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QUAL É O CORAÇÃO INJUSTIÇADO QUE

CARREGAMOS EM NOSSO CORAÇÃO?


No livro "Eu trago seu coração em meu coração", Dan
Booth Cohen diz exatamente isso, nos seguintes termos:
"muitas pessoas encarceradas [da prisão de Bay State,
em Massachusetts, EUA.] trazem em seus corações
outros corações feridos, sendo isso o que motivavam
suas atitudes, inclusive os graves e horríveis crimes que
cometeram".
Trago essa realidade para a reflexão de vocês nas
palavras proferidas pela Dra. Vanessa Aufiero da Rocha,
juíza de direito do TJSP na aula magna que ela
ministrou no dia 15/05/2021 às/aos alunos/as da pós-
graduação em Direito Sistêmico e MASC pela faculdade
Innovare1.
"Há três tipos de lealdades: por espelhamento, por
complemento e por oposição. Todas elas representam
um profundo amor, uma profunda gratidão que nós
temos por aqueles que vieram antes e porque vieram
antes foram, de alguma forma, responsáveis pelo fato de
estarmos aqui.
Nós recebemos a vida de todos eles. Graças a tudo o que
viveram, da forma como viveram, a vida fluiu e chegou
até nós. E porque recebemos a vida nesses termos, nós
nutrimos essa profunda gratidão e nos relacionamos,
inconscientemente, com tudo o que eles vivenciaram.
Se alguns deles viveram uma profunda injustiça, eu saio
daquela minha posição de pequeno e falo: ah! como
assim vocês viveram essa injustiça? Agora eu vou
reparar essa injustiça. Como se eu tivesse esse poder de

1
Aula disponível às/aos alunos/as da Faculdade Innovare em
https://www.online.org.br/sisfad/educacional/ae_v5/index.php.
fazer isso, como se eu tivesse a grandeza no meu lugar
para fazer isso. Na verdade, eu sou só o pequeno.
Quando faço isso, desconsidero que aqueles que vieram
antes tinham uma força para seu destino. E quando
viveram tudo o que viveram, inclusive as injustiças, eles
também estavam a serviço do destino coletivo.
E aqui eu trago um exemplo: a Rosa Parks. Vocês se
lembram dela? Ela tomou um ônibus na capital do
Alabama em 1955, na época da lei da segregação racial,
dentro dos ônibus inclusive. Na época havia essa lei que
estabelecia que alguns lugares eram reservados para os
negros e outros, aos brancos. Ela, juntamente com mais
dois colegas negros, sentaram-se em bancos que
estavam disponíveis para eles. Até que o ônibus lotou e
alguns homens brancos ficaram em pé e o motorista
determinou que todos aqueles negros saíssem dos
lugares que eles estavam, que eram deles, para ceder
para os brancos. Os dois homens que acompanharam a
Rosa se levantaram. Ela não se levantou. Não, eu não
vou sair daqui. O que aconteceu? Ela foi presa.
Se olharmos para aqueles que fizeram esse ato agora...
Abrindo aqui um parêntese: nós jamais podemos olhar
para a história com a consciência que temos hoje,
achando que todos aqueles que viveram antes tinham a
mesma consciência. Cada um fez o melhor que pôde
conforme seu nível de consciência. [Aproveito esse
parêntese, para acrescentar: fazendo assim, não estamos
olhando amplamente para todo o contexto. Sem o
contexto, não podemos compreender bem a realidade.]
Se a gente faz essa crítica para a história com o
pensamento que a gente tem hoje, a gente vai ser muito
arrogante e totalmente fora de ordem.
Então, o que acontece? Se a gente olhar para essas
pessoas que cometeram uma injustiça e fala: nossa, que
absurdo, que injustiça foi essa e nós desconsideramos
que essas pessoas também estavam a serviço, nós vamos
julgá-las e excluí-las. E isso vai causar desordem, porque
elas também fazem parte da evolução da humanidade.
O que aconteceu por conta daquele gesto de injustiça? A
Rosa Parks foi presa e, diante da prisão dela – que
demorou um dia, no dia seguinte ela foi solta – muitos
movimentos começaram a acontecer nos Estados
Unidos. O maior dos movimentos: os negros deixaram
de pegar o ônibus. Muitos andavam quilômetros e
quilômetros, horas e horas por dia para chegarem ao
trabalho e voltarem do trabalho para suas casas. (....). O
que aconteceu depois de alguns meses? As empresas
estavam falindo, porque eram eles que movimentavam
os ônibus.
Muitos movimentos sociais começaram, foram se
fortalecendo, e a lei de segregação acabou sendo
[revogada].
Então, se a gente olha de forma isolada [sem olhar o
contexto], num pensamento mecanicista, apenas para
aquele ato: olha, ela vai presa e nós vamos condenar
todos aqueles que a levaram para a prisão: o motorista,
todos aqueles outros homens, o que acontece com essa
visão? (....). Perde a grande possibilidade de perceber
que a vida é essa energia benigna que está a serviço de
nossa evolução. Que tudo o que acontece está a serviço
de nossa evolução. Que aquela injustiça que foi cometida
que a Rosa Parks sofreu também estava a serviço da
evolução. Foi graças a ela que aqueles movimentos
aconteceram e que houve essa mudança na forma como
a sociedade tratava os negros.
Então, vejam: aquela injustiça também está a serviço. A
Rosa Parks tinha força para enfrentar aquela injustiça e
ela o fez da melhor forma possível, da forma mais digna
possível.
Agora, se eu olho para isso: eu preciso reparar essa
injustiça? Quem está fora de ordem, aqueles que
cometeram a injustiça que estava a serviço do destino
coletivo ou eu que quero modificar tudo que foi como
foi?
Então, isso nos convida a essa reflexão: qual é o coração
injustiçado que carregamos em nosso coração?
Quando eu quero me transformar em uma justiceira por
conta dessas injustiças que ocorreram no passado, isso é
muito pesado para mim e para os outros. Isso tira a
força dos outros para viverem seu próprio destino.
Lembrando: o destino das pessoas é muito maior que o
nosso coração. Não somos nós os senhores do destino
alheio. Eles são muito maiores. O que podemos fazer é
apoiar."
Que essas reflexões nos tire do lugar de indignados/as
que muitas vezes nos metemos e nos traga para nosso
próprio lugar, honrando e concordando com tudo o que
aconteceu antes e que nos propiciaram estar aqui.
___________________________
Eis (para aqueles que queiram conhecer melhor a
história da Rosa Parks e, principalmente, as
consequências de seu ato de insubordinação) alguns
excertos significativo retirados do artigo "1955: Rosa
Parks se recusa a ceder lugar a um branco nos
EUA", disponível em https://www.dw.com/pt-br/1955-
rosa-parks-se-recusa-a-ceder-lugar-a-um-branco-nos-
eua/a-340929 e acessado por mim em 19.06.2021.
Em Montgomery, capital do Alabama, as primeiras filas
dos ônibus eram, por lei, reservadas para passageiros
brancos. Atrás vinham os assentos nos quais os negros
podiam sentar-se. No dia 1° de dezembro de 1955, Rosa
Parks tomou um desses ônibus a caminho do trabalho
para casa e sentou-se num dos lugares situados ao meio
do ônibus. Quando o motorista – branco – exigiu que
ela e outros três negros se levantassem para dar lugar a
brancos que haviam entrado no ônibus, Parks se negou a
cumprir a ordem. Ela continuou sentada e, por isso, foi
detida e levada para a prisão.
O ato foi um marco no movimento antirracista nos
Estados Unidos, iniciando em Montgomery, onde,
poucos dias depois da atitude espontânea de Parks,
milhares de negros se recusaram a tomar ônibus a
caminho do trabalho. Enquanto as empresas de
transporte coletivo começaram a ter prejuízos cada vez
maiores.
No dia 13 de novembro de 1956, a Corte Suprema norte-
americana aboliu a segregação racial nos ônibus de
Montgomery. Poucas semanas mais tarde, a nova lei
entrou em vigor em Montgomery. Em 21 de dezembro
de 1956, Martin Luther King e Glen Smiley, sacerdote
branco, entraram juntos num ônibus e ocuparam
lugares na primeira fila.
Em junho de 1999, o então presidente Bill Clinton
condecorou Rosa Parks, com 88 anos a época, com a
medalha de ouro do Congresso norte-americano.
Durante a cerimônia da condecoração, Clinton acentuou
que Parks foi capaz de lembrar aos EUA que a promessa
de liberdade vinha sendo apenas uma ilusão para
milhares de cidadãos do país.

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