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Ponte da Misarela

A cerca de um quilómetro da sua foz no rio Cávado, ligando as freguesias


de Ruivães e Campos, no município de Vieira do Minho, e Ferral, no
município de Montalegre, o vigor da natureza é quebrado pela secular
Ponte da Misarela que se eleva a mais de 15 metros sobre o leito do rio
Rabagão. A vegetação densa, as cascatas vertiginosas, as numerosas
marmitas de gigante e as imponentes formações rochosas moldadas pela
força da água que corre até ao Cávado, apresentam uma paisagem natural
de cortar a respiração.
Edificada na Idade Media, no fundo de um desfiladeiro mas em completa
sintonia com a natureza envolvente, a Ponte da Misarela exibe um arco
com mais de 10 metros solidamente alicerçado nas escarpas graníticas. De
estimado valor patrimonial, esta obra arquitetónica arrojada está
classificada como Imóvel de Interesse Público desde 1958.
Este monumento está ligado a várias crenças pagãs e lendas centenárias que
têm sobrevivido a passagem do tempo.
Popularmente conhecida como “Ponte do Diabo”, esta construção está
associada a uma lenda que afirmava ter sido erguida pelo diabo. Em tempos
muito antigos, diz a narrativa, um criminoso em fuga, perseguido pelas
autoridades, ao chegar à margem do rio Rabagão, desesperado, invocou o
diabo, pedindo-lhe ajuda para transpor o rio e passar a salvo para a outra
margem. Como contrapartida, o criminoso terá oferecido a própria alma ao
diabo. Ora, um antigo e popular ditado afirma que, tendo oportunidade, “ o
diabo pega com visco”. Aceitando o facto, o mafarrico fez aparecer uma
ponte, ordenando ao criminoso que a atravessasse sem olhar para trás.
Chegado à outra margem do rio, o diabo fez desaparecer a ponte, ajudando
o criminoso a escapar às autoridades.
Passados alguns anos, em certo dia a morte bateu à porta do antigo
criminoso, agora moribundo, anunciando-lhe: “Venho-te buscar, ó alma do
diabo”. Dizendo-se arrependido, o aterrorizado homem pediu ajuda,
mandando chamar um padre com fama de santo para lhe dar os últimos
sacramentos e quebrar o velho pacto com o diabo. Informado da súplica, o
zeloso padre, depois de meter o ritual cristão no bolso e a água benta no
hissope, monta a cavalo e sai velozmente em auxílio do arrependido. No
entanto, ao chegar à margem do rio constata que não havia passagem no
local onde o diabo, em tempos, teria feito figurar uma ponte.
Preocupado perante a dificuldade mas com pressa em cumprir a missão de
que ia imbuído, o diligente padre, erguendo os braços ao alto e olhando
para o céu escuro, pede ajuda divina e profere: “ Por Deus das águas puras
do Rabagão ou pelo diabo das pedras negras, apareça aqui uma ponte de
pedra”. Nisto, avista a escura silhueta do diabo na outra margem e,
destemido, pergunta: “És tu, Satanás?”. Não obtendo resposta, o padre,
ganhando nova coragem, sem hesitar, vocifera: “Vade retro!”. De seguida,
pegando no hissope, aspergiu em direção à outra margem a água benta que
trazia consigo e, quase de imediato, vê surgir uma ponte em arco assente
nas enormes rochas das margens, materializando a curva formada pela água
sagrada lançada sobre o rio. Ao vislumbrar tamanho feito, o humilde padre
faz o sinal da cruz e pronuncia as palavras do exorcismo ao mesmo tempo
que vai ouvindo os rugidos bestiais de Lúcifer. A negritude atmosférica é
invadida por um enorme cheiro a enxofre que paira no ar e, nisto, o padre
ouve um grande estrondo no fundo das águas do Rabagão. Mais aliviado,
em direção às águas profundas, grita: “ Arrebenta tu diabo, que esta alma
não é tua”.
Após agradecer o milagre, seguiu caminho e socorreu com êxito o
moribundo arrependido. Desde então, a Ponte da Misarela ficou com a
fama de ponte mágica, ponte do diabo ou ponte da virtude.
De acordo com o Pe. José Carlos Alves Vieira, “Esta villa era atravessada
por uma via romana que, passando pela Misarella, local onde existe uma
ponte da mesma construção, levava a Braga. Na Misarella, limites d’esta
freguesia de Ruivães, existe uma rocha a que a acção das aguas imprimiu
a fórma de pulpito, conhecido entre o vulgo pelo designativo de púlpito do
diabo. O povo, sempre disposto e affecto a preconceitos, tem a conficção
de que o demónio préga al i á meia noite.
Tambem é crença geral que, quando as mulheres soffrem abortos
consecutivos, se evitam estes baptisando os filhos no ventre da mãe,
durante o periodo da gravidez.
Baptismo consisteno seguinte: A futura futura mãe, ás primeiras horas da
madrugada, ocupa a extremidade da ponte que fica do lado do logar em
que habita; ahi espera qualquer viandante que passe, em sentido
contrario. Este vae colher agua ao rio que em baixo corre e, fazendo uma
cruz com a mão direita, procede ao baptismo do feto germinativo e fica
sendo seu padrinho” e proferiam a seguinte lengalenga:
Eu te baptizo pelo poder de Deus
e da Virgem Maria!
Padre-Nosso e Avé-Maria!
Se fores meninha (menina)
Serás Senhorinha;
Se fores rapaz
Serás Gervás (Gervásio).

No Carnaval celebra-se o entrudo que junta os habitantes das duas margens


do rio Rabagão, de Ruivães (Vieira do Minho) e Ferral (Montalegre), onde
se recriam as lendas da ponte.
Para além do postal turístico aqui apresentado, devemos relembrar que a
Ponte da Misarela foi testemunho de um marco importante da História de
Portugal, pois foi palco de um combate sangrento entre o exército de
Napoleão e as tropas luso-britânicas aquando da II Invasão Francesa.
Em maio de 1809, o exército de Soult, instalado no Porto e sob uma
ameaça de ataque iminente por parte das tropas aliadas lideradas pelo
General Wellesley, decide abandonar a cidade e fugir em direção a
Espanha, levando apenas os seus homens, alguns animais e o essencial à
sua sobrevivência. Com os principais itinerários cortados de forma a barrar
a marcha das tropas francesas, Soult opta pelos caminhos sinuosos da Serra
da Cabreira para chegar a Montalegre. A 15 de maio, os invasores entram
em Salamonde e a 16 são acossados na Ponte da Misarela, lugar onde
muitos soldados franceses perderam a vida de forma trágica, tal como
descreve Carlos de Azeredo na sua obra “Aqui não passaram – O erro fatal
de Napoleão”: Ao ouvir-se na retaguarda o troar da artilharia e basta
fuzilaria, as tropas imobilizadas, sem poderem manobrar para se
defenderem, e sentindo-se completamente indefesas caíram no pânico.
Muitos homens, ainda na vereda, procuravam avançar a todo o custo
empurrando os camaradas da frente, atropelando-se uns aos outros (…)
na sua ânsia de escaparem de uma terrível situação, lançavam fora armas
e equipamento; os pobres animais famintos ou desferrados eram abatidos
ou atirados pelas ravinas, (…) muitos homens na ponte eram atirados ao
abismo pelo aperto e pela confusão.”
Desse facto há ecos no cancioneiro popular:
“Chorai meninas de França,
Chorai por vossos maridos,
Na ponte da Misarela
eram mais mortos que vivos!”
A ponte da Misarela e a sua envolvente natural são sem dúvida um local
mítico, mágico e histórico.

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