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TORNANDO NARRATIVAS QUEER,
HONRANDO VIDAS

Esperteza de Galinha

Quinn, de treze anos, uma garota cisgênero BIPOC (Negros, indígenas e pessoas de cor), sentou-se na
cadeira ao meu lado e pegou o pote de doces. Seus pais, Eric (um homem negro, hetero e cisgênero) e
Rachel (uma mulher branca, hetero, cisgênero), sentaram-se no sofá em frente a nós. Nós quatro tínhamos
nos encontrado algumas vezes antes, e a família sempre vinha preparada para falar sobre quaisquer
novos desenvolvimentos e desafios que eles estavam enfrentando desde que Quinn havia se assumido bi.
Eu gostei do humor deles e do afeto que expressaram um pelo outro, e eu apreciei especialmente o quão
ferozmente apoiadores e orgulhosos de Quinn, Rachel e Eric eram.

Eventualmente, a conversa chegou no tópico de, nas palavras de Quinn, "se assumir para mais
pessoas na escola". Enquanto Quinn falava, ouvi um refrão muito comum: "Só não sou corajosa o
suficiente para me assumi para eles." Muitas vezes eu tinha ouvido jovens e adultos se rebaixarem por
falta de coragem de se assumirem para certas pessoas. Claro, eu tinha perguntas.

"Quinn", perguntei, "que tipos de situações ou experiências você encontrou em sua vida que
exigiram coragem?"

“Bem, acho que coisas que parecem assustadoras. Como quando fiz o teste para o musical. Além
disso, quando disse ao meu professor no ano passado que ele estava errado sobre algo.”
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“OK, então coisas que parecem assustadoras requerem algum tipo de coragem ... Há algo em risco
nessas situações assustadoras - algo que importa para você?”

Quinn acenou com a cabeça. “Com o professor, tive medo de me meter em encrenca ou ele dizer
algo que me envergonhasse. Com o musical, eu realmente queria estar com meus amigos. Eu não queria
perdê-lo.”

Perguntei a Quinn se eu poderia verificar com seus pais sobre quando a viram ter coragem, e ela
concordou.

Eric e Rachel falaram sobre como eles viam Quinn como sendo “muito corajosa, mas não estúpida”.

“Por exemplo”, disse Rachel, “quando Quinn tinha cerca de oito anos, ela disse às suas três
melhores amigas que não brincaria mais com elas se continuassem fazendo comentários racistas sobre
a família somali que mora na rua ... Não tínhamos certeza, para sermos honestos de como essas
crianças ou seus pais reagiriam, e Quinn tinha literalmente crescido brincando com essas três meninas.
Elas eram próximas e ela sabia que poderia perdê-las, mas disse que estava tudo bem porque tinha
outros amigos que não eram maus. ”

Eric acrescentou: “Isso é o que queremos dizer com corajosa, mas não estúpida: era um risco, mas
ela entendeu o que estava em jogo e tinha um plano alternativo. Ela poderia acabar magoada e triste, mas
sabia que ficaria bem. ”

“Ok”, eu disse. "Então, ela tem coragem inteligente ou inteligência corajosa?"

"Ambas!" Quinn meio que gritou. Seus pais concordaram com a cabeça.

Eric disse: “Eu também acho que ela usou uma coragem inteligente quando se assumiu para nós. Foi
muito corajosa em se assumir para nós, mas espero que para ela não tenha sido estúpido. Quero dizer, ela
sabia que a apoiaríamos.”

Quinn acrescentou: “Não me senti corajosa em me assumir para vocês porque não era assustador.
Não pensei que algo de ruim fosse acontecer.”

Conversamos, por alguns minutos, sobre o que isso significava em termos de conexão, a confiança
entre eles, o quão bem Rachel e Eric estavam vivendo em sua missão como pais e a segurança que
Quinn experimentou com eles. Então, eu disse: “Se eu entendi corretamente, coisas que são
assustadoras, quando algo ruim pode acontecer, requerem coragem. Mas coisas que não são
assustadoras e quando algo ruim não pode acontecer - como se assumir para seus pais - não exigem
coragem. Estou acompanhando? ”

"Por muito pouco!" Quinn disse, então colocou um doce na boca.

"Obrigado por ter paciência comigo." Eu sorri. “Então, em relação a assumir para todos na escola,
como você avalia esta situação - é uma que requer coragem, ou não?”

"Totalmente. É realmente assustador”. Quinn disse seriamente.


"E você diria que está usando coragem inteligente ou inteligência corajosa, ou ambas, ou outra coisa?"
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Não sei ... não tenho coragem. Eu sou uma galinha. ”

“Quinn, coragem inteligente e inteligência corajosa significam que você sempre faz coisas que são

assustadoras e arriscadas? Quero dizer, como seria a coragem estúpida ou A estupidez corajosa? Espere,

talvez seja esperteza de galinha? "

Quinn fez uma pausa. Então riu e olhou para seus pais. "Eu não sei ... O que você quer dizer com

esperteza de galinha?"

“Bem, estou me perguntando algumas coisas. Em primeiro lugar, em geral, ter coragem e

inteligência significa que você sempre faz algo que é assustador? E, estou me perguntando se há algo

de inteligente em ser covarde como uma galinha, nesta situação específica. ”

"Talvez…?" Foi meio declaração, meio pergunta.

“OK, então, antes de dizer ao seu professor que ele estava errado, você avaliou a possibilidade de se

meter em encrenca e decidiu que valia a pena. Antes de fazer o teste, você pesou a possibilidade de não
estar no show e perder coisas com seus amigos. Quando você era pequena, decidiu que não aguentaria
mais ser melhor amiga daquelas três meninas se elas não acabassem com o racismo ... Será que entendi
direito, Quinn? "
"U-hum."

"Então, Quinn, o que está em jogo que você não está disposta a perder, ou o que está decidindo que

não deveria enfrentar, se você se assumir para todos na escola?"

“Bem, eu poderia levar uma surra ou provocação e todas as coisas que pessoas heterossexuais fazem

com pessoas queer. Eu vou para uma escola muito conservadora. ”

"Quinn, você está dizendo que não está disposta a ser espancada, provocada ou submetida a coisas

homofóbicas?"

"Eu não sou idiota!"

"Não, você não é. Na verdade, é isso que esperteza de galinha pode ser?"

"Sim, eu acho que sim!" Quinn riu.

"Quinn, se você está usando a esperteza da galinha para não apanhar e outras coisas, isso significa

que você valoriza sua segurança e dignidade?"

"Bem, sim. Eu faço. Eu nunca pensei nisso desse jeito."

"Tudo bem se eu fizer algumas perguntas aos seus pais?"

"Claro", disse Quinn.

Perguntei a Eric e Rachel se eles tinham outras histórias sobre Quinn cuidando de sua própria

segurança e dignidade. Eles ofereceram alguns exemplos, e eu perguntei se eles viam alguma conexão

entre a história de Quinn de se manter segura e como ela agora estava se protegendo na escola. Ambos

perceberam. "Em todos os exemplos" Rachel disse, "Quinn escolheu sua segurança ao invés do que

esperava para algum dia - mas outras pessoas ou circunstâncias tornavam isso muito perigoso para ela,

tanto física quanto emocionalmente."

Perguntei a Rachel: "Então, você viu, e agora vê, Quinn ficando longe do perigo?"
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Rachel acenou com a cabeça. Eric disse: “Totalmente”.

“Então, ela está se engajando em práticas de proteção?”

O rosto de Eric se abriu em um sorriso. Rachel disse: "Com certeza".

Eu me virei para Quinn. “Então, o que você acha do que seus pais disseram? Você está se engajando
em práticas de proteção? ”

A boca de Quinn abriu um pouco. Em seguida, as palavras "Sim, sim, estou!" pularam para fora.

Continuamos falando sobre como a esperteza da galinha, a inteligência corajosa e a coragem


inteligente eram todos tipos de práticas de proteção de Quinn. Quinn também identificou algumas outras
práticas que ela usava na escola e na comunidade, que envolviam amigos e familiares ajudando-a. Ela
apelidou essas pessoas de seu "time de proteção".

No final da conversa, Quinn decidiu que “Eu me assumi para as todas pessoas que eu queria, agora.
Não vou ganhar uma medalha se contar para todas as crianças aleatórias da escola.”

Todos concordamos que isso mostrou todos os tipos de inteligência e coragem - e que foi um
testemunho do respeito de Quinn por seu próprio valor.

Enquanto encerrávamos a sessão, Quinn puxou o telefone do bolso e começou a enviar mensagens de
texto rapidamente. Eric pediu a ela para guardar o telefone até eles saírem.

"Desculpe", disse Quinn. “Estou apenas enviando uma mensagem de texto para Sonny, Bree, Jessi e
André para dizer a eles que eles não são covardes - eles têm esperteza de galinha!”

De Narrativas Queer para Moldando Narrativas Queer


Quando uma garota queer de 13 anos (ou, na verdade, uma pessoa queer ou trans de
qualquer idade) impõe a identidade de "galinha" sobre si mesma, minha bússola de
paisagem discursiva aponta imediatamente para uma narrativa de se assumir
compulsória. Este discurso influente surge de vários modelos de desenvolvimento de
identidade1 que posicionam “sair do armário” como a conquista e ponto final (Tilsen,
2013), em que pessoas queer e trans emergem ostensivamente de uma trajetória de
desenvolvimento universalizada e são, então, inteiras e completas.

Essa narrativa se baseia, antes de mais nada, na noção individualista de um eu


essencial. De acordo com essa noção, existe um “eu autêntico” que se desenvolve
dentro das pessoas, e esse “eu” inclui seu gênero e sexualidade (embora, como
vimos, essas categorias sejam altamente instáveis). Também depende da
institucionalização da heterossexualidade e do cisgenerismo. Afinal, não haveria nada
para alguém desenvolver e para assumir se não definíssemos ser cis e hétero como
padrões - e se gênero e sexualidade não fossem categorias nas quais classificamos
as pessoas.
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Neste capítulo, apresento algumas críticas queer desse discurso generalizado. Eu


ofereço uma abordagem alternativa da terapia narrativa baseada na teoria queer para
trabalhar com essa importante questão. E eu critico outra narrativa prevalente (e
relacionada): a narrativa da perda parental. Tal como acontece com a narrativa de se
assumir, apresento formas alternativas de envolver as pessoas em torno da ideia de
“perder um filho2”, quando a criança sai do armário.

DICAS QUEER: TERAPIA NARRATIVA EM AÇÃO

Em minha conversa com Quinn e seus pais, eu fiz um grande trabalho de


desconstrução e muitas perguntas que criam significado. Gostaria que você lesse
essa vinheta novamente e identificasse algumas das práticas de terapia narrativa
que usei.

Aqui estão alguns exemplos:

• Ausente, mas implícito: Perguntei a Quinn sobre o que havia do outro lado do
medo que ela experimentou - isto é, o que importava para ela - quando ela
considerou se assumir para alguém. Isso abriu o caminho para a nossa
conversa sobre como proteger o que é importante para ela.
• Externalização: Eu externalizei a esperteza da galinha, a coragem inteligente, a
inteligência corajosa e as práticas de proteção, em vez de localizá-las
internamente, como características ou atributos de Quinn.

• Perspectivas Múltiplas: Busquei a opinião de Rachel e Eric. Isso forneceu não


apenas uma variedade de perspectivas, mas também uma história que nos
permitiu conectar a inteligência corajosa e a coragem inteligente de Quinn com
suas ações e decisões passadas.

Entrar ao invés de sair do armário


Em geral, terapeutas - queer e cis, heterossexuais e trans - são treinados para
encorajar a saída do armário. No entanto, nossa paixão cultural e profissional pelo ideal
individualista de "ser você mesmo" pode obscurecer as complexidades únicas que
cercam a saída e a permanência fora do armário de cada pessoa. Embora, essa
postura seja bem-intencionada, assumi-la é potencialmente problemático.

Para começar, a saída do armário compulsória pode funcionar como um padrão


que as pessoas se sintam obrigadas a respeitar. Isso muitas vezes semeia os
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sentimentos de fracasso, pois as pessoas se avaliam e sentem que não estão se


assumindo da “maneira certa”. Quinn foi pega em auto avaliação, porque ela sentia
que estava fracassando em relação ao padrão de ser totalmente assumida para todos.

Um segundo problema é a implicação de que não sair do armário representa


homofobia internalizada, é desonesto e carece de coragem - isto é, se uma pessoa
opta por não se assumir para todos, ela está quebrada ou é ruim de alguma forma.
Por exemplo, lembre-se da história de Cesar no Capítulo 2. Seus amigos americanos
brancos o acusaram de homofobia internalizada e de não ser honesto consigo mesmo.
Mesmo assim, eles ignoraram contextos culturais importantes que envolviam não
apenas a segurança física de Cesar, mas também a segurança de suas conexões
com a família. Esse era um padrão inadequado e mal aconselhado para sair do
armário. LaTrisha (do Capítulo 1) também enfrentou alegações de homofobia
internalizada, porque ela se posicionou contra rótulos e categorias de identidade.
Resumidamente, a saída compulsória do armário perpetua o fardo do individualismo e
a privatização dos problemas sociais ao colocar a responsabilidade de se assumir nas
pessoas, individualmente, enquanto ignora o contexto e a construção de significado
pessoal.
Discursos sobre honestidade em se assumir são especialmente problemáticos e
poderosos. Costumo ouvir as pessoas dizerem: “Não quero mentir sobre quem sou”.
Também ouço terapeutas dizerem que querem encorajar as pessoas a "serem
honestas sobre quem são". Claro, não estou defendendo a desonestidade ou a
mentira. Estou dizendo que o binário honesto / desonesto, como a maioria dos
binários, é limitador. Ele ignora o contexto e valoriza uma das duas posições
aceitáveis e reconhecidas (neste caso, honestidade) sobre a outra.
Para uma forma alternativa de abordar a noção de honestidade, podemos recorrer
às ideias de Foucault (1997) sobre o que ele denomina jogos de verdade. Foucault
define jogos de verdade como “um conjunto de regras pelas quais a verdade é
produzida” (p. 197). Segundo Foucault, a verdade é socialmente construída, produzida
e produtiva nas relações de poder. Quando participamos de jogos de verdade, nos
envolvemos em autos subjugação e autopoliciamento, que são indistinguíveis do
policiamento de identidade pelo domínio de discursos, instituições, sistemas,
estruturas e pessoas. O discurso compulsório de se assumir torna-se um jogo de
verdade quando o propósito principal ou único das pessoas de se assumir é uma
resposta a essa pressão para "ser honesta".
Quando exploro isso com clientes, pergunto sobre sua relação com a honestidade
e porque isso é algo que eles valorizam. Isso permite que honrem e aprofundem a
história de seu relacionamento com a honestidade. Eu também faço perguntas
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que situam sua experiência no discurso. Isso nos posiciona a considerar como
"fracassar na honestidade"3 também pode significar resistir a expectativas injustas ou
desonestas. Também pode significar ter sucesso na manutenção da dignidade, nas
práticas de proteção ou em qualquer outra coisa que importe.
Aqui estão alguns exemplos de perguntas que eu poderia fazer a um cliente
enquanto desconstruímos os discursos de honestidade:

• Você pode me contar sobre sua história com honestidade, e o que é importante
para você?
• Quem inspirou seu relacionamento com a honestidade?
• Quem mais pode contar histórias sobre seu relacionamento com a
honestidade? Pode haver situações em que haja algo além da honestidade ou
desonestidade envolvidas - onde existam algumas complexidades ou nuances?
Em que exemplos dessas situações você consegue pensar, seja por
experiência própria ou por experiência de outras pessoas?
• Você acha que todas as pessoas sempre respeitam as verdades dos outros?
Todo mundo sempre respeitou sua verdade?
• Considerando, o quanto você valoriza a honestidade, como decide quem
merece sua verdade e quem não merece?
• Qual pode ser a relação entre considerações de honestidade / desonestidade e
práticas de proteção?
• Pense novamente nas pessoas que você conhece que podem falar
honestamente sobre seu relacionamento. Que conselho você acha que eles lhe
dariam sobre sair do armário - e sobre a honestidade - em situações que você
considera inseguras?
• Se não se assumir em uma situação específica é desonesto, isso o torna um
mentiroso? Isso apaga todas as vezes em que você foi honesto?
• É justo ou válido considerar a si mesmo ou a outra pessoa como uma
“mentirosa”, caso opte por se envolver em práticas de proteção?
• Você acha que um mundo que pressupõe a cisgeneridade e a
heterossexualidade, é honesto em fazer essas suposições?
• Se a suposição de cisgeneridade e heterossexualidade não é honesta, então
como é que você e outras pessoas trans ou queer acabam tão desonestas
quanto mentirosas?

Histórias de ser mentiroso e / ou de falta de coragem colocam os problemas da

homofobia e transfobia diretamente sobre os ombros de pessoas queer e trans.


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As perguntas da lista acima, e outras semelhantes a elas, libertam as pessoas desse


fardo injusto, situando a questão de se assumir no discurso. Eles também desafiam
os binários de honesto / desonesto e corajoso / covarde, e os situam não como
qualidades essenciais de uma pessoa, mas como atos relacionais. Cada um desses
atos ocorre dentro do discurso e é influenciado por ele - bem como pela política e pela
ética do relacionamento específico envolvido.
Quais são as implicações para a sua prática terapêutica? Situando a honestidade
e a coragem no discurso - e entendendo-as como atividades relacionais, em vez de
características internas essenciais - estamos mais bem posicionados para ajudar as
pessoas a gerar histórias densas e contextualizadas. Para Quinn, entender o que ela
estava fazendo como “práticas de proteção” e “esperteza de galinha” (práticas que
tinham uma história e testemunhas apreciativas) a libertou da conclusão fina e
saturada de problemas a respeito de sua identidade, que concluia que lhe faltava
coragem. Essas práticas então se tornaram disponíveis para Quinn como habilidades
importantes que ela poderia usar novamente, como ela quisesse.
Quando as pessoas enredadas em jogos da verdade têm a chance de questionar
a ideia de “ser honesto”, muitas vezes contam histórias que envolvem práticas de
proteção e cuidado com os relacionamentos. Existem também outras práticas que
podem ajudar as pessoas a navegar pelas complexidades e contradições que
envolvem esse problema. Por exemplo, Randy - um homem cis, branco, gay, de uma
família cristã fundamentalista - disse para mim: “Nem todo mundo merece minha
verdade, porque eles vão distorcê-la para machucar a mim e aos outros”. O
pronunciamento de Randy é um comentário mais claro sobre a política da verdade
que eu já ouvi.
Embora reivindicar uma identidade queer possa ser enormemente poderosa e
libertadora para algumas pessoas, assumir “não é um esforço de oportunidades
iguais” (Tilsen & Nylund, 2010). Por exemplo, as consequências de assumir e ser
assumido são diferentes para mim sendo um profissional cisgênero mais velho, de
classe média, branco e morando nos Estados Unidos, do que para pessoas que
ocupam outros locais sociais - ou para pessoas com menos recursos financeiros,
estabilidade ou menos acesso a suporte e recursos. Esta é outra razão crítica para
adotar uma abordagem interseccional.
Dados os contextos de heteronormatividade, homonormatividade e

cisnormatividade, a visibilidade é inegavelmente importante para pessoas queer e

trans. Isso significa que, como terapeuta, você precisa reconciliar a tensão entre o

questionamento da teoria queer sobre as práticas de identidade obrigatórias


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(por exemplo, categorias fixas e a obrigatoriedade de “sair do armário”) e o poder


político pessoal e coletivo que as pessoas experimentam ao se assumir (Tilsen,
2013).
O teórico cultural Jack (anteriormente Judith) Halberstam (2005) questiona o
processo e a trajetória da narrativa do surgimento convencional e oferece uma postura
útil para esse dilema. Halberstam sugere que, ao invés de vir a ser um ponto final, é um
ponto de partida a partir do qual fazemos a pergunta, E agora? Outras questões
seguem naturalmente: De que forma sua identidade pode continuar a se desenvolver
ou emergir desse lugar? O que estar fora torna possível para você e para os outros?
Como você pode usar sua aparência para desafiar as restrições da normatividade?
Abraçar o “sair do armário” como uma prática coletiva que cultiva a comunidade, em
vez de uma tarefa individual a ser realizada, é uma maneira de repensar e reorganizar
nossa relação com o se assumir. Ao fazer isso, ajudamos a gerar, disponibilizar e
acolher uma abundância de histórias diferenciadas e situadas. Um ou mais deles
podem ser selecionados e vividos.
Conversas como essas sinalizam nosso reconhecimento tanto dos aspectos
construtivos quanto dos problemáticos de se assumir. Eles também nos ajudam a ter
conversas complexas e produtivas com nossos clientes sobre futuros significativos.
Podemos entender o surgimento como uma realidade política em um mundo
heteronormativo, homonormativo e cisnormativo, ao mesmo tempo em que
fomentamos a resistência às realidades opressivas que tornam o surgimento uma
necessidade percebida.
Em última análise, o que importa é que abordamos o ato de sair do armário com
uma curiosidade crítica; uma abertura para uma variedade de maneiras com as quais
as pessoas atribuem significado a isso; e recursos conceituais e de conversação que
questionam os efeitos de se assumir ou não assumir.

Q-DICAS: REFLETIR NA SAÍDA

Considere estas questões (com um parceiro de conversa ou sozinho)


sobre assumir:
• Como você pensou em se assumir?
• Qual é a sua posição junto dos clientes ao se assumirem?
• Como a interseccionalidade influencia seus pensamentos a respeito de se assumir?
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• Você acha que as pessoas heterossexuais e cis deveriam praticar a rotina de


se assumir?
• O que há de novo para você considerar? O que é desafiador? Que novas
possibilidades estão surgindo para você?

Como é tudo isso na sala de terapia? Além de ter conversas sobre práticas de
proteção e resistir a exigências desonestas de honestidade, tenho conversas sobre
convidando as pessoas para dentro (Beckett, 2007; Tilsen, 2013). Extrapolando sobre a
ideia de White (1997) de cada um de nós termos um clube da vida (em que
escolhemos quem convidamos para nossas vidas e quem merece uma associação de
alto status, com base em quanto valorizamos sua influência), faço perguntas como
estas:

• Quem você gostaria de convidar para sua vida, onde pode ser um anfitrião
cortês - em vez de sair para um mundo hostil que o trata como um estranho
indesejável?

• Como as pessoas se qualificam para uma associação de nível platina no clube


da sua vida? Uma associação de nível ouro? Uma prata? Um bronze?

• O que são desqualificadores - coisas que impedem as pessoas de serem


convidadas?

• O que as pessoas descobrirão quando você as convidar para dentro que


não está disponível para elas do lado fora?

• Que diferença você imagina (ou já experimentou) que convidar as pessoas


para entrar vai fazer, em comparação com quando você sai?

• Quem você pode ser quando seleciona a dedo as pessoas que convida para
entrar? Como isso se compara a quem você é quando se sente pressionado
a se assumir?

Mudar a conversa de “sair do armário” para convidar outras pessoas, coloca as


pessoas no comando de suas próprias histórias e processos. Ele também desfaz o
binário tudo ou nada, dentro do armário / fora do armário que é no mínimo implícito, e
muitas vezes explícito, na narrativa de saída convencional. Assim, criamos espaço para
as complexidades, nuances e contradições de relacionamento com que a maioria das
pessoas convive.
Criticar a narrativa de saída do armário obrigatória não implica que seja universal e
categoricamente errada. Para algumas pessoas, certamente, é
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NARRATIVAS QUEERING, HONRANDO VIDAS 107

útil e relevante. Meu propósito aqui não é desvalorizar completamente um discurso


dominante, mas criticá-lo - e lembrá-lo de que tal crítica torna visível o que foi
obscurecido pela própria dominação desse discurso. Em outras palavras, criticamos
os discursos influentes a fim de nos mantermos atentos aos pressupostos que os
sustentam - e para reconhecer que esses discursos não incluem ou se aplicam a
todos. Essa é uma maneira de ficarmos próximos das experiências de nossos clientes
- e evitar participar de jogos da verdade e outras práticas dominantes.

Q-TIPS: RESISTINDO AO BINÁRIO DE APOIO/


SEM APOIO
Com que frequência você diz (ou pensa) que alguém apoia ou não apoia uma
pessoa queer ou trans? É um binário fácil de cair, mas muito importante para
os terapeutas desvendá-lo. Se não o fizermos, corremos o risco de ignorar
nuances significativas - e perder oportunidades de nutrir relacionamentos
entre pessoas queer e trans e as pessoas importantes em suas vidas.
O suporte não é uma coisa do tipo tudo ou nada; quase sempre acontece em
graus. Existem várias maneiras de expressar apoio. Por exemplo, um pai pode
não entender ou apoiar o desejo de seu filho trans ou não binário por uma
cirurgia de afirmação de gênero, mas pode usar o nome escolhido pelo filho e
respeitar seus pronomes. Ou a irmã de um homem gay pode não estar disposta
a ir a um show gay drag com ele em um bar gay, mas ela pode recebê-lo e seu
namorado em sua casa.
Encontrar pontos de apoio - mesmo suporte imperfeito ou parcial - é
importante para iniciar conversas e mantê-las em andamento. Permitir que o
suporte ocorra em etapas, ou se desdobre ao longo do tempo, respeita a
complexidade do suporte, concentra-se nos relacionamentos e oferece uma
oportunidade para que as pessoas queer e trans experimentem uma maior
afirmação de pessoas importantes em suas vidas.

Diga adeus à narrativa da perda parental

Jen e Owen, ambos heterossexuais, cisgêneros e brancos, eram os pais de sua filha trans gênero-criativa

de cinco anos, CJ. Owen e Jen se encontraram comigo para falar sobre algumas questões que eles

estavam enfrentando em relação à criação de CJ


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108 NARRATIVAS QUEERING, HONRANDO VIDAS

Depois de nossas apresentações iniciais, perguntei se poderia “conhecer” CJ por meio de


algumas fotos ou vídeos que eles tinham em seus telefones. Jen me mostrou um vídeo de CJ
vestindo meia-calça roxa, uma longa camiseta de bolinhas e uma tiara com bijuterias. CJ estava
cantando a música do filme Frozen, pontuando as notas altas com gestos dramáticos de corpo inteiro.
"CJ adora teatro", disse Owen, rindo.
O casal contou como CJ, que foi designado homem ao nascer, disse a eles que ela era uma
menina quando começou a pré-escola um ano antes. Eles decidiram na época, como Jen disse, “dar
a ele algum espaço, não forçar nada”. Ela descreveu a tentativa de disponibilizar todos os tipos de
roupas e brinquedos para CJ, “de modo que as coisas dele não precisassem ter gênero”.
Owen acrescentou: “Queríamos que ele entendesse que não existe uma maneira certa de ser
menino e que ele poderia ser qualquer tipo de menino que quisesse, incluindo um menino que gosta e
faz o que algumas pessoas pensam que é coisa de menina."
“A questão é,” Jen disse, “CJ não é qualquer tipo de garoto. Ela é uma garota. E levamos quase
um ano para realmente acreditar nela. ”
Enquanto conversávamos, ficou claro que Jen e Owen estavam defendendo ferozmente CJ. Eles
estabeleceram expectativas claras com os membros da família sobre os pronomes e o nome de CJ.
(Eles estavam usando as iniciais de seu nome de batismo até CJ decidir que ela queria mudar seu
nome.) Eles se certificaram de os colegas de brincadeiras validassem o gênero feminino de CJ. Eles
se certificaram de que a escola de CJ apoiava as crianças trans-criativas em termos de gênero, tanto
em suas políticas, quanto em suas práticas. Ficou claro para mim que Owen e Jen eram tão
receptivos quanto possível às necessidades de sua filha. Eles também se conectaram com alguns
outros pais de crianças trans gênero-criativas para obter perspectiva e apoio.
No entanto, enquanto faziam o que precisavam fazer por CJ, Owen e Jen se viram lutando contra
alguns sentimentos conflitantes. “Nós absolutamente sabemos que estamos fazendo o que é melhor
para CJ”, disse Owen. (Jen acenou concordando.) “Mas às vezes um de nós, ou ambos, fica triste
com isso. Não se trata de preocupação ou medo sobre os desafios que ela enfrentará - isso é real e
algo para falar algum dia, com certeza. Isso é algo diferente do que isso. ”
Jen acrescentou: “Sim, é como se nós víssemos o quão absolutamente feliz ela está agora, e
como a machuca quando alguém erra o gênero dela. Parece uma coisa egoísta em que ambos nos
envolvemos. É uma espécie de decepção, como se tivéssemos perdido o filho que tínhamos ... ou
pensávamos que tínhamos. ”
Ambos explicaram que se sentiam mal por se sentirem mal. Eles queriam comemorar a felicidade
e a liberdade que CJ estava experimentando, mas não podiam. Owen disse: “Algumas pessoas,
incluindo meu próprio terapeuta, nos dizem que é natural nos sentirmos assim e que é uma perda que
precisamos sofrer. Mas Jen e eu vamos e voltamos nisso.”

O discurso que Owen nomeou - o discurso da perda dos pais -, recebe menos
atenção na literatura profissional do que o discurso de se assumir. Ainda assim,
influencia muitas pessoas queer e trans, muitos de seus pais e muitos de seus
terapeutas. Na verdade, quando faço treinamentos ou consultas, muitas vezes me
perguntam como lidar com a "dor e perda dos pais".
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NARRATIVAS QUEERING, HONRANDO VIDAS 109

Compreensivelmente, esse discurso parece ter muita importância para os


terapeutas. Bull e D'Arrigo-Patrick (2018) revisaram a literatura sobre terapia familiar
e chamaram a prevalência desse discurso de “impressionante” (p. 174). Uma revisão
um tanto paralela da literatura comercializada para os pais de crianças gays, lésbicas
e bissexuais (Martin, Hutson, Kazyak, & Scherrer, 2010) revela uma extensa história
de equiparar o assumir-se como queer “à morte de um ente querido” (Bull & D'Arrigo-
Patrick, 2018, p. 174).
Muitos livros de autoajuda tratam o surgimento da identidade queer de uma criança
como, na melhor das hipóteses, decepcionante para os pais e, muitas vezes, trágico.
Tanto a literatura profissional quanto a leiga citam os estágios de luto de Kubler-Ross
como uma estrutura para “superar” e “incorporar” a “perda” de uma criança que se
identifica como queer ou trans. Um estudo de famílias com um membro da família
transgênero usou o conceito de perda ambígua para explorar as reações das pessoas
ao ter alguém na família que se assume como trans (Norwood, 2012).
Bull e D'Arrigo-Patrick (2018) reconhecem que alguns pais experimentam
sentimentos de tristeza e perda quando seus filhos anunciam sua identidade gay ou
trans. No entanto, eles também sugerem que questionar a prevalência do discurso da
perda parental na literatura profissional (e os pressupostos que o embasam) é
necessário, para que os terapeutas possam evitar centrar esse discurso ou impô-lo aos
clientes.
A narrativa da perda parental assume a heterossexualidade e ser cisgênero como
padrões. Para ver isso com mais clareza, vamos voltar à minha conversa com Jen e
Owen. Durante nossa discussão, me esforcei para adotar uma abordagem ambos/e,
na qual honrei e validei seus sentimentos, e também fiz perguntas que os convidaram
a examinar de onde vinham esses sentimentos. É claro que esta é uma abordagem
estranha; é relacional, e não individual, de várias maneiras. Ele localiza sentimentos
no mundo social (ou seja, no discurso) em vez de vê-los como um estado interno.
Aborda a transição de gênero como uma experiência familiar que envolve todos os
membros e seus relacionamentos uns com os outros. Ele questiona as normas. E
desafia uma das vacas mais sagradas da terapia: o status exaltado dos sentimentos.

Aqui está como minha conversa com Owen e Jen continuou:

JULIE: Quando "parece uma perda", fico me perguntando o que está faltando, ou não
está mais presente em sua vida que é importante para você, que você
valoriza?

JEN: Acho que são as ideias que tive sobre quem é CJ, ou quem ela seria tornar-se.
A ideia de que CJ é um menino. Isso é o que se foi.
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110 NARRATIVAS QUEERING, HONRANDO VIDAS

OWEN: Quando você pergunta isso, eu acho, Bem, o que perdemos, na


verdade? CJ ainda é CJ, mas eu ainda sinto isso ...

JULIE: Sim, esse sentimento é forte. Ele mantém um controle sobre você?

OWEN: Sim, muito.

JULIE: Owen, Jen disse que é a ideia sobre CJ ser um menino é que está
perdida. Isso serve para você também? Há algo nessa ideia que se
perdeu, e é isso que o faz sentir isso?

OWEN: Sim, é como se você se organizasse em torno de algum sentido do


que significa ter um menino ou uma menina, mesmo quando você
tenta evitar toda a porcaria estereotipada de gênero, como fizemos.
Não queríamos todos os problemas que vêm com a ideia. Mas talvez
haja algo reconfortante na ideia de que o gênero do seu filho é o que
realmente é.

JULIE: Jen, vejo você balançando a cabeça. O que Owen falou que ressoa em
você? Você pode dizer o que está envolvido nessa ideia que parece
importante, e que fala sobre o que parece estar perdido?

JEN: É realmente uma ideia fundamental de ter um menino ou uma menina.


Mas não investimos em “coisas de garotos” ou “coisas de garotas”
tradicionais, então eu apenas nado no sentimento de tristeza, de
perda, mesmo que não faça sentido lógico.

JULIE: Sim, não faz sentido, dada a crítica que você faz do gênero, certo? E
todas as maneiras pelas quais você respondeu aos interesses e
inclinações expansivas de gênero de CJ falam de sua resistência a
essas normas. Mas a tristeza ainda está lá ... Estou entendendo?

JEN E OWEN: sim.

JULIE: OK, quero ter certeza de que entendi essa tristeza e como ela aparece,
embora você tenha sido tão intencional em evitar as convenções de
gênero. Parece muito doloroso. Eu gostaria de perguntar um pouco
mais sobre a ideia de ter um menino ou ter uma menina. Pode parecer
bobagem, mas estou realmente interessado em entender algo - de
onde vem essa ideia? Quer dizer, o que te preparou para ter essa
ideia fundamental, como disse Jen, de que você tinha um menino?

OWEN: Tola ou não, essa é uma boa pergunta ...

JEN: Sim, parece uma configuração. É tudo que somos levados a acreditar
sobre gênero ...

OWEN: Você sabe, a primeira pergunta é sempre: "É um menino ou uma


menina?" E as pessoas compram coisas com base no gênero...
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NARRATIVAS QUEER, HONRANDO VIDAS 111

EN: Sim, é como se as pessoas tivessem a ideia de que podem saber de algo sobre
uma pessoa, ou um bebê, por saber o sexo. E, claro, a suposição é que
podemos até saber o gênero sem que a pessoa tenha uma palavra a dizer
sobre isso.

JULIE: OK, então há todas essas coisas que fazemos culturalmente que nos
pressionam a identificar o gênero, além da suposição de que uma identidade de
gênero nos diz algo sobre a pessoa. Além disso, o sexo de alguém pode ser
conhecido independentemente de sua opinião sobre isso... Existem outras
suposições que contribuíram para esse cenário e para os sentimentos de
perda?

JEN: Bem, o mais óbvio: que é uma menina ou um menino com base em seu corpo, e
que continuará assim.

JULIE: Sim. Então, você quer dizer que é uma configuração para os pais assumirem
que o gênero é com base na anatomia? E que só existem meninos e meninas?

OWEN: Sim, eu sabia disso intelectualmente e sei que Jen também sabia, mas era
apenas uma ideia abstrata. Não estávamos preparados para a possibilidade de
que nosso filho fosse trans e criativo em relação ao gênero.

JULIE: Para o que vocês estavam preparados?

JEN: Estávamos preparados para ter um filho cisgênero que se conformasse com o que
presumimos que seu gênero era, de acordo com seu corpo.

JULIE: Como sua preparação para uma criança cisgênero e a falta de preparação para
uma criança trans, contribuiu para a tristeza e a perda que vocês estão
vivenciando?

JEN: Totalmente. Quer dizer, é isso.

OWEN: Sim, e é por isso que não parece certo sentir isso. Estamos perdendo uma
ideia que é falsa de qualquer maneira.

JEN: É falso e doloroso. Eu sei que dói C.J. pensar que estamos tristes ou sentindo
falta de algo quando ela está tão feliz.

Nessa conversa, você pode ver que tive o cuidado de entender e validar a experiência
de Jen e Owen, enquanto também fazia perguntas para desconstruir seus sentimentos.
Compreender os sentimentos de pesar e perda dos pais como produtos do discurso
(em vez de estados internos “naturais”) mostra compaixão pelos pais. Ao mesmo
tempo, situar a perda dentro do discurso dá aos pais espaço discursivo para ver que
sua experiência não é culpa deles. Isso ajuda a aliviar a culpa que alguns pais sentem.
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Os pais de pessoas ‘queer’ e ‘trans’ não pediram o binário de gênero, heteronormatividade
ou essencialismo de gênero, para moldar suas expectativas e experiências de paternidade.
Quando os pais veem a posição cultural do gênero como uma construção poderosa ̶ central
para o modo como organizamos as identidades ̶ que contribui para sua experiência de perda,
eles podem se posicionar em relação ao gênero de maneira que possam viver de acordo com
seus valores como pais.
Em meu trabalho com clientes, uma vez que a experiência da perda parental é
desconstruída, incentivo a descentralização do gênero (ou sexualidade, se for o caso) e o
desvinculo do que os pais amam em seus filhos. Gênero e sexualidade geralmente não são o
que os pais amam em seus filhos. Na verdade, quando pergunto aos pais o que eles prezam,
admiram, gostam ou amam em seus filhos, eles geralmente apontam para as ações,
realizações e maneiras de estar deles no mundo. Nunca ouvi um pai dizer: “Amo meu filho
porque ele é uma menina (ou um menino)” ou “Amamos nossos filhos porque eles são
heterossexuais”. Por meio de uma desconstrução posterior, podemos separar qualidades
pessoais de gênero ou identidades sexuais — e, no processo, revelar a influência do discurso
na construção dessas especificações.

Q-DICAS: DISCURSO DE PERDA DOS PAIS E A


DIFERENÇA ENTRE SEXUALIDADE E GÊNERO
Na verdade, existem dois discursos paralelos sobre a perda dos pais: um sobre a
sexualidade de uma criança (por quem ela se sente atraída) e outro sobre seu
gênero (como se definem e se descrevem, e o que sentem que são). É claro que
é possível ter que lidar com os dois discursos em relação à mesma criança.
Vejamos como esses dois discursos são semelhantes — e como eles divergem.
Ambos envolvem expectativas não atendidas estabelecidas por discursos
normativos: heteronormatividade quando a sexualidade de uma criança é
homossexual e cisnormatividade quando uma criança é transgênero. Como
terapeutas, podemos ajudar nossos clientes a desconstruir essas respostas e
expor as suposições de heteronormatividade ou cisnormatividade embrulhadas
dentro delas.
No entanto, os efeitos desses dois discursos normativos tendem a ser
bastante diferentes. Embora eu frequentemente ouça pais de pessoas queer
expressarem uma perda, nunca os ouço dizer: “Eu poderia lidar com isso se eles
fossem trans”. No entanto, muitas vezes ouço pais de pessoas trans dizerem:
“Isso é realmente difícil - eu poderia lidar com isso se eles fossem gays.” Isso
mostra a maneira como o gênero é visto como um atributo imutável e natural,
enquanto a sexualidade não o é. E quando algo que pensávamos ser mudanças
permanentes, é provável que experimentemos uma perda significativa. (Claro, a
teoria queer exige que questionemos os discursos que mostram histórias de

gênero como imutáveis.)


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Depois, há a fusão da anatomia com a identidade de gênero. Os pais
geralmente se concentram no que uma identidade transgênero significa em
termos do corpo de seus filhos. Como as pessoas trans e não binárias às
vezes mudam clinicamente seus corpos para que se sintam mais à vontade
com eles, os sentimentos de perda dos pais podem ser uma resposta a
uma reação instintiva à ideia de fazer mudanças físicas. As adaptações
corporais parecem mais “reais” em um mundo onde as questões corporais
são privilegiadas. Esse essencialismo de gênero, aliado ao poder cultural
do gênero como fundamental para a identidade, produz o contexto
discursivo perfeito para que os pais sintam uma perda significativa. Eles
sentem que a própria “essência” de seu filho está mudando — junto com,
talvez, o corpo que abriga essa essência.
Compare isso com os discursos essencialistas sobre orientação sexual
(por exemplo, nascer assim; explicações biológicas e genéticas; etc.).
Embora também sejam dominantes e amplamente aceitos e presumidos, os
pais podem não sentir uma perda tão grande quando seus filhos se revelam
homossexuais, já que isso não envolve uma modificação corporal.
Além disso, o sucesso da mensagem central do movimento
contemporâneo pelos direitos dos homossexuais — “Somos exatamente
como você” — turvou a diferença entre queers e heterossexuais. As
pessoas queer são agora muito mais amplamente aceitas pela cultura
dominante do que eram há apenas uma geração. Em 2021, no entanto,
as pessoas trans não receberam essa ampla aceitação. Assim, parte do
discurso da perda transparental inclui o sentimento de que a inclusão de
uma criança na cultura dominante foi perdida.

Por exemplo, Owen e Jen disseram que sempre admiraram a "confiança de C.J.
em sua força física e habilidades". Embora essas qualidades particulares sejam
tradicionalmente classificadas como masculinas, Jen e Owen rejeitaram essa
codificação sexista. Em vez disso, eles abraçaram a fisicalidade de C.J. como um
"reflexo de sua paixão pela vida e de se sentir bem em seu corpo". Conforme eles
identificaram as muitas outras coisas que amavam em C.J., eu os convidei a
compartilhar histórias sobre cada uma das qualidades de sua filha — as histórias e
possíveis habilidades e atributos futuros de C.J. — para que pudessem imbuir C.J. e
suas habilidades com significados diferentes daqueles organizados em torno do
gênero.
Outra prática que uso ao trabalhar com pais é entrevistá-los sobre sua missão como
pais. A Entrevista de Missão ajuda os pais a ter uma visão panorâmica de seus papeis,
concentrando-se em seus valores e aspirações como pais. Isso dá aos pais a
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oportunidade de reivindicar o que é importante para eles e de se reposicionarem na
resistência a ideias que não se alinham com seus próprios valores ou com suas
esperanças para os filhos.
Para Jen e Owen, a Entrevista da Missão (que fizemos em nosso segundo encontro)
permitiu que eles recuperassem sua prioridade de “cuidar de C.J. e promover sua
independência e felicidade”. Depois de nomear sua missão e identificar os princípios e
práticas que a sustentam, Owen e Jen passaram a ver a cisnormatividade do discurso
da perda parental como uma barreira para sua missão. Como disse Jen, “Apoiar e
celebrar a saúde e felicidade de C.J. está no centro de nossa missão. Qualquer coisa
que reforce a ‘cisidade’ tira sua alegria e não se alinha com a nossa Missão”. Isso
ajudou a libertá-los do sentimento de perda.
Abaixo estão alguns exemplos de perguntas que eu posso fazer em uma Entrevista
de Missão:

• Qual é a sua missão, propósito ou aspiração como pais (ou como único pai ou
única mãe)? Se vocês (ou você) fossem escrever uma declaração de missão,
qual seria?
• Qual é a história desta Missão? Quem a inspirou e como?
• Que experiências você teve em sua vida que ajudaram a moldar esta
Missão?
• Que valores e princípios informam esta Missão?
• Quais são as práticas em que você se engaja para dar vida a esses
valores e princípios?
• Como você saberá se cumpriu sua Missão?
• Quais são algumas das barreiras para viver em sua Missão?
• Como as convenções de gênero e sexualidade apoiam sua Missão? Como eles
frustram ou complicam isso?
• Quem os apoia em sua Missão de pais? Quem os ajuda a viver nisso quando
essas barreiras ficam no seu caminho?
• O que seu filho (ou filha) diria que foram alguns de seus maiores sucessos em
sua Missão de Pais?
• Que conselho eles dariam para vocês viverem melhor em sua Missão?
• Quando vocês estão realmente acertando em cheio em sua Missão, e criando
filhos de acordo com seus valores e princípios, o quanto as regras normativas de
gênero e sexualidade importam?
• O que você aconselharia aos pais de uma criança queer ou trans a fazer para se
manterem focados em sua Missão?

As entrevistas sobre sua Missão solidificam o compromisso dos pais com os filhos
e com suas identidades preferidas como pais.
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Às vezes, as perguntas que faço em uma entrevista para a Missão ajudam os pais
a expressar — e reivindicar — intenções e práticas que eles já centralizam em suas
vidas, mas podem ter perdido de vista na luta para dar sentido à sua experiência
acerca da sexualidade de seus filhos e identidade de gênero. Em outras ocasiões, as
perguntas evocam respostas que os pais dizem nunca ter sentido ou considerado
antes. Esta é a magia das palavras — o abracadabra de linguagem: a capacidade de
criar significados novos e relevantes que ajudem as pessoas a imaginar e viver
histórias que importam.

Narrativas ‘Queer’ e Narrando de modo ‘Queer’

Deixe-me dizer novamente: os discursos convencionais de assumir o controle e


perda dos pais podem ser significativos, legítimos e adequados para muitas
pessoas queer e trans e suas famílias. Mas eles não definem os limites de
legitimidade ou significado.

Como terapeuta, aceitar esses discursos sem questionar coloca você em risco
de impor narrativas inúteis e possivelmente prejudiciais às pessoas. Também o
impede de revelar nuances importantes que dão sentido à vida das pessoas.

Narrativas queer envolvem questionar os pressupostos anteriormente não


questionados e os discursos que eles defendem. Também envolve ajudar as pessoas
a narrar suas vidas de maneira que não apenas resistem às convenções, mas honra
essa falta de convenção, em todas as suas contradições e complexidades.

Notas

1
O surgimento, aceitação e integração de uma identidade gay, lésbica,
bissexual ou transgênero é conhecido como desenvolvimento de
identidade (Coleman, 1981-1982), formação de identidade (Cass, 1984),
aquisição de identidade (Troiden, 1979), ou trajetórias de
desenvolvimento diferenciado ( Savin-Williams, 1998; Savin-Williams &
Diamond, 1997), dependendo do modelo utilizado.

2 Eu uso “criança” e “crianças” para definir um relacionamento, não para


distinguir idade. Em outras palavras, meu uso de criança/crianças inclui
adultos queer e trans no relacionamento com seus pais.

3 Aqui eu me baseio na ideia de Halberstam (2011) de arte queer do


fracasso. “Fracassar” em fazer algo que é inútil, sem sentido ou
problemático é na verdade uma arte, dada a pressão para fazer ou
concluí-la.

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