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10.04.

2011

FREUD, A ÚLTIMA SESSÃO

por
Mark St. Germain
Como sugerido em
"The Question of God"
Por
Dr. Armand M. Nicholi, Jr.

Tradução
L.G. Bayão

Copyright © 2011 by Ticiana Studart


Todos os direitos reservados
Personagens:
SIGMUND FREUD, 83 anos

C.S. LEWIS, 40 anos

3 de Setembro de 1939
“FREUD, A ÚLTIMA SESSÃO”

(3 de Setembro de 1939. Manhã

Penumbra, a voz do LOCUTOR DA BBC pode ser ouvida)

LOCUTOR DA BBC
Ainda não existe uma resposta oficial quanto ao ultimato
dado pelo Primeiro Ministro sobre a retirada das tropas da
Polônia. Alemanha segue endossando a afirmação de Hitler,
que o estado Polonês ignorou todas as chances dadas a um
acordo pacífico e se recusa a respeitar as fronteiras do
império alemão.

(LUZ SOBE LENTAMENTE e revela o escritório de DR.


SIGMUND FREUD: o aposento é tomado por livros e as
paredes repletas de obras de arte.

DR. FREUD está sentado em sua mesa, escutando as


notícias do rádio.

Sua mesa contém antiguidades do mundo todo; estátuas e


bustos.

Diante da mesa de Freud, uma cadeira de couro.

No canto oposto, um divã, coberto com uma colcha


bordada rica em detalhes.)

LOCUTOR DA BBC (CONT’D)


Aguardamos a qualquer momento o pronunciamento do Primeiro
Ministro Chamberlain à nação. Nossa programação normal será
interrompida para trazer aos senhores esta transmissão.

(LATIDOS DE CACHORRO podem ser ouvidos ao fundo)

LOCUTOR DA BBC (CONT’D)


Acabamos de receber a confirmação de que as tropas da
Eslováquia se uniram à invasão alemã--
2.

(Freud desliga o rádio.

ELE chama o cachorro, JO-FI, que continua a latir.)

FREUD
Jo-fi! Está ouvindo ele chegando, não é? Cachorro esperto!
Vem aqui, Jo-fi! Vem pro papai.

(Um LATIDO. Nenhum cachorro.)

FREUD (CONT’D)
Ou então fica sentado aí.

(Som da CAMPAINHA. FREUD olha para o relógio e SAI


novamente de cena. O latido do cachorro pára. Fora do
palco podemos ouvir ele ABRINDO A PORTA.)

LEWIS (OFF)
Dr. Freud; Sou o professor Lewis.

FREUD (OFF)
Bom dia, professor.

LEWIS (OFF)
Bom dia.

(FREUD entra seguido por Lewis.)

FREUD
Já tinha desistido de você. Entre. Vamos conversar no meu
escritório.

LEWIS
Sinto muitíssimo pelo atraso.

FREUD
Se eu não tivesse oitenta e três anos de idade diria que
não tem importância.
3.

LEWIS
Com a cidade sendo evacuada, os horários dos trens são
inúteis. Estão todos saindo de Londres, quase nenhum vem
para cá. Vi vários passando pela estação de Oxford com
crianças que estão sendo levadas para o interior. Estão
esvaziando os hospitais também.

FREUD
E as cadeias.

LEWIS
Cadeias?

FREUD
Qualquer uma que possa ser bombardeada por aviões. Milhares
de condenados terminando de cumprir suas penas estão sendo
soltos.

LEWIS
O senhor está acompanhando pelo rádio?

FREUD
Sim. Acho conveniente ser avisado antes de ser bombardeado.
O Primeiro Ministro vai se pronunciar em breve. Deixe eu
lhe avisar: meu médico está a caminho, então nossa conversa
terá que ser breve. Deixe-me guardar seu casaco. Minha
esposa e a empregada foram atrás de comida enlatada,
devemos nos preparar para o pior.

(FREUD pega o casaco de LEWIS; LEWIS coloca uma maleta


abaloada em uma mesinha próxima.)

LEWIS
Claro. Nessas circunstâncias talvez fosse melhor adiar
nosso encontro.

FREUD
Até quando, professor? Você conta com muitos “amanhãs”? Eu
não.
4.

(FREUD SAI com o casaco de LEWIS; JO-FI LATE.)

LEWIS
Qual a raça?

FREUD (O.S.)
É um Chow. Ele acompanha as sessões comigo.

(FREUD volta.)

FREUD (CONT’D)
Jo-Fi é meu barômetro emocional. Se o paciente está calmo,
ele se estica todo aos meus pés. Mas se o paciente está
agitado, Jo-Fi fica ao meu lado sem tirar os olhos dele.

LEWIS
O que quer dizer então ele fugindo de mim quando cheguei?

FREUD
Ele também aprecia a pontualidade.

LEWIS
Entendi. Que escritório maravilhoso.

FREUD
Minha filha Anna decorou para que fosse uma réplica exata
do meu escritório em Vienna.

LEWIS
(olhando pela janela)
O senhor tem uma vista maravilhosa.

FREUD
Sim, o jardim. Da janela do outro escritório eu só via os
nazistas queimando meus livros. Sente-se, por favor.

(LEWIS olha para o famoso divã de FREUD.

FREUD aponta para a cadeira.)


5.

FREUD
Ali não. Aqui.

LEWIS
Obrigado.

FREUD
Com nosso tempo tão curto, talvez fosse melhor irmos logo
ao que interessa, o motivo pelo qual lhe escrevi.

LEWIS
Um dos meus livros.

FREUD
Ah. Você escreveu mais de um?

LEWIS
Imagino que foi “O regresso do peregrino” que lhe ofendeu.

FREUD
“Ofendeu”?

LEWIS
Sim, eu satirizando o senhor com o personagem “Sigismundo”.
Sua bombástica auto-importância; ele jogando o Peregrino
para o gigante simplesmente porque não tolera ser
contrariado.

(Pausa. Freud não diz nada.)

LEWIS (CONT’D)
Eu descrevendo o senhor como um “velho vaidoso e ignorante”
foi demais, admito. Mas penso que quando colocamos nossas
crenças para o público devemos esperar algum tipo de
reação.

FREUD
Com certeza.
6.

LEWIS
Sinto muito se o senhor tomou tudo isso como um ataque
pessoal. Mas não posso pedir desculpas por opinar sobre as
suas convicções quando elas contradizem completamente as
minhas.

FREUD
Que são...?

LEWIS
Que Deus existe. Que um homem não precisa ser um imbecil
por acreditar Nele. E que nós, débeis-mentais que
acreditamos, não sofremos, como o senhor costuma dizer, de
uma patética “neurose obsessiva”.

FREUD
(pausa)
Eu não li seu livro.

LEWIS
Nâo leu?

FREUD
Dr. Eric Larson, um amigo em Cambridge, compartilha minha
paixão por literatura inglesa. Quando você fez uma
homenagem ao clássico “O progresso do peregrino”, lançando
“O regresso do peregrino” meu amigo estava lá e me contou
tudo nos mínimos detalhes.

LEWIS
Que eu destruí o senhor.

FREUD
Professor Lewis, eu tenho sido “destruído” a minha vida
toda. Não se decepcione se a sua criação de uma personagem
cartunesca baseada em mim não me levou ao suicídio. Mas
devo perguntar: se você achou que eu me ofenderia, por que
veio ao nosso encontro?
7.

LEWIS
Estava curioso em lhe conhecer.

FREUD
Mesmo repudiando meu trabalho?

LEWIS
Não de todo, seu trabalho é sempre instigante. Nos tempos
de faculdade, devorávamos cada livro seu para descobrir
nossas últimas perversões.

FREUD
Espero que as tenham encontrado.

LEWIS
Encontramos. E inventávamos novas.

FREUD
Você tem senso de humor.

LEWIS
Debato com meus alunos diariamente. Humor ajuda.

FREUD
E você pensa, ainda que inconscientemente, que nós vamos
“debater” algo aqui, que essa é a razão de você estar aqui
no meu escritório?

LEWIS
Estou vendo que não faria a menor diferença se eu estivesse
sentado no divã. Então, já que me convidou, talvez o senhor
possa me dizer a razão.

FREUD
Ainda que não tenha lido seu livro, gostei muito da sua
análise de “Paraíso perdido”. Muito bem escrito com muitas
observações originais. “Paraíso perdido” é meu livro
favorito. Há muitos anos atrás, quando estava distante da
minha futura esposa, ele me confortou.
8.

LEWIS
Você foi confortado por um livro sobre o embate entre Deus
e Satanás?

FREUD
Eu não disse pra quem torci. Mas Milton deu a Satanás os
melhores versos, você não acha? Aceita um chá?

LEWIS
Não, obrigado.

FREUD
É melhor, já deve estar frio. Água?

LEWIS
Não.

(FREUD se serve de água.)

FREUD
Nós dois concordamos que Satanás foi uma invenção
brilhante, não? A ele se atribui todas as maldades do mundo
assim como Hitler culpa os judeus. Ele é um mestre--

(FREUD é interrompido por um acesso de tosse que se


torna mais e mais violento. Ele se apressa em levar a
mão à boca como se tentasse ajustar seus dentes.

Preocupado, LEWIS se levanta, mas FREUD sinaliza para


que ele se mantenha afastado. FREUD bebe um pouco de
água e a tosse cessa.)

LEWIS
Posso ajudar o senhor?

(FREUD balança a cabeça negativamente, tenta recuperar


o fôlego. FREUD usa o polegar para manter a prótese no
lugar.)
9.

FREUD
Eu tenho câncer de boca. O que me fez perder parte da
mandíbula e o palato. Isso parece uma dentadura mal fixada,
mas na verdade é uma prótese. Ela fecha o topo da minha
boca pela cavidade nasal. Mas está desgastada. E o cheiro é
obviamente horrível.

LEWIS
Não estou sentindo.

FREUD
Você está sendo educado.
(pausa)
Jo-Fi não fugiu de você, ele fugiu de mim. É o cheiro de
carne em decomposição.

LEWIS
Deve doer muito.

FREUD
Mais quando eu falo. Mas como você já deve ter percebido,
eu me calar é pouco provável.
(caminhando até o rádio)
São quase onze; o Primeiro Ministro já deve estar falando.
Você se importa?

LEWIS
Claro que não.

(FREUD liga o rádio; MÚSICA CLÁSSICA pode ser ouvida.)

FREUD
Ainda não.

(FREUD desliga o rádio.)

FREUD (CONT’D)
Meu amigo Larson conhece um colega seu, um... Professor
Tolkien?
10.

LEWIS
Somos grandes amigos, sim.

FREUD
Ele falou sobre o grupo de vocês. Os Inklings?

LEWIS
É como chamamos nosso grupo de discussão literária em
Oxford. Somos quase todos escritores, debatemos sobre os
nossos trabalhos.

FREUD
Fantasias. Fadinhas? Anões? Gnomos?

LEWIS
Às vezes, sim.

FREUD
Passei muito da minha vida analisando fantasias. No tempo
que me resta estou determinado a me dedicar à realidade.
Pelo que sei você tem uma inteligência superior e talento
para o raciocínio analítico. Larson disse que você
inclusive compartilhou até bem pouco tempo do meu conceito
de que a ideia de um Criador é evidentemente infantil.

LEWIS
Certo.

FREUD
Então é isso. Como São Paulo, você é uma vítima de uma
conversão. Ou de psicose alucinatória.

LEWIS
São Paulo foi atingido por um raio enquanto cavalgava para
cidade de Damasco.
11.

Eu fui atingido por um pensamento, na garupa lateral da


moto do meu irmão, quando íamos para o zoológico. Não é tão
dramático.

FREUD
Depende do pensamento que lhe atingiu.

LEWIS
Quando saímos de casa eu não acreditava em Deus. Quando
chegamos, eu acreditava. Simples assim.

FREUD
As coisas só são simples quando não as analisamos.

LEWIS
Eu questiono minhas crenças diariamente. E devo dizer,
nunca conheci um ateu que gastasse tanto tempo tentando
provar a não existência de Deus. Se eu fosse um
psicanalista, eu gostaria de saber a razão dessa
insistência.

FREUD
Se você fosse um psicanalista, você também gostaria de
saber por que alguém optaria por andar na garupa lateral de
uma moto ao invés de pilotá-la.

LEWIS
A decepcionante resposta para sua pergunta seria que eu não
sei dirigir.

FREUD
Já que essa é uma habilidade que já vi ursos no circo
demonstrando ter, devo supor que você poderia ter
aprendido, mas por alguma razão não quis. Não tem
importância, você está certo quanto a minha preocupação com
religião. Você leu meu último livro?
12.

LEWIS
Tentei. Está esgotado. Mas pelo que ouvi, o senhor fez
algumas afirmações incendiárias...

FREUD
Suposições.

LEWIS
Que Moisés não era um judeu, mas egípcio? Que Deus nunca se
pronunciou sobre o “povo escolhido”, e sim Moisés? E que
depois que ele guiou os judeus para a Terra Prometida ele
foi morto por eles?

FREUD
Não por ter levado os judeus até a Terra Prometida. Por seu
dogma autoritário. Ou por sua insistência na circuncisão de
todo homem.

LEWIS
Eu apostaria no segundo.

FREUD
Meu ponto é que ao assassinar Moisés, os Israelitas foram
forçados a enterrar sua culpa disfarçando-a de
“religiosidade”. Até hoje!

LEWIS
É por isso que seu livro está esgotado. Judeus devem estar
ansiosos para destruir o seu livro.

FREUD
E a mim também. Mas os judeus devem esperar a vez deles
atrás do meu maior inimigo, a Igreja Católica.

LEWIS
Doutor, eu sou o primeiro a admitir que o maior problema
com o Cristianismo são os cristãos. Mas o senhor não pode
resumir a fé a uma instituição.
13.

FREUD
Eu passei minha vida toda em “instituições”. Religiosas ou
não, elas são capitaneadas por autocratas que insistem em
impor a sua visão acima de tudo que comandam. Eu digo a
verdade, independente de quem se enfureça.

LEWIS
E o senhor gosta? De enfureçê-los?

FREUD
Eu gosto de provocar discussões, como a nossa.

LEWIS
Mas pra quê discutir se o senhor se dá por satisfeito com a
sua descrença? O senhor insistiu por toda sua vida que o
conceito de Deus é ridículo. Mas agora, talvez com a sua
doença--

FREUD
Minha doença é irrelevante. Eu não tenho medo da morte e
nenhuma paciência para propaganda.

LEWIS
Então por que eu estou aqui?

FREUD
Por uma razão. Quero aprender por que um homem com o seu
intelecto, que compartilhou as minhas convicções, pode
simplesmente abandonar a verdade e abraçar uma mentira tão
traiçoeira.

LEWIS
Mas e se não for uma mentira? O senhor já considerou o quão
terrível seria perceber depois de tanto tempo que esteve
errado?

FREUD
Não tão terrível quanto seria para você. Professor Lewis--
14.

(O TELEFONE toca. FREUD atende.)

FREUD
Alô? Sim, Anna! Oh, obrigado.
(Freud desliga o telefone, liga
o rádio)
O Primeiro Ministro vai falar agora.

NEVILLE CHAMBERLAIN (V.O.)


“...até o último minuto teria sido impossível conseguir um
acordo pacífico e honrado entre Alemanha e Polônia, Hitler
seria contra.

Suas ações mostram de forma convincente que não há como ter


esperança de que esse homem desistirá algum dia da prática
terrível de fazer valer sua vontade através da força. Pois
então ele será parado através da força.

Agora que Deus abençoe todos vocês. Que Ele abençoe os que
têm a razão. As maldades serão combatidas por nós -
brutalidade, má fé, injustiça, opressão e perseguição - e
contra elas eu estou certo de que triunfaremos.”

LOCUTOR DA BBC (V.O.)


Esse foi o pronunciamento do Primeiro Ministro Neville
Chamberlain da--

(FREUD desliga o rádio.)

FREUD
E assim começa.

LEWIS
De novo.

FREUD
Agradeço ao seu Deus por me “abençoar” com o câncer, com
certeza não estarei aqui pra ver outra guerra como essa.
15.

(TELEFONE toca.)

FREUD
Com licença.
(Freud atende)
Alô? Eu ouvi... Não! Dê sua aula, seus alunos precisam de
você... Doutor Schur vai estar aqui em meia hora... Quem
conseguiria descansar agora? Está bem. Nos falamos.
(Freud desliga)
Minha filha, Anna. Eu subestimei Hitler. Pensei que ele
fosse sossegar depois de brutalizar a Áustria.

LEWIS
O senhor veio para cá a quanto tempo?

FREUD
Um ano e quatro meses. Os camisas-marrons arrombaram minha
porta, queriam me prender, me interrogar. Anna insistiu que
eu estava doente demais, que ela deveria ir no meu lugar.
Recusei. Eles a levaram mesmo assim. Fiquei sem notícias
dela por doze horas. Por doze horas eu tive a certeza de
que ela estava morta.

Quando ela foi liberada eu subornei todas as pessoas


necessárias para deixar o país imediatamente. Mas precisou
que uma tragédia quase acontecesse para que eu pudesse ver
Hitler como o monstro que ele realmente é.

LEWIS
A história está cheia de monstros. Ainda assim, de alguma
forma, nós sobrevivemos.

FREUD
Para receber o próximo monstro. O homem está em constante
evolução física, como meu santo pessoal, Charles Darwin,
provou. Mas não seu temperamento: nós não sobrevivemos sem
inimigos. São tão necessários quanto o ar.
16.

Hitler escolheu um alvo familiar. “Judeus são sub-humanos”,


“lesmas que nunca contribuíram para a civilização”.
Afirmações tão ridículas que as pessoas deveriam se
revoltar! Ao invés disso, aplaudem.

LEWIS
Não todos.

FREUD
Ainda não. Mas Hitler aprende com a história. O maior
aliado de um guerreiro é sempre Deus. Quando Hitler afirma
que esmagar os judeus é a “vontade do senhor”, ele levanta
um exército que idolatra a ele e a Deus.
LEWIS
Há uma outra maneira de olhar para isso. Hitler pode se
transformar em um instrumento para o bem.
FREUD
Como?

LEWIS
Suas desprezíveis ações reiteram a necessidade para um
contra-ataque. O homem de bem serve a Deus como um filho
amoroso, o homem mau serve a Deus como Sua ferramenta.
FREUD
Então enquanto Hitler ataca, Deus espera para ver quem
sobrevive aos seus golpes.

LEWIS
Nós temos que começar aceitando que existe uma lei moral
por trás de tudo--

FREUD
Eu não aceito. Não existe lei moral nenhuma. Apenas
tentativas inúteis de controlar o caos.

LEWIS
Códigos morais sempre existiram. Me diga uma civilização
que admirou roubo ou covardia. A humanidade nunca deu valor
ao egoísmo.
17.

FREUD
O egoísmo recompensa a si mesmo.

LEWIS
Então os nazistas estão certos?

FREUD
Claro que não.

LEWIS
Então existe uma moralidade. E você a está usando para
julgar as ações deles. Um homem não pode dizer que uma
linha é torta a não ser que saiba como é uma linha reta.

FREUD
Ah! Moralidade geométrica!

LEWIS
Consciência moral é algo que nasce com todos nós. Cresce
conosco. Quando era jovem pensava sobre o que era certo e
errado tanto quanto um macaco pensa em Beethoven.

FREUD
E essa “consciência” é criada por Deus.

LEWIS
Sim.

FREUD
Ha - só eu rindo. Você pode argumentar que Deus fez um
trabalho adequado com o pôr-do-sol, mas quando o assunto é
consciência, me desculpe, ele falhou completamente. O que
você chama de consciência, são padrões de comportamento
incuntidos pelos pais na criança. Comportamentos que,
futuramente, se tornam inibições paralisantes com as quais
eles passam suas vidas tentando superar.
18.

LEWIS
A não ser que você os salve com psicanálise. Liberte-os de
suas repressões previamente conhecidas como “certo” e
“errado”. O conceito de “vergonha”, por exemplo, é coisa do
passado.

FREUD
Você acha que vergonha é uma coisa boa?

LEWIS
Adoraria ver mais! Admitir um erro não o perdoa.

FREUD
Ah se tivéssemos nos conhecido antes! Eu teria ouvido os
pecados dos meus pacientes, diria a eles que caíssem de
joelhos e pedissem perdão. Psicanálise não propaga a
arrogância da religião, graças a Deus!

LEWIS
(Pausa)
O que o senhor disse?

FREUD
Um velho hábito. Tentei me livrar dele a vida toda. “Graças
a Deus”, “seja o que Deus quiser”, “Deus me livre!”. Fui
criado por uma babá católica romana devota que me arrastava
para igreja todo Domingo. Aprendi a genuflectir, fazer o
sinal da cruz, todas as neuroses obsessivas. Ela me ensinou
histórias do Novo Testamento. Meu pai, um judeu ortodoxo,
lia o Velho Testamento em voz alta. Não houve escapatória.

LEWIS
Comigo também. Meu avô era um pároco da nossa igreja. Ele
pregava sermões intermináveis porque parava o tempo todo
para chorar. Meu irmão e eu achávamos hilariante, mas
prendíamos o riso.
19.

FREUD
Seu pai. Ele também era religioso?

LEWIS
Dizia que era. Ainda que eu ache que o que ele idolatrava
era uma falsa modéstia. Criar os filhos gastando o menos
possível. Estou vendo onde o senhor quer chegar, doutor,
então não se surpreenda: eu o detestava intensamente. Ele
era egoísta, agressivo, especialmente depois que a minha
mãe morreu.

FREUD
Quantos anos você tinha?

LEWIS
Nove.
(pausa)
Acho que era impossível criar um ambiente familiar que
daria a nós todo consolo necessário.

FREUD
E o que você sente sobre a morte dele?

LEWIS
Agora o vejo como um homem com problemas. Na época o via
apenas como um tirano.

FREUD
Ainda assim você nega que o seu desejo de buscar Deus era
na verdade uma busca por uma figura paterna ideal?

(LEWIS sorri, olha para o divã de FREUD.)

LEWIS
Não tenho escolha, tenho? Sim, eu nego. Por boa parte da
minha vida eu desejei que não houvesse Deus. Eu não queria
um segundo pai. Foi a fé dele que me afastou da religião.
Eu era um descrente porque temia meu pai tanto quanto o
detestava.
20.

FREUD
Uma dinâmica comum entre pai e filho: adoração infantil se
torna compreensão de suas fraquezas e finalmente desejo de
substitui-lo.

LEWIS
Concordo.

FREUD
Que bom. Você aprendeu alguma coisa nos meus livros.

LEWIS
Eu presumo então que você teve um bom relacionamento com o
seu pai.

FREUD
Eu sempre o desprezei. Ele foi, na melhor das hipóteses,
uma decepção amarga.

LEWIS
(batendo no divã)
Quer sentar?

(FREUD faz que sim, mas senta na cadeira do analista.)

FREUD
A grande influência do meu pai foi me fazer perceber com
grande clareza quem eu não queria ser. Quando era criança,
nós dois caminhávamos pela rua quando um homem derrubou seu
chapéu. O homem gritava: “judeu! Saia da calçada!”. Meu pai
saiu da calçada, pegou o chapéu da lama, não disse nada.
Naquele momento... Não, até hoje, eu não sei quem eu odeio
mais.

LEWIS
A mesma raiva que o senhor sentiu por um Deus que não faz
nada. O desejo de que Deus não exista pode ser tão poderoso
quanto a crença de que Ele de fato existe.
21.

Eu diria inclusive que escolher não acreditar, pode ser a


maior prova de que Ele existe, já que para negá-lo é
preciso reconhecer sua existência.

FREUD
Eu nego a existência de unicórnios. Logo, eles existem?

LEWIS
O senhor gostaria que eles existissem? Nenhum de nós nasce
com desejos, a não ser que a possibilidade de satisfazê-los
seja possível.

FREUD
Não é verdade.

LEWIS
É sim.

FREUD
Exemplo?

LEWIS
Um bebê sente fome. Existe comida. Um pato quer nadar,
existe água. Então se eu encontrar em mim mesmo um desejo
impossível de ser realizado nesse mundo, a melhor
explicação que posso encontrar é que eu fui feito para um
outro mundo.

FREUD
Você trocou fatos por contos de fadas. Nossos desejos mais
profundos nunca são realizados, às vezes nem conseguimos
identificá-los. Em alemão chamamos isso de “Sehnsucht”; um
tipo de... ânsia. Por muitos anos eu a senti.

Costumava andar na natureza com meu pai quando era menino.


Ele segurava minha mão, mas eu sempre escapava correndo o
mais rápido que eu podia em direção às árvores.
22.

LEWIS
Porque?

FREUD
Talvez para ficar sozinho. Ou escapar do meu pai. Só sei
que o desejo era irresistível.

LEWIS
Eu chamo esse desejo de êxtase.

FREUD
“Êxtase”.

LEWIS
Não conheço palavra melhor. Senti a mesma coisa pela
primeira vez através de uma espécie de “natureza” também.

FREUD
Diga.

LEWIS
Ainda não tinha seis anos, meu irmão Warren tinha feito uma
caixinha de biscoitos que ele tinha decorado com folhas e
galhos, pedrinhas e flores. Uma floresta miniatura. Achei
aquilo a coisa mais linda do mundo, ainda acho. No momento
em que eu vi a caixinha, desejei aquilo como nunca havia
desejado nada antes.

FREUD
Viver num mini-Éden com um mini-Deus.

LEWIS
Deus nem passou pela minha cabeça.

FREUD
E esse “êxtase” é o equivalente ao desejo inerente por um
Criador.

LEWIS
Sim.
23.

FREUD
Você foi levado a Deus por uma caixinha de biscoitos.

LEWIS
Foi mais que isso. Eu fui o convertido mais relutante de
toda a Inglaterra. Nada me irritava mais do que receber
ordens. Essa era a mágica do ateísmo: eu poderia
simplesmente ficar só. O Deus da bíblia é um intrometido.

FREUD
Exatamente.

LEWIS
Então, quase por acaso, eu li um livro chamado “O homem
eterno”, de um autor chamado G.K. Chesterton. Já leu?

FREUD
Conheço o senhor Chesterton, ele também é um dos meus
críticos. Obviamente sua capacidade intelectual não é das
mais impressionantes.

LEWIS
Claro. Mas infelizmente eu estava no hospital durante a
guerra e esse era o livro que eu tinha à mão.

FREUD
Você lutou na guerra?

LEWIS
Sim. Infantaria leve de Somerset.

FREUD
Por que foi hospitalizado?

LEWIS
Nada muito sério.

FREUD
Jura? Não sabia que o Exército Britânico permitia que os
soldados tirassem férias.
24.

LEWIS
Comparado ao campo de batalha o hospital era mesmo como
tirar férias. Mas o livro de Chesterton não me dava essa
chance. Ele não só era um grande autor, mas seus argumentos
tinham uma lógica irritante.

FREUD
Lógica?

LEWIS
Ele inicia contando uma história: um garoto vive numa
fazenda e decide partir numa jornada em busca da sepultura
de um gigante. Ele escala uma montanha e, do alto, olha
para sua fazenda. O que ele vê à distância é o formato de
uma figura gigantesca justamente onde fica sua casa. O
jovem então descobre que ele vivia bem em cima do túmulo do
gigante, mas estava perto demais para perceber.

Chesterton diz que existem duas formas de conhecer o


Cristianismo: vivendo dentro dele ou se afastando o
suficiente para que possa vê-lo pelo o que de fato é.

FREUD
(dando os ombros)
O jovem e o gigante. Conto de fadas simplificado, como toda
teologia.

LEWIS
É uma metáfora; ponto de partida para construir argumentos
baseados em critérios históricos e racionais.

FREUD
Impossível. Deus não pode ter sua existência provada
historicamente.

LEWIS
Exatamente o que eu pensava. O que me fez esquecer o livro
de Chesterton por muito tempo.
25.

Até que duas conversas me fizeram voltar a ele: uma com


Tolkien, um devoto fervoroso, e outra com T.J. Weldon, um
ateu raivoso. Convidei Weldon--

(INSUDERCEDOR SOM DA SIRENE DE ATAQUE AÉREO. FREUD e


LEWIS se levantam sobressaltados.)

LEWIS
(gritando)
VOCÊ TEM UM PORÃO?!

FREUD
NÃO!

LEWIS
TEM ALGUM ABRIGO PERTO?

FREUD
A IGREJA TEM PORÃO!
(apontando para a janela)
OLHA! CONSEGUE VER? VÁ AGORA!

LEWIS
VEM COMIGO!

FREUD
EU NÃO CONSIGO IR TÃO LONGE!

LEWIS
EU TE AJUDO!

FREUD
NÃO! EU INSISTO! ANDA, VAI!

LEWIS
VOU FICAR! APAGUE AS LUZES!

(FREUD apaga a luz em sua mesa; LEWIS apaga uma outra


luz.)
26.

FREUD
RADIO! Podemos ouvir...

(FREUD liga o rádio, mas não dá pra ouvir nada com o


som da sirene por cima.

LEWIS vê sua grande maleta abaloada.)

LEWIS
MÁSCARAS DE GÁS! VOCÊ TEM UMA?

FREUD
AQUI!

(FREUD abre uma gaveta para pegar sua máscara enquanto


LEWIS tira a sua da maleta - é verde escura com um tubo
de filtragem estendido.

Enquanto ele coloca a máscara a SIRENE PÁRA.

O locutor da BBC pode ser ouvido a TODO VOLUME.)

LOCUTOR DA BBC
...mas nenhum ataque! A sirene de ataque aéreo que os
senhores acabaram de ouvir foi um alarme falso! Não há
qualquer informação sobre o que disparou a sirene. Eu
repito: encorajamos todos a ficarem em suas casas e--

(FREUD desliga o rádio e olha para LEWIS, que se deixa


cair na cadeira.)

FREUD
Você está bem?

LEWIS
Quando ouvi as sirenes eu me vi lá novamente. O cheiro dos
explosivos. Corpos ao meu redor destroçados, tentando se
mover como insetos esmagados. Bombas por todo lado. Meu
amigo explodindo na minha frente.
27.

Eu não cheguei a sentir os estilhaços. Só ele, pedaços dele


em mim, me atingindo no peito, no rosto.

FREUD
Qual foi a gravidade dos seus ferimentos?

LEWIS
Estilhaços de bala na aqui minha perna esquerda, pulso. Um
no meu peito. Ainda está aqui. Perto demais do meu coração
para que seja removido. “A guerra para dar fim a todas as
guerras”. Nunca vai existir algo assim.

FREUD
Um dia acho que sim. Foi louvável da sua parte decidir
ficar aqui comigo, mas prometa nunca mais se colocar em
perigo por minha causa.

LEWIS
Eu não tive tempo de pensar. Em tempos assim nós aprendemos
a reagir por instinto.

(FREUD pára diante da luz que ele apagou.)

FREUD
Como gritar para apagar a luz.

LEWIS
Como?

(Ele liga sua luz - não faz diferença alguma por conta
da luz que entra pela janela. Ele sinaliza para o
aposento como que mostrando que há luz natural
suficiente.)

FREUD
Apagar as luzes funciona melhor quando está escuro lá fora.

LEWIS
Sim. Talvez eu deveria ter gritado “Feche os olhos para que
os alemães não nos vejam!”.
28.

(FREUD olha para sua máscara.)

FREUD
As crianças da rua adoravam essas máscaras de gás. Trocavam
umas pelas outras, disputavam as mais coloridas. A filha do
vizinho a chama de “Mickey Mouse”.

LEWIS
Os meninos também adoram. O senhor já viu quando eles fazem
assim?

(LEWIS respira com força pela máscara de gás produzindo


um som engraçado.)

LEWIS
Eles competem entre si.

FREUD
Então eles idolatrariam o trabalho de Joseph Pujol.

LEWIS
Não conheço.

FREUD
Pujol se entitulava “Le Petomane”. Algo como “O grande
peidão”.

LEWIS
Você não está falando sério.

FREUD
Totalmente! Eu cheguei a vê-lo em Paris no Moulin Rouge.
Pujol soltava puns que emulavam tiros de canhão e
trovoadas. Tocava “O Sole Mio” por um tubo em seu ânus, e
chegava a fumar cigarros! Para a cena final, ele apagava
uma vela do outro lado do palco!

(LEWIS está rindo muito.)


29.

FREUD
Foi aplaudido de pé todas as vezes a não ser pelos que
desmaiavam de tanto rir.

LEWIS
Eu posso imaginar.

FREUD
E assim esquecemos.

LEWIS
O quê?

FREUD
A defesa do humor. Nossos cérebros rejeitam o horror, pois
ele nos imobiliza. Precisamos seguir em frente. Um
pensamento qualquer nos tira dele.

LEWIS
Sua teoria do alívio.

FREUD
Você conhece?

LEWIS
Li seu livro sobre humor. Nós ingleses levamos nosso senso
de humor muito a sério.

FREUD
Senso de humor ainda é uma língua estrangeira para mim.

LEWIS
Eu concordo.

(FREUD olha para LEWIS.)

LEWIS
Você formulou bons argumentos, claro. Mas seus exemplos de
humor...
30.

FREUD
Sim?

LEWIS
Eles são um tanto... cínicos. Exemplos estudados como quem
disseca sapos.

FREUD
Você está dizendo que a minha metodologia é ineficaz?

LEWIS
Não. Suas piadas. Elas não têm graça.

FREUD
Eu discordo. Escolhi exemplos clássicos!

LEWIS
Deixe me ver... Ah! “O sujeito está muito doente e acredita
que vai morrer. Chama seu único irmão e lhe mostra seu
único bem valioso: um relógio de ouro. Conta que o relógio
havia pertencido ao bisavô e foi passado de geração em
geração até chegar nele. Agora que estava morrendo, lembrou
do irmão e queria que ele o visse. O irmão pega o relógio e
admira sua beleza: “é lindo”, ele diz emocionado. “E quanto
você paga por ele?”, perguntou o irmão moribundo. Essa é a
piada.

(FREUD ri.)

FREUD
Um exemplo de ceticismo humorístico.

(LEWIS está sério.)

LEWIS
Tão engraçado quanto um tiro no pé.

FREUD
A graça é que parece que o irmão vai dar o relógio quando
na verdade ele quer vendê-lo!
31.

(Pausa, observa Lewis)


Acho que estou dissecando outro sapo.

(TELEFONE TOCA, FREUD atende.)

FREUD
Alô? Sim, Max... Quanto tempo de atraso?...
(olha para o relógio)
Não consegue chegar antes?... Bem severo, sim!... Bom,
então não tenho escolha, não é?! Lhe espero.
(desliga, vira-se para Lewis)
Meu médico vai se atrasar.
(levantando-se)
Vou fazer mais chá.

LEWIS
Não precisa, sinceramente.

FREUD
Sem chá? Para um inglês isso não é heresia?

LEWIS
É, podem me deportar. Mas não, obrigado. Acho que a sirene
tirou meu apetite.

FREUD
Você estava falando dos seus amigos, o devoto fervoroso e o
ateu raivoso.

LEWIS
Isso, Tolkien e Weldon. (Pausa) Weldon é um professor muito
respeitado. Também é o homem mais cínico e amargo que já
conheci.

FREUD
Gostei dele.
32.

LEWIS
Saímos para beber e eventualmente o assunto se tornou os
Evangelhos. Quase caí da cadeira quando ele disse que
fortes evidências apontavam para a autenticidade histórica
do Novo Testamento. “Acho que aquilo tudo aconteceu mesmo”,
ele disse.

FREUD
Quanto vocês beberam?

LEWIS
Não muito. Quando disse o quanto estava chocado em ouvi-lo
dizer uma coisa daquelas, ele chegou a ficar envergonhado,
quis ir embora. Depois não consegui tirar aquilo da minha
cabeça. Se o maior ateu de todos os tempos acreditava na
autenticidade dos Evangelhos, como eu poderia renegá-los?

FREUD
Você não pode estar falando sério. Os Evangelhos não são
literais, são mitos e lendas.

LEWIS
Mas isso faz com que sejam mentiras? Algumas semanas depois
Tolkien abriu meus olhos para uma nova perspectiva.

FREUD
Tolkien. O homem que escreve “fantasias”.

LEWIS
Isso. Depois do jantar saímos para caminhar um pouco pelo
campus, pegamos a trilha de Addison, um caminho repleto de
árvores e vegetação.
(pausa)
Ah... Vejo que estamos de volta à natureza.

FREUD
Acho que o divã lhe fez bem.
33.

LEWIS
(sorrindo)
Sim. Estávamos discutindo mitos. Eu disse a Tolkien que
gostava deles artisticamente falando, mas que para mim não
passavam de ficção, mentiras. Como o senhor mesmo disse.

Tolkien me interrompeu. Ele disse: “você está errado. Estão


longe de serem mentira. Mitos são a forma encontrada pelo
homem de expressar certas verdades que, de outra forma,
seriam impossíveis de serem ditas. São como fragmentos da
vida que Deus criou para nós.” Disse que eu deveria prestar
atenção a como eu reajo aos mitos.

E continuou: “quando lemos sobre Deuses que vêm à terra e


se sacrificam por nós, essas histórias nos movem - a não
ser quando lemos sobre isso na Bíblia... A história de
Cristo é o maior mito de todos os tempos.”

A mitologia pagã nasceu de Deus se expressando pelos


poetas. Mas o mito de Cristo é Deus se expressando por Ele
mesmo. A diferença é que Cristo de fato andou entre nós.
Sua morte transformou o mito em verdade e transformou as
vidas daqueles que acreditaram Nele.

“E é sua escolha”, ele me disse: “acreditar ou não”.

FREUD
E você gritou “Eu creio!” E os pássaros nas árvores
completaram: “Aleluia!”.

LEWIS
Não exatamente. Escolhi analisar as evidências. Naquela
noite voltei para casa e comecei a reler o Novo Testamento.
De forma crítica. E como um historiador literário, me
convenci de que os Evangelhos não são mitos. Não têm
“qualidade artística”. Do ponto de vista imaginativo são
confusos, não funcionam.
34.

A maior parte da vida de Jesus é totalmente deixada de


lado, e escritores construindo uma lenda não deixariam que
isso acontecesse.

FREUD
Então por conta de narrativa mal construída você se
convenceu da existência de Cristo?

LEWIS
Não tenho dúvida da existência de Cristo, mas gostaria de
saber mais sobre quem ele foi. O homem foi estudado por
seus contemporâneos, historiadores romanos e judeus. Até
H.G. Wells, cujo ceticismo só se comparava ao meu, admitiu:
“existiu um homem. Essa parte da história não poderia ter
sido inventada”.

FREUD
Que Cristo foi um homem que de fato existiu, não discuto. E
assim como Mohammed ou Buda, eles também se iludiram de que
eram mais importantes do que realmente eram.

LEWIS
Mas Cristo é diferente. Se você fosse até Buda e
perguntasse: “você é o filho de Brâmane?” ele lhe
responderia “você está no vale da ilusão?”. Ou se você
perguntasse a Mohammed: “você é o filho de Alá?” Ele diria
que você enlouqueceu e lhe cortaria a cabeça. Somente
Cristo afirmava ser o Messias. Também afirmava ter o poder
de perdoar pecados. Quão absurdo é isso?

FREUD
Estou convencido. Cristo era um lunático.

LEWIS
Foi o que pensei também.
35.

FREUD
É o mais provável. Como levá-lo a sério quando ele dizia
ser o filho de Deus? Teria que levar a sério também dezenas
de pacientes meus que pensavam que eram Cristo.

LEWIS
Senhor encontrou uma única pessoa cuja sanidade poderia ser
comprovada?

FREUD
(pausa)
Não.

LEWIS
Então vamos deixar de lado a possibilidade de que Cristo
era louco por um instante. A segunda alternativa era que
ele estava conscientemente enganando seus seguidores com
algum objetivo.

FREUD
Poder. Quando desafiado por seus seguidores, Ele fazia
truques de mágica miraculosos! Sua estratégia era um
sucesso.

LEWIS
Eu não chamaria de “sucesso” uma estratégia que terminava
com a própria crucificação.

FREUD
Se ele tivesse de fato morrido. Sua aparição para seus
discípulos após a crucificação pode ter sido planejada para
confundi-los.

LEWIS
E depois ele teria mudado de nome, pendurado as chuteiras
como carpinteiro e nunca mais teria sido reconhecido? Nem
por seus inimigos que desesperadamente queriam lhe
descreditar?
36.

FREUD
(pensativo)
É. Admito, é pouco provável.

LEWIS
Então se o homem não era um lunático ou um golpista, só
resta uma única alternativa...

Naquela tarde em que fui para o zoológico, aceitei que


Jesus Cristo era o filho de Deus.

FREUD
Independente dos seus “ensinamentos”.

LEWIS
Reduzi-lo a um grande professor seria desmerecê-lo.

FREUD
Não diria que Cristo foi um grande professor. Ele foi um
fracasso como professor e como divindade. Seus
“ensinamentos” são ingênuos e destrutivos.

LEWIS
Discordo completamente.

FREUD
Claro que você discorda! Sua fé entraria em colapso se você
concordasse!
(FREUD vai perdendo cada vez
mais a paciência)
Quais dos “ensinamentos” de Cristo são ao menos realistas?
“Ame seu próximo como a si mesmo?” É uma impossibilidade
imbecil! “Dê a outra face?”. A Polônia deveria “dar a outra
face” para Hitler? Deveriam amar o próximo enquanto tanques
alemãs destroem suas casas? Ou talvez devêssemos todos
seguir o exemplo de Cristo e nos martirizarmos, já que “os
mansos herdarão a terra”? Claro que vão herdar! Eles
estarão enterrados nela!
37.

(FREUD tira seu lenço. Sua fala torna-se mais pastosa,


sua dor óbvia)

FREUD (CONT’D)
Você acha que foi coincidência Jesus dizer que seus
seguidores devem ser como crianças para entrarem no reino
dos céus? É por que o homem nunca foi adulto o suficiente
para encarar a realidade que ele está sozinho no universo e
que a religião faz do mundo um grande berçário! Eu tenho
uma palavra pra você: “cresça!”.

(SILÊNCIO. FREUD tosse em seu lenço. Pausa.)

FREUD
Me perdoe. Meu humor acompanha meu estado físico.

(FREUD encara LEWIS, seu lenço manchado de sangue.)

LEWIS
Seu lábio está sangrando.

FREUD
É a prótese. Não encaixa direito, machuca minha boca. Anna
a chama de “O Monstro”. Preciso limpá-la e chamar Anna para
ajustá-la.

LEWIS
Talvez sua esposa chegue logo.

FREUD
Só Anna cuida da prótese.

LEWIS
Nem seus médicos?

FREUD
Principalmente os médicos! Depois de trinta cirurgias eu
aprendi. Me colocam num quarto do tamanho de um armário com
outro paciente. Um anão com hidrocefalia. Juro!
38.

Estou deitado com uma toalha ensopada de sangue embaixo do


meu queixo. Começo a engasgar. Tento chamar alguém, mas
minha boca estava cheia de sangue. Quase morri afogado.

Foi o anão que me salvou. Mesmo doente daquele jeito, ele


levantou de seu leito e correu atrás de uma enfermeira. Se
não tivesse sido ele, eu teria morrido. É hilário.

O intelectual que foi salvo pelo anão com dano cerebral.


Isso sim é uma piada. Tem melhor?

LEWIS
Talvez não. Mas se isso é uma piada, quem você acha que é o
autor?

FREUD
(pausa)
Eu não sei o que responder. Ponto para você.

(FREUD sai de cena. LEWIS vai até o rádio e o liga.)

LOCUTOR DA BBC
...certifique-se de que cada um dos seus familiares anotou
em um papel seu nome completo e seu endereço. Costure uma
etiqueta com essas informações nas vestimentas das crianças
se necessário. Continuaremos a trazer mais instruções e
notícias aos senhores assim que as tivermos. Voltamos agora
para nossa programação normal com a banda militar da BBC.

(MÚSICA começa. LEWIS observa as antigüidades na mesa


de Freud. Pega vários objetos, inspecionando-os.

Entra FREUD. Ele desliga música, senta em sua mesa e


pega o telefone, disca.)

FREUD
Londres, 2473, por favor.
39.

LEWIS
É uma coleção e tanto.

FREUD
Obrigado. A maioria das peças são gregas, romanas e
egípcias. Muitas delas com mais de dois mil anos de idade.
Essa aqui--
(ao telefone)
Sim? Maria, Anna começou sua aula? Que horas termina? Pode
dar a ela um recado?... Para que ela me ligue. Sim, sim.
Obrigado.

LEWIS
Sua filha dá aulas?

FREUD
Sim. Ela também trabalha com psicanálise infantil.

LEWIS
Um orgulho, com certeza.

FREUD
Sim. Ela é muito respeitada. Tinha medo de que ela, por
seguir meus passos, não conseguisse deixar sua marca. Mas
Anna conseguirá, tenho certeza. Ela é muito dedicada à
ciência.

LEWIS
E ao senhor, parece.

(FREUD sinaliza para sua coleção.)

FREUD
Me diga, qual dessas peças você gosta mais?

LEWIS
(pegando uma estátua)
Acho que essa.
40.

FREUD
Eros. Deus do amor. Você é um romântico.

LEWIS
E você? Buda, Zeus, Atena... Como você define um homem que
tem sua mesa de trabalho tomada por deuses e deusas?

FREUD
Um colecionador. Tenho essa mania, admito. Tenho outras
duas mil peças, a maioria em um depósito. Não consigo
viajar sem buscar novidades. Preciso sempre ter um objeto
novo para amar.

LEWIS
Objetos são mais seguros que pessoas.

FREUD
Verdade. E eu sempre preferi as mortas que as vivas. Mas se
pessoas lhe intrigam, você pode se interessar por elas.

(FREUD entrega a LEWIS uma urna com pedaços de pano


dentro.)

LEWIS
Bandagens?

FREUD
Sim. De uma múmia - ainda com manchas dos fluidos de
embalsamento. Os egípcios eram uma civilização
extraordinária.

LEWIS
Sabe o que significa esses grafismos?

FREUD
Segundo me disseram, são feitiços do Livro dos Mortos.
Protegem o morto na vida após a morte.
41.

LEWIS
Então essa “civilização extraordinária” acreditava numa
vida após a morte?

FREUD
Crença totalmente diferente da sua. A razão que levava os
egípcios a mumificarem seus governantes era pra preservar
seus corações, onde as recordações de suas vidas eram
guardadas.

LEWIS
A alma, o senhor pode dizer.

FREUD
Pode ser. Depois do enterro, eles são levados por Osiris,
Deus da morte, para a Grande Sala do Julgamento, onde seus
corações são pesados. Um coração puro não pesa quase nada,
tão leve quanto uma pena. Já o coração impuro é pesado por
conta das maldades cometidas. Se o julgamento for justo,
sua essência é elevada aos céus onde passa a conviver com
as estrelas.

LEWIS
Em outras palavras, o Paraíso.

FREUD
Nas suas palavras.

LEWIS
Acho interessante os egípcios preservarem o coração, ou a
alma, e não o cérebro. Não é verdade, doutor? Eles não
descartavam o cérebro?

FREUD
Você conhece os egípcios.

LEWIS
O que eu gostaria de saber é por que todas as peças em sua
mesa são sagrados.
42.

FREUD
Me diga você. Está querendo tomar o meu lugar como
psicanalista? Apenas me interesso por crenças antigas.
Inclusive a sua.

LEWIS
O conceito de Deus compartilhado. Certo ou errado, bem ou
mal. E a escolha entre eles.

FREUD
E se o bem for escolhido, então seu Deus o criou. E com
isso também criou o mal. Permitiu que Lúcifer vivesse,
crescesse, até que competisse com Ele, mesmo quando,
logicamente, deveria tê-lo destruído.

LEWIS
Deus deu a Lúcifer livre arbítrio. Que inclusive é a única
coisa que faz a bondade ser possível. Um mundo sem escolha
é um mundo de máquinas. É o homem, e não Deus, não Lúcifer,
quem criou as prisões, escravidão, bombas. O sofrimento
humano é culpa do próprio homem.

FREUD
Essa é a sua desculpa para a dor e o sofrimento? Então meu
câncer é minha culpa? Ou me matar é alguma vingança de
Deus?

LEWIS
Não sei.

FREUD
Você não sabe?

LEWIS
Eu não finjo saber. É a questão mais difícil de todas, não
é? Se Deus é bom, Ele deveria fazer suas criaturas felizes.
Mas não são. Então Deus deixa a desejar em bondade ou
poder. Ou em ambos.
43.

FREUD
Estamos progredindo.

LEWIS
Não posso explicar a razão da sua dor. Ainda assim não
consigo imaginar Deus a desejando. Talvez seja uma espécie
de ferramenta.

FREUD
Para quê?

LEWIS
Não pensamos em Deus quando estamos andando de carro em
alta velocidade, só quando enguiçamos nos trilhos do trem
que se aproxima. Se o prazer é Seu sussurro, a dor é o Seu
megafone.

FREUD
(levantando)
Então câncer é a voz de Deus. Se eu disser hoje que
acredito Nele, meu tumor desaparecerá.

LEWIS
Claro que não--

FREUD
Não. Porque os hospitais estão cheios de crentes e Deus não
dá a eles vantagem alguma.

LEWIS
E se Deus quer nos melhorar através do sofrimento? Para que
possamos dar valor à real felicidade, não esses instantes
de alegria, mas felicidade eterna, que viria apenas através
Dele...

FREUD
Evoluímos a partir de quê? Ancestrais bárbaros que matavam
pelo que queriam? Você ouviu pelo rádio. Nada mudou! Nós
carregamos auto-destruição dentro de nós!
44.

LEWIS
Por isso Cristo morreu por nós.

FREUD
O “Pecado Original”?

LEWIS
Sim.

FREUD
Que arrogância! Que homens comuns revoltariam um Deus por
comer uma maçã? Que Deus recompensaria a humanidade ao
entregar seu próprio filho para ser sacrificado? Um
assassinato que redimiria todos os outros?

LEWIS
Redimiu.

FREUD
Tenho certeza que Hitler, aquele coroinha freqüentador de
missas dominicais concorda com você. Mas eu não posso.
(Está com dor e com pouca
paciência)
Falamos em línguas diferentes. Você acredita em Revelação.
Eu acredito em ciência, a ditadura da razão. Não existe
como chegarmos a um consenso.

LEWIS
Existe também a ditadura do orgulho. Constrói barreiras que
tornam consenso impossível! Por que é que a religião abre
espaço para a ciência, mas a ciência se recusa a dar espaço
à religião?

FREUD
A cela de Galileu era espaçosa quando ele disse pro Papa
que o sol não girava em torno da terra?
45.

LEWIS
A estupidez dos líderes religiosos é um alvo fácil demais.
Mas veja nossos cientistas: nenhum deles chega a uma
conclusão sobre o que causou a extinção dos dinossauros,
mas isso não é motivo para que eu os odeie. Então por que é
tão difícil aceitar que os teólogos não têm a resposta para
tudo?

FREUD
Porque eles se escondem atrás de sua ignorância! Não dá pra
entender. Nós somos pequenos, Deus é todo poderoso!

Minha filha Sophie morreu da gripe espanhola com vinte e


sete anos. Uma mãe, esposa, arrancada de sua família! Então
esse era o plano de Deus? Meu neto Heinele morreu de
tuberculose quando tinha só cinco anos! Cinco! Que plano
brilhante esse de Deus, assassiná-lo! Quem me dera um
câncer atingisse meu cérebro! Aí, talvez, eu pudesse
alucinar que pudesse haver um Deus e, aí sim, buscar
vingança.

LEWIS
(pausa)
Em que estágio está seu câncer?

FREUD
Já tomou parte do meu rosto. É inoperável, uma questão de
tempo.

LEWIS
Quanto tempo?

FREUD
Eu decido. Dr. Schur e eu temos um pacto. Ele me prometeu,
logo no início, que não vai me deixar na mão no fim.
46.

LEWIS
(pausa)
Está me dizendo que vai cometer suicídio?

FREUD
Estou dizendo que vou me matar antes que câncer me mate.
Não me olhe assim. Você não precisa me dizer que o suicídio
é errado, um pecado.

LEWIS
O maior.

FREUD
Então olhe dentro da minha boca e veja que o inferno já
chegou pra mim.

LEWIS
(pausa)
Você ja falou com a sua esposa sobre isso?

FREUD
Não há razão para isso. Minha esposa compartilha com você
suas superstições.
(FREUD abre uma caixa e tira um charuto.)
Charuto?

LEWIS
Não, obrigado. O fumo não faz mal à sua boca?

FREUD
Claro. Mas estou disposto a aproveitar o único prazer
sexual que restou. Já dei adeus aos estágios fálico e anal.
Me resta o oral.

LEWIS
(olhando para o relógio)
Magnífico.
47.

FREUD
O quê?

LEWIS
Que estamos conversando há tanto tempo e só agora chegamos
a mencionar algo relacionado ao sexo.

FREUD
Sua definição é muito estreita. Eu aplico o termo “sexual”
a todas as interações que trazem sentimentos de prazer.
Contato genital, um bebê sugando leite do seio materno, uma
menina de quatro anos sentada no colo do pai. Sexualidade é
a fonte de toda alegria.

LEWIS
Existe mais alegria que isso. Sexo é a apenas um de muitos
prazeres criados por Deus, mas não é o que dura mais.

FREUD
Magnífico.
(olha para o relógio)
Estamos falando de sexo a menos de um minuto e você já
trouxe Deus para a conversa. Ainda assim, apesar da batalha
constante com a propaganda religiosa, fizemos um grande
progresso superando nossas repressões.

LEWIS
Progresso? Sexo até agora não sendo mencionado e tenho
certeza que começaremos a falar dele incessantemente.

FREUD
É o apetite mais poderoso.

LEWIS
Mas é ridículo a proporção que tomou levando em
consideração sua função. Compare ao apetite pela comida.
Uma platéia num striptease paga para ver uma mulher tirando
a roupa.
48.

Mas pagariam para ver um prato de cordeiro num palco? Não


acha que estariam levando a comida um pouco a sério demais?

FREUD
Mas sexo é mais complicado que a fome.

LEWIS
Pelo contrário! Nós é que banalizamos o ato, como se fazer
sexo em qualquer circunstância fosse normal e saudável.

FREUD
Então você é a autoridade sobre o que é “normal” e
“saudável”?

LEWIS
Existe um código sexual no Antigo e no Novo Testamento.
Sexo é o ato que deve ser compartilhado por duas pessoas
comprometidas uma com a outra.

FREUD
Ah, a Bíblia! Por um momento achei que você estava pensando
por você mesmo! A Bíblia é o pesadelo da sexualidade. Dá
pra selecionar certos textos e aterrorizar sua congregação.
“Nada de sexo antes do casamento”. Não é só ingênuo, é pura
crueldade! É como mandar um jovem conduzir um concerto
diante de uma orquestra quando a única vez que ele tocou
seu instrumento foi sozinho no quarto!

LEWIS
Então você pratica o amor livre?

FREUD
Claro que não! Sou um homem casado!

LEWIS
Isso é hipocrisia!
49.

FREUD
De jeito algum! Filosoficamente falando, eu advogo pela
liberdade de escolha sexual. Pessoalmente eu escolho não
fazer uso dessa liberdade.

LEWIS
E quando você era mais jovem? Antes de se casar?

FREUD
Eu conheci Martha muito cedo. Nos apaixonamos perdidamente.

LEWIS
E você permaneceu monogâmico esse tempo todo.

(FREUD encara LEWIS.)

FREUD
Você é casado?

LEWIS
Não.

FREUD
Você vive com alguém? Uma mulher? Ou um homem?

LEWIS
Como é?

FREUD
Homossexualidade te ofende? Não deveria. Todos seres
humanos são intrinsecamente bissexuais.

LEWIS
Eu vivo com meu irmão e com a mãe de um grande amigo que
morreu na guerra.

FREUD
Porquê?
50.

LEWIS
Prometi ao meu amigo que cuidaria dela e ele faria o mesmo
pelo meu pai caso eu não sobrevivesse à guerra.

(PAUSA. FREUD observa. LEWIS está desconfortável.)

LEWIS (CONT’D)
Senhora Moore e eu tomamos conta um do outro, na verdade.

FREUD
Mas seu irmão; ele não teria tomado conta do seu pai?

LEWIS
Meu irmão também estava na guerra. Não sabíamos o que o
futuro nos reservava.

FREUD
Pelo que entendi, reservava a senhora Moore. Há quanto
tempo você está nesse relacionamento?

LEWIS
Não chamaria de relacionamento.

FREUD
Qualquer laço entre duas pessoas é um relacionamento.

LEWIS
Quando estava no hospital na França, a senhora Moore cuidou
de mim. Ela me ajudou muito.

FREUD
Qual era a idade dela?

LEWIS
Senhora Moore tinha quarenta e poucos anos.

FREUD
A “senhora Moore” tem um primeiro nome?
51.

LEWIS
Janie.

FREUD
Janie. E você achou Janie atraente quando a conheceu?

LEWIS
Ela era mãe do meu amigo!

FREUD
O que talvez a tenha tornado ainda mais atraente.

LEWIS
Vou ignorar sua insinuação, e minha vida particular não é
da sua conta.

FREUD
Nossa conversa é da minha conta. Você viveu com ela quando
era ateu. Muitos homens quando perdem suas mães
precocemente são levados a desejar mulheres maduras. Agora,
você continua com ela e proclama abstinência sexual. Então
gostaria de saber se a sua conversão causou essa recente
virgindade.

LEWIS
Esse assunto acaba aqui.

FREUD
Como quiser. Mas eu sempre considero o que as pessoas me
contam menos importante do que o que elas não me contam.

(TELEFONE TOCA. FREUD atende.)

FREUD
(ao telefone)
Alô? Sim Anna, sim! Vou ligar agora mesmo, mas você deve
vir pra casa imediatamente! Está cortando meu maxilar...
Cancele! Preciso de você aqui! Bom, bom...

(FREUD desliga o telefone.)


52.

(LEWIS pega uma fotografia na mesa de Freud.)

LEWIS
Então essa é Anna?

FREUD
Sim.

LEWIS
É casada?

FREUD
Não.

LEWIS
Que surpresa. Ela é bem-sucedida, atraente... Entre seus
colegas e os dela tenho certeza que não faltam
pretendentes.

FREUD
Escolher o parceiro ideal não é fácil para nós.

LEWIS
Você quer dizer para Anna escolher.

FREUD
Claro.

LEWIS
E ela está saindo com alguém? Homem? Mulher? Ou os dois, já
que somos intrinsecamente bissexuais.

FREUD
Com as aulas e o consultório não lhe sobra tempo.

LEWIS
A não ser para o senhor. Que sorte, hein... Considerando
que ela é a única pessoa que você permite que toque em sua
boca.
53.

FREUD
Ela é uma profissional.

LEWIS
Médica.

FREUD
Não. Eu lhe disse que ela faz parte da Sociedade
Psicanalítica.

LEWIS
Pensei que os membros tinham que ser médicos.

FREUD
Existem exceções. Anna apresentou um trabalho que foi muito
bem recebido.

LEWIS
Tenho certeza que sim. Qual era o assunto do trabalho?

FREUD
(pausa)
Fantasias sadomasoquistas.

LEWIS
Baseado em tratamentos com pacientes?

FREUD
Baseado em sua própria análise.

LEWIS
Quem era seu analista?

FREUD
Eu.
(pausa)
Mais alguma pergunta?
54.

LEWIS
Ah, sim. Mas não vou fazê-las. Só queria lhe lembrar uma
observação feita pelo senhor antes: o que as pessoas contam
é menos importante do que o que elas não contam.

(FREUD não diz nada, liga o rádio.)

LOCUTOR DA BBC
...com a destruição de toda a frota aérea polonesa. Vítimas
militares e civis já estão estimadas em mais de vinte mil,
número este que certamente aumentará nas próximas horas.

Rei George falará à nação do Palácio de Buckingham em


poucos minutos. Até lá, retornaremos com nosso programa
musical.

(Música clássica começa. FREUD desliga o rádio.)

LEWIS
(impressionado
Vinte e mil mortos em dois dias. É quase impossível de
acreditar.

FREUD
Sim.

LEWIS
E ainda assim você quer morrer.

FREUD
Para mim, a morte só pode ser um alívio.

LEWIS
Mas e a sua família? A doença já é terrível para eles. O
suicídio, duas facadas... Você está deixando para eles uma
dor sem fim.
55.

FREUD
Então eles deviam ver o suicídio como misericórdia, pois já
decidi.
(se levantando)
Eu não tenho força para sermões. Até sua Bíblia não julga.
Saul preferiu sua espada ao invés de permitir que seus
inimigos o matassem.

LEWIS
E Judas se matou depois de trair Cristo. Dois atos
covardes. Deus dá vida e só Deus pode tirá-la.

FREUD
Meus pais me deram vida, e essa vida é minha, não deles.

LEWIS
Aquino acredita que--

FREUD
Não me interessa o que Aquino acredita! Aquino condena o
suicídio, mas prega a pena de morte! Como alguém com a sua
inteligência pode ver o mundo em preto e branco quando
existem milhares de cores ao seu redor?

LEWIS
O senhor já contou a Anna?

FREUD
Que estou morrendo? Claro que ela sabe.

LEWIS
Que o senhor está planejando se matar?

FREUD
Por que eu faria isso? Só aumentaria sua dor!

LEWIS
Então o senhor a está protegendo? Ou o senhor tem medo que
ela pense que seria errado? Tente lhe fazer mudar de ideia?
56.

FREUD
Você é bem persistente. É a característica mais marcante
nos convertidos e nos ex-alcoólatras.

(FREUD liga o rádio: MÚSICA pode ser ouvida. Ele


desliga o rádio.)

LEWIS
O senhor faz isso sempre.

FREUD
O quê?

LEWIS
Desliga a música. Fez isso todas as vezes.

FREUD
Estou esperando as notícias.

LEWIS
Então por que não deixa o rádio ligado? Abaixe o volume.

FREUD
Você gosta de música.

LEWIS
Sim, muito.

FREUD
Música de igreja, com certeza.

LEWIS
Na verdade odeio.

FREUD
Sério?
57.

LEWIS
É como mergulhar barras de chocolate em açúcar. Muito
enjoativo. Fora isso adoro ouvir qualquer tipo de música.
Você não?

FREUD
Arte tem um efeito devastador em mim, mas música é um
mistério. Algo dentro de mim se rebela quando começo a me
envolver. É como se estivessem falando comigo numa língua
estrangeira e me pedissem para concordar com algum
argumento que sequer entendi.

LEWIS
A atração pela música acontece por seu apelo às emoções,
não pelo cérebro.

FREUD
Eu sei.

LEWIS
Mas você está dizendo que se não pode analisar seus
sentimentos intelectualmente, eles não existem para você.
Você se recusa a simplesmente se emocionar.

FREUD
Eu me recuso a ser manipulado. Pra mim é tudo música de
igreja.

LEWIS
Me oponho à música de igreja porque simplifica emoções que
eu já sinto. Eu acho que você tem medo de sentir qualquer
emoção.

(PAUSA. FREUD se ofende.)

FREUD
É esse o seu diagnóstico? Doutor?
58.

LEWIS
Não todo. Eu também penso que o senhor é terrivelmente
egoísta, colocando sua própria dor acima da dor daqueles
que te amam. O senhor mente para si mesmo, pensando que
pode controlar a morte como o senhor controla o mundo e sua
filha. O senhor acha que pode fazer desaparecer seus medos
se escondendo atrás de sua mesa de deuses mortos, mas a
verdade é que o senhor está morrendo de medo.

FREUD
Você não sabe nada.

LEWIS
Eu sei que quando aquela sirene tocou, o senhor não se
comportou como um homem que poderia “apreciar” seu momento
final. O senhor correu para sua máscara de gás.

FREUD
Assim como você! No que você acreditava naquele momento? Em
Deus ou na morte? Sua fé desapareceu tão rápido quanto seu
precioso “êxtase”, porque por debaixo disso tudo, de todas
as mentiras, você sabe que Ele não existe.

(FREUD pega seu lenço, enxuga seu lábio.)

LEWIS
E onde está o seu “êxtase”? Você já o sentiu? Já o
encontrou em alguém, alguma coisa, em sua vida toda?

FREUD
Encontrei a verdade que você não consegue encarar! Que o
fim é o fim! Você enterra suas dúvidas assim como você
enterra as lembranças da guerra, porque no fundo você não
passa de um covarde!

(FREUD começa a tossir muito. Levanta-se. Afasta o


lenço da boca - está coberto de sangue.

LEWIS vai ao seu encontro.)


59.

LEWIS
Sente-se! Vou chamar uma ambulância!

FREUD
(falando com dificuldade)
NÂO! Nada de hospitais! Toalhas! No banheiro!

(FREUD gesticula para a entrada do aposento. LEWIS


corre até lá.

FREUD tenta puxar a prótese, mas a dor é insuportável.


Ele pára, engasga. Tenta de novo, mas começa a sufocar.

LEWIS chega com as toalhas.

O sufocamento de FREUD vai se tornando mais e mais


violento.

FREUD
Rápido! RÁPIDO!

(FREUD ABRE SUA BOCA, LEWIS coloca a mão dentro, FREUD


GRITA de dor.

LEWIS se afasta. FREUD pega sua mão e o puxa para


perto.)

FREUD
TIRE! TIRE!

(LEWIS torna a enfiar a mão na boca de FREUD, tentando


agarrar a prótese enquanto FREUD tenta respirar.

LEWIS puxa mais de uma vez, sofrimento de FREUD.

Finalmente LEWIS arranca a prótese.

LEWIS dá uma toalha a FREUD.)

FREUD
Água.
60.

(LEWIS vai até a mesa, enche um copo de água e leva até


FREUD

FREUD lava a prótese, recoloca.)

LEWIS
O senhor gostaria de se deitar?

FREUD
(fraco)
O Monstro. Quase. Venceu.

LEWIS
Quer alguma coisa para dor?

FREUD
A mesa. Pílulas. Gaveta de cima.

(LEWIS vai até a mesa, acha um pote com pílulas.)

LEWIS
Aspirina? Nada mais forte?

(FREUD toma o pote de aspirinas de LEWIS; LEWIS dá a


ele um copo com a água que restou.)

FREUD
Tenho que pensar claramente.

(FREUD engole a aspirina e se recosta. AMBOS estão


perturbados.)

FREUD
Por favor, vá embora.

LEWIS
Claro que não. Vou ficar até que alguém chegue.

FREUD
Não--
61.

(FREUD tosse. Ele pega uma toalha, pões em sua boca.)

LEWIS
Não fale.

FREUD
Você...
(tosse)
...adoraria isso.

(SOM de AVIÕES à distância. Ambos podem ouvir. O som


vai CRESCENDO conforme vão se aproximando. FREUD e
LEWIS olham para cima, apreensivos.

FREUD
(pausa)
Ataque aéreo?

(SOM de AVIÕES ainda mais forte.

LEWIS vai até a janela, olha para o céu.

LEWIS
(aliviado)
Aviões de transporte. Nossos.

(FREUD aliviado. Silêncio.)

LEWIS
Admito. Estava com medo.

FREUD
Sim. Eu também.

LEWIS
O que eu estava pensando? É loucura achar que vamos
resolver o maior mistério de todos os tempos em uma manhã.
62.

FREUD
Só poderia haver uma loucura maior: ignorar o assunto por
completo.

(TELEFONE TOCA. LEWIS se levanta para atender.)

FREUD
Não, não. Eu consigo.

(FREUD se levanta. LEWIS o ajuda. Ele caminha com


dificuldade até o telefone.

FREUD
Alô?
(pausa)
Sim? Maria. Ah, obrigado.

(FREUD desliga.)

FREUD
Anna está chegando. Vou lhe chamar um táxi.

LEWIS
Prefiro andar até a estação.
(olhando o relógio)
Tem um trem para Oxford em uma hora.

FREUD
Lhe acompanho até a porta.

LEWIS
Não precisa.

(FREUD torna a se sentar.)

LEWIS
Me desculpe se lhe decepcionei.

FREUD
Não, a ofensa foi minha.
63.

LEWIS
Eu não disse “ofensa”, disse “decepção”.
(pausa)
Minha ideia de Deus; ela vive mudando. Ele a destrói de
tempos em tempos. Ainda assim acredito que o mundo é tomado
por Ele. Está em toda parte. Incógnito. E seu incógnito é
tão difícil de compreender. A verdadeira luta é continuar
tentando. Acordar e se manter acordado.

FREUD
Um de nós é um bobo. Se você estiver certo, você poderá me
dizer. Mas se eu estiver certo, nenhum de nós jamais
saberá. A morte é tão injusta quanto a vida.

Adeus, professor. Nós nos encontraremos novamente, talvez.

(LEWIS aperta sua mão.)

LEWIS
Fique com Deus.

FREUD
Espere. Lembra da piada no meu livro sobre o Pastor e o
ateu vendedor de seguros?

LEWIS
Não.

FREUD
O vendedor de seguro de vida estava à beira da morte. Pediu
aos familiares que chamassem um pastor para vê-lo naqueles
últimos momentos. Surpresa geral, porque o vendedor de
seguros era extremamente ateu. A família prontamente
atendeu ao último pedido do vendedor e levou um pastor até
sua casa. Os dois passaram o dia todo conversando, depois
uma noite inteira. Finalmente, o pastor deixou a casa do
ateu, que havia morrido. A família perguntou ao pastor se
ele havia se convertido.
64.

“Não”, ele disse, “mas me convenceu a fazer um seguro de


vida completo. Isso sim é paz de espírito”

LEWIS
Essa é boa. Se pelo menos esse tipo de coisa existisse.

FREUD
Humor?

LEWIS
Paz de espírito.

(LEWIS sai.

FREUD vai tornar a se sentar, mas antes liga o rádio. A


voz do REI GEORGE pode ser ouvida.)

REI GEORGE
Podem haver dias negros diante de nós e a guerra não será
confiada apenas ao campo de batalha. Mas só podemos fazer o
certo como o compreendemos, e de forma reverente
comprometer nossa causa a Deus.

Se todos nós tivermos fé, prontos para qualquer serviço ou


sacrifício necessário, então Deus nos ajudará a prevalecer.
Que Deus nos abençoe.

(FREUD suspira.)

LOCUTOR DA BBC
Esse foi o pronunciamento do Rei George o sexto diretamente
do Palácio de Buckingham. Agora voltamos com a orquestra
musical da BBC.

(FREUD encara para o rádio, que toca a música “Ballet


of the Wood Creatures”, de Percy Whitlock. Parece
tentar decifrar a canção. PENUMBRA.)

FIM DA PEÇA.

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