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FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
FORTALEZA
2020
FERNANDO SANTOS DE JESUS
FORTALEZA
2020
FERNANDO SANTOS DE JESUS
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________
Profª Drª. Joselina da Silva - Orientadora
Universidade Federal do Ceará - UFC
___________________________________________________________
Profª Drª. Celecina Veras - Membro interno
Universidade Federal do Ceará - UFC
___________________________________________________________
Prof. Dr. Ivan Lima - Membro externo
Universidade Federal da Lusofonia Afro-Brasileira - UNILAB
___________________________________________________________
Profª Drª. Ângela Maria Bessa Linhares
Universidade Federal do Ceará - UFC
___________________________________________________________
Profª. Drª. Maria Alice Rezende Gonçalves -
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
AGRADECIMENTOS
This study is focused on public education policies for black populations in Brazil and
Uruguay, developed after the third United Nations World Conference against Racism,
RacialDiscrimination, Xenophobia and Related Intolerance held in Durban, South Africa, in
2001. Our research is based on the voices of administrative technicians of the 2016
management of the Secretariat for Continuing Education, Literacy, Diversity and Inclusion –
SECADI, and activists of black movements who participated in the Durban Conference and/or
who are administrative technicians in agencies responsible for public policy development. We
realized a literature review on the subsequent topics: racism; Durban conference; institutional
racism and history of Uruguay. It is noteworthy that in order to carry out this research, it was
necessary to conduct semi-structured interviews with the aforementioned persons. Through
the analysis of the interviews, we explored the history of black movements as well as the
difficulties and political constraints to implement public education policies that benefit the
black population in these countries. In Brazil, the Durban conference led to the creation of
SECADI, indicating an important achievement of the black movement in the fight against
racism. Likewise, we found that in Uruguay the greatest accomplishment with regard to
public policies aimed at the black population was attained after Durban. Law 19.122/06 is a
historical remark in the country and its implementation was guided by the struggle of black
movement activists who participated in the Durban conference. Therefore, we conclude that
the third UN World Conference against Racism, Racial Discrimination, Xenophobia and
Related Intolerance was a historical remark in which the agendas of black movements from
Brazil and Uruguay converged, addressing historical questions through public policies like
those in the field of education analyzed in this study.
1 INTRODUÇÃO........................................................................................................... 9
2 UM DEBATE CONCEITUAL ACERCA DO RACISMO ................................... 27
2.1 O Racismo Institucional ........................................................................................... 32
2.2 Reflexões sobre as políticas públicas ....................................................................... 42
3 A SECADI ................................................................................................................. 48
3.1 Apresentação da SECADI ........................................................................................ 55
3.2 Estrutura da SECADI no ano de 2016 .................................................................... 56
3.3 A SECADI apresentada por um membro da antiga gestão .................................. 59
3.4 A formação técnica dos membros da SECADI – Gestão 2016 ............................. 65
3.4.1 Maria Auxiliadora – TÉCNICA ................................................................................ 65
3.4.2 Bárbara Sula – TÉCNICA ........................................................................................ 66
3.4.3 Divina Sebastus .......................................................................................................... 66
3.5 Apresentação da SECADI pelas vozes de alguns de seus membros ..................... 66
3.6 A criação da SECADI e a Conferência de Durban (2001) .................................... 71
4 A CONFERÊNCIA DE DURBAN .......................................................................... 79
4.1 Primeiros olhares ...................................................................................................... 79
4.2 Os eventos preparatórios ......................................................................................... 83
4.3 A Conferência e os seus desdobramentos ............................................................... 90
4.4 Considerações sobre o Pós-Durban ......................................................................... 96
5 O PANORAMA NO URUGUAI ............................................................................. 99
5.1 O surgimento do mundo afro e o momento político uruguaio............................ 111
5.2 O Uruguai no Pós-Durban e a Lei 19.122/06 ........................................................ 120
5.3 Entrevistas com os ativistas uruguaios ................................................................. 124
5.3.1 Romero Rodrigues ................................................................................................... 124
5.3.2 Karina Moreira ........................................................................................................ 124
5.3.3 Juan Pedro Machado............................................................................................... 125
5.3.4 Chabella Ramirez ..................................................................................................... 125
5.3.5 Orlando Rivero ......................................................................................................... 125
5.3.6 Julio Cesar Pereira .................................................................................................. 126
5.3.7 Andres Urioste.......................................................................................................... 126
5.3.8 Noelia Maciel ........................................................................................................... 126
5.3.9 Lourdes Martinez ..................................................................................................... 127
5.4 Os Movimentos Negros no Uruguai ...................................................................... 127
5.5 O Uruguai em Durban............................................................................................ 138
5.6 Negros no Uruguai: Reflexões a partir dos ativistas ........................................... 151
5.7 As políticas educacionais no Uruguai ................................................................... 157
6 METODOLOGIA ................................................................................................... 163
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 167
REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 175
ANEXO A – O MANIFESTO ANTI-COTAS...................................................... 181
9
1 INTRODUÇÃO
Chamo-me Fernando Santos de Jesus, sou negro, carioca, solteiro e não tenho
filhos, irmão mais novo de nove irmãos e pai falecido. Sempre fui morador da zona norte da
cidade do Rio de Janeiro, filho de pais com baixa escolarização – mãe costureira e pai
pedreiro – sempre estudei em escolas públicas e levei uma vida material modesta. Apesar
desse fato, o básico nunca foi problema, me garantindo, sobretudo por exigência da minha
mãe, Eunice Santos, que eu pudesse me escolarizar sem grandes problemas.
Desde jovem estive ligado aos movimentos culturais, tendo envolvimento com a
música e com os esportes desde muito cedo, uma vez que venho de uma família grande e
conhecida no meu bairro. Aos nove anos de idade comecei a aprender música e, como a
maioria dos meninos da minha época, entrei em um time de futebol de salão do meu bairro,
onde tive a oportunidade de jogar o campeonato carioca e rodar algumas cidades do estado.
Na adolescência continuei ligado aos esportes e também às artes, pois fui o
músico mais jovem do grupo Olorum, na esteira dos movimentos culturais dos blocos afros na
cidade do Rio de Janeiro, experiência esta desde o ano de 1993. Neste período também fui
jogador amador do América Futebol Clube, tendo jogado o campeonato carioca do ano de
1995, antes de ser dispensado pelo clube e não mais tentar buscar a carreira esportista no
futebol.
Nesse mesmo período eu tive a minha primeira banda de rock, formada com
amigos do ensino médio e com um primo, que hoje é músico profissional e acompanha
diversos artistas já consagrados no Brasil e no exterior. Foi um período de muito aprendizado
e aproximação com pessoas de diferentes perspectivas de vida, esse fato fora muito
importante para a minha constituição enquanto pessoa.
No ensino médio eu estudei no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial –
SENAC, quando várias questões que já vivenciava na infância começaram a ser melhores
compreendidas à luz de teorias, ou seja, como fiz parte de um grupo Afro – Olorum – dirigido
por uma mulher negra – Tia Marli – que sempre chamava a atenção dos seus componentes
para o racismo e para a necessidade de se manter íntegro em valores éticos e morais, o ensino
médio, por isso, foi um laboratório para questões que eu já trazia comigo anteriormente.
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Nesse sentido, fui um dos fundadores do jornal dos estudantes do SENAC naquele
período, tendo em vista que não tínhamos grêmio estudantil e nenhuma forma de organização
dos estudantes. O jornal consistia em informar os alunos sobre os eventos mais importantes da
escola e comentar, a partir das nossas próprias vozes, sobre os eventos mais relevantes da
sociedade. A mim cabia a parte esportiva e cultural, na qual comentava futebol e dava dicas
sobre eventos na cidade e discos de artistas de rock e blues, ritmos os quais eu toco e mais
aprecio.
Passado o ensino médio, fiquei um tempo trabalhando no centro do Rio de Janeiro
como contínuo, na filial da empresa de um primo meu de São Paulo. Optei por não prestar o
vestibular naqueles anos em virtude do falecimento do meu pai. O ano era 2000, e como o
meu pai havia falecido e já não tínhamos todos os irmãos na mesma casa, tive dificuldades em
estudar, além de precisar trabalhar para contribuir com as despesas da minha casa.
Após um ano, comecei a trabalhar em um shopping que me viabilizou
rendimentos um pouco maiores do que os antigos trabalhos. A partir daí eu conseguia pagar o
meu pré-vestibular e retomar os estudos, mesmo com um esforço descomunal, uma vez que
eu trabalhava e ainda precisava fazer dois percursos de mais de cinco quilômetros
caminhando, pois só assim eu conseguiria economizar o dinheiro da passagem e custear o
curso e sobrar algum dinheiro para outras necessidades.
Passei no vestibular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ
para o curso de Economia em 2002. Fui estudar naquela universidade, tendo que deixá-la após
um ano e meio. Os motivos da evasão foram: 1 – Dificuldade em me manter, pois não tive
alojamento nem bolsa; e 2 – Dificuldades com algumas disciplinas ligadas à matemática,
tendo em vista a fragilidade do ensino médio.
Fora da universidade, passei mais um ano estudando e dando um jeito de ganhar
dinheiro em trabalhos informais, até que prestei o vestibular da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro – UERJ, onde fiz Pedagogia e tive melhores condições de me manter no curso,
pois como ingressante pelo sistema de reserva de vagas para negros e pardos, eu tive direito a
uma bolsa-permanência. Também fui aprovado na seleção de bolsistas do programa
UNIAFRO, quando trabalhei com a minha orientadora de graduação, professora Doutora
Maria Alice Rezende, no Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros – NEAB.
Durante a graduação eu participei de vários congressos estudantis pelo Brasil,
tendo levado a temática racial em todos eles, ressaltando que nesse período muitos estudantes
organizados em movimentos estudantis eram contrários às cotas raciais e possuíam pouco
acúmulo de debate. Também participei de alguns congressos acadêmicos, como o Congresso
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aos processos de promulgação, sua aplicação e sua efetividade, e tendo em vista a larga
experiência do professor com as questões que gostaríamos de trabalhar.
Assim, antes de me mudar para o estado do Ceará e iniciar os estudos, fui até a
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ realizar a entrevista com o professor
doutor Amauri Mendes Pereira. Ao final da conversa, agradeci a disponibilidade e gentileza
do professor, que também me cumprimentou e agradeceu por tê-lo entrevistado,
demonstrando grande humildade e solidariedade em contribuir para meu primeiro trabalho
como recém-doutorando. Foi então que Amauri pediu para que eu falasse um pouco sobre a
pesquisa que eu realizaria no doutorado.
Expliquei brevemente minha pesquisa para o professor, que achou interessante,
mas teria uma provocação a me fazer. A conversa se estendeu para além da sua sala, na
Faculdade de Educação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ, pois
atravessávamos o período de férias e o departamento já seria fechado, eram aproximadamente
dezoito horas. O dr. Amauri me convidou para ir embora com ele, já que temos grande parte
do percurso em comum, e que a referida Universidade fica no município de Seropédica, 71,6
quilômetros do município do Rio de Janeiro, onde ambos somos residentes, embora em
bairros distintos, ele, dr. Amauri, um pouco mais próximo ao município. Teríamos, portanto,
um bom “pedaço de conversa” para desenvolver.
No caminho, demos continuidade à conversa iniciada no departamento. O dr.
Amauri ressaltou a importância de encaminhar alguma pesquisa acerca das políticas públicas
educacionais para a população negra no Brasil, pensando alguma secretaria responsável por
desenvolver planos de combate ao racismo nesse âmbito. O professor fez tal provocação
atentando para o fato de uma ambiência política conturbada no país, tendo em vista uma troca
de governo mediante mútuas denúncias de corrupção, crimes de responsabilidade e ameaças
de impedimento.
Nesse sentido, haveria um grande temor de que algumas secretarias especiais
pudessem ser extintas, e com elas as políticas desenvolvidas em benefício das populações
negras e outros grupos marginalizados sofreriam prejuízos. Ouvi atentamente as colocações
do dr. Amauri e concordei com a importância de desenvolver uma pesquisa nessa área. No
entanto, conversei com o dr. Amauri sobre as dificuldades acerca dessa temática, pois para
mim seria um novo desafio, já que havia me debruçado a pensar acerca de outras questões.
Chegados ao destino, novamente agradeci a generosidade e a dica de pesquisa,
prometi a ele que iria digerir bem a ideia e que conversaria com minha orientadora, professora
doutora Joselina da Silva, a fim de deixá-la a par do que me fora proposto e que tomássemos
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de 1980, para situar os eventos mais importantes em que os movimentos negros estiveram à
frente e que antecederam aquela Conferência.
Nesse sentido, buscamos compreender quais as estratégias de combate ao racismo
estão em pauta e como se efetivam suas respectivas aplicabilidades. O nosso propósito visa
verificar se estas políticas estão ajustadas aos anseios projetados durante a Conferência de
Durban e como estão sendo geridos após dezesseis anos da Conferência.
A escolha do Uruguai enquanto escopo de pesquisa se deu pelo fato dos
movimentos negros desse país terem, bem como os movimentos negros brasileiros, assumido
o protagonismo nas reuniões de preparação para a III Conferência Mundial Contra o Racismo,
a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, culminando na pressão sobre
os respectivos governos para que fosse possível a promulgação de leis e a constituição de
políticas públicas que atendam os acordos firmados em Durban. Cabe ressaltar, desse modo,
que o Uruguai, tal como o Brasil, possui ativos movimentos sociais negros, que reivindicam
reconhecimento e participação nos processos políticos do país em posição hierárquica de
igualdade em relação aos outros estratos daquela sociedade.
Conforme brevemente apresentamos, para tornar viável a pesquisa, pensamos em
nos deter em uma das instituições responsáveis por gestar políticas públicas educacionais no
Brasil. Já no Uruguai, decidimos analisar as políticas públicas ofertadas para a população
negra de maneira geral, sem nos deter em um caso específico. Portanto, objetivamos fazer
uma análise comparativa das políticas públicas voltadas para as populações negras, criadas no
Brasil e no Uruguai a partir da Conferência de Durban.
No ano de 2016, para ser mais exato, no final do mês de novembro, eu já havia
finalizado todos os trabalhos das disciplinas cursadas naquele período, bem como
esquadrinhado as principais informações sobre a SECADI via internet, pois havia sido uma
recomendação da orientadora antes de me lançar em campo, que conhecesse a estrutura de
funcionamento da secretaria ao qual eu desejaria pesquisar. Foi então que me preparei para
viagem a Brasília.
Antes da viagem foi necessário realizar os primeiros contatos, feitos por telefone e
com o aplicativo WhatsApp a partir das indicações feitas pela minha orientadora. Em sua
maioria, os meus interlocutores eram pessoas que estiveram ligadas à SECADI no ano de
2016 ou anteriormente, mas que ainda tinham amigos trabalhando na Secretaria e poderiam
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articular algum encontro para que eu pudesse realizar a pesquisa. Dentre todos esses contatos,
foi fundamental o apoio da professora Edileuza Penha, pessoa que me abrigou em sua casa,
me ensinou os procedimentos no MEC e viabilizou toda a estrutura necessária para o
andamento dessa parte da pesquisa.
Já em Brasília, e hospedado na casa da professora Edileuza, pude adentrar
efetivamente em campo. O desafio maior nessa fase era saber se os meus questionamentos
eram adequados à realidade vivida na prática cotidiana da Secretaria, já que eu estava recém-
doutorando e o tema SECADI era uma novidade para mim. O questionário que eu preparei foi
testado na primeira entrevista e ao passo que a entrevistada respondia, eu anotava algumas
adequações a serem feitas, já sinalizando para algumas coisas que não seriam tão urgentes
para análise, e outras com elevada pertinência.
As entrevistas abriam um leque de novas possibilidades e redes de pessoas a
serem entrevistadas, o que me fazia refletir bastante sobre as escolhas, tendo em vista o meu
tempo de permanência em Brasília e a adequação do campo de atuação de cada um deles ao
meu tema de pesquisa, já que a SECADI é uma secretaria que trabalha com diversas temáticas
em separadas, por mais que elas tenham articulações entre si.
O tempo em que estive em Brasília foi o suficiente para empreender alguns
olhares e compreender parcialmente algumas dinâmicas da SECADI. Entretanto, por ser uma
secretaria muito grande, com a passagem de muitas pessoas, que produziram diversos
documentos e materializaram diversas ações, precisei me limitar a um universo restrito às
entrevistas com pessoas ligadas à Coordenação de Educação para as Relações Étnico-Raciais,
que, por sinal, me receberam muito bem e forneceram o necessário para a realização desta
tese.
Retornei de Brasília direto para a minha casa, no Rio de Janeiro, com um amplo
material a ser transcrito e analisado. Contratei uma pessoa para o trabalho de transcrição, a
fim de agilizar o processo, enquanto estudava as bibliografias sugeridas pela orientadora e me
preparava para mais um semestre de aulas. Nesse ínterim, foi possível participar do curso
“Fábrica de Ideias”, realizado em São Luís, Maranhão, onde pude ter contato com mais
pessoas que somavam aprendizados acerca da questão racial no Brasil.
Após todas estas experiências, retornei ao período letivo em Fortaleza e concluí
todas as disciplinas. Foi um momento importante para mim, pois fiz a minha primeira
qualificação e tive as orientações necessárias para os próximos passos da pesquisa. A próxima
etapa incluía a parte internacional, na qual eu deveria viajar para o Uruguai e entender a
dinâmica do ativismo do movimento negro e as suas percepções em relação à Conferência de
18
1
As Comparsas são agremiações que se articulam em torno da manifestação cultural negra chamada Candombe,
que se caracteriza pela música percussiva tocada por um conjunto de tambores que se harmonizam entre si,
com tons que transitam entre o grave, o médio e o agudo. Os grupos de candombe reúnem um grande
quantitativo de pessoas, que se dividem entre músicos e bailarinos, que ensaiam coreografias e desfilam os
seus figurinos e bandeiras. Muitas delas concorrem entre si no carnaval montevideano e realizam
apresentações gratuitas pelas ruas durante o verão. Ver Andrew (2010).
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vista que apesar de ter uma leitura razoável no idioma espanhol, não sou um falante fluente.
Para a minha surpresa e alívio isso não foi um entrave, já que o professor – e todos os outros
entrevistados – entendia um pouco de português e foi muito paciente na compreensão do que
eu, vagarosamente, falava no seu idioma.
Após esse primeiro encontro fui andar pela cidade, já que não teria outra pessoa
com disponibilidade para ceder uma entrevista naquele mesmo dia. Embora eu ainda tivesse
vinte e nove dias em Montevidéu, considerando que fui para passar um mês, era enorme o
desejo de conhecer a cidade e observar empiricamente aquilo que os livros me demonstraram.
Por muita sorte, consegui uma hospedagem em um ponto extremamente estratégico da cidade,
que me possibilitava estar na principal avenida em menos de cinco minutos e fazer todo
percurso das comparsas de Candombe caminhando.
Durante o tempo que fiquei na cidade, aproveitava os tempos vagos para ir às
bibliotecas públicas, tanto para escrever um pouco da tese, como consultar alguma
bibliografia que contribuísse para a mesma. Também utilizava a minha “ociosidade” para
visitar museus, ir aos ensaios abertos das comparsas, às apresentações das Murgas de
carnaval2, me exercitar nos aparelhos de musculação dos parques e simplesmente caminhar
pela cidade, que é muito segura e agradável.
Dois fatos muito interessantes, e sumamente importantes, me aconteceram logo
nos primeiros dias em Montevidéu. O primeiro deles foi a coincidência de ter um brasileiro
como funcionário do hostel, e que me indicou todos os “macetes” da cidade. Sem ele, a
sobrevivência, naquela cidade de preços elevados, seria muito mais difícil. O segundo, se deu
no desfile de carnaval na avenida 18 de julio, principal avenida da cidade, quando fui
reconhecido pela psicóloga e ativista do movimento negro Karina Moreira. Foi uma grande
surpresa, já que nos conhecíamos apenas por foto. Talvez aquela conversa inicial,
descontraída e informal, tenha sido preponderante para traçar uma afinidade, e Karina foi
muito prestativa por todo o período que estive na cidade, me indicando possíveis
entrevistados e passando dicas culturais.
Outro fato muito importante e curioso se deu em um momento no qual me
exercitava no parque mais famoso da cidade, o parque Rodó, e fiz amizade com uma mulher
que também fazia atividades físicas por lá. No meio da conversa, ela me perguntou se eu
estava na cidade a turismo ou a trabalho, e eu a respondi que estava em meio ao processo de
doutoramento e que uma parte do escopo da minha pesquisa consistia em estudar o Uruguai.
2
Murga significa uma manifestação cultural com ocorrência em países de origem espanhola. As murgas são
grupos que geralmente se apresentam em forma teatral e tecem críticas sociais por meio de musicais.
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fronteiriça do estado do Rio Grande do Sul e, segundo entendimento delas, viabilizaria uma
troca favorável de saberes e informações.
A recepção foi ótima e pela primeira vez pude estar em um espaço de cooperação
internacional entre movimentos negros do continente sul-americano. Ao final da reunião, uma
senhora médica e ativista do movimento negro, Alicia Esquivel, me convidou para tomar um
café em sua casa, pois havia se interessado pelo fato de eu agregar a Conferência de Durban
na pesquisa, e por isso queria conversar sobre essas questões. Eu fui até a casa de Alicia e fui
otimamente recebido por ela e pelo seu marido, pude gravar a nossa conversa, mas não utilizei
na tese porque ela me pediu para que não fizesse perguntas do questionário preparado, queria
que fosse uma conversa mais informal.
Todavia, Alicia me autorizou a utilizar a sua fala na tese e/ou em outros trabalhos
que eu queira realizar sobre o Uruguai. Fiz a opção de não utilizar nesta tese, pois há muitos
assuntos aleatórios que fogem um pouco ao tema, que, entretanto, podem ser utilizados em
outros momentos. Valeu o aprendizado e a amizade, além de ter ganhado um importante
material produzido por ela junto ao movimento de mulheres negras acerca da importância da
implementação de ações afirmativas no Uruguai.
Todos os meus entrevistados foram de importância fundamental, e com alguns
pude ter mais contato, caso de Juan Pedro Machado e Andrés Urioste (que inclusive me
presenteou com o documento do último censo uruguaio, momento em que o quesito raça
aparece pela primeira vez depois de muitas décadas), pois estavam sempre nas comparsas de
Candombe, eventos que agregam grande contingente da população montevideana e que eu
não poderia deixar de estar. Além disso, ambos foram mais de uma vez ao hostel em que eu
estava hospedado, tendo em vista a amizade construída e o convite aceito para tomar um café
e conversar sobre os rumos do país.
A minha estada no Uruguai foi intensa e atravessada por experiências positivas,
contada mais extensivamente do que em Brasília por eu ter ficado mais dias em Montevidéu.
Pude observar uma cidade muito bem organizada, visivelmente segura, limpa e de pessoas
bem educadas. Não presenciei nem fui interpelado por nenhum ato de racismo, inclusive vi
muitas pessoas brancas participando das manifestações culturais negras. Obviamente que as
minhas experiências não anulam as queixas dos negros que lá residem, e que o meu olhar não
se encerra nas aparências, mas ao estrangeiro a sensação é a de que as relações cotidianas se
dão de maneira harmoniosa.
O país tem uma vida cultural bastante diurna e tranquila, tendo como a maior
agitação do período, nos meses de janeiro e fevereiro, as comparsas de Candombe, que reúne
22
centenas de pessoas percorrendo as vias públicas aos sons dos tambores. Nesses cortejos é
possível conhecer a cidade velha e perceber as similaridades da cultura negra uruguaia com a
brasileira, desde os toques dos tambores até as indumentárias e representações de divindades e
entidades das religiões de matrizes africanas.
A história dos negros uruguaios não é amplamente contada em museus e
monumentos públicos, existindo apenas um em homenagem a Ansina3, localizado em Tres
Cruces. Entretanto, as comparsas de Candombe se encarregam de fortalecer o legado cultural
africano por meio de seus desfiles pela cidade. Não podemos perder de vista que o Candombe
é patrimônio imaterial da UNESCO. Esse talvez seja um forte indício de que os movimentos
negros lograram êxito em suas lutas e conseguiram fazer com que aos poucos a história dos
negros seja recontada e valorizada.
De maneira geral, o meu percurso de pesquisa foi bastante satisfatório quanto à
recepção das pessoas as quais entrevistei, contendo bons achados e momentos importantes
para o meu crescimento pessoal. Tanto em Brasília, quanto em Montevidéu, foi possível
reunir um bom material que pode possibilitar outros trabalhos posteriores, isso porque todos
se sentiram à vontade em falar sobre as suas experiências dentro das lutas dos movimentos
negros e das respectivas secretarias em que estão lotados como executores de políticas
públicas voltadas para a população negra.
Conforme anteriormente abordado, narrei mais fatos sobre o Uruguai, e por ter
tido mais contato com o ambiente cultural de Montevidéu, por conta de ter passado mais dias
por lá. Reside também o fato de que em Montevidéu estive hospedado em um hostel, tendo
maior autonomia de trânsito. Além disso, já conhecia Brasília e naquele momento estava mais
interessado em cumprir a primeira etapa do trabalho, voltar para o Rio de Janeiro e visitar a
minha família, pois estava há sete meses em Fortaleza.
Portanto, assim se deram os desafios do campo de pesquisa, orbitando entre as
dificuldades financeiras com custos de passagens, hospedagens e alimentação (não houve
bolsa-sanduíche ou outro financiamento além da bolsa do CNPq), pouca afinidade com o
idioma estrangeiro (Espanhol) e concomitância com leituras, escrita da tese e cumprimento de
disciplinas do doutorado. Todavia, e diante de todos esses apertos, fora descoberto um enorme
campo de pesquisa, viabilizado pela expansão das redes de contato sugeridas pela orientadora,
3
Joaquín Lenzina (1760-1860), mais conhecido como Ansina, foi um homem negro, filho de escravizados, que
participou ativamente da independência do Uruguai ao lado de José Gervásio Artigas (1764-1850). Ansina é
reconhecido como herói nacional e elemento chave para a positivação da imagem da população negra no
Uruguai.
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abrindo um leque de possibilidades que eleva o espírito e abrem as janelas que permitem
investidas futuras.
A Tese
Os movimentos negros brasileiros e uruguaios atravessaram o século XX se
empenhando no combate ao racismo e em lograr êxito no objetivo de reconstrução da imagem
da população negra em suas respectivas sociedades, utilizando, sobretudo, os sistemas
educacionais como ponto de partida para conquistar definitivamente a desejada cidadania.
Paulatinamente, esses movimentos ampliavam as suas redes e agendas e
angariaram conquistas que pavimentaram o caminho para as novas gerações diante das
demandas que surgem ao longo dos tempos. Em ambos os países é possível elencar diversas
investidas bem sucedidas dos movimentos negros em benefício da população negra,
possibilitando novos modos de organização em torno da luta política.
É diante dessa assertiva que nós nos lançamos ao desafio de responder à pergunta:
É possível estabelecer a criação de políticas educacionais em benefício da população negra
após a Conferência de Durban, como uma conquista do movimento negro? Esta questão se faz
necessária diante de um painel internacional de diversas transformações e que tem aquela
Conferência como ponto-chave de estratégias que visam o combate ao racismo, observando
que, desde então, não houvera outra com a mesma envergadura.
O caminho que percorremos para responder a este questionamento se deu através
de entrevistas nas quais pessoas institucionalizadas e ativistas dos movimentos negros foram
entrevistadas, e puderam narrar as suas experiências diante dos processos de criação de
secretarias em âmbito nacional e de aplicação de importantes leis responsáveis pela ampliação
de direitos que apontariam para os novos rumos que a educação deveria tomar, em ambos os
países.
Nosso trabalho tece considerações acerca do que é o racismo e como ele se dá em
âmbito institucional, pois é a melhor forma de situar o leitor acerca dos desafios que perfaz o
caminho dos movimentos negros quando pleiteiam transformações que deslocam o eixo de
funcionamento da instituição historicamente legitimada como alimentadora do imaginário
coletivo e, consequentemente, mantenedora da ordem social desses respectivos países, a
escola.
Todavia, como os movimentos negros não são entidades responsáveis por
promover educação formal, o que pode ser avaliado são as lutas que eles empreendem a fim
de reorganizar o sistema educacional. O ponto de partida é o de que existem três elementos-
24
sobre as suas formações e respondendo ao nosso questionamento inicial, que visou investigar
se a criação da Secretaria é um desdobramento da Conferência de Durban.
Dando sequência, buscamos compreender o panorama uruguaio, desenvolvendo
um painel histórico que se debruçou em demonstrar os principais aspectos de formação social
do país, enfatizando a questão racial como fator de suma importância a ser considerado
quando se pensa em políticas públicas, uma vez que o Uruguai se constituiu em bases racistas,
levando os movimentos negros a atuarem firmemente no seu combate, propondo uma agenda
política de inclusão do negro nas esferas públicas de poder.
No Uruguai, a nossa missão foi a de compreender a relação de Durban com as
novas configurações de políticas públicas para a população negra, sobretudo a partir da
promulgação da Lei 19.122. Para tanto, realizamos entrevistas com ativistas dos movimentos
negros, dentre eles, pessoas que estiveram na Conferência de Durban e em órgãos
governamentais responsáveis pelo desenvolvimento de políticas públicas em âmbito social
naquele país.
Nesse sentido, realizamos um percurso que demonstrou a atuação do movimento
negro daquele país em Durban, suas articulações e suas aspirações posteriores à conferência.
Nesta etapa, priorizamos as narrativas dos ativistas entrevistados, lembrando que alguns deles
estiveram em Durban e possuem valiosas opiniões acerca de como se deu a luta política
naquele contexto.
Em seguida, apresentamos um panorama geral sobre as políticas educacionais no
Uruguai e as suas implicações para a população negra, enfatizando as aspirações dos
movimentos negros em relação aos sistemas de ensino do país, que são da mesma ordem do
que ocorre no Brasil, isto é, buscando acesso, permanência e reorganização dos conteúdos,
incluindo o estudo de história da África e dos seus descendentes.
Há consenso entre os ativistas dos movimentos negros brasileiros e uruguaios no
que tange à criação de uma agenda mais coesa e tonificada após a Conferência de Durban, no
entanto, também há o reconhecimento de que as conquistas possibilitadas a partir de então,
também possuem fragilidades que se dão por conta de uma perversa estrutura que ainda
inviabiliza que os anseios da população negra sejam satisfeitos.
Tanto no Brasil quanto no Uruguai, a Conferência de Durban é vista como um
divisor de águas que abre um novo caminho para articulações políticas que conduzem os
movimentos negros para dentro da gestão pública. A SECADI, no Brasil, e a Lei 19.122, no
Uruguai, viabilizaram a ampliação dos debates relacionados ao racismo em âmbito
26
Acreditamos firmemente que os obstáculos para supercar a discriminação racial e alcançar a igualdade
racial reidem, principalmente, na ausência de vontade política, a existência de legislação deficiente, na
falta de estratégias e de medidas concretas por parte dos Estados, bem como na prevalência de atitudes
racistas e estereótipos negativos (Declaração de Durban e Plano de Ação, p.31).
O racismo e as teorias que o justificam não caíram do céu, elas têm origens mítica e
histórica conhecidas. A primeira origem do racismo deriva do mito bíblico de Noé
do qual resulta a primeira classificação, religiosa, da diversidade humana entre os
três filhos de Noé, ancestrais das três raças: Jafé (ancestral da raça branca), Sem
(ancestral da raça amarela) e Cam (ancestral da raça negra). Segundo o nono
capítulo da Gênese, o patriarca Noé, depois de conduzir por muito tempo sua arca
nas águas do dilúvio, encontrou finalmente um Oásis. Estendeu sua tenda para
descansar, com seus três filhos. Depois de tomar algumas taças de vinho ele se
deitara numa posição indecente. Cam, ao encontrar seu pai naquela postura fez junto
aos seus irmãos Jafé e Sem, comentários desrespeitosos sobre o pai. Foi assim que
Noé, ao ser informado pelos filhos descontentes da risada não lisonjeira de Cam,
amaldiçoou este último dizendo: Seus filhos serão os últimos a ser escravizados
pelos filhos de seus irmãos. Os Calvinistas se baseiam sobre esse mito para justificar
o racismo anti-negro (MUNANGA, 2003, p. 3).
28
Observa-se que o trecho do mito bíblico trazido por Munanga não possui chancela
científica, há somente uma narrativa corrente no contexto religioso disseminado como
possível explicação para o povoamento das espécies de seres vivos no mundo, mediado por
um homem que determinou o futuro das raças a partir da sua relação com os seus filhos.
Apesar de não estar de acordo com nenhum estatuto científico, o que só seria possível séculos
depois, essa era a única maneira corrente e aceitável para se conceber o conhecimento acerca
dos seres humanos, imputando-lhes valores morais a partir do que se projetava sobre a sua
estética.
Bastante provável que a explicação mítica para a divisão racial do mundo tenha
perdurado bastante, e em vários povos e religiões, já que, de acordo com Moore (2009), essa
ocorrência não é exclusividade do Ocidente nem sequer da perspectiva judaico-cristã, uma
vez que o livro sagrado dos árabes, o Alcorão, também veicula expressões e máximas que
ridicularizam e classificam de maneira racialmente inferior os negros. Segundo o mesmo
autor, as primeiras investidas escravagistas no continente africano se deram por meio dos
árabes, ancorados nas máximas religiosas que justificavam as suas ações.
Na linha histórica de explicação do racismo teremos enfim a passagem do
protorracismo (MOORE, 2009), ou de um racismo ainda baseado em especulações e
narrativas literárias, para o racismo científico do século XVIII. O advento do Iluminismo
engendrou a busca da prova pela ciência, em que a biologia se tornara elemento-chave para a
constatação de diferenças entre as raças. O Ocidente – isto é, a Europa – se estabelecia
enquanto hierarquicamente superior e se arrogava ao direito de determinar o destino de outras
nações, as quais animalizava e julgava bárbaras.
O Iluminismo surgia em um ambiente de contestação aos antigos mandatários
estatais e religiosos, propondo a separação entre o Estado e a Igreja, potencializando a
liberdade política e econômica, e pregando a fraternidade e a tolerância como elementos
indispensáveis para uma nova organização política e social vigente para o progresso. Apesar
dessas características, o Iluminismo tinha uma característica eminentemente eurocentrista,
pois:
O salto para o século XIX não altera muito a visão que se constitui em relação aos
negros, uma vez que a maneira organizativa dos povos africanos estaria consolidada como
inferior e ainda justificaria a sua escravização. A tese da seleção natural de Charles Darwin
(1809-1882), em “A origem das espécies” (1859), na qual afirmava que os indivíduos, ou as
espécies, mais bem adaptadas a uma dada realidade competitiva no meio em que estão
inseridos sobreviveriam, em detrimento dos mais fracos, foi aplicada para fins sociais, pois o
chamado “Darwinismo Social” tinha como princípio a crença de que ao se tratar de raças
inferiores na escala evolutiva do homem, os povos africanos e ameríndios deixariam de existir
pelo próprio processo de seleção natural.
É também no século XIX em que floresce a Eugenia, teoria de melhoramento das
raças, cunhado pela primeira vez pelo inglês Francis Galton (1822- 1911). Tratava-se de
buscar empreender experimentos que objetivavam a criação do humano perfeito, destituído do
que era considerado impuro e atrasado. Dessa maneira, seria recomendável que as relações
com as raças classificadas como inferiores fossem evitadas, uma vez que haveria uma
degeneração para as próximas gerações das raças superiores.
O estímulo para os cruzamentos segmentados, ou seja, intrarraciais, se dava pela
esperança de que se preservariam as características da raça, conceito cunhado como Eugenia
positiva. Por outro lado, uma relação inter-racial levaria a raça mais forte a se degenerar, uma
vez que uma gota de sangue inferior poderia “infectar” o branco com uma herança genética
ruim. Essa seria a Eugenia negativa. Ambas as perspectivas foram bastante difundidas e
experimentadas em vários países, ganhando muito força no Brasil, que, segundo Dávila
(2015), pavimentou um caminho para políticas púlicas educacionais baseadas na Eugenia,
perdurando desde o início do projeto de sistema educacional brasileiro, até meados dos anos
de 1940.
A evolução das ideias racialistas se sofisticou e elas atravessaram oceanos e
séculos, influenciando diretamente na organização política de várias sociedades no mundo.
Alega-se que no Brasil o racismo tenha sido mais brando do que em outros países, como os
EUA ou a África do Sul, uma vez que não teria tido um sistema formal de separação entre
raças. Há também argumentos que se orientam pelo fato de que o Brasil seja um país
profundamente mestiçado, e que essa seria a prova cabal de que as raças convivam
harmonicamente neste país.
Em virtude da reorganização dos debates sobre o racismo, muitos emdebates
foram contemporizados e o seu conceito tentou ser enfraquecido, já que se deslocou o eixo
gravitacional do biológico para o sociológico, e as justificativas de ausência de raças acabou
31
tomando a cena. No Brasil, esse fato potencializou uma ideia de “democracia racial”, lugar
onde as pessoas teriam afinidades orgânicas que não se orientavam pela existência de raças,
assim, os únicos conflitos que se faziam presentes seriam, portanto, de ordem social, ou seja,
presentes por problemas de classes sociais diferentes. Nesse pensamento, critica Munanga
(2004), o racismo seria um mero detalhe, e não algo capaz de gerar um sistema de poder.
A despeito da ideia criticada por Munanga (2004), para o antropólogo Carlos
Moore (2011), o racismo é uma ordem sistêmica de fundamental importância para a ascensão
material de um grupo humano específico, o branco. Ele afirma que o critério fenotípico foi
preponderante para empreender justificativas morais, filosóficas e pseudocientíficas, como
viga de sustentação para massificar os juízos que transformaram a raça branca em legítimos
gestores dos recursos naturais do planeta. Corolário, os negros não detêm o poderio
econômico que permita equalizar o imaginário coletivo, a fim de organizá-lo para tornar os
mecanismos subjetivos menos danosos à psicologia de outras gerações de pessoas negras:
cada vez mais complexos e difíceis de serem combatidos, gerando a necessidade de novos
estudos acerca do fenômeno.
Devem figurar outras medidas para o alcance de representação adequada nas instituições educacionais,
de moradia, nos partidos políticos, nos parlamentos, no emprego, especialmente nos serviços
judiciários, na polícia, no exército e outros serviços civis, os quais em alguns casos devem dexigir
reformas eleitorais, reforma agrária e campanhas para a igualdade de participação (Declaração de
Durban e Plano de Ação, p.37).
O tema “Racismo Institucional” é complexo, talvez por isso pouco utilizado como
ferramenta para pensar as reconfigurações do racismo no Brasil. Por esse motivo,
perseguimos algumas pistas deixadas por autores que se debruçaram em compreender o
funcionamento das sociedades contemporâneas no Ocidente, abrangendo a lógica da
dominação que se afigura por meio da institucionalização da vida, que exige o domínio de
códigos culturais indispensáveis para a sociabilidade, sobretudo para o ingresso no mundo das
relações de trabalho.
Faz-se sumamente importante dizer que o tema sobre o racismo institucional
ainda é pouco estudado no Brasil, e que geralmente os pesquisadores dessa área recorrem aos
estudos clássicos que analisaram a realidade estadunidense desde as décadas de 1960 e 1970.
Geralmente o conceito é descrito em torno de acontecimentos discriminatórios, fluídos e
naturalizados dentro do escopo político normativo, condenável no âmbito do Direito, porém
diluído na sutileza das relações “cordiais”. Segundo Souza (2011), as obras clássicas sobre o
assunto trazem uma noção introdutória acerca do mesmo, abrindo as portas para o
reordenamento do olhar em torno do fenômeno4.
Segundo Arivaldo Santos de Souza, “[o] conceito de Racismo Institucional refere-
se a políticas institucionais que, mesmo sem o suporte da teoria racista de intenção, produzem
consequências desiguais para os membros das diferentes categorias raciais” (SOUZA, 2011,
p. 79). Esta reflexão coaduna com aquilo que Foucault (2010) chama de “sujeição de
saberes”, ao analisar o nascedouro das instituições no Ocidente em sua forma organizativa,
que, segundo ele, engendra uma gama de normativas que tem como objetivo não apenas a
produção técnica de bens materiais, mas as ações reguladoras da sociedade, de modo a
prescrever o desenho político e ideológico que orienta a base das relações cotidianas.
4
Para Souza (2011), o conceito começa a ser tratado a partir de Stokely Carmichael e Charles Hamilton. As
reflexões trazidas por Souza estão contidas na obra: Carmichael, S. e Hamilton, C. Black power: the politics of
liberation in America. New York, Vintage, 1967.
33
No mundo de hoje, ser intelectual é também tomar esse partido do progresso. Isso
significa igualmente atenção aos pobres e às minorias. Volto assim, aqui entre
parênteses, a um tema de que gosto de falar: quem sabe um dia a Universidade de
5
Muniz Sodré (2002) analisa a produção de códigos sociais a partir de dispositivos das mídias, o que ele chama
de ethos midiatizado. Segundo ele, a organização social na contemporaneidade se articula com novos espaços
de convivências, operacionalizados por redes corporativas que gestam um novo bios (forma de vida). Essas
mídias administram projetos de hegemonias, que tem como base comum a massificação de valores que
conduzem a mercantilização da vida, engendrando uma seletividade racial que dissimula o racismo em níveis
de abstração de difíceis compreensões, cumprindo o papel de estratificação racial da riqueza sem transgredir as
normas constitucionais.
34
E, por “saberes sujeitados”, entendo duas coisas. De uma parte, (...) [são] conteúdos
históricos que foram sepultados, mascarados em coerência funcionais ou em
sistematizações formais. (...) apenas os conteúdos históricos podem permitir
descobrir a clivagem dos enfrentamos e das lutas que as ordenações funcionais ou as
organizações sistemáticas tiveram como objetivo, justamente, mascarar. Portanto, os
“saberes sujeitados” são blocos de saberes históricos que estavam presentes e
disfarçados no interior dos conjuntos funcionais e sistemáticos, e que a crítica pôde
fazer reaparecer pelos meios, é claro, da erudição. (...). Em segundo lugar, por
“saberes sujeitados” [há] uma coisa totalmente diferente (...). (...) toda uma série de
saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais, como saberes
insuficientemente não elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente
inferiores, saberes abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade requeridos.
(...) foi pelo reaparecimento desses saberes locais das pessoas, desses saberes
desqualificados, que foi feita a crítica (FOUCAULT, 2010, p. 8-9).
Grande exemplo do que está sendo exposto se dá por meio do debate acerca das
cotas raciais nas universidades brasileiras, quando parcela de intelectuais brasileiros se
insurgiram contrários ao pleito do movimento negro, culminando no lançamento de um
manifesto anticotas raciais6. A voz institucional, amplificada pelos intelectuais legitimados
pelas associações e departamentos de suas respectivas áreas, teve peso preponderante para
gerar um sentimento avesso ao pleito do movimento negro. Geralmente os argumentos eram
universalistas, e, em muitos casos, depositavam nos próprios negros a culpa de não estarem
em maior número no nível superior, o que é outra estratégia de dividir a população negra,
visto que estimula a antinomia entre os negros, que estariam frente à categorização binária
dentro do próprio grupo, o mal negro, indolente e sem força de realização, e o bom negro,
dotado de valores que simulam um ethos “branqueado”.
Entretanto, este discurso poderia soar como antidemocrático frente ao novo apelo
político vigente, pois seria contraditório que, mediante a propaganda inclusiva que marcava o
diferencial em relação a outros momentos políticos no país, – como a escravidão e a ditadura
militar –, não se atendesse aos anseios das populações marginais. Desse modo, mesmo que, a
6
Em anexo.
35
contragosto, muitos intelectuais e gestores públicos tiveram que “abrir as portas” para a
entrada de novos atores sociais, por meio de um processo seletivo diferenciado do
convencional. Aparentemente, essa seria uma vitória do movimento negro, uma vez que a
demanda principal estaria sendo incorporada.
Apesar de ter essa demanda incorporada, é preciso salientar que muitos
professores que comandam grupos de pesquisas já poderiam prever que este contingente
populacional poderia lhes garantir muitas ofertas de saberes, ou seja, muitos desses novos
estudantes trariam conhecimentos ainda não sistematizados, ou pouco explorados para o
ambiente acadêmico, o que lhes renderia pesquisas que, por conseguinte, conferiria prestígio
acadêmico e fortalecimento dos programas de pós-graduação em que estão inseridos. Este é
um ponto de vital importância, pois, retomando as formas conceituais que evoca a Michel
Foucault (2010), estes saberes, antes deslegitimados, se tornaram acadêmicos (neste
intercurso está a prática do que alguns intelectuais, como Mogobe Ramose e Sueli Carneiro,
chamam de “epistemicídio”)7, mas o bônus não retornou a quem possuía tal conhecimento, e
mais, os índices de estudantes negros nos programas de pós-graduação no Brasil ainda estão
aquém do que seria razoavelmente aceito8.
Suportar esta ambiência negativa não é tarefa fácil para os negros, que ao ver
diversas barreiras institucionais se erguerem contra eles, podem optar pela desistência de
determinadas carreiras, ou podem também ceder à pressão de outro modo. Se listarmos o
número de intelectuais negros injustiçados no seio da academia brasileira, certamente
precisaremos de um trabalho específico para isso. Citando os casos mais famosos, temos
Alberto Guerreiro Ramos (1915 – 1982), sociólogo negro que teve sua candidatura reprovada
7
Para Ramose (2011), o epistemicídio se caracteriza pela autoridade de conferir legitimidade sobre as formas de
conhecimento. Segundo o autor, a colonização europeia sobre o continente africano definiu o que é a filosofia
a partir da hierarquização saberes, em detrimento do que se produzia no continente africano enquanto
conhecimento. Carneiro (2005), sugere que o epistemicídio tem como objetivo o assassinato de qualquer
possibilidade de debate mais amplo acerca daquilo que os negros africanos e da sua diáspora produzem
enquanto episteme, acarretando em prejuízos inestimáveis para a humanidade, pela unilateralidade com que as
teorias do conhecimento conduzem as suas investigações científicas.
8
Os números do Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia – IBGE apontam para exponencial aumento de
negros nas universidades nos últimos anos. Esse crescimento ainda está em defasagem em relação aos jovens
brancos dez anos antes das pesquisas do IBGE. Fonte: http://www.valor.com.br/brasil/4342534/ibge-acesso-
de-negros-universidade-cresce-maioria-ainda-e-branca. Acesso em: 18/03/2016. O Plano Nacional de Pós-
Graduação - PNPG de 2005-2010 e o de 2011-2020, trazem números que indicam um crescimento no número
de programas de pós-graduações resultando em 2.719 programas com 4101 cursos, divididos entre mestrado e
doutorado, 34,7 % e 65,3%, respectivamente. Nesses dados não há desmembramento que indique o número de
alunos e docentes por cor/raça. Segundo Marcelo Paixão (2010), por meio das Pesquisa Nacional Por
Amostragem de Domicílios – PNADs, é possível dizer que o número de negros na pós-graduação cresceu, mas
que não atingiu o mesmo número dos brancos, que continuam sendo a maioria. BRASIL, Plano Nacional de
Pós-graduação (PNPG) 2011-2020 Ministério da Educação, Brasília, dez. 2010.
36
para lecionar em universidade pública no país, tendo publicado diversas obras de grande
envergadura internacional, relegado pela elite acadêmica brasileira pelo tom propositivo para
transformações no modo de conceber o estudo de sociologia no Brasil, que para ele se faz por
meio de um reducionismo que se limita a atualizar teses estrangeiras. Desse modo, o autor
reflete sobre o racismo de famosos pensadores brancos no Brasil, que, segundo ele, tematizam
a questão racial criando um ethos aprisionador para o negro, que termina agrilhoado às
normas prescritivas elaboradas por esses intelectuais, sofrendo desvantagens no mundo do
trabalho e nas relações sociais.
Milton Santos (1926 – 2001), geógrafo brasileiro de reconhecimento
internacional, graduado em Direito que transformou a epistemologia de pensar
geograficamente o espaço e o território. Em uma ocasião, Milton Santos fora rejeitado em um
pleito para se tornar presidente da Associação Brasileira de Geógrafos sob alegações racistas
de colegas de trabalho, tendo sido, posteriormente, recomendado por Caio Prado Jr.
(SANTOS, 2008). Apesar de Milton ter chegado ao cargo máximo da associação, jamais foi
presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), isto é, da instituição
mais importante que lida com os dados geográficos no Brasil, utilizando conceitos e pesquisas
desenvolvidas por Milton Santos durante toda sua vida9.
Recentemente se tornou pública a reprovação do doutor Kabengele Munanga,
professor titular aposentado pela Universidade de São Paulo – USP, para o pleito de professor
visitante na Universidade Federal do Recôncavo Baiano – UFRB, tendo sido preterido em
nome de um pesquisador mais jovem, de menor produção acadêmica e de inferior prestígio 10.
Certo de que apesar do seu prestígio e tempo dedicado às pesquisas acerca do racismo no
Brasil, Kabengele Munanga quebrou o silêncio acadêmico e redigiu uma carta aberta expondo
os motivos que o levaram a acreditar numa injustiça perpetrada contra sua pessoa. Não se
trata de pressão para aprovação automática, mas de reconhecer a desigual correlação do
pleito, em virtude de tempo de dedicação à vida acadêmica, em relação ao seu concorrente11.
9
Quando se tornou professore Emérito pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo – USP, Milton Santos proferiu uma palestra intitulada “O Intelectual e a Universidade
Estagnada”, onde afirmou que existem grupos corporativos dentro da academia brasileira, e estes visam a
perpetuação de ideias e de herdeiros acadêmicos. Essas atitudes mantém o grupo hegemônico branco na
dianteira das pesquisas acadêmicas no Brasil. Disponível em: http://terracoeconomico.com.br/o-sofisticado-
nepotismo-das-universidades-brasileiras. Acesso em: 23 jun. 2017.
10
Um estudo mostra que existe uma tendência para absorção de jovens egressos de programas de mestrados e
doutorados pelo país, pelo próprio programa, não fazendo circular profissionais pelas mais diversas regiões
Disponível em: http://revistapesquisa.fapesp.br/2016/01/12/circulacao-limitada/. Acesso em: 23 jun. 2017.
11
Segue o link da carta na íntegra: https://mamapress.wordpress.com/2014/02/14/racismo-nas-altas-esferas-
quem-tem-medo-de-um-negro-que-sabe-professor-kabengele-munanga-quebra-o-silencio-academico/. Acesso
em: 15 abr. 2017.
37
Duas coisas ressaltam nessa reunião que ocorreu sem que o professor estivesse
presente: primeiro a desconsideração com o colega, a ponto de ter sido sugerido que
Rafael deveria buscar apoio médico, pois estaria afetado psiquicamente; segundo, a
presença de um coletivo de estudantes negros da UERJ (PEREIRA, 2008, p. 5).
Desgaste para a chefe de departamento e aliados(as). Dias depois recuaram por meio
de carta enviada à diretora da faculdade e chefes de departamentos, alegando que a
avaliação do professor se deu à revelia do departamento e da direção da faculdade –
o que foi prontamente desmentido pela professora Maria Alice, em documentação
que tive oportunidade de ler (PEREIRA, 2008, p. 5).
Esse jogo político dificulta que as formas culturais africanizadas, que se manifestam em todos
os lugares, se tornem dominantes.
O trabalho de Souza (2011) nos ajuda a refletir sobre o papel estruturante do
racismo na sociedade contemporânea. Para este autor, é sumamente importante que saibamos
os papéis designados para cada categoria que compõe o edifício institucional. Segundo ele,
existe uma arquitetura que conjuga diferentes forças – papéis distintos – que viabiliza que a
ordem sistêmica se refaça e sua força não seja neutralizada, retroalimentando suas ações ao se
alinhar com a normatividade que normaliza o ciclo, que direciona caminhos e descaminhos
para soluções e problemas.
A concretude das ações racistas, que ocorrem por dentro das instituições, está
amparada pela possibilidade de tergiversação desse crime, pois se assenta na materialização
de dispositivos legais que transferem o caráter intencional do exercício de poder simbólico
para algo subjetivo e passivo de interpretações. Por esse motivo, e segundo Santos (2015), o
embate jurídico se torna numa verdadeira cruzada, na qual a vítima de racismo é levada a
abandonar o processo, dados os esbulhos conceituais acerca do que é realmente o racismo,
terminando por desviar o foco das atenções para problemas mais amplos, como “falta de
educação”.
Nesse momento o ethos será acionado enquanto maneira de reordenar os olhares
para as ações que estruturam um arquétipo, conduzindo aos pré-julgamentos morais que, em
última instância, poderão se sobrepor à prática do direito, gerando um padrão ressentido para
as interpretações que tendem a desqualificar moralmente aqueles que se encontram abaixo do
paradigma social. Os constrangimentos passam então a fazer parte do conjunto de medidas
que tentam imobilizar o progresso daquele no qual se está projetada toda investida vingativa.
Desse modo,
39
Uma conduta é qualificada como ilícita quando se opõe a uma norma jurídica ou
indevidamente produz efeitos que a ela se opõem, o que traz o segundo elemento – a
sanção correspondente a norma. Quando a sanção é uma pena, espécie
particularmente grave de sanção, o ilícito é chamado crime. A transformação do
ilícito em crime é uma decisão política, como foi adotada na constituição de 1987-
1988, que transformou a discriminação e preconceito de cor em crime inafiançável e
imprescritível (SANTOS, 2015, p. 55).
A consequência disso para o crime de racismo é que para punir um ato racista
cabe interpretações que geralmente dissimulam os efeitos produzidos ao cidadão que dele é
lesado, pois se concentra duramente aos preceitos normativos, que estão despreocupados com
a carga simbólica e emocional que afetam aos negros diante da materialização das ofensas e
das injustiças que criam condições desiguais de competitividade no mercado de trabalho e de
acesso aos bens culturais de uma sociedade. Deste modo, é a normalização que opera
conjugada com as lacunas propositalmente deixadas no âmbito das leis.
40
De acordo com Santos (2015), ainda que uma das características do racismo
institucional engendre a possibilidade que sinaliza para práticas reprodutivas do racismo, ou
seja, não “consciente” ou não proposital, não podemos descartar o fato de que o Brasil seja
um país racista e que, decorrente dessa assertiva, não constitui uma estratégia inteligente
pulverizar a possibilidade de que um ato racista perpetrado não seja intencional, e sobretudo
esvaziar a gravidade dos seus efeitos, pois o racismo é uma construção que beneficia o racista
e gera desvantagens reais para aquele que o sofre.
O que está na base da hierarquia social e racial estabelecida por Santos (2015), e
segundo ele mesmo, é construída a partir de uma disputa histórica em que as narrativas são
fruto de todo embate em torno da seletividade dos signos que constituirão positivamente o
imaginário popular. De acordo com ele, as sociedades conservam uma memória atravessada
por refazeres e construções discursivas que engendram mitos e lendas. Essa estratégia de
“autoridade” torna possível as identificações que forjam um ethos, prescrevendo adesão aos
traços mais positivos que são realçados em relação à cultura de um determinado povo ou a
identidade dos grupos em disputa.
Em contrapartida, há uma contranarrativa que opera na desqualificação daquela
que possa ameaçar o status quo do que se pretende estabelecer enquanto única fonte
discursiva que determina os traços simbólicos a serem engendrados pelos sujeitos que
professam uma determinada cidadania. Segundo Santos (2015), essa disputa narrativa é
viabilizada pela duração da lembrança, ou pela estabilização dos códigos que se tornam
perenes de acordo com as tradições que se conservam ao longo do tempo. Nesse sentido, a
seletividade das tramas históricas, tantos factuais quanto as míticas, dependem do poder
institucional para estabelecer suas principais marcas e se consubstanciar positivamente na
imagem a ser construída em uma sociedade.
Por um lado, é uma estratégia positiva que se possa ressignificar narrativas e
encontrar personagens históricos que recontem fatos a partir de outra angulação, dinamizando
o exercício intelectual em face das seleções dos conteúdos históricos a serem difundidos pelas
instituições, sobretudo a escola e os meios de comunicação. A contrapartida se torna lícita a
partir do momento em que as construções heroicas e os factoides ganham virtualidade prática,
41
muitas vezes ocultando profundas realidades que exigem um olhar muito cuidadoso ao
estabelecer as relações de causa e consequência, sob pena de perpetrar grandes injustiças
apenas porque se julga necessário inverter um quadro complexo de desigualdades, que nem
sempre se constrói em decorrência do processo histórico em questão.
Outra categoria de autoridade manejada por Santos (2015) trata da “autoridade
legal-racional”. Para este autor, existe, de parte das pessoas legitimadas como
hierarquicamente superior, uma predisposição de ordenar de acordo com as normas que
estabelecem o cumprimento de uma determinada função. O autor adverte que as normas não
estão sempre de acordo com essa premissa, já que as atribuições de um cargo, por si só, não
dão conta de desconstruir uma imagem secularmente negativada. Nesse sentido, “[u]m
médico negro, para além de ter que provar sua aptidão, dependerá de sua capacidade de
convencer o cliente de que ele é muito mais capaz, experiente” (SANTOS, 2015, p. 142).
Essa perspectiva constitui uma possibilidade para introduzir uma análise mais
acurada sobre o que tem sido observado no cenário das políticas públicas no Brasil, tendo
como ponto de partida o campo educacional e os programas que podem gerar um
reordenamento epistêmico e de aplicação de recursos financeiros. Para explicitar o que
estamos afirmando até o momento, recorremos ao depoimento de uma das nossas
entrevistadas, Maria Auxiliadora, gestora da SECADI, que traz a sua reflexão acerca da
educação quilombola:
Fica encaminhado, portanto, que a nossa entrevistada percebe que dentro do seu
campo de atuação o racismo institucional também opera. Segundo ela, esse é um grande
entrave para a emergência de novas possibilidades de organização social. O quilombo como
maneira democrática de ocupação territorial engendra, em suas práticas, formas consolidadas
de democracia no que concerne ao uso não predatório dos recursos naturais, uma vez que é
uma lógica não baseada no lucro e na especulação da propriedade privada. Os quilombolas
representam o avesso dos modelos experimentados pelas sociedades ocidentais, e esse pode
42
ser um dos motivos do seu não reconhecimento enquanto forma legítima de organização
social, acarretando no seu espólio.
As dificuldades em conceber uma educação quilombola diferente das
normatividades sistêmicas, é um emaranhado processual de complexas relações que se
enlaçam nas subjetividades dos atores envolvidos nas gestões e nos fazeres educativos. Desse
modo, a professora Maria Auxiliadora deixa a entender que as engrenagens do trabalho em
torno da educação quilombola contam com o despreparo proposital por parte do Estado,
viabilizado pelo racismo institucional, camuflado sob a capa democrática em torno da
existência e da implementação do programa: “Então, posso te afirmar, de cadeira, de uma
pessoa que trabalha há muitos anos com isso, o nosso problema é um problema a nível local, é
um problema de racismo institucional” (Maria Auxiliadora, 2016).
Essa é uma pequena demonstração orgânica de como o racismo institucional pode
operar, viabilizado pelo entendimento de uma pessoa que está dentro da máquina estatal.
Obviamente que este debate não se encerra por aqui, e de diversas maneiras podemos
provocar e estimular reflexões acerca da temática. Entretanto, quisemos preparar o terreno
para a apresentação do que foi a nossa pesquisa na prática, isto é, do que encontramos como
campo fértil para as análises mais próximas sobre o funcionamento sistêmico da instituição
pesquisada e quais os possíveis ganhos que o movimento negro tem realmente conquistado ao
longo dos anos, sobretudo após a Conferência de Durban.
Portanto, na sequência apresentaremos a estrutura da SECADI com ênfase na
gestão do ano de 2016, a fim de aproximar as reflexões acerca do debate sobre racismo
institucional à realidade de um órgão público brasileiro. Essa aproximação está bem
evidenciada a partir das respostas dadas pelos entrevistados, que apesar de não detalhar
conceitualmente o que observam cotidianamente, nos viabilizam exemplos práticos que
enriquecem os argumentos para se discutir o racismo em âmbito institucional.
Abrimos uma seção para explicar brevemente o que são as políticas públicas.
Uma política pública é o resultado de uma vontade coletiva, viabilizada por meio de um
governo eleito. Elas surgem a partir de planos de governo, os quais o candidato e a sua equipe
técnica elaboram as prioridades e o orçamento disponível para que sejam alcançadas as metas
que se traçam (SECHI, 2016).
43
A política pública é o termômetro da atuação do Estado, pois é por meio dela que
é possível perceber o interesse político em torno de áreas específicas e como são ofertados os
serviços essenciais para o bem-estar da população (SECCHI, 2016). Por isso que os
movimentos sociais exercem um papel fundamental para o desenvolvimento da política
pública, pois são eles que dão um feedback mais ajustado ao Estado, quando falamos de
interesses coletivos, isto é, são os porta-vozes da sociedade.
Nesse sentido, os movimentos sociais participam de um processo crucial no
âmbito das políticas públicas, que é o da avaliação, pois eles são a ponte entre o governo e a
população, uma vez que o governo também tem o resultado avaliativo segundo eles mesmos,
por meio da verificação do alcance das suas metas. Por isso as mobilizações feitas pelos
movimentos sociais são permanentes e visam cobrar do poder público que as políticas
projetadas para a população sejam materializadas da melhor maneira possível.
De acordo com Secchi (2016), para a formulação de políticas públicas é
necessário que sejam definidos e identificados os “problemas públicos”, uma vez que são eles
que afligem uma sociedade e devem ser combatidos, a fim de gerar bem-estar social para os
cidadãos. É daí que surge a política pública. A oferta por políticas focais será, portanto, o
lenitivo para problemas específicos, mas que também causa prejuízo a toda uma sociedade,
não deixando de ser uma política pública, exatamente porque é uma “diretriz para a resolução
de um problema público” (SECCHI, 2016).
O problema público está para a doença, assim como a política pública está para o
tratamento. Metaforicamente, a doença (problema público) precisa ser
diagnosticada, para então ser dada uma prescrição médica de tratamento (política
pública), que pode ser um remédio, uma dieta, exercícios físicos, cirurgias,
tratamento psicológico, entre outros (instrumentos de política pública) (SECCHI,
2016, p. 5).
públicas, apesar de promover cidadania, se concentram nas causas e não nas consequências de
determinados problemas que afligem as sociedades.
Desse modo, as políticas públicas ganham contornos de políticas sociais e
transcendem um único campo de conhecimento, devendo se articular com outras searas do
conhecimento.
Fica evidente, portanto, que as políticas públicas se diferem das políticas sociais
na medida em que a primeira se ocupa em demonstrar o processo e os seus estudos não se
debruçam sobre a sua substância, uma vez que o alvo desses estudos não se detêm ao
conteúdo da política ofertada. Por outro lado, a política social encaminha estudos que
direcionam os olhares acerca do objetivo final de uma política, asseverando, também, sobre os
seus resultados. Com efeito, são os estudos em políticas sociais os mais presentes hoje na
45
academia brasileira em virtude de diversas agendas políticas que chamam a atenção para essa
necessidade.
As políticas públicas de combate ao racismo podem ser objeto de apreciação
daqueles que se debruçam em entender os seus impactos frente à sociedade. Nesse sentido,
podem haver estudiosos que se definem como militantes dos movimentos sociais se ocupando
nos estudos de políticas sociais e verificarando os efeitos das campanhas dos movimentos os
quais se identificam, avaliado leis e outros dispositivos governamentais que são direcionadas
para esse devido fim. A Coordenação de Educação para as Relações Étnico-Raciais da
SECADI é um exemplo dessa dupla função, na medida em que os seus técnicos precisam
entender a envergadura das políticas públicas para a população negra e propor caminhos para
atingir a eficácia projetada.
São duas questões, primeiro uma questão de concepção de política pública, políticas
universais X políticas específicas. E segundo, é a questão do próprio racismo
institucional, com relação a uma visão de política pública universalista. Então, a
política de EJA é considerada universal, e como o atendimento à população de EJA
atende a todo mundo, logo, atende a população negra. (...). Quando a gente vai a
campo, trabalhar direto com a população, [vemos] que essa relação não é tão lógica
assim, então, a coisa não é tão sequencial. É a mesma coisa, por exemplo, com
relação à educação do Campo, (...) quando foram criar o programa PRONACAMP,
que é o que assegura toda a educação do Campo, (...) então a gente não precisaria
saber, por exemplo, se nas escolas do Campo, que não necessariamente são
quilombolas, quantas pessoas negras e quantas pessoas brancas estão e se a gente
tem essas pessoas, qual o grau de desigualdade que a gente tem entre esses dois
grupos. Então, é difícil a gente conseguir convencer as pessoas de que o atendimento
universal não é tão universal assim, e nessa universalidade, as nossas questões
acabam se diluindo. Isso é o que a gente percebe bastante no dia a dia da
coordenação, e que, às vezes, as nossas demandas ficam a reboque (BÁRBARA
SULA).
Essa declaração sintetiza muito bem o que estamos tratando ao longo de nossas
análises, ela possibilita que tenhamos um olhar bastante atento em relação às possibilidades
apresentadas pelas políticas públicas universalistas. Fica nítido, portanto, que este caminho é
o terreno fértil para o que nossa entrevistada chamou a atenção, o racismo institucional. Se a
SECADI é uma secretaria especial, que desenvolve ações para dirimir as iniquidades no
sistema educacional brasileiro, o pressuposto básico é o de que as políticas não focais não dão
conta de abarcar a todos no seu universal, retornando a necessidade de organizações
específicas que operam micropolíticas dentro do grande sistema político.
Assim, o sistema educacional brasileiro prevê a obrigatoriedade de promover o
ensino básico para todos os cidadãos, e a SECADI se concentra no melhoramento desse
serviço, possibilitando que as populações de maior defasagem de escolarização sejam melhor
atendidas. Por meio de dados estatísticos e avaliações institucionais é possível saber quais são
46
os focos a serem dados. Entretanto, existe a oferta de ensino superior pelo Estado brasileiro, e
a SECADI também atua nessa seara, pois promove formações para que os professores
egressos das universidades públicas se atualizem em relação aos conteúdos indispensáveis
para lidar com outras esferas de trabalho, fora do convencional.
Por isso, as políticas públicas que visam a mobilidade de grupos historicamente
marginalizados não deveriam se concentrar na base, uma vez que as demandas não se
constituem de maneira linear, pois há dificuldade de acesso e permanência em ambas as
etapas de realização escolar, e em cada uma delas estará presente, de maneira diversa, a
disciplinaridade atinente ao modelo de sociedade que se quer formar. O ensino superior,
portanto, deveria constituir um escopo importante, uma vez que é um lugar de disputas e
tensões, espaço destinado à construção do conhecimento, com consideráveis investimentos de
verba pública para pesquisa e de onde saem profissionais que serão responsáveis por
alimentar o imaginário social a partir das ferramentas teóricas nas quais foram forjados dentro
da academia.
Não se pode deixar de mencionar que a academia também é o local privilegiado
para os estudos acerca das políticas públicas, por isso esses debates se acaloram, uma vez que
é diante de um cenário de escassez de recursos que as disputas por legitimidade para a gestão
do erário destinados à sua implantação se aguçam. Por isso, as políticas públicas
Evidencia-se que há uma disputa de poder em torno das políticas públicas, já que
são frutos de acordos, tensões e negociações. Cabe ressaltar que o campo de estudo para as
políticas públicas surge nos Estados Unidos da América, visando a compreensão e a regulação
das ações governamentais, enquanto que na Europa o seu estudo se dava em função de refletir
sobre o papel do Estado. As considerações que campeiam essas análises é a de que “em
democracias estáveis” (Souza, 2007, p. 67), essas políticas são formuladas e pensadas
cientificamente e pesquisáveis por qualquer pessoal que se incline para esta função.
Decorre daí a ideia de que as definições e análises acerca de políticas públicas se
assentam em reflexões conjunturais, ainda que o seu conceito seja perene. Aliás, as definições
sobre políticas públicas concorrem para conceituações clássicas e contemporâneas,
preponderando aquela proposta por Harold Laswell (1902-1978) em 1936. Segundo Souza
47
(2017, p. 68), a teoria de Laswell se impôs ao fazer três questões fundamentais para balizar os
estudos nessa seara: “Quem ganha o quê, por quê e que diferença faz”.
Mas, de acordo com essa autora, existe uma visão mais usual, ou tornada clássica,
que é cunhada por Theodore Lowi (1931-2017), na qual afirma que a “Política pública é uma
regra formulada por alguma autoridade governamental que expressa uma intenção de
influenciar, alterar, regular, o comportamento individual ou coletivo através do uso de sanções
positivas ou negativas” (SOUZA, 2017, p. 68).
Portanto, este é o campo das políticas públicas, e isto quer dizer que elas apontam
para diversos usos, sentidos e direções, que podem ser articulados pelos movimentos sociais,
mas que o seu entendimento habitual, e final, se concentra no poder de decisão do gestor
público em relação ao que se destina em termos de ofertas de soluções para os “problemas
gerais” de uma sociedade. Por esse motivo, os pleitos dos movimentos sociais podem ser
enfraquecidos dentro da máquina pública e a oferta pelos serviços essenciais dependerão de
uma série de condições determinadas pela alocação de verbas. Cabe aos movimentos estarem
sempre acompanhando, avaliando e propondo diretrizes para equilibrar essas políticas e
melhor atender a população que delas necessitam.
48
3 A SECADI
periferia, onde a criatividade estava atrelada às necessidades mais prementes da vida cotidiana
(PEREIRA, 2005).
Certamente, esses sabres/conhecimentos estiveram desarticulados do sentido
formal de educação por muito tempo, e estava sendo gestada uma nova direção para a
educação nacional, mais abrangente e de menor centralidade em conteúdos construídos
alhures. Contudo, a resistência era grande, e somente no final da década de 1980 que a
constituição pôde ser transformada, ou seja, apenas após a queda do regime militar que se foi
possível empreender debates mais abertos e, enfim, promulgar um novo conjunto de leis, e
dessa vez com dimensões que abarcavam as diferenças como parte constituinte da nação
brasileira. Isso teve impactos a médio e longo prazo para novos contornos na educação
(GOMES, 2018).
Com todos os problemas que atravessaram este caminho, uma coisa foi dita: “O
Brasil de passagem dos 1980 para os 1990 estava mais atento às questões ligadas aos direitos
humanos e à diversidade”. Silva e Carmo (2017) afirmam que o centenário da abolição, o ano
de 1988, foi um ano que marcou positivamente esse período, e a partir dessa ocorrência teria
sido dada uma alavanca para a ampliação do debate racial em esfera pública, já que as
recomendações e proibições do regime militar haviam passado, e que grande parte da
intelectualidade brasileira estava se adequando aos novos operativos desencadeados pela
constituição federal de 1988.
Os anos de 1990 foram marcados por diversas políticas neoliberais, as quais o país
esteve submetido à diversas investidas de órgãos internacionais que agiram diretamente em
âmbito educacional. Esta década esteve repleta de desafios para a gestão educacional,
engendrando a criação de novas formas de financiamento, metas e estimativas para as
políticas públicas educacionais, uma vez que outras demandas sociais emergiam após a
redemocratização do país (DOURADO, 2007).
De acordo com Dourado (2007), a década de 1990 foi um período complexo da a
educação brasileira, pois as políticas neoliberais adotadas pelo governo federal engendrou
uma corrida desenfreada por metas que traziam a necessidade de buscar fontes
complementares de recursos a serem investidos em educação, propiciando desarranjos
pedagógicos em nome de obrigações contratuais. Contudo, o autor enfatiza a importância da
Lei de diretrizes e Bases de 1996 (lei 9394/960, pois teria sido a lei com a maior abrangência
de direitos e deveres em âmbito educacional que o Brasil já experimentaria até o período.
Foi dentro deste contexto que o então presidente Fernando Henrique Cardoso abre
espaço para que o debate do racismo se fizesse mais presente institucionalmente no estado
50
Esta definição parece acertada se analisarmos sob o ponto de vista de que as ações
afirmativas criam as condições para que as oportunidades sejam dadas de maneira equânime,
salvaguardando o direito de grupos historicamente marginalizados em acessar os lugares de
usufruto público, nesse caso os espaços de produção de conhecimento. Também sinaliza para
51
Essa ocorrência sinaliza para uma série de implicações, que perpassa entre os
condicionantes para as políticas públicas e para a hierarquização dos conhecimentos
indispensáveis para os estudantes. Evidente que as disciplinas de Português e Matemática são
importantíssimas para os indivíduos em fase de escolarização do ensino básico, mas esse fato
não pode anular a urgência de se ofertar outros componentes curriculares em igualdade
qualitativa. Além disso, os conteúdos não acadêmicos que constam como oculto em uma das
três dimensões do currículo escolar – Formal, Real e Oculto –, também são elementos
preponderantes no processo de ensino e aprendizagem, posto que são constituintes da
bagagem dos saberes práticos e reflexivos que os estudantes já possuem e exercitam fora do
ambiente escolar. Dito em outras palavras, o habitus se conjuga com os conhecimentos
formais e desloca o que a formalidade curricular projeta como objetivo, gerando uma
ulterioridade que escapa a previsibilidade.
Por esse motivo, Gomes (2017) e Sodré (2012) afirmam que o movimento negro é
uma espécie de “Pedagogo Coletivo”, pois geram necessidades para uma diferente práxis
educativa. Mais além, instam aos dispositivos sociais se reorganizar em face de
conhecimentos antes ignorados, criados e manejados por pessoas historicamente alijadas da
construção epistemológica validada pelas instituições que tutelam o ethos acadêmico. De
acordo com Gomes (2017), o simples fato de ressignificações políticas e indagações aos
padrões estéticos e comportamentais para a afirmação de uma identidade negra, são
suficientes para dizer que haja epistemologias genuinamente negras.
Nesse sentido, se tomarmos como ponto de partida os estudos acerca do racismo,
a afirmação da identidade negra, esclarecida sobre os reais desafios da comunidade negra,
talvez tornasse mais potente e visionária as investidas que pese no pleito por intervenções de
políticas públicas para a população negra. Segundo o sociólogo Salles Augusto dos Santos
(2008), existe uma sensível diferença entre o “intelectual negro” e o “negro intelectual”. Para
ele, o intelectual negro seria aquele que domina as competências atinentes ao seu campo de
53
estudo, com todos os atributos técnicos que campeiam o exercício intelectual, sendo capaz de
propor soluções pontuais para os problemas por ele analisados. Entretanto, segundo o autor, o
saber técnico e o brilhantismo acadêmico seriam insuficientes para conduzir a humanidade
para reais dimensões humanitárias.
De acordo Salles Augusto dos Santos (2008), o negro intelectual seria aquele que
melhor conjuga suas habilidades com questões libertárias capazes de conduzir a humanidade
para o caminho da emancipação de estigmas historicamente construídos. Segundo ele, o negro
que se torna intelectual teria, antes de tudo, um sólido sentimento de pertença, que se amplia
na medida em que estuda questões cruciais para o entendimento da condição de sua
comunidade perante a sociedade. Dadas essas descobertas, este negro passaria a dominar os
códigos comuns a todos os seres humanos e reorganizá-los em prol de sua comunidade, não
para se tornar uma liderança inócua, mas sim como agregador de forças para que sejam
criadas oportunidades de mobilidade em um sólido projeto de equanimidade social.
Esse debate marca uma característica peculiar dos anos 2000, sobretudo para a
segunda metade da primeira década desse novo milênio. Gomes (2017) identifica três
deslocamentos concernentes ao que podemos chamar de “pedagogia negra”, presentes na
linha histórica do movimento negro e tonificados na atualidade. São eles: 1 – Saberes
Identitários; 2 – Saberes Políticos; e 3 – Saberes Estéticos Corpóreos. Segundo ela, em cada
um desses campos estão subscritos os conhecimentos produzidos no interior dos movimentos
negros, mas é possível identificar que também estão presentes nas movimentações de pessoas
negras afetadas pelos discursos desses movimentos, o que não quer dizer que sejam pessoas
organizadas dentro da esquemática coletiva.
Para essa autora, as redes sociais se tornaram cada vez mais um espaço de
convivência (virtual) entre jovens negros que trocam informações entre si, disponibilizando
materiais de consulta, opinando sobre as questões políticas atuais e históricas e debatendo, em
suma, sobre as questões atinentes ao racismo. Com isso, a identidade negra seria fruto de um
deslocamento histórico, no que diz respeito ao lugar de produção discursiva. Isso implica
afirmar que historicamente jovens negros e militantes (mesmo que não coletivizados)
estiveram às margens do debate acerca de suas próprias identidades, mas que através dos
avanços tecnológicos reconfiguraram o debate público a partir do “lugar de fala”, ou seja, do
ponto de partida que orienta os interesses e o histórico pessoal do orador.
Quando Gomes (2017) apresenta a ideia de saberes políticos, fica evidente que se
trata de respostas necessárias aos poderes instituídos, no que diz respeito aos impactos
sentidos pelos negros em relação às políticas públicas. O debate orbita entre o campo do
54
Insta aos Estados a promoverem a plena e exata inclusão da história e da contribuição dos
africanos e afrodescendentes no currículo educacional (Declaração de Durban, p.44).
Diretoria de Políticas de
Alfabetização e Educação de
Jovens e Adultos
Diretoria de Educação em
Direitos Humanos e
Cidadania
Diretoria de Políticas de
Educação Especial
Diretoria de Políticas de
Educação para a Juventude
13
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/secadi. Acessado desde o mês de outubro do ano
de 2016 a novembro de 2020.
59
Segundo nossa primeira entrevistada, doutora Denise Botelho14, embora a inclusão da letra I
(sobre a perspectiva do conceito de inclusão) somente fosse incorporada, de modo oficial,
posteriormente à criação da Secretaria, seria correto afirmar que a SECADI sempre
contemplou uma gama diversa de pautas, já que o seu atendimento tinha por objetivo
salvaguardar o direito pleno à educação de diferentes grupos marginalizados. Ela afirma que:
14
Denise Botelho é doutora em Educação e esteve na SECADI como assessora da Coordenação de Educação
para as Relações Étnico-Raciais no período de julho de 2004 a setembro de 2006. Atualmente Denise é
professora Adjunta da Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE.
15
Entrevista concedida em junho de 2017.
61
esteve desde o começo na Secretaria, pois nos possibilita entender como os arranjos
sistêmicos se reorganizam, isto é, como a máquina estatal opera avanços e retrocessos no
atendimento das demandas dos movimentos negros.
De acordo com Denise, a antiga gestão fazia encaminhamentos diversos, de
acordo com pautas que se articulavam diretamente com o objetivo de incluir, de forma
satisfatória, os grupos marginalizados, nos sistemas de ensino. Cada coordenação trabalhava
com certa autonomia e por muitas vezes se mantiveram mais voltadas para alguns focos
específicos, tendo em vista que não estavam descoladas dos acontecimentos que visavam
reconfigurar o painel educacional brasileiro, que teve como marco das transformações em
curso a aprovação da lei 10.639/03. Por isso a diretoria que ela fazia parte esteve bem voltada
para a especificidade a qual estava inscrita, concentrando esforços na educação para o nível
superior.
Eu penso que as demais coordenações foram sensibilizadas, mas não significa que
elas incorporaram a temática racial, porque a própria estrutura daquela diretoria, ou
da SECADI em si, fragmentava a discussão nos seus diversos segmentos em função
das especificidades, por quê? Se você pensar a demanda da educação indígena, foi e
continua sendo muito distinta da demanda da educação para as relações étnico-
raciais. A perspectiva da inclusão para os portadores de deficiências físicas é muito
distinta da educação para as relações étnico-raciais, apenados, enfim, os diversos
16
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
– UFRGS e professora titular da Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR.
62
Observa-se aqui, que além de dialogar com os atuais movimentos negros, em sua
diversidade de configurações, a SECADI, na figura da Coordenação de Educação para as
Relações Étnico-Raciais, reconhece que estes estiveram na dianteira das organizações sociais
responsáveis por cobrar do estado de ações efetivas para correção de distorções
historicamente produzidas. Nesse sentido, Denise afirma que a coordenação da qual fez parte,
se nutria de conhecimentos produzidos a partir do interior desses movimentos em suas ações
militantes, pois os entendia como os grandes detonadores de demandas de ampla cobertura,
isto é, a militância negra não contemplava somente as demandas dessa população, pois
funcionou como “guarda-chuva” para que outros grupos se organizassem.
Por esse motivo, fora importante buscar informações sobre o perfil dos
profissionais que atuavam dentro da SECADI, uma vez que a instituição se (re)faz a partir de
esforços conjuntos, por meio de uma equipe técnica que conhece o campo de atuação e as
demandas geradas na ponta, ou seja, do público aos quais a Secretaria oferta as políticas.
Tendo em vista o diálogo necessário para que o atendimento seja eficiente, se faz sumamente
importante que sejam encontradas formas mediadoras de realização do trabalho, em que os
saberes se articulem e sirvam de suporte na formulação das políticas focais, rejeitando a
verticalização da oferta, que ocorre quando existem interpretações unilaterais, deslocadas dos
acontecimentos da vida cotidiana.
Segundo Denise, a Coordenação de Educação para as Relações Étnico-Raciais
daquele momento de início da SECADI era providencial nesse ponto, pois a equipe que a
64
compunha era composta por profissionais que transitavam entre o ativismo e a academia,
conseguindo empreender um olhar crítico sobre a situação da população negra, que se
tonificava a partir de estudos exaustivos e produzidos no interior das universidades, mas
também partindo do conhecimento vivencial, na proximidade com as lideranças dos
movimentos negros e suas respectivas comunidades.
Talvez o fato dessas pessoas serem forjadas a partir dos movimentos sociais tenha
sido o motor principal para o estreitamento do diálogo entre a SECADI e esses movimentos.
Entretanto, não podemos afirmar, a partir desse dado, que os problemas sociais em âmbito
educacional estariam resolvidos, pois as políticas públicas são atravessadas por interesses
políticos que nem sempre estão ajustados aos desejos de quem as executam. As disjunções
estão inscritas na falta de diapasão entre as esferas municipais, estaduais e federal,
considerando distintos pleitos e burocracias que podem dificultar o trabalho. A tentativa não é
a garantia do sucesso.
Essa possibilidade de olhar para o “ativismo institucional” se torna importante
para evitar aquilo que Frantz Fanon (1961) adjetivava de “Burguesia de Funcionários”, ou
seja, agentes defensores de um pensamento que não se renova, os executores técnicos de uma
ordem vigente. Uma burguesia de funcionários se caracteriza como aquela que se
responsabiliza pela organização do território “colonial”, maculando os problemas sociais
vigentes através de atividades burocráticas que visam, em última análise, se nutrir da eterna
precarização dos historicamente desfavorecidos. Todo este processo se daria de maneira
conjugada aos ordenamentos sistêmicos estrangeiros, em afiliação aos órgãos internacionais
de financiamento para o combate à miséria, sem deixar de fora os grandes conglomerados
empresariais e as suas iniciativas.
Apesar de termos todas essas possibilidades, não descartamos o saber técnico,
apenas aventamos para o fato de que somente ele, deslocado de diálogo com os movimentos
65
sociais e suas questões, que são operacionalizadas na prática militante, talvez possa ser
insuficiente em alguns momentos cruciais. O saber técnico é fundamental, não se deve abrir
mão dele, e o ideal é que não esteja desacompanhado, ou engendrado em sujeitos que não
tomam para si a responsabilidade de transformações sociais. Por isso, se espera que esteja
incorporado aos atores sociais que conseguem acessar este lugar, um olhar atento para que
não esvazie a escuta das vozes que compõem o público-alvo das políticas focais, uma vez que
os mesmos necessitam de um feedback institucional para que continuem travando suas
batalhas e para a resolução dos seus problemas, que muitas vezes sofrem distorções políticas
que dificultam que esses diversos grupos minoritários possam alcançar a plena cidadania.
Portanto, a partir da visão de uma pessoa que esteve à frente da primeira gestão da
SECADI, a Drª Denise Botelho, a Secretaria funcionou como um importante elo entre os
movimentos sociais e o governo, viabilizando pautas históricas dos movimentos negros que
pudessem, enfim, sair do papel. Fica evidente, também, a importância de se conceber a
formação técnica e o perfil ativista de parte das equipes, sobretudo da primeira formação do
quadro de funcionários. Vejamos a formação das pessoas por nós entrevistadas.
17
A I Conferência Nacional por uma Educação Básica no Campo ocorreu na cidade Luziânia, estado de Goiás,
no ano de 1998 e teve como objetivo promover uma educação que contemplasse as demandas das populações
do campo, a partir de uma pedagogia produzida no interior das comunidades rurais, voltada para o contexto
do campo. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/. Acesso em: 15 set. 2016 a 06 out. 2016.
67
Ela vai muito além de educar negros, ela é para educar para as relações étnico-
raciais. Tanto é assim que aqui trabalham também as populações em situação de
itinerância, principalmente os ciganos, para isso, tem a Resolução 03 de 2012, que
visa orientar o sistema de ensino, como atender essa população em situação de
itinerância e um dos focos dessa coordenação, que é muito forte e que já tem alguns
anos, é a Educação Escolar Quilombola. Eu sou responsável por essa agenda dentro
da coordenação, se eu estiver na coordenação eu sou responsável, quando eu não
estou coordenando também sou responsável pela Educação Escolar Quilombola
(MARIA AUXILIADORA).
Desse modo, a SECADI enquanto órgão responsável por propor políticas que
visam melhor inserção e permanência do seu público-alvo nos sistemas de ensino, como
maneira de correção das desigualdades educacionais, precisa estar sempre empreendendo
diálogos horizontalizados entre as coordenações que a compõe. Por essa via, entendemos que
as transversalidades nas proposições normativas para formação ou confecção de materiais
didáticos, ainda enfrentam dificuldades para a realização de mais ações conjuntas, ou
proposições que estejam arcabouçadas em consultorias participativas.
Por sinal, é importante relembrar que a Secretaria surge sem a sigla I, que
significa Inclusão. Divina Sebastus faz essa observação, e para nós pode ser uma pista de que
permanentemente surjam novas demandas dentro da Secretaria, em consonância com os
influxos dos movimentos sociais. Logo, está posta a dinamicidade da SECADI e a
movimentação de fluxos que as organizações da sociedade civil possibilitam, em meio a
projetos galvanizadores de subjetividades até então pouco percebidas ou alavancadas pelos
sistemas de poder. Sobre esta transformação, Divina afirma que:
Foi em 2011, porque quando a SECADI surgiu em 2004, já existia uma Secretaria
que era da Educação Especial. Então, em 2010 houve uma reestruturação da
estrutura do MEC, onde a Educação Especial passou a interagir [com] as temáticas
da SECADI e aí se acrescentou a INCLUSÃO, mas é uma temática que também
precisa de um olhar ainda especial, no sentido de políticas públicas específicas, só
veio a agregar as temáticas da SECADI (Divina).
18
A lei 5.692/7, surge no período do regime cívico-militar e muda a estrutura de ensino do país, engendrando
novos operadores de oferta educacional, uma vez que o antigo curso primário e o ginásio se fundiram em um só
68
já se atendiam algumas demandas de inclusão, no entanto, sem que houvesse qualquer tipo de
secretaria específica para assuntos diversos, isto é, os assuntos que ensejam para demandas de
grupos historicamente marginalizados não estavam agrupados em um órgão específico que
concentrasse seus esforços na formulação de políticas focais para esses grupos.
É importante salientar que historicamente a modalidade de Educação Especial
esteve voltada para as pessoas portadoras de necessidades especiais, ou seja, com problemas
de audição, visão, Síndrome de Down e outras debilidades físicas. O termo inclusão se soma a
fim de promover um sentido agregador, no entendimento da oferta plural e agregadora da
educação pública, que passa a se preocupar – pelo menos no âmbito discursivo – com a
maneira com que essas pessoas ingressam e permanecem no sistema escolar.
Bárbara Sula também afirma que a Secretaria não iniciou suas atividades com a
letra I de Inclusão, e que esta demanda foi a última a ser incorporada. Mas ela nos informa
que a SECADI sempre esteve afinada com demandas dos movimentos sociais, e procura se
reconstruir de acordo com emergentes terminologias que abrem portas para novas formas de
conceber as opressões que surgem no cenário social.
Com o sentido inclusivo acrescentado, é de se esperar que as diferenças se
relacionem e se equalizem, por meio da promoção de uma educação democrática. Dessa
pluralidade pode emergir a consciência de que mais de um marcador identitário possa se
somar à experiência vivida pelos sujeitos, conforme já sinalizamos anteriormente. Um
portador de necessidades especiais pode, além disso, ter sofrido dificuldades no sistema de
ensino por ser homossexual e negro, por exemplo.
Apesar de se relacionarem, e daí se misturarem e se distinguirem, as “identidades
centrais” (negros, homossexuais, mulheres, quilombolas, indígenas, portadores de
necessidades especiais, ciganos etc.) são preservadas através do fio condutor da oferta da
Secretaria. A importância de reconhecer as particularidades de cada identidade se ancora no
fato de que sem isso seria impossível haver a SECADI, pois é o retorno à “identidade
primeira”, professada por uma ficção grupal que toma como base os pontos comuns que
perpassam por gerações, localidades e agenciamentos políticos e sociais (SODRÉ, 2012),
arregimentam os movimentos sociais e torna possível o atentar para os ordenamentos
sistêmicos que não seriam descortinados caso as identidades fossem totalmente esfaceladas.
Dessa maneira, nos esforçamos em entender se existem transbordamentos
operacionais que estão influenciados por um suposto ativismo dentro da SECADI, ou se essa
curso. No bojo dessas transformações fora necessário a composição de novas secretarias que dessem conta das
demandas surgidas naquele contexto, e uma delas foi a de educação especial (KASSAR, 2011).
69
Bárbara destaca que cada tema tratado pela SECADI possui sua importância, e
isso está consubstanciado no fato de que as políticas ofertadas não são aprovadas sem que
haja muitos debates e estudos acerca das problemáticas insurgentes.
Essa possibilidade nos sugere pensar que mesmo diante de diversas dificuldades
de compreender o racismo, por parte de boa parcela da sociedade brasileira, a coordenadoria
da SECADI que trata das questões atinentes às questões raciais, tem como orientação,
justamente o combate ao racismo em todas as instâncias, não se restringindo ao campo
específico no qual são proponentes de políticas públicas. Essas articulações agregam tanto
aqueles os quais tomam contato pela primeira vez com a temática, mas também a equipe das
relações étnico-raciais, uma vez que o relacionamento entre conhecimentos de diferentes
campos do saber se interconectam e dão lugar para pensar novos agenciamentos e políticas.
A compartimentação das coordenações que atuam na SECADI é a possibilidade
de ofertar uma educação mais especializada, considerando dois fatores: A) a alocação de
profissionais que se qualificaram para trabalhar com determinada especialidade estimula mais
pesquisas nas áreas subsequentes; e B) a compreensão mais estreita acerca das demandas dos
atores sociais, através de diálogos e ouvidorias de grupos organizados, melhora o atendimento
dos mesmos.
De modo geral, as nossas entrevistadas concordam que a SECADI oferta
promoção de educação especializada e que depende de um bom relacionamento com os
movimentos sociais, e, mesmo com uma leve discordância de Maria Auxiliadora, elas
convergem no crédulo de que os seus membros precisam estar afinados com o tema da
coordenadoria em que está alocado, e que esse fato atraiu pessoas que não somente estudaram
acerca das temáticas propostas, mas estiveram junto aos movimentos sociais contribuindo
empiricamente em suas organizações.
Portanto, na visão dos membros entrevistados durante a gestão de 2016, a
SECADI surgiu para tentar dar funcionalidade prática aos direcionamentos do Plano de Ação
de Durban, sendo o modo mais eficiente para tornar factível aquilo que se aprovou naquela
71
Conferência. Para tanto, estreitou os laços com os movimentos sociais e contratou pessoal
especializado e de bom trânsito com os mesmos. Nesse sentido, o nosso próximo passo visou
observar como seriam esses agenciamentos entre Durban e SECADI.
Insta os Estados a assegurarem o acesso à educação e a promoverem o acesso a novas tecnologias que
ofereçam aos africanos e afrodescendentes, em particular, a mulheres e crianças, recursos adequados à
educação, ao desenvolvimento tecnológico e ao ensino a distância em comunidades locais (Declaração
de Durban e Plano de Ação, p.44).
diversos, que, de certo modo, conflui para o que fica como encaminhamento sugerido a partir
de acordos internacionais. Denise complementa que:
A partir desta colocação de Sueli Carneiro, fica evidente que, mesmo por dentro
dos espaços de discussões mais específicos em torno do racismo, o problema pode ser
esvaziado e perder força para outros pleitos que direcionam questões que, ainda atravessadas
pelo racismo, o dissimula, fazendo emergir outras categorias analíticas, sem operacionalizar
propostas que amplifiquem as possibilidades de correções raciais dentro da especificidade na
qual se projetou determinada agenda política.
Houve, portanto, muitas queixas por parte das lideranças dos movimentos negros
brasileiros no tocante ao entendimento de que a conferência tivera um caráter muito
abrangente. Por mais que existam diferentes maneiras de se empreender lutas pelo fim das
desigualdades sociais, muitos militantes e/ou intelectuais compreendem que aglutinar
diferentes grupos historicamente marginalizados em torno de uma única estratégia de combate
às opressões, causaria maior esfacelamento dentro do grupo historicamente mais fragilizado,
neste caso o negro (SILVA; PEREIRA, 2012).
Esse fato ocasiona a nossa pergunta-chave: A SECADI é resultado direto de
Durban? Essa questão é atravessada por conta de sabermos que a Secretaria é abrangente em
sua oferta de educação, abarcando diferentes modalidades para grupos que historicamente
também se organizaram em torno da busca de resolução para os seus problemas. Se a
SECADI é consequência direta de Durban, então por que a Secretaria não atende apenas os
grupos sinalizados no seu documento final?
Conforme sinalizado, a SECADI agregou os grupos marginalizados para a oferta
de políticas específicas, e essa estratégia não retirou dos negros a possibilidade de se
organizar com a posse de ferramentas que lhes possibilitam maior envergadura na luta contra
o racismo. Por esse motivo, ao perguntamos para as nossas entrevistadas sobre a Conferência
de Durban e a criação da SECADI, se era possível traçar um paralelo, todas conseguem
identificar alguma relação. Para Divina,
Bom, eu acho que contribuiu e muito também, porque em 2001, que foi [realizada] a
Conferência, eu acho que ela veio fortalecer, vamos dizer assim, as temáticas da
SECADI, porque como a SECADI foi criada em 2004, já com temáticas que para a
sociedade eram ainda sem muitos conhecimentos, sem muitas informações, então eu
acho que a partir de 2001 isso vem fortalecer as temáticas trabalhadas pela SECADI
(DIVINA SEBASTUS).
campos de luta, então podemos dizer que os movimentos negros aglutinam outros grupos,
empreendendo esforços pela via do combate ao racismo e de outras formas de preconceito.
Fica evidente, portanto, que o primeiro e mais longo movimento social brasileiro é o
movimento negro, se responsabilizando por catalisar a potência de outras organizações
políticas sem que o combate ao racismo seja apagado (SODRÉ, 2012).
Analisando por esse prisma, a Conferência de Durban foi um start para que outras
questões, não debatidas naquele momento, fossem observadas mais atentamente e somadas às
estratégias da Secretaria em ofertar políticas educacionais de modo plural. A abrangência de
temas de uma Conferência é dada através dos desdobramentos políticos que geram novas
demandas e se estendem para novos olhares e possibilidades de reorganização dos
movimentos sociais, tudo frente ao modelo de ação que realmente será adotado pela
conjuntura política vigente.
Este fato pode ser constatado a partir da afirmação da então presidenta da
Organização de Mulheres Negras de São Paulo – Fala Preta, Edna Roland, uma das cinco
pessoas escolhidas pela Organização das Nações Unidas – ONU como responsáveis para
acompanhar se as resoluções da conferência estão sendo cumpridas, conforme em entrevista
para Silva e Pereira (2012):
Está evidenciado que não se negocia políticas públicas sem que haja muita
preparação técnica anterior. Inúmeras conferências e grupos de trabalhos fazem parte de
diversas investidas que agregam na formação acadêmica, militância política e diálogo com
atores de diversos movimentos sociais. No caminho percorrido para implementar uma política
pública, se faz necessário a compreensão do funcionamento sistêmico das instituições e quais
19
A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), mais conhecida como Conferência
do Cairo, foi realizada em setembro de 1994 e teve como principal objetivo reconhecer o exercício dos
direitos humanos e potencializar os meios de projeção da mulher como importante agente que impacta na
qualidade de vida das populações.
20
A IV Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher, realizada em Pequim, em setembro de 1995, teve como
principal objetivo a promoção dos direitos da mulher, denunciando e propondo ações que corrijam a situação
de vulnerabilidade em que se encontram as mulheres em todo o mundo.
75
os seus papéis na sociedade, pois só assim se torna possível traçar as estratégias cabíveis para
intervir em suas estruturas.
Apesar de tantos operadores que sinalizam para uma estrutura que historicamente
dificulta que haja igualdade racial, é importante demonstrar que em cada conjuntura há
investidas que se organizam para a quebra da hegemonia, que prejudica o equilíbrio social.
Geralmente a ONU funciona como mediadora desses interesses, ainda que se articule de
modo a apenas atenuar os problemas, e não advogar por uma ruptura radical desse modelo
capitalista, já que sem ele a própria ONU teria a sua existência ameaçada. Deste modo, se
buscou realizar diversas conferências as quais visavam o debate sobre os caminhos a serem
percorridos para que as populações menos favorecidas fossem melhores atendidas em suas
demandas no interior de cada país signatário.
A produção de documentos ao final de intensas, extensas e complexas discussões
ocorridas em cada conferência pressupõe que cada país signatário apresentasse pautas
distintas que sinalizasse para descompassos sociais no interior de cada um deles, atestando
para a inelutável realidade, que é a advertência de que sem luta se torna quase impossível o
atendimento de agendas que clamam por melhor distribuição da riqueza e tolerância ao painel
racial encontrado. Obviamente que o cumprimento daquilo que as conferências da ONU
preconizam não são facilmente realizáveis, tanto por interesses difusos entre os grupos que
granjeiam o poder econômico local quanto pela afiliação que os mesmos precisam manter
para que permaneçam no poder.
Segundo Santos (2015), a realidade brasileira se inscreve na advertência ao qual
chamamos a atenção acima. Para ele, os movimentos sociais brasileiros, sobretudo os
movimentos negros, se articulam permanentemente para pressionar o Estado em direção à
incorporação de suas demandas. Com isso, se produzem relatórios de acompanhamento sobre
as ações consubstanciadas, a fim de diminuir o abismo de desigualdade social. As
dificuldades se mostram acaloradamente no campo da descontinuidade das políticas públicas
e nas brechas da normatividade, apontando na direção que confirma a tese de que o racismo
institucional é a maior barreira de ascensão do negro em nossa sociedade.
Este mesmo autor, Santos (2015), afirma que a III Conferência Mundial Contra o
Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, ocorrida em Durban
no ano de 2001, foi a ponta de lança para desencadear um novo processo de transformação
nas relações políticas em relação à população negra no Brasil. Motivados pelos documentos
que orientam para novas relações arregimentadas pelos Direitos Humanos, os movimentos
negros passaram a pressionar o Estado brasileiro para o cumprimento daquilo que ficou
76
acordado nesta Conferência. Sendo preciso, portanto, que a ONU fosse a mediadora, ou
fiscalizadora, nesse processo de implementação dessas medidas.
Para que isso fosse realmente efetivado seria necessário contar com a presença de
técnicos da ONU, pessoas capazes de identificar a gravidade do problema e, com efeito,
propor medidas ajustadas ao que os documentos prescrevem. De acordo com Santos (2015),
estes relatores possuem um conjunto de orientações normativas aos quais devem se balizar,
servindo como catalisadores para um olhar mais acurado acerca das mazelas que acometem os
grupos historicamente marginalizados, e que pleiteiam justiça social. Santos elenca as
“prerrogativas e competências” exigidas para que esses técnicos possam identificar o nível de
cumprimento com os preceitos dos direitos humanos nos países signatários de Durban:
Evidentemente que para o Estado cumprir com todas essas prerrogativas seria
necessária uma nova configuração da ordem sistêmica nacional e no modus operandi das
instituições que manejam o exercício legal de investigação criminal e de organização dos
preceitos cidadãos, e isso é praticamente impossível em meio à profunda realidade histórica
na qual o país se edificou. Dito isto, é pertinente assinalar que esses técnicos poderão
observar, com imensa dificuldade, um painel que – até pela dificuldade legalmente imputada
– atesta para uma miríade de problemas complexos a serem analisados sob a ótica de relações
que se articulam e se distanciam de acordo com interesses particularistas.
Desde o ano de 2002, três relatores da ONU foram designados para o Brasil,
fazendo a apreciação do painel social no que concerne às formas de discriminação e racismo
materializados no território nacional. O beninense Maurice Glèlè-Ahanhazo, o senegalês
Doudou Diène e o queniano Githu Muigai, foram, respectivamente e em uma linha temporal
demarcada, os designados para a missão de operar a observância acerca destas questões no
Brasil. A última visita é a do último designado citado, e deu início no ano de 2008, quando os
demais já haviam completado o tempo de inquirição (SANTOS, 2015).
É possível identificar que todos os relatores tiveram pontos comuns em suas
asserções, pois passaram entre seis e oito anos observando e investigando documentos oficiais
77
4 A CONFERÊNCIA DE DURBAN
Um dos acontecimentos internacionais mais importantes do final do Século X, cujas sugestões devem
ser absorvidas e adotadas pelas instâncias governamentais e por todos os segmentos da sociedade
(Declaração de Durban e Plano de Ação, p.7)
final, fora produzido a Relatoria Especial, na qual tecia conhecimentos sobre novas
manifestações de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata.
Não se pode perder de vista que a Organização das Nações Unidas – ONU,
fundada em outubro de 1945, é um órgão internacional que surge após a Segunda Guerra
Mundial com o intento de reunir nações e promover parâmetros internacionais para que se
possa garantir o cumprimento dos direitos humanos em âmbito local e global. Segundo Silva
e Pereira (2012), a ONU surge em um contexto em que há
21
Aqui é importante sinalizar que os autores fazem menção ao projeto UNESCO, que teve o Brasil da década de
1950 como fonte de pesquisa para se compreender os fatores que conduzem uma nação a se ter um convívio
racial pacífico entre os povos. Segundo eles, o órgão tinha o Brasil como modelo racial democrático, ao
contrário de países como África do Sul e EUA.
81
países, atentando para o fato de que o término da escravidão negra no século XIX não pôs
termo ao racismo.
Não obstante, o nosso olhar não pode deixar de considerar os entraves e conflitos
ocorridos no interior de cada conferência e dos respectivos documentos produzidos ao final
delas, uma vez que a ONU não constitui um bloco homogêneo e os países participantes
carregarem interesses específicos em decorrência das problemáticas enfrentadas em âmbito
local, o que inviabilizaria a conjugação de decisões multilaterais, ou seja, a efetivação de
medidas de erradicação de todas as formas de preconceito e discriminação não depende
exclusivamente da produção de normas estabelecidas pela ONU.
Paulatinamente, a ONU incorporava o debate acerca do racismo como ponto
central em seu rol de discussões. Entretanto, e como dito anteriormente, os meios para a
consecução dos objetivos – erradicação do racismo e das diferentes formas de preconceito –
não se efetivavam de maneira substancial, levando em consideração os índices de
desigualdades sociais em cada um dos países membros, e também a ocorrência de conflitos
raciais no mundo, tal como o apartheid na África do Sul.
O “passo à frente” dado pela ONU foi a criação de uma década de combate ao
Racismo, que já se inicia com a comemoração dos 25 anos da Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Silva e Pereira (2012) assinalam que a intenção era fomentar debates em
âmbitos regionais e nacionais que corporificassem esforços e dessem tônus para a realização
de uma conferência mundial, tendo como prazo de no máximo cinco anos após a criação da
referida década. A culminância dessas investidas foi a conferência ocorrida em Genebra, na
Suíça, no ano de 1978:
países da América Sul, exercendo o seu protagonismo, considerando o fato de ser o país com
o maior contingente de negros fora do continente africano, o histórico de lutas dos
movimentos negros brasileiros e os seus impactos na região.
É importante assinalar que, contemporaneamente, os movimentos negros no
Brasil reorientaram os seus escopos de organização em torno do princípio de identidade negra
a partir de um princípio transnacional, e isso impactou nos outros países latino-americanos.
Segundo Trapp (2011), esses movimentos deixaram de se organizar em torno do ideal de
identidade nacional e passaram a operar com uma mirada para o continente africano.
Logo, as novas articulações políticas em torno das lutas antirracismo se pautam
com vistas às experiências diaspóricas, porém vinculadas ao princípio de ancestralidade
comum africana. Desse modo, os vínculos e trocas locais e internacionais se intensificaram e
tonificaram a necessidade de fortalecimento de pontos tangenciais entre os negros na diáspora
latino-americana, no entendimento de que os problemas enfrentados seriam similares e a
solução viria a partir de uma agenda unificada.
Segundo Igreja e Agudelo (2014), muitos países da América Latina e do Caribe
iniciaram um processo de transformações em suas legislações orientadas pela mirada
multicultural, que antes havia sido dificultada pelo quase apagamento das identidades raciais.
A autora sinaliza que o final dos anos 1980 teria sido o período-chave para essas mudanças,
pois esse “giro multicultural” teria substancializado o princípio de alteridade imputado
primeiramente aos indígenas e, posterirormente, agregando as populações afros.
Os elos estavam conectados por uma série de confluências, e os eventos históricos
de colonialismo e escravização sinalizaram para o despertar da necessidade de uma revisão da
história que pudesse dar conta de compreender os processos de submissão à miséria ao qual a
população negra ainda sofre na contemporaneidade. Obviamente que ao pensarmos na
construção de uma identidade transnacional as diferenças devem ser salvaguardadas,
considerando as particularidades que engendram o processo de ocupação territorial feito por
cada povo em específico.
Entre a metade dos anos de 1980 e 1990 muitos estados latino-americanos e
caribenhos consolidam as medidas perseguidas há anos, que visavam o reconhecimento
institucional de suas identidades autóctones e de origem africana. Segundo Igreja e Agudelo
(2014), esse processo se deve, em parte, aos contributos de organismos internacionais que
85
22
Os autores citam os principais órgãos envolvidos no processo descrito. São mencionados “O Banco Mundial
(BM), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Organização das Nações Unidas (ONU), o
Programa de Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a Organização Internacional de Trabalho
(OIT), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a Organização
dos Estados Americanos (OEA)” (IGREJA; AGUDELO, 2014, p. 15).
86
pelo racismo brasileiro teria sido veiculada em vários países estrangeiros, e em decorrência
disso a delegação brasileira desembarcava em Genebra em meio a um clima de indignação
mundial.
Superado o problema, se fazia necessário entender que os eventos preparatórios
seriam a viga mestra da conferência, por isso a delegação brasileira não poderia ter um corpo
formado apenas por diplomatas, mas, sim, por uma composição heterogênea de perspectivas.
Ficou, portanto, a cargo da Fundação Palmares, na figura da ativista negra Dulce Pereira, o
equilíbrio necessário entre as forças políticas, mesmo porque à Fundação estava designada a
missão de “formulação estratégica, institucional e política da participação brasileira na
Conferência Mundial” (SILVA e PEREIRA, 2012, p. 105).
É importante registrar que, segundo Carneiro (2002), os eventos preparatórios
foram propiciados por meio da criação de um “comitê impulsor Pró-Conferência”, que foi
pensado e estruturado por ativistas e sindicalistas. Segundo a autora, o comitê teve o papel
preponderante ao elaborar a denúncia que tornou público o descumprimento do Estado
brasileiro em relação ao que se inscrevia nas conferências anteriores a Durban, se esquivando
da formulação de medidas de combate ao racismo, por conseguinte, permitindo o
agravamento das desigualdades raciais no país.
Desse modo, o comitê articulou as entidades negras brasileiras em torno de um
pleito comum, a denúncia do racismo no Brasil. Foi através da sistematização das demandas e
das perspectivas em relação ao combate ao racismo que o comitê elaborou o documento
balizador sobre os efeitos do racismo no país, possibilitando a formação das delegações que
estariam à frente na Conferência de Durban. Vale ressaltar que Carneiro (2012) destaca o que
Igreja e Agudelo (2014) também sinalizam, ou seja, sobre as composições dos países da
América Latina para a participação em Durban.
durante e depois da conferência. Trapp (2011) acentua que após as intervenções dos
movimentos de mulheres o debate acerca da “política de diferença” ganha novas dinâmicas
dentro dos movimentos negros, que se tornam ainda mais heterogêneos.
Não obstante, não se pode deixar de mencionar que houve contradições e
contrapontos em relação à organização brasileira para a participação na Conferência de
Durban. A mais evidente se dá no processo de escolha da sede para a preparação, tendo em
vista uma declaração dada pela militante Dulce Pereira na plenária oficial da I PrepCon
(Conferência Preparatória para a III Conferência Mundial) alegando que o Brasil não teria
condições de sediar a conferência continental, quando afirmou que “[e]ntre outras razões, o
próprio Movimento Negro estaria contra o Brasil sediar aquela Conferência” (SILVA;
PEREIRA, 2012, p. 106).
De fato, foi uma declaração que gerou grande contenda política, mas que
necessitava ser analisada com certa ponderação, pois a presidenta da Fundação Palmares
naquela época (Dulce Pereira) já havia sido uma aguerrida militante do movimento negro
desde a década de 1970. Silva e Pereira (2012) sinalizam que a gestão de Dulce Pereira na
Fundação Palmares esteve atravessada por diversas disputas, pressões e apoios, já que a
mesma esteve em dois lados opostos na briga política partidária, afetando também as
avaliações dos setores dos movimentos negros. Sobre esse episódio, os autores concluem que
a declaração, além de inflamar os ânimos, se originava de uma complexa rede de embates
políticos e ideológicos.
O desgaste ocasionado por essas declarações precisou ser manejado pelo governo
brasileiro, na figura do presidente Fernando Henrique Cardoso, já que havia muito pouco
tempo para que o país organizasse um comitê preparatório para a Conferência. Cabe salientar
que a criação do Comitê Nacional para a Preparação Brasileira para a Conferência a se
realizar em Durban, se deu justamente pelo clima de disputas e insatisfações que ocorriam no
âmbito das tomadas de decisões do governo, mas também em face à articulação dos
movimentos negros.
Silva e Pereira (2012) lembram que a Fundação Palmares buscou fortalecimento
através do convite de importantes intelectuais negros para assessorá-los durante o processo.
Eles sinalizam também para o fato de que a presidenta da Fundação teria assumido um cargo
de embaixadora, sendo designada à presidência da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa – CPLP, acarretando na substituição por Carlos Moura.
Não se pode perder de vista que as atividades aconteciam concomitantemente e
em um forte ritmo de trabalho. Eram reuniões nacionais e regionais que debatiam
88
Nota-se que se trata de uma forma genérica, mas unificadora de uma identidade
comum que vincula diversas categorias à apenas uma, funcionando como estímulo para
políticas públicas que abarcam as demandas negras sem a necessidade de uma intensa
fragmentação em face de diferenças que engendram outras especificidades, não
necessariamente decorrentes dos efeitos da diáspora nem por isso menos importante. Nesse
89
sentido, o uso do termo afrodescendente “não esgota, contudo, o debate e o uso de outras
formas de nomear as populações negras” (IGREJA; AGUDELO, 2014, p. 17).
Após a conferência de preparação ocorrida no Chile, o movimento negro
brasileiro necessitou fazer um balanço de todos os debates e buscar uma unificação dos
pleitos para a participação em Durban. De acordo com Silva e Pereira (2012), houve dois
momentos cruciais que marcam a tentativa de unificação da agenda do movimento negro
brasileiro no plano interno, que foram as Plenárias Nacionais de Entidades Negras.
A primeira ocorreu em São Paulo, no mês de julho do ano 2000, em que se
discutiu a eficiência de articulação política para intervir com qualidade na conferência. A
segunda ocorreu em virtude de uma convocação para uma reunião nacional feita pelo Comitê
Impulsor, no qual a principal deliberação foi dada em função da necessidade de realização de
um seminário nacional para aprofundar as estratégias de participação do movimento negro e
como seria possível adquirir recursos por meio de parcerias fora do âmbito da militância.
Após essas conversas, finalmente fora realizada a II Plenária Nacional de
Entidades Negras, ocorrida em três dias na cidade do Rio de Janeiro. Para Silva e Pereira
(2012), esse encontro foi sumamente importante para a militância do movimento negro, uma
vez que funcionou como o espaço para elucidações e, sobretudo, a “última” formação para o
movimento negro participar da Conferência de Durban. Neste Clima,
Os autores assinalam ainda que o papel das ONGs negras foi preponderante para
fortalecer a compreensão acerca da postura esperada da militância do movimento negro na
Conferência. Além disso, passava quase que necessariamente pelo crivo das ONGs negras os
nomes de quem iria para Durban, afinal elas eram as principais mediadoras que dialogavam
com as agências que poderiam financiar a participação de grande parte da delegação
brasileira.
As principais ONGs que articularam investimentos para a participação brasileira
foram o Centro de Articulação das Populações Marginalizadas – CEAP/RJ e o Centro de
Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT/SP, que, sobretudo, mantiveram
estreita relação com a Fundação Ford, angariando os recursos necessários para a mobilização
de todo o processo de construção da participação brasileira. Nem por isso podemos deixar de
mencionar o protagonismo de ONGs negras como Geledés, Criola e a Casa de Cultura da
90
Mulher Negra (CCMN), responsáveis por debates importantíssimos que alertavam para a
situação da mulher negra23.
Por fim, ainda é preciso registrar que no mês de maio também ocorreu a II
Prepecon, em Genebra, Suíça. Segundo Silva e Pereira (2012), nesse evento ficou firmado o
conceito de “preparação”, tornando nítido o que se esperava em relação à postura dos
militantes na conferência, além de todo arcabouço sistêmico da dinâmica da conferência, ou
seja, os temas, as redações, os detalhes conceituais e todas as informações atinentes ao
andamento das pautas. Eles afirmam que as ONGs foram bem recebidas quanto às suas
contestações e contribuições direcionadas sobre as delegações que representavam os
respectivos países.
Acreditamos que a igualdade de oportunidades real para todos, em todas as esferas, incluindo a do
desenvolvimento, é fundamental para a erradicação do racismo, discriminação racial, xenofobia e
intolerância correlata (Declaração de Durban e Plano de Ação, p.30).
De acordo com Alves (2002), Silva e Pereira (2012), Trapp (2011), Igreja e
Agudelo (2014) e Carneiro (2002), a Conferência de Durban fora marcada pela massiva
participação dos movimentos sociais, sobretudo os movimentos sociais negros, com destaque
para o movimento negro brasileiro e a sua articulação com os países latino-americanos, que
propuseram importantes pautas que foram acrescentadas ao documento final e demonstraram
para o mundo – sob a ótica de quem sofre racismo e outras formas de preconceito – sobre a
necessidade de políticas focais para os grupos historicamente marginalizados das Américas do
Sul e Central, e também do Caribe.
Apesar de todo um processo que demonstrou a intensa garra dos movimentos
sociais em busca de melhores condições de vida e relacionamento entre as pessoas, a
Conferência de Durban passou por diversos entraves que ameaçaram desde a sua existência
23
Cabe salientar que existe um extenso debate acerca da renovação dos movimentos sociais a partir dos anos de
1990. Segundo Ferrari (2014), a nova dinâmica incorporada por esses movimentos se entende por conta da
permutação em relação aos papéis desempenhados por membros diretos da sociedade civil organizada,
transferindo competências para organizações que também se articulam em torno de transformações sociais,
porém, mediadas por atores que não estão diretamente envolvidos nas ações militantes dos movimentos
sociais. De acordo com o autor, esse fenômeno é conhecido como “onguização” dos movimentos sociais.
Ferrari (2014) e Dagnino (2014) concordam que a tomada das ONGs em relação a sociedade civil acarreta em
problemas para os movimentos sociais, na medida em que há um afastamento entre elas e os ativistas que não
participam dessas ONGs, pois, segundo os autores, os interesses políticos em torno de articulação com o
estado e financiamento para o desenvolvimento dos trabalhos ofertados para os seus públicos, são fatores
fundamentais para a compreensão da tensão que se estabelece entre os movimentos sociais e as ONGs, desde
os anos de 1990.
91
até o seu término, que fora sempre salvaguardados pela insistência dos ativistas, resultando
em propostas substanciais e que ecoam, sobretudo, no momento político posterior, quando se
firmam a garantia de direitos e deveres, para cidadãos e para os Estados presentes.
Quando sinalizamos que houve conflitos na conferência, nos reportamos a
problemas que parecem de natureza quase insolúvel, como, por exemplo, os debates em torno
dos conflitos entre Israel e Palestina, os quais as nações mais ricas do mundo se posicionam
em favor da manutenção do conflito até que haja um acordo político que, de modo geral, não
é aceito pela Palestina – lado economicamente mais fraco – pelo fato de entender que as
relações estabelecidas sinalizam ganhos desiguais (ALVES, 2002).
De acordo com Alves (2002), o que mais chamou a atenção, porém sem constituir
nenhuma surpresa, foi a postura dos EUA na Conferência, negando-se a debater as questões
do Oriente Médio, colocando-se “incondicionalmente” ao lado de Israel e esvaziando um
debate mais horizontal para a proposição de medidas de natureza antidiscriminatórias em
relação aos povos daquela região, em especial aos palestinos, e tanto pelos próprios norte-
americanos quanto aos israelenses.
A celeuma se deu, de modo mais efetivo, em torno da busca, por parte dos árabes,
em classificar o sionismo como uma forma de racismo, ou seja, em imputar aos judeus uma
nova categoria de holocausto, o que, consequentemente, equipararia o Estado de Israel à
Alemanha nazista de Adolf Hitler. Esse pleito trouxe consequências aos árabes e à
conferência, pois
interior de suas sociedades. A delegação brasileira também esteve atenta ao debate e votou
contrária à proposta de equiparação do sionismo ao racismo, uma vez que, segundo Alvez
(2002), as autoridades competentes nas Nações Unidas também já sinalizavam para o
encerramento dessa questão24.
Assume-se sumamente importante sublinhar que as delegações do Brasil e do
México tomaram as rédeas da coordenação de grupos de trabalho e serviram como
mediadoras das conflitantes posições dos participantes e redigiram importantes parágrafos
para a Declaração Final e para o Plano de Ação de Durban, tudo tendo como base os
anteprojetos trabalhados anteriormente nas conferências preparatórias. Essa posição assumida
tanto pelo Brasil quanto pelo México, foi um desdobramento da decisão da ministra das
Relações Exteriores da África do Sul, Nkosazana Zuma, após entender que as questões
atinentes ao Oriente Médio causavam desgaste na Conferência e não contribuía para a sua
fluência25.
Embora houvesse entraves como os até aqui apresentados, a Conferência flui para
importantes conquistas, muitas delas já operacionalizadas em âmbito continental e nacional,
uma vez que parte das propostas historicamente levantadas pelos movimentos negros passam
a ser atendidas, talvez reconfiguradas de acordo com outros arranjos, possibilidades e
contrapropostas apresentadas pelos Estados, o que não reduz a importância das conquistas
logradas em Durban. Segundo Carneiro,
24
Importante dizer que nos referimos ao secretário-geral Kofi Annan e à alta comissária para os Direitos
Humanos, Mary Robinson.
25
Segundo Alves (2002), o Brasil fora representado pela figura do Embaixador Gilberto Sabóia, ao qual coube
coordenar as “questões históricas”, auxiliado e assessorado por Quênia, Noruega e Namíbia, uma vez que
havia a necessidade de dialogar com os documentos do Acordo de Oslo e sobre os conflitos no Oriente
Médio.
26
Importante dizer que o que está entre aspas foi retirado do Parágrafo 5 do Programa de Ação da Conferência
de Durban.
93
contato pessoal, manteve certa harmonia e coesão, dado um caráter pré-moldado em face do
que já havia sido debatido em conferências preparatórias, cabendo, portanto, apenas os ajustes
necessários para aprovação e validação em âmbito global.
Uma característica importante sinalizada por Silva e Pereira (2012), Carneiro
(2002), Trapp (2011), Alves (2002), Igreja e Agudelo (2014), é que pela primeira vez há um
reconhecimento internacional acerca da positividade das heranças africanas na formação de
outros povos, fora dos limiares do continente africano, que ultrapassa o âmbito da cultura e da
religiosidade, uma vez que se assume a importância de elementos ligados à economia, lido
com a saúde, aportes e métodos educativos etc., como basilares para o modo de vida que
forja, ainda hoje, as sociedades com histórico de imigração de grande contingente de pessoas
oriundas dos países africanos.
Reside daí o fato de que acadêmicos e sujeitos ligados a militância dos
movimentos negros brasileiros e dos países da América Latina tenham desenvolvido
pesquisas, teses e um cabedal de epistemologias que foram reconhecidas como elementos-
chave para entender a formação social dos países que compõem este bloco. Essa é uma grande
conquista, já que existe um expressivo número de autores que denunciam que a
intelectualidade brasileira tende a analisar esta sociedade de maneira compartimentada, ou
seja, tematizando o negro como elemento alienígena à formação social deste país27.
O entendimento é o de que apesar da importância dos negros na formação da
sociedade brasileira, os mesmos estiveram às margens do processo de modernização do país,
uma vez que as suas desvantagens em relação às pessoas brancas foram potencializadas por
meio do racismo, cabendo a organização de políticas que pudessem lhes oportunizar meios
para acompanhar o desenvolvimento social e político observado no mundo desde a segunda
metade dos anos de 1990.
Nesse sentido, a Conferência de Durban fora o marco organizativo de lutas
históricas dos movimentos negros, pois estabeleceu uma direção baseada em um orientador
normativo que tornaria possível a adoção das medidas cabíveis para a redução do abismo
social entre negros e brancos, propiciado por questões históricas atravessadas pelo racismo.
27
Podemos citar Guerreiro Ramos (1957), Muniz Sodré (1988, 2000 e 2014), Milton Santos (2007), dentre
outros. Os autores citados foram debatidos ao longo da tese e as suas obras constam nas referências
bibliográficas.
94
A expressão corrente ação afirmativa foi banida da Conferência, por mais que os
movimentos negros – inclusive o brasileiro – e outros grupos organizados presentes
ao evento a defendessem. E foi banida exatamente pelo país que a inventou, na
linguagem e na prática: Os Estados Unidos. Isso porque, como é sabido, ainda nos
tempos do democrata liberal Bill Clinton, alguns Estados norte-americanos,
começando pela Califórnia, já a haviam legalmente abolido (ALVES, 2002, p.2007).
Essa afirmação é crucial para que possamos focar em uma avaliação mais
aproximada possível para perceber como os governos estão pondo em prática os
desdobramentos dessa conferência. Daí a nossa inclinação para entender o panorama de Brasil
e Uruguai frente à conjuntura do pós-Durban, uma vez que são dois países que estiveram
bastante ativos – na figura dos seus ativistas de movimentos sociais – naquela conferência,
bem como o fato de possuírem um extenso histórico de lutas dos movimentos negros.
Há, nesse sentido, uma transformação, também, no panorama dos agenciamentos
políticos dos movimentos negros, já que foram necessárias adequações de governos e
movimentos para o trato com as novas demandas e direcionamentos em âmbito internacional
para as questões atinentes ao combate ao racismo.
5 O PANORAMA NO URUGUAI
Após refletirmos acerca do debate racial brasileiro, tendo como escopo principal a
apresentação do percurso histórico do movimento negro desde 1980, em sua dimensão
organizativa e reivindicativa e dentro de cada conjuntura política e social ao qual se inscrevia,
e sempre observando a evolução do cenário educacional, a nossa tese se concentrará agora em
analisar sobre o contexto uruguaio e entender como os movimentos negros de lá se preparam
para a Conferência de Durban e quais as suas conquistas posteriores.
O Uruguai é um dos países que compõem a América Platina, juntamente com o
Paraguai e com a Argentina, tendo sido fruto de disputas entre portugueses e espanhóis desde
o século XVII, acarretando na vitória dos espanhóis e, portanto, possuidores do direito de
exploração e colonização sobre aquelas terras.
Mais tarde, já no século XIX, o Brasil se une à Argentina (Províncias Unidas do
Prata) e intensifica um ataque contra o Uruguai, pois temia o ímpeto revolucionário do
general José Artigas, que carregava como bandeira de luta os ideais antiescravistas e
republicanos, ameaçando a soberania dos governos portugueses das províncias ali próximas.
Por esses motivos, a Coroa portuguesa anexa o território uruguaio ao Brasil sob o nome de
Província Cisplatina e a controla até o ano de 1828, quando se reconhece a independência do
Uruguai28.
Tendo passado por um intenso processo histórico que envolve disputas territoriais,
crises, ajustes políticos e econômicos, o Uruguai apesar de não fugir muito de uma tendência
geral dos países da América Latina – pelos motivos supracitados –, possui, hoje, um estado de
bem-estar social muito diferente dos seus vizinhos, apresentando índices de qualidade de vida
que lhes renderam o título de “Suíça da América do Sul”. Como teria o Uruguai conquistado
esses índices?
Dois aspectos cruciais se inscrevem no fato de que o Uruguai possui uma pequena
faixa territorial, com cerca de 176.220 Km² entre os seus dezenove departamentos, os quais
não possuem grandes obstáculos geográficos, pois se trata de um país plano, ao nível do mar,
28
Consultado em: CAÉ, Rachel da Silveira. Escravidão e Liberdade na Construção do Estado Oriental do
Uruguai (1830-1860). Dissertação de Mestrado em História da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro – UNIRIO. Ano: 2012. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/2451/e-verdade-que-o-
uruguai-ja-fez-parte-do-brasil. Acesso em: 25 mar. 2019.
100
e com o ponto mais alto de apenas 514 metros, no Cerro Catedral 29. Estes atributos
geográficos permitem melhor circulação de bens e pessoas, não exigindo grandes esforços
para cruzar o país.
Outro aspecto que pode ter contribuído para uma satisfatória organização
territorial do Uruguai é o fato de não possuir um contingente populacional muito numeroso. O
censo mais atualizado naquele país contabilizou um número de 3.286.314 pessoas, o que não
pode ser considerado como números absolutos tendo em vista as variáveis da pesquisa, como
podemos observar:
El Censo 2011 fue el primer censo nacional de poblacíon que se realizó bajo la
metodologia “de derecho” y que utilizó dispositivos electrónicos portátiles (DEP)
para la captura de la información. La población total contabilizada fue de 3.286.314
personas, una cifra que se obtiene al sumar la población censada (3.252.091
personas) y la estimación de la cantidad de personas residentes em vivendas
particulares censadas con moradores ausentes (34.223 personas). De acuerdo al
informe de resultados finales difundido por el INE, la población residente en
Uruguay se estima en 3.390.007 personas (INEa, 2012) (CABELLA; NATHAN;
TENENBAUM, 2013, p. 10).
29
Informações disponíveis em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Geografia_do_Uruguai. Acesso em: 25 mar. 2019.
101
El libro del Centenario del Uruguay, que constituyó una emblemática y apretada
síntesis del imaginario de los uruguayos desde mediados de la década de 1920,
señalaba la debilidad de la presencia social y cultural de la población de origen
africano y sus descendientes. Esta vision racista y classista subrayaba los aportes de
los grandes empresarios de los imigrantes de origin europeu, “olvidando” a los
sectores populares en su diversidad sociocultural (FREGA; CHAGAS; MONTAÑO;
STALLA, 2008, p. 52).
A ambiência criada por meio de investidas dessa natureza acaba impactando nos
setores produtivos da economia, uma vez que gera uma divisão social do trabalho por meio da
seletividade apriorística baseada no quesito racial como elemento qualitativo. Com isso, os
negros estavam alocados nos trabalhos mais duros, nas profissões de menor prestígio social e
remuneração. Ainda assim, os mesmos faziam girar a economia, sobretudo nos centros
urbanos, e quando havia picos de melhoria no mercado.
Da mesma maneira que os homens encontravam meios não formais de
sobrevivência nos grandes centros urbanos, as mulheres negras que residiam nas zonas rurais
tinham no serviço doméstico as maiores possibilidades de obtenção de trabalho e renda,
muitas vezes introduzindo os próprios filhos nesse tipo de atividade laboral. Segundo Frega,
Chagas, Montaño e Stalla (2008), em muitas ocasiões esses filhos eram entregues para as
famílias brancas, como esperança de um futuro melhor, ou pela simples impossibilidade de
criá-los. Os patrões, por sua vez, quando os aceitavam, tinham a possibilidade de fazê-lo por
benevolência ou pela conveniência de ter um empregado doméstico a baixo custo.
102
La periodista Alicia Behrens concluyo que "no encontramos en las tendas ningun
negro como vendedor, ni empleados en los comercios, ni polidas en las calles
centricas, ni mozos en los restaurantes, ni chauferes en los taxis ni en los omnibus".
AI investigar las causas de esta exclusion, Behrens se entrevisto con los delegados
sindicales de los principales gremios del area de servicios: mozos, botones y
empleados en hoteleria, peluqueros y choferes de auto buses. Tambien visito el
departamento de polida y tres de las tiendas mas grandes de la ciudad. El resultado
fue asombroso: entre los 2.000 miembros con los que contaba el sindicato de mozos
y las 500 sirvientas empleadas en el sector hotelero, no había ningun
afrodescendiente (ANDREWS, 2010, p. 131).
Do mesmo modo, Merino (1982) observa que o fato de terem negros em postos
médios da administração governamental, universidades, exército ou empregos públicos, não
anula a cruel realidade de não estarem em setores dinâmicos da economia formal. Em relação
aos negros, ele afirma que “[h]ay pocos en casas de comercio atendiendo al público; no los
hay como peluqueros o mozos de café” (MERINO, 1982, p. 19).
104
O mais curioso nesta sentença é que apesar do racismo estar assentado nas
relações cotidianas, em que o negro esteve mais recorrentemente no posto de serviçal, os
papéis acabam se invertendo quando há exclusão de negros no mercado de trabalho. Merino
conclui que “los negros se hacen atender por blancos y servir por mozos blancos” (MERINO,
1982, p. 19). Ou seja, o medo, pavor ou precaução de ter um negro manejando bens, produtos
e serviços os quais trazem resultados imediatos, ou que se requer uma relação direta, faz com
que os empregadores racistas considerem o negro como beneficiário de um atendimento – e aí
não se sabe, mas se desconfia, a natureza simbólica do tratamento dispensado – prestado por
pessoas brancas, supostamente mais honestas e competentes30.
Andrews (2010) sinaliza para o fato de que o fim de alguns regimes totalitários
pelo mundo, como o Nazismo e o Fascismo, introduzira a necessidade de articular novas
relações sociais e denunciar os excessos cometidos pelas forças estatais e/ou de grupos que
transgrediam os direitos da pessoa humana, seja ela de que origem for. O ambiente não havia
se transformado na prática:
Pero las nuevas doctrinas nacionales de democracia racial, reforzadas por la reciente
derrota de los nazis en Europa y el repudio del racismo que la Organizaci6n de las
Naciones Unidas asentó como uno de sus principios fundamentales, proporcionaron
nuevos instrumentos retóricos e ideológicos para combatir la discriminación racial.
En este contexto, yen respuesta a casos concretos que circularon masivamente por
sus respectivos medios masivos de comunicación (ANDREWS, 2010, p. 120).
30
Não podemos deixar de observar que Andrews (2010) está veiculando noticiários que datam da década de
1950 e que Merino (1982) está analisando o contexto presente em sua pesquisa, ou seja, de final da década de
1970 e início de 1980. Portanto, este é um problema que perdurou no mínimo trinta anos, levando em
consideração apenas o tempo que compreende a publicação da matéria analisada por Andrews e a publicação
do livro de Merino.
105
Los numeros confirman que el sistema educativo fue una de las prioridades del
Estado en su expansion del gasto publico. La cantidad de estudiantes secundarios en
Uruguay paso de 19.000 en 1942 a 34.000 en 1950, hasta llegar a 70.000 en 1960 32.
En 1945, la Revista Uruguay (organo oficial de ACSU) comentaba que, como
resultado de ese crecimiento, "[.t]enemos estudiantes en Liceos y Universidades de
Derecho y Trabajo, Facultad de Medicina y en Quimica y Farmacia, artistas,
pintores, poetas, recitadores, actores escenicos, violinistas, pianistas, guitarristas
tenores y sopranos33" (ANDREWS, 2010, p. 124).
31
O ano foi o de 1956 e envolvia a diretora da escola pública 125, Ofelia Ferratjans de Urgatmendia, que, dentre
outras coisas, declarou que estava descontente em relação a “esa negra, tan desprolija”, pressionando Adélia
para que buscasse outra escola para trabalhar (ANDREW, 2010, p. 119).
32
Estes dados foram veiculados pelo autor de acordo com “Nahum y otros, Crisis politica y recuperacion, 161.
Sobre la educacion uruguaya a lo largo del siglo XX, ver: Marrero, "La herencia de nuestro pasado".
33
O autor está citando "El problema racial... " Revista Uruguay (julio de 1945), 3—4.
106
Otro periódico negro, Nuestra Raza, era mas especifico con respecto a las barreras
que mantenian a los niños de la comunidade alejados de la escuela: muchos
establecimientos tenian demasiados alumnos como para aceptar nuevos
matriculados, cuando finalmente aparecia una escuela con vacantes estaba
generalmente demasiado lejos del barrio como para que el chico pudiera llegar por si
mismo. Y aunque las escuelas publicas eran gratis, era cierto que se esperaba que los
alumnos llegaran a clase con su uniforme y con sus utiles escolares, lo cual en
muchos casos estaba fuera del alcance económico de muchas familias de afro-
uruguayos (ANDREWS, 2010, p. 125).
34
De acordo com Andrew (2010) e Frega, Chagas, Montaño e Stalla (2008), Candombe é uma manifestação
cultural negra que conjuga danças, indumentárias e música tocada por atabaques. O Candombe pode ser
encontrado em alguns países da América Latina, mas se materializa de forma mais potente no Uruguai, país
em que ganhou o status de Patrimônio Imaterial da Humanidade.
108
homenaje a ese lugar que durante tanto tiempo habia sido tambien uno de los
principales hogares del candombe. El 3 de diciembre mas de treinta tambores
liderados por las Lonjas de Cuareim (la cuerda de tambores de la comparsa
Morenada) se juntaron para darle el adios al conventillo con una última sesión de
baile y percusion. La fiesta desbordo el patio del edificio y llegó hasta la calle
(ANDREWS, 2010, p. 193).
Entretanto, há uma contrapartida, que se deu por meio de laudos técnicos que
advertia sobre a má conservação desses imóveis, o que certamente ocasionaria em
desabamentos e, na melhor das hipóteses, um vertiginoso decréscimo no valor de compra e
venda. Em se tratando do conventillo Medio Mundo, é importante dizer que se encaminhou
apenas um laudo, não havendo nenhum incidente anterior para justificar a sua demolição, no
entanto, houve sucessivos desastres em outras habitações similares, e como medida de
precaução o governo desalojava os residentes.
Os efeitos foram sentidos na dinâmica cultural da cidade, uma vez que as rotas
das chamadas de candombe tiveram que ser remanejadas dos bairros de origem, ao sul da
cidade velha, para a principal avenida de Montevidéu, a 18 de julho. Nota-se que apesar da
demolição desses imóveis, não ocorreu a tão temida pulverização da cultura negra, uma vez
que foram mantidas as manifestações, talvez ganhando maior visibilidade por serem feitas em
uma via de grande circulação. Além disso, se argumenta que:
Ainda que os fatores que levaram à derrubada das habitações históricas nos
bairros com um grande contingente de negros não tenha sido a questão racial, a mobilização
da comunidade negra local se deu em termos raciais. Esse fator pode ser encarado como algo
positivo se analisado à luz do alerta crítico que deveria ser tomado em face de diversos casos
de racismo que vinham sendo historicamente silenciados pelas forças hegemônicas midiáticas
e governamentais. A maioria dessas insurgências chamava a atenção para a necessidade de se
buscar alternativas que dirimissem os conflitos entre a população e o Estado.
De acordo com Andrews (2010), por maiores que tenham sido os infortúnios
causados durante o período de regime militar no Uruguai, em que a sociedade, sobretudo
montevideana, experimentou um momento de excessos cometidos pelos militares no poder, o
movimento negro passou incólume pela conjuntura. Segundo ele, o fato de a Asociación
110
Cultural y Social Uruguay – ACSU35 ter recebido do poder público um novo prédio,
emprestado para funcionar como sede da associação, funciona como a prova concreta de que
o foco daqueles governos não eram especificamente os negros.
Entretanto, é importante reforçar que este prédio era emprestado, podendo ser
requerido de volta a qualquer momento. Neste período já havia uma intensa articulação da
ACSU com a Ordem Franciscana, que se empenhava em ofertar trabalhos de assistência
social em Montevidéu e tinha interesse pelo trabalho da ACSU, dada a sua credibilidade
histórica. Foi então que os frades resolveram financiar projetos em que a associação
supervisionava, chegando a ceder uma nova sede para que a ACSU não dependesse mais de
um local incerto para funcionar.
Apesar de a ACSU ter sido eleita a instituição que melhor poderia desenvolver
trabalhos de combate ao racismo e inclusão social, ela não era unânime entre a comunidade
negra, e nem entre os assistidos. Jovens sem renda e que necessitavam da ACSU como
mediadora para as respectivas ascensões sociais, se rebelaram contra a instituição alegando
mal-uso dos recursos captados, gerando uma celeuma no interior do próprio movimento
negro, levando a ACSU à perda de credibilidade entre a população afro-uruguaia.
A alegação desses jovens era a de que os recursos deveriam ser aplicados em
ações mais pontuais, como um mutirão de ajuda para as pessoas que haviam sido desalojadas
pelas políticas públicas de habitação. Segundo Andrews (2010), a maior queixa recaia no fato
de que a ACSU privilegiou o investimento do erário recebido nos bailes negros, que, segundo
estes jovens, servia apenas para alimentar o ego e a fantasia de uma “classe média negra”,
sem nenhuma penetração e poder decisório em meio à população uruguaia.
Entretanto, é importante frisar – como fizemos em alguns trechos do trabalho –,
que os bailes negros poderiam passar uma ideia ambígua, na medida em que eram encarados
como meros espaços de entretenimento, sem a possibilidade de articulações políticas que
viriam a conduzir algum tipo de proposta para o combate ao racismo. Por outro lado, há o
discurso oposto ao pensamento apresentado, construído pela narrativa da resistência, visto que
os bailes funcionariam como uma maneira de exposição para atrair diversos negros e
“simpatizantes da causa”, sobretudo os que teriam mobilidade entre os setores produtivos e
pudessem desenvolver estratégias plausíveis e exequíveis para o desenvolvimento econômico
da população negra.
35
De acordo com Andrew (2010), a ACSU foi um clube social inaugurado no ano de 1941 com o intuito de
fortalecimento dos laços entre negros e promoção de cidadania para os mesmos.
111
Montevidéu no ano de 1760 e ficou mais conhecido com El Negro Ansina, que teve o seu
reconhecimento como herói consolidado no ano de 1982, quando se estabeleceu o dia 12 de
dezembro como Dia da Lealdade, com uma homenagem a ele:
36
Uruguay, Consejo de Estado: «Actas del Consejo de Estado», sesión del martes 30 de marzo de 1982, Diario
Oficial n.o 21220, p. 67.
113
Las mujeres afrodescendientes exhiben una fecundidad más temprana y elevada que
la del resto de la población. Entre las afrodescendientes, las mujeres cuya
ascendencia principal es “afro o negra” claramente se distancia del resto por su
porcentaje de madres jóvenes y número promedio de hijos acumulados (CABELLA;
NATHAN; TENENBAUM, 2013, p. 38).
Entretanto, é necessário assinalar que apesar desta ser uma tendência geral,
existem significativas diferenciações geográficas que estão diretamente ligadas às questões
estruturais que arregimentam descompassos regionais:
Dentro del territorio nacional, las mujeres residentes en Montevideo presentan una
fecundidad menos intensa que la observada por las afrodescendientes del resto del
país, lo que en definitiva reproduce la distancia existente entre la capital y el interior
en materia de comportamento reproductivo de las mujeres, más allá de su
ascendencia étnico-racial (CABELLA; NATHAN; TENENBAUM, 2013, p. 38-39).
Muitos são os motivos, e eles, em certa medida, não estão concentrados apenas na
população negra. É preciso considerar que as relações centro x periferia ou cidade x campo,
estão atravessadas por diferentes propósitos que circunscrevem o estilo de vida, mas que têm
em sua base todo um alicerce estrutural que sustenta o ethos, o status quo e o habitus de cada
118
uma dessas dinâmicas de vida. Esses fatores estão traduzidos em acesso maior ou menor à
tecnologia, especialidades clínicas em redes de saúde, qualidade da educação, oferta de
cultura, esporte e lazer, variedade de produtos alimentícios etc.
Disso decorre o fato já trabalhado anteriormente, de que o Uruguai desenvolveu o
seu sistema de ensino desde o final do século XIX, realizando as reformas educacionais. Na
América Latina, o Uruguai é o país mais precoce em termos de universalização do ensino. Foi
também o que conseguiu incluir mais satisfatoriamente as mulheres nos níveis de
escolarização básica:
Essas dinâmicas podem contribuir para análises pontuais que farão total diferença
na qualificação dos dados obtidos de forma quantitativa em pesquisas censitárias, sobretudo
quando se está incluindo um novo elemento, como foi o censo do ano de 2011 no Uruguai,
quando se introduz a categoria “negro” como possibilidade de identificação racial, abrindo
novas demandas interpretativas em relação à produção de operadores socioeconômicos que
sinalizam para uma miríade de subjetividades em meio a um processo histórico que impacta
diretamente na desenvoltura dos grupos a serem analisados.
Em outras palavras, o censo do ano de 2011 produz pela primeira vez os dados
atinentes às diferenças socioeconômicas com o verniz racial, sinalizando para a possibilidade
de interpretações sobre o processo histórico de inserção do negro na sociedade livre uruguaia
e a gradação dos seus impactos a longo prazo. Jamais houve a produção de um documento
que quantificasse as diferenças raciais de maneira mais sistemática naquele país, expondo um
processo de racismo que se esconde nos discursos, mas se pratica objetivamente
instrumentalizado pelas estruturas de poder.
Para se ter ideia dessa dinâmica, nos primeiros anos de escolarização, no ensino
básico, que compreende a faixa etária de seis a onze anos, há uma cobertura universal de
acesso à educação e não se observam substanciais diferenças étnico-raciais. No entanto, ao
atingir os doze anos, as pessoas negras matriculadas nas instituições de ensino começam a
119
evadir-se, abrindo uma imensa diferença entre brancos e negros. Com efeito, a precoce evasão
escolar das pessoas negras acarreta em suas desvantagens no mercado de trabalho e, por
conseguinte, em bem-estar social (CABELLA; NATHAN; TENENBAUM, 2013).
Esse conjunto de fatores está interconectado a outros e são fruto de um processo
histórico em que os negros estiveram frente a dificuldades de diversas ordens, nas quais, em
grande parte, tiveram o racismo como obstáculo a ser superado, diante a júbilo e
marginalização. Foi justamente a constatação de que gerações de pessoas negras foram
negligenciadas em suas demandas, e, sobretudo, “exiladas” em seu próprio país, que confluiu
para que os movimentos negros uruguaios chegassem à maior conferência de combate ao
racismo, ocorrida no ano de 2001 – III Conferência Mundial contra o Racismo, a
Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, a conferência de
Durban –, com o objetivo de dar o pontapé inicial para a implementação de políticas públicas
focais para a população negra.
Como desdobramento dos documentos de Durban, além da experiência adquirida
após a troca com ativistas e autoridades estrangeiras, os membros dos movimentos negros
uruguaios aproveitaram para sinalizar sobre a necessidade de implementação das suas agendas
políticas dentro do Estado. A ambiência internacional era favorável e a política interna
uruguaia também, a ONU estava mediando os conflitos raciais e operados por outros
marcadores de violência, e os movimentos negros estavam fortalecidos com as suas alianças
políticas internas e externas.
Existindo um abismo racial entre negros e brancos, que precisava ser resolvido,
resolveu-se pela inclusão do critério racial no censo uruguaio do ano de 2013, sendo
incontornável acender o alerta para os negros, uma vez que se encontram entre a manutenção
do velho status quo, por parcela dos grupos que defendem os ideais republicanos,
conservadores e liberais, e a instrumentalização política de parte daqueles que defendem a
bandeira democrata, mais inclinada para a esquerda e o socialismo.
No momento mais áureo de financiamento de projetos políticos que beneficiavam
a população negra, os movimentos negros uruguaios optaram por se alinhar à esquerda, e isso
poderá ser constatado nas entrevistas que realizamos com as lideranças desses movimentos.
Hoje, é possível estar diante de críticas e novas possibilidades de pensar as questões étnico-
raciais por parte dos negros, mas não se pode negligenciar que naquele momento o que havia
de mais acessível estava na aliança política com a esquerda, na qual alguns desses militantes
não se arrependem, enquanto outros mudaram a maneira de olhar.
120
Reconhecemos o papel primordial dos parlamentos na luta contra o racismo, discriminação racial,
xenofobia e intolerância correlata, em adorar legislação adequada, supervisionando sua implementação
e alocando recursos financeiros indispensáveis (Plano de Ação de Durban, p.39).
O Uruguai inicia as suas ações a partir do ano de 2003, dois anos após Durban,
instituindo o crime de racismo no código penal, no qual a lei 17.677
Com o racismo tornado crime, a porta se abriu para outras medidas, leis e sanções,
gerando novas demandas para o Estado, na medida em que aumentaram também o número de
obrigações. Dentre as leis comemoradas pelos movimentos negros uruguaios, estão a lei
17.817/2004, que declara ser de interesse nacional a luta contra o racismo e todas as formas
de discriminação. A lei 18.059/2006, que estabelece o dia 03 de dezembro como dia nacional
do candombe (data que marca a demolição do conventillo Medio Mundo), que passa a ser
patrimônio cultural uruguaio. E a Lei 19.122, criada em 2013 a fim de promover ações
afirmativas para a população negra no âmbito educativo e de mercado de trabalho (ABERO;
MUSSO; PÍRIZ, 2016, p. 18).
Entre todas essas leis de combate ao racismo, a Lei 19.122 tem sido a mais
discutida no Uruguai neste momento, já que foi desenvolvida no intuito de se tornar uma
ferramenta para equilibrar os níveis de desigualdade racial no país. Para muitos ativistas dos
movimentos negros e estudiosos da questão racial, ela funciona como a catalisadora para
medidas que atendem às demandas históricas dos movimentos negros em seus anseios por
acesso aos bens e serviços ofertados pelo Estado, e pelo reconhecimento e valorização da
cultura de matriz africana.
121
serviram como “ponta de lança” na mediação entre os vários interesses que deveriam ser
articulados para a sua devida efetivação.
Em sua regulamentação, a Lei 19.122 cria ações afirmativas para favorecer o
acesso e a participação dos negros em áreas educativas e trabalhistas, visando estarem
alocados e desenvolvendo atividades nas áreas fundamentais para o crescimento do país. Com
isso, se torna menos dificultoso que os negros tenham acometimento nos seguintes
ministérios: Educação e Cultura, Interior, Relações Exteriores, Economia e Finanças, Defesa
Nacional, Transporte e Obras Públicas, Indústria, Energia e Mineração, Trabalho e
Seguridade Social, Saúde Pública, Turismo e Desporto, Habitação, Ordenamento Territorial e
Meio Ambiente e, por fim, o Ministério de Desenvolvimento Social (MINISTERIO DE
DESARROLLO SOCIAL 2014)37.
Segundo o informe final sistematizado na II Assembléia da Rede de Mulheres
Afrolatinas, Afrocaribenhas e da Diáspora (RMAAD), ocorrida em Montevidéu em agosto de
2014, a Lei 19.122 foi desenvolvida a partir da Conferência de Durban, ou seja, considerando
as informações trazidas em seu documento final, entendendo que ali estavam contidas as
demandas urgentes que os movimentos negros vinham historicamente se empenhando para
tentar implantar e implementar por dentro do estado uruguaio.
Nesse sentido, os vários episódios de racismo denunciados desde a colônia até a
proclamação da república haviam sido considerados como elementos importantes a serem
somados e ganhar corpo para uma justa medida que visasse equalizar as diferenças raciais que
se apresentavam evidentes na dinâmica do país, consubstanciadas pelos números censitários
que desde o ano de 2011 apresentava o fator racial como categoria analítica acerca da divisão
social do país.
Também foi necessário estabelecer um parâmetro racial, a fim de evitar fraudes e
tergiversações de cunho político-ideológico. Entretanto, e como em todo o lugar, a decisão de
caracterização racial é sempre muito complexa, levando os órgãos competentes à adoção do
critério de autoatribuição, ou seja, aquele que no qual o próprio cidadão se reconhece
enquanto tal, com base na sua própria percepção subjetiva de afiliação histórica e cultural,
mas mediada por um guia de autodefinição compilado pelo Instituto Nacional de Estatística.
Diante de todos esses ajustes, discussões e recomendações, é importante ressaltar
que a Lei 19.122 vicejou em meio aos debates acalorados no parlamento uruguaio, que,
37
Cumpre dizer que o Ministério do Desenvolvimento Social (Ministerio de Desarrollo Social – MIDES) foi
criado em março do ano de 2005, por meio da Lei 17.866, com a missão de coordenar as políticas de cunho
social (MINISTERIO DE DESARROLLO SOCIAL 2014).
123
segundo Olaza (2017), tiveram um caráter bastante similar ao mesmo processo de aprovação
das cotas raciais no Brasil. Segundo a autora, o que esteve mais evidente nesse decurso foram
as argumentações divididas, que orbitavam entre a necessidade de políticas focalizadas,
geralmente defendidas pelo partido Frente Amplio, e a universalização do combate à pobreza,
proposta enfatizada pelo partido Colorado.
É necessário frisar que a Lei 19.122 surge a partir da “XLVII Legislatura da
Câmara de Representantes, como o projeto apresentado pelo deputado Felipe Carballo à
Comissão Especial de População e Desenvolvimento Social” (OLAZA, 2017, p. 179). E que
todos os debates aos quais nos referimos nas linhas anteriores teve como palco o parlamento.
Ficou decidido pela sua aplicação, entendendo que o princípio constitucional de igualdade de
todos os cidadãos uruguaios perante a lei seria salvaguardado, ou seja, que a aplicação das
ações afirmativas não implicaria em nada a isonomia naquele país.
De acordo com Olaza (2017), a legitimidade para a aplicação da Lei 19.122 está
salvaguardada no princípio de conduta ética que prevê um prazo para a sua vigoração,
estipulado em quinze anos. Entretanto, a autora ressalva que:
suas dinâmicas atuais e as perspectivas futuras que se apresentam como horizonte político
para os negros uruguaios. Portanto, iniciaremos a próxima seção com as conversas efetivadas
em Montevidéu, de 17 de janeiro a 16 de fevereiro do ano de 2019.
Orlando se identifica como pan-africanista e socialista. Hoje, Orlando está cumprindo funções
administrativas no escritório de planejamento e orçamentos do governo, em que trabalha
como assessor e assistente. Lá, ele desenvolve construções de estratégias de governo para o
desenvolvimento da população negra. Olando também é formado em psicologia.
Andres Urioste havia completado 53 anos no ano de nossa entrevista e diz ser
ativista do movimnto negro uruguaio desde muitos anos, aproximadamente 30 anos. Ele
enfatiza que participou da Conferência de Durban e foi integrante ativo da organização
Mundo Afro. Nosso entrevistado é técnico em saúde do governo uruguaio e se especializou
em saúde e racismo. Ele particiou da campanha que levou o Partido Frente Amplio ao poder,
no ano de 2005, e esteve em contato com militantes dos movimentos negros brasileiros, como
Jurema Werneck.
Hoje, Andres Urioste participa moderadamente dos movimentos sociais negros,
muito mais como colaborador do que atuante assíduo, como antes. Ele voltou ao ativismo de
base e se preocupa em trabalhar as questões atinentes ao racismo desde dentro do Estado, pois
acredita que estando como técnico em saúde do governo a sua intervenção poderá render
melhores resultados para a população negra.
ligada ao tema das relações raciais e isso a influenciou nos estudos universitários. Nesse
sentido, ela acredita sempre haver uma conexão de coisas que podem ser relacionadas ao tema
e articuladas para propôr produções de conhecimento dedicados a aprofundar a temática
racial.
Nossa entrevistada se encontra trabalhando com desenvolvimento econômico
ligado ao setor de empreendedorismo. Ela está dedicada ao estímulo para a criação de
negócios que impulsionem a população negra. Porém, sempre esteve, e continua estando,
dedicada à temática da educação, sendo essa a sua maior contribuição para a militância do
movimento negro.
38
A entrevista realizada com Juan Pedro Machado foi concedida em português, já que o nosso entrevistado é
fluente na língua.
129
La vida nos demostró que no es tan así, o sea, creo que el movimiento negro
brasileño tiene el factor de haber sido el último país de América Latina en abolir la
esclavitud y tener un imperio hasta finales del siglo XIX. Y hay aquel que no
entienda eso, que los resultados de ese imperio, las consecuencias de ese imperio
todavía viven hoy. Hay una gran impronta de lucha contra el racismo y esa lucha
contra el racismo necesita en algún momento convertirla en una lucha política de
cambio y transformación de nuestras sociedades, de un proyecto político (ROMERO
RODRÍGUEZ).
Nesse sentido, Romero reitera a ideia já trabalhada por nós nesta tese, a de que um
dos laços que une – ou deveria unir – os movimentos negros é a luta por acesso à cidadania
plena. Para o militante uruguaio, é necessário que os movimentos negros latino-americanos
tenham um amplo entendimento acerca desta questão, para que somente assim consigam ser
propositivos a ponto de unificar os diversos setores da sociedade em relação aos seus pleitos,
emergindo a possibilidade de integração do negro aos setores produtivos, por conseguinte,
melhorando as suas condições de vidas.
Creo que América Latina y todos los movimientos de América Latina tenemos un
desafío en eso, no hemos comprendido que somos ciudadanos, que queremos la
ciudadanía, que vivimos en un sistema multiétnico donde la función del capital
prima en nuestras relaciones humanas y que fundamentalmente si el movimiento
negro en América Latina no encuentra, para mí, la conformación de un proyecto de
amplias mayorías con todos los sectores de la sociedad y construir democracia y eso
va en función de un proyecto político, va a ser muy difícil salir de nuestros preceptos
(ROMERO RODRÍGUEZ).
Para Juan Pedro Machado, o Uruguai leva certa vantagem dado ao fato de serem
um povo habituado às trocas culturais e aos aprendizados por meio da escuta e abertura para
130
diferentes perspectivas. Juan sinaliza que “muitos fatos que dão vantagem ao Uruguai, é que
eles são um povo diplomático, se interessam por política. São um povo que se conecta e busca
criar redes para crescer e aumentar a sua influência política, principalmente em prol de sua
sobrevivência” (JUAN PEDRO MACHADO).
Desse modo, Romero é mais abrangente e enfatiza que houve um processo
diferenciado do Uruguai em relação aos países latino-americanos e ao Brasil. Segundo ele, o
ímpeto revolucionário de figuras como Simón Bolívar (1783 – 1830) e o General Artigas
(1764 – 1850) engendravam a possibilidade de inclusão de negros na cidadania de cada uma
das nações em que estes homens estiveram guerreando. Com efeito, a parcela da população
branca passaria a ter vergonha do período escravocrata. Ao contrário, o Brasil não teria tido
um líder revolucionário da envergadura dos aqui apresentados, gerando um orgulho escravista
por parte de alguns setores da sociedade.
Brasil fue un imperio hasta 1888 cuando los países de Latinoamérica, Bolívar,
Artigas, ya habían procesado un proceso de independencia entre comillas que
admitía el negro como sujeto social para ganar sus guerras; o sea el concepto del
estado de nación muy europeo pero admitía otros procesos sociales. Eso en el
devenir del tiempo da una… voy a decir una barbaridad, los blancos
latinoamericanos tienen, muchos de ellos tienen vergüenza de la esclavitud, de lo
que generaron. Los blancos brasileños tienen orgullo de haber sido esclavistas, eso
es una percepción que tengo (ROMERO RODRÍGUEZ).
Apesar de o nosso entrevistado afirmar que o negro tenha sido absorvido pelo
ideário revolucionário dos grandes líderes latino-americanos, a trajetória do movimento negro
sinaliza que o reconhecimento de Ansina como herói nacional se deu por muita pressão, e a
sua efetivação como tal só aconteceu tardiamente. Esse fato, atestado por Andrews (2010),
põe em xeque a possibilidade de que “os brancos” deste continente sintam “vergonha” do
período escravocrata, ora, se sentiam vergonha, então por que tanto descrédito em relação a
um sujeito que esteve lutando ao lado do mais reverenciado líder revolucionário daquele país?
Romero Rodriguéz argumenta que Ansina possa ser apenas um personagem
construído pelo movimento negro uruguaio, como parte de um projeto de “resgate” da
identidade dos negros daquele país. Segundo ele, há poucas fontes sobre Ansina, que na
realidade pode ter sido “qualquer coisa”, inclusive um escravizado. Em contrapartida, Romero
assevera que Zumbi dos Palmares seja um personagem real da história do Brasil, com um
programa de estado e fontes confiáveis.
Ansina se hizo producto fruto del movimiento negro, de esta casa; yo escribí un
libro hace muchos años, de tener la simbología histórica como referencia para
nuestras movilizaciones reivindicativas. Pero en verdad lo que se conoce de Ansina
es muy poco, no es ni siquiera un Zumbi dos Palmares. Zumbi dos Palmares es un
personaje, o un jefe que administra un territorio, la República dos Palmares.
(ROMERO RODRÍGUEZ)
Ao tratar da questão de Ansina como herói nacional, Romero sinaliza que esta foi
uma pauta que fazia parte do amadurecimento do movimento negro, que estava construindo
uma narrativa de mobilização, algo que fosse capaz de gerar legitimidade discursiva para
adentrar os espaços de tomada de decisão política. Segundo ele, foram ações insistentes como
esta – ainda que com certa imprecisão de fontes – que potencializaram as lutas e o debate foi
se sofisticando, conquistando novos patamares e se amplificando.
132
apresentavam elementos que refletiam a beleza dos aportes culturais produzidos pelos negros.
Obviamente que isso não anula o fato de que muito ainda necessita ser feito dado que
En Uruguay existe una situación de racismo estructural, que los negros viven en una
situación de opresión y se tenés claros los datos sobre cómo viven la población afro
de cómo vive la población blanca, de cuáles son las brechas en el proceso educativo,
si tenés todos esos datos claros, es difícil elegir vivir en Uruguay, es una opción
difícil pensar en voy a criar a mis hijos en Uruguay es una opción difícil porque la
salida a este sistema de opresión. (JULIO CESAR PEREIRA).
Sobre esse assunto, Karina expressou certa insatisfação e até decepção com os
militantes das agendas progressistas e do movimento negro que adentraram no Estado. Esse
desconforto a fez se afastar do Instituto Nacional de Mulheres, pois ela se sentia
impossibilitada de cumprir os preceitos que idealizava em tempos de militância: “Me parecía
que era más útil como sociedad civil denunciando desde afuera o fortaleciendo a otras
personas o generando fortaleciendo movimiento porque veo que la entrada de militantes al
Estado debilitó mucho al movimiento” (KARINA MOREIRA).
134
Yo ingresé al Estado uruguayo en 2005 y tres años después en el 2008 me había ido
decepcionado, frustrado porque no habíamos podido construir política, ni siquiera
habíamos podido discutir política pública. Entonces me volví a mi nicho de sociedad
civil, volví a las organizaciones negras, volví al activismo de base y desde ahí hasta
acá he estado todo el tiempo trabajando en eso, colaborando con las organizaciones,
un poco eso (ANDRÉS URIOSTE).
Eso tiene que ver con que la izquierda llegó al poder el movimiento afro, de alguna
manera hubo una gran lucha por acceder a cargos en el gobierno como una manera
de estar adentro y desde adentro poder accionar cosas que siendo sociedad civil no
se ha podido y eso es como una suerte de trampa porque nosotros acá hablamos de
coptamiento. (LOURDES MARTÍNEZ).
fato que o país atravessa séculos de diálogos institucionais poucos plurais e pouco acessado
pelos negros, inviabilizando a criação de laços de afetividade, reconhecimento e de aparato
técnico para o combate ao racismo.
Diante de tantos desafios, os movimentos negros uruguaios avançam no tempo
sempre se ocupando em dar conta de uma agenda política de combate ao racismo. Nesse
sentido, Karina Moreira evidencia a existência de um protagonismo da Organização Mundo
Afro como o movimento negro que sempre esteve na dianteira dos debates raciais no Uruguai
e que a sua participação em Durban fora fundamental. Entretanto, e segundo ela, os maiores
entraves entre os movimentos negros se deram após a conferência, quando
Todavia, Karina reforça a sua assertiva de que o Mundo Afro tenha sido a
organização que mais se mobilizou para a participação de Durban, tendo na figura de Romero
Rodríguez a principal liderança, que articulava os contatos internacionais e que pavimentava o
caminho para que fosse possível lograr êxito nas pautas propostas. Dentre outros
apontamentos importantes, Karina adverte que Romero não esteve sozinho, e lembra que Juan
Pedro Machado39 “fue uno de los redactores principales de varias cosas de Durban, fue parte,
estuvo ahí en todo ese processo” (KARINA MOREIRA).
Aqui cabe observar que ao sinalizar sobre o esfacelamento do movimento negro
em diversas organizações, conforme sugerido por Karina Moreira, a agenda de Durban
também sofreria alterações, já que são diversas as recomendações e nem sempre elas atendem
às demandas que surgem a partir de novas perspectivas e olhares para o enfrentamento do
racismo.
Ainda que as miradas sejam diversas e a agenda de Durban precise caber no plano
nacional contra o racismo, há, de maneira geral, a percepção de um inimigo comum, que
segundo os nossos entrevistados seriam os partidos de direita. Fica evidente na afirmação de
39
Juan Pedro Machado também foi entrevistado por nós, que dedicamos uma seção para a análise de sua
entrevista.
136
Deja de ser crítico, deja de tener autonomía el movimiento negro porque está
supeditado a un interés partidario, a un interés personal. Lo que ha pasado es que las
personas que pasaron a la estructura de gobierno pasaron solas sin ningún equipo,
sin ningun grupo, también se transformó en una fuente de ingreso. Entonces para ser
crítica desde ese lugar perdidas porque o te callabas la boca porque estabas
perdiendo tu ingreso y el movimiento también fue le faltó autocrítica en ese sentido.
(NOELIA MACIEL).
Por ejemplo, acá hay una diputada llamada Gloria Rodríguez, es la única diputada
negra que temenos, pero es del partido nacional de derecha. Tendrias que hablar con
ella porque es la única diputada bien negra que tenemos y es de derecha y el partido
negro nunca se ha acercado a ella porque es de derecha, siendo que tiene un lugar
preponderante con otros diputados de izquierda se acerco a llevar una agenda de
trabajo, por ejemplo el que promulgó la ley 19.122 (NOELIA MACIEL).
procurada, é por conta dos motivos com que se relaciona com a temática racial, levando
alguns ativistas a desacordarem com ela e procurar outras vias de se organizar politicamente.
Gloria Rodríguez, del partido Nacional de una de las listas más derechas de la
derecha, con ella pasan varias cosas. Por un lado desde la comunidad, no se la
legitima, porque ella ha manifestado expresamente que ella no esta en el parlamento
por la causa del movimiento afro, ella está en el parlamento como espacio político y
por una cantidad de demandas sociales que pueden incluir la población afro, pero
ella - no que no diga que no - es una mujer afro, que aunque no lo dijera es algo
obvio, sino que ella no trabaja en exclusividad por las cuestiones del movimiento
afro, ha sido muy difícil, imposible. (LOURDES MARTINEZ).
ações não forem mais isoladas e se concentrarem na materialização de leis e políticas que
transformem, de fato, a realidade das pessoas negras naquele país.
O flagelo do racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata persiste e continua sendo
causa de violações dos direitos humanos, sofrimentos, desvantagens e violência, que devem ser
combatidos por todos os meios disponíveis e apropriados como questão de prioridade máxima,
preferencialmente em cooperação com comunidades atingidas (Declaração de Durban e Plano de
Ação, p.13)
Tem algumas coisas que só acontecem com o tempo, e essa é uma questão
importante. A legitimação acontece através dos atos, se constrói no dia a dia e não
são programadas. Não tem um marco, um ponto de mudança ou um momento
formal onde se pode dizer que conseguimos respeito e legitimidade. Isso é gradativo.
Os pontos de vista foram sendo compartilhados, ideais trocadas e se construiu, se
legitimou o respeito e a referência no assunto. O seu ponto de vista, a partir daí,
começa a atingir relações públicas, como autoridades e povos das Américas até que
se torna uma referência naquilo que dissemina (JUAN PEDRO MACHADO).
Foi nesse espírito que os movimentos negros não desistiram de galgar novos
patamares dentro da política interna uruguaia e se debruçaram na possibilidade de articulação
política internacional, no afã de amplificar as chances de implementar políticas públicas de
combate ao racismo naquele país, uma vez que os intercâmbios os fortaleceriam e a confecção
de documentos respaldados internacionalmente dariam o salto para a legitimidade perseguida.
Juan Pedro Machado completa:
No ano de 1994 realizamos aqui [em Monevidéu] um ato que se chamou “Seminário
Continental Sobre Afrodescendência e Política Pública para o Desenvolvimento da
População Afro”. Vieram pessoas de todos os lados, EUA, Brasil, Chile etc. Disso
se formou a “Rede Continental de Relações Afro-Americanas”, que a princípio
unificaria o Brasil, a Argentina, o Chile e o Paraguai com o resto da América. Não
vieram pessoas do Caribe. Esse trabalho rendeu muitos intercâmbios, conversas e
conexões com pessoas de diversos lugares. Construímos uma imagem séria do
movimento naquele evento. Quando começou essa coisa de Durbam, no ano de
1998, nós já tinhamos feito uma denúncia no comitê das Nações Unidas, dentro do
tema da convenção contra o racismo (JUAN PEDRO MACHADO).
Éramos jovens quando terminou, então aconteceram duas coisas: a primeira foi uma
conferência no Chile, organizada por um grupo de pessoas e quando chegamos lá
todos os pretos da América estavam lá. Segundo: se conseguiu construir um
140
documento prévio para apresentar à sociedade civil, que continha a maioria das
temáticas em relação aos Estados que provavelmente foi o resultado da conferência
mundial. Sua principal função foi reunir mais pessoas, mas também muitos tipos de
assuntos e demandas (JUAN PEDRO MACHADO).
Se você visse o documento que saiu do Chile e depois verifica o resultado final
refeito pelas Nações Unidas, você vê a diferença nitidamente. Nós estamos falando
de coisas que não passam com facilidade, é muito difícil de participar efetivamente
da construção desses documentos nas Nações Unidas (JUAN PEDRO MACHADO).
40
Importante dizer que o MAS – Movimento para o Socialismo é um partido político boliviano que surge no ano
de 1995 a partir da fusão de grupos de plantadores de coca, na região do Chapre boliviano, e sob a lideraça do
político Evo Morales (1959) chega à presidência da república no ano de 2005. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Movimento_para_o_Socialismo. Acesso em: 02 jul. 2019.
141
Não se tinha a relação negritude-estado. [Ela] começa a se mexer por conta das
eleições. Então, não se tem esse afloramento. Não se tinham estratégias para abordar
o estado uruguaio em relação aos assuntos de interesse da população afro. Se usa
[sic] até hoje esse texto para construir políticas públicas aqui. Houve uma dicotomia,
mas não em relação à Conferência nem pós-Conferência, senão esse vínculo que
vem com a aparição da esquerda no Estado. Quem é quem dentro disso tudo? Não se
tinha uma raiz que discutia isso, a população era afastada desse tipo de discussão
(JUAN PEDRO MACHADO).
ação bastante preciso, e que tem uma mirada objetiva para a prevenção de novos casos de
racismo.
De saída, o documento já adverte que o racismo acarreta em prejuízos de
dimensões universais, por isso o seu combate deve ser perene e sistemático, o que nos permite
dizer que as ações sinalizadas na declaração de Durban visam a prevenção do racismo, mas
não se furtam ao dever de engendrar as transformações necessárias ao sabor dos
acontecimentos que escapam às previsões, dado ao fato de que as sociedades não são fruto de
determinações de nenhuma natureza.
Romero acredita que a força de um efetivo plano de ação para que a população
negra uruguaia tenha melhores condições de vida resida nas ações afirmativas. Durante toda a
entrevista, ele também buscou não isolar os negros uruguaios do restante dos negros
residentes em outros países da América Latina. Ele afirma que as diferenças estão nas formas
de organização dos Estados nacionais, e isso funcionou como um dispositivo que subsumiu as
identidades negras ao longo do continente.
Apesar da possibilidade de esvaziamento das propostas do documento final de
Durban, conforme acredita Romero Rodriguez, ou do oportunismo governamental,
denunciado por Juan Pedro Machado, todos também concordam que Durban engendrou
possibilidades de articulações internas e externas, bem como foi a peça fundamental para que
as políticas públicas voltadas para a população negra fossem de fato implementadas.
Nesse sentido, há uma questão que nos parece fundamental e cria uma ressonância
de dever cumprido, mas que sinaliza para a necessidade de manutenção e sistematização de
propostas eminentemente substanciais para o enfrentamento das novas demandas da
população negra. Noelia Maciel afirma, portanto, que se trata do protagonismo negro “em
suas próprias questões”, ou seja, a possibilidade de narrar a sua própria história, de produzir
documentos oficiais de acordo com as suas demandas e, sobretudo, participar da gestão
pública movimentando o erário para o combate ao racismo.
É claro que essas questões não se deram de maneira uniforme pelo país, isto é,
haveria pacelas da população com mais e outras com menos acesso aos espaços de decisão de
144
En algunas ciudades del interior, especialmente las que están sobre la frontera en
Uruguay y Brasil, se le impide el acceso a la población afro a determinadas
actividades, práctica que continuó durante mucho tiempo y estas comunidades
empiezan por ejemplo en Melo, forman clubes, forman su propio club y lo
construyen con fondos, por ejemplo, a mí siempre me llamó mucho la atención que
uno de los principales grupos que colaboraron en la construcción de esos clubes, son
las mujeres empleadas domésticas de Melo que migraban a Montevideo, venían a
Montevideo a trabajar y ellas eran parte de un comité que juntaba fondos para
enviarlo a la ciudad en el interior para construir el club (JULIO PEREIRA).
Muita coisa não mudou, e a população interiorana continua sendo menos assistida
pelo poder público, muitas vezes precisando migrar para Montevidéu como possibilidade de
transformar as suas vidas para melhor. Há uma distribuição heterogênea de negros pelo
território uruguaio e que engendra questões complexas, como a própria ocupação territorial,
que nem sempre são explicáveis através dos fatores econômicos e de acesso aos serviços que
as políticas públicas podem facilitar, uma vez que as questões históricas e culturais estão
atravessadas no modo de organização de determinadas comunidades e de parcela dessa
população, variando de lugar para lugar. Julio, então, nos afirma que os negros:
acesso parcial à cidadania. Não deixam de ser fatores históricos e culturais, mas Romero
acredita que a reivindicação por uma cidadania atrelada aos parâmetros legais e simbólicos do
Estado, por meio das políticas públicas, só piora a situação dos negros, que devem se
identificar como “quilombolas” e buscar a sua “libertação” via autogestão, conforme já
dissemos.
restrito de pessoas. Também não seria correto afirmar que ela serviria unicamente aos
interesses do “neoliberalismo” em sua forma mais primária de compreensão.
O documento surge com um caráter universal e
Tendo ouvido os povos do mundo e reconhecendo as suas aspirações por justiça, por
igualdade para todos e cada um, no gozo de seus direitos humanos, incluindo o
direito ao desenvolvimento, de viver em paz e em liberdade e o direito à participação
em condições de igualdade, sem discriminação econômica, social, cultural, civil e
política (DECLARAÇÃO DE DURBAN, 2001, p. 12).
Desse modo, decorre de Durban uma agenda política de abertura democrática para
lidar com povos, coletividades e pessoas que se sentem alijadas da participação das tomadas
de decisões dos países aos quais estão territorializadas. É um plano de ação que pressiona os
governos para a sanções de leis de punição para o crime de racismo, monitoramente de
cumprimento dessas leis e de adesão de ações afirmativas. Esse é o teor principal de todo o
documento.
No entanto, e mesmo que o documento final de Durban tenha um caráter plural,
propositivo e positivo, o ajuste a um estado específico se opera de outra maneira, e gerará
diversas idas e vindas, muitos olhares e angulações de tentar resolver os problemas. Enquanto
isso, e com grandes diferenças geográficas, a população negra vai tendo acesso parcial ao
produto social, gerando uma sensação de avanço que não se quantifica de maneira integral.
En la declaración final de Durban, vos pensás el documento final con todas aquellas
recomendaciones de los estados, y crees que ese documento por sí solo no da cuenta
de las cuestiones más las cuestiones específicas, estructurales del país y de cómo
esas recomendaciones se han incorporado, incorporadas dentro de un contexto
escolar de forma que no haga solo un contenido vacío o una cosa que uno ve, pero
que no tiene aplicabilidad práctica en el sentido de potencializar realmente una
escolarización major. La educación no avanzó y ahí es, mismo después de todas esas
identificaciones, racismo institucional, hay menos negros llegando a la ingeniería, o
la medicina. Después de esas todas esas causas, con el paso con lo que se produjo a
partir de Durban, esa es la forma de colocarse dentro del sistema educativo?
(ORLANDO RIVEROS).
Creo que para trabajar con el racismo institucional se requieren personas también
formadas a nivel técnico de política pública que pueda trabajar para revertirlo
porque es necesario verlo. Yo siempre digo estono solamente denunciarlo sino
proponer la transversalidad, la interseccionalidad a nivel de política pública hay que
proponerla. Creo que estamos en un nivel donde enunciamos el problema pero no
donde todavía tenemos acciones para desestructurar el racismo institucional
(KARINA MOREIRA).
A proposição de Karina coaduna com a ideia de que um plano de ação não pode
ser apenas uma efusão de metas impressas em um documento, elas precisam extrapolar as
fronteiras do formalismo e ganhar contornos práticos. Chamamos a atenção para o fato de que
o Plano de Ação de Durban contém as informações necessárias para a efetivação de medidas
inclusivas em vários setores da vida pública, exercendo pressão para tal reivindicação.
Decorre dessas pressões as comissões compostas para a revisão de leis que punem
o racismo como crime, ou que implementam as ações afirmativas. Todavia, essas medidas
esbarram em diversos entraves que se encontram nas engrenagens do próprio Estado. Para
Karina, ainda que se tenha um pacote de normas a serem seguidas, o próprio Estado possui
brechas que favorecem o racismo institucional, inviabilizando que haja o cumprimento das
regras instadas pelos movimentos sociais em seus acordos com os órgãos internacionais que
tutelam e sustentam essas agendas.
148
Existe outro problema atravessado nesse complexo jogo, no qual Karina identifica
como uma grande contradição. Segundo ela, há uma tendência na qual podemos chamar de
“incentivo vazio”, que seria a mobilização inicial e em uma etapa mais formal, que, no
entanto, perde força no momento em que se faz necessário o empenho prático. Nas palavras
de Karina, “Me parece que sucede algo un poco perverso que es: colocamos o abrimos los
espacios pero no nos terminamos de involucrar en el hacer” (KARINA MOREIRA).
Por esse motivo, e segundo Romero, existe uma grande lacuna entre o que se tem
produzido no mundo acadêmico e o ativismo político, no que tange à aplicação real dos ideais
veiculados nas pesquisas e estudos sobre o negro e o racismo. Ele aponta para a dicotomia
entre acadêmicos de formação e militantes, asseverando que os primeiros talvez estejam mais
preocupados em analisar objetos de estudo e colher os louros do meio ao qual estão inseridos,
pouco se preocupando em traçar um horizonte para a aplicação prática de medidas que
contribuam para a melhoria de vida da população negra, conforme insta o Plano de Ação de
Durban.
Na perspectiva de Orlando Riveros, o Plano de Ação de Durban não é um
compromisso de transformação factual, mas um plano de ação que instrumentaliza para a luta.
E isso dependerá de muitos fatores conjunturais e inclinação dos ativistas:
hay que ubicar a Durban en el lugar en el que va, en principio es una declaración de
principios, tiene un plan de acción, que es un plan de acción mundial, que en
realidad tiene grandes cuentas altamente importantes y sensibles para la constitución
de acciones a nivel de los estados, pero no es vinculante, no es una declaración
vinculante, es un plan de acción vinculante (ORLANDO RIVERO).
El gran salto político, la síntesis de Durban es por las políticas del Pepe Mujica.
Uruguay ha ganado con la presencia de Pepe en derechos, de la mujer, de los gays,
principio de la marihuana y el movimiento negro. Va a quedar en la historia de mi
país la revolución en derechos ciudadanos que hizo el gobierno del Pepe. Soy el
primer negro embajador de la historia del Uruguay, me siento muy orgulloso
(ROMERO RODRIGUÉZ)
149
Com todas essas boas recomendações acerca de Mujica, fica difícil acreditar que
alguma coisa tenha “dado errado” no Uruguai no período em que esteve frente à presidência
da república. É daí que ficamos curiosos quanto à agenda de Durban, e Romero
categoricamente nos responde que “Hemos permeado el Estado y al permear el Estado nos
dimos cuenta que Durban ya se está terminando” (ROMERO RODRÍGUEZ).
O professor Julio Pereira, um acadêmico, também sinaliza coisas importantes e
ajustadas à população negra, entende que a estrutura de Estado esteve mais favorável e
permeável aos negros, que, conforme afirmou Romero, passou a compor o Estado. Para ele, o
período em que Mujica presidiu o país foi de conquistas.
Mujica es nuestra mayor estrella pop, todo el mundo cree que durante el gobierno de
Mujica pasaron cuestiones maravillosas y todos nos volvimos revolucionarios, no,
pero él mismo lo reconocía, Uruguay sigue siendo una economía de mercado,
tenemos que lidiar con eso, tenemos que lidiar con el resto del mundo, no nos
íbamos a transformar en la octava maravilla (JULIO PEREIRA)
Julio Cesar finaliza a sua observação sobre Mujica de maneira positiva, uma vez
que, em seu ponto de vista, foi o presidente que mais aglutinou o povo em torno das questões
de justiça social, produzindo um discurso unificador e pacificador, próximo aos ideais
utópicos que vicejaram no mundo durante a conjuntura mundial dos anos de 1970. Julio
completa:
En nuestra extensa línea de presidentes democráticos, está claro que Mujica tiene
una enorme ventaja sobre otros, que es una discursividad maravillosa, que logra
recuperar algo de una cierta mística de los años 70 y de relacionamiento entre las
personas que otros presidentes no la tienen, pero hizo lo que pudo, y de hecho hizo
bastante (JULIO PEREIRA).
Dito isto, podemos sinalizar que após Durban a conjuntura mudou bastante, outras
perspectivas surgiram e impactaram diretamente na população negra, que passou a abarcar
150
Creo que hay acciones pero no hay políticas públicas después de casi dieciocho
años, no tenemos políticas públicas, tenemos acciones. Me cuesta, sé que hay un
movimiento, sé que hay nuevos militantes, sé que hay militantes diferentes a los que
fuimos nosotros y a su vez yo diferente a las que fueron antes. Hay como un
permanente movimiento de nuevas militancias pero con poco diálogo entre nosotros,
creo que eso es lo que más nos debilita (KARINA MOREIRA).
Na base de toda essa peleja, pode conter uma miríade de possibilidades, desde a
exacerbação da incompatibilidade política entre parte dos militantes, com foco em questões
mais ideológicas e menos objetivas, ausência de sentimento de coletividade, oportunismo,
dentre tantas outras. Karina, portanto, considera que:
151
Cada vez hay más gente que se dice afrodescendiente que reconoce el racismo, que
lo puede hablar, es capaz de debatir y creo que es eso lo que va cambiando en
realidad la subjetividad a nivel nacional, creo que todo eso cambia pero en realidad
como que estructuralmente es poco lo que se cambia (KARINA MOREIRA).
Quando minha orientadora nos propôs trabalhar o Uruguai, havia uma questão que
pululava em nossas cabeças: Como é ser negro no Uruguai? Acreditamos que esse
questionamento seja dado, em grande medida, pelo fato de que temos uma imagem bastante
branca daquele país, mesmo quando observamos a sua seleção de futebol e constatamos que lá
existem negros. Acredito que este fato aguce ainda mais a curiosidade de quem seja adepto ao
esporte e tenha boa inclinação para “desbravador”.
A partir das leituras que realizamos até aqui, tomamos contato com um país que
não apresenta diferenças substanciais no escopo geral de organização histórico-social
brasileiro, tendo passado por um violento processo escravocrata e dissimulando oficialmente a
existência de racismo no interior de sua sociedade. Também foi possível entender que se trata
de um país que não apenas negou o racismo, como descredibilizou o negro em suas mais
152
ven peligro donde no hay, estaban asustados porque había barrios de negros cerca de
la embajada y eso fue una de las razones por la cual el desplazamiento
(CHABELLA RAMIREZ).
Vemos que a tentativa de despejar os negros de seus bairros pode estar para além
de uma “higienização” e/ou “gentrificação” da cidade, mas perpassa por uma estratégia de
dificultar o fortalecimento dos laços comunitários entre os negros. Entretanto, o oposto se
observa, na medida em que um atentado contra coletividade negra é perpetrado e gera
reações, tal como se deu com os movimentos pela moradia após a derrubada do conventillo
“Médio Mundo” na mesma década narrada por Chabella Ramirez.
Essa asserção é importante e recorrente entre os entrevistados, tendo em vista que
o processo de identificação positiva acerca da negritude foi dado de forma gradativa e
bastante dolorosa entre os negros uruguaios. As estratégias de desmobilização negra, citadas
por Chabella, coadunam com a ideia de Noelia Maciel no que diz respeito ao modelo de
civilização que se pretendia erigir, ou seja, algo assimilacionista no qual os negros deveriam
abandonar a sua ancestralidade.
Creo que referenciando más a la época de mis padres, quizás de mis abuelos, ser
negro en Uruguay es como estar como en la invisibilidad, es decir lo que más
resaltaba me parece es eso de asimilarse a una cultura que era la hegemónica, que lo
que estaba como ponderado no eran los valores culturales que tengan que ver con lo
africano, sino todo lo que era la sociedad blanca, todo este impulso movilizador
también hacía que estuviera mal visto todo lo que venía de tus ancestros (NOELIA
MACIEL).
Lo que observo es que estas producciones que son buenas producciones no forman
parte de los programas académicos obligatorios, siempre son producciones muy de
motus propias… yo creo que hoy la producción académica negra de parte de los
154
blancos tiene que ver con un nicho interesante de producción académica (KARINA
MOREIRA).
Karina não deixa de tecer as críticas pertinentes e salienta que os negros ainda
estão substancialmente fora da academia, e isto significa que pouco estaria influenciando nas
transformações sociais, já que ela não deixa de considerar “que la producción académica
puede generar grandes transformaciones porque nos formamos a través de ella, es la
educación válida” (KARINA MOREIRA). Justamente por serem “válidos”, validados, ou
oficializados, que os conhecimentos acadêmicos possuem poder de transformação, uma vez
que quem os detém, possui a chancela para preparar outros indivíduos para outras etapas da
vida em sociedade, seja para o conhecimento básico ou para as investigações científicas.
Estando os negros exponencialmente fora do ambiente onde se produz os
conhecimentos oficializados pelo Estado, inegavelmente as chances de recontar a história, de
se inclinar para fontes que permitam outros olhares acerca dos eventos que organizam a
memória coletiva correm o risco de ser menores. E não se trata de um suposto monopólio
temático em favor dos negros, e tampouco que negros devam ser essencialmente militantes e
estudiosos da temática racial. O que se presume é que há uma forte tendência de os negros se
inclinarem para as pesquisas que sinalizem algum caminho que lhes ofereça possibilidades de
compreensão para inquietudes que os acompanham desde a infância.
Por esse caminho, Karina afirma que talvez seja o momento de promover pessoas
negras que se interessem pelas investigações acadêmicas para dentro das pesquisas acerca da
temática racial, funcionando como interlocutoras entre os movimentos negros, a comunidade
negra e a universidade. Ela completa: “Creo que por ahora tiene que ver más como de
impulsos personales o de nichos de investigación y de producción y de algunas personas en
particular que han encontrado ese nicho” (KARINA MOREIRA).
Julio Cesar Pereira completa o que Karina Moreira diz sobre os impulsos pessoais
para as investigações acadêmicas acerca do negro no Uruguai. Segundo ele, é necessária uma
elevação da consciência, é preciso que o negro tenha claro qual a sua condição dentro do
processo histórico daquele país e a sensibilidade para o entorno, baseando-se em informações
oficiais, preparando, desse modo, o terreno para uma robusta argumentação.
Depende del grado de conciencia que tengas. Si tenés claro de ehh, o por lo menos
crees que en Uruguay existe una situación de racismo estructural, que los negros
viven una situación de opresión y se tenés claros los datos sobre cómo viven la
población afro de cómo vive la población blanca, de cuáles son las brechas en el
proceso educativo, ehh, si tenés todos esos datos claros (JULIO CESAR PEREIRA).
155
É importante salientar que ainda que o negro esteja inclinado para as questões
acadêmicas, consciente dos seus direitos, municiado de dados oficiais e produzindo
conhecimento acerca de sua comunidade, o racismo cotidiano não o isenta de ser vitimado.
Julio César Pereira é professor na Universidad de La República e afirma que no nível do
cotidiano os infortúnios continuam os mesmos, ainda que de maneira dissimulada e sem a
efetivação de violência física.
Podemos notar que por mais integrado que o negro esteja, em nível de emprego e
educação, as situações são constrangedores e ocorrem constantemente, levando à percepção
de que seja necessário criar mecanismos de defesa para saber lidar com os fatos. Anotando as
indagações do professor Júlio e analisando todo o painel uruguaio, estivemos inclinados a
pensar um pouco sobre a situação dos negros residentes nas cidades do interior daquele país,
já que até aqui nós estivemos concentrados na visão montevideana do problema.
Karina faz uma observação ancorada no fato de que, segundo ela, há uma forte
diferenciação entre as cidades do interior do país e a capital Montevidéu. Ela afirma que os
processos são bastante diferentes e que as pessoas negras de Montevidéu talvez tenham menos
problemas de inserção em espaços, como a academia, do que aquelas que se criaram no
interior. Karina completa dizendo que
La gente del interior donde te voy a insistir, la proximidad con el blanco es aún
mayor porque generalmente están como más las relaciones laborales o las relaciones
de crianza, de haber sido criada en determinada casa o no sé, son otros procesos que
a veces incluso en el interior profundo son más crudos. Realidades mucho más
crudas de las que podemos imaginar desde Montevideo (KARINA MOREIRA).
São diversos os fatores que conduzem os negros à busca de uma coletividade, seja
na capital ou nas cidades de interior. A vivência de uma pessoa negra naquele país passou por
diversos momentos, os quais a história sinaliza para substanciais avanços, ainda que o
racismo continue existindo e as estatísticas apontem para índices muitos discrepantes no que
tange ao acesso de satisfatória realização escolar, saúde, emprego e moradia.
Os nossos entrevistados nos apresentaram um painel geral e de acordo com a ótica
de quem se organiza em torno do combate ao racismo. Há muitas dores e alegrias de saber
que conquistas estão sendo possibilitadas, sobretudo após a Conferência de Durban, quando
eclode um pacote de leis e determinações que vem contribuindo substancialmente para que
novos caminhos sejam percorridos, não somente pelos negros, mas para a população uruguaia
como um todo, uma vez que se assume o compromisso para novas relações sociais.
Portanto, ainda que hajam muitos desafios, existe a militância do movimento
negro, inclinado a buscar soluções para os problemas mais complexos, identificados a partir
de pesquisas acadêmicas, dados estatísticos, denúncias de casos de racismo e de percepção
das dinâmicas sociais operadas nas relações cotidianas, e os nossos entrevistados são parte
daqueles que identificam e buscam soluções para o racismo, e por esse motivo apresentamos
brevemente um pouco daquilo que está no escopo do pensamento e das propostas em que eles
estão escudados para a ampla mobilização do movimento negro em benefício dos afro-
uruguaios.
Após lançar estas análises acerca do painel uruguaio, se faz necessário redesenhar
o panorama educacional, valorizando o que temos de informação sobre a Lei 19.122 e a partir
158
das reflexões compartilhadas pelos entrevistados, tendo em vista que grande parte deles esteve
no processo de luta pela implementação da referida Lei. Além disso, reside o fato de que
muitos deles são operadores de políticas públicas, alguns, inclusive, beneficiários da política
de ações afirmativas.
De acordo com a literatura até aquí consultada, o Uruguai é um país que
conquistou bons índices de qualidade de vida, proporcionado, em grande parte, pelo bom
nivel educacional da população. Esse fato é consubstancialmente fruto de processos históricos
que sinalizam para a satisfatória gestão dos recursos públicos. O Uruguai, segundo Iguini,
Maciel, Miguez e Rorra (2016), praticamente resolveu o problema de acesso à educação e, por
conseguinte, do analfabetismo. Os autores afirmam que, apesar dos desníveis raciais, esse
cuidado sempre esteve presente na história do país.
Pensando em termos históricos, as afirmações dos autores supracitados estão
corretas, pois, de acordo com Cabella, Nathan e Tenenbaum (2013), o Uruguai realizou
precocemente - se comparado aos outros países da América Latina - a sua reforma da
educação. Naquele período a reforma carregava um caráter universal, atendendo aos
princípios legais que norteavam o rumo que aquele país deveria seguir, melhorando os índices
de alfabetização e instrumentalização técnica para o trabalho.
Entretanto, os mesmos autores afirmam que essa abrangência somente chegou aos
negros tardiamente, mas que os índices de escolarização da população negra fora
gradativamente melhorando com o passar dos anos. Aqui devemos entender que a
reivindicação histórica dos movimentos negros uruguaios se fez em torno da permanência na
escola, do modelo de educação e do tratamento dispensado aos negros no sistema escolar, e
não tanto mais por acesso.
Nesse sentido, as políticas educacionais para os negros uruguaios vão
acompanhar, necessariamente, o atendimento das reivindicações dos movimentos negros
daquele país, tendo em vista que todo o teor reivindicatório reside em questões voltadas para a
negligência do ensino de história e cultura do continente africano e da ausência de
mecanismos de permanência de jovens negros no sistema escolar, tendo em vista que a
159
Esse artigo da referida lei, deixa claro que se faz necessário a promoção de novas
estratégias educativas que reorganizem o currículo e incorporem a temática racial como
constitutiva do processo educativo do país. Os desafios são grandes e os movimentos negros
articulam as mudanças necessárias, conforme adverte Rorra (2019). De acordo com ele, o
legado branco é predominante na literatura uruguaia e isso dificulta a percepção de questões
simbólicas encrustadas nas dimensões mais subjetivas de cada texto, por parte dos estudantes.
Repetidamente esses valores levam a uma absorção quase que inconsciente da superioridade
do branco sobre o negro.
Nesse sentido, ele reitera o que adverte Gortazár (2016), que reafirma que o
discurso official sobre a literatura uruguaia como iminentemente branca, afeta diretamente na
construção do imaginário coletivo e serve como dispositivo para alimentar a normatividade de
inferiodade do negro. Ainda de acordo com Gortazár (2016), a construção da ideia de uma
nação uruguaia unida se fortificou a partir do século XIX, com o recente processo de
independência. O desejo das elites uruguaias naquele momento era eliminar os vestígios de
160
negritude. Para tanto, seria necessário massificar as grandes narrativas produzidas por
pensadores de origem europeia.
Esses autores concordam que essa investida foi eficaz e perdurou por mais de um
século, e que só a partir das indagações e lutas dos movimentos negros que o panorama vem
mudando. No entanto, advertem sobre a necessidade de atualização de estudos e estímulo às
pesquisas acadêmicas que versam sobre a história da população negra uruguaia. Esse
incentivo seria importante para produzir uma narrativa cujo os protagonistas sejam pessoas
negras, já que uma das grandes queixas – observadas nas minhas entrevistas e confirmadas
pela bibliografia consultada – é a de que o Uruguai sempre teve uma história contada sob o
olhar da intelectualidade branca.
A tarefa de assegurar que as narrativas negras construídas por ativistas que
lutaram pela implementação da Lei 19.122 sejam garantidas, tem a sua chave mestra na
educação formal, por isso a lei gera os dispositivos estruturais que asseguram a permanência
do estudante negro nas escolas e universidades. Por causa disso, em seu artigo seis, a lei
determina o seguinte:
equilíbrio econômico e acesso irresrito à cidadania, que se constituem pessoas inclinadas pelo
bem comum e que se organizam para a efetivação de providências que se opõe ao subjugo e
da contribuição histórica do negro.
Cabe observar que o sistema de ensino superior uruguaio não adota o método de
vestibular como forma de ingresso, não sendo necessário que a Lei 19.122 seja aplicada para
esse fim. Esse fato se dá por conta de que o ensino secundário no país acontece por meio de
dois ciclos de três anos, nos quais o primeiro é voltado para o cumprimento das disciplinas
obrigatórias e o segundo visa a preparação para o ensino universitário. De acordo com Rorra
(2019), geralmente as pessoas negras buscam o ensino técnico e cumprem apenas a etapa
obrigatória, não ingressando na universidade.
O Uruguai conta com apenas duas universidades públicas e seis privadas, mas
que, Segundo Rorra (2019), atende bem a demanda do país. Noelia Maciel (2019) se mostra
otimista quanto ao ingresso do número de negros, afirmando que está aumentando
substancialmente e este fato vem contribuindo para o surgimento de novas pesquisas nas
ciências humanas que estejam atreladas à comunidade negra, gerando um entusiasmo para as
novas gerações, que, paulatinamente, conseguem produzir as suas próprias narrativas e não se
atém mais somente às produções feitas por pesquisadores brancos.
Noelia Maciel (2019) afirma também que o sistema educativo uruguaio tema
muitos méritos e consegue dar uma boa assistência a sua população, tendo em vista que o
ensino básico é gratuito e obrigatório, e a rede de escolas se mostra suficiente para atender às
demandas da educação, ou seja, nenhuma criança se encontra fora da escola. De acordo com a
ativista, o mesmo se observa no ensino secundário, o que permite corroborar com os
documentos oficiais do Programa das Nações Unidas para o Desenvlvimento, que classifica o
Uruguai como o país com o maior índice de alfabetização da América Latina.
Dentre os ativistas entrevistados, Juan Pedro Machado, Orlando Riveros, Oscar
Rorra, Julio Pereira, Noelia Maciel, Karina Moreira e Lourdes Martínez, concordam que o
problema do sistema de educação no Uruguai, para a população negra, não está mais
relacionado ao acesso, e sim com a permanência e com o currículo. Conforme já exposto, a
questão do acesso também tem sido resolvida a partir da determinação de dispositivos que
mantêm os estudantes negros frequentando as aulas, ainda que estes sejam os que mais
evadam.
Desse modo, os ativistas se concentram em produzir materiais informativos,
publicar textos acadêmicos, livros didáticos e fomentar palestras que recontem a história do
país, valorizando a cultura negra e promovendo o protagonismo negro em ações pontuais e
162
6 METODOLOGIA
Trabalha com o universo dos significados, dos movimentos, das aspirações, das
crenças, dos valores e das atitudes. Esse conjunto de fenômenos humanos é
entendido aqui como parte da realidade social, pois o ser humano se distingue não só
por agir, mas por pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir
da realidade vivida e partilhada com os seus semelhantes. (Minayo, 2007, p. 21)
descrições em separado acerca de dois países, Brasil e Uruguai, considerando que ambos
possuem população negra, movimento negro, enviaram delegações para a mesma conferência
e adotaram medidas de políticas públicas educacionais específicas para as respectivas
populações negras (lei 19.122/06 e SECADI).
Desse modo, trouxemos algumas comparações em nossas considerações finais,
feitas a partir das descrições do painel racial de ambos os países e partindo da premissa de que
a Conferência de Durban possibilitou a emergência de políticas educacionais específicas para
a população negra em ambos os países, como elemento crucial de combate ao racismo.
No decorrer da nossa pesquisa buscamos responder às perguntas: A Conferência
de Durban foi a responsável pelo desencadeamento de políticas educacionais para a população
negra no Brasil e no Uruguai? Quais são os desdobramentos da Conferência que se verificam
no Brasil e não se verificam no Uruguai, e vice-versa? Descrevendo os caminhos percorridos
por ambos os países, antes, durante e depois de Durban, obtivemos dados que nos permite
elencar elementos indispensáveis para a reflexão acerca dos questionamentos feitos.
De acordo com Gil (1994), é importante frisar que para a realização dos estudos
comparativos é necessário buscar os elementos fundamentais para que haja a descrição
almejada em relação ao que se querer comparar. Sobre os estudos comparativos ele afirma
que
nosso roteiro, são os objetivos do trabalho, uma vez que as considerações são feitas de acordo
com a aproximação entre o que colhemos em campo e as análises feitas (Oliveira, 2019).
Nesse sentido, no Brasil escolhemos membros do corpo técnico da Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão – SECADI, por entender que
aqui o plano de ação da Conferência de Durban coincidiu com a criação da referida secretaria.
No Uruguai optamos em entrevistar os ativistas dos movimentos negros, considerando que
naquele país não existe uma secretaria análoga a SECADI, mas existem políticas
descentralizadas e essas recebem consultoria de ativistas dos movimentos negros, que em
alguns casos fazem parte do corpo técnico do serviço público.
Portanto, seguimos estes métodos de pesquisa a fim de alcançar os objetivos
elencados. Nós nos lançamos a campo a partir de um roteiro estruturado de acordo com as
diferenças e peculiaridades previamente estudadas acerca de cada país em separado e
tomando o cuidado em intervir o mínimo possível no desenvolvimento de cada entrevista
concedida.
167
CONSIDERAÇÕES FINAIS
necessário direcionar olhares para o que realmente nos importava investigar: Existe uma
ligação direta entre a criação da SECADI e a Conferência de Durban?
Constatamos que a resposta para esta pergunta é sim, a SECADI surge em um
contexto político no qual não cabia mais a ausência de políticas focais para os negros, tendo
em vista uma ambiência internacional que se desenhava após a queda de regimes totalitários
pelo mundo, a nova constituição brasileira, em 1988, a Lei de Diretrizes e Bases para a
Educação no ano de 1996 e a Conferência de Durban em 2001. Desse modo, a Conferência de
Durban foi o último evento balizador para uma nova dinâmica de políticas públicas de
combate ao racismo, e a SECADI é um desdobramento dessa investida.
A partir das entrevistas realizadas no Brasil ficou sinalizado que houve avanços
pós-Durban, e que os programas ofertados pela SECADI precisam ter continuidade. A
SECADI, enquanto órgão público surgido após esta Conferência, tem sido o vetor de
consistência dessas transformações. Entretanto, não podemos negar que diversos entraves
surgem a partir de disputas de forças políticas antagônicas e que existam profundos problemas
construídos historicamente, cuja solução não é simples e não está às mãos dos técnicos que lá
trabalham, necessitando de um longo e consistente trabalho.
Na nossa avaliação, a oferta de várias modalidades de educação sinaliza para o
fato de que a Secretaria tenha sido uma maneira de equalizar as vozes de vários ativismos que
se organizavam durante décadas, a fim de exigir dos governos melhor inclusão de suas
demandas no sistema educacional. Com isso, negros, indígenas, mulheres, portadores de
necessidades especiais, trabalhadores rurais, jovens e adultos com déficit de alfabetização,
ciganos, homossexuais e outros grupos historicamente marginalizados são contemplados com
a possibilidade de políticas públicas de inclusão de suas pautas no sistema escolar.
Para tanto, foi necessário que a Secretaria fizesse a composição de um quadro
técnico especializado, viabilizado pela alocação de pessoal que tivesse afinidade conceitual
com as temáticas propostas. Pudemos observar que esteva em jogo não apenas uma alocação
concebida pelo mérito técnico de ter estudado academicamente as temáticas abordadas pela
SECADI, pois, para além de títulos universitários, ou de anos de trabalho no Ministério da
Educação, as pessoas que estiveram na formação da Secretaria deveriam ter inclinações
políticas para tornar possível que a real inclusão dos públicos-alvos se efetivasse, ou seja, não
era apenas um conhecimento teórico sobre os assuntos lá dispostos que interessava, era
preciso mais do que isso.
Os programas ofertados pela SECADI são variados, orbitando desde premiações
em âmbito de educação básica, incentivo à publicação de materiais didáticos, estruturação de
169
Por isso, ainda que se tenham avanços no sentido de inclusão social após Durban,
partimos da premissa de que o grande desafio para os movimentos sociais e as políticas
públicas governamentais seja encontrar a fundamental sintonia para promover cidadania para
todos. Todavia, ainda se percebe uma enorme lacuna entre as políticas de Estado e as políticas
de governo, percebida a partir do momento em que nos lançamos ao campo, pois foi o período
de transição de um governo para o outro, ocasionando temor pela extinção da SECADI.
Apesar do momento turbulento em que passava o Brasil ao final do ano de 2016,
nossas entrevistadas que faziam parte da gestão estavam otimistas e prudentes, chegando a
afirmar que: “uma coisa que é bem explícita em todos os comentários, em todas as reuniões
que a gente faz é: a SECADI vai continuar” (BÁRBARA SULA, 2016). Elas asseguraram que
mesmo diante da agitação causada pela instabilidade política no Brasil, havia uma gama de
informações que não procediam com o que acontecia internamente na SECADI, e que o foco
principal não recebeu o tratamento adequado, que é a questão racial.
Para elas, muito mais do que especulações, o racismo não deixa de trabalhar pelas
entranhas institucionais, independentemente dos gestores que darão continuidade a essa
Secretaria. Uma de nossas entrevistadas, Bárbara Sula, inclusive deixa claro que o viés
principal da Secretaria é a questão racial, e a sua maior preocupação é “o direcionamento da
política, porque quando trabalhamos com a questão racial a questão é muito mais séria, que é
a visão crítica da questão racial” (Bárbara Sula).
O crucial a ser perseguido nessa perspectiva é o modo operativo para lidar com a
questão racial, dificultando que os velhos entraves e distorções venham a tomar a dianteira na
luta antirracista, tendo como horizonte uma secretaria com um corpo técnico preparado para
lidar com pendências que venham a diluir a problemática do racismo em outros atenuadores,
sob o risco de comprimir os recursos destinados às ações que tenham efeitos diretamente na
população negra.
Não podemos deixar de mencionar que, repensar a SECADI, implica observar que
a oferta de inclusão e reorganização do imaginário social proposto por ela acaba se limitando
quando a Secretaria assume como frente de trabalho somente o ensino básico. Sabemos que
esta fase do processo de escolarização seja fundamental para construção de conhecimentos,
entretanto, não se escolariza somente no ensino fundamental, e não se pode negar o fato de
que a população negra ingressa no ensino superior mais tardiamente, sob condições materiais
adversas se comparado com os brancos.
Logo, a SECADI precisa pensar em dispositivos mais abrangentes de ampliação e
propostas para a oferta de políticas educacionais, uma vez que os negros estão inseridos em
171
todos as modalidades de ensino e constituem a parte mais alijada pela deficiente estrutura de
funcionamento do sistema educacional brasileiro. Dentre outras coisas, é necessário viabilizar
permanente formação complementar para o seu quadro de funcionários, tendo em vista as
frequentes mudanças de gestão, além de criar mais dispositivos de participação popular nas
decisões de políticas direcionadas à população.
Sendo o racismo uma das vigas de sustentação da sociedade brasileira, seria
necessário que a Secretaria pudesse se atentar aos preceitos elencados acima, na compreensão
de que o diálogo com os diversos atores sociais e entre as outras coordenações da própria
SECADI revelariam problemas atinentes à questão racial em outras dimensões, requerendo
um esforço coletivo que amplificasse a capacidade técnica para o trato com essa problemática,
já que o racismo se manifesta em diferentes classes sociais, identidades e esferas
institucionais.
É necessário que permanentemente sejam feitos os balanços de gestão,
independentemente da bandeira partidária que assuma o governo. Caso haja algum
enfraquecimento da SECADI, no que concerne ao debate das políticas de combate ao racismo,
não será uma questão atinente à uma crise política vivida em momento específico no Brasil,
como a do ano de 2016, mas da falta de cumprimento integral com o que sinalizam os planos
de ações redigidos em conferências como a de Durban, já que eles são frutos de acordos
internacionais, identificando problemas e indicando possíveis caminhos para combater o
racismo.
Portanto, podemos dizer que apesar de ser atravessada por problemas históricos
que afligem a sociedade brasileira, a SECADI obteve êxito – até a gestão de 2016 – em sua
missão, e que a sua criação fora um desdobramento essencial da Conferência de Durban e das
articulações do movimento negro, antes, durante e depois da Conferência. Resta aos
movimentos negros o estreitamento dos diálogos com os governantes brasileiros,
independente da conjuntura política, a fim de obter compromissos éticos que viabilizem mais
recursos para a continuação da SECADI.
Também se constituiu como escopo da nossa tese as análises sobre a
implementação de políticas educacionais para os negros no Uruguai pós-Durban. Para tanto,
fora necessário traçar um painel histórico no qual podemos concluir que naquele país há
problemas raciais. Com efeito, constatamos que a população negra se organizou em torno de
movimentos negros que perduram desde o início do século XX e empreende uma luta de
combate ao racismo que se fortificou ao longo do tempo e tiveram fundamental importância
para um atual quadro de transformações na qualidade de vida da população negra.
172
do escopo político dos movimentos negros, já que são ações que dependem exclusivamente
do Estado, e não de ações autônomas do movimento negro. Romero afirmou que é necessário
autogestão, e isso só se conquista rompendo os laços com o poder público.
Já os outros ativistas, sobretudo Orlando Riveros e Julio Pereira, acreditam que as
transformações deverão ser feitas por dentro das instituições, em um processo educativo
acessível a todos, como maneira de criar uma nova pedagogia, capaz de transformar o
ambiente cultural do país. Para eles, e para todos os outros entrevistados, o Plano de Ações de
Durban não se encerrou, tendo muitas cláusulas que se mantêm atuais e devem constituir o
escopo principal do movimento negro para muitas ações.
Aqui é importante sinalizar que, segundo Abers e Bülow (2011), existe ativismo
de atores posicionados dentro dos setores estatais, e isso conduz a um complexo jogo político
que ora entende o Estado como inimigo a ser combatido, ora tem o Estado como único
viabilizador de transformações que gerem mobilidade para grupos historicamente
marginalizados. Para as autoras, não é possível delimitar uma fronteira rígida que
desconsidere a importância de ações conjuntas ou coordenadas por gestores inseridos na
esfera pública.
O que podemos então perceber é que nem sempre os ativistas sociais produzem
militância de maneira aberta e pública por dentro dos aparelhos do Estado, mas que há efeitos
sentidos no seio dessas populações marginais (mesmo que de maneira incipiente), quando
algum tipo de mobilidade os conduzam a esferas antes inacessíveis diante de dificuldades de
ordem política e material. Portanto, há uma tendência que aponta para a possibilidade de que
grande parte dos novos movimentos sociais estejam mais afinados com o poder público, pois
na medida em que os sujeitos partícipes se qualificam tecnicamente, abrem novas frentes e
disputam lugar em posições estratégicas nas engrenagens do sistema.
Esse fato se observa tanto no Brasil quanto no Uruguai, e são fruto de sérias
contendas políticas, mas que possibilitam outros olhares quando as análises são feitas mais
próximas das instituições e movimentos. Por isso a necessidade de dar voz e ouvir esses
ativistas, pois dentro das disputas institucionais é primordial entender que é preciso saber
negociar, pois pouco se conquista a partir de uma postura de isolamento, e as negociações não
são necessariamente perda ou enfraquecimento do horizonte ético e do objetivo que se quer
preservar e atingir.
Fica evidente que a luta histórica dos movimentos negros no Uruguai possibilitou
o acúmulo de experiências necessárias para que assumissem o protagonismo na Conferência
de Durban. Ao retornar de lá, esses movimentos assumiram o papel de reivindicar o
174
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Libros de Hispanoamerica. Buenos Aires: Edigraf S.A., 1984.
Assinam o documento
Adel Daher - Diretor do Sindicato dos Ferroviários de Bauru e MS, Adelaide Jóia - Socióloga
e Mestre em Educação Infantil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
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Socialista - SP, Renato Lessa - Professor Titular de Teoria Política do Instituto Universitário
de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF),
Presidente do Instituto Ciência Hoje, Ricardo Ventura Santos -Pesquisador titular da Escola
Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz e Professor Adjunto do Museu
Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Roberta Fragoso Menezes
Kaufmann - Procuradora do Distrito Federal, Mestre em Direito pela Universidade de Brasília
(UNB) e Professora de Direito Constitucional, Roberto Romano da Silva -Professor Titular da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Rodolfo Hoffmann - Professor do Instituto
de Economia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Ronaldo Vainfas -
Professor Titular da Universidade Federal Fluminense (UFF), Roque Ferreira - Coordenação
da Federação Nacional de Trabalhadores de Transporte sobre Trilho-CUT, Ruth Correa Leite
Cardoso – Antropóloga, Serge Goulart - Secretário da Esquerda Marxista do PT, Sergio
Danilo Pena - Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro titular da Academia Brasileira de
Ciências, Simon Schwartzman - Pesquisador do Instituto de Estudos do Tabalho e Sociedade
(IETS), Simone Monteiro - Pesquisadora Associada, Fundação Oswaldo Cruz, Wanderley
Guilherme dos Santos - Cientista Político, Wilson Trajano Filho - Professor do Departamento
de Antropologia da Universidade de Brasília (UNB), Yvonne Maggie - Professora Titular da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).