Você está na página 1de 87

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (PPGL)

A escrita como bordado: diálogos entre literatura e artes visuais através do testemunho

Orientanda: Jordana Aparecida Alvaro Braz

Orientadora: Profa. Dra. Paloma Vidal

Fevereiro de 2023
JORDANA APARECIDA ALVARO BRAZ

A ESCRITA COMO BORDADO: DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA E ARTES


VISUAIS ATRAVÉS DO TESTEMUNHO

Dissertação apresentada à Universidade


Federal de São Paulo como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Estudos
Literários .

Orientador(a): Paloma Vidal

GUARULHOS

2023

2
Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos autorais nº
9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório Institucional da
UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer ressarcimento dos
direitos autorais para leitura, impressão e/ou download em meio eletrônico para fins de
divulgação intelectual, desde que citada a fonte.

3
JORDANA APARECIDA ALVARO BRAZ

A ESCRITA COMO BORDADO: diálogos entre literatura e artes visuais através do


testemunho

Dissertação apresentada à Universidade


Federal de São Paulo como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Estudos
Literários.

Orientador(a): Paloma Vidal

Aprovado em: 28 de fevereiro de 2023

Profa. Dra. Paloma Vidal

Universidade Federal de São Paulo

Profa. Dra. Ana Claudia Romano Ribeiro

Universidade Federal de São Paulo

Profa. Dra. Isabel Carneiro

Universidade Estadual do Rio de Janeiro

4
Dedico este trabalho aos meus ancestrais, em
especial à minha mãe Maria Aparecida Alvaro
Braz (in memoriam) e minha avó Maria Júlia
Vilela Alvaro (in memoriam)

5
Agradecimentos

Em primeiro lugar, quero agradecer à minha mãe, Maria Aparecida Alvaro Braz, por
todo o amor e apoio ao longo dos anos em que esteve fisicamente ao meu lado. Sua morte
repentina, durante o processo de pesquisa e escrita do mestrado, foi devastadora em todos os
âmbitos da minha vida. Porém, sei que nós estamos conectadas e nossas vidas continuam.
Esta pesquisa é dedicada integralmente à ela.

Quero agradecer à minha orientadora Profa. Dra. Paloma Vidal por acolher minha
pesquisa e por toda a compreensão desde sempre. Agradeço também à Prof. Dra. Ana Claudia
Romano por todo o incentivo desde a graduação. Tenho agradecimentos especiais para
mulheres pesquisadoras e inspiradoras Ana Paula Simioni Cavalcanti e Thais Craveiro pelo
apoio dedicado à minha pesquisa. O suporte que vocês ofereceram para meu projeto ser
submetido ao programa de pós-graduação foi crucial para a escrita desta dissertação.

Durante o processo de pesquisa, três profissionais foram essenciais para o andamento


da escrita e quero deixar minha gratidão à Profa. Simone Ricco, Blenda Souto Maior e
Natame Diniz pela generosidade e cuidado comigo e com a minha pesquisa.

Desejo exprimir também os meus agradecimentos a todos aqueles que, de alguma


forma, me apoiaram e torceram para que esta tese se concretizasse.

6
1. RESUMO

O intuito desta dissertação é a investigação das possíveis relações entre o bordado e a


literatura. No início do mestrado, o objeto de pesquisa inicial eram os aspectos testemunhais
da série Ça va Aller, produção em bordado e fotografia da artista marfinense Joana Choumali.
Com o andamento da pesquisa, a percepção das relações entre o bordado e a literatura
ampliou e promoveu diálogos com outras produções artísticas, como a série Bastidores
(1997), da artista brasileira Rosana Paulino, e tecidos manchados da artista mexicana Teresa
Margolles. O diálogo com a literatura é inserida na pesquisa a partir da relação entre os
bordados do coletivo Savane Rutongo-Kabuye, produzidos pós-genocídio de Ruanda (1994),
e o livro Baratas de autoria da escritora ruandense Scholastique Mukasonga. Os argumentos
teóricos evocados na pesquisa partem de conceitos sobre corpo-memória e oralitura, termos
cunhados por Leda Maria Martins. Em relação ao testemunho e sua relação com a memória e
linguagens artísticas, como a fotografia, a perspectiva do crítico brasileiro Márcio
Seligmann-Silva é de suma importância. Além disso, a relação do bordado, vestígio e
testemunha serão tratados através de análises da professora Aleida Assman e da teórica
Jeanne-Marie Gagnebin.

Palavras-chave: bordado; literatura; artes visuais; corpo; trauma.

7
RÉSUMÉ

Le but de cette thèse est d'étudier les relations possibles entre la broderie et la littérature. Au
début du master, l'objet de recherches initiales était les aspects testimoniaux de la série Ça va
aller, réalisation en broderie et photographie de l'artiste ivoirienne Joana Choumali. Au fur et
à mesure que la recherche avançait, la perception de la relation entre broderie et littérature
s'est élargie et a favorisé des dialogues avec d'autres produits artistiques, comme la série
Bastidores (1997), de l'artiste brésilienne Rosana Paulino, et les tissus tachés de l'artiste
mexicaine Teresa Margolles. Le dialogue avec la littérature s'insère dans la recherche à partir
du rapport entre la broderie du collectif Savanee Rutongo - Kabuye, réalisé après le génocide
rwandais (1994), et le livre Cafards de l'écrivaine rwandaise Scholastique Mukasonga. Les
arguments théoriques évoqués dans la recherche sont utilisés des concepts de mémoire
corporelle et d'oraliture, termes inventés par Leda Maria Martins. En ce qui concerne le
témoignage et sa relation avec la mémoire et les langages artistiques, comme la photographie,
le point de vue du critique brésilien Márcio Seligmann-Silva est d'une importance
primordiale. De plus, la relation entre broderie, vestige et témoin sera abordée à travers les
analyses de la professeure Aleida Assman et de la théoricienne Jeanne-Marie Gagnebin.

Mots-clés: broderie; littérature; arts visuels; corps; traumatisme.

8
Lista de ilustrações

Figura 1 - Imagem da Costura Memória…………………………………………….. ……...13

Figura 2 - Imagem da Colcha “Quem tem medo de Tia Jemina?” de Faith Ringgold ..……. 14

Figura 3 - print do instagram de uma postagem feita com minha mãe iniciando um trabalho
em crochê…………………………………………………………………………………….16

Figura 4 - Fotografia de minha avó Maria Julia Vilela Alvaro com sua avó Maria Júlia
(sentada no centro da fotografia), sua mãe Maria da Conceição (de vestido azul e listras
brancas à direita) e suas irmãs. circa 1980………………………………………………….. 17

Figura 5 - imagem do bordado de João Cândido Amôr [Love], c. 1910……………….….. 20

Figura 6 - Manto de apresentação (verso), sem data ……………………………………….. 21


Figura 7 - Ofícios e artesãos africanos, 1969……………………………………………….. 23

Figura 8 - Colcha Bíblica, 1886 ……………………………………………………………...24

Figura 9 - Imagem da montagem da exposição Transbordar no SESC Pinheiros..…………..25

Figura 10 - Imagem das Bordadeiras do Imbassaí em ação..……………………………….. 27

Figura 11 - Resultado dos trabalhos das bordadeiras do Imbassaí…………………………...28

Figura 12 - Imagem das Bordadeiras do Coletivo tear&poesia ....…………………………. .29

Figura 13 - Segurando o Sol pela Mão, 1984-2004…………………………………………..33

Figura 14 - Bordado “Os nazis chegam-foto 7” de Esther Nisenthal Krinitz, 1993 …..……..35

Figura 15 - “Bastidores” de Rosana Paulino………………………………………………... 36

Figura 16 - Tecidos Manchados de Teresa Margolles………………………………………. 37

Figura 17 - - Frame da Videoperformance “Marca Registrada” de Letícia Parente, 1975 .... 39

Figura 18 - - Foto da exposição “Anna Maria Maiolino PSSSIIIUUU…” no Instituto Tomie


Ohtake, 2022. ……………………………………………………………………………….. 40

9
Figura 19 - Alighiero Boetti, Mappa (Mapa), 1971–72 ……………………………………. 41

Figura 20 - Tapete com temática de guerra, como tanques, em designs traadicionais….…...42

Figura 21 - “Tapete de Guerra”29 sobre o atentado de 11 de setembro de 2001, 2003-2004..43

Figura 22 - Imagem da série Ça va aller, 2016...................................................................... 52

Figura 23 - Imagem da série Ça va aller, 2018 ...…………………………………………...53

Figura 24 - Imagem da série Ça va aller, 2017 ...……………………………………………54

Figura 25 - Fotografia feitas por iPhone, impressas em tela de algodão…………………….55

Figura 26- Imagem da instalação Ruanda, Ruanda de Alfredo Jaar, 1994 ...……………….59

Figura 27 - detalhe da instalação “Real Projects” de Alfredo Jaar …………………………60

Figura 28 - Imagem do mural Hommes debout de Bruce Clarke, 2021 ….………………….61

Figura 29 -- Imagem do bordado de Savage Rutongo - Kabuye, s/d ..……………………….65

Figura 30 - Bordado do Savane Rutongo - Kabuye, 2020 …………………………………...66

Figura 31 - Bordado do Savane Rutongo - Kabuye, sem títudo, s/d ………………………..67

Figura 32 - Bordado do grupo The Kaross Embroiders, s/d.………………………………. .68

Figura 33 - Mapula Embroidery Project, Parliament [sic], 1990s ..........................................69

10
SUMÁRIO

Introdução …..........................................................................................................................12

Capítulo I - Percurso do bordado e da escrita: poéticas da memória que perpassam o


corpo e o ornamento

1.1 Uma breve história do bordado…………………………………………………………19

1.2 O gesto como performance do bordado e da escrita: o corpo como elo diaspórico…….30

1.3 Materialidades e bordado como suporte textuais de violências e trauma………………32

Capítulo II: Experiências no corpo pela escrita e pelo bordado ………………………..45

2.1 O testemunho mudo em Ça va aller de Joana Choumali………………………………..46

2.1.1 Fotografia e o bordado: diálogos sobre testemunho …………………………………. 48

2.1.2 Análise das imagens da série Ça va aller …………………………………………………..51

2.2 Diálogos entre literatura e o bordado pelo testemunho do Genocídio Tutsi…………… 56

2.2.1 O genocídio em Ruanda testemunhado por outras linguagens artísticas……………… 56

2.3 Quando coletivos de bordadeiras reconstroem as memórias sobre Ruanda……………. 63

2.4 Os diálogos estabelecidos pela literatura e bordado………………….…………………. 70

Conclusões finais …………………………………………………………………………….73

Referências Bibliográficas…………………………………………………………………... 74

Apêndice A…………………………………………………………………………………...78

Apêndice B…………………………………………………………………………………...79

Apêndice C…………………………………………………………………………………...80

Apêndice D…………………………………………………………………………………...81

Apêndice E…………………………………………………………………………………...82

Apêndice F…………………………………………………………………………………...83

11
Apêndice G…………………………………………………………………………………..84

Apêndice H...…………………………………………………………………………………85

INTRODUÇÃO

O interesse em pesquisar as relações do bordado e a escrita de narrativas insurgentes


foi nutrido por uma extensa pesquisa sobre artistas afro-diaspóricas, com o recorte em
mulheres artistas nas artes têxteis e na fotografia. Em 2018, a exposição Histórias
Afro-Atlânticas1, aconteceu no MASP e no Instituto Tomie Ohtake, instituição que atuei como
educadora de fevereiro de 2017 a janeiro de 2023. Como estudo para realizar as visitas
mediadas na exposição, os trabalhos das artistas norte-americanas Faith Ringgold e Nona
Faustine, artista têxtil e fotógrafa respectivamente, me instigaram a continuar a pesquisa e
desdobrou-se em uma oficina chamada “As Mulheres Negras em imagens e narrativas
Afro-Atlânticas”.
A atividade ocorreu nos meses de agosto e setembro de 2018 e foi dividida em duas
aulas teóricas e uma prática desenvolvida no Instituto Tomie Ohtake, no período de exibição
da exposição. A parte prática foi uma atividade de bordado coletivo, apresentado na Figura 1,
em que as pessoas participantes bordavam mensagens para mulheres anônimas que tiveram
suas narrativas pessoais engolidas pela história cotidiana.
Entre os anos de 2018 e 2020, a oficina foi aplicada em outras instituições, como a
Livraria Africanidades, localizada na zona norte de São Paulo, e o Sesc Santos. O repertório
sobre artes têxteis, bordado e o recorte racial gerou o convite para auxiliar a Professora
Doutora Ana Paula Simioni na exposição Transbordar: Transgressões do Bordado na Arte,
realizada no Sesc Pinheiros em 2020 e 2021.

1
A exposição coletiva ocorreu simultaneamente no Instituto Tomie Ohtake e no MASP. Com curadoria de Lilia
Schwarcz, Ayrson Heráclito e Hélio Menezes, curadores convidados e Tomás Toledo, curador assistente. A
mostra contou com cerca de 400 obras de mais de 200 artistas, tanto do acervo do MASP, quanto de coleções
brasileiras e internacionais, incluindo desenhos, pinturas, esculturas, filmes, vídeos, instalações e fotografias,
além de documentos e publicações, de arte africana, européia, latino e norte-americana, caribenha, entre outras.

12
Figura 2 - imagem da Costura Memória, 2018

Fonte: autoria própria

O trabalho artístico que iniciou minha pesquisa sobre a relação das técnicas têxteis
com o texto é a colcha “Quem tem medo de Tia Jemima2?” da artista norte-americana Faith
Ringgold. A obra, apresentada na Figura 2, é uma colcha narrativa de acrílico, feita em 1983,
e marca os estágios iniciais da mudança do artista da pintura a óleo para o acolchoado. A
história narrada na colcha tem como personagem a tia Jemima, que representa estereótipos
raciais nos E.U.A. A narrativa de Ringgold coloca a tia Jemima como uma mulher

2
Tradução própria para “Who's Afraid of Aunt Jemima?”

13
emancipada e dona de um restaurante, diferente do estereótipo que a coloca como uma
mulher subjugada e servil.

Figura 2 - Colcha “Quem tem medo de Tia Jemina?” de Faith Ringgold

Fonte: © 2023 Faith Ringgold.3

3
Disponível em: <https://www.faithringgold.com/portfolio/whos-afraid-of-aunt-jemima/> Acesso em 10 de
janeiro de 2023.

14
A obra de Faith Ringgold iniciou minhas pesquisas em artes visuais com bordado e
texto. A partir dela, eu pude perceber que a técnica do bordado é uma linguagem artística que
pode ser apropriada para o registro de escritas por e para grupos historicamente
subalternizados. Como a técnica não exige uma alfabetização prévia ou domínio da norma
culta para tecer, o meu interesse em investigar o bordado como suporte para a escrita de
narrativas pessoais motivou esta pesquisa. Assim como a oralidade, o bordado também pode
carregar narrativas e podem transmitir memória de grupos minoritários na
contemporaneidade.
O percurso deste estudo possui como cenário principal a exposição Histórias
Afro-Atlânticas, a obra de Faith Ringgold, mas elas não são a gênesis da pesquisa. O trabalho
com arte educação e propor essas oficinas foram veículos usados para retomar as práticas
manuais das mulheres na minha linhagem materna. Minha mãe, Maria Aparecida Alvaro Braz
(1959-2022) sempre me contou histórias sobre sua mãe, minha avó, Maria Júlia Vilela Alvaro
(1931-1996), e a costura.
Minha avó Maria Júlia era analfabeta e não dominar a língua escrita foi algo que não a
impossibilitou de ser uma mulher empreendedora. Assim como muitas mulheres negras ao
longo da história, a costura foi a principal fonte de renda de minha avó e que dividia as contas
de casa com meu avô materno, Sebastião Claudino Alvaro. Minha avó faleceu meses antes de
eu completar 10 anos e minhas memórias em relação à ela também envolvem a costura, seja
pelas roupas que ela fazia para os netos, passando pelas bonecas de pano feitas para mim e até
um presente que eu ganhei dela na infância: uma máquina de costura infantil, presente
oriundo de uma de suas inúmeras viagens ao Paraguai.
Durante as pesquisas para as oficinas que ministrei, eu tive acesso ao ensaio “Em
busca dos jardins de nossas mães” da escritora norte-americana Alice Walker. No texto, a
escritora reflete sobre quais seriam os sonhos de nossas ancestrais e quais seriam seus
subterfúgios para concretizá-los. A leitura desse ensaio me conectou com as histórias e
minhas memórias sobre minha avó Maria Júlia.
Minha mãe contava várias histórias que ela aprendeu com minha avó, além de versos
e poemas criados por minha avó e que eram declamados por ela oralmente. Com isso, eu me
perguntei “Será que através das costuras, minha avó codificava suas histórias?” ou
influenciada pelas colchas da artista Faith Ringgold, eu me questionei “Será que na
padronagem das colchas de retalhos, minha avó registrava seus pensamentos como uma
escrita?”.

15
Atualmente, eu não tenho nenhuma colcha feita pela minha avó, fico imaginando
como era seu processo de costura e não consigo mensurar. Mas algo eu sei sobre as costuras
de minha avó: ela é o ponto de partida para esta pesquisa e suas habilidades manuais são
saberes que foram passados para três de suas filhas. A única que além de costurar, sabia fazer
crochê e tricô era a minha mãe e, infelizmente, eu nunca aprendi. Esses saberes morreram
com a minha mãe.

Figura 3 - print do instagram de uma postagem feita com minha mãe iniciando um
trabalho em crochê.

fonte: Arquivo pessoal

16
Figura 4 - Fotografia de minha avó Maria Julia Vilela Alvaro com sua avó Maria Júlia
(sentada no centro da fotografia), sua mãe Maria da Conceição (de vestido azul e listras
brancas à direita) e suas irmãs, circa 1980.

Foto: Pedro Miguel Alvaro.

Para além de meu histórico familiar, em que as linhas e agulhas de costura foram
instrumentos de trabalho, saberes e possibilidades de para inscrição de memórias, a série Ça
va Aller, produção em bordado e fotografia de Joana Choumali (1974-), artista e fotógrafa
marfinesa instigou minha percepção nas possíveis semelhanças entre o bordado e a escrita.
Essa série direcionou minha pesquisa para a investigação da possibilidade de testemunho
pelas narrativas bordadas.
A série teve início em março de 2016, 15 dias após o ataque terrorista ocorrido em
Grand Bassam, balneário localizado na Costa do Marfim. Ao longo de 2021, esta pesquisa
estendeu-se para uma investigação de como a técnica do bordado comporta-se enquanto

17
escrita em diferentes suportes, cingindo relações entre memória, narrativas testemunhais e o
trauma.
Seguindo esses fios, no capítulo I desta pesquisa, que apresentamos a seguir, o caráter
histórico do bordado e sua relação com a escrita e narrativas testemunhais de violência serão
introduzidos. Pelo aspecto de serem obras produzidas em contextos traumáticos e terem um
recorte racial evidente, o corpo como lugar de memória e saberes é um aspecto importante
para entendermos os motivos para a realização desses trabalhos.
Ainda no capítulo I, apresento artistas que utilizam o bordado como escrita de
violências em diferentes materialidades também são apresentados. A percepção das relações
entre o bordado e a escrita ampliou e promoveu diálogos com outras produções artísticas
feitas pelas artistas Maria Lai, Esther Nisenthal Krinitz, Rosana Paulino, Teresa Margolles,
Letícia Parente e Anna Maria Maiolino.
O capítulo II é dedicado à análise dos objetos de pesquisas. Como mencionado
anteriormente, a série Ça va aller de Joana Choumali é contextualizada em paralelo à escrita
literária de testemunho a partir do episódio do Genocídio Tutsi, ocorrido em 1994, através do
livro Baratas de Scholastique Mukasonga (1966). Em diálogo com o testemunho de
Mukasonga, a produção em bordado do Rutongo Kabuie, grupo de mulheres ruandesas que
começaram a bordar após o genocídio, é analisado como uma possibilidade de testemunho
através de uma linguagem e materialidade distinta da escrita feita por palavras e papel.
Encerramos este capítulo comparando os objetos de pesquisas apresentados, a partir
dos dois primeiros. Além disso, apresento possibilidades de diálogo entre a escrita e o
bordado pelo espaço do literário, através dos termos escrevivência e encruzilhadas nos
objetos de pesquisas. Como complemento à pesquisa, apresento, como apêndice, uma oficina
de bordado para graduandos em letras. A aplicação dessa oficina foi importante para colocar
em prática os atravessamentos que a pesquisa elucida pela escrita.

18
Capítulo I - Percurso do bordado e da escrita: poéticas da memória que perpassam o
corpo e o ornamento

1.1 Uma breve história do bordado

Por séculos, o bordado foi considerado um ornamento meramente superficial, tratado


como enfeite em peças domésticas, como panos de prato e toalhas. O superficial, tratado
como capricho e delicadeza, geralmente associado ao universo da feminilidade. No entanto, o
bordado tem sido apropriado e ressignificado mundialmente desde a década de 1970 por
incorporar discursos politizados e denunciando violências sociais, muitos bordados possuem
frases de ordem e textos escritos em primeira pessoa. Como linguagem artística, a técnica do
bordado é apropriada e utilizada por grupos historicamente oprimidos, sendo ainda ligado ao
universo da domesticidade que, muitas vezes, a mulher ainda é colocada na sociedade. A
seguir, será contextualizado caminhos em que o bordado está vinculado às narrativas
autobiográficas e de testemunho.
O bordado sempre esteve ligado ao ornamento e aos têxteis domésticos, classificado
por séculos como uma arte menor. A técnica do bordado, através de seus pontos e formas, são
muitas vezes saberes familiares transmitidos por gerações e geralmente pela figura matriarcal.
No artigo “Transbordar: transgressões do bordado nas artes”, a pesquisadora Ana Paula
Simioni apresenta a perspectiva da história do bordado associado ao universo feminino e a
domesticidade:

O bordado é visto como um caso exemplar: arte feminina por excelência, é


adequado a esse sexo por sua graça, encanto, domesticidade e, poderíamos
dizer, “textilidade”. A percepção social de que os objetos realizados em
tecidos eram, “por sua natureza”, frutos de atividades de mulheres e
apropriados aos recintos domésticos era por demais difundida e arraigada, a

19
ponto de penetrar inadvertidamente, e por isso mesmo com força, as crenças e
práticas em vigor nos campos artísticos. Assim, as artes têxteis, mesmo em
inícios do século XX, ainda encontravam-se indissociavelmente ligadas aos
estigmas do amadorismo, do artesanato e da domesticidade. (SIMIONI,
2010, p.8)

Os ornamentos tradicionais feitos pelo bordado são temas florais, porém, possuem
bordados que carregam narrativas religiosas. Mas há a relação do bordado como um receptor
de narrativas pessoais, principalmente das mulheres bordadeiras. O texto Bordado e costura
do texto da escritora argentina Tamara Kamenszain insere a relação do bordado com a escrita,
a partir da perspectiva da visibilidade de subjetividades silenciadas pela vida doméstica:

Esta possibilidade feminina de espiar nas costuras para ver as construções


pelo avesso abre à mulher, em sua relação com a escrita, o caminho da
vanguarda. Vanguarda velha e nova na qual os textos deixam o leitor jogar
com a artificialidade da feitura. E é na milenar escola das tarefas domésticas
onde se aprendem as regras dessa modernidade. Velho como o mundo,
somente o trabalho inútil e calado pode conseguir enlaces novos.
(KAMENSZAIN, 2000, p.5)

O bordado como receptor de narrativas pessoais é associado ao universo feminino,


mas também a um contexto em que a sensibilidade humana está envolvida, como amor ou
tristeza. A produção dos bordados de João Cândido (1880-1969), líder da Revolta da Chibata,
é uma parte silenciada em sua biografia. Os bordados do marinheiro foram feitos no período
de sua prisão, em 1911.

Figura 5 - imagem do bordado de João Cândido João Cândido. Amôr [Love], c. 1910.

20
Fonte: Museu Municipal Tomé Portes del Rei, São João del Rei, MG4

O artigo “Os bordados de João Cândido”, escrito por José Murilo de Carvalho, aponta
que duas peças bordadas pelo marinheiro foram entregues ao carcereiro Antônio Guerra. Em
entrevista concedida para o autor do artigo, o ex-carcereiro afirma que:

Os bordados teriam, então, sido feitos após a morte dos companheiros e antes
da remoção para o hospital. Devem ter servido como uma espécie de
autoterapia instintiva para fugir dos fantasmas que o perseguiam.
Traumatizado pelas mortes, sentindo-se injustiçado pela traição do governo e
fragilizado pela situação de preso incomunicável, João Cândido encontrou
nos bordados a forma para extravasar seus sentimentos. Daí seu valor único
como documento revelador do lado humano do marinheiro. (CARVALHO,
1995, p.73)

Ao mencionar João Cândido e seus bordados, não posso deixar de trazer a importância
dos bordados realizados por Arthur Bispo do Rosário. O artista nasceu em Japaratuba, cidade
que abrigou um dos quilombos mais importantes de Sergipe, do qual se originou o povoado
hoje denominado Patioba. A cidade é conhecida por suas festas religiosas e por sua cultura
tradicional vinculada ao artesanato.

4
Disponível em: <http://34.bienal.org.br/enunciados/9058> Acesso em 9 de dezembro de 2020.

21
Figura 6 - Manto de apresentação (verso), sem data

Fonte: Reprodução/Site Museu Bispo do Rosário

Arthur Bispo do Rosário cresceu em meio a todas essas referências e migrou em 1925
para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como grumete 5da Marinha, lavador de bondes da
companhia Light e boxeador. Bispo do Rosário teve seu primeiro surto psicótico em 1938,
onde descrevia seu desígnio divino: ele seria mensageiro de Deus no Juízo Final. Esse seria o
motivo para fazer um inventário poético do mundo. No texto “Arthur Bispo do Rosário e seu
universo representativo6” de Fabiana Morttosa Faria,

Inserida em um outro contexto (na obra de arte), a palavra passa a ter outro
significado, agora faz parte dos elementos pictóricos e escultóricos. Não
necessita ser lida como freqüentemente é para ter significado, o simples fato
de estar exposta nesse contexto dá a ela uma nova condição de existência. A
linguagem artística utilizada por Bispo é também uma forma de fazer signos·,
uma arte de nomear e, depois por uma reduplicação, ao mesmo tempo
demonstrativa e decorativa, de captar nomes, um signo segundo sua figura,
segundo sua nova função dentro do contexto.
5
https://issuu.com/sescsp/docs/transbordar_educativo_cort

6
Disponível em: http://www.urutagua.uem.br/005/12his_faria.htm

22
Embora esta pesquisa tenha como mote a relação do bordado e a escrita produzida
por mulheres, é importante ressaltar a presença de homens pretos nas técnicas têxteis e suas
origens no continente africano. No reino Abomay, localizado no Benim, os emblemas
históricos dos reinados de Daomé, do grupo étnico Fon, são feitos por homens. O reino
terminou sob a ocupação francesa por volta de 1900.

Figura 7 - Ofícios e artesãos africanos, 1969

Fonte: René Gardi

Algo importante sobre a confecção dos apliqués é que eram feitos por homens e o
saber eram passados de pais para filhos. As representações são sempre referências diretas aos
feitos heróicos específicos e como essas histórias foram contadas repetidas vezes. No texto
“A Arte Apliqué do Benim” de Renato Araújo de Silva, o autor elucida que o uso do apliqué
transcende o ornamento pois:

A tradição do uso de códigos visuais para fins de comunicação existiu de


forma paralela ao modelo de comunicação das tradições orais. Ambos

23
encontram sua efetividade na comunicação e, portanto, sua função prática
ultrapassa a ornamentação e se define numa gama muito mais ampla que
passa pela área educativa, historiográfica, identitária e social

Os códigos visuais inscritos por bordado e utilizados para comunicação também são
encontrados na produção da artista afro-americana Harriet Powers. A artista, que nasceu na
condição de escravizada, bordava passagens bíblicas e eventos astronômicos com a finalidade
de inscrever o que escutava. A artista era alfabetizada, porém, a escolha para narrar foram os
códigos visuais utilizando o aplique, semelhante aos utilizados pelos bordadeiros do Benin.

Figura 8 - “Colcha Bíblica” de Harriet Powers, 1886

Fonte: Photo of Harriet Powers' 1886 bible quilt by Rhonda Leigh Willers of the University of Wisconsin - River
Falls and obtained from African-American Artists7

7
Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Harriet_Powers#/media/Ficheiro:PowersBibleQuilt_1886.jpg>
Acesso em 15 de janeiro de 2023.

24
Segundo o Wikipédia, a Colcha Bíblica, apresentada na Figura 7, foi feita em 1886,
mede 88 x 73, e o material usado foi tecido de algodão. A narrativa apresentada é organizada
em três fileiras preenchidas por 11 painéis ou quadrados. Os painéis retratam histórias da
Bíblia, como Jacó e sua escada, retratadas no espiritual "Estamos subindo a escada de Jacó ".
Esse relato do Antigo Testamento era popular entre os escravos, pois eles se relacionavam
com o caçado e sem-teto Jacó e a escada, que eles interpretavam como uma fuga da
escravidão.

Outros assuntos são Adão e Eva, Eva e seu filho em uma continuação do Paraíso,
Satanás entre as sete estrelas, Caim matando Abel, Caim indo para a Terra de Nod por uma
esposa, Jó, Jonas e a Baleia, o Batismo de Cristo, a Crucificação ,Judas Iscariotes e as trinta
moedas de prata, a Última Ceia, a Sagrada Família e a ascensão de Cristo ao Céu. Powers,
uma mulher escravizada de segunda ou terceira geração, pode ter escolhido essas histórias
como mensagens codificadas de perda e fuga.

25
Figura 9 - Imagem da montagem da exposição Transbordar no SESC Pinheiros, em novembro
de 2020, com Arpilleras cedidas pelo Museo de la Memoria y Derechos Humanos, Chile.

Fonte: autoria própria

A técnica têxtil como inscrição de comunicação, e com narrativa de denúncia,


destaca-se na década de 1970, através dos trabalhos das Arpilleras chilenas. Em Santiago,
capital do Chile, a técnica têxtil arpillera8 foi utilizada por mulheres como resistência durante
o período ditatorial. Em 1974 aconteceu a primeira oficina de Arpilleras patrocinada pela
Vicaría de la Solidaridad, uma organização vinculada à Igreja católica chilena.
As Arpilleras feitas nas oficinas eram enviadas para o exterior como forma de
denúncia contra a violência vivenciada em seu país. As peças costumavam conter um bolso
pequeno que muitas vezes levavam bilhetes com mensagens contextualizando os abusos do
regime ditatorial de Pinochet (1973-1990). Além do ativismo político, as Arpilleras eram a
fonte de renda para as mulheres que faziam o trabalho.

8
A arpillera (serapilheira em português) é uma técnica têxtil que utiliza retalhos e sobras de tecidos bordados
sobre sacos de batatas ou de farinhas.

26
Em algumas obras das Arpilleras, o uso da palavra é presente, o que confere à técnica
do bordado como um mediador entre a escrita e a oralidade. Em sua dissertação de mestrado,
intitulada “Memórias bordadas nos cotidianos e nos currículos”, a autora Claudia Chagas
afirma que:

Os bordados escritos ficam, no entanto, a meio caminho entre a escrita e a


expressão oral, já que usando letras para se expressar que são escritas primeiro
e depois bordadas por cima, em geral, têm a ver com modos de expressão e
‘maneiras de dizer’, comumente, relacionadas à oralidade. (CHAGAS, 2007,
p.26)

O exemplo das Arpilleras, como coletivos de mulheres bordadeiras que tem como
fonte de renda os bordados, é encontrado em diversas partes do mundo. No Brasil, as
bordadeiras do Imbassaí9 produziram a exposição Memórias Bordadas, em parceria com o
MAM -BA. Para a realização das obras, o processo criativo ocorreu em três partes.
Na primeira parte, o grupo foi mobilizado a resgatar a sua história em memória e
incentivado a utilizar as obras do acervo do MAM-BA como inspiração, como apresentada na
Figura 9 e 10. Na segunda parte, o grupo visitou o museu e pode conhecer as obras do artista
Rubem Valentim, que também foi inspiração para os bordados. E no terceiro momento, as
memórias afetivas de cada bordadeira foram resgatadas, buscando revelar através da agulha e
da linha sentimentos interiores expressos em cada ponto.
Com o projeto, buscou-se uma valorização das origens das bordadeiras, das
referências da cultura baiana e, consequentemente, da cultura afro-brasileira. A importância
da exposição das Bordadeiras do Imbassaí é a relação que a instituição desenvolveu com o
grupo, possibilitando a inserção de suas produções no circuito de arte e utilizando das
memórias dessas mulheres a base para o processo criativo.

Figura 10 - Bordadeira do Imbassaí em ação

https://g1.globo.com/bahia/noticia/2016/12/exposicao-no-mam-ba-mostra-trabalho-das-bordadeiras-de-imbassai.
html

27
Fotos por Jones Araújo10

Figura 11 - Resultado dos trabalhos das bordadeiras do Imbassaí

10
Disponível em: <http://bembahia.com/bordadeiras/> Acesso em 8 de janeiro de 2023.

28
Fonte: Fotos por Jones Araújo11

Outro grupo no Brasil que atua com trabalhos coletivos de bordadeiras, memória e
ancestralidade africana e indigena é a Coletiva tear&poesia de Arte Têxtil- Petra Nativa.
Localizado na periferia de São Paulo, os encontros trabalhavam as memórias pessoais das
mulheres participantes do coletivo. A produção do coletivo gerou o livro “Pangeia – Entre
Elos – Palavra de Mulher”. A produtora cultural e coordenadora do Coletiva tear&poesia,12
Rita Maria Santa Rita Carneiro, menciona que a técnica do bordado tem origem africana, mas
é possível encontrar técnicas em povos originários da América.

"O bordado tem origem profunda na África e era feito, inclusive por homens,
e a gente nota essa característica na produção dos bordados. Temos exemplos
como em Pernambuco com os maracatus; no Maranhão com a cultura do boi,
em que os participantes assim como o boi tem suas vestes tecidas e bordadas
fantasticamente, e os povos indígenas nativos de Abya Yala na américa".

11
Disponível em: <http://bembahia.com/bordadeiras/> Acesso em 8 de janeiro de 2023.
12
Trecho retirado da entrevista
https://desenrolaenaomenrola.com.br/territorios-criativos/tear-poesia-registra-memoria-ancestral-de-mulheres-ne
gras-e-indigenas-na-arte-de-bordar-nas-periferias

29
Figura 12 - Bordadeiras do Coletivo tear&poesia

Fonte: Coletiva Tear&Prosa 13

O foco do coletivo é dialogar com a mulher em diáspora, tanto imigrantes africanas


quanto latino-americanas e caribenhas, buscando identificar semelhanças entre culturas
originárias das Américas e da África. A publicação conta com fotografias inéditas que
registram a arte de bordar desenvolvida por um grupo de oito mulheres das periferias de
diferentes gerações e nasce a partir de diversas pesquisas realizadas pelos integrantes da
tear&poesia, tendo como prioridade as questões das mulheres pretas, indígenas, africanas e
seus descendentes.

1.2 O gesto como performance do bordado e da escrita: o corpo como elo


diaspórico

Os exemplos apresentados, em especial com a Coletiva tear&poesia, aproxima a


técnica têxtil com saberes trazidos pela diáspora africana. Além disso, bordar representa
13
Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/10/coletivo-de-mulheres-organiza-oficinas-gratuitas-online-de-i
ourba-e-guarani.shtml> Acesso em 5 de janeiro de 2023.

30
gestos com saberes em que o inserir da linha, os movimentos da agulha na superfície bordada
para inscrever os pontos são conhecimentos aprendidos e ensinados. Existe nos movimentos
do bordado uma memória da metodologia da técnica têxtil. Assim como na escrita, no
processo de alfabetização, bordar requer os primeiros passos até o corpo adaptar o uso dos
instrumentos para a grafia.

A ação do bordado é um saber manual transferido de uma pessoa para a outra e que o
corpo traduz com a ação do gesto. Um corpo que ensina carrega em si saberes que foram
transmitidos por outro corpo que carregava o saber de outra pessoa. Quando uma pessoa
exerce a técnica do bordado ou da escrita, seu corpo exerce um gesto mecânico mas
contaminado por memórias. O professor Wanderson Flor do Nascimento escreve na
publicação Insumos para a Memória Negra sobre a relação do corpo com o saber e memória:

Memória é corpo, memória atravessa corpo. Memória reverbera no corpo,


reverbera na palavra, porque a palavra é corpo, isso é muito importante, de
modo que o corpo aparece como corpo-território, corpo-palavra,
corpo-potência, sempre. A palavra que habita esses corpos têm que responder
seja, de alguma maneira, acolhendo ou recusando as marcas que foram
trazidas pelo racismo ou pelo patriarcado, indiferente a isso não tem jeito de
estar. Para a nossa história, não existe memória sem corpo. (p.101)

Enquanto mediador para as práticas de transmissão de saberes vinculada à diáspora


africana, o corpo e suas linguagens possuem epistemes. Um exemplo advindo da oralidade
são os cantos de plantação. A corporalidade como espaço de saber, memória e criação foi
abordado pelo sociólogo Paul Gilroy ao comentar sobre a musicalidade negra. Empresto sua
reflexão sobre a música, no capítulo “Jóias trazidas da servidão: Música Negra e a Política da
Autenticidade” do livro O Atlântico Negro, sobre as expressões corporais:

A expressão corporal distintiva das populações pós-escravas foi resultado


dessas brutais condições históricas. Embora mais usualmente cultivada pela
análise dos esportes, do atletismo e da dança, ela deveria contribuir
diretamente para o entendimento das tradições de performance que continuam
a caracterizar a produção e a recepção da música da diáspora. Essa orientação
para a dinâmica específica da performance possui um significado mais amplo
na análise das formas culturais negras do que até agora se supôs. Sua força é
evidente quando comparada com abordagens da cultura negra que têm sido
baseada exclusivamente na textualidade e na narrativa e não na dramaturgia,
na enunciação e no gestual - os ingredientes pré e antidiscursivos da
metacomunicação negra. (GILROY, 2017, p.162)

Em contanto com a citação de Gilroy, a importância do corpo como lugar de saber é


abordado pela teórica brasileira Leda Maria Martins. No livro A performance do tempo
espiralar: poéticas do corpo-tela, a escritora afirma que:

31
Se considerarmos que os africanos, em sua maioria, vinham de sociedades que
não tinham a letra manuscrita ou impressa como meio primordial de inscrição
e disseminação de seus múltiplos saberes, podemos afirmar que toda uma
plêiade de conhecimentos, dos mais concretos aos mais abstratos, foi
restituída e repassada por outras vias que não as figuradas pela escritura,
dentre elas as inscrições oral e corporal, grafias performar pelo corpo e pela
voz na dinâmica do movimento. O que no corpo e na voz se repete é também
um episteme. (MARTINS, 2021, p. 22-23)

Os diálogos estabelecidos pelas citações de Gilroy e Martins provocam a observação


do bordado como uma linguagem artística que além de ser uma técnica têxtil e visual,
insere-se na performance. O gesto de quem está bordando, a repetição dos pontos que
perfuram a materialidade do suporte, o vai e vem também das agulhas são consideradas
epistemes transmitidas e uma performance. Adoto o conceito de performance, definido por
Leda Maria Martins (2021) como:

O termo performance é inclusivo e abriga uma ampla gama de ações e de


eventos que requerem a presença viva do sujeito para a sua realização e ou
fruição, funcionando como atos de transferência, pois em certo plano “as
performances funcionam como atos vitais de transferência, transmitindo saber
social, memória e sentido de identidade através de ações reiteradas.
(MARTINS, 2021, p.39)

Entre as possibilidades de performance, Leda Maria Martins conceitualiza a Oralitura,


termo que encontra com as possibilidades de olhar para obras desenvolvidas pela técnica do
bordado. Nele, Martins desfaz a dicotomia entre a escrita e a oralidade, possibilitando a
ampliação do que pode ser considerado e as formas de inscrição de uma grafia.

Oralitura designa a complexa textura das performances orais e corporais, seu


funcionamento, os processos, procedimentos, meios e sistemas de inscrição
dos saberes fundados e fundantes de epistemes corporais, destacando neles o
trânsito da memória, da história, das cosmovisões que pelas corporeidades se
processam. E alude também à grafia desses saberes, como inscrições
performáticas e rasura da dicotomia entre a oralidade e a escrita. [...] mas uma
variedade imensa de formulações e convenções que instalam, fixam, revisam
e se disseminam por inúmeros meios de cognição de natureza performática,
grafando, pelo corpo imantado por sonoridades, vocalidades, gestos,
coreografias, adereços, desenhos e grafites, traços e cores, saberes e sabores,
valores de várias ordens e magnitudes, o logos e as gnoses afroinspirados,
assim como diversas possibilidades de rasura dos protocolos e sistemas de
fixação excludentes e discricionários. (MARTINS, 2021, p.41-42)

O corpo no bordado está no gesto e como performance, entra na categoria da oralitura


como um rito. A escolha da materialidade, a preparação para bordar pode parecer ações

32
corriqueiras, mas demanda um tempo dedicado para aquela ação. Para acontecer o gesto,
existe um rito que o precede e é decisivo para a feitura da obra. No artigo “O verbo e o gesto:
corporeidade e performance nas folias de reis” de Gilmar Rocha, o gesto aparece como
resultado de uma estrutura complexa, mas que é diminuído como um “mero”movimento.

Os gestos, então, são expressões comportamentais de grande significação; são


veículos de ideias, valores e práticas; do ponto de vista mítico, são atos
simbólicos de fundação. Com efeito, antes de se ver no gesto apenas um
movimento, o resultado de uma mecânica ou uma simples ação, sua
verdadeira natureza reside na qualidade de estabelecer relações, de promover
a sociabilidade, enfim, de produzir sentido. (ROCHA, 2016, p.548)

Por essa concepção, o corpo é o condutor para que os saberes, experiências e memória
sejam inscritos tanto pelo bordado quanto pela escrita. Nos trabalhos em específico com o
bordado, o tecido é o suporte mais utilizado para a criação de obras bordadas. Porém, existem
diversas materialidades escolhidas como suporte para essas narrativas vivenciadas pelo corpo
e que precisam ser inscritas. A seguir, será apresentado uma série de obras com bordados em
que a materialidade do trabalho também reforçam a complexidade das narrativas bordadas e
como contextualizam o discurso.

1.3 Materialidades e bordado como suporte textuais de violências e trauma

Para esta pesquisa, um dos primeiros trabalhos que ampliaram as possibilidades de


investigação de suportes textuais para o bordado foi o trabalho da artista italiana Maria Lai
(1919-2013), essencial para expandir as relações do texto por uma técnica têxtil. Nascida em
Ulassai, comuna na Sardenha, a artista buscou em sua produção uma relação entre suas
relações familiares e a história da região em que nasceu, seja através de tornar gráfico a
cultura sardenha das fábulas, mitos e lendas. Uma das fábulas tecidas mais conhecidas de
Maria Lai é “Segurando o sol pela mão”, de 1980.

Figura 13 - Segurando o Sol pela Mão, 1984-2004

33
Fonte: Crédito da foto Francesco Casu | Cortesia Maria Lai Archive © Maria Lai Archive by SIAE 2019.14

Em português, não há um registro sobre a narrativa da fábula, mas em um vídeo15


educativo sobre a fábula, descreve como “Segurando o sol pela mão quer contar as multidões
de personagens que compõem o ego de cada ser humano. Para Maria Lai, o estranho é a parte
mais obscura e complexa da alma do homem, extremamente difícil de entender, impossível de
ignorar e ao mesmo tempo capaz de milagres, se deixando livre para existir. O homem
caminha em direção ao sol, símbolo de alegria e serenidade, mas sua jornada é muitas vezes
obscurecida pela inquietação e incerteza. A longa jornada a ser percorrida na vida deve
necessariamente levar a uma mistura de céu e terra, entre preto e branco, entre pólos opostos
que deixam espaço para o homem encontrar sua completude. As imagens sobrevoam o livro,
realçando sua elegância formal e detalhes, enquanto a voz do artista narrador emerge entre a
música e os sons.”16

14
Disponível em:<https://www.maxxi.art/events/tenendo-per-mano-il-sole/> Acesso em 3 de julho de 2022.
15
https://www.youtube.com/watch?v=QrW6uUuqgQY
16
Tradução livre para o texto que acompanha o vídeo: Tenendo per mano il sole vuole raccontare le moltitudini
di caratteri che compongono l’io di ciascun essere umano. Per Maria Lai, l’alieno è la parte più oscura e
complessa nell’animo dell’uomo, estremamente difficile da comprendere, impossibile da ignorare e capace al
contempo dimiracoli, se lasciato libero di esistere. L’uomo cammina verso il sole, emblema di gioia e serenità,
ma spesso il suo viaggio si annuvola di inquietudini e incertezze. Il lungo percorso da compiere nella vita deve
necessariamente portare a una commistione tra cielo e terra, tra bianco e nero, tra poli opposti che lascino
all’uomo spazio per trovare la sua completezza. Le immagini sorvolano il libro esaltandone l’eleganza formale e
i dettagli, mentre la voce dell’artista narratrice affiora tra musiche e suoni.

34
A relação entre o bordado e o texto acompanhou a artista desde a infância. Maria
Lai, ao ver sua avó consertando lençóis, mencionava que o gesto da costura remetia a escrita
de uma histórias. E a partir dessa escrita, Maria imaginava a narrativa.17 Essa percepção de
Maria Lai possibilitou a ampliação de relacionar a transferência de outras inscrições como
linguagem para narrativas. Como um código secreto ou uma linguagem própria no tecido,
pessoas não alfabetizadas podem usar do bordado para expressar seus pensamentos,
sentimentos e histórias, criando assim uma sinfonia visual e registrando suas memórias
também.
Com a possibilidade do bordado como técnica para o registro de memórias de
violência é recorrente na produção de artistas mulheres. Nesta parte do capítulo, serão
apresentados trabalhos em bordados que utilizam de suportes diversos, seja em tecido ou pele.
As artistas presentes neste capítulo vivenciaram invasões em suas cidades durante a segunda
guerra, ditadura no Brasil e Argentina e violência racial e de gênero.
Esther Nisenthal Krinitz (1927-2001) foi uma sobrevivente da segunda guerra e
começou a narrar sua história após aos 50 anos, em 1977. Em entrevista para o site Nebraska
is Home, Rachel Peric, neta da artista, explica os motivos que levaram a avó a contar suas
memórias:

Em 1977, aos 50 anos, minha avó, Esther Nisenthal Krinitz, decidiu que
queria que sua família visse como era sua casa de infância na Polônia.
Sobrevivente do Holocausto, minha avó havia perdido quase todos que amava
no mundo. Fora de sua família, apenas ela e sua irmã sobreviveram.
Começando com uma imagem de sua casa e, mais tarde, um sonho da guerra,
minha avó começou a contar sua história através do meio que ela conhecia
melhor – costura. Ponto a ponto, ela deu vida à família que havia perdido e à
história de sua sobrevivência.18

Sua produção artística constam 36 peças que trazem memórias de sua vida, reunindo
imagem bordada e um texto descritivo e datado sobre o fato narrado pelas imagens. Os temas
dos bordados estão organizados por “Primeiros dias antes da guerra”, “A Guerra Chega”,
“Uma Família Separada - 15 de outubro de 1942”, “Por conta própria: escondendo-se à vista
de todos” e “Libertação e uma nova vida”.

17
Entrevista com Maria Lai disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=T4EPJRQDe9M
18
https://nebraskaishome.org/blog/736

35
Figura 14 - Bordado “Os nazis chegam-foto 7” de Esther Nisenthal Krinitz, 1993
19

Fonte: © Art & Remembrance, 2022.

A tradução para a legenda da imagem é “Setembro de 1939. Meus amigos e eu


corremos para ver os primeiros nazistas entrando em nossa aldeia, Mniszek. Eles pararam em
frente à casa dos meus avós, onde um desceu do cavalo para agredir meu avô e cortar sua
barba enquanto minha avó gritava”20. Esther viveu sua infância em uma cidade chamada
Mniszek, na Polônia. O retorno para as memórias de sua experiência na segunda guerra, e
codificá-las pela imagem, torna-se um dever, um legado que a artista quer materializar para
não esquecer de suas raízes e de seus familiares. Os bordados de Esther abarcam o sentido de
um acervo dessas memórias familiares, como se fosse um álbum de família que menciona
19
Disponivel em:
<https://www.sutori.com/en/story/fabric-of-survival-an-interactive-gallery--Wv5CgFeJHUVPmayGyeCJkYin>
Acesso em 1 de julho de 2022.
20
Tradução própria para: “September 1939. My friends and I ran to see the first Nazis entering our village,
Mniszek. They stopped in front of my grandparents’ house, where one got off his horse to rough up my
grandfather and cut his beard as my grandmother screamed.”

36
avós, as memórias da infância de Esther e recordações, felizes e tristes, da trajetória da
família.
No âmbito de utilizar acervo de família e relacionar com o bordado, encontra-se a
série “Bastidores” (1997), fotografias transferidas para tecido e bordadas anexadas no suporte
que dá título à série, da artista paulistana Rosana Paulino (1967). A artista utiliza fotografias
das mulheres de sua família para estampar o tecido e o bordado, técnica que aprendeu com
sua mãe, recebe o gesto brusco e violento semelhante a uma sutura

Figura 15 - “Bastidores” de Rosana Paulino, 1997

Fonte: Claudia Melo/Reprodução

As intervenções com fios são feitas nas bocas e olhos tornam-se metáfora ao
silenciamento das mulheres negras ao testemunhar as violências raciais e de gênero
vivenciados por séculos, marcas experienciadas ainda em dias atuais pelos traços da
colonialidade presente na sociedade brasileira e latino-americana. No catálogo da exposição
individual da artista, intitulada “Rosana Paulino: a costura da memória”21, a curadora Fabiana
Lopes escreve sobre esse trabalho da artista como:

“A sutura nesses trabalhos não parece pretender corrigir os problemas criados


pelas intervenções coloniais e suas consequências, mas descortiná-los e
indicar os processos dentro dos quais esses problemas aparecem” (LOPES,
2018, p.172)

21
Exposição realizada na Pinacoteca de São Paulo, de 8 de dezembro de 2018 a 4 de março de 2019.

37
Tanto Bastidores (1997) quanto Ça va Aller (2016) dialogam entre si pela
materialidade escolhida pelas artistas Rosana Paulino e Joana Choumali, fotografias
transferidas para tecidos, que recebem mais uma inscrição em bordado. Se os bordados de
Paulino são suturas, os bordados de Choumali aparecem como cicatrizes sobre a imagem
fotografada. A cicatriz é uma metáfora para o processo traumático que contextualiza a
imagem, como se fosse um corte na pele em processo de cicatrização: a reação da pele é
formar um novo tecido para curar a ferida.22
A assimilação do bordado como cicatriz e, assim, uma inscrição de testemunho, é
notada no trabalho da artista mexicana Teresa Margolles (1963). Sua série intitulada “tecidos
manchados” já foi realizada em diferentes países com a colaboração de bordadeiras e
mulheres que vivem em comunidades ou pertencem às populações marcadas pela violência.

Figura 16 - Tecidos Manchados de Teresa Margolles, 2019

Fonte: © Teresa Margolles

22
Frase referente ao trecho: “Depois de um corte, um machucado ou queimadura, a reação da pele é formar
um novo tecido para curar a ferida. O problema é que nem sempre a cicatriz que fica é lisinha, fininha e
discreta” que explica o surgimento de cicatrizes hipertróficas e quelóides. Matéria disponível em:
https://sbdrj.org.br/queloide-ou-cicatriz-hipertrofica/

38
A performance coloca as mulheres reunidas, bordando e conversando ao redor dos
tecidos sobre aspectos vários de suas vidas, incluindo a condição de insegurança que marca
cada uma. A superfície que é bordada são lençóis usados em autópsias, algumas vezes
manchados com sangue de pessoas assassinadas. A artista acompanha a feitura do bordado,
conversando com as mulheres e estimula a narração sobre experiências de violência extrema
vivenciadas por elas ou relatos próximos. O processo de partilha, para Margolles, é o objetivo
mais importante do trabalho. O tecido simboliza o testemunho e suporte da relação efêmera
entre aquelas mulheres e a artista
A matéria “Da morte violenta e do bordar outro tempo” (2019), escrita pelo crítico de
arte Moacir dos Anjos, apresenta trabalhos icônicos de Teresa Margolles e menciona o
desenvolvimento da tela produzida em São Paulo, em 2019. Teresa Margolles tomou como
suporte para o trabalho na capital paulista um tecido que não foi envolvido com um corpo
assassinado, mas um tecido arrastado no trajeto em que uma pessoa foi assassinada. Em 2018,
no Largo do Arouche, centro da cidade, a travesti Priscila foi morta no trajeto percorrido pelo
material.
O tecido, inscrito por vestígios materiais de um lugar que foi a cena de um crime, foi
bordado por mulheres trans que estavam na Casa Florescer, local que acolhe mulheres
transexuais e travestis. Ao redor do tecido, pessoas de gêneros diversos puderam conversar
sobre suas experiências e seus medos maiores. O bordado construído coletivamente é uma
inscrição testemunhal em um tecido, pele, em processo de cicatrização.
A pele enquanto tecido foi suporte para escrita na vídeo-performance “Marca
Registrada” (1975) da artista brasileira Letícia Parente (1930-1991). O ato de bordar em seu
próprio corpo alude uma marcação da carne como fazem com gado. Além disso, a
videoperformance é considerada uma ironia ao mercado das artes pois foi um vídeo
produzido para ser exibido fora do Brasil.

39
Figura 17 23- Frame da Videoperformance “Marca Registrada” de Letícia Parente, 1975

Fonte: Itaú Cultural

O vídeo tem em torno de 10 minutos e foi realizado durante a ditadura brasileira, no


período do general Geisel (1974-1978) e para o historiador Manoel Soares Friques “a
expressão Made in Brazil revela a ambiguidade do modelo de crescimento econômico
adotado no país”(p.165) O bordado que por muito tempo foi diminuído à uma arte sem
relevância, é ressignificado por Parente como uma linguagem sutil para exprimir uma
palavra. E o bordado enquanto sinônimo de luta que advém da força de mulheres.

23
Disponível em: <https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa216185/leticia-parente> Acesso em 06 de
fevereiro de 2023.

40
Figura 18 - Foto da exposição “Anna Maria Maiolino PSSSIIIUUU…” no Instituto Tomie
Ohtake, 2022.

Fonte: Foto de Ricardo Miyada.

A instalação da artista italiana Anna Maria Maiolino (1942) é inspirada no


movimento das mães da Plaza de Mayo, mulheres que perderam os filhos durante a ditadura
militar argentina e se organizaram para protestar na frente da Casa Rosada com os nomes dos
filhos bordados em lenços nas cabeças. No topo da sala, são pendurados lenços brancos e nas
paredes, faces esculpidas em argila.
Os nomes presentes nos lenços são nomes fictícios, assim como os rostos. Porém, a
montagem da instalação reivindica que cada nome e face presente na sala seja apropriado por
inúmeras mães que perderam seus filhos, além de muitas pessoas que desapareceram pela
violência de Estado e foram enterradas sem nome.
A relação entre a técnica têxtil, coletivos de bordadeiras e narrativas de violência não
é uma novidade. Na década de 1970, o artista italiano Alighiero Boetti (1940-1994) iniciou
uma vasta parceria, de 1971 a 1979 (até a invasão soviética), com bordadeiras afegãs. O
artista inseriu em sua produção os saberes tradicionais que a cultura afegã possui com
tecelagem e bordado.

41
Figura 19 - Alighiero Boetti, Mappa (Mapa), 1971–73 24

Fonte: MAXXI National Museum of XXI Century Arts Roma, Itália

Segundo o site Artforum25, a parceria estabelecida para a construção da obra


“Mappe”, as bordadeiras afegãs de acordo com as instruções do artista: Os contornos dos
mapas e as cores das bandeiras eram pré-determinados, enquanto as bordadeiras eram
responsáveis ​pelo artesanato. Após a invasão soviética no Afeganistão26 em 1979, a tapeçaria
afegã insere como temática símbolos da violência armada e foram as mulheres do povo
Baluchi27 as pioneiras em retratar o cotidiano na guerra. Vale a menção que os povos Balouch
são conhecidos por seus tapetes

24
Disponível em: <https://artsandculture.google.com/asset/mappa-alighiero-boetti/QAH1xs5nJnbRUA> Acesso
em 1 de julho de 2022.
25
https://www.artforum.com/print/reviews/201203/alighiero-boetti-30336
26
A Guerra do Afeganistão de 1979 foi um conflito que se iniciou quando a União Soviética decidiu invadir o
Afeganistão para defender o governo comunista que governava o país desde 1978. Na luta, os soviéticos
enfrentaram os mujahidin, rebeldes que não concordavam com o governo comunista. Os mujahidin receberam
apoio norte-americano e conseguiram forçar a saída dos soviéticos 10 anos depois. Fonte:
https://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/guerra-do-afeganistao-de-1979.htm
27

https://www-smithsonianmag-com.translate.goog/arts-culture/rug-of-war-19377583/?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&
_x_tr_ hl=pt-BR& _x_tr_pto=sc

42
Conhecidos como “Tapetes de Guerra”, essas peças foram uma adaptação da arte
tradicional afegã. Pamela D. Toler menciona no artigo “Como os Tapetes de Guerra do
Afeganistão ajudaram seus cidadãos a contar a história do conflito” que a tapeçaria afegã
tradicional também é uma técnica desenvolvida por mulheres:
Criados por mulheres que trabalham em suas casas rurais ou em pequenas
oficinas urbanas, os tapetes afegãos tradicionais são frequentemente descritos
como tapetes tribais, em oposição ao que a maioria das pessoas considera
tapetes persas (tecnicamente, tapetes comerciais ou urbanos), que são mais
elaborados em design , muitas vezes mais finamente tecido, e muitas vezes
bastante grande, destinado a cobrir o chão de uma sala.28

Como tapetes que retratam a guerra, o surgimento consta a partir do ano de 1979 em
campo de refugiados no Paquistão. Nas peças tecidas à mão com lã grossa, os tapetes
possuem símbolos de armas, tanques e helicópteros. As peças eram vendidas para pessoas
ocidentais que trabalhavam em organizações não governamentais. Com o tempo, os desenhos
foram aperfeiçoados e palavras e letras cirílicas foram inseridas no design do tapete para criar
conexão com a União Soviética.

Figura 20 - Tapete29 com temática de guerra, como tanques, em designs tradicionais.

Fonte: Kevin Sudeith, cortesia de WarRug.com , CC BY-SA

28
Tradução própria para “Created by women working from their rural homes or in small urban workshops,
traditional Afghan rugs are often described as tribal rugs, as opposed to what most people think of as Persian
rugs (technically, commercial or city rugs), which are more elaborate in design, often more finely woven, and
often quite large, intended to cover the floor of a room.” Matéria disponível em:
https://www-historynet-com.translate.goog/rugs-of-war/?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt-BR&_x_tr_pto
=sc
29
Disponível
em:<https://theconversation-com.translate.goog/afghanistans-war-rug-industry-distorts-the-reality-of-everyday-t
rauma-167608?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt-BR&_x_tr_pto=sc> Acesso em 24 de junho de 2022.

43
No início dos anos 2000, um tema incorporado pelos tapetes de guerra foi o atentado
de 11 de setembro de 2001. Os tapetes começaram a reproduzir imagens que continham nos
panfletos que eram distribuídos no Afeganistão com justificativas para a invasão do país.

Figura 21 - “Tapete de Guerra”30 sobre o atentado de 11 de setembro de 2001,


2003-2004

Fonte: The britsh museum

Partindo dos caminhos abertos por nomes como João Cândido, Arthur Bispo do
Rosário e o trabalho coletivo de mulheres e bordado, como as Arpilleras, Bordadeiras e
Imbassaí e Coletivo tear&poesia, esta pesquisa utilizará de três objetos de pesquisa para
analisar as possibilidades de conversa entre o bordado e a escrita. Para essa tarefa, serão
utilizados como objetos de pesquisas a série Ça va Aller de Joana Choumali, o livro Baratas

30
Disponível em:<https://www.britishmuseum.org/collection/object/W_2010-6013-28> Acesso em 2 de junho
de 2022

44
de Scholastique Mulasonga e o trabalho desenvolvido por Christiane Rwagatare com o grupo
Savane Rutongo - Kabuye.

45
Capítulo II: Experiências no corpo pela escrita e pelo bordado

Após contextualizar o corpo como lugar dos saberes e as diversas escolhas de suportes
para essas experiências transbordarem, apresento neste segundo capítulo exemplos em que o
bordado e a escrita foram as linguagens escolhidas para vazar a experiência. Os exemplos são
a série fotográfica e bordada Ça va Aller de Joana Choumali, o livro Baratas de Scholastique
Mukasonga e o trabalho desenvolvido por Christiane Rwagatare com o grupo de bordadeiras
Savage Rutongo.

É relevante mencionar que nos aspectos que tangem as linguagens, visuais e escritas,
seus intuitos partem de um sujeito para o outro. Para compreender a função da linguagem,
empresto a interpretação do filósofo alemão da corrente existencialista Martin Heidegger
aborda a linguagem em “A essência da linguagem”:

O que nos concerne como linguagem determina-se pela saga do dizer, essa
que tudo encaminha e movimenta. Acenar é passar de um para o outro. As
palavras guiam acenam, fazendo-nos passar das representações corriqueiras da
linguagem para a experiência da linguagem como a saga do dizer.
(HEIDEGGER, 2003, p.159)

Pelo pressuposto desse movimento que a linguagem exerce, aquele que transmite
acaba tornando-se o sujeito da experiência. Em diálogo com Heidegger, o professor espanhol
Jorge Larrosa define o sujeito da experiência como:

“[...] seria algo como um território de passagem, algo como uma superfície
sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos,
inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos. [...] o sujeito
da experiência é um ponto de chegada, um lugar a que chegam as coisas,
como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lugar.” (
LARROSA, 2013, p.25)

Ainda para Larrosa, o sujeito da experiência é um sujeito “ex-posto” pois o que


importa não é a ação ou passividade do sujeito, mas sua capacidade de estar aberto para a
experiência. Ainda para Larrosa, experiência é um primeiro lugar de encontro ou uma relação
com algo que se experimenta, que se prova (LARROSA, 2015, p.26). Nesse sentido, as
mulheres autoras, que serão apresentadas a seguir, vivenciaram as experiências que narram
em suas obras e que seus corpos movimentam pelos gestos da escrita e/ou do bordado.

46
2.1 O testemunho mudo em Ça va aller de Joana Choumali

A série de bordado Ça va aller, de Joana Choumali (1974-), é reconhecida pela crítica


internacional. Em 2019, a fotógrafa ganha o oitavo prêmio Pictet, premiação global em
fotografia e sustentabilidade. Para além do reconhecimento da crítica sobre a série, “Ça va
Aller” instiga o espectador a rever as possibilidades de narração de um fato relacionado ao
trauma sem ser textualmente. Neste capítulo, será contextualizado o trabalho de Joana
Choumali e os fatos que a motivaram a realizar essa série.
Nascida em 1974, em Abidjan, capital da Costa do Marfim e sua cidade residente,
Joana Choumali possui formação em design gráfico em Marrocos e atuou como diretora de
arte em agência de publicidade antes de se tornar uma fotógrafa profissional. A temática
constante em sua produção fotográfica é o continente africano, investigado através das
imagens por seus aspectos culturais, além de situações cotidianas e geográficas. Um dos
trabalhos mais reconhecidos de Joana Choumali é o fotolivro Hââbré: A última geração
(tradução própria). A palavra Hââbré significa escrita e escarificação na língua Kô, grupo
étnico de origem de Burkina Faso.
A técnica do bordado é inserida na produção fotográfica de Joana Choumali em 2016,
com a série Ça va aller, termo em francês que, traduzido para o português, significa “vai
passar” ou “vai ficar tudo bem”. A série de imagens fotográficas transferidas para tecido e
bordadas foi premiada em 2019 com o oitavo prêmio Pictet, premiação global em fotografia e
sustentabilidade. O motivo que levou Joana Choumali a produzir a série Ça va Aller foi a
maneira como a população da República de Côte d’Ivoire31 lida com o trauma, especialmente
após duas guerras civis (2002 e 2011) e um atentado terrorista.
Segundo Choumali, a expressão “ça va aller” é usada em qualquer situação, inclusive
as contrárias a sentir esperança por estarem rodeadas pela insegurança e tristeza. Foi no
bordado que Joana Choumali encontrou a possibilidade de ressignificar seu trauma por um
processo de “camadas”, não apenas da materialidade escolhida como suporte, mas de
memórias e sentimentos. A fotógrafa afirma que o ato lento e meditativo do bordado é “uma

31
Em 1985, o governo marfinense solicitou à comunidade internacional que o país fosse designado apenas pelo
nome francês Côte d'Ivoire e vários países e organizações internacionais acataram. No entanto, em português o
país é comumente chamado pelo seu nome original Costa do Marfim, já que a região foi batizada por
exploradores portugueses. O mesmo ocorrendo em outras línguas, como Ivory Coast em inglês e Elfenbeinküste
em alemão. fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Costa_do_Marfim

47
escritura automática32”, a maneira como ela lida com sua tristeza e testemunha o cotidiano de
pessoas imersas na melancolia, embora neguem esse sentimento.

A tensão social e as crises políticas se intensificaram na República de Côte d’Ivoire


desde 1999, com o golpe militar sofrido por Henri Konan Bédié orquestrado por Robert Güéi.
Três anos depois, em 19 de setembro de 2002, ocorre a primeira guerra civil do país, após
soldados rebeldes vindos do Burkina Faso tomarem o controle da capital do país, Abidjan, e
das cidades de Bouaké e Korhogo. O episódio envolveu forças de segurança do governo e
mercenários, tropas da França e da Comunidade Econômica da África Ocidental (Cedeao). O
conflito terminou em 2007 e estima-se que mais de 1.800 pessoas morreram no conflito

A segunda guerra civil ocorreu em novembro de 2010, após as eleições que Alassane
Ouattara venceu Laurent Gbagbo, presidente que estava em gestão por 10 anos, que
classificou o resultado como fraude e tomou posse apesar da derrota. O Exército francês
interveio e tanques de guerra ocuparam as ruas da Costa do Marfim. O conflito terminou em
abril de 2011, com 3 mil pessoas mortas e, de acordo com a ONU, mais de um milhão de
pessoas tornaram-se refugiadas.33

As duas guerras civis foram situações que causaram sentimentos de tristeza e


melancolia na população marfinesa, mas em Joana Choumali as memórias34. Esses episódios,
mesmo que encerrados, emergiram e somaram aos sentimentos que o atentado à
Grand-Bassam causou. O evento gatilho, que “abriu as feridas mentais deixadas pela guerra

32
Tradução própria desse trecho da entrevista de Joana Choumali: “As an automatic scripture, the act of adding
colourful stitches on the pictures has had a soothing effect on me, like a meditation.” Matéria disponível em:
https://www.prixpictet.com/portfolios/hope-shortlist/joana-choumali/statement/
33
Informação consultada na matéria de 17 de setembro de 2020 no jornal “O Globo". Disponível em:
https://oglobo.globo.com/mundo/apos-duas-guerras-civis-em-dez-anos-costa-do-marfim-enfrenta-nova-crise-co
m-velhos-personagens-24622115
34
Aqui, utilizamos a concepção de memória e aparelho psíquico por uma perspectiva freudiana e pela metáfora
do “bloco mágico”: “A analogia não teria muito valor se não pudesse ser levada adiante. Se levantamos da
tabuinha de cera a folha de cobertura inteira — celulose e papel encerado —, a escrita desaparece e não volta a
aparecer, como foi dito. A superfície do Bloco Mágico se acha vazia e novamente pronta para receber anotações.
Mas facilmente se constata que o traço duradouro do que foi escrito permanece na tabuinha de cera e pode ser
lido com uma iluminação adequada. Portanto, o Bloco fornece não apenas uma superfície receptora que sempre
pode ser usada novamente, como uma lousa, mas também traços duradouros da escrita, como um bloco de papel
normal. Ele resolve o problema de juntar as duas operações ao distribuí-las por dois componentes — sistemas —
separados, mas inter-relacionados. É exatamente dessa maneira que, segundo a hipótese há pouco lembrada,
nosso aparelho psíquico realiza sua função perceptiva. A camada que recebe os estímulos — o sistema Pcpt-Cs
— não forma traços duradouros, as bases da lembrança produzem-se em outros sistemas, adjacentes a ela.”
(FREUD, 1925, p.244-245)

48
pós-eleitorais de 2011”35 e originou a série Ça va aller, aconteceu no balneário de
Grand-Bassam em 13 de março de 2016.

Homens armados abriram fogo contra o exterior do hotel Etoile du Sud e os


primeiros disparos ocorreram às 12h25, mas foi comunicado oficialmente em rede nacional,
pelo Ministro do Interior Hamed Bakayoko, às 17h1036. O atentado foi atribuído ao grupo
Al-Qaeda, localizado no Magrebe Islâmico (Aqmi) e vitimou fatalmente 19 pessoas, sendo
três militares marfineses, e feriu 33 pessoas. O mesmo grupo também foi responsável por
mais outros dois atentados: nas cidade de Ouagadougou (Burkina Faso) em janeiro de 2016 ,
e em Gao (Mali), em janeiro de 2017.

2.1.1 Fotografia e o bordado: diálogos sobre testemunho

No artigo “Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes”, Márcio


Seligmann-Silva contribui para pensarmos o recém histórico de instabilidade política e
violências da Costa do Marfim. Os eventos políticos podem ser classificados como
“catástrofes históricas” definidas pelo teórico como:

Nestas situações, como nos genocídios ou nas perseguições violentas em


massa de determinadas parcelas da população, a memória do trauma é
sempre uma busca de compromisso entre o trabalho de memória individual e
outro construído pela sociedade. Aqui a já em si extremamente complexa
tarefa de narrar o trauma adquire mais uma série de determinantes que não
podem ser desprezados mesmo quando nos interessamos em primeiro plano
pelas vítimas individuais. (SELIGMANN, p.103).

No mesmo artigo, o autor relaciona a inscrição do trauma por linguagens como a


literatura e a arte:

É na literatura e nas artes onde esta voz poderia ter melhor acolhida, mas
seria utópico pensar que a arte e a literatura poderiam, por exemplo, servir
de dispositivo testemunhal em massa para populações como as sobreviventes
de genocídios ou de ditaduras violentas. Mas isto não implica, tampouco,
que nós não devemos nos abrir para os hieróglifos de memória que os
artistas nos têm apresentado. Podemos aprender muito com eles.
(SELIGMANN, p. 114)

35
Tradução própria para “The attacks re-opened the mental wounds left by the post electoral war of 2011.”, frase
da entrevista de Joana Choumali para a Yogurt Magazine. Matéria disponível em:
https://yogurtmagazine.com/portfolio/ca-va-aller-joana-choumali/
36
Informação retirada da matéria Attentat de Grand-Bassam : sept questions pour comprendre publicada em 29
de março de 2016 no jornal “Jeune Afrique”. Matéria disponível em:
https://www.jeuneafrique.com/mag/311986/politique/attentat-de-grand-bassam-sept-questions-comprendre/

49
Assim, percebemos que o processo de criação de Joana Choumali atua por camadas:
são as memórias e sentimentos da fotógrafa que tensiona a expressão “ça va aller” e,
motivada por mais um evento traumático ocorrido em seu país, coloca seu corpo em deriva
pelas ruas de Grand-Bassam e leva consigo seu celular, aparelho que registra suas
observações. A inscrição testemunhal no trabalho de Joana Choumali ocorre primeiramente
pela fotografia.

Após três semanas do atentado, Joana Choumali inicia sua caminhada pelas ruas de
Grand-Bassam e observa o cotidiano em luto da cidade. Para não despertar a atenção das
pessoas, a fotógrafa opta por registrar as imagens através do seu iphone. Conforme
mencionado anteriormente, Choumali questiona a negação ao luto devido um evento
traumático. Seu olhar sobre seus conterrâneos testemunha aquilo que a palavra não traduz. A
paisagem das fotos são lugares vazios e pessoas sozinhas, caminhando nas ruas ou em pé,
sentadas sozinhas, perdidas em seus pensamentos. O sentimento da perda é latente nas
imagens.

A fotógrafa torna-se invisível, as pessoas retratadas estão vivendo suas vidas e não
percebem que estão sendo notadas e fotografadas. Ninguém retribui o olhar para Choumali,
não há nenhuma fotografia em que há a troca de olhares. Ao percorrer a cidade de
Grand-Bassam, invisível, em sua caminhada, Joana Choumali torna-se uma flâneuse37,
observa o cotidiano e inscreve o motivo de seu registro na fotografia. A relação entre o
fotógrafo e o flâneur é tratada por Susan Sontag em “Sobre fotografia” (2004), em que a
autora afirma que a fotografia é uma extensão do olho do flâneur:

O fotógrafo é uma versão armada do solitário caminhante que perscruta,


persegue, percorre o inferno urbano, o errante voyeurístico que descobre a
cidade como uma paisagem de extremos voluptuosos. [...] O flâneur não se
sente atraído pelas realidades oficiais da cidade, mas sim por seus recantos
escuros e sórdidos, suas populações abandonadas - uma realidade marginal

37
No artigo “A flânerie de uma andarilha urbana” de Daniela Schrickte Stoll, a autora evoca a teórica Griselda
Pollock (1988) e aponta que não seria possível uma flâneur mulher: o flâneur simbolizava o privilégio da
liberdade de se mover em arenas públicas da cidade, observando, mas nunca interagindo, consumindo os locais
através de um olhar direcionado tanto para as outras pessoas como para os produtos à venda. (...) Já na
contemporaneidade, a ideia de uma mulher na rua ainda levanta o questionamento: ela pode ser uma flâneuse
despreocupada, se é objeto do male gaze, o olhar masculino? (...) Assim, se é impossível para as mulheres serem
invisíveis nas ruas, onde são sempre objetos do olhar masculino, seria impossível que se tornassem flâneuses. É
por isso que Pollock (1988, p. 66) se refere a uma política sexual do olhar que demarca uma organização social
particular do olhar e mantém a ordem social da diferença sexual. Dentro dessa política, são moldados os espaços
de feminilidade, que são produtos de uma percepção de localização, mobilidade e visibilidade nas relações
sociais de ver e ser visto."(p.4). Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/1806-9584-2020v28n157230/43494

50
por trás da fachada da vida burguesa que o fotógrafo “captura”, como um
detetive captura um criminoso. (SONTAG, 2004, p. 70)

No entanto, o ato de falar de Choumali é contemporâneo à perspectiva sobre a


flânerie a partir dos estudos situacionistas, como Adriana Nascimento, Alice Leitão, Ana
Luiza Carvalho e Thais Gonçalves apontam no artigo “O caminhar é para todas? Uma
abordagem de mulheres latinoamericanas sobre derivas e flâneries na contemporaneidade”
(2018):

Se a flânerie de Baudelaire explora a cidade seguindo um desejo de se perder


nela e em suas multidões, para compreender a industrialização e a
modernização que transformam os grandes centros urbanos no período, os
Situacionistas, ilustrados pela figura de Guy Debord, propõem a deriva
como método de análise e crítica da cidade contemporânea. Ambos, em
diferentes períodos, constroem suas percepções das grandes cidades e
denunciam as consequências do capitalismo desenfreado para suas
estruturas. (GOMES et al., 2018, p.6)

Podemos visualizar as relações entre fotografia como arte do trauma, em diálogo


com a perspectiva de Seligmann-Silva, pelo testemunho, ou a ausência e a impossibilidade
dele. Neste sentido, o bordado é a segunda inscrição no trabalho de Choumali e insere o
vestígio que algo houve naquele local e há algo a ser mencionado por aqueles que não
conseguem exprimir seu luto. É através da inferência do bordado que Choumali conecta o seu
sentimento com o trauma coletivo.

Uma característica dos bordados da série Ça va Aller é a utilização de fios coloridos


aplicados sobre a imagem transferida para o tecido e os pontos bordados preenchem os
espaços como o chão, o céu ou colorindo peças de roupas dos transeuntes na imagem. O
colorir a cena com o bordado age como um vestígio de vida que pulsa ainda naquele espaço.
As cores e as formas apresentadas através do bordado inscrevem sensações experienciadas
por aqueles que conhecem o balneário antes do atentado.

O vestígio como metáfora para a recordação é tratado pela professora e teórica alemã
Aleida Assman em “Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural” e
compreende o conceito de vestígio de forma ampla:

Com o conceito de vestígio amplia-se para além dos textos o espectro das
“inscrições” e estende-se às imagens fotográficas e às ações efetivas no
objeto e por meio de objetos. O passo que leva dos textos aos vestígios e
objetos remanescentes como testemunhas significantes do passado
corresponde a um passo que leva da escrita como signo linguístico
intencional ao vestígio como cunhagem material que, embora não seja

51
concebido como signo, pode ser lido posteriormente como tal. (ASSMANN,
2011, p.227)

Desta forma, ao analisar as técnicas mistas e todo o contexto envolto em Ça va Aller,


os caminhos escolhidos por Choumali a torna testemunha por aqueles que não conseguem
dizer o que vivenciaram e que ainda vivenciam na cidade de Grand-Bassam.

2.1.2 Análise das imagens da série Ça va aller


No site da artista, a área dedicada à série contém um texto introdutório e 29 imagens.
Algumas imagens estão nomeadas com o título da série e o ano em que elas foram realizadas.
Ao todo, são 22 imagens datadas e 7 sem identificação. Através das imagens datadas, é
possível identificar que os registros das imagens ocorreram entre os anos de 2016 e 2020.

A narrativa presente nas imagens são compostas por cenas cotidianas do balneário de
Grand-Bassam, como pessoas transitando pelas ruas, sentadas nas sombras de árvores ou
trabalhando. Outras imagens registram ambientes vazios mas com resquícios de uma presença
humana, como cadeiras de plástico em maquis.

Em algumas imagens, a utilização dos bordados agrega um aspecto enevoado sobre a


paisagem. O cenário encoberto pelo bordado apresenta ao espectador uma sensação de
penumbra das fotografias. Com a presença de corpos humanos, o bordado é aplicado de
forma diferente, contornando suas silhuetas.

É notável que em algumas imagens, a intervenção em bordado adquire um relevo


sobre a paisagem, tornando táteis os solos arbustos e troncos de árvores e outros elementos
selecionados pela fotógrafa. Serão analisadas 4 imagens 38das 29 imagens que compõem a
série, apenas duas imagens possuem palavras e a escrita ganhou uma camada de bordado,
sendo essa a primeira imagem de 2016.

38
Figuras 21, 22, 23 e 24 estão disponíveis em:
https://joanachoumali.com/index.php/projects/mix-media/ca-va-aller. Acesso em 01 de agosto de 2022.

52
Figura 22 - Imagem da série Ça va aller, 2016

Fonte: Site de Joana Choumali

A imagem apresenta uma mulher e uma menina de mãos dadas andando pela rua. Ao
fundo, aparece um carro atrás dessas pessoas, não é possível identificar se o carro está parado
ou em movimento e um muro escrito Hopital General de Grand-Bassam. Os pontos
utilizados no bordado geram sobre a imagem uma sensação de névoa, ou nevoeiro, sobre a
paisagem. No entanto, este nevoeiro não atinge a mulher e a menina, que estão ligadas por
fios vermelhos, que as conectam com o letreiro do hospital. O uso dos fios nessa cor sobre o
título infere na imagem uma sensação de sangramento, uma analogia ao resultado do atentado
sofrido há poucos dias anteriores.

53
Figura 23 - Imagem da série Ça va aller, 2018

Fonte: Site de Joana Choumali

Essa imagem possui bordados de várias cores: os pontos tecidos na vertical são
brancos lineares e encobrem a paisagem. No centro da imagem, há uma criança e ao redor de
seu tórax e cabeça, há um círculo rosa. No chão, a sombra refletida da criança está marcada
em azul claro.

54
Figura 24 - Imagem da série Ça va aller, 2017

Fonte: Site de Joana Choumali

Em primeiro plano, um homem de braços cruzados é fotografado olhando para o


horizonte como se estivesse refletindo sobre a paisagem. Ao fundo, há a presença de uma
pessoa e não dá para identificar se ela está parada ou em movimento. Ambas as pessoas,
mesmo em planos diferentes, estão conectadas por pontos de bordado que assemelha-se a
chuva em forma de triângulos de ponta cabeça. Os bordados, quando triangulares e na parte
superior da imagem, são utilizados linhas brancas. Nessa imagem, bordados coloridos

55
enaltecem o solo: podemos identificar que o chão em que os homens pisam é terroso, verde e
com uma borda inferior rosa.

Figura 25 - Imagem da série Ça va aller, 2018

Fonte: Site de Joana Choumali

Na imagem acima, os pontos bordados em branco percorrem um trajeto da parte


superior da imagem e contornam as três cadeiras azuis e suas respectivas mesas. O bordado
em branco encobre uma placa escrita Maquis, Dieu est Grand. Na Costa do Marfim, Maquis
39
refere-se aos bares e restaurantes ao ar livre e os bordados percorrendo as três cadeiras
39
https://indietravelpodcast.com/ivory-coast/maquis/

56
emanam uma presença pela ausência: a sensação que transmite é que o uno desdobra-se em
três.

Como mencionado ao longo do texto, a série Ça va aller foi fundamental para a


estruturação desta pesquisa. Pela ausência de outras narrativas, seja pela artes visuais ou pela
escrita, sobre o atentado de Grand-Bassam, o foco da pesquisa migrou para dois objetos de
pesquisa que tivessem narrativas sobre o mesmo incidente. No caso, o Genocídio Tutsi,
ocorrido em Ruanda em 1994, foi a temática abordada na investigação sobre a relação entre o
bordado e a escrita.

2.2 Diálogos entre literatura e o bordado pelo testemunho do Genocídio Tutsi

2.2.1. Baratas: o testemunho literário de Scholastique Mukasonga

O incidente em Ruanda, conhecido também por “genocídio tutsi”, foi uma retalhação
organizada por membros da elite política principal dos hutus, sendo que muitos ocupavam
cargos nos níveis mais altos do governo nacional, motivada pelo assassinato do presidente
ruandês Juvénal Habyarimana em 6 de abril de 1994. O genocídio durou de 7 de abril a 15 de
julho de 1994 e, em 100 dias, foram dizimados mais de 800 mil pessoas de origem tutsi.
Ao inserir exemplos da literatura e do bordado sobre o mesmo evento, o genocídio em
Ruanda no ano de 1994, a aproximação entre as duas linguagens ocorre por serem recursos
em que a memória remonta a experiência dos fatos. Tanto a escritora quanto as participantes
dos grupos de bordado retomam os eventos a partir de suas vivências contaminadas por
outros fatos de temporalidades diferentes ou fatos históricos.
O livro Baratas é um testemunho da autora como uma mulher exilada em outro país e
que perdeu praticamente toda a família no genocidio de Ruanda, em 1994. O massacre foi
descrito pela autora em ordem cronológica, ao longo do livro Mukasonga contextualiza que
“a engrenagem do genocídio tinha sido engrenada”40 anos antes do genocídio de 1994. Em

40
“Os primeiros pogroms contra os tutsis estouraram em Toussaint, em 1959. A engrenagem do genocídio tinha
sido acionada. Eles não pararam mais. Até a solução final, eles nunca parariam”. (MUKASONGA, 2018, p.13)

57
entrevista para a Revista Veja41, Scholastique Mukasonga cita a importância e o dever de
contar sobre o que aconteceu com seu país.

Foi um livro que eu quis escrever desde que eu soube do genocídio, em 7 de


abril de 1994. Quando aconteceu o massacre eu estava em pânico, como
Primo Levi (autor italiano sobrevivente de Auschwitz, que narrou horrores do
Holocausto), porque já havia sido deportada há muito tempo, como outros
tutsis. Eu morava na França desde 1992, e descobri como todo mundo: pela
televisão. Naquele momento eu percebi que meus pais haviam me escolhido,
em 1973, para ser nossa memória. Em 1994, foi quando eu percebi que era o
genocídio do meu povo e que o termo massacre que usavam não era correto.
Então eu comecei a escrever porque eu estava em pânico, percebi que era das
poucas sobreviventes, tinha medo que tudo se apagasse em minha cabeça.
Principalmente o nome das pessoas. Tinha medo de ficar louca e não saber
mais do que tinha acontecido. Era preciso que eu deixasse a memória do que
foi a minha vila e o meu povo para as minhas crianças e para o mundo.

O livro foi lançado na França com o título Inyenzi ou Les Cafards, pela editora
Gallimard, em 2006. No Brasil, o livro foi lançado em 2018 como Baratas, a tradução foi
realizada por Elisa Nazarian e lançada pela editora Nós. O título do livro é o termo pejorativo
que o povo hutus chamavam a população tutsi.
A narrativa apresentada no livro sugere o passo a passo dos fatos, o processo, que
levou ao genocídio em 1994 pelo histórico de vida de Scholastique Mukasonga. O capítulo I
intitulado “Fim dos anos 1950: uma infância tumultuada desde muito cedo” apresenta as
memórias relacionadas à perseguição aos tutsis que acompanham a escritora desde sua
primeira infância até sua fase adulta.

Eu tinha três anos, e foi então que as primeiras imagens de terror ficaram
gravadas na minha memória. Eu me lembro. Meus irmãos e minha irmã
estavam na escola. Eu estava em casa com a minha mãe. De repente, vimos
fumaça subindo de todos os lados, sobre as encostas do monte Makwaza, do
vale do Rususa, onde morava Suzanne, mãe de Ruvebana que, para mim, era
como minha avó. Depois escutamos os barulhos, os gritos, um rumor como
um enxame de abelhas monstruosas, um bramido que invadia tudo. Esse
barulho, eu ainda escuto hoje, como uma ameaça vinda em minha direção, e
às vezes, nas ruas da França, ouço-o ressoar; não ouso me virar, aperto o
passo. Não é esse mesmo ruído que me persegue com frequência?
(MUKASONGA, 2018, p.13)

41
Matéria disponível em:
https://veja.abril.com.br/coluna/meus-livros/o-dever-da-memoria-da-autora-que-sobreviveu-ao-genocidio-de-rua
nda/

58
Para construir a narrativa, o testemunho de Scholastique Mukasonga reconstrói o
percurso que leva a escritora a ser uma sobrevivente e contar sobre seus familiares vitimados
pelo genocídio de 1994. Mukasonga estava em exílada na França no ano de 1994 e sua
relação com os fatos e o que aconteceu com seus entes queridos foram narrados também por
memória daqueles que vivenciaram presencialmente o massacre, como um cunhado e suas
sobrinhas.
No capítulo XIII “1994: o genocídio, o horror aguardado”, a escritora retoma o pesar
de ser sobrevivente quando soube destino de Jocelyne, sua sobrinha, filha de sua irmão
Judith:
Da morte dos meus, só me restam buracos negros e fragmentos de horror. O
que mais faz sofrer? Ignorar como foram mortos ou saber como os mataram?
O terror do qual foram tomados, o horror que sofreram, às vezes é como se eu
tivesse o dever de senti-los, às vezes é como eu tivesse o dever de escapar.
Não me resta nada a não ser a lancinante recriminação de estar viva em meio a
todos os meus mortos. Mas o que é o meu sofrimento, comparado ao que eles
sofreram antes de obter de seus carrascos essa morte que, para ele, foi sua
única libertação? (MUKASONGA, 2018, p.136)

Em seguida a essa passagem, a autora reflete sobre o termo “subvivente”, conceito


que escutou, em fevereiro de 1995, de uma pessoa que sobreviveu ao “holocausto ou
genocídio”42 dos tutsis. Acredito que o termo une, até o momento, a produção de Joana
Choumali com o livro Baratas de Scholastique Mukasonga e as produções de bordado
realizadas pelos grupos de mulheres. Comparando o termo com a experiência de duas
sobrinhas que eram crianças e sobreviveram ao massacre, Mukasonga analisa a temporalidade
das garotas como “um presente congelado, em um passado indizível, que só ressurgiu em seus
pesadelos, em um futuro sem esperança.” (MUKASONGA, 2018, p.136-137)
No caso de Choumali e Mukasonga, suas experiências materializadas em produções
artísticas conferem esse espaço do subvivente e de testemunhas diretas dos fatos. Mas, ao
analisarmos produções artísticas, independente da linguagem utilizada, que possuem em
comum fatos históricos que não são vivenciados com proximidade por seus autores, também
podem ser consideradas testemunhais. Tal argumento está pautado no que a historiadora suíça
Jeane-Marie Gagnebin apresenta no texto “Memória, história, testemunho”. Para Gagnebin:
Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a
narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante,
como um revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por
compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e
por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do
42
“Um sobrevivente, não sei se do holocausto ou do genocídio dos tutsis, disse que os sobreviventes do
genocídio eram subviventes. Era bem isso.”(MUKASONGA, 2018, p.136)

59
passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar
uma outra história, a inventar o presente. (GAGNEBIN, 2006, p. 57)

Outro conceito já mencionado neste artigo e que Gagnebin discorre a respeito é o


sobre o conceito de trauma e segundo a autora:

O trauma é a ferida aberta na alma, ou no corpo, por acontecimentos


violentos, recalcados ou não, mas que não conseguem ser elaborados
simbolicamente, em particular sob a forma de palavra, pelo sujeito. (...) Ao
que parece, as feridas dos sobreviventes continuam abertas, não podem ser
curadas nem por encantações nem por narrativas. A ferida não cicatriza e o
viajante, quando, por sorte, consegue voltar para algo como uma “pátria”,
não encontra palavras para narrar nem ouvintes dispostos a escutá-lo.
(GAGNEBIN, 2006, p.110)

Com essa afirmação, o conceito de testemunha abrange aqueles que testemunham


indiretamente porque não estiveram no local, não presenciaram o evento, mas que propaga a
história do trauma.

2.2.2 O genocídio em Ruanda testemunhado por outras linguagens artísticas


Sobre o genocídio de Ruanda, é relevante para esta pesquisa mencionar dois projetos
The Rwanda Projects 1994-2000 do artista chileno Alfredo Jaar (1956) e Les hommes debout
do artista londrino Bruce Clarke (1959).

Figura 2643- Imagem da instalação Ruanda, Ruanda de Alfredo Jaar, 1994

43
Disponível em:<https://revistazum.com.br/radar/jaar-hasselblad-2020/attachment/rwanda-rwanda-1994_web/>
Acesso em 20 de junho de 2022.

60
Fonte: Cortesia Fundação Hasselblad

Alfredo Jaar é um artista nascido no Chile e que, atualmente, vive em Nova York. A
fotografia é uma linguagem recorrente em sua produção e insere narrativas sociopolíticas. O
Rwanda Project é um de seus trabalhos mais conhecidos, registrado entre os anos de 1994 a
2000. Segundo o site do MoMa44, Jaar viajou para Ruanda em agosto de 1994, três meses
após o genocídio e testemunhou um país devastado.
Uma das primeiras frentes que o projeto assumiu foi o cartaz em litografia intitulado
Ruanda, Ruanda, como apresentado na Figura 25. A estética assumida foi a tipografia de
cartazes de rua e o nome do país inserido como refrão de uma música, repetido 8 vezes. Os
cartazes foram espalhados pela primeira vez em Estocolmo, Suécia, em 1994.
O trabalho Real Pictures, disponível em detalhe na imagem 26, consistia em
memoriais constituídos por caixas de arquivo pretas e em sua superfície legendas que
descrevem os eventos presentes nas imagens fotográficas, que estão dentro das caixas. A
instalação consiste em 291 caixas e ao todo, foram construídos 6 monumentos.

44
https://www.moma.org/collection/works/73521

61
Figura 27 - detalhe da instalação Real Projects de Alfredo Jaar, 1995

Fonte: Courtesy Galerie Lelona, New York, Musée cantonal des Beaux-Arts, Lausanne and the artist, New York.

Mais recente do que o projeto de autoria de Jaar, a proposta de Les hommes debout de
Bruce Clarke surgiu como demanda da CNLG (Commission Nationale de Lutte contre le
Génocide) para a memória do 20º ano do genocídio em Ruanda. O projeto consistiu no
desenho de homens, mulheres e crianças, em grande escala, em murais de locais públicos que
foram cenário para o genocídio em 1994.

Figura 2845 - Imagem do mural Hommes debout de Bruce Clarke, 2021

45
Disponível
em:<https://www.lemonde.fr/afrique/article/2021/06/06/rwanda-a-kigali-un-jardin-de-la-memoire-pour-redonner
-une-presence-aux-disparus_6083070_3212.html> Acesso em 16 de junho de 2022.

62
Fonte: Bruce Clarke

Em entrevista para o jornal Le Monde, em junho de 2021, o artista Bruce Clarke foi
questionado sobre seu interesse pelo tema e o que ele se lembrava do genocidio, pois assim
como Alfredo Jaar, o artista londrino esteve em Ruanda em agosto de 1994. Segundo Clarke:

Como fotógrafo, cheguei a Ruanda para um coletivo de associações. Foi


muito complicado. Durante duas semanas e meia, viajei por todo o país. Eu
me deslocava de carona graças aos veículos das ONGs, os únicos em
circulação. Os ruandeses não tinham mais nada. Sem eletricidade, sem água
potável: era o caos. Eu havia me preparado para ver montanhas de cadáveres,
mas não vi nenhum. Por questões de saúde pública, os mortos já haviam sido
enterrados pela FPR [Frente Patriótica Ruandesa, movimento político-militar
formado por tutsis que acabou com o genocídio] ou cidadãos. Mas às vezes
víamos pedaços de corpos despedaçados nos jardins das cidades ou na praia
de Gisenyi, às margens do Lago Kivu. Havia casas bombardeadas e você
podia sentir o cheiro da morte pairando por toda parte. Ao redor das grandes
cidades havia minas e você tinha que ter muito cuidado. Também me disseram
que eu deveria ter cuidado com cães vadios, pois eles estavam acostumados a
comer carne humana. O que me surpreendeu muito foi que havia pequenos
sinais de vida. Aos poucos foi voltando. No mercado de Gisenyi só se
encontravam batatas porque não tinham sido colhidas durante os massacres.
Nas ruas, os sobreviventes passeavam, com os olhos desfigurados. Crianças,
muitas delas órfãs, perambulavam na esperança de encontrar algo para comer.

63
Os ocidentais que trabalhavam em ONGs bebiam vinho tinto e faziam
churrasco. Essa discrepância me chocou.46

Tanto Scholastique quanto Alfredo Jaar e Bruce Clarke tiveram vivências distintas,
mas todos são testemunhas, segundo a definição realizada por Gagnebin. Cada um dos três
optaram por codificar suas memórias e experiências da barbárie e vivências do caos
instaurado pela violência e desigualdade em Ruanda por linguagens artísticas e materialidades
diversas.
O texto “O silêncio do sobrevivente: diálogo e rupturas entre memória e história do
Holocausto”, de Roney Cytrynowicz, nos fornece caminhos para a observação da memória
pós eventos traumático e como pode ser reconstruída. Tanto na literatura quanto nas artes
visuais identificamos a narrativa construída:

A memória procura um sentido e encadeia-o em outras construções que, do


ponto de vista da identidade pessoal, fazem sentido, criam nexos e
explicações, constroem uma espécie de auto-história. A memória procura
apaziguar os conflitos, fechar feridas, restaurar as ruínas, silenciar as dores;
ela tem compromisso com a subjetividade, com a reconstrução de uma
história pessoal que precisa encontrar saídas viáveis, até mesmo do ponto de
vista psíquico, para reconstruir uma vida, um futuro, e isso por mais que ele
conte das dores e das feridas. (CYTRYNOWICZ, p.131-132)

Em outra passagem do texto, Cytrynowicz reforça:

O testemunho tem seu valor imprescindível, moral, político, mas é preciso


jamais perder a perspectiva de que, para termos um quadro coerente e
consistente do que foi o Holocauto e para adquirir as ferramentas intelectuais
e políticas para pensar políticas de tolerância e de democracia, o registro da

46
Tradução própria para “ En tant que photographe, je suis arrivé au Rwanda pour un collectif d’associations.
C’était très compliqué. Pendant deux semaines et demie, j’ai voyagé aux quatre coins du pays. Je me déplaçais
en faisant du stop grâce aux véhicules des ONG, les seuls qui étaient en circulation. Les Rwandais n’avaient plus
rien. Pas d’électricité, pas d’eau potable : c’était le chaos. Je m’étais préparé à voir des montagnes de cadavres
mais je n’en ai pas vues. Pour des raisons de santé publique, les morts avaient déjà été enterrés par le FPR [le
Front patriotique Rwandais, un mouvement politico-militaire composé de Tutsi qui a mis fin au génocide] ou des
citoyens. Mais on voyait parfois des morceaux de corps déchiquetés dans les jardins des villes ou sur la plage de
Gisenyi, sur les rives du lac Kivu. Il y avait des maisons bombardées et on sentait cette odeur de mort qui planait
partout. Autour des grandes villes, il y avait des mines et il fallait être très prudent. On m’a dit aussi que je
devais me méfier des chiens errants, car ils étaient habitués à manger de la chair humaine. Ce qui m’a beaucoup
surpris, c’est qu’il y avait des petits signes de vie. Doucement, ça revenait. Sur le marché de Gisenyi, on ne
trouvait que des pommes de terre car elles n’avaient pas été récoltées pendant les massacres. Dans les rues, les
survivants déambulent, les yeux hagards. Des gamins, dont de nombreux orphelins, traînaient partout dans
l’espoir de trouver à manger. Les Occidentaux qui travaillaient dans les ONG buvaient du vin rouge et faisaient
des barbecues. Ce décalage m’a choqué.” Matéria disponível em:
https://www.lemonde.fr/afrique/article/2021/06/06/rwanda-a-kigali-un-jardin-de-la-memoire-pour-redonner-une-
presence-aux-disparus_6083070_3212.html

64
memória é insuficiente, mesmo resguardando incondicionalmente seu valor
ético como narrativa testemunhal da destruição. (CYTRYNOWICZ, p.135)

As memórias fragmentadas das testemunhas são organizadas pela inscrição pela


linguagem e materialidade, inserindo suas vivências e perspectivas particulares. Nessa
organização, os fatos não são exatamente como ocorreram pois passam pelo filtro da
percepção e subjetividade do autor. Não há como mensurar o quanto as obras produzidas
possuem de real e ficção. As obras produzidas por uma narrativa testemunhal marcam que um
fato ocorreu, como o caso do Genocídio Tutsi, porém, é importante entender que são índices e
não o fato em si.

2.3 Quando coletivos de bordadeiras reconstroem as memórias sobre Ruanda


Em relação ao genocídio de Ruanda, o bordado foi inserido como uma linguagem
pós-genocídio, na intenção de colaborar com a reeconstrução do cotidiano de mulheres
através de narrativas que enaltecem as paisagens do vilarejo, assim como seus costumes e
população. O bordado foi a fonte de renda de muitas mulheres após o genocídio e foi
propiciado por grupos de mulheres bordadeiras.
Semelhante às Arpilleras chilenas, o bordado relacionado ao trauma e ao testemunho
em relação ao genocídio de Ruanda ocorreu através de projetos como o Savane Rutongo -
Kabuye47, fundado pela artista Christine Rwagatare (1964-). O coletivo reuniu mulheres que
vivenciaram o genocídio de 1994 em ambos os lados da história, ou seja, mulheres do lado
hutus e do lado tutsi. Christine Rwagatare viveu em exílio no Congo e quando retornou para a
cidade de Rutongo, tornou o bordado uma oportunidade de renda para as mulheres da região.
As oficinas foram realizadas na igreja do vilarejo, em 1997 e muitas das participantes
do Savane Rutongo - Kabuye sabiam as técnicas do bordado devido às missionárias católicas
belgas que ofereceram oficinas em Ruanda no final da década de 1970 e 1980. O coletivo
potencializou o poder criativo e de reconstrução da identidade ruandense pós genocídio de
1994. Na década de 2010, em visita à Ruanda, a educadora e curadora norte-americana
Juliana Meehan conheceu a produção do coletivo e promoveu exibições dos bordados em
galerias norte-americanas desde 2011. As exibições das obras foram intituladas PAX Rwanda,
traduzindo para o português como paz Ruanda.

47
Site oficial: https://rutongoembroideries.com/

65
No livro Baratas, as memórias de Scholastique com sua mãe e irmã estabelecem
diálogos com imagens bordadas da interação de mães com seus filhos. Um ponto em comum
das narrativas de Scholastique com os bordados é através de cenas cotidianas em Ruanda. Um
exemplo: “Enquanto Alexia ficava em casa ocupada com os serviços domésticos, minha mãe
saía todas as manhãs, já nas primeiras luzes do dia, com minha irmãzinha Julienne às costas e
eu seguindo atrás, agarrada à sua canga.” (MUKASONGA, 2018, p.28) Tal passagem
reconstrói o afeto materno do ambiente familiar. O cuidado materno com as crianças, que
Mukasonga descreve na passagem citada, também é reconstituído em um dos bordados do
grupo Rutongo Kabuye: mulheres carregam seus bebês em sling enquanto carregam
alimentos em cestos suportados pela cabeça.

Figura 2948 - Imagem do bordado de Savage Rutongo - Kabuye, s/d

Fonte:cortesia de Juliana Meehan

No capítulo XIV “2004: na estrada do país dos mortos”, Scholastique narra seu
retorno ao país e, diante da ausência de suas referências familiares e afetivas, a escritora
retoma suas memórias que contrastam com a realidade experienciada naquele momento:

48
Disponível
em:<https://baristanet.com/2019/01/pax-rwanda-fine-art-embroideries-from-rwanda-celebrates-black-history-mo
nth-at-oakeside-bloomfield-cultural-center/> Acesso em 06 de junho de 2022.

66
Fecho os olhos e, sobre o cenário das lembranças, reposicionam-se as coisas
desaparecidas. E eis que, novamente, acolhem-me à entrada os grandes pés de
café carregados de frutos vermelhos. A seus pés, a manta de ervas secas é um
tapete sobre o qual adoro caminhar descalça. A trilha está ladeada de flores
amarelas, que Jeanne cuida com amor. Bem perto da casa, as bananeiras
desfrutam o caldo do cozimento do feijão; são elas que produzem as
variedades mais suculentas - as kamaramasenge, as ikingurube.
(MUKASONGA, 2018, p.177)

Figura 3049 - Bordado do Savane Rutongo - Kabuye, 2020.

Fonte:cortesia de Juliana Meehan

Em continuação à narrativa de Scholastique Mukasonga, a autora retoma a memória


de sua mãe através da afetividade e proximidade dos corpos no acolhimento:

Minha mãe reservou-nos os cachos mais bonitos para as férias, para nossa volta.
Diante da porta, um grande pé de mandioca funciona como toldo. Minha mãe
espera-me na soleira. Amarrou sua canga mais bonita, a que usa para ir à missa.

49
Disponível em:<https://www.trc-leiden.nl/trc/index.php/en/blog/1193-savane-kabuye-rwanda> Acesso em 06
de junho de 2022.

67
Abraçamo-nos longamente, como pede o costume, como que para nos impregnar
do calor dos nossos corpos. Ela entra em casa primeiro, e escuro o marulho
familiar da cerveja de sorgo que fermenta nas grandes jarras. Penetramosno
cômodo escuro. Minha mãe estende-me um canudo. Enfio-o no líquido fremente.
Estou em casa. (MUKASONGA, 2018, p.177-178)

Figura 3150 - Bordado do Savane Rutongo - Kabuye, sem títudo, s/d

Fonte:cortesia de Juliana Meehan

Como mencionado anteriormente, freiras belgas chamadas irmãs Lucienne e Zoé,


iniciaram em 1976 os ateliês de bordado em Rutongo, cidade à uma hora de Kigali, capital e
maior cidade de Ruanda. Um dos objetivos do ateliê era ensinar garotas que desistiram da
escola técnicas de bordado, costura e “bons costumes”. Os ateliês das irmãs belgas chegaram
a ter 300 participantes e funcionou sob comando das religiosas até o inicio do genocídio pois
as duas irmãs retornaram à Bélgica. É relevante para esta pesquisa a menção de outros dois

50
Disponível
em:<https://artbreakout.com/folk-art/pax-rwanda-embroideries-of-the-women-of-savane-rutongo-kibu
ye-travels-to-port-authority-building-gallery-on-42nd-street/> Acesso em 06 de junho de 2022.

68
grupos de bordadeiras no continente africano, ambos localizados na África do Sul, que
propiciaram renda financeira para as mulheres no pós Apartheid.
O primeiro projeto é The Kaross Embroiders, criado em 1988, por iniciativa de cinco
mulheres bordadeiras do povo Shangaan e Irma van Rooyen, artista visual sul-africana. No
começo, o grupo começou a criar os bordados sem a intenção de torná-los públicos, mas ao
longo do tempo, o projeto The Kaross Embroiders ganhou visibilidade e expandiu para mais
pessoas da população Shangaan e suas comunidades localizadas nas áreas de Letsitele e
Giyani, na província de Limpopo. Os bordados feitos por The Kaross Embroiders são feitos
em itens decorativos domésticos, como almofadas e toalhas de mesa.

Figura 3251 - Bordado do grupo The Kaross Embroiders, s/d

Fonte: Cortesia de Irma Van Rooyen

O grupo Mapula Embroidery Project também foi criado no fim dos anos 1980,
precisamente em 1989, também na África do Sul. “Mapula” significa mãe da chuva e a

51
Disponível
em:<https://www.iinfo.co.za/content/limpopo%E2%80%99s-finest-embroidery-kaross-studio-and-caf%C3%A9
> Acesso em 06 de junho de 2022.

69
criação do grupo foi parte de uma iniciativa da organização Soroptomists International,52 que
visa melhorar as condições de vida das pessoas no Winterfeld, situado a 70 quilômetros a
noroeste de Tshwane (Pretória), uma área rural na África do Sul. A população da região
possui um histórico conturbado e resultado de forças políticas, sociais, econômicas e
deixaram a área subdesenvolvida.

Figura 33 53- Mapula Embroidery Project, Parliament [sic], 1990s

Fonte: Fowler Museum at UCLA, X2011.8.1; Gift of William H. Worger and Nancy L. Clark.

Por meio do incentivo às mulheres, estimulando suas criatividade,habilidades e a


construção de uma comunidade de bordadeiras como uma organização sem fins lucrativos, o
projeto Mapula Embroidery Project aumentou o senso de auto-estima e confiança de mais de
200 mulheres e, por meio da geração de renda, supriu as necessidades básicas e melhorou a
vida experiências e perspectivas das mulheres e seus crianças além da medida. E em relação à

52
A Soroptimist International é uma organização mundial de serviços voluntários para mulheres que trabalham
pela paz e, em particular, para melhorar a vida de mulheres e meninas, nas comunidades locais e em todo o
mundo. fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Soroptimist_Internat
ional
53
Disponível em:<https://fowler.ucla.edu/a-look-back-ernest-cole-photographer/> Acesso em 06 de junho de
2022.

70
narrativa, os bordados do Mapula Embroidery Project são mais políticos do que os
produzidos pelo The Kross Embroiders.
Estabelecendo diálogos entre o contexto da produção de Joana Choumali em Ça va
Aller, em que a técnica do bordado foi utilizada como vestígio “cicatriz” de uma memória
traumática, os bordados do Savane - Rutongo também utilizam-se da mesma técnica como
inscrição da memória. Porém, no caso do grupo de Ruanda, o bordado possui a
intencionalidade de reconstruição de uma paisagem fragmentada pelo genocídio. Portanto, a
narrativa bordada não são cenas de violência sobre o genocídio, mas disparam e são motivos
para que mulheres que estiveram separadas por essa violência tenham a oportunidade de
recontarem suas histórias de maneira amistosa e coletiva.

2.4 Os diálogos estabelecidos entre literatura e bordado

O atentado em Grand-Bassam, tema abordado por Joana Choumali, e o Genocídio em


Ruanda, tema das obras bordadas de Savane Rutongo - Kabuye e literárias de Scholastique
Mukasonga, são experiências às que as artistas deram forma pela linguagem, mas com
diferentes formas. Enquanto obras artísticas, as técnicas e a linguagem são distintas:
Scholastique usa a escrita para seu testemunho, enquanto Savane Rutongo - Kabuye inscreve
imagens pelos fios que não temos relato se são cenas imaginativas ou se são memórias de um
evento real.
Em Ça va aller, Joana Choumali insere símbolos e cores às paisagens melancólicas.
Ao analisar ambos os trabalhos bordados, e em especial o do grupo Savane Rutongo - Kabuye
e o livro de Scholastique Mukasonga, é perceptível que o diálogo entre a literatura e o
bordado ocorre pela experiência de quem narra e o que se torna após a experiência ser
transmitida para a materialidade.
Por ser de um mesmo evento, darei ênfase às obras literária e bordada sobre o
Genocído de Ruanda. Ambas as obras assemelham-se pela tentativa de uma reconstrução de
identidade a partir de reorganizar a fragmentação de suas memórias sobre suas origens. Como
abordado ao longo desta pesquisa, a escrita, a inscrição sobre os acontecimentos em Ruanda,
é um meio de sobrevivência.
Ao considerar o corpo como lugar de saber e experiências, ambas as obras são
escrevivências, emprestando o termo da escritora brasileira Conceição Evaristo. O termo
cunhado pela autora mineira diz respeito à uma escrita de coletividade, pois segundo

71
Evaristo: "A escrevivência não é a escrita de si, porque esta se esgota no próprio sujeito. Ela
carrega a vivência da coletividade."54 Em matéria para o Itaú Cultural,55 a escritora define
escrevivência como:
Na verdade, quando eu penso em escrevivência, penso também em um
histórico que está fundamentado na fala de mulheres negras escravizadas que
tinham de contar suas histórias para a casa-grande. E a escrevivência, não, a
escrevivência é um caminho inverso, é um caminho que borra essa imagem do
passado, porque é um caminho já trilhado por uma autoria negra, de mulheres
principalmente. Isso não impede que outras pessoas também, de outras
realidades, de outros grupos sociais e de outros campos para além da literatura
experimentem a escrevivência. Mas ele é muito fundamentado nessa autoria
de mulheres negras, que já são donas da escrita, borrando essa imagem do
passado, das africanas que tinham de contar a história para ninar os da
casa-grande.

Mesmo que sejam obras de mulheres que não possuem a experiência de uma
ancestralidade que passou pelo tráfico do atlântico negro, no caso de Scholastique Mukasonga
e Christiane Rwagatare, ambas são mulheres que tiveram que migrar forçadamente devido à
perseguição por suas origens tutsi. Após a perseguição e genocídio ao seu povo, Mukasonga e
Rwagatare passaram suas experiências através de linguagens em que materialidade dos
suportes acolhessem as linguagens escolhidas. O corpo-memória dessas mulheres
demandaram tempo para a inscrição dessas vivências. Não são obras imediatas, foram escritas
anos após ao genocídio.
Ao analisar os trabalhos de bordado do coletivo e o livro Baratas, percebo que o
diálogo entre o bordado e a escrita reside na experiência de quem testemunha e isso está para
além da técnica. Embora os gestos sejam similares, o texto pela palavra e pela imagética estão
inseridos em linguagens diferentes e possuem suas diferenças em relação ao modo de
comunicar.
No entanto, suas experiências enquanto obra literária e obra visual podem ser
consideradas encruzilhadas, conceito defendido também por Leda Maria Martins como parte
da retórica africana e afro-brasileira. Segundo Martins (2021, p.196), as encruzilhadas são um
lugar terceiro, gerador dos efeitos da variedade de processos intersemióticos e transculturais,

54
http://www.iea.usp.br/noticias/a-escrevivencia-carrega-a-escrita-da-coletividade-afirma-conceicao-evaristo

55

https://www.itausocial.org.br/noticias/conceicao-evaristo-a-escrevivencia-serve-tambem-para-as-pessoas-pensar
em/

72
metonímia do segredo e metáfora das forças energéticas que iludem ou revitalizam o sujeito e
as culturas que o constituem.
Considerar arte e literatura como encruzilhadas é entender que o objeto publicado ou
exposto para a sociedade é o produto materializado de diversas experiências; do sujeito da
experiência, das memórias pessoais que são narradas ou representadas imageticamente, entre
outros. O curador Moacir dos Anjos, em seu texto Arte como encruzilhada56, afirma:

Encruzilhada como espaço simbólico de atravessamento entre diferentes


etnias, línguas, saberes, crenças e fatos; como “lugar radial de centramento e
descentramento, intersecções e desvios, textos e tradução, confluências e
alterações, influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e
convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação”. Como espaço
para encontros por vezes amistosos e, outras vezes, conflitantes e mesmo
brutais. [...] território do sensível em que a história é reconfigurada e contada
de maneira distinta da que informa e rege discursos hegemônicos de poder,
tornando-a porosa a acontecimentos, vozes e atos antes dela expurgados. Arte
como contra-história. Arte como encruzilhada.

Tanto os trabalhos de Mukasonga e Rwagatare apresentam perspectivas sobre o


genocídio de maneiras distintas: o livro narra detalhadamente a história da rivalidade entre
hutus e tusi a partir da vivencia da escritora e seus familiares; o trabalho de Savane Rutongo -
Kabuye reconstrói imagens de afeto em um território em reconstrução, assim como os
bordados de Joana Choumali sobre o atentado na Costa do Marfim.
Em seu sentido figurado, encruzilhada significa estar em um momento em que é
necessário tomar alguma decisão. Provavelmente, trabalhos artísticos que possuem essa
característica colocam o observador no lugar de atenção e decisão. Por exemplo, o leitor ao
conhecer a narrativa de Scholastique Mukasonga em Baratas, não fica ileso em tomar a
decisão de não permitir que demais genocídios ocorram. Pela escrita ou pelo bordado, o
testemunho e a escrevivência do sujeito da experiência são generosos por permitirem a
sociedade a acessar um recorte da memória que só essas autoras possuem.

56
https://revistazum.com.br/colunistas/arte-como-encruzilhada/

73
Considerações finais

Mediante ao que foi apresentado, a aproximação do bordado e a escrita pelo contexto


do testemunho ocorre pela experiência vivenciada pelo sujeito. Essa experiência é conduzida
pelo corpo sobre a materialidade que toma forma pela palavra, símbolos ou imagens. O tema
é vasto e minha pesquisa chegou a dois capítulos e, por isso, eu considero importante dar
continuidade aos estudos em um programa de doutorado.
Sobre o desenvolvimento da pesquisa, eu acredito que a metodologia escolhida teve
dificuldades pois dos três objetos, a série Ça va aller, o livro Baratas e o trabalho do Savane
Rutongo - Kabuye, o único que tive a oportunidade de “ver”e “tocar” pessoalmente foi o livro
de Scholastique Mukasonga. Às obras bordadas como objeto de pesquisa, eu tive acesso
somente online. Acredito que o contato ao vivo com essas obras possibilitaria uma análise
mais profunda dos objetos. Porém, mesmo com esse entendimento, eu considero que alcancei
os objetivo gerais da minha pesquisa: ampliar
O percurso da pesquisa partiu de experiências pessoais e profissionais com artes
têxteis e a escrita. Sendo assim, os acontecimentos em minha vida pessoal influenciaram no
andamento da escrita. O falecimento repentino de minha mãe e responsabilidades pessoais e
profissionais impossibilitaram que eu propusesse mais oficinas presenciais, como a que eu
realizei em novembro de 2022. Colocar a teoria na prática, como apresentar para graduandos
de Letras minha pesquisa e estar aberta a ouvir opiniões e críticas enriqueceram mais o
repertório apresentado nesta dissertação.
Ao definir a interlocução com a literatura, a pesquisa expandiu suas possibilidades de
diálogo entre linguagens como as artes visuais e a literatura. Afirmo que, apesar de toda a
dificuldade vivenciada por mim no período de mestrado, esta pesquisa colabora com a minha

74
atuação profissional. Acredito também que estimulará o público interessado nessa temática
interdisciplinar a ampliar a percepção sobre os diálogos da imagem e a palavra.

Referências Bibliográficas

ANJOS, Moacir Dos. Da morte violenta e do bordar outro tempo. Revista Zum. Disponível
em: https://revistazum.com.br/colunistas/bordar-outro-tempo/. Acesso em 28 de junho de
2021.
ANJOS, Moacir Dos. A arte como encruzilhada. Disponível em:
https://revistazum.com.br/colunistas/arte-como-encruzilhada/. Acesso em 20 de janeiro de
2023.

ASSMANN, Aleida. Espaços da Recordação: formas e transformações da memória cultural.


Campinas: Editora da Unicamp, 2011.

BADMUS, I.A; OGUNMOLA, D. Política Etnorreligiosa, Conflito Intra-estatal e o Futuro da


Democracia na Costa do Marfim. Trad. Grazielle Furtado Alves da Costa. CONTEXTO
INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol.26, n o 2, julho/dezembro 2004, pp.395-430.
Disponível em: https://www.scielo.br/j/cint/a/PbSWVxS8bGZGGhCkL3ZVkqf/?lang=pt
format=pdf. Acesso em 20 de junho de 2021.

BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Embaixada da República de Côte d’Ivoire.


Costa do Marfim: O livro na Rua. Série Diplomacia ao alcance de todos. Coleção de países.
2010. Disponível em:
http://funag.gov.br/biblioteca/download/784-Livro-na-rua-Costa-do-Marfim.pdf

CARVALHO, José Murilo de. Os bordados de João Cândido. Hist. cienc. saude-Manguinhos
[online]. 1995, vol.2, n.2, pp.68-84. ISSN 1678-4758. Disponível em <
https://www.scielo.br/pdf/hcsm/v2n2/a05v2n2.pdf> Acesso em 9 de outubro de 2020.

75
CHAGAS, Claudia Regina Ribeiro Pinheiro das. Memórias bordadas nos cotidianos e nos
currículos. 2007. 101 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Disponível em
<https://www.bdtd.uerj.br:8443/handle/1/10720> Acesso em 14 de janeiro de 2023.

CHOUMALI, Joana. Joana Choumali Embroiders iPhone Photographs as a Healing


Meditation. Colossal: 4 de abril de 2018. Entrevista concedida a Kate Sierzputowski.
Disponível em:
https://www.thisiscolossal.com/2018/04/embroidered-iphone-photographs-by-joana-choumali
/. Acesso em: 27 de mai. de 2019.

CHOUMALI, Joana. Joana Choumali’s Vividly Embroidered Photographs Are Expressions of


Hope. Artsy: 12 de novembro de 2020. Entrevista concedida a Audrey Lang. Disponível em
https://www.artsy.net/article/artsy-editorial-joana-choumalis-vividly-embroidered-photograph
s-expressions-hope/amp

CYTRYNOWICZ, Roney. O silêncio do sobrevivente: diálogo e rupturas entre memória e


história do Holocausto in: História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes.
Campinas: Unicamp, 2003.

FREUD, S. Nota sobre o “bloco mágico” In: Obras completas: O Eu e o Id “autobiografia” e


outros textos (1923- 1925). Trad. Paulo Cezar Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2011. v. 16.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar Escrever Esquecer. São Paulo: Editora. 34, 2006.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, história, testemunho. in: História, memória, literatura:
o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Unicamp, 2003.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro.

GOMES, Adriana dos Santos et al. O CAMINHAR É PARA TODAS? Uma abordagem de
mulheres latino-americanas sobre derivas e flâneries na contemporaneidade. Anais XVIII
ENANPUR 2019. Disponível em:

76
http://anpur.org.br/xviiienanpur/anaisadmin/capapdf.php?reqid=867. Acesso em 01 de julho
de 2021.

HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem; tradução de Marcia Sá Cavalcante


Schuback. - Petrópolis, RJ : Vozes; Bragança Paulista, sr: Editora Universitária São
Francisco, 2003.

KAMENSZAIN, Tamara. Bordado y costura del texto. Historias de amor (y otros ensayos
sobre poesía). Buenos Aires: Paidós, 2000. pp. 207-211. Trad. Clarissa Lyra. Disponível em
http://dtllc.fflch.usp.br/sites/dtllc.fflch.usp.br/files/Kamenszain_Bordado%20e%20costura%2
0do%20texto.pdf Acesso em: 6 de nov. de 2020.

LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
Coleção: Experiência e Sentido.

LOPES, Fabiana. Rosana Paulino: o tempo do fazer e a prática do compartilhar. In: Rosana
Paulino: a costura da memória. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2018.

MARTINS, Leda Maria. Performance do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de


Janeiro: Cobogó, 2021.

MUKASONGA, Scholastique. Baratas. São Paulo: Ed NÓS, 2018.

SIMIONI, A. P. C. Bordado e transgressão: questões de gênero na arte de Rosana Paulino e


Rosana Palazyan. Proa – Revista de Antropologia e Arte [on-line]. Ano 02, vol. 01, n. 02,
nov. 2010, p. 3. Disponível em http://www.ifch.unicamp.br/proa/ArtigosII/anasimioni.html
Acesso em: 9 de out. de 2020.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a


ficção. Letras, Revista do mestrado em Letras da UFSM. Santa Maria, RS, UFSM; CAL, n.
16, jan./jul. 1998, p. 9-37. Disponível em:
https://periodicos.ufsm.br/letras/article/view/11482/6948. Acesso em: 28 de out. de 2020.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. (Org.) História, memória, literatura: o testemunho na era das


catástrofes. Campinas: Unicamp, 2003.

77
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes. Gragoatá.
Publicação do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense,
Niterói, n.1, p. 101-118, EdUFF, 2008.

SILVA, Renato Araújo da. A Arte Apliqué do Benim. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2012.
Disponível em:
http://www.museuafrobrasil.org.br/docs/default-source/publica%C3%A7%C3%B5es/silva-re
nato.pdf?sfvrsn=0. Acesso em 18 de janeiro de 2023.

ROCHA, Gilmar, “O verbo e o gesto: corporeidade e performance nas folias de reis”,


Etnográfica, vol. 20 (3) | 2016, 539-564. Disponível em:
https://doi.org/10.4000/etnografica.4658 . Acesso 10 de janeiro de 2022.

SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Trad.: Rubens Figueiredo. São Paulo, SP: Companhia das
Letras, 2004.

78
APÊNDICE A - Oficina aplicada na disciplina “Aspectos da francofonia no espaço
africano e afro-antilhano”, em 23 de novembro de 2022.

No dia 23 de novembro de 2022, eu fui convidada para apresentar minha pesquisa


para a turma da disciplina eletiva “Aspectos da francofonia no espaço africano e
afro-antilhano”, ministrada pelas Professoras Ana Claudia Romano e Lígia Ferreira. O
convite foi para apresentar um pouco sobre a minha pesquisa e falar sobre a escritora
Scholastique Mukasonga pois dialogava com a proposta da disciplina.
A oficina foi dividida em dois momentos: a primeira parte era teórica e consistia em
uma apresentação breve da pesquisa. A segunda parte foi uma atividade prática, os
participantes foram convidados a experimentarem a técnica do bordado. Eu levei alguns
materiais de bordado, como algodão cru, linhas, agulhas e bastidores, e convidei os
graduandos a refletirem sobre suas memórias e como transportar para a materialidade do
bordado.
Os resultados apresentaram relação com a escrita, ao retomar memórias em relação de
como a pessoa aprendeu a escrever, passando por memórias de paisagens e experimentação
poética. Alguns participantes também experimentaram o bordado como um processo de
transposição da palavra, pois transformaram poesias próprias em uma imagem bordada.
Outros participantes apenas experimentaram o bordado, criando imagens fictícias. Foi uma
atividade importante pois intensificou a percepção que o bordado é uma técnica que causa
muita curiosidade pois é afetiva, já que remete à família e figuras matriarcais, e relaciona-se
diretamente com a memória.

79
Apêndice B - Início da oficina

80
Fonte: Acervo Pessoal

APÊNDICE C - Inicio da oficina

81
Fonte: Acervo Pessoal

APÊNDICE D - Apresentação do resultado pelos participantes

82
Fonte: Acervo Pessoal

83
APÊNDICE E - Apresentação do resultado pelos participantes

Fonte: Acervo Pessoal

84
APÊNDICE F - Apresentação do resultado pelos participantes

Fonte: Acervo Pessoal

85
APÊNDICE G - Apresentação do resultado pelos participantes

Fonte: Acervo Pessoal

86
APÊNDICE H - Apresentação do resultado pelos participantes

Fonte: Acervo Pessoal

87

Você também pode gostar