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PASSAPORTE PARA A NOITE

PASSAPORTE PARA A NOITE

Tradução: Brigitte Cadiet

Digitalização: Argo
HEINZ G. KONSALIK

Consagrado como um dos escritores europeus mais divulgados


em nossos dias, Heinz G. Konsalik é especialista na criação de
histórias com forte dose de fantasia. Mas ele demonstra saber que
essa fuga do cotidiano deve estar firmemente calcada na realidade:
afinal, é nesse jogo bem calculado entre a pura ficção e a base do-
cumental que reside a fórmula dos best sellers. Por isso, Konsalik
segue a mesma diretriz de muitos de seus pares no reino dos mais
vendidos. Antes de começar um romance, faz minuciosa pesquisa
sobre o tema a ser abordado. E diz: “Se escrevo sobre cirurgia
plástica, preciso conhecer todas as suas técnicas; se escrevo sobre
uma remota aldeia do Brasil, podem ter certeza de que esse lugar
existe mesmo”.
Nascido em Colônia, Alemanha, em 28 de maio de 1921, Heinz
Gunther Konsalik teve uma juventude marcada pela curiosidade e
pela inquietação. O teatro, a filosofia e a história da literatura ab-
sorveram sua atenção durante o período universitário em sua ci-
dade natal, depois em Munique e Viena. Por fim, descobriu sua
verdadeira paixão: a medicina. Voltou à faculdade, mas não con-
seguiu terminar o curso. A necessidade de ganhar a vida obrigou-
o a trocar as salas de aula por um emprego que lhe garantisse o
sustento.
Esse fascínio pela medicina se revela na maior parte de seus
romances, que tratam das lutas e triunfos inerentes à vida dos
médicos. Outra experiência decisiva para ele foi a União Soviética,
que conheceu em circunstâncias trágicas. Durante a Segunda
Guerra Mundial, combateu como soldado das tropas alemãs na

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frente russa e, aí, foi gravemente ferido. Hospitalizado, recuperou-
se logo, aproveitando o período de convalescença para refletir e
criar. A URSS se transformaria então num dos seus cenários pre-
feridos para armar tramas à base de sentimentalismo e situações
de suspense. O primeiro romance, O médico de Stalingrado, publi-
cado em 1956, narra a história verídica de um clínico durante a
dura resistência ao cerco do exército nazista àquela cidade (hoje,
Volgogrado).
Como seus colegas americanos — Harold Robbins e Irving Wal-
lace, por exemplo —, Konsalik cria romances em que aconteci-
mentos reais se misturam a episódios inverossímeis. Mas o autor
alemão se orgulha de importante diferença em relação aos outros
produtores de sucessos: em seus livros não há descrições de ce-
nas eróticas. O escritor tem uma explicação filosófica para isso: “O
sexo é um fator biológico que funciona sem grandes problemas. O
amor, porém, é uma realidade muito mais complexa, profunda e
rara do que o sexo”.
Autor de mais de cem romances, traduzidos para dezessete idi-
omas e com vendagens superiores a cinqüenta milhões de exem-
plares, Heinz Konsalik era até pouco tempo um fenômeno exclusi-
vamente europeu. Hoje, contudo, já conquistou não só o público
norte-americano, como os leitores da América Latina. No Brasil,
estão traduzidos mais de trinta romances desse escritor de rosto
bonachão e com um traço infantil. Entre os títulos de Konsalik
publicados no país destacam-se: Noites de amor nas estepes, A ca-
sa dos corações perdidos, Expresso Transiberiano, O coração do
sexto Exército, Amor em São Petersburgo, Consultório sentimental,
No vale dos sonhos.

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CAPITULO 1

A primeira vez que ouviram aquilo estavam saindo da igreja. O


padre acabara de pronunciar a bênção, e o pequeno sino soava na
torre. O povo agrupava-se no pátio da igreja, conservando ainda
gravadas na alma as últimas palavras: “Que Deus proteja nossa
Pátria e nos envie a paz’’; foi então que ouviram aquele estrondo
apenas insinuado, distante, estranho e invulgar, levado pelo vento
através de campos, pradarias, florestas de vidoeiros e lagos.
Ergueram as cabeças para o céu outonal de um azul infinito
com alguns amontoados de nuvens brancas, interromperam a
conversa e aguçaram os ouvidos.
— Fogo de artilharia! — disse Paskoleit, enfiando as mãos nos
bolsos de seu terno de domingo. — Sem dúvida alguma, é fogo de
artilharia.
Os outros permaneceram em silêncio. As mulheres mexiam,
com gestos nervosos, nos lenços que lhes cobriam as cabeças, e
olhavam em direção à igreja. O padre Heydicke, ao sair, também
ergueu a fronte e quedou-se parado à porta. Alto, forte, um vulto
impressionante de batina preta, quase uma figura pré-histórica
gerada do solo da Prússia Oriental ao longo dos séculos.
— Alguma coisa está errada!
Paskoleit falou tão alto que todos os olhares se voltaram para
ele.
— O relatório da Wehrmacht diz apenas que os russos tiveram

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algumas pequenas vitórias locais. Mas isto aqui, podem ter certe-
za, vem dos lados do Vístula.
Era um domingo de outubro. A aldeia de Adamsverdruss, entre
Ortelsburg e Johannisburg, estava quase toda reunida diante da
igreja. Poucos eram os que faltavam: o chefe político local, Felix
Baum, o chefe local dos camponeses, Johannes Lusken, e a para-
lítica aposentada Juliane Brakau. Juliane precisava de muito re-
pouso... só costumava chegar à igreja por volta de meio-dia. Jo-
hannes Lusken, seu vizinho, a trazia na cadeira de rodas para o
“culto particular”, e, com isto, também ele recebia a bênção. Era a
sua maneira de contornar a determinação do Partido de deixar a
religião, convencendo-se de que permanecia na igreja apenas para
agradar Juliane, numa simples demonstração de amor ao próxi-
mo. Em Adamsverdruss ninguém ignorava que, por detrás da ca-
deira de rodas, ele entrelaçasse as mãos quando o padre Heydicke
rezava o padre-nosso; portanto, o único que realmente não se en-
contrava na igreja era Baum, o chefe político local, que ficara ou-
vindo, pelo receptor radiofônico da aldeia, o pronunciamento do-
minical do ministro da Propaganda, Goebbels. Na maioria das ve-
zes comparava, em segredo, os discursos de Berlim com o que os
soldados em férias copiavam do front, com os comentários ouvidos
quando se ia fazer compras em Gross Puppen, a aldeia mais pró-
xima, ou com as novidades trazidas pelo comerciante de gado de
Ortelsburg.
— O que é isto, senhor padre? — perguntou Paskoleit perante o
povo de Adamsverdruss.
Para quem o via assim, cabeça redonda, ombros largos, pernas
abertas, plantado no meio da praça, era fácil entender por que a
Prússia Oriental era uma terra abençoada por Deus.
Julius Paskoleit era mestre sapateiro. Na verdade ele deveria

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ter assumido a administração da propriedade paterna em Klein-
lindengrund, com plantação de batatas e criação de cavalos, mais
vinte cabeças de gado e um touro comunitário. Exatamente esse
touro, porém, arruinou a vida que lhe estava destinada. Tinha de-
zoito anos quando o mandaram buscar o touro no pasto. Até hoje
ninguém sabe que tipo de odor Paskoleit exalava, mas fato é que o
touro abaixou a cabeça, revolveu a terra com as patas e avançou
contra Paskoleit.
Não é covardia fugir de um touro atacado de bobeira. Paskoleit
deu uma reviravolta, esticou-se como um atleta e tentou, aos tran-
cos e barrancos, chegar à cerca protetora. Mas o touro foi mais rá-
pido, alcançou-o, deu-lhe uma chifrada na coxa esquerda, sacudiu
a cabeça e atirou Paskoleit para o alto, acalmando-se em seguida,
enquanto o homenzinho, desmaiado e sangrando, rolava até a cer-
ca.
De Kleinlindengrund até a Casa de Saúde de Ortelsburg são
apenas vinte e sete quilômetros, mas naquela época não se podia
conseguir um carro veloz. O dr. Krokau veio de Friedrichshof em
seu pequeno carro, o que levou quase uma hora; enfaixou a coxa e
quando, finalmente, Paskoleit chegou à mesa de operações em Or-
telsburg, já era tarde. Tiveram de amputar a perna, mas ficou um
toco grande o bastante para que Paskoleit pudesse andar sem
problemas com uma perna mecânica.
A propriedade foi entregue ao segundo filho.
— Você será sapateiro — disse o velho Paskoleit, um patriarca
de barbas espessas, que, ao terminar uma frase, dava um soco na
mesa para demonstrar que ninguém tinha o direito de contradizê-
lo. — Quem só tem uma perna aprende a dar valor aos pés dos
outros.
Foi assim que Julius Paskoleit virou sapateiro, montando uma

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oficina em Gross Puppen e transferindo-se para Adamsverdruss,
em 1940, porque seu cunhado Ewald Kurowski estava de partida
para a guerra.
Ewald Kurowski também era sapateiro. Durante suas últimas
férias, em 1942, dissera:
— Julius, Erna vai ter mais um filho. Cuide de minha família, e
se algo me acontecer... fique com ela. Nunca a abandone. Tirando
o vovô e a vovó, só temos você. E esta guerra vai ser uma grande
merda, isso eu garanto. Todos esses brados de Heil só servem para
nos embriagar, e Baum com seus discursos só faz é repetir tudo
que ouve como um papagaio. Julius, tome conta de minha famí-
lia...
Foi o que Paskoleit fez. Quando Ewald Kurowski desapareceu
em algum ponto dos pântanos do Pripet, tornou-se o chefe da fa-
mília Kurowski. Sua irmã Erna e as crianças o reconheceram co-
mo tal. Vovó Berta também ficou feliz em ver que Paskoleit alimen-
tava a família com seu trabalho de sapateiro. Só vovô Joachim,
conhecido pela alcunha de Jochen Berrador, não entendia por que
um mocinho tinha de ser o chefe da família, e não ele, o mais dig-
no e respeitável. Para o velho de setenta e dois anos, Paskoleit,
com seus trinta e nove anos de idade, estava acabando de sair do
ovo. Não concordava e demonstrava isso como e quando podia;
chegava tarde para as refeições, discordava das opiniões de Pasko-
leit e berrava a cada oportunidade:
— Meu antepassado foi moleiro junto à Ordem dos Cavaleiros.
Ninguém manda em mim!
Agora ele também sentia o ar, ouviu aquele troar distante, e,
embora Paskoleit já tivesse expressado sua opinião, pensativo, o
velho também levantou a voz:
— É uma trovoada!

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— Estão no Vístula, é verdade — disse o padre Heydicke.
Foi passando pelo meio do povo de Adamsverdruss em direção
à casa paroquial e todos o seguiam de perto. Só o avô Jochen ficou
parado, encolheu o queixo e bradou:
— É uma trovoada!
— Deveríamos perguntar a Baum o que vem por aí — disse
Paskoleit. — Como chefe político ele deve saber o que está por a-
contecer. Conseguirão os russos atravessar o Vístula? Haverá um
novo Tannenberg? Talvez fosse bom ele dar um telefonema para a
administração distrital de Ortelsburg.
— Eles virão.
O padre Heydicke estava em pé à porta de sua casa. Seu olhar
passeava sobre as cabeças. Alguns homens, a maioria deles de ida-
de avançada, velhos demais para a guerra, um punhado de inváli-
dos como Paskoleit, nada mais nada menos que catorze homens
mais jovens, declarados incapazes por trabalharem em diversas fá-
bricas em Ortelsburg e em Bischofsburg, ou alguém que sofria de
algum mal, como o aprendiz de sapateiro Franz Busko, que não fo-
ra recrutado devido a uma antiga tuberculose pulmonar — o res-
tante eram apenas mulheres e crianças. Uma massa compacta
cheia de perguntas sem formular e temores disfarçados.
Que será de nós? Teremos de abandonar Adamsverdruss? Os
russos chegarão até aqui? Ir para onde? Subir para a costa, para o
Nehrung? Ou rumo ao oeste, para a Pomerânia, Berlim, entrando
na região de Brandenburgo? O que será da Prússia Oriental, se-
nhor padre? Teremos que deixar nossa terra natal?
— Eu não sei — disse Heydicke para aquela gente. Eles nem
precisavam perguntar em voz alta, compreendia-os pelo olhar. —
Nem mesmo sei se Deus será capaz de ajudar. Na guerra todos o-
ram a Deus... todos os que matam cumprindo ordens, deste lado

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ou do outro. Abençoam-se as bombas, as granadas, os fuzis, os
canhões, os homens, os feridos, os agonizantes, os mortos. Todos
querem a ajuda de Deus, porque cada um se acha justo. O que
querem que Deus faça? Vocês conhecem a resposta?
Os devotos começaram a dispersar-se. Tinham orgulho de seu
padre. Não era um daqueles que, sempre e a cada oportunidade,
se escondia atrás de Jesus empurrando qualquer decisão para E-
le. Dizia o que pensava, o que nem sempre era sagrado, mas era
honesto. Isso valia mais que dez versículos da Bíblia, de nenhuma
utilidade num momento em que pairava no ar aquele troar distan-
te.
— Vou falar com Baum — disse Paskoleit no instante em que a
família Kurowski chegava ao jardim de sua casa. — Do Vístula até
aqui é um pulo. Devemos estar preparados para tudo.
— Vou junto — disse vovô Jochen, batendo no chão com a
bengala.
— Para quê?
Paskoleit apontou para o céu de outono com os amontoados de
nuvens que se moviam devagar.
— Preocupe-se com sua trovoada, vovô.
— Pirralho atrevido! — berrou Joachim Kurowski. — Eu vou
para onde eu quiser! Quero discutir com Baum sobre Goebbels!
Alguma objeção, patrãozinho?
— É melhor não dar palpite.
— Eu falarei quando bem entender! — berrou vovô Jochen. —
Vamos! Ainda quero tomar um Baerenfang!
Pisando forte, saiu caminhando. Erna Kurowski segurou o ir-
mão pela manga. Trazia no colo a filha caçula, Inge, de dois anos.
— Isto são mesmo canhões? — perguntou.
— Sim.

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— E nós temos de sair daqui?
— Quer ser atropelada pelos carros de combate russos?
— E a casa? A oficina? Os campos? Nossa floresta?
— A guerra não quer saber. Quando os russos atravessarem a
fronteira, daremos graças a Deus se pudermos salvar nossa pele.
Dentro de uma hora saberemos mais...
Foi um engano.
O chefe político local, Felix Baum, acabara de ouvir no rádio o
artigo de Goebbels publicado no Reich, o semanário que se tornara
o porta-voz do governo, e meditava, ao som de marchas militares,
sobre aquelas palavras esperançosas. Admirou-se quando viu en-
trar vovô Jochen, seguido por Julius Paskoleit, e quando Jochen
Berrador desligou o rádio sem pedir licença.
— Você está perdendo o melhor da festa — falou. — Ponha a ca-
beça pra fora, Felix... está trovejando nas imediações do Vístula!
— Uma trovoada... — disse Paskoleit, em tom de gozação.
— Artilharia! — berrou vovô Jochen.
— Besteira! — Baum fez um gesto de desprezo. — Estava jus-
tamente ouvindo Goebbels.
— E eu conheço este som desde a guerra de 14-18! Por acaso
Goebbels estava diante de Verdun, hein? Estava no Mort-Homme?
E naquela altitude, por acaso Goebbels estava lá? Mas eu sim! E
conheço o ruído! Isto é fogo contínuo de artilharia! Os russos vêm
para Adamsverdruss?!
— Nunca! Nosso Füehrer vai afugentar as hordas vermelhas até a
Ásia... A Prússia Oriental é uma fortaleza que, como uma rocha...
— Ora, aos diabos com você! — interrompeu Paskoleit, sentan-
do-se. — Os russos já estão no Vístula, vai querer contestar isto?
— O relatório da Wehrmacht...
Felix Baum tornou a ligar o rádio. O som da marcha animou-o.

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Fora dispensado do serviço militar por causa de problemas hepá-
ticos, além de umas hemorróidas que dariam para escrever um li-
vro, mas em compensação fora nomeado chefe político local de
Adamsverdruss.
— Toda a aldeia — dissera o administrador distrital de Ortels-
burg — tem de ser uma comunidade ajuramentada que acredite
no Füehrer! Só esta crença nos dará a vitória final e o grande Rei-
ch alemão! Sieg Heil!
Felix Baum, arrebatado, erguera o braço, comprara em Or-
telsburg seu uniforme de chefe político e voltara a Adamsverdruss
como um príncipe entrando em seus domínios. Desde então só ti-
vera dissabores, brigas com os velhos amigos, discussões e xin-
gamentos; certa vez, ao advertir o padre Heydicke, alegando que
os sermões que ele pregava eram subversivos, levou, na noite de
domingo, uma surra de dar pena, sem que jamais se soubesse de
quem. Baum tinha lá suas desconfianças e, daquele momento em
diante, passou a tratar todos, mas principalmente Paskoleit, com
muito cuidado, evitando toda e qualquer discussão.
— E mesmo que eles estejam no Vístula... nossas valorosas di-
visões os afugentarão...
— Quer dizer que você não sabe de nada? — disse vovô Jochen
com sua voz estrondosa.
— Só o que Goebbels diz. É o suficiente, não?
— Ligue para o administrador distrital!
— Agora, num domingo? Vocês têm coragem...
— Se uma de minhas vacas tem cólicas, chamo o veterinário!
Pode ser domingo, no meio da noite, Natal ou Páscoa... mas ele
vem! Agora é a Alemanha inteira que está com cólicas... Com mil
trovões, estou ansioso para saber o que dirão os grandes veteriná-
rios!

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Felix Baum fitou Joachim Kurowski com olhar espantado.
— É isso, literalmente, que devo dizer ao administrador distri-
tal?
— Por mim pode falar.
— Eles o prendem na mesma hora!
— Pelo menos assim estarei em segurança quando os russos
chegarem. Vamos, telefone para Ortelsburg!
— Você será enforcado por subversão contra a Wehrmacht, Jo-
chen!
— Eu? Um Kurowski! Pelo administrador distrital? O Ewald
Tollak, um bebê que ainda cagava nas calças quando eu já me en-
contrava à frente de Verdun?
Vovô Jochen avançou para o telefone que estava ao lado do rá-
dio.
— Quer que eu telefone?
— Deus me livre!
Felix Baum diminuiu o volume do rádio, discou um número e
esperou. De repente ouviu-se um chiado e uma voz; Baum emper-
tigou-se todo e falou:
— Senhor administrador distrital, aqui fala Baum, o chefe polí-
tico local de Adamsverdruss. Estou telefonando porque algo estra-
nho está acontecendo. Já faz meia hora que estamos ouvindo um
troar surdo no ar. Não! Não estou com dor de barriga nem estou
peidando... Está vindo da direção do Vístula... O quê? Não devo
espalhar comentários de latrina? Sim, senhor administrador dis-
trital, também acabo de ouvir as palavras do ministro da Propa-
ganda do Reich, um discurso sensacional, sim, senhor... É claro
que, também aqui em Adamsverdruss, todos crêem na vitória fi-
nal; Adamsverdruss está seguindo o Füehrer unida... Mas, e o ruí-
do lá longe, senhor administrador, sim, senhor, eu já fui ao ba-

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nheiro hoje... o vento traz o barulho... Compreendo, senhor admi-
nistrador distrital, não quer dizer nada, nossas tropas revidaram o
ataque soviético. Sim, senhor, deve ser isso! Heil Hitler!
Felix Baum colocou o fone no gancho e enxugou o suor.
— Vocês ouviram — disse com franqueza na voz. — Que mer-
da, cara! Depois de amanhã, quando ele estiver aqui, mando-o fa-
lar com vocês!
— Isso mesmo.
Paskoleit foi até a janela e abriu-a. Podia-se ouvir o ruído perfei-
tamente, embora vindo de tão longe. Baum endireitou os ombros.
— Meus ouvidos não estão tapados! — disse.
— E agora? Devemos fazer as malas?
— Fazer as malas? Mas como? Estão querendo espalhar o pâ-
nico? Só porque está trovejando lá longe?
— Alguma vez já olhou o mapa?
Paskoleit tirou um lápis do bolso do paletó e começou a dese-
nhar, sobre a toalha da mesa, o contorno da Prússia Oriental. Lá
embaixo, na fronteira com a Polônia, onde havia uma longa curva,
fez uma cruz. Adamsverdruss. Baum desistiu de protestar contra
os rabiscos em sua toalha branca. Quando Julius Paskoleit queria
demonstrar alguma coisa, o jeito era aceitar.
— E daí? — perguntou. — Na escola eu era considerado bom
em geografia.
— Aqui está o Vístula. Aqui estão os russos! A terra entre nós e
eles é toda plana. E os russos têm tanques tão velozes quanto um
automóvel. Aqueles malditos T34!
— E nós temos os panzer Tigre, os Leopardo...
— Mas sem combustível, seu burro!
— Tudo conversa mole!
Felix Baum aumentou o volume do rádio para ouvir as mar-

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chas militares. Precisava de amparo moral.
— São novas punhaladas nas costas! Nossos exércitos nunca
estiveram tão bem equipados!
— E as batidas em retirada, seu camelo? — berrou avô Jochen.
— Reduções estratégicas das frentes. Quanto menor e mais es-
treita a linha principal de combate, mais vigorosos serão os gol-
pes! Deixaremos vir os russos, vir sempre... e, então, tchabum, fo-
go concentrado neles! Acreditem-me, o Füehrer sabe o que quer! E
um gênio!
— Estou pouco ligando! — disse Paskoleit. — Só estou preocu-
pado com Erna e as crianças. Tratarei de tirá-las daqui.
— Julius, isto é traição! — gritou Felix Baum. — O leste alemão
é o lugar mais seguro que existe! Afinal, para onde está querendo
levar Erna?
— Krefeld, onde mora uma tia dela.
— Onde já se ouviu algo mais idiota? — exclamou Baum. —
Krefeld! Onde caem bombas todos os dias! Para a região do Ruhr,
de onde mandam os flagelados para cá! Jochen, ponha-lhe uma
compressa na testa! E que seja gelada! As administrações regionais
do ocidente estão trazendo mulheres e crianças para que nós as
abriguemos, porque o leste alemão ainda é um fortíssimo baluarte,
e essa besta quer levar os filhos de Erna e Ewald para o oeste!
— A questão é: o que será melhor, as bombas ou os russos?
Aquele tio de Krefeld é alguém no Partido e tem as costas quen-
tes... Cuidará bem de Erna!
— Ele a mandará para a Prússia Oriental! — gritou Baum.
— Não adianta. — Paskoleit levantou-se e acenou para Jochen
Kurowski. — Venha, vovô. Não vou esperar até que os tanques
russos estejam parados a nossa porta! Depois de amanhã vou até
Johannisburg. Tenho algumas botas a entregar no hospital militar

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e aproveitarei para saber, da boca dos pacientes mais novos, em
que pé estão as coisas no front.
Cutucou o peito de Baum e divertiu-se com a insegurança que
leu nos olhos dele.
— Terei mais novidades para contar do que seu querido Goeb-
bels! Notícias da Wehrmacht em primeira mão. Bom domingo, Fe-
lix.
— Felix Hitler! — respondeu Felix Baum, amuado.
Pela janela, ficou olhando Paskoleit e Kurowski se afastarem. O
ruído distante cessara, a paz dominical cobria a terra das florestas
de vidoeiros e, da abóbada celeste, de um azul infinito, irrompia
uma alegre luminosidade.
— Os russos nunca virão — disse Baum, baixinho —, não po-
dem vir. Nossa bela terra...
Viu o chefe local dos camponeses, Johannes Lusken, empurrar
a paralítica Juliane Brakau para a igreja em sua cadeira de rodas.
Vestia o uniforme do Partido, mas havia uma saliência no bolso
esquerdo; era lá que ele escondia o livro de cânticos. Baum sabia
disto e, naquele momento, sentiu inveja de Lusken por ser capaz
de ouvir outras palavras que não as de Adolf Hitler.
Tomou a decisão de aguardar até a noite para fazer uma visita
secreta ao padre Heydicke a fim de ter uma conversa com ele.
No dia 20 de outubro chovia a cântaros e Jochen Kurowski di-
zia:
— Agora Adamsverdruss vai inundar. Os russos terão que vir
de calção de banho!
O oficial subalterno Hans Kampken viu-se obrigado a voltar.
Um tiro, perto de Witebsk, tirara-lhe um olho, o direito, daí a ven-
da preta que usava sobre a órbita vazia, e, para compensar a vista
perdida, ostentava no peito a Cruz de Ferro de primeira classe.

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Veio de Gross Puppen num dog-cart, que pertencia ao farmacêuti-
co, e fez da taberna da aldeia sua primeira parada. Paskoleit e seu
ajudante, o tuberculoso Franz Busko, estavam jogando skat1
quando Kampken entrou, ensopado, sacudindo-se como um cão
para livrar-se da água.
— Gente, que porcaria! — exclamou, com um aceno ao taber-
neiro. — Manda um kuemmel, Franz!
Olhou em volta, deu um tapinha nas costas de Paskoleit e não
reparou num homem, estranho ao lugar, sentado no canto e to-
mando uma cerveja. Chegara de automóvel e apresentara-se como
corretor de seguros.
— Vocês já sabem o que está acontecendo? Estou chegando de
Rastenburg, do hospital de campanha. Dizem que o maior estrate-
gista de todos os tempos está perdendo terreno. Que o quartel-
general do Füehrer vai ser transferido para Berlim. Sabem o que
significa isso? Que a Prússia Oriental logo estará em apuros. Gen-
te, o negócio é fugir! Eu lhes digo: na hora em que os russos resol-
verem sair por aí com seus T34, ninguém mais os deterá! Saúde,
pessoal! Estou de olho em Witebsk. O que vejo: uma grande por-
caria! No Kurland temos uma divisão inteira de panzer sem um li-
tro de combustível, nas planícies junto ao Vístula os rapazes con-
tam a dedo seus cartuchos e granadas. E o Ivã só acumulando,
dia e noite... tanques, canhões, artilharia pesada, caminhões, divi-
sões, tropas vindas da Sibéria, novinhas em folha... eles vão arre-
bentar-nos a todos até as tripas!
Naquela mesma noite Paskoleit tornou a falar com a irmã.
— Vá para Krefeld — disse. — É só para aguardar os aconteci-
mentos, Erna. Eu ficarei por aqui. Mas se a situação engrossar...
pense no que Ewald me disse: “Cuide de Erna e das crianças”. No

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Um jogo de cartas alemão. (N. da T.)

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sábado vocês vão para o oeste.
— Nós ficaremos aqui — disse Erna Kurowski. — Ewald nas-
ceu aqui, eu nasci aqui, as crianças nasceram aqui, aqui temos
nossa casa, aqui está a oficina do Ewald e é para cá que ele vai
voltar. Está vivo, eu sinto. Desaparecido não quer dizer morto. E
se, de repente, ele surgir aí na porta e não encontrar ninguém em
casa, como poderei explicar mais tarde? Que somos um bando de
covardes, que ouvimos barulho de tiros de canhão vindo de bem
longe e fugimos?! Não, Julius... nós ficaremos aqui mesmo!
— Vão se arrepender — falou, sério, Paskoleit. — Não posso o-
brigar ninguém. Se os russos vierem mesmo para a Prússia Orien-
tal, será que então poderemos vencer...?
No dia seguinte o oficial subalterno Hans Kampken foi tirado
da cama por dois homens do SD. Não teve tempo nem de colocar o
tapa-olho. Como um assassino, levaram-no para um carro cinza,
fechado, e partiram. Também o estranho, o corretor de seguros,
abandonou Adamsverdruss após uma breve conversa com Felix
Baum, o chefe político local. À noite, vovô Jochen passeava pela
aldeia e noticiava:
— Vão condenar Kampken à morte! — berrava. — E Baum re-
cebeu uma advertência! Com mil demônios, só porque disse a ver-
dade! Os russos de fato passaram pelo Kurland! Gente, devería-
mos é começar a fazer as malas! Se os russos atravessarem o Vís-
tula, ninguém mais poderá detê-los. Quem diz isto sou eu, Joa-
chim Kurowski... nem que eles me enforquem ao lado de Kamp-
ken!
Em torno da Prússia Oriental fechava-se a mais coesa das divi-
sões soviéticas. Milhares de tanques aguardavam a ordem de ata-
que, milhares de canhões voltavam-se para a fronteira alemã, um
mar de corpos humanos marrom-acinzentado vinha arrastado na

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corrente. Novos exércitos provindos das profundezas da Rússia,
tropas jovens novinhas... E do outro lado esperavam as divisões
alemãs, cansadas, massacradas, encolhidas, cuja única força re-
sidia na determinação de levantar, diante de sua pátria, um muro
de cadáveres.
E, mais uma vez, o vento trazia aquele ribombar distante, o so-
pro da destruição...

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CAPITULO 2

Triste foi a festa de Natal.


Não só Adamsverdruss, mas toda a Prússia Oriental estava de
malas prontas e, nos celeiros e garagens, os veículos estavam pre-
parados para a fuga. O inverno caíra sobre a terra com uma geada
que arrancava gemidos das árvores. Sempre que o vento assobiava
em volta das casas fazendo tremer as vidraças, o avô Joachim se-
gurava seu grosso cachimbo e consolava:
— Isso até que é bom, crianças. Com um tempo desses os rus-
sos não atacarão mesmo. Até os homens lá da Sibéria sentem frio.
Enganava-se. Julius Paskoleit, que fora à Secretaria de Finan-
ças de Gross Puppen buscar borracha e couro para a sapataria,
contou os soldados chegados do Narev e do Vístula. Ali, como no
Kurland, concentravam-se enormes massas de tropas soviéticas
aguardando a ordem de atacar.
— Eles sabem até os nomes — disse Paskoleit. — Os marechais
Rokossovski e Tcherniakovski assumiram o comando geral. Dizem
que são os melhores comandantes do Exército russo.
— Tudo bobagem! — retrucou vovô Jochen. — Meu nome tam-
bém acaba com i, e nem por isso sou um grande general!
Paskoleit, sem vontade de brigar com Kurowski, saiu correndo
pela tempestade de neve para falar com Felix Baum, o chefe políti-
co local. Este era o único que não fizera as malas. Para comemo-
rar, ia desejar feliz Natal de casa em casa, ganhava uma aguar-

20
dente e, diante da árvore enfeitada, dizia a cada família a mesma
coisa:
— Não tenham medo, compatriotas! O Füehrer vai conseguir!
Não foi sempre assim, cem russos contra um alemão? A frente se
mantém firme como aço da Krupp! Vocês verão: em 1945 afugen-
taremos os vermelhos até o Ural. Heil Hitler!
Na última visita ao padre Heydicke, mal podia andar, caindo,
com os olhos vidrados, sobre o velho sofá de couro.
— Preciso confessar-me — disse, com a voz engrolada. — Se-
nhor padre, mesmo bêbado quero a confissão. O que achará disto
o bom Deus? Passei o Natal contando mentiras a uma aldeia intei-
ra! E tenho medo! Não durmo mais à noite. Mísero porco que sou,
senhor padre.
Deitou a cabeça na mesa e chorou.
O padre Heydicke o deixou chorar. Uma hora mais tarde deu
óleo de salada a Felix Baum para beber; o chefe político vomitou a
não mais poder, mas depois estava sóbrio o bastante para que se
pudesse ter uma conversa sensata com ele.
— E agora? — perguntou o padre. — O que sabe, Baum?
— A administração distrital foi transferida para Allenstein. Pro-
visoriamente.
— Bonito. E ninguém pode saber disso?
— Céus, não! — Baum tomou meio copo de água gasosa, arro-
tou e disse, envergonhado: — Peço desculpas, senhor padre. —
Depois ficou olhando a tempestade de neve pela janela. — Mas ao
senhor eu precisava contar. Também meu terno civil já está ao la-
do da cama, pronto para vestir. Sou um covarde, não?
— A carne é fraca — contornou o padre Heydicke —, mas foi
bom o senhor encontrar o caminho para vir a mim. Quando é que
os russos vão atacar?

21
— Isso, para dizer a verdade, ninguém sabe.
Baum levantou-se. Eram duas horas da manhã, e não havia
perigo de ser visto àquela hora saindo da casa paroquial, ainda
mais com aquela neve.
— Eu tenho telefone, senhor padre. Ligue para mim duas vezes
ao dia... Quando chegar o momento, pode tocar os sinos. Estou só
aguardando novas ordens da administração distrital...
O novo ano começou tinindo de geada, mas o céu estava claro.
A família Kurowski, que se encontrava, à meia-noite, junto às ja-
nelas, os copos cheios de chá quente temperado com um pouco de
uísque de centeio, abraçou-se, trocou beijos e pronunciou o feliz
ano-novo como se fosse uma prece.
— Está tão quieto... — disse o avô Joachim, mais tarde, a Pas-
koleit. As crianças já estavam na cama, a avó Berta adormecera
na poltrona, Erna Kurowski tricotava um xale para o pequeno Pe-
ter, de quatro anos. — Não gosto nada disso.
— Primeiro reclama do barulho, depois acha tudo muito quieto,
você não sabe o que quer — disse Paskoleit.
— Você nunca esteve na guerra! — gritou Kurowski. Era para
que vissem que, apesar de seus setenta e dois anos de idade, ele
ainda era o Jochen Berrador. — Na guerra sempre é mais perigoso
quando tudo está quieto. O que andam dizendo lá fora?
— Nada.
Paskoleit pensou em Hans Kampken, levado preso. Como já era
esperado, tinham-no fuzilado em Allenstein. Por subversão e de-
sacato à Wehrmacht. Sem deixar que ele abrisse a boca para falar,
uma corte extraordinária pronunciara a sentença, marcando a e-
xecução para dali a uma hora. Um comerciante de gado de Allens-
tein, que ouvira a história de seu cunhado, ferreiro da divisão,
contava, mas só aos amigos mais chegados, que, pouco antes do

22
comando “fogo!”, Kampken ainda bradara: “A verdade ainda vai
arrebentar suas tripas!” Dito isto, levou catorze balas, todas no
peito. Os executores tinham boa pontaria.
— Mas alguma coisa devem estar dizendo! — rosnou Kurowski,
teimoso.
— Que a safra de batatas não vai ser nada boa...
Vovô Jochen olhou fixo para Paskoleit, pensando se deveria ou
não armar um escarcéu no primeiro dia do ano; depois acenou
com magnanimidade e foi para a cama. Levou avó Berta consigo...
Cutucou-a para acordá-la; ela soltou um gritinho, levantou da pol-
trona e, tateando, seguiu o marido. Paskoleit e Erna ficaram sozi-
nhos.
— Amanhã carregarei os dois carros — disse ele —, a carroça
grande e o coche. Você já arrumou tudo, não arrumou?
— Já, tirando as coisas mais necessárias. — Erna Kurowski fi-
tava o irmão com olhos arregalados. — Você sabe mais do que diz,
Julius.
— Só sei que de maneira alguma esperarei até que nos façam
evacuar oficialmente..
— Mas nós só temos dois cavalos para a carroça grande.
— Há quatro dias comprei dois cavalos em Ortelsburg, pagos
com dez peças de couro. Irei buscá-los amanhã. Em Deutschwald
temos um trator que também comprei. Esse custou o seu piano...
— O piano? — Ema jogou o xale longe. — Julius, você não po-
de, simplesmente, trocar o piano de Ewald por um trator!
— Você pretendia carregá-lo nas costas até Berlim ou talvez até
Colberg?
— Mas quando Ewald...
— Seu marido não teria agido de outro modo! Com um piano
não se percorre as estradas, mas sim com um trator! Um trator

23
pode significar nossas vidas... ou será que você prefere ficar aqui
sentada tocando Pour Elise com os russos à porta?! Meu Deus, eu
seria capaz de subir as paredes de contentamento por possuir um
trator e você fica resmungando!
Paskoleit foi até a janela. A noite do primeiro dia de janeiro de
1945 estava linda, como devia ser uma noite de ano-novo. Um céu
carregado de estrelas. E, sobre a terra, a neve cintilante.
— Alguma vez já lhe passou pela cabeça que nunca mais tor-
naremos a ver Adamsverdruss? — perguntou, baixinho.
— Nem penso nisso. E impossível.
— E se os russos ficarem aqui?
— Por enquanto ainda não chegaram, Julius.
— Ou os poloneses, quem sabe?
— Como é que você pode imaginar tal coisa, Julius? Afinal de
contas, estamos na Alemanha.
— Por quanto tempo?
— Há algumas centenas de anos... e por mais algumas cente-
nas de anos.
— Ou então até que Rokossovski e Tcherniakovski nos dêem
um aperto e nos esmaguem, Quem reconquistará a Prússia Orien-
tal? Nossas pobres e sugadas tropas? Nossas divisões que preci-
sam contar a dedo a munição que lhes resta? Nossos panzer que
não têm combustível?
— Você é muito pessimista — disse Erna Kurowski. — Não ou-
viu Goebbels no rádio? Ele diz que 1945 é o ano da vitória.
— É verdade.
Paskoleit afastou-se da janela. Comoveu-se, chegando às lá-
grimas, com a paz existente lá fora.
— A pergunta é quem vencerá...

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Na manhã de 12 de janeiro, num dia em que a geada tilintava,
toda a terra em torno da Prússia Oriental pôs-se a ressoar. Um
anel cuspindo fogo arremessava morte e destruição sobre as divi-
sões alemãs, que esperavam, abaixadas no solo gelado, a chegada
dos exércitos soviéticos. Já no começo da tarde, pôde-se reconhe-
cer a monstruosa concentração e o avanço das frentes vermelhas.
Não só a Prússia Oriental seria cercada, o marechal Shukov mar-
chava rumo a Berlim, as tropas de Koniev e Petrov atacavam a Si-
lésía. Próximo a Baranov, na Galícia ocidental, os soviéticos atra-
vessavam o Vístula, saíam com seus panzer para desmantelar a
frente central alemã. Toda aquela terra a oeste do Vístula asseme-
lhava-se a uma mesa sobre a qual se estendia agora uma toalha
de sangue.
Vindo de todos os lados, uma enxurrada de refugiados corria
em direção ao oeste e ao norte. Em Eydtkau e Goldap, Treuburg e
Lyck, Johannisburg e Neidenburg, Deutsch-Eylau e Marienwerder
instalavam-se campos de refugiados. Tilsit foi coberta por uma a-
valanche de caravanas, mas não por muito tempo, pois três dias
mais tarde a cidade foi atacada pela artilharia pesada soviética.
Uma longa fila de pessoas, com carros de mão, carroças, tratores,
coches e trenós, arrastava-se do Protetorado de Flammberg para
atravessar a fronteira.
O chefe político Felix Baum, mais uma vez, percorreu toda A-
damsverdruss, recomendando calma. Da administração distrital
de Allenstein só lhe respondiam aos gritos, porque telefonava di-
versas vezes por dia para ter notícias sobre a situação.
— O senhor só tem que acreditar no Füehrer, mais nada! — vo-
ciferava alguém que se chamava Lumenski. Baum nunca ouvira
falar nesse nome, mas quem grita na administração distrital sem-
pre tem razão.

25
No dia 16 de janeiro apareceu, na claridade da noite gelada, o
lampejar do fogo da frente de combate. Franz Busko, o ajudante-
aprendiz de Paskoleit, sentado no alto da torre da igreja, ao lado
do sino, informava aos gritos tudo que podia ver. Pairava no ar um
ronco constante. Quando se ligava o rádio, soava música ligeira de
alguma opereta ou, então, as fanfarras anunciavam notícias ex-
traordinárias que terminavam, invariavelmente, com uma vitória
das tropas alemãs em algum lugar do leste ou do oeste.
— Está chegando a hora — disse o padre Heydicke ao povo de
Adamsverdruss, reunido diante da igreja.
O chefe dos camponeses, Lusken, também viera, trazendo a
paralítica Juliane Brakau em sua cadeira de rodas. Felix Baum,
sentado na igreja, defronte do altar, vestido com o uniforme do
Partido que já se tornara grande demais para ele nos últimos dias,
juntava as mãos numa atitude de abandono.
Não chegara mais nenhuma ordem da administração distrital.
Podia telefonar quanto quisesse, ninguém atendia. No final dava
apenas sinal de ocupado.
— Esqueceram-se de nós... — disse com o olhar fixo e incrédu-
lo, quando Paskoleit veio sentar-se a seu lado. — Os porcos nos
esqueceram! Perto de Klein-Grieben os panzer russos já estão na
fronteira. E, ainda assim, continuam a tocar operetas e Goebbels
falou ontem...
Desandou a chorar, tirou o paletó do uniforme, jogou-o sobre
os degraus do altar e, como uma criancinha, encostou-se em Pas-
koleit.
— Não creio que Deus vá aceitar essa porcaria de uniforme
como dádiva — disse Paskoleit, desvencilhando-se de Baum. —
Em todo caso é ótimo que, finalmente, você esteja acordando e
deixando de ser besta! Onde, afinal, está seu Füehrer?

26
— Em Berlim...
— E a vitória final?
— Logo que estivermos em segurança, Julius, deixarei que me
dê uns cem pontapés no traseiro.
— Isso, se conseguirmos sair daqui. Você já pensou nessa pos-
sibilidade? E para onde?
— Não faço idéia.
— Mas eu sim. Primeiro iremos para o oeste. Ortelsburg,
Hohenstein, Osterode, Saalfeld, Marienburg. Para Danzig! Depois,
Pomerânia. Sempre beirando a costa, se não aparecer quem nos
leve. Ainda deve haver trens para o oeste...
— E a tralha toda? Cavalos, carros, móveis, camas, fogões, lou-
ça...
— Seria bom demais se pudéssemos salvar tudo isso. Levare-
mos tudo... Mas você acredita mesmo que poderemos chegar até o
Elba com essas coisas todas? Os tanques russos correm mais que
carros de boi. E as estradas estão congeladas...
À tarde, Adamsverdruss reuniu-se para dar a partida. Foram
chegando na frente da igreja carros de boi, carroças puxadas por
cavalos, por tratores ou mesmo por vacas, estas últimas pisotean-
do com teimosia por não estarem habituadas àquele jugo. Pasko-
leit dirigia o trator que trocara pelo piano e puxava a carroça nor-
malmente usada para espalhar adubo. Sentada nela, em meio a
um monte de palha e rodeada de móveis, como se fosse necessário
mantê-la cercada, estava avó Berta. Vovô Jochen, acocorado na
boléia da carroça maior, dirigia os dois cavalos comprados por
Paskoleit em Ortelsburg por dez peças de couro. Na carroça amon-
toavam-se os utensílios da casa dos Kurowski e metade da sapa-
taria, todas as ferramentas e objetos, o fogão, panelas, colchões de
penas, cobertores e um banquinho de canto que o avô Jochen não

27
quis deixar de levar. Fora talhado em 1871 por ocasião da funda-
ção do Reich. Erna Kurowski estava na boléia do coche, tendo, a-
trás de si, as crianças enroladas em cobertores. Franz Busko, o
aprendiz, funcionava como elemento coordenador, ajudando onde
fosse necessário.
No momento em que o padre Heydicke abençoava o povo de
Adamsverdruss, começou a nevar, suave e silenciosamente.
— Deus esteja convosco! — disse, fez o sinal-da-cruz, subiu em
sua carroça e deu a partida. Colocou-se à frente, seguido por Pas-
koleit e a família Kurowski.
Tinha início o grande treck.1

1
Viagem de carroça puxada por boi. (N. da T.)

28
CAPÍTULO 3

Estava em cima da hora. Isso ficou demonstrado quando al-


cançaram a estrada de Johannisburg para Ortelsburg. Ali os veí-
culos amontoavam-se, enganchavam-se, só avançavam alguns
passos de vez em quando. Até onde se podia ver a estrada, havia
carroças e mais carroças, cavalos, vacas mugindo, tratores e, per-
didos no meio daquilo tudo, alguns poucos automóveis, veículos
inalienáveis, a serviço do Exército, providos de cupons para gaso-
lina. De todos os lados vinham se arrastando filas e mais filas de
gente, mas principalmente da fronteira, de Fischborn, Gehlem-
burg, Lyck. Um outro treck enorme que se reunira em Allenstein
dirigia-se para Neidenburg, um terceiro de Marienwerder para Ma-
rienburg. O destino de todos era um só: a costa. Danzig. O mar. A
Pomerânia. Mecklenburg. Berlim. Entrar na parte da Alemanha
que não estava ameaçada. Juntar-se aos irmãos do oeste. Verdade
que lá, todos os dias, caíam bombas aos milhares, não havia segu-
rança em lugar nenhum, mas era preferível passar dia e noite es-
perando e rezando num porão do que uma hora suportando a im-
piedosa maré vermelha das profundezas da Rússia.
O treck de Adamsverdruss ainda não sabia — e era melhor as-
sim — que havia refugiados vindo de todas as direções. Já bastava
que na estrada para Ortelsburg não se conseguia sair do lugar.
— Os russos vão nos pegar! — disse Paskoleit ao padre Heydicke,
que continuava na ponta. Era como antigamente, quando o povo

29
deixou o Egito para seguir Moisés... Só que uma coisa era certa: este
mar vermelho que transbordava, agora, a sua volta, não se dividiria
para dar-lhes passagem. — Se continuar assim até Danzig, será me-
lhor ficarmos sentados à beira da estrada, esperando pelos russos.
Felix Baum, o chefe político, que trocara seu uniforme cáqui
pelo terno que sempre usara antes, uma roupa de camponês com
paletó verde, polainas, botas de feltro e um sobretudo forrado,
sentado numa motocicleta, passava ruidosamente para lá e para
cá, e como um ímã atraía sobre si todos os pedidos e imprecações
do povo de Adamsverdruss. Não levava bagagem, mas em com-
pensação havia no assento traseiro de sua moto três latas de ga-
solina e outras dez no carro de Paskoleit. Além disso, possuía um
cartão da direção regional que lhe dava o direito de requisitar ga-
solina em qualquer lugar. Isso, no momento, valia mais que um
carro cheio de dinheiro. Enquanto tivessem Baum na caravana,
não faltaria combustível. Assim pensavam todos.
— Vá até a frente e veja o que está acontecendo! — gritou-lhe
Paskoleit. — Você não é um figurão do Partido? Com certeza tem
alguém impedindo a passagem! Chute-o no traseiro!
Felix Baum partiu fazendo estrondo. Com sua motocicleta pas-
sava pelo engarrafamento, enfiando-se pelos carros encostados
uns nos outros e, após percorrer seis quilômetros, alcançou o cru-
zamento de Gross Jerutten. Ali viu um capitão da polícia militar
que, com mais quatro homens, interditava a estrada, para permi-
tir a passagem de uma longa coluna de soldados de Friedrichshof
para a estrada principal de Ortelsburg.
Veículos de abastecimento do Exército. Oficinas, uma padaria
de campanha, uma ferraria, furgões levando intendentes bem-
nutridos e envoltos em grossos sobretudos de pele de cordeiro, um
escritório volante, dez carros-rádio com oficiais graduados, atrás

30
destes mais caminhões com material de escritório e até uma ban-
da de música completa. Mas nenhuma ambulância, nenhum carro
de munição, nada de tropas cansadas, desgastadas e emaciadas
da frente de batalha.
Felix Baum ficou pasmado. Logo em seguida foi tomado de
uma fúria terrível. Talvez pela primeira vez na vida tivesse cora-
gem, ao invés de assumir posição de sentido e obedecer sem pen-
sar. Viu como os homens à frente de caravanas quilométricas de
refugiados confabulavam com o capitão na encruzilhada; campo-
neses de casacos compridos, anciãos e mulheres idosas gritavam.
Baum sabia que a cada minuto aumentava o número dos que fu-
giam dos russos e que, de todos os lados, os tanques soviéticos
avançavam sobre a fronteira.
Acelerou e foi parar a motocicleta na encruzilhada, a alguns
centímetros do capitão. Este, a cabeça vermelha de frio e de tanto
berrar, fitou Baum e gritou algo que se perdeu no barulho dos mo-
tores de uma nova coluna de abastecimento.
— Libere a estrada! — gritou Baum, de volta, e, para isso, teve
de se curvar para a frente, em direção ao capitão. — Lá atrás há
milhares de pessoas esperando...
— Primeiro as tropas! — respondeu, berrando, o capitão.
— Tropas? Onde? — gritou Baum. — Só intendentes de pança
cheia. Pagadores e comedores! Há por aqui algum soldado? Esses
encontram-se ali na fronteira, enquanto por aqui todos se põem a
correr! De casaco de pele! Com a gasolina de que os nossos panzer
estão precisando! Seus malandros!
— Vou prendê-lo!
O capitão da polícia militar levou a mão ao coldre. Estava pos-
sesso de raiva.
— Em nome do Füehrer...

31
— Seu Füehrer, mando-o à merda! — berrou Baum, em respos-
ta. — Eu sou o chefe político local, e, se um idiota como você pode
atirar, eu também posso!
Arrancou a pistola do bolso do sobretudo e foi mais rápido que
o outro, abrindo a tira de couro que fechava o coldre.
— Está maluco, homem?
O capitão olhou em volta, procurando seus quatro companhei-
ros. Mas estes haviam sumido de repente. Uma massa compacta
de gente decidida a tudo simplesmente o encobrira no momento
em que Baum, com sua intervenção, perdera o temor do uniforme.
Agora o cruzamento estava tomado pelos camponeses, surgiram
os bastões dos quatro guardas feridos, a estrada estava interdita-
da por uma fila cerrada de corpos e os sinais vermelhos piscavam.
Com um rangido parou o primeiro veículo que se atravessou ao
obstáculo. Era um caminhão-cozinha com um caldeirão fumegan-
te. Ao volante um intendente corpulento com cara de lua. Atrás,
junto ao caldeirão, no calorzinho gostoso, envoltos em grossos so-
bretudos, os cozinheiros. Um primeiro-sargento e dois oficiais su-
balternos. Depois freou um caminhão de material de escritório, a-
trás dele uma oficina... e mais e mais carros. Parecia que a Wehr-
macht alemã consistia, toda ela, só de veículos de abastecimento.
— Vou levá-lo à corte marcial! — berrava o capitão. — O se-
nhor está obstruindo o progresso de um Exército!
— Estou é salvando minha aldeia — disse Baum, de repente
muito calmo. Via que, finalmente, as caravanas de refugiados con-
seguiam mover-se de novo. As carroças dos camponeses com os
cavalos, os tratores, as vacas, o frete com camas, mesas, cômodas,
panelas, cestos e sacos, anciãos, crianças e mulheres arrastavam-
se aos poucos passando por ele. Encheu-se de felicidade. ‘‘Ainda
sirvo para alguma coisa’’, disse a si mesmo. ‘‘Talvez levem isso em

32
conta, uma boa ação contra cem discursos bestas que fiz pelo Par-
tido. Uma verdade contra mil mentiras.”
A longa fila do abastecimento começou a buzinar furiosamente.
Oficiais corriam para a frente e gritavam com os camponeses. Mas
estes eram prussianos orientais, de cabeça dura como o gelo que
cobria os lagos no inverno e resistentes como as árvores centená-
rias das extensas florestas que rodeiam a Masúria. Vozes não os
intimidavam, nem mesmo quando estas saíam de uniformes com
galões prateados nos ombros. Olhos fixos e apertados, olhavam pa-
ra os oficiais, e do fundo daquela parede humana lá na encruzilha-
da alguém disse, bem devagar, ao intendente:
— Sujeitinho, se não arredar daí, vou jogá-lo para os ares...
— Isto é uma revolução! — berrou o capitão, tornando a colo-
car a mão no coldre.
— Deixe estar, homenzinho... — disse, com calma, Baum.
— Seu traidor!
O capitão conseguira pegar a pistola. Mas não chegou a apon-
tá-la para Baum. Este último, com uma tranqüilidade que nem ele
próprio entendeu, atirou primeiro. O tiro acertou o capitão no bra-
ço direito, jogou-o para trás, fê-lo escorregar no solo coberto de ge-
lo e cair de joelhos. Olhava incrédulo para Felix Baum e, com a
mão esquerda, apertava o braço atingido. Por entre os dedos es-
corria sangue.
Baum não se incomodou mais com ele. Virou sua motocicleta e
voltou correndo ao longo da coluna. Três camponeses ergueram o
capitão, sustentaram-no e levaram-no da estrada para a cozinha
volante. O intendente que se encontrava na cabine do motorista
estava pálido e trêmulo quando um dos camponeses abriu a porta
com força.
— Cuidem dele — disse. — Um tiro da Pátria! Mas, também,

33
onde é que está a Pátria?
— Vocês enlouqueceram... — gaguejou o intendente.
— E vocês? Por que não estão lá no front, hein? Para onde que-
rem ir? Pôr-se em segurança, é? Mas primeiro os civis, meu cha-
pa! Lugar de soldado é na frente de combate.
Deixou o capitão em pé, encostado no carro, e voltou correndo
à encruzilhada. Ali confrontavam-se oficiais e camponeses... ho-
mens indefesos que deixavam passar suas mulheres e crianças,
netos e bisnetos, e homens de armas nas mãos que também que-
riam ir para o norte e o oeste.
No alto-falante de um rádio de pilha, no carro-escritório, soou a
voz do noticiário do governo alemão. Em edição extraordinária. No
mar do Norte, ataque a um comboio, afundamento de trezentas
mil toneladas. No oeste, revidado com êxito um ataque a oeste de
Estrasburgo. Na Hungria, investidas da sexta divisão SS de carros
blindados contra Budapeste. Mas nenhuma palavra sobre a Prús-
sia Oriental, nada sobre o Vístula, o Narev, o Nie-men e o Memel.
Só no finalzinho, de modo muito casual, uma frase: ‘‘Grupos ale-
mães travam uma luta amarga contra fortes contingentes russos
no arco do Vístula”.
— Não somos ninguém? — disse um velho e gigantesco cam-
ponês de barbas brancas, na primeira fila da parede humana da
encruzilhada. E perguntou: — Ouviu isso, major? Nada sobre nós!
Enquanto toda a região está na estrada. Podem atirar à vontade...
atrás de nós virão outros, e mais outros, até que sua munição a-
cabe... Nós vamos pra Danzig, e vocês não podem mais nos de-
ter...
As duas paredes permaneciam em pé. Os oficiais começaram a
confabular entre si. Um tenente apresentou uma proposta:
— Vocês estão divididos por aldeias — disse. — Muito bem fa-

34
çamos o seguinte: cada vez que tiver passado uma aldeia, será a
vez de uma de nossas colunas. Depois a próxima aldeia, depois
nós... e assim por diante. Hão de convir que é uma solução sensa-
ta.
Todos concordaram.
Passou a aldeia de Altkelbunken, em seguida o cruzamento foi
aberto a vinte viaturas militares. A estas seguiu-se a aldeia de
Krutinne. Atrás dela, duas oficinas e um caminhão de provisões.
Depois veio a aldeia de Adamsverdruss.
— Não podia ser melhor — disse vovô Jochen, satisfeito —, co-
mida com fartura diante de nós. Julius, diga ao padre para ficar
de olho! Já ouviu falar de piratas, garotão?
Paskoleit adivinhou o pensamento do velho e levou o dedo à
testa. Jochen Berrador deu um grito, mas a caravana avançava e
ele precisava cuidar dos cavalos. Grandes pedaços de gelo pendi-
am de suas crinas e pernas e dos pêlos de suas ventas.
A neve recomeçou a cair.

Seguiram, durante cinco dias, atrás da coluna de abastecimen-


to.
Em Allenstein nem conseguiram entrar. Estava isolada, uma
nova linha de frente formava-se ali, os russos avançavam mais
depressa do que se calculara. A caravana foi desviada, perto de
Alt-Maertinsdorf, para um caminho estreito que ia na direção de
Wartenburg. Já na região de Passenheim, grande parte dos refugi-
ados havia mudado o rumo, indo na direção de Bischofsburg. Em
direção ao norte, para Heilsberg, de lá para Heiligenbeil, passando
por Landsberg e Zinten. Para a laguna do Vístula, atravessando
para o Nehrung e continuando por aquela estreita língua de terra
rumo ao oeste, até a embocadura do Vístula, e por fim Danzig. Es-

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ta era a grande meta.
Também Adamsverdruss ficou indecisa ao chegar no cruza-
mento de Passenheim.
— Não! — disse Paskoleit, após uma breve troca de idéias. —
Não esta volta toda! Para Elbing pelo caminho mais rápido e de-
pois sempre em frente. Por que outra vez para o leste? Sabe-se lá
o que acontecerá em Koenigsberg?
— Lá os russos nunca chegarão! — exclamou Felix Baum.
— Já está começando! — berrou o avô Jochen. — Por que nin-
guém coloca uma mordaça neste focinho nazista?! Vamos é para
onde for a coluna de abastecimento.
— Ele só pensa em comer — gemeu Franz Busko, o aprendiz.
Em sua bicicleta fizera, durante os últimos cinco dias, algumas
excursões para a frente, bem como Baum que, com seu cartão,
conseguia entrar até em Allenstein. A administração distrital já
abandonara o local havia muito tempo. Só achou escritórios vazios
e muito papel queimado. No quarto do administrador distrital mo-
ravam três desalojados de algum regimento.
— Eles nos desviarão de nossa rota! Estão levando toda a co-
mida para as tropas no campo de batalha.
— Esses aí? Nunca!
Paskoleit lembrou-se do intendente gorducho do primeiro ca-
minhão.
— Eu sou a favor de alcançarmos Elbing!
O que Paskoleit dizia era sempre bom, todos sabiam. Por isto
mesmo o pessoal de Adamsverdruss permaneceu na estrada, dei-
xando Passenheim para trás.
Todas as noites e todas as manhãs o padre Heydicke celebrava
um breve culto religioso. Nessas horas Paskoleit encarregava-se de
dirigir o coche e Busko guiava o trator. Heydicke, em pé no teto de

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seu carro, seguro por seis mãos, percorria com o olhar a longa fila
de veículos e orava, abençoava as mulheres e as crianças, os anci-
ãos e os homens, dizendo no sétimo dia:
— Não os abandone, meu Deus. São gente boa: têm coragem e
resistência. Tire-os do inferno, eles não o merecem.
No dia 19 de janeiro de 1945 os russos esmagaram Tilsit e Vlo-
clavek. Em 20 de janeiro suas divisões blindadas já avançavam na
direção de Allenstein. Na Polônia, as tropas alemãs recuavam. Ca-
pitularam em Varsóvia em 17 de janeiro e em Lodz e Cracóvia no
dia 19. Os exércitos soviéticos espalhavam-se pelo vale do Vístula,
cortando a Prússia Oriental do Reich.
— Vamos perder a corrida — disse o padre Heydicke a Pasko-
leit, no meio da noite. Estavam sentados em volta de uma foguei-
ra. Duas horas de descanso, pois não se pode correr sem parar.
Os cavalos mal tinham forças para puxar os pesados carros. —
Faltam no máximo três dias para Allenstein cair. Se algum dia al-
cançarmos a costa, para onde iremos? Estamos ilhados. Ou será
que ainda poderemos conseguir um barco?
— A fé faz parte de seu trabalho, senhor padre — disse Pasko-
leit, o olhar fixo no fogo crepitante. — Só sei que chegaremos lá.
Não nos deixaremos abater, nós não! Não penso em outra possibi-
lidade! Espere só até chegarmos ao mar...

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CAPITULO 4

Dois dias mais tarde, as divisões soviéticas conquistaram Al-


lenstein. As vanguardas blindadas russas dividiram-se... Os sovié-
ticos levaram seus pesados veículos agora para Koenigsberg e El-
bing-Danzig, espalhando-se por uma terra cheia de neve e gelo,
inundada por um torrente de pessoas em fuga.
A Prússia Oriental ficou recortada. Pouco era o que sobrava da
resistência. As pessoas nas estradas e caminhos, as colunas de
veículos, os trecks, o medo, enfim, faziam parte daquele cenário
com tanques russos em todos os lugares; tais pessoas eram esma-
gadas, massacradas, socadas em covas nas ruas ou estradas, as
mulheres eram arrancadas dos carros ou arrastadas para fora das
casas e deixadas à mercê do ódio e do delírio da vitória.
Nas ruas da Prússia Oriental cadáveres jaziam à esquerda e à
direita, no meio da neve. Na maioria mulheres e crianças, pedras
congeladas nos destroços de seus carros esmagados, ou então dei-
tadas simplesmente como se a exaustão total as tivesse feito des-
moronar, sem permitir que sentissem a morte. Mais adiante um
amontoado de pessoas, ensangüentadas, fuziladas e apunhaladas.
Marcos deixados pelas tropas russas. Nas caravanas que ainda er-
ravam pelo interior dos cercos soviéticos, contavam-se fatos horri-
pilantes que se passavam em toda parte. Tropas siberianas teriam
pregado um padre vivo na porta de sua igreja. Numa aldeia, inva-
dida tão depressa que não houve tempo de evacuá-la, todas as

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mulheres, desde as de oitenta até uma criança de dez anos, foram
violadas uma a uma. Noutra aldeia, unidades tártaras haviam
simplificado as coisas fuzilando todos os homens na praça. Atro-
cidades e mais atrocidades... e a conquista da Prússia Oriental
apenas começava.
O treck de Adamsverdruss ainda não havia sofrido nada. Pare-
cia que o intendente lá no primeiro caminhão da coluna de abas-
tecimento tinha bom faro: tomava atalhos difíceis, porém inatingi-
dos, sempre rumo a Elbing. Mas, na grande encruzilhada junto à
estação ferroviária de Schlobitten, o treck parou. Parecia que todo
um exército alemão estava a caminho de Allenstein para a laguna
do Vístula. Havia um grande congestionamento nas estradas; o
caminho para Elbing estava tomado por regimentos de artilharia
e blindados. Só restava uma alternativa: ir mesmo para o norte,
passando por Braunsberg e beirando Passarge até a laguna.
O padre Heydicke e Paskoleit estavam de acordo, mas não a fi-
leira do abastecimento que os precedia. Esta ficou na estrada ru-
mo a Elbing, tentando integrar-se nas divisões militares.
— Não podemos permitir — disse vovô Jochen, quando foi de-
cidido que Adamsverdruss tomaria o caminho da laguna. — Não
podemos ficar sem provisões! Menino, temos de tomar uma provi-
dência!
— Está querendo assaltar a coluna inteira? — rosnou Pasko-
leit.
— Gente para isto não falta.
Jochen Kurowski olhou de esguelha na direção de Heydicke e
juntou as mãos sobre o ventre.
— Concentre-se e pense no céu, senhor padre... preciso discu-
tir algo com Julius.
A proposta de Kurowski era idiota, mas deveria salvar a vida da

39
família mais tarde.
— Não ouvi nada — disse Heydicke, depois — e também não
vejo nada. Não é bem um ato de devoção a Deus... Mas você tem
razão, Jochen: onde está Deus agora?
Durante a noite toda a coluna ainda estava parada, porque ha-
via tropas alemãs chegando de Allenstein e a polícia militar remo-
via do caminho qualquer coisa capaz de atrapalhar a passagem;
dos sete veículos de abastecimento desapareceram vinte caixotes
de enlatados, pão, manteiga, banha, óleo e lingüiça. Ninguém iria
perceber o desfalque entre os caixotes que se empilhavam até o te-
to dos caminhões. Transpirando de emoção, silenciosos e pare-
cendo sombras deslizando pela escuridão, Paskoleit, Busko e Felix
Baum carregavam os caixotes. A partir da nona caixa ainda se
juntou a eles o chefe dos camponeses, Lusken, que levava a para-
lítica Juliane Brakau em seu carro e que esperara ela adormecer
para poder deixá-la sozinha.
Enquanto isso, vovô Jochen distraía os ocupantes dos cami-
nhões contando piadas e passagens alegres de caçadas da Masú-
ria. Tinha um repertório inesgotável e, para molhar a goela, toma-
va sempre uns goles de aguardente. Quando o transporte das vin-
te caixas terminou, ele estava tão bêbado que precisou ser carre-
gado por Paskoleit.
Até o padre Heydicke ajudou. Para distrair a atenção dos ofici-
ais, jogou uma partida de skat com eles.
Seguiram viagem, finalmente, ao romper do dia. A coluna de
abastecimento continuou na direção de Elbing, o treck foi para o
norte, rumo a Braunsberg. Na boléia do coche, o avô Jochen olha-
va com tristeza a partida do caminhão cinza esverdeado.
— Lá se vai comida para um ano inteiro — disse. — Que pena,
mas que pena! Por que é que nenhum de vocês não pensou antes

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em garantir um carregamento para nós? Precisamos de armários
de cozinha, hein? De camas? Cômodas? Poltronas? Bancos? Pre-
cisamos é de comida... para sair fumaça de nossos fogões! Quem
caga bem também trabalha bem. Homens, deveríamos ter transfe-
rido os caminhões inteiros!
O frio aumentava. A avó Berta enfiou-se bem no fundo da pa-
lha e não mais se mexeu. Estava tão bem escondida que vovô Jo-
chen parou, no início da tarde, e berrou:
— Alto lá! Perdi minha Berta. A pilantrona deve ter caído do
carro! Vamos voltar!
Mas voltar era impossível. Só se podia seguir em frente. Felix
Baum e Busko, de moto e bicicleta respectivamente, fizeram uma
busca no caminho percorrido, mas tudo em vão.
A caravana estava num impasse.
— Sem minha Berta não continuo! — berrava Jochen Kurows-
ki. — Passamos cinqüenta e um anos juntos!
— Quem sabe ela se foi com a coluna de provisões? — indagou
Paskoleit. — Você não lhe dizia sempre: a comida é o mais impor-
tante?
— Para trás! — tornou a gritar vovô Jochen.
Desesperado, procurou mais uma vez no enorme veículo. E,
mais uma vez, Felix Baum voltou correndo até o cruzamento junto
à estação ferroviária de Schlobitten. Acabara de sair quando Ku-
rowski achou sua mulher. Na palha, bem lá embaixo, enrolada
num cobertor e toda encolhida sob a mesa da cozinha. Como con-
seguia respirar era um mistério, mas o fato é que dormia um sono
profundo e feliz no calor conquistado. Ainda por cima era meio
surda.
— Aí está ela — disse o avô Jochen. — Não quero nem pensar
em perder minha velha.

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Havia tanta ternura em sua voz que Paskoleit desistiu de cha-
mar Kurowski de idiota. Tornou a colocar o cobertor e a palha so-
bre a avó Berta e fez um sinal ao padre Heydicke no primeiro carro.
— Vamos em frente!
A fila de carros, cavalos, bois e vacas voltou a movimentar-se.
Nenhuma daquelas pessoas que fugiam do aniquilamento imagi-
nava que, não muito distante delas, já chegavam os russos, que
elas haviam sido separadas de sua saudosa Alemanha e que ca-
sualmente viajavam por uma estreita, ainda não conquistada e li-
vre faixa de terra. A sua esquerda e a sua direita ardiam aldeias
em fogo, morria gente nas ruas, pessoas eram reunidas como se
fossem gado, correntes de tanques rolavam por sobre corpos con-
gelados, os T34 socavam carros em fossos, a Prússia Oriental es-
vaía-se em fogo, sangue e lágrimas.
Mas a aldeia de Adamsverdruss prosseguia como protegida pela
mão de Deus. Levavam consigo vacas, galinhas e porcos abatidos e
bem conservados no gelo, vinte caixotes contendo conservas e lin-
güiças, barris de manteiga e banha, sacos de açúcar, farinha e a-
veia. A conselho de Paskoleit, haviam feito suas provisões.
— Gente, como vocês trapacearam, quando eu era chefe políti-
co — repetiu Baum várias vezes —, durante meses a fio.
— Anos a fio, sua besta! — Paskoleit soltou uma gargalhada
sombria. — Há dois anos que abatemos e estocamos clandestina-
mente! Terra fronteiriça, terra insegura... isto já nos ensinaram na
escola.
E para Erna Kurowski, que dirigia como um homem o coche
puxado por cavalos e que também enfiara os filhos na palha como
filhotes de cachorro no início da geada impiedosa, ele disse:
— Não conte nada a ninguém, mas eu não acredito que possa-
mos ficar todos juntos. Chegará o dia em que cada um terá de

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cuidar de si. Mas nós, Erna, nós, os Kurowski e os Paskoleit, per-
maneceremos unidos. Senão teriam de cortar cada um de nós co-
mo galhos de uma árvore!
Utilizando estradas secundárias, passaram por Neumarck, E-
bersbach, Tiedmannsdorf, Schalmey e, atravessando um campo
para evitar novas caravanas que bloqueavam a estrada, chegaram
a Pettelkau. Aldeias em fuga, como Adamsverdruss, há quinze di-
as. Gente impelida pelo medo.
Pouco antes de chegarem a Braunsberg repetiu-se a cena de
alguns dias atrás: no cruzamento das duas estradas um homem,
desta vez usando um uniforme de chefe político, comandava o trá-
fego. De Mehlsack vinha rolando uma fila de carros particulares
que afastava os refugiados para a beira da estrada, e arremetia le-
vantando a neve. Não se podiam ignorar os uniformes amarelos
atrás das vidraças embaçadas.
— Amarelos como cocô de neném — comentou vovô Jochen.
— Dê uma olhada! — Foi tudo que Paskoleit falou.
Felix Baum disparou. Freou a motocicleta diante do homem no
cruzamento e ergueu a mão num gesto de saudação.
— Sou o chefe político Baum, de Adamsverdruss! — exclamou.
— Heil Hitler, companheiro!
Dito isto, desfechou uma violenta bofetada no rosto espantado
do homem, que caiu rolando na neve. Busko mandou atravessar
um carro no cruzamento, e Adamsverdruss ganhou passagem li-
vre.
— O Felix está ficando cada vez mais útil — reconheceu Pasko-
leit. — Pena que com alguns anos de atraso...
Entraram em Braunsberg, sendo sugados por centenas de car-
roças e milhares de pessoas que esperavam. Vovô Jochen, Pasko-
leit, o padre Heydicke, Busko e Lusken colhiam informações. O

43
chefe político Baum foi fazendo perguntas, até encontrar um com-
panheiro ainda ativo do Partido... Na Câmara Municipal de
Braunsberg ainda funcionava um posto da NSV, com o diretor da
Secretaria de Finanças, dois homens e alguns milhares de cupons
para aquisição de alimentos, que, no momento, tinham menos va-
lor que papel higiênico. Estavam todos sem saber o que fazer.
Braunsberg parecia ser a estação terminal.
— E verdade — disse o padre três horas depois, quando esta-
vam novamente reunidos. — Koenigsberg está cercada. Os russos
já se instalaram em Pillau. Travam-se batalhas por Marienburg.
Grupos blindados russos investem sobre Danzig e a Pomerânia.
Está tudo fechado! Para onde iremos agora?
— Para a laguna! — respondeu Paskoleit.
— E depois?
— Para o Nehrung.
— Não podemos caminhar sobre as águas como Jesus.
— Mas nossos veículos podem passar sobre o gelo. A laguna
está congelada.
— Impossível... — disse Heydicke baixinho, olhando fixamente
para Paskoleit. — Sobre o gelo seremos um alvo perfeito. Algumas
bombas... e toda Adamsverdruss morre afogada...
— Se ficarmos, seremos esmagados pelos russos.
— Estamos no fim, Julius.
— Nós nunca estamos no fim, senhor padre.
Tirou da boca o cigarro fumado até a metade e ofereceu-o a
Heydicke. Este aceitou e continuou a fumá-lo.
— Não nos deixaremos abater... este é o melhor sermão, senhor
padre.

Permaneceram dois dias em Braunsberg, até se formarem três

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grandes trecks. Juntaram-se a uma coluna que pretendia ir a Tol-
kemit, passando por Frauenberg, para atravessar a laguna. Era ali
que a camada de gelo costumava ser mais espessa, e nos invernos
muito rigorosos podia-se atravessar de trenó de Tolkemit até a ci-
dade de veraneio de Kahlberg, no Nehrung.
Quando Heydicke, Paskoleit e vovô Jochen foram se apresentar
ao líder da caravana, espantaram-se ao ver que era um jovem
primeiro-tenente. Levava, ao pescoço, a Cruz da Ordem dos Cava-
leiros. Tinha cabelo louro, um rosto jovial, aberto e alegre, grandes
olhos azuis e irradiava, apesar de sua juventude, muita calma e
principalmente coragem.
— Quantos carros restam? — perguntou sem rodeios.
— Nove... — respondeu Heydicke, deprimido.
Adamsverdruss estava destroçada. Um grupo quis ficar aguar-
dando os acontecimentos com Johannes Lusken, em Braunsberg.
Juliane Brakau contraíra pneumonia e ardia em febre. Ficaram
catorze carros levando, na maioria, pessoas idosas. Simplesmente
desistiram. Foi um momento difícil, e o padre deu a bênção aos
velhos dispostos a morrerem no solo pátrio.
Um segundo grupo queria voltar para Schillgehnen e dali tomar
a auto-estrada do Reich e seguir para Elbing. Diziam que de El-
bing ainda saíam trens para o Reich. “Você e seu mar!”, vocifera-
vam contra Paskoleit. “Foi um erro que nos custará a vida! Elbing,
esta era a direção certa! Para os diabos com você!”
Adamsverdruss despedaçava-se. O que levara séculos para se
solidificar, explodia em medo, pavor, insegurança e desespero. As-
sim, eram apenas nove os carros restantes: a família Kurowski e
Paskoleit, o padre Heydicke, Franz Busko, Felix Baum, três vizi-
nhos de Paskoleit e uma mulher jovem com uma criança de colo,
que só chegara a Adamsverdruss oito meses atrás e era a esposa

45
do proprietário de terras Rambsen. Gottfried Rambsen encontra-
va-se, como tenente, em algum lugar do front. Conhecia-se pouco
a jovem esposa, agora ela era a nona da fila. Tinha uma carrua-
gem leve do tipo usado em caçadas, puxada por um único cavalo.
Era um garanhão de raça, um trakehner. Chamava-se Verão Dou-
rado.
— É meu único capital — disse Julia Rambsen a Paskoleit —,
mas com ele posso começar tudo de novo em qualquer lugar...
Ao anoitecer o avô Jochen foi ter, mais uma vez, com o jovem
primeiro-tenente com a Cruz da Ordem dos Cavaleiros.
— Por que não está combatendo? — perguntou diretamente.
O jovem oficial esboçou um débil sorriso.
— Talvez aqui eu possa salvar quatrocentas mulheres e crian-
ças... Do outro lado — acenou com a cabeça para longe —, mais
nada. O que vale mais?
— Estou do seu lado, meu jovem — disse vovô Jochen, com
firmeza. — Poderá merecer pela segunda vez a Cruz dos Cavaleiros
que carrega em seu pescoço.
De noite o treck partiu rumo à laguna do Vístula.
Pela manhã, por volta de sete horas — ainda estava escuro —,
vieram os aviões russos. Eram em número de três os pássaros de
aço ruidosos, lentos, bem blindados. Mas voavam baixo, tão baixo
que a gente pensava poder pegá-los; atiravam com pesadíssimas
metralhadoras sobre a caravana e jogavam pequenas bombas de
efeito altamente destruidor.
A primeira pessoa a morrer foi a avó Berta, em seu monte de
cobertores, utensílios de cozinha e palha.

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CAPÍTULO 5

A princípio ninguém havia percebido. Quando os facínoras já ha-


viam desaparecido no céu cinza-chumbo, pesado de neve, a carava-
na emergiu das valas debaixo dos carros onde se escondera; o avô
Jochen saiu correndo para sua carroça e deu um soco na mesa de
cozinha sob a qual a avó estava deitada com sua palha e cobertores.
— Saia daí! — berrou Joachim Kurowski. — Meu Deus, como é
surda a velha! Quando estivermos no oeste, mandarei desentupir
seus ouvidos! Berta! Acorde!
Só então viu, no meio do tampo da mesa, o buraco do tiro. Um
furo lascado, único, mas exatamente no lugar em que Berta Ku-
rowski estava deitada na palha. Um tiro que, com certeza, a atin-
gira por acaso, empobrecendo o mundo de Kurowski.
Com as mãos trêmulas foi jogando longe a palha.
— Julius — berrava —, senhor padre! Senhor tenente! Berta...
Berta...
Quando acabou a palha e o corpo enrolado nos cobertores ficou
visível, Jochen Kurowski não podia agüentar mais. Lívido, ficou en-
costado no carro enquanto Paskoleit desenrolava a avó Berta de
seu casulo tão quentinho. A bala da pesada metralhadora do avião
atingira-a pelas costas, bem no coração. Não sentira a morte, talvez
apenas um golpe rápido e quente que apagou, de súbito, toda a
consciência. O padre Heydicke tornou a puxar a coberta sobre a-
quele rosto tranqüilo e relaxado, ainda corado pelo calor, confortan-
te. O primeiro-tenente da Cruz da Ordem dos Cavaleiros pôs o bra-

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ço nos ombros de Kurowski. E de repente vovô Jochen encostou a
cabeça no ombro do oficial e chorou, o corpo sacudido pelos solu-
ços. Era a primeira vez que a família presenciava o avô chorar —
até então pensava que ele nem fosse capaz disso.
— Minha Berta... — balbuciava, e era, agora, a voz de um anci-
ão transformada novamente nas lamúrias de uma criança. — Ber-
ta, minha boa velha...
— Temos quarenta e nove mortos na caravana disse o primei-
ro-tenente. Era para servir de consolo — Ela não está sozinha.
Uma guerra não destrói pessoas isoladas... é um verdadeiro as-
sassinato em massa — disse. — E ainda não sabemos como con-
tinuará, vovô. — Olhou na direção da laguna congelada que pre-
tendiam atravessar dentro de uma hora. — Talvez ela tenha esco-
lhido a melhor maneira de sair de toda esta loucura.
Heydicke rezou uma oração. Paskoleit e Busko tiraram a avó
Berta do carro, enrolaram-na em outro cobertor e tentaram sair
com ela sem serem vistos. Mas Kurowski percebeu tudo, apesar de
sua dor.
— Parem — berrou, soltando-se do jovem primeiro-tenente. —
Para onde a estão levando? Parem aí! Eu mesmo enterrarei minha
Berta! — Agarrou-se a Paskoleit e disse: — Quer que a jogue fora
simplesmente como um pedaço de carvão apodrecido? Você não
tem coração, seu patife? Minha Berta...
— O solo está duro de gelo — disse, com suavidade, Paskoleit.
— Não se pode cavar nem dez centímetros! Vovô, eu sei que é cru-
el, mas há milhares deitados nas valas das estradas; temos de
juntar vovó a eles!
— Nunca! — gritou Kurowski. — Nunca! Senão eu me deitarei
ao lado dela! Passem-me uma pá! Uma enxada! Berta terá uma
sepultura!

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— Precisamos continuar!
O primeiro-tenente passou os olhos pelo treck. Os outros mor-
tos pareciam marcos à direita e à esquerda da estrada. Seus pa-
rentes e amigos ajoelhavam-se diante deles e o padre Heydicke ia
de um em um, dava a bênção, orava, fazia o sinal-da-cruz.
— Senhor que estais no céu — disse quarenta e oito vezes —,
eles mereceram Vossa misericórdia.
Depois aproximou-se de Berta Kurowski, que vovô Jochen car-
regava no colo como uma criança.
— Ajude, senhor padre — gaguejou Kurowski —, estão queren-
do deitá-la na estrada. Minha Berta... Tentemos cavar.
Tentaram. Enquanto a caravana prosseguia com vagar, Ku-
rowski, Busko, o chefe político Baum e mais um vizinho dos Ku-
rowski ficaram para trás, golpeando a terra congelada com duas
picaretas e três pás. Paskoleit enganara-se. Não conseguiram che-
gar nem a dez centímetros de profundidade, tendo de desistir
quando a cova não tinha mais que cinco centímetros. O solo esta-
va mais duro que pedra, o gelo transformara a terra em aço que
repelia as ferramentas. Jochen Kurowski deixou-se cair de joelhos
ao lado de sua mulher e inclinou-se sobre ela.
— Berta — disse com uma ternura que fez Paskoleit voltar-se
para o lado para não cair em prantos. — Berta, minha velha, que-
rida malandrona... não dá. Você vai ter de ficar deitada na estra-
da. Mas uma coisa eu lhe prometo, Berta.,. Se eu sobreviver a esta
guerra, darei um soco na cara de cada um que vier me falar de he-
roísmo, de soldados e de honra. Berta... — Abraçou o pequeno
corpo enrolado no cobertor —, adeus. Lá em cima nos veremos de
novo, se é que me deixarão entrar..
Deitaram a avó Berta na beira da estrada, cobriram-na de ne-
ve, rezaram e rodearam Jochen Kurowski. Foram levando-o embo-

49
ra dali e Paskoleit, com a voz rude, disse:
— Não olhe para trás, vovô! Com mil demônios, lá está nosso
treck, nossa Adamsverdruss. O carro com Erna e as crianças, os
filhos de Ewald, vovô! De seu filho! Quando Ewald voltar, diremos:
escute, Ewald, aqui estão Erna e seus filhos! Conseguimos trazê-
los sãos e salvos. Os Kurowski e os Paskoleit não desistem. Ja-
mais! Venha, vovô...
Jochen Kurowski concordou com um movimento de cabeça.
Não olhou para trás; cambaleando entre Paskoleit e Busko, foi se-
guindo a caravana; Felix Baum voltou, pegou a picareta, arrancou
o varal de uma carruagem quebrada e o enfiou no monte de neve
atrás da cabeça de Berta. Uma cruz enorme, rachada, bizarra.
Dedos querendo chegar até Deus. Um grito e uma advertência.
Depois montou em sua motocicleta e seguiu a coluna.

A laguna estava coberta por uma camada de gelo. Haviam es-


colhido o lugar certo, o gelo parecia ter metros de espessura. Com
muito cuidado, a caravana movia-se sobre a superfície lisa. cam-
poneses envolveram as patas dos cavalos e bois com sacos para
que não escorregassem; era um caminho penoso, mas aos poucos
ia-se avançando. Só os veículos motorizados deslizavam irremedi-
avelmente, era impossível enrolar sacos nas rodas. Felix Baum,
com sua motocicleta, assumiu a ponta e a missão de reconhecer o
terreno. Escorregava pela laguna, em geral com os pés no gelo pa-
ra segurar o veículo, e trazia as últimas informações. Heydicke e o
primeiro-tenente, no primeiro carro, não podiam ver grande coisa.
Cinzentos eram o céu, o ar, o gelo, a luz do dia. Entrava-se no va-
zio com a fé de chegar a algum lugar do outro lado, pelo Nehrung,
essa estreita faixa de terra pela qual se tentava ir para oeste, para
Danzig.

50
No segundo dia, Felix Baum retornou de uma longa expedição.
O treck tivera de pernoitar no meio do gelo, era impossível conti-
nuar. Os cavalos tropeçavam em suas próprias pernas, com o sal-
do de três carroças caídas e quatro rodas quebradas. Foi necessá-
rio abandonar os carros e transferir sua carga para outros veícu-
los. Apenas o essencial: algumas camas, travesseiros, cobertores,
panelas, um fogão. E era só!
— Se continuarmos nesta direção — noticiou Baum —, alcan-
çaremos o Nehrung perto de Proebbernau. Mas há uma outra ca-
ravana de Kahlberg a caminho, e de Elbing vem todo um exército.
Toda a região de Elbing está em movimento. Mas o pior é que os
russos já estão à frente de Danzig!
— Então estamos isolados.
O jovem primeiro-tenente examinou o mapa sobre seus joelhos.
— Russos em toda nossa volta. Só o mar Báltico ainda está li-
vre.
— Devemos ir para o oeste a nado? — perguntou Jochen Ku-
rowski baixinho. — Voltarei para junto de minha Berta e ficarei
deitado a seu lado.
— Nós passaremos, com mil diabos! — Paskoleit deu um soco
no lado da carroça. — O que acha da embocadura do Vístula,
primeiro-tenente?
— Também estava pensando nisso. Mas teremos de ser mais
rápidos que os tanques soviéticos. Se tivermos muitíssima sorte, a
embocadura do Vístula só está coberta de gelo movediço e pode-
remos achar alguns barcos.
Dobrou o mapa — era por demais desanimador ver a situação
impressa no papel.
— Vamos embora, pessoal! Para o Vistula! Só chegando lá po-
deremos dizer: está no papo! Ou não!

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O treck de Adamsverdruss prosseguiu. Sete carroças foram
deixadas na laguna. A ordem era só levar bagagem leve. A vida é
mais importante que uma geladeira ou um fogão limpo e brilhan-
te. Precisavam se apressar.
Por todos os lados as divisões soviéticas comprimiam a Prússia
Oriental. Koenigsberg estava cercada, ao longo de centenas de qui-
lômetros aldeias ardiam em chamas, as atrocidades elevavam-se,
mulheres eram caçadas. O famoso poeta russo Ilya Ehrenburg ex-
cedia-se em seus apelos às tropas soviéticas para que aniquilas-
sem tudo que fosse alemão.
A caravana realmente alcançou o Nehrung junto a Proebber-
nau. Dali foi para o oeste passando por Vogelsang, Bodenwinkel,
Stutthof, até Steegen. Ali a estrada de Elbing cruzava a de Tiege-
nhof e o Vístula. A grande caravana absorveu Adamsverdruss. Mi-
lhares de pessoas eram impelidas para diante por uma única fra-
se, um boato que todos aceitavam como verdadeiro porque, para
eles, significava a vida: em Nickelswalde, na embocadura do Vístu-
la, ainda se encontravam três cargueiros.
Deus do céu — três embarcações!
A caravana ia prosseguindo lentamente até alcançar o Vístula.
Nela havia uma tropa alemã intacta a nível de regimento, com um
comando completo, que dera o azar de perder sua divisão Os rus-
sos foram mais rápidos. Cercaram a divisão, mas o comando esta-
va fora. Agora este também se dirigia ao Vístula, já que não tinha
sentido atacar os T34 com um bando de oficiais, escreventes e
uma corte marcial ambulante.
Mas o serviço militar cotidiano, esse obstinado espírito prussi-
ano de quartel, florescia também agora na fase final. Todas as
manhãs havia chamada da tropa, as companhias apresentavam se
em posição de sentido. Houve um dia de descanso em Pasewark,

52
em que dois comandantes chegaram a organizar exercícios de tiro
e uma inspeção das botas.
Também aconteceu em Pasewark que um juiz de campanha,
deixando passar por ele uma parte do treck, avistou o primeiro-
tenente da Cruz da Ordem dos Cavaleiros sentado na boléia do
coche do padre Heydicke. Olhou para o jovem oficial, acenou e gri-
tou:
— Venha até aqui!
O primeiro-tenente saltou da boléia. Paskoleit, o próximo a
passar, ainda ouviu o grito do juiz: “Como foi que disse? Onde es-
tá sua tropa?! Seu cachorro miserável! Venha comigo!”; depois viu
ambos entrarem num caminhão e irem para a frente. Paskoleit jo-
gou as rédeas para Busko e correu para junto de Heydicke.
— Senhor padre! — gritou. — Estão tramando alguma coisa!
Levaram nosso primeiro-tenente! Senhor padre! Ajude! Eu tomo
conta de seu carro!
O padre saltou da boléia, montou na garupa de Felix Baum e
os dois foram correndo atrás do caminhão. Voltaram ao anoitecer.
Todos viram em seu olhar que algo terrível acontecera. Baum tirou
do bolso o livro do Partido e rasgou-o.
— Eles o condenaram — disse Heydicke, baixinho — numa ver-
dadeira audiência presidida pelo juiz de campanha, dr. Eberhard
Bollow. Por deserção e covardia frente ao inimigo. Foi condenado à
morte. Tentei defendê-lo, expulsaram-me, simplesmente. Uma hora
mais tarde eles o enforcaram. Está pendurado numa árvore na bei-
ra da estrada, com a Cruz dos Cavaleiros no pescoço...
— Dr. Eberhard Bollow — disse, alto, o avô Jochen.
Tirando um caderno do bolso, arrancou algumas folhas, divi-
diu-as em nove tiras nas quais escreveu nove vezes: Dr. E. Bollow.
Distribuiu as tiras de papel entre Paskoleit, Baum, Busko, Hey-

53
dicke, Erna, as crianças e ficou com uma para si próprio.
— É para não esquecerem nunca este nome! — disse, em tom
ameaçador. — Este papelzinho é mais importante que qualquer
dinheiro! Não esqueçam nunca! Ainda vamos precisar do nome do
dr. Bollow!
Prosseguiram viagem. Após quatro horas passaram pela árvore
da qual pendia o jovem primeiro-tenente. O pessoal de Adamsver-
druss colocou as mãos na cabeça em sinal de saudação; Paskoleit
foi até lá e apertou a mão gelada do morto. Heydicke abençoou-o.
Vovô Jochen berrava:
— Meu garoto, pensaremos sempre em você! — E mostrou o
morto às crianças. — É ele! E seu assassino chama-se dr. Bollow!
Nunca se esqueçam disto!
Durante a noite, uma noite muito clara e de muito frio, chega-
ram a Nickelswalde, no Vístula.
Sobre a água cheia de gelo movediço havia mesmo três embar-
cações, guardadas por uma corrente tripla de soldados com pisto-
las automáticas carregadas e apontadas para baixo.
A situação era claríssima: os cargueiros estavam prontos a aco-
lher os refugiados, mas só mulheres e crianças. Os homens teriam
de aguardar para ver se ainda sobraria lugar para eles. Neste ca-
so, subiriam a bordo primeiro os velhos.
— Eu fico — disse o avô Jochen —, mas vocês — apontou para
Erna e as crianças —, vocês embarcam! Maldição, não proteste,
Erna, pense em Ewald!
Uma fila de oficiais e soldados armados até os dentes deixou
passar as mulheres e as crianças para subirem a bordo. Era uma
despedida para sempre, a maioria sabia disso em seu íntimo. Fi-
caram em terra as carroças, todos os míseros haveres que haviam
conseguido salvar com o treck. Só foi permitido levar o que se pu-

54
desse carregar, e a maior parte das mulheres já tinha seus filhos
no colo. Nas costas carregavam mochilas, cobertas enroladas, sa-
colas de roupa, alguma coisa para comer. Embarcavam chorando,
enquanto os homens davam adeus com os olhos ardendo e os
semblantes tristes. De manhã deixaram o avô Jochen subir a bor-
do. Ele resistiu, mas Paskoleit fez Busko carregar o velho, e uma
hora mais tarde permitiram que também ele embarcasse. Um ho-
mem com uma perna de pau, assim deliberou a comissão de ofici-
ais, não está inteiramente apto para o serviço militar.
— Agora estamos todos juntos outra vez — disse vovô Jochen,
abraçando Paskoleit. — O que você conseguiu trazer?
— Só as ferramentas de sapateiro.
— É o bastante. Mesmo depois da guerra ninguém vai querer
andar por aí de pé no chão.
Acima deles tremulava a bandeira da Cruz Vermelha. Fora has-
teada no mastro principal. E sob a bandeira encontrava-se um
homem — ninguém sabia como conseguira chegar a bordo, mas lá
estava ele.
O juiz de campanha dr. Eberhard Bollow.

55
CAPITULO 6

Chegou uma nova caravana da direção de Marienburg, cansa-


da, no fim de suas forças, saindo de uma gélida jornada, e a fila
de soldados deixou passar mais mulheres e crianças para bordo.
Alguns oficiais iam de um lado a outro e gritavam aos homens que
já haviam embarcado:
— Se não houver lugar suficiente, vocês terão de descer! En-
tendido?!
— Entendido! — respondeu, berrando, o avô Jochen. — Mas
então descem todos!
Olhou na direção do dr. Bollow, que permanecia sob a bandeira
como se tivesse de montar guarda de honra.
— Eu lhe direi pessoalmente! — rosnou Kurowski.
Mas Paskoleit segurou-o pela manga.
— Está maluco? — chiou. — Você quer ficar sem cabeça?
— Por causa daquele ali? — O avô Jochen riu ameaçadora-
mente. — Se eu respirar fundo, ele ficará pendurado sob meu nariz!
Soltou-se e foi, com passos pesados, para junto do dr. Bollow.
— Que desçam todos os homens! — berrou Kurowski. — Estão
chegando mais mulheres!
Confuso, o juiz de campanha fitou o grande velho de barbas re-
voltas.
— O que deseja? — perguntou, bastante inseguro.
— Lugar para as mulheres! O que está fazendo aqui, hein?

56
— Estou aqui para manter a ordem!
O dr. Bollow empertigou-se. Levantou a gola de seu abrigo de
pele de cordeiro e passou por Kurowski. Pouco depois ouviu-se
sua voz aguda:
— Todos os homens até cinqüenta anos reunidos na ponte! Fa-
zer contagem! Para cada mulher descem dois homens!
— Aquele porco! — disse o avô Jochen, num tom amargo. Juli-
us, que enorme porcaria! Se ele sobreviver a guerra, o padre Hey-
dicke terá de me catequizar de novo. Não estarei mais acreditando
em Deus.
Por volta de meio-dia recolheram-se as amarras; as embarca-
ções estavam superlotadas. Embora se soubesse que havia mais
caravanas grandes chegando de todas as direções, não tinha mais
sentido nenhum esperar por elas. Diziam que no mar Báltico
submarinos e caça-minas bombardeavam tudo que largasse da
costa alemã. Ninguém desejava correr o risco de sacrificar mais
estes navios completamente lotados.
Os soldados e os homens que ficaram, na maioria camponeses
e operários de empresas outrora muito importantes para a guerra,
mas que já haviam sido tomadas há muito tempo pelas divisões
russas, faziam gestos de adeus para as três embarcações que des-
ciam vagarosamente pela embocadura do Vístula para o mar aber-
to. Nos mastros tremulavam as bandeiras da Cruz Vermelha, e
também nos telhados sobre os lemes reluzia o símbolo internacio-
nal. Era aqui que os mais inocentes e os mais atingidos pela guer-
ra tentavam reencontrar sua vida: mulheres, crianças e velhos,
despatriados a partir daquele minuto, pobres miseráveis, restos do
naufrágio das grandes batalhas, sobreviventes com a chance de
morrer de fome em algum lugar ou de colidir, fora no mar Báltico,
com um torpedo russo. Porque até a Cruz Vermelha já perdera sua

57
imunidade. A ordem era uma só: destruir! aniquilar!
Quando a costa se diluiu na cortina de neve, Paskoleit e o avô
Jochen foram dar uma volta pelo barco a fim de verificar quantas
pessoas de Adamsverdruss conseguiram se salvar. O primeiro que
viram foi o juiz de campanha, o dr. Bollow. Sentado confortavel-
mente na cabine do capitão, fumava um charuto.
— Ele vai se salvar — disse Kurowski num tom de voz que fez
com que Paskoleit sentisse um arrepio. — Um dia ainda cairá em
nossas mãos. Enforcou meu garotão! O que teria sido de nós sem
o primeiro-tenente?
Em meio à massa de refugiados reencontraram Júlia Rambsen,
a jovem fazendeira, com seu bebê.
— Lá se foi o Verão Dourado, seu garanhão trakehner — disse
Paskoleit — Seu único capital.
Júlia Rambsen apenas sorriu.
— Ele está lá embaixo, no compartimento de carga. Vai conos-
co.
— Como fez para conseguir isso? .
— Um dos oficiais costuma participar de torneios hípicos. Que
sorte!
O sorriso dela era como o sol aquecendo a tarde gelada.
Também o padre Heydicke estava a bordo e, sentado num can-
to, viram até Felix Baum, o chefe político. Esboçou um sorriso ma-
roto quando Kurowski e Paskoleit pararam diante dele, sem fala, e
mostrou a perna direita. Tinha uma tala e estava toda enfaixada.
— Quando aconteceu isso? — perguntou o avô Jochen.
— Nada. Eu é que fiz estas ataduras. Os feridos podem embar-
car.
— Seu pilantra desgraçado — disse Paskoleit, baixinho. — Se
alguém descobrir!

58
— Eu queria ficar com vocês! Maldição, poderá chegar o dia em
que precisaremos uns dos outros. A paz vai ser terrível, podem es-
crever. E, mesmo que eu não possua nada, pelo menos sei botar a
boca no mundo!
— Tem razão — disse, persuadido, o avô Jochen —, saber botar
a boca no mundo sempre foi útil na Alemanha! Fique em forma,
Felix...
Pesados, devagar, as máquinas trabalhando com esforço, os três
navios cruzavam o mar Báltico. Mantinham-se perto da costa, em
volta da península Hela, às vezes tão perto que, em dias claros, po-
diam-se ver os clarões do fogo e ouvir o troar surdo que o vento tra-
zia. Os russos eram velozes; abriram a Alemanha como uma lata de
conservas. Suas divisões blindadas eram os abridores de lata.
Perto de Stolpmuende juntaram-se a eles duas embarcações da
guarda-costeira, atrás de Ruegenwalde veio um caça-minas... Co-
mo um comboio, a pequena coluna sulcava o mar gelado em bus-
ca da liberdade. O padre Heydicke orava rodos os dias numa es-
pécie de serviço religioso de bordo.
— Deus, deixe-nos escapar. Cegue os submarinos. Coloque ne-
blina entre nós e os russos. Meu Deus, proteja-nos...
Orações para nunca serem esquecidas.
Navegaram durante catorze dias pelo mar Báltico sem que avis-
tassem um navio inimigo. Três vezes o comboio foi sobrevoado por
aviões de guerra soviéticos, mas eles não atacaram. Vinham de
terra e, pelo jeito, haviam gasto toda a sua munição.
O telégrafo funcionava sem interrupção na cabine de rádio. Dos
principais portos nos quais pretendiam desembarcar os refugia-
dos, chegavam más notícias. Kolberg caía fora... os russos apro-
ximavam-se. Em Stettin não era possível aportar, estava superlo-
tada e havia navios de guerra preparando-se para o combate em

59
terra. Em Greifswald não havia possibilidade, mas Stralsund esta-
va disposta a descarregar os navios. Nas plataformas da estação
ferroviária esperavam centenas de vagões.
— Nenhum russo chegará a Stralsund — disse vovô Jochen lo-
go que a notícia percorreu o navio. — Lá, estou certo, os ingleses
chegarão primeiro.
Após três semanas de medo e de rezas alcançaram Stralsund.
Fazia um dia claro, frio e ensolarado quando os navios saudaram a
cidade e a salvação com os gritos de suas sirenes. Erna Kurowski,
com os filhos, em pé na amurada do navio, olhava para aquela ter-
ra que também era a Alemanha, mas tão diferente da Prússia Ori-
ental. Parecia-lhe tão distante e desconhecida como talvez a África
ou a América, lugares de que lhe falavam lá em Adamsverdruss.
— Tenho medo, Julius — disse Paskoleit. — Estamos caindo
sobre esta gente como gafanhotos, e é assim que seremos trata-
dos.
— Não em se tratando de um sapateiro!
Paskoleit, sorrindo abertamente, bateu em sua mochila que
continha as ferramentas.
— Uma sola debaixo do pé sempre deu para sustentar um ho-
mem. Erna, qual é mesmo nosso lema?
— Não nos deixaremos abater! — disseram, em coro, Erna e as
crianças.
Era um bom lema, mas no fundo do coração ainda permanecia
uma pontinha de medo.
Ao meio-dia desembarcaram dois mil, trezentos e quarenta e
nove mulheres e crianças, anciões e feridos. Mais setenta soldados
e oficiais para servirem de escolta, entre eles o juiz de campanha,
o dr. Bollow. Quando ele desembarcou, os soldados enfileirados no
passadiço bateram os calcanhares. O dr. Bollow olhou para trás

60
de cabeça erguida. Seus olhos traduziam a vitória final...

O campo que os acolheu era uma grande fábrica. Nos galpões


abrigavam-se os refugiados sobre palha; assistentes da Cruz Ver-
melha distribuíam cobertores e sopa quente feita de um caldo de
carne aguado e vagens, café de malte e pães com uma pasta artifi-
cial com gosto de patê de fígado: A base era farinha e sêmola. Em
quatro escritórios todos tiveram seus nomes anotados e responde-
ram sobre possíveis parentes no ocidente. Quando Erna Kurowski
indicou uma tia sua em Krefeld, acenaram negativamente. Krefeld
não era mais um lugar para ir, não se manda alguém chegado do
inferno para novos montes de escombros. Mas onde haveria, ainda,
uma Alemanha sadia? Nos campos de urze do Lueneburg, no Sau-
erland, nas florestas da Baviera, na Suíça de Holstein, no Muens-
terland, nas florestas da Francônia? Por enquanto ainda tinham a
gentileza de perguntar: para onde querem ir? Ainda se podia andar
de trem, embora milhares de bombardeiros britânicos e americanos
dominassem os ares da Alemanha e, vez ou outra, atacassem os
trens. A Alemanha ainda era uma esponja que não sugara tudo o
que podia, absorvendo gente do leste alemão.
Paskoleit e o padre Heydicke apresentaram-se ao diretor do
campo, um diretor regional com um uniforme amarelado.
— Gostaríamos de pedir que a aldeia de Adamsverdruss, ou o
que ainda resta dela, fique junta — disse Paskoleit. — Não restam
muitos. Só catorze famílias. Seria possível?
E, sob uma inspiração repentina, ajuntou (ouvira, certa vez,
Felix Baum dizer algo parecido):
— O Füehrer deseja que as pequenas comunidades fiquem uni-
das como células fundamentais do Estado.
Heydicke olhou de esguelha na direção de Paskoleit e prendeu

61
o riso ao ver a seriedade do outro. O diretor regional estava im-
pressionado com tanto nacionalismo.
— Luebeck está livre — disse. — No campo de Luebeck ainda
caberia Adamsverdruss. Catorze famílias, pode ser. Querem ir pa-
ra Luebeck?
— Sempre foi meu desejo. — Havia um tom de reverência na
voz de Paskoleit. — Luebeck está bom. Lá nos agüentaremos até
que a vitória final nos devolva a Prússia Oriental, nosso lar, e. até
que mandemos os russos de volta para os confins do Ural!
— Heil Hitler! — exclamou o diretor regional.
Após dez minutos o padre Heydicke, na qualidade de chefe de
Adamsverdruss, tinha no bolso a ordem de partida e de entrada
em Luebeck.
— O senhor é um cachorro maldito, Paskoleit — disse, lá fora.
— E o senhor, sendo padre, acaba de pronunciar a palavra
maldito, senhor padre! — Paskoleit sorria. — Somos, agora, uma
alcatéia de lobos e temos de uivar como eles! Como vê, senhor pa-
dre, disso nós entendemos.
Cinco dias mais tarde as catorze famílias de Adamsverdruss 1
seguiram para Luebeck, no noroeste, em três vagões. No último
vagão, entre montes de feno e palha, entregue aos cuidados de
Franz Busko, estava Verão Dourado, o garanhão trakehner. Para
conseguir feno, vovô Jochen desfez-se de seu bem mais valioso: o
relógio de ouro dos Kurowski, pertencente à família desde 1813.
Entregou-o ao camponês Hermann Poltin.
— Jamais esquecerei — disse Júlia Rambsen com lágrimas nos
olhos.
Vovô Jochen fez um gesto de pouco caso.
— Pode deixar que eu o recupero. Sei o nome dele. Não se es-

1
Em tradução literal, significa “tédio de Adão”. (N. da T.)

62
queça; nós, os Kurowski, somos inextermináveis como os perceve-
jos.
O trem de carga levou dois dias e duas noites de Stralsund a
Luebeck. Quer dizer, durante o dia ficava escondido em algum lu-
gar do trajeto, movimentando-se apenas a noite. O que ninguém,
nos três carros, sabia era que na frente havia doze vagões que
transportavam granadas. Se o avô Jochen tivesse sabido, não teria
extravasado tanta alegria naquela viagem através de uma terra
admiravelmente silenciosa, quase inatingida pela guerra. Durante
dois dias e duas noites era como se vivessem numa outra estrela,
chamada paz...
Luebeck era um campo.
A cidade, embora muito danificada pelos bombardeios, estava
repleta de gente. Diversos trens de refugiados já haviam sido rece-
bidos, e, quando as catorze famílias de Adamsverdruss aparece-
ram no Campo 5 com seu garanhão Verão Dourado, os homens da
administração puseram as mãos na cabeça.
— O que quer dizer ordem de partida e admissão? — gritou um
homem gordo que, pelo jeito, tinha muito a dizer. E disse: — Um
João regional qualquer de Stralsund pode mandar estes bilheti-
nhos bobos à vontade! Vou enfiar vocês onde, pergunto eu?! Es-
tamos tão cheios que o telhado chega a levantar-se! E ainda por
cima vocês me trazem um cavalo!
— Um garanhão da raça trakehner. Verão Dourado! — disse o
avô Jochen.
— Vão tomar banho com seu garanhão! Verão Dourado? Sim,
senhor, parece que o verão vai ser muito dourado mesmo! Vocês
vão é comer o bicho!
— Nunca! — exclamou, bem alto, Paskoleit.
— Quer apostar? — O homem gordo bateu na mesa. — Por se-

63
mana vocês ganham cinqüenta gramas de banha e cem gramas de
lingüiça... quando tem! E vocês passeiam por aí com um montão
de carne da melhor qualidade! Seus completos idiotas! Muito bem,
estão no campo! Mas não tenho camas, nem cobertores, nenhum
canto onde possam deitar-se. Só posso oferecer-lhes a latrina co-
mum para cagarem e a barraca-lavatório para se lavarem! Sieg He-
il!
— Não desistam! — disse Paskoleit lá fora.
As catorze famílias e Verão Dourado esperavam diante da bar-
raca da administração.
— O importante é que fomos aceitos. Temos um número, che-
gamos ao ocidente, estamos enquadrados. Já pertencemos ao lu-
gar! Não poderão mais nos mandar embora. Luebeck é um lugar
como outro qualquer no mapa. Viveremos aqui! Vamos procurar
abrigo, pessoal. Mostraremos a essa turma quem é que chegou de
Adamsverdruss!
E mostraram! Verão Dourado foi instalado num telheiro ao lado
da cozinha.
— Se vocês o abaterem, corto-os em mil pedaços! — disse vovô
Jochen, sério. — Virei vê-lo de hora em hora!
Em seguida o pessoal de Adamsverdruss espalhou-se por todas
as barracas; logo no primeiro dia Paskoleit e Busko já começaram
a consertar sapatos, as solas eram feitas de pneus recortados. Em
troca tinham um lugarzinho para dormir... Os outros simplesmen-
te se apertavam um pouco.
Estava lançado o começo de uma nova sapataria. Bastaram dez
dias para que todos no campo conhecessem Julius Paskoleit. Era
espantosa a quantidade de alimentos que circulava no câmbio ne-
gro e que ia parar nas mãos de Paskoleit, o sapateiro. Havia, no
campo, verdadeiros gênios, que saíam para passear e voltavam de

64
bolsos cheios.
— Vou aprender com eles — disse o avô Jochen. — Garoto,
como eu gostaria de passear...
Mas os gênios da organização não aceitaram o velho Kurowski
em suas fileiras. Usavam de todos os truques para se verem livres
dele.
— Eles ainda não me conhecem — chiava o avô Jochen. — Só
preciso de um pequeno aquecimento. Para um Kurowski isto não
demora muito.

De repente chegaram os ingleses.


Penetraram em Luebeck sem muito alarde, ocuparam a cidade,
tomaram a direção do campo, mas deixaram permanecer a admi-
nistração antiga; na barraca do comando geral, um jovem capitão
que falava alemão era muito amável e, ao assumir o cargo, fez um
discurso diante de todos os refugiados.
— Meus pais morreram na câmara de gás em Auschwitz — dis-
se —, mas eu sei que vocês pobres-diabos não têm culpa. Se tive-
rem algum problema não se preocupem, venham falar comigo.
Para Luebeck, o campo de refugiados e o povo de Adamsver-
druss a guerra estava terminada. Haviam sobrevivido.
— É agora que vai começar — disse Paskoleit, numa certa ma-
nhã, à família Kurowski. — Agora começa a luta por um lugarzi-
nho ao sol...

65
CAPÍTULO 7

A primeira tentativa de sair daquela vida no campo de refugia-


dos fracassou.
— Vou escrever para Krefeld — disse Erna Kurowski depois
que a família havia discutido todas as possibilidades. — Minha tia
Elfriede mora numa casa grande, poderá hospedar-nos a todos.
Pelo menos no início.
— Dois meses no máximo.
Paskoleit bateu palmas.
— Procuraremos um galpão, faremos uma reforma e construi-
remos uma oficina. Nunca, em tempo algum, houve um artesão
que não encontrasse o que fazer. Então vamos para Krefeld.
Apenas uma semana mais tarde receberam uma carta de tia
Elfriede. O caso não tinha solução.

Vocês sabem que tio Adolf era um alto figurão do Partido. Agora
foi preso pelos vencedores e levado para um campo em Darmstadt.
Nossa casa, que ainda estava muito bem conservada, foi confisca-
da... Estou morando, agora, com minha amiga Mônica num quarto,
esperando e rezando para que Adolf volte para casa. Como vocês
sabem, Adolf sempre foi uma ótima pessoa, só era mal-orientado,
sempre se deixava levar pelo entusiasmo... E aí está o que ele ga-
nhou com isto. Eu choro dia e noite...

— Nada feito! — disse vovô Jochen.

66
— Até Adolf Hammes voltar do campo de prisioneiros pode de-
morar muito. Uniforme marrom e ainda com o nome Adolf... Pode
durar uma eternidade. Não vamos esperar tanto. Risquemos Kre-
feld. Sinceramente... não iríamos nos sentir bem numa casa tão
grã-fina. Portanto, olhemos em volta por aqui mesmo. Luebeck é
uma cidade bonita, e temos aqui o mesmo mar Báltico como no
Nehrung. Dá para a gente se sentir em casa.
O gordo diretor do Campo V foi o único a criar dificuldades. Por
que implicava justo com a família Kurowski, só vovô Jochen sabia,
mas não contava para ninguém. O fato ocorreu no quarto dia após
sua chegada a Luebeck, quando o gordo apareceu no telheiro e fi-
cou observando Júlia Rambsen alimentar seu garanhão Verão
Dourado.
— Uma mulher tão bonita lidando com cavalos — disse, em
tom de gozação. — Mas a ração vai escassear.
— Faremos uma coleta — respondeu Júlia Rambsen, limpando
as ventas do garanhão, acrescentando, orgulhosa: — Ele ainda se-
rá o pai de uma nova linhagem de trakehner.
— Um sortudo. — O gorducho riu abertamente. — Ele sempre
pode. Até deve. Oferecem-lhe as mais belas éguas. Existe alguma
razão para nós homens termos uma vida pior do que eles? — Deu
um tapa nos quadris de Júlia e olhou-a com volúpia.
— Pare com isso! — falou Júlia num tom baixo e ameaçador.
— Eu sei onde conseguir quatro carretas de feno e um monte
de aveia. — O gordo fitou, com evidente agrado, os belos seios de
Júlia e passou a língua nos lábios. — Só há duas possibilidades:
ou o cavalo é abatido qualquer dia para encher algumas centenas
de estômagos vazios aqui no campo... ou vamos juntos buscar o
feno e a aveia. Nesse caso eu tomo conta do bicho. Mas isso só é
possível em conjunto, linda mulher... Estamos entendidos? Em

67
conjunto!
— Existe, ainda, uma terceira possibilidade! — vociferou vovô
Jochen. Acabara de chegar, despercebido, ao final da última frase
e completou: — Quando uma mula empaca, recebe um pontapé
no traseiro!
E, antes que o gordo percebesse o que estava acontecendo, foi
expulso dali a socos e pontapés. Desde então a família Kurowski
passara a representar um argueiro no olho da administração, que
fazia de tudo para se livrar daquele corpo estranho.
— Isto aqui não é um campo permanente, é um campo de trân-
sito — disse o gordo a Paskoleit dois meses após o término da
guerra. Já era a sétima advertência deste tipo. E disse mais: —
Cada vez chegam mais refugiados das regiões de ocupação russa.
Precisamos de espaço! Já lhes demos um tempo para pensarem
na situação Devem sair daqui logo! Meu Deus, já deveriam saber
onde é seu lugar.
— Na Prússia Oriental! — disse Paskoleit com a voz sombria, a-
crescentando: — Providencie para que Adamsverdruss fique livre de
russos... Uma hora depois estaremos no caminho de volta!
— Tudo isto não passa de conversa mole! — gritou o gordo. —
Nós perdemos a guerra!
— Nós! Aí está! Não só nós da Prússia Oriental ou da Silésia,
mas também o senhor, seu porco inchado! Sua única sorte foi ter
aqui os ingleses, mas poderemos trocar. Eu tinha, em Adamsver-
druss, uma bela casa, faço-lhe presente dela. Vá para lá, instale-
se! Aceitarei de bom grado sua mísera casa de três quartos. Com-
binado?
O gordo virou-se, e foi embora.
— Polacos!
Paskoleit ouviu-o murmurar. Era uma palavra que, daquele

68
momento em diante, não esqueceria mais.
— Então é assim que eles nos consideram aqui no oeste — dis-
se ao avô Jochen e a Felix Baum. — Polacos! Droga, tenho aqui
comigo uma desconfiança de que esta guerra amoleceu os miolos
dos alemães! Será que não existe nada capaz de mudar um ale-
mão? Nem os milhões de mortos, as cidades destruídas, a fome, o
caos completo? Será que este alemão será sempre o palerma arro-
gante que é? Vovô, tenho um pressentimento: a paz será horren-
da!
Na noite seguinte, o gordo diretor foi puxado para dentro da
barraca que servia de lavatório, depois de alguém lhe jogar um sa-
co sobre a cabeça. Chiou, e mais tarde, mudo e resignado, deixou-
se surrar até desfalecer. Até hoje ninguém sabe quem praticou o
atentado. O que se sabe é que a Barraca 2, na qual moravam os
Kurowski, fez uma vaquinha e comprou duas garrafas de aguar-
dente dos ingleses. Foi uma noite muito alegre.
— Apesar disso teremos de sair daqui! — disse, mais tarde,
Paskoleit, acrescentando: — O gordo tem razão numa coisa: isto
aqui não é uma situação permanente. Ficando aqui, vamos mofar.
Os Paskoleit e os Kurowski sempre foram livres. E, mesmo que eu
me sente debaixo de um telhado de tábuas na frente do campo pa-
ra fazer solas de sapatos, estarei fora! Tenho meu próprio teto. A-
vô?
— Aqui — berrou Jochen Kurowski.
— O que os outros podem, nós também conseguiremos: vamos
sair por aí para fazer alguns negócios de troca-troca.
— E o que é que você pretende trocar, seu idiota?
— Verão Dourado!
Jochen Kurowski, boquiaberto, olhou Paskoleit fixamente.
— Está completamente doido! — disse baixinho. — Em primei-

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ro lugar você não é o dono do garanhão, e em segundo lugar prefiro
comer capim do que fazer negócio em troca do cavalo.
— O que falta em vocês é imaginação. — Paskoleit levou o dedo
à testa larga de camponês. A risada dele era igual ao sol se pondo
sobre os lagos da Masúria. — Abriremos, com Júlia, um negócio
de montaria... Por cinco minutos, uma agulha de costura. Meia
hora: uma pederneira. Dez minutos: um sabonete. Para montar
uma hora inteira: duzentos e cinqüenta gramas de toucinho! Para
os ingleses, tarifas especiais: para cada meia hora, um lanche. Os
oficiais pagam com manteiga ou presunto, ou ham’n eggs
— Ficou doido!
Vovô Jochen olhou em volta, sem saber o que fazer. Os Ku-
rowski, Felix Baum, Franz Busko e Júlia Rambsen pareciam de
outra opinião. Menearam a cabeça concordando com Paskoleit.
— Mas quem vai querer andar a cavalo se não tiver o que co-
mer?!
— Esperem só para ver. — Paskoleit colocou o boné. — Na Bar-
raca 6 temos um pintor, ele poderá fazer um cartaz. “Montar, um
esporte popular! Passe alguns minutos felizes no dorso de um fogo-
so corcel.’’ Mais do que quebrar a cara não pode nos acontecer...
Nada aconteceu a eles.
Já no primeiro dia, quando Ludwig Kurowski, de dez anos, foi
andar pelo campo carregando o cartaz — o pintor da Barraca 6
pedira, pela cartolina e pelo serviço, duzentos e cinqüenta gramas
de manteiga, da primeira que recebessem —, apresentaram-se vin-
te crianças e três sargentos britânicos. Paskoleit aceitou sabonete,
sabão em pó ou elásticos dos pais das crianças; os ingleses paga-
vam com pacotes de alimentos.
À noite Paskoleit e o avô Jochen contaram a arrecadação do di-
a. Era impressionante.

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— Agora quem é o idiota? — perguntou Paskoleit. — Se conti-
nuarmos assim por mais dois meses, Verão Dourado terá um es-
tábulo de verdade e nós construiremos uma sapataria.
— E as solas, você as fará de meleca? — berrou vovô Jochen.
— Este problema também será resolvido.
Paskoleit juntou as mãos sobre o ventre. Tinha um pressenti-
mento de que, com o verão de 1945, em meio a um mundo destro-
çado, a família Kurowski começava a viver de novo.
— Continuarei a ocupar-me da montaria, e vocês — apontou
para vovô Jochen, Felix Baum e Franz Busko — vão dar uma volta
pela região e abrir os olhos. Existe muita coisa jogada fora. por aí
na Alemanha. Basta saber enxergar! Olhar bem, vovô!
— Não engolirei esta!
Jochen saiu dali, ofendido. Foi vagando até onde estava Verão
Dourado, sentou-se ao lado da cabeça magnífica do garanhão e
disse:
— Eles vão ver uma coisa, meu caro! Amanhã gastarei minhas
solas nos arredores de Luebeck. E eu prometo, você ainda terá
uma manjedoura de mármore!

O negócio da montaria prosperou às mil maravilhas durante


três semanas. Três horas pela manhã, três horas à tarde... Era
dureza para o cavalo, mas Verão Dourado agüentou firme, talvez
porque pressentisse que seu belo dorso não só tinha que alimen-
tar onze bocas, mas também carregava toda a esperança de um
futuro melhor.
A partir da segunda semana Paskoleit já tinha uma clientela fi-
xa. A tarde montavam os oficiais britânicos. De manhã, os ale-
mães. A maioria destes eram crianças, que pediam tanto a seus
pais que estes vinham a Paskoleit com as ofertas mais comoven-

71
tes. Por dez minutos um par de cordões para botas, usados, natu-
ralmente. Por três voltas em torno da Barraca 5 a correia de couro
de um relógio de pulso. Uma das mães ofereceu três fraldas... para
que seu garoto de quatro anos tivesse meia hora de felicidade...
Paskoleit aceitava tudo.
— Cada coisa tem seu valor — dizia, cheio de premonição. — O
tempo da grande miséria ainda vai chegar...
No sábado, após três semanas, vovô Jochen e Felix Baum vol-
taram de uma excursão que durou dois dias. Baum, que tivera de
deixar sua motocicleta em Stralsund, fabricara uma bicicleta com
peças avulsas que conseguira juntar, e nela andavam pelos arre-
dores, o avô Jochen na garupa, encolhendo as pernas compridas;
em tempos normais seria uma violação flagrante do trânsito, mas
o que poderia representar perigo naqueles dias, quando já se tinha
conseguido escapar do inferno da Prússia Oriental e dos trecks?
Tais excursões eram bem planejadas, Kurowski e Baum reveza-
vam-se para pedalar, visitavam todas as aldeias na periferia de
Luebeck, trocavam os objetos angariados por alimentos com os
camponeses, pechinchavam por cada grama de manteiga, cada
batata, cada repolho, cada beterraba, mas funcionava, pois quan-
do Baum e vovô Jochen chegavam à noite, vinham com as mochi-
las repletas.
Naquela noite, depois de dois dias de ausência, voltaram de
mãos abanando. Paskoleit olhou-os com espanto.
— Vocês foram roubados? — gritou, antes mesmo que o veículo
que chamavam de bicicleta, mas que na verdade merecia outro
nome, pudesse frear.
— Ninguém rouba um Kurowski! — berrou vovô Jochen da ga-
rupa. — Venha para junto do cavalo, Julius! E cale a boca...
Encontraram-se no telheiro de Verão Dourado como conspira-

72
dores, e era assim mesmo que o avô Jochen se comportava.
— Menino, meus olhos saltaram fora das órbitas — disse. —
Felix, disse eu para este nazista bobalhão, Felix, segure-me, vou
ter um enfarte...
— Foi de cortar o fôlego — disse Felix, rouco de emoção.
— Magnífico...
— Vocês querem falar coisa com coisa?
Paskoleit cutucou Kurowski.
— O que é magnífico?
— Cinco mil pneus de automóvel...
O avô Jochen quase não conseguia falar de tão agitado.
— Dez mil... — disse Baum.
— Pelo menos dez mil! Pilhas e mais pilhas...
— Novos e usados, Julius... descobrimos um depósito de pneus
da antiga Wehrmacht. Só tem um simples arame farpado em vol-
ta. Sentinelas inglesas andando para cima e para baixo. Ficamos
dois dias deitados no capim, observando tudo. Como aqui: troca
de guarda a cada duas horas... mas tem uma turma que não quer
saber de andanças para lá e para cá e tira uns cochilos. Das duas
até as cinco da madrugada não se vê um guarda.
Baum encostou o corpo cansado na parede do telheiro.
— Imagine só: dez mil pneus, no mínimo, amontoados ali, e os
ingleses não sabem o que fazer com eles, só ficam andando em vol-
ta.
— Dá para abrirmos uma gigantesca fábrica de sapatos, Juli-
us.
Jochen Kurowski abraçou o cavalo, que ouvia tudo de orelhas
em pé, e beijou-o nas ventas macias.
— Meu bichinho... fui eu quem descobriu! E é a mim que que-
rem transformar num ancião cheio de tremeliques! A mim, Jochen

73
Kurowski! E você já pode parar de trotar por aí como um bobo...
Você vai ganhar sua manjedoura de mármore. Promessa é pro-
messa, meu filho...
— Onde? — perguntou Paskoleit, sem rodeios.
— Entre Curau e Malkendorf. Entre duas fileiras de morros.
Felix Baum botou a mão no bolso — desenhara até um mapa.
Os morros, o enorme depósito de pneus, a cerca de arame farpa-
do, o posto de guarda britânico, os postes com holofotes que nun-
ca eram acesos, o caminho da ronda, que só fazia a volta do depó-
sito perto do grupo 2. A maioria dos guardas, principalmente de
noite, desprezava a terça parte do lado de trás, porque lá o terreno
era cheio de altos e baixos.
— Por aqui entraremos sem ninguém perceber nada.
— E também é aí o lugar mais seguro do depósito. De lá até o
caminho mais próximo, atravessando os morros, é uma porcaria.
Você quer carregar cada pneu por mais de cem metros até poder
transportá-lo?
— Claro! — disse vovô Jochen em voz alta. — Tenho força sufi-
ciente. Sou um Kurowski! Se os Paskoleit também têm essa forta-
leza toda...
— Então é para a noite de depois de amanha! — Paskoleit o-
lhou desafiadoramente para o avô Jochen. — Um Paskoleit agüen-
ta vinte pneus.
— E um Kurowski, vinte e um! — gritou Kurowski.
— O que dá quarenta e um só de nós dois. Mas como vamos
transportá-los? — disse, prosaicamente. — Você vem rolando vinte
e um pneus até aqui?
— Também já pensei nisso — disse o avô Jochen, deixando o
estábulo em seguida.
De manhã cedinho, depois da primeira reza no campo, Ku-

74
rowski estava sentado com o padre Heydicke na barraca-
escritório. Heydicke obtivera uma sala, tendo sido nomeado ofici-
almente padre do campo. Apesar de outras ofertas melhores do in-
terior, escolhera ficar perto de seus refugiados.
— Senhor padre — disse Jochen Kurowski com as mãos entre-
laçadas —, diga-me do fundo do coração: Deus castiga alguém que
constrói uma nova vida?
— Ora, não, Jochen — respondeu Heydicke perturbado. —
Deus está com ele!
— Ainda bem, senhor padre!
Vovô Jochen levantou-se.
— Preciso de um pequeno caminhão que possa transportar uns
cinqüenta pneus de automóvel. Para uma noite. Pode organizar is-
to?
O padre Heydicke resolveu ajudá-lo, após ouvir Kurowski con-
tar tudo. O próprio comandante inglês do campo emprestou ao
padre um pequeno Dodge.
— Eu vou junto — disse Heydicke.
Vovô Jochen concordou com um movimento de cabeça. Ao a-
noitecer do dia seguinte, o caminhão saiu, aos solavancos, em di-
reção ao campo entre os riachos Helisau e Schwartau. No volante,
com Paskoleit a seu lado, estava o padre Heydicke.
Era o início de uma aventura extraordinária.

75
CAPÍTULO 8

Numa estradinha estreita, por entre os morros baixos atrás de


Curau, o avô Jochen subiu na cabine e espremeu-se ao lado do
padre. De agora em diante a coisa tornava-se criminosa, isso se os
tempos em que viviam fossem normais. Mas no fim de julho de
1945, numa terra que mais parecia uma paisagem lunar do que
um estado organizado, uma terra como nenhuma outra no mun-
do, destruída, bombardeada, destroçada e arrebentada, na qual
cada sobrevivente só pensava em uma coisa — continuar a sobre-
viver —, não importava como nem quais os meios, essa excursão
noturna nem mereceria ser mencionada, não fosse ela o início de
uma nova fase para a família Kurowski.
Nas cidades e aldeias que atravessaram reinava um silêncio
profundo, pareciam abandonadas. Proibição de sair depois das
vinte e duas horas. Ordem do governo militar. Quem se encon-
trasse na rua depois das dez da noite era detido e preso.
O pequeno caminhão foi parado três vezes por patrulhas da po-
lícia militar inglesa. Uma vez em Bad Schwartau, a segunda vez
na estrada para Curau, a terceira na própria aldeia de Curau. A
cada vez o padre Heydicke exibia sua identidade e a autorização
expedida pelo comandante do campo de Luebeck, falava com os o-
ficiais britânicos em bom inglês e, estando estes convencidos de
que havia um homem de Deus na boléia do caminhão, permitiam-
lhe continuar.

76
— Pelo menos um de nossa família deveria ter se ordenado pa-
dre e aprendido a falar inglês — disse o avô Jochen depois da ter-
ceira parada, e acrescentou: — Garoto, precisamos nos lembrar
disto. Ou Ludwig ou Peter vai ser padre e falar inglês...
— Talvez um dia seja mais importante falar russo — disse Pas-
koleit.
Pararam entre as colinas. Felix Baum veio correndo para a fren-
te.
— Mais uns quinhentos metros. — Apontou para a escuridão.
— O depósito fica à esquerda do caminho. Uma rua vai até o por-
tão, uma rua particular.
— Por esta tenho certeza que não passaremos — disse Heydic-
ke. — Qual a melhor maneira de nos aproximarmos por trás?
— Cruzando os campos, senhor padre. — Felix Baum acenou
na direção das colinas. — Ali é um sobe-e-desce! Quer que eu diri-
ja, senhor padre?
— O senhor carrega os pneus, Baum! Já dirigi por caminhos
piores. Então vamos lá...
Sem luz, devagar, em primeira, foram entrando nas colinas.
Baum estava do lado de fora, no estribo, vovô Jochen tinha o nariz
colado ao pára-brisa. Paskoleit fumava nervosamente um cigarro
de palha, enrolado por ele mesmo.
— Alto! — disse Baum. Parou e desabafou: — Deve ser aqui. Na
descida atrás da colina começa o arame farpado. Gente, gente,
como é que o senhor quer voltar daí, senhor padre? Vazio é fácil,
mas carregado? Só nos falta agora um eixo partido!
— O padre vai rezar — disse vovô Jochen, saltando do carro —,
mas isto está além da compreensão de um ex-chefe político! Va-
mos, rapazinho, atacar!
Como sombras, Paskoleit, vovô Jochen, Baum e Busko desliza-

77
ram pelo terreno acidentado das colinas e foram engolidos pela noite
após alguns metros. Era uma noite boa, morna e escura, com um
pouco de cerração, a lua era uma foice apagada numa bruma opaca
que não deixava passar nenhuma luz. Na guerra tinham aprendido
a não fazer ruídos, e assim os quatro, protegidos por arbustos e vi-
doeiros, zimbros e pinheiros anões, avançaram em silêncio até a
descida fechada por uma cerca de arame farpado de três metros de
altura. Atrás do arame, como torres negras e colinas arredondadas,
amontoavam-se os pneus. Até onde a vista podia alcançar naquela
escuridão... montanhas de pneus. Bem ao longe vislumbrava-se
uma luz fraca: o posto da guarda. Os holofotes nos altos postes es-
tavam desligados. Pelo visto, os ingleses achavam uma tolice absolu-
ta vigiar pneus velhos. Mas ordens são ordens e têm de ser cumpri-
das.
— Olhe só para isso, rapaz! — disse o avô Jochen, emocionado.
— Não dá nem para calcular quantas solas de sapatos...
— Ainda nos faltam os pregos e a cola.
Paskoleit aproximou-se da cerca, olhando-a com desconfiança.
Ouvira dizer que o arame farpado também podia ser eletrizado.
— Não posso prender as solas com cuspe.
— O cara sempre tem alguma coisa para reclamar!
Jochen Kurowski agarrou a cerca antes que Paskoleit pudesse
impedi-lo. Afastou os dois fios de arame do centro e fez um sinal
com a cabeça.
— Vamos, podem entrar...
— Sorte sua que não havia alta-tensão — disse Paskoleit, com
um suspiro de alívio.
— Vocês todos devem pensar que eu sou um tolo, não? — ros-
nou vovô Jochen. — Claro que eu já verifiquei isso ontem, com um
pedaço de madeira. Vamos entrando...

78
Penetraram no depósito e logo deitaram-se no chão para espe-
rar um pouco. Poderia começar a soar algum alarme porventura
instalado no posto de guarda. Mas tudo permaneceu em silêncio.
Eram exatamente duas horas da madrugada, hora em que os
guardas britânicos dormiam, ficando acordado apenas um, sorte-
ado para ficar de sentinela.
Até a primeira pilha de pneus havia só seis metros. Paskoleit
passou as palmas das mãos pelas bandas de rodagem.
— Gente, estes são novinhos — cochichou —, estes não se
transformarão em solas. Poderemos trocá-los por manteiga, touci-
nho, ovos, carne!
— E, para a igreja do campo, faremos um donativo de quatro
pneus — disse o avô Jochen, emocionado.
— Menino, de Adamsverdruss até aqui que sorte nós tivemos!
— Não vá chorar agora. — Paskoleit deu um tapinha nas costas
de Kurowski. — Pegue dois, vovô... e vá andando...
Trabalharam das duas até as quatro e meia. Passaram duas
horas e meia carregando pneu após pneu, o suor escorria-lhes até
os sapatos, os pulmões pareciam prestes a arrebentar. No final só
conseguiam cambalear como se, em vez de pneus de borracha, ti-
vessem rodas de chumbo pendendo dos braços.

O padre Heydicke colocava-os na traseira do caminhão. Às


quatro e meia separou o avô Jochen do resto do grupo. O velho ar-
fava como uma panela de pressão e comportava-se como um em-
briagado.
— Fim — disse Heydicke, com rispidez. — O senhor fica por
aqui.
— Não vou deixar que nenhum Paskoleit me passe à frente —
gemeu Kurowski descansando o corpo na lateral do carro. — Até

79
agora estamos em pé de igualdade.
— E na próxima o senhor cai duro! Eu disse fim!
E o avô Jochen resignou-se. Não se podia discutir com um pa-
dre.
Às cinco horas a ação terminou. A cerca não sofrera nenhum
dano. Na claridade turva da manhã nem se via onde faltavam
pneus, já que Paskoleit determinara que os mesmos deveriam ser
tirados de várias pilhas diferentes.
— Quantos, senhor padre? — perguntou, sentando-se cansado
e respirando com dificuldade, molhado de suor, no estribo do ca-
minhão.
— Exatamente sessenta e nove. Todos pneus novinhos!
— Menos quatro para a igreja, sobram sessenta e cinco — disse
o avô Jochen, satisfeito. — Dá para construir uma existência!
Gente, temos de nos abastecer aqui pelo menos uma vez por se-
mana.
Fizeram a viagem de volta sem fiscalização. No celeiro de uma
fazenda entre Bad Schwartau e Luebeck o camponês recebeu em
troca pneus novos para seu velho DKW, o lote foi descarregado,
recontado, e o avô Jochen disse ao camponês:
— Rapaz, se faltar um só pneu vai lhe acontecer o mesmo que
ao touro que virou boi. Entendeu?
Às oito horas entraram no campo de refugiados; o padre Hey-
dicke foi devolver o caminhão.
— Não quero perguntas — disse o comandante —, mas, muito
aqui entre nós, estou interessado em saber: onde foram com meu
caminhão?
— Fui buscar uma nova toalha para o altar e dois candelabros.
— Com um caminhão?
— Servir a Deus é trabalho pesado, capitão — disse Heydicke.

80
— Não sé esqueça... estamos recomeçando do ano zero...

A família Kurowski e Júlia Rambsen com seu garanhão trakeh-


ner, Verão Dourado, abandonaram o campo de refugiados. De re-
pente — ninguém sabia explicar — tudo corria às mil maravilhas,
como se todos os Kurowski pendessem das mãos de um grande
manipulador de marionetes. Na periferia de Luebeck, onde o am-
biente já era mais campestre, conseguiram alugar um galpão de
madeira com direito a reformá-lo. O preço era seis pneus. Madeira
de construção, pregos, telhas velhas e lascadas tiradas de escom-
bros, cimento e areia peneirada custaram dez pneus. Para alugar
duas vezes um caminhão: dois pneus! Depois disso, toda a família
Kurowski passou catorze dias em volta de um monte de pedras,
batendo-as para remover a argamassa e empilhando-as. Os meni-
nos, Ludwig, agora com onze anos, e Peter, com cinco, ajudaram a
martelar; Erna Kurowski misturava, com as próprias mãos, a ar-
gamassa e o concreto; vovô Jochen, Paskoleit, Felix Baum e Busko
levantaram as paredes e construíram mais três quartos e uma ofi-
cina. Coisas como um departamento de edificações, regulamentos
sobre o local de construção, cálculos técnicos, gabaritos e normas
sobre como fazer as janelas não existiam. Era verdade que o fun-
cionalismo alemão começava a se reorganizar, mas tratava-se de
homens que ainda sentiam a guerra nos ossos e que viam, nos ou-
tros cidadãos, apenas companheiros. Oh, tempos felizes! Isto não
tardaria a mudar. Mesmo após uma destruição total, não há nada
que se desenvolva mais depressa que a burocracia! Também nos
destroços eram as urtigas as primeiras a florescer...
Vez ou outra aparecia o padre Heydicke, ajudava um pouco na
construção e embolsava cada vez um pneu.
— Que homem mais desavergonhado! — rosnava vovô Jochen.

81
— Antigamente colocava-se uma moeda no saco de coleta, hoje é
um pneu!
O melhor negócio foi realizado por Paskoleit com vinte pneus:
trocou-os por um velho Opel P4. Quando foi tirar a licença, apro-
veitou para registrar seu ofício e voltou com um ramo de flores em
cima do radiador.
— A firma Sapateiro Ewald Kurowski está fundada! — gritou
pela janela antes mesmo de frear. E depois, mais baixo, ao mesmo
tempo abraçando Erna, que chorava: — Vamos dar o nome de
Ewald à empresa, Erna. Assim ele estará sempre conosco. Droga,
não devemos duvidar nunca de sua volta...
A primeira a estar em pé foi a oficina. Erna e vovô Jochen saí-
ram e organizaram um grande troca-troca, com base nos pneus.
Desse modo conseguiram pregos, cola para borracha, linha de cos-
tura, linha de sapateiro, lápis, tachinhas, bases para martelar, i-
lhoses, uma velha máquina de prender solas, e uma máquina de
costura enferrujada que Franz Busko consertou. Paskoleit talhou
fôrmas de sapateiro de álamo, e foi aí que se comprovou que a coisa
mais importante que haviam conseguido salvar de Adamsverdruss,
atravessando a Prússia Oriental com o treck, sobre o Nehrung e o
mar Báltico, era a mochila contendo as ferramentas de sapateiro.
O primeiro cliente foi um fabricante de balas que perdera tudo
num bombardeio.
— Precisamos ficar bem com ele — disse o avô Jochen, depois
que Paskoleit colocara sola nova em quatro pares de sapatos. —
Quando este aí recomeçar a cozinhar suas balinhas, vamos chu-
par até não poder mais!
Era uma idéia interessante...
No final de setembro estava pronta a nova construção. Cheia
de orgulho, Erna Kurowski conduziu o padre Heydicke, passando

82
pelo galpão reformado, para a oficina onde Paskoleit e Busko tra-
balhavam catorze horas por dia, sentados em seus banquinhos,
consertando sapatos. Em parte recebiam dinheiro, mas a maioria
pagava em objetos que, por sua vez, eram trocados por Baum e
vovô Jochen por outras coisas mais importantes. Verão Dourado
tinha uma bela estrebaria e, há quatro semanas, trotava nova-
mente servindo de montaria, numa pista provisória. Alimentava,
assim, Júlia Rambsen e seu filho, para quem Paskoleit construíra
um quarto anexo ao galpão.
— Vocês são uma família fantástica — disse o padre Heydicke
após visitar tudo. — Fazem de tudo para sair da lama.
— É isso mesmo. — Paskoleit colocou as mãos sujas nos joe-
lhos. — Dizemos todo dia em coro, senhor padre: não nos deixa-
remos abater!
— É a oração mais linda; é verdade, Paskoleit! Preciso de mais
um pneu.
Suspirando, vovô Jochen desapareceu no “depósito”.
Também sessenta e cinco pneus acabam depressa quando ser-
vem para construir uma existência. Quando a oficina e a casa es-
tavam prontas e o P4 circulava com mercadorias para troca,
quando chegaram os primeiros clientes e o Sapateiro Ewald Ku-
rowski conseguiu cupons para a aquisição de couro e outros tipos
de material, após a oficina ser reconhecida como empreendimento
de utilidade pública, restavam no depósito apenas quatro pneus.
Um quadro desanimador.
— Assim não dá — disse o avô Jochen. — Julius, amanhã à
noite vamos reabastecer!
Mandaram Felix Baum investigar em sua bicicleta e à noite re-
ceberam a notícia: — O depósito continua lá! Cheio como antes.
Os ingleses estão lá sem saber o que fazer com aquilo. É como nas

83
repartições alemãs: não há nenhuma ordem para utilizá-los, por-
tanto os pneus ficam onde estão. Quando, na verdade, precisari-
am deles em todos os lugares da Alemanha.
— Um P4 também é capaz de levar carga — disse vovô Jochen
— e de agora em diante vamos perambular para lá e para cá todas
as noites. O Franz e eu. Se nos pegarem não é tão grave. Eu sou
um velho e Franz é um tuberculoso imbecil! Vocês, os outros, ain-
da são necessários!
Busko abriu um sorriso; não levava a sério as observações de
Kurowski. Todos entendiam o que ele queria dizer. Porque nem
Busko era um idiota, nem estava mais doente do pulmão. Depois
do fim da guerra passara por uma cura milagrosa, engordara e
tornara-se um homem alto, corpulento e de uma força extraordi-
nária.
— Que figura! — dissera, certa vez, Baum. — Esse aí mandou a
Wehrmacht à merda!
A partir de então o Opel P4 passou a fazer, toda noite, uma ida
e volta entre as colinas perto de Malkendorf e a oficina nos arredo-
res de Luebeck. Não se podia transportar mais de dez pneus de
cada vez, senão o eixo do carro se partiria, mas com dez pneus por
noite o estoque aumentava. O depósito encheu-se, houve três em-
presas de transporte e duas firmas de construção que se trans-
formaram em clientes, não para solas de sapatos, mas sim para
pneus, e naquela época ninguém perguntava de onde vinha tudo
aquilo; fazia-se a troca e era uma grande família que se ajudava
mutuamente.
Até hoje ninguém sabe como aconteceu; se os ingleses, aos
pouquinhos, foram percebendo que as pilhas de pneus diminuíam
de tamanho, ou se, por acaso, alguém tinha observado as ativida-
des de vovô Jochen e Franz Busko... Mas, na manhã do dia 21 de

84
outubro de 1945, mais ou menos às quatro horas e dezenove mi-
nutos (a hora constava, mais tarde, rigorosamente certa, do rela-
tório), surgiu de repente uma patrulha britânica de quatro ho-
mens no meio dos enormes montes de pneus, empunhando MP e
berrando: “Stop! Hands up!”
Vovô Jochen entendeu o inglês logo, parou, com um pneu boni-
to e novinho entre as pernas, e levantou os braços para o céu.
Franz Busko, de um salto desesperado, tentou esconder-se atrás
da pilha mais próxima. Mas saltou um segundo atrasado. Uma
salva o alcançou, mas apenas uma bala o atingiu. Porém, foi o
bastante. Atravessou a coxa e jogou-o no meio dos pneus. A pilha
desmanchou-se, enterrando-o.
— Mas que burro! — berrou Kurowski. — Vê-se logo que ele
nunca serviu ao Exército!
Ficou onde estava, as mãos bem para o alto, e deixou-se levar
pelos ingleses. Busko precisou ser carregado; estava desmaiado,
porém vivo.
Naquela noite Felix Baum os acompanhara e estava esperando
nas colinas junto ao P4. E mais uma vez a sorte sorriu à família
Kurowski, pois no momento em que ouviu os tiros Baum pulou
para a direção do carro e deu o fora. É verdade que atiraram nele,
mas na claridade encoberta da manhã todos os tiros erraram o al-
vo. Alcançou a estrada e desapareceu rumo a Luebeck.
— Agora temos de livrar o vovô — disse Paskoleit três horas
mais tarde.
O padre Heydicke também viera. Baum fora buscá-lo no cam-
po.
— Senhor padre, o senhor é o único a quem permitirão vê-lo.
— Ainda hoje vou falar com ele — disse Heydicke. — Mas é
uma situação desgraçada: agora vocês são os pequenos contra os

85
grandes vencedores.

86
CAPITULO 9

A situação era mesmo muito perigosa, levando-se em conta o


avô Jochen... O padre Heydicke só conseguiu falar um pouquinho
com ele e contou que os oficiais do tribunal britânico o interroga-
vam dia e noite, acreditando que fosse um plano de sabotagem
planejado pela organização nacionalista Wehrwolf. Joachim Ku-
rowski lidou com essa perigosa suspeita, que, se provada, seria
punida com a pena de morte, com uma representação teatral bri-
lhante: perdeu a memória. Não acharam nenhuma identificação
dele nem de Franz Busko; de repente, não se lembrava mais de
seu nome, olhava para tudo com cara de palerma, sorria para os
oficiais ingleses e, passados cinco dias, disse:
— Chentlemen, eu sou uma criança abandonada pelos pais. Fi-
carei felicíssimo se descobrirem quem eu sou...
Franz Busko também se calava. No caso dele o tiro inconse-
qüente na coxa causara apenas uma falta de irrigação sangüínea
no cérebro. Quando alguém falava com ele ou mesmo o interroga-
va, seus olhos eram de tal modo atacados por tiques nervosos que
os oficiais britânicos se apressavam em deixar logo o quarto de
hospital.
— Mesmo assim temos de tirar vovô e Franz de lá — disse Pas-
koleit, duas semanas mais tarde. — Eles ainda são capazes de a-
tribuir a vovô todos os crimes sem solução.
— E nossos noventa e quatro pneus vão para o beleléu — disse

87
Felix Baum. — E aquela história de Wehrwolf... essa terão de pro-
var ainda.
Já em dezembro realizou-se o julgamento, uma audiência ino-
fensiva diante de um tribunal militar britânico, por pilhagem de
mercadoria de guerra. Busko entrou na sala mancando; vovô Jo-
chen ficou sentado, rígido e calado, numa velha poltrona de vime.
O único alemão que teve permissão para assistir ao julgamento foi
o padre Heydicke. Foi ele que, depois, relatou o sucedido.
A audiência foi breve. Algumas perguntas, outras tantas res-
postas. Ninguém mais se preocupava em saber os nomes dos dois
acusados; nos escombros espalhados pela Alemanha andava tanta
gente sem nome que dois a mais não faziam diferença. Nem era
importante — não se colocam nomes no xadrez, e sim corpos. E
assim a corte militar britânica condenou os corpos de um velho,
de uns setenta anos, e de um homem, de quase trinta, a um ano
de prisão por furto. Vovô Jochen recebeu a sentença calado; Franz
Busko disse:
— E como vamos deduzir da conta meu traseiro atingido por
um tiro?!
Com isso, mostrou pela primeira vez seu talento para ajustar
contas, que o acompanharia em sua vida futura.
Kurowski e Busko mudaram-se para uma cela na prisão de
Luebeck. Uma grande cela comum onde já havia catorze condena-
dos, que saudaram os novos com estardalhaço e cantoria. Consta-
tou-se que todos os catorze companheiros de cela estavam ali por
delitos similares e que consideravam qualquer novato como um
novo membro da família.
O avô Jochen já estava no comando da cela no terceiro dia.
Primeiro berrou com tanta vontade que dois carcereiros vieram
correndo e abriram a porta com violência, apavorados, pensando

88
que alguém estivesse enlouquecendo.
— Como é que é, hein? — berrou Kurowski. — Só dois baldes
para dezesseis homens cagarem?! Rapazinhos, laquearemos suas
paredes se não aparecerem mais baldes, e depressinha!
Isso durou uma semana. Toda vez que soavam os berros de vo-
vô Jochen na cela 23, os carcereiros encolhiam a cabeça nos om-
bros e fingiam-se de surdos.
De repente, o gigante selvagem da Prússia Oriental silenciou,
mas em compensação havia trinta punhos martelando a porta e
as paredes e quinze gargantas gritando em coro:
— Um médico! Um médico! Enfermeeeeiro!
Quietinho, sem um pio, Kurowski desabara sobre seu catre.
Busko começou a chorar como uma criancinha, sacudiu-o, levan-
tou as pálpebras do velho, viu os globos oculares revirados e caiu
de joelhos diante do catre.
— Vovô! — exclamou. — Vovô, não faça bobagens! Vovô! Pare
de fazer drama...
Quando o médico militar britânico chegou, Joachim Kurowski
estava morto. Não sentira nada, o médico tentou explicar: alguma
veiazinha do cérebro estourara. Acabou.
— Ele morreu de tanto berrar — disse Franz Busko. — Meu
Deus, como sentiremos falta desse tom...
— Agora teremos de sair da toca — disse Paskoleit ao receber a
triste notícia da boca do padre Heydicke. — Não podemos permitir
que enterrem vovô como um morto sem nome. Pouco importa o
que virá depois... eu vou buscá-lo! Direi que o avô sempre foi dis-
so. Desaparecia de repente... já estávamos acostumados...
As autoridades britânicas, distantes de qualquer burocracia e
observando admiradas a lenta recuperação da administração ale-
mã que, bem lubrificada, voltava passo a passo a sua eficiência

89
prussiana, não estavam interessadas em ficar com o velho morto
nem em enterrá-lo. Quando Paskoleit se apresentou como cunha-
do da família Kurowski e mostrou a carteira de identidade com o
retrato do avô Jochen, solicitando o corpo para um belo funeral
cristão, entregaram-lhe o avô enrolado numa velha lona de acam-
pamento militar.
No banco de trás do Opel P4, Paskoleit e Felix Baum levaram o
velho Kurowski para casa. Fizeram o velório na oficina nova; qua-
tro pneus foram trocados por um caixão, o padre Heydicke enco-
mendou o corpo, e Joachim Kurowski foi enterrado no Cemitério
Luebeck-Sul. Com isso ele foi integrado na administração alemã,
recebendo um número e uma cova calculada centímetro por cen-
tímetro quadrado. Paskoleit talhou uma bonita cruz de madeira
com o brasão de Adamsverdruss. Esta deu origem ao primeiro a-
trito com a direção alemã do cemitério, que era de opinião que um
brasão não ficava bem num túmulo, nem mesmo junto de uma
cruz.
— Quem tocar na cruz terá o crânio martelado com cem tachi-
nhas de sapateiro! — berrou Paskoleit. — Está claro?
Os sobreviventes de Adamsverdruss que rodeavam o túmulo
sorriram intimamente, apesar do dia sombrio: o avô Jochen já ti-
nha um substituto. O tom de Adamsverdruss não estava em ex-
tinção.

Quem trabalha catorze horas por dia e tira da lama, além dele
próprio, também uma mulher e três crianças, esquece como pode
correr o tempo.
Júlia Rambsen abandonara Luebeck com seu garanhão, Verão
Dourado. Tivera notícias de um fazendeiro de Borghorst, na Vest-
fália, com quem os Rambsen já haviam tido contato antigamente e

90
que costumava comprar cavalos trakehner deles. Agora mandara
buscar Júlia, oferecendo-lhe estrebaria e pasto para Verão Doura-
do. De Gottfried Rambsen nunca mais se ouvira falar, tampouco
de Ewald Kurowski; tinham sido queimados no grande caldeirão
da guerra sem sobrar nada, nem mesmo um punhado de cinzas.
Felix Baum — ‘‘Deus é mesmo um homem bom!’’, dissera Pas-
koleit —, apesar de seu passado, conseguiu um emprego de men-
sageiro numa repartição em Ratzeburg e despediu-se com lágri-
mas nos olhos.
Franz Busko, solto seis meses antes por boa conduta, recupe-
rou a memória e surgiu, de repente, na oficina. Tirou seu avental
de couro do gancho, sentou-se no banquinho e disse a Paskoleit:
— Mestre, pode tornar a deixar os saltos por minha conta...
O padre Heydicke ganhou uma paróquia em Kiel; outras quatro
famílias da aldeia saíram, em trens superlotados, aos quatro ven-
tos a fim de se juntar a parentes redescobertos.
— Assim explode Adamsverdruss — disse Paskoleit a Heydicke,
o último a se despedir. — Nunca mais conseguiremos juntá-la.
— E para quê? — Heydicke meneou, com vagar, a enorme ca-
beça. — Vai começar uma nova era, Paskoleit. Vamos criar raízes
aqui, as crianças já se ambientaram, isso vai ser rápido. Adams-
verdruss vai transformar-se em conto de fada, e com mais duas
gerações ninguém mais ouvirá falar nela.
— Menos os Kurowski, senhor padre!
— Nem mesmo os Kurowski, Paskoleit. Espere... Quando Lud-
wig, Peter e Inge tiverem nossa idade, a Prússia Oriental será um
ponto no mapa, mas não mais a pátria pela qual se é capaz de dar
o sangue.
— Isso é impossível de imaginar, senhor padre.
— É a evolução natural das coisas, Paskoleit. Nós perdemos a

91
guerra, e a perdemos de tal modo que também o velho sentimen-
to alemão de revanche deveria estar definitivamente eliminado.
Paskoleit não tinha tempo para meditar sobre estas palavras.
Ludwig freqüentava, agora, o ginásio, aprendendo latim e matemá-
tica; Peter ingressara na escola e escrevia as primeiras letras, a
pequena Inge brincava num jardim de infância que acabara de ser
construído e recebia diariamente, para o almoço, uma grossa sopa
de leite com passas fornecida por uma organização beneficente in-
glesa. A vida normalizava-se, se é que podia ser chamado de nor-
mal Paskoleit e Busko ficarem trabalhando na oficina do romper
da aurora ao anoitecer e Ema Kurowski sair para voltar com dois
cestos de sapatos e depois levar os calçados consertados para os
clientes. Mas quem, naquela época, se preocupava com as horas?
Quem podia se dar ao luxo de ficar cansado? Quem pensava em
férias? Se, naquele momento, chegasse alguém dizendo: “Sou do
sindicato. Vocês não podem trabalhar mais do que quarenta ho-
ras!”, teria levado tantos pontapés na bunda que acabaria cantan-
do a Internacional em chinês. Quem ousava reivindicar alguma
coisa fazendo greve? Todos estavam, de algum modo, afundados
na lama, comendo poeira. Havia o front, os bombardeiros noturnos
e a fuga ainda entranhados, e davam graças a Deus por estarem
vivos.
Verão de 1947. Meio quilo de manteiga custava trezentos e cin-
qüenta Reichsmark; meio quilo de café, quatrocentos e cinqüenta
marcos. Quem ainda possuía sabonete de antes da guerra (existia
isso) — porque agora as pessoas se lavavam com sabão de argila
ou com uma coisa esponjosa tão leve que boiava na água — era
rodeado e bajulado. Exércitos inteiros saíam das cidades para o
campo, sitiando fazendas, trocando tapetes por queijo, pianos por
toucinho, máquinas de escrever por batatas, sabão em pó por be-

92
terrabas, panelas feitas de capacetes de aço por um repolho. Um
cigarro inglês ou americano custava seis marcos — os que podiam
fumar um por dia pertenciam à elite. Começavam as famosas
transações de trocas; não havia nada na Alemanha que não pas-
sasse de mão em mão... Se alguém precisava de uma tábua, co-
meçava por uma cafeteira trocada por um pacote de pregos. Os
pregos transformavam-se numa passadeira para o quarto, a pas-
sadeira numa leiteira amassada, a leiteira (nela podia-se preparar
mistela para destilação clandestina) transformava-se em três gar-
rafas de uísque de centeio chamado Habra, finalmente as três gar-
rafas de centeio produziam a tão desejada tábua com dobradiças e
tudo, e já se podia fazer uma porta!
Da região do Ruhr saíam, à noite, compridos trens de carvão
para a Bélgica e para a França. Noite após noite eles passavam,
enquanto no impiedoso inverno de 1946-47 as pessoas tremiam
junto às lareiras frias. De repente começaram a surgir no meio da
noite longas filas de salteadores nas barreiras, que penetravam
nos trens de carvão, jogavam os pedaços negros para os outros,
que os apanhavam e acondicionavam em sacos. Em Colônia, o
cardeal Frings declarou que não se tratava de roubo e que Deus
estava com os homens que lutavam por sua vida. Daí em diante
ninguém mais dizia “vou roubar carvão”, mas sim “vou fringsar”.
A guerra terminara, mas a paz era terrível. Dia a dia o dinheiro
perdia seu valor; as pessoas estavam ali com as mãos cheias de
Reichsmark e mastigavam seus cem gramas de pão de milho que
ou se esfarelava na boca ou era tão grudento que ficava preso nos
dentes.
Naquele verão de 1947 Julius Paskoleit disse a Erna Kurowski:
— Sempre dizem que nós, os sapateiros, somos uns azarados! A-
gora veja só onde estão os cultos, os instruídos! Estão batendo

93
pedras na estrada... mas nós estamos nos expandindo como mas-
sa de pão. Erna... mais um ano e podemos comprar uma casa no-
va!
A firma Sapateiro Ewald Kurowski, na periferia de Luebeck,
transformara-se num próspero empreendimento. Havia, agora,
mais dois aprendizes trabalhando na oficina ampliada; Paskoleit
podia dar-se ao luxo de comparecer uma vez por mês na Secreta-
ria de Finanças para exigir cupons para a aquisição de couro, pre-
gos, borracha, fivelas e linha, assustando com seus berros os fun-
cionários novamente enterrados em seus arquivos:
— O que significa apertar o cinto? Eu sei que vocês ficam aí
chocando seus cupons! Céus, que merda, nas próximas eleições
serei nomeado chefe da Câmara Municipal... Sabem o que quer di-
zer isso? Um Paskoleit chefe da Câmara Municipal? Não sabem.
Nunca estiveram numa tempestade de outono na Prússia Orien-
tal...
No fim de agosto de 1947, Paskoleit colocou uma garrafa de vi-
nho na mesa e sentou-se diante de Erna Kurowski, Ludwig, Peter,
a pequena Inge e Franz Busko. Pegou um jornal e abriu-o, na pá-
gina dos classificados.
— Antes de abrirmos a garrafa — disse —, ouçam. Passamos
dois longos anos sem tomar café, só chá de hortelã plantada e se-
cada por nós mesmos. Não fumamos e quase não gastamos ba-
nha. Você, Erna, aproveitou toda a gordura, guardou o café e jun-
tou os cigarros. Trabalhamos duro de manhã até tarde da noite, e
cada um de nós só parava quando não se agüentava mais de pé.
Se o avô Jochen ainda estivesse conosco, estaria berrando: “É is-
to!” Outros devoram uma fortuna, nós construímos uma. Querida
família, temos uma fortuna.
Mostrou o jornal e ergueu-o bem alto para que todos pudessem

94
ver o anúncio marcado em vermelho.
— Aqui estava escrito há três semanas: “Vende-se, a especialis-
ta, uma loja de sapatos que foi próspera mas agora está parcial-
mente destruída, em Leverkusen. Preço a combinar”. Escrevi sem
consultar vocês, negociei... A partir de 1.° de outubro seremos
proprietários de uma loja de sapatos com oficina em Leverkusen!
O que me dizem?
Erna Kurowski olhava fixamente para Paskoleit. Parecia não
compreender o que estava sendo dito ali. Mas logo perguntou:
— Quanto custa?
— Cinco pacotes de meio quilo de café, cinco quilos de banha,
dois mil cigarros e dez mil marcos...
— Toda a nossa fortuna, Julius
— Tudo!
Paskoleit deixou o jornal espalhar-se pelo chão.
— Para uma loja, Erna! Um negócio de verdade com grandes vi-
trines e uma loja e uma oficina com o dobro do tamanho, nos fun-
dos, como aqui. Em Leverkusen...
— Onde fica Leverkusen, Julius?
— A margem do Reno, entre Colônia e Duesseldorf. É um lugar
de futuro, Erna. Tem indústria, tem a Bayer, o Reno, nas costas
está a região do Ruhr. Tive coragem, Erna...
— Tudo o que possuímos! E, se não der certo, Julius? — Abra-
çou as crianças que tinham se achegado umas às outras. —
Se Ewald voltar...
— Ele poderá viver tão bem em Leverkusen como em Luebeck.
— Paskoleit pegou a garrafa de vinho e tirou a rolha. — Erna, fa-
çamos um brinde. Sobrevivemos ao treck, conseguimos sair da
lama... sempre tivemos coragem de tentar. Qual é nosso lema?
— Não nos deixaremos abater! — exclamaram as crianças

95
Paskoleit concordou com a cabeça.
— Aí está, Erna, é o futuro que nos chama! Por ele galgaremos
a escada Droga, Franz... você está sentado aí como um camelo. O
que me diz?
E Franz Busko disse, compenetrado:
— Você e o mestre! Para mim é a mesma coisa pregar tachi-
nhas nas solas em Leverkusen!
— Então está bem. — Paskoleit riu, inclinou-se sobre a mesa e
beijou Erna na testa. — Ria também, Erna... Invadiremos Le-
verkusen com duas mil solas de borracha feitas com os pneus do
vovô. Com tal exército conquistarei nosso futuro!
Tinha início a ascensão dos Kurowski, que nada poderia deter.

96
CAPITULO 10

A “loja de sapatos parcialmente destruída’’, no melhor ponto de


Leverkusen, revelou-se como um monte de ruínas. Verdade que a
casa ainda estava de pé; ou melhor, podia-se deduzir, pelas pare-
des externas, que fora uma casa bela e imponente, mas da exis-
tência de uma loja testemunhavam apenas as molduras vazias
das vitrines e, atrás delas, a sala, bastante espaçosa, cheia de en-
tulho. Só era verdade ‘‘ o melhor ponto...” Ficava perto da estação
ferroviária, também destruída, bem no que se poderia chamar de
centro da cidade, numa rua pela qual todos passavam, de certa
maneira a porta de Leverkusen, mas que agora não passava de
um caminho aberto entre ruínas e montes de entulho.
A família Kurowski perdeu a fala ao contemplar sua nova pro-
priedade, com malas e caixas de papelão a seu lado na calçada,
sacolas e um cesto de vime que Franz Busko carregara nas costas
como uma mochila. As duas mil solas de borracha, os móveis da
oficina de sapateiro, as velhas máquinas, toda a mobília e os u-
tensílios da casa reformada de Luebeck seguiam num vagão de
carga do norte para o sudeste. Também aqui foi um quilo de man-
teiga e meio quilo de café que fizeram com que a mudança fosse
despachada logo e o vagão fosse atrelado aos próximos trens para
a Renânia.
— Mas que bosta — disse Busko com o olhar fixo sobre as ruí-
nas. —Já sabia disso, mestre?

97
— Já desconfiava, Franz. — Paskoleit colocou o braço no om-
bro de Erna Kurowski. — Agora não comece a chorar, irmãzinha...
Cuspir nas mãos é mais importante. Para isso você precisará de
toda umidade, não para gastá-la em lágrimas... O que acha que
vovô diria se ainda estivesse entre nós?
— Seu idiota, é o que ele diria!
Erna Kurowski sorriu em meio às lágrimas.
— E logo ia berrar: mãos à obra, rapazinhos! Dentro de três
semanas pregaremos as primeiras solas!
— Por mim...
Franz Busko sentou-se numa das malas mais pesadas carre-
gadas da estação até a nova casa. O antigo proprietário ainda não
aparecera, embora tivesse escrito que estaria lá para receber a fa-
mília Kurowski. Parecia sentir que, naqueles primeiros minutos
em sua nova terra, Julius Paskoleit teria pago a última prestação
do contrato de compra com os punhos. “Vou deixar que eles se
acostumem”, pensou. “Estão vindo de um campo de refugiados e
de uma barraca, precisam habituar-se primeiro ao ambiente me-
tropolitano. Se forem quem Paskoleit disse que são, dentro de al-
guns anos terão aqui uma mina de ouro.”
Alguns anos... Meu Deus, para agüentá-los seria preciso ter
costas de concreto!
— Então vamos — disse Paskoleit com sua voz rude, esfregan-
do as mãos. — Estamos aqui, a casa é nossa, tenho o contrato de
compra no bolso. — Colocou a mão direita sobre o paletó em cujo
bolso interno estalava o documento: Julius compra a casa da
Nordstrasse, 34, com todos os pertences e objetos descritos. O sol
brilha, o verão é a melhor época para arregaçar as mangas... então
vamos lá!
— E onde dormiremos? — perguntou Erna.

98
— Toda casa tem um porão, minha irmã.
— Se não foi afundado pelas bombas...
— Isto veremos! Começaremos como gente normal... de baixo
para cima! Franz!
— Mestre?
— Ao porão!
Afinal constataram que nem tudo era tão desanimador como
parecia, visto do lado de fora. O porão estava intacto, era onde o
proprietário tinha morado até dois dias atrás. Havia água e esgoto,
luz elétrica e uma privada, paredes emassadas e até um aposento
com papel de parede de florzinha... a sala de estar.
— E então? — disse Paskoleit após visitar o porão com Erna e
as crianças, como se penetrassem num palácio. E divagou, reti-
cente: — Água e luz... Com isso construiu-se a civilização. Nem
um Paskoleit precisa de mais do que isso. Em poucas semanas...
até a chegada do inverno, com certeza, estaremos novamente fora
do buraco. Está com medo, Erna?
Erna Kurowski estava sentada na sala de estar, em cima das
malas, as crianças a sua volta, como uma galinha com seus pinti-
nhos. Era capaz de chorar, de gritar, quando pensava na bela pér-
gola de Luebeck, no jardim cheio de flores, nos amigos que arran-
jara, na proximidade do mar e na sensação de segurança. Fora-se
tudo, vendido por um monte de ruínas, trocado por um porão es-
paçoso, porém sufocante — quando o vento soprava do lado da fá-
brica de tintas Bayer, já reativada, trazia consigo uma nuvem in-
visível fedendo a remédio.
— Não tenho medo, Julius — disse corajosamente e voltou a
sorrir, embora lhe escorressem grossas lágrimas dos olhos. — Só
que... é tudo tão estranho...
— Temos de nos adaptar ao que é estranho, Erna.

99
Paskoleit tirou o paletó e enrolou as mangas da camisa. Tinha
braços fortes e musculosos e um tórax largo... uma árvore prussi-
ana que nenhuma tempestade é capaz de derrubar.
— Para Adamsverdruss não voltaremos nunca mais.
— Tem certeza?
— Eu tenho certeza! A guerra está perdida... o perdedor tem de
pagar. É natural. Pagamos com a Prússia Oriental e a Silésia, po-
dem gritar quanto quiserem sobre direito pátrio e sobre volta.
Droga, vai demorar muito até que entendam, mas eu acho que
Ludwig, Peter e Inge irão compreender isso quando crescerem. Pa-
ra os filhos deles a Prússia Oriental não passará de um pontinho
no mapa. A política é um processo de gerações... deixaremos que
nos vença? Nunca, não um Paskoleit. Começaremos a conquistar
o mundo novo!
— Deveria ingressar na política, mestre — disse Franz Busko,
impressionado — Falar o senhor sabe...
— Eu sou sapateiro!
Paskoleit bateu palmas.
— Isso é mais do que político, Franz. O que é um político des-
calço? O que pensarão dele prometendo mundos e fundos, de pé
no chão?... Vamos, para a rua!
A família Kurowski começou a reconstruir a casa da Nordstras-
se, 34.

Mesmo na Alemanha destruída de 1947 tudo já voltara à mais


perfeita ordem burocrática. Havia, realmente, um monte de gente
indo para o campo, pegando carona nos estribos dos trens, em ca-
minhões, nos vagões de carga, em automóveis movidos a gasogênio
e em bicicletas, até a Baviera, onde invadiam as fazendas mais a-
fastadas como nuvens de gafanhotos, apenas para trocar um quilo

100
de batatas, um pedaço de toucinho, um vidro de banha ou um
pouco de manteiga. Tribunais para pequenas causas passavam ho-
ras julgando mulheres e homens macilentos, presos em flagrante
ao furtar repolhos, alfaces e nabos dos campos. Sentenciavam-nos
a multas em dinheiro ou a alguns dias de prisão, até que as cadei-
as arrebentavam de cheias e tinha-se de esperar dois anos para
poder cumprir a pena. Apesar de uma corrida constante atrás da
sociedade, a única preocupação importante dos alemães naquele
ano, aliada ao medo do inverno que se aproximava, as autoridades
funcionavam com uma precisão que chegava a ser pérfida.
Paskoleit teve trabalho durante catorze dias até conseguir re-
gistrar seu negócio em Leverkusen. Informou seu ofício, a mudan-
ça, a compra da casa, a instalação de uma oficina com loja; en-
frentou filas nos guichês das repartições e requisitou vidraças,
couro, pregos, tachinhas, linhas, tintas, piche, cola e tecido para
seu trabalho; discutiu com os funcionários que achavam que con-
ceder uma licença para uma firma não era tão importante como a
distribuição de mercadorias racionadas; aí soube que, na adminis-
tração regional, o inspetor geral era um velho conhecido de Passe-
nheim, e conseguiu chegar até ele.
— Paskoleit! — disse o inspetor geral. — Não, rapaz, nem acre-
dito! Em Leverkusen! Venha, tome uma aguardente. Fabricação
caseira! Afinal, o que aconteceu com Adamsverdruss?
Naquela época a sorte sorria a quem tivesse um primo — ou
mesmo só um velho conhecido com um coração de ouro — no lu-
gar certo. Paskoleit deixou o inspetor geral de Passenheim cheio
de promessas de que a casa e a loja teriam o apoio da administra-
ção municipal.
E vejam só... agora tudo funcionava. Até o fim de outubro ter-
minaram a construção do primeiro andar e, após forrar o teto com

101
feltro, estavam prontos para a chegada do inverno. As vitrines es-
tavam prontas, a loja caiada, a oficina arrumada e, atrás dela,
uma pequena construção para servir de moradia.
— Você tem até um jardim — disse Paskoleit a Erna Kurowski.
— Verdade que só tem quatro metros por cinco... mas para plan-
tar salsa e alho-poró é o suficiente.
Era um jardim triste, imprensado entre a construção e o muro
alto e rachado da casa da rua paralela; um pedacinho de terra
cheio de entulho, sobre o qual pairava, como uma janela quadra-
da, o céu azul. Ludwig, agora com doze anos, e Peter, com sete,
juntavam as pedras e revolviam a terra, enquanto Inge, com ape-
nas quatro anos, arrumava uma caixa de areia num caminho en-
costado à parede da casa, para brincar. Erna Kurowski enterrava
barras de ferro, mais tarde laqueadas de branco por Franz Busko,
para o varal de secar roupas. A principal preocupação de uma do-
na-de-casa.
No dia 9 de novembro...
— Que dia mais besta! — disse Paskoleit. — Mas não tem outro
jeito, isso não tem nada a ver com a marcha sobre a Feldherrnhal-
le...
Realizou-se a inauguração da loja e da oficina. Sobre a porta da
loja não se lia mais Sapateiro Ewald Kurowski, mas uma grande
placa, larga, de fundo azul, anunciava em letras amarelas lumino-
sas: WESTSCHUH.
Paskoleit explicou:
— Na Renânia, Kurowski é um nome que não atrai. É preciso
usar de psicologia, Erna. Westschuh, o sapato do oeste... isto os
atinge no coração! E parte deles. A vida é assim ... Nós tínhamos
orgulho de sermos prussianos orientais, temos orgulho até hoje,
Erna! E estes aqui orgulham-se de serem da Renânia. Alemães

102
somos todos, então que mal há em que nos integremos? Que acha
de Westschuh?
— Acho bom, Julius — disse Erna Kurowski sem tirar os olhos
da grande placa sobre a entrada da loja. As vitrines ainda estavam
vazias.
— Mas quando Ewald voltar...
— Ewald pensa como eu, fique certa disso. — Paskoleit, satisfei-
to, colocou as mãos nos bolsos das calças. — A firma Westschuh é
uma sociedade limitada... Ewald, você, as crianças, eu e Franz so-
mos sócios. E amanhã vou fazer uma viagem a Pirmasens.
— O que pretende fazer lá? — perguntou Erna, confusa.
— Em Pirmasens mora Heinrich Ellerkrug.
— E quem é ele?
— Heinrich possuía uma pequena fábrica de sapatos em Koe-
nigsberg. Seu cunhado, Fritz Kaemper, é o dono da Kaemper-
Schuhwerke em Pirmasens. E, no jornalzinho especializado em ar-
tigos de couro, eu li que Heinrich Ellerkrug é, agora, gerente da
Kaemper. Desconfia de algo, Erna?
— Sim, Julius. E você acha...
— Garota, eu sei! Um piolho é inofensivo comparado a Julius
Paskoleit. Vou me infiltrar na Kaemper-Werke...
No dia 10 de novembro Paskoleit, levado à estação por toda a
família, viajou para Pirmasens. Franz Busko ficou tomando conta
da loja... Para vender, só havia as sandálias comuns com sola gros-
sa de madeira... mas no depósito possuíam duas mil solas feitas
dos pneus roubados pelo avô, um capital que agora rendia altos ju-
ros. Em três dias Busko aceitara setenta e nove serviços de conser-
to... Trabalhava das cinco da manhã até uma hora da manhã se-
guinte, dormindo apenas quatro horas. A seu lado, sentada no
banquinho, Erna alisava as beiradas das solas com lixa de papel.

103
Paskoleit passou dez dias em Pirmasens e Erna Kurowski mor-
ria de medo que lhe tivesse acontecido algo. Os jornais descreviam
assaltos e assassinatos, às vezes por nada mais que meio quilo de
toucinho. Formavam-se verdadeiras quadrilhas.
A guerra estava acabada... voltava-se aos tempos normais.

No décimo primeiro dia após sua partida para Pirmasens, de


repente lá estava Paskoleit na loja, como se fosse um freguês. Er-
na abriu um largo sorriso quando veio andando lá dos fundos e
disse, como de costume, sem olhar:
— Pois não, o que deseja?
Aí estacou e ficou olhando para o irmão.
— Sopa de ervilhas com toucinho para dois! — disse alegre-
mente Paskoleit. — Erna, trouxe-o comigo. Ele quer ver se somos
uma boa firma!
— Quem, meu Deus?
— Heinrich Ellerkrug!
À porta da loja encontrava-se um homem alto, esbelto, cabelo
preto crespo, acinzentado nas têmporas, elegante, quase aristocrá-
tico — o avó Jochen diria “um verdadeiro senhor” —, que acenou
para Erna com as luvas de couro claras que segurava na mão di-
reita. Toda a sua aparência emanava satisfação e sucesso, sacie-
dade e despreocupação... pequenos milagres naquele tempo.
Erna Kurowski não soube explicar, mas, ao ver Heinrich Eller-
krug ali na porta da loja, sentiu-se confusa, o coração bateu mais
forte e teve de lutar para não ficar vermelha.
— Isto... Isto é ótimo... — gaguejou. —Já estávamos pensando
que Julius tinha desaparecido... como meu marido!
As últimas palavras foram ditas com a intenção de armar-se de
alguma força interior, de erguer um muro entre ela e o elegante

104
Ellerkrug. Lutou contra, mas pouco adiantou... O olhar radiante
atingiu-a como um raio, sentiu-o penetrar, disse a si mesma como
para se defender: “Ewald! Ewald! Ewald!” E, contra toda a sua for-
ça de vontade, o rubor lhe subiu às faces.
— Quando o Heinrich se convencer de que a Westschuh é uma
loja sólida e que os sapatos Kaemper não são chiques demais para
ela, então ele vai ser nosso fornecedor. Erna, sabe o que isso signi-
fica? Teremos a loja de sapatos mais moderna de Leverkusen!
Voltou-se para Ellerkrug e, num movimento, abarcou tudo com
a mão.
— Como é, Heinrich? Ainda em fase de construção, mas você
conhece o Paskoleit! Melhor ponto da cidade! E com uma chefe as-
sim...
— Só isso já é capaz de me convencer.
Ellerkrug aproximou-se, tomou a mão de Erna e beijou-a. Era
a primeira vez que beijavam sua mão... Ficou parada, durinha
como uma estátua de pedra, e nem percebeu que sua mão conti-
nuava na de Ellerkrug.
— Juntos, sra. Kurowski, faremos desta loja uma jóia. E quan-
do acabar essa história de racionamento e cupons... um dia ter-
mina, eu garanto... todos verão para que lado sopra o vento!
— Heinrich dirige um Mercedes — disse Paskoleit enquanto
Erna continuava calada —, e ele consegue toda a gasolina de que
precisa do governo militar francês. E que organização eles têm lá
em Pirmasens... uma doçura. Bem, agora vá fazer uma sopa de
ervilhas! Você continua gostando de sopa de ervilhas como anti-
gamente, não, Heinrich?
— Continuo.
Ellerkrug pousou o olhar no fundo dos olhos azuis e irrequietos
de Erna. “Como é bonita”, pensou. “Seu cabelo é luminoso como

105
trigo maduro. Trinta e um anos, disse Paskoleit, e tem três filhos.
Não parece. E miúda e acanhada como uma mocinha. E com tudo
isso sabe dar duro como um trabalhador do campo da Prússia O-
riental. Maldição, é realmente uma sorte possuir uma mulher as-
sim...”
Heinrich Ellerkrug permaneceu oito dias com os Kurowski. Fez
o que os homens inteligentes sempre fazem quando desejam con-
quistar as mães — uma ponte sobre as crianças a fim de chegar
mais perro de Erna. Comprava-lhes chocolate no mercado negro,
trazia manteiga e grandes porções de carne (dinheiro não era pro-
blema para ele); brincava com Inge na caixa de areia, ajudava Er-
na a estender a roupa e dava aulas de latim e matemática a Lud-
wig, que estava freqüentando o ginásio.
— Homenzinho nojento, mestre — disse, na oficina, Franz
Busko a Paskoleit. — Fica cercando a mestra como uma raposa
perseguindo um ganso.
— Ellerkrug é nosso futuro, Franz!
— E quando Ewald retornar?
— Ele não volta, Franz. — Paskoleit olhava fixo para seu local
de trabalho. Era difícil dizer aquilo. — Ewald foi devorado pela
Rússia. Temos de nos conformar. Mas Heinrich Ellerkrug está a-
qui... não podia acontecer-nos nada melhor...
Num sábado pela manhã — Erna limpava a loja — Ellerkrug,
encostado no balcão após ter esvaziado quatro baldes de água su-
ja e buscado água limpa, disse:
— Erna, estou com quarenta e cinco anos de idade. Minha mu-
lher morreu num bombardeio aéreo em 1944, em Koenigsberg.
Não tenho filhos, Mas tenho uma situação segura e logo serei só-
cio da fábrica de sapatos Kaemper. Gostaria de dizer-lhe, Erna...
— Não! — disse Erna Kurowski. Olhou para cima, esfregando

106
com força, cheia de desespero, o piso à frente do balcão. — Por fa-
vor, não. Esperarei por Ewald... Um dia ele voltará.
— E se não voltar? Quer desperdiçar esta vida jovem, maravi-
lhosa? Erna... não somos mais umas crianças tolas. Conhecemos
a vida e já estivemos no inferno. Agora temos o direito a um peda-
cinho de céu. Erna...
Ergueu-a do chão, envolveu-a com os braços e beijou-a. Ela
não se defendeu, apenas manteve-se rígida. Ao mesmo tempo sen-
tia lá no fundo: “Meu Deus, como esperei por este beijo. Peço-lhe
perdão, meu Deus...”
Depois afastou-se de Ellerkrug e meneou a cabeça.
— Não — disse baixinho —, não! Heinrich... é... ainda é muito
cedo. Dê-me um tempo... mais um ano. Só mais um ano.

107
CAPITULO 11

No dia seguinte Heinrich Ellerkrug voltou a Pirmasens. Erna,


sozinha, levou-o até o trem... Paskoleit desculpou-se, alegando
muito trabalho acumulado por Franz Busko, durante os dez dias
em que estivera ausente, e além disso a campainha da loja tocava
agora sem interrupção, já que a notícia correra por toda Leverku-
sen de que havia um novo sapateiro da Prússia Oriental, capaz de
pregar solas em calçados velhos fazendo-os parecer novinhos. E,
diziam, além de coisas para comer, o idiota aceitava dinheiro.
— Então, nada — disse Paskoleit após uma hora, quando Erna
Kurowski voltou da estação. — Uma bobinha é o que você é, Erna!
— Amo o Ewald, Julius. E ele não está morto!
— Poderíamos fazer com que o declarassem morto.
— Nunca, Julius, jamais! De repente ele aparece... e eu me
chamo Ellerkrug e posso me enforcar!
— Se ele ainda vivesse já teria dado sinal de vida. — Paskoleit
passou a mão na testa molhada de suor. A seu lado amontoavam-
se os sapatos para consertar. — Eu sei, eu sei... é seu pressenti-
mento. Mas temos de ser realistas, Erna. Heinrich está aqui, isto é
importante. Está apaixonado por você. Ele me disse. Foi atingido
como por um raio. Já na porta, quando a viu. Esta ou nenhuma,
foi o que pensou. E o que faz você? Banca a madona. Erna... é to-
da uma fábrica de sapatos, os calçados Kaemper, de luxo, relações
comerciais com a Itália... Será o maior sucesso, diz o Heinrich, os

108
italianos vão ditar a moda... Designer é como eles chamam... Vão
revolucionar a moda dos sapatos e nós poderemos estar bem no
meio disso tudo e só precisaremos estender os aventais como no
conto de fadas em que chovia ouro do céu. E que idéias o Heinrich
tem! Quer fundar uma cadeia de lojas. Westschuh em toda a Ale-
manha, como Tengelmann e Kaiser estão para o café; o senhor e-
legante, a senhora moderna usam Westschuh. Slogans desse tipo
ele pretende lançar... e vai dar certo, posso afirmar, isso dá futu-
ro... E você o manda embora, dá adeus na estação, é teimosa co-
mo uma mula.
— Então você já tinha tudo tramadinho? — perguntou Erna. —
Deveria envergonhar-se, Julius. Tenho três filhos.
— Mas que não têm pai, diabos! O Heinrich gosta das crianças,
e as crianças, nestes poucos dias, já se acostumaram ao Heinrich.
Nisto não há nenhum empecilho. Não... Você tem de admitir que
Ewald ficou jogado em algum lugar da Rússia. É isso aí.
— Sim, é isso. Quero esperar mais um ano, foi o que eu disse
ao Ellerkrug.
— É a primeira coisa sensata. Um ano passa voando.
Paskoleit tornou a pegar no martelo de sapateiro. Na loja,
Franz atendia os fregueses e dava graças a Deus por não estar na
oficina naquele momento.
— Uma coisa eu garanto: Heinrich não vai desistir!

Uma semana mais tarde receberam a primeira remessa de cal-


çados Kaemper. Paskoleit conseguira, através das vastas relações
de Ellerkrug, uma quota especial. Logo que estavam arrumados
nas vitrines — para dezembro de 194.7 eram criações verdadeira-
mente sensacionais em couro, tecido e borracha —, as pessoas
acotovelavam-se diante das duas vitrines da Westschuh. Paskoleit

109
deu uma entrevista ao repórter do jornal local publicado sob licen-
ça dos ingleses, sobre a transformação da moda de calçados, pas-
sando do útil ao belo, passando a vender — naturalmente só por
cupons — esses artigos de sonho pelo preço normal.
Para um número exato de trezentas e quarenta e oito famílias,
o Natal de 1947 foi uma festa muito especial.
Não, porém, para Paskoleit. Quatro dias após a apresentação
da coleção Kaemper e a notícia de que Paskoleit vendia os sapatos
ao preço normal, apareceram dois senhores de olhar sisudo. Apre-
sentaram-se como Huebner e Runzenmann, o que não significava
nada para Paskoleit, mas ele ficou mais animado quando eles dis-
seram:
— Somos colegas seus. Temos uma loja de sapatos na Rheins-
trasse e no Herwarthweg.
— Ah — respondeu Paskoleit. — O que posso oferecer-lhes,
queridos colegas?
— O senhor tem um senso de humor bastante tolo — disse
Runzenmann, com rispidez. — O que é isso? Sapatos pelo preço
normal?! Estes sapatos? Está maluco?
— Como? As pessoas têm cupons... portanto têm direito a ad-
quirir sapatos.
— O senhor pode, mesmo, ser tão bobo? — Huebner estava en-
costado no balcão. — Agora as pessoas invadem nossas lojas que-
rendo estes mesmos sapatos! Não aquelas sandálias tipo tamanco,
mas sim modelos elegantes! O que a Westschuh pode, dizem, vo-
cês também devem poder.
— E os senhores não podem? — perguntou Paskoleit.
— É lógico que temos sapatos de boa qualidade! — bufou Run-
zenmann.
— Pois então?

110
— Mas estão estocados. O senhor entende? Estão escondidos,
para falar bem claro. Até o dia em que o marco voltar a valer al-
guma coisa! Aí, sim, jogaremos a mercadoria na vitrine e só preci-
saremos estender a mão. Isto é valorizar o capital, entende? E aí
vem o senhor para vender tais sapatos agora, por cupons, ao pre-
ço normal!
— Porque as pessoas têm esse direito!
— Realmente, ele é bobo mesmo — disse Runzenmann a Hu-
ebner, num tom amargo.
— Quer dizer que estão querendo me convencer a fazer o mes-
mo, estocar meus sapatos de qualidade, tirando-os de circulação?
— disse Paskoleit com uma calma perigosa.
— Isto quer dizer que não permitiremos que um cigano como o
senhor venha estragar nosso negócio e, principalmente, nossa re-
putação! — gritou Runzenmann, zangado. — Pode ser praxe na
Prússia Oriental... mas aqui estamos na Renânia. Com métodos
de mercador de gado judeu não irá muito longe por aqui, meu ca-
ro! Nós o impediremos.
Paskoleit não respondeu. Mas inclinou-se sobre o balcão, to-
mou impulso e acertou Runzenmann com o punho bem no meio
do nariz. Runzenmann caiu nos braços de Huebner, olhou apavo-
rado para Paskoleit e sacudiu-se como um cão molhado.
— Isso foi um erro — disse baixinho —, seu imbecil desgraça-
do! Acho que não preciso dizer que, a partir de amanhã, todos da
nossa profissão estarão contra o senhor! Ainda o veremos partir
com um carrinho de mão, tal como sua raça veio do leste...
— Mais uma palavra — disse Paskoleit com calma, colocando
os grandes punhos sobre o balcão — e os senhores precisarão de
um cirurgião plástico...
— Então é guerra!

111
Huebner empurrou Runzenmann, que já queria começar a ber-
rar, para a porta da loja.
— Vai tê-la, Paskoleit! Até que compreenda que somos os mais
fortes!
Depois de ouvir a porta da loja bater, Franz Busko saiu da ofi-
cina. Sua comprida cara de cavalo tremia. Tinha na mão uma lon-
ga sovela.
— Ouvi tudo, mestre — disse, arfando de indignação. — Agora
tenho um motivo para fazê-lo.
— Fazer o quê?
— Entrar para o Partido!
— Franz, você num Partido? E qual deles?
— Posso escolher. Já fui procurado por todos eles. O que mais
me agrada é o Liberale Fortschrittspartei. Comumente chamado
de LFP. Tem gente decidida! E isso nós também somos!
Paskoleit ficou observando seu auxiliar. Havia algo de como-
vente, de paternal em seu olhar.
— Sua intenção é boa, Franz — disse devagar —, mas pense
bem: o que fará na política? Você não sabe nada. E com seu pul-
mão...
— Desde que a guerra acabou, mestre, meu pulmão está no-
vamente em forma! Era o clima do uniforme que me pesava.
— Para a política é preciso ter um pouco de miolo, Franz.
— Já houve idiotas maiores que eu que se tornaram figurões
políticos. Mas o caso não é este: no Partido posso fazer amizades,
amizades úteis para nós, mestre, amizades contra esses Runzen-
mann e Huebner. Isso é que é importante. Amanhã apresento-me.
Daquele dia em diante Paskoleit vendia aos fregueses os lindos
sapatos Kaemper com maior amabilidade ainda. Quatro dias antes
do Natal de 1947, quando a situação dos alemães era tão penosa

112
que um repórter americano escreveu no New York Times: Mesmo
um poeta não encontraria palavras para descrever o que se passa
na Alemanha.,., Paskoleit recebeu uma remessa especial de cin-
qüenta pares de sapatos. Ellerkrug os enviara por via expressa.
Não só em Leverkusen, mas em todos os lugares, até Colônia e
Duesseldorf, falava-se em Julius Paskoleit. Por outro lado Run-
zenmann — assim diziam — fora ameaçado de surra por fregueses
exaltados.
— Tenho medo — disse Erna Kurowski um dia antes da véspe-
ra de Natal. — Eles não vão deixar as coisas assim. Dizem que é
provocação. Farão alguma coisa.
— Deixe que venham — disse Paskoleit com obstinação. — Não
me curvo diante do terrorismo, muito menos diante desses farra-
pos humanos que enganam os pequenos e ficam estocando e esto-
cando...
Olhou as prateleiras vazias. A Westschuh esgotara seu estoque.
— Depois do Natal começaremos de verdade! O Ellerkrug está
em negociações com a Itália. Os meninos lá do sul querem forne-
cer um vagão lotado de calçados. Sabe Deus quanto o Heinrich
lhes ofereceu... Da remessa, quatrocentos pares são para nós! Os
requerimentos já estão correndo na Secretaria de Finanças. O He-
inrich está cuidando de tudo...
— Você sabe mentir mais depressa do que bater tachinhas nas
solas — disse Erna, baixinho —, e mesmo que você enfeite o Hein-
rich com todo o ouro do mundo... não cederei. Essa coisa de Se-
cretaria de Finanças é com você mesmo.
— E o Franz. — Paskoleit sorriu com satisfação. — Os caras do
Liberale Fortschrittspartei já o elegeram para a direção. Agora tu-
do o que precisa fazer quando encontra uma porta fechada é so-
prar, e zás!, ela se abre! Nosso Franz! Tuberculoso safado! Em ja-

113
neiro fará seu primeiro discurso pelo Partido!
— Céus, e ele sabe fazer isto?
— Ora, não se assuste, Erna.
Paskoleit tirou o cachimbo do bolso e acendeu-o. Dava uma
impressão de força e segurança incrível.
— Vou escrever o discurso para ele, basta que leia. E isso ele
sabe. Tenho um pressentimento de que Franz ainda vai fazer car-
reira na política. Saber ler fluentemente é um dos segredos de po-
líticos bem-sucedidos.
Mas, ainda que Franz Busko pudesse pronunciar seu primeiro
discurso, sucedeu uma coisa terrível: Inge, agora com seis anos,
não voltou do Jardim de Infância das Irmãs Bem-Aventuradas do
Sagrado Coração ao meio-dia de 10 de janeiro de 1948. Erna Ku-
rowski esperou até as duas horas, então correu até a escola. Sou-
be pela Irmã Sofia que Inge saíra pontualmente com sua lanchei-
ra. Já que a casa das irmãs só ficava a três quarteirões da loja de
Paskoleit e como a menina era educada para ser independente,
ninguém ia levá-la e buscá-la. Durante mais de meio ano tudo
correra bem... até o dia 10 de janeiro de 1948.
Desesperada, sem saber o que fazer, Erna correu de volta à lo-
ja. Paskoleit, que finalmente conseguira um telefone cinco dias an-
tes (o membro do Partido Franz Busko fizera uma insinuação dis-
creta à direção dos Correios), ligou logo para o distrito policial, o
hospital, o pronto-socorro. Sempre a mesma resposta: “Aqui não
sabemos de nada. Não deu entrada nenhuma menina lourinha de
seis anos.”
— Foi raptada... — balbuciou Erna. — Eu já estava com um
pressentimento... Senti algo esquisito... Levaram a Inge. Nossa as-
censão foi rápida demais e caiu muito na vista. Oh, meu Deus!
Soltou um grito agudo e penetrante, jogou os braços para cima

114
e desmaiou.
Erna foi levada para o hospital em estado de choque profundo.
Paskoleit, entretanto, telefonou para Pirmasens.
— Heinrich — disse, com a voz embargada. — Heinrich, venha
logo! Erna precisa de você agora! Raptaram Inge.
E Ellerkrug gritou no telefone:
— Viajo imediatamente! Quando os raptores telefonarem pe-
dindo o resgate, concorde com qualquer importância. Qualquer
uma, ouviu? Eu me responsabilizo.
Paskoleit desligou. “Ewald”, pensou, “se realmente você ainda
está vivo... agora não pode fazer nada. Que Deus nos amaldiçoe
ou nos proteja... Heinrich ajudará a recuperarmos Inge, e isso Er-
na não esquecerá nunca. Mas você morreu, Ewald, e com isso to-
dos os problemas, na verdade, terminaram.”
Paskoleit levantou-se. De repente, colocou a mão no coração e
estancou o passo. Sentiu umas pontadas lá no fundo do peito.
Não era dor, só uma coisinha leve, como um choque elétrico, mas
ao mesmo tempo era como se estivesse sendo espetado por agu-
lhinhas finas.
Respirou fundo algumas vezes, seu largo tórax avolumou-se, a
sensação esquisita desapareceu e foi esquecida por Paskoleit.

Ellerkrug devia ter viajado sem parar. Já na manhã seguinte


estava em Leverkusen.
A polícia acabara de sair após fazer as perguntas de praxe so-
bre o tipo físico de Inge, o que vestia, sinais característicos, se
Paskoleit suspeitava de alguém... perguntas que se perdiam no
espaço. Um motorneiro de bonde vira Inge por último: estava pa-
rada diante da loja de brinquedos dos irmãos Wattzke contem-
plando uma boneca de pano. A loja dos irmãos Wattzke ficava na

115
próxima transversal, quase visível da loja de sapatos de Pasko-
leit.
Ao meio-dia tocou o telefone. Paskoleit atendeu e ouviu uma
voz evidentemente disfarçada:
— Amanhã, vinte e uma horas com cem mil marcos. Local a ser
informado.
Antes que Paskoleit pudesse responder ou perguntar qualquer
coisa, o homem desligou.
— Cem mil! — disse Paskoleit, pálido, a Ellerkrug. — Erna tem
razão, sim. Subimos tanto que agora vale a pena atacar-nos! Hein-
rich, não há nada mais baixo do que o homem! Aí está a Alema-
nha, despedaçada como um velho vaso de plantas, mas o desgra-
çado do fungo já está aí, crescendo e proliferando. Não existe nada
capaz de extinguir a raça dos vigaristas, nem mesmo uma guerra.
Paskoleit e Ellerkrug esperaram sete dias por uma notícia dos
raptores. Todo dia visitavam Erna no hospital e, quando ela os o-
lhava sem dizer nada, Paskoleit já balançava a cabeça na porta e
também ficava calado.
— Ela volta — dizia Ellerkrug, e passava horas segurando as
mãozinhas pálidas e frias de Erna. — A criança não lhes serve para
nada... Estão interessados é nos cem mil marcos. E estes estão
prontinhos. A polícia também não saberá de nada... até recuperar-
mos Inge.
A espera massacrava os nervos de Paskoleit, embora bancasse
o forte. Aquelas pontadas no coração voltavam, vez ou outra, mas
quando respirava fundo sempre passavam. Torturado pelo passar
do tempo, não saía de perto do telefone, até dormia ao lado do a-
parelho.
Franz Busko, por outro lado, era todo atividade. Seu primeiro
discurso partidário foi um grande sucesso. Leu com grande entu-

116
siasmo o que Paskoleit escrevera e, em seguida — num momento
propício —, e no melhor estilo da Prússia Oriental, fez um discur-
so fulminante contra o banditismo. Pediu a pena de morte para
raptores — como na América —, o que lhe valeu delirantes aplau-
sos. Depois prosseguiu na leitura do manuscrito bem elaborado de
Paskoleit e no final recebeu as felicitações de toda a direção do
Partido. Não restavam dúvidas: Franz Busko era um político nato.
Só lhe faltava um pouco de polimento: precisava aprender a em-
pregar corretamente o “me” e o ‘‘mim”. Mas isto nunca chegou a
arruinar uma grande carreira política!
Finalmente, no oitavo dia após o desaparecimento de Inge, o
chantagista tornou a telefonar. Com a maior brevidade possível,
para evitar uma eventual localização, ele disse:
— Cem mil, hoje às vinte e três horas, auto-estrada Colônia—
Frankfurt, parada Koenigsforst. Entrar com luzes apagadas, jogar
dinheiro pela janela. Inge estará na saída da parada, amarrada a
uma árvore. Fim.
— Cachorrão — gaguejou Paskoleit. — Que grande porco. A-
marrada a uma árvore, uma criança... Nem podemos contar isto a
Erna...
— Pelo amor de Deus, não!
Ellerkrug passou a mão pelos olhos.
— Amanhã cedo levaremos Inge ao hospital. Vamos, podemos
começar a contar. Cem mil marcos são um bocado de papel...
Às vinte e duas horas e trinta minutos Ellerkrug e Paskoleit
embicaram, com o Mercedes de Ellerkrug, na auto-estrada Colô-
nia—Frankfurt. No banco de trás estava a mala com o dinheiro.
Era uma noite escura e fria. O céu pesava sobre a Terra.
Começou a nevar.
Ellerkrug dirigia devagar e com cuidado, mas também foi fi-

117
cando cada vez mais nervoso à medida que se aproximavam de
Koenigsforst.
Às vinte e três horas em ponto chegaram à parada e saíram da
estrada.

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CAPÍTULO 12

Foram os únicos a entrar na parada; Ellerkrug e Paskoleit


permaneceram com o olhar fixo, através da janela do carro, sobre
a coberta intacta de neve. Grandes flocos flutuavam diante dos fa-
róis, o silêncio era tão grande que o barulho do motor soava como
uma série de explosões. Da estrada não lhes chegava som algum,
os poucos carros que recebiam cupons de gasolina das au-
toridades podiam ser contados e constituíam raríssimas exceções,
e quem quer que estivesse dirigindo com aquele tempo fazia-o com
tanto cuidado que seu automóvel mais parecia rodar sobre ovos
do que sobre pneus de borracha.
— Nada — disse Paskoleit, deprimido —, nenhuma outra mar-
ca de pneu. Pregaram-nos uma peça.
Apertou os dedos rígidos até estalarem.
— Heinrich, estou com medo. Se esses velhacos sujos tiverem
assassinado Inge, poderemos enterrar Erna também.
Ellerkrug não respondeu. Apagou os faróis e ficou esperando. A
escuridão, a neve caindo em silêncio, os galhos de abeto vergados
pelo peso da neve, a sensação de não poder fazer absolutamente
nada e os cem mil marcos na pasta, aqueles minutos que se ar-
rastavam infinitamente, nos quais se decidia, talvez, o destino de
uma criancinha, eram tão deprimentes que Paskoleit e Ellerkrug
ofegavam. Seu coração martelava de modo insuportável. Outra vez
Paskoleit sentiu aquelas pontadas no lado esquerdo inferior do

119
peito, que, até então, sempre conseguira afastar respirando bem
fundo.
— Espero mais dez minutos, depois saio do carro — disse Pas-
koleit com a voz rouca.
— Com este tempo é possível que os raptores tenham se atra-
sado.
— De qualquer maneira, não consigo imaginar como pretendem
receber o dinheiro! Aproximando-se do carro? Meu caro, nesse ca-
so agarro-os e torço-lhes o pescoço...
— Estarão armados, Julius. Não faça bobagens! Há armas jo-
gadas por aí em tudo que é canto... São tantas que a polícia e as
forças de ocupação não podem controlar. A oeste de Pirmasens, no
meio do mato, temos um canhão antiaéreo inteirinho, enferrujan-
do aos poucos. Até agora ninguém o pegou. Eu mesmo já o visitei
algumas vezes e aproveitei para dar uns treininhos. Já fui especia-
lista nesse tipo de artilharia...
Paskoleit abriu a porta. No mesmo instante penetraram no car-
ro o frio e a umidade.
— Amarrada a uma árvore! — bufou. — Mesmo que venham
buscar o dinheiro, depois Inge poderá morrer de frio! Desgraçados!
Vou saltar e procurá-la. Não me segure, Heinrich!
— Isso poderá estragar tudo, Julius! Se nos estiverem obser-
vando...
— Danem-se! — berrou Paskoleit e pulou fora do carro, conti-
nuando a berrar: — Não agüento mais ficar dentro desta lataria!
Praticamente deixou-se cair de dentro do carro; logo levantou-
se, bateu a neve das calças e do sobretudo militar reformado. Fê-
lo com bastante ruído para ser ouvido. Mas a neve, a grossa corti-
na branca a seu redor, absorvia qualquer som.
Paskoleit avançou alguns passos rumo à parada. Parecia um

120
urso de pé lá na neve, pernas abertas, parrudo, pronto para a lu-
ta... Ninguém perceberia que tinha uma perna mecânica. Era uma
fortaleza.
— Tem alguém aí? — berrou. “Só nos falta o vovô”, pensou, to-
talmente fora de si. “O Jochen Berrador. Se ele chamasse, a neve
cairia dos galhos.”
— Ei — tornou a gritar —, estamos aqui! Droga, apareçam! Es-
tá na cara que não trouxemos a polícia. Onde está a criança?
Nesse momento Ellerkrug resolveu sair do carro também. Ti-
nha a pasta com os cem mil marcos debaixo do braço esquerdo. A
mão direita estava no bolso do sobretudo e, de repente, Paskoleit
teve a certeza de que Ellerkrug segurava uma pistola pronta para
disparar.
— Seu espertalhão — disse baixinho quando Ellerkrug estava
pertinho dele. — Você tinha um trabuco o tempo todo...
— Cem mil marcos é um bocado de dinheiro — Ellerkrug esbo-
çou um tênue sorriso. — Estava contando com dois, um para vo-
cê, um para mim, mas agora não tem mesmo ninguém!
— O dinheiro está aqui! — soou mais uma vez, em meio ao si-
lêncio, o berro de Paskoleit. — Colocarei a pasta aqui na neve e
voltarei para o carro. Podem vir buscá-la... Mas ai de vocês se a
criança não estiver no mesmo lugar quando eu voltar...
Ellerkrug agarrou Paskoleit pela manga do sobretudo.
— Cale a boca — chiou. — Ouvi algo! Um som.
— Meu coração está martelando.
— Besteira! Aí... outra vez...
Prenderam a respiração. E, de repente, ambos ouviram. Atra-
vés daquela densa parede de neve, pela escuridão branca, soou
um fraco lamento:
— Tio Julius... Tio Julius...

121
— Inge! — berrou Paskoleit.
Jogou os braços para o alto e Ellerkrug encolheu a cabeça en-
tre os ombros. Nunca ouvira um homem berrar daquele jeito.
— Inge! Onde está você? Continue a chamar... continue sem-
pre... estou chegando... já estou chegando...
Paskoleit virou-se bruscamente, as lágrimas escorriam-lhe pelo
rosto coberto de neve e vermelho de frio.
— Heinrich, dê-me a pistola, depressa...
— Mas é lógico que eu vou junto — gritou Ellerkrug. — O que
pensa que eu sou?
Saíram correndo atrás da vozinha que chamava sem parar “Tio
Julius! Tio Julius!” Penetraram na mata e, esbarrando nos galhos
baixos, ficando presos em arbustos emaranhados, rasgando os
sobretudos em espinhos, alcançaram enfim uma pequena clareira,
depois que Paskoleit gritara mais uma vez:
— Inge! Continue a chamar! Continue!
Inge estava, de fato, amarrada a uma árvore, mas por maior
que fosse o patife, não abandonara a criança de qualquer jeito a
seu destino. Para que não sentisse frio, enrolara Inge num velho e
grosso cobertor do Exército antes de atá-la. Sobre a cabeça de In-
ge havia uma toalha de rosto dobrada várias vezes e amarrada
com um cordão, como um capacete.
— Achamos — gritou Paskoleit. — Achamos! Tropeçando pela
neve, foi cair de joelhos junto a Inge e tomou o rostinho rubro de
frio entre suas mãos largas.
— Está machucada! — balbuciou, e se desmanchou em lamú-
rias. — Dói em algum lugar, Inge? Meu Deus, meu Deus...
— Desamarrá-la seria melhor do que ficar tagarelando boba-
gens! — disse Ellerkrug e pegou um canivete para cortar as finas
cordas.

122
— Inge está aqui... Todo o resto podemos ver em casa! Vamos,
já para o carro...
Durante a volta a Leverkusen, Inge ficou deitada no colo de
Paskoleit mastigando um pedaço de chocolate trazido por Eller-
krug — “o cara pensa em tudo”, constatou Paskoleit com profunda
satisfação — e contou a eles sobre dois homens que, perto da loja,
haviam-na puxado para dentro de um velho automóvel. “Seu tio
nos enviou!”, disseram. “Venha conosco.” E já que tio Julius era a
pessoa mais importante da família, Inge não hesitara um instante
em acompanhá-los.
— É capaz de reconhecê-los? — perguntou Paskoleit, rangendo
os dentes.
— Não, tio, estavam de óculos escuros, sabe?
— E depois?
— Não me lembro de mais nada. Havia um quarto grande, bem
grã-fino, mais elegante que lá em casa, tio. E depois os dois ho-
mens me levaram para o mato. Chorei tanto, tio...
— O cobertor militar — disse Paskoleit, batendo os punhos um
no outro. — Através dele poderemos descobrir quem são, Heinrich.
— É um cobertor inglês velho, e ainda por cima posso garantir
que foi roubado. O que está me derrubando é algo bem diferente...
Ainda temos os cem mil marcos!
— Céus, é mesmo!
— Os caras nem queriam o dinheiro.
— Sim, mas então o quê?
— Se soubéssemos! Julius, aposto: vem mais alguma coisa por
aí! Alguém está querendo prejudicar você sem mergulhar muito
fundo na merda ele mesmo! Nos próximos dias, observe muito
bem seus visitantes...
Inge adormeceu logo, quando a colocaram em sua própria ca-

123
ma. Seus irmãos Ludwig e Peter ficaram de guarda; Paskoleit, El-
lerkrug e Franz Busko, a grande esperança do Partido, debateram
mais uma vez o misterioso caso de rapto.
— Uma coisa está clara — disse Busko. — Não importam as
leis que possam fazer mais tarde: eu vou pleitear uma legislação
especial para rapto de crianças, semelhante à que os americanos
têm, uma espécie de Lei Lindbergh alemã.
— Onde aprendeu isso? — perguntou Paskoleit, espantado, e
comentou: — Garoto, todo esse tempo você não fez outra coisa que
pregar solas com tachinhas!
— No momento, estou lendo literatura relevante — disse Bus-
ko, cheio de orgulho. Calou-se para não estragar o efeito de suas
palavras. Literatura relevante... falara bonito.
Paskoleit dedicou-lhe um olhar prolongado.
— Franz — disse, em seguida, com vagar —, ninguém sabe o
que será. Mas, se um dia você chegar a ministro... na Alemanha
tudo é possível, não há motivo para um sapateiro não poder fazer
política, então não se esqueça de que já esteve sentado aqui neste
banquinho.
— Nunca, mestre. — Busko recostou-se. — Amanhã serei no-
meado orador político-econômico do Partido.
— Estamos subindo!
Ellerkrug ergueu o copo. Bebiam Habra — abreviação de
Hausbrand (aguardente caseira). Centeio destilado clandestina-
mente no fundo do porão. Franz Busko conhecia um colega de
Partido que fazia disso o negócio de sua vida.
— Percebe-se. Vai considerar as necessidades da indústria a-
lemã de calçados, senhor ministro?
Busko, ofendido, fechou-se em silêncio.
A uma hora da madrugada os três estavam bêbados.

124
Na manhã seguinte foram todos juntos levar Inge ao hospital.
Antes de abrir a porta do quarto Paskoleit disse, baixinho mas
com clareza, “alto!”, e a família Kurowski parou, quase empertiga-
da, em volta de Ellerkrug.
— Inge entra sozinha... nós esperamos aqui fora... — disse
Paskoleit. — Tudo vai se arranjar.
Bateu à porta, abriu-a apenas o necessário para deixar Inge
passar. Ao fechá-la, ouviram Inge dizer:
— Mami, cheguei...
Seguiu-se uma exclamação aguda, que fez com que Paskoleit
sorrisse feliz e Ellerkrug empalidecesse. Busko assoava o nariz ru-
idosamente.
— Pronto — disse Paskoleit com um empurrãozinho nas costas
de Ellerkrug. — Agora entra você!
— Mas por que eu?
Ellerkrug opôs resistência ao braço de Paskoleit.
— Porque você foi idiota o bastante para comprar Inge de volta
por cem mil marcos.
— Mas isso nem é verdade.
— Levou ou não levou os cem mil?
— Sim. Mas ninguém os quis...
— E isso importa, seu bobinho?! Poderia ser que os aceitassem.
Então você não os teria mais! Portanto você pagou cem mil marcos
pela Inge. É lógico! Não me olhe desse jeito... entre logo! Ema sabe
de tudo, do dinheiro do resgate, que Inge voltou... o resto não inte-
ressa. Pelo amor de Deus, vá logo.
De supetão, abriu a porta e empurrou Ellerkrug para dentro,
impedindo que a porta se fechasse deixando uma fresta pela qual
pudessem ouvir tudo.

125
— Heinrich — ouviu-se a voz de Erna.
‘‘É preciso ser mãe para ter uma voz tão feliz”, pensou Pasko-
leit, tomado de emoção.
— Não poderei esquecer nunca! Jamais!
Com um suspiro de alívio Paskoleit acabou de fechar a porta,
bem devagarinho. “Só espero que Heinrich não bobeie’’, pensou. E,
dirigindo-se aos meninos, disse:
— Peter, você gosta do tio Heinrich?
— Muito, tio Julius.
— E você, Ludwig?
— É legal, tio.
— Muita coisa vai mudar — disse Paskoleit, com um ar sonha-
dor —, muita coisa! Sua mãe merece ser feliz...
Quando, dez minutos depois, o resto da família Kurowski en-
trou no quarto, Ellerkrug estava sentado na cama, segurando as
mãos de Erna.

No final de janeiro voltaram a aparecer na loja os senhores Hu-


ebner e Runzenmann, da concorrência. Ellerkrug enviara novos
calçados. Franz Busko aproveitara uma bebedeira para tornar-se
íntimo do homem mais importante do Departamento de Finanças,
coisa que, naturalmente, teve grande influência na distribuição de
cupons de compra. A loja Westschuh prosperava. Os nomes Ku-
rowski e Paskoleit adquiriram, em Leverkusen, um som quase
missionário.
Para Paskoleit foi como o estouro de uma granada a aparição
de Huebner e Runzenmann entrando pela porta adentro. E quan-
do ouviu as primeiras frases soube que sua intuição estava certa.
Runzenmann disse:
— Meu caro Paskoleit, vejo que tudo continua na mesma. O

126
senhor está estragando, de modo sistemático, nossa clientela. Não
só o senhor possui uma queda para o socialismo, mas, para piorar
ainda mais as coisas, é de uma honestidade perigosa!
— E também sei rezar — respondeu Paskoleit, abaixando a
cabeça como um touro bravo. — Todas as manhãs e todas as noi-
tes eu rezo: “Amado Deus, realize meu desejo, coloque em mi-
nhas mãos os dois bandidos sujos que raptaram a pequena Inge
Kurowski. Então, meu Deus, feche os olhos só por um minuto.
Não demorará mais que isto”. — Paskoleit respirou fundo. — É
assim que eu rezo, sempre. Chega o dia em que até Deus se co-
move e atende a meu pedido. Estamos entendidos, caros colegas?
Huebner e Runzenmann entreolharam-se significativamente,
voltaram-se e, sem mais uma palavra, deixaram a loja. Haviam
perdido não só uma batalha, mas uma guerra para Paskoleit.
— Que malandro! — disse Huebner.
— Um vagabundo da Prússia Oriental!
Runzenmann levantou a gola do sobretudo. Também em Lever-
kusen o mês de janeiro é frio e úmido.
— Mas ninguém perde por esperar. Correm boatos sobre uma
reforma monetária. Dizem que o dinheiro novo já está impresso...
Então chegará nossa vez...

Sucedeu em 20 de junho de 1948. O velho Reichsmark perdeu


seu valor, o novo marco alemão tomou seu lugar. No dia zero —
20 de junho —, quarenta marcos para cada cidadão da Alemanha.
Quem estava sentado sobre um monte de dinheiro, acordou sobre
uma pilha de metal sem valor. Mas, como sempre na vida, esta
nova ordem da economia alemã, o término da fome e o início de
uma nova era de reconstrução, atingiu em primeiro lugar as pes-
soas erradas. Os pobres tornaram-se mais pobres, os ricos acor-

127
daram ainda mais ricos. Naquele dia de junho não só fora distri-
buído dinheiro novo, mas era como se Deus tivesse espalhado a-
dubo pela Alemanha. Cada prado, cada flor, cada galho tem seu
tempo para florir. Na Alemanha do ano de 1948 ocorreu o milagre.
De um dia para outro vitrines vazias encheram-se de tal modo de
mercadorias que o povo, de início atordoado por tantas possibili-
dades de compra, precisou respirar fundo. Onde só se ouvia antes
“Meu caro, de que nos serve seu cupom... não temos nem sombra
de mercadoria para vender...”, agora reluziam letreiros que diziam:
Acabados de chegar! A última moda diretamente de Paris! E os ca-
pacetes de aço não mais serviam para fazer panelas; estas eram
feitas de alumínio e aço de boa qualidade.
Huebner e Runzenmann jogaram em suas vitrines tudo que
haviam acumulado e perderam mais uma batalha.
A Westschuh foi assediada pelos fregueses. Aqui, nas duas vi-
trines, não havia nada de ultrapassado, e sim os melhores e mais
encantadores modelos da Itália. Sonhos de calçados, a preços
normais.
Heinrich Ellerkrug cumprira com a palavra: chovia dinheiro e
sucesso sobre a família Kurowski.
— E ela ainda não resolveu casar-se com ele! — lamentava-se
Paskoleit, acrescentando: — Precisa de tempo... A velha canção!
Como se Ewald ainda fosse voltar! Admiro o Heinrich... tem a pa-
ciência de uma ovelha.
E Franz Busko, a quem Paskoleit foi chorar suas mágoas, dis-
se:
— Logo depois das sessões definitivas do Conselho Parlamentar
tratarei do caso dos prisioneiros de guerra. Mestre, preciso de um
discurso fenomenal para dirigir à sociedade de empresários ale-
mães.

128
Paskoleit concordou com um movimento da cabeça. Franz
Busko tornara-se a viga-mestra de Adamsverdruss, pertencia ago-
ra à direção do Partido. Não mais sentara em seu banquinho de
sapateiro desde o dia 1.° de maio.
Em 24 de outubro de 1948, Paskoleit recebeu um carro novo,
um Mercedes. Cinza médio. Em 25 de outubro, a família Kurowski
fez sua primeira excursão ao Siebengebirge colorido pelo outono,
às margens do Reno, e escalou o Drachenfels.
No dia 29 de outubro, Paskoleit foi, sozinho, visitar Ellerkrug
em Pirmasens. Na estrada entre Kaiserslautern e Pirmasens, perto
de Waldfischbach, tornou a sentir a pontada no peito, do lado es-
querdo, desta vez mais profunda e persistente. Ficou tonto, o
mundo girava a sua frente, de repente a estrada estava acima e o
céu abaixo dele. “Mas eu não estou voando”, pensou. Quis frear,
pisou no vazio e o ar lhe faltou.
Com força total Paskoleit voou para fora da estrada e para den-
tro de um terreno de colinas, cheio de arbustos.

129
CAPÍTULO 13

Demorou duas horas até que um jovem motociclista que descia


a estrada avistasse o carro estacionado em meio aos arbustos. As
marcas de pneus conduziam, em linha reta e sem indicação de
freada, para as colinas, e o jovem viu logo o que passara desper-
cebido aos que já haviam passado: aqui ninguém estacionaria um
carro fora da estrada, mas o Mercedes perdera a direção e fora a-
parado por um tronco de árvore.
O motociclista parou, desceu e correu na direção do carro. An-
tes mesmo de abrir a porta do lado do motorista, percebeu que o
homem que parecia dormir tão calmo atrás do volante já não vivia.
Como se estivesse descansando — e um descanso era o que re-
almente lhe faltara —, Julius Paskoleit estava sentado em seu belo
carro novo, as mãos ainda agarradas ao volante, a cabeça pen-
dendo para o lado, os olhos cerrados. O rosto estava marcado por
uma expressão de paz, de relaxamento completo. Era a primeira
vez que repousava sem planos para amanhã ou depois de ama-
nhã, e para isso foi preciso o descanso eterno.
O jovem tornou a montar em sua motocicleta, correu para a
casa mais próxima, telefonou à polícia e voltou para junto do carro
nos arbustos. Ali ficou, aguardando a chegada de uma patrulha,
da ambulância e, pouco depois, de um rabecão, que cercaram
Paskoleit.
Como outrora, na Prússia Oriental, quando fora atacado pelo

130
touro e perdera a perna porque não chegara a tempo ao hospital,
também desta vez Paskoleit foi encontrado tarde demais. Os ho-
mens do rabecão retiraram-no do assento, deitaram-no num es-
treito caixão de zinco e empurraram-no para dentro do carro pre-
to. O médico da emergência fez um relatório provisório que dizia:
“Causa mortis indefinida. Provavelmente parada cardíaca. Ne-
nhum sinal de violência”. Mas a observação “indefinida” foi o bas-
tante para que o cadáver de Paskoleit fosse requisitado e levado ao
Instituto Médico Legal de Kaiserslautern. Foi de lá que telefona-
ram para Leverkusen. Franz Busko estava ao telefone, preparava
sua mudança da casa da família Kurowski; conseguira um belo
apartamento num prédio novo e estava se candidatando ao cargo
de magistrado distrital. Mantinha excelentes relações com as au-
toridades inglesas de ocupação, bebia uísque escocês e gim com
os oficiais dos postos de controle e era considerado — já que nun-
ca fora soldado nem membro do Partido Nazista — como um dos
poucos alemães com os quais se poderia construir um novo Esta-
do. Todas as portas se lhe abriam; recitava as frases de cunho li-
beral e cristão ensaiadas com Paskoleit e transformava-se em algo
assim como o “novo espírito” depois do domínio do sombrio terror
marrom.
No início Busko nem entendeu o que o funcionário da procura-
doria de Kaiserslautern queria dizer.
— O sr. Paskoleit? — perguntou, o olhar vazio parado no papel
de parede. Florezinhas campestres sobre fundo rosa. Erna gostava
especialmente daquele desenho, trazia-lhe à memória a cozinha de
Adamsverdruss. Balançou a cabeça e respirou fundo: — Que há
com o sr. Paskoleit? Morto? Está maluco? Nosso mestre morreu?
Mas não pode ser!
Voltara a falar com a entonação antiga. O pavor fez com que

131
esquecesse o idioma alemão puro que se esforçara durante tantos
meses para aprender.
— Não é nenhuma piadinha, hein? O senhor é da procuradori-
a? Kaiserslautern? Homem, eu sou o futuro magistrado distrital e
secretário do Partido que... Sim, já entendi! Morto no carro! Nosso
mestre? Obrigado...
Desligou, sentou-se na cadeira perto do telefone e levou algum
tempo para poder raciocinar com clareza. Pela primeira vez na vi-
da soube o que era o sentimento de completo abandono e de uma
dor impossível de abafar. Quando perdeu o pai de uma pneumo-
nia, tinha dez anos e chorou. Quando morreu a mãe, de embolia
pulmonar, tinha dezessete e suportou o golpe como um homem.
Mas a morte de Paskoleit o arrasou. Para Busko, Paskoleit sempre
significara tudo: pai, mãe, mestre, a pátria, o passado, o presente,
o futuro, não podia imaginar uma vida sem Paskoleit... E de re-
pente o mestre vai visitar seu amigo Ellerkrug em Pirmasens e
morre sozinho, em completo abandono, na beira da estrada.
O mundo de Franz Busko estava em pedaços. E claro que era
possível consertá-lo, mas as marcas ficariam para sempre. Daquele
momento em diante não passaria de um mundo remendado.
Erna Kurowski e as crianças, tanto quanto Busko, não conse-
guiam entender a morte de Paskoleit. Já uma hora mais tarde es-
tavam todos juntos num trem para Pirmasens, tendo deixado um
aviso na porta da loja: FECHADO TEMPORARIAMENTE.
O concorrente Huebner foi o primeiro a descobrir a placa com o
aviso e telefonou logo para Runzenmann.
— Gorou! — gritou de contentamento Runzenmann. — Estão
falidos! Tinha de acontecer, eu já esperava. Esse Paskoleit com
seus tiques de honestidade! Aposto como na semana que vem se-
remos informados pela Associação de que ele entrou na maior

132
concordata. Dará graças a Deus se lhe comprarmos a loja!
— Também pensei nisso e telefonei na mesma hora! — Hueb-
ner soltou uma grossa gargalhada. — Ninguém atende.
— Não estou dizendo? Podres até a raiz. Aguardemos, Huebner,
pois dentro de uma semana Paskoleit estará no ponto, aceitará
qualquer oferta.

Em Pirmasens, Heinrich Ellerkrug foi buscar a família Kurows-


ki na estação, levando-a direto ao Instituto Médico Legal de Kai-
serslautern. Franz Busko, comprido, magro, o terno preto dando-
lhe uma aparência mais triste que a de um Dom Quixote, carrega-
va uma mala, uma coisa antiqüíssima com fechaduras enferruja-
das. Ao ver a pergunta no olhar de Ellerkrug, explicou:
— Aí dentro está o avental de couro do mestre. “No dia em que
eu morrer”, disse-me, “ponha-o em mim, Franz, entendeu? Quero
ser enterrado com meu avental. Fui sapateiro e como sapateiro
quero apresentar-me a meu Senhor Deus.”
Os olhos de Busko estavam cheios de lágrimas; enxugou-as
com as costas das mãos, mas não podia enxugar o tremor de seus
lábios.
— Atenderei a seu último desejo, mas é lógico...
— Você, agora, precisa de muita força e coragem, Erna — disse
Ellerkrug a Erna Kurowski no caminho para Kaiserslautern. —
Terá de carregar tudo sozinha: três filhos, a oficina, a loja e o
Franz. E Ewald já está desaparecido há quatro anos; se estivesse
sendo mantido prisioneiro já teria escrito há muito tempo...
Num sinal de concordância, ela colocou a mão no braço de Eller-
krug. Sua mão era pequena, porém firme, acostumada ao trabalho.
— Sei o que está querendo dizer, Heinrich — disse. — Está
chegando a hora de decidirmos sobre nós.

133
— Estarei sempre esperando, Erna. Sempre. Você sabe. Qual-
quer dia... você só precisa dizer sim. Pense, em primeiro lugar, nas
três crianças.
— E se, apesar de tudo, Ewald ainda voltasse?
— Pela lógica humana, Erna, isso é impossível.
— Mas é tão fraca a lógica humana, Heinrich... Continue a ser
nosso amigo.
— E a loja?
— Eu darei conta.
— A oficina?
— Empregarei um ajudante.
— As crianças estão crescendo. Ludwig fará o exame de seleção
dentro de dois anos. Não vai parar, é um menino de talento. Vai
querer continuar os estudos. O que será de Peter e Inge ainda não
se pode dizer. Erna, é impossível você querer fazer tudo isso sozi-
nha! Ele também quis fazer tudo sozinho, agora está deitado aí.
Sei que o momento não é propício nem adequado... mas, Erna...
gosto de você, quero que saiba disso.
— Eu sei, Heinrich. — Pressionou-lhe o braço e abaixou a ca-
beça. Em seus olhos lia-se gratidão, mas eram os olhos de um a-
nimal perdido e indefeso. — Deixe-me tentar. Se eu falhar... pedi-
rei socorro. Com certeza. Você conhece nosso lema.
— Sim... — Ellerkrug mantinha o olhar fixo na estrada que
passava voando por eles. — Esse maldito “Não nos deixaremos
abater” do Paskoleit. Ele não resistiu. Erna, pense bem.
Em Kaiserslautern, no subsolo do Instituto Médico Legal, dei-
xaram que Erna Kurowski, Franz Busko e Heinrich Ellerkrug vis-
sem Julius Paskoleit pela última vez. A autópsia já fora realizada.
Estava vestido com seu terno que cobria os largos cortes que iam
da base do pescoço até a canela. De Paskoleit só restava o envoltó-

134
rio; por dentro estava vazio como um balde furado. Mas os médi-
cos haviam chegado a uma conclusão sobre sua morte e a procu-
radoria já liberara o corpo para o funeral. A “causa mortis indefi-
nida” estava esclarecida.
Mudos, segurando-se pelas mãos, Ellerkrug e Erna Kurowski
estavam diante do corpo pálido. Era Paskoleit, mas ao mesmo
tempo não era Paskoleit... A morte o transformara. Nunca, em vi-
da, tivera um rosto tão liso, descansado, até feliz, e quem sempre
dissera que Paskoleit não era um homem bonito, mas sim rude e
curtido como as árvores da Masúria vergadas pelos temporais, ti-
nha de se redimir diante do morto. Aqui estava um homem que
derrotara a vida e agora, no repouso eterno, tinha o direito de se
mostrar majestoso.
Franz Busko não suportou esta cena. Precisou segurar a borda
do caixão, chorava alto e repetia sempre, aos prantos:
— Não, mestre, não... Por que fez isso? Eu é que tinha tubercu-
lose e quem vai é você! Mestre, não posso compreender...
E então abriu a velha mala de Adamsverdruss, tirou o avental
de couro sujo, manchado e remendado, colocou-o em Julius Pasko-
leit e não conseguiu mais manter-se em pé. Deixou-se cair num
banquinho, pôs as mãos no rosto e chorou como uma criança.
Erna Kurowski dirigiu-se, com uma súplica no olhar, ao fun-
cionário que os levara ao subsolo.
— As crianças... — disse, hesitante — eram tão apegadas ao ti-
o. Não poderiam vê-lo mais uma vez?
— Eu não faria isso.
O funcionário olhou, indeciso, para Ellerkrug.
— No treck cansaram de ver cadáveres à direita e à esquerda
da estrada — disse Ellerkrug. — Estavam lá quando a avó foi dei-
xada na neve. Viram crianças de colo, congeladas e duras como

135
pedra, serem jogadas das carroças. É uma geração que não treme
nem desmaia ao ver um morto.
— Se quiser assim... — O funcionário deu de ombros. — Não
posso proibir.
Erna Kurowski foi buscar as crianças, que esperavam numa
fria e despojada sala de espera. Em fila, passaram pelo caixão e
olharam tio Paskoleit. Primeiro Ludwig, o mais velho, que era o
mais parecido com seu pai Ewald. Parou diante do morto, pousou
sua mão sobre as mãos entrelaçadas de tio Julius e disse alto:
— Tomarei conta da mamãe, tio. Prometo.
Depois foi para junto de Busko, que continuava a soluçar, co-
locou o braço em seu ombro trêmulo e ficou ali.
Peter e a pequena Inge contemplaram o morto com olhos arre-
galados. Que tio Julius estava morto, isto eles entendiam, tinham
convivido com a morte de perto, uma morte multiplicada por cen-
tenas de vezes. Mas é diferente ver alguém desconhecido morrer e
de repente estar diante de um corpo pálido, que, para eles, sempre
fora imortal.
— Ficaremos sempre junto da mamãe — disse, também, Peter.
Seu rostinho de criança tornou-se, de súbito, assombrosamente
adulto. — Não tenha medo, tio Julius.
E a pequena Inge disse:
— Até logo, tio Julius. Se encontrar o vovô e a vovó, dê lem-
branças minhas...
Foi nesse momento que até o forte Heinrich Ellerkrug começou
a chorar e Erna Kurowski encostou-se a ele buscando amparo.

Tudo pode ser superado, até mesmo a morte de um Julius


Paskoleit.
Era um consolo saber que não sofrera. O medido explicara a

136
Erna: “Para usar uma linguagem mais acessível”, dissera, “teve
uma morte inteiramente indolor. Uma veia importante ligada a seu
coração rompeu-se, e sobreveio a morte como se apaga uma luz.
Foi uma questão de segundos. Não sentiu nada, a não ser talvez
um ligeiro mal-estar e uma pontada. A autópsia revelou isto cla-
ramente”.
Após o enterro em Leverkusen, ao qual compareceram também
os concorrentes Huebner e Runzenmann, oferecendo até uma co-
roa, Erna Kurowski reabriu sua loja de sapatos, e Franz Busko,
através do Partido, conseguiu convencer dois ajudantes de sapa-
teiro a trabalharem na oficina.
Os negócios prosseguiam normalmente. Runzenmann, que,
após deixar passar um prazo de catorze dias, foi procurar Erna
com uma oferta de compra, foi informado de que quarenta e cinco
por cento da firma Westschuh pertenciam agora a uma fábrica de
calçados em Pirmasens e que, ao invés de fechar, pretendia mes-
mo era expandir-se. Runzenmann nem precisou perguntar pelo
nome da fábrica. Perturbado, foi correndo ver seu colega Huebner
e disse:
— Deveríamos é ficar amigos dos Kurowski. A guerra perdeu
todo o sentido. Eles estão escorados por capital e pelo Partido. A-
cabou, meu caro.
Uma vez por semana Ellerkrug vinha a Leverkusen para ver se
Erna não trabalhava demais. Franz Busko mudara-se, estava mo-
rando em seu novo apartamento. Fazia discursos em campanhas
eleitorais, escritos agora por Ellerkrug. Discutia sobre o futuro da
Alemanha com Kurt Schumacher e Konrad Adenauer, dr. Maier e
Theodor Heuss, viajava muito e cultivava suas boas relações com
os britânicos. A noite fazia até curso de inglês, e quando, após vin-
te aulas, conseguiu falar algumas frases inteiras, foi até o cemité-

137
rio, parou diante da sepultura de Paskoleit e disse:
— Agora preste atenção, mestre, você não vai acreditar: I have
a coat... E então, está pasmo?
Assim passou-se um ano. Erna Kurowski ficava sempre mais
insegura. Através da Cruz Vermelha soube que Ewald Kurowski
podia ser considerado morto; propunham-lhe, já por causa dos
negócios, declará-lo oficialmente morto. Ellerkrug leu a carta e
não comentou nada, mas Erna entendeu-o mesmo assim. Come-
çou a pensar com mais realismo, e conversou com o marido, que
estava sempre com ela, num grande retrato emoldurado ao lado .
da cama, na mesinha-de-cabeceira. O oficial subalterno Kurowski,
a última fotografia tirada nas últimas férias; um homem alegre,
forte, com olhos azuis como água, enamorados.
— Vou casar-me com Heinrich, Ewald — disse em novembro de
1949.
Em cima da loja tinham reconstruído mais dois andares da ca-
sa bombardeada; no primeiro andar moravam os Kurowski, no se-
gundo morava um professor do Ludwigs-Gymnasium, o que aju-
dava bastante nas notas. Uma parte do dinheiro da construção vi-
era de Ellerkrug, um empréstimo sem juros. A vida continuava, e
tornava-se mais bela e agradável, com mais sucesso e maiores e-
xigências. Busko já era magistrado distrital. Se algum dia a Ale-
manha voltasse a ter um governo independente, ele tinha um pos-
to garantido no Parlamento ou em algum Ministério, promessa do
Partido. Como “homem da primeira linha” já se tornara quase um
mito, mas os seus discursos continuavam a ser escritos por Hein-
rich Ellerkrug.
— As crianças precisam de um pai, Ewald — disse Erna ao re-
trato. — Ludwig já apresenta a rebeldia dos adolescentes, Peter
tem dificuldades com o latim e a matemática, e Inge está ficando

138
uma garota linda, que terá de ser muito bem vigiada. Além da loja
e da oficina, no próximo ano Heinrich quer fundar duas filiais. É
demais para mim, Ewald. Deixe que eu me case com Heinrich, ele
teve tanta paciência para esperar.
Foi no dia 15 de novembro de 1949, um dia cinzento, encoberto
e úmido de outono, que Erna colocou o vestido novo que Ellerkrug
lhe dera de presente e que ele chamava de ‘‘vestido de festa”. En-
feitado com fios dourados, era bastante decotado, deixando à mos-
tra uma parte dos seios bonitos e redondinhos de Erna, e a trans-
formava numa beleza que ela própria estranhava. Ellerkrug ficara
de apanhá-la às sete e meia para irem ao teatro em Colônia — as
peças teatrais estavam sendo encenadas, provisoriamente, no pal-
co do auditório da universidade. Depois iriam jantar no melhor es-
tilo num bom restaurante à margem do Reno. Erna estava muito
animada com a perspectiva dessa noite e sabia que aquele 15 de
novembro era o dia da decisão final entre ela e Ellerkrug, e estava
disposta a dizer sim.
Pouco depois das sete horas a campainha tocou.
Erna cobriu o novo penteado com um xale, ajeitou o vestido de
festa e abriu a porta.
— Como você é pontual, Heinrich — quis dizer, mas as pala-
vras lhe ficaram presas na garganta.
Lá fora, no umbral da porta, viu um estranho. Curvado para a
frente, de aspecto miserável, apoiado num bastão, perdido dentro
de um velho sobretudo militar, o corpo todo parecia sustentado
por grossas botas sujas, das quais escorria a água da chuva. So-
bre a cabeça tinha um boné pequeno demais, quase ridículo, en-
charcado; a água escorria-lhe pelo rosto pálido e pela barba curta,
meio grisalha.
— Boa noite — disse o homem. Tirou o boné como um mendi-

139
go. Também era cinzento o pouco cabelo em sua cabeça.
— Aqui estou eu de novo, Erna...
— Ewald... — gaguejou Erna Kurowski. E logo em seguida mais
alto, como um grito: — Ewald!
Abriu os braços, caiu para a frente e jogou-se no velho sobre-
tudo de soldado, largo, molhado e sujo.
Dos quartos as crianças vieram correndo, primeiro Ludwig com
uma barra de ferro na mão. Mudos, perturbados, ficaram olhando
para o estranho que sua mãe abraçava e cujo rosto marcado pelo
tempo ela beijava.

140
CAPITULO 14

Ewald Kurowski, em pé na entrada da bela casa nova, olhou


em volta e precisou de um esforço para acreditar que retornara,
que de agora em diante poderia dizer: estou em casa.
A porta fechara-se atrás dele. Erna tirara-lhe o sobretudo largo
e sujo, o boné molhado estava caído no chão, mas a água conti-
nuava a escorrer de suas botas pesadas. Com sua calça de uni-
forme desbotada e o casaco acolchoado russo, marcado por cinco
anos de prisão, o corpo moído de tanto derrubar árvores nas ma-
tas de Nowo Kalinski, ao sul da curva do Lena, perto de Yakutsk,
estava agora em casa revendo sua mulher e seus três filhos, numa
casa como antigamente, na Prússia oriental, que só os grandes
senhores de terras possuíam. Abaixo dela havia uma loja de sapa-
tos muito elegante com duas vitrines, sapatos italianos e france-
ses, com Westschuh escrito em letras garrafais sobre a loja, e na
porta: Proprietário Ewald Kurowski. Erna estava com um vestido
igual aos que usavam, antigamente, as artistas de cinema, traba-
lhado em ouro e tão decotado no peito que se via quase tudo: usa-
va um cordão de ouro com uma grande pedra azul que ele nunca
lhe comprara, mas que se chamava água-marinha, isto ele sabia;
quando viu aquilo tudo, o pobre, sujo e explorado Ewald Kurows-
ki, que de um dia para outro fora perdoado e solto após ter sido
condenado primeiro à morte e depois a uma vida inteira de traba-
lhos forçados, sentiu-se invadido por algo assim como medo dessa

141
nova vida, na qual explodira como uma granada caindo num lar
para crianças abandonadas.
Erna, encostada na parede, chorava. As crianças haviam para-
do nas portas de seus quartos e fitavam-no em silêncio.
“Cada uma das crianças tem seu próprio quarto”, pensou E-
wald Kurowski. “Isso, antigamente, só existia em casa de rico. Se-
rá que o mundo se transformou tanto assim? Os Kurowski fica-
ram ricos? Onde está Julius? Será que o vovô e a vovó ainda vi-
vem? E o que estará fazendo Franz Busko? Deveria ter telefonado
antes, esta surpresa é falsa. Bem que todos me avisaram, todos os
companheiros: Ewald, cinco anos é muito tempo. Cinco anos de
silêncio, sabe lá o que se passou lá fora todo esse tempo? Você foi
declarado morto, e se de repente você aparecer lá na porta, o no-
me dela não é mais Erna Kurowski, e sim Erna Meier ou Schmitz
ou Haeberlein ou outro qualquer? Não faça isso, não surja de re-
pente. O mundo agora é outro, com certeza, não se esqueça de
que você está saindo da sepultura! Anuncie sua chegada com
muito cuidado.”
Não fizera nada disso. Conseguira o endereço no campo da
Cruz Vermelha. Leverkusen, Renânia, Nordstrasse, 34. E pusera-
se a caminho, transbordando de saudade e contentamento. Sim, e
agora encontrava-se ali, no hall finíssimo, e Erna chorava encos-
tada na parede, usando um vestido como o de uma dama. O
mundo novo...
— É... é bom rever vocês todos — disse Ewald Kurowski, sem
saber o que fazer.
Nas matas de Nowo Kalinski nada fora capaz de abalar aquele
homem, nem mesmo o temido tenente Boris Alexandrovitch Lu-
kassov contra seu oficial subalterno Kurowski; sete vezes o alemão
foi atirado no comando da morte, ao trabalho nos pântanos, e sete

142
vezes ele voltou, verdade que um pouquinho mais curvado, mas
inteiro. E agora mantinha-se em pé por ali, sem saber como conti-
nuaria aquilo tudo. Sonhara cinco anos com essa volta. Agora pa-
recia-lhe pior do que trabalhar na correia de transporte da Serra-
ria Orgulho da Revolução.
Erna afastou-se bruscamente da parede e enxugou as lágri-
mas. As crianças permaneciam imóveis nas portas.
— Este é seu pai... — disse Erna — Ludwig, Peter, Inge... seu
pai! Ele voltou! Está vivo! Seu pai...
Ludwig, o mais velho, foi o primeiro a sair da pasmaceira. Diri-
giu-se a Ewald Kurowski, deu-lhe a mão e fez uma pequena reve-
rência.
— Boa noite — disse. Soava como um gemido.

Um tremor percorreu as faces de Kurowski. Peter aproximou-


se, vacilante, prudente como um cachorrinho a quem um desco-
nhecido oferece uma salsicha.
— Boa noite, papai... — disse baixinho.
A pequena Inge, bastante alta para seus sete aninhos, com
longo cabelo louro e os olhos azuis do pai, não chegara a conhecê-
lo, só por retratos, e nesses parecia bem diferente. Tio Julius Pas-
koleit era-lhe muito mais chegado que esse homem aí, até tio El-
lerkrug pertencia a sua vida... E agora, de repente, via um homem
completamente estranho, numa roupa horrível, que diziam ser seu
pai.
— Boa noite... — disse, olhando transtornada para Kurowski;
em seguida virou-se e saiu correndo para seu quarto.
Kurowski abaixou a cabeça. ‘‘Deveria ter permanecido morto”,
pensou. “Aqui está tudo arrumado, aí chego eu e destruo tudo. Te-
rei esse direito? Mas, por outro lado, é minha a culpa? Fui eu que

143
desejei a guerra, fui para a Rússia por minha livre e espontânea
vontade? Fui eu que me apresentei para ir à Sibéria? Enquanto o
sol brilhava cada vez mais para os daqui, nós fomos roubados em
cinco anos de nossas vidas. O que fiz eu?”
— Entre, Ewald — disse Erna baixinho, pegando-o pela manga
do casaco. Fofaika era o nome do casaco e salvara a vida de Ku-
rowski por três invernos siberianos. — Tome um banho, troque de
roupa. Vou preparar alguma coisa para comer.
— Só tenho a roupa do corpo — disse Kurowski. — No campo
queriam me dar um terno, mas teria de esperar até amanhã. Era
demais para mim, queria voltar logo para casa.
— Amanhã compraremos cinco ternos, Ewald.
E, de súbito, virou-se, bateu no rosto de Ludwig e Peter com
ambas as mãos e deu um grito:
— O que estão olhando aí parados? Seu pai está aqui! Ludwig,
ponha água quente na banheira! Peter. vá buscar quatro garrafas
de cerveja e uma de Baerenfang... Vamos, vamos... seu pai voltou
da Rússia...
— Baerenfang... — disse Kurowski, baixinho. — Erna, isso ain-
da existe?
— Sim. Oh! Ewald, Ewald... estou tão feliz!
Abraçou-o, ficou pendurada em seu pescoço; era-lhe indiferen-
te que as crianças estivessem apalermadas sem entender a mãe.
Só quando Erna desfechou uma bofetada em Ludwig é que o am-
biente se desanuviou e os meninos saíram correndo
— Ainda vão ter de se acostumar — disse, baixo, Kurowski. —
Não bata neles, Erna. Aparece um desconhecido e de repente é
seu pai. Quem é capaz de entender uma coisa dessas? Precisam
de tempo. Também eu precisarei de tempo para me adaptar. Cinco
anos de floresta siberiana... a gente vira lobo, Erna.

144
Deixou-se levar à grande sala de estar e sentou-se, com cuida-
do, no cantinho da poltrona larga, forrada de linho inglês.
— Como num palácio... — disse, quase tímido. — Vocês subi-
ram na vida.
— É tudo seu, Ewald.
— Seu, Erna, eu só cortei lenha... Onde está Julius?
— Faleceu. Ataque cardíaco.
— Vovó e vovô?
— Vovó morreu de um tiro durante a fuga para o oeste, dispa-
rado de um avião. Vovô faleceu na prisão de Luebeck.
— Franz?
— É magistrado distrital e primeiro-secretário do Partido.
— Erna, o mundo está de cabeça para baixo. — Kurowski apoi-
ou a cabeça nas duas mãos. — Se você soubesse tudo que imagi-
namos sobre nossa volta... lá na Sibéria... Ainda não consigo a-
creditar que estou aqui.
Estendeu a mão, puxou Erna para seu colo e olhou para o de-
cote.
— E você. Como está elegante e fina. Está bonita, Erna! Muito
mais bonita que antes. Mais gordinha. Fica bem. Você sempre usa
vestidos assim?
— Não. — Afagava-lhe a cabeça e sentiu um tremor quando ele
colocou a mão áspera em seus seios. — Pretendia ir hoje à noite a
Colônia. Ao teatro.
— Colônia. Teatro. Então chego eu e atrapalho...
— Se continuar a falar, Ewald, começo a chorar! — Apertou-se
contra ele e sentiu que não havia felicidade maior na terra do que
poder tocá-lo. — Agora você está aqui de novo... e amanhã com-
praremos camisas, ternos, sapatos... Meu Deus, que bobagem, a
loja está cheia deles... e você se coloca atrás do balcão e tudo será

145
como se nunca tivesse sido diferente. Na verdade, todos nós não
fizemos outra coisa senão esperar por você, Ewald...
Bateram à porta. Ludwig entrou.
— O banho está pronto — disse.
Atrás dele vinha Peter com uma cesta. Seus olhos brilhavam.
Contara no armazém: “Meu pai voltou. Da Rússia!”, e recebera
uma garrafa de uísque de centeio de graça.
— A cerveja, papai — exclamou da porta. — E mandaram uma
garrafa de uísque de centeio de presente para você.
Kurowski sorriu de leve. “Meus filhos”, pensou. “Como são
grandes, bonitos, saudáveis. Muito obrigado, Senhor Deus. Só fal-
ta a menininha. Minha Inge. Para ela é especialmente difícil, para
ela sou um selvagem.”
Erna levou-o ao banheiro. O aroma já vinha a seu encontro pe-
la porta. Galhos de abeto. Depois ficou nu, sozinho, diante da ba-
nheira, admirando o azul-marinho dos azulejos, os cromados, as
toalhas com delicados motivos florais e o armário de espelho em-
butido sobre a pia.
‘‘Um palácio”, pensou outra vez. ‘‘Enquanto eu cortava árvores
na Sibéria, estavam construindo um palácio. Nem o barão Von
Hellow no castelo de Elchhagen morava tão bem. Erna, será que
meu lugar ainda é aqui?”
Sentou-se na água quente e cheirosa, lavou-se todo, estirou o
corpo e ficou mais de meia hora na banheira. Não ouviu a campa-
inha, nem quando alguém entrou, nem as vozes excitadas das cri-
anças, falando todas ao mesmo tempo.
Quando a água começou a esfriar saiu da banheira, enxugou-
se e enrolou o corpo numa das toalhas maiores. Assim, nu da cin-
tura para cima, deixou o banheiro e foi até a sala de estar.
Erna, junto à janela, dava as costas para a porta. Na poltrona

146
em que Kurowski estivera sentado há meia hora, encontrava-se
agora um homem desconhecido, elegante, de terno preto, camisa
branca como neve e gravata-borboleta cinza-claro. Levantou-se lo-
go, pigarreando. E antes mesmo que alguém dissesse uma pala-
vra, Kurowski teve a certeza. “É ele! É este o homem que ia levar
Erna ao teatro. O homem que, até hoje, ocupava meu lugar. O
homem que terei de afastar, agora, da vida de Erna.
Subiu-lhe um gosto amargo. Um homem na vida de Erna. “Mas
quem pode condená-la? Eu não estava morto? Era apenas um lo-
bo na Sibéria.”
— Ellerkrug — apresentou-se o homem. — Estou contente por
Erna pelo senhor ter voltado. Ela o esperou com uma ânsia inex-
plicável. E tinha razão: o senhor chegou!
— Obrigado.
Kurowski abaixou o olhar e contemplou-se a si mesmo. Um cara
miserável. Um cara miserável enrolado numa toalha molhada.
— O senhor ia levar Erna ao teatro?
— Sim. E só fiquei para cumprimentá-lo. Fui amigo de Julius
Paskoleit, eu...
Ellerkrug calou-se. Sentiu que estava ficando rouco. O choque
fora profundo demais, precisava de tempo, da mesma maneira
como Kurowski precisava.
— Deveríamos conversar um dia desses. Não agora, não ama-
nhã, talvez dentro de três ou quatro semanas... Muitas felicida-
des...
Ellerkrug inclinou-se e deixou rapidamente a sala. Só depois
que a porta se fechou atrás dele foi que Erna, lá na janela, se vol-
tou. Kurowski estava em pé no meio da sala, enrolado na toalha,
os braços pendentes e o olhar triste.
— Não... — sussurrou ela. E depois elevando a voz, cada vez

147
mais alto: — Não! Não! Não é o que você está pensando! Não é na-
da. Nada, Ewald! Nada. É você que eu amo, sempre o amei, espe-
rei por você... Ewald, não existe nada além de você...
Atirou-se nos braços dele, e pela primeira vez depois de cinco
anos e três meses os dois se beijaram como homem e mulher, e
todo o amor se fundiu na coisa mais maravilhosa que Deus já
concedeu à humanidade
De manhã cedinho a porta do quarto se abriu devagarinho e
um pequeno vulto entrou. Kurowski e Erna estavam deitados lado
a lado, envoltos no calor da felicidade. O vulto parou na frente da
cama de Kurowski, depois levantou o acolchoado e enfiou-se junto
a Kurowski.
— Posso, papai? perguntou uma voz
Ludwig Kurowski mexeu a cabeça afirmativamente. De repente,
tinha um nó na garganta.
Mais alguém esgueirava-se para dentro. Um vulto menor. Um
pulo do outro lado.
— Bom dia, Papi...
Peter.
Kurowski prendeu a respiração. “Meu Deus”, pensou, “meu
bom Deus, ajude-me... Tenho mais uma filha...”
Mais uma vez um ruído na porta. Uma sombra branca, alonga-
da. Um brilho de cabelo louro na tênue claridade matinal. Um
corpinho quente e macio que se deitou sobre Kurowski.
— Estou muito pesada, Papi?
— Não, bichinha, não — disse Kurowski, e nem percebeu que
estava chorando. Abriu os braços e puxou as crianças para si. e a
felicidade corria por seu corpo como fogo, quase fazendo seu cora-
ção explodir. — Minha família — disse, soluçando—, minha famí-
lia maravilhosa... Foi só por causa de vocês que sobrevivi à Sibé-

148
ria...
Ficaram na cama até meio-dia, enquanto o magistrado distrital
Franz Busko vendia sapatos lá embaixo na loja.
Ewald e Erna Kurowski viajaram por quatro semanas à Flores-
ta Negra para uma temporada de repouso. Busko ficou adminis-
trando a loja, colocando um amigo como vendedor, e na última
semana também Heinrich Ellerkrug veio para atualizar os livros
contábeis. Assim, estava tudo em ordem quando Kurowski, visi-
velmente recuperado, voltou dizendo: “A neve da Floresta Negra é
bem diferente da neve de Nowo Kalinski”. Estava pronto para se
habituar à idéia de ser proprietário de uma loja de calçados e só-
cio de Ellerkrug.
Erna deixou os dois homens sozinhos. O que tinham a se dizer
era melhor que fosse discutido só entre eles. Demorou quatro ho-
ras até que Kurowski aparecesse com Heinrich Ellerkrug no andar
superior, gritando:
— Erna! Agora pode sair o assado! Heinrich e eu estamos com
uma fome de boi.

Nesse momento Erna percebeu que a vida dos Kurowski conti-


nuaria do jeito que o avô Jochen e Julius Paskoleit sempre deseja-
ram. E, na verdade, até então a vida também não fora outra coisa
que não uma preparação para a volta de Kurowski, para aquele
grande dia em que, após uma guerra, miséria e morte, abandono
forçado da terra natal, fome e luta pela sobrevivência numa época
em que as coisas mais loucas eram consideradas normais; a famí-
lia estava novamente completa, capaz de cuspir nas mãos e dizer:
“Aqui estamos! Nenhuma tempestade tem a força necessária para
nos derrubar!”
Pouco antes do Natal apareceu Franz Busko, em seu Mercedes

149
oficial, trazendo um presente. Busko trajava um terno feito sob
medida, um chapéu preto que se chamava homburg e luvas pretas
de couro liso. Kurowski ficou pasmado, tirou uma garrafa de Bae-
renfang do armário e encheu um copo para Franz.
— Quanta cerimônia, Franz — disse. — O que está acontecen-
do?
— Tenho um presente de Natal para o senhor, mestre.
Quando estava no seio da família, Busko deixava de ser magis-
trado. Entre os Kurowski continuava a ser o aprendiz de sapatei-
ro, embora já tivesse conquistado seu lugar na política e já escre-
vesse ele mesmo seus discursos. Isto era fácil, descobrira um tru-
que: tirava frases dos discursos antigos escritos por Paskoleit e El-
lerkrug, juntava-as de tal modo que formassem um novo discurso
que soava diferente, tinha o mesmo conteúdo e indicava sempre a
direção certa. Ninguém percebeu; ao contrário, todos elogiavam
sua força de expressão. Eram pensamentos concentrados... Busko
estava começando a conquistar o palco político com uma espécie
de talento primitivo: dizia sempre a mesma coisa, mas sempre de
modo diferente. Com este truque já se governa há muitos séculos.
— Desembuche! — disse Kurowski.
— Aqui. — Busko abriu um envelope e empurrou um livrinho
fino sobre a mesa. — A mando do Partido. Sua admissão como
membro do Partido, com o número 305. É uma honra incrível,
mestre.
— E você está maluco, Franz. — Kurowski empurrou o livrinho
do Partido de volta. — Conheci alguém que tinha o número 7 num
partido, e por causa disto metade do mundo caiu em ruínas. E eu
também já tive um livrinho, isto me bastou. Quando os alemães
começam a fazer política, mais cedo ou mais tarde estarão senta-
dos na própria merda! Também você, Franz! Se tivesse trazido

150
uma garrafa teria sido melhor.
Não se falou mais no assunto, até que um dia Runzenmann re-
solveu atacar e Ludwig Kurowski foi chamado de “porco nazista”
na escola. Foi dois dias após a inauguração das duas filiais da
Westschuh. A concorrência preparava-se para a luta, a trégua
terminava. Kurowski retomou a batalha interrompida quando da
morte de Paskoleit.
— Este não é um Paskoleit! — disse Runzenmann, com um ar
de superioridade. — É só eu respirar bem fundo que ele estará
pendurado debaixo de meu nariz.
Ninguém se lembrou de que cinco anos de trabalhos forçados
na Sibéria só podiam destroçar um homem, ou então torná-lo du-
ro como um tronco congelado.

151
CAPITULO 15

Duas semanas antes da Páscoa de 1950, Runzenmann, que,


como Kurowski, fundara mais duas filiais de sua loja de calçados
— e isto em Leverkusen e na vizinha Opladen, onde as pessoas
davam graças a Deus por terem, de novo, um telhado razoável so-
bre suas cabeças —, soltou um urro de raiva. Os jornais conti-
nham anúncios de meia página, nos quais a Westschuh comuni-
cava a fundação de uma sociedade de comércio atacadista e dis-
tribuição de calçados, informando aos admirados clientes que, em
todas as lojas da Westschuh, graças às boas condições oferecidas
pela Itália e pela França, e à exclusão dos intermediários, os mais
lindos modelos poderiam ser vendidos a preços mais baixos.
Em seguida vinham ilustrações de sapatos com os respectivos
preços, sapatos que eram verdadeiros sonhos naquele ano de
1950.
— Alguma coisa tem de acontecer! — berrou Runzenmann pelo
telefone ao seu amigo do peito, Huebner, e continuou: — Não po-
demos aceitar uma coisa dessas! Já me informei junto à Associa-
ção. Não há nada a fazer! Ele pode vender sapatos ao preço que
quiser. É a velha canção. Os calçados de marca são tabelados,
mas o cara o que faz? Importa do estrangeiro! Aí calcula um lucro
tão baixo que só dá para passar manteiga no pão, mas a quanti-
dade acaba por lhe fazer o volume desejado. São preços de bata-
lha! Se ele quiser guerra, ele a terá! Ao lado deste Kurowski, Pas-

152
koleit podia ser considerado um cavalheiro! O camarada, mal che-
ga do campo de prisioneiros soviético, já começa a chutar todos os
comerciantes honestos no traseiro! Mas eu vou reagir! O que pre-
tende fazer, Huebner?
Huebner, mais prudente, de qualquer modo obrigado a se re-
trair um pouco devido a sua posição de tesoureiro da Associação
dos Comerciantes Varejistas de Calçados da Alemanha Ocidental,
e não sendo, principalmente, tão estourado quanto Runzenmann,
respondeu com cautela:
— Ainda estamos pensando — disse pausadamente.
— Vocês ficam pensando até morrer! Devemos permitir que es-
se bobalhão da Prússia Oriental fique, o tempo todo, cuspindo em
nossas caras?
Runzenmann espumava de raiva. Rasgou o jornal — Huebner
ouviu-o pelo telefone — e jogou-o contra a parede.
— Eu tenho cinco lojas a perder.
— Deveríamos juntar-nos para formar uma sociedade de com-
pra — disse Huebner.
— Sociedade. Não posso nem ouvir esta palavra! Estamos, por
acaso, na Rússia?! E depois, quanto tempo vai levar até que te-
nhamos juntado tantos colegas para que a coisa valha a pena? —
Runzenmann latia como um cão acorrentado. — Não, Huebner,
tenho uma idéia melhor. Tenho um sobrinho que trabalha na ad-
ministração municipal. Isso me possibilitará acesso ao dossiê so-
bre a vida particular de Kurowski. Quero ser mico de circo se não
acharmos alguma nódoa. E esta nós nos encarregaremos de inflar
até formar todo um pântano!
Runzenmann estava certo. O sobrinho aplicado da administra-
ção municipal de Leverkusen achou, mesmo, uma manchinha:
Kurowski pertencera, de 1935 a 1945, à Frente de Trabalho Alemã

153
e, em 1938, fora até mestre-artesão oficial do Distrito de Ortels-
burg.
— Oba! — exclamou Runzenmann ao ver o extrato do arquivo
particular, e disse, sempre exultante: — Oba! Kurowski vai virar
um supernazista! Até conseguir limpar seu nome estará falido.
Vamos colocá-lo na prensa e é agora...
Existia, naquela época, uma prática introduzida pelas tropas
aliadas de ocupação, muito útil, mas também, com freqüência,
muito mal empregada: a desnazificação. Deviam comparecer dian-
te de um tribunal extraordinário todos aqueles que, ao tempo de
Hitler, haviam exercido algum cargo, pertencido ao Partido ou a
outras organizações nazistas. Em seguida os sentenciados eram
classificados como simples colaboradores (isentos de pena) ou nos
Grupos IV-I. Pertenciam ao Grupo I os criminosos de guerra dire-
tos, que eram transferidos para tribunais normais, sendo toda sua
fortuna confiscada pelo Estado. No caso de Kurowski — assim es-
perava Runzenmann —, poder-se-ia chegar até o Grupo III. Seria o
bastante para atirar a Westschuh no abismo. Se era possível levar
aos tribunais extraordinários celebridades como Sauerbruch e
Furtwaengler, Gustav Gruendgens e Werner Kraus, Emil Jannings
e Krupp, o caso Kurowski era café pequeno e, se ele apodrecesse,
ninguém iria se incomodar.
Uma semana depois da Páscoa a intimação estava sobre a me-
sa. Ewald Kurowski leu a missiva oficial com muita calma, depois
disse alto:
— Erna, aos poucos a Alemanha está voltando ao normal, os
alemães estão começando a enlouquecer de novo. Aqui está escrito
que eu teria sido um nazista! — E telefonou para Franz Busko e
Heinrich Ellerkrug.
Busko chegou logo trazendo o livrinho de honra do Partido, de

154
número 305.
— É a melhor proteção, mestre — disse. — Toda acusação con-
tra um velho membro de nosso Partido não dá em nada. Cortare-
mos o mal pela raiz.
E Ellerkrug disse:
— Vá, Ewald. Deixe-se desnazificar. Assim terá sossego pelo res-
to da vida. Você sabe em que direção estamos navegando? O que
será da Alemanha? No momento vamos bem, estamos em ascen-
são. Mas será que continuaremos assim? O que acontecerá dentro
de cinco anos? Dez anos? Perdemos a guerra como jamais um povo
perdeu uma guerra. Não existem prognósticos para o futuro. Mas
uma coisa sempre é bom ter, aconteça o que acontecer: roupa lim-
pa. Lavada oficialmente. Acho que você deveria submeter-se.
— Sempre tive roupa limpa! — disse Kurowski, cheio de amar-
gura, acrescentando: — Mestre-artesão distrital. Não é nenhum
cargo político. E a Frente de Trabalho? Éramos todos membros! E
quem vai me descontar os anos passados na Rússia? A Sibéria, o
comando de derrubada de árvores, a serraria da taiga?
— Só o bom Deus, Ewald.
— Ele não vende sapatos! — Kurowski dobrou a intimação com
muito cuidado e colocou-a no porta-documentos. — Explicarei à-
quela turma do tribunal como se derruba vidoeiros centenários
num frio de cinqüenta graus abaixo de zero
Tudo foi bem diferente do que Kurowski esperava O tribunal
especial, formado de juizes leigos e antinazistas declarados, inde-
pendente, neutro e objetivo, mas também capaz de olhar só para a
frente, nunca para a esquerda ou para a direita e muito menos
para trás, e ainda reforçado pela presença de três cupinchas de
Runzenmann, não deixou Kurowski abrir a boca O que acontecera
na Sibéria era irrelevante... Importante e condenável era o que le-

155
vara Kurowski, em 1938, a tornar-se mestre-artesão distrital de
Ortelsburg. Cortar lenha na taiga era uma conseqüência da guer-
ra, mas mestre-artesão distrital sob Hitler e pertencer à Frente de
Trabalho, isso era voluntário.
Após uma audiência de meia hora, Ewald Kurowski saiu da sa-
la como nazista do Grupo III. Não estava deprimido ou explodindo
de raiva, apenas triste. Busko, Ellerkrug e Erna, que assistiram à
parte pública do julgamento, sentados lá no fundo junto à parede,
apressaram-se em chegar ao saguão e introduzir Kurowski em seu
meio.
— Mestre, pela última vez... o livro do nosso Partido! disse
Busko. Estava pálido.
Grupo III! Isso significava a proibição de exercer seu ofício até
que se esclareça tudo, até se concluir que Kurowski tornara-se um
bom democrata e alemão.
— Vá à merda com o Partido! — rosnou Kurowski.
Postou-se à janela e olhou a cidade. Por toda parte viam-se a-
inda as ruínas das casas, mas também por toda parte erguiam-se
construções para o céu. Dos escombros nascia uma nova era.
— É possível uma coisa assim nesta Alemanha? — disse baixi-
nho.
— Só na Alemanha! — A voz de Ellerkrug estava rouca de re-
volta. — Sempre fazemos tudo a duzentos por cento. A ditadura, a
democracia. O próprio alemão é seu maior inimigo. As guerras não
são necessárias, o alemão sempre destrói a si mesmo. O resto do
mundo só precisa ter paciência para esperar. Se isto continuar as-
sim, Ewald, dentro de uns vinte ou trinta anos estaremos comen-
do nossa própria merda.
— Agora só depende de amanhã, Heinrich.
Kurowski voltou-se. Os juizes do tribunal extraordinário esta-

156
vam deixando a sala de audiências. Ao passarem por Kurowski
preocuparam-se em não olhar para os lados.
— Vou recorrer.
— E eu tomo conta dos negócios, mestre — exclamou Busko.
— Tenho três sapateiros no Partido; eles me ajudarão com prazer!
— Eles nem podem fechar as lojas! — disse Ellerkrug Afinal de
contas, eu também sou sócio.
— Mas eu não permitirei que me encostem assim sem mais
nem menos!
Kurowski tomou o braço de Erna. Esta lutava contra as lágri-
mas e foi corajosa o bastante para não chorar.
— Venha — disse —, nada disso é capaz de nos arrasar. Arre-
gaçarei as mangas...
Mas arregaçar as mangas não bastava. O tribunal só se reuni-
ria em segunda instância em setembro, e até lá Kurowski podia fi-
car passeando. Fez o melhor que pôde. Viajou para Colônia e Du-
esseldorf, Krefeld e Solingen, Wuppertal-Elberfeld e Remscheid.
Em toda parte emergiam novas cidades das ruínas; era co mo nos
tempos da corrida do ouro na América: as pessoas vinham do
campo para invadir os centros conglomerados, como designavam
as autoridades, as construções novas expandiam-se para além dos
antigos limites urbanos.
— Os tempos do pé no chão já se acabaram há alguns séculos
— disse Kurowski, no final de agosto, a Ellerkrug, que viera de
Pirmasens. Tinha agora, como Kurowski também, um Mercedes
branco e estava construindo uma casa de campo — Calçados,
roupa e comida, tudo isso vem junto. Heinrich... reuniremos todo
o nosso dinheiro, abriremos crédito em bancos e fundaremos lojas
em mais sete cidades diferentes! Dei umas olhadelas por aí. Com
nossos modelos italianos ninguém poderá conosco.

157
— E mais uma coisa — disse Ellerkrug, orgulhoso. — Eu con-
segui assinar um contrato com a fábrica de calçados Fabrizzi. em
Pisa: a Fabrizzi nos fornecerá os modelos, as fôrmas, o couro e o
verniz, e nós montaremos tudo em Pirmasens. Fabricação sob li-
cença. Daqui a dois anos não teremos mais dor de dente
Para Runzenmann foi quase um golpe mortal quando soube
que a Westschuh abria novas lojas em sete cidades.
— Agora está explicado — disse Huebner, cabisbaixo. — E o El-
lerkrug que está por trás de tudo. Por enquanto ainda não se sa-
be, no ramo, o que ele está preparando, mas devem ser coisas
sensacionais.
— Então vamos atacar Ellerkrug! — berrou Runzenmann.
— Não adianta. Heinrich Ellerkrug é um homem íntegro.
— Não há ninguém que não tenha algum podre.
— Mas o de Ellerkrug é microscópico, ninguém vê nada. Meu
caro Runzenmann, com mais estas sete a Westschuh é dona de
uma cadeia de onze lojas. E haverá outras, pode ficar certo. Ku-
rowski está se tornando o mesmo que Kaisers e Tengelmann no
ramo dos produtos alimentícios. Por isso eu decidi trabalhar em
colaboração com Kurowski.
— O senhor o quê? — berrou Runzenmann. — Seu traidor!
— Trata-se de minha sobrevivência, Runzenmann. Vou me as-
sociar a Kurowski. Comigo, Kurowski passará a ter quinze lojas.
Desligou antes que Runzenmann pudesse despejar sobre ele
mais ofensas.
A onda de desnazificação, entretanto, era impossível de conter.
Kurowski fora jogado no moinho — e este funcionava. Na escola
eram as pancadarias entre Ludwig e Peter e os colegas que não
paravam de gritar “nazistas, nazistas!”, e a pequena Inge, de um
dia para outro, não tinha mais amigas; no dia de seu aniversário,

158
para o qual convidara metade da classe, ficou sozinha, chorando
diante de uma mesa toda enfeitada e iluminada com velas. Era o
oitavo aniversário de Inge.
— Não chore, minha gatinha — disse Kurowski, forçando-se
para parecer alegre. — O oito, para os Kurowski, não é um núme-
ro de azar, mas sim de sorte. Qual é mesmo nosso lema?
— Não nos deixaremos abater... — soluçou Inge. — Mas quem
vai comer todo o bolo, papai?
— Em meia hora não vai sobrar mais nada, isso eu prometo!
Kurowski dirigiu-se ao telefone e ligou para Franz Busko.
Fazia um mês que Busko trabalhava em regime de tempo inte-
gral na direção do Partido, viajando, pronunciando discursos e
mais discursos, no fundo todos iguais, mas sempre fazendo su-
cesso porque diziam o que todos pensavam, ou seja: “É preciso
melhorar!” Esperava entrar no Parlamento como deputado no dia
em que houvesse de novo algo assim como um Reichstag ou coisa
parecida.
Busko escutou a proposta de Kurowski, disse “imediatamente,
mestre’’, e começou a agir. Meia hora mais tarde — conforme o
prometido —, parou um ônibus grande diante da casa da Nords-
trasse, 34. Catorze crianças do orfanato saltaram, levando flores
do campo, deram parabéns a Inge, muda de espanto, e logo avan-
çaram sobre o bolo e o chocolate quente. Foi uma das festas de
aniversário mais bonitas da vida de Inge. As crianças do orfanato,
que também formavam um coro infantil, cantaram todo o seu re-
pertório. Juntou gente da rua, repórteres dos jornais e até um
comentarista da Rádio Alemã de Colônia, que, avisado às pressas
(Busko pensara em tudo), se encarregara da promoção popular.
Não para Kurowski, mas sim para Franz Busko... o motivador da
felicidade das crianças do orfanato.

159
— Desgraçado, ele não é nada bobo — disse Kurowski na ma-
nhã seguinte a Erna, cheio de admiração, ao folhear os jornais, e
comentou: — Quando me lembro dele lá em Adamsverdruss, sen-
tado em seu banquinho de sapateiro, pregando tachinhas... O
Busko ainda vai nos passar a perna... Contanto que não despen-
que lá de cima com seu Partido...

O segundo julgamento terminou igual à batalha de Hornberg.


Não deu em nada; Kurowski continuou enquadrado, e além do
mais conseguiu ofender de tal modo os membros do tribunal que
ainda lhe puseram nas costas três acusações de desacato à auto-
ridade. Foi tudo incluído nos autos e, em se tratando de ofensas
políticas, houve até intervenção do promotor público, que moveu
uma ação penal.
A exclamação revoltada de Kurowski — “Não me responsabilizo
diante de idiotas políticos... Vou para casa! Jogarei sua sentença
na privada!” — deu para encher várias páginas.
Sete advogados foram encarregados do caso. Busko não podia
usar o Partido, o que seria totalmente errado naquele momento.
Ellerkrug ficou em Leverkusen consolando Erna, vendo que Ku-
rowski estava se tornando igualzinho a seu cunhado Paskoleit:
bastava um olhar atravessado para que ele virasse uma fera.
— Este está acabado! — rejubilava-se Runzenmann. — Está
acabado! E com o Ellerkrug eu me arranjo. Mas tudo que leve o
nome Kurowski ou Paskoleit eu esmago.
A audiência no terceiro tribunal realizou-se numa sexta feira
pela manhã, em Colônia, em fevereiro de 1951 A família Kurowski,
na qual se incluíam Busko e Ellerkrug, compareceu em peso, no-
vamente fazendo parte da assistência. Havia representantes da
imprensa e do rádio, cuja presença Busko conseguira garantir; a-

160
final de contas, tratava-se de um processo para livrar três juizes
desnazificadores da acusação de idiotas políticos.
Quando todos se levantaram à entrada do júri, Busko ficou bo-
quiaberto.
— Não é possível — disse baixinho a Erna, que estava em pé a
seu lado. — Mestra, dê uma olhada no presidente do júri. Reco-
nhece-o?
— Não.
Erna olhou melhor para aquele senhor alto, pesadão e com um
ar de dignidade. Parecia fechado, inatingível, um homem de lei.
Acenou altivamente e todos se sentaram. Só Franz Busko perma-
neceu em pé. Quando o juiz lhe lançou um olhar de reprovação,
Franz inclinou-se para Erna.
— Mestra — disse baixinho — lembra-se... O treck, o primeiro-
tenente da Cruz da Ordem dos Cavaleiros, o juiz de campanha que
o mandou enforcar numa árvore, o cara que depois estava no na-
vio com os refugiados... Vovô escreveu o nome dele e o mestre Ju-
lius tinha um papelzinho, nós todos, as crianças, eu e a senhora
também, mestre. Espere... ainda tenho o papelzinho em meu por-
ta-documentos. Vovô tinha dito: não se esqueçam nunca deste
nome, nem que cheguem aos cem anos de idade... Aqui está, mes-
tra...
Busko tirou uma folha amarelada e amassada, arrancada de
um caderninho, de seu porta-documentos, com a letra vigorosa do
avô Jochen, escrita sobre um caixote na carroça, em meio à tem-
pestade de neve e à geada, a sua frente o mar Báltico, às costas o
avanço dos regimentos russos.
— Dr. Eberhard Bollow, é ele, mestra. Aquele ali é o juiz de
campanha Bollow. E é ele que quer condenar meu mestre Ku-
rowski? E o que vamos ver...

161
Busko deixou a sala de julgamentos. Fê-lo, de propósito, com
bastante alarde, e na mesma hora o dr. Bollow berrou:
— Silêncio! Que comportamento é este? Declaro aberta a ses-
são contra...
A porta bateu atrás de Busko.
Dez minutos mais tarde — Kurowski estava sendo interrogado
— chamaram o juiz do Tribunal Estatal, dr. Bollow, para fora.
Voltou após cinco minutos, pálido, transpirando, bastante ar-
rasado, e adiou o julgamento alegando algum mal súbito. Em se-
guida virou-se e abandonou rapidamente a sala. Parecia estar fu-
gindo.
Passados oito dias, o processo foi arquivado. Por falta de pro-
vas, disseram.
— E agora — perguntou Kurowski —, o que acontecerá em se-
guida?
— O mesmo de sempre, mestre. — Um sorriso espalhou-se pelo
rosto de Busko. — O tribunal especial cometeu um engano. O se-
nhor será classificado como simples colaborador.
— É verdade — concordou Kurowski com amargura. — Fui co-
laborando até a Sibéria. É nojento pensar que precisamos usar de
subterfúgios para garantir nossos direitos! A humanidade não a-
prende... nem cinqüenta e cinco milhões de mortos foram suficien-
tes para clarear seus cérebros. Um cão que mija onde não deve le-
va uma surra e passa a evitar aquele lugar... mas o homem volta a
fazer sempre a mesma coisa! Não dá para entender!
— Bobagem ficar pensando sobre isso, mestre — disse Busko,
o político nato. — A vida continua...

E a vida continuou. Foram cinco anos de sucesso.


Ewald Kurowski escreveu em seu diário:

162
Escrevo para as gerações futuras, embora saiba que mais tarde
ninguém desejará lê-lo.

Entre outras coisas, ele dizia:

Se pudermos dizer que Deus abençoou alguém, então nós fomos


abençoados. Hoje, 12 de julho de. 1955, possuo dezenove lojas de
sapatos, um comércio atacadista com um depósito de três mil metros
quadrados, cento e quarenta e quatro vendedores, empregados, con-
tadores, operários, motoristas, dez caminhões, uma casa de campo
em Everkotten, dois automóveis e uma conta bancária pela qual se
pode dizer: “Kurowski é algo assim como um milionário’’. Não estou
orgulhoso por causa disso, apenas agradecido. Agradeço a meu cu-
nhado Julius Paskoleit, que lançou a pedra fundamental de tudo, a-
gradeço a meu amigo Ellerkrug, agradeço a meus ótimos filhos, a-
gradeço a Franz Busko, que realmente está sentado lá no Bundestag
e faz discursos em Bonn, e em primeiro lugar agradeço a minha mu-
lher, Erna... a mulher de maior bondade e coragem, e a mais maravi-
lhosa da Terra...

Em 14 de julho Ewald Kurowski viajou a Bad Neuenahr para


um tratamento de saúde.
O médico o examinara a fundo, não só auscultando coração e
pulmão e medindo a pressão, dizendo “Precisa de repouso!”, mas
também mandando tirar uma quantidade de sangue de Kurowski,
que foi encaminhada ao laboratório para, três dias depois, saber
os resultados.
— Aí está, a maior complicação... — disse, alto, o médico da
família.
Era a única maneira de falar com Kurowski. Já tratara de Juli-

163
us Paskoleit e pregara-lhe os mesmos sermões que agora dirigia a
Kurowski. Não foram de grande valia, o que ficou provado pela
morte de Paskoleit no meio da estrada. Mas aquela morte era um
aviso permanente para Erna. Fora ela que carregara o marido ao
médico, como uma domadora que puxa atrás de si um urso trei-
nado, mas teimoso. Havia muitos sinais de que a saúde inabalável
de Kurowski estava alterada. Estava meio gordo, respirava com di-
ficuldade, manchas vermelhas tingiam-lhe as faces e, volta e meia,
tinha crises agudas de gota. A articulação do dedão do pé inchava
até o dobro do tamanho, impedindo-o de andar, e ele engolia mon-
tes de comprimidos. Numa dessas ocasiões, Ludwig, o filho mais
velho, disse:
— Continue assim, pai. Assim você conseguirá arruinar seu fí-
gado!
— Estou ótimo de saúde — rosnou Kurowski.
— O senhor ainda dirá a mesma coisa quando estiverem fe-
chando seu caixão, hein?
— A prisão não fica grudada nas roupas...
— A prisão já foi há muito tempo e já virou história! Por que se-
rá que sua geração flerta com a guerra e a Sibéria até hoje? O re-
lógio aí dentro é que está com defeito! — disse o médico, apontan-
do para o ventre de Kurowski
— O senhor esteve na Sibéria? — perguntou, teimoso, Kurows-
ki.
— Sim. Fui até médico de um campo. Quanto engordou?
— Talvez uns quinze quilos.
— E a isto o senhor chama de normal, é?
— Tinha muito a recuperar, doutor.
— E agora seu metabolismo está uma droga. Está com cento e
noventa de glicose, uma grave hipotonia e uma taxa tão alta de á-

164
cido úrico que a gota se espalha por suas articulações. Quanto
tempo ainda pretende viver?
— Quero completar cem anos. — Kurowski riu, meio atraves-
sado.
— A julgar por seu estado atual, não completará os cinqüenta!
Estou sendo bem claro?
— Sim, só que eu não acredito.
Kurowski vestiu a camisa. “Esses médicos”, pensou. “Estão
sempre soando o alarme como uns bombeiros, mas parece que faz
parte de sua profissão. Sinto-me bem, nunca me senti tão bem. E
o que é glicose? Basta cortar o chocolate e os biscoitinhos que co-
mo à noite vendo televisão. É só isso.”
— Seu cunhado Paskoleit também não acreditou... — disse o
médico, em tom rude. — Depois entrou naquela árvore!
— Ah! — Kurowski esboçou um largo sorriso — Minha mulher
o atiçou, doutor Pense em Julius... Ouço esta frase algumas vezes
por dia! O disco já esta velho.
— E em que pensa o senhor?
— Em minhas dezenove lojas...
— Ótimo. — O médico recostou-se em sua poltrona. — Faça o
que quiser! Não posso narcotizá-lo. Mas, se fosse por mim, ama-
nhã mesmo o senhor estaria correndo para uma clínica em Bad
Neuenahr, nem que tivesse de ser levado à força!
— Estou pagando para ver! — disse Kurowski, deixando o con-
sultório.
Pagou. Ninguém da família soube como Erna conseguiu, mas
dois dias mais tarde Kurowski estava de partida para Bad Neue-
nahr. O filho Ludwig levou-o; Franz Busko sentado no banco de
trás do carro como cão de guarda adicional
— Ele é capaz de pular fora do carro no meio da viagem —

165
dissera Erna. — Franz, não o perca de vista enquanto não chegar
à clínica.
Quando Kurowski partiu, toda a família ficou na rua acenando.
Erna, loura e de uma ternura maternal, comovente; o filho Pe-
ter, de estatura mediana, parrudo como seu tio Paskoleit, ainda
meio desengonçado e, aos quinze anos, insatisfeito consigo mesmo
e com o resto do mundo, e Inge, treze anos, loura como a mãe, o
corpinho quase adulto, bonita e já habituada não só aos assobios
dos rapazes, mas também às cantadas e convites de homens mais
velhos.
E Ludwig. o mais velho, motorista, estudante de medicina em
Colônia, após ter passado no exame com “muito bom”, calmo, e-
quilibrado, já um homem.
— Ele esta saindo da linha — dissera Kurowski certa vez, rin-
do. Calma e inteligência juntas nunca existiram em nossa família.
Kurowski acenou de volta, depois recostou se e disse, bem alto,
para Ludwig e Franz Busko:
— É tudo uma besteira muito grande! Minha saúde está ótima.
Em Bad Neuenahr Kurowski recebeu um belo quarto com sa-
cada dando para o parque particular do Sanatório Renânia. Erna
escondera dele o preço das diárias, senão Kurowski nunca aceita-
ria. Assim achou tudo razoável, cumprimentou os médicos, soube
que só seria examinado no dia seguinte e sentou-se na sacada.
Era um dia maravilhoso de verão e, no parque, sob os guarda-sóis
e em espreguiçadeiras, viam-se os outros hóspedes do sanatório,
entre eles uma mulher esguia, bem proporcionada e muito sensu-
al, de cabelo bem preto e brilhante.
Kurowski curvou-se sobre a grade do balcão, contemplou deti-
damente a bela desconhecida e disse, do fundo do peito:
— Com mil trovões...

166
CAPITULO 16

Um pôr-do-sol numa tarde morna sempre é uma boa oportuni-


dade para estabelecer um contato. Não há nada que torne uma
mulher mais romântica e que lhe dê uma ternura inconsciente do
que as cores do sol poente. Por que, seria uma boa pergunta para
os psicólogos — talvez porque o vermelho é a cor da paixão e por-
que a noite chegando lembra uma cama.
Kurowski disse para si mesmo: “Meu velho, que sorte desgra-
çada”, quando, logo depois do jantar (um horrendo suco de legu-
mes, um montinho de ricota desnatada com cebolinha e cinco fa-
tias de pepino cru, que Kurowski engoliu com o semblante carre-
gado, pensando intensivamente num enorme bife à milanesa com
cogumelos passados na manteiga), avistou a bela desconhecida na
balaustrada do terraço. Seu olhar percorria o parque, que parecia
coberto por um véu dourado no reflexo do pôr-do-sol.
Kurowski parou atrás dela, certificou-se de que ninguém o se-
guira, farejou o perfume terrivelmente excitante que exalava de
suas roupas e, sem nenhuma introdução, disse:
— Se alguém tentasse pintar isto aqui, seria ridículo.
A bela mulher estremeceu, a voz a suas costas soara tão repen-
tina, mas ela não se voltou. “Um prussiano oriental”, pensou. “In-
confundível, essa maneira de falar. É assim que falam lá na Masú-
ria. Tio Hubert falava do mesmo jeito. Eu estava lá justo quando

167
os gansos selvagens estavam voltando. Quem pode esquecer algo
assim?”
Ergueu ligeiramente os ombros. “Engraçado o tipo de coisas
das quais a gente se lembra”, pensou. “Os quadros sucedem-se
com a rapidez de relâmpagos, só porque soou uma voz da Prússia
Oriental.”
— Já pintei algo assim — disse. A voz combinava com ela. Me-
lódica, um tanto velada, tons envoltos em veludo. — O lago Dar-
gainen à tardinha. Esteve até exposto em Berlim, só que eu não o
vendi.
Kurowski começou a limpar o ouvido com o dedo. Podia fazê-lo
porque a bela mulher continuava dando-lhe as costas.
— Disse lago Dargainen? — perguntou. — Ou não estou ouvin-
do bem?
— Não, é verdade. Conhece?
— Como não haveria de conhecer? Sou de Adamsverdruss, mas
a senhora não conhece.
— Não.
Voltou-se. Kurowski, até então valente como nunca, perdeu o
fôlego. Erna era uma mulher bonita... já como mocinha e hoje co-
mo mãe de filhos quase adultos. Mas isto aqui era a pura beleza...
Kurowski não encontrou outra palavra. Era perfeito. Era, no lin-
guajar do ramo, um calçado feito à mão, do mais macio couro da
Rússia.
— Adamsverdruss é um nome muito bonito. Esses lugares da
Prússia Oriental têm cada nome tão original e divertido...
Riu com sua voz profunda, e os pêlos de Kurowski se encaram.
— Moevenort... Ringelau...
— Swainen e Spullen... — disse Kurowski, sem fôlego.
— Kniepkten e Mehlsack...

168
— Nautzwinkel e Gross Puppen! — exclamou Kurowski.
— Suessenberg e Klotainen! Klackendorf e Sackstein...
— Uma terra incomparável!
A bela mulher riu, encostou-se na balaustrada e curvou-se pa-
ra trás. Tinha peitos cheios e firmes, Kurowski pôde constatar isto
através do tecido leve da elegante blusa. Sentiu um calor sob o
cabelo meio grisalho e uma estranha leveza no coração.
— É verdade que, entre essas, Adamsverdruss não pode faltar
— disse ela.
— Era uma aldeia bonita. — Kurowski inclinou-se. — Permita-
me: sou Ewald Kurowski.
— Marion Hellbaum.
Ficou olhando-o, o lábio inferior um pouco para a frente. Dava-
lhe um ar faceiro e Kurowski pôs-se a imaginar qual seria sua i-
dade “No mínimo trinta”, pensou, “no máximo quarenta. É difícil
dizer no caso de uma mulher tão maravilhosa.”
— Kurowski? — perguntou de chofre. — Da fábrica de alumí-
nio?
— Não diretamente, embora utilizemos alumínio como suporte
em nossos calçados. Kurowski da Westschuh. Leverkusen. Mas
temos de falar sobre isso?
— Não.
— Eu vim aqui para uma cura de repouso. O médico achou ne-
cessário. Resolvi fazer-lhe este favor... Sempre que discutimos com
os médicos eles se tornam logo desagradáveis e começam a men-
cionar caixões! Mas, a julgar pelo que me deram para comer hoje à
noite, não acho que vou melhorar.
— Isto ainda foi principesco! Amanhã de manhã teremos uma
xícara de um caldo com aroma de ervas. Só!
— Que horror! E a senhora agüenta?

169
— Há onze dias.
— E não arranca o papel das paredes de tanta fome?
— Eu tenho cara de quem faz isso?
Kurowski tinha muitas respostas a esta pergunta. Mas justo
nessas situações a gente fica sem palavras. Não era um playboy
por vocação, a vida inteira só prendera solas e vendera sapatos
para sair da lama e subir. Como encontrar palavras para descre-
ver uma mulher tão bonita?
— Se, depois de onze dias, eu tiver sua aparência — disse Ku-
rowski —, claro que como homem, farei uma peregrinação a Roma
para me apresentar ao papa como milagre.
Marion Hellbaum tornou a rir. Kurowski estava orgulhoso. Pa-
recia ter falado bem. Tinham travado conhecimento. A pergunta
seguinte, é lógico, foi:
— Quanto tempo ainda vai ficar em Bad Neuenahr?
— Mais duas semanas. E o senhor, sr. Kurowski?
— Três semanas! Considerando a comida que me espera, vai
parecer três anos! Mas de uma coisa tenho certeza, agora: duas
semanas eu agüento, nem que tenha de comer capim!
— Obrigada — disse Marion Hellbaum, pousando a mão no an-
tebraço de Kurowski. Era como se choques elétricos percorressem
seu corpo.
— Por que agradece? — perguntou.
— Foi um elogio e tanto...
Kurowski foi tomado de surpresa, que logo se transformou em
confusão. “Então é assim”, pensou. “Este foi meu primeiro elogio.”
Outrora, com Erna, dissera apenas “Gosto de você, garota”, e tudo
estava certo. Desde então nunca mais olhara para outra mulher.
Erna tomara conta de seu mundo. Era impossível imaginar uma
vida sem ela. Mas agora, de repente, existia algo mais, que Ku-

170
rowski enfrentava pela primeira vez: uma aventura com uma mu-
lher. Era um sentimento novo que fluía pelo corpo como fogo. Ku-
rowski nem tentou lutar contra aquilo — era uma luta perdida
desde o início.
Naquela noite foram passear no parque. Kurowski falou sobre
Adamsverdruss e Leverkusen, sobre sua cadeia de lojas e a guer-
ra. Contou tudo. Só deixou de mencionar Erna e as crianças. Nem
Marion Hellbaum perguntou se era casado ou se tinha filhos. De
ambos os lados ignorou-se o assunto e Kurowski chegou à conclu-
são de que, nessa base, seria possível suportar duas semanas de
férias, mesmo com uma alimentação das mais frugais.
De volta a seu quarto — Marion morava abaixo dele, diagonal-
mente para a esquerda, quarto 18 —, Kurowski andou, inquieto,
para lá e para cá; foi até a sacada, sorveu o ar com avidez, lançou
um olhar de esguelha para a esquerda, a luz de Marion ainda es-
tava acesa, voltou ao quarto, bebeu água da torneira (cerveja era
proibido), depois sentou-se à mesa e escreveu um cartão-postal
para Erna e as crianças.

O primeiro dia já passou. Se vocês soubessem o que me dão pa-


ra comer iriam chorar. Mas vou ficar firme! Como diz um Kurowski:
“Não nos deixaremos abater!” Aqui também não. Um beijo para to-
dos. Seu pai.

Releu o cartão e se deteve no tema.


— Acho que, pela primeira vez, algo vai dar errado... — disse,
tomado de uma premonição. — Meus antepassados não conhece-
ram nenhuma Marion Hellbaum...
Quatro dias mais tarde já se chamavam pelo primeiro nome; no
quinto, beijaram-se. Demorou mais que Kurowski supusera de i-

171
nício. Mas a primeira vez que puxou Marion para si e a beijou sen-
tiu que, com isso, abria a porta a uma série de problemas. O pri-
meiro passo para trair Erna fora dado e o que viria em seguida a-
inda poderia ser freado, mas ele não queria. Tentou justificar-se
em segredo, invocou os anos perdidos na guerra, a prisão... mas
nada disso era motivo bastante para esquecer Erna, nem mesmo
por nove dias. E seriam mesmo só nove dias? Marion Hellbaum
morava em Wesel. De Leverkusen a Wesel não era longe, o Merce-
des faria o trajeto em pouquíssimo tempo, e, se a coisa com Mari-
on continuasse depois de Bad Neuenahr — e continuaria, Ku-
rowski já sabia disto porque não se larga uma mulher assim —,
tempos difíceis começariam para a família Kurowski.
Àquela noite, depois do jantar, Kurowski preparou-se para pro-
curar Marion no quarto 18. Tomou banho, barbeou-se mais uma
vez, borrifou-se com um perfume masculino comprado no dia an-
terior, contemplou-se no espelho e achou que não estava nada
mal, um pouco gordinho (mas era por isso que estava ali), olhos
claros, límpidos, e um rosto bonachão. Era um traço enganador,
porque o avô Jochen também tivera um rosto bonachão, como ali-
ás todos os Kurowski, mas quando se punham a berrar era de fa-
zer espumar no copo a cerveja mais choca.
Naquela noite Franz Busko telefonou.
— Como é, mestre, como é que vamos?
— Bem — rosnou Kurowski.
Tornara-se monossilábico. “Maldição, não é nada fácil trair a
Erna”, pensou. “Preciso de um pilequinho. Mas como? Até hoje
ninguém conseguiu embebedar-se com suco de legumes.”
— Como é a comida?
— É o que deveriam obrigar vocês no Bundestag a comerem!
— E no mais?

172
— No que mais? — baliu Kurowski.
— O senhor sabe, mestre... no mais...
— Eu quero me recuperar e emagrecer! — berrou Kurowski. —
Aliás, por que nunca me disseram que eu precisava de uma tem-
porada numa clínica?! — perguntou.
Esta observação foi totalmente inoportuna. Busko, treinado a
ler nas entrelinhas parlamentares, desconfiou do que se passava
em Bad Neuenahr. Ligou logo para Heinrich Ellerkrug e disse:
— Heinrich, mesmo que já esteja deitado, vá até Neuenahr. O
mestre está no cio. É, é o que estou dizendo! Eu já desconfiava!
Não, não precisa ser hoje, amanhã está bom. E leve a mestra, mas
sem as crianças. Eu também deveria ter ficado em Neuenahr.
Sempre as mulheres...
Ellerkrug desligou bruscamente. Busko podia falar. Desde que
estava no Bundestag tinha um caso com uma secretária e com-
prava — também ainda era diretor da Westschub — peles e jóias.
Alugara um apartamento em Godesberg para ela e planejava pas-
sar as férias de inverno em Davos.
Ellerkrug não conseguiu mais pegar no sono aquela noite. Fi-
cou pensando em Erna e em sua fidelidade inabalável a Ewald.
Kurowski também não dormiu. Deitado no quarto 18, com Ma-
rion na cama a seu lado, a mão direita pousada em seu magnífico
corpo nu, olhava fixamente para o teto e pensava: ‘‘Foi lindo,
mas... Kurowski, você é um porco...”
Ellerkrug sentiu-se um miserável ao chegar inesperadamente em
Leverkusen, propondo a Erna irem visitar Ewald em Bad Neuenahr.
De surpresa. Bem, não seria tão de surpresa assim; ninguém dese-
java causar uma tragédia e Busko, encarregara-se de telefonar a
Kurowski para preveni-lo. Qual seria a reação de Kurowski, na ver-
dade, ninguém sabia. Quando um homem vagueia por sua segunda

173
primavera, não escuta mais o uivo dos ventos nem sente a chuva.
Só percebe o aroma das flores. No caso de Kurowski deviam ser
campos floridos inteiros... Não era à toa que ele era um Kurowski!
— Ele nem gosta desse tipo de surpresas — disse Erna.
Ellerkrug teve a impressão de que ela desconfiava de alguma
coisa. Até então, Kurowski enviara dois cartões com as frases mais
bobas. “Aqui brilha o sol, eu estou bem, perdi um quilo e meio,
como vão vocês?” São cartões assim que escreve um homem que
vai passar uma temporada numa clínica pela primeira vez na vi-
da?
— É por isso mesmo que vamos até lá! — disse, cabisbaixo, El-
lerkrug.
— Ele vai se zangar, Heinrich.
— Quem se zanga quando recebe a visita da mulher?
— Sem os filhos?
— Sim. Só você!
Erna fitou-o por algum tempo. Ambos estavam calados, nem
havia necessidade de se dizer mais alguma coisa. Ellerkrug mor-
discava o lábio inferior. Continuava apaixonado por Erna e, ven-
do-a sentada ali, num vestido moderninho de verão, o cabelo louro
suavemente ondulado, bondosa, maternal, um pedaço de céu da
Prússia Oriental, do lado da Masúria, da floresta de pinheiros, de
tudo o pedaço mais bonito, ficou tentado a viajar sozinho para
Neuenahr para dar um soco na cara de Kurowski.
— Vou ficar — disse Erna, finalmente. — Não devemos pertur-
bar a cura de Ewald.
— Talvez faça parte da cura, Erna, você ir vê-lo agora mesmo
— disse Ellerkrug, num tom sombrio.
— Qual é o nome dela? — perguntou, de chofre.
— Não tenho a mínima idéia.

174
Descuidara-se. Levantou-se de um salto e foi para junto da ja-
nela. O amplo jardim da casa de campo florescia em centenas de
cores.
— A que horas partimos? — perguntou ele.
— Devo correr-lhe atrás?
— Você passou anos esperando por ele.
— Estava desaparecido. Agora está aqui... é diferente. E eu es-
tou mais velha... Quarenta e um anos...
— E isso é idade para uma mulher? Ele tem cinqüenta e um...
Maldição, sim, para o homem é um precipício sobre o qual ele pre-
cisa saltar... é a vontade de ser jovem quando não se tem mais a
juventude. Ele precisa de sua ajuda, Erna.
— Certamente ela é mais bonita que eu, mais elegante, culta,
fina.
— Mas você é Erna Kurowski! Sem você e Paskoleit, Ewald se-
ria, agora, um zero à esquerda! Ele deve tudo a você!
— Esta é uma coisa que não se deve dizer nunca a um ho-
mem...
— É claro que não. Mas deve-se mostrar a ele que a gente exis-
te! Vamos, viajemos imediatamente para Neuenahr.
Passaram em Colônia para pegar Ludwig, o mais velho.
— Hoje à tarde tenho um curso de recapitulação de anatomia!
— exclamou Ludwig, e continuou: — Que besteira ir visitar papai
em Neuenahr de surpresa!
— Os ossos continuam sempre iguais! — gritou Ellerkrug, co-
mo resposta. — Mas, quando sua mãe pede que você a acompa-
nhe, isto é mais importante! Entre aí. Não sei como é que um bo-
boca destes pode chegar a ser médico!
Franz Busko, nesse meio tempo, encontrava-se junto ao telefo-
ne em Bonn, esperando que localizassem Kurowski em Neuenahr.

175
Este e Marion estavam no salão de chá, comendo bolo dietético e
tomando chá sem açúcar. Depois foram assistir ao concerto no
parque. A felicidade era completa. Esvaíra-se o remorso da noite
anterior quando amanhecera. Marion, com ternura, puxara-o no-
vamente sobre si, para que ele possuísse aquela maravilha de mu-
lher; esta sensação de triunfo era mais forte que qualquer lem-
brança de sua família. Assim deve sentir-se um alce que reina so-
bre o maior e mais belo rebanho.
No sanatório vieram correndo na direção de Kurowski, para in-
formá-lo de que o chamavam, sem interrupção, do Bundestag.
Kurowski foi atender e ouviu a voz de Franz Busko:
— Mestre, onde foi que se meteu? Alarme! A mestra vai aí, já
deve estar entrando pela porta...
Desligou antes que Kurowski se pusesse a berrar. Para escapar
a um Kurowski era necessário ser mais rápido do que ele.
— Era um amigo — disse Kurowski a Marion, ao voltar do tele-
fone. — Franz Busko, o membro do Parlamento. Um assunto de
exportação de couros. Amor, teremos de cancelar parte de nosso
programa. Vou direto trabalhar em meu quarto. Não poderei a-
companhá-la ao concerto hoje. Não fique chateada, amorzinho...
compensaremos depois.
Apertou a mão de Marion e correu para o elevador.
Chegando ao quarto, tomou uma ducha quente para tirar o
perfume de Marion da pele, destruiu tudo que havia de compro-
metedor em seus bolsos: duas entradas de cinema, dois ingressos
para o concerto, dois passeios de charrete para Muenstereifel, du-
as excursões de vapor pelo Reno, sempre duas, duas, duas. É es-
pantoso quanta coisa é possível fazer a dois em tão poucos dias...
e estava pronto para esperar por Erna. Como era para ser uma
surpresa total, tinha de entrar no jogo. Tirou os sapatos, deitou-se

176
na sacada e esperou.
O sol poente já começava a tingir o céu — Kurowski viu nisso
uma bofetada secreta do destino — quando bateram à porta.
— Entre! — gritou. — Deixe esse suco desgraçado na mesa, se-
nhorita! Sem ele não teria o que sonhar!
“Isso funciona”, pensou. “Erna vai ver como eu sigo tudo à ris-
ca.” Aguardou, e como nada se mexesse, voltou-se.
Marion estava no quarto. Naquele instante estava se deitando
na cama e parecia saída de um conto de fadas.
— Mas o que é que você está fazendo aqui? — gaguejou Ku-
rowski. — Pensei que estava no concerto.
— E eu pensei que você estivesse trabalhando.
— E o que eu estou fazendo. Estou pensando. Aguardo alguns
telefonemas de Bonn...
— Adoro homens que pensam. — Marion espreguiçou-se na
cama. — Gosto de assistir quando os homens pensam. Talvez você
precise de ajuda, amorzinho. Cada homem tem sua musa, toda
profissão tem algo de poético...
Kurowski, naquela situação, não estava inspirado para poesia.
Ergueu-se de um salto, mas não sabia o que fazer. A temida ca-
tástrofe viera mais depressa do que pensara. Poderia ter sido evi-
tada, mas Kurowski não tinha a menor prática nesse tipo de coisa
e em seu primeiro deslize já levava um tombo.
Antes que pudesse dizer alguma coisa, tornaram a bater.
“Fique lá fora, Erna”, poderia ter gritado. “Pelo amor de Deus,
não entre! Eu lhe suplico... Poderemos conversar mais tarde sobre
tudo, com calma. Só não entre agora...”
Mas não disse nada. Como que se recuperando de um ataque
de paralisia, foi até a porta, passo a passo, como se estivesse rea-
prendendo a andar e, quando agarrou a maçaneta, Marion per-

177
guntou, lá da cama:
— Vem mais alguém, amorzinho? Espere... desaparecerei num
minuto... Não sabia.
Do lado de fora abaixaram a maçaneta. Kurowski segurou-a,
mas quem apertava do outro lado tinha muita força. Não foi possí-
vel impedir que a porta se abrisse e Kurowski desse de cara com
seu filho mais velho. Atrás dele, mas ainda no comprido corredor,
estava Erna. Triste, loura, com grandes olhos azuis.
— Espere um minuto, mãe — disse Ludwig.
Empurrou Kurowski de volta para dentro do quarto, fechou a
porta, fitou Marion — que continuava deitada na cama, olhando
tudo com muito interesse —, virou-se e respirou fundo. “Também
ele é um Kurowski”, pensou Kurowski. “Agora vai se revelar.’’ Por
mais absurdo que fosse naquela hora, isso o encheu de orgulho.
— Meu filho... — disse, hesitante.
Ludwig não disse palavra. Mas após respirar fundo ergueu a
mão e bateu no rosto do pai.

178
CAPITULO 17

Kurowski não se moveu. Embora todos esperassem, até o pró-


prio Ludwig, no mesmo instante em que bateu, Kurowski não re-
vidou. Os braços pendentes, de pé no quarto, fitava o filho com os
olhos arregalados, mais desconcertado que enfurecido, e estreme-
ceu quando Ludwig, o corpo todo trêmulo de comoção, disse:
— Por que você não ficou lá na Rússia... ?
Foi a coisa mais terrível que se podia dizer a Kurowski. Desde o
dia em que uma tropa de choque soviética o surpreendera e ele fo-
ra levado com as mãos entrelaçadas sobre a cabeça para esperar,
depois, na taiga siberiana, a milhares de quilômetros, pelo dia em
que o comandante do campo lhe dissesse: “N.° 295197 pode ar-
rumar suas coisas. Você vai para casa. Foi perdoado, o diabo sabe
por que, mas é isto mesmo. Apresente-se amanhã cedo à camara-
da médica para o exame final”, durante todo esse tempo arrastado
e terrível só tivera saudade de uma coisa: Erna e as crianças. E se
tivesse de rastejar sobre as mãos e os pés lá da taiga até a Alema-
nha... cairia de joelhos e iria escorregando...
E agora ouvia de seu filho mais velho, seu orgulho, o futuro
médico, o garoto que de todos era o mais parecido com Erna: “Por
que você não ficou lá na Rússia...?”
Kurowski voltou-se sem proferir uma só palavra, saiu para a
sacada e chorou.
Ludwig, tomado de um furor atroz, tornou a abrir a porta e deu

179
de encontrão com sua mãe, encostada do outro lado. Virou-a, em-
purrou-a de volta ao corredor e colocou o braço em seu ombro.
— Vamos embora, mãe — disse, a voz rouca —, aqui não há
mais nada a fazer. O que precisava ser dito e feito já o foi por mim.
Venha, mãe. Conto-lhe tudo lá embaixo. Ainda temos muito que
conversar...
Encontraram Heinrich Ellerkrug no elevador. Ficara para trás,
de propósito, pressentindo o que estava por vir. “Isto é assunto de
família’’, pensara. ‘‘É verdade que indiretamente eu também faço
parte dela, mas o que está se passando aqui deve ser resolvido en-
tre eles.” Mas mudou de idéia ao ver Ludwig chegar pisando forte
— “Está com o mesmo andar de Paskoleit”, pensou Ellerkrug ad-
mirado — e vendo o rosto de Erna começar, muito devagarinho, a
se desmanchar em lágrimas.
— O que... o que foi? — perguntou Ellerkrug. — Posso ajudar?
— Vá até o quarto dele!
Ludwig apertou a mãe, abriu, com força, a porta do elevador e
desapareceu na cabine. Ellerkrug esperou até que descessem e em
seguida deu meia-volta e correu pelo corredor.
Sem bater, abriu a porta e despencou-se para dentro do quar-
to, no momento exato em que Marion Hellbaum dizia:
— E você se conforma com isso, amorzinho? Se fosse eu, já es-
taria chegando às últimas conseqüências...
— É isso mesmo que ele vai fazer! — berrou, na mesma hora,
Ellerkrug.
Um olhar bastou para que ele compreendesse a situação. Aque-
la linda mulher — “Maldição, Ewald tem gosto, só que em hora er-
rada!” —, ainda deitada na cama, como se posasse para uma pu-
blicidade tipo “Aqui termina o envelhecimento’’, e Kurowski parado
à porta da sacada, com os olhos vermelhos e um ar de abandono

180
que inspirava pena.
— Mais um para distribuir bofetadas? — perguntou Marion,
num tom impertinente. Pulou da cama e ergueu-se, como uma pa-
rede, entre Ellerkrug e Kurowski: — Quantos faltam? Ainda vêm
muitos parentes? Ainda vai chegar o titio, a titia, o vovô?!
— Nem pense numa coisa destas — Ellerkrug acenou para Ku-
rowski. — Se estivesse aqui o avô Jochen ou Paskoleit, a senhora
teria presenciado uma tempestade prussiana com árvores arran-
cadas com raiz e tudo, e com telhados voando. Ewald, será que
poderíamos conversar a sós?
— Não vou deixar o Ewi sozinho... — intercalou, bufando, Ma-
rion Hellbaum.
— Quem é Ewi? Você, Ewald? Meu Deus — Ellerkrug soltou
uma estrondosa gargalhada. Sabia: nada é mais letal que cair no
ridículo. — Ewi! E de morrer de rir! Poderia ser um bassê. Ewi,
venha, venha... sentado, dando a patinha... Ewi, não morda...
— Seu cachorro miserável! — berrou Kurowski. Com a chegada
de Ellerkrug recobrara em muito sua pose.
— Eu? Por acaso meu nome é Ewi?
— O senhor é um homem asqueroso! — disse Marion Hell-
baum, e girou o corpo na direção de Kurowski. Foi tão rápida que
parecia uma acrobata. — Expulse-o daqui, amorzinho. O quarto é
seu e você é o dono da casa. Ou quer que eu toque o alarme?
— É uma idéia, Ewi, toque o alarme! Para que todo o sanatório
possa ver que não é só de dieta que se emagrece...
Deixou-se cair numa das poltronas, cruzou as pernas e sorriu,
afável, a Marion, que tremia de raiva.
— Veja bem, senhora — disse Ellerkrug, bem-educado. — E-
wald é um camarada de extrema bondade. Nunca traiu sua mu-
lher e quando olho assim... Ewald, cale a boca!... e a vejo no quar-

181
to dele, quero acreditar que Ewald está sendo vítima da aventura
que se costuma chamar de “sombra das clínicas”. Ele não conhece
essas coisas... Comigo a senhora teria passado horas bem mais
agradáveis!
— Eu o odeio! — disse Marion Hellbaum, muito seca. — O se-
nhor é capaz de afastar qualquer mulher de quaisquer pensamen-
tos em relação a um homem.
— Seria uma grande perda para todos nós! — Ellerkrug, mes-
mo permanecendo sentado, inclinou-se. — Para que eu fique livre
de sua presença, basta que a senhora se retire...
— Não brigo com rapazinhos impertinentes.
Marion Hellbaum ajeitou seu magnífico cabelo preto e, através
do espelho, ficou observando Ellerkrug e Kurowski.
Como nenhum dos dois se mexesse, virou-se novamente e lan-
çou a Ellerkrug um olhar furioso. Seus olhos negros faiscavam de
raiva.
— Em primeiro lugar quero esclarecer que tenho independên-
cia financeira. Não estou interessada na cadeia de lojas de Ewald.
Está fazendo uma suposição totalmente falsa se estiver pensando
deste modo.
Voltou-se para Kurowski e sorriu. Diabos, passou pela cabeça
de Ellerkrug a possibilidade de ela o amar de verdade. “Não conta-
va com isto. A coisa está se complicando e cada vez esquenta
mais.”
— Cabeça fria, amorzinho — disse ela e saiu. Ellerkrug esperou
até que a porta se fechasse, depois olhou para Kurowski, sacudiu
a cabeça e bateu com o dedo na testa.
— Sua besta quadrada!
— E tudo que você tem a dizer? — murmurou Kurowski.
— É um idiota declarado!

182
— Ficar sentado aqui falando bobagens, qualquer um pode —
Kurowski andava pelo quarto. Sentia-se podre. O perfume de Ma-
rion ainda pairava no ar, pesado e doce. — O que fará Erna?
— Posso imaginar o que ela vai fazer. Mas o que fará você, isto
eu ainda não sei.
— Dá-se um jeito, Heinrich.
— Não é tão simples assim. Antigamente, se você prendesse
um salto e ele ficasse torto, era só arrancá-lo...
— Erna não é um salto de sapato!
— Justamente! Erna é a mulher mais maravilhosa que eu co-
nheço...
— Sei disto. Você também passou dias e noites correndo atrás
dela. E ela topou?
— Não! Ela ficou espetando por você. E você vai e... — Eller-
krug curvou-se para a frente. — Essa morena é uma bela mulher.
Admito. Mas não é assim que se faz, de maneira tão tola... Nem
assim tão do fundo da alma! Levando a coisa tão a sério! Mas sim
um flerte de férias, e depois o esquecimento total.
— Heinrich, deixe-me em paz! Tenho de sair dessa sozinho.
Ellerkrug reparou algo. O tom era novo, de um Kurowski intei-
ramente mudado.
— É tão sério assim? — perguntou, impressionado.
— Sim. Infelizmente. Esta mulher conseguiu me enlouquecer.
Heinrich, não consigo me libertar. Preciso de tempo.
— É o que você não tem. De uma coisa estou certo: Erna não
esperará por você mais uma vez.
— E meu filho me bateu. Meu rapagão... Não vou superar isso
nunca.
— Só o fez para representar a mãe.
— Não se bate num Kurowski. Nem o próprio filho! Marion tem

183
razão, isso não pode ficar assim...
— Como queira! — Ellerkrug levantou-se bruscamente. —
Quando arbustos velhos pegam fogo, deve-se deixar que acabem
de queimar! O que digo a Erna?
— Nada.
— Não devo dizer: estou envergonhado, Erna...
— Não!
Kurowski virou-se e foi para a sacada. Parecia ter recobrado
sua força. Mas era só fachada, custou-lhe um esforço enorme.
— Um assassino é ouvido, pode defender-se... mas um pai leva,
simplesmente, um tapa na cara, só porque... Saia, Heinrich. Vá
embora! Preciso ficar sozinho...
Ellerkrug ainda queria dizer alguma coisa, apaziguar, ajeitar a
situação, chamar Kurowski de a maior besta de todos os tempos
— poderia, também, chutá-lo com força no traseiro para ver se o
acordava daqueles sonhos cor-de-rosa —, mas depois só deu de
ombros e apressou-se em sair dali.
Kurowski, em pé atrás da cortina da janela da escadaria, de
onde se via a entrada e saída dos carros, ficou olhando para fora.
Viu Ludwig e Ellerkrug entrarem no carro”, depois Erna, de cabe-
ça baixa, o cabelo louro brilhando ao sol, o passo meio hesitante
como se não quisesse entrar no carro, preferindo ficar, mas Lud-
wig, que já deixara a porta do automóvel aberta, curvou-se para
fora e disse alguma coisa. Ela fez um sinal com a cabeça e entrou.
Kurowski apertou os dentes. Nunca vira Erna tão frágil, tão can-
sada, no auge da resignação.
Aguardou até que o carro deixasse a rua particular, afastando-
se, depressa, pela estrada, como se Ludwig — que dirigia — esti-
vesse competindo numa corrida de automóveis. “Está com muita
pressa de sair daqui”, pensou Kurowski, amargo. “Meu filho mais

184
velho, meu orgulho! E o que contará a seus irmãos? Ao estudante
preguiçoso Peter e à linda e precoce Inge? Seu pai está deitado na
cama com outra mulher... e eles arregalariam os olhos e, de início,
não entenderiam nada. Nosso pai? Traindo nossa mãe?” De repen-
te o mundo dos Kurowski tornara-se desordenado.
Voltou-se, viu Marion Hellbaum no corredor, sorrindo feliz.
Trocara de roupa colocando um traje de noite, trabalhado com fios
de ouro, seu “vestido de cassino”, como o chamava, e viera buscá-
lo... “O que fazer”, pensou Kurowski, “o que fazer, meu Deus?”
Encolheu o queixo, escondeu a cabeça entre os ombros e passou
por Marion sem uma palavra, rumo a seu quarto.
— Mas, Ewi...! — ainda ouviu a exclamação de espanto, e in-
dignação dela ao fechar a porta.

Durante dez semanas Ewald Kurowski ficou sumido.


Depois do tratamento viajara com destino ignorado. Marion
Hellbaum interrompera sua temporada em Bad Neuenahr mais
cedo e recolhera-se, ofendida, em sua propriedade no campo perto
de Wesel. Deixou uma carta para Kurowski.

Você poderá vir me procurar, mas só depois que tiver tomado


uma decisão definitiva. Você sabe que o amo...

Kurowski embolsara a carta. Na manhã em que Marion deixou


o sanatório evitou a despedida. Fez uma excursão de vapor pelo
Rerib até Bingen e tomou um porre.
A empresa Westschuh continuava como se Kurowski ainda es-
tivesse sentado em seu novo escritório de Leverkusen, um homem
largo, forte, um cabeça-dura da Prússia Oriental que se podia co-
locar no meio de uma tempestade e que retrucava com um berro

185
mais forte do que o uivo do vento.
Ellerkrug assumira a direção. Era dispensável em Pirmasens,
as fábricas de calçados funcionavam a todo vapor, tinha dois bons
diretores e achava-se agora na obrigação de cuidar de Erna e dos
filhos mais jovens.
Raríssimas vezes Erna deixava sua casa de campo. Costumava
ficar sentada no terraço, o olhar perdido. Toda vez que ouvia baru-
lho de carro, sua cabeça pulava. Se o carro parasse na rua, levan-
tava-se logo.
— Ela espera e espera... — disse Ellerkrug a Ludwig, que vinha
de Colônia aos sábados e domingos. — Dá vontade de chorar! Mas
desta vez ele não volta. Agora não é a Sibéria que o prende, mas
sim uma mulher! Donde se conclui que uma mulher pode ser
mais perigosa que a taiga mais terrível. Você teve alguma notícia
de seu pai?
— Não.
Ludwig meneou a cabeça.
— Busko movimentou todo o aparato na medida do possível
sem deixar de ser discreto. Papai abandonou Neuenahr dizendo
que iria para casa, e desde então ninguém sabe onde está.
— Deve estar no sul da Alemanha. — Ellerkrug mostrou um a-
viso bancário. — Anteontem foi descontado um cheque de dois mil
marcos no Deutsche Bank em Rottach-Egern. Portanto, em Wesel
ele não está.
— O que não exclui a possibilidade de aquela mulher estar com
ele no Tegernsee.
Ellerkrug passeava de um lado para outro no jardim da casa de
campo de Kurowski. De novo, Erna estava sentada no terraço sob
um guarda-sol, uma estátua loura e pálida de saudade. Não podia
ouvir a conversa de Ellerkrug e Ludwig.

186
— Não sei — disse Ellerkrug —, mas, em minha opinião, vocês
estão todos superestimando o escorregão de Ewald. Não é mais do
que isso, mas vocês estão fazendo um bicho-de-sete-cabeças, le-
vando-o a decisões que ele nunca desejou.
— Ele precisa ter consciência da sujeira que fez com mamãe —
disse Ludwig. —Já seria um grande passo para a frente! Mas esta
teimosia de mamute! Nunca dar o braço a torcer! Jamais abaixar a
cabeça! É isto que me dá raiva.
— Se vocês sabem como Ewald é, por que não vão a seu encon-
tro, que diabo?
Ludwig Kurowski parou e olhou na direção da mãe. “Está sen-
tada ali há semanas”, pensou. “Apenas pela respiração ainda se
percebe que está viva. Um quadro lamentável. E possível que, em
Bad Neuenahr, tenhamos todos reagido com fúria e paixão exces-
siva; um Kurowski revida quando é atacado, mas são coisas pas-
sadas e temos de tirar o melhor partido da situação. Não nos dei-
xaremos abater... Agora, mais do que nunca, precisamos de nosso
lema...”
— A qualquer momento papai terá de se manifestar — disse,
hesitante, Ludwig. — Não creio que desistirá de Peter e Inge com
tanta facilidade, mesmo que não goste mais de mamãe. Quanto a
mim, nem se fala. Morri para ele. Mas os mais jovens... Esta é to-
da a minha esperança...
— A minha também... — disse Ellerkrug.
Era uma esperança muito tênue.

Era uma noite cheia de chuva e típica de outono. O vento arran-


cava as folhas murchas dos galhos, um frio úmido infiltrava-se nas
casas ainda abertas do verão, um dia abominável de setembro.
Ellerkrug negociava em Leverkusen com fabricantes de calça-

187
dos italianos e, depois, levou-os a Colônia e foi com eles a uma
boate de strip-tease. Ludwig estava fechado em seu quarto em Co-
lônia, estudando anotações de conferências médicas, Peter saíra
para o aniversário de um colega, Inge fora passar a noite na casa
de uma amiguinha em Leverkusen. Erna estava sozinha no casa-
rão. Percorreu todos os quartos, aquela solidão repentina era de-
primente, sentia-se como enterrada viva numa sepultura pompo-
sa. Nunca, em toda a sua vida, estivera tão só como naquele mo-
mento, sempre houvera alguém por perto, jamais tivera a sensa-
ção de que ninguém precisava dela. Pelo contrário — sem Erna
Kurowski e Julius Paskoleit a família teria perecido afogada na
maré vermelha que, naquela época, em 1945, invadiu a Prússia
Oriental arrasando tudo.
Mas agora ninguém mais precisava dela. A empresa andava so-
zinha, as crianças estavam cada vez mais independentes, Franz
Busko e seu “E aí, mestra?” também mudara; fazia, agora, discur-
sos pelo Partido em alemão corretíssimo e, do tesouro inesgotável
das minutas redigidas por Paskoleit e Ellerkrug nos anos passa-
dos, destilava sempre novas falas, clangorosas como fanfarras.
Ellerkrug dedicava-se integralmente aos negócios, quase não
dormia. Erna ficava sentada pelos cantos perguntando-se, de vez
em quando: “Será que, se de repente eu não estivesse mais aqui,
alguém iria sentir minha falta?”
Por volta das dez horas da noite o temporal de outono aumen-
tou. As árvores gemiam no jardim, o vento despia os galhos. Erna
Kurowski, atrás das altas portas de vidro do terraço, contemplava
as profundezas da noite. Acendera os refletores do jardim que co-
briam de uma luz clara os grupos de arbustos, os canteiros de flo-
res e o pequeno chafariz. Erna Kurowski já ia sair dali quando viu
o homem entrando no jardim. Chapéu enterrado no rosto, a gola

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da capa de chuva bem levantada, as mãos nos bolsos, assim veio
vindo, passos pesados, pelos arbustos e subiu a escada que levava
ao terraço.
Deu um grito, mas não de pavor, era um misto de alívio e ale-
gria selvagem irrompendo de dentro dela. Puxou a tranca da por-
ta, não conseguiu abri-la tão depressa quanto desejava, algo es-
tava prendendo. Então agarrou uma cadeira a suas costas e ati-
rou-a na grande vidraça. O vento soprou a cortina pelo buraco e
quase a soltou do trilho, e aí o homem ensopado entrou pelos
restos da janela e lá estava ele na sala. Tirou o chapéu, ficou se-
gurando-o como um mendigo, e no fundo era como da outra vez,
quando Ewald Kurowski apareceu, de repente, à frente da porta
em suas velhas roupas militares, as dobras ainda cheias de poei-
ra da Sibéria. Tinha o mesmo ar indefeso, estava molhado do
mesmo jeito, do mesmo modo estava mudo e voltando para casa.
— Entre, Ewald... — disse Erna, a voz falhando. — Meu Deus,
como você está! Não ouvi nenhum barulho de carro...
— Vim de táxi até o cruzamento lá embaixo e fiz o resto a pé.
Está sozinha?
— Sim, Ewald.
— Eu... eu... — Olhou em volta; a suas costas o vento assobia-
va pela vidraça quebrada, chicoteando a chuva para dentro de ca-
sa. — O tapete está ficando molhado, Erna...
— Suba e troque de roupa! — Falava com dificuldade, o cora-
ção batia-lhe como o de uma mocinha apaixonada. — Quer que
lhe faça um chá com rum?
— Seria ótimo, Erna. — Kurowski contemplou-a. O olhar de
um cão mendigando alguma coisa. — Mandei o táxi voltar daqui a
uma hora.
— Não o deixarei sair logo depois do banho com este tempo!

189
— Obrigado, Erna.
Sorriu, tímido. “O que seria de mim sem esta mulher?”, pen-
sou. “Meu Deus, onde é que eu iria parar? Estas semanas que
passei sozinho, nos hotéis, nas cervejarias, embriagando-me todas
as noites, foram horríveis. Paguei pelos meus pecados, Erna, pode
acreditar...”
— Onde estão as crianças? — perguntou.
— Em casa de amigos.
— Eles a deixaram sozinha? — Caminhou em sua direção, en-
volveu-a suavemente com o braço, mas não teve coragem de abra-
çá-la. — Você não ficará só nunca mais, Erna — disse com a voz
trêmula —, nunca mais. Acredite em mim...
— Vá trocar de roupa, Ewald...
O rosto dela estremeceu. “Logo vou chorar”, pensou, “mas não
quero. Preciso dar-lhe seu chá com rum, ele é muito propenso a
pegar resfriados.”
— Deite-se na cama — disse, e agora estava chorando mesmo.
— Estava sempre pronta para você... Eu venho logo com o chá...

A família Kurowski não desmoronou... ou deveríamos dizer, a-


inda não? Havia, também, uma nova geração de Kurowski cres-
cendo, e esta via a vida de maneira diferente que a geração da
guerra.
A coisa começou no dia em que Peter, o filho do meio, voltou da
escola com uma calça justa e um casaco preto e brilhante de cou-
ro, e a Cruz da Ordem dos Cavaleiros no pescoço. Chegou, entrou,
sorriu para sua mãe, jogou-se numa poltrona diante de Kurowski
e bateu as botas na mesinha de centro.

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CAPÍTULO 18

Por alguns instantes reinou o silêncio na sala. Erna ficara pa-


rada perto da porta, não compreendia nada daquilo, não reconhe-
cia o filho; de repente, caíra em pedaços uma ordem que a família
Kurowski passara toda uma vida construindo.
A excursão de Ewald a misteriosos jardins eróticos não mais
fora mencionada. Também teria sido fundamentalmente errado.
Voltara, retomara seu lugar como se retornasse de uma simples
viagem. Até Ludwig, que quase não aparecia mais em casa, ocu-
pado com os estudos de medicina e cheio de ambição de passar os
exames finais com um “muito bem”, dissera: “Sinto muito, papai”,
e Kurowski respondera, com a mesma simplicidade: ‘‘Tudo bem,
meu rapaz. Algum dia ficaremos quites, a vida é longa e cheia de
mistérios...” De modo que tudo entrara nos eixos, não houvera
mais nenhum desvio, até que veio Peter com seu uniforme de cou-
ro para demonstrar aquilo que sua geração chamava de indepen-
dência.
— Você acha bonito isso? — perguntou Kurowski, após um
longo silêncio. Falou com uma calma perigosa. Erna conhecia essa
calma, só que Peter, o filho, não percebeu nada. Concordou, pois,
dizendo alto:
— Odeio tudo que é burguês.
— De repente?
— Sempre odiei...

191
— Até hoje você pastou e bebeu da mesa burguesa, foi vestido e
fez montes de merda! — Kurowski curvou-se para a frente. — Não
é esta a linguagem que vocês entendem melhor?
— Quem gera filhos tem a obrigação de sustentá-los — disse
Peter.
— E a obrigação de educá-los. Acho que deixei de cumprir uma
de minhas obrigações.
De um puxão Kurowski arrancou a cruz do pescoço de Peter,
segurou-a pela fita preta, branca e vermelha, e bateu quatro vezes
no rosto do menino com ela.
— Tem cantos afiados — disse. — Está sentindo? Pena que não
está sangrando. Porque essa coisa aí custou sangue, muito san-
gue! Sangue inocente! Cada um que odeia a guerra tem o direito
de maldizê-la... Mas isso não pertence a uma cabeça cheia de
merda! Seria uma pena! Entendido?
— E como! — Peter levantou-se de um salto. Envolto no couro
preto parecia mais alto e magro. — Eles têm razão...
— Eles quem?
— Meus companheiros. Tenho um pai reacionário...
— Peter — exclamou Ema, aterrorizada, lá da porta —, você
não sabe o que está dizendo! Ficou maluco?
— Fique de fora, mãe. Por favor.
Peter encolheu a cabeça. Kurowski acabara de se levantar, de-
vagarinho, como se precisasse de um esforço para sair do fundo
da poltrona.
— Você não entende nada disso. E uma questão de princípios.
— Não — disse Kurowski —, sua mãe não entende nada disso.
Ela só viajou com vocês, semanas a fio, passando pelos regimen-
tos russos, atravessando a laguna congelada num carro de boi a-
berto, debaixo de bombardeios aéreos, ela só salvou suas vidas

192
trabalhando dia e noite nos tempos mais difíceis para saciar sua
fome, ela só viveu sempre para vocês... mas disso ela não enten-
de...
— Meu Deus, por quanto tempo teremos de escutar essa ladai-
nha? — Peter enfiou as mãos nos bolsos das calças. — Guerra de
merda, fuga da Prússia Oriental, fome, milagre econômico, seus he-
róis da reconstrução... dá vontade de vomitar! Será que vocês não
percebem que estão sobrevivendo a si próprios? Como são ridículos
com seu: “antigamente isso, antigamente aquilo”. Hoje é importan-
te, e o amanhã é importante, e aí vocês fracassam todos. Quem
quer saber se você esteve na Sibéria?! Quem está interessado em
saber que você cortou madeira na taiga? Você acha que consegue
impressionar nossa geração contando como costuravam camisas de
sacos de ração? A culpa era de vocês mesmos! Não elegeram esse
Hitler? Vocês todos não gritaram “Füehrer ordene e nós obedecere-
mos!”, estavam todos como doidos... e depois passam cem anos se
lamentando porque têm de pagar o preço
— Terminou? — perguntou, calmo, Kurowski.
— Esta foi só a primeira rodada.
— E também a última.
— Você acha?
— Tenho certeza.
Kurowski deu a volta à mesa. Erna juntou as mãos como se
fosse orar.
— Deixe, Ewald — disse ela em tom de súplica. — Ele nem sa-
be do que está falando. Está só repetindo o que ouve por aí.
— Engano seu. Sei muito bem do que estou falando! — gritou
Peter, e continuou: — E também já sei de antemão o que esse ri-
caço que é meu pai dirá: ‘‘Fizemos tudo por vocês! Por tempos me-
lhores!” Como isto me enoja! Vocês trabalharam e trabalharam e

193
cataram dinheiro e fizeram pose... mas quem se preocupou conos-
co? Quando a gente tocava um disco de beat, diziam logo: “Desli-
guem essa música de negros!” Se deixávamos crescer o cabelo, lá
vinha bronca: “Parecem uns vagabundos” . Quando eu trazia ami-
gos, perguntavam com um sorrisinho de troça: “Eles já tomaram
banho?” E falar sobre política nesta casa é um crime, embora
Franz Busko seja membro do Parlamento e viva ludibriando os e-
leitores com seus discursos. Haverá algo mais falso que o mundo
de vocês?
— Mas vocês vivem muito bem nele!
Kurowski jogou a cruz no chão. Quando Peter se abaixou para
pegá-la, o pai pôs o pé em cima.
— Esqueça esta fantasia idiota, Peter.
Peter levantou-se de um pulo.
— Não! — disse, cheio de rebeldia.
Kurowski respirou fundo.
— Deverei arrancá-la de seu corpo?
— Tente, pai.
— Quantos anos você tem... já pensou bem? — perguntou,
rouco, Kurowski.
— Claro que sei, tenho vinte.
— Repetiu um ano no primário, outro no ginásio. De pura pre-
guiça!
— E daí? — Peter ofegava. Fora atingido em seu ponto fraco. —
Já não basta que Ludwig seja o rei da inteligência? E se Inge che-
gar mesmo a ser professora, então serão dois. Três gênios são de-
mais para uma família só.
— Com vinte anos ainda não se está velho demais para receber
uma surra! — disse Kurowski. — Vá para seu quarto. Subirei da-
qui a meia hora. Até lá você terá trocado de roupa, tomado um

194
banho, feito a barba e estará com a aparência de um Kurowski!
Estamos entendidos?
— Só até certo ponto!
Peter virou-se e correu para fora. Kurowski, o queixo encolhido,
ficou parado, só olhando.
— Você... você não está pretendendo bater nele... — disse Er-
na. Não saíra da frente da porta, apenas afastara-se no momento
em que Peter passou por ela como um furacão, com medo de ser
derrubada. — Não consigo entender... ele tem tudo que um rapaz
pode desejar, e está insatisfeito.
— Por isso mesmo, Erna. Nós tivemos de lutar para conseguir
o que temos... eles recebem tudo numa bandeja. Não conseguem
adaptar-se à liberdade que conquistamos a tão duras penas. Nem
podemos mais mencionar isto, você ouviu. — Consultou o relógio
de pulso. — Mais vinte minutos... depois eu subo. E, com mil di-
abos, eu posso recuperar o tempo perdido se for necessário.
—- Não o faça, Ewald — disse Erna, baixinho —, por favor, não
faça isso. Deveríamos tentar raciocinar de outra maneira. Eu acho
que o Peter está doente.
— Doente, ele? Está é atrevido! Atrevimento mais preguiça...
esta sempre foi a melhor receita para se viver à custa dos outros!
— Você não reparou como as mãos dele tremiam?
— Suas botas sujas na mesa não tremeram.
— Está pálido e tem um olhar fixo. esquisito...
— Então ele bebeu. — Kurowski acendeu um charuto. — De
certo modo ele tem razão. Deixamos muita coisa de lado. Primeiro
a firma, sempre a firma. E pensamos: está tudo indo tão bem que
nada pode acontecer. Com Ludwig tivemos sorte, e a Inge também
parece estar no bom caminho. Então deve estar tudo bem com o
Peter, foi o que pensamos. Por que haveria de ser de outro modo?

195
Sim, por quê? Acho que nos enganamos, Erna. — Tornou a olhar
para o relógio. — Teremos de nos ocupar mais com o Peter... Mas
já era tarde.

O quarto estava vazio quando, meia hora mais tarde, Kurowski


e Erna foram ver se Peter tinha se acalmado. Saíra por uma jane-
linha que estava aberta, passando por sobre o telhado da gara-
gem, pegara sua motocicleta, empurrara-a até a rua e partira. No
quarto remanescia um odor estranho, pesado e adocicado.
— Como um gangster — gritou Kurowski voltando da garagem.
— Mas a fuga nunca foi uma solução!
Estava decepcionado. Seu orgulho de pai sofrera um baque, e,
por maior que fosse sua raiva, grande era também seu amor e sua
preocupação por um filho que, por fora, era bem um Kurowski, fa-
lava grosso como um Kurowski, revoltava-se como todos os Ku-
rowski se revoltaram alguma vez na vida, como ele próprio, Ewald
Kurowski, ainda em Adamsverdruss, tornara-se sapateiro só por-
que o pai queria obrigá-lo a freqüentar o Ginásio de Rastenburg.
— Conseguirei dobrá-lo! — disse Kurowski, sentando-se na
cama desfeita de Peter e acrescentando: — Erna, não me deixarei
arrasar. Ninguém nunca fez isto a um Kurowski.
Entreolharam-se e Kurowski admirou-se com o olhar fixo de
Erna. Parada no meio do quarto, nariz para cima, farejava o ar. Ao
mesmo tempo parecia que todos os seus músculos haviam enrije-
cido.
— Ewald — a voz titubeava — este cheiro...
— Que cheiro?
— Não está sentindo nada?
— Um desses tabacos americanos meio adocicados.
— Isto é outra coisa, Ewald! O Deus, Ewald, tenho medo. Nosso

196
Peter... nosso Peter...
O que se passava com seu filho em sua casa, não naquela noite
mas há semanas, só se esclareceu na cabeça de Kurowski depois
de uma busca cuidadosa no quarto, quando achou uma caixinha
de metal debaixo da cama.
Duas seringas, um estoque de agulhas, algodão, álcool, um
torniquete, duas ampolas de Scophedal, três ampolas vazias de
Dilaudid.
— É impossível... — balbuciava Kurowski.
Estava sentado diante da caixinha aberta, e aquela terrível ver-
dade simplesmente o derrubou. Incapaz de se levantar... segurava
a caixinha no colo, fitava as injeções e ampolas, viu o filho a sua
frente, alto, magro, naquela nojenta roupa de couro, cabelo com-
prido, barba sem fazer, descarado e entupido de frases ocas... e o
mistério dessa transformação era tão simples, algumas gotas de
líquido introduzidas na carne com uma agulha: a destruição lenta
mas certa de um ser humano.
— Ele tem de voltar imediatamente, Erna — disse, rouco, Ku-
rowski. — Erna, precisamos achar nosso filho. Ele está indo para
a sarjeta! Nós ficamos sentados lá embaixo fingindo que o mundo
é maravilhoso, e acima de nós, três metros acima, nosso garoto se
aniquila... e nós não vemos.
Sua cabeça caiu sobre a caixinha de metal, os ombros para a
frente... Pela primeira vez desde sua chegada da Sibéria ele chora-
va...
E, mais uma vez, foi Erna que lhe segurou a cabeça, que o le-
vantou, beijou, apertou e disse:
— Ewald, eu estou com você. Não chore, Ewald. Suportaremos
mais este golpe, até hoje sempre conseguimos superar tudo... E-
wald, não nos deixaremos abater...

197
Meu Deus, que mulher sensacional era esta Erna Kurowski!
À noite telefonaram a Ludwig em Colônia.
— Meu filho — disse Kurowski com a voz pesada —, você já é
quase um médico formado. Agora preste atenção... vou ler para
você: Scophedal... Dilaudid...
— Que bobagem é esta, hein? Onde leu isso, pai? — disse
Ludwig lá de Colônia.
— Estou lendo aqui...
— São narcóticos fortíssimos. Estão enquadrados na Lei de Tó-
xicos. Quem foi que lhes prescreveu estas bombas?
— Eu as achei, filho. — Kurowski sentiu, outra vez, o coração.
Algo lhe espetava o peito e o sangue borbulhava em seus ouvidos.
— Achei no quarto de Peter, meu filho, debaixo da cama. Numa
caixinha de metal. Com duas seringas e todos os apetrechos...
— Ele deve estar com algum parafuso solto! — berrou Ludwig.
— Que doidão! Chame-o ao telefone, pai...
— O Peter foi embora — disse Kurowski, com a voz pesada. —
Simplesmente foi-se, com a motocicleta. Vestido de couro preto.
Sua mãe está que não pode mais, Ludwig...
— Já estou indo para aí, pai. Peter e tóxicos! Não fique nervoso,
pai, diga isto a mamãe também... darei um jeito...
Em uma hora Ludwig estava em Leverkusen. Chegou no mo-
mento exato para aplicar uma injeção calmante em Erna Kurowski.
Sua força cedera... gritava sem parar havia uns vinte minutos...

Peter Kurowski não reapareceu.


Franz Busko, Heinrich Ellerkrug, Ludwig, Ewald e até Inge fize-
ram a ronda em todos os lugares em que pudessem encontrar os
amigos de Peter, onde se reuniam, onde tinham suas ‘‘fortalezas”,
onde “abriam um barril”. Peter fora visto por diversas vezes em

198
sua motocicleta, num bar, numa festa à base de LSD, em duas
“viagens” à margem do Reno, mas depois a pista se perdia. Do que
vivia, todos ignoravam. No antro Holidays, Busko e Ellerkrug de-
ram com um rapaz que vira Peter pela última vez quatro dias a-
trás.
— Ele arranjou uma gatona maneira — contou. — Uma loura
platinada, um verdadeiro avião! Ofereceu-a por cem marcos. Nós
rimos na cara dele. Cá entre nós! Cem marcos por uma trepada!
“Faço publicidade industrial”, disse ele. “Dinheiro grosso, meni-
nos! Se alugar Rita aos executivos lá de Duisburg poderei passar
um mês vivendo no maior conforto! Um dia de trabalho, dois dias
de descanso. E só ter a clientela certa. Sempre que alguma reuni-
ão de negócios der galho, se algum contrato pifar... a Rita está aí!
E a coisa vai!” Sim, e com isto ele saiu em disparada com sua ga-
tona. — O barbudo, com um largo sorriso cheio de compreensão,
perguntou: — Os senhores estavam querendo dar uma voltinha
com Rita, hein...?
— Um proxeneta, além de viciado em drogas... nem podemos
dizer isso a Ewald — disse, mais tarde, Ellerkrug. — Ele não vai
agüentar. Franz, por enquanto vamos deixar o Peter desapareci-
do... será melhor para todos.
E assim Peter ficou sumido até o dia 17 de setembro.
Naquele dia o noticiário da televisão mostrou uma manifesta-
ção de estudantes em Frankfurt.
À ponta do grupo de manifestantes, que berravam e atiravam
pedras, desfilando pelo vídeo, o punho direito levantado de modo
ameaçador, o braço esquerdo enganchado no de um outro mani-
festante, aos gritos, estava Peter Kurowski. Só por um minuto,
como exemplo da juventude insatisfeita. Milhões de pessoas assis-
tiram quando a polícia o derrubou e o arrastou pela rua.

199
Erna e Ewald Kurowski também assistiram.
Estavam sentados, em silêncio, à frente da televisão. De olhar
esgazeado, viram o filho, sangrando e enfrentando os policiais,
berrando: “Seus cavalos! Seus porcos! Servos do capitalismo!”, vi-
ram como o arrastaram pela rua e o jogaram num carro fechado
com grades.
— Nosso filho — disse Erna, em tom de lamúria.
Depois titubeou, caiu para o lado no sofá e perdeu os sentidos.
Na mesma noite Ewald Kurowski voava pela auto-estrada, ru-
mo a Frankfurt.

200
CAPITULO 19

Na sala do diretor da prisão preventiva, Kurowski deu de cara


com Franz Busko. Também ele vira Peter na manifestação san-
grenta registrada pela televisão e, já que o Partido pertencia à ins-
tituição que a juventude progressista atacava com tanta violência,
requisitara imediatamente um carro oficial para levá-lo ao local.
Como membro do Parlamento, não teve dificuldade para entrar e
ver Peter Kurowski no compartimento reservado às visitas. Veio
algemado e acompanhado por dois guardas armados; desde que
fora preso quebrara tudo na cela em pedacinhos, deixando inteiro
apenas o que era indestrutível. Pirracento, parou diante da cadei-
ra e da mesa, ignorando solenemente a ordem ríspida de sentar-
se.
— Mas o que é que você está fazendo aqui? — perguntou a
Franz Busko, num tom muito ofensivo.
— Eu vim antes que seu pai apareça. Presumo que ele já esteja
a caminho de Frankfurt. Quer dizer que você agora deixou de a-
genciar prostitutas para fazer revolução?
— Uma coisa é negócio, outra é ideologia. Por que você se ajoe-
lha todos os domingos para tomar a comunhão, só para que os e-
leitores o vejam, e em Godesberg você montou um apartamento
para sua secretária? E isso pago por nossos impostos!
— Eu sou diretor da Westschuh — disse Busko, cerimonioso.
Libertara-se nadando contra a corrente, como dizia Kurowski.

201
Do aprendiz de sapateiro da Prússia Oriental restava apenas o
nome e o sotaque conhecido pelos íntimos... No mais, Busko esta-
va de pele nova, usava ternos feitos sob medida, brilhava no uso
de chavões que lhe valiam assento e direito a voto em algumas
comissões do Parlamento, e era considerado o grande homem do
futuro de seu Partido. “Ele está no meio do povo!”, diziam dele. “E
disto que precisamos. Teóricos, já chegam os que temos. Mas
Busko compreende o eleitorado, e o eleitorado o compreende... Po-
de existir algo mais ideal entre os representantes do povo? Além
do mais, Busko não pertence a nenhuma associação representati-
va de interesses — nem mesmo à Associação dos Negociantes de
Calçados —, não representa nenhum grupo de influências e é, em
suma, um independente e um liberal fabuloso.” Para encontrar al-
guém igual precisava-se de um microscópio uma lupa não seria
suficiente.
— Você tem minhocas na cabeça? — perguntou Busko, direto,
acrescentando: — Um Kurowski revolucionário! Com uma prosti-
tuta na bagagem e um saco cheio de entorpecentes! Peter, você
não tem vergonha, não?
— Não! Por acaso nosso Estado se envergonha de ser o Estado
de merda que é? Eu tenho uma gatinha, admito isto... mas o Es-
tado é uma prostituição só. Vai para a cama política com qualquer
um, se for proveitoso! Eu quero evitar que sessenta milhões vomi-
tem uns nos outros quando se olharem no espelho!
Não se chegou a nenhuma conclusão. Peter xingou Busko,
Busko xingou Peter, até que o chefe dos guardas interveio e disse,
num tom quase jovial:
— Sr. deputado do Bundestag, não adianta. Reconduzirei essa
besta a sua cela. Com estes sujeitos não dá para discutir. Eles to-
cam um disco no cérebro, nada mais.

202
— Pelos meus cálculos seu pai estará aqui dentro de vinte mi-
nutos. O que vai acontecer então, você pode imaginar — disse
Busko, levantando-se. — E Ludwig também vem.
— O sr. doutor, o futuro médico, pode me lamber o cu! —gritou
Peter, com selvageria.
— Não creio. Estragaria seu apetite. — Busko, resignado, deu
de ombros. — Até onde você pretende ir, Peter?
— Até a revolução mundial!
— Não acha que está exagerando um pouquinho?
— Chegaremos lá. O tempo está maduro. Quando há sujeitos
como você governando o povo, é porque o Estado inteiro está po-
dre!
— E depois, quando vocês estiverem governando, mistura-se
na sopa do almoço cada vez um grama de LSD para que o mundo
continue sempre bem doidão, não é? Peter, você está doente. Do-
ente de verdade. Afinal, como é que você começou com essa porca-
ria de entorpecente?
— De medo — respondeu Peter Kurowski com sinceridade. De
repente a voz começou a falhar. — De medo, Franz. Sempre fra-
cassei... na escola, em casa, com as garotas, com os colegas... e aí
comecei a me drogar e num piscar de olhos tudo vai às mil mara-
vilhas. Foi isso...
— E daqui a um ano você estará um caco!
— E daí? — Peter jogou a cabeça para trás. — O problema é
meu! O que é que vocês têm a ver com isso, seus frustrados...
Os dois guardas puxaram Peter para fora da sala de visitas.
Busko saiu dali pensativo e foi ao escritório do diretor para espe-
rar pelo mestre. “Ele tem medo”, pensou. “Conheço isso. Também
eu tive medo lá em Adamsverdruss, quando quiseram me buscar
para o Exército. Mas eu estava doente dos pulmões e não me acei-

203
taram. Mas o que teria sido se me tivessem recrutado? Talvez cor-
resse para o lado dos russos, tanto medo eu tinha da morte. Mas
graças a Deus ninguém sabe disso... E também já faz tanto tem-
po...”
Ewald Kurowski acabara de chegar e perguntou logo:
— Posso falar com meu filho?
— Naturalmente.
O diretor da penitenciária ofereceu charutos e mandou vir café.
No caso de parentes de delinqüentes comuns isso não era costu-
me, mas aqui tratava-se de uma questão política e as regras do jo-
go são outras.
— Mas primeiro deixe que o sr. deputado lhe conte o que o es-
pera.
— Isto eu já sei — disse Kurowski, empertigado. — Mas meu fi-
lho também sabe o que o espera.
— Nem se tocará.
Busko soltou um gemido. Crescia o número de insatisfeitos no
país à medida que aumentavam a segurança e o bem-estar. Era
um mistério. A declaração de Kurowski de que os alemães não su-
portam a democracia parecia transformar-se numa verdade assus-
tadora. A ordem desmoronava — trocava-se liberdade por liberti-
nagem. Kurowski — sempre disposto a falar em frases grandiosas
e verdadeiras — dissera simplesmente: isto é típico do alemão.
— Se Peter ainda tiver um pingo de sentimento, vai dar meia-
volta — disse Kurowski.
— Os sentimentos dele estão governados pela seringa, não se
esqueça — interpôs-se o diretor da prisão. — Faz duas horas que
ele suplica por uma dose. É claro que não a terá aqui dentro, e já
chegou ao ponto em que é capaz de destruir tudo a sua frente.
— Quero vê-lo — disse Kurowski, levantando-se. — Por favor...

204
Dez minutos depois Peter foi reconduzido à sala de visitas. Des-
ta vez veio sem algemas e acompanhado de um só guarda... A falta
da droga transformara-o, de uma hora para outra, num mísero
farrapo, trêmulo, lamuriento e envelhecido de modo assustador.
Olhou o pai com olhos vazios e flamejantes... Os lábios estavam
rachados e quentes, a garganta seca como se tivesse comido areia.
Faltava-lhe a vida maravilhosa da picada, ilusão mortal, mas não
queria admiti-lo.
— Tem um espelho na cela? — perguntou Kurowski, sem pre-
âmbulos.
Peter meneou a cabeça.
— Quebrei em pedacinhos.
— É pena! Deveria se ver! — Colocou a mão no bolso lateral, ti-
rou um espelhinho e segurou-o na frente de Peter. — Aí está, olhe
para você! Veja o que resta de você! Este ainda é Peter Kurowski?
Peter olhou fixo para o espelho e jogou a cabeça para o lado.
Um violento tremor percorria-lhe o rosto.
— Seus porcalhões — gemeu —, seus porcos reacionários! Es-
tou bem. Nunca tive uma aparência tão boa! Sinto-me ótimo...
— Claro. Leva tempo para um Kurowski admitir que está erra-
do. Nós assistimos ao show que você deu na televisão... Mal dirigi-
do, mal apresentado, de um diletantismo completo.
— Então faça melhor! — gritou Peter e criticou: — Vocês só fi-
cavam berrando Heil! Sieg Heil! Nós agimos!
— Só que no momento errado, como sempre quando os ale-
mães querem fazer algo de muito grandioso. Quer dizer que você
pretende continuar a travar suas batalhas de rua, injetar veneno
em seu corpo, arruinar-se...
— Vivo minha vida. Em três meses farei vinte e um anos... aí
você poderá cantar árias inteiras, mas seu poder sobre mim aca-

205
ba. Pátrio poder... que expressão de merda!
— Não tenho a mínima intenção de fazer algo contra você —
disse Kurowski, gélido e calmo, e completou: — Há poucas sema-
nas, sim, a súbita revelação do tipo de filho que eu tenho arrasou-
me. Mas hoje... a gente se habitua a tudo, mesmo a um filho idio-
ta.
Era mentira, mas quem poderia dizer? Havia semanas que Ku-
rowski andava mudado, fechadão, mais silencioso; não ia mais às
reuniões com os amigos à noite, nem ao clube de boliche, à socie-
dade hípica, ao clube exclusivo de golfe, ao tênis; não saía de sua
magnífica propriedade no campo, passeava pelo jardim, que mais
parecia um parque, e alegrava-se quando Ludwig vinha de Colônia
e conversava com ele sobre os estudos, ou quando Inge passava
nos testes com “bom” de média. Todos viam seu sofrimento pela
partida de Peter, mas ninguém tocava no assunto, pois um Ku-
rowski não precisa de piedade, ele se arruma sozinho.
— E então — disse Peter, agora com atrevimento —, o que veio
fazer aqui, afinal? Para me apresentar o melhor advogado? Não
preciso de advogado... cuspo na cara do juiz.
— A nova moda dos belos tempos modernos — Kurowski jun-
tou as mãos. — De mamãe não posso transmitir lembranças... —
disse, devagar.
Peter, admirado, virou a cabeça.
— Ela viajou?
— Sim, para o hospital. Faz uma hora que a levei. Sofreu um
abalo nervoso. Ela não achou graça nenhuma no show em que en-
cheram o filho de pancadas na rua. Mulheres, principalmente as
mães, não se interessam por certas coisas...
Peter Kurowski sentou-se, o corpo pesado. Sua garganta seca e
ardente contraía-se em espasmos. “Água”, pensou. “Um gole de

206
água. Ou uma dose, nem que seja meia dose, já seria o suficiente.
Gente, acho que estou me acabando...” Pegou a garrafa com água
que estava entre ele e o pai, desistiu do copo e levou-a direto aos
lábios.
— É... é grave? — perguntou após recolocar a garrafa na mesa.
— Sim. Você parece um porco bebendo.
— Estou falando de mamãe! — gritou Peter.
— Ela deu a você, como a todos os seus filhos, um amor imen-
surável. E preciso ser mãe para sofrer um choque como o que ela
sofreu.
— Quero vê-la... — disse Peter, baixinho.
— Isto vai ser impossível...
— Traga-me o melhor advogado, pai...
— Por que você não tenta cuspir na cara do juiz...
— Existe a possibilidade de esperar o julgamento em liberdade?
— Só se tivesse residência fixa. Você tornou-se um vagabundo.
— Eu moro com você, pai... Preciso ver a mamãe...
Kurowski ergueu-se. “Está prostrado”, pensou. “Agora devo pa-
rar de pisoteá-lo. Talvez Erna consiga trazê-lo de volta. Só mesmo
se não tivesse coração iria suportar ver Erna do jeito que está lá
no hospital. Eu não posso... mas para salvar esta mulher seria
capaz de sacrificar meu próprio filho!”
— Veremos... — disse, dirigindo-se para a porta. Peter pulou,
mas a mão forte do guarda o deteve.
— Deixe-me ir ver minha mãe... — choramingava Peter.
Kurowski estremeceu e ergueu os ombros. Sentiu frio. “É assim
que chora um lobo”, pensou. “Meu Deus, estará meu filho já tão
afastado dos homens?”
Saiu sem responder, mas, ao chegar lá fora, no corredor, mos-
trou que um Kurowski também não é de ferro. Encostou-se à pa-

207
rede, cobriu o rosto com as mãos e levou algum tempo para se re-
compor depois daquele encontro.
Franz Busko levou-o de volta a Leverkusen e mandou o moto-
rista com o carro oficial para Bonn. Kurowski não estava em con-
dições de dirigir. Ficou jogado no banco de trás, sem dizer palavra,
e só quando se aproximaram de Leverkusen voltou a ser o velho
mestre.
— Acha que o soltarão? — perguntou.
— Tenho certeza.
Busko olhou pelo retrovisor. Viu a cabeça de Kurowski, enve-
lhecida, grisalha, porém recortada e dura como aço. Um crânio de
Adamsverdruss, esculpido em rochas pré-históricas.
— Eu me responsabilizei por ele, mestre.
— Você o quê?
— Prestei fiança. Foi o modo mais rápido. Como membro do
Parlamento.
— Franz...
Kurowski estava com a voz embargada. Ficou comovido, como-
vido como uma criança.
— Como poderei retribuir algum dia?
— Semana que vem, mestre. Preciso de um discurso novo. So-
bre a necessidade de ajuda econômica para o desenvolvimento da
África negra...
— Senhor! Você precisa meter o bedelho nisto? Deveria procu-
rar um outro campo político.
— Não dá, mestre. — Estava deixando a auto-estrada para en-
trar no hospital. — Todos acham que, justo na política de desen-
volvimento, sou o homem ideal. Talvez pudéssemos aproveitar o
discurso para provar que noventa por cento dos africanos andam
descalços e defender a prioridade da educação no sentido de usa-

208
rem sapatos.
— Você terá seu discurso. — Kurowski tornou a recostar-se no
assento. — Terminou mesmo por se meter em áreas de influência.
— É melhor ter as costas quentes do que expostas ao vento.
Busko freou. Hospital. Saltou, abriu a mala do carro e tirou um
grande ramo de flores. Rosas vermelhas de cabo comprido.
— Agora entendo por que você conseguiu ser político — disse
Kurowski, pegando as rosas e entrando no hospital.
Dois dias depois soltaram Peter Kurowski. Não havia perigo de
fuga, um membro do Parlamento alemão responsabilizava-se por
ele, tinha residência fixa. Após assinar um documento obrigando-
se a comparecer duas vezes por semana na delegacia de polícia lo-
cal, abriram-se-lhes as portas da prisão.
O primeiro lugar que procurou foi a estação ferroviária de
Frankfurt. Comprou, por cinqüenta marcos, uma ampola de mor-
fina e uma seringa descartável, foi à toalete e aplicou-se a dose tão
desejada. Na estação de Frankfurt podia-se comprar qualquer coi-
sa, bastava conhecer os caras e as bocas. Uma ampola de morfina
não era nada, já houvera um homem oferecendo, ali, um canhão
antiaéreo inteirinho, bem cuidado e lubrificado, com vinte tiros de
munição. Não conseguiu livrar-se dele, são armas grandes demais
para o submundo. Corriam boatos de que ele teria vendido, mais
tarde, seu enorme canhão a guerrilheiros croatas.
A segunda coisa que Peter fez foi procurar um telefone. Ligou
para sua gata, informou-se de quanto ela ganhara em sua ausên-
cia, ficou satisfeito, prometeu voltar dois dias e fumou, correndo,
um cigarro de maconha. Só então pegou um trem para Leverku-
sen e chegou ao hospital por volta de meio-dia.
Ema estava deitada na cama, pálida e de olhos fechados. De
um frasco fluía lentamente um concentrado vitamínico para a veia

209
de seu braço esquerdo. Estava mais próxima da morte que da vi-
da, constatou Peter. Encaminhou-se devagar para junto da cama,
puxou uma cadeira e sentou-se.
— Mãe... — disse, rouco — mãe... sou eu...
Com um esforço ela ergueu as pálpebras, reconheceu-o, um
sorriso cobriu-lhe o rosto, a mão tateou buscando os dedos dele.
— Peter... — falou, com dificuldade — meu pequeno... Que bom
que você está aqui.
— Sim, mãe. — Peter curvou-se para beijar a testa dela. — Mas
o que é que você anda fazendo?
— Eu? Você... Peter... você...
Ela se mexeu. Peter segurou-a com ambas as mãos.
— Não se agite, mãe — balbuciou —, por favor, não fique ner-
vosa. Você precisa ficar boa. Todos nós precisamos de você...
— Você também?
— Eu também...
— Então vou fazer um esforço.
Tornou a sorrir e seu rosto estava indescritível, como enfeitiça-
do, cheio de amor maternal. Peter reconheceu a expressão e sen-
tiu-se um miserável, um canalha. Um cachorro.
— Agora você vai ficar em casa, menino?
— Sim, mãe.
— E não vai mais tomar aquela... aquela coisa?
— Nunca mais, mãe. Eu prometo.
— Então, está tudo bem. — Fechou os olhos, espichou o corpo
e deixou-se ir na lerdeza do esgotamento. — Estou tão feliz, meu
filho...
Peter esgueirou-se para fora nas pontas dos pés. Parou mais
uma vez na porta, olhou longamente sua mãe,virou-se brusca-
mente e saiu do quarto. Deixou o hospital parecendo um fugitivo.

210
No trecho de mato entre Leverkusen e Burscheid mandou parar
o táxi que alugara. Foi andando a pé até desaparecer no matagal.
‘‘Não há mais saída’’, pensou. ‘‘Não me libertarei do vício, nun-
ca serei capaz de cumprir uma promessa, viverei sempre na sarje-
ta, cheguei ao fundo do poço, estou dentro dele e ninguém mais
conseguirá me tirar. E, mesmo que eu seja um bobalhão, sei mui-
to bem onde irei parar. E só uma questão de tempo e da intensi-
dade das injeções. Acabou, pai... não dá mais, mãe. Perdoem-me
se puderem... Sozinho não posso continuar, e para alguém me a-
judar já é tarde.”
Sentou-se sob uma árvore, desnudou o braço e a coxa e inje-
tou-se todo o estoque que trazia consigo.
Quatro ampolas.
Em seguida jogou o cinto da calça sobre um galho, enfiou a ca-
beça no laço, deu um salto e, ao cair, encolheu as pernas.
Foi assim que morreu duas vezes. Uma por fratura na nuca e
outra por quatro doses de morfina. Estas foram um luxo supér-
fluo, porque no momento em que o veneno deveria começar a agir
o sangue já não circulava mais.
Ficou três dias pendurado em seu cinto antes que o achassem.
E então ainda demorou mais dois dias até que o identificassem.
Queimara todos os seus documentos.
Franz Busko, o responsável por ele, encarregou-se de levar a
notícia a Ewald e Erna Kurowski.
Era a primeira vez que um Kurowski se deixava abater.

211
CAPITULO 20

Foi difícil demais, beirava o limite do que se é capaz de supor-


tar, mas os Kurowski sobreviveram a mais este golpe do destino.
Ninguém entendeu como, mas Ema conseguiu até juntar forças
para sair do leito de hospital para assistir ao enterro de Peter, em-
bora o médico falasse de loucura total e implorasse formalmente a
Kurowski que fizesse valer sua influência ou que proibisse a mu-
lher de se levantar.
— Isso é algo que o senhor não pode compreender, doutor —
disse Kurowski levando a mala de Erna com roupa de baixo, sapa-
tos e um tailleur preto pelo corredor até o quarto. Depois, acres-
centou: — Podem nos jogar ao chão, podem esmagar-nos as coste-
las, sim, podem nos matar de pancada... mas nunca nos deixare-
mos derrotar! Se minha mulher quer enterrar seu filho, então é is-
so que ela quer. Só o bom Deus poderia evitar, mas também não o
fará!
O enterro foi realizado em completo silêncio. Em volta da sepul-
tura só havia a família, à qual pertenciam também Heinrich Eller-
krug e Franz Busko. É havia mais alguém que não fora convidado,
mas Kurowski não o enxotou dali. Um jovem de cabelo embaraça-
do, óculos com aros grossos de níquel, um blusão inspirado na
moda indígena e sapatos velhos e batidos. Em pé, um pouco de
lado, levou um trompete aos lábios no momento em que baixaram
o caixão à sepultura.

212
Tocou um blues muito triste que nenhum dos presentes conhe-
cia, mas que, de certo modo, se adequava ao momento, um último
adeus de um mundo no qual Peter se refugiara em segredo e no
qual perecera sem que ninguém percebesse nada até o instante
em que era tarde demais.
— Quem é o senhor? — perguntou Kurowski mais tarde, quan-
do já haviam jogado terra sobre o caixão.
Busko e as crianças conduziam Erna ao carro, Ellerkrug espe-
rava junto à sepultura. O jovem descabelado e visivelmente preci-
sando de um banho sorriu e enfiou o trompete sob a axila esquer-
da.
— Representante do clube... — disse.
— Ele ia muito lá?
— Sim. Sempre que estava de cara cheia.
— E isso era freqüente, não?
— Não, normal. Uma vez por semana.
— Ele falou de mim?
— Sempre...
— E o que Peter dizia de mim?
— “Meu velho é um cara legal’’, dizia ele. “É o que acaba comi-
go, saber que nunca serei igual a ele. Ele me oprime.”
Kurowski abaixou a cabeça. “Peter”, pensou. “Meu Deus, Peter,
por que nunca disse nada? Poderíamos ter conversado sobre tu-
do... São problemas tão simples. Mas não, sempre batendo com a
cabeça na parede, no melhor estilo dos Kurowski... até o fim...”
— Gostaria de lhe agradecer — disse, baixinho. — Precisa de
dinheiro?
— Não! Para quê?
— Para um par de sapatos novos, por exemplo.
— Estes? Ainda poderei andar com eles por uns cem anos...

213
O jovem bateu, de leve, na fronte para significar uma saudação
amável e foi andando para o outro lado. Kurowski seguiu-o com o
olhar parado. Este era o mundo de meu filho, doía-lhe pensar.
Trabalhei para ganhar uma fortuna de milhões e ele vivia como
um mendigo. Mas por quê? Por quê? Por que minha sombra era
pesada demais para ele? Existe isto?
Foi, mais uma vez, até a sepultura e olhou para o caixão meio
coberto de terra. Ellerkrug veio para junto de Kurowski e colocou
o braço em seu ombro.
— Você não é o único, nem o primeiro nem o último que perde
um filho — disse, a voz embargada. — A cada hora morrem milha-
res de crianças. E muitas dessas mortes fazem menos sentido que
a de Peter. Dentro de alguns meses Ludwig será um médico for-
mado... e Inge fará madureza na primavera para estudar depois
pedagogia. E Erna está aí, Ewald... tome-a como exemplo. Que
força...
— Ela está empedernida, Heinrich. Estou angustiado por ela.
Kurowski virou-se. Enganchou o braço no de Ellerkrug, era um
velho à procura de apoio e que examinava o chão antes de cada
passo. E, com tudo isto, tinha apenas cinqüenta e quatro anos de
idade...
— Então pegue-a e vá viajar com ela... para o sul, Ewald, deite-
a na praia do azul do Mediterrâneo, faça-a sonhar à sombra das
palmeiras, comece, enfim, a gozar a vida, devore seus milhões.. .
coisa que nem é mais possível. Tire Erna para fora da couraça
chamada Kurowski... Diabos, Ewald, tudo que um homem pode
fazer na vida, você fez, agora descanse um pouco...
— Mais um ano, Heinrich.
Kurowski parou. Erna já entrara no grande carro. Ludwig esta-
va sentado ao volante. Inge, alta, esbelta, cabelo louro dourado, o

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retrato ampliado da mãe, segurava a porta traseira aberta, espe-
rando pelo pai.
— Quando Ludwig tiver seu diploma de doutor e Inge estiver na
universidade, deixarei as coisas andarem com mais vagar. — Segu-
rou Ellerkrug pela manga. — Ei, preciso dizer-lhe uma coisa...
— Desembuche.
— Trabalhei como um louco por causa de Peter. — Kurowski
engoliu em seco, estava prestes a chorar. — Eu sabia que ele seria
o único a ficar no meio do caminho e queria separar o suficiente
para que ele pudesse viver... uma esmola invisível.
— Será que ele percebeu alguma coisa?
— É possível. Sinto-me culpado, Heinrich.
— Besteira! Não deixe este sentimento tomar conta de você!
Culpado! Só é possível dominar um ser humano até um certo limi-
te, mesmo sendo pai. Cada pessoa tem sua própria personalidade
que se manifesta um dia.
— Numa injeção de morfina — disse Kurowski, sombrio.
— Também. O homem será sempre o maior mistério que Deus
colocou na criação...
Chegaram ao carro e Inge, chorando, abraçou o pai.
— Tudo bem, filhinha — disse Kurowski, batendo-lhe nas cos-
tas. — Está tudo bem. Já passou. Não chore. Temos de nos man-
ter unidos e fortes, por causa de sua mãe.
Entrou no carro, abraçou Erna, apertou-a e acariciou-lhe o
rosto frio.
Em marcha acelerada, deixaram o cemitério.

Alguma coisinha ficou em Kurowski, embora ninguém perce-


besse e ele próprio não quisesse admitir. Não podia explicar, não
havia nome para aquilo, mas estava nele como um bloco de ferro

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que pesava em seu coração e lhe tirava o sono.
Erna não percebeu que muitas vezes ele só pegava no sono de
madrugada, passando a noite acordado, não refletindo, mas ape-
nas acordado, terrivelmente sóbrio, um ficar acordado que nada
conseguia preencher. Ia ao escritório, presidia as reuniões, prepa-
rava os discursos de Franz Busko para o Partido, ampliou a
Westschuh até esta se tornar o maior empreendimento da Europa
no ramo de calçados, e, ao mesmo tempo, ficava cada vez mais ca-
lado, menos sociável, cada vez mais recolhia-se a sua toca como
uma tartaruga.
Kurowski mudou-se. Comprou uma casa dentro de um grande
parque, um verdadeiro palacete, e só o fez para passear por ali e
poder dizer a si mesmo: “O pequeno mestre sapateiro Kurowski de
Adamsverdruss tornou-se o dono de um castelo como só os possu-
íam antigamente os nobres e senhores de terras. Mas para que
tudo isto? Para quê? O que me apetece não posso mais comer por
causa do açúcar no sangue, tenho de desprezar os melhores vi-
nhos por causa do fígado, não posso subir morros por causa do
coração e não posso mais passear pela neve por causa do reuma-
tismo. Mas eu tenho um castelo, uma conta bancária forrada de
milhões, tenho quatro mil empregados e operários, fui condecora-
do com a Cruz do Mérito de Primeira Classe (Franz Busko tam-
bém, aliás), sou membro da Comissão Alemã de Economia e faço
parte do Conselho Diretor de doze empresas, estou cada dia mais
rico sem fazer nada, mas não posso fazer outra coisa que passear
pelo meu parque, ler o jornal, ficar sentado à janela, jogar cartas
com Erna, vez ou outra visitar o consultório de meu filho, o dr.
Ludwig Kurowski, ou escutar as novas teorias educacionais de-
fendidas pela professora Inge Kurowski, que eu considero umas
bobagens. A vida deixou de ser interessante, está vazia de emo-

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ções, é um vegetar apenas...”
Num dia de maio, Erna e Ewald Kurowski tomaram um avião
para passar uma temporada de repouso em Meran.
Sete dias mais tarde, durante um passeio pelo campo, encan-
tado com o espetáculo das montanhas iluminadas pela luz azula-
da da tarde, Kurowski tombou de repente. Ficou deitado na grama
como uma boneca com as articulações frouxas.
Primeiro nas costas de um montanhês, depois num carro velho
e ruidoso, finalmente numa ambulância da prefeitura, Kurowski
foi levado ao hospital de Meran.
Erna ficou junto dele até instalarem a tenda de oxigênio, liga-
rem os tubos para as transfusões, até a circulação estar controla-
da por meio de fortes injeções.
— Um ataque apoplético, madame — disse o médíco-chefe, de-
pois que a primeira batalha pela vida de Kurowski estava ganha.
— Esperamos todos que ele escape desta... Mas devo lhe dizer que
seu marido ficará, para sempre, paralítico do lado direito. Se vol-
tará a falar... não podemos afirmar nem negar com segurança.
Pode ser apenas uma questão de força de vontade.
— Ele vai querer — disse Erna com uma valentia que conse-
guiu irritar até o médico-chefe, habituado a muita coisa. — Um
Kurowski tem uma vontade capaz de derrubar árvores...
Após quatro semanas, tiravam a tenda de oxigênio. Kurowski
continuava paralítico, a língua parecia um pedaço de couro gru-
dado no céu da boca. Mas dava para escrever, com a mão esquer-
da, e a primeira coisa que escreveu numa pequena lousa escolar,
em rabiscos tortos, subindo e descendo, mas legível, foi: Erna, eu
amo você.
— Daqui a duas semanas levaremos você para casa — disse e-
la, dando-lhe um beijo na testa. —Já prepararam uma recepção

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que mais parece uma festa popular...
E depois Kurowski estava de volta a Leverkusen. Franz Busko
levou-o para dar um passeio na cadeira de rodas, pelo parque e
pelo terraço, a banda da empresa tocou algumas marchinhas para
saudá-lo, o coro da fábrica cantou canções populares e folclóricas,
uma delegação do quadro de empregados entregou uma enorme
cesta de flores, já que guloseimas eram proibidas, e o Conselho
Diretor passou marchando pela cadeira de rodas e um após outro
apertou a mão esquerda ainda aproveitável de Kurowski. Movia a
cabeça para todos os lados, via-se que estava contente, e à noite
escreveu no bloco de anotações que, agora, tinha sempre no colo:

Gente, fui uma besta. Só agora percebo que minha família é maior
que uma mulher e três filhos... Estou feliz por estar vivo. E, apesar
de estar paralítico e ter uma cara torta, estou aqui de novo! E prome-
to a vocês: não me deixarei abater! Com mil diabos!

Sim, Ewald Kurowski, mestre-sapateiro de Adamsverdruss na


Prússia Oriental, milionário dos sapatos e presidente de honra de
tantas associações, ainda vive. Não se deixou abater. Verdade que
continua paralítico, mas já consegue dizer algumas frases. Pro-
nuncia-as com dificuldade, mas com clareza. E a primeira coisa
que disse, com tanta nitidez que o membro do Parlamento bateu
palmas e chorou de alegria, foi:
— Franz, seu velho idiota!
Todos os dias Erna leva-o para passear pelo parque de sua pro-
priedade, pesa sua comida numa balança de correio e trata cada
pedaço que ele ingere como uma pedra preciosa. Duas vezes por
ano ele viaja para uma estação de águas, uma vez ao lago Maggio-
re, uma vez para Ischia, mas a maior parte do tempo fica sentado

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em sua cadeira de rodas, deixa-se levar de um lado a outro, cochila
ou perde-se em recordações, e, apesar de seus milhões, sua vida
voltou a ser tão pequena e estreita como antigamente em Adams-
verdruss... Está satisfeito com o que tem e com o que lhe dão: uma
cadeira de rodas, cinco vezes ao dia um bocadinho de comida, o ar
puro de seu jardim, a visita de seus filhos e de Erna.
Erna, sem a qual sua vida não teria sentido. O centro de seu
mundo. Uma dádiva pela qual não poderá nunca agradecer a
Deus, porque está acima de qualquer gratidão.
Vez ou outra recebe, ainda, a visita de Franz Busko, trazido por
um motorista num Mercedes oficial, porque ele é agora secretário
de Estado, um homem elegante, grisalho nas têmporas, um ho-
mem do mundo... Só quando está sozinho com Kurowski, passe-
ando com ele pelo jardim e pelo campo, ainda diz:
— Explique isso direitinho para mim, mestre...
Depois ouvem, acima deles, o farfalhar dos vidoeiros — como
em Adamsverdruss — e é como se o aroma adocicado das conífe-
ras e da salva se espalhasse sobre o solo da Prússia Oriental, e
como se viesse, dos lagos da Masúria, guinchando, gritando e obs-
curecendo o céu, um bando de gansos selvagens.

FIM

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