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Autor: Vong
Revisão: Tany Isuzu
My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!
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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!
— Aqui, deu R$ 15,80 pelos dois capuccinos e pelo croissant — disse, esten-
dendo a comanda que já estava pronta. — O mesmo de sempre.
— É. — O homem fechou a caderneta de anotações, marcando alguma pá-
gina com a caneta. Pegou a carteira e, de lá, retirou um cartão de débito. — Passa
lá pra mim.
— Qualquer dia você vai acordar sem nada na conta porque eu vou ter pas-
sado todo o seu saldo na maquininha da padaria. Você que não fica esperto com
isso, não. — A frase terminou no outro lado da loja, com o garçom rindo enquanto
digitava o valor da conta e, em seguida, inserindo a senha. Retirou as duas vias e
voltou para entregar uma delas. — Guarda aí nessa sua montueira de papel.
— Claro. E se você estourar meu cartão na padaria... — E amassou o papel,
jogando-o no lixinho perto do banheiro. Um lançamento bonito. — É lá que vão
encontrar seu corpo no outro dia.
— Que senso de humor bom, hein, Alfredo. Agora xispa, vai, eu preciso lim-
par essa bagunça aí.
No mesmo instante, o garçom empurrou seu colega para o lado e começou
a recolher os papéis.
— Não mexe nisso, Neto. — Alfredo tirou a mão do colega de sua mesa e
passou, ele mesmo, a organizar tudo em uma pilha única de papéis, moedas e cli-
pes. Com tudo terminado, pegou sua mochila velha e depositou tudo lá dentro,
tendo cuidado para deixar seu tablet em outro compartimento. — Já falei pra você.
— Foi mal... — E estendeu a mão para o colega. — Bom trabalho pra ti. Volte
sempre.
— Obrigado, Neto — disse, respondendo o gesto. — Pra você também.
Alfredo colocou a mochila nas costas e tentou não esbarrar em ninguém
enquanto saía da padaria. Lá fora, o sol calmo da manhã contornava prédios, flo-
riculturas e lojas de variedades. Após a cegueira momentânea, uma coisa em es-
pecial lhe chamou a atenção e lhe despertou grande saudade dos capuccinos e
croissants. Uma viatura de polícia que quebrava todo o clima laranja-matutino do
qual Alfredo tanto gostava.
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com a vítima semana passada, ele não apareceu por lá no mesmo dia em que o
corpo dela foi encontrado, ele mudou a bolsa e as roupas e não pediu nada, além
de dizer que o serviço estava completo?
— Eu achei que você não fosse entender — pontuou Francisco, enquanto
pegava mais papéis dentro de sua bolsa. Um pequeno sorriso estampava seu rosto
de poucas horas de sono.
— Eu não sou tão devagar assim, velho — retrucou, colocando a comanda
dentro do bolso de sua calça jeans. — Mas isso não diz muita coisa... Não é uma
prova concreta. Qualquer um podia ter sumido por qualquer motivo. Mas a coin-
cidência maior é os dois terem conversado... Eu não sei como a gente vai fazer
isso. É tudo muito...
E parou de falar. Mariana se debruçou sobre o volante do carro e olhou para
o céu. Desde que ela e Francisco aceitaram o caso, suas costas nunca mais tinham
visto descanso. Era como se seus músculos estivessem sempre tensionados, fir-
mes, imóveis. Rígidos. Imutáveis. Talvez fosse mais uma daquelas vezes em que o
corpo se torna o reflexo da alma, e Mariana estava se sentindo assim: incapaci-
tada. Não tinha como voltar atrás. Cada segundo que ela passava olhando o vazio
do céu era uma criança que poderia ser encontrada nos arredores da cidade. Mais
uma. E outra. E outra. E assim estava sendo há dois meses.
Os dias ficaram um pouco mais vazios depois desse caso. Saber que seu
tempo pode custar a vida de outra pessoa é um fardo pesado de se carregar. Tão
pesado que talvez suas costas fiquem tensionadas, firmes e imóveis. E talvez mais
pesado do que o que pode acontecer, seja o que já aconteceu. Será que tinha algo
na cena do crime que não tinham visto, ou precisavam analisar o corpo de novo,
ou corriam atrás do cara loiro e prendiam-no logo ou...
— Eu tô perdida — disse, abaixando o olhar e encarando seus sapatos sujos.
A dor nas suas costas aumentou com o gesto. Mas ela continuou ali.
— Mari. — A voz de Francisco ecoava distante, mesmo estando ao seu lado.
— A gente tá tentando o máximo que pod-
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— Claro que não. Um investidor precisa saber qual sistema seu estabeleci-
mento utiliza para ver se eles realmente são tudo o que dizem, se são organiza-
dos... E calhou que o funcionário que me atendeu, um rapaz que você conhece
como Neto, sem querer, me mostrou o cadastro do nosso loirinho. — Estava im-
possível dormir com o sol batendo na cara. Francisco voltou o banco à posição
original, não muito contente. — Agora precisamos ver se o senhor Reinaldo Oli-
veira Martins não mentiu no endereço.
O carro estava ficando muito quente, então Mariana deu a partida no carro
para ligar o ar condicionado. Suas costas ainda pesavam, mas as pontadas pare-
ceram diminuir. O rosto de Francisco ostentava grandes olheiras, mas os bocejos
não apareciam há um tempo.
O investigador cansado jogou sua mochila para o banco de trás e recostou
no banco. Sua companheira olhou atentamente para os lados, ligou a sirene e saiu
cuidadosamente daquela vaga inapropriada. Nos retrovisores, viram várias pes-
soas saindo das casas e seguindo a viatura com os olhos. Seria algum crime, será
que estavam perseguindo alguém? Alguém morreu?
— Mari. — Já de olhos fechados e com a voz sumindo de sua garganta, Fran-
cisco chamou a atenção da companheira de trabalho. — A Elisa vai descansar em
paz logo, logo.
— É o que eu espero, Chico — sussurrou, vendo aquele homem de barba mal
feita e colete de brechó cochilando ao seu lado. — Agora dorme aí. Te acordo
quando chegar em casa.
Não houve resposta. O sono de Francisco geralmente era leve, então ela
evitou ao máximo passar por cima de qualquer buraco para não o acordar no meio
de um pesadelo turbulento — frequentes até demais na vida do investigador. Ele
saberia se virar.
As olheiras de Francisco não eram apenas reflexos do tempo de trabalho.
Eram o registro de um passado que sempre ressuscitava.
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A noite em Monte Alegre costumava ser muito calma. Se você passasse pe-
las ruas após às 19h, dificilmente encontraria alguém. Na maioria dos casos,
quando essa regra não se aplicava, duas exceções eram claras: adultos sentados
em cadeiras na calçada jogando conversa fora ou jovens fazendo coisas de jovens.
Em ambos os casos, ninguém se preocupava muito. E assim a noite permanecia
calma.
Em um dos vários sítios que rodeavam o município, um grupo de crianças
aproveitava a distração dos pais para correr em volta da propriedade. O churrasco
de aniversário do proprietário começara no dia anterior e se estendia até aquela
noite de sábado, propiciando momentos muito prazerosos para a maioria dos en-
volvidos: especialmente às crianças entediadas. Com o cair da noite, já que nin-
guém conhecia o lugar, decidiram ir até o portão de entrada da fazenda e procurar
fantasmas e assombrações.
Para isso, seguiram o caminho de terra batida, feito a partir da passagem
de veículos naquele mesmo lugar. Por isso, passar por ali era mais seguro do que
correr pelo resto do campo, já que evitariam sapos, pedras escondidas e buracos
perigosos. A única coisa que não podiam evitar era a vigilância constante da
grande lua cheia, que projetava, sobre eles, as sombras das árvores paralelas à
estrada e servia de lembrete para não se meterem em confusão.
— Chico, vem logo! — gritou a menina de óculos.
— Calma, eu não sou rápido assim — respondeu o garotinho.
— Ih, Chico, você não vai ver a sereia se ficar igual uma lesma! — Um menino
rechonchudo gritou mais à frente, se virando para conferir se seu amigo ainda
estava lá.
— Eu vou, sim, vocês que não vão ver ela se ficarem apressados desse jeito.
Ela vai ficar assustada com a cara feia de vocês e vai ir embora — retrucou, dimi-
nuindo o passo propositalmente. — Fora que tá de noite, eu não quero tropeçar...
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— Ana, vai lá com ele. — A última integrante do grupo sussurrou para a me-
nina de macacão. — Ele tá com medo, mas o João vai ficar tirando com a cara dele
se eu falar em voz alta. Você defende ele qualquer coisa.
— Tá bom... Mas fica aí na frente, qualquer coisa você me grita.
A menina de óculos assentiu. Então, Ana se abaixou e desamarrou seus sa-
patos, começando a amarrá-los em seguida. O grupo de crianças passou por ela
e, vendo a situação, sequer deram muita atenção: o papo sobre fantasmas e as-
sombrações era mais importante e muito mais legal. Quando Francisco passou
por ela, Ana se levantou e se posicionou ao lado do garoto amedrontado.
— Oi — disse, enquanto tentava manter o ritmo de caminhada pareado com
Francisco. — Por que você tem medo de fantasma? Essas coisas nem existem de
verdade.
— Existem, sim, minha vó me falou. — O garoto continuou com os olhos
firmes no chão, usando a luz da lua como um farol que evitaria seus tropeços em
meio ao terreno irregular e lamacento. — Ela já viu lobisomem, alamoa, mapin-
guari, até boca-de-ouro... E me contou.
— Mas toda vó fala isso pra assustar criança, Chico.
— Eu sei, mas e se existir? Você acha que as assombração iam deixar a gente
só ver elas e ir embora? — Desviando seu olhar do caminho, encarou a garota ao
seu lado.
Ana sentiu um calafrio subir pela sua espinha. Talvez fosse a primeira vez
que tivesse pensado nisso. Era um medo genuíno de que alguma coisa pudesse
sair de dentro daquelas árvores e pegá-los todos de uma vez, acabando com tudo
sem deixar rastros. Um lobisomem grande, de pelos pretos e olhos vermelhos in-
cendiados igual ao sangue que ficaria no caminho dos seus dentes de marfim. Eles
morreriam ali, sob a sombra projetada das árvores em uma noite de lua cheia.
— Talvez você tá certo — disse a menina, chutando o chão enquanto cami-
nhava. — Mas talvez você tá errado também.
— É, eu não –
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— Gente, achei o lugar! — gritou uma voz fina lá da frente da fila. — Vem cá
todo mundo! Francisco, traz a lanterna!
Ana agarrou a mão de Francisco e puxou o menino para o lugar em que as
outras três crianças se aglomeravam. Tomando cuidado com o piso lamacento das
chuvas dos dias anteriores, Francisco iluminava o chão por onde passava. O grupo
todo acabou por reunir em uma bifurcação da estrada que não mais levava ao
portão central, mas a uma casa de madeira mais afastada dali. Parecia o lugar ideal
para se encontrar algo medonho.
— Então a gente vai lá, mas ninguém pode gritar. — A menina de óculos
tomou à frente do grupo e, de brinde, também tomou a lanterna da mão de Fran-
cisco. — Eu vou na frente e, se alguém ver qualquer coisa, fala pros outros verem
também. Tá bom?
Todos balançaram a cabeça, concordando com a ordem. E assim viraram à
esquerda, indo em direção à pequena casa de madeira que parecia abandonada.
Até que a luz da lanterna, que agora estava sob posse da menina de óculos, deixou
de iluminar parte do chão e subiu até a casa. A velha fachada estava iluminada.
— Que lugarzinho... eca. — Ana murmurou, apertando ainda mais a mão de
Francisco. — Parece que ninguém vem aqui faz uns 98 anos.
A pequena casa de madeira não parecia ter uma madeira que prestasse,
uma tábua no lugar, um fragmento conservado. Se as crianças estivessem visi-
tando o lugar à luz do sol, provavelmente notariam que sua estrutura também não
era firme e a casa estava levemente inclinada. Mas a luz fraca da lanterna não os
permitia observar esse detalhe, apenas atestar que aquele lugar servia de resi-
dência de cupins, aranhas e lagartas. Cercada pela grama lamacenta, as madeiras
marrons-carvão construíam uma casa com teto, chão, interior e exterior sofrendo
sob a necrose do tempo.
— Eu não quero entrar aí, não... — sussurrou Francisco. — Ana, a Isa tá
doida...
— Ela vai abrir a porta... — sussurrou de volta.
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— Tá... Mas e a lanterna? Eu não vou entrar num quarto escuro numa casa
fedida sem a lanterna.
— Tá... Vocês vão primeiro sem a lanterna e depois a gente entra pra ver o
resto com a lanterna — pontuou Isabela. — Então vocês dois veem o quarto pri-
meiro, e eu e o João vamos dar a volta e ver se tem alguém vindo, ficar de tocaia,
essas coisas. Depois a gente inverte.
— Tudo bem por mim — disse, pegando a lanterna da mão de João. — Chico,
vamos?
— Tá...
As duas crianças permaneceram imóveis enquanto as outras duas saíam. A
porta ficou entreaberta no caso de alguém precisar sair correndo. Mesmo assim,
a menina com a lanterna e o menino com medo não estavam com coragem o su-
ficiente para dar o primeiro passo. Francisco sabia os perigos que podiam rodear
a casa e desconhecia as possibilidades de eles existirem. Ana desconhecia os pe-
rigos, mas sabia que as possibilidades eram pequenas. Então, na perfeita assin-
cronia, os dois deram o primeiro passo.
A menina tremia a mão enquanto apontava a lanterna para todos os lugares
que estavam sem iluminação por muito tempo. Para cima, só havia vigas de ma-
deira corroídas pelo tempo e ornadas com teias de aranha. Para a esquerda, uma
pia de pedra que formava musgo e exalava um cheiro insuportável, misturando
comida estragada com resto de pequenos animais mortos. Para baixo, o piso fofo
afundava com cada passo. Para a direita, um quarto.
Nenhum móvel, nenhuma lareira, nenhum rastro de vida. As crianças da-
vam passos lentos e contidos, olhando para todos os lados. Somente conseguiam
ouvir o som da própria respiração e assim foram indo, lado a lado, quase um único
ser, até chegarem à frente da porta de madeira. Assim como na entrada, não havia
maçaneta: só um buraco com correntes soltas.
— Chico, vamos fazer assim... — sussurrou, inclinando um pouco a cabeça
para chegar mais perto de Francisco, mas sem perder a porta de vista. — Você
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chuta a porta e eu vou ficar com a lanterna apontada. Se tiver alguma coisa, a
gente já sai correndo, tá bom?
— Vou tentar, mas eu não sou muito forte, o João é que tinha que... — res-
pondeu, levantando a perna trêmula.
Em poucos segundos, a porta se abriu com um estrondo. O menino que
causara o barulho estava no chão, tentando se recompor após o golpe. A perna
doía um pouco, talvez ele tivesse colocado muita força no chute. Na verdade,
quase certeza que foi justamente o que aconteceu. Agora, a porta estava escanca-
rada e revelava nada mais do que uma sala totalmente escura.
— Nossa, não tem uma luz aí dentro... — sussurrou a garota. — Pega a minha
mão, você precisa ficar de pé para me dar uma luz.
Ana estendeu a mão para o amigo, tentando mirar nos seus olhos, ainda que
a escuridão dificultasse essa tarefa. O pequeno foco de luz em sua mão servia
apenas para ver os contornos do rosto de Francisco. Mesmo assim, ela sabia que
ele estava olhando no fundo de seus olhos. E assim, ele se levantou em um im-
pulso, tirou a poeira das roupas e encarou o cômodo escuro.
— Agora pega a lanterna e me ilumina — disse, estendendo o pequeno faro-
lete para seu amigo. — E vem atrás de mim, se eu gritar, você nem pense em me
deixar no escuro.
— Claro, claro... — respondeu, apontando o foco de luz para a pequena sala
escura. — Vai lá, só não entra no meio da luz, se não aí vai escurecer mais lá na
frente.
— Mas mesmo a lanterna não tá dando conta desse escuro... Eu vou entrar
mais perto da porta pra você chegar mais perto.
E assim foi. A menina de macacão se colocou na ponta dos pés e projetou a
cabeça para a frente, acompanhada pela respiração pesada do menino que ilumi-
nava seu caminho logo atrás.
Ana chegou perto do batente da porta. Entre ela e o outro lado do batente
da porta, caberia uma outra pessoa. Francisco estava naquele espaço, um pouco
atrás, tremendo as mãos. E ela deu o primeiro passo quarto adentro. Seu pé foi
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quase totalmente consumido pela escuridão. Ela colocou o pé um pouco mais para
dentro, verificando se o chão ainda estava ali. Estava.
Então, foi um segundo passo lento. Moveu o pé devagar. Colocou-o no chão.
Firme. Colocou a cabeça um pouco mais para dentro. Olhou para trás, viu a luz.
Olhou para frente, viu que alguns contornos estavam aparecendo. E continuou.
O menino atrás fez a mesma coisa, quase que imitando os passos da menina
de macacão jeans enquanto tentava não tremer muito sua mão O silêncio da casa
reinava absoluto, pontuado por respirações pesadas. E assim foi: até Francisco se
deparar com o batente da porta.
Um estrondo.
— Chico! Chico, a porta tá fechou! Chico, me ajuda! — gritou a menina, se
virando quase no mesmo instante em que sua visão escureceu completamente.
— Ana! Ana, eu não se- — respondeu, jogando a lanterna no chão e batendo
de volta na porta. A menina que estava à sua frente acabara de desaparecer. — Eu
não fiz nada, eu juro!
— Francisco, a porta não abre! Empurra ela pra cá, eu vou sair da frente! —
A voz da menina ecoou e foi diminuindo, pouco a pouco. — Vai!
Francisco tomou distância na completa escuridão. Ergueu o pé e chutou a
porta com toda a sua força. Mesmo assim, ela não se mexeu.
— Isa, João! A porta bateu, a Ana tá presa lá dentro! — gritou o garoto. Em
seguida, tentou pegar a lanterna no chão, mas sem sucesso. — Alguém vem me
ajudar, por favor!
— Chico, chama meu pai — respondeu, sua voz saindo entre soluços. — Vai
logo!
— Eu vou, me espera aí, eles não tão me ouvindo lá fora, eu já volto!
No momento em que o garoto se virou de costas para a porta, sentiu um
mormaço quente tomando conta de toda a casa. A noite fria se tornou noite
quente em um movimento rápido quando Francisco voltou-se à porta. Mais do
que o calor do desespero, sentia o próprio fogo.
— FRANCISCO! — A menina gritou, na porta que ficou para trás.
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Por entre as tábuas úmidas que recobriam o piso, a luz amarelada surgia.
No tempo de Francisco perceber o grito da amiga, a sola de seu sapato esquentou
e tudo à sua volta começou a adquirir cor: um amarelo, laranja, vermelho. Um
galpão velho e vazio. Sem nada. Apenas tábuas agora incandescentes, fomentando
as chamas que tomavam conta do lugar. E dentro de um cômodo, trancado por
trás de uma porta que não parecia ser capaz de suportar o calor, os gritos torna-
vam-se cada vez mais altos.
O estralo da madeira se misturava com os gritos de Ana e com as batidas
fortes do coração de Francisco, que agora se voltava à porta de onde os gritos
ecoavam. Incapaz de ouvir qualquer outro som, apenas bateu na porta incessan-
temente enquanto o calor e o brilho repentinos o envolviam. Seus gritos se mis-
turavam com os gritos da amiga. Seu choro de desespero se misturava com o suor
do pânico.
Isso não faz sentido.
As chamas começaram a tomar conta do teto e das paredes. O calor subia
pelo corpo de Francisco, que ainda batia na porta e tentava empurrá-la com gol-
pes fortes de ombro. Já não mais sentia sua pele. Queria apenas que a porta se
mexesse.
— FRANCISCO!
A partir desse ponto, Francisco se lembraria apenas da visão de uma porta
fechada que não era consumida pelo fogo. Do grito. Do choro. Da confusão.
Desse episódio, ficou sabendo depois que seus amigos relataram que a casa
pegou fogo espontaneamente e eles só ouviram seus gritos depois disso. Nada de
porta trancada nem nada. Quando tudo começou a queimar, correram para tirar
seu corpo caído à frente da porta. Isabela e João se juntaram e conseguiram ar-
rastar o corpo de Francisco para fora dali.
Logo os adultos chegaram e levaram todas as crianças para o hospital. Mas
Francisco ainda estava inconsciente, então só acreditou depois que lhe contaram
tudo o que aconteceu.
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— É legal ter você por perto. Principalmente porque eu não preciso andar
com as minhas chaves por aí.
— Eu não te culpo.
Avançando em direção ao portão automático, Francisco estendeu o braço e
tocou no metal frio. Subitamente, as válvulas começaram a trabalhar e o portão
começou a subir. Em poucos instantes, foi revelada uma linda área frontal: com
várias plantinhas, bebedouros para beija-flor e uma pequena mesa de refeições, a
qual ostentava toda a beleza de um gato preto dorminhoco.
Ao passarem pelo portão, as válvulas voltaram a funcionar. O portão estava
fechado. Agora, restava replicar o mesmo truque com a porta principal e quais-
quer outras que aparecessem no caminho.
— Eu também adoro isso — completou o policial, aproveitando para fazer
carinho no gato enquanto passava por ele. — E o Aurélio também, né, filho?
— Ele também consegue abrir coisas magicamente? — perguntou Mariana
que, não resistindo, também fez um pouco de carinho no felino.
— Ele consegue abrir a minha carteira e tirar de lá uma ração muito cara.
Parece mágica mesmo.
Mariana conhecia bem o lugar, então já tirou os sapatos na entrada e deitou
no sofá de qualquer jeito, jogando-se por cima dos travesseiros macios. Era uma
casa do jeito que Francisco parecia gostar: quase sem móveis, apenas com o es-
sencial para a sobrevivência de um homem e de um gato.
— Bom, e o que fazemos agora? — perguntou Mariana, se espreguiçando e
se ajeitando no sofá. — Você vai querer um cafezinho?
— Se puder fazer, eu vou ajeitar as coisas no quartinho ali. Colocar no qua-
dro o que já sabemos e o que ainda não sabemos... Esse trabalho todo pra gente
terminar isso logo.
— Tá bom. Vou passar um pretinho pra gente e já te encontro lá.
Mesmo que quisesse ficar deitada confortavelmente, Mariana queria ainda
mais que esses meses chegassem ao fim. E para que pudessem pensar, precisavam
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de café. E para que conseguissem saber o que pensar, precisavam estar organiza-
dos.
O quarto de anotações de Francisco era um cômodo não utilizado de sua
casa que, com o tempo, foi se tornando um depósito de casos policiais. Armários
de metal e prateleiras suspensas enfeitavam as paredes brancas, exceto por uma
delas, que segurava um grande quadro branco cheio de fotos e informações. A
mesa central tinha mais fotos e mais recortes — e Francisco organizava por lá
suas novas evidências, aliando-as por ordem cronológica.
Jogando-se na cadeira, alternava o olhar entre o quadro de evidências e a
mesa.
O que tá faltando aqui? A gente foi no lugar, tirou foto, comparou com o
mapa e não tem nada igual a nenhum outro crime em qualquer lugar. Isso... Isso
não faz sentido.
Francisco apoiou a cabeça sobre uma das mãos e permaneceu encarando o
grande quadro à sua frente. Penduradas por pequenas tachinhas coloridas, fotos
e documentos compunham uma cena do crime praticamente insolúvel: fotos dos
corpos, do local onde haviam sido encontrados, da vista aérea do local, das teste-
munhas, dos possíveis suspeitos; documentos autorizando as fotografias, certi-
dões de nascimento, prints de redes sociais, senhas de e-mail, histórico escolar.
Tudo organizado de acordo com a vítima em questão. E uma coisa o intrigava: em
duas das três vítimas, foi encontrada uma grande cicatriz na área da barriga.
Mesmo assim, parecia que faltava alguma coisa. Uma peça fundamental que
mudaria toda a jogada e faria com que eles conseguissem sair por cima. Uma foto,
um documento, um print, um áudio, qualquer coisa. Francisco continuava enca-
rando o quadro e pensava em tudo isso e em muito mais: construía teorias e as
destituía rapidamente, tentava encontrar similaridades entre as vítimas, procu-
rava de toda a maneira ocupar sua cabeça com qualquer coisa que o levasse a
algum lugar. Mas o quadro não o levava a lugar algum.
— Humpf. Eu não vou achar nada aqui — sussurrou para si mesmo.
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Então, direcionou o olhar para os papéis em sua mesa. Aqui, mapas topo-
gráficos e fotografias aéreas revelavam as áreas de floresta que circundavam o
município. Os mapas e recortes estavam marcados com círculos e setas, anota-
ções ilegíveis e algumas manchas de café. Vendo com cuidado, todos os corpos
pareciam ter sido encontrados na beira de uma estrada.
— Um trecho de mata conservada, sempre próximo da rodovia Monte Ale-
gre – Lago Fundo. Em lugares diferentes, mas sempre nessa margem. E é total-
mente aleatório...
— A gente já viu isso aí antes, uma pá de vezes — retrucou uma voz no cor-
redor.
Mariana chegava ao quarto de investigações sem seu traje policial, sem suas
armas ou sua botina. Estava apenas com uma camiseta preta, calça jeans e usando
um dos pares de chinelos de Francisco. Em suas mãos, duas grandes xícaras de
porcelana exalavam um agradável odor de café bem feito.
— E aí, algum insight? — disse, enquanto puxava uma cadeira ao lado de
Francisco.
— Nada ainda. Só o que você me ouviu falando.
— Escuta, tu não tá com calor, não? Tá de roupa social ainda e... Esse ar tá
ligado, Chico?
— Tá não. Pode ligar, eu até tinha esquecido. — Francisco desviou o olhar
do rosto incisivo de Mariana e se concentrou em desabotoar seu colete e abrir o
primeiro botão da camisa.
Dito isso, Mariana se levantou com a xícara na mão e foi até uma das pare-
des enfeitadas por livros e armários. Como Francisco não se importava muito com
a temperatura local, ele acabou cobrindo o apoio do controle do ar-condicionado
com a prateleira. E como ele não gostava deixar o controle jogado por aí, vivia
colocando-o de volta nesse esconderijo que somente os olhos mais atentos po-
diam ver. Ou os olhos de Mariana, treinada por muito tempo em ligar o ar condi-
cionado da sala de investigações de Francisco.
— Olha, nós temos isso aqui de novo agora...
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ficar ainda mais insuportável. Não tinha espaço para mais nenhum pensamento:
tudo o que ela pensava tinha o rosto de Eloísa.
Não mais florestas, não mais calor, não mais Francisco, não mais investiga-
ções. Apenas a saudade de uma menina que corria pela casa e vivia lhe pergun-
tando o que ela escondia na gaveta da escrivaninha. Que ficou decepcionada
quando descobriu que não ganhou o que queria de aniversário. Que a tirou do
sério. E que agora só existia em forma de fantasma, que lhe fazia companhia todas
as noites, que lhe pesava nas costas. Ela a amava, mas queria que fosse embora.
Não aguentava mais os sonhos em que ela...
Gritava.
Um grito ecoou de dentro da floresta. Parecia vindo do Oeste, mais próximo
de Mariana do que de Francisco. Sem qualquer troca de olhares ou hesitação, os
policiais fizeram seu caminho até aquela direção, sem saber o que esperar. Já não
importava mais se sujar, tropeçar ou tremer. Uma única coisa importava.
— NÃO ENCOSTA NELA!
Em meio a tantas árvores, um homem estava de costas. À sua frente, uma
menina de pouco mais de 8 anos de idade estava com as mãos amarradas em uma
árvore. Os olhos vermelhos, manchados de lágrimas, viram uma esperança. E o
homem viu um empecilho.
— SAI DE PERTO DELA, AGORA! — gritou Francisco, apontando sua arma
para o homem de terno. — COLOCA AS MÃOS PRA CIMA!
O homem não se mexeu. A brisa da tarde soprou seu terno e seus cabelos,
sujos de terra e pincelados por pequenas gotas vermelhas. Ele se misturava à pai-
sagem lamacenta, mas não o suficiente para passar despercebido.
— Ele mandou você sair de perto da garota. Você é surdo ou quer que eu te
deixe? — Mariana apontou a arma para a cabeça do homem. Não havia mais tre-
mores. — Sai de perto.
— Eu vou tirar a garota de lá, fica aqui com a arma apontada — sussurrou
Francisco, preparando-se para ir em direção ao homem e à garota.
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A voz de Francisco não saía, mas seus pés finalmente começaram a se mo-
ver. Seu corpo todo tremia e desejava fugir do perigo. Porém, de qual perigo? Da
morte iminente? Ou da constante lembrança que o assombrava? De todos eles,
Francisco escolheu o mal menor.
Disparando em direção à garota, que ainda tentava se soltar das cordas, o
policial contornou a criatura. Sua visão se afunilou e nada mais importava a não
ser arrancar aquelas cordas e libertar a criança. Para ele, nada daquilo parecia
fazer sentido. E assim permaneceria.
Ao chegar perto da árvore, puxou um canivete de um dos compartimentos
que carregava em seu bolso. A garota se debatia demais, e era difícil fazer aquilo
sem machucá-la no processo.
— Fica calma, eu já vou te tirar daqui... — murmurou, tentando segurar um
dos braços da menina enquanto cortava as cordas o mais rápido que conseguia.
— Ei, ei, calma.
Um tiro. O investigador cortou o último fio da corda. Um segundo tiro. A
menina retraiu seus braços para a frente da árvore e Francisco guardou seu cani-
vete, pegando a arma mais uma vez. Ao olhar para a situação de Mariana, ele não
viu sua amiga policial. Um terceiro tiro.
— FRANCISCO!
Em seu lugar, uma garota de macacão gritava por socorro. Não havia mais
Mariana. Somente Ana.
— Francisco, chama meu pai! Vai logo! — A menina gritava e tentava escapar
dos braços de uma criatura nojenta e de longas barbas, debatendo-se. — Por favor!
— Ana? — respondeu para si mesmo, esfregando os olhos. — Eu... Isso não
faz sentido.
— Chico, me tira daqui! — gritou a menina, soluçando entre as palavras.
— Eu não... Eu...
Francisco olhou à sua volta. Tudo continuava igual — exceto pela garota-
refém, que agora abraçava seus joelhos e soluçava, chorando incansavelmente aos
seus pés. Os cabelos pretos estavam jogados em seu rosto, mas os tremores de
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todo o corpo denunciavam seu estado. Ela estava retraída, o mais próximo que
conseguia daquela árvore. O mais próximo que conseguia estar de Francisco sem
entrar em seu caminho.
— Sai da frente. — O policial apontou sua arma na direção de sua amiga de
infância.
— Eu não consigo, eu tô ficando sem ar... — disse, tentando tirar os braços
feridos e gelados de seu pescoço. — Chi...
— ANA!
Então, uma a uma, as folhas úmidas no chão começaram a se tornar mar-
rons. A lama tornou-se terra. As árvores ficaram mais escuras. E a atmosfera se
tornou ainda mais quente.
Quase tão quente quanto o incêndio daquela noite. À sua volta e até onde
seus olhos conseguiam alcançar, tudo começava a se envolver pelo vermelho das
chamas.
Atrás de Francisco, a refém gritava e tentava chutar o fogo que avançava
em sua direção. Tentava levantar, mas seus braços caíam ao chão a toda tentativa.
À frente de Francisco, sua amiga se debatia entre os braços da criatura, tentando
abrir espaço para respirar. O policial apenas conseguia alternar sua visão entre as
duas garotas, apertando cada vez mais o cabo de sua arma e tentando mover seus
pés em alguma direção.
— Seu guarda! — gritou a voz inocente, com toda a força que ainda lhe res-
tava.
— Chico! — gritou a voz antiga, com toda a força que ainda lhe restava.
E Francisco começou a lacrimejar. Como se tudo passasse devagar, viu os
olhos das meninas brilhando em meio ao fogo. Sua mente tentava entender o que
acontecia, mas os fatos não se encaixavam. Ele poderia ter sido desmaiado, pode-
ria ter sido morto! E Mariana teria alcançado o mesmo destino, assim como a me-
nina que ele ainda não sabia o nome. Todas estariam mortas por sua culpa. A ga-
rota morreria mais uma vez. A segunda chance que ele tanto pedia chegara e
agora ele a desperdiçava.
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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!
— CHICO! — gritou.
— CHICO! — gritou.
— POLICIAL! — gritou.
O fogo começou a consumir as roupas de menina aos seus pés. Ela se agar-
rou em sua perna e cravou as unhas em sua calça, tentando se erguer. Se ele a
olhasse, veria todo o desespero de quem luta por sua vida. Mas ele estava pres-
tando atenção à menina mais distante, presa nos braços da criatura. As pálpebras
daquela começaram a cair e sua cabeça se inclinou para trás. Ao longe, aqueles
olhos se olhos fechavam. Ali perto, os olhos continuavam abertos.
— FRANCISCO! — gritou.
— MOÇO! — gritou.
— CHICO! — gritou.
Ele pressionou as mãos contra a cabeça. Ruídos, gritos, chamas, folhas
queimando, lembranças, dor, unhas, sangue. Sua cabeça não conseguia entender
tudo. Era como se tudo e nada fizesse sentido, como se ali fosse seu momento de
partida.
A dor que começou a descer de sua testa para seus olhos pulsava, tornando-
se logo algo insuportável. E junto a ela, estavam os gritos e todo o resto.
— FRANCISCO! — gritou.
— CHICO! — gritou.
— SEU GUARDA! — gritou.
— CALEM A BOCA! — Sua cabeça latejava, sua respiração pesava, seu cora-
ção não dava conta de todo o trabalho. As lágrimas escorriam pelo seu rosto.
As mesmas vozes. As vozes diferentes. Era impossível distinguir. Ao olhar
para frente, não via mais nada além das chamas consumindo tudo. Ana desapare-
cia no meio das chamas mais uma vez. A menina ao seu lado já há muito parara de
gritar. Mas o fogo não lhe tocou.
Assim como da última vez, o fogo não lhe machucava. Como se tudo não
passasse de mais um pesadelo ruim. Um pesadelo que lhe acompanhou desde a
infância e se repetia mais uma vez, noite após noite.
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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!
Ao abrir os olhos, Francisco percebeu que não havia mais fogo. Ele estava
de volta à mata fechada, lamacenta e agora mais fria. Os gritos deram lugar ao
silêncio entrecortado por pássaros e insetos. Mas sua dor de cabeça permanecia
forte, pulsante, como uma tentativa de sua mente de processar tudo o que acon-
tecera há alguns minutos.
Olhando em volta, o policial percebeu que a criatura agora estava no chão,
com as mãos em volta de seu pescoço, debatendo-se de um lado para o outro na
tentativa de encontrar alguma parcela de ar. Os olhos profundos saltavam à
frente, como se estivessem a ponto de saltar das órbitas. Sua pele verde agora
pendia para o roxo e suas feridas se abriam ainda mais. Entretanto, isso não era o
que o investigador procurava.
Ele se importava com o que estava à sua frente: uma mulher inconsciente
com uma arma na mão e uma poça de sangue sob sua cabeça.
— Mari, Mari! — Ele empurrava o ombro da mulher, tentando ignorar os
grunhidos que vinham de sua direita. — Mariana!
Nenhum sinal.
Aproximando-se de Mariana, percebeu que sua companheira ainda parecia
respirar. Era uma frequência baixa, quase imperceptível. Mas ela ainda estava
viva. E ele suspirou em alívio.
Francisco se abaixou perto da policial e levantou sua cabeça, na tentativa
de verificar a razão do sangramento. A mão branca, suja de lama, logo se tornou
completamente vermelha. Alguma coisa ainda estava errada: o sangue não parava
de jorrar. Ele manteve a mão pressionada contra o ferimento, segurando a cabeça
da amiga, enquanto apalpava o chão para tentar encontrar a razão do corte. Logo
encontrou um pedaço afiado de pedra, completamente manchado de vermelho.
— Mariana... Aguenta mais um pouco, por favor — sussurrou para si mesmo,
enquanto procurava por alguma resposta em seus arredores. — Você também,
não...
— Seu policial! — grito uma voz aguda e distante. — Seu policial!
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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!
— Ela é forte também... Acho que se não fosse ela, a gente não tinha esca-
pado dessa.
— Eu vi ela atirando no bicho — informou, tentando encontrar os olhos do
homem ao seu lado. — Mas ele não morria. Eu achei que ele fosse matar ela, mas
ela tava conseguindo segurar ele pelo pescoço... Até ele jogar ela pra trás e...
— Ela conseguiu imobilizar um bicho daquele tamanho? — sorriu. — É, três
tiros na testa não é pra qualquer um.
— É... Depois o senhor veio e fez aquilo lá...
Ela não parava de segurar as mãos da policial. Ele não conseguia tirar os
olhos dos movimentos respiratórios de sua amiga. Ambos se aproximavam pelo
sofrimento da mulher que ali tentava encontrar fôlego, tal como a criatura ante-
riormente. Uma mulher que lembrava uma amiga e uma desconhecida que lem-
brava uma mãe.
Os pensamentos não se verbalizaram. E assim o silêncio permaneceu, até
as sirenes ecoarem ao longe. E até se aproximarem. E até que os passos pudessem
ser ouvidos mais longe e mais perto. Os pensamentos permaneceram assim: pen-
samentos.
— Eles tão por aqui, venham. — Ecoou uma voz familiar.
— Certo, certo. — Os passos pesados se aproximavam.
Como que se fosse uma breve eternidade, os enfermeiros colocaram Mari-
ana em uma maca e levaram-na rapidamente para dentro da ambulância. Fran-
cisco não prestou muita atenção nos pormenores, ele não estava em condições.
Apenas acompanhou os movimentos, confuso, tentando se encontrar.
— Francisco, o que aconteceu aqui? — Neto aproximou-se, olhando em
volta. — E quem é aquele cara lá?
— Eu te explico depois... — respondeu, deslocando-se em direção ao corpo
apontado pelo rapaz. — Eu acho que ele morreu, na verdade. Seu celular está fun-
cionando?
— Está. Precisa ligar pra central? — O celular já estava passando da mão de
Neto para Francisco.
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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!
— É, essa foi uma situação meio fora do comum. Eu ainda não sei muito bem
o que aconteceu aqui, mas mesmo quando eu descobrir, a polícia não vai — sus-
surrou, discando um número interno da corporação.
— Moço, eu... — A menina chegou perto de Neto e puxou sua camisa para
baixo, na tentativa de chamar atenção.
— Ah, oi. — Neto se abaixou para ficar no mesmo nível da garota. — Qual
seu nome?
— Adriana — respondeu, passando a mão sobre as marcas de corda em seus
punhos. — O senhor é policial também? Eu... Eu quero ir embora... Mas...
— Vamos só esperar esse outro moço acabar de falar no telefone e a gente
já vai. Mas a gente vai pra delegacia, depois a gente liga pra sua mãe vir te buscar.
— E abriu um pequeno sorriso, acariciando os cabelos enroladinhos da menina.
— Tá... — O olhar de Adriana se voltou ao chão. Sem brilho. Tal como o de
Francisco.
— Eu já terminei de falar, obrigado. Eles já estão chegando pra recolher o
corpo, fazer a autópsia completa e tudo aqui lá que fazem normalmente — Fran-
cisco devolveu o telefone e entregou as cópias da chave da viatura. — Você pode
ir dirigindo a viatura pra delegacia? Eu tô com uma dor de cabeça horrível e... Eu
não estou em condições de dirigir.
— Tá, claro. Vamos, Adriana? — Neto estendeu sua mão para que a garota
pudesse segurá-la, acompanhando-a com seu sorriso sincero. — O senhor Fran-
cisco não está muito bem. Então ele vai atrás e a gente vai na frente. Pode ser?
— Pode... — respondeu, ainda encarando o chão. Se ela conseguisse, retri-
buiria o sorriso. Assim, apenas segurou a mão do rapaz.
Então, tudo ocorreu de acordo com o protocolo. Francisco encaminhou
Adriana à delegacia, e ela respondeu algumas perguntas. Os olhares penetrantes
e vazios do policial guiaram-na a não dizer nada sobre uma entidade sobrenatural.
Apenas disse que fora raptada por um homem, seu médico, e os policiais tiveram
de atirar para que não morressem.
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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!
Doía-lhe reviver esse momento. Mas doía mais ainda não falar a verdade —
que depois relatou a Francisco, quando ficou sozinha com ele na sala. Os outros
policiais foram ligar para sua mãe e os dois ficaram novamente a sós.
— Eu encontrei ele no carro, mas ele não era ele. Ele era meu pai. Quando
ele me levou praquele lugar, ele virou o médico de novo e depois aquele bicho —
sussurrou, ainda fitando o chão e acariciando seus punhos. — Eu não sabia, ele só
mudava pra uma pessoa e pra outra...
— Hum. — Agora tudo pareceu fazer sentido para Francisco. — Então foi
assim que ele chegou nas outras pessoas. Uma pessoa que vira outras e que é uma
entidade sobrenatural...
— Quando a gente chegou lá, ele falou que só queria meu fígado pra pele
dele voltar a ficar normal e ele curar a doença dele — completou a menina. — Eu
não sei como.
— Entendo. Obrigado por falar isso. — E, pela primeira vez, ele subiu seu
olhar em direção à garota. — E por não falar pra eles.
— Minha mãe fala que eu sou esperta. — Adriana subiu seu olhar e encon-
trou os olhos cansados de Francisco.
Ambos compartilharam um sorriso pesado. Um movimento de duas pessoas
que tinham visto demais. Francisco se lembrava muito bem de tudo aquilo, mas
na sua época as coisas foram mais difíceis. E ele estava feliz por tudo ter sido mais
fácil para a garota.
Isso ainda não faz sentido. Mas talvez não tenha que fazer.
Logo após a assinatura da papelada, das conversas difíceis com os pais e do
adeus amargo de Adriana, Francisco preferiu passar no hospital antes de retornar
à sua casa. Havia sido um dia cansativo demais, mas ele ainda preferia estar ao
lado de Mariana quando ela acordasse. Quase uma dívida.
A dívida começou a ser paga quando Francisco entrou no quarto da amiga
e lá estava ela: deitada, com as roupas de hospital, encarando o teto. Os medidores
de sinais vitais estavam um pouco alterados, mas nada que ele soubesse muito
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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!
bem. Apenas estava feliz de vê-la bem, mesmo que com várias faixas ao redor da
cabeça.
— Boa noite, senhora, foi aqui que pediram serviço de quarto?
— Eu não acredito que te deixaram entrar, Chico — respondeu, apoiando
sua cabeça com alguns travesseiros. — Não te deixaram, né?
— Não — respondeu, sorrindo. — Eu não perdi isso ainda. Talvez perca um
dia. Depois de hoje, eu não sei de mais nada.
— Quem sabe? — retrucou. — Aliás, eu tive um sonho esquisito entre o mo-
mento em que ele me jogou no chão e o momento que eu acordei aqui. Que bom
que você veio, eu queria falar pra alguém. Alguém que fosse meio esquisito pra
entender.
— Sonho? — O policial tirou seu terno enlameado, pendurou-o em qualquer
lugar e se sentou em uma poltrona.
— Eu tava sentada num lugar preto, tudo preto. Tipo o escuro, mas eu con-
seguia me ver totalmente. Aí eu vi a minha irmã. Ela me disse que hoje era um dia
importante, diferente. E foi me puxando pra andar. Aí é tipo como se eu tivesse
vendo tudo: você matando ele, a menina desesperada, o Neto chegando... — Uma
pausa para suspirar e retomar os detalhes. — Aí, eu vi um lugar estranho. Tinha
um bicho grande, parecia um... Lobo meio porco, em cima de algum lugar. Ele tava
correndo pelo lugar que a gente foi, perto daquela floresta. Com sangue na boca.
E minha irmã me falou que hoje ainda não tinha acabado, que era um dia especial.
Aí eu acordei.
— Foi um baita de um sonho — respondeu, sorrindo. — Eu não posso falar
nada de sonhos também, os meus eram tão piores quanto esses.
— Você não acha que isso é nenhum tipo de premonição, não, acha? — Com
as sobrancelhas cerradas, o tom se tornou mais sério. — Que eu fiquei... igual você.
— Talvez. Vai querer descobrir? — questionou, cerrando o olhar. — Você
tem umas quatro horinhas pra se ajeitar. Eu vou dormir um pouco aqui, você me-
lhora daí e a gente dá uma de patrulheiros do Halloween.
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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!
estar se entretendo com alguma coisa no celular enquanto cuidava de uma grande
sacola preta, acomodada ao seu lado.
— Neto, ou! — sussurrou Mariana, abanando a mão na tentativa de chamar
mais a atenção do garoto distraído. — Neto!
— Hm? — O rapaz procurou a origem da voz sussurrante até que viu, no fim
do corredor, uma mulher de cabeça enfaixada abanando as mãos desesperada-
mente. — Mari?
— Vem cá, rápido. — Gesticulando para o colega ir ao seu encontro, a poli-
cial soltou suas últimas palavras antes de voltar para o quarto.
No caminho de volta para a cama, Mariana ouviu algumas conversas no cor-
redor. A voz de Neto se fez presente em todas elas, tomando a forma de um pe-
dido, uma súplica, uma prece desesperada e, por fim, um agradecimento pro-
fundo. Ao fim do quarto “Obrigado”, a porta do quarto se abriu e o rapaz suspirou,
aliviado.
— Nossa, ninguém queria me deixar entrar — disse, levando a sacola de
roupas em direção à Mariana. — Só consegui porque uma enfermeira revistou a
sacola de cabo a rabo e disse que eu tinha cinco minutos.
— Ai, muito obrigada, Neto. — A policial deu um curto abraço no colega. Ela
precisava se vestir logo. — Minha mãe te deu muito trabalho?
— Ela ficou meio desesperada quando soube que a filha doida dela levou
uma pancada na cabeça e ficou sangrando numa mata — respondeu, sorrindo. —
Quando eu disse que viria aqui pra ver vocês, ela correu pra preparar essa sacola
aí. Acho que tem até uma marmita.
— Pior que eu tava com fome mesmo. Bom, eu vou me trocar ali no banheiro
e depois vou comer essa marmitinha. Você pode ficar, se quiser.
— Ah, valeu. — O rapaz olhou para a poltrona e reparou que ela já estava
ocupada por um homem de roupas enlameadas e roncos incessantes. — Eu pre-
ciso voltar pra padaria. Meu chefe me dispensou por hoje, mas como sou eu quem
fecho o Café.... Então eu vou dar um pulo lá. Logo eu estou de volta.
— Claro, claro. Mas muito obrigada, de novo.
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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!
A porta se fechou mais uma vez. Como a fome falava mais alto do que a
necessidade de trocar de roupa, Mariana abriu a sacola e sentou na cama. O cheiro
de comida caseira da mãe e os talhares rústicos de sua antiga casa lhe lembraram
de Eloísa. Mas agora a lembrança não doía mais tanto quanto antes. Parecia que
uma herança pesada havia sido retirada de seus ombros. A morte de sua irmã não
a pertencia mais. Dela, restavam novas e velhas memórias.
Mariana abriu a marmita cuidadosamente e começou a comer. Vez ou ou-
tra, verificava se Francisco não tinha acordado com o cheiro de comida caseira.
Mas ele continuava a roncar e mudar de posição a cada dez minutos.
Pela primeira vez em muito tempo, ela estava tranquila. Mesmo que sua
cabeça ainda latejasse um pouco, suas costas estavam relaxadas e sua consciência,
liberta. Em menos de dois meses, tudo aquilo aconteceu. Todas aquelas mudan-
ças, todos os acontecimentos imprevisíveis. Tudo aquilo que não fazia nenhum
sentido e, talvez fosse justamente disso que ela precisava. De alguma coisa que
fizesse tanto sentido quanto uma criatura que devorava crianças em busca de sua
cura. De algo que lhe permitisse fazer as pazes com a morte — e consigo mesma.
Algumas lágrimas começaram a se formar em seus olhos. Mas o sol já co-
meçava a se pôr no horizonte e ela tinha pouco tempo restante para se trocar.
Não havia tempo pra chorar.
A policial colocou sua marmita vazia de volta na sacola e vasculhou em
busca de alguma roupa que lhe coubesse. Neste momento, sentiu algo peludo pas-
sar no meio de suas pernas. Para lá e para cá. Mariana quase pulou para cima da
cama, mas logo percebeu que não era nada sobrenatural. Ainda.
De alguma maneira, Aurélio tinha achado o caminho de seu dono. Como o
hospital não era muito grande, ele apenas escalou dois andares e pulou a janela
do quarto em que o cheiro de lama era mais proeminente. Logo depois de fazer
seu caminho entre as pernas de Mariana, Aurélio pulou sobre a cama e começou
a afofá-la.
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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!
— Chico, acorda. Tá quase na hora. Vai lá tirar essa roupa suja — disse, en-
quanto continuava a dar petelecos no amigo. — Ei, tá me ouvindo?
— Eu tô acordado, calma... — Francisco abriu os olhos e se espreguiçou na
poltrona, afastando a policial. — Para de me agredir, Mariana. O Neto trouxe rou-
pas?
— Trouxe. Eu deixei as suas lá no banheiro pra não perder tempo. Vai lá.
O investigador se levantou da cadeira e, enquanto se direcionava para o
pequeno lavabo, percebeu que uma bola preta de pelos dormia, imóvel, no meio
da cama de Mariana. Ele sabia muito bem o que aquilo significava, mas preferiu se
trocar primeiro. Ainda que ele preferisse tomar um banho, o novo conjunto de
camisa e calça jeans servia bem.
— Bom, vamos? — Mariana já estava perto da porta, preparando-se para
abri-la. — Eu quero passar em casa para pegar minha arma reserva antes.
— Claro, só uma coisa antes. — Francisco respondeu enquanto se deslocava
em direção ao gato. Mas, ao chegar perto de Aurélio, o gato arrepiou os pelos e
mostrou suas garras para ele. — Para de frescura, a gente precisa da sua ajuda pra
despistar as enfermeiras.
O gato pulou para o chão, parecendo descontente em ter seu sono inter-
rompido. No momento em que tocou o chão, um brilho amarelado começou a
emergir dali e logo tomou conta de quase todo o quarto. E, em poucos segundos,
não havia mais Aurélio. Havia apenas um jovem de camisa social, calças jeans e
cabeços bagunçados.
De costas para todo o espetáculo, Francisco apenas continuou andando
para frente, em direção à porta. Mariana, por outro lado, cerrava os olhos em
busca de alguma resposta que fizesse sentido. Entretanto, não encontrou ne-
nhuma.
— Eu sabia que você ia ficar bonita nessa roupa — disse Neto, caminhando
atrás de Francisco. — Eu tenho um ótimo gosto.
Francisco e Neto pararam ao lado de Mariana, que ainda os encarava. Neto
aproveitou a deixa e repousou sua cabeça sobre o ombro do companheiro,
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My Light Novel – Seu cantinho da leitura novel!
soltando mais alguns bocejos. O investigador não tinha forças para tirá-lo dali,
então apenas aceitou os bocejos vindos do seu ombro: ele realmente não conse-
guia deixar de ser um felino, mesmo sendo humano.
— Calma, o Neto é só um Veterano. Eu te explico no caminho. A gente tem
muita coisa pra conversar.
Daquele dia, restou um novo modo de ver a vida.
Daquela floresta, apenas cicatrizes.
E daquela amizade, a certeza de que memórias são muito melhores do que
heranças.
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