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CERS – BLOCKCHAIN PARA ADVOGADOS

BLOCKCHAIN PARA ADVOGADOS | PROF.º COURTNAY GUIMARAES JR.

Sumário
Disrupção exponencial – O case Blockchain ................................................................................. 3
CONVITE .................................................................................................................................... 3
VIVES EM TEMPOS INTERESSANTES.............................................................................................. 3
Tecnocracia. .............................................................................................................................. 3
Cypherpunks, cyberpunks, anarcocapitalistas, libertários e afins. ........................................... 3
Sociedade líquida, VUCA, etc. ................................................................................................... 4
PRICIPIO DE TRANSFORMAÇÃO AMPLA, PROFUNDA E DE ALTO IMPACTO ................................. 4
PRINCIPIOS GENERICOS......................................................................................................... 4
PSEUDONIMIDADE, Identidade seletiva ou anonimidade total............................................ 5
DESCENTRALIZAÇÃO, pares e peers ...................................................................................... 5
DISTRIBUIÇÃO TOTAL, garantias sólidas, mas abstratas (sem agente definido)................... 5
SISTEMA DE MERCADO, incentivos econômicos................................................................... 6
NOVO MODELO ECONÔMICO: Redes autônomas de criação de valor (cooperativas digitais, por
assim dizer)............................................................................................................................ 6
THERE´S NO BLOCKCHAIN, NEO. ................................................................................................... 6
O QUE É O BITCOIN ENTÃO? ..................................................................................................... 6
Por que OS BLOCKCHAINS e não A TECNOLOGIA BLOCKCHAIN ou O BLOCKCHAIN? ........... 7
A primeira coisa que o Blockchain NÃO É: uma tecnologia estabelecida. Por quê? ............ 7
SERVIÇOS COMPLEXOS.......................................................................................................... 8
É O BITCOIN, NÃO O BLOCKCHAIN ................................................................................................ 8
PORQUE É TÃO DIFÍCIL PENSAR EM CONSTRUIR UMA PLATAFORMA/REDE BLOCKCHAIN? ....... 9
PENSAMENTO CIENTÍFICO HOLÍSTICO E POLÍMATA (POLYMATH). .......................................... 9
ANTES, TUDO ERAM TREVAS – ATE A VERDADE: ...................................................................... 9
ELEMENTOS CONSTRUTORES: .................................................................................................. 9
Ciência da computação ......................................................................................................... 9
Criptografia.......................................................................................................................... 10
Redes de computadores...................................................................................................... 11
Mechanism design (teoria dos jogos) ................................................................................. 11
ANTI FRAGILIDADE, O ELEMENTO DE UNIÃO: ........................................................................ 13
PARA QUE A REDE VIVA, QUARTO ELEMENTOS HUMANOS:.................................................. 13
ECONOMIA .......................................................................................................................... 13
CERS – BLOCKCHAIN PARA ADVOGADOS

PSICOLOGIA GERAL ............................................................................................................. 13


SOCIOLOGIA ........................................................................................................................ 14
ANTROPOLOGIA .................................................................................................................. 14
JUNTANDO TUDO ................................................................................................................ 14
DESTINO FINAL: DOOCRACY, OU A REDE ONDE TODOS TEM DE FAZER................................. 15
RELIGIÕES SOBRE O MESMO TEMA ............................................................................................ 16
REDES AUTONOMAS (PUBLICAS) X REDES COORDENADAS (PERMISSIONADAS) ................... 16
AS QUATRO MANEIRAS DE SE VER O ‘BLOCKCHAIN” ............................................................. 16
1ª religião ................................................................................................................................ 16
2ª religião – DLTS (DISTRIBUTED LEDGERS TECNOLOGIES) .................................................... 17
3ª religião – CONSÓRCIOS DE INDÚSTRIAS ............................................................................. 18
4ª religião – EMPRESAS DE SERVIÇOS ..................................................................................... 18
O RESULTADO? ........................................................................................................................ 19
QUATRO RELIGIÕES, ALGUMAS BRIGAS ................................................................................. 19
- Libertários X o resto do mundo......................................................................................... 19
- Coiners X o resto do mundo.............................................................................................. 19
- BTC X o resto do mundo.................................................................................................... 19
UM PARADIGMA DOS NEGÓCIOS ........................................................................................... 19
MODELOS ECONÔMICOS ........................................................................................................ 20
O QUE FOI FEITO? ....................................................................................................................... 20
PEÇAS DE LEGO CONSTRUÍDAS AO LONGO DA HISTÓRIA ...................................................... 20
PARTES PRINCIPAIS — OS BLOCOS OU ELEMENTOS DE CONSTRUÇÃO. ................................. 21
As chaves de cifragem ......................................................................................................... 21
Árvore de dados encriptados .............................................................................................. 21
Peer to peer network (usando o gossip protocol) .............................................................. 22
O servidor (ou full node). .................................................................................................... 23
Protocolo de consenso ........................................................................................................ 23
QUANTAS “CONFIGURAÇÕES BÁSICAS” EXISTEM?................................................................. 24
HISTÓRIA E TENTATIVAS.......................................................................................................... 24
FINALMENTE, O MITO NASCE: BITCOIN!......................................Erro! Indicador não definido.
A COMPLEXA CIÊNCIA DA TAXONOMIA – DATPS ??? ................................................................. 25
PRIMEIRA GERAÇÃO .....................................................................Erro! Indicador não definido.
SEGUNDA GERAÇÃO – TRANSAÇÕES COM CODIGOS COMPUTACIONAISErro! Indicador não
definido.
REFERENCIAS E NOTAS ............................................................................................................ 78
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Disrupção exponencial – O case Blockchain

CONVITE
Este é um convite ao leitor para uma jornada rumo a um entendimento diferente do fenômeno que
se convencionou chamar Blockchain, uma potencial alavanca numa revolução maior, a tecnologia,
que viemos nesses temos de século 21.
Muitas destas coisas não são alinhadas ao atual senso comum (a começar pelo termo Blockchain),
são o fruto de intensas entrevistas, pesquisas, leituras e viagens ao redor do mundo, dialogando com
os precursores, engenheiros, juristas e arquitetos destas mudanças.
De posse desta visão ampliada, espera-se que legisladores, entidades de supervisão, entidades do
sistema jurídico, poder executivo e a sociedade civil organizada sobre os usos, impactos, mudanças
e benefícios destas tecnologias no dia a dia das pessoas.

VIVES EM TEMPOS INTERESSANTES

”An invention has to make sense in the world in which it is finished, not the world in which it is
started.”

— Ray Kurzweil
Antes de aprofundar na jornada propriamente dita, temos de situar em qual “espírito do tempo” ela
se desenrola, e por tempo, analiso parte da minha própria vida, uma era de inovações em ritmo
exponencial e os atuais tempos (últimos 5 anos, que parecem uma eternidade em termos de eventos
transformadores). Vejamos:
Tecnocracia.
Num primeiro aspecto, me remeto ao pensamento de Jose Ortega y Gaset i, em seu clássico “A
Rebelião das Massas”, onde ele já discutia as implicações do que hoje corriqueiramente chamamos
de tecnocracia (tecnólogos e engenheiros provocam as mudanças drásticas no mundo antes de as
avaliarem.
Desta forma, uma parte das implicações corriqueiras do nosso existir passam a ser abaladas por esse
espírito que as soluções tecnológicas vão curar todas as mazelas da humanidade. Talvez por isso,
tantas coisas intrigantes e de explicação complexa ganhem resistência (neste momento, automação
e inteligência artificial despertam esses temores.
Cypherpunks, cyberpunks, anarco-capitalistas, libertários e afins.
No escopo de nossas discussões, a primeira parte extremamente importante do arcabouço
motivacional e até uma manifestação assertiva de cunho político, um ato de contestação. Este
arcabouço começou a se tornar claro em 1983, com a publicação do manifesto CypherPunk, do Eric
Hughes ii.
Outros gênios (cientistas formais ou não), já haviam manifestado intrigantes pontos de vista, seja no
Neuromancer de William Gibsoniii, seja nos manifestos CYBER punksiv ou nos manifestos mais
anarquistas da comunidade hacker v, passando por correntes historicamente estruturadas como a
escola austríaca de economiavi, e pensadores como Noam Chomsky, o fato é que essa corrente de
pensamento com ares revolucionários (pendentes ao capitalismo) é a mentalidade que voga: Contra
governo, contra “o sistema”. Até os extremos dos anarco-capitalistasvii.
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A grande motivação são os temas de economia, guerras, teorias da conspiração e principalmente o


aumento do débito global. E este pessoal impregnou toda uma geração de gênios equipados com o
melhor para fazer uma revolução tecnológica.
Recomendo dar uma lida nos liks, muito pano pra manga, mas neste capitulo, apenas pano de fundo.
Sociedade líquida, VUCA, etc.
Todos lemos Baumannviii e sua liquidez, mas além deste novo modelo (que casa bem com o dos
libertários acima), o impacto do primeiro zeitgeist é mais real.
Desde os primeiros esperneios de Jeron Lanierix até Nick Carr apelando para a tábula rasa dos
pensamentos modernosx, uma parte dos intelectuais se queixa que estamos avassalados por
tecnologias que nos tornam cada dia mais idiotizados.
Nem tanto ao mar, nem tanto a terra, o fato é que precisamos de novas lentes para entender que
estamos sendo abalroados por mais inovações do que temos tempo de absorver, seja como
sociedade, seja como indivíduos, que dirá mensurar o impacto delas nas nossas vidas cotidianas e
organizações.
Frank Diana, um dos meus futuristas preferidos, afirma que precisamos de novas lentes para
enxergarxi a realidade e quiçá desenhar um ponto de chegada num futuro não muito distante (ou
seja, navegar entre a incerteza e um direcionamento, ao menos).
Tudo isso nos leva a uma sensação frenética que se denominou VUCA ou em português VICA
(Volatilidade, Incertezas, Complexidade e Ambiguidade)xii.

PRICIPIO DE TRANSFORMAÇÃO AMPLA, PROFUNDA E DE ALTO IMPACTO

Neste caldeirão cultural, social, econômico, político e geopolítico, um grupo de radicais tecnológicos,
desde os anos 80, idealiza uma rebelião contra o sistema, alimentados por ideologias fortíssimas de
ausência de controles e aparelhados por aparatos tecnológicos cada dia mais poderosos. Ao final
dos anos 80, com o advento da internet e a popularização em massa da computação, um sonho
começou a ser definido.

Redes globais, soberanas em si mesmas, à margem de todo e qualquer controle governamental,


onde indivíduos pudessem existir como são, livres e senhores de si.

Durante os anos 90, foram vistos como um micronicho de um nicho, os mega nerds. Durante os
primeiros anos do século, por conta da popularidade da internet, como gestores de segurança, os
hackers. Finalmente, de 2010 em diante, começaram a materializar suas ideias. Para tanto, seguiram
vários princípios filosóficos de design das suas soluções tecnológicas.

PRINCIPIOS GENERICOS.

Tendo em mente os aspectos anteriores, pensando em libertários e anti-governo, essas pessoas


brilhantes partiram em busca do seu novo modelo de vida. Como princípios norteadores, dentre
muitos outros, focaram em:
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PSEUDONIMIDADE, Identidade seletiva ou anonimidade total.

Desde Zimmermannxiii que os cypherpunks queriam algo privado, ao máximo. Mas aceitariam
pseudonimidade, tendo em vista que eram um grupo muito pequeno e reservado.

Por este motivo, desde os primórdios se lidava com formas de pseudonimizar não apenas as
comunicações (cada hacker tinha um codinome) mas interações com sistemas, com plataformas,
com coisas e se possível, com dinheiro. O advento da popularidade do esquema de chaves
públicas/privadasxiv utilizada no PGP tornou as coisas mais fáceis (Falaremos delas em detalhes mais
adiante).

Registros de identidade (o que hoje chamamos de “know your customer”, ou KYC), nem pensar. E se
possível, eliminar rastros de “posse” de ativos digitais, idem.

DESCENTRALIZAÇÃO, pares e peers

Outra coisa que incomodava os hackers, desde os primórdios: Tecnologias estavam ainda atreladas
a lugares físicos, uma vez que os computadores nos anos 80 ainda eram grandes. “usar um serviço”
muitas vezes significava “estar fisicamente em um edifício”. Isso se transpôs para o raciocínio com
servidores. “Os servidores de email da faculdade” ficavam na... Faculdade. Por essas e outras,
começaram a se pensar em serviços independentes de localidades. A internet, como construída, foi
uma das primeiras vitórias, mas não era suficiente.

Com o advento do HTTP, by sir Tim Berners Lee, uma nova possibilidade surgiu: a de serviços ponto
a ponto, com redes no formato mesh, ou com replicações dos seus serviços principais. E dentre as
mais diversas aplicações, uma chamou a atenção de todos os hackers libertários: compartilhamento.

Hoje é muito comum lembrar do Napster, dos torrents, partido pirata etc, mas nos anos 90 quando
esses projetos começaram a ser explorados, não era. Dai para virar o modelo queridinho dos
cypherpunks, foi um pulo.

Apenas lembrando com um mais um parêntesis: Descentralizado, como a própria web, ainda não é
independente, é apenas resiliente a falhas até um determinado ponto. O que nos leva ao próximo
santo graal a ser buscado.

DISTRIBUIÇÃO TOTAL, garantias sólidas, mas abstratas (sem agente definido)

Foi preciso um obscuro paper dos anos 70 criado por economistas de Chicago (que depois ganharam
o Nobel de economia por isso) chamar a atenção de engenheiros de sistemas do MIT para formas
de garantir solidamente que estas redes descentralizadas fosse confiáveis e à prova de falhas.

“Joe Stiglitz (1975) and Michael Spence (1973) proposed solutions to Akerlof's information
asymmetry problem, "screening" and "signaling"xv, which were applied in 1993 as a solution
against DoS attacks and email spam. The solution is now known as "Proof of Work".xvi

Não vou me alongar em detalhes técnicos (falaremos disso adiante), mas desde 1993 e mais alguns
papers adiante, era possível pelo menos matematicamente, prever e modelar comportamentos de
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todos os participantes de uma rede, sob o ponto de vista de equilíbrio ou contramedidas, para evitar
fraudes. Assim, os Cyphepunks conseguiram a sonhada distribuição completa dos recursos, uma
independência critica (pelo menos do ponto de vista de design) para se livrar da tão odiada censura
(ou da idem repugnante, para eles, mão controladora dos governos).

Mas, para que o consenso matemático funcione, é preciso motivação, o que leva ao quarto ponto.

SISTEMA DE MERCADO, incentivos econômicos

Para que tudo aconteça, é preciso motivação prática e pragmática: Incentivos. Mesmo sem falar de
incentivos financeiros, regras claras de mercado sempre permearam o modo de design de hackers,
cypherpunks e similares personas. Daí para estudar e modelar baseado nas regras de teoria dos
jogos, um passo rápido.

Nos anos 90, a proliferação dos “quants” da escola econômica de Chicago, aliados aos trabalhos
intensos das décadas anteriores em teoria dos jogos, criou o ambiente propício para que modelos
de incentivo financeiro, propriamente dito.

Daí para resolver outros problemas e criar uma maneira de incentivar o trabalho distribuído, foi um
pulo.

NOVO MODELO ECONÔMICO: Redes autônomas de criação de valor (cooperativas digitais, por
assim dizer)

Com esses quatro (e mais alguns princípios técnicos que veremos a seguir), finalmente, em meados
dos anos 90, todas as condições ideais para se materializar um sonho: criar alguma forma de solução
realmente distribuída, tecnologicamente falando, independente, global, não censurável e ... De
todos, sem um único dono!

THERE´S NO BLOCKCHAIN, NEO.

O QUE É O BITCOIN ENTÃO?

Deixa eu te fazer uma pergunta: você chamaria seu carro de odômetro? Sabe, aquele equipamento
que serve para dizer quantos quilômetros você já andou e que é apenas uma peça entre muitas
outras do veículo? O Blockchain é muito importante. Mas lamento revelar neste momento, ele é
apenas o odômetro, não o carro. E minha alma de engenheiro não sossega enquanto eu não
esclarecer este fato.

O que se convencionou chamar de “uma tecnologia”, é uma grande caixa de ferramentas


criptográficas. Nela estão pedaços de teoria dos jogos, redes de computadores e algoritmos,
heurísticas de dados — tecnologias sobre as quais falaremos em mais detalhes jaja.

E pior ainda, o Bitcoin nasceu como fim em sim mesmo (criptomoeda distribuída, não confiscável e
não censurável era a verdadeira invenção, não um Blockchain). Ele criou-se como o primeiro ato
sócio-político real deste grupo de cypherpunks: uma moeda que os unisse e identificasse, 100%
independentemente de qualquer tipo de bancos, global e 100% à prova de destruição!
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Nossos problemas de nomes já começam por aqui. Bitcoin é um termo usado para se referir a quatro
coisas diferentes:

1) uma complexa parafernália tecnológica (software opensource)

2) uma moeda, que pode ser trocada entre quem a possui

3) uma imensa rede/ecossistema que ser formou para suportar este movimento (integrados
ao projeto de software original, mas com vida própria) e

4) em alguns casos, a tecnologia (criptomoedas)

Uma das ferramentas criptográficas utilizadas dentro do Bitcoin é o chain of blocks, um tipo de
arquivo indelével e imutável. É o odômetro do Bitcoin. Mas o que importa sobre o Bitcoin é que ele
é uma moeda sem governo e sem controle central, não que ele tem um chain of blocks. Inclusive,
vale dizer que várias criptomoedas que vieram depois do Bitcoin não utilizaram essa ferramenta.

Como curiosidade, apenas em uma troca inocente de e-mails, o termo “blockchain” foi criado. Hal
Finney, um dos gênios que, especula-se, foi uma das pessoas por trás do projeto do Bitcoin, escreveu
a seguinte frase durante uma discussão sobre a otimização da criptomoeda:

“it is mentioned that if a broadcast transaction does not reach all nodes, it is OK, as it‘will get
into the _block chain before long.”

O “block chain” ao qual ele se referia era uma utilidade, não uma tecnologia de propósito geral. Era
uma parte do todo e não uma plataforma tecnológica como o mundo passou acreditar.

Por que OS BLOCKCHAINS e não A TECNOLOGIA BLOCKCHAIN ou O BLOCKCHAIN?

A primeira informação que você deve guardar é que não existe “O” blockchain. Existem “OS”
blockchains. É importantíssimo você destruir esse conceito de “O” que, por falta de explicações
melhores, acabou pegando.

O pedido que faço a você agora é: paciência. Não vou explicar agora o que são os blockchains. Antes
de chegarmos ao conceito, precisamos de algumas explicações prévias, começando por dizer o que
o blockchain NÃO É.

A primeira coisa que o Blockchain NÃO É: uma tecnologia estabelecida. Por quê?

Uma tecnologia estabelecida é um padrão consensual de mercado para uma ferramenta que faz
algo, mas suas características principais são padronizadas e iguais. Mais puristamente, estes padrões
são tão claros e definidos, que a mesma tecnologia, mesmo desenvolvida por grupos, comunidades
ou empresas diferentes, é a mesma. Um exemplo são os bancos de dados SQL, que tem muitas sutis
diferenças entre si mas se comportam de maneira parecida e tem um alto grau de
interoperabilidade. O padrão SQL, por exemplo, foi desenvolvido durante 10 anos pelos melhores
cientistas de dados do mundo e o padrão é igualzinho seja na Microsoft, na Oracle ou na IBM.

Já no mundo do blockchain… O blockchain do Bitcoin é uma coisa, o do Ethereum é outra e eles não
se falam entre si.
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E existem mais 800 plataformas tecnológicas que podemos chamar de blockchains, sem falar das
plataformas especialistas (como Ripple e o modelo Corda, do R3), num total de aproximadamente
900 plataformas que não se conversam. Qualquer semelhança com fitas VHS e Betamax é mera
coincidência.

Enquanto o blockchain não tiver um padrão e um não falar com o outro, não existe tecnologia
estabelecida. Inclusive, existe um comitê da ISO, outros da ITU, outros no IEEE e muitos outros, que
estão tentando definir o que é um blockchain e até agora as discussões são a la Torre de Babel.

SERVIÇOS COMPLEXOS.

O mais importante dos tecnicismos a ser esclarecido é que, ao contrário da comparação óbvia (a
internet), a tecnologia blockchain não é um protocolo, mas um serviço complexo.

Protocolos, para os engenheiros de sistemas, são serviços básicos e extremamente otimizados para
um propósito.

Serviços são sistemas mais complexos, que se beneficiam de um (ou mais) protocolos e padrões para
existir.

O blockchain deve ser entendido como o serviço de e-mail, ou a própria WEB (http).

E acho que já falei de tecnicismos demais por um pouco. Espero que tenha ficado claro, por aqui, o
que ele não é. E passemos para a parte mais surreal: que tipo de pessoa consegue criar um
Blockchain (projeto completo, plataforma, rede, comunidade e tudo o mais) e por quê?

É O BITCOIN, NÃO O BLOCKCHAIN

O bitcoin só nasceu por uma conjunção de tecnologias e fatores, mas um deles definitivamente foi
a crise de 2008, considerada a pior crise desde a Grande Depressão dos anos 1930. Wall Street estava
com a credibilidade em frangalhos. O Lehman Brothers fora à falência. Instituições consideradas
inabaláveis foram afetadas por uma farra de crédito imobiliário que gerou um efeito em cadeia. Sim,
a criptomoeda mais conhecida no mundo hoje é filha da decepção com os bancos.

Tanto que, em janeiro de 2009, quando foi feito o primeiro bloco do blockchain do bitcoin (“Genesis
Block”), foi inserida no registro a manchete do jornal The Times sobre o chanceler Alistair Darling
considerando um segundo resgate para os bancos. A primeira transação encriptada tem o seguinte
trecho entre muitos números: “The Times 03/Jan/2009 Chancellor on brink of second bailout for
banks.”

O bitcoin foi a pedra tecnológica fundamental de uma nova onda no mundo do dinheiro. Pouco a
pouco, além dos libertários e nerds da tecnologia, o pessoal do Vale do Silício descobriu o bitcoin. As
empresas de venture capital começaram a esticar o pescoço para ver o que estava rolando. Em 2011,
com o lançamento da Silk Road, um e-commerce anárquico, o uso da criptomoeda aumentou
exponencialmente e bombou com a grande adesão na China.
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PORQUE É TÃO DIFÍCIL PENSAR EM CONSTRUIR UMA PLATAFORMA/REDE BLOCKCHAIN?

PENSAMENTO CIENTÍFICO HOLÍSTICO E POLÍMATA (POLYMATH).

O mais complexo de se explicar tudo que ronda o termo Blockchain é a multiplicidade de aspectos
que temos observar. Depois de quatro anos em aulas, workshops e demonstrações, criei um modelo
baseado na filosofia dos polímatas (pensem em Leonardo DaVinci).

ANTES, TUDO ERAM TREVAS – ATE A VERDADE SE FAZER:

A base de tudo, no Blockchain, é a transparência e abertura. Os punks digitais preconizaram isso


desde o início, dai a cultura open source, open talk, open numbers e open participants. Com falamos
várias vezes, é a aplicação ampla e irrestrita da VERDADE, gerando, através de sua total
transparência, o ecossistema.

AS CIÊNCIAS DOS ELEMENTOS CONSTRUTORES:

A origem desta tecnologia como conhecemos hoje tem muito a ver com quatro ciências que
certamente você já ouviu falar, bem conhecidas, mas que nem todos entendem muito bem, nem
nunca foram citadas unidas em um projeto de inovação de maneira tão explícita. Vou falar um pouco
sobre elas e qual é o papel de cada uma nas cryptonetworks, mas de uma forma menos aprofundada
do que eu gostaria. São assuntos complexos e, para entender no detalhe, seria preciso fazer uma
graduação e um mestrado sobre cada um deles. Para o nosso propósito de dispersar a cortina de
fumaça que se formou em torno do assunto, vamos nos concentrar nos conceitos de cada ciência e
nas suas utilidades. Vamos a elas:

Ciência da computação

Se você não quer ser apenas uma pessoa que compra e vende criptomoedas pela simples aposta de
que elas vão valorizar, mas sim entender o que está por trás delas e qual a grande revolução que de
fato representam, sugiro colocar um pé na ciência da computação. É a área que estuda a teoria e a
engenharia que estão na base do desenvolvimento de hardware e software. Sua origem data do
século 17, quando Gottfried Leibniz inventou o sistema binário, que está na fundação de todas as
arquiteturas modernas de computadores.

Assistir ao filme/homenagem a Allan Turing, The imitation Game, dá uma noção do que estamos
falando.

Para falar de cryptonetworks precisamos falar de matemática, de algoritmos, de código,


computadores e de software. E o código ao que eu me refiro não é brincadeirinha de criança. É Knuth
style (Donald Knuth é meu ídolo máximo, um cientista da computação e matemático norte-
americano, professor emérito da Universidade de Stanford, considerado o “pai” da análise de
algoritmos. Seu livro de muitos volumes, “The Art of Computer Programming”, começou a ser escrito
em 1962 e o primeiro manuscrito à mão, de 1996, tinha 3 mil páginas. Entendeu o que quero dizer
por Knuth style?), coisa de cientista e material bem indigesto até para programadores experientes.

Dentro da ciência da computação estão os algoritmos, sem os quais não existiria Bitcoin. Eles são a
alma da parte “ciência” desta quase arte, pois garantem a continuidade das descobertas.
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Algoritmos são “receitas de bolo” para tarefas e uma vez descobertos, são replicados, extendidos e
melhorados por toda a comunidade. Algorítmos são tão importantes que alguns deles são
patenteados.Uma classe específica são as heurísticas (10), palavrinha estranha para determinar um
grupo de algoritmos que trabalha com incertezas, mas isso é outra novela…

Criptografia

Se você quer começar do jeito light, prepare a pipoca e assista hoje mesmo ao filme O Jogo da
Imitação. No Oscar de 2015, o longa teve várias indicações e acabou levando apenas o de Melhor
Roteiro Adaptado. O que importa para os aprendizes de criptografia é o ator principal, Benedict
Cumberbatch, que interpreta o grande gênio matemático Alan Turing, que deve ser lembrado e
agradecido sempre que possível por suas contribuições. O recorte histórico mostra o momento em
que Turing trabalha contratado pelo governo britânico para decifrar o sistema de comunicação
nazista. A Enigma, uma máquina de criptografia, era usada pelos alemães com um sistema que
mudava diariamente, o que tornava mais difícil quebrar o código. Turing inventou uma outra
máquina para realizar essa tarefa e, sem chegar perto do front, foi uma peça fundamental para
ajudar os Aliados a vencerem a guerra.

A criptografia é o assunto do século. Especificamente para falar de criptomoedas, como o próprio


nome diz, é essencial entender essa área. As moedas que hoje conhecemos como o Dólar, a Libra e
o Real possuem a garantia de uma autoridade central dos países, como é o caso do Banco Central
aqui no Brasil, e do Fed, nos Estados Unidos. O dinheiro é controlado por uma instituição. Já para as
criptomoedas, é a confiança na tecnologia por trás delas que dita as regras e essa confiança vem
justamente da criptografia.

A existência da criptografia não é nenhuma novidade. Afinal, o ser humano tenta mascarar suas
mensagens desde que inventou a escrita. O estudo de como enviar mensagens cifradas com códigos
é chamado de criptografia. Um dos primeiros criptógrafos famosos foi Julio Cesar, o general romano
que nasceu há mais de 2.000 anos e popularizou o que hoje chamamos de Cifra de Cesar para se
comunicar com seu exército. Sua técnica consistia em substituir cada letra por outra que estivesse
um determinado número de posições atrás no alfabeto. Por exemplo, o D deveria ser entendido
como A e assim por diante.

Claro que essa arte se aperfeiçoou e complicou com o tempo. Do vasto mundo da criptografia, o
Bitcoin, por exemplo, usa apenas algumas construções. Algumas delas:

- Digital signatures: as assinaturas digitais são análogas às assinaturas feitas com caneta no mundo
físico. Sua função é 1) garantir que apenas você possa fazer a sua assinatura, mas qualquer um possa
reconhecer que ela é sua e 2) garantir que sua assinatura seja válida para o documento que você
assinou e não para qualquer outro. O Bitcoin utiliza uma assinatura digital chamada Elliptic Curve
Digital Signature Algorithm (ECDSA). Não vou entrar na matemática da ECSDA porque essa discussão
é por demais boçal para não nerds. O que vale comentar é que há uma discussão entre especialistas
em segurança sobre o uso do ECDSA, mas essa ferramenta foi escolhida no projeto original de Satoshi
e é o que temos para hoje. E nada impede que outras criptomoedas podem usem outros mecanismos
de assinatura digital.[MG3]

- Hashes: uma ideia originalmente inventada para limitar o envio de e-mails spam obrigando o
usuário que envia a mensagem a resolver uma espécie de quebra-cabeça matemático. Ou seja, é
preciso usar certo tempo e capacidade de processamento, o que dificultaria a saída de milhares de
e-mails ao mesmo tempo, que é justamente o que os disparadores de spam fazem.
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No caso do Bitcoin, um mecanismo nessa linha proposto por Adam Back, um criptógrafo e
criptohacker britânico. é usado para construir consenso. A necessidade de resolver um quebra-
cabeça cria, no Bitcoin, um ambiente de escassez e é o que está por trás da “mineração”.

- Key derivation functions: funções capazes de derivar uma ou mais chaves secretas (secret keys) de
uma senha ou chave principal. No caso do Bitcoin, usada para mascarar informações.

- Merkle trees: o chain of blocks, que mencionamos no artigo anterior, vem de uma estrutura
chamada árvore de Merkle, uma homenagem ao seu criador, Ralph Merkle. As folhas da árvore são
os blocos de dados. Esses blocos de dados são colocados em pares; para cada par cria-se uma
estrutura de dados com um hash que liga os dois blocos “abaixo” dela. Formam-se pares
sucessivamente até chegar ao “top hash”, uma estrutura que está ligada a todos os dados que vieram
antes. A árvore de Merkle permite fazer uma verificação segura e eficiente do conteúdo de grandes
estruturas de dados. No Bitcoin, essa ferramenta é a que garante a resistência contra possíveis
ataques no Bitcoin, é o que garante a confiabilidade das transações. Qualquer semelhança com o
que você já ouviu por aí sobre blockchain não é mera coincidência.

Redes de computadores

As cryptonetworks também envolvem uma rede de computadores. Por isso, é preciso entender
sobre efeitos de rede, externalidades e do design dessas redes.

A ciência de redes estuda desde as redes de telecomunicações às redes biológicas e usa


conhecimento de diferentes áreas como matemática, física e sociologia. Os elementos das redes são
os chamados nodes e as conexões entre os elementos são os chamados links.

Para entrar na rede do Bitcoin, por exemplo, basta baixar o software do servidor em seu
computador, plugar na rede e pronto, você virará um nó da rede. Qualquer um pode entrar, ninguém
precisa se identificar. É essa rede que permite um modelo distribuído, no qual todo mundo é ligado
com todo mundo ao mesmo tempo. Vou recorrer a um amigo expert em redes, outro dia debatemos
networks sobre ótica do Bitcoin e saiu esta pérola:

Por exemplo, Lightening Networks lida com problemas de décadas da internet, que é
roteamento. E essa é uma parte que POUQUISSIMOS programadores tem competência pra
de fato explicar. Eu sou programador por anos e não sei explicar o modelo ISO direito, quem
dirá explicar protocolo TCP pra cima de forma precisa. Lightening Networks tem que
“reimplementar” várias dessas coisas e isto é só um exemplo recente. (By Ian Medeiros).

Mechanism design (teoria dos jogos)

Finalmente, um braço da Teoria dos Jogos, que por si só já é uma área complexa — uma das mais
difíceis da matemática. O mechanism design estuda os mecanismos econômicos ou incentivos que
levarão aos objetivos desejados, considerando que os “jogadores” agem racionalmente e querem
maximizar o seu retorno. É um campo de estudo que terá muita influência da computação quântica
para se especializar ainda mais.

Para entender essa história de jogadores, incentivos e retorno, vou abrir um parêntese dar e
exemplo mais básico e repetido de toda a Teoria dos Jogos: o dilema do prisioneiro.
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Imagine que duas pessoas são presas pela polícia. A polícia não tem provas suficientes sobre
o caso para condenar alguém e oferece aos dois suspeitos, separadamente, o mesmo acordo.

Opção 1: Você testemunha contra o outro e, se o outro suspeito permanecer em


silêncio, você sai livre e ele cumpre dez anos de sentença;

Opção 2: Você fica em silêncio e, se o outro suspeito permanecer em silêncio, cada


um cumprirá seis meses de sentença;

Opção 3: Você testemunha, o outro suspeito também e vocês dois cumprem cinco
anos de sentença.

Para quem olha de fora, ambos ficarem em silêncio é a melhor jogada. Mas um não sabe
como o outro vai reagir. A grande sacada da Teoria dos Jogos é colocar cada decisão
individual em perspectiva e concluir que, para os dois suspeitos, a melhor alternativa é
testemunhar. Para o suspeito A, se o suspeito B ficar quieto, a melhor alternativa é falar, pois
A sairá livre. Se o suspeito B falar, a melhor alternativa é A falar também, para ficar com a
pena de cinco anos e não a de dez. Cada um quer levar a melhor o que, nesse caso, significa
ambos falarem.

Pensando em Bitcoin, se o protocolo e os incentivos são bem construídos, a maior parte dos
participantes do sistema cumprirá as regras. Ser honesto não é só uma questão de ética, é uma
questão de ser mais eficiente para cada indivíduo separadamente. Mas por que o Bitcoin precisa de
um mecanismo complexo de incentivos? Um dos motivos é a mineração (ou, como gosto de chamar,
VALIDAÇÃO DE TRANSAÇÕES). O Bitcoin é uma criptomoeda criada do nada. Os mineradores são as
pessoas que validam as transações e, por cada validação que eles fazem, eles ganham um prêmio
em Bitcoin — como se fossem um cartório. Quanto mais pessoas dispostas a minerar, mais difícil será
ganhar dinheiro, porque o algoritmo dificultará o ganho com poder este computacional adicional. E
quanto menos pessoas dispostas a minerar, maior o incentivo. Assim, o algoritmo é um organismo
vivo que se ajusta à quantidade de transações.

O modelo de incentivo do Bitcoin, criado usando a ciência de mechanism design, prevê que no início
da rede, com poucas pessoas, serão pagos muitos Bitcoins por transação. No meio da vida pagará
pouco e no final será quase nada. Inversamente, no começo não haverá cobrança de taxa de
transação, que aumentará aos poucos.

“Arguably, the core feature of tokenized ecosystems, aka public blockchains, is getting people
to do stuff. Incentives are powerful. But similar to AI / optimizer design, getting incentives
right is hard. Blockchains can even be framed as life. In this context, what if we end up with
get a rogue life form sucking the life energy out of the planet? More pointedly: has Bitcoin
gone rogue? This article explores these questions, in the first installment of a broader series
aimed at improving the token design process.” Blockchains are incentive machines.

A derivada primeira destes mecanismos são as ainda engatinhantes idéias sobre Token Economics,
ou tokenomics, para os íntimos (falaremos mais adiante sobre).
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ANTI FRAGILIDADE, O ELEMENTO DE UNIÃO:

No centro, a disciplina que o Nassin Taleb popularizou: A resiliência (ou anti-fragilidade). Quanto
mais porrada o sistema levar, mais resiliente ele se torna, mais cascudo, mais parrudo e mais difícil
de desandar.

As redes Blockchain são assim. Ataques, especulações, forks, etc, só aumentam sua resiliência.

E até a entropia de determinados projetos, resultantes em um fork para outra direção, fazem parte
dessa resiliência.

PARA QUE A REDE VIVA, QUARTO ELEMENTOS HUMANOS:

O que economia, psicologia, sociologia e antropologia têm a ver com mundo cripto? Tudo. Explico:
mais do que escovação de bits, este negócio tem a ver com gente. E quando digo gente, não estou
falando de pessoas como consumidores, produtores ou trabalhadores. Trata-se de gente mesmo,
como protagonista de um movimento. Por isso, não é possível entender o fenômeno de disrupção
que as DATPs serão capazes de provocar sem as lentes dessas quatro ciências sociais. Explicá-las é
fundamental para quem quer imaginar como será o futuro caso todas as promessas feitas pelo hype
do blockchain se concretizem e amadureçam.

ECONOMIA

A primeira delas é a economia. Ao observar as DATPs, percebemos que elas vêm juntas de mudanças
drásticas em relação ao capitalismo como o conhecemos hoje. Nossa percepção é de que vivemos
em um mundo de escassez — e tudo que é escasso vale mais. Nem todo mundo pode ter um carro
conversível porque ele custa mais do que a maioria das pessoas é capaz de pagar. O mundo cripto
começa a nos mostrar que isso é uma falácia, que a escassez é uma percepção mental. Ao conectar
as pessoas em rede, eliminar os intermediários e fomentar a economia compartilhada, cria-se aos
poucos um mundo abundante em recursos físicos e intelectuais. Eu não posso comprar um
conversível, mas talvez possa alugá-lo de alguém que esteja com um parado na garagem. Ou, em
outra comparação, é como os diamantes artificiais que estão sendo produzidos. Por que essa
tecnologia assusta a indústria? Porque ao sintetizar diamantes, eles deixam de ser raros e escassos.

PSICOLOGIA GERAL

A segunda grande ciência é a psicologia. O fenômeno da escassez e abundância tem a ver com um
efeito psicológico de percepção e confiança. Temos uma percepção das coisas e por causa dela
confiamos ou desconfiamos de algo. Hoje, a maior parte dos cidadãos acredita que as operações
centralizadas são mais confiáveis do que as descentralizadas. Por isso, confiam no Banco Central de
seus países como instituição que garante o valor da moeda que utilizam.

Desde 2008, o Bitcoin vem sendo capaz de quebrar essa barreira, conquistando a confiança dos
usuários mesmo com um funcionamento descentralizado. As pessoas começaram a conhecer e
perceber que o código funcionava e que era garantido. O Bitcoin é raro? É. Ele vale alguma coisa?
Não. Ele passou a valer quando algumas pessoas começaram a acreditar nele. Essa percepção
quebrou outro paradigma da economia, de que somente o dinheiro público é uma moeda forte. E o
dinheiro privado, que é o caso das criptomoedas, começou a ganhar força.
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Essa crença na força do dinheiro privado também tem a ver com a psicologia dos indivíduos. A
sociedade hoje está muito mais aberta para confiar em instituições não governamentais. Hoje é
possível pensar que uma empresa como a Apple é mais crível do que o governo americano. Tempos
atrás isso era impensável. E isso nos leva às outras duas grandes ciências: sociologia e a antropologia.

SOCIOLOGIA

Grosso modo podemos dizer que a sociologia é mantida pela coerção, como Émile Durkheim
escreveu há 200 anos. Como é possível manter tudo junto misturado e funcionando? É preciso ter
valores, princípios, leis, regimentos e acordos sociais que sejam confiáveis e funcionem como meio
de coerção social. Propriedade privada é uma coerção social, as leis são outra coerção social.

ANTROPOLOGIA

Do outro lado, a antropologia estuda esses valores em transformação e nos ajuda a explicar ou a
provocar as disrupções sociais. Para essa ciência, antes de existirem as leis externas, existe o homem,
que tem um comportamento próprio.

A humanidade existe em ciclos. Quando uma estrutura social chega a seu ápice, vem uma força
externa que provoca uma mudança e faz a sociedade declinar. A partir do declínio de uma, surge
outra, que quando atingir seu ápice também será atingida por uma força externa que causará seu
declínio, e assim sucessivamente. Uma pessoa para a sociologia é alguém a ser convertida, uma
pessoa para a antropologia é alguém que vai mudar o sistema. Essa é a diferença, basicamente, entre
as duas ciências.

Levando isso para o mundo cripto, o Bitcoin já conseguiu quebrar essa barreira de mudança e
conquistar a confiança dos usuários. É considerado um código perfeito. Antropologicamente, criou-
se o culto ao Bitcoin e, sociologicamente, a moeda já tem ferrenhos defensores.

Esses valores sociológicos e antropológicos é que permitem a existência de milhares de moedas.


Porque antes não havia uma economia onde era permitido ter dinheiro privado como forma de
representação de uma microssociedade. Agora há.

JUNTANDO TUDO

O mesmo acontece com as empresas — ainda que num estágio mais embrionário. Nesse novo
modelo de sociedade é possível existir uma empresa “sem dono”, com um funcionamento
totalmente distribuído. A Arcade City, que é espécie de Uber peer-to-peer, é um exemplo. Nela não
há a figura de um controlador que imponha regras, cobre taxas ou obtenha lucro. Há um grupo de
motoristas que presta serviço diretamente a usuários e, juntos, mantêm o equilíbrio do negócio. Os
próprios participantes dessa cooperativa é que garantirão o funcionamento do negócio, num
sistema totalmente distribuído. Do lado dos passageiros, haverá o entendimento de que as corridas
serão mais baratas em 90% do tempo, mas será necessário pagar um pouco a mais em 10% dos
trajetos para manter o serviço de pé. Do lado dos motoristas, haverá o entendimento de que o
número de carros terá de ser controlado de acordo com a demanda. É diferente de haver um
capitalista como o intermediário que precisa apertar cada vez mais os motoristas e cobrar cada vez
mais do passageiro para maximizar o lucro. Voltando à economia, esse modelo acaba com a clássica
teoria da firma.
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A Arcade City ainda está engatinhando em busca de uma massa de usuários, mas já surgiu num
momento em que psicologicamente as pessoas estão abertas para este modelo de negócio.

Para sair do modelo centralizado que predomina hoje para chegar ao modelo distribuído haverá uma
fase pesada de transição. O sistema passará para o modelo descentralizado e só então chegará ao
modelo distribuído, que só existirá quando houver muita gente fazendo e muita gente participando.
As cooperativas não dependerão de uma pessoa só. E o que vai propiciar que tudo funcione da
melhor maneira é o código. Ou seja, não será mais necessário governança, comitê de qualidade ou
qualquer outra entidade de controle.

Esse fluxo todo não está ligado à programação ou à engenharia. Ele é regido por estas quatro ciências
sociais que estamos falando. Está muito ligada à crença das pessoas em relação a este novo modelo.
De início, será necessária a figura dos “builders”, ou seja, das pessoas que colocarão a mão na massa
para fazer a empresa começar a funcionar e receberão um salário para isto. Estes builders — além
de competência — terão que ter a confiança de todos os participantes. Todos darão a eles a
“procuração” para dar o pontapé inicial a esta nova companhia. Todos precisarão acreditar que
aqueles caras merecem a confiança. É o que vem acontecendo atualmente com o Bitcoin. Por que
as pessoas confiam no Bitcoin? Não tem nada que as leve a acreditar. Racionalmente, o Bitcoin é
uma pirâmide financeira, simples assim. Se você pensar friamente, não tem nada que faça ele parar
em pé. Só que sociologicamente é um fenômeno que vale US$ 200 bilhões. Ponto.

Claro que o Bitcoin é o exemplo de maior destaque, mas esse “jeito distribuído de fazer” é um padrão
emergente. Cada vez mais vamos ouvir falar de inovação aberta, sociedade fluida, métodos ágeis,
‘pivotar’, ‘coworking’… O que está sendo construído deixa para trás modelo de ‘ownership’
(propriedade), e alimenta o modelo de ‘shared economy’ (compartilhamento). E as pessoas estão
percebendo. Por que eu preciso ter o meu carro, se eu posso usar o carro do Uber? Por que eu tenho
que ter um recurso? Não posso simplesmente compartilhar o recurso de outro? Não seria melhor
que um carro fosse um serviço a ser compartilhado por várias pessoas em vez de um bem de apenas
uma? Esse conceito de compartilhar que está ganhando força é diametralmente oposto ao conceito
de consumismo que impera hoje.

DESTINO FINAL: DOOCRACY, OU A REDE ONDE TODOS TEM DE FAZER

Estamos vivendo uma explosão cambriana de oportunidades tecnológicas e novos arranjos globais.
Porque envolve uma grande mudança de tecnologia, de modelo de negócio, de modelo econômico
e de modelo social ao mesmo tempo. O resultado de toda essa mudança? Ainda não sabemos. É
como se ainda estivéssemos nos primórdios da história, na era da megafauna, com dinossauros e
preguiças gigantes, aguardando a queda do meteoro que mudará tudo. Este meteoro pode ser um
colapso estrutural do sistema atual, segundo pensam alguns. Não é possível sustentar o consumismo
da maneira que está.

Competitividade, liberdade não é igualdade, lei do mais forte e mais capaz: Capitalismo de exclusão.
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RELIGIÕES SOBRE O MESMO TEMA

REDES AUTONOMAS (PUBLICAS) X REDES COORDENADAS (PERMISSIONADAS)

Precisamos, antes de prosseguir, falar rapidamente de duas filosofias que se confundem atualmente.

• A primeira, que já sabemos, lida com os libertários, em redes autônomas, que são o objeto
de toda a explicação inicial do Blockchain, a seguir.
• A segunda, trata de ambientes mais controlados, redes mais tradicionais, às quais estamos
acostumados a lidar em nossas empresas e cotidiano. Nestas, a tecnologia foi
convencionada chamar de DLT (distributed ledger Technologies), ou redes permissionadas.
Falaremos delas ao final, mas esqueçam por hora.

Partindo dessa cisão, desde 2014/2015, temos um intenso debate sobre o que seriam. E isso não
ficou na dicotomia, evoluiu para um debate de quatro ângulos.

AS QUATRO MANEIRAS DE SE VER O ‘BLOCKCHAIN”

Para toda ação há sempre uma reação, já dizia Newton. Com as criptomoedas, não é diferente. No
artigo sobre bitcoin, falei sobre a ideologia por trás da moeda, o movimento cypherpunk, que reunia
defensores do direito à privacidade. Mas é possível ver a ascensão do bitcoin de um outro ângulo:
uma reação ao mercado financeiro global.

Em 2014, começou a reação contra a ação bitcoin. O mercado financeiro não ia ficar parado. Havia
muitos projetos em construção no universo da ideologia libertária. Os bancos concluíram que havia
coisas demais acontecendo ao seu redor e era preciso entendê-las. Passaram a investir em projetos
relacionados ao bitcoin. Os libertários haviam dominado a tecnologia primeiro porque eram de fato
inteligentes pra caramba. Mas os bancos sabiam que tinham grana e muitas pessoas para construir
suas próprias plataformas, nem tão libertárias assim.

Então, 2015, com o fechamento da Silk Road, o bitcoin sofreu sua primeira grande crise e o status
quo, vendo uma oportunidade de jogar uma pá de cal naquele projeto de dinheiro descentralizado,
decidiu que esqueceríamos a criptomoeda por um tempo e que o grande lance a ser divulgado era
a tecnologia. Esqueçam a moeda sem dono, foquem nos outros produtos que podemos criar com
um arquivo de registros imutáveis. Nascia, assim, o mito BLOCKCHAIN como uma solução para todos
os problemas da humanidade.Esse movimento de ação e reação deu origem ao que eu chamo de
religiões do mundo crypto. Para entender melhor como essa batalha começou e seus
desdobramentos, divido-as em quatro grandes grupos, com seus respectivos messias e seguidores.

1ª religião

Os crentes e praticantes das chamadas DATPs:

1. Distributed (distribuídas)
2. Autonomous (autônomas)
3. Trustless (sem garantia)
4. Platforms (plataformas)

Seu mais famoso representante? Bitcoin, o próprio. Distribuído, autônomo, sem dono.
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A primeira religião acredita em plataformas abertas. Em uma iniciativa sem governo, sem censura,
global. Abaixo o controle. Sua origem é filosófica.

Há diversas outras iniciativas que vieram depois do bitcoin, como o Ethereum. As mais recentes,
claro, foram adicionando melhorias tecnológicas às plataformas. O Ethereum, por exemplo, é uma
geração computacional, que faz mais do que apenas transações.

A partir do próximo artigo, vamos nos aprofundar nas diferentes linhas dessa primeira religião. Todas
as religiões que apresentarei a seguir não seguem o princípio das DATPs e, portanto, serão ignoradas
pelas minhas futuras análises porque é das DATPs que está surgindo a inovação e é nelas em que eu
acredito.

2ª religião – DLTS (DISTRIBUTED LEDGERS TECNOLOGIES)

Quando o projeto de Satoshi se mostrou bem-sucedido em permitir a existência de moeda e


transação em um modelo descentralizado, criou um conflito com as instituições vigentes do mercado
financeiro.

Em minha opinião, a estratégia de combate da turma do status quo foi ignorar a função moeda e
dizer “essa coisa chamada coin não existe, mas aquela outra coisa chamada tecnologia nos interessa
muito”. O hype do Blockchain como solução universal, para mim, é a grande cortina de fumaça
inventada para ofuscar o sucesso do bitcoin. O raciocínio foi: vamos pegar uma tecnologia
interessante usada no bitcoin e fazer dela a grande notícia.

E assim, criaram-se as DLTs:

1. Distributed (distribuídas)
2. Ledger (registro)
3. Technologies (teconologias)

As plataformas criadas por essa segunda religião são os consórcios empresariais abertos, tendo o
Hyperledger como seu mais distinto representante. Assim como DATPs, o Hyperledger tem um
código aberto. Diferente das DATPs, é privado e não público. Esse é o pulo do gato. Apenas as
empresas que fazem parte do consórcio (e que pagam para estar nele) podem dizer quais serão os
rumos da tecnologia. Qualquer pessoa tem acesso ao código fonte, mas não pode interferir nele.
Fazem parte do Hyperledger gigantes da tecnologia como Oracle, SAP, Hitachi e IBM.

DLTs não são autônomas nem dispensam garantia (trustless). São descentralizadas, mas operam em
redes identificadas, como uma intranet.

Em uma comparação sutil, os consórcios empresariais são clubes, precisam aprovar os novos
entrantes e querem construir soluções para seu próprio benefício. Podem ser também comparado
a um shopping center, no qual é preciso autorização dos donos para abrir uma loja. Resumindo, uma
religião bem capitalista e business as usual. Os DATPs da primeira religião, por sua vez, são os
camelôs da 25 de março. Vem quem quer.

Uma das personagens da história dessa segunda religião é Blythe Masters, ex-executiva do banco
J.P. Morgan. Em março de 2015, ela assumiu o cargo de CEO na startup Digital Asset Holdings, que
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se propunha a usar a tecnologia de distributed ledger para reduzir custo e risco de serviços
financeiros. A startup levantou mais de US$ 70 milhões de 15 das maiores empresas de tecnologia e
do setor financeiro, como Citibank, Goldman Sachs, IBM, Accenture, DTCC e o próprio J.P. Ironia ou
não, Masters foi uma das pessoas que ajudou a inventar os credit default swaps, o mesmo
instrumento financeiro que levou à crise de 2008.

Outro consórcio empresarial é o Ethereum Enterprise Alliance (que não tem nada a ver com a
Ethereum Foundation). “Juntos, vamos aprender e construir sobre o Blockchain que suporta smart
contracts atualmente rodando no mundo real — Ethereum — para definir um software capaz de lidar
com as aplicações mais complexas e demandantes na velocidade dos negócios”, definem em seu
site.

3ª religião – CONSÓRCIOS DE INDÚSTRIAS

A terceira religião é tão capitalista quanto a segunda, com a diferença de que nela os consórcios
empresariais são fechados. Não há nada open source. Quem quiser brincar aqui paga para entrar,
paga para tomar decisões e paga para usar.

O objetivo é produzir um produto ou uma plataforma para uma indústria específica. Tem
propriedade intelectual, royalties e é fechado.

O maior exemplo é o consórcio R3, uma iniciativa da indústria dos bancos. Inclusive, possui três
representantes brasileiros: B3, Bradesco e Itaú. A plataforma que criaram chama-se Corda.

A história foi que, basicamente, os caras do Goldman Sachs olharam para todos os bancos em 2015,
olharam para a Blythe Masters e quiseram fazer alguma coisa também. Criaram o clube R3 para se
fechar em segredo e construir alguma tecnologia. Em maio de 2017, o Corda foi lançado. A
pegadinha é que o Corda não usa Blockchain. É um arquivo SQL server, que faz um monte de
programinha. É um sub-DLT.

Além do R3, há consórcios de outras indústrias como logística, cooperativa e transportes.

4ª religião – EMPRESAS DE SERVIÇOS

Por fim, o Ripple, uma categoria religiosa à parte. O famoso Denorex: parece, mas não é. Eu mesmo
acreditei por um período que o Ripple era um Blockchain até descobrir que era, na verdade, uma
plataforma fechada. Não podemos acusa-lo de golpe: ele não falou nunca na vida que era um
Blockchain, não parece Blockchain, não tem cara, cheiro nem gosto de Blockchain, mas tem um
token, o RPX, que é listado em algumas exchanges, e por algum motivo que desconheço tem
valorização no mercado.

Representantes desta quarta religião são plataformas fechadas. No caso do Ripple, com um fim único
de fazer transações interbancárias. Você conhece uma empresa chamada Swift? Não aquele
mercado que vende carnes, mas a Sociedade de Telecomunicações Financeiras Interbancárias
Mundiais. Pois bem, Swift é uma rede internacional de compensação bancária que é uma
cooperativa, cujos donos são os bancos, mundialmente falando. A Ripple é uma Swift moderninha,
versão 2.0, com novas tecnologias, mas o mesmo objetivo — ser uma rede internacional que serve
para bancos mandarem e receberem dinheiro entre si.
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Sim, os criadores do Ripple têm a intenção de ficar ricos vendendo isso para os bancos. Tanto assim
que o Swell, primeiro evento promovido pela empresa, aconteceu em 2017 em Toronto, na mesma
semana em que acontecia, também na cidade canadense, o Sibos, a conferência da Swift.

O RESULTADO?

Em março de 2018, o que não faltam são projetos piloto. O Hyperledger tem uns 800 pilotos pelo
mercado, quase todos pela IBM. O Corda tem os seus, mas como é um clube fechado e a ninguém
interessa divulgar o que está rolando, estimo que existam uns 10 pilotos.

Todo mundo testa, mas de concreto não há nada. Mesmo na primeira religião, na qual vou me
concentrar nos próximos artigos, não há muito para exibir. Porque a única coisa provada, testada (e
até hoje firme e forte) sobre a face da terra chama-se bitcoin.

Se estamos perto de inventar alguma coisa ou provar que o todo poderoso e mítico Blockchain pode
resolver nossos problemas? Ninguém sabe. Estamos mais perto do que antes? Sim, mas por
enquanto só em beta.

QUATRO RELIGIÕES, ALGUMAS BRIGAS

Agora que as religiões estão apresentadas, vale mencionar três principais brigas entre elas:

- Libertários X o resto do mundo

A primeira religião contra todas as outras, capitalistas que tem o lucro como objetivo final e que
estão tentando achar o Blockchain no final do arco-íris

- Coiners X o resto do mundo

Aqueles que só acreditam na função moeda/transação contra os que acham que vão descobrir a
tecnologia Blockchain para mudar o mundo

- BTC X o resto do mundo

Os maximalistas, que acreditam que só o bitcoin existe, contra qualquer um que diga o contrário

UM PARADIGMA DOS NEGÓCIOS

O que atrapalha o desenvolvimento do tão sonhado Blockchain é o fato de que ainda não ficou claro
quem será o novo dono do dinheiro.

Quando a Amazon assusta o varejo e se torna uma das maiores empresas do mundo ela está tirando
dinheiro do Walmart e da Macy’s. Quem antes gastava dinheiro em um, agora gasta em outro. Se o
Blockchain tem o potencial de tirar US$ 4 trilhões da cadeia mundial de logística, ninguém sabe para
qual mão esse dinheiro vai passar. Na verdade, teoricamente esse custo vai simplesmente
desparecer, vai para o limbo. Mas as pessoas que hoje lucram com esse dinheiro não têm nenhum
interesse em que ele desapareça.
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Esse é o grande paradigma de negócio que atrapalha o desenvolvimento do Blockchain. Se alguém


colocar a Amazon no Blockchain, não vai criar outra Amazon, vai criar uma ponte direta entre todos
os produtores de livros e todos os leitores de livros. E nenhuma organização poderosa vai ganhar
dinheiro com isso. O custo será pulverizado. O que nos leva à discussão sobre…

MODELOS ECONÔMICOS

A briga entre libertários e grandes empresas de tecnologia desenvolvendo suas próprias ferramentas
em resposta a eles é, no fundo, uma briga sobre modelo econômico. Vamos continuar com o modelo
econômico de altíssima concentração de empresas gigantes, como Amazon, Google, Tencent e
Alibaba ou vamos criar um modelo mais interligado? Teremos hiperorganizações ou indivíduos
conectados em rede?

A descentralização tal como imaginada pelos libertários, se for expandida para além da moeda, criará
um novo modelo econômico. Um indivíduo, em vez de ir para uma faculdade e fazer uma carreira
específica, vai ter “n” redes. O número de suas redes dependerá de sua complexidade. Se eu sou um
pai nesse modelo, por exemplo, estarei conectado à rede de pais e ganharei 0,01 centavo por cada
dica de troca de fraldas que eu der. Se eu tenho dedos curtos para tocar guitarra, posso ganhar mais
0,01 centavo para cada pessoa que assistir minha aula de guitarra. Uma economia distribuída,
descentralizada e completamente disruptiva. Parece utopia, mas pode ser o próximo passo da
humanidade.

DATPS - O QUE FOI FEITO?

UMA ESCOLHA, VÁRIAS RENÚNCIAS

Para criar as tais plataformas que tanto falamos, foram feitas escolhas e, muito mais importante,
renúncias, ao longo do caminho. Vamos a elas.

PEÇAS DE LEGO CONSTRUÍDAS AO LONGO DA HISTÓRIA

Metaforicamente, vamos imaginar a criação do bitcoin como uma criança brincando de Lego. Havia
várias peças disponíveis na caixa e algumas foram selecionadas para juntas, formarem a construção
desejada. A esta caixa onde estão as peças de lego eu dei o nome de ATA, sigla de para Autonomous
Trustless Architectures, ou Arquiteturas Autônomas sem Garantidor. Eu tive de inventar esse tipo
de nome, como tantos outros, em busca de um sentido melhor para as coisas. Como isso é parte do
meu doutorado, por hora, entendam que esse é o nome das peças que tem em cada Blockchain
(plataforma).

O fato de haver uma arquitetura sinaliza que há um parâmetro, uma receita de bolo, para criar
cryptonetworks. Para tentar facilitar o entendimento, podemos fazer uma analogia com casas.
Independentemente do tamanho ou do número de pavimentos que as construções tenham, há
características comuns que fazem as casas serem reconhecidas como tal: todas têm porta, telhado,
parede e janela… Uma pode ser bem pequena e térrea, outra pode ser uma mansão com piscina,
mas ambas são reconhecidas como casas, justamente por terem estas “peças” em comum. O que o
bitcoin fez foi estabelecer quais seriam os parâmetros (ou peças) comuns para a criação de uma
criptomoeda.
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PARTES PRINCIPAIS — OS BLOCOS OU ELEMENTOS DE CONSTRUÇÃO.

Inicialmente, é preciso entender que um padrão de arquitetura é constituído de suas partes


elementais, ou blocos de construção.

Imagine que outras crianças olharam essa construção, acharam bonita e quiseram copiá-la. Usaram
mais ou menos as mesmas peças, trocando um detalhe ou outro. As criptomoedas que vieram depois
do bitcoin são mais ou menos isso: construções não idênticas, mas baseadas em um modelo similar.
Quais são eles? Muitos. Mas vamos falar dos principais:

As chaves de cifragem

As chaves são extremamente importantes, porque são como o RG pessoal de cada usuário. Existe
uma chave pública e uma chave privada. Quando alguém quer mandar alguma informação para
terceiros, usa sua chave pública para fazer esse envio. Quando a informação chega ao destino, o
destinatário usa a chave privada para decriptá-la. Em outras palavras, a chave pública garante para
toda a rede que você é você e a chave privada permite que você decifre as mensagens. Nas
cryptonetworks, tudo é construído por encriptação e decriptação.

No caso do bitcoin, o algoritmo que gera as chaves públicas e privadas é o algoritmo de curvas
elípticas, mais especificamente o CHA 256.

Há pelo menos outros 50 algoritmos para gerar essas chaves. O lembrete relevante é: a chave é
importante, mas o algoritmo que gera a chave é SUPERHIPER importante, porque é o que garante
mais ou menos segurança.

Árvore de dados encriptados

A árvore de dados encriptados, conhecida como Merkle Tree, é uma peça criptográfica para fazer a
estrutura de dados. É o que viabiliza construir um bloco de dados encriptados. Na Merkle Tree, um
par de informações encriptadas é reunido, formando um novo bloco. Esse bloco se junta a outro e
assim por diante. Para ler uma Merkle Tree é preciso ler todos esses nós. Desenhando fica mais fácil
de entender:
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No chain of blocks do bitcoin, cada bloco da cadeia contém em si uma Merkle Tree. O último nó da
Merkle Tree é um link para o bloco seguinte. A primeira informação do bloco 2, por exemplo, é a
última informação do bloco 1. De novo, um desenho a juda:

Peer to peer network (usando o gossip protocol)

Em uma rede como a do bitcoin, em que quantias são enviadas diretamente de um usuário para o
outro, é preciso uma tecnologia peer to peer.
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No caso, a escolhida foi a chamada Mem Pool — mem de memory. É uma espécie de nuvem com a
qual se comunicam todos os usuários que efetuam transações e todos os servidores dos mineradores
de bitcoin, que consultam essas transações.

Para simplificar, imagine uma caixa de classificação do correio. Todas as cartas são jogadas lá e há
uma equipe direcionando as cartas. O Mem Pool é justamente isso. Agora que já temos esses
conceitos, vamos simular uma transação:

Eu, Courtnay, quero mandar dinheiro para João. Uso a minha chave privada para liberar a
quantia da minha conta e a chave pública do João para dizer para onde irá o dinheiro. Essa
transação vai para o Mem Pool. Os mineradores pegam essa transação e a colocam em uma
Merkle Tree. Para fechar um bloco, eles precisam reunir várias transações. Quando esse
bloco é fechado, a transação é efetuada. Na Merkle Tree ficam registradas informações
como o número da transação, a chave pública de quem enviou, a chave pública de quem
recebeu, data, hora, endereço da transação, entre outros. O chain of blocks fica nos
servidores dos mineradores.

O servidor (ou full node).

Toda criptomoeda tem um servidor e o do bitcoin tem algumas tecnologias que valem a pena
aprofundar. Uma delas é a tecnologia de validação de saldo. Usando a chave privada do usuário, ela
varre todas as transações no chain of blocks, identifica todas as transações feitas por aquele usuário
específico e calcula qual é seu saldo. Sim, é um tanto ineficiente fazer isso para toda e qualquer
transação, mas é assim que o bitcoin funciona.

Com o saldo verificado, o servidor verifica a assinatura do usuário para saber se foi ele realmente
quem mandou a transação. Feito isso, o valor é enviado, mas com um detalhe: o servidor não verifica
o destino, simplesmente manda para o endereço indicado, esteja ele correto ou não. Se um usuário
mandar bitcoins para um endereço que não existe, os bitcoins ficarão perdidos no limbo. (Claro que
essa característica incentivou algumas pessoas a criarem máquinas apenas para gerar endereços e
ver se algum deles “pesca” bitcoins perdidos no limbo).

Protocolo de consenso

O protocolo de consenso é a engrenagem que faz girar o mundo do bitcoin. É por este protocolo que
os mineradores se conectam para decidir quem será remunerado por gerar os blocos com as
transações. São as regras que ditam como os agentes vão autenticar e validar as transações,
prevenindo que a mesma transação esteja em blocos diferentes ou que transações anteriores sejam
editadas.

No caso do bitcoin, é utilizado um sistema chamado proof of work. É uma espécie de sorteio. Os
mineradores pegam as transações na Mem Pool, fazem um bloco e precisam gerar um hash, um
número de 64 bits para lacrar o bloco.

O algoritmo do bitcoin tem um grau de dificuldade autoajustável para controlar o quão difícil é gerar
esse hash. Quanto mais mineradores na rede, mais difícil é matematicamente encontrar o hash
exigido. Quando algum minerador grita “bingo!” (metaforicamente), o bloco é lacrado e enviado
para toda a rede.
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Se durante 30 segundos ele não for questionado, ou seja, não aparecer outro minerador dizendo
que também conseguiu gerar o hash, considera-se que foi o único a encontrar o número exigido. Se
antes dos 30 segundos aparecer algum questionamento, zera a brincadeira, cria-se outro bloco e a
disputa começa novamente.

Essa matemática do grau de dificuldade pode ser mais facilmente explicada comparando com a
Mega Sena. É como se o número de apostadores de repente aumentasse muito e a loteria deixasse
de ter 60 opções e passasse a ter 600. Alguém precisaria acertar 6 números entre 600 para levar os
milhões! No caso dos mineradores, o prêmio é dado em bitcoins.

As informações de transações só saem da Mem Pool quando elas forem gravadas no chain of blocks.
Por conta do protocolo de consenso, algumas transações demoram 2 segundos porque deram sorte
de entrar em um bloco minerado, outras demoram 10 dias.

Consenso é a palavra mais precisa para definir as transações de bitcoin, porque para que um
minerador garanta seu ganho, é preciso que toda a rede reconheça isso. Agora imagine um bando
de gente que se odeia e concorre entre si precisar entrar no consenso e dizer “fulano ganhou”.

QUANTAS “CONFIGURAÇÕES BÁSICAS” EXISTEM - AS CRIPTOMOEDAS FORAM SÓ AS PRIMEIRAS


ATAs

A ATA que descrevi acima usando o bitcoin como exemplo foi a primeira que apareceu na história.
Seu propósito é transacional. Assim como o bitcoin, existem outras moedas como o Dash, o Zcash,
que possuem os mesmos parâmetros e a mesma função: comprar e vender uma moeda.

O Ethereum, que aparece em 2015, pertence a uma segunda geração e significa uma nova ATA. Ele
possui uma moeda, mas com muitos elementos novos. O Ethereum pertence a uma geração
computacional. Roda códigos. É como se o mundo das criptomoedas deixasse de ter apenas casas e
passasse a ter prédios com uma oferta de serviços na área comum.

Da terceira à sexta geração vislumbramos apenas projetos em construção. É como se tivéssemos


saído das casas com o bitcoin em 2008 para planejar smart cities em 2018. Um salto gigante e um
ambiente efervescente do qual ninguém sabe muito bem qual bicho vai sair. Quanto mais reinar
como dominante…

Como falei, estes elementos se configuraram em “pacotes”, ou arquiteturas-modelo, para diversas


finalidades... Em breve, falaremos de outras extensões, mas por hora, o bitcoin é a versão final de
algumas tentativas com os elementos acima (e mais alguns temperos).
CERS – BLOCKCHAIN PARA ADVOGADOS

A COMPLEXA CIÊNCIA DA TAXONOMIA – DATPS ???

É hora de juntar os conceitos que exploramos anteriormente sobre ATAs e religiões. As ATAs são
modelos arquiteturais. Para ilustrar o conceito, fiz um paralelo com a construção de uma casa, que
tem características comuns, mas cujo resultado pode variar de um sobrado de 100 m² a uma mansão
com piscina e jardim. Dentro da primeira religião, aquela que reúne todos os programadores com
propósito libertário, criaram-se vários tipos de ATAs. É como se houvesse uma ATA para construir
casas, outra para construir prédios e outra ainda para construir condomínios fechados com uma
oferta completa de serviços aos moradores.

O resultado dessa explosão de possibilidades foi o surgimento de diferentes produtos e plataformas


no universo crypto. A materialização desses dois conceitos- ATAs e religião libertária — e onde toda
essa divisão teórica que fizemos até aqui se conecta para existir na prática, é um bicho que introduzi
resumidamente no texto anterior, mas que agora falaremos em profundidade: as DATPs.

“Mas Courtnay, quantos nomes, não estou entendendo nada!” Bom, eu já avisei que estou
estudando a taxonomia do mundinho crypto e tem sido meu trabalho dar nomes às coisas. Mas
calma que com exemplos da vida real a ideia vai ficar mais fácil. Veja só:

O Bitcoin é uma DATP. O Ethereum é uma DATP. O Dash é uma DATP. O Monero, o EOS, o
Litecoin, o Zcash, o Aion e o Cardano são DATPs. “Nossa, tudo isso?” Sim. Tudo isso e mais
800 outras plataformas em estágio de desenvolvimento.

DATP é o nome que eu escolhi para rebatizar o que o mundo inteiro tem chamado de BLOCKCHAIN
desde que o hype começou em 2015. Como disse em meu primeiro texto, blockchain para mim e
para quem realmente entende do assunto é só uma pecinha que compõe as ATAs — aquela que
mantém uma sequência inalterável de informações. É a metáfora do odômetro do carro. As
plataformas que foram criadas utilizando essa pecinha são muito mais divertidas e plurais e não
podemos reduzir sua beleza a um banco de dados. Elas são o conjunto de todas as tecnologias
materializada em uma forma única. Para usar o jargão da área de TI, as DATPs são a “instanciação”.

A sopa de letrinhas

DATP é uma sigla. E cada uma dessas letras foi escolhida a dedo para descrever como essas
plataformas são desenhadas.

a) Distributted ou distribuída

Toda DATP é 100% peer to peer (de pessoa para pessoa, de servidor para servidor). Ela é desenhada
para ser assim, seguindo a arquitetura “original” do Bitcoin (original porque deu origem a todas as
outras). Qualquer computador pode se conectar à rede sem se identificar e sem passar por qualquer
tipo de aprovação. A palavra-chave aqui é node. A diferença de um “nó” para um “servidor” é que o
primeiro é um ponto na rede exatamente como todos os outros, sem mais ou menos poder e
interconectado. São peixinhos em um gigantesco cardume. Uma imagem para ilustrar:
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Aqui é possível perceber que, na primeira imagem, se houver algum problema com o servidor
central, todos os outros participantes serão afetados. Na segunda imagem, de uma rede peer to
peer, retirar um computador da rede não vai prejudicar sua continuidade.

b) Autonomous ou autônoma

A rede autônoma é uma grande ambição das DATPs. O que isso significa? Que todos os participantes
operem em consenso. Aqui, entram duas ferramentas: o modelo de remuneração (também
conhecido como mechanism design) e os protocolos de consenso. O primeiro decide como os
integrantes da rede serão remunerados (quanto dinheiro o minerador ganha, por exemplo). Há
diferentes modelos de remuneração e essa é uma ciência complexa. Já o protocolo de consenso
garante que o bando de gente que não se conhece confie um no outro. O que nos leva à terceira
letrinha…

c) Trustless ou sem garantidor

Cuidado com confusões. Tanto trust quanto less são termos do inglês que dão margem para
interpretações erradas. Considere que, neste contexto, trust significa garantia (e não confiança) e
less significa algo como dispensável. Trustless quer dizer SEM GARANTIDOR. Ou seja, em nenhum
lugar haverá um terceiro para garantir as transações em moeda, como um Banco Central, por
exemplo. A rede das DATPs, da maneira que como é desenhada, dispensa cartórios, bancos e
governos para ter segurança e autenticação. Em um artigo muito interessante sobre esse conceito,
a engenheira de blockchains Preethi Kasireddy explicou o seguinte:

“Blockchains na verdade não eliminam a garantia. O que eles fazem é minimizar a garantia
exigida de um único participante no sistema. Fazem isso ao distribuir a garantia entre
diferentes participantes através de um jogo econômico que os incentiva a cooperar com as
regras definidas pelo protocolo”.
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d) Platforms ou plataformas

Plataformas significam que as DATPs são um resultado concreto, operando no mundo real, a partir
de um conjunto de regras. Assim como o Instagram é uma plataforma de compartilhamento de
imagens que precisa de fotos, método de login, acesso à câmera filtros de cor e conexão entre
usuários para existir, uma DATP precisa de protocolo de consenso, plano de remuneração para os
mineradores, arquivos físicos, wallets e mecanismos de geração de chave para existir — ferramentas
já explicadas no texto sobre ATAs.

Três características comuns às DATPs

Em todas as DATPs, você encontrará as seguintes características:

1) Open source

Seguindo a filosofia libertária, qualquer pessoa tem acesso ao código e participa do seu
desenvolvimento. Há ocasiões em que uma plataforma open source é copiada e colada dentro de
um projeto fechado. O Ripple, por exemplo, nasceu de uma DATP chamada Stellar que era, por
natureza, open source. Mas o Ripple é uma plataforma fechada.

2) Token

O token é a unidade de conta de cada plataforma. No caso do Bitcoin e de todas as outras DATPs
que foram criadas com a única finalidade de serem transacionais, o propósito do token é, de fato,
ser uma moeda com todas as funções que uma moeda como o dólar tem na vida das pessoas. Porém,
no caso de plataformas como Ethereum, a finalidade não foi criar uma moeda. O propósito do token
ETH é única e exclusivamente ser uma unidade de conta para remunerar os computadores que
executam os códigos. O fato de o ETH ter tido um pico de valorização foi pura especulação. Guarde
a seguinte informação: toda DATP precisa ter uma moeda como mecanismo de remuneração e
incentivo, mas não necessariamente ela foi feita para criar um ativo financeiro.

3) Validadores (mineradores)

São eles quem criam e emitem os tokens, apesar de em algumas plataformas os criadores do código
também poderem emiti-los. No caso do Bitcoin e do Ethereum, só os mineradores criaram dinheiro.
Já no caso do Dash, foi emitida uma quantidade inicial de dinheiro antes de os mineradores
começarem a trabalhar.

Os desbravadores

Como nasce uma DATP? Os responsáveis pela gestação e parto são os blockmasters. Uma equipe de
pessoas desenha a plataforma e faz seu desenvolvimento. Eles precisam entender os conceitos das
quatro ciências [colocar link para texto das ciências] em profundidade e colocá-los em prática. O
trabalho desse time resulta em um código. Quando o código é aberto para as comunidades de
desenvolvedores, aparecem mais pessoas para ajudar.
CERS – BLOCKCHAIN PARA ADVOGADOS

Questões de governança

Na hora que a DATP entra em produção, ou seja, começa a criar valor, ainda mais pessoas se juntam
à rede e inicia-se, então, uma disputa econômica para ver quem fica com a maior parte desse valor.
Mas se a briga de interesses é simplesmente para ver quem ganha mais no curto prazo, como fica a
governança?

Pois no caso do Bitcoin, a DATP original, não fica. Um dos motivos para ele não evoluir é justamente
porque algumas decisões técnicas prejudicam interesses econômicos e, assim, a rede não evolui.
Como criar uma funcionalidade nova ou decidir o que é importante para a próxima versão do Bitcoin
se todo mundo só defende o seu umbigo?

Ao mesmo tempo e, paradoxalmente, essa é a fortaleza do Bitcoin. O conflito de governança gera


uma robustez. Porque se alguma das partes tentar sacanear o sistema e passar por cima do protocolo
de consenso, todo mundo morre junto. Suponha que hoje o Bitcoin tenha US$ 200 milhões de valor
na rede. Com US$ 200 milhões, ninguém vai sacanear a rede, mas ao mesmo tempo será super difícil
tomar uma decisão que altere o equilíbrio econômico estabelecido. Uma vez que os jogadores se
acomodam em suas posições, ninguém vai querer perder.

O que acontece quando os conflitos tornam-se incontornáveis é o chamado hard fork, uma espécie
de dissidência na DATP, dando origem a uma nova plataforma que segue um caminho separado.

No ano de 2017, por exemplo, um desentendimento sobre qual deveria ser o tamanho dos blocos
do blockchain do Bitcoin fez com que um influente grupo de mineiros, programadores e investidores
fizessem um hard fork para criar o Bitcoin Cash, que possui uma capacidade de transação oito vezes
maior do que o original.

Em um hard fork, a plataforma é clonada e depois as regras são modificadas. O detalhe importante
é que o blockchain da plataforma original é copiado. Então, por exemplo, se o fork acontece no bloco
número 400.000, haverá duas versões do bloco 400.001. Um continua seguindo as regras da DATP
original e o outro passa a operar conforme decidido pela dissidência. Daí para frente, um blockchain
não fala com o outro. É criada uma nova DATP, com características singulares e um novo token, mas
seu histórico e chaves ficam todos iguais. Todas as informações pré-fork são levadas adiante.

No caso do Ethereum, a queixa em relação à governança é o contrário do Bitcoin. Como nasceu


depois e de maneira mais organizada, a Fundação Ethereum decidiu por uma governança mais rédea
curta. Poucas pessoas controlam o que vai ser colocado no ar. Essa prática produz também uma série
de conflitos e desentendimentos ideológicos e tecnológicos.

O Ethereum também já teve seus forks. O mais famoso deles foi o fork Ethereum/ Ethereum Classic.
Em 2016, um fundo de venture capital chamado The DAO, construído sobre a plataforma do
Ethereum, apresentou uma falha de segurança, levando à movimentação de 3,6 milhões de Ether
sem autorização de seus donos. Uma votação em julho de 2016 decidiu por uma hard fork no código
do Ethereum para resolver o problema causado pelo DAO. Os tokens antigos ficaram com o nome
de Ethereum Classic, usado por membros que rejeitaram o hard fork.

Blockchain bullshit

Todos os papagaios do mercado que anunciam o blockchain como a solução milagrosa para todos
os nossos problemas estão se referindo à maneira como o Bitcoin armazena informações — “ah,
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blockchain vai permitir guardar os arquivos de saúde e acabar com os cartórios”. Sim, o blockchain
é um arquivinho que grava tudo para o resto da vida, mas não necessariamente ele será a melhor
solução.

É possível fazer a mesma coisa que o blockchain do Bitcoin de uma maneira muito mais eficiente e
com outras tecnologias. Outras tecnologias para gravar arquivos criptográficos, como DAG e
hashgraph e tecnologias quânticas são capazes de substituir a pecinha que chama blockchain. A
minha insistência em tirar o foco do blockchain e colocar o holofote nas DATPs é que todas essas
outras tecnologias podem existir no universo das DATPs.

A DATP é a grande realização das ideias e várias plataformas estão tentando otimizar suas peças,
inclusive dispensando o blockchain — como IOTA e Tezos.

Blockchain não só é um nome ruim porque começaram a chamar a plataforma de peça (o carro de
odômetro) como também porque essa peça talvez nem seja a alternativa inventada para resolver a
questão dos arquivos.

A única promessa cumprida (até agora, 2019)

A única DATP madura o suficiente para ser chamada de sucesso é o Bitcoin. É a única plataforma que
cumpriu sua promessa inicial. Ela é única, inviolável, é uma moeda e permite transações peer to
peer.

Ao mesmo tempo, desde maio de 2017, o número de DATPs no mundo explodiu. E algumas com
propostas absolutamente inovadoras e ambiciosas. É sobre esse período cambriano das
cryptonetworks que falaremos no próximo artigo.

PS. Ainda em busca de um nome melhor

Admito que DATP é um nome horrível, mas não achei um melhor. De vez em quando, me
refiro a elas também como criptonetworks. Nenhum dos dois é sexy o suficiente para
substituir BLOCKCHAIN, é verdade. Mas cumprem seu papel de fazer essa diferenciação
conceitual.
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Quando temos várias gerações convivendo juntas…

Agora que entendemos quem players, Chaintechs e DApps, podemos aprofundar o conceito de
DATPs apresentando como essas plataformas evoluíram ao longo do tempo. Pode parecer que
estamos voltando algumas casas na trilha do conhecimento, mas na verdade estamos cavando mais
fundo os buracos da sabedoria.

Eu decidi criar uma classificação do mercado e das empresas a partir de sua evolução, subdividindo-
as em GERAÇÕES. Cada uma evolui em relação à anterior adicionando novas funcionalidades. O
Bitcoin, o marco inicial dessa onda, chamei de primeira geração, e incluí neste grupo os produtos
que se limitam a uma funcionalidade transacional, como explicarei abaixo. Todas as outras que
vieram na sequência continuaram sendo transacionais, mas sempre agregando novidades.

Por que só podemos voltar a esse assunto de DATPs agora? Porque as novidades agregadas são
justamente as Chaintechs e as DApps. As DATPs criadas mais recentemente decidiram internalizar
em suas plataformas originais todos os serviços acessórios, com o objetivo de evitar pulverização e
fragilidades.

Toda essa história ainda é muito recente. O Ethereum, que classifico como segunda geração, nasceu
em meados de 2015. Portanto, tudo o que veio depois ainda nem saiu das fraldas e está em fase de
construção. Mas ainda assim é possível rascunhar uma linha tempo com tudo que temos de 2009
até hoje.

Geração 1

O Bitcoin é o representante máximo da primeira geração de DATPs. Seu objetivo é criar uma
criptomoeda e sua funcionalidade principal é fazer transações. A existência da moeda e a
possibilidade de transferi-la diretamente de uma pessoa para outra é a grande sacada desse grupo
inicial. Para que isso acontecesse, foi necessário criar um sistema de contabilidade perfeita,
registrando todas as transações e maneira inviolável. No Bitcoin, a estrutura escolhida para fazer
isso foi a tecnologia blockchain.

Há duas características encontradas nessa primeira geração:

- Sistema transacional: o ativo não existe se não houver transação. Uma operação de crédito,
outra de débito. Porém, nem todas as criptomoedas fazem transação em uma velocidade
eficiente porque mais importante do que a rapidez é a validação da transação.

- Sistema 100% sem dono: ninguém é dono da transação na estrutura criada pelas
criptomoedas. Um sistema complexo de mineradores e incentivos econômicos garante uma
distribuição da responsabilidade pela transação.

Na carona do Bitcoin surgiram mais de 600 criptomoedas. Algumas com novos modelos de
governança (como Dash e Decred), outras com novos modelos de segurança (como Monero e zCash).
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Geração 1

Essa geração intermediária foi criada para acrescentar algumas funcionalidades ao Bitcoin. Algumas
pessoas começaram a rodar códigos com máquinas que pagam bitcoins. É uma geração ainda
transacional, com esteroides e talvez chegando a smart contracts, mas em esquemas parecidos com
side chains (tema complexo, aguardem cenas dos próximos capítulos)

Dois exemplos são o RSK e o Q-TUM. O RSK se define como a primeira plataforma open source de
smart contract atrelada ao Bitcoin, cujo objetivo é adicionar valor e funcionalidades ao ecossistema
da criptomoeda, como pagamentos mais rápidos e maior escalabilidade. Seus parâmetros permitem
criar blocos em um intervalo médio de 10 segundos. Já a Q-TUM promete combinar a confiabilidade
do blockchain do Bitcoin com as possibilidades dos smart contracts.

Nesta geração muito se fala das CBCC (moedas de bancos centrais), mas isso é outra novela.

Geração 2

A segunda geração de DATPs surge a partir de um gap no Bitcoin. Quando as pessoas estavam
tentando operacionalizá-lo, surgiu a necessidade de criar scripts. Script, para os programadores, é
um tipo de código pouco profissional e pouco compilado para resolver problemas que não podem
ser trabalhados dentro do sistema principal. A tentativa era colocar scripts no Bitcoin para
automatizar algumas tarefas como pagamentos e consultas, mas não deu muito certo.

Então, em algum momento entre 2012 e 2014, dois rapazes chamados Vitalik Buterin e Gavin Wood
começaram a pensar nesse problema de ficar fazendo scripts para melhorar o Bitcoin. Para eles
deveria haver um jeito melhor de automatizar as coisas lá dentro. O jeito melhor foi criar uma
plataforma usando o conceito virtual machine, um pequeno sistema operacional no qual é possível
inserir código. Assim, surgiu ETHEREUM VIRTUAL MACHINE (EVM) e uma nova geração com duas
funcionalidades: transação + código.

Esse código inicial do Ethereum não tinha funcionalidades sofisticadas. Além da capacidade de fazer
transações, tinha uma linguagem computacional, um sistema simples de mensagem e um file system
para armazenar arquivos. A grande revolução foi a criação de um modelo de computação distribuída.
Com servidores distribuídos e código distribuído, o resultado é a criação de uma internet à prova de
censura. E uma plataforma capaz de sustentar aplicações — assim nasceram as DApps. O código do
Ethereum tem um interesse libertário, assim como a moeda bitcoin. Foi aqui que surgiram os ICOs
(initial coin offerings), que levaram o mercado financeiro à loucura em 2017 — teremos um texto só
sobre isso, não se afobem.

Como a versão inicial era simples, logo surgiram os puxadinhos. O sistema de mensagem evoluiu, o
file system também. Apareceram ferramentas complementares que eram similares à tunagem de
um carro — características adicionais para deixar a plataforma mais potente.

PS. No caso da segunda geração, há um adendo a ser feito. Algumas DATPs de finalidade
específica foram criadas. O Iota, por exemplo, é uma plataforma criada para a Internet of
Things. Ela possui transação e código, mas tem um nicho de atuação específico. Vale notar,
inclusive, que a Iota sequer usa a tecnologia blockchain como arquivo de transações, mas
sim a tecnologia DAG, também chamada de Tangle.
CERS – BLOCKCHAIN PARA ADVOGADOS

Geração 2,5

O mesmo Gavin Wood, sujeito que fundou o Ethereum, também aparece como protagonista aqui
nessa geração intermediária do que eu chamo de “interblockchains”. A ideia dessa onda é fazer uma
DATP conversar com a outra (de um jeito criptográfico extremamente complicado). As transações
ficam absolutamente lacradas. Wood é um dos criadores do Polkadot . Outros exemplos são a
Wanchain e Cosmos, meu favorito. Como elas mesmas se definem:

Polkadot é feito para conectar chains privadas/consórcios, redes públicas/ permissionadas, oracles
e futuras tecnologias no ecossistema da Web3. Ele permite uma internet na qual blockchains
independentes podem trocar informações e transações sem garantidores através da relay chain do
Polkadot.

Cosmos é uma rede de blockchains cujo propósito é resolver problemas de longa data nas
criptomoedas e comunidades blockchain. O objetivo final é permitir vários blockchains soberanos e
fáceis de desenvolver a ganharem escala e terem interoperabilidade, criando uma Internet dos
Blockchains.

Fazer as redes conversarem interessa a todo mundo. Já existem centenas de tokens no mundo. Toda
vez que o dono de um token quer migrar para outro, precisa pagar uma taxa para as exchanges, que
são os intermediários desse mercado. Seguindo a filosofia das cryptonetworks, qualquer coisa que
elimine o intermediário será aplaudida.

Geração 3

Quando os desenvolvedores perceberam que o próprio Ethereum estava ficando cheio DApps,
serviços acessórios que eram praticamente pencuricalhos da plataforma original, apareceu a terceira
geração. Olharam para o ecossistema e pensaram “vamos pegar todos esses puxadinhos, colocar
vários programadores para trabalhar nisso, montar um um super white paper e fazer uma
plataforma completa”. A diferença da segunda para a terceira geração é que, em vez de tunar o seu
carro, você já pode comprá-lo completo, cheio de luxos e funcionalidades, direto da fábrica.

Aqui, houve uma mudança de finalidade. Enquanto o Ethereum trabalhava com o conceito de
plataforma, a terceira geração estava pensando em um sistema operacional, pensando em
desenvolvedores que construiriam aplicativos para torná-la mais completa. Fazendo um paralelo
com um mundo já conhecido, mais ou menos o que a Microsoft fez ao desenvolver o Windows, o
sistema operacional, e depois convocar desenvolvedores para inventarem aplicações para o sistema.
Você faz uma plataforma e chama a galera para criar em cima de você. Lembra o Steve Ballmer
repetindo sem parar “developers, developers, developers…? Não foi à toa.
(https://www.youtube.com/watch?v=Vhh_GeBPOhs)

Os melhores exemplos dessa geração são o EOS, o Blockstack e o NEO.

Vale dizer que, se na primeira e na segunda gerações havia uma identidade dentro de um sistema
fechado, a partir da terceira geração é possível criar uma identidade pública, equivalente a um
passaporte no mundo real.
CERS – BLOCKCHAIN PARA ADVOGADOS

Geração 3,5

Uma viagem muito louca com Inteligência Artificial. Um grupo de DATPs sendo desenvolvido como
sistemas operacionais (por isso pertence à terceira geração) mas com programação de smart
contracts feita por IA, com consensos baseados em redes neurais.

Os exemplos são a Seele e a Matrix, que se define da seguinte maneira: a fusão de blockchain e
tecnologias de Inteligência Artificial permitem construir uma criptomoeda revolucionária, que
garante uma velocidade de transação aumentada, maior acessibilidade aos usuários, melhor
segurança contra-ataques e operações flexíveis.

Geração 4

A quarta geração tem tantas funcionalidades quanto as anteriores (transacionais, computacionais,


com smart contracts). Porém, olham de maneira diferente para os desenvolvedores. Se a terceira
geração construiu um sistema operacional, a quarta geração pensou maior, querendo já embutir
todas as aplicações em sua versão inicial. A ambição é grande: criar um ecossistema inteiro de
serviços, colocando ideias como e-commerce, sistema de pagamentos, APIs e know your customer
já dentro de uma plataforma única, sem que terceiros precisem desenvolvê-las e plugá-las. O
objetivo de fazer isso é não ter outras plataformas criando novos tokens em cima da sua, mas sim
capturar tanto valor quanto possível dentro de um único token.

Para que o plano se concretize, aqui é preciso ter um diferencial em relação às gerações anteriores:
criar regras de negócios. Para ter um serviço de e-commerce, é preciso criar regras de estoque,
disponibilidade e pagamento. Assim, os criptoativos começam a se integrar de maneira curiosa com
o mundo real.

Todos os projetos da quarta geração ainda estão muito embrionários, mas entre os representantes
podemos citar AION, ICON e AIKON.

Trocando em miúdos…

O resumo dessa ópera é que saímos de uma geração com finalidade específica (transacional) para
plataformas que estão tentando integrar cada vez mais serviços.

Assim como já comentei em outros textos, a única DATP que se provou à prova de bugs e que
cumpriu totalmente o objetivo inicial proposto foi o Bitcoin. Além disso, as gerações seguintes
começaram a surgir em meados de 2015, ou seja, cerca de três anos atrás, no que eu chamo de
explosão cambriana das cryptonetworks. Por isso, em um espaço tão curto de tempo, seria ousado
esperar uma nova plataforma dominante.

E mais um personagem da história

Correndo por fora estão as DLTs. Ao contrário do mundo distribuído, autônomo e sem garantidores,
ao qual pertencem todas as plataformas apresentadas até aqui neste texto, existem plataformas que
pertencem a grupos fechados de empresas e, por serem financiados, não precisam ter um sistema
de mineração nem um token para remunerar o sistema.
CERS – BLOCKCHAIN PARA ADVOGADOS

Como as DLTs também são open source, elas conseguem integrar inovações que estão surgindo no
universo das DATPs. Assim, esses grupinhos empresariais fechados também se beneficiam das ideias
e aplicam às suas plataformas.

As DLTs são, portanto, uma segunda força crescendo paralelamente e uma força mais organizada do
que as DATPs, porque possuem donos. Enquanto DATPs são formatos de startups, códigos nascendo,
máquinas de tentativa e erro, as DLTs já nascem com um business case e um objetivo claro. Por isso,
tendem a evoluir mais rapidamente, pela própria natureza de como as decisões são tomadas. Assim,
eventualmente, essas plataformas controladas por empresas estabelecidas podem sair na frente.

Três questões existenciais

Nessa disputa entre gerações e entre DATPs e DLTs, aparecem algumas questões existenciais sobre
como será o futuro das cryptonetworks:

- Alguma plataforma se destacará entre as demais e se tornará dominante?

- Haverá especialização, assim como aconteceu entre Apple (sistema preferido dos designers) e
Windows (sistema preferido do mundo corporativo)?

- E se não houver nem plataforma dominante nem especializada, como será possível integrar tantas
iniciativas pulverizadas? Será criado um padrão? Também fica a dúvida se as DLTs, que só existem
no formato de especialização, dividirão espaço com as DATPs, se ficarão para trás ou se dominarão
o mercado primeiro. Como se vê, ainda estamos em um tempo de muitas perguntas e poucas
respostas sobre o mundinho crypto.

PIADA DE PESQUISADOR

Como estou nos estudos da taxonomia, fizeram uma piada que coloco aqui para exemplificar as
dificuldades desta jornada

Reino: Catenas

Filo: Abertus

Classe: POW

Interclasse: ASIC

Ordem: Monedas

Familia: Satoshi

interfamilia: Puros

Genero: Bitcoin

Especie: Verdadeirus
CERS – BLOCKCHAIN PARA ADVOGADOS

Minha opnião (forte, incisiva, mas apenas uma opnião).

E o motivo final, minha opinião mais radical: Não se pode criar uma estrutura dessas genérica, ela
tem de ser criada para um propósito específico, assim como o bitcoin (a plataforma) foi toda
construída para, em específico, gerar a viabilidade de uma moeda global sem governo, através de
uma rede global de validadores (mineradores) unida por uma de incentivos. Cenas dos próximos
capítulos...

Os atores dos BlockMarkets

febre das criptomoedas e a euforia do mercado financeiro tradicional com o admirável mundo novo
do blockchain criaram um caldeirão borbulhando de iniciativas. Surgiu um mercado especializado e,
dentro dele, convivem diferentes players. Uns maiores que os outros, uns mais poderosos que os
outros. Conhecê-los ajuda a entender as criptonetworks, os atritos que acontecem entre grupos
diferentes e os novos modelos de negócio sendo criados.

Considero player toda empresa ou produto que ajudou a formatar o mundo crypto ou surgiu para
tirar uma casquinha do hype. Mas gosto de classificá-los em “caixinhas” diferentes. Na minha visão
isso facilita o entendimento de mercado e do futuro. Vamos aos players:

DATPs
As plataformas a partir das quais surge todo o resto. Players como Bitcoin, Ethereum e EOS são
DATPs. São as “donas” dos tokens básicos/primários (ETH e BTC, por exemplo), em torno dos quais
gira a economia das criptonetworks. Além disso, com o surgimento dos ICOs (initial coin offering) a
partir da criação da plataforma Ethereum, há muito dinheiro entrando, fazendo com que essas
plataformas também sejam players econômicos. Estudaremos melhor a questão dos ICOs em um
artigo futuro.

Centros de conhecimento
Os locais onde a galera se reúne para pensar e construir a próxima inovação. Universidades, centros
de pesquisa, institutos especializados, incubadoras, coletivos, coworkings. Todos os ambientes por
onde circula informação, conhecimento e troca de experiências, onde nascem novas ideias e onde
se coloca a mão na massa. Um grupo de players formado por pessoas e hubs.

Exchanges
Nessa grande categoria entram as corretoras, que copiaram o modelo de casa de câmbio do mundo
tradicional e colaram no mundo cripto. São as corretoras que permitem a troca de uma moeda
virtual por outra e a conversão de moedas nacionais, como o dólar, em criptomoedas. Há uma
subcategoria de corretoras que são as DEX (decentralized exchanges, ou corretoras
descentralizadas), como a ShapeShift, que fazem a troca de moedas peer-to-peer, evitando que os
ativos do usuário fiquem vinculados a uma empresa terceira. A vantagem das DEX é que, por realizar
uma operação direta, de usuário para usuário, ela fica menos sujeita a ataques de hackers ou
fraudes, como a que acontece no famoso caso da Mt. Gox. Para quem não sabe o que foi, a MT. Gox
era exchange de bitcoin, baseada no Japão, que surgiu em 2010 e em 2014 já processava cerca de
dois terços das transações de bitcoin do mundo. Repentinamente a empresa suspendeu as
negociações, fechou o site e declarou falência. Quase 850 mil bitcoins de clientes sumiram, o que na
época equivalia a cerca de US$ 450 milhões.
CERS – BLOCKCHAIN PARA ADVOGADOS

WALLETS
Nesta caixinha das Exchanges também estão as wallets, as carteiras, onde as criptomoedas
idealmente ficam armazenadas — são os cofres pessoais. As wallets permitem que o usuário controle
a sua chave privada. Se já esqueceu o que é uma chave privada, volte ao texto das ATAs (mas
resumindo, é como se fosse o seu RG das criptonetworks, sua assinatura na rede). As wallets podem
ser físicas, como a Trezos e a Ledger Nano ou em forma de software (mobile, online ou desktop).
Pessoalmente, eu uso apenas as físicas, porque são mais seguras. É um aparelho um pouco maior
que um pen drive, com um visor. Podem ser conectadas ao computador via cabo USB. Através delas,
você guarda, compra e vende criptomoedas. Para autorizar as transações, digita no visor a chave
privada correspondente à criptomoeda que você quer mexer. A rede tem acesso apenas à chave
pública correspondente à sua chave privada para efetuar a operação.

Por fim, as casas de OTC (“over the counter”), que permitem fazer contratos e transações sem uma
corretora como intermediária. É um negócio fechado diretamente entre dois players, que não são
públicas e, portanto, de valor não revelado.

Ainda não existem, mas podem ser criadas em breve e estariam nessa categoria de players as “dark
pools” do mercado cripto, um instrumento também copiado do mercado financeiro que permite aos
investidores emitir ordens e fazer transações sem revelar suas intenções até que a ordem seja
executada. São como bolsas de valores privadas, gerenciadas por grandes operadores. Também
podem existir em breve os criptoderivativos. Praticamente um clone de Wall Street.

Jurídico
Os players jurídicos ainda não têm uma atuação forte, mas existem. São os reguladores, advogados
e cartórios. Uma adaptação do mundo real para o mundo cripto.

Hardware
Neste grupo de players entram as maquininhas que ajudam o sistema a funcionar e que são usadas
para minerar criptomoedas. São os ASICs (Application Specific Integrated Circuits), uma espécie de
computador especializado em minerar bitcoins. Junto com eles nos data centers estão as CPUs
tradicionais, os servidores, e hardware de armazenamento.

Grandes fazendas de mineração de criptomoedas foram criadas no mundo todo. Sorte da Nvidia e
da AMD, empresas que fabricam processadores e viram suas ações dispararem após o mercado
descobrir que seus produtos eram muito úteis para minerar Ethereum.

Mineradores
São os donos do hardware, prestadores de serviço e são um grupo com interesses próprios. Uma
categoria de players muito poderosa. São eles quem criam e emitem os tokens. Entre os gigantes
está a empresa BITMAIN, do chinês Jihan Wu, que controla uma das maiores Bitcoin mining pools
do mundo, a Antpool.
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Brokers
Novamente, um “copia e cola” do mercado financeiro tradicional. Aqui estão os traders, os agentes
(que fazem as compras e vendas para outras pessoas), os Asset Managements (que fazem a gestão
de recursos de terceiros) e os fundos de investimento, que podem ou não estar vinculados aos
Assets.

Investidores
São os players que compram e vendem moedas, que colocam dinheiro em ICOs ou que investem em
empresas do mundo cripto. Pessoas físicas, fundos, empresas de venture capital e os diferenciados
HNWI (High-net-worth individual ou, em bom português, gente podre de rica).

Informação
Os players de informação são os que reúnem dados do mercado, fazendo análise em cima deles ou
não. Os sites de eventos, os portais de notícias, as equipes de research(analistas especializados que
monitoram e interpretam os números), os relatórios. A CoinDesk, por exemplo, é uma gigante de
notícias que também faz relatórios, como o State of Blockchain, e eventos, como o Consensus.

DApps
As DApps são os produtos e serviços construídos sobre as DATPs. São aplicações criadas 100% dentro
das cryptonetworks. São um grupo de players que coloco separadamente por terem uma
característica diferente dos demais: nasceram dentro das plataformas, seu código roda dentro delas
e se o mundo cripto ruir, as DApps deixam de existir. Pense no mundo como conhecemos hoje.
Amazon e Netflix são aplicações construídas sobre a internet. A expectativa é que as DApps sejam
as Amazons e as Netflixs do futuro, construídas sobre plataformas autônomas e descentralizadas
como o Ethereum. Aliás, o Ethereum é a plataforma sobre a qual estão construídas 99% das
aplicações. As Dapps são um amálgama para todos os players, porque são construídas utilizando o
conhecimento e tecnologia disponível para integrar novas funções às cryptonetworks. Um exemplo
é a Bitpay, a maior empresa do mundo de processamento de pagamentos com bitcoin. Em um
paralelo fácil para os brasileiros, é a Cielo do bitcoin. Sem o bitcoin, ela deixará de existir. Mas se o
uso do bitcoin continuar crescendo, será um serviço cada vez mais relevante.

As tretas
Sim, como em todo mercado, há brigas de poder.

A primeira categoria de tretas é entre os concorrentes de um mesmo grupo de players. As exchanges


às vezes se desentendem por causa de cotações, por exemplo. Hoje são quase 1.400 representantes
se enfrentando, com o risco adicional de que podem ser ameaçadas em breve pelas distributed
exchanges.

A segunda categoria de tretas é entre os diferentes players. Os grupos com maior poder de fogo hoje
são os mineradores, as exchanges, os investidores e as DATPs (e seus criadores). São os pilares de
força do mercado e todas as grandes decisões giram ao redor deles.

No Bitcoin, a plataforma mais antiga, é onde está a maior rede de mineração, o maior grupo de
investidores e a maior quantidade de exchanges.
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Um dos exemplos de debate que já ocorreu na plataforma é sobre o tamanho dos blocos de
mineração ou, simplificando, qual o limite de arquivos e transações que podem ser criptografados
em um único ponto da cadeia de block chain. A questão gerou controvérsia entre os mineradores e
os desenvolvedores. Nesses casos, não há lado certo ou errado, bons e maus. É simplesmente a
dinâmica do mercado. Cada player defendendo seu interesse. Se não quisessem brincar, seria
melhor não terem descido para o playground.

Com gigantes, sem igualdade


As cryptonetworks hoje estão cheias de grandes predadores e isso dificuldade uma maior igualdade
entre os players no mercado. O mundo ideal seria diminuir a concentração de poder e ter mais
pequenos players atuando.

A especulação sem regras também complica. Há exchanges que fazem operações contra seus
clientes, há instituições e investidores que compram e vendem moedas mal compreendendo o
conceito das cryptonetworks, apenas para ver se conseguem um retorno maior do que em
investimentos tradicionais.

Entre os players, é bom lembrar, nem todo mundo ficou rico. Há os que ficaram no vermelho e os
que ainda está tentando sair dele. Há quem rachou de ganhar dinheiro sem nem saber o que estava
acontecendo — como os investidores que compraram bitcoin em janeiro de 2017 e, no final do ano,
tomaram um susto com a valorização de mais de 1000%. E há os idealistas que pensam em DATPs e
DApps pela ótica do propósito libertário, que querem criar um modelo de negócio distribuído e sem
intermediários usando a tecnologia.

O tempo dirá quem continuará no jogo e quem ganhará com ele.

D.Apps — O que diabo são as aplicações distribuídas, afinal?

Falamos de ATAs, as arquiteturas. Falamos de DATPs, as plataformas autônomas e com espírito


libertário. E então, é hora de apresentar a terceira sigla: as DApps (descentralized applications ou
aplicações descentralizadas). Desta vez, eu não levo o crédito pela sigla, que felizmente já está
bastante difundida no mundo crypto.

As DApps nada mais são do que uma maneira de construir aplicações em cima das DATPs. Pense no
mundo como conhecemos hoje. Amazon e Netflix são aplicações construídas sobre a internet. A
expectativa é que as DApps sejam as Amazons e as Netflixs do futuro, construídas sobre plataformas
autônomas e descentralizadas como o Ethereum — atualmente, uma das DATPs mais populares.

Apesar de essa ser uma boa metáfora para facilitar a explicação, a história não é tão simples assim.
Nos próximos parágrafos, tentarei explicar um pouco mais sobre elas e por que o caminho para a
consolidação será longo.

Uma rápida ascensão


As DApps nasceram em 2015, junto com a criação da plataforma Ethereum. Elas explodiram em 2017
e hoje somam mais de 1.400 serviços diferentes. Um bom paralelo histórico é o que aconteceu nos
anos 1990 com o frenesi das pontocom.
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Os sites criados naquela época estavam para a web assim como as DApps de hoje estão para o
blockchain. Ou assim como os apps estão para o mobile no momento atual.

Aliás, o universo de DATPs é muito mais parecido com o universo mobile do que com a web. Isso
porque são plataformas diferentes que não conversam entre si. Assim como fazer um aplicativo que
roda em IOS funcionar em Android requer modificar uma série de detalhes em sua estrutura, as
DApps são muito específicas para as plataformas sobre as quais foram criadas. Uma DApp para
Ethereum vai ficar presa ali.

Onde vivem, como se alimentam?


A principal característica das aplicações é possuírem um modelo econômico diferente das
plataformas nas quais estão baseadas. Elas não fazem parte do modelo do protocolo das DATPs, que
continuarão existindo e funcionando de maneira independente. É diferente dos mineradores, por
exemplo, que são parte fundamental do modelo das DATPs — sem eles, as plataformas não se
sustentam.

Por não integrarem a “economia” das DATPs, as DApps possuem uma maneira diferente de ganhar
dinheiro, não dependendo do modelo de remuneração das DATPs. Uma aplicação baseada em
Ethereum, por exemplo, tem receita em Ethers, mas para ganhar esses Ethers, alguém na outra
ponta precisa converter dólares ou qualquer outra moeda para obter o token e utilizar a aplicação.
Assim, as DApps estão relacionadas às moedas nacionais.

Uma diferenciação relevante: as DATPs são plataformas específicas que criam confiança sem
centralização. As DApps simplesmente se aproveitam dessa rede de confiança para criar negócios,
ficando fora dela.

Um exemplo para facilitar o entendimento: as wallets, carteiras de criptomoedas, são tipicamente


DApps. As wallets são programas que guardam as chaves públicas e privadas dos usuários,
permitindo a eles receberem e enviarem criptomoedas para outras pessoas. As wallets utilizam a
confiança de plataformas como Bitcoin e Ethereum para existir, mas são construídas à margem delas,
tendo um modelo econômico muito mais baseado nas moedas tradicionais do que no dinheiro
cripto.

Outro exemplo: as exchanges, que permitem trocar moedas como dólar e real por dinheiro cripto.
Elas nada mais são do que corretoras, casas de câmbio. Não têm uma rede de mineradores, um
protocolo de consenso ou uma tecnologia para criar chaves públicas e privadas (como uma DATP).

Algumas DApps funcionam em apenas uma plataforma, outras conversam com todas. As exchanges,
por sua função, precisam estar conectadas a todas as DATPs. Se são um mercado de compra e venda
de tokens, devem se ligar a todas as plataformas.

Já Gnosis é uma aplicação de finalidade específica atuando no prediction market. Ou seja, quer ser
um hub de previsões, agregando informações sobre o resultado esperado de um evento futuro com
incentivos financeiros. “O Corinthians vai ganhar a Libertadores?” é uma possível pergunta sobre a
qual a Gnosis pode ter uma previsão. Ela está 100% baseada em Ethereum e só funciona nessa rede.
Assim como a Augur, outra iniciativa da qual gosto, também uma plataforma de prediction market.
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DApps e Web 3.0


Matteo Gianpietro Zago, chairman da The Internet of Blockchains Foundation, publicou em seu
Medium um texto [MG1] falando sobre DApps e Web 3.0, fazendo um paralelo entre aplicações que
hoje utilizamos com tanta frequência e exemplos de DApps que poderão substitui-las. A Web 3.0 é
uma internet onde os intermediários são removidos do jogo, onde grandes estruturas de poder
como Facebook e Uber perdem espaço, onde os dados dos usuários não são controlados por
terceiros.

Os problemas

A parte chata dessa história é que as DApps acabaram se tornando um dos calcanhares de aquiles
das DATPs. Elas são o principal ponto de falha. Tudo o que você já ouviu falar de vazamento, ataque
de hackers, bug na wallet, furtos e sacanagens com os usuários, pode apostar que o problema não
era na plataforma principal.
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Foi assim com a Mt. Gox, uma Exchange de bitcoin baseada no Japão. Em 2014, processava cerca de
dois terços das transações de bitcoin no mundo e repentinamente suspendeu as negociações,
fechou o site e declarou falência. Quase 850 mil bitcoins de clientes sumiram, o que na época
equivalia a cerca de US$ 450 milhões.

Apesar dos escândalos com algumas DApps, a rede Bitcoin foi em frente, sem falhas em seu modelo.
Os problemas das aplicações não significam que o Bitcoin não seja seguro ou que o Ethereum não
seja seguro.

Persistiu, no entanto, uma segunda questão. As DApps também interferem no conceito de


plataformas autônomas das DATPs. Como? A criação de entidades que, em teoria, ficam na borda
do sistema, pode ser só o primeiro momento. Conforme as DApps se fortalecem, em um segundo
momento podem se tornar maiores do que o próprio sistema, tentando mandar nele. É o que
acontece hoje com o Bitcoin, espremido em meio às exchanges e outras aplicações de influência.

Considerando esses dilemas, DATPs criadas mais recentemente decidiram colocar dentro de suas
plataformas originais todos esses serviços acessórios, com o objetivo de evitar pulverização e
fragilidades. Internalizaram as DApps para não deixá-las em volta, desequilibrando o poder —
assunto que será tema do próximo artigo.

Ainda estamos longe de um HTTP para as cryptonetworks


Todo esse caldo de inovações é muito divertido, mas precisamos manter os pés no chão. Para
explicar por que ainda estamos longe de saber quem será o modelo vencedor ou como DATPs e
DApps estarão existindo e interagindo em um futuro próximo, usarei novamente o paralelo com a
internet.

Em 1989, Tim Berners Lee criou a World Wide Web e implementou a primeira comunicação bem-
sucedida entre um cliente e um servidor Hypertext Transfer Protocol (HTTP). Esse se tornou o
protocolo da internet. A DATP que se consolidar provavelmente será como o HTTP, o novo padrão.
Porém, ainda não sabemos quem é a ganhadora dessa história. A maioria das DATPs ainda estão
sendo construídas.

Além disso, quando o HTTP surgiu, não funcionou para muita coisa, ele era o servidor. Ele precisava
do equivalente a uma DApp. Qual foi a aplicação matadora do HTTP? O browser. E aí apareceu a
Netscape, o primeiro browser de sucesso no mundo.

Considerando esse cenário, onde estamos? Tentando descobrir qual é o HTTP e qual é o browser as
cryptonetworks. As criptomoedas são as únicas DATPs maduras, mas são o primeiro passo de uma
potencial revolução. Ainda veremos muitas criações surgindo, tanto em termos de DATPs quanto
em termos de DApps.

Qual é a chance de alguém fazer hoje uma DApp que pare em pé? Quase nenhuma. Sabemos se o
Ethereum enfim estará pronto nos próximos anos? Ainda não. Volto ao meu argumento de sempre:
there’s no blockchain yet.
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As oportunidades e os desafios do mundo cripto para as chamadas Chaintechs

Chegou a hora de falarmos sobre as chaintechs, uma categoria de empresas de tecnologia que têm
um pé no mundo tradicional e outro no mundo cripto. Antes de mais nada, entendamos que toda
DApp é uma Chaintech, mas nem toda Chaintech é uma DApp. Vamos explorar um pouco mais sobre
esse tema, afinal, diferentemente de outras iniciativas deste mundo digital, que ainda estão no
universo das ideias, as chaintechs já são uma realidade.

Essa categoria de empresas encabeça o ecossistema de players high-tech dentro do mundo cripto e,
como o próprio nome sugere, mantém um elo com outras “techs”, sejam elas as edtechs (educação),
as legaltechs (universo jurídico) ou mesmo as fintechs (setor financeiro).

Usemos como exemplo as exchanges, que fazem a troca de moedas, seja de dólar para euro ou
bitcoin para yuan. Essas corretoras são o tipo mais comum de chaintech que temos atualmente, por
operarem tanto no mundo real, como no mundo cripto e funcionarem como uma ponte entre os
dois.

É fato que o câmbio é a função principal dessas corretoras. No entanto, por serem um dos poucos
players que já estão com a mão na massa neste novíssimo mundo cripto e estarem desbravando um
universo ainda inóspito de recursos, as exchanges têm assumido outros papéis. É aí que aparecem
mais claramente a relação entre as empresas tech.

Uma das missões que as exchanges assumiram foi a de educar o mercado, no papel de uma edtech.
Boa parte das vídeo-aulas, dos canais de informação e dos materiais explicativos sobre criptomoedas
que estão disponíveis na internet são produzidos por elas com intuito de atrair/evangelizar clientes.
A brasileira Foxbit comprova essa afirmação. No site da empresa é possível comprar cursos e acessar
conteúdo sobre Bitcoin, Ethereum e Blockchain.

Também ficou com as exchanges a tarefa de “botar ordem” no mercado, atuando com uma
reguladora. Para o Banco Central, uma exchange faz parte da categoria de meios de pagamento e
deve seguir regras de operação parecidas com a de empresas como UOL Pago e Mercado Pago, que
são ligadas a empresas de internet. No entanto, a atuação das corretoras ligadas ao mundo cripto
ainda carece de regras, portanto as exchanges acabam sendo autorreguladoras do mercado,
assumindo a tarefa de criar normas ou adaptar as já existentes para o mundo de tokens e bitcoins,
com algumas funções jurídicas.

Na minha visão, a tendência é que o papel delas só aumente. Quanto mais o mundo cripto se
misturar com o mundo real, mais as exchanges serão demandadas. Quando as empresas tradicionais
decidirem que passarão a receber pagamentos em bitcoins ou em tokens, as corretoras serão os
players com maior preparo para fazer este trabalho, já que elas têm o cadastro dos clientes, as
chaves criptográficas e toda estrutura de conexão com as chaves físicas que os clientes possam ter.

O maior risco para este crescimento é a comoditização dos serviços que elas oferecem. Faz parte dos
planos das DATPs criar protocolos que tragam para dentro delas o serviço que hoje é prestado pelas
exchanges. Imagine que o Ethereum passe a fazer trabalho de uma corretora.
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Isso deixaria a DATP muito mais poderosa e ao mesmo tempo eliminaria intermediários, como são a
maioria das chaintechs.

Seja como for, não podemos pensar nas chaintechs como empresas independentes, com um fim em
si mesmas. Por serem a ponte entre os mundos concreto e cripto, elas fazem parte de um organismo
vivo formado por várias empresas interdependentes entre si. É o caso, por exemplo, das chaintechs
de infraestrutura, as empresas que funcionam como um pool de mineração. Elas não são um
provedor de serviços em nuvem, mas têm o mesmo comportamento de um. A diferença é que elas
geram dinheiro, seja bitcoin ou algum tipo de token. Ao mesmo tempo em que estas empresas são
parte central de uma DATP (não existe uma DATP blockchain pura que não tenha uma rede de
mineração), elas não sobrevivem sem estas plataformas. Também são intimamente ligadas às
exchanges, porque são elas que validam as informações de troca de moeda.

Extrapolando isso para a estratégia de negócios, chegamos à conclusão de que, se uma empresa
tiver capacidade de manter seu próprio data center para minerar/validar criptomoedas, ela terá uma
vantagem competitiva, podendo oferecer melhores taxas ou facilidades de pagamento aos clientes.
Por isso, não se surpreenda se em breve um Alibaba ou um WeChat passar a aceitar pagamento em
criptomoedas fazendo isso em parceria com uma mineradora chinesa e dizendo oferecer pagamento
mais rápido, porque desenvolveu um motor que tem preferência dentro do pool de mineração. Seria
a chance de o gigantismo chinês nadar de braçada no mar de tokens e bitcoins. E a transformação
da chaintechs em algo utilizado em larga escala.

A UTOPIA DAS DAOS, AS EMPRESAS SEM DONO, ORGANIZAÇÕES EM REDE

Com o uso da tecnologia disponível, inventamos o dinheiro descentralizado. Sem dono e sem
governo, bitcoins são criados e circulam sem que uma autoridade central dite as regras. Em breve,
podemos criar a empresa sem dono e, assim, transformar o capitalismo como o conhecemos. Tudo
que expliquei nos textos anteriores sobre DATPs, DApps e tokenomics pode ser aplicado no
ecossistema cripto para reinventar a maneira como criamos serviços e remuneramos pessoas. Para
não assustar, comecemos com um exercício de imaginação e comparação.

Modelo 1 — Pense numa grande empresa de tecnologia, qualquer uma delas. Agora
responda: quem produz os códigos que rodam nos sistemas dessa companhia? O
programador. Quem faz a venda dos produtos? O vendedor. Quem é o dono? Um
empresário e eventualmente alguns sócios e acionistas. O que interessa a eles? Lucro. E o
que sobra aos funcionários, tanto os programadores quanto os vendedores? O salário que é
determinado pela empresa.

Modelo 2 — Agora, pense numa empresa onde todos os participantes são sócios do negócio.
Quem produz os códigos são programadores que têm voz ativa nas decisões. Quem vende
os produtos são vendedores que dividem igualmente todo ganho que obtêm. E todos
trabalham não com o objetivo de obter lucro, mas sim com a intenção de fazer o serviço
funcionar da melhor forma, sendo remunerados pelo tempo que investiram no projeto.

A evolução do pensamento libertário que deu origem às criptomoedas é justamente criar empresas
do modelo 2 para substituir as empresas do modelo 1. Elas já têm até nome: DAO, abreviação de
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Decentralized Autonomous Organization, ou organização autônoma descentralizada. Por enquanto,


as DAOs são um sonho, de longuíssimo prazo, ainda sem data para acontecer, mas que começa a se
materializar com iniciativas pontuais.

A mais emblemática aconteceu em 2016, quando foi feito o ICO de “The DAO”, o primeiro projeto a
tentar colocar em prática uma organização cujas regras estariam estabelecidas em código. Sua
intenção era servir como um fundo de investimento coletivo. Todos que colocassem dinheiro no
fundo teriam direito de voto, decidindo para quais investimentos os fundos seriam direcionados. O
ICO arrecadou mais de US$ 100 milhões. O projeto acabou enfraquecido depois que um hacker
descobriu uma brecha de segurança e sequestrou parte do valor arrecadado. Mas a ideia por trás
dele permanece forte e ganha cada vez mais defensores (especialmente no mundo cripto) dispostos
a torna-la uma realidade. Para entender melhor do que eu estou falando, sugiro que você pense
neste movimento como uma filosofia, uma religião. O objetivo dos defensores é fazer o mundo sair
do modelo econômico controlado por cartéis ou corporações gigantes que dominam um mercado,
para um mundo onde nada é de ninguém e tudo é de todo mundo.

Quando criou o Ethereum, o sonho do russo Vitalik Buterin era iniciar a transição para essa realidade
onde muitos alguéns, coordenadamente, são donos e controlam tudo juntos. A propriedade das
empresas, que hoje é centralizada, passaria a ser distribuída. Quem colocar a mão na massa e criar
valor, será dono do valor criado. Ponto. Cada um será dono de seu trabalho, não a empresa. Cada
um de nós será uma empresa individual. Não há donos, apenas sócios. Uma DAO tem suas regras,
que é o código; tem um ambiente econômico, que é seu token; e ela tem um ambiente de decisão,
que é a sua governança.

Usuários remunerados

Hoje, vivemos numa organização distribuída chamada internet. Fazemos pesquisa no Google,
falamos com os amigos no Facebook, compramos na Amazon. No entanto, não somos donos de
nada. O Facebook nos diz “clica, clica, clica, porque eu preciso vender anúncio”. O Google fala “busca,
busca, busca, porque preciso vender anúncio”. Nós, usuários, somos a “bateria” que alimenta esses
caras todos. Entregamos a energia para eles existirem, mas nada volta para nós.

Libertários e cypherpunks olharam para essa realidade e se deram conta de que não era esse o
objetivo quando a internet foi construída nos anos 90. Foi aí que decidiram fazer diferente. Passaram
a criar um novo modelo a partir das DATPs e dos blockchains para acabar com a escravidão que a
web provocou.

Dentro do conceito do DAO, o ciclo de comercialização das empresas de internet, por exemplo, seria
diferente. Para vender anúncio a partir do meu clique, a rede social precisaria me dar uma parte do
que recebe por ele. Para usar estrategicamente informações sobre meu perfil com base nos sites
onde naveguei, o serviço de busca teria que me remunerar. Quem quiser fazer uso comercial de
dados como minha idade, lugares que frequento, pessoas de quem eu gosto, bandas preferidas, terá
que dividir comigo parte dos ganhos.
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É o dinheiro voltando para o usuário. Porque no modelo que temos, o dinheiro só vai. Mas um
detalhe importante: para cada informação remunerada, não entrará no bolso da pessoa milhões de
dólares ou reais ou ETHs ou BTCs, virão alguns satoshis e centavos por vez. E se eu, usuário, estiver
plugado em várias redes, receberei de todas elas. Alguém estará, de uma certa forma, pagando pela
minha existência. Dentro do delírio das DAOs, a utopia é que no futuro as pessoas sejam pagas para
SER e não para FAZER algo.

Serão necessárias várias ondas de automação até que cheguemos a essa realidade. Serviços
obsoletos serão eliminados e outros surgirão para novas funções. Quer um exemplo? Surgiu há
pouco a figura do educador de inteligência artificial. Sua missão é ensinar a inteligência artificial da
mesma forma que fazemos com crianças. Em vez de ser professor doutor em universidade, ele vai
dar aula para a AI.

A premissa dos que estão criando o modelo DAO é que se continuarmos no modelo de vida que
temos hoje, não haverá emprego para todos, já que a automação fará todo trabalho que os humanos
fazem hoje. Haverá um abismo maior ainda entre os muito ricos, que viverão fora da Terra, num
oásis de excelência e qualidade de vida, e os muito pobres, abandonados aqui no planeta,
subalimentados e em condições sub-humanas. Se você não assistiu ao filme Elysium, de 2013, que
tinha Matt Damon, Judie Foster e Wagner Moura no elenco, recomendo que o faça. A distopia
mostra justamente um futuro onde os mais ricos vivem protegidos em uma espécie de estação
espacial e o resto da população vive em uma Terra decadente. Se inventarmos novos modelos de
negócio e uma nova maneira de remunerar as pessoas, podemos escrever uma história bem
diferente.

Motorista de Uber era uma profissão impensável há dez anos. Mas nos próximos dez, ela pode estar
em extinção se os carros autônomos derem certo. Se todos os veículos dispensarem humanos na
direção, o que acontecerá com os motoristas de Uber? Em vez de condutor do carro, eles poderão
ser um companheiro de jornada, uma companhia se o passageiro quiser alguém para conversar ou
discutir filosofia. Uma Siri, uma Cortana ou Alexa poderiam fazer isso? Poderiam. Mas a empatia é a
atividade econômica essencial do ser humano, que nunca vai desaparecer. Será ela a maior
contribuição dos seres humanos para o mundo. Porque as demais funções poderão ficar sob
responsabilidade das máquinas. E isso vai acelerar a proliferação das empresas sem dono. A
realidade da DAO, que ficou mais próxima com a criação do blockchain e da inteligência artificial, vai
acelerar quando houver um blockchain que escreva os contratos das DAOs por inteligência artificial.
A velocidade da transição, que hoje é lenta pois depende de um humano, vai explodir como um
foguete. E aí, em questão de anos, teremos DAOs para tudo quanto é canto.

Monopólios naturais
As DAOs também podem significar o fim da concorrência. Teoricamente não precisará mais haver
duas empresas oferecendo o mesmo tipo de serviço. Como todos os participantes da cadeia de um
certo serviço ou produto (clientes, colaboradores e fornecedores) serão donos, não fará sentido as
pessoas criarem um novo player do mercado para concorrer com elas mesmas. Todos estão juntos
na administração do negócio e na divisão dos resultados. Não há porque ter vários. Os libertários
pensaram: “Se eu criar a DATP perfeita eu vou criar as DApps e DAOs perfeitas.
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Se eu criar as DApps e DAOs perfeitas, eu vou criar monopólios naturais, porque eu não preciso de
concorrência.”

Hoje, um taxista usa diferentes aplicativos para encontrar passageiros, o da 99, do Easy Taxi, do
Wappa e de outras empresas. Por quê? Porque os aplicativos tiram dinheiro do motorista ao cobrar
uma taxa, que por sua vez tenta um leilão entre todos os serviços e usa aquele que lhe esfolar menos.
Do lado do usuário, a mesma coisa: ele tende sempre para o app com o preço mais barato, que seja
melhor para seu bolso. Por isso, a concorrência faz sentido. Usando o exemplo do Arcade City, uma
espécie de Uber peer-to-peer que já citei em outros artigos, se ele se consolidar no futuro como a
rede que conecta motoristas e usuários, não haverá motivo para outros similares, já que a rede será
criada via código, sem um intermediário que fica com parte do lucro.

A missão da tecnologia é reduzir custos, só que no modelo atual, no meio do caminho tem uma
organização que se apropria deste ganho de produtividade em nome do lucro. Então, a pergunta
que fica é: o capitalismo gera produtividade? Gera, mas não a distribui.

Nesta possível próxima realidade, a acumulação centralizadora é eliminada. As empresas


continuarão crescendo em produtividade, só que em vez de acumular, tudo será dividido entre
todos. Não haverá a distância abissal que existe hoje entre donos de empresas e funcionários.

Se pensarmos friamente sobre a sociedade em que vivemos, percebemos que é uma sociedade
doente. Podemos dividir toda a população em três níveis de desenvolvimento. Os Super, que
representam os endinheirados; os Sub, que são os que vivem na miséria; e os que ficam no nível do
meio, que eu chamarei de Medíocres. Medíocres porque estão anestesiados sem reação a tudo que
está acontecendo. São pessoas que estarão sempre satisfeitas se tiverem um salário garantido. Não
têm ambição de melhorar o mundo, ou de melhorar a situação de quem está na miséria. São pessoas
inconscientes em relação à realidade que vivemos. E isso é um obstáculo para o crescimento de
iniciativas como as DAOs. Para você viver na utopia das DAOs você tem que ser um ser consciente.
Todos os construtores de DAOs são ultra inteligentes, ultra ativos, ultra conscientes e ultras vivos.

A grande maioria das pessoas quer o comum, o conhecido, rejeita aventuras. Essa busca por conforto
vem desde que deixamos de ser nômades coletores e passamos a ser fazendeiros acumuladores. É
por isso que a gente casa, por isso que a gente mora numa casa, por isso que a gente tem coisas. A
nossa sociedade é a sociedade de estabilidade, não é a sociedade de mudança. Mas a sociedade das
DAOs é aquela onde todos são freelancers, que acordam todo dia se perguntando “o que estão me
pagando para fazer hoje?”.

A Terra pede socorro


Independentemente de tons bons ou ruins, nós estamos destruindo o planeta, lenta e
inexoravelmente. Essa que é a verdade. Infelizmente, o planeta é um só. Quantas toneladas de
plástico jogamos no mar todo ano? Quantas toneladas de químicos? Esse ciclo todo de destruição
chama-se capitalismo. O capitalista pressupõe um ciclo de crescimento infinito e dane-se o resto,
fazemos de tudo para ter uma mega super ultra empresa.

Em 30 anos, nós destruímos mais do que a humanidade inteira em todos os séculos anteriores e não
estamos melhorando. Exponencialmente temos mais gente, exponencialmente extraímos mais
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recursos, exponencialmente concentramos mais. Se não resolvermos isso exponencialmente rápido,


nós estamos perdidos.

A grande motivação da DAO é justamente tentar brecar esse ciclo de destruição. A DAO poderá ter
uma regra ética. Se alguém quiser criar uma empresa que prejudique o meio ambiente, será barrado,
ainda que a ideia represente uma grande inovação ou um lucro astronômico. A primeira regra para
a criação de empresas passará a ser salvar a humanidade, não o lucro.

Aldous Huxley escreveu em 1932, no seu livro Admirável Mundo Novo, que a pior prisão é aquela da
qual você gosta e não sabe que está preso. Este é o mundo atual, esta é distopia. Já estamos vivendo
assim. E mais do que isso. Estamos destruindo esse mundo. Como diz a Matrix, nós somos vírus. Em
vez de consertar os problemas, estamos gastando bilhões de dólares para ir à Marte. Ou melhor,
quem pode está gastando. Quem não pode está morrendo de fome na África e sendo bombardeado
na Síria, sabe Deus o porquê.

Ao olhar para esse cenário, entendemos a utopia da DAO. O mundo em que vivemos está errado da
maneira mais profunda. A comunidade cripto continua unida, escrevendo o código, porque enxerga
nisso um caminho. É tudo pela filosofia. Os libertários querem libertar a humanidade dessa prisão
que foi construída.

Uma DAO é eticamente correta, porque ela é à prova de seres humanos. A regra é imutável. Não
adianta fazer reunião escusa, conchavos com governantes ou acertos “por fora”. O código é a lei, o
código não é ser humano e, por isso, seria incorruptível. Ele é feito, gravado, encriptado e dane-se a
volatilidade humana.

Sonhos encantados numa noite de verão...


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A utopia e as distopias das DATNs ou NTNs

Agora completaremos a sopa de letras necessária para começar a entender o mundo cripto. Já falei
de:

• ATAs (Autonomous Trustless Architechtures), a arquitetura que define os parâmetros para


a criação de cryptonetworks;
• tratei de DATPs (Distributted and Autonomous Trustless Platforms), nome que escolhi para
rebatizar o que o mundo inteiro tem chamado de Blockchain;
• expliquei DApps (Descentralized Applications) e Chaintechs, que são aplicações construídas
para rodar sobre ou ao redor das DATPs; a
• presentei o conceito da DAO (Decentralized Autonomous Organization), as empresas “sem
dono”;

e agora…

DATN (Distributed and Autonomous Trust Network), ou NTN (Naked Truth Networks)!
Apresento-lhes à DATN (Distributed and Autonomous Trust Network). A melhor palavra para definir
o que é uma DATN é COOPERATIVA. Mas dizer apenas isso não basta. Para entender o que é e como
funciona “esse bicho”, precisamos pincelar algumas teorias econômicas, como o conceito de firma.

A firma e a produtividade
A “FIRMA” é uma entidade jurídica que oferece soluções — sejam produtos ou serviços — aos seus
clientes e cobra por isso. Seu objetivo maior é o lucro. Para aumentar seus lucros, precisa reduzir os
custos na sua cadeia de valor, pressionando os fornecedores de um lado, e aumentar o valor
repassado à ponta final, ou seja, pressionando os clientes de outro.

Acontece que esta firma não é mais como era antigamente, após a Revolução Industrial. Com os
movimentos de terceirização e a corrida pela produtividade, que envolveu o desenvolvimento de
disciplinas como automação e Tecnologia da Informação, as firmas deixaram de produzir
efetivamente seus produtos. Hoje, elas são o que eu chamo de nuvem de valor, ou seja, têm uma
grande rede de fornecedores e produtores ao seu redor, mas na prática não produzem nada. Pense
em uma empresa como a Nike, que não tem fábrica própria, tem apenas designers que criam os
produtos e enviam para terceiros produzirem em qualquer canto do mundo. Ela entrega tênis,
camisetas e acessórios, mas seu valor está muito mais na marca que construiu.

Se por um lado o ganho de produtividade aumentou exponencialmente o lucro da firma, de outro


gerou desemprego ao dispensar parte dos funcionários. A conjunção desses dois fatores serviu como
anabolizante para a concentração da riqueza. Resultado: a pirâmide social hoje tem apenas 1% da
população no topo com 84% da riqueza do mundo, 9% estão numa camada intermediária e todos os
demais 90% fazem parte da base. Nem na época dos reis e faraós essa concentração era tão grande.

Economia circular
Uma das reações da sociedade a esta alta concentração foi o surgimento da economia circular, que
rejeita a necessidade de consumismo estimulada pelas firmas. É um movimento de
reaproveitamento. Em vez de comprar um produto novo, um grupo de pessoas passou a reciclar,
consertar, trocar e até a produzir seus próprios alimentos. Apesar de bem-intencionados, havia uma
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grande fraqueza que atrapalhava o crescimento: a falta de escala. Pequenos e com produção
limitada, eles não tinham como concorrer com as grandes corporações, que jogavam os custos dos
produtos ou serviços para baixo com seu poder de barganha.

Na última década, esse grupo foi se unindo para construir plataformas comuns onde pudessem
oferecer seus produtos com ganho de escala. O primeiro setor onde essa modalidade ganhou mais
destaque foi o financeiro, com as cooperativas de crédito. Também despontaram nessa onda os
serviços de compartilhamento como AirBNB e Uber. E assim a economia circular fez surgir um novo
conceito de firma: a cooperativa.

Compartilhando o próprio carro, disponibilizando o quarto de casa para outras pessoas ou


produzindo sua própria energia, a economia circular começou a ganhar novos adeptos, mas ainda
faltava um detalhe para fazê-la deslanchar: o controle da grana, o seja, a impressão do dinheiro. É aí
que entra o Bitcoin. A moeda virtual foi a última milha que faltava para o novo fenômeno ganhar
força.

Da distribuição à acumulação
A popularização dos serviços compartilhados gerou um efeito colateral que poucos esperavam, os
monopólios. Serviços que despontaram como Uber e AirBNB se tornaram praticamente os únicos
players em seus segmentos. A culpa é do “efeito de rede”, uma teoria que prega que a maior rede a
ser formada em um determinado mercado dificilmente perderá a liderança. Para os estudiosos, é
esta teoria que explica a existência de gigantes como Google e Facebook. Por terem sido os primeiros
a despontar em seus setores, dificilmente um concorrente conseguirá abocanhar uma parcela
expressiva do mercado destas companhias.

O que diferencia o monopólio das antigas “firmas capitalistas” e o das empresas de


compartilhamento são os usuários. Em empresas colaborativas, a participação do cliente é crucial
para seu crescimento. Neste novo conceito de firma, as pessoas que utilizam os serviços
compartilhados são mais importantes que o coordenador da rede.

Foi neste contexto que o mundo cripto fez surgir o conceito de DATNs, as Redes de Confiança
Distribuída e Autônoma, nas quais os construtores também podem ser usuários e vice-versa. Isso
eliminaria o problema do monopólio pois tiraria do jogo o poder central de um Uber, por exemplo.
As regras e a gestão podem ser colocadas no código e rodar sem um único dono. É como se todo
usuário se tornasse um sócio da iniciativa.

Em teoria, toda grande DATN surge com a missão de conquistar usuários. Num primeiro momento,
o número de desenvolvedores é muito maior que o de “clientes” porque é preciso criar o código e a
plataforma, mas as proporções se invertem com o aumento da popularidade.

Ainda não temos um exemplo concreto de DATN em funcionamento, mas é possível entender esta
relação desenvolvedores x usuários olhando para as cooperativas que conhecemos hoje.

Na Sicredi, Sistema de Financiamento Cooperativo, a estrutura que coloca a empresa de pé


representa 10% do tamanho da companhia, enquanto os cooperativados são 90% da firma. Se no
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futuro a tecnologia da empresa evoluir com inteligência artificial e automação, essa relação pode
evoluir para 5% e 95%, respectivamente.

Efeitos colaterais
A utopia das DATNs é que, assim que comece a rodar, a rede se torne autônoma, ninguém mais
mande em nada e todos fiquem subordinados a uma estrutura de governança que garanta que tudo
funcione perfeitamente. Mas no mundo real, sempre há obstáculos.

A grande dificuldade de chegar ao modelo perfeito numa DATN está no número de participantes da
rede. A entrada de diferentes players sempre vai gerar efeitos desconhecidos e muitas vezes
negativos. Pegando o Bitcoin como exemplo, o efeito esperado era que, com o passar do tempo,
fosse pago um valor menor pela criação da moeda através da mineração e cobrada uma taxa maior
pelas transações. O inesperado foi o poder que os mineradores conquistaram. Ninguém imaginava
a criação das asics ou as grandes fazendas de mineração, quando a moeda virtual foi idealizada.

Seria possível eliminar ou neutralizar os efeitos colaterais indesejados nestas grandes redes? Para os
idealizadores do mundo cripto, o único caminho é a governança, ou seja, um conjunto de regras que
oriente as decisões. Com um sistema de governança eficiente, os efeitos desconhecidos deixariam
de existir.

O modelo ideal de governança das tecnologias autônomas ainda não foi encontrado. Na teoria, o
melhor caminho seria determinado por votação e, num sistema de cooperativa, cada participante
representaria um voto. Na prática, não há este modelo. O Bitcoin, que é uma DATP de primeira
geração, não tem sistema de votação e não tem sequer um comitê central. Todas as decisões
importantes acabam gerando muita briga. Já o Ethereum, que é uma DATP de segunda geração, tem
uma fundação e a fundação é quem manda, porque a rede ainda está sendo montada. Quando ela
for concluída, um novo sistema de governança deverá ser estabelecido. A notícia ruim é que muito
provavelmente o modelo de consenso adotado será aquele em que quem tiver mais dinheiro manda.

Aí você me pergunta: Courtnay, todo aquele blábláblá de libertários, empresas sem dono,
distribuição de renda e compartilhamento foi por água abaixo? O dinheiro vai voltar a falar mais
alto? Neste possível cenário, sim. Por isso, um dos debates que têm ganhado destaque no mundo
cripto é que sua criação, que começou como uma promessa de distribuição, hoje não tem nada de
distribuída. Está concentrando do mesmo jeito. E na minha visão isso está acontecendo porque é
inerente à natureza capitalista do ser humano. É o mais forte exercendo o poder sobre o mais fraco.

Para onde vamos?


Quando você pensa numa DATN você está pensando em tudo que existe de mais romântico, de mais
ingênuo e de melhor na humanidade. As pessoas que estão construindo isso hoje de fato são assim
em sua maioria.

Enxergam a utopia do mundo cripto e buscam um caminho para chegar a um mundo onde será
possível construir redes de confiança distribuídas e autônomos. É uma galera que tem estudado o
código, vem tentando melhorar e avançar. Mas há também pessoas usando as novas tecnologias
para ganhar dinheiro e especular. Essas estão comprando Lamborghini, fazendo festas e outras
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coisas nababescas. Vejo essa dualidade em todo o ecossistema cripto acontecendo agora e ninguém
sabe qual time terá mais força e aonde vamos chegar.

A futurologia fica ainda mais distópica quando se imagina que um governo, seja ele qual for, pode
criar sua própria DATP, plugá-la numa DATN e a partir dela passar a controlar a os cidadãos. Como?
Lembra que a primeira função de uma DATP é o sistema de ID? Se uma nação criar a DATP e guardar
um ID completo de seus participantes, com DNA, íris, registro de voz e digital, ela poderá rastrear a
todos. Afinal, este ID criptográfico seguirá com as pessoas onde quer que elas estejam. Ou seja, se
uma iniciativa como esta vingar, este país controlaria todo e qualquer passo de seus cidadãos. Seria
o Big Brother perfeito. A China já deu os primeiros passos nesta direção e essa é a distopia das
distopias.

E para deixar o cenário ainda mais apocalíptico, há quem aposte no sistema passando a controlar
tudo. A distopia máxima é que estamos entrando na Matrix. Se as pessoas se isolarem cada vez mais,
é isso que pode acontecer. Sozinhos e isolados, perdemos a amplitude existencial, perdemos o
sentido da vida. Qual é o momento que nós estamos enquanto seres humanos? Nós tínhamos uma
identidade familiar e tínhamos uma identidade de tribo. Agora, perdemos a identidade familiar,
porque não passamos muito tempo com a nossas famílias; perdemos nossa tribo, porque agora
somos o que consumimos. Isso é uma doença social.

Vai aí o meu alerta: ou passamos a viver novamente em coletividade, voltamos à economia circular
e à coletividade da rede ou vamos continuar seguindo em direção à Matrix.
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ALÉM DAS CRIPTOMOEDAS, O MARAVILHOSO MUNDO DOS... TOKENS!

O que mantém toda essa turma unida é a base econômica impressionante. Pela primeira vez, uma
grande onda de inovação pode imprimir o próprio dinheiro, ou se auto financiar. Este mundo é o
mundo dos tokens e da tokenomics.

PREAMBULO
Quando alguém fala em token, o que você imagina? Para muita gente, é aquele chaveirinho com
uma numeração randômica usado para acessar contas de banco. Porém, com o mundo cripto, essa
palavra ganhou um significado muito mais amplo.

Nos primórdios, antes da febre das criptomoedas, chamávamos de token as iniciativas de digitalizar
o dinheiro, de transformar o papel moeda em algo eletrônico, como era o caso do PayPal e do
Digicash, empresas que surgiram nos anos 90. Foi nessa mesma época que surgiram os chaveirinhos.

Agora, com o mundo cripto materializado, token é o nome de um mecanismo criado para viabilizar
a o financiamento e a participação em projetos que estão sendo desenvolvidos em plataformas
como o Ethereum. Os tokens criaram uma gigantesca engrenagem capaz de gerar bilhões em
financiamento para as mais diferentes ideias. Esse novo ecossistema recebeu o nome Tokenomics.

Tokens X coins
O Bitcoin usou um protocolo matemático que segue regras automáticas para criar suas coins
(moedas). Essas moedas têm uma característica importante: elas são finitas. No ato da criação do
Bitcoin foi determinado que seriam distribuídos somente 21 milhões de bitcoins. Nada mais.

Será que é uma quantia muito pequena? Nem tanto. Se compararmos com o dinheiro que mais
conhecemos hoje, como dólar, iene e real, pode parecer pouco, mas o bitcoin tem uma diferença
fundamental no seu fracionamento e é isso que faz toda diferença na sua distribuição. O dinheiro
tradicional costuma ser divisível por cem, ou seja, a menor fração de 1 dólar é 1 cent e a menor
fração de 1 real é 1 centavo. Já o bitcoin foi dividido por 100 milhões e a menor fração desta moeda
recebeu o nome de Satoshi, uma referência a seu criador.

1 satoshi = 0,00000001 BTC

Com esse superfracionamento foi possível distribuir o bitcoin para mais pessoas e empresas. E
quando (e se) a cotação do bitcoin chegar a US$ 100 milhões, um satoshi valerá 1 dólar. Seja qual for
a cotação da moeda, ela serve somente para fazer transação. É uma unidade de conta, uma reserva
de valor e em alguns casos pode ser ou não uma unidade de investimento

Em 2015, o russo Vitalik Buterin decidiu criar a plataforma Ethereum. Sua ideia representava uma
evolução em relação às plataformas existentes como o Bitcoin, cujo objetivo era ter apenas a função
moeda. Buterin queria uma DATP com código, armazenamento e mensagens.

Junto com Gavin Wood, ele publicou um yellow paper (documento extremamente técnico, mais
detalhado que um white paper) sobre o projeto. O único obstáculo para a criação do Ethereum era
que não havia dinheiro para começar.
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Sua grande sacada foi justamente a maneira que encontrou para receber investimentos. Ele iniciou
o desenvolvimento do Ethereum como prova de contribuição e em troca passou a vender tokens
que davam aos investidores o direito de usar a plataforma Ethereum. Quem se interessasse em
utilizar a plataforma poderia comprar tokens e o dinheiro obtido com a venda financiaria o
andamento do projeto.

O raciocínio de Buterin foi o seguinte: “vou fazer essa plataforma e quem quiser usar terá que pagar
não só a transação, mas todo esse poder computacional que eu estou entregando”. Todas as
transações deveriam ser pagas com o token Ether (ETH). O russo produziu 11.9 milhões de
ETHs[MG1] . Ao mesmo tempo, estabeleceu uma unidade de valor chamada Gas, que funciona como
uma espécie de pedágio para qualquer aplicação que o usuário queira rodar no Ethereum. O valor
depende do poder computacional a ser utilizado, mas a cobrança é sempre em ETH.

Esse mecanismo que funcionava ao mesmo tempo como financiamento do Ethereum e


remuneração de investidores foi a grande sacada de Buterin. A oferta inicial dos tokens conseguiu
captar US$ 18 milhões e um ETH valia nessa época alguns centavos de dólar. Nada mal para uma
empresa que só existia no papel. Poucos meses depois, em 2016, quando a plataforma Ethereum
ficou pronta, o ETH já estava valendo US$ 6. Acha muito? Pois saiba que o ETH já chegou a valer US$
1.600. Hoje, a cotação gira em torno de US$ 700. Ou seja, quem está no negócio desde o início
garantiu um bom lucro.

De onde veio toda essa valorização? Todo mundo queria programar na plataforma Ethereum e sabia
que precisaria pagar o pedágio (Gas). Para isso, era necessário ter ETHs. Então, houve uma corrida
antecipada pelo dinheiro. Também pesou a favor da empresa o hype do blockchain, que começou
justamente nesta época (2015/2016) e atraiu ainda mais gente que queria se garantir dentro do
Ethereum. Criou-se assim a cultura do Tokenomics.

Qual é a diferença de criar moeda e criar token? A moeda é criada por um código, que tem uma
regra e vai gerando as moedas aos poucos. O token tem um código que quando é ligado já cria todas
as moedas.

Outra diferença relevante entre o mundo de Satoshi (criptomoedas) e o mundo de Buterin (tokens)
é o fato de que ETHs são uma unidade de valor dentro de um ecossistema fechado para fazer
operações. O ETH não é uma moeda como o BTC se propõe a ser, é um token operacional. Não é
possível usar ETHs para comprar gasolina no posto, a não ser, eu crie uma DApp de posto do gasolina.
Para os criadores do Bitcoin, mesmo sem aplicações do mundo cripto, o BTC poderia ser usado como
forma de pagamento para produtos e serviços do mundo real.

Outra diferença fundamental do ETH em relação ao BTC está no formato de remuneração. No


Bitcoin, os mineradores criam as coins após resolver o complexo quebra-cabeças em forma de
código e são remunerados por isso em moedas. No início, eram pagos muitos bitcoins aos
mineradores, para incentivar a criação de moedas e de um mercado de mineradores. Mas a taxa de
transação para as pessoas que enviavam bitcoins umas para as outras era baixa, estimulando sua
utilização. Com o passar do tempo, a regra prevista pelo Bitcoin é que o valor pago aos mineradores
diminua até chegar a zero e a taxa por transação cresça.
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Já o Ethereum nasceu pagando poucos ETHs aos mineradores e ao longo do tempo pagará menos
ainda, mas cobra uma taxa de transação alta que, ao longo do tempo, aumenta.

Se esse novo modelo de remuneração é uma grande sacada ou somente um jeito diferente de fazer,
o tempo vai dizer. Por enquanto, tem sido considerado um tiro certeiro, porque cria uma utilidade
para o token.

A era dos ICOs


Outra inovação que chegou com o Ethereum foi a possibilidade de terceiros criarem tokens a partir
de uma “clonagem” do ETH. Os projetos criados sobre a plataforma, como as DApps, poderiam usar
um token próprio como “meio de pagamento” interno. O padrão adotado para os tokens do
Ethereum foi o ERC-20, que garante a compatibilidade. Dessa forma, eu posso ter um token chamado
CourtCoin, que internamente nada mais é do que um ETH apelidado com um novo nome.

Com os ETHs em circulação e com a facilidade de “clonagem” a criação de Buterin, Wood e Cia atraiu
olhares (e ambição) de todos os lados.

Como o Ethereum atraiu milhões de dólares trocando tokens por investimentos, algumas pessoas
identificaram naquela ideia um novo modelo de negócio. Ao criar um produto ou um serviço dentro
daquele código, o financiamento poderia ser feito emitindo os tokens da nova empresa e trocando-
os por ETHs. Quem acreditasse na ideia, compraria uma participação antecipada. Não demorou para
surgirem empresas que imprimiam e vendiam uma quantidade enorme de tokens a partir de
clonagem do ETH. É um fluxo muito parecido com o de venda de ações em bolsa de valores. Não por
acaso, esse modelo de arrecadação de dinheiro recebeu o nome de ICO (Inicial Coin Offering), em
referência aos IPOs, as ofertas iniciais de ações de grandes empresas na bolsa de valores.
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O nome mais correto para esse tipo de transação deveria ser ITO (Inicial Token Offering), uma vez
que se trata da venda de tokens e não de moedas. Mas em 2015, o mercado só falava de
criptomoedas e isso influenciou o batismo malfeito.

Na teoria, o primeiro ICO formal realizado foi da MultiChain, bem antes até do ethereum. Mas na
prática, a primeira febre veio com a The DAO (Decentralized Autonomous Organization), uma
organização pensada para ter uma operação totalmente distribuída e sem donos. A empresa criou o
projeto, imprimiu 100 milhões de tokens e colocou à venda. Tendo em mente o sucesso do
Ethereum, todo mundo quis comprar e a empresa captou de cara US$ 180 milhões.

Como para comprar um token do DAO era preciso trocar dólares por ETHs ou BTCs por ETHs e,
depois, ETHs pelos novos tokens, a realização dos ICOs levou a uma valorização desses ativos.

Na esteira desse sucesso, novos tokens começaram a surgir. Para se ter uma ideia da enorme oferta,
em janeiro de 2017 o BTC representava 92% do mercado cripto. Hoje, esse percentual é de apenas
26% e mostra que o bitcoin está dividindo espaço com outras criptomoedas, com o ETH e outros
tokens derivados da plataforma Ethereum.

Esse fenômeno da captação de dinheiro via ICO fez surgir uma dúvida em relação à quantidade de
tokens que deviam ser emitidos. Do ponto de vista de quem está criando o projeto, quanto mais
tokens emitir, mais bilionário será possível ficar. Do ponto de vista de quem investe, quanto menos
tokens, melhor. Essas são algumas das variáveis do Tokenomics.

Especulação
O lado negro desse movimento está na especulação. Como explicamos, por trás da oferta de tokens
está uma promessa de entregar um produto ou um serviço que rodará no mundo cripto. Algumas
iniciativas são sérias e realmente trabalham para entregar o prometido após o ICO. No entanto, há
empresas que usam o ICO somente para faturar, com o único objetivo de ganhar bilhões às custas
dos outros. A Securities and Exchange Comission (SEC), agência que regula o mercado financeiro nos
Estados Unidos, está de antenas ligadas e ensaiando baixar normas que obriguem os ICOs a
oferecerem as mesmas garantias de um IPO. O risco de estourar uma bolha parecida com a que
tivemos em 2008 ou com as pontocom em 2001 é real, porque 99% dos projetos que usam o ICO
para captar dinheiro são golpe. O exemplo mais surreal é o projeto chamado Scam Coin
(https://twitter.com/scamcoins). Já no lançamento, a empresa alertou que se tratava de golpe e que
só queria mesmo saber quanto conseguiria captar com a iniciativa. E não é que conseguiu US$ 150
mil?

A maior preocupação da SEC é que hoje, se uma pessoa ou empresa capta dinheiro com ICO e não
entrega nada, não há nenhuma punição a ser aplicada. O golpista pode comprar sua Lamborghini e
se hospedar num hotel cinco estrelas para o resto da vida, que nada acontecerá. É como e existissem
várias Enron’s sem que nada acontecesse com os gestores. Quando começamos a analisar o
fenômeno Tokenomics vemos que, enquanto o IPO acontece dentro de uma bolsa de valores que
exige o cumprimento de uma série de regras, o ICO tem 1200 bolsas, as exchanges, sem nenhuma
regra. É uma terra de ninguém.
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Uma prática comum nesse mercado é a manipulação dos preços dos tokens. Imagine a seguinte
situação: alguém cria uma empresa e emite 100 milhões de tokens que não valem nada. Guarda 40
milhões e doa 60 milhões para alguém. Em seguida, vai a uma bolsa e vende dele para ele mesmo,
usando dois IDs diferentes, por um dólar. De repente, com essa operação, o conjunto todo de tokens
passa a valer US$ 100 milhões. Em seguida ele vai na mesma bolsa e vende novamente para si
mesmo por dois dólares. Quanto passou a ser o valor de mercado daquela empresa? US$ 200
milhões. Em seguida, a empresa vende os tokens para ela mesma por 10 dólares. Outros
participantes do mercado veem e operação e… “Nossa! Esse token está subindo pra caramba, está
bombando! Vou comprar!”

Nessa manobra engenhosa, a empresa que não valia nada passa a valer US$ 1 bilhão. Mas a empresa
não para aí. Ela vende novamente dela para ela mesma por 100 dólares e passa a valer US$ 10
bilhões. O próximo passo é pegar uma porcentagem dos tokens e sair vendendo para todo mundo
nas bolsas do mundo cripto. Se vender 50%, a empresa terá em mãos US$ 5 bilhões.

A empresa vendeu realmente alguma coisa para alguém? Não. Ela fez apenas um bounty, ou seja,
uma doação. Enganou alguém? Na teoria, não. Ela simplesmente fez surgir no bolso US$ 5 bilhões
com apenas um white paper, um site e uma história bonitinha.

Há empresas que prestam esse tipo de consultoria para quem quer captar dinheiro no mundo cripto.
É um serviço que chega a custar US$ 500 mil e leva apenas 6 meses. Mas a SEC está de olho nesse
movimento e disposta a colocar todos os enganadores na cadeia.

Esse boom dos ICOs foi capaz de captar US$ 6,4 bilhões entre janeiro e abril de 2018. É mais do que
foi acumulado em 2017, quando o volume chegou a US$ 5,7 bilhões. O movimento continuou
crescendo numa curva exponencial, mas já em meados de 2018 eu já apostava num estouro de
bolha. Agora, em janeiro de 2019, a bolha se foi.

(por gráfico).

Mas falaremos das novas possibilidades adiante. Antes, vamos esclarecer mais nomenclaturas.
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Tokens: uma palavra, muitos conceitos e algumas categorias

Se estávamos acostumados a chamar de token aqueles chaveiros de segurança, com senhas


aleatórias, distribuídos por empresas e bancos, o mundo cripto deu um novo significado à palavra.
Token agora pode se referir a moedas, pode viabilizar contratos, pode ser um “combustível” para
rodar protocolos de DATPs, pode ser um ativo de uma empresa, um objeto colecionável. E as
possibilidades certamente ainda não se esgotaram.

Considerando o cenário que temos hoje, decidi elaborar uma classificação de tokens para facilitar o
entendimento. Fiz uma divisão em quatro categorias, sendo que cada uma considera um aspecto:
Técnico, Econômico, Funcional e Regulatório.

Aspectos técnicos
Esta divisão considera a forma como o token foi criado. Há dois grupos:

moedas
Coins — As criptomoedas são um tipo de token 100% criado a partir de mineração. É o token dos
blockchains tradicionais. O maior exemplo é o bitcoin. Têm uma função muito parecida com o
dinheiro e serve para pagamento de serviços e produtos.

tokens
Tokens — Foi o nome convencionado para os tokens emitidos, que surgem sem a necessidade de
mineração. E são tipicamento oferecidos em ICOs. No mundo cripto, quando alguém fala em token
hoje, se refere 99% a esse tipo. Os tokens emitidos são derivados do ETH, da plataforma Ethereum.
A maior contribuição do mundo Ethereum para este tipo de token foi o padrão ERC20 (ERC quer
dizer Ethereum Request for Comments, e 20 é o número de identificação único da oferta). Antes
desse protocolo, não havia um padrão para a criação de contratos inteligentes na emissão de tokens,
o queo gerava muitos problemas de compatibilidade. O ERC20 facilitou (e muito) a emissão de novos
tokens. A maior consequência disso? A enxurrada de ICOs realizados a partir de então. Aqui, vale
uma observação sobre os próprios ETHs: ainda que eles tenham sido emitidos em um primeiro
momento, passaram a ser minerados depois. Porém, enquanto o token do Bitcoin é uma moeda
virtual, que pode pagar o cafezinho da esquina, o token do Ethereum é um token de protocolo, cuja
função existencial é rodar o código, como veremos daqui a pouco.

fungibilidade
Dentro dos aspectos técnicos, há outra característica importante para os tokens, que é a
fungibilidade. Um bem fungível é algo que pode ser replicado sem perder o valor. É o caso de uma
cédula de dinheiro. Existem várias notas de R$ 100 e todas têm o mesmo valor. Ou seja, o dinheiro
é um bem fungível. Já um carro é um bem único, portanto não fungível. Um Fiat 147 não é igual a
outro Fiat 147, por isso os carros têm o número do chassi e o Renavam, o registro nacional do veículo.
São as informações que ajudam a diferenciá-los.

Trazendo essa característica para o mundo cripto, é o padrão ERC20 torna os tokens um bem
fungível, uma vez que todos são emitidos a partir de um mesmo modelo de contrato inteligente. Já
o bitcoin é um bem não fungível, porque cada bitcoin minerado é único.
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Outro token não fungível são os CryptoKitties, aquelas figurinhas digitais colecionáveis de gatinhos,
sobre as quais já falamos em outros artigos. Por serem únicas, já estimulam um comércio paralelo
de cards. E pasme… já chegaram a pagar US$ 140 mil por um card.

Se eu consigo fazer isso com o CryptoKitties, eu consigo fazer com que qualquer ativo digital seja
único, como uma foto, um vídeo ou uma música. Essa é a função desse tipo de token. Este atributo
dos tokens enche os olhos do mercado financeiro, ávido por emitir ações de empresas usando estes
dispositivos. Mas as discussões para colocar isso em prática estão apenas no começo.

Aspectos Funcionais
Fazendo um recorte do universo cripto pela funcionalidade dos tokens, há três grupos:

Consumer ou token de utilidade


Consumer — é o token que serve para pagar pelo uso da “rede”. Só para isso. É o caso do ETH, que
paga a rede do Ethereum. Ele foi feito para isso. No entanto, há efeitos colaterais inesperados desta
utilização, entre eles, a especulação. Como esses tokens podem ser listados e vendidos nas
exchanges, eles saem do controle do seu criador, já que podem passar de mão em mão.

Funding ou token de financiamento


Funding — o modelo de token comprado em um ICO. A maior parte dos compradores pode achar
que está comprando uma participação no empreendimento anunciado, mas na verdade, está
fazendo uma doação, uma espécie de crowdfunding. Podemos subdividir esse grupo em dois
modelos:

1. Donation — É o modelo principal usado nas campanhas para levantar recursos para
empresas do mundo cripto. Quem faz a compra, está fazendo uma doação, sem direito a
nenhuma participação na empresa. Basta ler no white paper para saber que quem compra
o token tem direito somente ao token. E por que as pessoas acham que estão comprando
participação? Na maior parte das vezes, porque foram iludidas. Há muitos compradores que
apenas especulam, sonhando em ter o token a 1 centavo e depois vender por US$ 1.600,00,
que foi o que aconteceu com o ETH. O único problema é que nem todas as iniciativas têm
sucesso. A chance de tudo virar pó existe e não deve ser menosprezada.

2. Equity ou security tokens — São tokens criados a partir de ativos do mundo real com um
único objetivo: especulação. O grande problema de quem participa desse mercado é que ele
pode dar cadeia. Isso porque é regido pelas leis do mercado de capitais e, se o comprador
fizer alguma transação fora do padrão, terá de acertar as contas com a Justiça. Quem vende
um equity token para um norte-americano, ainda que a empresa esteja na Suíça ou na Ásia,
pode ser preso quando entrar nos Estados Unidos eu por ter feito uma transação que lá é
proibida.

ASSET BACKED ou REPRESENTAÇÃO DE ATIVOS


Asset Baked Tokens — São os tokens de ativos reais, como ouro, diamante ou um apartamento. A
diferença deles para security token é que o asset baked token é um token que aponta diretamente
para um ativo, sem a necessidade de um contrato intermediário entre eles. Esta modalidade
também é regulada e pode levar seus adeptos para a cadeia se a cartilha dos mercados não for
seguida.
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Aspectos econômicos
Considerando a questão econômica, podemos dividir os tokens em cinco grupos:

utilitarios
Utilitário — Um token pode ser considerado utilitário quando ele gera uma transação cujo objetivo
principal é fazer alguma coisa, como pagar um trajeto de carro do Arcade City, o Uber versão cripto.
Quem compra este tipo de token quer utilizar um serviço e não investir ou especular.

investimento
Investimento — São os tokens de empresas. Quem compra tem o objetivo de investir e não de utilizar
um serviço. Para quem emite esse tipo de token, há um risco. Ainda que ao fazer um ICO uma
empresa deixe claro que comprar o token não dá direito a nada e não é garantia de lucro, se o
comprador disser que foi enganado e que teve uma promessa de retorno sobre o investimento, o
token passa a ser considerado uma security — mesmo que essa não seja a intenção. Aí, o vendedor
será processado por órgãos como a SEC (Securities and Exchange Commission). Quem contratou
uma celebridade para vender o seu token está na mira da SEC, assim como quem colocou o logo de
seu token em uma Lamborghini, no meio de Nova York.

Transporte de valor
Transporte de valor — É o “efeito diamante”. Este já tem sido um recurso usado por países que
passam por dificuldades econômicas, como a Venezuela. Por serem pequenos, os tokens são
facilmente transportados e podem carregar valores altíssimos, assim como os diamantes.

especulativos
Especulação — Para os amantes do trade, que compram e vendem com frequência para obter lucro
rápido, assim como no mercado financeiro tradicional. Afinal, fazer 5% de lucro em apenas uma
tarde parece um negócio atraente.

Reserva de valor
Reserva — A diferença entre reserva e investimento é que quem investe quer aumentar o valor
aplicado. Já na reserva, o “poupador” não se importa se seu patrimônio permanecer igual. O objetivo
é somente não perder, mantendo o patrimônio protegido, como acontece com imóveis fora do
mundo cripto. Quem compra uma casa nunca imagina que ela irá desaparecer e nunca perderá
totalmente seu valor. Aqui entram os Asset Baked Tokens ou os very stable tokens, como o bitcoin.
Ainda que seu valor varie muito de um dia para o outro, os puristas apostam que no longo prazo
continuará sólido.

Aspecto Regulatório
Nesse grupo, há mais dúvidas do que certezas. Ainda não há uma regulamentação ou instituições
para ditar regras para toda a cadeia de tokens. Na maior parte das vezes, há uma tentativa de
adaptar a regulamentação do mundo físico para este novo mundo cripto. Mas essa tarefa não é nada
fácil.

Há três personagens principais envolvidos aqui, os emissores, os comercializadores e os owners. Os


emissores são os que mineram ou simplesmente emitem um token. Os comercializadores são as
exchanges, que intermediam as operações de compra e venda e os owners, como o próprio nome
diz, são os donos, as pessoas que têm tokens na carteira.
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Hoje no Brasil é permitida a compra e a venda de BTC e ETH. Mas não se pode vender o Augur,
porque é um token que foi emitido por ICO e não minerado. Mas se o ETH também foi emitido num
primeiro momento, porque ele pode ser comercializado como um BTC? Uma pessoa que comprou
uma ação da EOS deve declará-la como o quê? Uns dizem que por ser um artigo criptográfico, deve
ser declarada como o bitcoin, que é interpretado como dinheiro vivo, mas a tributação para ações é
diferente da tributação para dinheiro vivo. Essa é apenas algumas das muitas confusões regulatórias
que envolvem este mundo.

Outra questão é a ausência de fronteiras. A movimentação de valores entre um país e outro é feita
sem barreiras. Há três nós a serem desatados: o nó local, dentro de cada país; um nó global, que
envolve regras que atendam transações internacionais; e um nó acordado, que envolve grupos de
países com acordos comerciais e econômicos entre si, como é o caso do Mercosul e da Zona do Euro.

Imagine a seguinte situação: uma pessoa pode emitir um token aqui no Brasil para fazer um ICO de
uma empresa chamada Moeda. O token foi emitido num banco suíço, foi comprado por chineses, e
vai ser convertido em real para pagar a dona Maria, que planta abóbora e vende para as escolas de
Ubá. Como regular toda essa movimentação? Os conceitos de criação, emissão e posse são
absolutamente difusos quando se fala de token. Quem criou o BTC? Foi o minerador? Ou foi a pessoa
que mandou fazer a transação? Foi a rede?

Junte-se a isso o fator insegurança. Como as operações não são rastreadas, abre-se espaço para
fraudes nesse mercado. Uma pessoa pode ter um milhão de tokens na carteira e dizer que não é
dela, que não foi ela que emitiu. Como saber se a máquina dela não foi usada como zumbi para
emitir tokens para terceiros? Se de fato foi um golpe, os mesmos fraudadores que usaram essa
máquina para emitir tokens podem pegar essa quantia, converter para Monero (uma moeda não
rastreável) e mandar para qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo e ninguém vai saber onde
o dinheiro foi parar.

Dois exemplos reais: a Venezuela emitiu 5 bilhões de sua criptomoeda chamada Petros. Quem
comprou? Ninguém sabe. O Telegram, aquele aplicativo de mensagem que ganha fama repentina
quando o WhatsApp é barrado pela Justiça, fez um ICO que arrecadou US$ 2 bilhões. Cadê os tokens
do Telegram? Ninguém viu.

Essa falta de informação gera brechas para lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e outros tipos de
crime. Este é o nó criptográfico mais sério do mundo jurídico, pois atrapalha não só a
regulamentação do mundo digital, mas a economia como um todo.

Enxergo este momento como uma transição da velha ordem para uma nova ordem. E todas as
perguntas que estamos fazendo têm a ver com uma ciência chamada mechanism design. Regular ou
desregular? Centralizar ou descentralizar? Os processos devem ser livres ou atrelados a um governo?
Como balancear essas coisas todas no meio de tanta variável? Este é debate do momento.
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Como nascem os tokens

Agora vamos apresentar com detalhes os diferentes modelos de geração de token. Ou seja, como
eles surgem no mundo.

Para começar, o primeiro passo é nomear corretamente e explicar a missão de cada um dos
participantes desse mercado. Podemos dividir o mundo dos tokens em dois eixos principais: o das
coins e o dos tokens.

Nos extremos de cada um dos eixos estão os tipos de criptoativos gerados:

• Coins — são mais fáceis de compreender, já que temos o Bitcoin como exemplo prático e
mais popular desse mundo. São as commodities que nascem a partir da mineração e não
têm nenhum governo ou política monetária por trás.
• Equity Token — está do lado oposto das coins. É um token que um comprador recebe por
investir num ativo ou numa empresa em troca de um percentual de participação.
• Consumer Tokens — é o token que utilizamos para pagar serviços e produtos, como por
exemplo, um serviço de telefonia. É um token que será usado para remunerar por serviços
fora da DATP, por exemplo nas Dapps.
• Utility Tokens — é o token de plataforma, ou seja, aquele que usamos para remunerar o
código e rodar o protocolo dentro das DATPs, como é o caso do ETH na rede Ethereum.

Agora sim posso explicar como “nascem” estas “criaturas”, ou seja, o Token Generation Event. No
eixo vertical, onde estão as Coins e os Equity Tokens, há duas maneiras de geração:
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Mineração — É o jeito mais antigo de gerar um token. O “nascimento” do token neste modelo se dá
a partir de computadores que rodam protocolos com o objetivo de resolver complexos problemas
matemáticos para gerar os blocos da blockchain. O primeiro a ser criado é chamado de Genesis
Block. É ele que dá origem ao resto da cadeia. O maior exemplo deste grupo é o Bitcoin.

Equity — Neste grupo ficam os tokens emitidos e distribuídos com o objetivo de dar ao comprador
uma participação da empresa ou algum tipo de retorno financeiro. É aqui que o mundo cripto se
encontra com o mercado de Wall Street. Os agentes transformam uma security do mundo real em
um token (security as a token) e depois fazem a oferta desse token no mercado. O equity é o primeiro
modelo de security que pode ser tokenizado.

No eixo do Utility Token e Consumer Token há dois modelos de geração possíveis:

ICO — É uma emissão centralizada de moedas. Que fique claro: não estou falando daquele processo
de oferta de tokens que as pessoas se acostumaram a chamar erroneamente de ICO (Initial Coin
Offering) — que na verdade é um ITO (Initial Token Offering). O principal exemplo deste ICO do qual
estou falando é o Dash, uma moeda que surgiu com o objetivo específico de ser uma rede
transacional. Em vez da mineração, seus criadores emitiram todas as moedas de uma única vez. Para
ter direito a uma delas, os usuários precisam validar uma transação e não minerar. Foi o primeiro
verdadeiro ICO realizado.

Funding — É aqui que incluo os ITOs, as ofertas de tokens que costumam fazer arrecadações
milionárias no mundo cripto. Este é o modelo de geração de token que costuma ser usado por
startups que buscam financiamento para seus projetos. Num processo de funding, uma empresa
divulga um paper detalhando seus planos, emite tokens e os coloca à venda. Os interessados
adquirem os tokens e todo dinheiro que investem é uma doação. Diferentemente do que muitos
imaginam, estes compradores não têm direito a nada, a nenhuma participação na empresa. O
máximo que podem esperar de retorno financeiro é uma valorização do token, que pode ser vendido
posteriormente com algum lucro.

Mecanismos para estimular a mineração


No mundo ideal, as coins nunca deveriam ser emitidas a partir do apertar de um botão. Teriam de
ser sempre mineiradas. Em contrapartida, todos os ‘equity tokens’ nunca deveriam ser minerados.
Alguém deveria apertar o botão e falar “imprimi X cotas da empresa porque a empresa vale Y” e
quem quisesse uma participação teria de pagar o percentual equivalente a este valor. Mas nem
sempre é assim que acontece.

A criação de um token dentro de uma DATP aberta é muito mais complexa do que simplesmente o
processo de emissão. Não é só ligar a maquininha e colocar para minerar. Há um arranjo de forças
para que essa dinâmica possa existir.

Para atrair mineradores e garantir o maior volume possível transações, as blockchains abertas se
apoiaram na teoria da escassez, da economia monetária. Por que o ouro vale muito? Porque existe
em quantidade limitada. Por que o diamante vale muito? Pelo mesmo motivo. Então, algumas das
DATPs inferiram que quanto mais raro fosse seu token ou sua moeda, mais valorizado seria. Sendo
assim, foi definido um número máximo de moedas que será emitido.
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No caso do Bitcoin, serão somente 21 milhões. Aconteça o que acontecer, teremos somente esta
quantia de moeda em circulação.

Outra conclusão lá atrás, em 2008, é que a mineração das moedas precisava de vários de
“voluntários” que garantisse o poder computacional para fazê-las nascer. A plataforma Bitcoin criou
um modelo de remuneração muito transparente e que vem sendo mantido desde então. Ele prevê
que, no início, seriam pagos muitos bitcoins por bloco minerado e uma taxa baixa para cada
transação. Com o passar do tempo, o valor pago pela mineração seria reduzido até chegar a zero e
a taxa por transação cresceria proporcionalmente. Isso porque há um número máximo de bitcoins a
serem minerados e conforme a disponibilidade da moeda e o número de mineradores aumentasse
no mercado, seria necessário criar um equilíbrio com o aumento das taxas.
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Segundo o gráfico clássico:

Fonte: https://bitsonblocks.net/2015/09/21/a-gentle-introduction-to-bitcoin-mining/

Um outro aspecto importante de se notar na criação dos tokens é a parte numérica. Não foi aleatória
a decisão de criar o Bitcoin com 100 milhões de partes e o Ethereum com 1 quintilhão ou bilhão de
bilhão (18 zeros). O objetivo maior era permitir a cobrança por microtransações. Os criadores tinham
em mente o seguinte: o contrato mais simples, que é transferir Ethereum de uma pessoa para outra
consome duas instruções da rede e vai custar 1 wei, ou seja, 0,000000000000000001 ETH. O que
eles não contavam é que 1 Ethereum chegasse a valer 1.500 dólares, o que encareceu o custo de
transação.

O fenômeno fork
Outra particularidade das blockchains abertas é a possibilidade de fazer o chamado fork. Esse
processo também é um Token Generation Event. O fork é o fenômeno que cria uma espécie de clone
de uma criptomoeda, que passa a coexistir paralelamente, herdando todas as características da
“rede mãe”. Os forks são muito comuns no mundo cripto, mais precisamente nas DATPs abertas,
que por serem open source permitem que o código seja copiado dando origem a outras moedas.

Todo ‘fork’ também possui um Genesis Block, com a diferença de que ele não nasce vazio, já herda
todo histórico da moeda anterior. Quando um fork acontece, ele aumenta o valor de mercado do
produto clonado. No caso do Bitcoin, se estava prevista a criação de apenas 21 milhões de moedas,
a partir do fork essa capacidade é multiplicada por dois, afinal, passam a ser 21 milhões da “rede
mãe” e outras 21 milhões da “rede filha”, totalizando um valor de mercado de 42 milhões.
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A possibilidade de fork abre caminho para uma disputa das moedas pela atenção dos mineradores.
Se o Bitcoin não for mais rentável do que as 20 moedas que surgiram a partir dele, ele pode perder
mineradores para estes 20 clones. E quando perde minerador, a rede fica mais lenta e vai gerar
menos transações, impactando a geração de tokens.

Um dos casos de fork mais curiosos do mundo cripto aconteceu no ETH. Curiosamente, esse foi um
fork realizado intencionalmente pelos controladores do Ethereum. Aconteceu em 2016, após o
fenômeno The Dao, aquele projeto para a criação de uma empresa 100% compartilhada e sem donos
e que acabou resultando no sumiço de milhões de ETHs por conta de uma invasão no código. O caso
repercutiu mal e a solução escolhida pela turma de Vitalik Buterin foi fazer um hard fork da “rede
mãe” e abandoná-la, passando a seguir somente com a rede “forkada”. A rede antiga foi abandonada
por seus fundadores, mas não por todos. Continuou a existir com o nome de Ethereum Classic e com
um token batizado de ETC, que continua sendo minerado, comprado e vendido nas exchanges.

Token Security ou Security Token? SaaT and TaaS, as novas siglas

Já falamos mas vale uma pequena pausa para explicitar um item. Neste momento, janeiro de 2019,
o mercado grita: “Esqueça os ICOs! A bola da vez do mundo cripto são o Security Token e o Token
Security.”

Exageros à parte, os ICOs ainda têm uma vida longa garantida. Mas os holofotes e, principalmente,
os cofres do mundo financeiro têm se virado para o novo modelo de securitização que o mercado
está desenhando. Como tudo neste universo, trata-se de um fenômeno novo, que começou a se
tornar assunto em fevereiro deste ano, mas se espalhando em velocidade exponencial.

Vamos, então, aos conceitos. Security Token e Token Security são ferramentas diferentes. Security
Token é a transformação de uma empresa ou um título vendido no mundo tradicional em token para
levá-lo para o mundo cripto. Token Security é converter as empresas do mundo cripto em títulos
que podem ser comprados e vendidos numa bolsa de valores. São movimentos simétricos e
simultâneos. O problema é que, como boa parte dos conceitos desse universo, está havendo uma
confusão de nomes. Os dois instrumentos estão sendo chamados de Security Token e isso está
gerando uma grande confusão no mercado.

A ida das empresas do mundo cripto para os balcões tradicionais é mais fácil, porque o caminho a
seguir já foi pavimentado. Existem regras e processos de venda estabelecidos. Então, para criar um
Token Security basta seguir as cartilhas e fazer parte do jogo. Já é possível, por exemplo, comprar na
CME (Chicago Mercantile Exchange), a bolsa de Chicago, um contrato futuro de Bitcoin. O comprador
adquire o contrato — não a moeda em si — com vencimento para dali a alguns dias apostando em
um valor futuro para o título. Se ao final do prazo o Bitcoin estiver mais caro, o comprador precisará
pagar a diferença. Mas se a moeda estiver valendo menos, ele receberá a diferença em dinheiro.

O caminho inverso, para criar um Security Token, é bem diferente. A trilha a seguir ainda precisa ser
desbravada. O processo para tirar uma empresa do mundo real e transformá-la em token ainda é
feito sob medida, caso a caso. Os interessados precisarão criar um jeito de fazer isso.

Terão de contratar um advogado e fazer todos os pedidos de aprovação a partir do zero. Quem está
por trás desses movimentos? Esqueça mineradores e libertários. Essa onda é liderada pelo mercado
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formal, ou seja, fundos de pensão, fundos tradicionais, bancos e agentes imobiliários. O maior
interesse deles é globalizar um ativo local e não se restringir mais a limites geográficos, como
acontece hoje no mercado convencional. Eles enxergam nos tokens a possibilidade de ampliar seus
negócios.

O mercado imobiliário é um dos que deve ganhar com o Security Token. Este setor é altamente
regulado de acordo coma região, porque a propriedade de um imóvel envolve impostos, contratos
e documentos regidos por regras locais. Também é concentrado na mão de grandes investidores,
porque hoje não é possível adquirir cotas de um prédio, por exemplo. Aderindo ao mundo cripto, o
mercado imobiliário poderia diluir o valor de um empreendimento. Se um imóvel vale R$ 1 milhão,
é possível fracioná-lo em 100 cotas de R$ 10 mil e vendê-las em forma de token. Dessa forma, uma
pessoa com poucos recursos passa a ter acesso a um mercado que hoje está disponível somente
para quem tem muito dinheiro. Abrem-se as possibilidades de incluir no mercado os médios
investidores e acabar com a exclusividade dos ‘big providers’ e ‘big investors’. Mais do que isso, a
tokenização dá uma maior liquidez e um fluxo global ao mercado de capitais.

Enxergo todo esse movimento como uma evolução positiva. Até agora, a cripto economia se
restringia aos tokens de ICO, que nasciam e permaneciam dentro desse mercado, como na
plataforma Ethereum. Agora passamos a falar de tokens como ativos de investimentos tradicionais.
Está nascendo um novo mercado de capitais dentro do antigo. E várias possibilidades podem surgir
a partir daí, entre elas, a criação de uma security que reúna vários ICOs numa cesta de ativos que
pode ser transformada em token. Ou ainda um fundo de investimento cripto. Extrapolando ainda
mais, podemos imaginar investimentos mistos, como um fundo tradicional que tenha uma cota
cripto e vice-versa. Junto com as oportunidades, vêm os riscos, mas isso não é nenhuma novidade
para o mercado de capitais.

Um passo importante que ainda não foi dado é a criação de um mecanismo de precificação. O que
temos hoje para os tokens é apenas uma cotação, que é diferente de um valuation, ou seja, uma
estimativa de valor de mercado. Para as empresas do mundo de tijolo e cimento essa cifra está ligada
ao valor dos imóveis, dos equipamentos, dos contratos, dos produtos e também à administração e
ao fluxo de caixa. Esse tipo de dinâmica ainda não existe para os ativos cripto. É mais uma missão na
lista de tarefas deste mundo que não para de inventar novos produtos.ausa para repetir e insistir no
reforço de uma parte das classificações.
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Funding by Token Events (FTE, ou ICO, ou ITO, ou TGE, voces escolhem) — As diferentes formas
de arrecadar dinheiro usando tokens

Parece confuso, e é, confundir a criação técnica dos tokens com a utilização dos mesmos em
financiamento de projetos, mas uma das motivações para a criação de tokens era o funding
(financiamento). Ou seja, a arrecadação de recursos de terceiros a partir da venda de tokens
emitidos sem mineração. Neste texto, quero dar mais detalhes sobre os “eventos de financiamento”,
explicar os que já estão sendo utilizados e os que estão sendo vislumbrados pelo mercado.

A criação de um token é uma ação totalmente tecnológica, ou seja, bastam um bom cérebro,
algumas linhas de código e voilà, eles estão criados e prontos para serem distribuídos. O fato de
nascerem dentro do mundo cripto dá a eles uma característica inédita no sistema financeiro: ser um
ativo digital, global, único e estupidamente fácil de ser transferido. Esse detalhe tem chamado a
atenção de investidores e, ao entender as modalidades, é possível entender o porquê de tanto
interesse.

Onde tudo começou


O primeiro funding by token event que aconteceu foi o da multichain, mas o mercado era muito
imaturo. O segundo, foi o do Ethereum. O russo Vitalik Buterin e sua turma não tinham dinheiro para
torná-la realidade. Para conseguir os recursos, decidiram fazer um crowdfunding, ou seja, uma
vaquinha. Até aí, nada demais. Em 2015 o crowdfunding já era um modelo consagrado de
monetização de projetos. No entanto, se restringia a valores na casa dos milhares de dólares. Era
dinheiro para publicar um livro, lançar um álbum de música, fabricar um sapato especial para trilhas
entre outros projetos pequenos. Quando a turma do Ethereum foi para o mercado em busca de
recursos, em julho de 2015, o que se viu foi a arrecadação de nada menos do que US$ 18 milhões.
Pra voces terem uma idéia, dos mais famosos crowfundings de tecnologia, a maioria dos ultimos
anos são chaintecs.

Arrisco dizer que nem nos sonhos mais dourados a turma do Ethereum esperava ganhar tanto
dinheiro. Diferentemente do Bitcoin, que tinha uma filosofia, um princípio, uma ideologia que ficou
20 anos maturando, o sucesso da arrecadação por meio de tokens emitidos foi absolutamente
acidental.

Esse valor astronômico não tem a ver somente com a boa ação e “vontade de ajudar” dos doadores.
Quem colocou dinheiro no Ethereum queria ganhar dinheiro. Ainda que o ICO não desse aos
doadores uma participação na empresa, eles vislumbravam vender esses tokens nas exchanges e
ganhar dinheiro nessa transação. Se o Bitcoin havia saído de US$ 0,06 em julho de 2010 para US$
600 em julho de 2014, por que o mesmo não poderia acontecer com o Ethereum? A euforia tomou
conta do mercado e todo mundo queria ou achava que deveria ter em mãos o seu quinhão de ETH.
Investidores não queriam ficar de fora dessa onda e topavam pagar cada vez mais pelos tokens. Isso
fez surgir um “efeito tulipa”: ninguém sabia o que estava comprando exatamente, mas todo mundo
queria ter porque achava que ia valer cada vez mais. Não demorou muito tempo para que o ETH
chegasse a valer US$ 1.600.

Foi aí que aconteceu o boom de ICOs. Empreendedores do mundo todo criaram projetos, emitiram
tokens em busca de financiamento e foram às vendas. O valor de mercado de todos os tokens
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listados em exchanges, que começou o ano de 2017 num patamar de US$ 8,5 bilhões, chegou em
2018 totalizando US$ 850 bilhões.

As diferentes modalidades
Com tanto dinheiro em jogo, o mundo das criptomoedas e dos tokens fez brilhar os olhos de grandes
investidores do mercado financeiro tradicional. Para tirar uma casquinha de tamanha cifra, o
mercado como um todo passou a articular diferentes modalidades de arrecadação de dinheiro que
eu batizei de Funding by Token Events. Reconheço hoje pelo menos seis tipos diferentes de funding.
Três eu chamo de puristas, porque têm o DNA cripto. Duas eu considero movimentos mais
complexos e híbridos. Por fim, o sexto é praticamente uma aberração.

crowdfunding
Crowdfunding — É a modalidade mais conhecida. Foi usada pelo Ethereum para arrecadação de
fundos. A empresa emitiu seus tokens e os interessados pagaram por eles através de uma doação à
empresa. Como já falamos aqui, o token comprado era apenas um token. Não dava direito à
participação na empresa e não prometia ganhos financeiros — a valorização era uma aposta dos
compradores, que não poderiam brigar com os fundadores do projeto caso desse errado. O ganho
aconteceria a partir da venda dos tokens nas exchanges, num mercado secundário.

Utility token
Utility token — Junto com o crowdfunding, surgiram os utility tokens. A venda era anunciada sob o
pretexto de serem somente para uso do protocolo da rede, mas também havia uma intenção de
driblar as regras da SEC (Securities and Exchange Commission), órgão que regula o mercado
financeiro nos Estados Unidos. Vendendo o token como uma ferramenta para usar o protocolo do
Ethereum, por exemplo, eles se distanciavam da definição da ação de uma empresa e podiam ser
comercializá-lo sem nenhum controle da instituição reguladora.

Na carona desse movimento, o mercado criou uma outra versão do utility token, que não era
exatamente para rodar o protocolo, mas serviria para comprar produtos da empresa, uma espécie
de cupom de quermesse.

Nos dois casos, a grande valorização financeira dos utility tokens foi possível (de novo) por causa do
mercado secundário, onde os investidores compram e vendem esses tokens livremente.

Os reguladores do mercado atentaram para esse detalhe e começaram a pensar em formas de barrar
esse movimento especulativo. Hoje, alguns países, como a Suíça, estão exigindo que o vendedor do
utility token tenha em mãos o produto da empresa para entregar e não somente o token.

Equity token
Equity Token — O equity token foi a modalidade de funding que aproximou o mercado de capitais
do mundo cripto. Vendo a enxurrada de dólares despejada em empresas e projetos cripto, os
endinheirados de Wall Street não quiseram ficar de fora. Esse tipo é literalmente um token de equity:
ele dá ao comprador uma participação da empresa ou um pedaço de um ativo. Mas tem uma
diferença crucial em relação ao equity tradicional: não se restringe a um púnico país.

Num processo tradicional, a empresa que abre capital faz um IPO que fica restrito a um único país.
Se um IPO for ser feito numa bolsa dos Estados Unidos, os investidores terão de ser americanos ou
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ter autorização para operar por lá. Já numa oferta de equity token, a empresa que quer fazer a
captação faz a oferta numa nuvem de exchanges e também por meio de um site próprio. Por lei,
essa empresa está vinculada a um país e segue suas regras, mas nada a impede de fazer a venda
também em outros países, desde que atenda às regras de todos eles. Ou seja, o equity token é global.
Ele dá à empresa a chance de captar dinheiro em vários mercados nos quatro cantos do mundo ao
mesmo tempo.

Enquanto no IPO tradicional o investidor estrangeiro só participa se tiver uma conta bancária e
recolher impostos localmente, numa venda por meio de token, o comprador vai recolher o imposto
sobre seus ganhos no país onde mora. Para o mercado de capitais, esta é uma tremenda diferença.

Claro que para ser realmente global, a empresa que emite o equity token precisa estar de acordo
com a legislação de todos os países onde faz a venda. Como essa não é uma tarefa fácil, o que tem
se visto hoje é a oferta deste tipo de token limitando a compra a alguns países. Uma empresa pode
fazer a oferta na Suíça, e dizer que investidores brasileiros podem participar mas norte-americanos
não, porque sua operação não está de acordo com a legislação dos Estados Unidos.

À medida em que vai se aproximando de Wall Street, o mundo cripto ganha novas regras. Sai de
cena o mundo livre para a compra e venda e ganham importância as regras para evitar lavagem de
dinheiro e movimentações fraudulentas. O anonimato também deixa de existir e as empresas
passam a ser obrigadas a conhecer e saber de onde vêm seus compradores e a origem do dinheiro
que está sendo investido. No frigir dos ovos, a teoria libertária dá lugar ao embate regulatório. E faz
surgir a nova onda, a da tokenização.

ASSET BACKED TOKENS


Asset Backed Token — esta é uma das duas modalidades que incluo na categoria das híbridas, porque
não é uma inovação com DNA cripto. Aqui estamos falando de um modelo misto entre o mercado
de capitais tradicional e o mundo dos tokens.

Os Asset Backed Tokens são uma tentativa de tokenizar ativos do mundo real, como prédios e
joalherias, tornando mais fácil o acesso de investidores. Imagine que um prédio custe US$ 170
milhões e um comprador o considere um investimento interessante, porque sabe que no futuro
haverá um metrô próximo ou alguma outra construção para valorizá-lo. Hoje, para investir, esse
comprador tem que ter em mãos os US$ 170 milhões ou precisa comprar uma cota de um fundo
imobiliário do qual aquele prédio específico faça parte. A tokenização abre caminho para os
pequenos investidores participarem mais diretamente desse mercado. Tokenizar o prédio significa
fazer um acordo comercial que envolva um contrato que fracione o prédio inteiro e venda
pedacinhos dele separadamente por meio de tokens. A partir do momento que aquele contrato é
tokenizado ele passa a ser global e pode ser vendido de mão em mão.

Para ser um Asset Backed Tokens, o token precisa necessariamente de um contrato de posse. Esse
contrato o motivo de um nó jurídico que o mundo cripto vem tentando desatar. Hoje, por lei, eu não
posso vender um pedaço de um prédio se eu não tenho o contrato de posse dele.

E se eu não tenho o prédio inteiro, eu não posso ter um contrato de posse em meu nome. Isso é um
problema que freia o modelo de tokenização. A solução proposta por defensores dessa modalidade
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de investimento é a criação de leis que garantam que quando um contrato for tokenizado, a venda
dos tokens valha como transferência de propriedade. Como os tokens têm um ID único, a partir do
momento que eu transferir a propriedade, o comprador passaria a ser o dono do ativo ao qual ele
se refere. Isso permitiria a transferência de posse sem a necessidade de gerar um novo contrato.

Security as a token
Security as a token — Esta modalidade eu também incluo no grupo das híbridas. Aqui estamos
falando de valor mobiliário. Como o próprio nome diz, trata-se de transformar securities tradicionais
em tokens. O grande apelo de fazer a conversão é ganhar o mercado global. Quer um exemplo? A
Latoex, uma empresa cripto que roda na Estônia, quer converter títulos do Tesouro Nacional do
Brasil em tokens. Dessa forma, um europeu poderá comprar títulos brasileiros sem nunca ter pisado
no país. Pelas regras do mundo cripto, não há nada de errado nesse tipo de transação. Mas olhando
com as lentes do mercado convencional, há uma série de regras que precisam ser respeitadas para
que essa transação seja efetivada.

Apesar de todo complicômetro, muitas empresas estão buscando soluções para fazer esse tipo de
funding. Estão de olho em novos mercados e novos investidores. Quando conseguirem tokenizar as
securities americanas, eles abrirão o mercado dos Estados Unidos para o mundo inteiro. E vice-versa.

Token as a security
Token as a security — Este modelo de funding é uma verdadeira aberração do mercado de capitais.
Foi criação dos inovadores do mercado financeiro para atrair os ultraconservadores (para não dizer
covardes) de Wall Street para o mundo cripto. Eles querem fazer o caminho inverso do Security as a
Token: querem pegar todas as invenções do mundo cripto, enquadrá-las na legislação local de cada
país e vendê-las como uma security. Ou seja, transformar o global em local, reverter o cripto em
Faria Lima.

Os idealizadores dessa prática não estão interessados no mercado global. Eles querem encontrar
uma forma de tirar uma casquinha dos bilhões que estão nas mãos dos investidores mais
conservadores do mercado tradicional. Se eles conseguirem que um token as a security seja listado
no terminal Bloomberg, estarão felizes da vida com um novo produto capaz de atrair atenção e
dinheiro dos investidores.

Ainda não existe nenhum token securitizado, mas eu aposto que não demorará para isso acontecer.
A legislação para isso já existe, basta enquadrar as empresas cripto na cartilha do mercado
financeiro. Eu acredito que veremos esse bicho bizarro surgir ainda em 2018.
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Token distribution: as diferentes formas de distribuição de tokens

Agora que já falamos das características dos tokens, mostramos os diferentes processos de geração
e detalhamos as maneiras de arrecadar dinheiro a partir dessas emissões, minha intenção é dissecar
as formas de distribuição. Já adianto que é uma das áreas do mundo cripto onde estão surgindo mais
novidades. Tudo por conta do mercado financeiro, que está de olho grande querendo aumentar sua
participação nesse novo habitat.

Para começar, é importante deixar claro que quando falamos de distribuição, estamos sempre nos
referindo aos tokens que são emitidos. Não entram nessa seara as moedas geradas a partir da
mineração, como é o caso do bitcoin. Isso porque na mineração a distribuição já acontece
naturalmente entre os mineradores.

O caso mais emblemático de emissão de tokens é do Ethereum, que aconteceu em julho de 2015. A
criação dos tokens de ETH trouxe para o mundo cripto o modelo de smart contract ERC 20, que foi
adotado como padrão por todo mercado e abriu as portas para a criação e comercialização de vários
outros tokens.

A distribuição de tokens nada mais é do que a venda, que pode ser feita de maneiras diferentes:

Emissão direcionada

Emissão direcionada — é a emissão padrão, na qual a empresa determina de antemão o percentual


que cada participante vai receber, ou seja, qual a fatia ficará para o fundador, qual ficará para os
colaboradores e qual ficará para investidores. Neste modelo, quando o token é impresso já é
direcionado para as wallets (carteiras) dos envolvidos.

Pre-venda

Pré-venda — esta forma de emissão costuma ser utilizada por projetos que atraem muito interesse
de investidores. A empresa seleciona um grupo pequeno de pessoas e, como o nome já diz, vende
os tokens com desconto antes de o mercado ser aberto para o público em geral. Mas não sem uma
condição. Normalmente os contratos que envolvem esse tipo de negócio possuem “locks” (travas)
impossibilitando o comprador de revender os tokens antes de um prazo mínimo ou estabelecendo
uma cota máxima que pode ser revendida. O uso de travas não é mandatório, mas é considerado
uma boa prática para evitar a especulação.

airdrops

Airdrop — podemos dizer que essa modalidade de distribuição é uma doação cheia de segundas
intenções. Foi um modelo criado para driblar a SEC (Securities and Exchange Commission), que vem
tentando estabelecer regras para a emissão de tokens. Sendo uma doação, não cai nas regras de
investimentos. No airdrop a empresa faz um plano de emissão direcionada, mas estabelece um
percentual de tokens que serão doados para terceiros. Por exemplo, determina que 20% ficarão com
os fundadores e os demais 80% serão distribuídos gratuitamente. O próximo passo é fomentar a
valorização desses tokens, seja por meio de informações, uma pesada campanha de marketing ou
mesmo movimentos especulativos. Assim, quando a plataforma é realmente lançada, a valorização
dos tokens, mesmo que infundada, é tão grande que garante o lucro dos 20% que ficaram nas mãos
dos fundadores.
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Venda primaria

Venda — aqui estamos falando do ICO propriamente dito, ou, usando a nomenclatura mais correta,
o ITO, Initial Token Offering. A empresa é lançada numa campanha de venda e os interessados se
cadastram para ter a chance de comprar. Nesse modelo, a venda tem um prazo mínimo de 30 dias
e máximo de 12 meses para ser concluída. Normalmente, há regras que estabelecem que, caso o
valor desejado não seja arrecadado, o dinheiro investido por todos os participantes será devolvido.

Modelo the dao

Modelo DAO — Há uma outra forma de distribuição baseada no modelo da DAO, que já vimos em
outro artigo. Neste caso, a empresa, que é uma cooperativa, emite os tokens e distribui
gratuitamente a todos os funcionários de acordo com a colaboração do indivíduo no negócio. Num
segundo momento, quando a empresa já conseguiu receber o pagamento por alguns serviços, todo
lucro é dividido entre todos os funcionários proporcionalmente ao número de tokens que cada um
possui.

Este tipo de distribuição ainda está embrionário, mas o Brasil já tem um case desta modalidade, que
é a Próspera. Essa empresa surgiu baseada num modelo de cooperativa para fazer a tradução de um
livro. Conforme exemplares do livro são vendidos, todos participantes recebem seus “dividendos”
de acordo com a quantidade de páginas que traduziu.

É importante ressaltar que estas modalidades não são excludentes. Pelo contrário, é mais comum
os projetos serem lançados com mais de um modelo de distribuição do que usando apenas um.

Formas de controle

Modalidades à parte, há em comum um ponto-chave para o sucesso de uma emissão de token: a


confiança. Um comprador precisa confiar em quem está fazendo a venda, ou seja, precisa acreditar
no projeto. E o primeiro passo para conquistar essa confiança é a transparência. É preciso deixar
claro para os investidores como o dinheiro será utilizado. Nas empresas cripto, este papel está com
as tesourarias, que comandam o entra e sai de dinheiro (ou token). É a tesouraria que faz o
planejamento dos tokens emitidos, dos tokens vendidos e das cripto recebidas. Também fica com
essa área a responsabilidade pela criação de white lists e black lists que filtram o perfil de quem vai
participar da emissão. Cada negócio lançado tem liberdade para decidir suas regras e os percentuais
que caberão a cada participante, mas seja qual for a regra, ela precisa ser clara e transparente.

As exchanges são outra peça necessária para a engrenagem da emissão de tokens girar de forma
azeitada. São elas que fazem o abastecimento das wallets dos participantes. É dentro das exchanges
que são feitos os controles de segurança antifraude e lavagem de dinheiro. Para fazer uma compra
de token, não basta ter o dinheiro, é preciso provar a sua origem.

O processo de distribuição de tokens está muito ligado ao financiamento de projetos. Num primeiro
momento, quando a empresa ainda é só uma ideia que precisa de dinheiro para entrar em operação,
é feita uma emissão a partir de uma vaquinha, que é um pedido de doação. O comprador doa o
dinheiro, fica com o token, mas não tem nenhuma participação no negócio. Em outro momento,
quando a empresa já está estabelecida, pode ser feita a emissão a partir de um equity token, que dá
ao comprador uma pequena fatia da empresa.
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Aqui vale uma observação: apesar de muito parecidos, o mercado tradicional e o mercado cripto
fizeram movimentos diferentes na utilização dessas modalidades de financiamento. Enquanto o
mercado tradicional usa o crowdfunding (vaquinha) para arrecadar valores mais baixos, o mundo
cripto faz o inverso, usando esse modelo para arrecadar bilhões. Foi o que vimos acontecer em 2017,
quando diversos projetos foram lançados em ICO e conseguiram grandes arrecadações. O que
alavancou esse movimento foi a possibilidade de revenda dos tokens. Ninguém fez as doações
pensando na caridade. O objetivo maior era pegar essa primeira oferta e revender com lucro no
mercado paralelo. Esse movimento pode estar com os dias contados, pois a SEC em breve deve
impor regras para participação nesses processos de participação disfarçados de doação.

Muitos tokens e três mercados

Com o boom de emissões, a quantidade de tokens no mercado ficou tão grande que a
comercialização passou a acontecer em três níveis diferentes de mercado: fechado, primário e
secundário, que explico a seguir:

fechado

Fechado — é quando há uma doação direta em troca de tokens. Uma empresa emite os tokens e
vende diretamente para um investidor anjo ou sócio sem passar pelo mercado.

primario

Primário — é o que conhecemos como ICO. É a emissão de vários tokens colocados à disposição no
mercado. É um processo muito parecido com o de um IPO no mercado financeiro tradicional. Mas
há uma diferença importante: num IPO, a maior parte das ações fica com fundos, fundadores e
investidores, e um pequeno percentual é vendido nas bolsas de valores. Num ICO é o contrário. Uma
parte menor dos tokens fica com os fundadores e o bolo maior é ofertado ao mercado.

secundario

Secundário — é uma espécie de mercado paralelo. É a venda de tokens que acontece entre pessoas
nas exchanges. Foi esse mercado secundário que fez o mercado de ICO explodir, porque os
compradores adquiriam os tokens no ICO, esperavam o valor aumentar e corriam para as exchanges
a fim de revender com lucro. Não por acaso, hoje estão operantes 12 mil exchanges no mundo cripto.
É um verdadeiro varejão muito pulverizado. Para se ter uma ideia, há mais gente apta a operar cripto
no Brasil do que ações na B3 (antiga Bovespa).

Peer to peer

A partir dessa pulverização surgiu um outro modelo de comercialização que é a subversão da


subversão da subversão, que só acontece no mundo cripto: a venda peer-to-peer, de pessoa para
pessoa. Uma envia os tokens para a outra e recebe o pagamento diretamente em sua wallet. Simples
assim, sem nenhuma exchange no meio, sem a anuência de investidores ou fundadores. Esse modelo
de transação é muito pouco falado, muito pouco explorado, mas tem sido cada vez mais utilizado.
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Quando o cripto imita o mundo real

Na carona dos modelos de distribuição está surgindo um mercado futuro de criptomoedas, que
funciona de forma muito semelhante ao mercado futuro de ações. Este modelo ainda está limitado
ao bitcoin, mas não deve demorar para que outros tokens também participem. O mercado futuro
permite que os participantes apostem se o preço da moeda irá subir ou cair. Se o bitcoin está
custando 100 e o investidor acha que o valor vai cair, ele compra um contrato futuro apostando na
queda. Se ele acha que vai subir, ele compra um contrato apostando na alta. Ainda que não seja
distribuição de token verdadeiramente, considero esse um modelo de distribuição.

O mercado futuro está nascendo agora e traz um efeito colateral que pode mexer bastante com o
universo cripto nos próximos anos, que é a chegada das instituições financeiras. Hoje, um banco não
pode ter bitcoin, mas ele pode ter o contrato futuro de bitcoin, desde que seja listado numa bolsa.
Basta isso para que os gigantes de Wall Street ou da Faria Lima comecem a participar da brincadeira.

Se todo modelo do mundo real for migrado para o cripto, poderemos ver em breve as empresas
cripto criando suas áreas de relação com investidores, porque a remuneração dos executivos estará
atrelada ao preço dos contratos de token. Se os contratos valorizarem eles ganharão mais dinheiro.
Ainda que as semelhanças só aumentem, ainda pesa a favor do mundo cripto o fato de serem
globais., enquanto o mercado convencional está limitado geograficamente.

Hoje, se eu quiser fazer um IPO da minha empresa no Brasil, eu tenho que trazer o investidor para
cá e conseguir uma autorização para que ele possa investir, o que significa um trabalho hercúleo. No
mundo cripto, a transação pode acontecer a partir de qualquer lugar, exceto Estados Unidos, desde
que o pagamento seja feito em moeda digital. As fronteiras caem por terra. E para a distribuição
esse aspecto faz toda diferença.
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#somostodoscriptofriendly: a briga entre os países para atrair as empresas do mundo cripto

Na Blockchain Week de Nova York de 2018, o ministro do comércio de Gibraltar gastou saliva
durante vários minutos do Token Summit para explicar à plateia o quão bem vindas são as empresas
do mundo cripto eram em seu país (leia-se: quão baixas são as alíquotas de impostos para este tipo
de empresa). A Ilha de Malta está indo pelo mesmo caminho e tem atraído companhias com o
objetivo de se transformar na ilha Blockchain. A mais notável das atraídas até agora foi a Binance, a
maior casa de câmbio de criptomoedas, que anunciou em abril a mudança de sua sede. Gibraltar e
Ilha de Malta são apenas dois exemplos de países que têm oferecido benefícios aos empreendedores
que decidirem mudar o domicílio fiscal de suas iniciativas. Vários países estão no páreo e querem
para si o título de meca das empresas cripto, que até o ano passado era da Suíça. O objetivo é atrair
o volume de dinheiro que este setor da economia é capaz de gerar.

As regras para compra e venda de tokens e criptomoedas variam muito entre os países. Enquanto
aqui no Brasil é necessário declarar a compra e pagar um imposto sobre o ganho de capital da venda
do bem, na Itália não é preciso pagar pelo ganho de capital. Considerando todas as diferenças, uma
verdadeira guerra regulatória tem se desenhado no mapa mundi.

Para ser o que eu chamo de “país criptofriendly”, não basta cobrar menos impostos. É preciso
organizar e tornar transparente a regulação ao redor desse mercado. Alguns passos são necessários
para conquistar este título:

1º passo: ter uma regulação. Os que as empresas deste setor procuram é um lugar onde não
haja uma zona cinzenta no que diz respeito às leis. Querem um lugar com regras claras para
toda e qualquer movimentação deste tipo de dinheiro.

2º passo: que essa regulação seja favorável. Na China, por exemplo, há regras muito claras
em relação a este mercado, mas o país não permite aos seus cidadãos a posse destas
moedas, por isso, o país não se encaixa na categoria criptofriendly.

3º passo: permitir atividades empresariais como fazer ICO, criar um fundo de investimento
ou um banco que aceite depósitos e retiradas dinheiro digital.

4º passo: permitir a existência de uma corretora ou serviço de custódia em moeda virtual.

5º passo: permitir a criação de um cartório digital, onde o cidadão possa ter assinatura digital
em cripto, com um serviço de ID pessoal, como o eCPF e o eCNPJ.

Ainda não há um país que tenha atendido todas estas premissas. E é exatamente este o motivo da
corrida entre as nações. Quem se preparar primeiro tem a chance de atrair mais empresas.

A Suíça ainda é o lugar que tem a legislação mais clara, mas quem está por lá começa a perceber
algumas barreiras. Os pagamentos são em francos suíços, é preciso ter pessoas suíças fazendo parte
da gestão e é muito difícil conseguir um visto de residência. Aproveitando essas brechas, outros
países como Bermudas, Bahamas, Ilha De Malta, Gibraltar, Liechtenstein começam a se movimentar
para oferecer mais benefícios e disputar a preferência das empresas cripto.
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Governos digitais

Há um segundo grupo de países que, apesar de não terem seu foco no mundo cripto, avançaram
consideravelmente no processo de digitalização, como Dubai e Estônia. Estes dois países podem ser
considerados “governos digitais”. São lugares que criaram regras que permitem que qualquer
pessoa, de qualquer lugar do mundo, abra uma empresa em seu território mesmo sem morar nele.

Na Estônia, um brasileiro vira cidadão estoniano (Não residente, claro, apenas virtual) em minutos e
pode abrir uma empresa lá em poucas horas — do mundo cripto ou não. É possível fazer toda a
captação por lá e trabalhar sem burocracia, eventualmente montando apenas uma subsidiária no
Brasil. No caso de um ICO, por exemplo, o empreendedor pode trazer o dinheiro para o Brasil sem
burocracia. Em troca, o país fica com o imposto gerado pelo negócio. Assim como estamos
vislumbrando a indústria 4,0, é como se houvesse um governo 4.0, que é mais ágil e, portanto,
consegue atrair mais “clientes” pagadores de tributos.

Esses países entenderam que, se concentrarem o maior número de empresas cripto em seus
territórios cobrando um imposto mínimo, de 1%, podem ganhar bilhões taxando a circulação de
dinheiro gerada por estas mesmas companhias. Isso permitiria que pequenos países se
enriquecessem só de “ver passar” todos estes valores por seu território. É aí que começa a guerra
fiscal.

Hoje, qualquer ativo financeiro está geolocalizado. Se eu tenho dólares nos Estados Unidos e quero
levá-los para Portugal, tem um processo burocrático que envolve, no mínimo, pagamento de
impostos. Nos ativos do mundo cripto, o governo não pode fazer nada. Simples assim. Então, os bens
são pessoais.

O devaneio pode ir longe, mas já existe até um livro escrito sobre isso. Em The Sovereign Individual,
o autor James Dale Davidson diz: “Você agora é seu país. Se você está com as suas chaves
criptográficas, o bem é seu. A riqueza é sua”. Esqueça o Estado.

O que países como a Estônia querem fazer é se aproveitar desse movimento e tentar faturar em
cima com a seguinte mentalidade: “O dinheiro é seu? Declarou aqui? Pagou imposto? Eu não vou
nem ligar que você leve a quantia para outro lugar. Se passou pela Estônia com sua cidadania, eu
quero cobrar um impostozinho bem pequenininho. Não vai doer, mas vai te dar a garantia de que o
seu bem dentro da Estônia é seu, ninguém pode tascar”.

Dessa forma, eu posso ter uma empresa na Estônia e ser um cliente do banco local que aceita
depósito em cripto. Se meus funcionários forem cidadãos estonianos e aceitarem pagamento em
cripto, nem eles nem eu precisaremos estar no mesmo país. Eu posso enviar o pagamento em moeda
virtual e eles trocam esse dinheiro pela moeda de seus países, seja Brasil, Argentina ou Estados
Unidos.

Neste sentido, entendo que a onda cripto e a do governo digital são fenômenos que andam juntos.
A consequência mais importante que vem com eles é a transnacionalidade digital da existência
individual, ou seja, a possibilidade de ser um cidadão virtual de um outro país onde eu não moro.
Antes, eu podia existir virtualmente só no Second Life (lembra dele?).
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Hoje eu até posso ser um cidadão virtual da Facebooklândia ou qualquer outra rede, mas é a primeira
vez que eu posso ser um cidadão virtual de um país morando em outro. Posso ter um cartão de
residente da Estônia equivalente ao Green Card americano sem nunca ter pisado lá.

E o Brasil?
Como observador atento de todo esse movimento, acredito que estamos no meio de uma guerra
regulatória e fiscal, que só vai se intensificar com mais países entrando nesta briga. E da mesma
forma que hoje temos hoje o conceito dos paraísos fiscais, poderemos ter em breve o conceito de
paraísos para nômades digitais, sejam eles empresas ou pessoas.

O triste para nós é que o Brasil está fora dessa briga. Por aqui não temos nenhum tipo de
regulamentação para questões digitais, a burocracia é enorme e só aumenta o custo de fazer
negócios. Então, estamos perdendo não só a onda tecnológica, como a onda de regulação.
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REFERENCIAS E NOTAS

i
José Ortega y Gaset, A Rebelião das Massas, https://liberdadedepensamento.wordpress.com/obras-de-
referencia/a-rebeliao-das-massas/

ii A CypherPunk manifest, original, by Eric Hugues https://www.activism.net/cypherpunk/manifesto.html

iii
Neuromancer, https://en.wikipedia.org/wiki/Neuromancer

iv https://www.neondystopia.com/cyberpunk-fashion-lifestyle/a-cyberpunk-manifesto-revised/

v
http://cyberpunk.asia/pages_html.php?html=manifeste&lng=us

vi https://pt.wikipedia.org/wiki/Escola_Austr%C3%ADaca

vii
https://en.wikipedia.org/wiki/Anarcho-capitalism

viii
Bauman e a sociedade líquida, https://colunastortas.com.br/sociedade-liquida/

ix
https://www.ted.com/talks/jaron_lanier_how_we_need_to_remake_the_internet?language=pt-br

x
https://www.nytimes.com/2010/06/06/books/review/Lehrer-t.html

xi
Frank Diana, lenses for the future, video, https://www.youtube.com/watch?v=PeGDLLp9BtA

xii
http://www.fnq.org.br/informe-se/noticias/o-que-e-um-ambiente-v-u-c-a-e-o-que-isso-tem-a-ver-com-
gestao
xiii
https://en.wikipedia.org/wiki/Pretty_Good_Privacy
xiv
https://pt.wikipedia.org/wiki/Criptografia_de_chave_p%C3%BAblica
xv
https://en.wikipedia.org/wiki/Joseph_Stiglitz
xvi
http://www.hashcash.org/papers/pvp.pdf

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