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Introdução

Quando, na manhã de domingo de 28 de junho de 1914, o arquiduque


Francisco Fernando e Sofia Chotek, sua mulher, chegaram à gare de cami-
nho de ferro de Sarajevo, o continente europeu estava em paz. Trinta e sete
dias mais tarde, estava em guerra. O conflito que começou nesse verão
mobilizou sessenta e. cinco milhões de soldados, envolveu três impérios,
fez vinte milhões de mortos entre militares e civis, e vinte e um milhões de
feridos. Foi nesta catástrofe que os horrores do século xx europeu tiveram
origem, que seria, nas palavras do historiador americano Fritz Stern, "a
primeira calamidade do século xx, a calamidade da qual todas as outras.
calamidades irromperam" 1. O debate sobre porque acontecera começou
antes ainda de terem sido disparados os primeiros tiros. E deu origem a uma
literatura histórica de uma vastidão, de uma complexidade de perspetivas e
de uma intensidade moral sem paralelo. Para os investigadores que se de-
dicam à teoria das relações internacionais, os acontecimentos de 1914
continuam a ser a crise política por excelência, suficientemente intrincada
para permitir um número indefinido de hipóteses.
O historiador que procura compreender a génese da Primeira Guerra
Mundial depara com uma variedade de problemas. O primeiro e mais evi-
dente é o da superabundância das fontes. Cada um dos Estados beligerantes
produziu múltiplas edições em vários volumes de documentação diplomá-
tica, vastas compilações resultantes da investigação coletiva dos arquivos.
Neste oceano de fontes, há correntes perigosas. A maior parte dos docu-
mentos oficiais produzidos no período entre as duas guerras são de teor
apologético. Os cinquenta e sete volumes da publicação alemã Die Grasse
Politik, que reúnem 15 889 documentos distribuídos por trezentas rubricas
temáticas, não tiveram um espírito nem objetivos puramente científicos; os
responsáveis esperavam que a revelação dos arquivos do período anterior à
guerra bastasse para refutar a tese, presente nos termos do Tratado de Ver-
salhes, que atribuía a "culpa da guerra" aos alemães2 . Também para o go-
verno francês, a publicação de documentos no pós-guerra era uma iniciati-
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va de "caráter essencialmente político", como diria, em maio de 1934, o potências da Entente antes de agosto de 1914, bem como do papel que esses
ministro dos Negócios Estrangeiros francês Jean Louis Barthou. O intuito compromissos representaram na sua gestão da crise9 .
era "contrabalançar a campanha lançada pela Alemanha a seguir ao Tratado Quando o historiador americano Bernadotte Everly Schmitt da Univer-
de Versalhes"3 . Em Viena, o objetivo, conforme referia, em 1926, Ludwig sidade de Chicago visitou a Europa, no final da década de 1920, munido de
Bittner, coeditor da coleção em oito volumes Ôsterreich-Ungarns Aussen- cartas de apresentação que lhe permitissem entrevistar os políticos que, na
politik, era produzir uma edição reconhecida como fonte autorizada antes época, tinham desempenhado um papel significativo nos acontecimentos,
que uma organização internacional - talvez a Liga das Nações? - forças- sentiu-se muito impressionado pela absoluta impunidade dos seus interlo-
se o governo austríaco a uma publicação em condições menos auspiciosas 4 . cutores a qualquer dúvida sobre o comportamento que tinham então adota-
As primeiras publicações de documentos soviéticas eram motivadas em do. (A única exceção foi Grey, que "observou espontaneamente" ter come-
parte pelo desejo de provar que a guerra fora desencadeada através da cum- tido um erro tático ao procurar negociar com Viena por intermédio de
plicidade entre o czar e o seu regime autocrático, por um lado, e o seu Berlim durante a Crise de Julho - mas o erro de apreciação a que Grey
aliado burguês, Raymond Poincaré - numa tentativa de deslegitimar as assim aludia era de importância secundária e o seu comentário exprimia
exigências francesas dos empréstimos concedidos à Rússia antes da guer- mais uma pose de autodepreciação típica dos mandarins britânicos do um
ra 5 . Até na Grã-Bretanha, onde a iniciativa da publicação dos British Docu- reconhecimento efetivo de responsabilidades. 10) Alguns dos entrevistados
ments on the Origins of the War fora lançada com elevados apelos à inves- aparentavam também falhas de memória. Schmitt logrou encontrar-se com
tigação desinteressada, as compilações de documentos não deixaram de Peter Bark, ex-ministro das Finanças russo, que se convertera, entretanto,
incorrer em omissões tendenciosas, levando a uma reconstituição um tanto em banqueiro britânico. Em 1914, Bark participara em reuniões durante as
distorcida do papel da Grã-Bretanha nos acontecimentos que precederam o quais tinham sido tomadas decisões extremamente importantes. Todavia,
rebentar da guerra em 19146 . Em suma, a despeito do valor inegável que ao falar com Schmitt, Bark insistiu no facto de ter "poucas recordações dos
possuem para os investigadores, as grandes edições europeias de documen- acontecimentos desse período" 11. Felizmente, as notas que o ex-ministro
tos sobre o tema foram munições no contexto daquilo a que o historiador tomara ao tempo são bem mais elucidativas. Quando o investigador Lucia-
militar alemão Bernhard Schwertfeger chamava, num estudo crítico de no Magrini fez a sua viagem a Belgrado, no outono de 1937, para ouvir
1929, uma "guerra mundial de documentos" 7 . todas as figuras ainda vivas comprovadamente ligadas à conspiração de
As memórias dos homens de Estado, comandantes e outros altos respon- Sarajevo, descobriu que algumas testemunhas reportavam factos dos quais
sáveis, embora indispensáveis para quem queira compreender os aconteci- não era possível terem qualquer conhecimento, enquanto outras "continua-
mentos que conduziram à guerra, nem por isso deixam de ser problemáti- vam caladas ou apresentavam falsas versões acerca daquilo que sabiam", e
cas. Nalguns casos, são frustrantes na sua reticência sobre questões outras ainda "embelezavam as suas declarações, ou estavam sobretudo in-
escaldantes e do maior interesse. Para referirmos não mais do que três teressadas em justificar as suas ações" 12.
exemplos: as Reflexions on the World War publicadas em 1919 pelo chan- Por outro lado, há lacunas significativas no conhecimento dos factos de
celer alemão Theobald von Bethmann Hollweg são quase inteiramente que dispomos. Não temos registo de muitos dos contactos importantes que
mudas sobre a sua própria ação e as dos seus colegas durante a Crise de alguns protagonistas de primeira linha mantiveram de viva voz, pelo que só
Julho de 1914; as memórias políticas do ministro dos Negócios Estrangei- podemos tentar reconstituí-los a partir de testemunhos indiretos ou mais
ros russo Sergei Sazonov são frívolas, pomposas, entremeadas de ocasio- tardios. As organizações sérvias implicadas no atentado de Sarajevo agiam
nais falsidades e completamente omissas acerca do seu próprio papel em com extremo secretismo, não deixando praticamente qualquer rasto escrito.
certos momentos decisivos; os dez volumes das memórias que o Presidente Dragutin Dimitrijevié, chefe dos·serviços secretos militares sérvios, que foi
francês Raymond Poincaré consagra aos anos da sua presidência compor- uma figura fundamental na conspiração que preparou o atentado contra o
tam mais propaganda do que revelações, e exibem discrepâncias impressio- arquiduque Francisco Fernando em Sarajevo, queimava a intervalos regu-
nantes entre as suas "recordações" dos acontecimentos que marcaram a lares todos os seus papéis. Desconhecemos grande parte do conteúdo pre-
crise e os apontamentos que, durante esse período, se lhes referem no seu ciso das discussões iniciais entre Viena e Berlim acerca do que deveria
diário inédito 8 . Quanto a Sir Edward Grey, ministro dos Negócios Estran- fazer-se para responder aos assassinatos de Sarajevo. Do mesmo modo,
geiros britânico, as suas memórias amenas não fazem mais do que aflorar nunca apareceram as minutas das reuniões ao mais alto nível que tiveram
ligeiramente a delicada questão dos compromissos que assumira perante as lugar em S. Petersburgo, de 20 a 23 de junho, entre os governos russo e
26 Christopher Clark Os Sonâmbulos 27

francês, documentos de importância sem dúvida capital para a compreen- ou até de embaixadores, que por vezes desempenhavam papéis de decisão
são da última fase da crise (é provável que os protocolos russos se tenham por conta própria.
pura e simplesmente perdido, e a equipa francesa encarregada de editar os As fontes que chegaram àté nós exibem, pois, um caos de promessas,
documentos diplomáticos do seu país não pôde encontrar a versão francesa ameaças, planos e prognósticos - o que, pelo seu lado, contribui para
das minutas). Os bolcheviques publicaram numerosos documentos diplo- explicar porque é que a eclosão da guerra tem sido suscetível de uma va-
máticos da maior importância, esforçando-se por desacreditar desse modo riedade desconcertante de interpretações. Quase não há ponto de vista
as maquinações imperialistas das grandes potências, mas esses papéis fo- acerca das razões de ser do conflito que não possa ser defendido através de
ram divulgados a intervalos irregulares e sem critérios de ordenação defi- uma seleção adequada das fontes disponíveis. E assim se pode em parte
nidos, geralmente a propósito de certos problemas concretos, como as explicar também porque é que a literatura sobre "as origens da Primeira
ambições russas relativas ao Bósforo. Vários documentos (que não sabe- Guerra Mundial" assumiu proporções tais que nenhum historiador (ainda
mos exatamente quantos foram) perderam-se durante o período de caos da que sob a forma de um ser imaginário que dominasse todas as línguas ne-
guerra civil, e a URSS nunca procedeu a publicações sistemáticas de arqui- cessárias) pode alimentar a esperança de a ler no espaço de uma vida. Há
vos que possam rivalizar com as edições do mesmo teor britânicas, france- vinte anos, o inventário do acervo disponível contava vinte e cinco mil li-
sas, alemãs e austríacas 13 . Até hoje, as publicações de 'arquivos efetuadas vros e artigos 14. Há narrativas que descarregam o grosso das culpas sobre
pelos russos continuam a comportar grandes lacunas. uma ovelha negra (sobretudo, a Alemanha, ainda que nenhuma das grandes
A natureza excecionalmente enredada da crise que nos ocupa é um seu potências tenha escapado à acusação de ter sido a principal responsável);
outro traço distintivo. A crise dos mísseis de Cuba foi bastante complexa, outras versões preferem a tese da responsabilidade coletiva ou invocam as
mas envolveu apenas dois grandes protagonistas (os EUA e a União Sovi- falhas do "sistema". A complexidade nunca deixou de ser suficiente para
ética), arrastando na sua esteira uma série de outros intervenientes e atores alimentar estas controvérsias. Em torno destes debates conduzidos pelos
secundários. No caso que aqui nos interessa, em contrapartida, temos de historiadores, incidindo de um modo geral sobre as questões da culpa, ou
procurar esclarecer as interações multilaterais entre cinco atores autónomos as relações entre iniciativa pessoal e imposições estruturais, desenrola-se
de igual importância - Alemanha, Áustria-Hungria, França, Rússia e Grã- até ao infinito a literatura crítica sobre as relações internacionais - litera-
-Bretanha - , que passam a ser seis, se a este grupo acrescentarmos a Itália, tura na qual categorias como a dissuasão, o desanuviamento, a inadvertên-
e aos quais teremos de juntar outros atores ainda, também soberanos e de cia, ou mecanismos de alcance universal, como o equilíbrio dos poderes, a
grande peso estratégico, como o Império Otomano e os Estados da Penín- negociação, o oportunismo, ocupam um lugar central. Apesar de quase
sula Balcânica, região de grandes tensões e instabilidade política nos anos cem anos de debates, não há razões para pensarmos que o tema esteja per-
que precederam imediatamente a guerra. to de ter sido esgotado 15.
Uma dificuldade suplementar de elucidação é a que resulta do facto de Mas, se se trata de um velho debate, o tema mantém a sua novidade, uma
os processos políticos de decisão no interior dos Estados envolvidos na novidade que, de facto, é ainda mais pertinente hoje do que há vinte ou
crise se caracterizarem frequentemente por muito pouca transparência. trinta anos. As transformações que ocorreram no nosso mundo alteraram a
Podemos considerar julho de 1914 como uma crise "internacional", suge- nossa perspetiva sobre os acontecimentos de 1914. Da década de 1960 à de
rindo este termo uma panóplia de Estados-nação, concebidos como enti- 1980, uma espécie de nostalgia alimentava a perceção e a memória comuns
dades coesas, independentes e discretas, como as bolas de um jogo de bi- dos acontecimentos de 1914. Imaginava-se de bom grado o desastre do
lhar. Mas as estruturas soberanas que engendravam as decisões políticas "último verão" da Europa como uma espécie de filme histórico sobre o
durante a crise manifestavam divisões profundas. Não se sabia ao certo na período eduardiano. Os rituais decadentes e os uniformes vistosos, o "orna-
época, e os historiadores hoje continuam a ignorá-lo em grande parte, mentalismo" de um mundo ainda em grande medida organizado em torno
onde residia efetivamente o poder de decisão no interior de cada um dos das monarquias hereditárias tinham um efeito que acentuava a distância
diferentes executivos, e, quanto às "políticas" adotadas - ou, pelo menos, entre a época recordada e o presente. Pareciam indicar que os protagonistas
às iniciativas de diferente teor que as influenciavam - , a sua definição pertenciam a um mundo diferente e desaparecido. Insensivelmente instau-
não tinha necessariamente lugar nas instâncias governamentais de topo, rava-se a ideia de que se os atores ostentavam capacetes enfeitados colori-
podendo emanar de níveis bastante periféricos do aparelho diplomático, da dos penachos verdes de avestruz, era provável que alimentassem ideias e
ação dos comandos militares, dos grupos de altos funcionários ministeriais motivações a condizer 16.
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E contudo, o que impressionará mais vivamente o leitor do século xx1 das esculpidas em bronze e uma lápide comemorativa o lugar onde o assas-
que considere o curso dos acontecimentos da crise do verão de 1914 é a sino deu "os prim~iros passos a caminho da liberdade da Jugoslávia". Nu-
sua modernidade brutal. Tudo começa com a ação de um bando de bom- ma era em que a ideia de nação era ainda jovem e surgia carregada de
bistas suicidas e uma corrida de automóveis que se perseguem. Por trás do promessas, sentia-se uma simpatia imediata pelo nacionalismo dos eslavos
atentado de Sarajevo houve uma organização declaradamente terrorista do Sul, e pouca empatia com a pesada comunidade multinacional do Impé-
animada pelo culto do sacrifício, da morte e da vingança; mas essa orga- rio Habsburgo. As guerras que dilaceraram a Jugoslávia na década de 1990
nização terrorista era de natureza extraterritorial, sem uma implantação vieram recordar-nos as ameaças letais do nacionalismo balcânico. Desde
geográfica ou política bem definida, compondo-se de células dispersas que Srebrenica e do cerco de Sarajevo, passou a ser mais difícil pensar na Sér-
ignoravam as fronteiras políticas, que agiam por sua conta própria, e cujas via como simples objeto ou vítima das políticas das grandes potências e
relações com este ou aquele governo soberano eram oblíquas, ocultas e mais fácil conceber o nacionalismo sérvio como uma força histórica de
decerto muito difíceis de determinar fora da organização. Com efeito, pleno direito. Tendo em conta a atual União Europeia, tendemos a olhar
poderíamos dizer até que o mês de julho de 1914 está menos distante· de com mais simpatia - ou, no mínimo, com menos desprezo - do que ou-
nós do que da década de 1980, e é menos ilegível para :t1ósdo que parecia trora esse mosaico imperial austro-húngaro dos Habsburgo, entretanto de-
sê-lo então. Assistimos, desde o fim da Guerra Fria, à substituição a um saparecido.
equilíbrio bipolar global, de um conjunto de relações de forças mais com- Por fim, talvez pareça hoje menos óbvio considerar os dois assassinatos
plexo e imprevisível, onde deparamos com impérios em declínio e potên- de Sarajevo como simples incidentes, desprovidos de efetivo peso causal.
cias emergentes _:_o que faz com que a situação se torne de certo modo O atentado contra o World Trade Center de setembro de 2001 mostrou-nos
comparável com a da Europa de 1914. Estas transformações de perspetiva como um acontecimento simbólico isolado - ainda que profundamente
impelem-nos a repensar a história da explosão da guerra na Europa de entretecido em processos históricos mais vastos - pode produzir transfor-
1914. Assumir um tal desafio não significa que adotemos uma espécie de mações políticas irreversíveis, tornando obsoletas certas opções anteriores
presentismo vulgar que reconstrói o passado em função das exigências do e impondo a urgência de novas respostas. Conceder de novo a Sarajevo e
presente, mas leva-nos antes a reconhecer esses traços peculiares dopas- aos Balcãs um lugar central na narrativa não significa demonizar os sérvios
sado que as mudanças ocorridas no nosso ponto de vista nos permitem ou os seus políticos, nem nos dispensa da obrigação de procurar compreen-
distinguir mais claramente. der que forças moveram e alimentaram os políticos, militares e ativistas
Entre esses traços peculiares conta-se o contexto balcânico no ponto de sérvios cujos comportamentos e decisões contribuíram para determinar a
partida da guerra. A Sérvia é um dos pontos cegos da historiografia da Cri- natureza das consequências que os tiros de Sarajevo viriam a assumir.
se de Julho. O atentado de Sarajevo é muitas vezes tratado como um sim- Este livro procura compreender a Crise de Julho de 1914 como um acon-
ples pretexto, um acontecimento de pouca importância no conjunto das tecimento moderno - o mais complexo dos acontecimentos dos tempos
forças reais cuja interação desencadeou a guerra. Numa excelente reconsti- modernos, e talvez de todos os tempos até ao dia de hoje. Interroga-se me-
tuição recentemente publicada da eclosão do conflito em 1914, os autores nos sobre o porquê da guerra do que sobre o modo como aconteceu. Em-
sustentam que "os assassinatos [de Sarajevo] por si sós nada causaram. Foi bora o porquê e o como sejam questões logicamente inseparáveis,
a utilização do acontecimento que levou a que as nações entrassem em conduzem-nos em direções diferentes. A questão do como convida-nos a
guerra" 17 . A marginalização dos sérvios e, portanto, da dimensão balcânica examinar de perto as sequências de interações que produziram certos resul-
mais vasta do episódio começou durante a própria Crise de Julho, que teve tados. Em contrapartida, a questão do porquê convida-nos a procurar eluci-
início como uma reação aos assassinatos de Sarajevo, mas que mudou de dar categorias e causas mais remotas: imperialismo, nacionalismo, arma-
proporções logo a seguir, assumindo uma dimensão geopolítica na qual a mentos, alianças, alta finança, ideias de honra nacional, mecanismos de
Sérvia e as suas ações ocupavam um lugar secundário. mobilização. A abordagem em termos de porquê proporciona uma certa
Os nossos critérios de apreciação moral também mudaram. O facto de clareza analítica, mas produz também efeitos de distorção, porque cria a
uma Jugoslávia dominada pelos sérvios ter acabado por emergir como um ilusão de pressões causais sólidas e constantes, resultado da sobreposição
dos Estados vencedores da guerra parecia implicitamente justificar o ato do de fatores que provocariam os acontecimentos, enquanto os atores políticos
homem que carregou no gatilho no dia 28 de junho - e tal foi decerto o se tornariam meros executantes, obedecendo a forças presentes de longa
juízo assumido pelas autoridades jugoslavas, que assinalaram com peuga- data e para além do seu controle.
30 Christopher Clark Os Sonâmbulos 31

Na história que este livro narra a ação e os agentes são, em contrapartida, larização da Europa em dois blocos de alianças opostos? Como desenvol-
omnipresentes. Os principais decisores - reis, imperadores, ministros dos veram os governos dos Estados europeus as suas políticas externas? Como
Negócios Estrangeiros, embaixadores, comandantes militares e uma legião foi que os Balcãs - uma região periférica, distante dos lugares centrais do
de funcionários de segundo plano - avançaram em dir~ção ao perigo com poder e da riqueza europeus - vieram a ser teatro de uma crise de tamanha
passos calculados e atentos. O rebentar da guerra foi o culminar de decisões envergadura? Como foi que o sistema internacional, que parecia estar a
encadeadas, tomadas em função de certos objetivos conscientes por atores entrar num período de desanuviamento, acabou por produzir um conflito à
políticos, capazes de reflexão sobre o que faziam, reconhecendo que se escala mundial? A Terceira Parte começa com os atentados de Sarajevo e
encontravam perante uma variedade de opções alternativas e procurando narra a Crise de Julho propriamente dita, examinando as interações entre os
avaliá-las da melhor maneira possível a partir das informações de que dis- principais centros de decisão e expondo os cálculos, os mal-entendidos e as
punham. O nacionalismo, os armamentos, as alianças e as questões finan- decisões que levaram a crise a passar de uma a outra etapa.
ceiras, todos esses fatores desempenharam o seu papel na história, mas só Uma tese central deste livro é que os acontecimentos de julho de 1914
podemos atribuir-lhes efetivo valor de explicação demonstrando como só adquirem plenamente sentido tendo em conta as vias seguidas pelos
moldaram as decisões que - combinando-se umas com as outras - fize- decisores mais importantes. Para tanto, é necessário algo mais do que
ram com que eclodisse a guerra. simplesmente revisitar a as sucessivas "crises" internacionais que prece-
Um historiador búlgaro das Guerras dos Balcãs fazia recentemente notar deram a eclosão da guerra - é, com efeito, necessário compreender de
que, "uma vez posta a questão do porquê, o tema da culpa torna-se o ponto que modo os acontecimentos em causa foram experimentados e entreteci-
central" 18 . As questões da culpa e da responsabilidade no rebentar da guer- dos nas tramas narrativas que estruturaram as perceções e motivaram os
ra intervieram na história antes ainda do início dos combates. Por toda a comportamentos. Porque foi que os homens cujas decisões fizeram com
parte, as fontes transbordam de acusações (num mundo em que as inten- que a Europa entrasse em guerra se comportaram como comportaram e
ções agressivas são sempre atribuídas ao adversário, ao mesmo tempo que viram as coisas como viram? Como se articularam os sentimentos de apre-
as intenções próprias são invariavelmente apresentadas como defensivas), ensão e de receio, que encontramos em tantos documentos, com as atitudes
e o juízo emitido pelo Artigo 231 do Tratado de Versalhes teria por efeito de arrogância e desafio que, muitas vezes, os mesmos atores adotaram?
que a questão da "culpa da guerra" perdurasse como tema fundamental. Qual a origem da importância de aspetos do cenário anterior à guerra, que
Também a este respeito, a insistência no como sugere uma abordagem al- hoje nos parecem exóticos, como a "questão albanesa" ou o "empréstimo
ternativa: um percurso dos acontecimentos que não é conduzido pela exi- búlgaro" - e de que modo se interligavam todas essas coisas no espírito
gência de desembocar num libelo que incrimine este ou aquele Estado, dos detentores do poder político? Quando os decisores falavam sobre a
este ou aquele indivíduo, mas visa antes identificar as decisões que levaram situação internacional ou sobre as ameaças externas, referir-se-iam a rea-
à guerra e elucidar os raciocínios ou as emoções subjacentes a essas deci- lidades, estariam a projetar os seus próprios temores e desejos nos seus
sões. O que não significa que as questões de responsabilidade sejam por adversários, ou fariam ao mesmo tempo essas duas coisas? O que aqui nos
completo eliminadas da análise - sendo antes a ideia deixar que as respos- propusemos foi reconstruir nos mais vivos termos possíveis as "posições
tas em termos de porquê decorram, por assim dizer, das respostas em ter- de decisão" extremamente dinâmicas ocupadas pelos atores principais
mos de como, mais do que o contrário. antes e durante o verão de 1914.
Este livro é uma história que narra como a guerra rebentou na continen- Algumas das recentes obras mais interessantes sobre a guerra que nos
te europeu. Segue os trilhos que conduziram ao conflito, apresentando uma ocupa sustentam que, longe de ter sido inevitável, a guerra era, na realida-
narrativa a múltiplos níveis que compreende os centros de decisão princi- de, "improvável" - pelo menos até ao momento em que deflagrou 19 . De
pais - em Viena, Berlim, S. Petersburgo, Paris, Londres e Belgrado, e onde se seguiria que o conflito não foi a consequência de uma deterioração
visita brevemente, em certas ocasiões, Roma, Constantinopla e Sófia. A prolongada, mas de choques que, no curto prazo, tiveram lugar no sistema
narrativa divide-se em três partes. A Primeira Parte centra-se nos dois anta- internacional. Quer aceitemos ou não esta perspetiva, ela tem o mérito de
gonistas - a Sérvia e a Áustria-Hungria, cujas disputas fizeram detonar o ' abrir a história a um elemento de contingência. E é decerto verdade que,
conflito, descrevendo as suas interações até à véspera do atentado de Sara- embora algumas das sequências que examino neste livro pareçam apontar
jevo. A Segunda Parte interrompe a abordagem narrativa para levantar inequivocamente na direção do que efetivamente aconteceu em 1914, há
quatro questões, distribuídas por quatro capítulos: Como teve lugar a bipo- outros vetores de mudança anteriores à guerra que sugerem desfechos dife-
32 Christopher Clark

rentes, que não tiveram lugar. Tendo-o presente, este livro pretende mostrar
como se conjugaram _osfatores causais que, uma vez combinados, permiti-
ram que a guerra sucedesse, mas que intervieram sem sobredeterminar o
desenlace. Tentei manter-me consciente do facto de que as pessoas, os
acontecimentos e as forças que este livro descreve eram também portadores
de germes de outros futuros, talvez menos terríveis.

PRIMEIRA PARTE

A Caminho de Sarajevo
584 Christopher Clark

Ródano-Alpes, no Sudeste de França, o toque a rebate dos sinos fez com


que os trabalhadores e os camponeses se reunissem na praça da terra. Al-
guns deles, que tinham chegado a toda a pressa dos campos, traziam ainda
a forquilha na mão.

"Que quer isto dizer? Que vai ser de nós?", perguntavam as mulheres.
As esposas, os filhos, os maridos, todos se sentiam transtornados pela
emoção. As mulheres agarravam-se aos braços dos maridos. As crianças,
vendo chorar as mães, punham-se também a chorar. À nossa volta, tudo
era alarme e aflição. Que cena confrangedora!210 Conclusão

Um viajante inglês evoca a reação que testemunhou numa aldeia cos aca
de Altai (Semipalatinsk), quando a "bandeira azul", transportada por um "Nunca hei de ser capaz de compreender como foi que tudo aconteceu",
cavaleiro, e o som alarmante das cometas trouxeram a notícia da mobiliza- observava a romancista Rebecca West ao seu marido, quando, em 1936,
ção. O czar falara, e os cossacos, sob a influência da sua vocação e da sua estavam ambos na varanda dos Paços do Município de Sarajevo. Não era
tradição militar peculiares, "ardiam de impaciência por combater o inimi- que os factos disponíveis, pensou Rebecca West, fossem poucos: pelo con-
go". Mas quem era o inimigo? Ninguém o sabia. O telegrama que anuncia- trário, eram demasiado numerosos 1 . Uma das teses centrais deste livro é a
va a mobilização nada dizia a esse respeito. Os boatos proliferavam. No da extrema complexidade da crise de 1914. Parte dessa complexidade de-
primeiro momento, todos pensaram que deveria tratar-se de uma guerra corria de comportamentos que ainda hoje fazem parte da nossa cena políti-
com a China: "A Rússia penetrou até demasiado longe na Mongólia, e a ca. Os últimos capítulos deste livro foram escritos em 2011 e 2012, no
China declarou-lhe guerra". Depois, outro rumor começou a circular: "É auge da crise financeira da zona euro - acontecimento contemporâneo de
com a Inglaterra, com a Inglaterra". Tal foi a versão que durante algum uma complexidade também desconcertante. Vale a pena referir que os pro-
tempo se manteve. tagonistas da crise da zona euro, tal como os da crise de 1914, tinham
consciência da possibilidade de um desfecho que seria catastrófico para
Só ao fim de quatro dias, alguma coisa que se parecia com a verdade todos (o fracasso do euro). Todos os protagonistas principais esperavam
chegou até nós, e, então, ninguém acreditou211 . que esse desfecho fosse evitado, mas, a par desse interesse compartilhado,
tinham, cada um deles, outros interesses particulares - e antagónicos -
próprios. Dadas as inter-relações cruzadas do sistema, as consequências de
determinada ação de cada um dependiam das reações dos restantes, e estas,
devido à opacidade dos processos de tomada de decisão, eram difíceis de
calcular antecipadamente. E, entretanto, os atores políticos da zona euro
exploravam a possibilidade da catástrofe geral em vista de garantirem as
suas próprias vantagens particulares.
Neste sentido, os homens de 1914 são nossos contemporâneos. Mas as
diferenças são tão importantes como os traços comuns. Pelo menos, os
ministros dos governos encarregados de resolver a crise da zona euro esta-
vam de acordo, em termos gerais, sobre qual era o problema; em 1914,
pelo contrário, uma dilaceração profunda das perspetivas éticas e políticas
enfraquecia em extremo o consenso e minava a confiança entre os atores.
As poderosas instituições supranacionais que hoje asseguram um quadro de
definição das tarefas, mediação dos conflitos e identificação das medidas a
tomar primavam largamente pela ausência em 1914. Por outro lado, a com-
Os Sonâmbulos 587

plexidade da crise de 1914 não se devia à difusão dos poderes e responsa-


bilidades no interior de um quadro político e financeiro único, mas às inte-
rações de fogo cruzado entre centros de poder autónomos, poderosamente
armados, confrontados, cada um deles, com ameaças diferentes e extrema-
mente variáveis, funcionando sob condições de alto risco e níveis de trans-
parência e confiança muito baixos.
As rápidas transformações que tiveram lugar no sistema internacional
desempenharam um papel decisivo na complexidade dos acontecimentos
de 1914: o aparecimento súbito de um Estado territorial albanês, a corrida
aos armamentos que opunha a Turquia e a Rússia no Mar Negro, ou a reo-
rientação da política russa, que se afastou de Sófia e se aproximou de Bel-
grado - para não citarmos senão estas. Não eram transições históricas a
longo prazo, mas realinhamentos a curto prazo. As suas consequências fo-
ram potenciadas pela precariedade das relações de poder no interior dos
governos europeus: os esforços de Grey destinados á conter a ameaça dos
liberais radicais, a frágil autoridade de Poincaré e a sua política de alianças,
ou a campanha empreendida contra Kokovtsov por Sukhomlinov. Segundo
as memórias inéditas de um membro dos círculos políticos, em janeiro de
1914, depois do afastamento de Kokovtsov, o czar Nicolau II começou por
oferecer o lugar de primeiro-ministro a um político profundamente conser-
vador, Piotr N. Dumovo, homem enérgico e decidido que se opunha termi-
nantemente a qualquer forma de envolvimento nos Balcãs. Mas Dumovo
recusou o cargo, e o lugar acabou por ser ocupado por Goremykin, cuja
fraqueza permitiu que Krivoshein e o comando militar tivessem exercido
uma influência desproporcionada nos conselhos de ministros de julho de
19142 . Seria um erro atribuirmos excessiva importância a esta circunstân-
cia, mas ela leva-nos a ter em conta o papel dos arranjos contingentes e de
curto prazo que agiram sobre as condições nas quais a crise de 1914 se
desenrolou.
Por outro lado, estes elementos contingentes tomaram o sistema, no seu
conjunto, mais opaco e mais imprevisível, alimentando uma atitude difusa
de desconfiança mútua, que se fazia sentir até mesmo no interior de cada
bloco de alianças, e dava lugar a desenvolvimentos perigosos para a paz.
Os níveis de confiança entre os dirigentes russos e britânicos eram relativa-
Pegadas de Gavrilo Princip, Sarajevo (fotografia de 1955)
mente baixos em 1914, e tendiam a diminuir ainda mais, o que não impediu
o F oreign Office de se dispor a aceitar uma guerra europeia nos termos
definidos pela Rússia, mas, pelo contrário, reforçou os argumentos que
defendiam a intervenção. O mesmo se poderia dizer da Aliança Franco-
-Russa: as dúvidas acerca do seu futuro tiveram, dos dois lados, por efeito
intensificar, mais do que atenuar, a disposição para assumir os riscos de um
conflito. As flutuações das relações de poder, no interior de cada um dos
governos, combinadas com a rapidez da mudança nas condições objetivas,
588 Christopher Clark Os Sonâmbulos 589

produziram, por sua vez, essas oscilações da.s orientações políticas e essa crise. Mas -há, em particular, dois pontos em que vale a pena insistir. O
ambiguidade das .mensagens que foram um aspeto fundamental nas crises primeiro é que as Guerras dos Balcãs modificaram perigosamente as rela-
anteriores à guerra. Na realidade, não é certo que o termo "orientação polí- ções entre as grandes potências e as potências menores. Tanto aos olhos dos
tica" seja sempre o mais adequado no contexto que precedeu 1914, dado 0 governantes austríacos como aos dos russos, os esforços visando controlar
caráter vago e a ambiguidade de boa parte dos compromissos entre os Es- os acontecimentos na Península Balcânica adquiriram uma dimensão nova
tados. É contestável que a Rússia ou a Alemanha tivessem uma linha polí- e mais ameaçadora, sobretudo durante a crise do inverno de 1912-1913.
tica em relação aos Balcãs nos anos 1912-1914: em contrapartida, depara- Uma das suas consequências seria a balcanização da Aliança Franco-Russa.
mos antes com uma multiplicidade de iniciativas, de cenários e de atitudes A França e a Rússia, a ritmos diferentes e por diferentes motivos, instala-
cuja tendência geral é por vezes difícil de discernir. No interior dos gover~ ram um detonador geopolítico ao longo da fronteira entre a Áustria e a
nos dos Estados em causa, as relações de poder variáveis faziam também Sérvia. O cenário de um conflito com origem nos Balcãs não resultou nem
com que os responsáveis pela decisão das orientações da política externa de uma orientação política, nem de um plano, nem de uma conspiração que
sofressem fortes pressões internas - resultantes, não tanto dos jornais, da amadurecesse e se desenvolvesse ao longo do tempo, do mesmo modo que
opinião pública ou dos lobbies industriais e financeiros, como dos seus não houve uma relação necessária ou linear entre as atitudes assumidas em
adversários no interior do próprio governo e das elites dirigentes. Este fator 1912 e 1913 e o rebentar da guerra no ano seguinte. Não foi o cenário de
intensificou igualmente o clima de premência e urgência cuja ação se faria uni conflito inicial nos Balcãs - e, de facto, na Sérvia - por ponto de
sentir sobre os decisores ao longo do verão de 1914. partida que impeliu cada vez mais a Europa no sentido de uma guerra que
Devemos distinguir entre os fatores objetivos que pesavam sobre os acabaria por se produzir efetivamente em 1914, mas foi, em contrapartida,
responsáveis políticos e as narrativas que estes urdiam para seu uso próprio esse cenário que forneceu o quadro conceptual em cujos termos, depois do
ou trocavam entre uns e outros acerca do que pensavam estar a fazer e das seu início, a crise veio a ser interpretada. E foi assim que a Rússia e a Fran-
razões por que o faziam. Todos os principais protagonistas da nossa história ça vincularam, em termos extremamente assimétricos, o futuro de duas das
viam o mundo através de narrativas compostas a partir de experiências maiores potências mundiais aos destinos incertos de um Estado turbulento
fragmentárias, combinadas através de temores, projeções e interesses que e teatro de intermitentes ações violentas.
se dissimulavam sob a forma de máximas. Na Áustria, as narrativas ares- No caso da Áustria-Hungria, cujo dispositivo de segurança na região
peito de uma nação de jovens bandidos e regicidas que provocavam e de- fora arruinado pelas Guerras dos Balcãs, os assassinatos de Sarajevo não
safiavam sem descanso um velho e paciente país vizinho opuseram-se a foram um pretexto para levar por diante uma política de invasão e de guer-
uma ponderação serena acerca da melhor maneira de gerir as relações com ra preconcebida. Foram um acontecimento transformador, carregado de
Belgrado. Na Sérvia, as fantasias sobre um povo vítima da opressão de um ameaças tanto reais como simbólicas. É fácil, de um ponto de vista do sé-
Império Habsburgo ávido e todo-poderoso tiveram efeitos muito semelhan- culo xx1, afirmar que Viena deveria ter resolvido os problemas decorrentes
tes no sentido inverso. Na Alemanha, uma visão sombria de invasões e dos assassinatos através de uma tranquila negociação bilateral com Belgra-
fragmentações territoriais futuras intoxicou os processos de tomada de de- do, mas, no cenário de 1914, essa alternativa não era credível. Nem, do
cisão durante o verão de 1914. E um resultado análogo teve a saga russa, mesmo modo, o era a proposta pouco entusiástica de Sir Edward Grey re-
que explicava o presente distorcendo o passado, sobre as humilhações rei- lativa a uma "mediação das quatro potências", baseada numa indiferença
teradamente infligidas pelas potências centrais. Mas o elemento mais im- facciosa para com as realidades da política de potência da posição austría-
portante seria a narrativa amplamente difundida sobre o declínio historica- ca. Não só as autoridades sérvias em parte não queriam e em parte não
mente necessário da Áustria-Hungria, que, depois de substituir pouco a podiam suprimir as atividades irredentistas que tinham sido causa imediata
pouco uma anterior série de pressupostos que afirmavam o papel da Áustria dos assassinatos, como também os governos amigos da Sérvia não reconhe-
como fulcro do equilíbrio na Europa Central e Oriental, deu rédea solta aos ciam a Viena o direito de integrar nas suas exigências a Belgrado a reivin-
inimigos de Viena, levando à rejeição da ideia de que a Áustria-Hungria, dicação de supervisionar e garantir o cumprimento dos acordos. As exigên-
como qualquer outra grande potência, tinha os seus interesses próprios e o cias austríacas eram rejeitadas, sendo tidas por incompatíveis com a
direito a defendê-los com o vigor adequado. soberania da Sérvia. Há aqui um aspeto que faz pensar no debate, que teve
Pode parecer evidente que o cenário dos Balcãs foi decisivo para o re- lugar no Conselho de Segurança das Nações Unidas em outubro de 2011,
bentar da guerra, atendendo ao lugar dos assassinatos que desencadearam a em torno de uma proposta - sustentada pelos Estados da NATO - de
590 Christopher Clark Os Sonâmbulos 591

impor sanções ao regime sírio de Assad, a fim de impedir chacinas futuras unificar a Grande Sérvia? Não tinham razão os austríacos quando insistiam
de cidadãos sírios dissidentes. O representante russo argumentou, opondo- na independência da Albânia? Seria algum destes objetivos mais errado do
-se à proposta, que a sua conceção refletia uma "abordagem em termos de que q outro? A questão não tem sentido. Um outro inconveniente das nar-
confronto" inadequada e característica das potências ocidentais, ao mesmo rativas persecutórias é que estreitam o campo de visão centrando-se no
tempo que o representante chinês argumentava que as sanções ponderadas temperamento político e nas iniciativas de um Estado particular, mais do
eram inadmissíveis por serem incompatíveis com a "soberania" da Síria. que nos processos interativos e multilaterais. Há ainda o problema de a
Quais as consequências de tudo isto sobre a questão da culpabilidade? busca do culpado predispor o investigador a conceber as ações dos deciso-
Ao estabelecer que a Alemanha e os seus aliados tinham sido moralmente res como planeadas e conduzidas por uma intenção coerente. É preciso
responsáveis pelo rebentar da guerra, o artigo 231 do Tratado de Paz de demonstrar que alguém desejava a guerra e que, mais ainda, a provocou.
Versalhes fez com que as questões relativas à culpabilidade permanecessem Na sua forma mais exacerbada, este modo de proceder produz narrativas
no centro ou perto do centro do debate sobre as origens da guerra. O jogo conspirativas, nas quais uma roda de indivíduos poderosos, que lembram
da imputação das culpas nunca deixou de ser popular. A formulação mais os vilões com casaco de veludo dos filmes de James Bond, controlam os
influente desta tradição é a da "tese de Fisher" - expressão que cobre aqui acontecimentos a partir dos bastidores, segundo os seus planos malévolos.
toda uma série de argumentos elaborados, na década de 1960, por Fritz É inegável a satisfação moral que estas narrativas proporcionam, e decerto
Fisher, !manuel Geiss e um numeroso grupo dos seus colegas alemães mais não é logicamente impossível que a guerra tivesse tido lugar em termos
jovens, apresentando a Alemanha como a potência com maiores culpas no semelhantes no verão de 1914 - mas a maneira de ver que informa este
rebentar da guerra. Segundo este ponto de vista (e deixando de lado as livro é a de que as teses desse tipo não têm provas que as validem.
múltiplas variantes que assumem as teses da escola de Fisher), os alemães O rebentar da guerra em 1914 não é uma intriga de Agatha Christie, cujo
não entraram na guerra por acidente, nem foram sendo arrastados pouco a final nos faz descobrir o culpado, junto ao cadáver, com uma pistola fume-
pouco em direção a ela. Escolheram-na - e, pior ainda, planearam-na gante na mão, no recinto de uma estufa. Não há pistola fumegante nesta
antecipadamente, esperando por meio da guerra romper o seu isolamento história - ou, melhor, há uma na mão de cada um dos seus protagonistas
europeu e afirmar as suas ambições de supremacia à escala mundial. Os principais. Vista a esta luz, a eclosão da guerra foi uma tragédia, e não um
trabalhos mais recentes sobre a polémica desencadeada em tomo da tese de crime5 . Reconhecê-lo não implica que devamos minimizar o belicismo e a
Fisher puseram em evidência as ligações entre o seu tema e o processo paranoia imperialista dos decisores austríacos e alemães que justificada-
conturbado através do qual os intelectuais alemães se tiveram de confrontar mente atraiu a atenção de Fritz Fischer e dos seus aliados historiográficos.
com o legado contaminado da época nazi, e os argumentos de Fisher foram, Mas os alemães não foram os únicos imperialistas, nem os únicos a sucum-
sobre muitos pontos, alvo de crítica 3 . Todavia, uma versão atenuada da tese bir à paranoia. A crise que conduziu à guerra em 1914 foi fruto de uma
de Fisher continua a prevalecer nos trabalhos que abordam a entrada em cultura política partilhada. Mas foi também multipolar e autenticamente
guerra da Alemanha. interativa: é isso que a toma o acontecimento mais complexo dos tempos
Teremos realmente necessidade de identificar um único Estado como modernos, e é por isso que o debate sobre as origens da Primeira Guerra
culpado, ou de classificar os Estados segundo a sua parte de responsabili- Mundial continua, depois de passado um século desde que Gavrilo Princip
dades no rebentar da guerra? Num estudo clássico na literatura sobre as desferiu os seus dois tiros mortais na Rua Francisco José.
origens do conflito, Paul Kennedy assinalava que esquivar a busca de um Uma coisa é certa: nenhum dos objetivos pelos quais os políticos de
culpado por meio do processo que consiste em atribuir igual ou nenhuma 1914 se batiam justificava o cataclismo que se seguiu. Ter-se-ão os prota-
culpa a todos os Estados beligerantes é uma solução "frouxa" 4 . Uma abor- gonistas dado conta das proporções das paradas em jogo? Durante algum
dagem mais decidida, conclui Kennedy, não deveria recear identificar um tempo, pensou-se que os europeus adotavam a convicção quimérica de
culpado. O problema de uma explicação centrada na culpa não é podermos que o iminente conflito continental seria uma guerra breve, brusca, entre
acabar por imputá-la ao lado errado, mas está antes no facto de as explica- príncipes, à maneira das guerras do século xvm, e que os soldados esta-
ções que se articulam em tomo da culpabilidade serem inseparáveis de riam "em casa antes do Natal", como se costumava dizer. Num período
certos pressupostos. Em primeiro lugar, tendem a pressupor que nas intera- mais recente, tem-se posto em causa o alcance difuso dessa "ilusão de
ções conflituais existe por força um protagonista que, em última instância, uma guerra breve" 6 . O Plano Schlieffen da Alemanha estipulava uma
tem razão, e outro que erra. Não tinham razão os sérvios por quererem ofensiva maciça e rápida como um relâmpago contra a França, mas, até
Os Sonâmbulos 593
592 Christopher Clark

mesmo no Estado-Maior de Schlieffen, faziam-se ouvir vozes que alerta- Encontraremos por toda a parte, na Europa dos anos anteriores à guerra, o
vam para o facto de que uma próxima guerra não traria consigo vitórias mesmo género de juízos desenvoltos. E, nessa medida, poderemos dizer
rápidas, mas antes "uma progressão enfadonha, sangrenta, lenta, passo a que os protagonistas de 1914 eram sonâmbulos, vigilantes que não viam
passo" 7 . Helmuth von Moltke esperava que, no caso de deflagrar, uma - assombrados por sonhos, mas cegos à realidade do horror que se prepa-
guerra europeia se resolvesse depressa, mas reconhecia do mesmo modo ravam para trazer ao mundo.
que poderia prolongar-se durante anos, causando uma ruína incalculável.
Herbert Asquith, o primeiro-ministro britânico, escrevia durante a quarta
semana de julho de 1914, que se aproximava um "Armagedão". Os gene-
rais russos e franceses falavam de uma "guerra de extermínio" e da "ex-
tinção da civilização".
Sabiam-no, portanto - mas senti-lo-iam, deveras? Talvez passe por aqui
uma das diferenças entre os anos anteriores e 1914 e os que se seguiram a
1945. Ao longo das décadas de 1950 e 1960, os decisores e o público em
geral compreendiam nos mesmos termos e visceralmente o que significaria
uma guerra nuclear: as imagens dos cogumelos atómicos sobre Hiroshima
e Nagasáqui faziam parte dos pesadelos dos cidadãos comuns. O que teve
por efeito que a maior corrida aos armamentos da história da humanidade
nunca tenha resultado numa guerra nuclear entre as superpotências. Antes
de 1914, as coisas eram diferentes. No espírito de muitos dos responsáveis
políticos, a esperança de uma guerra breve e o receio de uma guerra pro-
longada tinham-se, por assim dizer, anulado mutuamente, excluindo uma
plena avaliação dos riscos. Em março de 1913, um jornalista de Le Figaro
escrevia sobre uma série de conferências recentemente pronunciadas em
Paris pelas mais destacadas figuras da medicina militar francesa. Entre os
oradores, contava-se o Professor Jacques-Ambroise Monprofit, que acaba-
ra de regressar de uma missão especial nos hospitais militares da Grécia e
da Sérvia, onde contribuíra para a definição de critérios de cirurgia militar
mais adequados. Monprofit observava que "os ferimentos provocados pe-
los canhões franceses [que tinham sido vendidos aos Estados balcânicos
antes da eclosão da primeira Guerra dos Balcãs], não só eram os mais nu-
merosos, mas também horrivelmente graves, com ossos esmagados, tecidos
dilacerados, tóraxes e crânios desfeitos". O sofrimento resultante dos feri-
mentos era tão terrível que um vulto eminente da cirurgia militar, o Profes-
sor Antoine Depage, propôs um embargo internacional à futura utilização
nos campos de batalha de semelhantes tipos de armamento. "Compreende-
mos a generosidade dos seus motivos", comentava o jornalista já mencio-
nado, "mas se é de prever que sejamos um dia inferiores em número no
campo de batalha, será preferível que os nossos inimigos saibam que dis-
pomos deste tipo de armas para nos defendermos, um tipo de armas temí-
vel. .. " O artigo concluía declarando que a França deveria congratular-se
tanto pela força tremenda das suas armas como pelo facto de possuir "uma
organização médica que podemos sem dúvida considerar maravilhosa" 8 .

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