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Lançada em 1996, com grande

êxito de crítica e de público, a série


Perfis do Rio retorna agora, em
1998, trazendo os mesmos
ingredientes que a consagraram:
personagens marcantes e marcados
pelos cenários físico e cultural
desta cidade, onde eles próprios
eternizaram suas obras.
Esta série, idealizada pela
Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro e pela Secretaria Municipal
de Cultura, e produzida em
parceria com a Editora Relume
Dumará, retorna apresentando os
perfis de Carlos Machado, Hélio
Pellegrino, João Ubaldo Ribeiro e
Otto Lara Resende, vindo juntar-se
aos perfis já publicados de Ana
Cristina Cesar, Antônio Maria,
Clarice Lispector, Glauce Rocha,
Grande Othelo, Hélio Oiticica,
Janete Clair, João do Rio, João
Saldanha, Joaquim Pedro, Lucio
Costa, Marques Rebelo, Nise da
Silveira, Oscar Niemeyer, Oswaldo
Cruz, Vinicius de Moraes, Rubem
Fonseca e Wilson Batista.
Coleção Perfis do Rio

Obra patrocinada pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e pela


Secretaria Municipal de Cultura, produzida em parceria pelo RioArte e
Relume Dumará Editora

Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro


Luiz Paulo Fernandez Conde

Secretária Municipal de Cultura


Helena Severo

Presidente do Instituto Municipal de Cultura — RioArte


Oduvaldo de Azevedo Braga

Diretora de Projetos
Maria Julia Vieira Pinheiro

Coordenação Editorial
Wilson Coutinho

Assessora do Projeto
Gloria Estellita

PREFEITURA

GUOARTE
SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA
Paulo Roberto Pires

Hélio Pellegrino

A PAIXÃO INDIGNADA

RELUME q DUMARÁ
Rio de Janeiro
1998
O Copyright 1998, do autor
Direitos cedidos para esta edição à
Dumará DISTRIBUIDORA DE PUBLICAÇÕES LTDA.
Travessa Juraci, 37 — Penha Circular
CEP 21020-200 — Rio de Janeiro, RJ
Telefax: (021) 590 0135
Telefone: (021) 564 6869

Revisão
Soraya Araujo

Editoração
Dilmo Milheiros

Capa
Victor Burton
Sobre foto do arquivo de família

As fotos das páginas 50 (abaixo), 51 (acima), 53 (abaixo), 54, 55 e 56


(abaixo) são do Arquivo Hélio Pellegrino do Museu de Literatura
Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa.

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Pires, Paulo Roberto, 1967-


P746h Hélio Pellegrino: a paixão indignada/Paulo Roberto Pires.
— Rio de Janeiro: Relume-Dumará: Prefeitura, 1998
— (Perfis do Rio; 20)

ISBN 85-7316-153-1

1. Pellegrino, Hélio, 1924-1988. 1. Rio de Janeiro (RJ). Pre-


feitura. II. Título. III. Série.

CDD 920.5 ê
98-1455 CDU 92(PELLEGRINO, H.)

Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta


publicação, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui
violação da Lei nº 5.988.
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Para Cristiane Costa,


— desde ocomeço
de tudo.
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Agradecimentos

A frei Betto, Carlos Alberto Barreto, Chaim Samuel Katz, Dora


Pellegrino, Francisco Antonio Dória, Helena Besserman Vianna,
Joel Silveira, Lya Luft, Maria Clara Pellegrino, Maria Urbana
Pentagna Guimarães, Sarah de Castro Barbosa, Wilson
Figueiredo e Zuenir Ventura, pelas entrevistas e a gentil dispo-
sição de lembrar, às vezes com dificuldades e sempre com
emoção, alguém que foi, por motivos vários, importante em
suas vidas;

a Antonio Torres, Betty Serpa, Carla Lencastre, Carlos


Sussekind, Emir Sader, José Mário Pereira, Leneide Duarte,
Luiz Noronha, Muniz Sodré, Paulo Rocco, Thaís Pellegrino,
Wilson Coutinho, por lembranças dispersas, material de pes-
quisa, dicas, força, intermediações, confiança e paciência;

à Joelle Rouchou, Rosa Maria Barboza de Araújo, Eliane


Vasconcellos, à equipe do Arquivo-Museu de Literatura da Casa
de Rui Barbosa, Cristina Konder e aos funcionários do Centro
de Documentação e Informação de O Globo, pela ajuda fun-
damental na pesquisa;

à Cris, ao João Máximo e à Mary e ao Zuenir, preto


mos leitores e críticos;

a Cláudio Uchoa, Luiz Fernando Vianna e Milton Calmon


Filho, escuta paciente e sempre divertida nos encontros mar-
cados.
Venho de um negro tempo irredutível,
anterior a mim.
Vou para um negro tempo desmedido,
infinito campo de ébano
onde me apagarei.
De uma escarpa a outra,
transfixado entre negror e negror,
danço — centelha breve — o meu furor.

Lhomme revolté
Hélio Pellegrino
“Nunca vi tanta mulher bonita”, escreveu Rubem Braga
ao lembrar a tarde de 23 de março de 1988. Naquele dia,
conta ele, apesar do calor forte, calçou sapatos com meias,
vestiu um paletó escuro e foi à capela Real Grandeza se
despedir de Hélio Pellegrino. O que mais o impressio-
nou foi a enorme quantidade de mulheres chorando, al-
gumas quase desfiguradas, outras ocultas por grandes
óculos escuros. “Eu gostaria de conversar sobre isso e
outras questões de amor com uma pessoa, ao mesmo
tempo imaginosa e lúcida, mas esta pessoa estava metida
num caixão em uma capela onde sequer cheguei a en-
trar, e se chamava Hélio Pellegrino.”
Talvez só mesmo um Hélio Pellegrino para reunir, entre
as mais de 500 pessoas que foram ao São João Batista, inte-
lectuais, artistas, religiosos, psicanalistas, políticos, escrito-
res e poetas de diferentes posições, tendências, estilos e
orientações. E, se esta história começa pelo fim, é porque
o que se viu ali não foi uma despedida melancólica, depri-
mida, mas uma comunhão em torno da força de indigna-
ção e da paixão de alguém que, sem se querer líder ou se
pretender herói, transformou-se numa referência da vida
política e cultural brasileira entre os anos 60 e 80.
— O coração de Hélio bateu demais por grandes cau-
sas — lembrou frei Leonardo Boff durante a missa de cor-
po presente, numa alusão poética ao enfarto que pegou
de surpresa O psicanalista e poeta, que em janeiro havia
completado 64 anos.
Sobre o caixão, uma bandeira do Partido dos Traba-
lhadores, que ele ajudou a fundar. No meio do caminho
até a sepultura 20.570, estava estendida a faixa “Tortura
nunca mais”, mesma inscrição de um botton que Hélio
levava no peito.
O frade dominicano Fernando de Brito, que concele-
brou a missa, disse que depois do sacerdócio e dos anos
que passou na prisão por motivos políticos, só se sentiu
“verdadeiramente cristão” ao ser analisado por Hélio.
— Perdi uma grande parte de mim, talvez a melhor
parte — balbuciou Fernando Sabino. Ao seu lado, silen-
ciosos, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos nada
declararam. O famoso quarteto dos mineiros, inspira-
ção declarada de Sabino para os emocionantes perso-
nagens de O encontro marcado, estava para sempre
desfalcado.
Na madrugada anterior, no momento em que morreu,
Hélio Pellegrino chamou, bem alto: “Lya.” Ele segurava a
mão da escritora Lya Luft, sua terceira mulher, com quem
viveu seus últimos 27 meses depois de separar-se, pela
segunda vez, de Maria Urbana, mãe de seus sete filhos,
namorada de juventude e de toda a vida, com quem ca-
sou, ainda em Belo Horizonte, em 1948. Com a física
Sarah de Castro Barbosa viveu oito anos, entre 1974 e
1981.
Na hora de o caixão baixar, Boff, que durante a missa
havia substituído o ritual tradicional de comunhão pela
passagem do cálice com as hóstias de mão em mão, pe-
diu que todos rezassem o Pai Nosso. Calada, chorando
suavemente, vestida de branco, a atriz Dora Pellegrino,
uma das filhas de Hélio, assistiu ao enterro de longe,
tamanha a multidão em volta da sepultura.
“Foi ali, naquele momento, com muitas pessoas cho-
rando até muito mais do que a gente da família, foi que

10.
eu entendi definitivamente meu pai, como ele era impor-
tante para os outros”, relembra Dora.
Religião, psicanálise, política, amigos, mulheres, filhos.
Se, repito, esta história começa pelo fim, é porque na
última grande reunião em torno de Hélio Pellegrino fo-
ram celebrados todos os encontros que ele ansiava quando
enviou uma carta definitiva a Fernando Sabino, amigo
desde sempre:

“O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múl-


tiplas experiências. Ele pretende, nessa época, confor-
mar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois
acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar a si
próprio. Acontece, entretanto, que nascemos para o en-
contro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é
perdê-lo, é contemplá-lo em sua liberérrima existência, é
respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O
começo da sabedoria consiste em perceber que temos e
teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos
ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Neste momen-
to, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia
em nossa vida, e a face do outro nos contempla como
um enigma. Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe
“em plena treva, pobre e nu. Este é o preço do encontro,
do possível encontro com o outro. A construção de tal
possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho do
homem que merece seu nome.”

Se, nos limites exíguos deste perfil, não é possível dar


conta de qualquer vida de forma plena, não seria dife-
rente com um personagem que, como poucos, merece-
ria o adjetivo larger than life, maior do que a própria
vida. O que se segue é uma crônica, dentre muitas outras
possíveis e certamente ainda por escrever, dos encontros
marcados de Hélio Pellegrino com os amores, a psicaná-
lise, a política, a poesia, a revolta, a indignação, a paixão.
Com Deus, acrescentaria ele. Encontros que se tramaram

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em Minas, silenciosamente como se esperaria, e aconte-
ceram intensamente na cidade em que ele viveu 36 anos
e da qual incorporou um senso de humor bem peculiar
ao reformular na festa de seus 60 anos, em 1984, aquilo
que escreveu a Fernando Sabino na juventude:

“Quando você faz 20 anos está de manhã olhando o


sol do meio dia. Aos 60 são seis e meia da tarde e você
olha a boca da noite. Mas a noite também tem seus direi-
tos. Esses 60 anos valeram a pena. Investi na amizade, no
capital erótico, e não me arrependo. A salvação está em
você se dar, se aplicar aos outros. A única coisa não per-
doável é não fazer. É preciso vencer esse encaramuja- |
mento narcísico, essa tendência à uteração, ao suicídio.
Ser curioso. Você só se conhece conhecendo o mundo.
Somos um fio nesse imenso tapete cósmico. Mas haja:
saco!”

12: -
Sou um prisma às avessas
as cores em mim se confundem
sou um tapete de ecos
uma cachoeira de gritos
uma cordoalha de muitos tempos

A esfera de lantejoulas
— passado presente futuro —
roda refletindo mil sóis

Sou essa colméia de incêndios


essa assembléia de sinais
esse rumor insone.

E O dugure
BLLP:
Fernando, Otto, Paulo

“Não sei se você será um médico razoável, mas estou


certo de que o seu instinto poético, tão profundo, saberá
fazer da medicina uma coisa bela”, escreveu Carlos
Drummond de Andrade a Hélio Pellegrino no dia 9 de
dezembro de 1947. A carta saudava o mais novo médico
de Belo Horizonte. A menos de um mês de completar 24
anos, o filho mais velho dos imigrantes italianos Braz e
Assunta Pellegrino, nascido em 5 de janeiro de 1924, se-
guia a carreira do pai. Menos por vocação do que por
falta de opção. “Eu queria mesmo era fazer filosofia mas,
naquela época, não tinha Faculdade de Filosofia em Mi-
nas”, explicava o próprio Hélio. “Na verdade eu fazia era
medicina, boemia e política.”
Drummond, como se vê, tinha razão: os namoros com
a medicina ocultavam uma ligação mais sincera com a
poesia e com a boemia literária e política de uma cidade
que, fundada em 1897, ainda vivia na década de 40 con-
flitos entre modernização e tradição. Uma ruptura signifi-
cativa tinha acontecido duas décadas antes e teve em
nomes como Cyro dos Anjos, Drummond, Pedro Nava e
Aníbal Machado seus principais protagonistas. Tendo
como espelho e principal combustível o modernismo
paulista de Mário e Oswald de Andrade (escritores que
eles viriam a recepcionar, em 1924, no Grande Hotel de

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Belo Horizonte), aquela geração foi pioneira em criação
intelectual e atitude: o jovem Drummond, por exemplo,
inaugurou o ritual de escalar os arcos do Viaduto Santa
Tereza, um dos folclores mais duradouros da cidade. Nem
é preciso dizer que estes eram os heróis da turma daque-
le jovem alto, voz alterada e gestos largos que diria mais
tarde ter se formado em psiquiatria movido pela necessi-
dade de resolver “problemas pessoais”.
O psiquiatra Hélio Pellegrino surgiu no mesmo ano
em que o poeta Hélio Pellegrino estreava nas estantes
com um livreto editado pelo grupo literário Edifício, reu-
nindo dois longos poemas escritos em 1944: Poema do
príncipe exilado e Deixa que eu te ame. O primeiro, não
por um acaso, era dedicado a Mário de Andrade, com
quem manteve uma intensa correspondência — ao todo
11 cartas em 18 meses entre 1943 e 1945, ano da morte
do autor de Macunaíma.
“As cartas de Mário de Andrade eram uma festa, e
constituíam propriedade grupal, coletiva. Nos reuníamos
na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, para ler e
discutir o texto, esmiuçando-o, revirando-o, interpretan-
do-o em todas as direções. Com isto, Mário de Andrade
tornou-se para nós, antes que o conhecêssemos, um amigo
íntimo, querido — e perfeito. Ele nos abana a cabeça e
nós, em contrapartida, lhe abríamos o inquieto coração
de moços”, lembrava Hélio, que ao lado de Fernando
Sabino, conseguiu passagens de graça para ir a São Pau-
lo em 1943 e se apresentar ao escritor — que já vinha
trocando cartas com Fernando Sabino há um ano.
Mário ficou impressionadíssimo com o que viu e, numa
destas cartas que eram “propriedade grupal”, confessou
a Sabino: “Fiquei gostando muito dele (Hélio) e ele me
inquieta com os seus problemas ferozes. (...) Achei vocês
dois diabolicamente inteligentes, puxa! Na sua idade eu
era nada. E probleminhas tão outros. Os que eu tinha
vocês têm, mas têm os seus, os deste tempo a mais, que
eu não tive. E com a vitalidade intelectual de vocês dois,

16-
eu imagino que, sim, sobretudo que vulcão caótico vocês
têm por dentro. E fico tão inquieto, com tanto medo por
vocês, medo por todos os lados.”
Ao comentar para o próprio Hélio o Poema do prínci-
pe exilado — numa anotação feita à margem do original
datilografado — o escritor paulista não poupou elogios:
“O poema mais estranho, mais original, mais sem com-
paração que o Hélio escreveu. O mais necessário como
obra de arte independente. Poema a que a gente volta
“intrigado, relê sem cansaço nunca, cada vez descobrindo
coisas outras. Poema incontrolável. Para mim, poema
esplêndido.”
Aos poucos Mário de Andrade foi descobrindo que o
“vulcão caótico” que via na dupla era um estado de espí-
rito comum a jovens como Autran Dourado, Paulo Men-
des Campos, Wilson Figueiredo, Otto Lara Resende, Carlos
Castello Branco — este último o mais mineiro dos
piauienses. Nas redações de jornais, nos bares, nas roda-
das de conversas existenciais para “puxar angústia” — um
mundo que Mário conheceria pessoalmente ao passar
uma temporada em Belo Horizonte, em outubro de 1944
— começava a se formar uma rede de cumplicidades que
renderia muitas anedotas, causos, e, é claro, o mitológico
grupo “Os quatro mineiros”, confraria que tornaria im-
possível contar a vida de Fernando, Hélio, Otto ou Paulo
sem lembrar os outros três.
Hélio encontraria os outros três “cavalheiros de um
íntimo apocalipse”, para usar as palavras de Otto, no
quarto de pensão onde morava o “Mário de Andrade dos
pobres”. Era assim que se autodenominava o jornalista
João Etienne Filho, jornalista profissional, escritor ama-
dor, técnico de basquete e ator bissexto que foi um dos
principais catalisadores da inquietação literária que esta-
va no ar da Belo Horizonte boêmia da época. Foi em
meio aos livros que entulhavam o quarto de Etienne, que
morreu no final de 1997, tão discretamente quanto vi-
veu, que Hélio conheceu Otto e Paulo.

17
Fernando, que também foi apresentado aos outros dois
lá, já era para Hélio o Nandinho, um antigo colega de
escola. “Ele é o mais velho amigo do ponto de vista cro-
nológico: gosto dele desde os quatro anos de idade”,
dizia Hélio. Eles estudaram juntos desde o jardim de in-
fância, passando pela Escola Infantil Delfim Moreira, o
Grupo Escolar Afonso Pena e o Ginásio Mineiro. Neste
último, os amigos acabam empatados, em segundo lugar
em todo o Brasil, numa insólita Maratona Nacional de
Português e Gramática Histórica realizada em 1939. Hé-
lio estava com 15 anos, Fernando com 16 e os dois viaja-
ram juntos ao Rio para receber o prêmio — uma coleção
de livros — de Gustavo Capanema, ministro da Educação
do Estado Novo, ditadura que daí a pouco Hélio comba-
teria ferozmente.
Da mistura de amizades antigas como essa com ou-
tras explosivamente novas, vívia aquele apocalipse mi-
neiro, de cuja extensão se pode ter uma idéia em O en-
contro marcado, romance com fortes ressonâncias auto-
biográficas que Fernando Sabino publicaria em 1956. “O
livro é a história da apaixonada procura de caminhos, na
juventude. Ele fala da paixão da amizade, da paixão lite-
rária e da paixão amorosa, com nobre e densa riqueza,
tendo como pano de fundo a busca do Outro — e de
Deus”, resumiu Hélio nos 30 anos de publicação do li-
vro.
Negar o conservadorismo político e social de Minas
através da opção pelo marxismo e, consequentemente,
pelo ateísmo, parecia um caminho mais nítido, trilhado
por vários e vários companheiros de geração, ainda mais
quando se vivia sob um regime autoritário. Bem mais
difícil, tortuoso mesmo, era conciliar o engajamento com
o cristianismo, optar pela não-divisão entre as vidas da
carne e da alma. Esta síntese conflituada e sempre em
reelaboração — como, aliás, todas as sínteses na persona-
lidade de Hélio, mestre em administrar contrários — déca-
das mais tarde o aproximaria pessoalmente de frei Betto

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e Leonardo Boff e, ideologicamente, da Teologia da Li-
bertação.
“Eu sou mineiro apostólico romano”, definia-se Hélio.
“Minha família, meu pai, era tradicional. É aí que assume
maior importância, na minha vida, a amizade com Fer-
nando Sabino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende.
O Otto foi para mim a descoberta da amizade. Foi este
sentimento que nos salvou dos descaminhos da solidão,
nos ajudou a resistir. Para não afundar, decretávamos que
éramos uns gênios e os demais uns cretinos.”
A amizade-antídoto se explica em muito pela literatu-
ra, pelas influências de um passado povoado por aque-
les loucos que escalavam viadutos e faziam versos com
uma pedra no meio do caminho. Os próprios Hélio, Otto
e Fernando, em entrevistas no lançamento do disco Os
quatro mineiros, confirmavam que a literatura não ape-
nas consumia boa parte de suas horas na juventude: ela
os manteve unidos por mais de 40 anos.
“O que me liga a estes velhos, velhíssimos amigos, é
uma paixão pela literatura”, lembrava Hélio. “Cimenta-
mos uma amizade eterna justamente neste interesse. Além
do grande prazer estético que me deu e me dá, a literatu-
ra foi a ponte que me ligou a estas pessoas.”
“Aconteceu conosco a fatalidade de sermos animais
literários”, reiterava Otto Lara Resende com seu curioso
pessimismo. “Eu digo isso sem orgulho, até lastimando,
tenho a impressão que este chamamento, esta obsessão
literária, esta grafomania nos levou a jogar tudo num
destino que não é compensador: O que nos uniu foi o
amor do livro, a admiração por valores encarnados na
geração que nos precedeu. A figura heróica para nós era
o escritor, o poeta, o criador a partir do instrumento pre-
cário que é a palavra.”
E poucos, dentre os desta geração, souberam usar
tão bem o instrumento precário como Hélio. Orador
exaltado, investia com o mesmo fôlego contra a autori-
dade da Igreja e do poder constituído em geral e reci-

19
tais de poesia. Diz a lenda — e entre fato e versão, sem
dúvida nenhuma vamos ficar com a segunda — que ao
recitar O navio negreiro numa conferência sobre Castro
Alves, Hélio subiu numa cadeira e, inflamado, dali su-
biu numa mesa e, em seguida, sempre declamando, bo-
tou a cadeira sobre a mesa e nela subiu de novo, antes
de se estatelar no chão, com Castro Alves e tudo, de-
pois de a sala ficar às escuras devido a uma queda de
energia.
Hélio tinha a quem puxar na elogquência italianada.
Braz Pellegrino, eminente médico na cidade, não poupa-
va gestos e voz alta para expressar o que sentia. Um dos
mais ativos professores da Universidade Federal de Mi-
nas Gerais, ele brilhou tanto na medicina quanto na filo-
sofia, cátedra que ajudou a fundar. Numa aula de italia-
no, Dr. Braz foi às lágrimas ao lembrar os combatentes
brasileiros na Segunda Guerra Mundial:
— Estes soldados são heróis nacionais, por que cha-
mam eles de pracinhas, um diminutivo, por quê? — dra-
matizava doutor Braz para uma incrédula turma.
Nas questões da guerra, Dr. Braz na verdade torcia
muito mais para o outro lado. Simpático ao regime fascis-
ta de Mussolini, viraria um alvo constante de Hélio, que
misturava o natural conflito de gerações com um enfren-
tamento ideológico que não raramente ecoava na vizi-
nhança da Rua Bernardo Guimarães, onde moravam em
Belo Horizonte. Seu único irmão, José, também estudava
medicina e tinha uma personalidade oposta à sua: cala-
do, circunspecto, introvertido, iria se consagrar interna-
cionalmente com pesquisas sobre doenças tropicais até
se suicidar, em 1977.
Às vezes, Hélio tentava mostrar que seu temperamen-
to era mais parecido do que se supunha com o do irmão
e não era raro que, depois de tomar uns tragos a mais,
gritasse pela madrugada de Belo Horizonte com seus
companheiros de farra: .
- Eu sou um tímido! Um tímido!

z0
Este tímido bem peculiar era capaz de, apoiando-se
nos ombros de Autran Dourado e Wilson Figueiredo,
erguer-se na platéia de uma conferência de Oswald de
Andrade em Belo Horizonte e, sem nenhum embaraço,
atacar duramente o escritor por críticas feitas a Tristão de
Athayde. Certo mesmo estava o historiador Francisco
Iglésias, que costuma referir-se a Hélio como o homem-
comício.
Quando o Estado Novo dava seus últimos estertores,
uma multidão se reuniu em frente ao palácio do governo
para protestar. Imediatamente as tropas de segurança for-
maram um cordão de isolamento. Cara a cara com os
guardas, na frente dos manifestantes, lá estava Hélio, gri-
tando palavras de ordem contra o regime e dando bana-
nas para o governador Benedito Valladares. Que, da sa-
cada do palácio, apontava:
— Olha lá o Hélio!
O reconhecimento não era obra de um eficiente ser-
viço secreto. Um ano antes, em 1944, Helena Valladares,
filha de Benedito, havia se casado com Fernando Sabino,
um jovem escritor que naquela altura havia publicado
Os grilos não cantam mais e A marca e já estava insta-
lado no Rio de Janeiro. A formação da sociedade belo-
rizontina daquela época permitia que um dos mais in-
flamados líderes estudantis frequentasse socialmente a
“casa da filha do governador ligado a uma ditadura. Pra-
ticamente todas as famílias que eram referência em Belo
Horizonte mantinham algum tipo de relacionamento, à
revelia do que seus filhos aprontassem. Todos haviam
sido pioneiros na fundação da cidade e mantinham al-
gum tipo de ligação com três pilares básicos das novas
gerações: as faculdades de Engenharia, Direito e Medi-
cina.
Sob os olhos irreverentes do forasteiro Darcy Ribeiro,
que chegou a Belo Horizonte em 1939, aos 17 anos, vin-
do de Montes Claros, a geografia da cidade ganha um
aspecto bem divertido:'

21
“Bonita a valer era a Praça da Liberdade, pelo nome,
pelo ajardinamento e, sobretudo, pelas pencas de moças
em flor, lindíssimas, flertando com a gente. Até mandei
fazer um terno novo para não parecer tão caipira. O dia-
bo é que todas eram arredias. Só a antiga namorada de
Hélio dava, diziam. Acresce que todas aquelas moças
tinham donos. Helena, filha do governador, era de Fer-
nando, atleta, nadador e escritor que exibia cartas de
Mário de Andrade. Maria Urbana, filha do Israel, era do
Otto, filho risonho do homem mais carrancudo que vi.
Hélio acabou se encantando por Maria, do Bancomer.”
Não é difícil identificar nas Confissões de Darcy nos-
sos personagens: Fernando, é claro, é o Sabino, que na-
morou, noivou e casou com Helena, filha do governador
Benedito Valladares. Não há dúvidas sobre quem seja
Hélio ou Otto. Não sejamos descorteses em tentar adivi-
nhar quem era a namorada “que dava”, mas é certo que
esta era uma das poucas moças que namorava para valer
e não obrigava o namorado a frequentar os muitos con-
corridos bordéis de Belo Horizonte. Era, por isso, muito
conhecida entre os jovens intelectuais mas, como lembra
um deles, ela não dava para qualquer um:
— Ela só dava para o Hélio.
Aqui é preciso que se diga, e rápido, que a memória
traiu Darcy. No meio de tantas moças “com donos”, o
que refletia com um exagero típico do antropólogo aquela
rede de ligações familiares de Belo Horizonte, era natu-
ral uma confusão total: Otto jamais namorou Maria Urba-
na. Certamente namorou — e se casou — com a filha de
Israel, o Pinheiro, que foi governador de Minas. Mas esta
se chamava Helena e Otto só a conheceria no Rio. O que
nos interessa mesmo é a entrada em cena de Maria Urba-
na Pentagna Guimarães, filha de uma aristocrática família
da cidade, uma das mulheres mais bonitas da Belo Hori-
zonte de então. Um encontro fundamental que define os
rumos desta história...

22
Bernanos

Aos 20 anos, o rapaz que inspirou Mauro Lombardi, o


médico indignado de O encontro marcado, buscava seus
caminhos tendo como bússola um cristianismo enfureci-
do, beirando o misticismo, e a luta contra o autoritarismo
representado pelo governo linha-dura de Getúlio Vargas.
“Uma das primeiras sínteses entre forças que pareciam
tão inconciliáveis estava no Liberdade. O jornal panfletário,
que na clandestinidade vivia desafiando a censura com
ataques sutis e não tão sutis ao regime, havia sido batiza-
do segundo uma sugestão de Georges Bernanos, escritor
francês auto-exilado em Minas, então em intenso contato
com intelectuais cristãos brasileiros como Edgard da Matta
Machado, Jorge de Lima, Alceu Amoroso Lima e Augusto
Frederico Schmidt.
Entre 1938 e 1945, Georges Bernanos viveu no Brasil
a paz que não conseguira encontrar na Europa. Católico,
monarquista, ligado à direita mais conservadora na Fran-
ça, Bernanos tinha o perfil exato de um reacionário, a
mais improvável inspiração para um Hélio Pellegrino já
completamente fiel aos ideais socialistas. Bernanos che-
gou a ser preso por sua militância na ultraconservadora
Action Française e, em 1934, trocou a França pela
Espanha. Lá, aderiu imediatamente ao franquismo de
primeira hora e, também, mudou radicalmente o rumo

23
de suas idéias e de sua vida num sentido diametralmente
oposto.
Mergulhado até o pescoço na fundação do regime
que levaria o país à guerra civil, Bernanos percebeu que
os ideais cristãos nos quais acreditava estavam desde
então, contaminados pelo autoritarismo e a intolerância
mais odiosos, resultando numa opressão inimaginável.
Sem jamais aderir à esquerda, tornou-se um dos mais
ácidos críticos da direita. O resultado desta turbulenta
temporada espanhola foi um libelo contra as tiranias pu-
blicado em 1938: Les grands cimetiêres sous la lune, Os
grandes cemitérios sob a lua. O livro que Hélio relia na
tarde do dia 22 de abril de 1988, no quarto do Instituto
Brasileiro de Cardiologia, hospital em Ipanema, onde mor-
reria na madrugada seguinte.
Mais de 40 anos antes daquela tarde, no inverno de
1944, o trem noturno que fazia a viagem de 16 horas
entre Belo Horizonte e Rio, levava um animado grupo de
passageiros. Os jornalistas e escritores veteranos Edgard
e Ayres da Matta Machado acompanhavam Otto Lara
Resende, Paulo Mendes Campos, Hélio Pellegrino e Wil-
son Figueiredo até Barbacena, parada onde pernoitariam
para rumar no dia seguinte a Croix-des-Âmes, que era
como Bernanos chamava o subúrbio de Cruz das Almas,
onde morava numa fazenda que comprara. Desceram em
Barbacena no início de uma madrugada gelada e hospe-
daram-se num hotel barato para esperar o amanhecer.
O homem que os recebeu numa ampla casa cheia de
gente — Bernanos vivia com a mulher, seis filhos e diver-
sos agregados — pareceu a Wilson Figueiredo um perso-
nagem de livros como Sob o sol de Satã e Diário de um
cura do campo, que circulavam em traduções de Jorge
de Lima e Edgard da Matta Machado: gordo, alto, bigode
espesso, cabelos grisalhos desgrenhados, andando com
dificuldade apoiado numa bengala, Bernanos era extre-
mamente teatral. Falava alto e com a veemência que im-
primia a artigos panfletários que na época publicava em

24
jornais brasileiros e europeus. A conversa girava em tor-
no de noções bem abstratas de liberdade, a situação po-
lítica do Brasil e a França em guerra. Não é difícil, por-
tanto, imaginar o efeito do encontro sobre o exaltado
Hélio, que saiu de Cruz das Almas imitando Bernanos,
falando altíssimo, misturando francês e português e, so-
bretudo, tendo acirrado seu apaixonado engajamento
político e religioso.
Com a vitória dos Aliados, Bernanos voltou à França a
convite de De Gaulle saudado pela Resistência com um
herói intelectual, mas jamais se alinharia à esquerda, en-
tão em ascensão. Política, para Georges Bernanos, en-
volvia antes de mais nada um engajamento emocional e
espiritual forte e a crença em noções pouco precisas e
objetivas de libertação, um sentimento nada estranho para
alguém como Hélio, que iria definir-se como um “socia-
lista histórico, eventualmente histérico”.
Certamente seria arriscado fazer associações diretas
entre Bernanos e Hélio, mas não há dúvidas de que o
escritor francês espelhava as contradições e conflitos
nos quais insistia em se debater o “Maiakovski de bati-
na” — como o chamou, de gozação, Wilson Figueiredo
ao fazer o perfil de sua geração literária na revista Edi-
fício. Num de seus últimos artigos no Jornal do Brasil, a
propósito justamente do centenário de Bernanos, Hélio
deixa claro os motivos de sua admiração e, àquela altu-
ra, já não se sabe mais onde começa o pensamento de
um e de outro: “A fé religiosa, para ele, era engajamento
carnal, desmesura arrebatada — teologia da libertação.
Repeliu a untuosidade clerical, a serviço do poder, a
pompa acadêmica, a mediocridade disfarçada em falsa
prudência— apanágio dos bem-pensantes. Fiel ao seu
coração de menino, jogou tudo na graça de Deus: e
ganhou.”
A opção bem peculiar pelo cristianismo dos quatro
mineiros— e, principalmente, de Hélio — só ficaria clara
depois. O cronista José Carlos de Oliveira brincava di-

25
zendo que, quando ficava deprimido, gostava de imagi-
nar Otto Lara Resende em sua casa na Rua Peri, no Jar-
dim Botânico, “lendo um livro do Georges Bernanos”.
Mas com todo seu ceticismo e ateísmo, Carlinhos de Oli-
veira resumia bem o que estava se passando 40 anos
antes, na Belo Horizonte não raramente sufocante, ao
lembrar Hélio diretamente da varanda do Antonio's em
1968:
“Se algum dia eu reencontrasse a Igreja Católica, faria
tudo para ser um cristão do tipo Hélio Pellegrino, inter-
rogando Deus constantemente e de homem para homem.
E interrogaria os meus semelhantes com igual desassom-
bro, pois para esse psicanalista a neurose é sempre res-
peitável, mas nunca sagrada. Ele coloca acima de tudo a
responsabilidade humana; e unicamente nessa altura in-
suportável é que se dispõe a falar de inocência.”

26
“Maria Urbana

A Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, tinha em seu


nome ressonâncias insuspeitadas para as moças das tra-
dicionais famílias da cidade que, quando tinham permis-
são para namorar, só o conseguiam acompanhadas pelos
pais. Todas as quintas, sábados e domingos, a liberdade
da praça estava menos no nome do que no footing, um
vai-e-vem no qual o flerte era ostensivo e permitia às
moças passear escoltadas apenas por amigas. Os rapazes
alinhavam-se num dos lados da praça para observar me-
lhor a passarela que se formava. Foi num desses dias que
Hélio Pellegrino viu pela primeira vez Maria Urbana. Ela,
que na infância morara em Passagem de Mariana, desde
os oito anos estudava num colégio de freiras do Rio e,
passava as férias em Belo Horizonte. O destino que lhe
reservara a educação religiosa rígida era certamente cons-
tituir família, pois às mulheres da época não era permiti-
do o acesso a cursos reservados para os homens, como
os indefectíveis Medicina, Direito e Engenharia. Por isso,
Maria Urbana sonhava com Filosofia e Letras, apaixona-
da que era por literatura.
— Se você quiser, posso te dar aulas de filosofia —
oferecia Hélio, que um dia resolveu telefonar para a moça
que mal conhecera na Praça da Liberdade.
— E você por um acaso sabe alguma coisa de filosofia?

p BT:
— rejeitava ela, que aos 16 anos gostava de namoricos,
mas recuava diante de qualquer avanço mais incisivo.
— Posso não saber, mas eu estudo e te dou aula.
— Ah, não sei, papai não deixa, mamãe não deixa —
despistava, pensando num namorado que deixara em
Ouro Preto.
O papo não colou e, a partir de então, o vaidoso estu-
dante de medicina, consciente de sua beleza e desde en-
tão cultivando as artes da sedução, passou a virar a cara:
para aquela mulher belíssima que o desprezara. Até então,
ele havia namorado muito. Muito mesmo. Moças da cida-
de e de fora. Recatadas e devassas. Era capaz de se empe-
nhar sinceramente tanto na conquista de uma resistente e
pudica moçoila, quanto transformar em sedução pura e,
é claro, muita conversa, o jogo de cartas marcadas dos
bordéis. Seu poder de eloquência era ilimitado.
Mas, é interessante notar, nosso personagem se pare-
cia menos do que se poderia supor com um Casanova
típico, um conquistador profissional. A compulsão em
falar seguindo um raciocínio intuitivo, os gestos largos e
redondos que se pode adivinhar até mesmo a partir de
suas fotos mais conhecidas, o empurravam naturalmente
para o centro da cena e das atenções. Em O encontro
marcado, os amigos descrevem assim Mauro Lombardi
numa sessão de jogo da verdade: “Você é uma besta.
Aquela besta de carne que você tanto alimenta. É um
poço de contradições. É um impulsivo, um bardo de es-
quina, um poeta de opereta, uma barítono de banheiro,
um mascate de sentimentos”, diz Hugo. “Pois a verdade
é esta: você é um peso-pesado, não há sensibilidade ca-
paz de dar conta dessa tonelada de sensualismo. Tudo
sensualismo, comércio obsceno, transações com os sen-
tidos. (...) Tudo em você é ostensivo, você é ostensiva-
mente amigo.”
Nas férias seguintes aqueles telefonemas mal sucedi-
dos, Maria Urbana vê, nos muros de Belo Horizonte, o
cartaz:

28:
HÉLIO PELLEGRINO PARA DEPUTADO FEDERAL
UNIÃO DEMOCRÁTICA NACIONAL

Imediatamente, ligou o nome à pessoa. Só podia ser


aquele rapaz exaltadíssimo, que tinha a petulância de, na
que seria a primeira e única vez em sua vida, concorrer a
um cargo tão sério com apenas 21 anos — sem ter ao
menos uma votação significativa. Poucos dias depois, ela
volta a se deparar com aquele nome, agora impresso na
seção literária de um jornal. Era o Hélio poeta, que a
encantou a ponto de virar o jogo. Agora o primeiro tele-
fonema partia do outro lado:
— Aposto que você não sabe quem está falando... —
jogou ela. ;
— Maria Urbana Pentagna Guimarães — mandou ele,
de primeira, para uma moça desconcertada que, no dia
seguinte, iria a seu encontro na mesma Praça da Liber-
dade.
Naquela altura, Hélio era noivo, o que Maria Urbana
não viu como um impedimento para a aproximação. Se
fosse casado, nem pensar. Mas, diante de um noivado ela
apostou todas as fichas. E ganhou.
Bem ao gosto da obsessão com que perseguia suas
paixões, Hélio queria — e conseguia — ver Maria Urbana
praticamente os dias inteiros. Encontravam-se, diariamen-
te, na missa das sete da manhã na Igreja de Lourdes.
Depois caminhavam até a Praça da Liberdade onde fica-
vam conversando até às dez e meia, onze horas. A sepa-
ração para o almoço era logo compensada no início da
tarde. Tudo isso entremeado por diversos telefonemas.
Aos domingos, a rotina era ligeiramente diferente. A
missa das dez era uma festa. Era o ponto de encontro
preferido de toda a turma, um compromisso que nada
despertava de desconfiança nos pais. Depois, vinha a
missa dançante, como chamavam um bailinho rápido no
Minas Tênis Clube, entre as liturgias do altar e as da mesa
do tradicional almoço familiar. Depois da macarronada, a

29
religião, era o filme, variando a matinê entre os cinemas
Metrópole e o Brasil. Para arrematar, uma passada na
sorveteria Elite.
No dia 11 de dezembro de 1948, Hélio Pellegrino e
Maria Urbana Guimarães entravam na Igreja de Lourdes,
a mesma na qual começaram a se encontrar na missa das
sete da amanhã. Médico da secretaria de saúde do estado
de Minas Gerais, ele trabalhava no Hospital Psiquiátrico
Raul Soares e vislumbrava a psicanálise, ainda uma in-
cógnita em Belo Horizonte, como uma possibilidade pro-
fissional para um jovem que deixava a faculdade insatis-
feito com o que podia lhe oferecer a psiquiatria e seus
juízos categóricos e mecânicos. Os pais da noiva ofere-
ceram ao casal uma viagem à Europa e o noivo, que em
toda a sua vida sairia do Brasil apenas duas vezes, prefe-
riu empregar o dinheiro na compra de um carro usado.
Menos de um ano depois, em 1949, nascia Maria Cla-
ra, a primeira dos sete filhos do casal. Hélio e Maria Ur-
bana estavam encantados com a filha. Nos dois anos se-
guintes chegariam Pedro e Helinho. E, logo depois, o Rio
de Janeiro e, finalmente, a psicanálise.

30
Iraci

O casamento e a família acabaram afastando Hélio


Pellegrino da vida pública e da boemia de Belo Horizon-
te. Seus companheiros mais fiéis já estavam longe: Fer-
nando Sabino, o primeiro a trocar Belo Horizonte pelo
Rio, havia se instalado em Copacabana em 1944. Um ano
mais tarde era a vez de Paulo Mendes Campos e Otto
Lara Resende. Este último tinha uma explicação bem cla-
ra para a mudança: “Minas era um estado sem horizonte
para uma vida intelectual. Nós viríamos fatalmente para
o Rio.”
A Capital Federal representava para Hélio a reaproxi-
mação do quarteto — “cavaleiros não sei se da Távola
Redonda ou do Apocalipse, pois de tudo vocês tinham
um pouco, em mistura de sonho, desbragamento, fúria,
ingenuidade, amor, pureza”, diria Carlos Drummond de
Andrade — e, sobretudo, a possibilidade de se analisar e
tornar-se analista. Em Belo Horizonte, ele deixava um
período de dúvidas e turbulências existenciais em busca,
com Maria Urbana e, àquela altura, três filhos, da virada
profissional e, sem dúvida, de uma cidade bem mais ade-
quada ao seu comportamento e arrebatamento.
Muito longe de ser uma moda ou um hábito na classe
média, a psicanálise, naquela época, dava seus tímidos
primeiros passos. E, para Hélio, poderia ser resumida num

31
nome: Iraci Doyle. Antes de começar a se analisar com
ela e sob sua orientação realizar sua formação analítica,
Hélio já a conhecia através do pioneiro Introdução à
medicina psicológica, um tratado sobre os fundamentos
freudianos que desde sempre o inquietou.
A aproximação intelectual e pessoal de Iraci Doyle
foram fundamentais para o jovem médico que, ainda
quando estudante, se dera conta de que sua vocação não
seria a medicina durante uma aula de fisiologia nervosa,
que ele descreve com requintes literários:

“O doente, em tables dorsal, ao centro do anfiteatro


escolar, era um velhinho miúdo, ex-marinheiro, vestido
com o uniforme da Santa Casa, onde estava internado.
Suas pernas, hipotônicas, atrofiadas, pendiam da mesa
de exame como molambos inertes. Jamais me sairá da
memória o antigo lobo do mar, exilado das vastidões
marítimas, feito coisa, diante de nós. Suas andanças pelo
mundo, seus amores em cada porto ficavam reduzidos,
em termos de anamnese, a um contágio venéreo ocorri-
do décadas atrás. O velhinho, contrafeito, engrolava o
seu depoimento, fustigado pelo gritos de “fala mais alto!
com que buscávamos saciar nosso zelo científico. De re-
pente, o desastre. Sem controle esfincteriano, o velho
urinou-se na roupa, em pleno centro do mundo. Vejo-o,
pequenino, curvado para a frente, tentando esconder com
as mãos a umidade ultrajante. Seu pudor, entretanto, nada
tinha a ver com a ciência neurológica. Esta lavrara um
tento de gala e o sintoma foi saudado com ruidosa ale-
gria, como um gol decisivo na partida que ali se trava
contra a sífilis nervosa.
O velho ficou esquecido como um atropelado na noi-
te. A aula prosseguiu, brilhantemente ilustrada. Os refle-
xos e a sensibilidade cutânea do paciente foram pesqui-
sados com mestria. Agulhas e martelos tocavam sua car-
ne — essa carne revestida de infinita dignidade, que um
dia ressurgirá na Hora do Juízo.

32
Meu colega Elói Lima percebeu juntamente comigo o
acontecimento espantoso: “O marinheiro está chorando”
— me disse. Fomos três a chorar.
- Entre lágrimas e urina, nasceu-me o desejo de me
dedicar à psiquiatria. O choro do velho, seu desamparo,
sua figura engrouvinhada sobre a qual parecia ter-se aba-
tido todo o inverno do mundo, tudo me surgiu de repen-
te como grande tema de meditação, a partir de cuja im-
portância poderia eu, quem sabe, encontrar um cami-
nho. A meus olhos, a tables dorsal integrou-se numa pes-
soa humana visada como todo. Esta totalidade única e
indissolúvel deveria poder tornar-se objeto de ciência. Já
ouvira falar em Freud, nos abismos do inconsciente, na
medicina psicossomática, que dava seus primeiros pas-
sos.”

No Brasil, a curiosidade com os ensinamentos de um


certo doutor Sigmund Freud começou no início do sécu-
lo —- em 1914, Juliano Moreira, um dos inovadores da
psiquiatria no Brasil, faz uma conferência sobre o méto-
do freudiano — mas só em 1937 chegaria a São Paulo a
alemã Adelheid Koch na condição, pioneira no país, de
analista-didata — o responsável a analisar candidatos a
psicanalista orientando sua formação profissional.
Em 1947, o interesse pela psicanálise ganha forma de
uma instituição, o Instituto Brasileiro de Psicanálise, que
pretendia atender aos padrões da IPA, a Associação In-
ternacional de Psicanálise, instituição fundada pelo pró-
prio Freud, que regulamentava e legitimava a atividade
em todo o mundo. Correspondendo-se com Ernest Jones,
* biógrafo e amigo de Freud, que então era presidente da
IPA, os membros do grupo pedem o envio de analistas-
didatas. Em 1948 chegam ao Rio o inglês Mark Burke e o
alemão Werner Kemper, cuja mulher, Katrin Kemper, se-
ria a grande referência na psicanálise para Hélio.
Como acontece até hoje, o destino dos grupos de psi-
canalistas era rachar e formar dissidências. O Instituto Bra-

33
sileiro de Psicanálise não admitiu que Werner Kemper trans-
formasse em analista-didata a própria a mulher (que era
grafóloga e, ao contrário da maioria dos analistas naquela
época, não havia se formado em medicina) e acabou rom-
pendo com ele. As dissidências culminaram com a forma-
ção, por Kemper, da Sociedade de Psicanálise do Rio de
Janeiro, a SPRJ, e, coordenada pelos discípulos da Burke,
da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, a
SBPRJ — ambas reconhecidas pela IPA.
No 21º andar do Edifício Brasília, na esquina das Ave-
nidas Rio Branco e Presidente Wilson, funcionava o Ins-
tituto de Medicina Psicológica coordenado por Iraci Doyle.
Formada no William Allanson White Institute, grupo
freudiano ortodoxo de Nova York, Iraci também morava
no mesmo edifício frequentado por jovens candidatos a
analista como Hélio, Horus Vital Brasil, Ivan Ribeiro e
Hélio Tolipan — os dois últimos dividiram com Hélio, por
mais de 20 anos, um consultório na Avenida Nossa Se-
nhora de Copacabana. A curiosidade e inquietação que
cercava o grupo, não impediam procedimentos pouco
ortodoxos: Iraci era analista de Hélio e, ao mesmo tem-
po, de Maria Urbana. “
A ortodoxia, aliás, passou ao largo da vida profissio-
nal de Hélio. Para ele, as sínteses tidas como imprová-
veis pareciam — e, na maioria das vezes, realmente eram
— naturais. A psicanálise era, para ele, um dos instrumen-
tos que permitiam a negociação entre as exigências da
sociedade e das convenções em todos os níveis e as ne-
cessidades individuais. Sinônimo, portanto, de libertação.
Mas também da disposição de se encontrar com o outro,
que foi o motor de sua vida:
“Quando você resolve tratar, cuidar de uma pessoa,
você já tomou partido dela, ou' seja, aquilo que você
acha que seja a sua saúde”, afirmava Hélio sobre sua
relação com a psicanálise. “Não existe neutralidade nem
distanciamento, o que existe é discrição, silêncio, um
silêncio que significa consentimento. Consentimento com

34
a existência da pessoa, e isto é uma posição de amor. A
pessoa adoece por carência de verdadeiras relações pes-
soais, se você lhe der impessoalidade e neutralidade
você dá exatamente aquilo que causou a doença. A ta-
refa da psicanálise é a de construção de um encontro, e
não há encontro que seja impessoal; impessoal é o
desencontro.”
Na medida em que estudava com Iraci Doyle, Hélio já
mantinha uma clientela respeitável e, como também faria
ao longo de sua vida, trabalhava muito e obsessivamen-
te. Em 1954, Hélio fica “órfão de mãe analítica”, como
ele gostava de contar. Iraci Doyle morre, vítima de cân-
cer e, por cerca de um ano, os analistas que faziam for-
mação supervisionada por ela, ficam a espera de um didata
estrangeiro. Hélio mantém uma correspóndência com o
psicanalista Erich Fromm e chega a pensar em se mudar
para o México para prosseguir a formação com o seu
grupo. Em 1956, decide finalmente procurar Werner
Kemper. A ele expõe todas as suas dúvidas e discordân-
cias com a ortodoxia do freudismo no qual vinha se for-
mando. Kemper ouviu atentamente, segundo Hélio fez
duas ou três observações certeiras, e sentenciou:
— Minha mulher gosta de trabalhar com tipos como
você. Procure-a.
Seguiram-se seis anos de análise-didática com Katrin
Kemper, a dona Catarina, uma experiência que Hélio lem-
braria emocionado:

“Dona Catarina, por sua conduta terapêutica, ampliou


e aprofundou minha convicção de que a análise, mais
do que um processo técnico interpretativo, é a constru-
ção de um encontro humano para o qual o conheci-
mento científico é necessário, mas não suficiente. Não
basta interpretar o paciente: é preciso salvá-lo, convertê-
lo à realidade, dar-lhe a profunda aceitação de que pre-
cisa para assumir a responsabilidade existencial de ser
si-mesmo.”

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Um palacete na Praia do Flamengo, servido por um
entourage de empregados solícitos, de hábitos rígidos e
clima de um hotel foi o primeiro pouso carioca de Hélio.
Na esquina da Rua Tucumã, o antigo endereço do avô de
Maria Urbana era mantido em pleno funcionamento, jus-
tamente para atender à família. A mordomia caiu como
uma luva para o casal, que se instalou lá nos primeiros
meses de 1952. Durante a semana, era comum que até
25 pessoas, entre parentes e agregados, almoçassem na
casa, aproveitando, como Hélio, a proximidade entre o
trabalho no Centro e o Flamengo. O conservadorismo da
família se refletia até no cardápio: segunda-feira era dia
de um determinado prato, terça de outro e assim, rígida
e sucessivamente, ao longo de um ano inteiro.
Pouco depois de chegar ao Rio, ajudado pelos ami-
gos, Hélio já havia encontrado na imprensa a porta de
entrada mais segura para a vida intelectual da cidade.
Durante um tempo, revezava as sessões supervisionadas
por Iraci Doyle com um emprego de redator no O Globo,
onde produzia pequenas crônicas, não assinadas, que
terminaram por se perder. Aos poucos, foi correndo nas
redações a fama de mais um mineiro talentoso, que se
destacava ainda mais do que os outros por sua divisão
entre consultórios e oficinas.

37
— Eu jamais deitaria no teu divã, nunca vi um psicana-
lista com tanta paixão — brincava Joel Silveira.
Mas se um dos mais importantes jornalistas do Brasil
não queria Hélio para zelar por sua alma, foi nele que
apostou para cuidar de “Flan sabe tudo — A ciência sem
mistérios”, o que seria uma das seções de maior sucesso
do Flan, semanário que marcou época na imprensa bra-
sileira em sua curta vida entre abril de 1953 e setembro
de 1954, chegando a tiragens de 180 mil exemplares.
Na Belo Horizonte a que voltaria tantas vezes nas
décadas seguintes para refazer caminhos da juventude,
Hélio havia colaborado mais ou menos esporadicamente
para jornais, seguindo o caminho de todo candidato a
escritor, intelectual e político da época. Ao se mudar para
a capital, escrever sob encomenda poderia garantir uma
parte do ganha-pão. E Hélio, certamente o menos jorna-
lista dos apocalípticos mineiros (todos a esta altura já
empregados), encarava com a mesma paixão tanto infla-
mados artigos quanto reportagens anônimas. Autor de
textos brilhantes, jamais teve a noção exata da atividade
jornalística — que, como tudo para ele, era uma questão
mais de engajamento pessoal do que de uma pura — ou,
como diria seu amigo Nelson Rodrigues, idiota — objetivi-
dade.
Wilson Figueiredo, que desde os anos de Belo Hori-
zonte havia trocado definitivamente a carreira literária pelo
jornalismo, lembra de inúmeros telefonemas em que Hé-
lio fazia uma checagem de informações muito peculiar
para amparar seus inflamados artigos durante a ditadura:
— Figueiró, tem um general aí, o maior filho da puta,
hein? — puxava papo, com sua mania de chamar todo
mundo por apelidos que às vezes só ele entendia, como
o “Pajé”, com que rebatizou Otto Lara.
“Ele tinha um ar curioso de amador, não era exata-
mente um jornalista político, preferia trabalhar sobre o
folclore. Ele não entrava nas coisas como um analista
político, mas usando bem uns argumentos até meio de-

38
magógicos”, comenta Wilson. Essa vocação singular para
o jornalismo do homem-comício tem seu ápice no episó-
dio descrito por Zuenir Ventura em 1968-— O ano que
não terminou. Ainda mais exaltado do que o normal —
que não era pouco, aliás — pelo clima de inquietação
política que tomava conta do país em 1968, Hélio envia
um de seus célebres artigos políticos para o Quarto Ca-
derno do Correio da Manhã, então uma das principais
resistências à ditadura na imprensa. O editor, Paulo
Francis, tem que dar-lhe uma lição elementar de jornalis-
mo para prever os problemas com o governo que fatal-
mente viriam: “Ô Hélio, assim não dá, arranja um 'gan-
cho”. Vê se descobre um escritor marxista que acabou de
morrer, um pensador que esteja lançando algum livro,
enfim, arranja um “gancho”, porra.”
No Flan, nem era preciso esquentar muito a cabeça
em busca do tal gancho. Produzido numa das redações
mais divertidas da cidade, o semanário foi criado por
Samuel Wainer, dono do Última Hora, nos moldes do
France Soir. Joel Silveira tinha carta branca para pilotar
um projeto ousado desde a programação visual — em
cores, criada pelo cartunista Nássara — até o recrutamen-
to de um time eclético de colunistas. Os vintanistas ainda
eram desconhecidos e tinham como colegas de redação
gente como Vinicius de Moraes e Dorival Caymmy. Sim,
até o compositor baiano entrava na dança, pois valia tudo
para manter um formato diferente de tudo o que se fazia
na época. Vinicius tornou tão animado o consultório sen-
timental “Abra seu coração” — que assinava como Helenilce
— que Joel Silveira chegou a sugerir que a coluna se cha-
masse “Abre as pernas, coração”.
O ponto que mais aproximava o divã da redação,
imaginem, era o “Flash psicológico”, seção permanente
de perfis jornalísticos assinada por um certo Professor
Busakaran, que tentava dar conta da “verdadeira” alma
de astros da música, do cinema e do teatro, segundo
supostos conhecimentos da psicologia humana. Quando

39
foi levado a Joel Silveira por Otto Lara Resende e Fernan-
do Sabino, Hélio não imaginava a tarefa que lhe esperava:
— Eu quero uma página bonita, inspirada na que uma
revista francesa publicava sobre ficção científica, para
deixar o público inquieto com as descobertas da ciência
— ditava Joel, explicando a um Hélio já animado o que
seria “Flan sabe tudo”.
“Faça sua bomba atômica em casa” ou “O último trem
para a lua passa por Bauru” eram alguns dos títulos
inacreditáveis de reportagens sobre conquista do espaço
e armas nucleares que Hélio pesquisava em livros impor-
tados, caríssimos, que encomendava compulsivamente e
que acabaram comprometendo o orçamento do semaná-
rio. Mas porquê o tal do último trem para a Lua passava
justamente por Bauru é que ninguém até hoje entendeu
— e também não se ficava sabendo ao ler a reportagem.
Mas o título era muito bom, chamava a atenção e era isso
que importava para Hélio e, principalmente para 'seus
chefes, satisfeitos com a contratação.
— Você é o Aquilão, aquele vento que passa derruban-
do tudo — brincava Joel Silveira, que via naquele que
chamava de “repórter científico” o contrário perfeito do
cálculo profissional de Otto, célebre anos mais tarde, por
polemizar consigo mesmo nos dois jornais em que traba-
lhava como editorialista.
As páginas de Flan também apresentaram aos leitores
um repórter eclético, nem sempre ligado aos fatos “cien-
tíficos”. Com sua assinatura, o jornal publicou a palpitan-
te reportagem “Eu venci o câncer”, em que o radiologista
Bruno Lobo contava como superou a doença que adqui-
riu em seu trabalho. Outro dos personagens de nosso
repórter foi o médico espanhol Gregório Marafon, espe-
cialista em donjuanismo, que atribuía o magnetismo que
alguns homens exerciam sobre as mulheres a substân-
cias secretadas por glândulas. “As mulheres perseguem
um efeminado...”, com reticências e tudo, foi o título que
o indefectível “repórter científico” deu à página.

40
Hélio Pellegrino também voltaria às suas origens lite-
rárias entrevistando para o Flan o poeta mineiro Murilo
Mendes, de volta ao Brasil depois de ser expulso da
Espanha pelo governo Franco. Não faltam aqui pistas da
biografia do repórter, que carrega nas tintas a revolta
contra a opressão. Mas a primeira reportagem assinada
por Hélio Pellegrino, informava ao público de Flan o
início da publicação de um folhetim nas páginas do se-
manário. “A mentira”, que chega a 1998 inédito em livro,
era assinado por aquele que viria a ser um dos mais fiéis
amigos do repórter: Nelson Rodrigues, uma presença cada
vez mais constante na Praia do Flamengo e, por muitos e
longos anos, nos almoços da casa na Rua Nascimento
Bittencourt, no Jardim Botânico, a escala mais duradoura
da vida carioca de Hélio.

41
Nelson

— Menti-vos uns aos outros, com desfaçatez e convicção


— diz Nelson Rodrigues, dedo em riste, apontando para
Hélio Pellegrino.
Este parece ouvi-lo atentamente na foto que marca
um dos primeiros encontros entre os dois, nas páginas
de Flan. Como era comum na época, o repórter aparecia
ao lado de seu polêmico entrevistado, que ainda posou
teatralmente em vários outros ângulos. Nas legendas das
fotos, Hélio Pellegrino traça um inusitado perfil do futu-
ro amigo:
“Nelson Rodrigues é um homem triste. Aqui o vemos
com a máscara de sua melancolia, fitando, provavelmen-
te, O infinito.”
“O homem, este desconhecido”! — exclama Nelson
Rodrigues, com ênfase. Antes, porém, fizera uma pausa
para meditação, os olhos vagos.”
“Homem de hábitos verdadeiramente conservadores,
apesar de seu teatro revolucionário, Nelson Rodrigues
ainda fuma o mesmo cigarro que usava quando garoto:
Yolanda 500.”
“O autor de Vestido de noiva tem uma excelente más-
cara de ator. Ei-lo numa pose cinematográfica ou teatral,
os olhos fechados, a mente submersa em profundas me-
ditações.”

42
Hélio entendeu perfeitamente o personagem que, com
“seu jeito lerdo e taciturno”, defendia a tese de que o
mundo ia mal por conta da mentira. Da falta dela e não
do excesso, ressaltava Nelson, em tudo e por tudo um
improvável cúmplice de seu entrevistador: além dos doze
anos que os separavam cronologicamente, distanciava-
os as posições políticas (com o horror de Nelson à es-
querda a que Hélio aderia entusiasticamente), religiosas
(“Deus só frequenta as igrejas vazias”, dizia o dramatur-
go) e até mesmo a psicanálise (Nelson costumava dizer
que “entre o psicanalista e o doente, o mais perigoso é o
psicanalista”).
Nada disso, nem nos anos de maior radicalização ideo-
lógica, conseguiria abalar uma cumplicidade que só faria
se solidificar até a morte de Nelson, em 1980. Muito des-
ta convivência, foi registrada pelo dramaturgo em suas
crônicas, das quais Hélio Pellegrino seria um persona-
gem tão constante quanto Otto Lara Resende (sua vítima
preferida), Cláudio Mello e Souza ou Antonio Callado.
Quando Otto Lara morreu, o biógrafo de Nelson, Ruy
Castro, afirmou a um jornal que Otto era o amigo que
Nelson mais admirava e Hélio o que ele mais amava.
Talvez uma das melhores pistas para entender esta
cumplicidade seja dada pelo próprio Nelson: “Eu e o Hélio
somos amadores do berro. Sim, o Hélio tem a tendência
da ópera e alguém já disse, talvez eu mesmo, que ele é a
própria ópera. O poeta vira-se para mim e, com a ênfase
de um dó-de-peito, faz-me esta acusação horrenda: —
'Reaça!. Tremo em cima dos sapatos.” A grandiloquência,
a tendência de transformar qualquer conflito menor num
grande drama aproximava dois homens sempre interes-
sados nas paixões derramadas, nas situações extremas.
Dramaturgo já polêmico e conhecido por Vestido de
noiva, Nelson começou a frequentar a casa de Hélio ain-
da no Flamengo. Aparecia sempre sozinho, jamais falava
“em sua família e conversava longas horas com Hélio,
volta e meia gozando a inteligência do amigo.

43
Em 1954, a vida de Hélio Pellegrino e Maria Urbana
começou a se estabilizar e o casal trocou o palacete por
um apartamento na Nascimento Bittencourt, uma ruazi-
nha pequena e arborizada que vai da Jardim Botânico à
Benjamin Batista, perto do Parque Lage. De sua janela,
Maria Urbana ficava namorando uma casa de esquina,
com um quintal pequeno, que ela sonhava comprar. Um
dia, soube que justo aquela casa estava à venda.
— Papai, acho que o senhor podia me dar uma casa
de presente — pediu ela, pelo telefone, um mês antes de
a família se mudar para o número 85 da Nascimento
Bittencourt, endereço que ao longo dos anos virou para-
da obrigatória de artistas e intelectuais.
Mas muito antes disso, Nelson Rodrigues estava lá. Álgu-
mas vezes durante a semana, à noite, mas religiosamente
todos os sábados, para “filar a bóia fraterna”, como dizia. Às
sextas, jantava com Hélio e Maria Urbana num restaurante,
que dependendo da época, podia ser o Nino's — casa da
Domingos Ferreira que frequentemente era cenário das crô-
nicas de Nelson — ou o falecido Fiorentina, no Leme.
— Hélio, vamos para Petrópolis este fim de semana? —
convidava Otto.
— Uai, e eu posso? O Nelson vem almoçar aqui, todo
sábado a mesma coisa — respondia Hélio, no tom exalta-
do de sempre, fingindo um mau humor que jamais teve
com o amigo.
Em meio a este teatro, Nelson era, de corpo e alma,
amigo de Hélio, a ponto de dedicar a ele toda uma crôni-
ca falando da amizade:
“Uma vez teve o amigo uma luminosíssima idéia. Diz:
— Vamos tomar vinho. Assim é o Hélio. Mineiro e calabrês,
tem, por vezes, a volúpia européia do vinho. Abriu uma
garrafa e, com um olho rútilo, um olho dionisíaco, disse:
— Bebe! Bebi para fazer-lhe a vontade. Na verdade, sou o
homem da água da bica. Mas o Hélio bebeu, bebeu. E,
de repente, pôs a mão no meu braço. Disse exatamente
isto: Nelson, você é um dos meus amigos fundamentais”.

4d
Ora, eu atravessaria três desertos para ouvir alguém dizer
isso.”
A vida da família Pellegrino era regrada por Nelson
Rodrigues que, obsessivo, cumpria os mesmos rituais.
Chegava, pedia para Helinho ir comprar na esquina um
maço do cigarro vagabundo e observava, observava muito.
No início do almoço, começava a brincar com um miolo
de pão, fazendo bolinhas que iam crescendo até se trans-
formarem em verdadeiras esculturas.
— Maria Urbana, o Hélio é uma besta. Larga ele, eu
sou apaixonado por você — dizia Nelson, com voz gutu-
ral e ar soturno.
Hélio se divertia com os galanteios sempre iguais e
com os mesmos argumentos. Retribuía chamando-o de
“a besta do Nelson”, o amigo que deixava cinzas de ci-
garro, literalmente, por toda a parte, a ponto de virar
apelido na família: “Pára com isso, menino, tá sujando tudo,
parece até o Nelson Rodrigues”, brincava Maria Urbana.
— Hélio, você viu tudo isso aqui na minha peça? —
perguntava Nelson, maravilhado com a análise que o
amigo fizera de O beijo no asfalto.
— É claro, Nelson — confirmava Hélio, que o compara-
ra com ninguém menos do que Dostoievski, pela história
do homem que tem como último desejo ser beijado na
boca.
— Ra! Ra! Ra! — gargalhava ele, teatral e pausadamente.
— Mas eu sou um gênio e não sabia. Um gênio!
Pelo idos de 1964, a casa dos Pellegrino se transfor-
mou num verdadeiro fórum de intelectuais. O primeiro
cliente de Hélio era às sete da manhã. Ele trabalhava no
consultório, sem almoçar e a base de muitos cafezinhos,
até às oito, nove da noite. Em casa, era o tempo de jantar
e começar a receber gente como Otto, Fernando e Paulo,
Nelson, Claudio Mello e Souza, Antonio Callado, Sábato
Magaldi (que era primo em primeiro grau de Hélio), Mário
Pedrosa e quantos outros aparecessem. Era só chegar e
entrar na conversa, quase sempre em torno de literatura.

45
Ao contrário do que se poderia pensar pelo espírito
da época, a política era assunto tão raro quanto o uísque.
Essas noitadas, que às vezes se estendiam indefinidamente,
eram movidas inicialmente a café, em geral feito por Otto.
Quando a fome apertava, Maria Urbana comandava uma
excursão à cozinha para preparar um mexido, um macete
da cozinha mineira que consiste em juntar um pouco de
cada comida que sobrou num refogado. Não se sabe
quando, o café foi sendo substituído pelo uísque, o que
tornou tudo bem mais animado.
Apaixonado por pintura, Hélio gostava de, com sua
capacidade ilimitada de criar complicadas teses sobre tudo,
discorrer horas diante das telas de Guignard e Volpi, que
ele guardava como tesouros.
— Volpi é melhor do que Portinari — afirmou ele, num
episódio registrado por Nelson Rodrigues.
— Abominável Volpi! Horrendo Volpi! — cochicharam
Nelson e Otto, a título da mais gratuita provocação, numa
cumplicidade que às vezes irritava Hélio.
E não havia limites para que um pegasse no pé do
outro. Em outra situação, era Hélio que fazia alianças
escusas.
— Concordo, Otto, é um absurdo o que o Nelson fez
com você, você tem toda a razão de ficar chateado —
consolava Hélio, pouco depois que o amigo descobriu
que a nova peça de Nelson Rodrigues tinha o título Boni-
tinha mas ordinária ou Otto Lara Resende.
Poucos minutos depois, o telefone tocava outra vez.
— Mudar o nome da peça? Você está louco, Nelson, o
nome é genial, genial — diz Hélio, dando força para a
brincadeira com Otto.
Otto Lara Resende também fazia parte do calendário
da família. Todos os domingos, Hélio e Maria Urbana se
juntavam a Otto e Helena e, reuniam todos os filhos em
almoços que eram uma festa permanente. Estes rituais
representavam os raros momentos em que Hélio conse-
guia ter um contato mais prolongado com os filhos. No

46
início, a casa da Nascimento Bittencourt tinha quatro
quartos — viria a ter seis, em sucessivas reformas — e ape-
nas um banheiro. Hélio tinha ataques de fúria na disputa
para escovar os dentes de manhã.
— Meu pente! Cadê o meu pente?! — esbravejava ele,
com a voz de Paul Robeson de que falava Nelson Rodri-
gues, à procura de um destes pentes de plástico, bem
vagabundos, que ele tratava como relíquia.
Completamente desligado da vida prática e das con-
venções, Hélio não gastava seu precioso e congestiona-
do tempo com formalidades. A importância do pente de
plástico dava a medida exata de seu estilo de vida. Ape-
sar de ser vaidoso, não tinha cuidados especiais para se
vestir, frequentemente deixava o cabelo crescer desorde-
nadamente e dirigia uma Rural Williams, cuja porta do
carona era amarrada com uma corda. Era pilotando este
carro caindo aos pedaços que juntava a família para um
repetitivo programa no fim dos domingos: ir até São
Conrado para que as crianças comessem milho verde,
tomassem água de coco e brincassem um pouco antes
de voltar, religiosamente, para casa.
Era fácil, portanto, satisfazer as exigências, bem sim-
ples de Hélio. Helinho descobriu logo isso e tratou de
armazenar diversos pentes de plástico. Quando começa-
va a gritaria de manhã, sacava um pente de seu estoque
e aplacava a ira santa do pai.
- Nem sempre as turbulências se resolviam de forma
pacífica. Dado a lances operísticos, Hélio reúne a família
um dia para uma longa e grave preleção:
— Eu deixei em cima da mesa o dinheiro para a em-
pregada e desapareceu uma parte. Isto é inadmissível. O
responsável tem que se acusar — dizia ele, diante de um
silêncio mortal.
Percebendo que dali não sairia qualquer resposta, ofe-
receu uma alternativa. Ele sairia para caminhar e, depois
de uma volta no quarteirão, o dinheiro deveria estar no
lugar. Quando voltou à casa, Hélio simplesmente não

47
conseguiu entrar. Os filhos o haviam trancado do lado de
fora.
— Abram já, senão eu boto fogo na casa! Eu vou botar
fogo na casa! — trovejava Hélio na tranquila e silenciosa
noite do Jardim Botânico. No momento em que come-
çou a juntar tudo o que via como inflamável junto à pa-
rede da casa, os filhos achavam que a cena estava fican-
do séria demais e tiveram que chamar Otto, que morava
ali perto, para, literalmente, dar uma de bombeiro.
Este Hélio exaltado, quase sempre destemperado,
deixava Nelson Rodrigues perplexo. Principalmente quan-
do a indignação permanente era conduzida para a políti-
ca. O que foi acontecendo progressivamente depois do
golpe militar e iria conhecer sua apoteose nos eventos
que precederam 1968.

48
Em 1943, tempos do íntimo apocalipse mineiro, Otto Lara Resende (à
esquerda), Murilo Rubião, Fernando Sabino e Hélio Pellegrino fazem
pose num café de Belo Horizonte.

49
família
de
Arquivo
Hélio e Maria
Urbana em
dezembro de 1948:
na mesma Igreja de
Lourdes onde
casaram, os
namorados se
encontravam um
ano antes.

O casal, em anos mais do que dourados, janta no Bife de Ouro.

50
Nelson Rodrigues
e Hélio na
Copacabana dos
anos 60: o Reaça
posa com o
Jovem Dante.

família
de
Arquivo

No consultório de Copacabana, Hélio Pellegrino fala com as mãos.

51
Corrêa/AJB
Hamilton

, P-|
am
Ao lado de Vladimir Palmeira, com apaixonada
indignação, discursa na Passeata dos 100 mil: “O |»
povo está em praça pública, logo está na sua casa.”

Cedida
Ventura
Zuenir
por

Em férias forçadas no Caetano de Farias, Gerardo Melo Mourão (à


esquerda), Osvaldo Peralva, Bastiani, Zuenir Ventura, Hélio, João
Herculino e um carcereiro: jogos de basquete e um novo cliente.

52
oambiy
op
emu;

Na Auditoria
Militar, Hélio se
defende das
acusações de violar
a Lei de Segurança
Nacional.

Catarina Kemper,
orientadora na
psicanálise, cúmplice
na Clínica Social e
referência de toda
a vida.

53
Ao lado do divã: “Só um louco procura Hélio Pellegrino”, dizia uma
placa segundo a lenda que se formou em torno dele.

“Eu sou mineiro apostólico romano.”

54
Na época do desbunde e desde sempre, fascinando ouvintes.

A eloqiência operística, sempre um tom acima, com Paulo Mendes


Campos e Fernando Sabino.

55

família
de
Arquivo “Eu não faço por
menos, reivindico
o Prêmio Nobel.
Em época de
violência e
destruição, quatro
sujeitos se
manterem unidos
por 40 anos é o
milagre brasileiro”,
dizia Hélio.

Nos anos 80: “O Otto foi para mim a descoberta da amizade.


Foi este sentimento que nos salvou dos descaminhos da soli-
dão, nos ajudou a resistir. Para não afundar, decretávamos que
éramos uns gênios e os demais uns cretinos.”

56
k Revolução

“Lúcio Cardoso morreu no dia vinte e três de setembro,


terça-feira e, na tarde desse mesmo dia, foi enterrado.
Não soube de sua morte senão depois, pelo noticiário
dos jornais. Não pude comparecer ao seu velório e nem
ao seu enterro. Nesse dia, intelectuais, artistas professo-
res, sacerdotes, mães de família, participavam de um ato
público de protesto contra a realização da VII Conferên-
cia dos Exércitos Americanos, no Estado da Guanabara.
Fomos à rua, modestamente, com faixas e cartazes, dis-
postos a testemunhar nossa posição anti-imperialista, mes-
mo que isto nos viesse a custar algumas prisões e
borrachadas. Houve ambas as coisas, a repressão não se
fez esperar e, heroicamente, em nome da democracia
patrocinada no país pelo poder militar, prendeu a mu-
lher de um jornalista, além de alguns estudantes que ten-
taram defendê-la. Enquanto driblávamos a polícia, na Rua
da Assembléia, era enterrado o romancista Lúcio Cardo-
so. Doeu-me não tê-lo podido acompanhar”, escrevia
Hélio Pellegrino em 1968, dando a exata medida no arti-
go publicado pelo Quarto Caderno do Correio da Ma-
nhã de como sua vida havia se tornado um fato público
naquele ano de turbulências, utopias e decepção.
O homem-comício que reinava, absoluto, na Belo Ho-
rizonte dos anos 40, renascia, fortalecido, no Rio de Ja-

57
neiro das passeatas, comissões, debates e assembléias.
Hélio Pellegrino se viu transformado naquele ano numa
espécie de porta-voz oficial da luta contra a ditadura.
Papel que ele efetivamente assumiu com desenvoltura,
tanto nos corajosos artigos que acabariam levando-o à
prisão, quanto na função, efetiva, de mediador nas ten-
sas relações entre governo e oposição.
Até então, Hélio vinha se manifestando contra o re-
gime em artigos publicados esporadicamente na impren-
sa. Sua fama de grande orador também corria a cidade,
numa combinação perfeita que levou à escolha de seu
nome para representar intelectuais, políticos e líderes
estudantis, num encontro com o governador Negrão de
Lima. O objetivo era protestar formalmente pelos episó-
dios que culminaram na “Sexta-feira sangrenta”. No dia
21 de junho, estudantes e polícia se enfrentaram por
mais de dez horas no Centro da cidade. No dia anterior,
a Polícia Militar havia dispersado truculentamente uma
assembléia no anfiteatro da Faculdade de Economia da
UFRJ, no campus da Praia Vermelha, e conduzido os
estudantes para o campo do Botafogo, onde todos so-
freram humilhações e espancamentos. Na quarta-feira,
estudantes haviam entrado em confronto com a polícia
depois de um encontro com autoridades no prédio do
Ministério da Educação.
— Não seja italiano — recomendou a Hélio o poeta
Ferreira Gullar, um dos articuladores da comissão, preo-
cupado com a oratória sempre inflamada do psicanalista.
Cerca de 300 pessoas foram lideradas por Hélio até o
Palácio Guanabara. Com a falta de cerimônia que des-
concertava qualquer um, Hélio dirigiu-se ao soldado que
guardava o Palácio e pediu que o grupo fosse anunciado
ao governador, numa manhã de sábado, como se isso
fosse a coisa mais normal do mundo. Ainda mais em
meio a uma ditadura cada vez mais truculenta.
De terno, bem articulado como era de se esperar, Hélio
obviamente não conseguiu seguir completamente a ori-

58
entação de Gullar. E, diante de um Negrão de Lima hu-
milhado, que teve de ouvir uma descrição crua de como
o poder público da Guanabara fora impotente nos últi-
mos eventos envolvendo manifestantes e polícia militar,
Hélio não hesitou em ser veemente e cobrar uma mani-
festação oficial de repúdio à violência.
— Nós elegemos apenas dois governadores contra a
corja toda, e um deles foi o senhor, precisamos de seu
apoio — bradava Hélio, em alto e bom som, no Salão
Nobre do Palácio, diante de toda a Casa Militar do gover-
no estadual.
O hoje psicanalista Chaim Samuel Katz, na época pro-
fessor de filosofia e militante na luta armada, diz nunca
ter sentido tanto medo em sua vida. Temeu pelo que
poderia se desencadear a partir dali mas, principalmente,
por Hélio, que arrematou com chave de ouro, italianada
é claro, o seu discurso:
— Ou o senhor assume o lugar em que se colocou ou
o senhor se demita — concluiu ele, precipitando a retira-
da imediata de Negrão.
Era difícil se expor mais do que Hélio Pellegrino na-
quele momento. Entrou para o folclore a manifestação
no Largo de São Francisco em que, diante de uma falha
no blindado que dispersava os manifestantes a jato d'água,
Hélio gritava para a multidão:
— Gente, o brucutu broxou!
As provocações também podiam ser gratuitas. Numa
conversa telefônica a três, com Otto e Nelson Rodrigues,
Hélio começou a desfiar suas imprecações contra os mi-
litares. Advertido por Nelson sobre a possibilidade de o
telefone estar grampeado, Hélio carregou ainda mais nas
tintas:
— Pois se tem alguém aí nos ouvindo, fique sabendo
que quem está falando aqui é o doutor Hélio Pellegrino!
Na quarta-feira seguinte aquela fatídica manhã de sá-
bado em Laranjeiras, Hélio amanheceu em preparativos.
“A filha mais velha, Maria Clara, administrava a casa en-

59
quanto Maria Urbana estava na Europa, sozinha, de fé-
rias, já que Hélio detestava viajar. Administrar a casa que-
ria dizer, exatamente, cuidar de seis irmãos em todas as
idades possíveis. Aquela altura, além dela, moravam na
Nascimento Bittencourt: Pedro, Helinho, Clarice, Teresa,
Dora e o caçula João. Mas naquele dia, Maria Clara dei-
xaria os afazeres domésticos para acompanhar o pai na
Passeata dos Cem Mil, a manifestação que fez o Rio sen-
tir os ventos libertários que vinham da Paris de barrica-
das, do líder Daniel Cohn-Bendit e, principalmente, do
“É proibido proibir”.
Num dos melhores retratos do que passava pela cabe-
ça de artistas e intelectuais da época, a jornalista e fotó-
grafa Mariza Alvarez Lima publicava na revista O Cru-
zeiro a longa reportagem “Marginália”. O artista plástico
Hélio Oiticica, o poeta e letrista Torquato Neto, Caetano
Veloso, Gilberto Gil, o humorista Jaguar, o escritor José
Agripino de Paula, o líder estudantil Franklin Martins, o
diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa e o padre
João Batista Ferreira, que viria a se tornar um dos me-
lhores amigos de Hélio, estavam entre os personagens
que, em depoimentos soltos, resumem exemplarmente
o que passava por aquelas piradas cabeças. Hélio
Pellegrino faz uma veemente defesa do artista como
revolucionário e dá um diagnóstico devastador e apai-
xonado da situação:
“O mundo — tal como está — não presta. Os povos
subdesenvolvidos morrem de fome mas, pelo menos, têm
a chance de transformar essa fome numa bandeira revo-
lucionária de luta. A fome nos obriga a forjar o homem '
novo — e nesta medida, ela se torna mestra do humanismo
novo. Os outros — os povos ricos — morrem de uma fome
pior. Eles não sabem para onde ir, nem o que fazer (...)
Esse mundo, tal como está, precisa explodir. Os jovens,
os artistas, os marginais que não se alinharam, os que
teimam em ser pessoas precisam explodi-lo. Para que o
homem sobreviva. A crise, hoje, é uma crise radical. O “À

60
ser humano busca um sentido para a sua vida. O artista
pode ser tudo o que quiser, menos bem comportado.
Sua tarefa consiste em dar um testemunho ardente da
sobrevivência do homem. Essa sobrevivência, hoje, só
pode ser afirmada através de um inconformismo que
chegue às últimas consequências. A respeitabilidade, em
nosso tempo, é pior do que o pior palavrão.”
No dia 26 de junho de 1968, o inconformismo encon-
trou no Centro do Rio seu teatro mais perfeito. A mani-
festação convocada pelos estudantes ganhava proporções
até então inimagináveis. No palanque montado em fren-
te à Câmara dos Vereadores, na Cinelândia, os discursos
se sucediam. Hélio foi um dos últimos a falar, antes do
grand finale de Vladimir Palmeira, a liderança mais caris-
mática do movimento. Na condição de representante dos
intelectuais que logo em seguida o levaria a Brasília para
negociar diretamente com o marechal Costa e Silva, Hé-
lio cala os manifestantes com um discurso rápido e con-
cluído em tom apoteótico:
— O povo está na praça pública, logo está na sua casa.
Este é um direito de propriedade que precisa ser respei-
tado.
Na semana seguinte, Hélio chegava ao Palácio do Pla-
nalto capitaneando a Comissão dos 100 mil, eleita por
aclamação ao final da passeata para negociar a libertação
de estudantes presos em protestos anteriores. Depois de
várias gestões e articulações, Costa e Silva concordara
em ouvir o chamado Poder Jovem que tanto horrorizava
Nelson Rodrigues.
Com Hélio estavam o professor de Filosofia José
Américo Pessanha, o padre João Batista Ferreira, o advo-
gado Marcello Alencar e os líderes estudantis Franklin
Martins e Marcos Medeiros. Todos barrados no saguão
do Palácio no primeiro e menos grave dos impasses que
se seguiriam: o cerimonial da presidência não admitia
que os estudantes entrassem por não estarem vestindo
terno.

61
— Lá na minha terra, em Minas, quando uma pessoa
convida outra para sua casa, não determina o traje — pro-
vocava Hélio, aumentando, de saída, a voltagem do en-
contro.
O impasse era, de fato, brincadeira de criança perto da
conversa que teriam com Costa e Silva, que não teve outra
alternativa a não ser autorizar a entrada dos estudantes sem
paletó nem gravata. O marechal fez questão de deixar claro
que estava bem informado sobre Hélio —- mencionou que
seu pai era médico em Belo Horizonte e fez questão de
destacar, como uma espécie de ameaça velada, a condição
de funcionário público do psicanalista. O gelo que instau-
rou na sala seria quebrado, mais uma vez, pela petulância
do exaltado negociador. Ainda que mais contido do que na
reunião com Negrão de Lima no Palácio Guanabara, Hélio
desconcerta o presidente quando este quer saber os critéri-
os para a composição da comissão:
— Por eleição direta, presidente — conforme lembrou
o próprio Hélio, poucos meses antes de morrer, em en-
trevista a Zuenir Ventura para o livro 1968- O ano que
não terminou.
O diálogo é quase inexistente e tudo empaca quando
Costa e Silva exige, para que os estudantes sejam soltos,
o fim imediato de toda e qualquer passeata: Mais uma
vez, é o próprio Hélio quem lembra em entrevista a Zuenir
o discurso com que tentou vencer a insistência com que
era exigido o fim das passeatas:
— Presidente, vamos supor que, a gente aqui conver-
sando, um daqueles soldados tire o cassetete e venha pra
cima de mim. O diálogo será impossível. Se sou agredido
fisicamente, como posso conversar? É mais ou menos o
que está havendo: o governo diz que quer conversar
com os estudantes — eu acredito, e isso é meritório, é
excelente. Mas as forças da repressão continuam espan-
cando os estudantes no meio da rua. Não pode haver
repressão, presidente. É preciso que os ânimos se acal-
mem e o diálogo se estabeleça.

62
Es
Os apelos de um Hélio estranhamente conciliador não
surtiram efeitos para nenhum dos lados. Marcos Medeiros,
exasperado com as evasivas e teimosias de Costa e Silva,
resolve nada menos do que dar um ultimado ao presi-
dente:
— Escuta aqui, professor, eu quero saber o seguinte: o
senhor vai ou não vai soltar os nossos companheiros?
Ofendido e irritado, Costa e Silva virou as costas, encer-
rou a reunião e, já na saída do Planalto, o Hélio destempe-
rado baixou com toda força quando o relações públicas da
presidência, Hernani D'Aguiar, fulo da vida com notícias —
imprecisas — de primeira hora afirmando que o presidente
não recebera os estudantes, lhe mete o dedo na cara:
— Vocês estão cutucando a onça com vara curta!
— Não enche. Eu vim falar com o dono dos porcos,
não com a porcada — mandou Hélio, numa rápida prévia
da artilharia contra a ditadura que ele passaria a desenca-
dear entrincheirado no Correio da Manha.
Na imprensa, a grande atenção despertada pelo carisma
de Vladimir Palmeira era aos poucos compartilhada com
as alusões ao psicanalista que liderava os intelectuais.
Em sua coluna no Jornal do Brasil, José Carlos de Olivei-
ra se deliciava com aquela liderança mais madura em
meio ao movimento dos estudantes: “O líder incontestá-
vel dos intelectuais e artistas brasileiros, eleito por ilumi-
nação como certos papas, é atualmente um homem ma-
gro por necessidade, mas gorducho por vocação. Uma
saúde veemente, uma impaciência olímpica: assim é o
nosso Hélio. (...) Sua atenção, sua curiosidade, seu cora-
ção, é tudo uma janela aberta. E sua audácia, criando
novas situações, antecipa o mundo da contestação per-
manente pelo qual estamos agora lutando. Isso começa
com o Governador da Guanabara e há de terminar com
o Presidente da República: algum dia iremos ao Palácio
do Planalto, sem paletó e sem gravata, e ensinaremos ao
Presidente o Brasil melhor que existe em nossas cons-
ciências. (...) Quando Hélio Pellegrino voltou de Brasília

63
com as mãos vazias, compreendi claramente que é preci-
so acabar como o mito de um Governo majestático e
isento de porosidade.”
Carlinhos de Oliveira certamente não perdia, de sua
mesa cativa no Antonio's, as edições de domingo do
Correio da Manhã. Era dia do Quarto Caderno, suple-
mento que reunia o que de melhor a vida intelectual
brasileira produziu naquela época. Em artigos longos, de
página inteira, era possível ler desde uma tradução, en-
tão inédita, dos diários de Che Guevara até um artigo de
Antonio Carlos Villaça sobre Georges Bernanos. Os li-
vros de Herbert Marcuse, que tinham se transformado
em bíblias libertárias em todo o mundo e eram anuncia-
dos com destaque pela Editora Zahar, eram comentados
sob diversos aspectos. Editado por Paulo Francis, o ca-
derno era um reflexo fiel do que de mais inovador se
pensava no momento. E lá estava Hélio, ostentando uma
virulência que deixava apreensivo qualquer um que fos-
se próximo dele.
Maria Urbana, por exemplo, jura que jamais abriu o
Quarto Caderno. Preferia, para tentar dormir em paz, não
tomar conhecimento de textos como “Balanço e pers-
pectivas” publicado em 14 de julho de 1968 e transfor-
mado, no ano seguinte, em peça do Inquérito Militar aber-
to contra Hélio. Em tom didático, Hélio fazia o elogio do
movimento estudantil como uma proposta verdadeira-
mente revolucionária em contraposição à intenção mera-
mente reformista do governo. E conclui da forma mais
incendiária possível: “O povo brasileiro começa a prepa-
rar-se para a sua revolução — nunca a 'revolução” dos
militares. Ele o faz fora dos quadros revolucionários tra-
dicionais — e este é um sinal dos tempos. A revolução
brasileira é um movimento espontâneo, criativo, nascen-
do de camadas cada vez mais amplas da classe média e
tendendo a espraiar-se para ganhar as grandes massas
proletárias e camponesas. Ninguém tem até agora o con-
“trole desse processo. Ele abre, por si mesmo, seu cami-

64 ee
nho. Ele terá que forjar o seu instrumento de luta políti-
ca. É claro que isto não se fará imediatamente. Mas há
perspectivas concretas de que isto aconteça. O povo bra-
sileiro começa a despertar, para grandes tarefas.”
Seus artigos eram colecionados por admiradores e,
principalmente, por inimigos. Depois da prisão de Vladimir
Palmeira, Hélio ocupa uma página inteira, sem anúncios,
para desancar ninguém menos do que Costa e Silva. Até
hoje é impressionante a virulência de “Os efeitos da dita-
dura e a ditadura dos fatos”: “O marechal Costa e Silva
tem horror à palavra ditadura. Ao ouvi-la, costuma per-
der seu ar bonacheirão, alteando a voz para, através do
registro vocal, demonstrar a si mesmo, e ao País inteiro,
que o Brasil vive, no momento, um período ímpar de sua
história democrática. (...) Ora, os fatos são os fatos e con-
tra eles — já o diz a sabedoria popular — não há argumen-
tos. No mesmo dia em que a imprensa noticiava a
auspiciosa palavra presidencial de que no Brasil não existe
ditadura nenhuma, era preso em Copacabana o líder es-
tudantil e popular Vladimir Palmeira. Sua prisão decorre
do fato puro e simples de ser Vladimir Palmeira um líder
fiel ao espírito de oposição de sua classe. O jovem presi-
dente da UME faz oposição nos termos que lhe são dita-
dos por sua consciência da brasileiro e de patriota.”
Se, para a grande maioria dos amigos, a atuação de
Hélio soava como um perigo iminente, para um amigo
em especial representava uma espécie de decepção, ob-
viamente exagerada. Este amigo não poderia ser outro
senão Nelson Rodrigues. Nas “Confissões”, coluna em
que despejava suas obsessões, o dramaturgo traçou um
dos mais divertidos relatos dos eventos de 1968. Diverti-
do, bem entendido, quando lido hoje, 30 anos depois.
Na época, as implicâncias de Nelson soavam, pelo me-
nos para quem tinha algum engajamento político, como
o que realmente eram: a expressão de um conservadoris-
mo sem limites, sem dúvida inteligente, mas ainda assim
não menos reacionário.

65
t
— Nesse momento você não pode escrever isso, nesse
momento não — dizia um Hélio contrariado, num dos
almoços de sábado, a respeito de “Confissões” em que
Nelson criticava mordazmente Alceu Amoroso Lima e
d. Hélder Câmara.
— Eu escrevo o que quiser, como quiser e quando
quiser — devolveu Nelson.
O pior é que esse diálogo só nos chega em 1998,
quando Hélio e Nelson estão mortos, porqueo último
resolveu registrá-lo em suas crônicas, expondo ainda mais
o amigo, que aparecia como um monstro cruel.bem ao
gosto de uma época em que comunista (um saco no qual
cabia toda a oposição) comia criancinha:
— Hélio, se meu fuzilamento depender de você, já
estou no muro! — lamentava Nelson.
Como se não bastasse, Nelson Rodrigues introduziu
em suas crônicas um novo personagem, o anti-Hélio, re-
presentação exacerbada, como era de se esperar, do lado
político de um poeta que ele costumava chamar de o,
“jovem Dante”. Uma crônica inteira foi dedicada ao Hé-
lio e ao anti-Hélio. Segundo Nelson, o segundo impedia
que o primeiro jantasse com ele no dia de seu aniversário.
“Enganam-se os que vêem um só Hélio Pellegrino. São
dois. Há o Hélio e o anti-Hélio. A alma do meu amigo tem
sido palco de uma batalha feroz entre um e outro, entre
ele e seu oposto, entre o verdadeiro e o apócrifo. Dirá
alguém que estou apresentando a figura de um centauro.
Exatamente. A metade do Hélio é o Hélio e a outra meta-
de o anti-Hélio. (...) O Hélio é a pessoa e o anti-Hélio a
antipessoa”, escreve Nelson, que cria uma tese mirabolan-
te para a ausência do amigo num jantar de aniversário. E
prossegue: “Os dois Hélios marcaram um encontro no ter-
reno baldio, à meia noite, a hora que apavora. Tratava-se
de decidir se o poeta e psicanalista devia comer, ou não,
um bife comigo. Como era uma rixa crudelíssima, o con-
tra-regra do terreno baldio providenciou um mau tempo
de quinto ato do Rigoletto. Segundo a cabra vadia, única

66
testemunha do fato, o bate-boca teve um fundo de relâm-
pagos de curto-circuito e de trovões de orquestra. E como
se trata de um centauro humano, as duas metades chega-
ram ao mesmo tempo. E não houve nem boa-noite. Co-
meçaram brigando. Ou por outra: quem brigava, e
escouceava era o anti-Hélio. O Hélio, não.”
No terreno baldio, prossegue a guerra do centauro
em hipérboles que fizeram a delícia dos inimigos de Hélio.
Sempre cruel, o lado político veta o Nelson que tem a
simpatia dos militares, cultiva horror aos comunistas e
minimiza sempre que pode o papel da ditadura na vida
brasileira.
Aqui, voltamos ao início do capítulo. Nelson vai to-
mar como prova justamente o artigo sobre a morte de
Lúcio Cardoso. O texto seria obra dos dois Hélios em
luta, o poeta lamentando sinceramente a morte de um
amigo, o político falando da luta anti-imperialista. Nelson
crítica até os termos de Hélio: “Só não entendi porque
'mães de família” e não também 'pais de família”. De res-
to, uma mãe de família, quando em ação política, não
está ali em função de sua maternidade, mas por motivos
outros, políticos, ideológicos, etc. etc.” — e conclui de
forma propositalmente patética a crônica:
“Realmente, o capitalismo não é flor que se cheire e
muito menos o socialismo que as passeatas propõem.
Amigos, às vezes um pequenino, um ínfimo, um indivi-
dualíssimo episódio abre uma janela para o infinito. Ve-
jam o nosso jantar. O capitalismo nunca me impediria de
jantar com o Hélio. E o socialismo é tão assassino do
amor que não deixa comer um bife comigo, um doce e
franciscano bife.” e É
Pouco tempo depois da publicação da crônica no O
Globo, em 8 de outubro de 1968, a repressão decide in-
tensificar o cerco em torno do anti-Hélio. Até o fim do
ano, o centauro poeta-político estará na cadeia. Para um
sofrimento de culpa, digno do quinto ato do “Rigoletto”,
de Nelson Rodrigues.

67
Zuenir

Entre 1968 e 1969, o jornalista Zuenir Ventura teve de


graça o que muita gente queria pagando, muito até, e
não conseguia: uma hora com Hélio Pellegrino. Ou me-
lhor, uma não, todas as horas do dia e da noite durante
os três meses em que os dois — que se conheciam apenas
superficialmente de assembléias, reuniões e passeatas que
antecederam o fechamento político do país — dividiram
celas no Regimento de Cavalaria Marechal Caetano de
Farias e no Batalhão do Exército da Praça da Harmonia,
no Centro, cimentando com literatura, filosofia e humor
uma amizade decisiva.
A prisão, pouco depois da decretação do AlI-5, já era
esperada por Hélio. Ele sabia estar sendo procurado e
como tantos outros, encontrou a saída de emergência
caindo numa espécie de clandestinidade, mais branda
do que a assumida pelos militantes que, então, já esta-
vam engajados na luta armada, mas ainda assim uma clan-
destinidade. Em casa, não chegava a haver a divisão en-
tre os Hélios na qual insistia Nelson Rodrigues mas, mui-
to frequentemente, vinham explosões:
— Eu não agúento mais! Não me deixam em paz! —
bradava ele, diante de uma Maria Urbana perplexa,
estressado que estava de tantos compromissos públi-
cos.

68
Em toda a sua vida, Hélio Pellegrino assumia estas cau-
sas como um obstinado, muitas vezes sacrificando-se além
de seus limites físicos. Em 1970, acabou tendo um enfarte
que assumiu sérias proporções e lesou definitivamente seu
coração. Nem antes nem depois disso, não deixava nada
transparecer quando participava deste ou daquele debate,
de uma ou de outra comissão, dessa ou de outra confe-
rência. Mesmo quando todos estes compromissos, aliados
à intensa agenda do consultório, tomavam o tempo que
dedicava aos artigos e à poesia.
Desta vez, os compromissos foram longe demais é
Hélio foi obrigado a trocar a casa da Nascimento Bitten-
court por apartamentos de amigos em Santa Tereza e na
Glória, onde ficou escondido com o jornalista Washing-
ton Novaes, que seria um amigo constante em seus últi-
mos anos. Não era difícil que seus filhos, quando saiam
de casa de manhã para ir à escola, vissem espalhados
pela rua soldados do exército. O cerco estava sendo aper-
tado. De vez em quando, quando menos se esperava,
Maria Urbana convocava:
— Vamos ver o papai.
Todo mundo entrava na Rural e a visita consistia em
ver, por breves segundos, Hélio por trás de um telefone
público. Aliás, a única forma de comunicação era o tele-
fone, seguindo um complicado esquema de códigos e
com as ligações destinadas, obviamente, a um outro nú-
mero que não a linha grampeada de sua casa. Nem as-
sim, foragido, Hélio deixou de atender os clientes que
considerava em situação mais delicada. Os recados de-
viam ser passados de forma codificada.
— Eu gostaria de falar como o Jorge estofador — dizia o
cliente.
— Ah, sim, ele deixou o recado de que seu sofá fica
pronto dia tal, às tantas horas — lembra Maria Clara de uma
das respostas típicas que informavam a sessão de análise.
As ameaças prosseguiam por telefone e, um dia, a
casa foi invadida por homens que se identificaram como
a!

69
policiais. Revistaram tudo, desconfiados da empregada,
que já avisara que doutor Hélio não estava. Decidiram
esperar. Com o tempo, a situação tensa, a empregada
resolve dar uma de Hélio Pellegrino e desafia:
— Por que vocês não procuram também aí debaixo do
sofá pra ver se o doutor Hélio está, hein?
Os policiais acharam graça e resolveram ir embora.
Deixaram de encontrar, justamente embaixo daquele sofá,
todos os livros considerados proibidos e, o que seria um
troféu máximo, um pôster de Che Guevara.
Depois da invasão, Maria Urbana recebe uma ameaça
pelo telefone:
— Hoje nós vamos explodir sua casa.
Apavorada, reúne os filhos e decide deixar a casa. No
exato momento em que se prepara para sair, apagam-se
as luzes no Jardim Botânico. Enquanto acendia as velas
com que cada um iria iluminar seu caminho, Maria Urba-
na já tinha dado como certo que aquele era o sinal para
o atentado. Depois, riu muito ao ver que a luz tinha se
apagado em todo o bairro, menos na Rua Jardim Botâni-
co, onde conseguiu chegar, aliviada, para pegar um ôÔni-
bus e se refugiar num apartamento de sua família na Rua
Felipe de Oliveira, no início de Copacabana. Lá, concluiu
que o Rio não era exatamente o melhor lugar para a
família Pellegrino naquele momento e decidiu imediata-
mente embarcar com todo mundo para Belo Horizonte.
Da casa de sua família, mantinha contatos com Hélio pelo
telefone. Ela sempre precisava sair, ir até a casa de uma
amiga e lá, finalmente, atender ao telefonema. Foi na
capital mineira que recebeu a notícia de que Hélio deci-
dira se entregar, tendo se apresentado ao coronel Adir
Fiúza de Castro, chefe do Centro de Informações do Exér-
cito, acompanhado por Nelson Rodrigues, que era amigo
do militar. Ay
Se 1968 não terminava bem para o Brasil e para Hé-
lio, o que se dirá para Zuenir Ventura. Levado de casa
para prestar um depoimento pouco depois da decreta-

70
/

ção do AI-5, acabou preso a poucos dias do Natal no


chamado SOPS, delegacia da Polícia Federal na Praça
XV, sob a acusação de ser o elemento do Partido Comu-
nista encerregado de empregar camaradas na imprensa.
Preocupada, sua mulher, Mary, foi levar uma muda de
roupa e teve o mesmo destino, ficando detida no mesmo
local. Uma terceira cela ainda foi ocupada pelo irmão de
Zuenir, que estava em busca dos dois.
Quando deixou o SOPS, Zuenir ainda passou pelo
DOPS até chegar ao Caetano de Farias. O regimento da
Polícia Militar na Rua Salvador de Sá lhe parecia um pa-
raíso perto dos cubículos quentes onde passara o Natal e
o Ano Novo. A cela era improvisada numa sala, de pé
direito alto, onde o esperavam, além de Hélio, o poeta
Gerardo de Mello Mourão, o jornalista Oswaldo Peralva,
editor do Correio da Manhã, o deputado mineiro João
Herculino e Bastiani, um advogado com vocação literária
que não negava fogo nas conversas do grupo. O confor-
to e a comida eram razoáveis e a depressão era contor-
nada com discussões filosóficas e literárias lideradas, é
claro, por Hélio.
O tempo gasto principalmente com intermináveis con-
versas — comentavam-se compulsivamente as notícias,
preocupantes, que chegavam através de cabos e solda-
dos como a da prisão de Gilberto Gil e Caetano Veloso —
com leituras e, pelo menos no caso de Hélio, com o
hábito de escrever. Muito e compulsivamente.
— Zuenir, tomei uma decisão: quando sair daqui vou
trabalhar menos. Descobri que posso viver com muito
menos dinheiro, pois me basta isso: uma cama, comida,
uns livros para ler, papel para escrever e um banheiro
para tomar banho e fazer cocô — dizia Hélio que reali-
zava por escrito e oralmente uma longa, séria e profun-
da reflexão sobre o encarceramento e a lógica dos mili-
tares.
Em nenhum momento, Hélio abandonou a poesia e,
no Caetano de Faria, escreveu Soneto:

71
Vago por labirintos espelhados,
Feitos de duros bronzes e de prantos,
Ando por descaminhos tais e tantos
Que seus desvios geram destroçados

Clarões de perdição, alcantilados


Declives enganosos, e mais quantos
Desconcertos couberem na alma, e espantos
Desfilando vertigens, e enforcados

Gritos que assomam, pedras proferidas


Como calhaus de noite, e maldição
Porejando da boca, e desferidas

Perguntas de asas rotas— sim e não


Ceifando córneas, ossos e feridas —
E a dor do cravo assassinando a mão.

A rotina da cela era metódica e obedecia, com livres,


interpretações, ao padrão militar: acordava-se com o toque
dos soldados, tomava-se café da manhã e iniciavam-se exer-
cícios físicos. O almoço, quando era servida a razoável co-
mida destinada aos oficiais, ganhava na cela um acompa-
nhamento especial de cerveja, devidamente contrabandeada
para dentro por soldados. A transgressão alcoólica foi, no
entanto, descoberta pelo responsável dos presos políticos,
o coronel Quaresma, que, furibundo, adentra a cela num
fim de tarde, no final do expediente, já em trajes civis.
— Isto é um absurdo, vocês cometeram uma falta gra-
ve em usar bebida aqui dentro. Se isso acontecer de novo,
vocês vão ser transferidos. Estão pensando o quê, isso
aqui é um quartel.
E, completando, sacou do bolso traseiro uma garrafinha
de metal usada para guardar uísque:
— Quando quiserem beber, falem comigo — arrematou
o militar, batendo com sua garrafinha de estimação numa
das mesas da cela.

72 q
Se a prisão era atípica por conta do tratamento cordial
dispensado aos presos, Hélio Pellegrino contribuía para
que tudo fosse muito estranho naquele mundo de or-
dens, continências e disciplina rígida. Comportava-se
como se estivesse em casa, mantendo o hábito de falar
alto e chegando até a discutir petulantemente com os
militares. Num diálogo digno de Ionesco, um sargento
vai até a cela ler uma deliberação sobre restrição de visi-
tas. Mas, no momento do comunicado, a ordem já havia
sido revogada — como os presos já haviam tomado co-
nhecimento pelos jornais. Impassível, o sargento termi-
nou o texto lendo, literalmente, uma observação:
— Vide verso.
— Sargento, vide verso — dizia Hélio, para que o militar
passasse à outra página.
— Vide verso — repetia ele.
— Não, sargento, é para virar a página — insistia Hélio.
— O senhor está pensando o quê, que vai me ensinar
a fazer as coisas? Esta é a ordem.
— Isso já foi revogado! — dizia Hélio, sem controlar a
exaltação.
— Não, senhor, está aqui.
O fim destas discussões podia ser uma simples bron-
ca, ou efetivamente, restrições a algumas regalias bási-
cas. Um dia, quando voltavam em grupo da sala onde
recebiam visitas, Hélio foi interceptado a mando do
coronel Quaresma, aquele mesmo da garrafinha. De-
pois de uma conversa que, só pela longa duração foi
suficiente para estressar seus companheiros, Hélio volta
calado, meditativo e com ar grave, preocupado. Mes-
mo diante da insistência dos amigos, nada comentou,
alegando estar impedido eticamente. O diálogo que
aconteceu naquela sala do comando, ele só revelaria
depois:
— Mandei chamar o senhor porque sei que o senhor é
médico de cabeça, não é? — perguntou o militar.
— Eu sou psicanalista.

73
— Eu preciso de sua ajuda, tenho uns problemas, te-
nho uma coisa complicada na cabeça, ser militar é muito
difícil.
— Eu não posso ser seu analista, pois o senhor é meu
carcereiro. Vamos fazer uma coisa, quando eu sair, indi-
co um colega meu para o senhor se tratar.
— Mas eu só queria fazer uma consulta. Sabe, eu moro
num oitavo andar na Tijuca e tive que botar grades em
todas as janelas, pois tenho muita vontade de pular. O
problema é aqui no quartel, as janelas estão sem grades,
eu fico muito a vontade para me atirar.
— Olha, a minha prisão não precisa de tratamento, pois
ela acaba quando eu sair daqui. Mas a sua prisão é perma-
nente — iniciou Hélio antes de uma longa preleção sobre
como o militar se sentia aprisionado pela disciplina do
quartel, pelas regras rígidas, diagnosticando que a grande
busca do coronel Quaresma era, finalmente, a liberdade.
Assim como achara natural o aconselhamento ao co-
mandante do quartel, Hélio não hesitou em reivindicar
seus direitos da forma mais desastrada e espontânea pos-
sível, num incidente que precipitou a transferência do
grupo para o batalhão da Praça da Harmonia.
Todos os dias, os presos tinham direito a 15 minutos
de banho de sol. Reunidos em comissão, como era de
hábito na época, os prisioneiros reivindicaram ao comando
o direito de usar este tempo em partidas de basquete. O
time foi logo formado e em pouco tempo, chegou até
mesmo a contar com um inacreditável reforço:
— Coronel Quaresma, nós viemos aqui pedir que (o)
senhor transfira do DOPS Ziraldo Alves Pinto para com-
pletar nosso time — diziam em coro os porta-vozes Hélio
e Zuenir ao comandante do batalhão, que surpreenden-
temente, os ouviu e transformou a cadeia em festa ao
reunir os amigos.
Um dia, durante uma partida de basquete, o grupo é
interrompido por rapazes fortes, de camiseta, que depois
seriam identificados como militares.

74
— Vamos saindo daí que a gente vai jogar basquete —
disse um deles.
— Nós só temos 15 minutos por dia para jogar, vocês
têm o tempo todo, isso é um absurdo! — discursava Hélio,
dando início a um feroz bate-boca.
O resultado do desassombro veio minutos depois.
— Podem arrumar seus pertences — decretou um ofi-
cial enviado à cela usando uma expressão que era sinô-
nimo de incerteza na cadeia e soava como alarme.
Zuenir e Hélio foram transferidos para um quartel na
Harmonia, onde ficaram separados, em celas individuais.
Depois de um longo isolamento, em que cada um fica-
va sozinho em grandes dormitórios de beliches destina-
dos às tropas, Hélio e Zuenir foram postos, novamente
numa mesma cela. A emoção do reencontro fez com
que os dois ficassem de cinco da tarde de um dia até às
cinco da manhã seguinte falando, compulsivamente,
sobre a vida, sobre o Brasil, sobre o isolamento, a dita-
dura, lembrando os amigos. De tempos em tempos,
um ajudava o outro a subir até uma pequena janela
gradeada, colada no teto, de onde se podia ver o sol
nascendo.
O reencontro dos dois marcou também a reabertura
das visitas, que haviam sido proibidas. Durante todo o
tempo em que Hélio esteve preso, Nelson Rodrigues,
varado pela culpa, o visitava diariamente — assim como
Maria Urbana e, a Zuenir, Mary Ventura. Nos primeiros
dias, Zuenir recusava-se a dirigir a palavra ao dramaturgo
e até mesmo olhar para sua cara, vivas que estavam em
sua memória as “Confissões” sobre o momento político
brasileiro. O clima logo'se desfez pela intervenção de
Hélio.
— Você tem que parar com isso, tem que entender o
Nelson, ele é assim mesmo, lê o que ele escreveu — dizia
Hélio.
— Não, de jeito nenhum, é melhor nem ler o Nelson
para não me irritar — devolvia um Zuenir contrariado.

75
Mas Nelson, de fato, sofria sincera e profundamente
ao ver Hélio e anti-Hélio encarcerados. E tratava de usar
suas amizades e influências entre os militares para tentar
a libertação do amigo.
— Doutor Hélio, quando o senhor sair daí vamos to-
mar um copo de leite juntos — disse o temido Fiúza de
Castro, que Nelson levara à prisão para uma visita ten-
tando facilitar as coisas para Hélio.
— O senhor não me leva a mal não, mas copo de leite
eu não vou tomar com o senhor não. Se o senhor quiser
uísque, a gente toma — respondeu Hélio, com a falta de
cerimônia de sempre.
Maria Urbana também não teve a menor cerimônia e,
durante aqueles dois meses, além de visitar Hélio dava
uma passadinha protocolar no gabinete de Fiúza, no Mi-
nistério do Exército. Ela exigia, assim como não quer nada,
a libertação do marido. Era recebida a qualquer hora, com
tapete vermelho e banda de música enquanto Nelson, que
sempre a acompanhava, não tinha permissão para entrar e
ficava esperando na sombra de uma árvore. Maria Urbana
diverte-se ao lembrar hoje que usava as armas que podia
para enfrentar o temido general: boas roupas, perfumes e
muito charme. E tome horas e horas de conversa fiada
sobre qualquer assunto numa estratégia que ia dando certo.
— Se a senhora precisar de alguma coisa, me telefone
— despediu-se o militar, levando-a a porta do gabinete.
— O senhor está louco! Meu telefone está censurado,
aí quem vai preso é o senhor! — brincou ela.
— Fique tranquila, eu sou o chefe da censura, nada vai
acontecer — entregou ele.
Um tempo depois, quando Rockfeller veio ao Brasil,
O governo passou a prender, por precaução, todos os
que tinham sido detidos anteriormente. Maria Urbana não
teve conversa, passou a mão no telefone e ligou para seu
contato no Alto Comando.
— General, que história é essa de ficar prendendo as
pessoas de novo! Não estou gostando nada disso. Vê lá

76
se vai prender o Hélio de novo. Assim não dá, fica até
chato — argumentou Maria Urbana.
— Pode deixar, pode deixar, não vai acontecer nada —
garantiu Fiúza de Castro.
Tantas gestões da Mata Hári, como Nelson chamava
Maria Urbana, acabaram surtindo efeito. Hélio Pellegrino
poderia deixar a prisão tendo o dramaturgo, homem de
confiança do exército, como fiador. Estava tudo certo.
Mas aí foi a vez de Hélio dar para trás:
— Eu só saio se o Zuenir sair também.
— Mas Hélio, aí eu vou ter que ser fiador de dois —
argumentava Nelson.
— Sim, o que tem? — retrucava Hélio.
— Mas se o doce Zuenir resolver botar uma bomba
por aí? — temia Nelson, já topando se responsabilizar por
Gir
A prática de negociadora fez com que Maria Urbana
interviesse de novo quando começaram os rumores da
cassação de Hélio Pellegrino. Já experiente em interpelar
o poder, ligou para Rondon Pacheco, então governador
de Minas Gerais. |
— Quem está falando aqui é Maria Urbana.
— Olá, como vai? — respondeu o governador, que a
conhecia da vida social de Belo Horizonte, mas jamais
havia conversado com ela.
— Rondon, olha só, vou te dizer uma coisa, ouvi falar
que o Hélio vai ser cassado. Não quero não. Isso dá
muuuuuita confusão. Dá um jeito aí.
Dois dias depois, o governador retorna o hd
— Maria Urbana, pensei uma coisa, mas não sei se
você vai gostar. Vamos aposentá-lo.
— Ah, gostei — aprovou ela, num decreto informal que
valeu a Hélio, até o fim da vida, a pensão de médico
aposentado do Ministério da Saúde.
O problema estava resolvido sem que Hélio e anti-
Hélio jamais tenham sabido de todas as manobras da
Mata Hári rodriguiana.
Dona Catarina

— Vamos então começar mais uma sesson dos Encontrrros


Psicosomáticos...
A voz alta, com sotaque forte, vinha de Katrin Kemper,
Dona Catarina para os seus muitos amigos e analisandos,
que dava início, trocando invariavelmente as palavras, a
mais uma sessão dos Encontros Psicodinâmicos. Naquele
ano de 1971, a psicanálise já tinha virado moda em todo o
mundo. No Rio de Janeiro, a onda se espraiava com mais
força na Zona Sul, mais precisamente em Ipanema, e Hé-
lio Pellegrino despontava com uma das principais estrelas,
depois de sua atuação espetacular nos eventos de 1968.
Clarice Lispector, uma das mais apreensivas naquele
encontro com Negrão de Lima, tratava de captar a noto-
riedade de nosso personagem em “Diálogos possíveis
com Clarice Lispector”, série de reportagens que assina-
va em Manchete. O diálogo entre os dois é emocionante:
ela, derramando-se em admiração; ele, tratando-a como
um ídolo. Só mesmo a escritora para perguntar a um
entrevistado: “Hélio, diga-me agora, qual é a coisa mais
importante do mundo?” E só mesmo Hélio para respon-
der: “A coisa mais importante do mundo é a possibilida-
de de ser-com-o-outro, na calma, cálida e intensa
mutalidade do amor. O Outro é o que importa, antes e
acima de tudo. Por mediação dele, na medida em que o

78
recebo em sua graça, conquisto para mim a graça de
existir. É esta a fonte da verdadeira generosidade e do
entusiasmo — Deus comigo. O amor genuíno ao Outro
me leva à intuição do todo e me compele à luta pela
justiça e pela transformação do mundo.”
No ano das manifestações, Hélio também já figurava
nas crônicas de Carlinhos de Oliveira como o responsá-
vel por ter apresentado a psicanálise a Tom Jobim. Foi a
partir das conversas do maestro com Hélio, no Antonio's,
que Dona Catarina aceitou Tom em sua engarrafada e
concorrida clientela. Diz a lenda que, em algumas ses-
sões, o músico nadava na piscina de sua casa e, entre
uma braçada e outra, fazia comentários com Dona
Catarina, pacientemente sentada numa das bordas.
O fato é que, bem ao gosto da época do desbunde,
política, corações e mentes se fundiam e Hélio tinha re-
solvido levar para a psicanálise, concretamente, sua
vivência e preocupação com as questões sociais. De vez
em quando, ele se deparava com questões bem pouco
teóricas, à porta de seu consultório. Um adolescente de
16 anos um dia decidiu procurá-lo para se analisar, atraído
principalmente, por sua fama.
— Eu queria fazer análise com você mas não tenho
dinheiro — disse o candidato a paciente.
— Não é possível te atender de graça, pois pagar faz
parte do contrato que estabelecemos — explicou Hélio.
— Mas eu posso pagar fazendo faxina no seu consultó-
rio aos sábados — contrapôs o outro.
Imediatamente, Hélio aceitou. Por três meses, o aten-
dimento aconteceu e o candidato a cliente diz dever ao
analista a consciência de que todos os seus problemas
com os pais tinham origem na relutância em se assumir
homossexual. Tempos depois, ele encontra o ex-analista
numa livraria e é surpreendido com a pergunta:
— Como vai o seu complexo de rejeição? — provocou
Hélio, marcando o encontro com muita risada e um forte
abraço.

79
Hélio funcionava como mediador também na intimi-
dade dos amigos. Foi ele quem tentou negociar com
Nelsinho Rodrigues, filho do dramaturgo, sua saída do
país diante da ameaça cada vez mais forte que represen-
tava sua atuação na luta armada. Os dois conversaram
longamente num carro, num percurso que Hélio adorava
fazer, obsessivamente: dar inúmeras voltas, dirigindo, na
Lagoa.
Em todo e qualquer momento, Hélio empenhava-se
em tirar a psicanálise de um pedestal científico, e inseri-
la cada vez mais na vida das pessoas. Daí o projeto de
realizar grandes sessões públicas de análise, projeto no
qual Dona Catarina era a cúmplice ideal. Nasciam aí os
Encontros Psicodinâmicos, um projeto que confrontava a
psicanálise com seu próprio conservadorismo. O próprio
Hélio, filiado à Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro,
sabia, pessoalmente, que o divã necessitava de reformas
desde a temporada no Caetano de Faria:
“No início do ano (de 1969) fui enquadrado na Lei de
Segurança Nacional, e preso. A prisão foi decretada para
que constituísse um processo. Ela poderia ser mais ou
menos longa, de acordo com o critério dos carcereiros
militares”, lembraria ele anos depois. “Pedi à SPRJ um
documento em que ficasse dito — sem mais nada — que a
minha prisão poderia causar ansiedade aos meus pacien-
tes. O documento me foi negado, sob o pretexto de que
a Sociedade não poderia imiscuir-se em assuntos políti-
cos.”
Qualificado legalmente pelo Conselho Permanente de
Justiça da 2º Auditoria da 1º Região Militar, Hélio foi en-
quadrado na Lei de Segurança Nacional pelos seus arti-
gos no Correio da Manhã. O julgamento só aconteceria
em fevereiro de 1970, com o réu sendo absolvido por
unanimidade, apesar de o promotor Eudo Pereira Guedes
pedir sua condenação a três anos de prisão. Curiosamen-
te, na mesma época, tamanha ortodoxia e apoliticismo
da direção SPRJ não impediram — ou justamente por isso

80
permitiram — que a sociedade acolhesse em seus qua-
dros de candidatos a analista o médico militar Amílcar
Lobo, que logo seria denunciado por seu envolvimento
com sessões de tortura, atendendo aos prisioneiros para
mensurar sua resistência em meio aos “interrogatórios”.
As reuniões preparatórias para os Encontros, juntan-
do cerca de dez analistas, aconteciam na Faculdade Cân-
dido Mendes. Vicente Barreto, então diretor da institui-
ção, havia cedido uma das salas na Praça Nossa Senhora
da Paz para a organização e, depois, a realização das
sessões. Com Hélio e Catarina à frente, a base da equipe
idealizadora era de ex-analisandos e psicanalistas que com
ela haviam deixado a SPRJ e fundado o Círculo Psicana-
lítico da Guanabara, dentre eles Edson e Carlos Lannes,
Carlos Byington e João Batista Ferreira. Atuariam poste-
riormente como secretários, registrando o encontro em
atas que se perderiam, Francisco Antonio Dória e Chaim
Samuel Katz.
Dona Catarina não era conhecida exatamente por sua
ortodoxia e, em 1962, uma comissão da IPA chegou a
vir ao Brasil apurar queixas sobre a conduta da analista
com seus clientes graças a uma denúncia da SPRJ. Os
emissários ingleses da Internacional nada encontraram
de desabonador em sua prática clínica, diga-se de pas-
sagem.
Em pouco tempo, o Jornal do Brasil anunciava o iní-
cio dos Encontros Psicodinâmicos, que se transformaram
quase instantaneamente num sucesso — e, é claro, numa
moda. Nas sessões das segundas-feiras à noite, os princi-
pais clientes eram casais que chegavam e, diante de um
público leigo e de psicanalistas — sempre mediados por
Hélio ou Dona Catarina e, muitas vezes, pelos dois —
começavam a desfiar seus problemas, em geral relacio-
nados com os filhos.
— Minha filha está morando fora e já está mantendo
relações sexuais com o namorado — contava uma das
mães, no que hoje pode parecer mais uma banalidade

81
do que um problema mas que, na época, ainda era difícil
de ser assimilado pela moral da classe média carioca.
Problemas com drogas — que começavam a ser usa-
das com maior frequência — raramente eram trazidos pe-
los clientes e, como lembram os responsáveis pelas atas,
os depoimentos sobre virgindade ou conflito de gera-
ções sempre deixavam transparecer um grande esforço
e, não raramente, um sofrimento dos envolvidos. Na maior
parte das vezes, os casais trocavam acusações graves,
numa lavação de roupa suja que contava com interven-
ções pontuais dos terapeutas — Hélio ou Catarina — para
tentar reconduzir as discussões ou mesmo a colocação
do problema.
No auge do sucesso, os Encontros Psicodinâmicos
chegaram a reunir por sessão 120 pessoas, mas a média,
bem alta, era de 80 clientes. O público era pouco estra-
nho aos organizadores: advogados, médicos, artistas,
engenheiros e, é claro, muitos analistas curiosos com a
experiência pioneira. As reuniões, no entanto, nada ti-
nham de teóricas e eram acompanhamentos clínicos que
Dona Catarina conduzia com mão de ferro, permitindo
poucas vezes que atritos chegassem a níveis mais extre-
mos em cerca de duas horas de sessão.
Ainda que com dificuldades, a desenvoltura e a ne-
cessidade de a classe média se expor nos Encontros dava
a medida exata em que os costumes se transformavam.
Em 1971, Hélio já havia vivenciado, com pouco ou ne-
nhum distanciamento, esta reviravolta nos papéis mais
tradicionais da família. “Conhecer Hélio Pellegrino é um
privilégio, ser amigo de Hélio Pellegrino é uma honra
mas ser filho de Hélio Pellegrino é foda”, brincavam os
filhos sobre as relações sempre convulsas de uma família
moldada nas tradições mineiríssimas e em choque per-
manente com as revoluções por minuto da época. E, é
claro, de seu chefe.
Maria Clara, a mais velha, sofreu com maior intensi-
dade as hoje hilariantes crises de conservadorismo de

82
Hélio, que também em casa tinha o hábito pouco apazi-
guador de tentar conciliar opostos. No caso, a liberali-
dade e naturalidade com que encarava comportamen-
tos e idéias pouco aceitas na época — como, aliás, se
poderia esperar de um analista nos dias de hoje — e os
resquícios (às vezes bem pouco residuais) de sua
mineiridade.
Num fim de semana, uma Maria Clara adolescente usou
o protocolo típico de “viajar com amigas” para passar um
fim de semana em Cabo Frio com um grupo de amigos e,
é claro, o namorado. Desconfiada, Maria Urbana pediu
que o pai tomasse providências. Na madrugada de Cabo
Frio, Maria Clara pensou que estivesse tendo um pesa-
delo:
— Maria Claaaara! Maria Claaaaaara! — soava aquela
voz tão familiar.
Era o método Hélio Pellegrino de encontrar pessoas —
e que ele havia acabado de criar. Ele tinha uma vaga
idéia de onde a filha estava. E achou — acertadamente, o
que é pior — que poderia encontrá-la gritando.
— Entre no carro e vamos já para casa! — gritava Hélio
para uma Maria Clara morta de vergonha que tentava,
em vão, argumentar da janela onde estava.
Quando o escândalo já alcançava vários decibéis aci-
ma do aceitável, ela resolveu pular a janela e voltar para
o Rio, de táxi, com o pai. Sim, a velha Rural estava que-
brada e Hélio decidiu fazer uma corrida de quase seis
horas, entre ida e volta. O episódio viria a se repetir, de
forma menos operística tempos depois. Com a conivên-
cia de Helinho, Maria Clara costumava deixar a casa da
Nascimento Bittencourt tarde da noite para ir encontrar
Serginho Bernardes, com quem casaria em 1969. O ir-
mão, que lhe dava carona de moto até a casa de Sérgio
na Estrada das Canoas, não resistiu um dia ao interroga-
tório dos pais e acabou, contra a vontade, entregando
onde a irmã estava. Enfurecido, Hélio pegou o carro.
— Maria Claaaara! Maria Claaaaara!

83
Só que desta vez a filha não pensou duas vezes:
— Acho melhor você parar com isso. Tenho direito de
cuidar da minha vida e hoje vou ficar aqui.
Depois de um silêncio bergmaniano, Hélio se pro-
nunciou.
— Você tem razão. Fica mesmo. Boa noite — despediu-
se ele na maior calma do mundo.
Aquela altura, aliás, Hélio já percebera que não havia
soluções prontas para problemas familiares. Em conflito
com Maria Urbana, ele decide alugar um apartamento no
Leblon, na General Venâncio Flores. Para lá se transferiu
com seus livros mais queridos, seu Guignard e seu Volpi
e passou a viver sozinho. Na verdade, inaugurava-se para
eles o — moderníssimo para a época — casamento em
casas separadas. Quase todos os dias, ao sair do consul-
tório, Hélio passava na Nascimento Bittencourt para ver
os filhos, jantar e pegar Maria Urbana, que passava as
noites no Leblon e só voltava para casa no dia seguinte.
Partiu dela a iniciativa de viver desta forma, diminuindo
assim os decibéis dos conflitos familiares e dando a Hé-
lio tempo e trangúlidade maiores para trabalhar numa.
casa em que não morasse um batalhão.
E, mais uma vez, a vida exigiria de Hélio compromis-
sos pouco compatíveis com uma serena vida doméstica.
Os Encontros Psicodinâmicos terminaram, segundo Fran-
cisco Antonio Dória, quando haviam chegado a seu limi-
te. Ele lembra uma sessão em que uma cliente falou lon-
gamente sobre a morte de seu filho, deixando a todos
desconcertados e impassíveis. Se a prática se dissolveu
em seu experimentalismo, a idéia de tirar do pedestal a
psicanálise daria frutos muito mais duradouros. Hélio
Pellegrino e Catarina Kemper puderam pôr em prática
todas as suas idéias com a criação, em 1973, da Clínica
Social de Psicanálise.
Graças a um patrocínio, um grupo de cerca de 20
terapeutas instalou-se num casarão na Rua Toneleros, em
Copacabana, tendo como público de primeira hora, mais

84
uma vez, casais de classe média em busca de terapia — e,
como observa um de seus integrantes, em busca de se
analisar com nomes célebres na época por uma quantia
ínfima. Mas a idéia original iria tomar sua forma em pou-
co tempo, com a clínica aberta a favelados, lixeiros, car-
teiros e outros profissionais que em situação normal ja-
mais sonhariam em fazer análise.
A Clínica se sustentava menos com as mensalidades —
cada um pagava o que estivesse a seu alcance — do que
através do sistema do “banco de horas” criado por Hélio
Pellegrino: cada analista doava duas horas semanais à
Clínica. Do ponto de vista clínico, a idéia era manter a
coexistência de diversas tendências e métodos psicanalí-
ticos — era possível análise individual e de grupo e ofere-
cia-se atendimento em grupo para crianças, batizado por
Catarina de “grupos lúdicos”.
Em 1974, A Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro
— da qual Hélio fazia questão de permanecer membro e
exercer, de dentro da instituição, a liberdade que ele acha-
va compatível com a profissão — começa a pressionar
para que o grupo se transforme em “Clínica Social de
Psicoterapia”, preocupada que estava com o notório en-
volvimento de seus membros com grupos de esquerda e
na luta contra a ditadura. Dona Catarina bateu o pé e os
psicanalistas continuaram a ser chamados do que real-
mente eram: psicanalistas.
“Para o pobre mesmo, para o operário, a idéia de
fazer terapia é tão remota como a de comprar um
Mercedes-Benz”, afirmava Hélio numa reportagem sobre
a moda da psicanálise. Naquela altura, a Clínica que viria
a se chamar Anna Katrin Kemper depois da morte da
analista, em 1979, já havia contabilizado 500 atendimen-
tos e tinha uma fila de espera de cerca de 200 pessoas.
Hélio não perdia a chance de provocar, afirmando que o
preço de cada sessão era o mesmo “de um lanche no
botequim da esquina” e sustentando que, num momento
de crise, a psicanálise tinha sua função bem clara: “A

85
gente tem que desconfiar não de quem procura a tera-
pia, mas de quem se diz seguro”.
As atividades da Clínica Social prosseguiram até 1991,
quando o grupo foi desfeito devido a uma série de difi-
culdades. Mas já em meados da década de 70, Hélio se
afastava progressivamente do grupo. Seu filho, Pedro,
continuaria no projeto. Hélio não abriria mão, no entan-
to, de travar uma dura luta contra o conservadorismo
arraigado na psicanálise — que para ele representava, antes
de mais nada, libertação.

86
Sarah

Em 1968, a física Sarah de Castro Barbosa rompe defini-


tivamente com seu analista, Adolfo Hoirich. Casada com
o cineasta Joaquim Pedro de Andrade e militante no
movimento estudantil, ela decide discutir nas sessões o
que via como a passividade do seu terapeuta em relação
à situação política do país.
— Você é um bundão, fica aí sentadão, protegido, ana-
lisando socialites enquanto o pau está comendo lá fora,
não é como Hélio Pellegrino, que está lá, se arriscando —
provocava ela, para extrema irritação do analista, minan-
do completamente a confiança necessária às sessões.
Além de admirar a coragem de Hélio, como, aliás, a
grande maioria dos intelectuais de esquerda da época, Sarah
tinha encontros ocasionais e superficiais com ele. Frequen-
tavam as mesmas festas, as mesmas rodas de discussão até
que, no final de 1974, num momento em que seu casa-
mento com o diretor de Macunaíma não ia bem das per-
nas, Sarah acabou se aproximando de Hélio, então rompi-
do — ao que parecia, definitivamente — com Maria Urbana.
Depois de uma conversa definitiva numa festa, os dois
começaram a se telefonar e logo estavam namorando.
Inicialmente, decidiram viver em casas separadas —
eram quase vizinhos no Jardim Botânico, ele na Senador
Simonsen, ela na J. Carlos — mas por insistência de Hélio

87
acabaram dividindo o apartamento dele, um amplo três
quartos numa das ruas mais tranquilas do bairro, onde
foi morar ao sair do Leblon. Sarah e a filha, Alice, se
mudaram para lá em 1977.
Hélio não estendia a disciplina e presteza com que
ela cuidava do consultório à vida prática. Invariavelmen-
te, era preciso tomar atitudes e ter iniciativas por Hélio,
desde a organização de festas de aniversário até a decisão,
tomada por Sarah, de que estava na hora de comprar um
apartamento. Ela avaliou possibilidades, estudou preços,
escolheu locais e terminou por comprar, na planta, um
amplo apartamento de quatro quartos na Marquês de São
Vicente, na Gávea, único bem deixado por Hélio.
Nesta época, Hélio escrevia compulsivamente em sua
Remington semi-portátil, que vivia carregando entre a
casa e o consultório. A partir do casamento com Sarah,
passou a usar em casa uma máquina rigorosamente idên-
tica, que havia pertencido ao pai dela. Além dos artigos,
ele datilografava muitos poemas — grande parte dos es-
critos desta fase está na coletânea Minérios domados, or-
ganizada por Humberto Werneck em 1993 — frequente-
mente dedicando-os à Sarah, com quem passou a dividir
também a paixão por Arraial do Cabo, onde ela manti-
nha uma casa.
É também desta época uma das raras análises de lite-
ratura que ele deixou em livro — esta sua aversão por
publicar o que escrevia fez com que Otto Lara Resende
atribuísse ao amigo uma rara doença, a bibliofobia. Apre-
sentado por Sarah aos originais de Uma armadilha para
Lamartine, Hélio ficou fascinado com a história criada
por Carlos Sussekind a partir dos diários do próprio pai.
Acabou escrevendo um genial posfácio ao livro, que foi
lançado em 1976 pela filial brasileira da Labor, editora
espanhola responsável ainda pela histórica antologia 26
poetas hoje, organizada por Heloísa Buarque de Holanda.
Este Hélio ocupado em escrever e com seus (mui-
tos) pacientes, havia deixado a Clínica Social de Psica-

88
nálise por volta de 1976. Continuava, no entanto, ativís-
simo quando requisitado a participar de ações públicas
e debates, como os que, em setembro de 1980, detona-
riam uma crise sem precedentes na Sociedade Psicana-
lítica do Rio de Janeiro e no exercício da psicanálise no
Brasil.
A Clínica Social de Psicanálise Anna Katrin Kemper,
promovia naquele setembro de 1980, na Pontifícia Uni-
versidade Católica, o ciclo de debates Psicanálise e polí-
tica. Uma multidão lotou o auditório B-2 da universidade
para ouvir, na noite daquela quarta-feira, dia 17, Hélio
Pellegrino, Eduardo Mascarenhas e Wilson Chebabi de-
baterem “A psicanálise e sua inserção no modelo capita-
lista”. Os três, membros da SPRJ, não pouparam críticas
ao movimento psicanalítico em geral e à sua sociedade
em particular, criticando o sistema que obrigava os ana-
listas a cobrarem preços proibitivos e denunciando os
métodos “feudais” de manutenção e transmissão de po-
der nas instituições psi. Menos de uma semana depois os
três veriam suas declarações reproduzidas na capa do
Caderno B do Jornal do Brasil. O jornalista Roberto Mello
havia transcrito as falas dos três analistas — segundo Hé-
lio, fidedignamente, mas sem consultá-los sobre a reali-
zação da reportagem — e, sob o título “Os barões da psi-
canálise” causava um terremoto sem precedentes nos
meios psicanalíticos brasileiros.
“A psicanálise está dominada por um baronato. Suas
instituições são marcadas por cargos vitalícios, nelas o
clima é feudal”, atacou Eduardo Mascarenhas. “O poder
é a gerontocracia, prevalecem os padrões do mandarinato.
Noventa por cento dos psicanalistas não leram a obra de
Freud, contentam-se com uma “Introdução à obra de
Melanie Klen”, de Hanna Segal. Não sabem distinguir uma
epistemologia idealista de uma materialista nem sabem o
que é epistemologia. Não conhecem Kant, Hegel, mal
ouviram falar de Marx. Mas neles predomina a pretensão
de tudo dominar monopolisticamente. A psicanálise está

89
na fase pré-capitalista, inserida num sistema concorren-
cial não capitalista ainda.”
O tom polêmico e inflamado contagiou tanto a platéia
quanto os colegas de mesa. Em sua intervenção, Wilson
Chebabi convidou a platéia a refletir sobre o sentido da
insistência em desvincular psicanálise de política: “Claro
que há razões políticas para a evitação da política. Trata-
se de evitar o questionamento, para domesticar a cons-
ciência crítica, herança maior da obra de Freud. O resul-
tado é que a psicanálise se converte numa ideologia para
satisfazer impulsos destrutivos. Isso é o que a gente vê
mais por aí”, afirmou Chebabi que, como os outros com-
panheiros de mesa, procurava traçar em sua fala uma
severa autocrítica.
Hélio se apressou em apontar o que via como
“marotagem” de psicanalistas que se diziam apolíticos.
Destacando que é impossível se colocar politicamente
da mesma forma dentro e fora do consultório, ele utiliza
uma metáfora poética para a separação: “O modelo clíni-
co é um artifício para que possamos ouvir o inconsciente
do outro. Temos de colocar a realidade entre parênteses,
para que ela não nos perturbe com seu rumor. É como se
quiséssemos ouvir estrelas: escolheríamos a noite. Isto
não quer dizer que elas não existam de dia. O brilho do
sol nos impede de vê-las.”
As nuances da noite e do dia na psicanálise refletiam,
para Hélio, as sutis implicações políticas da profissão.
Ouvir O inconsciente, sustentava Hélio, é se preocupar
com a saúde da pólis, da cidade. E, numa declaração que
se tornaria célebre, ele demonstra como, a seus olhos, a
psicanálise se transforma em mais um dos instrumentos
de opressão do capitalismo:
“Operário só entra no meu consultório como bombei-
ro ou pintor de paredes, jamais como cliente. Só entra
quem paga meu preço e o preço é a nossa linha de par-
tilha severa, o leão-de-chácara na porta do consultório,
que tem a arrogância de barrar a imensa maioria do povo

90
brasileiro. O preço é uma determinação do mercado, o
ponto em que a psicanálise se articula com a política.”
E, sem perder de vista a autocrítica, Hélio discute os
riscos de grupos como a Clínica Social de Psicanálise es-
tarem simplesmente repetindo modelos como o da saú-
de pública, tendo ao fundo uma noção de caridade: “Nós
ganhamos muito bem. São Francisco faria melhor do que
nós. Estamos tentando abrir espaços. E não são muitos
os psicanalistas que dizem o que nós dissemos aqui”.
Realmente, seus pares engajados na mesma luta eram
pouquíssimos. Mas eles — e, de novo, uma pequena mul-
tidão — compareceram, no dia seguinte à publicação da
reportagem, que causou grande reboliço, para mais uma
quarta-feira no auditório B-2. O tema proposto para aquele
debate, continuação do primeiro, era “Psicanálise e fas-
cismo”. Todas as discussões teóricas seriam abafadas por
uma única intervenção da platéia. O professor de educa-
ção física Rômulo Noronha de Albuquerque pede a pala-
vra e, diante de um auditório perplexo, relata as torturas
que sofreu e confirma, em público, o que Helena
Besserman Vianna já havia denunciado anonimamente,
em 1973, na revista argentina de psicanálise Cuestionamos:
Amílcar Lobo, candidato a analista na SPRJ, atendia aos
presos torturados com o codinome de Dr. Carneiro.
Em dois dias, a Sociedade recebia dois golpes
pesadíssimos. E que provariam justamente a fragilidade
da estrutura de poder que vinha sendo denunciada por
Mascarenhas, Chebabi e Hélio. Este último, transforma a
denúncia de Lobo numa causa pessoal e, segundo Sarah,
passa a viver obsessivamente o problema a ponto de
denunciar formalmente, numa carta enviada à SPRJ em 2
de outubro, o envolvimento de um analista com a tortu-
ra, pedindo que a instituição tomasse as providências
para puni-lo.
Duas quartas-feiras depois da denúncia de Rômulo,
Hélio Pellegrino começa a sentir os efeitos das bombas
que viera detonandô no cenário psicanalítico carioca. A

91
polêmica transborda para os jornais com as notícias de
que Hélio e Mascarenhas tinham sido expulsos da SPRJ e
Chebabi punido com uma advertência formal — informa-
ções antecipadas pelo Jornal do Brasil, numa nota dis-
creta e não assinada. A Sociedade, através de seu presi-
dente, Victor Manuel de Andrade, negava que a decisão
tivesse sido tomada, mas Hélio não deixava margem de
dúvidas na primeira das inúmeras entrevistas que daria
sobre o caso:
“Eles nos disseram que estávamos excluídos e sob a
capa de um falso coleguismo nos ofereceram como alter-
nativa a sugestão de que pedíssimos demissão”, declarou
ele ao JB. “Respondemos que se tratava de uma proposta
desonrosa. Eles nos ofereciam o suicídio institucional para
que, com a nossa demissão, um gesto de suprema genti-
leza masoquista, eles se demitissem do gesto arbitrário,
se eximissem da responsabilidade de cometer um crime
institucional. Fazemos questão de assumir nossa condi-
ção de excluídos, por amor à instituição, para ficar carae-
terizada a forma arbitrária com que se exerce o poder lá
dentro da sociedade. Vamos lutar pela defesa de nossos
direitos societários contra o arbítrio de uma instituição
que tem 170 membros e na qual só 23 votam.”
A guerra estava apenas começando. Em 16 de outu-
bro, a SPRJ continuava negando, através de seu presi-
dente, a expulsão. Os membros do Conselho Consultivo
— dentre os quais o mesmo Adolfo Hoirich com quem
Sarah havia brigado no calor do movimento de 68 —
reunem-se, mas nenhuma nota oficial seria divulgada.
Certos de que a melhor defesa era o ataque, Marcare-
nhas e Hélio botaram a boca no mundo. Pediam nos
jornais a extinção do cargo de analista-didata — cabia aos
didatas decidirem se um candidato poderia se tornar ana-
lista ou não na sociedade — e insistiam em mostrar que
todas as decisões da instituição eram tomadas por um
grupo pouco representativo. E, já apoiados pelo advoga-
do Sérgio Bermudes, acabam apresentando uma carta em

92
que Victor Andrade pede o comparecimento dos dois na
SPRJ para comunicar as punições baseadas na reporta-
gem do JB.
“Cabeças feitas? Não, cabeças cortadas” e “Debate lou-
co” eram os títulos que as principais revistas semanais
davam às reportagens sobre o assunto. Em todas, a toma-
da de defesa inequívoca de Hélio e Mascarenhas. Que
voltaram a participar de uma reunião plenária no dia 21
de outubro, na qual a decisão seria o arquivamento do
processo contra os analistas.
— O que achou? — perguntou Hélio ao presidente da
SPRJ, Victor Andrade, quando ambos deixavam, no iní-
cio da madrugada, a sede da Sociedade.
— Correu tudo bem, em harmonia, mas vocês levaram
uma imprensada, hein?
— É, fomos imprensados, mas você também — respon-
deu Hélio, prosseguindo depois para a imprensa. — As
coisas estão melhorando. E vão ficar ainda melhores.
— Assim vai ser pior, Pellegrino — advertiu Maria Perei-
ra Manhães, membro do questionado Conselho Consulti-
vo, que também deixava a sede da sociedade àquela hora.
Exausto que estava de tantas tensões, Hélio foi con-
vencido por Sarah a viajar. No início de dezembro, em-
barcaram para uma temporada de um mês e meio na
Europa. Primeiro destino, a Itália. Depois uma tempora-
da em Paris, onde se encontrariam com Maria Clara,
que fazia doutorado em psicanálise. Além de reduzir a
tensão de Hélio, um dos objetivos da viagem era tentar
desfazer um certo mal-estar entre ele e Alice que, ado-
lescente, não convivia bem com o marido da mãe.
Os problemas no relacionamento não foram sanados,
mas renderam pelo menos uma daquelas cenas legitima-
mente Hélio Pellegrino. Às vésperas do Natal, em Roma,
Alice demonstra um mau-humor tipicamente adolescen-
te. Exasperado, Hélio se ajoelha em plena praça do
Panteon, no tumultuado centro de Roma, e ergue os bra-
ços para o céu em súplica:

93
— Meu Deus! O que eu fiz para essa menina? — ence-
nava ele.
Ali, foi cada um para um lado e, no fim do dia, Hélio
chegava com um buquê de flores para Alice e uma edi-
ção bilíngue de Murilo Mendes de presente para Sarah. A
viagem representaria, ainda, um duro golpe afetivo para
Hélio. No dia 21 de dezembro de 1980 morria no Rio,
aos 68 anos, Nelson Rodrigues, o amigo fundamental,
vítima de um edema pulmonar. Este luto, Hélio vivenciou
com um belíssimo poema:

Piso em Roma
o chão da tua morte

Ó amigo
duro e terno titã
esculpido de fala

Fonte signo rumor


de paixão brasileira
que nenhum tempo cala.

Roma, 25/12/80

94
Carlos Alberto

Ao voltar de Paris, em meados de janeiro de 1981, Hélio


Pellegrino constata que para ele e Eduardo Mascarenhas
tudo parecia ter voltado à estaca zero e que a briga com
a SPRJ estava só começando. Em 1º de dezembro de 1980,
uma circular divulgada entre os associados dava conta
de que o caso havia sido arquivado depois que os analis-
tas tinham “se retratado”. Mascarenhas esperou apenas
que Hélio voltasse para retomar a guerra: “Examinemos
essa supreendente e escandalosa afirmativa. Quem se
retrata se desdiz, volta atrás, reconhece, por motivo no-
bre ou espúrio erro ou dolo num juízo ou numa profis-
são de fé antes proferidos e, através da retratação, assu-
me de público sua falsidade”, afirmavam os dois numa
carta irada enviada à SPRJ no dia 14 de janeiro para ne-
gar oficial e categoricamente a “retratação”. Os dois afir-
mam que a circular exala “à distância o mau hálito pecu-
liar às manifestações da direita mais reacionária, seja no
campo do pensamento político, seja no campo da vida
institucional e societária”.
A carta redundou, finalmente, na expulsão formal
dos dois e, também no início de um movimento que
virou do avesso a instituição. O Fórum de Debates re-
presentou para a SPRJ uma saudável subversão de seus
parâmetros mais rígidos e esclerosados e, para Hélio

95
Pellegrino, um amigo mais do que fraterno que faria par-
te de seu dia-a-dia até o fim. O Capitão, como ele chama-
va o psicanalista Carlos Alberto Barreto, entra nessa his-
tória numa posição pouco confortável que durou pouco
tempo: a de opositor do explosivo Hélio. Depois de uma
acalorada discussão sobre divergências de estratégias, os
dois se tornaram inseparáveis. Na convivência com Carlos
Alberto, uniam-se as lutas da psicanálise, da política e da
religião, uma espécie de amizade-síntese.
Em cima de um cadeira de madeira, na calçada em
frente ao casarão que sedia a SPRJ na Rua Fernando Gui-
marães, em Botafogo, Carlos Alberto presidiu na noite de
19 de agosto de 1981 a sessão mais emblemática do Fórum.
Desde o dia 27 de maio, o grupo reunia-se regularmente
na sede da instituição mas, naquele dia, seus integrantes
encontraram as portas fechadas a cadeado. Victor Manuel
Andrade protestava, a seu modo, pela participação de
dois membros expulsos — Hélio e Mascarenhas — em ati-
vidades nas dependências da SPRJ. Por uma hora, e com
o apoio da advogada Eny Moreira e a presença de equi-
pes de TV e repórteres de jornais, a diretoria do Fórum —
além de Barreto, Fábio Lacombe, Heládio Miziara, Nilo
de Assis e Wilson Chebabi — conduziu as discussões, in-
sistindo como reivindicação no direito de voto a todos os
membros da SPRJ.
Ao longo de 1981, enquanto via seu casamento com
Sarah entrar numa crise que levaria a seu fim, Hélio se
dedicava integralmente ao front da SPRJ. E ganhava um
novo pouso no número 31 da Rua Mário de Andrade. No
casarão da ruazinha no Largo dos Leões, onde mora Carlos
Alberto, eram tomadas as decisões mais importantes na
condução do Fórum. No mesmo endereço Lula se hos-
pedava quando vinha ao Rio e, anos mais tarde e, aqui,
algumas páginas depois, será a sede do surpreendente
Clube Mário Pedrosa.
Em outubro de 1981, os membros do Fórum obtém
uma de suas mais importantes conquistas: a IPA, Asso-

96
ciação Internacional de Psicanálise, envia ao Rio o psi-
canalista inglês Adam Limentani. Instalado no Othon
Palace Hotel, ele coordena uma equipe encarregada de
resolver problemas administrativos da SPRJ e, principal-
mente, de ouvir os envolvidos na expulsão de Hélio e
Mascarenhas e examinar o caso Amílcar Lobo — já que a
carta de Hélio reiterando a denúncia sobre o envolvi-
mento do médico com a tortura só tinha tido como re-
sultado o afastamento de Lobo da formação psicanalíti-
ca. A IPA mostra-se, no entanto, reticente em relação ao
assunto.
Em dezembro de 1981, exauridos pelas pressões, Hé-
lio e Mascarenhas têm o recurso legal indeferido pela
juíza Helena Becker, da 25º Vara Cível. O advogado Sér-
gio Bermudes recorreu e, somente em março de 1982,
quase dois anos depois do início do processo, a 6º Vara
Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reformou a
sentença de Helena Becker determinando a reintegração
dos analistas, o que só seria formalizado em junho do
mesmo ano.
Um dos resultados de tanta polêmica era a extensa
discussão sobre a psicanálise nos meios de comunica-
ção. Até o crítico e embaixador José Guilherme Merquior
entrou na dança. Influenciado pelas idéias de Ernest
Gellner - com quem estudava na London School of
Economics e que, no início dos anos 80, ocupava-se do
livro O movimento psicanalítico, uma ácida crítica às ins-
tituições psi — resolvera bater pesado no que chamava de
“enfermidade do intelecto”. Foi aberta uma violenta po-
lêmica com Eduardo Mascarenhas e Hélio saiu em defe-
sa do amigo. Em “Comigo não, violão”, artigo publicado
na Folha de S. Paulo, jornal para o qual colaborava na
época, voltava à cena o inflamado articulista do Correio
da Manhã, denunciando que Merquior queria apenas
“desmoralizar a esquerda freudiana”. Peso-pesado,
Merquior chamava Hélio de “um autor sem livros, um
pensador sem idéias”.

D7
Numa de suas visitas ao Brasil na época, Merquior vai
a um vernissage em Ipanema. O amigo que o acompa-
nhava fica nervoso ao pressentir seu encontro com Hé-
lio. De longe, observa os dois, falando muito alto. Adivi-
nhando uma briga, já ia intervir quando viu que um se-
gurava no braço do outro carinhosamente, e riam, riam
muito. Na saída, Merquior pergunta:
— Quem era aquele com quem eu estava conversan-
do? Que homem inteligente, que idéias interessantes! —
admirava-se ele.
Quando a crise na SPRJ se encaminhava para um des-
fecho, Hélio voltou a procurar Maria Urbana. Sinalizava,
de diversas formas, que queria reatar se não o casamen-
to, pelo menos um namoro. Reticente, ela se surpreen-
deu ao ganhar de presente de Hélio uma edição luxuosa
de O cemitério marinho, de Paul Valéry. A dedicatória
era enigmática;

“M. U.
ETA!
Do teu, Hélio”

Que M. U. eram as iniciais do seu nome, ela não tinha


dúvidas. Não entendia porque, logo abaixo, vinha a in-
terjeição que ele usava muito: êta! Foi o filho, Pedro, que
matou a charada: ao lado do E, do T e do A, Hélio salpi-
cou pontinhos minúsculos, formando uma sigla para “Eu
te amo”. Tantas vezes separado e reconciliado, o casal
retomava ali uma história que iria se interromper, de for-
ma tumultuada, quase quatro anos mais tarde.
O reatamento foi comemorado em grande estilo em
1984, quando Hélio fez 60 anos e Maria Urbana abriu a
casa da Nascimento Bittencourt para uma festança. Paulo
Mendes Campos exagerou na comemoração anterior à
festa e não foi, mas Fernando, Otto e o Rio de Janeiro
inteiro estavam lá. Nas entrevistas que deu antes da festa,
o assunto era o “recasamento”:

98
— Nós casamos muito cedo, fizemos um compromisso
radical, para a vida inteira, sem sabermos nada. A moldu-
ra do casamento convencional é muito limitada. É neces-
sária a procura, para a mulher também. Freud dizia que o
sujeito que se adapta à monogamia é conformista e tem
o reservatório libidinal fraco. Concordo. O casamento feliz
é uma penitenciária de cinco estrelas.
O poeta Ledo Ivo, seu amigo e então diretor das cole-
ção Os melhores poemas de..., na editora Global, aprovei-
tava a festa para insistir na publicação de uma antologia
de um poeta que todos acreditavam bissexto mas que,
como se viu depois de sua morte, produzia constante-
mente.
— Talvez eu não tenha organizado uma carreira literá-
ria por excesso de vaidade, perfeccionismo, excesso de
exigência quanto a mim próprio — disse Hélio numa en-
trevista à rádio JB. —- Sou um homem disperso pela im-
prensa desde sempre.
Mas o “escritor sem livros” do qual debochava Merquior,
não perdia uma chance de rir de sua desorganização literá-
ria. Aquela proposta de Ledo Ivo, responderia mais tarde:
— Olha só, eu não posso publicar esta antologia por-
que todos os poemas que ficarem fora dela passarão a
ser conhecidos como “Os piores poemas de Hélio
Pellegrino”.
Esta época de festas e entusiasmo marcaria ainda o
reatamento de Hélio com a militância política mais explí-
cita. Em 1980, assinara ao lado de nomes como os dos
críticos literários Antonio Candido e Sergio Buarque de
Hollanda, da atriz Lélia Abramo, do comunista histórico
Apolônio de Carvalho e do cartunista Henfil, o manifesto
datado de 10 de fevereiro que marcava a fundação do
Partido dos Trabalhadores. Ao se aproximar de Carlos
Alberto, também petista de primeira hora, Hélio viu a
possibilidade de se reaproximar da política.
Mas seu temperamento não combinava em nada com
o reunismo e as inúmeras burocracias que organizavam

99
o partido. Hélio se esforçava, a todo custo, para manter a
independência que nem sempre era bem vista pelos mi-
litantes mais ortodoxos.
— E se o PT chegar ao poder? — provocou Carlos Alberto
numa das inúmeras noites em que Hélio ia para sua casa,
desabava numa poltrona, tirava os sapatos e, descalço,
ficava conversando fiado.
— Imediatamente estaremos na oposição, ora! — res-
pondia ele, meio a sério, meio brincando.
A participação em assembléias e grupos de discussão
também era complicada. Hélio sempre estava prestes a
explodir em seus mitológicos acessos de fúria. Que ter-
minavam no último grito, pois jamais o psicanalista leva-
va à frente indefinidamente suas desavenças:
— Essas brigas são espuma — explicava ele. — O rio
corre mais embaixo, passa tranquilo.
Entre espumas convulsas e um rio cada vez mais tran-
quilo, Hélio e Carlos Alberto resolvem fundar o Núcleo
Mário Pedrosa, uma divisião do PT que aglutinaria inte-
lectuais no Rio. O registro do núcleo o deixa apare
pelos trâmites burocráticos e organizacionais.
— Eu fico melancólico com tanto papel — dizia ele,
com uma dramaticidade acentuadamente rodriguiana.
Para sanar o problema, propôs-se ao PT a transforma-
ção do tal núcleo em Clube Mário Pedrosa, indicando
com o novo nome o caráter bem livre das reuniões que
começavam sempre às 21h das sextas-feiras. O físico Luís
Pinguelli Rosa, o ator Osmar Prado, o cantor Sérgio
Ricardo, Apolônio de Carvalho, Pedro Pellegrino, Wagner
Tiso e Henfil eram alguns dos frequentadores assíduos.
As reuniões podiam acabar uma hora depois de iniciada
ou se estender até a manhã do dia seguinte. Movidos a
cerveja e uísque — Hélio gostava de um malte engarrafa-
do no Rio Grande do Sul — os sócios ignoravam solene-
mente hierarquias e protocolos. Surpreendentemente, tal
estrutura um tanto anárquica foi aceita oficialmente pelo
PT como equivalente a um de seus núcleos. Numa tenta-

100
tiva de organização, os sócios discutem a eleição de de-
legados do Clube para uma convenção do partido. É pre-
ciso saber se todos estão em dia com sua filiação.
“*— Pô, esqueci! — anunciava Hélio, já dramatizando,
com a mão na cabeça.
Ele esquecera não da manutenção de filiado, mas
mais exatamente de filiar-se: um'dos fundadores do PT
e dos defensores mais convictos, Hélio jamais se ligaria
formalmente ao partido, tamanho o horror aos enqua-
dramentos.
— Isso é uma máquina de moer gente! — desabafou,
em alto e bom som, no meio de uma das intermináveis
reuniões do partido.
Dos encontros com Henfil surgiu o mais do que inusi-
tado Hélio Pellegrino ator. O cartunista, que rodava o
filme Tanga — Deu no New York Times o convidou para,
ao lado do escritor Fausto Wolf e do jornalista Zózimo
Barrozo do Amaral, representar um oficial do exército
americano, numa ponta de luxo. Revoltados pela disci-
plina do set de filmagens — Henfil proibira o consumo de
bebidas alcóolicas — os três se rebelaram e saíram pela
Praça Mauá em busca de cerveja. Dois detalhes: primei-
ro, ninguém se deu ao trabalho de tirar os figurinos; de-
pois, o Centro vivia um feriado de 7 de setembro.
A idéia foi de Fausto Wolf: chegaram a um boteco
falando inglês e se dizendo o que eram no filme, milita-
res americanos. Não houve sobriedade para descrever
com detalhes o que aconteceu, o fato é que o dono do
bar ficou satisfeito com a conta e Henfil não gostou nada
do estado em que seus atores voltaram para o set.
A amizade com Carlos Alberto transcendia a militância,
ele o tinha como um cúmplice tanto para chopes no
Razão Social — bar que Magro e Aquiles, membros do
MPB-4 e do Clube Mário Pedrosa, abriram nos anos 80
na Rua Conde de Irajá — e em botecos que adoravam
descobrir juntos — quanto para as conversas tortuosas em
que desenvolvia suas teses mirabolantes.

101
— Capitão, vamos fundar um partido anarquista? — per-
guntava Hélio, que podia estar brincando ou não.
— Mas com quem? — insistia Carlos Alberto.
— Só nós dois, uai!
— E se a gente rachar? — provocava o analista, certo de
que Hélio não teria resposta.
— Então esquece — desistia ele.
Carlos Alberto Barreto observa que os dois funciona-
vam como uma dupla: Hélio era o ímpeto, o trovão que
precisava de uma sintonia. Carlos Alberto funcionava jus-
tamente como este elemento de contenção, procurando
direcionar de forma mais estratégica a estridência do
amigo. Nas reuniões mais difíceis — seja no Partido ou na
SPRJ — os dois desenvolveram um código: sentavam-se
lado a lado e um procurava frear os excessos do outro
com puxões na manga do paletó.
Como fazia com todos os amigos mais próximos, Hé-
lio levou Carlos Alberto a Belo Horizonte. A vontade de
apresentar a cidade ao analista coincidiu com a realiza-
ção de um comício. Dona Assunta, mãe de Hélio, já bem
idosa, impressionou Carlos Alberto — como a todos que a
conheciam — com seus raciocínios delirantes.
— Sua mãe sabe que você está aqui? — perguntava ela
ao analista, tratando o filho e seus amigos como crianças.
Dona Assunta não desistia, e provocava ao saber que
os dois foram a Belo Horizonte por conta de um comí-
cio:
— Por que vocês querem mudar o mundo? — pergunta-
va ela.
— Eu vou dizer pro vigário que a senhora fica falando
mal de mim e do meu amigo! — respondia Hélio, a sério,
em altos brados como sempre.
Na década de 80, Hélio Pellegrino voltava-se cada vez
mais para a religiosidade. Carlos Alberto Barreto também
foi companheiro nesta viagem, em muito estimulada pela
progressiva reaproximação de frei Betto. Para o compa-
nheiro mais constante dos últimos anos — que decidiu

102
interromper o funcionamento do Mário Pedrosa com as
mortes de Hélio e Henfil em menos de três meses — gos-
tava de ler um poema que escrevera, “Canção do ami-
go”:
»,

Fraterno amigo, entre palmeiras


Nossos nomes se inscreverão.
Venha o furor da vida inteira:
E eles lá ficarão

Venha raivando a chuva e o vento,


Venha tombando o que Deus quer;
Negue-se o azul do firmamento
Ou outro azul qualquer;

Que os nossos nomes, serenados,


Hão de ficar, até que o frio
Amargo e o pó os cubra a fio
De tempo e de passado.

103
Fernando, Otto, Paulo

— Eu não faço por menos, reivindico o Prêmio Nobel.


Em época de violência e destruição, quatro sujeitos se
manterem unidos por 40 anos, com a mesma amizade
que tinham aos 16, isto é para comemorar, é o milagre
brasileiro. Prêmio Nobel para nós!
Nem é preciso dizer qual dos participantes transfor-
mava em exemplo para a humanidade a gravação do
disco Os quatro mineiros. Lançado em junho de 1981, o
álbum foi concebido pela produtora Marilda Pedroso, que
já havia registrado no projeto Documento, da Som Livre,
trechos de obra de Ferreira Gullar e Jorge Amado e partia
agora para uma mistura de biografia, literatura e poesia
envolvendo escritores que, como poucos, haviam se trans-
formado em personagens.
Na preparação para o lançamento, Hélio, Fernando,
Otto e Paulo se viram em meio a um esquema de en-
trevistas digno de cantores de sucesso. Falavam sem-
pre juntos, cada um com seu papel: Paulo na discrição
de sempre, Otto destilando pessimismo sobre a reali-
zação do disco, Fernando orgulhoso com o resultado
e Hélio transformando tudo em teses e, é claro, impli-
cando com Otto:
— O Otto é meu candidato à Presidência da República.
É o homem mais liberal que eu conheço — discursava ele.

104
— Ah, Hélio, você está querendo que eu perca o em-
prego — reclamava Otto.
Entre o quarto de pensão de João Ettiene e o estúdio
da Som Livre, havia se passado muito mais do que uma
trajetória de sucesso para os quatro. Embora raramente
se vendo e, mais raramente ainda, estando os quatro jun-
tos, os personagens daquele disco falavam-se diariamen-
te no telefone, davam conta de absolutamente tudo que
se passava na vida de um e de outro. — “Foi uma pânde-
ga gravar o disco. Esta vida é muito cruel e não permite
que nos encontremos, a gente fala muito pelo telefone
mas não é frequente o encontro”, reclamava Hélio. Man-
tinham seus rituais — cada um dava para o outro no ani-
versário uma garrafa de uísque, invariavelmente — e, quan-
do juntos, voltavam mesmo a ser aquela rapaziada “desa-
tinada” que impressionara Mário de Andrade.
— Nós somos amigos desde o século XII e isso é um
grande absurdo. Num mundo onde reina a agressão, o
individualismo, a disputa, o acotovelamento, como qua-
tro pessoas conseguem conviver há quase 50 anos? —
perguntava-se Fernando.
Talvez a melhor tentativa de explicação tenha vindo
de Otto:
— Nós sobrevivemos juntos porque nunca resolvemos
abrir uma turma, hastear uma só bandeira, fundar uma
revista. A única que fundamos não passou do número
zero. Uma experiência felizmente fracassada.
Paulo Mendes Campos leu uma seleção de poemas;
Otto, trechos de O carneirinho azul e de textos para
jornal; Fernando, organizado, preparou uma nota biográ-
fica, uma crônica e seleções de, é claro, O encontro mar-
cado e O grande mentecapto. Hélio resumiu sua traje-
tória nos poemas Boi na chuva, Quadrilátero ferrifero,
Viagem às Minas, Soneto, Pública-forma, Metamorfose,
Acalanto para Dora, Arraial do Cabo, A cólera-esperan-
ça, Nascimento de Édipo, A cegueira de Édipo e Édipo em
viagem.

105
Para a grande maioria, o poeta excepcional revelava-
se uma surpresa. Otto, aproveitava para puxar a orelha
do amigo:
— Hélio Pellegrino é um poeta desleixado, ele escreve
ou de encomenda, artigos participantes nestas guerras
pessoais em que se empenha, ou quando é tocado pela
poesia. Ele não se administra como poeta e escritor.
Mas quem melhor definiu o disco foi Paulo Mendes
Campos, justificando inclusive a repetição do título deste
capítulo:
— O disco é um encontro que tem condições de varar
o tempo. Ficarão sabendo como era a nossa voz, nosso
jeito de dizer as coisas. Está ali guardada para sempre
uma parte expressiva da experiência de quatro loucos
mineiros.

106
Betto

Carlos Alberto Libânio Christo era um jovem frade domi-


nicano envolvido com as lutas revolucionárias de seu
tempo, na política ou na arte. Militante de esquerda, sim-
patizante da luta armada, ele se dividia entre os estudos
de filosofia, o jornalismo e a assistência de direção de
José Celso Martinez Corrêa na histórica montagem de O
rei da vela. Naquele 1967 em que a vida seguia tão atri-
bulada, veio de São Paulo ao Rio de Janeiro procurar
alguém que parecia combinar, e muito, com seu espírito.
Hélio Pellegrino, já uma referência, insinuava com uma
tranquilidade insuspeita a aliança possível entre socialis-
mo e cristianismo — aliança forjada ainda nos anos 40, na
mesma Belo Horizonte em que ele, frei Betto, também
nasceu.
Hélio abriu as portas da Nascimento Bittencourt a Bettó
e Osvaldo Rezende, seu companheiro na ordem dos
dominicanos. Conversaram horas, de forma terna e afe-
tuosa ainda que defendendo pontos de vista contrários:
Betto vinha em busca de apoio do importante intelectual
para o guerrilheiro Carlos Marighella e sua Aliança de
Libertação Nacional; Hélio dava força aos jovens, obvia-
mente comungava da luta contra a ditadura mas, discreta
e firmemente, evitou fechar questão, contrário que era à
luta armada.

107
Um hiato de seis anos se seguiu: frei Betto foi preso
por sua atuação política e, quando deixou a cadeia, em
1973, mais uma vez veio ao Rio de Janeiro encontrar
Hélio — já no apartamento da Senador Simonsen e numa
reaproximação cada vez mais intensa com a religiosida-
de. As afinidades eletivas que sempre mantiveram os dois
em sintonia garantiram um reencontro marcante para
ambos com longas e infindáveis conversas, que não rara-
mente varavam a noite apesar de Hélio, invariavelmente,
começar a atender no consultório de Copacabana de
manhã bem cedo.
Nestas longas conversas, lembra frei Betto, um e ou-
tro se revelavam sem qualquer censura, estando escuta
psicanalítica e confissão emboladas e sintetizadas pela
cumplicidade que, segundo o religioso, permitia a reali-
zação de uma espécie de análise mútua. Os contatos com
frei Betto e com a religião iriam se tornar mais estreitos
com a idéia deste último de organizar grupos de oração
na casa de amigos.
— Era disso que eu precisava — comemorou Hélio ao
ouvir a idéia.
Psicanalistas como João Batista Ferreira, que deixara
de ser padre, Carlos Alberto Barreto e Fábio Lacombe
participavam destes encontros — que, aliás, continuam
até hoje em dois grupos batizados de Hélio Pellegrino e
Pedro Pellegrino (morto, aos. 45 anos, em 1996). Cada
vez mais Hélio se enfronhava — como o provam diversos
dos artigos publicados em A burrice do demônio, coletã-
nea que ele organizou e que acabou sendo publicada
pouco depois de sua morte — nas conexões entre marxis-
mo, religiosidade e psicanálise.
Levando, como sempre, até as últimas consequências
suas convicções, Hélio passou a participar, duas vezes
por ano, de retiros espirituais coordenados por frei Betto.
A idéia era reunir amigos num fim de semana para orar e
discutir temas relacionados com a espiritualidade. Alguns
destes encontros aconteceram em Angra dos Reis, numa

108
casa de praia de Maria Urbana, com quem Hélio reatava
no início dos anos 80.
A única restrição imposta aos participantes do encon-
tro era não consumir bebida alcoólica, menos por exigên-
cia moral do que como forma de não transformar o en-
contro numa reunião social como outra qualquer. Alguém
selecionava um texto que dissesse respeito à espiritualida-
de -- podendo ser de origem budista ou hinduísta, sem
restrições — que era discutido por todos. As pausas para O
almoço eram de pura comunhão, com frei Betto cozinhando
e tendo Hélio como um inusitado ajudante. Ao final do
encontro, conta frei Betto, o grupo celebrava a palavra
com a partilha do vinho e do pão.
Num destes almoços, contemplando o mar de Angra,
Hélio pareceu subitamente iluminado e levou os amigos
às lágrimas com uma de suas louvações à natureza.
— Mas tudo é tão simples. Tão simples — dizia ele,
apontando a paisagem, olhos cheios d'água.
As reuniões celebradas em torno da religião resulta-
ram na criação do grupo MIRE — Mística e Revolução,
justamente com o objetivo de articular transformação es-
piritual e social. Como expusera de diversas formas em
seus artigos, Hélio defendia que a religião só pode ser
considerada alienação quando separada da experiência
material: “Não existe, para o ser humano, espiritualida-
de descarnada — ou etérea. Se isto fosse possível, Deus
teria salvo o homem por decreto, e não mandaria seu
Filho ao mundo para ser, entre nós, uma plena — e es-
plêndida — prática do divino”, escrevia. O acesso ao
espiritual seria, portanto, o contrário perfeito das altu-
ras idealizadas, estaria ao alcance das mãos para quem
soubesse ver.
-— Para o PT ser perfeito só falta incluir no estatuto a
ressurreição da carne, aí está a verdadeira revolução —
dizia Hélio em seus comícios particulares, defendendo
uma idéia muito presente nos seus últimos anos, o do
renascimento aqui e já.

109
“Cá estamos, marxistas e cristãos, embarcados numa
mesma — e prodigiosa — viagem cósmica, irmãos e vizi-
nhos no sofrimento, na perplexidade e na esperança”,
defendia Hélio. “E, mais do que tudo: nos defrontamos
com um mundo dilacerado pela injustiça e corrompido
pela iniquidade, que é preciso modificar a qualquer pre-
ço. Diante da fome, da miséria, da doença, do desempre-
go, da opressão e da violência, não faz sentido dividir
forças, ou semear a discórdia, em nome de uma discus-
são, posta em termos formais ou farisaicos, sobre a exis-
tência — ou a inexistência — de Deus.”
Em novembro de 1985, nos termos da política de rea-
proximação de Cuba com o Brasil, Hélio Pellegrino em-
barcou com frei Betto e o sociólogo Emir Sader para
Havana. Fidel e a religião, coletânea de entrevistas de
Betto com o líder cubano, acabara de ser lançada com
uma tiragem de 50 mil exemplares. Hélio, lembra o reli-
gioso, fazia impassível seus discursos diante de ouvintes
rigorosamente ateus: S
— Deus habita o coração da matéria!
Hospedados numa das casas' de protocolo — mansões
que a Revolução desapropriou das elites na Cuba de
Batista — Hélio e frei Betto cumpriram uma intensa pro-
gramação. Emir Sader lembra do psicanalista, em pran-
tos, emocionado, ao visitar um manicômio em Havana.
— Aqui eles são tratados como verdadeiros seres hu-
manos — repetia Hélio.
Menos emocionado e infinitamente mais inusitado foi
o encontro entre Hélio e Gabriel García Márquez, que
então dava os últimos retoques em O amor nos tempos
do cólera e também fora a Cuba para um reunião de
intelectuais com o líder cubano. Durante horas, ambos
travam um diálogo inacreditável, transcrito por a Betto
em O paraíso perdido:
— Os homens se dividem entre os que cagam bem e
os que cagam mal — disse Gabo, confessando-se estar
incluído entre os segundos e ter inveja dos primeiros.

110
— É isso mesmo — animou-se Hélio, que não iria per-
der a chance de criar uma tese. — O sujeito, ao sentar na
privada, entra em contato com aquilo que é mais abjeto
em sua intimidade, a excrescência repelida pelo organis-
mo e seu odor fétido. Há quem retenha as fezes como se
temesse perder parte de si mesmo. Neste caso, o sujeito
caga como quem sofre uma cirurgia, sofrendo que as
vísceras lhe escapem por baixo.
— Eu gostaria de cagar na hora certa, como os euro-
peus que se levantam da mesa do café e se dirigem à
privada — diz o escritor.
— Alguém deveria fazer um estudo comparativo sobre
a consistência do cocô. Há bostas piramidais, como as
dos bois, bostas compridas como as dos cães, bostas agua-
das e disformes, como quem está sempre de caganeira —
prossegue Hélio numa conversa infindável.
Os reflexos da viagem à Cuba são facilmente reco-
nhecíveis em suas crônicas. As condições de vida no país,
tornam-se para ele, um obsessivo leitmotiv ao falar sobre
as possibilidades reais do socialismo. Na última crônica
que escreveu para o Jornal do Brasil, publicada menos
de 15 dias antes de sua morte, ele passava em revista a
luta comum que, a seu ver, unia socialistas e cristãos. E
conclui, com irreverência e gravidade completamente
misturados:
“A matéria é portadora do sagrado, e a reverência às
suas formidáveis energias não ofende a divindade nem a
renega — necessariamente. Marx, materialista e ateu, pelo
esforço de sua vida — e de sua obra -, a serviço dos
pobres, está mais próximo à verdade cristã do que, supo-
nhamos, o ex-ministro Aníbal Teixeira, católico pratican-
te e confesso, mas dado a práticas perfeitamente
inconfessáveis.”

11
Lya

— Hélio Pellegrino, queria te apresentar a Lya Luft, que


não te conhecia pessoalmente.
Sem o saber, Nélida Pihon mudava radicalmente o
rumo das vidas do psicanalista e da escritora gaúcha ao
aproximá-los naquela noite de abril, em 1985, no saguão
do teatro Sérgio Porto, em São Paulo. Lya — que havia
estreado na ficção cinco anos antes com As parceirase já
publicara três outros romances, A asa esquerda do anjo,
Reunião de família e O quarto fechado — estava entre os
750 nomes de todo o Brasil que se reuniram em São
Paulo, às vésperas da morte de Tancredo Neves, para o
2º Congresso de Escritores, organizado pela União Brasi-
leira de Escritores para rediscutir o papel da classe diante
da chamada Nova República.
Hélio dizia que não tinha nada que fazer lá, pois não
se considerava escritor, mas estava fazendo puro charme.
No 1º Congresso, realizado no Teatro Municipal de São
Paulo, ele era um dos jovens (21 anos) e exaltados escri-
tores mineiros que se uniram a um evento que represen-
tou um duro golpe para o governo Vargas. Ele disse para
Lya que só estava lá acompanhando Fernando Sabino,
com quem conversava quando conheceu a escritora.
Quando ficou a sós com Hélio, foi Lya quem puxou as-
sunto:

112
— Como está o Fernando? — perguntou ela, que já co-
nhecia o autor de O grande mentecapto, Otto Lara Resende
e Paulo Mendes Campos. Mas Hélio, só de nome.
— O Fernando está muito triste, muito abalado — co-
mentou Hélio, sobre o estado do mais antigo dos ami-
gos, que dez dias antes perdera a filha Virginia num aci-
dente de carro. — Mas de morte você entende. Por causa
de seus romances.
— Não fala assim que eu me sinto uma verdadeira dama
negra — brincou ela, ao mesmo tempo surpresa com o
fato de ter Hélio entre seus leitores.
Aquela conversa casual, que se repetiu aqui e ali nos
dias seguintes do Congresso, detonaria uma paixão mu-
tuamente avassaladora, que mudaria em muito a vida de
Hélio em seus últimos 27 meses. A aproximação, no en-
tanto, foi gradual. Em crise no seu casamento com o
filólogo Celso Pedro Luft, Lya pretendia dividir seu tem-
po entre Porto Alegre, onde morava com o marido e os
três filhos, e o Rio, interessada que estava em submeter
sinopses à Casa de Criação Janete Clair, centro de tele-
dramaturgia então criado pela TV Globo. Na primeira
destas viagens depois do Congresso, trouxe um exem-
plar de A asa esquerda do anjo, único romance que Hé-
lio não havia lido. Ele mandou um office-boy pegar o
livro no Hotel Praia Ipanema, onde ela até hoje se hos-
peda. Seguiram-se telefonemas, muitos e longuíssimos,
até que, tendo terminado definitivamente o casamento
com Celso Pedro Luft, Lya veio para o Rio e começou a
namorar Hélio, que, então, se separava, pela segunda
vez, de Maria Urbana.
A idéia dos dois era ir tornando o namoro público
lentamente, para que os dez filhos que os dois tinham
juntos e os respectivos “exs” fossem se acostumando com
a idéia. Lya passou a morar no Praia Ipanema mas, depri-
mida por estar longe da cidade onde vive até hoje e dos
filhos, acabou precipitando o novo casamento, mudan-
do-se para o apartamento da Senador Simonsen.

113
— Alemoa, você me conheceu na minha melhor fase,
porque quando eu era mais novo você iria me odiar,
você iria me desprezar — dizia um Hélio bem diferente
do que se conhecia, menos na mania de inventar apeli-
dos para quem quer que fosse.
Por diferente entenda-se um Hélio que procurava con-
trolar-se em suas explosões, que refreava sua compulsão
à sedução, que, enfim, gostava de repetir que estava
mudado. Em Lya ele encontrara alguém que não aceitava
com naturalidade suas idiossincrasias ou ataques de fúria
— tendo assistido, perplexa, a ele destruir um telefone
quando não dava linha. Alguém que começou a chorar
quando ele andava pela casa gritando.
— Por que você está chorando? — perguntava ele, em
altos brados.
— Porque você está gritando comigo.
— Eu não estou gritando com você! — reclamava ele,
um tom ainda acima.
— Hélio, ninguém grita comigo — cortou ela, tentando
controlar-se.
No dia seguinte, a casa estava coberta de rosas como
um pedido de desculpas para uma cena que jamais se
repetiu. O que se repetiam, isto sim, eram os bilhetinhos
colados com durex em portas, mesas ou na geladeira e
as declarações de amor a todo momento.
— Eu quero me casar com você — dizia ele.
— Mas eu não posso, sou desquitada — explicava.
— Nós temos que casar. Com você eu quero cumprir
todos os rituais — afirmava ele, em mais uma manifesta-
ção da ambigúidade entre ruptura e tradição que marcou
sua vida.
No fim da vida, os paradoxos e ambiguidades, ex-
plodiam como nunca. Persistia ainda o total descaso com
o conforto material. Hélio, que gostava de dirigir, pilo-
tava pelas ruas do Rio de Janeiro um Fiat 147 vermelho,
literalmente caindo aos pedaços. Quando começou a
namorar Lya, mandou tapar os buracos de ferrugem nas

114
portas e gostava de contar o suposto diálogo com o
lanterneiro:
— O senhor ajeita aí que eu agora estou com uma
Alemoa meio grã-fina e isso não fica bem.
Exatamente como uma criança, ficava maravilhado ao
pegar carona com amigos que tinham ar-condicionado
no carro. Lya dava força, mas ele se recusava a largar o
velho Fiat.
— Se eu acredito em justiça social, não posso ter um
carrão. Quem é do PT não pode ter um carrão assim —
afirmava.
Além de trocar de carro — por um Passat, igualmente
velho — depois que foi morar com Lya, Hélio passou a
visitar Belo Horizonte com frequência muito maior. Ele
estava empenhadíssimo em mostrar a ela os lugares em
que passou a juventude, rememorar detalhes de seu pas-
sado. Nestas viagens — em geral feitas no carro “novo” e
com escalas em Ouro Preto — era obrigatória uma visita à
dona Assunta Magaldi Pellegrino. Hélio mantinha com a
mãe conversas longas e completamente alucinadas, tan-
to por seu raciocínio tortuoso como por conta de uma
esclerose que se insinuava em dona Assunta.
— Filho, agora toma juízo, não fica trocando de mu-
lher, você já está de cabelinho branco — dizia ela, seriíssi-
ma, olhando para Hélio numa festa de Natal.
— Não, mãe, essa é a última — garantia ele.
— É, vamos ver se no Natal do ano que vem ainda vai
ser a mesma a estar sentada aqui ao meu lado!
Como numa reavaliação lenta e minuciosa de sua vida,
compulsivo que era, Hélio costumava repetir nestas via-
gens:
— Uma das poucas coisas de que me orgulho é que, se
eu hoje encontrasse o Hélio Pellegrino que eu fui nesta
cidade aos 18 anos eu apertaria a mão dele e não teria
nada do que me envergonhar.
Hoje, Lya acha que no fundo ambos tinham consciên-
cia de que lhes restava pouco tempo. Principalmente por

115
esta necessidade de Hélio em voltar ao passado, em re-
passar minuciosamente os episódios mais banais de sua
vida. E em relativizar a grande importância que dava às
relações intelectuais para investir mais e mais nas rela-
ções puramente afetivas.
— Você é minha chegada — dizia sempre para Lya um
Hélio que já evitava ir a reuniões políticas com a mesma
assiduidade de antes e que detestava quando ela ia a
Porto Alegre ver os filhos e o deixava sozinho.
Para os amigos, que recebiam com uma certa estranhe-
za a mudança de comportamento de Hélio, ele gostava de
dizer que ele e Lya formavam um casal CCC, brincando .
com a sigla do temido Comando de Caça aos Comunistas
para dizer que eram Cama, Cabeça e Comida. Foi aliás em
Teresópolis, com um casal que gostava de assumir para si
a condição de CCC, Luiz Vianna e Helena Besserman, que
Hélio e Lya passaram seu último fim de semana.
A banalidade de um fim de semana de folga assumia,
na vida de Hélio, a condição de evento de exceção. Lya
lutava para que ele diminuísse o ritmo das sessões e cui-
dasse melhor da saúde. Férias eram inadmissíveis para
alguém que se sentia comprometido de forma integral
com seus clientes. Mesmo sofrendo de uma gastrite
fortíssima, ele passava os dias sustentado a cafezinhos e
jamais almoçava durante a semana.
Na sexta-feira, 18 de março de 1988, Hélio e Lya pe-
garam a estrada e foram para a casa de campo de Luiz e
Helena. A idéia era dedicar o fim de semana a conversar
fiado, beber e comer, pois já estava frio demais para ba-
nhos de piscina. Na manhã de sábado, Hélio sugeriu um
passeio pelo Parque Nacional de Teresópolis. Com Luiz,
que era médico, havia conversado um pouco sobre seus
problemas cardíacos, mas passou a manhã caminhando,
bem disposto, como sempre abismado coma perfeição e
o mistério da natureza.
Depois não saíram mais de casa. E nem precisavam.
Luiz havia providenciado bons vinhos e boa comida —

116
escargots, inclusive. Para surpreender o amigo, o dono
da casa havia separado um velho disco de músicas italia-
nas. Botou uma faixa especial e, quando percebeu, Hélio
cantava aquela melodia em português:
— Mas isso é “Oh, Minas Gerais!” — admirou-se Hélio.
Rindo muito, Luiz explicou a verdadeira origem, ita-
liana, da valsa que virou hino dos mineiros mais empe-
dernidos.
— Agora entendi tudo! — exultou Hélio, vendo fechar
num ciclo sua mineirice italianada.
Quando se olha para trás, tudo parece se transfor-
mar em sinais do que estaria por vir. Mas é fato que, em
seus últimos dias, Hélio Pellegrino estava mergulhando
cada vez mais em Hélio Pellegrino — o que, diga-se de
* passagem, jamais seria sinônimo de uma imersão pacífi-
ca no passado. Como na Belo Horizonte da mocidade,
ligava muitas e muitas vezes por dia para Maria Urbana.
Precisava falar, queria vê-la, conversar. E, exatos onze
dias antes de morrer, deixou perplexos frei Betto e os
amigos Ricardo Gontijo, Rita Luz e Hildebrando Pon-
tes: i
— Betto, quero que você me indique um-padre, eu
quero fazer uma confissão geral
— Medo de morrer? — perguntaram.
— Não, com a morte já acertei os meus ponteiros. Meu
problema é com Deus. Não quero comparecer diante dele
sem intermediário. Mineiro sempre prefere um pistolão —
brincou ele, arrematando, sério: — Confessar-me a um
sacerdote é a minha verdade como cristão.
Entre brincadeiras e uma conversa que só teria com
os amigos mais íntimos, a noite terminou com Betto fa-
zendo-lhe ver que, apesar de os setores progressistas da
Igreja rejeitarem tal prática, era inútil querer ignorar von-
tade tão espontânea, tão legítima. Ninguém ficou saben-
do se a confissão foi feita, mas as intuições — um dos
nomes possíveis para estes sinais que se reconhecem em
retrospecto — prosseguiram depois de Hélio e Lya terem

117
chegado em casa de Teresópolis, na noite do domingo,
dia 20 de março de 1988.
Ao contrário do que acontecia sempre, Hélio não fora
dormir junto com Lya. Ficou um bom tempo entre a sala
e o escritório.
— O que você estava fazendo? — perguntou Lya quan-
do finalmente ele foi para o quarto.
— Eu estava fazendo o balanço da minha vida, minha
contabilidade interior — respondeu ele.
Antes do dia amanhecer, Hélio acordou, agitado. E
contou para Lya um pesadelo:
— Sonhei que estavam me matando.
Na manhã de segunda-feira, a gastrite crônica parecia
ter piorado. Hélio brincava: — “Não adianta arregalar esse
olho porque não vou morrer agora”, dizia para Lya — mas
resolveu chamar o médico Mauro Muniz de Freitas, que
o tratara já no primeiro enfarte e conhecia bem seu qua-
dro clínico. Em poucas horas, depois de um eletrocar-
diograma feito em casa, Hélio se recusava a entrar numa
ambulância que o esperava:
— Ali eu não entro nem a tiro — disse ele.
No Instituto Brasileiro de Cardiologia também recu-
sou-se a ir para UTI. Conhecendo seu cliente, o médico
decidiu montar a unidade de tratamento intensivo num.
quarto comum. No dia seguinte, era um Hélio abatido
que ouvia do médico que o enfarto não fora tão grave,
mas que ele deveria ficar no hospital por uma semana.
Na terça-feira, ele passou o dia recebendo umas poucas
visitas e, já na madrugada de quarta, Lya foi despertada:
— Lya! — chamou Hélio e ela até hoje se emociona ao
lembrar um rosto que parecia feliz, sorridente, antes de
revirar os olhos e ter algumas convulsões.
Lya também não consegue até hoje explicar sua rea-
ção, mas antes que os enfermeiros a retirassem do quarto
e constatassem que não havia mais nada a fazer, só pôde
dizer uma frase que lhe soou despropositada:
— Vai Hélio, vai pra luz.

118
Só a ressurreição da carne me sustenta. É ela que
constitui a última utopia humana, o projeto essencial
ao qual se referem e se alimentam todos os projetos.
Só consigo justificar-me, enquanto pessoa, se pas-
so a apoiar-me no esplendor de uma plenitude mai-
or do que a morte. Morte é passagem, é nascimento,
é ruptura catastrófica da forma, é imersão no tempo
e na fuga vertical que o constitui.
A ressurreição da carne nos devolve a onipotên-
cia primitiva, o eu-ideal que restaura a plenitude
cósmica anterior ao nascimento: corte, protocastra-
ção aterradora, mergulho no caos, irrupção da mor-
te na raiz da carne do homem.
O eu-ideal é forte como o Sol, sem morte. Viver é
tentar encontrar os caminhos que nos levem a ele.
As utopias são as fontes de todos os caminhos,
projetados no PORVIR.

Hélio Pellegrino

119
Ei da ado ri 40d
a Di
Bibliografia

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CASTELLO, José. Vinicius de Moraes — O poeta da paixão. São
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121
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WAINER, Samuel. Minha razão de viver. Rio de Janeiro: Record,
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WERNECK, Humberto. O desatino da rapaziada. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1992

Depoimentos Jornais e Revistas

Frei Betto Correio da Manhã


Carlos Alberto Barreto Flan
Chaim Samuel Katz O Globo
Dora Pellegrino Jornal do Brasil
Francisco Antonio Dória Veja
Helena Besserman Vianna Isto é
Joel Silveira
Lya Luft
Maria Clara Pellegrino
Maria Urbana Pentagna Guimarães
Sarah de Castro Barbosa
Wilson Figueiredo
Zuenir Ventura

122
A Papéis Mil e Um forneceu o
papel Pólen Bold 90 gramas/m? e o
Cartão Supremo 250 gramas/m?
usados no miolo e na capa deste livro.
Impresso por Imprinta Gráfica na
primeira quinzena de setembro de 1998.
, pd, o' apso
o

pa tpi

et é nie
PauLo ROBERTO PIRES nasceu no
Rio de Janeiro, em 1967.
É jornalista, professor da Escola
de Comunicação da UFRJ e
tradutor. Escreve sobre literatura
no jornal O Globo e organizou a
terceira edição, revista e ampliada,
da obra de Torquato Neto.

Capa: Victor Burton


“Se, nos limites exíguos deste
Perfil, não é possível dar conta
de qualquer vida de forma plena,
não seria diferente com um
personagem que, como poucos,
mereceria o adjetivo larger than
life, maior do que a própria vida.
O que se segue é uma crônica,
dentre muitas outras possíveis e
certamente ainda por escrever,
dos encontros marcados de Hélio
Pellegrino com os amores, a
psicanálise, a política, a poesia, a
revolta, a indignação, a paixão.
Com Deus, acrescentaria ele.”

PauLo ROBERTO PIRES

“Quando você faz 20 anos está


de manhã olhando o sol do meio
dia. Aos 60 são seis e meta da
tarde e você olha a boca da
noite. Mas a noite também tem
seus direitos. Esses 60 anos
valeram a pena. Investi na
amizade, no capital erótico, e
não me arrependo. A salvação
está em você se dar, se aplicar
aos outros. À única coisa não
perdoável é não fazer. É preciso
vencer esse encaramujamento
narcísico, essa tendência à
uteração, ao suicídio. Ser
curioso. Você só se conhece .
conhecendo o mundo. Somos um
fio nesse imenso tapete cósmico. -
O)
“Mas haja saco!” É q
a
-—
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“HéLiO PELLEGRINO pe)
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