Você está na página 1de 318

Conselho Editorial

Presidente: José Maurício Conti - USP


Vice-Presidente: André Castro Carvalho - Ibmec - SP
Gustavo Justino de Oliveira - USP
Ulisses Schwarz Viana - PGE-MS
Flávio Jaime de Moraes Jardim - PGDF
Ophir Filgueiras Cavalcante Júnior - OAB/PA
Fábio Zambitte Ibrahim - UERJ

Conselheiros Convidados
Adriana Bragança Dias da Silva (PGE-RJ)
André Serra Alonso (PGE-RJ)
Angelo Demétrius de Albuquerque Carrascosa (PGE-PA)
Bruno Hazan Carneiro (PGE-RJ)
Bruno Teixeira Dubeux (PGE-RJ)
Cristina Bichels Leitão (PGE-PR)
Fabrizio de Lima Pieroni (PGE-SP)
Gisele Welsch (PUC-RS)
Marcelo Terto e Silva (PGE-GO)
Marcos Vieira Savall (PGE-AL)
Sérgio Oliva Reis (PGE-PA)

Comissão Editorial
Alexandre Martins Sampaio (PGE-AP)
Davi Machado Evangelista (PGE-AP)
Diego Bonilla Aguiar do Nascimento (PGE-AP)
Narson de Sá Galeno (PGE-AP)
Thiago Lima Albuquerque (PGE-AP)

Coordenação Geral
Diego Bonilla Aguiar do Nascimento (Procurador do Estado Corregedor)

PGE AMAPÁ - Procuradoria-Geral do Estado do Amapá


Av. Antonio Coelho de Carvalho nº 396, Macapá - AP, CEP 68900-015 -
(96) 3131-2913 - contato@pge.ap.gov.br

Format Editora
Rua Antônio Vita, 578 - Jd. Maia - Guarulhos - CEP: 07114-010
(11) 2468-0713 - formatcomunicacao@gmail.com
REVISTA JURÍDICA DA
PROCURADORIA-GERAL
DO ESTADO DO AMAPÁ
Volume 1
2023
Ficha catalográfica

REVISTA JURÍDICA DA PROCURADORIA-GERAL


DO ESTADO DO AMAPÁ
Copyright 2023 PGE - AMAPÁ
Categoria: Direito
Primeira edição – 2023
Todos os direitos reservados.
É proibida a reprodução total ou
parcial sem a permissão
escrita dos editores.

Projeto Gráfico e editorial: Format Editora


Coordenação editorial: Luciene Müller
A Format Editora informa que o conteúdo dos textos, incluindo as ideias,
opiniões e conceitos publicados, é de inteira responsabilidade de seus
autores, não refletindo necessariamente a opinião dos editores.
SUMÁRIO

DIÁLOGO COMPETITIVO: MATERIALIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO


CONSENSUAL E ALTERNATIVA À OPACIDADE ALGORÍTMICA NO
SETOR PÚBLICO............................................................................................................................................. 9
Paulo Roberto Fontenele Maia

POR UMA ADEQUADA HERMENÊUTICA DO ARTIGO 132


DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL: REFLEXÕES SOBRE A ESCOLHA DOS
PROCURADORES-GERAIS DOS ESTADOS E DO DISTRITO FEDERAL E
A AUTONOMIA FEDERATIVA................................................................................................................... 39
Ulisses Schwarz Viana

O PROCESSO ADMINISTRATIVO E A DESCONSIDERAÇÃO


DA PERSONALIDADE JURÍDICA: UMA ANÁLISE CRÍTICA DA LEI N.º 12.846/2013.............................57
Thais Rodrigues Coelho Terra e Hélio Rios Ferreira

COMENTÁRIOS À DURAÇÃO DOS CONTRATOS NO ÂMBITO


DA NOVA LEI DE LICITAÇÕES................................................................................................................115
José Maurício Conti, Narson de Sá Galeno, Tiago Cripa Alvim, Matheus Della Monica
e André Castro Carvalho

O PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE ELEITORAL E


A APLICABILIDADE DA LEI FEDERAL Nº 14.356 DE 31 DE MAIO DE 2022......................................... 147
Alexandre Sampaio

POR QUE A COMUNIDADE LGBTQIA+ NÃO GOZA DO ESTADO DE DIREITO?


CAMINHANDO SOBRE O FIO DA NAVALHA......................................................................................169
Paulo Roberto Fontenele Maia

A SUBMISSÃO DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL (OAB)


AO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU): DIVERGÊNCIA TEÓRICA
E ASPECTOS PRÁTICOS............................................................................................................................207
Rodrigo Marques Pimentel
O DIREITO DE REGRESSO E A TEORIA DO FATO JURÍDICO..........................................................239
Pedro Monteiro Dória

O ESTUDO DO PRECEDENTE FIRMADO NA ADI 4636 E NO TEMA 1074 DA REPERCUSSÃO


GERAL NO RE 1.240.999/SP: A INCONSTITUCIONALIDADE DA EXIGÊNCIA DE INSCRIÇÃO
DO DEFENSOR PÚBLICO NOS QUADROS DA ORDEM
DOS ADVOGADOS DO BRASIL..............................................................................................................257
Hélio Rios Ferreira e Thais Rodrigues Coelho Terra

DIGRESSÕES A RESPEITO DO ARTIGO 20 DA LEI DE


INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO...................................................................289
Danilo Carvalho Gomes

REEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DOS CONTRATOS


ADMINISTRATIVOS: PARALISAÇÃO DE OBRA EM VIRTUDE DA
PANDEMIA DA COVID-19.......................................................................................................................305
Kevin Camelo da Cunha
APRESENTAÇÃO

Em sua primeira edição, a revista da Associação dos Procura-


dores do Estado do Amapá (APEAP) reúne matérias doutrinárias de
variada temática jurídica, em especial, vinculadas aos temas de inte-
resse da advocacia pública.
Cumpre, assim, esta publicação a sua finalidade de garantir
aos advogados e demais operadores e estudantes de Direito, qualifi-
cada e atualizada fonte de pesquisa sobre assuntos momentosos e de
permanente interesse, tais como reflexões sobre a escolha dos Procura-
dores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal e a autonomia federati-
va, o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos
(Paralisação de obra em virtude da pandemia) e comentários sobre a
duração dos contratos no âmbito da nova Lei de Licitações, dentre
outros temas de grande relevância e complexidade!
Esta obra, portanto, destina-se não só aos Procuradores de Esta-
do, mas também a todas as pessoas que se interessam pelos problemas da
sociedade e do Estado brasileiro, em suas múltiplas manifestações.
De igual modo, propicia informação valiosa para o exercício
profissional tanto no que pertine à discussão de temas relacionados à
advocacia pública quanto ao exame de questões outras, que interes-
sam ao cotidiano do advogado.

7
Outra finalidade é dar relevo a temas singulares que marcaram
a História da Procuradoria do Estado do Amapá e consignar destaque
ao trabalho dos Procuradores de Estado que por sua atuação notável
construíram paradigmas e exemplos.
É certo, portanto, que esta edição da nossa revista cumprirá a
sua finalidade de informar e de orientar os operadores do Direito para
o bom exercício de suas funções.

Davi Machado Evangelista


Presidente da APEAP
DIÁLOGO COMPETITIVO: MATERIALIZAÇÃO
DA ADMINISTRAÇÃO CONSENSUAL E
ALTERNATIVA À OPACIDADE ALGORÍTMICA NO
SETOR PÚBLICO
Paulo Roberto Fontenele Maia1

RESUMO
Considerando o impacto que as contratações exercem sobre
todo o resto da máquina pública, percebeu-se a necessidade de moder-
nização do processo licitatório. Diante da reconfiguração do próprio
estado, agora globalizado, a nova Lei nº. 14.133/2021, inspirada na
Diretiva n. 024/2014 da União Europeia, trouxe o diálogo competiti-
vo como modalidade de licitação. O novo instituto marca a transição
do modelo burocrático dotado de uma imperatividade administrativa
para o modelo gerencial e horizontal de compra pública pautada em
uma administração pública dialógica. Esta é mais permeável e con-
sensual como forma eficaz de suprir a opacidade algorítmica do setor
público, usufruindo de uma inteligência coletiva fruto da participação
privada no processo decisório estatal.

1 Paulo Roberto Fontenele Maia. Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza (2003), especialização em Direito
Processual Civil pela Universidade Estadual do Ceará (2006), Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Administrativo
pela Universidade Anhanguera - UNIDERP (2013) e Pós-Graduação em Direito Público com ênfase em gestão pública
pela Faculdade Damásio de Jesus (2020). 3 Mestrando no Programa de Pós-Graduação UniChristus (2021-2023) Atual-
mente é Procurador do Estado do Amapá. Tem experiência na área de gestão pública, exerceu o cargo de Procurador
Chefe Central de Licitação (2016-2019). Atuou ainda como Procurador Chefe da Procuradoria Administrativa durante
o período de 2010 a 2014. Atualmente exerce o cargo de Procurador Adjunto na Secretaria de Estado da Educação.
Tem experiência na área de Direito Público, atuando nos seguintes temas : Licitação, Servidor Público, Contratos e
Convênios, Organização Administrativa, Concessões e Permissões de Serviço Público, Regime Jurídico Próprio de Pre-
vidência (RPPS) e Direito Financeiro. Atua ainda como facilitador da Escola de Administração Pública do Estado (EAP)
ministrando cursos de Processo Disciplinar, Licitação e Orçamento Público.

9
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Palavras-chave: Licitação. Diálogo Competitivo. Administra-


ção Consensual. Opacidade Algorítmica. Inteligência Coletiva.

ABSTRACT
Considering the impact that hiring has on the rest of the
public machine, the need to modernize the bidding process was
perceived. Faced with the reconfiguration of the state itself, now
globalized, the new law n. 14.133/2021, inspired by Directive n.
024/2014, of the European Union, brought competitive dialogue
as a bidding modality. The new institute marks the transition from
the bureaucratic model endowed with an administrative imperative
to the managerial and horizontal model of public purchase based
on a dialogic Public Administration, more permeable and consen-
sual as an effective way to overcome the algorithmic opacity of the
public sector, taking advantage of a collective intelligence resulting
from private participation in the state decision-making process.
Keywords: Bidding. Competitive Dialogue. Consensual Ad-
ministration. Algorithmic Opacity. Collective Intelligence.

INTRODUÇÃO
A administração pública, em seu sentido objetivo, é a ativida-
de de gestão dos interesses públicos: seja pela prestação de serviços
à população, seja pela proposição (e execução) de políticas públicas
ou, ainda, seja pela intervenção estatal no campo privado (desempe-
nhando o poder de polícia). Qualquer que seja a atividade exercida,
o destinatário final da atuação estatal é, invariavelmente, a sociedade.
Para materializar tais interesses, o Estado, naturalmente,
vale-se do potencial privado para a realização de obras e serviços,
bem como para compras e alienações, os quais são direta ou indire-
tamente de interesse público. Nesses casos, a administração pública

10
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

procede à contratação dos objetos essenciais ao seu funcionamento,


que deve ocorrer, em regra, mediante processo de licitação.
Acreditando bem cumprir o imperativo constitucional, em
especial quanto à contratação, a administração pública historica-
mente se orientou para um modelo burocrático. A forma – inflexí-
vel que era – confundia-se com a legalidade e a segurança jurídica,
quase que concebida como um fim em si mesmo. Essa era a per-
cepção arraigada dos órgãos de controle e gestores públicos.
No entanto, há algum tempo, esse perfil vem sendo repensado.
A mudança de perspectiva pública fica clara quando se observa que o
modelo burocrático de gestão administrativa tem, cada vez mais, dado
lugar ao novo modelo gerencial e dialógico, em que se busca alcançar
os melhores resultados da forma mais vantajosa possível (best value).
Levando em conta o impacto que as contratações exercem
sobre todo o resto da máquina pública, também se concebeu a
necessidade de o processo licitatório ser revisitado e atualizado. A
razão disso é o princípio da eficiência tomar a importância que,
por muito tempo, foi-lhe ofusca pelo desvirtuamento da Teoria Bu-
rocrática. Com esse propósito e perante a iniciativa legislativa de
inovar, houve o advento da Lei nº. 14.133/2021 – a nova lei de
licitações e contratos da administração pública.
Frente a um dos maiores entraves para a administração pú-
blica, que é o imperativo de soluções customizadas, a nova Lei nº.
14.133/2021, movida à diretiva n. 024/2014 da União Europeia,
permite o diálogo entre público e privado na construção da satisfa-
ção do interesse coletivo, nos moldes do art. 32.
O diálogo competitivo é a forma de o estado aproveitar o
conhecimento técnico e criativo dos particulares, sem deixar de res-
peitar o procedimento de aquisições públicas – cujo cerne é a am-
plitude de participação dos interessados, isonomia e vantajosidade
(economica e social).

11
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

De maneira significativa, a iniciativa privada tem aptidão para


se desenvolver de maneira livre, de modo que a sua expertise está em
constante aperfeiçoamento – algo que, infelizmente, muito falta ao es-
tado. Nesse sentido, a procura pelo potencial privado é extremamente
cara ao planejamento estratégico, à execução de compras e às con-
tratações públicas. Em consequência disso, o modelo de cooperação
acarreta à administração pública o que ela, sozinha, não tem capaci-
dade de fazer: traçar um modelo decisório eficiente e efetivo.
Em virtude de reconhecer as suas limitações e se valendo de
um modelo de contratação que demonstrou ser eficiente na União Eu-
ropeia, o ordenamento jurídico brasileiro reputou benéfica a partici-
pação do setor privado nos seus processos licitatórios, com o escopo de
desfrutar de uma espécie de inteligência coletiva. Realça-se que a frui-
ção dessa inteligência coletiva somente é possível mediante os movimentos
reformadores e modernizadores do estado por meio do emprego de
métodos e técnicas negociais no âmbito administrativo consagrados na
expressão concertação administrativa ou administração consensual.
A partir das formulações teóricas anteriores, chega-se à con-
clusão mais elementar de que é preciso ousadia para romper com
o ancien régime arrolado na imperatividade administrativa rumo ao
constitucionalismo de resultado estabelecido a partir de decisões
negociadas entre poder público e cidadãos sobre a melhor maneira
de atender ao interesse público qualificado, ou melhor, ao interesse
de todos e em maior grau de efetividade social.

 A ADMINISTRAÇÃO IMPERATIVA À
D
ADMINISTRAÇÃO CONSENSUAL: O PAPEL
DO CONSENSO NO DESENVOLVIMENTO.
APROXIMAÇÃO ENTRE PÚBLICO E PRIVADO
Enquanto o direito administrativo clássico prestigia a auto-
ridade dos agentes públicos (potestade pública) em detrimento da

12
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

liberdade e dos direitos fundamentais do cidadão, as novas ordens


democráticas deslocam seu eixo de atenção para o cidadão. Inver-
te-se, então, a supremacia do estado, que passa a ser controlado,
para proporcionar a todos o bem-estar e o desenvolvimento.
Assim, impõe-se ao direito administrativo uma releitura
para se adequar aos princípios e às regras constitucionais, notada-
mente àqueles inscritos no seu art. 37, caput. O texto reúne, em es-
pecial, os princípios da eficiência, da impessoalidade e do interesse
público e, sobremaneira, garante um “direito fundamental a uma
boa administração”1.
Sobre o advento deste novo momento fundado pela promulga-
ção da Constituição Federal, José Sérgio da Silva Cristóvam, em sua
tese intitulada O conceito de interesse público no estado constitucional de direito:
o novo regime jurídico administrativo e seus princípios constitucionais estruturantes,
aponta que:

De fato, essa terceira dimensão do constitucionalismo mo-


derno traz uma metodologia constitucional renovada, uma
nova estrutura jurídico-política que desponta sobre as bases
de uma sólida teoria da supremacia da Constituição, da força
normativa dos princípios constitucionais, da eficácia dos di-
reitos fundamentais e da centralidade do princípio da digni-
dade humana. Tudo submetido à matriz filosófica do perso-
nalismo, que funda o deslocamento do epicentro normativo
constitucional do Estado para a pessoa humana. Estas são
as bases jurídico-filosóficas em torno das quais gravitam os
debates do Estado constitucional de direito e do novo regime
jurídico administrativo.2

13
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Nessa mesma direção de revisão do direito administrativo, cor-


robora Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

A constitucionalização do direito administrativo, não só pela


elevação, ao nível constitucional, de matérias antes tratadas
pela legislação ordinária, mas também pela inserção de inúme-
ros princípios do direito administrativo na Constituição, pro-
duziu consideráveis reflexos sobre temas dessa disciplina, como
a busca de equilíbrio entre as prerrogativas do poder público
e os direitos fundamentais do homem; também sobre a discri-
cionariedade administrativa, que resultou restringida com a
ampliação da legalidade (muitas vezes substituída pela constitu-
cionalidade), disso resultando a ampliação do controle judicial
sobre os atos administrativos, e, mais, sobre as políticas públicas
adotadas pelo poder público na área social.3

Acrescenta-se ao exposto o pensamento de Cristóvam na


obra Elementos de direito administrativo, que sugere uma virada me-
todológica que se disponha a substituir as bases que consolidam
o direito administrativo em atenção aos princípios elencados pela
Constituição:

As ideias de supremacia e indisponibilidade do interesse públi-


co como fundamentos do sistema administrativo devem ceder
espaço aos princípios do estado democrático de direito, da dig-
nidade da pessoa humana e ao conjunto de direitos fundamen-
tais albergados pela Constituição. Isso exige, inclusive, uma
redefinição dos contornos e pressupostos do próprio direito

14
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

administrativo, deslocando-se o foco de atenção, preponde-


rantemente fixado no estado, para os cidadãos e a satisfação
de seus interesses, os interesses coletivos fixados pela ordem
constitucional. Não se defende, vale ressaltar, um abandono
completo da noção tradicional de supremacia do interesse
público, mas o adequado temperamento entre os princípios
republicanos, do estado democrático de direito e da dignidade
da pessoa humana, em um processo de constitucionalização
do direito administrativo e humanização de seus contornos –
o que se convencionou chamar de “paradigma emergente da
administração pública democrática”. Sob esses parâmetros é
que se pretende assentar o regime jurídico-administrativo, in-
formado pelos atributos da unidade, da adequação valorativa,
da coerência lógica e, sobretudo, axiológica.4

A vinculação ao interesse público, mais do que uma noção


orientadora de uma das modalidades de atuação do poder público
no cumprimento de sua destinação administrativa, solidificou-se,
ao longo de dois séculos, como um dogma. É capaz de inibir não
apenas a possibilidade de controle do mérito administrativo ante
sua invocação peremptória, como de se constituir em um intrans-
ponível obstáculo à admissibilidade de qualquer negociação entre
poder público e cidadãos em instância administrativa sobre a me-
lhor maneira de se realizar o seu atendimento. Vencida a primeira
barreira, postos os mecanismos de sindicabilidade do ato adminis-
trativo no século XX, toca ao século atual superar a obrigatória
dicotomia público-privado.
O diálogo competitivo quebra essa dicotomia na medida
em que aproxima o público do privado, permitindo-o participar do
processo de escolha pública a fim de articular a melhor solução de

15
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

atuação. É o movimento notorizado como concertação administrativa


ou administração consensual.
Neste cenário horizontal da consensualidade, a ideia dos
poderes administrativos e da própria administração pública vem
sofrendo profunda transformação, já que no estado democrático de di-
reito a concepção de verticalidade estatal, em princípio, renuncia à
imposição de seu próprio critério de forma imperativa e unilateral
e se esforça para encontrar um ponto de equilíbrio adequado entre
os interesses públicos, que deve perseguir os interesses particulares
das pessoas física e jurídicas – o corpo social.
O diálogo competitivo surge em meio à nova perspectiva
de equilíbrio e deve oferecer mais flexibilidade às licitações pelo
fato de viabilizar o diálogo entre o ente contratante e o mercado.
O intuito é apontar soluções mais adequadas ao atendimento das
demandas da administração pública em prol de um constituciona-
lismo de resultado em vista da efetiva concretização de políticas
públicas realizadoras de direitos fundamentais por intermédio do
consenso com seu destinatário final, a sociedade. Para isso, desfaz
a lógica de planejamento isolado, fechado aos órgãos públicos, e
valoriza a interação com o mercado em favor da troca de experiên-
cias e do desenvolvimento de inovação. Assim, impulsiona a efeti-
va democratização da “razão pública”, tornando-a essencialmente
dialógica, recíproca e transparente.
Cabe notar o crescente movimento inclusivo dos cidadãos no
processo de definição da “razão pública”, o qual deixa de ser visto
como um monopólio estatal, com participação exclusiva de autorida-
des, órgãos e entidades públicos, ampliando-se substancialmente o “fó-
rum público”.
Castells5 defende a organização político-administrativa a par-
tir de uma lógica difusa, não mais sendo plausível se imaginar uma

16
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

organização hermética e incomunicável. Características como hori-


zontalidade, cooperação, gestão integrada entre diferentes esferas fe-
derativas e compartilhada entre público-privado estão cada vez mais
presentes na composição e organização do estado contemporâneo.
A partir da nova concepção da administração pública, o di-
reito administrativo assume o propósito de desconstrução dos velhos
paradigmas e proposição de novos através de uma relação paritária.

 NOVA MODALIDADE DE LICITAÇÃO: O DIÁLO-


A
GO COMPETITIVO. CARACTERÍSTICAS GERAIS
Tem-se presente que até a promulgação da nova lei de li-
citação não existia a possibilidade de diálogo público-privado no
transcurso do procedimento licitatório, para requisitar, ao lado do
particular, a melhor solução para determinado problema na admi-
nistração pública.
A nova modalidade de licitação, ao permitir a troca de in-
formações, promove a melhoria técnica e reduz a assimetria infor-
macional entre os participantes. Além disso, a institucionalização
do diálogo público-privado otimiza a expertise da iniciativa pri-
vada na formatação de respostas voltadas à satisfação do interesse
público. Desse modo, atende a um só tempo aos princípios da efi-
ciência e da economicidade no âmbito das licitações.
Como demonstrado acima, um dos destaques mais relevan-
tes da nova modalidade é a redução da assimetria de informações
entre o ente contratante e contratado. Esse mecanismo passa, obri-
gatoriamente, pela flexibilização do processo licitatório, de forma
que os particulares proporcionam diferentes e criativas soluções às
complexas contratações da administração.

17
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

A Lei nº. 14.133/2021 ao perscrutar no ordenamento aliení-


gena6 parâmetros para o diálogo competitivo acaba com o modelo
tradicional de distanciamento entre público e privado, para, em
unidade e de forma transparente, construírem a melhor especifica-
ção do objeto a ser contratado.
Não é de hoje que a gestão pública planeja se afastar de um
“insulamento burocrático”. Enquanto a Lei nº. 8.666/1993 res-
tringia a participação do particular basicamente à oferta de preços
e à execução do contrato, de forma diversa, a Lei nº. 14.133/2021,
através do diálogo competitivo e em casos específicos, suscita ao
setor privado detalhar de forma conjunta o intento da solução pre-
tendida. Inicia-se, então, uma disruptura no padrão de aquisições
de bens e serviços no setor público.
Desencadeado pela liberdade explorativa e inventiva, e ain-
da na cláusula da confiança, o diálogo competitivo é procedimento
compatível com os modernos preceitos de gestão pública, especial-
mente porque respeita a participação cada vez maior do cidadão
nas rotinas da máquina pública.
Ressalta-se que a própria lei apresenta uma definição do
que seria essa ferramenta, em seu art. 6, inc. XLII:

Diálogo competitivo: modalidade de licitação para contrata-


ção de obras, serviços e compras em que a Administração Pú-
blica realiza diálogos com licitantes previamente selecionados
mediante critérios objetivos, com o intuito de desenvolver uma
ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades,
devendo os licitantes apresentar proposta final após o encerra-
mento dos diálogos.

18
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Entretanto, é no art. 32 que a lei descreve o real propósi-


to do instituto, que não pode ser aplicado a qualquer processo de
contratação. A princípio, não será aceitável a situações comuns ou
simples. Como preceitua a norma, é restrito a contratações em que
a administração aspire à contratação de matérias que envolvam,
sobretudo inovação tecnológica ou técnica, ou cujas necessidades
postulem alguma adaptação das soluções disponíveis no mercado
ou ainda quando for impossível que as especificações técnicas se-
jam definidas com precisão suficiente pela administração (art. 32,
inc. I, da Lei nº. 14.133/21). Observe o seguinte.

Art. 32. A modalidade diálogo competitivo é restrita a contrata-


ções em que a Administração:

I – vise a contratar objeto que envolva as seguintes condições:

a) inovação tecnológica ou técnica;

b) impossibilidade de o órgão ou entidade ter sua necessidade


satisfeita sem a adaptação de soluções disponíveis no mercado;
ea

c) impossibilidade de as especificações técnicas serem definidas


com precisão suficiente pela administração;

II – verifique a necessidade de definir e identificar os meios e as


alternativas que possam satisfazer suas necessidades, com desta-
que para os seguintes aspectos:

a) a solução técnica mais adequada;

b) os requisitos técnicos aptos a concretizar a solução já definida;

c) a estrutura jurídica ou financeira do contrato.

19
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Em razão do ineditismo do diálogo competitivo, acredita-se


que as balizas para aplicação do instituto ainda não estão totalmen-
te definidas7. Em primeiro lugar, seu campo de ação será limitado
às inovações tecnológicas e às hipóteses de ausência algorítmica na
administração (inciso I, alínea c). Todavia, os efeitos da pandemia
aceleraram a implantação da administração pública digital. A partir
desse panorama, inúmeras e desconhecidas8 demandas ainda sur-
girão nos próximos anos e certamente o poder público cada vez
mais precisará do know how do parceiro privado.
No entanto, em que pese a maior parte da doutrina demar-
car o seu campo de aplicação às hipóteses de alta complexidade,
fica explícito que o dispositivo abarca uma janela de oportunidade. Esta
dita janela de oportunidade remete ao fato de a administração pú-
blica não deter expertise em todas as áreas de conhecimento. Tam-
bém implica afirmar que nem sempre o poder público conhece a
solução para o problema. Aliás, não raras vezes, o poder público
tem uma adversidade, mas desconhece a saída autônoma da originali-
dade. Assim como importa salientar que nem sempre a complexidade
do objeto a ser solucionado é de ordem tecnológica. A dificuldade po-
derá ser de esfera federativa, social, geográfica ou jurídica.
Ressai deste cenário a chamada opacidade algorítmica na admi-
nistração, que será melhor abordada no próximo capítulo.
Em todo caso, o diálogo competitivo inaugura uma admi-
nistração pública menos encastelada e mais horizontal, institucio-
nalizando a participação privada na busca pelas melhores soluções
para os desafios da “era da informação”.
A nova modalidade licitatória causa uma disruptura na
tradicional rigidez dos procedimentos licitatórios brasileiros. Em
certa medida, o diálogo competitivo admite, como ponto de par-
tida, um afastamento de uma prepotência estatal que supunha ser

20
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

possível ao ente público predefinir ex ante todas as soluções para os


mais diversos desafios e prerrogativas sociais.
Conforme o pesquisador Carlos Ari Sundfield9, há uma “vi-
rada pragmática do direito público”, que abandona o formalismo
jurídico preso a uma interpretação idealista da norma para uma
interpretação mais realista da norma diante da concretização da
administração pública dialógica.

 OPACIDADE ALGORÍTMICA NA
A
ADMINISTRAÇÃO E A SOLUÇÃO PROPOSTA
PELO LEGISLADOR
Como já referido, em face da enorme variedade de objetos
e serviços essenciais ao funcionamento do estado, vê-se que a ad-
ministração pública não consegue ter o domínio necessário para
superar os obstáculos em todas as áreas operacionais, sobretudo no
que tange às inovações tecnológicas e as técnicas. Há, também, o
caso de soluções já existentes, mas que dependem de adaptação. Na
verdade, trata-se, na maior parte, de contratações extremamente
complexas10 e/ou particularizadas. Porém, é imprescindível, para
uma melhor compreensão da modalidade licitatória, compreender
o conceito de complexidade de forma variável a depender do porte
de cada ente ou entidade licitante. Em termos relativos, construir
uma ponte estaiada pelo Município de Oiapoque/AP poderá ser
uma atividade mais complexa do que construir a linha laranja do
metrô de São Paulo.
A dificuldade da gestão pública de lidar, diariamente, com
o desempenho das suas atribuições se deve pelo motivo de agir
em conformidade com um sistema extremamente rígido e, frisa-
-se, nada sofisticado. Muitas vezes, o administrador se vê diante da
incapacidade técnica, quando não fática, de estabelecer a melhor

21
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

solução para a sua demanda, o que envolve uma deficiência, ou


mesmo ausência, da definição do objeto a ser contratado. É o que
o presente trabalho entende como opacidade dos algoritmos.
Mas afinal, o que são algoritmos?
A palavra algoritmo evoca inescrutáveis explicações acerca
de parte da infraestrutura do mundo moderno (ligada à big data,
machine learning, inteligência artificial); mas dificilmente é identi-
ficada como um guia para os assuntos humanos11.
São os algoritmos que auxiliam a busca de respostas às mais
rotineiras questões: o que deve ser feito e como? Quanto de ingre-
dientes usar na receita do bolo? Como tratar um doença? Como
ligar o carro?
Segundo definição mais generalizada, os algoritmos são
uma sequência de passos finitos e não ambíguos (frutos do processo
de decision-making humano ou não), que levam a um resultado espe-
rado: para um mesmo problema, o mesmo procedimento12. Assim,
há algoritmos para assar bolo, escrever um trabalho acadêmico, fa-
zer uma conta matemática ou mesmo prescrever um medicamento.
São fórmulas, receitas ou caminhos que, seguidos, condu-
zem a uma solução específica. Os algoritmos são formatados a par-
tir das primeiras percepções humanas do mundo e das mais primi-
tivas interações com o ambiente que cerca o homem.
Algumas dessas fórmulas são construídas por causa de um
ponto inicial definido ou transmitidas através da tradição oral ou
escrita. Porém, a maior parte delas é criada por intervenção de re-
sultados (bem-sucedidos ou não) das interações sociais e ambientais
humanas. Sobressai-se, entretanto, que boa parte do conhecimento
sobre as chamadas “fórmulas” e “resultados” estão sob domínio
dos particulares. À vista disso, reforça-se o conceito de uma admi-
nistração pública dialógica.

22
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Geralmente, quando se elaboram referências a algoritmos


em discurso público eles não são abordados como construções
matemáticas, mas sim como implementações particulares, com
objetivos específicos. São exatamente esses que fazem sentido
para o presente estudo, porque, quando implementados e em exe-
cução, passam a afetar a vida das pessoas13 e a dinâmica de toda
a sociedade.
Sendo assim, importante se recorrer a uma definição de al-
goritmos mais elaborada proposta por Tarleton Gillespie:

Os algoritmos não são necessariamente softwares: em seu


sentido mais amplo, são procedimentos codificados que, com
base em cálculos específicos, transformam dados em resulta-
dos desejados. Os procedimentos dão nome tanto ao
problema quanto aos passos pelos quais ele precisa
passar para ser resolvido (grifo nosso). [...] Podemos
pensar, portanto, que os computadores são fundamental-
mente máquinas algorítmicas – projetadas para armazenar
e ler dados, aplicar procedimentos matemáticos de forma
controlada e oferecer novas informações como resultado.
Porém, trata-se de procedimentos que poderiam ser feitos
manualmente – e, de fato, eram feitos.14

O algoritmo vai do problema ao resultado, atravessando


os passos pelos quais precisa transpor para ser resolvido. Alude-se,
portanto, a um conjunto complexo de interpretações e decisões.
Para as políticas públicas, os algorítmicos vão além de uma sequên-
cia ou conjunto de instruções, que são de alguma forma confina-
das. Eles também devem produzir um resultado eficaz decorrente
do processo decisório que o antecede.

23
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Dependendo de como foi construída, a compreensão de


algoritmo deixa espaço para que seja definido o desfecho de-
sejado. No passado, esse conceito enquadraria isoladamente à
administração. Contudo, com a crescente expansão da partici-
pação social na tomada de decisão, o particular também poderá
influenciar repercussões esperadas. Sob essa ótica, surge o diá-
logo competitivo.
Em outras palavras, tem-se que o reconhecimento do pró-
prio desenlace exige que se especifique o que se qualifica desta for-
ma – a partir da identificação do problema e definição da respec-
tiva solução. Essa acepção, por vezes, é um dos principais, senão o
maior, dentre todos os problemas no setor público (não conhecer
o algoritmo que resolverá o contratempo). Como recurso, surge a
nova modalidade de licitação, com a finalidade de usufruir o que se
convencionou de inteligência coletiva, graças a uma melhor interação
entre público e privado.
Com base nas regras da nova modalidade, a administração
divulgará ao público as suas necessidades e exigências que preci-
sam ser atendidas. O poder público discutirá com os licitantes para
a proposta de desenvolver, em conjunto com a iniciativa privada, as
alternativas aptas à interpretação das necessidades do poder público.
A administração realizará rodadas sucessivas de diálogos
com os licitantes, nas quais serão gradualmente restringidas as
propostas apresentadas pelos entes privados. Ao final, o órgão
público seleciona o veredito em relação aos critérios técnicos e
econômicos, e a comunica em novo edital, para que seja dado
início à tradicional fase de competição. Nela, todos os licitantes
poderão apresentar propostas.
Nos termos da nova lei, fica evidente o reconhecimen-
to do legislador quanto às dificuldades do poder público para

24
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

planejamento e desenvolvimento de soluções complexas, o que


ratifica um fiel diagnóstico no âmbito das contratações públicas.
No Brasil, o planejamento não é uma praxis pública.
Convém enfatizar que a forte influência ibérica da teoria
burocrática permitiu o Estado Brasileiro avançar em muitos pontos
tais como impessoalidade, previsibilidade, meritocracia, padroni-
zação, procedimentalização, mas falhou no quesito planejamento.
Para planejar é preciso conhecer. Atento a opacidade algo-
rítmica na administração, o legislador contemplou principalmente
a hipótese do art. 32, I, alínea c, prevista na Lei Geral de Licita-
ções permitindo uma fluidez informacional entre público e privado
“desburocratizando” o ambiente licitatório.

 INTERNALIZAÇÃO DE INSTITUTOS
A
DO DIREITO COMPARADO DEMANDA
ADAPTAÇÕES PARA MELHOR SATISFAÇÃO NA
ORDEM INTERNA. ESTUDO DE CASO
Infelizmente, no Brasil, tem-se o péssimo hábito de importar
institutos prontos do direito comparado e aproveitá-los simetricamente
na ordem interna. Na Europa, de fato, a hipótese mais utilizada
ocorre nos casos de inovação tecnológica, para casos incomuns que
ainda não se tenha tecnologia disponível no mercado. Isso não im-
plica dizer que no Brasil seja este o único caminho possível.
Diante de um país com reivindicações tão múltiplas não
se pode simplesmente copiar um modelo sem antes compreender
qual o gênese do instituto e qual a melhor aplicabilidade ao contex-
to nacional. Uma nação continental como o Brasil, extremamente
diversificado e plural, inevitavelmente terá mais dificuldade no pro-
cesso decisório do que, por exemplo, países do continente europeu.

25
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Através do estudo de caso apresentado, aposta-se que o diá-


logo competitivo não será mais “comumente” utilizado no caso de
inovação tecnológica ou técnica (art. 32, I, “a”), pois, para esta hi-
pótese, a própria lei, através do art. 75, V, trouxe a possibilidade de
dispensa de licitação para os casos previstos no art. 20 da Lei nº.
10.973/04 – Lei de incentivos à inovação e à pesquisa científica e
tecnológica no ambiente produtivo.

Lei 14.133/21

Art. 75. É dispensável a licitação:

[...]

V – para contratação com vistas ao cumprimento do disposto


nos art. 3º, 3ºA, 4º, 5º e 20 da Lei nº. 10.973, de 2 de dezembro
de 2004, observados os princípios gerais de contratação cons-
tantes da referida lei.

Na sequência, o art. 20 da Lei nº. 10.973/04 disciplina:

Art. 20. Os órgãos e entidades da administração pública, em


matéria de interesse público, poderão contratar diretamente
ICT, entidades de direito privado sem fins lucrativos ou empre-
sas, isoladamente ou em consórcios, voltadas para atividades
de pesquisa e de reconhecida capacitação tecnológica no setor,
visando à realização de atividades de pesquisa, desenvolvimen-
to e inovação que envolvam risco tecnológico, para solução de
problema técnico específico ou obtenção de produto, serviço ou
processo inovador (Redação pela Lei nº. 13.243, de 2016).

26
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Sendo assim, é muito provável que para os casos de ineditis-


mo tecnológico, os gestores optarão pela chance de dispensa ao invés
de um processo licitatório.
Dessa forma, diferente do consenso que, a priori, forma-
-se na doutrina, a hipótese mais relevante é a contida na alínea
c, I, art. 32 da nova lei de licitação, quando a administração
não define com precisão técnica as especificações do objeto. Em
muitas ocasiões, a administração tem um problema com possibi-
lidade diversa de solução, mas não sabe distinguir qual a melhor
dentre todas. Pelo ineditismo, o recente exemplo mundial do
navio encalhado no Canal de Suez15 ilustra essa situação. Em
outras palavras, o problema estava colocado: desobstruir a pas-
sagem do canal. Apesar disso, a questão é: como fazer? Através
do desmonte da embarcação e esvaziamento ou da reflutuação
e rebocamento do equipamento? Até a tomada de decisão pro-
priamente um complexo processo fora instaurado.
Em virtude da repercussão mundial, agregou-se ao debate
o episódio do canal de Suez. Porém, caso semelhante ocorreu na
costa do estado do Amapá com o naufrágio do navio Ana Karoline
III16, no dia 28 de fevereiro de 2020.17
Guardadas as peculiaridades do caso, o fato é que o esta-
do do Amapá, por razões diversas, tomou a responsabilidade pelo
resgate das vítimas, assistência e todas as ações colaterais que en-
volveram o grave acidente. Um impasse foi gerado. O navio, além
de passageiros, carregava clandestinamente uma quantidade con-
siderável de material poluente (170 toneladas), capaz de afetar o
meio ambiente. Para além da tragédia humana, poderia haver uma
tragédia ambiental.

27
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Constatada a iminência de outra catástrofe, o que fazer


para evitar o dano ambiental? Qual seria o algorítimo perfeito para
solução da adversidade: apenas retirar a carga poluente, desmon-
tar parte da embarcação ou reflutuação integral do equipamento e
rebocamento até a costa? Todas essas alternativas são presumíveis
e existentes no mercado. No entanto, a administração não detinha
o algoritmo para resolução do empecilho. Nem poderia, pois so-
mente empresas altamente especializadas detêm o kowm how para
decidir determinados problemas.
O diálogo competitivo deverá ter aplicabilidade nos ca-
sos em que a administração desconhece o expediente mesmo
ante a opções já existentes no mercado. Tem-se caracterizada
a hipótese prevista no art. 32, I, alínea c da Lei nº. 14.133/21.
Condicionar o uso da nova modalidade apenas quando houver
suposição cumulativa preditas no inciso I, alíneas a, b e c, tor-
nará o instituto inócuo.
Em um mundo com cada vez mais tecnologias sofisticadas e
em permanente inovação, é natural que, em objetos complexos, a ad-
ministração pública não consiga definir o item sem dialogar com a ini-
ciativa privada. A inovação é que o diálogo se trava durante a licitação,
seguindo o modelo europeu já consolidado desde as diretivas de 2004.
À luz desse enfoque, assume-se a premissa de que a redução
da opacidade algorítmica pode ser alcançada através do diálogo
entabulado no próprio procedimento licitatório (diálogo competiti-
vo). O objetivo é o provimento de uma solução complexa, segundo
uma colaboração também complexa entre variados atores, na qual
o estado deve ser o agente integrador transparente e imparcial das
informações obtidas. A partir disso, constrói-se um excelente ins-
trumento de avanço e modernização entregue pelo legislador aos
gestores públicos.

28
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

 PLICABILIDADE DO DIÁLOGO COMPETITIVO


A
E OS RISCOS INERENTES AO PROCESSO
LICITATÓRIO
Alicerçado no caso concreto acima descrito, indaga-se:
por qual razão, até então, o particular não podia construir con-
juntamente com a administração a solução para um problema
mediante participação ativa no processo decisório? Acolhe-se que
o maior obstáculo para a participação efetiva do particular no
processo decisório da compra pública é o risco de “captura” do
poder público por interesses eminentemente privados amorais e
antirrepublicanos.
Embora no passado tenha bastado uma participação
reduzida da sociedade no processo de escolha pública, parece
hoje que a complexidade dos problemas e das soluções políticas
demanda novas formas de participação capazes de atender as
especificidades dos diversos subgrupos sociais. A pandemia foi
um exemplo eloquente da pluralidade das demandas atuais e
do quanto é fundamental a parceria entre o poder público e a
iniciativa privada. O próprio processo formador de culturas e
civilizações é listado na cooperação e em consensos sobrepostos
entre público e privado.
Dito isso, evidentemente, a nova categoria de licitação ain-
da está em fase de experimentação social. No entanto, a “descon-
fiança” sobre o modelo tradicional conduz à homologação social
de padrões alternativos e inovadores. As sociedades precisam estar
abertas às novas possibilidades. Não existe evolução sem progresso,
e não existe progresso sem risco.
Entretanto, o controle da lisura (no seu amplo sentido) no
processo de contratação pública deve acontecer consoante os meios

29
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

próprios, seja pelos órgãos/entidades de controle, seja pelo con-


trole social através da transparência do ato público. Não se pode
pensar simultaneamente em política de compra governamental e
sua autocontenção, tendo como premissa o risco. Caso contrário, a
eficiência sucumbe ao efeito paralisante da precaução forte, conforme
explica Cass Sunstein:

Meu objetivo aqui consiste em questionar o princípio da


precaução. Não porque ele nos leve a direções ruins, mas
porque, levando-se em conta tudo o que é relevante, o
princípio não leva a lugar algum. O princípio ameaça ser
paralisante, proibindo tanto a regulação, quanto a inação
e qualquer medida entre esses dois extremos.18

A eficiência e o controle devem caminhar em uma posição


de equivalência e não de sobreposição. Não é nada producente ter
um controle à frente da própria eficiência estatal, sob pena de cau-
sar uma paralisia da gestão e uma letargia administrativa.
Pelo primado da própria segregação de função ínsita na
nova lei de licitação, a atribuição de elaborar mecanismos eficien-
tes de compra pública deve estar segmentado do controle dos riscos
de captura do poder público. Senão, há apenas um horizonte de
avanços em meio a uma constância de retrocessos como ocorreu
com a Lei nº. 8.666/93.
Conforme Gustavo Justino de Oliveira a função adminis-
trativa vem gradativamente substituida pelos órgãos internos e ex-
ternos de controle aniquilando a discricionariedade do gestor de
avaliar e escolher políticas públicas e modelos de governança que
melhor se adequem ao interesse coletivo.

30
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

É estreme de dúvidas que nos últimos 30 anos o controle atuou


positivamente nesse processo de internalização dos vetores de
moralização, democratização e profissionalismo na Administra-
ção pública. Contudo, o resultado almejado pelo constituinte
nessa trajetória nunca foi e nem poderia ser o de final substitui-
ção da função administrativa pelos órgãos internos e externos
de controle – não é esta sua vocação constitucional! -aniqui-
lando-se a discricionariedade do gestor. Precisamos sair desse
impasse, pois todos perdemos com esta letargia administrativa,
razão pela qual este embate que se instaurou entre hiperativis-
mo do controle e paralisia da gestão precisa ser adequadamente
mediado pelo Direito, a partir de melhores bases normativas e
novos e civilizados modelos de inter-relacionamento entre con-
trole e gestão. 19

Max Weber ao discorrer sobre o modelo burocrático puro


já explicitava a necessidade de segregação de funções: “[...] A buro-
cratização implica, em particular, a possibilidade ótima de colocar
em prática o princípio da especialização das funções administrati-
vas conforme regulamentações estritamente objetivas” 20.
Não parece adequado confiar à lei de licitação, por si só, o con-
trole por desvios de dinheiro público (corrupção suborno)21. Ademais,
o combate à corrupção através do excesso de controle leva a um outro
grande problema: a ineficiência da máquina pública pelo exagero de
controle (disfunção burocrática) e enorme desperdício de verba públi-
ca com inúmeros processos pendentes de conclusão mediante uma
total indefinição do algoritmo final para entrega do bem da vida.
É importante reiterar que a lei de licitação é amparada em
vários pilares, dentre eles, dois principais: eficiência e economicida-
de. Portanto, seu mote principal é definir as melhores estratégias de

31
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

aquisição a partir do diálogo transparente com o próprio mercado.


O risco é algo inerente ao próprio processo de desenvolvimento e
em tempos de indústria 4.0 a nova administração precisa despontar
também integrando as boas práticas do passado com as probabili-
dades do futuro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
É certo que a administração pública brasileira em todas as suas
esferas de poder carecia de um novo marco legal para as suas contra-
tações de bens e serviços. É este o mote de existir uma nova lei e não
apenas alterações ou reformas pontuais na Lei nº. 8.666/1993.
Dentre as novidades trazidas pela Lei nº. 14.133/2021 está a
nova modalidade de licitação, o diálogo competitivo. É resultado de
uma administração pública dialógica, mais permeável e consensual.
Consolida-se, então, a “virada pragmática do direito público”. Aban-
dona-se o formalismo jurídico preso a uma interpretação idealista da
norma para uma interpretação mais realista da norma.
O legislador, ao buscar no ordenamento alienígena parâmetros
para o diálogo competitivo, rompe com o modelo tradicional de dis-
tanciamento entre público e privado. Em consenso e de forma trans-
parente, a ideia é construir a melhor especificação do objeto a ser con-
tratado pelo Administração Pública.
A nova modalidade institucionaliza o diálogo público-privado
na fase procedimental da licitação. Com isso, reduz a assimetria de in-
formação entre as partes envolvidas na contratação, otimiza a expertise
do parceiro privado, fomenta a estruturação de melhores projetos e re-
cepciona o princípio da eficiência e da economicidade na prestação de
utilidades públicas e no incremento da sustentabilidade (econômico, po-
lítica e social), oriundo das licitações estruturadas por meio desta prática.

32
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

A maior parte da doutrina tende a reprimir o campo de aplicação


da nova modalidade de licitação à hipótese de alta complexidade com ên-
fase para a inovação técnica ou tecnológica (art. 32, I, a). Porém, nos casos
de ineditismo tecnológico, os gestores por certo optarão pela possibilidade
de dispensa prevista na Lei nº. 10.973/2004 em oposição à licitação.
Por outro lado, defende-se que a conjetura mais significativa está
no discernimento de que o poder público nem sempre tem a solução para
determinado problema e nem sempre a complexidade é de ordem tão
somente tecnológica. Existem múltiplos enredamentos na administração
pública, de ordem federativa, social, geográfica ou jurídica e a depender
do porte do ente ou entidade licitante. Pensar o diálogo competitivo ape-
nas para construções faraônicas implica em afronta a isonomia, pois res-
tringe seu uso ao âmbito federal e grandes estados da federação.
Sobressai-se que, não esporadicamente, o poder público tem
um problema, mas desconhece a solução (art. 32, I, c). É o que o pre-
sente trabalho definiu como opacidade dos algoritmos. O diálogo com-
petitivo abre o espaço formalmente designado pelo legislador para a
discussão junto ao particular sobre as verossímeis soluções.
Aceita-se, entretanto, que no processo de aproximação entre
público e privado sempre haverá o risco de “captura” do poder públi-
co por interesses privados antirrepublicanos. No entanto, o controle
da lisura no processo de contratação pública deve ser diante de meios
próprios, seja pelos órgãos/entidades de controle, seja pelo controle
social da transparência do ato público de acordo com o previsto no art.
169 da Lei nº. 14.133/21. O que não se pode admitir é a subversão da
eficiência à “precaução paralisante”.
O sucesso ou insucesso do diálogo competitivo dependerá da
mudança de cultura das instituições públicas e dos órgãos de contro-
le, para que se possa otimizar o nóvel instituto e a própria Lei nº.
14.133/21. A intenção consiste em firmar a administração global do
século XXI, bem como superar os seus entraves.

33
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Notas
1
Expressão utilizada pelo professor Juarez Freitas na obra Discricionariedade
administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. São Paulo: Ma-
lheiros, 2007.
2
CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. O conceito de interesse público no esta-
do constitucional de direito: o novo regime jurídico administrativo e seus princípios
constitucionais estruturantes. [Tese de Doutorado em Direito]. Centro de Ciências
Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014, p. 379.

DI PIETRO, M. S. Z.; MARTINS JUNIOR, W. P. Tratado de Direito Admi-


3

nistrativo: teoria geral e princípios do direito administrativo. Revista dos Tribunais.


São Paulo, 2014, p. 635.

CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Elementos de direito administrativo.


4

Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2016, p. 236.

CASTELLS, M. apud OLIVEIRA, Gustavo Justino de. et al. A administração


5

consensual como a nova face da administração pública no séc. XXI. Revista da Fa-
culdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 104, jan./dez. 2009,
p. 306-307.

O “diálogo concorrencial” europeu disciplinado na Diretiva 2014/24/UE ser-


6

viu de inspiração para o diálogo competitivo introduzido pela Lei nº. 14.133/2021.

A lei permite a expedição de atos normativos infralegais regulamentadores.


7

Estão pendentes mais de 50 atos normativos regulamentadores.

CALCINI, Ricardo; MORAES, Leandro Bocchi. Metaverso e suas futuras re-


8

percussões no direit do trabalho. Consultor Jurídico, 19 mai. 2022. Disponível em:


https://www.conjur.com.br/2022-mai-19/pratica-trabalhista-metaverso-futuras-re-
percussoes-direito-trabalho. Acesso em: 18 jul. 2022.
9
SUNDFIELD, Carlos Ari. O procurador do estado na construção do di-
reito público: o que esperar. YouTube, Procuradoria-Geral do Estado de Goiás,
20. mai. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-NFlyNDR-
t2o&ab_channel=Procuradoria-GeraldoEstadodeGoi%C3%A1s. Acesso em: 21
jul. 2022.

Importante observar que o conceito de complexidade pode ser variável a de-


10

pender do porte do ente ou entidade licitante.

34
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

11
CHRISTIAN, B.; GRIFFITHS, T. Algorithms to live by the computer science of hu-
mam decisions. New York: Henry Holt and Co, 2016, p. 69.
12
O’NEIL, Chaty. Algoritmos de destruição em massa. Como o big data aumenta
a desigualdade e ameaça a democracia. Trad. Rafael Abraham. Santo André:
Rua de Sabão, 2020, p. 144.
13
MITTELSTADT, Brent Daniel et al. The ethics of algorithms: Mapping
the debate, 01 dez. 2016, p. 2-3. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/
full/10.1177/2053951716679679. Acesso em: 22 jul. 2022.
14
GILLESPIE, T. A relevância dos algoritmos. Parágrafo, v. 6, n. 1, 2018, p. 97.
Disponível em: <http://revistaseletronicas.fiamfaam.br/index.php/recicofi/arti-
cle/view/722>. Acesso em: 23 jul. 2022.
15
G1. Meganavio encalha no Canal de Suez e causa congestionamento naval.
Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/03/24/mega-navio-
-encalha-no-canal-de-suez-e-causa-transito-nautico-veja-fotos.ghtml. Acesso em: 25
jul. 2022.
16
HEINEN, Maíra. Governo do Amapá contrata empresa para retirar navio que
naufragou no rio Jari. Agência Brasil, Brasília, 05 mar. 2020. Disponível em:

https://agenciabrasil.ebc.com.br/en/node/1381968. Acesso em: 26 jul. 2022.


17
VIEIRA, Sílvia. Um ano após o naufrágio do navio Anna Karoline III, fa-
mílias de vítimas ainda não receberam indenização. G1, Santarém, 01 mar. 2021.
Disponível em: https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/noticia/2021/03/01/
um-ano-apos-naufragio-do-navio-anna-karoline-iii-familias-de-vitimas-ainda-nao-
-receberam-indenizacao.ghtml. Acesso em: 28 jul. 2021.
18
SUNSTEIN, Cass R. Para além do princípio da precaução. Revista de Direito
Administrativo (RDA), Rio de Janeiro, v. 259, jan/abr.2012, p. 13 e 14.

OLIVEIRA. Gustavo Justino de. Direito Administrativo Pragmático. Rio de Janeiro:


19

Lumem Juris, 2020, p. 35.


20
Max Weber. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 2016, p. 151.
21
Sobre corrupção dos tolos ou corrupção suborno se traz a lição de Jessé Souza:
“Troca-se a corrupção real, que retira as chances de vida de centenas de milhões,
para se culpar a ‘corrupção dos tolos’, a da propina dos políticos, que é obviamente
nefasta, mas que equivale à dos aviõezinhos do tráfico de drogas’. “A boca de fumo

35
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

são os oligopólios e os atravessadores financeiros, que compram a política, a justiça e a


imprensa de tal modo a assaltar legalmente a população.”

Referências

CALCINI, Ricardo; MORAES, Leandro Bocchi. Metaverso e suas futuras re-


percussões no direit do trabalho. Consultor Jurídico, 19 mai. 2022. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2022-mai-19/pratica-trabalhista-metaverso-futuras-re-
percussoes-direito-trabalho. Acesso em: 18 jul. 2022.

CASTELLS, M. A era da informação: o poder da identidade. 3. ed. v. 2. São Paulo: Paz


e Terra, 2002.

________. A era da informação: fim de milênio. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. v. 3.

CHRISTIAN, B.; GRIFFITHS, T. Algorithms to live by the computer science of humam


decisions. New York: Henry Holt and Co, 2016.

CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. O conceito de interesse público no estado constitu-


cional de direito: o novo regime jurídico administrativo e seus princípios constitucionais
estruturantes. [Tese de Doutorado em Direito]. Centro de Ciências Jurídicas da Uni-
versidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014.

________. Elementos de direito administrativo. Florianópolis: Universidade Federal


de Santa Catarina, 2016.

DI PIETRO, M. S. Z.; MARTINS JUNIOR, W. P. Tratado de Direito Adminis-


trativo: teoria geral e princípios do direito administrativo. Revista dos Tribunais. São
Paulo, 2014.

FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa admi-


nistração pública. São Paulo: Malheiros, 2007.

G1. Meganavio encalha no Canal de Suez e causa congestionamento naval. Dis-


ponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/03/24/mega-navio-enca-
lha-no-canal-de-suez-e-causa-transito-nautico-veja-fotos.ghtml. Acesso em: 25 jul.
2022.

GILLESPIE, T. A relevância dos algoritmos. Parágrafo, v. 6, n. 1, 2018, p. 95-


121. Disponível em: <http://revistaseletronicas.fiamfaam.br/index.php/recicofi/
article/view/722>. Acesso em: 23 jul. 2022.

36
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

HEINEN, Maíra. Governo do Amapá contrata empresa para retirar navio que
naufragou no rio Jari. Agência Brasil, Brasília, 05 mar. 2020. Disponível em: https://
agenciabrasil.ebc.com.br/en/node/1381968. Acesso em: 26 jul. 2022.

MITTELSTADT, Brent Daniel et al. The ethics of algorithms: Mapping


the debate, 01 dez. 2016. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/
full/10.1177/2053951716679679. Acesso em: 22 jul. 2022.

OLIVEIRA, Gustavo Justino de. et al. A administração consensual como a nova


face da administração pública no séc. XXI. Revista da Faculdade de Direito da Universida-
de de São Paulo, São Paulo, v. 104, jan./dez. 2009, p. 303-322.

________. Direito Administrativo Pragmático. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2020.

O’NEIL, Chaty. Algoritmos de destruição em massa. Como o big data aumenta a


desigualdade e ameaça a democracia. Trad. Rafael Abraham. Santo André: Rua
de Sabão, 2020.

SUNDFIELD, Carlos Ari. O procurador do estado na construção do direito


público: o que esperar. YouTube, Procuradoria-Geral do Estado de Goiás, 20. mai.
2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-NFlyNDRt2o&ab_
channel=Procuradoria-GeraldoEstadodeGoi%C3%A1s. Acesso em: 21 jul. 2022.

SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: da escravidão à lava-jato. Rio de Janeiro: Leia, 2017.

SUNSTEIN, Cass R. Para além do princípio da precaução. Revista de Direito Ad-


ministrativo (RDA), Rio de Janeiro, v. 259, jan/abr.2012, p. 11-71.

VIEIRA, Sílvia. Um ano após o naufrágio do navio Anna Karoline III, famílias
de vítimas ainda não receberam indenização. G1, Santarém, 01 mar. 2021. Disponí-
vel em: https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/noticia/2021/03/01/um-ano-
-apos-naufragio-do-navio-anna-karoline-iii-familias-de-vitimas-ainda-nao-recebe-
ram-indenizacao.ghtml. Acesso em: 28 jul. 2021.

WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 2016.

37
POR UMA ADEQUADA HERMENÊUTICA DO ARTIGO
132 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL:
REFLEXÕES SOBRE A ESCOLHA DOS
PROCURADORES-GERAIS DOS ESTADOS E DO
DISTRITO FEDERAL E A AUTONOMIA FEDERATIVA
Ulisses Schwarz Viana1

RESUMO
O presente ensaio busca produzir reflexão sobre uma adequa-
da hermenêutica da disposição do art. 132 da Constituição. O tema
da possível inaplicabilidade dos princípios da simetria e paralelismo é
objeto de estudo para determinar a observar a inexistência do dever de
reprodução obrigatória da regra do §1º do art. 131 na função nomoté-
tica derivada do poder constituinte dos Estados e do Distrito Federal.
Perspectivas da dogmática jurídica e da teoria da interpretação cons-
titucional são exploradas argumentativamente no texto apresentado.
Palavras-chave: Constituição. Procuradorias-Gerais dos Estados.
Autonomia federativa. Escolha. Nomeação. Escolha. Procurador Ge-
ral do Estado.

ABSTRACT
This essay seeks to produce reflection on an adequate hermeneu-
tics of the provision of art. 132 of the Constitution. The subject of the
1 Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Professor do Programa de
Mestrado Acadêmico e Doutorado em Direito, graduação e pós-graduação lato sensu do Instituto Brasileiro de En-
sino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Professor de Filosofia e Teoria do Direitona Pós-Graduação da Fundação
Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Visiting Scholar - Pesquisador Visitante na
Pennsylvania State University (Penn State University), Dickinson School of Law (2016). Procurador do Estado de
Mato Grosso do Sul (atuação junto ao STF e Tribunais Superiores). . Presidente da Câmara Técnica do CONPEG
(Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estado e do DF) de 2015 a 2020.

39
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

possible inapplicability of the principles of symmetry and parallelism is


an object of study to determine the inapplicability of the rules of §1 of
art. 131 as a rule of mandatory reproduction in the nomothetic function
derived from the constituent power of the States and the Federal District.
Perspectives from legal dogmatics and from the theory of constitutional
interpretation are argumentatively explored in the presented text.
Keywords: Constitution. State Attorneys General. Federative au-
tonomy. Choice. Appointment. Choice. State Attorney General.

INTRODUÇÃO
O presente ensaio jurídico tem por objeto reflexão sobre tema
que, por vezes, vê-se renovado no âmbito da jurisdição constitucional,
perante o Supremo Tribunal Federal1, o qual gira em torno da auto-
nomia federativa de os Estados-membros e o Distrito Federal estabe-
lecerem regras próprias sobre o modelo de escolha e nomeação dos
titulares de suas Procuradorias-Gerais.
O debate, em torno de aspecto tão relevante para o federalis-
mo brasileiro, merece uma observação guiada pela perspectiva de uma
hermenêutica constitucional que reflita criticamente sobre a proble-
mática relacionada com visões propositivas de aplicações inflexíveis e
quase absolutas dos princípios (implícitos) da simetria e do paralelis-
mo, o que pode significar conflitos com uma adequada interpretação
sistemática do texto constitucional vigente, diante da possibilidade in-
desejáveis efeitos restritivos e redutores, fora da positividade da Cons-
tituição de 1988, dos espaços de autonomia dos entes federativos.
O problema analisado no texto, portanto, põe foco na visão
redutiva que vislumbra a imposição aos Estados e ao Distrito Federal
do critério de escolha do Advogado-Geral da União (art. 131, § 1º, da
Constituição da República) como norma de reprodução obrigatória.
Nosso ensaio busca produzir, dentro de suas claras limitações,
análises que possam abrir novos horizontes sobre a temática e que

40
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

visam a prestigiar o federalismo brasileiro, por meio da adoção de


uma hermenêutica consagradora de espaços de autonomia dentro
dos limites do texto constitucional positivo que explora a teoria dos
‘silêncios eloquentes’, não como lacunas normativas que permitam
qualquer interpretação analógica, mas sim como expressão de in-
tenções e opções que defluem da própria Constituição que abrem
esferas nomotéticas próprias dos Estados e do Distrito Federal.

 ADVOCACIA DA UNIÃO E A ADVOCACIA


A
PÚBLICA DOS ESTADOS E DO DISTRITO E AS
DIFERENÇAS DE MODELAGEM NA CONSTITUIÇÃO:
ENTRE O EXPLÍCITO, O IMPLÍCITO E O ‘SILÊNCIO’
COM FORÇA NORMATIVA
Uma das virtudes da Constituição de 1988 reside na promoção
de um design federativo que prima pela criação e preservação de liber-
dade na conformação e organização dos Estados-membros2, quadro
que impõe temperamentos necessários às interpretações que se fiam,
sem as contenções e reflexões necessárias, em uma aplicação linear
dos princípios implícitos da simetria e do paralelismo, com o escopo
de extrair preordenações ‘obrigatórias’ que supostamente imporiam
os modelos de organização adotados pela Constituição para a União
como regras de extensão limitadora à esfera de autonomia dos Estados
e do Distrito Federal.
Importante, nesse passo, refletir teoricamente sobre a questão.
Dentro dessa perspectiva, devemos lançar um olhar sobre o
que Tercio Sampaio Ferraz Junior preleciona, com muita acuidade,
ao propor a direção em que a interpretação, como elemento aplicativo
da norma jurídica, deve ser feita com a observância mínima de certos
elementos dogmáticos do direito.

41
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

É certo, contudo, que não pode perder de vista que dogmático


não deve ser confundido com dogmatismo, pois, como bem observa o
jusfilósofo paulista, o estudo dogmático se conecta a uma dupla abstra-
ção, na qual a interpretação jurídica se insere em um metanível da in-
terpretação em que se apresentam as regras da própria interpretação
de normas3.
Nesse contexto, não há como, a partir de um modelo de or-
dem constitucional positiva, deixar à margem da atividade hermenêu-
tico-aplicativa o postulado da “inegabilidade dos pontos de par-
tida”, pelo qual Tercio Sampaio Ferraz Jr também defende que: “a
vinculação a normas, que não podem ser ignoradas, e a pressão para
decidir os conflitos”4 conduzem a um modo controlado de decidir
as controvérsias jurídicas. Observação que ganha inegável relevância
principalmente no nível interpretativo-aplicativo inserido no âmbito do
controle de constitucionalidade exercido pelas Cortes Constitucionais,
as quais, como intérpretes autoritativos de último grau, se colocam
diante de sua primacial função de dar a última palavra sobre o sentido
das normas constitucionais.
Se nossa leitura da lição de Tercio Sampaio Ferraz Jr está cor-
reta, podemos propor que a partir de tal horizonte hermenêutico, a
ideia de uma vinculação - ainda que não vinculado absolutamente a
uma interpretação fixa e rígida do texto normativo5 - ao ponto de partida
de uma cadeia interpretativo-aplicativa não pode prescindir da ob-
servação detida e minuciosa do próprio texto constitucional, naquilo que
estabelece uma regulação diferenciada para os sistemas da Advocacia
Pública brasileira, seja na esfera da União seja na estadual e distrital.
O tema também atrai, conexamente, como se verá, uma pers-
pectiva de interpretação sistemática, com suas complexidades de traba-
lho textual, a partir do explícito, do implícito e do silêncio na Constituição
de 1988.

42
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Primeiramente, nesse ponto, observaremos os elementos explícitos


relacionados com o modelo fundamental do Estado brasileiro, no plano
interno da organização político-administrativa da República Federativa
do Brasil, para a partir daí construirmos uma interpretação harmoniza-
dora dos dispositivos constitucionais que tem por objeto criar o espaço de
regulação de aspectos estruturais das Procuradorias-Gerais de cada Esta-
do-membro e do Distrito Federal.
Nesse ponto já se depara com o caveat de que a estruturação
da carreira de Procurador do Estado e do Distrito Federal não pode
ser vislumbrada como hipótese de admissão simpliciter da aplicação dos
princípios da simetria e do paralelismo, mormente, no que interessa ao
presente texto, ao modelo - explícito e específico - concebido pelo poder
constituinte para a nomeação do Advogado-Geral da União (§1º do art. 131).
Seria correto defender que tal modelo deva ser, inflexível e obri-
gatoriamente, estendido como regra simétrica ao campo de trabalho do
poder constituinte derivado e do legislador estadual?
Observa-se aqui, paralelamente, a adoção no texto constitu-
cional da forma federativa de Estado que pressupõe os necessários cui-
dados com a preservação das esferas autônomas dos entes federados
(caput do art. 18 da Constituição).
Bem, da leitura detida do §1º do art. 1316 e do art. 1327 8,
extrai-se prima facie o fato de que a Constituição de 1988 não cria mo-
delagem simétrica entre a Advocacia Pública da União e a Advocacia
Pública dos Estados e do Distrito Federal, encontrando-se nas dispo-
sições constitucionais pertinentes claras e sensíveis diferenças
de tratamento e preordenação, tendo sido conferido tratamento
específico a cada esfera federativa da Advocacia Pública brasileira.
Se não negarmos o ponto de partida com as balizas hermenêuticas fi-
xadas no texto constitucional, como vimos acima, não se encontra nenhum

43
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

elemento textual que se possa indicar uma simetria expressa no plano


normativo-positivo da Constituição de 1988.
Bem ao contrário disso, depara-se com tratamentos bastante por-
menorizados por parte do legislador constituinte que traduzem uma in-
tenção clara de criar peculiaridades que distinguem estruturalmente a mode-
lagem federal e estadual da Advocacia Pública brasileira.
Note-se, por exemplo, que o art. 132 da Constituição trabalho
com a regra da ‘livre nomeação’ do Advogado-Geral da União, con-
forme expressamente disposto no §1º do art. 131.
No entanto, ao preordenar a carreira dos ‘Procuradores dos Esta-
dos e do Distrito Federal’ adota estrutura normativa com textura bastante
diversa, nada dispondo sobre questões estruturais específicas, mormente
no que diz respeito ao estabelecimento expresso do modo ou critério de
escolha do Procurador-Geral do Estado ou do Distrito Federal.
O que isso pode significar ao intérprete constitucional? Uma
lacuna normativa ou uma ausência de disposição intencionalmente
prevista pelo constituinte?
Do confronto hermenêutico com as diferenças intencionais, isso
porque o constituinte poderia soberanamente impor, de modo explí-
cito, a reprodução do modelo adotado para União aos Estados e ao
Distrito Federal, na verdade, optou por adotar uma estratégia de con-
tenção textual ao redigir a regra do art. 132.
Mas, por quê? Deve indagar o hermeneuta constitucional
atencioso.
No presente ensaio, apresenta-se uma leitura plausível do sen-
tido de tal contenção textual. O constituinte preferiu conscientemente si-
lenciar-se sobre o critério que deveria ser adotado para a escolha do
Procurador do Estado ou do Distrito Federal.
O constituinte, assim, adotou aquilo que a doutrina hermenêu-
tica denomina de silêncio eloquente.

44
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Tal figura da teoria da interpretação jurídica não configu-


ra qualquer novidade no direito brasileiro, tanto que em sua clássica
obra sobre hermenêutica e aplicação do direito, Carlos Maximiliano
já prelecionava que: “[a]té o silêncio se interpreta; até ele traduz alguma
coisa, constitui um índice do Direito, um modo de dar a entender o
que constitui, ou não, o conteúdo da norma.”
Não é diferente a perspectiva, quando se observa que o postu-
lado interpretativo do silêncio eloquente já foi incorporado à sua jurispru-
dência desde o julgamento do RE nº 1305552/SP, em que seu relator,
o Ministro Moreira Alves, adotou fundamento decisório no sentido
de que “... só se aplica a analogia quando, na lei haja lacuna, e não o
que os alemães denominam ‘silêncio eloqüente’ (beredtes schweigen), que é o
silêncio que traduz que a hipótese contemplada é a única a que se aplica
o preceito legal, não se admitindo, portanto, aí o emprego da analogia.”
Em outros termos, até mesmo o silêncio, em determinados ca-
sos, pode traduzir uma intenção normativa, um espaço de trabalho que,
no caso em estudo, preserva um espaço de liberdade de trabalho nor-
mativo de outras esferas federativas nomotéticas.
No caso do silêncio encontrado na regra do art. 132 da Consti-
tuição, o trabalho hermenêutico constitucional deve encontrar cami-
nhos interpretativos que permeiam a Constituição como um sistema
normativo. Ao observar o silêncio eloquente da norma examinada, está-se
diante de claro indicativo de que a solução adequada para uma sã
hermenêutica não aponta para o horizonte aplicativo dos princípios
implícitos da simetria e do paralelismo como elemento normativo que
reflita o propósito de reprodução obrigatório da ‘livre escolha’ do Advoga-
do da União como elemento vinculante do trabalho do constituinte ou
do legislador estadual.
Ao contrário disso, como propomos aqui, há um claro indicativo
da escolha do poder constituinte federal de deixar aberto um espaço de

45
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

autonomia aos Estados e ao Distrito Federal na organização de sua


Advocacia Pública, o que, inegavelmente, não permite a aplicação de
qualquer ‘construção’ que fora do texto constitucional permita construir
qualquer regra de simetria neste ponto em particular.
Não só pelos motivos já expostos, mas também deve ser obser-
vado pelo intérprete da constituição que a regra de preordenação da
Advocacia-Geral da União (AGU) cria uma estrutura complexa de
organização, em que se coloca ao lado da AGU um órgão jurídico-tri-
butário especializado para a execução da dívida ativa da União, no
caso, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN).
Já no que tange à Advocacia Pública estadual e distrital, o pró-
prio Supremo Tribunal Federal9 adotou como vetor interpretativo que
aponta para a singularidade federativa da estruturação da carreira de
Procurador do Estado e do Distrito, ao reconhecer que no que diz res-
peito à Advocacia Pública dos Estados e do Distrito Federal o constituin-
te federal estabeleceu, a partir da interpretação específica da regra do
art. 132 da Constituição, a regra da unicidade da representação
judicial, pela qual não se admite, por falta de previsão constitucional
expressa, a criação de nenhum órgão jurídico paralelo à estrutura orgâ-
nica das Procuradorias-Gerais dos Estados e do Distrito Federal.
Ou seja, o próprio Supremo Tribunal Federal já reconheceu a
natureza estruturalmente diferenciada das Procuradorias-Gerais dos Esta-
dos e do Distrito Federal em face do modelo da Advocacia-Geral da
União, com órgãos descentralizados previstos de forma expressa pelo
texto constitucional.
O observador atento do regramento constitucional sobre esse
relevante tema, pautando-se de uma interpretação coerente, não
pode afastar do fato de que não se está diante do estabelecimento
de perfeita simetria entre a Advocacia Pública da União e a carreira
de Procurador dos Estados e do DF, mas sim que se coloca em pri-
meiro plano o propósito do constituinte de prestigiar a preservação

46
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

da autonomia estadual, assegurando espaço de liberdade de seu


tratamento nas Constituições estaduais e na Lei Orgânica do Distrito
Federal, ou mesmo, na legislação estadual.
Está-se aqui face a face com o silêncio eloquente do texto
constitucional federal sobre o modo de escolha e nomeação pelos Go-
vernadores dos Estados e do DF do Procurador-Geral do Estado ou
do Distrito Federal, para chefiar a estrutura de representação jurídica
das unidades federadas.
Voltando nossa reflexão para a esfera da teoria constitucio-
nal, deve ser anotado que Raul Machado Horta ao prelecionar so-
bre normas de preordenação, que implicariam em reprodução obrigatória
de preceitos expressos na Constituição, como, por ex., as regras do art.
27 da CF (organização das Assembleias Legislativas estaduais), traz
o alerta de que a Constituição Federal não pode ser vista como
uma Constituição Total, que tornaria desnecessária a existência das
Constituições estaduais10, o que implica no reconhecimento de que o
Constituinte federal preservou – o que não poderia ser diferente em
um Estado Federal – vários espaços de autonomia de auto-orga-
nização ao Constituinte estadual ao disciplinar de forma específica
e diversa (em dispositivos específicos e com regras diferentes) alguns
temas, como o do condicionamento da escolha dos Procuradores-Ge-
rais dos Estados e do Distrito Federal pelos respectivos Governadores,
organizando de forma democrática, por meio do constituinte ou do
legislador estaduais a estrutura de seu serviço jurídico.
O mesmo Raul Machado Horta, de modo incisivo, ao refutar
a ideia da possibilidade de adotar um viés interpretativo do texto cons-
titucional que conduza à ideia absoluta de uma Constituição Total
em um Estado Federal, anota que: “As normas centrais da Constitui-
ção Total devem preordenar o Estado-Membro, sem destruir a ineren-
te capacidade de auto-organização do poder constituinte estadual.11”

47
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

A teoria constitucional brasileira também reconhece que os


princípios da simetria e do paralelismo não pode ser compreendido
como um princípio absoluto12.
Paralelamente, a concepção de que o princípio da simetria não
encerra um caráter absoluto, traz importantes implicações no campo
da interpretação constitucional ligada ao necessário prestígio e pre-
servação de outro princípio fundamental concernente ao federalismo
brasileiro: a autonomia dos entes federados.
Em outros termos, ainda que se pudesse in abstracto cogitar-se
de um conflito entre os princípios da simetria e do paralelismo e o
da autonomia federativa, não há qualquer solução apriorística que
imponha a prevalências daqueles sobre esse último. Tal ideia encontra
ressonância na sempre oportuna doutrina de José Afonso da Silva13,
que ao tratar do tema da interpretação constitucional dos princípios
limitadores da capacidade de organização dos Estado, esclarece que:

[...] um dos princípios fundamentais da ordem constitucional brasi-


leira: a autonomia dos Estados (art. 18), verdadeira decisão política
fundamental, que é o princípio federativo que descansa na autono-
mia das unidades federadas, fulcro da estrutura do Estado brasileiro, tão
importante o considerou o constituinte nacional que o erigiu em
núcleo imutável por via de emenda constitucional (art. 60, §4º). Daí
sua preeminência em relação àqueles princípios que constituem li-
mitações à capacidade organizatória dos Estados [...].

[...] os demais princípios enumerados ou estabelecidos pela


Constituição Federal, que impliquem limitações à autonomia
estadual – cerne e essência do princípio federalista —, hão de
ser compreendidos e interpretados restritivamente e segundo
seus expressos termos. Admitir o contrário seria superpor a von-
tade constituída à vontade constituinte.

48
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Não é razoável qualquer proposta hermenêutico-constitucio-


nal que não recomende uma interpretação que imponha teses her-
menêuticas que postulem a aplicação linear dos implícitos princípios
da simetria e do paralelismo, mesmo porque não se está diante de
qualquer lacuna constitucional no caso que exigiria uma integração nor-
mativa por meio de tais princípio, ou mesmo qualquer forma de ana-
logia. Inegavelmente, como exposto no presente ensaio, está-se diante
de regras claramente diferenciadoras da preordenação e da organização
da Advocacia-Geral da União (art. 131) e a carreira dos Procuradores
dos Estados e do Distrito Federal (art. 132).
Como já destacado acima, deve ser novamente enfatizado a
situação sintomática em que nos deparamos aqui, o texto constitucio-
nal positivo não reproduziu a regra do §1º do art. 131 (livre escolha
do AGU) na estrutura normativa do art. 132 da Constituição de 1988,
que inegavelmente afigura um silêncio eloquente da Constituição,
conducente à adoção da interpretação restritiva aos princípio da
simetria e do paralelismo, pois não há qualquer limitação expressa na
Constituição Federal ao princípio da autonomia dos Estados como entes fe-
derativos que conduza a coadunar-se com postura interpretativa que
suprima do constituinte e do legislador estaduais sua função nomotéti-
ca, da qual deflui, no fim de contas, do poder democrático de regular
o modo e os critérios de escolha dos Procuradores-Gerais do Estado e
do DF pelos respectivos Governadores14.
O ponto de vista aqui exposto encontra ressonância em im-
portantes precedentes em sede de controle de constitucionalidade pe-
rante o Supremo Tribunal Federal formados na ADI nº 2851 e na ADI
nº 2682, no qual prestigiou-se o princípio da autonomia federativa ao
declarar a constitucionalidade de lei estadual que a regra de escolha
do Procurador-Geral do Estado devesse restringir-se ao quadro de in-
tegrantes da carreira de Procurador do Estado

49
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Não se pode olvidar que falar-se de autonomia dos Estados e


do Distrito Federal nos conduz ao núcleo intangível da constituição,
que tem como uma de suas cláusulas pétreas a forma federativa de
Estado (§4º do art. 60), o que mais uma vez nos leva a refletir sobre
uma interpretação constitucional que promove o reconhecimento de
que a Constituição de 1988 não se apresenta como uma constituição total
(Machado Horta)15 e que uma postura de boa hermenêutica sistemáti-
ca que promova o reconhecimento de espaço de autonomia do Poder
Constituinte derivado do Estado-membro ou ao seu poder legislativo
para o estabelecimento de regras estaduais de preordenação relativas
à escolha do Procurador-Geral do Estado, exigindo que tal escolha
recaia unicamente dentre os integrantes da carreira.
Assim, não é razoável defender a inconstitucionalidade de nor-
mas estaduais e distritais que estabelecem como critério de escolha e de
provimento do Procurador-Geral do Estado ou do Distrito Federal deva
ser direcionada aos integrantes concursados da carreira, visto que tra-
duzem plena compatibilidade com o art. 132 da Constituição de 1988,
ao conferir-lhe plena eficácia. São igualmente constitucionais por não
representarem qualquer ofensa ao princípio implícito e relativo da simetria,
sendo que, por perspectiva mais ampla, vislumbram-se a razoabilidade e
a proporcionalidade de tais regramentos, por não existir contraposição a
qualquer outra regra expressa, princípio ou valor constitucional.
Mais ainda, consagrar a autonomia estadual na perspectiva
colocada no presente texto surge como clara expressão de uma das
dimensões do estado democrático de direito ao prestigiar a atividade
do poder constituinte estadual, como manifestação da vontade popu-
lar em âmbito regional e celebração do princípio da soberania
popular (art. 1º, parágrafo único).

50
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho teórico argumentativo desenvolvido no presente en-
saio nos conduz à concluir que a aplicação dos princípios implícitos da
simetria e do paralelismo não pode ser feita a partir de uma perspec-
tiva em que eles sejam postos como princípios de índole absoluta pelo
hermeneuta constitucional, sendo sempre indicada uma autocontenção
do intérprete ao lidar com temas sensíveis relacionados ao princípio fe-
derativa de organização político-administrativa interna da República
Federativa do Brasil, à luz do caput do art. 18 da Constituição de 1988.
Princípio federativo que integra expressamente o núcleo intangível (cláusu-
las pétreas) que não podem ser sequer objeto de proposta de emenda à
Constituição (inciso I do §4º do art. 60).
Como corolário das reflexões acima alinhavadas, surge como
um ponto de partida inarredável as notáveis diferenciações estru-
turais adotadas na textura normativa da redação do §1º do art. 131
em colação com a do art. 132 da Constituição, o que está a indicar
o claro propósito do constituinte federal de não estabelecer qualquer
modelagem estritamente simétrica e paralela entre a Advocacia-Geral
da União e as Procuradorias-Gerais dos Estados e do Distrito Federal,
especialmente, no caso desses última, quanto ao critério de escolha de
seus Procuradores-Gerais.
O art. 132 da Constituição não contém qualquer lacuna consti-
tucional que permita ao hermeneuta constitucional lançar mão de prin-
cípios implícitos, como os da simetria e paralelismo, para afastar analogi-
camente a necessária aplicação do princípio explícito do federalismo, com a
consequente autonomia federativa dos entes federados.
O texto do presente ensaio traduz clara hipótese de silêncio elo-
quente do texto constitucional, quando se constata clara intenção de dei-
xar aberto espaço nomotético ao poder constituinte derivado e ao legis-
lador estadual para regular, dentro do espaço de autonomia federativa

51
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

de sua auto-organização, o que se coaduna com o afastamento de inter-


pretações que tratem a Constituição federal como uma constituição total,
que dentro de falta de razoabilidade, suprima linearmente toda e qualquer
dimensão de autonomia dos entes federativos.
Parâmetro para o reconhecimento das diferenciações estruturais
intencionalmente postas no texto constitucional entre o modelo adotado
para a Advocacia-Geral da União e o da carreira dos Procuradorias
dos Estados já se encontra sedimentado no vetor interpretativo da
unicidade estrutural da representação judicial dos Estados e
do Distrito Federal reconhecido na jurisprudência do Supremo Tribu-
nal Federal em caráter por suas Procuradorias-Gerais.
Por fim, nada há que traduza ofensa a qualquer modelo simé-
trico ou paralelo no que implique em incompatibilidades com qualquer
modelo de reprodução obrigatória que imponha aos Estados e ao Dis-
trito Federal, como critério fixo de escolha e nomeação do Procura-
dor-Geral do Estado e do Distrito Federal, o da ‘livre nomeação’ e que
afaste a adoção da livre escolha do Chefe do Poder Executivo dentre os
integrantes da carreira, admitidos pela regra republicana do concurso
público. A adoção, dentro de sua esfera de autonomia federativa, de tal
critério como clara expressão de uma das dimensões do estado demo-
crático de direito ao prestigiar a atividade do poder constituinte e do
legislador estadual, como manifestação da vontade popular em âmbito
regional e celebração do princípio da soberania popular (art. 1º,
parágrafo único). Plenamente compatível, como se observa, com pa-
râmetros de adequação e razoabilidade à luz de uma hermenêutica do
razoável acima apresentada.

52
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Notas
1
Veja-se a ADI nº 6607, da relatoria do Ministro Kássio Nunes Marques.
2
Percepção essa que não escapa à doutrina constitucional brasileira, como se vê em
José Afonso da Silva (Manual de Direito Constitucional Positivo, 43ª ed. São Paulo: Editora
Juspódion/Malheiros Editores, 2020, p. 104), quando o professor paulista observa que:
“A Constituição de 1988 buscou resgatar o princípio federalista e estruturou um modelo
de repartição de competências que tenta refazer o equilíbrio das relações entre o poder
central e os poderes estaduais e municipais.” Não se pode deixar de mencionar aqui tam-
bém que a abertura da nova ordem constitucional às iniciativas regionais como medida
de fortalecimento das noções de federalismo e de democracia, elementos nucleares em
nosso sistema constitucional, ao dizer que: “Vive o federalismo constitucional brasileiro
um tempo novo. É o tempo da modernização das instituições constitucionais. A Consti-
tuição do Estado, parcela deste conjunto institucional, reflexo e agente do novo tempo,
modernizou as instituições estaduais, acolhendo no seu texto as aspirações generalizadas
de progresso, bem-estar e liberdade.”
3
Ferraz Jr, Tercio Sampaio. Introdução do Estudo do Direito. 5ª ed. São Paulo, Atlas,
p. 49.
4
Ferraz Jr, Tercio Sampaio. Introdução do Estudo do Direito. 5ª ed. São Paulo, Atlas,
p. 50.
5
Tercio Sampaio Ferraz Jr Ferraz Jr (Introdução do Estudo do Direito. 5ª ed. São Paulo,
Atlas, p.49) anota que “quando se diz que o princípio básico da dogmática é o da inegabi-
lidade dos pontos de partida, isto não significa que a função dela consista nesse postulado,
ou seja, que ela limite a afirmar, repetir dogmas pura e simplesmente pura e simplesmen-
te. A dogmática apenas depende desse princípio, mas não se reduz a ele”.
6
Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou atra-
vés de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-
-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcio-
namento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

§ 1º - A Advocacia-Geral da União tem por chefe o Advogado-Geral da União,


de livre nomeação pelo Presidente da República dentre cidadãos maiores de trinta e
cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada.

§ 2º - O ingresso nas classes iniciais das carreiras da instituição de que trata este
artigo far-se-á mediante concurso público de provas e títulos.

53
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

§ 3º - Na execução da dívida ativa de natureza tributária, a representação da União


cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, observado o disposto em lei

Art. 132. Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em


7

carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com


a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão
a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas.

Parágrafo único. Aos procuradores referidos neste artigo é assegurada estabilida-


de após três anos de efetivo exercício, mediante avaliação de desempenho perante os
órgãos próprios, após relatório circunstanciado das corregedorias
8
Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998.

Vide sobre o princípio da unicidade da representação judicial das Procuradorias-Gerais


9

dos Estados e do DF: ADI 5215/GO (Min Roberto Barroso); ADI 4449/AL (Min
Marco Aurélio); ADI 6292/MS (Min Gilmar Mendes); dentre outras.

Horta, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. 1995. Belo Horizonte:


10

Del Rey, p. 393.


11
Op. cit., p. 376.

Branco, Paulo Gonet; Mendes, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional.


12

11ª ed. São Paulo: saraiva, p. 857.

Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ª ed. São Paulo:
13

Malheiros Editores, p. 599.

No âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, nossa reflexão ga-


14

nha suporte na observação do Ministro Gilmar Mendes que no julgamento da ADI


253/MT, de sua relatoria, quando anota que “os artigos 25 da Constituição Federal
e 11 do ADCT determinam a observância, pelos estados, dos princípios constitucio-
nais. No entanto, a necessidade de harmonia e homogeneidade, que se manifesta
pelo princípio da simetria, não pode ser amarra absoluta às constituições estaduais.”

Importante aqui o escólio de Raul Machado Horta (Direito Constitucional. 3 ed. Del
15

Rey, 2002, pp. 422-423) sobre normas de imitação e de reprodução obrigatória e o de-
vido respeito à capacidade de auto-organização dos Estados, quando preleciona que: “A
norma de reprodução não é, para os fins da autonomia do Estado-Membro, simples nor-
ma de imitação, frequentemente encontrada na elaboração constitucional. As normas de
imitação exprimem a cópia de técnicas e institutos, por influência da sugestão exercida

54
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

pelo modelo superior. As normas de reprodução decorrem do caráter compulsório da


norma constitucional superior, enquanto a norma de imitação traduz a adesão voluntá-
ria do constituinte a uma determinada disposição constitucional. A dosagem das normas
que vão ser reproduzidas pela Constituição do Estado constitui aspecto de fundamental
importância na organização federativa. As normas centrais, que partem da Constitui-
ção Federal, não podem absorver o terreno da auto-organização do Estado-Membro e
devem coexistir com as normas constitucionais autônomas de auto-organização. A con-
versão da Constituição Federal em Constituição total subverteria a natureza do Estado
Federal. Assim também a reprodução de normas da Constituição Federal, por absorção
prévia de matéria de organização do Estado-Membro, não pode alcançar a totalidade da
Constituição Estadual, pois essa incursão desqualificaria o órgão constituinte estadual e
comprometeria, de forma irremediável, o ordenamento constitucional do Estado.”

Referências
BRANCO, Paulo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucio-
nal. 11ª ed. São Paulo: Saraiva Jur.
FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Introdução do Estudo do Direito. 5ª ed. São Paulo: Atlas.
HORTA, Raul Machado Horta. Direito Constitucional. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 13ª ed. São Paulo:
Forense.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ª ed. São Paulo:
Malheiros

Editores.

55
O PROCESSO ADMINISTRATIVO E A DESCONSI-
DERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA:
UMA ANÁLISE CRÍTICA DA LEI N.º 12.846/2013
Thais Rodrigues Coelho Terra1
Hélio Rios Ferreira2

RESUMO

Este artigo abordará o tema: O Processo Administrativo e a


Desconsideração da Personalidade Jurídica: uma análise crítica da Lei
12.846/2013. A pesquisa foi realizada a partir da análise das legislações,
pesquisas bibliográficas (livros, artigos científicos e sites) e jurisprudenciais.
Iniciou-se o estudo através de uma breve narrativa acerca da personaliza-
ção da pessoa jurídica e do instituto da desconsideração da personalidade.
Tratou-se ainda dos principais aspectos no bojo do processo administra-
tivo, sem necessidade de prévia autorização judicial. Por fim, analisou-se
a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica na esfera
processo administrativo, previsto na Lei n.º 12.846/2013, sem o prévio
provimento jurisdicional, a partir do seu art. 14, à luz dos princípios cons-
titucionais e do ordenamento jurídico posto, tema amplamente discutidas
pela doutrina, mas de forma ainda tímida pela jurisprudência que não
conseguem estabelecer um entendimento pacífico.
Palavras-chave: Processo administrativo. Desconsideração da
personalidade jurídica. Lei n.º 12.846/2013.

1 Pós-Graduada em Advocacia Pública pela AVM – Faculdade Integrada e IDDE – Instituto para o Desenvolvimento
Democrático, em parceria com a ANAPE; Pós-Graduanda em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio,
Pós-Graduada em Direito Civil e Empresarial com capacitação para Ensino Superior pela Faculdade IBMEC de São
Paulo e Pós-Graduada em Direito Administrativo pela PUC-Minas. Procuradora do Estado do Amapá e Advogada.
2 Mestrando em Direito de Acesso à Justiça e Direito ao Desenvolvimento pela Unichristus, especialista em Direito Ad-
ministrativo pela PUC-MINAS e em Direito Processual pela Damásio, membro do Comitê técnico da Revista Síntese
de Direito Administrativo, Procurador do Estado do Amapá e Advogado.

57
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

ABSTRACT

This article will address the theme: The Administrative Pro-


cess and the Disregard of the Legal Personality: a critical analysis of
Law 12.846/2013. The research was conducted from the analysis of
legislation, bibliographic (books, scientific articles and websites) and
jurisprudential research. The study began with a brief narrative about
the personalization of the legal entity and the institute of personality
disregard. The main aspects of the administrative process, without the
need for prior judicial authorization, were also addressed. Finally, it
was analyzed the possibility of disregarding the legal personality in
the administrative process sphere, provided by Law No. 12.846/2013,
without prior judicial order, from its article 14, considering constitu-
tional principles and the existing legal system, a subject widely dis-
cussed by doctrine, but still timidly by jurisprudence that cannot estab-
lish a peaceful understanding.
Keywords: Administrative Process. Disregard of legal personali-
ty. Law n.º. 12,846/2013.

INTRODUÇÃO

A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade ju-


rídica já não é novidade em nosso ordenamento jurídico, em especial
no âmbito civil e empresarial.
Tradicionalmente, busca-se afastar a autonomia patrimonial
entre pessoa jurídica físicas a ela vinculadas de modo a atingir os bens
de sócios de uma empresa. Trata-se de instituto de exceção que per-
mite mitigar a separação entre o patrimônio da sociedade e de seus
sócios e tem corriqueira aplicabilidade nos processos judiciais.
No âmbito administrativo, a possibilidade de adoção da disre-
garddoctrine, ainda que carente de regulamentação para a sua aplicação

58
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

prática, já havia sido reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça,


com fundamento nos princípios da moralidade e da indisponibilidade
do interesse público.
Contudo, aceitar a ideia de desconsideração da personalidade
jurídica sem ordem emanada pelo Poder Judiciário, tem sido alvo de
grandes debates. A principal discussão é se há afronta à cláusula de
reserva jurisdicional.
A Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) nasce para suprir a
lacuna legislativa acerca do instituto de desconsideração da persona-
lidade na esfera do processo administrativo. Seu objetivo principal é
instituir um microssistema de combate à corrupção, por meio de cria-
ção de multas, sanções, exigências de instituição de programas de ética
e compliance, dentre outras medidas, tudo com intuito de desestimular
a ocorrência de atos lesivos à Administração Pública, daí a sua impor-
tância para o Direito Civil, Empresarial e Administrativo.
Seu art. 14 veio a autorizar de forma expressa que a auto-
ridade administrativa, no âmbito de um processo administrativo,
desconsidere a personalidade jurídica, sempre que essa for utilizada
com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática
dos atos ilícitos previstos na Lei ou para provocar confusão patri-
monial, às pessoas físicas dos sócios com poderes de administração
e aos administradores.
Surge, portanto, a necessidade de repensar diversos conceitos
jurídicos e superar, inclusive, alguns dogmas entranhados no sistema
acerca do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, a
exemplo do debate acerca da constitucionalidade de haver a desconsi-
deração da personalidade jurídica na esfera do processo administrativo
e a cláusula de reserva de jurisdição, que era impeditivo da decretação
por órgãos com atividade administrativa.

59
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Ver-se-á que a desconsideração da personalidade jurídica na


esfera do processo administrativo agora, por lei, pode ocorrer no âm-
bito administrativo, independe de prévia provimento jurisdicional,
tendo surgido o interesse de estudar diante da ampliação de sua apli-
cabilidade a partir da previsão contida da Lei de Anticorrupção (Lei
n.º 12.846/2013), regulamentada pelo Decreto n.º 8.420/2015, que
desafia a constitucionalidade da norma ao prever a possibilidade da
Administração Pública desconsiderar a personalidade jurídica do ente
coletivo, sem a presença de uma decisão judicial prévia.
Espera-se com esta pesquisa não solucionar o tema – devido a sua
complexidade – mas fazer considerações fundamentais a fim de demons-
trar que a desconsideração da personalidade jurídica na esfera do proces-
so administrativo é instrumento de importante avanço do direito brasileiro
posto que, em tempos modernos, além de combater a corrupção, valoriza
o compliance e mostra-se em consonância com a ordem constitucional.

 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
D
JURÍDICA

Para que se compreenda o instituto de “desconsideração” da


personalidade jurídica, que é instrumento de exceção, impõe-se o en-
tendimento pleno sobre a regra geral, qual seja: o instituto da perso-
nalidade jurídica.
A ideia de “personalização” da pessoa jurídica surgiu ante a
necessidade de construção normativa de uma pessoa distinta daque-
la que a criou, visando estimular o desenvolvimento econômico, por
meio da independência e autonomia patrimonial.
Na atualidade, a tese da Teoria da Realidade Técnica é a que
melhor explica e conceitua a natureza da pessoa Jurídica. Por ela:

60
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

“a existência dessa pessoa é real, mas a sua personalidade é


conferida pelo direito, ou seja, admite-se a existência de uma
pessoa jurídica como ente personalizado na vida real, muito
embora sua personificação seja a construção jurídica conferida
pelo direito (lei), com o fim de que estas entidades possam sub-
sistir de forma autônoma, desvinculando-se das pessoas físicas
que a formam. Ressalta-se que esta foi a teoria recepcionada
pelo Código Civil.” 1

A pessoa jurídica, ao contrário da pessoa física ou natural, exis-


te apenas no plano dos conceitos jurídicos e tem como objetivo servir
aos interesses das pessoas que vivem em sociedade.
Previa o art. 20 do Código Civil de 1916 que a pessoa jurídica tem
existência distinta dos seus membros. O dispositivo não foi repetido pelo
Código Civil de 2002, entretanto, na prática, a realidade se mantém.
Com o nascimento da personalidade jurídica surgiu também a
autonomia e independência patrimonial das pessoas jurídicas, que no
Direito brasileiro encontra-se prevista no art. 1.024 do Código Civil, o
qual dispõe que: “os bens particulares dos sócios não podem ser executados por
dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais”.
A autonomia patrimonial é a chave para possibilitar a limita-
ção da responsabilidade dos sócios.
Todavia, percebeu-se que o uso inadequado e abusivo da per-
sonalidade jurídica. Isto porque, sob o argumento da autonomia patri-
monial, sócios e administradores não deixavam bens suficientes para
o pagamento das dívidas da pessoa jurídica, ficando os credores sem a
satisfação de suas pretensões, de tal sorte que o ordenamento jurídico
precisou adotar conduta para frear e repelir as referidas práticas.
Daí surge a “desconsideração da personalidade jurídica”.

61
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

É nesse sentido o comentário de Fábio Ulhôa Coelho2:

“[a] teoria da desconsideração da personalidade jurídica não é


contrária à personalização das sociedades empresárias e à sua
autonomia em relação aos sócios. Ao contrário, seu objetivo é
preservar o instituto, coibindo práticas fraudulentas e abusivas
que dele se utilizam”.

Vê-se que, apesar de trazer resultados satisfatórios, a criação


da personalidade jurídica trouxe consigo problemas, como fraudes e
abusos, que acabaram por fazer brotar um novo instituto: a “Teoria da
Desconsideração da Personalidade Jurídica”.

 onceito, Fundamentos e Pressupostos da


C
Desconsideração da Personalidade Jurídica

De início registra-se que a desconsideração da personalidade


jurídica não se confunde com despersonificação ou despersonalização
da pessoa jurídica. A diferença é que a desconsideração da pessoa ju-
rídica não atinge a validade do ato constitutivo, mas a sua eficácia
episódica – temporária. Uma sociedade que tenha a sua autonomia
patrimonial desconsiderada continua válida, bem assim os atos que
praticou, ao passo que despersonalizar significa anular a personalida-
de, em caráter definitivo, da pessoa jurídica.
Mas afinal, como definir a Desconsideração da Personalidade
Jurídica?
Na definição de Marlon Tomazzete: “a retirada episódica, mo-
mentânea e excepcional da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a fim
de estender os efeitos de suas obrigações à pessoa física de seus titulares, sócios

62
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

ou administradores, com o fim de coibir o desvio da função da pessoa jurídica


perpetrado por estes.3”
De acordo com o doutrinador Gilberto Bruschi:

“A desconsideração da personalidade jurídica pode ser con-


ceituada como meio de repressão à frustração da atividade
executiva, caracterizado pela decretação da inoponibilidade
(ineficácia relativa) do limite patrimonial da pessoa jurídica,
permitindo que sejam atingidos os bens dos sócios, ex-sócios,
acionistas, ex-acionistas, administradores, ex-administrado-
res e sociedades do mesmo grupo econômico; ou, ainda, que
sejam atingidos os bens das pessoas jurídica por obrigações
contraídas por eles, nos casos da chamada desconsideração in-
versa da personalidade jurídica.”4

Não se trata de uma teoria abolicionista da personalidade da


pessoa jurídica, pelo contrário. É remédio para quem abusa de um
legítimo interesse. A sua finalidade é preservar o instituto e corrigir
eventual desvirtuamento devido ao mau uso da pessoa jurídica, coibin-
do práticas fraudulentas e abusivas que dela se utilizam.
Infelizmente, não raro, as pessoas jurídicas são utilizadas para
fins atentatórios à função social da propriedade, já que ao invés de
gerar emprego, renda e desenvolver a economia, tornam-se mecanis-
mos para ocultar bens dos sócios, frustrar credores e sonegar tributos,
atentando ainda contra a função social do contrato.
Há de atentar que princípios macros são valorados aqui. Desse
modo, se coíbe com veemência a utilização de tal separação patrimonial
para fins que não se revelem harmônicos com a função social da ativida-
de econômica — propriedade —, com a boa-fé nas relações negociais,

63
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

com a segurança jurídica nas relações empresariais, à proteção ao meio


ambiente, à ordem econômica, ao erário e ao consumidor.
Este é, pois, o conceito amplo e o objetivo do Instituto da Des-
consideração da Personalidade Jurídica.
Todavia, o ordenamento jurídico brasileiro prevê diplomas e
regimes legais distintos paras as diversas situações que ensejam a des-
consideração da personalidade jurídica os quais desencadearam nas
duas principais teorias: Teoria Maior e Teoria Menor.
A teoria menor sustenta que o requisito primordial para afastar a
autonomia patrimonial de uma sociedade é a insolvência, prescindida da
comprovação do uso indevido da pessoa jurídica, ou seja, é suficiente que
se demonstra a frustração do credor em receber o seu crédito.
No Direito Brasileiro encontrou acolhida na legislação consu-
merista (art. 28 do CDC), ambiental (Lei nº 9.605/98 - Crimes Am-
bientais), na defesa da concorrência (art.32 da. Lei nº 12.529/2011)
e na seara trabalhista, sob o fundamento de que as relações jurídicas
tutelas nessas searas guardam desiquilíbrio e, também, no risco da ati-
vidade econômica.
Apesar de reconhecida pelos Tribunais e pela legislação, a Teo-
ria Menor sofre críticas da doutrina, em especial pelos que defendem
que condicionar a desconsideração à simples insolvência importa em
ignorar as regras da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas não
sendo esse o sentido do instituto, mas tão só de se revelar como medida
de exceção e quando comprovado uso inadequado.
Ao contrário, na Teoria Maior, para que haja a desconsidera-
ção da personalidade jurídica, não basta a insolvência, pois deve restar
demonstrado o conluio fraudulento, através da confusão patrimonial
ou do uso abusivo do direito da personalidade jurídica. Essa teoria foi
consagrada no Código Civil, em seu art. 50.

64
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Mais recentemente, a Medida Provisória n° 881 de 2019 foi


convertida na Lei n° 13.874 (Lei da Liberdade Econômica) e instituí-
da a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelecendo
normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício da atividade
econômica, dispondo sobre a atuação do Estado como agente norma-
tivo e regulador.
Dentre as alterações trazidas pela Lei da Liberdade Econômi-
ca, foi alterada a redação do art. 50 do Código Civil, reformando a
disposição legal aplicável ao instituto da desconsideração da persona-
lidade jurídica.
A antiga redação do art. 50 do CC não previa o conteúdo nor-
mativo das expressões “desvio de finalidade” e “confusão patrimonial”,
definições que eram tratadas pelo campo da doutrina e jurisprudência.
Agora, o “desvio de finalidade” é definido como a “utilização
da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática
de atos ilícitos de qualquer natureza.” A versão atual, consagrada pela
Lei 13.874/19, retirou a exigência do dolo para a caracterização do desvio, que
tratava a MP881, consagrando a teoria maior objetiva.
Já a “confusão patrimonial” é a ausência de separação de fato
entre os patrimônios, caracterizada por cumprimento repetitivo pela
sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
a transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações,
exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e outros atos de
descumprimento da autonomia patrimonial.
Além do mais, o caput do art. 50 prevê a necessidade de nexo
causal entre o abuso da personalidade jurídica (causado pelo desvio de
finalidade ou pela confusão patrimonial) e o benefício auferido pelos
sócios ou administradores da sociedade, sem o qual não há que se falar
na desconsideração da personalidade jurídica, ou seja, ela. Não vai
atingir sócio que não experimentou nenhum benefício.

65
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

O §5º do art. 50 do CC adverte que a mera expansão ou alte-


ração da finalidade original da atividade econômica não é suficiente
para possibilitar a desconsideração da personalidade jurídica.
O Código Civil confirma, em seu §3º, a possibilidade da des-
consideração da personalidade jurídica inversa ou invertida (já con-
templada pelo CPC – art. 133, §2º), o que significa ir ao patrimônio da
pessoa jurídica, quando a pessoa física que a compõe esvazia fraudu-
lentamente o seu patrimônio pessoal.
Por fim, esse instrumento de direito material e processual deve
ser usado com cautela, ainda mais no âmbito administrativo, pois to-
dos os sócios devem ser intimados para defender o patrimônio da pes-
soa jurídica, caso constrangido de maneira ilegal, e, também, para to-
mar medidas contra o(s) sócio (s) causador do dano à pessoa jurídica.5
Surgem novos contornos para a desconsideração da personali-
dade jurídica, uma vez que alterações trazidas pela Lei da Liberdade
Econômica trouxeram maior conteúdo normativo de direito material
ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica, possibilitan-
do a sua aplicabilidade de forma ainda mais precisa e técnica.

 ESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
D
JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA.
ASPECTOS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS

A desconsideração da personalidade jurídica no cenário das


demandas judiciais é uma realidade comum no direito brasileiro. Pos-
suiu fortes raízes que garantem o seu pleno reconhecimento e aplica-
ção pelos operadores do direito.
Agora, real e eminente continua sendo a discussão acerca do
limite/abrangência do tema na medida que as pessoas jurídicas, além
dos alcances judiciais, estão sujeitas ao da esfera administrativa e daí a

66
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

importância do estudo também para aqueles que operam com o direi-


to Civil e Empresarial.
No âmbito administrativo, paira o debate acerca do fundamen-
to de validade da norma autorizativa do uso desse instituto. Dois são os
argumentos mais eloquentes: fundamento constitucional que autoriza
a desconsideração da personalidade jurídica na esfera administrativa e
a da cláusula de reserva de jurisdição – (im)possibilidade de a Adminis-
tração Pública desconsiderar a personalidade jurídica do ente coletivo,
sem a presença de um pronunciamento jurisdicional.
Entretanto, antes de tratar das questões acima, é preciso enten-
der a contextualização do Direito Administrativo, pois pensar em des-
consideração da personalidade jurídica na esfera administrativa, en-
volve questão não apenas do Direito Civil e Empresarial, mas também
a integração sistêmica com o Direito Constitucional e Administrativo.

 A CONTEXTUALIZAÇÃO DO DIREITO
D
ADMINISTRATIVO

Importante abordar o tema da contextualização do Direito


Administrativo porque é a Constituição Federal o artefato normativo
maior e que se encontra no topo da pirâmide de hierarquia das nor-
mas. Sua importância é tamanha que a ela foi conferida a última pala-
vra nos casos de lacuna legislativa e o confronto entre as normas legais,
pontos cruciais quando da aplicação da desconsideração da personali-
dade jurídica na esfera administrativa, no caso concreto.

O neoconstitucionalismo trouxe uma intersecção possível en-


tre o direito público e o privado, de modo a possibilitar o passeio inter-
pretativo e normativo mais próximo entre as normas de ordem pública
e privada, dando força ao fundamento de validade constitucional da
aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica

67
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

não só no direito empresarial, civil ou trabalhista. Como também no


direito ambiental e, mais recentemente, no âmbito administrativo.
Foi a partir dessa visão de modelo constitucional do direito
material e processual que surgiram as primeiras discussões acerca da
possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica na esfera
administrativa, na medida em que dentro do Direito Administrativo os
princípios constitucionais são o seu pilar básico.
Na verdade, a positivação da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica trazida pela Lei Anticorrupção inaugurou
uma previsão normativa que não existia antes no ordenamento ju-
rídico brasileiro: a expressa possibilidade da Administração Pública
estender as sanções administrativas aos dirigentes e sócios com po-
deres de administração.
Contudo, mesmo antes da positivação mencionada acima, a
doutrina e a jurisprudência já admitiam essa possibilidade e o funda-
mento era retirado justamente dos princípios da Constituição Federal.
O modelo constitucional de processo, aplica-se não só ao pro-
cesso civil, mas também ao processo penal e administrativo. Tanto é
assim que os princípios fundamentais da Constituição (art. 5º) trazem
por diversas vezes a menção ao processo administrativo como uma
garantia constitucional do cidadão. O inverso pode ocorrer quando
o fim a ser alcançado é o benefício da coletividade. Ou seja, a des-
consideração da personalidade jurídica no processo administrativo
possibilita a recuperação de valores a serem revertidos em favor do
cidadão, de qualquer maneira, estar-se-á a garantir o direito funda-
mental do indivíduo.
Fabio Ulhoa Coelho faz ponderações que vão além da questão de
ordem constitucional e depende a desconsideração da personalidade jurí-
dica não depende, sob pena de assim fazendo amparar a fraude, veja-se:

68
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

(...) é pacífico na doutrina e na jurisprudência que a desconside-


ração da personalidade jurídica não depende de qualquer alte-
ração legislativa para ser aplicada, na medida em que se trata de
instrumento de repressão a atos fraudulentos. Quer dizer, deixar
de aplicá-la, a pretexto de inexistência de dispositivo legal ex-
presso, significaria o mesmo que amparar a fraude. 6

Destaca-se que a desconsideração da personalidade jurídica é um


instituto que pertence à Teoria Geral do Direito, podendo ser aplicado,
desde que presentes seus pressupostos, a qualquer ramo do direito.
Desse modo, a Administração Pública, na busca pela satisfação
da sua missão constitucional, podia e pode, em atenção aos princípios
que regem a sua atuação, afastar a personalidade jurídica, visando coi-
bir a prática de ilícitos em detrimento do Poder Público, consoante se
passa a demonstrar.

 RINCÍPIOS QUE REGEM A ADMINISTRAÇÃO


P
PÚBLICA COMO FUNDAMENTO PARA A
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA

Como se sabe, a mola mestra normativa constitucional para a


Administração Pública é o art. 37 da CF de 1988.
O principal deles é o Princípio da Legalidade (art. 37 caput da CF),
segundo o qual o administrador deve atuar pelo Direito, segundo o Di-
reito e conforme o Direito, conjugando a lei e os princípios reitores da
administração. E, a partir dele derivam outros, a exemplo da juridicidade.
A Min. do STF Carmen Lúcia Antunes Rocha, exalta o prin-
cípio da juridicidade, uma vez que não se deve observância apenas à
lei formal, veja-se:

69
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Sendo a lei, entretanto, não a única, mas a principal fonte


do Direito, absorveu o princípio da legalidade administrati-
va toda a grandeza do Direito em sua mais vasta expressão,
não se limitando à lei formal, mas à inteireza do arcabouço
jurídico vigente no Estado. Por isso este não se bastou como
Estado de Lei, ou Estado de Legalidade. Fez-se Estado de
Direito, num alcance muito maior do que num primeiro mo-
mento se vislumbrava o conteúdo do princípio da legalidade,
donde a maior justeza de sua nomeação como princípio da
‘juridicidade’.”7

É nesta perspectiva que inicia o raciocínio dos que defendem a


possibilidade de aplicação do instituto da desconsideração da persona-
lidade na esfera administrativa.
O raciocínio aqui vai além da velha tradução de “observância
a lei em sentido formal”, pois se é dever da Administração Pública pri-
mar pela legalidade, legitimo é utilizar do remédio aqui estudado para
quem abusa/ frauda de um legítimo interesse, garantindo o império
da Legalidade, da Juridicidade e impedindo que, ainda que por vias
transversas, leis deixem de ser observadas.
A partir do princípio da legalidade chega-se ao princípio da
moralidade que tem um conceito jurídico indeterminado, mas sobre
o qual repousa a ideia de que a Administração Pública deve ser éti-
ca para que seus atos sejam juridicamente válidos. Trata-se, portanto,
de princípio que exige a honestidade, lealdade, boa-fé de conduta no
exercício da função administrativa, a ser observado não apenas pelo
administrador, mas também pelo particular que se relaciona com a
Administração Pública.

70
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Neste sentido, Maria Sylvia Zanella di Pietro ensina que:

“(...) Embora não se identifique com a legalidade (porque a lei


pode ser imoral e a moral pode ultrapassar o âmbito da lei),
a imoralidade administrativa produz efeitos jurídicos, porque
acarreta a invalidade do ato, que pode ser decretada pela pró-
pria Administração ou pelo Poder Judiciário. (...)”8

Ademais, o princípio da legalidade é corolário da indisponibi-


lidade do interesse público, que deve ser a direção única de quaisquer
de suas atuações, sendo vedado à autoridade administrativa deixar de
tomar as providencias relevantes ao interesse público.
Estes são algumas bases principiológicas pelas quais a doutrina
e a jurisprudência passaram a defender a possibilidade de desconside-
ração na esfera administrativa.
Nesse sentido, se existe o dogma da legalidade, como garantia
do administrado no controle da atuação administrativa, por outro lado,
existem Princípios com o da Moralidade Administrativa, o da Supre-
macia do Interesse Público e o da Indisponibilidade dos Interesses Tu-
telados pelo Poder Público, que também precisam ser preservados pela
Administração. Cabe sobrepesar os princípios e, com auxílio da herme-
nêutica, buscar o resultado que traga harmonia do sistema normativo.
Foram com esses fundamentos que o STJ (2003) já admitiu
a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica
para estender os efeitos da declaração de inidoneidade à sociedade
empresarial diversa, constituída com o objetivo de burlar a aplicação
da sanção administrativa:

71
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MAN-


DADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INI-
DONEIDADE PARA LICITAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À
SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS
SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO
DE FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDA-
DE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA
INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS.

– A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social,


com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a
outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública
Estadual, com o objetivo de burlar à aplicação da sanção adminis-
trativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações Lei n.º
8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsi-
deração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da
sanção administrativa à nova sociedade constituída.

– A Administração Pública pode, em observância ao


princípio da moralidade administrativa e da indispo-
nibilidade dos interesses públicos tutelados, descon-
siderar a personalidade jurídica de sociedade cons-
tituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que
facultado ao administrado o contraditório e a ampla
defesa em processo administrativo regular.

– Recurso a que se nega provimento. (STJ – RMS 15166 / BA


– Relator: Ministro CASTRO MEIRA – SEGUNDA TURMA
– DJ 08.09.2003 p. 262.) – grifo nosso.

72
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Na oportunidade o Ministro Castro Meira, enfrentou a possi-


bilidade de desconsideração da personalidade jurídica na esfera admi-
nistrativa, sem que houvesse norma autorizadora, com fundamento
nos princípios que regem a Administração Pública, veja-se:

(...) firmado o entendimento de que a Recorrente foi constituída


em nítida fraude à lei e com abuso de forma, resta a questão
relativa à possibilidade de desconsideração da personalidade ju-
rídica, na esfera administrativa, sem que exista um dispositivo
legal específico a autorizar a adoção dessa teoria pela Adminis-
tração Pública.

A atuação administrativa deve pautar-se pela observância dos


princípios constitucionais, explícitos ou implícitos, deles não
podendo afastar-se sob pena de nulidade do ato administrati-
vo praticado. E esses princípios, quando em conflito,
devem ser interpretados de maneira a extrair-se a
maior eficácia, sem permitir-se a interpretação que
sacrifique por completo qualquer deles.

Se, por um lado, existe o dogma da legalidade, como garantia


do administrado no controle da atuação administrativa, por ou-
tro, existem Princípios com o da Moralidade Administrativa, o
da Supremacia do Interesse Público e o da Indisponibilidade
dos Interesses Tutelados pelo Poder Público, que também pre-
cisam ser preservados pela Administração. Se qualquer deles
estiver em conflito, exige-se do hermeneuta e do aplicador do
direito a solução que melhor resultado traga à harmonia do sis-
tema normativo.

73
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

A ausência de norma específica não pode impor à Administra-


ção um atuar em desconformidade com o Princípio da Mora-
lidade Administrativa, muito menos exigir-lhe o sacrifício dos
interesses públicos que estão sob sua guarda. Em obediência ao
Princípio da Legalidade, não pode o aplicador do direito negar
eficácia aos muitos princípios que devem modelar a atuação do
Poder Público.

Assim, permitir-se que uma empresa constituída com desvio de


finalidade, com abuso de forma e nítida fraude à lei, venha a par-
ticipar de processos licitatórios, abrindo-se a possibilidade de que a
mesma tome parte em um contrato firmado com o Poder Público,
afronta os mais comezinhos princípios do direito admi-
nistrativo, em especial, ao da Moralidade Administra-
tiva e ao da Indisponibilidade dos Interesses Tutelados
pelo Poder Público.

A concepção moderna do Princípio da Legalidade não


está a exigir, tão-somente, a literalidade formal, mas
a intelecção do ordenamento jurídico enquanto siste-
ma. Assim, como forma de conciliar o aparente conflito entre
o dogma da legalidade e o Princípio da Moralidade Adminis-
trativa é de se conferir uma maior flexibilidade à teoria da des-
consideração da personalidade jurídica, de modo a permitir o
seu manejo pela Administração Pública, mesmo à margem de
previsão normativa específica.”.9 – grifo nosso.

Ainda sobre os fundamentos que autorizam a “disregard


doctrine” na esfera administrativa, deve-se ter em mente que a des-
consideração da pessoa jurídica visa corrigir ato lesivo e, por isto,
é dever imposto à Autoridade Pública que precisa fazer cessar toda
conduta lesiva à Administração Púbica potencializando, assim,

74
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

as consequências aos interesses comuns da coletividade. Trata-se


do princípio do dever-poder que revela a obrigação do agente em
desenvolver suas atividades, em prol da Administração Púbica, da
maneira mais eficaz possível.
Para esgotar, por hora, o tema, registra-se que o STF já teve
oportunidade de se manifestar na ocasião da análise da tutela de ur-
gência cautelar (MS nº 32.494-MC/DF). No voto, o Ministro Celso de
Mello destacou:

Tenho para mim, em juízo de mera delibação (em afirmação com-


patível, portanto, com esta fase de incompleta cognição), que o E.
Tribunal de Contas da União, ao exercer o controle de legalidade
sobre os procedimentos licitatórios sujeitos à sua jurisdição, possui-
ria atribuição para estender a outra pessoa ou entidade envolvida
em prática comprovadamente fraudulenta ou cometida em colu-
são com terceiros a sanção administrativa que impôs, em momento
anterior, a outro licitante (ou contratante), desde que reconheça,
em cada situação que se apresente, a ocorrência dos pressupostos
necessários à aplicação da teoria da desconsideração da persona-
lidade jurídica, pois essa prerrogativa também comporia a esfera
de atribuições institucionais daquela E. Corte de Contas, que se
acha instrumentalmente vocacionada a tornar efetivo o exercício
das múltiplas e relevantes competências que lhe foram diretamente
outorgadas pelo próprio texto da Constituição da República.

Isso significa que a atribuição de poderes explícitos ao Tribunal


de Contas, como enunciados no art. 71 da Lei Fundamental da
República, supõe que se lhe reconheça, ainda que por implici-
tude, a titularidade de meios destinados a viabilizar a adoção de
medidas vocacionadas a conferir real efetividade às suas delibe-
rações finais, permitindo, assim, que se neutralizem situações

75
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

de lesividade, atual ou iminente, ao erário e ao ordenamento


positivo.

[...]

É por isso que, em juízo de sumária cognição, parece-me re-


vestir-se de legitimidade constitucional a possibilidade teórica
de aplicação da “disregarddoctrine”, que permitiria ao Tribu-
nal de Contas da União adotar as medidas necessárias ao fiel
cumprimento de suas funções institucionais e ao pleno exercício
das competências que lhe foram outorgadas, diretamente, pela
própria Constituição da República. […]

De outro lado, e a despeito de o instituto da desconside-


ração da personalidade jurídica somente haver sido objeto
de regulação legislativa em tempos mais recentes, como se
verifica do Código Civil (art. 50) e dos diversos microssiste-
mas legais, como aqueles resultantes do Código de Defesa
do Consumidor (art. 28), da Lei nº 9.615/98 (“Lei Pelé”,
art. 27), da Lei Ambiental (Lei nº 9.605/98, art. 4º) e da
Lei nº 12.529/2011 (art. 34), entre outros instrumentos
normativos, parece-me que a ausência de autorização legal
outorgando ao Tribunal de Contas da União competência
expressa para promover “the lifting ofthecorporateveil” não
violaria, aparentemente, o postulado da legalidade, eis que
a aplicação, em nosso sistema jurídico, da “disregarddoctri-
ne”, como sabemos, precedeu, em muitos anos, a própria
edição dos diplomas legislativos anteriormente referidos,
como resulta de decisões proferidas por nossos Tribunais
judiciários (RT 511/199 – RT 560/109 – RT 568/108 – RT
654/182-183 – RT 657/86 – RT 657/120 – RT 660/181
– RT 673/160) e reconhece o magistério da doutrina (RU-
BENS REQUIÃO, “Abuso de Direito e Fraude Através da

76
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Personalidade Jurídica”, RT 410/1-12; ROGÉRIO LAU-


RIA TUCCI, “Direito Processual Civil e Direito Privado –
Ensaios e Pareceres”, p. 162/164, item n. 5, 1989, Saraiva,
v.g.).

[…]

É importante acentuar que a aplicação do instituto da desconsi-


deração (“disregarddoctrine”), por parte do Tribunal de Contas
da União, encontraria suporte legitimador não só na teoria dos
poderes implícitos, mas, também, no princípio constitucional
da moralidade administrativa, que representa um dos vetores
que devem conformar e orientar a atividade da Administração
Pública (CF, art. 37, “caput”), em ordem a inibir o emprego
da fraude e a neutralizar a prática do abuso de direito, que se
revelam comportamentos incompatíveis com a essência ética do
Direito (...)”10

O Ministro mostra ainda que a possibilidade de aplicação da


desconsideração da personalidade jurídica por órgãos administrativos,
desde que utilizada como meio de coibir o abuso de direito e o desres-
peito aos princípios que condicionam a atividade do Estado:

“(…) Trata-se de doutrina desenvolvida no âmbito do direito


comparado, destinada a reprimir a utilização fraudulenta de
pessoas jurídicas. Não se trata de ignorar distinção entre a pes-
soa da sociedade e a de seus sócios, que era formalmente con-
sagrada pelo art. 20 do Código Civil/1916. Quando a pessoa
jurídica for a via para realização da fraude, admite-se a possibi-
lidade de superar-se sua existência. Essa questão é delicada, mas

77
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

está sendo enfrentada em todos os ramos do Direito. Nada im-


pede sua aplicação no âmbito do Direito Administrativo, desde
que adotadas as cautelas cabíveis e adequadas. Não se admite
que se pretenda ignorar a barreira da personalidade jurídica
sempre que tal se revele inconveniente para a Administração.
A desconsideração da personalidade societária pressupõe a uti-
lização ilegal, abusiva e contrária às boas práticas da vida em-
presarial. E a desconsideração deve ser precedida de processo
administrativo específico em que sejam assegurados a ampla
defesa e o contraditório a todos os interessados.”

Contudo, mesmo tendo reconhecendo que a aplicação da teo-


ria da desconsideração da personalidade jurídica na esfera administra-
tiva guarda compatibilidade com a ordem constitucional, o julgador
deferiu a medida cautelar a fim de suspender o acórdão do TCU sob
o argumento de que o STF ainda não se pronunciou sobre a validade
da aplicação da disregarddoctrine no âmbito dos procedimentos adminis-
trativos, seja porque há eminentes doutrinadores, apoiados na cláusula
constitucional da reserva de jurisdição, que entendem imprescindível
a existência de ato jurisdicional para legitimar a desconsideração da
personalidade jurídica (o que tornaria inadmissível a utilização dessa
técnica por órgãos e Tribunais administrativos), seja porque se mostra
relevante examinar o tema da desconsideração expansiva da persona-
lidade civil em face do princípio da intranscendência das sanções ad-
ministrativas e das medidas restritivas de direitos, seja, ainda, porque
assume significativa importância o debate em torno da possibilidade
de utilização da disregarddoctrine, pela própria Administração Pública,
agindo “pro domo sua”, examinada essa específica questão na pers-
pectiva do princípio da legalidade.

78
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

 LÁUSULA CONSTITUCIONAL DA RESERVA


C
DE JURISDIÇÃO. DA (DES)NECESSIDADE DE
PROVIMENTO JURISDICIONAL

O segundo ponto de discussão eloquente acerca da aplicabili-


dade da teoria da desconsideração da personalidade jurídica na esfera
do administrativa é a forte resistência sob o argumento de afronta a
cláusula constitucional da reserva de jurisdição.
Por cláusula constitucional da reserva de jurisdição, definiu o
Min. Celso de Mello, ao proferir seu voto no MS 23452/RJ:

“o postulado de reserva constitucional de jurisdição importa em


submeter, à esfera única de decisão dos magistrados, a práti-
ca de determinados atos cuja realização, por efeito de explícita
determinação constante do próprio texto da Carta Política, so-
mente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daque-
les a quem haja eventualmente atribuído o exercício de poderes
de investigação próprios das autoridades judiciais”.11

Significa que assiste ao Poder Judiciário não apenas o direito de


proferir a última palavra, mas sobretudo a prerrogativa de dizer a primei-
ra, excluindo por força Constitucional este exercício por parte de outros
órgãos ou autoridades do Estado. A ausência de norma formal afirman-
do a legalidade da atuação administrativa no sentido de desconsiderar
a personalidade jurídica dava margem à interpretação constitucional do
instituto e sua abrangência perante os ramos do direito.
É nesse sentido que parte dos estudiosos defendem a cláusula
constitucional da reserva de jurisdição para os casos de aplicação da
desconsideração da personalidade jurídica.

79
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Tanto é verdade que este foi um dos destaques no final do voto


proferido pelo Ministro Celso de Mello, nos autos do MS nº 32.494-
MC/DF, que apesar de ter a convicção plena da possibilidade do dis-
regarddoctrine na esfera administrativa, deferiu a Medida Liminar que
suspendeu a decisão do TCU, in verbis:

“(...) Ocorre, no entanto, que razões de prudência (...) seja por-


que há eminentes doutrinadores, apoiados na cláusula constitu-
cional da reserva de jurisdição, que entendem imprescindível a
existência de ato jurisdicional para legitimar a desconsideração
da personalidade jurídica (o que tornaria inadmissível a utiliza-
ção dessa técnica por órgãos e Tribunais administrativos) (...) de-
firo o pedido de medida liminar, para suspender, cautelarmente,
a eficácia do item 9.4 do Acórdão nº 2.593/2013 do Plenário do
E. Tribunal de Contas da União.

Essa parte da doutrina entende que a desconsideração da per-


sonalidade jurídica só poderia ser aplicada pelo Poder Judiciário, tal
como preconizam os art.s 28 do CDC e 50 do CC, os quais expressa-
mente mencionam:

“Art. 28 do CDC: O juiz poderá desconsiderar a personalidade


jurídica da sociedade (...)

Art. 50 do CC: Art. 50. Em caso de abuso da personalidade


jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela con-
fusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do
Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, des-
considerá-la (...)

80
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Todavia, este parece um fundamento raso, na medida que esses


instrumentos legais não possuem o condão limitador por se tratar de
lei ordinária e como já se viu, a legislação que trata da desconsideração
da personalidade jurídica é esparsa pelo ordenamento jurídico – Não
se vê qualquer usurpação de competência judiciária.
O TCU tem decisões que considera válida a atuação adminis-
trativa na desconsideração da personalidade jurídica, veja-se:

“em caso de fraude comprovada, é possível a responsabilização


não só da empresa, mas também dos sócios, de fato ou de di-
reito, a partir da desconsideração da personalidade jurídica da
instituição empresarial” 12

Outros julgados no mesmo sentido: TC 015.452/2011-5, TC


003.533/2006-1, TC 021.929/2010-6, TC 003.770/2004-0 e TC
001.323/2006-5.
Essa discussão perdeu um pouco de sentido, pois em 2013 sur-
ge a Lei n. 12.846 (Lei Anticorrupção) que inaugurou, no Brasil, a pre-
visão legal expressa para autorizar a desconsideração administrativa
da personalidade jurídica no PAR.
Petreluzzi e Rizek Junior destacam:

“A nota distintiva da previsão do art. 14 da lei 12846/2013 é


a de que, aqui, trata-se de desconsideração da personalidade
jurídica ainda em âmbito do processo administrativo, por-
tanto, independentemente de previa análise judicial, para a
aplicação das sanções previstas no art. 6 do estatuto.”13

81
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

A questão parecia resolvida. Isto porque, como não há posi-


cionamento definitivo do STF acerca da possibilidade de a descon-
sideração da personalidade jurídica ser decretada pela Administra-
ção Pública, a presunção de constitucionalidade do art. 14 da Lei nº
12.846/2013 autorizaria concluir que é lícito ao Estado desconsiderar
a personalidade jurídica de empresas de forma administrativa.
Além disso, fica expressa a possibilidade da desconsideração ad-
ministrativa, independentemente da manifestação judicial, graças ao atri-
buto de auto executoriedade dos atos administrativos, calcado esse atribu-
to no modelo constitucional de processo em que se garante à sociedade
acusada o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo.
Porém, a discussão voltou à tona com o CPC/2015 que trouxe
a regulamentação para o trâmite da disregarddoctrine no âmbito judicial
ao instituir o incidente de desconsideração da personalidade jurídica,
a partir do art. 133.
Em razão disso, a doutrina Administrativista voltou a questionar o
instituto fora do âmbito judicial. O professor Marçal Justen Filho assegura:

“A Lei 13.105/2015 introduziu uma inovação relevante no trata-


mento da questão da desconsideração da pessoa jurídica.

(...) Foi instituído um incidente específico de desconsideração da


pessoa jurídica (art. 133 a 137). Segundo a disciplina adotada, a
desconsideração da personalidade societária somente pode ser
adotada como resultado de uma pretensão específica da parte, a
ser resolvida por meio de uma decisão própria.

(...) A suspensão da eficácia dos atos administrativos pertinentes


à personificação somente pode ser produzida mediante um pro-
vimento jurisdicional típico.

(…)

82
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

11.7.6) O afastamento do argumento da autotutela:

Nem se contraponha que a Administração Pública disporia de


competência para promover a autotutela dos próprios interes-
ses, inclusive alterando a eficácia de atos administrativos. In-
questionável que a atribuição da personalidade jurídica resulta
de um ato administrativo. (...)

Nem caberia invocar a supremacia do interesse público como


fundamento para a autoridade administrativa promover a
desconsideração da personalidade societária. Independente-
mente de qualquer disputa sobre essa concepção, afigura-se
inquestionável que a ordem jurídica prevê a existência da
pessoa jurídica e lhe atribui certa eficácia. Tal como previsto
na Lei 13.105/2015, a suspensão da eficácia da personifica-
ção societária é um resultado a ser obtido mediante a provo-
cação ao Estado-Jurisdição. Logo, a Administração não dis-
põe de atribuições para impor a desconsideração mediante
a simples invocação da supremacia do interesse público. Há
um impedimento jurídico formal, que afasta a possibilidade
de aplicação da desconsideração por atuação isolada da au-
toridade administrativa.

(...) Por decorrência, a desconsideração da personalidade


societária, em face da autoridade administrativa dependerá
da obtenção de um provimento jurisdicional. Se for verifi-
cada a ocorrência de eventos que configurem o uso abusivo
da pessoa jurídica, a autoridade administrativa será inves-
tida no poder-dever de provocar o Poder Judiciário, para
obter provimento jurisdicional que reconheça a ocorrência
de práticas abusivas e estabeleça as condições e os limites
da desconsideração.” 14

83
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

No TCU, órgão de controle externo federal na esfera administra-


tiva, a discussão ainda persiste. Para tanto colacionam-se dois julgados:

“Os ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em


sessão do Plenário, com fundamento nos arts. 1º, XXIV, e 169,
V, na forma do art. 143, V, “a”, todos do RI/TCU, e de acordo
com o parecer da unidade técnica emitido nos autos, ACOR-
DAM, por unanimidade, em conhecer da presente denúncia,
não adotar a medida cautelar prevista no art. 276 do Regimen-
to Interno do Tribunal, uma vez não estarem presentes os re-
quisitos necessários à sua adoção, retirar a chancela de sigiloso,
encerrar o processo e arquivar os autos, fazendo-se as determi-
nações descritas abaixo.

(...)

1.8. Determinações/Recomendações:

(...)

1.8.1.2. previsão da aplicação, por meio do item 12.6 do edi-


tal, no âmbito administrativo, da desconsideração da perso-
nalidade jurídica da contratada, medida essa que constitui
instituto de direito processual, e depende do incidente previs-
to nos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil, razão
pela qual não pode ser aplicada administrativamente (item
33 dessa instrução).”15

(Tomada de Contas Especial, Relator Ministro Benjamin


Zymler)

Direito Processual. Citação. Validade. Desconsideração da per-


sonalidade jurídica. Pessoa jurídica. Sócio.

O TCU pode determinar a citação de sócios de empresa,


sem necessidade de prévia desconsideração da personalidade

84
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

jurídica, que tenham participado ativamente de irregulari-


dade da qual resultou prejuízo ao erário, pois os arts. 70,
parágrafo único, e 71, inciso II, da Constituição Federal não
fazem distinção entre agentes públicos ou particulares para
fins de recomposição de dano.16

No nosso sentir não parece razoável enxergar a cláusula de


reserva de jurisdição como um obstáculo intransponível à aplicação
da teoria da desconsideração societária pela Administração Pública.
Nas relações em que a pessoa jurídica de direito privado se
envolve com os entes públicos, o que se quer é resguardar o interesse
público que é indisponível e, por isto, a desconsideração da personali-
dade jurídica prescinde de pronunciamento jurisdicional.
Ressalta-se que apesar de reconhecer a possibilidade de desconsi-
deração da personalidade jurídica na esfera administrativa, isto não exime
a Administração Pública da observância do processo administrativo regu-
lar, assegurado ao administrado (pessoa jurídica) a mais ampla defesa e o
contraditório. Tal medida jurídica aplicada no âmbito administrativo não
afasta o acesso à jurisdição. Caso a parte tenha prova de lesão ou ameaça a
direito seu, decorrente da aplicação ilegal do instituto da desconsideração,
pode ajuizar uma ação perante o Poder Judiciário.

 PROCESSO ADMINISTRATIVO E A
O
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA, PREVISTO NA LEI N.º 12.846/2013

Da Contextualização da Lei n.º 12.846/2013


No dia 01 de agosto de 2013, o Presidente da República sancio-
nou a Lei Federal nº 12.846/13, que dispõe sobre a responsabilização

85
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas, decorrente de atos


considerados como lesivos à Administração Pública brasileira ou estran-
geira.
No Brasil, o projeto de Lei foi às pressas aprovado, especialmente
em virtude de uma série de protestos que mobilizaram a sociedade brasi-
leira e que exigiram rápidas medidas para o combate a corrupção, daí o
porquê ficou popularmente conhecido como “Lei Anticorrupção”, “Lei
da Probidade Empresarial” ou “Lei da Empresa Limpa”.
O objetivo principal da Lei nº 12.846/2013 é instituir um mi-
crossistema de combate à corrupção, por meio de criação de multas,
sanções, exigências de instituição de programas de ética e compliance,
dentre outras medidas, para desestimular a ocorrência de atos lesivos
à Administração Pública.
José Sérgio da Silva Cristovam traz interessantes informações
a respeito:

“O combate à corrupção é questão de destacada atenção no


cenário internacional. Diversos são os tratados e convenções
que engrossam as fileiras dessa (aparente) guerra declarada às
práticas de corrupção. É possível, também, afirmar a existên-
cia de verdadeiro bloco normativo internacional anticorrupção,
alguns dos quais o Brasil é signatário, a saber: (i) a Convenção
Inter-Americana Contra a Corrupção de 1996, capitaneada
pela Organização dos Estados Americanos (OEA), aprovada in-
ternamente pelo Decreto Legislativo n. 152, de 25 de junho de
2002, e promulgada pelo Decreto Presidencial n. 4.410, de 07
de outubro de 2002 (BRASIL, 2002); (ii) a Convenção sobre o
Combate da Corrupção de Funcionário Públicos Estrangeiros
em Transações Comerciais Internacionais da Organização para
a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de 1997,

86
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

ratificada internamente em 15 de junho de 2000 e promulgada


pelo Decreto Presidencial n. 3.678, de 30 de novembro de 2000
(BRA-SIL, 2000); e, (iii) a Convenção das Nações Unidas contra
Corrupção de 2003, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto
Legislativo n. 348, de 18 de maio de 2005, e promulgada pelo
Decreto Presidencial n. 5.687, de 31 de janeiro de 2006.

(...)

Envolto nesse cenário, aliado a outros fatores, surge a Lei nº


12.846/13 (Lei Anticorrupção), que ingressou às pressas no
ordenamento jurídico nacional. O projeto de lei 6.826/2010,
que tramitava desde 18.02.2010 na Câmara dos Deputa-
dos, restou aprovado em menos de um mês de tramitação
no Senado Federal, em 04 de julho de 2013.8 A inspiração
do projeto nos citados compromissos internacionais é objeto
de expressa menção nos parágrafos 7º e 8º da exposição de
motivos apresentada na proposta do respectivo anteprojeto
da lei.

Embora não seja objeto desse estudo a investigação dos motivos


da apressada aprovação do projeto, especula-se que isso possa/
deva ser creditado (em alguma medida) às manifestações populares
de meados de 2013, Pré-Copa das Confederações da FIFA, que
clamavam por mudanças, por moralidade administrativa e pelo
maior combate à corrupção.

A pressa na aprovação do projeto teve seu preço. Não são raros


os seus dispositivos e institutos a reclamar considerável esforço
hermenêutico para sanar possíveis incongruências e, em espe-
cial, incompletudes.

Seja como for, o fato é que a Lei nº 12.846/13 foi aprovada e


está em pleno vigor na ordem normativa brasileira.”17

87
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Até 2013 a corrupção era combatida através de tipos penais,


limitando-se a responsabilização das pessoas físicas, sem afetar a maior
beneficiário que é a empresa.
Diante da ineficácia do conjunto legislativo e ante aos motivos
políticos acima descritos, o PL 6.826/2010, transformado na Lei Or-
dinária n.º 12.846/2013, veio com a finalidade de:

“suprimir uma lacuna existente no sistema jurídico pátrio


no que tange à responsabilização de pessoas jurídicas pela
prática de atos ilícitos contra a Administração Pública, em
especial, por atos de corrupção em licitações e contratos ad-
ministrativos.

(...) entre as medidas criadas para o combater tais atos ilícitos,


destaca-se a previsão da desconsideração da personalidade jurí-
dica em sede administrativa.”18

Trata-se de tema atual, uma vez que embora publicada em


2013, teve sua vigência apenas em 2014 e regulamentação de 2015,
através do Decreto nº 8.420, de 18 de março de 2015, e ainda hoje de
pouca aplicação prática.
Iniciando a leitura da Lei n º 12.846/2013, percebe-se que é
norma geral e abstrata, razão pela qual sua aplicação ocorre indistin-
tamente a todas as pessoas jurídicas – vide parágrafo único do seu art.
1º, in verbis:

Art. 1º - Esta Lei dispõe sobre a responsabilização objetiva admi-


nistrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a
administração pública, nacional ou estrangeira.

88
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Parágrafo único. Aplica-se o disposto nesta Lei às sociedades


empresárias e às sociedades simples, personificadas ou não, in-
dependentemente da forma de organização ou modelo societá-
rio adotado, bem como a quaisquer fundações, associações de
entidades ou pessoas, ou sociedades estrangeiras, que tenham
sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas
de fato ou de direito, ainda que temporariamente.

Aqui destacam-se dois pontos: a) a responsabilização na mo-


dalidade objetiva; e, b) a identificação do sujeito passivo. A opção do
legislador é pelo conceito mais amplo de pessoa jurídica, estimulan-
do o compromisso ético e incentivando as empresas a adotarem me-
canismos preventivos de atos ilícitos, como a política de integridade
e compliance.
Avançando e restringindo-se ao tema proposto, merece desta-
que o art. 14, que dispõe acerca da possibilidade da empresa, no curso
do processo administrativo, sofrer a desconsideração da personalidade
jurídica, com a consequente extensão das sanções às pessoas físicas
dos sócios com poderes de direção e aos administradores, dissertados
a seguir.

Do art. 14 da Lei n.º 12.846/2013


A Lei Anticorrupção inaugurou uma previsão normativa que
não existia antes no ordenamento jurídico brasileiro, qual seja: a ex-
pressa possibilidade de que a Administração Pública, no curso do pro-
cesso administrativo de responsabilização, estender a desconsideração
da personalidade jurídica, no curso do processo administrativo de res-
ponsabilização, às pessoas físicas dos sócios com poderes de adminis-
tração e aos administradores.

89
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Trata-se de medida de exceção, sem análise judicial prévia,


para aplicação das sanções previstas no art. 6º da referida lei.
Nesse sentido, dispõe o art. 14 da Lei, in verbis:

Art. 14. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada


sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar,
encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos
nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sen-
do estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa
jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de
administração, observados o contraditório e a ampla defesa.
– grifo nosso.

A redação do art. 14 da Lei nº 12.846/13 não é muito clara


quanto aos limites de sua aplicação, sendo certo que a extensão das
sanções administrativas previstas no art. 6º não afetará todos os
membros que compõem a gerência da comunidade societária. Ela
atingirá apenas aqueles que efetivamente deliberaram pela prática
do ato ilícito ou que dele se beneficiaram, sob pena afronta princí-
pio da intranscendência das penas previsto no art. 5º, inciso XLV
da CF.
O instituto da desconsideração administrativa da personalida-
de jurídica não pode ser entendido pela Administração Pública como
sanção, ao contrário, a interpretação que se deve ter é de instrumento,
meio, forma pela qual se chega ao desiderato proposto pela norma de
anticorrupção, sancionar o responsável pelo ilícito. Se não fosse assim,
como já dito linhas atrás, na desconsideração inversa toda a sociedade
sofreria com a prática desse ato sem que os sócios inocentes tivessem

90
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

o direito de afastar suas responsabilidades. Esse alerta foi muito bem


ponderado por Clóvis Pinho:

Ou seja, a previsão do art. 14 assenta a possibilidade de des-


consideração da personalidade jurídica como forma de punição
pela prática de atos ilícitos previstos na Lei Anticorrupção, e
não na sua formulação original, como forma de atingimento e
responsabilização pessoal dos sócios em casos de abusividade na
utilização da personalidade jurídica.19

Outro ponto de destaque é que o art. 14 não visa a anular a


personalidade jurídica, e, apesar de ser medida de exceção, ela veio
como forma de punição pela prática de atos ilícitos previstos na Lei
Anticorrupção.
Da interpretação do dispositivo, extrai-se que será autorizada
a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, no curso do
processo administrativo de responsabilização, quando caracterizado:

A) Ocorrência de atos que demonstrarem que a pessoa jurídi-


ca foi utilizada com abuso de direito para facilitar, encobrir
ou dissimular a prática de atos ilícitos previstos nesta lei;
B) Ocorrência de atos para provocar a confusão patrimonial,
caracterizado na impossibilidade de distinção entre o pa-
trimônio da empresa e o dos sócios.

Percebe-se que o art. 14 parece se amoldar à teoria maior,


tratada no capítulo I, indo na mesma direção do CC, ou seja, a
mera demonstração de insolvência não é suficiente para autorizar

91
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

a desconsideração da personalidade jurídica. Exige-se o abuso do


direito e/ou a confusão patrimonial.
Outra questão é a diferença entre a previsão do art. 14 e o 2§º
do art. 4º, que determina:

Art.4º

(...)

§ 2º As sociedades controladoras, controladas, coligadas ou, no


âmbito do respectivo contrato, as consorciadas serão solidaria-
mente responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei, res-
tringindo-se tal responsabilidade à obrigação de pagamento de
multa e reparação integral do dano causado.

Esta previsão não se trata de desconsideração da pessoa jurí-


dica, mas sim de uma extensão a terceiros dos efeitos pecuniários de
sanção imposta a outra pessoa.
Além disso, o art. 3º também não se confunde com a do art. 14:

Art. 3º A responsabilização da pessoa jurídica não exclui a res-


ponsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores
ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do
ato ilícito.

§ 1º A pessoa jurídica será responsabilizada independentemente


da responsabilização individual das pessoas naturais referidas
no caput.

§ 2º Os dirigentes ou administradores somente serão responsa-


bilizados por atos ilícitos na medida da sua culpabilidade.

92
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Decerto, somente a pessoa jurídica pode ser sujeita das infrações


elencadas pela Lei Anticorrupção. Isso não significa que as pessoas natu-
rais que cometerem respectivos atos estarão impunes, pois responderão
em conformidade com a legislação pertinente, como o Código Penal, a
Lei de Licitações, a Lei de improbidade administrativa, a Lei de responsa-
bilidade e, para fins de reparação de danos, o Código Civil.
Resta perquirir de que forma dar-se-á a aplicação da medida
de exceção (desconsideração da personalidade) e se ela (no curso de
processo administrativo, sem necessidade de prévia autorização judi-
cial) encontra amparo na CF e legislação infraconstitucional.
Examinando estes dois pontos é que conseguiremos responder
as perguntas propostas neste artigo.

 O PROCESSO ADMINISTRATIVO DE
D
RESPONSABILIZAÇÃO

Para que admita a aplicação da desconsideração da personali-


dade jurídica na esfera administrativa, é imprescindível haver o PAR
(Processo Administrativo de Responsabilização).
Por processo administrativo entende-se o meio pelo qual o Esta-
do dispõe como instrumento de exercício da função administrativa para
tomada de decisões legítimas, sempre à luz dos preceitos constitucionais.
Neste aspecto, a Constituição Federal de 1988 trouxe várias re-
ferências diretas, como o contraditório, ampla defesa, duração razoá-
vel do processo, devido processo legal etc., todos aplicáveis a qualquer
tipo de processo, inclusive o processo administrativo.
Além disso, falar em processo administrativo, impõe falar no
regulamento da Lei de Processo Administrativo Federal, norte central
que conduz o processo administrativo brasileiro. Dele extrai-se prin-
cípios como legalidade, interesse público, eficiência, moralidade etc.

93
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

De pronto, verifica-se que não existe incompatibilidade entre


a desconsideração e os princípios que regem a função administrativa.
Pelo contrário, coibir fraudes está em perfeita harmonia com as fina-
lidades de atuação do Poder Público, seja ele a moralidade, seja ele a
defesa do interesse público primário – juridicidade.
Pois bem. A desconsideração da personalidade jurídica na esfera
administrativa é decorrente de processo administrativo de responsabiliza-
ção, de forma a buscar e garantir os preceitos acima mencionados.
A previsão da medida está no Capítulo IV, cuja instauração e jul-
gamento cabem à autoridade máxima de cada órgão ou entidade dos Po-
deres Executivo, Legislativo e Judiciário, nos termos do art. 8º da Lei.
Assim, a investigação da responsabilidade administrativa de
pessoa jurídica que possa acarretar imposição das sanções do art. 6º
da referida lei, será apurada por meio de Processo Administrativo de
Responsabilização (PAR).
Percebe-se que o art. 14 está no Capítulo IV -Do Processo Ad-
ministrativo de Responsabilização - de modo a interpretação do legis-
lador é de que este mecanismo de desconsideração da personalidade
jurídica tenha a sua aplicação em âmbito administrativo, pela autori-
dade do órgão administrativo.
O Decreto nº 8.420/2015, entre outros aspectos, regulamenta
o procedimento para aplicação de sanções, forma de cálculo de multas,
celebração de acordos de leniência, publicação de sanções e cadastro
das empresas punidas, o que só corrobora a sua constitucionalidade e
necessidade de estudos pelo Direito Empresarial e Administrativo.
O que se quis demonstrar aqui é que a lei traz a possibilidade
de processamento na via administrativa para a sanção de desconside-
ração da personalidade jurídica, independente de prévia decisão judi-
cial e que as garantias para o processo judicial também são garantias
no processo administrativo.

94
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Necessário dizer que a Lei 12.846/2013 e o decreto regula-


mentador apenas ratificam todos os argumentos principiológico tra-
zidos no tópico 2.2, quando se tratou dos princípios que regem a
Administração Pública como arcabouço para a desconsideração da
Personalidade Jurídica na esfera administrativa.
Naquele momento, mesmo sem legislação expressa, socor-
riam-se de diretrizes das quais deve-se valer o ordenamento jurídico
– princípios – e, portanto, fundamentos jurídicos satisfatórios para va-
lidar a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica na
esfera administrativa.
Contudo, fica a reflexão. Apesar da Administração Púbica
poder determinar a desconsideração episódica da pessoa jurídica, há
casos em que ela exigirá decisão judicial, a exemplos das hipóteses em
que a Administração não tem a oportunidade de estabelecer o contra-
ditório e a ampla defesa como também para aqueles que a decisão ju-
dicial poderá ser revista através do duplo grau de jurisdição – controle
de legalidade e dos motivos determinantes.
O importante é evidenciar que toda fundamentação trazida no
tópico 2.2, foram reforçadas com o advento da Lei n.º 12.849/2013
e o Decreto nº 8.420/2015, uma vez que a responsabilização dos só-
cios-administradores, por meio da desconsideração da personalidade
jurídica, é válida na medida em que a Administração Pública pode
dispor de seu regime jurídico administrativo para dar cumprimento
à sua missão constitucional de guarda do princípio da juridicidade,
moralidade e indisponibilidade do interesse público.
Diante de tanto amparo constitucional, em especial nas molas
mestres, que são os princípios, não se mostra possível invocar a cláu-
sula de reserva de jurisdição como obstáculo intransponível para im-
pedir que a Administração Pública, no cumprimento de suas atribui-
ções constitucionais, seja impedida de levantar o véu da personalidade

95
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

jurídica para, efetivamente, punir as pessoas físicas que se utilizaram


fraudulentamente da pessoa jurídica para perpetrarem fraudes contra
o Poder Público, como se verá a seguir.

Da (IN)constitucionalidade do art. 14 da Lei Anticor-


rupção (Lei n.º 12.846/2013) e (in)congruência com o orde-
namento jurídico posto
A discussão que envolve a (in)constitucionalidade do art. 14 da
Lei 12.846/2013 reside especificamente no fato de a Administração
Pública, após regular PAR, aplicar a desconsideração da personalida-
de jurídica, independentemente de decisão judicial prévia.
Acerca deste tema, já se demonstrou que parte da doutrina
defende que a desconsideração da personalidade jurídica só poderia
ser aplicada pelo Poder Judiciário, em razão do que preconizam os
art. 28 do CDC, o art. 50 do CC e os arts. 133 e seguintes do CPC –
vide tópico 2.3 - sendo que o primeiro tipifica as hipóteses no Direito
do Consumidor e o segundo é regra de Direito Civil e cláusula geral
positivada da desconsideração da personalidade jurídica no sistema ju-
rídico brasileiro (direito material). Já os dispositivos do CPC dizem que
de forma é o procedimento na esfera judicial da disregarddoctrine (direito
processual / procedimental).
Para muitos, a exemplo do professor Marçal Justen Filho, a regula-
mentação na forma de incidente específico no CPC implicou na vedação
à efetivação da desconsideração da personalidade jurídica, sem interven-
ção jurisdicional (seu posicionamento já foi tratado no capítulo II).
Ora, o CPC (Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015) é a lei
que regulamenta o processo judicial civil no Brasil, estando em vigor
desde o dia 18 de março de 2016, sucedendo o Código de Processo Ci-
vil de 1973 e que define como tramita um processo judicial, incluindo
prazos, recursos, competências e tramitação.

96
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Limitar a aplicação da desconsideração da personalidade jurí-


dica à esfera judicial parece um fundamento raso, na medida em que
esse instrumento legal não possuem o condão limitador através de lei
ordinária (CPC), as quais hierarquicamente encontram-se abaixo da
Constituição Federal.
Além disso a legislação que trata da desconsideração da per-
sonalidade jurídica é esparsa, de modo que cada uma delas deve ser
interpretada de modo sistêmico à luz dos princípios constitucionais.
É a própria Constituição da República, ao exigir que a Admi-
nistração Pública obedeça aos princípios da moralidade e da eficiên-
cia, é que fundamenta a competência administrativa para decretar a
desconsideração da personalidade jurídica (art. 37 da CF/88).
É bem verdade que há momentos em que haverá choques
principiológico, o que parece ser este o caso (vide tópico 2.2 /x/ tópico
2.3). A medida adotada, quando da colisão dos princípios, deverá ser
a mais apropriada para atingir o fim perseguido pela sociedade, tanto
no que diz respeito à consagração de um princípio quanto à restrição
de outro.
Neste diapasão sequer seria necessário haver disposição na Lei
Anticorrupção autorizando a aplicação do instituto pela Administra-
ção Pública.
Ao tratar especificamente do art. 14, os estudiosos relembram
que a Lei Anticorrupção tem o objetivo legítimo de reduzir e punir
essas práticas que fraudam ou corrompam a estrutura do Estado, com
o fito de garantir a boa prestação administrativa.
Por isto, é preciso ter cuidado ao buscar a cláusula de reser-
va de jurisdição como manto para a inconstitucionalidade do art. 14,
sob pena de esvaziar a legislação que urge aplicação no Direito Bra-
sileiro, seja pelo seu escopo principiológico, seja pela ineficiência das
disposições de ordem penal que alcancem os responsáveis, em especial

97
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

porque mais do que forma excepcional de atingimento e responsabili-


zação dos sócios tem-se uma verdadeira sanção administrativa.
Voltando ao art. 14, fica expressa a possibilidade da descon-
sideração administrativa, independentemente da manifestação judi-
cial, em razão auto executoriedade dos atos administrativos, resguar-
dando ainda a prerrogativa de autotutela da Administração Pública.
Além disso, a presunção de constitucionalidade do art. 14 da Lei nº
12.846/2013 autoriza concluir que é lícito ao Estado desconsiderar a
personalidade jurídica de empresas de forma administrativa.
Por fim, ainda no que tange a eventual barreira na cláusula da re-
serva de jurisdição, é importante mencionar que as regras para a atuação
da Administração Pública são as normas de Direito Público, o que afasta a
exigência de um ato jurisdicional para legitimar a disregarddoctrine, tal como
acontece nos casos eminentemente de Direito Privado.
Em todo caso, a questão está longe de ser resolvida, uma vez que
o STF ainda não se pronunciou e, por isto, os demais Tribunais tem tido
cautela em enfrentar a questão da cláusula de reserva jurisdicional e apli-
car a desconsideração da personalidade jurídica na esfera administrativa.
Registra-se que depois da medida liminar deferida no STF, o
TCU já se manifestou:

Processo: 019.552/2014-9

Tipo de processo: TOMADA DE CONTAS ESPECIAL (TCE)

Data da sessão: 20/11/2018

(...)

11. A desconsideração da personalidade jurídica em procedimento


administrativo.

98
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

(…)

No exercício de suas competências constitucionais, o TCU


pode desconsiderar a personalidade jurídica para
atingir os verdadeiros responsáveis pelos atos tidos
como irregulares. A desconsideração da personalida-
de jurídica não é atividade privativa do Poder Judiciá-
rio. Acórdão 5.764/2015-Primeira Câmara, Relator
Benjamin Zymler.

11.6. Nesse mesmo sentido, os Acórdãos 4712, 4636


e 4481/2015, todos da 1ª Câmara, e 2879/2017 e
4648/2015, da 2ª Câmara.

11.7. Os recorrentes, no entanto, se fundamentam na


decisão monocrática do Ministro Celso de Mello, do
STF, no MS 32.494/DF, publicada em 13/11/2013, que
suspendeu cautelarmente a eficácia do item 9.4 do Acórdão
2593/2013-TCU-Plenário, proferido no TC-000.723/2013-4
(...)

11.9. Isto é, basicamente, por meio dessa decisão, o STF co-


locou em dúvida o entendimento firmado por este Tribunal
em favor da aplicação da desconsideração da personalidade jurídi-
ca no âmbito administrativo, sem a necessidade de interven-
ção judicial.

11.10. No entanto, nessa mesma decisão, o eminente relator


também alinhou diversos argumentos favoráveis ao entendi-
mento deste Tribunal, verbis (com destaques acrescidos);

Tenho para mim, em juízo de mera delibação (em afirmação


compatível, portanto, com esta fase de incompleta cognição),
que o E. Tribunal de Contas da União, ao exercer o controle

99
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

de legalidade sobre os procedimentos licitatórios sujeitos à sua


jurisdição, possuiria atribuição para estender a outra pessoa ou
entidade envolvida em prática comprovadamente fraudulenta
ou cometida em colusão com terceiros a sanção administrativa
que impôs, em momento anterior, a outro licitante (ou contra-
tante) , desde que reconheça, em cada situação que se apresente,
a ocorrência dos pressupostos necessários à aplicação da teoria
da desconsideração da personalidade jurídica, pois essa prerrogativa
também comporia a esfera de atribuições institucionais daquela
E. Corte de Contas, que se acha instrumentalmente vocaciona-
da a tornar efetivo o exercício das múltiplas e relevantes com-
petências que lhe foram diretamente outorgadas pelo próprio
texto da Constituição da República.

(...)

11.12. Ocorre ainda que, em 2/8/2013, foi publicada


a Lei 12.846, com início de vigência em 180 dias depois
da sua publicação, ou seja, a partir de 29/1/2014, que
passou a dispor expressamente sobre a responsabili-
dade individual de dirigentes ou administradores de
pessoas jurídicas pela prática de atos contra a admi-
nistração pública, nacional ou estrangeira

11.14. Portanto, o ato praticado pelos recorrentes, que


desfizeram o equilíbrio econômico-financeiro do con-
trato em questão de modo fraudulento, ao pagar por
equipamentos que não foram efetivamente entregues
à Administração, passou a ser expressamente capitu-
lado em lei como motivo para a desconsideração da
personalidade jurídica.

100
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

11.15. A publicação da decisão do Ministro Celso de


Mello acima referida e ora arguida pelos recorrentes,
em 13/11/2013, deu-se pouco mais de três meses após
a edição da Lei 12.846 e pouco mais de dois antes de
sua entrada em vigor, em 29/1/2014. A lei ainda se en-
contrava, portanto, em vacatio legis, o que talvez expli-
que o fato de não ter sido levada em consideração pelo
e. relator.

11.16. Embora não se possa cogitar da aplicação di-


reta da nova legislação ao caso concreto, em razão do
princípio tempus regitactum, sua edição representou
a sanção legislativa ao entendimento doutrinário e
judicial, já prevalecente, no sentido do cabimento da
aplicação do instituto da desconsideração da persona-
lidade jurídica por órgãos administrativos.

11.17. Assim, embora a Magna Corte ainda não te-


nha, de fato, firmado entendimento sobre a possi-
bilidade de aplicação da desconsideração da per-
sonalidade jurídica em âmbito exclusivamente
administrativo, é preciso ponderar que só há uma
decisão monocrática, em juízo de delibação, em
sentido contrário, que traz em sua própria funda-
mentação robustos argumentos a favor da aplica-
ção. E que essa possibilidade, ainda por cima, encontra-se
agora positivada em diploma legal, inclusive com hipótese
que contempla especificamente o caso ora examinado.

101
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

11.18. Não havendo, por esses motivos, sinalização clara da Magna


Corte em sentido contrário, considera-se de bom aviso a manu-
tenção da desconsideração da personalidade jurídica que fundamentou
a condenação do sócio gerente da Telenorte, Jorge Luiz Mesquita.

(....)

33. Por sua vez, a decisão monocrática do STF citada pelos


recorrentes suspendeu cautelarmente item de deliberação do
TCU pelo qual a desconstituição (expansiva) da personalidade
jurídica contribuiu para estender a uma empresa a suspensão de
licitar e contratar com a Administração Pública Federal imposta
a outra pessoa jurídica, ante as estreitas relações entre as duas
empresas (Acórdão 2.593/2013-Plenário) .

34. Portanto, aquela deliberação, além de não ter caráter vinculan-


te, tratou de situação com aspectos distintos em relação à destes au-
tos, em que a desconstituição ficou restrita a alcançar a pessoa física
do sócio-gerente. E, como recuperado pela Serur, a própria decisão
do Supremo citada elencou argumentos favoráveis à possibilidade
do exercício dessa competência por esta Corte, no caso geral.

Diante do exposto, acompanho a proposta da Serur e do Mi-


nistério Público junto ao TCU de não provimento dos recursos
e voto porque o Tribunal adote a minuta de deliberação que
submeto ao Colegiado.

TCU, Sala das Sessões Ministro Luciano Brandão Alves de Sou-


za, em 20 de novembro de 2018.20 – grifo nosso.

Como se vê, apesar da medida liminar ter sido deferida pelo STF,
nos autos do MS 32.494/DF , já reproduzido no capítulo II, sob o funda-
mento de “incerteza da hipótese de cláusula de reserva jurisdicional”, isto

102
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

está longe de significar a certeza na inconstitucionalidade do art. 14 da


Lei Anticorrupção, uma vez que, como pontuado no Acórdão do TCU
(11559/2018), tratou de situação com aspectos distintos em relação aos
da Lei n.º 12.846/2013, em especial porque, no caso do MS, o exame da
medida liminar aconteceu em momento anterior ao da vigência Lei n.º
12.846/2013,ainda curso do seu vocatio legis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A desconsideração da personalidade jurídica é instituto de ex-


ceção do direito empresarial que se reveste como remédio para quem
abusa de um legítimo interesse no qual se afasta a autonomia patrimo-
nial para atribuição de responsabilidade ao sócio.
Não se trata de uma teoria abolicionista da personalidade da
pessoa jurídica, pelo contrário. É remédio para quem abusa de um
legítimo interesse.
A sua finalidade é preservar o instituto da personalidade jurídica e
corrigir eventual desvirtuamento devido ao seu mau uso da pessoa jurídi-
ca, coibindo práticas fraudulentas e abusivas que dela se utilizam.
O marco normativo no direito brasileiro foi em 1990, com a
entrada em vigor do CDC, que consagra a Teoria Menor - a mera
insolvência justifica a aplicação da medida de exceção.
O CC de 2002 apresenta, em seu art. 50, a Teoria Maior,
considerada pela doutrina e jurisprudência como a cláusula geral
positivada da desconsideração da personalidade jurídica no sistema
jurídico brasileiro – a mera demonstração de estar a pessoa jurídica
insolvente para o cumprimento de suas obrigações, não é suficien-
te para autorizar a desconsideração da personalidade jurídica. Já
o novo CPC de 2015 inovou através da modalidade de incidente,

103
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

denominada de desconsideração da personalidade jurídica, o qual


visa a regular o seu modo de aplicação.
À primeira vista, trata-se de instituto que depende de ordem
e reconhecimento por provimento jurisdicional. Diante disto, surge a
necessidade de discutir 02 temas: a) fundamento constitucional e legal
que autoriza a desconsideração da personalidade jurídica na esfera
administrativa e, b) a da cláusula de reserva de jurisdição – (im) pos-
sibilidade de a Administração Pública desconsiderar a personalidade
jurídica, sem a presença de um pronunciamento jurisdicional.
A partir dos fundamentos constitucionais, em especial os princí-
pios da juridicidade, moralidade, supremacia do interesse público e a in-
disponibilidade dos interesses tutelados pelo Poder Público admitiu-se a
aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica na esfe-
ra administrativa, fato reconhecido, inclusive pelo STJ, no RMS 15166 / BA.
O segundo ponto de discussão foi a forte resistência por parte
de uma parcela da doutrina no que tange a sua aplicação por decisão
na seara dos processos administrativos, sob o argumento de afronta a
cláusula constitucional da reserva de jurisdição. Por ele, significa reco-
nhecer que cabe ao Poder Judiciário não apenas o direito de proferir
a última palavra, mas sobretudo a prerrogativa de dizer a primeira,
excluindo por força Constitucional este exercício por parte de quais
quer outros órgãos ou autoridades do Estado.
Para derrubar estes fundamentos colacionaram-se várias deci-
sões do TCU.
Depois, a discussão pareceu perder um pouco em relevo, pois
em 2013 surgiu a Lei Anticorrupção, alvo deste trabalho.
Esta Lei foi às pressas aprovado, especialmente em virtude dos
protestos que mobilizaram a sociedade brasileira e que exigiram rápidas

104
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

medidas para o combate a corrupção. O clamor social, exigia medidas


árduas de combate à fraude e à corrupção.
Com o advento da Lei n. 12.846/2013 compromissos interna-
cionais e lacunas legislativos foram supridos e reacendeu a discussão
acerca da possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica
na via administrativa.
Trata-se de tema atual, uma vez que embora publicada em
2013, teve sua vigência apenas em 2014 e regulamentação de 2015,
através do Decreto nº 8.420, de 18 de março de 2015 e até hoje de
mínima aplicação.
A importância prática e teórica do tema desenvolvido foi
demonstrar que desconsideração da personalidade jurídica na esfe-
ra do processo administrativo coaduna com o ordenamento jurídi-
co posto, a partir da previsão do art. 14 da referida lei, que desafia
a constitucionalidade da norma ao prever a possibilidade de a Ad-
ministração Pública desconsiderar a personalidade jurídica do ente
coletivo, sem a presença de um pronunciamento jurisdicional. Para
tanto, conclui-se:

1) A desconsideração da personalidade jurídica através do pro-


cesso administrativo de responsabilização encontra ampa-
ro legal na Lei Anticorrupção pois o seu art. 14 expressa a
possibilidade da autoexecutoriedade dos atos administrativos,
resguardando também a prerrogativa de autotutela da Admi-
nistração Pública;

2) A presunção de constitucionalidade do art. 14 da Lei nº


12.846/2013 autoriza concluir que é lícito ao Estado desconside-
rar a personalidade jurídica de empresas de forma administrativa;

105
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

3) A redação do art. 6º c/c 14 da Lei nº 12.846/13 não é muito


clara quanto aos limites de sua aplicação, sendo certo que a
extensão das sanções administrativas afetará apenas aqueles
que efetivamente deliberaram pela prática do ato ilícito ou
que dele se beneficiaram, sob pena afronta princípio da in-
transcendência das penas previsto no art. 5º, inciso XLV da
Constituição Federal.

4) O art. 14 consagra a teoria maior, em consonância com o CC,


uma vez que será autorizada a aplicação da desconsideração da
personalidade jurídica, no curso do processo administrativo de res-
ponsabilização, quando caracterizado:

a) Ocorrência de atos que demonstrarem que a pessoa jurídica foi


utilizada com abuso de direito para facilitar, encobrir ou dissi-
mular a prática de atos ilícitos previstos nesta lei;

b) Ocorrência de atos para provocar a confusão patrimonial, ca-


racterizado na impossibilidade de distinção entre o patrimônio
da empresa e o dos sócios.

Exige-se o abuso do direito e/ou a confusão patrimonial;

5) Para a desconsideração da personalidade jurídica na esfera


administrativa, é imprescindível haver o PAR (Processo Ad-
ministrativo de Responsabilização), regulamentada através do
Decreto nº 8.420/2015, com as garantias de contraditório e
ampla defesa.

Muito embora a legislação autorize a desconsideração na via


administrativa, permanece a reflexão: Há casos em que ela exigirá de-
cisão judicial, a exemplos das hipóteses em que a Administração não
tem a oportunidade de estabelecer o contraditório e a ampla defesa

106
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

como também há casos em que a decisão judicial poderá ser revista


através do duplo grau de jurisdição – controle de legalidade e dos mo-
tivos determinantes.
Desse modo é possível haver a responsabilidade da personali-
dade jurídica no processo administrativo de responsabilização. Mas,
por vezes, ela pode não ser a forma mais eficaz, devendo o ente fede-
rado socorrer-se do Poder Judiciário.
No que tange a cláusula da reserva de jurisdição, conclui-se que:

1) Parte da doutrina considera que a desconsideração da perso-


nalidade jurídica só poderia ser aplicada pelo Poder Judiciário,
em razão do que preconizam os art.s 28 do CDC, o art. 50
do CC e os art.s 133 e seguintes do CPC. Os primeiros art.s
trazem a necessidade de pronunciamento judicial, sendo que
o primeiro tipifica as hipóteses no Direito do Consumidor e o
segundo é regra de Direito Civil e cláusula geral positivada da
desconsideração da personalidade jurídica no sistema jurídico
brasileiro (direito material). Já os dispositivos do CPC dizem de
que forma é o procedimento na esfera judicial ( regras de direito
processual/ procedimental).

Há doutrinadores, a exemplo de Marçal Justen Filho, que de-


fende que a regulamentação na forma de incidente específico no CPC,
implicou na vedação à efetivação da desconsideração da personalida-
de jurídica, sem intervenção jurisdicional.
Contudo, limitar aplicação da desconsideração da personali-
dade jurídica a esfera judicial parece um fundamento raso, na medida
em que esse instrumento legal não possuem o condão limitador através

107
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

de lei ordinária (CPC), as quais hierarquicamente encontram-se abai-


xo da Constituição Federal;

2) É preciso ter cuidado ao buscar a cláusula de reserva de juris-


dição como fundamento para a inconstitucionalidade do art.
14, sob pena de esvaziar a legislação que urge aplicação no Di-
reito Brasileiro, seja pelo seu escopo principiológico, seja pela
ineficiência das disposições de ordem penal que alcancem os
responsáveis, em especial porque mais do que forma excepcio-
nal de atingimento e responsabilização dos sócios tem-se uma
verdadeira sanção administrativa.

Além disso, a legislação que trata da desconsideração da per-


sonalidade jurídica é esparsa e cada uma dela deve ser interpretada de
modo sistêmico à luz da CF.

3) Demonstrou-se que a Constituição, ao estabelecer que a Ad-


ministração Pública obedeça aos princípios da moralidade e
da eficiência, é que fundamenta a competência administrativa
para decretar a desconsideração da personalidade jurídica (art.
37 da CF/88).

Pode parecer que há choques principiológico, e há (vide Capítu-


lo III). Todavia, deve-se atingir o fim perseguido pela sociedade, tanto
no que diz respeito à consagração de um princípio quanto à restrição
de outro. Nesse caso, sequer seria necessário haver disposição na Lei
Anticorrupção autorizando a aplicação do instituto pela Administra-
ção Pública.

108
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

A desconsideração da personalidade jurídica prescinde de fun-


damentos legais, diante da simples usurpação que acontece da autono-
mia patrimonial da pessoa jurídica.

4) Nas relações em que a pessoa jurídica se envolve com os


entes públicos, urge a submissão ao império da Adminis-
tração. Aqui, o que se quer é resguardar o interesse pú-
blico que é indisponível e, por isto, a desconsideração da
personalidade jurídica prescinde de pronunciamento ju-
risdicional.
5) O que se sabe é que a questão está longe de ser resolvi-
da, uma vez que o STF ainda não se pronunciou sobre o
assunto e, por isto, os demais Tribunais, tem tido cautela
em enfrentar a questão da cláusula de reserva jurisdicional
e aplicar a desconsideração da personalidade jurídica na
esfera administrativa.

Por fim, demonstrou-se que apesar da medida liminar ter sido


deferida pelo STF, nos autos do MS 32.494/DF, já reproduzido no
capítulo II, sob o fundamento de “incerteza da hipótese de cláusula de
reserva jurisdicional”, isto está longe de significar a certeza na incons-
titucionalidade do art. 14 da Lei Anticorrupção, uma vez que, como
pontuado no Acórdão do TCU (11559/2018) – capítulo III - tratou de
situação com aspectos distintos em relação aos da Lei n.º 12.846/2013,
em especial porque, no caso do MS, o exame da medida liminar acon-
teceu em momento anterior ao da vigência Lei n.º 12.846/2013, ainda
curso do seu vocatio legis.

109
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Notas

SARHAN JÚNIOR, Suhel. Curso de direito empresarial.2ª ed. rev., atual. e ampl.
1

Rio de Janeiro: Processo, 2019. p.138.

2
COELHO, Fabio Ulhôa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 18. ed. Volume
2. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 61

3
TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: teoria geral e direito societário. 6ª
ed., São Paulo: Atlas, 2013, v.1. p.241.

4
2015, p. 138, apud SARHAN,2019, p. 141.

5
Ideia extraída do art.: FERREIRA, Hélio Rios. O incidente de desconsideração inversa
da personalidade jurídica, Revista Síntese: Direito Civil e Processual Civil, São Paulo, v.
18, n. 105, p. 198-213, jan./fev. 2017.

6
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 18. ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2012. v.2, p.60.

7
1994, p. 79, apud KOURY, 2011 p. 9.

8
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo / Maria Sylvia Zanella
Di Pietro. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014. P. 79.

9
Trecho do voto proferido nos autos do RECURSO ORDINÁRIO EM MS
Nº 15.166 - BA (2002/0094265-7) e acessado através do link: https://jurispruden-
cia.s3.amazonaws.com/STJ/IT/RMS_15166_BA_07.08.2003.pdf ?Signature=-
sAOq9M42aAoXrpAZl9vd4ErU6Z4%3D&Expires=1573772571&AWSAcces-
sKeyId=AKIARMMD5JEAO765VPOG&response-content-type=application/
pdf&x-amz-meta-md5-hash=8dbb4e19cb0181ddd77d2edf8d2bfb83

http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo732.ht-
10

m#transcricao1

https://jurisprudencia.s3.amazonaws.com/STF/IT/
11

MS_23452_RJ-_16.09.1999.pdf ?Signature=y%2Fcg2zJSgVR43ZzV-

110
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

v 4 C i Z W D H W c k % 3 D & E x p i re s = 1 5 7 3 8 2 0 6 5 2 & AW S A c c e s s Key I d = A -


KIARMMD5JEAO765VPOG&response-content-type=application/pd-
f&x-amz-meta-md5-hash=18f1ed427df57fdcb8469896c8b2182b

TCU, Ac 1.327/2012, TC 008.267/2010-3, Plenário, rel. Min. Walton Alencar


12

Rodrigues, j. 30.05.2012.

13
PETRELLUZZI, M. V.; RIZEK JUNIOR, R. N. Lei Anticorrupção: origens, co-
mentários e análise da legislação correlata. São Paulo: Saraiva, 2014.

14
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos.17
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1378-1379.

15
TCU. Acórdão 98/2017. Plenário.

16
TCU. Acórdão 2273/2019 Plenário.

17
CRISTOVAM, José Sérgio da Silva. Sobre a desconsideração da personalidade ju-
rídica no âmbito da lei 12.846/13. Disponível em: http://www.cidp.pt/revistas/
rjlb/2019/1/2019_01_1215_1246.pdf. Acesso em: 01.06.2022. p. 1118-1120.

18
Mensagem apresentada no PL 6.826/2010 pelo Poder Executivo, extraído do
site: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_requerimentos?idProposi-
cao=466400

19
PINHO, Clóvis Alberto Bertolini de. Desconsideração administrativa da personalidade
societária – compatibilidades e possibilidades da lei anticorrupção. Revista Digital de Direito
Administrativo, v. 2, n. 1, p. 381-410, 2015, p. 405.

20
Acórdão do TCU n.º11559/2018

Referências

ARAÚJO, Aldem Johnston Barbosa. A desconsideração da personalidade jurí-


dica no novo Código de Processo Civil. Revista dos Tribunais. São Paulo, v.967, 2016.

111
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

BARELLI, Amanda Fabbri. Aplicabilidade da Teoria da Desconsideração da Personali-


dade Jurídica ao processo administrativo: uma análise sob a perspectiva do direito antitruste. Dis-
ponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-06092016-83654/
publico/VERSAO_INTEGRAL_AMANDA_FABBRI_BARELLI.pdf Acesso em:
12.06.2022.

BARROSO, Luís Roberto. A constitucionalização do direito e suas repercussões no âmbito


administrativo. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de
Azevedo (Coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas. Belo Horizonte:
Fórum, 2012. p. 31-63. ISBN 978-85-7700-186.

BEVILAQUA, Clovis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil: comentado por Clo-
vis Bevilaqua. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Rio, 1976.

CRISTOVAM, José Sérgio da Silva. Sobre a desconsideração da personalidade ju-


rídica no âmbito da lei 12.846/13. Disponível em: http://www.cidp.pt/revistas/
rjlb/2019/1/2019_01_1215_1246.pdf. Acesso em: 01.06.2022.

COELHO, Fabio Ulhôa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 18. ed.
São Paulo: Saraiva, 2012. Volume 2.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo / Maria Sylvia Zanel-


la Di Pietro. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

FERREIRA, Hélio Rios. O incidente de desconsideração inversa da personali-


dade jurídica, Revista Síntese: Direito Civil e Processual Civil, São Paulo, v. 18, n.
105, p. 198-213, jan./fev. 2017.

GOMES, Fábio Bellote. Manual de Direito Empresarial. 4ª ed. rev., atual. e ampl.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídi-


ca (disregarddoctrine) e os grupos de empresas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A teoria da desconsideração da personalidade jurí-


dica: aplicação no direito administrativo. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/
cadernos/direito-administrativo/a-teoria-da-desconsideracao-da-personalidade-ju-
ridica-aplicacao-no-direito-administrativo/ Acesso em: 01.06.2022.

112
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo; FREITAS, Rafael Véras de. A juridici-


dade da Lei Anticorrupção: reflexões e interpretações prospectivas. Revista Fórum Adminis-
trativo [eletrônica], vol. 14. Belo Horizonte: Fórum, fev., 2014, p. 06.

PETRELLUZZI, M. V.; RIZEK JUNIOR, R. N. Lei Anticorrupção: origens,


comentários e análise da legislação correlata. São Paulo: Saraiva, 2014.

PINHO, Clóvis Alberto Bertolini. Desconsideração Administrativa Da Persona-


lidade Societária – Compatibilidades E Possibilidades Da Lei Anticorrupção. Revista
Digital De Direito Administrativo, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 381-340, 2015.

REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica,


Revista dos Tribunais, São Paulo, v.  410, p.12-24, 1969.

SARHAN JÚNIOR, Suhel. Curso de Direito Empresarial. 2ª ed. rev., atual. e ampl.
Rio de Janeiro: Processo, 2019.

SIQUEIRA. Augusto de Paiva. A Teoria da Desconsideração da Personalidade


Jurídica na Lei 12.846/2013. Revista de Direito da Administração Pública. Rio de Janeiro,
v. 1, n. 3, p.75-109, 2017.

STOLZE, Pablo. A Lei n. 13.874/2019 (liberdade econômica) a desconsideração da


personalidade jurídica e a vigência do novo diploma. Disponível em: https://jus.com.br/
entrar?source=https%3A%2F%2Fjus.com.br%2Fart.s%2F76698%2Fa-lei-n-
-13-874-2019-liberdade-econômica. Acesso em: 12.06.2022.

TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: Teoria Geral e Direito Societário.


6ª ed., São Paulo: Atlas, 2013, v.1.

113
COMENTÁRIOS À DURAÇÃO DOS CONTRATOS
NO ÂMBITO DA NOVA LEI DE LICITAÇÕES
José Maurício Conti1
Narson de Sá Galeno2
Tiago Cripa Alvim3
Matheus Della Monica4
André Castro Carvalho5

RESUMO
O artigo explora as mudanças introduzidas pela Nova Lei de
Licitações (Lei nº 14.133/2021) no tocante às regras que disciplinam a
duração dos contratos. O método empregado é o de comentários à lei.
Palavras-chave: Lei nº 14.133/2021. Contratos administrativos.
Duração.

1 Graduado em Direito e em Economia pela Universidade de São Paulo. Mestre, Doutor e Livre-docente em Direito pela
Universidade de São Paulo. É Professor Associado III da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, com experi-
ência e ênfase em Direito Financeiro, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito Financeiro, Federalismo Fiscal,
Orçamentos Públicos, Fiscalização financeira e orçamentária, Tribunais de Contas, Dívida Pública e Responsabilidade Fiscal.
Juiz de direito (aposentado). Advogado, economista e Consultor em Direito Financeiro e Finanças Públicas.
2 Procurador de Estado do Amapá; graduado pela UNAERP/Ribeirão Preto-SP, Conselheiro Seccional da OAB/AP
triênio 2001-2003. Presidente da Associação dos Procuradores do Estado do Amapá – biênio 2013/2015. Procurador-
-Geral do Estado do Amapá (janeiro de 2015 até a corrente data).
3 Graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP (2002). Possui master em Direito Público
e PPPs pela Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne (2010); pós-graduado em Relações Internacionais e Direito Inter-
nacional pela Clio/Damásio (2020); especialista em Direito Administrativo pela COGEAE/PUC-SP (2008); expert
em Provisão de Infraestruturas pela Universidad Politécnica de Madrid (2020); tem formação em Project Finance pela
Euromoney (2020); foi aluno especial do Project Finance Course na Georgetown Law School (2021). Membro da Asso-
ciação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico – ABRADADE, onde é Diretor da Comissão de Infraestrutu-
ra, e do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial – IBDEE. Foi assessor para infraestrutura na Presidência da
República, na EPL S.A. e no TCMSP e assessor pro bono para PPPs da Comissão das Nações Unidas para o Direito
Comercial Internacional – UNCITRAL. Advogado em organismo internacional.
4 Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo e aluno ingressante no Mestrado em Direito na mesma instituição. É
aluno participante do Partenariat International Triangulaire d’Enseignement Supérieur pela Université Jean Moulin Lyon 3.
5 Bacharel, Mestre e Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, teve sua tese de doutorado recebido o
Prêmio CAPES de Tese 2014 como a melhor tese de Direito no Brasil em 2013. Realizou estudos de pós-doutorado no
Massachusetts Institute of Technology - MIT (em 2016) e na Faculdade de Direito da USP (em 2017-2018). Professor
de educação executiva e pós-graduação em diversas escolas de negócios. Atualmente, é Vice-Presidente do Instituto
Brasileiro de Direito e Ética Empresarial - IBDEE

115
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

ABSTRACT
This article explores the changes introduced by the New Bidding
Law (Law No. 14133/2021) regarding the rules that govern the duration of
contracts. The method employed in the article is the commentary on the law.
Keywords: Law nº 14.133/2021. Administrative Contracts. Duration.

INTRODUÇÃO
Diversas incertezas surgem com o advento de novas leis. A
mudança de atos normativos vigentes por quase trinta anos provoca
dúvidas na interpretação e aplicação no novo diploma legal. Faz-se
mister saber o que muda e o que permanece em relação ao diploma
revogado. Tal é a situação da iminente revogação da Lei nº 8.666 pela
Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (“NLLC”).
O método empregado é o dos comentários, ou seja, serão te-
cidos comentários aos enunciados dos artigos da NLLC referentes à
duração dos contratos. O objetivo dos comentários é subsidiar a for-
mação de um instrumental doutrinário a jurisprudencial.

 ONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O CAPÍTULO V


C
DO TÍTULO III DA LEI Nº 14.133/2021
O primeiro elemento que chama a atenção sobre o tema do
capítulo em análise é o ganho de importância sistêmica do assunto.
Na Lei nº 8.666/1993, que será definitivamente revogada em 20231,
o tema sequer havia merecido um capítulo próprio, sendo tratado ex-
clusivamente em seu art. 57. Por outro lado, na Lei nº 14.133/2021, a
Nova Lei de Licitações e Contratos (NLLC), as disposições contidas no
Capítulo V mostram-se mais completas e bem estruturadas em relação
àquelas da legislação prévia.
Além de oferecer balizas para definição dos prazos dos contratos,
o capítulo em análise também trata das definições de prazos posteriores ao
momento inicial (qual seja, o da definição do edital) – isto é, as prorrogações

116
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

contratuais, assunto que se faz pertinente durante a execução e gestão do


contrato2. Esse tema, contudo, também é tratado em disposições da Lei nº
14.133/2021 que se encontram fora do Capítulo V, parecendo adequada a
maioria das soluções legislativas adotadas – embora recomendemos atenção
ao intérprete da norma com relação a esse ponto.
Desde logo, vale esclarecer que a duração do contrato não se
confunde com o cronograma da sua execução, de modo que o prazo
do contrato e o prazo da execução do seu objeto não necessariamente
serão os mesmos. Em geral, os dois prazos estão relacionados, embo-
ra sejam distintos entre si, havendo hipóteses em que essa relação é
menos direta, como nos registros de preço, nos contratos por prazo
indeterminado e nos contratos em que a própria Administração seja
usuária de serviço público, nos termos do art. 109 da NLLC.
Por fim, embora tratemos da duração do contrato – dizer des-
de quando e até em que momento segue vigente o vínculo contratual
– não abordaremos especificamente a extinção do contrato, já que o
tema é tratado no Capítulo VII do mesmo Título III. Vale mencionar,
porém, que o término do prazo é uma das modalidades de extinção do
contrato, de modo que o advento do termo contratual, sem prorroga-
ção, opera de pleno direito a extinção contratual. Assim, deixam de ser
possíveis a sua prorrogação e renovação, fazendo-se necessário novo
ajuste para a continuação das obras, serviços ou fornecimentos que fo-
ram contratados anteriormente3. Dessa forma, considerando as sérias
consequências relacionadas à temática, a maior atenção da NLLC em
relação à duração dos contratos é, sem dúvida, salutar.

Art. 105. A duração dos contratos regidos por esta Lei


será a prevista em edital, e deverão ser observadas, no mo-
mento da contratação e a cada exercício financeiro, a disponibi-
lidade de créditos orçamentários, bem como a previsão no plano
plurianual, quando ultrapassar 1 (um) exercício financeiro.
Legislação anterior: Lei nº 8.666, de 1993; Decreto 2.300/1986

117
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Jurisprudência correlata: TCU. PC: 02250920135, Relator:


Augusto Nardes, Data de Julgamento: 29/10/2019, Segunda Câ-
mara; TCU 00740720099, Relator: Augusto Sherman Cavalcan-
ti, Data de Julgamento: 10/07/2013; TCU 00713120063, Relator:
Ana Arraes, Data de Julgamento: 16/11/2011; TCU 01896420031,
Relator: Valmir Campelo, Data de Julgamento 06/06/2007; TCU.
MON: 01896420031, Relator: Benjamin Zymler, Data de Julgamento:
24/11/2004; Decisão TCU 90/2001; TCU. CONS: 00305819999,
Relator: Adhemar Paladini Ghisi, Data de Julgamento: 02/06/1999.

COMENTÁRIOS
O dispositivo que abre o Capítulo V traz alguns elementos im-
portantes. O primeiro deles é o de que a duração dos contratos regidos
pela NLLC deve ser prevista em edital. Salvo pela hipótese do art. 109,
todas as demais disposições do Capítulo referem-se a contratos com
prazo determinado – ainda que prorrogado, automaticamente ou não.
A determinação da duração no edital tem, ao menos, quatro razões:

a)  ermitir a isonomia entre os licitantes, que devem com-


p
petir com algum grau de certeza sobre os elementos
essenciais de um contrato – objeto, condições de remu-
neração e duração do contrato4;
b)  ermitir à Administração ter expectativa clara quanto ao
p
momento em que poderá contar com o objeto contratado;
c)  ermitir à Administração ter expectativa clara quanto
p
ao montante que deve considerar para fazer frente a tal
despesa;
d) fornecer elementos para os diferentes controles que se po-
dem operar sobre a ação administrativa em comento.

118
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Outra disposição muito relevante é relativa à observância da


existência de créditos orçamentários5 disponíveis para fazer frente à
despesa, no momento da contratação e em cada exercício financeiro.
Nesse ponto, a redação do art. 105 da NLLC assemelha-se à do art. 57
da Lei nº 8.666, que determina que “[a] duração dos contratos regidos
por esta Lei ficará adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamen-
tários (...)”, redação praticamente idêntica à do art. 47 do Decreto-Lei
nº 2.300/1986. Trata-se do que a doutrina e a jurisprudência conso-
lidadas quanto ao tema relativo à duração dos contratos entendem
como a regra geral. Nas palavras de Carlos Ari Sundfeld e de Jacintho
Arruda Câmara, ainda referindo-se à Lei nº 8.666/1993:6

A regra geral definida na Lei nº 8.666/93 é a de que os con-


tratos devam ter prazo máximo de 1 ano, ou seja, que tenham
duração compatível com a vigência dos respectivos créditos or-
çamentários (art. 57, caput). Todavia, existem diversas exceções:
a lei autoriza a prorrogação, para além da vigência dos respecti-
vos créditos orçamentários, de contratos cujo objeto esteja inse-
rido no Plano Plurianual (art. 57, I); também por intermédio de
prorrogações, a duração de contratos de prestação continuada
pode chegar a 5 anos (art. 57, II), ou a 6 anos, em casos excep-
cionais (art. 57, §4º), mais recentemente, a legislação foi alterada
para admitir contratos com vigência de até 10 anos, quando
firmados com base em determinadas hipóteses de dispensa de
licitação (art. 57, V, acrescentado pela Lei nº 12.349/2010).

Referida regra geral aponta para forte relação entre a contrata-


ção e o orçamento públicos, a qual decorre não apenas de uma lógica
própria da gestão dos recursos públicos, mas também da Constituição
da República, nos termos do art. 167, incisos I e II, que vedam tanto

119
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

o “início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária


anual” como a “realização de despesas ou a assunção de obrigações
diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais”. Trata-
-se de medida de responsabilidade fiscal fundamental do Estado brasi-
leiro: a validade do crédito orçamentário é uma das condições para a
execução de uma dada despesa pela Administração – neste caso, uma
autorização legislativa.
Tal relação entre a contratação pública e o orçamento públi-
co aponta para a importância do princípio da anualidade do orça-
mento público. Assim, como regra geral, a cada exercício financei-
ro o gestor público deve alocar dotações orçamentárias para fazer
frente aos custos financeiros decorrentes dos contratos administra-
tivos celebrados pela Administração. Nesse sentido, cumpre notar
que o texto da NLLC fez pertinente correção nos textos anteriores.
Tanto o Decreto-lei nº 2.300/1986 como a Lei nº 8.666/1993 ads-
tringem a duração do contrato à vigência do crédito orçamentá-
rio. Portanto, em uma interpretação literal desses dispositivos, dei-
xando de vigorar o crédito orçamentário, extinguir-se-ia também
o contrato. Por outro lado, o art. 105 da NLLC determina que se
observe a cada exercício financeiro a disponibilidade de créditos
orçamentários – o que nos indica que, apenas depois de tal verifi-
cação, o administrador deverá atentar para eventual procedimento
para o término da relação contratual, na hipótese de não existirem
créditos orçamentários disponíveis.
Caso a duração do contrato ultrapasse um exercício financeiro
– situação corriqueira no âmbito da execução de obras e prestação de
serviços à Administração Pública – o art. 105 estabelece a obrigatorie-
dade da previsão no Plano Plurianual (PPA). Trata-se de lei de iniciati-
va do chefe do Poder Executivo cuja finalidade é estabelecer, de forma
regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública
para as despesas de capital e aos programas de duração continuada,

120
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

nos termos do art. 165, I e §1º, Constituição Federal7-8. Nesse sentido,


importa ressaltar que as despesas correntes ordinárias, como compras
ou serviços, bem como despesas de custeio, não devem ser objeto de
disciplina pelo PPA, a não ser que tais despesas correntes decorram da
implementação de despesas de capital nele previstas.

Art. 106. A Administração poderá celebrar contra-


tos com prazo de até 5 (cinco) anos nas hipóteses de ser-
viços e fornecimentos contínuos, observadas as seguintes
diretrizes:
I - a autoridade competente do órgão ou entidade
contratante deverá atestar a maior vantagem econômica
vislumbrada em razão da contratação plurianual;
II - a Administração deverá atestar, no início da con-
tratação e de cada exercício, a existência de créditos orça-
mentários vinculados à contratação e a vantagem em sua
manutenção;
III - a Administração terá a opção de extinguir o con-
trato, sem ônus, quando não dispuser de créditos orçamen-
tários para sua continuidade ou quando entender que o
contrato não mais lhe oferece vantagem.
§ 1º A extinção mencionada no inciso III do caput
deste artigo ocorrerá apenas na próxima data de aniversá-
rio do contrato e não poderá ocorrer em prazo inferior a 2
(dois) meses, contado da referida data.
§ 2º Aplica-se o disposto neste artigo ao aluguel de
equipamentos e à utilização de programas de informática.

121
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Legislação anterior: Lei nº 8.666, de 1993; Lei nº 10.520, de


2002; Lei nº 11.462, de 2011.
Legislação correlata: Decreto-Lei nº 4.657, de 1942:

Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não


se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que se-
jam consideradas as consequências práticas da decisão. (Incluí-
do pela Lei nº 13.655, de 2018)

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a


adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contra-
to, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face
das possíveis alternativas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)

Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora


ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, pro-
cesso ou norma administrativa deverá indicar de modo expres-
so suas consequências jurídicas e administrativas. (Incluído pela
Lei nº 13.655, de 2018)

Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste arti-


go deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a
regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem
prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujei-
tos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades
do caso, sejam anormais ou excessivos. (Incluído pela Lei nº
13.655, de 2018)

Jurisprudência correlata: TCU. RA: 00512120108, Rela-


tor: José Múcio Monteiro, Data de Julgamento: 21/06/2017, Plenário;
TCU 03149020107, Relator: Marcos Bemquerer, Data de Julgamento:

122
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

24/09/2013; TCU 01723120097, Relator: Benjamin Zymler, Data de Jul-


gamento: 19/06/2013; TCU 01460020021, Relator: Raimundo Carreiro,
Data de Julgamento: 14/04/2010; TCU. REPR: 01020520010, Relator:
Adylson Motta, Data de Julgamento: 05/06/2003.

COMENTÁRIOS
Além de trazer algumas mudanças em relação ao regime ante-
rior, o art. 106 contém disposições que solucionam na esfera legislativa
uma antiga questão, embora ocasione novas controvérsias.
Tratemos da solução: o caput do dispositivo equipara serviços con-
tínuos a fornecimentos contínuos. Na Lei nº 8.666/1993, somente se tratou
da prestação de serviços contínuos, no seu art. 57, II9, indicando ser
possível a prorrogação desses contratos “por iguais e sucessivos perío-
dos com vistas à obtenção de preços e condições mais vantajosas para
a administração”, não podendo tais prorrogações ultrapassar sessenta
meses. O dispositivo indica que os contratos deveriam ser assinados
por prazos menores, para que, identificadas condições mais vantajosas
para a Administração, ao se aproximar do seu término, se pudesse
renová-los até o limite de cinco anos. Nesse sentido, o caput do art. 106
da NLLC traz disposição mais similar à redação que teve o mesmo art.
57, II da Lei nº 8.666/1993 entre 1994 e 1998, que determinou que
tais contratos de serviços “deverão ter a sua duração dimensionada
com vistas à obtenção de preços e condições mais vantajosas para a
administração, limitada a duração a sessenta meses”.
Note-se a diferença conceitual: na redação de 1998 do art.
57, II, pretende-se um vínculo mais curto e que haja análise por
parte do contratante no que toca à qualidade do serviço prestado.
Desse modo, sendo positivo o resultado, prorroga-se o vínculo até o
limite temporal indicado. Por outro lado, na redação de 1994, pre-
tende-se que o gestor faça um planejamento adequado e confiável,

123
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

podendo fixar duração de sessenta meses desde o início. O texto do


caput do art. 106 não apenas resgata esse racional como soma aos
serviços contínuos os fornecimentos contínuos – ou contratos de execução
continuada, nos termos do art. 478 do Código Civil – de modo que
passem a ser conjuntamente considerados, pacificando uma longa
controvérsia jurisprudencial10.
Parte da doutrina considera a medida salutar11 e, mesmo que
agora exista maior margem para a decisão do gestor por um contrato
mais curto ou mais extenso, o inciso I impõe os limites para tal escolha.
Assim, o cenário-base segue sendo o da contratação por prazo menor,
de modo que a escolha por contratação que perpasse mais de um exer-
cício financeiro deve ser motivada pela maior vantagem econômica
identificada na contratação eleita (por exemplo, ganho de economia de
escala). Nesse caso, o inciso II do art. 106 figura como decorrência da
regra do art. 105, de modo que a Administração tem o dever de atestar
a existência de créditos orçamentários vinculados à contratação. Por
sua vez, a segunda parte do inciso II vai em linha com o objetivo que
deve guiar a escolha do prazo contratual: a sua vantajosidade12.
Com efeito, o ponto que gera maior controvérsia no dispositi-
vo encontra-se no seu inciso III, ao tratar da extinção antecipada do
contrato por decisão da Administração: o que significa “extinguir o
contrato, sem ônus” por uma razão interna, qual seja, a não dispo-
nibilidade de “créditos orçamentários para sua continuidade” ou, de
forma menos concreta, “quando entender que o contrato não mais lhe
oferece vantagem”? Do ponto de vista do contratante, temos, essen-
cialmente, dois temas. No que toca aos créditos orçamentários, nem
poderia a Administração seguir com o contrato vigente na sua au-
sência, por força dos arts. 105 e 106, II da NLLC e, além disso, por
vedação constitucional expressa constante do art. 167, II. Do contrá-
rio, trataríamos, aqui, da nulidade do instrumento e da necessidade
de aplicação ou não do instituto referente à extinção do contrato. No

124
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

que toca à vantajosidade, igualmente se poderia considerar inviável a


manutenção do contrato, pelo dever de boa administração13-14.
O parágrafo 1ª busca trazer balizas legais à extinção contra-
tual, porém, merece receber algumas críticas. Em primeiro lugar,
cabe questionar: a extinção “apenas na próxima data de aniversário
do contrato” e que “não poderá ocorrer em prazo inferior a 2 (dois)
meses” seria exceção aos dois casos previstos no inciso III do art. 106
(indisponibilidade de créditos orçamentários para sua continuidade
e falta de vantajosidade para a Administração Pública)? Se sim, es-
tar-se-ia diante de inconstitucionalidade do parágrafo 1º do art. 106.
Assim, embora este ponto não tenha sido devidamente elucidado pelo
legislador, deve-se aplicar a previsão do referido parágrafo 1º apenas
à segunda hipótese prevista no inciso III do art. 106, ou seja, aquela
referente à vantajosidade, e não à indisponibilidade de créditos orça-
mentários, sob pena de patente violação ao que estabelece o art. 167,
II, da Constituição Federal. Dito de outra forma, se não houver crédi-
tos orçamentários disponíveis, não será permitida a extensão do prazo
contratual em dois meses.
Em segundo lugar, o parágrafo 1º deve ser reprovado por con-
ter previsão pouco clara e potencialmente arbitrária. Se a extinção
contratual apenas pode ser realizada na próxima data de aniversário
do contrato e não pode ocorrer em prazo inferior a dois meses, conta-
do da referida data, o legislador estabeleceu, como prazo mínimo para
vigência contratual, quatorze meses? E por qual razão? Com efeito,
não é possível compreender o que se pretendeu ao fixar um prazo não
inferior a dois meses para extinção do contrato, contado da data de seu
aniversário. Pode-se supor que o legislador tenha almejado reduzir o
grau de incerteza para o agente privado, porém, no fim das contas, a
eventual extinção foi apenas adiada em dois meses, o que não reduz a
insegurança para aquele. Outra possibilidade é que tenha se buscado
estabelecer que a Administração deve notificar o contratante com

125
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

dois meses de antecedência caso opte pela extinção do contrato.


Essa segunda hipótese, porém, não pode ser de forma alguma ex-
traída da previsão do parágrafo 1º do art. 106, nem pelo intérprete
mais clemente.
De qualquer forma, sob a ótica do contratado, deve-se ressaltar
que, em havendo perdas, deverão ser reparadas, mantendo-se o equi-
líbrio econômico-financeiro do contrato, princípio constitucional que
segue vigente na NLLC. Além disso, cumpre apontar que as indeniza-
ções eventualmente devidas podem impactar a própria vantajosidade
da escolha da Administração, o que deverá ser considerado não apenas
em decorrência da aplicação do regime jurídico-administrativo, como
também pela aplicação cogente das disposições da Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), notadamente dos seus arts.
2015 e 2116-17.
O parágrafo 2º, por fim, explicita que as disposições do artigo
se aplicam ao aluguel de equipamentos e à utilização de programas
de informática, os quais foram tratados de forma distinta na Lei nº
8.666/1993, a qual limitou sua duração a 48 meses, 12 meses a menos
que o previsto na NLLC.

Art. 107. Os contratos de serviços e fornecimentos


contínuos poderão ser prorrogados sucessivamente, res-
peitada a vigência máxima decenal, desde que haja previ-
são em edital e que a autoridade competente ateste que as
condições e os preços permanecem vantajosos para a Ad-
ministração, permitida a negociação com o contratado ou
a extinção contratual sem ônus para qualquer das partes.
Legislação anterior: Lei nº 8.666, de 1993; Lei nº 10.520, de 2002;
Lei nº 11.462, de 2011.

126
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Jurisprudência correlata: TCU. RP: 02348120188, Rela-


tor: Benjamin Zymler, Data de Julgamento: 31/10/2018, Plenário;
TCU 00132020149, Relator: Augusto Sherman, Data de Julgamen-
to: 20/08/2014; TCU 04151620125, Relator: Raimundo Carreiro,
Data de Julgamento: 11/06/2013; TCU 00615620118, Relator: Arol-
do Cedraz, Data de Julgamento: 22/05/2013; STJ. REsp: 474781
DF 2002/0147947-1, Relator: Ministro Franciulli Netto, Data de
Julgamento: 08/04/2003, Segunda Turma, Data de Publicação: DJ
12/05/2003, p. 297.

COMENTÁRIOS
O dispositivo traz importantes complementos ao art. 106. O
primeiro é fazer o papel do art. 57, II, da Lei nº 8.666/1993, esta-
belecendo prazo máximo de vigência para os contratos de serviços e
fornecimentos contínuos em caso de prorrogação sucessiva. Com isso,
torna-se patente a função do caput do art. 106: estipular que a vigência
inicial dos contratos administrativos de execução continuada pode ser
de até sessenta meses (cinco anos). Por sua vez, o prazo-limite com a
prorrogação sucessiva do contrato está previsto no art. 107 (dez anos).
A segunda parte do art. 107 reflete a regra prevista no art. 105
e no art. 106, II, relativa à disponibilidade de créditos orçamentários
vinculados à contratação e à vantagem em sua manutenção, aplican-
do-se também à prorrogação dos contratos, e não apenas à sua ma-
nutenção. Note-se, porém, que o art. 107 aponta para os critérios de
avaliação da vantajosidade, isto é, as condições e os preços – o que
abarca praticamente qualquer aspecto do contrato. Cumpre notar
que, apesar de isto não estar expresso na NLLC, a vantajosidade não
se refere apenas ao aspecto econômico-financeiro da contratação, mas
também à qualidade do serviço ou produto contratados, à relação com
um contratante íntegro que não incida em infrações disciplinares etc.

127
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

A última parte do dispositivo, por sua vez, aborda dois pontos


relevantes no que concerne à gestão do contrato. Em primeiro lugar,
o art. 107 permite a negociação com o contratado, trazendo, mutatis
mutandis, a dinâmica prevista no art. 61 e seguintes e no art. 90 – apli-
cáveis à fase de julgamento das propostas e da formalização dos con-
tratos, respectivamente – para uma fase de negociação, a qual pode
levar à prorrogação do contrato. Em segundo lugar, o dispositivo faz
referência à extinção do contrato “sem ônus para qualquer das par-
tes”, o que dialoga com a previsão do art. 138, II, da NLLC, abordada
em artigo próprio desta obra.

Art. 108. A Administração poderá celebrar contratos


com prazo de até 10 (dez) anos nas hipóteses previstas nas
alíneas “f ” e “g” do inciso IV e nos incisos V, VI, XII e XVI
do caput do art. 75 desta Lei.
Legislação anterior: Lei nº 10.520, de 2002; Lei nº 11.462, de 2011.

COMENTÁRIOS
Assim como o caput do art. 106 estabelece um prazo máximo
para vigência inicial dos contratos administrativos de execução conti-
nuada, o art. 108 faz o mesmo em relação a determinadas hipóteses
de contratos em que há dispensa de licitação, contidas no art. 75 da
NLLC18. Todas as circunstâncias previstas possuem características que
indicam que uma contratação por um período mínimo mais elevado
pode ser a única ou a melhor forma de contratação.
Tomemos como exemplo a primeira hipótese legal, a do art.
75, IV, “f ”, que trata da dispensa de licitação para a contratação de
“bens ou serviços produzidos ou prestados no País que envolvam,
cumulativamente, alta complexidade tecnológica e defesa nacional”.

128
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Um exemplo recente de algo similar (já que não se trata de um bem


estritamente produzido no país, embora haja transferência de tecno-
logia) consiste na compra de aviões de caça F-39 Gripen pela For-
ça Aérea Brasileira da empresa sueca SAAB: o contrato foi firmado
em 201419 e apenas em 202120, sete anos depois, houve a entrega dos
primeiros aviões. O mesmo pode-se aplicar à hipótese concernente a
insumos de saúde com transferência de tecnologia – dentro das balizas
estabelecidas pelo art. 75, XVI – ou a contratações de estímulo à cons-
trução de ambientes especializados e cooperativos de inovação.

Art. 109. A Administração poderá estabelecer a vi-


gência por prazo indeterminado nos contratos em que seja
usuária de serviço público oferecido em regime de monopó-
lio, desde que comprovada, a cada exercício financeiro, a exis-
tência de créditos orçamentários vinculados à contratação.
Legislação anterior: Lei nº 8.666, de 1993; Lei nº 10.520, de
2002; Lei nº 11.462, de 2011.

COMENTÁRIOS
O art. 109 traz disposição sobre matéria que por muito tempo
gerou celeuma entre os administrativistas: afinal, prazo determinado
é condição para que se considere um contrato administrativo como
tal? Nos casos em que a Administração seja usuária de serviços pú-
blicos oferecidos em regime de monopólio – tais como serviço postal
e o correio aéreo nacional, previstos no artigo 21, X, da Constituição
Federal – a resposta é não. Isso deriva da sua própria natureza: não há
razão econômica ou jurídica para realizar novas licitações ou novas
dispensas de licitação para contratar serviços em que a Administração
se veja em posição de consumidora de serviços contínuos oferecidos
em regime de monopólio e cujo término não se espera.

129
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Embora a previsão do art. 109 da NLLC desfrute de caráter ino-


vador, vale mencionar que, mesmo diante da falta de previsão legal, a
Advocacia Geral da União (AGU), em geral bastante vinculada à letra da
lei, editou a Orientação Normativa nº 36/2011, que permite vigência por
prazo indeterminado dos contratos do poder público federal com a Em-
presa Brasileira de Correios e Telégrafos. No mesmo sentido, o Enunciado
nº 22/2009 da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (PGE-RJ)
estabeleceu o entendimento de que os contratos de locação de imóveis,
nos quais a Administração Pública figure como locatária, bem como os
contratos de locação de vagas de garagem para estacionamento de veícu-
los, podem ser prorrogados por prazo indeterminado
De toda forma, como para todos os demais casos, entende-se
que somente manter-se-ão os contratos mediante a existência de créditos
financeiros. Ademais, cumpre ressaltar que, no processo da contratação,
é essencial que sejam explicitados os motivos que fundamentam a adoção
do prazo indeterminado, por exemplo, por meio da demonstração de que
o serviço em questão é prestado em monopólio na região.

Art. 110. Na contratação que gere receita e no contra-


to de eficiência que gere economia para a Administração, os
prazos serão de:
I - até 10 (dez) anos, nos contratos sem investimento;
II - até 35 (trinta e cinco) anos, nos contratos com in-
vestimento, assim considerados aqueles que impliquem a
elaboração de benfeitorias permanentes, realizadas exclusi-
vamente a expensas do contratado, que serão revertidas ao
patrimônio da Administração Pública ao término do contrato.
Legislação anterior: Lei nº 8.666, de 1993; Lei nº 10.520, de
2002; Lei nº 11.462, de 2011.

130
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

COMENTÁRIOS
O art. 110 contém outra importante inovação da NLLC: o es-
tabelecimento de prazos excepcionais (diante da regra geral estabeleci-
da no art. 105) para as contratações que gerem receita para a Adminis-
tração Pública e para os contratos de eficiência que lhe proporcionem
economia. Embora antes do advento da NLLC não houvesse previsão
em lei que estabelecesse tais prazos excepcionais, vale mencionar que a
doutrina já apontava para a necessidade de se considerar essa hipótese.
Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello21:

Há (...) contratos que não implicam comprometimento de re-


cursos orçamentários, como as concessões de obra ou serviço
público. Nestes não concorrem as razões que impuseram a re-
gra geral de limitação da duração à disponibilidade de créditos
orçamentários. Assim, não sofrem a limitação apontada. De-
mais disto, seus prazos terão de ser necessariamente longos para
a amortização do capital (...).

Na mesma linha, argumentou Carlos Ari Sundfeld22:

A racionalidade empregada ao longo do art. 57 da Lei nº


8.666/93 parece estar na vinculação dos prazos dos contratos à
duração de créditos ou planos orçamentários. A regra aparen-
temente só faz sentido quando aplicada a contratos que sejam
fonte de despesas orçamentárias. Tal condição não se perfaz
em relação a contratos que não geram despesas para a Admi-
nistração (seria o caso, por exemplo, de contrato de cessão de
direito de uso de bem público). Nessas hipóteses, não parece
que sua duração esteja limitada aos prazos do art. 57 da Lei nº
8.666/93.

131
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Além disso, cumpre mencionar que, inteligentemente, o caput


do art. 110 reuniu, por meio de um tratamento legal similar, dois tipos
de contrato que possuem racionais econômicos próximos, com mode-
lagens e estruturas econômicas potencialmente semelhantes. O efeito
prático da norma é o de equiparar os contratos que geram receita –
como a concessão de uso de bem público ou a cessão de uso onerosa
– aos contratos de eficiência, definidos no art. 6º, LIII, como aqueles
contratos de prestação de serviços que têm por objetivo “proporcionar
economia ao contratante, na forma de redução de despesas correntes,
sendo o contratado remunerado com base em percentual da economia
gerada”. Trata-se de definição idêntica à encontrada art. 23, § 1º, da
Lei nº 12.462/2011, que disciplina o Regime Diferenciado de Contra-
tações (RDC). Para além da caracterização do contrato (a qual é abor-
dada com maior profundidade no comentário ao art. 6º, LIII), impor-
ta comentar o prazo máximo previsto, elemento ausente no RDC.
Como grande parte da justificativa para tais contratos de longo
prazo se funda no tempo necessário à amortização dos investimentos
somada à remuneração devida ao contratado, a hipótese prevista no
inciso I determina a duração máxima dos contratos sem investimentos
como 10 anos, já que, como se mencionou, os seus racionais econômi-
cos podem ter razoável semelhança.
Por sua vez, os contratos com investimento, previstos no inciso
II do art. 110, possuem como característica a instalação de benfeitorias
permanentes, que devem ser realizadas “exclusivamente a expensas do
contratado” e que devem ser “revertidas ao patrimônio da Administração
Pública ao término do contrato”, tal como ocorre nos contratos de con-
cessão de serviço público. A configuração legal permite uma maleabilida-
de considerável da estrutura contratual23 e, considerando a remuneração
do contratado, é um contrato de risco. Os contratos previstos no art. 110,
II, possuem, assim, importantes pontos em comum com as parcerias pú-
blico-privadas (PPPs) previstas na Lei nº 11.079/2004. Não sem razão, o

132
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

legislador atribuiu ao contrato de eficiência com investimentos o mesmo


prazo máximo, de até 35 anos, dado às PPPs.

Art. 111. Na contratação que previr a conclusão de


escopo predefinido, o prazo de vigência será automatica-
mente prorrogado quando seu objeto não for concluído no
período firmado no contrato.
Parágrafo único. Quando a não conclusão decorrer
de culpa do contratado:
I - o contratado será constituído em mora, aplicáveis
a ele as respectivas sanções administrativas;
II - a Administração poderá optar pela extinção do
contrato e, nesse caso, adotará as medidas admitidas em
lei para a continuidade da execução contratual.
Legislação anterior: Lei nº 8.666, de 1993; Lei nº 10.520, de
2002; Lei nº 11.462, de 2011.
Jurisprudência correlata: TCU. TOMADA DE CONTAS ESPE-
CIAL (TCE): 01789720114, Relator: Ana Arraes, Data de Julgamento:
12/07/2016, Segunda Câmara; TCU. TOMADA DE CONTAS ESPE-
CIAL: 01864020141, Relator: Weder de Oliveira, Data de Julgamento:
05/04/2016, Primeira Câmara; TCU 01085220158, Relator: André
de Carvalho, Data de Julgamento: 27/01/2016; TCU 00621620129,
Relator: Raimundo Carreiro, Data de Julgamento: 26/08/2015; TCU
008310059, Relator: Augusto Nardes, Data de Julgamento: 24/11/201.

COMENTÁRIOS
O art. 111 vem consolidar entendimento24 de que o contrato
por escopo25 não apenas pode ser prorrogado até que o objeto seja

133
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

prestado de forma completa, como estabelece a renovação auto-


mática da vigência contratual como regra, caso o seu objeto não
tenha sido concluído no período firmado no contrato. Nesse senti-
do, o contrato de escopo somente será considerado cumprido com
a entrega da prestação, de modo que seu exaurimento se vincula
mais diretamente ao seu objeto do que com o prazo contratual, que
possui caráter acessório. Como exemplo, podem-se citar contratos que
tenham por objeto a realização de uma obra pública. Nesse caso, o
advento do termo contratual não extingue o contrato, mas sim carac-
teriza a mora do contratante.
Trata-se de sistemática distinta da dos contratos de execu-
ção continuada (também denominados “contratos continuados”
ou “contratos por prazo certo”), a exemplo daqueles que possuem
como objeto a prestação de serviços de segurança ou de limpe-
za. Nesses exemplos, aferir-se-á a qualidade da prestação de forma
diuturna, enquanto, nos casos de escopo, tal verificação se dará ao
final do contrato, ou, em certos casos, também durante o seu desen-
volvimento, quando marcos forem definidos justamente com o fim de
promover o devido acompanhamento do desenvolvimento do objeto
contratado pela Administração.
Ainda assim, vale apontar que as expressões “contrato por es-
copo” ou “contrato por escopo pré-definido” não são muito claras, já
que todos os contratos possuem escopo, sempre predefinidos, qualquer
seja o tipo ou a modalidade contratual26. Outra expressão que pode
causar confusão é “contrato de execução instantânea”, apresentada
por vezes como sinônima das anteriores, que pode transmitir a ideia
de algo que se executa de imediato, ou muito rapidamente, ou, talvez,
de imediato e muito rapidamente.
À parte das questões terminológicas, pode-se vislumbrar,
com a prorrogação automática, a permissão legal de situações que se
aproximariam a um contrato com prazo de vigência indeterminado,

134
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

o que foi vedado expressamente pela Lei nº 8.666/1993 (art. 57, § 3º)
e que é vedado implicitamente pela NLLC – haja vista que a única
menção da lei à possibilidade de contrato por prazo indeterminado
está no art. 109. No entanto, entendemos que a hipótese do art. 111
não se assemelha tanto a um contrato de prazo indeterminado, por
duas razões principais: (i) a prorrogação automática continua a de-
mandar do Administrador todos os cuidados orçamentários já ana-
lisados neste Capítulo; (ii) tal prorrogação não inibe ou se desvia dos
controles aplicados à Administração e ao administrador público, que
seguem válidos, de modo que a motivação adequada para a manu-
tenção do vínculo contratual vigente segue sendo necessária.
Ademais, deve-se atentar para o fato de que a lei estabelece
punições ao contratante caso a não conclusão do objeto contratual de-
corra de sua culpa. Resguardando o interesse público consubstanciado
na entrega do objeto contratado, o art. 111 prevê a prorrogação refe-
rida, mas não sem deixar de estabelecer, no seu inciso I, a constituição
do contratado em mora e a aplicação das sanções administrativas devi-
das. Por sua vez, o inciso II indica que, na mesma hipótese de culpa do
contratado, a Administração poderá não apenas rescindir o contrato,
caso essa seja a melhor opção para o atendimento ao interesse público,
mas também adotar as “medidas admitidas em lei para a continuidade
da execução contratual”, como a contratação de outro prestador para
o remanescente de obras inconclusas.
Não é demais lembrar que, mesmo nos casos em que não haja
culpa do contratado, a Administração pode rescindir o contrato, quan-
do, assim como no inciso II, essa opção se mostrar adequada para o
atendimento ao interesse público. Nesse caso, porém, não constituirá o
contratado em mora e honrará, assim como no caso anterior, a equa-
ção econômico-financeira do contrato.

135
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Art. 112. Os prazos contratuais previstos nesta Lei


não excluem nem revogam os prazos contratuais previstos
em lei especial.
Legislação anterior: Lei nº 8.666, de 1993; Lei nº 10.520, de
2002; Lei nº 11.462, de 2011.

COMENTÁRIOS
A lei elucida que os prazos contratuais previstos em leis es-
peciais que tratem de contratação pública seguem vigentes. Com
efeito, a disposição vem deixar ainda mais evidente a disposição do
seu art. 186, que determina a aplicação da NLLC de forma subsi-
diária às leis de concessões (nº 8.987/1995), de parcerias público-pri-
vadas (nº 11.079/2004) e de contratação de agências de publicidade
(Lei nº 12.232/2010). Assim, ainda que uma PPP regida pela Lei nº
11.079/2004 se assimile a um contrato de eficiência previsto no art.
110, II, da NLLC, seu limite temporal será de 35 anos não pela previ-
são desse artigo, mas pela previsão da própria lei das PPPs.
Corolário da norma é o entendimento de que, ainda que uma
concessão regida pela Lei nº 8.987/1995 se pareça com a hipótese
do art. 110, I, da NLLC – por exemplo, uma concessão de serviços
similar ao Contrato de Restauração e Manutenção das rodovias fe-
derais (CREMA)27, em que não se vislumbre investimento na rodovia
–, a mesma não estará adstrita aos 10 anos nele previstos. Ela deverá
seguir o racional próprio da Lei de Concessões, a qual não prevê prazo
máximo de vigência.

Art. 113. O contrato firmado sob o regime de forneci-


mento e prestação de serviço associado terá sua vigência má-
xima definida pela soma do prazo relativo ao fornecimento

136
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

inicial ou à entrega da obra com o prazo relativo ao serviço


de operação e manutenção, este limitado a 5 (cinco) anos con-
tados da data de recebimento do objeto inicial, autorizada a
prorrogação na forma do art. 107 desta Lei.
Legislação anterior: Lei nº 8.666, de 1993; Lei nº 10.520, de
2002; Lei nº 11.462, de 2011.

COMENTÁRIOS
O art. 113 completa as locuções do art. 46, VII,28 e do artigo
6º, XXXIV,29 da NLLC, trazendo de forma mais explícita, e com con-
tornos mais claros, a possibilidade de contratação de um objeto inicial
seguido de serviços associados. O objeto inicial (ou “primeiro objeto”)
consiste em um fornecimento inicial ou na entrega de uma obra, e a
ele estão associados serviços de operação, manutenção ou ambos, por
tempo determinado.
Em consonância com o princípio da eficiência, consagrado no
art. 37, caput, da Constituição Federal, essa estrutura contratual esti-
mula a entrega de obras mais bem realizadas e de “bens iniciais” de
boa qualidade. Isso porque o resultado da primeira entrega afetará a
vida profissional daquele prestador ou fornecedor por até dez anos
mais, nos termos do art. 107, de modo que o incentivo desse provedor
será, em geral, o de realizar uma ótima primeira entrega30, evitando
que possua um objeto inicial cuja manutenção seja demasiado comple-
xa e/ou dispendiosa do ponto de vista econômico-financeiro.
O racional dessa estrutura contratual, no que toca ao cam-
po dos incentivos, é similar ao de uma concessão de serviço público.
São contratos em que se espera, igualmente, que as obras realiza-
das sejam as mais adequadas e racionais do ponto de vista econô-
mico, para o benefício do próprio contratado. Ademais, faz sentido

137
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

pensar na aplicação dessa nova configuração contratual para os


casos em que fique a cargo do contratado “a elaboração do projeto
básico e do projeto executivo, nas contratações integradas, e do
projeto executivo, nos demais regimes de execução”, nos termos do
art. 14, § 4º, da NLLC.

Art. 114. O contrato que previr a operação continua-


da de sistemas estruturantes de tecnologia da informação
poderá ter vigência máxima de 15 (quinze) anos.
Legislação anterior: Lei nº 8.666, de 1993; Lei nº 10.520, de
2002; Lei nº 11.462, de 2011

COMENTÁRIOS
O art. 114 atualiza o entendimento sobre a tecnologia da in-
formação aplicada no âmbito da Administração Pública. Os sistemas
estruturantes de TI são essenciais a toda ou quase toda divisão admi-
nistrativa da Administração Pública, e ganhou ainda mais importância
com o advento da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD
(Lei nº 13.709/2018). Seus custos são elevados, sua implantação pode
ser extremamente trabalhosa e demorada, o processo de aprendiza-
gem dos servidores pode ser ainda mais vagaroso e uma fase de uso
falho de uma nova solução tecnológica é esperado. Tais fatores, até
que se considere a solução definitivamente implantada, devem levar,
efetivamente, a longos prazos contratuais.
Trata-se de racional similar, embora não idêntico, ao do art.
113, em que o mesmo contratado permanece vinculado à Admi-
nistração por até dez anos, a partir do momento de sua primeira
entrega. Nos casos de implantação de sistemas de TI, pode haver
um grande marco, como aquele a que se refere o art. 113, ou a

138
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

implantação gradual de diferentes partes ou funcionalidades de um


sistema ou de um conjunto de sistemas. Na segunda hipótese, a
aplicação do art. 113 tornar-se-ia insuficiente para esse campo.
Com efeito, a previsão do art. 114 evidencia o aprendizado
do legislador, mais uma vez, no que toca aos prazos dos contratos
administrativos, seja pela identificação de que os prazos dados pela
Lei nº 8.666/1993 eram insuficientes para boa execução do objeto
contratual no campo da tecnologia da informação, seja pela obser-
vação de que contratos de mais longo prazo, como as concessões
em sentido amplo, podem atender mais adequadamente ao interesse
público, tanto em qualidade quanto em menores contraprestações
devidas aos contratados.

139
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Notas

Nos termos do art. 193 da Lei nº 14.133/2021, os artigos 89 a 108 da Lei nº


1

8.666/1993 foram revogados na data de publicação da Lei nº 14.133/2021, ao passo


que o restante da Lei nº 8.666, a Lei nº 10.520 e os artigos 1º a 47-A da Lei nº 12.462
permanecem em vigor até 2023.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos:


2

Lei 8.666/1993. 16ª ed., 2ª tir., SP: RT, 2014, p. 945.

MEIRELLES, Hely Lopes; BURLE FILHO, José Emmanuel. Execução do con-


3

trato administrativo. In: MEIRELLES, Hely Lopes; BURLE FILHO, José Emmanuel.
Direito administrativo brasileiro. 42ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 254-266.

Os três elementos são mínimos para o direito brasileiro e também para o direito
4

francês, conforme se depreende do arrêt do Conseil d’Etat, 6 / 2 SSR, du 28 mars


1980, nº 07703 - CE 28 mars 1980, Societé “Cabinet 2000”, RDP 1981, 523. Dis-
ponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/ceta/id/CETATEXT000007664564.
Acesso em 15 dez 2021. Cf. RICHER, Laurent. Droit des Contrats Administratifs. 9 ed.
[S. l.]: LGDJ, 2014, p. 138.

Créditos orçamentários são autorizações, constantes das leis orçamentárias anuais,


5

para realização de despesas. Trata-se de noção distinta daquela referente às dotações


orçamentárias. Em suma, enquanto o crédito orçamentário é constituído pelo conjunto
de categorias classificatórias e contas que especificam as ações e operações autorizadas na
lei orçamentária, a dotação consiste no montante de recursos financeiros com que conta
o crédito orçamentário. Cf. GIACOMONI, James. Orçamento público. 17ª ed. São Paulo:
Atlas, 2017, p. 321. Ainda, vale mencionar que a ausência de dotação orçamentária per-
mite a sua suplementação, na forma dos artigos 41, I, e seguintes da Lei nº 4.320 /1964,
o que, em tese, permitiria a continuidade da execução contratual.

SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. Uma crítica à tendência de


6

uniformizar com princípios o regime dos contratos públicos. R. de Dir. Público da Economia -
RDPE, Belo Horizonte, ano 11, n. 41, jan./mar. 2013, p. 62-63.

Cabe esclarecer as diferenças principais entre as três leis orçamentárias do orde-


7

namento jurídico brasileiro. O Plano Plurianual (PPA) representa um planejamento


governamental de médio prazo, definindo diretrizes, objetivos e metas. A Lei Orça-
mentária Anual (LOA) cumpre funções próprias do orçamento público e materializa
um planejamento de curto prazo. Por fim, a Lei de Diretrizes Orçamentárias exerce

140
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

o elo entre o PPA e a LOA. Cf. CONTI, José Mauricio. O planejamento orçamentário da
Administração Pública no Brasil. 1. ed. São Paulo: Blucher Open Access, 2020, p. 44.
8
Ainda assim, cumpre notar que não houve uma definição clara das funções do
PPA, nos termos em que aponta Weder de Oliveira: “[O legislador constituinte] não
soube dizer com consistência e coerência o que pretendia com o PPA: não queria um
instrumento semelhante ao fracassado orçamento plurianual de investimentos (OPI),
anteriormente vigente, e por outro lado também não fez dele um instrumento de pla-
nejamento global do Estado, destinando-o apenas às despesas de capital e programas
de duração continuada, conferindo-lhe porém posição do mais alto relevo, subme-
tendo a ele planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos na Consti-
tuição”. Cf. Curso de responsabilidade fiscal. Belo Horizonte: Forum, 2013, v. 1. p. 310.
9
Em sua última redação, de 1998.
10
A jurisprudência administrativa federal referente ao art. 57, II da Lei nº
8.666/1993 em sua última redação seguia o espírito da norma: o TCU, na sua Decisão
n° 1.136/2002-Pleno, determinou que se observasse “atentamente o inciso II do artigo
57 da Lei n° 8.666, de 1993, ao firmar e prorrogar contratos, de forma a somente en-
quadrar como serviços contínuos contratos cujos objetos correspondam a obrigações de
fazer e a necessidades permanentes”. Tal entendimento foi reiterado pelo Acórdão nº
100/2008 - Plenário. Por sua vez, o Acórdão n° 3891/2011, da Segunda Câmara, nos
indica expressamente que as prorrogações em contratos de fornecimento de bens de con-
sumo não admitiam a realização de prorrogações sucessivas nos termos do dispositivo.

A questão, contudo, não era nacionalmente pacificada: o TCDF proferiu a Decisão


Normativa nº 03/1999, na qual permite a aplicação da norma para fornecimento, in
verbis: “é admitida a interpretação extensiva do disposto no inciso II do art. 57 da Lei nº
8.666, de 21 de junho de 1993, às situações caracterizadas como fornecimento contínuo,
devidamente fundamentadas pelo órgão ou entidade interessados, caso a caso”, embora
tal decisão tenha sido revogada em 2011 e revigorada em 2014. O próprio TCU admitiu
a possibilidade, mas em caso excepcional, no Acórdão nº 766/2010 - Plenário.
11
Rafael Carvalho Rezende Oliveira considera que “não fazia sentido admitir
contratos com maior duração para prestação de serviços contínuos (ex.: contratos
de limpeza, de manutenção, de vigilância) e não permitir o mesmo tratamento para
o fornecimento contínuo de bens (ex.: contratos de fornecimento de medicamentos,
de material de higiene)”. Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Disponível via
VitalSource Bookshelf, Grupo GEN, 2021

141
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

No que se alinha, em certa medida, com o espírito do art. 57, II da Lei nº


12

8.666/1993, tanto na redação de 1994 quanto na de 1998.

Princípio presente no ordenamento brasileiro (derivando do sistema constitucional


13

e tendo como referência doutrinária fundamental a obra de Juarez Freitas, Discriciona-


riedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração Pública. 2ª ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2009), de outros países latino-americanos (no Peru, por exemplo,
o tema também se vê constitucionalizado implicitamente, no art. 39º de sua Constitui-
ção Política – disponível em http://www.pcm.gob.pe/wp-content/uploads/2013/09/
Constitucion-Política-del-Peru-1993.pdf. Acesso em 11 dez 2020) e de países europeus
continentais (em Portugal, o Código do Procedimento Administrativo – Decreto-Lei n.º
4/2015 – possuía título com o princípio expresso; na França, é considerado princípio
essencial do direito administrativo, merecendo menção a obra de Rhita Bousta, Essai
sur la notion de Bonne administration en droit public, L’Harmattan, 2010), e também da União
Europeia (“Direito a uma boa administração” é título do art. 41º da Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia – disponível em: https://fra.europa.eu/pt/eu-char-
ter/article/41-direito-uma-boa-administracao. Acesso em 11 dez 2020).

Para Oliveira, a medida “parece desproporcional e ineficiente sob o aspec-


14

to econômico”, já que “a extinção prematura da avença, por ausência de pla-


nejamento administrativo ou por uma decisão baseada no argumento genérico
da ausência de vantagem para Administração Pública, incrementa, considera-
velmente, o risco do contratado, que não tem como exigir da Administração o
cumprimento integral do contrato no prazo inicialmente estipulado. O aumento
do risco, naturalmente, repercute na economia contratual, uma vez que o con-
tratado embutirá esse fator em sua proposta, elevando os preços cobrados da
Administração Pública” (op. cit.).

No seguinte teor: “Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial,


15

não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas
as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da me-


dida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma adminis-
trativa, inclusive em face das possíveis alternativas.”

No seguinte teor: “Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora
16

ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma adminis-


trativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.

142
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando
for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo propor-
cional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos
sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam
anormais ou excessivos.”
17
Sobre o tema, cf. MARQUES NETO, Floriano de Azevedo et al. Resposta aos
comentários tecidos pela Consultoria Jurídica do TCU ao PL 7.448/2017. Revista Brasileira
da Advocacia. vol. 9. ano 3. p. 289-312. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2018, em es-
pecial p. 293-296.
18
No seguinte teor: “Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial,
não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas
as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da me-


dida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma adminis-
trativa, inclusive em face das possíveis alternativas.”
19
No seguinte teor: “Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora
ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma adminis-
trativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.

Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando
for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo propor-
cional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos
sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam
anormais ou excessivos.”
20
Sobre o tema, cf. MARQUES NETO, Floriano de Azevedo et al. Resposta aos
comentários tecidos pela Consultoria Jurídica do TCU ao PL 7.448/2017. Revista Brasileira
da Advocacia. vol. 9. ano 3. p. 289-312. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2018, em es-
pecial p. 293-296.
21
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 32. Edição.
São Paulo: Malheiros. 2014, p. 650.
22
SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. Uma crítica à tendência de
uniformizar com princípios o regime dos contratos públicos. R. de Dir. Público da Economia -
RDPE, Belo Horizonte, ano 11, n. 41, jan./mar. 2013, p. 63.

143
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

RIBEIRO, Mauricio Portugal; PRADO, Lucas Navarro; PINTO JUNIOR,


23

Mario Engler. Regime diferenciado de contratação: licitação de infraestrutura para Copa do Mun-
do e Olimpíadas. São Paulo: Atlas, 2012. p.78 e ss.

Na jurisprudência, o Tribunal de Contas da União (TCU), ao longo dos anos, pas-


24

sou a ser mais tolerante e aderente à diferenciação entre contratos de escopo e contratos
continuados, no que se refere à possibilidade de sua prorrogação mesmo após o término
do prazo contratual. Ainda assim, em diversos julgados, ressalta-se o caráter excepcio-
nal – e apenas após a análise do caso concreto – do acolhimento pelo TCU da tese que
diferencia os efeitos da extinção do prazo de contratos de obra. Portanto, pode-se afirmar
que a pacificação dessa longa controvérsia pela NLLC foi salutar.

Trata-se da entrega de um bem, de um produto intelectual, o fornecimento de


25

bens, a execução de uma obra – desde que seja uma conduta específica e definida, cf.
JUSTEN FILHO, op. cit., p. 946.
26
JUSTEN FILHO, op. cit., p. 946.

Para mais informações sobre o CREMA, vide: Instrução de serviço DNIT nº


27

07/2016. Disponível em https://www.gov.br/dnit/pt-br/central-de-conteudos/


instrucoes-normativas/instrucoes-de-servicos/2016/instrucao-de-servico-no-
-07-2016-colegiada-execucao-obras-crema-compressed.pdf. Acesso em 11 dez 2021.

No seguinte teor: “Art. 46. Na execução indireta de obras e serviços de enge-


28

nharia, são admitidos os seguintes regimes: (...) VII - fornecimento e prestação de


serviço associado.”

No seguinte teor: “Art. 6º Para os fins desta Lei, consideram-se: (...) XXXIV -
29

fornecimento e prestação de serviço associado: regime de contratação em que, além


do fornecimento do objeto, o contratado responsabiliza-se por sua operação, manu-
tenção ou ambas, por tempo determinado.”

Ainda que idealmente deva a Administração manter-se atenta a propostas que


30

possam levar a aditivos desnecessários.

Referências

BOUSTA, Rhita. Essai sur la notion de Bonne administration en droit public, L’Harmattan, 2010.

CONTI, José Mauricio. O planejamento orçamentário da Administração Pública no Brasil.


1ª ed. São Paulo: Blucher Open Access, 2020.

144
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

FREITAS, Juarez. Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Admi-


nistração Pública. 2ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.

GIACOMONI, James. Orçamento público. 17 ª ed. São Paulo: Atlas, 2017.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos:


Lei 8.666/1993. 16ª ed., 2ª tir., SP: RT, 2014.

MARQUES NETO, Floriano de Azevedo et al. Resposta aos comentários tecidos pela
Consultoria Jurídica do TCU ao PL 7.448/2017. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 9.
ano 3. p. 289-312. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2018.

MEIRELLES, Hely Lopes; BURLE FILHO, José Emmanuel. Execução do con-


trato administrativo. In: MEIRELLES, Hely Lopes; BURLE FILHO, José Emma-
nuel. Direito administrativo brasileiro. 42 ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 32. Edição.
São Paulo: Malheiros. 2014.

MINISTÉRIO DA DEFESA. Agência Força Aérea. Reaparelhamento: Brasil assina


contrato para aquisição de 36 caças Gripen NG. Força Aérea Brasileira, [S. l.], 27 out. 2014.
Disponível em: https://www.fab.mil.br/noticias/mostra/20483/REAPARELHA-
MENTO---Brasil-assina-contrato-para-aquisi%C3%A7%C3%A3o-de-36-ca%-
C3%A7as-Gripen-NG. Acesso em 11 dez 2020.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Nova Lei de Licitações e Contratos Administra-


tivos. Disponível via VitalSource Bookshelf, Grupo GEN, 2021.

OLIVEIRA, Weder de Oliveira. Curso de responsabilidade fiscal. Belo Horizonte:


Forum, 2013, v. 1.

RIBEIRO, Mauricio Portugal; PRADO, Lucas Navarro; PINTO JUNIOR, Ma-


rio Engler. Regime diferenciado de contratação: licitação de infraestrutura para Copa do Mundo e
Olimpíadas. São Paulo: Atlas. 2012.

RICHER, Laurent. Droit des Contrats Administratifs. 9 ª ed. [S. l.]: LGDJ, 2014.

SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. Uma crítica à tendência de


uniformizar com princípios o regime dos contratos públicos. R. de Dir. Público da Economia -
RDPE, Belo Horizonte, ano 11, n. 41, jan./mar. 2013.

145
O PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE ELEITORAL
E A APLICABILIDADE DA LEI FEDERAL Nº 14.356
DE 31 DE MAIO DE 2022
Alexandre Sampaio1

RESUMO
O presente trabalho pretende realizar um estudo sobre o Prin-
cípio da anterioridade eleitoral, abordando suas características e por
fim analisar a aplicabilidade da Lei Federal nº 14.356 de 31 de maio de
2022 em razão da sua entrada em vigor em ano eleitoral. A principal
fonte de pesquisa utilizada foi à jurisprudência construída pelo STF
na interpretação do art. 16 da Constituição Federal. Buscou-se ainda
pesquisa em fontes doutrinárias, sendo possível concluir que a produ-
ção de efeitos de inovações normativas em ano eleitoral somente sofre
incidência do art. 16 da CF de 1988 caso esta alteração seja suficiente
para afetar o processo eleitoral.
Palavras-chave: Princípio da Anterioridade Eleitoral. Art. 16 da
Constituição Federal. Lei Federal nº 14.356 de 31 de maio de 2022.
Aplicabilidade. Proteção do Processo Eleitoral.

ABSTRACT
The present work intends to carry out a study on the Princi-
ple of electoral anteriority, addressing its characteristics, verifying the
applicability of Federal Law No. 14,356 of May 31, 2022 due to the
1 Procurador do Estado do Amapá, Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Anhanguera e, em Direito
Processual Civil, pela Faculdade Damásio.

147
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

current election year. The main source of study used was the juris-
prudence constructed by the Supreme Court in the interpretation of
Article 16 of the Federal Constitution. Research was also sought in
doctrinal sources that focus on Constitutional and Electoral Law. Was
possible to conclude that the production of effects of normative inno-
vations in the election year only suffers the incidence of art. 16 of the
CF of 1988, if this change is sufficient to affect the electoral process.
Keywords: Principle of Electoral Anteriority. Art. 16 of the Fed-
eral Constitution. Federal Law No. 14,356 of May 31, 2022. Applica-
bility. Protection of the Electoral Process.

INTRODUÇÃO
Em virtude do ano de 2022 ser um ano eleitoral, submetido,
portanto, às limitações e regramentos da Lei Federal nº 9.504/1997
e demais normas pertinentes, nos fora encaminhada consulta acerca
da possibilidade de, ainda este ano, ser aplicada a Lei Federal nº
14.356 de em 31 de maio de 2022, em razão do princípio da anuali-
dade ou anterioridade eleitoral, resultando assim na inspiração para
o presente trabalho.
Os princípios possuem papel fundamental no direito, como
norte orientador do intérprete e elemento sistematizador das normas
jurídicas. Os princípios podem ser classificados como explícitos ou im-
plícitos, a depender de sua previsão expressa em norma, quando então
é dito que ocorre a sua positivação. José Jairo Gomes considera que
“Com sua positivação, disponibiliza-se ao juiz uma relevante referên-
cia, ou seja, um dispositivo no qual poderá conectar imediatamente a
decisão, justificando-a e conferindo-lhe legitimidade.”1
Porém, além da função hermenêutica e sistematizadora do orde-
namento jurídico, o que já eleva sobremaneira a importância dos princí-
pios, não podemos olvidar de valiosa lição de Paulo Bonavides, pontuan-
do o mestre constitucionalista de que a maior conquista dos princípios foi

148
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

o reconhecimento de sua força normativa: “observa-se um defeito capital


em todos esses conceitos de princípio: a omissão daquele traço que é qua-
litativamente o passo mais largo dado pela doutrina contemporânea para
caracterização dos princípios, a saber, o traço de sua normatividade.”2
O princípio da anterioridade ou anualidade eleitoral está devi-
damente positivado no art. 16 da Constituição Federal, representando
uma limitação na produção de efeitos de normas que venham impac-
tar o processo eleitoral, podendo tal norma inovadora ser aplicada à
eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.
Sem nenhuma pretensão de esgotar todos os pormenores ou
fixar um posicionamento final sobre assunto de tamanha relevância,
buscamos então concentrar nossos esforços na jurisprudência do STF
sobre o tema, onde fora possível observar que nossa Corte Maior de-
lineou algumas características importantes ao princípio da anteriori-
dade eleitoral, assumindo este inclusive o status de cláusula pétrea e
garantia fundamental do cidadão, dada sua importância na defesa do
Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição de 1988.
Por fim, nossa Excelsa Corte, ao conceder cautelar nas ADIs
7182 e 7178, por maioria, decidiu pela suspensão dos efeitos da Lei
Federal nº 14.356 de 31 de maio de 2022, fato que enriqueceu o deba-
te jurídico sobre a aplicação do princípio da anterioridade eleitoral e
nos permite delinear com mais segurança os contornos desse impres-
cindível instituto à normalidade do processo eleitoral brasileiro.

 A ESTRUTURA DA LEI FEDERAL Nº 14.356 DE


D
31 DE MAIO DE 2022
Inicialmente devemos descrever a estrutura básica da Lei Fe-
deral nº 14.356 de 31 de maio de 2002, o que nos levará a deduzir que
seu objetivo é modificar duas leis vigentes, onde o seu art. 1º já aponta
os diplomas em questão, in verbis:

149
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

“Art. 1º Esta Lei altera a Lei nº 12.232, de 29 de abril de 2010,


para dispor sobre as contratações de serviços de comunicação
institucional, e a Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, para
dispor sobre gastos com publicidade dos órgãos públicos no pri-
meiro semestre do ano de eleição.”

A primeira modificação legislativa se deu na Lei nº 12.232 de


29 de abril de 2010, que trata das normas gerais para licitação e con-
tratação pela administração pública de serviços de publicidade presta-
dos por intermédio de agências de propaganda. Transcrevemos o art.
2º da Lei 14.356/2022:

“Art. 2º A Lei nº 12.232, de 29 de abril de 2010, passa a vigorar


acrescida dos seguintes arts. 20-A e 20-B:

“Art. 20-A. A contratação de serviços de comunicação institu-


cional, que compreendem os serviços de relação com a impren-
sa e de relações públicas, deverá observar o disposto no art. 5º
desta Lei.

§ 1º Aplica-se o disposto no caput deste art. à contratação dos


serviços direcionados ao planejamento, criação, programação e
manutenção de páginas eletrônicas da administração pública,
ao monitoramento e gestão de suas redes sociais e à otimização
de páginas e canais digitais para mecanismos de buscas e produ-
ção de mensagens, infográficos, painéis interativos e conteúdo
institucional.

§ 2º O disposto no caput e no § 1º deste art. não abrange a contra-


tação de espaços publicitários e de mídia ou a expansão dos efeitos
das mensagens e das ações de comunicação, que observarão o dis-
posto no caput do art. 2º desta Lei.

150
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

§ 3º O disposto no caput não exclui a possibilidade de os servi-


ços descritos no caput e no § 1º deste art. serem prestados pelos
servidores dos respectivos órgãos e entidades da administração
pública.”

“Art. 20-B. Para fins desta Lei, os serviços de comunicação insti-


tucional compreendem os serviços de relações com a imprensa
e de relações públicas, assim definidos:

I - relações com a imprensa: ação que reúne estratégias organi-


zacionais para promover e reforçar a comunicação dos órgãos
e das entidades contratantes com seus públicos de interesse, por
meio da interação com profissionais da imprensa; e

II - relações públicas: esforço de comunicação planejado, coeso


e contínuo que tem por objetivo estabelecer adequada percep-
ção da atuação e dos objetivos institucionais, a partir do estí-
mulo à compreensão mútua e da manutenção de padrões de
relacionamento e fluxos de informação entre os órgãos e as en-
tidades contratantes e seus públicos de interesse, no Brasil e no
exterior.”

A segunda alteração ocorre por força do art. 3º Lei nº


14.356/2022, que modifica o inciso VII e § 14 do art. 73 da Lei das
Eleições, modificando regra relacionada à conduta vedada ao agente
público em ano eleitoral, no caso, gasto com propaganda institucio-
nal. Percebemos que o parâmetro atual exigido pelo legislador não
é mais a realização da despesa, ou seja, sua liquidação, mas ago-
ra basta o seu simples empenho, que é o ato que cria a obrigação
de pagamento, mas não necessariamente o realiza. Assim, para se
estabelecer o limite de gasto com propaganda institucional deverá
ser observada a média empenhada e não cancelada, e não mais as

151
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

médias dos gastos realizados efetivamente, conforme constava da re-


dação anterior.
Descritas as modificações advindas da Lei Federal nº
14.356/2022, passaremos a análise do denominado Princípio da ante-
rioridade ou anualidade eleitoral e sua incidência sobre a as mudanças
legislativas advindas com a mencionada lei.

 O PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE OU
D
ANUALIDADE ELEITORAL.
O Princípio da anterioridade ou anualidade eleitoral está posi-
tivado em nosso ordenamento jurídico nos termos do art. 16 de nossa
Constituição Federal, cujo texto segue abaixo:

“Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor


na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocor-
ra até um ano da data de sua vigência.”

Acreditamos que o dispositivo constitucional acima transcrito


merece ser interpretado sob o enfoque da LINDB (Lei de Introdução
das Normas do Direito Brasileiro – Decreto-Lei nº 4.657 de 1942), que
em seu art. 1º determina:

“Art. 1o Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar


em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente
publicada.”

Por regra, todas as leis de nosso País, salvo disposição em


contrário, somente entram em vigor quarenta e cinco dias depois de

152
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

oficialmente publicada. O mencionado art. 16 da nossa CF/1988,


em uma leitura rápida, nos leva a entender que as leis que tratarem
do processo eleitoral não estariam sujeitas aos regramentos da LIN-
DB, haja vista que o constituinte já determina que a lei que alterar
o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação,
mas não produzirá efeitos até um ano da data de sua vigência.
Acreditamos que a lei que alterar o processo eleitoral deverá
seguir as regras da LINDB no tocante à sua vigência, ou seja, deverá
respeitar a regra geral dos quarenta e cinco dias, mas, que por costume
no emprego da técnica legislativa, normalmente todas as leis aprova-
das trazem a cláusula de entrada em vigor na data de sua publicação,
como ocorre inclusive com a Lei Federal nº 14.356 de 31/05/2022 em
seu art. 5º.
Em verdade, não haveria necessidade do legislador consti-
tuinte regular a vigência das leis que versarem sobre o processo
eleitoral, pois o que de fato importa são os efeitos que tais normas
possam produzir no pleito eleitoral. Desta forma, bastaria que a re-
dação para do art. 16 da CF/1988 determinasse que a lei que alterar
o processo eleitoral não se aplicará à eleição que ocorra até um ano da data de
sua vigência, ficando as regras de vigência da nova lei regidas pela
LINDB, que por força de adoção costumeira na técnica legislativa,
normalmente é empregada a cláusula de que “esta lei entra em
vigor na data de sua publicação”.
O princípio da anterioridade eleitoral caracteriza-se pela cria-
ção de uma espécie de modulação dos efeitos da lei que interferir no
processo eleitoral com relação ao pleito eleitoral que ocorrer até um
ano da data de sua entrada em vigor. A nítida finalidade do princípio
da Anterioridade eleitoral é proteger o processo eleitoral dos casuís-
mos que a disputa pelo poder pode ocasionar. Ao comentar o dispo-
sitivo constitucional, lecionam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de
Andrade Nery:

153
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

“Para evitar-se o casuísmo de período que antecede as eleições,


ou seja, de pré-campanha praticamente em andamento, as mo-
dificações na legislação eleitoral só podem ser aplicadas às elei-
ções que ocorram depois de um ano da entrada em vigor da
nova legislação”3

Ao explicar a finalidade do art. 16 da Constituição, Marcilio


Nunes Medeiros lembra que o dispositivo deve ser aplicado inclusive
em face do poder constituinte derivado:

“Com a finalidade de evitar surpresas ao eleitorado e aos


candidatos a cargos eletivos, assim como para impedir ca-
suísmos dirigidos contra determinados candidatos ou parti-
dos políticos, a Constituição determina que qualquer altera-
ção legislativa sobre o processo eleitoral não seja aplicada ao
pleito que se realize em um no. O princípio deve ser obser-
vado ainda que a alteração sobre o processo eleitoral decorra
de Emenda Constitucional.” 4

O jurista Marcelo Novelino, ao tratar do art. 16 de nossa


Carta Maior, define o Princípio em comento como uma hipótese
de eficácia diferida:

“A Constituição estabelece que toda lei modificativa do processo


eleitoral, publicada no período de um ano antes das eleições,
deve ter sua eficácia adiada para o pleito subsequente (eficácia
diferida).” 5

154
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

O professor Uadi Lâmmego Bulos nos lembra que “muito mais


que uma norma, a anualidade eleitoral é um princípio, consagrado no art. 16 da
Lex Mater.” 6 Essa dimensão da força normativa do art. 16 da CF/1988,
apontada pelo ilustre constitucionalista, nos remete a conclusão de que
a anterioridade eleitoral, como todos os princípios constitucionais, é
norma autoaplicável. Outro ponto importante realçado pelo professor
sobre a redação do art. 16 da CF/1988 é que “o termo lei, que abre o
preceptivo em epígrafe, foi empregado no sentido lato, abrangendo todas as espécies
normativas do art. 59 da Constituição.”7 Desta maneira, todas as espécies
normativas estão sujeitas a se submeter ao diferimento de efeitos caso
venha alterar o processo eleitoral, inclusive é importante registrar que
o STF reconhece que alterações em jurisprudência consolidada po-
dem sofrer a incidência do princípio da anterioridade eleitoral:

“1. Em relação à alegada violação do art. 16 da Constituição Fe-


deral, assentou-se, no acórdão recorrido, que a hipótese não atrai a
aplicação do princípio da anualidade, uma vez que não cuidou de
alteração da jurisprudência, mas de evolução do entendimento do
Tribunal em relação à aplicação das inelegibilidades em questão. A
petição de recurso extraordinário limitou-se a sustentar que houve
alteração do entendimento fixado em hipóteses semelhantes. Nos
termos da Súmula nº 283 do STF, “é inadmissível o recurso ex-
traordinário, quando a decisão recorrida não abrange todos eles”.8

O princípio da anterioridade eleitoral é aplicado em prestígio


à segurança jurídica ou da vedação da não surpresa, direcionado à
preservação do processo eleitoral, consoante podemos compreender
do julgado do STF que abaixo transcrevemos:

155
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

“A exigência da anterioridade da lei eleitoral (art. 16 da CF/88)


consubstancia marco temporal objetivo que tem por escopo im-
pedir mudanças abruptas na legislação eleitoral, como forma de
assegurar o devido processo legal eleitoral, o direito das mino-
rias e a paridade de armas na disputa eleitoral. O princípio da
anterioridade – ou da anualidade – da lei eleitoral é um desdo-
bramento do postulado da segurança jurídica.” 9

O Ministro Alexandre de Moraes, procurando ressaltar a rele-


vância do princípio da anterioridade eleitoral, faz menção ao voto da
Ministra Carmen Lúcia em sua clássica obra sobre Direito Constitu-
cional, destacando importantes finalidades do instituto:

“Nesse sentido, salientou Carmem Lúcia, em relação às al-


terações da legislação eleitoral com desrespeito ao art. 16 da
Constituição Federal, que: “as modificações no período” –
no período de 12 meses que antecedem a abertura do proces-
so – “agridem assim: a) à segurança jurídica do cidadão que
não tem ciência das normas que prevalecem no processo; b)
à segurança jurídica do interessado em se candidatar, que
não sabe a que norma se submeter; c) à certeza dos órgãos do
judiciários que cuidam especificamente da legislação eleitoral,
que pode se ver às voltas com novas normas para as quais ha-
verão de emitir resoluções que densifiquem e esclareçam a sua
forma de aplicação.” 10

156
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Da aplicabilidade da Lei Federal nº 14.356 de 31 de


maio de 2022 e a alteração das condutas vedadas pela Lei
9.504/1997

As condutas vedadas aos agentes públicos pela Lei nº


9.504/1997, nas palavras de Joel José Cândido, “visa a proteger e tornar
eficaz o Princípio Igualitário entre partidos e candidatos, assim como resguardar a
probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, a normalidade
e a legitimidade das eleições” 11. Acreditamos que não é errôneo afirmar
que o tópico da Lei das Eleições que versa sobre as condutas vedadas
aos agentes públicos possui função essencial no processo eleitoral.
Definida a relevância das condutas vedadas no processo elei-
toral, outro aspecto extremamente importante no enfrentamento so-
bre o tema é compreender o sentido e alcance da expressão “processo
eleitoral” contida no art.16 de nossa Constituição. Essa definição é
fundamental, pois nossa Corte Maior já decidiu em algumas oportuni-
dades no sentido de que não havendo alteração no processo eleitoral, a
entrada em vigor de nova norma não sofre inibição de seus efeitos em
razão da incidência do Princípio da anterioridade eleitoral, embora
venha veicular matéria atinente às eleições, senão vejamos:

“Lei 11.300/2006 (minirreforma eleitoral). Alegada ofensa ao


princípio da anterioridade da lei eleitoral (CF, art. 16). Inocor-
rência. Mero aperfeiçoamento dos procedimentos eleitorais.
Inexistência de alteração do processo eleitoral. Proibi-
ção de divulgação de pesquisas eleitorais quinze dias antes do
pleito. Inconstitucionalidade. Garantia da liberdade de expres-
são e do direito à informação livre e plural no Estado Democrá-
tico de Direito.”12 (grifo nosso).

157
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

“Município: criação em ano de eleições municipais: não in-


cidência do art. 16 da CF. No contexto normativo do art. 16,
CF – que impõe a vacatio de um ano às leis que o alterem
–, processo eleitoral é parte de um sistema de normas
mais extenso, o direito eleitoral, matéria reservada privativa-
mente à competência legislativa da União; logo, no sistema
da Constituição de 1988, onde as normas gerais de alçada
complementar, e a lei específica de criação de municípios foi
confiada aos Estados, o exercício dessa competência estadual
explícita manifestamente não altera o processo eleitoral, que
é coisa diversa e integralmente da competência legislativa fe-
deral.” 13 (grifos nossos).

O jurista Rodrigo López Zilio faz uma distinção que aclara o


entendimento sobre os limites do conceito de processo eleitoral, de-
fendendo que o termo deve ser observado sob duas concepções, uma
ampla e outra restrita, vejamos:

“Neste ponto, é cabível uma distinção: i) processo eleitoral em


sentido amplo é o previsto no art. 16 da CF e se consubstancia
no princípio da anterioridade ou anualidade eleitoral, tendo iní-
cio no prazo de um ano antes da eleição; ii) processo eleitoral
em sentido estrito ou microprocesso eleitoral equivale ao início
da campanha eleitoral propriamente dita e se inicia a partir das
convenções partidárias; iii) ano eleitoral é expressão adotada
para abranger condutas praticadas a partir de 01º de janeiro do
ano em que se realizam as eleições.” 14

158
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Encontramos manifestação em site jurídico especializado, da


lavra do Dr. Márcio André Lopes Cavalcante, Juiz Federal integrante
do pleno do TRE/AM no biênio 2020/2022, que tratando a respeito
da nova Lei Federal nº 14.356 de 31/05/2022, reconhece interferên-
cia no processo eleitoral pela nova norma, em razão de se realizar
mudanças nas regras das condutas vedadas aos agentes públicos, inserin-
do desta maneira as regras do art. 73 da Lei 9504/1997 no conceito de
processo eleitoral para o fim de aplicar o princípio da anualidade, in verbis:

“Conforme já explicado, as condutas vedadas do art. 73 da Lei nº


9.504/97 têm por objetivo assegurar a igualdade de oportunidades entre
os candidatos, de forma a evitar que algum agente público possa se valer da
máquina pública para impulsionar sua candidatura ou a de terceiros. Desse
modo, a alteração em uma dessas vedações, por implicar potencial desequilí-
brio do pleito e afronta à isonomia, precisa respeitar o princípio da anuidade
ou anterioridade eleitoral.

Além disso, imaginemos a situação em que um agente público, candidato


à reeleição, tenha efetuado despesas significativas com propaganda institucional
apenas no primeiro semestre dos três anos anteriores ao pleito. Ao adotar a média
mensal dos últimos três anos (todos os meses), a nova fórmula de cálculo reduzirá
significativamente esse limite.

Nesse caso, se aplicada a nova lei, o agente público que, no início do ano,
empenhou despesas com observância dos limites previstos na lei revogada
poderia, em tese, ser responsabilizado por conduta vedada, caso superado o
limite imposto pela lei nova (que ele até então sequer conhecia).” 15

De fato, as condutas vedadas do art. 73 da Lei das Eleições


direcionada aos agentes públicos, tem uma finalidade inequívoca de
proteger o processo eleitoral, restando indiscutível que novas normas

159
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

não podem trazer nenhum abalo ao processo eleitoral já em curso,


sob pena de se admitir que essas novas regras possam interferir direta
ou indiretamente no processo eleitoral que vai reger as eleições que se
aproximam. Nesse sentido extraímos trecho do voto do Min. Sepúlve-
da Pertence ao julgar a ADI 2.628:

“(...) por força do art. 16 da Constituição, inovação salutar ins-


pirada na preocupação da qualificada estabilidade e lealdade
do devido processo eleitoral: nele a preocupação é especialmen-
te de evitar que se mudem as regras do jogo que já começou,
como era frequente, com os sucessivos “casuísmos”, no regime
autoritário.” 16

Para se aplicar o princípio da anterioridade previsto no art. 16


da Constituição Federal é imprescindível que a norma acarrete, pelo
menos potencialmente, interferência no processo eleitoral, bem como
revele algum grau de casuísmo capaz de prejudicar a normalidade do
pleito eleitoral que se avizinha. O Ministro Gilmar Mendes e o jurista
Paulo Gustavo Gonete Branco, extraindo da jurisprudência do STF,
apontam os parâmetros essenciais para interpretação do art. 16 da
Constituição Federal, que pela didática e profundidade ao abordar o
assunto, não poderíamos deixar de registrar:

“1) o vocábulo “lei” contido no texto do art. 16 da Consti-


tuição deve ser interpretado de forma ampla, para abranger
a lei ordinária, a lei complementar, a emenda constitucional e
qualquer espécie normativa de caráter autônomo, geral e abs-
trato, emanada do Congresso Nacional no exercício da compe-
tência privativa da União para legislar sobre direito eleitoral,
prevista no art. 22, I, do texto constitucional;

160
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

2) a interpretação do art. 16 da Constituição deve levar em con-


ta o significado da expressão “processo eleitoral” e a teleologia
da norma constitucional.

2.1) o processo eleitoral consiste num complexo de atos que


visam a receber e transmitir vontade do povo e que pode
ser subdividido em três fases: a) a fase pré-eleitoral, que vai
desde a escolha a apresentação das candidaturas, que com-
preende o início da propaganda eleitoral; b) a fase eleitoral
propriamente dita, que compreende o início, a realização e o
encerramento da votação; c) fase pós-eleitoral, que se inicia
com a apuração e a contagem de votos e finaliza com a diplo-
mação dos candidatos;

2.2) a teleologia da norma constitucional do art. 16 é a de impe-


dir a deformação do processo eleitoral mediante alterações nele
inseridas de forma casuística e que interfiram na igualdade de
participação dos partidos políticos e seus candidatos.

3) o princípio da anterioridade eleitoral, positivado no art. 16


da Constituição, constitui uma garantia fundamental do cida-
dão-eleitor, do cidadão-candidato e dos partidos políticos, que,
qualificada como cláusula pétrea, compõe o plexo de garantias
do devido processo legal eleitoral e, dessa forma, é oponível ao
exercício do poder constituinte derivado.”17

A propaganda institucional possui relevante papel na for-


mação da opinião pública, tanto que ao longo dos anos vem so-
frendo especial atenção por parte da jurisprudência e do legislador
na criação de regras para o seu controle, pois indiscutivelmente
ela pode interferir no processo eleitoral em andamento. Mudanças

161
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

nas regras relacionadas com a propaganda institucional podem se


revelar como uma estratégia política para interferir no despenho
de determinado grupo político no pleito eleitoral, alterando a nor-
malidade das eleições. Assim, seja restringindo ou aumentando o
uso da propaganda institucional, acreditamos que as mudanças nas
regras a respeito das mesmas devem observar a proteção jurídica
determinada pelo art. 16 da Constituição Federal.

Da concessão de medida cautelar na adi 7178 e 7182


– debate sobre o alcance da expressão “Processo
Eleitoral” no STF
Dois partidos políticos ingressaram com duas Ações Declara-
tórias de Inconstitucionalidade (ADI 7178 e 7182) argumentando em
ambas que a Lei Federal nº 14.356/2022 não poderia produzir seus
efeitos no pleito eleitoral do corrente ano, com fundamento no art.
16 da Constituição Federal. Por possuírem o mesmo objeto, as duas
ações foram apreciadas em conjunto e a ementa do julgado que defe-
riu parcialmente a medida cautelar foi publicada em 23/08/2022 com
a mesma redação, que abaixo citamos:

“CONSTITUCIONAL. ELEITORAL. MEDIDA CAUTE-


LAR EM AÇÃO DIRETA. LEI 14.356/2022. ALTERAÇÃO
DO ART. 73, VII, DA LEI DAS ELEIÇÕES. LIMITES AO
GASTO PÚBLICO COM PROPAGANDA INSTITUCIO-
NAL EM ANO ELEITORAL. MODIFICAÇÃO DOS CRI-
TÉRIOS E EXCLUSÃO DESSES LIMITES DAS AÇÕES E
PROGRAMAS RELACIONADOS AO ENFRENTAMENTO

162
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

À PANDEMIA DO COVID-19. PRINCÍPIO DA ANUALIDA-


DE ELEITORAL (ART. 16 DA CF). ALTERAÇÃO

QUE PODE REPERCUTIR NAS CONDIÇÕES DE DIS-


PUTA ELEITORAL. MEDIDA CAUTELAR PARCIAL-
MENTE DEFERIDA.

1. A expansão do gasto público com publicidade institucional


às vésperas do pleito eleitoral pode configurar desvio de finali-
dade no exercício de poder político, com reais possibilidades de
influência no pleito eleitoral e perigoso ferimento a liberdade do
voto (CF, art. 60, IV, b); ao pluralismo político (CF, art. 1º, V e
parágrafo único), ao princípio da igualdade (CF, art. 5º, caput) e
a moralidade pública (CF, art. 37, caput).

2. Medida cautelar parcialmente deferida para conferir inter-


pretação conforme a Constituição à Lei 14.356/2022 no senti-
do de que, por força do princípio da anterioridade eleitoral (art.
16 da CF), a mesma não produz efeitos antes do pleito eleitoral
de outubro de 2022.”18

Na análise do pleito cautelar, podemos observar que o debate


passou inevitavelmente pela extensão e definição da expressão “pro-
cesso eleitoral”. Ao fim do julgamento prevaleceu a tese de que o art.
16 da Constituição ao tratar do processo eleitoral adota um concei-
to amplo, alcançando assim as regras contidas no art. 73 da Lei nº
9504/1997 (Leis das Eleições).
Transcreveremos trechos de votos divergentes na ADI 7178,
para demonstrar o debate enfrentando por nossa Corte Suprema ao
tratar do tema e com isso enriquecer o presente trabalho e as reflexões
que almejamos.

163
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

O exmo. Sr. Ministro Relator Dias Toffoli, em juízo preliminar,


entendeu que as condutas vedadas não estariam no conceito de pro-
cesso eleitoral:

“Dessa perspectiva, o regime das condutas vedadas, a meu ver,


escapa aos institutos que integram o processo eleitoral, estrutu-
rado em atos e fases preordenadas e voltadas para o pleno exer-
cício dos direitos políticos, desdobrado na capacidade eleitoral
ativa e passiva.”

Adotando posicionamento mais abrangente ao processo eleito-


ral, citamos os votos do exmo. Sr. Min. Edson Fachin e exmo. Sr. Min.
Alexandre de Moraes, respectivamente:

“Ao meu modo de ver, o processo eleitoral é composto por


atos da fase pré-eleitoral que o integram e não se resume às
convenções partidárias e à escolha formal de candidatos. Tal
compreensão é constitucionalmente adequada e visa dar a
máxima efetividade aos direitos fundamentais políticos, ao
princípio democrático e ao postulado do Estado Democrá-
tico de Direito. Segundo esse entendimento, o processo elei-
toral deve ser concebido de forma ampla, em conformidade
com a democracia substantiva instituída pela Constituição
Federal de 1988. (...) Conforme tais entendimentos, leis que
modificam as regras a respeito da propaganda institucional
de todos os entes da federação em ano de eleições podem,
em tese, alterar as regras do processo eleitoral. No presente
caso, houve alteração inconstitucional das regras do processo
eleitoral pela Lei nº 14.356/2022.”

164
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

“É que, uma vez que o conteúdo impugnado interage com


normas proibitivas que tutelam a idoneidade e competitivi-
dade do processo eleitoral – como a limitação com publicida-
de institucional, que tendem a favorecer os candidatos que se
encontram no exercício de mandatos executivos – o mesmo
demonstra inequívoca aptidão para (a) romper a igualdade
de participação dos partidos políticos ou candidatos no pro-
cesso eleitoral, (b) produzir deformação apta a afetar a nor-
malidade das eleições e (c) introduzir elemento perturbador
do pleito...”

Pelo exposto, podemos concluir que o STF privilegia a adoção


de um sentido amplo ao conceito de processo eleitoral contido no art.
16 da Constituição Federal, conferindo assim maior abrangência na
aplicabilidade do princípio da anualidade ou anterioridade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a análise da jurisprudência do STF a respeito do princípio
da anualidade ou anterioridade eleitoral e de posicionamentos doutriná-
rios sobre o tema, podemos fazer as seguintes conclusões a respeito do
referido princípio e da aplicabilidade da Lei nº 14.356 de 2022:
i. Não há impeditivo para que no ano de eleições sejam san-
cionadas leis que alterem o processo eleitoral, estas entrarão em vigor
conforme os regramentos determinados pela LINDB, mas somente
poderão produzir efeitos na forma definida pelo art. 16 da Constitui-
ção Federal;
ii. A primeira mudança trazida pela Lei Federal nº
14.356/2022, relacionada com as normas gerais para licitação e con-
tratação pela administração pública de serviços de publicidade presta-
dos por intermédio de agências de propaganda, em nosso sentir, não

165
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

causa interferência no processo eleitoral, não sofrendo a inibição de


efeitos jurídicos determinada pelo art. 16 da CF.
iii. A segunda alteração normativa produzida pela Lei Fede-
ral nº 14.356/2022, que modifica regras previstas no art. 73 da Lei
Federal nº 9.504/1997, por força do princípio da anterioridade elei-
toral, apesar de entrarem em vigor, somente poderão produzir efeitos
nas próximas eleições, ou seja, não se aplica ao pleito de 2022, pois
causam impacto no processo eleitoral. Restando inaplicável as regras
novas, deverão ser observados os dispositivos legais revogados, pois es-
tes ainda produzirão efeitos no corrente ano eleitoral até que as novas
regras possam produzir efeitos após o prazo firmado pelo art. 16 da
Constituição Federal.

166
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Notas
1
GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. Belo Horizonte: Ed Del Rey, 2010. p.28.
2
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Malheiros.
2020. p. 262
3
JUNIOR, Nelson Nery. NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Co-
mentada e Legislação Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 479.
4
MEIDEIROS, Marcílio Nunes. Legislação Eleitoral Comentada e Anotada.
São Paulo: Juspodium, 2021. p. 92.
5
NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional. Salvador: Ed. Juspodium,
2018. p. 572.
6
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2018.
p. 918.
7
BULOS, Op.Cit.
8
STF - AGR - 1320741, Relator: DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento:
25/10/2021, Data de Publicação: 13/12/2021.
9
STF. Plenário. ADI 6359 Ref-MC/DF, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em
14/5/2020.
10
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2011. p. 283.
11
CÂNDIDO, Joel José. Direito eleitoral brasileiro. São Paulo: Edipro, 2006. p. 516.
12
STF. ADI 3.741, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 6-9-2006, P, DJ de 23-2-2007.
13
STF. ADI 718, rel. min. Sepúlveda Pertence, j. 5-11-1998, P, DJ de 18-12-1998.
14
ZILIO, Rodrigo López. Direito Eleitoral. São Paulo: Juspodium, 2022. p.354.
15
Fonte:(https://www.dizerodireito.com.br/2022/06/comentarios-lei-
-143562022-como-ficam-os.html) Pesquisado em 23 de junho de 2022.
16
Apud. MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonete, Curso de
Direito Constitucional. 14ª edição. Saraiva. p. 878.
17
Obra citada. p. 882.
18
STF. ADI 3.741, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 6-9-2006, P, DJ de 23-2-2007

Referências
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Malheiros, 35ª ed. 2020.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 11ª ed. 2018.
CÂNDIDO, Joel José. Direito eleitoral brasileiro. São Paulo: Edipro, 12ª ed. 2006.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Comentários à Lei 14.356/2022: como
ficam os gastos com publicidade dos órgãos públicos no primeiro semestre do ano de
eleição. Site www.dizerodireito.com.br. Disponível no website:

167
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

https://www.dizerodireito.com.br/2022/06/comentarios-lei-143562022-como-
-ficam-os.html Acesso em 23/06/ 2022.
GOMES. José Jairo. Direito Eleitoral. Belo Horizonte: Del Rey, 5ª ed. 2010
JUNIOR, Nelson Nery. NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Co-
mentada e Legislação Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 6ª ed. 2016.
MEIDEIROS, Marcílio Nunes. Legislação Eleitoral Comentada e Anotada. São Paulo:
Juspodium, 3ª ed. 2021.
MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonete, Curso de Direito
Constitucional. Saraiva. 14ª ed.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 27ª ed. 2011.
NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional. Salvador: Juspodium, 13ª ed. 2018.
ZILIO, Rodrigo López. Direito Eleitoral. São Paulo: Juspodium, 8ª ed. 2022. p. 354.

168
POR QUE A COMUNIDADE LGBTQIA+ NÃO
GOZA DO ESTADO DE DIREITO?
CAMINHANDO SOBRE O FIO DA NAVALHA
Paulo Roberto Fontenele Maia1

RESUMO
O artigo analisa o estado democrático de direito sob a perspec-
tiva da (não) positivação dos direitos da comunidade LGBTQIA+ no
Brasil. Em que pese os avanços no poder judiciário acerca dos direitos
homoafetivos, ainda não há norma positiva no ordenamento pátrio
que os assegure. Importa destacar que a ausência de estatuto próprio
ao espelho do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Estatuto
da Pessoa Idosa, Estatuto do Índio, Estatuto da Igualdade Racial e
tantas outras legislações que socorrem grupos minoritários, relega ao
grupo LGBTQIA+ uma posição de máxima vulnerabilidade social.
É sabido que todo grupo minoritário tem larga dificuldade de tirar
qualquer lei antidiscriminatória do papel em razão da resistência es-
trutural do sistema de opressões fortemente arraigado no seio social.
Nessa mesma lógica, é extremamente mais difícil defender “direitos”
quando estes são apenas convicções momentâneas emanadas do Poder
Judiciário. A exemplo desse frágil alicerce, assistiu-se, recentemente, a
1 Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza (2003), especialização em Direito Processual Civil pela Universi-
dade Estadual do Ceará (2006), Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Administrativo pela Universidade Anhanguera
- UNIDERP (2013) e Pós-Graduação em Direito Público com ênfase em gestão pública pela Faculdade Damásio de
Jesus (2020). 3 Mestrando no Programa de Pós-Graduação UniChristus (2021-2023) Atualmente é Procurador do Esta-
do do Amapá. Tem experiência na área de gestão pública, exerceu o cargo de Procurador Chefe Central de Licitação
(2016-2019). Atuou ainda como Procurador Chefe da Procuradoria Administrativa durante o período de 2010 a 2014.
Atualmente exerce o cargo de Procurador Adjunto na Secretaria de Estado da Educação. Tem experiência na área
de Direito Público, atuando nos seguintes temas : Licitação, Servidor Público, Contratos e Convênios, Organização
Administrativa, Concessões e Permissões de Serviço Público, Regime Jurídico Próprio de Previdência (RPPS) e Direito
Financeiro. Atua ainda como facilitador da Escola de Administração Pública do Estado (EAP) ministrando cursos de
Processo Disciplinar, Licitação e Orçamento Público.

169
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Suprema Corte Americana mudar radicalmente o entendimento a res-


peito do direito ao aborto independentemente dos critérios exigidos na
teoria dos precedentes judiciais, mas tão somente em virtude de subs-
tituição de membros da corte. Nesse contexto, convém investigar qual
a segurança jurídica das prerrogativas conquistadas pela comunidade
LGBTQIA+ diante do ativismo de grupos conservadores denomina-
dos contra gênero. Para tanto, utilizou-se o método dedutivo, por meio
de análise bibliográfica e documental, com a abordagem descritiva e
a discussão do problema realizada de maneira qualitativa. Como re-
sultado, verificou-se que o dissenso produzido na sociedade sobre os
direitos LGBTQIA+ através do discurso de ódio, difamação e pânico
moral é prejudicial ao estado democrático de direito, além de promover
retrocessos no âmbito jurisprudencial.

Palavras-chave: LGBTQIA+. Estado democrático de direito.


Ativismo. Contra gênero. Pânico moral.

ABSTRACT
The article analyzes the democratic state of law from the per-
spective of the rights of the LGBTQIA+ community in Brazil. Despite
the advances in the Judiciary regarding sexual rights, there is still no
positive rule in the national order that guarantees them. It is important
to note that the absence of a specific statute mirroring the statute of chil-
dren and adolescents, the statute of the elderly, the statute of the Indian,
the statute of racial equality, and so many other legislations that help
minority groups, relegates the LGBTQIA+ group to a position of max-
imum social vulnerability. Without demagoguery, it is well known that
every minority has great difficulty in getting any anti-discrimination law
out of paper due to the structural resistance of the system of oppressions
strongly rooted in the social bosom. In this same logic, it is extremely dif-
ficult to defend “rights” when these are just momentary convictions em-
anating from the Judiciary. As an example of this fragile foundation, we

170
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

have recently seen the US Supreme Court radically change the under-
standing of the right to abortion regardless of the criteria required in the
theory of judicial precedents, but only because of the replacement of
members of the court. In this context, it is worth investigating the legal
certainty of the prerogatives conquered by the LGBTQIA+ community
in the face of the activism of conservative groups called “against-gen-
der”. For that, the deductive method was used, through bibliographic
and documental analysis, with a descriptive approach and the discussion
of the problem carried out in a qualitative way. As a result, it was found
that the dissent produced in society about LGBTQIA+ rights through
hate speech, defamation and “moral panic” is harmful to the democrat-
ic rule of law, in addition to promoting setbacks in the jurisprudential
scope.

Keywords: LGBTQIA+. Democratic state. Activism. Against


gender. Moral panic.

INTRODUÇÃO
Quando se fala em direitos da comunidade LGBTQIA+ no Bra-
sil, refere-se, basicamente, aos direitos conquistados por ações no Poder
Judiciário, a maioria no Supremo Tribunal Federal (STF). As Casas Le-
gislativas municipais, estaduais e federais pouco se esforçaram para pautar
e discutir o tema. Embora o movimento organizado LGBTQIA+ esteja
presente e atuante nessas esferas, encontra muita dificuldade para discutir
e aprovar projetos que tratam de direitos da comunidade.

É imprescindível o relato do diretor-presidente do Grupo de


Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS), Paulo Iot-
ti, para reflexão: “O Congresso não quer, mas o movimento LGBT-
QIA+ está lá sempre tentando e fazendo a luta política, concomitante
à luta jurídica perante o STF.”1

171
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

É exatamente nesse cenário de negação do debate democrá-


tico que se desenvolve a presente análise. O objetivo é evidenciar a
vulnerabilidade social do grupo LGBTQIA+ pela omissão proposital
do poder legislativo na construção de garantias positivas, que protejam
esse grupo de qualquer tipo de preconceito ou discriminação. Urge
ampliar o conceito de democracia, sob pena de transformar tal regi-
me tão somente numa tirania da maioria. A democracia existe para
possibilitar a coexistência dos diferentes. Mais do que isso, serve para
assegurar a sobrevivência das minorias.

Há pouco mais de quatro anos o estado democrático brasileiro


tem sido conduzido por um absolutismo político e religioso, cuja tendência
é usar um discurso reacionário, religioso-fundamentalista e de ódio
(contra gênero) contra os direitos da comunidade LGBTQIA+. En-
tretanto, é preciso compreender que a base de sustentação do regime
democrático é justamente o oposto – o relativismo político e filosófico.

Para Kelsen2, a tese da relatividade dos valores é a única com-


patível com a democracia, onde cada um deve respeitar a opinião po-
lítica dos demais, pois todos são livres e iguais perante a lei. Mas afinal
de qual lei se está falando? Esse é o ponto. Em que incida significativos
avanços no âmbito do poder judiciário, o Brasil ainda é um país caren-
te de legislação protetiva para a população LGBTQIA+.

É imprescindível o aumento da autocrítica social de uma cultu-


ra machista e heteronormativa. A sociedade brasileira, ainda, através das
relações de poder, impõe uma lógica heteronormativa, onde somente
sujeitos pertencentes a uma relação binária, ou seja, homem-mulher são
sujeitos de direitos. Quem, por força de sua sexualidade, não se amol-
da a essas regras, é alijado.
A pauta LGTBQIA+ tem sido literalmente esquecida, banida
do debate público, mediante um falso discurso de captura da socieda-
de por uma ideologia ou doutrinação de gênero, que tenta subverter o plura-
lismo político a uma filosofia religiosa da cultura binária, sob alegação

172
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

de que reconhecer direitos da sexualidade invariavelmente levaria à


destruição dos valores morais da sociedade brasileira. De fato, a sub-
versão da ideia de justiça amparada na igualdade e na equidade ocorre
quando a ala ultraconservadora no Congresso Nacional tenta inserir
forçosamente a cultura de fundo da Igreja na razão pública. Em verda-
de, a estratégia discursiva de difamação e “pânico moral” na ofensiva
“contra gênero” atenta versus preceitos constitucional fundamentais.

Em meio a esse discurso político-religioso arquitetado para a des-


truição de um “inimigo”, é óbice à aprovação de leis protetivas e equita-
tivas mesmo sendo o Brasil o país que mais mata LGBTQIA+. A cada
vinte e seis horas, uma dessas pessoas morre. Em 2019, foram 297 homi-
cídios e 32 suicídios, segundo relato divulgado pelo grupo Gay da Bahia3.

Cônscio dessa realidade trágica e agindo dentro da imparciali-


dade – elemento central da teoria da justiça – e tendo como premissa a
complementariedade entre democracia e estado de direito, o Supremo
Tribunal Federal (STF) aceitou a orientação sexual e a identidade de
gênero como manifestação do exercício de uma liberdade fundamen-
tal. Vários outros direitos decorrentes desses foram sedimentados em
prévias judiciais, tais como casamento homoafetivo, adoção por casais
homoafetivos e criminalização da homofobia.

Inobstante o significativo avanço, é imperativo o raciocínio so-


bre o iminente risco de retrocesso social com a probabilidade de reelei-
ção do presidente Jair Messias Bolsonaro e as nomeações de ministros
“terrivelmente evangélicos”4 e seus discursos calcados num fundamen-
talismo religioso mesmo diante de um estado laico.

Inobstante a vedação ao retrocesso social, viu-se, atualmen-


te, a Suprema Corte Americana, no julgamento do caso “Roe x
Wade”, reformular entendimento sobre o direito ao aborto fixado
em precedente anterior vigente há mais de cinquenta anos. O epi-
sódio é que direitos quando obtidos por decisão judicial e não por
lei própria podem ser revistos mais facilmente. Embora a teoria

173
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

jurídica dos precedentes não admita o overruling apenas pela mera


mudança de composição do tribunal, no mundo real, da RealJuridik,
aplica-se essa sistemática.

Face a possível, porém indesejável, recondução ao cargo de


Bolsonaro, o perigo de mudanças futuras nos benefícios adquiridos
pelo grupo LGBTQIA+ é imediato, pois, além das duas indicações
já feitas, ocorrerão mais duas5 até o final do próximo mandato sem
contar as vagas que surgirão. Devido a esse motivo, pode-se dizer: “es-
tamos caminhando no fio da navalha”.

Considerando que o avanço quanto aos direitos sexuais da


população LGBTQIA+ é um campo em construção que contesta
imaginários e valores sociais arraigados, no encadeamento deste ar-
tigo, propõe-se descrever os discursos socialmente estabelecidos, que
advogam a tese de que estudos de gênero são ideologias lesivas. Os
grupos contra gênero recusam os direitos sexuais como categoria dos
direitos humanos. Desse modo, validam a aplicação das políticas pú-
blicas emancipatórias como sendo discursos ideológicos e doutrinadores
que contribuem para a efetivação de um mecanismo de manobra social,
que visa, supostamente, à tomada do poder pelos movimentos de esquerda.

Nesse horizonte de avanços, retrocessos e disputas de narrati-


vas, estrutura-se o presente trabalho em três tópicos.

No primeiro, são citados alguns aspectos gerais relacionados ao


regime democrático de governo e ao estado de direito em sintonia com
a teoria da justiça e o liberalismo político de John Rawls.

Em um segundo momento, aborda-se o discurso de pânico da


ala conservadora do Congresso Nacional como estratégia discursiva
meramente eleitoreira, excludente e deslegitimada. Destacou-se como
estudo de caso a falácia sobre o kit gay.

Na terceira seção, debruça-se em um olhar crítico sobre o fio


da navalha. O objeto é tecer os direitos conquistados pela comunidade

174
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

LGBTQIA+ frente à fragilidade da teoria dos precedentes e a iminen-


te mudança de percepção como consequência da alteração na com-
posição dos membros do STF. Tem-se como parâmetro o ocorrido na
Suprema Corte Americana no caso “Roe x Wade”.

Por fim, demonstra-se a necessidade de a sociedade brasileira


pensar sobre o estado democrático de direito na ótica dos direitos LGB-
TQIA+; a cessação dos atos de violência perpetrados, dentro e fora, dos
espaços de poder contra a comunidade gay e transexual; usar o direito e a
política como instrumentos de pacificação social e promoção de consensos
ao invés de promover guerras no contexto de guerras híbridas; a afirma-
ção dos direitos LGBTQIA+ através do poder legislativo.

A metodologia adotada foi a pesquisa bibliográfica de referen-


ciais teóricos respectivos ao mote da pesquisa.

 REGIME DEMOCRÁTICO E O ESTADO DE


O
DIREITO. UMA ABORDAGEM À LUZ DA IDEIA
DE RAZÃO PÚBLICA DE JOHN RAWLS
Neste tópico, faz-se necessário destacar prima facie algumas ex-
pressões emanadas do Congresso Nacional no julgamento do emble-
mático caso de criminalização da homotransfobia no Supremo Tribu-
nal Federal (STF), para justificar a inércia na tramitação de diversos
projetos de lei6 acerca do tema. Vejamos:

Deve-se estar ciente também que uma não decisão, no âmbito da


produção legislativa, também é uma decisão.

[...]

À evidência, sabendo-se que a não decisão é também uma deci-


são, e de elevado grau político, não houve mora.7

175
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Conforme ressai da transcrição inicial, o Senado Federal de-


liberadamente ‘decidiu não decidir’ matérias afetas aos direitos ho-
moafetivos. Como já mencionado na introdução deste artigo, o pro-
pósito é questionar a complementariedade entre estado democrático
e estado de direito em consonância ao apagão legislativo intencional do
Congresso Nacional quando se trata de legislar direitos protetivos à
comunidade LGBTQIA+.

Sobre a omissão legislativa, Paulo Iotti comenta:

No julgamento da homotransfobia no Supremo Tribunal Fede-


ral (STF), o Senado peticionou, falando que não tem omissão,
porque ele, o Senado, ‘decidiu não decidir’. O Congresso quer
deixar elas por elas, com um discurso meio cínico, falando não à
Constituição que proíbe qualquer forma de discriminação. Mas
para se reconhecer direitos LGBTQIA+, por exemplo, como
família, eles não querem. Alegam que a Constituição só reco-
nhece união entre o homem e a mulher como família, desres-
peitando as decisões do STF a nosso favor. O Congresso não
quer, mas o Movimento LGBTQIA+ está lá sempre tentando
e fazendo a luta política, concomitantemente à luta jurídica pe-
rante o STF.8

Inegavelmente, a omissão proposital do poder legislativo colo-


ca toda a comunidade LGBTQIA+ em situação de máxima vulnera-
bilidade social não só pelo desamparo legal, mas principalmente por lhe
negar publicamente a sua própria existência enquanto ser humano
sujeito de direito.

Com base nessa afirmação, quando o poder legislativo, genuí-


na casa de discussão da razão pública, omite-se de forma premeditada

176
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

ao debate e rechaça sumariamente a conversa sobre assuntos neces-


sários, apesar de polêmicos (doutrina abrangente e razoável, embora
dissensual), é o alerta máximo de que a sociedade democrática consti-
tucional não está bem ordenada.

A ideia de razão pública, tal como compreendo, faz parte


de uma concepção de sociedade democrática constitucional
bem ordenada. A forma e o conteúdo dessa razão – a manei-
ra como é compreendida pelos cidadãos e como ela interpre-
ta sua relação política – são parte da própria ideia de demo-
cracia. Isso porque uma característica básica da democracia
é o pluralismo razoável – o fato de que uma pluralidade de
doutrinas abrangentes razoáveis e conflitantes, religiosas, fi-
losóficas e morais, é o resultado normal da sua cultura de
instituições livres.9

Dominado pelo dogma da religião e o pensamento puramente


moral e filosófico, o estado brasileiro deixa à míngua de proteção
centenas de pessoas que morrem anualmente no país vítimas de
violência e outras milhares vítimas de discriminação e preconceito
por causa de orientações de sexo e gênero. Luciana Bauer defende
a seguinte premissa:

Em um estado ditado por uma ditadura ou uma religião, con-


trariamente, temos a incompatibilidade total com qualquer
ideia de razão pública, pois os dogmas eram o consenso com
que se constroem as leis. O pensamento puramente moral é um
obstáculo a uma tolerância política e mais racional. 10

177
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Mesmo diante da laicidade do estado brasileiro, os dogmas da


religião e o discurso fundamentalista cristão têm dominado a razão
pública, subvertendo toda a sua construção teórica e a própria essên-
cia do ser humano, qual seja, a divergência. Como indivíduos, nesta
própria condição, são individualizados e naturalmente opostos e úni-
cos, assim como o daisen de Heidegger, fruto das próprias experiências
como ser-no-mundo. O desacordo é a manifestação mais profunda do
ser humano.

Contudo, para superar as diferenças, é preciso debater, dis-


cutir e consensar. E não simplesmente ‘decidir não decidir’ como
informou o Senado ao STF. “A argumentação pública almeja a jus-
tificação pública”11.

Nesse mesmo sentido:

O princípio liberal de legitimidade pressupõe que as instituições


públicas utilizarão as razões mais adequadas no ato de cons-
truir sua justificação pública. A exigência de dar razões na jus-
tificação pública coloca frontalmente a pessoa política diante
da construção e da concepção de um regime democrático e do
sentido político de justiça, que prevê a participação política do
cidadão, o diálogo e uma interação pública na construção dos
sentidos normativos.12

No julgamento da Ação direta de inconstitucionalidade por


omissão (ADO) n. 26/DF e do Mandado de Injunção n. 473, o mi-
nistro do STF, Celso de Mello, explica que falta diálogo e justificação
pública quando, por exemplo, a ministra da Mulher, Família e Direitos
Humanos, Damares Alves, dispara:

178
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

O Brasil vive uma nova era, em que menino veste azul e menina
veste rosa. Essa visão de mundo, senhores ministros, fundada
na ideia, artificialmente construída, de que as diferenças bio-
lógicas entre o homem e a mulher devem determinar os seus
papéis sociais, impõe, notadamente em face dos integrantes da
comunidade LGBT, uma inaceitável restrição de suas liberda-
des fundamentais...13

Ainda sobre divergências em torno dos destinos políticos de


uma sociedade, estas remontam ao surgimento do homo sapiens. Desde
sua existência, há disputa pelo poder. Em eras primitivas, a força física
era o diferencial e possibilitava o controle dos destinos de uma tribo ou
um povo. Posteriormente, o homem desenvolve formas de combater
a dominação pela força, criando novos sistemas políticos e formas de
governo. A solidificação dessas transformações exige cada vez mais
uma organização da sociedade, e organização pressupõe normativi-
dade. No início, essa normatividade foi buscada na religião. No início,
o direito se confundia com a religião, a ela era subordinado ou nela
buscava seus fundamentos.14

Foi no curso da história que o direito criou autonomia e se se-


parou da religião, primeiramente sob ponto de vista formal (lei-bíblia),
depois, do enfoque material (a criação do estado laico). Em todo o
caminho dessa evolução histórica, o direito percorreu trajetórias bem
distintas: foi ferramenta de manutenção da ordem, de libertação e de
opressão. E como instrumento, ele pode ser bem-usado ou mal-usado.
É como uma faca que pode ser utilizada na cozinha para o preparo
de um delicioso prato, ou uma arma mortal. Sem dúvida, o direito é
um instrumento de ação política. A teoria do lawfare retrata bem o uso
indevido do direito para oprimir o inimigo.

179
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

No campo do direito, questões mais simples suscitam contro-


vérsias. As opiniões acerca de um texto legal ou de uma determinada
decisão judicial se traduzem em discórdias de mínimos detalhes. Essas
polêmicas são importantes na medida em que geram debates cons-
trutivos, que acabam por ser a mola da transformação do direito, da
dinâmica jurídica.

Essa prática começa no processo de formação do direito. Este


se desenvolve em um jogo de interesses que representa os diversos seto-
res da sociedade e reflete pontos de vista diversos. Do confronto destas
vontades, deve surgir um sistema normativo que se aplica a todos. Para
que isso seja viável, faz-se necessário o diálogo. Não qualquer interlo-
cução, mas uma comunicação aberta capaz de levar ao compromisso,
onde cada participante faz um pouco de concessões em nome do inte-
resse coletivo.

Levando em conta essa análise, não é tão simples. Infelizmen-


te, aquilo que é a essência do ser humano tem sido, historicamente,
também seu maior problema. As divergências não se distribuem na
sociedade de forma equânime. Maiorias e minorias se formam ante
essas diferenças. As pessoas e grupos, sobretudo, tendem a universa-
lizar as próprias escolhas e tentar impô-las aos demais. Essa postura
gera intolerância. É o sentimento que transforma aquele que pensa
diferente em inimigo. O presidente Bolsonaro declaradamente elegeu
como inimigo o grupo LGBTQIA+ e descontruiu todo o conjunto de
política afirmativas desencadeadas nos últimos vinte anos.

Dentre todo o universo em que se manifestam as dissidências,


o mais perigoso e mais complexo talvez esteja no campo da ideologia e
da política. A disputa pelo poder e pelo direito de assumir um coman-
do político que permita uma pessoa ou grupo definir os destinos de
uma sociedade, somada à intolerância referida acima, gera opressão.
É a fonte dos regimes totalitários. Mas estes são governos impostos pela

180
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

força. Não é essa a expressão do poder que vigora formalmente no


Brasil. O que interessa ao pesquisador são outras formas de exercício
de influência. O poder como capacidade, de pessoas ou grupos, de
fazer valer, nesse jogo político, suas vontades.

A organização política das sociedades prosperou na história até


culminar nos dias de hoje no estado democrático de direito. Uma das princi-
pais funções da democracia é viabilizar e regular este jogo político, de
forma a propiciar a convivência harmônica das divergências. Um dos
principais instrumentos utilizados para este fim é o Direito.

A democracia existe para facilitar a convivência dos diferentes.


Mais do que isso, para garantir a sobrevivência das minorias. Com pro-
priedade, afirmou Kelsen, “disso resulta não tanto a necessidade, mas a
possibilidade de proteger a minoria contra a maioria. Esta proteção da
minoria é função dos direitos fundamentais”15. Corrobora Hart, de outra
maneira, ao acrescentar que a democracia se transformaria na ditadura
da maioria, onde “uma maioria ditaria como todos deveriam viver”16.

Sobre a função protetiva dos direitos fundamentais, destaca o


ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil, Alexandre de
Moraes:

A premissa básica do estado constitucional é a existência de


complementariedade entre democracia e estado de direito,
pois, enquanto a democracia consubstancia-se no governo da
maioria, baseado na soberania popular, o estado de direito
consagra a supremacia das normas constitucionais, editadas
pelo poder constituinte originário, o respeito aos direitos fun-
damentais e o controle jurisdicional do poder estatal, não só
para proteção da maioria, mas também, e basicamente, dos
direitos da minoria. 17

181
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Por que Kelsen discorre apenas sobre a proteção da minoria


e não em proteção efetiva? Talvez porque desconfiasse que o direito,
principalmente no seu aspecto formal (lei), enquanto ordenamento, ou
seja, norma posta, é insuficiente para afiançar a eficácia do próprio
direito. Por estar escrito, mesmo que na Constituição, não assegura a
sua facticidade. A realização do direito no mundo concreto acontece
pela ação humana. Em resumo, a facticidade do direito se qualifica
por meio da ação humana no exercício do poder político.

Em uma democracia, este poder será exercido até onde não


ponha em risco a coexistência pacífica das divergências. O que se ob-
serva no cenário político atual é exatamente o contrário: o insufla-
mento ao conflito e um forte apelo contrário às mudanças sociais e
culturais, que possam afetar a família tradicional patriarcal também
chamada de “brasileira”.

O próximo tópico trata da construção de uma retórica de an-


tagonismo com pautas sociais progressistas e a criação de pânicos morais
a partir de estratégias referentes ao populismo midiático.

 IFAMAÇÃO E PÂNICO COMO ESTRATÉGIA


D
DISCURSIVA DA ALA CONSERVADORA
Os estudos de gênero têm demonstrado, em várias esferas, que
essas construções sociais que normalizam e normatizam a diversidade
em formas de se vivenciar a sexualidade são baseadas numa hetero-
normatividade, a qual define e determina regras e comportamentos
sociais em torno de uma coincidência necessária entre identidade,
sexo biológico e desejo sexual. Dessa forma, todos os comportamen-
tos, identidades de gênero ou vivências afetivo-sexuais que não se en-
caixem no modelo heteronormativo conduzem a ser excluídos, negados,
discriminados ou patologicizados.

182
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Para Marcelo de Souza Campos e Marisse Costa de Queiroz,


heteronormatividade significa:

Termo que descreve situações nas quais orientações sexuais di-


ferentes da heterossexual são marginalizadas, ignoradas ou per-
seguidas por práticas sociais, crenças ou políticas. Isto inclui a
ideia de que os seres humanos seriam definidos sexualmente por
duas categorias distintas, restritas e complementares: macho e
fêmea. A partir dessa binariedade sexual rígida, observa-se a
influência de diversas outras crenças e normas que, por exem-
plo, definem como “normais” e aceitáveis as relações afetivo-
-sexuais (namoro e relações conjugais) somente aquelas entre
pessoas de sexos distintos; que cada sexo possui certos papéis e
funções sociais inquestionáveis (por exemplo, o mito do instinto
materno e da compulsão sexual para os homens). Assim, sexo
biológico, identidade de gênero, orientação sexual e papéis so-
ciais deveriam, em tese, abarcar qualquer pessoa dentro dessas
normas rígidas, que podem ser explícitas ou implícitas. Aqueles
que identificam e criticam a heteronormatividade dizem que ela
distorce o discurso ao estigmatizar conceitos desviantes tanto
de sexualidade quanto de gênero e tornam certos tipos de au-
toexpressão mais difíceis de serem vivenciadas sem estigmas ou
violências. 18

Ao denunciarem essa construção social discriminatória, os movi-


mentos feministas e LGBTQIA+, nas últimas duas décadas, conseguiram
avançar nos estudos de aspectos da sexualidade humana, sinalizando-os
como categoria dos direitos humanos. Termos como “direitos sexuais e re-
produtivos” foram consolidados em tratados e conferências internacionais19, que
geraram compromissos do estado brasileiro com o reconhecimento no

183
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

âmbito nacional da garantia de direitos no campo da intimidade (nome,


identidade, privacidade e diversidade sexual) e das relações familiares (ca-
samento, união estável e parentalidade independente da orientação sexual
ou identidade de gênero).

Um conceito operacional importante, fruto dos estudos de gê-


nero, diz respeito à definição e à categorização dos direitos sexuais
como um tipo específico de direitos humanos. Os direitos sexuais são
definidos como a possibilidade de vivenciar uma vida sexual com pra-
zer e livre de discriminação, sendo que sua efetividade está relacionada
à promoção de liberdades e garantias que incluem o direito de deci-
dir livre e responsavelmente sobre sua sexualidade sem intervenções
externas; o direito de ter controle sobre o próprio corpo; o direito de
vivenciar livremente sua orientação sexual, sem sofrer violência, discri-
minação e coerção; o direito à privacidade e o direito à saúde sexual, o
qual exige o acesso a todo tipo de informação, à educação e a serviços
confidenciais de alta qualidade sobre sexualidade e saúde sexual, in-
cluindo recursos tecnológicos quando necessários20.

Apesar dos estudos de gênero e das categorias jurídicas decor-


rentes desse conhecimento serem muito bem sustentadas pelos teóricos
e teóricas do mundo todo, no Brasil, alguns grupos juridicamente or-
ganizados divergem desses posicionamentos. Por isso, convém salien-
tar duas vertentes sobre a problemática: a tese defendida pelos grupos
contra gênero, que negam os direitos sexuais como categoria dos direitos
humanos, em oposição aos grupos pró-gênero, que alimentam um dis-
curso democrático e de caráter emancipatório, onde se valoriza o res-
peito, o diálogo e abre margem à diversidade sexual.

Ao longo das últimas duas décadas, averiguou-se que o pensa-


mento defendido pelo primeiro grupo (contra gênero) endossa vigo-
rosamente inúmeros apelos morais contra a criminalização da homo-
fobia e à igualdade de gênero. Utilizando-se do argumento de que há

184
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

uma intenção de desestruturar as famílias tradicionais, os integrantes


da onda conservadora passaram a apoiar discursos investidos de precon-
ceito, intolerância e ódio, propagados disfarçadamente como teses ca-
tegóricas, religiosas e nacionalistas.

Inclusive, sobre o instituto familiar, Maria Lúcia Silva Barroco


reitera que:

A família é um dos alicerces morais do conservadorismo e sua


função é a de manutenção da propriedade. A mulher exerce o
papel de agente socializador responsável pela educação moral
dos filhos; por isso, essa perspectiva é radicalmente contrária
aos movimentos femininos, entendendo-os como elemento de
desintegração familiar. A moral adquire, no conservadorismo,
um sentido moralizador [...]. É assim que se apresentam sob
diferentes enfoques e tendências, objetivando a restauração da
ordem e da autoridade, do papel da família, dos valores morais
e dos costumes tradicionais.21

A autora entende que a preocupação desses movimentos é a ade-


são de crianças e jovens ao que ela denomina de moda da homossexualidade
e do feminismo, de maneira que essas deixem de valorizar as tradições e a
hierarquia familiar e passem a defender, futuramente, ideologias de es-
querda. Portanto, no entendimento patriarcal, que as convicções idealistas
de “família inabalável” devem prevalecer sobre qualquer aspecto.

Nessa lógica, sabe-se, ainda, que a masculinidade é encarada


como soberana se comparada ao universo feminino, dito socialmente
como subalterno. À vista disso, a comunidade LGBTQIA+, sensibi-
lizada à situação de vulnerabilidade feminina, associa-se àquela para

185
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

unir forças contra os movimentos regressistas e, por esta e muitas ou-


tras alegações, também acaba ocupando uma posição desprivilegiada.

DA ESTRUTURA DO DISCURSO CONTRA GÊNERO


Conforme estudos realizados pela Pontifícia Universidade Ca-
tólica do Paraná desenvolvido por Marcelo de Souza Campos e coor-
denado pela professora Marisse Costa de Queiroz22, o grupo conser-
vador “contra gênero” representado, principalmente, pela Associação
Nacional dos Juristas Evangélicos (ANAJURE), Movimento Brasil Li-
vre (MBL), Instituto Plínio Correia de Oliveira (IPCO), Canção Nova,
Partido Socialista Liberal (PSL) e Frente Evangélica do Congresso Na-
cional elegem seu discurso de “ideologia de gênero” ou “doutrinação
gay” basicamente em quatro linhas argumentativas. São elas:

a) o direito de apoiar e propagar práticas discriminatórias (di-


famar o movimento LGBTQIA+ está dentro do direito de liberdade
de imprensa e expressão);

b) deslegitimação e difamação dos movimentos LGBTQIA+


– existe um “lobby” homossexual difundido na sociedade (no caso, o
movimento LGBTQIA+ representa a degradação moral e a destrui-
ção da família);

c) heteronormatividade como único modelo de comportamen-


to correto (relação sexual certa é apenas a que corresponde ao sexo
biológico homem-mulher);

d) critérios processuais para deslegitimar demandas por direi-


tos e reconhecimento (o poder judiciário não tem legitimidade para
criar normas seja para conferir, seja para assegurar direitos).

No que tange à primeira linha argumentativa, aprecia-se a exis-


tência de uma constante discursiva que canoniza o modo de vivência

186
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

heteronormativo como sendo “superior”. Respalda-se apenas em uma


única orientação “afetivo-sexual” possível ou correta. Por sua vez, enfa-
tizam o direito de propagar práticas discriminatórias como correlato ao
direito à livre manifestação do pensamento e de crença.

É uma linha argumentativa que utiliza fundamentos religiosos


e valores morais restritivos para legitimar preconceitos. Esta situação
exclui a diversidade do campo dialógico. Essa concepção de ordena-
mento jurídico desconsidera o estado laico, retira novamente autono-
mia da norma jurídica e a submete ao texto bíblico e aos dogmas fun-
damentalistas da religião. Apresenta-se como uma visão tipicamente
reacionária de fusão entre estado e religião.

A segunda linha argumentativa trabalha com um discurso


deslegitimador e difamatório dos movimentos LGBTQIA+. Sem
apresentar evidências concretas, essas falas afirmam a existência
de uma suposta manipulação da população acerca de temas perti-
nentes à homossexualidade. Relacionam a discussão pública e a re-
presentatividade da população LGBTQIA+ na mídia como sendo
uma espécie de manipulação ideológica para acentuar uma suposta
ascensão da denominada ditadura homossexual, cotejada literalmente
aos regimes totalitários.

Sendo assim, a impressão é de que os grupos conservadores


possuem o dever de incentivar a proteção do instituto familiar, em ra-
zão de uma aparente publicidade ofensiva dos chamados poderosos
lobbys homossexuais, que atuam na mente dos indivíduos, como forma
de manipulá-los.

No entanto, contrariamente ao que essa linha argumentativa


afirma, em nenhum momento, a comunidade LGBTQIA+ quis impor
regras, tampouco obrigar as pessoas a seguirem os mesmos pensamen-
tos defendidos por ele. Ao contrário do que essas instituições alegam,
o que o movimento deseja é empatia pela história vivida por cada

187
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

um de seus integrantes. Espera-se, inclusive, que pessoas de diferentes


contextos sociais possam participar livremente de debates abertos aos
diálogos democráticos, respeitosos e sem qualquer tipo de preconceito.

Não há, portanto, qualquer intenção deliberada de forçar


comportamentos e ideias a ninguém, mas de expor fragilidades, dife-
renças, histórias de vida e desigualdades, sem que esse fenômeno re-
sulte em julgamento social, também não em violência física. Visa, de
maneira indispensável à efetivação de tratamento igualitário e digno
a qualquer pessoa.

Entende-se, ainda, uma terceira linha de raciocínio, que se


consolida em torno da ideia de que a heterossexualidade é o único
modelo de comportamento afetivo-sexual correto. Para esses grupos,
há uma tendência em desconsiderar qualquer construção social do gê-
nero e em reconhecer tão somente as diferenciações biológicas entre
homens e mulheres, colocando-as, inclusive, em uma posição inferior
à masculina.

Essa arguição também pleiteia que homens e mulheres são na-


turalmente prontos para o exercício de funções sociais pré-determina-
das por seu sexo biológico. Essa condição define comportamentos e
justifica desigualdades socialmente construídas.

Entretanto, tais argumentos sequer problematizam ou ditam


métodos científicos das ciências biológicas e sociais. Esses, inclusive,
desconsideram as inúmeras pesquisas de campo, de diversas áreas de
conhecimento, que quantificam e qualificam dados sobre desigualda-
des e violências disciplinadas no gênero.

Ao desqualificar os estudos de gênero, alegando desprovi-


mento de cientificidade, adverte-se que as afirmações realizadas nes-
sa linhagem não possuem qualquer fundamentação científica e que

188
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

esses discursos são tecidos em torno do imaginário de uma suposta


ameaça às crianças e famílias heteroafetivas. Tais enredos veiculam
uma espécie de pânico moral, calcado em crenças e suposições que não
refutam os estudos de gênero, especialmente na parte que descrevem
e analisam a diversidade sexual, que demonstram justamente que
há um enorme esforço de se normatizar e enquadrar a diversidade
sexual na sociedade. Esse descaso gera exclusão, violência e adoeci-
mento de pessoas que não se encaixam nos padrões impostos. Ne-
gam distintas pesquisas que evidenciam que uma acertada educação
sexual de crianças e jovens previne vários problemas sociais enfren-
tados hoje, tais como abuso sexual infantil, gravidez na adolescência,
infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e violência doméstica, só
para mencionar alguns exemplos.

É esperado que o movimento pelos diretos homoafetivos pro-


duza algum efeito reativo na sociedade, sendo fundamental distinguir
dois efeitos sociais reativos: o “choque moral” e o “pânico moral”. O
choque moral tem incidência na mudança de padrão de comporta-
mento “estabelecido” na sociedade. A transição da sociedade escravocra-
ta para sociedade abolicionista causou diversos “choques morais”. Nesse
compasso, é natural que o movimento pela diversidade sexual e pautas
como casamentos entre pessoas do mesmo sexo gerem igualmente tais
conflitos (efeito blacklash23).

Entretanto, o pânico moral “fica plenamente caracterizado quan-


do a preocupação aumenta em desproporção ao perigo real e gera
reações coletivas também desproporcionais”24. Pode-se afirmar que o
pânico moral ocorre dentro de um contexto de preocupação irracional
e exagerada em relação a uma circunstância que, por algum motivo, é
vista como um problema para a comunidade25.

O professor Ricardo Miskolci explica de forma clara e sucinta


como a política de ódio e o discurso “contra gênero” dissemia uma

189
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

preocupação irracional unificando temores em torno de questões dis-


tintas manipulando a opinião pública.

A política simbólica que estrutura os pânicos morais costuma


se dar por meio da substituição, ou seja, grupos de interesse ou
empreendedores morais chamam a atenção para um assunto,
porque ele representa, na verdade, outra questão. Um exem-
plo é a descriminalização da homossexualidade, que obrigou
àqueles que gostariam de denunciá-la como imoral a encontrar
outras formas, dentre as quais se destaca o ressurgimento do
temor da pedofilia. A partir desse caso, é possível perceber que
todo pânico moral esconde algo diverso e, ao invés de aceitar
um temor social como dado, o pesquisador precisa desvelar o
que reside por trás do medo. 26

O pânico irracional e exagerado é completamente caracteriza-


do quando, através de discursos inverídicos e difamatórios, os grupos
conservadores manipulam a opinião pública sob a suposta justificação
de proteger a família e as crianças de pedófilos e grupos subversivos
que seriam inimigos da “família tradicional brasileira e que intenta-
riam destruí-la por meio da homossexualização de crianças, da liberti-
nagem sexual e outros elementos. O intuito do discurso de ódio contra
gênero é causar um sentimento de terror social pelo suposto extermí-
nio da família tradicional brasileira.

No cerne da guerra do ‘bem’ contra o “mal”, aqueles que res-


guardam os direitos LGBTQIA+ são inimigos declarados da nação e
não passíveis de luto. Assim, a morte de centenas de pessoas LGBT-
QIA+ anualmente é internalizada com naturalidade27. Como ressalta

190
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Judith Butler: “quando essas vidas são perdidas, não são objeto de la-
mentação, uma vez que, na lógica distorcida que racionaliza sua mor-
te, a perda dessas populações é considerada necessária para proteger
a vida dos vivos”.28

Observa-se claramente a propagação da teoria do domínio


(luta do bem contra o mal), aliado ao viés da confirmação (preconceito
implícito/estrutural). Produz-se, então, o inimigo a ser combatido. Em
atenção a toda essa arquitetura falsa do perfeito inimigo e a dissemi-
nação de inúmeras notícias falsas no seio da sociedade, é que se pode
endossar que o atual presidente Jair Messias Bolsonaro no curso da
campanha presidencial entoou de variadas formas a famosa frase de
Joseph Goebbels: “uma mentira repetida mil vezes se torna verdade”.
A exemplo desse modos operandi calha destacar algumas frases repeti-
das por Jair Bolsonaro. As frases respectivamente se referem ao reco-
nhecimento pelo STF da União Civil entre pessoas do mesmo sexo e
adoção: “O próximo passo será a adoção de crianças por casais homossexuais e
a legalização da pedofilia”29 e “90% dos adotados vão ser homossexuais e vão ser
garotos de programa deste casal.”30

Como bem pontua Foucault31, não importa a veracidade do


fato que é discorrido em si, mas quem o diz, como diz, quando diz.
O discurso sempre é produzido em prol das relações de poder e a
verdade é aquela que é dita, que é proliferada, que está em voga nas
declarações. Como exemplo, tem-se a seguinte fala: “Ninguém gosta
de homossexual, a gente suporta!”32

Após constatar que as escolas brasileiras são ambientes hos-


tis para adolescentes homossexuais, o Ministério da Educação pro-
curou trabalhar a teoria do currículo oculto33 como forma de comba-
ter o bullying no espaço escolar34. Por currículo oculto, infere-se o
seguinte:

191
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

O currículo oculto é constituído por todos aqueles aspectos do am-


biente escolar que, sem fazer parte do currículo oficial, explícito,
contribuem, de forma implícita, para aprendizagens sociais rele-
vantes. Entre outras coisas, o currículo oculto ensina, em geral, o
conformismo, a obediência, o individualismo. (...) aprende-se, no
currículo oculto, como ser homem ou mulher, como ser heterosse-
xual ou homossexual, bem como a identificação com uma deter-
minada raça ou etnia.35

A partir desta noção de currículo oculto, pode-se compreender as


práticas escolares segundo outra visão, que vai muito além da es-
trutura técnica do currículo escolar, embasado na Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (LDBEN) – Lei n. 9.394/96, no
Plano Nacional de Educação (PNE) e nos parâmetros/diretrizes
curriculares nacionais.

O currículo, enquanto ferramenta pedagógica, pode ser envol-


vido não apenas como informativo, mas como uma organização
de conhecimento que dá corpo a formas particulares de agir, de
ser e ver o mundo36. Nele, são aprendidos atitudes, comporta-
mentos, valores e orientações37. E é nestes esteios que se deve
pensar em currículo oculto, como uma pedagogia de modos
de ver e ser no mundo, que não abarca somente a legislação
constituída, seja de forma técnica, seja de valores, um currículo
escolar.

Por fim, vale destacar uma última linha argumentativa conser-


vadora contra gênero. Trata-se do argumento processual em
que se alega a incompetência do Supremo Tribunal Federal
para criminalizar a homotransfobia, sob pena de malferir a
separação dos poderes. Sobre os “direitos” reconhecidos pelo
poder judiciário à comunidade LGBTQIA+ será melhor disse-
cado no próximo capítulo.

192
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

 S DIREITOS CONQUISTADOS PELA


O
COMUNIDADE LGBTQIA+ E A FRAGILIDADE DA
TEORIA DOS PRECEDENTES. LEADING CASE –
ROE X WADE SUPREMA CORTE AMERICANA
O conservadorismo dominante no Congresso Nacional impe-
de que sejam discutidos projetos que tratam da diversidade de orienta-
ções sexuais e identidade de gênero. “Há um estigma completamente
injustificado em torno da palavra gênero”38. Por conta desse cenário,
os movimentos sociais focaram, corretamente, seus esforços no poder
judiciário, espaço em que todos os direitos LGBTQIA+ foram con-
quistados.

Em breve síntese, são elencados os principais direitos alcan-


çados.

No dia 13 de junho de 2019, o STF criminalizou a homo-


fobia e a transfobia, que passaram a ser enquadradas no crime de
racismo. O Supremo incorporou que atitudes hostis em relação a
certas categorias de indivíduos caracteriza o conceito de racismo
social, enquanto inferiorização desumanizante de um grupo social
relativamente a outro, em um sistema de relações de poder entre
distintos grupos sociais. Esse conceito foi aplicado para distinguir
a homotransfobia como forma de racismo. Também os magistrados
concluíram que a homotransfobia é crime “por raça”, no sentido
político-social de raça e racismo. Sobre o julgamento da ação direta
de inconstitucionalidade por omissão n. 26, conveniente realçar o
voto do ministro Luiz Roberto Barroso: “Não escapará a ninguém
que tenha olhos para ver e coração para sentir que a comunidade
LGBT é claramente um grupo vulnerável, vítima de discriminações
e de violência. Sendo assim, o papel do estado é intervir para ga-
rantir o direito dessas minorias.”39

193
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Em 2018, o STF autorizou a mudança de nome civil e sexo


no registro civil, sem a cirurgia de adequação do corpo à identida-
de de gênero, laudos ou decisão judicial. Desde então, é possível
escolher como se deseja ser chamado, basta ir a um cartório e so-
licitar a mudança. Na verdade, o nome social é o usado antes da
alteração do nome civil. Contudo, aquele conceito continua tendo
importância para as pessoas transexuais que ainda não alteraram
seus documentos.

Por sua vez, o nome social já pode ser utilizado durante aten-
dimentos no Sistema Único de Saúde (SUS), para fazer a inscrição
no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e em instituições fi-
nanceiras como nos cartões e contas bancárias, ordens de pagamento
e correspondências. Além disso, na administração pública federal e
em algumas estaduais e municipais, que aprovaram decretos ou leis
tratando do tema.

Ainda, em 2018, o STF ampliou decisão para autorizar não


só a inclusão do nome social, mas para liberar a própria alteração do
nome no registro civil independente de terem se submetido à cirurgia
de mudança de sexo ou sequer a necessidade de confirmação por lau-
do médico ou decisão judicial.

Na mesma direção de conquistas, o STF reconheceu em


2011 a união estável entre casais do mesmo sexo como uma entida-
de familiar. Então, desde 5 de maio de 2011, casais homossexuais
passaram a ter os mesmos direitos previstos na Lei nº 9.278/96. No
mesmo ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) atestou o direito
ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Dois anos depois,
em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou aos
cartórios de Registro Civil a obrigatoriedade de celebrar casamen-
tos civis homoafetivos.

194
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Outro passo importante foi em 2008: a adoção de filhos por ca-


sais homoafetivos no Brasil só é presumível por uma decisão da justiça.
Desde 2008, o STJ admite que casais homoafetivos adotem filhos. No
mesmo ano, a União foi condenada pelo Tribunal Regional (TR) da
4ª Região a ofertar a cirurgia de redesignação de sexo popularmente
conhecida como mudança de sexo.

Em maio de 2020, o STF liberou a doação de sangue para


“homens que fizeram sexo com outros homens nos últimos 12 me-
ses”. Logo, a doação de sangue foi possibilitada para homens gays e
bissexuais, mas também para as mulheres transexuais e as travestis,
que eram transfobicamente identificadas como homens pelo crité-
rio biológico.

Com o avanço da extrema direita no Brasil e a exemplo do que


aconteceu com a eleição do presidente Donald Trump nos Estados
Unidos da América (EUA), os direitos conquistados a duras penas pela
comunidade LGBTQIA+ correm o risco de serem revertidos.

Apesar de teorias como a vedação ao retrocesso social (natureza de


princípio), que impede que o legislador remova direitos de forma ar-
bitrária ou mesmo a teoria dos precedentes que fixa critérios para a mu-
dança de entendimento jurisprudencial (critérios rígidos de overruling e
distinguinshing), no mundo real (RealJuridik), é o poder político, através
da ação humana, que faz o direito libertar, oprimir ou estabilizar as
tensões sociais.

A grande verdade é que os direitos LGBTQIA+ estão cami-


nhando sobre o fio da navalha e o resultado da próxima eleição presi-
dencial será crucial para definir a estabilidade ou instabilidade desses
benefícios e grau de vulnerabilidade desses indivíduos.

Caso o presidente Bolsonaro seja eleito e nomeie mais dois (ou


quantas cadeiras vagas) ministros “terrivelmente evangélicos” para o

195
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Supremo Tribunal Federal, pode-se assistir de camarote ao STF reverter


de forma diametralmente oposta direitos conquistados e tão caros à
democracia e à dignidade humana, assim como aconteceu no julga-
mento do caso Roe x Wade nos EUA.

Nas palavras do presidente Joe Biden40, o julgamento no caso Roe


x Wade foi “erro trágico” e resultado de uma “ideologia extremista”.

A Suprema Corte dos Estados Unidos, que ganhou um im-


pulso à direita durante o governo do ex-presidente Donald Trump,
apenas começou o que deve ser uma onda de reversões de decisões judiciais
tomadas nas últimas décadas, com viés progressista.

Após a nomeação e posse dos membros conservadores indica-


dos por Donald Trump, a mais alta instância judicial do país retirou
o direito das americanas ao aborto, concedeu o direito dos civis de
portarem uma arma em público, limitou drasticamente os poderes fe-
derais para combater as mudanças climáticas e amplificou o espaço da
religião no recinto público americano. As decisões, adotadas pelos seis
juízes conservadores da corte face a três colegas progressistas, são as
primeiras demonstrações das novas forças em um judiciário dividido.
As sentenças marcam o fim de anos de uma composição mais equili-
brada da Casa Branca, que consolidou determinações históricas como
a legalização do casamento de pessoas do mesmo sexo, em 2015.

Desde os anos 1970, a direita republicana buscava expandir o


peso no tribunal. Era visto como a única viabilidade de reverter medi-
das que os conservadores jamais aceitaram. Com Trump, essa revan-
che foi admissível.

196
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Conforme se pode perceber, a teoria jurídica, seja ela qual for,


passa muito à margem de qualquer análise técnica acerca do Direito
Constitucional e da dignidade humana. Restringe-se tão somente a
uma disputa de poder, cujo interesse central é apenas a capacidade de
valer sua própria vontade.

Dentre uma disputa de poder, a razão pública decai diante


de um fórum público dominado pelo “absolutismo democrático”41
de doutrinas não razoáveis (sexistas, homofóbicas e machistas), por
vezes violentas e sempre excludentes. Segundo John Rawls,42 os ci-
dadãos não podem chegar a um acordo sobre aquilo que suas cren-
ças determinam como lei natural, devendo ser abraçada uma visão
construtivista para especificar os termos equitativos de cooperação
social.

Assim sendo, fica manifestada a importância para um regime


constitucional da fundamentação dos princípios de justiça na razão
prática, pois é somente respaldando uma concepção construtivista
(não metafísica-dogmática religiosa) que os cidadãos podem encontrar
princípios de aceitação total entre todos, sem negar os aspectos mais
profundos de suas doutrinas razoáveis.

O regime democrático não pode existir sem um espaço am-


pliado de participação, para que cidadãos livres e iguais discutam so-
bre aspectos relativos à justiça. Uma sociedade justa e bem-ordenada,
portanto, estrutura-se de acordo com os princípios aceitos por todos, a
despeito de suas concepções individuais.

John Rawls é categórico quando faz essa constatação:

197
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

A razão pública é característica de um povo democrático: é a


razão de seus cidadãos, daqueles que compartilham o status da
cidadania igual. O objeto dessa razão é o bem público: aquilo
que a concepção política de justiça requer da estrutura básica
das instituições da sociedade e dos objetivos e fins a que devem
servir. Portanto, a razão pública é pública em três sentidos: en-
quanto a razão dos cidadãos como tais, é a razão do público;
seu objetivo é o bem do público e as questões de justiça fun-
damental; e sua natureza e conceito são públicos, sendo deter-
minados pelos ideais e princípios expressos pela concepção de
justiça política da sociedade e conduzidos à vista de todos sobre
essa base.43

Negar o direito fundamental à reorientação sexual e de gênero


(da dignidade humana) não revela uma sociedade que compartilha o
status de cidadania igual entre todos. Enquanto não houver uma razão
pública disposta a garantir um certo nível mínimo de bem-estar formal
e material, que torne os cidadãos capazes de participar da sociedade
como iguais se estará diante de qualquer outro regime, menos sob a
constância do regime democrático de direito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A sociedade brasileira, ainda, por dentro das relações de poder,
inflige uma cultura heteronormativa, em que apenas indivíduos sujei-
tos à relação binária homem-mulher são detentores de direitos.

Mesmo diante de avanços e reconhecimentos de direitos no


âmbito do poder judiciário, a omissão legislativa intencional torna essas
conquistas mero exercícios de brogosofia, pois há um risco iminente de

198
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

retrocessos a exemplo do que sucede nos Estados Unidos, com a mu-


dança da composição da Suprema Corte Americana.

Há um conservadorismo muito grande no Congresso Nacional


que trava a discussão de projetos que versam sobre a diversidade de orien-
tações sexuais e identidade de gênero. Percebe-se um uso indevido dos espa-
ços públicos (fórum público) para discurso de ódio e difamação (contra
gênero), além da prática de lawfare. Afinal, o inimigo é todo e qualquer
indivíduo que atente contra a “tradicional família brasileira”.

No que diz respeito, especificamente, à discussão da democra-


cia, acredita-se que as alianças entre religião e política nos segmentos
conservadores da sociedade brasileira se fazem pela eliminação do dis-
senso e da pluralidade, em ataque frontal as características próprias
da democracia. Os discursos de verdade44 de inimigos da nação negam,
portanto, não somente os fundamentos da democracia, mas também
um elemento que se considera inerente a esta: a laicidade do estado.

Seja para defender os direitos sexuais ou qualquer outro dis-


senso social, a sociedade brasileira precisa reagir ao ‘poder obscuran-
tista’ das fake news e adotar uma postura mais ativa em defesa da própria
democracia e da ampliação da razão pública através do próprio dissenso,
pois sem este a “a sociedade está destinada a morrer”45. Sem dissenso não
há a construção de consensos, há apenas um discurso monolítico e autocrático.

Definitivamente, a sociedade brasileira e o Congresso Nacio-


nal devem entender que a cultura humana é múltipla. Nessa diversi-
dade, os seres humanos fazem suas opções, seja cada um a sua, seja
cada grupo. Uns gostam de vermelho, outros de verde; uns preferem
peixe, outros preferem filé; uns gostam de frio, outros de calor; uns são
da noite, outros são do dia. Ainda bem que há essas alternativas, pois
no dia em que o ser humano convergir de maneira absoluta, ele perde
sua condição e vira gado.

199
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Notas
1
IOTTI, Paulo apud COSME, Marcelo. Talvez você seja... Desconstruindo a
LGBTFOBIA que você nem sabe que tem. Rio de Janeiro: Planeta, 2022, p.
120-121.
2
KELSEN, Hans. A democracia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 353.
3
COSME, Marcelo. Op. cit., 2022, p. 116.
4
CALGARO, Fernanda; MAZUI, Guilherme. Bolsonaro diz que vai indicar mi-
nistro ‘terrivelmente evangélico’ para o STF. G1, Brasília, 10 jul. 2019. Disponível
em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/10/bolsonaro-diz-que-vai-in-
dicar-ministro-terrivelmente-evangelico-para-o-stf.ghtml. Acesso em: 13 jun. 2022.
5
GALVANI, Giovanna. Após Marco Aurélio, veja quem são os próximos mi-
nistros do STF a se aposentar. CNN Brasil, São Paulo, 12 jul. 2021. Disponível em:
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/apos-marco-aurelio-veja-quem-sao-os-pro-
ximos-ministros-do-stf-a-se-aposentar/. Acesso em: 14 jun. 2022.
6
PL nº.5576/2013; PL nº.1959/2011; PL nº.81/2007; PL nº.2665/2007;
PL nº.7052/2006; PL nº.3143/2004; PL nº.5/2003, PL nº.6186/2002; PL
nº.6840/2002; PL nº.5003/2001
7
STF. Plenário. ADO nº 26/DF, Relator Celso de Mello, 13/06/2019.
8
IOTTI, Paulo apud COSME, Marcelo. Op. cit., 2022, p. 122-123.
9
RAWLS, John. The idea of public reason revisited. University of Chicago Law
Review, Chicago, n. 64, 1997, p.182.
10
BAUER, Luciana. Direito hoje. O conceito de razão democrático. TRF4.
Disponível em: https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=pagina_visuali-
zar&id_pagina=2117. Acesso em: 17 jun. 2022.
11
RAWLS, John. Liberalismo político. São Paulo: Ática, 1999, p. 465.
12
BONFIM, Vinicius Silva; PEDRON, Flávio Quinaud. RIL, Brasília, a. 54, n.
214, abr./jun. 2017, p. 214.
13
ALVES, Damares apud COSME, Marcelo. Op. cit., 2022, p. 125.

200
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

14
GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 5. ed. Lisboa: Calouste Gulben-
kian, 2008, p. xx.
15
KELSEN, Hans. Op. cit., 2000, p. 67.
16
HART, Herbert L. A. apud DOWRKIN, Ronald. The Philosophy of Law. Oxford:
Oxford University Press, 1986, p. 83-88.
17
STF. Plenário. ADO nº 26/DF, Relator Celso de Mello, 13/06/2019.
18
CAMPOS, Marcelo de Souza; QUEIROZ, Marisse Costa de. Difamação e pâ-
nico como estratégia discursiva: análise do discurso conservador sobre os direitos da
comunidade LGBTQIA+. In: VI Simpósio Gênero e políticas públicas, v. 6, 2020, p. 1848.
Disponível em: http://anais.uel.br/portal/index.php/SGPP/article/view/1175.
Acesso em: 27 jul. 2022.
19
Os conceitos relacionados aos direitos sexuais e reprodutivos foram ampla-
mente abordados e institucionalizados, por exemplo, em três conferências promo-
vidas pela Organização das Nações Unidas (ONU), na década de 1990. São elas:
Conferência de Direitos Humanos de Viena (1993), Conferência sobre População e
Desenvolvimento do Cairo (1994) e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher de
Pequim (1995).
20
PIOVESAN, Flavia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 2003,
p. 247.
21
BARROCO, Maria Lúcia Silva apud FERREIRA, Guilherme Gomes. Conser-
vadorismo, fortalecimento da extrema-direita e a agenda da diversidade sexual e de
gênero no Brasil contemporâneo. Lutas Sociais, v. 20, n. 36, 2016, p. 52. Disponível
em: https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/article/view/31855/pdf. Acesso em: 19
jun. 2022.
22
CAMPOS, Marcelo de Souza; QUEIROZ, Marisse Costa de. Op. cit., 2020,
p. 1848.
23
A palavra backlash pode ser traduzida como uma forte reação por um grande
número de pessoas a uma mudança ou evento recente, no âmbito social, político ou
jurídico. Conceito de Nunes Júnior citado por Eliseu Antônio da Silva Belo.

201
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

24
MISKOLCI, Richard. Pânicos morais e controle social – reflexões sobre o ca-
samento gay. Cadernos pagu (28), janeiro-junho 2007, p. 114. Disponível em: https://
www.scielo.br/j/cpa/a/tWFyRWkCdWv4Tgs8Q6hps5r/?format=pdf&lang=pt.
Acesso em: 20 jun. 2022.
25
ORSI, Carlos. “Ameaça a nossos filhos”? Cuidado com o pânico moral. Apo-
calipse Now, 5 dez. 2018. Disponível em: https://revistaquestaodeciencia.com.br/
apocalipse-now/2018/12/05/ameaca-nossos-filhos-cuidado-com-o-panico-moral.
Acesso em: 27 jun. 2022.
26
MISKOLCI, Richard. Op. cit., 2007, p. 114.
27
COSME, Marcelo. Op. cit., 2022, p. 116.
28
BUTLER. Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p. 53.
29
AGÊNCIA ESTADO. Bolsonaro: próximo passo será legalização da pedo-
filia. G1¸Brasília, 07 mai. 2011. Disponível em: https://g1.globo.com/brasil/noti-
cia/2011/05/bolsonaro-proximo-passo-sera-legalizacao-da-pedofilia.html. Acesso
em: 03 jul. 2022.
30
DIRETAS JÁ. Jair Bolsonaro no programa “Agora é tarde”. You Tube, 2014.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3yxvUIp8GnY. Acesso em: 03
jul. 2022.
31
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1970, p.
231.
32
ESTADO DE MINAS. Bolsonaro: ‘Ninguém gosta de homossexual, a gente suporta’.
Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/10/30/inter-
na_politica,1318523/bolsonaro-ninguem-gosta-de-homossexual-a-gente-suporta.
shtml. Acesso em: 11 jul.2022.
33
SILVA, T. T. Documento de identidade: uma introdução às teorias do currículo.
Belo Horizonte: Autêntica, 2002, p. 78-79.
34
TERRA MAGAZINE apud SILVA, T. T. Op. cit., 2002, p.78-79.
35
SILVA, T. T. Op. cit., 2002, p. 78-79.

202
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

36
POPKEWITZ, T. S. apud SILVA, T. T. (org). O sujeito da educação – estudos fou-
caultianos. Petrópolis: Editora Vozes, 1994, p. 89.
37
SILVA, T. T. Op. cit., 2002, p. 79.
38
COSME, Marcelo. Op. cit., 2022, p. 12.
39
STF. Plenário. ADO nº 26/DF, Relator Celso de Mello, 13/06/2019.
40
BBC News. Suprema Corte dos EUA revoga direito ao aborto: como decisão
repercutiu entre políticos e celebridades. Brasil, 24 jun. 2022. Disponível em: ht-
tps://www.bbc.com/portuguese/internacional-61931286. Acesso em: 18 jul. 2022.
41
A expressão absolutismo democrático se refere ao regime democrático formal-
mente instituído pelo direito, mas dominado pelo absolutismo político (facticidade
do direito) que, por sua vez, é coordenado pelo absolutismo filosófico e religioso.
42
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 236.
43
RAWLS, John. Liberalismo político. São Paulo: Ática, 1999, p. 262.
44
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 14.
45
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 61.

Referências

AGÊNCIA ESTADO. Bolsonaro: próximo passo será legalização da pedofi-


lia. G1¸Brasília, 07 mai. 2011. Disponível em: https://g1.globo.com/brasil/noti-
cia/2011/05/bolsonaro-proximo-passo-sera-legalizacao-da-pedofilia.html. Acesso
em: 03 jul. 2022.

BAUER, Luciana. Direito hoje. O conceito de razão democrático. TRF4. Dis-


ponível em: https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=pagina_visuali-
zar&id_pagina=2117. Acesso em: 17 jun. 2022.

BBC News. Suprema Corte dos EUA revoga direito ao aborto: como decisão re-
percutiu entre políticos e celebridades. Brasil, 24 jun. 2022. Disponível em: https://
www.bbc.com/portuguese/internacional-61931286. Acesso em: 18 jul. 2022.

203
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

BELO, Eliseu Antônio da Silva. A emenda da vaquejada e o efeito backlash. Dis-


ponível em: https://www.mprj.mp.br/documents/20184/1506380/Eliseu+Ant%-
C3%B4nio+da+Silva+Belo.pdf. Acesso em: 20 jun. 2022.

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Ja-
neiro: Paz e Terra, 1986.

BONFIM, Vinicius Silva; PEDRON, Flávio Quinaud. RIL, Brasília, a. 54, n.


214, abr./jun. 2017, p. 203-223.

BUTLER. Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

CALGARO, Fernanda; MAZUI, Guilherme. Bolsonaro diz que vai indicar mi-
nistro ‘terrivelmente evangélico’ para o STF. G1, Brasília, 10 jul. 2019. Disponível
em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/10/bolsonaro-diz-que-vai-in-
dicar-ministro-terrivelmente-evangelico-para-o-stf.ghtml. Acesso em: 13 jun. 2022.

CAMPOS, Marcelo de Souza; QUEIROZ, Marisse Costa. Difamação e pâ-


nico como estratégia discursiva: análise do discurso conservador sobre os direitos
da comunidade LGBTQIA+. In: VI Simpósio Gênero e Políticas Públicas. Anais do VI
Simpósio Gêneros e Políticas Públicas, v. 6, 2020, p. 1848. Disponível em: http://anais.
uel.br/portal/index.php/SGPP/article/view/1175. Acesso em: 27 jul. 2022.

COSME, Marcelo. Talvez você seja... Desconstruindo a LGBTFOBIA que


você nem sabe que tem. Rio de Janeiro: Planeta, 2022.

DIRETAS JÁ. Jair Bolsonaro no programa “Agora é tarde”. You Tube, 2014. Dispo-
nível em: https://www.youtube.com/watch?v=3yxvUIp8GnY. Acesso em: 03 jul. 2022.

DOWRKIN, Ronald. The Philosophy of Law. Oxford: Oxford University Press,


1986.

STADO DE MINAS. Bolsonaro: ‘Ninguém gosta de homossexual, a gente suporta’.


Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/10/30/inter-
na_politica,1318523/bolsonaro-ninguem-gosta-de-homossexual-a-gente-suporta.
shtml. Acesso em: 11 jul.2022.

FERREIRA, Guilherme Gomes. Conservadorismo, fortalecimento da extrema-


-direita e a agenda da diversidade sexual e de gênero no Brasil contemporâneo. Lutas

204
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Sociais, v. 20, n. 36, 2016. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/


article/view/31855/pdf. Acesso em: 19 jun. 2022.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1970.

________. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

GALVANI, Giovanna. Após Marco Aurélio, veja quem são os próximos minis-
tros do STF a se aposentar. CNN Brasil, São Paulo, 12 jul. 2021. Disponível em:
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/apos-marco-aurelio-veja-quem-sao-os-pro-
ximos-ministros-do-stf-a-se-aposentar/. Acesso em: 14 jun. 2022.

GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 5. ed. Lisboa: Calouste Gulben-


kian, 2008.

KELSEN, Hans. A democracia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

MISKOLCI, Richard. Pânicos morais e controle social – reflexões sobre o casa-


mento gay. Cadernos pagu (28), janeiro-junho 2007, p. 114. Disponível em: https://
www.scielo.br/j/cpa/a/tWFyRWkCdWv4Tgs8Q6hps5r/?format=pdf&lang=pt.
Acesso em: 20 jun. 2022.

ORSI, Carlos. “Ameaça a nossos filhos”? Cuidado com o pânico moral. Apocalipse
Now, 5 dez. 2018. Disponível em: https://revistaquestaodeciencia.com.br/apocalip-
se-now/2018/12/05/ameaca-nossos-filhos-cuidado-com-o-panico-moral. Acesso
em: 27 jun. 2022.

PIOVESAN, Flavia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 2003.

RAWLS, John. The idea of public reason revisited. University of Chicago Law
Review, Chicago, n. 64, 1997.

________. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

________. Liberalismo político. São Paulo: Ática, 1999.

SILVA, Tomaz Tadeu da. (org). O sujeito da educação – Estudos foucaultianos.


Petrópolis: Vozes, 1994.

________. Documento de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Ho-


rizonte: Autêntica, 2002.

205
A SUBMISSÃO DA ORDEM DOS ADVOGADOS
DO BRASIL (OAB) AO TRIBUNAL DE CONTAS
DA UNIÃO (TCU):
DIVERGÊNCIA TEÓRICA E ASPECTOS PRÁTICOS
Rodrigo Marques Pimentel1

RESUMO
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ao ser alçada ao pata-
mar constitucional com a edição da Constituição Cidadã (1988), ultrapas-
sou o regime jurídico das entidades de classe em sentido estrito e alcançou
status constitucional de entidade sui generis. Para além do apreço jurídico
envolto à conjectura, à regulamentação da advocacia no país e ao papel
de regulador e fiscalizador dos Poderes da República, a Ordem se viu en-
volta à discussão sobre a submissão ao dever de prestar contas aos órgãos
de controle, entre os quais está o Tribunal de Contas da União (TCU),
instituição federal incumbida de verificar e aprovar as contas de outras
importantes instituições da República, sobretudo aquelas cuja fonte ar-
recadatória possuem caracterização federal. Não se pode olvidar que o
dever, indiretamente, é interpretado por alguns juristas como limitação
da sua própria autonomia, que deveria ser ampla, por se enquadrar como
autarquia, forma jurídica própria das entidades classistas. Ocorre que tal
preceito não pode justificar a não aplicação dos princípios constitucionais
da transparência e da moralidade à entidade, que, ao ter a si atribuído
maior poder e responsabilidade, deve zelar pela plena aplicação da Lei
1 Procurador do Estado do Amapá e Advogado, Mestrando em Administração Pública pelo IDP, Pós-Graduado em
Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2021), Especialista em Direito Público pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2018) Graduação em Direito pela Faculdade Católica do Tocantins
(2016). Como advogado atua nas áreas Cível, Consumidor, Família e Eleitoral. Como Procurador do Estado atua nas
áreas de consultoria jurídica e é o Procurador-Chefe da Central de Licitações da PGE-AP desde outubro de 2020.

207
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

e da Justiça, estando, também, submetida à normativa constitucional.


Conclui-se que, somente assim, alcançará plenamente a OAB o seu papel
constitucional, ao exercer seus direitos e prerrogativas, associada ao cum-
primento dos seus deveres republicanos.
Palavras-chave: Ordem dos Advogados do Brasil. Tribunal de
Contas da União. Fiscalização. Controle. Ordem Constitucional.

ABSTRACT
The Brazilian Bar Association (Ordem dos Advogados do Brasil
- OAB), raised to a constitucional level with the edition of the Brazilian
“Citizen” Constitution (1988), surpassed the legal regime of class entities
in strict sense and reached a constitucional status of a sui generis entity. In
addition to the legal appreciation involved, the regulation of lawyers and
the role of Republican Power’s supervisor, the Order found itself involved
in the discussion about its submission to the render accounts to control
bodies, in which are the Federal Audit Court (Tribunal de Contas da
União - TCU), an institution in charge of verifying and approving the ac-
couts of other importante Republic Institutions, especially those whose fi-
nancial sources come from federal resources. The duty to render accounts,
indirectly, leads to a misinterpretation of some jurists in the sense the en-
tity is limiting its own autonomy, given its legal model of a class entity. In
the other sense, this cannot justify the non-application of constitucional
principles, such as transparency and morality, mainly because OAB, with
more power and responsabilities, must ensure the full application of Law
and Justice, being also subject to the constitutional regulations. Thus, the
only way that may led the Order to fully achieve its constitutional role,
when exercising its rights and prerogatives, it is being submitted to TCU
control, associated with the fulfillment of its republican duties.
Keywords: Brazilian Bar Association. Federal Audit Court. Su-
pervision. legal control. Constitutional Order.

208
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

INTRODUÇÃO
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), entidade criada por
Brasil (1930)1, por meio do Decreto nº 19.408, de 18 de novembro
de 1930, pelo então Presidente Getúlio Vargas, foi alçada ao patamar
constitucional por meio da Constituição Federal Brasileira de 1988.
Fundada com o fito de regulamentar a profissão de advogado no Bra-
sil, ampliou seu escopo de atuação após ter a si atribuída, com a pro-
mulgação da Constituição Cidadã, a defesa da ordem jurídica, do Es-
tado Democrático de Direito e da Constituição, sendo, ainda, entidade
essencial ao funcionamento da Justiça, âmbito no qual exerce controle
e colaboração.
Tendo em vista a ausência de normatização definitiva a respei-
to da sua natureza jurídica e a dúvida a respeito dos limites de atuação
dessa entidade que, originariamente, deveria representar uma classe
profissional, mas que se tornou verdadeiro pilar da República Fede-
rativa do Brasil, faz-se crucial analisar os espectros de sua atuação.
Inclusive no tocante à fiscalização financeiro-orçamentária pelo Tribu-
nal de Contas da União (TCU), de modo a exercer controle sobre os
atos praticados pela entidade sui generis, o que decerto traz implicações
políticas e jurídicas sobre a própria entidade.
Envolto a esse contexto, o presente art. visa analisar a legalida-
de e a constitucionalidade da fiscalização da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB) pelo Tribunal de Contas da União (TCU). A discus-
são a esse respeito se faz necessária, tendo em vista se tratar de uma
questão polêmica, uma vez que a submissão à fiscalização da Corte de
Contas depende da definição prévia e precisa da natureza jurídica da
OAB, bem como do julgamento definitivo da constitucionalidade des-
sa medida, que não é pacificado na jurisprudência pátria atualmente.
Há, ao contrário, extensa divergência que põe em xeque a legalidade
da fiscalização, que certamente trará impactos a todos os profissionais

209
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

inscritos no Conselho de Classe, após a decisão final proferida pelo


Supremo Tribunal Federal (STF), seja qual for o resultado obtido.
Com efeito, como parte integrante da metodologia utilizada,
que se embasou na apresentação de posicionamentos divergentes,
exatamente, para que se abordasse o tema sob os diversos vieses en-
contrados na doutrina e na jurisprudência. Somente assim poderá
o leitor ter uma compreensão mais ampla da questão, facilitando a
formação de opinião sobre a temática, de extrema importância para
o Direito brasileiro.
Para tanto, aborda-se a complexidade da Administração Públi-
ca Brasileira e as diversas entidades que a compõem, inclusive privadas,
prestadoras de serviços públicos, a fim de evidenciar a complexidade
de atores e as interrelações que se estabelecem para formular o que se
entende por Estado Brasileiro. Envolto a esse contexto, apresenta-se
o contexto histórico de formação da OAB e o seu enquadramento na
Constituição Federal de 1988.
A partir de uma leitura crítica, o leitor é convidado a fazer
uma reflexão sobre a natureza jurídica e as nuances da personalidade
da instituição, que possui características de entidade pública, mas, ao
mesmo tempo, elementos típicos de entidade privada, sendo uma en-
tidade ímpar no ordenamento jurídico. Não há, atualmente, nenhuma
outra entidade equiparável, dada a sua roupagem jurídica e a ausência
de definição precisa sobre os limites de sua atuação.
Ao final, após ampla demonstração do status jurídico experi-
mentado pela entidade, é abordada a celeuma sobre a possibilidade
de submissão da OAB à fiscalização da Corte de Contas da União, o
que, certamente, trata implicações práticas de ordem administrativa,
orçamentária e de alcance. A condição especial da entidade, tendo
em vista os princípios constitucionais da transparência e da probida-
de, torna evidente, ainda mais, o dever de submissão à fiscalização do

210
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

TCU, sem que isso signifique ingerência em sua atuação ou mitigação


de sua independência funcional.

 S PARTICIPANTES DA ADMINISTRAÇÃO
O
PÚBLICA BRASILEIRA ATUAL E SUA
DIVERSIDADE DE ATUAÇÃO
A Administração Pública Brasileira sofreu diversas reformas
nas décadas de 1990 e 2000, imputando-a um viés liberal, com maior
participação da iniciativa privada na oferta de serviços, bem como da
desestatização de diversos serviços públicos, entre os quais o de explo-
ração de energias hidroelétricas e dos aeroportos, que até então eram
exercidos exclusivamente em regime público.
Cita-se como exemplo o caso da desestatização da Telebrás,
que exercia o monopólio das telecomunicações do Brasil e era res-
ponsável por implementar políticas públicas de telecomunicações no
país. Com o objetivo de universalizar as telecomunicações, a empre-
sa foi desestatizada em 1998, abrigando-se, dessa maneira o mercado
privado. Da mesma maneira, a empresa Vale do Rio Doce, uma das
maiores mineradoras do planeta.
Nesse viés, para fiscalizar as empresas privadas que ofere-
cem serviços públicos ou serviços de uso universal, foram criadas as
agências reguladoras, entidades dotadas de certa autonomia técnica,
chefiadas por um presidente dotado de mandato temporário e que
estabelecem normativas e regulamentações sobre a oferta e o uso
de serviços no escopo de suas atuações, sobretudo no tocante à li-
berdade de atuação das empresas privadas naquele segmento. Estas
entidades ostentam o caráter de autarquias em regime especial, con-
ceito jurídico construído pela doutrina majoritária administrativista

211
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

brasileira, tendo em vista que possuem mais prerrogativas maiores


que aquelas das autarquias comuns.
No âmbito das autarquias, situam-se, também, os conselhos
de classe, que atuam em um regime especial e são responsáveis pela
regulamentação das respectivas profissões e atividades dos profissionais
inscritos em seus quadros. Seria essa, também, a finalidade da OAB, caso
tivesse sido mantida no patamar originário de sua criação, servido a regu-
lamentar o exercício da advocacia no país, sem outras competências.
No âmbito do Sistema de Justiça, também foram aprimorados
os modelos de controle externo do Poder Judiciário e do Ministério
Público (MP), com a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), respectiva-
mente. Além disso, com o advento da Constituição Federal de 1988,
a Defensoria Pública (DP)alcançou autonomia administrativa e
funcional e competência de iniciativa de propositura orçamentá-
ria, atingindo patamar semelhante ao do Ministério Público, como
instituição autônoma.
No controle da Administração Pública Federal, o Tribunal de
Contas da União (TCU) aprimorou na sua fiscalização, que, associado
ao crescimento e à consolidação institucional da Controladoria-Geral
da União (CGU), criaram um ambiente de controle amplo sobre os
atos administrativos praticados no âmbito da Administração Pública
Federal. A partir dessa mudança, as instituições de controle se firma-
ram como legítimos na fiscalização da aplicação do dinheiro público,
função primordial para a consecução das políticas públicas perpetra-
das em âmbito nacional.
Observou-se, ainda, na esfera da administração pública, a figu-
ra dos consórcios públicos, as concessões públicas, as permissões públi-
cas e as parcerias público-privadas (PPPs). Tudo isso, embora possua
ingerência do setor privado na oferta de serviços públicos, compõe

212
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

a administração pública, integrando administração pública propria-


mente dita ou administração pública por equiparação, ou seja, que
presta serviços públicos, tidos como aqueles voltados à administração.
Outro exemplo, nessas inúmeras reformas administrativas, é a
participação das organizações sociais, organizações da sociedade civil
de interesse público na oferta de serviços públicos, de modo a auxiliar
a administração pública, na prestação do serviço público-fim, o que se
considera doutrinariamente como o terceiro setor.
Do ponto de vista histórico, dadas essas profundas reformas
pelas quais o Brasil passou durante o período, partindo de adminis-
tração predominante burocrática para um modelo primordialmente
gerencial:

“Diante das severas críticas direcionadas ao modelo burocrático


de administração, adotado pela administração pública brasilei-
ra até o fim do século XX, há uma disseminação das reformas
gerenciais, impulsionada principalmente pelo movimento da
New Public Management. Caracterizada principalmente pelo foco
em resultados, esta nova “onda” de reformas foi posta em práti-
ca em muitos países do mundo, entre os quais se inclui o Brasil”.
(BRULON, OHARON, ROSENBERG, 2012, p. 266)2.

A opção por um modelo gerencial esteve atrelada à crise que


o Estado Brasileiro enfrentava à época, em que o engessamento do
tradicional modelo burocrático que não mais atendia às demandas da
sociedade do final do século XX, por não garantir rapidez, tampouco
qualidade aos serviços públicos, o que atrasava o desenvolvimento so-
cial e prejudicava a autodeterminação da nação brasileira.

213
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

A esse respeito, Oliveira (2022, p. 209)3 sustenta que a “noção


de serviço público tem variado no tempo e espaço. A evolução social,
econômica, tecnológica e jurídica acarreta transformações importan-
tes na própria caracterização das atividades que devem ser prestadas
pelo Estado”.
Portanto, a administração pública brasileira, na forma experi-
mentada atualmente, não mais é aquela fixada nos moldes do Decre-
to-Lei nº 200/1967, publicado por Brasil (1967)4, que basicamente a
separa em administração direta e indireta. Hoje, ela está dividida em
autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia
mista, com peculiaridades próprias e alcance de regimes públicos e
privados, em maior ou menor proporção. Assim sendo, a administra-
ção pública se tornou muito mais complexa e dinâmica, denotando a
complexidade com que os temas relacionados à sua atuação impõem
ao meio jurídico.

 ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL (OAB) E


A
A SUA RELAÇÃO COM OS SERVIÇOS PÚBLICOS
A OAB é a entidade máxima de representação dos advo-
gados brasileiros e a responsável pela regulamentação da atividade
da advocacia, sendo, por essa razão, equiparada a um conselho de
classe profissional. Criada em 18 de novembro de 1930, a fundação
entidade é contemporânea ao modelo patrimonialista de gestão da
Administração Pública, tendo sobrevivido ao regime de administração
burocrática, a partir de 1936, tendo chegado à transição para o mode-
lo gerencial no final do século XX.
O trecho resume de maneira precisa a história da entidade ad-
vocatícia, conforme orientação exarada pelo TCU:

214
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

“A OAB tem origem remota e, ao longo do tempo, várias foram as


normas jurídicas que deram suporte à atuação da entidade. O Ins-
tituto dos Advogados Brasileiros - IAB foi o embrião da OAB. Fun-
dado em 7/8/1843, por meio de Aviso Imperial, o IAB tinha o ex-
presso propósito de organizar uma futura ordem de advogados no
Brasil, objetivo que somente foi alcançado, após muitas tentativas
sem êxito, mediante o Decreto 19.408, de 18/11/1930. O regula-
mento da criada Ordem dos Advogados Brasileiros foi aprovado
mediante o Decreto 20.784, de 14/12/1931, com alterações me-
diante os Decretos 21.592, de 1/7/1932, 22.039, de 1/11/1932,
e 22.266, de 28/12/1932, passando a entidade a figurar, a partir
da edição desse último decreto, como Ordem dos Advogados do
Brasil. Posteriormente, as disposições regulamentares da ordem
aprovadas por meio de todos esses decretos foram alteradas e con-
solidadas mediante o Decreto 22.478, de 20/2/1933. Note-se que
todos os decretos acima mencionados foram editados durante o
Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil
instituído em 11/11/1930, quando os decretos expedidos pelo
chefe daquele governam tinham força de lei. O referido Decreto
22.478/1933 seguiu regendo a profissão de advogado e a OAB até
a edição da Lei 4.215, de 27/4/1963, sucedida pela atualmente
vigente Lei 8.906/1994, editada em conformidade com as compe-
tências e prerrogativas conferidas à entidade pela Constituição de
1988”. (TCU, 2018, p. 38)5.

A instituição foi criada por meio do Decreto nº 19.408, con-


forme Brasil (1930)6, do presidente Getúlio Vargas. No Decreto nº
20.784, editado em 14 de dezembro do ano seguinte, constava-se, no
art. 2º, para fins de isenção tributária, a categorização como serviço
público federal.

215
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Posteriormente, em 27 de abril de 1963, por meio da edição da


Lei nº 4.215/63 – Brasil (1963)7, além de disposições ligadas ao desem-
penho da advocacia, evidenciou-se o caráter de serviço público, para
efeitos tributários, além de mencionar a entidade como prestadora de
serviço público relevante à sociedade. Em continuidade à alavancagem
do status da OAB, a Constituição Federal de 1988 destinou especial
menção à advocacia, em seu art. 133, sendo o advogado indispensável
à administração da justiça e inviolável por seus atos e manifestações no
exercício da sua profissão.
Sobre o tema, importante destacar que:

“A advocacia não é apenas um pressuposto do Poder Judiciário.


É também necessária a seu funcionamento [...] nada mais na-
tural, portanto, que a Constituição o consagrasse e prestigiasse,
se se reconhece no exercício do seu mister a prestação de um
serviço público” (SILVA, 2007, p. 613)8.

Por sua vez, a OAB está envolvida na participação em con-


cursos públicos de carreiras jurídicas, na indicação de ministros para
Cortes Superiores e membros dos Conselhos Nacionais de Justiça e do
Ministério Público, possuindo, ainda, prerrogativa de propositura de
ações diretas de inconstitucionalidade e ações declaratórias de consti-
tucionalidade. Esse fato permite indicar que a entidade não se limita à
mera entidade de classe, tendo um papel crucial no equilíbrio de forças
dentro do Estado Brasileiro e na consecução do pacto democrático.
Ademais, observando-se as constituições anteriores e comparan-
do-as com a atual Constituição Brasileira, observa-se um especial desta-
que conferido à advocacia e a OAB, sobretudo em questões relevantes
de Estado. Dessa maneira, é o único conselho de classe com menção na
Constituição Federal e com prerrogativas constitucionais. Assim, não se

216
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

pode encarar a entidade como apenas mais um conselho classista, visto


que suas prerrogativas constitucionais a colocam muito além disso.

Em 1994, foi promulgado o novo Estatuto da Advocacia (Lei


nº 8.906/94) por Brasil (1994)9. A legislação conferiu, no âmbito do
ministério privado, a prestação de um serviço público aos advogados,
que exercem uma função social. Da mesma maneira, elencados servi-
ços prestados pela OAB como serviço público, sem qualquer vínculo
funcional ou hierárquico com outros órgãos da Administração Públi-
ca, sendo esta entidade dotada de personalidade jurídica própria e for-
ma federativa, cuja finalidade é:

“Defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado demo-


crático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar
pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça
e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas e
promover, com exclusividade, a representação, a defesa, a sele-
ção e a disciplina dos advogados em toda a República Federati-
va do Brasil” (BRASIL, 1994, art. 44)10.

Não se pode, portanto, olvidar que a OAB possui patamar jurídi-


co superior aos dos conselhos de classe, conforme se demonstra a seguir.

 EMELHANÇAS E DIFERENÇAS ENTRE A OAB E


S
OS DEMAIS CONSELHOS DE CLASSE

Os conselhos de classe são classificados pela doutrina e pela


jurisprudência majoritária como autarquias profissionais. As normas
gerais de organização dessas entidades classistas são definidas pelo
art. 58 da Lei nº 9649/98, promulgada por Brasil (1998)11. Em suma,

217
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

são exercidas em caráter privado, por delegação e mediante autori-


zação legislativa.

Além disso, são dotados de personalidade jurídica de direito


privado, não mantêm com os órgãos da Administração Pública qual-
quer vínculo funcional ou hierárquico, possuindo vínculo celetista com
os seus empregados. São dotados de poder de polícia e de poder ar-
recadador próprio, possuindo as suas anuidades natureza tributária,
gozando, inclusive, de imunidade tributária, conforme prelecionada
a Constituição Federal. Ainda, a competência para as processamento
das demandas envolvendo litígios face os respectivos conselhos de clas-
se são federais, sendo competente a Justiça Federal.

Em relação ao regime de contratação de pessoal, o Supremo


Tribunal Federal (STF, 2015)12 decidiu, no julgamento do Mandado
de Segurança nº 28469, pela realização de concurso público, muito
embora os seus trabalhadores sejam regidos pela legislação traba-
lhista comum. Por sua vez, o STF (2015)13 decidiu, no julgamento
do Recurso Extraordinário nº 838648, que só estão autorizados a
demitir os seus empregados mediante instauração de processo ad-
ministrativo disciplinar.

Os conselhos classistas podem, ainda, conforme preleciona


Cavalcante (2022)14, ajuizar ações civis públicas, por expressa previsão
legal no art. 5º da Lei n.º 7347/85, mas a doutrina e a jurisprudência
majoritária entendem que estas ações devem ter pertinência temática
com suas atividades.

Como pontos em comum com os conselhos classistas, a OAB


pode manejar ações civis públicas. No entanto, segundo entendeu o
Superior Tribunal de Justiça (STJ, 2013), não há necessidade de perti-
nência temática, uma vez que a instituição é elencada como defensora
da Constituição Federal.

218
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Outra semelhança com os conselhos de classe é o fato de que a


entidade possui poder de arrecadação e poder de polícia. Entretanto,
quanto à natureza tributária da sua anuidade, a jurisprudência é diver-
gente, tendo em vista a divergência entre o STF e o STJ. Segundo Ca-
valcante (2022)15, o STF entende pelo caráter tributário das anuidades
cobradas, enquanto o STJ entende que não há esse caráter.

Por fim, em relação às semelhanças, o foro competente para as


ações que envolvem a OAB é a Justiça Federal, conforme interpreta-
ção conferida pelo STF (2016)16, independente de envolver o Conselho
Federal ou os Conselhos Seccionais Estaduais.

Por outro lado, há diversas peculiaridades que são atribuídas


apenas à OAB. A primeira delas envolve a contratação de funcio-
nários. Segundo Cavalcante (2022)17, embora o regime celetista se
assemelhe às autarquias, não há necessidade de que a seleção seja
realizada por meio de concurso público, o que, por conseguinte, au-
toriza a demissão dos funcionários sem a realização de processo ad-
ministrativo disciplinar.

A segunda envolve a aquisição de bens. Enquanto as enti-


dades classistas se submetem ao dever de licitar, a OAB não dis-
põe dessa obrigatoriedade na aquisição de seus bens e serviços. A
terceira envolve a competência para o manejo de ações judiciais.
A OAB é o único conselho de classe que possui legitimidade para
manejar ações diretas de inconstitucionalidade, ações declaratórias
de constitucionalidade e arguições de descumprimento de preceito
fundamental. O fato de que essa prerrogativa que não é estendida
aos demais conselhos de classe indica o seu patamar mais amplo,
tendo em vista que apenas os legitimados dispostos na Constituição
podem manejar essas ações.

219
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Dessa maneira, percebe-se a OAB possui muitas características


de autarquia, ao mesmo tempo que possui caráter relevante de enti-
dade privada, não podendo ser definida nem como esta, nem como
aquela. Assim, urge como questionável a possibilidade de fiscalização
da entidade pelo TCU.

Para os conselhos de classe tradicionais, essa temática é pacífi-


ca, uma vez que são considerados autarquias federais puras, aplican-
do-se o art. 71, inciso II da Constituição Federal como fundamento
jurídico para o exercício do poder fiscalizatório do TCU. Ocorre que,
em relação à OAB, tendo em vista as peculiaridades da entidade, exis-
te dúvida a respeito da legitimidade da atuação da Corte de Contas,
tendo em vista a possibilidade de caracterização de ingerência em en-
tidade autônoma.

O principal argumento contrário à fiscalização do TCU en-


volve a ausência de caracterização da OAB como autarquia pura. O
principal argumento a favor se debruça sobre o caráter de exercício de
um serviço público da entidade, que estaria sendo prestado e, portan-
to, submetido à fiscalização da Corte de Contas, inclusive por meio do
gerenciamento de recursos públicos recebidos a partir da sua própria
competência tributária arrecadatória.

A fim de responder a esse questionamento, crucial regressar à


análise da natureza jurídica da OAB.

A NATUREZA JURÍDICA DA OAB

A doutrina e a jurisprudência brasileira não firmaram um con-


senso sobre a natureza jurídica da OAB. Para o STF, a entidade se
trata de um serviço público independente e de categoria ímpar:

220
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

“A OAB não é uma entidade da Administração Indireta da


União. A Ordem é um serviço público independente, cate-
goria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes
no direito brasileiro. A OAB não está incluída na categoria na
qual se inserem essas que se tem referido como “autarquias es-
peciais” para pretender-se afirmar equivocada independência
das hoje chamadas “agências”. Por não consubstanciar uma
entidade da Administração Indireta, a OAB não está sujeita
a controle da Administração, nem a qualquer das suas partes
está vinculada. Essa não-vinculação é formal e materialmente
necessária. A OAB ocupa-se de atividades atinentes aos advo-
gados, que exercem função constitucionalmente privilegiada,
na medida em que são indispensáveis à administração da Jus-
tiça [art. 133 da CF/88. É entidade cuja finalidade é afeita a
atribuições, interesses e seleção de advogados. Não há ordem
de relação ou dependência entre a OAB e qualquer órgão pú-
blico”. (STF, 2006, p. 02)18.

Ao mesmo tempo, o próprio STF a caracterizou como uma


entidade de autarquia corporativista:

“COMPETÊNCIA – ORDEM DOS ADVOGADOS DO


BRASIL – ANUIDADES. Ante a natureza jurídica de autar-
quia corporativista, cumpre à Justiça Federal, a teor do disposto
no art. 109, inciso I, da Carta da República, processar e jul-
gar ações em que figure na relação processual quer o Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, quer seccional”.
(STF, 2016, p. 01)19.

221
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Para parte da doutrina, conforme defende Cavalcante (2022)20,


é consenso que a OAB não se enquadra como autarquia, não se su-
jeitando a qualquer controle hierárquico ou ministerial da Adminis-
tração Pública. No entanto, a OAB é dotada de poder de polícia e de
poder de arrecadação, na medida em que recebe recursos decorrentes
de exames da ordem, anuidades advocatícias e outras receitas. Além
de exercer seu papel de entidade de classe na medida em que represen-
ta os anseios da advocacia.

Dessa maneira, a par das considerações anteriores, propõe-se


uma definição de personalidade jurídica à OAB da seguinte forma:
pessoa jurídica de direito privado, prestadora de serviços públicos de
status constitucional. Pode-se, também, como alternativa, ser consi-
derada como autarquia de patamar constitucional, já que é a única
prevista na Constituição e possui prerrogativas que nenhuma outra
autarquia possui.

ANÁLISE DA QUESTÃO PELO SUPREMO


TRIBUNAL FEDERAL
O Supremo Tribunal Federal não possui uma posição defini-
tiva sobre o tema, visto que a obrigatoriedade da submissão da fisca-
lização pelo TCU está suspensa por decisão liminar da Ministra Rosa
Weber, nos autos do Mandado de Segurança nº 36.376. Na referida
decisão, suspendeu-se o acórdão do TCU nº 2573/2018 com base nos
precedentes judiciais do STF que indicam que a OAB não é entidade
da administração pública:

222
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

“Ocorre que neste momento processual, referente ao exame


meramente perfunctório da controvérsia, sobressalta o fato de
que a conclusão do TCU contraria linhas basilares de enten-
dimento jurisprudencial desta Suprema Corte. No julgamen-
to da ADI nº 3026/DF, firmou-se entendimento indicativo de
que a OAB não é uma entidade da Administração Indireta da
União. A Ordem é um serviço público independente, catego-
ria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no
direito brasileiro” (STF, 2019, p. 01)21.

Embora a ministra tenha se fundamentado nesse precedente, é


válido destacar que aquilo que foi decidido pelo STF (2006)22 na Ação
Direta de Inconstitucionalidade nº 3026/DF, invocada na decisão, foi
a constitucionalidade de um dispositivo do estatuto da OAB e a sub-
missão ao princípio da obrigatoriedade do concurso público para a
contratação de seus empregados, não sendo discutida a submissão da
OAB à fiscalização de suas contas pelo TCU.
Observa-se que, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº
3026, STF (2006)23 entendeu que a OAB sequer detinha a persona-
lidade jurídica de autarquia. No entanto, em julgado mais recente, a
OAB foi classificada pelo STF (2016)24 como autarquia corporativis-
ta nos autos do Recurso Extraordinário nº 595332. Dessa maneira,
há um indicativo de que o Tribunal não definiu de maneira pacífica
qual é a personalidade jurídica da instituição advocatícia, não havendo
precedente apto a afastar a rediscussão da matéria com base no novo
modelo administrativo aplicado no Brasil.

223
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Outro ponto que chama a atenção é que o STF, nos autos do


Recurso Extraordinário nº 1182189, rediscutiu a personalidade jurídi-
ca da OAB como autarquia especial, implicando, indiretamente, que
as suas contas deveriam ser julgadas pelo TCU. Esse foi o entendimen-
to do Ministro Marco Aurélio:

“Diz-se autarquia “especial” não para aproximar a entidade das


chamadas agências reguladoras, dotadas de certa autonomia,
mas por não estar enquadrada nas categorias tradicionais do
direito, mostrando-se infrutífera qualquer tentativa de acomo-
dá-la nos estritos limites de conceitos antigos. A interpretação
de toda matéria legal deve partir da Constituição de 1988, e
não o contrário. A Ordem é autarquia tendo em vista as atri-
buições corporativas, tal como o são os demais conselhos de
fiscalização,5 e o serviço público – em acepção ampla – que
presta à sociedade, este singular à instituição. A atividade de-
senvolvida não se volta à satisfação de necessidade específica da
coletividade. Além de regular a advocacia, é múnus público, de
relevância maior, decorrendo daí o dever de prestar contas. (...)
A chamada “anuidade” é cobrada de forma compulsória e, a
exemplo do que ocorre nos conselhos de fiscalização, possui na-
tureza tributária, estando enquadrada na espécie contribuições
de interesse de categorias profissionais. Precedentes: ações dire-
tas de inconstitucionalidade nº 1.717, relator ministro Sydney
Sanches, acórdão publicado em 28 de março de 2003, e 4.697,
relator ministro Luiz Edson Fachin, acórdão veiculado no Diá-
rio da Justiça eletrônico de 30 de março de 2017. Parte-se de
premissa segundo a qual fiscalização exercida sobre integrantes
de certa categoria pressupõe poder de polícia, de tributar e de
punir, indelegável a particulares, surgindo a índole tributária”
(STF, 2020, p. 01)25.

224
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Ao final, o ministro Marco Aurélio, na condição de integran-


te do colegiado do STF (2020, p. 01)26, propôs a fixação da seguinte
tese em sede de repercussão geral: “A Ordem dos Advogados do Bra-
sil está submetida a fiscalização pelo Tribunal de Contas da União”.
Com a sua aposentadoria, um novo relator foi atribuído à Ação, o
Ministro André Mendonça, o que poderá alterar os rumos do julga-
mento. Espera-se que o STF, nos próximos anos, finalmente defina
essa situação e pacifique o entendimento a respeito da personalidade
jurídica da instituição.

 FISCALIZAÇÃO DA OAB PELO TRIBUNAL DE


A
CONTAS DA UNIÃO (TCU)

A Constituição Federal de 1988 alargou as competências do TCU,


robustecendo os instrumentos de controle, além de primar pela transpa-
rência e pela publicidade dos atos da administração pública, alavancando-
-os ao patamar de princípio expresso da administração pública.

O TCU é o órgão de controle externo auxiliar do Poder Le-


gislativo, que tem por função precípua fiscalizar o dinheiro público. A
instituição tem funções primárias definidas no art. 71 da Constituição
Federal, sendo as principais:

“I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da


República;

II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis


por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e
indireta, mantidas pelo poder público federal, e as contas daque-
les que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de
que resulte prejuízo ao erário público;

225
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

III - apreciar, a legalidade dos atos de admissão de pessoal,


a qualquer título, na administração direta e indireta e apo-
sentadorias, realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos
Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de
inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, finan-
ceira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades
administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário
(...)” (BRASIL, 1988, art. 71)27.

Além disso, compete ao TCU a aplicação de sanções previstas


em lei em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas,
conferir prazo para a adoção de providências ao cumprimento da lei, e
a suspender a execução do ato administrativo, comunicando a decisão
ao Congresso Nacional.

Assim sendo, a natureza pública da prestação dos serviços pela


OAB, bem como a gerência dos recursos públicos e sua imunidade
tributária são situações que, por si só, exigem um maior rigor fiscali-
zatório e de controle, justificando, a priori, a fiscalização do TCU. Em
associação, os recursos gerenciados pela entidade possuem caráter fe-
deral, uma vez que não está submetida a nenhuma jurisdição estadual.

Corroborando esse fato, está a jurisprudência do STF (2020),


que elenca que a anuidade da OAB constitui contribuição de inte-
resse das categorias profissionais, conforme precedente no Recurso
Extraordinário n.º 647885,configurando, portanto, um tributo. Dessa
maneira, considerando que a jurisprudência considera que as ações
que envolvem a OAB são da alçada da Justiça Federal, que as anui-
dades cobradas têm natureza tributária e que a instituição presta um
serviço público, parece ser legítima a atuação do Tribunal de Contas
sobre as contas da Ordem.

226
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Nesse contexto, o TCU (2018), por meio da TC nº


015.720/2018-7, determinou que a OAB prestasse contas a partir do
ano de 2021, superando três controvérsias suscitadas: se há coisa jul-
gada sobre a matéria, se faz parte da Administração Pública Indireta,
e se gerencia recursos públicos federais.
A primeira controvérsia sobre a questão da coisa julgada se dá
pelo fato de que o extinto Tribunal Federal de Recursos julgou, em
1951, na vigência da Constituição de 1946, matéria similar e entendeu
que a OAB não se sujeitaria ao controle do TCU. Naquela época, tam-
bém a OAB era regida por outra legislação, a Lei nº 830/1949.
O TCU explicou que o voto do Tribunal Federal de Recursos,
nesse julgamento de 1951, destacou as seguintes situações:

“O Acórdão, tomado por maioria, pautou-se pelas competên-


cias do TCU previstas no art. 77 da Constituição Federal de
1946 e na Lei 830/1949, bem como pelas normas vigentes
à época que delineavam a natureza jurídica da Ordem dos
Advogados e das contribuições por ela geridas. Por elucida-
tivos, transcrevo trechos das razões de decidir do referido jul-
gado: “Para a caracterização da prestação de contas dúvida
não pode haver de que é preciso que se trate de uma autarquia
e que seja ela responsável por dinheiros e outros bens públi-
cos. São essas as palavras textuais empregadas pelo legislador
constitucional no art. 77, quando ao tratar ‘Do Orçamento’,
colocando expressivamente o referido dispositivo nesse capítu-
lo, especificou a competência do Tribunal de Contas. (…) Nes-
se particular, o que acontece com a Ordem dos Advogados?
Acontece o seguinte, sem contestação: ela não administra pa-
trimônio público, não recebe auxílio ou subvenção do Tesou-
ro; não tem qualquer de seus dirigentes nomeados pelo Poder

227
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Executivo, porque todos são eleitos pelos próprios advogados;


gratuitamente são exercidos todos os seus cargos diretivos e
de administração; a situação da Ordem é, pois, sui generis.
Não recebendo dinheiros públicos, não aplicando dinheiros
públicos, vivendo exclusivamente das contribuições de seus as-
sociados, não guardando dinheiros públicos, de que vai a Or-
dem prestar contas ao Tribunal de Contas? (…). Mesmo que
se queira ampliar o conceito da expressão ‘dinheiros públicos’
até chegar ao ‘tributo’, mesmo aí, não se poderá enquadrar a
Ordem, pois ela não recebe tributo algum proveniente do Or-
çamento da União, característica prevista no art. 101, §34 da
Constituição Federal. (…) E não há de ser somente por poder
aplicar penas aos advogados faltosos, pelo seu Tribunal de Éti-
ca, cujas funções não são remuneradas, que a Ordem adquire,
através de seus Conselheiros, as características de um serviço
público, capaz de por si só conceituá-la como autarquia. (…)
Por isso, estou com os que situam a Ordem, vamos dizer assim,
com que numa zona fronteiriça entre os serviços paraestatais
e os demais. (…) O art. nº 139 da Lei 830, em que se funda
o Tribunal de Contas para exigir da Ordem sua prestação,
assim determina: ‘Consideram-se entidades autárquicas: a)
o serviço estatal descentralizado com personalidade jurídica,
custeado mediante orçamento próprio independente do orça-
mento geral; b) as demais pessoas jurídicas especialmente ins-
tituídas por lei para execução de serviços de interesse público
ou social, custeadas por tributos de qualquer natureza ou por
outros recursos oriundos do Tesouro. Ora, Sr. Presidente, qual
o tributo arrecadado pela Ordem? Nenhum, oriundo do Te-
souro. É absolutamente impossível, por maior extensão que se
queira dar à expressão ‘tributo’, querer atribuir-lhe o caráter
de ‘contribuição’, isto é, afirmar que essa contribuição anual
estabelecida para os advogados inscritos, na forma do art. 94

228
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

do Regulamento da Ordem, equivale, pode ser equiparado


a um tributo. (…) Excluído esse dispositivo para enquadrar
a Ordem, vejamos o outro, aquele que determina autarquia
como sendo um serviço estatal descentralizado, com persona-
lidade jurídica, custeado mediante orçamento próprio, inde-
pendente do orçamento geral. Não tenho dúvida de dizer que,
nesse dispositivo, o legislador visou às autarquias que se cons-
tituíram mediante valores destacados do orçamento geral da
União e, constituindo a seguir, um orçamento independente.”
(TCU, 2018, p. 51).

Após a decisão, passaram-se mais de setenta anos, período em


que houve consideráveis mudanças, sobretudo no regime constitucio-
nal. Atualmente, a OAB possui outra caracterização jurídica, associa-
da à ampliação do escopo de atuação dos órgãos de controle e fis-
calização, conferindo-lhes novas funções não previstas anteriormente,
quando em vigor a Constituição de 1946.
Dessa maneira, não está mais configurada a coisa julgada na
medida em que tanto a Constituição, quanto o regramento legal da
OAB, passaram por profundas mudanças, inclusive quanto ao caráter
jurídico da anuidade da OAB, que possui caráter de tributo. Ressalta-
-se que, até o presente momento, não houve pronunciamento sobre a
natureza jurídica da OAB com precisão, após a promulgação da Cons-
tituição de 1988.
Quanto à inserção da OAB na administração pública, o TCU
(2018) entendeu, no mesmo julgado que a OAB possui diversas carac-
terísticas que o enquadraram como uma espécie de autarquia. Sobre o
tema, importante frisar que:

229
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

“Como bem defende o MPTCU, a OAB preenche todos os


requisitos descritos na lei para se enquadrar como autarquia,
ou seja, consiste em: “[1º] serviço autônomo, [2º] criado por
lei, [3º] com personalidade jurídica, [4º] patrimônio e receita
próprios, [5º] para executar atividades típicas da Administra-
ção Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamen-
to, gestão administrativa e financeira descentralizada.” (TCU,
2018, p. 54).

Outro ponto que se destaca é o ato de que a OAB possui


imunidade tributária, fato que, na conclusão do TCU (2018, p.
57)27, só pode ser considerada válida, “se a entidade possuir natu-
reza jurídica de autarquia. Isso porque imunidade tributária não
pode ser instituída mediante norma infraconstitucional. Ela deve
estar prevista na Constituição”.
E, por último, se as verbas oriundas da OAB são federais, na-
turalmente o Tribunal competente para fiscalizá-las é o TCU. Nesse
sentido, o caráter federal dos recursos pode ser consultado na Carta
Magna Brasileira:

“Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir


contribuições sociais, de intervenção no domínio eco-
nômico e de interesse das categorias profissionais ou
econômicas, como instrumento de sua atuação nas res-
pectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e
150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º,
relativamente às contribuições a que alude o dispositi-
vo.” (BRASIL, 1988, art. 149).

230
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Se a anuidade da OAB é uma contribuição de interesse de


categoria profissional, só se pode concluir que os recursos arreca-
dados pela instituição são federais, o que, dessa forma, atrai a com-
petência do TCU por força do art. 71, inciso II da Constituição
Federal de 1988.
Portanto, a OAB possui todos os requisitos de entidade pública
que se enquadra na fiscalização do TCU, dada a sua natureza jurídica
predominantemente de autarquia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Administração Pública Brasileira atual é muito mais comple-
xa do que a que vigeu sobre outras constituições. O principal fato que
corrobora a assertiva é a participação de diversas entidades privadas
fornecendo serviços públicos. Em tempos de estabilidade constitucio-
nal, de consolidação do princípio republicano e do amadurecimento
das instituições, nota-se que o dever de transparência aos cidadãos é
algo intrínseco às finalidades institucionais de qualquer instituição pú-
blica ou privada prestadora de serviços públicos. A importância da
matéria possui alçada constitucional, sendo o princípio da publicidade
expressamente indicado no texto da carta magna brasileira.
Em uma análise aprofundada, observa-se que OAB é uma en-
tidade de caráter constitucional, com características que a aproximam
de uma autarquia, constituindo-se na forma de uma autarquia espe-
cial de caráter constitucional. O fato de ser autarquia, em momento
algum, torna-a menos independente ou a submete a alguma ordem na
administração direta. Ao contrário, justamente para dar independên-
cia à entidade que o legislador brasileiro delegou a algumas instituições
a roupagem de autarquia, para que possam exercer suas atividades de
maneira plena.

231
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Por ser uma instituição prevista na Constituição, com orça-


mento alcançado por meio do recolhimento de tributo de competência
da União – anuidade, observa-se que a Justiça Federal é competente
para apreciar matérias envolvendo a instituição. Exatamente por isso,
considerando-se que a entidade é prestadora de serviço público e man-
tenedora de recursos tributários, é dever do Tribunal de Contas exer-
cer a sua fiscalização de modo a garantir aos cidadãos a verdadeira
transparência moldada nos tempos constitucionais atuais.
O próprio Poder Judiciário, seja em nível estadual ou federal,
submete-se à fiscalização de suas contas de gestão. Da mesma forma,
o Ministério Público e a Defensoria Pública. Assim sendo, a Advocacia
Pública, de igual maneira, deveria se submeter à fiscalização dos tribu-
nais de contassem que tal fato configure ingerência sobre a sua atuação
e independência.
Todos os conselhos classistas se submetem à fiscalização do
TCU, por serem pacificamente enquadradas como autarquias corpo-
rativas federais. Embora esteja em patamar mais elevado, já que detém
prerrogativas constitucionais que nenhum outro conselho profissional,
tal fato não afasta o dever de fiscalização da Corte de Contas Federais.
Em contraposição, exatamente por seu papel republicano, deve estar
submetida aos princípios da transparência e probidade, servindo de
exemplo a outras instituições nacionais.

232
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Notas

BRASIL. Decreto nº 19.408, de 18 de novembro de 1930. Rio de Janeiro/RJ: Presi-


1

dência da República, 1930.


2
BRULON, Vanessa; OHAYON, Pierre; ROSENBEG, Gerson. (2012). A reforma
gerencial brasileira em questão: contribuições para um projeto em construção. Brasília/DF: Revis-
ta do Serviço Público, vol. 63, n. 03, pp. 265-284.
3
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. O princípio da continuidade do serviço público
no Direito Administrativo Contemporâneo. Portal Genjurídico [online], p. 01.

BRASIL. Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967. Brasília (DF): Presidência


4

da República, 1967.
5
TCU. TC nº 015.720/2018-7 – Acórdão nº 2573/2018 - Plenário. Relator: Minis-
tro Bruno Dantas. Brasília/DF. DJ: 07/11/2018. Portal do Tribunal de Contas da
União [online], p. 38.
6
BRASIL. Decreto nº 19.408, ..., cit.
7
BRASIL. Lei nº 4.215, de 27 de abril de 1963. Brasília (DF): Senado Federal, 1963.
8
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo (SP): Ma-
lheiros, 2007, p. 613.

BRASIL. Lei nº 8.906/94, de 04 de julho de 1994. Brasília/DF: Senado Federal,


9

1994, art. 44
10
BRASIL. Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1998. Brasília/DF: Senado Federal, 1998.

STF. Mandado de Segurança nº 28469. Relator: Ministro Luiz Fux. Brasília/DF.


11

DJ: 09/06/2015. Portal Jusbrasil [online], p. 01.

STF. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 838648. Relator: Ministro Dias


12

Toffoli. Brasília/DF. DJ: 07/04/2015. Portal Jusbrasil [online], p. 01.


13
CAVALCANTE. Marcio Andre Lopes. PROCON tem legitimidade para ajuizar
ação civil pública questionando a abusividade de reajuste no valor cobrado dos usuários da CABESP
(plano de saúde de autogestão)? Portal Dizer o Direito [online], p. 01.

STF. Recurso Extraordinário nº 595332. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasí-


14

lia/DF. DJ: 31/08/2016. Portal Jusbrasil [online], p. 01.

233
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

15
STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3026. Relator: Ministro Eros Grau.
Brasília/DF. DJ: 08/06/2006. Portal Jusbrasil [online], p. 02.
16
STF. Recurso Extraordinário nº 595332. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasí-
lia/DF. DJ: 31/08/2016. Portal Jusbrasil [online], p. 01.
17
CAVALCANTE. Marcio Andre Lopes. PROCON tem legitimidade para ajuizar
ação civil pública ..., cit., p. 02.
18
STF. Mandado de Segurança nº 36.376. Relatora: Ministra Rosa Weber. Brasília/
DF. DJ: 07/06/2019. Portal Jusbrasil [online], p. 01.
19
STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3026. Relator: Ministro Eros Grau.
Brasília/DF. DJ: 08/06/2006. Portal Jusbrasil [online], p. 01.
20
STF. Recurso Extraordinário nº 595332. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasí-
lia/DF. DJ: 31/08/2016. Portal Jusbrasil [online], p. 01.
21
STF. Recurso Extraordinário nº 1182189. Relator: Ministro André Mendonça.
Brasília/DF. DJ: 30/09/2020. Portal do Supremo Tribunal Federal [online], p. 01.
22
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988.
Brasília/DF: Senado Federal, 1988, art. 71.
23
TCU. TC nº 015.720/2018-7 ..., cit., p. 38.
24
TCU. TC nº 015.720/2018-7 ..., cit., p. 51.
25
TCU. TC nº 015.720/2018-7 ..., cit., p. 54.
26
TCU. TC nº 015.720/2018-7 ..., cit., p. 57.
27
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil..., cit., art. 71.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Brasí-


lia/DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Decreto nº 19.408, de 18 de novembro de 1930. Rio de Janeiro/RJ: Presi-


dência da República, 1930. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/

234
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

decreto/1930-1949/d19408.htm#:~:text=DECRETA%3A,pelos%20vice%2Dpresi-
dentes%20da%20Corte.>. Acesso em: 02 jun. 2022.

BRASIL. Decreto nº 20.784, de 14 de dezembro de 1931. Rio de Janeiro/RJ: Presi-


dência da República, 1931. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto/1930-1949/d20784.htm>. Acesso em: 02 jun. 2022.

BRASIL. Decreto-Lei nº 200, de25 de fevereiro de 1967. Brasília (DF): Presidência da


República, 1967. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
-lei/del0200.htm>. Acesso em: 04 jun. 2022.

BRASIL. Lei nº 830, de 23 de setembro de 1949. Rio de Janeiro/RJ: Presidência da


República, 1949. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1930-
1949/l0830.htm>. Acesso em: 02 jun. 2022.

BRASIL. Lei nº 4.215, de27 de abril de 1963. Brasília (DF): Senado Federal, 1963.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/l4215.
htm>. Acesso em: 04 jun. 2022.

BRASIL. Lei nº 8.906, de 04 de julho de 1994. Brasília/DF: Senado Federal, 1994.


Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm>. Acesso
em: 02 jun. 2022.

BRASIL. Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1998. Brasília/DF: Senado Federal, 1998.


Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9649cons.htm>. Aces-
so em: 02 jun. 2022.

BRULON, Vanessa; OHAYON, Pierre; ROSENBEG, Gerson. (2012). A refor-


ma gerencial brasileira em questão: contribuições para um projeto em construção.
Revista do Serviço Público, vol. 63, n. 03, Brasília/DF, pp. 265-284.

CAVALCANTE. Marcio Andre Lopes. PROCON tem legitimidade para ajuizar ação
civil pública questionando a abusividade de reajuste no valor cobrado dos usuários da CABESP
(plano de saúde de autogestão)? Portal Dizer o Direito [online]. Disponível em: <https://
www.dizerodireito.com.br/2022/05/procon-tem-legitimidade-para-ajuizar.html>.
Acesso em: 26 mai. 2022.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. O princípio da continuidade do serviço públi-


co no Direito Administrativo Contemporâneo. Portal Genjurídico [online]. Disponível em:

235
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

<http://genjuridico.com.br/2014/09/26/o-principio-da-continuidade-do-servico-
-publico-no-direito-administrativo-contemporaneo/>. Acesso em 01 jun. 2022.

SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo (SP): Malhei-
ros, 2007.

STF.Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3026. Relator: Ministro Eros Grau. Bra-


sília/DF. DJ: 08/06/2006. Portal Jusbrasil [online]. Disponível em: <https://stf.
jusbrasil.com.br/jurisprudencia/760367/acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi-
-3026-df>. Aesso em: 29 mai. 2022.

STF.Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 838648. Relator: Ministro


Dias Toffoli. Brasília/DF. DJ: 07/04/2015. Portal Jusbrasil [online]. Disponí-
vel em: <https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/863959373/agreg-no-re-
curso-extraordinario-agr-re-838648-df-distrito-federal-1470222-0115100020>.
Acesso em: 31 mai. 2022.

STF. Mandado de Segurança nº 28469. Relator: Ministro Luiz Fux. Brasília/DF. DJ:
09/06/2015. Portal Jusbrasil [online]. Disponível em: <https://stf.jusbrasil.com.br/
jurisprudencia/23508259/segundo-agreg-em-mandado-de-seguranca-ms-28469-d-
f-stf/inteiro-teor-111732872>. Acesso em: 30 mai. 2022.

STF. Mandado de Segurança nº 36.376. Relatora: Ministra Rosa Weber. Brasília/


DF. DJ: 07/06/2019. Portal Jusbrasil [online]. Disponível em: <https://www.
jusbrasil.com.br/diarios/documentos/720508142/andamento-do-processo-n-
-36376-medida-cautelar-mandado-de-seguranca-12-06-2019-do-stf>. Acesso
em: 02 jun. 2022.

STF. Recurso Extraordinário nº 595332. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília/


DF. DJ: 31/08/2016. Portal Jusbrasil [online]. Disponível em: <https://stf.jusbrasil.
com.br/jurisprudencia/772397378/recurso-extraordinario-re-595332-pr-parana/
inteiro-teor-772397388?ref=amp>. Acesso em: 30 mai. 2022.

STF. Recurso Extraordinário nº 647885. Relator: Ministro Edson Fachin. Brasília/


DF. DJ: 27/04/2020. Portal Jusbrasil [online]. Disponível em: <https://stf.jusbrasil.
com.br/jurisprudencia/865368308/recurso-extraordinario-re-647885-rs-rio-gran-
de-do-sul/inteiro-teor-865368318?ref=serp>. Acesso em: 02 jun. 2022.

236
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

STF. Recurso Extraordinário nº 1182189. Relator: Ministro André Mendonça.


Brasília/DF. DJ: 30/09/2020. Portal do Supremo Tribunal Federal [online]. Dis-
ponível em: <https://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAnda-
mentoProcesso.asp?incidente=5608486&numeroProcesso=1182189&classeProces-
so=RE&numeroTema=1054>. Acesso em: 03 jun. 2022.

STJ. Recurso Especial nº 1351760. Relator: Ministro Humberto Martins, Segunda


Turma. Brasília/DF. DJ: 26/11/2013. Portal Jusbrasil [online]. Disponível em: <ht-
tps://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/24803984/recurso-especial-resp-1351760-pe-
-2012-0229361-3-stj/inteiro-teor-24803985>. Acesso em: 30 mai. 2022.

TCU. TC nº 015.720/2018-7 – Acórdão nº 2573/2018 - Plenário. Relator: Mi-


nistro Bruno Dantas. Brasília/DF. DJ: 07/11/2018. Portal do Tribunal de Con-
tas da União [online]. Disponível em: <https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/
documento/acordao-completo/TC%2520n%25C2%25BA%2520015.720%25
2F2018-7/%2520/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACOR-
DAOINT%2520desc/0/%2520>. Acesso em: 30 mai. 2022.

237
O DIREITO DE REGRESSO E A TEORIA DO
FATO JURÍDICO
Pedro Monteiro Dória1

RESUMO
O presente artigo analisa o direito de regresso e da teoria do
fato jurídico propondo, mediante uma leitura sistemática da doutri-
na e da análise jurisprudencial, uma interpretação coesa acerca da
responsabilidade civil perante a Administração Pública. O dever es-
tatal de reparação é iniciado no instante em que um dano é causado
a terceiros devido aos atos ou omissões cometidos por seus agentes no
desempenho de sua função. A Constituição Federal é clara ao deter-
minar que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito priva-
do, prestadoras de serviços públicos, responderão pelos danos que seus
agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurando o direito
de regresso contra o responsável, em caso de dolo e culpa. Contudo,
nota-se que a aplicação de tal dispositivo ignora a capacidade finan-
ceira do servidor público, o causador do dano. Trata-se, portanto, de
uma garantia constitucional do servidor público que traz a urgência
de ser observada.
Palavras-chaves: Administração Pública. Ressarcimento. Ação
Regressiva.

1 Procurador do Estado do Amapá, graduado em Direito pelo Centro Universitário CESMAC, FEJAL, e especialista
em Direito Público pela Universidade Anhanguera.

239
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

ABSTRACT
The present work analyzes the right of return and the theory
of the legal fact proposing, through a systematic reading of the doc-
trine and jurisprudential analysis, a cohesive interpretation about civil
liability before the Public Administration. The State’s duty of repara-
tion begins the moment damage is caused to third parties due to the
acts or omissions committed by its agents in the performance of their
duties. The Federal Constitution is clear in determining that legal enti-
ties governed by public law and those governed by private law, provid-
ers of public services, will be liable for the damages that their agents,
in this capacity, cause to third parties, ensuring the right of recourse
against the person responsible, in case of deceit and guilt. However,
it is noted that the application of such a device ignores the financial
capacity of the public servant, the cause of the damage. It is, therefore,
a constitutional guarantee of the public servant that urgently needs to
be observed.
Keywords: Public Administration. Refund. Regressive Action.

DO DIREITO DE REGRESSO
O reconhecimento da responsabilidade do Estado, pelos atos
lesivos de seus agentes, está previsto no art. 37. § 6º da Constituição
Federal, expressis verbis:

Art. 37. § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direi-


to privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos
danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros,
assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos
de dolo ou culpa.

240
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Sob essa perspectiva, o Estado responde, objetivamente, pelos


atos praticados pelos seus agentes, assegurado o direito de regresso
contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
O dever de indenizar também está previsto no Código Civil no
Art. 186 do Código Civil, in verbis:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência


ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito.

O art. 187 do Código Civil iguala aos atos ilícitos, passíveis de


indenização, aqueles que exercidos além dos limites impostos pela boa
fé, bons costumes e seus fins econômicos e sociais, ad litteram:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao


exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim
econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Dessa maneira, há a responsabilidade estatal garantida não


só pelos atos ilícitos stricto sensu dos seus agentes que geram danos,
como, também, pelas omissões daqueles que, tendo deixado de agir
quando deveriam fazê-lo não evitaram ou afastaram as situações
danosas a terceiros.
A Responsabilidade civil pelos atos omissivos genéricos, e.g., as fa-
lhas na prestação de serviços públicos; podem se enquadrar naquilo que
Celso Antônio Bandeira de Melo chamou de teoria da culpa anônima.
Importa ressalvar que se retirou do escopo do presente traba-
lho a análise das ações regressivas por qualquer omissão Estatal.

241
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

O art. 934 do Código Civil determina o dever do ressarcimen-


to àquele que indenizou dano causado por outrem, vejamos:

Art. 934. Aquele que ressarcir o dano causado por outrem pode
reaver o que houver pago daquele por quem pagou, salvo se o
causador do dano for descendente seu, absoluta ou relativamen-
te incapaz.

Sobre o direito de regresso, Cretella Júnior leciona:

O poder-dever que tem o Estado de exigir do f uncionário públi-


co, causador de dano ao particular, a repetição da quantia que a
Fazenda Pública teve de adiantar à vítima de ação ou omissão,
decorrente do mau funcionamento do serviço público, por dolo
ou culpa do agente. 1

No mesmo trilhar, segue Carmen Lúcia Antunes Rocha que


assim escreveu sobre o princípio do regresso contra o agente causador
de dano, verbo ad verbum:

A ação regressiva atenta para o direito da sociedade ao


Estado Moral, à ética no exercício das funções públicas.
Assim, se de um lado não se pode deixar ao desabrigo os
direitos maculados dos particulares por um comportamen-
to imputável ao Estado, também é exato que a sociedade
não deve arcar com os ônus decorrentes de condutas equi-
vocadas dos agentes públicos. 2

242
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Com efeito, diante da responsabilidade objetiva do Estado, a


ação regressiva contra o seu agente fundamenta-se na ideia de que
todos devem arcar com os prejuízos advindos de suas ações ilícitas,
especialmente quando tais prejuízos, em última análise, tenham sido
sofridos pela coletividade (condenada a indenizar os danos causados
pelo servidor).
Ademais, os princípios da indisponibilidade dos bens públicos
e o da moralidade administrativa não permitem que possa ficar ao al-
vedrio do administrador público a possibilidade da escolha entre acio-
nar ou não o agente responsável pelo dano causado a terceiro, cuja
reparação tenha sido realizada às custas do erário.
Desse modo, certamente o regresso só poderá ser exercido
quando configurada a culpa ou dolo do agente causador dos danos.
Contudo, deve-se frisar que a esfera civil de responsabilidade
independe da esfera administrativa. Isto é, embora exista o dever da
autoridade estatal de apurar e punir possíveis ilícitos administrativos,
tão logo tenha ciência do evento danoso, a responsabilização do servi-
dor - causador do dano - na esfera civil, independe de qualquer ilícito
na esfera administrativa.
Isso ocorre porque é preciso separar a responsabilidade civil
dos deveres funcionais dos servidores.
Desse modo, não há espaço na ação regressiva para o debate se
o servidor cumpre ou cumpriu, no momento do ato, com seus deveres
funcionais. Se houve estrito cumprimento do dever legal, trata-se de
uma excludente de ilicitude ou de antijuridicidade; alegação que po-
derá ser feita pelo servidor.
Portanto, é possível afirmar que o processo administrativo dis-
ciplinar e a ação regressiva civil discutem questões distintas, uma vez
que ilícito civil e ilícito administrativo são dois institutos diversos. Daí

243
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

porque o dolo ou a culpa do servidor, na esfera civil, não estão adstritos


ao descumprimento de regras do direito administrativo.

 A TEORIA DO FATO JURÍDICO E A


D
RESPONSABILIDADE CIVIL
Inicialmente, merecem transcrição as lições de Pontes de Mi-
randa que explicam, de maneira clara, o ilícito civil indenizável, expres-
sis verbis:

No tocante às doutrinas gerais dos delitos - no sentido de


fatos ilícitos, compreendidos, portanto, atos ilícitos, atos-fa-
tos ilícitos e fatos ilícitos - há três princípios: o princípio da
contrariedade a direito, o princípio da culpa e o princípio
do nexo causal. Uma vez que o fato ocorre e atinge a esfera
jurídica de outrem, o princípio da contrariedade a direito
satisfaz-se com a antijuridicidade, para que nasçam o dever e
a obrigação de indenizar.3

O dever e a obrigação de indenizar se satisfaz com a antijuridi-


cidade, já que o Código Civil considera ilícito qualquer ato que venha
a causar dano, ainda que seja no exercício de um direito e se excedam,
manifestamente, os limites impostos pelo seu fim econômico ou social,
pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Logo, é possível que no exercício de um direito funcional se
excedam os limites impostos pelo seu fim social, por exemplo. Esse
ato será um ilícito civil indenizável, nos termos do art. 187 do Código

244
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Civil, o que não significa dizer que haverá, necessariamente, o des-


cumprimento de deveres funcionais.
Nesse aspecto, a Constituição Federal é clara em exigir a culpa
ou o dolo, não exigindo que haja descumprimento de deveres funcio-
nais como outras constituições o fazem. Dessa forma, o Estado deve
buscar ser ressarcido “pelos danos que seus agentes, nessa qualidade,
causarem a terceiros”, CF, art. 37, §6º.
Entretanto, a antijuridicidade da conduta que gerou o dano e
o valor do dano se encontra coberta pela coisa julgada. Assim não se
poderá decidir, na esfera do regresso do caso concreto, que a conduta
atribuída ao réu não gerou o dano, até porque o dano, inclusive, já
fora indenizado. Caberia, pois, discutir o nexo causal entre a conduta
do réu e o dano, bem como exceções como e.g. a teoria da imprevisão.
Portanto, urge questionar: Foi o réu quem praticou a conduta
geradora do dano? Houve dolo ou culpa? Há alguma excludente de
antijuridicidade? É o que deverá ser provado na instrução das ações
regressivas.
Doravante, é preciso avaliar a culpa no direito civil. Para fun-
damentar a responsabilidade civil basta a possibilidade de controlar o
ato ou a omissão; não é necessária uma conduta predeterminada para
se atingir determinado fim. Se, no caso concreto, o réu tinha controle
do ato, para o direito civil, há culpa.
Nesse trilhar, recorre-se às palavras de Cavalieri Filho as quais
indicam que a culpa pode ser definida como a “conduta voluntária
contrária ao dever de cuidado imposto pelo Direito, com a produção
de um evento danoso involuntário, porém previsto ou previsível”4.
Sobre dolo e culpa, no ilícito civil, recorremos às palavras de
João de Matos Antunes Varela que ensina:

245
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Quando se alude a facto voluntário do agente, não se pretende


restringir os factos humanos relevantes em matéria de respon-
sabilidade aos actos queridos, ou seja, àqueles casos em que
o agente tenha prefigurado mentalmente os efeitos do acto e
tenha agido em vista deles. Há, pelo contrário, inúmeros ca-
sos (a começar pela chamada negligência inconsciente) em
que não existe semelhante representação mental e, todavia,
ninguém contesta a obrigação de indenizar. Os actos danosos
praticados por distracção ou por falta de autodomínio nor-
mal não deixam de constituir o agente em responsabilidade. O
que está, aliás, geralmente em causa, no domínio da respon-
sabilidade civil, são puras acções de facto (faktische Handlugen),
praticadas sem nenhum intuito declarativo (agressões físicas,
apropriações ilícitas, intromissões em bens jurídicos alheios
etc.). [...] Por isso, facto voluntário significa apenas, no pre-
sente caso, facto objetivamente controlável ou dominável pela
vontade (1). Para fundamentar a responsabilidade civil basta
a possibilidade de controlar o acto ou a omissão; não é neces-
sária uma conduta predeterminada, uma acção ou omissão
orientada para certo fim (uma conduta finalista).5

Nesse ponto, é preciso aprofundar um pouco na teoria do fato


jurídico, especificamente, aonde mais nos interessa: os FATOS JURÍ-
DICOS ILÍCITOS.
Sobre os atos jurídicos ilícitos ninguém melhor para trazer um
conceito simples do que o mestre Silvio Salvo Venosa, para quem “os
atos ilícitos, que promanam direta ou indiretamente da vontade, são
os que ocasionam efeitos jurídicos, mas contrários, lato sensu, ao or-

246
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

denamento. No campo civil, importa conhecer os atos contrários ao


Direito, à medida que ocasionam dano a outrem.” 6
Prosseguindo no conceito de ato ilícito, recorremos, mais uma
vez, às importantes palavras de Pontes de Miranda, que de forma cla-
ra, lecionou:

Já vimos quais são os elementos comuns aos atos ilícitos lato sen-
su: ato humano e contrariedade a direito. O ato ilícito stricto sensu
tem a particularidade de violar, com culpa, a regra jurídica.
(grifos meus)

(...)

É ilícito stricto sensu, portanto, todo ato ilícito que ofenda direito
subjetivo ou cause outros danos. Não estão em foco regras jurí-
dicas que incidam sobre atos-fatos, ou fatos atos ilícitos.

Percebe-se, por meio desses escritos, que haverá, necessaria-


mente, dolo ou culpa na composição dos atos ilícitos strictu sensu que
decorrerem da vontade humana,
Na responsabilidade civil por ato ilícito strictu sensu a culpa da
administração pública não se avalia (responsabilidade objetiva), entre-
tanto, sem demonstrada culpa ou dolo do agente público causador do
dano haveria necessariamente uma excludente de antijuridicidade.
Ninguém melhor para explicar a contrariedade ao direito in-
denizável, nos casos em que não há culpa, do que Pontes de Miranda,
ad litteram:

247
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Temos, pois, a solução: a contrariedade a direito sem culpa,


se obriga a indenizar, ou é ato ilícito relativo, ou fato jurídico
ilícito, ou ato-fato ilícito, que, por sua alusão histórica à ativi-
dade de guarda, de vigilância, de direção, pode ser expresso
como fato (“ato”) jurídico ilícito, porém, sistematicamente,
a nenhum ato alude: a forma a que se ascendeu, com a ci-
vilização, é a da contrariedade transubjetiva a direito, mais
próxima da contrariedade objetiva do que da subjetiva, ou a
da contrariedade objetiva. O “ato”, entre parênteses, pode
não ter existido. (Tomo II – pág. 198)

Outrossim, os atos-fatos ilícitos englobam, e.g., as situações que


Celso Antônio Bandeira de Melo chamou de teoria da culpa anônima.
Fatos ilícitos stricto sensu são aqueles em que a ilicitude resulta de
simples fato da natureza, e.g., causo fortuito.
Em geral, a doutrina nega a existência do fato jurídico stricto
sensu ilícito, ao argumento de que o fato da natureza não pode ser
ilícito. Porém, a antijuridicidade do fato decorre da sua vinculação a
alguém se dele decorrem interferências na esfera jurídica de alguém; o
fato em si é indiferente às normas jurídicas.
Desse modo, o fato jurídico stricto sensu ilícito tem como efeito
criar obrigações a quem esteja ligado a ele como imputável. Já os atos
ilícitos relativos são os chamados ilícitos contratuais, que não interes-
sam na nossa tese.
Segundo a doutrina, não há como se excluir o elemento culpa
ou dolo do ato ilícito praticado pelo agente (ato jurídico strictu sensu). O
elemento culpa decorre, logicamente, da natureza do ato em questão,
de modo que no ato ilícito stricto sensu (ou absoluto) pode haver contra-

248
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

riedade a direito por ação ou por omissão voluntária, negligência ou


imprudência.
Nesse sentido, com a possibilidade de controle do ato, elemento
obrigatório aos atos ilícitos strictu sensu, sob todos os aspectos, o elemen-
to culpa está, claramente, preenchido, de forma que não haverá dúvi-
das quanto ao dever de indenizar o patrimônio público nesses casos.
Tal observação é necessária diante da instrução processual que
se requerer nesses casos em que todas as provas necessárias estarão
no processo que condenou o Estado por ato ilícito strictu sensu. Ora, se
para o processo em face do Estado se avaliou, suficientemente, as pro-
vas sob a conduta do servidor, demonstrados o dolo ou a culpa, estas
provas deverão ser satisfatórias para a instrução inicial contra o agente
causador do dano. Nesses casos, incumbe ao réu apresentar suas teses
defensivas, excludentes de ilicitude, ausência de nexo causal e outros.
Desconsiderar as provas coletadas no processo original revela-
ria grave ofensa as normas de valoração de provas.
Em caso de improvimento da ação regressiva, restará eviden-
ciado que a decisão condenando a Fazenda Pública fora equivoca-
da, haver responsabilização por erros na condução do processo pelos
operadores do direito envolvidos ou mesmo, em contrário senso, se
enquadrando na teoria da culpa anônima de Celso Antônio Bandeira
de Mello citada acima.

DA CULPA IN ELIGENDO
A culpa in eligendo advém da má escolha daquele em quem se
confia à prática de um ato ou o adimplemento da obrigação. A culpa
in eligendo, em ação regressiva, deve se ater às situações em que o servi-
dor exerce atividade, por ordem superior, que exorbita sua capacidade
ou qualificação.

249
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Como exemplo, seria o caso do chefe que manda o servidor


que não possui CNH guiar veículo público no exercício de suas atri-
buições funcionais. Excludente que não poderá ser imposta diante de
situações corriqueiras, em razão da natureza da contratação pública.
Desse modo, o Estado deve obediência à Constituição e todo seu arca-
bouço jurídico ao contratar seus agentes, não existindo margem para
discricionariedade fora do que dispõe a lei.
O Excelso Superior Tribunal de Justiça interpreta que há direi-
to líquido e certo na nomeação e posse para candidatos aprovados em
concurso público, verbo ad verbum:

ADMINISTRATIVO – SERVIDOR PÚBLICO – CON-


CURSO - APROVAÇAO DE CANDIDATO DENTRO DO
NÚMERO DE VAGAS REVISTAS EM EDITAL - DIREI-
TO LÍQUIDO E CERTO À NOMEAÇAO E À POSSE NO
CARGO - RECURSO PROVIDO. 1. Em conformidade com
jurisprudência pacífica desta Corte, o candidato aprovado em
concurso público, dentro do número de vagas previstas em edi-
tal, possui direito líquido e certo à nomeação e à posse. 2. A
partir da veiculação, pelo instrumento convocatório, da necessi-
dade de a Administração prover determinado número de vagas,
a nomeação e posse, que seriam, a princípio, atos discricioná-
rios, de acordo com a necessidade do serviço público, tornam-se
vinculados, gerando, em contrapartida, direito subjetivo para o
candidato aprovado dentro do número de vagas previstas em
edital. Precedentes. 3. Recurso ordinário provido. (Processo:
RMS 20718 / SP - Relator (a): Ministro PAULO MEDINA
(1121) - Órgão Julgador: T6 - SEXTA TURMA - Data do Jul-
gamento: 04/12/2007)

250
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Assim, não há que se falar em responsabilidade do Estado em


função de culpa in eligendo sem que a atuação do servidor exorbite sua
capacidade ou qualificação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, a responsabilidade civil, mesmo objetiva, não pode
existir sem a relação de causalidade entre o dano e a conduta do agen-
te (servidor público). Nessa perspectiva, deve-se ressaltar que o nexo
causal exerce uma dupla função no âmbito da responsabilidade civil.
A primeira é a imputação jurídica do resultado danoso ao res-
ponsável, ou seja, determinar o autor do dano.
A segunda consiste na limitação das verbas indenizatórias para
verificar sua extensão, pois serve como medida de indenização, uma
vez que somente será indenizado o dano efetivamente causado pela
ação do servidor.
Vale lembrar que a antijuridicidade da conduta que gerou o
dano e o seu valor já indenizado se encontram cobertos pela coisa
julgada
Por consequência, as características econômicas do servidor
público causador do dano, final destinatário da dívida, devem ser con-
sideradas no quantum indenizatório conforme disposto no artigo 37, §6
da Constituição Federal.
Entretanto, a interpretação atual ignora a situação econômica
do servidor. Esse entendimento deve ser considerado inconstitucional,
injusto, e, na prática, também inviável. Exemplo disso são as situações
em que servidores públicos, mesmo quando beneficiados pelo parcela-
mento da Lei nº 4619 de 1965, restam responsáveis por indenizações
absolutamente desproporcionais a sua capacidade econômica, deixan-
do a maior parte da indenização sob a tutela do erário público.

251
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Com efeito, não pode ser essa a interpretação constitucional


do sistema de responsabilidade civil objetiva. O ordenamento jurídico
brasileiro deveria observar, no dano indenizável, em específico, as ca-
racterísticas econômicas do servidor causador do dano.
Sob essa perspectiva, é evidente que resta equivocada a ideia
de excluir o agente causador do dano (servidor público) do processo de
indenização por danos contra o Estado.
Nesse sentido, nos fatos ilícitos strictu sensu, necessariamente,
haverá dolo ou culpa do agente causador do dano. Logo, sob o co-
mando do art. 37. §6º da CF, o servidor deverá compor desde o início
a lide; apresentar sua defesa; possíveis excludentes de antijuridicidade;
ausência de nexo causal; etc. Merece revisão, portanto, os entendi-
mentos em contrário do Superior Tribunal de Justiça7 e do Supremo
Tribunal Federal8.
Segundo Leonardo Carneiro Cunha “geralmente, ações inde-
nizatórias propostas em face da Fazenda Pública fundam-se em sua
responsabilidade objetiva, ao passo que a demanda regressiva desta
em face do seu agente público tem fundamento em culpa ou dolo.
Haveria, então, um elemento novo a impedir a instauração da denun-
ciação da lide pela Fazenda Pública”9.
Retirando da equação a responsabilidade por omissão, se-
gundo a teoria do fato jurídico não há responsabilidade civil sem
que haja dolo ou culpa do agente público causador do dano. Re-
pisa-se sem esse elemento haveria necessariamente uma excludente
de antijuridicidade.
Portanto, em que pese a responsabilidade estatal ser objetiva,
com a devida vênia, não há que se tratar o dolo ou a culpa na respon-
sabilidade civil por ato ilícito strictu sensu como elemento novo, com a
participação do servidor no processo judicial.
Diante disso impõe se observar o art. 125 do Código de Ritos:

252
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Art. 125. É admissível a denunciação da lide, promovida por


qualquer das partes:

II - àquele que estiver obrigado, por lei ou pelo contrato, a in-


denizar, em ação regressiva, o prejuízo de quem for vencido no
processo.

§ 1º O direito regressivo será exercido por ação autônoma quan-


do a denunciação da lide for indeferida, deixar de ser promovi-
da ou não for permitida.

Não obstante a clareza do Código Processual Civil, este deverá


ser interpretado à luz do art. 37 da Carta Magna, ou seja, o servidor
deverá participar do processo. Sendo assim, nessa oportunidade, pode-
rá ter seu potencial financeiro avaliado ao longo da coleta de provas, a
fim de adequar o quantum debeatur.
Por fim, vê-se que além de uma proteção ao servidor para que
deste, regressivamente, não sejam cobradas quantias exorbitantes a
sua capacidade financeira, a denunciação à lide serve, também, ao
propósito de evitar que o erário seja, ao final, o responsável pela obri-
gação pecuniária.

253
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Notas
1
CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 2ª
ed. Vol. IV, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992.
2
ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Observações sobre a Responsabilidade Pa-
trimonial do Estado. Revista de Informação Legislativa, a. 28, n. 111, jul./set. 1991,
Brasília: Senado Federal – Subsecretaria de Edições Técnicas.
3
Tratado de direito privado / Pontes de Miranda. 3 ª ed. São Paulo: Ed. Revista
dos Tribunais, 1984.
4
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. São
Paulo: Malheiros, 2005. p. 59
5
VARELA, João de Matos Antunes. Das Obrigações em Geral, Vol. I. 10ª ed.
Coimbra: Almedina, 2000. p. 529.
6
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Parte Geral – Fatos, atos e negócios
jurídicos. 5ª.ed. São Paulo: Atlas, 2005.
7
STJ, 1ª Turma, AgRg no Resp 1.182.07/PE, Rel. Min. Benedito Gonçalves, j.
15.10.2013, Dje 22.10.2013.
8
Repercussão Geral tema 940 - Responsabilidade civil subjetiva do agente pú-
blico por danos causados a terceiros, no exercício de atividade pública. A teor do
disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por
agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito
privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor
do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou
culpa. (RE 1027633, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em
14/08/2019, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRI-
TO DJe-268 DIVULG 05-12-2019 PUBLIC 06-12-2019)
9
Cunha, Leonardo Carneiro da – A Fazenda Pública em juízo / Leonardo Car-
neiro da Cunha. 13ª ed., totalmente reformulada. Rio de Janeiro; Forense, 2016. p.
172 e 173.

254
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Referências

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Órgão Julgador: T6 – SEX-


TA TURMA. Processo: RMS 20718/SP – Relator(a): Ministro PAULO MEDINA
(1121). Data do Julgamento: 04/12/2007.

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. São Paulo:


Malheiros, 2005.

CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 2ª ed.


Vol. IV, Rio de Janeiro: Forense Universitária.

CUNHA, LEONARDO CARNEIRO DA – A Fazenda Pública em juízo / Leonardo


Carneiro da Cunha – 13ª ed., totalmente reformulada. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

DIAS, José Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 11 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações, v. 1. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

PONTES DE MIRANDA, FRANCISCO CAVALCANTI, Tratado de direito pri-


vado. 3ª ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1984.

ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Observações sobre a Responsabilidade Patri-


monial do Estado. Revista de Informação Legislativa, a. 28, n. 111, jul./set. 1991, Brasí-
lia: Senado Federal – Subsecretaria de Edições Técnicas.

SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: da Erosão dos


Filtros à Diluição dos Danos. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2009.

VARELA, João de Matos Antunes. Das Obrigações em Geral, Vol. I. 10ª ed. Coim-
bra: Almedina, 2000.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Parte Geral – Fatos, atos e negócios jurídicos. 5ª
ed. São Paulo: Atlas, 2005.

255
O ESTUDO DO PRECEDENTE FIRMADO NA ADI 4636 E NO TEMA
1074 DA REPERCUSSÃO GERAL NO RE 1.240.999/SP:
A INCONSTITUCIONALIDADE DA EXIGÊNCIA DE INSCRIÇÃO
DO DEFENSOR PÚBLICO NOS QUADROS DA ORDEM DOS
ADVOGADOS DO BRASIL

Hélio Rios Ferreira1


Thais Rodrigues Coelho Terra2

RESUMO
O foco deste artigo é o estudo do precedente firmado na ADI
4636 e no Tema 1074 da repercussão geral no RE 1.240.999/SP. Seu
objetivo é expor, à luz da doutrina e da jurisprudência, a função e o
uso do precedente em casos posteriores como meio de consolidação
dos seus elementos. A relevância do estudo se mostra na capacidade
de um precedente gerar uma ratio decidendi instantânea e outras por
meio de interpretação do próprio precedente em decisões posteriores.
A metodologia utilizada foi a da pesquisa bibliográfica e documental.
Ao interpretar o precedente concluímos que uma das ratio decidendi é a
de que o Defensor Público não é Advogado. Essa premissa aliada ao
obter dictum referente aos honorários advocatícios e ao preenchimento
de vagas em tribunais reservadas aos advogados, levou-nos a outras
conclusões cujo conteúdo pode se tornar uma nova ratio decidendi.
Palavras-chave: Teoria dos precedentes. Controle de constituciona-
lidade. ratio decidendi e obter dictum. Defensoria Pública. Inscrição na OAB.

1 Mestrando em Direito de Acesso à Justiça e Direito ao Desenvolvimento pela Unichristus, especialista em Direito Ad-
ministrativo pela PUC-MINAS e em Direito Processual pela Damásio, membro do Comitê técnico da Revista Síntese
de Direito Administrativo, Procurador do Estado do Amapá e Advogado.
2 Pós-Graduada em Advocacia Pública pela AVM – Faculdade Integrada e IDDE – Instituto para o Desenvolvimento
Democrático, em parceria com a ANAPE; Pós-Graduanda em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio,
Pós-Graduada em Direito Civil e Empresarial com capacitação para Ensino Superior pela Faculdade IBMEC de São
Paulo e Pós-Graduada em Direito Administrativo pela PUC-Minas. Procuradora do Estado do Amapá e Advogada.

257
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

ABSTRACT
The focus of this article is the study of the precedent estab-
lished in ADI 4636 and in Theme 1074 of the general repercussion
in RE 1.240.999/SP. Its objective is to expose, in the light of doctrine
and jurisprudence, the function and use of precedent in later cases as
a means of consolidating its elements. The relevance of the study is
shown in the ability of a precedent to generate an instantaneous ratio
decidendi and others through the interpretation of the precedent itself
in later decisions. The methodology used was bibliographic and doc-
umental research. When interpreting the precedent, we conclude that
one of the ratio decidendi is that the Public Defender is not a Lawyer.
This premise, combined with obter dictum regarding attorney fees and
filling vacancies in courts reserved for lawyers, led us to other conclu-
sions whose content could become a new ratio decidendi.
Keywords: Theory of precedents. Review of constitutionality.
ratio decidendi and obter dictum. Public Defense. Registration at the OAB.

INTRODUÇÃO
A ideia desse estudo se originou da publicação de decisões do
Superior Tribunal de Justiça (STJ) referente à constante impugnação
de defensores públicos contra a inscrição na Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB) e a compulsoriedade do pagamento da anuidade para a
entidade de classe.
Desenvolvemos o presente texto levando em consideração a ju-
risprudência do Superior Tribunal de Justiça entendendo que o Defensor
Público não é Advogado, tendo em vista que a ele não se aplica o §1º do
art. 3º da Lei nº. 8.906/1994 (Estatuto da OAB). Contra essas decisões o
Conselho Federal da OAB e a OAB/SP interpuseram recurso extraordi-
nário para o Supremo Tribunal Federal (STF), neles as entidades defen-
deram que o Defensor Público é Advogado e deve estar inscrito na OAB

258
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

para exercer a advocacia e possuir capacidade postulatória. O Supremo


Tribunal Federal afetou o recurso extraordinário ao Tema 1.074 em reper-
cussão geral no RE 1.240.999/SP e, concomitantemente, passou a decidir
a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4636, sobre o mesmo
tema. O controle difuso e abstrato de constitucionalidade definitivamen-
te julgados gerou um precedente cuja análise considerou o fato jurídico, a
interpretação da norma, quais os limites de sua vinculação e o uso de suas premissas.
A riqueza desses precedentes nos possibilitou ir além da tese fi-
xada pelo STF: “é inconstitucional a exigência de inscrição do defensor
público nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil”. Identificamos,
academicamente, a premissa de que Defensor Público não é Advogado.
Para isso o texto trouxe em seu primeiro capítulo o estudo sobre o prece-
dente no controle difuso e abstrato de constitucionalidade, com aborda-
gem específica quanto ao fato jurídico no controle de constitucionalidade
e a inexistência de modulação de efeitos no julgamento da ADI 4636 e
no Tema 1074 da repercussão geral no RE 1.240.999/SP. Já o capítulo
segundo versa sobre a interpretação do precedente firmado no acórdão
do recurso extraordinário sobre a inconstitucionalidade da exigência de
inscrição do Defensor Público nos quadros da Ordem dos Advogados do
Brasil. Por fim, no capítulo terceiro, abordamos a sua função vinculante e
o uso da sua premissa em casos hipotéticos posteriores.
Ainda não há caso concreto posterior ao precedente vinculante
em estudo por ser muito recente o julgamento e a publicação de seus
acórdãos.

 PRECEDENTE NO CONTROLE DIFUSO E


O
ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE
As normas constitucionais e infraconstitucionais devem ser de
conhecimento de todos, ainda assim a sua aplicação, por algumas ve-
zes, merece interpretação do Poder Judiciário com o fim de se ates-
tar sua validade. Com isso surge uma diversidade de jurisprudências,

259
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

muitas vezes, sem correlação uma com a outra, gerando instabilidade


no direito e desigualando os jurisdicionados. Percebido o desarranjo
jurisprudencial sua eliminação deve ser perseguida pelo Poder Judi-
ciário para dar lugar aos precedentes: um entendimento firmado pelo
Judiciário aplicável a todos aqueles, indistintamente, com igual preten-
são inicial ou resistida.
Esses precedentes podem ser persuasivos ou vinculantes. Os
primeiros orientam a decisão do Magistrado. O segundo, como o pró-
prio nome indica, vincula sua decisão às premissas pré-estabelecidas
no precedente paradigma. O Brasil trata do tema no Código de Pro-
cesso Civil de 2015 (CPC/2015)1 e enfatiza a importância do julga-
dor em se ater ao precedente congruente com o caso analisado para
concluir sua decisão. Seja ele persuasivo ou vinculante, a análise é im-
prescindível para manter a jurisprudência segura, íntegra e coerente.
O tema do presente estudo de caso foi extraído de dois precedentes
vinculantes firmados em ação direta de inconstitucionalidade e em re-
percussão geral (ADI 4636 e no Tema 1074 da repercussão geral no
RE 1.240.999/SP). Em ambos uma tese foi produzida, cujo texto será
analisado no próximo capítulo, mas aqui já é importante deixar claro
que a tese não é o precedente. O precedente se encontra no julgado
que originou a tese, dele pode se extrair a ratio decidendi e o obter dicutum,
a força que eles ganharão dependerá da decisão posterior que se utili-
zará do precedente.
O precedente é o que precede, consequentemente sua existên-
cia será atestada pelo próximo caso de onde se extrairá as premissas
nele existentes. Essas premissas, uma vez repetidas em outros julga-
mentos, passarão a ganhar solidez e atingirão a finalidade disposta na
lei: segurança, integridade e coerência.
A estabilização dos precedentes, para parte da doutrina, dar-
-se-á pelas cortes de vértice, pela Cúpula do Judiciário, como no caso
das decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em

260
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

recursos repetitivos e pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em re-


percussão geral. Paramos um pouco para uma rápida crítica ao en-
tendimento doutrinário apresentado, é que o próprio inciso III do
art. 927 (CPC/2015) elenca claramente julgamento dos tribunais or-
dinários como precedente vinculante: “os acórdãos em incidente de
assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e
em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos.” O
incidente de resolução de demanda repetitiva (IRDR) é um instituto
de estabilização de jurisprudência de competência de um tribunal de
segunda instância. Não bastasse isso, há matérias que não chegam
aos tribunais superiores, como aquelas de análise probatória obriga-
tória e de interpretação de lei estadual ou local2.
A teoria dos precedentes não se desgarra da lei e nem dos fatos,
a formação de um precedente depende dos dois, por isso a afirmação
linhas atrás de que a tese não é o precedente, o precedente se encontra
nos fundamentos do acórdão. No Civil Law o julgador interpreta a nor-
ma e fixa um precedente normativo, já no Common Law o precedente
está intimamente vinculado ao fato3. No Direito brasileiro é possível
identificar os dois modelos, seja em conjunto ou separadamente, no
controle abstrato de constitucionalidade prepondera o modelo Civil
Law e no controle concreto o modelo Common Law. Por expressa dis-
posição legal, os fatos jurídicos devem fazer parte dos precedentes (art.
926, §2º do CPC/2015), ainda que em sede de repercussão geral ou
recursos repetitivos julgados pelo STJ ou STF. Os Ministros devem
interpretar a lei julgando os fatos, sob pena de violação ao nosso or-
denamento. Trouxemos um caso em que os fatos jurídicos são os mes-
mos e foram analisados em dois precedentes vinculantes, um com mais
profundidade (repercussão geral no recurso extraordinário) e no outro
menos (ação direta de inconstitucionalidade). É que o precedente vin-
culante estudado se originou de controle difuso de constitucionalidade
e de controle abstrato, porém, os dois analisaram o fundamento de

261
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

validade do art. 3º da Lei Federal nº. 8.906/1994 diante do ar. 134 da


CRFB/1988.
O controle difuso de constitucionalidade está mais atrelado ao
modelo Common Law, por não se afastar do caso concreto cuja solução
depende da análise de validade ou não da norma que respalda o di-
reito de uma das partes. Esse controle difuso é a causa de pedir, não o
pedido. Já no controle abstrato, o pedido é a declaração de inconstitu-
cionalidade de norma, por conta disso há uma menor análise do fato
jurídico, conforme o Civil Law. Os dois tipos de controle de constitu-
cionalidade contêm fundamentação pautada na norma impugnada,
mas a o obter dictum e a ratio decidende demandam a análise do fato jurídi-
co. No caso do controle concentrado, ele faz parte do próprio pedido
e no controle abstrato pode ser citado como passagem da decisão, pois
a conclusão é apenas sobre a constitucionalidade ou não da norma. O
precedente formado possibilitará aos julgadores de casos semelhantes
de extrair a ratio capaz de orientar sua conclusão, ou até mesmo funda-
mentar a não aplicação do precedente invocado pelas partes por meio
de distinguishing ou overruling.

 FATO JURÍDICO NO CONTROLE DE


O
CONSTITUCIONALIDADE
A fundamentação de um precedente, ainda que para fixar a
tese de uma súmula ou precedente vinculante, não pode ser abstrata.
Abstrata é a tese, o precedente deve ser fiel ao julgamento do fato ju-
rídico e da interpretação da norma. A causa geradora do precedente
deve conter o fato jurídico, sob pena de se ver o julgador impossibili-
tado de realizar o distinguish, overruling, ou mesmo a própria aplicação
ao caso concreto. O Civil Law é aplicado pela teoria do precedente de
forma a possibilitar a edição de temas muito abertos, normativos, é o
que ocorre no controle abstrato de constitucionalidade.

262
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

O precedente deve trazer a ratio decidendi do julgado, os fatos


jurídicos debatidos, sob pena de vir ao mundo uma súmula de juris-
prudência equiparada à norma, com aplicabilidade falha sob o critério
de subsunção. O fato jurídico no controle difuso de constitucionalida-
de é de mais fácil delimitação. No controle abstrato o julgador pode
apresentar exemplos de aplicação da decisão em fatos fictícios ou até
mesmo em casos concretos já julgados sob o fundamento da norma
declarada (in)constitucional. De início os exemplos apresentados em
controle abstrato, ou até mesmo no controle difuso, são apenas obter
dictum. Sua materialização no mundo fenomênico, ou reiteração após
o aperfeiçoamento do precedente vinculante, possibilitarão a utiliza-
ção pelo julgador para decidir no caso concreto. Sua reiteração pode
importar na formação de um ratio decidendi, porém em julgado diverso
de onde foi retirado como obter dictum.
No controle concreto de constitucionalidade o julgador exerce
sobre o fato jurídico um juízo mais aprofundado. Ainda que resulte em
tese de recurso repetitivo ou em repercussão geral, os fundamentos da
conclusão servem de precedente para posterior utilização. É uma fonte
do direito passível de interpretação para dar solução a determinado
fato jurídico judicializado. Por isso que o precedente deve, de alguma
forma, se pronunciar sobre as circunstâncias fáticas que conduziram a
sua criação. Não significa descrever todos os fatos no enunciado, mas
sim, de forma simplificada, atrelar o resultado da interpretação aos
fatos que lhe deram origem. Publicado o precedente4, os julgadores de-
vem se manifestar sobre ele nos casos subsequentes. Todos os julgados
devem ser publicados e disponibilizados, sendo importante a organiza-
ção do sítio da web do tribunal informar qual é o precedente vinculan-
te, tal como, por exemplo, faz o site do STJ ao discriminar os recursos
repetitivos julgados em definitivo, suas teses e o link para o aplicador
do Direito pesquisar o precedente e identificar seus elementos. Mesmo
os votos vencidos merecem divulgação para análise e conhecimento do

263
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

estudioso do tema. Dessa forma fica até mais fácil saber o que é obter
dictum e o que é ratio decidendi.
A divergência de entendimento é importante até mesmo para
se compreender no momento histórico do tribunal quais julgadores
firmaram o precedente e quais foram desfavoráveis. No Tema 1.074
da repercussão geral no RE 1.240.999/SP a tese firmada é: “É incons-
titucional a exigência de inscrição do Defensor Público nos quadros da
Ordem dos Advogados do Brasil.” O fato jurídico foi debatido assim
como outras premissas que nortearam o entendimento da maioria dos
ministros que acompanharam o Relator Ministro Alexandre de Mo-
raes, caso dos Ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski, Celso
de Mello, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Luiz Fux, Gilmar Mendes e
Roberto Barroso. Abriu divergência o Ministro Marco Aurélio ao pro-
por a tese no sentido de que “[é] constitucional a exigência de inscri-
ção, na Ordem dos Advogados do Brasil, dos defensores públicos.” Em
seguida, o Ministro Dias Toffoli seguiu a divergência. Muito embora
vencidos, estes ministros trouxeram ao debate, consta no acórdão, fa-
tos históricos para considerar o Defensor Público um Advogado, de
leitura imprescindível.
A tarefa dos julgadores é muito técnica e requer conhecimento
de institutos necessários à identificação do precedente em sua intimida-
de com o fim de utilização mais próxima possível da sua realidade quan-
do se depara com caso análogo, mas não idêntico. Quando as partes
fazem, analiticamente, a compatibilidade entre a pretensão deduzida na
causa e o precedente que se deseja utilizar para que a demanda tenha
uma solução no mesmo sentido fica mais fácil para o julgador, o que
nem sempre ocorre. Detectada a compatibilidade do precedente com
a causa que se está a julgar, do precedente se extrai a ratio decidendi e o
obter dictum. São duas peças importantes para a teoria dos precedentes
do Common Law e do Civil Law, sendo bem mais para o primeiro. Tam-
bém importante para a teoria dos precedentes no Brasil para se saber de

264
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

onde retirar a ratio decidendi: se da fundamentação do julgado ou da parte


dispositiva, ou até mesmo dos dois. Em caso de fundamentação extensa,
entende-se como ratio decidendi os “motivos determinantes” do julgado5.
A importância do fato jurídico para aplicação do precedente
é muito importante no Common law por haver possibilidade de revisão
de fatos em casos posteriores se o julgador entender capaz de alterar o
resultado da demanda. Como exemplo:

The Court of Appeals reviews only questions of law decided


by courts below, except for two situations in which the court
may review facts. The first of these is an appeal from a criminal
trial imposing the death penalty. The other is an appeal from an
appellate court of the Appellate Division, that is, from one of
the four intermediate appellate courts reversing or modifying a
judgment, finding new facts, or directing that a final judgment
be entered on new facts.6

Em linhas gerais a ratio decidendi é o caso concreto julgado no


processo, discutido e aprovado por todos os julgadores resultando em
tese jurídica atrelada ao fato jurídico que o integra. É imperioso afas-
tar do precedente a tentativa de elaborar normas e princípios gerais
abstratos, por “impossibilidade de o Poder Judiciário atuar como legis-
lador positivo, resguardada a sua atuação como legislador negativo nas
hipóteses de declaração de inconstitucionalidade”7.
Há a possibilidade de se alçar o obter dictum ao status de ratio
decidendi segundo a interpretação dada pelos julgadores no momento
do uso do precedente. A opinião da decisão se encontra no obter dictum,
não atribuindo efeito vinculante ao precedente. Entretanto, no Common
Law americano há doutrina de calibre defendendo a possibilidade de

265
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

um dictum transforma-se em ratio se forem reiteradas vezes repetidos


em decisões da Suprema Corte para fundamentar decisões posteriores:

Intermediate courts typically treat higher courts’ dicta - those


in vertical precedents - with greater respect than their own, not
only because of tlie position of the higher court, but also be-
cause today’s dicta are an indication of what may well be tomor-
row’s binding precedent.8

Considerando a teoria de Garner sobre o tema, o obter dictum deve


ter peso menor no momento de análise de adequação entre o precedente
e o caso sob análise. O que não quer dizer que ele mereça ser totalmente
afastado. Afinal, algumas vezes para entender a ratio é necessário com-
preender o dictum. É “(...) construir a tese jurídica aproximando-a dos fatos
e das questões jurídicas centrais discutidas no caso julgado, de modo a que
a tese possa retratar adequadamente a ratio decidendi 9.”

I NEXISTÊNCIA DE MODULAÇÃO DE EFEITOS NO


JULGAMENTO DA ADI 4636 E NO TEMA 1074 DA
REPERCUSSÃO GERAL NO RE 1.240.999/SP
O art. 27 da Lei n. 9.868/99 já autorizava a modulação de efeitos
no caso de decisões proferidas em controle concentrado de constituciona-
lidade. Dentre os motivos, há o de superação de precedente (overrruling) e
do efeito prospectivo (prospective overruling). Trata-se da mutação jurispru-
dencial prospectiva, devendo ser fundamentada a decisão de modulação
dos seus efeitos. O CPC/2015 passou a prever essa técnica de julgamento
e mitigação de efeitos danosos no art. 927: “§ 3º Na hipótese de alteração
de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribu-
nais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos,
pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da

266
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

segurança jurídica.” A modulação de efeitos pode ser aplicada para pre-


ver duas situações distintas: a) a da irretroatividade do efeito das normas
jurídicas em geral; e b) a da modulação temporal dos efeitos das alterações
das orientações jurisprudenciais.
Os efeitos nocivos a terceiros causados por uma decisão com
efeito retroativo ou imediato devem ser sopesados com a possibilidade
de sua modulação para o futuro como meio de abrandar o prejuízo.
Ela deve ser motivada e constar expressamente da decisão para, com
isso, o julgador que se utilizar do precedente, aplicá-lo da maneira
menos grave ao jurisdicionado atingido pelo precedente vinculante de
efeito erga omnis10. A boa-fé objetiva é o princípio resguardado com esse
tipo de decisão, em razão disso, decisões com essa característica no
âmbito administrativo11 também devem respeitar as situações já crista-
lizadas cujos interessados agiram com boa-fé.
Não houve modulação de efeitos no controle difuso e con-
centrado de constitucionalidade do tema em estudo, os Ministros de-
cidiram dar efeitos imediatos à declaração de ser inconstitucional a
exigência de inscrição do Defensor Público nos quadros da Ordem
dos Advogados do Brasil. Desta forma, esse precedente vinculante se
aplica ao Poder Executivo e ao próprio Poder Judiciário imediatamen-
te. Os processos administrativos sancionadores instaurados contra os
Defensores Públicos para cobrança de anuidade da OAB deverão ser
extintos. As execuções judiciais deverão ter o mesmo fim, respeitadas
as regras de do CPC/201512.

 INCONSTITUCIONALIDADE DA EXIGÊNCIA
A
DE INSCRIÇÃO DO DEFENSOR PÚBLICO NOS
QUADROS DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO
BRASIL
Não é de agora que alguns defensores públicos vêm ajuizando
ações judiciais com intento de se ver excluídos da exigência de pagamento

267
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

da anuidade da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) sob o argumento


de não serem advogados por não precisarem dessa inscrição para adquirir
capacidade postulatória.
As demandas originadas nos tribunais ordinários chegaram ao
conhecimento do Superior Tribunal de Justiça que interpretou o art.
3º da Lei nº 8.906/1994 e firmou seu entendimento no sentido de
que o Defensor Público possui capacidade postulatória decorrente da
nomeação e posse no cargo, sendo inexigível sua inscrição nos quadros
da OAB13.
Definido o precedente no STJ com base na interpretação da
lei federal, as entidades de classe, buscando manter um entendimento
histórico sobre o status da Defensoria Pública, como Advogados, foram
ao STF em busca da resolução do impasse sobre a compatibilidade do
art. 3º da Lei nº 8.906/1994 com o art. 134 da CRFB/1988.
Antes de chegar ao STF, o curso processual se iniciou por
meio de ajuizamento de mandado de segurança coletivo pela AS-
SOCIAÇÃO PAULISTA DE DEFENSORES PÚBLICOS – APA-
DEP em face da ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL
- SEÇÃO DE SÃO PAULO com pretensão anulatória do ato de
indeferimento de cancelamento da inscrição na OAB pelos seus
associados com a consequente anulação das sanções decorrentes do
inadimplemento dos valores de anuidade. Pediram ainda a restitui-
ção dos valores pagos indevidamente, desde a data da impetração.
Em primeiro grau o pedido foi julgado totalmente improcedente e
o Tribunal Regional Federal da Terceira Região continuou a decla-
rar o Defensor como advogado e obrigado a se inscrever na OAB.
Os embargos contra o acórdão foram opostos e rejeitados. Após
exaurimento da instância ordinária, recursos excepcionais foram
interpostos para o STJ e para o STF.

268
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

O recurso especial foi processado e julgado no STJ com a rea-


firmação da sua jurisprudência no sentido da desnecessidade do De-
fensor Público se inscrever nos quadros da OAB para exercer suas fun-
ções. O Superior Tribunal admitiu o ingresso como assistente simples
do CONSELHO FEDERAL DA OAB. Em razão disso a OAB/SP e
o CONSELHO FEDERAL DA OAB interpuseram recurso extraordi-
nário em face do acórdão do STJ sob o fundamento de ter havido uma
usurpação de competência do STF, corte responsável pela interpreta-
ção de normas constitucionais.
O recurso extraordinário foi admitido e ganhou o número
1.240.999, sob a Relatoria do Ministro Alexandre de Moraes. Rela-
tado o recurso excepcional, o debate na Corte versa sobre a proposta
de tema em repercussão geral: “Exigência de inscrição de Defensor
Público nos Quadros da Ordem dos Advogados do Brasil para o exer-
cício de suas funções públicas.” Por maioria de votos o recurso não foi
provido e o Tema 1.074 em repercussão geral contém a tese de que:
“É inconstitucional a exigência de inscrição do Defensor Público nos
quadros da Ordem dos Advogados do Brasil.”
Concomitante ao recurso extraordinário foi julgada a Ação
Direta de Inconstitucionalidade nº 4636. Informamos que o controle
difuso de constitucionalidade traz um julgamento mais completo, em
razão da maior profundidade na abordagem do fato jurídico discutido,
por conta disso é que a análise da tese firmada pelo STF se dá sobre o
acórdão no RE, publicado em 17 de dezembro de 2021.
O julgamento já ocorreu, dessa forma as próximas decisões
referentes ao tema devem observar o precedente firmado no RE nº.
1.240.999/SP. Trata-se de um precedente vinculante para o Poder
Executivo e Judiciário, cuja ratio decidendi e o obter dictum serão temas
desse estudo de modo a demonstrar que de um precedente pode-se
extrair várias premissas; que a tese não é o precedente; que o dictum

269
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

pode ser utilizado em decisões posteriores; e, que a ratio decidendi


de não ser o Defensor um Advogado, público ou privado, desenca-
deia premissas não afirmadas no precedente, mas dele decorrentes.
Traremos dois obter dictuns para análise, o primeiro referente aos
honorários sucumbenciais e o segundo aborda a impossibilidade de
preenchimento de vaga privativa de Advogado junto aos tribunais
por Defensor Público.
Entender a ratio decidendi do precedente é um exercício de in-
terpretação da decisão, dos argumentos das partes e dos votos dos
ministros. Para os representantes dos Defensores Públicos a Emenda
Constitucional nº 80/2014 separou a Defensoria Publica da Advoca-
cia Publica, como ela já não integra a advocacia privada por expressa
vedação constitucional e legal, pediram para o STF fixar a premissa
de que “o Defensor Público não exerce advocacia e, por isso, não se
submete ao regime próprio dos advogados.”14
Historicamente os defensores públicos eram advogados por
unicidade constitucional. A separação das instituições acarretou a
necessária reinterpretação do art. 134 da CRFB e de toda a legisla-
ção infraconstitucional. Trata-se da inconstitucionalidade por arras-
tamento, a interpretação firmada em controle concentrado de cons-
titucionalidade que se estende à legislação infraconstitucional para
declará-la nula no que for incompatível com a conclusão firmada. A
mutação constitucional encartada pelas decisões proferidas na ADI
4636 e no Tema 1.074 da repercussão geral no RE 1.240.999/SP,
tem como ratio decidendi que o Defensor Público não é advogado, pú-
blico ou privado. Esse foi o debate central no RE e na ADI e, segun-
do a teoria dos precedentes, passamos a apontar onde se encontra o
fundamento dessa ratio.
Iniciemos com o voto do Ministro Alexandre de Moraes
(Relator):

270
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Nessa medida, a correspondente imposição legal de registro do


candidato ao cargo em exame na OAB, “cuja finalidade é afeita
a atribuições, interesses e seleção de advogados” (ADI 3026, Rel.
Min. EROS GRAU, DJ de 29/9/2006)”, a meu ver, não nos induz
à inarredável conclusão de obrigatoriedade de inscrição, nessa au-
tarquia de natureza sui generis, para o efetivo exercício da advocacia
na Defensoria Pública.

Como sobredito, o artigo 4º, § 6º, da Lei Complementar


80/1994, na redação dada pela Lei Complementar 132/2009,
PR vê que a capacidade postulatória do defensor decorre exclu-
sivamente de sua nomeação e posse no cargo público, no que
torna irrelevante, sob o prisma jurídico processual, a sua inscri-
ção nos quadros da OAB.

(...)

Enfim, o art. 3º da Lei 8906/1994, ao estatuir a dupla sujeição


ao regime jurídico da OAB e da Defensoria Pública, seja da
União, seja estadual, não se harmoniza com a CONSTITUI-
ÇÃO FEDERAL.

Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO ao Recurso Extraor-


dinário e proponho a seguinte tese: “É inconstitucional a exi-
gência de inscrição do Defensor Público nos quadros da Ordem
dos Advogados do Brasil”.

É como voto.

Para o Ministro é irrelevante a inscrição nos quadros da OAB


para que o Defensor Público postule em juízo. Equipara-se assim o
Defensor ao Ministério Público. Nenhum dos dois são advogados
ou precisam de inscrição na OAB, mas podem postular em juízo com
autorização legal.

271
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

A conclusão do Relator, Min. Alexandre de Moares, tanto na


ADI 4636 quanto no RE acima citado, é de que o “art. 3º da Lei
8906/1994, ao estatuir a dupla sujeição ao regime jurídico da OAB e
da Defensoria Pública, seja da União, seja estadual, não se harmoniza
com a CONSTITUIÇÃO FEDERAL.” Desta forma, o Defensor Pú-
blico não é advogado. Essa é a ratio decidendi da decisão. O precedente
não se confunde com a decisão, pois o precedente se liga à razão e não
ao seu conteúdo. A decisão é tudo aquilo que foi debatido no julga-
mento, mas a ratio é a questão de direito fundamental para sua decisão.
O argumento dos repreentantes da Defesoria, como se de-
monstrou linhas acima, é de que a Emenda Constitucional nº 80/2014
separou a Defensoria da Advocacia pública, em razão disso o Defensor
deixou de ser Advogado. O Ministro Relator, seguido pela maioria da
Corte Constitucional, votou nesse sentido e julgou a questão de direito
ao concluir que o art. 3º da Lei nº 8.906/1994 é incompatível com o
art. 134 da CRFB/1988. Essa ratio decidendi foi expressamente afirma-
da pelo Magistrado e consta na fundamentação e na conclusão.
Essa ratio decidendi é de fácil intelecção nos demais votos pro-
feridos na decisão, é o que se observa no voto do Ministro Ricardo
Lewandowski (Vogal):

O art. 3º, caput, da Lei 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia) dis-


põe que o exercício da advocacia no território brasileiro e a de-
nominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem
dos Advogados do Brasil.

Se o exercício da advocacia e a denominação advogado de-


correm da inscrição nos quadros da OAB e essa regra não se aplica
ao Defensor Público, a premissa de conclusão é de que: o Defensor
Público não é Advogado. Essa premissa é reforçada pelo Ministro no
curso da fundamentação de seu voto:

272
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Aliás, com a Emenda Constitucional 80/2014, houve a separação


dessas duas categorias de profissionais, que, antes, estavam dispos-
tas em uma única Seção (Seção III do Capítulo IV da CF), e, ago-
ra, estão contempladas na Seção III (Da Advocacia) e na Seção IV
(Da Defensoria Pública), indicando que o Constituinte quis expli-
citar, ainda mais, a distinção existente entre essas duas carreiras.

Não estamos tentando desconsiderar a tese firmada pelo STF


nas duas decisões, mas extrair do precedente uma ratio decidendi que
ficou bem evidente, explícita, com capacidade de alterar a interpreta-
ção constitucional da legislação correlata. A tese da repercussão geral
não se confunde com o precedente. A tese dá solução ao caso concre-
to posto sob análise do STF em sede de recurso extraordinário. Ao
decidir sobre o tema proposto os ministros passaram a fundamentar
seus votos e a afirmar premissas necessárias à solução do caso. Na
fundamentação é possível encontrar uma ou várias ratio e os julgadores
podem se utilizar delas por meio de citação do precedente. A Corte
Constitucional italiana identifica o objeto do juízo de constitucionali-
dade, partindo da premissa que a análise não é da lei, mas de seu resul-
tado- interpretação (normas). O mesmo que se está a destacar, pois da
análise da compatibilidade entre o art. 3º da Lei nº. 8.906/1994 com o
art. 134 da CRFB/1988 há uma interpretação que ultrapassa o tema
proposto pelas partes, muito embora no caso que estamos a tratar, a
própria representação da Defensoria Pública requereu a declaração
constitucional de que seus membros não são advogados15.
No Brasil qualquer juízo, do primeiro ao último grau, é com-
petente para afirmar a constitucionalidade ou não de uma norma. Por
outro lado, sua interpretação, do juiz ou Tribunal ordinário, não pode
destoar da interpretação constitucional já conferida pelo Supremo Tri-
bunal Federal. É quem dá a última palavra sobre a interpretação de

273
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

norma controlada constitucionalmente. Tem como finalidade evitar


o conflito entre jurisprudências e de promover a segurança jurídica, a
integridade e a coerência entre órgãos do poder judiciário.
O Ministro Roberto Barroso foi mais claro em seu voto e afir-
mou que o Defensor Público não é advogado público e nem privado.
É o que se extrai de uma ementa criada por ele e aposta no seu voto,
segue apenas o trecho que corrobora o alegado:

4. Natureza diversa das funções dos defensores públicos em


relação aos advogados, públicos ou privados. Categorias se-
paradas, embora complementares, das Funções Essenciais a
Justiça: o advogado privado defende interesses particulares
do cliente, que o escolhe livremente; o defensor público, ti-
tular de cargo público, não tem cliente, mas assistido – que
não o escolhe nem remunera –, a cuja defesa esta vinculado
não em razão de ajuste privado, mas por força de normas de
direito público.

(...)
7. Não há norma constitucional que preveja a obrigatoriedade
de inscrição dos defensores públicos nos quadros da OAB. Ao
contrário, as disposições constitucionais pertinentes tutelam a
autonomia da Defensoria Publica, inclusive em face dos Poderes
do Estado, decorrendo a capacidade postulatória dos defensores
diretamente da Constituição e do vínculo funcional ex lege que
possuem com o Estado.

Partindo das premissas principais estabelecidas nos prece-


dentes vinculantes citados tem-se que a instituição Defensoria Pú-
blica passou a ter status constitucional semelhante ao do Ministério

274
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Público quanto à capacidade para estar em juízo. A diferença ins-


titucional entre eles se passa pelo próprio texto constitucional. O
mesmo não ocorre, repita-se, com os advogados públicos, pois são
advogados com inscrição na OAB e submetidos às regras da Lei nº
8.906/1994 (EOAB).
Essa equiparação mencionada no parágrafo anterior pode
ser vista no voto do Ministro Barroso, é apenas obter dictum e não
vincula os demais poderes a expressar o mesmo entendimento. Mas
já é possível saber qual será o entendimento dele em caso de ne-
cessidade de interpretação de normas versando sobre atribuições/
competências congruentes entre as duas instituições. Eis o que afir-
mou o Ministro:

32. Não se nega, por evidente, que atividades típicas de advo-


cacia, num sentido mais lato, são exercidas pelos integrantes de
todas as Funções Essenciais a Justiça, inclusive, e.g., pelos mem-
bros do Ministério Público. Todos subscrevem petições, partici-
pam de audiências, recorrem, fazem sustentações orais etc. Mas
isto não enseja, naturalmente, a obrigatoriedade de inscrição
dos membros do Ministério Público nos quadros da OAB, mui-
to menos os sujeita a fiscalização desta autarquia.

O Ministro Barroso não estabeleceu uma premissa com essa


opinião proferida na decisão, apenas fez uma mera observação no de-
curso dela sem essencialidade para o desenvolvimento do raciocínio da
decisão. Com ou sem essa opinião a resolução do mérito da demanda
seria a mesma. Mencionar numa decisão um fato hipotético, não subs-
tancial para a prolação de uma decisão, é característica que define o
obter dictum16.

275
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Para entender o precedente é necessário identificar a ratio deci-


dendi e o obter dictum, uma tarefa difícil e que nem todas as vezes se en-
contra expressamente definido no julgamento. Não há uma distinção
exata entre os dois institutos. Ao descrevê-los e extraí-los dos julgados
acima citados parece claro, mas nem sempre a decisão se encontra
sistematicamente organizada e com suas premissas definidas pelos jul-
gadores. No momento da aplicação da decisão anterior, considerada
um precedente vinculante, sujeitar-se-á a “muitos debates acadêmicos
e divergências judiciais”17. Thomas da Rosa Bustamante corrobora
nosso entendimento ao afirmar que não existe uma distinção rígida
entre ratio decidendi e obter dictum, nem aceita que cada caso só possua
uma ratio18.
O Ministro Barroso ajudou o próximo julgador a extrair a ratio
decidendi e o obter dictum de seu voto, como acima mencionamos. E ele
foi além ao, expressamente, apontar quais são as premissas que utili-
zou e a tese fixada:

38. Adoto, portanto, como premissa para o julgamento do presente


recurso extraordinário, aquilo que já afirmei ao proferir voto na
ADI 4636, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, em que acom-
panhei o voto do eminente Relator, reconhecendo: (i) a constitu-
cionalidade do art. 4o, § 6o, da LC no 80/1994, com a redação
dada pela LC no 132/2009, ao estatuir que a capacidade postula-
tória do Defensor Publico decorre da nomeação e posse no cargo;
(ii) a necessidade de conferir interpretação conforme a Constitui-
ção ao art. 3o, § 1o, da Lei no 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia
e da OAB), para afastar qualquer interpretação que condicione a
capacidade postulatória dos membros da Defensoria Publica a sua
inscrição nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil.

(...)

276
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

III. CONCLUSÃO

39. Por tais fundamentos, acompanho o Relator e voto no senti-


do de negar provimento ao recurso extraordinário interposto pela
OAB-SP e pelo Conselho Federal da OAB em face do acordão
prolatado pelo Superior Tribunal de Justiça.

40. Acompanho, ainda, o Ministro Relator quanto a tese fixada,


dentro da sistemática da repercussão geral, quanto aos efeitos do
julgamento do presente recurso em relação aos demais casos que
tratem ou venham a tratar do Tema 1074: “É inconstitucional a exigência
de inscrição do Defensor Público nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil”.

41. E como voto.

Firmado o precedente vinculante no Tema 1.074 em repercus-


são geral e na ADI 4636, haverá uma definição do que o Poder Judi-
ciário poderá utilizar do julgamento anterior para considerar ratio deci-
dendi, dictum e, consequentemente, o que terá força vinculante ou não.
A força, o poder, o sentido e a extensão de cada elemento formador do
precedente descrito é fruto de um diálogo entre a corte emissora (re-
datora do precedente) e a corte receptora (intérprete do precedente).
Por meio da função do precedente vinculante vamos demons-
trar no próximo capítulo possíveis usos em casos posteriores.

 FUNÇÃO DO PRECEDENTE VINCULANTE E O


A
USO DA SUA PREMISSA: “DEFENSOR PÚBLICO
NÃO É ADVOGADO”
Para o Brasil o precedente vinculante é construído por tribunais
superiores, magistrados que não estão perto do jurisdicionado. Cabe aos
juízes das demais instâncias seguirem o precedente vinculante na forma

277
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

da Constituição e do CPC/2015. “Assim, o julgar que se vem idealizan-


do nos últimos tempos é um concentrado, hierarquizado e voltado para
uma justiça formal que prima pela padronização de respostas por co-
mandos gerais e abstratos.”19. Porém, o Magistrado não está restrito ao
uso do precedente apenas no mesmo caso em que fora julgado, de um
precedente pode-se extrair uma ou mais ratio decidendi, bem como a
premissa pode ser aplicada a outro fato jurídico, desde que sua essência
não seja desvirtuada. Sem hiper integrar ou desintegrar o precedente.
Não existe uma vedação à interpretação do precedente, - por
mais que entre suas funções estejam a de segurança, coerência e inte-
gridade - o precedente não é estático. “Assim como a lei, o precedente
é texto e carece de interpretação.20” Entender diferente é inviabilizar
seu uso nos casos posteriores com premissas análogas. Não haveria
nem necessidade de precedente absoluto se sua aplicação só se desse
em casos absolutamente iguais, quando ao contrário, pode-se extrair
uma boa solução da interpretação do precedente.
O exercício da interpretação do precedente promove o seu
aperfeiçoamento no uso dos casos posteriores. Esse uso requer a ade-
quada fundamentação e tem como função enriquecer o sistema jurídico;
trazer maior segurança jurídica; economia processual; igualdade de resultados
entre litigantes sob o mesmo tipo de questão.
Interpretando o precedente do Tema 1.074 em repercussão
geral e a ADI nº 4636 pode-se entender que aos Defensores Públi-
cos são indevidos os honorários sucumbenciais, tendo em vista que
foi declarada a incompatibilidade constitucional do art. 3º da Lei nº
8.906/1994 com o art. 134 da CRFB/1988; os membros da Defen-
soria Pública não possuem inscrição na OAB; não exercem atividade
de advocatícia; e, em suma, não são advogados públicos ou privados.
Segundo o Estatuto da OAB, não aplicável aos membros da
Defensoria Pública, os honorários se dividem em convencionados, fixados

278
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

por arbitramento judicial e sucumbenciais (art. 22 do EOAB). Os honorários


são do advogado privado ou público21. Apenas o advogado pode re-
ceber honorários sucumbenciais22, conforme os artigos 22 e 23 do
EOAB e o art. 85, caput, §§ 14 e 19, do CPC/2015. A título de exem-
plo, em caso de reembolso, necessário se faz que o advogado da parte
esteja presente na ação rescisória. É o advogado a parte legítima
para defender a percepção da verba em cumprimento de sentença
ou ação rescisória23.
Se o Defensor Público não é advogado, não é titular dos ho-
norários sucumbenciais previstos no caput do art. 85 do CPC/2015.
A regra é expressa ao afirmar que os honorários são devidos ao Ad-
vogado da parte. A mutação constitucional ocorrida na interpretação
do art. 134 da CRFB/1988 não dá outra opção ao uso do precedente
senão o de indeferir, a partir da fixação do precedente vinculante,
outra tese: por não ser advogado, são indevidos honorários sucum-
benciais em favor do Defensor Público. Ora, se ainda fosse conside-
rado um advogado público, poder-se-ia manter a percepção de ho-
norários sucumbenciais com base no §19 do art. 85 do CPC/2015.
Ao contrário, desvinculada qualquer interpretação nesse sentido, o
uso do precedente vinculante ressalta a vedação contida na Lei Com-
plementar nº 080/1994:

Art. 130. Além das proibições decorrentes do exercício de cargo


público, aos membros da Defensoria Pública dos Estados é vedado:

(...)

III - receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, hono-


rários, percentagens ou custas processuais, em razão de suas
atribuições;

279
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

É vedada a percepção de honorários em razão do desempe-


nho da função de Defensor Público. É nesse momento que o obter
dictum ganha uma força hermenêutica, ainda que fraca, para pos-
sibilitar a afirmação de estar o Defensor Público mais equiparado à
carreira do Ministério Público que da advocacia. Os membros do
Ministério Público não percebem honorários24, consequentemente, a
interpretação do precedente deve levar à mesma conclusão.
Os membros da Defensoria Pública vêm defendendo que seus
honorários servem a um fundo de aparelhamento ou outros destinos
que suas normas internas dispõem. Por outro lado, ao se tratar de ho-
norários sucumbenciais, definido pelo CPC/2015 e pelo Estatuto da
OAB, não pode o Magistrado condenar qualquer parte ao pagamento,
em favor de Defensor Público, de honorários sucumbenciais com base
no art. 85 do CPC.
Novos precedentes extrajudiciais se formarão em decorrência
do precedente vinculante da ADI nº 4.636 e do Tema 1.074 em re-
percussão geral do STF. É o caso de ocupação de vaga privativa de
Advogado: no Conselho Nacional de Justiça, no Conselho Nacional
do Ministério Público, no Superior Tribunal de Justiça, no Superior
Tribunal Militar, no Tribunal Superior do Trabalho, no Tribunal Su-
perior Eleitoral, nos tribunais de justiça e nos tribunais regionais fede-
rais, eleitorais e do trabalho.
Historicamente, como bem lembrou o Ministro Marco Aurélio
em seu voto, o Defensor Público era advogado, inclusive os Defensores
Públicos se candidatavam à vaga em tribunais afirmando serem advoga-
dos25. Mais uma vez o obter dictum ganha força, pois se o voto vencido do
Ministro Marco Aurélio contém a informação de que o Defensor Público
participa da disputa ao cargo nos tribunais na vaga de advogado, por ser
advogado, se sua premissa foi afastada, significa dizer que o Defensor Pú-
blico não mais integrará os tribunais na vaga de Advogado:

280
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Participam, na classe dos advogados, da seleção ao quinto cons-


titucional destinado à composição dos tribunais, a teor do artigo
94 da Constituição Federal. É incongruente admitir a concor-
rência ao cargo e, ao mesmo tempo, negar a obrigatoriedade
de registro na Ordem. Relevantes os ensinamentos de Jacob
Bazarian1, no que adverte a importância de recorrer-se aos
princípios lógicos formais consagrados desde Aristóteles: o da
identidade – a revelar ser tudo idêntico a si mesmo (“A é A”) –; o
da não contradição – segundo o qual uma coisa não pode ser e
não ser ela mesma, ao mesmo tempo e do mesmo ponto de vista
(“A não é não-A”) –; e o do terceiro excluído – a demonstrar que
uma coisa é ou não é, não havendo espaço para o meio termo
(“A é B ou A não é B”).

A OAB não mais poderá aceitar a inscrição de defensores pú-


blicos para vagas em tribunais. O precedente judicial vinculante tem
incidência imediata sobre as normas e decisões administrativas do
Conselho Federal da OAB. Estas que deverão ser alteradas, por overru-
ling, por segurança, coerência e integridade.
A premissa academicamente levantada nesse texto se baseia
em passagem da decisão do Ministro Marco Aurélio, voto vencido,
e em obter dictum. O dictum poderá ganhar força de ratio numa deci-
são administrativa do Conselho Federal da OAB quando firmar a
premissa de que a vaga privativa de Advogado não pode ser preenchida por
Defensor Público para concorrer a cargos de tribunais e conselhos previstos na
Constituição Federal26.

281
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento do tema proposto foi de grande satisfação,
por termos passado por diversas áreas de estudo da teoria dos prece-
dentes. O objetivo não era exaurir o tema, contudo podemos interpre-
tar o precedente e identificar a ratio decidendi, o obter dictum, as premissas,
o valor do voto divergente, dentre outros elementos do precedente ca-
pazes de possibilitar o uso em decisões posteriores.
Ao leitor esperamos ter chegado às mínimas conclusões refe-
rentes à possibilidade de interpretação do precedente e verificação da
força do precedente com maior densidade quando o fato jurídico é
mais bem abordado do que apenas a interpretação de lei em tese. Isso
pôde ser apresentado por ter o Supremo Tribunal Federal realizado o
controle difuso e abstrato de constitucionalidade sobre o mesmo tema.
A conclusão do STF ao firmar a tese de inconstitucionalidade da
exigência de inscrição do Defensor Público nos quadros da Ordem dos
Advogados do Brasil não limita a academia e o julgador posterior apenas
à tese. O uso nos casos posteriores requer a interpretação do precedente
de maneira adequada e fundamentada. Interpretação essa que nos possi-
bilitou visualizar dois casos hipotéticos, passíveis de concretização em ca-
sos posteriores, no obter dictum extraído do voto do Ministro Marco Aurélio
e Ministro Roberto Barroso. No primeiro tratou-se das vagas privativas
de Advogado para tribunais. Chegamos à conclusão de que o precedente
passou a excluir o Defensor Público dessa disputa na vaga privativa de Ad-
vogado. No segundo emitiu-se uma opinião no sentido de ser a Defenso-
ria Pública equiparada ao Ministério Público. Partindo-se dessa premissa,
por não serem devidos honorários aos membros do parquet, por não ser o
Defensor um Advogado, é indevido o pagamento dessa verba aos mem-
bros da Defensoria Pública. O obter dictum de hoje pode ser a ratio decidendi
de amanhã. Os casos hipotéticos citados merecerão o uso do precedente
vinculante firmado pela corte e o julgador está autorizado a interpretá-lo
segundo as premissas fixadas.

282
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Notas
1
Eis aqui dois artigos que exprimem bem a essência do precedente no CPC/2015.
O primeiro trata da persuasão do precedente e da necessidade de observância
do precedente na formação de uma tese (sumular, em repercussão geral e etc.):
“Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável,
íntegra e coerente. § 1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados
no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes
a sua jurisprudência dominante. § 2º Ao editar enunciados de súmula, os
tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram
sua criação.” O outro dispõe sobre os precedentes vinculantes de observância
pelo julgador: “Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: I - as decisões do
Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II - os
enunciados de súmula vinculante; III - os acórdãos em incidente de assunção de
competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos
extraordinário e especial repetitivos; V - os enunciados das súmulas do Supremo
Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em
matéria infraconstitucional; V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos
quais estiverem vinculados. § 1º Os juízes e os tribunais observarão o disposto no
art. 10 e no art. 489, § 1º, quando decidirem com fundamento neste artigo. § 2º A
alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de
casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de
pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese. § 3º
Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal
e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos,
pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança
jurídica. § 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada
ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de
fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança
jurídica, da proteção da confiança e da isonomia. § 5º Os tribunais darão publicidade
a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os,
preferencialmente, na rede mundial de computadores.
2
Sem impugnação ao seu fundamento de validade na Constituição Federal, pois aí
teríamos a possibilidade de conhecimento da matéria pelo Supremo Tribunal Federal.
3
“Não obstante a inviabilidade de equiparação dos dois sistemas, a doutrina
sugere a possibilidade de se criar uma teoria geral do precedente mais ampla, não

283
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

adstrita apenas ao common Law, a partir da análise do precedente sob quatro aspectos,
quais sejam: dimensão institucional, dimensão objetiva, dimensão estrutural e
dimensão da eficácia” (THEODORO JUNIOR, Humberto; ANDRADE, Érico.
Precedentes no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense. 2021, p. 70).
4
CPC/2015, art. 927: “§ 5º Os tribunais darão publicidade a seus precedentes,
organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na
rede mundial de computadores.
5
CPC/2015: “Art. 489. (...) §1º. Não se considera fundamentada qualquer decisão
judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (...) V - se limitar a invocar
precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes
nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;”
6
Em tradução livre: “O Tribunal de Recursos analisa apenas as questões de direito
decididas pelos tribunais de instância inferior, exceto para duas situações em que o
tribunal pode rever os fatos. A primeira delas é um apelo de um julgamento criminal
que impõe a pena de morte. O outro é um recurso de um tribunal de apelação da
Divisão de Apelação, ou seja, de um dos quatro tribunais de apelação intermediários
revertendo ou modificando uma sentença, encontrando novos fatos ou determinando
que uma decisão final seja proferida sobre novos fatos” (MACCORMICK, D. Neil;
SUMMERS, Robert S.; GOODHAT, Arthur L. Interpreting precedents. Great
Britain: Aushgate Publishing Limited, 1997, pp. 357-358). Como é de se observar,
para o Tribunal de Recursos Americano, o fato jurídico é determinante para saber
se aplica ou não um precedente tratando questão apenas de direito. O fato jurídico
pode ser determinante na manutenção de uma pena de morte, por exemplo.
7
STF: AgRg-AI 737.185; Rel. Min. Dias Toffoli; DJe 19.12.2012; p. 18.
8
Em tradução livre: “Os tribunais intermediários normalmente tratam os dicta
dos tribunais superiores - aqueles em precedentes verticais - com mais respeito do que
os seus próprios, não apenas por causa da posição do tribunal superior, mas também
porque os dicta de hoje são uma indicação do que pode muito bem ser o precedente
vinculativo de amanhã” (GARNER, Brayan A. The law of judicial precedent. St. Paul:
Thomson Reuters. 2016, pp. 69-70).
9
THEODORO JUNIOR, Humberto; ANDRADE, Érico. Precedentes no Direito
Brasileiro, cit., p. 95.
10
“A situação é exatamente a mesma em que o julgador, ao analisar qualquer lei
nova, tem de verificar, segundo a constituição, se os fatos anteriores discutidos no

284
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

processo estão ou não sob a sua regência: se estão, a lei nova será observada; se não, a
causa será julgada segundo a lei velha, vigente ao tempo do fato constante do objeto
litigioso” (THEODORO JUNIOR, Humberto; ANDRADE, Érico. Precedentes no
Direito Brasileiro, cit., p. 117).
11
Pode-se extrair da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileira a seguinte
regra: “Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial,
quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja
produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época,
sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem
inválidas situações plenamente constituídas. Parágrafo único. Consideram-se
orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de
caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as
adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.”
12
“Art. 525. (...) § 12. Para efeito do disposto no inciso III do § 1º deste artigo,
considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial
fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal
Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido
pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em
controle de constitucionalidade concentrado ou difuso. § 13. No caso do § 12, os
efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal poderão ser modulados no tempo,
em atenção à segurança jurídica. § 14. A decisão do Supremo Tribunal Federal
referida no § 12 deve ser anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda. §
15. Se a decisão referida no § 12 for proferida após o trânsito em julgado da decisão
exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado
da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.”
13
“Os membros das Defensorias Públicas, conquanto exerçam atividade
assemelhada à advocacia, possuem peculiaridades que justificam que a eles seja
dispensado tratamento diverso, inclusive com a inexigibilidade de sua inscrição nos
quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, na medida em que a sua capacidade
postulatória decorre da nomeação e posse no referido cargo público”. Precedentes:
AgInt no Resp. 1.652.953/PR, Rel. Min. FRANCISCO FALCÃO, DJe 17.12.2018;
AgInt no Resp. 1.670.310/SP, Rel. Min. OG FERNANDES, DJe 11.3.2019; Resp.
1.710.155/CE, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, DJe 2.8.2018; AgInt no REsp
1654495/ES, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA
TURMA, julgado em 26/08/2019, DJe 28/08/2019

285
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

14
Essa afirmação consta no voto do Ministro Roberto Barroso (p. 10).
15
“Essa separação estrutural entre texto e norma trouxe dois benefícios
bastante significativos: (i) permitiu a declaração de inconstitucionalidade de norma
ou interpretação, preservando-se o texto legal ou a lei, e (ii) favoreceu a práxis
da interpretação de conformação ou de adequação do sentido do texto legal à
Constituição” (MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes. São Paulo:
RT, 2014, p. 54).
16
“O autor destaca, daí, uma série de argumentos, que constituem, em sua
proposição, obter dictum: os que tratem de princípios jurídicos, os que valorem
outros comandos ou os que valorem as consequências da norma favorecida e suas
alternativas” (MACÊDO, Lucas Buril. Precedentes judiciais e o direito processual civil. 3.
Ed. Salvador: Juspodivm. 2019, p. 252)
17
GARNER, Brayan A. The law of judicial precedent, cit., p. 45.
18
apud LOPES FILHO, Juraci Mourão. Os precedentes judiciais no constitucionalismo
brasileiro contemporâneo. 3ª Ed., Salvador: Juspodivm, 2021, pp. 441-442.
19
LOPES FILHO, Juraci Mourão. Os precedentes judiciais no constitucionalismo
brasileiro contemporâneo, cit., p. 354.
20
MACÊDO, Lucas Buril. Precedentes judiciais e o direito processual civil, cit., p. 255.
21
Essa foi a conclusão do STF no julgamento de diversas ADIs propostas contra
a percepção de honorários por advogados públicos. A Corte Constitucional fixou a
tese de que os honorários sucumbenciais são devidos aos advogados públicos, como
remuneração, submetendo-se sua percepção ao limite do teto constitucional do
funcionalismo público (art. 37, XI da CRFB/1988). Precedentes: ADIs 6165, 6178,
6181, 6197, 6053.
22
Conselho Federal da OAB - Súmula 8 - Os honorários constituem direito
autônomo do advogado, seja ele público ou privado. A apropriação dos valores
pagos a título de honorários sucumbenciais como se fosse verba pública pelos Entes
Federados configura apropriação indevida.
23
“(...) 1. No direito brasileiro, os honorários de qualquer espécie, inclusive os
de sucumbência, pertencem ao advogado, e o contrato, a decisão e a sentença que
os estabelecem são títulos executivos. Incidência da Súmula 306/STJ. 2. Tratando-
se de direito autônomo, o advogado é parte legítima para defender os honorários
que titulariza quando ameaçados em razão da propositura de demanda rescisória.
3. O capítulo da sentença referente aos honorários está indiscutivelmente atrelado

286
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

ao resultado da lide consagrado no respectivo título judicial, de modo que a


desconstituição da coisa julgada atingirá não apenas a relação jurídica travada entre
vencedor e vencido da demanda original, mas também aquela estabelecida entre
o advogado e a parte anteriormente vencida, agora vencedora da ação rescisória.
4. Fere os postulados básicos do devido processo legal permitir que o acórdão
rescindendo seja desconstituído, e sustado o precatório que inclui os honorários
advocatícios, sem franquear aos advogados, titulares de direito autônomo sobre essa
verba, a possibilidade de contraditar a pretensão externada na ação rescisória. (...)”
(AgRg na AR 3.290/SP, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, PRIMEIRA SEÇÃO,
julgado em 25/05/2011, DJe 02/06/2011)
24
“(...) 2. ‘O Ministério Público não faz jus ao recebimento de honorários
advocatícios sucumbenciais quando vencedor na ação civil pública por ele
proposta. Não se justificando, de igual maneira, conceder referidos honorários
para outra instituição’ (REsp 1.358.057/PR, Rel. Ministro Moura Ribeiro,
Terceira Turma, DJe de 25/6/2018). 3. Nesse sentido: AgInt no AREsp 506.723/
RJ, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 16/5/2019; AgInt nos
EDcl no AgInt nos EDcl no AREsp 317.587/SP, Rel. Ministro Sérgio Kukina,
Primeira Turma, DJe 1º/4/2019. 4. Recurso Especial provido.” (REsp 1820022/
AL, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em
10/09/2019, DJe 11/10/2019)
25
É o caso do Defensor Público Roberto Gonçalves de Freitas Filho, cujo
sumário da inscrição para o Superior Tribunal de Justiça consta: “O advogado
Roberto Gonçalves de Freitas Filho, natural de Teresina, no Piauí, nasceu em
26 de novembro de 1961, é defensor público do Estado e professor do curso de
Direito da Universidade Federal do Piauí. Na OAB, foi conselheiro e secretário-
geral da Seccional da OAB-PI, conselheiro federal, presidiu as Comissões de
Acesso à Justiça e de Direitos Humanos e integrou a Comissão da Criança e
do Adolescente. Formado pela Universidade Federal do Piauí e pós-graduado
em Direito Civil pela PUC de São Paulo, Freitas também presidiu a Associação
Nacional de Defensores Públicos (Anadep) e atuou como juiz suplente do
Tribunal Regional do Piauí, como juiz convocado na Comissão de Propaganda.
É autor do livro ‘Sigilo Profissional e Ética e Advocacia Pro Bono’, editado pelo
Conselho Federal da OAB” (OAB publica curriculuns de candidatos a vaga de
ministro do STJ. OAB Mato Grosso do Sul, 2008. Disponível em: <https://
oabms.org.br/oab-publica-curriculuns-de-candidatos-a-vaga-de-ministro-do-
stj/>. Acesso em: 27.12.2021, on-line).

287
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

26
Para a formação desse precedente administrativo, a Administração Pública
em algumas “situações, tanto em processo quanto em procedimento administrativo,
também são capazes de realizar essa mediação entre Direito e realidade na formulação
de respostas institucionais a um caso concreto, seja na tomada de decisões ou na
expedição de pareceres e respostas a consultas” (LOPES FILHO, Juraci Mourão;
BEDÊ, Fayga Silveira. A força vinculante dos precedentes administrativos e o seu
contributo hermenêutico para o Direito. A&C – Revista de Direito Administrativo &
Constitucional, Belo Horizonte, ano 16, n. 66, p. 239-265, out./dez. 2016. DOI:
10.21056/aec.v16i66.367, p. 244).

Referências

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2021. Disponível em: www.stj.jus.br.


Acesso em: 20 de dezembro de 2021.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2021. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso


em: 20 de dezembro de 2021.

GARNER, Brayan A. The law of judicial precedent. St. Paul: Thomson Reuters, 2016.

LOPES FILHO, Juraci Mourão. Os precedentes judiciais no constitucionalismo brasileiro


contemporâneo. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2021.

_____________; BEDÊ, Fayga Silveira. A força vinculante dos precedentes


administrativos e o seu contributo hermenêutico para o Direito. A&C – Revista de
Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 16, n. 66, p. 239-265, out./
dez. 2016. DOI: 10.21056/aec.v16i66.367.

MACCORMICK, D. Neil; SUMMERS, Robert S.; GOODHAT, Arthur L.


Interpreting precedents. Great Britain: Aushgate Publishing Limited, 1997.

MACÊDO, Lucas Buril. Precedentes judiciais e o direito processual civil. 3ª ed. Salvador:
Juspodivm, 2019.

MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes. São Paulo: RT, 2014.

OAB publica curriculuns de candidatos a vaga de ministro do STJ. OAB Mato


Grosso do Sul, 2008. Disponível em: <https://oabms.org.br/oab-publica-curriculuns-
de-candidatos-a-vaga-de-ministro-do-stj/>. Acesso em: 27.12.2021.

THEODORO JUNIOR, Humberto; ANDRADE, Érico. Precedentes no Direito


Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

288
DIGRESSÕES A RESPEITO DO ARTIGO 20 DA
LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO
BRASILEIRO
Danilo Carvalho Gomes1

RESUMO
O presente artigo jurídico tem por finalidade trazer à evidên-
cia os motivos pelos quais se mostra importante a inovação legislativa
disposta no artigo 20 da LINDB, coligindo os argumentos de relevo
que influenciaram o projeto de lei e suas razões de ser, bem como so-
bre reflexões acerca destas premissas. As fontes de pesquisa utilizadas
foram principalmente opiniões jurídicas de autores e sites renomados,
à mingua da posição dos tribunais em razão da parca e tímida juris-
prudência sobre o tema. Das pesquisas de estudo, denota-se, sobretu-
do, a importância da necessidade dos órgãos de controle decidirem de
acordo com a realidade que o ente público está inserido, bem como
a íntima relação deste preceito legal com princípios constitucionais,
como o princípio do dever de motivação e da separação dos poderes,
dentre outros.
Palavras-chave: Artigo 20 da LINDB. Fundamentação. Separa-
ção dos poderes. Consequencialismo jurídico. Princípio da motivação
concreta. Princípio do contraditório e da ampla defesa.

1 Graduado em Direito em 2014, pela Universidade da Amazônia - UNAMA/PA, iniciou sua carreira profissional em
2015, exercendo a advocacia em algumas causas cíveis e criminais. Pós-graduado em processo civil, com conclusão
em 2018. Em 2021, tomou posse no cargo de Analista Judiciário TJPA, lotado no gabinete da vara única de Augusto
Corrêa/PA. Aprovado, dentre outros concursos, para: Analista Judiciário, área judiciária do TRT da 8º região. Oficial
de Justiça do TJPA. Analista Judiciário do TJMA. Analista Judiciário do TJPA. Delegado PCPA 2021. Em setembro de
2021, tomou posse no cargo de Procurador do Estado do Amapá.

289
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

RESUMEN
El presente artículo legal tiene por objeto sacar a la luz las razones
por las cuales es importante la innovación legislativa prevista en el artículo
20 de la LINDB, recogiendo los argumentos relevantes que influyeron
en el proyecto de ley y sus razones de ser, así como reflexiones sobre estas
premisas. Las fuentes de investigación utilizadas fueron principalmente
opiniones jurídicas de reconocidos autores y sitios web, decayendo la po-
sición de los tribunales debido a la limitada y tímida jurisprudencia sobre
el tema. De los estudios de investigación se advierte la importancia de la
necesidad de que los órganos de control decidan de acuerdo con la rea-
lidad en que se inserta la entidad pública, así como la intima relación de
este precepto legal con principios constitucionales, como el principio del
deber de motivación y separación de poderes, entre otros.
Palabras-clave: Artículo 20 de la LINDB. Razonamiento. Sepa-
ración de poderes. Consecuencialismo jurídico. Principio de motiva-
ción concreta. Principio de contradicción y defensa plena.

INTRODUÇÃO
O projeto de lei há muito já vinha sendo objeto de pretensão
legislativa, especialmente diante das mais inusitadas situações em que
se encontravam os gestores, ao que se denominou de “apagão das ca-
netas”. Diante deste cenário, foi inevitável a aprovação, não só do art.
20 da LINDB, mas dos artigos seguintes (até o 30), nos quais foram
previstas várias exigências aos órgãos de controle.
Em razão do impacto causado aos administradores e adminis-
trados, bem como no dia a dia da atividade administrativa, revela-se
imprescindível a presente digressão a respeito do sentido disposto no
art. 20 da LINDB, com o escopo de interpretá-lo e decifrar os assun-
tos que serviram como pedra angular inexorável para sua confecção,
dentre os quais destacam-se: o princípio da motivação concreta, ou

290
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

consequencialismo jurídico, o princípio do contraditório e da ampla


defesa e o da separação dos poderes, além do dever constitucional de
motivar as decisões.

CONTEXTUALIZAÇÃO
A fundamentação das decisões judiciais, em um Estado democrá-
tico de direito, descortina-se como pedra angular de sua fundação na me-
dida em que permite o controle destas decisões, evitando determinações
abusivas e autoritárias, típicas de regimes desprovidos da luz democrática.
Com efeito, visando dar concretude ao dever de fundamen-
tação encampado no art. 93, inciso IX, da CF de 1988, o legislador
achou por bem trazer parâmetros para definir o que se considera uma
decisão fundamentada, à exemplo do que foi disposto no art. 20 da
LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) e no art.
489, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil de 2015.
O art. 20 da LINDB busca trazer balizas para atuação do ma-
gistrado no exercício da atividade judicante, diante das mais diversas
situações antagônicas que os gestores dos 5.568 Municípios do Brasil
vivenciaram – e vivenciam – além dos gestores dos 26 Estados, do Dis-
trito Federal e, claro, da União.
São inúmeras decisões judiciais que se proliferam ao longo do país
que, quando não são suficientemente fundamentadas, são, por si só, an-
tagônicas ou ainda descoladas da realidade fática que aquele ente público
experimenta, sem esquecer da violação à discricionariedade administrati-
va do gestor em inevitável quebra da separação dos poderes.
A repercussão das decisões era (e ainda é) de tal dimensão que
os estudiosos do projeto de lei (de alteração na LINDB) afirmam que o
objetivo da inclusão destes artigos era amenizar o que se buscou con-
vencionar de “apagão das canetas”.

291
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Este termo pode ser entendido como uma postura de inação


do gestor por receio de incorrer em responsabilização pessoal e patri-
monial pelos órgãos de controle, fato este que atinge, ao final e inevita-
velmente, os administrados.
Em meio a essas discussões é que ganha destaque a inovação
legislativa disposta no art. 20 do Decreto-Lei 4.657 (incluída pela Lei
13.655 de 2018), no qual se prevê que o julgador não poderá decidir
com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as
consequências práticas da decisão, senão vejamos:

Art. 20: Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não


se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que se-
jam consideradas as consequências práticas da decisão.

Trata-se de inovação legislativa recente que tem natureza jurídica


de uma metanorma, ou, em outras palavras, de uma norma sobre norma.
Tem por finalidade estabelecer um regramento quando da aplicação de
outras regras/normas. É uma lei versando sobre a aplicação de leis.
A mens legis dessa previsão legal é justamente coibir os abusos
cometidos pelos julgadores, ao proferirem decisões ancoradas em pre-
ceitos abstratos desconexos com a realidade dos fatos, inviabilizando
sobremaneira o cumprimento do decisum, tornando-o improvável e, às
vezes, até mesmo impossível.
Os juristas que auxiliaram a confecção do anteprojeto justi-
ficam a necessidade desta nova exigência nos seguintes termos: “O
dispositivo proíbe motivações decisórias vazias, apenas retó-
ricas ou principiológicas, sem análise prévia de fatos e de
impactos. Obriga o julgador a avaliar, na motivação, a partir de
elementos idôneos coligidos no processo administrativo, judicial ou de controle,

292
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

as consequências práticas de sua decisão. Quem decide


não pode ser voluntarista, usar meras intuições, improvisar
ou se limitar a invocar fórmulas gerais como ‘interesse público’, ‘princípio da
moralidade’ e outras. É preciso, com base em dados trazidos ao processo decisó-
rio, analisar problemas, opções e consequências reais. Afinal, as decisões estatais
de qualquer seara produzem efeitos práticos no mundo e não apenas no plano
das ideias1.”
É de relevo ainda destacar que o projeto de lei não nasceu da
noite para o dia e desprovido de estudo aprofundado sobre o tema. A
proposta foi elaborada por estudiosos do assunto, dentre eles os pro-
fessores Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques Neto:

[...] O aumento de regras sobre processos e controle da ad-


ministração têm provocado aumento da incerteza e da im-
previsibilidade e esse efeito deletério pode colocar em ris-
co os ganhos de estabilidade institucional. Em razão disso,
os professores Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo
Marques Neto elaboraram projeto de lei, que ora é acolhido,
fruto de projetos de pesquisa mais amplos desenvolvidos por
pesquisadores da Sociedade Brasileira de Direito Público em
parceria com a Escola de Direito de São Paulo da Fundação
Getúlio Vargas. O resultado desse trabalho foi publicado na
obra “Contratações Públicas e Seu Controle”, pela Editora
Malheiros, ano 2013. O que inspira a proposta é justamente
a percepção de que os desafios da ação do Poder Público
demandam que a atividade de regulamentação e aplicação
das leis seja submetida a novas balizas interpretativas, pro-
cessuais e de controle, a serem seguidas pela administração
pública federal, estadual e municipal [...]

293
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Conforme esclareceram os referidos professores, o projeto em


apreço propõe medidas para neutralizar importantes fatores
de distorção da atividade jurídico-decisória pública. São eles:
• O
 alto grau de indeterminação de grande parte das
normas públicas;
• A
 relativa incerteza, inerente ao Direito, quanto ao ver-
dadeiro conteúdo de cada norma;
• A
 tendência à superficialidade na formação do juízo
sobre complexas questões jurídico-públicas;
• A
 dificuldade de o Poder Público obter cumprimento
voluntário e rápido de obrigação por terceiros, contri-
buindo para a inefetividade das políticas públicas2.

Às vezes é preciso dizer o óbvio: quando decidir, especialmente


embasado em valores jurídicos abstratos, atente-se às consequências
de sua decisão. E são vários os doutrinadores que se preocupam em
dizer mais do mesmo, à exemplo de Marçal Justen Filho ao dispor
em seus ensinamentos que é imprescindível que o magistrado leve em
conta as nuances da realidade fática, com o fito de permitir um liame
plausível entre o valor jurídico que se invoca para decidir e seus efeitos
práticos, senão vejamos:

O art. 20 da LINDB é orientado a reduzir a indeterminação


das decisões estatais, que muitas vezes se restringem a invo-
car princípios abstratos. O processo decisório exige a concre-
tização de normas e valores ideais, o que impõe tomar em
consideração as situações de realidade. Se uma norma pode
propiciar diferentes conclusões para o caso concreto, é in-
dispensável analisar os potenciais efeitos pertinentes a cada

294
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

qual [...] As inovações introduzidas pela Lei nº 13.655/2018


destinam-se a preponderantemente a reduzir certas práticas
que resultam em insegurança jurídica no desenvolvimento
da atividade estatal. O art. 20 relaciona-se a um dos aspec-
tos do problema, versando especificamente sobre as decisões
proferidas pelo agentes estatais e fundadas em princípios e
valores de dimensão abstrata. A finalidade buscada é redu-
zir o subjetivismo e a superficialidade de decisões, impondo a
obrigatoriedade do efetivo exame das circunstâncias do caso
concreto, tal como a avaliação das diversas alternativas sob
um prisma de proporcionalidade [...] A situação descrita de-
corre do grau elevado de abstração das normas de hierarquia
superior. Mas a solução não se encontra (apenas) em reduzir
o número dessas normas abstratas ou o grau de abstração de
tais normas. Talvez nem seja viável (nem desejável) ampliar a
concretude da disciplina jurídica. Mas certamente é necessá-
rio aperfeiçoar o processo de aplicação do direito. Ainda que
seja inevitável uma margem de autonomia da autoridade in-
vestida da competência decisória [...] A previsão dos efeitos
práticos da decisão é indispensável para determinar a compa-
tibilidade da escolha realizada com o valor abstrato invocado.
Como observado, o valor em sua dimensão abstrata comporta
uma pluralidade de significados e compreende decorrências
variadas. O processo de concretização do valor envolve não
apenas a escolha de um dentre esses diversos significados, mas
também exige a ponderação quanto ao resultado prático que
será produzido pela decisão adotada. A previsão dos efeitos
práticos da solução adotada é indispensável para verificar a
compatibilidade entre a dita decisão e o próprio valor invo-
cado de modo abstrato. Em outras palavras, o processo de
concretização do valor exige uma estimativa quantos aos
efeitos práticos da decisão3.

295
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

FACETAS E REFLEXÕES SOBRE O DISPOSITIVO


Registre-se que o art. 20 da LINDB positiva no ordenamento
jurídico o denominado consequencialismo jurídico, ou ainda, o
princípio da motivação concreta, justamente diante da necessi-
dade de o intérprete analisar as implicações práticas de sua decisão:

De modo simples, pode-se dizer que o consequencialismo é ca-


racterística de certa postura, interpretativa ou cognitiva, ten-
dente a considerar as consequências de ato, teoria ou conceito.
O consequencialismo jurídico é, por sua vez, postura interpre-
tativa que considera, como elemento significativo da interpreta-
ção do Direito, as consequências de determinada opção inter-
pretativa. Parece ser nesse sentido abrangente que a LINDB se
aproxima ao tema4.

Princípio da motivação concreta sediado no art. 20 e no caput


do art. 21 da LINDB exige que o agente público incorpore à
motivação dos atos administrativos a efetiva análise das con-
sequências práticas de suas soluções jurídicas. Não lhe basta
limitar-se à análise de valores abstratos (rectius, princípios,
cláusulas abertas ou conceitos jurídicos indeterminados). É
necessário explicitar quais serão as consequências concretas
da solução jurídica. (OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de.
A Segurança Hermenêutica nos Vários Ramos do Direito e
nos Cartórios Extrajudiciais: repercussões da LINDB após a
Lei nº 13.655/2018, Brasília: Núcleo de Estudos e Pesqui-
sas/CONLEG/Senado, Junho/2018 (Texto para Discussão
nº 250)5.

É importante frisar que o consequencialismo jurídico não deve


ser utilizado pelas autoridades apenas em casos omissos na lei ou como

296
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

técnica subsidiária. Tal método hermenêutico deve ser utilizado em


qualquer caso que se for julgar, para que antes de proferir uma decisão
em determinado sentido, realize-se reflexões sobre os impactos – con-
sequências – a serem causados, não apenas às partes, mas também
sobre o tecido social como um todo.
Dessa forma, dentre os elementos capazes de aferir o acerto de
uma decisão, seja na esfera administrativa, judicial ou de controle, está
a análise da repercussão causada pelo ato praticado. Assim, ela seria
justa ou injusta, válida ou não, a depender dos efeitos gerados.
A necessidade de o magistrado realizar reflexões e as expor
em suas decisões a fim de demonstrar as consequências que possam
advir com a sua escolha, já foi pacificado pelo STF, ao dispor sobre a
hermenêutica consequencialista (RE nº 870947/SE, Tribunal Pleno,
Rel. Min. LUIZ FUX, julgado em 20/09/2017 e publicado no DJe de
17/11/2017).
Contudo, é importante destacar que a norma prevista na LIN-
DB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) em seu art.
20, não proíbe a decisão com base em valores jurídicos abstratos, mas
apenas exige que o julgador leve em consideração as consequências de
sua decisão, em respeito ao princípio da fundamentação, inerente ao
nosso Estado Democrático de Direito, como bem explicado pelo Juiz
Federal Márcio André Lopes Cavalcante e da justificativa do antepro-
jeto, respectivamente abaixo:

O artigo 20 da LINDB introduz a necessidade de o órgão jul-


gador considerar um argumento metajurídico no momento
de decidir, qual seja, “as consequências práticas da decisão”.
Em outras palavras, a análise das consequências práticas da
decisão passa a fazer parte das razões de decidir.

297
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

[...] O dispositivo não exige conhecimento extraprocessual do


julgador, mas sim que concretize sua função pública com res-
ponsabilidade. Veda, assim, motivações decisórias vazias, ape-
nas retóricas ou principiológicas, sem análise prévia de fatos e
de impactos. Obriga o julgador a avaliar, na motivação, a partir
de elementos idôneos coligidos no processo administrativo, ju-
dicial ou de controle, as consequências práticas de sua decisão.
E, claro, esse dever se torna ainda mais importante quando há
pluralidade de alternativas. Quem decide não pode ser volun-
tarista, usar meras intuições, improvisar ou se limitar a invocar
fórmulas gerais como ‘interesse público’, ‘princípio da morali-
dade’ e outras6.

Além disso, é importante registrar que não é imprescindível


que o juiz leve em consideração TODAS as consequências possíveis
de sua decisão, até mesmo por ser impossível e impraticável, mas sim
que reflita pelo menos sob os efeitos patentes, que estejam à superfície,
aos olhos de qualquer “julgador médio”, em um exercício de prognose
objetiva. É nesse sentido o art. 3º, p 2º, do Decreto 9.830 (Decreto que
regulamenta a inovação legislativa na LINDB):

§ 2º Na indicação das consequências práticas da decisão, o deci-


sor apresentará apenas aquelas consequências práticas que, no
exercício diligente de sua atuação, consiga vislumbrar
diante dos fatos e fundamentos de mérito e jurídicos.

Acresça-se que não se está aqui tentando efetuar qualquer miti-


gação da força normativa dos princípios encampados na carta magna

298
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

– valores jurídicos abstratos. Como se sabe, com a chegada do pós-po-


sitivismo, os princípios foram erigidos a uma posição de norma dotada
de caráter cogente, é dizer, caracterizados pela força normativa, aptos
a fundamentar um decreto decisório impondo obrigações.
Dessa forma, ao contrário do que se poderia imaginar, a ino-
vação legislativa não teve por fim mitigar essa evolução doutrinária
advinda com o pós-positivismo, mas sim aperfeiçoá-la para que o apli-
cador do direito apenas considere as possíveis consequências de sua
decisão ao fundamentá-la em espectros normativos genéricos e, com
isso, possa coligir o plano abstrato e a realidade fática de forma coeren-
te e harmônica, em uma só linha de raciocínio.
Um exemplo ajuda a entender a preocupação do legislador.
Imaginemos que em um contrato de prestação de serviço público de
transporte escolar esteja viciado, sendo a sua anulação medida que a
lei impõe. Nesse caso, o juiz deve considerar, antes de decidir pela anu-
lação, as consequências lesivas à população caso não haja a prestação
efetiva do serviço, podendo, inclusive, cogitar alternativas possíveis ou
de transição para que, a pretexto de defender o interesse público, não
acabe por violá-lo.
Em outro exemplo, não basta que o magistrado invoque o di-
reito fundamental à saúde, fazendo considerações genéricas sobre o
tema – que, muitas vezes, podem ser reproduzidas em tantos outros
casos semelhantes – para deferir a determinado paciente tratamento
em hospital particular à custa do Estado ou para determinar o seu
internamento imediato em hospital público sem respeitar os critérios
de regulação. É preciso que o magistrado considere e trate expressa-
mente das consequências dessa sua decisão, especialmente quanto aos
reflexos que ela pode gerar no orçamento e na execução de outros
projetos ligados à saúde, de pessoas que aguardam, na fila de espera,
uma oportunidade de atendimento.

299
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

A IMPORTÂNCIA DA MOTIVAÇÃO
De outro giro, caso não observada a metanorma acima de-
lineada, exsurgem graves problemas, à exemplo da possibilidade de
uma motivação precária mascarar a real intenção da decisão, abrin-
do-se margem para o tão rechaçado voluntarismo judicial, conforme
os ensinamentos do mestre Marçal Justen Filho:

A invocação a valores abstratos pode ocultar os valores que real-


mente informaram o processo decisório. Existe o risco de que a
autoridade emita uma decisão fundando-se em um valor negati-
vo, altamente reprovável, não tutelado pelo direito e merecedor
de integral repulsa.7.

Por estas razões, a inovação legislativa na LINDB tem por fim


viabilizar a transparência do processo racional efetuado, na concreti-
zação dos argumentos jurídicos eleitos para fundamentar a decisão.
Nessa direção, sobreleva-se o entendimento encampado pelo STF na
Pet 8002- AgR (Supremo Tribunal Federal, Primeira Turma, AgR Pet
8002 RS - RIO GRANDE DO SUL 0083552-41.2018.1.00.0000.
Relator Ministro LUIZ FUX, julgado em 12/03/2019), cuja ementa
dispõe que “o Magistrado tem o dever de examinar as consequências imediatas e
sistêmicas que o seu pronunciamento irá produzir na realidade social, porquanto, ao
exercer seu poder de decisão nos casos concretos com os quais se depara, os Juízes
alocam recursos escassos”.
De mais a mais, decisão judicial proferida com violação do su-
pracitado dispositivo viola ainda os princípios do contraditório e da
ampla defesa, uma vez que ninguém consegue impugnar especifica-
mente uma decisão se ela não estiver fundamentada. Ainda que assim

300
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

não fosse, impossibilita que o órgão recursal analise o acerto ou desa-


certo da decisão atacada.
Outrossim, são muitas as decisões judiciais que fixam prazos
para o cumprimento de inúmeras e complexas obrigações, sem ao me-
nos justificar a razão de ser deste prazo. É evidente que, em muitos
casos, não há uma inarredável e peremptória obrigação de motivar a
razão de ser de cada prazo estipulado. Entretanto, em algumas situa-
ções, mormente naquelas em que há obrigações de fazer complexas e
demoradas, a motivação do prazo apta a justificá-lo passa a ser medida
que se impõe ao julgador, sobretudo quando há a fixação de astreintes
pelo descumprimento.
Como se sabe, para que se concretizem as obrigações impostas
a um Ente Federado, muitas vezes é necessário, antes mesmo de con-
tratar a empresa por licitação, que se faça um estudo detalhado acerca
das normas técnicas a serem seguidas com vistas à elaboração adequa-
da de um termo de referência, para subsidiar as empresas licitantes a
atenderem o objeto licitado. Enfim, são necessários inúmeros passos
para que se concretize uma contratação, pelo Estado, em razão da
burocracia administrativa, inerente ao seu bom funcionamento.
Entendimento contrário autoriza concluir que a fixação das
astreintes, que tenham sido eventualmente fixadas, com vistas a forçar
o cumprimento de obrigações complexas, quando acompanhadas de
um exíguo prazo, teriam sua natureza desvirtuada – já que sua inci-
dência seria inevitável, retirando-lhe sua finalidade coercitiva.
Preocupado com isso (e outras decisões judiciais teratológicas),
o legislador previu no parágrafo único do art. 20 da LINDB a obriga-
toriedade imposta ao magistrado de expor a adequação da medida (ou
prazo): Parágrafo único: “A motivação demonstrará a necessidade e a adequa-
ção da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma
administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas”.  

301
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

6. A relação com a separação dos poderes:


Outrossim, é imprescindível notar que a nova disposição na lei
de introdução tem intima relação ainda com o princípio da separação
dos poderes, com sede material no art. 2º, caput, da CF/1988. Isso
porque, as decisões sobre políticas públicas, em geral, são de compe-
tência primeira do chefe do poder executivo, de modo que decisões
que sejam provenientes de poder diverso devem ser vistas com ressalvas.
A divisão de poderes tem por escopo evitar que autoridades
cometam abusos e violem direitos básicos a pretexto de os realizarem
em prol do bem comum ou interesse público. As experiências colhidas
da história nos mostram que o abuso de poder é diretamente propor-
cional a sua concentração (a exemplo dos governos monárquicos) e
inversamente proporcional à pulverização deste mesmo poder através
das instituições democráticas.
Nesse contexto, é importante registrar que a ideia de separa-
ção dos poderes, embora tenha surgido na Grécia da idade antiga,
veio a aperfeiçoar-se com Montesquieu que o dividiu basicamente em
03: Poder Executivo; Poder Legislativo e; Poder Judiciário – corrente
conhecida e denominada de teoria da tripartição dos poderes em sua
obra “o espírito das leis”, de 1748.
Cada poder é independente e autônomo para cumprir seu
múnus constitucional, mas também para fiscalizar e coibir abusos
eventualmente praticados por outros poderes. Dessa forma, ao Execu-
tivo cabe cumprir as leis e decisões judiciais, além de decidir, dentro de
sua discricionariedade, as políticas públicas que julga benéfica à popu-
lação, a partir do plano de governo pelo qual foi eleito. Ao Legislativo
cabe a função de elaborar as leis e de, igualmente, coibir excessos (à
exemplo do art. 49, inciso V, CF/1988). Ao judiciário cabe a função
de interpretar as leis. É o que se denomina de sistema de freios e con-
trapesos – checks and balances.

302
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Assim, considerando que a separação dos poderes é a regra e


que a ingerência de outros órgãos – sobretudo os de controle – no po-
der executivo é exceção, nada mais justo que elencar critérios a atua-
ções que extrapolam seus limites constitucionais, à mingua de impres-
cindível exercício de autocontenção, à exemplo do que fez o legislador
no art. 20 da LINDB.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Portanto, resta evidente a importância da inovação legislativa
disposta na LINDB, a fim de trazer maior concretude ao princípio da
fundamentação das decisões judiciais, do contraditório, da ampla de-
fesa, bem como do princípio da motivação concreta (ou consequencia-
lismo jurídico – hermenêutica consequencialista) e da separação dos
poderes, com vistas a coligir, em cotejo harmonioso – e não contradi-
tório – em um só plano de raciocínio, um liame concebível entre os
valores jurídicos abstratos que se invoca e a realidade dos fatos posta,
sob pena de chancela do superado e rechaçado sistema do íntimo con-
vencimento – ou da certeza moral – do agente controlador.

303
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Notas
1
https://www.conjur.com.br/dl/parecer-juristas-rebatem-criticas.pdf.

https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?PdocT=TP&docI-
2

D=753242808&prcID=5702503

JUSTEN FILHO, Marçal. Art. 20 – Dever de transparência, concretude e pro-


3

porcionalidade nas decisões públicas. Acesso em 15.05.2022.

MENDONÇA, José Vicente Santos de. Art. 21 da LINDB – Indicando conse-


4

quências e regularizando atos e negócios. Disponível em

< h t t p : / / b i b l i o t e c a d i g i t a l . f g v. b r / o j s / i n d e x . p h p / r d a / a r t i c l e /
view/77649/74312>. Acesso em 01/07/2020).
5
Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Acesso em 01/07/2020.

https://www.dizerodireito.com.br/2019/06/breves-comentarios-lei-
6

-136552018-e-ao.html. Acesso em 12.05.2022.

JUSTEN FILHO, Marçal. Art. 20 – Dever de transparência, concretude e pro-


7

porcionalidade nas decisões públicas. Acesso em 15.05.2022.

Referências

JUSTEN FILHO, Marçal. Art. 20 – Dever de transparência, concretude e pro-


porcionalidade nas decisões públicas. Acesso em 15.05.2022.

JUSTEN FILHO, Marçal. Art. 20 – Dever de transparência, concretude e pro-


porcionalidade nas decisões públicas. Acesso em 15.05.2022.

MENDONÇA, José Vicente Santos de. Art. 21 da LINDB – Indicando conse-


quências e regularizando atos e negócios. Disponível em <http://bibliotecadigital.
fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/77649/74312>. Acesso em 01/07/2020.

https://www.conjur.com.br/dl/parecer-juristas-rebatem-criticas.pdf.

https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?PdocT=TP&docI-
D=753242808&prcID=5702503

https://www.dizerodireito.com.br/2019/06/breves-comentarios-lei-136552018-e-
-ao.html. Acesso em 12.05.2022.

https://www.senado.leg.br/estudos. Acesso em 01/07/2020.

304
REEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO
DOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS:
PARALISAÇÃO DE OBRA EM VIRTUDE DA
PANDEMIA DA COVID-19
Kevin Camelo da Cunha1

RESUMO
Os contratos administrativos de obras paralisadas em virtude
da pandemia da COVID-19 não podem ensejar reequilíbrio econômi-
co-financeiro. Trata-se de motivação extraordinária que foge do con-
trole da Administração Pública, podendo a contratada pedir a rescisão
do contrato.

Palavras-chave: Contratos administrativos. Reequilíbrio econô-


mico-financeiro. Rescisão contratual. Pandemia da COVID-19.

ABSTRACT
Administrative contracts for works paralyzed due to the COVID-19
pandemic cannot give rise to economic and financial rebalancing. This
is an extraordinary motivation that is beyond the control of the Public
Administration, and the contractor may request the termination of the
contract.

Key-words: Administrative contracts. Economic-financial


rebalancing. Termination. COVID-19 Pandemic.

1 Procurador do Estado do Amapá. Pós-Graduando em Licitações e Contratações Públicas.

305
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

INTRODUÇÃO
Com o advento da pandemia da COVID-19, muitos contra-
tos da Administração Pública que tinham como objeto a execução de
obras precisaram ser paralisados em razão das restrições necessárias
ao controle da transmissão do vírus, especialmente com o lockdown e
outras medidas de confinamento.

Com isso, as empresas contratadas, alegando prejuízos pela pa-


ralisação do objeto contratual, pediram e continuam a pedir adminis-
trativamente o reequilíbrio econômico-financeiro.

No entanto, a justificativa para o referido reequilíbrio não pode


prosperar, haja vista não encontrar fundamento legal suficiente para
tanto. Trata-se, em verdade, de fato extraordinário alheio ao controle
e vontade do Estado. Pelo que, caso haja alteração no valor contratual,
acarretará prejuízo para a Administração e locupletamento das em-
presas contratadas.

O presente artigo foi escrito com base estritamente nas disposi-


ções legais da Lei nº. 8.666/93, bem como na jurisprudência noticiada
dos Tribunais de Contas dos Estados e Tribunal de Contas da União e
na consulta a obras doutrinárias de Direito Administrativo.

DO REEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO
O direito à recomposição por eventual ruptura da equação
econômico-financeira do contrato está assegurado no art. 37, XXI, da
CFRB/1988:

306
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Art. 37. (...)

XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras,


serviços, compras e alienações serão contratados mediante pro-
cesso de licitação pública que assegure igualdade de condições
a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obriga-
ções de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta,
nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de
qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do
cumprimento das obrigações...

Em linhas gerais, a Lei Maior através do reequilíbrio econômi-


co-financeiro dos contratos busca garantir a manutenção, du-
rante a execução da avença, da correlação entre as obrigações
assumidas inicialmente pelas partes no ajuste pelo fornecimento
de bens, execução de obra ou prestação de serviço.

Ou seja, a equivalência no contrato administrativo entre os en-


cargos do contratado apontados nas cláusulas regulamentares
e à justa retribuição devida pela Administração indicada nas
cláusulas econômicas pressupõe o equilíbrio da equação econô-
mico-financeira.

A temática ganha novos contornos através do estatuto licitatório


quando admite no art. 65 a possibilidade de alteração dos con-
tratos para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro, nos
seguintes termos:

Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados,
com as devidas justificativas, nos seguintes casos:

(...)

II - por acordo das partes: (...)

307
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram ini-


cialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da
administração para a justa remuneração da obra, serviço ou
fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econô-
mico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem
fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências in-
calculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajusta-
do, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do
príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extra-
contratual

(...)

§ 5º Quaisquer tributos ou encargos legais criados, alterados


ou extintos, bem como a superveniência de disposições legais,
quando ocorridas após a data da apresentação da proposta, de
comprovada repercussão nos preços contratados, implicarão a
revisão destes para mais ou para menos, conforme o caso.

§ 6o Em havendo alteração unilateral do contrato que aumente


os encargos do contratado, a Administração deverá restabelecer,
por aditamento, o equilíbrio econômico-financeiro inicial (...)

Por meio da interpretação da predita norma, tem-se que o ree-


quilíbrio econômico-financeiro de preços será possível quando regis-
trada a:

a) álea econômica extraordinária e extracontratual decorrentes


de: a.1) fatos imprevisíveis;

a.2) previsíveis, porém de consequências incalculáveis, retardadores


ou impeditivos da execução do ajustado;

308
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

a.3) só de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe.

b) criação ou alteração em tributos ou encargos legais;

c) superveniência de disposições legais.

Com efeito, a doutrina entende que, além da força maior, exis-


tem três tipos de áleas enfrentadas pelo particular quando contrata
com a Administração: (a) álea ordinária ou empresarial, (b) álea ad-
ministrativa e (c) álea econômica, sendo as duas últimas agrupadas
no que se denomina de áleas extraordinárias. Tal distinção se faz ne-
cessária, eis que a garantia ao reequilíbrio econômico-financeiro do
contrato não abrange a álea ordinária ou empresarial, que é o risco
inerente a qualquer tipo de negócio e resulta da própria flutuação na-
tural do mercado, sendo, portanto, previsível e, por essa razão, deverá
ser suportada pela contratada.

Renato Geraldo Mendes, ensina em sua obra “O Proces-


so de Contratação Pública1” que a “... palavra “álea” provém de
aleatório e significa, segundo o Dicionário Aurélio, o que “depende
de fatores incertos, sujeitos ao acaso; casual, fortuito, acidental”.
Portanto, álea é um risco, algo incerto, que não se pode precisar se
acontecerá ou não.”.

Deste modo, competirá a Administração restabelecer, por adi-


tamento, o equilíbrio econômico-financeiro inicialmente acordado,
se houver alteração unilateral do ajuste que aumente os encargos do
contratado, mostrando-se legítimo à Administração, desde que seja
comprovado o extraordinário e imprevisível aumento de preços super-
venientes à contratação.

É cediço que a revisão poderá ocorrer a qualquer momen-


to sem um prazo definido ou data base e várias vezes no mesmo

309
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

ano, porém, não é permitido que ela retroaja a fatos que não fo-
ram observados, mas que eram conhecidos antes da apresentação
da proposta.

Sob esse prisma, há de se observar que não é cabível, a conces-


são de revisão de forma automática pela simples variação dos preços,
pois é preciso, como já foi enfatizado anteriormente, que haja fatos
imprevisíveis, ou previsíveis, porém de consequências incalculáveis,
retardadores ou impeditivos da execução do que foi pactuado, ou, ain-
da, em caso de força maior (eventos humanos), caso fortuito (eventos
naturais), fato do príncipe (alterações dos impostos ou encargos legais)
ou fato da Administração (eventos da própria administração) que ve-
nham onerar o contrato, configurando álea econômica extraordinária
e extracontratual, de modo que não seja possível fixar a periodicidade
exata para tal alteração.

É imperioso esclarecer, antes mesmo de concluir pela possi-


bilidade ou não da aplicação do instituto ao caso em comento, que
a revisão está relacionada aos riscos extraordinários, ou seja, “risco
futuro imprevisível que, pela sua extemporaneidade, impossibilida-
de de previsão e onerosidade excessiva a um dos contratantes, de-
safie todos os cálculos feitos no instante da celebração contratual.”
(Maria Helena Diniz)2

A figura do reequilíbrio econômico–financeiro por meio da re-


visão tem o desiderato de resguardar o preço inicialmente contratado,
de sorte que não haja enriquecimento ilícito por parte do Poder Públi-
co contratante ou do terceiro contratado. No entanto, o instituto não
pode ser usado irrestritamente, devendo estar presente os requisitos
necessários à sua materialização: o fato imprevisível ou previsível, com
efeito danoso, e provas do alegado.

310
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Considerando a expressa previsão de revisão dos preços com


base nas regras do art. 65, II, alínea “d” da Lei 8.666/93, que se refere
à aplicação do instituto do reequilíbrio econômico nos casos concretos.
O reequilíbrio econômico-financeiro é instituto de base constitucional
previsto no art. 37, XXI, da CF:

Art. 37. XXI - ressalvados os casos especificados na legislação,


as obras, serviços, compras e alienações serão contratados me-
diante processo de licitação pública que assegure igualdade de
condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabe-
leçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efeti-
vas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as
exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à
garantia do cumprimento das obrigações.

A lei 8.666/93 trouxe disposição referente à manutenção do


equilíbrio econômico dos contratos no art. 65, inciso II, alínea “d”
e seu §5º, que visa garantir a manutenção, durante toda a execução
do contrato, da correlação entre as obrigações assumidas inicialmente
pelas partes no ajuste, in verbis:

Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados,
com as devidas justificativas, nos seguintes casos:

II - por acordo das partes:

d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmen-


te entre os encargos do contratado e a retribuição da administra-
ção para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento,
objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro

311
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis,


ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardado-
res ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso
de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando
álea econômica extraordinária e extracontratual.

Nesse contexto, não se trata o presente artigo de elevação dos


preços dos insumos utilizados nas obras, nem outro motivo que de-
monstre o desequilíbrio do valor originário contratado. Trata-se, na
verdade, a paralisação/suspensão da execução dos serviços contratuais
por motivo excepcionalíssimo que não causa prejuízo apenas a um dos
contratantes, mas a toda a sociedade: Pandemia do Coronavírus.

Conceder reequilíbrio nestes casos, não havendo qualquer


controle/vontade do Estado, apenas beneficiaria as contratadas em
detrimento de toda a sociedade que sofre as consequências de um de-
sastre sanitário, comprometendo recursos públicos que poderiam ser
utilizados de forma efetiva no combate à pandemia.

DA POSSIBILIDADE DE RESCISÃO CONTRATUAL


Portanto, o pedido de reequilíbrio econômico-financeiro não
possui aparato legal para que se conclua pela sua possibilidade. Con-
tudo, sabendo que situações de calamidade pública podem configurar
desvantagem contratual à empresa, devendo verificar as hipóteses que
a Lei 8.666/93 prevê. O art. 78, inciso XIV, colaciona motivos para a
rescisão contratual, incluindo a suspensão da execução do contrato por
prazo superior a 120 (cento e vinte) dias, ressalvado em caso de calami-
dade pública.

312
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato: (...)

XIV - a suspensão de sua execução, por ordem escrita da Admi-


nistração, por prazo superior a 120 (cento e vinte) dias, salvo em
caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem inter-
na ou guerra, ou ainda por repetidas suspensões que totalizem
o mesmo prazo, independentemente do pagamento obrigatório
de indenizações pelas sucessivas e contratualmente imprevistas
desmobilizações e mobilizações e outras previstas, assegurado
ao contratado, nesses casos, o direito de optar pela suspensão
do cumprimento das obrigações assumidas até que seja norma-
lizada a situação;

Contudo, o art. 79 da supracitada lei confere aos contratantes


a possibilidade de rescisão contratual amigável. Observemos:

Art. 79. A rescisão do contrato poderá ser (...)

II - amigável, por acordo entre as partes, reduzida a termo no pro-


cesso da licitação, desde que haja conveniência para a Admi-
nistração;

(...)

§ 1º A rescisão administrativa ou amigável deverá ser precedida de


autorização escrita e fundamentada da autoridade competente.

313
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

§ 2º Quando a rescisão ocorrer com base nos incisos XII a XVII


do artigo anterior, sem que haja culpa do contratado, será este
ressarcido dos prejuízos regularmente comprovados que houver
sofrido, tendo ainda direito a:

I devolução de garantia;

II pagamentos devidos pela execução do contrato até a data da


rescisão;

III pagamento do custo da desmobilização.

Nesse sentido, não obstante a inexistência de previsão para


o reequilíbrio fundado nos argumentos apresentados pelas empresas
contratadas, não significa que a Administração não poderá reconhecer
eventual prejuízo decorrente efetivamente da paralisação não ocasio-
nada pela contratada, desde que, o prejuízo material pelo tempo em
que a obra ficou parada seja devidamente comprovado, conforme en-
tendimento sedimentado do TCU, vejamos:

Fiscobras 2005. Levantamento de Auditoria. Melhoramen-


tos na Infraestrutura Portuária do Porto de Suape no Estado
de Pernambuco (PT 26.784.0235.5311.0026). Paralisação das
obras. Pedidos de indenização. Necessidade de comprovação
das despesas efetivamente realizadas no período em que as
obras estiveram suspensas. Acolhimento das razões de justifica-
tiva. Determinações. Ciência ao Congresso Nacional e ao De-
partamento Nacional de Infraestrutura de Transportes – DNIT.
(TCU – RA: 00346020055, Relator: UBIRATAN AGUIAR,
Data de Julgamento: 13/12/2005)

314
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Logo, ressalta-se que a repercussão do dano não é automática,


cabendo à constatação do certo e efetivo prejuízo, pois o meramente
hipotético não é indenizável. Posto isso, caso entenda fazer jus a des-
pesas em caráter indenizatório, a contratada deverá provar o efetivo
dano material suportado concernente ao tempo de obra parada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo o exposto, conclui-se que não é possível deferir
pedido de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos adminis-
trativos paralisados em virtude da pandemia da COVID-19, por se
tratar de fato extraordinário que foge do controle e vontade do Estado,
podendo a empresa contratada pedir a rescisão contratual ou buscar a
rescisão amigável.

315
PGE AMAPÁ — REVISTA JURÍDICA

Notas

MENDES, Renato Geraldo. O Processo de Contratação Pública- Fases, Etapas e Atos.


1

Curitiba: Zênite, 2012. p. 397.


2
DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998. p.157-158.

Referências

ALEXANDRE, Ricardo; DEUS, João de. Direito Administrativo Esquematizado. 2ª


ed. Editora Método, 2016.

ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Resumo de Direito Administrativo


Descomplicado. 9ª ed. Editora Método, 2016.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 29ª ed. Editora Forense,
2016.

GARCIA, Wander. Direito Administrativo Fácil. 1ª ed. Editora Foco, 2016.

MAZZA, Alexandre; NICHOLAS, Paulo. Direito Administrativo na Prática. 2ª ed.


Editora Saraiva, 2016.

316

Você também pode gostar