagem política era muitas vezes
maior do que as redes que agiam nos outros setores. Deve ser ressaltado, por
outro lado, que a extensão da penetração soviética, no terreno político,
apresentava-se muito mais difusa, o que, por seu turno, foi tornado possível em
face da larga esfera de atribuições da administração do país. De qualquer forma,
a situação, como se tornou conhecida, apresentava uma gravidade de sustar a
respiração.

James Bumham, técnico norte-americano em espionagem soviética, em seu livro


The Web of Subversion, cita os seguintes setores da administração norte-
americana, nos quais, durante a guerra, se verificara infiltração:

O pessoal administrativo da Casa Branca; os Departamentos de Estado: Tesouro,


Exército, Marinha, Defesa (sob a atual organização), Justiça, Agricultura,
Trabalho, Comércio; seis comitês do Congresso; o Escritório do Projeto Distrito
de Manhattan (energia atômica); Escritório de Serviços Estratégicos; Junta
Nacional de Relações de Trabalho; Projeto de Pesquisas Nacionais; Escritório de
Mobilização para a Defesa; Junta da Produção para a Guerra; Administração
Econômica Estrangeira; Junta de Controle Norte-Africano; Escritório de
Patentes; Bureau do Censo; Comissão do Serviço Público; Coordenador dos
Negócios Interamericanos; Administração Federal do Auxílio de Emergência;
Instituto Federal de Habitação; Administração de Segurança Federal; Imprensa
Nacional; Biblioteca do Congresso; Junta do Trabalho Marítimo; Arquivo
Nacional; Administração Nacional da Juventude; OMGUS (Governo Militar da
Alemanha no Pós-Guerra); SCAP (Governo Militar no Japão do Pós-Guerra);
Escritório de Coordenação dos Preços; Junta de Aposentadorias das Estradas de
Ferro; Corporação de Reconstrução Financeira; Comissão de Câmbio e de
Seguros; Junta de Seguridade Social; Comissão de Mão-de-Obra para a Guerra;
Administração do Acervo de Guerra dos Estados Unidos; Administração da
Navegação de Guerra; Administração dos Veteranos; Comissão de Tarifas;
Serviço de Informações dos Estados Unidos. Em adição, essa teia foi estendida
sobre importantes organizações internacionais, às quais o governo dos Estados
Unidos pertence ou já pertenceu: Agência de Reabilitação e Auxílio das Nações
Unidas (UNRRA); as próprias Nações Unidas e o Fundo Monetário
Internacional.

O Sr. Burnham organizou essa lista de acordo com vários relatórios das
comissões de inquérito que funcionaram após a guerra, quando a Administração
e o Congresso tornaram-se cientes de que uma grave infiltração soviética se
realizara nas agências governamentais.

Outro grande técnico em negócios soviéticos, David Dallin, em Soviet


Espionage, embora revelando mais cautela do que o Sr. Bumham, cita os nomes
de conhecidos agentes soviéticos que integravam alguns dos departamentos
mencionados pelo Sr. Bumham. À página 441 do seu livro, ele declara:

Durante os anos de guerra, a espionagem soviética dispunha de homens seus nas


seguintes agências: Escritório de Serviços Estratégicos (Duncan Lee, Leonard
Mins, Helen Tenney, J. Julius Joseph); Serviço de Contraespionagem do
Departamento da Guerra (Donald Niven Wheeler); Departamento da Guerra e,
indiretamente, o FBI (William Ludwig Ullmann); Força Aérea (Abraham George
Silverman); Departamento de Estado, com acesso à sala de transmissões do OSS
(Alger Hiss, Maurice Halperin, Robert T. Miller, Donald Hiss); Coordenador dos
Negócios Interamericanos (Joseph Gregg, Bernard Redmont, William Z. Park);
Departamento de Justiça (Norman Burster'); Departamento do Tesouro (Harry
Dexter White, Nathan Gregory Silvermaster, Harold Glasser, Salomon Adler,
William Taylor, Sonia Gold); Administração Econômica Estrangeira (Frank Coe,
Allan Rosenberg, Lauchlin Currie, Philip Keepey, Michael Greenberg, Bela
Gold); Junta de Produção de Guerra (Irving Kaplan, Victor Perlo, John Abt,
Edward Fitzgerald, Harry Magdoff); Departamento de Agricultura (Harold Ware,
John Abt, Nathan Witt, Lee Pressman, Henry H. Collins, Bela Gold); Escritório
de Coordenação de Preços (Charles Kramer, Victor Perlo); UNNRA (Salomon
Leshinsky); Departamento de Comércio (William Remington, Nathan Witt).

Esta lista, entretanto, não está completa. Foi somente por acaso que três das
células de Washington tornaram-se conhecidas depois da guerra. Esse acaso foi
determinado pela deserção de pessoas que haviam servido como elemento de
ligação, entre as células e a Inteligência soviética. Não há dúvida de que, em
adição ao nomes já citados, existiram outros, provavelmente mais numerosos e
não menos importantes. . .

A extensão da infiltração soviética, revelada mesmo por essa pequena lista, torna
evidente que existia muito pouca coisa, ocorrendo em Washington, que não fosse
remetida para Moscou. A maioria das informações poderia ter sido realmente de
valor, mas a maioria delas era Inteligência de pouca valia. Tomemos, por
exemplo, Harry Dexter White, que, como promotor do Plano Morgenthau —
destinado a restringir, depois da guerra, a indústria da Alemanha e a estimular a
sua agricultura, a fim de prevenir a ressurreição do militarismo —, encontrava-se
nos conselhos secretos dos responsáveis pela planificação do pós-guerra e podia
informar os soviéticos de todas as intenções dos aliados com muita antecedência;
ou Maurice Halperin, que fornecia relatórios oficiais emanados do Departamento
de Estado e informações secretas do embaixador norte-americano em Moscou,
comentando os negócios internos da Rússia, dos quais uma parte das atividades
da Inteligência americana, agindo no interior da Rússia, podia ser avaliada; ou,
então, o Major William Ullman, que obteve, através da Inteligência do Exército
dos Estados Unidos, planos de guerra e relatórios do FBI. Esses três somente
podiam — e o fizeram — fornecer informações da mais alta importância.

Dispomos de pouco espaço, neste livro, para fazer um levantamento detalhado


das ramificações da espionagem soviética no terreno político nos Estados
Unidos, àquela época, mas uma impressão das suas consequências poderá ser
obtida da conclusão do caso Whittaker Chambers. Já revelamos, em página
anterior, o início da carreira de Chambers e, quando o deixamos, era ele um
comunista desiludido e um discreto desertor, tentando desviar a atenção da
Divisão do Terror e do Desaparecimento, através do recurso de mergulhar na
clandestinidade. Depois de dez anos de existência clandestina, descobriu, em
1948, que a atitude oficial norte-americana em relação à espionagem soviética
havia mudado e julgou que poderia esperar proteção, se revelasse o que sabia.

Deve ser recordado que, quando Chambers decidiu reduzir sua associação com a
espionagem soviética, em 1938, fora a Washington, numa tentativa para alertar
as autoridades sobre a infiltração que haviam sofrido alguns departamentos do
serviço público, e que, dois anos mais tarde, entrara em contato com o FBI. Em
ambas as ocasiões, reteve partes de sua história, resultando dessa atitude que
seus interlocutores não se mostraram impressionados e nenhuma providência
tomaram. Finalmente, ele se mostrava disposto a contar tudo.

Pouco antes de se tornar inativo, Chambers tinha sido o “contato entre a


poderosa organização da espionagem soviética, em Washington, e o meu
superior, em Nova York”. Embora Chambers não o conhecesse então por esse
nome, seu superior era o “Coronel Boris Bykov, oficial russo da Quarta Seção
(Inteligência Militar) do Exército Vermelho”. Entre os seus contatos norte-
americanos, encontravam-se Harry Dexter White, então assistente do Secretário
do Tesouro; Abraham Silverman, da Junta de Aposentadorias das Estradas de
Ferro; o Dr. Gregory Silvermaster, do Departamento de Agricultura, e Alger
Hiss, do Departamento de Estado. Por volta de 1948, Hiss tinha deixado o
Departamento de Estado, e Harry Dexter White fora nomeado para um elevado
cargo no Fundo Monetário Internacional, para onde levou dois outros
simpatizantes do comunismo, Frank Coe e Harold Glasser. Chambers estava,
então, preparado para fornecer às autoridades tudo o que sabia, particularmente
sobre Hiss, e o conflitante depoimento de Chambers e de Hiss, no interrogatório
do Comitê do Congresso sobre atividades antiamericanas, forneceu ao mundo
um espetáculo dramático.

Os dois homens estavam altamente colocados. Chambers era então um dos


editores do Time e Hiss presidente da Dotação Carnegie para a Paz
Internacional. Existiam, ainda, alguns elementos de ficção de espionagem que
atraíam o interesse popular, tais como o chamado “Documentos-Abóbora”, que
Chambers escondera numa abóbora vazia em sua fazenda. Hiss se defendeu com
vigor, e o que declarou foi levado em tanta consideração que, em agosto de
1948, o Departamento de Justiça se mostrava disposto a processar Chambers por
perjúrio. Entretanto, em dezembro, um grande júri em Nova York fez uma
verdadeira denúncia contra Hiss, e ele se viu levado a julgamento. No fim dessa
escandalosa cause célebre, Hiss foi considerado culpado de perjúrio e condenado
a certo período de prisão.

Como iria tornar-se óbvio, os dirigentes da espionagem soviética sempre


escolheram para seus agentes, no país, principalmente norte-americanos com
filiação comunista ou que revelassem simpatia pelo comunismo. O fato de que
nenhum desses homens houvesse sido suspeitado dessa filiação ou dessa
simpatia constituiu um grande golpe na confiança norte-americana, já que a
extensão das suas atividades representou grave ameaça para a segurança
nacional. Pela primeira vez, ocorreu aos responsáveis pela segurança e pelo
público em geral que o maior perigo da espionagem soviética vinha não dos
agentes profissionais, mas dos comunistas encapuçados, que estavam dispostos a
trair os segredos da sua pátria. E assim agiam não por dinheiro, ou qualquer
recompensa material, mas por crença ideológica.

Essa nova espécie de espião — o espião ideológico —, segundo se acreditava,


era uma moderna manifestação, surgida tão-somente das diabólicas maquinações
do regime comunista russo. Trata-se de opinião largamente sustentada.

Desde que a situação havia sido controlada, tanto pelas autoridades como pelo
público, teve início, então, uma grande campanha no sentido de se pôr ordem na
casa norte-americana. Denúncias seguiram-se a denúncias. Entretanto, uma
sincera, genuína crença intelectual — como os mártires cristãos demonstravam
tão bem — não pode ser extirpada por providências administrativas. As
autoridades podem provar, expurgar e desmascarar, mas, para cada homem ou
mulher que trazem à luz do sol, quem poderia dizer quantos inimigos disfarçados
do Estado permaneciam escondidos atrás do muro de seus pensamentos mais
secretos?

O Senador McCarthy acreditava que ainda existiam muitos riscos. Talvez ainda
existissem, mas, se assim fosse, seus métodos de tentar extirpar o mal — o
método de caçar bruxas — reagiram, no fim, mais em favor do que contra eles.
De qualquer modo, conquanto sua campanha houvesse sido vil, os alicerces em
que ela se apoiava eram sólidos argumentos. Essa campanha teve, entretanto, um
bom resultado: tomou bem claro que pouca coisa pode ser feita para se defender
de um espião ideológico, a não ser o exercício de uma constante, incansável
vigilância. E essa atitude, por seu turno, deverá ser tomada não apenas contra
essa espécie de espião, mas contra os espiões de todos os gêneros. No entanto,
constitui uma característica da nossa época o fato de que esse imperativo de
defesa seja, com a maior frequência, esquecido.


2. O Caso “Amerásia”

Um caso que escandalizou a América e o mundo e revelou um pouco do que


vinha acontecendo durante a guerra ocorreu em 1945. Embora não tendo tido
permissão para agir, o FBI mantivera sob vigilância muitos dos suspeitos de
fazer espionagem em favor da Rússia, e que eram funcionários do governo
norte-americano. Nessas condições, quando um magazine, denominado
Amerásia, publicou, em fevereiro de 1945, o texto, ligeiramente alterado, de um
relatório sobre a política britânica em relação à Tailândia — o qual somente
poderia ter saído dos arquivos do OSS — e o governo inglês reclamou,
providências oficiais tiveram de ser tomadas. Em face da natureza do assunto, o
FBI estava mais bem equipado para tratar desse caso do que a administração
tinha o direito de esperar.

A revista Amerásia fora lançada em 1936, após a divulgação da nova linha


política chinesa, consubstanciada na instituição de uma Frente Única, através da
ação uníssona dos comunistas e do Kuomintang, de Chiang Kai-shek, com o
objetivo de resistir a uma eventual agressão japonesa. O editor do magazine era
Philip J. Jaffe, norte-americano nascido na Rússia e homem de negócios de
grande êxito, sob cuja direção a Amerásia passara a atacar o Japão e a apoiar a
aproximação dos comunistas com o Kuomintang. No Departamento de Estado,
foi a revista examinada com grande atenção, e muitos funcionários de categoria
a elogiaram e recomendaram sua leitura.

Ao lado de Jaffe, como coproprietário da Amerásia, encontrava-se Frederic


Vanderbilt Field e, entre os colaboradores regulares da revista, estava Andrew
Roth, que, contra a opinião dos serviços de segurança, havia sido nomeado para
a Inteligência da Marinha. Nesse posto, ele passara a ter acesso a muitos
documentos secretos. Outros colaboradores do magazine eram: Emmanuel
Larsen, do Escritório dos Negócios do Extremo Oriente, do Departamento de
Estado — que também trabalhara na Inteligência da Marinha — e Mark Gayn,
jornalista freelance, nascido na Manchúria. Larsen, da Inteligência da Marinha e
do Exército, do OSS e do Escritório de Informações da Guerra.
Entre os documentos secretos fornecidos à Amerásia encontrava-se um relatório
sobre disposição das tropas nacionalistas chinesas, com informações secretas
sobre a vida particular de Chiang Kai-shek, sobre o declínio do prestígio desse
chefe militar e sobre a crítica e a oposição feitas à sua liderança, assim como
uma ordem de batalha, revelando a disposição da esquadra japonesa, antes da
batalha de Leyte.

Quando os ingleses apresentaram a queixa contra a divulgação de seu relatório


secreto sobre a Tailândia, o OSS deu início a uma investigação que culminou
com a realização de uma diligência na redação da revista, na noite de 11 de
março. Em quatro gavetas, foram encontrados fotocópias ou originais de 267
documentos do Departamento de Estado, 50 do OSS, 58 do Escritório de
Informação de Guerra, 34 da Inteligência Militar e 19 da Inteligência da
Marinha.

Essa diligência esgotou a área de atribuição do OSS. Nessas condições, seus


agentes transferiram o caso para o FBI. Este último exerceu vigilância sobre
Jaffe e seus funcionários, pelo período de três meses.

Apesar do fato de que todos aqueles documentos haviam sido encontrados onde
não deviam estar, a primeira reação da administração foi a mesma que
manifestara em todas as anteriores oportunidades em que o FBI solicitara
permissão para agir contra os espiões. O promotor do embargo a qualquer ação
do FBI foi o Secretário da Marinha, James Forrestal, embora se encontrassem,
entre os papéis apreendidos, vários documentos pertencentes aos arquivos da
Inteligência Naval. Forrestal chegou ao ponto de apelar para o Departamento de
Justiça, no sentido de dar instruções a J. Edgar Hoover, chefe do FBI, proibindo-
o de tomar qualquer providência. O Departamento de Justiça atendeu à
solicitação de Forrestal, mas somente naquela oportunidade e até que a reunião
das Nações Unidas, em São Francisco, tivesse sido encerrada.

O Presidente Truman, porém, tornara sem efeito essa decisão e, no dia 6 de


junho, o FBI prendeu Jaffe, Roth, John S. Service — técnico em Extremo
Oriente do Departamento de Estado —, Gayn, Larsen e um outro. Na redação da
Amerásia encontraram-se outros 1 700 documentos oficiais, que o OSS não
descobrira. Entretanto, não existia qualquer prova de que aqueles documentos
houvessem sido “entregues a uma potência estrangeira”. Em face disso, Jaffe,
Roth e Larsen só foram acusados do crime de retirada de documentos
confidenciais de uma repartição do governo. Jaffe confessou-se culpado, sendo
multado em 2 500 dólares; Larsen entrou com um nolo contendere e foi multado
em 500 dólares, os quais Jaffe pagou. As acusações contra Roth foram
posteriormente tornadas sem efeito.

O caso, em si, que assumiu um aspecto de cause célèbre, e os comentários da


imprensa e dos principais membros da comunidade tornaram impossível, daí por
diante, que as investigações do FBI fossem sustadas, mesmo que a administração
o desejasse. É que, se assim acontecesse, essa atitude iria contrariar os desejos
do então recém-eleito Presidente Truman.

De qualquer forma, a opinião pública se agitou e passou a exigir, num dramático


crescendo, que todas as providências fossem tomadas para se descobrir
exatamente até que ponto a infiltração soviética havia comprometido a
administração dos Estados Unidos. A intervalos frequentes, no período dos cinco
meses seguintes, mais e mais revelações foram feitas — entre elas, as denúncias
de Chambers e de Elizabeth Bentley — e revelaram um tão largo campo de
infiltração que, em setembro de 1953, o General Bedell Smith, diretor da
Agência Central de Inteligência, viu-se obrigado a declarar: “Creio que os
comunistas são tão hábeis que já se infiltraram praticamente em todas as
agências de segurança do governo.”

Comissões especiais do Congresso trabalharam incessantemente numa tentativa


para descobrir a extensão dessa penetração. Na oportunidade, sob a pressão da
opinião pública, o FBI entrou em ação, com o ímpeto decorrente da repentina
liberação da sua frustração, recalcada pelo período de uns seis anos. E o êxito
que a organização obteve no caso serviu para fazer brilhar de novo a reputação
que originalmente adquirira nos grandes dias das lutas dos G-men contra Al
Capone e seu bando. Naquela ocasião, entretanto, a própria natureza da sua
tarefa estabelecera limites para a esfera de sua ação — mas nenhuma agência,
em idênticas circunstâncias, poderia ter realizado mais do que FBI o fez.
3. Judith Coplon

Poucas semanas após o General Bedell Smith ter feito sua observação, o chefe
da Divisão de Segurança do Departamento de Justiça informou que, naquela
ocasião, 766 casos de espionagem e 261 de sabotagem estavam sendo
investigados. Essas declarações foram seguidas de outras, quase em idênticos
termos, feitas pelo diretor do FBI: “As teias de espionagem inimigas estão
operando agora de maneira muito mais intensa do que em qualquer outro período
da História deste país.”

Em face desse estado de coisas, levou-se uma longa série de casos de


espionagem a julgamento nos tribunais dos Estados Unidos. Entre esses muitos,
um dos mais importantes foi o em que se viu envolvida Judith Coplon. Esse
processo demonstrou claramente que, embora os métodos e a extensão da
espionagem soviética estivessem sendo, quase diariamente, desmascarados, a
Rússia não se sentia embaraçada pelo fato nem via qualquer razão para refrear
sua curiosidade em relação no que se passava no interior dos outros países. Deve
ser recordado que, enquanto os norte-americanos realizavam suas operações de
contraespionagem na Inglaterra, na França, na Escandinávia e em vários países,
outras redes russas estavam sendo descobertas — particularmente no campo da
espionagem atômica —, o que contribuía para tornar descolorida e quase
insignificante a espionagem política levada a efeito nos Estados Unidos. Esses
fatos pareciam não ter igualmente qualquer efeito na linha de ação externa da
União Soviética, exceto o de reafirmar o ponto-de-vista realístico de que todos
espionavam — e, nessas condições, por que deixar de fazê-lo, só por alguns
espiões terem sido apanhados?

De qualquer forma, não se verificou qualquer retraimento por parte do Centro, e


Judith Coplon foi apanhada na nova teia.

Em dezembro de 1949, chegara ao conhecimento do FBI, através de fonte


comprovadamente verdadeira, que a Embaixada Soviética em Washington se
apossara de certo número dos mais secretos documentos, pertencentes ao próprio
FBI e ao Departamento de Justiça. A informação sendo incompleta, a única idéia
que se poderia ter da natureza desses documentos era de que revelavam
particularidades tanto de alguns conhecidos agentes estrangeiros como de
diplomatas e norte-americanos comunistas. A informação dava, também, uma
indicação de que o fornecedor desses documentos poderia ser uma mulher que
trabalhava no Escritório de Registro de Estrangeiros, do Departamento de
Justiça, e que antes havia sido empregada nos escritórios desse mesmo
Departamento em Nova York.

Somente uma mulher, no Escritório de Registro de Estrangeiros, em Washington,


preenchia esses requisitos, e o FBI, portanto, deu início às investigações para
excluir ou provar sua culpabilidade.

Judith Coplon, diplomada em nível universitário, tinha vinte e sete anos. Era
fisicamente atraente e se mostrava competente em seu trabalho, que envolvia
assuntos de segurança, tanto interna como externa. Naquela ocasião, seu nome
fora posto numa lista de servidores recomendados para promoção. A promoção,
de fato, ocorrera, quando ela fora nomeada para um cargo de 1 750 libras anuais,
em maio de 1948, após haver recebido um elogio do procurador-geral por um
brilhante trabalho de análise política.

Judith Coplon descendia de boa família. Seu pai fora um próspero industrial,
com nítidas características de filantropo. A Sra. Coplon era quieta e retraída.

Anteriormente, Judith morara num apartamento da Tunlaw Road, no número 2


634, em Washington, onde seu senhorio e seus vizinhos a descreveram como
uma jovem quieta, intelectual, que nunca levava homens para casa. Mais tarde,
porém, e certamente tendo em vista a conveniência de residir próximo ao local
do trabalho, mudara-se para um apartamento de um quarto, em Jefferson Hall,
em McLean Gardens, onde os vizinhos fizeram as mesmas observações em
relação ao seu comportamento.

Após um mês de apuração de provas e de vigilância, tudo o que o FBI


conseguira descobrir era que Judith se encontrava com muitos homens e fora em
companhia de um deles — um inteligente advogado, empregado no
Departamento de Justiça — que passara o primeiro fim de semana de janeiro de
1949, no Southern Hotel, em Baltimore, onde se registrara como esposa de seu
acompanhante. De qualquer forma, o que os agentes do FBI concluíram, através
dos seus moderníssimos equipamentos, para ouvir e olhar através das paredes, e
que haviam instalado no quarto ao lado, é que o casal só exercera, naquele hotel,
uma demonstração prática de como fazer amor. Entretanto, essa descoberta
revelara aos agentes da polícia uma faceta nova do caráter de Judith Coplon.

Na semana seguinte, Judith Coplon solicitou a seu chefe, William Foley,


permissão para ver os relatórios mais secretos sobre os agentes russos nos
Estados Unidos, já que tinha necessidade deles para realizar seu trabalho na
repartição. Foley, que sabia encontrar-se ela sob vigilância, telefonou
imediatamente para o FBI. Hoover, o chefe do Bureau, fez uma visita a Foley,
levando consigo uma carta forjada, com a marca “secretíssima”, na qual se
declarava que três agentes soviéticos, que trabalhavam no departamento
comercial da Amtorg, eram, na realidade, agentes do FBI, e brevemente seriam
submetidos a um teste de lealdade. Hoover pediu a Foley para entregar a carta a
Judith e solicitar que ela estudasse o caso, esclarecendo que, caso estivesse de
fato vinculada aos russos, logo iria preveni-los.

Na sexta-feira, 14 de janeiro de 1949, Judith solicitou a seu chefe licença para


deixar o trabalho à hora do almoço, de forma que pudesse gozar um fim de
semana maior. A permissão foi concedida. Quando tomou o trem das 13 horas
para Nova York, já estava sendo seguida por quatro agentes do FBI. Chegando à
estação de Pensilvânia, Judith se dirigiu ao toalete de senhoras, onde
permaneceu pelo espaço de quarenta e cinco minutos. Ao sair, passou pelo
guarda-malas da estação, onde deixou sua valise. Entrou numa livraria e, depois,
num drugstore, onde comeu um sanduíche. Depois, seguiu pelo trem subterrâneo
até a Rua 191, em Manhattan.

Estava escuro, quando Judith ali chegou, pois as lâmpadas da rua já se achavam
acesas. Caminhou ao longo da calçada durante uns dez minutos, e então parou e
olhou a vitrina de uma joalheria. Permaneceu olhando aquela vitrina por sete
minutos. Valia-se, claramente, de um velho truque de espionagem: observava o
que se passava na rua, através dos reflexos no vidro. Pouco depois, um homem
baixo, mas forte, bem vestido e moreno, apareceu. Não falou com Judith.
Quando se afastou, porém, ela o seguiu. Entraram juntos num restaurante, onde
ocuparam o mesmo reservado. O que disseram ali não pôde ser ouvido pelos
agentes do FBI que os seguiam, porque, continuamente, punham dinheiro num
caça-níqueis, e o barulho da máquina abafava a conversação. Permaneceram
naquele restaurante pelo período de uma hora. Durante todo o tempo, Judith
falara animadamente, e ainda se mostrava excitada quando saíram. Outra vez,
tomaram o subway. Quando o trem estava para deixar a estação da Rua 125, o
homem se ergueu subitamente, espremeu-se através das portas que se fechavam
e saiu, com apenas um agente do FBI em seu encalço. O sistema de segurança de
que se valeu era, incontestavelmente, digno de elogios. Ignorava estar sendo
seguido, mas, mesmo assim, usara da maior cautela. Tomando uma série de
táxis, de bondes e de ônibus, conseguiu escapar á vigilância do agente.

Os agentes do FBI, diante das aparências, ficaram convencidos de que aquele


homem era de origem eslava, sendo possivelmente, membro do pessoal do
consulado-geral soviético em Nova York. Orientando-se no sentido dessa
suposição, agentes foram colocados em frente ao consulado russo e, às dez
horas, viram o mesmo homem que penetrava no edifício. Uma hora mais tarde,
ele saiu e tomou o trem subterrâneo, dirigindo-se para seu apartamento, no
número 64 da Rua 108, na Zona Oeste. Interrogando o porteiro, os agentes
souberam que se tratava de um engenheiro russo que trabalhava para o
Departamento de Arquitetura das Nações Unidas e conhecido como Valentine
Gubitchev.

O FBI fez uma advertência a Foley, no sentido de que não mais deixasse Judith
Coplon ter acesso aos chamados documentos “secretíssimos”. Em consequência
desse aviso, ela foi transferida para outra repartição. Não se conformara, porém,
com a transferência, alegando que só sairia se lhe dissessem a razão daquela
medida. Responderam-lhe que o novo trabalho, de que fora incumbida, precisava
ser feito, sendo ela a pessoa mais adequada para fazê-lo.

A razão do seu violento protesto tornou-se evidente para o FBI. No novo cargo,
não teria acesso a qualquer documento de valor para os seus parceiros de
espionagem, e, em face disso, o FBI concluiu que se encontrava na pista certa.
Por sua parte, Judith Coplon, quando obrigada a aceitar o inevitável, passara a
revelar persistência em não se desvincular da antiga repartição, o que, se ela de
fato fosse uma boa agente, deveria ter compreendido que iria atrair para si a
atenção de todos. Com efeito, visitava diariamente seu ex-escritório e dava uma
assistência mais do que a necessitada ao seu sucessor. Estava certa de que, assim
agindo, talvez lhe fosse possível inspecionar os arquivos. Com exceção dessa
atitude, comportou-se normalmente, só saindo da sua conduta exemplar para a
realização de alguns encontros amorosos com seu amigo advogado.

No dia 18 de fevereiro, Judith Coplon foi mais uma vez a Nova York. Nessa
ocasião, tomou o trem das quatorze horas. Os agentes que a seguiram levaram
uma mulher policial que a acompanhou até o interior do toalete de senhoras e,
depois, no subway. Judith Coplon, como acontecera das outras vezes, levou seus
acompanhantes através de uma excursão pelas ruas. Da Broadway, entrou numa
rua lateral, onde Gubitchev a esperava. Estiveram juntos somente por alguns
minutos e, embora já fosse noite, os agentes ficaram convencidos de que alguns
papéis haviam sido passados entre eles. Como da vez anterior, Gubitchev
despistou a perseguição.

No dia 3 de março, Judith pediu para trabalhar somente meio dia e seguiu para
Nova York, a fim de passar o fim de semana com seus pais. Na semana seguinte,
solicitou autorização para examinar alguns dos documentos “secretíssimos”.
Foley perguntou-lhe, então, se ainda se lembrava dos três empregados da
Amtorg que eram agentes do FBI. Acrescentou que conseguira obter maiores
informações sobre o caso e, para prová-lo, deu-lhe para ler uma carta, escrita por
J. Edgar Hoover ao assistente do procurador-geral, comunicando que a Amtorg,
não havia muito, fizera indagações sobre certos instrumentos chamados
geofones, que mediam a pressão das explosões, poucos dos quais tinham sido
fabricados em conexão com os primeiros testes atômicos. Hoover solicitava uma
orientação do procurador-geral sobre o que poderia constituir uma violação dos
regulamentos de comércio, por parte da Amtorg. A carta era uma armadilha
imaginada para resolver, de uma vez por todas, se Judith Coplon estava
passando, ou não, informações aos agentes soviéticos.

Pouco depois dessa entrevista com Foley, Judith viajou, mais uma vez, para
Nova York. Ali se repetiu tudo o que acontecera nas viagens anteriores, apenas
com algumas variações sem maior importância. Nessa oportunidade, entretanto,
o FUI dera o bote. Tanto Judith quanto Gubitchev tudo fizeram para escapar,
mas, por fim, foram presos na esquina da Rua 16 com a Terceira Avenida.

No quartel-general do FBI, em Nova York, revistaram-nos. Gubitchev tinha


consigo 125 dólares, e nada que o incriminasse. Judith nada levava consigo, mas
em sua bolsa se encontrou um envelope de propaganda de certa marca de nylon.
Quando esse envelope foi aberto, os agentes descobriram, em seu interior, cópias
e resumos de trinta e quatro documentos "secretíssimos”, inclusive a carta de
Hoover dirigida ao procurador-geral. Essa papelada levava uma nota de
cobertura, explicando que não pudera tirar uma cópia, mas que apenas dera uma
rápida olhadela no relatório do FBI sobre as atividades da espionagem comunista
e soviética nos Estados Unidos.

Judith negou tudo. As provas contra ela, porém, eram suficientemente


incriminatórias. Durante o julgamento, apresentou uma defesa — elaborada, em
certos trechos, por espiões soviéticos capturados —, declarando que estava
apaixonada por Gubitchev, a quem conhecera, por acaso, no Museu de Arte
Moderna, que ele lhe dissera ser casado, e que, por fim, espetava casar-se com
ele, tão logo lhe fosse concedido o divórcio. Negou igualmente, mas de maneira
inteiramente inepta, que alguma vez tivesse sido possuída por seu amigo
advogado.

O júri não acreditou em qualquer das alegações de Judith Coplon. Julgada


culpada, de acordo com a Lei de Traição, de roubar documentos do governo
norte-americano e de conspirar contra a segurança dos Estados Unidos, foi
condenada a quinze anos de prisão. Gubitchev, co-réu no mesmo julgamento,
recebeu sentença idêntica. Ambos, entretanto, deviam beneficiar-se com o
funcionamento da justiça democrática, de uma dramática maneira.

Por volta da mesma época, Robert Vogeler, norte-americano, empregado da


International Telephone and Telegraph Corporation, em Budapeste, fora preso
como espião americano e condenado a quinze anos de prisão, por um tribunal
húngaro. Alguns americanos se achavam igualmente detidos na Rússia, sob as
mesmas acusações. Sem que qualquer negociação se realizasse entre os dois
governos, o Departamento de Estado acreditou ingenuamente que, se os Estados
Unidos se mostrassem clementes em relação a Gubitchev, um comportamento
similar seria seguido pela Rússia e pela Hungria. Nessas condições, o
Departamento solicitou ao tribunal que fizesse uma recomendação, no sentido de
que Gubitchev deixasse os Estados Unidos "antes que lhe fosse exigido que
cumprisse sua pena”. Assim, no dia 20 de março de 1950, esse agente soviético
foi colocado a bordo do transatlântico polonês Batory, juntamente com sua
esposa, que dividia com ele uma cabina de primeira classe, paga pelo governo
norte-americano.

Judith Coplon, que tivera permissão para prestar fiança, quando completadas as
investigações preliminares, apelou da sentença. (Dois meses após a sentença,
casou-se com um dos seus advogados, Albert H. Socolov.) Sua apelação foi
julgada no dia 5 de dezembro de 1950 e, já que sua prisão se efetuara sem
mandado, o tribunal tornou sem efeito a sentença. A acusação, entretanto, ficou
de pé. Embora livre, em obediência a detalhes de formalística processual, sua
culpabilidade perante a lei subsistiu. Judith Coplon vive agora tranquilamente,
transformada em esposa e mãe.

O esforço do Departamento de Estado para salvar Vogeler resultou inútil. Não


foi ele libertado senão em fins de 1951, e os norte-americanos detidos na Rússia
só obtiveram a liberdade algum tempo depois dessa data.

Por esse tempo, o Centro realizara um levantamento geral das suas redes nos
Estados Unidos e afastara os velhos contatos, que ficaram inativos, à espera de
nova oportunidade. As agências de contraespionagem norte-americanas, por seu
lado, passaram a se comportar mais de acordo com o papel que sempre lhes
competiu representar, pois finalmente se convenceram — como, aliás, ninguém
ignora — de que o comunista clandestino continua sendo o maior e o mais
traiçoeiro inimigo.
Sexta Parte
OS PRINCIPAIS DESERTORES
1. Gouzenko, Petrov e Companhia

Um dos grandes riscos por que a espionagem soviética tem passado é o da


deserção de seus agentes. Os dirigentes do Centro estão cientes desse perigo e
vêm procurando defender-se, detendo, como reféns, as famílias dos seus
representantes que atuam no exterior. Sem o perceber, entretanto, esses
dirigentes têm contribuído de maneira decisiva — através dessa aparente falta de
confiança, de suas tentativas de inculcar lealdade no espírito dos recrutas e da
brutalidade com que punem os espiões que fracassam — para provocar
justamente o que mais temem.

Na realidade, devem-se mais aos agentes que desertam do que à habilidade dos
serviços de contraespionagem tanto o desmantelamento de diversas redes de
importância e a captura de muitos grandes espiões quanto uma melhor
compreensão, por parte dos ocidentais, dos métodos e das técnicas de que lança
mão a espionagem russa. Nessas condições é provável que hoje se conheça mais
sobre os detalhes íntimos das atividades do Centro do que sobre as do resto dos
serviços de espionagem do mundo, considerado em conjunto, excetuada a
Agência Central de Inteligência — a CIA —, que é a moderna organização de
espionagem dos Estados Unidos, criada no após-guerra. Deve ser ressaltado,
entretanto, que esse conhecimento da CIA não foi obtido através de desertores.
Resultou tanto da própria estupidez do Centro como, particularmente, da sua
falta de insistência numa observância absoluta das normas de segurança.

Desde os primeiros anos da guerra — a partir do desmantelamento da rede belga


pela Abwehr — temos visto que, quando um agente russo é capturado, logo se
torna loquaz. Esse fato tem sido constatado mesmo entre os veteranos,
experimentados e longamente treinados comunistas, os quais, segundo se
poderia imaginar, deveriam estar preparados para sacrificar suas vidas, em vez
de trair a Causa. Existe — segundo parece — uma falha fundamental no
comunismo. É que, quando um dos seus agentes se encontra em situação de
desespero, a doutrina não é capaz de insuflar-lhe coragem ou, de alguma forma,
socorrê-lo. Essa falha não parece existir na chamada ideologia democrática, e
isso pode ser verificado através de um só exemplo. O SOE contratou e treinou
muitas centenas de agentes, entre os nacionais dos países democráticos ocupados
pelos alemães e, dessas centenas, muitos caíram em mãos dos alemães. Entre
eles, porém, os exemplos de traição, mesmo sob tortura, revelaram-se muito
reduzidos. E os que falaram e colaboraram, segundo se sabe, eram homens e
mulheres com evidentes falhas de caráter e que, em primeiro lugar, nunca
deveriam ter sido selecionados para atuar como agentes.

Sob um regime que impõe uma lealdade da boca para fora, por temor de prisão,
no mínimo, ou de morte, entre as criaturas submetidas a tão atroz tratamento,
dada a própria natureza humana, sempre existe uma preocupação de fuga.
Somente entre os que se encontram na cúpula e que controlam e inventam os
castigos por deslealdade, ou entre os fanáticos, é que se poderá observar um
sentimento que se aproxime da lealdade. E isso porque o regime, sem exceção,
foi a eles imposto, c não livremente aceito e aprovado. Não pode haver qualquer
vínculo entre um regime dessa natureza e o país sobre o qual ele exerce o seu
poder. Da mesma forma, não deve existir fé em instituições das quais se tem
medo. Esses dois aspectos da vinculação do homem à sua pátria é que
constituem a base do seu sentimento de lealdade.

Esse raciocínio é verdadeiro quando se trata de uma doutrina, não a


universalmente aceita como sendo a ideologia de uma nação. Sempre há o risco
de que, mais cedo ou mais tarde, o instinto de sobrevivência dê origem a uma
atitude de conformismo, particularmente quando as pressões exercidas pelo
referido regime estão ausentes. As desilusões têm alcançado a muitos que, com
entusiasmo, abraçaram o comunismo em seus primeiros dias. E essa situação
tem sido devida principalmente ao fato de que a liberdade do indivíduo, no
comunismo, é restringida até ao limite da extinção pela própria segurança. Se, ao
menos, o comunismo pudesse sentir-se bastante forte para dar a qualquer preso
pelo menos a impressão de permitir ao indivíduo emprestar sua lealdade à
Causa, segundo seu próprio desejo, ele não teria de recear tanto as desilusões. O
liberalismo que começou a influenciar o regime na Rússia, durante a era de
Khruschev, pareceu ser um passo na direção certa. As deserções, tanto de
intelectuais e de artistas como de agentes de espionagem, foram desprezíveis em
comparação com as verificadas no período Stálin-Béria.

A deserção de comunistas estrangeiros sempre foi um risco bem maior do que a


deserção de nacionais russos. Em meados da década dos trinta, essa situação
acabou sendo aceita como uma espécie de risco ocupacional. No campo da
espionagem, porém, a cooperação dos membros dos Partidos nacionais era
essencial para o funcionamento do serviço secreto russo, e todas as providências
eram tomadas para contrabalançar o perigo oferecido por esse tipo de agente.
Dessa forma, os russos só o utilizavam de maneira que não pudesse ameaçar a
segurança da rede à qual estivesse adido, embora a velha arma do medo,
incorporada nas atividades da Divisão do Terror e do Desaparecimento, fosse
sempre usada para dissuadir os desertores em potencial.

Sempre existiram desertores desse tipo, mas as Juliet Poyntz, as Elizabeth


Bentley, os Whittaker Chambers, os Alexander Foote e os George e Joanna
Wilmer, embora fornecendo grande volume de informações proveitosas, só
poderiam comprometer sua própria rede. Isso era desagradável, como é natural,
mas não constituía, na realidade, uma tragédia. Quase sempre o Centro se
antecipava, tomando providências em face de tais eventualidades. Assim é que
sempre procurava ter uma ou mais redes operando em linhas paralelas, cada uma
delas ignorando a existência da outra.

Em seu livro Soviet Spy Net, o especialista em espionagem E. H. Cookridge


escreveu:

Não foi senão em janeiro de 1953, quase oito anos após o desmantelamento do
sistema de espionagem no Canadá e nos Estados Unidos, que a polícia de
Montreal por acaso descobriu que, pelo menos, uma rede "paralela” prosseguia
em suas atividades no país, enquanto os agentes, que haviam trabalhado com
Zabotin, estavam sendo julgados. No dia 5 de janeiro de 1953, o grego
Constantin Stathopoulos, de 60 anos, que vivera no Canadá desde 1927, fora
encontrado morto em sua residência em Montreal. Morrera após uma longa
enfermidade, e não havia qualquer desconfiança de jogo sujo. Num bem
disfarçado esconderijo em sua residência, foram encontradas caixas de aço
contendo centenas de papéis, os quais o chefe da Divisão Contra a Subversão, da
polícia canadense, Louis Champagne, descreveu como sendo "a mais importante
coleção de documentos de espionagem descoberta em Montreal”. Entre a
papelada recolhida, estavam livros de notas contendo referência a muitas pessoas
envolvidas na rede de espionagem do Canadá, inclusive Fuchs. De acordo com
essas informações, quando postas lado a lado, tornou-se claro que Stathopoulos
tinha em seu poder parte dos arquivos de uma rede de espionagem perfeitamente
independente da de Zabotin, mas que procurara atingir, pelo menos, alguns alvos
relacionados com a espionagem atômica.
O primeiro desertor de importância foi Igor Gouzenko, o encarregado do serviço
de códigos da embaixada soviética em Ottawa. Já relatamos sua história, na
quarta parte deste livro. Os documentos que levou consigo e as revelações que
subsequentemente fez revelaram não somente a existência da rede de Zabotin,
mas proporcionaram um retrato, quase completo, do modus operandi da
espionagem soviética. Muito daquilo era sabido ou suspeitado — a nota de
surpresa estarrecedora que corre através das setecentas páginas do relatório da
Comissão Real, particularmente a noção de que diplomatas ou quase diplomatas,
gozando de imunidades, pudessem rebaixar sua profissão a ponto de usá-la como
cobertura para espionagem, não devia iludir ninguém —, mas a confirmação da
primeira informação e o que se ficou sabendo em relação ao segundo item
foram, naturalmente, de grande valor.

Em 1954, dois outros desertores de primeira importância juntaram-se a


Gouzenko. Em janeiro, Iúri Rastvorov, oficial de alta patente do NKVD, por essa
época no Japão, pediu asilo às autoridades norte-americanas. Somente uma vaga
referência à sua deserção apareceu na imprensa, e o público em geral mal teve
informação do caso. O que Rastvorov disse à contraespionagem, entretanto,
revelou os planos do Centro para o Japão e para todo o Extremo Oriente.

O ruído que se fez em torno da deserção de Vladimir Petrov, ocorrida três meses
depois, produziu efeito diametralmente oposto. Qualquer intelectual que se
encontrasse de posse de um jornal em alguma parte do mundo ficaria
surpreendido pela história que não somente pareceu representar uma repetição
do escândalo do Canadá, mas pôs em foco, como os casos de Gouzenko, de
Gold-Rosenberg e o julgamento de Klaus Fuchs nunca haviam conseguido, o
papel universal da espionagem soviética. O grande tumulto de publicidade que
acompanhou a deserção de Petrov não foi provocado pelas autoridades
australianas, que provavelmente teriam preferido guardar sigilo sobre o assunto,
mas pelo comportamento, em lugares públicos, de certo número de agentes
soviéticos.

O governo australiano não concedera reconhecimento diplomático à União


Soviética senão em 1942. Desse momento em diante, porém, a espionagem
soviética entrou em plena ação no continente. A rede — organizada e dirigida
por Semion Makarov e seu principal assistente, Feodor Nosav, correspondente
ostensivo da Agência Tass — trabalhou segundo as linhas tradicionais.
Comunistas e simpatizantes comunistas com postos nas agências governamentais
representaram as principais fontes de informação da rede, merecendo referência
especial alguns funcionários que trabalhavam no Ministério dos Negócios
Exteriores, os quais passavam documentos relativos à política exterior da
Austrália e da Inglaterra.

Os anos de guerra assinalaram um período tanto de intensa atividade como de


grande sucesso para a organização. Depois do conflito, porém, quando as
opiniões e as emoções em relação ao Japão e ao fascismo começaram a se
dissipar e, quando o caso da Amerásia, nos Estados Unidos, e o de Nunn May,
na Inglaterra, despertaram a atenção do público para as atividades da
espionagem soviética, o trabalho da rede começou a encontrar sérias
dificuldades. Em face disso, o Centro, por sua vez, passara a expressar sua
profunda insatisfação em relação ao esforço dos seus agentes na Austrália.

Depois da guerra, Makarov fora substituído por Valentin Sadovnikov, que em


1949 cometera o imperdoável pecado, aos olhos do Centro, de passar as noites
em casa de um conhecido australiano. Este, por sua vez, fora substituído por Ivã
Pakhomov, que demonstrara ser preguiçoso e mesmo desinteressado e, nessas
condições, acabara sendo chamado de volta, para ser substituído por Vladimir
Petrov, num espaço de tempo relativamente curto.

Petrov exercia na embaixada em Camberra as funções de terceiro secretário, mas


seu posto real era o de Diretor-Residente. Em sua companhia encontrava-se a
esposa, Evdokia, também funcionária do NKVD, mas passando como
amanuense da embaixada.

Na época em que Petrov chegara, a rede atravessava uma fase de dificuldades e,


embora ele houvesse explicado claramente a situação ao Centro, não tardou que
este começasse a criticá-lo, inclusive pessoalmente. De qualquer maneira,
enviou-lhe outro assistente, F. V. Kislitsyn. A estada de Kislitsyn foi curta,
porque não pudera apresentar melhores resultados que Petrov. Embora o Centro
esperasse mais do seu sucessor, N. G. Kovaliov, essas esperanças não foram
confirmadas e, quando também ele foi chamado de volta, Petrov acabou sendo
responsabilizado por tudo, em face “da ausência de sua orientação positiva”.

A partir dessa época, as críticas do Centro ao trabalho de Petrov começaram a se


avolumar. Provavelmente para tentar comunicar nova vida à rede, ordenara a
Petrov, através de longo despacho, datado de 6 de junho de 1952, entre outras
coisas, que se preparasse para o irrompimento de outra guerra mundial e tomasse
suas providências para fazer frente a esse acontecimento, quando sobreviesse.

O resultado dessas críticas — que deveria ser previsto por qualquer diretor que
soubesse como lidar com agentes — foi implantar em Petrov uma crescente
amargura. Essa amargura, ele a manifestou a um amigo que fizera na Austrália,
um imigrante polonês chamado Mikhail Bialogusky, o qual, segundo acreditava,
era um dos membros do Clube Social Russo mais exaltados em favor da Rússia,
embora, na realidade, não passasse de um elemento da contraespionagem
australiana.

A morte de Stálin, em 1953, proporcionou a queda também do mais odiado e


temido homem da Rússia, Lavrenti Béria, chefe de todas as forças de Segurança
da União Soviética por quinze anos e que exercia os cargos de Comissário do
Povo para a Segurança Interior e do Estado e de Vice-Presidente do Conselho de
Ministros. O mistério que cercou a morte de Béria ainda não foi de todo
esclarecido. Há, entretanto, quem diga que ele organizara uma conspiração para
derrubar os demais líderes do regime e apoderar-se do poder supremo. De
maneira igualmente misteriosa, Vladimir Petrov viu-se implicado nessa
conspiração e, em face das acusações nesse sentido, combinadas com os
relatórios que atacavam sua atuação, elaborados pelo embaixador russo, em
princípios de 1954, acabou sendo chamado de volta para Moscou.

No dia 3 de abril, Petrov desapareceu. Por alguma razão, não levou a esposa.
Após três semanas, como ele não reaparecera, chegara uma ordem para que ela
fosse repatriada. O avião em que viajava aterrissou no aeroporto de Darwin para
se reabastecer, e ela, com sua guarda de três ou quatro agentes, foi levada até o
edifício da estação, a fim de tomar um refresco. Sua marcha fora observada pela
contraespionagem australiana e, de uma forma ou de outra, o marido conseguira
falar-lhe pelo telefone. Em Camberra e na aterrissagem em Darwin, ela se
mostrara perfeitamente dócil. De súbito, porém, mudou. Gritou para as
autoridades do aeroporto que não desejava voltar a Moscou e pediu que lhe
dessem asilo.

Os guarda-costas agarraram-na e tentaram empurrá-la, através da pista, para o


avião. As autoridades australianas, porém, intervieram e, conseguindo libertá-la,
tomaram-na sob sua proteção. Se haviam sido avisadas com antecedência ou
não, nada se pode afirmar. O fato é que se achavam no aeroporto diversos
fotógrafos e câmaras de televisão, e a luta foi filmada. Como resultado disso,
dentro de poucas horas, o mundo inteiro sabia da deserção desse membro
graduado do NKVD.

O Centro aceitou a deserção de Gouzenko mais ou menos como um fato normal.


A segunda deserção, porém, ocorrendo logo depois, e gritada através do mundo
com fotografias não muito edificantes, já lhe pareceu excessivo. As relações
diplomáticas da Rússia com a Austrália foram rompidas, sua embaixada
encerrou a atividade e todo o pessoal se viu chamado de volta a Moscou.

As informações e documentos que Petrov conseguira levar consigo, quando


deixou a embaixada — e que datavam desde 1952 — ampliaram o retrato do que
se sabia do trabalho e da política da espionagem soviética no Ocidente. Esse
caso muito contribuiu para fazer com que a opinião pública mundial pudesse
tomar conhecimento da habilidade com que a espionagem soviética realizava sua
penetração e fez com que as autoridades em toda parte tornassem ainda mais
rigoroso o cumprimento de suas normas de segurança interna. Desgraçadamente
— como as provas dos últimos anos na Grã-Bretanha demonstraram — é sempre
precária a memória tanto dos cidadãos como das autoridades. Nessas condições,
toma-se necessária uma constante reiteração dos perigos que podem resultar, se
essas normas de segurança não forem observadas, embora mesmo essa
providência possua suas desvantagens, pois uma coisa frequentemente repetida
acaba cansando e não sendo ouvida.
2. Khokhlov e Companhia

Entre as deserções de Iúri Rastvorov, no Japão, e a de Vladimir Petrov e sua


esposa, na Austrália, outra importante deserção teve lugar e, através dela, os
arquivos das potências ocidentais foram enriquecidos de informações sobre
métodos de trabalho das agências soviéticas, inteiramente diferentes dos que
haviam sido revelados, tanto por Petrov e Gouzenko como por outros desertores
menores.

Na Alemanha Ocidental existiu, desde a guerra, um grupo denominado


Sociedade da Unidade Nacional (NTS), organizado e dirigido por Georgi
Okolovich, com seu quartel-general instalado em Francforte-sobre-o-Meno. A
NTS tinha por objetivo levar a subversão ao âmago do Exército Vermelho e ao
círculo das autoridades comunistas da Alemanha Oriental e, no ano sobre o qual
estamos escrevendo — isto é, 1954, quando os aliados estavam ainda ocupando
a Áustria —, à zona russa da Áustria e aos países satélites, através de
distribuição secreta de milhões de folhetos.

A NTS vinha obtendo, aparentemente, tão considerável sucesso que as


autoridades russas não podiam deixar de ignorá-la. Julgando que o dirigente
dessa sociedade era a sua maior fonte de informação, decidiram que deveria ser
eliminado. Assim, em outubro de 1953, o Coronel Studnikov, então chefe da
Divisão do Terror e do Desaparecimento, chamara à sua presença um dos seus
operadores — certo Capitão Nicolai Khokhlov — e lhe comunicara que ele e
mais dois outros agentes haviam sido escolhidos para pôr termo às atividades de
Okolovich.

No princípio do mês seguinte, Khokhlov seguiu para a Alemanha Oriental. Ali,


encontrou-se com dois alemães comunistas, que deveriam ser seus assistentes, e,
em companhia deles, tomou um avião, de volta para Moscou. Khokhlov era um
assassino de grande experiência, não sendo aquela, portanto, a primeira tarefa
que realizaria para a Nona Seção. Seus assistentes, entretanto, eram novos no
assunto. Enquanto Khokhlov estudava a planta de Francforte e discutia o plano
que deveria executar, os dois alemães eram submetidos a um treinamento básico,
aprendendo a utilização das armas de fogo, que seriam usadas para o assassinato,
e exercitando-se nas técnicas de combate desarmado, na Escola Especializada de
Kuchino, nas proximidades de Moscou.

Em fins de dezembro, todos os planos estavam elaborados. No dia 29 desse mês,


Khokhlov, Hans Kukowitsch e Kurt Weber voaram de volta para Berlim
Oriental. Haviam recebido instruções no sentido de não entrarem na Alemanha
Ocidental, indo do Leste. Em face disso, foram primeiro a Viena -— onde
Khokhlov se deixou ficar, aguardando a ordem para prosseguir na execução da
tarefa — e Kukowitsch e Weber seguiram para a estação termal de Baden.

Aconteceu, porém, que os ministros do Exterior das quatro grandes potências


haviam combinado realizar uma de suas conferências justamente naqueles dias.
O Kremlin, desejando evitar os embaraços de ser acusado de um assassínio
enquanto se processavam as conversações, chamou Khokhlov de volta a
Moscou, onde ele deveria permanecer até que se encerrasse a reunião.

A conferência terminou no dia 13 de janeiro de 1954. Logo em seguida,


Khokhlov recebeu ordem para retornar a Viena. Deveria permanecer lá à espera
do sinal verde, a ser dado por Moscou. esse, porém, só viria no dia 8 de
fevereiro, quando então o agente russo viajou para se juntar aos seus assistentes
em Baden.'

Seguindo as instruções do Centro, Kukowitsch e Weber viajaram por trem para


Innsbruck e ali cruzaram a fronteira para a Suíça, enquanto Khokhlov voou para
Zurique, onde os três se encontraram, dois ou três dias mais tarde. De Zurique,
Khokhlov enviou os dois alemães para Francforte e juntou-se a eles quase uma
semana depois, a 18 de fevereiro. No dia seguinte, Khokhlov foi sozinho ao
apartamento de Georgi Okolovich e, para surpresa do dirigente da NTS, disse-
lhe que tinha sido incumbido de assassiná-lo, mas decidira não cumprir a missão.
“O senhor poderia ter a bondade de entrar em contato com as forças de
segurança norte-americanas na Alemanha Ocidental” — falou-lhe o agente
soviético — “e dizer-lhes que desejo a proteção delas e, em troca, revelarei o
plano e os métodos de ação da Nona Seção e qualquer coisa mais que possam
julgar de utilidade e da qual eu tenha conhecimento.”

Quando os americanos se livraram da estupefação em que haviam caído,


concederam o asilo solicitado por Khokhlov, mas as armas especiais, que a Nona
Seção mandara fabricar para a execução do assassínio, não se achavam ainda em
poder dos que deviam executar o crime. Nessas condições, e agindo sob
instruções dos norte-americanos, Khokhlov disse aos dois alemães que
seguissem para Augsburg, onde lhes seriam entregues as armas por um agente do
NKVD. Assim fizeram.

Khokhlov, conhecendo muito bem os processos da Nona Seção, estava certo de


que um segundo grupo fora enviado à Alemanha, a fim de vigiá-lo e verificar se
cumpriria a missão de que estava encarregado. Insistiu, portanto, em que as
maiores precauções de segurança fossem observadas por ocasião de seu encontro
com os norte-americanos. Resultou daí que os contatos, entre os dois lados,
assumiram aspectos verdadeiramente rocambolescos, como se tirados das
atividades de James Bond. As conversas de Khokhlov com os norte-americanos
realizaram-se num lavatório na Casa da Ópera de Francforte, e até num camarim
de teatro.

Embora Khokhlov pudesse desertar, Okolovich não poderia considerar-se salvo


daquela trama, enquanto os dois alemães, que haviam deixado as armas no
guarda-malas da principal estação de Francforte, estivessem soltos. Em vez de
prendê-los, Khokhlov foi solicitado a tentar persuadi-los a desertar também.
Encontraram-se, pois, no dia 25 de fevereiro. Nessa entrevista, Khokhlov expôs-
lhes o que fizera e os aconselhou a seguir seu exemplo. Aparentemente, os dois
alemães não alimentavam qualquer entusiasmo pela tarefa de que haviam sido
incumbidos e, assim, logo concordaram com o agente soviético. Nessas
condições, Georgi Okolovich, por algum tempo, estaria salvo.

As informações que Khokhlov pôde fornecer eram valiosas. A parte mais


interessante de todo o incidente, porém, e a que certamente provocou a maior
surpresa, foi a publicação das fotografias, com minuciosa descrição das armas
fornecidas pela Nona Seção. Incluíam uma cigarreira, que disparava balas
dundum envenenadas através da ponta dos cigarros, e um revólver, de quatro
polegadas de comprimento, capaz de ser escondido na palma da mão e que fazia
apenas um ruído de castanhola, quando disparado por um maquinismo operado
por uma bateria.

Desde a morte de Stálin, verificou-se considerável de decréscimo no número de


mortes misteriosas de homens e mulheres outrora comunistas ou simpatizantes
do comunismo. Se isso foi o resultado das revelações de Khokhlov ou o
resultado da orientação mais humana da seguinte liderança soviética, não se
pode dizer. O importante é assinalar que, até agora, os assassinatos de Trotsky;
de Ignace Reiss, antigo Diretor-Residente; de Renata Steiner, comunista suíça;
de Dimitry Navachin, antigo diplomata soviético; o desaparecimento de Juliet
Poyntz, e muitos outros assassinatos e desaparecimentos, somente constituem a
indicação da existência de um esquadrão de vingança, mas, de fato, não o
provam.

A tradição, porém, existe. E, se houve uma necessidade real para criá-la, não
resta dúvida de que pouca hesitação deverá existir para que um dia ela seja
ressuscitada.
Sétima Parte
A EUROPA DE PÓS-GUERRA
1. Desde a Morte de Stálin

A morte de Stálin afetou de diversas maneiras a Rússia Soviética. O processo


denominado desestalinização, que se encontrava em desenvolvimento desde a
campanha desencadeada por Nikita Khruschev em 1956, demonstrou claramente
que os próprios dirigentes soviéticos estavam decididos a extinguir as piores
características daquela era política. Os que têm visitado a Rússia, ultimamente,
constatam a mudança verificada na atmosfera, no comportamento e no próprio
aspecto do cidadão da rua, assim como na abertura de muitas novas fronteiras
culturais e intelectuais. As alterações são tão profundas que um retomo aos dias
do passado toma-se impossível.

A mudança verificada na existência diária do cidadão soviético, que já não


revela medo nem evita qualquer contato com estrangeiros — os quais eram
característicos do período em que Stálin estava no poder —, e o enfraquecimento
do poder da polícia secreta, segundo se acredita, desempenharam a esse respeito,
um papel de relevo. Sob o regime de Stálin, eram as forças de segurança interna
que decidiam sobre o destino dos indivíduos e sobre sua sorte final, e este
tenebroso poder repousava, de fato, apenas nas mãos de um homem.

Lavrenti Béria, como Stálin, era georgiano. E, também como seu mestre e
amigo, possuía toda a brutalidade, a astúcia e a ambição de poder que
caracterizaram o sucessor de Lênin. Filho de um humilde funcionário público,
nascera em Tíflis, em 1898. Havendo feito um curso para ser professor, alistara-
se, mais tarde, no exército czarista. Alegava que, no exército, procurara incitar
seus companheiros de armas, levando-os à sublevação e, por isso, fora julgado
por uma corte marcial e condenado à morte. Conseguira, porém, fugir. De
qualquer forma, não surgiu, até hoje, qualquer prova de que tenham sido
verdadeiras essas alegações.

Depois da Revolução de 1917, Béria se encontrava no Cáucaso e, quando o


Exército Branco assolou o território, fugiu para a Sibéria. Um pouco mais tarde,
já se encontrava de novo no Cáucaso, realizando trabalho de Inteligência. Foi em
consequência desse trabalho que despertou a atenção de Stálin, e, quando
Dzershinsky teve a incumbência de organizar sua Cheka, recebera do Comissário
das Nacionalidades, Josef Stálin, uma carta recomendando-lhe um “brilhante
camarada” que “considero integralmente merecedor de confiança. . . Lavrenti
Pavlovich Béria”.

Logo depois, Béria demonstrava ter vocação tanto para as atividades secretas
como para aprender línguas — dominava perfeitamente o alemão, o francês e o
tcheco —, e essas duas qualificações lhe conquistaram um posto na legação
soviética em Praga. Ali, devia dar informações sobre oficiais do antigo exército
do czar que se encontravam em exílio na Tchecoslováquia.

De 1928 a 1937, Béria trabalhou no exterior, empenhado principalmente em


localizar trotskistas. Durante esse período, insinuou-se de tal maneira na
confiança de Stálin que, após o expurgo de 1938, foi colocado no controle da
Segurança, como Comissário do Povo. Durante os três anos seguintes, usou o
NKVD para aumentar seu poder pessoal. Como Stálin — a quem estava
determinado a seguir na liderança —, não podia tolerar qualquer oposição. Os
que revelaram a audácia de se opor a seus propósitos logo descobriram a
brutalidade de que era capaz. Ao alimentar sua ambição, Béria foi afastando, um
por um, com notáveis exceções, todos os que tentaram erguer-se entre ele e
Stálin. Os demais, conservara-os em suas mãos, através de dossiês detalhados,
que guardava em seus arquivos, e nos quais eram anotadas todas as ações,
públicas ou dissimuladas, que haviam praticado.

Béria foi o responsável pelo regime de terror que, durante muitos anos, imperou
na Rússia — com o qual concordara Stálin —, pois compreendeu que a Polícia
Secreta constituía a mais poderosa arma para a conquista do poder. Insistiu por
isso, em ter seus agentes em todas as unidades das forças armadas. Eram
investigadores que faziam espionagem, apurando a "lealdade” de cada homem,
de general a simples soldado. Quando a guerra russo-germânica se iniciou, as
fronteiras da Rússia com a Alemanha eram, em sua maior extensão, guardadas
por tropas do NKVD. Descobriu-se, então, que seus agentes nas linhas de frente
enviavam as informações diretamente a ele. De posse dessas informações, Béria
transmitia a Stálin, e ao Alto Comando apenas o que julgasse conveniente.
Retinha, assim, muita coisa que teria sido de grande valor para os estrategistas
militares, pelo menos durante os primeiros seis meses do conflito.

Não se deve esquecer, entretanto, que, sob a direção e o impulso de Béria, a


espionagem soviética teve a oportunidade de vibrar seus mais brilhantes golpes,
e foi por ordem direta dele que Rudolf Rössler, Richard Sorge e a Orquestra
Vermelha desenvolveram suas atividades.

Como seria de esperar, procurou colocar homens de sua confiança nos mais
importantes postos da organização — homens que não deixavam de ser
discípulos seus, como Merkulov, chefe de Segurança do Estado durante todo o
período da guerra e ministro da Segurança do Estado e do Controle até 1953;
Dekanosov, chefe do Departamento do Exterior do Primeiro Diretório; Pavel
Mesnik, chefe da Divisão Especial e diretor do Departamento do Terror e do
Desaparecimento (o Esquadrão do Assassinato); Nicoforovich Kruglov, que
salvou as vidas de Roosevelt e de Churchill, ao descobrir um complot para
assassiná-los em Teerã, e sobreviveu a cinco chefes, inclusive ao próprio Béria.

Somente um fato Béria não levou em consideração em sua ascensão para o ápice
do poder: a oposição que lhe faziam os comandantes do Exército. Cometeu
igualmente um grave erro, subestimando a astúcia do seu mais próximo rival —
Malenkov. Muito antes da morte de Stálin, Malenkov, que fora o mais íntimo
amigo do autocrata, chegara a um acordo com o Exército, no sentido de que os
militares o apoiassem, no momento que julgasse oportuno. Quando esse
momento chegou, e o cadáver de Stálin se achava exposto no Hall das Colunas,
o destino de Béria estava selado.

Durante um mês ou dois, nada aconteceu. Subitamente, porém, Malenkov


atacou. Béria se viu preso, sob a acusação de conspirar para derrubar o então
líder soviético, e, julgado secretamente, foi executado. Malenkov teve o cuidado
de nada divulgar até que tudo estivesse consumado. Presos e executados, com
Béria, foram os acima citados, com exceção de Kruglov, e todos aqueles que
haviam sido por ele nomeados. O expurgo foi amplo e de grande profundidade e,
através dele, Malenkov afastou, efetivamente, todos os antigos dirigentes dos
serviços secretos da Rússia, não escapando mesmo os que atuavam nos mais
baixos escalões da hierarquia policial.

O perigo do poder que um homem conseguia adquirir, ao dispor do controle de


todos os serviços de Segurança, não fora esquecido por ocasião da nova
liderança soviética, que se mostrou, desde logo, determinada a que, enquanto ela
tivesse influência, o fato não aconteceria outra vez. Deve ser recordado que, em
princípio de 1941, o Comissariado para a Segurança do Estado e do Interior fora
dividido em dois departamentos separados, embora Béria reservasse para si o
controle supremo. Após a morte de Stálin, esses departamentos se fundiram
outra vez num ministério — o Ministro dos Negócios Internos e Segurança do
Estado. Kruglov era o ministro titular da nova pasta, tendo A. I. Serov como
vice-ministro, embora Béria permanecesse no controle de tudo, como vice-
presidente do Conselho de Ministros. Depois da morte de Béria, o Conselho de
Ministros promoveu uma reorganização desses serviços. Foi instituído um
Comitê de Segurança do Estado, com a tarefa de coordenar as atividades de
segurança interna, sob a presidência de A. I. Serov, e, ao mesmo tempo, fora
abolida a Polícia Secreta, como havia sido concebida por Béria. De acordo com
a nova instituição, dois chefes diretores foram nomeados para os serviços
secretos. Um era responsável pelo Primeiro Diretório; o outro, pelo Segundo
Diretório; e ambos trabalhavam, juntos, sob a direção do Comitê de Segurança
do Estado.

Embora a horrível sombra de Béria e de sua polícia tivessem sido afastados, por
fim, do cenário russo — o que não quer dizer naturalmente, que uma vigilância
estreita ainda não seja mantida em relação a qualquer atitude subversiva —, a
reorganização burocrática desses serviços não se refletiu, de forma sensível, nos
métodos ou nas atividades de espionagem soviética. Na realidade, segundo tudo
indica, os efeitos foram contraproducentes.

Na Suécia e na Grã-Bretanha, por exemplo, fatos recentemente ocorridos têm


revelado que a espionagem soviética continua se apoiando na colaboração de
indivíduos dos próprios países onde ela está em atividade. Alguns deles já foram
chantageados ou se revelaram ideologicamente exploráveis. O que se pode
deduzir é que a ampla rede, anteriormente estendida, não foi ainda recolhida,
mas, pelo contrário, é possível mesmo que uma rede ainda mais larga tenha sido
atirada. O comportamento de muitos agentes, que se deixaram comprometer,
parece indicar, por outro lado, que os métodos de treinamento não mudaram,
embora os agentes natos revelem, com frequência, uma categoria mais elevada,
mesmo se acusam aberrações de caráter ou anomalias psíquicas que
eventualmente os levam ao fracasso.

Existem indícios, igualmente, de que, em casos positivados, uma bem maior


liberdade de ação tem sido concedida aos agentes que agem isoladamente, o que
nunca foi nem ao menos sonhado na era anterior ou durante a hegemonia de
Béria. Por outro lado, é evidente, ainda, que o Centro — como sempre o fez —
continua controlando, com mão firme, as operações de todas as redes no
exterior.
2. A Nova Organização

A reorganização da Europa no pós-guerra determinou profunda alteração nas


técnicas da espionagem soviética. E essa mudança foi importante, sob diversos
pontos-de-vista. O Centro já não precisaria manter redes pelo menos em nove
países, os quais, antes do conflito, eram inimigos em potencial da Rússia. Ao
contrário disso, tornou-se possível a incorporação, aos seus serviços, de agências
organizadas e dirigidas por espiões-chefes de experiência, treinados por ele
próprio, mas pagas por outros governos e integradas por espiões de outros
países. Os segredos do que ocorria em cerca de metade da Europa, por sua vez,
passaram para o seu controle, como rotina de supervisão administrativa, e o que
se verificava na outra metade passara a constituir atribuição das agências das
nações-satélites. Nestas condições, o Centro teve as mãos livres para trabalhar
em áreas de maior importância, como, por exemplo, os Estados Unidos, a Grã-
Bretanha, a França e a Alemanha Ocidental.

A nova organização fez com que agentes, cujos nomes frequentemente


apareceram nos capítulos anteriores, fossem elevados a novas alturas. Esses
agentes constituíam as velhas raposas que sabiam como uma rede de espionagem
deveria ser organizada e estavam em condições de dirigi-la segundo os moldes
do Centro. Eram eles: Wollweber, o grande sabotador dos anos do princípio da
guerra e de antes dela, que se tornara ministro da Segurança do Estado na
Alemanha Oriental; Vaclav Nosek, elevado ao cargo de ministro do Interior em
Praga; e Vulko Chervenkov, que, havendo sido ministro do Interior em Praga,
passara a ocupar a elevada posição de vice-presidente do Conselho de Ministros.

Mas, se as novas providências facilitaram a situação para a espionagem


soviética, aumentaram proporcionalmente as dificuldades da contraespionagem
nos países não-comunistas. Os países-satélites tiveram seus serviços
organizados, e estes passaram a operar nas mesmas linhas das agências russas.
Nos países ocidentais, que reconheceram as novas “democracias populares”,
esses governos logo estabeleceram embaixadas — superpovoadas de
funcionários, cuja missão era a prática de atividades ilícitas —, as quais
incluíam, entre os porteiros, motoristas e diplomatas, membros de alta patente
das suas agências de espionagem.

Não tardou que a presença desses agentes nas embaixadas se tornasse conhecida.
E o fato se deu de maneira muito desagradável. A mesma e numerosa gente que
fugira ante o avanço dos exércitos russos e que, a princípio, fora recolhida aos
campos de pessoas deslocadas, na Alemanha, e então selecionada para viver e
trabalhar numa democracia ocidental, constituiu um dos principais alvos das
agências-satélites. A maioria dos integrantes desse grupo humano deixara
parentes em seus próprios países e, sob a ameaça de prisão desses parentes, eles
se submeteram à chantagem e se transformaram em espiões.

Um dos maiores grupos de refugiados na Grã-Bretanha, por exemplo, era


constituído de poloneses que tinham servido no exército do General Anders e
lutado ombro a ombro com os aliados. Entre eles, encontrava-se certo Stanilaus
Badjer, que se tornara funcionário do sindicato que protegia os interesses dos
trabalhadores poloneses na Inglaterra. Infelizmente, a Sr.a Badjer e seu filho
haviam ficado na Polônia.

Em 1949, Badjer recebeu a visita de duas pessoas que se identificaram como


membros de uma pequena rede polonesa na Grã-Bretanha. Apresentaram ao
refugiado a “sugestão” de que deveria fornecer-lhes os nomes e certa
característica dos demais poloneses que se encontravam no país e ainda
possuíam parentes na Polônia. Se não aceitasse a “sugestão”, a esposa e o filho
seriam enviados para um campo de trabalho forçado, na Rússia. No começo da
guerra, o próprio Badjer passara um ano num desses campos e, sabendo que a
ameaça não era ociosa, concordara em colaborar. Assim, pouco depois, estava
com seu quartel-general instalado em Manchester. Ali, suas atividades, de certa
maneira mal orientadas — já que se tratava de um agente sem qualquer
experiência em operações clandestinas —, provocaram suspeita entre os seus
compatriotas. Resultou dessa situação que a Divisão Especial fosse alertada e,
consequentemente, Badjer foi preso e deportado para a Polônia.

Em princípios de 1950, ocorreram diversos casos que implicavam jovens tchecos


e diplomatas de outros países-satélites. Foram acusados de tentar seduzir
trabalhadores com emprego em fábricas empenhadas em contratos secretos do
governo, de modo a obter que eles revelassem, em troca de dinheiro, as plantas e
demais características do material em construção. Estes se mostraram também
tão ineptos que logo atraíram a atenção. Em alguns casos, os trabalhadores se
recusaram a cooperar e, em outros, denunciaram o fato à polícia. Resultou daí
que uma verdadeira sucessão de embarques ocorresse, todos provocados por
exigências das autoridades britânicas.

Mesmo os russos, que sempre tiveram longa experiência nesse gênero de


atividade, cometeram disparates e acabaram sendo desmascarados. Em maio de
1954, o Major Gudkov e o Major Pupyshev — dois adidos militares assistente à
Embaixada de Londres — tiveram de deixar o país. Sir Anthony Eden
comunicou à representação diplomática russa que eles já não eram considerados
personae gratae pelo governo britânico. Gudkov recebera a incumbência de obter
desenhos de quatro aviões militares e empreendeu sua tarefa da maneira
tradicional. Obtivera o nome de um comunista que trabalhava na fábrica que
construía esses aviões e, como esse elemento de ligação não tinha acesso à
informação secreta que desejava, Gudkov ordenou-lhe descobrir um operário
que tivesse esse acesso e, ao mesmo tempo, se mostrasse dócil em colaborar.

Um empregado nessas condições foi descoberto e Gudkov arranjou um encontro


com ele num bar, não longe da fábrica. Ali, ofereceu-lhe muitas centenas de
libras em troca de uma cópia das plantas dos quatro tipos de avião, e, certo de
que o inglês estava ansioso por aceitar a oferta, providenciara a realização de um
segundo encontro. O operário, entretanto, fora à polícia e, quando o segundo
encontro se realizou, alguns agentes da contraespionagem estavam presentes,
como observadores.

Agindo sob instruções da polícia, o operário protelou os entendimentos pelo


período de seis meses. Durante esse tempo, todos os movimentos de Gudkov
foram vigiados. Quando o serviço de contraespionagem julgou que já havia
recolhido as provas necessárias, agiu com presteza, apanhando o major com uma
planta falsa em seu poder. Gudkov só não foi preso pelo fato de gozar de
imunidades diplomáticas.

Sem que Gudkov o soubesse, seu colega Pupyshev fora incumbido de idêntica
tarefa. A abordagem que realizou foi, entretanto, diferente. Estabeleceu laços de
amizade com um oficial da RAF e tentou persuadi-lo a obter as informações que
o governo russo desejava. O oficial fingiu-se disposto a cooperar, mas deu parte
à polícia, e a contraespionagem agiu, adotando o mesmo processo que tivera
êxito no desmascaramento de Gudkov. Pupyshev foi devolvido à Rússia,
juntamente com seu colega da Embaixada.

Dois anos apenas antes desses pequenos incidentes, o público inglês havia sido
informado das atividades da espionagem soviética na Grã-Bretanha, através da
prisão de um funcionário do Foreign Office, William Marshall. Em 1950,
Marshall fora removido para a Embaixada britânica em Moscou, onde exercia as
funções de encarregado do serviço de cifragem da correspondência. Como
Vassall uma década mais tarde, Marshall não se “ajustou” com o resto do pessoal
da Embaixada. Em sua solidão, procurou travar relações com alguns russos,
embora, na realidade, seja mais verdadeiro dizer que os russos, sabendo de sua
infelicidade, dele se aproximaram.

Em 1952, Marshall voltou à Inglaterra para trabalhar no Foreign Office. Levara


de Moscou uma carta de recomendação para o terceiro secretário da Embaixada
soviética, Pavel Kuznetzov. Kuznetzov procurou proporcionar ao jovem
amanuense um padrão de vida do qual só tinha conhecimento por ouvir falar —
jantares caríssimos e outras coisas mais — e, gradualmente, o persuadira a
entregar-lhe toda informação de importância que lhe chegasse às mãos para ser
cifrada.

Quando Marshall concordou com a proposta, os encontros no West End foram


substituídos por outros em lugares menos frequentados, como Richmond Park e
Kensington Gardens. Embora não por culpa sua — já que tinha certa experiência
de trabalhos secretos daquela natureza —, Marshall, sem se saber como, atraiu a
tenção das autoridades de segurança do Foreign Office. E severa vigilância sobre
ele passou então a ser exercida. Quando a contraespionagem julgou possuir já
suficientes provas do trabalho ilegal que ele vinha realizando, agiu com sucesso.
Kuznetzov e Marshall foram acareados num dos seus encontros num parque. O
diplomata russo invocou imediatamente suas imunidades diplomáticas e, em face
disso, teve permissão para se retirar. Marshall, porém, foi preso. Ao ser
revistado, encontraram, em sua carteira, a cópia de um documento altamente
secreto do Foreign Office. Embora negasse que estivesse fazendo espionagem, o
júri não acreditou em suas palavras, e ele acabou sendo condenado a cinco anos
de prisão.

Por essa ocasião, idênticas manifestações da espionagem soviética ocorriam com


frequência em todos os países da Europa Ocidental, e também nos Estados
Unidos. Em Washington, por exemplo, Christache Zambeti, primeiro-secretário
da embaixada da Romênia, tentou fazer chantagem contra o diretor de uma
empresa de petróleo, V. C. Georgescu, que fora obrigado a deixar seus dois
filhos na Romênia. A proposta que lhe fizeram foi a seguinte: em troca de
informações secretas, relacionadas com a segurança dos Estados Unidos, teria os
vistos necessários para que seus filhos a ele se juntassem. Georgescu procurou
imediatamente o FBI e Zambeti foi solicitado a deixar os Estados Unidos — o
quarto diplomata romeno a ser expulso do território norte-americano no período
de dois anos.

Nenhum país conseguira escapar à ação da espionagem soviética. As agências de


contraespionagem que a combatiam tiveram seus recursos ampliados ao
extremo. Entretanto, a capacidade do Centro, conforme futuros acontecimentos
iriam demonstrar, fora subestimada praticamente em todos os países, inclusive
na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos, na França e na Escandinávia. Os casos de
Blake e Vassall tiveram, ambos, seus correspondentes em alguma nação, embora
idêntico clamor os haja acompanhado.

Não resta dúvida de que o MI 5 foi parcialmente culpado pelo que aconteceu na
Grã-Bretanha. Ao lado do seu fracasso, porém, verificava-se, simultaneamente,
alarmante falta de precaução por parte das agências de segurança de muitos
departamentos governamentais, que guardavam segredos estratégicos. Nem
mesmo a revelação dos lamentáveis lapsos da segurança do Almirantado,
tornados públicos no caso Lonsdale-Houghton- Gee, impediram que Blake e
Vassall operassem, com sucesso, por algum tempo, mesmo depois de aquele trio
ser detido pela contraespionagem. Pode-se admitir que a contraespionagem luta
com muito maiores dificuldades do que o faz a espionagem. Entretanto, uma
hábil organização, cujo objetivo é desmascarar espiões, desde que seja bem
treinada e esteja sempre vigilante, pode sobrepujar, com facilidade, a maioria das
agências de espionagem, uma vez que uma pista inicial tenha sido descoberta. O
mesmo acontece em relação aos casos dos comunistas encapuzados.
Praticamente em todos os casos dessa natureza, verifica-se a existência de uma
indicação qualquer, no início da carreira do suspeito, que o torna passível de ser
considerado um risco de segurança. Essa indicação pode conduzir a provas
concludentes, se ao menos um escrutínio bem orientado for levado a efeito em
cada caso.

De qualquer forma, o volume da espionagem já realizada pelos russos e o


progresso que eles acusaram em habilidade e em recursos técnicos, no período
de pós-guerra, representam uma conquista de proporções gigantescas. Será
conveniente ressaltar, porém, que, provavelmente, em nenhuma parte a
espionagem soviética já se revelou mais intensa do que no interior da Alemanha
Ocidental.

3. Alemanha Ocidental

Quem quer que converse com um russo — seja uma autoridade ou um homem
da rua — sobre a possibilidade do irrompimento de uma terceira guerra mundial,
não pode deixar de se impressionar com a sinceridade com a qual a Alemanha
Ocidental é tida, por ele, como a mais perigosa ameaça à paz mundial. Baseados
na História, os soviéticos estão convencidos de que o militarismo se acha tão
solidamente arraigado no caráter nacional teutônico que as sucessivas alegações
de Bonn, de desinteresse pela guerra, não podem ser sinceras. Julgam-nas
simples cortina de fumaça, tendo por objetivo disfarçar uma futura tentativa de
restauração do prestígio militar do país — tão achincalhado por duas
esmagadoras derrotas no período de vinte e cinco anos —, a ser levada a efeito
no momento oportuno. Trata-se de um ponto-de-vista esposado por largos
setores da opinião pública no Ocidente. Embora todos os governos,
indubitavelmente, mantenham estrita vigilância sobre qualquer manifestação
dessa ambição germânica de reconstituir seu poderio militar — com a intenção
de suprimi-la tão logo ela se concretize —, os russos, entretanto, não se mostram
dispostos a cruzar os braços e a aguardar até que os acontecimentos ocorram, no
que diz respeito a problemas dessa natureza, no campo internacional.

Desde os primeiros anos do pós-guerra, a União Soviética concentrou na


Alemanha Ocidental um esforço de espionagem que ultrapassa, de muito, suas
iniciativas em qualquer outra parte do mundo, incluindo mesmo os Estados
Unidos. O principal objetivo dessa iniciativa tem sido o de descobrir todos os
segredos que o governo federal da Alemanha possa ter em gestação.

Essa tarefa, entretanto, não justificaria ou requereria uma tão grande atividade
como a que está sendo levada a efeito a oeste da curva Travemünde-Hof.
Existem, porém, outras razões para essa preocupação, e que mergulham suas
raízes no próprio oportunismo russo. Em primeiro lugar, as forças que os norte-
americanos e os britânicos conservam na República Federal constituem fato que
um antagonista em potencial não pode deixar de levar em consideração. Essas
forças dispõem das mais modernas armas e dos mais aperfeiçoados
equipamentos — aviões, artilharia e centenas de outros instrumentos de luta. Por
outro lado, importantes segredos políticos ali estão guardados em arquivos e
grandes manobras são levadas a efeito nas florestas e nas montanhas. Tudo isso
está ao alcance de qualquer agente, ali colocado, sem maiores dificuldades.

Há a considerar, então, que metade da Alemanha já se encontra em campo


soviético. A força que resultaria para o mundo comunista, em favor dos seus
planos de levar a efeito a sonhada dominação mundial, se a outra metade da
Alemanha caísse na mesma armadilha, constitui, pois, um precioso incentivo
para que os soviéticos procurem, desde já, preparar o terreno, através da
subversão. Entretanto, os alvos visados têm sido, em sua maioria, de ordem
política e militar.

Na Alemanha Ocidental, podemos ver a combinação das agências soviéticas e as


das nações-satélites trabalhando em sua mais concentrada forma. Existem quatro
delas em funcionamento: uma agência soviética, dirigida e controlada pelo
Centro, instalada na Alemanha Oriental; uma agência alemã-oriental; uma
agência tcheca, e, finalmente, uma agência polonesa. O trabalho dessas quatro
organizações é coordenado, com as tarefas distribuídas pelo Centro, de forma a
evitar qualquer sobreposição de atividades. Os resultados são remetidos
diretamente para o Centro e, somente se os russos o desejarem, alguns dos
segredos, recolhidos pelas agências “estrangeiras”, chegam ao conhecimento dos
seus respectivos governos.

As quatro organizações trabalham segundo uma norma só. Oficiais de


recrutamento treinados e experimentados procuram operadores entre as pessoas
deslocadas que ainda possuem parentes atrás da Cortina de Ferro. A principal
fonte fornecedora desses agentes são os alemães, cujos padrões morais nunca
retornaram à normalidade, após a desmoralização geral de caráter ocorrida nos
últimos anos da guerra. Muitos são recrutados, igualmente, entre os jovens
alemães que, como todos os moços de qualquer nacionalidade, desejam
participar de uma “aventura”. No caso dos agentes alemães, a principal isca é o
dinheiro, e seus pagadores — agora que se mostram mais psicólogos do que o
eram antes — não são mesquinhos. Como muitos soldados rasos estão em
contato diário com armas de todos os tipos e das mais modernas e se encontram,
portanto, em posição de fornecer informações ou mesmo de levar exemplares
dessas armas, essas quatro agências empregam um bom número de mulheres no
trabalho de aliciamento entre eles. Na realidade, nenhuma outra agência, em toda
a história da espionagem, já usou tantas mulheres como as que as redes hoje
utilizam na Alemanha Ocidental. Com frequência, essas mulheres são
prostitutas, e, normalmente, são postas a operar junto aos negros norte-
americanos alistados. Todas se acham preparadas para oferecer tanto seus corpos
quanto um substancial pagamento em dinheiro, como chamariz.

Nos últimos anos, os alemães não têm divulgado as cifras dos comunistas presos
e condenados como espiões. Entretanto, através de estatísticas antigas, pode-se
ter uma idéia do volume da atividade desenvolvida, pelas agências soviéticas e
suas aliadas, na Alemanha Ocidental. Entre 1949 e 1955, não menos de oitenta e
seis causas de espionagem foram levadas aos tribunais, e o número dos acusados
se elevou a 174. Desde que os espiões presos só representam uma pequena
fração do total que se encontra em atividade, pode-se presumir que o número de
agentes comunistas no país deve orçar por muitas centenas.

Tanto os tribunais aliados quanto os alemães — os últimos vêm julgando


processos de espionagem desde 1951 — não tratam os espiões com
complacência, embora suas sentenças não sejam tão drásticas como as proferidas
pelos comunistas em casos idênticos. A média das condenações é de cerca de
seis anos de prisão. Em muitos casos, porém, o máximo de quinze anos tem sido
imposto. E não existe qualquer indicação de que o reservatório de espiões em
potencial esteja secando.

Na realidade, foi o grande número de homens e mulheres — ambos dispostos a


“cooperar”, pela pródiga recompensa oferecida — que proporcionou às redes a
extraordinária amplitude com que seus serviços hoje operam. Essa circunstância
teve influências sérias na organização desses serviços, especialmente no campo
do treinamento. Um treinamento muito reduzido passou a ser dado ao espião
selecionado, e o que lhe é ensinado é rudimentar e feito às pressas. O chefes dos
espiões, entretanto, não se preocupam com essa deficiência. Sabem que se, por
um lado, essa falta de treinamento conduz a um grande número de prisões,
sempre existe, por outro, a compensação de que, para cada agente apanhado,
uma meia dúzia de candidatos se apresenta para substituí-lo. Essas
considerações, igualmente, têm reflexo sobre a qualidade do agente potencial
selecionado, o qual, considerado de forma global, é excepcionalmente pobre —
fato este que contribui para o aumento do número de prisões.

Esses pontos podem ser graficamente ressaltados através da reconstituição de um


ou de dois casos, que são típicos. Em 1950, os ingleses detiveram certo Wilhelm
Klein, surpreendido espionando seu aeroporto de Gatow, nas proximidades de
Berlim. Como provavelmente acontece com qualquer outro agente preso na
Alemanha Ocidental, Klein confessou-se culpado das acusações que lhe eram
feitas e se mostrou disposto a falar. As autoridades inglesas ficaram muito
surpreendidas ao saber que Klein — moço de trinta e dois anos — possuía uma
ficha criminal e cumprira diversas sentenças por roubo e mercado negro. Era, na
verdade, um homem que qualquer agência de espionagem que se respeite teria
recusado, a não ser para tarefas muito especiais.

Klein revelou aos ingleses que recebia ordens de um oficial russo — certo
Capitão Grabowski — que controlava uma das redes soviéticas. Durante seu
período de atividade, obtivera informações sobre o exército britânico do Reno,
sobre alguns objetivos militares, como pontes, acampamentos e outras
instalações, e tirara numerosas fotografias, as quais tinham sido entregues ao
Partido de Unidade Socialista, ao Partido Comunista — que funcionavam na
região que mais tarde seria o Setor Soviético —, a fim de serem remetidas a
Grabowski.

Três anos mais tarde, descobriu-se uma célula, em pleno funcionamento, quando
um ferreiro local informou às autoridades britânicas que certo Werner Berg
tentara persuadi-lo a obter informações secretas, prometendo-lhe, em
recompensa, pagar-lhe setecentos marcos por mês. Berg passou a ser vigiado, e
sua atividade levou as forças de segurança a outros membros da célula — três
homens e duas mulheres, todos alemães — dirigidos por Robert Koch, viajante
comercial que cruzava frequentemente a fronteira “em sua jornada de negócios”,
passando para o Setor Russo.

Essa célula situava-se em Lüneburg Heath e em Brunswick, sendo que esta


última localidade representava o mais importante de todos os locais do BAOR
no Setor Britânico. Ali eram realizados testes com tanques e outros trabalhos de
experimentação, principalmente de artilharia; enquanto todas as atividades no
Heath eram controladas de Brunswick.

As duas mulheres se encontravam entre os mais importantes membros da célula.


Edith Seefeld, noiva de um oficial britânico, estava, por causa dessa
circunstância, em situação de fornecer detalhes da programação dos testes,
enquanto Erika Krüger, uma das telefonistas da mesa de troncos do grande
campo de Münster, tinha acesso a relatórios e a fotografias. Edith Seefeld
confessou e, de acordo com suas revelações, as acusações contra ela foram
retiradas. Berg, porém, foi condenado a cinco anos de prisão. Os outros
membros da célula — com exceção de Koch, que era o seu diretor e conseguira
escapar — sofreram penas de quatro anos de prisão.

Uma terceira célula, entretanto, fora descoberta, operando em Kiel. Os dois


agentes, envolvidos neste caso, eram também alemães: Harald Freidank, que
desempenhava as funções de encarregado do serviço de imprensa patrocinado
pelos ingleses; e Hans Frahm, cronista esportivo e comunista, que já vinha
trabalhando para a rede soviética, quando conheceu Freidank. Frahm recrutou
Freidank, pois o julgara tão útil que, quando os ingleses o dispensaram do seu
serviço, em 1952, tendo medo de perdê-lo, prometeu-lhe outro emprego numa
agência de notícias da Alemanha Oriental, com escritório no Setor Britânico. No
curso dos entendimentos para a obtenção desse emprego, Frahm levou Freidank
para Berlim e ali o apresentou a um agente soviético, que o persuadiu a ingressar
na espionagem. Quando Freidank concordou, foi-lhe dada uma tarefa em
Hamburgo, onde suas perguntas, demasiadamente inquisitivas, sobre as
atividades de alguns oficiais ingleses atraíram a atenção das autoridades de
segurança. Frahm suicidou-se, enquanto aguardava o julgamento, e Freidank
recebeu sentença leve, de apenas um ano de prisão.

A agência soviética sempre tivera tanto a contraespionagem como a espionagem


britânica em elevado conceito e, em suas atividades no Setor Britânico, ela
sempre se utilizou de agentes de categoria muito mais elevada — com exceção
de Klein e de um ou dois outros — do que os que infiltrava nos Setores Francês
e Norte-Americano. Igualmente, a agência soviética parecia ter uma alta opinião
da lealdade do pessoal do Exército britânico, tanto comissionado quanto não-
comissionado, pois, enquanto fizera uma ou duas fracas tentativas de aliciar
soldados ingleses, esse seu esforço poderá ser considerado desprezível, se
comparado com o que levou a efeito, também com objetivo de subversão, entre
os NCO e os GI dos Estados Unidos.

As agências dos países-satélites — as polonesas e as tchecas — parecem ter sido


as destacadas para agir nesse tipo de operação. Houve, por exemplo, o caso da
ampla rede tcheca em Francforte-sobre-o-Meno.

Embora tendo por sede a Tchecoslováquia, essa rede era controlada por um
oficial tcheco, que vivia sob o falso nome de Capitão Burda. Em 1950, Burda
travou relações com Hans Pape, rapaz bem-educado e inteligente, filho de um
alemão muito rico. Pape, entretanto, acusava evidentes sintomas de
anormalidade psíquica. Instável de caráter, vivia trocando de empregos antes da
guerra e, durante o conflito, imaginara passar a maior parte do seu tempo em
hospitais, bem distante das linhas de frente.

Encontrava-se ele num hospital do Leste, quando a ofensiva russa passou por ali,
não lhe dando tempo para fugir, e, nessas condições, fora preso. Solto em 1947,
retornou para a Alemanha Ocidental e ali obteve um emprego na base aérea
norte-americana de Rhine-Main. Em 1950, recebeu uma intimação para ir ao
Setor Soviético e, em Weimar, avistou-se com um oficial russo, este o
incumbindo da tarefa de obter informações sobre os alemães que trabalhavam
para os norte-americanos na contraespionagem e na polícia militar. Nessa
viagem, Pape conheceu logo Burda, que tinha igualmente uma proposta para lhe
fazer.

Em qualquer fase, Pape jamais conseguira ganhar o suficiente para fazer frente
ao seu sistema de vida. A proposta de Burda, entretanto, rasgara-lhe novos
horizontes: os tchecos estavam dispostos a pagar-lhe oitenta libras mensais por
seu serviço. Em complemento à sua missão soviética, os tchecos pediram-lhe
que lhes fornecesse relatórios sobre os norte-americanos e logo lhe deram os
nomes e os endereços de alguns alemães que poderiam ajudá-lo. Recebeu
também instruções sobre o método que deveria adotar em seu trabalho.

Retornando a Francforte, Pape abriu um estúdio, no qual moças que desejavam


ser estrelas de cinema podiam fazer testes de filmagem, a cinco marcos por vez.
O custo ridiculamente baixo desses testes — equivalente a cerca de dez xelins —
devia ter constituído uma advertência a qualquer interessado de que aquele
estúdio não iria longe. De fato, os clientes de boa-fé eram poucos. Entretanto,
Pape não se preocupava com isso. Seu interesse estava em que aquele local
constituía excelente fachada para todas as mulheres que poderiam ser vistas,
diariamente, entrando e saindo dele.

Entre essas mulheres encontravam-se algumas prostitutas, que Pape contratara


para obter informações dos soldados negros. A mais destacada agente desse tipo
era uma antiga amante sua, Elisabeth Dörhöfer. Tratava-se de uma jovem muito
atraente, empregada na Pan-American Airways, em Francforte. Pape não a
seduzira para entrar na organização, valendo-se do recurso de renovar sua antiga
amizade. Ao contrário, apresentou-a a Burda, quando este esteve em visita a
Francforte. Ela se tornou logo amante do agente tcheco e, em seguida, passou a
ser sua espiã.

A tarefa que competia a Elisabeth Dörhöfer era a de obter informações dos


oficiais norte-americanos. Ela dedicou-se, de corpo e alma, à tarefa que lhe fora
confiada. Fotografou-se completamente nua, e utilizava essas fotografias como
meio de se aproximar dos oficiais, escolhidos por Burda como prováveis fontes
de informação. Obteve grande êxito nessa atividade. Mas um incidente ocorreu,
e sua carreira, iniciada tão brilhantemente, foi subitamente cortada. Um dos seus
clientes regulares — um jovem segundo-tenente — tornara-se desconfiado, em
face das muitas perguntas que ela lhe fazia, e levou o fato ao conhecimento do
serviço de segurança. Quando isso aconteceu, não se tratava da primeira
denúncia que o corpo de contraespionagem havia recebido contra Elisabeth.
Outros oficiais depuseram que ela lhes oferecera dinheiro, em certos casos até
800 libras, por informação transmitida. E não apenas isso. Pape denunciara sua
própria rede à CIC, com a oferta de agir como agente duplo, e, em seu
depoimento, citara a antiga amante. A oferta fora rejeitada e a denúncia não
chegara a ser levada a sério. Pape fizera idênticas ofertas aos franceses e aos
ingleses, os quais, de forma surpreendente, reagiram do mesmo modo que os
norte-americanos. Somente depois que se avolumaram as denúncias, feitas pelos
oficiais, é que a CIC decidiu ficar de sobreaviso.

Os agentes da CIC receberam instruções para vigiar Elisabeth. Pouco depois,


descobriram que ela fazia frequentes visitas à Tchecoslováquia e, em
consequência disso, os norte-americanos admitiram que provavelmente estivesse
envolvida em assuntos de espionagem. De qualquer maneira, na primeira vez em
que tentou cruzar a fronteira, entre o Setor Norte-Americano e a República da
Tchecoslováquia, foi presa. Em sua bolsa, a CIC encontrou cópia de um mapa
secreto, uma circular do Exército, fotografias de granadas de morteiros e vários
outros documentos interessantes e confidenciais. Elisabeth, uma vez
desmascarada, mostrou-se disposta a cooperar. Citou seus dois contatos alemães,
Karl Lippert e Hilde Klimberg. Julgada, foi condenada a sete anos de prisão;
Lippert, a três; Klimberg, a dois anos. Pape, por alguma razão mais bem
conhecida pelas autoridades americanas, foi absolvido.

Outra mulher-agente, que trabalhava com idêntica tática: Margarete Pfeiffer,


também colaboradora de Burda. Era alta, bonita de corpo, loura e linda.
Habitualmente, ganha a vida servindo de modelo. Recebendo a tarefa de obter
particularidades de um canhão dotado de um aparelho de pontaria, baseado em
raios infravermelhos, concentrou seu trabalho no seio das tripulações de tanques,
às quais oferecia grandes somas de dinheiro e, como um bônus especial, também
sua técnica em se movimentar numa cama.
Enquanto ameaçou fazer desaparecer as vítimas, se falassem, obteve grande
sucesso em suas atividades. Um dia, porém, conheceu um soldado, chamado
Eicher, que não se deixou impressionar por suas ameaças e a denunciou à CIC. A
CIC usou Eicher como armadilha para pegá-la e, assim, foi detida. Margarete
negou-se a confessar. Respondeu a processo sozinha, recebendo a sentença,
relativamente leve, de quatro anos de prisão.

Em 1948, Karl Kunze e sua amante Luise Frankenberg foram instruídos, por
uma agência polonesa, a organizar uma rede em Berlim Ocidental. Abriram uma
galeria de arte, como disfarce, e, enquanto Kunze agia recrutando membros entre
os alemães contrários aos aliados, Frankenberg procurava mulheres que
pudessem ser de alguma utilidade. O mais notável sucesso que essa agente
obteve foi o recrutamento de Maria Knuth, mulher de quarenta e dois anos, sem
filhos, inteligente e separada do marido, o conhecido aviador Manfred Knuth.

Concluído o recrutamento, Kunze e Frankenberg receberam ordem de mudar


para Francforte, de onde, segundo decidira o quartel-general polonês, a rede
deveria operar. Maria Knuth fora deixada em Berlim para agir como “caixa-
postal” da organização.

Entretanto, Kunze, não se mostrando muito satisfeito com a composição da rede,


procurou melhorá-la. Aceitou a colaboração de duas outras pessoas, Flermann
Westbeld e Marianne Opelt, ambos empregados na polícia de Francforte. Feito
isto, a organização entrou em atividade.

A rede mal começara a operar, quando Kunze se suicidou. Fora provido de


dinheiro pelos poloneses e tratara seus agentes com a maior liberalidade. Não
obstante isso, desviara grandes somas para o custeio das próprias despesas e das
suas numerosas amantes. Os poloneses descobriram o desfalque e, quando se
preparavam para exigir um ajuste de contas, escolhera o suicídio, saída honrosa
para um oficial prussiano, que, de fato, havia sido.

Maria Knuth fora levada para Berlim, a fim de assumir a direção da rede. Frau
Knuth revelou-se ótima agente, e a rede, sob sua liderança, tornara-se
rapidamente uma das de maior êxito entre as que operavam na Alemanha
Ocidental.

Quando as potências ocidentais tomaram a decisão de incluir a Alemanha na


OTAN, em 1950, essa iniciativa foi interpretada pela Rússia como sendo um
plano para o rearmamento alemão — justamente o que os russos mais temiam. A
decisão exigia uma ação imediata. A agência polonesa recebeu instruções para
incumbir Frau Knuth de fazer com que sua rede se infiltrasse na agência
instituída pelos aliados, e conhecida como Amt Blank. Frau Knuth encarregou-
se, ela própria, da primeira tentativa. Candidatando-se a um cargo de secretária
na Amt foi rejeitada, por sua taquigrafia não ser bastante fluente. Na realidade, a
tarefa, sob todos os aspectos, revelara-se difícil. A abertura de uma fenda no
sistema de segurança da Amt Blank não foi conseguida senão em 1952, quando
um dos agentes de Frau Knuth, chamado Hauer, apresentou-a a um indivíduo, de
nome Petersen, que alegava ser empregado na organização dos aliados. Como
lhe fora solicitado fazer, Frau Knuth, antes de tentar recrutar Petersen, levou o
fato ao conhecimento do seu quartel-general. Foi advertida de que Petersen
poderia ser um impostor, mas, mesmo assim, teve permissão para prosseguir na
tarefa, usando, entretanto, de extrema precaução. Dentro de pouco tempo,
relações íntimas estabeleceram-se entre os dois.

E essa aproximação foi-lhe fatal. Petersen era, na realidade, um agente da


Alemanha Ocidental. Durante algum tempo, fornecera à rede excelente material
falso, procurando saber tudo o que lhe convinha sobre a organização. Em abril
de 1953, as autoridades da Alemanha Ocidental julgaram ter já todas as
informações desejadas, e a rede inteira foi presa. Frau Knuth, por essa época,
sofria de um câncer em avançado estágio. Enquanto aguardava o julgamento,
submetera-se a duas operações, embora não ignorando que, dentro em breve,
morreria. Nessas condições, não fez qualquer tentativa para se defender.
Somente explicou que desejava impedir o rearmamento da Alemanha.

A respeito da agência da Alemanha Oriental — controlada pelo experimentado


Ernst Wollweber, como ministro da Segurança do Estado —, suas atividades se
desenvolveram mais no setor da sabotagem do que no da espionagem. Os
técnicos sempre julgaram que as misteriosas explosões e incêndios, ocorridos em
vasos de guerra e em transatlânticos de passageiros — como, por exemplo, no
Queen Elizabeth, no Queen Mary e no Empress of Canada, em 1953, e a
explosão no porta-aviões Indomitable —, foram trabalho desse sabotador-
mestre, ajudado por unidades móveis, especialmente treinadas, que receberam
suas instruções na Escola Naval de Wustrow. Suas operações terrestres, porém,
consistiam principalmente em contrabandear material estratégico pertencente às
forças armadas do Ocidente.

A agência da Alemanha Oriental realizou, também, algumas poucas tarefas de


espionagem, e todas elas de natureza extremamente grave. Numa delas, viu-se
envolvido um oficial da polícia de Berlim Ocidental. esse militar forneceu aos
comunistas os planos elaborados pelo Ocidente para impedir os numerosos
raptos de alemães e um relatório sobre a organização das forças policiais da
Alemanha Ocidental. Outra dessas tarefas estava relacionada com um alto
funcionário da administração da polícia de Berlim, um comunista chamado
Bruno Wricke, que não fizera qualquer tentativa para esconder sua fidelidade
partidária e, não obstante, fora nomeado. Wricke trabalhou, durante seis anos,
fornecendo importantes documentos à agência da Alemanha Oriental, inclusive
listas das pessoas presas, cópias de interrogatórios, e assim por diante. Existiu
também, por fim, o caso de Margarete Schmidt, a quem o New York Herald
Tribune descreveu nos seguintes termos:

Margarete Schmidt, que era uma bonita jovem, estabeleceu seu primeiro contato
importante com o pessoal da Força Aérea em Berlim Ocidental, através das
relações íntimas que mantinha com um oficial graduado da Inteligência. Esse
affair teve início no verão de 1953 e parece haver-se prolongado pela maior parte
do ano. Julga-se que ela manteve outro "caso” simultânea ou subsequentemente
com uma autoridade civil ou oficial da Força Aérea de patente inferior.

O oficial da Inteligência, de posto mais elevado, arranjara-lhe o cargo de


secretária numa agência norte-americana de Inteligência, em Berlim Ocidental.
Mais tarde, foi demitida do emprego, sob a alegação de que demonstrava
excessiva curiosidade em relação a documentos secretos, que se encontravam
nas escrivaninhas de outras pessoas.

Não obstante essa demissão, Margarete Schmidt conseguira obter outro emprego
de secretária na base aérea norte-americana de Tempelhof, em Berlim Ocidental.
Enquanto exercera esse cargo, mantivera contato com pessoas de quem se fizera
conhecida durante seu emprego no setor da Inteligência. Sua prisão ocorreu
porque tentara fazer grande pressão sobre um alemão, que trabalhava para seus
antigos empregadores da Inteligência norte-americana, no sentido de que ele lhe
fornecesse segredos de contra-inteligência.

Um dos primeiros sucessos da então recém-criada agência de contraespionagem


política da Alemanha Ocidental, a Amt für Verfassungsschutz, foi o
desmantelamento de uma das mais extensas redes em funcionamento naquela
parte do território germânico. Em 1951, um Instituto de Pesquisas Econômicas
fora instalado em Berlim Oriental e, pouco depois, ele estabelecera uma sucursal
em Francforte-sobre-o-Meno, sob a direção de Ludwig Weiss, oficial de alta
patente do Ministério do Comércio do Setor Soviético. Ao mesmo tempo, uma
suposta empresa comercial privada fora ali organizada, sob o título de Ost-West
Handelsgesellschaft.

Em teoria, o Instituto de Pesquisas Econômicas e seus anexos teriam por


objetivo o que sua denominação dava a entender — organizações para explorar
as possibilidades de comércio entre as Zonas Oriental e Ocidental —, embora, de
fato, sua verdadeira função fosse a de obter informações sobre todos os aspetos
da vida na Alemanha Ocidental e, particularmente, aspectos de sua
administração, considerados sigilosos, e referentes ao seu rearmamento. Em
outras palavras, aquele Instituto não passava de uma simples cobertura para a
realização de espionagem em larga escala.

Ignora-se, até hoje, como foi obtida a permissão das autoridades da Alemanha
Ocidental para a instalação dessas organizações em Francforte e Hamburgo. A
real significação desse Instituto e dos seus apêndices não escapara, porém, à
argúcia da nova agência de contraespionagem política. Dentro de pouco tempo, a
Amt havia-se infiltrado tanto na célula de Francforte como na de Hamburgo. Ao
lado disso, um agente seu, Gotthold Kraus, obtivera um posto no quartel-general
de Berlim Oriental — onde treinava recrutas que deveriam operar no Ocidente
—, o qual, antes de retornar a Bonn, em 1953, acumulara suficientes provas
documentais que iriam permitir aos seus superiores desmascarar toda a rede, que
funcionava sob o falso nome de Vulkan.

Entretanto, antes que isso acontecesse, Weiss, chefe da célula de Francforte, fora
preso, em consequência do depoimento de outro agente do Ocidente, Wilhelm
Ruschmaier, que lhe fornecera falsos documentos, preparados pela Amt. Mas
somente quando Weiss se tornara perigoso, ao obter informações genuínas sobre
segredos militares e políticos dos aliados, julgaram que deveria ser silenciado.
Após a prisão de Weiss, a rede continuou a operar, até que Kraus retornou de
Berlim Oriental, na primavera de 1953. Então, a agência do Ocidente atacou, e
arrebanhou os restantes trinta e cinco membros da Vulkan.

Esta foi a terceira rede que a Amt für Verfassungsschutz desmantelara, no


período de um ano. As outras duas foram: uma polonesa e uma tcheca. A Amt
era, por sua vez, a maior rede então operando na Alemanha Ocidental.

A atividade da espionagem soviética e a dos países-satélites ainda não desistiu de


atingir seus objetivos, nem relaxou em seus esforços. Como já dissemos, a
maioria das prisões e dos julgamentos de espiões na Alemanha Ocidental tem
sido conservada em segredo, mas existe uma prisão em Landsberg, na Bavária,
que, além de hospedar uns poucos criminosos de guerra alemães, foi
inteiramente preparada para abrigar agentes estrangeiros. Esta prisão, segundo se
diz, já atingiu seu ponto de saturação e, em face disso, as autoridades estão
procurando outro local, que se mostre adequado para receber o constante fluxo
de espiões, ainda colhidos pela rede da Alemanha Ocidental.
4. A Volta de Lucy

Ao terminar a guerra, Rudolf Rössler, que, sob o nome falso de Lucy, realizara
verdadeiros milagres em favor da espionagem soviética durante o conflito,
recusou-se a prosseguir em suas atividades clandestinas. Não desejava trabalhar
para a Rússia, nem queria auxiliar a Suíça. Os russos o haviam recompensado
generosamente, pagando-lhe um altíssimo salário. Os suíços, por seu lado, não
se tinham mostrado parcimoniosos. Nestas condições, o acervo da renda dessas
duas fontes, ele o empregou em sua empresa editora — Vita Nova. Essa revista
entrara numa fase de dificuldades. Extinto o nazismo, a liberdade de imprensa
tornara-se uma das características da Alemanha Ocidental e, em face disso, não
existia, realmente, mercado para aquele gênero particular de propaganda.

Rössler, porém, prosseguia considerando Vita Nova um filho predileto do seu


espírito. Quando o Centro soube de apertos financeiros do seu antigo agente —
os quais coincidiam com sua decisão de reviver a velha rede suíça —, fez-lhe
uma oferta, logo aceita. Rössler voltaria, mais uma vez, à atividade, trabalhando
em favor dos seus objetivos de espionagem. Esse ex-agente, segundo parece,
conservara seus contatos do tempo da guerra — que, então, serviam ao novo
regime — e, nestas condições, não lhe fora difícil persuadi-los a lhe fornecer, de
novo, informações secretas.

Deve ser recordado que Rössler fora apresentado, em primeiro lugar, ao serviço
de Inteligência da Suíça por um jovem jornalista — Xaver Schnieper. Schnieper,
depois da guerra, confessara abertamente suas simpatias pelo comunismo e se
tornara presidente do diretório regional de Lucerna, do Partido Comunista Suíço.
Quando, porém, a agremiação se dividira, em 1946, em consequência de um
escândalo financeiro interno, vira-se expulso das fileiras partidárias e aderira a
algumas organizações anticomunistas.

Schnieper, entretanto, possuía hábitos dispendiosos, especialmente no que dizia


respeito a mulheres. Além disso, ou talvez por isso, estava sempre em
dificuldades financeiras. Assim, quando abordado por uma agência soviética,
que lhe sugeriu aliar-se a Rössler, concordou logo.
Em 1948, Schnieper se inscreveu no Partido Democrata Social da Suíça e, logo
depois, foi enviado para Bonn, como correspondente da Imprensa Socialista
Suíça. Tratava-se de uma personalidade de grandes atrativos e, assim sendo, não
tardou que estabelecesse largo círculo de amigos e conhecidos, todos exercendo
altos cargos na administração da Alemanha Ocidental. Como Sorge no Japão, ele
podia procurar informações sem provocar qualquer suspeita, já que em suas
funções de correspondente de um jornal. Além disso, existia muita gente que se
mostrava desejosa de transmitir-lhe o que sabia, a título apenas de colaboração
jornalística. O que essas pessoas não compreendiam, entretanto, é que todas as
coisas importantes que lhe contavam eram rapidamente retransmitidas para
Moscou.

O terceiro membro da célula era um oficial tcheco, Coronel Volf, integrante do


quadro do pessoal de uma rede tcheca que operava na Suíça, dirigida de Praga e
orientada pelo Centro, com o veterano espião Coronel Sedlacek — que era o
adido militar à embaixada em Berna — exercendo as funções de Diretor-
Residente. Sedlacek, velho amigo de Schnieper, não teve qualquer dificuldade
em persuadi-lo a aderir ao seu estafe.

Os contatos alemães de Rössler encontravam-se ainda em condições de fornecer-


lhe material de alta categoria, tanto relativo à Alemanha como à Grã-Bretanha, à
França, aos Estados Unidos e à Escandinávia, não apenas obtido no interior da
Alemanha, mas nos próprios territórios dos outros países. Sua posição pessoal
junto ao Centro era, portanto, de elevada importância. Em face disso, recebia
uma remuneração realmente excepcional — de, aproximadamente, quatrocentas
libras mensais.

Schnieper, além de especialista em material técnico — Rössler concentrara-se


em espionagem política e em Inteligência militar —, atuava como secretário do
seu chefe alemão e datilografava-lhe os relatórios. Quando o Centro começou a
estimular a utilização do microfilme, logo aprendeu essa técnica, tomando
providências no sentido de que, dali por diante, as informações enviadas para
Moscou seguissem através da microfilmagem.

As comunicações se realizavam através do recurso de colocar os microfilmes em


pacotes de gêneros alimentícios enviados a um “caixa-postal”, em Düsseldorf. O
processo era perfeitamente seguro. Naquela época, o generoso povo suíço estava
remetendo alimentos para os seus amigos alemães, em centenas de pacotes
diários. Desgraçadamente, justamente esse método de comunicação iria pôr
termo às atividades da célula.

A célula Rössler-Volf-Schnieper trabalhou durante cinco anos, de 1947 a


dezembro de 1952. Neste último mês, um pacote de gêneros alimentícios fora
despachado para um mítico Heinrich Schwartz, em Düsseldorf. Por motivo que
se desconhece, Schwartz não foi receber a encomenda, a qual, após o
regulamentar tempo de espera, foi, em janeiro de 1953, devolvida para a Suíça.
Como não havia qualquer indicação de quem fosse o remetente, as autoridades
abriram-no, e encontraram os microfilmes, que se achavam escondidos em
vidros de figos e de mel de abelha. Continham relatórios sobre os aeroportos
britânicos na Alemanha Ocidental, sobre as últimas manobras do Exército norte-
americano e sobre o poderio aéreo dos Estados Unidos na Grã-Bretanha.

A Abwehr suíça tinha poucas dúvidas em relação à origem desse material


excepcionalmente importante e, em face disso, Rössler e Schnieper passaram a
ser vigiados. Em seguida, foram presos. Não fizeram muita cerimônia em revelar
as atividades a que se entregavam e, como não estavam comprometidos em
espionagem contra a Suíça, receberam sentenças leves: um ano de prisão para
Rössler e nove meses para Schnieper. Ambos poderiam ter sido deportados, mas
alegaram que, se fossem mandados de volta para a Alemanha, ali seriam
processados por espionagem. Não se mostravam desejosos, igualmente, de
buscar refúgio atrás da Cortina de Ferro. Nessas condições, “em vista dos seus
grandes serviços prestados à Inteligência suíça, durante a guerra, e porque eram
apátridas”, só receberam o ligeiro castigo acima referido.

Rössler morreu em 1962, ainda negando que, alguma vez, tivesse realizado
qualquer serviço de espionagem. Deixou o mundo dos vivos sem dizer quais os
seus contatos alemães e sem ao menos fazer qualquer insinuação em relação à
identidade deles.


5. França

Certamente, nenhum outro país não-comunista da Europa, e provavelmente no


mundo, ofereceu seus segredos à União Soviética com tanta generosidade como
a França, no período que decorreu entre o fim da guerra e a ascensão de De
Gaulle. A situação política francesa era de tal ordem, naquela época, que a
espionagem soviética quase não tinha necessidade de se empenhar em qualquer
espécie de atividade.

Numericamente, o Partido Comunista Francês sempre fora o mais forte de todos


os congêneres da Europa, com exceção do da própria Rússia, embora o italiano
houvesse, de tempos a tempos, se aproximado dele. Durante a ocupação alemã,
não se pode negar que a Resistência Comunista na França — embora lutando
contra a falta de dinheiro e de equipamentos e não recebendo qualquer auxílio
exterior — foi, entretanto, o mais ativo e patriótico, na significação rudimentar
da palavra, e, igualmente, o mais oportunista de todos os grupos que se
formaram para lutar contra os nazistas. As diversas organizações isoladas que,
até quase o meio da guerra, lutaram umas contra as outras, tão ferozmente como
enfrentavam os alemães, representando as diversas tendências políticas que
florescem particularmente bem na França, constituíam um reflexo da situação
interna do país. Embora houvessem feito uma tentativa para dirimir suas
divergências e de colaborarem para a salvação nacional — e, até certo grau, essa
união obteve êxito —, em 1944, quando se deu a libertação, todas as velhas
inimizades mais uma vez surgiram, e a própria existência da França, como
entidade democrática, passou a ser ameaçada.

Não fosse a ação de um ou dois dos seus líderes políticos, mais perspicazes que
os demais e temporariamente dispostos a cooperar para um propósito e tão-
somente um propósito — evitar que o comunismo assumisse o poder —, não há
dúvida de que a França se haveria tornado a primeira nação comunista da Europa
Ocidental. De qualquer forma, tratava-se de uma situação excessivamente
complexa.

Na confusão, em que a falta de planejamento para o futuro afundara Paris e a


França inteira, os comunistas agrediram o povo e as instituições do país com um
cínico desrespeito por todos os direitos e privilégios individuais. Usaram os
métodos violentos dos gangsters. Lançando mão, astuciosamente, do processo de
provocar o ódio e o desejo de vingança que a atmosfera do tempo de guerra
despertara entre as camadas politicamente mais ativas da população, utilizaram o
ambiente de cólera e de amargura, por eles próprios criado, para tentar livrar-se
dos seus mais fortes antagonistas. Os adversários, mergulhados num quase
incompreensível caos, que a luta reciprocamente destruidora havia provocado,
não se mostravam apenas cegos em seus ódios e inconscientes em relação ao que
estava acontecendo, mas, também, desperdiçavam a pequena força de que
dispunham para lutar, enfim, contra qualquer um.

Por algum motivo, que por certo intrigará os historiadores futuros, a França, foi
salva do comunismo apesar de si mesma. Um breve esboço da sua situação
política, nos primeiros dois ou três anos do pós-guerra, mostrará como esse país
esteve próximo do desastre.

No dia em que Paris foi libertada — 25 de agosto de 1944 —, proclamou-se


outra vez na França uma república e, pelo menos teoricamente, uma legislação
republicana foi posta em vigor. De Gaulle remodelou o governo provisório, que
presidira na Argélia desde 1943. A devastação, provocada pela guerra, havendo
tornado difíceis as comunicações, comissários republicanos, investidos de plenos
poderes, foram nomeados para as regiões do interior. Como órgão de
assessoramento do governo, existia uma assembléia consultiva, na qual todos os
partidos e o Conselho Nacional de Resistência tinham assento. Seus membros
eram nomeados pelo Comitê da Resistência. As primeiras tarefas do governo
foram as seguintes: restabelecimento das comunicações; reorganização do
abastecimento; manutenção da ordem no país, devastado material e
psicologicamente pelos quatro anos de ocupação.

Um expurgo dos que haviam colaborado com os alemães foi considerado a


medida mais importante que devia ser levada a efeito. Nos primeiros dias, como
já demos a entender, realizaram-se execuções sumárias de colaboracionistas.
Esses foram os dias de grande perigo para a França. Afortunadamente, porém, a
Justiça logo interveio, e os mais notórios colaboracionistas passaram a ser
julgados por tribunais adequados. A administração, o jornalismo e o mundo das
letras e das artes passaram por um expurgo sistemático, levado a efeito por
comitês instituídos para essa finalidade. Os colaboracionistas econômicos foram
procurados e os aproveitadores ilícitos tiveram confiscados seus lucros. Dezenas
de milhares de condenações à morte, a trabalho forçado ou à prisão foram
lavradas. Pétain e Laval sofreram a pena máxima, e o último foi executado.
Pétain, em face de sua avançada idade, já que contava noventa anos, teve a
sentença transformada em prisão perpétua.

Durante os anos de 1945 e 1946, a França permaneceu sob governos provisórios.


A opinião pública, em seu íntimo, aspirava a que o país pudesse ser dotado de
uma Constituição capaz de impedir que a degradação política do período de
antes da guerra fosse repetida. No dia 21 de outubro de 1945, uma Assembléia
Constituinte foi eleita. Sua principal finalidade era justamente a elaboração de
uma Constituição. O Partido Comunista obteve 150 lugares; os Socialistas, 139;
e um novo partido católico e democrático, o Movimento Republicano Popular
(MRP), 149 assentos; enquanto os Radicais só obtiveram 25.

A Constituição, que essa Assembléia elaborou, foi rejeitada no dia 5 de maio de


1946, e se elegeu uma nova Assembléia Constituinte. Uma vez mais, os
comunistas constituíam a mais numerosa agremiação partidária isolada, seguida
de perto pelo MRP. A Constituição elaborada então teve aprovação de uma fraca
maioria, no dia 13 de outubro daquele mesmo ano.

De Gaulle, em choque com a Assembléia Constituinte, tanto em relação à


elaboração da Carta Magna como no que dizia respeito à política externa,
renunciou, no dia 21 de janeiro de 1946, à chefia do Governo Provisório.
Substituiu-o Gouin, presidente da Assembléia e membro do Partido Socialista.
Gouin apoiou a Constituição, que um plebiscito rejeitou, e resignou após a
eleição da segunda Assembléia Constituinte.

O sucessor de Gouin foi George Bidault, líder do MRP, que assumiu o poder no
dia 23 de junho. Este também pouco depois renunciava, de acordo com a praxe,
quando a nova administração nacional iniciou suas funções, no dia 10 de
novembro. Tornou-se difícil, então, a constituição de um Ministério. Nem o
MRP nem os Socialistas queriam colaborar com o mais forte partido na
Assembléia, o Comunista. Finalmente, a fim de aguardar a eleição de um novo
presidente da República, o veterano socialista Léon Blum formou um Ministério
puramente socialista, com duração limitada a seis semanas. Não obstante seu
curto período de existência, esse governo imprimiu vigorosa orientação à
política francesa. Reprimiu a tendência para uma generalizada elevação dos
preços e iniciou negociações para um tratado de aliança com a Grã-Bretanha. No
dia 16 de janeiro de 1947, o primeiro presidente da Quarta República, Vincent
Auriol, foi eleito.

Seguindo a praxe, Blum resignou, e Ramadier tornou-se primeiro-ministro. Seu


governo — constituindo, a princípio, uma coalizão de socialistas, comunistas e
elementos do MRP, da qual os comunistas mais tarde se retiraram — seguiu a
linha dos que o antecederam, no sentido de promover a estabilização econômica
e a reconstrução da França. Por volta da primavera de 1946, consideráveis
progressos haviam sido feitos. Entretanto, isso não impediu que, durante os
seguintes doze anos, a situação política do país tivesse de enfrentar,
continuamente, grandes dificuldades. A guerra da Argélia irrompera e tornara a
situação ainda mais perigosamente instável, o que obrigou, por fim, à
convocação de De Gaulle, que, deixando seu retiro, assumiu o Governo para
salvar a nação.

Como a mais forte agremiação partidária isolada, existente no país, o Partido


Comunista, nos quatro primeiro anos do pós-guerra pelo menos, não poderia
deixar de ter posições de relevo na administração. Em várias ocasiões, líderes
comunistas foram ministros da Guerra e da Aeronáutica, enquanto outros, como
Paul Marcel e Auguste Lecoeur, controlavam importantíssimos setores da
administração, como, por exemplo, a produção industrial, enquanto o veterano
Thorez ocupou por algum tempo, no outono de 1945, o cargo de vice-primeiro-
ministro.

Além dos comunistas que ocupavam elevadas posições, muitos outros políticos
da mesma filiação ideológica infiltravam-se em numerosos cargos, embora sem
grande relevo, mas que constituíam peças vitais da administração. Entre as
primeiras missões diplomáticas junto à Quarta República, a russa tomou a
dianteira, logo se estabelecendo em Paris. Chegou com um pessoal enorme, o
que só poderia significar uma coisa: que a espionagem soviética tinha a intenção
de lançar um assalto global aos segredos franceses. Algumas das suas atividades
e certas operações já planejadas tornaram-se desnecessárias durante os primeiros
três anos. E isto por que a infiltração legal, que os comunistas haviam levado a
efeito em pontos-chaves da administração, dera-lhes acesso a todos os segredos
da França e, também, a muitos da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos.

Poder-se-ia dizer com justiça que, durante o primeiro período do pós-guerra, as


atividades dos chefes da espionagem soviética, na França, estiveram divididas
em duas principais categorias: recebiam informações passadas por seus agentes,
infiltrados na administração, e, por outro lado, faziam a limpeza de sua casa no
Ocidente, desfazendo imundas embrulhadas, como, por exemplo, a deixada pela
rede suíça de Alexander Rado, e concluindo alguns negócios inacabados, como,
por exemplo, o da obtenção da liberdade, a ser decretada pela Justiça francesa,
de Waldemar Ozols, que fora assistente do “Pequeno Chefe” Sukulov.

Há a ressaltar, entretanto, que o Centro, naquele período, dava a impressão de


trabalhar baseado na presunção de que a predominância dos comunistas nos
negócios da França não devia durar, e aquela fase de facilidades poderia ser
utilizada para o lançamento dos alicerces de uma organização que surgiria,
quando chegasse a oportunidade. Uma das mais expressivas atividades desse
tempo foi a ressurreição dos Correspondentes Trabalhadores (Rabcor) que
haviam agido tão bem nas décadas dos vinte e dos trinta. Verificou-se,
igualmente, o retorno à cena de algumas figuras veteranas dos primeiros tempos
do comunismo, como Jean Cremet e seu velho assistente Pierre Provost,
enquanto Octave Rabaté, editor de L’Humanité, na época do escândalo de
Cremet em 1928, assentava-se, outra vez, em sua mesa na direção do jornal. No
período de cinco anos, não menos de 650 Rabcors operaram em Paris, com
outros 200 espalhados por todo o território da França. Iriam fornecer outra vez à
espionagem soviética um suprimento de informações aparentemente infindável.

Quando os comunistas deixaram o governo, em 1947, procuraram manter o


acesso, de que desde muito dispunham, aos segredos nacionais franceses. Muitos
deles, ocupando cargos mais modestos, conservaram-se em posição de poder
conseguir, com facilidade, importante material de Inteligência.
Independentemente dos comunistas, porém, colaboravam, nessa obra de
subversão clandestina, numerosos simpatizantes. A experiência dos anos de
guerra tinha, de fato, determinado profundas mudanças nas atitudes de muitas
pessoas e, particularmente, dos direitistas que passaram para o lado oposto. Se
não declaravam abertamente sua nova orientação, filiando-se ao Partido
Comunista — como muitos fizeram —, a nova fidelidade, que deixavam
transparecer, era de integral simpatia pelos objetivos da extrema-esquerda.

Tomemos, por exemplo, o caso de Pierre Cot. Sua mudança de sentimento


começara a se dar antes da guerra. Cot havia sido secretário de Poincaré, um dos
mais brilhantes estadistas que a direita da França produzira. Durante a Guerra
Civil espanhola, tornara-se ministro da Aeronáutica e, mesmo nessa época, fora
acusado de entregar segredos militares franceses a Moscou. Depois da
Libertação, tornara-se outra vez ministro da Aeronáutica, e sua utilidade para
Moscou, durante esse período, poderá ser aferida pelo fato de, em 1953, ter sido
agraciado com o Prêmio Stalin.

Há também o caso de André Blumel, considerado geralmente não um direitista,


mas intimamente associado aos socialistas, que se opunham tanto ao comunismo
como o faziam os democratas direitistas e os católicos. Fora secretário de Blum
e, então, se tornara chefe do Gabinete de Adrien Tixier, ministro do Interior,
posto em que passara a ter acesso à maioria dos segredos governamentais. Só em
1948 foi publicamente reconhecido como um simpatizante comunista.

As atividades dos comunistas franceses eram bem conhecidas dos políticos e dos
estadistas da França, e não tardou que todos compreendessem que alguma coisa
deveria ser feita no sentido de reprimi-las. O dilema era o seguinte: agir, ou pelo
menos dar a impressão de que se agia, pois, mesmo quando a decisão foi
tomada, verificou-se grande relutância, por parte das autoridades, em se fazer
qualquer coisa que pudesse parecer provocação à Rússia. Mesmo quando a
contraespionagem apresentou irrefutável prova de que certos indivíduos vinham
entregando segredos franceses aos soviéticos, ordens lhe foram dadas para não
tomar outras providências além das relacionadas com a conservação desses
suspeitos sob vigilância. Isto, naturalmente, muito convinha às redes soviéticas.

A primeira iniciativa, de efeito positivo, tomada contra os espiões da Rússia


ocorreu em 1951. Entretanto, mesmo nessa ocasião, procuraram-se evitar os
casos pessoais. A União Soviética julgava que a França constituía um local
privilegiado para a instalação das novas organizações instituídas depois da
guerra, como disfarces para a propaganda e para a espionagem comunistas.
Nessas condições, situara o quartel-general dessas organizações, supostamente
internacionais, como a Federação Mundial da juventude Democrática, sua
congênere, a Federação Mundial das Mulheres Democráticas, e a altamente
importante Federação Mundial dos Sindicatos, em Paris. Desses locais, a União
Soviética fazia irradiar sua vigorosa propaganda e suas atividades clandestinas
de espionagem, através de tentáculos que abrangiam toda a Europa Ocidental. A
França, entretanto, sob disfarçada pressão de seus aliados, expulsou essas três
organizações do seu território.

Um bom exemplo do que aconteceu na França, e através do qual a


contraespionagem pôde exibir provas indiscutíveis da traição de que o país
estava sendo vítima, foi o caso em que se viram envolvidos os jornais France
d’Abord e Regards, ambos dirigidos por comunistas e especializados em
assuntos militares. Em 1949, tornou-se evidente que alguém fornecia segredos
militares a esses magazines. O fato tomou-se tão óbvio que providências tiveram
de ser tomadas. Quando, porém, o governo deu instruções às autoridades da
contraespionagem para que agissem, estas logo prenderam algumas pessoas,
contra as quais desde algum tempo vinham acumulando provas. O escândalo
revelava-se tão grave que o relatório das autoridades de segurança fora
endereçado diretamente ao Gabinete. Nesse documento, estava consignado, entre
outras coisas, que um professor da escola de aviadores, em Paul — o Capitão
René Azema — entregara ao France d'Abord documentos secretos relativos à
força e ao equipamento de uma divisão aérea.

As prisões dos editores do France d’Ahord e do Regards, Yves Moreau e Jacques


Friedland respectivamente, e de algumas outras pessoas, foram imediatamente
ordenadas. As investigações e a formação do processo, porém, arrastaram-se por
dois anos. Finalmente, em janeiro de 1951, quando a atenção pública já não
estava mais interessada no caso, os réus foram julgados, sendo todos absolvidos.

O estabelecimento do quartel-general da OTAN na França constituiu novo


objetivo para a espionagem soviética. Nessas condições, as autoridades francesas
se viram obrigadas a desenvolver uma ação de vigilância bem mais vigorosa. Em
1952, descobriram-se duas redes, em Lyon e Paris. O desmascaramento dessas
organizações forneceu um acervo de informações sobre os métodos de trabalho
dos soviéticos quanto o caso Gouzenko, no Canadá. De acordo com os
documentos apreendidos, tornou-se bem claro que praticamente todos os
segredos militares da França já se encontravam em poder do Kremlin, enquanto
quase todas as instalações da OTAN, em território francês, haviam sido
desenhadas num mapa, achado em poder de um agente soviético. Contudo, outra
rede fora descoberta na base naval de Toulon — a nova frota francesa era um
alvo prioritário para a espionagem russa, particularmente a frota de submarinos
—, que dispunha, entre seus integrantes, não só de autoridades policiais, mas até
mesmo de alguns oficiais da segurança naval, da própria França.

Essas revelações causaram impacto na opinião pública do país, e as autoridades


começaram a apertar sua vigilância e a agir, com maior dureza, em relação aos
agentes capturados. Em 1954, porém, apesar dessas providências, explodiu no
cenário das atividades políticas da França uma cause célebre que chocou tanto os
aliados da França quanto o próprio povo francês. Em outubro daquele ano, dois
altos oficiais do Comitê da Defesa Nacional — René Turpin, e Roger Labrusse
— foram presos sob a acusação de traição, apontados como tendo fornecido
documentos militares secretos a um agente comunista, André Baranés. Esse fato,
em si, já era suficientemente deplorável, mas, logo após a prisão desses dois
oficiais, o chefe deles, o secretário-geral do Comitê de Defesa, Jean Mons, foi
igualmente detido sob a acusação de haver “causado prejuízo à segurança do
Estado”. Também se achava implicado no caso um inspetor de polícia, Jean
Dides, que agia como intermediário entre Baranés e Jacques Duelos, presidente
do Politburo do Partido Comunista francês. Nessa ocasião, a França estava
empenhada em sua guerra na Indochina, e os documentos apreendidos tratavam,
quase todos, da estratégia francesa naquele país, contendo também informações
altamente secretas sobre a política da OTAN.

Os franceses tiveram de enfrentar, por outro lado, a espionagem de várias


nações-satélites da Rússia, particularmente a da Polônia e a da Tchecoslováquia.
A reação dos governos franceses ao desmascaramento da espionagem dos países-
satélites foi de alguma forma diferente da manifestada em relação à espionagem
soviética. Diversos casos vieram à luz entre 1948 e 1950, e alguns diplomatas
poloneses e tchecos foram detidos e expulsos. Essa atitude provocou medidas de
represália por parte da Tchecoslováquia e da Polônia e teve lugar, então, uma
espécie de “toma lá, dá cá”, que poderia ser divertido para os espectadores, se
não fossem tão graves, para o Ocidente, os objetivos dessas atividades
clandestinas.

Embora o Partido Comunista Francês tenha perdido muito terreno nos últimos
anos, é certo que a espionagem soviética não afrouxou sua atividade na França,
que constitui ainda excelente campo de caça, em relação aos segredos da OTAN.
Uma indicação disso foi a prisão de um oficial francês, de alta patente, adido ao
quartel-general da OTAN, o qual admitiu que, durante alguns anos, mantivera
estreito contato com agentes soviéticos. Desde a ascensão de De Gaulle,
entretanto, verificou-se grande endurecimento na linha de ação da segurança
francesa, mas, se o passado é algo que se esquece, essa certeza tem sido
considerada, pelo Centro, como um estímulo para atividade ainda maior.


6. Em Outras Nações

A situação na Itália não era muito diferente da da França. Nas primeiras eleições
gerais realizadas após a Libertação, um sistema de representação proporcional
deu aos democratas cristãos 207 cadeiras, aos socialistas 115 e aos comunistas
104. Os dois últimos partidos, portanto, asseguraram, juntos, maioria contra os
democratas cristãos. Nenhuma das agremiações políticas, entretanto, dispunha
isoladamente de maioria segura. Em face dessa fragmentação partidária, o
governo teria forçosamente de se formar através de uma coalizão, com os
comunistas ocupando postos que lhes permitissem ter acesso àqueles segredos
que os italianos certamente não desejariam fossem conhecidos em Moscou. Para
o governo soviético, entretanto, a Itália não exercia a mesma atração que a
França. Em vista disso, a atividade de sua espionagem nesse território não se
mostrou muito intensa. Mesmo assim, ocorreram ali alguns casos, cuja gravidade
demonstrou que o Centro estava ativo na península, com células instaladas nas
repartições governamentais, nas unidades militares, e em muitas fábricas e em
cada sindicato. Um desses casos, em particular, revelou que o Centro levara sua
infiltração até mesmo ao interior do Vaticano. Em 1952, tornou-se público que
um professor da Academia Gregoriana, padre Aligheri Tondi, era, na realidade,
agente soviético. Constitui mistério indecifrável a razão por que o religioso
tomou essa atitude, já que, como é sabido, o catolicismo romano e o comunismo
se odeiam e se consideram, reciprocamente, inimigos irreconciliáveis.

Na Europa, depois da Alemanha Ocidental e da França, o país que maior atenção


mereceu dos soviéticos foi a Suécia. Entre 1951 e 1953, uma série de
julgamentos de casos de espionagem, realizados em Estocolmo, deu uma idéia
da extensão da espionagem russa naquele país, considerado pelo governo de
Moscou como seu mais sinistro inimigo no Báltico. Cinco redes separadas, pelo
menos, foram identificadas ali e, segundo o comandante-chefe da Esquadra
sueca, vinham operando, sem ser suspeitadas e, portanto, sem ser incomodadas,
desde 1941. Em consequência dessa atividade, todos os segredos da defesa
nacional sueca eram, sem dúvida, do conhecimento do Centro.

O caso que tornou público esse seríssimo estado de coisas foi o relacionado com
um oficial da Marinha, Ernst Anderson. No princípio de setembro de 1951, esse
oficial solicitou — lhe foram concedidos — cinco dias de férias, a fim de poder
tratar de assunto de natureza privada. Entretanto, ao invés de seguir para a sua
casa, ele viajou para Karlskrona, a principal base naval da Suécia, e, quando suas
férias terminaram, regressou a Estocolmo.

No dia 20 de setembro, indo a uma sorveteria, Anderson apanhou uma bicicleta,


deixada do lado de fora do edifício, e pedalou até um hospital, onde a deixou
encostada à entrada do saguão. Entretanto, sem que o soubesse, seus
movimentos em Karlskrona haviam despertado suspeitas na contraespionagem
naval, cujos agentes o seguiram. Quando deixara a bicicleta no hospital, os
agentes a examinaram e descobriram, na bolsa de ferramentas, alguns
documentos que continham descrição pormenorizada do equipamento de um dos
mais modernos navios de guerra da Suécia.

Os agentes apossaram-se dos documentos e aguardaram nas imediações, a fim de


ver quem apanharia a bicicleta. A pessoa que o fez confirmou integralmente as
suspeitas da contraespionagem. Tratava-se de Nicolai Orlov, funcionário da
Embaixada soviética.

Quando Anderson foi preso e levado a julgamento, tornou-se sabido que


trabalhava para o Centro desde 1946, quando fora recrutado por um comunista
sueco, e que a rede à qual pertencia era controlada pelo diretor da Agência Tass,
Victor Asissimov. Anderson fora um dos mais perigosos agentes que operavam
na Suécia. Enquanto integrara a rede soviética, passara para o Centro numerosos
detalhes do sistema de defesa do país contra qualquer invasão, informações
sobre a fortaleza de Boden e todos os possíveis pontos de desembarque na costa,
nos quais as autoridades militares e navais julgavam que os russos poderiam
tentar uma investida, assim como a disposição da Esquadra sueca.

Em julho de 1952, como resultado de um intenso esforço de contraespionagem,


que se seguiu ao caso Anderson, nove outros agentes soviéticos foram presos.
Pertenciam a uma rede dirigida por um porteiro da redação do jornal comunista
Ny Dag, Arthur Karlsson. Entre esses nove, destacava-se Fritjof Enbom, antigo
oficial do Exército sueco e então jornalista. Desde 1941 que Enbom vinha
operando, e o objetivo da sua espionagem era fornecer informações sobre as
organizações industriais e sobre os depósitos de minério de ferro do país.
Recebera, também, missões para organizar uma espécie de Quinta-Coluna. Essa
organização deveria estabelecer um estado de confusão interna, na eventualidade
de uma invasão russa, atacando as defesas, fazendo ir pelos ares estradas de ferro
e operando um radiotransmissor secreto que difundiria notícias falsas.

Enquanto Enbom e seus oito colegas estavam sendo julgados, não menos de
vinte e dois membros da Delegação Comercial Russa e quatro funcionários da
Embaixada deixaram precipitadamente a Suécia, voltando para Moscou. Com
eles, seguiram igualmente Gustav Gohansson, editor do Ny Dag, e o destacado
comunista sueco Seth Persson.

Desde essa época, ocorreram prisões e julgamentos de agentes soviéticos em


Estocolmo. O caso mais recente e que envolveu um oficial do Exército sueco, de
elevada patente, talvez tenha sido o mais grave de todos. No momento em que
escrevemos este livro, a causa está sub judice, e nenhuma revelação específica
ainda se deu. Entretanto, os interrogatórios preliminares tornaram claro que os
suecos ainda não se acham preparados para proteger seus segredos contra as
investidas do Centro.

A atividade da espionagem soviética na Noruega parece ter sido em escala ainda


menor do que a que vem sendo realizada na Suécia, levando-se em conta os
êxitos obtidos pela contraespionagem do país, que é altamente experimentada.
Os russos, mesmo assim, contribuíram com um ou dois casos de destaque. Num
deles, um oficial do Exército norueguês, Earling Nordby, foi condenado a três
anos de prisão, enquanto um antigo chefe da Resistência, Asbjoern Sunde, que
havia sido preso em 1953, teve uma sentença de oito anos. Era tão grande a
importância desse agente para o Centro que os russos forneceram dinheiro para a
defesa — atitude de prodigalidade pouco comum.

A Finlândia, igualmente, não se conservou imune à espionagem soviética. Dois


relevantes casos, ocorridos em 1954, o demonstraram. Os réus eram pastores de
renas na Lapônia e pescadores que tinham vendido segredos da defesa litorânea
e das fronteiras à Rússia.

Raro é o país, integrante da Aliança Ocidental, que não tem feito realizar esses
inquietadores julgamentos por espionagem. Na Grécia, em 1952, uma larga rede
de trinta e dois agentes foi desmantelada, ficando demonstrada, então, a grande
eficiência com que o Centro organizara ali suas operações. A rede, dirigida por
Nicholas Beloyannis, estava equipada com dois radiotransmissores e fornecia
informações sobre as instalações norte-americanas, tanto nas ilhas gregas como
nas costas da Turquia. Dois outros julgamentos, desarticulando duas outras
redes, seguiram-se ao de Beloyannis, mas as autoridades da contraespionagem
grega não se mostram seguras sobre se conseguiram exterminar toda a atividade
de espionagem em seu país.

Por essa mesma época, uma grande rede fora descoberta na Holanda e na
Bélgica. De fato, para onde quer que se olhe — seja para o Oriente Próximo,
para o Extremo Oriente, para o Oriente Médio, para os agitados países da Ásia,
para as nações do Pacífico e, sobretudo, para a América do Sul —, a partir de
1952 verificaram-se, em todos os países, julgamentos periódicos relacionados
com espionagem.

A escala em que o Centro opera é responsável, até certo grau, pelo seu
indubitável sucesso. Em toda parte, têm-se verificado graves erros, cometidos
pelas agências de contraespionagem. Mesmo assim, a tarefa que elas têm
realizado não deixa de ser formidável. Quando um imenso exército de espiões
assola um país, os resultados iniciais podem ser idênticos aos conseguidos pelo
rolo compressor russo nos campos de batalha da Europa Oriental. Somente uma
vigilância inteligente e incessante impediria que uma nação pudesse ser
inundada pelas hordas dos espiões do Centro. Embora essa realidade já tenha
sido apreendida pelas agências de contraespionagem, o fato é que o homem da
rua ainda não compreendeu inteiramente a situação, nem descobriu que lhe cabe
desempenhar, também, um papel definitivo nessa luta para conservar secretos os
segredos de sua pátria, o que, em última análise, constitui um dever tão
patriótico quanto o de vestir um uniforme, no momento em que a luta se inicia.
Oitava Parte
AS ÚLTIMAS CAUSES CÉLEBRES
1. O Coronel Abel

A atividade da espionagem soviética na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos,


desde a guerra, vem-se revelando muito menos difusa em esforço. Além disso,
embora realizada por agentes de primeira categoria, algumas de suas redes têm
acusado elos fracos, o que, consequentemente, vem ocasionando frequentes
desastres. Não obstante tais deficiências, essa espionagem já conseguiu
desvendar segredos aliados da mais alta importância e, como exemplos dessa
infiltração, podemos citar um relevante caso, ocorrido nos Estados Unidos, e três
outros, de não menor relevo, verificados na Grã-Bretanha.

Os principais objetivos da espionagem soviética no campo militar têm sido:


invenções de dispositivos de detectação submarina, armamentos nucleares e
técnicas de fabricação de foguetes. Isto não quer dizer, porém, que seus agentes
venham-se descurando do que ocorre no campo político ou em outro setor, desde
que revele qualquer importância estratégica. Muitos erros têm sido cometidos
pelas agências de contraespionagem em ambos os lados do Atlântico. Quando,
porém, um ás da espionagem é colhido numa armadilha, a organização soviética
necessita sempre de algum tempo para se recuperar do golpe, caso o terreno
perdido deva ser, de fato, reconquistado.

Durante algum tempo, em meados de 1950, o FBI e outras agências de


contraespionagem dos Estados Unidos tiveram conhecimento de que muitos
segredos norte-americanos, da mais alta importância, estavam sendo
transmitidos para Moscou. Essa informação constituía uma indicação de que
redes soviéticas operavam particularmente nas regiões orientais dos Estados
Unidos. Como, porém, as buscas, levadas a efeito com a maior técnica, não
revelaram o rastro de qualquer agente secreto, que pudesse ser responsável pela
transmissão de informações sobre foguetes, detecção submarina e armas
nucleares, a conclusão a que se chegou era de que a qualidade do trabalho que
estava sendo realizado era de uma espécie nunca antes enfrentada pelas agências
de contraespionagem. Entretanto, em 1957, uma oportunidade se abriu para o
FBI. Esse golpe de sorte não foi devido a qualquer iniciativa de seus agentes.
Resultou tão-somente da deserção de um espião soviético. Constitui um enigma
até hoje o que os espiões-chefes da União Soviética realmente tinham em mente
ao selecionar seus agentes para esse trabalho.

Rudolf Ivanovich Abel fora agente secreto por muitos anos. Possuía um instinto
admirável do valor da segurança e, embora houvesse servido com distinção na
Alemanha e em outros países, antes da guerra, nunca atraíra a atenção de
qualquer das agências de contraespionagem. Este fato foi devidamente levado
em conta, por ocasião de sua escolha para operar nos Estados Unidos

Durante a guerra, esse agente fora retirado do trabalho clandestino e servira com
tão grande eficiência no Exército que recebera altas condecorações. A coragem e
a habilidade que revelara no campo de batalha, assim como sua alta reputação
como agente, antes da guerra, contribuíram para que o Centro considerasse esses
antecedentes como uma indicação de que sua lealdade estaria acima de qualquer
dúvida. E o fato de ser leal representou, por sua vez, uma qualificação a mais —
talvez a mais alta qualificação —, quando passou a ser considerado para exercer
as importantes funções de Diretor-Residente de uma rede que deveria ter por
objetivo a obtenção dos mais importantes segredos militares dos Estados Unidos.

Assim, em 1946, Abel recebeu instruções para se transferir para os Estados


Unidos. Tinha, então, quarenta e poucos anos de idade, sendo casado e pai de
dois filhos, aos quais era devotado. Sua dedicação ao trabalho era tão profunda,
porém, que nunca hesitou, um momento, em abandonar a família, talvez por
muitos anos, quando tinha uma tarefa importante para realizar. A circunstância
de que dispunha de reféns tornou sua colaboração naturalmente muito mais
preciosa para o Centro do que se ele fosse um homem solteiro.

O Coronel Abel não deveria ter a mais leve conexão com a Embaixada soviética
ou com os consulados nos Estados Unidos, nem com qualquer outra agência
clandestina que estivesse operando em território norte-americano. Em face disso,
deveria descobrir seu próprio caminho. Planejou tudo, pois, com grande
eficiência, sozinho, já que a única assistência que lhe deu o Centro foram alguns
documentos falsos, que o identificavam como sendo um deslocado de guerra, de
descendência germano-irlandesa.

Como os regulamentos canadenses para a entrada de pessoas deslocadas no país


eram menos estritos que os norte-americanos, Abel solicitou ao governo de
Ottawa um visto de entrada e foi atendido. Dessa forma, em 1947 chegou ao
Canadá e ali permaneceu até o ano seguinte, quando cruzou a fronteira para a
América, ilegalmente. Durante quase todo o ano de 1948, trabalhou procurando
estabelecer sua rede.

Os agentes que iriam trabalhar sob suas ordens já tinham sido escolhidos pelo
Centro e se encontravam in situ. Agindo através de “isoladores” somente,
elaborou instruções para a transmissão de informações, especificando o número
de “caixas-postais”. Estabeleceu-se, enfim, para dirigir sua rede, desconhecido
de todos, com exceção do seu “isolador”.

Como disfarce, o Coronel Abel tomou o nome de Emil Goldfus, e a profissão era
a de artista. Embora não sendo um pintor de talento, podia pintar suas telas e
sabia o suficiente a respeito de arte para reunir, ao seu redor, um bando de
artistas boêmios e de amigos. Sendo artista, podia desaparecer quando lhe desse
na veneta, viver irregularmente e comprazer-se num comportamento
inconvencional, sem provocar comentários. Em seu estúdio de Erlington, em
Nova York, que era uma confusão de telas e de bugigangas, revelava-se um
generoso anfitrião.

Se Abel não era pintor, não deixava de ser artista em outro campo. Tocava
guitarra com tal habilidade que, em circunstâncias diferentes poderia viver de
sua música. Era, também, um matemático quase genial. Seu código para
irradiações para Moscou, ele o inventara, utilizando como base o cálculo
diferencial.

Gostava de ter companhias — exceto quando saía em expedições solitárias, a


fim de coletar informações das suas diversas “caixas-postais” — e, por isso,
estava sempre cercado por um ruidoso grupo de amigos. Apenas em
determinados dias da semana, às dez horas da noite, pedia desculpas e retornava,
sozinho, ao estúdio. Ali descobria o poderoso radiotransmissor, que o punha em
contato direto com Moscou e, debaixo das bugigangas e durante a próxima meia
hora, estaria absorvido, operando, em grande velocidade, no seu Morse.

Assim, tudo corria bem — melhor, mesmo, do que provavelmente o Centro


houvesse alguma vez esperado. Em face do grande volume de informações que
sua rede transmitia, Abel Goldfus solicitou então a Moscou que lhe fosse dada a
assistência de um Diretor-Residente substituto. Desde que coube ao Centro a
responsabilidade pela escolha desse substituto, deve recair sobre ele toda a culpa
pelo desmantelamento da rede, alguns anos mais tarde.
O substituto que o Centro escolhera foi Reino Hayhanen. Embora seu nome
fosse finlandês, ele, de fato, nascera em território soviético, mas bem junto da
fronteira com a Finlândia. Iniciou a vida como professor, atraiu a atenção da
divisão de recrutamento e foi alistado no NKVD, durante a guerra fino-russa de
1939.

Entregou-se ao trabalho com afinco e, por volta de 1943, passou a ser


considerado, pelo Centro, um técnico em assuntos de Inteligência finlandesa e,
desse ano até ser chamado a Moscou, em 1950, esteve em grande atividade na
Finlândia, localizando elementos antissoviéticos entre a população local.

Ao chegar a Moscou, Hayhanen fora informado de que outra tarefa estava à sua
espera. Treinaram-no em códigos e em fotografia e lhe deram a identidade de
Eugene Nicolai Maki, sendo então enviado para a Finlândia, a fim de estabelecer
o background da sua nova personalidade. É interessante notar a escolha desse
nome falso, pois iremos surpreender a utilização da mesma técnica, mais tarde,
em outro caso. Os Maki eram uma família finlandesa que tinha vivido em
Enaville, Idaho — a mãe, americana; e o pai, finlandês — e voltara para a
Europa na década dos vinte, estabelecendo-se na Estônia, quando Eugene tinha
cerca de oito anos de idade. O que aconteceu com os Maki, quando a Estônia se
tornou uma república soviética, ninguém pode dizer, mas será seguramente justo
admitir que não se encontravam em situação de comprometer o novo Eugene.

Hayhanen seguiu depois para Turku, um porto da costa finlandesa, onde


trabalhou como bombeiro. Embora tivesse uma esposa na Rússia, ali se casou
com uma moça finlandesa, Hanna Kurikka. Em 1951, compareceu à Embaixada
norte-americana em Helsinque e, apresentando uma certidão de nascimento, que
provava ser natural de Enaville, no Estado de Idaho, solicitou um visto de
retorno para os Estados Unidos. Alguns meses mais tarde, obteve o respectivo
passaporte e, nessas condições, seguiu em 1952 para Nova York, viajando no
Queen Mary, que partira de Southampton. Sua “esposa” finlandesa o
acompanhou, mas viajando só alguns meses mais tarde.

Em 1954, Hayhanen Maki conheceu seu chefe, Abel Goldfus, e este último teve
um choque ao encontrá-lo. O Diretor-Residente, que era cônscio da necessidade
de uma obediência cega às normas de segurança, descobriu, com espanto, que
seu assistente não somente esquecera a maior parte do seu treinamento em
código, mas que, também, suas idéias em relação à segurança eram, na verdade,
rudimentares. Parecia mesmo que não as tinha de todo — o que constituía um
perigo, tanto para ele próprio quanto para toda a rede.

Nas circunstâncias em que se viu colocado, Abel entretanto, tentou fazer o que
lhe era possível. Instalou Hayhanen numa loja e deu-lhe instruções sobre como
devia operar. Nunca, porém, deixara de se mostrar apreensivo em relação à
segurança da rede.

Por volta de 1955, completavam-se seis anos que Abel vinha trabalhando
ininterruptamente e sob considerável pressão, e, nessas condições, o Centro lhe
deu instruções para que regressasse a Moscou, em férias por seis meses — o que
ele penhoradamente aceitou, embora com considerável temor.

Quando retornou, em princípios de 1956, descobriu, com espanto, que Hayhanen


tinha cometido todos os crimes que a um espião é dado cometer. Operara o
transmissor sempre do mesmo lugar, ao invés de procurar novos locais nos
subúrbios; não se incomodara em recolher as informações dos "caixas-postais” e
fechara a loja, embora ainda continuando a ser o locatário do estabelecimento.
Tudo isso lhe pareceu demais, e Abel queixou-se a Moscou.

A engrenagem do Centro, porém, girava com a tradicional lentidão dos moinhos


de milho, e não foi senão depois de alguns meses que Hayhanen recebeu ordens
para regressar a Moscou. Numa tentativa de dissipar no cérebro do agente
qualquer suspeita sobre os reais motivos de sua volta, o Centro promovera-o a
major e, quando desembarcou no Havre, mandou entregar-lhe 300 dólares para
suas despesas de viagem. Hayhanen, contudo, não se deixara iludir. Já que se
encontrava em solo europeu, resolveu não retornar a Moscou. Nessas condições,
seguiu diretamente para Paris, e ali procurou as autoridades norte-americanas, às
quais solicitou asilo, em troca de informações que poderia dar sobre a rede de
Abel.

Antes de aceitar a proposta, o FBI examinou cuidadosamente as informações que


Hayhanen adiantara e, em seguida, submeteu-o a exame, por um psiquiatra. Este
último achou-o instável e disse que se tratava de um alcoólatra. Não obstante
esse diagnóstico, logo se constatou que não procurava fazer qualquer jogo com
as autoridades. No que dizia respeito à extensão que a rede já atingira, nada
poderia dizer, mas identificou um sargento do Exército norte-americano que
trabalhara na Embaixada dos Estados Unidos em Moscou e fora recrutado pelo
serviço de espionagem soviética. Esse sargento, segundo afirmou, vinha
fornecendo importantes informações aos russos, desde que regressara aos
Estados Unidos. O denunciado foi detido e, consequentemente, condenado a
cinco anos de prisão com trabalhos forçados. O sargento, entretanto, nada pôde
dizer sobre os demais membros da rede. Referiu-se apenas a alguns “caixas-
postais” de que se utilizara e identificou Hayhanen como o intermediário com o
qual às vezes se encontrara.

Em todo esse incidente com Hayhanen, o coronel Abel havia observado as mais
estritas precauções de segurança, exceto numa única ocasião. Por algum motivo,
tivera de examinar certo material que Hayhanen lhe trouxera, e o fez na presença
do seu substituto, de forma que ele pudesse responder às perguntas que lhe
fizesse. Assim, Abel o levou a um armazém que alugara, distante do seu estúdio,
onde guardava seu material fotográfico.

Hayhanen recordou então esse encontro, mas, como não sabia o nome falso do
seu superior, pôde somente dizer ao FBI que esse armazém estava situado perto
das Ruas Clark e Fulton, em Brooklyn. Uma busca geral foi dada naquela região
e revelou que existia, de fato, o armazém e fora alugado por um indivíduo de
nome Emil Goldfus. Abel, ao assinar o contrato de aluguel, dera o endereço do
seu estúdio. Esse lapso foi o único em que incidiu o agente soviético, que sempre
agia com a maior segurança. Deveria ter alugado o armazém em outro nome e
dado um endereço falso. Quando os agentes do FBI compareceram ao estúdio,
descobriram que Emil Goldfus se achava fora da cidade, por alguns meses.

Não tendo Hayhanen chegado a Moscou na data combinada, o Centro


compreendeu, imediatamente, o que acontecera, e Abel foi avisado. Instruções
lhe foram enviadas também para deixar Nova York e ficar escondido, a fim de
aguardar o que pudesse ocorrer. Abel pagou dois meses adiantados de aluguel do
estúdio e seguiu para a Flórida, de onde, se a pressão do FBI se tornasse muito
intensa, poderia escapar através da fronteira mexicana.

Como nada aconteceu no período de dois meses, e como sua presença em Nova
York era inestimável para o Centro, Abel teve ordem para retornar e reassumir
suas funções. Ao chegar, foi preso pelo FBI, sob a acusação de entrada ilegal nos
Estado Unidos.

Levaram-no a julgamento no dia 14 de outubro de 1957, sob as acusações de


conspirar para obter segredos militares e de entrada ilegal no país, e a primeira
dessas acusações era passível de pena de morte. O Coronel Abel teve a
assistência do melhor defensor que a Ordem dos Advogados de Brooklyn
poderia conseguir — o destacado advogado James Donovan, de sangue irlandês
e americano.

As provas encontradas no estúdio — transmissor, microfilmes e outros petrechos


de espionagem — eram bastante eloquentes, e Abel foi julgado culpado, a
sentença devendo ser proferida alguns dias mais tarde. Durante esse período,
Donovan dirigiu um apelo ao juiz, pedindo clemência, e nele declarava: “Quem
sabe se, algum dia, um norte-americano poderá cair em mãos russas, acusado de
crimes idênticos? Se o Coronel Abel estiver então vivo, será sempre possível
fazer-se uma troca de prisioneiros.”

O juiz tomou nota do argumento e condenou Abel a trinta anos de prisão.


Embora o advogado Donovan não pudesse adivinhar, Gary Powers, três anos
mais tarde, ao pilotar o seu avião U-2 sobre a Rússia, seria derrubado, capturado,
e responderia a julgamento como espião.

Quando Powers já havia cumprido vinte meses de sua sentença de dez anos, o
que o defensor de Abel tinha previsto aconteceu. Os dois condenados foram
trocados.

Os russos levaram vantagem na troca, pois raramente a espionagem soviética


dispôs de um espião tão hábil e tão leal quanto o Coronel Abel, que, sofrendo
todo gênero de pressão, sempre se negou a denunciar qualquer das suas redes, as
quais, presumivelmente, ainda estão operando nos Estados Unidos, embora sob a
orientação de um novo Diretor-Residente.


2. Gordon Arnold Lonsdale

No dia 3 de março de 1955, o transatlântico norte-americano America ancorou


em Southampton. Seus oitocentos passageiros eram os habituais turistas e
homens de negócios que retornavam à Inglaterra e, segundo as aparências, não
apresentavam qualquer interesse.

Entre os que desembarcaram, encontrava-se Gordon Arnold Lonsdale, que, pelo


fato de possuir um passaporte canadense, não teve qualquer aborrecimento com
as autoridades portuárias. De Southampton, Lonsdale tomou o trem para a
estação de Waterloo, que é a terminal londrina da British Railways Southern
Region, e dali foi para um hotel. Durante os dois ou três dias seguintes, portou-
se como qualquer turista. Visitava lugares, museus e galerias de arte, tirava
seguidas fotografias com uma câmara de alto preço e comprava souvenires.

Tornou-se, igualmente, constante frequentador da Liga Ultramarina, o que não


era incomum em se tratando de um turista, embora, no seu caso especial, essas
visitas tivessem grande significação. A Liga Ultramarina é uma espécie de clube,
e em sua sede, não distante de St. James’s Park, dispõe de excelentes salas e
escritórios, de um restaurante de primeira classe com todas as facilidades e a
preços moderados, de um salão de diversões e de um serviço de relações
públicas para atender, com ajuda e conselhos, aos seus membros do exterior que,
com frequência, se sentem desorientados na grande cidade.

Além de se utilizar da Liga Ultramarina, Lonsdale decidira tornar-se amigo dos


funcionários da casa. Sem demonstrar ostentação, deixou que eles soubessem
que dispunha de dinheiro, e aqueles funcionários, por sua vez, não tinham
motivo para suspeitar que não fosse o que dizia ser, isto é, um legítimo e honesto
canadense.

Em maio, Lonsdale deixara o seu hotel e alugara um apartamento mobiliado no


luxuoso bloco de edifícios denominado The White House, situado nas
imediações de Regent’s Park. O gerente pediu referências. E, como esperava, já
que despendera tanto tempo conquistando a confiança dos funcionários da Liga
Ultramarina, esta prontamente as deu.

Em The White House, Lonsdale pediu — e lhe foi dado — um apartamento no


sexto andar. Alegou que gostava de ter uma bela vista através das janelas. Essa
solicitação, entretanto, ocultava uma significação completamente diferente. O
apartamento se compunha de uma pequena sala, de um quarto de dormir, de um
banheiro e de uma kitchenette, com facilidades para se cozinhar, caso ele não se
mostrasse disposto a descer ao restaurante, que funcionava ao rés-do-chão. O
preço do aluguel era de cerca de vinte libras por semana, o que não deixava de
ser elevado para aquele gênero de acomodação em Londres.

Depois de uma excursão pela Escandinávia, Lonsdale se instalara em The White


House e matriculara-se como estudante de chinês na Escola de Estudos
Africanos e Orientais da Universidade de Londres. Completara dois períodos de
aula antes de deixar a escola, em junho de 1957. Embora não dedicando todo o
seu tempo ao estudo, fizera, em Londres, largo círculo de amigos. Tratava-se de
um conversador fluente e bem informado que possuía um modo alegre e
gracioso de se portar, o que o tornava sedutor. Particularmente, as mulheres o
adoravam, e ele, por sua vez, aparentemente não poderia passar sem companhia
feminina. Dispunha de um punhado de amantes moças e bonitas, as quais, mais
tarde, deram testemunho de sua bondade e delicadeza, embora seu
comportamento viril nada revelasse de extraordinário.

Ninguém sabia exatamente quais eram seus recursos financeiros. Segundo se


acreditava, porém, deveria possuir entre sete e dez mil libras depositadas em
várias filiais do Royal Bank of Canada. De tempos em tempos, transferia parte
desses fundos para contas abertas em bancos de Londres, e os gerentes desses
estabelecimentos julgavam tão satisfatória sua situação financeira que, quando
certa vez necessitou de um capital extra com urgência, foi-lhe concedido um
saque de duas mil e quinhentas libras.

Como sua permanência em Londres seria prolongada, Lonsdale teve


naturalmente de inventar uma ocupação, a fim de não atrair atenção. Em face da
natureza de suas atividades, entretanto, teria de escolher uma daquelas que não o
retivessem em uma cidade e nem mesmo na Inglaterra.

Com habilidade, obteve um emprego de vendedor de vitrolas caça-níqueis.


Comprou duas ou três máquinas que vendeu com esplêndido lucro. Entretanto,
mais valioso do que o dinheiro que ganhara foram os contatos estabelecidos no
desenvolvimento dessas transações. Em pouco tempo, tornara-se conhecido, em
alguns círculos comerciais de Londres, como um homem que tinha queda para
negócios e dispunha de indiscutíveis qualidades de vendedor.

Em fins de 1957, entretanto, surgiu-lhe uma oportunidade ainda melhor. Certo


Sr. Peter Ayres planejava lançar uma empresa de fabricação de chicletes de bola
em Broadstairs, no Condado de Kent. Ayres fora apresentado a Lonsdale por um
amigo de negócios mútuos, e num minuto se entenderam. Quando Lonsdale
sugeriu que poderiam vender utensílios para prestidigitação, o que daria bons
resultados, Ayres concluíra ter descoberto, sem querer, um precioso sócio para a
sua aventura comercial.

De início, Lonsdale comprometera-se somente a vender as máquinas. Obtivera,


porém, tanto êxito nessa atividade que lhe foi oferecido ser sócio da firma.
Aceitando o convite, adquiriu ações de empresa, no montante de quinhentas
libras, e tornou-se diretor de uma Automatic Merchandising Company. Esse fato
constituiu um grande passo dado à frente para Lonsdale. Iria permitir que se
estabelecesse no complexo social britânico. Ser “diretor de uma companhia” é
extremamente útil, para qualquer pessoa, não somente no mundo dos negócios,
mas igualmente nos círculos leigos. Essa expressão, em qualquer setor, tem um
status de significação muito elevado.

O negócio dos chicletes de bola floresceu. Por iniciativa de Lonsdale, fora


decidido que tentariam penetrar no mercado europeu, e ele próprio, agindo nesse
sentido, fizera viagens à França, à Suíça e à Itália. Embora não houvesse
concluído muitas transações, insistira na necessidade dessas viagens, alegando
que só com tempo poderia vencer a resistência que vinha encontrando. Quando
não se achava no exterior vendia, com grande dinamismo, máquinas, em
Londres e em toda a extensão das Ilhas Britânicas.

Tudo correu bem, pelo período de quatro anos. Lonsdale fizera muitos amigos e
ganhara suficiente dinheiro para custear sua luxuosa maneira de viver. Ao lado
disso, porém, tornara-se autoconfiante em suas habilidades de vendedor.
Persuadira seus colegas diretores a expandir a produção da empresa, mas, não se
materializando suas previsões sobre um aumento de vendas no Ultramar, a firma
logo se encontrou em sérias dificuldades. Em março de 1960, entrou em
liquidação, com um passivo de trinta mil libras.

Lonsdale mostrara-se visivelmente atemorizado em face daquela situação e,


durante algum tempo, desapareceu. Dispunha, entretanto, de extraordinária
capacidade de recuperação e, poucos meses depois, já reorganizara seus
negócios. No dia 24 de fevereiro de 1960, tornara-se diretor da Master Switch
Company que obtivera a patente de fabricação de uma alavanca de distribuição
destinada a imobilizar por completo um automóvel e, assim, protegê-lo contra
roubo. Surgiram, porém, dificuldades na produção e, quando fora removido do
cenário britânico — por dificuldades muito mais sérias e de outra categoria —,
nem uma só alavanca havia ainda sido fabricada.

Justamente quando Lonsdale organizava a Master Switch Company, um oficial


da segurança naval do Almirantado começou a tomar interesse num funcionário
civil do Instituto de Armas Submarinas, de Portland, chamado Harry Houghton.
Houghton tinha a idade de cinquenta e quatro anos, e durante vinte e três servira
na Marinha Real. Em 1945, quando completara quarenta e um anos, retirara-se
do serviço com uma pensão de 250 libras por ano, enquanto vivesse. Procurara,
então, emprego e obtivera um cargo de amanuense civil no Almirantado, onde
logo causara boa impressão aos superiores.

Em 1951, Houghton fora enviado para Varsóvia como secretário de adido naval.
Tratava-se de um posto importante, pois lhe dava acesso a todo o material
secreto enviado e coletado pelo adido. Houghton, entretanto, começara logo a
passar por dificuldades domésticas. Gostava de promover festas, e a mulher, com
quem se casara em 1934, começara a fazer objeções às suas frequentes crises de
alcoolismo, decorrentes da generosa hospitalidade dos anfitriões poloneses. As
objeções da esposa evoluíram para constantes brigas, e muitas dessas discussões
se desenvolveram em público. As autoridades britânicas foram imediatamente
informadas do que estava ocorrendo e Houghton se viu chamado de volta para a
Inglaterra, onde o Almirantado cometeu uma dessas estranhas ações das quais,
de tempos a tempos, os governos são culpados.

Houghton provara não ser digno de uma posição de confiança, em face do seu
comportamento em Varsóvia, e deveriam, então, dar-lhe um posto “seguro”. Ao
invés disso, foi nomeado para o Instituto de Portland, com acesso a todas as
informações sobre os mais modernos desenvolvimentos do radar submarino —
informações pelas quais a espionagem russa pagaria qualquer preço.

Pouco depois, o casal separou-se, e Houghton se tornou amigo de uma sua


colega do Instituto, a Srta. Elizabeth Gee. Quando a amizade se transformou
numa intimidade que nenhum dos dois se preocupavam em ocultar, a Sra.
Houghton obteve o divórcio.

Por essa ocasião, Houghton deixou o alojamento do Almirantado e comprou um


pequeno cottage numa vila das imediações. Depois do divórcio, começou a fazer
melhorias na casa e a remobilou completamente, ao custo de algumas centenas
de libras. Adquiriu, também, um carro novo.

Nessa época, o oficial da segurança naval, acima referido, e Houghton


frequentavam o mesmo bar, e o que o amanuense despendia em bebidas não
deixou de intrigá-lo. Sabia que Houghton percebia um salário de 750 libras e a
pensão de 250 libras, mas esse montante parecia muito maior, já que, só naquele
bar, num ano, ele vinha gastando bem mais do que a sua renda total de mil libras.

Não dispondo de provas para promover um inquérito, o oficial da segurança


solicitou, a um amigo no CID local, que fizesse investigações em torno de
Houghton. Dentro de pouco tempo, o detetive informou que Houghton, de fato,
vinha gastando em bebidas muito mais do que ganhava e, além disso, havia pago
as melhorias em sua casa e o seu novo carro em notas de uma e cinco libras, o
que foi julgado suficiente para se pedir a intervenção do MI5.

Assim, de março de 1960 a l.° de janeiro de 1961, Houghton e a Srta. Gee


ficaram sob estrita vigilância. Essa vigilância revelou que, com frequentes
intervalos — habitualmente nas tardes de sábado —, ele, às vezes acompanhado
da Srta. Gee, seguia de trem para Londres, onde se encontrava com um
indivíduo, logo identificado como sendo Gordon Lonsdale. Nem foi difícil
descobrir que Houghton, invariavelmente, entregava um pacote a Lonsdale e, em
retorno, recebia, um envelope.

Nessas condições, pelo período de nove meses, o MI5 acumulou provas contra
Houghton e, quando seus chefes julgaram o momento oportuno, entregaram o
caso à Divisão Especial da Scotland Yard, para ação posterior. Aconteceu,
entretanto, que, na tarde de sábado, de 7 de janeiro de 1961, o superintendente da
Divisão Especial, George Smith, e alguns outros policiais prenderam Lonsdale,
Houghton e a Srta. Gee, em frente ao teatro Old Vic.

Na Scotland Yard, depois das habituais preparações, Smith voltou-se para


Lonsdale, a fim de interrogá-lo, mas, antes que pudesse falar, o detido,
displicente e sorrindo, disse-lhe: “A qualquer pergunta que me possa fazer,
minha resposta será não e, nestas condições, não terá necessidade de se
incomodar em me interrogar.” Durante as longas e subsequentes horas de
interrogatório, Lonsdale, de fato, firmemente se conservou em silêncio.

Numa cesta de palhinha que a Srta. Gee trazia, foram encontrados, entretanto,
dois embrulhos contendo documentos dos arquivos do Almirantado. Nos bolsos
de Lonsdale achavam-se dois envelopes: um, contendo quarenta libras em
dinheiro — o que representava o “salário” de Houghton —, e no outro achavam-
se quinze notas de vinte dólares americanos.

Desde que não obtinha qualquer cooperação por parte de Lonsdale, Smith
decidiu recorrer às pessoas que o conheciam. Por mera coincidência, escolheu
para sua primeira visita um bangalô, situado em Cranley Drive, em Ruislip,
cujos donos eram um casal de meia-idade — Pater e Helen Kroger — que,
segundo acreditavam seus vizinhos, constituía-se de canadenses que haviam
vivido, durante algum tempo, na Suíça, antes de virem estabelecer-se na
Inglaterra, em dezembro de 1954. Kroger, especialista em livros antigos,
estabelecera um lucrativo serviço de reembolso postal, que operava do seu
próprio bangalô.

Peter Kroger abriu a porta para o superintendente Smith e, quando este se


identificou, solicitou-lhe que entrasse. George Smith entrou, acompanhado do
Inspetor-Chefe Ferguson Smith e o sargento da Polícia Feminina, Winterbottom.

Após rápidas preliminares, o superintendente Smith perguntou à Sra. Kroger se


ela podia dar-lhe os nomes das pessoas que tinham estado no bangalô, nos
últimos seis meses. A Srta. Kroger enumerou uma lista, mas não incluiu o nome
do visitante mais frequente, que era justamente Lonsdale. Por causa dessa
omissão, o superintendente logo constatou que ela mentia. Disselhes, então, ser
obrigado a solicitar-lhes que o acompanhassem à Scotland Yard. Até aquele
momento, não alimentara maiores suspeitas em relação aos Kroger.

Em face do convite, a Sra. Kroger não criou qualquer dificuldade. Vestiu um


casaco, apanhou sua bolsa e indagou: “Como vou ficar fora por algum tempo,
posso ir apagar o aquecedor?”

— Certamente — respondeu Smith —, mas, primeiro, deixe-me ver o que a


senhora tem em sua bolsa.

A Sra. Kroger recusou-se a fazê-lo, e somente após uma luta feroz ele conseguiu
apoderar-se da bolsa. Em seu interior, escondidos no rebordo interno, o
superintendente encontrou um envelope, sem quaisquer dizeres, dentro do qual
havia uma carta em russo, de seis páginas, um slide contendo três micro-pontos e
uma folha de papel datilografada em código. Smith prendeu então os Kroger, sob
suspeita de espionagem.

As buscas realizadas nos quartos dos cinco detidos revelaram a existência de


grande quantidade de dinheiro. No quarto da Srta. Gee acharam-se panfletos do
Almirantado; no cottage de Houghton, cartas marítimas, vendo-se assinaladas as
áreas, e sua localização, destinadas a experiências secretas; e, no apartamento de
Lonsdale, em The White House, existiam cifras de codificação e outros
equipamentos de espionagem. Foi, porém, o bangalô dos Kroger que revelou a
mais fascinante evidência de todas — um poderoso radiotransmissor escondido
no chão da cozinha, cifras de codificação e um equipamento para fazer micro-
pontos e muitas outras coisas.

O julgamento desses cinco espiões realizou-se em Old Bailey, no dia 18 de


março de 1961. Lonsdale foi condenado a vinte e cinco anos de prisão; os
Kroger, a vinte cada um; Houghton, a quinze anos, e a Srta. Gee, a quinze.

Durante o desenvolvimento do processo, o procurador-geral fez surpreendentes


revelações em relação aos Kroger. Seus nomes verdadeiros eram Morris e Lorna
Cohen. Até 1950, vinham realizando encontros regulares com Julius e Ethel
Rosenberg, os espiões atômicos executados em 1953. O FBI só soubera dessa
conexão muito tarde, pois, quando seus agentes procuravam os Cohen, eles já
haviam desaparecido. De fato, o FBI perdera a pista desses espiões, e os seus
nomes só surgiram outra vez quando o Coronel Abel foi preso, em 1957. Com
efeito, tinham ido dos Estados Unidos para a Austrália com passaportes falsos, e
ali permaneceram pelo período de três anos. Da Austrália, transferiram-se para a
Suíça, e desse país seguiram, em dezembro de 1954, para a Inglaterra, sempre
com passaportes canadenses falsos.

Lonsdale recusou-se a falar durante o tempo todo, nada dizendo, mesmo, sobre
sua verdadeira identidade. Até alguns anos mais tarde, tudo o que as autoridades
de segurança sabiam a seu respeito era que não se tratava de um canadense e que
seu verdadeiro nome não era Gordon Arnold Lonsdale. Inquéritos realizados
revelaram que existiu, de fato, um Gordon Arnold Lonsdale, nascido no dia 27
de agosto de 1924, em Kirkland Lake, em Ontário. Seu pai, canadense, fora
negociante de madeiras e biscateiro; e sua mãe, finlandesa, imigrara para o
Canadá com a família, antes do casamento com Lonsdale.
O falso Lonsdale, ao ser preso, tinha um passaporte canadense, e tratava-se de
um passaporte legítimo. Quando os ingleses solicitaram às autoridades do
Canadá que investigassem a emissão daquele passaporte em favor de Lonsdale,
em 1954, descobriu-se que fora obtido através da apresentação de um certificado
de nascimento, emitido pouco tempo antes, em Kirkland Lake. O pai do
verdadeiro Lonsdale declarou à polícia que se separara da esposa um ano após o
nascimento de seu filho Gordon Arnold. A Sra. Lonsdale permanecera no
Canadá até 1932, quando retornara à Finlândia com o filho, então de oito anos.
Desde a ocasião, ele nunca mais tivera notícias tanto da antiga esposa quanto do
filho.

As autoridades canadenses e britânicas acreditam que o Verdadeiro Gordon


Lonsdale tenha morrido antes de completar trinta anos, isto é, antes de 1954, e
que sua morte e seu passado deveriam ser conhecidos do Centro. Julgam,
também, que Lonsdale chegara ao Canadá antes de 1954, embora seja
impossível dizer sob que disfarce levara instruções para obter um genuíno
passaporte. Um documento dessa natureza é rapidamente obtido no Canadá,
mediante a apresentação de certidão de nascimento, e essas certidões geralmente
se emitem sem maiores indagações sobre se se referem, de fato, às pessoas que
as solicitam.

Uma circunstância, de certo modo bizarra, fez com que as autoridades britânicas
concluíssem que seu prisioneiro não era o verdadeiro Lonsdale. Durante as
investigações, a Real Polícia Montada do Canadá descobrira o médico que
assistiu ao nascimento do filho da Sra. Lonsdale. Esse ginecologista, Dr. W. E.
Mitchell, que clinicava em Toronto em 1961, recordara-se bem desse parto, pois
tivera de viajar muitas milhas em estradas intransitáveis para chegar à isolada
casa dos Lonsdale. Essa circunstância levou-o a rever velhos registros, e neles
estava anotado que, poucos dias após o nascimento da criança, foi necessário
circuncidá-la.

O Lonsdale, mais tarde trocado pelo homem de negócios britânico, Wynne, não
é circuncidado.

Embora as investigações realizadas não revelassem a existência de outros


agentes além dos detidos, as autoridades britânicas sempre se mostraram
inclinadas a pensar que Lonsdale era o Diretor-Residente de uma rede. Tratava-
se realmente de um espião de grande habilidade e, caso houvesse observado com
maior rigor as normas de segurança, como o fazia o Coronel Abel, poderia ainda
estar operando. Lonsdale recrutara Houghton, e essa iniciativa representara um
erro de julgamento. Houghton era instável de caráter e não dispunha de qualquer
qualidade inata para ser um agente. Cometera mais outro grave erro, levando,
pessoalmente, ao bangalô dos Kroger, as informações que vinha obtendo para
serem transmitidas a Moscou. Se se tivesse utilizado de um “isolador”,
certamente a Divisão Especial nunca teria descoberto os Kroger.

A prisão de Lonsdale constituiu, sem dúvida, um irreparável revés para a


espionagem soviética.
3. George Blake e John Vassall

O volume exato das informações que George Blake, funcionário público inglês e
antigo agente da Inteligência Militar, transmitiu à espionagem soviética
provavelmente nunca será conhecido. E se isso, um dia, vier a ser sabido, só o
será pelos historiadores do futuro, quando o próprio agente já houver sido
esquecido e, talvez, a União Soviética tenha desistido de fazer espionagem.

A importância da atuação de George Blake contra a segurança da Grã-Bretanha


pode ser avaliada através das palavras do presidente do Tribunal de Justiça ao
condená-lo, após um dos mais rápidos julgamentos da História britânica e que se
tomou notável pela repercussão que teve.

“Sua confissão, inteiramente escrita, revela que, por alguns anos, o acusado
trabalhou continuamente como agente secreto e espião para uma potência
estrangeira. Além disso, as informações que transmitiu, embora não fossem de
natureza cientifica, eram da maior importância para aquela potência e tornaram
inúteis muitos dos esforços realizados por este país. Na verdade, como o acusado
revelou em sua confissão, não havia qualquer documento oficial de relevância ao
qual não tivesse acesso, e todos foram transmitidos aos seus aliados russos.
Quando se pensa que o acusado é um súdito britânico — muito embora não o
seja por nascimento — e, enquanto exerceu suas atividades em favor da Rússia,
era funcionário do governo da Grã-Bretanha, que é a sua pátria, ocupando
posição de responsabilidade e de confiança, torna-se evidente que seu
comportamento deve ser classificado como traição. De fato, é um dos casos de
maior gravidade que podem ocorrer, exceto em tempo de guerra. Seria
claramente contrário ao interesse público se, ao condená-lo, eu revelasse o texto
integral de sua confissão. Entretanto, posso dizer, sem hesitação, que qualquer
pessoa que houvesse lido esse documento chegaria a idêntica conclusão. Ouvi
tudo o que, com tanto brilho, foi dito a favor do acusado e plenamente lamento
que muitas atenuantes não possam igualmente ser divulgadas; devo, porém,
declarar que estou perfeitamente convencido de não ter sido por dinheiro que o
acusado cometeu todos esses crimes. O que o levou a praticá-los foi sua genuína
crença no sistema comunista. Julgo que cada um tem o direito de possuir suas
próprias opiniões, mas a agravante, que pesa contra o acusado, é que ele nunca
pediu demissão do cargo, que procurou conservar a posição de confiança que
ocupava, com o objetivo de atraiçoar sua pátria. O acusado ainda não tem trinta e
nove anos de idade. Deve saber calcular a gravidade dos crimes pelos quais
responde. Indubitavelmente, em muitos outros países, uma conduta idêntica
acarretaria a pena de morte. De acordo com a nossa legislação, não tenho outra
opção, pois, senão condenar o réu à prisão, e, dada a sua ação de traidor, estendê-
la por muitos anos, de forma que possa ser uma sentença pesada. Por um simples
crime dessa natureza, a mais alta penalidade imposta pela lei é de quatorze anos
de prisão, e a Corte não pode, portanto, mesmo se assim o quisesse, condená-lo à
prisão perpetua.”

Seguiu-se, então, uma das mais estranhas sentenças jamais impostas por um
tribunal inglês, em tempo de paz; sentença que, na opinião de muitos, e inclusive
na do autor deste livro, foi absolutamente injusta. Ela revela o caráter de uma
condenação política — uma iniciativa para aplacar as críticas dos norte-
americanos, que ameaçavam interromper o intercâmbio de informações atômicas
com os ingleses, caso a contraespionagem britânica não tomasse medidas
rigorosas de segurança, embora a própria contraespionagem nos Estados Unidos
não se mostrasse nada eficiente.

E Lorde Park concluiu: “Existem, entretanto, cinco pontos dos quais o acusado
se confessou culpado, e cada um está relacionado com um diferente período de
sua vida, durante a qual vinha atraiçoando a pátria. A Corte o condenará, então, a
uma sentença de quatorze anos de prisão para cada um desses pontos. Em
relação aos pontos um, dois e três, a sentença será consecutiva, e, no que diz
respeito aos pontos quatro e cinco, será concorrente, perfazendo um total de
quarenta e dois anos de prisão.”

Com ligeira inclinação de cabeça para o tribunal, George Blake ergueu-se e


desceu lentamente os degraus que vão do recinto dos julgamentos até as celas,
que se encontram no andar inferior, para iniciar o cumprimento da sentença que,
se conseguir cumpri-la, o restituirá ao mundo com a idade de oitenta anos.

George Blake, que nasceu no dia 11 de novembro de 1922, em Roterdã, era filho
de Albert e Catherine Behar. Seu pai descendia de antiga e aristocrática família
judaica e sua mãe pertencia, igualmente, a boa linhagem holandesa Depois de
frequentar, por algum tempo, uma escola holandesa, após a morte do pai, em
1936, e obediente aos desejos paternos manifestados na agonia, foi enviado para
viver com parentes no Egito, onde frequentou a Escola Inglesa, no Cairo.

Depois de dois anos ali, voltou para a Holanda, matriculando-se numa escola
superior de Roterdã. Frequentava ainda essa escola quando, em maio de 1940, os
nazistas invadiram a Holanda. No primeiro dia da invasão, a Sra. Behar e suas
duas filhas fugiram para a Inglaterra. A família combinara tomar essa atitude
antes que a invasão fosse desencadeada e, nessa ocasião, George havia decidido
permanecer no país, a fim de concluir seu curso na escola. A permissão lhe fora
dada, já que um seu tio assumira o compromisso de por ele zelar. George
prosseguiu então em seus estudos e, quando completou o curso, tornara-se um
dos primeiros membros da Resistência Holandesa. Nessa atividade, adquirira a
reputação de ter coragem e de ser astucioso. A Gestapo, porém, logo se pôs em
seu encalço, e ele escapou para a Inglaterra, viajando via França e Espanha. Ao
chegar à Inglaterra, mudou seu nome para Blake, incorporando-se, como
voluntário, à Marinha Real. Sua ambição, entretanto, era fazer parte da
Inteligência, e os esforços que realizou nesse sentido obtiveram êxito. Foi
designado para o SOE, e ali recebeu o devido treinamento. Ao concluir o estágio
preparatório, deram-lhe, para seu desapontamento, um cargo de amanuense.

Na primavera de 1944, entretanto, Blake foi aproveitado como intérprete no


quartel-general do recém-formado SHAEF, e comissionado como subtenente no
RNVR, onde seus deveres consistiam principalmente em traduzir e interpretar
documentos alemães que caíam constantemente em mãos dos aliados.

Logo depois da cessação das hostilidades na Europa, ele foi transferido para
Hamburgo. Era encarregado, ali, de uma pequena unidade de Inteligência, com
instruções para prender e interrogar todos os comandantes de submarinos que
pudesse encontrar. Levou a efeito essa tarefa com brutal eficiência. Quando esse
trabalho terminou, foi chamado de volta à Inglaterra e, por recomendação do
Foreign Office, obteve seu desligamento do RNVR e se matriculou na
Universidade de Cambridge, onde aprendeu russo, ostensivamente para exercer
um cargo no Serviço Exterior, mas, de fato, para ser agente secreto sob ordens
do MI 6.

Havendo concluído esse curso com êxito, foi designado para servir em Seul, na
Coréia, como vice-cônsul, sob as ordens do encarregado de Negócios, que era o
Capitão (mais tarde Sir) Vyvyan Holt.

Quando começou a guerra da Coréia e as tropas comunistas entraram na cidade,


Blake, juntamente com o Capitão Holt e outros membros da colônia britânica ali
estabelecidos, foi detido. Na prisão, todos os seus colegas de encarceramento
fizeram confissões, mas Blake sempre constituíra um exemplo de coragem e
fortaleza de ânimo. O encarceramento de autoridades diplomáticas e consulares
contrariava todos os usos de guerra, e o governo britânico iniciou imediatamente
negociações para a libertação tanto do Capitão Holt como de seus companheiros.
Os comunistas, porém, se negavam a deixá-los ir. Enquanto se arrastavam as
negociações, submeteram alguns prisioneiros ao processo de lavagem cerebral.
De acordo com as declarações de seus amigos desse tempo, Blake resistiu, mais
uma vez, a todas essas tentativas. Entretanto, segundo se sabe hoje, essa
experiência representou o ponto decisivo em sua vida.

Certa vez, tramou uma fuga, mas foi preso. Esteve diante de um pelotão de
fuzilamento, acusado de ser espião. Quando a ordem de “fogo” estava para ser
dada, gritou em russo: “Não sou espião. Sou um civil internado, um diplomata
britânico. Saí do campo de Man-po e perdi o caminho de volta.” Por um golpe
de sorte, o oficial norte-coreano, encarregado do fuzilamento, havia sido
treinado na Rússia e entendeu o que ele dissera. Imediatamente, dispersou o
pelotão e, levando Blake para um canto, manteve com ele longa conversa em
russo. Discutiram sobre o que julgavam certo ou errado no desenvolvimento da
guerra. Após essa entrevista, o norte-coreano o devolveu ao campo, com uma
advertência no sentido de que não tentasse fugir outra vez.

Quando a cessação das hostilidades foi acertada, na primavera de 1953, os


sobreviventes do grupo britânico foram postos em liberdade. Chegando à
Inglaterra, Blake teve entusiástica acolhida no Foreign Office. Consideraram-no
um modelo das mais altas tradições do serviço no exterior. Se se tratou de uma
recompensa por sua atuação na Coréia, isso nunca foi revelado, mas o fato é que
a sua velha ambição de ser agente secreto pôde ser realizada. Blake foi
transferido para o MI 6.

Tratava-se de uma designação extremamente singular. Estipulava o regulamento


que os oficiais do MI 6 deveriam ser de ascendência inteiramente britânica. Que
houve, então, para que o regulamento fosse contornado no caso de Blake? Trata-
se de um mistério que nunca foi desvendado.
Durante algum tempo, Blake trabalhara no Foreign Office, onde conhecera uma
colega de trabalho e por ela se apaixonara. Casaram-se em outubro de 1954 e,
pouco depois, recebera a comunicação de que fora designado para o
departamento MI 6, do Serviço Secreto Britânico, como adido ao comandante do
Setor Britânico, em Berlim.

Assumiu suas novas funções em abril de 1955, e seu primeiro filho nasceu no
ano seguinte, na antiga capital do Reich. Em Berlim, os Blake se conservavam
afastados da vida social que esplendia em torno deles. E, quando acontecia que
George chegasse tarde a casa, embora explicasse à esposa que aqueles atrasos
eram impostos pelo desempenho das suas funções, ela nunca aceitava as
explicações, e esses fatos começaram a ter reflexos sobre a harmonia do casal.

Com efeito, suas ausências de casa não eram impostas por suas funções. Logo
que chegara a Berlim, vira-se envolvido com um agente duplo, o qual, embora
trabalhando ostensivamente para os russos, tinha seu nome igualmente na folha
de pagamento dos britânicos. O próprio Blake fizera diversas viagens ao Setor
Oriental de Berlim, para se avistar com esse agente. Se tivesse recebido um
adequado treinamento para desempenhar as funções de agente secreto, saberia,
com toda certeza, que aquele comportamento não deixava de ser perigoso. De
fato, essa conduta, na Alemanha, e principalmente em Berlim — avassalada,
naquela época, pela espionagem soviética —, resultou fatal.

Blake, porém, não deve ser inteiramente responsabilizado pelo que aconteceu.
De acordo com as instruções de seus superiores, estabelecera contato também
com outro suposto delator, chamado Horst Eitner. Logo uma amizade aproximou
os dois agentes, e isso ocorreu não muito antes que Blake, que fora submetido a
uma súbita conversão ao comunismo, enquanto se achava na Coréia, em 1951, e
planejara tornar-se agente soviético quando as circunstâncias o permitissem, se
tornasse, ele próprio, em realidade, um agente duplo.

As informações que transmitiu aos russos eram de suficiente importância para


que eles lhe permitissem conservar a confiança de seus superiores britânicos,
dando-lhes informes sobre alguns espiões soviéticos, de pequena categoria. Os
ingleses, entretanto, começaram a se mostrar preocupados pelas indicações de
que seus próprios desígnios mais secretos, e os dos seus aliados obviamente,
eram do conhecimento dos russos. Blake, porém, era a última pessoa a ser
suspeitada de ter qualquer participação naquela traição dos segredos políticos
dos aliados.
Nessas condições, durante três anos Blake realizou seu jogo duplo em Berlim.
Entretanto, inquietou-se, naquela época, em face de uma descoberta que fizera.
Horst Eitner era, igualmente, agente russo. Desde esse momento, tudo fez para
ser retirado de Berlim. Seus superiores, no entanto, resistiram, julgando-o útil na
capital alemã. Após sucessivas tentativas, convencera finalmente os ingleses de
que os russos suspeitavam que ele fosse um agente duplo e, por motivos de
segurança, deveria, portanto, ser retirado de Berlim.

Assim, os Blake retornaram à Inglaterra. Instalaram-se nas imediações de


Bromley, em Kent, de onde diariamente ele viajava até o Whitehall. Naquela
época, fora informado de que, se o desejasse, poderia ser designado para um
posto no Oriente Médio. Aceitou, com satisfação, a proposta. E, em setembro de
1960, acompanhado da família, chegou a Beirute, no Líbano. Antes de assumir
suas novas funções, porém, deveria fazer um curso no Colégio de Estudos
Árabes do Oriente Médio, dirigido pelo Foreign Office. Esse estabelecimento
proporcionava um treinamento especial aos enviados pelo serviço secreto inglês
que iam ocupar postos naquela região.

Pouco depois de Blake chegar a Beirute, embora não o soubesse, seu velho
amigo Horst Eitner fora desmascarado, e os ingleses o haviam prendido. Durante
seu interrogatório, por volta de meados de fevereiro de 1961, revelara que Blake
era um agente que trabalhava para os russos. E o pior: apresentara provas de que
estava falando a verdade.

O primeiro-ministro, ao ser informado, dera ordens para que Blake fosse


chamado a Londres, a fim de ser interrogado. Blake não tinha a menor idéia de
por que deveria ir à Inglaterra, e embarcou satisfeito. Ao chegar a Londres,
soube, pela primeira vez, da prisão de Eitner e das acusações que lhe eram feitas.
Em face de tais provas, julgou melhor confessar tudo por escrito.

No dia 22 de abril de 1961, o Chief Metropolitan Magistrate divulgou um


comunicado, declarando laconicamente que George Blake, funcionário do
governo, ia ser submetido a julgamento, sob três acusações, de acordo com a Lei
de Segredos Oficiais. A gravidade do caso logo se tornou patente. D-noticies —
proibição da publicação de qualquer informação relativa a uma causa específica,
por motivo de segurança — foram emitidas. O sigilo, mantido até que Blake
fosse julgado, deu lugar, entretanto, a rumores e conjecturas. E, como as
autoridades se mantiveram silenciosas em face da curiosidade pública, criou-se
uma atmosfera de desconfiança, prejudicial ao bom nome do governo. Embora
nenhuma indicação houvesse sido dada sobre as informações que Blake
fornecera aos russos, não foi difícil conjecturar-se a natureza das mesmas,
quando foram divulgadas as palavras do presidente do Tribunal de Justiça: “. .
.que tomaram inúteis muitos dos esforços realizados por este país.”

O período que Blake passara em Berlim fora de grande atividade diplomática. É


que, ali, iria realizar-se, dentro em breve, a Conferência de Cúpula. Durante os
preparativos dessa reunião, que se prolongaram por vários meses, o Serviço
Secreto Britânico recebera um número enorme de perguntas relacionadas com
todos os aspectos do problema de Berlim. Blake examinara a maioria dessas
perguntas e preparara, ou ajudara a preparar, muitas respostas.

Se, com sua atitude, tornou infrutíferas todas as tentativas realizadas para se
chegar a um acordo na Conferência de Cúpula, mesmo assim não justificava a
estranha sentença que o condenou. Na atmosfera que prevalecia na época, talvez
essa sentença pudesse ser considerada; justa. Por outro lado, a influência daquela
atmosfera impedia igualmente que os russos pudessem fazer qualquer concessão
em relação ao problema de Berlim ou procurassem chegar a uma solução,
mesmo sem a intervenção de Blake.

A insinuação de que a sentença fora uma satisfação dada aos norte-americanos


não é sem fundamento, quando se considera o seguinte trecho de um editorial do
New York Herald Tribune:

George Blake conhecia todos os planos, todas as manobras da tática que os


aliados iriam pôr em prática, todos os projetos que o Ocidente elaborara para os
problemas de Berlim e da Alemanha. . . No futuro, os Estados Unidos devem
reter do conhecimento do governo britânico seus segredos, já que a Grã-
Bretanha não passa de uma peneira. . .

O proprietário do Herald Tribune era John Hay Witney, antigo embaixador


norte-americano em Londres.

A segurança britânica, entretanto, não era mais vulnerável do que a segurança de


qualquer dos seus aliados, mesmo a dos Estados Unidos. O caso do Coronel
Abel, os acontecimentos na Alemanha Ocidental e na França e o que ocorrera
em muitos países integrantes da OTAN provaram-no suficientemente. As
autoridades britânicas, porém, cederam à pressão, determinada pelo medo,
embora sem qualquer base sólida. A omissão de seus aliados, em relação a
assuntos de segurança, deveria ter sido Ousadamente ressaltada. Ao invés disso,
os ingleses se curvaram, oferecendo um placebo, e, assim fazendo, cometeram o
crime de realizar uma vingança perfeitamente injustificável.

Hoje, que o medo já passou, e quando outros homens têm a responsabilidade de


defender os destinos ingleses, já é tempo de se fazer alguma coisa no sentido de
restabelecer o bom nome da Justiça britânica. Felizmente para todos nós, a
espionagem realizada em tempo de paz, de acordo com a legislação inglesa, não
é considerada crime capital. Naturalmente, Blake era culpado de trair o seu país
e, por isso, deveria ser severamente punido. Mas, se sua sentença fosse revista e
reduzida para o mesmo nível das que foram impostas a Nunn May e Fuchs —
que causaram muito maior dano à democracia — pelo menos um sentimento de
esperança substituiria o que é, hoje, uma consciência de desespero; um estado de
alma muito mais terrível do que mesmo o conhecimento de que se deve morrer
dentro de determinado tempo.

A prisão e o encarceramento de George Blake, ocorrendo cinco semanas após o


julgamento, e a condenação dos espiões de Portland provocaram em cada inglês,
como provavelmente nenhum outro acontecimento poderia fazê-lo, a impressão
de que a Grã-Bretanha se encontrava sob intensa pressão da espionagem russa.
Os casos, certamente, tiveram repercussão no Centro. Esta organização perdera
seis dos seus agentes de alta categoria, em curto período de tempo, resultando
desse desfalque que um sétimo espião, também de grandes qualificações,
recebesse ordem de Moscou para suspender, por algum tempo, suas atividades.

O caso de Portland teve, como uma de suas consequências, a instituição de um


Comitê de Inquérito, sob a presidência de Sir Charles Romer, antigo presidente
do Tribunal de Apelação, e que tinha por objetivo investigar a causa dos lapsos
de segurança no Interior do Almirantado — lapsos estes que tornaram possível a
Harry Houghton ser nomeado, apesar do seu passado, para um posto que lhe
dava acesso a segredos de grande interesse para os russos e lhe permitiram
espionar, durante tão longo tempo, sem ser descoberto. O relatório do Comitê
Romer selecionou os fatos e responsabilizou, muito justa e firmemente, os que
eram culpados.

Não deixou de constituir uma coincidência que tal coisa tivesse acontecido no
caso de George Blake, embora outro departamento governamental estivesse
envolvido. Qualquer pessoa que, como aconteceu a Blake na Coréia, tenha
sofrido uma lavagem cerebral, não deveria ser recrutada pelos serviços de
Inteligência e, muito menos, ser designada para operar em Berlim,
principalmente naquela época. Essa designação só se poderia dar depois de ficar
absolutamente provado que o recrutado não fora, de fato, afetado por tal
tratamento.

Os erros cometidos pelo veterano departamento de contraespionagem poderiam,


entretanto, ser mais prontamente desculpados no caso de Blake, já que as
informações que seus dirigentes receberam haviam-lhes sido fornecidas por
homens honestos e dignos de confiança. Esses homens consideravam Blake uma
força de que podiam dispor, numa época de grande tribulação física e de grande
desgaste mental. Não obstante essa atenuante, o processo de escrutinização do
passado de Blake foi tão precário quanto o levado a efeito no caso de Portland.
Essa omissão fora compreendida pelas autoridades e, quando o Comitê Romer
divulgou seu relatório, as forças de segurança logo procuraram corrigir as falhas
do seu serviço de contraespionagem.

As alterações introduzidas nas rotinas de triagem dos recrutados eram, segundo


tudo indicava na época, destinadas, entretanto, a ter execução no futuro. De fato,
não ocorreu a qualquer autoridade a conveniência de serem revistos todos os
casos em que os antecedentes de um agente pudessem configurá-lo como espião
soviético em potencial e se achasse já em plena atividade. Se essa providência
houvesse sido tomada, John Vassall poderia ter sido neutralizado, pelo menos
um ano, se não dezoito meses mais cedo do que o foi.

Vassall era filho de um clérigo da Igreja Anglicana. Trabalhara durante algum


tempo num banco, quando, aos dezesseis anos, deixara o colégio. Odiava o
trabalho no banco e, nessas condições, voltara suas vistas para o serviço público.
Tornara-se amanuense interino, grau III, no Almirantado. Afastou-se
temporariamente desse emprego em 1943, quando se inscreveu na RAF, na qual
serviu como fotógrafo. Após a desmobilização, retornou ao Almirantado e, a
partir do início de 1948, passou n ocupar o cargo de oficial administrativo.

Vassall nunca se distinguira, de modo particular, como oficial administrativo, e


não iria obter êxito em subir na lista de promoções. De fato, não deixa de ser
estranho que, no serviço público, um funcionário de tão baixo nível pudesse ter
acesso a alguns dos mais importantes segredos de Estado. Em 1953, Vassall viu-
se colocado exatamente nessa posição. Fora designado para a embaixada
britânica em Moscou, e suas funções eram as de auxiliar do adido naval.

Vassall revelava uma deficiência que deveria ter impedido sua escolha para
servir em Moscou. Era homossexual. Embora ninguém carregue um rótulo com
indicações dos seus desvios sexuais, Vassall, entretanto, era o tipo do
homossexual que qualquer pessoa com experiência do mundo logo reconheceria.
Por causa dessa anomalia, tornou-se um homem solitário em Moscou. E, por ser
um solitário e um homossexual, automaticamente se revelava o tipo de homem
ao qual a espionagem soviética sempre dá grande importância. Assim, os
dirigentes russos logo exploraram a solidão em que ele vivia. Convidaram no
para festas; colocaram-no em comprometedoras situações sexuais, nas quais foi
fotografado; e, então, sob a ameaça de divulgar aquelas fotografias, fizeram com
que concordasse em trabalhar para eles.

Essa é a história de Vassall, e não existem razões para que não se deva julgá-la
verdadeira. Por outro lado, a ameaça de chantagem não desculpa seu acordo em
espionar para os russos. O Centro apoderara-se dele. Antes que desembarcasse
em Moscou e antes mesmo que a segurança britânica o soubesse, já os dirigentes
do Centro tinham informações das suas tendências homossexuais e de que se
tratava, também, de um homem fraco e pretensioso, que tentava compensar as
falhas de sua existência, movimentando-se num ambiente social que se pode
descrever como “acima dele”. Para fazer frente ás despesas nesse ambiente
superior, Vassall necessitava de um salário maior do que as 15 libras semanais
que percebia na embaixada. O Centro prometeu-lhe, então, uma boa recompensa
financeira, caso lhe fornecesse informações valiosas.

Por volta de setembro de 1955, John Vassall começou a operar. Retirava


documentos secretos do escritório do adido naval e os entregava a um agente
soviético, que imediatamente os fotografava. Feito isso, os documentos eram
devolvidos a Vassall, que, por sua vez, os repunha nos arquivos, antes de alguém
dar pela falta.

Essa manobra se prolongou pelo período de dez meses. A utilidade de Vassall


para o Centro poderia ter cessado em julho de 1956, quando foi chamado de
volta à Inglaterra. O Centro, porém, estava com sorte. Vassall, ao chegar à
Inglaterra, não somente foi designado para um cargo no Almirantado, que lhe
dava acesso a documentos secretos — a Divisão de Inteligência Naval —, mas
também as informações às quais tinha então acesso eram ainda mais importantes
do que as que, antes, extraíra do escritório do adido naval em Moscou.

A situação se prolongou por dois anos, e então seguiu-se um período durante o


qual Vassall já não se mostrava tão útil. É que fora designado para o escritório
particular do Lorde Civil do Almirantado, onde suas funções eram mais ou
menos as de valet-de-chambre do chefe — emprego este que se ajustava
perfeitamente ao seu temperamento. O Centro vinha cumprindo a promessa no
que dizia respeito às recompensas financeiras, e Vassall, amanuense que percebia
apenas 15 libras semanais, podia dar-se ao luxo de viver numa das áreas mais
exclusivas e dispendiosas de Londres — Dolphin Square —, onde alugara um
pequeno apartamento que mobiliara com gosto e enchera de custosas
antiguidades. Esse fato devia chamar a atenção da segurança do Almirantado,
pois Vassall estava-se comportando exatamente como Harry Houghton, embora
com muito maior desembaraço. Alguns dos seus colegas notaram aquele
dispendioso padrão de vida. A explicação de Vassall, de que recebera uma ou
duas pequenas heranças de velhas que eram suas amigas, foi, entretanto,
considerada satisfatória. Em face disso, nenhuma investigação se levara a efeito.

Depois de haver cuidado do conforto pessoal do Lord Civil por dois anos e seis
meses, em outubro de 1959 Vassall foi transferido de novo e, desta vez, para um
departamento que iria torná-lo ainda mais útil para o Centro. Designaram-no
para a seção que tratava dos assuntos da Esquadra na Segunda Divisão Militar
— o Secretariado do Pessoal Naval — e ali mais uma vez passara a ter acesso à
maioria dos segredos do Almirantado. Transitavam por suas mãos informações
referentes a radar, a torpedos, a armas antissubmarinos e a experiências de
artilharia, assim como boletins sobre táticas e manobras dos aliados e,
igualmente, instruções táticas e operacionais da Armada.

A diferença operada em seu modo de espionar era que, então, fotografava os


documentos, para o que fora equipado pela RAF. Obedecia, com rigor, às normas
de espionagem que lhe haviam sido ensinadas em Moscou. Nestas condições,
pôde agir, com absoluta segurança — exceto durante um ano, quando deixara de
operar após o caso Portland, de acordo com instruções do Centro —, até
setembro de 1962, quando foi preso.

Depois de parte da verdade se tornar conhecida, verificou-se que, embora os


lapsos de segurança no caso de Vassall tivessem sido muito mais graves do que
nos de Houghton e Blake, mesmo assim, ele se revelara um ótimo agente. A
verdade é que, por mais de seis anos, entregara segredos a Moscou, com pleno
êxito, antes que começasse a se tornar suspeito. E mesmo essa desconfiança
poderia não ter surgido, se o caso de Blake não provocasse a constituição de
ainda outro comitê de investigações — o Comitê Radcliffe —, com a finalidade
de fazer averiguações sobre a organização e o sistema de trabalho de todos os
departamentos de segurança. Como resultado das atividades desse comitê, e em
face das sugestões feitas para a melhoria do sistema de trabalho daqueles
departamentos, o pessoal da segurança do Almirantado procedera ao
levantamento de todos os seus integrantes. Em consequência dessa investigação,
o background de Vassall fora anotado, tendo ele sido posto sob vigilância.
Assim, acabou desmascarado.

Não foi possível a Vassall negar o que vinha fazendo. Em seu apartamento — ao
ser revistado — encontraram-se cópias de dezessete documentos do Almirantado
e, naturalmente, seu equipamento de fotocópia. Por outro lado, segundo se diz,
ele próprio confessou tudo o que sabia.

Após haver sido julgado pelo tribunal de Old Bailey, Vassall acabou condenado a
dezoito anos de prisão — sentença esta que focalizou, mais uma vez, a injustiça
dos quarenta e dois anos de prisão impostos a George Blake.

O escândalo do caso Vassall foi salutar por dois motivos. Fez com que o público
tivesse consciência de que os políticos não são os modelos de virtudes que
habitualmente procuraram aparentar, de forma que o povo possa admirá-lo; e,
em segundo lugar — e de forma mais construtiva —, esse caso provocou um
endurecimento na observância das normas de segurança, por parte das
autoridades britânicas. Espera-se, agora, que a lição aprendida seja lembrada por
muito tempo, embora se deva levar em conta que a memória oficial geralmente
se revela de tão breve duração quanto pouco merecedora de confiança.
Nona Parte
ALGUMAS BREVES
OBSERVAÇÕES
Algumas Breves Observações

As páginas precedentes devem ser consideradas apenas um relato das principais


atividades da espionagem soviética, nos primeiros quarenta anos de sua
existência. Para se fazer um completo levantamento de tudo o que sobre ela hoje
se sabe, seriam necessários vários volumes. Esperamos, entretanto, haver
apresentado um honesto retrato da evolução e das realizações desse serviço
secreto. Se, de fato, atingimos esse objetivo, o leitor que observar, de forma
desapaixonada, o cenário que lhe pusemos diante dos olhos, há de muito
justamente admitir que as conquistas da espionagem soviética, nesse curto
período de tempo, não deixaram de ser surpreendentes.

Justamente porque essa espionagem tem-se mostrado extraordinária, maior razão


existe para que sempre tenhamos em mente que sua atividade cobre hoje o
mundo inteiro. Devemos recordar que as conquistas técnicas dessa organização
nunca foram tão grandes, que seus métodos são conhecidos, que seus objetivos
podem ser presumidos, que ela não poupará esforços para realizar suas
finalidades e continuará a constituir uma tremenda ameaça a todos os segredos
de valor das potências estrangeiras.

Estar prevenido, em face dessa situação, representa apenas sentir-se, em parte,


antecipadamente armado. Na Câmara dos Comuns, durante o debate sobre a Fala
do Trono, em 1962, o ministro da Defesa, Sr. Thomeycroft, declarou:

A primeira coisa que desejo declarar é que não existiriam espiões, se a tarefa de
capturá-los fosse relativamente fácil. Devemos descobrir um bom processo de
nos livrarmos da presença desses indesejáveis. E isso deve ser feito antes que
qualquer potência se antecipe a nós, na consecução desse objetivo. É muito fácil
dizer-se, depois que os espiões foram apanhados e que todas as provas contra
eles tenham sido recolhidas: "Se houvesse sido incumbido de prendê-los, teria
agido com muito maior presteza.”
Digo-lhes que todos os casos provam o contrário, isto é, que, na realidade, é
muito difícil apanhar um espião e, provavelmente, é muito maior o número dos
que fogem que o dos que são apanhados. E isto acontece em quase todas as
nações do mundo.

O ministro foi muito criticado pelo tom displicente e quase chistoso desse
discurso. No entanto, revelou, de fato, o mais alto sentimento de ponderação,
durante todo o debate, e o trecho citado é de evidente bom senso. Apanhar
espiões é, na realidade, muito difícil, e nem todos os espiões são descobertos.
Esta, a realidade que não se pode negar.

Por outro lado, não se deve relaxar nos esforços para capturá-los. A esse
respeito, a seguinte norma deve ser obedecida: se tanta gente quanto possível
conhecer como o inimigo age, haverá menor probabilidade de abrandamento das
normas de vigilância, como tem sucedido até aqui, já que a tarefa de apanhá-los
vem sendo confiada exclusivamente a profissionais. O grande perigo da
espionagem soviética repousa não nas atividade dos agentes profissionais, mas
nos simpatizantes camuflados que se encontram em situação de poder passar-lhe
segredos vitais. Os homens e as mulheres que se acham em posições-chaves
deviam estar permanentemente sob investigação.

A realidade a que não podemos escapar é esta: mesmo fazendo tudo o que
pudermos, o Centro sempre tirara de nós um grande número de segredos. O que
deve ser feito, portanto, é trabalhar, de forma que o número dos segredos
roubados se mantenha tão baixo quanto possível.

Constitui este o único antídoto?

Sabemos que estamos sujeitos a mesma crítica que envolveu o ministro da


Defesa ao tentar mostrarmo-nos preocupados em relação ao que tem ocorrido na
Grã-Bretanha. Ainda assim, apresentamos a seguinte sugestão: o único antidoto
eficiente contra a apreensão, pelos soviéticos, dos nossos segredos é nos
concentrarmos em obter tantos segredos deles quantos pudermos. Dessa
maneira, e somente dessa maneira, pode a posse, por eles, dos nossos segredos
ser efetivamente contra balançada. Seria a instituição de uma situação de
equilíbrio E esta funcionaria, tanto quanto possível, em linhas iguais à que se
têm verificado no campo das armas nucleares.
De qualquer forma, nossas últimas palavras são as seguintes: já vimos como o
Centro trabalha, conhecemos a amplitude dos seus objetivos, aprendemos como
ele pode ser despojado de seus agentes. Nestas condições, a conclusão que se tira
é a de que a atividade do Centro só poderá ser contrabalançada, portanto, por
uma constante vigilância da população — esta, entretanto, agindo como um
todo.
40 ANOS DE ESPIONAGEM
SOVIÉTICA

Livro que vai às raízes de uma atividade que não se inicia com a revolução
leninista, mas em recuados tempos da vida política russa, 40 Anos de
Espionagem Soviética constitui um precioso repositório de informações de
inteligência, colhidas nas mais variadas e respeitáveis fontes. Ronald Seth
escreve, praticamente, um manual de contra-espionagem. Define o campo de
ação e os processos utilizados pelas forças interessadas em infiltração, com
intuitos desagregacionistas, nas democracias ocidentais. Relaciona táticas e
estratégias, das mais usuais como das menos conhecidas, calcando a teoria em
fatos comprovados. Todos os mais famosos casos da espionagem moderna são
aqui examinados, bem como a modificação de métodos que a modernização de
técnicas tem imposto àquelas táticas e estratégias. Com diversos cursos
especializados, Seth, graduado na Universidade de Cambridge, serviu por longo
tempo, durante a Segunda Guerra Mundial, no Special Operations Executive, o
que lhe confere ampla visão dos problemas aqui tão bem versados.

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