ao céu violáceo do pôr-do-sol. O vento contorcia-se sobre o mar, criando padrões quase mosaicos sobre a água. As ondas se voltavam à praia com uma força considerável, molhando os pés sujos de areia de um homem que, parado, observava o vazio azul do oceano. O rugir da tempestade ao longe transpassava seus ouvidos, e sua íris refletia aquela força indomável. Firmou os pés descalços, passo a passo na areia molhada, a água consumia-o cada vez mais. Passou de seus tornozelos. Encharcou toda a barra de sua calça. Tomou toda sua perna, abraçando seu quadril. Não hesitava nem em um momento. Caminhou, sem mergulhar ou nadar, até que o último fio de cabelo sumisse no desconhecido. Sombras o acompanharam, pousando sobre as deformações das águas, dançando com as ondas, até sumirem em meio a névoa que chegava junto à tempestade.
– Ei, mano, acorda! – gritou uma criança subindo
as escadas rapidamente. – Que foi? – reclamou o irmão mais velho que se contorcia fugindo do sono. – O moço do jornal acabou de falar que acharam um corpo morto na praia aqui da cidade!! – Do que você tá falando, Hiroshi? – É, mano, acharam um morto na praia. – Mas o que aconteceu com ele? – Morreu, ué… O irmão encarou-o com profunda decepção, suspirando fundo, enquanto alongava-se. – Morreu de que, imbecil? – Não sei, só falaram que encontraram um corpo todo retalhado que veio com a maré durante a noite. – Deve ter sido algum pescador que acabou sendo atacado por uns peixes famintos… Agora vê se larga de ver esses programas estranhos que a mãe já tinha te proibido. – Ah, mas é que passou nos negócios de urgente lá. – Tá bom, Hiroshi, só vai fazer alguma coisa e deixa isso de lado. Você é muito novo pra ficar vendo essas coisas. Hajime levantou-se com cuidado, ainda um pouco sonolento. Vestiu as sandálias e desceu para a cozinha, ainda com o cabelo e as roupas desarrumados. Hiroshi sentava-se na sala ao lado, assistindo desenhos na TV de tubo da família. – Mãe, a gente não ia ver pra comprar uma televisão nova? – questionou Hajime. – Seu pai acabou gastando o dinheiro que tinha guardado para consertar o barco, lembra? – Ainda não sei o que anda acontecendo com o mar nos últimos tempos. Meu professor disse que a maré ainda tende a subir mais. A mãe pareceu surpresa, colocando a mão sobre a boca e arregalando os olhos. – Ainda mais? – Sim, ele andou recuando muito nos últimos dias, agora deve voltar com força total. – Oh, por Deus, que será de nós se continuar assim? – Não precisa de tanta preocupação, mãe… – abraçou-a com cuidado, havia crescido já se parecia com o pai, alguns pelos de barba surgiam no seu rosto. – Viu o que o Hiro falou que encontraram na praia hoje de manhã? – Eu tentei ouvir, mas ele saiu te gritando e nem consegui prestar muita atenção. Mas que tragédia, gente, não tem mais nenhuma notícia boa. – A senhora que só dá atenção às notícias ruins, aí depois fica conversando com meus tios sobre. – disse, pegando uma torrada que a mãe preparara. – Já vou indo, marquei de sair com uns amigos hoje, volto até às seis. Antes que Hajime pudesse virar as costas, a mãe perguntou: – Não vai se arrumar pra sair não? – Ih, é mesmo. Um minuto, já desço. Correu pelas escadas de madeira, entrou no quarto e começou a buscar por uma roupa apropriada. Pegou uma camisa social cinza, uma calça harem preta e um haroi com uma estampa semelhante à famosa gravura “A Grande Onda de Kanagawa”. Prendeu os longos cabelos lisos que começavam a alcançar seu ombro. “Tenho que cortar isso logo” pensou consigo mesmo, mas logo desceu, sem preocupar-se muito mais. Correu até a porta, onde deixou seus calçados e logo de saída, calçou um par de tênis. – Eu vou indo, se cuidem, daqui a pouco tô de volta. – Toma cuidado, e não vai pra perto do mar ouviu, meu querido? – Tá bom, mãe, vou tomar cuidado sim. – E não chega perto da água, tá? Antes que recebesse a respostas, Hajime já havia saído, em passos rápidos, pela rua onde moravam. As ruas simples, sem aquele neon ou aqueles gigantes prédios e painéis de LED, faziam com que aquela pequena cidade não aparentasse existir no mesmo Japão que a grande Tóquio. Alguns poucos carros em modelos orientais estavam estacionados pela rua. Hajime conhecia aquela região como a palma de sua mão, não só seu bairro, mas quase toda a cidade. Era pequena, não devia chegar a 90 mil habitantes. Descendo em direção ao porto, pôde ver uma aglomeração próxima a praia. A área estava isolada pela polícia. A faixa amarela circulava uma região de uns 15 metros. Parou, colocando as mãos sobre a cerca de madeira que separava a calçada da faixa de areia da orla. Esticou-se para ver algo, mas a multidão o impedia. – Ei, Hajime, aqui! – gritou uma voz ao longe. Um de seus amigos abanava os braços, enquanto subia na cerca que protegia o mirante. Vestia roupas leves, uma calça simples, uma sandália e uma regata. Havia raspado o cabelo em um corte militar, mas os pequenos fios ainda mantinham-se descoloridos. O garoto caminhou na direção dos amigos, intrigado com o mar, que agora estava calmo como monge, parecia repousar sobre a terra. – Desce daí, Tatsuo, larga de ser idiota. – respondeu Hajime. – Um dia tu ainda cai desse lugar e não vai ter ninguém pra pular e te buscar não. – riu-se em tom de piada. – Ah, só porque sou eu, né? Tu tem sua namoradinha pra te salvar, né, “Haa-chan”? – gargalhou o garoto, pulando para trás, voltando ao chão. – Larga de ser idiota, Tatsuo. Sentado sobre as pedras, que circulavam o mirante, estava Kotaro. Era o mais padrão de todos, não havia nada que o diferencia-se de qualquer outro garoto japonês estereotipado. Cobria seu rosto com uma máscara descartável, mas era visível pelos seus olhos, que estava fascinado pelo mar, enquanto o representava em uma ilustração. – O que estão fazendo? – perguntou Hajime. – A gente só tava esperando essa confusão acabar aí na praia. Eu queria dar uma esticada nas pernas, mas o Kotaro decidiu que ia desenhar essa paisagem… – De novo? – Sabe como é, ele não se cansa disso. – O oceano é o único capaz de gerar esse sentimento. E está cada dia diferente, tão simples e babélico, que muitas vezes é uma poesia sem palavras. – respondeu riscando seu caderno com muita calma. – Toda vez que você abre a boca eu me sinto analfabeto, você sabia, né? – Você é analfabeto, Tatsuo. – Eu completei o fundamental 1, viu? – Tô sabendo… Hajime repousou os braços sobre o parapeito, observando o que ocorria na praia. A multidão se dispersava, conforme a polícia não encontrava nenhuma pista e também partia viagem. Por alguns instantes, podia jurar ter visto sombras flutuando sobre a água. Mas antes que pudesse compreender, tudo voltou ao normal. O oceano ainda estava imóvel, não se sentia nem mesmo vento, nem enxergava tempestades ao longe. – Meu professor disse que o mar ainda vai subir mais. Talvez logo engula toda a faixa de areia. Já está tão pequena coitada… Tatsuo acendia um cigarro, sentado sobre o mesmo parapeito. Soltou aquela fumaça escura de sua boca e esperou que ela dispersasse no ar, antes de olhar para o lado, com a cabeça tombada. – A cidade está condenada… – disse antes de dar outra tragada. – Não fala assim também, idiota… – Ele não está mentindo tanto. – comenta Kotaro, tornando a pular a cerca, saindo da área das pedras. – O oceano sempre assola o Japão. Um dia ele vai voltar para se alimentar mais um pouco. – Não é assim que as coisas funcionam. Os tsunamis que trouxeram grandes catástrofes só rolam depois de terremotos. E tem um gigantesco total de 0 previsões sobre isso. – Não é o que as ondas dizem. – Kotaro fechou seu caderno e pôs se a frente, parando no início da calçada. – Hoje tá literalmente sem nenhuma onda, parem de ser estranhos! – exclamou. – Tá com medo, né? – gargalhou, batendo as cinzas para a água. – Não precisa se tremer todo não. – Não, eu só estou usando a lógica, cacete. O grupo afastou-se do mirante, caminhando rente a orla. Alguns pareciam olhar para eles, era um estilo não muito comum para uma cidade tão pequena. Tatsuo caminhava com as mãos no bolso, quase chutando o ar. Olhava sorridente para o mundo a sua volta, enquanto fumava seu cigarro. Kotaro parecia um pouco incomodado. Possuía unhas roídas, com algumas poucas feridas. Havia guardado seu caderno em uma pequena mochila que sempre carregava nas costas. No pescoço, uma pequena câmera fotográfica. Hajime olhava o oceano, buscando sentir a brisa que normalmente pairava sobre aquele lugar. Sem resultado. Um silêncio se mantinha entre eles. Não era constrangedor, pareciam simplesmente viver aquele momento. – Já falei pra vocês que tô pensando em me mudar, né? – Tu ainda tá com isso na cabeça, cara? – respondeu Hajime. – Não tenho o que fazer aqui, lá na capital tenho mais chance de arrumar um trampo bom. – Realmente, se você não acabar entrando pra máfia, tem chance de dar certo sim… – Porra, Kotaro. – disse, indignado, atirando o cigarro no chão e apagando-o com a ponta do pé. – Já disse pra vocês que não vou seguir o caminho do meu pai. Hajime cutucou Kotaro com o cotovelo, de maneira sorrateira. Sabiam que esse era um tema complicado para seu amigo, ainda era uma ferida aberta. Continuaram caminhando, tendo o silêncio interrompido por diálogos curtos e simplórios. Ao longe via-se o pequeno porto tornando-se cada vez maior, mais próximo. Era um único piér, com cerca de dois pequenos barcos parados. Sentaram-se na beira do local. As colunas de madeiras tinham algumas marcas, como uma grande régua que a prefeitura havia feito meses antes. A madeira estava infiltrada até a oitava marcação, mas a água, com a baixa da maré, tinha se aproximado da quinta, mesmo que a passasse por pouco. O sol já se punha a iniciar sua queda. Na distância, as ondas ressurgiram, pouco a pouco, junto dos pesqueiros em alto mar. Mesmo que a água no local fosse clara, era impossível enxergar o fundo quando se afastava por alguns metros do litoral. A vacuidade índigo que se encontra na linha tênue entre o pavor e o fascínio. Assuntos iam e vinham. Vazios, inconcretos. Comentavam sobre o passado, relacionamentos, projetos. Muito também vinha sobre o futuro e suas incertezas, afinal era o último ano deles ali, cada um deveria seguir seu caminho. Mas sempre, a todo momento, como em uma espiral frenética, o ponto central se tornava o pélago. O som daquele colosso d’água começava a ressoar em seus ouvidos harmonicamente. Tatsuo arremessou uma pedra que saltou algumas poucas vezes até desaparecer. As pequenas vibrações circulares na água se encontravam, em uma bela dança. – Acho que já vou indo. Combinei com minha mãe que ia chegar lá antes das seis, se atrasar amanhã já não tem mais eu. – Sua mãe não gosta muito que você anda com a gente, né? – Ela não liga mais tanto, acho que já se acostumou, meu pai que ainda enche o saco… – Não vai esquecer que a gente tem aula amanhã, Hajime. – lembrou Kotaro. – Você sabe que eu não vou. Já me viu faltando alguma vez? – Então não vai esquecer que tem que se matricular nas eletivas. O rapaz concordou, com a face de quem já sabia completamente dessa informação. – Vocês vão estar livres à tarde, né? – olhou em seus olhos. – Qualquer coisa vou estar aqui na praia de novo. A noite já era alta, quando a campainha tocou. – Hajime, atende lá que estou tomando banho! – gritou sua mãe. Desceu as escadas com calma e abriu a porta. Era seu pai, segurando um saco de peixes, com as roupas sujas e um pouco molhadas. Não trocaram uma palavra sequer. O homem deixou a sacola sobre o balcão e subiu as escadas, cansado. A mãe saia do banheiro, enquanto ele pegava as suas coisas para entrar. Hajime abriu o freezer, mas ao pegar a sacola, acabou por rasgá-la. Eles caíram no chão, junto ao sangue que molhou seus pés. O cheiro espalhou-se rapidamente pelo local, assim como o som que ecoou pela casa. Eram alguns quilos de carne e escamas indo ao solo. – O que que caiu aí? – gritou a mulher. Manteve-se em silêncio. Não sabia o que dizer. Não só pelo acidente, mas pela visão que tinha. Os peixes estavam multilados. Talvez mais um pouco do que o normal. Eram diversos cortes, profundos, que alcançavam as vértebras do animal. Alguns, sem pedaços, pareciam ter sido mordidos por uma criatura muito maior. Talvez um tubarão ou um grande peixe. A mãe parou na escada, perplexa com a bagunça que estava na cozinha. Desceu, enquanto dizia que ele iria limpar aquela confusão. Um a um, os animais foram retirados da poça de sangue, lavados e colocados dentro do freezer. Separaram alguns, que seriam preparados para o jantar do próximo dia. Hajime pegou um pano para limpar o sangue que escorreu, já que a mãe pedira. Caminhou até o local onde guardavam produtos de limpeza, sem sapatos, já que os seus estavam sujos. Entrou por uma porta estreita em um pequeno quarto, que ficava quase escondido na base da escada. Teve de abaixar para entrar, como sempre fizera. A luz era fraca, iluminava o mínimo para ver o que era pego. Em uma das estantes, estava uma fotografia do pai na embarcação da família, juntamente do garoto que, ainda mais novo, tentava pescar. Junto estavam alguns produtos de limpeza e algumas ferramentas. Pegou o que precisava e partiu para limpar o sangue. Voltou à cozinha, vazia como antes. Começou a secá-lo com um pano, mas logo reparou que um padrão estranho de ondas parecia surgir. Era como uma vista ao mar, porém carmesim. Um arrepio subiu sua espinha, fazendo com que escorregasse, sujando a roupa. Ao olhar novamente, estava tudo normal, parado. Pensou se tratar apenas de uma alucinação. Preferiu ignorar aquilo e seguir a limpeza. Ao terminar, foi se banhar e dormir. O sol já estava em pé, iluminando o dia. Hajime acabara de comer seu café da manhã e saia pela porta da frente da casa, indo de encontro à sua bicicleta, que ficava estacionada em um corredor lateral. Despediu-se e partiu caminho à escola. Viu uma multidão se formando novamente na praia, mas já estava atrasado e decidiu partir. Alguns quarteirões foram pedalados até que chegasse na escola. Não era muito grande, muito menos luxuosa, mas tinha certa qualidade no ensino. Guardou a bicicleta em um canto, arrumou o uniforme e caminhou até a porta de entrada. Diversos alunos passeavam pelos corredores, conversando, enquanto o sinal não havia sido acionado. Outros arrumavam seus armários ou organizavam as salas de estudo para mais tarde. Eram muitos sons, que se mesclavam em uma voz monocromática, sem vida ou emoções claras, absolutas. Mas em meio a isso tudo, o balbuciar de algumas palavras ressoaram como eco para Hajime. “Já viu pra entrar no clube de basebol, lá?” conversava uma voz distante. Lembrou das palavras de seu amigo no dia anterior e correu, em toda velocidade, para a sala da coordenação. Desviava dos alunos, tal como Neo de Matrix (Em uma versão escolar estranha). Abriu a porta, olhando para o coordenador de cabeça baixa, erguendo seus olhos. Com as mãos nos joelhos, disse: – Senhor Hanabira, me diga que ainda tem vagas pro clube de jornalismo, por favor… – Resolvendo isso de última hora de novo, Hajime? – olhou para ele com um sorriso repreensivo. Era um estrangeiro, provavelmente americano, mas possuía traços orientais. O garoto não sabia exatamente sua história, mesmo que, em uma frequência consideravelmente alta, fosse parar em sua sala para conversar. – Eu fico muito ocupado durante as férias, sabe como é… – Mas, sim, Hajime, o clube ainda tem vagas, mas ele acabou por se juntar com o de fotografia. – Fala sério, aí é uma sacanagem sem limites, Senhor… – A sala deles teve de ser usada para outro projeto, senhor Hajime, agora vá se arrumar que a aula deve começar logo. – Claro! – respondeu retirando-se rapidamente, mas ainda apoiado na moldura da porta, continuou. – Você sabe que é meu funcionário favorito, né, Hanabira Sensei. O homem sorriu, enquanto arrumava sua sala. Suspirou contente, balançando a cabeça, aproximando sua mão de uma caneta. O jovem voltava a correr, agora em direção ao seu armário. As cabeças, os movimentos, tudo parecia padronizado, seus olhos percorreram a sua volta, e em um calafrio congelante, viu-se paralisado. Um alto ribombo balançou seus tímpanos, como se todos os ruídos se tornassem um. Sua visão, turva, descortinava um oceano de figuras disformes. – Você tá bem? – uma voz perguntou, perfurando o estrépito. Um toque em seu ombro acompanhou-a, fazendo com que despertasse. A visão se apagou, e, ao retornar, não havia mais aquele mar. Mais uma alucinação. Limpou os olhos antes de olhar para trás, as mãos estavam trêmulas, parecia começar a suar. Olhando para trás, viu uma garota de cabelos pretos curtos que passavam por trás de suas orelhas. Uma franja escorria por sua testa, quase cobrindo suas sobrancelhas. – Me ouviu, Hajime? – perguntou. – Tá bem? – Ah, Ayaka, desculpa, acho que minha pressão caiu… Ainda pressionava um pouco os olhos com uma mão, puxando-a junto da bochecha, enquanto um zumbido coçava seus ouvidos. – Mas eu estou bem sim. O sinal interrompe a conversa, cruzando os corredores em um eco quase eterno. Todos outros ruídos calaram-se, o que sobraram foram os sons dos passos no assoalho. De um lado para o outro, os alunos iam caminhos às salas. Hajime e Ayaka seguiram, em passos quase sincronizados. Primeiro, pegaram as coisas, às pressas no armário do jovem, e logo partiram por alguns lances de escadas até a sala. Ambos iam com conversas baixas, desaparecendo entre a multidão de adolescentes, quase iguais, padronizados em uniformes e penteados. O rapaz carregava o caderno de História nas mãos, algumas folhas estavam amassadas nas pontas. A capa apresentava escritas no alfabeto latino ocidental, para ele, romaji. Chegaram à sala, a porta deslizante estava entreaberta. Os alunos acomodavam-se nas carteiras pouco a pouco. Alguns observavam o pequeno painel com as atividades que teriam nos próximos meses, receosos com algum teste ou projeto. Sentaram-se lado a lado, em carteiras que desapareciam no meio da sala. Local que não chamava quase nenhuma atenção. O professor chegou à sala enquanto um grupo de alunos fazia um desenho um tanto quanto desproporcional de um personagem musculoso de uma animação genérica. O homem mandou que todos se sentassem, verificando a presença dos alunos por alguns momentos, antes que começasse a aula. As olheiras escuras e fundas chamavam atenção, fazendo com que Hajime desviasse seu foco. Durante o horário letivo, percebeu a ausência de Kotaro. Não havia notícia alguma dele. Talvez tivesse adoecido ou perdido a hora. Os ruídos que cercavam o rapaz naquele lugar pareciam sempre chegar no mesmo ponto, o mar. Enquanto pegava um suco em uma máquina que ficava na parte de fora do prédio principal, jurou ouvir um estrondo ecoando ao longe. Uma tempestade, talvez, mas o céu estava limpo. – Você tá bem mesmo, Hajime? Ele olhava o horizonte, sentindo o odor salgado, uma leve brisa deslizava por seu rosto, empurrando os fios de seus cabelos. – Acho que sim. Só tô com um mal pressentimento. – Aconteceu alguma coisa? – É só coisa da minha cabeça, tem muita coisa acontecendo nos últimos tempos. Colocou as mãos sobre os ombros de sua amiga, esboçando um sorriso envergonhado. Ela abraçou com cuidado, ele retribuiu, ainda com os olhos vazios presos a algum lugar inexistente. Durante uma das idas ao banheiro, os vórtices criados pela descarga e pela água que corria pelo ralo da pia pareciam chamá-lo. Talvez ficou preso ali por alguns instantes, não sabe quanto tempo. Foi despertado pela entrada de outro aluno no banheiro. Deveria ser de algum ano do fundamental. Hajime acompanhou todos seus movimentos pelo vidro do espelho, antes de lavar seu rosto com água e sair do local. O que fez às pressas, para que não houvesse a possibilidade de um contato visual e, muito menos, de um diálogo. Parecia que tudo ao seu redor despencava sobre ele. As paredes aparentavam curvar-se para esmagá-lo. Os olhares, atravessá-lo. Algo estava errado. O mundo se contorcia e tudo parecia sacudir. Sentiu-se instigado a correr. Uma enxurrada de pensamentos varria sua lucidez. A inconsistência do chão fazia-o lembrar de um dos poucos dias que passou junto de seu pai. Ainda criança, costumava ir esporadicamente para a pesca com seu pai. O barco sacudia com as ondas, levando-o de um lado para o outro, enquanto o homem segurava sua mão para que não caísse. Ria-se, na verdade, gargalhava. Era engraçado, momentos divertidos antes de tudo acontecer. Agora era diferente. Seu pai havia se afastado de todos, mal trocavam olhares, quem dirá palavras ou carinho. Ele sabia que não era culturalmente incomum o pai se afastar, mas aquilo passava dos limites. E aquela inconstância de apoio, antes cômica, agora era melancólica e percorria por todos seus nervos como uma incapacidade de controlar a si mesmo. Ofegante e com a visão turva jurou ver a praia. Não a de hoje, mas a de sua infância. Sentado sobre a areia observando a maré lentamente desmantelar o pequeno castelinho que fizera. Sussurros o chamaram, de outro mundo. Do outro lado desse plano, abaixo de sua visão, abaixo daquele gigante onipotente. Seduziram-no para se juntar a eles. Passos curtos e uniformes ressoavam em conjunto com a orquestra oceânica. Afogava-se em seu próprio dilúvio.