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Terra, Mar e Céu:

Cosmologia na Mitologia Céltica

por Robert Kaucher


Copyright © Robert Kaucher 2002

Nos últimos anos aqui no Brasil o interesse na mitologia e nas tradições Célticas cresceu
substancialmente, mas, com a exceção de uma pequena coleção de livros e sites na Internet, na verdade
há poucas fontes de informação para as pessoas que desejam aprender mais sobre a mitologia Céltica.
Esta realidade criou uma situação peculiar onde para preencher este buraco, o mito tomou o lugar da
verdade. Um mito é que os Celtas acreditavam em um sistema cosmológico baseado nos quatro
elementos da Terra, o Ar, a Água e o Fogo e que estes quatro elementos foram associados aos pontos
cardeais exatamente do modo que eles estão na Wicca hoje. Quando nós olhamos para a mitologia
Céltica, principalmente o galho irlandês, vemos que isto não é a verdade e que o sistema cosmológico
Céltico é muito mais complexo. A primeira coisa que temos que discutir é a divisão básica do multiverso
em três partes: o reino celestial dos Deuses Altos, o reino mediano dos mortais e o submundo dos
antepassados e deuses da fertilidade. Na tradição Céltica isto é expresso normalmente na tríade de Terra,
Mar e Céu (talamh agus muir agus neamh em irlandês). Essa tradição anciã explica muitos dos contos
folclóricos da Irlanda, nos quais as pessoas alegam ver o fundo de barcos passando pelo céu azul, como
se fosse um grande oceano. Também explica por que o deus do mar Manannán cantou este poema a
Bran[1]:

'Bran julga uma beleza maravilhosa


Na sua curach[2] no mar claro:
Enquanto para mim em minha carruagem ao longe
É uma planície florida na qual ele cavalga.

'O que é um mar claro


Para o barco de proa no qual Bran está,
É uma planície feliz com profusão de flores
Para mim da carruagem de duas rodas.

'Bran vê
O número de ondas que batem pelo mar claro:
Eu me vejo em Mag Mon[3]
Flores vermelhas sem falta.

Vemos neste poema que o reino oceânico está conectado com a fertilidade e com a abundância e que
para Manannán as ondas do oceano não são água mas os topos das árvores que balançam ao vento. O
oceano também era associado com os mortos: o primeiro mortal que morreu na Irlanda era Eber Donn,
que se afogou antes de chegar à orla e fui enterrado em Teach Duinn (a Casa de Donn), normalmente
associado a uma ilha rochosa pequena perto da Ilha Dursey, a oeste da península de Bearre, no Sudoeste
de Munster na Irlanda. O “Outro Mundo” Céltico normalmente é representado como sendo Ilhas[4]. É
importante lembrar que o Outro Mundo insular, ou Submundo, normalmente não é um lugar como o
Hades grego mas é um lugar de repouso, um paraíso para nossa família morta. Alguns dos nomes mais
comuns para estas ilhas são listados abaixo.

Nome em irlandês Nome em português Interpretação

Tír na mBán A Terra de Mulheres Uma ilha espiritual para guerreiros terem amantes perpétuas

Tír na mBeo Terra dos Viventes Uma ilha onde não há a morte, só se festeja e alegria.
Uma ilha paraíso onde as pessoas ficam perpetuamente jovens
Tír na nÓc A Terra da Juventude e saudáveis.
A ilha de Manannán onde os deuses festejam e bebem a
Tír Taingíri A Terra de Promessa Cerveja da Imortalidade feita por Goibniu.

Embora o Submundo pudesse ser encarado como uma ilha, isto não deveria ser considerado um
conceito rígido, pois o mito é fluido e uma metáfora não deveria ser fixada em sua mente.

O reino celestial foi concebido como um grande retângulo e no mito irlandês aprendemos que havia
quatro cidades onde as Tuatha Dé[5] aprenderam a magia e o druidismo e de onde trouxeram os quatro
tesouros mostrados no quadro abaixo.

Objeto mágico Cidade Significando


A pedra de coroação dos reis antigos da Irlanda, a
Lía Fáil[6] (a Rocha do Destino) Falias Deusa de Sovarania.
O druida como mago e o rei como juiz.
Sleg Logo (a lança de Lugh) Gorias Representa a função do “sacerdote.”

Claideb Núadot (a Espada de Nuada) Findias A função do guerreiro.

Coire an Dagdai (o Caldeirão do Dagda) Muirias A função agrária dos fazendeiros e os outros produtores.

Os povos antigos sempre procuram na sua mitologia um precedente que demonstra que sua sociedade
está no lugar correto, onde o mundo é o que é não porque as pessoas fizeram assim, mas porque os
deuses ordenaram. Neste sistema quádruplo, o qual veremos depois é de fato quíntuplo encontramos um
lugar para todos os membros da tribo Céltica primitiva sendo que os deuses da ordem e da justiça como
o Lug e a Brigit são achados no reino celestial.

A terra é o reino dos mortais e parece freqüentemente ser concebida como o corpo de uma deusa
associada à terra e à agricultura como a Tailtiu. A terra “flutua acima das águas do oceano mítico e por
meio desta conexão extrai a fertilidade necessária para dar a vida. Mas também há uma idéia mítica mais
antiga, entretanto apenas rastros sobreviveram na mitologia Céltica que demonstra que a terra pode ser
feita do corpo de um gigante primordial que foi morto por um dos Altos Deuses. Neste mito ancião a
carne dele é usada para fazer a terra, seus ossos se tornam as pedras e as rochas, seu sangue, são a água
dos rios e do oceano, sua mente vira as nuvens, sua respiração é o vento e seu olho é o sol [7]. No total
existem sete “elementos” na tradição Céltica, não quatro, e eles demonstram o princípio mágico antigo
de “assim acima, assim embaixo,” o que temos dentro de nós também existe fora de nós. Eu incluí um
oitavo elemento correspondendo à alma.

Elemento do Mundo Externo Elemento do Mundo Interno

Talam (terra) Colaind (carne)

Muir (mar) Fuil (sangue)

Cloch (pedra) Cnáim (osso)

Nél (nuvem) Menmae (mente)

Gaeth (vento) Anál (respiração)

Grian (sol) Súil (olho) ou dréch, (face)

Nem (cúpula do céu) Cenn (cabeça)

Dée (deuses) Anam (alma)

Exatamente como há quatro cidades no reino celestial dos Deuses há quatro pontos cardeais no
compasso e quatro províncias (correspondendo aos pontos cardeais) mas a palavra irlandesa para
província é cúige que significa “quinto”, não “quarto.” Na tradição irlandesa há cinco pontos e não
quatro: Leste, Sul, Oeste, Norte, e o centro. Como em todas culturas pré-modernas estas direções têm
significados especiais que são discutidos na mitologia irlandesa primitiva. Na história Suidigud Tellaig
Temra (Povoando o Palácio de Tara) aprendemos há associações semelhantes àquelas dos quatro
tesouros das Tuatha Dé[8].

Direção Associação Tesouro[9] Província Significado

Leste Bláth (flor) Coire an Dagdai Lagain (Linster) Prosperidade

Sul Séis Lía Fáil Mumu (Munster) Intuição


(música/melodia)
Connacht Aprendizado, sabedoria
Oeste Fios (Conhecimento) Sleg Logo
Ulad (Ulster) Guerra, conflito
Norte Cath (Batalha) Claideb Núadot
Míd (Meath) Domínio, dignidade.
Centro Fláitheas (Soberania) (o rei ?)
O conhecimento dos três reinos - terra, céu, e mar - seria de pequeno uso a nós mortais se não houvesse
algo para uni-los. Normalmente, na tradição indo-européia[10] a Árvore do Mundo tem suas raízes nas
águas do Submundo e seus galhos estendendo-se e apoiando o reino celestial. Normalmente esta árvore
é representada por um freixo e, na Irlanda, a maioria das bilí eram freixos. As bilí (bile[11] singular)
mais famosas são o Freixo de Tortu, o Carvalho de Mugna, o Teixo de Ross, o Freixo de Dathí e Freixo
de Uisneach. Uma convicção indo-européia comum era que os deuses fizeram os mortais do freixo. Na
mitologia escandinava o deus Odin fez o primeiro casal humano dos galhos de uma árvore e o primeiro
homem tinha o nome Asc (freixo), e, nos mitos gregos às vezes os homens são chamados “sementes do
freixo[12]”. Nos mitos irlandeses os primeiros mortais, freqüentemente chamados os “Millesianos” são
os descendentes de Gollam[13], filho de Bile (a árvore sagrada).
Eu espero que esta discussão breve e superficial dos aspectos fundamentais da mitologia Céltica possa
dar aos leitores uma habilidade melhor para entender a mitologia Céltica, uma vez que cada vez mais
fontes da tradição antiga dos Celtas estão sendo disponibilizadas na língua portuguesa. Sem uma
compreensão dos conceitos básicos, a mitologia Céltica pode parecer sem sentido e confusa mas para o
Druida aspirante ou a Bruxa Céltica, este conhecimento é como a bile que dá acesso aos três mundos de
terra, mar e céu e o conhecimento do Outro Mundo.

Bibliografia

Textos em Irlandês Antigo e Irlandês Médio:

Thurneysen, Rudolf (ed.) Imram Brain maic Febail

CELT online texts (ed.) Cath Maige Tured

Suidigud Tellaig Temra

Outras Fontes:

Littleton, C.S. The New Comparative Mythology. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.

Mallory, J.P. Insearch of the Indo-Europeans. London: Thames and Hudson, 1989.

Raferty, Barry. Pagan Celtic Ireland: The Enigma of the Irish Iron Age. London: Thames and Hudson.

Rees, Alwyn e Brinley: Celtic Heritage: Ancient Tradition in Ireland and Wales. London: Thames and
Hudson, 1991.

[1]Da história irlandesa antiga Imram Brain (a Viagem de Bran).

[2]Um barco tradicional associado aos Celtas insulares.


[3]Mag Mon: um nome para o Outro Mundo.

[4]O outro mundo ctonico de Manannán e os antepassados não deveria ser confundido com o “síd,” ou
domicílio espiritual dos Deuses Altos embora a palavra síd como um lugar espiritual parece ser
confundido com o conceito insular em muito da tradição literária mais recente.

[5]O Tuatha Dé (Danann), Tribos dos Deuses, é o nome mais antigo para os deuses nos mito irlandeses.
A parte “Danann”, normalmente interpretada como “da deusa Danu” não aparece nos textos mais
antigos.

[6]Fáil significa “destino” mas também é um nome poético para a Irlanda.

[7]O palavra súil, “olho”, em irlandês é etimologicalmente “sol” e vem da mesma raiz da palavra
portuguesa.

[8]Para uma discussão mais profunda destas associações na mitologia irlandesa e em outras tradições
indo-européias veja o livro Celtic Heritage por Alwyn e Brinly Rees.

[9]Veja tabela um para as traduções.

[10]Os indo-europeus são o povo de quem os celtas e muitos outros povos da Europa e da Índia
descendem.

[11]Cada tribo tinha uma bile em seu território que ficou onde o rei tribal era coroado. Estas árvores
representavam a árvore mundial mítica.

[12]Hesychius de Alexandria escreveu no seu léxico: Melías karpós: tò anthrópon génos “Sementes do
freixo: a raça dos homens” Este léxico famoso é uma coleção de expressões de vários idiomas.
Hesychius viveu no quinto século.

[13]Gollam é o nome original de Míl Espáine, o pai dos “Milesianos” O nome Míl Espáine é
obviamente uma adição literária Cristã à história e deriva do latim miles Hispaniae, o Soldado da
Espanha.

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