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O cometa


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ELE FICOU POR UM INSTANTE na escadaria do
banco, observando o rio humano que descia agitado
pela Broadway. Poucos o notavam. E, quando o
faziam, era de um modo hostil. Ele estava fora
do mundo, "um nada!", como disse amargurado.
Ouvia algumas palavras ditas pelos passantes.
"O cometa?"
"O cometa..."
Todo mundo comentava. Até o presidente, ao
entrar, sorriu condescendente para ele e perguntou:
"Então, Jim, você está com medo?".
"Não", disse lacônico o mensageiro.
"Achei que já tivéssemos viajado na cauda do
cometa uma vez", interrompeu afável o jovem
escriturário.

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"Ah, era o Halley", disse o presidente, "este sob a caverna mais profunda. Aqui, com sua lan-
cometa é novo, bem desconhecido, dizem — ma- terna pesada, apalpou as entranhas da Terra,
ravilhoso, maravilhoso! Eu o vi na noite passada. debaixo do mundo.
Ah, a propósito, Jim", ele disse, voltando-se de Ele respirou fundo ao atravessar a última
novo para o mensageiro, "quero que você desça grande porta de ferro e pisar no limo fétido. Aqui
até as câmaras subterrâneas hoje." finalmente havia paz, e ele seguiu tateando de
O mensageiro seguiu o presidente em silêncio. mau humor. Uma ratazana passou num salto, e
Claro que queriam que descesse até o subter- seu rosto rompeu teias de aranha. Ele procurou
ele
râneo. Era perigoso demais para homens mais cuidadosamente pelo espaço, tocando pratelei-
valiosos. Deu um sorriso desesperançado e ouviu. ra por prateleira, o chão enlameado, as fendas e
"Tudo que tinha valor foi retirado assim que a os cantos. Nada. Voltou para o fundo da sala,
água começou a vazar", disse o presidente, "mas onde, de alguma forma, a parede parecia dife-
sentimos falta de dois volumes de registros anti- rente. Sondou, empurrou e esquadrinhou. Nada.
gos. Imagino que você possa dar uma procurada Afastou-se. Então, algo o fez voltar. Ele tateava
lá embaixo.., não é muito agradável, suponho." concentrado quando, de repente, a parede negra
"Não muito' disse o mensageiro enquanto saía. moveu-se inteira, como se tivesse dobradiças
"Bem, Jim, a cauda do novo cometa nos atin- gigantes, e a escuridão bocejou para além. Ele
girá ao meio-dia dessa vez", disse o escriturário espiou dentro: evidentemente um compartimen-
do cofre ao entregar as chaves. O mensageiro des- to secreto — algum esconderijo do velho banco,
ceu as escadas em silêncio. Ele desceu abaixo da desconhecido nos dias atuais. Hesitante, entrou.
Broadway, onde a luz era fraca, filtrada por pés Era uma sala comprida e estreita com prateleiras,
de homens apressados; e mais abaixo, até o porão e na outra extremidade havia um antigo baú de
escuro; e mais ainda, na escuridão e no silêncio, ferro. Em uma estante alta estavam os dois vo-

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lumes de registro perdidos, dentre outros. Ele os frio e a grande porta, mais uma vez, se moveu
separou com cuidado e andou até o baú. Era ve- asperamente nas dobradiças. Em seguida, ao
lho, firme e oxidado. Olhou para a fechadura bater em algo macio e pesado, parou. Só restou
imensa e antiquada e iluminou as dobradiças. espaço para ele passar espremido. Ali estava o
Estavam profundamente incrustadas de ferrugem. corpo do escriturário do cofre, frio e rígido. Ao
Procurando em volta, ele encontrou um pedaço encará-lo, sentiu-se mal e nauseado. O ar parecia
de ferro para usar como alavanca. Cem anos de inexplicavelmente infecto, com um odor intenso
ferrugem haviam devorado o cofre. A velha tam- e estranho. Ele deu um passo à frente, agarrou-se
pa desgastada foi levantada devagar e, num úl- ao vazio e caiu desmaiado sobre o cadáver.
timo e grave rangido, desnudou o tesouro — e Despertou com uma sensação de horror, des-
ele viu o brilho opaco do ouro. vencilhou-se do corpo num salto e subiu as esca-
"Cabum!" das se arrastando, chamando pelo guarda. En-
Um rangido baixo, estrondoso e reverberante, controu-o sentado como se dormisse, e o portão
assaltou-lhe os ouvidos. Ele se levantou e olhou balançando aberto. Passou os olhos por ele e
em volta. Tudo estava imóvel, um breu. Tateou subiu apressado para a câmara intermediária.
em busca de sua lanterna e iluminou ao redor. Foi Em vão, chamou pelos vigias. Sua voz ecoou duas
quando entendeu. A grande porta de pedra se vezes bizarramente. Subiu correndo até o gran-
fechara. Ele esqueceu o ouro e encarou a morte de subsolo. Aqui outro guarda jazia de bruços,
~ face a face. Então, com um suspiro, começou a frio e imóvel. Um temor tomou o coração do
trabalhar metodicamente. Sentia na testa o suor mensageiro, que subiu desabalado até o banco.
frio. Procurou, bateu, empurrou sem parar até A quietude da morte reinava por toda parte, e
que, depois do que pareceram horas interminá- por toda parte curvavam-se, vergavam-se e es-
veis, sua mão esbarrou em um pedaço de metal tiravam-se as formas silenciosas dos homens.

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O mensageiro parou e olhou ao redor. Ele não retorcidos e prensados, metidos à força naquela
era um homem facilmente impressionável, mas passagem, feito restos em uma lixeira — como
a visão era apavorante. "Roubo e assassinato", se, em uma arremetida frenética e selvagem em
murmurou devagar para si ao ver a boca retor- busca de segurança, tivessem se precipitado di-
cida e babada do presidente, estatelado em sua retamente para a morte. O mensageiro arras-
mesa. Então, um novo pensamento se apossou tou-se devagar pelas paredes, umedecendo a boca
dele: e se o encontrassem aqui sozinho — com ressecada e tentando compreender e apaziguar
todo esse dinheiro e todos esses homens mor- o tremor das pernas e dos braços e o crescente
tos —, quanto valeria sua vida? Olhou ao redor, terror em seu coração. Encontrou um empresá-
foi na ponta dos pés até uma porta lateral e, mais rio, de cartola e sobrecasaca, que também havia
uma vez, olhou para trás. Com cuidado, girou a se esgueirado ao longo daquela parede lisa e
maçaneta e saiu na Wall Street. agora estava morto feito pedra, com o espanto
Como estava quieta a rua! Nenhuma alma viva e, estampado nos lábios. O mensageiro desviou os
no entanto, era meio-dia. Wall Street? Broadway? olhos rápido em busca do meio-fio. Uma mulher
Ele olhou de cima a baixo quase sem controle, de- se recostava em um poste, a cabeça sem vida
pois para o outro lado da rua e, enquanto olhava, curvada sobre o colo coberto de renda de seda.
um sentimento de horror doentio congelou-lhe A sua frente, um bonde, parado, e dentro dele...
os membros. Com um grito engasgado do mais Mas o mensageiro nem olhou direito e seguiu.
absoluto pavor, ele se apoiou de forma brusca Um garoto encardido que vendia jornal estava
na fachada do prédio gélido enquanto encarava sentado na sarjeta, com a "última edição" na mão
impotente a cena. erguida: "Perigo!", exclamava a manchete. "Aler-
No grande portal de pedra, uma centena de tas transmitidos para o mundo. A cauda do co-
homens, mulheres e crianças jaziam esmagados, meta passará por nós ao meio-dia. Esperam-se

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gases fatais. Fechem portas e janelas. Dirijam-se ir a um restaurante. Subiu pela Quinta Avenida
aos porões." O mensageiro leu e cambaleou. Ao até um hotel famoso e entrou por seus salões
longe, em uma janela no alto, uma moça jazia deslumbrantes e fantasmagóricos. Lutando
com o rosto sufocado e mangotes nos braços. Na contra a náusea, tomou uma bandeja de mãos
entrada de uma loja, uma garotinha sentada, com defuntas e apressou-se para a rua, onde comeu
o rosto angelical voltado para o céu, e no carrinho vorazmente, escondendo-se para não ser visto.
ao seu lado... Mas o mensageiro já havia desvia- "Ontem eles não teriam me servido", murmurou,
do o olhar. Foi a gota d'água: o terror irrompeu enquanto se forçava a comer.
em suas veias, e com um único grito arquejante Depois, subiu a rua olhando, examinando,
ele disparou desesperado e correu. Correu como tocando campainhas e soando alarmes. Quieto,
só as pessoas apavoradas correm, ofegando e dan- tudo quieto. Não havia ninguém — ninguém —,
do socos no ar até que, com um último gemido ele não ousava pensar naquilo e apressava-se.
de dor, se atirou na grama da Madison Square e Subitamente estacou. Tinha esquecido. Meu
ficou ali de bruços, imóvel. Deus! Como poderia ter esquecido? Ele deveria
Quando se levantou, ele evitou olhar para as correr para o metrô — quase riu. Não, um carro;
formas imóveis e mudas nos bancos, e foi até uma se conseguisse achar um Ford. Viu um. Com cui-
fonte molhar o rosto. Então, escondido em um dado livrou-se do corpo que o ocupava e tomou
canto, afastado do drama da morte, se recompôs seu lugar no assento. Testou o acelerador. Tinha
aos poucos e recapitulou: o cometa havia varri- gasolina. Soltou o freio, tremendo, e dirigiu rua
do a Terra e este era o fim. Estava todo mundo acima. Havia mortos por toda parte: erguidos,
morto? Ele precisava descobrir. curvados, encostados e deitados, num silêncio
Sabia que deveria ficar firme e manter a calma, sinistro e horrendo. Passou por um automóvel,
caso contrário enlouqueceria. Primeiro, devia destruído e capotado; por outro, que levava um

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grupo alegre, cujos sorrisos ainda duravam nos tentou abrir a porta e esmurrou a campainha.
lábios atingidos pela morte; passou por aglome- Houve uma longa pausa, mas por fim a porta
rações e por uma série de carros sendo parados pesada se abriu. Olharam-se por um momento
por policiais mortos; na rua Quarenta e Dois teve em silêncio. Ela não tinha notado que ele era
que desviar para a Park Avenue a fim de evitar um preto. Ele não pensara nela como branca.
um engarrafamento de cadáveres. Retornou à Era uma mulher de talvez vinte e cinco anos —
Quinta Avenida na altura da Cinquenta e Sete, particularmente bela e vestida com requinte,
passou voando pelo Plaza e pelo parque com seus de cabelos louros e joias. Ontem, ele pensou
bebês aquietados e sua multidão silenciosa, até com amargura, ela mal o teria olhado. Ele não
que, enquanto acelerava pela rua Setenta e Dois, passaria de um punhado de sujeira sob seus
ouviu um grito cortante e viu uma coisa viva se pés sedosos. Ela encarou-o. De toda sorte de
debruçando ferozmente em uma janela. Engas- homens que havia imaginado vir em seu resga-
gou. A voz humana soou em seus ouvidos como te, não poderia sonhar com alguém como ele.
se fosse a voz de Deus. Não que ele não fosse humano, mas habitava
"Ei... ei... socorro, em nome de Deus!", a mulher um mundo tão distante do dela, tão infinita-
gritava, "tem uma garota morta aqui e um homem mente distante, que raramente fazia parte de
e... e ali há homens e cavalos mortos tombados seus pensamentos. No entanto, quando o olhou
pela rua... pelo amor de Deus, traga as autori- com curiosidade, ele parecia bastante comum
dades..." E as palavras se transformaram em um e habitual. Era alto, um trabalhador escuro
choro histérico. da melhor qualidade, com um rosto sensível,
Ele deu meia-volta bruscamente, passou por treinado para a imperturbabilidade, roupas
cima do corpo imóvel de uma criança e subiu com e mãos de homem pobre. Seu rosto era suave e
o carro nomeio-fio. Saltou correndo os degraus, bronco, e seus modos eram ao mesmo tempo

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frios e nervosos, como incêndios há muito em Ele respondeu com vagar:
brasas, mas não apagados. "Algo... cometa ou demônio... varreu a Terra
Por um momento, cada um parou e mediu o esta manhã e... muitos morreram".
outro. Então, a lembrança do mundo morto ra- "Muitos? Quantos?"
pidamente voltou e eles se aproximaram. "Eu procurei e não vi outra alma viva, além
"O que aconteceu?", ela perguntou aos prantos. de você."
"Me diga! Nada se mexe. Tudo é silêncio! Vejo os Ela arquejou e eles se encararam.
mortos espalhados diante da minha janela como "Meu.., pai!", ela sussurrou.
se derrubados pelo sopro de Deus... e veja...", ela "Onde ele está?"
o arrastou através de longas cortinas de seda até "Ele foi para o escritório."
onde, sob o brilho do mogno e da prata, o corpo "Onde fica?"
pequeno de uma governanta estava estendido, em "Na Metropolitan Tower."
um sono perpétuo e tranquilo, e, perto dela, um "Deixe um bilhete para ele aqui e vamos."
mordomo jazia debruçado sobre sua libré. Então, ele parou.
As lágrimas correram pela face da mulher, "Não", disse com firmeza, "antes devemos ir
que se agarrou ao braço dele, até que o perfume até o Harlem."
do hálito dela varreu-lhe o rosto e ele sentiu os "Harlem!", ela lamentou. Em seguida, enten-
tremores que percorriam o corpo dela. deu. De inicio bateu o pé com impaciência. Olhou
"Eu estava quieta em minha câmara escura, para trás e estremeceu. Então desceu os degraus
revelando fotos do cometa que tirei ontem à noite; resoluta.
quando saí... vi os mortos!" "Há um carro mais rápido no pátio", ela disse.
"O que aconteceu?", ela perguntou chorando "Não sei dirigi-lo", disse ele.
de novo. "Eu sei", ela respondeu.

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Em dez minutos eles voavam contra o vento quadrada. Ele afastou com cuidado o corpo do
em direção ao Harlem. O Stutz arrancou e acele- ascensorista, um garoto. O elevador subiu. A porta
rou feito um avião. Viraram na rua Cento e Dez do escritório estava aberta. Na soleira jazia o corpo
sobre duas rodas e derraparam cantando pneus da estenógrafa e, olhando para ela, a secretária
na Cento e Trinta e Cinco. morta, sentada. O interior do escritório estava
Ele saiu do carro por um instante. Quando vazio, mas havia um bilhete sobre a mesa, dobrado
voltou, seu rosto estava cinza. Sem olhar, ela disse: e com o endereço, porém não enviado: •
"Você perdeu alguém?".
"Eu perdi todo mundo", ele disse, sem mais, Queridafilha:
"a menos que..." Fui dar um passeio no Mercedes novo do Fred. Não
Saiu correndo novamente e demorou vários devo voltar antes do jantar. Convidei Fred.
J. B. H.
minutos — horas, pareceu a ela.
"Todo mundo", repetiu, e voltou devagar segu-
rando algo enrolado, que enfiou no bolso. "Vamos' ela gritou nervosa. "Precisamos vascu-
"Receio que eu tenha sido egoísta", ele disse. lhar a cidade."
Mas o carro já seguia em direção ao parque, entre De cima a baixo, por toda parte, de novo e mais
os cadáveres escuros e enfileirados do Harlem — os uma vez continuou aquela busca fantasmagórica.
rostos negros imóveis, as mãos nodosas, as vestes Em todo lugar havia silêncio e morte — morte e
simples e o silêncio — o silêncio feroz e assustador. silêncio. Procuraram da Madison Square a Spuy-
Saindo do parque, rodopiaram ao entrar na Quin- ten Duyvil; percorreram a ponte Williamsburg;
ta Avenida. Desviando dos mortos, derraparam varreram todo o Brooklyn; do Battery Park e
e frearam, sem precisar buzinar ou bramir, até de Morningside Heights examinaram o rio. Si-
que avistaram a Metropolitan Tower, imensa e lêncio, silêncio em todos os lugares, e nenhum

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sinal de vida humana. Abatidos, sujos e exaus- buição de chamadas reluzia sua superfície metáli-
tos, desceram lentamente a Broadway sob o sol ca em uma imobilidade esfíngica, enigmática.
escaldante e, afinal, pararam. Ele farejou o ar. Ela se sentou em um banquinho e colocou o fone
Um odor — um mau cheiro — e com a mudança de ouvido brilhante. Olhou para o microfone. Ela
da brisa um fedor nauseabundo enchiam-lhe as nunca tinha olhado tão de perto para um. Era lar-
narinas carregando seu aviso terrível. A garota go e preto, marcado pelo uso; inerte; morto; quase
recostou-se, impotente, em seu assento. sarcástico em suas curvas insensíveis. Parecia— ela
"O que podemos fazer?", ela perguntou. repeliu o pensamento — mas parecia... teimava
Agora era sua vez de assumir a liderança, e em parecer com... ela virou a cabeça e se viu sozinha.
ele o fez rapidamente. Por um instante ficou aterrorizada; então, agrade-
"Telefone, chamada interurbana. Telégrafo ceu em silêncio a ele por sua delicadeza e se virou,
e mensagem por cabo. Sinalizadores noturnos e, resoluta e ágil, tomando ar.
então, fugir!" "Alô'; ela chamou em voz baixa. Estava cha-
Ela olhou para ele, forte e confiante. Ele não mando o mundo. O mundo precisa responder. O
parecia os outros homens, os homens como ela mundo responderia? O mundo...
sempre imaginou; contudo, agia como um, e isso Silêncio.
a contentava. Em quinze minutos, estavam na cen- Ela falara muito baixo.
tral telefônica. Quando chegaram, ele passou rá- "Alô!", ela chamou, a voz plena dessa vez.
pido à frente dela, deslocando-a com cuidado para Se pôs em escuta. Silêncio. Seu coração ace-
trás enquanto fechava a porta. Ela o ouvia para lá lerou. Gritou em alto e bom som, com clareza:
e para cá, e reconhecia seus fardos — os pequenos "Alô! Alô! Alô!".
fardos que ele carregava. Quando ela entrou, ele O que era aquele zunido? Certamente — não
estava sozinho na sala. O sinistro painel de distri- — seria o ruído de um receptor?

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Ela se inclinou para perto, moveu os plugues por um instante: o cômodo estava cheio de mu-
nos buracos, e chamou e chamou até que sua voz lheres mortas; então ela correu até aporta, que
virou quase um guincho. O coração martelava. esmurrou — fazendo seus dedos sangrarem —
Foi como se ela tivesse ouvido a última centelha até que abrisse. Olhou para fora. Ele estava no
da Criação, e o Mal era silêncio. Sua voz cedeu alto da viela — a silhueta, alta e negra, imóvel.
a um soluço. Sentada, olhou apalermada para o Estava olhando para ela ou para o nada? Ela não
bocal sarcástico e preto e, mais uma vez, vieram sabia — não se importava. Simplesmente saiu
os pensamentos. A esperança estava morta dentro correndo — correu até que se viu sozinha entre
dela. Sim, restavam o telégrafo e os sinalizadores; os mortos e as altas muralhas de arranha-céus.
mas o mundo — ela não conseguia dar forma ao Parou. Estava sozinha. Sozinha. Sozinha nas
pensamento ou dizer a palavra. Era muito poderoso ruas — sozinha na cidade — talvez sozinha no
—muito tenebroso! Virou-se em direção à porta mundo. A sensação de estar sendo enganada
com um novo temor no coração. Pela primeira apoderou-se dela — sentia mãos rastejantes
vez ela pareceu se dar conta de que estava sozi- às suas costas — coisas silenciosas e móveis
nha no mundo com um estranho, com algo mais que ela não conseguia ver — vozes sussurran-
que um estranho — um pária por seu sangue e tes em uma conspiração assustadora. Olhou
sua cultura — desconhecido, talvez indecifrável. em volta; de início ouviu barulhos estranhos,
Era terrível! Ela precisava escapar — precisava que lhe soaram cada vez mais insólitos, até que
fugir. Ele não deveria vê-la novamente. Quem cada nervo seu ficasse trêmulo e teso, a ponto
saberia, que pensamentos horríveis... de fazê-la gritar ao mínimo toque. Ela recuou
Ela ajustou com habilidade as saias de seda em e correu de volta, choramingando feito uma
torno das pernas jovens e lisas — e se esgueirou criança, até reencontrar aquela viela estreita e
atentamente para uma sala lateral. Encolheu-se a figura escura e calada da silhueta no alto. Ela

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~ parou e descansou; então caminhou muda em di- Moviam-se em calada mesura, para não acordar de
reção a ele, olhou-o timidamente. Ele nada disse modo algum essas formas dormentes que haviam,
ao acompanhá-la até o carro. Sua voz engasgou por fim, encontrado a paz. Moviam-se dentro
enquanto ela sussurrava: de algum majestoso Friedhof mundial, acima
"Isso... não". do qual algum braço divino havia balançado sua
E ele respondeu lentamente: "Não... isso, não". vara de condão. Toda a natureza adormecia até
Entraram no carro. Ela se debruçou no volante que... até que, num estalo e com a mesma ideia
e soluçou, com soluços grandes, secos e palpitantes, chocante, olharam-se nos olhos — ele, pálido,
enquanto se dirigiam à agência dos telégrafos no e ela, ruborizada, com pensamentos não ditos.
East Side, trocando o mundo da riqueza e da pros- Para ambos, a visão de uma beleza poderosa —
peridade pelo da pobreza e do trabalho. Naquele que de coisas tácitas e vastas — inundou-lhes a alma,
ficava para trás havia morte e um silêncio grave e porém eles a afastaram.
sombrio, quase cínico, mas sempre decente. Este Imensas e sombrias espirais de eletricidade,
mundo era abominável. Revestia-se de todas as vindas da Terra e do Sol, penetravam naquele es-
formas tenebrosas de horror, luta, ódio e sofrimento. conderijo de bruxarias. Reunidos, os relâmpagos
Tombava envolto em crime e miséria, ganância e do mundo se afunilavam aqui, atando com feixes
luxúria. Era como a morte em todos os lugares, de luz os confins da Terra. As portas se abriram
apenas em seu pavoroso e terrível silêncio. para a escuridão. Ele parou na soleira.
No entanto, enquanto os dois, sozinhos e em "Você sabe o código?", ela perguntou.
fuga, olhavam para o horror do mundo, lenta e "Eu seio chamado de socorro. Nós o usávamos
gradualmente a sensação de morte que a tudo antigamente no banco."
envolvia os abandonou. Pareciam se mover em
um mundo quieto e adormecido — não morto. * Cemitério, em alemão. (N. E.)

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Ela mal escutou. Ouviu o bater das águas lá algum vasto romance. A garota recostou-se quieta,
embaixo — águas escuras e agitadas — águas enquanto o motor roncava, e procurava semi-
traiçoeiras, como eram chamadas. Ele deu um consciente pela rainha dos elfos a instilar vida
passo adiante. Lentamente, ela caminhou até a outra vez neste mundo morto. Ela nem se deu
parede, onde a água abaixo era convidativa, e conta da rapidez com que ele aprendera a diri-
ali ficou esperando. Esperou um longo tempo, gir seu carro. Parecia natural. E então, quando
mas ele não veio. Até que, num sobressalto, viu-o, numa meia-volta entraram na Madison Square
também, de pé junto às águas negras. Devagar, e na porta da Metropolitan Tower, ela deu um
ele tirou o casaco e ficou ali calado. Ela cami- gritinho e seus olhos brilharam! Quiçá tivesse
nhou rapidamente na direção dele e pousou a visto, mesmo, a rainha dos elfos?
mão em seu braço. Ele não reagiu ou olhou. As O homem a conduziu até o elevador do edi-
águas batiam em um ritmo sedutor e mortal. Ele fício e eles subiram. No escritório do pai dela,
apontou para elas e disse com calma: pegaram tapetes e cadeiras, ele escreveu um bi-
"O mundo jaz sob as águas agora. Posso ir?". lhete e o deixou sobre a mesa. Então foram até o
Ela olhou seu rosto devastado e exausto, e telhado e ele a acomodou confortavelmente. Ela
uma piedade tremenda tomou-lhe o coração. Res- descansou e mergulhou em uma sonolência de
pondeu com uma voz clara e tranquila: "Não". sonho, observando e imaginando os mundos além.
Eles tornaram à vida uma vez mais, e ele as- Abaixo estavam as sombras escuras da cidade e
sumiu a direção do carro. O mundo escurecia mais ao longe o brilho do mar. Ela olhou tímida,
rumo ao crepúsculo, e uma imensa mortalha enquanto ele lhe servia comida, apanhava um
gris caía, misericordiosa e delicadamente, so- xale e a cobria, tocando-a com reverência, porém
bre os mortos adormecidos. O sinistro clarão de forma terna. Ela o encarou com gratidão nos
da realidade parecia substituído pelo sonho de olhos, comendo o que ele lhe servira. Ele olhava

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a cidade. Ela o olhava. Parecia muito humano -se de pé, os olhos arregalados. Ele se virou e, depois
— muito próximo agora. de se atrapalhar um pouco, conseguiu lançar um
"Você teve que trabalhar duro?", ela perguntou sinalizador para o céu escuro. O projétil decolou,
com suavidade. zuniu e subiu; um estreito caminho de luz, que,
"Sempre", ele disse. espalhando com força suas fagulhas, despencou
"Eu sempre fui à toa", ela disse. "Era rica." sobre a cidade abaixo. Ela mal percebeu. Uma
"Eu era pobre", ele quase ecoou. visão do mundo surgira diante dela. Lentamente,
"A rica e o pobre unidos", ela começou, e ele a poderosa profecia de seu destino a dominou por
concluiu: completo. Acima do passado morto pairava o Anjo
"O Senhor é o criador de todos". da Anunciação. Ela não era uma mera mulher. Não
"Sim", ela disse devagar, "e como nossas distin- era nem alta nem baixa, nem branca nem preta,
ções humanas parecem tolas agora", encarando nem rica nem pobre. Ela era a mulher primal; mãe
a grande cidade morta que se estendia abaixo, poderosa de todos os homens do porvir e a Noiva
nadando em sombras apagadas. da Vida. Ela olhou para o homem ao seu lado e
"Sim. Ontem, eu não era humano", ele disse. esqueceu tudo o mais, exceto sua masculinidade,
Ela olhou para ele. "E o seu povo não era o sua forte e vigorosa masculinidade — seu pesar
meu", disse, "mas hoje...", fez uma pausa. Ele e sacrifício. Ela o viu glorificado. Ele não era
era um homem, nada mais. Mas, em um sentido mais uma coisa à parte, uma criatura inferior,
mais amplo, era um cavalheiro. Sensível, gentil, um pária, um estrangeiro, de outro sangue, mas
nobre, tudo nele salvo as mãos e o rosto. No a encarnação do Irmão Humanidade, Filho de
entanto, ontem... Deus e o Pai-Total da raça futura.
"A morte nivela", ele resmungou. Ele não percebeu a glória nos olhos dela;
"E revela", ela segredou delicadamente, pondo- continuou contemplando ao largo o mar, e lan-

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poderoso faraó vivesse novamente, ou um líder
çando sinalizador após sinalizador na escuridão
assírio de cabelos crespos. Virou-se, olhou para a
sem resposta. Nuvens roxas se amontoavam em
mulher e a encontrou olhando diretamente para ele.
ondas no Oeste. Atrás e ao redor deles, os céus
incandesciam em um esplendor sombrio e sobre- Em silêncio, imóveis, viam-se cara a cara —
natural que impregnava o mundo apagado, quase olhos nos olhos. Suas almas despidas ao cair da
uma música em tom menor. De repente, como se noite. Não era luxúria. Não era amor — era algo
recolhida por alguma mão gigantesca, a imensa maior, mais poderoso, que não carecia do toque
cortina de nuvens desapareceu. Perto da linha do corpo, nem da excitação da alma. Era algo
do horizonte restou uma enorme estrela branca divino, extraordinário.
— mística, maravilhosa. E dela subiu em linha Lentamente, sem nenhum ruído, um se moveu
reta, em direção ao polo — feito um descolorido em direção ao outro — no alto, o fi rmamento,
véu nupcial —, uma faixa de luz pálida e larga os mares ao redor, a cidade sombria e morta aos
que iluminou o mundo todo e ofuscou as estrelas. seus pés. Ele agigantou-se das sombras de velu-
O homem, em um silêncio fascinado, pasmou-se do, vastas e escuras. Esguia e branca como uma
diante do firmamento e deixou cair no chão os pérola, ela reluziu sob as estrelas. Estendeu as
sinalizadores. Memórias de memórias da vida mãos adornadas com joias. Ele ergueu os braços
revolvida nos cantos escuros de sua mente. Os potentes, e exclamaram um para o outro, quase
grilhões pareciam chacoalhar e cair de sua alma. como uma só voz: "O mundo está morto".
De dentro de sua classe indigna, destruída e ser- "Vida longa a..."
vil, irrompeu a majestade única de reis há muito "Bééé! Bééé!" Uma buzina e o som cortante
mortos. Ele ascendeu das sombras, alto, ereto e de um motor ressoaram com nitidez no silêncio.
austero, com poder em seus olhos e cetros espec- Eles recuaram com um grito e se encararam com
trais pairando ao seu alcance. Era como se algum olhos vacilantes e abatidos, o sangue a ferver.

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"Bééé! Bééé! Bééé! Bééé!", veio o barulho um traje de piloto, que se curvou sobre a garo-
insano mais uma vez, e quase que partindo de ta com solicitude apaixonada e olhou-lhe nos
seus pés um sinalizador resplandeceu no céu e olhos fi xamente, até que ela desviou o olhar, e
espalhou suas fagulhas sobre eles. Ela cobriu os seu rosto ruborizou.
olhos com a mão e encolheu os ombros. Ele se "Julia", ele sussurrou, "minha querida, pensei
abaixou e curvou-se, tateando cegamente ajoe- que você tivesse partido para sempre."
lhado no chão. Uma chama azul crepitou devagar Ela o encarou com olhos perscrutantes e
depois de um tempo, e ela ouviu o zunir de um curiosos.
sinalizador voando em resposta. "Fred", ela murmurou, algo vagamente, "o
Então eles pararam como a morte, olhando mundo... se foi?"
para os confins do outro lado da Terra. "Apenas Nova York", respondeu ele. "É ter-
"Crec — clac — crec!" rível. Medonho! Você sabe.., mas, e você, como
O barulho da engrenagem e o badalar de eleva- escapou? Como aguentou esse horror? Está bem?
dores velozes disparando para cima fizeram a grande Se machucou?"
torre tremer. Uma babel de vozes murmurantes "Não", ela disse.
assaltou a noite. Por toda a cidade outrora mor- "E este homem aqui?", ele perguntou, envol-
ta, as luzes piscavam, tremeluziam e flamejavam; vendo-a com um braço e virando-se para o pre-
e então, com um súbito tinir de portas, a entrada to. De repente, ele enrijeceu e colocou a mão no
da plataforma se encheu de homens, e um deles, de quadril. "Ora!", ele rosnou. "E um crioulo, Julia!
cabelos brancos esvoaçantes, correu até a garota e Ele te... ele ousou..."
a ergueu junto ao peito. "Minha filha!", ele soluçou. Ela ergueu a cabeça e olhou seu companheiro
Atrás dele se apressava um homem jovem e com interesse, depois baixou os olhos com um
bem apessoado, cuidadosamente vestido com suspiro.

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"Ele ousou.., tudo para me salvar", disse ela "Lá vem ele."
calma, "e eu sou muito grata." Contudo, ela não Sob o clarão das luzes elétricas, o homem de
voltou a olhá-lo. Quando o casal se afastou, o pai cor movia-se lentamente, com olhar sonâmbulo.
tirou um maço de notas do bolso. "Quem diria...", reclamou um espectador, "de
"Aqui, meu bom camarada", disse, enfiando o toda Nova York, só uma moça branca e um crioulo!"
dinheiro nas mãos do homem, "pegue isso. Qual O homem de cor não ouvia. Ficou em silêncio
é o seu nome?" sob a luz rutilante, encolhendo-se ao mirar fixa-
"Jim Davis", veio a resposta, em uma voz vazia. mente o dinheiro em uma das mãos. Devagar, ele
"Bom, Jim, obrigado. Sempre gostei do seu colocou a outra mão no bolso, tirou uma touca
pessoal. Se você quiser um emprego algum dia, de bebê feita de um tecido delicado e encarou-a.
é só me chamar." E eles se foram. Uma mulher subiu na plataforma e olhou em volta
Pessoas transbordavam dos elevadores no alto protegendo a vista da luz. Ela era negra, miúda,
do prédio falando e sussurrando. exausta da lida, e em um dos braços carregava o
"Quem era?" cadáver de um bebê negro. A multidão se apartou
"Eles estão vivos?" e seus olhos pousaram no homem de cor. Com um
"Quantos?" grito ela cambaleou em direção a ele.
"Dois!" "Jim!"
"Quem foi salvo?" Ele se virou e, soluçando de alegria, envolveu-a
"Uma moça branca e um crioulo.., lá vai ela." nos braços.
"Um crioulo? Onde ele está? Vamos linchar o
maldito..."
"Cala a boca! Ele é um cara decente. Salvou ela."
"O diabo que salvou! Ele não tinha nada que..."

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