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Anônimo - As Mil e Uma Noites Vol. I
Anônimo - As Mil e Uma Noites Vol. I
Todos os direitos para língua portuguesa reservados para esta edição por E-Primatur / Letras
Errantes, Lda.
ISBN 978-989-8872-56-2
Preâmbulo
Outro elemento que fornece pistas sobre a génese d’As Mil e Uma Noites
é a própria língua em que as suas histórias estão redigidas. Aqui convém
abrir um parêntesis para explicar o que é a língua árabe, visto que este
termo é usado como se de uma só língua se tratasse, quando na realidade o
árabe seria mais exactamente descrito como um conjunto de várias línguas.
Por um lado, existe o árabe padrão, que por sua vez pode ser dividido em
eras cronológicas. Por exemplo, o árabe clássico corresponde às mais
antigas formas registadas por escrito da língua padrão, enquanto o árabe
moderno corresponde às formas usadas hoje em dia, sendo possível
discernir épocas intermédias entre ambos. Onde acabam umas épocas e
começam outras é motivo de debate, mas o conjunto do árabe padrão usado
em todas as épocas é referido em árabe pela expressão al-ʿarabīyah al-
fuṣḥá, que literalmente significa «[a língua] árabe mais eloquente». Esta
língua padrão, cujas bases ficaram definidas pelo Alcorão, e cujas primeiras
gramáticas e cânones foram posteriormente estabelecidos pelos persas12, ao
contrário do que afirma uma certa crença popular, nunca foi uma língua
nativa falada nos tempos da revelação alcorânica. Trata-se de uma língua
artificial, resultante da junção de vários falares da Arábia, que servia não só
como língua franca entre os diferentes árabes, cada qual com os seus
falares, como também enquanto língua usada para produzir uma certa
eloquência de discurso bem patente na poesia árabe pré-islâmica, cuja
importância era fulcral na produção cultural da época, sabendo-se aliás da
existência de encontros e concursos intertribais dedicados à poesia. Foi
nessa língua eloquente que o Alcorão foi revelado, segundo afirma a
tradição islâmica, pelo arcanjo Gabriel a Muhammad, e é esta mesma língua
que é hoje em dia usada nos países de língua oficial árabe. É certo que a
língua teve evoluções desde os tempos da revelação alcorânica, em inícios
do século VII, até aos dias de hoje, mas ainda assim é possível afirmar que
as bases gramaticais e ortográficas sofreram poucas alterações
significativas.
Convirá acrescentar também que existem diversas variantes do árabe
coloquial, que não são corruptelas do árabe padrão, como antigamente se
considerava, mas sim descendentes dos vários falares árabes antigos. As
várias línguas árabes coloquiais, que são as línguas realmente nativas dos
falantes árabes, e muitas vezes referidas com pouca exactidão por
«dialectos», coincidem hoje em dia mais ou menos com as actuais
fronteiras nacionais. Isso acontece porque há uma certa tendência, visto ser
esta a língua real falada pelas pessoas, para se desenvolver um registo
nacional dessas línguas falado informalmente nas televisões e rádios, que
geralmente coincide com a língua árabe que se fala na capital do país, ou
noutra cidade de prestígio cultural. No entanto, note-se que há várias
línguas árabes que são transnacionais13.
Por outro lado, é o árabe padrão que tem vínculo oficial, e que é usado
pelo Estado, escolas, jornais, telejornais, livros, etc., em suma, na grande
maioria dos registos escritos; enquanto o registo coloquial só é usado
informalmente, no dia-a-dia ou em programas de televisão e rádio, tais
como concursos e debates, passando por filmes, sendo usado na escrita
sobretudo em peças de teatro, guiões de cinema, anúncios publicitários,
chats, etc. Na realidade, hoje em dia há um debate em vários países de
língua oficial árabe sobre qual dos dois registos deve ser o oficial, e cada
vez mais escritores produzem literatura em árabe coloquial, apesar de em
nenhum país haver uma convenção ortográfica oficial de uma língua árabe
coloquial, sendo ela escrita ao gosto pessoal de cada um. Por último, ambos
os registos da língua interagem um com o outro, havendo mesmo o que se
chama árabe médio, usado em situações meio formais, e que é uma língua
intermédia entre os dois registos14. Fechando o parêntesis e regressando à
língua do texto d’As Mil e Uma Noites, uma das características principais
que salta à vista na leitura dos mais antigos manuscritos é precisamente que
a língua usada não é o árabe padrão ou eloquente, que caracteriza as Belles
Lettres árabes, mas sim o árabe médio, muito mais próximo do árabe
coloquial e da língua «real» falada no dia-a-dia.
É de notar, pois, que as histórias d’As Mil e Uma Noites costumam ser
classificadas dentro do género «literatura popular», mas esta classificação
levanta alguns problemas. É certo que a língua usada leva a crer que a sua
redacção se trata de uma criação dita «popular», mas como definir o
«popular»? E o que faz algo ser genuinamente «popular»? E como se
poderá saber se os seus redactores pertenciam ao «povo autêntico»? E o que
é o «povo autêntico»? O termo «popular» acaba por ser demasiado poroso e
servir um discurso que delimita, através de critérios duvidosos, o que deve
ser o povo «genuíno» e o «autêntico», por oposição às elites que são, na
realidade, quem define esses mes-mos critérios de forma a produzir uma
ideologia de acordo com as suas ambições político-culturais. De certa
maneira, foi o que aconteceu, por exemplo, durante o Romantismo, cujas
ideias foram fulcrais na elaboração dos vários nacionalismos europeus,
desejosos de definir um ideal de nação assente em conceitos tais como o
«povo autêntico» ou o «genuinamente popular». A expressão «literatura
oral» também é, por sua vez, pouco exacta, pois no caso d’As Mil e Uma
Noites não existe garantia alguma de que estes textos tenham sido
transcritos directamente de um relato oral, desconhecendo-se onde
exactamente acaba a voz do contador de histórias e começa a voz dos
relatores e copistas dos manuscritos. Assim, para evitar os conceitos
ambíguos de «popular» e «oral», e tendo em conta o árabe médio em que
são redigidos estes manuscritos, prefere-se aqui designar este tipo de
literatura, que nitidamente se desmarca das Belles Lettres, por literatura
média árabe.
A língua usada n’As Mil e Uma Noites e a sua espontaneidade é
comparável a outros exemplos de literatura dita «oral» ou «popular», como
por exemplo os chamados «contos populares portugueses». Mas se muito se
sabe sobre o contexto em que estes foram recolhidos, produzidos e
divulgados através das várias colectâneas elaboradas por figuras
influenciadas pelo Romantismo, como Adolfo Coelho, Consiglieri Pedroso
ou Teófilo Braga, entre outros, nada se sabe sobre quem redigiu as
primeiras versões da literatura média árabe, nas quais se incluem diversos
livros, uns mais conhecidos do que outros, como as próprias Mil e Uma
Noites, O Sábio Sindbad, Sindbad, o Marinheiro, As Cento e Uma Noites,
ou ainda As Histórias Espantosas e As Estranhas Novas, todos de autor(es)
desconhecido/a(s), e com algumas histórias e/ou elementos de histórias
partilhados entre si, e todos eles, ao que parece, assaz desconhecidos do
público português.
Sobretudo a partir da língua usada, mas também dos diversos erros
ortográficos, morfológicos e sintácticos, sendo que estes erros
eventualmente podem ser características das cópias que chegaram aos dias
de hoje e talvez não constassem dos originais (não se sabe), é muitíssimo
pouco provável que estas histórias tenham sido elaboradas por
conhecedores profundos das Belles Lettres árabes, algo que diferencia As
Mil e Uma Noites dos já referidos «contos populares portugueses», que,
como foram recolhidos por intelectuais, já foram submetidos a algum tipo
de tratamento editorial, mesmo que mínimo. Mais, curiosamente a língua
usada é absolutamente o oposto da língua em que alegadamente foi
traduzido para árabe, segundo o já citado Annadime, o livro persa Hazār
Afsānah (As Mil Noites), de que ele afirma ter visto «várias cópias
completas», e que este género de livros teria sido traduzido «por quem
dominava a eloquência e a retórica, que os reviram, poliram e
embelezaram». Ora, se tal livro nos séculos ix e x estava traduzido em árabe
eloquente, isto é, em árabe padrão, os manuscritos que chegaram até hoje
com As Mil e Uma Noites, datando o mais antigo do século XIV, não estão
em árabe padrão. Tudo leva pois a crer que se há alguma coisa de comum
entre As Mil Noites e As Mil e Uma Noites pouco mais será do que o quadro
principal da história com Xerazade, o rei e o seu vizir, e talvez meia dúzia
de contos mais pequenos.
Outro ponto muito interessante é o de que os elementos orais presentes,
assim como os conteúdos, ora mais explicitamente ora mais subtilmente,
contêm críticas à opressão exercida pelas autoridades, assim como revelam
ocasionalmente concepções religiosas e morais que colidem com os padrões
estabelecidos pelos teólogos da época. Isso não significa que houvesse
algum tipo de resistência contra o Islão, muito pelo contrário, o que há é um
Islão prático e de uso mais «popular» que se diferencia das práticas
estabelecidas pela ortodoxia dos textos. Por exemplo, o principal centro de
opressão política n’As Mil e Uma Noites resulta sobretudo dos caprichos de
reis pagãos, que ainda não se salvaram através do Islão e que, portanto,
sendo desprovidos de princípios justos, não estão em condições de outorgar
justiça nem de dirigir uma sociedade pelo caminho certo, apesar de haver
algumas excepções, em que reis aparentemente pagãos também outorgam
justiça no final da história, como por exemplo o rei da China na história O
Corcunda e o Rei da China15. Em contrapartida, os chefes muçulmanos,
fictícios ou reais, como por exemplo o célebre califa Harune Arraxide,
caracterizam-se por serem exemplares que praticam a justiça económica,
social e até marital. Ora, este califa reinou entre 786 e 809, sendo muito
improvável que figurasse nas já referidas versões primitivas d’As Mil
Noites, e muito possivelmente terá sido a figura à qual os contadores de
histórias recorreram para defender ideais de justiça social dentro de um
quadro político de soberania islâmica com o qual se identificariam, mesmo
que não fosse nos moldes vigentes da época em que essas histórias tinham
sido elaboradas. A figura histórica do califa Harune Arraxide é mitificada
para encarnar os ideais da liderança islâmica correcta e bem guiada, que se
contrapõem à injustiça sofrida por diversos personagens, e possivelmente
pelas pessoas na época em que estas histórias foram produzidas.
É por isso tentador rever estas histórias à luz daquilo que James Scott
denomina little tradition ou hidden transcript16. Scott argumenta que os
grupos subordinados desenvolvem estratégias de resistência que passam
despercebidas aos grupos hegemónicos, e que uma dessas estratégias passa
pelas histórias orais. Seriam, pois, As Mil e Uma Noites um desvio oral de
um livro originalmente escrito em árabe padrão chamado As Mil Noites,
através do qual um grupo de pessoas desfavorecidas expressava o seu
descontentamento político e económico? Tal hipótese, perante o pouco que
se sabe, corre o risco de ser demasiado especulativa, mas minimamente
sustentável. Não é por acaso que As Mil e Uma Noites foram amplamente
ignoradas, senão mesmo desprezadas, pelas Belles Lettres árabes, e o
mesmo se aplica às suas versões primitivas redigidas supostamente em
árabe padrão, as únicas que ainda assim mereceram ser mencionadas pela
historiografia da literatura árabe («a verdade é que se trata de um livro frio e
fraco», dizia Annadime). Porém, esta situação inverte-se e As Mil e Uma
Noites voltam a estar nas luzes da ribalta no mundo árabe quando, por
pressão e influência orientalistas, sai a primeira edição impressa em árabe
no Egipto (em 1835), após o sucesso de traduções assaz duvidosas feitas na
Europa. Como veremos mais à frente, o texto desta versão árabe, na
realidade, apesar do título, é totalmente diferente das versões manuscritas,
havendo sido redigido, não em árabe médio, mas em árabe padrão segundo
os cânones vigentes da great tradition, e havendo o texto sido limpo,
embelezado, aperfeiçoado, com histórias que foram encurtadas para dar
espaço a outras cuja ligação às Noites foi criada a posteriori. E estas
versões, as únicas que têm circulado no mundo árabe, geralmente com o
menção «edição original e integral» na capa, são posteriormente
recuperadas pelo nacionalismo árabe que, na senda dos nacionalismos
europeus, procura demonstrar o génio criativo do povo e a unidade
linguística proporcionada pelo árabe padrão – apesar de esta não ser a
língua nativa de vivalma e muito menos ter sido a língua em que os
manuscritos foram redigidos, vendo nesse texto uma prova da autenticidade
do povo árabe. Por isso, é caso para dizer que perante as versões árabes
impressas que circulam, as traduções dos orientalistas europeus não são
muito piores, mas já lá chegaremos.
Por último, para finalizar, é imperioso referir a importância dos
contadores de histórias no mundo árabe. Num mundo em que ainda não
havia rádio ou televisão, era normal em todos os grupos sociais con-tar-se
histórias. Estas eram contadas tanto em ambientes familiares e fechados,
geralmente por pessoas ligadas à família, como em ambientes públicos,
como os mercados populares, por contadores de histórias profissionais. Ora,
no século XV, que terá sido talvez o apogeu da transmissão escrita e oral
d’As Mil e Uma Noites, e que os orientalistas, sem qualquer prova histórica,
consideravam ser o início da decadência da civilização árabe, uma teoria
entretanto ultrapassada, deu-se uma revolução que teve consequências
globais. Trata-se da descoberta de uma nova droga: o café. As suas
sementes, originárias da África Oriental, terão sido possivelmente pela
primeira vez tostadas e usadas para preparar a bebida chamada café no
Iémene em meados do século XV, e no século XVI a nova bebida já se
havia espalhado pela Turquia, Pérsia e Norte de África, e daqui para a
Europa e para todo o mundo. A própria palavra café tem uma das suas mais
prováveis etimologias no árabe qahwah, através do turco kahve e do
italiano caffè. Esta bebida irá trazer um novo espaço de convívio social ao
mundo árabe, também dito hoje em dia, em português, de café. Os cafés na
Síria e no Egipto, países onde se formaram As Mil e Uma Noites, passam a
ser um lugar de eleição, não só para os contadores de histórias, como
também para poetas e músicos. Paulo Lemos Horta17 refere que a vida
efusiva destes cafés, de grande frequentação popular, foi descrita por vários
viajantes europeus, que se espantavam com a quantidade de gente que os
frequentava e o sucesso de alguns desses contadores. Apesar de a génese
d’As Mil e Uma Noites ser anterior ao café como espaço de convívio social,
é possível que este tenha contribuído para a sua circulação e difusão, sendo
talvez (não se sabe ao certo) uma temporada de histórias, em que cada
episódio corresponderia a uma noite, pois sabe-se que era prática comum o
contador de histórias abandonar o café inesperadamente a meio de uma
história, de forma a que os seus ouvintes regressassem ao mesmo café na
noite seguinte para a conclusão da mesma.
A tradição de contar histórias não se desvaneceu completamente. Vários
canais de rádio árabes continuam a ter os seus contadores de histórias, mas
estes já não utilizam o árabe coloquial e sim o árabe padrão. Um dos poucos
sítios onde ainda se pode encontrar contadores de histórias em locais
públicos, que usam o árabe coloquial, é a Praça Jemaa el-Fna, em
Marraquexe, e o ambiente em que essas histórias aí são contadas e a vida de
um desses contadores e do seu filho sucessor na profissão foram
recentemente captadas pela lente de Thomas Ladenburger, no filme Al-
Halqa — In The Storyteller’s Circle18.
Perante tudo isto, uma questão pertinente que se coloca é saber se As Mil
e Uma Noites se terão formado entre os contadores de histórias, em
ambientes frequentados pelos mais desfavorecidos, e posteriormente
passadas para a escrita, ou se se terão formado primeiro na forma escrita e
depois sido recuperadas pelos contadores de histórias. Ou ainda se terá sido
uma mistura de ambas as dinâmicas.
Os manuscritos
A presente tradução
Ibn Battuta, volta a referir a mesma ordem sufi na III parte (O Hijaz),
capítulo 8 (Da cidade sagrada de Meca até à cidade virtuosa de Najaf),
quando refere a morte aparentemente recente do xeque Xihabeddine
Qalandar, que era, segundo as suas palavras, «um xeque virtuoso e muito
respeitado junto do seu monarca, e rapava a barba e as sobrancelhas como
se faz na ordem sufi dos Qalandaris […]»50. Por sua vez, Ibn Khaldun, nos
seus Prolegómenos, também se lhe refere51, e afirma que ao indagar junto
de um entendido nas ordens sufis sobre um tal Albajarbaqi, lhe foi
respondido que «Albajarbaqi pertenceu aos [sufis conhecidos por]
Qalandarīyah, que praticam a heresia de raparem a barba». É difícil saber
se este costume de rapar o cabelo, barba e sobrancelhas existia desde o
início nesta ordem de dervixes e se estava ou não realmente generalizado
entre todos os seus adeptos, mas o que é certo é que não subsistiu até hoje,
uma vez que esta ordem de dervixes desapareceu do mundo árabe, tendo
sobrevivido apenas entre os muçulmanos do Sul da Ásia e da Ásia Central.
A existência destes dervixes já era tão estranha no século XIX que os
manuscritos tardios e aqueles que foram forjados, assim como as edições
impressas em árabe d’As Mil e Uma Noites, já haviam substituído qalandarī
por ṣuʿlūk, palavra traduzível por «mendigo» ou «vagabundo». Na edição
de Bulaq, as mesmas três personagens são apresentadas como não-árabes
(aʿjām) e estrangeiros (ghurabāʾ), chegados de viagem da Anatólia (arḍ ar-
Rūm), «com barbas rapadas e bigodes retorcidos e finos, e são mendigos
[ṣaʿālik, plural de ṣuʿlūk]». Por sua vez, na versão francesa de Mardrus é
feito um acrescento explicativo: «tinham barbas rapadas e, além disso,
bigodes retorcidos e revirados, e tudo neles indicava que pertenciam à
confraria de mendigos chamada saâlik.»52 Através de uma nota de rodapé,
Mardrus comenta que estes saâlik são aquilo a que «os persas chamam
kalendars ou calendars.», e refere-se a cada um deles no singular, grafando
«saaluk» («saâlouk» na grafia francesa), forma mais próxima do árabe
coloquial para ṣuʿlūk. Na realidade, a expressão ṣuʿlūk é interpretada por
quem lê em árabe simplesmente como significando «mendigo» ou
«vagabundo», não sendo óbvio que se trate de dervixes mendicantes, e não
deixa de ser curioso que Mardrus tente recuperar na nota de rodapé a
palavra usada nos textos mais antigos, sem dar nenhuma explicação ao
leitor sobre quem seriam afinal estes «calendars». No fundo, as versões
árabes tardias que substituíram qalandarī por ṣuʿlūk contribuíram para que
a ironia e o estratagema de estes indivíduos se fazerem passar por dervixes
mendicantes ficassem de certa maneira perdidos (curiosamente, essa ironia
até Galland a havia compreendido).
Para reduzir o número de notas, por vezes tomou-se opções que, não
alterando necessariamente o sentido geral do texto, não deixam de ser
pequenos desvios. É o caso da palavra zaʿfrān, que se deveria traduzir
simplesmente por «açafrão» e foi traduzida por «flores de açafrão». Os
entendidos em culinária com certeza perceberão a razão lógica por trás
desta opção: é que em Portugal chama-se açafrão à curcuma, que é uma
especiaria barata que consiste na moagem e secura do bolbo de uma planta
da família do gengibre, cujo nome científico é Curcuma longa. Em
contrapartida, o açafrão propriamente dito são os pistilos de flores de
Crocus sativus — uma planta sem qualquer relação com a da curcuma —
que são colhidos à mão um a um, e cujo valor de venda por grama é
comparável ao do ouro. Ora, imagine bem o leitor ao ler, por exemplo, na
62.a Noite, que a personagem entrou numa câmara que tinha «um chão
recamado de açafrão». Se souber o que é realmente açafrão perceberá a
beleza da fragrância e o luxo por trás de tal cenário. Mas se interpretar
como sendo aquilo que se deveria chamar curcuma, a sensação será mais de
repulsa, pois um chão recamado de curcuma só pode ser bastante
desconfortável para o olfacto e para os olhos. Por isso, mesmo que pouco
correcto, visto que o açafrão são os pistilos da flor e não a flor por inteiro,
usou-se «flores de açafrão». Faria sentido fazer uma nota de rodapé a
explicar ao leitor o que é o açafrão ou usar um termo tão técnico da
botânica como pistilos? Optou-se por não o fazer.
Para dar ainda um último exemplo sobre esta questão, pode citar-se o
caso do nome específico das peças de vestuário. Alguns dos nomes usados
não se sabe com certeza absoluta a que peça de roupa corresponderiam,
visto que são nomes que não aparecem nos dicionários e na literatura
clássicos, ou quando aparecem não são acompanhados de uma descrição
clara, e cujo uso já havia desaparecido por volta do século xviii, altura em
que os orientalistas se puseram a recolher os nomes de peças de vestuário.
Por isso, para evitar um excesso de notas baseadas de resto mais em
incertezas e especulações do que em factos, ou a inclusão excessiva de
palavras estranhas ao leitor, que teria de recorrer permanentemente às notas
ou a um glossário, optou-se várias vezes por nomes genéricos ou
descritivos, como por exemplo «vestido de mangas curtas». O leitor deverá,
no entanto, ter em atenção que as roupas que figuram nas fantasias
orientalistas, nomeadamente em gravuras que acompanham várias edições
que usam o título As Mil e Uma Noites ou em desenhos animados
provenientes desse imaginário, muitas vezes não têm qualquer relação com
o vestuário usado na época e nos locais descritos. Por exemplo, uma das
peças de roupa que mais se vê nessas fantasias é um turbante muito
volumoso que é adornado de penas e jóias na parte frontal. Essa peça de
roupa de origem turcomana tornou-se conhecida no mundo árabe sobretudo
durante o Império Otomano (1299-1924) e, tendo em conta que as histórias
das Noites foram produzidas durante a Época Mameluca, e que as suas
versões primitivas são ainda mais antigas, torna-se pouco provável que esse
tipo de turbante fosse usado pelas personagens, pelo menos por aquelas que
aparecem nas histórias que decorrem na Síria ou do Egipto.
Pelas várias razões já apresentadas, não foram feitos acrescentos nem
foram exageradas partes do texto para que ele soasse mais exótico, à boa
maneira orientalista, nem sequer tal coisa seria necessária, pois o texto por
si só já é suficientemente exótico para qualquer leitor, independentemente
do contexto cultural de onde provenha.
Não é por acaso que o adjectivo árabe ʿajīb, que significa «espantoso,
maravilhoso, fabuloso», é dos mais usados ao longo d’As Mil e Uma Noites
e da literatura fantástica árabe de tradição oral, sendo este mesmo adjectivo
usado para designar este género de «histórias espantosas» ou
«maravilhosas» (ḥikāyāt ʿajībah). Note-se ainda que na forma plural
(ʿajāʾib) aparece numa das variantes mais longas com que por vezes se
designam As Mil e Uma Noites: ʿajāʾib wa gharāʾib ḥikayāt alf laylah wa
laylah, que se poderia traduzir por As Estranhas e Espantosas Histórias
d’As Mil e Uma Noites, ou, outra tradução possível para manter a rima que
muito caracteriza alguma prosa árabe assim como os títulos de livros, As
Maravilhosas e Espantosas Histórias d’As Mil e Uma Noites. O radical que
forma este nome é também usado no verbo «espantar-se», frequentemente
usado ao longo deste texto. O estranho, o fantástico, o maravilhoso e o
espantoso são moeda corrente na literatura média árabe.
Quanto à oralidade dos textos, procurou-se preservá-la recorrendo muitas
vezes a expressões populares reproduzidas em diversas fontes,
nomeadamente os chamados contos populares portugueses ou literatura
mais antiga baseada em contos orais, tal como o Orto do Esposo (século
xiv). A forma como as pessoas se tratam entre si também se baseia nestes
textos, e não totalmente na tradução literal do árabe, onde os únicos
pronomes usados para interpelar alguém são o «tu», quando se trata de uma
só pessoa, e o «vós», para mais de uma pessoa, excepto na poesia, onde o
«vós» é usado retoricamente para interpelar uma só pessoa, tal como na
poesia portuguesa. Destas normas usadas em árabe, a única que não foi
respeitada foi o «tu» e ao longo da tradução, quando os súbditos se dirigem
aos superiores usa-se o «ele». Assim, por exemplo, usa-se «às suas ordens»
e não «às vossas ordens», mesmo quando se usa «vossa alteza», e salvo
algumas raras excepções o «vós» nunca é usado quando pessoas superiores
na hierarquia são interpeladas. Ao contrário do que por vezes se pensa, o
«vós» não era antigamente usado como a norma oral de interpelação para
pessoas de classes superiores, e vários exemplos de que o «ele» é usado
nesta lógica com bastante recorrência podem ser encontrados, incluindo no
já referido Orto do Esposo ou nos contos populares recolhidos durante o
século XIX. O «vós» é usado ao longo do texto em vez de «vocês», palavra
que tanto no singular como no plural jamais é usada, e na poesia quando em
árabe também se usa. Nalgumas situações, também se usou o «eles» em vez
do «vós». Note-se ainda que os pais tratam os filhos por «tu», mas estes
tratam os pais na terceira pessoa do singular, como era hábito fazer-se. Esta
foi a norma de compromisso encontrada para fazer a ponte entre o
português antigo e o texto árabe datado do século XIV.
Alguns leitores que já tenham lido outros livros com o mesmo título
poderão ficar surpreendidos pelo facto de a palavra «sultão» não ser usada.
De facto, em várias versões, algumas personagens são referidas como o
sultão, como é o caso do rei Xariar, havendo outras traduções que usam
alternadamente rei e sultão. Acontece que a palavra árabe sulṭān tem dois
sentidos: se, por um lado, é, de facto, um título usado, ainda hoje em dia53,
para certos monarcas, ela tem, ainda assim, outro sentido, aliás o sentido
original, que significa «governante» ou «autoridade», nomeadamente
«autoridade real»54. Mas mais importante é o facto de ser atestado por
diversas fontes, tão recentes quanto o século xix, que a palavra sulṭān era
usada como sinónimo de rei, e que, por exemplo, se usava esta palavra,
inclusive em correspondência diplomática, para designar o rei de França.
Assim, o facto de o texto árabe usar para as mesmas personagens tanto a
palavra sulṭān como a palavra mālik (rei) resulta do facto de neste contexto
elas serem basicamente sinónimas, e não um tipo de contradição ou erro de
copista. É certo que numa edição académica esta nuance seria devidamente
assinalada, mas para a compreensão e fruição destas histórias seria
irrelevante e contraproducente assinalar tudo isto em notas de rodapé, e
muito menos usar a palavra sultão, que em português só tem um sentido e
designa um título usado por alguns monarcas. Por outro lado, usar o
literalismo «autoridade real» criaria uma estranheza que não existe no
espírito do texto árabe.
Ao longo do texto existem contradições óbvias, por vezes maiores, por
vezes menores. Destas, não foram reproduzidas as que incidem sobre
nomes (nitidamente trocados) de personagens, como acontece com alguma
frequência no início entre os nomes Xariar e Xazamane, talvez por serem
nomes estrangeiros (persas) e, portanto, exóticos para o copista árabe. Fora
isso, todas as contradições foram mantidas e fizeram-se notas de rodapé só
para aquelas que eram tão excessivas que poderiam criar confusão ao leitor.
Nas raras excepções em que se fez alterações, introduziu-se também uma
nota de rodapé mencionando a tradução literal do texto original. A título de
exemplo destas contradições, quase no final da 32.a Noite, lê-se: «[uma das
três raparigas] foi abrir a porta e voltou instantes depois, e atrás dela
vinham três dervixes vagabundos e zarolhos, que cumprimentaram toda a
gente, fazendo uma vénia e hesitando em avançar. As três raparigas
levantaram-se para os receber55 e lhes darem as boas-vindas […]». Ora se
uma das três raparigas já estaria em pé, visto que não se menciona que ela
se tenha sentado, então só duas delas é que de facto se levantaram. Outro
caso, na 83.a Noite, quando o belo Badreddine é levado pelos ifrites do
Cairo para Damasco depois da noite de núpcias com a bela Sitt-al-Husne e
acorda seminu às portas da cidade, um dos mirones que se concentraram à
volta dele comenta: «Que sortudo aquele que passou a noite com ele!» Ora
o texto original não deixa margem de dúvidas que a frase proferida refere
um acompanhante nocturno do género masculino, e pela construção da frase
também não parece ser erro de copista. No entanto, o lei-tor, por saber que
Badreddine havia dormido com a bela Sitt-al-Husne, tem tendência para ver
uma contradição, que não existe.
Outra das dificuldades recorrentes foi a tradução do nome de pratos
gastronómicos, que ocupam um lugar de destaque ao longo do texto, alguns
que já nem se sabe o que seriam exactamente, e o nome de plantas e flores,
pelo facto de o mesmo nome poder referir plantas diferentes consoante a
época e a região, não sendo sempre fácil nalguns casos ter certezas sobre
qual a planta referida exactamente a. Outra dificuldade, ainda maior, foram
os vocábulos vernaculares. O exemplo mais flagrante é a palavra zumbūr,
de origem persa, com o significado de abelha, usada nalgumas regiões do
mundo árabe, nomeadamente no Magrebe, com o sentido de vespa. No
contexto em que ela aparece, o seu significado é óbvio, trata-se de um nome
vernacular assaz usado no mundo árabe para o órgão sexual feminino
denominado clítoris. A dificuldade da tradução consiste em encontrar um
equivalente vernacular em português. Optou-se por «grelo», mesmo tendo
em conta que sobretudo as gerações mais novas julgam que «grelo» designa
a vulva ou os pêlos púbicos da mulher; na realidade o sentido usado
originalmente na gíria para esta palavra é o clítoris, equivalente ao
«mexilhão» usado nalgumas regiões do Sul de Portugal. Usar a tradução
literal de «abelha» ou «vespa» seria ainda mais incompreensível para o
leitor português, e adicionar ainda mais uma nota de rodapé seria estragar
redondamente a fluidez do texto nessa parte.
Uma das características do texto dos manuscritos da literatura árabe
média são os desvios à norma ortográfica padrão, resultantes não
necessariamente de erros, mas de uma aproximação à fonética do árabe
coloquial. Seria demasiado exaustivo dar exemplos em árabe, mas, grosso
modo, esses desvios podem ser comparados, por exemplo, com situações
como quando em português europeu se escreve «medecina», «Felipe» ou
«ocurrência», que são formas mais próximas à pronúncia ainda que, no
entanto, as grafias consideradas correctas sejam, respectivamente,
«medicina», «Filipe» e «ocorrência». Este género de desvio, infelizmente,
não consta na tradução, pela simples razão de que, por mais que o leitor
estivesse advertido dessas ocorrências, tenderia sempre a considerar que a
sua inclusão seria menos o resultado de uma aproximação à coloquialidade
do texto árabe e sim o resultado de um texto mal traduzido, e sobretudo mal
revisto. Menos importante, mas ainda assim digno de nota, será referir que
nunca seria possível imitar essas ocorrências palavra por palavra, e o
melhor que se poderia ter feito seria ter usado compensações, isto é, usar
«mau português» de forma um pouco aleatória sem necessariamente haver
uma correspondência directa a um erro no árabe. Outro género de «erros»
frequentes nos manuscritos são os plurais. Em árabe há acordos de número
e género que são correctos na língua coloquial, mas não na língua padrão, e
que são frequentes nos textos dos manuscritos. Apesar de, mais uma vez,
não se haver traduzido essa situação linguística para algo que seria
considerado «mau português», tentou-se compensar na tradução usando,
por exemplo, a forma plural «cortesões». Apesar de esta forma ser
perfeitamente correcta em português, a norma culta por vezes tende a
rejeitá-la, talvez por considerar ser uma forma antiga ou mais popular,
preferindo «cortesãos».
Outra das dificuldades foi reproduzir de certo modo a prosa rimada, o
chamado shajʿ em árabe, que caracteriza o texto d’As Mil e Uma Noites, e
que é usual em outros textos árabes. Tentou-se reproduzir essas rimas, mas
nem sempre foi possível, e nalgumas situações esporádicas usaram-se rimas
em pontos do texto que não continham rima no texto original.
Através destes exemplos pretendeu-se, por um lado, dar a conhecer ao
leitor algumas das dificuldades da presente tradução, a difícil tarefa de
manter uma tradução o mais literal possível, sem esconder vários dos
desvios que se julgou conveniente empreender e, por outro lado, alertar para
as contradições que acompanham estes manuscritos, que, sem dúvida,
foram limpas em várias das versões forjadas e impressas, sacrificando a
espontaneidade do texto.
Os poemas
Alguns dos poemas dos manuscritos que serviram de base a esta tradução
são plágios desviantes de autores conhecidos, e outros reportam-se à
tradição oral, que alguns poetas, por sua vez, vieram recuperar para os seus
próprios cancioneiros. Em alguns destes poemas con-segue traçar-se uma
ligação evidente a determinado autor, não sendo sempre fácil saber quem
plagiou quem. Por vezes, são atribuídas falsas autorias, como, por exemplo,
no segundo poema da obra cuja autoria é atribuída, por quem o enuncia, a
um tal Ibn Attammame. Não se conhece um poeta de destaque com este
nome, mas quem tem algum conhecimento da poesia árabe não pode deixar
de pensar se se trata de alguma confusão com o célebre poeta do século ix
Abu Tammame; mas o porquê dessa confusão, propositada ou não, não é
evidente. Há poemas que têm um tom muito popular e/ou básico e outros
que revelam um conhecimento literário extremamente apurado. No entanto,
mesmo nestes casos há fugas às regras de métrica das Belles Lettres e, por
isso, muitos poemas foram sacrificados, por exemplo na edição de Bulaq,
em prol do cânone.
A poesia ocupa um lugar de destaque em toda a literatura árabe, desde os
seus níveis mais orais e espontâneos aos mais sofisticados, cruzando todas
as classes sociais. A poesia árabe depende, em grande parte, da métrica e da
rima, e usa e abusa de jogos de palavras, recorrendo por exemplo a palavras
homónimas, mas com sentidos totalmente diferentes no contexto. Por
exemplo, no terceiro poema da 35.a Noite, o mesmo verbo ishtafá é usado
em dois finais de verso para rimar, mas numa ocorrência significa «curar-
se» e noutra «vingar-se». O peculiar sentido rítmico, as rimas e os jogos de
palavras criam dificuldades incomuns à tradução destes poemas,
nomeadamente quando o objectivo é manter o mais possível o sentido do
original, sem recorrer à chamada «versão» do tradutor. Assim, tentou-se
manter algum esquema de rima, mesmo que muito diferente do original,
mas sem fugir nem recorrer a originalidades desviantes das palavras e do
sentido usado, o que nem sempre foi fácil, nomeadamente perante
metáforas intraduzíveis e insubstituíveis por outras equivalentes, e nalguns
casos foi mesmo necessário «traduzir» a metáfora, um último recurso que
se evitou ao máximo usar.
Há poemas dos quais não foi possível fazer uma tradução literal, não
pelas dificuldades literárias inerentes, mas porque fazem eco de histórias e
outros poemas da tradição árabe que deveriam ser, muito possivelmente,
reconhecidos na sua época, mas que não o são pelo lei-tor contemporâneo.
Um exemplo é o poema que figura na 10.a Noite, cujos últimos dois versos
foram traduzidos da seguinte forma: «Quem ajuda os indignos com a
bondade, / Sofre a tortura das hienas esfomeadas.» Na realidade, estes
últimos dois versos traduzem-se literalmente da seguinte maneira: «Quem
faz uma boa acção com quem não é da sua família / Encontrará o que
encontrou o Protector da Mãe-de-Ámir.» A Mãe-de-Ámir (Umm al-ʿāmir) é
uma alcunha (kunyah) árabe para a hiena. Ora, manter este literalismo com
o risco de o poema se tornar ainda menos compreensível para o leitor não se
justifica, porque na realidade este poema faz uma óbvia referência a uma
lenda árabe chamada «O Protector da Mãe-de-Ámir» (isto é, da hiena) e que
é contada, por exemplo, por Kamāl ad-Damīrī no seu «Grande Livro da
Vida dos Animais» (século XIV) que, por sua vez, afirma que esta era
narrada no livro Shuʿb al-īmān da autoria de Abū Bakr Aḥmad ibn Ḥusayn
al-Bayhaqī. E reza essa lenda como se segue:
Conclusão
Agradecimentos
O tradutor
Legendas
« » Diálogos.
“ ” Diálogos dentro de diálogos
‘ ’ Citações e paráfrases do Alcorão.
itálico Provérbios e expressões populares citadas. Mas nas notas de rodapé
e no Preâmbulo usa-se também para as palavras árabes quando
transliteradas segundo a norma ALA-LC. Usa-se ainda para nomes de livros
ao longo do texto.
[ ] Acrescentos ocasionais do tradutor, ou de outros manuscritos, para
preencher lacunas do texto árabe.
Introdução
Xerazade disse:
Na noite seguinte, quando Xerazade foi para a cama com o rei Xariar,
Dinarzade disse à sua irmã: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por favor
conta-nos um dos teus belos contos para entretermos a noite.» E o rei disse:
«Que seja o desfecho da história do génio e do mercador.» E Xerazade
respondeu: «Assim seja:»
Ó génio, fica sabendo que esta gazela é minha prima direita, carne da
minha carne, sangue do meu sangue. Casei-me com ela era eu ainda muito
jovem e ela uma miúda de doze anitos apenas, que só se tornou mulher
algum tempo depois do casamento. Vivemos juntos durante trinta anos, mas
nunca fui abençoado com filhos dela, pois do seu ventre não saiu menino
algum nem menina. Apesar disso, durante esses trinta anos, nunca deixei de
a tratar bem, com respeito, carinho e generosidade. Mas a dada altura tomei
uma concubina, e fui abençoado com um filho dela, um menino tão lindo
quanto a face da Lua. E por causa da minha concubina e do nosso filho, a
minha mulher foi tomada por ciúmes.
Um dia, quando o meu filho já tinha dez anos, tive de partir em viagem.
Encarreguei a minha mulher, que está aqui à minha banda e é minha prima
direita, de velar pelo bem e pela segurança da minha escrava e do meu
filho, e parti em viagem durante um ano. Mas a minha mulher, e prima
direita, aproveitou a minha ausência para aprender artes mágicas e de
adivinhação. Lançou um bruxedo ao meu filho e ele em bezerro se
transformou. Chamou o meu pastor e deu-lhe o meu filho, dizendo: «Ajunta
este aqui à manada.» O pastor guardou-o e cuidou dele, pelo menos durante
algum tempo. Quanto à mãe do meu filho, teve também o mesmo destino,
pois ela fê-la ser uma vaca e também ao pastor a entregou.
Quando voltei de viagem, depois destes acontecimentos, perguntei-lhe
pela minha segunda mulher e pelo meu filho, e ela disse: «A tua mulher
morreu, e o teu filho faz para aí dois meses que fugiu, sem eu nunca mais
saber dele nova má nem boa.» Quando ouvi isto, o meu coração ficou
desfeito por mor do meu filho e triste pela minha segunda mulher; e fiquei
de luto durante um ano.
Quando chegou a época da Grande Festa7, chamei o pastor e disse-lhe
para me trazer uma vaca gorda para ser sacrificada, e ele trouxe uma que
era em realidade a minha segunda mulher que estava encantada. Quando a
amarrei e a segurei para lhe cortar a garganta, começou a chorar e a berrar
em tal guisa que até parecia dizer: «Meu filho, meu filho», enquanto lhe
escorriam rios de lágrimas pela cara abaixo. Espantei-me com tal coisa, tive
pena do bicho e não o consegui degolar. Então disse ao pastor que me
trouxesse outra vaca, mas a minha prima começou a gritar dizendo: «Vá,
degola esta mesmo, porque o teu pastor não tem melhor nem mais
borrachuda. Vamos deliciar-nos com a sua carne durante esta festa.»
Aproximei-me outra vez dela para a degolar, mas eis que ela de novo
começa a berrar em tal guisa, que até parecia dizer: «Meu filho, meu filho.»
Afastei-me e disse ao pastor: «Degola-a tu em meu lugar.» O pastor assim
fez, mas quando a esfolou não encontrou carne nem gordura, só pele e
ossos. Arrependi-me de a degolar e disse ao pastor: «Fica com ela toda para
ti ou dá-a em esmola a quem tu quiseres; e procura-me um bezerro.» O
pastor levou-a e abalou, e não faço ideia do que lhe fez.
Em seguida, trouxe o meu filho, fruto do meu sangue, em forma de um
anafado bezerro. Mal o meu filho me viu, desembaraçou-se da arreata e
desatou a correr na minha direcção, lançando-se aos meus pés e roçando a
sua cara nas minhas pernas. Espantado com tal coisa, senti pena e
compaixão; e porque a empatia que liga os parentes de sangue é de tal
modo divina, o meu estômago até deu voltas quando lhe vi as lágrimas a
escorrerem pela cara abaixo, enquanto esgravatava no chão com as mãos.
Como o não queria degolar, disse ao pastor: «Leva este bezerro de volta e sê
bondoso com ele, porque lhe poupei a vida. Traz-me outro que não este.»
Mas a minha prima, esta gazela que está aqui, desatou aos gritos: «É este o
bezerro que vamos degolar e nenhum outro.» Fiquei irritado e disse: «Eu
determinei poupar a vida a este bezerro e não quero saber da tua opinião
para nada.» Mas ela pressionou-me e aperfiou: «É este o bezerro que vamos
degolar.» Então amarrei-o e peguei na faca…
Ouvi dizer, meu caro rei, que o ancião que se fazia acompanhar pela
gazela disse ao génio e à gente ali presente:
Na noite seguinte, quando Xerazade foi para a cama com o rei Xariar,
Dinarzade disse à sua irmã: «Ó mana, se não estiveres a dormir, contas-nos
como acaba a história que começaste ontem?» E Xerazade respondeu:
«Com todo o prazer:»
Ó génio, quanto à minha história, eis o que tenho para contar. Estes dois
galgos são os meus irmãos. Quando o meu pai morreu, deixou aos seus três
únicos filhos três mil dinares8, com os quais cada um de nós abriu uma loja
e se tornou comerciante. Pouco tempo depois, o meu irmão mais velho, que
é um destes galgos, vendeu todos os artigos da sua loja por mil dinares,
preparou-se para viajar, comprando diversas mercadorias para fazer
negócios, e partiu. Um ano passou, e certo dia estava eu na minha loja,
quando apareceu um pedinte. Querendo que ele se fosse embora, disse-lhe:
«Que Deus te ajude.» Mas este, a chorar, perguntou-me: «Já me não
reconheces?» Olhei melhor para ele e vi que, em verdade, era o meu irmão.
Corri logo a abraçá-lo, trouxe-o para dentro da loja, e perguntei-lhe como
tinha passado. «Nem perguntes, O dinheiro encolheu e a penúria cresceu.»
Então, levei-o aos banhos, dei-lhe uma roupa minha para ele se vestir, e
trouxe-o para minha casa. Em seguida, examinei os meus cadernos de
contas e descobri que havia lucrado mil dinares, perfazendo todo o meu
dinheiro dois mil dinares. Peguei neste dinheiro todo e dividi-o em partes
iguais entre mim e o meu irmão, e disse-lhe: «Faz de conta que nunca
abalaste.» Ele ficou muito contente e, com a sua parte, abriu uma loja.
Passados alguns dias, o meu outro irmão, que é este outro galgo, vendeu
tudo o que tinha, e juntou todo o dinheiro que ganhara para partir em
viagem. Tentámos convencê-lo a não partir, mas ele não nos atendeu. Em
vez disso, comprou imensas mercadorias para fazer negócios e abalou com
um grupo de viajantes. Passou-se um ano inteirinho até que ele voltou
exactamente na mesma condição que o nosso irmão mais velho. «Não te
tinha prevenido que terias feito melhor em ficar?», disse-lhe eu. E ele
respondeu-me a chorar: «Ó mano, foi o destino. E agora aqui estou eu, nu
da cintura para cima, sem um tusto e sem ter onde cair morto.» Então, ó
génio, levei-o aos banhos, dei-lhe uma roupa minha novinha em folha para
que ele se vestisse, e trouxe-o até à minha loja, onde comemos qualquer
coisa. Durante a refeição, disse-lhe: «Está na altura de fazer as contas
anuais da minha loja e do meu património; irei subtrair o capital para
calcular os lucros obtidos, e sejam estes quais forem, irei reparti-los entre
nós os dois.» Quando examinei os meus cadernos de contas, descobri que
havia lucrado dois mil dinares; fiquei radiante de alegria, dei graças a Deus
Todo-Poderoso, e reparti esse dinheiro com o meu irmão, que recebeu mil
dinares. Com esse dinheiro, abriu uma loja, e nós os três ficámos juntos uns
dos outros.
Mas ao cabo de pouco tempo, os meus irmãos tentaram convencer-me a
partir com eles numa viagem de negócios, e não aceitando eu a ideia, disse-
lhes: «O que é que ganhastes nas vossas viagens para eu ir convosco?» E
eles não afincaram, e continuámos o nosso trabalho de comerciante nas
nossas lojas. A cada ano que passava, eles voltavam à carga e traziam à
baila o mesmo assunto, e eu todas as vezes ficava de pé atrás. Mas ao cabo
de seis anos, acabei por consentir na ideia deles, e disse-lhes: «Aqui estou
eu, pronto para viajar convosco. Agora dizei-me lá quanto dinheiro
tendes?» E fiquei a saber que tinham esbanjado todo o dinheiro na boa vida,
mas apesar disso nada lhes disse nem os censurei. Em vez disso, juntei tudo
o que tinha na loja, e depois de tudo vender e de fazer contas, tinha seis mil
dinares, o que me deixou radiante de alegria. Dividi então esta soma em
duas metades, e disse aos meus irmãos: «Aqui estão três mil dinares, que
são para nós os três, todos juntos, viajarmos e fazermos negócios. Quanto
aos outros três mil, vamos a enterrá-los debaixo de terra. Assim, se as
coisas derem para o torto como já vos aconteceu, quando regressarmos
teremos três mil dinares à nossa disposição para abrirmos lojas e
restabelecermos o nosso comércio.» «Excelente ideia», responderam eles.
Assim foi, ó génio, reparti o meu dinheiro, distribuindo mil dinares a cada
um dos meus irmãos e a mim mesmo, e os restantes três mil enterrei-os.
Depois de encerrar a minha loja, abastecemo-nos de mercadorias para fazer
negócio, e alugámos uma embarcação de longo curso. Depois de termos
carregado as nossas mercadorias e as provisões necessárias para a viagem,
fomos por esses mares fora, navegando noite e dia durante um mês…
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana», disse a sua irmã Dinarzade. E Xerazade respondeu: «O que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, será ainda melhor, mais
surpreendente e espantoso, se Deus quiser que eu viva.»
7.a NOITE
Na noite seguinte, quando Xerazade foi para a cama com o rei Xariar,
Dinarzade disse à sua irmã: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por favor
conta-nos como acaba a história do pescador.» E Xerazade respondeu:
«Com todo o prazer:»
Ouvi dizer que o pescador, depois do ifrite haver dito tais coisas, falou-
lhe assim: «Ó gigante, que estás para aí a dizer? Salomão, profeta de Deus,
já morreu faz mais de mil e oitocentos anos, e nós agora estamos no fim dos
tempos. Mas afinal por que razão estavas fechado nesta jarra? Qual é a tua
história?» O ifrite, depois de ouvir as palavras do pescador, exclamou:
«Alvíssaras!» E o pescador assertou: «Ai tão bom, que dia tão feliz!» Mas
vai o ifrite e disse: «Alvíssaras! Anuncio que muito em breve irei matar-te!»
Ao que o pescador disse: «Vergonha não te falta por tais alvíssaras! E
porque hás-de tu matar-me, a mim que te libertei e te salvei dos fundos do
mar? A mim que te trouxe de volta ao mundo?» Então o ifrite retraiu-se e
disse: «Sendo assim, pede um desejo.» O pescador alegrou-se, e perguntou:
«E que tipo de desejo poderei pedir?» E o ifrite respondeu: «Podes pedir de
que modo preferes morrer e que tipo de morte queres que eu te dê.» «Mas
que mal fiz eu?», perguntou o pescador: «Como podes dar-me tal
recompensa, a mim que te libertei?» O ifrite respondeu: «Pescador, ouve a
minha história.» «Sê breve», disse o pescador: «porque não estou para
muito mais.»
O ifrite falou assim: «Fica sabendo que eu sou um dos génios renegados
e rebeldes, e que juntamente com o gigante Sakhr11, desobedeci a Salomão,
profeta de Deus e filho de David. Por causa disso, Salomão enviou Ássife,
filho de Barkhia, para me capturar à força e humilhar a minha enorme
grandeza, levando-me preso até diante dele. Quando o profeta Salomão me
viu, e depois de se acostumar ao meu aspecto, convidou-me a que lhe
prestasse obediência. Mas eu recusei, e por isso ele prendeu-me nesta jarra
de bronze, que fechou com chumbo e selou com o Grandiosíssimo Nome de
Deus. Depois ordenou aos génios que pegassem em mim e me largassem no
meio do mar.
»Aquando os primeiros duzentos anos, disse de mim para mim: “Quem
me libertar durante estes duzentos anos, fá-lo-ei imensamente rico, a ele e à
sua descendência.” Mas passaram-se duzentos anos e ninguém me libertou.
E começaram outros duzentos anos, e eu disse de mim para mim: “Quem
me libertar durante estes duzentos anos, dar-lhe-ei todos os tesoiros do
mundo.” Mas passaram-se quatrocentos anos e ninguém me libertou.
Durante os cem anos seguintes, disse de mim para mim: “Quem me libertar
durante estes cem anos, fá-lo-ei rei, serei seu servo, e todos os dias lhe
satisfarei três desejos.” Mas passaram-se cem anos, mais todos estes anos, e
ninguém me libertou. Então rugi, mugi e bufei de raiva, e disse de mim para
mim: “De agora em diante, quem me libertar lhe darei a pior das mortes, ou
o deixarei escolher de que modo prefere morrer.” E pouco tempo passou até
que hoje tu me libertaste. Agora escolhe como preferes morrer.»
Depois de ouvir os factos narrados pelo ifrite, o pescador disse: «A Deus
pertencemos e a Deus regressaremos. Eu fiz o que estava certo ao libertar-te
depois de todos estes anos, mas pior infortúnio não podia receber. Perdoa-
me e Deus te perdoará, aniquila-me e Deus te aniquilará.» Mas o ifrite
respondeu: «Não tens escapatória. Agora diz-me, de que modo preferes
morrer?» O pescador conheceu que a sua morta era certa, e disse: «Ó meus
ricos filhinhos, saudade maior do que esta não há.» Aproximou-se do ifrite,
e suplicou: «Por favor, lembra-te que fui eu que desta jarra te libertei e
salvei, e salva-me.» Mas o ifrite contestou: «E por que outra razão havia eu
de te matar, senão para te compensar por me teres libertado e salvo?» Ao
que o pescador disse: «Tratei-te com bondade e recompensas-me com
fealdade. Não mentiu quem como provérbio disse estes versos:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão espantosa, ó mana», disse a sua irmã Dinarzade. E Xerazade
respondeu: «Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei,
na próxima noite; será ainda mais espantoso, se o rei me poupar e eu viver.»
11.a NOITE
O rei Yunane recebeu o sábio Dubane, que lhe disse para cavalgar até ao
campo de jogos, onde iria jogar pólo. O rei assim fez, acompanhado por
camaristas, emires, vizires, dignitários do reino, notáveis, e por todos os
cortesãos. Depois de se ter instalado, o sábio Dubane aproximou-se do rei
Yunane, e ao passar-lhe o taco, disse-lhe: «Ó bem-aventurado rei, tome este
taco, segure na sua pega e aperte-o muito bem com a sua mão; vá a galopar
e bata com ele na bola; continue até suar, fazendo com que o suor da sua
mão seja transmitido à pega, o que por sua vez fará com que o remédio seja
libertado para a sua mão, fluindo pelo braço até se espalhar pelo corpo
inteiro. Quando isto acontecer, regresse ao palácio, tome um banho, durma
de seguida, e ficará curado, sem mais nem menos.»
O rei Yunane, depois do sábio Dubane lhe ter passado o taco, montou o
seu cavalo, e pôs-se a galopar atrás da bola para bater nela com o taco, e
cada vez que o fazia os seus criados tornavam a lançá-la na sua direcção.
Jogou com tanto afinco que ficou com o corpo todo suado, e as suas mãos
embeberam o remédio que a pega do taco libertava, e que se propagou por
todo o seu corpo. O sábio Dubane, percebendo que o rei Yunane já tinha
transpirado o suficiente, disse-lhe para voltar para o palácio, e que tomasse
um banho antes de mais nada. O rei assim fez, e depois de um bom e belo
banho, vestiu as suas roupas, saiu dos banhos e volveu ao palácio.
O sábio Dubane, por sua vez, foi para casa dormir. Logo que acordou no
dia seguinte bem cedinho, dirigiu-se de imediato ao palácio, e pediu
autorização para visitar o rei. Quando lha concederam, ele entrou, beijou o
chão diante do rei, e, dirigindo-lhe a palavra, disse estes versos:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana», disse a sua irmã Dinarzade. E Xerazade respondeu: «E ficarão
ainda mais espantados e maravilhados com o que vos contarei na próxima
noite.»
14.a NOITE
Não faça algo de que venha a arrepender-se, tal como ouvi dizer que
aconteceu a um homem que era muito invejoso, e que tinha uma mulher
dotada de irradiante beleza e perfeita lindeza. Essa mulher não permitia que
o marido fosse viajar para longe dela, mas um dia ele teve imperiosamente
de empreender uma viagem. Então foi até ao mercado dos pássaros,
comprou um papagaio e trouxe-o para casa, para o servir como espião e lhe
relatar o que acontecia em casa durante a sua ausência. O papagaio era
muito inteligente e esperto, e um observador atento.
O marido partiu em viagem, e depois de haver despachado os seus
afazeres, regressou. Foi logo buscar o papagaio para o inquirir sobre os
feitos da mulher durante a sua ausência. O papagaio informou-o, dia por
dia, do que havia feito a mulher com o amigo dela. Quando ouviu o relato
do papagaio, ficou furibundo, foi ter com a mulher e moeu-a com pancada.
A mulher suspeitou que uma das suas criadas tivesse contado ao marido o
que se passara entre si e o seu amigo durante a ausência do marido, e
interrogou-as uma a uma, mas todas as criadas juraram que haviam ouvido
o papagaio contar tudo ao marido.
Depois de a mulher ter descoberto que havia sido o papagaio quem havia
contado tudo ao marido, ordenou a uma das criadas que fosse buscar a mó e
se pusesse a moer debaixo da gaiola, e mandou outra criada borrifar água
por cima da gaiola, enquanto uma outra criada se punha à roda de uma
banda para a outra com um espelho de aço durante toda a noite.
O marido não dormiu em casa naquela noite e só regressou ao fazer-se
manhã, tendo ido logo buscar o papagaio para lhe perguntar o sucedido
durante a sua ausência naquela noite, e o papagaio respondeu-lhe: «Meu
bom senhor, as minhas sinceras desculpas, mas ontem não consegui ouvir
nem ver nada, por mor da escuridão cerrada, da chuva, da trovoada e dos
relâmpagos, que se abateram durante a noite toda até de manhã.» Como era
o mês de Julho em pleno Verão, ele disse ao papagaio: «Maldito sejas! Esta
não é a época das chuvas!» E o papagaio replicou: «Sim, meu Deus, mas o
que disse foi o que eu vi.» Ora, o marido, convencido de que o papagaio
havia mentido sobre a sua mulher e lançado sobre ela falsas suspeitas,
tomou-se de fúrias, abriu a gaiola, agarrou no papagaio, atirou-o ao chão
com tanta força que ele morreu.
Tempo depois, o marido ficou a saber pelos vizinhos que era verdade o
que o papagaio havia dito sobre a mulher, e arrependeu-se de o haver
matado, por causa de uma artimanha montada pela mulher.
Conta-se, ó rei bem-aventurado, que havia um rei que tinha um filho que
era grande amigo da caça e da montaria. O rei havia ordenado a um vizir
que acompanhasse o príncipe onde quer que ele fosse. Um dia o príncipe
saiu, e indo os dois juntos pela campina, e tendo o príncipe avistado um
animal selvagem, vai o vizir e disse-lhe: «Lá vai um! Segue-o e apanha-o!»
O príncipe desatou a galopar no seu encalço, até que lhe perdeu o rasto, e
quando deu por si estava perdido no meio da campina sem saber para onde
ir nem que caminho seguir.
Deu-lhe então à vista uma moça, que estava a chorar à beira do caminho,
e perguntou-lhe: «De onde és?» Ela disse: «Sou filha de um rei da Índia, e
enquanto cavalgava pela campina apoderou-se de mim o sono, e sem dar
por ela caí do cavalo abaixo, e agora estou perdida, sozinha e desorientada.»
Quando o jovem príncipe ouviu isto, sentiu pena dela, e a fez montar na
garupa do seu cavalo, atrás de si. Continuou a cavalgar, e passando por
umas ruínas, vai a moça e disse-lhe: «Ó meu senhor, preciso de fazer uma
necessidade aqui mesmo.» O príncipe pô-la no chão, e ela entrou naquelas
ruínas. Ele seguiu-a, sem saber a verdade sobre ela, e quando se aproximou
viu que ela era uma ghula15, e ouviu-a dizer aos seus filhos: «Trouxe-vos
um belo e rechonchudo rapazinho.» E os filhos disseram: «Venha lá ele,
mamã, para nos alambazarmos com as suas tripas.»
Quando o jovem príncipe ouviu isto, foi tal o susto que tremeu da
cabeças aos pés, e, com medo pela sua própria vida, alvorou. A ghula veio
atrás dele, e perguntou-lhe: «Estás com medo de quê?» Ele explicou-lhe em
que situação se encontrava e o que lhe havia acontecido, e rematou dizendo:
«Foi-me feita uma grande injustiça.» E a ghula lhe respondeu: «Se te foi
feita uma grande injustiça, pede a Deus
Todo-Poderoso que te auxilie, e Ele te protegerá do mal.» Então o jovem
príncipe ergueu as mãos ao céu…
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão espantosa», disse a sua irmã Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite;
será ainda mais espantoso e mais estranho.»
16.a NOITE
Tendo o filho do rei dito à ghula: «Foi-me feita uma grande injustiça», a
ghula respondeu-lhe: «Se te foi feita uma grande injustiça, pede a Deus que
te auxilie, e Ele te protegerá do mal.» Então, o jovem príncipe ergueu as
mãos ao céu, e disse: «Senhor, ajuda-me a triunfar sobre o inimigo, ‘Porque
Tu tens poder sobre todas as coisas’16.» Ao ouvir esta prece a ghula sumiu-
se, e o jovem príncipe regressou são e salvo para junto de seu pai, a quem
contou o que o vizir lhe havia feito, dizendo-lhe «avança!» para que o
jovem príncipe se enfiasse direitinho na armadilha da ghula. Então o rei
chamou o vizir e fez com que o matassem.
«E também vossa alteza», disse o vizir do rei Yunane, «ao confiar neste
sábio, estreitando laços de amizade com ele e lhe oferecendo regalias, está a
contribuir para a sua própria desgraça e destruição. Tenho informações
credíveis de que ele é um espião vindo do estrangeiro com o intuito de
assassinar vossa alteza. Não viu que ele o curou sem tocar no corpo de
vossa alteza, bastando apertar algo com a sua mão?»
O rei Yunane, já furioso, respondeu: «Acredito, ó vizir, é bem possível
que seja como dizes, que ele tenha vindo para me destruir, porque se ele me
curou bastando eu apertar um objecto com a minha mão, então também me
poderá matar dando-me algo para cheirar.» E em seguida perguntou ao
vizir: «Ó vizir conselheiro, que deverei fazer?» E o vizir respondeu: «Real
senhor, mande agora mesmo alguém que o traga à presença de vossa alteza,
e quando ele vier, degole-o, assim poderá cumprir o desejo e a vontade de
vossa alteza.»
O rei disse: «Eis um bom e sábio conselho.» E em seguida, convocou à
sua presença o sábio Dubane, que apareceu num pronto, visivelmente
contente por todas as riquezas, regalias e trajes de honra que o rei lhe havia
ofertado. Entrou na corte, e dirigindo a palavra ao rei, disse estes versos:
Ouvi dizer, ó rei, que o sábio Dubane, quando viu o rei Yunane a
cambalear, contorcendo-se e retorcendo-se, por mor da droga que se
espalhara pelo seu corpo, pôs-se a declamar:
Mal a cabeça do sábio terminou estas palavras, logo o rei caiu morto
redondamente, e no mesmo momento também a cabeça morreu. Fica
sabendo, ó ifrite…
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história
tão boa,» disse a sua irmã Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
viver.»
18.a NOITE
Ouvi dizer, ó rei, que o pescador disse ao ifrite: «Se o rei tivesse poupado
o sábio, Deus tê-lo-ia poupado e o rei teria vivido, mas porque o rei se
recusou a poupar o sábio, Deus Todo-Poderoso matou-o. E tu, ó ifrite, se me
tivesses poupado, eu também te teria poupado, mas tu recusaste poupar-me.
Por isso, far-te-ei provar o sabor da morte, aprisionando-te nesta jarra e
lançando-te ao fundo do mar.
O ifrite pôs-se a gritar, dizendo: «Não, ó pescador, não o faças! Poupa-
me, liberta-me e perdoa-me pelo que eu fiz e por te haver ofendido. Se agi
mal, poderás tu agir bem, pois lá diz o ditado: Sê bondoso para quem te é
maldoso. Não faças como Imama fez a Ática.» O pescador perguntou: «E o
que fez Imama a Ática?» E o ifrite respondeu: «Dentro de uma prisão tão
estreita é-me difícil contar-te uma história, mas poderei fazê-lo depois de
me libertares.»
«Irei lançar-te ao mar», disse o pescador: «e de modo algum te irei tirar
daí e libertar. Tanto supliquei e implorei ante ti, mas tu recusaste poupar-me
a vida, a mim que mal nenhum te fiz nem coisa outra que mereça punição, a
mim que te libertei do cativeiro. Quando fizeste comigo o que fizeste, vi
logo que eras um ser impuro e vil de nascença, que com a fealdade
recompensa a bondade. Quando te lançar ao mar, construirei uma cabana
neste lugar, onde irei habitar para garantir que nunca mais voltes. E se
alguém der contigo, ó mais mortífero dos ifrites! contar-lhe-ei o que se me
passou contigo, e o acautelarei para que te devolva ao mar, para que aí te
quedes até ao fim dos tempos e sejas aniquilado.» O ifrite aperfiou:
«Liberta-me desta vez e eu prometo que nunca mais tornarei a fazer-te mal
ou a atormentar-te, mas ser-te-ei benéfico e far-te-ei rico.» Então o pescador
fez o ifrite prometer e jurar solenemente que se o libertasse, ele não lhe
faria mal, mas pelo contrário, o trataria bem e com bondade.
Depois do ifrite haver prestado juramento pelo Grandiosíssimo Nome e
assegurado a sua boa vontade, o pescador abriu a jarra. O fumo elevou-se
nos ares até já não sair mais, e depois ajuntou-se todo até se tornar num
ifrite de carne e osso. Logo que isso aconteceu, o ifrite deu um chuto na
jarra, que voou até aterrar em pleno mar. O pescador, ao ver isto,
convencido de que os seus dias haviam chegado ao fim, mijou-se nas calças
e disse: «Isto não é um bom sinal.» Mas apesar de recear pela sua vida,
encheu-se de coragem e disse: «Ó ifrite, prometeste e juraste, agora não me
atraiçoes e cumpre o que disseste, senão Deus Todo-Poderoso punirá a tua
traição. Torno a dizer-te, ó ifrite, o que Dubane disse ao rei Yunane,
“Poupa-me e Deus te poupará, mata-me e Deus te matará.”» O ifrite deu
uma gargalhada ao ouvir isto, e o pescador aperfiou: «Poupa-me, ó ifrite.»
Ao que o ifrite disse: «Pescador, segue-me.» O pescador seguiu-o, sem
grandes esperanças de que se iria salvar, até chegarem a uma montanha fora
da cidade. Subiram a montanha e desceram pela encosta oposta, alcançando
um vasto escampado onde no meio havia uma lagoa rodeada por quatro
montes.
O ifrite parou defronte da lagoa e disse ao pescador para lançar a sua
rede. O pescador, ao observar a lagoa, ficou espantadíssimo ao notar que
havia peixes de quatro cores diferentes, brancos, vermelhos, azuis e
amarelos. Em seguida lançou a rede, e quando a alou, vieram à rede quatro
peixes, um vermelho, um branco, um azul, e um amarelo. Quando os viu,
ficou maravilhado e cheio de alegria. Por sua vez, o ifrite disse-lhe: «Leva-
os ao rei da tua cidade; quando lhos ofereceres, ele te fará rico. E peço que
aceites as minhas desculpas por não conhecer outro modo para te
enriquecer. Mas não pesques nesta lagoa mais do que uma vez por dia. E
lembra-te de mim e do que te disse.» E dito isto, bateu com o pé no chão,
que se fendeu, engolindo o ifrite.
Ó rei, o pescador foi para cidade, maravilhado com os peixes coloridos e
com tudo o que se lhe havia passado com o ifrite. Quando chegou ao
palácio do rei, ofereceu-lhe os peixes, e o rei olhou para eles…
Ouvi dizer, ó rei, que quando o pescador ofereceu os peixes ao rei, e este
olhou para eles e viu que eram coloridos, ficou extremamente admirado e
maravilhado, e até pegou num deles com a mão para o observar melhor.
Depois disse ao seu vizir: «Entrega-os à cozinheira recém-chegada que o
imperador de Bizâncio nos ofereceu.» O vizir pegou nos peixes e em os
dando à moça, disse-lhe: «Moça, lá diz o rifão: Não verto nenhuma lágrima
senão estiver feito numa lástima. Ofereceram ao nosso rei estes quatro
peixes, e ele ordenou que faças uma bela fritada.»
Quando o vizir informou o rei que tinha cumprido as suas ordens, o rei
disse ao vizir: «Dá quatrocentos dirames18 ao pescador.» Assim fez o vizir,
e o pescador valeu-se das fraldas das suas roupas para levar o dinheiro, e
disparou a correr aos trambolhões, tropeçando nas suas vestes, pensando
que estava a viver um sonho. Depois, o pescador usou esse dinheiro para
comprar para a sua família diversas coisas de que eram faltos.
E isto, ó rei, foi o que aconteceu ao pescador. Já no que toca à moça
cozinheira do rei, esta pegou nos peixes, escamou-os, amanhou-os e cortou-
os em postas. Depois pôs a frigideira ao lume, regou-a com sirage, e
esperou que começasse a ferver, antes de botar os peixes na frigideira.
Quando já estavam bons de um dos lados, virou-os; mas eis que, mal o fez,
a parede da cozinha rasgou-se ao meio, e de lá de dentro saiu uma moça, de
belo corpo, bochechas macias, feições perfeitas e olhos negros. Vestia um
vestido de cetim sem mangas e apetrechada de um cinto egípcio com
lantejoulas. Usava uns pingentes nas orelhas e umas braceletes nos pulsos,
enquanto numa das mãos segurava uma varinha de bambu. Então espetou a
varinha na frigideira, e disse de guisa eloquente: «Ó peixe, ó peixe, tereis
vós sido fiéis à promessa?»
A cozinheira, quando viu isto, perdeu os sentidos. Então a moça tornou a
repetir o que havia dito, os peixes ergueram a cabeça para fora da frigideira,
e disseram de guisa eloquente: «Sim, sim, se vós regressardes, nós
regressaremos. Se vós fordes fiéis, nós também o sere-mos. Se desistirdes,
ficaremos quites.» Nesse momento, a moça virou a frigideira ao contrário e
saiu pelo mesmo lugar por onde havia entrado, e a parede da cozinha
fechou-se.
Entretanto a cozinheira acordou e viu que os quatro peixes estavam
queimados e pretos que nem carvão. Ficou muito apoquentada com aquilo
tudo e com medo do rei, e lembrou-se-lhe o rifão que diz: Partiu a lança
logo na primeira lançada. Enquanto se censurava a si mesma, apareceu-lhe
o vizir, que disse: «Traz lá os peixes, já prepararam a mesa para o rei, e ele
está à espera.» A moça pôs-se a chorar, e informou o vizir sobre o que lhe
havia sucedido com os peixes e sobre o que havia visto com os seus
próprios olhos, o que surpreendeu o vizir que disse: «Que coisa mais
espantosa!» Em seguida, enviou atrás do pescador um oficial, que regressou
ao cabo de pouco tempo com o pescador. O vizir gritou-lhe na cara,
dizendo: «Pescador, traz-nos de imediato quatro peixes como aqueles outros
que nos trouxeste, porque tivemos um incidente com eles.» E como o vizir
o ameaçou, o pescador não teve outro remédio. Foi a casa buscar os
apetrechos de pesca, saiu da cidade, subiu e desceu a montanha, e
atravessando o escampado alcançou a lagoa. Então lançou a sua rede e,
depois de a alar, encontrou nela quatro peixes como os primeiros. Levou-os
ao vizir, que por sua vez os entregou à moça, dizendo-lhe: «Frita-os à minha
frente, para eu ver o que se passa.»
A moça de imediato amanhou os peixes, pôs a frigideira ao lume, e
depois botou-os na frigideira. Quando já estavam bons, a parede da cozinha
rasgou-se e apareceu uma moça com o seu elegante vestido, usando
adornos, colares e outras jóias, e segurando na mão uma varinha de bambu.
Então, espetou a varinha na frigideira, e disse de guisa eloquente: «Ó peixe,
ó peixe, tereis vós sido fiéis à promessa?» Os peixes ergueram a cabeça, e
disseram: «Sim, sim, se vós regressardes, nós regressaremos. Se vós fordes
fiéis, nós também o seremos. Se desistirdes, ficaremos quites.»
Ouvi dizer, ó bem-aventurado rei, que depois dos peixes falarem, a moça
virou a frigideira ao contrário com a sua varinha, e saiu pelo mesmo lugar
por onde havia entrado, e a parede da cozinha fechou-se como se nada se
tivesse passado. Então o vizir disse: «Não posso esconder mais este assunto
ao nosso rei.» Dito isto, foi ter com o rei, e contou-lhe o que se havia
sucedido com os peixes, mesmo à sua frente.
O rei ficou muito espantado e disse: «Quero ver isso com os meus
próprios olhos.» E ordenando que fossem buscar o pescador, que apareceu
ao cabo de pouco tempo, o rei disse-lhe: «Quero que me tragas o mais
rápido possível quatro peixes como aqueles que trouxeste.» E o rei destacou
três oficiais para o escoltarem. O pescador lá foi sob escolta, e passado
pouco tempo voltou com quatro peixes, um vermelho, um branco, um azul e
outro amarelo. O rei ordenou que dessem quatrocentos dirames ao pescador,
que se valeu das fraldas das suas roupas para levar o dinheiro e se foi
embora.
Então o rei disse ao vizir: «Quero que frites os peixes aqui mesmo na
minha presença.» Ao que o vizir respondeu: «Às suas ordens alteza», e
trouxe um fogão e uma frigideira, e sentou-se a amanhar o peixe. Depois
regou a frigideira com óleo de sésamo, acendeu o fogo, e botou os peixes na
frigideira. E quando os peixes estavam quase prontos, eis que a parede do
palácio se rasgou ao meio. O rei e o vizir tremeram, e quando olharam
viram um escravo negro, imponente como uma alta montanha ou um
sobrevivente do povo de Aad19, alto como uma cana e largo como um
banco de pedra, segurando na mão um talo de ramo verde de palmeira. E
disse, de guisa eloquente, mas com uma voz impertinente: «Ó peixe, ó
peixe, tereis vós sido fiéis à promessa?» Os peixes ergueram a cabeça para
fora da frigideira, e disseram: «Sim, sim, se vós regressardes, nós
regressaremos. Se vós fordes fiéis, nós também o seremos. Se desistirdes,
ficaremos quites.» E nesse momento o escravo virou a frigideira ao
contrário, ali mesmo em pleno palácio, e os peixes estavam pretos que nem
carvão. Depois o escravo saiu pelo mesmo lugar por onde havia entrado, e a
parede da cozinha fechou-se como se nada se tivesse passado.
Depois do escravo haver desaparecido, o rei disse: «Não posso fechar os
olhos a este assunto. Sem dúvida alguma que existe uma história por detrás
destes peixes.» E dito isto, ordenou que trouxessem o pescador, e de
imediato o trouxeram. O rei disse ao pescador: «Maldito sejas se me não
disseres onde pescaste estes peixes.» «Real senhor», respondeu o pescador,
«pesquei-os numa lagoa que fica entre quatro montes, por detrás daquela
montanha.» O rei virou-se para o vizir e perguntou-lhe: «Conheces essa
lagoa?» E o vizir respondeu: «Valha-me Deus, alteza, de modo algum!
Tenho sessenta anos a viajar, a passear e a caçar, para perto e para longe, e
já percorri distâncias de um ou dois dias só, e outras de um ou dois meses; e
nunca vi lagoa alguma por detrás daquela montanha, nem nunca tive
conhecimento da sua existência.»
O rei virou-se para o pescador e perguntou-lhe: «A quantas jornadas fica
essa lagoa?» O pescador respondeu: «Ó rei dos tempos, fica aí a uma hora
de distância.» O rei ficou espantado, deu logo ordens aos soldados para
montarem a cavalo. E muito prontamente o rei e o exército saíram do
palácio, e à sua frente seguia o pescador, que de si para si não parava de
amaldiçoar o ifrite.
Seguiram para fora da cidade, até chegarem à montanha. Quando
desceram pela encosta oposta, deu-lhes na vista um vasto escampado que
jamais haviam visto em todas as suas vidas. Chegaram à lagoa, que se
encontrava de facto rodeada de quatro montes, e puderam ver perfeitamente
bem, porque a sua água era muito clara, que havia peixes de quatro cores
diferentes, vermelhos, brancos, azuis e amarelos. O rei, espantado com tal
coisa, virou-se para o vizir, os emires, os camaristas e os delegados, e
perguntou: «De entre vós há alguém que já tenha visto esta lagoa durante a
sua vida?» E todos responderam que não. E o rei perguntou: «Ninguém
entre vós aqui sabia chegar?» Beijaram todos o chão diante do rei e
disseram: «Vossa alteza, juramos por Deus que jamais durante as nossas
vidas vimos esta lagoa, senão agora mesmo. E nunca sequer ouvimos falar
dela, apesar de se encontrar em pleno território nosso.» Então o rei disse:
«Tem de haver alguma coisa por detrás disto. Juro que não regressarei à
cidade enquanto não descobrir qual é a história por detrás desta lagoa e dos
seus peixes de quatro cores diferentes.» E em seguida deu ordens para ali
permanecerem e para assentarem arraiais.
Quando já se tinha abatido a noite, o rei chamou o vizir, que era um
homem com muita experiência e muito sabido das andanças do mundo. O
vizir compareceu ante o rei, sem ser visto pelos soldados, e o rei disse-lhe:
«Quero revelar-te o que irei fazer. Cheguei à conclusão de que tenho de
partir sozinho e imediatamente, porque essa é a única maneira de averiguar
qual a história por detrás desta lagoa e dos seus peixes. Amanhã de manhã,
ir-te-ás sentar à porta da minha tenda, e dirás aos emires que o rei se não
sente bem, e que te deu ordens expressas para que não autorizes ninguém a
comparecer perante ele. Não poderás dizer palavra que seja a ninguém
sobre a minha viagem ou ausência. E terás de esperar por mim durante três
dias.» O vizir, como não podia desobedecer ao rei, acatou as ordens
dizendo: «Às suas ordens, alteza.»
De seguida, o rei reuniu as coisas de que precisava e muniu-se da sua
espada real. Subiu até ao topo de um dos montes que cercavam a lagoa, e
marchou a noite toda até ser de manhã. Quando o dia clareou e espalhou a
sua luz sobre o topo da montanha, o rei avistou lá ao longe uma mancha
escura. Marchou na sua direcção, contente com o que havia visto, dizendo
de si para si: «Talvez haja ali alguém que me possa dar informações.»
Seguiu naquela direcção e quando lá chegou encontrou um palácio,
construído com pedras negras e todo chapeado de ferro, que se erguia sob
os auspícios de uma estrela da sorte. Tinha duas portas, uma aberta e outra
fechada. O rei ficou radiante e bateu à porta de modo suave. Ficou uns
momentos em silêncio à espera de resposta, mas nada ouviu. Bateu uma
segunda vez, de modo mais forte, ficou uns momentos em silêncio à espera
de resposta, mas nada ouviu nem pessoa viu. Bateu uma terceira vez
insistentemente, ficou uns momentos em silêncio à espera de resposta, mas
nada ouviu nem vivalma viu. Então disse de si para si: «De certeza que não
há ninguém neste palácio ou que está abandonado.» E enchendo-se de
coragem, entrou e gritou no corredor: «Ó da casa! Está aqui um forasteiro
de passagem e está com fome. Têm algo para comer? Deus vos
recompensará e será misericordioso convosco.» E tornou a repetir o que
havia dito uma segunda e uma terceira vez, mas resposta alguma ouviu.
Encheu-se de mais coragem e determinação, avançou do corredor até meio
do palácio, olhou para uma banda e para outra, mas pessoa alguma
encontrou.
Ouvi dizer, real senhor, que o rei quando deu por si dentro do palácio
olhou à sua roda mas não viu ninguém. Isto apesar do palácio estar
decorado com cortinados, tapetes de seda, toalhas de mesa em coiro e cones
de palha para proteger a comida20, e de não faltarem sofás e almofadas. No
meio do palácio, havia um amplo pátio, ladeado de quatro salas anichadas e
abobadadas, dispostas cada uma em face da outra, com bancos e armários, e
um repuxo em cujo topo havia quatro leões feitos de oiro vermelho, e a
água que saía das suas bocas relembrava pérolas e pedras preciosas.
Ouviam-se pássaros a voar de um lado para o outro, e em cima do palácio
havia uma rede que os impedia de fugir.
Ora, o rei ficou perplexo e com pena ao ver tudo isto sem encontrar
ninguém que o pudesse esclarecer. Então, sentou-se à beira de uma das
salas anichadas e abobadadas a pensar naquilo tudo, quando ouviu o
gemido de uma alma triste, que chorava e se lamuriava dizendo uma poesia:
Quando o rei ouviu esta lamuriosa poesia, levantou-se e foi atrás daquela
voz, até encontrar um reposteiro que cobria uma porta que dava para um
grande salão. Quando abriu o reposteiro, encontrou na outra banda do salão
um rapaz sentado numa poltrona elevada a cerca de um côvado. Era um
jovem formoso, bem constituído, de voz eloquente, com uma testa radiante,
uma cara brilhante como a Lua, barba juvenil e bochechas rosadas, onde
havia um sinal que parecia um disco de âmbar-gris, tal como disse o poeta:
Ouvi dizer, ó rei, que o rei quando viu o jovem naquele estado suspirou
muitíssimo entristecido e com pena dele, e disse «Não há força nem poder
senão em Deus Altíssimo e Grandioso. E eis que agora tenho mais outra
coisa com a qual me afligir. Pois vim à procura da história por detrás dos
peixes para os salvar, mas agora procuro não só uma resposta sobre os
peixes, mas também uma sobre ti. Vamos ao que interessa sem mais
delongas e conta-me a história!» O rapaz disse: «Se os seus ouvidos, olhos
e espírito estiverem atentos...» E o rei respondeu: «Os meus ouvidos, olhos
e espírito estão prestes.» Então o jovem disse:
E em seguida declamou:
Quando ouvi a sua poesia, cresceu a minha fúria ainda mais e disse:
«Arre! Quanto mais tenho de aguentar?» E pus-me a declamar, dizendo:
Quando ela me ouviu, levantou-se num salto e disse: «Ah, seu cão! Tu é
que me fizeste isto, feriste o amado do meu coração e feriste-me a mim ao
atacar a sua juventude, e agora vai para três anos que ele nem está vivo nem
morto.» Repliquei: «Ó sua grandessíssima e porquíssima puta, sua corrupta
e fodilhona nojenta amante de escravos negros, sim fui eu que fiz isto!»
Então desembainhei e ergui a espada para a matar, mas quando ela me
ouviu e percebeu que eu estava com reais ganas de a matar, deu uma
gargalhada e disse: «És tão medricas quanto um cão! Arre! É lá possível
voltar atrás ou fazer os mortos voltarem a viver! Mas felizmente Deus
entregou-me quem me fez esta desgraça por mor da qual o meu coração se
consome por um fogo que se não apaga e uma chama que se não acalma.»
Dito isto, levantou-se, pronunciou palavras que eu não compreendia, e
arrematou dizendo: «Pela via dos meus encantamentos e pela minha
matreirice, ordeno que te tornes meio pedra e meio homem.» E de imediato,
meu senhor, tornei-me na figura que tem perante si, triste e abatido, sem
poder dormir, levantar-me ou sentar-me vivo, sem estar vivo entre os vivos
nem morto entre os mortos.
O rei disse ao jovem: «Livraste-me de uma aflição, mas eis que agora
tenho mais outra coisa com a qual me afligir. Onde está a tua prima, e onde
está o escravo ferido?» Ao que o jovem respondeu: «Real senhor, o escravo
está deitado no túmulo do mausoléu, que fica no salão ao lado deste.
Quanto a ela, vem todos os dias visitá-lo aquando do nascer do Sol. E nunca
perde a oportunidade para me despir as roupas e me aviar cem açoites,
enquanto eu choro e grito, sem me poder levantar e sem me poder defender,
porque sou metade pedra, metade carne e sangue. Depois de me punir, visita
o escravo e dá-lhe beberagens e caldos a beber. Amanhã de manhã aqui
estará ela.» Então o rei exclamou: «Valha-me Deus!» e acrescentou: «Ó
moço, irei fazer algo por ti pelo qual serei famoso e que os historiadores
irão registar para a posterioridade.» Depois o rei sentou-se a conversar com
o jovem até se fazer noite e adormecerem.
O rei levantou-se antes do nascer do Sol, tirou as suas roupas,
desembainhou a espada, e dirigiu-se ao salão onde estava o mausoléu.
Quando entrou, observou as velas, os candeeiros, os incensos, os perfumes,
as flores de açafrão, e as fomentações que lá se encontravam. Aproximou-se
do escravo e matou-o. Depois pegou nele, levou-o dali para fora e deitou-o
por um poço abaixo que havia lá no palácio. Quando voltou, vestiu as
roupas do escravo, cobriu a cara, e deitou-se bem encostado ao fundo do
túmulo, com a espada completamente desembainhada e escondida entre as
suas roupas.
Tempo depois, apareceu a maldita feiticeira, e a primeira coisa que ela
fez foi despir o seu primo e aviar-lhe um valente açoitamento, enquanto ele
gritava: «Ai! Ó prima, tem misericórdia de mim! Ajuda-me! Já chega de
tanto castigo e agonia. Tem piedade de mim.»
Ao que ela ripostou: «Pois então tivesses tu tido misericórdia e poupado
o meu amado.»
Ouvi dizer, ó rei, que depois da feiticeira ter satisfeito a sua sede de
vingança, punindo o seu primo com um valente açoitamento até o sangue
começar a escorrer-lhe pelas costas e pelos flancos, vestiu-o com a tal
serapilheira, que cobriu por cima com outras roupas. Em seguida foi visitar
o escravo, trazendo-lhe, como era seu vezo, uma taça com água e um caldo.
Entrou no salão, dirigiu-se ao mausoléu, e pôs-se a chorar por mor da dor
que a não largava, enquanto berrava: «Amor, não é habitual renegares o
nosso elo. Não sejas mesquinho, pois os inimigos cumprem a sua vingança
através da nossa separação. Visita-me, pois a minha vida depende da tua
visita. Fortalece o nosso elo, pois o abandono não é teu costume. Ó senhor
meu, fala e conversa comigo.» Em seguida declamou este poema segunda
as regras da métrica denominada mufrad:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão espantosa,» disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
27.a NOITE
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que era uma vez na cidade de Bagdade
um homem solteiro que exercia o mister de carregador. Certo dia, lá estava
ele encostado à sua cesta à espera de fregueses, quando apareceu uma
mulher enrolada num manto de musselina, encimado por um véu de seda
seguro por uma bandana bordada a oiro, calçando uns botins de coiro
avermelhado atados com laços esvoaçantes e umas polainas com franjas.
Ao destapar a cara, revelaram-se uns lindos olhos negros acompanhados por
longas pestanas, de suaves e ternurentos contornos que rivalizavam com a
perfeição, e que só os poetas sabem descrever.
Ora, vai a dama e diz, com uma voz meiguinha e doce: «Ó carregador,
traz a tua cesta e segue-me!» O carregador, sem querer acreditar no que
ouvia, pegou na cesta e apressou-se atrás dela, dizendo: «Ó que dia tão feliz
e com tanto sucesso!» E lá foi atrás dela, até que ela parou ante uma porta,
bateu, e um velho nazareno apareceu; em lhe dando um dinar, recebeu em
troca uma bilha cor de azeitona com vinho; pô-lo na cesta e disse: «Ó
carregador, traz a tua cesta e segue-me!» E o carregador levantou a cesta e
foi atrás dela, dizendo: «Ó que maravilha, que dia tão feliz, cheio de boa
vida e alegria.» Em seguida, foram ao fruteiro, e ela comprou maçãs verdes
e maçãs moscatel, marmelos turcos, damascos, laranjas reais, limões-do-
mar, e pepinos pequeninos. E comprou ainda murta, alfavaca, alfena,
jasmins alepinos, nenúfares damascenos, crisântemos, goivos, açucenas,
lírios, narcisos, anémonas, violetas, malmequeres e flores de romãzeira. Pôs
tudo na cesta e lá foi o carregador atrás dela.
Em seguida, parou no açougueiro e disse: «Corte-me aí uns dez arráteis
de carne de carneiro boa e fresquinha!» Pagou ao açougueiro, que por sua
vez cortou as peças que ela havia pedido, as embrulhou, e lhas deu. Ela pô-
las na cesta, juntamente com um pouco de carvão, e disse: «Ó carregador,
traz a tua cesta e segue-me!» O carregador, surpreso com tudo aquilo, pôs a
cesta à cabeça, e seguiu-a até ao merceeiro, a quem ela comprou todo o
género e feitio de aperitivos e condimentos de que fosse falta, tais como
vários géneros de azeitonas, umas em salmoura, outras sem caroço e outras
curtidas à guisa síria, estragão, queijo-creme, queijo sírio, e picles doces e
amargos. Pôs as compras na cesta, e disse: «Ó carregador, traz a tua cesta e
segue-me!» O carregador levantou a cesta e lá foi atrás dela, até ela se deter
num vendedor de frutos secos, a quem comprou todo género de que fosse
falta, tais como passas alepinas, figos prensados de Baalbek, canas de
açúcar iraquianas, grão-de-bico assado, e vários frutos secos já descascados
tais como pistácios, amêndoas e avelãs. Meteu tudo na cesta do carregador
e, voltando-se para ele, disse: «Ó carregador, traz a tua cesta e segue-me!»
O carregador levantou a cesta e seguiu-a até ao pasteleiro, onde ela
comprou um tabuleiro repleto de todos as sortes de doces e mais alguns, tais
como rolinhos cairotas, churros arménios, pastéis almiscarados recheados,
mimos-da-mãe-de-Salih, rolitos turcos, macrudes, geleia de amêndoas e
mel, pão doce redondo, pudim de sêmola, pentes-de-âmbar-gris, dedos-de-
alfenim, pão-de-viúva, bassandudes, filhós-do-juiz, comes-e-agradeces,
cones-dos-elegantes e pastelinhos-do-amor. Ajeitou tudo em cima do
tabuleiro, e ao colocá-lo na cesta, o carregador refilou: «Ó minha senhora,
se me tivesse avisado eu teria trazido uma mula ou um camelo para levar
todas estas compras!» Mas ela simplesmente sorriu.
Em seguida foi ao perfumeiro, onde comprou dez frascos de essência de
salgueiro egípcio, outros tantos de essência de nenúfar, dois pacotes de
açúcar, água de rosas almiscarada, almíscar, alecrim, âmbar-gris, pau
d’áquila, velas e archotes, e depois de enfiar tudo na cesta, voltou-se para o
carregador e disse: «Ó carregador, traz a tua cesta e segue-me!» e o
carregador assim fez e lá foi atrás dela, até chegarem ante uma casa
elegante, defronte da qual havia um amplo pátio, e que era bastante alta,
sustentada por imponentes colunas, e com uma porta dupla feita de marfim
cravejado de oiro cintilante. A moça parou diante da porta e bateu
delicadamente.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão espantosa», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu: «Se
amanhã eu ainda for viva, o que contarei, a ti e ao nosso rei, será ainda mais
maravilhoso e surpreendente.»
30.a NOITE
Ela pegou no copo, bebeu e depois sentou-se junto a sua irmã. E todos
continuaram a beber, copo atrás de copo. Entretanto, o carregador já estava
bastante arrebatado e toldado, e pôs-se a dançar e a cantarolar algumas
baladas amorosas e outras cantigas mais marotas e atrevidas30. E as
raparigas divertiam-se com ele, partilhando beijos, carícias, malícias,
mordidelas, esfregadelas, toques e massagens que levavam qualquer um ao
rubro. E enquanto uma das moças botava um naco de comida na boca dele,
outra tagarelava com ele, e outra lhe dava a cheirar flores perfumantes ou
um doce para comer, e o carregador se sentia como se a vida não pudesse
ser mais bela. Quando já estavam todos bem enfrascados e o vinho lhes
percorria as veias e se tinha apoderado do espírito deles, a moça da porta
despiu-se, e ficando completamente despida, coberta apenas pelo seu longo
cabelo solto, acercou-se da piscina, gritou «olaré!» e mergulhou.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou a sua voz. «Que história
tão boa, ó mana, e tão bela», disse a sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu viver.»
33.a NOITE
Ouvi dizer, ó rei, que os dervixes, quando já estavam bem regados pela
bebida, pediram instrumentos de música. A moça da porta trouxe-lhes um
pandeiro, uma flauta e uma harpa persa, e cada um dos dervixes pegou num
dos instrumentos, e depois de os afinarem começaram a tocar e a cantar. E
enquanto as raparigas cantavam alto e bom som, fazendo grande algazarra,
ouviram alguém bater à porta, e a moça da porta foi cuidar do que se
tratava.
Ó rei, disse Xerazade, a causa de terem batido à porta era que naquela
noite o califa Harune Arraxide e o vizir Jáfar estavam a visitar a cidade,
como soíam fazer de tempos a tempos. E enquanto percorriam as ruas da
cidade naquela noite, deram por si a passar em frente daquela porta, e
quando ouviram o som da música, as raparigas a cantar alto e bom som, as
gentes a rirem e a rambóia que por lá ia, o califa disse ao vizir: «Jáfar, quero
entrar nesta casa e visitar aqueles que aqui vivem.» E Jáfar disse ao califa:
«Ó miralmuminim, essas gentes já estão bem enfrascadas e não sabem
quem nós somos. Receio que nos enfadem e nos ponham as mãos em
cima.» «Chega desses argumentos! Quero entrar e tu vais arranjar uma
desculpa para eles me deixarem entrar.» E Jáfar respondeu: «Às suas
ordens.»
Depois de baterem à porta, apareceu-lhes a moça que soía abri-la. Jáfar
avançou, beijou o chão diante dela, e disse: «Minha senhora, nós somos
mercadores da cidade de Mossul e faz agora dez dias que estamos
hospedados em Bagdade numa pousada onde também depositámos as
nossas mercadorias. Hoje mesmo fomos convidados por um mercador da
vossa cidade para ir a sua casa, e depois de comermos serviu-nos vinho, que
bebemos todos contentes da vida. Ao depois mandámos alguém a ir buscar
um grupo de músicos e cantoras, assim como aos restantes dos nossos
amigos, que vieram todos, e muito nos divertimos ouvindo as moças a
cantar e a tocar os pandeiros e as flautas. Enquanto gozávamos tão bela
vida, apareceu o intendente da polícia, fazendo uma rusga para nos apanhar
a todos. Tivemos de dar a debandada saltando janela fora, e como ficava
demasiado alta, alguns partiram a perna, mas outros conseguiram fugir sãos
e salvos. Quanto a nós, desembocámos na vossa casa, e como somos
forasteiros, receamos que ao andar pelas ruas da vossa cidade o intendente
da polícia nos possa prender por estarmos visivelmente bem bebidos. A
nossa pousada está fechada e ninguém nos abrirá a porta antes do nascer do
Sol, e como é assim que regem a pousada não poderemos a ela voltar. Ao
passarmos diante da vossa casa, ouvimos os instrumentos de música que
acompanham as melhores farras, e se tiverem a gentileza de nos deixar
entrar recompensar-vos-emos por todos os nossos gastos. Se não vos apraz
este negócio, deixem-nos ao menos dormir no corredor de vossa casa até
que seja manhã e também vos pagaremos. E a vós e à vossa nobreza de
coração caberá a final resolução, mas nós não arredaremos pé do vosso
portão.»
Depois de haver ouvido isto e em vendo como trajavam de forma
decente, foi ter com as irmãs, e em lhes contando o que Jáfar lhe havia dito,
elas tiveram pena deles e disseram: «Deixa-os entrar.» E assim fez ela, e
entrou o califa acompanhado de Jáfar e de Macerur34, o carrasco, e quando
entraram, todos os outros, as raparigas, os dervixes e o carregador, se
levantaram para os cumprimentarem, e depois todos se sentaram.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão bela», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
34.a NOITE
Acabou de declamar e…
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão espantosa», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
37.a NOITE
Ouvi dizer, ó rei, que depois da moça haver dito aquilo aos convidados, o
primeiro a avançar foi o carregador, que disse: «Minha senhora, a causa
pela qual aqui vim é porque sou um homem que exerce o mister de
carregador e tendo por esta moça sido encarregado de carregar as suas
compras, ela levou-me da casa do vinhateiro ao açougueiro, e do
açougueiro ao merceeiro, e do merceeiro ao fruteiro, e do fruteiro ao
vendedor de frutos secos, e levou-me ainda ao pasteleiro e ao perfumista,
até que vim até esta casa, e esta é a minha história.»
A moça disse: «Dá graças por ainda teres a tua cabeça e pira-te.» Mas o
carregador disse: «Por amor de Deus, não arredo pé daqui sem ouvir as
histórias dos outros.» Em seguida, o primeiro dervixe avançou e disse:
Minha senhora, depois do meu tio haver dado uma tareia com as suas
sandálias na cara do filho, que estava todo chamuscado, assim como a tal
dama, eu disse: «Por amor de Deus, ó tio, não me atormente mais, que já
estou bem inquieto e dorido com o que aconteceu ao seu filho; e como se
não bastasse o que ele já sofreu, o tio ainda lhe bate na cara com as
sandálias.» Ele ripostou: «Ó sobrinho, quero que saibas que o meu filho
desde tenra idade se perdeu de amores pela própria irmã, e que eu
costumava proibir esses amores, mas dizia sempre para comigo: “Ainda são
pequenos.” Mas quando cresceram, voltaram a cometer a mesma feia feita,
e quando tal me chegou aos ouvidos eu nem quis acreditar. Agarrei nele,
preguei-lhe uma boa sovadela e um valente raspanete, e avisei-o: “Tem
cuidado, cuidado! Se fazes destas cairás em desgraça e desonra entre os reis
até ao fim dos tempos, e relatos sobre o que nos sucedeu espalhar-se-ão até
às mais remotas províncias e cidades. Ai de ti! Ai de ti se não cuidas que
esta é a tua irmã e que Deus ta proibiu.” E não hesitei, ó sobrinho, em
escondê-la da vista dele, mas a maldita também estava de amores por ele,
possuída por Satã, o qual havia embelezado aqueles feitos. Quando eles
viram que eu tinha escondido um da vista do outro, então ele fez este sítio
bem fundo debaixo da terra, como podes ver, e trouxe para aqui todo o
género de provisões e afins que fosse preciso, e cavou este poço. Depois,
aproveitando-se de eu haver ido para a caça, pegou na irmã e fez o que o
viste fazer, convencido que se deleitaria com ela durante longo tempo e que
Deus Todo-Poderoso não daria atenção aos feitos deles os dois.»
Dito isto, chorou, e eu chorei com ele. Então olhou para mim e disse:
«Serás meu filho em vez dele», e pondo-se a pensar no que havia
acontecido aos dois filhos, na morte do irmão e no vazamento do meu olho,
tornou a chorar e eu chorei com ele durante algum tempo, lamentando as
desventuras deste mundo, as atribulações da vida e as desditas do destino.
Depois subimos para fora da campa, tornámos a pôr o tampo sobre o meu
primo e a sua irmã, e volvemos a nossa casa sem que ninguém desse por
nós.
Ainda mal nos havíamos sentado, quando ouvimos o rebombar de
bombos, o retumbar de atabales e o ressoar de trompetes, acompanhados
pelo rugir de homens, o relinchar de cavalos, as pancadas e chocalhos de
rédeas, e ordens de formação para combate, e vimos o mundo a encobrir-se
com uma nuvem de pó erguida pelos cascos dos cavalos e pela correria dos
homens. Ficámos perplexos e estupefactos, e indagando sobre o que se
passava, nos disseram que o vizir que conquistou o trono do meu pai reuniu
os exércitos e aprontou os soldados, não hesitando em recorrer aos
beduínos, e nos atacava com exércitos mais numerosos que os grãos de
areia, e era tanta gente que era impossível contar quantos eram nem havia
rival capaz de lhes fazer frente. E atacando a cidade assim de surpresa, as
suas gentes não tiveram pujança para a defenderem, e renderam-se ao vizir.
Mataram o meu tio, e quanto a mim fugi para os arrabaldes da cidade, e
disse cá para mim: «Quando ele me encontrar, matar-me-á com as suas
próprias mãos, juntamente com Sâir, o carrasco do meu pai.» As minhas
mágoas redobraram-se e a minha angústia aumentou, e enquanto me
relembrava do que havia acontecido ao meu tio, ao meu pai e aos meus
primos, pus-me a chorar baba e ranho. Depois pensei: «Que hei-de fazer?
Se eu aparecer por aí, as gentes da cidade e o exército do meu pai
reconhecer-me-ão, porque todos eles me conhecem tão bem quanto o Sol, e
matar-me-ão só para ficarem bem vistos aos olhos do vizir.» Com isto, não
encontrei nenhum jeito de escapar são e salvo senão rapar a barba e as
sobrancelhas, mudar de roupas e vestir-me como os faquires, fazendo-me
passar por dervixe.
Saí da cidade sem ninguém me reconhecer, em direcção a estas terras, e
marchei caminho fora com o intuito de alcançar Bagdade, pensado que
talvez aí o meu destino se recompusesse, e encontrasse quem me
conduzisse à presença do miralmuminim, representante do Senhor do
universo, a quem eu poderia expor a minha história e as desgraças por que
passei. Cheguei esta noite à porta desta cidade e estando um tanto
atrapalhado sem saber aonde ir, encontrei este dervixe que está à minha
banda, que se acercou de mim, com ares de quem tinha vindo de viagem, e
depois de me cumprimentar perguntei-lhe: «És forasteiro?» «Sim»,
respondeu ele. E eu disse-lhe: «Eu também.» Então encetámos conversação,
e aqueloutro que está ao nosso lado, o outro dervixe, reparou em nós, veio
cumprimentar-nos e disse: «Sou forasteiro», e nós dissemos: «Nós
também.» Então prosseguimos juntos, mas a noite abateu-se sobre nós os
três, e como éramos forasteiros não sabíamos aonde nos dirigirmos.
Felizmente a Providência conduziu-nos até vossa casa e vós haveis sido
caridosas e generosas em nos receber, e até me haveis feito esquecer o
vazamento do meu olho e a rapadura da minha barba.
Então a moça disse: «Dá graças por ainda teres a tua cabeça e pira-te.»
Mas ele retorquiu: «Por amor de Deus, não arredo pé daqui sem ouvir as
histórias dos outros.»
Minha senhora, juro-vos por Deus que não nasci zarolho. O meu pai era
um rei, e ensinou-me através do Alcorão a ler e a escrever, até eu aprender a
recitar o Grandioso Alcorão nas suas sete diferentes leituras, a recitar a
Xâtibiya38, e a comentar um livro de jurisprudência ante os mestres depois
de o estudar. Em seguida enveredei pelo estudo da língua árabe e da sua
gramática, assim como me aperfeiçoei na arte da caligrafia até a minha
excelência suplantar a de todos os escribas da minha era e a de todas as
gentes do meu tempo. Aprofundei os meus conhecimentos de eloquência e
retórica a tal ponto que a minha fama se espalhou até às mais remotas
províncias e cidades, e todos os reis dos tempos conheciam os meus talentos
e a minha caligrafia.
Certo dia, o rei da Índia enviou ao meu pai presentes e raridades dignas
de rei e de subido preço, e pediu-lhe que eu lhe fosse enviado. O meu pai
aprontou-me com seis cavalos da posta. Despedi-me dele e fiz-me ao
caminho. Ao cabo de um mês de jornada, avistámos uma enorme nuvem de
pó, e mais tarde, quando o vento do chão a despregou e no ar a levantou, eis
que por debaixo do pó apareceram cinquenta cavaleiros em armaduras de
ferro, tais leões de olhar furioso.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão espantosa», disse a sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
41.a NOITE
Havendo nós olhado com mais atenção, vimos que eram salteadores, e
quando nos avistaram, sendo nós um pequeno grupo transportando dez
fardos que continham presentes, cuidaram que estes continham dinheiro, e
saíram a nós desembainhando as suas espadas e apontando-nos as suas
lanças. Com gestos e palavras, lhes dissemos: «Somos enviados do
grandíssimo rei da Índia, nada nos podeis fazer.» Mas eles responderam-
nos: «Não estamos na sua terra nem sob a sua autoridade.» E dizendo isto,
mataram quem estava comigo, e quanto a mim, apesar de ferido, consegui
fugir enquanto eles esbulhavam os presentes que levávamos. Fiz-me ao
caminho sem saber aonde me dirigir nem para onde me nortear. Eu era
poderoso e tornei-me impotente; era rico e tornei-me pobre.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse a sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se ele
me poupar e eu viver.»
42.a NOITE
Dei-lhe graças pela poesia, e já o meu amor por ela se havia apoderado
de todo o meu corpo e a minha mágoa se havia desvanecido. Sentámo-nos a
beber vinho até à noite, e com ela passei tão deliciosa noite como jamais
havia passado em toda a minha vida, e em acordando continuámos deleite
atrás de deleite, até ser meio-dia. E estava tão bem avinhado, quase
desmaiado, que cambaleava para a direita e para a esquerda. Disse: «Ó bela,
sobe comigo para cima da terra e levar-te-ei embora desta prisão.» Ao que
ela se riu e disse: «Ó senhor meu amado, senta-te sem falares disparates,
podes dar-te por satisfeito, porque em cada dez dias, nove são para ti e um
só para o ifrite.» Então eu disse-lhe, já bem tocado pela bebida: «Agora
mesmo quebro o degrau onde está gravada a inscrição, e que venha o ifrite
que eu o matarei, que eu cá é aos dez de uma só vez.» Em ouvindo as
minhas palavras, ficou pálida e disse: «Não, por favor não o faças.» E
declamou:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
44.a NOITE
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
45.a NOITE
O meu olhar fala pela minha língua para que ela saiba,
E assim se revela o amor que eu tentava calar.
No nosso encontro as lágrimas verteram os sentimentos,
Pois a minha língua ficou muda e foram os meus olhos a falar.
Ela faz sinais com os olhos e eu percebo o que diz;
E quando pisco os meus, ela sabe o que digo.
As nossas sobrancelhas tudo dizem entre nós,
Em silêncio nos quedamos e o amor fala por nós.
Então a moça lançou a espada por terra, recuou, e disse: «Como poderei
eu matar quem não conheço e sujar as minhas mãos com o seu sangue?» O
ifrite disse: «A sua morte não te é indiferente porque dormiste com ele.
Apesar das torturas que te foram infligidas, nada confessaste. O que é isso
senão compaixão sentida no próprio corpo?» Em seguida virou-se para mim
e disse: «Ó humano, e tu também não sabes quem é esta?» Respondi: «E
como havia de saber quem é, se jamais a vi senão agora mesmo?» E o ifrite
disse: «Então pega nesta espada e traça-lhe o pescoço, e eu acreditarei que a
não conheces e te libertarei.» Respondi: «Assim farei», e peguei na espada,
e num zás acerquei-me dela.
Conta-se, ó ifrite, que havia dois homens numa cidade, que moravam
paredes meias. E um deles invejava o outro, lançava-lhe mau olhado e se
não poupava em lhe fazer torpezas. Estava sempre com inveja do vizinho, e
a sua inveja não parava de crescer, a tal ponto que já nem dormia bem nem
se alimentava como deve ser. Quanto ao invejado, por mais malvadezas que
o invejoso lhe fizesse, a sua riqueza não parava de crescer nem ele de
prosperar. Até que a inveja e as malvadezas do vizinho acabaram por afectar
o invejado, que então abalou dali para fora e largou a sua terra, dizendo de
si para si: «Valha-me Deus, por causa dele até este mundo abandonaria.»
Foi viver para outra cidade, comprou uma terra onde havia um antigo poço
de irrigação, e construiu uma azóia41, para a qual comprou esteiras de palha
e tudo o que fosse preciso, tornando-se um fiel devoto e um leal servidor de
Deus Todo-Poderoso. Os faquires começaram a afluir vindos de toda a
banda, e assim se espalhou naquela cidade a sua fama.
Não demorou muito até chegarem aos ouvidos do vizinho invejoso
notícias sobre a sua prosperidade e sobre como era frequentado pelos
notáveis da cidade. Então viajou até àquela cidade, e em entrando naquela
azóia, o vizinho invejado foi a recebê-lo, dando-lhe as boas-vindas,
alegrando-se com a sua vinda, e fazendo-lhe as honras da casa. Então o
invejoso disse: «A causa da minha visita é que lhe quero dar parte de algo.
Peço que se levante e caminhemos pela azóia enquanto conversamos.» O
invejado levantou-se e o invejoso pegou nele pela mão enquanto
caminhavam até aos confins da azóia. O invejoso disse: «Olhe, meu irmão,
diga aos seus faquires que entrem nos seus cubículos, pois quero dizer-lhe
uma coisa muito em particular, que ninguém nos oiça.» Então o invejado
disse aos faquires: «Entrem nos vossos cubículos», e assim fizeram eles. O
invejoso disse: «Agora, como estava dizendo, eis o que quero contar», e
caminhou com ele, até que pouco a pouco chegaram ao antigo poço. E vai o
invejoso empurra o invejado para dentro do poço, sem ninguém ver. Depois
saiu da azóia e foi à sua vida, convencido de que o havia matado.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
47.a NOITE
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
48.a NOITE
Ouvi dizer, ó rei, que o segundo dervixe disse à moça que havia dito ao
ifrite:
Os oficiais do rei pegaram no rolo e foram ter com o rei, que, pasmado ao
ver aquela caligrafia, lhes disse: «Levem esta mula e este traje ao dono
destas sete caligrafias.» Então riram-se, mas quando viram que o rei se
tinha enfurecido, disseram: «Ó rei dos tempos e senhor do mundo, foi um
macaco quem escreveu estas linhas.» O rei ficou pasmadíssimo e disse:
«Quero ver esse macaco.» E depois enviou os seus mensageiros com a mula
e o traje, dizendo: «Tragam-me o macaco, depois de lhe vestirem o traje e o
montarem na mula, e tragam-me também o seu dono.»
Estávamos nós no barco, quando de repente se acercaram os mensageiros
do rei. Levaram o arrais, e quanto a mim vestiram-me o traje e montaram-
me na mula, levando-me pelas ruas fora com grande pompa e circunstância,
o que gerou um enorme rebuliço na cidade, tendo as suas gentes saído à rua
para me contemplarem, e mui grande foi a azáfama porque ninguém na
cidade, fosse miúdo ou graúdo, deixou de sair para ver aquele espectáculo.
E quando chegámos ao rei, o rebuliço havia crescido ainda mais, e as gentes
diziam entre si: «O rei escolheu um macaco para vizir.»
Quando fui levado à presença do rei, prosternei-me por terra e fiz três
vénias, e depois beijei o chão ante os dignitários do Estado e os camaristas,
e ajoelhei-me. Os presentes pasmaram-se com os meus bons modos, sendo
o rei quem mais pasmado ficou, exclamando: «Que coisa mais espantosa.»
Depois deu licença aos emires para se retirarem, e todos se retiraram,
ficando só o rei, o criado, um catraio mameluco44 e eu, tendo em seguida
dado ordens para que lhe fosse posta a mesa, e depois fez-me sinal para eu
comer com ele. Levantei-me, beijei o chão e lavei as mãos sete vezes, e
voltei a ajoelhar-me, e comi só um pouco, como mandam os bons modos.
Depois peguei no tinteiro e no cálamo, e escrevi numa bandeja de madeira o
que passo a citar:
A filha do rei pegou numa faca com nomes gravados em hebraico e com
ela desenhou um círculo no chão do átrio central do palácio, onde escreveu
nomes em caligrafia cúfica e outras palavras talismânicas. Depois conjurou
um encanto, e instantes depois vimos o mundo escurecer até os nossos
olhos nada conseguirem ver, e cuidámos que o céu nos caía em cima. E
num pronto apareceu o ifrite, descendo sobre onde estávamos, com a forma
de um leão e a força de um toiro, e ficámos assustados e trespassados de
medo. Vai a rapariga e disse: «Desanda daqui, cão!» Ao que o ifrite
replicou: «Traidora! Enganaste-me e traíste o nosso pacto. Não tínhamos
nós feito um juramento solene de que um não prejudicaria o outro?» «E
como poderia eu manter um pacto com alguém como tu?» «Então toma o
que mereces!», disse-lhe o ifrite, abrindo as mandíbulas e se lançando sobre
a moça, que num ápice arrancou um cabelo seu da cabeça, e em o agitando
murmurou umas palavras e o cabelo se transformou numa espada afiada, e
vai ela corta o leão em duas partes, que voaram menos a cabeça, que se
tornou em lacrau. A moça, por sua vez, mudou logo de forma tornando-se
uma enorme serpente, e os dois travaram uma luta aguerrida entre si. Nisto
vai o lacrau e torna-se um abutre, pondo-se a voar dali para fora, mas a
cobra logo tomou a forma de uma águia e pôs-se a voar perseguindo o
abutre, e durante algum tempo desapareceram da nossa vista, até que o chão
se rachou e de lá saiu um gato malhado que rosnou, rugiu e grunhiu, e em
seguida veio um lobo negro, e os dois carregaram um sobre o outro. E
quando o gato começou a perder para o lobo, rugiu e logo se tornou em
bicha, e rastejou até entrar numa romã que estava à banda da fonte. A romã
por sua vez começou a inchar, e a inchar, até ficar do tamanho de uma
enorme melancia; e vai o lobo tornou-se logo num galo branco. Mas a romã
começou a subir nos ares, acabando por cair no chão de mármore,
despedaçando-se, e em se espalhando as sementes o galo pôs-se a apanhá-
las, até nenhuma sobrar senão uma que ficou escondida à banda da fonte.
Então o galo fez um grande alarido, batendo as suas asas e gesticulando
para nós com o seu bico, como se quisesse perguntar: «Sobrou alguma
semente?» Mas nós não percebemos o que ele queria dizer, e ele soltou um
guincho a tão alta voz que julgámos que o palácio nos ia cair em cima.
Depois, o galo, ao virar o pescoço, enxergou a semente à banda da fonte, e
investiu logo para a apanhar…
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
51.a NOITE
Depois de a moça filha do rei gritar: «Fogo! Estou a arder!», o seu pai
disse: «Ó filha, bem me admiro de não morrer outrossim! Pois o teu criado
morreu num pronto e este jovem rapaz perdeu a vista dum olho.» Depois
chorou, o que me fez chorar também. E pouco tempo passou até a moça
tornar a gritar: «Fogo! Estou a arder!» e uma faúlha se apoderou das suas
pernas, que começaram a arder, e foi-lhe trepando pelas coxas, e ela gritava.
«Fogo! Estou a arder!» E depois apoderou-se do seu peito, e ela gritava:
«Fogo! Estou a arder!» E depois queimou-a por inteiro e restou só um
monte de cinza.
Deus me valha, minha senhora, fiquei tão triste e transtornado pela moça
que até desejei ser um cão ou um macaco, ou mesmo morrer para não ver a
moça naquela situação, a sofrer desgraçadamente de tal guisa, tornando-se
um monte de cinza. Quando o pai a viu morta, desatou a esbofetear a
própria cara, e eu segui-lhe o exemplo fazendo o mesmo. Então vieram os
criados e os dignitários de Estado, e fica- ram pasmados ao verem o rei num
estado tão pesaroso à banda de dois montes de cinza. Abeiraram-se do rei
até ele volver a si e lhes explicar o que havia sucedido à filha, havendo
todos eles se quedado mui pesarosos, e decretaram luto durante sete dias.
Depois o rei construiu um mausoléu sobre o monte de cinzas da filha, mas a
cinza do ifrite espalhou-a ele ao sabor do vento.
O rei adoeceu, mas ao cabo de um mês, havendo Deus escrito que ele se
salvava, recuperou a saúde e cresceu-lhe a barba. Então chamou-me à sua
presença e disse-me: «Ó rapaz, ouve o que tenho para te dizer e em nada te
oponhas.» Respondi-lhe: «Real senhor, em nada me oporei.» E ele disse:
«Temos vivido da melhor maneira durante todo o tempo, a salvo dos
infortúnios do mundo, até teres vindo com o teu mau fado e nos trazeres a
desgraça, perecendo a minha filha para que tu pudesses viver, e morrendo
um criado meu, havendo eu por pouco escapado à minha aniquilação. Tu és
a causa disto tudo e dês que te pusemos os olhos em cima nada de bom nos
chega. Quem me dera que nunca te tivéssemos encontrado, porque a tua
salvação foi a nossa destruição. Quero que abandones a nossa cidade e te
vás embora em paz, mas se te voltar a encontrar matar-te-ei.» Depois
desatou aos berros comigo, e eu retirei-me da sua presença, desiludido com
a vida e sentindo-me cego e surdo perante tudo.
Fugi daquela cidade a chorar em grande desconcerto, sem saber para
onde ir, a pensar em tudo o que me havia acontecido dês que entrei naquela
cidade até me ir embora naquele estado deplorável e cada vez mais
desassossegado. Mas antes de me partir dali, fui aos banhos da cidade, rapei
a barba e as sobrancelhas, de lá saindo trajado com uma vestidura de
serapilheira, e alvorei.
Minha senhora, todos os dias penso nos meus infortúnios, na morte das
raparigas e em ter ficado zarolho, e choro desalmadamente enquanto repito
os versos que passo a citar:
Então viajei por vários países e visitei muitas cidades, com o intuito de
alcançar Bagdade, cuidando que talvez aí encontrasse quem me levasse à
presença do miralmuminim, a quem eu contaria a minha história e as
desgraças por que passei. Cheguei esta noite mesmo e encontrei este irmão
especado no meio da rua. Cumprimentei-o e perguntei: «És forasteiro?»
«Sim, sou forasteiro», respondeu ele. E quase de seguida veio estoutro, que
nos cumprimentou e disse: «Sou um forasteiro», e nós lhe respondemos:
«Outrossim somos nós forasteiros tal como tu.» Então prosseguimos juntos,
mas a noite abateu-se sobre nós os três. Felizmente a Providência conduziu-
nos até vós. E esta é causa de ter ficado sem um olho e de ter rapado a
minha barba.
Então a moça disse: «Dá graças por ainda teres a tua cabeça e pira-te.»
Mas ele retorquiu: «Por amor de Deus, não arredo pé daqui sem ouvir as
histórias dos outros.» Então desamarraram-no e ele se pôs à banda do
primeiro dervixe.
Ó mui honorável senhora, irei contar qual a causa que me fez ficar sem
um olho e rapar a barba, mas a minha história é diferente das outras que
ouvimos, não só porque é mais estranha e espantosa, mas também porque
os infortúnios do destino visitaram os meus companheiros de surpresa,
enquanto no meu caso fui eu quem os trouxe para a minha vida, sendo o
único culpado do desassossego da minha alma.
O meu pai era um rei grande e poderoso, e quando morreu tomei eu as
rédeas do reino. Chamou-me Ajibe48 filho de Khacib, e a minha cidade
ficava à beira-mar, abrindo-se por um vastíssimo mar onde não faltavam
ilhas. À minha disposição tinha cinquenta embarcações mercantes, outras
cinquenta de recreio, e outras cento e cinquenta equipadas para a guerra e
para o combate contra os infiéis.
Querendo ir passear pelas ilhas, reuni provisões para um mês, parti em
viagem de recreio, e depois regressei à minha terra. Tomado por um desejo
de conhecer o mar, fiz uma segunda viagem, tendo para isso reunido
provisões para dois meses e aprontado dez embarcações. Viajámos quarenta
dias, e ao quadragésimo primeiro dia abateu-se sobre nós uma furiosa
tempestade, com ventos que sopravam de vários quadrantes e ondas tão
violentas e revoltas que perdemos todas as esperanças de permanecermos
vivos, e tendo ficado escuro como breu, disse de mim para mim: «O
imprudente não merece louvores mesmo quando se salva.» Invocámos Deus
Todo-Poderoso, implorando e suplicando, mas os ventos continuaram a
soprar de vários quadrantes e o mar tormentoso, até ao raiar da aurora,
quando se amainaram os ventos e as ondas, e o mar se acalmou e o tempo
clareou.
Em breve o Sol se ergueu, tendo-se o mar tornado raso como uma folha,
e nós abicámos numa ilha, onde cozinhámos e comemos qualquer coisa,
tendo descansado durante dois dias. Depois viajámos pelo espaço de dez
dias, e em ficando o mar cada vez mais largo e nós cada vez mais distantes
de terra, o arrais estranhou e disse ao gajeiro: «Sobe ao cesto da gávea e
diz-me o que vês.» O gajeiro subiu, demorando-se uns momentos, e depois
de descer disse: «Arrais, olhei para a direita e só vi o céu apoiado em cima
do mar, olhei para esquerda e vi um vulto negro avultando-se. Foi tudo o
que vi.» Ao ouvir aquilo, o arrais botou o turbante ao chão, arrancou a
barba, esbofeteou a própria cara, e disse: «Real senhor, anuncio a nossa
total aniquilação; não há força nem poder senão em Deus Altíssimo e
Grandioso.» E desatou a chorar, o que nos fez chorar também. Em seguida
dissemos-lhe: «Ó arrais, explique lá bem essa história.» «Meu senhor,
perdemos o rumo desde o dia em que sobre nós se abateu aquela
tempestade, e agora não poderemos volver. Amanhã ao meio-dia,
alcançaremos uma montanha negra feita de um minério chamado pedra-
íman. Como as correntes nos empurrarão para junto do sopé dessa
montanha, e porque Deus Todo-Poderoso atribuiu à pedra-íman a
propriedade misteriosa de ser amante do ferro, as embarcações ao se
aproximarem despedaçar-se-ão e todos os seus pregos esvoaçarão para se
colarem à montanha, onde o que não falta é ferro a cobri-la quase toda, e
que se foi acumulando desde tempos remotos, por mor da muita soma de
embarcações que por lá passaram. No topo da montanha, na face virada
para o mar, há uma cúpula de bronze andalusino, sustentada por dez colunas
também de bronze. Em cima da cúpula, há um cavaleiro de bronze e um
cavalo de bronze, e o cavaleiro tem uma placa de chumbo ao peito onde
estão gravados conjuros mágicos. Real senhor, não é senão este cavaleiro
quem aniquila as pessoas, e se ele fosse derrubado do seu cavalo seria um
grande alívio para a humanidade.» Depois, minha senhora, o arrais desatou
a chorar como um desalmado, e estando nós certos da nossa aniquilação,
chorámos pelas nossas vidas, e todos se despediram uns dos outros, e deram
o seu testamento ao seu amigo mais próximo, na esperança de que aquele se
salvasse.
Nessa noite ninguém conseguiu dormir, e no dia seguinte pela manhã
aproximámo-nos do Monte Íman, e lá para o meio-dia fomos levados pelas
correntes para junto do seu sopé. Foi então que as nossas embarcações se
desintegraram e tudo o que era ferro e parafuso se soltou, atraído em
direcção à montanha, onde se foi emaranhar. Houve quem se afogasse e
quem se salvasse, mas estes últimos não sabiam uns dos outros. Minha
senhora, Deus salvou-me da desgraça e sofrimento que Ele havia escolhido
para mim, e ao me agarrar a uma das tábuas da embarcação, o vento soprou,
levando-me num pronto até terra firme, onde encontrei um caminho que
permitia subir a montanha até ao seu topo, com escadas esculpidas na
rocha.
De mão dada com o velho ia um jovem tão formoso como se tivesse sido
moldado no molde da beleza, da perfeição e do esplendor. Era tão belo
quanto o galho verde ou a gazela de tenra idade, com a sua beleza capaz de
encantar qualquer coração e de cativar o âmago de qualquer um com a sua
perfeição. A sua compleição era tão perfeita que superava toda a gente,
tanto no que tocava ao aspecto exterior como à nobreza de carácter, tal
como disse o poeta:
Minha senhora, o grupo continuou a caminhar até que desceu pela cova
abaixo, onde se quedou um bom par de horas ou mais. Depois o velho e os
escravos subiram, mas não o jovem, e tornaram a pôr a terra como estava
antes, sobre o tampo. Subiram a bordo da embarcação e zarparam,
desaparecendo da minha vista. Desci da árvore e fui até à cova, escavei na
terra com grande afinco e quando a removi toda deparei-me com uma pedra
de mó. Levantei-a e fiquei espantado ao se me deparar uma escada de pedra
em caracol. Desci-a até ao último degrau, e dei por mim numa casa limpa e
branquíssima, mobilada com diversos géneros de tapeçarias, cobertas e
sedas. Avistei o moço sentado num sofá alto e encostado a uma almofada
redonda, com um leque na mão, e à sua frente um banquete com fruta, ervas
aromáticas e flores perfumantes, estando ele sozinho naquela casa. Ao ver-
me, ficou pálido e transtornado, mas cumprimentei-o, e disse: «Calma, meu
senhor! Não tem nada a recear, eu sou um ser humano à sua semelhança, e
sou filho de um rei, tal como o meu querido amigo. Foi o destino que nos
uniu para eu fazer companhia à sua solidão. Poderá o senhor contar-me a
sua história e como veio a viver debaixo do chão?»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
56.a NOITE
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse a sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
57.a NOITE
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
59.a NOITE
E essa noite em que dormi com ela foi a melhor de toda a minha vida.
E dormi com ela uma belíssima noite, e quando se fez manhã fui aos
banhos e vesti novas roupas.
Minha senhora, para encurtar a história, sentei-me com elas durante um
ano inteiro, vivendo à grande e à larga, e todas as noites escolhia uma das
quarenta para dormir comigo à noite, e jamais fui falto de comida, bebida e
boa companhia. Mas um dia, no início do meu segundo ano, elas puseram-
se a chorar em grandes prantos, despedindo-se de mim agarrando-se ao meu
pescoço. Estando eu espantado com tal carpidura, perguntei-lhes: «O que se
passa convosco que me partem o coração?» «Quem nos dera nunca o
termos conhecido. Já vivemos com muitos outros, mas nunca vimos alguém
mais gentil que o senhor, que Deus não nos separe de si», disseram elas,
chorando. Então perguntei-lhes: «Mas a que se deve a vossa choradeira, que
me deixa tão amargurado?» E elas me disseram: «De todos os males só nos
faltava este; o choro deve-se à nossa separação iminente, cuja única causa
será o senhor. Se nos ouvir atentamente nunca nos separaremos, já se nos
contrariar, a separação é mais que certa. E o nosso coração nos diz que nos
não ouvirá, e que a nossa separação virá.» «Mas contem-me lá que história
vem a ser esta?», perguntei eu. E elas me responderam: «Senhor nosso amo,
saiba que nós somos filhas de reis, e que vivemos em ajuntamento neste
sítio há alguns anos. E em cada ano nos ausentamos pelo espaço de
quarenta dias, e se durante o resto dos anos nos sentamos aqui comendo,
bebendo, gozando a vida e cantando, naqueloutros quarenta nos partimos,
pois esse é o nosso costume. E a causa que o levará a nos contrariar é a
seguinte: em nos ausentando daqui por quarenta dias, iremos deixar-lhe
todas as chaves do palácio, o qual tem cem despensas. Em cada uma delas
há quanto baste para comer, beber e se divertir em pleno durante um dia,
mas uma dessas portas não a poderá abrir, nem sequer dela se aproximar,
pois em o fazendo inevitavelmente causará a nossa separação. Há noventa e
nove despensas à sua disposição, para as abrir e ver e usufruir do que elas
contêm, mas o abrir desta porta aqui de oiro vermelho irá inevitavelmente
causar a nossa separação.»
E havia pêras de gosto mais doce que água de rosas e açúcar, e de cheiro
mais perfumante que almíscar e âmbar-gris. E os marmelos eram como
disse o poeta:
Depois vi ameixas de uma beleza superior que saltava à vista, quais rubis
polidos. Em seguida, saí do jardim e fechei a porta.
Ao outro dia, abri outra das portas e entrei, tendo-me deparado com um
enorme terreiro dotado de grande soma de palmeiras, e à sua roda havia um
rio onde corria água, e na banda do rio que havia à roda do terreiro haviam
plantado rosas, jasmins, alfena, rosa-mosqueta, narcisos, violetas,
malmequeres, crisântemos, goivos e açucenas; e os ventos ao soprarem
espalhavam por todo o terreiro a fragrância daquelas flores. Depois de me
passear um pouco e serenar as minhas aflições por aquele terreiro, saí e
fechei a porta. E ao abrir a terceira porta deparei-me com um grande salão,
incrustado com diversos estilos de mármores coloridos, minérios raros e
pedras preciosas, e vi gaiolas de forma cónica feitas de madeira de sândalo
e de pau d’áquila, onde havia pássaros cantantes, de todos os géneros e
feitios, como rouxinóis, rolas-bravas, rolas-turcas, rolas-do-Senegal,
pombos, melros e noitibós-da-núbia. Depois de me passear contemplando
aquele espectáculo, refrescando o meu coração e aliviando as minhas
aflições, fui dormir.
Quando me amanheceu, abri a quarta porta e deparei-me com uma
grande casa, onde havia quarenta despensas dispostas à roda, todas abertas.
Entrei em todas elas, e em todas topei com grandes amontoados de jóias,
tais como pérolas, esmeraldas, rubis, corais, carbúnculos, assim como
pratas, oiros e outros metais preciosos. Ficando eu espantado ao ver tanta
fortuna junta, disse para comigo: «Estas riquezas todas não podem ser
senão dos maiores reis. Um simples rei não disporia de tudo isto, nem
mesmo todos os pequenos reis juntos.» Sendo impossível sentir-me mais
contente e feliz, disse para comigo: «Eu sou o maior rei da minha era, e à
minha disposição tenho todas estas jóias e riquezas, assim como estas
raparigas só para mim.»
Minha senhora, continuei a abrir despensa atrás de despensa, desfrutando
por esta guisa os meus dias e noites, até que passaram trinta e nove dias,
restando-me só mais um dia e uma noite. Eu já havia aberto noventa e nove
despensas, e só sobrava a centésima, a tal que me haviam advertido para
não abrir.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
64.a NOITE
Ouvi dizer, ó rei, que a moça, dona da casa, dirigiu-se ao califa nos
seguintes termos:
Então disse à velha: «Peça-lhe que nos mostre um belo tecido.» Mas a
velha respondeu: «Peça-lhe antes a senhora.» E eu disse-lhe: «Então não
sabe que eu jurei não falar com outros homens?» A velha lá disse ao moço:
«Mostre-nos alguns tecidos.» Ele assim fez, e havendo alguns que me
agradaram, eu disse à velha: «Pergunte-lhe pelo preço.» E quando ela
perguntou, ele respondeu: «Não os vendo nem por prata nem por oiro, mas
só por um beijo na cara desta dama.» «Deus me livre de tal coisa!» rebati
eu. Vai a velha e diz-me: «Ó dona, não precisa de lhe falar, nem ele de lhe
falar. Basta só inclinar a cara para ele lhe dar um beijinho e nada mais!»
Então, incitada pela velha, estendi-lhe a cara, mas vai o moço e ferra-me os
dentes na bochecha, arrancando-me um pedaço de carne. Perdi os sentidos e
pouco depois, quando acordei, vi que ele havia fechado a loja e
desaparecido, enquanto me escorria sangue pela cara abaixo e a velha se
mostrava muito pesarosa e compadecida.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado
com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu ainda for
viva.»
70.a NOITE
Ó miralmuminim, ouvi dizer que era uma vez, há muito tempo atrás, nas
terras do Egipto, um rei que era amigo da justiça e da paz, generoso e
bondoso, amando os pobres e confraternizando com os sábios, corajoso e
poderoso. Este rei tinha um vizir que era muito inteligente, experiente e
influente, dotado de conhecimentos, cauteloso no agir, e exímio na escrita.
O vizir, que era um ancião entrado em anos, tinha dois filhos, que eram
como duas luas ou duas formosas gazelas, e cada um era feito de irradiante
beleza e perfeita lindeza, com um corpo gracioso e harmonioso. O maior
chamava-se Xamseddine Muhammad59 e o mais pequeno Nureddine Ali,
que era o mais belo dos dois irmãos, não havendo Deus criado ninguém
naqueles tempos mais belo do que ele. Por via das circunstâncias e do
destino, o pai deles morreu. O rei ficou muito triste pela sua morte, e
chamou os filhos do vizir junto de si, tratando-os como seus próximos,
ofereceu-lhes trajes de honra, e disse-lhes: «O cargo do vosso pai agora é
vosso, sereis parceiros no vizirato do Egipto.» Eles beijaram o chão diante
do rei, retiraram-se e estiveram de luto pelo pai durante um mês, ao cabo do
qual assumiram ambos o cargo de vizir, revezando-se à vez em cada sexta-
feira e para cada viagem do rei. Não só os dois irmãos moravam na mesma
casa como também falavam a uma só voz.
Uma noite, nas vésperas de ser a vez do mais velho ir em viagem com o
rei, aconteceu estarem sentados ambos à conversa, quando o mais velho
disse: «Mano, o que nós devíamos fazer era casarmo-nos com duas
mulheres que fossem irmãs, redigir os contratos de casamento no mesmo
dia e consumar o casamento na mesma noite.» E Nureddine disse: «Ó
mano, é uma ideia muito feliz. Por mim pode ser assim mesmo, mas
esperemos que regresses da viagem antes de escolhermos as noivas. E que
Deus nos traga o bem.» Então o mais velho disse a Nureddine: «Ó mano,
diz-me lá, se eu e tu redigíssemos os nossos contratos de casamento no
mesmo dia, e consumássemos o casamento no mesmo dia, e a minha e a tua
mulher emprenhassem na noite de núpcias, isto é, na mesmíssima noite, e
em passando os devidos meses e noites parissem no mesmo dia, e se a tua
mulher trouxesse ao mundo um macho e a minha uma fêmea, então
aceitarias casar o teu filho com a minha filha?» E Nureddine respondeu:
«Assim faria, ó mano Xamseddine», e perguntou: «E quanto pedirias de
dote ao meu filho para dar à tua filha?» E respondeu o mais velho: «Não
pediria menos de três mil dinares, três pomares, três herdades, mais o que
fosse estipulado no contrato.» E Nureddine disse: «Ó mano Xamseddine,
que exagero é esse? Isso é muito, então nós os dois somos irmãos e vizires,
e cada um conhece os seus deveres. Tu deverias oferecer ao meu filho a tua
filha sem dote, pois o macho é preferível à fêmea. Mas tu fazes comigo
como alguém que foi ter com uma pessoa para lhe pedir um favor, e esta lhe
respondeu: “Com certeza, vou ajudar-te, mas amanhã.”» E declamou uma
poesia:
Ainda mal os notáveis de Baçorá haviam dito: «Que Deus faça o vosso
caminho ser o mais imaculado», apareceram logo as testemunhas. Os
criados puseram as mesas e serviram o banquete, havendo os convidados
comido até se fartarem, e quando serviram os doces comeram ainda mais do
que podiam. Então, havendo os criados retirado as mesas, avançaram as
testemunhas, e redigiram e celebraram o contrato de casamento. Depois
disso, acenderam incenso, e os convidados foram à sua vida. Quanto ao
vizir, ordenou que os criados pegassem em Nureddine Ali do Egipto e o
levassem aos banhos, havendo-lhe enviado o vizir um traje completo digno
de um rei, assim como toalhas, incenso e tudo de que fosse falto. Após uma
horita, Nureddine veio dos banhos e parecia a Lua cheia quando nasce ou o
Sol quando se levanta, tal como disse o poeta:
»Eu quero levar-te ao rei e quero que assumas o meu cargo.» Ao ouvir as
palavras do seu sogro, Nureddine disse: «Ó vizir grandioso e senhor
valoroso, eu não sou da plebe nem larguei a minha família com o devido
consentimento. É meu dever informá-lo que o meu pai era vizir», e contou-
lhe o que havia sucedido depois do pai expirar, assim como a conversa que
havia ocorrido entre si e o irmão, e cujos detalhes não há necessidade de
aqui repetir, e continuou dizendo: «E o senhor foi bondoso comigo e
favoreceu-me, casando-me com a sua filha. E esta é a minha história.»
Quando o vizir ouviu as palavras de Nureddine ficou espantado, riu-se e
disse: «Ó filho, vós os dois haveis querelado ainda antes de vos casardes e
de serdes abençoados com filhos! Mas agora, ó filho, trata de consumar o
teu casamento com a tua mulher, e amanhã levar-te-ei ao rei, relatar-lhe-ei a
tua história, e que Deus Todo-Poderoso te abençoe com o bem.»
Nureddine Ali levantou-se e foi consumar o casamento com a sua
mulher. E quis o destino, disposto e decretado por Deus, que naquela noite
o seu irmão Xamseddine Muhammad consumasse casamento com uma
rapariga no Egipto, na mesmíssima noite em que Nureddine Ali houvera
consumado casamento com a sua mulher em Baçorá. E eis o que o destino
causa!
Ouvi dizer que quando Nureddine abalou do Egipto e lhe sucedeu o que
sucedeu, o seu irmão mais velho Xamseddine viajou com o rei do Egipto
durante um mês, e quando regressaram o rei foi para o seu palácio, e
Xamseddine para sua casa, onde procurou o irmão, mas não o encontrou. E
perguntando por ele, os criados disseram: «Naquela madrugada em que o
nosso nobre senhor abalou em viagem, ainda o Sol se não havia levantado e
já ele estava numa terra distante. Disse que iria pernoitar fora uma noite ou
duas, mas dês daí que dele não nos chegou nem nova má nem boa.» Ao
ouvir aquilo ficou muitíssimo triste, e disse de si para si: «Sem dúvida que
alvorou, e que deverei procurá-lo mesmo que tenha de ir ao mais longínquo
país.»
E dito isto, Xamseddine enviou correios atrás dele, mas nesse mês
Nureddine já havia chegado a Baçorá, e quando os correios chegaram a
Alepo, não ouvindo sobre ele nova má nem boa, regressaram sem haver
conseguido cumprir a missão. Perante isso, Xamseddine ficou desolado, e
disse de si para si: «Fui demasiado longe com o meu irmão naquela história
do casamento. Não há força nem poder senão em Deus Altíssimo e
Grandioso.»
Dias depois, quis Deus Todo-Poderoso que ele noivasse a filha de um
homem rico do Egipto, e redigiu-se o contrato de casamento na mesma
noite em que o seu irmão redigiu o seu contrato de casamento em Baçorá, e
consumou o casamento na mesma noite em que o seu irmão consumou o
seu casamento em Baçorá. Pois Deus, Todo-Poderoso e Glorioso, para
executar o seu desígnio relativamente às suas criaturas, permitiu que os dois
irmãos redigissem os seus contratos de casamento no mesmo dia e
consumassem os seus casamentos na mesma noite, estando um no Cairo e o
outro em Baçorá, por uma só razão, ó miralmuminim, e que é a vontade de
Deus Todo-Poderoso.
De seguida, a mulher de Xamseddine Muhammad, vizir do Egipto, pariu
uma filha; e a mulher de Nureddine Ali, vizir de Baçorá, pariu um filho
macho; mas o filho de Nureddine envergonhava o Sol e a Lua, com a sua
fronte irradiante, bochechas rosadas, pescoço branco como mármore, e um
sinal que parecia um disco de âmbar-gris na bochecha direita, tal como
descrito por um poeta:
Enquanto crescia, ele nunca saiu para ir à cidade, até que um dia o pai
Nureddine lhe vestiu um traje completo, montou-o numa mula, e saíram à
cidade, atravessando-a para chegarem ao palácio do rei. E quando as gentes
o viram e olharam para o seu rosto, puseram-se a orar a Deus para que o
protegesse dos males que pudessem afectar a sua beleza, e era grande a
vozearia que se alevantava com as preces que todo o mundo proferia em
favor dele e de seu pai, formando-se uma grande azáfama de gente para o
ver e admirar a sua irradiante beleza e perfeita lindeza. E ele passou a
cavalgar todos os dias com o pai, e todos os que o viam se espantavam com
o seu encanto, pois ele era tal como um poeta descreveu:
O segundo conselho, filho, é que não oprimas ninguém, para que a vida
não te oprima a ti, pois a vida são dois dias, um a teu favor e o outro contra,
e é um empréstimo que tem de ser repago, tal como ouvi um poeta dizer:
E não parou de dar conselhos até que a sua alma se separou do corpo. E
todos se enlutaram e fizeram-lhe o funeral.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história
tão boa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado
com o que contarei, a ti e ao nosso rei na próxima noite, se eu ainda for
viva.»
75.a NOITE
E os campos e as terras
Nas trevas mergulharam.
Que fiquem sem ninho nem penas Os corvos que nos separaram.
Badreddine Haçane chorou sobre a campa do seu pai durante uma boa
hora, pensando nos apuros em que se encontrava e sentindo-se desnorteado
quanto ao que fazer, sem saber para onde ir nem que caminho seguir, então,
enquanto chorava, encostou a cabeça à campa do pai e adormeceu —
glorificado seja Aquele que nunca dorme — e enquanto dormia, a cabeça
escorregou da campa, e ele tombou de costas, estatelando-se em cima da
campa com as mãos e as pernas estendidas.
Ora, naquele cemitério havia um ifrite-génio, que ali se abrigava durante
o dia e de noite voava ares afora, indo-se abrigar noutro cemitério. Em
caindo a noite, o ifrite saiu do seu abrigo, mas antes de voar ares afora viu
um homem estatelado de costas e vestido com um traje. Acercou-se dele e
ao olhar para a sua cara, tal era a sua beleza que ficou admirado e pasmado.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado
com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu ainda for
viva.»
77.a NOITE
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado
com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu ainda for
viva.»
78.a NOITE
Conta-se, ó rei, que Jáfar disse ao califa o que a ifrita disse ao ifrite:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado
com o que contarei, a ti e ao nosso rei na próxima noite, se o rei me poupar
e eu viver.»
79.a NOITE
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão espantosa», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se o rei me poupar e eu viver.»
80.a NOITE
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
81.a NOITE
E veio com a quinta veste, tal uma donzela mostrando os seus encantos,
parecendo-se com a gazela quando se inclina para beber ou o galho do
salgueiro ao sabor do vento. Os caracóis do seu cabelo eram como lacraus
que se enrolavam e se entrechocavam, as suas ancas balançavam e as suas
tranças dançavam, tal como descrito pelo poeta quando disse numa poesia:
Então apresentaram-na com o sexto vestido, que era verde, e ela com a
sua postura vexava até a içada lança de bronze. Os galhos flexíveis
quedavam-se cativos da sua flexibilidade e do seu bambolear, a sua face
brilhava mais que a Lua nascente, e nem o horizonte conseguia ser mais
belo que a sua fronte. Não havia desejo que lhe não fosse satisfeito pela
própria Beleza, e ela partia todos os corações com a formosura das suas
qualidades, tal como disse o poeta:
Enquanto dormiam, o ifrite disse à ifrita: «Põe-te por baixo dele, levanta-
o e leva-o para o mesmo lugar onde estava a dormir, antes que a manhã nos
surpreenda.» A ifrita pôs-se por baixo de Badreddine, e voou com ele pelos
ares fora, levando-o assim mesmo como estava, com o solidéu de seda da
china de cor azul, a requintada camisa de cequins venezianos com brocados
marroquinos em oiro, e sem calças.
Lá ia a ifrita sempre a voar, acompanhada do ifrite que seguia à sua
banda, quando Deus Todo-Poderoso e Glorioso permitiu que a aurora
raiasse, e os almuadens subiram ao topo das almádenas e proclamaram a
unicidade do Soberano Absoluto e Único. Nisto, vão os anjos e disparam
duas estrelas cadentes e incandescentes; o ifrite morreu logo todo tostado,
mas Deus salvou a ifrita, que se escapou e baixou à terra com Badreddine.
Ditou o destino que a terra alcançada fosse Damasco, havendo a ifrita
largado Badreddine ao pé de uma das portas da cidade, antes de voar pelos
ares e ir à sua vida.
Ao brilhar a luz do dia, a porta da cidade de Damasco foi aberta, e
quando as gentes de lá saíram, e viram aquele moço tão lindo, apenas com
uma camisa e um solidéu, sem outras roupas nem calças, a dormir e a
ressonar devido às canseiras da noite anterior, do cortejo com velas, do
desvelamento da noiva, e de tudo o resto, ao vê-lo, as gentes puseram-se à
sua roda e disseram: «Que sortudo aquele que passou a noite com ele!
Devia era ter esperado que se tornasse a vestir!» E vai outro e diz: «Coitado
deste jovem! Vejam bem o que acontece aos nossos filhos! Devia andar nos
copos e veio à rua fazer uma necessidade, mas já estava tão tomado pela
bebida que adormeceu todo nu. Talvez não tenha encontrado a porta de
casa, e andou a vaguear meio perdido, até que se deparou com a porta da
cidade fechada, e aqui mesmo adormeceu.»
E enquanto cada um dizia seu parecer e sentença, soprou uma aragem e
levantou a camisa de Badreddine, deixando à mostra o seu bem desenhado
ventre e bem delineado umbigo, e umas coxas e per- nas tão cristalinas e
mais macias que a manteiga. E pondo-se todos a gritar: «Ai, que
maravilha!», acordaram Badreddine Haçane, que ao ver-se à porta de uma
cidade com tanto mundo, gentes e entes à sua roda, perguntou cheio de
espanto: «Onde estou eu? E porque estais todos ao meu redor?» E
responderam-lhe: «Nós encontrámos-te aqui estendido aquando da chamada
para a oração da madrugada, e isto é tudo o que sabemos sobre ti. Onde
dormiste a noite passada?» E ele respondeu: «Ó gentes, juro por Deus que a
noite passada estava a dormir no Cairo.» Houve logo alguém que disse:
«Oiçam-no bem!» E outro disse: «Preguem-lhe mas é um pontapé!» E
outros disseram-lhe: «Ó filho, tu tás é louco! Então, havias lá tu de dormir
no Cairo e acordar em Damasco?» E Badreddine respondeu: «Por Deus vos
juro, ó gentes, que passei a noite em casas cairotas; e durante o dia de
ontem estava em Baçorá; e agora aqui estou eu em Damasco!»
E alguém disse: «Valha-me Deus, que esta é mesmo boa!» E outro disse:
«Esta agora!» E outro disse mais: «Cá p’ra mim é maluco!» «É maluco!»,
bradavam as pessoas contra Badreddine, fazendo com que ele forçosamente
passasse por maluco. Enquanto isso, outras diziam entre si: «Que
desperdício, este jovem!» e «Não há dúvida que é maluco.» E ao depois
disseram-lhe: «Põe a cabeça no sítio, não há ninguém no mundo que em
sendo dia esteja em Baçorá, à noite no Cairo, e na manhã seguinte em
Damasco.» E Badreddine Haçane disse: «Mas eu ontem estava no Cairo na
festa do meu próprio casamento.» Disseram-lhe: «Não, não estavas, deves
ter sonhado e foi o que viste enquanto dormias.» Badreddine começou a
duvidar de si mesmo, mas ainda disse: «Será que sonhei que estive no
Cairo, e que a noiva foi desvelada ante mim e ante o corcunda? Não! Valha-
me Deus, não foi um sonho! Onde está a bolsa com o meu oiro, e onde está
a minha roupa, o meu traje, o meu turbante e a minha adaga?» O moço
estava mesmo confuso da cabeça.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão espantosa», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
84.a NOITE
Quando Sitt-al-Husn ouviu o seu pai dizer: «Como podes estar tão feliz
com esse maldito corcunda!» sorriu e disse: «Paizinho, pare lá com isso, já
basta o que eu passei durante o dia de ontem, com as mulheres a arrasarem-
me e a de mim troçarem por mor de um corcunda de meia tigela que não
serve nem para trazer ao meu marido a sua mula ou as suas polainas.
Ontem, Deus congratulou-me com a mais bela noite que passei em toda a
minha vida. Pare de troçar de mim e de me fazer recordar o corcunda que o
pai alugou para afastar o mau olhado contra o meu marido.» O pai quedou-
se confuso ao ouvir as palavras da filha, e olhando-a nos olhos, disse-lhe:
«Maldita sejas! Mas que conversa vem a ser esta? O corcunda não dormiu
contigo?» E a moça respondeu: «Já chega de mo fazer recordar, que Deus
amaldiçoe esse corcunda! Arre! O pai não pára de teimar em mencioná-lo!
Eu não dormi nos braços de ninguém a não ser do meu verdadeiro marido,
que tem olhos negros e sobrancelhas arqueadas e negras.» E disse-lhe o pai,
aos berros: «Maldita sejas, sua desavergonhada! Mas estás maluca ou quê?»
Ela respondeu: «Basta, ó pai, valha-me Deus, não me fatigue mais, que me
parte o coração. Por amor de Deus, o meu marido, que me desflorou e me
emprenhou, é um moço bem formoso, e neste momento está na casinha das
necessidades.»
Nisto, vai o pai à casinha das necessidades, e encontra o corcunda, virado
de pernas para o ar, com a cabeça enfiada no buraco da latrina. O vizir ficou
atónito e disse: «Ah, seu corcunda!» «Ai, sim, sou eu,» respondeu-lhe ele. E
o vizir perguntou-lhe: «Mas que vem a ser isto? E quem te pôs assim?» Ao
que o corcunda respondeu: «Mas será que não puderam encontrar ninguém
para me casarem a não ser a moça dos búfalos, amada dos ifrites?»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
86.a NOITE
O corcunda disse ao pai da noiva: «Mas será que não puderam encontrar
ninguém para me casarem a não ser a moça dos búfalos, amada dos ifrites?
Maldito seja o diacho e o meu barbicacho!» O vizir disse-lhe: «Vá! Vai-te
embora.» «Só se eu for maluco!», disse o corcunda: «Daqui não arredo pé a
não ser quando o Sol se erguer. Pois eu ontem, quando vim fazer uma
necessidade, e sem eu dar por ela, um gato preto subiu pela latrina acima e
pôs-se a gritar comigo, e não parou de crescer até se tornar do tamanho dum
búfalo, e o que me disse não me sai da cabeça. Por isso, deixe-me e vá à sua
vida, e que Deus Todo-Poderoso o recompense e amaldiçoe a noiva.» Mas o
vizir sacou-o da latrina, e assim mesmo como estava lá teve de ir o
corcunda à presença do rei para lhe dar parte do que lhe havia feito o
demónio.
Já o pai da noiva, esse voltou para casa, atrapalhado da cabeça, com a
razão meio atordoada e perplexo com a história da filha. Foi ter com ela e
disse-lhe: «Ai de ti se me não contares a tua história.» «Ah! Ó pai, qual
história?» respondeu ela: «Só sei que dormiu comigo aquele a quem eu
ontem fui desvelada, que me desflorou e me emprenhou. E aqui em cima
desta cadeira está o turbante dele, a adaga e o traje, e debaixo da cama estão
outras roupas também dele, enroladas à roda de não sei o quê.»
O vizir olhou para o turbante do seu sobrinho Badreddine, pegou nele,
observou-o com atenção, e disse: «Meu Deus, mas isto é um turbante de
vizir! Só que está atado à maneira de Mossul.» E ao observar melhor o
solidéu63 reparou que havia nele um rolinho cosido ao tecido, que tirou para
ver mais tarde com a devida atenção. Depois desembrulhou as calças e
encontrou a bolsa com os mil dinares e um papel, e quando abriu o papel,
nele se lia: «Faço aqui notícia que eu, Badreddine de Baçorá, vendi a Isaac,
o Judeu, a carga da primeira embarcação que entrar no porto por mil
dinares, e recebi o valor.» E depois de ler aquele papel, deu um berro e caiu
desmaiado.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
viver.»
89.a NOITE
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
90.a NOITE
Ajibe sentiu afecto por ele e o seu coração palpitou. Virou-se para o
eunuco e disse: «Tutor, sinto simpatia e pena por este cozinheiro, pois ele
deve ter perdido um filho ou um irmão. Entremos na sua casa e aceitemos a
sua hospitalidade para que possamos consolar a sua alma, e talvez assim
Deus recompense esta acção facilitando o reencontro com o meu pai.» Ao
ouvir aquelas palavras, o eunuco tomou-se de fúrias e disse: «Valha-me
Deus! O filho de um vizir a comer numa casa de pasto! Como poderei eu,
que ando com esta vara para impedir que as pessoas olhem para ti, velar
pela tua segurança deixando-te entrar numa casa de pasto?» Ao ouvir as
palavras do eunuco, Badreddine virou-se para o filho, e pôs-se a declamar
uma poesia:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão bela
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
93.a NOITE
Entrou pela porta principal, e foi ter a um grandioso pátio, onde havia
uma porta arqueada construída em granito com mármores incrustados de
vários géneros e feitios, formando floreados de várias cores. Caminhou à
roda da casa, observando-a atentamente, até que encontrou numa parede
uma inscrição com nome do seu irmão, Nureddine Ali, feita em oiro e lápis-
lazúli iraquiano. Abeirou-se dela e beijou-a, e lembrando-se do seu irmão e
da separação, chorou e pôs-se a declamar uma poesia:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
viver.»
94.a NOITE
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
95.a NOITE
Badreddine disse ao filho: «Quando fui atrás de si, foi só porque estava
fora de mim.» E Ajibe respondeu: «É um amante muito exigente! Comemos
a comida que nos serviu, e julgando que estávamos em dívida para consigo,
ia causando a nossa desgraça. Agora não voltaremos a comer o que cozinha,
senão com uma condição, que nos jure que não sairá atrás de nós, nem de
nós reclamará obrigação alguma. Senão não voltaremos a vir ter consigo,
pois ainda iremos ficar nesta cidade uma semana, enquanto o meu avô
compra presentes para o rei do Egipto.» E Badreddine respondeu: «Assim
seja, ficai descansados.»
Então Ajibe e o eunuco entraram na casa de pasto, e Badreddine
mergulhou uma tigela na panela para a encher, e botou-a à frente deles. Ao
que Ajibe lhe disse: «Sente-se e coma connosco.» E ele todo contente foi
sentar-se e comeu com o filho, ficando embasbacado a olhar para ele, pois
sentia-se ligado a ele da ponta dos pés à ponta dos cabelos. Então Ajibe
disse: «Ah, ah! Não lhe disse já que é um amante incómodo? Pare de olhar
assim para mim!» Badreddine suspirou e pôs-se a declamar:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
97.a NOITE
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
98.a NOITE
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
99.a NOITE
Depois contou-lhe o quanto ela havia sofrido depois da sua partida, e ele
por sua vez contou-lhe o que havia sofrido, e os dois deram graças a Deus
pela sua reunião.
Ao outro dia, o vizir foi dar parte da situação ao rei, e este ficou
espantado até mais não, e ordenou que se registassem aqueles
acontecimentos por escrito nas crónicas. Daí em diante, o vizir, o seu
sobrinho Badreddine e a filha Sitt-al-Husne viveram a mais saborosa das
vidas em grande prosperidade e felicidade, comendo, bebendo e regalando-
se até chegar o momento de beberem o copo do fenecimento.
O califa disse: «Meu Deus, ó Jáfar, que coisa mais espantosa!» E ordenou
que se registassem aqueles acontecimentos por escrito nas crónicas, e
libertou o escravo. Quanto ao jovem, ofertou-lhe uma das suas concubinas
favoritas, outorgou-lhe um ordenado que lhe permitisse viver, e tornou-se
seu amigo até que a morte os visitou e os separou.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se eu ainda for viva.»
__________________________
1 Por Orientalismo, entende-se a produção cultural que o Ocidente desenvolveu num contexto de
dominação colonial, reproduzindo uma visão imaginária do outro, neste caso do Oriental e do Árabe,
baseada em preconceitos e fantasias que serviam os interesses dessa dominação colonial, e cuja
crítica foi brilhantemente tecida por Edward Said, na sua obra mais conhecida, publicada em 1978,
Orientalism. Mais do que uma maneira de definir o outro, o Ocidente define-se a si mesmo através de
uma forma de pensar que imagina, exagera e distorce as diferenças entre ocidentais e orientais,
contrapondo a uma cultura das «Luzes» uma cultura oriental exótica, geralmente vista como atrasada,
incivilizada e déspota. Ao construir-se o Oriente como sendo diferente e inferior, justificou-se a
necessidade de uma intervenção ou missão de salvação por parte do Ocidente. Na obra citada, Said
considera que o Orientalismo é um estilo de pensamento que estabeleceu «a distinção entre Oriente e
Ocidente como ponto de partida para elaborar teorias, epopeias, romances, descrições sociais e
relatórios políticos a respeito do Oriente, a sua gente, costumes, “mentalidade”, destino, etc.» (SAID,
Edward W., Orientalismo — Representações ocidentais do Oriente, 2.a edição, Cotovia, Lisboa,
2004, pp. 3-4).
2 ABBOT, Nadia, «A Ninth-Century Fragment of the “Thousand Nights” New Light on the Early
History of the Arabian Nights», Journal of Near Eastern Studies, vol. 8, n.° 3 (Jul., 1949), pp. 129-
164.
3 «Aparentemente» porque o estado do manuscrito não permite uma leitura plena e segura.
4 KHOURY, Raif Georges, «L’apport de la papyrologie dans la transmission et codification des
premières versions des Mille et Une Nuits», em Edgard Weber (dir.), Les Mille et Une Nuits, contes
sans frontière, AMAM, Toulouse, 1994.
5 AL-MASʿŪDĪ, Abū al-Ḥasan ben ʿalī, Murūj adh-Dhahab wa Maʿādin al-Jawhar, al-Maktabah
al-ʿaṣrīyah, Ṣaydā/Bayrūt, 2011.
6 A edição desta obra aqui seguida menciona «Alf Laylah wa Laylah [As Mil e Uma Noites]».
Trata-se de uma variante seguida por várias edições contemporâneas da obra em questão, mas muito
possivelmente a adição de «e Uma» é um acrescento posterior, como será discutido mais à frente.
7 A questão dos nomes das personagens e diversas ortografias registadas nos manuscritos será
discutida mais à frente. O facto de Dinarzade ser apresentada como a escrava de Xerazade, e não
como a sua irmã, pode ter tanto a ver com alterações que o quadro principal da história sofreu, como
poderá resultar da possibilidade de Almaçudi não ter um conhecimento profundo do livro que
mencionava.
8 Trata-se de um ciclo de histórias com exemplos morais que não deve ser confundido com o mais
conhecido Sindbad, o Marinheiro.
9 AN-NADĪM, Abu al-Faraj Muḥammad ben Abī Yaʿqūb Isḥāq, Al-Fihrist, Dār al-Kutub al-
ʿilmīyah, Bayrūt, 2010.
10 CHRAÏBI, Aboubakr, Les Mille et une nuits — Histoire du texte et Classification des contes,
L’Harmattan, Paris, 2008.
11 Note-se ainda que a palavra árabe para nome, ism, é cognata do hebraico shem, sendo
conveniente mencionar que ambas as línguas pertencem à mesma família linguística, e não sendo,
por isso, surpreendente que ambas as palavras partilhem a mesma raiz (tal como, por exemplo, a
palavra portuguesa «nome» e a palavra francesa «nom»).
12 Falando os persas uma língua da família indo-europeia, aquando a sua islamização viram-se na
necessidade de aprender e ensinar uma língua da família semita completamente diferente da sua, o
árabe. Apesar de os persas terem recusado abdicar da sua língua e serem arabizados, deram uma
grande importância à compreensão e ao ensino da língua árabe.
13 Um mapa das várias línguas coloquiais árabes pode ser consultado em
https://en.wikipedia.org/wiki/Varieties_of_Arabic#/media/File:Arabic_Dialects.svg (acedido em
Junho de 2017).
14 As questões debatidas neste parêntesis merecem um aprofundamento muito maior que não se
justifica neste Preâmbulo. Ao leitor que queira compreender estas questões com mais detalhe e
exactidão, nomeadamente o que são as línguas árabes numa perspectiva histórica, linguística e
académica, aconselha-se a leitura de Kees VERSTEEGH, The Arabic Language, Columbia
University Press, Nova Iorque, 1997.
15 Esta história aparece no segundo volume desta edição.
16 SCOTT, James C., Domination and the Arts of Resistance — Hidden Transcripts, Yale
University Press, New Haven/London, 1990.
17 HORTA, Paulo Lemos, Marvellous Thieves — Secret Authors of the Arabian Nights, Harvard
University Press, Massachusetts, 2017.
18 LADENBURGER, Thomas, Al-Halqa — In The Storyteller’s Circle, Taskovski Films Ltd.,
Alemanha, 2010.
19 O manuscrito é integralmente acessível, em linha ou para descarregar em formato «pdf»,
através da seguinte hiperligação da Bibliothèque nationale de France:
http://archivesetmanuscrits.bnf.fr/ark:/12148/cc31493v (acedido em Dezembro de 2015).
20 MAHDI, Muhsin S. (ed.), The Thousand and One Nights (Alf Layla wa-Layla): From the
Earliest Known Sources. The Classic Edition (1984-1994), Brill, Leiden, 2014 (texto em árabe).
21 Em árabe havia o costume de fazer cada letra corresponder a um número.
22 Op. cit.
23 O manuscrito é integralmente acessível em linha, através da seguinte hiperligação do sítio Web
da referida biblioteca: http://enriqueta.man.ac.uk/luna/servlet/
detail/Manchester∼91∼1∼370881∼125203 (acedido em Dezembro de 2015).
24 Op. cit.
25 Op. cit.
26 MAHDI, Muhsin, The Thousand and One Nights, E.J. Brill, Leiden, 1995, pp. 132-134.
(Apesar do título, este livro não se deve confundir nem com uma tradução nem com a outra obra
citada de Mahdi).
27 MAHDI, op. cit. (2014).
28 Esta tradução ainda reconstitui uma 282.a noite, a partir de outros manuscritos. Mas a partir
daqui, como previamente mencionado, a conclusão da história de Camarezzamane será traduzida a
partir de outro manuscrito, com outra numeração de noites, que figurará em apêndice no segundo
volume.
29 MAHDI, op. cit. (1995).
30 Os detalhes dos encontros entre Lucas e Diab, e entre este e Galland, assim como o impacto
deste encontro na criação literárias d’As Mil e Uma Noites de Galland, são brilhantemente descritos
por Paulo Lemos Horta (op. cit.), através da documentação existente, incluindo os diários e/ou livros
de viagens de Galland, Lucas e Diab.
31 Trata-se de O Cavalo de Ébano.
32 Op. cit., pp. 79-87.
33 Horta (op. cit.) observa também que na história de Ali Babá contada por Diab esta personagem
chamava-se Hogia Babá. A mudança de nome para Ali Babá foi da responsabilidade de Galland.
34 Ibn KHALDŪN, ʿAbd ar-Raḥmān ibn Muḥammad, Muqaddimat ibn Khaldūn, Dār al-Arqam
ibn Abī al-Arqam, Bayrūt, 2001, III parte, capítulo 42 (Fī anna naqṣ al-ʿaṭāʾ min as-sulṭan naqṣ fī
al-jibāyah).
35 MAHDI, op. cit. (1995), p. 22.
36 MAHDI, op. cit. (1995), p. 87.
37 Alguns deles figuram a título de exemplo em Mahdi (1995), op. cit., no capítulo «Galland as
Translator».
38 Tradução portuguesa sobre a versão francesa de Antoine Galland por Martim Velho Sotto
Mayor, com o título As Mil e Uma Noites, Editorial Estampa, Lisboa, 1976.
39 Tradução portuguesa sobre a versão francesa de Antoine Galland (1976), op. cit.
40 Na ortografia francesa, respectivamente, Zobéide, Amine, Safie. Note-se, no entanto, que a
terminação em «e» em vez de «a» resulta mais da fidelidade a certas pronúncias coloquiais levantinas
e menos da ortografia francesa ou de alguma originalidade ou erro de Galland. Curiosamente a
atribuição destes nomes próprios às três moças tornou-se uma prática usada em vários manuscritos
forjados que foram aparecendo a partir do século XVIII, assim como na versão árabe impressa de
Bulaq, que serve de base a quase todas as versões correntes em árabe anunciadas como «originais e
completas».
41 Na realidade, o texto árabe usa nomes para designar estas funções e não frases. Assim, para a
«dona da casa» usa o título honorífico sitt, que talvez em português tenha equivalência ao «senhora
dona», ou ao «Dona» quando usado para uma rainha, como por exemplo, «rainha Dona Leonor»; aṣ-
ṣabīyah al-bawwābah, que literalmente significa «a moça porteira», mas que por várias razões de
ordem diegética preferiu-se não usar; e, por último, a expressão coloquial aṣ-ṣabīyah al-ḥūshkāshah
que designa a moça que vai às compras.
42 MAHDI, op. cit. (1995), p. 37.
43 Uma análise crítica bem detalhada e de grande qualidade, não só sobre a tradução de Burton,
como de outras da mesma época, algumas plagiadas pelo próprio Burton, e os modos em que estas
foram produzidas, é feita na já citada obra de Paulo Lemos Horta.
44 Op. cit.
45 Na Índia, e no actual Paquistão e Bangladexe, não se fala árabe, mas em algumas regiões onde
predominam comunidades muçulmanas, a língua árabe era (e continua a ser) usada como uma língua
de cultura ligada sobretudo ao estudo da religião islâmica. Não sendo de forma alguma uma língua de
disseminação popular, era, no entanto, usada pelas elites religiosas. Os britânicos, apesar de na Índia
não se falar o árabe como língua nativa, chegaram a usá-lo como língua oficial durante pouco tempo,
juntamente com o persa. Note-se, porém, que o ensino de língua ministrado a oficiais britânicos não
englobava só o árabe e o persa, mas também diversas línguas nativas do continente indiano, assim
como eram ensinados os códigos legais existentes, nomeadamente o islâmico e o hindu.
46 Por esta razão, esta versão geralmente é conhecida por manuscrito de Bagdade, e durante longo
tempo julgou-se ser autêntica.
47 Ibn BAṬṬūṬAH, Abū ʿAbdallāh Muḥammad ibn ʿAbdallāh al-Lawātī aṭ-Ṭanjī, Riḥlat ibn
Baṭṭūṭah al-musammāh Tuḥfat an-naẓẓār fī gharāʾib al-amṣār (sharaḥahu wa kataba
hawāmishahu Ṭalāl Ḥarb), Dār al-Kutub al-ʿilmīyah, Bayrūt, s. d.
48 Sobre o sentido dado à palavra azóia ao longo da presente tradução, ver nota 41, p. 227 (1.°
Vol.).
49 Cidade persa localizada entre Hamadan e Ray. Note-se que o nome do xeque, Assaui (as-Sāwī),
significa originário de Saveh (em árabe: Sāwah), levando a crer que o episódio narrado terá ocorrido
nessa cidade, de onde, provavelmente, o xeque seria natural ou na qual terá vivido antes de chegar a
Damieta.
50 Ibn KHALDŪN, op. cit.
51 Op. cit., final da III parte.
52 MARDRUS, J. C., Le livre des mille nuits et une nuit (Tome premier), Paris, Éditions de la
revue blanche, 1900.
53 Por exemplo, o título do monarca do Omã é sultão e não rei. Em Marrocos, até à sua
independência, o monarca também usava o título de sultão e não de rei.
54 Uma palavra derivada da mesma raiz (sulṭah) continua a ser usada com o sentido de
«autoridade»; por exemplo, «as-Sulṭah al-Filistīnīyah» significa «Autoridade Palestiniana».
55 No texto árabe: qāmū at-tlāt bnāt lahum não deixa margem de dúvidas que o verbo qāma é
usado com o sentido de levantar-se e não como verbo que marca o início de uma acção.
56 A respectiva tabela e regras para transliteração do árabe podem ser consultadas em
https://www.loc.gov/catdir/cpso/romanization/arabic.pdf (acedido em Junho de 2017).
57 Apesar do objectivo de um sistema de transliteração ser transliterar os caracteres como se
escrevem, independentemente da pronúncia, decidiu-se incorporar duas excepções para efeitos de
aproximação à pronúncia e uma respeitante a questões de maiúscula e minúsculas. Assim, a primeira
diz respeito às chamadas letras solares do alfabeto árabe; quando uma palavra árabe começa por uma
destas letras (t, th, d, dh, r, z, s, sh, ṣ, ḍ, ṭ, ẓ, l, n) e é antecedida pelo artigo definido al (que é neutro
relativamente a género e número), a letra l do artigo transforma-se, na pronúncia, mas não na escrita,
nessa mesma letra. Assim, ao contrário do estabelecido pela norma ALA-LC, grafou-se, por
exemplo, az-zayt em vez de al-zayt («o óleo», que em português deu «azeite»), az-zabīb em vez de
al-zabīb («a passa de uva», que em português deu «acepipe»), entre outros casos.
A segunda excepção diz respeito à letra n que, quando antecede a letra b, se pronúncia m, como
por exemplo como na palavra ʿambar, que segundo a norma ALA-LC se deveria grafar ʿanbar.
A terceira excepção prende-se com o hábito de se usar maiúsculas em nomes próprios a seguir à
letra ʿ (ʿayn), como por exemplo, em ʿAjīb. No entanto, como esta letra é para todos os efeitos uma
consoante, não faz sentido pôr a vogal que lhe sucede como maiúscula e, assim, por exemplo, grafou-
se ʿajīb em vez de ʿAjīb. Note-se que a norma ALA-LC não dispõe de nenhuma alternativa para
representar uma versão maiúscula desta letra, e que em árabe não existem maiúsculas e minúsculas.
58 A título de exemplo, pense-se no canal de televisão árabe chamado Aljazira (al-Jazīrah), que se
traduz por «A Península» (V. http://america.aljazeera.com/tools/ faq.html#3, acedido em 1/7/2017),
designando mais concretamente a península Arábica (E note-se ainda que o país onde este canal está
sediado, o Catar, é, ele mesmo, uma península). Hoje em dia, por vezes também se usa a expressão
shibh jazīrah, que literalmente significa «pseudo-ilha», para designar uma península.
59 Uma das excepções é a versão de Mardrus.
60 Ibn BAṬṬŪṬAH, op. cit.
61 Note-se ainda que, neste manuscrito, é Xariar, e não Xazamane, quem governa Samarcanda.
62 Note-se que logo no início d’As Mil e Uma Noites é dito que a acção do quadro principal com
as personagens Xerazade, Dinarzade, Xariar e Xazamane, se passa «durante a época dos Sassânidas»,
que foram a última dinastia a governar a Pérsia, de 224 até 651, antes do advento do Islão. Mas várias
histórias narradas por Xerazade referem muçulmanos, práticas rituais destes, e personagens históricos
bem posteriores aos Sassânidas, como o califa Harune Arraxide (reinou entre 786-809).
63 Tanto o português Aarão como o árabe Hārūn provêm do hebraico Aharon.
64 Uma grafia alternativa e corrente em outros manuscritos e versões para este nome é Duniazade
(Dunyāzād), que significa «a emancipada do mundo».
65 Entre outras possibilidades, também se poderia dissecar esta história e a presença dos negros ao
longo do texto pelo prisma de problemáticas raciais. Note-se também que as versões manuscritas
mais tardias, assim como as forjadas e as primeiras edições impressas, não esquecendo ainda algumas
«originalidades» introduzidas por vários tradutores, pautam-se por um racismo mais explícito e
evidente do que o dos manuscritos mais antigos. É provável que a exacerbação do racismo na
evolução histórica do texto d’As Noites se deva não só ao Orientalismo, mas também a um maior
distanciamento social entre escravos negros e árabes livres de baixa condição social que, segundo
algumas interpretações históricas, terão participado juntos na conhecida Rebelião dos Zanj em finais
do século ix contra o Califado Abássida. No entanto, a evolução histórica das relações raciais no
mundo árabe exige um estudo muito complexo e detalhado que está muito além do alcance deste
Preâmbulo.
66 Apesar das várias críticas tecidas ao longo deste Preâmbulo, é de notar que os estragos culturais
do Orientalismo em relação aos textos d’As Mil e Uma Noites são irrelevantes quando comparados
com os estragos políticos em territórios nelas descritos, bastando pensar, por exemplo, nas invasões
napoleónicas, ou no Acordo Sykes-Picot, ou na actual guerra que assola a Síria e arrasou várias das
cidades que aparecem nestas histórias, ceifando a vida dos seus habitantes e obrigando ao
deslocamento em massa de pessoas. Não sendo os únicos responsáveis, o contributo de várias
potências mundiais, que continuam a olhar «de cima» o mundo árabe, para o arrastamento da actual
situação parece difícil de descartar.
1 Thamud e Aad foram duas tribos árabes pré-islâmicas que pereceram devido a desastres naturais.
No Alcorão são referenciadas como um exemplo do castigo de Deus reservado aos povos que se
recusam a acreditar na unicidade divina, depois de Deus lhes ter enviado sinais e profetas.
2 Nenhum faraó é especificado, mas talvez haja um certo eco daquele que é referido várias vezes
no Alcorão e na Bíblia como sendo o faraó que perseguiu o povo de Israel no tempo de Moisés.
3 Vizir, wazīr em árabe, significa «ministro». Neste caso concreto, trata-se do vizir do rei (ou grão-
vizir), o cargo mais importante a seguir ao rei.
4 Saadeddine Massude são dois nomes próprios usuais em árabe, aqui usados de forma conjunta; o
primeiro pode ser traduzido por «Fortuna-da-Religião» e o segundo por «Afortunado.»
5 Tal como os génios, os ifrites são demónios que podem ser bons, ao serviço de Deus, ou
malignos, ao serviço de Satã, como também podem ser masculinos ou femininos. Neste último caso,
chamam-se ifritas. Em relação aos génios, caracterizam-se por serem mais fortes.
6 Paráfrase do Alcorão (12:28), reproduzindo uma fala de Potifar no contexto da história aí
relatada de José, Potifar e sua mulher Zuleikha.
7 Também conhecida por Festa do Sacrifício, é uma das festividades mais importantes do
calendário islâmico, e é celebrada em memória da disposição do profeta Ibrāhīm (Abraão) em
sacrificar um dos seus filhos conforme a vontade de Deus.
8 Moedas de ouro puro. Na época provavelmente seguir-se-ia o peso padrão de 4,25 g de ouro por
moeda, estabelecido durante o califado omíada. Hoje em dia esta denominação continua a ser
utilizada como nome da moeda nacional de vários países, tais como a Tunísia ou o Iraque. É uma
palavra cujo parentesco grego é partilhado com a palavra portuguesa «dinheiro».
9 Os manuscritos mais antigos não contêm a história do terceiro ancião, pelo facto de esta nunca
ter feito parte do conjunto original. No entanto, isso parece ter deixado os ouvintes e leitores d’As Mil
e Uma Noites insatisfeitos, e a partir de dada altura começou a aparecer nos manuscritos do ramo
egípcio a história do terceiro ancião. Uma vez que não se trata de uma lacuna do manuscrito aqui
seguido, esta história de formulação posterior não é aqui incluída, mas será publicada em apêndice no
segundo volume desta tradução.
10 Medida de volume de cereais cujo valor unitário sempre variou conforme a região e a época,
muito possivelmente entre um mínimo de 90 e um máximo de 280 litros. Ainda hoje esta unidade é
utilizada no Egipto, onde o seu valor unitário está estabelecido em cerca de 198 litros. Dois irdabbes
seriam provavelmente qualquer coisa entre 180 e 560 litros.
11 Em várias tradições mitológicas, Sakhr teria sido um ifrite que se recusou a obedecer ao rei
Salomão.
12 [Sic] Esta contradição é também reproduzida em outro manuscrito posterior da tradição síria.
No entanto, a maioria das outras versões manuscritas harmonizaram para mil e oitocentos anos, o
mesmo número que aparece na noite anterior, ou para um outro número ligeiramente superior. Porém,
a análise comparativa sugere a probabilidade de a hipotética versão matriz, que não sobreviveu até
aos dias de hoje, também enunciar na noite anterior oitocentos anos, e que a adição de mil anos tenha
sido inicialmente correcção de alguém com outros conhecimentos de cronologia, visto que o reino de
Salomão não poderia ter existido oitocentos anos antes. Note-se ainda que a soma total dos anos que
o ifrite enumera é setecentos, aos quais acrescem «mais todos estes anos», apesar de esta última
expressão não permitir qualquer quantificação precisa.
13 Zumane, caso não seja um nome fictício, estaria localizada possivelmente na Arménia ou no
Curdistão. O geógrafo Yaqut al-Hamawi, no seu «Dicionário de países e lugares» (c. 1224-28),
menciona que Zum seria uma região arménia próxima da cidade de Mossul. O mesmo geógrafo
refere-se ainda aos Zumane como uma facção de curdos que governava uma província. Note-se ainda
que Yaqut menciona a possibilidade de haver outro local com o mesmo nome no Hijaz, na península
Arábica. A esmagadora maioria das versões posteriores utiliza antes o nome «Rumane», que
literalmente significa «romanos», mas que neste contexto tanto pode designar o Império Bizantino
como a região islamizada da Anatólia turca (algumas versões grafam «Rummane», que significa
«romãzeira», mas trata-se provavelmente de uma gralha). Essa alteração posterior para «Rumane» é
possivelmente uma tentativa de fazer sentido com os nomes, visto que «al-Yunane» (note-se a
aposição do artigo definitivo árabe «al-») significa «Grécia», havendo aliás alguns tradutores que
preferiram traduzir rei Yunane por «rei grego» ou por «rei dos gregos que habitavam numa cidade
persa».
Tendo em conta que o manuscrito que seguimos, que é o mais antigo, é o único a usar «Zumane»,
seria então «Zumane» a forma original e mais antiga, ou seria antes uma singularidade do
manuscrito, quiçá um erro, que diferenciaria esta das outras versões correntes da época e que não
chegaram até nós?
Mais importante que o rigor geográfico, que não é de forma alguma uma característica d’As Mil e
Uma Noites, é o facto de os três nomes, Yunane, Zumane (ou Rumane) e Dubane, rimarem.
14 Do árabe mamlŪk, com o sentido literal de «posse, pertença», também traduzível por
«escravo». Os mamelucos eram uma força militar, composta originalmente por escravos originários
sobretudo do Cáucaso e da Anatólia. Os mamelucos ascenderam ao poder e tornaram-se os
governantes do chamado Império Mameluco com sede no Egipto entre meados do século XIII até
inícios do século XVI, e governaram ainda o Iraque entre os séculos xviii e xix.
15 A ghula é um ser demoníaco que se alimenta de carne humana. Do árabe ghŪlah, feminino de
ghŪl.
16 Alcorão 66:8.
17 Do árabe kuḥl, trata-se de um cosmético muito usado desde tempos imemoriais, sobretudo na
Ásia e em África, que serve sobretudo para delinear de cor negra as pestanas, sendo-lhe também
atribuídas propriedades medicinais.
18 O dirame era uma pequena moeda de prata que correspondia ao valor de uma fracção do dinar,
e o seu peso na época seria 2,97 g. Ainda hoje é a denominação da moeda oficial em Marrocos e nos
Emirados Árabes Unidos. É uma palavra que provém do dracma grego.
19 Ver nota 1, pág. 63.
20 Numa primeira leitura do texto árabe lê-se literalmente «toalhas de mesa em coiro mequense».
No entanto, a palavra no original que significa «mequense» ou «de Meca» (makkīyah) é,
provavelmente, erro de copista, reproduzido também no manuscrito da Biblioteca Apostólica
Vaticana, pois Meca não era nem é conhecida pelas suas toalhas de mesa em coiro, e haveria muitos
outros adjectivos que o narrador facilmente poderia ter escolhido para enaltecer a qualidade ou
proveniência das mesmas. A intenção do narrador talvez fosse mukabbabah, que em árabe facilmente
se confunde com makkīyah, e que significa «enrolada», e portanto a leitura seria «toalhas de mesa em
coiro enroladas». Mas muito mais provavelmente seria mikabbah, que designa um tipo de cone de
palha usado para proteger a comida, e então teríamos além das toalhas em coiro os referidos cones.
21 Trata-se da flor denominada anémona, mais concretamente da espécie Anemone coronaria, cujo
centro da flor, onde se localiza o gineceu, é quase negro.
22 Do árabe mawāliyā, é um género poético que consiste em poemas muito curtos, em árabe
padrão ou coloquial, e que apareceu inicialmente no Iraque no começo da época abássida.
Reza a lenda que eram cantados pelos escravos durante as suas viagens e durante o trabalho, e que
assim foram chamados porque no final de cada poema exclamavam: «Yā mawāliyā», expressão
traduzível por «Ó patrões meus». Outra lenda afirma ter sido uma escrava dos barmecidas (v. nota
54, pág. 297) de seu nome Mawāliyā que os inventou, e daí o nome. Ambas as lendas carecem de
fundamento histórico, e, como sugere Pierre Cachia no artigo da Encyclopédie de l’Islam (nouvelle
édition) referente a este género, possivelmente foram explicações construídas posteriormente para
explicar um nome cuja origem era desconhecida.
Mais tarde, a mawāliyā evoluiu para um género de poesia popular em árabe coloquial, e depois
para um género de música popular, em que os poemas eram cantados, geralmente a solo, e
acompanhados com instrumentos como a flauta de cana e o rebabe.
23 Nome árabe que se pode traduzir por «louvado» ou «louvável».
24 Nome árabe que significa «Afortunada».
25 As raquetas em questão seriam placas largas de madeira, sem rede, com uma pega, e com as
quais se batia numa bola. Este jogo de raquetas era usual na Pérsia, tal como o pólo, que já apareceu
anteriormente na história do rei Yunane de Zumane e do sábio Dubane, no entanto as suas regras
exactas não são muito conhecidas.
26 Montanha lendária que seria o ponto mais distante da Terra, muito para além do mundo
habitado.
27 Mago (majŪs, no texto árabe): palavra usada na época para designar os zoroastrianos.
Nazareno: palavra usada na época para designar os cristãos.
28 Uqīyah, no texto árabe, é uma unidade de peso, ainda hoje usada em alguns locais, que
corresponde a um duodécimo do arrátel árabe, e portanto equivalente
29 Muito possivelmente um poeta fictício, mas talvez a intenção do contador fosse fazer referência
a Abu Tammame, o famoso poeta do século ix.
30 Literalmente no texto árabe «muwashshaḤāt wa balālīq». A muwashshaḤah é um género
poético que partilha algumas semelhanças com as canções de amor e de amigo, com origens no
Levante e que esteve muito em voga na península Ibérica durante a época islâmica, com
características e especificidades próprias que podem ser consultadas na literatura especializada. As
balālīq são um género mais popular e basicamente equivalem às cantigas de escárnio e maldizer.
31 Literalmente no texto lê-se «o caravançarai do Pai-de-Macerur» (Khān AbŪ MasrŪr). Macerur
é um nome próprio corrente que em árabe significa contente, alegre, gaio. Em árabe, o prefixo «Pai-
de» também serve para formar uma alcunha (kunyah) que designa alguém em quem abundam as
características do significado do nome aposto, neste caso Macerur, e portanto não deve ser lido, neste
contexto, literalmente como Pai-de-Macerur.
32 Na realidade o texto original não utiliza dervixe (darwīsh em árabe, do persa darvīsh) mas sim
qarandalī, corruptela coloquial de qalandarī (plural em árabe: qalandarīyah). Os qalandaris são uma
ordem não organizada de dervixes sufis que fazem voto de pobreza e vivem como mendicantes,
partilhando determinadas concepções místicas específicas, e, conforme se refere no Preâmbulo da
presente tradução, eram conhecidos naquela época por raparem a cabeça, a barba e as sobrancelhas,
prática esta que não sobreviveu até aos dias de hoje. Terão surgido possivelmente no século xii, tendo
existido desde o al-Andaluz até ao Sul da Ásia. Hoje em dia são desconhecidos no mundo árabe,
mantendo-se activos sobretudo entre os muçulmanos do Sul da Ásia e da Ásia Central (sendo que
estes sufis normalmente adoptam o nome Qalandar como título aposto ao nome próprio). Optou-se
por usar «dervixe», não só porque a palavra já existe em português, mas também porque, no fundo,
qarandalī é usado no sentido lato de dervixe ao longo do texto, que refere explicitamente que estas
três personagens em concreto tinham a cabeça, a barba e as sobrancelhas rapadas (nada no texto
sugere que isso fosse uma característica conhecida dos qalandaris da época, e só pelo cruzamento de
outras fontes da mesma época, referidas no Preâmbulo, é que se infere tal juízo).
33 Faquir, do árabe faqīr, com o sentido literal de «pobre», designa o indivíduo asceta que, ou
sendo pobre de condição ou tendo abdicado das suas riquezas materiais, se dedica à vida religiosa,
vivendo de esmolas e da caridade. No fundo, esta palavra é praticamente sinónima de «dervixe»
(palavra de origem persa, tendo também nesta língua o sentido literal de «pobre»). Note-se ainda que
ao longo do texto esta palavra é traduzida por «faquir» unicamente quando empregue explicitamente
no sentido de asceta. Nas restantes ocorrências é traduzida por «pobre».
34 Trata-te do famoso carrasco ao serviço do califa Harune Arraxide.
35 Como em língua árabe não é costume anotarem-se as vogais curtas, a palavra maqām (local,
sítio) pode ser lida muqām (banquete, serviço de mesa de um festim). Nesta última acepção, teríamos
«um banquete tão bem composto e apetrechado» em vez de «num sítio tão elegante e tão bem
decorado».
36 Em todos os manuscritos, com excepção deste que seguimos e o da Biblioteca Apostólica
Vaticana, que são os mais antigos que se conhecem (sem contar com pequenos fragmentos), surge um
pequeno acrescento nesta parte, e que pode ser resumido assim: Uma das moças ofereceu um copo de
vinho ao califa, mas quando Jáfar explicou que o califa já havia feito sete vezes a peregrinação a
Meca, a moça desculpou-se e trouxe-lhe antes uma bebida aromática sem álcool.
37 Trata-se de um género de quadras populares surgido em Bagdade, que inicialmente consistia em
contos rimados que começavam pela expressão «Era uma vez» (Kān wā kān, literalmente «Havia e
havia»), tendo posteriormente incorporado também, como neste caso, canções amorosas, onde a
mencionada expressão já não aparecia.
38 A «Xâtibiya» (ash-Shāṭibīyah) é o nome pelo qual é conhecido um poema cujo título mais
formal é traduzível por «O santuário da aspiração às sete leituras e o começo da congratulação no seu
domínio». Nele se explica, ao longo dos seus 1173 versos, a forma correcta de recitar o Alcorão em
sete das dez leituras tradicionalmente reconhecidas. Por «leitura» entende-se uma forma distinta de
recitar, pontuar e vocalizar o texto árabe do Alcorão. Ainda hoje este poema continua a ser uma obra
de referência no estudo das leituras do Alcorão. Devido ao nome do seu autor, Abu Muhammad al-
Cácime ben-Firruh ax-Xâtibi (1143-1194), ficou conhecido por Xâtibiya. Por sua vez, Xâtibi é um
epíteto toponímico relativo à cidade de Xàtiva, localizada na província de Valência, actual Espanha,
onde o autor da referida obra nasceu.
39 Nome fictício e exótico, possivelmente construído para ter alguma sonoridade grega.
40 Em versões egípcias d’As Mil e Uma Noites, este ifrite chama-se Jirjis, descendente da tia
maternal do Diabo.
41 Do árabe az-zāwyah e podendo ser traduzido por azóia, o termo designa, neste contexto, uma
instituição de caridade com fins religiosos fundada por alguém (normalmente um mestre sufi) que
disponibiliza uma parte ou a totalidade da sua riqueza para que pessoas pobres nela possam aprender
o Alcorão e instruir-se nos ensinamentos islâmicos, sendo-lhes ainda dada guarida e comida. Pode
também ser entendida como o espaço físico onde o mestre sufi reúne os seus discípulos para os
instruir numa determinada prática religiosa e, após a sua morte, o lugar onde está a sua tumba. Na
actualidade, e sobretudo no Magrebe, muitas azóias são locais de visitação para pessoas que
acreditam nos poderes miraculosos do mestre sufi, mesmo após a sua morte. O padroeiro fundador de
uma azóia é referido, em árabe, pelo nome de walī, e os seus discípulos, na época eram chamados
faquires (ver nota 33, pág. 186). Note-se ainda que as azóias também serviam como estalagens para
viajantes e eram visitadas por pessoas ilustres e de todas as classes sociais.
42 Xeque (do árabe shaykh, com o significado literal de «ancião») é um título de respeito usado
em situações diversas, por razões que podem ser religiosas, sociais, políticas, ou pela idade da
pessoa. Neste caso concreto é usado em referência ao vizinho invejado, em razão da sua devoção
religiosa..
43 Trata-se de mil pesos de ouro. Um peso de ouro equivale a um dinar de ouro. Ver nota 8, pág.
97.
44 Ver nota 14, pág. 118.
45 Nome árabe traduzível por «Dama da Beleza» ou «Dona Beleza».
46 A tradução corrige o que aparenta ser uma contradição com o que já foi dito, pois no texto
original lê-se literalmente: «Deste jovem, que é filho do rei Ephetimarus, monarca da Ilha dos
Ébanos, e que foi encantado pelo ifrite filho da filha do Diabo, que o encantou em macaco depois de
haver morto a sua própria mulher, filha do rei».
47 Alcorão 19:17.
48 Ajibe, do árabe ʿajīb, significa «espantoso, maravilhoso, fabuloso». É um nome fictício,
invulgar, por ser raramente atribuído a pessoas reais. Como adjectivo é dos mais usados ao longo
d’As Mil e Uma Noites e da literatura fantástica árabe de tradição popular, sendo este mesmo
adjectivo usado para designar este género de «histórias espantosas» ou «maravilhosas» (ḥikāyāt
ʿajībah). Note-se ainda que a forma plural (ʿajāʾib) aparece numa das variantes mais longas com que
por vezes se designam As Mil e Uma Noites: ʿajāʾib wa gharāʾib ḥikayāt alf laylah wa laylah,
traduzível por As Espantosas e Estranhas Histórias d’As Mil e Uma Noites. O radical que forma este
nome é também usado no verbo «espantar-se», assaz usado ao longo deste texto.
49 Conhecida no Magrebe por smən, no Egipto por smana e em árabe-padrão por samn, é muito
semelhante à manteiga de garrafa usada no Nordeste brasileiro e ao gheen da Índia.
50 Alcorão 8:42 e 8:44.
51 Esta frase é aqui intercalada a partir de um manuscrito posterior e não consta no manuscrito
principal aqui seguido. Os manuscritos mais antigos não mencionam explicitamente a partida do
barco. Um manuscrito tardio do século XVIII (Ms. 207 da Christ Church Library), de onde se
intercalou esta frase, menciona ainda que antes do barco zarpar, o pai do rapaz acidentalmente
assassinado por Ajibe, filho de Khacibe, declama um longo poema de despedida, e em seguida «deu
um tal suspiro que a alma se lhe separou do corpo». Após grande pranto por parte dos escravos, o
barco parte, e Ajibe filho de Khacibe, sozinho na ilha, declama também um curto poema de
despedida. Pelo interesse que este trecho juntamente com os poemas possa suscitar, resolveu-se
traduzi-lo e publicá-lo no apêndice do segundo volume desta tradução.
52 Ver nota 27, pág. 160.
53 Alcorão 25:53. As duas massas de água são a água salgada e a água doce, que compõem a
hidrosfera terrestre.
54 Trata-se de Jáfar, o já referido vizir de Harune Arraxide. Os barmecidas foram uma família de
nobres persas de grande influência política durante o reinado dos califas abássidas, e à qual Jáfar
pertencia.
55 Interpretação de burak, plural de burkah, que literalmente significa «moagem» ou «salário do
moleiro», cuja paga geralmente equivale a uma parte do produto moído. No entanto, a mesma palavra
também se pode ler como bark, que significa «um grupo de camelos», geralmente ajoelhados, mas
esta interpretação seria demasiado forçada tendo em conta o vocabulário usado ao longo do texto
árabe, o facto de esta palavra ser usada em contextos muito específicos, geralmente na gíria e na
poesia dos poetas beduínos, e outras razões demasiado exaustivas para aqui serem analisadas. Note-
se ainda que talvez pela dificuldade em interpretar esta palavra, várias versões árabes manuscritas
posteriores substituíram-na por outras variantes de acepção mais óbvia, tais como por exemplo:
«roupas e criados»; «roupas e presentes (nomeadamente na forma de grandes quantias de dinheiro
e/ou de criados e/ou de equipagem doméstica)»; «cavalgaduras (nomeadamente camelos, mas
também qualquer animal que possa ser montado, tal como o cavalo, a mula ou o burro)», etc.
56 Ver nota 54, pág. 297.
57 Ver nota 50, pág. 259.
58 Nomes próprios árabes. Nureddine significa «A Luz da Religião». Ali significa «Alto, Elevado,
Excelente». Badreddine significa «A Lua Cheia da Religião». Haçane significa «O Belo» (ou «O
Bom»), havendo vários trocadilhos ao longo do texto entre o seu nome, Haçane, e o facto de ser belo.
59 Xamseddine significa «O Sol da Religião.» Muhammad significa «louvado, louvável», e, como
se sabe, é também o nome do profeta mais importante do Islão, seguido, em termos de importância,
por Jesus, Abraão e Moisés, entre outros da tradição abraâmica.
60 Este último verso é uma paráfrase da proclamação «Testemunho que não há nenhuma divindade
senão Ele [o Deus Único]», em que a palavra «divindade» foi substituída pela palavra «belo».
61 Huri, em árabe al-ḥŪr al-ʿīn (forma plural), literalmente «de olhos negros e belos», é a
expressão usada no Alcorão para designar as criaturas eternamente jovens e belas do Paraíso que
conviverão com os mortais que alcançarem a eterna recompensa, sendo muitas vezes erradamente
traduzida por «as virgens do Paraíso».
Apesar de esta expressão poder se aplicada, na sua forma plural, no masculino e no feminino, a
interpretação feita pelos vários comentaristas do Alcorão anteriores à redação d’As Mil e Uma Noites,
baseando-se na tradição dos ditos do profeta do Islão (Muhammad), considera que essas criaturas
seriam mulheres, tendo-se, no entanto, discutido, entre alguns comentaristas, se seriam criadas
integralmente no Paraíso ou se corresponderiam à forma que as mulheres da Terra ganhariam ao
alcançar o Paraíso e, neste último caso, todas se tornariam jovens e belas, mesmo que tivessem sido
consideradas velhas e feias na Terra. O que este passo tem de singular é o facto de aparentar estar em
jogo uma concepção de huris que não parece corresponder de forma alguma à das autoridades
religiosas da época, nomeadamente em questões de género, sendo tentador ver neste passo um indício
de que o Islão prático, como hoje ainda acontece, tinha concepções assaz divergentes das correntes
oficialmente estabelecidas.
62 Ver nota 45.
63 Depreende-se que o solidéu estaria agarrado ao turbante, mas é uma contradição óbvia com o
que já foi dito antes, nomeadamente que, tal como descrito na 83.a noite, Badreddine havia sido
levado de regresso para Damasco pelos ifrites, nu da cintura para baixo, tendo na cabeça o solidéu.
Mesmo que fosse uma gralha e que neste passo se devesse ler «turbante» em vez de «solidéu»,
continuaria em contradição com o que foi dito na 74.a noite, nomeadamente que Badreddine havia
cosido o tal rolinho de papel no solidéu, para nunca se separar dele, tal como o pai lhe havia pedido.
64 Ver nota 17, pág. 133.
65 Sobre o significado do nome, ver nota 48, pág. 249.
66 Trocadilho com o significado do nome Ajibe (ver nota 48, pág. 249).
67 Ver nota 66, pág. 362.
68 Ao longo do texto, a expressão walad az-zinā, literalmente «filho da fornicação» (fornicação no
sentido clássico do termo, isto é, relações fora do casamento), é sempre traduzida pelo seu
equivalente em português: «bastardo». No contexto e na época em que este livro foi produzido, o
termo «bastardo» era dos piores insultos, correspondendo a uma das mais baixas categorias sociais,
tal como acontecia também em todo o espaço mediterrânico, incluindo Portugal. No entanto, quando
nesta passagem é dito que Ajibe achou que Badreddine fosse um «bastardo», a palavra tem antes o
sentido de «depravado», seja de um ponto de vista social, moral ou sexual, não sendo por acaso que
anteriormente o eunuco o interpela «usando o mesmo jeito com que se dirigiria a um efeminado».
Note-se também que o facto de antigamente os bastardos serem marginalizados contribuía para que
se socorressem de actividades consideradas desviantes. Optou-se por «bastardo depravado» em vez
de apenas «depravado» – palavra que bastaria para traduzir o sentido desta passagem – de forma a
preservar também a ironia inerente ao facto de Ajibe ter sido ostracizado e expulso da escola por ser
considerado bastardo.
69 Leila refere-se aqui à mítica personagem da lenda árabe que relata o amor entre Majnune e
Leila. Majnune significa «louco, possuído» e a lenda é conhecida em árabe por MajnŪn Laylā, isto é,
«Louco por Leila», e terá começado a circular oralmente talvez a partir dos séculos viii-ix, e
consolidando-se na escrita a partir do século X, tanto por autores árabes como persas, e mais tarde
turcos, indianos e outros. Reza a lenda, numa das suas várias versões, que Majnune e Leila desde
tenra idade se apaixonaram, mas que ao crescerem foram impedidos pelas duas famílias de se
casarem. Entretanto, para evitar escândalos, a família de Leila casa-a com um homem muito rico, que
a levou consigo para longe. Majnune refugia-se no deserto, onde passa o tempo num estado de
loucura total, excepto quando fica lúcido para escrever poemas a Leila. Por sua vez, Leila vem a
morrer de desgosto não muito tempo depois de se casar.
A lenda tem muitas parecenças com a história de Romeu e Julieta, e a persona-gem de Majnune é
miticamente associada a diversos personagens semi-históricos, sendo o mais conhecido o poeta árabe
Qays al-Mulawwaḥ, que teria vivido na segunda metade do século VII, mas que vários historiadores
consideram ser uma personagem mítica, e que o cancioneiro reunido em seu nome é uma invenção
posterior. O cognome deste poeta é aliás MajnŪn Laylā, havendo ele escrito vários poemas dedicados
a uma mulher chamada Leila. A ele atribui a tradição popular a autoria do poema aqui incluso.
70 Apesar de eventualmente não ser muito explícito, a bebida em questão é sorvete, palavra que
traça a sua genealogia na língua árabe (sharbah, por via do persa sharbat, por via do turco şerbet, por
via do italiano sorbetto). Trata-se de uma bebida meio sólida, feita com gelo picado, sem produtos
lácteos ou ovos, ao qual se adicionam aromas, xarope açucarado e/ou puré de frutas. A palavra
oximel, uqsimā no texto árabe, é de origem grega, e designa aqui um xarope agridoce (pelo menos é
esse o sentido em grego), ou só doce, feito com mel e vinagre (ou outro ácido).
71 Alcorão 19:23.
Índice
Introdução
História do rei Xariar e de Xerazade filha do vizir
História do burro e do boi
História do mercador e de sua mulher
História do mercador e do génio
História do primeiro ancião
História do segundo ancião
História do pescador e do ifrite
História do rei Yunane de Zumane e do sábio Dubane
História do marido e do papagaio
História do filho do rei e da ghula
História do rei encantado
História do carregador e das três moças de Bagdade
História do primeiro dervixe
História do segundo dervixe
História do invejoso e do invejado
História do terceiro dervixe
História da primeira moça, dona da casa
História da segunda moça, a flagelada
História das três maçãs
História dos dois vizires, Nureddine Ali do Egipto e Badreddine Haçane de
Baçorá
Este livro foi publicado com o apoio dos leitores
através de um mecanismo de financiamento colectivo.
c) não se atingiu o valor: quem tiver feito um apoio recebe um e-mail para
decidir se quer receber o dinheiro de volta ou se
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