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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

FERNANDO SANTOS DE JESUS

OS MOVIMENTOS NEGROS E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A EDUCAÇÃO


NO BRASIL E NO URUGUAI APÓS A CONFERÊNCIA DE DURBAN

FORTALEZA
2020
FERNANDO SANTOS DE JESUS

OS MOVIMENTOS NEGROS E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A EDUCAÇÃO NO


BRASIL E NO URUGUAI APÓS A CONFERÊNCIA DE DURBAN

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Educação da Universidade Federal do Ceará,
como parte dos requisitos para obtenção do título
de Doutor em Educação. Área de concentração:
Movimentos Sociais, Educação Popular e Escola.

Orientadora: Prof. Drª. Joselina da Silva

FORTALEZA
2020
FERNANDO SANTOS DE JESUS

OS MOVIMENTOS NEGROS E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A EDUCAÇÃO NO


BRASIL E NO URUGUAI APÓS A CONFERÊNCIA DE DURBAN

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Educação da Universidade Federal do Ceará,
como parte dos requisitos para obtenção do título
de Doutor em Educação. Área de concentração:
Movimentos Sociais, Educação Popular e Escola.

Aprovada em: 27/10/2020.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________
Profª Drª. Joselina da Silva - Orientadora
Universidade Federal do Ceará - UFC
___________________________________________________________
Profª Drª. Celecina Veras - Membro interno
Universidade Federal do Ceará - UFC
___________________________________________________________
Prof. Dr. Ivan Lima - Membro externo
Universidade Federal da Lusofonia Afro-Brasileira - UNILAB
___________________________________________________________
Profª Drª. Ângela Maria Bessa Linhares
Universidade Federal do Ceará - UFC
___________________________________________________________
Profª. Drª. Maria Alice Rezende Gonçalves -
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeço a Deus e depois à minha família, principalmente à minha


mãe Eunice Santos e aos meus irmãos: Iara, Jorge, Carlos Alberto, César, Eliete, Eliana,
Edineia e Sérgio. Meu primo Marquinhos dos Santos e aos cunhados Miguel Moreira e
Roseane Santos. Agradeço especialmente à minha orientadora, Dr.ª. Joselina Silva, pela
amizade e orientação. Aos professores Dr. Ivan Lima, Dr.ª. Sandra Petit, Dr. Amaury Pereira,
Dr.ª. Ângela Linhares e Dr.ª. Celecina Veras por formarem as minhas bancas e possibilitar
muitos aprendizados. Agradecimento afetuoso para a Professora Edileuza Penha por ter me
recebido de braços abertos em sua casa, em Brasília, e aberto as portas do universo da
pesquisa por lá. Agradecimento especial para: Dr.ª. Glória Ramos, Dr.ª. Ana Paula Santos,
Dr.ª. Vera Monteiro, Dr. Rafael dos Santos, Dr.ª. Maria Alice Rezende e Ms. Gabriela Santos.
Meus entrevistados na SECADI: Bárbara Sula, Divina Sebastus, Dr. Carlos Humberto
Espézer “Mano”, Rodrigo Infante, Maria Auxiliadora, Dr.ª. Denise Botelho e Dr. Ivair
Augusto. Aos meus entrevistados e amigos em Montevidéu - Uruguai: Juan Pedro Machado,
Orlando Riveros, Oscar Rorra, Noelia Maciel, Lourdes Martinez, Dr. Julio Pereira, Romero
Rodriguez, Chabella Ramirez, Alicia Esquivel, Andrés Urioste, Karina Moreira, Gabriel
Porto, Martín “Coréia” e Loreley Puchetta. Aos amigos do PPGEduc: Professor Dr. Henrique
Cunha Jr., Professor Dr. Francisco Ari de Andrade, Dr. Adriano Ferreira, Dr.ª. Cristiane
Souza, Laelba Batista, Nicácia Carmo, Rafael Ferreira, Cristiane Félix, Dr.ª. Simone Euclides,
Wagner Ventura, Dr.ª. Adilbênia Machado, Fábio Gomes e Ana Paula Santos. Aos amigos:
Anderson Vieira, Daniele Varjão, Edson Wander, Edson “vovô”, João Villaça, Djbril Ernesto,
Jone Wallace, Ricardo Riso, Henrique Restier, Nelson Santiago, Erivelton Thomaz, Fábio
Pitta, Luciano Santos, Marcelo Santos, Filipe Carvalho, Mônica Paiva, Jackson Aurélio,
Amanda Gomes, Katia Maciel, Ângela Mendez e tantos outros de igual importância para o
meu crescimento pessoal e profissional.
RESUMO

O presente estudo se debruçou em investigar os desdobramentos da Terceira Conferência


Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de
Intolerância, promovida pela Organização das Nações Unidas – ONU, ocorrida em Durban,
África do Sul, no ano de 2001, para a oferta de políticas públicas educacionais voltadas para
as populações negras de Brasil e Uruguai, tendo como base, respectivamente, as vozes dos
técnicos administrativos da gestão do ano de 2016 da Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização, Diversidade e Inclusão – SECADI e dos ativistas do movimento negro que
estiveram em Durban e/ou que são técnicos administrativos em órgãos responsáveis por
desenvolver políticas públicas. Para tanto, os nossos procedimentos foram levantamento
bibliográfico acerca dos temas: Racismo; Conferência de Durban; Racismo Institucional e
história do Uruguai. Destaca-se que para a consecução da pesquisa fora necessário realizar
entrevistas semi-estruturadas com os sujeitos supracitados. Através das análises das
entrevistas exploramos o histórico dos movimentos negros, as dificuldades e os entraves
políticos para a materialização de políticas públicas educacionais em benefício da população
negra nesses países. No Brasil, fica explícito que a criação da SECADI foi um desdobramento
da Conferência de Durban, sinalizando como um importante vetor conquistado pelo
movimento negro no combate ao racismo. Igualmente observamos que no Uruguai a maior
conquista em termos de provimento de políticas públicas para a população negra se
consubstanciou após Durban. A Lei 19.122/06 é um marco histórico no país e teve como
orientação principal para a sua implementação, a luta dos ativistas dos movimentos negros
que estiveram na Conferência de Durban. Portanto, conclui-se que a Terceira Conferência
Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de
Intolerância fora um marco histórico de confluência das agendas dos movimentos negros
brasileiros e uruguaios, desdobrando-se no atendimento de questões históricas, materializadas
em políticas públicas, como aqui analisado, as que correspondem ao provimento de educação.

Palavras-chave: Conferência de Durban. Negros no Uruguai. SECADI. Movimento Negro.


Lei 19.122/06.
ABSTRACT

This study is focused on public education policies for black populations in Brazil and
Uruguay, developed after the third United Nations World Conference against Racism,
RacialDiscrimination, Xenophobia and Related Intolerance held in Durban, South Africa, in
2001. Our research is based on the voices of administrative technicians of the 2016
management of the Secretariat for Continuing Education, Literacy, Diversity and Inclusion –
SECADI, and activists of black movements who participated in the Durban Conference and/or
who are administrative technicians in agencies responsible for public policy development. We
realized a literature review on the subsequent topics: racism; Durban conference; institutional
racism and history of Uruguay. It is noteworthy that in order to carry out this research, it was
necessary to conduct semi-structured interviews with the aforementioned persons. Through
the analysis of the interviews, we explored the history of black movements as well as the
difficulties and political constraints to implement public education policies that benefit the
black population in these countries. In Brazil, the Durban conference led to the creation of
SECADI, indicating an important achievement of the black movement in the fight against
racism. Likewise, we found that in Uruguay the greatest accomplishment with regard to
public policies aimed at the black population was attained after Durban. Law 19.122/06 is a
historical remark in the country and its implementation was guided by the struggle of black
movement activists who participated in the Durban conference. Therefore, we conclude that
the third UN World Conference against Racism, Racial Discrimination, Xenophobia and
Related Intolerance was a historical remark in which the agendas of black movements from
Brazil and Uruguay converged, addressing historical questions through public policies like
those in the field of education analyzed in this study.

Keywords: Durban Conference, Blacks in Uruguay, SECADI, Black Movement, Law


19.122/06.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO........................................................................................................... 9
2 UM DEBATE CONCEITUAL ACERCA DO RACISMO ................................... 27
2.1 O Racismo Institucional ........................................................................................... 32
2.2 Reflexões sobre as políticas públicas ....................................................................... 42
3 A SECADI ................................................................................................................. 48
3.1 Apresentação da SECADI ........................................................................................ 55
3.2 Estrutura da SECADI no ano de 2016 .................................................................... 56
3.3 A SECADI apresentada por um membro da antiga gestão .................................. 59
3.4 A formação técnica dos membros da SECADI – Gestão 2016 ............................. 65
3.4.1 Maria Auxiliadora – TÉCNICA ................................................................................ 65
3.4.2 Bárbara Sula – TÉCNICA ........................................................................................ 66
3.4.3 Divina Sebastus .......................................................................................................... 66
3.5 Apresentação da SECADI pelas vozes de alguns de seus membros ..................... 66
3.6 A criação da SECADI e a Conferência de Durban (2001) .................................... 71
4 A CONFERÊNCIA DE DURBAN .......................................................................... 79
4.1 Primeiros olhares ...................................................................................................... 79
4.2 Os eventos preparatórios ......................................................................................... 83
4.3 A Conferência e os seus desdobramentos ............................................................... 90
4.4 Considerações sobre o Pós-Durban ......................................................................... 96
5 O PANORAMA NO URUGUAI ............................................................................. 99
5.1 O surgimento do mundo afro e o momento político uruguaio............................ 111
5.2 O Uruguai no Pós-Durban e a Lei 19.122/06 ........................................................ 120
5.3 Entrevistas com os ativistas uruguaios ................................................................. 124
5.3.1 Romero Rodrigues ................................................................................................... 124
5.3.2 Karina Moreira ........................................................................................................ 124
5.3.3 Juan Pedro Machado............................................................................................... 125
5.3.4 Chabella Ramirez ..................................................................................................... 125
5.3.5 Orlando Rivero ......................................................................................................... 125
5.3.6 Julio Cesar Pereira .................................................................................................. 126
5.3.7 Andres Urioste.......................................................................................................... 126
5.3.8 Noelia Maciel ........................................................................................................... 126
5.3.9 Lourdes Martinez ..................................................................................................... 127
5.4 Os Movimentos Negros no Uruguai ...................................................................... 127
5.5 O Uruguai em Durban............................................................................................ 138
5.6 Negros no Uruguai: Reflexões a partir dos ativistas ........................................... 151
5.7 As políticas educacionais no Uruguai ................................................................... 157
6 METODOLOGIA ................................................................................................... 163
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 167
REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 175
ANEXO A – O MANIFESTO ANTI-COTAS...................................................... 181
9

1 INTRODUÇÃO

Ser intelectual é exercer diariamente rebeldia


contra conceitos assentados, tornados respeitáveis,
mas falsos (Milton Santos).

Chamo-me Fernando Santos de Jesus, sou negro, carioca, solteiro e não tenho
filhos, irmão mais novo de nove irmãos e pai falecido. Sempre fui morador da zona norte da
cidade do Rio de Janeiro, filho de pais com baixa escolarização – mãe costureira e pai
pedreiro – sempre estudei em escolas públicas e levei uma vida material modesta. Apesar
desse fato, o básico nunca foi problema, me garantindo, sobretudo por exigência da minha
mãe, Eunice Santos, que eu pudesse me escolarizar sem grandes problemas.
Desde jovem estive ligado aos movimentos culturais, tendo envolvimento com a
música e com os esportes desde muito cedo, uma vez que venho de uma família grande e
conhecida no meu bairro. Aos nove anos de idade comecei a aprender música e, como a
maioria dos meninos da minha época, entrei em um time de futebol de salão do meu bairro,
onde tive a oportunidade de jogar o campeonato carioca e rodar algumas cidades do estado.
Na adolescência continuei ligado aos esportes e também às artes, pois fui o
músico mais jovem do grupo Olorum, na esteira dos movimentos culturais dos blocos afros na
cidade do Rio de Janeiro, experiência esta desde o ano de 1993. Neste período também fui
jogador amador do América Futebol Clube, tendo jogado o campeonato carioca do ano de
1995, antes de ser dispensado pelo clube e não mais tentar buscar a carreira esportista no
futebol.
Nesse mesmo período eu tive a minha primeira banda de rock, formada com
amigos do ensino médio e com um primo, que hoje é músico profissional e acompanha
diversos artistas já consagrados no Brasil e no exterior. Foi um período de muito aprendizado
e aproximação com pessoas de diferentes perspectivas de vida, esse fato fora muito
importante para a minha constituição enquanto pessoa.
No ensino médio eu estudei no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial –
SENAC, quando várias questões que já vivenciava na infância começaram a ser melhores
compreendidas à luz de teorias, ou seja, como fiz parte de um grupo Afro – Olorum – dirigido
por uma mulher negra – Tia Marli – que sempre chamava a atenção dos seus componentes
para o racismo e para a necessidade de se manter íntegro em valores éticos e morais, o ensino
médio, por isso, foi um laboratório para questões que eu já trazia comigo anteriormente.
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Nesse sentido, fui um dos fundadores do jornal dos estudantes do SENAC naquele
período, tendo em vista que não tínhamos grêmio estudantil e nenhuma forma de organização
dos estudantes. O jornal consistia em informar os alunos sobre os eventos mais importantes da
escola e comentar, a partir das nossas próprias vozes, sobre os eventos mais relevantes da
sociedade. A mim cabia a parte esportiva e cultural, na qual comentava futebol e dava dicas
sobre eventos na cidade e discos de artistas de rock e blues, ritmos os quais eu toco e mais
aprecio.
Passado o ensino médio, fiquei um tempo trabalhando no centro do Rio de Janeiro
como contínuo, na filial da empresa de um primo meu de São Paulo. Optei por não prestar o
vestibular naqueles anos em virtude do falecimento do meu pai. O ano era 2000, e como o
meu pai havia falecido e já não tínhamos todos os irmãos na mesma casa, tive dificuldades em
estudar, além de precisar trabalhar para contribuir com as despesas da minha casa.
Após um ano, comecei a trabalhar em um shopping que me viabilizou
rendimentos um pouco maiores do que os antigos trabalhos. A partir daí eu conseguia pagar o
meu pré-vestibular e retomar os estudos, mesmo com um esforço descomunal, uma vez que
eu trabalhava e ainda precisava fazer dois percursos de mais de cinco quilômetros
caminhando, pois só assim eu conseguiria economizar o dinheiro da passagem e custear o
curso e sobrar algum dinheiro para outras necessidades.
Passei no vestibular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ
para o curso de Economia em 2002. Fui estudar naquela universidade, tendo que deixá-la após
um ano e meio. Os motivos da evasão foram: 1 – Dificuldade em me manter, pois não tive
alojamento nem bolsa; e 2 – Dificuldades com algumas disciplinas ligadas à matemática,
tendo em vista a fragilidade do ensino médio.
Fora da universidade, passei mais um ano estudando e dando um jeito de ganhar
dinheiro em trabalhos informais, até que prestei o vestibular da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro – UERJ, onde fiz Pedagogia e tive melhores condições de me manter no curso,
pois como ingressante pelo sistema de reserva de vagas para negros e pardos, eu tive direito a
uma bolsa-permanência. Também fui aprovado na seleção de bolsistas do programa
UNIAFRO, quando trabalhei com a minha orientadora de graduação, professora Doutora
Maria Alice Rezende, no Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros – NEAB.
Durante a graduação eu participei de vários congressos estudantis pelo Brasil,
tendo levado a temática racial em todos eles, ressaltando que nesse período muitos estudantes
organizados em movimentos estudantis eram contrários às cotas raciais e possuíam pouco
acúmulo de debate. Também participei de alguns congressos acadêmicos, como o Congresso
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Brasileiro de Pesquisadores Negros – COPENE, em Salvador, Bahia, no ano de 2006, e do


Congreço Nacional de Educação – EDUCERE do mesmo ano, ocorrido em Curitiba, Paraná.
Foi também durante a graduação que fiz parte de um coletivo de estudantes
negros daquela universidade, o DENEGRIR. Participei de algumas reuniões e chegamos a
concorrer, sem êxito, às eleições do Diretório Central dos Estudantes – DCE. A minha
participação no coletivo foi bem breve, optei por não me ocupar de tantas tarefas em virtude
de visar me concentrar nos estudos em torno das seleções de mestrado, bem como terminar a
graduação no tempo mínimo determinado pela instituição.
Durante o período em que terminava a graduação e me preparava para o mestrado
estive trabalhando em escolas, ONGs e trabalhos informais. Fiz parte do primeiro Serviço de
Educação e Responsabilização dos Homens Autores de Violência de Gênero – SERH,
promovido pelo Instituto de Estudos da Religião – ISER e concentrado no município de Nova
Iguaçu. Esse foi o primeiro serviço prestado no Brasil com essa natureza. Também trabalhei
no Programa Nacional de Inclusão de Jovens – PROJOVEM, na modalidade PROJOVEM
ADOLESCENTE, que fora ofertado pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, dentre
outros lugares.
Terminada a graduação e antes de ingressar no mestrado decidi iniciar outra
graduação, em Filosofia, também na UERJ, e fui selecionado para uma pós-graduação lato
sensu no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca – CEFET/RJ,
que versava sobre Educação para as Relações Étnico-Raciais. Terminei o curso dentro do
prazo estabelecido, um ano, e apresentei a monografia O NEGRO NO LIVRO DIDÁTICO
DO ENSINO MÉDIO, orientado pela professora doutora Tatiane Alves.
Pouco antes da conclusão da Pós-Graduação eu já estava aprovado no mestrado
em Relações Étnico-Raciais da mesma instituição. Nesse período eu me dedicava à conclusão
da monografia de Pós-Graduação, aos estudos nas disciplinas do mestrado e ainda cursava
disciplibnas de graduação em Filosofia na UERJ. Mesmo diante do desafio em dar conta de
todas essas tarefas, eu consegui publicar alguns trabalhos e obter êxito em todas elas. Neste
mesmo período eu escrevia alguns artigos para o jornal “Questões Negras”, editado pelos
militantes do movimento negro Arcélio Faria e Carlos Nobre (falecido em 2019).
No ano de 2013, eu concluí a minha dissertação e a defendi no mês de setembro
do mesmo ano sob o título “O Negro no Livro Paradidático”. Importante ressaltar que este
mestrado foi o primeiro em Relações Étnico-Raciais no Brasil e a minha turma foi a primeira
a ingressar. Além disso, durante o mestrado eu fui bolsista de uma das bolsas internas que a
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Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES destinava ao nosso


programa.
Com o mestrado concluído, iniciei os meus estudos para o doutorado, enquanto
isso, passei um tempo trabalhando em escolas e fiz parte do Pacto Nacional pela
Alfabetização na Idade Certa – PNAIC, ofertado pelo Ministério da Cultura e Educação –
MEC, que no Rio de Janeiro era administrado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ. Foi o período em que também fiz parte como professor e consultor pedagógico do
Centro de Articulação de Populações Marginalizadas – CEAP, trabalhando com o militante do
movimento negro, Doutor Ivanir dos Santos.
Neste período eu conversava com uma grande amiga que trabalhou comigo no
PNAIC, doutora Glória Ramos, na qual agradeço imensamente os conselhos e dicas, e ela me
apresentou como possibilidade ler o edital de seleção para o Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal do Ceará – UFC, e foi quando tive uma noção introdutória
dos professores que realizam pesquisas nas áreas das relações étnico-raciais nesta
universidade.
Já conhecia alguns trabalhos desenvolvidos pelo professor doutor Henrique Cunha
Júnior, bem como conhecia um pouco sobre a atuação da professora doutora Joselina da Silva,
pois tenho amigos do período em que realizei a primeira graduação, cursada na Universidade
do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, quando estudei Pedagogia, e que participaram do curso
Iniciativas Negras, por ela desenvolvido, na região do Cariri, sul do estado do Ceará. Aliado a
esta observância, soma-se o fato de eu ter desenvolvido trabalhos nas áreas das relações
étnico-raciais em todas estas etapas de escolarização. Portanto, para o doutorado, seria
importante dar continuidade nos estudos tendo como orientador(a) pesquisadores(as)
especializados(as) na referida área, com o intuito de desenvolver mais conhecimentos acerca
dessas questões, alargando o rol de possibilidades profissionais.
Após o processo seletivo, e já aprovado, realizei o primeiro contato com a
professora que seria minha orientadora, doutora Joselina da Silva, tomando a liberdade de
convidá-la para escrever um artigo em conjunto, já que havia uma chamada aberta para
publicação de artigos na revista “Estudos Africanos”, da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul – UFRGS. Com a resposta positiva, a professora propôs que fizéssemos uma entrevista
com o professor doutor Amauri Mendes Pereira, docente da Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro – UFRRJ a fim de traçar um perfil da lei 10.639/2003 (que institui a
obrigatoriedade de ensino de história e cultura da África e afro-brasileira) no que concerne
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aos processos de promulgação, sua aplicação e sua efetividade, e tendo em vista a larga
experiência do professor com as questões que gostaríamos de trabalhar.
Assim, antes de me mudar para o estado do Ceará e iniciar os estudos, fui até a
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ realizar a entrevista com o professor
doutor Amauri Mendes Pereira. Ao final da conversa, agradeci a disponibilidade e gentileza
do professor, que também me cumprimentou e agradeceu por tê-lo entrevistado,
demonstrando grande humildade e solidariedade em contribuir para meu primeiro trabalho
como recém-doutorando. Foi então que Amauri pediu para que eu falasse um pouco sobre a
pesquisa que eu realizaria no doutorado.
Expliquei brevemente minha pesquisa para o professor, que achou interessante,
mas teria uma provocação a me fazer. A conversa se estendeu para além da sua sala, na
Faculdade de Educação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ, pois
atravessávamos o período de férias e o departamento já seria fechado, eram aproximadamente
dezoito horas. O dr. Amauri me convidou para ir embora com ele, já que temos grande parte
do percurso em comum, e que a referida Universidade fica no município de Seropédica, 71,6
quilômetros do município do Rio de Janeiro, onde ambos somos residentes, embora em
bairros distintos, ele, dr. Amauri, um pouco mais próximo ao município. Teríamos, portanto,
um bom “pedaço de conversa” para desenvolver.
No caminho, demos continuidade à conversa iniciada no departamento. O dr.
Amauri ressaltou a importância de encaminhar alguma pesquisa acerca das políticas públicas
educacionais para a população negra no Brasil, pensando alguma secretaria responsável por
desenvolver planos de combate ao racismo nesse âmbito. O professor fez tal provocação
atentando para o fato de uma ambiência política conturbada no país, tendo em vista uma troca
de governo mediante mútuas denúncias de corrupção, crimes de responsabilidade e ameaças
de impedimento.
Nesse sentido, haveria um grande temor de que algumas secretarias especiais
pudessem ser extintas, e com elas as políticas desenvolvidas em benefício das populações
negras e outros grupos marginalizados sofreriam prejuízos. Ouvi atentamente as colocações
do dr. Amauri e concordei com a importância de desenvolver uma pesquisa nessa área. No
entanto, conversei com o dr. Amauri sobre as dificuldades acerca dessa temática, pois para
mim seria um novo desafio, já que havia me debruçado a pensar acerca de outras questões.
Chegados ao destino, novamente agradeci a generosidade e a dica de pesquisa,
prometi a ele que iria digerir bem a ideia e que conversaria com minha orientadora, professora
doutora Joselina da Silva, a fim de deixá-la a par do que me fora proposto e que tomássemos
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uma decisão coletiva sobre as possibilidades de desenvolvê-la, levando em consideração que


já havia uma proposta de pesquisa aceita no processo seletivo que me levou a estudar na
Universidade Federal do Ceará – UFC no nível de doutorado.
Alguns dias antes de embarcar para a cidade de Fortaleza, no estado do Ceará,
estive pensando bastante sobre a proposta do dr. Amauri e sobre a pesquisa que desejava
desenvolver. Até então, minha pesquisa visava investigar os possíveis motivos do
desequilíbrio numérico entre professores negros e brancos em duas universidades públicas no
estado do Rio de Janeiro, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e a
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, tendo a faculdade de Educação de cada uma
delas como ponto de partida, considerando também o número de professores negros e brancos
credenciados na pós-graduação de cada uma delas.
Já na cidade de Fortaleza, em primeiro encontro para orientação, conversei com a
minha orientadora sobre a proposta do dr. Amauri. Ela ouviu atentamente e achou uma ótima
ideia pesquisar essa temática, sugerindo que fizéssemos um estudo comparativo entre dois
países da América Latina em relação à aplicação de políticas focais para a população negra
após a III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e
Intolerâncias Correlatas, realizada no ano de 2001 na cidade de Durban, África do Sul.
Aceito o desafio, procurei me inteirar mais sobre o assunto iniciando a leitura do
livro “Olhares Sobre a Mobilização para a III Conferência Mundial Contra o Racismo, a
Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas”, de autoria da Doutora Joselina
da Silva e Doutor Amauri Mendes Pereira. Concomitante a esta leitura, a orientadora sugeriu
que eu fizesse um mapeamento da Secretária de Educação Continuada, Alfabetização,
Diversidade e Inclusão – SECADI, pois um dos caminhos possíveis seria pesquisar esta
Secretaria, criada no ano de 2004, ou seja, após a Conferência de Durban, concentrando o
escopo analítico na Coordenação de Educação para as Relações Étnico-Raciais.
Nosso desafio inicial seria investigar o funcionamento da Secretaria a fim de saber
se há nela a preocupação de incorporação de demandas históricas dos movimentos negros. Por
isso, o nosso recorte esteve voltado para a compreensão elementar sobre as principais
políticas voltadas para a área das relações étnico-raciais. Mais ainda, tentaríamos buscar
entender em que medida a criação da SECADI se articula com as orientações normativas
encaminhadas aos estados nacionais após a III Conferência Mundial Contra o Racismo, a
Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, tendo em vista seu plano de
ação, após ser redigida a declaração final, documento internacional que contém os
direcionamentos propostos nesse encontro.
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Para tanto, se tornou indispensável que em nossa metodologia contivessem


entrevistas com a gestão do ano de 2016 e alguns membros da primeira configuração da
SECADI, do ano de 2004, levando em consideração o histórico de criação – contado por
quem esteve neste processo – e o atual funcionamento, sob o ângulo daqueles que estão
responsáveis por fazer a Secretaria materializar suas ações. Nossa primeira investida,
portanto, seria localizar e contatar as pessoas que poderiam contribuir para a efetivação da
pesquisa, e isso foi feito no final do primeiro semestre do ano de 2016.
A decisão de iniciar a pesquisa por meio de entrevistas com os atuais membros da
SECADI se deu pelo fato de haver uma ambiência política turva, pois no ano anterior, 2015,
foi aberto um processo de impedimento na continuidade do mandato de governo da então
presidenta da república, sua excelência Dilma Rousseff. Em dezembro daquele mesmo ano, a
câmara dos deputados, presidida pelo deputado federal Eduardo Cunha, aceitou o pedido de
abertura de investigação sob alegação de crime de responsabilidade. O processo de
impeachment se encerrou em agosto do ano de 2016, culminando na cassação do mandato de
Dilma Rousseff.
Durante este processo, o Brasil atravessou um período de intensa agitação
política, pois havia diversas ameaças de corte de gastos públicos em setores de promoção de
bem-estar social. Sob o temor de extinção das secretarias especiais, responsáveis pelo
funcionamento de políticas públicas focais, diversos movimentos sociais se insurgiram para
cobrar que se mantivessem os programas sociais implementados nas gestões anteriores. Desse
modo, as divergências políticas orbitavam entre as opiniões sobre as prioridades de gastos
públicos, como, por exemplo, o programa Bolsa Família, intensamente atacado pelos setores
que acreditavam que este programa se tratava de um assistencialismo que estimulava o ócio.
A instabilidade política após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e a
entrada do vice-presidente Michel Temer foi o ponto-chave para que eu fosse a Brasília
iniciar a pesquisa, tendo em vista que as ameaças de cortes e extinção de algumas políticas
públicas atingiriam em cheio a SECADI. Desse modo, foi importante dar início aos trabalhos
e não correr o risco de perder a oportunidade de encontrar as pessoas que vêm trabalhando na
implementação de políticas que já estão consolidadas, ou em fase de consolidação, para os
grupos historicamente marginalizados.
Retomando o objeto de pesquisa, nossa premissa era fazer uma análise conjuntural
das políticas públicas educacionais voltadas para a população negra no Brasil e no Uruguai
tendo como referência a Conferência de Durban. Para tanto, o estudo se atentou para um
breve histórico dos movimentos negros brasileiros e o painel racial uruguaio, desde a década
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de 1980, para situar os eventos mais importantes em que os movimentos negros estiveram à
frente e que antecederam aquela Conferência.
Nesse sentido, buscamos compreender quais as estratégias de combate ao racismo
estão em pauta e como se efetivam suas respectivas aplicabilidades. O nosso propósito visa
verificar se estas políticas estão ajustadas aos anseios projetados durante a Conferência de
Durban e como estão sendo geridos após dezesseis anos da Conferência.
A escolha do Uruguai enquanto escopo de pesquisa se deu pelo fato dos
movimentos negros desse país terem, bem como os movimentos negros brasileiros, assumido
o protagonismo nas reuniões de preparação para a III Conferência Mundial Contra o Racismo,
a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, culminando na pressão sobre
os respectivos governos para que fosse possível a promulgação de leis e a constituição de
políticas públicas que atendam os acordos firmados em Durban. Cabe ressaltar, desse modo,
que o Uruguai, tal como o Brasil, possui ativos movimentos sociais negros, que reivindicam
reconhecimento e participação nos processos políticos do país em posição hierárquica de
igualdade em relação aos outros estratos daquela sociedade.
Conforme brevemente apresentamos, para tornar viável a pesquisa, pensamos em
nos deter em uma das instituições responsáveis por gestar políticas públicas educacionais no
Brasil. Já no Uruguai, decidimos analisar as políticas públicas ofertadas para a população
negra de maneira geral, sem nos deter em um caso específico. Portanto, objetivamos fazer
uma análise comparativa das políticas públicas voltadas para as populações negras, criadas no
Brasil e no Uruguai a partir da Conferência de Durban.

Entrando em Campo: Desafios, Achados e Aprendizados

No ano de 2016, para ser mais exato, no final do mês de novembro, eu já havia
finalizado todos os trabalhos das disciplinas cursadas naquele período, bem como
esquadrinhado as principais informações sobre a SECADI via internet, pois havia sido uma
recomendação da orientadora antes de me lançar em campo, que conhecesse a estrutura de
funcionamento da secretaria ao qual eu desejaria pesquisar. Foi então que me preparei para
viagem a Brasília.
Antes da viagem foi necessário realizar os primeiros contatos, feitos por telefone e
com o aplicativo WhatsApp a partir das indicações feitas pela minha orientadora. Em sua
maioria, os meus interlocutores eram pessoas que estiveram ligadas à SECADI no ano de
2016 ou anteriormente, mas que ainda tinham amigos trabalhando na Secretaria e poderiam
17

articular algum encontro para que eu pudesse realizar a pesquisa. Dentre todos esses contatos,
foi fundamental o apoio da professora Edileuza Penha, pessoa que me abrigou em sua casa,
me ensinou os procedimentos no MEC e viabilizou toda a estrutura necessária para o
andamento dessa parte da pesquisa.
Já em Brasília, e hospedado na casa da professora Edileuza, pude adentrar
efetivamente em campo. O desafio maior nessa fase era saber se os meus questionamentos
eram adequados à realidade vivida na prática cotidiana da Secretaria, já que eu estava recém-
doutorando e o tema SECADI era uma novidade para mim. O questionário que eu preparei foi
testado na primeira entrevista e ao passo que a entrevistada respondia, eu anotava algumas
adequações a serem feitas, já sinalizando para algumas coisas que não seriam tão urgentes
para análise, e outras com elevada pertinência.
As entrevistas abriam um leque de novas possibilidades e redes de pessoas a
serem entrevistadas, o que me fazia refletir bastante sobre as escolhas, tendo em vista o meu
tempo de permanência em Brasília e a adequação do campo de atuação de cada um deles ao
meu tema de pesquisa, já que a SECADI é uma secretaria que trabalha com diversas temáticas
em separadas, por mais que elas tenham articulações entre si.
O tempo em que estive em Brasília foi o suficiente para empreender alguns
olhares e compreender parcialmente algumas dinâmicas da SECADI. Entretanto, por ser uma
secretaria muito grande, com a passagem de muitas pessoas, que produziram diversos
documentos e materializaram diversas ações, precisei me limitar a um universo restrito às
entrevistas com pessoas ligadas à Coordenação de Educação para as Relações Étnico-Raciais,
que, por sinal, me receberam muito bem e forneceram o necessário para a realização desta
tese.
Retornei de Brasília direto para a minha casa, no Rio de Janeiro, com um amplo
material a ser transcrito e analisado. Contratei uma pessoa para o trabalho de transcrição, a
fim de agilizar o processo, enquanto estudava as bibliografias sugeridas pela orientadora e me
preparava para mais um semestre de aulas. Nesse ínterim, foi possível participar do curso
“Fábrica de Ideias”, realizado em São Luís, Maranhão, onde pude ter contato com mais
pessoas que somavam aprendizados acerca da questão racial no Brasil.
Após todas estas experiências, retornei ao período letivo em Fortaleza e concluí
todas as disciplinas. Foi um momento importante para mim, pois fiz a minha primeira
qualificação e tive as orientações necessárias para os próximos passos da pesquisa. A próxima
etapa incluía a parte internacional, na qual eu deveria viajar para o Uruguai e entender a
dinâmica do ativismo do movimento negro e as suas percepções em relação à Conferência de
18

Durban no que tange ao atendimento das propostas contidas no documento final da


Conferência e a promoção de políticas educacionais para a população negra naquele país.
Nesse ínterim, ainda deu tempo para a realização de uma entrevista com uma
professora que fez parte de uma das antigas gestões da SECADI, anterior à que me debrucei,
do ano de 2016. Essa conversa se deu através das novas tecnologias, WhatsApp e por e-mail.
A entrevista concedida pela professora Dr.ª. Denise Botelho fora utilizada e contribuiu
enormemente para ampliar a compreensão sobre a secretaria.
Antes de viajar para o Uruguai iniciei as leituras sugeridas pela minha orientadora
para adentrar ao campo com mais segurança, refletindo acerca dos problemas daquele país
sob as lentes dos uruguaios. Nesse momento se reiniciou o processo de articulação dos
contatos passados por ela. Por meio de telefonemas, troca de e-mails e mensagens de
WhatsApp, comecei a perguntar-lhes sobre a viabilidade de me conceder uma entrevista e a
colher informações básicas sobre o país.
A maioria dos contatos fornecidos pela orientadora me respondeu e foi muito
prestativa, sinalizando que o melhor momento para estar em Montevidéu seria o período dos
meses de janeiro e fevereiro, pois se trata do período de férias e parte deles estariam
envolvidos com atividades relacionadas às comparsas de Candombe1, portanto, estariam na
cidade. Além disso, o fator climático também deve ser considerado, uma vez que a estação do
ano é o verão, com uma temperatura agradável e pouca chuva, viabilizando um deslocamento
mais satisfatório pela cidade.
Através dessas informações, eu comprei a minha passagem e fui para Montevidéu
em janeiro de 2019, logo após retornar de Fortaleza. Era um fim de tarde e a primeira
entrevista ficou agendada para o dia seguinte às dez horas da manhã. O entrevistado era o
professor universitário Dr. Julio Cesar Pereira, que fez questão de ir ao local em que eu estava
hospedado e ceder a entrevista por lá. Eu não possuía muitos recursos tecnológicos e estava
hospedado em um hostel – habitação coletiva – na parte velha da cidade, mesmo assim
consegui realizar a primeira entrevista com êxito.
A primeira entrevista é sempre um termômetro para o que pode vir
posteriormente, pois ela põe em prova o questionário que previamente elaboramos. Naquele
momento também havia um outro fator de apreensão, que era a questão da língua, tendo em

1
As Comparsas são agremiações que se articulam em torno da manifestação cultural negra chamada Candombe,
que se caracteriza pela música percussiva tocada por um conjunto de tambores que se harmonizam entre si,
com tons que transitam entre o grave, o médio e o agudo. Os grupos de candombe reúnem um grande
quantitativo de pessoas, que se dividem entre músicos e bailarinos, que ensaiam coreografias e desfilam os
seus figurinos e bandeiras. Muitas delas concorrem entre si no carnaval montevideano e realizam
apresentações gratuitas pelas ruas durante o verão. Ver Andrew (2010).
19

vista que apesar de ter uma leitura razoável no idioma espanhol, não sou um falante fluente.
Para a minha surpresa e alívio isso não foi um entrave, já que o professor – e todos os outros
entrevistados – entendia um pouco de português e foi muito paciente na compreensão do que
eu, vagarosamente, falava no seu idioma.
Após esse primeiro encontro fui andar pela cidade, já que não teria outra pessoa
com disponibilidade para ceder uma entrevista naquele mesmo dia. Embora eu ainda tivesse
vinte e nove dias em Montevidéu, considerando que fui para passar um mês, era enorme o
desejo de conhecer a cidade e observar empiricamente aquilo que os livros me demonstraram.
Por muita sorte, consegui uma hospedagem em um ponto extremamente estratégico da cidade,
que me possibilitava estar na principal avenida em menos de cinco minutos e fazer todo
percurso das comparsas de Candombe caminhando.
Durante o tempo que fiquei na cidade, aproveitava os tempos vagos para ir às
bibliotecas públicas, tanto para escrever um pouco da tese, como consultar alguma
bibliografia que contribuísse para a mesma. Também utilizava a minha “ociosidade” para
visitar museus, ir aos ensaios abertos das comparsas, às apresentações das Murgas de
carnaval2, me exercitar nos aparelhos de musculação dos parques e simplesmente caminhar
pela cidade, que é muito segura e agradável.
Dois fatos muito interessantes, e sumamente importantes, me aconteceram logo
nos primeiros dias em Montevidéu. O primeiro deles foi a coincidência de ter um brasileiro
como funcionário do hostel, e que me indicou todos os “macetes” da cidade. Sem ele, a
sobrevivência, naquela cidade de preços elevados, seria muito mais difícil. O segundo, se deu
no desfile de carnaval na avenida 18 de julio, principal avenida da cidade, quando fui
reconhecido pela psicóloga e ativista do movimento negro Karina Moreira. Foi uma grande
surpresa, já que nos conhecíamos apenas por foto. Talvez aquela conversa inicial,
descontraída e informal, tenha sido preponderante para traçar uma afinidade, e Karina foi
muito prestativa por todo o período que estive na cidade, me indicando possíveis
entrevistados e passando dicas culturais.
Outro fato muito importante e curioso se deu em um momento no qual me
exercitava no parque mais famoso da cidade, o parque Rodó, e fiz amizade com uma mulher
que também fazia atividades físicas por lá. No meio da conversa, ela me perguntou se eu
estava na cidade a turismo ou a trabalho, e eu a respondi que estava em meio ao processo de
doutoramento e que uma parte do escopo da minha pesquisa consistia em estudar o Uruguai.

2
Murga significa uma manifestação cultural com ocorrência em países de origem espanhola. As murgas são
grupos que geralmente se apresentam em forma teatral e tecem críticas sociais por meio de musicais.
20

A moça, que se chama Loreley, se surpreendeu positivamente e me ofereceu ajuda, já que


tinha muitos contatos nas comparsas de Candombe e era amante da cultura afro-uruguaia.
No dia seguinte ela, me levou até a Casa de Cultura Afro-Uruguaia, quando eu
tive o primeiro contato com uma das entrevistadas, Chabella Ramirez, que me recebeu muito
bem e se surpreendeu com a coincidência positiva. Conheci a casa, conversei bastante com a
Chabella e com a sua secretária, marcando a entrevista já para o dia seguinte, pois ela tinha
um compromisso marcado naquele momento. No dia seguinte eu retornei, entrevistei a
Chabella e consegui a permissão para fotocopiar um livro que estava na estante da biblioteca
da casa e que julguei importante para a minha pesquisa.
Nessa imersão ao Uruguai, muitas coisas interessantes aconteciam, já que em um
hostel geralmente se hospedam viajantes que ficam no máximo quatro dias e partem para
outras cidades. Acontece que eu fui para ficar um mês, portanto, tive contato com pessoas de
diversos lugares do mundo, dentre eles, muitos brasileiros, e sempre que me perguntavam
sobre a minha viagem eu contava-lhes a minha história, que estava cumprindo uma etapa do
doutorado, e isso sempre despertava muita curiosidade e elevava a conversa ao nível mais
intelectual.
Em uma dessas conversas eu conheci uma argentina que estudava Serviço Social e
que se interessou pela temática da pesquisa, me pedindo alguma referência brasileira para ler.
Esse contato foi muito importante para a rede que estava sendo construída, pois ao retornar ao
Brasil ela foi a pessoal ao qual eu recorri para a transcrição de parte das entrevistas, tendo em
vista que ela fala e escreve fluentemente no idioma nativo uruguaio, o espanhol, e otimizaria o
meu tempo dedicado à escrita.
Ainda no Uruguai, também fiz uma entrevista que me abriu mais uma porta.
Trata-se do encontro com Noelia Maciel, que foi feito em um laboratório de pesquisa da
Faculdade de Ciências Sociais da Universidad de la Republica. Foi uma das mais longas
entrevistas, pois ela se sentiu à vontade para responder de forma extensiva às perguntas e
ficou atraída pela temática proposta. No fim da entrevista, Noelia me convidou para participar
de uma reunião que aconteceria no espaço da Casa de Cultura Afro-Uruguaia, e que me
mandaria as coordenadas pelo telefone.
Aceito o convite, fui para o encontro, na condição de ouvinte, e lá estava parte dos
meus entrevistados. Tratava-se de uma reunião que congregavam ativistas de movimentos
negros do Brasil e do Uruguai para a construção de uma etapa regional do Congresso
Brasileiro de Pesquisadores Negros – COPENE. Os uruguaios estavam sendo convidados a
participar deste congresso, pelas organizadoras, já que seria realizado em uma cidade
21

fronteiriça do estado do Rio Grande do Sul e, segundo entendimento delas, viabilizaria uma
troca favorável de saberes e informações.
A recepção foi ótima e pela primeira vez pude estar em um espaço de cooperação
internacional entre movimentos negros do continente sul-americano. Ao final da reunião, uma
senhora médica e ativista do movimento negro, Alicia Esquivel, me convidou para tomar um
café em sua casa, pois havia se interessado pelo fato de eu agregar a Conferência de Durban
na pesquisa, e por isso queria conversar sobre essas questões. Eu fui até a casa de Alicia e fui
otimamente recebido por ela e pelo seu marido, pude gravar a nossa conversa, mas não utilizei
na tese porque ela me pediu para que não fizesse perguntas do questionário preparado, queria
que fosse uma conversa mais informal.
Todavia, Alicia me autorizou a utilizar a sua fala na tese e/ou em outros trabalhos
que eu queira realizar sobre o Uruguai. Fiz a opção de não utilizar nesta tese, pois há muitos
assuntos aleatórios que fogem um pouco ao tema, que, entretanto, podem ser utilizados em
outros momentos. Valeu o aprendizado e a amizade, além de ter ganhado um importante
material produzido por ela junto ao movimento de mulheres negras acerca da importância da
implementação de ações afirmativas no Uruguai.
Todos os meus entrevistados foram de importância fundamental, e com alguns
pude ter mais contato, caso de Juan Pedro Machado e Andrés Urioste (que inclusive me
presenteou com o documento do último censo uruguaio, momento em que o quesito raça
aparece pela primeira vez depois de muitas décadas), pois estavam sempre nas comparsas de
Candombe, eventos que agregam grande contingente da população montevideana e que eu
não poderia deixar de estar. Além disso, ambos foram mais de uma vez ao hostel em que eu
estava hospedado, tendo em vista a amizade construída e o convite aceito para tomar um café
e conversar sobre os rumos do país.
A minha estada no Uruguai foi intensa e atravessada por experiências positivas,
contada mais extensivamente do que em Brasília por eu ter ficado mais dias em Montevidéu.
Pude observar uma cidade muito bem organizada, visivelmente segura, limpa e de pessoas
bem educadas. Não presenciei nem fui interpelado por nenhum ato de racismo, inclusive vi
muitas pessoas brancas participando das manifestações culturais negras. Obviamente que as
minhas experiências não anulam as queixas dos negros que lá residem, e que o meu olhar não
se encerra nas aparências, mas ao estrangeiro a sensação é a de que as relações cotidianas se
dão de maneira harmoniosa.
O país tem uma vida cultural bastante diurna e tranquila, tendo como a maior
agitação do período, nos meses de janeiro e fevereiro, as comparsas de Candombe, que reúne
22

centenas de pessoas percorrendo as vias públicas aos sons dos tambores. Nesses cortejos é
possível conhecer a cidade velha e perceber as similaridades da cultura negra uruguaia com a
brasileira, desde os toques dos tambores até as indumentárias e representações de divindades e
entidades das religiões de matrizes africanas.
A história dos negros uruguaios não é amplamente contada em museus e
monumentos públicos, existindo apenas um em homenagem a Ansina3, localizado em Tres
Cruces. Entretanto, as comparsas de Candombe se encarregam de fortalecer o legado cultural
africano por meio de seus desfiles pela cidade. Não podemos perder de vista que o Candombe
é patrimônio imaterial da UNESCO. Esse talvez seja um forte indício de que os movimentos
negros lograram êxito em suas lutas e conseguiram fazer com que aos poucos a história dos
negros seja recontada e valorizada.
De maneira geral, o meu percurso de pesquisa foi bastante satisfatório quanto à
recepção das pessoas as quais entrevistei, contendo bons achados e momentos importantes
para o meu crescimento pessoal. Tanto em Brasília, quanto em Montevidéu, foi possível
reunir um bom material que pode possibilitar outros trabalhos posteriores, isso porque todos
se sentiram à vontade em falar sobre as suas experiências dentro das lutas dos movimentos
negros e das respectivas secretarias em que estão lotados como executores de políticas
públicas voltadas para a população negra.
Conforme anteriormente abordado, narrei mais fatos sobre o Uruguai, e por ter
tido mais contato com o ambiente cultural de Montevidéu, por conta de ter passado mais dias
por lá. Reside também o fato de que em Montevidéu estive hospedado em um hostel, tendo
maior autonomia de trânsito. Além disso, já conhecia Brasília e naquele momento estava mais
interessado em cumprir a primeira etapa do trabalho, voltar para o Rio de Janeiro e visitar a
minha família, pois estava há sete meses em Fortaleza.
Portanto, assim se deram os desafios do campo de pesquisa, orbitando entre as
dificuldades financeiras com custos de passagens, hospedagens e alimentação (não houve
bolsa-sanduíche ou outro financiamento além da bolsa do CNPq), pouca afinidade com o
idioma estrangeiro (Espanhol) e concomitância com leituras, escrita da tese e cumprimento de
disciplinas do doutorado. Todavia, e diante de todos esses apertos, fora descoberto um enorme
campo de pesquisa, viabilizado pela expansão das redes de contato sugeridas pela orientadora,

3
Joaquín Lenzina (1760-1860), mais conhecido como Ansina, foi um homem negro, filho de escravizados, que
participou ativamente da independência do Uruguai ao lado de José Gervásio Artigas (1764-1850). Ansina é
reconhecido como herói nacional e elemento chave para a positivação da imagem da população negra no
Uruguai.
23

abrindo um leque de possibilidades que eleva o espírito e abrem as janelas que permitem
investidas futuras.

A Tese
Os movimentos negros brasileiros e uruguaios atravessaram o século XX se
empenhando no combate ao racismo e em lograr êxito no objetivo de reconstrução da imagem
da população negra em suas respectivas sociedades, utilizando, sobretudo, os sistemas
educacionais como ponto de partida para conquistar definitivamente a desejada cidadania.
Paulatinamente, esses movimentos ampliavam as suas redes e agendas e
angariaram conquistas que pavimentaram o caminho para as novas gerações diante das
demandas que surgem ao longo dos tempos. Em ambos os países é possível elencar diversas
investidas bem sucedidas dos movimentos negros em benefício da população negra,
possibilitando novos modos de organização em torno da luta política.
É diante dessa assertiva que nós nos lançamos ao desafio de responder à pergunta:
É possível estabelecer a criação de políticas educacionais em benefício da população negra
após a Conferência de Durban, como uma conquista do movimento negro? Esta questão se faz
necessária diante de um painel internacional de diversas transformações e que tem aquela
Conferência como ponto-chave de estratégias que visam o combate ao racismo, observando
que, desde então, não houvera outra com a mesma envergadura.
O caminho que percorremos para responder a este questionamento se deu através
de entrevistas nas quais pessoas institucionalizadas e ativistas dos movimentos negros foram
entrevistadas, e puderam narrar as suas experiências diante dos processos de criação de
secretarias em âmbito nacional e de aplicação de importantes leis responsáveis pela ampliação
de direitos que apontariam para os novos rumos que a educação deveria tomar, em ambos os
países.
Nosso trabalho tece considerações acerca do que é o racismo e como ele se dá em
âmbito institucional, pois é a melhor forma de situar o leitor acerca dos desafios que perfaz o
caminho dos movimentos negros quando pleiteiam transformações que deslocam o eixo de
funcionamento da instituição historicamente legitimada como alimentadora do imaginário
coletivo e, consequentemente, mantenedora da ordem social desses respectivos países, a
escola.
Todavia, como os movimentos negros não são entidades responsáveis por
promover educação formal, o que pode ser avaliado são as lutas que eles empreendem a fim
de reorganizar o sistema educacional. O ponto de partida é o de que existem três elementos-
24

chave a serem corrigidos: o acesso, a permanência e o modelo de ensino, tendo em vista os


índices de educação, que apontam para respectivas desvantagens para os negros em relação
aos não negros quando se fala em menor escolarização e maior taxa de analfabetismo, evasão
escolar e negligência em relação aos temas que remetem à história e cultura da África e dos
afro-brasileiros.
No Brasil, partimos da premissa de que a criação da Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão – SECADI tenha sido um atendimento
direto às designações do Plano de Ação instado na Conferência de Durban, tendo na
Coordenação Geral de Educação para as Relações Étnico-Raciais o vetor principal de
combate ao racismo e ao atendimento dos elementos citados no parágrafo anterior.
Para obter a resposta à nossa premissa, em primeiro plano, se fez necessário
percorrer o histórico de Durban e tecer os fios condutores que possibilitaram as articulações
dos movimentos negros e ativistas das causas raciais no cerne da Organização das Nações
Unidas – ONU a fim de pressionar esta instituição para a adoção de uma agenda unificada de
combate ao racismo. Observamos os esforços do movimento negro brasileiro e os
imprescindíveis elos entre os países da América Latina, que contemporaneamente teve no
Uruguai um importante protagonismo.
Foi necessária, também, uma breve explanação sobre as décadas que avizinhavam
Durban, ou seja, 1980 e 1990, com os importantes acontecimentos internacionais que
impactaram de forma positivamente na articulação política do movimento negro brasileiro em
escala internacional, viabilizando novos olhares acerca das necessidades do campo
educacional. Foram duas décadas de intensa atividade intelectual em que os movimentos
negros se utilizam das estatísticas para fortalecer as suas bases em torno de leis e acesso ao
ensino superior.
Traçado o histórico do movimento negro na ONU e pontuado as principais
características do período anterior à Conferência de Durban, e a conferência em si,
debruçamo-nos em entender a estrutura de funcionamento da SECADI, entrevistando alguns
membros que estiveram presentes na gestão do ano de 2016 e uma antiga gestora que esteve à
frente da Secretaria desde a sua fundação, no ano de 2004.
Neste capítulo, em que a SECADI é examinada, são observados os aspectos
estruturais da Secretaria a partir da configuração da gestão do ano de 2016. Aqui demos
ênfase às vozes dos técnicos entrevistados, que falaram sobre as suas opiniões acerca das
dificuldades enfrentadas para o funcionamento da Secretaria, nos fornecendo as informações
25

sobre as suas formações e respondendo ao nosso questionamento inicial, que visou investigar
se a criação da Secretaria é um desdobramento da Conferência de Durban.
Dando sequência, buscamos compreender o panorama uruguaio, desenvolvendo
um painel histórico que se debruçou em demonstrar os principais aspectos de formação social
do país, enfatizando a questão racial como fator de suma importância a ser considerado
quando se pensa em políticas públicas, uma vez que o Uruguai se constituiu em bases racistas,
levando os movimentos negros a atuarem firmemente no seu combate, propondo uma agenda
política de inclusão do negro nas esferas públicas de poder.
No Uruguai, a nossa missão foi a de compreender a relação de Durban com as
novas configurações de políticas públicas para a população negra, sobretudo a partir da
promulgação da Lei 19.122. Para tanto, realizamos entrevistas com ativistas dos movimentos
negros, dentre eles, pessoas que estiveram na Conferência de Durban e em órgãos
governamentais responsáveis pelo desenvolvimento de políticas públicas em âmbito social
naquele país.
Nesse sentido, realizamos um percurso que demonstrou a atuação do movimento
negro daquele país em Durban, suas articulações e suas aspirações posteriores à conferência.
Nesta etapa, priorizamos as narrativas dos ativistas entrevistados, lembrando que alguns deles
estiveram em Durban e possuem valiosas opiniões acerca de como se deu a luta política
naquele contexto.
Em seguida, apresentamos um panorama geral sobre as políticas educacionais no
Uruguai e as suas implicações para a população negra, enfatizando as aspirações dos
movimentos negros em relação aos sistemas de ensino do país, que são da mesma ordem do
que ocorre no Brasil, isto é, buscando acesso, permanência e reorganização dos conteúdos,
incluindo o estudo de história da África e dos seus descendentes.
Há consenso entre os ativistas dos movimentos negros brasileiros e uruguaios no
que tange à criação de uma agenda mais coesa e tonificada após a Conferência de Durban, no
entanto, também há o reconhecimento de que as conquistas possibilitadas a partir de então,
também possuem fragilidades que se dão por conta de uma perversa estrutura que ainda
inviabiliza que os anseios da população negra sejam satisfeitos.
Tanto no Brasil quanto no Uruguai, a Conferência de Durban é vista como um
divisor de águas que abre um novo caminho para articulações políticas que conduzem os
movimentos negros para dentro da gestão pública. A SECADI, no Brasil, e a Lei 19.122, no
Uruguai, viabilizaram a ampliação dos debates relacionados ao racismo em âmbito
26

institucional e pressionou os governos a adotarem medidas de reorganização política em torno


dos sistemas educacionais.
Portanto, os nossos leitores estarão diante de um trabalho que enfatiza as vozes
dos ativistas e técnicos que lidam com a oferta de políticas públicas educacionais para a
população negra em ambos os países, apresentando as dinâmicas históricas que torna possível
a materialização das demandas populares. Além disso, terão em mãos os relatos que
demonstram os esforços e as dificuldades encontradas pelos movimentos negros para lidar
com as políticas públicas educacionais em países construídos a partir de bases racistas.
27

2 UM DEBATE CONCEITUAL ACERCA DO RACISMO

Acreditamos firmemente que os obstáculos para supercar a discriminação racial e alcançar a igualdade
racial reidem, principalmente, na ausência de vontade política, a existência de legislação deficiente, na
falta de estratégias e de medidas concretas por parte dos Estados, bem como na prevalência de atitudes
racistas e estereótipos negativos (Declaração de Durban e Plano de Ação, p.31).

Para iniciar o nosso debate, é necessário percorrer um caminho já pavimentado


por muitos autores, mas que precisa estar constantemente rearranjado para que possamos
compreender a miríade de possibilidades que se refazem com as dinâmicas sociais, que estão
sempre em transformação. Por isso, se assume ímpar um apanhado introdutório acerca das
bases epistemológicas sobre o conceito de racismo e como ele pode ser compreendido em
suas mutações ao longo do tempo.
Pergunta que se assume: O que é mesmo o Racismo? Ela pode ser respondida a
partir de diversas obras e pontos de vista. Adotamos alguns autores que se debruçaram sobre o
fenômeno e contam a sua hisória sob uma ótica histórica e sociológica para refinar o debate
em termos conceituais e em um encadeamento evolutivo, que demonstra que o fenômeno
ganha novos contornos de acordo com a absorção de novas perspectivas agregadas com a
modernização das sociedades e a sofisticação discursiva de seus intelectuais e governantes.
Munanga (2003 e 2004) e Santos (2005) afirmam que o racismo enquanto
conceito será uma visão arquitetada a partir do século XIX por meio de teóricos que,
inspirados no Iluminismo, iniciam uma cruzada em busca de compreender, e hierarquizar, os
povos através de pressupostos raciais. Entretanto, Munanga adverte que o caminho científico
não fora a primeira manifestação de racismo presenciada na Terra, afirmando que a
anterioridade do fenômeno já se fazia presente em textos religosos. Desse modo, o autor
assevera que:

O racismo e as teorias que o justificam não caíram do céu, elas têm origens mítica e
histórica conhecidas. A primeira origem do racismo deriva do mito bíblico de Noé
do qual resulta a primeira classificação, religiosa, da diversidade humana entre os
três filhos de Noé, ancestrais das três raças: Jafé (ancestral da raça branca), Sem
(ancestral da raça amarela) e Cam (ancestral da raça negra). Segundo o nono
capítulo da Gênese, o patriarca Noé, depois de conduzir por muito tempo sua arca
nas águas do dilúvio, encontrou finalmente um Oásis. Estendeu sua tenda para
descansar, com seus três filhos. Depois de tomar algumas taças de vinho ele se
deitara numa posição indecente. Cam, ao encontrar seu pai naquela postura fez junto
aos seus irmãos Jafé e Sem, comentários desrespeitosos sobre o pai. Foi assim que
Noé, ao ser informado pelos filhos descontentes da risada não lisonjeira de Cam,
amaldiçoou este último dizendo: Seus filhos serão os últimos a ser escravizados
pelos filhos de seus irmãos. Os Calvinistas se baseiam sobre esse mito para justificar
o racismo anti-negro (MUNANGA, 2003, p. 3).
28

Observa-se que o trecho do mito bíblico trazido por Munanga não possui chancela
científica, há somente uma narrativa corrente no contexto religioso disseminado como
possível explicação para o povoamento das espécies de seres vivos no mundo, mediado por
um homem que determinou o futuro das raças a partir da sua relação com os seus filhos.
Apesar de não estar de acordo com nenhum estatuto científico, o que só seria possível séculos
depois, essa era a única maneira corrente e aceitável para se conceber o conhecimento acerca
dos seres humanos, imputando-lhes valores morais a partir do que se projetava sobre a sua
estética.
Bastante provável que a explicação mítica para a divisão racial do mundo tenha
perdurado bastante, e em vários povos e religiões, já que, de acordo com Moore (2009), essa
ocorrência não é exclusividade do Ocidente nem sequer da perspectiva judaico-cristã, uma
vez que o livro sagrado dos árabes, o Alcorão, também veicula expressões e máximas que
ridicularizam e classificam de maneira racialmente inferior os negros. Segundo o mesmo
autor, as primeiras investidas escravagistas no continente africano se deram por meio dos
árabes, ancorados nas máximas religiosas que justificavam as suas ações.
Na linha histórica de explicação do racismo teremos enfim a passagem do
protorracismo (MOORE, 2009), ou de um racismo ainda baseado em especulações e
narrativas literárias, para o racismo científico do século XVIII. O advento do Iluminismo
engendrou a busca da prova pela ciência, em que a biologia se tornara elemento-chave para a
constatação de diferenças entre as raças. O Ocidente – isto é, a Europa – se estabelecia
enquanto hierarquicamente superior e se arrogava ao direito de determinar o destino de outras
nações, as quais animalizava e julgava bárbaras.
O Iluminismo surgia em um ambiente de contestação aos antigos mandatários
estatais e religiosos, propondo a separação entre o Estado e a Igreja, potencializando a
liberdade política e econômica, e pregando a fraternidade e a tolerância como elementos
indispensáveis para uma nova organização política e social vigente para o progresso. Apesar
dessas características, o Iluminismo tinha uma característica eminentemente eurocentrista,
pois:

Sob o olhar do “nós”, os europeus miram os “outros” (os não-europeus) com


desprezo, enquanto tentam defender o que compreendem por direitos universais.
Reconhecem a diferença, a existência de homens diferentes e abominam a injustiça
que possa ser praticada contra eles. Mas não deixam de ser, apesar disso, espelho do
modelo racional criado por eles (SANTOS, 2005, p. 21).

A partir daí, surge a pretensão de fixar as diferenças entre os povos a partir da


racionalidade, impingindo aos não-europeus a impossibilidade de reflexões filosóficas e
29

científicas, cabendo a estes, portanto, um caráter subserviente ao que os europeus


determinassem como divisão fundamental de tarefas laborais e da própria condução dos seus
destinos. A escravização de negros africanos ganhava, assim, mais força, uma vez que agora
havia elementos técnicos (científicos e filosóficos) que embasavam as justificativas para tal
empreitada.
A biologia entra na base das explicações técnicas sobre a natureza, e os hábitos se
tornam salutares para as explicações acerca dos indivíduos, a despeito de gêneros e espécies,
já que se buscava a composição entre as partes e o todo, sinalizadas pela determinação dos
seus comportamentos por analogia. Segundo Santos (2005), esta seria uma maneira de
implementar um estudo mais acurado sobre as singularidades da humanidade, numa
empreitada que estaria muito mais afinada com a relação factual dos homens do que outros
estudos marcadamente teóricos, como a matemática ou a física.
Munanga, portanto, conclui que:

A segunda origem do racismo tem uma história conhecida, ligada ao modernismo


ocidental. Ela se origina da classificação dita cientifica derivada da observação dos
caracteres físicos (cor da pele, traços morfológicos). Os caracteres físicos foram
considerados irreversíveis na sua influência sobre os comportamentos dos povos.
Essa mudança de perspectiva foi considerada como um salto ideológico importante
na construção da ideologia racista, pois passou-se de um tipo de explicação na qual
deus e o livre arbítrio constituiu o eixo central da divisão da história humana, para
um novo tipo, no qual a biologia (sob sua forma simbólica) se erige em
determinismo racial e se torna a chave da história humana (MUNANGA, 2003, p.
8).

É importante salientar que, segundo Santos (2005), naquele momento era


imprescindível se levar em conta o relato dos viajantes desbravadores e conquistadores que
atravessavam os oceanos e observavam os costumes das populações nativas de outros
continentes. Munanga (2003) afirma que a autoridade desses homens se somava às
especulações de cientistas e filósofos, constituindo uma rede de classificações que
hierarquizava as populações de acordo com interesses políticos de dominação.
De acordo com Munanga (2003), um desses classificadores foi o naturalista sueco
Carl Von Linné (1707-1778), quando este se ocupou em determinar o comportamento dos
povos levando em consideração o clima de cada continente. Em suas descrições o americano
seria um “amante da Liberdade” e “governado pelo hábito”, enquanto o negro africano seria
“astucioso, preguiçoso, negligente, governado pela vontade de seus chefes (despotismo)” e o
branco europeu “musculoso, engenhoso, inventivo, governado pelas leis”. Percebe-se que são
designações de cunho interpretativo pessoal e de cunho ideológico com a finalidade de
hierarquização.
30

O salto para o século XIX não altera muito a visão que se constitui em relação aos
negros, uma vez que a maneira organizativa dos povos africanos estaria consolidada como
inferior e ainda justificaria a sua escravização. A tese da seleção natural de Charles Darwin
(1809-1882), em “A origem das espécies” (1859), na qual afirmava que os indivíduos, ou as
espécies, mais bem adaptadas a uma dada realidade competitiva no meio em que estão
inseridos sobreviveriam, em detrimento dos mais fracos, foi aplicada para fins sociais, pois o
chamado “Darwinismo Social” tinha como princípio a crença de que ao se tratar de raças
inferiores na escala evolutiva do homem, os povos africanos e ameríndios deixariam de existir
pelo próprio processo de seleção natural.
É também no século XIX em que floresce a Eugenia, teoria de melhoramento das
raças, cunhado pela primeira vez pelo inglês Francis Galton (1822- 1911). Tratava-se de
buscar empreender experimentos que objetivavam a criação do humano perfeito, destituído do
que era considerado impuro e atrasado. Dessa maneira, seria recomendável que as relações
com as raças classificadas como inferiores fossem evitadas, uma vez que haveria uma
degeneração para as próximas gerações das raças superiores.
O estímulo para os cruzamentos segmentados, ou seja, intrarraciais, se dava pela
esperança de que se preservariam as características da raça, conceito cunhado como Eugenia
positiva. Por outro lado, uma relação inter-racial levaria a raça mais forte a se degenerar, uma
vez que uma gota de sangue inferior poderia “infectar” o branco com uma herança genética
ruim. Essa seria a Eugenia negativa. Ambas as perspectivas foram bastante difundidas e
experimentadas em vários países, ganhando muito força no Brasil, que, segundo Dávila
(2015), pavimentou um caminho para políticas púlicas educacionais baseadas na Eugenia,
perdurando desde o início do projeto de sistema educacional brasileiro, até meados dos anos
de 1940.
A evolução das ideias racialistas se sofisticou e elas atravessaram oceanos e
séculos, influenciando diretamente na organização política de várias sociedades no mundo.
Alega-se que no Brasil o racismo tenha sido mais brando do que em outros países, como os
EUA ou a África do Sul, uma vez que não teria tido um sistema formal de separação entre
raças. Há também argumentos que se orientam pelo fato de que o Brasil seja um país
profundamente mestiçado, e que essa seria a prova cabal de que as raças convivam
harmonicamente neste país.
Em virtude da reorganização dos debates sobre o racismo, muitos emdebates
foram contemporizados e o seu conceito tentou ser enfraquecido, já que se deslocou o eixo
gravitacional do biológico para o sociológico, e as justificativas de ausência de raças acabou
31

tomando a cena. No Brasil, esse fato potencializou uma ideia de “democracia racial”, lugar
onde as pessoas teriam afinidades orgânicas que não se orientavam pela existência de raças,
assim, os únicos conflitos que se faziam presentes seriam, portanto, de ordem social, ou seja,
presentes por problemas de classes sociais diferentes. Nesse pensamento, critica Munanga
(2004), o racismo seria um mero detalhe, e não algo capaz de gerar um sistema de poder.
A despeito da ideia criticada por Munanga (2004), para o antropólogo Carlos
Moore (2011), o racismo é uma ordem sistêmica de fundamental importância para a ascensão
material de um grupo humano específico, o branco. Ele afirma que o critério fenotípico foi
preponderante para empreender justificativas morais, filosóficas e pseudocientíficas, como
viga de sustentação para massificar os juízos que transformaram a raça branca em legítimos
gestores dos recursos naturais do planeta. Corolário, os negros não detêm o poderio
econômico que permita equalizar o imaginário coletivo, a fim de organizá-lo para tornar os
mecanismos subjetivos menos danosos à psicologia de outras gerações de pessoas negras:

O racismo seria uma ordem sistêmica de grande profundidade histórica e de ampla


cobertura geográfica, que se teria desenvolvido, fundamentalmente, com o objetivo
de garantir a separação automática de um determinado segmento humano do
usufruto de seus próprios recursos. Em sua gênese, apresenta-se como uma forma de
consciência grupal historicamente constituída, da qual proviriam depois construções
ideológicas baseadas no “fenótipo/raça”. Sua função central, desde o início, seria
regular os modos de acesso aos recursos da sociedade de forma racialmente seletiva,
de acordo com o referido “fenótipo/raça”. (...) Nesse contexto, as desigualdades
sociais desdobram-se em iniquidades raciais, que, por sua vez, reforçam as
diferenças (MOORE, 2011, p. 14).

Dito isto, se torna imprescindível compreender que o racismo é a tônica que


hierarquiza qualquer relação de poder. Logo, outros marcadores de identificações não
normativas, tornam-se secundarizados quando aqueles que os portam são negros. Um morador
de zona rural, por exemplo, pode dissimular sua condição, se assim o convir, e acessar outros
espaços de convivência sem ser importunado pela sua afiliação ao lugar geográfico. Ao negro,
esta possibilidade é nula, sua condição fenotípica, racial, não pode ser cortinada, por mais que
se desfaça dos vestígios, tais como: roupas; linguajar; uso do cabelo; bens duráveis etc., nada
disso será capaz de eliminar por completo a projeção feita em torno da origem racial, com
toda a carga negativa massificada no curso da história.
Portanto, mesmo que as diversas teorias raciais surgidas desde o racismo
científico do século XVIII tenham sido combatidas ou se tenham novos contrapontos, o
racismo continua presente e prescreve o “lugar” do negro, mesmo em sociedades multirraciais
como a nossa. Sua virulência se materializa em diferentes espaços sociais, ganha contornos
32

cada vez mais complexos e difíceis de serem combatidos, gerando a necessidade de novos
estudos acerca do fenômeno.

2.1 O Racismo Institucional

Devem figurar outras medidas para o alcance de representação adequada nas instituições educacionais,
de moradia, nos partidos políticos, nos parlamentos, no emprego, especialmente nos serviços
judiciários, na polícia, no exército e outros serviços civis, os quais em alguns casos devem dexigir
reformas eleitorais, reforma agrária e campanhas para a igualdade de participação (Declaração de
Durban e Plano de Ação, p.37).

O tema “Racismo Institucional” é complexo, talvez por isso pouco utilizado como
ferramenta para pensar as reconfigurações do racismo no Brasil. Por esse motivo,
perseguimos algumas pistas deixadas por autores que se debruçaram em compreender o
funcionamento das sociedades contemporâneas no Ocidente, abrangendo a lógica da
dominação que se afigura por meio da institucionalização da vida, que exige o domínio de
códigos culturais indispensáveis para a sociabilidade, sobretudo para o ingresso no mundo das
relações de trabalho.
Faz-se sumamente importante dizer que o tema sobre o racismo institucional
ainda é pouco estudado no Brasil, e que geralmente os pesquisadores dessa área recorrem aos
estudos clássicos que analisaram a realidade estadunidense desde as décadas de 1960 e 1970.
Geralmente o conceito é descrito em torno de acontecimentos discriminatórios, fluídos e
naturalizados dentro do escopo político normativo, condenável no âmbito do Direito, porém
diluído na sutileza das relações “cordiais”. Segundo Souza (2011), as obras clássicas sobre o
assunto trazem uma noção introdutória acerca do mesmo, abrindo as portas para o
reordenamento do olhar em torno do fenômeno4.
Segundo Arivaldo Santos de Souza, “[o] conceito de Racismo Institucional refere-
se a políticas institucionais que, mesmo sem o suporte da teoria racista de intenção, produzem
consequências desiguais para os membros das diferentes categorias raciais” (SOUZA, 2011,
p. 79). Esta reflexão coaduna com aquilo que Foucault (2010) chama de “sujeição de
saberes”, ao analisar o nascedouro das instituições no Ocidente em sua forma organizativa,
que, segundo ele, engendra uma gama de normativas que tem como objetivo não apenas a
produção técnica de bens materiais, mas as ações reguladoras da sociedade, de modo a
prescrever o desenho político e ideológico que orienta a base das relações cotidianas.

4
Para Souza (2011), o conceito começa a ser tratado a partir de Stokely Carmichael e Charles Hamilton. As
reflexões trazidas por Souza estão contidas na obra: Carmichael, S. e Hamilton, C. Black power: the politics of
liberation in America. New York, Vintage, 1967.
33

As exigências para a aquisição de um ethos central, construído verticalmente,


servem como balizadoras do modelo de sociedade que se pretende construir. No mundo
ocidentalizado, segundo Guerreiro Ramos (1957), a tendência é que a massificação dos
códigos de conduta prescritos pelos dispositivos de poder levem à incorporação de elementos
díspares do modo de organização social anterior. Por seu turno, é preciso haver uma mediação
entre a produção de subjetividades e a população a que se destina o produto final5. Desse
modo, as instituições se tornam vetores indispensáveis para o refinamento das informações,
moldando o caráter específico de cada ordenamento que cumpre a função organizativa da
centralidade normativa para os modelos de sociabilidade serem brancos, heterossexuais e
masculinos.
Segundo Milton Santos (1997), a adoção desse modelo pode, em parte, ser
explicada pelo fato de que há um debruçar científico acerca de particularidades convenientes
para as populações brancas, no intento de torná-las padrão e criar laços afetivos e desejosos
entre aqueles que não possuem os mesmos atributos dominantes, que se veem compelidos a
aderi-los enquanto fonte de possibilidade para o bem-estar social. Desse modo, a “verdade”,
ou a autenticidade, se torna particularista, e a visão fragmentada do todo, responsável por
produzir uma ideia unilateral de desenvolvimento, dificultando que aqueles que estejam fora
dessa perspectiva sejam partícipes do então decantado progresso.
O inverso se constrói em relação às populações negras, relegadas às
desqualificações estéticas e morais, que produzem o afastamento automático dos indivíduos
que buscam alinhavar agenciamentos positivos para se orientar frente às relações sociais
vigentes. Segundo Milton Santos (1997), é sumamente importante que o intelectual não
produza conhecimentos baseados na lateralidade das inferências apresentadas, mas que
apresente caminhos para o progresso universal e pressione as instituições, entendendo que
elas são os vetores de escoamento das diferentes “filosofias”, tudo sem abrir espaço para
uniformizações.

No mundo de hoje, ser intelectual é também tomar esse partido do progresso. Isso
significa igualmente atenção aos pobres e às minorias. Volto assim, aqui entre
parênteses, a um tema de que gosto de falar: quem sabe um dia a Universidade de

5
Muniz Sodré (2002) analisa a produção de códigos sociais a partir de dispositivos das mídias, o que ele chama
de ethos midiatizado. Segundo ele, a organização social na contemporaneidade se articula com novos espaços
de convivências, operacionalizados por redes corporativas que gestam um novo bios (forma de vida). Essas
mídias administram projetos de hegemonias, que tem como base comum a massificação de valores que
conduzem a mercantilização da vida, engendrando uma seletividade racial que dissimula o racismo em níveis
de abstração de difíceis compreensões, cumprindo o papel de estratificação racial da riqueza sem transgredir as
normas constitucionais.
34

São Paulo vá se mostrar clara e ativamente interessada, por exemplo, na questão


negra neste País. Isso falta à Universidade de São Paulo (SANTOS, 1997, p. 18).

A lógica até aqui criticada constrói um condicionamento epistêmico no qual


Foucault (2010) chama de “Sujeição de saberes”, uma vez que a disciplina que se cria com o
aparelhamento institucional, massifica conhecimentos tornados necessários e incontestáveis
para o pleno acesso a esses lugares. Todavia, é importante sublinhar que estes saberes que se
sujeitam, não passam de uma releitura do que circula nos diferentes lugares sociais, mas com
a institucionalização dos discursos, essas maneiras de produzir “saberes” são tornadas
obsoletas, valendo, portanto, os conhecimentos produzidos no cerne das instituições.

E, por “saberes sujeitados”, entendo duas coisas. De uma parte, (...) [são] conteúdos
históricos que foram sepultados, mascarados em coerência funcionais ou em
sistematizações formais. (...) apenas os conteúdos históricos podem permitir
descobrir a clivagem dos enfrentamos e das lutas que as ordenações funcionais ou as
organizações sistemáticas tiveram como objetivo, justamente, mascarar. Portanto, os
“saberes sujeitados” são blocos de saberes históricos que estavam presentes e
disfarçados no interior dos conjuntos funcionais e sistemáticos, e que a crítica pôde
fazer reaparecer pelos meios, é claro, da erudição. (...). Em segundo lugar, por
“saberes sujeitados” [há] uma coisa totalmente diferente (...). (...) toda uma série de
saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais, como saberes
insuficientemente não elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente
inferiores, saberes abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade requeridos.
(...) foi pelo reaparecimento desses saberes locais das pessoas, desses saberes
desqualificados, que foi feita a crítica (FOUCAULT, 2010, p. 8-9).

Grande exemplo do que está sendo exposto se dá por meio do debate acerca das
cotas raciais nas universidades brasileiras, quando parcela de intelectuais brasileiros se
insurgiram contrários ao pleito do movimento negro, culminando no lançamento de um
manifesto anticotas raciais6. A voz institucional, amplificada pelos intelectuais legitimados
pelas associações e departamentos de suas respectivas áreas, teve peso preponderante para
gerar um sentimento avesso ao pleito do movimento negro. Geralmente os argumentos eram
universalistas, e, em muitos casos, depositavam nos próprios negros a culpa de não estarem
em maior número no nível superior, o que é outra estratégia de dividir a população negra,
visto que estimula a antinomia entre os negros, que estariam frente à categorização binária
dentro do próprio grupo, o mal negro, indolente e sem força de realização, e o bom negro,
dotado de valores que simulam um ethos “branqueado”.
Entretanto, este discurso poderia soar como antidemocrático frente ao novo apelo
político vigente, pois seria contraditório que, mediante a propaganda inclusiva que marcava o
diferencial em relação a outros momentos políticos no país, – como a escravidão e a ditadura
militar –, não se atendesse aos anseios das populações marginais. Desse modo, mesmo que, a

6
Em anexo.
35

contragosto, muitos intelectuais e gestores públicos tiveram que “abrir as portas” para a
entrada de novos atores sociais, por meio de um processo seletivo diferenciado do
convencional. Aparentemente, essa seria uma vitória do movimento negro, uma vez que a
demanda principal estaria sendo incorporada.
Apesar de ter essa demanda incorporada, é preciso salientar que muitos
professores que comandam grupos de pesquisas já poderiam prever que este contingente
populacional poderia lhes garantir muitas ofertas de saberes, ou seja, muitos desses novos
estudantes trariam conhecimentos ainda não sistematizados, ou pouco explorados para o
ambiente acadêmico, o que lhes renderia pesquisas que, por conseguinte, conferiria prestígio
acadêmico e fortalecimento dos programas de pós-graduação em que estão inseridos. Este é
um ponto de vital importância, pois, retomando as formas conceituais que evoca a Michel
Foucault (2010), estes saberes, antes deslegitimados, se tornaram acadêmicos (neste
intercurso está a prática do que alguns intelectuais, como Mogobe Ramose e Sueli Carneiro,
chamam de “epistemicídio”)7, mas o bônus não retornou a quem possuía tal conhecimento, e
mais, os índices de estudantes negros nos programas de pós-graduação no Brasil ainda estão
aquém do que seria razoavelmente aceito8.
Suportar esta ambiência negativa não é tarefa fácil para os negros, que ao ver
diversas barreiras institucionais se erguerem contra eles, podem optar pela desistência de
determinadas carreiras, ou podem também ceder à pressão de outro modo. Se listarmos o
número de intelectuais negros injustiçados no seio da academia brasileira, certamente
precisaremos de um trabalho específico para isso. Citando os casos mais famosos, temos
Alberto Guerreiro Ramos (1915 – 1982), sociólogo negro que teve sua candidatura reprovada

7
Para Ramose (2011), o epistemicídio se caracteriza pela autoridade de conferir legitimidade sobre as formas de
conhecimento. Segundo o autor, a colonização europeia sobre o continente africano definiu o que é a filosofia
a partir da hierarquização saberes, em detrimento do que se produzia no continente africano enquanto
conhecimento. Carneiro (2005), sugere que o epistemicídio tem como objetivo o assassinato de qualquer
possibilidade de debate mais amplo acerca daquilo que os negros africanos e da sua diáspora produzem
enquanto episteme, acarretando em prejuízos inestimáveis para a humanidade, pela unilateralidade com que as
teorias do conhecimento conduzem as suas investigações científicas.
8
Os números do Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia – IBGE apontam para exponencial aumento de
negros nas universidades nos últimos anos. Esse crescimento ainda está em defasagem em relação aos jovens
brancos dez anos antes das pesquisas do IBGE. Fonte: http://www.valor.com.br/brasil/4342534/ibge-acesso-
de-negros-universidade-cresce-maioria-ainda-e-branca. Acesso em: 18/03/2016. O Plano Nacional de Pós-
Graduação - PNPG de 2005-2010 e o de 2011-2020, trazem números que indicam um crescimento no número
de programas de pós-graduações resultando em 2.719 programas com 4101 cursos, divididos entre mestrado e
doutorado, 34,7 % e 65,3%, respectivamente. Nesses dados não há desmembramento que indique o número de
alunos e docentes por cor/raça. Segundo Marcelo Paixão (2010), por meio das Pesquisa Nacional Por
Amostragem de Domicílios – PNADs, é possível dizer que o número de negros na pós-graduação cresceu, mas
que não atingiu o mesmo número dos brancos, que continuam sendo a maioria. BRASIL, Plano Nacional de
Pós-graduação (PNPG) 2011-2020 Ministério da Educação, Brasília, dez. 2010.
36

para lecionar em universidade pública no país, tendo publicado diversas obras de grande
envergadura internacional, relegado pela elite acadêmica brasileira pelo tom propositivo para
transformações no modo de conceber o estudo de sociologia no Brasil, que para ele se faz por
meio de um reducionismo que se limita a atualizar teses estrangeiras. Desse modo, o autor
reflete sobre o racismo de famosos pensadores brancos no Brasil, que, segundo ele, tematizam
a questão racial criando um ethos aprisionador para o negro, que termina agrilhoado às
normas prescritivas elaboradas por esses intelectuais, sofrendo desvantagens no mundo do
trabalho e nas relações sociais.
Milton Santos (1926 – 2001), geógrafo brasileiro de reconhecimento
internacional, graduado em Direito que transformou a epistemologia de pensar
geograficamente o espaço e o território. Em uma ocasião, Milton Santos fora rejeitado em um
pleito para se tornar presidente da Associação Brasileira de Geógrafos sob alegações racistas
de colegas de trabalho, tendo sido, posteriormente, recomendado por Caio Prado Jr.
(SANTOS, 2008). Apesar de Milton ter chegado ao cargo máximo da associação, jamais foi
presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), isto é, da instituição
mais importante que lida com os dados geográficos no Brasil, utilizando conceitos e pesquisas
desenvolvidas por Milton Santos durante toda sua vida9.
Recentemente se tornou pública a reprovação do doutor Kabengele Munanga,
professor titular aposentado pela Universidade de São Paulo – USP, para o pleito de professor
visitante na Universidade Federal do Recôncavo Baiano – UFRB, tendo sido preterido em
nome de um pesquisador mais jovem, de menor produção acadêmica e de inferior prestígio 10.
Certo de que apesar do seu prestígio e tempo dedicado às pesquisas acerca do racismo no
Brasil, Kabengele Munanga quebrou o silêncio acadêmico e redigiu uma carta aberta expondo
os motivos que o levaram a acreditar numa injustiça perpetrada contra sua pessoa. Não se
trata de pressão para aprovação automática, mas de reconhecer a desigual correlação do
pleito, em virtude de tempo de dedicação à vida acadêmica, em relação ao seu concorrente11.

9
Quando se tornou professore Emérito pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo – USP, Milton Santos proferiu uma palestra intitulada “O Intelectual e a Universidade
Estagnada”, onde afirmou que existem grupos corporativos dentro da academia brasileira, e estes visam a
perpetuação de ideias e de herdeiros acadêmicos. Essas atitudes mantém o grupo hegemônico branco na
dianteira das pesquisas acadêmicas no Brasil. Disponível em: http://terracoeconomico.com.br/o-sofisticado-
nepotismo-das-universidades-brasileiras. Acesso em: 23 jun. 2017.
10
Um estudo mostra que existe uma tendência para absorção de jovens egressos de programas de mestrados e
doutorados pelo país, pelo próprio programa, não fazendo circular profissionais pelas mais diversas regiões
Disponível em: http://revistapesquisa.fapesp.br/2016/01/12/circulacao-limitada/. Acesso em: 23 jun. 2017.
11
Segue o link da carta na íntegra: https://mamapress.wordpress.com/2014/02/14/racismo-nas-altas-esferas-
quem-tem-medo-de-um-negro-que-sabe-professor-kabengele-munanga-quebra-o-silencio-academico/. Acesso
em: 15 abr. 2017.
37

Outro caso emblemático ocorreu no ano de 2008 na Universidade Federal do Rio


de Janeiro – UERJ. No ano de 2008, o estágio probatório do professor doutor Rafael dos
Santos foi posto em risco pela direção da faculdade de educação daquela universidade e,
segundo Pereira (2008): “Em uma situação atípica, a diretora da faculdade convocou uma
reunião do Conselho Departamental para avaliá-lo”. Diante desse fato, Pereira (2008) adverte
para novas tensões que se configuram no espaço acadêmico com o ingresso de novos docentes
negros, na dinâmica social que se refaz (ou estava mais presente naquele momento), através
de novas frentes de trabalho e acesso e permanência ao nível superior, viabilizado pelas lutas
travadas pelos movimentos negros, na implantação de programas de ações afirmativas. Pereira
afirma que:

Duas coisas ressaltam nessa reunião que ocorreu sem que o professor estivesse
presente: primeiro a desconsideração com o colega, a ponto de ter sido sugerido que
Rafael deveria buscar apoio médico, pois estaria afetado psiquicamente; segundo, a
presença de um coletivo de estudantes negros da UERJ (PEREIRA, 2008, p. 5).

Segundo Pereira (2008), o caso tornou evidente o incômodo gerado com o


ingresso considerável de docentes negros no espaço acadêmico, “acendendo a luz vermelha”
que sinaliza para a necessidade de novos agenciamentos entre negros dentro desse ambiente.
Por fim, o docente, doutor Rafael dos Santos, teve seu estágio probatório aprovado por meio
de outras vias legais. Em 13 de agosto de 2008, o reitor Ricardo Vieiralves deferiu o pleito
encaminhado pela professora doutora Maria Alice Rezende diretora do NEAB – Núcleo de
Estudos Afro-Brasileiros daquela instituição, no qual avaliava positivamente o professor e o
efetiva. Cabe ressaltar que a avaliação passou pelo crivo da diretora da unidade ao qual está
lotado, e pela avaliação da Superintendência de Recursos Humanos – SRH.
Ainda que o professor Rafael dos Santos tenha sido efetivado, após tamanho
desgaste e constrangimento, segundo Pereira (2008), “os(as) adversários(as) do professor
Rafael” não desistiram do intento que já haviam iniciado, tentando invalidar a avaliação feita
em outra esfera, divergente da qual elegeram como a única possível para “julgar” situações
como essa:

Desgaste para a chefe de departamento e aliados(as). Dias depois recuaram por meio
de carta enviada à diretora da faculdade e chefes de departamentos, alegando que a
avaliação do professor se deu à revelia do departamento e da direção da faculdade –
o que foi prontamente desmentido pela professora Maria Alice, em documentação
que tive oportunidade de ler (PEREIRA, 2008, p. 5).

Na esteira desse pensamento, o racismo institucional é fruto de um projeto de


hegemonia, cimentado pela massificação de valores prescritivos que se tornam dominantes.
38

Esse jogo político dificulta que as formas culturais africanizadas, que se manifestam em todos
os lugares, se tornem dominantes.
O trabalho de Souza (2011) nos ajuda a refletir sobre o papel estruturante do
racismo na sociedade contemporânea. Para este autor, é sumamente importante que saibamos
os papéis designados para cada categoria que compõe o edifício institucional. Segundo ele,
existe uma arquitetura que conjuga diferentes forças – papéis distintos – que viabiliza que a
ordem sistêmica se refaça e sua força não seja neutralizada, retroalimentando suas ações ao se
alinhar com a normatividade que normaliza o ciclo, que direciona caminhos e descaminhos
para soluções e problemas.

Imaginemos que a expulsão de uma comunidade quilombola de terras ocupadas, por


hipótese, há mais de cem anos possa ser empreendida, conforme ordenamento
jurídico (sistema), por uma organização policial (estrutura). A polícia, que é
composta por pessoas de várias origens étnico-raciais (a prática do racismo
institucional independe de quem opera a estrutura), estaria restaurando a integridade
do sistema. Embora a decisão judicial – que nesse caso hipotético autorizou a
retomada da propriedade por terceiros – esteja em conformidade com os ditames do
veículo do sistema (a estrutura legal), o resultado será racista, um caso de racismo
institucional.
(...)
O questionamento e a reforma das instituições podem nos servir para desestabilizar
o sistema dentro de uma perspectiva não radical e dentro da legalidade. Contudo,
cabe ressaltar que o curto circuito provocado pela mudança institucional não gera
uma incapacidade do sistema de criar instituições racistas capazes de neutralizar
avanços ou impedir o questionamento de velhas estruturas em seu estado antigo ou
vendidas como novas (SOUZA, 2011, p. 83).

A concretude das ações racistas, que ocorrem por dentro das instituições, está
amparada pela possibilidade de tergiversação desse crime, pois se assenta na materialização
de dispositivos legais que transferem o caráter intencional do exercício de poder simbólico
para algo subjetivo e passivo de interpretações. Por esse motivo, e segundo Santos (2015), o
embate jurídico se torna numa verdadeira cruzada, na qual a vítima de racismo é levada a
abandonar o processo, dados os esbulhos conceituais acerca do que é realmente o racismo,
terminando por desviar o foco das atenções para problemas mais amplos, como “falta de
educação”.
Nesse momento o ethos será acionado enquanto maneira de reordenar os olhares
para as ações que estruturam um arquétipo, conduzindo aos pré-julgamentos morais que, em
última instância, poderão se sobrepor à prática do direito, gerando um padrão ressentido para
as interpretações que tendem a desqualificar moralmente aqueles que se encontram abaixo do
paradigma social. Os constrangimentos passam então a fazer parte do conjunto de medidas
que tentam imobilizar o progresso daquele no qual se está projetada toda investida vingativa.
Desse modo,
39

O racismo institucional é revelado através de mecanismos e estratégias presentes nas


instituições públicas, explícitos ou não, que dificultam a presença dos negros nesses
espaços. O acesso é dificultado, não por normas e regras escritas e visíveis, mas por
obstáculos formais presentes nas relações sociais que se reproduzem nos espaços
institucionais e públicos. A ação é sempre violenta, na medida em que atinge a
dignidade humana (SANTOS, 2015, p. 27).

Este corolário de ideias incide diretamente na organização social em que o Brasil


se projeta durante os séculos subsequentes, XX e XXI. Nesse sentido, as instituições estariam
operando um ethos que se reescreve com roupagens diferentes, de acordo com as conjunturas
a que requerem transformações que estejam afinadas com a sofisticação dos meios técnicos e
com a produção de novos conhecimentos, tanto no âmbito das epistemologias pensadas no
interior do exercício intelectual quanto na adesão dos saberes tradicionais para a resolução de
problemas pontuais. Inclusive, é possível afirmar que, de acordo com Gomes (2017), aquilo
que é trazido como bagagem empírica para dentro dos espaços formais de educação, pode
passar pelo estranhamento (o que engendra práticas racistas), pela tentativa de apagamento
e/ou pela incorporação sistemática sem que os créditos sejam dados aos portadores desses
saberes.
As práticas racistas operacionalizadas por dentro das instituições, ao serem
normalizadas e jogarem com as normas legais, criam dificuldades interpretativas que
geralmente não conferem nenhum benefício ou reparação do dano sofrido pela parte lesada.
Por esse motivo, Santos (2015) afirma que a criminalização de determinados atos perpetrados
contra outra pessoa só passa a serem qualificados dentro da esfera criminal através de
decisões políticas.

Uma conduta é qualificada como ilícita quando se opõe a uma norma jurídica ou
indevidamente produz efeitos que a ela se opõem, o que traz o segundo elemento – a
sanção correspondente a norma. Quando a sanção é uma pena, espécie
particularmente grave de sanção, o ilícito é chamado crime. A transformação do
ilícito em crime é uma decisão política, como foi adotada na constituição de 1987-
1988, que transformou a discriminação e preconceito de cor em crime inafiançável e
imprescritível (SANTOS, 2015, p. 55).

A consequência disso para o crime de racismo é que para punir um ato racista
cabe interpretações que geralmente dissimulam os efeitos produzidos ao cidadão que dele é
lesado, pois se concentra duramente aos preceitos normativos, que estão despreocupados com
a carga simbólica e emocional que afetam aos negros diante da materialização das ofensas e
das injustiças que criam condições desiguais de competitividade no mercado de trabalho e de
acesso aos bens culturais de uma sociedade. Deste modo, é a normalização que opera
conjugada com as lacunas propositalmente deixadas no âmbito das leis.
40

De acordo com Santos (2015), ainda que uma das características do racismo
institucional engendre a possibilidade que sinaliza para práticas reprodutivas do racismo, ou
seja, não “consciente” ou não proposital, não podemos descartar o fato de que o Brasil seja
um país racista e que, decorrente dessa assertiva, não constitui uma estratégia inteligente
pulverizar a possibilidade de que um ato racista perpetrado não seja intencional, e sobretudo
esvaziar a gravidade dos seus efeitos, pois o racismo é uma construção que beneficia o racista
e gera desvantagens reais para aquele que o sofre.

Um supervisor ou chefe agride, verbalmente, um subordinado de forma racista: isso


não é simplesmente um incidente, é uma circunstância com passado e, sem dúvida,
também um futuro. Em cada momento da infração os atores têm consciência dos
direitos de cada um, o que torna um eufemismo chamar a discriminação racial de
disfarçada ou cordial, em um país em que a hierarquia social é tão forte que acaba
precedendo os direitos, de onde as ideias racistas convivem com essa hierarquia e a
alimentam quotidianamente (SANTOS, 2015, p. 58).

O que está na base da hierarquia social e racial estabelecida por Santos (2015), e
segundo ele mesmo, é construída a partir de uma disputa histórica em que as narrativas são
fruto de todo embate em torno da seletividade dos signos que constituirão positivamente o
imaginário popular. De acordo com ele, as sociedades conservam uma memória atravessada
por refazeres e construções discursivas que engendram mitos e lendas. Essa estratégia de
“autoridade” torna possível as identificações que forjam um ethos, prescrevendo adesão aos
traços mais positivos que são realçados em relação à cultura de um determinado povo ou a
identidade dos grupos em disputa.
Em contrapartida, há uma contranarrativa que opera na desqualificação daquela
que possa ameaçar o status quo do que se pretende estabelecer enquanto única fonte
discursiva que determina os traços simbólicos a serem engendrados pelos sujeitos que
professam uma determinada cidadania. Segundo Santos (2015), essa disputa narrativa é
viabilizada pela duração da lembrança, ou pela estabilização dos códigos que se tornam
perenes de acordo com as tradições que se conservam ao longo do tempo. Nesse sentido, a
seletividade das tramas históricas, tantos factuais quanto as míticas, dependem do poder
institucional para estabelecer suas principais marcas e se consubstanciar positivamente na
imagem a ser construída em uma sociedade.
Por um lado, é uma estratégia positiva que se possa ressignificar narrativas e
encontrar personagens históricos que recontem fatos a partir de outra angulação, dinamizando
o exercício intelectual em face das seleções dos conteúdos históricos a serem difundidos pelas
instituições, sobretudo a escola e os meios de comunicação. A contrapartida se torna lícita a
partir do momento em que as construções heroicas e os factoides ganham virtualidade prática,
41

muitas vezes ocultando profundas realidades que exigem um olhar muito cuidadoso ao
estabelecer as relações de causa e consequência, sob pena de perpetrar grandes injustiças
apenas porque se julga necessário inverter um quadro complexo de desigualdades, que nem
sempre se constrói em decorrência do processo histórico em questão.
Outra categoria de autoridade manejada por Santos (2015) trata da “autoridade
legal-racional”. Para este autor, existe, de parte das pessoas legitimadas como
hierarquicamente superior, uma predisposição de ordenar de acordo com as normas que
estabelecem o cumprimento de uma determinada função. O autor adverte que as normas não
estão sempre de acordo com essa premissa, já que as atribuições de um cargo, por si só, não
dão conta de desconstruir uma imagem secularmente negativada. Nesse sentido, “[u]m
médico negro, para além de ter que provar sua aptidão, dependerá de sua capacidade de
convencer o cliente de que ele é muito mais capaz, experiente” (SANTOS, 2015, p. 142).
Essa perspectiva constitui uma possibilidade para introduzir uma análise mais
acurada sobre o que tem sido observado no cenário das políticas públicas no Brasil, tendo
como ponto de partida o campo educacional e os programas que podem gerar um
reordenamento epistêmico e de aplicação de recursos financeiros. Para explicitar o que
estamos afirmando até o momento, recorremos ao depoimento de uma das nossas
entrevistadas, Maria Auxiliadora, gestora da SECADI, que traz a sua reflexão acerca da
educação quilombola:

O maior desafio de implementar um programa para educação quilombola é o


racismo institucional. O nosso maior problema é na gestão a nível local. As pessoas
perdem o recurso, mas não diz que tem comunidade quilombola no seu estado. As
pessoas pedem para receber mais alimentação escolar, porque o valor da
alimentação escolar é o dobro do que é favorecido para as outras escolas. Elas
desconhecem a existência das comunidades. Já melhorou, eu trabalho com a
educação escolar quilombola desde 1997, na comunidade dos Calungas, (...) e sinto
que a nossa dificuldade é o racismo institucional, inclusive das universidades que
recebem recursos e elas podem resolver em que programas vão aplicar, e
dificilmente elas aplicam em educação escolar quilombola (MARIA
AUXILIADORA, 2016).

Fica encaminhado, portanto, que a nossa entrevistada percebe que dentro do seu
campo de atuação o racismo institucional também opera. Segundo ela, esse é um grande
entrave para a emergência de novas possibilidades de organização social. O quilombo como
maneira democrática de ocupação territorial engendra, em suas práticas, formas consolidadas
de democracia no que concerne ao uso não predatório dos recursos naturais, uma vez que é
uma lógica não baseada no lucro e na especulação da propriedade privada. Os quilombolas
representam o avesso dos modelos experimentados pelas sociedades ocidentais, e esse pode
42

ser um dos motivos do seu não reconhecimento enquanto forma legítima de organização
social, acarretando no seu espólio.
As dificuldades em conceber uma educação quilombola diferente das
normatividades sistêmicas, é um emaranhado processual de complexas relações que se
enlaçam nas subjetividades dos atores envolvidos nas gestões e nos fazeres educativos. Desse
modo, a professora Maria Auxiliadora deixa a entender que as engrenagens do trabalho em
torno da educação quilombola contam com o despreparo proposital por parte do Estado,
viabilizado pelo racismo institucional, camuflado sob a capa democrática em torno da
existência e da implementação do programa: “Então, posso te afirmar, de cadeira, de uma
pessoa que trabalha há muitos anos com isso, o nosso problema é um problema a nível local, é
um problema de racismo institucional” (Maria Auxiliadora, 2016).
Essa é uma pequena demonstração orgânica de como o racismo institucional pode
operar, viabilizado pelo entendimento de uma pessoa que está dentro da máquina estatal.
Obviamente que este debate não se encerra por aqui, e de diversas maneiras podemos
provocar e estimular reflexões acerca da temática. Entretanto, quisemos preparar o terreno
para a apresentação do que foi a nossa pesquisa na prática, isto é, do que encontramos como
campo fértil para as análises mais próximas sobre o funcionamento sistêmico da instituição
pesquisada e quais os possíveis ganhos que o movimento negro tem realmente conquistado ao
longo dos anos, sobretudo após a Conferência de Durban.
Portanto, na sequência apresentaremos a estrutura da SECADI com ênfase na
gestão do ano de 2016, a fim de aproximar as reflexões acerca do debate sobre racismo
institucional à realidade de um órgão público brasileiro. Essa aproximação está bem
evidenciada a partir das respostas dadas pelos entrevistados, que apesar de não detalhar
conceitualmente o que observam cotidianamente, nos viabilizam exemplos práticos que
enriquecem os argumentos para se discutir o racismo em âmbito institucional.

2.2 Reflexões sobre as políticas públicas

Abrimos uma seção para explicar brevemente o que são as políticas públicas.
Uma política pública é o resultado de uma vontade coletiva, viabilizada por meio de um
governo eleito. Elas surgem a partir de planos de governo, os quais o candidato e a sua equipe
técnica elaboram as prioridades e o orçamento disponível para que sejam alcançadas as metas
que se traçam (SECHI, 2016).
43

A política pública é o termômetro da atuação do Estado, pois é por meio dela que
é possível perceber o interesse político em torno de áreas específicas e como são ofertados os
serviços essenciais para o bem-estar da população (SECCHI, 2016). Por isso que os
movimentos sociais exercem um papel fundamental para o desenvolvimento da política
pública, pois são eles que dão um feedback mais ajustado ao Estado, quando falamos de
interesses coletivos, isto é, são os porta-vozes da sociedade.
Nesse sentido, os movimentos sociais participam de um processo crucial no
âmbito das políticas públicas, que é o da avaliação, pois eles são a ponte entre o governo e a
população, uma vez que o governo também tem o resultado avaliativo segundo eles mesmos,
por meio da verificação do alcance das suas metas. Por isso as mobilizações feitas pelos
movimentos sociais são permanentes e visam cobrar do poder público que as políticas
projetadas para a população sejam materializadas da melhor maneira possível.
De acordo com Secchi (2016), para a formulação de políticas públicas é
necessário que sejam definidos e identificados os “problemas públicos”, uma vez que são eles
que afligem uma sociedade e devem ser combatidos, a fim de gerar bem-estar social para os
cidadãos. É daí que surge a política pública. A oferta por políticas focais será, portanto, o
lenitivo para problemas específicos, mas que também causa prejuízo a toda uma sociedade,
não deixando de ser uma política pública, exatamente porque é uma “diretriz para a resolução
de um problema público” (SECCHI, 2016).

O problema público está para a doença, assim como a política pública está para o
tratamento. Metaforicamente, a doença (problema público) precisa ser
diagnosticada, para então ser dada uma prescrição médica de tratamento (política
pública), que pode ser um remédio, uma dieta, exercícios físicos, cirurgias,
tratamento psicológico, entre outros (instrumentos de política pública) (SECCHI,
2016, p. 5).

Continuando esse raciocínio, e utilizando o trabalho de Secchi (2016), é


necessário ressaltar que as políticas públicas não são definidas apenas pela força da lei, não há
exclusividade do poder público, uma vez que elas estão diluídas em várias concepções e
instrumentos. As leis são formas de políticas, elas agem na garantia da efetivação de um
direito adquirido, mas os movimentos sociais também fazem políticas públicas por meio da
indução para a mudança de comportamento da sociedade. As campanhas e reivindicações dos
movimentos negros, por exemplo, possuem valor de política pública.
Por meio da identificação dos problemas públicos e da oferta de políticas
públicas, teremos as políticas sociais, que são a concentração da política pública na área
social. Parece embaraçoso, mas o que atravessa essa seara é o fato de que as políticas
44

públicas, apesar de promover cidadania, se concentram nas causas e não nas consequências de
determinados problemas que afligem as sociedades.
Desse modo, as políticas públicas ganham contornos de políticas sociais e
transcendem um único campo de conhecimento, devendo se articular com outras searas do
conhecimento.

A política pública em geral e a política social, em particular, são campos


multidisciplinares, mas cada qual adota um foco diferente (...). Por isso, uma teoria
geral da política pública implica a busca por sintetizar teorias construídas no campo
da sociologia, da ciência política e da economia. Políticas públicas repercutem na
economia e na sociedade, daí porque qualquer teoria da política pública precisa
também explicar as inter-relações entre Estado, política, economia e sociedade
(SOUZA, 2017, p. 69).

Se levarmos em consideração que a política pública se movimenta muito mais na


direção de dinamizar o governo, do que estar ajustada ao que os grupos sociais demandam,
podemos então supor que o seu foco consiste na adequação daquilo que está contido nos
planos de governo, ou seja, na plataforma política, com o que é realmente factível, dadas as
condições materiais de realização dessas plataformas. Por outro lado, podemos dizer que a
política social esteja mais ajustada pela cooperação entre os grupos sociais e o estado, no
objetivo de produzir efeitos positivos que atendam a esses intentos.
De acordo com Souza (2017), o campo da política social pode ser definido como
aquele que é responsável pela gestão de políticas que se preocupam em prestar serviços de
cunho social. Esse escopo de atuação engendra a necessidade de verificação dos resultados de
uma política pública, que, por sua vez, deve ser formulada a partir de critérios de
planejamento, que decorrem do estudo sistemático dos processos históricos, políticos e sociais
a fim de entender a legitimidade para a implantação e as condições para a implementação.

O que distingue uma pesquisa em política pública de uma política social?


Existem importantes diferenças, notadamente nos seus focos. Enquanto
estudos em políticas públicas concentram-se no processo e em responder
questões como “por quê” e “como”, os estudos em políticas sociais tomam o
processo apenas como “pano de fundo” e se concentram nas consequências
das políticas, ou seja, o que a política faz ou fez (SOUZA, 2017, p. 71).

Fica evidente, portanto, que as políticas públicas se diferem das políticas sociais
na medida em que a primeira se ocupa em demonstrar o processo e os seus estudos não se
debruçam sobre a sua substância, uma vez que o alvo desses estudos não se detêm ao
conteúdo da política ofertada. Por outro lado, a política social encaminha estudos que
direcionam os olhares acerca do objetivo final de uma política, asseverando, também, sobre os
seus resultados. Com efeito, são os estudos em políticas sociais os mais presentes hoje na
45

academia brasileira em virtude de diversas agendas políticas que chamam a atenção para essa
necessidade.
As políticas públicas de combate ao racismo podem ser objeto de apreciação
daqueles que se debruçam em entender os seus impactos frente à sociedade. Nesse sentido,
podem haver estudiosos que se definem como militantes dos movimentos sociais se ocupando
nos estudos de políticas sociais e verificarando os efeitos das campanhas dos movimentos os
quais se identificam, avaliado leis e outros dispositivos governamentais que são direcionadas
para esse devido fim. A Coordenação de Educação para as Relações Étnico-Raciais da
SECADI é um exemplo dessa dupla função, na medida em que os seus técnicos precisam
entender a envergadura das políticas públicas para a população negra e propor caminhos para
atingir a eficácia projetada.

São duas questões, primeiro uma questão de concepção de política pública, políticas
universais X políticas específicas. E segundo, é a questão do próprio racismo
institucional, com relação a uma visão de política pública universalista. Então, a
política de EJA é considerada universal, e como o atendimento à população de EJA
atende a todo mundo, logo, atende a população negra. (...). Quando a gente vai a
campo, trabalhar direto com a população, [vemos] que essa relação não é tão lógica
assim, então, a coisa não é tão sequencial. É a mesma coisa, por exemplo, com
relação à educação do Campo, (...) quando foram criar o programa PRONACAMP,
que é o que assegura toda a educação do Campo, (...) então a gente não precisaria
saber, por exemplo, se nas escolas do Campo, que não necessariamente são
quilombolas, quantas pessoas negras e quantas pessoas brancas estão e se a gente
tem essas pessoas, qual o grau de desigualdade que a gente tem entre esses dois
grupos. Então, é difícil a gente conseguir convencer as pessoas de que o atendimento
universal não é tão universal assim, e nessa universalidade, as nossas questões
acabam se diluindo. Isso é o que a gente percebe bastante no dia a dia da
coordenação, e que, às vezes, as nossas demandas ficam a reboque (BÁRBARA
SULA).

Essa declaração sintetiza muito bem o que estamos tratando ao longo de nossas
análises, ela possibilita que tenhamos um olhar bastante atento em relação às possibilidades
apresentadas pelas políticas públicas universalistas. Fica nítido, portanto, que este caminho é
o terreno fértil para o que nossa entrevistada chamou a atenção, o racismo institucional. Se a
SECADI é uma secretaria especial, que desenvolve ações para dirimir as iniquidades no
sistema educacional brasileiro, o pressuposto básico é o de que as políticas não focais não dão
conta de abarcar a todos no seu universal, retornando a necessidade de organizações
específicas que operam micropolíticas dentro do grande sistema político.
Assim, o sistema educacional brasileiro prevê a obrigatoriedade de promover o
ensino básico para todos os cidadãos, e a SECADI se concentra no melhoramento desse
serviço, possibilitando que as populações de maior defasagem de escolarização sejam melhor
atendidas. Por meio de dados estatísticos e avaliações institucionais é possível saber quais são
46

os focos a serem dados. Entretanto, existe a oferta de ensino superior pelo Estado brasileiro, e
a SECADI também atua nessa seara, pois promove formações para que os professores
egressos das universidades públicas se atualizem em relação aos conteúdos indispensáveis
para lidar com outras esferas de trabalho, fora do convencional.
Por isso, as políticas públicas que visam a mobilidade de grupos historicamente
marginalizados não deveriam se concentrar na base, uma vez que as demandas não se
constituem de maneira linear, pois há dificuldade de acesso e permanência em ambas as
etapas de realização escolar, e em cada uma delas estará presente, de maneira diversa, a
disciplinaridade atinente ao modelo de sociedade que se quer formar. O ensino superior,
portanto, deveria constituir um escopo importante, uma vez que é um lugar de disputas e
tensões, espaço destinado à construção do conhecimento, com consideráveis investimentos de
verba pública para pesquisa e de onde saem profissionais que serão responsáveis por
alimentar o imaginário social a partir das ferramentas teóricas nas quais foram forjados dentro
da academia.
Não se pode deixar de mencionar que a academia também é o local privilegiado
para os estudos acerca das políticas públicas, por isso esses debates se acaloram, uma vez que
é diante de um cenário de escassez de recursos que as disputas por legitimidade para a gestão
do erário destinados à sua implantação se aguçam. Por isso, as políticas públicas

Dependem de muitos fatores externos e internos. No entanto, o desenho das políticas


públicas e as regras que regem suas decisões, elaborações e implementação, assim
como seus processos, também influenciam os resultados dos conflitos inerentes às
decisões sobre política pública. Esses fatores contribuíram, assim, para que a área de
políticas públicas passasse a receber grande atenção, tanto em estudos acadêmicos
como em trabalhos técnicos (SOUZA, 2017, p. 66).

Evidencia-se que há uma disputa de poder em torno das políticas públicas, já que
são frutos de acordos, tensões e negociações. Cabe ressaltar que o campo de estudo para as
políticas públicas surge nos Estados Unidos da América, visando a compreensão e a regulação
das ações governamentais, enquanto que na Europa o seu estudo se dava em função de refletir
sobre o papel do Estado. As considerações que campeiam essas análises é a de que “em
democracias estáveis” (Souza, 2007, p. 67), essas políticas são formuladas e pensadas
cientificamente e pesquisáveis por qualquer pessoal que se incline para esta função.
Decorre daí a ideia de que as definições e análises acerca de políticas públicas se
assentam em reflexões conjunturais, ainda que o seu conceito seja perene. Aliás, as definições
sobre políticas públicas concorrem para conceituações clássicas e contemporâneas,
preponderando aquela proposta por Harold Laswell (1902-1978) em 1936. Segundo Souza
47

(2017, p. 68), a teoria de Laswell se impôs ao fazer três questões fundamentais para balizar os
estudos nessa seara: “Quem ganha o quê, por quê e que diferença faz”.
Mas, de acordo com essa autora, existe uma visão mais usual, ou tornada clássica,
que é cunhada por Theodore Lowi (1931-2017), na qual afirma que a “Política pública é uma
regra formulada por alguma autoridade governamental que expressa uma intenção de
influenciar, alterar, regular, o comportamento individual ou coletivo através do uso de sanções
positivas ou negativas” (SOUZA, 2017, p. 68).
Portanto, este é o campo das políticas públicas, e isto quer dizer que elas apontam
para diversos usos, sentidos e direções, que podem ser articulados pelos movimentos sociais,
mas que o seu entendimento habitual, e final, se concentra no poder de decisão do gestor
público em relação ao que se destina em termos de ofertas de soluções para os “problemas
gerais” de uma sociedade. Por esse motivo, os pleitos dos movimentos sociais podem ser
enfraquecidos dentro da máquina pública e a oferta pelos serviços essenciais dependerão de
uma série de condições determinadas pela alocação de verbas. Cabe aos movimentos estarem
sempre acompanhando, avaliando e propondo diretrizes para equilibrar essas políticas e
melhor atender a população que delas necessitam.
48

3 A SECADI

Insta aos Estados estabelecerem e implementarem, sem demora, políticas e planos de


ação nacionais para combater o racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata,
incluindo as manifestações baseadas em gênero (Declaração de Durban e Plano de Ação, p.58).

Importante situar que antes de adentrar nas explicações e análises acerca da


SECADI, se faz necessário algumas reflexões acerca do que sejam as políticas públicas e qual
o painel histórico da década anterior ao surgimento da secretaria, ou seja, os anos de 1980 e
1990. Julgamos importante que se faça esse assentamento, levando em consideração o
processo que perfaz o caminho do movimento negro, a conjuntura política em questão e quais
os pilares de sustentação conceituais estão edificados os modelos de políticas públicas que
conhecemos.
As décadas de 1980 e 1990 sinalizaram as transformações que se desenhavam ao
redor do mundo, quando alternativas vinham sendo pensadas para minimizar as possibilidades
de conflitos armados em escala mundial, tendo em vista que os danos causados em
consequência de guerras e regimes autoritários tinham vítimas preferenciais, ou seja, se
concentravam em povos historicamente tornados vulneráveis. A necessidade de intensificar
investidas que contivessem o avanço desses eventos foram gradativamente se tonificando, e
tendo como medida basilar, o campo educativo.
O Brasil da década de 1980 ainda estava ancorado na Lei de Diretrizes e Bases
5.692, de 11 de agosto de 1971. Nesse sentido, os esforços das militâncias que culminavam
para os movimentos das “Diretas Já” confluíam para o mesmo fim: desfazer todo o “ranço”
que ainda restasse do regime militar. É nessa direção que os grupos afros intensificavam suas
atuações, sobretudo nas cidades de Salvador e Rio de Janeiro, quando ofertavam, além de
espetáculos de valorização da arte negra – sobretudo musical e coreográfica –, escolarização
para negros, sob o viés de um olhar ampliado e abrangente sobre a noção de cultura, incluindo
a matriz africana nesse bojo, tendo em vista seu quase apagamento e/ou folclorização dentro
dos conteúdos escolares do sistema regular de ensino (PEREIRA, 2005).
Os esforços foram contínuos e ininterruptos, e por vezes se articulavam com os
setores partidários que disputavam a legitimidade de suas pautas, buscando eleger
parlamentares e tomar a dianteira de todo o processo político, o que daria respaldo para
efetivar mudanças na educação, instrumento primordial de transformação social segundo as
pautas dos opositores ao regime. Quando não estavam articulados com essas perspectivas, os
movimentos negros operavam transformações de modo autônomo, sobretudo em
comunidades tradicionais (como os remanescentes de quilombolas) ou em movimentos de
49

periferia, onde a criatividade estava atrelada às necessidades mais prementes da vida cotidiana
(PEREIRA, 2005).
Certamente, esses sabres/conhecimentos estiveram desarticulados do sentido
formal de educação por muito tempo, e estava sendo gestada uma nova direção para a
educação nacional, mais abrangente e de menor centralidade em conteúdos construídos
alhures. Contudo, a resistência era grande, e somente no final da década de 1980 que a
constituição pôde ser transformada, ou seja, apenas após a queda do regime militar que se foi
possível empreender debates mais abertos e, enfim, promulgar um novo conjunto de leis, e
dessa vez com dimensões que abarcavam as diferenças como parte constituinte da nação
brasileira. Isso teve impactos a médio e longo prazo para novos contornos na educação
(GOMES, 2018).
Com todos os problemas que atravessaram este caminho, uma coisa foi dita: “O
Brasil de passagem dos 1980 para os 1990 estava mais atento às questões ligadas aos direitos
humanos e à diversidade”. Silva e Carmo (2017) afirmam que o centenário da abolição, o ano
de 1988, foi um ano que marcou positivamente esse período, e a partir dessa ocorrência teria
sido dada uma alavanca para a ampliação do debate racial em esfera pública, já que as
recomendações e proibições do regime militar haviam passado, e que grande parte da
intelectualidade brasileira estava se adequando aos novos operativos desencadeados pela
constituição federal de 1988.
Os anos de 1990 foram marcados por diversas políticas neoliberais, as quais o país
esteve submetido à diversas investidas de órgãos internacionais que agiram diretamente em
âmbito educacional. Esta década esteve repleta de desafios para a gestão educacional,
engendrando a criação de novas formas de financiamento, metas e estimativas para as
políticas públicas educacionais, uma vez que outras demandas sociais emergiam após a
redemocratização do país (DOURADO, 2007).
De acordo com Dourado (2007), a década de 1990 foi um período complexo da a
educação brasileira, pois as políticas neoliberais adotadas pelo governo federal engendrou
uma corrida desenfreada por metas que traziam a necessidade de buscar fontes
complementares de recursos a serem investidos em educação, propiciando desarranjos
pedagógicos em nome de obrigações contratuais. Contudo, o autor enfatiza a importância da
Lei de diretrizes e Bases de 1996 (lei 9394/960, pois teria sido a lei com a maior abrangência
de direitos e deveres em âmbito educacional que o Brasil já experimentaria até o período.
Foi dentro deste contexto que o então presidente Fernando Henrique Cardoso abre
espaço para que o debate do racismo se fizesse mais presente institucionalmente no estado
50

brasileiro. É importante lembrar que durante este governo aconteceram as conferências


preparatórias para a participação do Brasil na Conferência de Durban, havendo ampla
mobilização dos movimentos negros e uma interlocução entre estes e instituições
internacionais, tal como a Ford Foundation, uma vez que se assumiram como financiadoras de
bolsas de estudos, congressos e cursos de formação para os estudos Étnico-Raciais.
Logo no início dos anos 2000 o Brasil experimentou, no âmbito da educação, a
primeira experiência das ações afirmativas voltadas para o público negro, era as chamadas
cotas raciais, ou a reserva de vagas, já exposto aqui nesse trabalho. O sistema de reserva de
vagas foi primeiramente implantado no estado do Rio de Janeiro por meio do ingresso do
vestibular estadual, contando com vagas em todos os cursos da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro – UERJ e a Universidade Estadual do Norte Fluminense – UENF. Seu
primeiro ano de funcionamento foi o de 2003, uma vez que o governo estadual, com o então
governador Anthony Garotinho, garantiu a aprovação da Lei Nº 3.708 somente em 09 de
novembro de 2001, cabendo, portanto, sua implementação a partir do vestibular do ano
seguinte, 2002, assegurando o ingresso dos aprovados por esse sistema para o ano de 2003.
É sumamente necessário dizer que as ações afirmativas não surgem como
instrumentos de dissimulação que desloca o centro gravitacional da vida social universal para
os guetos “minoritários”. Trata-se exatamente do contrário, em dirimir alguns traumas
históricos sofridos por aqueles que foram subalternizados por preconceitos, discriminações e
racismo. É uma medida que marca um ponto de inflexão para que a universalidade seja de
fato plural, o que quer dizer que elas funcionariam como uma ponte para que os grupos que
estiveram às margens do acesso ao produto dos esforços coletivos nos meios produtivos,
possam ser parte ativa da construção da sociabilidade que agrega a todos, tendo justa parcela
de contribuição e bonificação.

As ações afirmativas visam a promover maior diversidade social de grupos sub-


representados em certos espaços sociais. Identificando três inspirações na defesa das
ações afirmativas – uma forma de justiça reparatória ou compensatória, de justiça
distributiva e de ação preventiva. (...). As ações afirmativas teriam, assim, como
objetivo, tanto a igualdade de oportunidades como o combate às desigualdades não
justificáveis, garantindo a diversidade e o pluralismo nas diferentes esferas da vida
social, denunciando e desnaturalizando a posição subordinada de determinados
grupos sociais (JACCOUD, 2008, p. 141).

Esta definição parece acertada se analisarmos sob o ponto de vista de que as ações
afirmativas criam as condições para que as oportunidades sejam dadas de maneira equânime,
salvaguardando o direito de grupos historicamente marginalizados em acessar os lugares de
usufruto público, nesse caso os espaços de produção de conhecimento. Também sinaliza para
51

o fato de que a circulação de ideias e saberes experimentem novas potencialidades, elevando o


campo de possibilidades criativas, já que a circulação de um público, que antes era diminuto
nas universidades, passa a ser maior e mais participativo, demandando novas estratégias de
organização sistêmica dessas instituições.
De acordo com Jaccoud (2008), as políticas universalistas têm, historicamente,
falhado no atendimento a que se propõe, ou seja, sua abrangência se torna limitada na medida
em que as complexidades das diferenças são equacionadas em uma única fórmula. Desse
modo, a produção de acentuadas desigualdades, em parte, se deve ao descompasso entre a real
necessidade de parte desse público e o atendimento ofertado pelo poder público, no que
concerne os serviços básicos que estão na base do provimento à cidadania.
O interessante é que desde o início dos debates sobre as ações afirmativas, se
impõe a urgência de avaliações educacionais de caráter institucional e pedagógico. Aliás, com
o alargamento das políticas públicas educacionais desde os anos 1990, que potencializou a
entrada de capital estrangeiro para o desenvolvimento de programas governamentais, os
processos de avaliações foram sendo adaptados, comportando modelos e instrumentos que
objetivavam dimensionar o tipo de educação que estava sendo ofertada para o brasileiro. Cabe
observar também que essas avaliações não estariam apenas em âmbito estritamente nacional,
mas em comparativos com os paradigmas qualitativos internacionais, por meio de testes e
marcadores universalmente definidos.
De acordo com Jaccoud (2008), as ações afirmativas estiveram, desde a década de
1980, desarticuladas com planos mais efetivos de implementação, o que quer dizer que pouco
se instrumentalizou em termos de metas, avaliações, escala de progressão e outros operativos
de ordens avaliativas. Para Brooke e Cunha (2011), as avaliações realizadas pelos sistemas
especializados nem sempre impactam para a melhoria de uma política pública educacional, e
isso se dá pelo fato de que muitas Secretarias de Educação (SEs) não utilizarem dessas
pesquisas, tanto por desconhecimento dos dados, quanto pela dificuldade de manejo com os
mesmos.
Segundo Brooke e Cunha (2011), os instrumentos de avaliação educacional no
Brasil são bastante atrasados, carecem de ser modernizados e não causam continuidade entre
secretarias nas esferas públicas municipais, estaduais e federal. Os autores indicam que muitas
pesquisas avaliativas podem indicar falsos caminhos, uma vez que não se põe à prova todos
os estudantes em todas as áreas do conhecimento, gerando extrações de parcela do que se
apresenta no interior de cada unidade escolar, que são apresentadas como sinais gerais das
medidas a serem tomadas no âmbito das políticas educacionais.
52

Muitas vezes, essas novas políticas envolvem a identificação e classificação das


escolas com base nos resultados que envolvem a identificação e classificação das
escolas com base nos resultados de Português e Matemática dos alunos do 5º ao 9º
anos do Ensino Fundamental e do 3º ano do Ensino Médio, que são as informações
disponibilizadas pela maioria dos sistemas estaduais de avaliação que seguem o
padrão do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Mesmo não sendo
propriamente uma avaliação da escola, por não testar todos os alunos em todas as
disciplinas e anos e muito menos os campos não acadêmicos do currículo, as
Secretarias presumem que os resultados das duas disciplinas básicas nos anos finais
de cada ciclo de estudos possam oferecer uma amostra das atividades da escola que
sirva de indicador do desempenho geral da instituição (BROOKE e CUNHA, 2011,
p. 18).

Essa ocorrência sinaliza para uma série de implicações, que perpassa entre os
condicionantes para as políticas públicas e para a hierarquização dos conhecimentos
indispensáveis para os estudantes. Evidente que as disciplinas de Português e Matemática são
importantíssimas para os indivíduos em fase de escolarização do ensino básico, mas esse fato
não pode anular a urgência de se ofertar outros componentes curriculares em igualdade
qualitativa. Além disso, os conteúdos não acadêmicos que constam como oculto em uma das
três dimensões do currículo escolar – Formal, Real e Oculto –, também são elementos
preponderantes no processo de ensino e aprendizagem, posto que são constituintes da
bagagem dos saberes práticos e reflexivos que os estudantes já possuem e exercitam fora do
ambiente escolar. Dito em outras palavras, o habitus se conjuga com os conhecimentos
formais e desloca o que a formalidade curricular projeta como objetivo, gerando uma
ulterioridade que escapa a previsibilidade.
Por esse motivo, Gomes (2017) e Sodré (2012) afirmam que o movimento negro é
uma espécie de “Pedagogo Coletivo”, pois geram necessidades para uma diferente práxis
educativa. Mais além, instam aos dispositivos sociais se reorganizar em face de
conhecimentos antes ignorados, criados e manejados por pessoas historicamente alijadas da
construção epistemológica validada pelas instituições que tutelam o ethos acadêmico. De
acordo com Gomes (2017), o simples fato de ressignificações políticas e indagações aos
padrões estéticos e comportamentais para a afirmação de uma identidade negra, são
suficientes para dizer que haja epistemologias genuinamente negras.
Nesse sentido, se tomarmos como ponto de partida os estudos acerca do racismo,
a afirmação da identidade negra, esclarecida sobre os reais desafios da comunidade negra,
talvez tornasse mais potente e visionária as investidas que pese no pleito por intervenções de
políticas públicas para a população negra. Segundo o sociólogo Salles Augusto dos Santos
(2008), existe uma sensível diferença entre o “intelectual negro” e o “negro intelectual”. Para
ele, o intelectual negro seria aquele que domina as competências atinentes ao seu campo de
53

estudo, com todos os atributos técnicos que campeiam o exercício intelectual, sendo capaz de
propor soluções pontuais para os problemas por ele analisados. Entretanto, segundo o autor, o
saber técnico e o brilhantismo acadêmico seriam insuficientes para conduzir a humanidade
para reais dimensões humanitárias.
De acordo Salles Augusto dos Santos (2008), o negro intelectual seria aquele que
melhor conjuga suas habilidades com questões libertárias capazes de conduzir a humanidade
para o caminho da emancipação de estigmas historicamente construídos. Segundo ele, o negro
que se torna intelectual teria, antes de tudo, um sólido sentimento de pertença, que se amplia
na medida em que estuda questões cruciais para o entendimento da condição de sua
comunidade perante a sociedade. Dadas essas descobertas, este negro passaria a dominar os
códigos comuns a todos os seres humanos e reorganizá-los em prol de sua comunidade, não
para se tornar uma liderança inócua, mas sim como agregador de forças para que sejam
criadas oportunidades de mobilidade em um sólido projeto de equanimidade social.
Esse debate marca uma característica peculiar dos anos 2000, sobretudo para a
segunda metade da primeira década desse novo milênio. Gomes (2017) identifica três
deslocamentos concernentes ao que podemos chamar de “pedagogia negra”, presentes na
linha histórica do movimento negro e tonificados na atualidade. São eles: 1 – Saberes
Identitários; 2 – Saberes Políticos; e 3 – Saberes Estéticos Corpóreos. Segundo ela, em cada
um desses campos estão subscritos os conhecimentos produzidos no interior dos movimentos
negros, mas é possível identificar que também estão presentes nas movimentações de pessoas
negras afetadas pelos discursos desses movimentos, o que não quer dizer que sejam pessoas
organizadas dentro da esquemática coletiva.
Para essa autora, as redes sociais se tornaram cada vez mais um espaço de
convivência (virtual) entre jovens negros que trocam informações entre si, disponibilizando
materiais de consulta, opinando sobre as questões políticas atuais e históricas e debatendo, em
suma, sobre as questões atinentes ao racismo. Com isso, a identidade negra seria fruto de um
deslocamento histórico, no que diz respeito ao lugar de produção discursiva. Isso implica
afirmar que historicamente jovens negros e militantes (mesmo que não coletivizados)
estiveram às margens do debate acerca de suas próprias identidades, mas que através dos
avanços tecnológicos reconfiguraram o debate público a partir do “lugar de fala”, ou seja, do
ponto de partida que orienta os interesses e o histórico pessoal do orador.
Quando Gomes (2017) apresenta a ideia de saberes políticos, fica evidente que se
trata de respostas necessárias aos poderes instituídos, no que diz respeito aos impactos
sentidos pelos negros em relação às políticas públicas. O debate orbita entre o campo do
54

direito e o dos espaços de produção de conhecimento. De acordo com a autora, “a Lei


12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial), a Lei 12.711/2012 (Lei de Cotas Sociorraciais
nas Instituições Federais de Ensino Superior) e a Lei 12.990/2014 (Cotas nos Concursos
Públicos Federais) ” (GOMES, 2017 p.71), são provas cabais de que o debate político
organizado pelos movimentos negros encontrou permeabilidade dentro da esfera política dos
anos 2000.
Os saberes políticos, propostos por Gomes (2017), se fazem das necessidades
complementares entre si, ou seja, os debates sobre as leis e a defesa da “raça” precisavam de
rígidos elementos discursivos trabalhados com alto nível de sustentação teórica, que pudesse
tonificar e justificar os dados quantitativos que sinalizavam as diferenças entre brancos e
negros no Brasil. Desse modo, surge no ano de 2000 a Associação Brasileira de Pesquisadores
Negros (ABPN), com a missão de criar redes de contato entre os pesquisadores da temática
racial e promover eventos bianuais para apresentação, publicação e debates sobre o que se
produz em âmbito acadêmico sobre essa temática. Do Congresso Brasileiro de Pesquisadores
Negros (COPENE) sairiam, portanto, propostas bem elaboradas que serviriam como plano de
ação para o combate ao racismo.
O último deslocamento da “pedagogia negra” colocada por Gomes (2017) se
refere aos Saberes Estéticos Corpóreos, e estão ligados a uma maneira de afirmação de
lugares pela presença da estética e de comportamentos marcados pela etnicidade negra. Para
ela, as ações afirmativas carregam elementos educativos para lidar com os corpos negros, e
essa (re)educação transforma negros e brancos para o autoconhecimento e para o respeito em
relação ao outro. A autora conclui que os jovens negros, sobretudo as mulheres, estão mais
cuidadosos em relação à autoimagem, e com isso se tornam mais altivos e curiosos acerca das
origens de adornos que remetem ao continente africano, gerando (re)construções em torno dos
usos estéticos e a sua respectiva importância política para a afirmação identitária.
Com todos estes avanços, as duas primeiras décadas dos anos 2000 vão
experimentando novos agenciamentos políticos, que abrem um canal de diálogo para a
abertura do florescimento da diversidade, isto é, para as diferenças raciais, de orientação
sexual, de inclusão de jovens e adultos nos processos formais de educação, de inclusão de
portadores de necessidades especiais, de luta contra o machismo, de propostas
antimanicomias, enfim, dentre outros fluxos que venham a equalizar da melhor maneira
possível todos aqueles que ficam às margens do produto social.
Os anos 2000 sinalizam caminhos importantes para a população negra, que
atravessou o século XX resistindo bravamente há muitas políticas desfavoráveis para os
55

pobres, de maneira geral, se intensificando para os negros na medida em que o racismo


persiste na base das relações sociais e criam traumas e fraturas em negros de todas as classes
sociais. A culminância das lutas dos movimentos negros em busca de melhoria da qualidade
de vida obteve saltos qualitativos com a conquista de alguns direitos essenciais, uma vez que
a garantia dos mesmos se dão como a única maneira de introduzir o respeito aos que
historicamente têm sido alvo de injúrias, estereotipias e todo o tipo de infortúnio que conduz a
uma rígida hierarquia racial.
A educação, esteio do povo, sofreu diversas transformações ao longo de três
séculos, manejada de acordo com os vieses ideológicos e as finalidades políticas daqueles que
estiveram à frente da gestão do Brasil. Maiores dependentes da educação pública, os negros,
depositam grande esperança de que a oferta desse direito constitucional seja de qualidade e
viabilize caminhos que fortaleçam o sentimento de independência e cidadania, podendo gozar
do mínimo de dignidade e de um razoável repertório que os permitam ampliar suas redes de
conhecimento e, enfim, ter o poder de tomar decisões autônomas. Para a população negra, a
educação formal é um instrumento indispensável para que se possa melhorar de vida.
Portanto, tentamos organizar algumas características de cada período histórico
demonstrando que os movimentos negros sempre estiveram perseguindo o caminho da
autonomia para a população negra. Essa luta histórica foi o que de melhor se pôde fazer para
preparar a população negra em busca de novos rumos, na esperança de transpor uma condição
majoritariamente de pobreza e subjugo estético, cultural e moral, para uma nova dimensão,
atravessada por uma pedagogia antirracista, que sinaliza para a necessidade de negros e
brancos reorganizar os seus olhares em torno do racismo e dos seus arrebatadores efeitos no
plano individual e coletivo.

3.1 Apresentação da SECADI

Insta aos Estados a promoverem a plena e exata inclusão da história e da contribuição dos
africanos e afrodescendentes no currículo educacional (Declaração de Durban, p.44).

A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão –


SECADI foi uma opção escolhida como escopo de pesquisa, por ter surgido temporalmente
após a Conferência de Durban e congregar com os princípios básicos ensejados naquela
conferência. Nesse sentido, a preocupação de conhecer a estrutura de funcionamento da
SECADI é importante para que possamos ter uma melhor dimensão das possibilidades de
56

trabalhar o que prescreve o documento final da conferência em âmbito nacional e os


encaminhamentos propostos pelos militantes negros lá presentes.
Trata-se de uma Secretaria inaugurada no ano de 2004 e que agrega várias ofertas
de modalidades de educação, entendendo que são necessários esforços coletivos e
segmentados para que haja promoção de uma educação plural e que atenda a diversidade de
perspectivas e organizações sociais que fazem parte do histórico de formação da sociedade
brasileira. No período em que realizamos a nossa pesquisa, a SECADI possuía uma estrutura
fixa, mas que poderia sofrer alterações de acordo com a dinâmica de governo.

3.2 Estrutura da SECADI no ano de 2016

Por essa Secretaria passaram diversas gestões que se dividiam em diretorias e


coordenadorias temáticas. São elas12:
1 - Diretoria de Políticas de Educação do Campo, Indígena e para as Relações Étnico-Raciais
Diretora: Rita Gomes do Nascimento
Diretoria de Políticas de
Educação do Campo,
Indígena e para as Relações
Étnico-Raciais

Coordenação Geral de Coordenação Geral de Coordenação de Políticas


Educação do Campo Educação para as de Alfabetização Escolar
Relações Étnico-Raciais Indígena.

2 - Diretoria de Políticas de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos

Diretoria de Políticas de
Alfabetização e Educação de
Jovens e Adultos

Coordenação Geral de Coordenação Geral de


Alfabetização Educação de Jovens e
Adultos
57

3 - Diretoria de Políticas de Educação em Direitos Humanos e Cidadania

Diretoria de Educação em
Direitos Humanos e
Cidadania

Coordenação Geral de Coordenação Geral de Coordenação Geral de


Acompanhamento de Direitos Humanos Educação Ambiental
Inclusão Escolar

4 - Diretoria de Políticas de Educação Especial

Diretoria de Políticas de
Educação Especial

Coordenação Geral da Coordenação Geral da Coordenação Geral de


Política Pedagógica da Política de Acessibilidade Articulação da Política de
Educação Especial na Escola Inclusão nos Sistemas de
Ensino

5 - Diretoria de Políticas de Educação para a Juventude

Diretoria de Políticas de
Educação para a Juventude

Coordenação Geral de Coordenação Geral de


Políticas Pedagógicas Acompanhamento e
para a Juventude Avaliação das Políticas de
Inclusão Educacional
para a Juventude

Essas diretorias, subdividas em coordenações, são responsáveis por administrar


políticas públicas e ações pensadas no interior da Secretaria, as demandas trazidas a partir dos
movimentos sociais e os indicadores sociais sinalizados pelos órgãos responsáveis por
pesquisas de caráter socioeconômico. As políticas ministradas pela SECADI também formam
gestores e educadores para lidar com os públicos historicamente marginalizados e no combate
às desigualdades educacionais. Importantíssimo lembrar que existem sistemas integrados para
viabilizar recursos financeiros para a realização técnica de infraestrutura, confecção de
materiais didáticos e sistemas informatizados, para que as ações sejam realizadas com maior
margem de êxito.
58

É prioridade da SECADI o fortalecimento das redes entre as políticas


educacionais voltadas para os grupos marginalizados, depositando nesse atendimento
específico aos públicos não dominantes, a redução de desigualdades educacionais. Por esse
motivo, essa Secretaria se articula com as resoluções do Conselho Nacional de Educação –
CNE, intervindo diretamente sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais – DCN`s nos eixos
que contemplem a diversidade.
Após pesquisa realizada através da página online da SECADI, se pode
conjecturar, portanto, que essa Secretaria acompanha uma tendência de expansão do sistema
educativo, e tem como princípio direcionador criar capilaridades que possibilitem a inserção
de grupos que sofrem defasagem educacional no processo de escolarização formal.
Ressaltamos que a SECADI não constitui uma secretaria permanente, isto é, algo fixado como
política de Estado, podendo ser extinta de acordo com os arranjos políticos e seus
desdobramentos. Inclusive este foi o motivo que nos levou a campo desde dezembro do ano
de 2016.
De acordo com esse painel, reafirmamos que concentramos os nossos esforços na
coordenadoria que responde pelas políticas públicas educacionais direcionadas para a
população negra, uma vez que essa pesquisa surge do desejo de investigar o trajeto percorrido
para que alguns pleitos exigidos há décadas pelos movimentos sociais negros fossem postos
em prática. Não podemos deixar de mencionar que outras políticas públicas, de caráter
universal, também tendem a ter como maior beneficiário o público negro. Por esse motivo,
decidimos investigar a coordenadoria que se debruça em políticas educacionais específicas
para a população negra.
Registra-se que nossa preocupação não é investigar números, mas entender como
funciona as políticas gestadas e/ou criadas por essa Secretaria. Por esse motivo, nossa
primeira ida a Brasília – no ano de 2016 – teve como escopo entrevistar pessoas alocadas na
gestão da SECADI naquele momento, tanto de cargos de gestão ou de cargo técnico, uma vez
que entendemos uma equipe de trabalho a partir dos parâmetros de conjugação de todos os
envolvidos no processo construtivo do objetivo que se visa alcançar.
No período em que estivemos realizando as entrevistas, também realizamos
consultas ao site da Secretaria13, onde estavam dispostos vários documentos, informes e
orientações acerca da oferta de cursos, recursos, editais, premiações e uma gama de notícias e
esclarecimentos sobre os serviços prestados pela SECADI. Essas informações nos

13
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/secadi. Acessado desde o mês de outubro do ano
de 2016 a novembro de 2020.
59

possibilitaram a primeira compreensão acerca do objeto a ser estudado e nos conduziu a


campo.
Cabe ressaltar que fizemos a escolha pela SECADI motivados pelo painel
apresentado, já que na Conferência de Durban fora redigido o último documento internacional
no período anterior a sua criação. Concentramo-nos em analisar apenas a Coordenação de
Educação para as Relações Étnico-Raciais, que é o escopo principal da Conferência e no qual
o nosso debate teórico está ancorado.
Apesar de termos saído de Brasília, Distrito Federal, com um volume satisfatório
de informações sobre a SECADI, reconhecemos que uma pesquisa avaliativa necessitaria de
mais tempo e financiamento, já que são muitos documentos e propostas, além de haver um
grande número de técnicos alocados nas coordenadorias que se subdividem em quatro
diretorias. Seria um recorte de trabalho muito maior do que o proposto em nosso doutorado,
por isso assentamos os nossos esforços no que mais nos interessa, isto é, investigar se a
criação da SECADI está intimamente ligada aos movimentos negros egressos de Durban, e
como a Secretaria tem funcionado até então.
Diante disso, fomos a campo a fim de compreender a visão oficial / institucional,
a respeito do funcionamento das políticas ofertadas pela SECADI, buscando responder
algumas perguntas: o que tem sido possível fazer por dentro das engrenagens sistêmicas do
poder público? É possível criar mobilidade em larga escala para populações que sobrevivem
sob o fluxo de um esmagamento histórico de mais de setenta por cento da história deste país?
Gestores de políticas públicas universalistas apresentam resistência em lidar com as demandas
dos movimentos sociais em criar políticas focais? Por quê? E Durban, há reverberações dessa
Conferência para a criação dessa Secretaria? Como identificá-las?
Nesse sentido, partimos para o entendimento sobre a SECADI à luz de seus
membros, por meio de entrevistas e possibilidades de compreensões e críticas ancoradas em
referencial teórico que dialoga com o campo de estudos das relações étnico-raciais no Brasil.
Dito isto, passamos, então, para uma breve apresentação da SECADI, segundo o olhar de uma
pessoa da primeira gestão.

3.3 A SECADI apresentada por um membro da antiga gestão

Criada no ano de 2004, a SECADI possuía o nome de SECAD, sem o I de


inclusão, que fora adotado no ano de 2011 a fim de contemplar as questões relativas à
inclusão de pessoas portadoras de necessidades especiais nos sistemas de ensino regular.
60

Segundo nossa primeira entrevistada, doutora Denise Botelho14, embora a inclusão da letra I
(sobre a perspectiva do conceito de inclusão) somente fosse incorporada, de modo oficial,
posteriormente à criação da Secretaria, seria correto afirmar que a SECADI sempre
contemplou uma gama diversa de pautas, já que o seu atendimento tinha por objetivo
salvaguardar o direito pleno à educação de diferentes grupos marginalizados. Ela afirma que:

Em relação ao surgimento sem a temática inclusão, eu não avalio que a SECADI


tenha surgido sem a temática inclusão, ao contrário, ela não tinha no nome, mas
todas as demandas que estavam desde o processo de alfabetização aos segmentos
mais estruturados, oriundos dos movimentos sociais organizados, havia já a
perspectiva de inclusão. Estar no nome foi só um complemento, mas a inclusão era
desde sempre a perspectiva (DENISE BOTELHO) 15.

Desse modo, se tornou indispensável iniciar nosso percurso a partir de uma


entrevista com alguém que pudesse nos situar quanto ao histórico de criação da SECADI, uma
vez que existe certa dificuldade em encontrar algum documento disponível em que se veicula
o histórico detalhado de como a Secretaria fora iniciada. Embora nesse momento estejamos
trazendo a visão de somente uma das pessoas envolvidas, acreditamos na validade dessa breve
assentada, uma vez que nos possibilita a compreensão de fatores importantes que aventam
para a possibilidade de algumas análises a que nos propomos fazer.
Segundo nossa entrevistada, professora Dr.ª Denise Botelho, a SECADI surge a
partir do atendimento governamental às agendas dos diversos movimentos sociais, que
demandavam por melhor inserção de seus públicos-alvos, no que tange ao sistema oficial de
ensino. Denise afirma que a SECADI foi uma secretaria criada após a Secretaria de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR, durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio
“Lula” da Silva.

A criação da SECADI é resultado de agendas que já vinham sendo pautadas pelos


diversos segmentos dos movimentos sociais, dos quais o governo então eleito, o
governo democrático eleito pelo voto direto do presidente Luiz Inácio “Lula” da
Silva, tinha se comprometido em criar possibilidades de diálogos com os segmentos
de mulheres, movimento negro, movimento indígena. Inicialmente ele criou a
SEPPIR, e logo posteriormente criou a SECAD (DENISE BOTELHO).

Em todas as entrevistas que realizamos, procuramos enfatizar, em nossas


questões, qual a visão dos atuais membros do corpo técnico das coordenações da SECADI em
relação às agendas políticas governamentais e seus diálogos com os atores e instituições dos
movimentos sociais. Nesse sentido, é importante trazer a visão de pelo menos uma pessoa que

14
Denise Botelho é doutora em Educação e esteve na SECADI como assessora da Coordenação de Educação
para as Relações Étnico-Raciais no período de julho de 2004 a setembro de 2006. Atualmente Denise é
professora Adjunta da Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE.
15
Entrevista concedida em junho de 2017.
61

esteve desde o começo na Secretaria, pois nos possibilita entender como os arranjos
sistêmicos se reorganizam, isto é, como a máquina estatal opera avanços e retrocessos no
atendimento das demandas dos movimentos negros.
De acordo com Denise, a antiga gestão fazia encaminhamentos diversos, de
acordo com pautas que se articulavam diretamente com o objetivo de incluir, de forma
satisfatória, os grupos marginalizados, nos sistemas de ensino. Cada coordenação trabalhava
com certa autonomia e por muitas vezes se mantiveram mais voltadas para alguns focos
específicos, tendo em vista que não estavam descoladas dos acontecimentos que visavam
reconfigurar o painel educacional brasileiro, que teve como marco das transformações em
curso a aprovação da lei 10.639/03. Por isso a diretoria que ela fazia parte esteve bem voltada
para a especificidade a qual estava inscrita, concentrando esforços na educação para o nível
superior.

Essa diretoria de diversidade tentava pautar a temática das relações étnico-raciais


nos diversos segmentos educacionais, mas o nosso maior diálogo se dava com a
secretaria de educação superior, no que diz respeito à política de ações afirmativas.
Dialogávamos no período em que a conselheira Petronilha16 esteve na câmara de
educação básica do Conselho Nacional de Educação, havia também uma
proximidade porque era uma demanda criar as diretrizes curriculares nacionais para
o ensino de história e da cultura afro-brasileira e africana. Então, havia essas
articulações para os encaminhamentos das políticas públicas (DENISE BOTELHO).

A estrutura da SECADI funciona a partir da fragmentação e da concentração das


temáticas e atendimentos em torno das suas coordenações. Desse modo, Denise adverte sobre
algumas impossibilidades e/ou dificuldades de intervenções frente aos grupos, sinalizando que
nem sempre as ações se articulam e/ou tangenciam, tendo em vista as incompatibilidades
teóricas, que podem não solucionar os problemas encontrados, justamente por estarem
inscritos em esferas pontuais. Portanto, segundo nossa entrevistada, a SECADI é, desde o
início de sua criação, uma Secretaria multifacetada que se propõe a contribuir positivamente
para a resolução de problemas de várias ordens, e por mais que a questão racial esteja
atravessada em outros marcadores de opressão, o trabalho de cada equipe dentro da SECADI
possui uma missão que requer o conhecimento de ferramentas específicas.

Eu penso que as demais coordenações foram sensibilizadas, mas não significa que
elas incorporaram a temática racial, porque a própria estrutura daquela diretoria, ou
da SECADI em si, fragmentava a discussão nos seus diversos segmentos em função
das especificidades, por quê? Se você pensar a demanda da educação indígena, foi e
continua sendo muito distinta da demanda da educação para as relações étnico-
raciais. A perspectiva da inclusão para os portadores de deficiências físicas é muito
distinta da educação para as relações étnico-raciais, apenados, enfim, os diversos

16
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
– UFRGS e professora titular da Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR.
62

segmentos que estavam previstos na SECADI, não incorporaram totalmente esta


perspectiva étnico-racial (DENISE BOTELHO).

Objetivamente é possível analisar a afirmação de nossa entrevistada sob dois


pontos de vista. O primeiro diz respeito à especialização necessária para o atendimento de
excelência no qual visam as coordenações, acarretando em melhor conhecimento acerca dos
grupos a que se destinam as políticas, pois com a adesão de outros marcadores de exclusão, se
evitam choques com outras coordenações especializadas e diminui os riscos de prestação de
serviços indevidos. Por outro lado, é sempre necessário algum diálogo, uma vez que existem
marcadores que se sobrepõem, e, como trabalharemos mais adiante, o fenótipo negro é fruto
de identificação direta, no qual outras marcas potencializam a opressão que já reside de
antemão na estética desvalorizada socialmente.
Na continuidade analítica desse trecho da entrevista, encontramos uma pequena
disjunção que talvez denote algumas confusões. A educação para os indígenas está alocada na
mesma diretoria de políticas para a educação do campo e para as relações étnico-raciais, no
entanto, ainda que a questão indígena remeta à questão racial, a coordenação é diferente dessa
perspectiva, o que permite afirmar que existe o entendimento de que o atendimento às
populações indígenas encaminha para situações mais diversas do que para a população negra.
Essa possibilidade se dá pelo fato de que as populações indígenas possuem historicamente um
processo de inserção diferenciado dos negros na sociedade brasileira, preservando línguas e
costumes que não foram incorporados totalmente na dinâmica urbana do país.
Nesse sentido, no início da SECADI este fato foi considerado, levando em conta a
existência de lideranças indígenas de vários povos, às quais possuem pleitos específicos que
requerem um olhar baseado na perspectiva de cada etnia. Não estamos com isso dizendo que a
população negra seja homogênea e que não tenha preservado traços culturais que não sejam
identificáveis, mas somente que o processo de incorporação das práticas culturais no conjunto
da sociedade brasileira se deu por via de estratégias políticas de diluir o negro em uma cultura
geral, na qual os traços considerados menos desejáveis fossem pulverizados.
Um traço importante a ser observado é a característica das pessoas que
compunham a equipe da SECADI naquele momento de fundação. O objetivo que estrutura a
nossa pesquisa é tentar compreender como essa Secretaria incorpora as agendas políticas dos
movimentos negros, na interface que pode se articular entre os grupos historicamente
marginalizados e as instituições governamentais. Desse modo, sistematizamos questões que
viabilizasse que os entrevistados discorrerem sobre suas impressões e/ou experiências acerca
das proximidades e afastamentos dessa Secretaria em relação aos movimentos sociais negros.
63

Denise Botelho optou por se concentrar na coordenação da qual fez parte, na


impossibilidade de ser mais incisiva ou detalhar com precisão sobre as demais coordenações,
por isso discorre a partir do lugar em que ocupou. Segundo ela, a Coordenação de Educação
para as Relações Étnico-Raciais sempre se preocupou em dialogar com os movimentos sociais
negros, pelo fato de reconhecimento de histórico e luta dos mesmos, além da premente
necessidade de acompanhar a dinâmica de combate ao racismo, em suas atuais demandas,
mantendo uma relação horizontal.

Quero falar particularmente da coordenação de diversidade étnico-racial, que era o


local que eu estava exercendo a minha assessoria, pois lá eu posso garantir que todos
os fóruns que foram realizados nos estados tinham essa preocupação, inclusive de
eleger participantes dos movimentos sociais, e não apenas aqueles que estavam
vinculados às universidades, aos estudiosos, às secretarias de educação, mas também
os movimentos sociais. Porque nós sabíamos que por muito tempo quem pautou a
questão racial na realidade educacional foram os movimentos, os negros
organizados. Então, as experiências, muitas vezes acumuladas, da qual nós fomos
beber na fonte, eram resultados das ações que os movimentos negros organizados já
estavam desenvolvendo (DENISE BOTELHO).

Observa-se aqui, que além de dialogar com os atuais movimentos negros, em sua
diversidade de configurações, a SECADI, na figura da Coordenação de Educação para as
Relações Étnico-Raciais, reconhece que estes estiveram na dianteira das organizações sociais
responsáveis por cobrar do estado de ações efetivas para correção de distorções
historicamente produzidas. Nesse sentido, Denise afirma que a coordenação da qual fez parte,
se nutria de conhecimentos produzidos a partir do interior desses movimentos em suas ações
militantes, pois os entendia como os grandes detonadores de demandas de ampla cobertura,
isto é, a militância negra não contemplava somente as demandas dessa população, pois
funcionou como “guarda-chuva” para que outros grupos se organizassem.
Por esse motivo, fora importante buscar informações sobre o perfil dos
profissionais que atuavam dentro da SECADI, uma vez que a instituição se (re)faz a partir de
esforços conjuntos, por meio de uma equipe técnica que conhece o campo de atuação e as
demandas geradas na ponta, ou seja, do público aos quais a Secretaria oferta as políticas.
Tendo em vista o diálogo necessário para que o atendimento seja eficiente, se faz sumamente
importante que sejam encontradas formas mediadoras de realização do trabalho, em que os
saberes se articulem e sirvam de suporte na formulação das políticas focais, rejeitando a
verticalização da oferta, que ocorre quando existem interpretações unilaterais, deslocadas dos
acontecimentos da vida cotidiana.
Segundo Denise, a Coordenação de Educação para as Relações Étnico-Raciais
daquele momento de início da SECADI era providencial nesse ponto, pois a equipe que a
64

compunha era composta por profissionais que transitavam entre o ativismo e a academia,
conseguindo empreender um olhar crítico sobre a situação da população negra, que se
tonificava a partir de estudos exaustivos e produzidos no interior das universidades, mas
também partindo do conhecimento vivencial, na proximidade com as lideranças dos
movimentos negros e suas respectivas comunidades.

A composição da coordenação da diversidade étnico-racial, que no período de 2004


a 2006 ficou sob a coordenação da professora Eliane Cavallero, era uma
coordenação com características bem peculiares. A maioria de nós tínhamos um
perfil de sermos ativistas intelectuais. Por quê? A grande maioria já tinha feito,
pensado ou estava desenvolvendo alguma temática na academia sobre as relações
étnico-raciais. Então, a gente pensava a partir do campo teórico, mas não
pensávamos apenas teoricamente. Muitos de nós estávamos na academia inclusive
porque fomos impulsionados pelos movimentos sociais. Então, muitos foram estudar
e entender os mecanismos das relações étnico-raciais e, consequentemente, depois
fomos compor o quadro da coordenação de diversidade étnico-racial. Vale ressaltar
as ações que foram postas para projetos de pesquisa, publicações, fóruns de
diversidade, e aí a gente percebe um diálogo bem estreito com as produções
acadêmicas, consequência do perfil da equipe liderada pela professora Eliane
(DENISE BOTELHO).

Talvez o fato dessas pessoas serem forjadas a partir dos movimentos sociais tenha
sido o motor principal para o estreitamento do diálogo entre a SECADI e esses movimentos.
Entretanto, não podemos afirmar, a partir desse dado, que os problemas sociais em âmbito
educacional estariam resolvidos, pois as políticas públicas são atravessadas por interesses
políticos que nem sempre estão ajustados aos desejos de quem as executam. As disjunções
estão inscritas na falta de diapasão entre as esferas municipais, estaduais e federal,
considerando distintos pleitos e burocracias que podem dificultar o trabalho. A tentativa não é
a garantia do sucesso.
Essa possibilidade de olhar para o “ativismo institucional” se torna importante
para evitar aquilo que Frantz Fanon (1961) adjetivava de “Burguesia de Funcionários”, ou
seja, agentes defensores de um pensamento que não se renova, os executores técnicos de uma
ordem vigente. Uma burguesia de funcionários se caracteriza como aquela que se
responsabiliza pela organização do território “colonial”, maculando os problemas sociais
vigentes através de atividades burocráticas que visam, em última análise, se nutrir da eterna
precarização dos historicamente desfavorecidos. Todo este processo se daria de maneira
conjugada aos ordenamentos sistêmicos estrangeiros, em afiliação aos órgãos internacionais
de financiamento para o combate à miséria, sem deixar de fora os grandes conglomerados
empresariais e as suas iniciativas.
Apesar de termos todas essas possibilidades, não descartamos o saber técnico,
apenas aventamos para o fato de que somente ele, deslocado de diálogo com os movimentos
65

sociais e suas questões, que são operacionalizadas na prática militante, talvez possa ser
insuficiente em alguns momentos cruciais. O saber técnico é fundamental, não se deve abrir
mão dele, e o ideal é que não esteja desacompanhado, ou engendrado em sujeitos que não
tomam para si a responsabilidade de transformações sociais. Por isso, se espera que esteja
incorporado aos atores sociais que conseguem acessar este lugar, um olhar atento para que
não esvazie a escuta das vozes que compõem o público-alvo das políticas focais, uma vez que
os mesmos necessitam de um feedback institucional para que continuem travando suas
batalhas e para a resolução dos seus problemas, que muitas vezes sofrem distorções políticas
que dificultam que esses diversos grupos minoritários possam alcançar a plena cidadania.
Portanto, a partir da visão de uma pessoa que esteve à frente da primeira gestão da
SECADI, a Drª Denise Botelho, a Secretaria funcionou como um importante elo entre os
movimentos sociais e o governo, viabilizando pautas históricas dos movimentos negros que
pudessem, enfim, sair do papel. Fica evidente, também, a importância de se conceber a
formação técnica e o perfil ativista de parte das equipes, sobretudo da primeira formação do
quadro de funcionários. Vejamos a formação das pessoas por nós entrevistadas.

3.4 A formação técnica dos membros da SECADI – Gestão 2016

3.4.1 Maria Auxiliadora - TÉCNICA

Nossa primeira entrevistada foi a professora Maria Auxiliadora. Mineira,


graduada nos cursos de História e Pedagogia, ambas pela Universidade Federal de Minas
Gerais – UFMG, e possuir Mestrado em Educação pela mesma instituição. Desde o ano de
2004, a professora está alocada na SECADI, pois como faz parte do quadro efetivo do MEC,
haveria sido convidada para compor a Secretaria em virtude da homologação da lei
10.639/2003. Sua entrada na SECADI, segundo ela, se deve ao fato de ter sido a parecerista
de dois relatórios para a referida lei, uma vez que essa altera a lei 9.394/1996. Hoje, Maria
Auxiliadora é coordenadora substituta da Coordenação Geral de Educação para as Relações
Étnico-Raciais, alocada na diretoria de Políticas de Educação do Campo, Indígena e para as
Relações Étnico-Raciais.
66

3.4.2 Bárbara Sula – TÉCNICA

Bárbara Sula é graduada em psicologia e fez mestrado em administração pública


pela UNB. Está na SECADI desde o ano de 2006 e é técnica nesta Secretaria, servidora
concursada e recém-vinculada à Coordenação de Educação Geral das Relações Étnico-
Raciais, Bárbara explica que sse sente realizada no lugar onde está, do qual jamais se afastou.

3.4.3 Divina Sebastus

Divina do Sebastus é coordenadora geral de Políticas de Educação do Campo, está


no MEC há 32 anos, é servidora pública e possui mestrado em Educação. Ela está na SECADI
desde a sua criação, em 2004, antes dissotrabalhava na coordenação geral de monitoramento e
acompanhamento de programas da referida secretaria. Segundo nossa entrevistada, a SECADI
surgiu a partir de demandas geradas no seio dos movimentos sociais, mais especificamente ela
localiza a I Conferência para a Educação no Campo como evento balizador para a
implementação de políticas públicas voltadas para as populações residentes em áreas rurais,
que é o seu campo de atuação17.

3.5 Apresentação da SECADI pelas vozes de alguns de seus membros

As entrevistas foram realizadas no período de 10 a 17 de dezembro de 2016 no


espaço da SECADI em Brasília – Distrito Federal. Elas foram fruto de contatos entre a
orientadora desta tese, Professora Doutora Joselina da Silva, e da Professora da Universidade
de Brasília, Doutora Edileuza Penha, que possibilitaram o estreitar dos contatos entre nós e os
coordenadores da Secretaria. Contando com a disponibilidade e generosidade de toda a equipe
da SECADI, iniciamos as nossas entrevistas.
Atuante desde o surgimento da SECADI, Maria Auxiliadora já esteve no cargo de
coordenadora durante três anos, mas também já assumiu cargo de coordenação em ocasiões
especiais, em que o coordenador era trocado ou se afastava das atividades. Estando ou não na
coordenação, a professora nos explica que nunca esteve fora da equipe. Porém, ela adverte
que sua coordenadoria faz parte da Diretoria de Políticas de Educação do Campo, Indígena e

17
A I Conferência Nacional por uma Educação Básica no Campo ocorreu na cidade Luziânia, estado de Goiás,
no ano de 1998 e teve como objetivo promover uma educação que contemplasse as demandas das populações
do campo, a partir de uma pedagogia produzida no interior das comunidades rurais, voltada para o contexto
do campo. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/. Acesso em: 15 set. 2016 a 06 out. 2016.
67

para as Relações Étnico-Raciais, e lá não é um lugar voltado unicamente para a educação de


pessoas negras, mas que há uma diversidade de temas envolvidos, e um dos temas poucos
explorados e que deveriam ser percebidos com mais cautela, seria a situação dos ciganos. Ela
também informa que sua agenda e responsabilidade estão na educação quilombola.

Ela vai muito além de educar negros, ela é para educar para as relações étnico-
raciais. Tanto é assim que aqui trabalham também as populações em situação de
itinerância, principalmente os ciganos, para isso, tem a Resolução 03 de 2012, que
visa orientar o sistema de ensino, como atender essa população em situação de
itinerância e um dos focos dessa coordenação, que é muito forte e que já tem alguns
anos, é a Educação Escolar Quilombola. Eu sou responsável por essa agenda dentro
da coordenação, se eu estiver na coordenação eu sou responsável, quando eu não
estou coordenando também sou responsável pela Educação Escolar Quilombola
(MARIA AUXILIADORA).

Desse modo, a SECADI enquanto órgão responsável por propor políticas que
visam melhor inserção e permanência do seu público-alvo nos sistemas de ensino, como
maneira de correção das desigualdades educacionais, precisa estar sempre empreendendo
diálogos horizontalizados entre as coordenações que a compõe. Por essa via, entendemos que
as transversalidades nas proposições normativas para formação ou confecção de materiais
didáticos, ainda enfrentam dificuldades para a realização de mais ações conjuntas, ou
proposições que estejam arcabouçadas em consultorias participativas.
Por sinal, é importante relembrar que a Secretaria surge sem a sigla I, que
significa Inclusão. Divina Sebastus faz essa observação, e para nós pode ser uma pista de que
permanentemente surjam novas demandas dentro da Secretaria, em consonância com os
influxos dos movimentos sociais. Logo, está posta a dinamicidade da SECADI e a
movimentação de fluxos que as organizações da sociedade civil possibilitam, em meio a
projetos galvanizadores de subjetividades até então pouco percebidas ou alavancadas pelos
sistemas de poder. Sobre esta transformação, Divina afirma que:

Foi em 2011, porque quando a SECADI surgiu em 2004, já existia uma Secretaria
que era da Educação Especial. Então, em 2010 houve uma reestruturação da
estrutura do MEC, onde a Educação Especial passou a interagir [com] as temáticas
da SECADI e aí se acrescentou a INCLUSÃO, mas é uma temática que também
precisa de um olhar ainda especial, no sentido de políticas públicas específicas, só
veio a agregar as temáticas da SECADI (Divina).

Observando atentamente, podemos complementar nossa ideia a partir da


informação de que já havia uma secretaria de Educação Especial, que surge a partir do
governo de Médici, com a Lei 5.692/7118. Aferimos que dentro do sistema público de ensino

18
A lei 5.692/7, surge no período do regime cívico-militar e muda a estrutura de ensino do país, engendrando
novos operadores de oferta educacional, uma vez que o antigo curso primário e o ginásio se fundiram em um só
68

já se atendiam algumas demandas de inclusão, no entanto, sem que houvesse qualquer tipo de
secretaria específica para assuntos diversos, isto é, os assuntos que ensejam para demandas de
grupos historicamente marginalizados não estavam agrupados em um órgão específico que
concentrasse seus esforços na formulação de políticas focais para esses grupos.
É importante salientar que historicamente a modalidade de Educação Especial
esteve voltada para as pessoas portadoras de necessidades especiais, ou seja, com problemas
de audição, visão, Síndrome de Down e outras debilidades físicas. O termo inclusão se soma a
fim de promover um sentido agregador, no entendimento da oferta plural e agregadora da
educação pública, que passa a se preocupar – pelo menos no âmbito discursivo – com a
maneira com que essas pessoas ingressam e permanecem no sistema escolar.
Bárbara Sula também afirma que a Secretaria não iniciou suas atividades com a
letra I de Inclusão, e que esta demanda foi a última a ser incorporada. Mas ela nos informa
que a SECADI sempre esteve afinada com demandas dos movimentos sociais, e procura se
reconstruir de acordo com emergentes terminologias que abrem portas para novas formas de
conceber as opressões que surgem no cenário social.
Com o sentido inclusivo acrescentado, é de se esperar que as diferenças se
relacionem e se equalizem, por meio da promoção de uma educação democrática. Dessa
pluralidade pode emergir a consciência de que mais de um marcador identitário possa se
somar à experiência vivida pelos sujeitos, conforme já sinalizamos anteriormente. Um
portador de necessidades especiais pode, além disso, ter sofrido dificuldades no sistema de
ensino por ser homossexual e negro, por exemplo.
Apesar de se relacionarem, e daí se misturarem e se distinguirem, as “identidades
centrais” (negros, homossexuais, mulheres, quilombolas, indígenas, portadores de
necessidades especiais, ciganos etc.) são preservadas através do fio condutor da oferta da
Secretaria. A importância de reconhecer as particularidades de cada identidade se ancora no
fato de que sem isso seria impossível haver a SECADI, pois é o retorno à “identidade
primeira”, professada por uma ficção grupal que toma como base os pontos comuns que
perpassam por gerações, localidades e agenciamentos políticos e sociais (SODRÉ, 2012),
arregimentam os movimentos sociais e torna possível o atentar para os ordenamentos
sistêmicos que não seriam descortinados caso as identidades fossem totalmente esfaceladas.
Dessa maneira, nos esforçamos em entender se existem transbordamentos
operacionais que estão influenciados por um suposto ativismo dentro da SECADI, ou se essa

curso. No bojo dessas transformações fora necessário a composição de novas secretarias que dessem conta das
demandas surgidas naquele contexto, e uma delas foi a de educação especial (KASSAR, 2011).
69

secretaria somente incorporou algumas demandas de movimentos sociais e as administrou de


acordo com os interesses de conjuntura política. Nossa primeira entrevistada deixou nítido
que esta seria uma questão complexa, uma vez que um órgão público não deveria se tornar um
“lugar da militância” (Maria Auxiliadora), mas que seus funcionários deveriam ser, antes de
tudo, gestores de políticas públicas. Já a nossa segunda entrevistada, Divina Sebastus, também
nos concedeu sua perspectiva sobre este questionamento, pois:

Geralmente as pessoas que estão na gestão, de alguma forma, desempenharam


alguma função de relevância nas temáticas em que estão. Então, de certa forma, os
gestores têm conhecimento de causa, e, tecnicamente falando, da temática na qual
tâm a sua gestão. Então, as pessoas se identificam e executam as demandas que
venham das comunidades, ou seja, de movimentos sociais, seja das próprias
Secretarias Municipais e Estaduais de Educação. Então, essas pessoas estão nos
lugares em que realmente têm condições e competência para executar as ações que
são referentes às temáticas (DIVINA).

Partindo da perspectiva supracitada, a SECADI seria um compósito de dois


atributos até então distintos, o trabalho técnico e a militância de movimento social. Haveria
uma terceira via adotada como ponto central para os técnicos que manejariam as ofertas das
políticas da SECADI. As competências de gestão das políticas educacionais estariam somadas
às experiências pregressas dos seus membros, partícipes de movimentos sociais e/ou
pesquisadores em temas que envolvam a compreensão dos processos históricos sobre cada
público atendido pela Secretaria.
Ainda a respeito deste assunto, nossa entrevistada Bárbara Sula afirma que foi
importante trabalhar com pessoas que participavam no ativismo político de suas respectivas
bandeiras, mas que não é somente aí que se concentra o conhecimento acerca do que a
SECADI oferta para inclusão de grupos historicamente marginalizados. Foi necessário juntar
estas experiências empíricas, dialogando com os movimentos, mas também entre aqueles que
se debruçavam na produção de conhecimentos acadêmicos acerca dos saberes sobre esses
grupos. Desse modo, “há momentos que a gente tem um corpo mais qualificado nas temáticas
e outro um pouco menos, mas é cíclico mesmo, é sazonal” (Bárbara Sula).
De acordo com a Bárbara, diante de um painel histórico desfavorável para o
negro, a SECADI seria, portanto, uma espécie de porta-voz do povo, pois trabalharia a fim de
minimizar os prejuízos educacionais dos grupos “historicamente oprimidos”. Esse fato
justificaria a necessidade de haver pessoas que obtivessem muito mais do que o conhecimento
técnico e acadêmico sobre as condições históricas acerca da população negra brasileira, mas
que estivessem afinadas com o cotidiano dessa população.
70

Bárbara destaca que cada tema tratado pela SECADI possui sua importância, e
isso está consubstanciado no fato de que as políticas ofertadas não são aprovadas sem que
haja muitos debates e estudos acerca das problemáticas insurgentes.

A gente já teve vários momentos ao longo desses 10 anos, de diferentes fases de


articulação. No momento estamos recompondo a nossa articulação com as demais
diretorias. Por exemplo, a gente está buscando ações com relação à população negra
dentro dos programas de EJA ou com relação ao atendimento a um programa
específico de combate ao analfabetismo dentro das comunidades quilombolas,
pedindo dados específicos sobre o atendimento de crianças negras com os
programas de educação especial, e isso fazendo uma articulação maior dentro da
nossa própria diretoria, que trabalha com as questões do campo com relação a
atendimento das populações quilombolas, para ver como é que se articula essa
questão com as desigualdades raciais (Bárbara Sula).

Essa possibilidade nos sugere pensar que mesmo diante de diversas dificuldades
de compreender o racismo, por parte de boa parcela da sociedade brasileira, a coordenadoria
da SECADI que trata das questões atinentes às questões raciais, tem como orientação,
justamente o combate ao racismo em todas as instâncias, não se restringindo ao campo
específico no qual são proponentes de políticas públicas. Essas articulações agregam tanto
aqueles os quais tomam contato pela primeira vez com a temática, mas também a equipe das
relações étnico-raciais, uma vez que o relacionamento entre conhecimentos de diferentes
campos do saber se interconectam e dão lugar para pensar novos agenciamentos e políticas.
A compartimentação das coordenações que atuam na SECADI é a possibilidade
de ofertar uma educação mais especializada, considerando dois fatores: A) a alocação de
profissionais que se qualificaram para trabalhar com determinada especialidade estimula mais
pesquisas nas áreas subsequentes; e B) a compreensão mais estreita acerca das demandas dos
atores sociais, através de diálogos e ouvidorias de grupos organizados, melhora o atendimento
dos mesmos.
De modo geral, as nossas entrevistadas concordam que a SECADI oferta
promoção de educação especializada e que depende de um bom relacionamento com os
movimentos sociais, e, mesmo com uma leve discordância de Maria Auxiliadora, elas
convergem no crédulo de que os seus membros precisam estar afinados com o tema da
coordenadoria em que está alocado, e que esse fato atraiu pessoas que não somente estudaram
acerca das temáticas propostas, mas estiveram junto aos movimentos sociais contribuindo
empiricamente em suas organizações.
Portanto, na visão dos membros entrevistados durante a gestão de 2016, a
SECADI surgiu para tentar dar funcionalidade prática aos direcionamentos do Plano de Ação
de Durban, sendo o modo mais eficiente para tornar factível aquilo que se aprovou naquela
71

Conferência. Para tanto, estreitou os laços com os movimentos sociais e contratou pessoal
especializado e de bom trânsito com os mesmos. Nesse sentido, o nosso próximo passo visou
observar como seriam esses agenciamentos entre Durban e SECADI.

3.6 A criação da SECADI e a Conferência de Durban (2001)

Insta os Estados a assegurarem o acesso à educação e a promoverem o acesso a novas tecnologias que
ofereçam aos africanos e afrodescendentes, em particular, a mulheres e crianças, recursos adequados à
educação, ao desenvolvimento tecnológico e ao ensino a distância em comunidades locais (Declaração
de Durban e Plano de Ação, p.44).

A partir das entrevistas com os membros da SECADI, buscamos investigar como


eles entendem a relação entre a criação dessa secretaria e a III Conferência Mundial Contra o
Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, ocorrida no ano de
2001 em Durban, África do Sul, e se é possível afirmar que a SECADI é fruto do
compromisso assumido após a declaração redigida ao final da Conferência, na qual insta aos
Estados participantes viabilizar políticas de combate ao racismo, ou se é uma iniciativa
espontânea do governo vigente no ano em que fora criada.
É importante salientar que a Conferência de Durban acontecera no ano de 2001, e
o Brasil estava sob a égide do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, tendo uma
participação que conjugava os movimentos sociais e a delegação oficial. Como a SECADI
fora criada somente no ano de 2004, é interessante entender o ponto de vista das nossas
entrevistas em relação a essa transição, ou seja, se já no governo anterior ao de Luiz Inácio
“Lula” da Silva se pensava a SECADI, ou se ela se projetou totalmente neste governo, ou,
ainda, se a Secretaria fora pensada no âmago dos movimentos sociais e o governo Lula
possibilitou a ponte entre os movimentos sociais, orientados pelas decisões de Durban, e o
poder público.
Ainda que tenha havido um firmamento por parte do governo brasileiro no
período da Conferência de Durban, Denise Botelho afirma que este fato não deve ser encarado
como uma ação espontânea, mas sim algo que visava interesses políticos. Nesse sentido, por
mais que houvesse pessoas com a inclinação para resolução de problemas sociais dentro
daquele governo, essas ainda estariam frente aos problemas produzidos no interior de uma
sociedade racista, que se reproduzem nas instituições e matiza as desigualdades raciais.
Por esse motivo, Denise assevera que não se pode afirmar que a SECADI seja
estritamente a consequência do que fora acordado em Durban, mas o somatório de fatores
72

diversos, que, de certo modo, conflui para o que fica como encaminhamento sugerido a partir
de acordos internacionais. Denise complementa que:

Eu não poderia afirmar diretamente se haveria alguma relação da criação da


SECADI com a Conferência de Durban, porque a instituição política da secretaria, é
óbvio, que tem a ver com os acordos políticos que o presidente da época tinha
firmado para sua eleição, não tenha dúvidas disso. Essa relação entre a criação da
SECADI com a Conferência de Durban tem a ver que nós fomos consignatários da
declaração de Durban, e isso nos trouxe algumas obrigações, das quais a gente
implementou. Penso eu que a SECADI já é um resultado disso, mas eu não poderia
afirmar, pois isso já estaria nas esferas superiores das quais participaram da criação
da SECADI (DENISE BOTELHO).

Podemos perceber que o que Denise adverte está inscrito na possibilidade de a


SECADI ser uma consequência de Durban, mas não como algo planejado diretamente em
virtude do que prescreve o documento final daquela Conferência. O que está dito é que o
compromisso de promover políticas públicas para o combate ao racismo estava posto, já que o
Brasil é signatário do Plano de Ação, mas a materialização das ações não foi decidida de cima
para baixo, e sim por meio da articulação daqueles que estiveram em Durban e já se
organizavam em movimentos sociais, pressionando os governos por uma tomada de
providência em face ao racismo.
Os movimentos negros possuem um histórico de denúncias e proposições que
visam combater o racismo, e a Conferência de Durban surgiu como uma oportunidade que
deveria ser bem aproveitada pelos militantes dos movimentos negros, já que ali seria o
momento de ter voz e propor ações efetivas para a satisfação de pautas históricas. O Brasil
havia se recém-democratizado e completado quinhentos anos de existência, mas estava muito
atrasado em termos de políticas públicas de combate ao racismo.
Contudo, muitos dos militantes dos movimentos negros entrevistados por Joselina
da Silva e Amauri Mendes Pereira (2012) antes e durante a Conferência de Durban, afirmam
que dever-se-ia tratar iminentemente das causas que levam as populações negras ao nível mais
baixo nos índices de bem-estar social, mas, entretanto, asseveram que lá, em Durban, foram
levantados temáticas as quais esvaziam essas discussões. Nessa perspectiva, Sueli Carneiro
afirma que:

As duas outras conferências de racismo tinham questões muito precisas: a questão


do Apartheid, a questão do colonialismo e do neonazismo. Essa conferência trata do
quintal de todo mundo. Porque todo mundo tem problema dentro de casa. Então, ela
tem uma complexidade muito maior, tem muitas forças trabalhando contra, para que
ela passe logo, que polemize o mínimo, que certos temas não tenham apoio e que
certas questões que são estratégicas não apareçam. (...). Há interesses muito maiores
em jogo e nós, no movimento negro brasileiro, estamos muito despreparados para
entrar nesse jogo internacional (SILVA; PEREIRA, 2012, p. 81).
73

A partir desta colocação de Sueli Carneiro, fica evidente que, mesmo por dentro
dos espaços de discussões mais específicos em torno do racismo, o problema pode ser
esvaziado e perder força para outros pleitos que direcionam questões que, ainda atravessadas
pelo racismo, o dissimula, fazendo emergir outras categorias analíticas, sem operacionalizar
propostas que amplifiquem as possibilidades de correções raciais dentro da especificidade na
qual se projetou determinada agenda política.
Houve, portanto, muitas queixas por parte das lideranças dos movimentos negros
brasileiros no tocante ao entendimento de que a conferência tivera um caráter muito
abrangente. Por mais que existam diferentes maneiras de se empreender lutas pelo fim das
desigualdades sociais, muitos militantes e/ou intelectuais compreendem que aglutinar
diferentes grupos historicamente marginalizados em torno de uma única estratégia de combate
às opressões, causaria maior esfacelamento dentro do grupo historicamente mais fragilizado,
neste caso o negro (SILVA; PEREIRA, 2012).
Esse fato ocasiona a nossa pergunta-chave: A SECADI é resultado direto de
Durban? Essa questão é atravessada por conta de sabermos que a Secretaria é abrangente em
sua oferta de educação, abarcando diferentes modalidades para grupos que historicamente
também se organizaram em torno da busca de resolução para os seus problemas. Se a
SECADI é consequência direta de Durban, então por que a Secretaria não atende apenas os
grupos sinalizados no seu documento final?
Conforme sinalizado, a SECADI agregou os grupos marginalizados para a oferta
de políticas específicas, e essa estratégia não retirou dos negros a possibilidade de se
organizar com a posse de ferramentas que lhes possibilitam maior envergadura na luta contra
o racismo. Por esse motivo, ao perguntamos para as nossas entrevistadas sobre a Conferência
de Durban e a criação da SECADI, se era possível traçar um paralelo, todas conseguem
identificar alguma relação. Para Divina,

Bom, eu acho que contribuiu e muito também, porque em 2001, que foi [realizada] a
Conferência, eu acho que ela veio fortalecer, vamos dizer assim, as temáticas da
SECADI, porque como a SECADI foi criada em 2004, já com temáticas que para a
sociedade eram ainda sem muitos conhecimentos, sem muitas informações, então eu
acho que a partir de 2001 isso vem fortalecer as temáticas trabalhadas pela SECADI
(DIVINA SEBASTUS).

Fica ressaltada a importância da conferência de Durban, estendida a um grande


campo de ação que está para além daquele que circunscreve o das relações étnico-raciais. Há
um dado importante que conduz a interconexões importantes que se inscrevem na abrangência
dessa conferência. Ele diz respeito ao fato de que se as relações raciais atravessam outros
74

campos de luta, então podemos dizer que os movimentos negros aglutinam outros grupos,
empreendendo esforços pela via do combate ao racismo e de outras formas de preconceito.
Fica evidente, portanto, que o primeiro e mais longo movimento social brasileiro é o
movimento negro, se responsabilizando por catalisar a potência de outras organizações
políticas sem que o combate ao racismo seja apagado (SODRÉ, 2012).
Analisando por esse prisma, a Conferência de Durban foi um start para que outras
questões, não debatidas naquele momento, fossem observadas mais atentamente e somadas às
estratégias da Secretaria em ofertar políticas educacionais de modo plural. A abrangência de
temas de uma Conferência é dada através dos desdobramentos políticos que geram novas
demandas e se estendem para novos olhares e possibilidades de reorganização dos
movimentos sociais, tudo frente ao modelo de ação que realmente será adotado pela
conjuntura política vigente.
Este fato pode ser constatado a partir da afirmação da então presidenta da
Organização de Mulheres Negras de São Paulo – Fala Preta, Edna Roland, uma das cinco
pessoas escolhidas pela Organização das Nações Unidas – ONU como responsáveis para
acompanhar se as resoluções da conferência estão sendo cumpridas, conforme em entrevista
para Silva e Pereira (2012):

A Conferência é quase que um pretexto para permitir avanços no cenário nacional.


Às vezes um parágrafo que você consegue introduzir num documento desses tem
muitos desdobramentos políticos posteriores, que você só sabe avaliar no período
pós-Conferência. Por exemplo, tem um parágrafo famoso na Conferência do Cairo 19,
que permitiu, por exemplo, que, depois, na Conferência de Beijing20, retomássemos
a discussão sobre direitos reprodutivos em relação ao aborto, que tem oferecido uma
série de avanços em termos de serviços públicos – oferecidos pelo Estado –,
recomendações para aqueles que seriam revisados e tem todo um desdobramento
político posterior (SILVA; PEREIRA, 2012, p. 81).

Está evidenciado que não se negocia políticas públicas sem que haja muita
preparação técnica anterior. Inúmeras conferências e grupos de trabalhos fazem parte de
diversas investidas que agregam na formação acadêmica, militância política e diálogo com
atores de diversos movimentos sociais. No caminho percorrido para implementar uma política
pública, se faz necessário a compreensão do funcionamento sistêmico das instituições e quais

19
A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), mais conhecida como Conferência
do Cairo, foi realizada em setembro de 1994 e teve como principal objetivo reconhecer o exercício dos
direitos humanos e potencializar os meios de projeção da mulher como importante agente que impacta na
qualidade de vida das populações.
20
A IV Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher, realizada em Pequim, em setembro de 1995, teve como
principal objetivo a promoção dos direitos da mulher, denunciando e propondo ações que corrijam a situação
de vulnerabilidade em que se encontram as mulheres em todo o mundo.
75

os seus papéis na sociedade, pois só assim se torna possível traçar as estratégias cabíveis para
intervir em suas estruturas.
Apesar de tantos operadores que sinalizam para uma estrutura que historicamente
dificulta que haja igualdade racial, é importante demonstrar que em cada conjuntura há
investidas que se organizam para a quebra da hegemonia, que prejudica o equilíbrio social.
Geralmente a ONU funciona como mediadora desses interesses, ainda que se articule de
modo a apenas atenuar os problemas, e não advogar por uma ruptura radical desse modelo
capitalista, já que sem ele a própria ONU teria a sua existência ameaçada. Deste modo, se
buscou realizar diversas conferências as quais visavam o debate sobre os caminhos a serem
percorridos para que as populações menos favorecidas fossem melhores atendidas em suas
demandas no interior de cada país signatário.
A produção de documentos ao final de intensas, extensas e complexas discussões
ocorridas em cada conferência pressupõe que cada país signatário apresentasse pautas
distintas que sinalizasse para descompassos sociais no interior de cada um deles, atestando
para a inelutável realidade, que é a advertência de que sem luta se torna quase impossível o
atendimento de agendas que clamam por melhor distribuição da riqueza e tolerância ao painel
racial encontrado. Obviamente que o cumprimento daquilo que as conferências da ONU
preconizam não são facilmente realizáveis, tanto por interesses difusos entre os grupos que
granjeiam o poder econômico local quanto pela afiliação que os mesmos precisam manter
para que permaneçam no poder.
Segundo Santos (2015), a realidade brasileira se inscreve na advertência ao qual
chamamos a atenção acima. Para ele, os movimentos sociais brasileiros, sobretudo os
movimentos negros, se articulam permanentemente para pressionar o Estado em direção à
incorporação de suas demandas. Com isso, se produzem relatórios de acompanhamento sobre
as ações consubstanciadas, a fim de diminuir o abismo de desigualdade social. As
dificuldades se mostram acaloradamente no campo da descontinuidade das políticas públicas
e nas brechas da normatividade, apontando na direção que confirma a tese de que o racismo
institucional é a maior barreira de ascensão do negro em nossa sociedade.
Este mesmo autor, Santos (2015), afirma que a III Conferência Mundial Contra o
Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, ocorrida em Durban
no ano de 2001, foi a ponta de lança para desencadear um novo processo de transformação
nas relações políticas em relação à população negra no Brasil. Motivados pelos documentos
que orientam para novas relações arregimentadas pelos Direitos Humanos, os movimentos
negros passaram a pressionar o Estado brasileiro para o cumprimento daquilo que ficou
76

acordado nesta Conferência. Sendo preciso, portanto, que a ONU fosse a mediadora, ou
fiscalizadora, nesse processo de implementação dessas medidas.
Para que isso fosse realmente efetivado seria necessário contar com a presença de
técnicos da ONU, pessoas capazes de identificar a gravidade do problema e, com efeito,
propor medidas ajustadas ao que os documentos prescrevem. De acordo com Santos (2015),
estes relatores possuem um conjunto de orientações normativas aos quais devem se balizar,
servindo como catalisadores para um olhar mais acurado acerca das mazelas que acometem os
grupos historicamente marginalizados, e que pleiteiam justiça social. Santos elenca as
“prerrogativas e competências” exigidas para que esses técnicos possam identificar o nível de
cumprimento com os preceitos dos direitos humanos nos países signatários de Durban:

• Liberdade de movimento no território nacional;


• Liberdade de investigar;
• Acesso a qualquer prisão e centro de detenção;
• Contatos com autoridades centrais;
• Contatos com representantes da sociedade civil e outras instituições privadas
e meios de comunicação;
• Acesso a documentos relevantes para o mandato;
• Contatos confidenciais e não supervisionados com testemunhas;
• Segurança por parte do governo às pessoas que colaborem com o relator.
(SANTOS, 2015, p. 209-210).

Evidentemente que para o Estado cumprir com todas essas prerrogativas seria
necessária uma nova configuração da ordem sistêmica nacional e no modus operandi das
instituições que manejam o exercício legal de investigação criminal e de organização dos
preceitos cidadãos, e isso é praticamente impossível em meio à profunda realidade histórica
na qual o país se edificou. Dito isto, é pertinente assinalar que esses técnicos poderão
observar, com imensa dificuldade, um painel que – até pela dificuldade legalmente imputada
– atesta para uma miríade de problemas complexos a serem analisados sob a ótica de relações
que se articulam e se distanciam de acordo com interesses particularistas.
Desde o ano de 2002, três relatores da ONU foram designados para o Brasil,
fazendo a apreciação do painel social no que concerne às formas de discriminação e racismo
materializados no território nacional. O beninense Maurice Glèlè-Ahanhazo, o senegalês
Doudou Diène e o queniano Githu Muigai, foram, respectivamente e em uma linha temporal
demarcada, os designados para a missão de operar a observância acerca destas questões no
Brasil. A última visita é a do último designado citado, e deu início no ano de 2008, quando os
demais já haviam completado o tempo de inquirição (SANTOS, 2015).
É possível identificar que todos os relatores tiveram pontos comuns em suas
asserções, pois passaram entre seis e oito anos observando e investigando documentos oficiais
77

e algumas instituições brasileiras a fim de compreender a dinâmica racial no cotidiano de cada


uma delas. De acordo com Santos (2015), apesar de todos estes técnicos da ONU terem
chegado à conclusão de que o Brasil seja um país racista, eles encontraram grandes
dificuldades de percepção dessa realidade por parte de parcela da população, identificando
nos discursos oficiais as tergiversações que se coadunam com os apanágios retóricos de uma
profunda mestiçagem biológica, que funcionaria como atenuador de deferências racistas,
dadas as supostas dificuldades em identificar racialmente (sociologicamente falando) os
cidadãos brasileiros.
O mais interessante nos relatos desses técnicos é que os discursos e as narrativas
oficiais se mantiveram quase inalteradas num período de tempo de dez anos entre a visita do
primeiro e do último relator. Em todas as observações se encaminham profundas reflexões
sobre o painel histórico e sociológico do Brasil, asseverando que há elementos suficientes
para constatar que o Brasil é um país racista, diante das evidências que estão consubstanciadas
na pirâmide social e racial. Santos (2015), em um breve apanhado geral sobre o relatório de
um dos técnicos, o senegalês Doudou Diène, infere que:

O relator especial relatou a ausência de um memorial nacional da escravidão, o que


aparece como uma negação do lugar da escravidão na memória nacional. No mesmo
espírito, a superexploração da herança e das culturas indígenas e afro-brasileira para
o turismo, sem significativos benefícios sociais e econômicos, é uma fonte de
profunda frustração e alienação para suas comunidades (SANTOS, 2015, p. 213).

Considerando todas as possibilidades atravessadas nas recomendações


operacionalizadas na Conferência de Durban e a visita dos relatores da ONU, evidentemente
que se possa argumentar em torno do olhar desses técnicos, forjado pelas agendas políticas
que plasmam a instituição a qual representam. Ainda que se tenha a possibilidade de
objetificar e relativizar acerca do racismo institucional brasileiro, sob a inquirição de cada
ocorrência de suposto crime de racismo, a fim de averiguar se realmente as reclamações
procedem, o painel estrutural aduz o quadro de desigualdade, que se articulado com o
processo histórico de construção da nação em sua dimensão organizacional, se torna o
demonstrativo essencial para dar as respostas necessárias para a legitimação para que os
inquéritos que tragam as abordagens dessa natureza sejam viáveis.
Diante dessa conjuntura, a SECADI iniciou os seus trabalhos se apresentando
como uma alternativa de oferta de educação para diminuir os impactos do racismo na
sociedade brasileira. As diretorias e as coordenadorias se subdividiram em temáticas
importantes para promover o acesso à cidadania a todos os brasileiros em suas diferenças,
78

com destaque para a Educação para as Relações Étnico-Raciais, promovendo debates,


confeccionando materiais didáticos e desenvolvendo ações diretas nas escolas.
Ainda que o trabalho desenvolvido pela SECADI não carregue integralmente o
que ficou acordado no Plano de Ações da Conferência de Durban, há um transbordamento
natural do que representou Durban em termos de debate, para a realização do trabalho de cada
técnico ali alocado, dadas as suas inclinações para o trato com questões afinadas aos pleitos
dos movimentos sociais. Por isso, essa Secretaria representa um bom feedback para tudo que
Santos (2015) sinalizou em termos de ações necessárias para o combate ao racismo
institucional.
Salientamos, portanto, que a SECADI não foi uma imposição direta da
Conferência de Durban, ou seja, não foi uma secretaria projetada na Conferência e posta em
funcionamento como resposta direta ao documento final lá redigido. Entretanto, podemos
afirmar que a SECADI seja fruto da insistente e competente ação dos militantes dos
movimentos negros que lá estiveram, que souberam conjugar forças e negociar com o
governo que tomou posse posteriormente, viabilizando que demandas históricas do
movimento negro não ficassem apenas no papel, mas tomassem corpo e chegassem até a
população negra.
79

4 A CONFERÊNCIA DE DURBAN

Um dos acontecimentos internacionais mais importantes do final do Século X, cujas sugestões devem
ser absorvidas e adotadas pelas instâncias governamentais e por todos os segmentos da sociedade
(Declaração de Durban e Plano de Ação, p.7)

4.1 Primeiros olhares

No período de 31 de agosto a 08 de setembro de 2001 aconteceu a conferência que


transformou substantivamente o painel das agendas políticas dos movimentos negros
brasileiros e uruguaios, reorganizando antigas pautas que antes não haviam sido incorporadas
em dimensões institucionais, e potencializando novos atores inclinados no combate ao
racismo. A III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia
e Intolerâncias Correlatas, ocorrida na cidade de Durban, na África do Sul, deve ser
considerada como um grande marco para o movimento negro brasileiro ao levarmos em conta
o seu processo de organização e os desdobramentos operados após o seu término.
A Conferência de Durban tinha como objetivo central encaminhar propostas que
pressionassem os países participantes para a implementação de ações de combate ao racismo e
as diversas formas de preconceitos geradores de iniquidades sociais. Estiveram em Durban
173 países, com mais de 16 mil participantes, entre delegados, representantes de governos,
lideranças de movimentos sociais e membros de Organizações não Governamentais – ONGS.
Buscava-se uma ampla mobilização para minimizar as possibilidades de conflitos étnicos e
raciais que transgredissem os princípios éticos de livre expressão política e autodeterminação
dos povos no interior dos seus territórios, ou em escala internacional (TRAPP, 2011).
Vale registrar que a Conferência de Durban é o desdobramento de outras duas
conferências. A primeira, sob o título de “Primeira Conferência Mundial para o Combate ao
Racismo e a Discriminação Racial”, ocorreu em Genebra, Suíça, no ano de 1978. Esta
conferência foi a finalização dos trabalhos da Primeira Década de Combate ao Racismo, e
teve como principal objetivo o combate ao Apartheid (regime de segregação racial que durou
de 1948 a 1994 na África do Sul), logo após o conselho de segurança da Organização das
Nações Unidas – ONU ter imposto o embargo na venda de armas para aquele país (ALVES,
2020).
A outra é a “II Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos”, ocorrida no ano
de 1993 em Viena, Áustria. A resolução deste encontro aponta caminhos para o combate à
discriminação com ênfase no racismo. Estiveram presentes membros de diversos segmentos
da sociedade civil organizada, representados pelas Organizações não Governamentais. Ao
80

final, fora produzido a Relatoria Especial, na qual tecia conhecimentos sobre novas
manifestações de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata.
Não se pode perder de vista que a Organização das Nações Unidas – ONU,
fundada em outubro de 1945, é um órgão internacional que surge após a Segunda Guerra
Mundial com o intento de reunir nações e promover parâmetros internacionais para que se
possa garantir o cumprimento dos direitos humanos em âmbito local e global. Segundo Silva
e Pereira (2012), a ONU surge em um contexto em que há

No cenário mundial, uma preocupação recente com o retorno da racialização no


mundo. A ONU tem, em sua carta de fundação, uma referência específica em
relação às liberdades fundamentais sem distinção de raças, sexo e religião. Diversos
esforços foram envidados pelos tentáculos deste órgão internacional, na busca de
melhor entendimento das questões de raça naquele momento (SILVA; PEREIRA,
2012, p. 174)21.

Logo, a ONU se estabelece como mediadora de conflitos que transgridam os


direitos humanos. Mais do que isso, se tornou alvo da organização propor medidas que
contribuam para potencializar leis e ações políticas que visem diminuir as diferenças sociais
viabilizadas pelo racismo e por todas as formas de discriminação no interior de cada um dos
países que apresentam questões específicas de descumprimento de normas internacionais para
paz e harmonia entre os povos.
Diante dessa perspectiva, a ONU inicia, a partir da década de 1960, uma série de
conferências internacionais que objetivam a produção de documentos que viriam a servir
como balizadores na intensificação da erradicação do racismo. Em 1966 fora debatido o
Apartheid em seminário ocorrido no Brasil, já o segundo foi na Índia e se discutiu a
eliminação de todas as formas de discriminação racial. O último da década aconteceu na
Zâmbia e os temas anteriores reapareceram, com o acréscimo da questão do colonialismo
(SILVA; PEREIRA, 2012).
Os efeitos dessas investidas da ONU se traduzem, segundo Silva e Pereira (2012),
na produção de materiais que serviram de base para debates e resoluções pela Assembleia
Geral da ONU, que institui, em 1971, o “Ano para o Combate ao Racismo e a Discriminação
Racial”. Nota-se que, gradativamente, os debates vão se abrindo e sendo operacionalizados,
muito em função da eclosão de reivindicações de movimentos negros organizados em vários

21
Aqui é importante sinalizar que os autores fazem menção ao projeto UNESCO, que teve o Brasil da década de
1950 como fonte de pesquisa para se compreender os fatores que conduzem uma nação a se ter um convívio
racial pacífico entre os povos. Segundo eles, o órgão tinha o Brasil como modelo racial democrático, ao
contrário de países como África do Sul e EUA.
81

países, atentando para o fato de que o término da escravidão negra no século XIX não pôs
termo ao racismo.
Não obstante, o nosso olhar não pode deixar de considerar os entraves e conflitos
ocorridos no interior de cada conferência e dos respectivos documentos produzidos ao final
delas, uma vez que a ONU não constitui um bloco homogêneo e os países participantes
carregarem interesses específicos em decorrência das problemáticas enfrentadas em âmbito
local, o que inviabilizaria a conjugação de decisões multilaterais, ou seja, a efetivação de
medidas de erradicação de todas as formas de preconceito e discriminação não depende
exclusivamente da produção de normas estabelecidas pela ONU.
Paulatinamente, a ONU incorporava o debate acerca do racismo como ponto
central em seu rol de discussões. Entretanto, e como dito anteriormente, os meios para a
consecução dos objetivos – erradicação do racismo e das diferentes formas de preconceito –
não se efetivavam de maneira substancial, levando em consideração os índices de
desigualdades sociais em cada um dos países membros, e também a ocorrência de conflitos
raciais no mundo, tal como o apartheid na África do Sul.
O “passo à frente” dado pela ONU foi a criação de uma década de combate ao
Racismo, que já se inicia com a comemoração dos 25 anos da Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Silva e Pereira (2012) assinalam que a intenção era fomentar debates em
âmbitos regionais e nacionais que corporificassem esforços e dessem tônus para a realização
de uma conferência mundial, tendo como prazo de no máximo cinco anos após a criação da
referida década. A culminância dessas investidas foi a conferência ocorrida em Genebra, na
Suíça, no ano de 1978:

A Conferência preocupou-se mais enfaticamente com o Apartheid, com o


Neonazismo e o Fascismo que, segundo o plano de ação, estava grassando naquele
momento. Além destes, os direitos das minorias, dos povos indígenas e dos
migrantes eram pontos incluídos na declaração da Conferência. A África do Sul, a
Namíbia, o Zimbábue e a Palestina eram focos de maior atenção como violação dos
Direitos Humanos (SILVA; PEREIRA, 2012, p. 178).

Apesar de temas extremamente relevantes, e da produção de documentos que,


segundo Silva e Pereira (2012), viriam a potencializar a pressão por uma educação antirracista
no mundo, Alves (2002) entende que a conferência teve pouca envergadura diante do cenário
internacional, uma vez que teria acontecido na sede da ONU – em Genebra – como se fosse
uma reunião consuetudinária, sem ampla divulgação pelas mídias que, segundo este autor,
estavam mais inclinadas para a cobertura sobre o Apartheid na África do Sul.
82

De acordo com Alves (2002), diante de um período marcado pela bipolarização do


mundo, havia dois conflitos que chamavam maior atenção das mídias internacionais, pela sua
virulência e pela capacidade organizativa dos movimentos locais que os combatiam. O
Apartheid, na África do Sul, e as disputas religiosas no Oriente Médio, foram eventos
amplamente debatidos pelas mídias da época e se tornaram escopo central para as
conferências da ONU. Alves (2002) assinala ainda que a eleição de Nelson Mandela, em
1994, deu maior visibilidade mundial aos danos provocados pelo racismo.
A importância da eleição de Nelson Mandela à presidência da República da África
do Sul demonstrou que o racismo tem sido determinante na organização da vida política
mundial, uma vez que a refratária inclinação para a resolução de conflitos raciais no interior
de cada país, funciona como potencializador de desigualdades raciais, ou seja, a subida de um
negro como chefe maior de uma nação multirracial é apenas a parte mais visível das
dificuldades encaradas pelos negros cotidianamente.
Nesse sentido, o que Alves (2002) e Trapp (2011) chamam a atenção para o fato
de que a ONU tratou especificamente do problema do Apartheid sul-africano e que, por si só,
isso não seria o suficiente para estancar conflitos locais em países em que não havia um
sistema tão latente de exclusão racial, mas em que a sociedade estaria secularmente
estratificada por meio de uma pirâmide social a qual o negro sempre esteve na base.
Os movimentos negros brasileiros já denunciavam a inexistência de um paraíso
racial no Brasil, provocando debates que se escudavam por meio de dados estatísticos que
veiculavam índices alarmantes do abismo social entre negros e brancos. Segundo Alves
(2002) e Trapp (2011), esse fato é de valiosa reflexão, na medida em que até então a
preocupação da ONU ficou concentrada na resolução de conflitos pontuais, mas não na
materialização de uma agenda comum que congregasse vários Estados que pudessem propor
medidas que também contemplasse os seus casos específicos, até porque com a chancela da
ONU seria muito mais fácil pressionar os seus governos para a adoção de políticas públicas.
Segundo Alves (2002), nos primeiros anos da década de 1990 emergiam outros
grupos extremistas que ameaçavam a democracia, identificados como neonazistas, skinheads,
milícias armadas e supremacistas raciais de várias ordens, que surgiam especificamente em
países de conflitos raciais mais visibilizados na história, e posteriormente ganhavam adeptos
em outras partes do mundo. Com essas movimentações, não seria difícil de supor que logo
haveria algum tipo de pressão para que se houvesse alguma conferência que pudesse agregar
todos esses pontos.
83

Observando esse painel, os membros da ONU acreditavam na eficiência do


multilateralismo, visto que o fim do Apartheid decorria da conjugação de esforços
multilaterais, sendo, portanto, uma experiência positiva conquistada a longo prazo. Em
decorrência disso, a ONU lança a resolução 1994/2, que admitia uma conferência que tratasse
de temas de combate ao “Racismo, a discriminação racial ou étnica, a xenofobia e outras
formas correlatas de intolerância”. Tratava-se da inclusão de pautas gerais em que os
participantes pudessem apresentar problemas locais, redigir propostas e votar na aprovação de
um documento final.
Ao considerarmos a ONU enquanto uma entidade multilateral e composta por
diferentes países, de tendências políticas distintas e em conjunturas complexas, evidencia-se
que uma conferência dessa magnitude viria a trazer incômodos aos países historicamente
envolvidos em grandes conflitos raciais. Em um contexto de globalização, a exclusão social e
todos os problemas subjacentes ao racismo estariam ainda mais visíveis, o que dificultaria à
ONU, e aos países mais ricos, direcionar uma conferência para um único “problema alvo” e
propor algo menos global.
Por esse motivo, a Comissão de Direitos Humanos da ONU enfrentou
dificuldades ao propor esse tipo de evento quando expressou esta necessidade em reunião da
subcomissão no ano de 1995. O desenrolar desse pleito só teve efetivação no ano de 1997, a
partir da resolução 52/111 que “pelo Artigo 28 dessa longa resolução programática finalmente
decidiu-se convocar uma ´Conferência mundial sobre o racismo e a discriminação racial,
xenofobia e intolerância correlata`” (ALVES, 2002, p. 203).
Elencados os objetivos, que tinham como principal escopo a investigação dos
efeitos das medidas instadas em outras conferências, bem como a formulação de novas
orientações para o combate ao racismo, decidiu-se, portanto, sobre a convocação da
conferência mundial a ser realizada em Durban. Iniciar-se-ia, portanto, uma série de
preparações para a participação dos países na conferência, tanto em âmbito nacional quanto
regional.

4.2 Os eventos preparatórios

A pavimentação do caminho para Durban seria o próximo passo para o


movimento negro brasileiro. Para tanto, se fez necessário pensar estratégias de mobilização
local e continental, já que teria um árduo trabalho de seleção do quadro político que tomaria a
dianteira da discussão específica sobre os problemas nacionais, e também o diálogo com os
84

países da América Sul, exercendo o seu protagonismo, considerando o fato de ser o país com
o maior contingente de negros fora do continente africano, o histórico de lutas dos
movimentos negros brasileiros e os seus impactos na região.
É importante assinalar que, contemporaneamente, os movimentos negros no
Brasil reorientaram os seus escopos de organização em torno do princípio de identidade negra
a partir de um princípio transnacional, e isso impactou nos outros países latino-americanos.
Segundo Trapp (2011), esses movimentos deixaram de se organizar em torno do ideal de
identidade nacional e passaram a operar com uma mirada para o continente africano.
Logo, as novas articulações políticas em torno das lutas antirracismo se pautam
com vistas às experiências diaspóricas, porém vinculadas ao princípio de ancestralidade
comum africana. Desse modo, os vínculos e trocas locais e internacionais se intensificaram e
tonificaram a necessidade de fortalecimento de pontos tangenciais entre os negros na diáspora
latino-americana, no entendimento de que os problemas enfrentados seriam similares e a
solução viria a partir de uma agenda unificada.
Segundo Igreja e Agudelo (2014), muitos países da América Latina e do Caribe
iniciaram um processo de transformações em suas legislações orientadas pela mirada
multicultural, que antes havia sido dificultada pelo quase apagamento das identidades raciais.
A autora sinaliza que o final dos anos 1980 teria sido o período-chave para essas mudanças,
pois esse “giro multicultural” teria substancializado o princípio de alteridade imputado
primeiramente aos indígenas e, posterirormente, agregando as populações afros.
Os elos estavam conectados por uma série de confluências, e os eventos históricos
de colonialismo e escravização sinalizaram para o despertar da necessidade de uma revisão da
história que pudesse dar conta de compreender os processos de submissão à miséria ao qual a
população negra ainda sofre na contemporaneidade. Obviamente que ao pensarmos na
construção de uma identidade transnacional as diferenças devem ser salvaguardadas,
considerando as particularidades que engendram o processo de ocupação territorial feito por
cada povo em específico.
Entre a metade dos anos de 1980 e 1990 muitos estados latino-americanos e
caribenhos consolidam as medidas perseguidas há anos, que visavam o reconhecimento
institucional de suas identidades autóctones e de origem africana. Segundo Igreja e Agudelo
(2014), esse processo se deve, em parte, aos contributos de organismos internacionais que
85

ajudam a reorganizar as políticas públicas e em atender as demandas específicas dos grupos


que historicamente estiveram às margens do processo de cidadania desses países22.
É, portanto, possível que os movimentos negros latino-americanos tenham criado
uma interessante rede de contatos que possibilitaram o florescer de ideias que se
tangenciavam, e até mesmo as que continham certa conjuminância, para criar uma forte
mobilização que se fortaleceria no futuro, viabilizando a composição de parcerias que
confluiriam para o protagonismo da América do Sul na Conferência de Durban. Logo, partir
daquele período:

Em uma dinâmica de mútua retroalimentação, os ativismos nacionais apoiam-se nas


mobilizações transnacionais das reivindicações das populações negras, ao mesmo
tempo em que são, igualmente, o sustento dessas mobilizações (IGREJA;
AGUDELO, 2014, p. 16).

Observa-se, portanto, que uma série de eventos de suma importância se


materializam no caminho para Durban. Trapp (2011), Silva e Pereira (2012), Carneiro (2002),
Alves (2002), dentre outros autores que pesquisam a temática, entendem como marco para a
expansão do movimento negro brasileiro dos anos de 1990 a “Marcha Zumbi dos Palmares”,
ocorrida no ano de 1995 em Brasília, Distrito Federal. Segundo os autores, essa Marcha marca
a mobilização dos movimentos negros em direção às reivindicações mais contemporâneas em
relação à materialização de políticas públicas para a população negra, tonificadas por palavras
de ordem e propostas a serem discutidas em âmbito político institucional.
Cabe salientar que a celebração para os “500 anos de descobrimento. Encontro
entre dois mundos” (IGREJA; AGUDELO, 2014, p. 16), marcou um momento importante na
luta contra o racismo na América Latina. Segundo a autora, esse evento ocorrera em meio à
ampla mobilização dos movimentos negros e indígenas por legitimidade de autodeterminação
política e revisão do colonialismo. Para Silva e Pereira (2012), os protestos que marcaram
essa festividade poderiam, contraditoriamente, incorrer em um ponto negativo para a
preparação a ocorrer no Brasil.
Os protestos contra a referida festividade, na cidade de Porto Seguro, Bahia, em
abril de 2000, acarretavam em um clima de insegurança para que o Brasil pudesse sediar um
evento preparatório em âmbito regional. Silva e Pereira (2012) relembram de um episódio em
que uma imagem de um indígena em condições de extrema submissão ao sofrimento operado

22
Os autores citam os principais órgãos envolvidos no processo descrito. São mencionados “O Banco Mundial
(BM), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Organização das Nações Unidas (ONU), o
Programa de Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a Organização Internacional de Trabalho
(OIT), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a Organização
dos Estados Americanos (OEA)” (IGREJA; AGUDELO, 2014, p. 15).
86

pelo racismo brasileiro teria sido veiculada em vários países estrangeiros, e em decorrência
disso a delegação brasileira desembarcava em Genebra em meio a um clima de indignação
mundial.
Superado o problema, se fazia necessário entender que os eventos preparatórios
seriam a viga mestra da conferência, por isso a delegação brasileira não poderia ter um corpo
formado apenas por diplomatas, mas, sim, por uma composição heterogênea de perspectivas.
Ficou, portanto, a cargo da Fundação Palmares, na figura da ativista negra Dulce Pereira, o
equilíbrio necessário entre as forças políticas, mesmo porque à Fundação estava designada a
missão de “formulação estratégica, institucional e política da participação brasileira na
Conferência Mundial” (SILVA e PEREIRA, 2012, p. 105).
É importante registrar que, segundo Carneiro (2002), os eventos preparatórios
foram propiciados por meio da criação de um “comitê impulsor Pró-Conferência”, que foi
pensado e estruturado por ativistas e sindicalistas. Segundo a autora, o comitê teve o papel
preponderante ao elaborar a denúncia que tornou público o descumprimento do Estado
brasileiro em relação ao que se inscrevia nas conferências anteriores a Durban, se esquivando
da formulação de medidas de combate ao racismo, por conseguinte, permitindo o
agravamento das desigualdades raciais no país.
Desse modo, o comitê articulou as entidades negras brasileiras em torno de um
pleito comum, a denúncia do racismo no Brasil. Foi através da sistematização das demandas e
das perspectivas em relação ao combate ao racismo que o comitê elaborou o documento
balizador sobre os efeitos do racismo no país, possibilitando a formação das delegações que
estariam à frente na Conferência de Durban. Vale ressaltar que Carneiro (2012) destaca o que
Igreja e Agudelo (2014) também sinalizam, ou seja, sobre as composições dos países da
América Latina para a participação em Durban.

No plano internacional destaca-se a criação da Alianza Estratégica Afro-Latino-


Americana y Caribenha Pró III Conferencia Mundial del Racismo, que juntamente
com a chilena Fundação Ideas e outras organizações, assumiu a convocação da
Conferencia Ciudadana. Este foi o fórum paralelo das ONGs, que antecedeu a
Conferência das Américas, em dezembro de 2000, estabelecido com o objetivo de
fortalecer as alianças e coalizões entre ONGs e influir nas decisões da III
Conferência Mundial contra o Racismo e de seus eventos preparatórios
(CARNEIRO, 2012, p. 210).

Há, portanto, uma articulação latente entre o Brasil e os outros países do


continente, perpassado pelo crescimento das ONGs antirracistas e pelo fortalecimento dos
movimentos de mulheres negras. É importante assinalar que o protagonismo feminino
abrilhantou os contornos da participação do Brasil na construção da agenda de Durban, antes,
87

durante e depois da conferência. Trapp (2011) acentua que após as intervenções dos
movimentos de mulheres o debate acerca da “política de diferença” ganha novas dinâmicas
dentro dos movimentos negros, que se tornam ainda mais heterogêneos.
Não obstante, não se pode deixar de mencionar que houve contradições e
contrapontos em relação à organização brasileira para a participação na Conferência de
Durban. A mais evidente se dá no processo de escolha da sede para a preparação, tendo em
vista uma declaração dada pela militante Dulce Pereira na plenária oficial da I PrepCon
(Conferência Preparatória para a III Conferência Mundial) alegando que o Brasil não teria
condições de sediar a conferência continental, quando afirmou que “[e]ntre outras razões, o
próprio Movimento Negro estaria contra o Brasil sediar aquela Conferência” (SILVA;
PEREIRA, 2012, p. 106).
De fato, foi uma declaração que gerou grande contenda política, mas que
necessitava ser analisada com certa ponderação, pois a presidenta da Fundação Palmares
naquela época (Dulce Pereira) já havia sido uma aguerrida militante do movimento negro
desde a década de 1970. Silva e Pereira (2012) sinalizam que a gestão de Dulce Pereira na
Fundação Palmares esteve atravessada por diversas disputas, pressões e apoios, já que a
mesma esteve em dois lados opostos na briga política partidária, afetando também as
avaliações dos setores dos movimentos negros. Sobre esse episódio, os autores concluem que
a declaração, além de inflamar os ânimos, se originava de uma complexa rede de embates
políticos e ideológicos.
O desgaste ocasionado por essas declarações precisou ser manejado pelo governo
brasileiro, na figura do presidente Fernando Henrique Cardoso, já que havia muito pouco
tempo para que o país organizasse um comitê preparatório para a Conferência. Cabe salientar
que a criação do Comitê Nacional para a Preparação Brasileira para a Conferência a se
realizar em Durban, se deu justamente pelo clima de disputas e insatisfações que ocorriam no
âmbito das tomadas de decisões do governo, mas também em face à articulação dos
movimentos negros.
Silva e Pereira (2012) lembram que a Fundação Palmares buscou fortalecimento
através do convite de importantes intelectuais negros para assessorá-los durante o processo.
Eles sinalizam também para o fato de que a presidenta da Fundação teria assumido um cargo
de embaixadora, sendo designada à presidência da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa – CPLP, acarretando na substituição por Carlos Moura.
Não se pode perder de vista que as atividades aconteciam concomitantemente e
em um forte ritmo de trabalho. Eram reuniões nacionais e regionais que debatiam
88

intensamente as estratégias mais coerentes de posicionamento em uma Conferência Mundial


que poderia mudar os rumos do combate ao racismo no interior de cada país. Por isso a troca
de experiências internacionais contribuía significativamente para novos arranjos políticos e
epistemológicos, resultando em novas organizações que articulavam conhecimentos.
Igreja e Agudelo (2014) chegam a mencionar a “Alianza Estratégica
Afrolatinoamericana y Caribeña”, fundada no ano de 2000, como uma potente rede de
organização política que se soma a outras já atuantes no continente. Para eles, o principal
evento preparatório continental da América do Sul para a Conferência de Durban, ocorrido
em Santiago, no Chile, no ano de 2000, marcou significativamente a luta contra o racismo na
América do Sul, pois dali se articularam as alianças necessárias para a obtenção do
protagonismo em Durban.
No plano interno há também uma informação de suma importância, que diz
respeito à multiplicidade de lideranças de movimentos sociais, negros, indígenas e de
mulheres negras, que se mostravam dinâmicos na construção da agenda brasileira de Durban,
que contaria com um novo presidente para o Comitê Impulsor, o Secretário de Direitos
Humanos do Ministério da Justiça, Gilberto Sabóia, que esteve ativo em todo processo de
preparação e também em Durban.
Ainda que internamente o Brasil possuísse contradições e entraves, houve a
formação de uma consistente delegação, que tomou o protagonismo da América Latina para si
e se articulou de modo sistemático com os países vizinhos. O resultado disso se consubstancia
na adesão do termo “afrodescendente” como conceito-chave para oficializar uma identidade
comum em meio à abrangente diversidade encontrada em diversas regiões e contextos
políticos específicos. Nesse ponto Silva e Pereira (2012) concordariam com Trapp (2011),
Igreja e Agudelo (2014), na medida em que se torna aberto um leque para as identidades
transnacionais estarem identificadas entre si. Diante disso:

Abria, ainda, uma brecha conceitual para a vinculação África/Diáspora, fundamental


para a luta (que se adivinhava árdua) por reparações – a principal bandeira dos
povos negros/afrodescendentes na III Conferência Mundial (SILVA: PEREIRA,
2012, p. 108).

Nota-se que se trata de uma forma genérica, mas unificadora de uma identidade
comum que vincula diversas categorias à apenas uma, funcionando como estímulo para
políticas públicas que abarcam as demandas negras sem a necessidade de uma intensa
fragmentação em face de diferenças que engendram outras especificidades, não
necessariamente decorrentes dos efeitos da diáspora nem por isso menos importante. Nesse
89

sentido, o uso do termo afrodescendente “não esgota, contudo, o debate e o uso de outras
formas de nomear as populações negras” (IGREJA; AGUDELO, 2014, p. 17).
Após a conferência de preparação ocorrida no Chile, o movimento negro
brasileiro necessitou fazer um balanço de todos os debates e buscar uma unificação dos
pleitos para a participação em Durban. De acordo com Silva e Pereira (2012), houve dois
momentos cruciais que marcam a tentativa de unificação da agenda do movimento negro
brasileiro no plano interno, que foram as Plenárias Nacionais de Entidades Negras.
A primeira ocorreu em São Paulo, no mês de julho do ano 2000, em que se
discutiu a eficiência de articulação política para intervir com qualidade na conferência. A
segunda ocorreu em virtude de uma convocação para uma reunião nacional feita pelo Comitê
Impulsor, no qual a principal deliberação foi dada em função da necessidade de realização de
um seminário nacional para aprofundar as estratégias de participação do movimento negro e
como seria possível adquirir recursos por meio de parcerias fora do âmbito da militância.
Após essas conversas, finalmente fora realizada a II Plenária Nacional de
Entidades Negras, ocorrida em três dias na cidade do Rio de Janeiro. Para Silva e Pereira
(2012), esse encontro foi sumamente importante para a militância do movimento negro, uma
vez que funcionou como o espaço para elucidações e, sobretudo, a “última” formação para o
movimento negro participar da Conferência de Durban. Neste Clima,

Era visível que (e quanto) a maior parte da militância desconhecia as características


de uma Conferência Mundial e das possibilidades, dos espaços, das formas de
participação. E esse desconhecimento transbordava ansiedade, contrastando com a
serenidade de membros de ONGs Negras, senhoras daquele contexto (SILVA;
PEREIRA, 2012, p. 110).

Os autores assinalam ainda que o papel das ONGs negras foi preponderante para
fortalecer a compreensão acerca da postura esperada da militância do movimento negro na
Conferência. Além disso, passava quase que necessariamente pelo crivo das ONGs negras os
nomes de quem iria para Durban, afinal elas eram as principais mediadoras que dialogavam
com as agências que poderiam financiar a participação de grande parte da delegação
brasileira.
As principais ONGs que articularam investimentos para a participação brasileira
foram o Centro de Articulação das Populações Marginalizadas – CEAP/RJ e o Centro de
Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT/SP, que, sobretudo, mantiveram
estreita relação com a Fundação Ford, angariando os recursos necessários para a mobilização
de todo o processo de construção da participação brasileira. Nem por isso podemos deixar de
mencionar o protagonismo de ONGs negras como Geledés, Criola e a Casa de Cultura da
90

Mulher Negra (CCMN), responsáveis por debates importantíssimos que alertavam para a
situação da mulher negra23.
Por fim, ainda é preciso registrar que no mês de maio também ocorreu a II
Prepecon, em Genebra, Suíça. Segundo Silva e Pereira (2012), nesse evento ficou firmado o
conceito de “preparação”, tornando nítido o que se esperava em relação à postura dos
militantes na conferência, além de todo arcabouço sistêmico da dinâmica da conferência, ou
seja, os temas, as redações, os detalhes conceituais e todas as informações atinentes ao
andamento das pautas. Eles afirmam que as ONGs foram bem recebidas quanto às suas
contestações e contribuições direcionadas sobre as delegações que representavam os
respectivos países.

4.3 A Conferência e os seus desdobramentos

Acreditamos que a igualdade de oportunidades real para todos, em todas as esferas, incluindo a do
desenvolvimento, é fundamental para a erradicação do racismo, discriminação racial, xenofobia e
intolerância correlata (Declaração de Durban e Plano de Ação, p.30).

De acordo com Alves (2002), Silva e Pereira (2012), Trapp (2011), Igreja e
Agudelo (2014) e Carneiro (2002), a Conferência de Durban fora marcada pela massiva
participação dos movimentos sociais, sobretudo os movimentos sociais negros, com destaque
para o movimento negro brasileiro e a sua articulação com os países latino-americanos, que
propuseram importantes pautas que foram acrescentadas ao documento final e demonstraram
para o mundo – sob a ótica de quem sofre racismo e outras formas de preconceito – sobre a
necessidade de políticas focais para os grupos historicamente marginalizados das Américas do
Sul e Central, e também do Caribe.
Apesar de todo um processo que demonstrou a intensa garra dos movimentos
sociais em busca de melhores condições de vida e relacionamento entre as pessoas, a
Conferência de Durban passou por diversos entraves que ameaçaram desde a sua existência

23
Cabe salientar que existe um extenso debate acerca da renovação dos movimentos sociais a partir dos anos de
1990. Segundo Ferrari (2014), a nova dinâmica incorporada por esses movimentos se entende por conta da
permutação em relação aos papéis desempenhados por membros diretos da sociedade civil organizada,
transferindo competências para organizações que também se articulam em torno de transformações sociais,
porém, mediadas por atores que não estão diretamente envolvidos nas ações militantes dos movimentos
sociais. De acordo com o autor, esse fenômeno é conhecido como “onguização” dos movimentos sociais.
Ferrari (2014) e Dagnino (2014) concordam que a tomada das ONGs em relação a sociedade civil acarreta em
problemas para os movimentos sociais, na medida em que há um afastamento entre elas e os ativistas que não
participam dessas ONGs, pois, segundo os autores, os interesses políticos em torno de articulação com o
estado e financiamento para o desenvolvimento dos trabalhos ofertados para os seus públicos, são fatores
fundamentais para a compreensão da tensão que se estabelece entre os movimentos sociais e as ONGs, desde
os anos de 1990.
91

até o seu término, que fora sempre salvaguardados pela insistência dos ativistas, resultando
em propostas substanciais e que ecoam, sobretudo, no momento político posterior, quando se
firmam a garantia de direitos e deveres, para cidadãos e para os Estados presentes.
Quando sinalizamos que houve conflitos na conferência, nos reportamos a
problemas que parecem de natureza quase insolúvel, como, por exemplo, os debates em torno
dos conflitos entre Israel e Palestina, os quais as nações mais ricas do mundo se posicionam
em favor da manutenção do conflito até que haja um acordo político que, de modo geral, não
é aceito pela Palestina – lado economicamente mais fraco – pelo fato de entender que as
relações estabelecidas sinalizam ganhos desiguais (ALVES, 2002).
De acordo com Alves (2002), o que mais chamou a atenção, porém sem constituir
nenhuma surpresa, foi a postura dos EUA na Conferência, negando-se a debater as questões
do Oriente Médio, colocando-se “incondicionalmente” ao lado de Israel e esvaziando um
debate mais horizontal para a proposição de medidas de natureza antidiscriminatórias em
relação aos povos daquela região, em especial aos palestinos, e tanto pelos próprios norte-
americanos quanto aos israelenses.
A celeuma se deu, de modo mais efetivo, em torno da busca, por parte dos árabes,
em classificar o sionismo como uma forma de racismo, ou seja, em imputar aos judeus uma
nova categoria de holocausto, o que, consequentemente, equipararia o Estado de Israel à
Alemanha nazista de Adolf Hitler. Esse pleito trouxe consequências aos árabes e à
conferência, pois

Ao se apropriar de um dos mais dolorosos momentos da História do Século XX, a


fórmula do “novo holocausto”, ou como aparecia em certas propostas, a referência a
“Holocaustos” no plural, banalizaria o extermínio metódico dos judeus nos campos
nazistas como um fenômeno não-excepcional (ALVES, 2002, p. 204).

Esse embate acarretou no abandono dos EUA e Israel da Conferência, cabendo,


entretanto, registrar que os EUA e Israel já haviam protagonizado outras retiradas de
conferências, quando em 1978 – em conferência contra o Racismo, já citada neste capítulo –,
junto com outras nações ocidentais, esvaziaram as negociações e possibilidades de acordos
naquela que seria a primeira conferência da ONU para o combate ao Racismo. A segunda
retirada se deu em 1983, em Genebra, dessa vez acompanhada pela África do Sul (ALVES,
2002).
Os entraves que giraram em torno dessas polêmicas ocuparam bastante espaço na
Conferência e causou muito desgaste aos outros países, que também tinham as suas demandas
e buscavam o apoio internacional, com a chancela da ONU, para propor intervenções no
92

interior de suas sociedades. A delegação brasileira também esteve atenta ao debate e votou
contrária à proposta de equiparação do sionismo ao racismo, uma vez que, segundo Alvez
(2002), as autoridades competentes nas Nações Unidas também já sinalizavam para o
encerramento dessa questão24.
Assume-se sumamente importante sublinhar que as delegações do Brasil e do
México tomaram as rédeas da coordenação de grupos de trabalho e serviram como
mediadoras das conflitantes posições dos participantes e redigiram importantes parágrafos
para a Declaração Final e para o Plano de Ação de Durban, tudo tendo como base os
anteprojetos trabalhados anteriormente nas conferências preparatórias. Essa posição assumida
tanto pelo Brasil quanto pelo México, foi um desdobramento da decisão da ministra das
Relações Exteriores da África do Sul, Nkosazana Zuma, após entender que as questões
atinentes ao Oriente Médio causavam desgaste na Conferência e não contribuía para a sua
fluência25.
Embora houvesse entraves como os até aqui apresentados, a Conferência flui para
importantes conquistas, muitas delas já operacionalizadas em âmbito continental e nacional,
uma vez que parte das propostas historicamente levantadas pelos movimentos negros passam
a ser atendidas, talvez reconfiguradas de acordo com outros arranjos, possibilidades e
contrapropostas apresentadas pelos Estados, o que não reduz a importância das conquistas
logradas em Durban. Segundo Carneiro,

Durban ratificou as conquistas da Conferência Regional das Américas, incorporando


vários parágrafos consensuados em Santiago do Chile e tornou o termo
“afrodescendente” linguagem consagrada nas Nações Unidas, assim designando um
grupo específico de vítimas de racismo e discriminação. Além disso, reconheceu a
urgência de implementação de políticas públicas para a eliminação das desvantagens
sociais de que esse grupo padece, recomendando aos Estados e aos organismos
internacionais, entre outras medidas, que “elaborem programas voltados para os
afrodescendentes e destinem recursos adicionais aos sistemas de saúde, educação,
habitação, eletricidade, água potável e as medidas de controle do meio ambiente, e
que promovam a igualdade de oportunidades de emprego, bem como outras
iniciativas de ação afirmativa ou positiva” (CARNEIRO, 2002, p. 212)26.

Partindo dessa inferência, percebe-se que a Conferência de Durban, a despeito de


imprevistos técnicos e de debates acalorados, que se potencializam no fervor das emoções do

24
Importante dizer que nos referimos ao secretário-geral Kofi Annan e à alta comissária para os Direitos
Humanos, Mary Robinson.
25
Segundo Alves (2002), o Brasil fora representado pela figura do Embaixador Gilberto Sabóia, ao qual coube
coordenar as “questões históricas”, auxiliado e assessorado por Quênia, Noruega e Namíbia, uma vez que
havia a necessidade de dialogar com os documentos do Acordo de Oslo e sobre os conflitos no Oriente
Médio.
26
Importante dizer que o que está entre aspas foi retirado do Parágrafo 5 do Programa de Ação da Conferência
de Durban.
93

contato pessoal, manteve certa harmonia e coesão, dado um caráter pré-moldado em face do
que já havia sido debatido em conferências preparatórias, cabendo, portanto, apenas os ajustes
necessários para aprovação e validação em âmbito global.
Uma característica importante sinalizada por Silva e Pereira (2012), Carneiro
(2002), Trapp (2011), Alves (2002), Igreja e Agudelo (2014), é que pela primeira vez há um
reconhecimento internacional acerca da positividade das heranças africanas na formação de
outros povos, fora dos limiares do continente africano, que ultrapassa o âmbito da cultura e da
religiosidade, uma vez que se assume a importância de elementos ligados à economia, lido
com a saúde, aportes e métodos educativos etc., como basilares para o modo de vida que
forja, ainda hoje, as sociedades com histórico de imigração de grande contingente de pessoas
oriundas dos países africanos.
Reside daí o fato de que acadêmicos e sujeitos ligados a militância dos
movimentos negros brasileiros e dos países da América Latina tenham desenvolvido
pesquisas, teses e um cabedal de epistemologias que foram reconhecidas como elementos-
chave para entender a formação social dos países que compõem este bloco. Essa é uma grande
conquista, já que existe um expressivo número de autores que denunciam que a
intelectualidade brasileira tende a analisar esta sociedade de maneira compartimentada, ou
seja, tematizando o negro como elemento alienígena à formação social deste país27.
O entendimento é o de que apesar da importância dos negros na formação da
sociedade brasileira, os mesmos estiveram às margens do processo de modernização do país,
uma vez que as suas desvantagens em relação às pessoas brancas foram potencializadas por
meio do racismo, cabendo a organização de políticas que pudessem lhes oportunizar meios
para acompanhar o desenvolvimento social e político observado no mundo desde a segunda
metade dos anos de 1990.
Nesse sentido, a Conferência de Durban fora o marco organizativo de lutas
históricas dos movimentos negros, pois estabeleceu uma direção baseada em um orientador
normativo que tornaria possível a adoção das medidas cabíveis para a redução do abismo
social entre negros e brancos, propiciado por questões históricas atravessadas pelo racismo.

Em suma, os documentos aprovados em Durban instam os Estados a adotarem a


eliminação da desigualdade racial nas metas a serem alcançadas por suas políticas
universalistas. No Brasil, isso equivaleria, por exemplo, a alterar o padrão de
desigualdade nos índices educacionais de negros e brancos, que, segundo o IPEA,

27
Podemos citar Guerreiro Ramos (1957), Muniz Sodré (1988, 2000 e 2014), Milton Santos (2007), dentre
outros. Os autores citados foram debatidos ao longo da tese e as suas obras constam nas referências
bibliográficas.
94

manteve-se inalterado por quase todo o século XX, apesar da democratização do


acesso à educação (CARNEIRO, 2002, p. 213).

De modo geral, estes tipos de encaminhamentos se inscrevem no rol das ações


afirmativas e dão ensejo para políticas que são descritas com essa natureza, desde as
chamadas “cotas raciais” no Brasil, até a lei 19.122 no Uruguai, sobre a qual falaremos
adiante. Apesar da positividade das cotas raciais, é preciso advertir ao que chama atenção
Carneiro (2002), afirmando que aos desdobramentos da Conferência de Durban não se
encerram na adoção de medidas afirmativas concentradas nas cotas raciais para negros nas
universidades, já que “é o desafio de eliminação do fosso histórico que separou essas
populações dos demais grupos, o qual não pode ser enfrentado com a mera adoção de cotas
para o ensino universitário. Precisa-se delas e de muito mais” (CARNEIRO, 2002, p. 213).
É interessante perceber que ainda que se tenha estes encaminhamentos, no seio da
conferência o debate sobre ações afirmativas foi motivo de bastante contenda política, até
porque já haviam discussões internas no país que cunhou o conceito, os EUA. Os entraves
estavam potencializadas pelo fato de que a alternância de poder e de perspectivas
governamentais (Estados) daquela nação divergiam em relação ao tema e engendravam
diferentes propostas para lidar com as políticas de inclusão de negros nos diferentes setores
produtivos daquela sociedade. Desse modo,

A expressão corrente ação afirmativa foi banida da Conferência, por mais que os
movimentos negros – inclusive o brasileiro – e outros grupos organizados presentes
ao evento a defendessem. E foi banida exatamente pelo país que a inventou, na
linguagem e na prática: Os Estados Unidos. Isso porque, como é sabido, ainda nos
tempos do democrata liberal Bill Clinton, alguns Estados norte-americanos,
começando pela Califórnia, já a haviam legalmente abolido (ALVES, 2002, p.2007).

Nota-se que as perspectivas e decisões internas dos EUA foram motivos de


celeuma na Conferência, confirmando que o poder econômico daquele país poderia ser
decisivo para o destino de outras nações, mantendo a relação de subordinação aos ditames do
capital estrangeiro. Esse fato se consubstancia porque ao redor dos mandatários norte-
americanos há uma rede de proteção e fidelidade, materializada pelos países que são os seus
aliados.
Nesse sentido, eram grandes as chances de se manterem vivas as decisões
estadunidenses, ainda com a sua ausência após retirada, uma vez que a sua rede de proteção
estava consolidada e presente na Conferência, na figura dos seus aliados. Desse modo, “de
nada adiantou, para a linguagem dos documentos, a retirada dos Estados Unidos. Seus aliados
mais fiéis presentes zelaram para que a expressão, hoje universalmente consagrada, não
reaparecesse em qualquer parágrafo” (ALVEZ, 2002, p. 2008).
95

Embates dessa natureza não obscureceram os ganhos da Conferência, sobretudo


para as populações latino-americanas, uma vez que o protagonismo de países desses
continentes (América do Sul e Central) foram fundamentais para que se materializassem
transformações internas e a possibilidade de fortalecimento de redes entre os movimentos
sociais proponentes de medidas de equidade social para as populações historicamente
marginalizadas.
De acordo com Igreja e Agudelo (2014), a Conferência de Durban fora um
“Instrumento Estratégico”, já que pôs na dianteira das prioridades da ONU, a intensificação
de medidas de melhoria nas condições de vida e oportunidades para os afrodescendentes dos
continentes latino-americanos, pois constituem a parcela com as piores condições financeiras
e acesso a bens e serviços em suas sociedades. Desse modo,

Em geral, as avaliações demonstram mudanças qualitativas em termo de inclusão da


problemática afro-latino-americana nas agendas políticas globais (especialmente dos
organismos internacionais) e nas agendas na maioria dos governos da região que, em
alguns casos, manifestam-se mediante reformas constitucionais e, em outros casos,
por meio de leis e decretos ou a criação de instâncias específicas dos governos que
tratem de seus assuntos (IGREJA ; AGUDELO, 2014, p. 16).

Essa afirmação é crucial para que possamos focar em uma avaliação mais
aproximada possível para perceber como os governos estão pondo em prática os
desdobramentos dessa conferência. Daí a nossa inclinação para entender o panorama de Brasil
e Uruguai frente à conjuntura do pós-Durban, uma vez que são dois países que estiveram
bastante ativos – na figura dos seus ativistas de movimentos sociais – naquela conferência,
bem como o fato de possuírem um extenso histórico de lutas dos movimentos negros.
Há, nesse sentido, uma transformação, também, no panorama dos agenciamentos
políticos dos movimentos negros, já que foram necessárias adequações de governos e
movimentos para o trato com as novas demandas e direcionamentos em âmbito internacional
para as questões atinentes ao combate ao racismo.

Nesse sentido, em alguns países, a visibilidade adquirida pelas expressões políticas


ou associativas negras representa um avanço em relação ao panorama de finais dos
anos 80. Superando uma espécie de invisibilidade política, os movimentos negros
passam a fazer parte dos interlocutores do debate político nacional, uma vez que o
tema das políticas de reconhecimento e a luta contra a discriminação racial ocupam,
desde então, um lugar primordial nas agendas dos governos da região (IGREJA;
AGUDELO, 2014, p. 16)

A Conferência de Durban foi, portanto, um importante marco que direciona tanto


as políticas públicas que se assumem após o seu término quanto na organização dos
movimentos negros latino-americanos em suas prévias para a participação naquele evento.
96

Em ambos os momentos – o antes e o depois – os dados estatísticos se tornaram elementos-


chave para a demonstração das desigualdades raciais no continente, se transformando na
justificativa inconteste para a consolidação de políticas públicas para a equidade racial.
Apesar de ter se transformado em um marco organizativo para os movimentos
negros dos continentes latino-americanos, é possível observar um declínio no que diz respeito
às articulações internacionais entre os movimentos negros desses países. Segundo Igreja e
Agudelo (2014), esse fato é observável através do que eles chamam de “intermitência do
funcionamento das redes transnacionais”. Isso se dá em função de uma mirada mais
introspectiva, ou seja, da necessidade de organização mais orgânica da conjuntura interna,
desequilibrando, ou dando menor ênfase, para os câmbios internacionais.
Internamente, os países latinos que participaram de Durban voltaram com um
enorme desafio de implantar e implementar ao máximo as políticas que pudessem se ajustar
ao plano de ação confeccionado na conferência. É interessante observar que os documentos
finais de Durban se transformam em um processo, gradual, porém, lento, na medida em que
os índices de desigualdades raciais não declinam da maneira desejável (IGREJA; AGUDELO,
2014).

4.4 Considerações sobre o Pós-Durban

Para finalizar o nosso olhar sobre Durban, é importante salientar que a


Organização das Nações Unidas – ONU desde a sua fundação, em 1945, precisou ser
rediscutida em face da dinâmica transformação do mundo contemporâneo, com os seus
conflitos internacionais e locais, os quais surgiram novos atores e coletividades que fizeram
circular ideias e propostas diante dos eventos os quais estiveram e estão inseridos na condição
de ativistas.
Desse modo, os movimentos sociais e ativistas são erigidos à condição de
elementos fundamentais a terem voz em âmbito internacional, já que as grandes diretrizes
para o apaziguamento de conflitos que envolviam diversas questões que ferissem as questões
humanitárias viriam da ONU, mas o detalhamento das condições reais sobre os efeitos
cotidianos de um embate – de qualquer natureza – somente é percebido, e estrategicamente
compreendido, à luz de quem se faz presente no território.
Este contato mais direto entre a ONU e os movimentos sociais deu-se a partir da
ECO 92, tendo em vista que durante a década de 1990 a ONU inaugura em ciclo de
conferências sociais que confluem para a Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, a
97

Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, no ano de 2001,


realizada em Durban, África do Sul. Listamos as referidas conferências abaixo.
Conferências da Organização das Nações Cidade, País e Ano
Unidas – ONU Durante a década de 1990
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Rio de Janeiro – Brasil / 1992
Ambiente e o Desenvolvimento – ECO 92
Conferência Mundial sobre Direitos Humanos Viena – Áustria / 1993
Conferência Internacional sobre População e Cairo – Egito / 1994
Desenvolvimento
Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social. Copenhague – Dinamarca / 1995
2ª Conferência Mundial Sobre os Assentamentos Istambul – Turquia / 1996
Humanos - HABITAT II
Conforme trabalhado ao longo do capítulo, se percebe que toda tomada de decisão
é bastante delicada e necessita de uma série de eventos que discutam estrategicamente quais
as melhores propostas a serem encaminhadas. Esse fato confirma a importância dos
movimentos sociais na construção de melhores sociabilidades no interior dos países,
sobretudo naqueles que passaram por um longo processo de colonização e estão em
desenvolvimento econômico.
Os ativistas negros e os movimentos negros se tornaram os maiores protagonistas
na ONU, no processo preparatório e durante a conferência em questão, tendo em vista que
grande parte dos conflitos de repercussão internacional tem a questão étnico-racial como
principal vetor, e, geralmente, ocorre em países subdesenvolvidos, tendo as populações negras
como as maiores prejudicadas. Esse fato sinalizou para a ONU a necessidade de combater o
racismo, já que se deve considerar a questão racial como fator preponderante na formação das
sociedades multirraciais.
Diante de tantos embates, tensões e negociações, a ONU, os ativistas e os
movimentos sociais acumularam aprendizados e amadureceram a concepção de que era
necessário organizar uma pauta que conseguisse gerar um impacto comum e pudesse
promover medidas de combate e prevenção ao racismo. Isso se deu paulatinamente e com a
cooperação de diferentes forças políticas.
Durban surge desses esforços e produziu um documento que se transformou em
peça fundamental na tentativa de equilíbrio racial em países com grandes desigualdades entre
negros e brancos. Na América Latina, os movimentos negros brasileiros e uruguaios se
98

destacaram por compreender a importância da Conferência e, por conseguinte, buscar


construir articulações nacionais e internacionais que possibilitassem bases sólidas para
participar ativamente e, consequentemente, retornar com resultados positivos que
possibilitariam pôr em prática reivindicações históricas no seio de suas sociedades.
O que se observa na prática do pós-Durban é necessariamente algumas conquistas
importantes em ambos os países, que, no entanto, experimentam amargamente a falta de
ampliação dos seus pleitos devido a problemas políticos, governamentais e de ordem
histórica. Todavia, com as bases estabelecidas e os objetivos bem delimitados, os movimentos
negros continuam pressionando os seus Estados para satisfazer aquilo que lutaram para ser
reconhecido em Durban, bem como a atender as novas demandas que surgem na dinâmica
transformação de suas sociedades.
Portanto, a Conferência de Durban fora um momento importante e especial para o
mundo, e em especial para os países da América Latina. Isso nos motivou a pesquisar o Brasil
e o Uruguai, cabendo uma reflexão mais abrangente em relação aos seus impactos em cada
um desses países e como os seus movimentos negros estiveram à frente do processo de
fortificação de políticas indispensáveis para a democratização do acesso e do conhecimento
em âmbito educacional que venham a equilibrar as desvantagens históricas sofridas pelas
populações negras, conforme expresso nos próximos capítulos.
99

5 O PANORAMA NO URUGUAI

Convocamos os Estados a se preocuparem e em honrar a memória das vítimas de tragédias do


passado, e afirmamos que onde e quando quer que tenha ocorrido, devem ser condenados e sua
recorrência evitada (Declaração de Durban e Plano de Ação, p.35)

Após refletirmos acerca do debate racial brasileiro, tendo como escopo principal a
apresentação do percurso histórico do movimento negro desde 1980, em sua dimensão
organizativa e reivindicativa e dentro de cada conjuntura política e social ao qual se inscrevia,
e sempre observando a evolução do cenário educacional, a nossa tese se concentrará agora em
analisar sobre o contexto uruguaio e entender como os movimentos negros de lá se preparam
para a Conferência de Durban e quais as suas conquistas posteriores.
O Uruguai é um dos países que compõem a América Platina, juntamente com o
Paraguai e com a Argentina, tendo sido fruto de disputas entre portugueses e espanhóis desde
o século XVII, acarretando na vitória dos espanhóis e, portanto, possuidores do direito de
exploração e colonização sobre aquelas terras.
Mais tarde, já no século XIX, o Brasil se une à Argentina (Províncias Unidas do
Prata) e intensifica um ataque contra o Uruguai, pois temia o ímpeto revolucionário do
general José Artigas, que carregava como bandeira de luta os ideais antiescravistas e
republicanos, ameaçando a soberania dos governos portugueses das províncias ali próximas.
Por esses motivos, a Coroa portuguesa anexa o território uruguaio ao Brasil sob o nome de
Província Cisplatina e a controla até o ano de 1828, quando se reconhece a independência do
Uruguai28.
Tendo passado por um intenso processo histórico que envolve disputas territoriais,
crises, ajustes políticos e econômicos, o Uruguai apesar de não fugir muito de uma tendência
geral dos países da América Latina – pelos motivos supracitados –, possui, hoje, um estado de
bem-estar social muito diferente dos seus vizinhos, apresentando índices de qualidade de vida
que lhes renderam o título de “Suíça da América do Sul”. Como teria o Uruguai conquistado
esses índices?
Dois aspectos cruciais se inscrevem no fato de que o Uruguai possui uma pequena
faixa territorial, com cerca de 176.220 Km² entre os seus dezenove departamentos, os quais
não possuem grandes obstáculos geográficos, pois se trata de um país plano, ao nível do mar,

28
Consultado em: CAÉ, Rachel da Silveira. Escravidão e Liberdade na Construção do Estado Oriental do
Uruguai (1830-1860). Dissertação de Mestrado em História da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro – UNIRIO. Ano: 2012. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/2451/e-verdade-que-o-
uruguai-ja-fez-parte-do-brasil. Acesso em: 25 mar. 2019.
100

e com o ponto mais alto de apenas 514 metros, no Cerro Catedral 29. Estes atributos
geográficos permitem melhor circulação de bens e pessoas, não exigindo grandes esforços
para cruzar o país.
Outro aspecto que pode ter contribuído para uma satisfatória organização
territorial do Uruguai é o fato de não possuir um contingente populacional muito numeroso. O
censo mais atualizado naquele país contabilizou um número de 3.286.314 pessoas, o que não
pode ser considerado como números absolutos tendo em vista as variáveis da pesquisa, como
podemos observar:

El Censo 2011 fue el primer censo nacional de poblacíon que se realizó bajo la
metodologia “de derecho” y que utilizó dispositivos electrónicos portátiles (DEP)
para la captura de la información. La población total contabilizada fue de 3.286.314
personas, una cifra que se obtiene al sumar la población censada (3.252.091
personas) y la estimación de la cantidad de personas residentes em vivendas
particulares censadas con moradores ausentes (34.223 personas). De acuerdo al
informe de resultados finales difundido por el INE, la población residente en
Uruguay se estima en 3.390.007 personas (INEa, 2012) (CABELLA; NATHAN;
TENENBAUM, 2013, p. 10).

Como podemos perceber, o Uruguai é um país que atende bem a proporção


populacional distribuída em seus dezenove departamentos, sendo a sua capital, Montevidéu, o
departamento mais populoso com cerca de 1.381 milhões de habitantes. Daí se pode ter a
dimensão de como estes números podem se desdobrar em diversos fatores que venham a
culminar na organização espacial de Montevidéu.
Dito isto, afirmamos que o Uruguai é um país com uma longa e complexa história
que pode ser narrada por diversos ângulos e momentos históricos específicos. Nesse sentido,
nos debruçamos apenas em apresentar os elementos cruciais acerca da situação
contemporânea dos negros no Uruguai e analisaremos algumas questões importantes, por
meio de entrevistas que fizemos naquele país, no período que compreendeu entre janeiro e
fevereiro de 2019 na cidade de Montevidéu, quando conversamos com militantes dos
movimentos negros uruguaios, pessoas que estiveram na Conferência de Durban no ano de
2001, pessoas que se mantêm ativos na militância e pessoas que estão responsáveis por gerir
políticas públicas para a população negra.
De modo geral, o que podemos assegurar é que apesar de conquistas legais terem
sido materializadas, como o fim do regime escravocrata, o modelo de sociedade estruturado
desde os séculos anteriores manteve uma hierarquia racial que dificultou a mobilidade social
ao negro, impossibilitada por meio de acesso restrito à cidadania, distanciado pelos elementos

29
Informações disponíveis em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Geografia_do_Uruguai. Acesso em: 25 mar. 2019.
101

simbólicos operacionalizados cotidianamente para marcar uma hierarquia baseada em


critérios raciais.
Nesse sentido, tanto ao analisarmos o censo de 2011 quanto ao examinarmos a
bibliografia utilizada até aqui, será possível sinalizar que a ausência de dados
socioeconômicos acerca da população negra é um fator que atravessou a história do Uruguai,
não havendo a possibilidade de se quantificar e qualificar a situação dos negros naquele país.
Esse fato engendra uma tendência para a homogeneização da população em torno de uma
única raça, invisibilizando o negro, bem como as contradições do discurso oficial uruguaio.
Segundo Frega, Chagas, Montaño e Stalla (2008), esse cenário se torna ainda mais
problemático a partir da produção de um livro que teria a missão de organizar a história do
Uruguai e se tornar a narrativa oficial do país. O livro do Centenario del Uruguay teria sido
uma maneira de retroalimentar o imaginário social e formatar o sentimento de pertença
daquele território nacional. De acordo com os autores, este manual contém diversas passagens
racistas e que nega a presença de indígenas no território uruguaio.

El libro del Centenario del Uruguay, que constituyó una emblemática y apretada
síntesis del imaginario de los uruguayos desde mediados de la década de 1920,
señalaba la debilidad de la presencia social y cultural de la población de origen
africano y sus descendientes. Esta vision racista y classista subrayaba los aportes de
los grandes empresarios de los imigrantes de origin europeu, “olvidando” a los
sectores populares en su diversidad sociocultural (FREGA; CHAGAS; MONTAÑO;
STALLA, 2008, p. 52).

A ambiência criada por meio de investidas dessa natureza acaba impactando nos
setores produtivos da economia, uma vez que gera uma divisão social do trabalho por meio da
seletividade apriorística baseada no quesito racial como elemento qualitativo. Com isso, os
negros estavam alocados nos trabalhos mais duros, nas profissões de menor prestígio social e
remuneração. Ainda assim, os mesmos faziam girar a economia, sobretudo nos centros
urbanos, e quando havia picos de melhoria no mercado.
Da mesma maneira que os homens encontravam meios não formais de
sobrevivência nos grandes centros urbanos, as mulheres negras que residiam nas zonas rurais
tinham no serviço doméstico as maiores possibilidades de obtenção de trabalho e renda,
muitas vezes introduzindo os próprios filhos nesse tipo de atividade laboral. Segundo Frega,
Chagas, Montaño e Stalla (2008), em muitas ocasiões esses filhos eram entregues para as
famílias brancas, como esperança de um futuro melhor, ou pela simples impossibilidade de
criá-los. Os patrões, por sua vez, quando os aceitavam, tinham a possibilidade de fazê-lo por
benevolência ou pela conveniência de ter um empregado doméstico a baixo custo.
102

Apesar da segunda possibilidade apresentada, é comum que haja o argumento de


que estando sob os cuidados de famílias mais abastadas, estes jovens negros teriam maiores
chances de aprender algum tipo de ofício e de ter contato mais íntimo com um universo
simbólico que moldasse os seus valores ajustados aos que arregimentavam o ethos daquele
momento, aumentando ainda mais o seu repertório cultural e o conduzindo a novos caminhos
no tecido social uruguaio.
Apesar deste fato acima citado ser mais comum nas áreas rurais, é preciso
sinalizar que no início do século XX a população uruguaia se concentrava majoritariamente
em Montevidéu, e os negros movimentavam a economia por meio de atividades menos
especializadas, o que nos permite dizer que a tendência era de que os filhos dessas mulheres
que trabalhavam no serviço doméstico nas áreas rurais migrassem para a capital e lá
engrossassem o exército da informalidade e do subemprego nos setores produtivos
(ANDREW, 2010).
Segundo Andrew (2010), migração rumo à capital do país possibilitava ao negro
as condições necessárias para a sobrevivência, pois, ainda que de maneira informal e de baixa
remuneração, se comparado a outros setores da economia, conseguiam algum tipo de renda
que viabilizava o próprio sustento e da eventual família que viessem a formar. Não obstante, é
preciso considerar que a ascensão social era muito difícil, uma vez que era preciso dispensar
muitas horas nas atividades laborais, não havendo tempo para se dedicar aos estudos,
acarretando em evasão escolar, ou sequer ingresso no sistema educativo.
A economia uruguaia de início do século XX teve altos e baixos, mas o seu
caráter periférico e dependente das grandes nações de economia forte, sofre duros prejuízos
após a crise de 1929 nos EUA, e só volta a ter uma recuperação anos depois, viabilizando
crescimento no setor agroexportador e benfeitorias no sistema público, como de saúde e
transporte.

A pesar del optmismo generalizado durante las décadas de 1929-1930, la economía


nacional evidenció los límites del modelo agroexportador que la sustentaba, más allá
de la progressiva diversificación, a partir del crecimiento de la industria
manufacturera urbana y la instalación de servicios públicos como el transporte. De
esta forma, los efectos de la crisis económica mundial de 1929 impactaron
fuertemente sobre la sentida economia uruguaya, mostrando su caráter dependiente y
periférico (FREGA; CHAGAS; MONTAÑO; STALLA, 2008, p. 52).

A crise de 1929 atingiu em cheio a economia uruguaia, levando ao êxodo rural e


ao crescimento demográfico em Montevidéu (onde a recuperação econômica se deu de
maneira mais rápida e efetiva), elevando o desemprego e aumentando a informalidade. Com
efeito, o Estado uruguaio precisou criar planos de recuperação econômica desde a segunda
103

metade da década de 1930, a fim de superar a crise, estimulando a migração e sistematizando


novos ordenamentos para as relações de trabalho.
As mulheres negras se reinventavam em torno de diversas ocupações informais, já
que as atividades econômicas eram variadas e os homens negros estiveram em leve vantagem
em relação a essas mulheres quando o assunto dizia respeito ao emprego formal, dado ao fato
de servirem à política e ao exército. Essa perspectiva se estendeu às décadas seguintes, pois o
crescimento econômico que sucedeu a crise, entre 1940 e 1950, viabilizou a feitura de obras
públicas e de prédios privados, alocando homens na construção civil, levando-os, inclusive, a
formar um sindicato próprio.
De acordo com Andrew (2010), em consequência do racismo que já vinha sendo
perpetrado contra os negros em períodos anteriores, o negro uruguaio adentra a segunda
metade do século XX ainda com graves diferenças socioeconômicas em relação à população
branca, traduzidas em déficits educacionais e empregos de menores qualificações
profissionais, tudo operacionalizado por uma sensível dificuldade que a população branca
tinha em lidar com os negros.
O que mais chama a atenção é que apesar de haver – poucos – negros em funções
administrativas do governo, no exército ou em outras profissões de média remuneração,
prestígio e qualificação, em empregos mais corriqueiros e de prestação de serviço se tornara
visivelmente mais difícil de encontrar negros. Andrews (2010) afirma que em uma pesquisa
de um periódico de esquerda que decide investigar o racismo na cidade de Montevidéu, se
conclui que naquele momento havia grande dificuldade de empregadores dos setores que
lidam diretamente com o público em alocar negros.

La periodista Alicia Behrens concluyo que "no encontramos en las tendas ningun
negro como vendedor, ni empleados en los comercios, ni polidas en las calles
centricas, ni mozos en los restaurantes, ni chauferes en los taxis ni en los omnibus".
AI investigar las causas de esta exclusion, Behrens se entrevisto con los delegados
sindicales de los principales gremios del area de servicios: mozos, botones y
empleados en hoteleria, peluqueros y choferes de auto buses. Tambien visito el
departamento de polida y tres de las tiendas mas grandes de la ciudad. El resultado
fue asombroso: entre los 2.000 miembros con los que contaba el sindicato de mozos
y las 500 sirvientas empleadas en el sector hotelero, no había ningun
afrodescendiente (ANDREWS, 2010, p. 131).

Do mesmo modo, Merino (1982) observa que o fato de terem negros em postos
médios da administração governamental, universidades, exército ou empregos públicos, não
anula a cruel realidade de não estarem em setores dinâmicos da economia formal. Em relação
aos negros, ele afirma que “[h]ay pocos en casas de comercio atendiendo al público; no los
hay como peluqueros o mozos de café” (MERINO, 1982, p. 19).
104

O mais curioso nesta sentença é que apesar do racismo estar assentado nas
relações cotidianas, em que o negro esteve mais recorrentemente no posto de serviçal, os
papéis acabam se invertendo quando há exclusão de negros no mercado de trabalho. Merino
conclui que “los negros se hacen atender por blancos y servir por mozos blancos” (MERINO,
1982, p. 19). Ou seja, o medo, pavor ou precaução de ter um negro manejando bens, produtos
e serviços os quais trazem resultados imediatos, ou que se requer uma relação direta, faz com
que os empregadores racistas considerem o negro como beneficiário de um atendimento – e aí
não se sabe, mas se desconfia, a natureza simbólica do tratamento dispensado – prestado por
pessoas brancas, supostamente mais honestas e competentes30.
Andrews (2010) sinaliza para o fato de que o fim de alguns regimes totalitários
pelo mundo, como o Nazismo e o Fascismo, introduzira a necessidade de articular novas
relações sociais e denunciar os excessos cometidos pelas forças estatais e/ou de grupos que
transgrediam os direitos da pessoa humana, seja ela de que origem for. O ambiente não havia
se transformado na prática:

Pero las nuevas doctrinas nacionales de democracia racial, reforzadas por la reciente
derrota de los nazis en Europa y el repudio del racismo que la Organizaci6n de las
Naciones Unidas asentó como uno de sus principios fundamentales, proporcionaron
nuevos instrumentos retóricos e ideológicos para combatir la discriminación racial.
En este contexto, yen respuesta a casos concretos que circularon masivamente por
sus respectivos medios masivos de comunicación (ANDREWS, 2010, p. 120).

O que se nota é uma ambiência produzida de maneira política e não espontânea.


Uma mistura entre a pressão da “comunidade negra” com o contexto histórico que se
transformava e caminhava para a efetiva cobrança de novas posturas frente ao que
mundialmente vinha sendo repudiado, o que gerava novos agenciamentos e fissuras na
sociedade uruguaia. Obviamente que os resultados não seriam imediatos nem tampouco se
teria a certeza de que realmente viessem a acontecer, considerando que o racismo é
conveniente para quem o pratica (MOORE, 2011), mas que também existem excessos
cometidos por parte de quem cobra transformações.
Andrews (2010) narra um famoso acontecimento da década de 1950 como
expoente de que o racismo permaneceu no seio da sociedade uruguaia e de quais os
encaminhamentos foram negociados ao longo do processo. Trata-se do caso de uma

30
Não podemos deixar de observar que Andrews (2010) está veiculando noticiários que datam da década de
1950 e que Merino (1982) está analisando o contexto presente em sua pesquisa, ou seja, de final da década de
1970 e início de 1980. Portanto, este é um problema que perdurou no mínimo trinta anos, levando em
consideração apenas o tempo que compreende a publicação da matéria analisada por Andrews e a publicação
do livro de Merino.
105

professora negra em nível secundário, chamada Adélia31. Adélia trabalhava lecionando em


uma escola no departamento de Artigas e havia ganhado uma bolsa de estudo para
permanecer estudando e lecionando em Montevidéu, mas a perdeu devido ao fato de que
havia denúncias de pais de alunos que reclamavam de um suposto espanhol incompreensível
aos seus filhos, devido Adélia ter vivido na fronteira com o Brasil.
Curiosamente os uruguaios deram uma punição para o caso de Adélia e a decisão
foi orientada pela constatação de discriminação racial, ainda que não houvesse leis de
combate ao racismo, dado ao fato de que as autoridades e os meios de comunicação não
assumissem a existência de tal ocorrência, apresentada como “fatos isolados” da dinâmica do
país. Não obstante, somente uma pessoa sofrera sanção, uma vez que outra diretora, Irene de
Mandado, foi absolvida por falta de provas contundentes contra ela (ANDREWS, 2010).
A partir da segunda metade do século XX houve crescimento econômico que
viabilizou que o governo uruguaio investisse satisfatoriamente em educação, aumentando o
número de matrículas em escolas e universidades. Com mais investimentos, evidentemente
houve também o maior ingresso de pessoas negras no ensino regular em todos os níveis. Esse
fato pode ter servido como a mola propulsora de um discurso que fortalecia a ideia de
“democracia” naquele país:

Los numeros confirman que el sistema educativo fue una de las prioridades del
Estado en su expansion del gasto publico. La cantidad de estudiantes secundarios en
Uruguay paso de 19.000 en 1942 a 34.000 en 1950, hasta llegar a 70.000 en 1960 32.
En 1945, la Revista Uruguay (organo oficial de ACSU) comentaba que, como
resultado de ese crecimiento, "[.t]enemos estudiantes en Liceos y Universidades de
Derecho y Trabajo, Facultad de Medicina y en Quimica y Farmacia, artistas,
pintores, poetas, recitadores, actores escenicos, violinistas, pianistas, guitarristas
tenores y sopranos33" (ANDREWS, 2010, p. 124).

No entanto, o crescimento econômico não trouxe para os negros nenhuma grande


transformação e acabou absorvendo-os apenas de modo residual, uma vez que poucos
ultrapassavam a barreira do ensino fundamental. Muitos setores da mídia advertiam que os
pais desses jovens negros seriam os grandes responsáveis pela situação de insucesso ao qual
se encontravam, pois colocavam os filhos para trabalhar desde cedo, interrompendo a
trajetória educacional sob a alegação de que eles mesmos – os pais – tiveram que encarar o
mercado laboral ainda moços.

31
O ano foi o de 1956 e envolvia a diretora da escola pública 125, Ofelia Ferratjans de Urgatmendia, que, dentre
outras coisas, declarou que estava descontente em relação a “esa negra, tan desprolija”, pressionando Adélia
para que buscasse outra escola para trabalhar (ANDREW, 2010, p. 119).
32
Estes dados foram veiculados pelo autor de acordo com “Nahum y otros, Crisis politica y recuperacion, 161.
Sobre la educacion uruguaya a lo largo del siglo XX, ver: Marrero, "La herencia de nuestro pasado".
33
O autor está citando "El problema racial... " Revista Uruguay (julio de 1945), 3—4.
106

A grande mídia uruguaia sonega o fato de que os negros possuem um problema


estrutural grave, mediado por um processo histórico de escravização e ausência de cidadania,
dificuldades encontradas pela maneira que fora feita a integração na dinâmica daquela
sociedade, que não superou o racismo e não operacionalizou esforços para resolver tais
problemas. Ficou a cargo dos periódicos negros serem mais específicos e incisivos em relação
às demandas da população negra como um todo:

Otro periódico negro, Nuestra Raza, era mas especifico con respecto a las barreras
que mantenian a los niños de la comunidade alejados de la escuela: muchos
establecimientos tenian demasiados alumnos como para aceptar nuevos
matriculados, cuando finalmente aparecia una escuela con vacantes estaba
generalmente demasiado lejos del barrio como para que el chico pudiera llegar por si
mismo. Y aunque las escuelas publicas eran gratis, era cierto que se esperaba que los
alumnos llegaran a clase con su uniforme y con sus utiles escolares, lo cual en
muchos casos estaba fuera del alcance económico de muchas familias de afro-
uruguayos (ANDREWS, 2010, p. 125).

Os movimentos negros uruguaios não deixaram de denunciar e buscar soluções


para o atraso estrutural que estavam fadados os negros. A luta pelos direitos civis teve
bastante eco também no Uruguai, tendo em vista que diversos setores dos movimentos negros
articulavam suas estratégias de sobrevivência em meio a um período bastante controverso da
história, ou seja, a população negra enfrentou momentos de crescimento econômico sem
participar efetivamente do que se produzia enquanto benesse e atravessou os momentos de
crise como os principais alvos das contingências e privações.
De acordo com Frega, Chagas, Montaño e Stalla (2008), após os anos de 1950
sucessivas crises foram gradativamente desgastando os modos de vida da população uruguaia,
e isso gerou bastante acirramento nos conflitos sociais e raciais no país. A falta de perspectiva
nos departamentos mais pobres gerou um intenso processo de migração rumo a Montevidéu,
acarretando em uma superpopulação que teve como consequência a divisão socioespacial,
empurrando os negros para as ocupações – já que quase nunca eram os donos dos terrenos em
que construíam – mais insalubres e distantes dos lugares de maior circulação de bens e de
capital.
As formas convencionais de habitação dos negros uruguaios são os chamados
conventillos, que funcionam como moradias partilhadas, similar às famosas vilas, comuns nas
áreas periféricas do Brasil, onde diversas famílias compartilham áreas afins, preservando
traços culturais, negociando a convivência cotidiana e, enfim, se organizando em torno da
107

própria sobrevivência. Os conventillos foram grandes catalizadores da cultura negra uruguaia,


servindo como base para a continuidade de elementos como o Candombe34.
É importante assinalar que os negros residentes nestas habitações agregavam toda
a sorte de famílias de imigrantes, ou seja, não eram guetos fechados e restritos a negros,
embora a maioria que ali viviam fossem negros, preponderando a cultura e os costumes dos
descendentes de escravizados. Não foi possível localizar a participação desses imigrantes
nessas habitações, no que concerne a um determinado censo étnico, nacional ou até mesmo o
grau de envolvimento dos mesmos com a cultura afro-uruguaia.
Então, desde o ano de 1947 as políticas de habitação vinham gradativamente
desalojando muitos negros, limitando a circulação da cultura negra pelo centro de
Montevidéu, acarretando na intensificação da europeização da cultura. Segundo Andrews
(2010), Frega, Chagas, Montaño e Stalla (2008) e Francisco Merino (1982), somente na
segunda metade da década de 1970 que esses conventillos foram tombados como patrimônio.
Ainda assim, estavam em condições de degradação, numa polêmica que envolve o “bota fora”
justamente por motivos de má conservação predial dos mesmos.
De modo geral, o Uruguai atravessa os anos de 1950 e adentra os anos de 1960
entre distintos momentos de crise e estabilização financeira, possibilitando avanços e
estagnações nos setores produtivos e em bem-estar social. Os negros experimentaram
sensações distintas, orbitando entre mobilidade social e o trato cotidiano com o racismo.
Andrews (2010) afirma que no referido período muitos negros se evadiam das escolas em
decorrência de pressões psicológicas motivadas pelo racismo. De acordo com o autor, os que
concluíam o ciclo escolar carregavam muitos traumas em relação a este fato.
Nos anos 1970, em decorrência de mais uma dura crise que afetara o país,
acarretando em aumento da violência e o acirramento de disputas políticas entre grupos
extremistas, o então presidente Juan María Bordaberry Arocena (1928-2011) se articula com
setores das forças armadas uruguaias e estabelece um novo regime civil-militar, que teve
início no ano de 1973 e perdurou até 1985, totalizando doze anos, período mais curto do que a
duração do regime militar brasileiro.
Segundo Andrews (2010), o período pode ser caracterizado como de grande
hostilidade às liberdades e direitos individuais e coletivos (sindicatos e movimentos sociais),
aumento da dívida externa, corrupção e de novos acordos internacionais mediante ao contexto

34
De acordo com Andrew (2010) e Frega, Chagas, Montaño e Stalla (2008), Candombe é uma manifestação
cultural negra que conjuga danças, indumentárias e música tocada por atabaques. O Candombe pode ser
encontrado em alguns países da América Latina, mas se materializa de forma mais potente no Uruguai, país
em que ganhou o status de Patrimônio Imaterial da Humanidade.
108

de Guerra Fria. São características presentes em todos os períodos da história e aplicados às


oposições aos poderes vigentes, que, entretanto, ganharam maior visibilidade através de
muitos excessos cometidos e com a concomitância de regimes da mesma natureza
acontecendo na América Latina.
Há uma importante distinção entre o período do regime militar no Uruguai e o
resto da América do Sul. Naquele país, o presidente exercia o papel de chefe de Estado,
diferente dos países vizinhos, que contavam com o militar de patente mais alta para o
exercício dessa função. Apesar deste fato, não é possível afirmar que houvera harmonia na
referida configuração de governo, já que desde o princípio havia uma celeuma instaurada, sob
a dúvida de extinção ou manutenção dos partidos políticos.
Após a deposição do presidente Juan María, fora instaurado pelo seu vice, Alberto
Demicheli (1896-1980), os atos institucionais 1 e 2, os quais acabaram por dar aos militares
maior controle sobre o país, acarretando em medidas consideradas como extremistas,
impopulares e excessivas. Apesar de terem presidentes civis e militares se alternando no
poder, existe a possibilidade de que os militares exerciam maior força para as tomadas de
decisões políticas da nação.
E os negros, onde estiveram? Como em qualquer outro período, os movimentos
negros tinham dificuldades de organização, sob o temor da proibição e da perseguição das
suas atividades. De modo geral, o regime não exerceu duro poder sobre esses movimentos, no
entanto, fez uso de políticas públicas que afetou frontalmente a população negra. Nada
diferente de outros períodos da história, ainda que o que se geralmente se projeta como
horizonte para a humanidade seja a erradicação gradativa de medidas orientadas pelo racismo.
Uma dessas medidas impopulares foi o desalojamento do conventillo Medio
Mundo, que fora construído no ano de 1885 e foi declarado Monumento Histórico Nacional
em 1975, pois era considerada a principal casa do candombe em Montevidéu. Em 1978, o
governo decidiu desalojar as famílias ali residentes para que se construíssem novas
habitações, mais modernas e ajustadas ao modelo de cidade que se pretendia construir.
A medida desagradou os setores dos movimentos negros, que alegavam
autoritarismo e descaracterização do modelo original. Para eles, a modernização sinalizada
pelos militares não passava de uma justificativa para embranquecer a cidade e apagar da
memória do povo montevideano as heranças dos negros africanos e dos seus descendentes. Os
militantes protestaram e chegaram a organizar uma grande homenagem ao conventillo.

A pesar de la presion y la tension emocional que implicaba prepararse para la


mudanza, los residentes organizaron una ceremonia de despedida, un último
109

homenaje a ese lugar que durante tanto tiempo habia sido tambien uno de los
principales hogares del candombe. El 3 de diciembre mas de treinta tambores
liderados por las Lonjas de Cuareim (la cuerda de tambores de la comparsa
Morenada) se juntaron para darle el adios al conventillo con una última sesión de
baile y percusion. La fiesta desbordo el patio del edificio y llegó hasta la calle
(ANDREWS, 2010, p. 193).

Entretanto, há uma contrapartida, que se deu por meio de laudos técnicos que
advertia sobre a má conservação desses imóveis, o que certamente ocasionaria em
desabamentos e, na melhor das hipóteses, um vertiginoso decréscimo no valor de compra e
venda. Em se tratando do conventillo Medio Mundo, é importante dizer que se encaminhou
apenas um laudo, não havendo nenhum incidente anterior para justificar a sua demolição, no
entanto, houve sucessivos desastres em outras habitações similares, e como medida de
precaução o governo desalojava os residentes.
Os efeitos foram sentidos na dinâmica cultural da cidade, uma vez que as rotas
das chamadas de candombe tiveram que ser remanejadas dos bairros de origem, ao sul da
cidade velha, para a principal avenida de Montevidéu, a 18 de julho. Nota-se que apesar da
demolição desses imóveis, não ocorreu a tão temida pulverização da cultura negra, uma vez
que foram mantidas as manifestações, talvez ganhando maior visibilidade por serem feitas em
uma via de grande circulação. Além disso, se argumenta que:

La clausura de Medio Mundo, el complejo Ansina y otros edificios ocurrió en un


contexto de emergencia y crisis que tuvo poco o nada que ver con la cuestión racial.
Aunque muchos de los desalojados eran afro-uruguayos, es probable que la mayoria
no lo fuera. Sin embargo, es innegable que los afro-uruguayos experimentaron los
desalojos como un acto de violência contra su cultura, su historia y sus tradiciones
(ANDREWS, 2010, p. 196).

Ainda que os fatores que levaram à derrubada das habitações históricas nos
bairros com um grande contingente de negros não tenha sido a questão racial, a mobilização
da comunidade negra local se deu em termos raciais. Esse fator pode ser encarado como algo
positivo se analisado à luz do alerta crítico que deveria ser tomado em face de diversos casos
de racismo que vinham sendo historicamente silenciados pelas forças hegemônicas midiáticas
e governamentais. A maioria dessas insurgências chamava a atenção para a necessidade de se
buscar alternativas que dirimissem os conflitos entre a população e o Estado.
De acordo com Andrews (2010), por maiores que tenham sido os infortúnios
causados durante o período de regime militar no Uruguai, em que a sociedade, sobretudo
montevideana, experimentou um momento de excessos cometidos pelos militares no poder, o
movimento negro passou incólume pela conjuntura. Segundo ele, o fato de a Asociación
110

Cultural y Social Uruguay – ACSU35 ter recebido do poder público um novo prédio,
emprestado para funcionar como sede da associação, funciona como a prova concreta de que
o foco daqueles governos não eram especificamente os negros.
Entretanto, é importante reforçar que este prédio era emprestado, podendo ser
requerido de volta a qualquer momento. Neste período já havia uma intensa articulação da
ACSU com a Ordem Franciscana, que se empenhava em ofertar trabalhos de assistência
social em Montevidéu e tinha interesse pelo trabalho da ACSU, dada a sua credibilidade
histórica. Foi então que os frades resolveram financiar projetos em que a associação
supervisionava, chegando a ceder uma nova sede para que a ACSU não dependesse mais de
um local incerto para funcionar.
Apesar de a ACSU ter sido eleita a instituição que melhor poderia desenvolver
trabalhos de combate ao racismo e inclusão social, ela não era unânime entre a comunidade
negra, e nem entre os assistidos. Jovens sem renda e que necessitavam da ACSU como
mediadora para as respectivas ascensões sociais, se rebelaram contra a instituição alegando
mal-uso dos recursos captados, gerando uma celeuma no interior do próprio movimento
negro, levando a ACSU à perda de credibilidade entre a população afro-uruguaia.
A alegação desses jovens era a de que os recursos deveriam ser aplicados em
ações mais pontuais, como um mutirão de ajuda para as pessoas que haviam sido desalojadas
pelas políticas públicas de habitação. Segundo Andrews (2010), a maior queixa recaia no fato
de que a ACSU privilegiou o investimento do erário recebido nos bailes negros, que, segundo
estes jovens, servia apenas para alimentar o ego e a fantasia de uma “classe média negra”,
sem nenhuma penetração e poder decisório em meio à população uruguaia.
Entretanto, é importante frisar – como fizemos em alguns trechos do trabalho –,
que os bailes negros poderiam passar uma ideia ambígua, na medida em que eram encarados
como meros espaços de entretenimento, sem a possibilidade de articulações políticas que
viriam a conduzir algum tipo de proposta para o combate ao racismo. Por outro lado, há o
discurso oposto ao pensamento apresentado, construído pela narrativa da resistência, visto que
os bailes funcionariam como uma maneira de exposição para atrair diversos negros e
“simpatizantes da causa”, sobretudo os que teriam mobilidade entre os setores produtivos e
pudessem desenvolver estratégias plausíveis e exequíveis para o desenvolvimento econômico
da população negra.

35
De acordo com Andrew (2010), a ACSU foi um clube social inaugurado no ano de 1941 com o intuito de
fortalecimento dos laços entre negros e promoção de cidadania para os mesmos.
111

5.1 O surgimento do mundo afro e o momento político uruguaio

Com o enfraquecimento da ACSU, um grupo de militantes liderado por Romero


Rodriguez resolveu se desligar da associação e seguir outro caminho, pavimentando uma
estrada que estivesse o mais desvinculado possível das ideias julgadas eurocêntricas e de
qualquer tipo de dependência financeira ou política das classes hegemônicas do Uruguai. Foi
nesse clima que surgiu a organização Mundo Afro, um nome sugestivo que estivesse melhor
aludido ao sentimento de pertença identitária com a diáspora africana no Uruguai.
Romero Rodriguez foi um militante que se exilou no Brasil durante o regime
militar no Uruguai, e por isso teceu importantes articulações políticas que lhe rendeu a ideia
de criar o Mundo Afro. Seu estreito laço de amizade e afetividade com Abdias do Nascimento
foi a mola propulsora para pensar novas perspectivas para o movimento negro uruguaio, já
que o brasileiro vinha de uma larga experiência nacional e internacional de mobilização pela
luta contra o racismo.
Não podemos deixar de mencionar que Romero não estava sozinho, e como linha
de frente na criação do Mundo Afro estava Beatriz Ramirez, uma militante histórica de imensa
importância para o movimento negro uruguaio. Beatriz iniciou a sua militância ainda jovem e
a partir de estudos voltados para a questão racial, visto que ela estava atenta para o
movimento dos direitos civis nos EUA e buscava aplicar aqueles conhecimentos em sua
experiência de vida enquanto mulher negra. Além disso, ela também esteve intimamente
ligada aos movimentos que reivindicavam algum tipo de reparação governamental para os
desalojados com as políticas de habitação iniciadas no regime militar.
É necessário lembrar que durante a primeira metade do século XX, tendo como
marco o centenário da independência do país, o Uruguai passou a perseguir com mais afinco
uma identidade nacional, e essa busca era arregimentada pela construção e massificação de
figuras heroicas. Entretanto, somente no ano de 1964 que houve o reconhecimento de um
personagem histórico negro como herói nacional. Este era o ano de bicentenário de Ansina
(1760-1860), que, de acordo com Frega, Chagas, Montaño e Stalla (2008), teria sido
elemento-chave para a construção da nação uruguaia.
Segundo Frega, Chagas, Montaño e Stalla (2008), Ansina esteve à frente de
eventos importantes para a independência do Uruguai, tendo sido um fiel escudeiro de
Artigas, homem que o tornou livre do regime escravocrata e pelo qual estabeleceu profundo
afeto e amizade, tanto que além de acompanhar Artigas em suas batalhas, também fora
exilado no Paraguai, país em que residiu até a sua morte em 1860. Joaquin Lenzina nasceu em
112

Montevidéu no ano de 1760 e ficou mais conhecido com El Negro Ansina, que teve o seu
reconhecimento como herói consolidado no ano de 1982, quando se estabeleceu o dia 12 de
dezembro como Dia da Lealdade, com uma homenagem a ele:

En marzo de 1982, se presentó al Consejo de Estado un nuevo proyecto, que


declaraba el 12 de diciembre como «Día de la Lealtad» con carácter de
conmemoración cívica y homenaje a Ansina. En la fundamentación de motivos, el
consejero Fernando Assunção expresaba que la fecha en que se había abolido la
esclavitud era “la ideal para exaltar esos sentimientos y homenajear a Ansina, negro
servidor fiel del General Artigas y junto a él la memoria de todos aquellos otros
hombres de color, que sirvieron a la Patria en el Gesta de su independência” 36
(FREGA; CHAGAS; MONTAÑO; STALLA, 2008, p. 96).

Argumenta-se que as homenagens a Ansina e o Dia da Raça (dia da consciência


negra para nós brasileiros) se justificam pelo fato de que todos os uruguaios foram
beneficiados pelas lutas as quais Ansina e outros negros estiveram engajados. Fica evidente,
portanto, que na abertura para a redemocratização – pluripartidarismo, legalização dos
movimentos sociais, fim de medidas extremas como o toque de recolher etc. – se expandem as
possibilidades de diálogos e propostas dos movimentos negros, aos quais estiveram sempre
presentes (naquele período) Beatriz Ramirez e Romero Rodriguez.
Esta é uma ação do movimento negro a fim de empreender novas frentes de
reeducação da população uruguaia para lidar com as relações raciais, uma vez que se
considera que estes elementos estiveram ausentes no debate público e nos currículos
escolares. Assim como no Brasil, os movimentos negros uruguaios tiveram o anseio de tornar
acessível conteúdos e pesquisas acerca dos negros uruguaios, viabilizados pelo sistema
público de educação.
É importante dizer que, segundo Romero Rodríguez, apesar de termos a capital
Montevidéu como epicentro dos acontecimentos, as ações do movimento negro não se
restringiam a esse espaço, pois, o Mundo Afro esteve muito presente nos departamentos de
Artigas e Rivera desenvolvendo projetos de combate ao racismo e fortalecimento da
identidade negra. Aqui vale ressaltar também que muitos militantes do movimento negro
uruguaio eram migrantes, ou seja, não eram naturais de Montevidéu, e por isso entendiam que
havia a necessidade de expandir a militância para esses lugares, que são os departamentos
com maior número de negros e pobres do país.
No ano de 1990, a ACSU teve as suas portas fechadas, depois de muito embate
político com os militantes que discordavam do modus operandi da instituição, bem como a

36
Uruguay, Consejo de Estado: «Actas del Consejo de Estado», sesión del martes 30 de marzo de 1982, Diario
Oficial n.o 21220, p. 67.
113

memória da celeuma sobre a má utilização dos recursos financeiros e a não adequação ao


novo cenário que emergia mediante a conjuntura política internacional. Ainda assim, a ACSU
volta à cena posteriormente e sob nova sigla, agora introduzira a letra N, passando, portanto, a
se chamar Asociación Cultural y Social Uruguay Negro (ACSUN), a fim de angariar mais
legitimidade para as suas ações e projetos.
Segundo Andrew (2010), no ano de 1989, o partido Frente Amplio saiu vencedor
das eleições, e com esta vitória a organização Mundo Afro ganhou nova frente e teceu acordos
políticos que lhes rendeu uma sede situada em um ponto estratégico da cidade de Montevidéu.
Isso acarretou no início de atividades de militância do movimento negro, operadas de maneira
a dinamizar as novas relações sociais e culturais, diante das transformações as quais o
Uruguai vinha passando.
As ações e campanhas do movimento negro vinham tomando forma, e a grande
prova disso é que, segundo Andrews (2010), gradativamente o discurso de que não havia
racismo no Uruguai vinha sendo derrubado. De acordo com o autor, até o início dos anos de
1980 atestava-se que seria impossível haver racismo naquele país, pois a constituição
respaldava direitos iguais para todos. Entretanto, as pesquisas encomendadas pelo Centro de
Estudos Sociais da Universidad de La República – UDELAR atestava que mais de 75% das
pessoas entrevistas por eles, em Montevidéu, afirmavam a existência de casos de racismo.
Dentre os entrevistados estavam indistintas pessoas, ou seja, negros e brancos foram
entrevistados.
É preciso considerar, no entanto, que ainda se falava em casos de racismo, e não
aquilo que o movimento negro tinha como horizonte, ou seja, o combate sistemático a uma
sociedade estruturalmente racializada. Em outras palavras, as pessoas nas ruas, ao contrário
dos movimentos negros, não concebiam uma estrutura de sociedade balizada no racismo
como fio condutor de todas as ações cotidianas, entendendo que o racismo existe como fatos
isolados, isto é, atitudes e condutas perpetradas por indivíduos antiéticos, os quais se
devessem punir com sanções rigorosas e previstas em lei (ANDREWS, 2010).
Independente das perspectivas que atravessavam o campo de disputa em torno das
relações sociais, o Mundo Afro continuou empreendendo esforços para tomar a dianteira das
ações no campo de combate ao racismo. Para tanto, tecia articulações internacionais com
organizações que seguiam o mesmo padrão e que tinham objetivos similares, ou seja, estavam
abertas para um projeto de troca de experiências entre negros latinos e caribenhos que se
inclinavam para o atendimento das suas respectivas populações negras.
114

De acordo com Andrews (2010), a partir do ano de 1999, e por intervenção da


ONU – com o Comitê para a Eliminação do Racismo e da Discriminação Racial (CERD) -,
que se inicia um trabalho mais sistemático para o atendimento daquilo que a organização
Mundo Afro vinha sinalizando, acarretando em debates mais afinados acerca das questões
raciais e as estratégias cabíveis para articular ações pontuais e concretas que fossem sentidas
no seio da sociedade uruguaia.
Não podemos deixar de dizer que os movimentos negros uruguaios estiveram
mais afinados com a esquerda, ainda que a ACSU tenha se locupletado com o regime cívico-
militar. Mônica Olaza (2017) sugere que a Frente Amplio – Partido de Esquerda – esteve mais
próximo aos anseios dos movimentos negros uruguaios e se oportunizaram em compor essa
aliança diante de um painel internacional que favorecia a abertura para os discursos em defesa
das “minorias”. Para ela, a existência de documentos e conferências que elevavam a temática
era o sinal que este partido precisava para aderir às pautas desses movimentos.
Nesse sentido, o período que compreende o final dos anos 1990 estava
atravessado por medidas de inclusão, as quais os documentos internacionais pressionavam os
estados nacionais a aderirem uma agenda política de abertura para leis e obrigações morais
em relação às “diferenças”, criando novas linhas de pesquisas educacionais que advertiam
para uma reorganização do olhar em relação ao ethos nacional. Foi durante esse período que o
Uruguai deu o primeiro passo para a adesão às ações afirmativas.
Foi no governo de Tabaré Vazquez (2005-2010) que novos ministérios foram
criados e muitos militantes passaram a fazer parte do governo, sobretudo no município de
Montevidéu. Com isso, fora criado uma espécie de órgão regulador que funcionaria como um
conselho consultivo para orientar as ações deferidas pelos departamentos governamentais
responsáveis pela gestão das políticas públicas.

En 2003, el gobierno de la ciudad [de Montevidéu] habia establecido la Unidad


Tematica por los Derechos de los Afrodescendientes. Esta oficina acatuaba como
órgano de consulta sobre los asuntos afro-uruguayos y estaba formada por delegados
negros asignados a distintos departamentos administrativos del gobierno municipal
(Recursos Financieros, Gestión Humana, Planificación, etc.). Su principal función
era revisar las actividades de esos departamentos y crear proyectos para promover el
desarrollo de la comunidad negra (ANDREWS, 2010, p. 2007).

Entretanto, a adesão das agendas “minoritárias” e a alocação de pessoas ligadas


aos movimentos sociais na máquina pública não acarretou necessariamente em avanços
significativos no plano concreto, uma vez que os mais pobres, principalmente os negros,
continuaram em maiores condições de vulnerabilidade frente aos problemas estruturais de
cunho histórico, não resolvíveis a curto ou médio prazo, sobretudo se o Estado estiver
115

maximizado, isto é, com um desequilíbrio entre arrecadação e gastos, acarretando em uma


frágil economia que pouco se abre para o aquecimento do mercado, uma vez que são as
empresas privadas que gerarão mais emprego e renda, e não o Estado como eminente
provedor da sociedade (SOWELL, 2004).
Apesar do fato exposto, não excluímos duas possibilidades atravessadas neste
processo. Na primeira, levamos em consideração o racismo institucional, já trabalhado por
nós em capítulos anteriores desta tese. Pode ser também que muitos percalços foram causados
pela inexperiência desses militantes em relação à administração pública, o que pode ter
acarretado em certo descompasso entre os anseios do povo e as utopias interiorizadas através
da militância, culminando em uma gestão dos recursos públicos de alcance limitado ou
insatisfatório.
Diante desse ambiente, a organização Mundo Afro fora duramente criticada por
muitos setores da sociedade. Andrews (2010) entrevistou várias pessoas em sua pesquisa
sobre a população negra no Uruguai, e, segundo ele, boa parte dessas pessoas encaminhava as
suas críticas orientadas pela reflexão de que o Mundo Afro havia se aproveitado da
popularização da agenda racial e da estreita relação com aquele governo para empregar os
seus membros nos setores do Estado.

Sus criticas hacia Mundo Afro, argumentando que la institución estaba


aparentemente mas preocupada por insertar a sus miembros en el aparato estatal que
por luchar para que los proyectos y programas se llevaran a cabo. En muchas de mis
entrevistas, escuche narrar la historia de como Mundo Mro habia sido en sus
comienzos una institución altamente efectiva para instalar el tema de la desigualdad
racial en la agenda publica y como habia servido de vocera para toda la comunidad
negra. Sin embargo (asi continuaba usualmente la historia), con el paso del tiempo,
Mundo Afro se habia transformado en una mera fuente de empleo para sus propios
miembros, que utilizaban los subsidios, conexiones internacionales y contratos
gubernamentales para pagar sus propios sueldos (ANDREWS, 2010, p. 208).

Desse modo, os questionamentos acerca das atuações da instituição Mundo Afro


estavam entre as dificuldades em visualizar resultados concretos e efetivos entre a população
negra uruguaia e a instrumentalização da agenda de combate ao racismo para gerar empregos
para os membros que compunham a organização. Segundo Andrews (2010), entre os
entrevistados em sua pesquisa havia a preocupação em relação às bolsas de estudo, projetos
educativos para inclusão digital, políticas de habitação e outros programas de assistência
social voltados para a população negra.
Mesmo diante dessas críticas, é fato que a militância dos movimentos negros
conseguiu introduzir as suas agendas políticas no cenário público e galgar novos horizontes de
inclusão para uma parcela da população negra, sobretudo aqueles que fidelizaram apoio às
116

pautas apresentadas e estiveram mais próximos aos partidos de esquerda. Em Montevidéu, a


sociedade foi gradativamente incorporando novas atitudes em relação aos negros, mas não a
ponto de mudar as relações estruturais, ou seja, as transformações na consciência
autodeclarada não estavam acompanhadas de ações concretas, isto é, a subjetividade era
determinante nos momentos chaves em que as posições sociais estavam em jogo (LOPEZ,
2017).
Seguindo as análises de Andrews (2010), percebe-se que desde 1996 os uruguaios
tiveram muito mais acesso ao ensino superior do que os brasileiros, ainda que o número de
matrículas em escolas de ensino fundamental e superior tenha crescido vertiginosamente em
ambos os países, ou seja, ambos acompanharam pari passu a evolução de acesso à
escolarização formal. Onde está escrito “uruguaios e brasileiros”, leia-se “uruguaios e
brasileiros brancos”, ou seja, “Es cierto que en Uruguay el porcentaje de titulados blancos era
el doble que el de los negros, pero esa disparidad era aún más alta en Brasil, donde era cinco
veces más probable que un blanco obtuviera un grado universitario” (ANDREWS, 2010, p.
214).
As observações de Andrews (2010) são sumamente importantes, já que atesta a
inexorabilidade dos desníveis salariais, ocupacionais, geográficos, educacionais ou de acesso
à saúde, o que sinaliza que esses problemas possuem profundas raízes históricas, baseadas nas
estruturas de poder que se mantiveram quase inalteradas durante séculos. O autor não nega
que estes problemas não estão apresentados de maneira uniforme e que não há como provar
concretamente que cada caso, em específico, seja orientado pelo racismo. Mas adverte que:

Muchas de ellas son de carácter estructural: por ejemplo, la concentración de las


comunidades negras en las zonas menos productivas y mas pobres del país, en donde
las oportunidades educativas y laborales son menores puede constituir un obstáculo
primordial que coarta las posibilidades de progreso. Pero tambien la discriminación
y el prejuicio racial pueden tener impactos importantes, en el sentido de crear
obstaculos al avance socioeconómico de los afrodescendientes (ANDREWS, 2010,
p. 218).

Por esse motivo, abandonar a perspectiva racial pode acarretar em um grande


problema, enviesado por escolhas analíticas insuficientes do ponto de vista das relações
subjetivas que atravessam os embates e as negociações que estão na base da dinâmica social.
Porém, em muitos casos, talvez na maioria deles, comprovar que os resultados das
desigualdades raciais são fruto deliberado da ação de racistas convictos, mesmo que sinalize
para essa inveterada prática, é bastante complicado.
Decorrente desse fato, o Uruguai adentrava os anos 2000 se revestindo de leis e
programas de combate ao racismo, e tudo isso na medida em que os negros assumiam novos
117

cargos públicos e acessavam novas frentes de crescimento econômico ou de protagonismo


cultural, fazendo eclodir uma miríade de possibilidades para (re)pensar a participação dos
negros no cenário de construção da identidade daquele país. Importante que não deixemos de
considerar que todas estas políticas, apesar de terem o seu quinhão positivo, também geram
custos para o Estado e, na maioria das vezes, reduz a qualidade dos serviços prestados.
Para se ter ideia, o Uruguai é o país que tem os maiores gastos com pensão se
comparado aos países da América Latina, e isso impacta diretamente na economia, gerando
altos custos que são pagos por toda a população economicamente ativa, que nem sempre goza
de um equilíbrio entre as contas públicas e os serviços as quais tem o direito de desfrutar. É
preciso considerar que o benefício da aposentadoria se concentra entre as pessoas brancas,
dado ao fato de que são as pessoas que possuem maior expectativa de vida, já que os negros
além de morrerem mais jovens, são também os que possuem maiores taxas de natalidade
(CABELLA; NATHAN; TENENBAUM, 2013).
A respeito desse fato, é importante ressaltar que os índices demográficos atestam
para um encadeamento de fatores que conduzem as desigualdades sociorraciais naquele país.
O índice de fecundidade e de mulheres negras pode ser um fator que dificulta a satisfatória
ascensão social e educativa das mesmas e dos seus filhos, dado ao fato de que, geralmente,
abandonam a escola mais cedo e encontram dificuldades estruturais para criarem os seus
filhos, que também correm o risco de ter a sua trajetória educativa prejudicada.

Las mujeres afrodescendientes exhiben una fecundidad más temprana y elevada que
la del resto de la población. Entre las afrodescendientes, las mujeres cuya
ascendencia principal es “afro o negra” claramente se distancia del resto por su
porcentaje de madres jóvenes y número promedio de hijos acumulados (CABELLA;
NATHAN; TENENBAUM, 2013, p. 38).

Entretanto, é necessário assinalar que apesar desta ser uma tendência geral,
existem significativas diferenciações geográficas que estão diretamente ligadas às questões
estruturais que arregimentam descompassos regionais:

Dentro del territorio nacional, las mujeres residentes en Montevideo presentan una
fecundidad menos intensa que la observada por las afrodescendientes del resto del
país, lo que en definitiva reproduce la distancia existente entre la capital y el interior
en materia de comportamento reproductivo de las mujeres, más allá de su
ascendencia étnico-racial (CABELLA; NATHAN; TENENBAUM, 2013, p. 38-39).

Muitos são os motivos, e eles, em certa medida, não estão concentrados apenas na
população negra. É preciso considerar que as relações centro x periferia ou cidade x campo,
estão atravessadas por diferentes propósitos que circunscrevem o estilo de vida, mas que têm
em sua base todo um alicerce estrutural que sustenta o ethos, o status quo e o habitus de cada
118

uma dessas dinâmicas de vida. Esses fatores estão traduzidos em acesso maior ou menor à
tecnologia, especialidades clínicas em redes de saúde, qualidade da educação, oferta de
cultura, esporte e lazer, variedade de produtos alimentícios etc.
Disso decorre o fato já trabalhado anteriormente, de que o Uruguai desenvolveu o
seu sistema de ensino desde o final do século XIX, realizando as reformas educacionais. Na
América Latina, o Uruguai é o país mais precoce em termos de universalização do ensino. Foi
também o que conseguiu incluir mais satisfatoriamente as mulheres nos níveis de
escolarização básica:

En el contexto latinoamericano Uruguay es reconocido por su caráter percursor en


materia de políticas de universalizacíon de la enseñanza formal. La progresiva
expansión de la oferta de la educación básica iniciada desde fines del siglo XIX
impactó disminuyendo sensiblemente las tasas de analfabetismo en el país, que
pasaron de representar el 35,4% de la población de 15 y más años en 1908 al 3,2%
en 1996 (INE, 2002) y 1,5% en 2011. El sistema educativo uruguayo logra
consolidarse en la primera parte del siglo XX y a partir de la década de 1950 se
logró un fuerte incremento de la matrícula de enseñanza primaria y secundaria, etapa
en que la además se constata un creciente acesso de las mujeres y la población
perteneciente a los estratos sociales bajos (CABELLA; NATHAN; TENENBAUM,
2013, p. 51).

Essas dinâmicas podem contribuir para análises pontuais que farão total diferença
na qualificação dos dados obtidos de forma quantitativa em pesquisas censitárias, sobretudo
quando se está incluindo um novo elemento, como foi o censo do ano de 2011 no Uruguai,
quando se introduz a categoria “negro” como possibilidade de identificação racial, abrindo
novas demandas interpretativas em relação à produção de operadores socioeconômicos que
sinalizam para uma miríade de subjetividades em meio a um processo histórico que impacta
diretamente na desenvoltura dos grupos a serem analisados.
Em outras palavras, o censo do ano de 2011 produz pela primeira vez os dados
atinentes às diferenças socioeconômicas com o verniz racial, sinalizando para a possibilidade
de interpretações sobre o processo histórico de inserção do negro na sociedade livre uruguaia
e a gradação dos seus impactos a longo prazo. Jamais houve a produção de um documento
que quantificasse as diferenças raciais de maneira mais sistemática naquele país, expondo um
processo de racismo que se esconde nos discursos, mas se pratica objetivamente
instrumentalizado pelas estruturas de poder.
Para se ter ideia dessa dinâmica, nos primeiros anos de escolarização, no ensino
básico, que compreende a faixa etária de seis a onze anos, há uma cobertura universal de
acesso à educação e não se observam substanciais diferenças étnico-raciais. No entanto, ao
atingir os doze anos, as pessoas negras matriculadas nas instituições de ensino começam a
119

evadir-se, abrindo uma imensa diferença entre brancos e negros. Com efeito, a precoce evasão
escolar das pessoas negras acarreta em suas desvantagens no mercado de trabalho e, por
conseguinte, em bem-estar social (CABELLA; NATHAN; TENENBAUM, 2013).
Esse conjunto de fatores está interconectado a outros e são fruto de um processo
histórico em que os negros estiveram frente a dificuldades de diversas ordens, nas quais, em
grande parte, tiveram o racismo como obstáculo a ser superado, diante a júbilo e
marginalização. Foi justamente a constatação de que gerações de pessoas negras foram
negligenciadas em suas demandas, e, sobretudo, “exiladas” em seu próprio país, que confluiu
para que os movimentos negros uruguaios chegassem à maior conferência de combate ao
racismo, ocorrida no ano de 2001 – III Conferência Mundial contra o Racismo, a
Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, a conferência de
Durban –, com o objetivo de dar o pontapé inicial para a implementação de políticas públicas
focais para a população negra.
Como desdobramento dos documentos de Durban, além da experiência adquirida
após a troca com ativistas e autoridades estrangeiras, os membros dos movimentos negros
uruguaios aproveitaram para sinalizar sobre a necessidade de implementação das suas agendas
políticas dentro do Estado. A ambiência internacional era favorável e a política interna
uruguaia também, a ONU estava mediando os conflitos raciais e operados por outros
marcadores de violência, e os movimentos negros estavam fortalecidos com as suas alianças
políticas internas e externas.
Existindo um abismo racial entre negros e brancos, que precisava ser resolvido,
resolveu-se pela inclusão do critério racial no censo uruguaio do ano de 2013, sendo
incontornável acender o alerta para os negros, uma vez que se encontram entre a manutenção
do velho status quo, por parcela dos grupos que defendem os ideais republicanos,
conservadores e liberais, e a instrumentalização política de parte daqueles que defendem a
bandeira democrata, mais inclinada para a esquerda e o socialismo.
No momento mais áureo de financiamento de projetos políticos que beneficiavam
a população negra, os movimentos negros uruguaios optaram por se alinhar à esquerda, e isso
poderá ser constatado nas entrevistas que realizamos com as lideranças desses movimentos.
Hoje, é possível estar diante de críticas e novas possibilidades de pensar as questões étnico-
raciais por parte dos negros, mas não se pode negligenciar que naquele momento o que havia
de mais acessível estava na aliança política com a esquerda, na qual alguns desses militantes
não se arrependem, enquanto outros mudaram a maneira de olhar.
120

Foi diante dessa torrente de possibilidades e arranjos políticos que as ações


afirmativas foram tomando conta do cenário público uruguaio. Para os movimentos negros
desse país, essa foi, quase que indiscutivelmente, uma vitória para toda a população negra, já
que esse sistema teria tido resultados favoráveis e a partir daquele momento representaria a
chance de elevar o nível de instrução, acesso a emprego público e renda para os negros
uruguaios.

5.2 O Uruguai no Pós-Durban e a Lei 19.122/06

Reconhecemos o papel primordial dos parlamentos na luta contra o racismo, discriminação racial,
xenofobia e intolerância correlata, em adorar legislação adequada, supervisionando sua implementação
e alocando recursos financeiros indispensáveis (Plano de Ação de Durban, p.39).

O Uruguai inicia as suas ações a partir do ano de 2003, dois anos após Durban,
instituindo o crime de racismo no código penal, no qual a lei 17.677

Penaliza con 3 a 24 meses de prisión a quienes inciten o cometan actos de violencia


moral o física, de odio o de desprecio contra personas en razón de su color de piel,
raza, religión, origen nacional o étnico, orientación o identidad sexual (ABERO;
MUSSO; PÍRIZ, 2016, p. 18)

Com o racismo tornado crime, a porta se abriu para outras medidas, leis e sanções,
gerando novas demandas para o Estado, na medida em que aumentaram também o número de
obrigações. Dentre as leis comemoradas pelos movimentos negros uruguaios, estão a lei
17.817/2004, que declara ser de interesse nacional a luta contra o racismo e todas as formas
de discriminação. A lei 18.059/2006, que estabelece o dia 03 de dezembro como dia nacional
do candombe (data que marca a demolição do conventillo Medio Mundo), que passa a ser
patrimônio cultural uruguaio. E a Lei 19.122, criada em 2013 a fim de promover ações
afirmativas para a população negra no âmbito educativo e de mercado de trabalho (ABERO;
MUSSO; PÍRIZ, 2016, p. 18).
Entre todas essas leis de combate ao racismo, a Lei 19.122 tem sido a mais
discutida no Uruguai neste momento, já que foi desenvolvida no intuito de se tornar uma
ferramenta para equilibrar os níveis de desigualdade racial no país. Para muitos ativistas dos
movimentos negros e estudiosos da questão racial, ela funciona como a catalisadora para
medidas que atendem às demandas históricas dos movimentos negros em seus anseios por
acesso aos bens e serviços ofertados pelo Estado, e pelo reconhecimento e valorização da
cultura de matriz africana.
121

La Ley 19.122 lejos de ser la solución al racismo estructural constituye una


herramienta para afrontar la desigualdad étnico-racial y mejorar los niveles de
autonomía de las personas afrodescendientes. Constituye un aporte desde el punto de
vista que brinda soluciones concretas para reparar la desvantaja histórica a la que la
comunidad afrouruguaya ha sido determinada. Es una forma de responsabilización
del Estado a partir de una iniciativa que fue coparticipativamente elaborada desde el
Parlamento, escuchando y dando una respuesta específica a los reclamos y denuncia
que históricamente viene haciendo la sociedade civil organizada afro (IGUINI:
MACIEL: MIGUEZ; RORRA, 2016, p. 80).

O panorama político e social no Uruguai tomava um rumo de maior abertura para


essas ações, e toda ambiência confluiu para essas escutas, orientadas pela vitória de José
Alberto Mujica Cordano (1935-), o Pepe Mujica, para a presidência daquele país. Ele presidiu
o Uruguai no período que compreende entre 2010 e 2015, e, para muitos, representou a vitória
de um governo popular de orientação socialista, como a esperança de resolver os problemas
sociais e dinamizar um processo de redistribuição de oportunidade e renda, o que, em tese,
incluía os afro-uruguaios. Será que isso ocorreu de fato?
Essa pesquisa teve início no Brasil, no ano de 2016, um ano após Pepe Mujica sair
da presidência da República Oriental do Uruguai, e se concentrou no panorama brasileiro.
Somente no ano de 2019 a pesquisa se debruça em torno do Uruguai enquanto objeto de
apreciação analítica, primeiramente a partir de leituras e, posteriormente, com uma viagem a
Montevidéu e a realização de um trabalho de campo que contou com a entrevista de onze
ativistas dos movimentos negros que estiveram à frente da implementação de leis e medidas
antirracistas. Alguns deles estiveram em Durban e participaram de articulações bastante
anteriores às implementações das medidas a pouco trabalhadas.
Quero dizer com isso que uma análise sistemática acerca do governo de Pepe
Mujica, no que diz respeito a sua atuação frente à questão racial uruguaia, além de não ser o
escopo principal da tese, não possui, ainda, elementos suficientes para profundas asserções.
No entanto, possíveis olhares estão no bojo das análises feitas a partir das entrevistas
concedidas, o que nos permite possibilidades de pensarmos estas questões a partir da visão
desde o próprio uruguaio, consubstanciada nas declarações de quem esteve à frente do
processo.
O fato é que a lei mais debatida hoje, a Lei 19.122, foi sancionada durante o
governo de Pepe Mujica, e para a militância dos movimentos negros a aprovação da referida
lei representa um marco na luta contra o racismo e na efetiva cobrança por “reparações” por
parte do Estado. Essa decisão já vinha sendo ensaiada desde o final dos anos de 1990 e no
início dos anos 2000, com as transformações que o cenário internacional já vinha sendo
obrigado a tomar, e, certamente, os membros mais experientes dos movimentos negros
122

serviram como “ponta de lança” na mediação entre os vários interesses que deveriam ser
articulados para a sua devida efetivação.
Em sua regulamentação, a Lei 19.122 cria ações afirmativas para favorecer o
acesso e a participação dos negros em áreas educativas e trabalhistas, visando estarem
alocados e desenvolvendo atividades nas áreas fundamentais para o crescimento do país. Com
isso, se torna menos dificultoso que os negros tenham acometimento nos seguintes
ministérios: Educação e Cultura, Interior, Relações Exteriores, Economia e Finanças, Defesa
Nacional, Transporte e Obras Públicas, Indústria, Energia e Mineração, Trabalho e
Seguridade Social, Saúde Pública, Turismo e Desporto, Habitação, Ordenamento Territorial e
Meio Ambiente e, por fim, o Ministério de Desenvolvimento Social (MINISTERIO DE
DESARROLLO SOCIAL 2014)37.
Segundo o informe final sistematizado na II Assembléia da Rede de Mulheres
Afrolatinas, Afrocaribenhas e da Diáspora (RMAAD), ocorrida em Montevidéu em agosto de
2014, a Lei 19.122 foi desenvolvida a partir da Conferência de Durban, ou seja, considerando
as informações trazidas em seu documento final, entendendo que ali estavam contidas as
demandas urgentes que os movimentos negros vinham historicamente se empenhando para
tentar implantar e implementar por dentro do estado uruguaio.
Nesse sentido, os vários episódios de racismo denunciados desde a colônia até a
proclamação da república haviam sido considerados como elementos importantes a serem
somados e ganhar corpo para uma justa medida que visasse equalizar as diferenças raciais que
se apresentavam evidentes na dinâmica do país, consubstanciadas pelos números censitários
que desde o ano de 2011 apresentava o fator racial como categoria analítica acerca da divisão
social do país.
Também foi necessário estabelecer um parâmetro racial, a fim de evitar fraudes e
tergiversações de cunho político-ideológico. Entretanto, e como em todo o lugar, a decisão de
caracterização racial é sempre muito complexa, levando os órgãos competentes à adoção do
critério de autoatribuição, ou seja, aquele que no qual o próprio cidadão se reconhece
enquanto tal, com base na sua própria percepção subjetiva de afiliação histórica e cultural,
mas mediada por um guia de autodefinição compilado pelo Instituto Nacional de Estatística.
Diante de todos esses ajustes, discussões e recomendações, é importante ressaltar
que a Lei 19.122 vicejou em meio aos debates acalorados no parlamento uruguaio, que,

37
Cumpre dizer que o Ministério do Desenvolvimento Social (Ministerio de Desarrollo Social – MIDES) foi
criado em março do ano de 2005, por meio da Lei 17.866, com a missão de coordenar as políticas de cunho
social (MINISTERIO DE DESARROLLO SOCIAL 2014).
123

segundo Olaza (2017), tiveram um caráter bastante similar ao mesmo processo de aprovação
das cotas raciais no Brasil. Segundo a autora, o que esteve mais evidente nesse decurso foram
as argumentações divididas, que orbitavam entre a necessidade de políticas focalizadas,
geralmente defendidas pelo partido Frente Amplio, e a universalização do combate à pobreza,
proposta enfatizada pelo partido Colorado.
É necessário frisar que a Lei 19.122 surge a partir da “XLVII Legislatura da
Câmara de Representantes, como o projeto apresentado pelo deputado Felipe Carballo à
Comissão Especial de População e Desenvolvimento Social” (OLAZA, 2017, p. 179). E que
todos os debates aos quais nos referimos nas linhas anteriores teve como palco o parlamento.
Ficou decidido pela sua aplicação, entendendo que o princípio constitucional de igualdade de
todos os cidadãos uruguaios perante a lei seria salvaguardado, ou seja, que a aplicação das
ações afirmativas não implicaria em nada a isonomia naquele país.
De acordo com Olaza (2017), a legitimidade para a aplicação da Lei 19.122 está
salvaguardada no princípio de conduta ética que prevê um prazo para a sua vigoração,
estipulado em quinze anos. Entretanto, a autora ressalva que:

Embora a própria lei determine 15 anos de aplicação ao estabelecer um âmbito


temporal, acordando o que, no momento, foi considerado um prazo razoável que
permitiria corrigir as situações de desigualdade, não deveria se descuidar da
necessidade reforçar dispositivos que possibilitem seguir passo a passo seu real
cumprimento (OLAZA, 2017, p. 196).

A autora, portanto, cobra um sistemático acompanhamento sobre a efetivação da


lei, já que o que estaria em jogo seria o funcionamento da mesma, o seu poder de
transformação frente à constatação de problemas históricos de alta complexidade. O
argumento é válido e funciona como uma mediação acerca da decisão do parlamento, já que
aceita o estabelecimento de um prazo, ao passo que cobra efetividade nas ações a fim de
resolver, ou pelo menos dirimir, as desvantagens raciais no país.
A partir de todas essas possibilidades de pensar os embates políticos, os acordos,
as tensões e as negociações, o nosso olhar sobre o Uruguai se direciona para a escuta,
privilegiando os pontos de vistas daqueles que estão inseridos na realidade daquele país.
Nesse sentido, tivemos a satisfação de ter entrevistado algumas pessoas dos movimentos
negros uruguaios, indivíduos que possibilitaram alguns olhares e se colocaram gentilmente a
disposição de terem as suas opiniões postas para a nossa apreciação.
A partir de agora, o trabalho se encaminha para a análise das entrevistas realizadas
no Uruguai, em Montevidéu, procurando estar atento aos detalhes acerca do processo
histórico do movimento negro daquele país, sua confluência para a Conferência de Durban, as
124

suas dinâmicas atuais e as perspectivas futuras que se apresentam como horizonte político
para os negros uruguaios. Portanto, iniciaremos a próxima seção com as conversas efetivadas
em Montevidéu, de 17 de janeiro a 16 de fevereiro do ano de 2019.

5.3 Entrevistas com os ativistas uruguaios

5.3.1 Romero Rodrigues

Nosso primeiro entrevistado é um grande expoente do movimento negro uruguaio,


figura que participou ativamente de vários episódios na luta de combate ao racismo naquele
país. Ele é o fundador da organização Mundo Afro. Romero também foi o primeiro
embaixador negro uruguaio, quando, no governo de “Pepe” Mujica, exerceu a função em
alguns países africanos.
Romero esteve exilado por alguns anos de sua vida, decidindo viver no Brasil e
aguardando o momento oportuno para retornar ao seu país. Durante o tempo em que esteve no
Brasil, Romero visitou e esteve a trabalho em vários estados deste país, constituindo família e
tendo a oportunidade de se agenciar junto aos movimentos negros brasileiros. Foi quando
estreitou seus laços de amizade com o militante Adbias do Nascimento, pessoa ao qual ele
nutre profundo respeito e que o considera uma figura icônica para o movimento negro
uruguaio.

5.3.2 Karina Moreira

Na sequência, temos a entrevista com Karina Moreira, que é psicóloga de


formação e atua como militante do movimento negro há dezoito anos ou mais. Karina esteve
no MIDES – Ministério de Desenvolvimento Social como coordenadora do departamento de
mulheres afrodescendentes, tendo renunciado ao cargo recentemente para dar continuidade a
um projeto ao qual vem se dedicando atualmente, que possui o nome de BANTU e funciona
junto ao Conselho Nacional de Drogas como prevenção e redução dos danos causados pelo
uso de drogas, tendo como público-alvo as pessoas negras.
125

5.3.3 Juan Pedro Machado

Juan Pedro Machado possui formação em enfermagem e fisioterapia, e no


momento da entrevista estava se preparando para prestar o concurso para o mestrado em
Políticas Públicas para a Universidad de La Republica, em Montevídeu. Ele nos explica que
tem uma larga experiência com os movimentos negros uruguaios e que está no ativismo desde
o ano de 1992. Ultimamente, Juan tem estado inclinado em trabalhar o fortalecimento das
relações entre as instituições negras e o estado.
Nosso entrevistado foi membro ativo da organização Mundo Afro e esteve na
Conferência de Durban como relator especial. Juan é nascido na fronteira do Uruguai com o
Brasil e é fluente na língua portuguesa, já esteve participando de muitas conferências, cursos
de formação e atos em várias cidades brasileiras.

5.3.4 Chabella Ramirez

Nossa entrevistada se chama Julia Isabel Avella e o nome “Chabella” é um nome


artístico que se impôs como sua identidade, e hoje as pessoas a conhecem assim, “Chabella
Ramirez”. Chabella é arte-educadora e promove oficinas de educação popular em escolas
secundárias em contextos que considera como “críticos”, ou seja, de vulnerabilidade social. Já
trabalhou durante muito tempo como empregada doméstica e é ativista desde os 15 anos de
idade.
Chabella já participou de vários grupos de ativistas e nos recorda que iniciou em
um grupo chamado “Nelson Mandela”, mesmo período em que participava de um grupo
chamado “Candombe One”, no qual fora locutora de rádio por mais de 10 anos. Ela também
afirma ter participado da organização Mundo Afro e de um grupo cultural de mulheres
chamado Afro Gama, que no ano da entrevista completaria 23 anos. Atualmente, ela é
presidente da Casa de Cultura Afro-Uruguaya, local onde participa desde quando apenas era
militante.

5.3.5 Orlando Rivero

Ramón Orlando Rivero é militante de uma organização que se chama Salvador de


Otarbide, que se trata de um movimento social fundado no ano de 2008. Nosso entrevistado
também já foi diretor-geral do Mundo Afro, no qual militou desde a década de 1990 até 2006.
126

Orlando se identifica como pan-africanista e socialista. Hoje, Orlando está cumprindo funções
administrativas no escritório de planejamento e orçamentos do governo, em que trabalha
como assessor e assistente. Lá, ele desenvolve construções de estratégias de governo para o
desenvolvimento da população negra. Olando também é formado em psicologia.

5.3.6 Julio Cesar Pereira

Julio Eduardo Pereira Silva é licenciado em artes plásticas e visuais pela


Universidad de la República, onde é docente na Escola Nacional de Bellas Artes. Nosso
entrevistado também foi estudante desta universidade. Ele nos explica que não é um militante
ativo organizado em um movimento específico, pois a vida acadêmica consome bastante o seu
tempo, no entanto, está sempre perto e acompanhando os movimentos negros, logo, tem
penetração entre reuniões e desenvolvimento das agendas políticas de alguns deles.

5.3.7 Andres Urioste

Andres Urioste havia completado 53 anos no ano de nossa entrevista e diz ser
ativista do movimnto negro uruguaio desde muitos anos, aproximadamente 30 anos. Ele
enfatiza que participou da Conferência de Durban e foi integrante ativo da organização
Mundo Afro. Nosso entrevistado é técnico em saúde do governo uruguaio e se especializou
em saúde e racismo. Ele particiou da campanha que levou o Partido Frente Amplio ao poder,
no ano de 2005, e esteve em contato com militantes dos movimentos negros brasileiros, como
Jurema Werneck.
Hoje, Andres Urioste participa moderadamente dos movimentos sociais negros,
muito mais como colaborador do que atuante assíduo, como antes. Ele voltou ao ativismo de
base e se preocupa em trabalhar as questões atinentes ao racismo desde dentro do Estado, pois
acredita que estando como técnico em saúde do governo a sua intervenção poderá render
melhores resultados para a população negra.

5.3.8 Noelia Maciel

Noelia Maciel é formada em Ciência Política e no momento da entrevista estava


realizando um curso em “Desenvolvimento Econômico e Territorial”. Ela se declara militante
do movimento negro há aproximadamente 20 anos. Desde a sua juventude, Noelia esteve
127

ligada ao tema das relações raciais e isso a influenciou nos estudos universitários. Nesse
sentido, ela acredita sempre haver uma conexão de coisas que podem ser relacionadas ao tema
e articuladas para propôr produções de conhecimento dedicados a aprofundar a temática
racial.
Nossa entrevistada se encontra trabalhando com desenvolvimento econômico
ligado ao setor de empreendedorismo. Ela está dedicada ao estímulo para a criação de
negócios que impulsionem a população negra. Porém, sempre esteve, e continua estando,
dedicada à temática da educação, sendo essa a sua maior contribuição para a militância do
movimento negro.

5.3.9 Lourdes Martinez

Lourdes Martinez é procuradora e diplomada em Gênero, Cidadania e Educação.


Ela se identifica como militante e participa de uma organização de mulheres negras feministas
que se chama Colectiva de Mujeres. No momento da entrevista, ela fazia parte da Red de
Mujeres Afrolatinoamericanas, Afrocaribeñas y de la Diáspora. Recentemente, Lourdes
havia assumido a coordenação do “Departamento de mujeres afro”, que é parte da estrutura do
Inmujeres Mides.

5.4 Os Movimentos Negros no Uruguai

Conforme já trabalhamos ao longo deste estudo, houve de fato uma tendência


gradativa de abertura para o debate acerca das questões raciais, e os acontecimentos que
acompanhavam tal receptividade para o tema possibilitaram que alguns sujeitos e
coletividades pudessem criar mobilidade e adentrar espaços menos previsíveis dentro do
mundo do trabalho e de acesso aos bens culturais legitimados pelo ethos que prescreve as
normas de conduta de uma sociedade. Nas grandes cidades, aonde circula maior fluxo de
capital, eles geralmente estão situados nas áreas mais nobres, onde o contingente de negros é
numericamente menor do que o de pessoas brancas.
Sendo assim, e segundo Karina Moreira, podemos sinalizar que ao passo em que
os negros conquistavam direitos e criavam mobilidade social, havia uma maior possibilidade
de ascenção social e de “penduralidade cultural”, que se traduziria pela circulação por lugares
de maior oferta de bens culturais, e é por isso que nos concentramos na cidade de
128

Montevidéu, sendo necessário o empreendimento de um olhar acerca dos movimentos negros


uruguaios a partir da perspectiva dos nossos entrevistados.
De acordo com Romero, durante um período os movimentos negros uruguaios
foram bastante influenciados pelos movimentos negros brasileiros, e isso se deveu à árdua
militância de Abdias do Nascimento, tendo como grande marco o Encontro de Populações
Negras da América Latina, ocasião em que o Brasil teve posição de protagonismo e
viabilizou debates acerca da importância de se manter um diálogo entre os movimentos
organizados na América Latina:

Del encuentro de poblaciones negras de América Latina, Abdias do Nascimento fue


un poco el precursor de todos nosotros. Y el movimiento negro brasileño nosotros
teníamos o yo tenía una mirada muy impactante de enseñanza, de proceso, de lucha,
de resistencia. Yo creo que muchas veces en lo personal nos confundimos con el
movimiento negro brasileño. El movimiento negro brasileño para América Latina es
el movimiento precursor, el fuerte, el vanguardista, el de la vanguardia. (ROMERO
RODRÍGUEZ)

Percebe-se que os movimentos negros brasileiros possuem uma organização


histórica importante e de impacto internacional, a ponto de se destacarem pelo seu caráter
“vanguardista” e a partir de diversas publicações de livros e jornais, de reivindicações por
direitos, projetos de ensino e preservação da cultura afro-brasileira, e, recentemente, pela
aprovação de leis específicas. Muito provavelmente esses feitos históricos sejam o motor para
que os países latino-americanos reconheçam os movimentos negros brasileiros como
percussores de luta antirracismo neste continente.
Segundo Juan Pedro Machado, os intercâmbios são importantíssimos, pois
oportuniza que as informações circulem, que as pessoas passem a se conhecer e as ideias se
conectem. Para ele, o movimento negro uruguaio ganhou amplitude justamente a partir da
conexão entre diferentes regiões e as zonas fronteiriças foram indispensáveis para uma mirada
mais ampla acerca do panorama uruguaio, ou seja, o Uruguai não poderia ser visto apenas
pelas lentes de Montevidéu:

No Mundo Afro, em particular, nós tínhamos nessa época, um conceito que se


formou por volta de 1994; que era de formar instâncias na região, para criar um
vínculo entre os povos, compartilhar as situações, experiências e vivências dos
povos afros. Imagina um povo que tem cerca de 300 mil pessoas, só no Rio Grande
do Sul temos um grupo de 9 milhões de pretos. Como se fortalece esse grupo?
Tendo a capacidade de trocar essas informações em comum e ter um espaço mais
agressivo na negociação e entendimento político (JUAN PEDRO MACHADO)38.

38
A entrevista realizada com Juan Pedro Machado foi concedida em português, já que o nosso entrevistado é
fluente na língua.
129

Concordando, Romero sinaliza que o amadurecimento dos movimentos negros


atuais naquele país possibilitou novos horizontes e rearranjos políticos, pois a intensificação
dos estudos acerca da população negra no Uruguai conduziu a uma reorganização do olhar
acerca dos movimentos que já aconteciam concomitantemente ao Brasil, e muitas vezes com
proposições similares, que, no entanto, aconteciam de maneira independente, ou seja, sem a
influência direta do que havia por aqui.
Nosso entrevistado acredita que o movimento negro brasileiro não seja mais
“vanguardista” do que os outros movimentos negros encontrados em outros países da
América Latina, entendendo que cada um deles tem a sua importância dentro do contexto e do
cenário político ao qual estiveram – e estão – localizados. Segundo ele, a questão de os
movimentos negros no Brasil aparecerem tanto, tem haver com a tardia libertação dos
escravizados e com a organização social e política que se estabelece no pós-abolição, gerando
um abismo racial, pouco compreendido por parte da população, que sofre com os reflexos
ainda hoje.

La vida nos demostró que no es tan así, o sea, creo que el movimiento negro
brasileño tiene el factor de haber sido el último país de América Latina en abolir la
esclavitud y tener un imperio hasta finales del siglo XIX. Y hay aquel que no
entienda eso, que los resultados de ese imperio, las consecuencias de ese imperio
todavía viven hoy. Hay una gran impronta de lucha contra el racismo y esa lucha
contra el racismo necesita en algún momento convertirla en una lucha política de
cambio y transformación de nuestras sociedades, de un proyecto político (ROMERO
RODRÍGUEZ).

Nesse sentido, Romero reitera a ideia já trabalhada por nós nesta tese, a de que um
dos laços que une – ou deveria unir – os movimentos negros é a luta por acesso à cidadania
plena. Para o militante uruguaio, é necessário que os movimentos negros latino-americanos
tenham um amplo entendimento acerca desta questão, para que somente assim consigam ser
propositivos a ponto de unificar os diversos setores da sociedade em relação aos seus pleitos,
emergindo a possibilidade de integração do negro aos setores produtivos, por conseguinte,
melhorando as suas condições de vidas.

Creo que América Latina y todos los movimientos de América Latina tenemos un
desafío en eso, no hemos comprendido que somos ciudadanos, que queremos la
ciudadanía, que vivimos en un sistema multiétnico donde la función del capital
prima en nuestras relaciones humanas y que fundamentalmente si el movimiento
negro en América Latina no encuentra, para mí, la conformación de un proyecto de
amplias mayorías con todos los sectores de la sociedad y construir democracia y eso
va en función de un proyecto político, va a ser muy difícil salir de nuestros preceptos
(ROMERO RODRÍGUEZ).

Para Juan Pedro Machado, o Uruguai leva certa vantagem dado ao fato de serem
um povo habituado às trocas culturais e aos aprendizados por meio da escuta e abertura para
130

diferentes perspectivas. Juan sinaliza que “muitos fatos que dão vantagem ao Uruguai, é que
eles são um povo diplomático, se interessam por política. São um povo que se conecta e busca
criar redes para crescer e aumentar a sua influência política, principalmente em prol de sua
sobrevivência” (JUAN PEDRO MACHADO).
Desse modo, Romero é mais abrangente e enfatiza que houve um processo
diferenciado do Uruguai em relação aos países latino-americanos e ao Brasil. Segundo ele, o
ímpeto revolucionário de figuras como Simón Bolívar (1783 – 1830) e o General Artigas
(1764 – 1850) engendravam a possibilidade de inclusão de negros na cidadania de cada uma
das nações em que estes homens estiveram guerreando. Com efeito, a parcela da população
branca passaria a ter vergonha do período escravocrata. Ao contrário, o Brasil não teria tido
um líder revolucionário da envergadura dos aqui apresentados, gerando um orgulho escravista
por parte de alguns setores da sociedade.

Brasil fue un imperio hasta 1888 cuando los países de Latinoamérica, Bolívar,
Artigas, ya habían procesado un proceso de independencia entre comillas que
admitía el negro como sujeto social para ganar sus guerras; o sea el concepto del
estado de nación muy europeo pero admitía otros procesos sociales. Eso en el
devenir del tiempo da una… voy a decir una barbaridad, los blancos
latinoamericanos tienen, muchos de ellos tienen vergüenza de la esclavitud, de lo
que generaron. Los blancos brasileños tienen orgullo de haber sido esclavistas, eso
es una percepción que tengo (ROMERO RODRÍGUEZ).

Apesar de o nosso entrevistado afirmar que o negro tenha sido absorvido pelo
ideário revolucionário dos grandes líderes latino-americanos, a trajetória do movimento negro
sinaliza que o reconhecimento de Ansina como herói nacional se deu por muita pressão, e a
sua efetivação como tal só aconteceu tardiamente. Esse fato, atestado por Andrews (2010),
põe em xeque a possibilidade de que “os brancos” deste continente sintam “vergonha” do
período escravocrata, ora, se sentiam vergonha, então por que tanto descrédito em relação a
um sujeito que esteve lutando ao lado do mais reverenciado líder revolucionário daquele país?
Romero Rodriguéz argumenta que Ansina possa ser apenas um personagem
construído pelo movimento negro uruguaio, como parte de um projeto de “resgate” da
identidade dos negros daquele país. Segundo ele, há poucas fontes sobre Ansina, que na
realidade pode ter sido “qualquer coisa”, inclusive um escravizado. Em contrapartida, Romero
assevera que Zumbi dos Palmares seja um personagem real da história do Brasil, com um
programa de estado e fontes confiáveis.

Se reconoció en 1917. Marcelino Bottaro, líder del movimiento negro uruguayo


reivindica la figura de Ansina… y es muy poco lo que conocemos de Ansina, no hay
mucho documento, lo que se sabe es que era el compañero, mayordomo, esclavo, no
sé, una relación con Artigas el General. Pero el proceso de la visibilización de
131

Ansina se hizo producto fruto del movimiento negro, de esta casa; yo escribí un
libro hace muchos años, de tener la simbología histórica como referencia para
nuestras movilizaciones reivindicativas. Pero en verdad lo que se conoce de Ansina
es muy poco, no es ni siquiera un Zumbi dos Palmares. Zumbi dos Palmares es un
personaje, o un jefe que administra un territorio, la República dos Palmares.
(ROMERO RODRÍGUEZ)

Há um debate em torno da importância de estabelecer Ansina como herói


existencial ou ficcional. Chabella Ramirez também acredita na validade do debate que atesta
para a imprecisão das fontes acerca da vida de Ansina, no entanto, afirma a sua existência e a
sua ascendência afro, e sinaliza para a sua importância frente à história do Uruguai.

Joaquín Lencina fue el ayudante, el comandante, el amigo, el compañero, y asesor


de guerra de José Gervasio Artigas, nuestro prócer. Joaquín Lencina era afro, pero
hay quien dice que no era de Montevideo, que era de São Paulo, hay quienes dicen
que no había nacido acá, que había nacido en Brasil y recién ahora, es proclamado
comandante en jefe del Uruguay, pasaron 200 años, 200 años pasaron pero aparte de
esto que te estoy contando, tambien te puedo decir que en esa fluidez de población
hoy en Montevideo vas a encontrarte con familias de apellido Silva, de apellido
Cardozo, de apellido Gularte, de apellido Daluz, Silveira, muchos apellidos, yo creo
que los afrobrasileños y los afrouruguayos estan históricamente emparentados y
somos muchas más que dos (CHABELLA RAMIREZ).

Em relação a Ansina, Romero Rodriguez ainda pondera a sua efetiva participação


enquanto liderança negra uruguaia, sugerindo que devamos investigar um pouco mais acerca
da figura histórica de Ansina e buscar fontes as quais sinalize para uma biografia mais
fidedigna quanto ao papel desempenhado por ele em seu tempo. Politicamente, completa
Romero, a figura do “herói” constitui uma válida bandeira de luta que permite arranjos
identitários de estímulos para a população negra.

Ansina es un personaje que acompañó siempre a Artigas y que algunos


investigadores le dan ciertas propuestas, planteos que las fuentes son muy muy
débiles… para el diálogo político, para la batalla política, para el simbolismo y el
espíritu político es interesante pero si vas a la fuente, hay algo de Dupuy en el año
1878 que dice que él era un poeta y un payador, pero si ves los escritos no se
corresponden al lenguaje de 1878, era un lenguaje muy moderno para la historia del
Ansina que tenía supuestamente un lenguaje interafricano, ahora que fue el que
acompañó a Artigas hasta su final, sí; que fue muy leal, hay quien dice que era
comandante del ejército de negros y libertos, sí es muy probable; pero hay que
demostrarlo, no me animaría con un académico de tu altura generar expectativas de
un Ansina que… todavía falta una investigación. (ROMERO RODRÍGUEZ)

Ao tratar da questão de Ansina como herói nacional, Romero sinaliza que esta foi
uma pauta que fazia parte do amadurecimento do movimento negro, que estava construindo
uma narrativa de mobilização, algo que fosse capaz de gerar legitimidade discursiva para
adentrar os espaços de tomada de decisão política. Segundo ele, foram ações insistentes como
esta – ainda que com certa imprecisão de fontes – que potencializaram as lutas e o debate foi
se sofisticando, conquistando novos patamares e se amplificando.
132

A confluência de tantas ações e medidas fortaleceram as coletividades negras que


se articulavam durante muitas décadas, possibilitando a formação de militantes de geração em
geração até que estivessem preparados para lidar com uma conjuntura política favorável e
pudesse viabilizar, por dentro das instituições do Estado, as demandas construídas
historicamente pelas suas antecessoras. Objetivamente, o movimento negro uruguaio teria em
sua agenda um pleito que permanecia na dianteira para as negociações com os órgãos
competentes. Essa era a pauta da educação.
Em relação a essa pauta é importantíssimo dizer que apesar de o Uruguai ser um
país com bons índices educacionais, ou seja, baixa taxa de analfabetismo e satisfatório
aprendizado, muito à frente dos seus vizinhos do continente, mas ainda há problemas entre
negros e brancos, tendo a população negra grandes desvantagens. Segundo Orlando Riveros,
esse fato é atravessado durante décadas e transcende as análises puramente de estrutura de
ensino, uma vez que o problema do racismo influencia no rendimento escolar das pessoas
negras.

En principio hay un problema de trato, en primaria, probablemente antes, de cuidado


y de calidad de cuidado, cariño y demás pero fundamentalmente el tema del habla
influye muchísimo el efecto Pigmalión, no? Es decir, hay un aspecto donde hoy se
puede entender o establecer de que a la población negra, a los niños y las niñas
negras se le da una educación, de alguna forma, uno no lo puede comprobar, pero no
puedo afirmarlo, pero por ahora cualitativamente se sabe que en primaria el efecto
Pigmalión en el hecho de que los niños y las niñas negras no van a soportar la
cantidad de información que se le va a dar, entonces se le da menor información, o
menor educación. (ORLANDO RIVEROS).

A partir da observação de que a educação deveria ter novos horizontes, o


movimento negro uruguaio pautou as suas intervenções em torno da divulgação de estudos
que comprovam a existência do racismo no ambiente escolar e passou a propor medidas de
combate dessas práticas a partir de outros operativos, tal como o Candombe, dado ao fato de
que é uma manifestação cultural de grande abrangência dentro daquele país.

Dentro de la intendencia de Montevideo que exista una secretaría de negros y


migrantes, que mas te podria decir dentro de la educación, que se llegue a las
escuelas yo por ejemplo he participado de muchos momentos del grupo social del
candombe. Que ha hecho toda una recorrida en el pais donde hay mas negros,
contando la otra historia del Uruguay. Donde el candombe tenga protagonismo del
movimiento social y político, no es solo tocar el tambor y el baile y el canto.
(CHABELLA RAMIREZ).

Essa passou a ser uma perspectiva interessante e integradora, na medida em que


os elementos culturais afro-uruguaios eram gradativamente inseridos no contexto escolar,
possibilitando um novo olhar em torno do negro, pois em resposta ao racismo se
133

apresentavam elementos que refletiam a beleza dos aportes culturais produzidos pelos negros.
Obviamente que isso não anula o fato de que muito ainda necessita ser feito dado que

En Uruguay existe una situación de racismo estructural, que los negros viven en una
situación de opresión y se tenés claros los datos sobre cómo viven la población afro
de cómo vive la población blanca, de cuáles son las brechas en el proceso educativo,
si tenés todos esos datos claros, es difícil elegir vivir en Uruguay, es una opción
difícil pensar en voy a criar a mis hijos en Uruguay es una opción difícil porque la
salida a este sistema de opresión. (JULIO CESAR PEREIRA).

Entretanto, Karina Moreira afirma que o Uruguai obteve significativas mudanças


em compreender a questão da identidade se comparado com quatro ou cinco décadas atrás,
quando “la cuestión de la diferencia se daba por una cuestión de clase, no se hablaba, bueno,
ni de género, ni de diversidad sexual y mucho menos de raza” (KARINA MOREIRA). E,
segundo ela, isso se deu por certa guetificação do negro em lugares compartimentados, pois
“el negro se reconocía entre el negro por la desigualdad mucho más, porque estaba mucho
más enquistado en un lugar, como sujeto en un lugar” (KARINA MOREIRA).
A respeito da questão da identidade, Orlando Riveros enfatiza que fora muito
importante que os movimentos intensificassem as questões que atravessam essa seara, uma
vez que tenha sido o veículo pelo qual se pensou a possibilidade de integrar os negros nos
diferentes espaços de inserção social, ou seja, nas instituições. Nosso entrevistado adverte que
o mais importante é que se ganhe a agenda pública, e por meio dela possa instigar a sociedade
em relação ao que é necessário fazer e quais as dificuldades de se adequar às transformações.

La mayoría de las acciones estén muy pensadas en identidad y te hablo de identidad,


cuando se ha hecho de explicarle a la gente o ganar la agenda pública para decir que
el racismo es malo y la población negra es buena y que en realidad está bien, que en
realidad la población negra se empondere pero cuando se genera un conflicto porque
la población negra toca temáticas que a la sociedad no le conviene, en vez de
profundidad con cuestiones de desarrollo, pácate! Se tira para atrás, ahí se entiende
la práctica del racismo, es decir el racismo no solamente funciona para lo que uno
entiende como un elemento de exclusión sino de temor. Por eso en las agendas
progresistas han tenido mucho temor de avanzar con la problemática negra, es decir,
porque se genera un lío político, se va para atrás. (ORLANDO RIVERO).

Sobre esse assunto, Karina expressou certa insatisfação e até decepção com os
militantes das agendas progressistas e do movimento negro que adentraram no Estado. Esse
desconforto a fez se afastar do Instituto Nacional de Mulheres, pois ela se sentia
impossibilitada de cumprir os preceitos que idealizava em tempos de militância: “Me parecía
que era más útil como sociedad civil denunciando desde afuera o fortaleciendo a otras
personas o generando fortaleciendo movimiento porque veo que la entrada de militantes al
Estado debilitó mucho al movimiento” (KARINA MOREIRA).
134

Por ter havido, ao longo do tempo, grande incompatibilidade entre o movimento


negro e o Estado, os militantes mais ativos acabam por desenvolver certa incredulidade em
relação ao que realmente se pode fazer em benefício da população negra, já que os interesses
parecem difusos e há de se negociar transformações que alteram o caráter original das
propostas. Os motivos estão sempre atravessados pela dificuldade de conseguir realizar aquilo
pelo qual tanto lutaram, isto é, realizar políticas públicas que atendam a população negra em
seus anseios.

Yo ingresé al Estado uruguayo en 2005 y tres años después en el 2008 me había ido
decepcionado, frustrado porque no habíamos podido construir política, ni siquiera
habíamos podido discutir política pública. Entonces me volví a mi nicho de sociedad
civil, volví a las organizaciones negras, volví al activismo de base y desde ahí hasta
acá he estado todo el tiempo trabajando en eso, colaborando con las organizaciones,
un poco eso (ANDRÉS URIOSTE).

Por esse motivo, parcela do movimento negro esteve mais inclinada em


desenvolver ações educativas que promovam uma tomada de consciência, pois assim haveria
a amplificação de suas agendas políticas e ganharia mais força para a implementação de
políticas públicas no âmbito do Estado, ainda que de maneira “silenciosa” ou negociando as
suas demandas em torno de estratégias diferentes do âmbito da militância fora do Estado.
Desse modo, “tu vienes conmigo con tu demanda y ya no puede gritar acá, porque estás
adentro y todo esto que gritabas aca en la calle, acá no lo puedes decir porque acá estamos en
el estado” (LOURDES MARTÍNEZ).
Lourdes Martínez sinaliza que parcela considerável de pessoas dos movimentos
negros que ascenderam ao Estado é ligada aos partidos políticos de esquerda e que isso é
positivo, uma vez que há pautas que só podem ser materializadas a partir do acesso ao poder
público. Porém, é necessário que os interesses partidários não suplantem a oferta de bem-estar
social para a população negra. Nesse sentido, há uma prática de enfrentamento para que as
políticas aconteçam.

Eso tiene que ver con que la izquierda llegó al poder el movimiento afro, de alguna
manera hubo una gran lucha por acceder a cargos en el gobierno como una manera
de estar adentro y desde adentro poder accionar cosas que siendo sociedad civil no
se ha podido y eso es como una suerte de trampa porque nosotros acá hablamos de
coptamiento. (LOURDES MARTÍNEZ).

Dito isto, é compreensivo que o movimento negro tenha a preocupação em buscar


equilibrar o imaginário social uruguaio em face de uma perspectiva que inclua a questão
racial como componente importante nos atravessamentos simbólicos que se dão nas relações
sociais. Só assim se pode haver uma transformação também em nível institucional, dado ao
135

fato que o país atravessa séculos de diálogos institucionais poucos plurais e pouco acessado
pelos negros, inviabilizando a criação de laços de afetividade, reconhecimento e de aparato
técnico para o combate ao racismo.
Diante de tantos desafios, os movimentos negros uruguaios avançam no tempo
sempre se ocupando em dar conta de uma agenda política de combate ao racismo. Nesse
sentido, Karina Moreira evidencia a existência de um protagonismo da Organização Mundo
Afro como o movimento negro que sempre esteve na dianteira dos debates raciais no Uruguai
e que a sua participação em Durban fora fundamental. Entretanto, e segundo ela, os maiores
entraves entre os movimentos negros se deram após a conferência, quando

Houve una especie de implosión de la organización donde varios militantes


comienzan a generar como otras cosas, hay un debilitamiento de Mundo Afro como
organización, Mundo Afro en ese momento tenía como algunas pequeñas
representaciones en el interior que también empiezan a tener un movimiento,
empiezan a generar como una identidad particular. (KARINA MOREIRA).

Todavia, Karina reforça a sua assertiva de que o Mundo Afro tenha sido a
organização que mais se mobilizou para a participação de Durban, tendo na figura de Romero
Rodríguez a principal liderança, que articulava os contatos internacionais e que pavimentava o
caminho para que fosse possível lograr êxito nas pautas propostas. Dentre outros
apontamentos importantes, Karina adverte que Romero não esteve sozinho, e lembra que Juan
Pedro Machado39 “fue uno de los redactores principales de varias cosas de Durban, fue parte,
estuvo ahí en todo ese processo” (KARINA MOREIRA).
Aqui cabe observar que ao sinalizar sobre o esfacelamento do movimento negro
em diversas organizações, conforme sugerido por Karina Moreira, a agenda de Durban
também sofreria alterações, já que são diversas as recomendações e nem sempre elas atendem
às demandas que surgem a partir de novas perspectivas e olhares para o enfrentamento do
racismo.

De Durban salieron una cantidad de recomendaciones hacia el estado y a través de la


agenda se le exigio al estado un plan nacional contra el racismo. Que era lo que se
necesitaba y todo pero. Hay muchas cosas, lo primero tiene que ver como con
contexto político, los gobiernos de la época de Durban eran gobiernos de derecha.
(LOURDES MARTÍNEZ).

Ainda que as miradas sejam diversas e a agenda de Durban precise caber no plano
nacional contra o racismo, há, de maneira geral, a percepção de um inimigo comum, que
segundo os nossos entrevistados seriam os partidos de direita. Fica evidente na afirmação de

39
Juan Pedro Machado também foi entrevistado por nós, que dedicamos uma seção para a análise de sua
entrevista.
136

Lourdes que haveria dificuldades de implementação do plano de ação de Durban na gestão de


um governo dessa natureza, cabendo lutar para que isso fosse possível através de outra
perspectiva política.
Percebe-se que a nossa entrevistada tem uma preocupação localizada na
possibilidade de pulverização da agenda do movimento negro, devido a incorporações
sobrepostas em relação a outros operativos que não satisfazem suficientemente o debate
acerca do racismo. Ela não nega a importância de outros movimentos, da diversidade de
debates e do cumprimento da agenda de Durban em sua plenitude, mas se ocupa em advertir
que há uma intensa fragmentação das pautas que orientam a população negra, e isso pode
acarretar em maiores dificuldades de pleito junto às instâncias superiores do Estado.
No entanto, no entendimento de Noelia Maciel orbita um perigo nesse jogo
poítico, que se inscreve na possibilidade de perda de autonomia e potencialização de
interesses pessoais dos militantes que adentram a esfera governamental. Ela chama a atenção
para o fato de que essa entrada funciona como uma fonte de renda segura e que exige a
“etiqueta” política que sugere um jogo de posicionamento ao qual é preciso estar atento para
não extrapolar os limiares do que pode ser negociado. Para ela, o movimento negro

Deja de ser crítico, deja de tener autonomía el movimiento negro porque está
supeditado a un interés partidario, a un interés personal. Lo que ha pasado es que las
personas que pasaron a la estructura de gobierno pasaron solas sin ningún equipo,
sin ningun grupo, también se transformó en una fuente de ingreso. Entonces para ser
crítica desde ese lugar perdidas porque o te callabas la boca porque estabas
perdiendo tu ingreso y el movimiento también fue le faltó autocrítica en ese sentido.
(NOELIA MACIEL).

Se parcela dos movimentos negros que adentrou a estrutura governamental se


“burocratizou” em torno de interesses pessoais ou partidários por via da esquerda, isso pode
ter inviabilizado diálogos mais afinados com os negros de outras perspectivas políticas para
galgar novas frentes em direção à resolução dos problemas de cunho racial.

Por ejemplo, acá hay una diputada llamada Gloria Rodríguez, es la única diputada
negra que temenos, pero es del partido nacional de derecha. Tendrias que hablar con
ella porque es la única diputada bien negra que tenemos y es de derecha y el partido
negro nunca se ha acercado a ella porque es de derecha, siendo que tiene un lugar
preponderante con otros diputados de izquierda se acerco a llevar una agenda de
trabajo, por ejemplo el que promulgó la ley 19.122 (NOELIA MACIEL).

As disputas em âmbito político partidário podem atrapalhar algumas negociações


importantes, já que a questão racial estaria colocada em segundo plano. Observa-se que essa
sentença é prática comum em ambas as perspectivas políticas, ou seja, se a deputada não é
137

procurada, é por conta dos motivos com que se relaciona com a temática racial, levando
alguns ativistas a desacordarem com ela e procurar outras vias de se organizar politicamente.

Gloria Rodríguez, del partido Nacional de una de las listas más derechas de la
derecha, con ella pasan varias cosas. Por un lado desde la comunidad, no se la
legitima, porque ella ha manifestado expresamente que ella no esta en el parlamento
por la causa del movimiento afro, ella está en el parlamento como espacio político y
por una cantidad de demandas sociales que pueden incluir la población afro, pero
ella - no que no diga que no - es una mujer afro, que aunque no lo dijera es algo
obvio, sino que ella no trabaja en exclusividad por las cuestiones del movimiento
afro, ha sido muy difícil, imposible. (LOURDES MARTINEZ).

Há, portanto, uma celeuma instaurada no âmbito político contemporâneo uruguaio


que perpassa a esfera político-partidária e os interesses dos movimentos negros. De um lado,
há uma deputada negra que promove políticas sociais que se pretendem de ampla
abrangência, e, de outro, há um movimento negro que sinaliza para a necessidade de
empreendimento de um olhar mais atento para as questões raciais.
Foi unânime entre os entrevistados a ideia de que se façam necessárias políticas
que venham a contribuir para a positivação da identidade negra no Uruguai, e que o poder
público deva trabalhar para isso. Em outras palavras, a maior preocupação é a de que as
pessoas negras possam gozar de uma identificação positiva com a sua identidade racial, se
reconhecendo como negras e valorizando a cultura africana e de seus descendentes. Assim,
para esses ativistas o mais importante é que se faça valer o que preconiza o programa de ação
de Durban, que orienta que:

Insta aos Estados facilitarem a participação de pessoas de descendência africana em


todos os aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais da sociedade, no avanço
e no desenvolvimento econômico de seus países e a promoverem um maior
conhecimento e um maior respeito pela sua herança e cultura. (DECLARAÇÃO DE
DURBAN, 2001 p.42).

Segundo os ativistas entrevistados, os movimentos negros uruguaios se


constituíram a partir desses operativos, sempre em busca de inserir os negros nos diferentes
espaços sociais, de maneira positiva e sob a perspectiva de poderem expressar a sua cultura e
perpetuar o legado ancestral negro sem sofrer prejuízos por conta do racismo. Todos eles
afirmaram que as organizações negras tinham e ainda possuem essa missão, que sofre
decréscimos ou que se potencializa, dependendo da conjuntura política que se inscreve cada
momento.
Em linhas gerais, eles afirmam que existem possibilidades e miradas diversas, que
tudo depende de foco e perspectiva, e que os movimentos negros uruguaios irão obter êxito a
partir do momento em que conseguirem mexer na estrutura de sociedade, ou seja, quando as
138

ações não forem mais isoladas e se concentrarem na materialização de leis e políticas que
transformem, de fato, a realidade das pessoas negras naquele país.

El primer proceso de empoderamiento del colectivo por ahí es la afirmación de la


identidad que es la afirmación de la existencia y para contribuir un sujeto político;
un sujeto de derecho para contribuir un sujeto político. Entonces a mi me parece que
hay mucha gente que está en el proceso de identidad y otra que quiere estar en el
proceso de elaboración de política pública y son necesidades diferentes que no
dialogan entre sí. (KARINA MOREIRA).

Portanto, essas são as considerações em torno de como o movimento negro


uruguaio vem se articulando e quais as suas perspectivas para a continuidade de intervenção
política frente a uma estrutura estatal que engendra práticas racistas que dificultam a ascensão
social do negro e que, a despeito de conquistas materializadas em leis e intervenções, pouco
ainda tem se inclinado para a efetivação de mudanças substanciais que elevariam a população
negra a melhores condições de vida. Vejamos como estes movimentos se articularam desde a
Conferência de Durban e o que foi possível desenvolver a partir de lá.

5.5 O Uruguai em Durban

O flagelo do racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata persiste e continua sendo
causa de violações dos direitos humanos, sofrimentos, desvantagens e violência, que devem ser
combatidos por todos os meios disponíveis e apropriados como questão de prioridade máxima,
preferencialmente em cooperação com comunidades atingidas (Declaração de Durban e Plano de
Ação, p.13)

Após uma breve compreensão acerca da situação contemporânea do movimento


negro uruguaio se faz necessário entender, a partir dos olhares dos nossos entrevistados, como
este movimento se articulou na Conferência de Durban, destacando as principais
reivindicações e as suas perspectivas em relação ao balanço que pode ser feito em termos de
ganhos, e o que ainda precisa ser feito para que as orientações do Plano de Ação de Durban
sejam convertidas em políticas públicas e, por conseguinte, em estratégias de combate ao
racismo.
Todos os nossos entrevistados destacam que o período que se avizinhava à
Conferência de Durban foi um momento de intensa articulação devido a um painel
internacional que engendrava substanciais transformações políticas e sociais. Os movimentos
negros estavam fortalecidos e as suas reivindicações tonificadas por anos de experiências, as
quais se somavam debates, campanhas, atos e propostas de intervenção estatal nos setores
básicos de bem-estar social.
139

É necessário destacar que a crescente do movimento negro, na visão de Juan


Pedro Machado, se dá pelo fato de que a luta contra o racismo foi, de fato, algo gradativo, que
conquistou envergadura política em consequência de anos de reivindicações.

Tem algumas coisas que só acontecem com o tempo, e essa é uma questão
importante. A legitimação acontece através dos atos, se constrói no dia a dia e não
são programadas. Não tem um marco, um ponto de mudança ou um momento
formal onde se pode dizer que conseguimos respeito e legitimidade. Isso é gradativo.
Os pontos de vista foram sendo compartilhados, ideais trocadas e se construiu, se
legitimou o respeito e a referência no assunto. O seu ponto de vista, a partir daí,
começa a atingir relações públicas, como autoridades e povos das Américas até que
se torna uma referência naquilo que dissemina (JUAN PEDRO MACHADO).

Foi nesse espírito que os movimentos negros não desistiram de galgar novos
patamares dentro da política interna uruguaia e se debruçaram na possibilidade de articulação
política internacional, no afã de amplificar as chances de implementar políticas públicas de
combate ao racismo naquele país, uma vez que os intercâmbios os fortaleceriam e a confecção
de documentos respaldados internacionalmente dariam o salto para a legitimidade perseguida.
Juan Pedro Machado completa:

No ano de 1994 realizamos aqui [em Monevidéu] um ato que se chamou “Seminário
Continental Sobre Afrodescendência e Política Pública para o Desenvolvimento da
População Afro”. Vieram pessoas de todos os lados, EUA, Brasil, Chile etc. Disso
se formou a “Rede Continental de Relações Afro-Americanas”, que a princípio
unificaria o Brasil, a Argentina, o Chile e o Paraguai com o resto da América. Não
vieram pessoas do Caribe. Esse trabalho rendeu muitos intercâmbios, conversas e
conexões com pessoas de diversos lugares. Construímos uma imagem séria do
movimento naquele evento. Quando começou essa coisa de Durbam, no ano de
1998, nós já tinhamos feito uma denúncia no comitê das Nações Unidas, dentro do
tema da convenção contra o racismo (JUAN PEDRO MACHADO).

Percebe-se que desde muito antes da Conferência de Durban já havia articulações


sendo feitas, o fio condutor do protagonismo do movimento negro uruguaio naquele evento
vinha sendo ensaiado a partir da troca de experiências com os países do continente sul-
americano. Assim como os movimentos negros brasileiros, os movimentos negros uruguaios
debateram exaustivamente acerca de quais os assuntos deveriam ter prioridade na conferência,
“el proceso de la conferencia de Durban duró dos años” (ANDRÉS URIOSTE).
A preparação para a Conferência foi um momento de grandes aprendizados
individuais e coletivos, demonstrou a capacidade organizativa, sinalizou para os desafios a
serem ultrapassados e contribuiu para que as redes se fortalecessem, mas sobretudo com a
ampliação do debate, com novas temáticas a serem observadas.

Éramos jovens quando terminou, então aconteceram duas coisas: a primeira foi uma
conferência no Chile, organizada por um grupo de pessoas e quando chegamos lá
todos os pretos da América estavam lá. Segundo: se conseguiu construir um
140

documento prévio para apresentar à sociedade civil, que continha a maioria das
temáticas em relação aos Estados que provavelmente foi o resultado da conferência
mundial. Sua principal função foi reunir mais pessoas, mas também muitos tipos de
assuntos e demandas (JUAN PEDRO MACHADO).

Contudo, é importante dizer que apesar de todo o ganho em nível regional,


perpassando por todo crescimento pessoal e coletivo, em nível mundial, ou no âmbito da
conferência propriamente dita, a aprovação de textos e pautas são extremamente complexas e
precisam passar pelo crivo de duras comissões de verificação e aprovações em debates
acalorados. Obviamente que essa afirmação não descredibiliza a pré-conferência, na verdade,
só reforça a necessidade de solidificação de uma agenda bem definida.

Se você visse o documento que saiu do Chile e depois verifica o resultado final
refeito pelas Nações Unidas, você vê a diferença nitidamente. Nós estamos falando
de coisas que não passam com facilidade, é muito difícil de participar efetivamente
da construção desses documentos nas Nações Unidas (JUAN PEDRO MACHADO).

Romero Rodriguez atribui o fato de ter havido a primeira conferência latina de


preparação para Durban à subida do socialismo ao poder no Chile. Ao associar a perspectiva
política socialista à abertura para a internacionalização da satisfação de algumas agendas, o
nosso entrevistado coaduna com a ideia de que houvera um projeto político de esquerda em
âmbito internacional para o fortalecimento do embate político com as forças de direita, que a
partir do final da primeira metade dos anos de 1990 dominariam, pelo menos em tese, a
economia mundial.
Sendo assim, em sua visão, no que se refere ao âmbito regional, havia um
potencial reivindicativo bastante forte e que teve como consequência a ascensão de governos
socialistas pelo continente sul-americano, o que, em sua opinião, facilitou o emprego de
políticas públicas em benefício dos mais pobres e de cooperações internacionais para
programas sociais de extrema urgência.

La coyuntura política internacional, el progresismo de América Latina, la presencia


de Chaves, la presencia de Lula, el haber Lula implementado el programa Fome
Zero; de haber Uruguay entrado en el fenómeno de los países progresistas con
Tabaré Vázquez, luego vino ‘Pepe’ Mujica; Cristina Kirchner en la Argentina; el
Evo Morales y los principios del MAS40 en Bolivia; Correa con la Alianza País en
Ecuador, todo eso fue coadyuvando para la construcción de una agenda regional.
Lagos en Chile, primer gobierno socialista en Chile, que nos permitió Chile generar
las primeras conferencias latinoamericanas. Por lo tanto había una correlación de
fuerzas en América Latina que se juntaba con nuestro programa, con nuestro plan,
con nuestras visiones y fue un importante salto. Hoy las leyes de acciones
afirmativas que hay en América Latina, en Brasil y en todos los lugares son

40
Importante dizer que o MAS – Movimento para o Socialismo é um partido político boliviano que surge no ano
de 1995 a partir da fusão de grupos de plantadores de coca, na região do Chapre boliviano, e sob a lideraça do
político Evo Morales (1959) chega à presidência da república no ano de 2005. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Movimento_para_o_Socialismo. Acesso em: 02 jul. 2019.
141

productos de una época histórica donde el progresismo se fue uniendo, no fue un


problema, pero se fue uniendo y hubieron ideas muy importantes como esa
(ROMERO RODRÍGUEZ).

Muitos desses governos citados por Romero Rodriguez assumiram os seus


respectivos Estados após a Conferência, e apesar da visão otimista deste nosso entrevistado,
há controvérsias e pontos de vista divergentes. Segundo a perspectiva de Juan Pedro
Machado, a questão racial foi pensada às pressas e em face de um quadro eleitoreiro, em
detrimento da população negra.

Não se tinha a relação negritude-estado. [Ela] começa a se mexer por conta das
eleições. Então, não se tem esse afloramento. Não se tinham estratégias para abordar
o estado uruguaio em relação aos assuntos de interesse da população afro. Se usa
[sic] até hoje esse texto para construir políticas públicas aqui. Houve uma dicotomia,
mas não em relação à Conferência nem pós-Conferência, senão esse vínculo que
vem com a aparição da esquerda no Estado. Quem é quem dentro disso tudo? Não se
tinha uma raiz que discutia isso, a população era afastada desse tipo de discussão
(JUAN PEDRO MACHADO).

Em sua afirmação sobre o uso do texto final da Conferência de Durban para a


construção das políticas públicas no Uruguai, fica em aberto a compreensão de que há novas
demandas que precisam ser resolvidas a partir de outras estratégias, diferentes das que estão
no texto da referida Conferência. Mas, também se abre para o questionamento: A agenda de
Durban se tornou obsoleta?
Para Romero Rodriguez, a conjugação entre maturidade, através de experiências
entre gerações, e o enriquecimento teórico de seus ativistas, fez com que o movimento negro
uruguaio se organizasse para participar da mais importante conferência mundial do novo
milênio, a Conferência de Durban, e que essa assertiva adverte que o fluxo histórico é
contínuo, e por isso Durban deveria ser encarada como ponto de passagem para pensar o
futuro.

Estamos convencidos que la agenda de Durban se terminó. Que si tu lo ves en el


plano legal y jurídico en América del Sur, en todos los países tienen lo que no tenían
hace veinte años atrás, leyes de acción afirmativa, algunas más avanzadas, otras en
desarrollo mínimo, otras con retroceso caso de tu país; pero en América Latina la
estructura del estado burgués como se le llama, tiene el plan de acción de Durban.
Por lo tanto la pregunta que hoy nos hacemos es: cuál es el futuro? (ROMERO
RODRIGUÉZ)

Ao que pese um suposto término da agenda de Durban, há de se pensar acerca da


satisfação integral das sugestões engendradas em seu documento final. Será que realmente
esses preceitos foram saciados? Tudo indica que não, pois ainda que hajam metamorfoses do
racismo, o documento abrange uma enorme dimensão prescritiva, que direciona um plano de
142

ação bastante preciso, e que tem uma mirada objetiva para a prevenção de novos casos de
racismo.
De saída, o documento já adverte que o racismo acarreta em prejuízos de
dimensões universais, por isso o seu combate deve ser perene e sistemático, o que nos permite
dizer que as ações sinalizadas na declaração de Durban visam a prevenção do racismo, mas
não se furtam ao dever de engendrar as transformações necessárias ao sabor dos
acontecimentos que escapam às previsões, dado ao fato de que as sociedades não são fruto de
determinações de nenhuma natureza.

Racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, quando equivalem


a racismo e discriminação racial, constituem graves violações de todos os direitos
humanos e obstáculos ao pleno gozo destes direitos, e negam a verdade patente de
que todos os cidadãos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, constituem um
obstáculo para relações amistosas e pacíficas entre povos e nações, e figuram entre
causas básicas de muitos conflitos internos e internacionais, incluindo conflitos
armados e o consequente deslocamento forçado de populações (DECLARAÇÃO
DE DURBAN, 2001, p.12-13).

O documento de Durban atesta para um fato de dimensões internacionais, de


profundas raízes históricas e de constante vilipêndio à alteridade. Combater o racismo,
portanto, é estar comprometido com ações de natureza contestatória e educativa, engendrando
uma postura ética que se contrapõe a todo o tipo de injustiça perpetrada em razão de questões
raciais, com toda a bagagem cultural e simbólica a qual o “outro” carrega.
Essas atitudes não se limitam ao campo individual, pois o Plano estaria na
transformação das instituições, por meio de leis e campanhas educativas. Tendo o documento
final de Durban em mãos, os militantes dos movimentos negros encontraram uma bússola que
os orientariam quanto às ações que deveriam organizar, a fim de exercer algum tipo de poder
sobre os Estados, que na conjuntura política do novo milênio passaram a repudiar
formalmente todo o tipo de discriminação.
O desenvolvimento das prescrições veiculadas no Plano de Ação de Durban se
chocam e também coaduam com vários interesses governamentais e corporativos, todos a
depender da conjuntura política local e global. Nesse sentido, existem entraves legais e
institucionais que inviabilizam a aprovação integral das medidas instadas nesse documento.
Por ser um documento de advertência para os Estados nacionais, no entanto, sem poder para a
alteração de legislações, as medidas poderiam ser enfraquecidas ou simplesmente não
atendidas.
Será que a agenda de Durban já se esgotou? Voltamos a questionar Romero
Rodriguez, que acredita que o melhor caminho para que os negros tenham êxito social é o da
143

autogestão. Em seu entendimento, é necessário compreender os pilares fundamentais do tipo


de sociedade que se pretende construir, e só após essa reflexão é necessário agir. Desse modo,
o que não foi possível implementar a partir do Plano de Ação de Durban, serviria como
aprendizado para uma nova significação da luta contra o racismo.

Yo he trabajado, he escrito un documento que se auto titula “Acciones Afirmativas


para la Autogestión, Formación, Desarrollo y Productividad”. Esas acciones
afirmativas apuntan a tres elementos: permear el estado económico, colocar el tema
de las reparaciones y colocar el diseño de qué sociedad queremos las negras y los
negros en América Latina (ROMERO RODRIGUÉZ).

Romero acredita que a força de um efetivo plano de ação para que a população
negra uruguaia tenha melhores condições de vida resida nas ações afirmativas. Durante toda a
entrevista, ele também buscou não isolar os negros uruguaios do restante dos negros
residentes em outros países da América Latina. Ele afirma que as diferenças estão nas formas
de organização dos Estados nacionais, e isso funcionou como um dispositivo que subsumiu as
identidades negras ao longo do continente.
Apesar da possibilidade de esvaziamento das propostas do documento final de
Durban, conforme acredita Romero Rodriguez, ou do oportunismo governamental,
denunciado por Juan Pedro Machado, todos também concordam que Durban engendrou
possibilidades de articulações internas e externas, bem como foi a peça fundamental para que
as políticas públicas voltadas para a população negra fossem de fato implementadas.
Nesse sentido, há uma questão que nos parece fundamental e cria uma ressonância
de dever cumprido, mas que sinaliza para a necessidade de manutenção e sistematização de
propostas eminentemente substanciais para o enfrentamento das novas demandas da
população negra. Noelia Maciel afirma, portanto, que se trata do protagonismo negro “em
suas próprias questões”, ou seja, a possibilidade de narrar a sua própria história, de produzir
documentos oficiais de acordo com as suas demandas e, sobretudo, participar da gestão
pública movimentando o erário para o combate ao racismo.

El tema en la agenda pública no era propiedad de la comunidad afro en su conjunto.


La gente no entendía, o decían Durban que es, osea estaban como muy alejados no,
entonces también se dio como un proceso de cierta politización ta se trabajó más
para influir en la estructura ponele, en la estructura gubernamental. Durban trajo
todo eso, trajo un barco que permitió generar condiciones para negociar con el
gobierno y que después el gobierno pudiera, de alguna forma, bajar eso y que eso
fuera más património de toda la sociedad, entonces qué veo ahora la Ley 19.122 que
se promulgó en 2013 se reglamentó en 2014 y ahora el tema está mucho más en
propiedad de la comunidad afro (NOELIA MACIEL).

É claro que essas questões não se deram de maneira uniforme pelo país, isto é,
haveria pacelas da população com mais e outras com menos acesso aos espaços de decisão de
144

poder, menor financiamento e possibilidade de crescimento profissional, ou realização


escolar. Esse fato é antigo, e o professor Julio Pereira, no entanto, acrescenta que isso nunca
foi impeditivo para os movimentos negros se organizarem a partir dessas condições. Ele
remonta a história e apresenta a sua visão sobre a situação dos negros residentes em cidades
fronteiriças.

En algunas ciudades del interior, especialmente las que están sobre la frontera en
Uruguay y Brasil, se le impide el acceso a la población afro a determinadas
actividades, práctica que continuó durante mucho tiempo y estas comunidades
empiezan por ejemplo en Melo, forman clubes, forman su propio club y lo
construyen con fondos, por ejemplo, a mí siempre me llamó mucho la atención que
uno de los principales grupos que colaboraron en la construcción de esos clubes, son
las mujeres empleadas domésticas de Melo que migraban a Montevideo, venían a
Montevideo a trabajar y ellas eran parte de un comité que juntaba fondos para
enviarlo a la ciudad en el interior para construir el club (JULIO PEREIRA).

Muita coisa não mudou, e a população interiorana continua sendo menos assistida
pelo poder público, muitas vezes precisando migrar para Montevidéu como possibilidade de
transformar as suas vidas para melhor. Há uma distribuição heterogênea de negros pelo
território uruguaio e que engendra questões complexas, como a própria ocupação territorial,
que nem sempre são explicáveis através dos fatores econômicos e de acesso aos serviços que
as políticas públicas podem facilitar, uma vez que as questões históricas e culturais estão
atravessadas no modo de organização de determinadas comunidades e de parcela dessa
população, variando de lugar para lugar. Julio, então, nos afirma que os negros:

Están concentrados un poco en la capital porque es la que tiene más servicios y se


supone que uno tendría más trabajo y todo eso, hay un 8, 9%, el porcentaje sube
levemente y después, se concentran en lo que se conoce como la Frontera Seca con
Brasil. Toda la zona de Artigas, Rivera, Tacuarembó, Cerro Largo, los
departamentos fronterizos con el Brasil. Allí encontrás la población afro, pero allí no
están concentrados en ciudades. En las capitales departamentales sí, están los
servicios, pero no es el lugar en donde a priori uno supondría que van a encontrar
mayores oportunidades, yo creo que están ahí como una consecuencia histórica del
vínculo con el Brasil y las poblaciones negras que se terminaron afincando en esa
zona y terminaron viviendo allí, pero viven, si en el promedio la población afro es la
población más pobre, las poblaciones afro que viven en esa zona, son los más
pobres, todavía, osea, no es tanto la lógica de, nos vamos a quedar y concentrar acá
porque vamos a tener más oportunidades, no en realidad es, están ahí porque
tradicionalmente se criaron ahí, porque ese es su lugar es el lugar en donde fueron
formando su espacio, pero no es porque haya una gran distribución de oportunidades
(JULIO PEREIRA).

Já o entrevistado Romero Rodriguez entende que as conexões das populações


negras que se formaram no entonro das fronteiras com o Brasil são inevitáveis e conduzem a
“outras possibilidades”, já que enfrentam problemas parecidos e que estão unidos
simbolicamente pelos fatores ligados à ancestralidade comum, passado de escravização e
145

acesso parcial à cidadania. Não deixam de ser fatores históricos e culturais, mas Romero
acredita que a reivindicação por uma cidadania atrelada aos parâmetros legais e simbólicos do
Estado, por meio das políticas públicas, só piora a situação dos negros, que devem se
identificar como “quilombolas” e buscar a sua “libertação” via autogestão, conforme já
dissemos.

La ciudadanía quilombola nosotros la rescatamos mucho, porque es la única


ciudadanía auténtica que podemos rescatar, lo otro es la construcción de la
ciudadanía brasilera o uruguaya conforme al desarrollo blanco de la sociedad
(ROMERO RODRIGUÉZ).

Seguindo a afirmação de Romero, perguntamos se a autogestão proposta por ele é


de fato a prova cabal de que a agenda de Durban se esgotou. Nosso questionamento está
ancorado no fato de que o documento final da referida conferência contém muitas cláusulas e
que o racismo persiste, sinalizando que o Estado não tenha cumprido grande parte delas e que,
ao que tudo indica, não a implementará. Mas seria isso suficiente para abandonar a agenda de
Durban e pleitear uma nova cidadania, fora do Estado?
Para Romero, a agenda de Durban se misturou ao neoliberalismo e incorporou
elementos populistas, a satisfação de alguns pleitos ali contidos serviu como bandeira de luta
de grupos que visam capitanear legitimidade política para alcançar objetivos pessoais. Ele nos
impõe outras questões: “ La pregunta es: el producto del pensamiento hoy, no es un producto
del pensamiento neoliberal? Si. Y Durban…? Durban es un proceso de progresismo,
populismo de América Latina. La reacción de Brasil primero que dice es acabar con Durban?”
(ROMERO RODRIGUÉZ).
Ao considerarmos a afirmação de Romero, haveria, portanto, uma via de mão
dupla na agenda de Durban, que por um lado engendraria a perspectiva do movimento negro,
esta destituída de elementos do jogo de interesse político-partidário, no qual o que interessaria
de fato seria a inserção do negro de forma satisfatória nos diferentes âmbitos sociais e, em
suma, o combate ao racismo. Por outro lado, teríamos acordos para a manipulação desses
pleitos a fim de aglutinar pessoas em torno de adesões políticas para manobrá-las e
possibilitar benefícios para políticos e gestores de políticas públicas.
Levados até as últimas consequências, esses argumentos deixariam algumas
lacunas na medida em que não se tem como desvincular os negros da atividade política e nem
rotular o jogo partidário (seja de direita ou de esquerda) apenas como manipulação das
“massas”. A agenda de Durban não nasce destituída de interesses, tampouco caminha sem
eles, mas isso não quer dizer que a sua implementação visa apenas o benefício de um número
146

restrito de pessoas. Também não seria correto afirmar que ela serviria unicamente aos
interesses do “neoliberalismo” em sua forma mais primária de compreensão.
O documento surge com um caráter universal e

Tendo ouvido os povos do mundo e reconhecendo as suas aspirações por justiça, por
igualdade para todos e cada um, no gozo de seus direitos humanos, incluindo o
direito ao desenvolvimento, de viver em paz e em liberdade e o direito à participação
em condições de igualdade, sem discriminação econômica, social, cultural, civil e
política (DECLARAÇÃO DE DURBAN, 2001, p. 12).

Desse modo, decorre de Durban uma agenda política de abertura democrática para
lidar com povos, coletividades e pessoas que se sentem alijadas da participação das tomadas
de decisões dos países aos quais estão territorializadas. É um plano de ação que pressiona os
governos para a sanções de leis de punição para o crime de racismo, monitoramente de
cumprimento dessas leis e de adesão de ações afirmativas. Esse é o teor principal de todo o
documento.
No entanto, e mesmo que o documento final de Durban tenha um caráter plural,
propositivo e positivo, o ajuste a um estado específico se opera de outra maneira, e gerará
diversas idas e vindas, muitos olhares e angulações de tentar resolver os problemas. Enquanto
isso, e com grandes diferenças geográficas, a população negra vai tendo acesso parcial ao
produto social, gerando uma sensação de avanço que não se quantifica de maneira integral.

En la declaración final de Durban, vos pensás el documento final con todas aquellas
recomendaciones de los estados, y crees que ese documento por sí solo no da cuenta
de las cuestiones más las cuestiones específicas, estructurales del país y de cómo
esas recomendaciones se han incorporado, incorporadas dentro de un contexto
escolar de forma que no haga solo un contenido vacío o una cosa que uno ve, pero
que no tiene aplicabilidad práctica en el sentido de potencializar realmente una
escolarización major. La educación no avanzó y ahí es, mismo después de todas esas
identificaciones, racismo institucional, hay menos negros llegando a la ingeniería, o
la medicina. Después de esas todas esas causas, con el paso con lo que se produjo a
partir de Durban, esa es la forma de colocarse dentro del sistema educativo?
(ORLANDO RIVEROS).

Romero Rodriguez afirma que a utilização do documento como principal


elemento de transformação social gira em torno da ideia de que o racismo toma novos
contornos de acordo com o contexto das sociedades, gerando a necessidade de novos
agenciamentos políticos e, sobretudo, epistêmicos, no qua tange ao entendimento dos
fenômenos sociais por parte daqueles que estão inclinados a combatê-lo. Segundo ele,
haveria, portanto, a necessidade de uma melhor escuta entre as pessoas do movimento negro,
especialmente entre os acadêmicos.

El problema es que en el movimiento negro en Uruguay no hay académicos de


pensamiento. (...) Ahí están todos ellos, pero ellos no plantean una propuesta
147

pragmática; es estudiar lo mismo de siempre, nuestra cultura, cómo bailamos, toda


esa historia que ustedes ya saben. (...) Pero, cuál es el paradigma, para dónde vamos;
esa es la función del académico militante, no sirve de nada el académico bueno con
la universidad, mucho viaje, mucho reconocimiento blanco pero no propone nada
para mi sociedad, para mi gente (ROMERO RODRIGUÉZ).

É interesante perceber que o profissional acadêmico é acionado como


possibilidade de planejamento e de aprofundamento de questões sensíveis e que requer
sofisticação discursiva que deem legitimidade para o movimiento negro, mas que, na visão de
Romero, tem estado inclinado para questões repetitivas, e não para as transformações mais
urgentes e abrangentes. Desse modo, Karina Moreira entende que é no plano técnico e
operacional que as engrenagens realmente são postas em funcionamento, e que, em havendo
um problema de racismo institucional, seria necessário pessoas que possam desenvolver
ações, algo para além da identificação do problema.

Creo que para trabajar con el racismo institucional se requieren personas también
formadas a nivel técnico de política pública que pueda trabajar para revertirlo
porque es necesario verlo. Yo siempre digo estono solamente denunciarlo sino
proponer la transversalidad, la interseccionalidad a nivel de política pública hay que
proponerla. Creo que estamos en un nivel donde enunciamos el problema pero no
donde todavía tenemos acciones para desestructurar el racismo institucional
(KARINA MOREIRA).

A proposição de Karina coaduna com a ideia de que um plano de ação não pode
ser apenas uma efusão de metas impressas em um documento, elas precisam extrapolar as
fronteiras do formalismo e ganhar contornos práticos. Chamamos a atenção para o fato de que
o Plano de Ação de Durban contém as informações necessárias para a efetivação de medidas
inclusivas em vários setores da vida pública, exercendo pressão para tal reivindicação.

Dentre outras medidas devem figurar outras medidas para o alcance de


representação adequada nas instituições educacionais, de moradia, nos partidos
políticos, nos parlamentos, no emprego, especialmente nos serviços judiciários, na
polícia, exército e outros serviços civis, os quais em alguns casos devem exigir
reformas eleitorais, reforma agrária e campanhas para igualdade de participação
(DECLARAÇÃO DE DURBAN, 2001, p. 37).

Decorre dessas pressões as comissões compostas para a revisão de leis que punem
o racismo como crime, ou que implementam as ações afirmativas. Todavia, essas medidas
esbarram em diversos entraves que se encontram nas engrenagens do próprio Estado. Para
Karina, ainda que se tenha um pacote de normas a serem seguidas, o próprio Estado possui
brechas que favorecem o racismo institucional, inviabilizando que haja o cumprimento das
regras instadas pelos movimentos sociais em seus acordos com os órgãos internacionais que
tutelam e sustentam essas agendas.
148

Existe outro problema atravessado nesse complexo jogo, no qual Karina identifica
como uma grande contradição. Segundo ela, há uma tendência na qual podemos chamar de
“incentivo vazio”, que seria a mobilização inicial e em uma etapa mais formal, que, no
entanto, perde força no momento em que se faz necessário o empenho prático. Nas palavras
de Karina, “Me parece que sucede algo un poco perverso que es: colocamos o abrimos los
espacios pero no nos terminamos de involucrar en el hacer” (KARINA MOREIRA).
Por esse motivo, e segundo Romero, existe uma grande lacuna entre o que se tem
produzido no mundo acadêmico e o ativismo político, no que tange à aplicação real dos ideais
veiculados nas pesquisas e estudos sobre o negro e o racismo. Ele aponta para a dicotomia
entre acadêmicos de formação e militantes, asseverando que os primeiros talvez estejam mais
preocupados em analisar objetos de estudo e colher os louros do meio ao qual estão inseridos,
pouco se preocupando em traçar um horizonte para a aplicação prática de medidas que
contribuam para a melhoria de vida da população negra, conforme insta o Plano de Ação de
Durban.
Na perspectiva de Orlando Riveros, o Plano de Ação de Durban não é um
compromisso de transformação factual, mas um plano de ação que instrumentaliza para a luta.
E isso dependerá de muitos fatores conjunturais e inclinação dos ativistas:

hay que ubicar a Durban en el lugar en el que va, en principio es una declaración de
principios, tiene un plan de acción, que es un plan de acción mundial, que en
realidad tiene grandes cuentas altamente importantes y sensibles para la constitución
de acciones a nivel de los estados, pero no es vinculante, no es una declaración
vinculante, es un plan de acción vinculante (ORLANDO RIVERO).

Observando essa premissa, decidimos entender como alguns de nossos


entrevistados avaliam a passagem de Pepe Mujica pela presidência do Uruguai, já que se
tratou de um presidente que apresentava pautas progressistas, muito bem avaliadas pelos
acadêmicos, pois são de orientação marxista e bem aceita pelas esquerdas latino-americanas.
De acordo com Romero, o maior ganho social se deu durante o governo de
Mujica, pois foi a partir de então que o Uruguai finalmente alavancou em direção à satisfação
da agenda de Durban, acolhendo e promovendo políticas de ações afirmativas e de combate
sistemático ao racismo, inclusive “empoderando” pessoas negras, como é o seu caso.

El gran salto político, la síntesis de Durban es por las políticas del Pepe Mujica.
Uruguay ha ganado con la presencia de Pepe en derechos, de la mujer, de los gays,
principio de la marihuana y el movimiento negro. Va a quedar en la historia de mi
país la revolución en derechos ciudadanos que hizo el gobierno del Pepe. Soy el
primer negro embajador de la historia del Uruguay, me siento muy orgulloso
(ROMERO RODRIGUÉZ)
149

Com todas essas boas recomendações acerca de Mujica, fica difícil acreditar que
alguma coisa tenha “dado errado” no Uruguai no período em que esteve frente à presidência
da república. É daí que ficamos curiosos quanto à agenda de Durban, e Romero
categoricamente nos responde que “Hemos permeado el Estado y al permear el Estado nos
dimos cuenta que Durban ya se está terminando” (ROMERO RODRÍGUEZ).
O professor Julio Pereira, um acadêmico, também sinaliza coisas importantes e
ajustadas à população negra, entende que a estrutura de Estado esteve mais favorável e
permeável aos negros, que, conforme afirmou Romero, passou a compor o Estado. Para ele, o
período em que Mujica presidiu o país foi de conquistas.

la ley 19.122 surgió durante el gobierno de Mujica, se mantuvieron ministerios


como el MIDES, toda la estructura del estado que estaba haciendo a favor de las
poblaciones afro se mantuvieron, después entra el mundo del deseo, a mí me hubiera
gustado que hicieran más cosas, yo hubiera querido que se hicieron otras pero de
hecho hay grupos afro que explícitamente apoyan a Mujica (JULIO PEREIRA).

Ainda que se saiba que algumas questões avançaram no Uruguai durante o


governo de Mujica, Julio Cesar afirma que se deva ter cautela nas análises para que se evite
cair nas armadilhas de superestimar um governo que atendeu algumas demandas, mas que
esteve frente a problemas produzidos historicamente e que se necessita de mais tempo e
instrumentos que possibilitem o enfrentamento mais efetivo. Ou seja, não seria possível
combater o racismo em um ou dois mandatos de governo.

Mujica es nuestra mayor estrella pop, todo el mundo cree que durante el gobierno de
Mujica pasaron cuestiones maravillosas y todos nos volvimos revolucionarios, no,
pero él mismo lo reconocía, Uruguay sigue siendo una economía de mercado,
tenemos que lidiar con eso, tenemos que lidiar con el resto del mundo, no nos
íbamos a transformar en la octava maravilla (JULIO PEREIRA)

Julio Cesar finaliza a sua observação sobre Mujica de maneira positiva, uma vez
que, em seu ponto de vista, foi o presidente que mais aglutinou o povo em torno das questões
de justiça social, produzindo um discurso unificador e pacificador, próximo aos ideais
utópicos que vicejaram no mundo durante a conjuntura mundial dos anos de 1970. Julio
completa:

En nuestra extensa línea de presidentes democráticos, está claro que Mujica tiene
una enorme ventaja sobre otros, que es una discursividad maravillosa, que logra
recuperar algo de una cierta mística de los años 70 y de relacionamiento entre las
personas que otros presidentes no la tienen, pero hizo lo que pudo, y de hecho hizo
bastante (JULIO PEREIRA).

Dito isto, podemos sinalizar que após Durban a conjuntura mudou bastante, outras
perspectivas surgiram e impactaram diretamente na população negra, que passou a abarcar
150

novas identidades, além da racial, engendrando novos agenciamentos políticos, possibilitados


por novas noções de coletividades que sinalizam para “novas” reivindicações. As
transformações viabilizadas pelo governo Mujica, ao passo que contribuiu para a inclusão de
negros no Estado, movimentou também a reação dos setores contrários a essa mobilidade
social, e esse deslocamento naturalmente gera novas necessidades de mobilização.
Conforme apontamos anteriormente, passada a Conferência, a nova configuração
do movimento negro uruguaio engendrou outras possibilidades, e o recrudescimento das
agendas políticas que não são orientadas pela questão racial ganha visibilidade e passam a
influenciar a perspectiva racial, ora rivalizando, ora se articulando, gerando pontos de
interseções e embates. A esse respeito, Karina Moreira diz que:

A mi opinión, han empezado a ocuparse las mujeres negras en esto de incluirse en el


movimiento de mujeres, creo que hemos estado más atentas las que militan a la
agenda de las feministas que a la agenda de la propia comunidad negra. Y a su vez
lo politico partidario y el estar en el gobierno también ha desdibujado un poco la
agenda negra; yo hoy no sé cuál es la agenda negra (KARINA MOREIRA).

A agenda do movimento negro naquele momento de Durban esteve bastante


objetiva e isso se observa no documento fianl daquela Conferência. Porém, se seguirmos as
observações de Karina, o pós-Durban pode ter viabilizado dificuldades para os movimentos
negros, talvez porque a agenda de Durban fosse bastante ampla e comportasse uma gama de
questões identitárias que não se focava apenas no racismo, e isso pode ter contribuído para a
fragmentação do movimento.
Mesmo com a identificação dos problemas, eles persistiram, e talvez o
agrupamento de tantas possibilidades de identidade nem sempre tenha sido o fator chave para
que os movimentos negros se dividissem. O fato é que, segundo Karina, essa fragmentação
tem ocasionado dificuldades na implementação das políticas públicas sinalizadas em Durban.

Creo que hay acciones pero no hay políticas públicas después de casi dieciocho
años, no tenemos políticas públicas, tenemos acciones. Me cuesta, sé que hay un
movimiento, sé que hay nuevos militantes, sé que hay militantes diferentes a los que
fuimos nosotros y a su vez yo diferente a las que fueron antes. Hay como un
permanente movimiento de nuevas militancias pero con poco diálogo entre nosotros,
creo que eso es lo que más nos debilita (KARINA MOREIRA).

Na base de toda essa peleja, pode conter uma miríade de possibilidades, desde a
exacerbação da incompatibilidade política entre parte dos militantes, com foco em questões
mais ideológicas e menos objetivas, ausência de sentimento de coletividade, oportunismo,
dentre tantas outras. Karina, portanto, considera que:
151

Cada vez hay más gente que se dice afrodescendiente que reconoce el racismo, que
lo puede hablar, es capaz de debatir y creo que es eso lo que va cambiando en
realidad la subjetividad a nivel nacional, creo que todo eso cambia pero en realidad
como que estructuralmente es poco lo que se cambia (KARINA MOREIRA).

Isto quer dizer que há uma transformação importante, no plano da


conscientização, o que de fato amplifica o combate ao racismo. No entanto, e como sinalizado
pela ativista Karina, há de se empreender estratégias de aglutinação em torno dessa luta e
menos fragmentação. A estrutura continua desfavorável, e o alento que todos os nossos
entrevistados buscam gira em torno da união e da organização de uma agenda política que
reveja os pontos positivos e negativos de Durban, compreendendo as novas dinâmicas sociais
e ajustando as suas perspectivas à elas.
Portanto, esse é o painel da participação uruguaia em Durban sob a perspectiva
dos nossos entrevistados. Entre limitações, extensões, possibilidades, diferentes e
convergentes opiniões, Durban foi um grande momento de aprendizado para os movimentos
negros uruguaios, já que mobilizou grandes esforços antes e durante a Conferência, gerando
bons debates após a participação, culminando em importantes ações, mediadas pela Lei
19.122, e para a ampliação do sentimento de pertença racial, motor indispensável no combate
ao racismo.

5.6 Negros no Uruguai: Reflexões a partir dos Ativistas

Os Estados têm o dever de proteger e promover os direitos humanos e as liberdades fundamentais de


todas as vítimas [de racismo] (Declaração de Durban e Plano de Ação, p.14).

Quando minha orientadora nos propôs trabalhar o Uruguai, havia uma questão que
pululava em nossas cabeças: Como é ser negro no Uruguai? Acreditamos que esse
questionamento seja dado, em grande medida, pelo fato de que temos uma imagem bastante
branca daquele país, mesmo quando observamos a sua seleção de futebol e constatamos que lá
existem negros. Acredito que este fato aguce ainda mais a curiosidade de quem seja adepto ao
esporte e tenha boa inclinação para “desbravador”.
A partir das leituras que realizamos até aqui, tomamos contato com um país que
não apresenta diferenças substanciais no escopo geral de organização histórico-social
brasileiro, tendo passado por um violento processo escravocrata e dissimulando oficialmente a
existência de racismo no interior de sua sociedade. Também foi possível entender que se trata
de um país que não apenas negou o racismo, como descredibilizou o negro em suas mais
152

proeminentes conquistas, omitindo a sua participação e o seu protagonismo para o


desenvolvimento da nação.
Desse modo, decidimos não nos restringir ao que as leituras acadêmicas – muitas
vezes escritas por cientistas sociais e historiadores brancos e/ou estrangeiros – dizem, e
concentramos essa seção em torno do que os nossos entrevistados têm a dizer acerca das
percepções pessoais do que seja ser negro no Uruguai. Quais os avanços? O que precisa
mudar? O que sentem esses ativistas?
Nossos entrevistados possuem idades diferentes entre si, vivências distintas e nem
todos são de Montevidéu. Porém, todos possuem clara percepção das desigualdades raciais no
país e por isso são ativistas do movimento negro. Nesse sentido, Lourdes Martinez afirma que
a primeira percepção da população uruguaia, incluindo a que os negros têm de si, são as
seguintes:

Un negro es minoría, un negro es exclusión, es símbolo de pobreza, es su mayor


expresión de racismo que tiene este país una sociedad que dice que todos somos
iguales, pero iguales no se sabe de que, la población negra es una población que
siempre está al margen de todo. Un hombre y una mujer negra en la calle es una
persona a la que nadie va a saludar una persona que en el ómnibus la gente se va a
correr cuando pase,una persona con la que las personas no afro tratan de no tener
vinculación directa y siempre hay la ida de que, es un analfabeto de que es alguien
que no tiene conocimiento que, si somos mujeres debe ser una empleada doméstica,
que nuestra gran base de trabajo, es el trabajo doméstico (LOURDES MARTINEZ).

Segundo Lourdes, o imaginário social acerca do negro foi construído em torno de


poucas identificações positivas, prejudicando a autoestima da juventude negra e levando a
população branca a desacreditar nas capacidades intelectuais daquele segmento. Chabella
Ramirez, inclusive, anota que a “comunidade negra” sempre esteve em construção, e que são
muitos fatores complexos que fazem com que haja identificações entre os negros naquele
país.
Chabella narra um fato em que durante um período de tempo, a partir da década
de 1970, houve um deslocamento de pessoas negras dos seus locais de moradia em virtude da
proximidade do centro da cidade e, sobretudo, pela construção da embaixada dos EUA. Ela
afirma que esse processo se dá em consequência do arraigamento de uma imagem negativa do
negro, que constitui perigo e deve estar distante do convívio harmonioso que requer uma
cidade embranquecida.

En los barrios tradicionales negros hubo un desplazamiento de la población hacia


otros lugares, porque se supone que los negros molestaban en el centro de la ciudad.
Por mas que aca estamos en la costa Este, este es el centro de la ciudad fijate que a
diez cuadras de acá, esta es la calle principal de montevideano. En la década del 70
se construye aquí la embajada americana de Estados Unidos y ellos, como siempre,
153

ven peligro donde no hay, estaban asustados porque había barrios de negros cerca de
la embajada y eso fue una de las razones por la cual el desplazamiento
(CHABELLA RAMIREZ).

Vemos que a tentativa de despejar os negros de seus bairros pode estar para além
de uma “higienização” e/ou “gentrificação” da cidade, mas perpassa por uma estratégia de
dificultar o fortalecimento dos laços comunitários entre os negros. Entretanto, o oposto se
observa, na medida em que um atentado contra coletividade negra é perpetrado e gera
reações, tal como se deu com os movimentos pela moradia após a derrubada do conventillo
“Médio Mundo” na mesma década narrada por Chabella Ramirez.
Essa asserção é importante e recorrente entre os entrevistados, tendo em vista que
o processo de identificação positiva acerca da negritude foi dado de forma gradativa e
bastante dolorosa entre os negros uruguaios. As estratégias de desmobilização negra, citadas
por Chabella, coadunam com a ideia de Noelia Maciel no que diz respeito ao modelo de
civilização que se pretendia erigir, ou seja, algo assimilacionista no qual os negros deveriam
abandonar a sua ancestralidade.

Creo que referenciando más a la época de mis padres, quizás de mis abuelos, ser
negro en Uruguay es como estar como en la invisibilidad, es decir lo que más
resaltaba me parece es eso de asimilarse a una cultura que era la hegemónica, que lo
que estaba como ponderado no eran los valores culturales que tengan que ver con lo
africano, sino todo lo que era la sociedad blanca, todo este impulso movilizador
también hacía que estuviera mal visto todo lo que venía de tus ancestros (NOELIA
MACIEL).

Partindo desse pressuposto, buscamos entender como essa dinâmica se encaixava


na realidade histórica do Uruguai. O que orienta a nossa indagação se inscreve no fato de que
possa haver uma retroalimentação entre produção acadêmica acerca da história e da cultura
uruguaia e quem faz e quem fez ciência naquele país. Também sabemos que o número de
publicações acerca dos negros cresce de acordo com “as veias abertas do racismo”, ou seja,
através do trabalho de denúncia e propostas do movimento negro.
Karina Moreira nos responde advertindo que o alargamento no número de
produções não se deve a uma investida espontânea, já que, segundo ela, isto se dá por meio de
um nicho de mercado que se abriu, justamente em razão do apelo de uma “nova
conscientização” em relação à população negra. Entretanto, também deixa sinalizado que boa
parte das boas produções de conhecimento não é parte dos programas acadêmicos oficiais, ou
seja, são de cunho pessoal.

Lo que observo es que estas producciones que son buenas producciones no forman
parte de los programas académicos obligatorios, siempre son producciones muy de
motus propias… yo creo que hoy la producción académica negra de parte de los
154

blancos tiene que ver con un nicho interesante de producción académica (KARINA
MOREIRA).

Karina não deixa de tecer as críticas pertinentes e salienta que os negros ainda
estão substancialmente fora da academia, e isto significa que pouco estaria influenciando nas
transformações sociais, já que ela não deixa de considerar “que la producción académica
puede generar grandes transformaciones porque nos formamos a través de ella, es la
educación válida” (KARINA MOREIRA). Justamente por serem “válidos”, validados, ou
oficializados, que os conhecimentos acadêmicos possuem poder de transformação, uma vez
que quem os detém, possui a chancela para preparar outros indivíduos para outras etapas da
vida em sociedade, seja para o conhecimento básico ou para as investigações científicas.
Estando os negros exponencialmente fora do ambiente onde se produz os
conhecimentos oficializados pelo Estado, inegavelmente as chances de recontar a história, de
se inclinar para fontes que permitam outros olhares acerca dos eventos que organizam a
memória coletiva correm o risco de ser menores. E não se trata de um suposto monopólio
temático em favor dos negros, e tampouco que negros devam ser essencialmente militantes e
estudiosos da temática racial. O que se presume é que há uma forte tendência de os negros se
inclinarem para as pesquisas que sinalizem algum caminho que lhes ofereça possibilidades de
compreensão para inquietudes que os acompanham desde a infância.
Por esse caminho, Karina afirma que talvez seja o momento de promover pessoas
negras que se interessem pelas investigações acadêmicas para dentro das pesquisas acerca da
temática racial, funcionando como interlocutoras entre os movimentos negros, a comunidade
negra e a universidade. Ela completa: “Creo que por ahora tiene que ver más como de
impulsos personales o de nichos de investigación y de producción y de algunas personas en
particular que han encontrado ese nicho” (KARINA MOREIRA).
Julio Cesar Pereira completa o que Karina Moreira diz sobre os impulsos pessoais
para as investigações acadêmicas acerca do negro no Uruguai. Segundo ele, é necessária uma
elevação da consciência, é preciso que o negro tenha claro qual a sua condição dentro do
processo histórico daquele país e a sensibilidade para o entorno, baseando-se em informações
oficiais, preparando, desse modo, o terreno para uma robusta argumentação.

Depende del grado de conciencia que tengas. Si tenés claro de ehh, o por lo menos
crees que en Uruguay existe una situación de racismo estructural, que los negros
viven una situación de opresión y se tenés claros los datos sobre cómo viven la
población afro de cómo vive la población blanca, de cuáles son las brechas en el
proceso educativo, ehh, si tenés todos esos datos claros (JULIO CESAR PEREIRA).
155

É importante salientar que ainda que o negro esteja inclinado para as questões
acadêmicas, consciente dos seus direitos, municiado de dados oficiais e produzindo
conhecimento acerca de sua comunidade, o racismo cotidiano não o isenta de ser vitimado.
Julio César Pereira é professor na Universidad de La República e afirma que no nível do
cotidiano os infortúnios continuam os mesmos, ainda que de maneira dissimulada e sem a
efetivação de violência física.

Uruguay tiene una forma de racismo y de discriminación y de vínculo entre las


poblaciones blancas y negras un poco perverso, son muy pocos los casos en donde
uno sufra violencia física por ser negro. Difícilmente venga alguien y me de una
paliza por ser negro, pero todo el tiempo voy a ser un ciudadano de segunda. Voy a
contar cosas que a cualquier negro en el resto de América le debe haber pasado. Si
yo entro a un supermercado el guardia de seguridad me persigue, si entro a una
tienda, todo el mundo queda como mirando y a ver y yo estoy como muuy integrado
y tengo ya como anticuerpos para todo esto digo, es algo con lo que ya se como
lidiar (JULIO CÉSAR PEREIRA).

Podemos notar que por mais integrado que o negro esteja, em nível de emprego e
educação, as situações são constrangedores e ocorrem constantemente, levando à percepção
de que seja necessário criar mecanismos de defesa para saber lidar com os fatos. Anotando as
indagações do professor Júlio e analisando todo o painel uruguaio, estivemos inclinados a
pensar um pouco sobre a situação dos negros residentes nas cidades do interior daquele país,
já que até aqui nós estivemos concentrados na visão montevideana do problema.
Karina faz uma observação ancorada no fato de que, segundo ela, há uma forte
diferenciação entre as cidades do interior do país e a capital Montevidéu. Ela afirma que os
processos são bastante diferentes e que as pessoas negras de Montevidéu talvez tenham menos
problemas de inserção em espaços, como a academia, do que aquelas que se criaram no
interior. Karina completa dizendo que

La gente del interior donde te voy a insistir, la proximidad con el blanco es aún
mayor porque generalmente están como más las relaciones laborales o las relaciones
de crianza, de haber sido criada en determinada casa o no sé, son otros procesos que
a veces incluso en el interior profundo son más crudos. Realidades mucho más
crudas de las que podemos imaginar desde Montevideo (KARINA MOREIRA).

Essa ocorrência se dá por fluxos de informações e dinâmica cultural de vida, com


acessos mais ou menos velozes e constantes ao que se produz de tendência de pensamento e
de hábitos. O que Karina nos demonstra é que em Montevidéu as pessoas estiveram sempre
mais habituadas em debater soluções para problemas pontuais, ao passo que disponibilizam de
mais instrumentos para que isso seja possível. Já no interior, onde as relações são mais
voltadas para o trabalho manual e de menor acesso à diversidade cultural do próprio país, ou
do mundo, tende a permanecer os resquícios senhoriais de outrora.
156

Reside aí um grande problema que Karina identifica como a fuga de questões


raciais para “coisas mais gerais”. Em Montevidéu as experiências não seriam tão marcadas, e
isso conduziria a população negra – inclusive parte da própria militância – a nem sempre se
organizar em torno da questão racial, e ela chama a atenção para o fato de que somente há
pouco tempo (desde Durban) que o debate acerca da identidade racial tem sido forte entre os
ativistas, mas que ainda é um entrave junto à população, de modo geral:

El proceso por ejemplo entre decirnos negros y decirnos afrodescendientes, todavía


hay cierta resistencia de parte de la gente a la militancia, a cuestionarse los temas de
racismo, a remover las experiencias de dolor, a cuestionarse que hay como otras
urgencias, otras cosas que pasan en la vida de la gente que no necesariamente
quieren o tienen ganas de cuestionarse la identidad y qué es esto de ser
afrodescendiente (KARINA MOREIRA).

Não podemos deixar de destacar que, segundo Orlando Riveros, a população


negra montevideana é parte nativa e parte proveniente do interior do país. Para ele, a dinâmica
histórica deve ser observada para compreender alguns porquês. Há uma embaraçosa miríade
de coisas, e talvez o que Karina esteja colocando possa se entremear em questão de habitus e
como possa haver rearranjos políticos após Durban. Todavia, vejamos a afirmação de
Riveros:

Montevideo se construye como dos cosas, Montevideo de la comunidad negra de


Montevideo, por lo menos un 40% es nativa de Montevideo, es decir, son aquellas
personas que descienden de esclavos que específicamente estuvieron en Montevideo
y de ciudadanos que en realidad vivían en Montevideo, que no han salido de
Montevideo, aproximadamente el 60% vienen del interior, de oleadas que vienen
mujeres como criadas a trabajar a Montevideo cuando las familias del interior se
vienen, de diferentes departamentos, traen a su criada, y por el otro lado por
diferentes oleadas económicas (ORLANDO RIVEROS).

Inscreve-se nesta dinâmica a possibilidade de uma dupla vivência, ou seja, de


interior e de capital, mediada pela memória e pela adaptação a novos códigos de
sociabilidade. As negações e afirmações de identidade vão variar bastante de acordo com a
absorção de novas condutas e necessidades de reorganização política. Diante de um universo
mais plural e um ritmo de vida mais agitado, surgirão diversas questões que poderão atentar
para um acirramento de conflitos raciais. Por outro lado, as relações mais senhoriais, típicas
dos interiores, também despertam descontentamento racial.
Todavia, a urgência material pode ser a tônica principal para quem não está
atrelado à militância dos movimentos negros, cabendo, portanto, ter um olhar mais
direcionado para os problemas que os flagelam de modo mais incisivo. Obviamente que o
racismo é um fator importante e talvez decisivo para submeter o negro a uma condição de
157

dificuldade – ou até mesmo degradante – de vida. Possivelmente, esse foi o direcionamento


que Karina deu ao seu pensamento ao tentar nos desvelar essas questões.
Nesse sentido, as motivações e ensejos para o agrupamento de pessoas negras se
dão em diferentes escalas, pressupostos ou afetos, uma vez que os motivos apresentados
anteriormente já são suficientemente fortes para sinalizar os modos de organização e dinâmica
de vida entre Montevidéu e as cidades interioranas. Karina completa dizendo que:

Es a partir de motivaciones del propio proceso, de la gente que se organiza entorno


de una comparsa, entorno al movimiento de mujeres domésticas, entorno a un club o
algún espacio cultural, es como llegar a los espacios que se están formando o que
estaban formados. No a mostrar una verdad, me parece que es un proceso bien
diferente (KARINA MOREIRA).

São diversos os fatores que conduzem os negros à busca de uma coletividade, seja
na capital ou nas cidades de interior. A vivência de uma pessoa negra naquele país passou por
diversos momentos, os quais a história sinaliza para substanciais avanços, ainda que o
racismo continue existindo e as estatísticas apontem para índices muitos discrepantes no que
tange ao acesso de satisfatória realização escolar, saúde, emprego e moradia.
Os nossos entrevistados nos apresentaram um painel geral e de acordo com a ótica
de quem se organiza em torno do combate ao racismo. Há muitas dores e alegrias de saber
que conquistas estão sendo possibilitadas, sobretudo após a Conferência de Durban, quando
eclode um pacote de leis e determinações que vem contribuindo substancialmente para que
novos caminhos sejam percorridos, não somente pelos negros, mas para a população uruguaia
como um todo, uma vez que se assume o compromisso para novas relações sociais.
Portanto, ainda que hajam muitos desafios, existe a militância do movimento
negro, inclinado a buscar soluções para os problemas mais complexos, identificados a partir
de pesquisas acadêmicas, dados estatísticos, denúncias de casos de racismo e de percepção
das dinâmicas sociais operadas nas relações cotidianas, e os nossos entrevistados são parte
daqueles que identificam e buscam soluções para o racismo, e por esse motivo apresentamos
brevemente um pouco daquilo que está no escopo do pensamento e das propostas em que eles
estão escudados para a ampla mobilização do movimento negro em benefício dos afro-
uruguaios.

5.7 As políticas educacionais no Uruguai

Após lançar estas análises acerca do painel uruguaio, se faz necessário redesenhar
o panorama educacional, valorizando o que temos de informação sobre a Lei 19.122 e a partir
158

das reflexões compartilhadas pelos entrevistados, tendo em vista que grande parte deles esteve
no processo de luta pela implementação da referida Lei. Além disso, reside o fato de que
muitos deles são operadores de políticas públicas, alguns, inclusive, beneficiários da política
de ações afirmativas.
De acordo com a literatura até aquí consultada, o Uruguai é um país que
conquistou bons índices de qualidade de vida, proporcionado, em grande parte, pelo bom
nivel educacional da população. Esse fato é consubstancialmente fruto de processos históricos
que sinalizam para a satisfatória gestão dos recursos públicos. O Uruguai, segundo Iguini,
Maciel, Miguez e Rorra (2016), praticamente resolveu o problema de acesso à educação e, por
conseguinte, do analfabetismo. Os autores afirmam que, apesar dos desníveis raciais, esse
cuidado sempre esteve presente na história do país.
Pensando em termos históricos, as afirmações dos autores supracitados estão
corretas, pois, de acordo com Cabella, Nathan e Tenenbaum (2013), o Uruguai realizou
precocemente - se comparado aos outros países da América Latina - a sua reforma da
educação. Naquele período a reforma carregava um caráter universal, atendendo aos
princípios legais que norteavam o rumo que aquele país deveria seguir, melhorando os índices
de alfabetização e instrumentalização técnica para o trabalho.

Durante los años de1877-1889, período de concreción de la aplicación de la reforma,


la escuela pública vareliana – como afirman Barrán y Nahum – apostó, entre otras
cosas, a limar las diferencias entre los sectores sociales al apuntar al igualitarismo
democrático, y generalizó un nível basico de conocimiento para la nueva estructura
económica, social y política que se estaba cimentando (FREGA; CHAGAS;
MONTAÑO; STALLA, 2008, p. 22).

Entretanto, os mesmos autores afirmam que essa abrangência somente chegou aos
negros tardiamente, mas que os índices de escolarização da população negra fora
gradativamente melhorando com o passar dos anos. Aqui devemos entender que a
reivindicação histórica dos movimentos negros uruguaios se fez em torno da permanência na
escola, do modelo de educação e do tratamento dispensado aos negros no sistema escolar, e
não tanto mais por acesso.
Nesse sentido, as políticas educacionais para os negros uruguaios vão
acompanhar, necessariamente, o atendimento das reivindicações dos movimentos negros
daquele país, tendo em vista que todo o teor reivindicatório reside em questões voltadas para a
negligência do ensino de história e cultura do continente africano e da ausência de
mecanismos de permanência de jovens negros no sistema escolar, tendo em vista que a
159

dimensão simbólica e a necessidade de inserção precoce no mercado de trabalho são fatores


preponderantes para a evasão (RORRA, 2019).
Esses problemas são históricos e não foram resolvidos com a expansão do sistema
de ensino uruguaio. A militância do movimento negro foi fundamental para a incorporação de
um olhar mais atento em relação ao negro na educação, e isso se dá por meio das conquistas
operacionalizadas desde os anos de 1970, e se inscrevem desde o reconhecimento de Ansina
como herói, passando pelos tombamento dos conventillos à declaração do Candombe como
patrimônio imaterial da humanidade e a incorporação do quesito racial no censo nacional.
Todos esses eventos confluíram para a que Lei 19.122 fosse implementada e
pudesse intervir de maneira direta no sistema de educação uruguaio. Aqui devemos dizer que
a lei não é exclusivamente direcionada para fins educativos, uma vez que ela trata de uma
questão geral das ações afirmativas, ou seja, ao passo que ela determina reserva de vagas para
negros em âmbito do trabalho, ela também operacionaliza propostas para redesenhar o
currículo escolar e viabilizar a permanência dos seus beneficiários.
Em seu artigo oito, a Lei 19.122 assevera que

Se considera de interés general que los programas educativos y de formación


docente, incorporen el legado de las comunidades afrodescendientes en la historia,
su participación y aportes en la conformación de la nación, en sus diversas
expresiones culturales (arte, filosofía, religión, saberes, costumbres, tradiciones y
valores) así como también sobre su pasado de esclavitud, trata y estigmatización,
promoviendo la investigación nacional respectiva.

Esse artigo da referida lei, deixa claro que se faz necessário a promoção de novas
estratégias educativas que reorganizem o currículo e incorporem a temática racial como
constitutiva do processo educativo do país. Os desafios são grandes e os movimentos negros
articulam as mudanças necessárias, conforme adverte Rorra (2019). De acordo com ele, o
legado branco é predominante na literatura uruguaia e isso dificulta a percepção de questões
simbólicas encrustadas nas dimensões mais subjetivas de cada texto, por parte dos estudantes.
Repetidamente esses valores levam a uma absorção quase que inconsciente da superioridade
do branco sobre o negro.
Nesse sentido, ele reitera o que adverte Gortazár (2016), que reafirma que o
discurso official sobre a literatura uruguaia como iminentemente branca, afeta diretamente na
construção do imaginário coletivo e serve como dispositivo para alimentar a normatividade de
inferiodade do negro. Ainda de acordo com Gortazár (2016), a construção da ideia de uma
nação uruguaia unida se fortificou a partir do século XIX, com o recente processo de
independência. O desejo das elites uruguaias naquele momento era eliminar os vestígios de
160

negritude. Para tanto, seria necessário massificar as grandes narrativas produzidas por
pensadores de origem europeia.
Esses autores concordam que essa investida foi eficaz e perdurou por mais de um
século, e que só a partir das indagações e lutas dos movimentos negros que o panorama vem
mudando. No entanto, advertem sobre a necessidade de atualização de estudos e estímulo às
pesquisas acadêmicas que versam sobre a história da população negra uruguaia. Esse
incentivo seria importante para produzir uma narrativa cujo os protagonistas sejam pessoas
negras, já que uma das grandes queixas – observadas nas minhas entrevistas e confirmadas
pela bibliografia consultada – é a de que o Uruguai sempre teve uma história contada sob o
olhar da intelectualidade branca.
A tarefa de assegurar que as narrativas negras construídas por ativistas que
lutaram pela implementação da Lei 19.122 sejam garantidas, tem a sua chave mestra na
educação formal, por isso a lei gera os dispositivos estruturais que asseguram a permanência
do estudante negro nas escolas e universidades. Por causa disso, em seu artigo seis, a lei
determina o seguinte:

Los sistemas de becas y apoyos estudiantiles que se resuelvan y asignen a nivel


nacional y departamental, aun cuando su fuente de financiamiento sea la
cooperación internacional, deberán incorporar cupos para personas
afrodescendientes en la resolución y asignación de las mismas.

Percebemos que a estratégia de políticas públicas educacionais no Uruguai não se


detém a um caráter específico no âmbito do currículo escolar, mas se ocupa também com o
caráter estrutural de manutenção do estudante no sistema de educação. Esse é um atendimento
essencial em relação ao que historicamente os movimentos negros reclamam, tendo em vista a
afirmação de Rorra e Pereira (2019), que quase que em uníssono dizem que “Um dos maiores
problemas dos negros no sistema de educação é a evasão escolar”.
É importante, no entanto, mencionar que se impõe à Lei 19.122, a partir de sua
implementação, uma durabilidade com o prazo de quinze anos, prorrogável por mais tempo de
acordo com as avaliações de uma comissão pela medição dos seus impactos e o seu
atendimento, a contar do quinto ano de sua adoção. Por sua vez, vale mencionar que os órgãos
responsáveis pela avaliação estarão em articulação com as instituições públicas e com os
conselhos da sociedade civil para poder qualificar a sua apreciação.
Podemos dizer que a manutenção da Lei 19.122 depende de um trabalho
minucioso na educação, uma vez que é por meio do conhecimento do histórico de práticas de
racismo naquele país, bem como a consciência da necessidade de medidas que propõe
161

equilíbrio econômico e acesso irresrito à cidadania, que se constituem pessoas inclinadas pelo
bem comum e que se organizam para a efetivação de providências que se opõe ao subjugo e
da contribuição histórica do negro.
Cabe observar que o sistema de ensino superior uruguaio não adota o método de
vestibular como forma de ingresso, não sendo necessário que a Lei 19.122 seja aplicada para
esse fim. Esse fato se dá por conta de que o ensino secundário no país acontece por meio de
dois ciclos de três anos, nos quais o primeiro é voltado para o cumprimento das disciplinas
obrigatórias e o segundo visa a preparação para o ensino universitário. De acordo com Rorra
(2019), geralmente as pessoas negras buscam o ensino técnico e cumprem apenas a etapa
obrigatória, não ingressando na universidade.
O Uruguai conta com apenas duas universidades públicas e seis privadas, mas
que, Segundo Rorra (2019), atende bem a demanda do país. Noelia Maciel (2019) se mostra
otimista quanto ao ingresso do número de negros, afirmando que está aumentando
substancialmente e este fato vem contribuindo para o surgimento de novas pesquisas nas
ciências humanas que estejam atreladas à comunidade negra, gerando um entusiasmo para as
novas gerações, que, paulatinamente, conseguem produzir as suas próprias narrativas e não se
atém mais somente às produções feitas por pesquisadores brancos.
Noelia Maciel (2019) afirma também que o sistema educativo uruguaio tema
muitos méritos e consegue dar uma boa assistência a sua população, tendo em vista que o
ensino básico é gratuito e obrigatório, e a rede de escolas se mostra suficiente para atender às
demandas da educação, ou seja, nenhuma criança se encontra fora da escola. De acordo com a
ativista, o mesmo se observa no ensino secundário, o que permite corroborar com os
documentos oficiais do Programa das Nações Unidas para o Desenvlvimento, que classifica o
Uruguai como o país com o maior índice de alfabetização da América Latina.
Dentre os ativistas entrevistados, Juan Pedro Machado, Orlando Riveros, Oscar
Rorra, Julio Pereira, Noelia Maciel, Karina Moreira e Lourdes Martínez, concordam que o
problema do sistema de educação no Uruguai, para a população negra, não está mais
relacionado ao acesso, e sim com a permanência e com o currículo. Conforme já exposto, a
questão do acesso também tem sido resolvida a partir da determinação de dispositivos que
mantêm os estudantes negros frequentando as aulas, ainda que estes sejam os que mais
evadam.
Desse modo, os ativistas se concentram em produzir materiais informativos,
publicar textos acadêmicos, livros didáticos e fomentar palestras que recontem a história do
país, valorizando a cultura negra e promovendo o protagonismo negro em ações pontuais e
162

sumamente importantes para o desenvolvimento da nação. A estretégia é garantir que a lei


seja cumprida e o Estado dê o apoio necessário para que isso se consubstancie na prática.
(Re)econectar o negro no imaginário social uruguaio de forma positiva é um
grande desafio e constitui a pedra angular de parte do movimento negro ao que concerne o
debate sobre as políticas públicas em âmbito educacional. O que se tem feito até o período
pesquisado sinaliza para uma incorporação lenta, contudo, gradual das pautas que os
movimentos negros historicamente preconizam. Se persegue a ampliação do debate e a
manutenção de políticas de permanência dos jovens negros no sistema educacional.
Portanto, a Lei 19.122 é o mais importante dispositivo que se tem em mãos para a
realização desses pleitos, e, segundo os ativistas por nós entrevistados, ela é o mais importante
desdobramento da Conferência de Durban, devendo seguir as recomendações do documento
final no que concerne ao campo educativo. O seu monitoramento e a sua manutenção se
devem ao sucesso da sua aplicação. Por esse motivo, a comunidade negra precisa estar unida
ao movimento negro na busca de resultados positivos e, por conseguinte, na garantia de sua
manutenção, viabilizando que se combata o racismo e se encontre o equilíbrio racial desejado.
163

6 METODOLOGIA

Para a realização desta pesquisa, primeiramente se fez necessária uma revisão


bibliográfica a fim de selecionar os conteúdos mais relevantes para a consolidação dos
argumentos que fortificam a investigação das informações coletadas em campo, bem como a
arregimentação dos nossos objetivos, que foram a verificação das políticas educacionais
voltadas para a população negra no Brasil e no Uruguai após a Terceira Conferência Mundial
contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância
promovida pela Organização das Nações Unidas – ONU no ano de 2001 em Durban, África
do Sul.
Inicialmente fizemos uso da metodologia de pesquisa bibliográfica, a qual se
constitui como um trabalho em si, isto é, ela pode ser aferida como o produto final na
conclusão de um curso. Monografia, dissertação ou tese, são consideradas como trabalho de
pesquisa bibliográfica, tendo em vista que nelas residem temas delimitados e coletas de dados
que orientam o seu desenvolvimento, tendo como norte conteúdos já presentes em outras
pesquisas concluídas (teses, dissertações, monografias, livros, vídeos e etc.) sobre o assunto a
delineado (ANDRADE, 1997).
De acordo com Andrade (1997), para que o método obtenha êxito se faz
necessário que haja seleção do máximo de informações que estejam contidas, de modo
implícito ou explícito, nas bibliografias pesquisadas. Importante salientar que nessas fontes
não se veiculam apenas conteúdos escritos, pois neles podem estar contidas imagens,
fotografias e etc. Os conteúdos extraídos desses documentos devem servir de base para a
construção dos argumentos que o pesquisador busca para desenvolver o seu trabalho
científico.
A recomendação é a de que haja prévia leitura dos elementos chave dos
documentos consultados, de modo que, respectivamente na ordem elencada, haja um
encadeamento das informações mais importantes a serem apreendidas: sumário, contracapa,
prefácio, orelha, título e subtítulo. Após esse processo é necessário fazer uma leitura seletiva,
em que os títulos e os subtítulos terão maior importância para análise de quais obras realmente
poderão interessar ao pesquisador (ANDRADE, 1997).
No nosso caso, temos uma pesquisa de teor qualitativo, pois as análises dos
conteúdos veiculados na bibliografia pesquisada foram feitas a luz de teorias que confirmam,
refutam ou geram possibilidades de intervenção acerca dos argumentos expressos pelos
autores do campo das relações raciais, bem como aqueles colhidos por meio das entrevistas
164

realizadas. Caracterizando a abordagem qualitativa, Minayo (2007) afirma que pesquisas


científicas com esta abordagem envolvem um nível de realidade. Ela explica que uma
pesquisa qualitativa:

Trabalha com o universo dos significados, dos movimentos, das aspirações, das
crenças, dos valores e das atitudes. Esse conjunto de fenômenos humanos é
entendido aqui como parte da realidade social, pois o ser humano se distingue não só
por agir, mas por pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir
da realidade vivida e partilhada com os seus semelhantes. (Minayo, 2007, p. 21)

A autora caracteriza a pesquisa qualitativa como referente a fenômenos humanos,


tais como o universo significativo dos movimentos, crenças, valores e atitudes, como em
nossa pesquisa, pois investigamos as transformações ocorridas no painel político de oferta de
medidas educativas após a Conferência de Durban.
De acordo com Moraes (1999), na pesquisa qualitativa está contido o método de
análise de conteúdo que consiste na interpretação de discursos expressos em mensagens de
diferentes fontes comunicacionais ou formativas.
A análise de conteúdo é uma metodologia que exige do pesquisador uma profunda
concentração para a compreensão dos significados contidos nos documentos e nos textos
investigados. Moraes (1999) afirma que o pesquisador que se debruça por este método precisa
ter rígidos critérios para a observação dos conteúdos latentes em cada documento ou texto
analisado, no entanto, deve preservar o contexto ao qual foram produzidos (social, histórico,
temporal, territorial e etc.).
Outra metodologia utilizada em nossa pesquisa foi o método de estudo
comparativo, que, segundo Oliveira e Silva (2019), é feito a partir da verificação dos
elementos que influenciam os fenômenos a serem comparados. De acordo com as autoras, o
método consiste em recolher dados específicos que servem para traçar uma compreensão de
caráter geral e abstrata sobre o objeto de pesquisa, permitindo que se faça uma descrição
detalhada do mesmo.
Nesse sentido, verificamos a origem das políticas educacionais para a população
negra após a conferência de Durban nos dois países escolhidos, já que se fez preponderante a
compreensão de cada realidade em separado para concluirmos as similitudes e diferenças.
Salientamos que, de acordo com Oliveira e Silva (2019), é possível traçarmos apenas
descrições dentro doo método de estudos comparativos, e não necessariamente perfilar as
características de cada fenômeno e estabelecer comparações diretas.
Ainda sobre os estudos comparativos, Oliveira e Silva (2019) afirmam que a
descrição do objeto é primordial para que haja comparação. Em nossa pesquisa fizemos duas
165

descrições em separado acerca de dois países, Brasil e Uruguai, considerando que ambos
possuem população negra, movimento negro, enviaram delegações para a mesma conferência
e adotaram medidas de políticas públicas educacionais específicas para as respectivas
populações negras (lei 19.122/06 e SECADI).
Desse modo, trouxemos algumas comparações em nossas considerações finais,
feitas a partir das descrições do painel racial de ambos os países e partindo da premissa de que
a Conferência de Durban possibilitou a emergência de políticas educacionais específicas para
a população negra em ambos os países, como elemento crucial de combate ao racismo.
No decorrer da nossa pesquisa buscamos responder às perguntas: A Conferência
de Durban foi a responsável pelo desencadeamento de políticas educacionais para a população
negra no Brasil e no Uruguai? Quais são os desdobramentos da Conferência que se verificam
no Brasil e não se verificam no Uruguai, e vice-versa? Descrevendo os caminhos percorridos
por ambos os países, antes, durante e depois de Durban, obtivemos dados que nos permite
elencar elementos indispensáveis para a reflexão acerca dos questionamentos feitos.
De acordo com Gil (1994), é importante frisar que para a realização dos estudos
comparativos é necessário buscar os elementos fundamentais para que haja a descrição
almejada em relação ao que se querer comparar. Sobre os estudos comparativos ele afirma
que

Têm como objetivo primordial a descrição das características de determinada


população ou fenômeno ou, então, o estabelecimento de relações entre variáveis.
São inúmeros os estudos que podem ser classificados sob este título e uma de suas
características mais significativas está na utilização de técnicas padronizadas de
coleta de dados, tais como o questionário e a observação sistemática (GIL, 1994
p.21).

Nesse sentido, estivemos em Brasília e em Montevidéu, respectivamente no


Ministério da Educação – MEC e com os ativistas dos movimentos negros, coletando as
informações necessárias para a efetivação da pesquisa. Fizemos entrevistas semiestruturadas e
nos debruçamos na bibliografia selecionada como suporte para os temas abordados.

A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas


ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado, ou seja,
ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e
atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações dos processos e
dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis
(MINAYO, 1995 p.21-22).

Vale lembrar que a pesquisa semiestruturada segue um roteiro, onde constam as


perguntas as quais serão analisadas posteriormente, alinhadas às possíveis respostas dadas aos
objetivos elencados no trabalho. Isto quer dizer que o que direciona as perguntas contidas em
166

nosso roteiro, são os objetivos do trabalho, uma vez que as considerações são feitas de acordo
com a aproximação entre o que colhemos em campo e as análises feitas (Oliveira, 2019).
Nesse sentido, no Brasil escolhemos membros do corpo técnico da Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão – SECADI, por entender que
aqui o plano de ação da Conferência de Durban coincidiu com a criação da referida secretaria.
No Uruguai optamos em entrevistar os ativistas dos movimentos negros, considerando que
naquele país não existe uma secretaria análoga a SECADI, mas existem políticas
descentralizadas e essas recebem consultoria de ativistas dos movimentos negros, que em
alguns casos fazem parte do corpo técnico do serviço público.
Portanto, seguimos estes métodos de pesquisa a fim de alcançar os objetivos
elencados. Nós nos lançamos a campo a partir de um roteiro estruturado de acordo com as
diferenças e peculiaridades previamente estudadas acerca de cada país em separado e
tomando o cuidado em intervir o mínimo possível no desenvolvimento de cada entrevista
concedida.
167

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Examinamos, ao longo desta pesquisa, as correlações de forças entre o estado


brasileiro e o estado uruguaio em relação aos movimentos sociais de ambos os países na busca
de empreender a luta política de inserção de grupos historicamente marginalizados na esfera
da educação, dando ênfase para a questão racial. Fizemos uma reflexão sobre alguns pontos
importantes a serem discutidos em torno dos agenciamentos necessários para melhor inserção
dos negros no espaço educativo desses países.
No Brasil, tecemos nossas considerações a partir da análise das pessoas
entrevistadas, todas ligadas à SECADI, que desde a sua criação, o atendimento às populações
historicamente marginalizadas – mais especificamente os negros – tem melhorado bastante, e
um dos fatores cruciais reside no fato de que os seus gestores já participaram ou se
debruçaram em pesquisas acerca dos movimentos sociais que se orientam em atender as
demandas desses grupos, e se articularam por dentro da esfera pública como técnicos para os
assuntos educacionais, se articulando como importantes vetores para amplificar a luta por
educação de qualidade para a população negra.
No Uruguai, o nosso intercurso se deu por meio de análises de entrevistas de
pessoas que estão na militância do movimento negro, alguns tendo participado da última
grande conferência que baliza as políticas públicas focais a partir de 2001, a Conferência de
Durban. Esses entrevistados foram fundamentais para um levantamento geral de como o
panorama uruguaio acerca da questão racial tem se transformado desde o ano de 2006, com
adoção de políticas públicas focais, por meio da lei 19.122, e ampliação do sentimento de
pertença racial entre os negros daquele país.
Aqui é importante sinalizar que dedicamos um capítulo à Conferência de Durban,
entendendo que ela tenha sido a divisora de águas para os movimentos sociais dos países em
desenvolvimento, já que Durban foi o espaço de conversa e ajustes de uma agenda comum
para o combate ao racismo. Impõe-se reafirmar que o protagonismo dos movimentos negros
brasileiros e uruguaios conduziram esses países a lograrem avanços importantíssimos para as
populações negras em seus territórios.
Nosso percurso se iniciou através de uma breve apresentação da SECADI, com
um mapeamento acerca dos programas ofertados e quais as articulações que são feitas para o
seu funcionamento. Não adentramos com maiores detalhes no cerne de cada uma das
coordenações por não fazer parte do escopo do nosso trabalho, deixamos esta lacuna em vista
do nosso calendário de atividades para a realização desta pesquisa. Desse modo, foi
168

necessário direcionar olhares para o que realmente nos importava investigar: Existe uma
ligação direta entre a criação da SECADI e a Conferência de Durban?
Constatamos que a resposta para esta pergunta é sim, a SECADI surge em um
contexto político no qual não cabia mais a ausência de políticas focais para os negros, tendo
em vista uma ambiência internacional que se desenhava após a queda de regimes totalitários
pelo mundo, a nova constituição brasileira, em 1988, a Lei de Diretrizes e Bases para a
Educação no ano de 1996 e a Conferência de Durban em 2001. Desse modo, a Conferência de
Durban foi o último evento balizador para uma nova dinâmica de políticas públicas de
combate ao racismo, e a SECADI é um desdobramento dessa investida.
A partir das entrevistas realizadas no Brasil ficou sinalizado que houve avanços
pós-Durban, e que os programas ofertados pela SECADI precisam ter continuidade. A
SECADI, enquanto órgão público surgido após esta Conferência, tem sido o vetor de
consistência dessas transformações. Entretanto, não podemos negar que diversos entraves
surgem a partir de disputas de forças políticas antagônicas e que existam profundos problemas
construídos historicamente, cuja solução não é simples e não está às mãos dos técnicos que lá
trabalham, necessitando de um longo e consistente trabalho.
Na nossa avaliação, a oferta de várias modalidades de educação sinaliza para o
fato de que a Secretaria tenha sido uma maneira de equalizar as vozes de vários ativismos que
se organizavam durante décadas, a fim de exigir dos governos melhor inclusão de suas
demandas no sistema educacional. Com isso, negros, indígenas, mulheres, portadores de
necessidades especiais, trabalhadores rurais, jovens e adultos com déficit de alfabetização,
ciganos, homossexuais e outros grupos historicamente marginalizados são contemplados com
a possibilidade de políticas públicas de inclusão de suas pautas no sistema escolar.
Para tanto, foi necessário que a Secretaria fizesse a composição de um quadro
técnico especializado, viabilizado pela alocação de pessoal que tivesse afinidade conceitual
com as temáticas propostas. Pudemos observar que esteva em jogo não apenas uma alocação
concebida pelo mérito técnico de ter estudado academicamente as temáticas abordadas pela
SECADI, pois, para além de títulos universitários, ou de anos de trabalho no Ministério da
Educação, as pessoas que estiveram na formação da Secretaria deveriam ter inclinações
políticas para tornar possível que a real inclusão dos públicos-alvos se efetivasse, ou seja, não
era apenas um conhecimento teórico sobre os assuntos lá dispostos que interessava, era
preciso mais do que isso.
Os programas ofertados pela SECADI são variados, orbitando desde premiações
em âmbito de educação básica, incentivo à publicação de materiais didáticos, estruturação de
169

escolas quilombolas, inserção da questão racial em estudos relativos à educação no campo,


formação continuada para professores de ensino básico para a aplicação da lei 10.639/03,
dentre outras ações que articulam a Secretaria, os estados, os municípios, as universidades e
as escolas de ensino básico.
Impõe-se lembrar que o provimento de políticas públicas que se propõe à correção
de iniquidades históricas depende de articulações que extrapolam o âmbito nacional, ou seja,
o fomento dessas ações não está deslocado das tendências internacionais, que também não se
reformulam por si, mas por meio de demandas sinalizadas pelos representantes da sociedade.
Desse modo, a criação da SECADI não está desconectada dos acontecimentos internacionais,
muito menos da luta dos movimentos sociais.
Diante do exposto, é sumamente importante considerar o protagonismo dos
movimentos negros na criação dessa Secretaria, sobretudo após a Conferência de Durban,
quando os mesmos voltaram amadurecidos de debates e propostas de ações. Não obstante, não
negamos mobilizações de outros grupos marginalizados, em seus fóruns, congressos,
seminários, ou espaços específicos onde formulam seus projetos e demandas a serem
atingidas para o alcance dos seus pleitos. A SECADI se constitui em um lugar plural, que tem
nas ações do movimento negro o sustentáculo de grande expressividade no combate às
discriminações que aflige os grupos historicamente marginalizados.
Apesar da pluralidade encontrada no seio da Secretaria, não podemos deixar de
mencionar que no Brasil a questão racial tem tratamento secundarizado por parte das políticas
públicas de bem-estar social. Contraditoriamente, e ainda que se tenham gradativas
transformações no painel internacional, com latentes mudanças progressivas, a partir de
conferências que pressionam os estados a assumirem o compromisso de combater todas as
formas de discriminação, os países periféricos, como o Brasil e o Uruguai, pouco estão
impulsionando as populações marginalizadas a lograr novos lugares na hierarquia social, se
concentrando em ocupações de menor prestígio e rendimento.
Essa tem sido uma das queixas dos nossos entrevistados, pois ainda que
importantes avanços tenham sido possíveis, o problema racial persiste e são mantidos dentro
do campo da disputa política, que visa o aparelhamento das políticas focais para fins
partidários. Desse modo, a SECADI não pode ser vista como um lugar totalmente harmonioso
e coeso, pois pode servir para realização de ações pontuais em prol de grupos marginalizados,
mas também pode se transformar em um aparelho dissimulador, que negligencia as
disparidades sociais e criando mecanismos disciplinares encobertos por uma falsa capa
democrática.
170

Por isso, ainda que se tenham avanços no sentido de inclusão social após Durban,
partimos da premissa de que o grande desafio para os movimentos sociais e as políticas
públicas governamentais seja encontrar a fundamental sintonia para promover cidadania para
todos. Todavia, ainda se percebe uma enorme lacuna entre as políticas de Estado e as políticas
de governo, percebida a partir do momento em que nos lançamos ao campo, pois foi o período
de transição de um governo para o outro, ocasionando temor pela extinção da SECADI.
Apesar do momento turbulento em que passava o Brasil ao final do ano de 2016,
nossas entrevistadas que faziam parte da gestão estavam otimistas e prudentes, chegando a
afirmar que: “uma coisa que é bem explícita em todos os comentários, em todas as reuniões
que a gente faz é: a SECADI vai continuar” (BÁRBARA SULA, 2016). Elas asseguraram que
mesmo diante da agitação causada pela instabilidade política no Brasil, havia uma gama de
informações que não procediam com o que acontecia internamente na SECADI, e que o foco
principal não recebeu o tratamento adequado, que é a questão racial.
Para elas, muito mais do que especulações, o racismo não deixa de trabalhar pelas
entranhas institucionais, independentemente dos gestores que darão continuidade a essa
Secretaria. Uma de nossas entrevistadas, Bárbara Sula, inclusive deixa claro que o viés
principal da Secretaria é a questão racial, e a sua maior preocupação é “o direcionamento da
política, porque quando trabalhamos com a questão racial a questão é muito mais séria, que é
a visão crítica da questão racial” (Bárbara Sula).
O crucial a ser perseguido nessa perspectiva é o modo operativo para lidar com a
questão racial, dificultando que os velhos entraves e distorções venham a tomar a dianteira na
luta antirracista, tendo como horizonte uma secretaria com um corpo técnico preparado para
lidar com pendências que venham a diluir a problemática do racismo em outros atenuadores,
sob o risco de comprimir os recursos destinados às ações que tenham efeitos diretamente na
população negra.
Não podemos deixar de mencionar que, repensar a SECADI, implica observar que
a oferta de inclusão e reorganização do imaginário social proposto por ela acaba se limitando
quando a Secretaria assume como frente de trabalho somente o ensino básico. Sabemos que
esta fase do processo de escolarização seja fundamental para construção de conhecimentos,
entretanto, não se escolariza somente no ensino fundamental, e não se pode negar o fato de
que a população negra ingressa no ensino superior mais tardiamente, sob condições materiais
adversas se comparado com os brancos.
Logo, a SECADI precisa pensar em dispositivos mais abrangentes de ampliação e
propostas para a oferta de políticas educacionais, uma vez que os negros estão inseridos em
171

todos as modalidades de ensino e constituem a parte mais alijada pela deficiente estrutura de
funcionamento do sistema educacional brasileiro. Dentre outras coisas, é necessário viabilizar
permanente formação complementar para o seu quadro de funcionários, tendo em vista as
frequentes mudanças de gestão, além de criar mais dispositivos de participação popular nas
decisões de políticas direcionadas à população.
Sendo o racismo uma das vigas de sustentação da sociedade brasileira, seria
necessário que a Secretaria pudesse se atentar aos preceitos elencados acima, na compreensão
de que o diálogo com os diversos atores sociais e entre as outras coordenações da própria
SECADI revelariam problemas atinentes à questão racial em outras dimensões, requerendo
um esforço coletivo que amplificasse a capacidade técnica para o trato com essa problemática,
já que o racismo se manifesta em diferentes classes sociais, identidades e esferas
institucionais.
É necessário que permanentemente sejam feitos os balanços de gestão,
independentemente da bandeira partidária que assuma o governo. Caso haja algum
enfraquecimento da SECADI, no que concerne ao debate das políticas de combate ao racismo,
não será uma questão atinente à uma crise política vivida em momento específico no Brasil,
como a do ano de 2016, mas da falta de cumprimento integral com o que sinalizam os planos
de ações redigidos em conferências como a de Durban, já que eles são frutos de acordos
internacionais, identificando problemas e indicando possíveis caminhos para combater o
racismo.
Portanto, podemos dizer que apesar de ser atravessada por problemas históricos
que afligem a sociedade brasileira, a SECADI obteve êxito – até a gestão de 2016 – em sua
missão, e que a sua criação fora um desdobramento essencial da Conferência de Durban e das
articulações do movimento negro, antes, durante e depois da Conferência. Resta aos
movimentos negros o estreitamento dos diálogos com os governantes brasileiros,
independente da conjuntura política, a fim de obter compromissos éticos que viabilizem mais
recursos para a continuação da SECADI.
Também se constituiu como escopo da nossa tese as análises sobre a
implementação de políticas educacionais para os negros no Uruguai pós-Durban. Para tanto,
fora necessário traçar um painel histórico no qual podemos concluir que naquele país há
problemas raciais. Com efeito, constatamos que a população negra se organizou em torno de
movimentos negros que perduram desde o início do século XX e empreende uma luta de
combate ao racismo que se fortificou ao longo do tempo e tiveram fundamental importância
para um atual quadro de transformações na qualidade de vida da população negra.
172

Com o acúmulo de uma larga experiência de combate ao racismo, o movimento


negro uruguaio logrou êxito em seus objetivos durante a Conferência de Durban, retornando
com novas ideias, perspectivas e compromissos, que se consubstanciaram alguns anos depois
através da implementação da lei 19.122/2006. Todo o processo de participação na
Conferência de Durban possibilitou a esse movimento articulações e cooperações
internacionais que contribuem para o enriquecimento dos debates acerca do racismo e as
estratégias de combate.
De modo geral, os objetivos dos movimentos negros uruguaios é implantar uma
política pública que possibilite a inserção e ascensão dos negros no mundo do trabalho e que a
mesma política funcione nas escolas como provedora de estrutura de permanência dos negros
no sistema escolar. Para tanto, a pedra angular deverá ser a transformação no paradigma
histórico, passando a incorporar novas narrativas e olhares para os fatos que atravessaram a
formação do país, como intuito de reorganizar o imaginário social em relação à população
negra.
Para a consecução dessa tarefa, foram apresentadas diversas dificuldades de
ordem estrutural e histórica, e todos os entrevistados concordam que apesar de o Uruguai
possuir os melhores índices de qualidade de vida dentre os países do continente sul-
americano, reside o fato de que o país tem sérios problemas raciais e que as suas resoluções
dependem de diálogos mais afinados entre a comunidade negra e os seus representantes.
Nesse sentido, é importante salientar que há uma parcela significativa de ativistas
dos movimentos negros uruguaios que hoje atuam na esfera pública daquele país. Seriam eles
os representantes da comunidade negra, os catalisadores da transformação racial no país?
Acreditamos que não seriam capazes de uma alteração tão drástica na realidade do país,
porém, as suas atuações são preponderantes e amplificadas, pois contribuem
significativamente para melhorar a situação.
Afirmamos isso com vista a uma queixa recorrente entre os nossos entrevistados,
que se visualiza a partir da fragmentação dos movimentos negros na contemporaneidade. De
um lado, teríamos a não materialização e desconhecimento integral do Plano de Ações de
Durban, justificado pelas incorporações de outras formas de manifestação do racismo. Do
outro, a acusação de que os ativistas que se institucionalizaram se transformaram em
burocratas que estão deslocados da comunidade negra.
Em relação ao primeiro caso, a opinião dos entrevistados que mais concorda com
essa exposição é a de Romero Rodriguez, que entende que a agenda de Durban tenha se
encerrado, e aquilo que ficou pendente de realizar, não faz, ou não deveria fazer, mais parte
173

do escopo político dos movimentos negros, já que são ações que dependem exclusivamente
do Estado, e não de ações autônomas do movimento negro. Romero afirmou que é necessário
autogestão, e isso só se conquista rompendo os laços com o poder público.
Já os outros ativistas, sobretudo Orlando Riveros e Julio Pereira, acreditam que as
transformações deverão ser feitas por dentro das instituições, em um processo educativo
acessível a todos, como maneira de criar uma nova pedagogia, capaz de transformar o
ambiente cultural do país. Para eles, e para todos os outros entrevistados, o Plano de Ações de
Durban não se encerrou, tendo muitas cláusulas que se mantêm atuais e devem constituir o
escopo principal do movimento negro para muitas ações.
Aqui é importante sinalizar que, segundo Abers e Bülow (2011), existe ativismo
de atores posicionados dentro dos setores estatais, e isso conduz a um complexo jogo político
que ora entende o Estado como inimigo a ser combatido, ora tem o Estado como único
viabilizador de transformações que gerem mobilidade para grupos historicamente
marginalizados. Para as autoras, não é possível delimitar uma fronteira rígida que
desconsidere a importância de ações conjuntas ou coordenadas por gestores inseridos na
esfera pública.
O que podemos então perceber é que nem sempre os ativistas sociais produzem
militância de maneira aberta e pública por dentro dos aparelhos do Estado, mas que há efeitos
sentidos no seio dessas populações marginais (mesmo que de maneira incipiente), quando
algum tipo de mobilidade os conduzam a esferas antes inacessíveis diante de dificuldades de
ordem política e material. Portanto, há uma tendência que aponta para a possibilidade de que
grande parte dos novos movimentos sociais estejam mais afinados com o poder público, pois
na medida em que os sujeitos partícipes se qualificam tecnicamente, abrem novas frentes e
disputam lugar em posições estratégicas nas engrenagens do sistema.
Esse fato se observa tanto no Brasil quanto no Uruguai, e são fruto de sérias
contendas políticas, mas que possibilitam outros olhares quando as análises são feitas mais
próximas das instituições e movimentos. Por isso a necessidade de dar voz e ouvir esses
ativistas, pois dentro das disputas institucionais é primordial entender que é preciso saber
negociar, pois pouco se conquista a partir de uma postura de isolamento, e as negociações não
são necessariamente perda ou enfraquecimento do horizonte ético e do objetivo que se quer
preservar e atingir.
Fica evidente que a luta histórica dos movimentos negros no Uruguai possibilitou
o acúmulo de experiências necessárias para que assumissem o protagonismo na Conferência
de Durban. Ao retornar de lá, esses movimentos assumiram o papel de reivindicar o
174

atendimento específico de combate ao racismo acordado no Plano de Ações, junto ao governo


do país, obtendo êxito alguns anos mais tarde com a implementação da lei 19.122. Diante de
divergências internas e resistência por parte de setores da sociedade e do governo, o
movimento negro uruguaio segue vivo na luta contra o racismo.
Portanto, apresentamos um painel geral de dois países vizinhos que possuem
diversas similaridades e contrastes. Guardadas as proporções, ambos possuem expressivo e
ativo contingente populacional negro, que reconhece a sua ascendência africana e
experimenta cotidianamente o racismo. A fim de atenuar a curto prazo, e resolver a longo, os
movimentos negros empreendem uma luta histórica de valorização da cultura negra, tendo a
educação como principal meio de conscientização. Apesar de grandes vitórias, as mais
recentes delas conquistadas após a Conferência de Durban, os ativistas negros brasileiros e
uruguaios não deixam de se movimentar e ocupar os espaços que conduzam as suas
respectivas sociedades rumo à verdadeira democracia.
175

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181

ANEXO – O MANIFESTO ANTI-COTAS

"O princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um fundamento essencial da


República e um dos alicerces sobre o qual repousa a Constituição brasileira. Este princípio
encontra-se ameaçado de extinção por diversos dispositivos dos projetos de lei de Cotas PL
731999 e do Estatuto da Igualdade Racial PL 3.1982000 que logo serão submetidos a uma
decisão final no Congresso Nacional. O projeto de lei de cotas torna compulsória a reserva de
vagas para negros e indígenas nas instituições federais de ensino superior. O chamado
Estatuto da Igualdade Racial implanta uma classificação racial oficial dos cidadãos
brasileiros, estabelece cotas raciais no serviço público e cria privilégios nas relações
comerciais com o poder público para empresas privadas que utilizem cotas raciais na
contratação de funcionários. Se forem aprovados, a nação brasileira passará a definir os
direitos das pessoas com base na tonalidade da sua pele, pela raça. A história já condenou
dolorosamente estas tentativas. Os defensores desses projetos argumentam que as cotas raciais
constituem política compensatória para amenizar as desigualdades sociais. O argumento é
conhecido temos um passado de escravidão que levou a população de origem africana a níveis
de renda e condições de vida precárias. O preconceito e a discriminação contribuem para que
esta situação pouco se altere. Em decorrência disso, haveria a necessidade de políticas sociais
que compensassem os que foram prejudicados no passado, ou que herdaram situações
desvantajosas. Essas políticas, ainda que reconhecidamente imperfeitas, se justificariam
porque viriam a corrigir um mal maior. Esta análise não é realista nem sustentável e tememos
as possíveis conseqüências das cotas raciais. Transformam classificações estatísticas gerais,
como as do IBGE, em identidades e direitos individuais contra o preceito da igualdade de
todos perante a lei. A adoção de identidades raciais não deve ser imposta e regulada pelo
Estado. Políticas dirigidas a grupos raciais estanques em nome da justiça social não eliminam
o racismo e podem até produzir o efeito contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça, e
possibilitando o acirramento do conflito e da intolerância. A verdade amplamente reconhecida
é que o principal caminho para o combate à exclusão social é a construção de serviços
públicos universais de qualidade nos setores de educação, saúde e previdência, em especial a
criação de empregos. Essas metas só poderão ser alcançadas pelo esforço comum de cidadãos
de todos os tons de pele contra privilégios odiosos que limitam o alcance do princípio
republicano da igualdade política e jurídica. A invenção de raças oficiais tem tudo para
semear esse perigoso tipo de racismo, como demonstram exemplos históricos e
contemporâneos. E ainda bloquear o caminho para a resolução real dos problemas de
desigualdades. Qual Brasil queremos? Almejamos um Brasil no qual ninguém seja
discriminado, de forma positiva ou negativa, pela sua cor, pelo seu sexo, sua vida íntima e sua
religião onde todos tenham acesso a todos os serviços públicos que se valorize a diversidade
como um processo vivaz e integrante do caminho de toda a humanidade para um futuro onde
a palavra felicidade não seja um sonho. Enfim, que todos sejam valorizados pelo que são e
pelo que conseguem fazer. Nosso sonho é o de Martin Luther King, que lutou para viver
numa nação onde as pessoas não seriam avaliadas pela cor de sua pele, mas pela força de seu
caráter. Nos dirigimos ao Congresso Nacional, seus deputados e senadores, pedindo-lhes que
recusem o PL 731999 - PL das Cotas - e o PL 3.1982000 - PL do Estatuto da Igualdade Racial
- em nome da República Democrática. Rio de Janeiro, 30 de maio de 2006

Assinam o documento
Adel Daher - Diretor do Sindicato dos Ferroviários de Bauru e MS, Adelaide Jóia - Socióloga
e Mestre em Educação Infantil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
182

Adriana Atila - Doutora em Antropologia Cultural, IFCS, Universidade Federal do Rio de


Janeiro (UFRJ), Aguinaldo Silva - Jornalista, telenovelista, Alba Zaluar - Titular de
Antropologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Livre-docente da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), colunista da Folha de S. Paulo, Almir
Lima da Silva - Jornalista, Centro de Cultura Negra de Macaé-RJ, Alzira Alves de Abreu -
Pesquisadora do CPDOC da Fundação Getulio Vargas, Amâncio Paulino de Carvalho -
Professor da Faculdade de Medicina Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ana
Maria Machado - Escritora, membro da Academia Brasileira de Letras, Ana Teresa A.
Venancio -Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Ângela Porto - Pesquisadora
Titular, Fundação Oswaldo Cruz, Antonio Cicero - Poeta e ensaísta, Antonio Risério –
Antropólogo, Arlindo Belo da Silva - Conselheiro Fiscal da Confederação Nacional dos
Trabalhadores do Ramo Químico (CNQ-CUT), Bernardo Lewgoy - Professor Adjunto do
Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
Bernardo Sorj - Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
Bernardo Vilhena – Poeta, Bila Sorj - Professora Titular da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), Bolivar Lamounier - Cientista Político, Caetano Veloso – Músico, Carlos A.
de L. Costa Ribeiro - Professor e Consultor em Ciências do Meio Ambiente, Carlos Pio -
Professor da Universidade de Brasília (UNB), Carlos José Serapião - Professor Titular
aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
Professor Titular da Universidade da Região de Joinville-SC, Celso Castro - Antropólogo,
professor do CPDOC da Fundação Getulio Vargas, César Benjamin – Editor, Charles Pires -
Diretor do Sindicato dos Funcionários Publicos Municipais de Florianópolis e membro da
Executiva da CUT-SC, Cremilda Medina - Jornalista e professora Titular da Universidade de
São Paulo (USP), Cynthia Maria Pinto da Luz -Advogada, Conselheira Nacional do
Movimento Nacional em Defesa dos Direitos Humanos, Claudia Travassos - Pesquisadora
Titular, Fundação Oswaldo Cruz, Darcy Fontoura de Almeida -Professor Emérito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Demétrio Magnoli - Sociólogo, integrante do
Grupo de Análises de Conjuntura Internacional (Gacint) da Universidade de São Paulo (USP),
Diomédes Matias da Silva Filho - Diretor do Sindicato dos Professores do Estado de
Pernambuco, Domingos Guimaraens -Poeta e artista plástico, Edmar Lisboa Bacha –
Economista, Eduardo Giannetti – Economista, Eduardo Pizarro Carnelós -Advogado, ex-
presidente da Associação dos Advogados de São Paulo e do Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça, Elizabeth Balbachevsky -Professora
Associada do Departamento de Ciência Política e pesquisadora sênior do Núcleo de Pesquisa
de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP), Esteffane Emanuelle Ferreira -
Estudante, Coordenação do DCE da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Eunice
Durham - Professora Emérita da FFLCH da Universidade de São Paulo (USP), Fernando
Gomes Martins -Associação de Moradores do Parque Bandeirantes e Movimento Hip Hop
Sumaré-SP, Ferreira Gullar – Poeta, Flávio Rabelo Versiani - Professor Titular do
Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UNB), Francisco João Lessa -
Advogado, Direção do PT-SC, Francisco Johny Rodrigues Silva - Coordenador do Fórum
Afro da Amazônia (FORAFRO), Francisco Martinho - Professor do Departamento de História
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Francisco Mauro Salzano -Professor
Emérito do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), George de Cerqueira Leite Zarur - Professor Internacional da Faculdade Latino
Americana de Ciências Sociais (FLACSO), Gerald Thomas - Dramaturgo, criador e diretor da
Companhia de Ópera Seca, Gilberto Horchman - Pesquisador, Fundação Oswaldo Cruz,
Gilberto Velho - Professor Titular de Antropologia do Museu Nacional da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro da Academia Brasileira de Ciências, Gilda
Portugal - Professora de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
183

Gilson Schwartz - Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São


Paulo (USP) e coordenador da Cidade do Conhecimento, Glaucia Kruse Villas Bôas -
Professora Associada de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Gursen De Miranda - Professor Adjunto da
Universidade Federal de Roraima (UFRR) e Presidente da Academia Brasileira de Letras
Agrárias, Helda Castro de Sá - Coordenadora da Associação dos Caboclos e Ribeirinhos da
Amazônia, Helena Severo - Cientista social, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas
(NEP) do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, Helga Hoffmann - Economista, integrante do
Grupo de Análises de Conjuntura Internacional (Gacint) da Universidade de São Paulo (USP),
Heloisa Helena T. de Souza Martins - Professora aposentada de Sociologia da Universidade
de São Paulo (USP), Isabel Lustosa - Pesquisadora Titular da Fundação Casa de Rui Barbosa,
João Rodarte – Empresário, João Ubaldo Ribeiro – Escritor, José Álvaro Moisés - Professor
Titular do Departamento de Ciência Política e Diretor do Núcleo de Pesquisa de Políticas
Públicas da Universidade de São Paulo (USP), José Arbex Jr. - Jornalista e professor do
Departamento de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
José Augusto Guilhon Albuquerque - Professor Titular (aposentado) de Relações
Internacionais da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo
(USP), José Carlos Miranda - Coordenador Nacional do Movimento Negro Socialista, José
Goldemberg - Ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), José de Souza Martins -
Professor Titular (aposentado) de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), José
Roberto Pinto de Góes -Historiador e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), Karina Kuschnir - Antropóloga, professora da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), Leão Alves - Presidente do Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro, Leonel
Munhoz Coimbra -Analista de Controle Externo, Especialista em Políticas Públicas e Gestão
Governamental da Escola Nacional de Administração Pública, Lourdes Sola - Presidente da
Associação Internacional de Ciência Política e professora aposentada da Universidade de São
Paulo (USP), Luciana Villas-Boas - Diretora do Grupo Editorial Record, Luciene G. Souza -
Mestre em Saúde Pública, Fundação Nacional de Saúde, Luiz Alphonsus - Artista Plástico,
Luiz Fernando Dias Duarte -Professor Associado do Museu Nacional da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), Luiz Werneck Vianna - Professor Titular do Instituto Universitário
de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), Lya Luft – Escritora, Manolo Garcia Florentino -
Professor do Departamento de Historia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
Marcelo Hermes-Lima - Professor de Bioquímica Médica da Universidade de Brasília (UNB),
Marcos Chor Maio - Pesquisador da da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Margarida Cintra
Gordinho –Editora, Maria Alice Resende de Carvalho – Socióloga, Maria Cátira Bortolini -
Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS), Maria Conceição Pinto
de Góes - Professora do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Maria Herminia Tavares de Almeida -
Cientista Política, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti - Professora Associada do
Instituto de Filosofia e Ciencias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
Maria Sylvia Carvalho Franco - Professora Titular da Universidade de São Paulo (USP) e da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Mariza Peirano - Professora Titular,
Antropologia, Universidade de Brasília (UNB), Maurício Soares Leite - Professor Adjunto,
Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Moacyr Góes
- Diretor de teatro e cineasta, Monica Grin - Professora da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), Nelson Motta - Produtor musical, jornalista e escritor, Patrícia Vanzella -
Professora Adjunta, Departamento de Música da Universidade de Brasília (UNB), Pedro
Paulo Poppovic – Empresário, Peter Henry Fry - Professor Titular da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), Reinaldo Azevedo - Jornalista, articulista da revista VEJA e editor do
´Blog do Reinaldo Azevedo´, Renata Aparecida Vaz -Coordenação do Movimento Negro
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Socialista - SP, Renato Lessa - Professor Titular de Teoria Política do Instituto Universitário
de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF),
Presidente do Instituto Ciência Hoje, Ricardo Ventura Santos -Pesquisador titular da Escola
Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz e Professor Adjunto do Museu
Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Roberta Fragoso Menezes
Kaufmann - Procuradora do Distrito Federal, Mestre em Direito pela Universidade de Brasília
(UNB) e Professora de Direito Constitucional, Roberto Romano da Silva -Professor Titular da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Rodolfo Hoffmann - Professor do Instituto
de Economia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Ronaldo Vainfas -
Professor Titular da Universidade Federal Fluminense (UFF), Roque Ferreira - Coordenação
da Federação Nacional de Trabalhadores de Transporte sobre Trilho-CUT, Ruth Correa Leite
Cardoso – Antropóloga, Serge Goulart - Secretário da Esquerda Marxista do PT, Sergio
Danilo Pena - Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro titular da Academia Brasileira de
Ciências, Simon Schwartzman - Pesquisador do Instituto de Estudos do Tabalho e Sociedade
(IETS), Simone Monteiro - Pesquisadora Associada, Fundação Oswaldo Cruz, Wanderley
Guilherme dos Santos - Cientista Político, Wilson Trajano Filho - Professor do Departamento
de Antropologia da Universidade de Brasília (UNB), Yvonne Maggie - Professora Titular da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Fonte: Folha de São Paulo, em 14/05/2008. Retirado do site http://sinpro-


es.org.br/main.asp?link=noticia&id=455 , acessado em 12/04/2017.

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