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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson

Sabrina no. 14

"Coloque sua mão sobre o coração de uma mulher e ela será sua
para sempre! - dizia o arrogante Julius. Afinal, nenhuma mulher
jamais ousara repelir os seus desejos. Mas Cale não tinha a menor
intenção de fazer parte daquele exército de admiradoras de Julius.
Seu coração já fora ferido por um outro homem sem compaixão.
Julius acostumara-se a ter todas as mulheres a seus pés e
conquistar Cale não era, para ele, apenas uma questão de amor. Era
uma questão de honra!

Beijos nas Trevas


“A KISS FROM SATAN”
ANNE HAMPSON
Digitalização: Dores Cunha
Correção: Edith Suli

CAPITULO I

Livros Florzinha -1-


Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14

Os jardins de Lime Cottage, uma personalíssima mansão no meio de


três acres de bosque, subitamente se iluminaram. Eram lampiões
presos nas calhas ou pendurados nas árvores. De um lado do amplo
Aramado via-se uma fileira de pinheiros a enfeitá-lo. Perto dessas
árvores havia uma churrasqueira, onde os criados preparavam
costeletas de porco, linguiça e frango.
O churrasco fora organizado para substituir o tradicional Jantar do
Senado, e além dos membros desse, inúmeros outros convidados
estavam presentes, totalizando
mais de cem pessoas. Gale Davis estava entre eles. O pai dela era
professor da Universidade; Tricia Sims também estava lá,
irradiante por causa do casamento marcado
para breve. Era noiva de Trevis Chard; ele, no entanto, estava em
companhia de um tio seu em Birmingham, para aprender como dirigir
uma rede de supermercados da
qual seria herdeiro. Embora Gale e Tricia fossem amigas, Gale ainda
não conhecia Trevis e, parecia, isso só aconteceria por ocasião do
casamento. Também presente
estava Julius Spiridon, a convite do professor Ingham, seu amigo
desde os tempos de estudante. Julius trabalhava com turismo.
Sempre que visitava a Grã-Bretanha ficava com seu velho amigo.
com trinta e cinco anos ainda era solteiro - e que era raro para um
grego e essa não foi a única ocasião em que Gale se permitiu um
sorriso secreto de satisfação. Alto e elegante, com cabelos
escuros, densos e ligeiramente ondulados, Julius Spiridon era
sempre o homem mais notado nos lugares que frequentava. Sem
dúvida era atraente, concordava Gale, mas o moreno da pele e os
olhos escuros e frios faziam intuir uma personalidade indescritível,
inflexibilidade e ausência de sentimentos. Gale tinha certeza de que
era profunda e permanentemente cruel. Que Deus ajude a mulher
que se casar com ele, pensou Gale consigo mesma. Fora apresentada
a ele há pouco tempo atrás e, logo depois disso, ele teve que se

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ausentar; voltou à sua terra, Patmos, para rever sua belíssima
propriedade a beira-mar. Por isso, Gale não tivera outra
oportunidade para ampliar seus conhecimentos sobre ele.
Ele dançou com a amiga de Gale, Deborah Curtis, enquanto Gale
dançava com o próprio irmão, recém-chegado do Norte da
Inglaterra.
Ele voltara para visitar a mãe, mas também pelo convite que
recebera para o churrasco. Ao ver Deborah, Gale não pôde evitar
um sorriso. Pobre Deborah, pensou. Está caída pelo grego, apesar
de tantas amigas a terem prevenido de que qualquer interesse de
Julius por uma mulher era coisa passageira. Divertia-se com elas
entre um negócio e outro. E só.
- O que você pretende com Robert Coles? - A voz do irmão desviou
a atenção de Gale. Ela o fitou por entre os longos cílios.
- Destruir seu coração, espero - responde friamente.
- Que tolice, Gale!
Ela riu e Edward franziu a testa. Foi um riso feio, que se chocava
com a beleza serena do rosto da moça.
- Que nada! Estou me divertindo.
- Você precisa. . . usar todos os homens só para se vingar do que
Malcom fez com você?
- Não é só por causa de Malcolm; é a minha eterna guerra contra os
homens, porque acho que não valem nada.
- Isso é uma afronta! E das mais estúpidas e impensadas. Quer
dizer que sou uma porcaria, é?
- Ainda não. Mas também não vou ficar surpresa se um dia souber
que foi infiel a Anthrea.
- Obrigado - Edward interrompeu-a. - Como você é cínica. Gale, e
nem um pouco graciosa!
Ela até suspirou, mas a frieza do olhar continuava a mesma.
- com dezoito anos eu era dócil, crédula e. . .
- Uma graça - veio rápida a interrupção. - E agora, com vinte e três,
você é uma jovem turrona e desagradável.

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- Obrigada, Edward, mas parece que os outros homens não pensam
assim - disse ela com sarcasmo.
- Outros homens que ainda não foram atacados.
- Atacados? Que jeito mais esquisito de dizer as coisas!
- Que tipo de satisfação você sente quando obriga os homens a se
apaixonarem por você para depois cair fora?
- Muita satisfação, e você não precisa ter dó deles, Edward.
Quando uma mulher não magoa um homem, pode estar certo de que
ele vai magoá-la. Veja só papai e a vida que mamãe leva com ele.
Olhe lá! Lá está ele, flertando como sempre. Não é para menos que
mamãe prefere ficar em casa. É claro que ela não gostaria de ficar
sentada, vendo o marido dar toda a atenção às outras mulheres,
como
sempre acontece. Penso nela, sozinha em casa, lendo um livro ou
coisa parecida.
Nós dois nos oferecemos para fazer-lhe companhia - frisou
Edward. - Mas ela nem quis saber.
- Simplesmente porque não suporta a idéia de ser uma
estragaprazeres. Você nem por um segundo acredita que ela
prefere ficar sozinha em casa, não é?
Ela devia ter batido o pé há muito tempo. Se ela tivesse se
preocupado com isso, papai não seria assim.
- Pois sim! Papai é um libertino e você sabe disso. Uma mulher não
basta para ele, aliás, para homem nenhum.
com Malcolm na cabeça, provavelmente, disse ele com sinais de
irritação! - Está bem, ele foi infiel a você enquanto eram noivos,
mas você não pode compará-lo a todos os homens do mundo.
- E a Josie, minha amiga, casada há menos de um ano e Mark já está
transando outra menina! Não defenda seu sexo, Edward. Seja
sincero e reconheça que nenhum homem presta.
Ele procurou logo mudar de assunto para não ter que brigar com a
irmã.
- Nosso amigo grego parece estar tonto com sua beleza. Não tirou

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os olhos de você a noite toda.
- É mesmo? Não percebi. - Mas havia percebido, sim. . . e a idéia de
se saber afetada pela atenção do rapaz a chateava. Há cinco anos,
desde que desmanchara com Malcolm, nenhum homem foi capaz de
despertar seu interesse nem seus sentimentos. Durante esse
período ela se tornou imune, ou pelo menos acreditava que sim. Mas
o grego era tão másculo, tinha um ar autoritário que agradava às
mulheres, mesmo quando isso poderia significar uma completa
submissão. Essa, aliás, é a tradição grega. O homem é senhor; a
mulher, submissa.
- Ele está conquistando toda a atenção feminina - disse Edward sem
mais ouvir o comentário dela.
- Mais do que precisa para alimentar sua vaidade - ela retrucou com
ares de desprezo. - Ele bem que merece uma podada.
Edward riu com as palavras da irmã e voltou-se para ela curioso:
- Você não vai mexer com ele, espero? - Gale nem respondeu; estava
pensativa a observar Julius. Ele olhava para sua companheira com
desdém e iaexpressão. Não havia dúvidas de que seu conceito sobre
mulheres em geral era baixo. Que prazer seria vê-lo apaixonar-
se e então dar-lhe o fora! - Julius Spiridon é um espécime bem
diverso daqueles de quem você destrói corações - continuou
Edward.
- Sugiro que você tome cuidado, Gale.
Ela ergueu as sobrancelhas e deixou escapar um sorriso traiçoeiro.
- Sei me cuidar - disse-lhe confiante. - Talvez você esteja certo
quando diz que ele é diferente do resto - continuou, como se fosse
concordar. E então continuou, como se a isso fosse forçada. Seria
divertido mexer com ele assim mesmo. Ele pode cair, é possível,
tenho certeza.
- Um dia desses - voltou Edward a falar com malícia -, você há de
encontrar seu par!
- Faz cinco anos que Malcolm me abandonou - lembrou-lhe, e ele
percebeu a sutileza do que a irmã dizia.

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- Você quer dizer que evitou outras desventuras até hoje? Bem,
isso não quer dizer que vai sempre ser assim. Eu não sei se você fala
serio quando diz que vai se divertir com o grego - continuou -, mas
se você aceitar meu conselho acaba esquecendo essa idéia. Ele é
invencível, jamais vai perder uma batalha, principalmente se for com
uma mulher.
- Obrigada pelo conselho, mas não é necessário. Eu sei me cuidar.
- Você é muito crédula - girou-a em direção aos pinheiros, onde as
pessoas comiam. - E é orgulhosa demais dos seus feitos. O orgulho é
sempre seguido de um desapontamento,
não se esqueça.
Gale apenas riu, um riso frio, que fez a testa do irmão franzir
novamente. Não era difícil ler os pensamentos dele. Esta não era a
irmã que tivera na infância. Como uma garota tão gentil e ingénua,
aos dezoito anos, poderia ter se transformado na mulher cínica e
dura de agora, aos vinte e três? Gale mordeu o lábio inferior. Ela
mesma às vezes se arrependia dessa sua mudança, desejando não se
ter permitido afetar da maneira como foi, desejando apenas se
vingar, querendo apenas ver outros homens sofrer. E eles realmente
sofreram. Houve Stephen, que se apaixonara tremendamente por
ela, exatamente como ela esperava. Ela o abandonou, sem ao menos
dar ouvidos ao que pedia. Mas o sofrimento do rapaz não deve ter
durado muito, pois agora ele já estava casado e a mulher esperava o
primeiro filho; Houve também Michael, que ameaçara matar-se.
Aquilo a tinha assustado, na época, e ela não mais se envolveu com
qualquer outro homem por mais de um ano. Contudo, Michael
também se casara - o que simplesmente comprovou que os homens
jamais amavam profundamente. Ainda assim Gale se divertia
fazendo-os sofrer, apesar de esse sofrimento ser apenas
temporário.
Seus olhos se voltaram de novo para o fascinante e alto grego.
Sim. . . com certeza seria divertido.
- Eu a avisei. - A voz de Edward, clara e precisa, se fez ouvir,

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enquanto ele seguia a direção do olhar dela, parecendo adivinhar
quais eram os pensamentos da moça. - Ele não é só um provocador,
ele é também um conquistador, se
é que há um fundo de verdade em fofocas, e geralmente há.
- Se eu realmente decidir transar com ele - riu Gale -, prometo
tomar cuidado. Garanto não me colocar em posição vulnerável.
- E o que você define como uma posição vulnerável? - disse a voz
seca do irmão, quando já paravam de dançar, e, tomando-a pelo
braço, conduziu-a até onde a comida estava sendo servida.
- O tipo de posição que pode se tornar perigosa. Ele dificilmente me
conquistaria em público.
- Concordo. Mas nem você pode fazer muito em público. Se você
resolver aplicar-lhe o truque, terá que ficar sozinha com ele
algumas vezes.
Gale nada disse, simplesmente porque ela mesma estava começando
a ver a impossibilidade de, inclusive, fazer amizade com um homem
cujas visitas à Inglaterra tinham duração tão curta. As
oportunidades de encontrá-lo só ocorriam acuando havia uma
ocasião como esta, e, dessa maneira, a idéia se desvaneceu quase
tão rapidamente quanto nascera.
Mas pouco tempo depois Gale se sentiu agitada, e novamente
desejando poder dar ao grego arrogante a lição que ele merecia.
Tinha se esgueirado sozinha para o jardim, longe da multidão, da
dança e do cheiro de comida. Encontrou um banco num cantinho ao
fim de uma aléia solitária e se sentou, sem saber que Julius e seu
amigo estavam sentados no lado do canteiro de rosas. Então ouviu
suas vozes, entremeadas de risadas. Estavam falando de mulheres.
- Tão sem personalidade - dizia o professor Ingham. - Frívolas ao
extremo, e tão fáceis de se conquistar. . .
- Concordo, enfadonhamente fáceis. Eu, por mim, preferiria uma
luta, mas ponha a mão sobre o coração de uma mulher e ela será sua
instantaneamente.
Os dois homens riram; o estado de espírito de Gale era tal que o

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sangue praticamente lhe subiu todo à cabeça. Jamais estivera tão
furiosa. - "Ponha a mão sobre o coração de uma mulher e ela será
sua instantaneamente. Que criatura detestável, arrogante e
pomposa! Ele deveria ser torturado, vagarosamente!"
Quase sufocada por sua fúria, Gale se levantou e silenciosamente se
dirigiu de volta à música e às luzes. Meia hora mais tarde Julius
convidou-a para dançar; ela rodopiou em seus braços, mas em um ou
dois minutos a valsa parou e eles estavam face a face. Ela mirou-o
rapidamente, baixou os olhos e recordou o que Edward tinha dito
sobre o magnetismo de Julius, e do fato de ele não tirar os olhos
dela. Se ele estivesse só levemente interessado já seria um bom
começo, pensou, sorrindo com o maior charme, sem desconfiar de
quão adorável parecia. Suas feições já eram mais calmas. Os lindos
contornos de seu rosto eram claros e finamente esculpidos; seus
olhos eram grandes e inocentes, sua boca entreaberta, como que
convidando para um beijo. Os olhos de Julius brilharam
estranhamente; ela notou um movimento na garganta dele enquanto
ele continuava a estudar-lhe o rosto. E então o olhar dele
perambulou - pelo adorável arco de seu pescoço, pelo cabelo ouro-
pálido caindo-lhe sobre os ombros. Os olhos dele delinearam-lhe as
curvas, e ela sentiu-se ruborizar. Ele sorriu ao notar sua reação e,
embora a música não tivesse mudado, tomou-a nos braços e,
dançando, evadiram-se de todos os demais, alcançando por fim um
ponto sob um grande carvalho onde tudo era escuro, exceção feita
aos raios da lua que se filtravam pelos galhos da árvore.
A música era vagamente ouvida ainda, porém parou repentinamente.
Julius a manteve junto de si, e Gale conscientizou-se intensamente
da rigidez de seu corpo contra o dela e da carícia gentil das mãos
do homem percorrendo-lhe as costas até a cintura. O momento era
carregado de tensão, sem palavras, apenas o farfalhar das folhas
quebrando o silêncio da noite. As mãos de Julius se moveram
lentamente e Gale baixou a cabeça, desejosa de que ele não visse
sua expressão enquanto ela esperava pelo que certamente viria em

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seguida: "Ponha a mão sobre o coração de uma mulher. . ." A mão
dele estava quase lá quando; Gale se virou, dizendo suavemente:
- Não é uma noite maravilhosa? Tivemos muita sorte do tempo estar
bom para o churrasco. Imagino que, em seu país, vocês não têm esse
tipo de preocupação com o tempo.
Ele sorriu, sem humor.
- Realmente podemos planejar um programa como esse sem
preocupação, sim.
Ela levantou a cabeça, vendo-lhe o perfil iluminado apenas pelo
brilho do luar. O contorno de seu rosto era delineado como na
pedra; notou o queixo bem torneado e o nariz aquilino, a testa
baixa, lisa e aristocrática. O cabelo cinza-escuro certamente lhe
dava um quê a mais de distinção, e ela ficou pensando se ele era
cônscio de ser tão incrivelmente atraente.
- Conte-me sobre seu país - ela pediu, ainda indecisa se
experimentava seu charme nele ou não.
Ele a olhou, aí se encostou no tronco da árvore, apoiando a cabeça
nele.
- Você nunca foi à Grécia? - perguntou e, quando ela negou com a
cabeça: - você deveria tentar visitá-la, Gale. Todo mundo deveria
visitar meu país. Atenas é obrigatória,
claro, mas as ilhas.
- Ele se interrompeu e ficou calado por certo tempo. - As ilhas são
algo de muito especial. Você jamais se arrependeria por passar
umas férias pulando de uma ilha à outra.
- Já ouvi falar disso. O que, exatamente, se faz?
- Pula-se de uma ilha para a outra. - Ele sorriu para ela, desta vez
com certa aparência de gozação nos olhos escuros. - Não
literalmente, como você pode imaginar.
As balsas cruzam de ilha para ilha o tempo todo. E os preços são
ridiculamente baixos; inclusive os hotéis também, se você quiser
ficar alguns dias, poderá facilmente fazê-lo. Aí você toma um barco
e vai para outra ilha.

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- Elas são todas parecidas?
- Não, não todas. - Julius meneou a cabeça. As ilhas do Egeu são
parecidas, as do Jónico têm semelhanças entre si, e assim por
diante.
- Conte-me sobre sua ilha. Patmos, não é?
- Isso mesmo. É a ilha mais ao norte das Dodecadense, e a menor,
também. É uma ilha vulcânica, claro, e muitas partes dela são de
chão de terra. Mas é linda por tudo isso, e a vegetação é, de fato,
exuberante
em alguns pontos.
Gale o escutava enquanto continuava a descrição, observando as
mudanças de sua expressão, e secretamente admitindo ser ele o
homem mais atraente que conhecera. Todos
os outros podiam ser esquecidos
dez minutos após o encontro, mas Julius tinha habitado seus
pensamentos por um longo período após terem se despedido na
última festa em que estiveram presentes. Havia um certo
magnetismo nele que parecia deixar traços mesmo depois
de ele ter partido. Gale recordou que tinha se enraivecido consigo
própria no fim, e que tinha se deter minado a apagar a imagem dele
da memória. Ela conseguira.
mas cá estava ele de novo, afetando-a mais uma vez, embora numa
forma específica que ela não conseguia explicar. Ele estava agora
falando das oliveiras e das
frutas cítricas que floresciam no pomar de sua casa; falou então da
vista sobre o mar e das outras ilhas por perto, às quais se podia
chegar de Palmos facilmente.
- Você tem que vir - disse ele de novo. - Patmos é uma ilha que você
jamais esquecerá desde que a visite.
- Parece maravilhosa. - Até então, Gale manteve um tom de
neutralidade na voz, mas agora estava ausente e já aparentando
uma certa doçura, desconhecida a Gale, mas
certamente percebida por seu companheiro, que a olhou

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profundamente no rosto, seguindo os contornos tão graciosos ainda
uma vez, e parecendo fazer uma análise mental ao mesmo tempo.
Ela pensou na intenção dele de "pôr a mão em seu coração" e
imaginou como ela teria reagido se não lhe tivesse permitido uma
retirada tão fácil.
- Sim, Gale, é maravilhosa. - Finalmente ele falou e ela sorriu-lhe;
ele respondeu dizendo, apesar de um tanto frio, que era hora de
retornarem à festa.
- Creio que deveríamos voltar - Gale concordou... e contudo, por
alguma razão bastante incompreensível, ela tinha o mais estranho
desejo de ficar ali com esse grego
belo, ficar e ver o que iria acontecer.
O que realmente aconteceu foi algo para o que não estava nem um
pouco preparada, já que esperava que Julius começasse a
acompanhála quando se afastou dos galhos acima de sua cabeça. Em
vez disso ele a agarrou, puxando-a para si abruptamente. Num
piscar de olhos ela estava nos braços dele, apertada contra um
corpo rijo como aço, e os lábios dele apertaram os dela num beijo
tão violento e imperioso que poderia ter vindo do próprio satã. Não
havia escape; Gale lutou em vão para se soltar
daqueles braços metálicos, seu corpo se sentindo machucado a boca
esmagada sob a dele.
- Eu queria fazer isso desde o primeiro momento em que a vi
- disse afinal, e ao se afastar, mirou-lhe o rosto em brasa. - Ficop
imaginando se sabe realmente quão linda e tentadora você é?
Os olhos dela faiscaram; levantou o punho cerrado para socá-lo, mas
foi agarrada e segura, e Julius riu enquanto ela lutava para soltar a
mão.
Seu nojento, demónio! - ela gritou, ainda tentando livrar a
mão daqueles dedos fortemente cerrados. - Como você se atreveu?
Não lhe dei um mínimo de encorajamento!
- Não? - com um leve sarcasmo. - Deu sim. Gale. Não, não negue,
porque isso seria descoberto e a desonestidade em você seria uma

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grande decepção para
mim. Você
foi um tanto quanto rude, devo admitir, mas isso se deveu
unicamente à sua indecisão. - Ele se interrompeu e, então,
tranquilamente, os olhos profundamente fixos nos dela. - Você
estava se perguntando se tentava ou não jogar charme em mim,
como tão frequentemente faz com outros, e com
grande sucesso, pelo que fui informado. - A voz dele, rica e ao
mesmo tempo suave, ainda mais atraente pelo sotaque, denotava
uma ponta de censura entremeada de humor. Dava a impressão de
que, se por um lado ele desaprovava o comportamento de Gale, por
outro pouco se importava com suas vítimas. Mas isso passou
despercebido a Gale, que literalmente pasmou diante da acurada
percepção dele. Era incrível que pudesse fazer uma leitura tão
precisa de sua mente. Misturando-se à sua estupefação,
todavia, estava igualmente forte sua raiva; esta foi crescendo a
ponto de formar um nó em sua garganta, e, por um momento, foi
impossível articular qualquer palavra. Quando finalmente falou, a
voz tremia de raiva.
- Então você anda falando de mim às minhas costas? Gostaria de
saber com quem!
Julius sorriu, aquele sorriso sem humor que ela vira em várias
ocasiões anteriores.
- Não é minha intenção divulgar o nome de meu informante -
ele respondeu num tom neutro de emoções. - Quanto a falar sobre
você, uma garota linda é sempre assunto de uma conversa, você
deveria saber bem disso. - A pressão sobre a mão dela diminuiu; ela
buscou a oportunidade de soltá-la, mas resistiu e baixou os olhos.
Uma marca vermelha escura mostrava a força da mão que tinha
segurado a dela, e a fúria de Gale ameaçava explodir numa chama
pdescontroladamente destruidora, enquanto continuava a olhar
fixamente a marca, a qual, enquanto ela a olhava, gradualmente ia se
tingindo de violeta. Julius continuava de olhos baixos observando-a,

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os olhos agora brilhantes; antes que ele falasse, Gale adivinhara
seus pensamentos. - Você podia ter usado seu charme, Gale, mas,
comigo, você teria esperado muitíssimo antes de conseguir qualquer
resultado. Um -tom tão suave e, contudo, tão vibrante em
significação. Gale corou, desta vez com desconforto em vez de
raiva. Este era um homem a se evitar, pensou, lembrando que, um
pouco antes, seu irmão tinha firmemente declarado que Julius
Spiridon jamais ficaria por baixo em qualquer batalha,
especialmente se envolvesse uma mulher. Esforçando-se para
esquecer aquele beijo e também a raiva ela disse, decidida a recuar
dignamente diante de um adversário formidável e imbatível.
- Obviamente nós nos entendemos, Julius. Tenho certeza de que
você é totalmente imune aos ardis das mulheres. . . talvez por causa
de uma experiência considerável. - Ela não pôde deixar de
acrescentar isso com um repentino sorriso interrogador, o que
apenas trouxe de volta o brilho aos olhos dele. - Vamos para junto
das outras pessoas. Nossos amigos devem estar sentindo nossa
falta.
Durante um longo momento ele não fez qualquer movimento para
acatar a sugestão dela; pelo contrário, lá ficou observando-a, com
uma expressão enigmática no rosto.
- Você é uma garota estranha - declarou finalmente, e seu olhar
parecia despi-la. - Uma garota muito estranha mesmo, e um desafio.
Gostaria de poder vê-la de novo, mas infelizmente estarei de volta
à Grécia em dois dias.
Gale ergueu o rosto.
- Acontece, Julius, que eu não tenho a menor vontade de revelo. ..
- Não minta - interrompeu ele calmamente, acertando o passo com o
dela, já que ela começara a se afastar vagarosamente. - Você fica
tão intrigada comigo quanto eu fico com você. Você gostaria de me
ver caído por seus encantos, apenas pelo prazer e satisfação de me
abandonar e deixar-me a amargar a frustração, como tantos outros
foram obrigados a fazer. Eu, por outro lado, gostaria de vê-la ceder

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aos meus avanços, se é que este é o nome apropriado, porque não
tenho tanta confiança no meu charme como você tem no seu.
- Como você é modesto! - contestou-o com indisfarçado sarcasmo,
enquanto parava e virava a cabeça para olhá-lo. - Atrevo-me a dizer,
entretanto, que você sabe muito bem que é um homem bonito.
- Para sua surpresa ele franziu a testa fortemente, como se tais
palavras o irritassem, manteve-se em silêncio, um silêncio de
censura, e Gale sentia a urgência de quebrá-lo antes que lhe
causasse desconforto.
Então você gostaria de me fazer apaixonar por você, só pelo
prazer de me abandonar?
- Se eu fizesse você se apaixonar por mim - disse, haveria outros
prazeres a serem satisfeitos antes de abandoná-la.
Gale ficou totalmente desconcertada, e olhou-o de maneira feroz.
Todavia, ela era honesta o suficiente para admitir ter pedido pelo
que recebera. Mais uma vez preferiu uma reserva gelada, numa
tentativa de se desembaraçar com dignidade.
- Bem, Julius - disse ela -, como nenhum de nós jamais terá a
oportunidade de sentir satisfação através do sofrimento do outro,
parece que devemos agir amigavelmente. Podemos ir agora, antes
que um de nós dê um passo que transponha a fronteira entre a
amizade e a inimizade?
A boca dele se curvou; o rubor dela aumentou quando viu que ele
recebia seus esforços de retórica com a maior complacência. Ele
disse, naquele seu falar preguiçoso, que pretendia suplementar a
impressão de desprezo que ele queria demonstrar.
- Nosso adeus acontecerá no fim da noite, naturalmente, quando a
festa acabar. Mas nós nos encontraremos novamente, você sabe
muito bem que sim, em outras ocasiões como esta, exatamente
como já ocorreu antes.
Gale franziu a testa; não estava nem um pouco certa se queria um
outro encontro com este grego moreno e estranho, cuja finura
ultrapassava de longe a sua. Gostava

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de estar em posição de superioridade em relação aos homens; se
alguém devia dar uma lição aos esnobes, esse alguém devia ser ela -
esse era seu desejo. Tal posição nunca existiria entre Julius e ela -
mas o oposto, e, na verdade, esta idéia não agradava a Gale nem um
pouco. Sem comentar as palavras dele, alcançou-o, enquanto se
dirigia para o pátio onde vários casais dançavam. A noite era calma
e quente, o ar perfumado pelo aroma dos pinheiros. Lá em cima, uma
lua cheia derramava luz sobre a planície e as montanhas ao longe.
Era uma noite de suavidade incomparável, e Gale imaginava se Julius
tinha percebido a semelhança desta atmosfera com aquela à qual
estava acostumado em sua ilha no Egeu. Estranhamente, o longo
silêncio entre Julius e ela não era pesado. Pelo contrário, tinha
quase um sentido de companheirismo, e Gale sentiu -
surpreendendo-se muito - que, não tivessem eles digladiado
daquela forma, poderia ter obtido um estranho prazer neste
passeio silencioso. Ao alcançarem as luzes, ela foi prontamente
tirada para dançar, e não trocou mais palavra com Julius até se
despedirem no estacionamento todo iluminado.
- Boa noite, Gale. . . até a próxima. - Palavras suaves e sutis,
acompanhadas de um toque de humor e de um levantar de
sobrancelhas. - Estarei de volta à Inglaterra no mês que vem.
- Poderemos não nos ver -, ela retrucou, sem perceber o tom de
defensiva de sua voz. - Não há festas programadas para então, pelo
que sei.
- com medo? - ele inquiriu, olhando-a fixamente. O queixo dela se
elevou. Ela disse firmemente:
- Do que eu teria medo? Nenhum homem me pôs medo, e tenho
certeza de que nenhum jamais o fará.
- Nenhum homem lhe pôs medo jamais - ele repetiu, pousando
fixamente o olhar nela. - Infelicidade. . . mas não medo. E porque
um homem lhe causou infelicidade, todos os outros com que você
tem contato têm que sofrer. - Ele se interrompeu e riu, balançando
a cabeça. - Não, não é verdade, porque nem todo homem é ignorante

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a ponto de se enredar em seus esqueminhas maldosos. - Ele
continuou se divertindo, com os próprios pensamentos e ela
percebeu, imaginando quais seriam esses. Ela também
ficou imaginando quem teria falado dela a Julius. Era meio
desconcertante sentir que sua vida era conhecida por outros além
de seu irmão e uma ou duas amigas. Nenhum destes falaria dela a
Julius, disto ela estava absolutamente segura. - Você aprenderá um
dia ou outro. Gale, mas pode se machucar muito antes de finalmente
assimilar a lição.
- Não serei ferida. Já estou muito escolada para isso - respondeu-
lhe.
Havia gozação nos olhos dele, mas ao mesmo tempo ele meneou a
cabeça numa espécie de aviso.
- Bravatas, minha querida Gale - ele começou, quando ela o
interrompeu:
- De forma alguma! Sei o que faço, Julius, não tenha qualquer dúvida
sobre isso.
Ele deu de ombros e disse, agora desinteressadamente, como se o
assunto começasse a entediá-lo um pouco:
- Cuidado para você não se enganar, Gale. Algumas mulheres têm
sucesso enorme como aventureiras. . . e outras falham. Elas não
são inteligentes o suficiente e nem foram feitas para esse tipo de
vida. Considere meu aviso antes que seja tarde.

CAPITULO II

Pouco mais de um mês, Gale recebeu um convite da mãe de Tricia.


Passaria o fim de semana em Moorcroft House, já que Tricia estava
doente e a sra. Sims esperava que a presença de Gale a fizesse
sentir-se melhor.
Franzindo a testa, Gale leu e releu a carta várias vezes, e resolveu

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Sabrina no. 14
então telefonar para a sra. Sims. O que ouviu fez seu sangue gelar
nas veias. Tricia fora abandonada e já havia rumores de que Trevis
estava interessado pela filha de um nobre residente em
Cumberland. Gale sabia que Trevis tinha um pequeno rancho de
pesca em Cumberland, e foi assim que ele veio a conhecer, a moça,
uma vez que a propriedade do pai dela era bastante próxima ao
rancho. As excursões de Trevis ao rancho, enquanto Tricia ficava
só, sempre tinham sido um ponto inaceitável para Gale, que era
amiga de Tricia há muitos anos. Secretamente, Gale pensava que
Trevis deveria passar todo o seu tempo livre com a noiva, mas, ao
invés disso, ele gosfava de ir ao rancho onde, dizia, podia descansar
dos rigores da vida de negócios. No início ele ia lá aproximadamente
uma vez por mês, mas agora passava quase todos os fins de semana
e, apesar de Tricia ficar naturalmente chateada com isso, era
também muito doce e compreensiva, dizendo à indignada Gale que
Trevis realmente necessitava do descanso. "Descanso!", pensou Gale
agora, ainda de pé ao lado do telefone desligado, após ter
prometido ir à casa dos Sims bem cedo na manhã seguinte e ia
permanecer até a noite do domingo. Homens! Uns desumanos, todos
eles! Como Gale gostaria de poder fazer algum
milagre que resultasse na punição que Trevis tanto merecia! Este
pensamento acompanhou Gale enquanto dirigia seu carro pela bela
estrada que conduzia à cidadezinha
de Denehurst, em Kent, onde ficava a casa do século XVIII dos
Sims.
Tricia estava em seu quarto, quando Gale chegou. Passava todo o
tempo lá, contou chorando a sra. Sims. Gale engoliu em seco,
sentindo algo doloroso na garganta,
pensando no lindo vestido de noiva quase pronto, e nos vestidos das
damas de honra também. Gale ia ser a dama principal, e já havia
feito várias provas do vestido. A história se repetia - e ninguém
poderia saber melhor que Gale o que a amiga estava sofrendo. Esta
era, provavelmente, a maior razão para a sra. Sims chamá-la, já que

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sabia que o mesmo acontecera antes a Gale.
- Não podemos fazer nada - chorava a sra. Sims, a face pálida e
com olheiras. - Ela vai ficar doente se continuar desse jeito. Tudo
que faz é deitar e chorar.
É terrível ver como ela sofre!
O ódio ressurgiu em Gale. Ela sentiu que mataria Trevis se ele
estivesse lá. Como podia ser tão sem coração, sendo Tricia tão
gentilg e adorável? Confiara demais
nele, e nem por um momento suspeitou que ele fizesse qualquer
outra coisa além de descansar e naturalmente pescar, um
passatempo de que ele gostava tanto, como
contara a Gale. "Pescar!", pensou Gale agora, a boca se curvando
numa linha cínica que não era nem um pouco bonita de se ver.
"Pescar Bem, isso é o que ele estivera fazendo a seu modo."
- A senhora disse ao telefone que já há rumores sobre Trevis e
essa garota. Como chegaram aqui tão depressa?
- Talvez você não saiba, mas Trevis deixa os amigos usarem o
rancho quando não o usa. Parece que um deles foi lá com a esposa, e
foi ela quem ouviu fofocas no correio da vila. A história logo se
espalhou, a partir do momento em que esse casal voltou para casa, e
a notícia naturalmente alcançou os ouvidos de Tricia. Ela inquiriu
Trevis e... e... - e era. Sim, parou de falar, impedida pelas lágrimas -
e Trevis confirmou tudo - acrescentou. - E disse a Tricia que estava
desmanchando o noivado porque queria se casar com a outra moça.
Tenho certeza de que é especialmente pela posição do pai dela, pelo
título, quero dizer, já que um dia Trevis será, de qualquer
maneira, um homem muito rico quando morrer seu tio.
- Ele chegou ao ponto de querer se casar com essa moça? - A voz de
Gale se endureceu pelo menosprezo, e sua boca se esticou numa
linha fina e quase feia. - Deve estar namorando a moça há algum
tempo, isso é óbvio. - Ela pensava em Malcolm, que a traíra por um
longo período antes que alguém pusesse Gale a par dos fatos.
- Sim, devia vê-la regularmente. Agora se torna facilmente

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explicável por que ia para lá tão frequentemente, e cá estava minha
pobre Tricia defendendo-o, dizendo que ele precisava de descanso
porque estava muito esgotado.
Gale ficou calada um pouco e, de repente, levantando-se da cadeira,
disse:
- Subirei para vê-la. Ela não sabia que eu vinha?
- Não! Senti que ela não gostaria de sabê-lo, então não disse nada.
Suba, querida, e veja o que você pode fazer para dar-lhe um certo
conforto. - A sra. Sims sacudiu a cabeça desolada. - Só o tempo
pode mudar tudo. . . aconteceu a mesma coisa com você.
Gale assentiu com a cabeça, tocada demais para poder falar. Doía
ver a sra. Sims nesse estado. Mas doeu mais ainda quando viu a
amiga, com o rosto enterrado na cama, soluçando. De pé, perto da
porta, Gale foi incapaz de conter as lágrimas. Como Tricia ainda não
havia notado sua presença, foi até o banheiro, lavou os olhos com
água fria e enxugou-se com uma toalha. Não seria bom que Tricia
visse Gale chorando, nem que notasse seus olhos vermelhos. Por isso
Gale esperou um pouco, diante do espelho, até que o último sinal de
emoção se apagasse. Então voltou ao quarto. Curvou-se para abraçar
a amiga e falou-lhe baixinho. O rosto estava inchado e sofrido, os
olhos ardiam de dor.
- Sua mãe pediu-me que viesse para o fim de semana - explicou Gale
de início. - Por que você mesma não entrou em contato comigo para
contar o ocorrido?
- Não poderia contar a ninguém. . . Tricia parou para permitir que o
coração soluçasse fundo. - Sabe, eu pensei que ele fosse voltar para
mim.
- A gente sempre tem essa impressão. - A voz de Gale saiu séria,
apesar de amigável. - É difícil aceitar agora, Tricia querida, mas ele
não merece sua consideração.
- Isso é o que mamãe e papai dizem, mas se ele voltasse eu o
perdoaria.
Gale calou-se, ela mesma se sentira assim quando Malcolm a

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deixara. Só mesmo com o passar do tempo percebera que não
valeria a pena tê-lo. O mesmo aconteceria com Tricia, mas
infelizmente ainda havia muito que sofrer antes que ela conseguisse
esquecê-lo.
- Venha - Gale tentou animá-la -, levante-se e vamos à cidade.
Tenho que comprar o presente de aniversário de minha mãe, e você
pode me ajudar a escolhê-lo.
Tricia sacudia a cabeça mesmo enquanto Gale falava.
- Você é muito gentil, Gale, a mamãe teve boas intenções quando a
convidou, mas eu não quero companhia. Só quero ficar aqui sozinha.
- Sua voz calou e as lágrimas rolaram novamente. Gale disse com
carinho:
- Lembre-se de que eu sei exatamente como você está se sentindo.
Sei também que eu mesma teria me sentido melhor se tivesse
ouvido as pessoas bem-intencionadas que
queriam me ajudar. Mas, assim como você, só queria ficar sozinha.
Acabei cedendo um pouco e aceitei ajuda. E você vai ver, Tricia
querida, que estou certa quando
digo que você deve conversar e ir lá para baixo, em vez de ficar
aqui. Você comeu hoje? - E quando Tricia disse que não. . . - Então a
gente vai almoçar naquele
restaurante suíço. Nós estivemos lá na última vez que vim. Lembra-
se?
Tricia disse que sim e, para a satisfação de Gale, sentou-se na cama
e enxugou os olhos com um lenço ensopado. Gale deu-lhe um limpo e
continuou a falar com seu palavreado persuasivo, até que, por fim,
Tricia se convenceu a acompanhar Gale à cidade. Não importava que
ela tivesse concordado por educação, depois da insistência de Gale.
O importante era vê-la arrumar-se um pouco pois, se ela insistisse
em sua teimosia, uma estafa seria inevitável.
A sra. Sims mal acreditou no que viu quando as duas garotas
apareceram; olhou para Gale agradecida.
- Vamos até a cidade - explicou Gale, e continuou dizendo que

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pretendia comprar um presente para a mãe, cujo aniversário seria
na semana seguinte. - Não nos espere para o almoço, sra. Sims.
Vamos almoçar fora.
- Ótimo. - Um sorriso tocou os lábios da sra. Sims quando olhou
afetuosamente para a filha. - Compre alguma coisa para você,
querida. vou lhe dar dinheiro. . .
- Não, mãe, obrigada. - Os lábios de Tricia tremeram quando ela
disse: - De que serve comprar coisas agora?!
- Eu não estava pensando em roupas, amor. Compre uma bolsa nova
ou uma jóia.
- Jóia? Para quem eu a usaria?
A sra. Sims enrubesceu e Gale logo tratou de quebrar o silêncio.
Disse que era melhor irem andando, antes que perdessem o almoço.
Mesmo assim Tricia não comeu nada, apesar de Gale tentar induzila
a provar a deliciosa refeição que lhe serviram.
- Não consigo! - Os olhos de Tricia se encheram. - Gale, eu sei que é
bobagem minha, mas não quero viver. - Ela olhou para Gale, do outro
lado da mesa, perdida e desesperadamente infeliz. A fúria correu
pelas veias de Gale. Se pelo menos houvesse um modo de fazer
Trevis sofrer. . . Gale sentiu que chegaria a extremos, caso isso
fosse possível.
Mas foi a própria Tricia quem teve uma idéia no domingo à noite,
logo antes de Gale sair e prometer que voltaria na próxima semana.
- Todo o meu amor parece ter-se transformado em ódio - disse
inesperadamente, desviando o olhar do de Gale. As mãos cruzavam-
se ríspidas no colo. As duas estavam no quarto de Gale, e essa
acabara de fazer a mala. Bastava que a empregada fosse apanhá-la.
- Tudo o que eu queria era poder trapaceá-lo.
- Trapaceá-lo? - Gale olhou inquieta para aamiga, que assentiu sem
erguer a cabeça.
- Trapaceá-lo? - Gale olhou inquieta para a amiga, que assentiu
melhor.
- Trapaceá-lo... e assim impedir que ele se case com aquela coisa,

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mas isso é impossível. Não há nada a fazer, Tricia.
Uma longa pausa e, então, ainda timidamente.
- Há algo que pode ser feito. . . mas você não concordaria.
- Eu? Mas eu entro na história? - Gale olhou bem o rosto da amiga,
que finalmente o erguera. A expressão trágica ainda invadia seus
olhos, mesclada de um ódio profundo. A voz de Tricia soou firme
quando respondeu:
- Ele poderia ser trapaceado, Gale, e de um modo até bem simples. -
Fez nova pausa e soltou então o que tinha em mente. Pasma diante
dos pensamentos de Tricia, Gale Só podia mesmo ficar boquiaberta,
ao passo que Tricia enrubesceu e se inquietou.
- Não funcionaria... - Palavras claras, objetivas, mas a voz de Gale
desvaneceu enquanto falava. A cabeça funcionava furiosamente,
apesar de esforçar-se para afastar as idéias absurdas que lhe
ocorriam. Por que não? Perguntou-se, mas tão logo o fez, assustou-
se tanto que o coração parecia querer saltar do peito. Trevis
poderia ficar furioso - ou, o que seria pior, poderia causar-lhe um
mal que qualquer garota evitaria a todo custo.
- Que tipo de homem é o Trevis? - Gale perguntou e ouviu, perplexa,
que ele era quieto e não tinha mau génio. - Tem certeza?
- insistiu Gale, enquanto o coração ainda persistia em derrotá-la. Ela
não poderia fazer aquilo, por mais que o quisesse, embora Trevis
merecesse receber o mesmo tratamento que dispensara a Tricia,
que fosse traído pela garota com que ele pretendia se casar.
- Tenho certeza. Gale. Eu nunca o vi mal-humorado, nem mesmo
impaciente comigo. Ele... ele foi sempre tão gentil... - Um suspiro
cortou sua voz. Mesmo assim, apesar de emocionada, ela ainda
mantinha uma expressão de desgosto quando continuou a elaborar a
idéia que lhe ocorrera. - Trevis estará no rancho no fim de semana
que vem, mas Louise não estará em casa. . .
- E como você sabe disso? - interrompeu Gale rapidamente, e
completou, antes que a amiga pudesse responder. - Você nunca
mencionou o nome dela. Achei que você não sabia.

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- Trevis contou-me - sussurrou Tricia. - Ele disse também que ela
passaria o fim de semana com a avó.
Gale subitamente se preocupou.
- É verdade que ele falou com você sobre ela?
- Só no fim, é claro, quando estava desfeito o noivado. Eu lhe
perguntei sobre ela e ele me disse o nome e contou que ela visita a
avó todo mês, no primeiro fim de semana de cada mês. - Tricia ficou
na expectativa de algum comentário, mas Gale estava chateada
demais para poder falar. Aquele Trevis foi mesmo capaz de contar à
noiva coisas a respeito da outra garota. Que calhorda deveria ser!
- Como eu dizia, Trevis estará no rancho, mas não vai ver Louise. Se
você fosse até lá e fizesse o que sugeri, eu poderia telefonar para o
pai dela e dizer que o pretendente de sua filha estava no rancho
com uma de suas namoradas, e que se ele fosse até lá, teria provas
disso.
Gale pasmou novamente, sem fala. Tricia estava calma agora, apesar
de seu rosto estar pálido e abatido. Olhava para Gale com olhos
suplicantes, estava totalmente absorvida pela idéia de vingança. O
mesmo acontecera com Gale em relação a Malcolm. Ocorreu a Gale
que Tricia seria capaz de seguir o mesmo caminho, o que a
preocupou novamente. Tal caminho seria inadequado para Tricia; ela
era vulnerável demais, enquanto Gale fora capaz de desenvolver
mecanismos de defesa contra os homens. Estava convencida de que
seu coração mole havia se petrificado.
- Isso não é possível, Tricia. - Gale sacudiu a cabeça
enfaticamente . . . porém estava cada vez mais tomada pela idéia. -
Eu não conseguiria me sair bem.
- Já estive no rancho - disse Tricia, como se não tivesse ouvido o
que Gale dissera. - Há dois quartos, mas Trevis disse que nem
mesmo chega a entrar no pequeno, que fica no final do corredor.
Trevis ou qualquer amigo que venha a usar a casa em sua ausência
sempre usa o quarto grande, próximo do salão e com banheiro
privativo. Tricia olhou para Gale, mas notou-a pensativa e nada pôde

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concluir. - Você poderia pegar a chave do lado de fora, no aparador,
onde fica guardada. Então, depois de entrar, você poderia abrir uma
janela. Todos os quartos ficam no mesmo nível, pois há só um
pavimento. Daí você poderia trancar a porta do lado de fora,
colocar a chave de volta no lugar e entrar de novo pela janela. Então
você poderia se esconder no quarto pequeno, ou mesmo dormir, já
que Trevis não a encontraria. Como eu disse, ele nunca chega ao
rancho antes das primeiras horas da manhã do sábado e, conforme
ele mesmo diz, só quer cair na cama e dormir até tarde no dia
seguinte. - Tricia finalmente parou; não tirava os olhos da amiga.
Gale estava pensativa. A sensatez lutava contra a vontade de ouvir
Tricia e dar a Trevis a lição que merecia.
- É arriscado demais - palpitou temerosa. - Suponha que Trevis
resolva dar uma olhadela naquele quarto!
- Ele não faria isso, não a essa hora, depois de ter guiado tanto.
Além disso, não há motivo algum para ele querer ir àquele quarto; há
apenas uma caminha de armar
lá e nada mais.
Gale deu um sorriso amarelo. E disse:
- Quer dizer que, se eu acatar sua sugestão, estarei totalmente
desprotegida e presa num quarto com uma cama?
- Você não precisa ir para o quarto antes da meia-noite, pelo menos.
Se eu telefonar para o pai de Louise pelas sete horas da manhã, no
sábado, ele estará lá em
meia hora ou um pouco mais. Daí você estaria livre para sair.
- Livre para sair? - Gale logo ergueu o rosto. Como é que uma pessoa
podia ser tão ingénua? - Do que Trevis é feito? Eu estaria de
camisola e ele poderia perfeitamente resolver me pegar por ter
arruinado sua sorte com Louise. Ele não me deixaria sair impune.
- Você está querendo dizer que ele a forçaria a. . . ? - Os olhos de
Tricia se arregalaram. - Nunca, ele não é desse tipo!
- Minha querida Tricia - disse Gale com a mesma frieza de antes -,
todos os homens são assim.

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- Mas você saberia se cuidar de qualquer jeito - respondeu Tricia,
confiante. Gale teve que rir.
- Acho que conseguiria fazer um escândalo, em caso de emergência
- concordou, mas prosseguiu explicando que uma garota vestida
daquela maneira estaria em desvantagem, sem a menor sombra de
dúvidas.
- Trevis não tentaria nada. Gale, não mesmo. Além do mais, ele
estaria nervoso demais para poder sequer pensar.
Gale nada disse por um momento. A idéia lhe agradava muito,
embora seu lado prudente a prevenisse contra os perigos. Havia
muitas outras implicações além de se esconder
no quartinho e repentinamente entrar no dele quando ouvisse o pai
de Louisc chegar. Dessa situação em particular, sentia que poderia
se sair satisfatoriamente, pois Trevis estaria tão confuso, que
certamente seria incapaz de se recobrar antes de o pai de Louise
se retirar. O que aconteceria depois é que incomodava Gale, pois só
conseguia visualizar Trevis em estado de fúria animal. Ainda assim,
será que ousaria fazer-lhe algum mal? Tricia afirmava que ele não
conseguiria ao menos pensar, e, ao considerar um pouco mais o
assunto. Gale percebeu que estava prestes a concordar com a
amiga.
- Você está considerando minha proposta? - inquiriu Tricia com um
olhar esperançoso.
- Trevis bem que deveria ser pago na mesma moeda pelo que fez a
você - respondeu Gale pensativamente. -
É um plano simples, como você disse, e mesmo que Trevis conclua
que você está por trás de tudo, não há o que ele possa fazer, pois
não me conhece, nem de vista e nem de nome. Então não haveria
revanches, quer dizer, não a partir
do momento em que eu tivesse escapado de lá.
- Você vai fazê-lo! - exclamou Tricia. - Obrigada, Gale. Um pálido
sorriso desenhou-se na boca de Gale. Era evidente que
Tricia, cega pelo pensamento de vingança contra o namorado

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traidor, parecia não prever quaisquer dificuldades em concretizar o
plano que idealizara. Isto, provavelmente, se devia ao fato de Gale
ser sempre tão eficiente em tudo o que fazia, com uma
autoconfiança acima do comum. Além disso, havia o ódio de Gale aos
homens em geral, já anteriormente revelado a Tricia, o que
naturalmente a fizera mais confiante em contar com a cooperação
da amiga. De qualquer forma, embora a idéia a agradasse,
teve a cautela de dizer a Tricia que precisava considerá-la um pouco
mais, e apesar do desapontamento da amiga, as coisas ficaram
desse jeito. Porém, enquanto voltava para casa mais tarde, após ter
considerado a idéia mais uma vez. Gale sentiu que não resistiria a
pô-la em prática.
Tomou o rumo norte da estrada. Há alguns anos pretendia visitar
o Lake District, por ter repetidas vezes ouvido falar de sua beleza,
mas jamais tinha se imaginado indo lá a não ser a passeio. Esta era
uma empreitada audaciosa, mas, por isso mesmo, cada vez mais
desafiante. E, caso nada desse errado, teria a imensa satisfação de
saber que Trevis recebera o castigo que merecia.
A viagem foi longa e entediante, mas finalmente Gale chegou a
Ennerdade, onde passou a noite, num hotel. Na manhã seguinte,
percorreu a serra sinuosa, absorveu a paisagem magnífica, embora
com a mente quase totalmente concentrada no que estava para
acontecer. Chegando a Swathemore Beck viu, à direita, a mansão do
pai de Louise, construída sobre uma pequena colina e rodeada de
jardins e cercas vivas. Gale seguiu em frente; segundo o mapa que
desenhara pela descrição de Tricia, o rancho se situava a
aproximadamente uma milha da mansão. A estrada corria paralela
ao riacho e de repente se desviava em direção à construção de
pedra quase escondida pelas árvores e outras vegetações selvagens.
A visão dela pareceu dar ao plano um gosto de realidade crua até
então ainda não percebido e a despeito de seu jeito calmo
e resoluto, Gale estava profundamente consciente dos nervos
tensos e da sensação de palpitação na região do estômago. Esta era

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a primeira ocasião em que um perigo
real se configurava em suas atividades e, apesar de se impacientar
com sua apreensão, teve que fazer-se justiça e admitir ser natural
que se sentisse assim. Acabaria valendo a pena, de qualquer forma,
disse a si mesma; Trevis seria punido e Tricia pelo menos teria a
satisfação de saber que ele perdera a garota por quem a
abandonara tão vilmente.
Como ainda havia muito tempo livre, Gale teve oportunidade de
explorar o lugar. Encontrou a chave no vão em que Tricia dissera
que estaria e entrou no rancho. Era um pouco frio dentro, e, quando
entrou no quartinho onde deveria se esconder, suas narinas foram
atingidas por um forte cheiro de mofo, provocando-lhe uma careta.
Deixava mesmo muito a desejar em termos de conforto, pensou,
deplorando a cama-de-vento em que tentaria descansar mais tarde.
Saindo do quarto minúsculo, percorreu a extensão do corredor, até
chegar ao salão, confortável mas não particularmente em ordem,
com todos os tipos de equipamentos de pesca à mostra. Entrou no
quarto; também este era confortável, com uma cama bem feita e as
cortinas parcialmente fechadas sobre a janela baixa e larga. Seus
olhos se voltaram para a penteadeira. Sobre ela, numa moldura,
estava uma fotografia de uma bela garota de uns dezenove anos.
Irritada, Gale saiu do quarto.
Fora a cozinha e um pequeno banheiro anexo ao quarto principal
nada mais havia, exceto a vegetação selvagem que praticamente
rodeava a casa.
Reinava um profundo silêncio. Gale permaneceu de pé bastante
tempo, apreciando a paisagem. Depois pegou sua mala do degrau em
que pusera ao tirá-la do carro e escondeu-a
num armário do pequeno quarto que ocuparia. Dirigiu-se, então, à
cozinha e fez um chá.
Sentia-se agora calma e tranquila, como se tivesse entrado num
estado de inércia mental onde nada a poderia atingir. Sentada num
banquinho alto da cozinha olhou pela janela, observando o

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encantador espetáculo da mudança de cores, na medida em que as
árvores mais frágeis davam lugar aos pinheiros e à vegetação das
montanhas. Este era certamente um lugar adorável para se
refugiar, e Gale não pôde evitar de pensar o quanto Tricia gostaria
de vir ali quando ela e Trevis fossem casados. A raiva aumentou
dentro dela. Cerrou a boca firmemente, mais determinada do
que nunca a fazer Treviá expiar sua culpa.
Após tomar o chá, lavou a louça e guardou-a, certificando-se de
deixar tudo exatamente como encontrara. Aí, foi ao salão e sentou-
se, decidida a não se instalar
por enquanto naquele quarto frio e bolorento, pois era
desnecessário passar toda a noite lá, já que Trevis não deveria
chegar antes da meia-noite.
Mas em menos de uma hora ouviu o carro chegar e seu corpo
começou a tremer. Eram só oito e meia. Trevis devia ter saído bem
mais cedo do que usualmente. Como um relâmpago. Gale correu
silenciosamente pelo corredor até o quarto menor, onde se postou
ao lado da janela fechada, tentando observar Trevis pela abertura
das cortinas, mas nada pôde ver. Ouviu um passo leve e a porta do
alpendre ranger, como tinha acontecido quando ela mesma abrira.
Gale tinha posto a chave de volta no aparador e mentalmente seguiu
os passos de Trevis enquanto ele a pegava.
Em seguida, ouviu a porta da frente se abrir e fechar, e a luz se
moveu enquanto Trevis percorria o pequeno espaço do corredor que
conduzia à sala de estar. Prendeu a respiração, tentando se
convencer de que ele não entraria no quartinho, mesmo tendo
chegado cedo e não estando pronto para ir dormir, como Tricia tão
veementemente assegurara que ele faria. A porta do salão se
fechou e o silêncio invadiu a casa. Ele deve estar lendo, calculou,
ainda de pé e ao lado da janela, determinando mentalmente quantas
horas aterradoras ela teria que permanecer ali, antes de estar a
salvo em seu carro, viajando para o Sul novamente.
O silêncio persistiu e Gale sentou-se na cama-de-vento. Fazia quase

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duas horas desde a chegada de Trevis e ele não tinha se movido do
salão. Alguns minutos mais
tarde ela o ouviu dirigir-se à cozinha, retornando depois ao salão,
com seu jantar, em uma bandeja. Repentinamente Gale pensou que
daria qualquer coisa por uma xícara de chá.
Era meia-noite passada quando afinal ela o ouviu entrar em seu
quarto e fechar a porta. Só então respirou livremente. O pior tinha
acabado, pensou, ajeitando-se na caminha e esperando poder dormir
um pouco. Isto ela conseguiu, embora fosse um sono agitado. Às
seis e meia, levantou-se. Tricia deveria telefonar ao pai de Louise
às sete horas, portanto, ele deveria chegar logo depois, já que era
pouco provável que perdesse tempo em verificar se a chamada era
falsa ou não.Gale pôs-se a imaginar como esse homem desconhecido
receberia a mensagem. Provavelmente estaria na cama, e seu humor
seria dos piores ao ter seu descanso perturbado a uma hora tão
inconveniente.
Gale foi se tornando tensa enquanto os momentos passavam, e seus
nervos protestavam, apesar de seu enorme esforço para se
controlar. Estava pronta, com um penhoar um pouquinho mais
comprido que o négligé transparente que usava. Maldita
transparência, pensou olhando para baixo. O grande final seria
concretizado em questão de segundos. . .
Ela ouviu o carro parar, sua porta ser fechada com força, e um
rápido bater na porta da frente da casa. Alguns momentos de
silêncio, então vozes. O tom alto e imperioso do visitante alcançou
Gale, embora não muito claramente. A voz de Trevis era meramente
um murmúrio baixo e indistinto.
- Mas que raio. . .? - Algumas outras palavras que Gale não conseguiu
entender e aí: - Acabei de receber um telegrama dizendo que... -
Gale perdeu o resto, mas de qualquer forma esta era a hora de
fazer sua dramática entrada; contudo, ela hesitou, o coração
naturalmente acelerado. Respirou profundamente e saiu correndo
silenciosamente pelo corredor em direção ao salão onde Trevis

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fizera o visitante entrar.
- Trevis, querido, o que aconteceu? Ouvi vozes. - Ela parou e com
atónita descrença balbuciou: - Julius, o que é que você está fazendo
aqui? -, sem prestar atenção ao homem obeso que estava lá a
observá-la totalmente confuso. - Eu. . . você. . . - automaticamente
puxou as pontas do négligé porque, depois de um movimento
involuntário e um olhar de descrença, o alto grego ficou a passear-
lhe os olhos desde o rosto até os dedos dos pés, explorando o
gracioso conteúdo de seus chinelos de tirinhas e cada linha e curva
de seu corpo.
- Não sou eu quem deve perguntar o que você está fazendo aqui?
- respondeu Julius suavemente, ao que Gale só pôde dizer:
- Pensei que fosse Trevis quem eu encontraria.
- Um de vocês pode me explicar o que está acontecendo?
interrompeu o pai de Louise, a voz tumultuada e com o rosto
excessivamente vermelho.
- Sem dúvida pensou que seria Trevis - comentou Julius, ignorando a
interrupção e amarrando o cordão de seu robe que se abriu, visto
que fora amarrado às pressas. - Obviamente você não veio aqui com
a intenção de dormir com ele; assim, não consigo, até o momento,
adivinhar o porquê de sua presença. - Era difícil dizer quem, ali,
estava mais atordoado. - Este senhor começou a falar sobre um
telefonema de uma mulher desconhecida informando que
- Julius cortou a frase, franzindo a testa. - É melhor o senhor
recomeçar - disse ele, dirigindo-se ao homem. - Eu ainda não tinha
pego o fio da meada antes de sermos interrompidos por minha
amiga.
- Sua amiga? - rosnou o homem, olhando ferozmente para Julius. -
Foi me dito que ela era amiga de Trevis, e que ele estava aqui com
ela. Ele está aqui? - questionou de repente, os olhos cheios de
suspeita.
- Vim sozinho - replicou Julius com voz baixa. - Trevis não quis vir
porque a namorada dele estava viajando, foi o que me informou um

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amigo comum que lhe pediu emprestado o rancho para que eu viesse
neste fim de semana. Não conheço pessoalmente Trevis, mas pelo
que entendi, ele passa aqui com ela a maioria dos fins de semana.
- No rancho! - O rosto do homem tingiu-se de violeta-escuro.
- Jovem, você está falando de minha filha! Trevis a vê, mas em
minha casa - elucidou, acrescentando: - Você tem certeza de que
ele não está aqui agora?
- Foi o que acabei de dizer - retrucou Julius, dando um bocejo meio
impaciente e entediado. - Gale, acho melhor você começar a se
explicar. - Apontou uma mão imperativa em direção a uma
cadeira. - Sente-se. - Era uma ordem, dada suave mas
enfaticamente, e o queixo de Gale levantou. Mas, instantaneamente,
entendeu o motivo dessa ordem: seu négligé tinha se aberto de
novo, revelando seu corpo. Obedeceu enrubescida, ao perceber o
olhar do velho voltado para as curvas de seu corpo. Envergonhada,
Gale baixou os olhos. Julius pediu-lhe novamente uma explicação.
Mas, constrangida em frente ao pai de Louise, lançou-lhe um olhar
bastante significativo. Julius fixou-lhe os olhos por um longo
momento antes de dizer.
- Pensando bem. Gale, é melhor conversarmos em particular. Virou-
se para o pai de Louise e disse-lhe: - Só posso lhe pedir desculpas
pelo incómodo causado, e rogar-lhe que saia.
- Saia? - Ele explodiu. - Exijo saber o motivo por que fui trazido até
aqui. Informaram-me que encontraria meu futuro genro com outra
moça e, em vez disso, encontro um estrangeiro com sua,
sua... - as palavras tiveram uma parada abrupta em resposta à
mudança de expressão de Julius.
- Sim - murmurou -, o senhor ia dizendo. . .?
Mas o homem deu-se conta que a prudência era a melhor política,
pois resmungou apenas algumas palavras, dizendo que entraria em
contato com Trevis imediatamente e exigiria dele uma explicação.
- É evidente que o senhor esperava encontrá-lo aqui - acusou Gale -,
pois já o mencionou.

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Julius estava à porta, mantendo-a aberta; o homem lançou-lhe um
olhar feroz ao passar por ele e, logo depois, seu carro podia ser
ouvido saindo à toda pela estrada.
- E agora - insistiu Julius suavemente, enquanto se voltava para
Gale -, talvez você já possa me esclarecer as coisas?

CAPITULO III

Profundo silêncio reinou na sala quando Gale terminou a narrativa;


era o silêncio surpreso de Julius, e o embaraço de Gale. Não era
nada agradável ser forçada a contar essa história a Julius, não
apenas porque confessara uma ação, que, estava certa, seria
considerada extremamente maquiavélica, mas, também, por ser a
história de um fracasso. Trevis agora escaparia à punição, e isto era
penoso para Gale pela confiança depositada no sucesso do plano, um
plano fadado ao fracasso desde o início, já que Tricia não estava
certa de que Trevis viria passar o fim de semana no rancho.
Gale concluiu, pelo que Julius dissera, que um amigo comum dele e
de Trevis tinha arranjado as coisas de forma que Julius pudesse
ocupar o rancho, fosse para pescar ou descansar. O motivo não
tinha a menor importância. O que contava era ele estar ali, agora,
causando toda aquela humilhação por que passava. Seus olhos
penetrantes fitavam-lhe o rosto, censurando e, ao mesmo tempo,
descrendo, apesar da confissão completa que ela acabara de fazer.
- Dizer que estou estupefato diante de sua atitude é muito pouco -
observou. - Sempre achei você uma garota estranha, mas não
esperava descobrir em você tendências criminosas.
- Não tenho certeza de ter pedido sua opinião a meu respeito
retrucou friamente, levantando-se. - Como não há nada mais a nos
dizermos, com licença. Devo me aprontar para voltar para casa.
Os olhos escuros dele analisaram-lhe a figura desinibidamente; ela

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sentiu um repentino arrepio na barriga, e fechou as pontas do
négligé apressadamente, com certa rispidez. Ele então lhe
perguntou, divertido:
- Você veio de carro, suponho?
Ela meneou a cabeça afirmativamente.
- Está lá fora.
- Convenientemente escondido? - Ele caminhou para a frente,
dirigindo-se para o meio da sala. Instintivamente, ela recuou um
passo, e o sorriso irónico de Julius aumentou. - Eu disse que nós nos
encontraríamos de novo, lembra? - Seu tom de voz era suave.
- Mas nunca pensei que nos encontraríamos assim! - Fez uma pausa e
completou:
- Que oportunidade!
Outro arrepio na barriga; ele estava brincando, é claro. . .
entretanto, Gale olhou por cima do ombro. A porta estava fechada.
Engolindo em seco, ela disse, lutando
para conservar a voz neutra:
- Não resta dúvida de que você considera esta situação divertida.
- Divertidíssima - respondeu Julius.
- Mas sua diversão vai durar pouco; vou embora daqui a poucos
minutos, assim que me vestir.
- Vai? - disse ele, num tom estranho.
- Claro. Não há mais por que ficar aqui. Você não deve estar
querendo ser incomodado. - Ela viu em seus olhos gozação
maldisfarçada. . . mas havia algo mais, algo que fez seu coração
acelerar, fazendo-a automaticamente medi-lo de cima a baixo, como
se medisse suas chances contra as dele num combate físico. Gale
poderia ter achado isso engraçado se não estivesse numa situação
tão precária.
- Ponha a mão sobre o coração de uma mulher e ela será sua
instantaneamente. . . - As palavras, pronunciadas com tal firmeza,
acorreram à mente de Gale mais uma vez, enquanto ela continuava a
enfrentar o olhar dele, temerosa do que via. . . e mesmo assim

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fascinada.
- Você não me incomodaria - Julius riu. - Pelo contrário, você
entreteria.
- Não seja ridículo! Que espécie de mulher você pensa que eu sou?
Os olhos escuros dele perderam o brilho; ele pareceu se entregar a
um momento de reflexão.
- Você está tentando me dizer que é uma. . . boa mulher?
Ela corou, esquecendo o perigo por algum tempo, à medida que a
raiva crescia.
- Você pode não crer nisso, mas sou! Ele levantou uma sobrancelha.
- Ora, Gale, não tente me convencer de que você tem sempre saído
ilesa de situações como esta; não do jeito que você se diverte às
custas dos homens, encorajando-os e depois os abandonando.
- Claro que tenho!
- Então, tudo o que posso concluir é que eles não são machos
verdadeiros. Você teria pago caro se tivesse tentado usar um de
seus truques comigo. - Fez uma pausa, esperando que ela
comentasse algo, mas Gale permaneceu silenciosa. - Talvez você
nunca tenha jogado um jogo tão perigoso como este aqui! - E quando
ela balançou
a cabeça quase mecanicamente, acrescentou:
- Você esperava se sair de uma loucura como esta totalmente ilesa?
- Avançou então um passo; seu gesto surpreendeu-a, pela rapidez e
pelo inesperado, fazendo-a recuar
outro passo e provocando novamente nos olhos dele aquele brilho de
gozação.
- Eu não esperava qualquer retaliação de Trevis, se é o que você
quer dizer. - O que não era inteiramente verdadeiro, porque Gale
tinha experienciado certos receios, embora Tricia lhe tivesse
assegurado que Trevis "não era assim de forma alguma".
Julius levantou ceticamente as sobrancelhas e disse:
- Não acredito. Tal ingenuidade é completamente fora de propósito.
Você sabia do risco e o aceitou.

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- Creio que posso cuidar de mim mesma - retrucou ela.
- Depende do tamanho desse tal Trevis. Você supõe que ele pudesse
cuidar de você contra mim? - disse com sutileza na voz e aquela
mesma expressão nos olhos. Gale umedeceu os lábios. Este era um
homem com quem não estaria a salvo; ele era muito seguro de si,
com toda aquela sua estampa de sedutor, tal como seu irmão o
descrevera naquela noite no churrasco.
- Não acho sua pergunta relevante - retrucou secamente. De fato, é
bastante ridícula. . . - Sua voz morreu-lhe na garganta quando, sem
aviso, Julius cobriu a distância entre eles com três lânguidos
passos. O pulso acelerado, ela atirou uma mão para trás, procurando
a maçaneta da porta. - vou me vestir agora - conseguiu dizer,
apesar dos nervos estarem à flor da pele e o coração aos pulos. O
homem era perigoso e, apesar de Gafe reconhecer isso, estava
profundamente consciente da excitante emoção que Julius lhe
despertara, agora pela segunda vez. - Está ficando tarde - disse
Gale, ao sentir a maçaneta da porta entre seus dedos. - É sempre
melhor começar uma longa viagem mais cedo, quando se está
bemdisposto.
Julius retribuiu-lhe um sorriso um tanto forçado e irónico.
- O que você está dizendo é absolutamente verdadeiro, minha
querida. . . mas é cedo demais para isso. De fato, é cedo demais
para se estar de pé. - E, sem lhe dar oportunidade de escapar,
tomou-a nos braços, apertando-a contra si, a boca colada à dela. Ela
lutou, como da outra vez, mas foi inútil diante da força dele. Sem
esforço, ele a prendia, forçando-a a aceitar seus beijos e
acariciando suavemente com uma das mãos seu seio esquerdo. - Não
lute. Gale - sussurrou. - Vamos nos divertir.
- Deixe-me! Mandarei prendê-lo se você puser um dedo em mim!
- Você espera que eu a deixe escapar. Gale? Um homem teria que
ser feito de pedra, para não aproveitar uma situação como esta! E
eu não sou de pedra, esteja certa. Pelo contrário, sou grego. . . e
você conhece nossa reputação, não? - Suaves e ligeiramente

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tingidos de humor eram os tons de sua voz. Gale renovou as forças
para se livrar de Julius, sentindo pela primeira vez em sua vida
medo de um homem. Mas, também pela primeira vez em sua vida,
sentia medo de si própria.
- Tire as mãos de mim! - gritou ela afinal, abandonando a luta
que soubera desde o início seria vã. - Já disse que estou indo
embora! - Porém, antes mesmo de pronunciar a última palavra,
Julius tinha aberto a porta e, com tanta facilidade quanto
empregaria para segurar uma boneca, levantou Gale nos braços e a
carregou ao quarto que ele ocupara durante a noite. - Você se
arrependerá disto - gritou ela, com a garganta seca, prestes a
engasgar. Ele fechou a porta e começou a desatar as tiras de seu
roupão. - Você nem sequer pensou nas consequências! - disse ela por
fim.
- Minha querida - interrompeu humoristicamente -, não é
exatamente neste tipo de situação que se perde tempo pensando
em consequências. Vamos concentrar nossa atenção no prazer que
está por vir e no romantismo desta situação em que nos
encontramos. Ele estava tirando o roupão, perto da porta,
impedindo qualquer tentativa de fuga. Assim, pensou ela, levando a
mão ao coração, que batia assustadoramente, seria capaz de safar-
se de uma situação destas? Quase sem esperanças, começou a
implorar, imaginando que isso seria mais eficaz que uma atitude de
protesto e agressividade. Mas Julius apenas sorria enquanto a
ouvia, e, então, disse que já era tempo de ela saber o que era medo.
A partir de agora provavelmente passaria a pensar duas vezes antes
de se propor a fazer alguém sofrer. Não havia a menor
consideração em seu rosto: cabeça erguida e queixo saliente tal e
qual nas figuras clássicas dos deuses gregos pagãos. Pagão é o que
ele parecia naquele momento, cruelmente decidido a levar adiante
sua idéia... e satisfazer o seu desejo.
- Você vai se arrepender - protestou ela, os olhos enchendo-se de
lágrimas ao vê-lo aproximar-se. - Eu não vou permitir que você faça

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isso.
Ele parou por um segundo. Ela estava de pé, de costas para a cama,
e não se mexera desde que ele a colocara ali.
- De minha parte não haverá nenhum arrependimento, Gale. Ele deu
mais um passo até alcançá-la. Desta vez seus braços já não estavam
tão pesados e a voz saiu mais suave. - E eu sinto que de sua parte
também não vai haver nenhum. Aliás, sou otimista a ponto de
acreditar que podemos até resolver levar nosso caso adiante. . .
- Mas eu não! - retrucou, o rosto frio e pálido. - A única coisa que
vou sentir por você é repugnância.
Mais uma vez ele sorriu e sacudiu a cabeça.
- Você não acha um pouco cedo para afirmar uma coisa dessa?
Espere até terminarmos; suas reações podem surpreendê-la.
Ela ficou muda e impassível, enquanto ele a segurava pelos braços, e
fitou-o.
- A modéstia realmente não é a sua virtude - disse-lhe com
desprezo.
- Nem é a insinceridade um de meus vícios - retrucou ele, sem se
perturbar. - Já tenho suficiente experiência com reações de
mulheres para saber se me aprovam ou não na cama.
Gale calou-se por um instante, pensativa, e deu asas à imaginação.
Não tinha dúvidas de que ele seria o amante perfeito; portanto, a
conotação que Julius deu era provavelmente verdadeira. As
mulheres seriam capazes de ter prazeres extasiantes com suas
carícias.
- Você já teve muitas mulheres? - Não era bem isto o que ela
tencionava perguntar. Ficou a imaginar se não seria essa uma
maneira de preencher o tempo.
- Acho que posso dizer muitas. - A naturalidade de sua resposta
falou alto. Nenhuma dessas mulheres o impressionara. Ele as
possuíra e delas se aproveitara para depois livrar-se delas sem
sequer pensar em seus sentimentos. Gale nem podia imaginar
quantas dessas infelizes se apaixonaram por esse belo grego.

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Mesmo porque, sem a menor sombra de dúvida, não era nada difícil
alguém se apaixonar por ele, a menos que estivesse alerta. E Gale
estava alerta. Sabia muito bem que nenhum homem fora capaz de
afetá-la tanto quanto ele. Julius continuou a se aproximar. Os
joelhos dela bambearam quando a abraçou forte. Seus lábios foram
sujeitos a um longo e ardente beijo; tinha o corpo colado ao dele e
sentiu o coração bater contra o peito. - Você é tão linda - sussurrou
com emoção. - Não resista. Gale, entregue-se para sentir tanto
prazer quanto eu. - Os braços firmaram-se, trazendo-a ainda mais
perto, passando, então, a acariciar seus seios.
- Não - ela implorou, vendo-se levada pela torrente da paixão.
- Solte-me, por favor!
- Você não quer que eu a solte, na verdade. Seja honesta e admita!
- Sua voz era gutural e vibrante com paixão desmedida; seus lábios
acariciavam-lhe a face, provocando-lhe um calor que se espalhou por
todo o seu corpo. - Pare de lutar e venha para mim!
- Nunca! - disse ela numa última tentativa defensiva. - Nunca. .. não
voluntariamente, quero dizer! - Ela conseguiu se afastar,
tocando-o no peito com os pequeninos punhos fechados. Nem em
fantasia mais louca poderia se ter visto em tal situação. Nada
poderia salvá-la. Resignadamente ela o admitiu, mesmo enquanto
alternadamente ameaçava e suplicava, com as lágrimas jorrando-lhe
dos olhos. - Eu quase não conheço você. . . é ridículo você chegar a
sugerir que eu... que nós... - Suas palavras foram sufocadas pelos
seus lábios; ela aproximou-se sem resistência, pois seus braços
apertavam firmemente seu corpo. "Por que se exaurir? Para medir
sua força com a dele? Ele deve estar rindo por dentro, ou talvez
esteja meramente exultando com seu papel de conquistador",
pensou ela - Solte-me - suplicou com a voz morrendo na garganta.
Imploro, Julius. - Os lábios dele tinham libertado os dela o
suficiente para que ela dissesse isso, mas não a deixaram terminar.
Seus beijos eram terrivelmente sensuais, seus olhos escuros eram
brasas de desejo, e assim, pouco a pouco, o calor que se difundia

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pelo corpo de Gale.se transformou numa chama. Seria tão
facilmente subjugada pelo ardor dele? Ela não corresponderia,
jurou solenemente. Julius não deveria ter a satisfação de tê-la
dominado a ponto de ela se transformar num mero objeto em suas
mãos. - Deixe-me - implorou novamente, perguntando-se por que se
dava a esse trabalho, já que estava resignada.
- Tarde demais, Gale; você está pedindo demais. Preferia que
abandonasse essa resistência idiota, mas você é teimosa demais, e
isto significa que não se sentirá tão feliz quanto eu a poderia fazer.
Contudo, é assim que você quer. - Ela suplicou de novo que a
soltasse, mas em vez de escutá-la, levantou-a nos braços e olhou
seu rosto por um momento. Finalmente falou. - Você parece esperar
o impossível sendo assim tão tentadora. Antes tive que me
satisfazer com um beijo, mas agora. . . agora, minha linda Gale, terei
muito mais. Parou abruptamente, ouvidos alerta, os olhos indo do
rosto pálido de Gale para a porta do banheiro, que estava apenas
encostada. - Que diabo está acontecendo? - Pondo-a no chão, ele
cruzou a passos largos o quarto e escancarou a porta. Gale seguiu-o
e ambos ficaram parados lá, olhando atónitos a enxurrada de água
que escapava do cano preso à parede do banheiro.
- Arrebentou - Gale disse desnecessariamente, e uma risada
escapou-lhe, uma risada quase histérica, que trouxe os olhos do
companheiro de volta aos seus.
- Que oportuno para você - comentou ele, os olhos escuros
errando por seu corpo esbelto, como se mesmo nesse momento ele
desejasse endereçar-lhe um último olhar de desejo. - Salva - disse
ele secamente -, e por um incidente tão pouco romântico como um
cano arrebentado! - Um sorriso enigmático animou-lhe os lábios. Sua
expressão revelava humor forçado, misturado com certa decepção.
- Você deve agradecer aos céus por isso! - Substituindo o humor
por seriedade, murmurou gentil e sutilmente: - Não é, querida?
O rubor subiu-lhe às faces pela indireta de que também ela estava
desapontada. Subitamente o jorro d água aumentou, quando o cano

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cedeu ainda mais. Julius moveu-se rapidamente ao notar a poça
formada junto a seus pés; os chinelos de Gale, porém, ficaram
encharcados. A água continuava a jorrar do cano e já penetrava no
quarto.
Julius enervou-se, agarrou o roupão e vestiu-o.
- Acho que você não sabe onde fica o registro? - Não, disse ela.
- É melhor eu ir procurá-lo, ou logo estaremos com água pelos
joelhos.
Permaneceu imóvel após ele sair, fascinada com a água escorrendo,
esquecendo-se mesmo de que estava com os pés molhados. Por que
se sentia assim? Vazia e como que no limbo? Aquele velho cano
acabara sendo sua salvação, e ela estava extraordinariamente
aliviada. . . ou não? Corando instantaneamente, ela se lembrou da
sutil insinuação de Julius, e rapidamente a eliminou de sua cabeça. É
claro que se tranquilizara com a oportuna intervenção do destino. . .
E, contudo, por que essa tranquilidade não era mais satisfatória?
Por que não estava mais relaxada? Voltando a cabeça para Julius,
que retornava, notou seu cenho fortemente franzido.
- O maldito registro deve ser lá fora. - Ele pareceu não ter
percebido que ela não se movera desde que saíra do quarto, pois
acrescentou: - Arrume-se rápido, enquanto me visto. E quando você
terminar ocupe-se da cozinha. Tem bacon e ovos na geladeira. E é
melhor encher algumas garrafas de água antes de eu fechar o
registro.
- Está bem. - Durante um momento seus olhos se encontraram, e
Julius riu.
- Vá, vá - ordenou bem-humorado, e ela se retirou do quarto,
fechando a porta suavemente atrás de si.
Mais de uma hora se passou até que se sentassem para tomar o
café da manhã. Passaram a metade do tempo enxugando o chão
e pendurando os tapetes para secar. Acomodaram-se
numa mesinha da cozinha, um em frente ao outro, e puseram-se a
comer os ovos com bacou que Gale havia preparado.

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- E não é que ela sabe cozinhar? - observou Julius, com bom humor.
- Geralmente as mulheres bonitas desconhecem as prendas
domésticas. - Apanhou o galheteiro e
serviu-se de pimenta e sal.
Em outras palavras Gale não conseguiu se conter -, você
sempre acaba ficando sem o seu café?
Ele a fitou e parecia divertir-se ainda mais.
E faz gracinhas também? Na realidade, acredite ou não, não
sou mau cozinheiro.
- Isso me surpreende. - Gale agora reganhara sua confiança, e
retribuiu-lhe um sorriso. - Sempre acreditei que os homens gregos
se consideravam muito superiores para se dedicar ao que. durante
séculos, tem sido considerado trabalho de mulher.
- Em geral, é isso mesmo; os homens gregos consideram-se
realmente superiores. - Apanhou a bandeja de torradas e ofereceu
a ela. Gale serviu-se e agradeceu.
- Você é um homem estranho, Julius. - Gale quebrou o curto silêncio
durante o qual ele passava manteiga na torrada e ela simplesmente
o observava. - Você nunca teve vontade de se casar?
Ele levantou os olhos para ela.
- A vontade de casar só vem quando surge a mulher certa.
- Então, obviamente, você ainda não achou a mulher certa.
- Conclusão brilhante! - disse ele, divertindo-se com seu embaraço,
ao percebê-la ruborizar-se com seu tom de sarcasmo.
- Acho que disse algo irrelevante. - Admitiu Gale, concentrando-se
na comida.
- E você? Está mesmo decidida a jamais se casar?
- Estou.
- Só porque um homem a fez sofrer. Bobagem, Gale, nem todos os
homens são iguais.
Ela hesitou um pouco e, com certeza renovada, disse: - Meu pai
sempre fez minha mãe sofrer. E eu também sei de inúmeros
casamentos que se desfizeram. - Balançou

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a cabeça. - Não vale a pena me arriscar.
- Concordo que o casamento seja um risco - disse Julius suavemente
e com certa seriedade. - Mas quando se é extremamente cauteloso,
certificando-se bem da escolha antes de se apaixonar, o casamento
então pode, sem sombra de dúvida, ser ideal.
Gale olhou-o surpresa. Ele estava tão sério agora. . . tão, tão
diterente do homem que, há pouco, estivera possuído de tão más
intenções. Tão descompromissadamente quanto tentara seduzi-la,
dir-lhe-ia adeus, a menos que ela tivesse concordado em prolongar o
caso como ele aparentemente desejava. Quanto iria durar? Talvez
um mês ou dois, um ano no máximo. Supondo que tivesse
concordado, sairia desse relacionamento em paz? Gale surpreendeu-
se buscando uma resposta, o que de fato já era uma resposta,
embora se recusasse a reconhecê-lo.
- Você - começou, dirigindo-lhe um olhar por debaixo dos cílios
longos e curvos - eventualmente gostaria de conhecer esse estado
ideal de que fala?
Os lábios finos dele se curvaram, enquanto os olhos permaneciam
graves. Gale observou que este ar sério era muito atraente. - Você
está perguntando se eu gostaria
de me casar? Ela acenou com a cabeça, sorrindo timidamente.
- Sim, é isso que eu estava perguntando.
Seguiu-se um momento de silêncio; Julius estava absorto em seus
pensamentos, e por uma razão indefinível, a mente de Gale voltou à
noite do churrasco e, num rasgo de memória, ouviu o irmão dizer:
"Nosso amigo grego parece estar encantado com sua beleza; não
tirou os olhos de você a noite toda".
- Devo admitir que até há pouco tempo eu não dava a mínima para a
idéia do casamento... - Ele se interrompeu, e por um segundo seus
lábios curvaram-se. - Um homem não precisa disso atualmente,
quando as mulheres são tão fáceis. Se desejar uma mulher, quase
sempre a terá sem muita dificuldade.
- Você é terrivelmente insolente - disse ela. E seus olhos violeta

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faiscaram ao encontrar os dele. Um momento de hesitação e então,
sem poder se conter, comentou: - Acredito que você considera
enfadonho conquistar as mulheres fáceis, não?
- Onde você ouviu isso? - reagiu ele.
- Não adivinha? - respondeu ela, com voz doce. - Então você deve
ter o hábito de repetir isso por aí.
- Perguntei onde você ouviu isso.
- No churrasco - admitiu após curta pausa.
- Sei. . . - murmurou ele pensativo, e com um tom de desconfiança. -
Isso não foi tudo o que você ouviu, foi?
Gale corou, apesar de seu ar desafiante e da determinação íntima
de não se permitir ser desconcertada por aquele homem.
- Não - confessou -, não foi tudo o que ouvi.
julius calou-se, os olhos piscando preocupados. A voz continha
censura quando afinal quebrou o silêncio.
Você tem o costume de ouvir a conversa dos outros?
O rubor de Gale acentuou-se.
Não podia saber que vocês dois estavam do outro lado do
roseiral - retrucou defensivamente.
Mas ainda ficou para ouvir, quando descobriu que estávamos
lá. não? - perguntou ele, com a voz crispada. Ao parar de falar, sua
boca fechou-se apertada e severamente. Gale notou a fria
austeridade de suas feições e pensou em como ele evidenciava sua
origem grega neste momento, com a pele escura e os olhos quase
negros.
- Não pude evitar de escutar a conversa. Mas não fiquei
deliberadamente lá para ouvir mais.
- Ouviu o suficiente, pelo jeito? - Era essa uma pergunta sutil, e
Gale baixou os olhos para o prato, imaginando o que viria em
seguida. - Você me ouviu dizer que eu preferiria uma luta? - Gale
acenou que sim, e ele então perguntou: - E você também ouviu o que
veio depois?
Ela encarou-o, relembrando vividamente o instante em que, há

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pouco, ele conseguira pôr a mão sobre seu coração.
- Você se gabava de modo arrogante e não como se esperaria de um
cavalheiro.
Ele sorriu divertido.
- Aquilo era conversa de homens, lembre-se, e não para agradar aos
ouvidos de mulheres.
Os olhos dela fulminaram-no com desprezo.
- Os homens são desprezíveis pela forma com que falam sobre
mulheres!
- As mulheres não falam sobre homens?
- Não da mesma forma. Vocês estão sempre se gabando de suas
conquistas e afirmando que as mulheres são frívolas e... sem
personalidade - acrescentou, tentando recordar-se exatamente das
palavras do professor.
- Apenas dizemos a verdade, e se você orviu tudo isso, devem ter
sido momentos bem desagradáveis para você.
- Eu estava furiosa - admitiu, fitando-o ressentida e recebendo
em troca um sorriso divertido. - Eu poderia ter ido lá e dito umas
boas a vocês dois. - com um movimento raivoso, pegou o bule de café
e acrescentou: Quer mais?
Ele acenou afirmativamente, os olhos cravados em seu rosto
avermelhado.
- Obrigado, Gale. - Havia uma alternância pronunciada em seu tom
quando continuou. - Sinto que você tenha ouvido tudo isso; você
deve ter ficado com uma má impressão de mim, - Ela replicou
secamente:
- Minha opinião sobre você importa, Julius?
- Você pode não acreditar, mas importa.
Ela fitou-o com suspeita enquanto recolocava o bule no lugar.
- Você não se preocupou com isso agora há pouco, quando tentou... -
Ela parou a fim de parafrasear suas palavras, mas não houve, na
verdade, delicadeza em seu modo de fazê-lo, e o que acabou
dizendo só fê-lo rir. - Quando você começou a jogar sujo comigo!

Livros Florzinha - 44 -
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- Devo confessar que minha mente estava ocupada com assuntos
bem diferentes do que o cuidado por sua opinião a meu respeito
- reconheceu com candura, o riso refletido nos olhos. Gale fitou-o
significativamente, o que, para seu desgosto, provocou em Julius um
certo ar de prazer.
- Que anticlímax romântico! - prosseguiu ele, com uma expressão
meio de gozação e pena. - O mais vexatório de tudo é que você
estava lá no outro quarto. . . - a noite toda. Que oportunidade
jogada fora!
As suspeitas dela voltaram, desta vez por outro motivo.
- É óbvio que você está me gozando. Julius, e isto me faz pensar se
você realmente tinha intenção de me prejudicar, conforme
ameaçou, ou se estava apenas procurando assustar-me.
Ao ouvir isso, arregalou os olhos escuros.
- Minha cara Gale - disse com candura -, minhas intenções não
poderiam ter sido mais desonrosas. Já lhe disse mais de uma vez
que você é insinuante, e isso significa provocante. Simplesmente não
poderia deixá-la partir sem antes conhecer melhor seu charme. -
Ele lançou-lhe um olhar de advertência. - Desta vez foi salva pela
explosão daquele maldito cano, mas na próxima oportunidade pode
estar certa de que não fugirá outra vez.
- É muito improvável que haja outra ocasião como essa - retrucou.
- Você ainda não respondeu o que lhe perguntei sobre casamento-
lembrou-lhe, ansiosa por eliminar da conversa o tom íntimo
e pessoal.
- Ah! Sim! Estava dizendo que não havia pensado muito a respeito
disso até recentemente. - Parou Ela se surpreendeu por descobri-lo
à procura das palavras adequadas.
Surpreendeu-se mais ainda ao notar que ele não as encontrara, pois
se limitou a dizer: - Vamos mudar de assunto, Gale. Meus planos de
casamento não devem ser de seu interesse. - Ainda pôde pousar os
olhos sobre ela um pouco, antes de concentrar toda a atenção no
café da manhã.

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14

CAPITULO IV

A certeza de ter saído impune de sua aventura, com nada mais sério
a rememorar além do fracasso em castigar Trevis, desvaneceu-se
em tempo razoavelmente curto.
Que soubera de todos os detalhes sobre a tentativa de trapaceá-lo
ficou aparente quando, numa carta a Tricia, denunciou sua conduta,
dizendo que não adiantava ela negar ter sido a mentora do plano,
porque ninguém mais poderia ter feito.
Ele prosseguia dizendo que era óbvio que a garota no rancho era
amiga dela e que, se um
dia ele descobrisse sua identidade, aconteceria o pior. Gale
simplesmente deu de ombros à notícia, já que não podia visualizar
qualquer maneira de Trevis chegar
a se vingar dela.
- Nunca imaginaria que ele pudesse escrever este tipo de coisa.
- Tricia estava cheia de lágrimas e infeliz ao ler a carta à amiga.
Tão frio e acusador.
- E isso não era de se esperar? - Gale entiu-se forçada a perguntar.
- Ele foi checado e acusado pelo pai de Louise, e, embora enha tido
sorte o bastante para escapar do que merecia, é natural que ficasse
zangado. De qualquer modo, não acho que nos incomodará mais -
acrescentou com absoluta confiança.
- Que bom que ele não sabe quem foi - disse Tricia, franzindo
o cenho. - Parece que, afinal de contas, é vingativo.
Gale, indiferente, nada disse, pois não conseguia ver Trevis se
icomodando mais com o assunto e, além do mais, não havia a menor
Possibilidade de descobrir quem
estivera no rancho, pois Julius jamais mencionaria seu nome. Disto
Gale tinha certeza, independente dos conceitos de moral de Julius,
que, acima de tudo, era um cavalheiro Além do mais, ele retornara à

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Grécia, e Gale soubera pelo irmão que não deveria voltar à
Inglaterra até o fim do outono, dali a três meses; até lá, Trevis
estaria, provavelmente, casado e teria esquecido todo
o episódio em que ele próprio deveria ter sido o ator principal.
E foi assim que, apenas decorrida uma semana, Gale, com certa
descrença, ouviu o relato da mãe de que o noivo de Tricia telefonara
informando-a de que sua filha passara a noite com um estrangeiro
no rancho de pesca em Cumberland.
- É verdade? - A sra. Davis parecia dez anos mais velha. Você não
estava em casa naquela noite, e me disse que pretendia passá-la
com uma de suas amigas numa casa de campo. - A sra. Davis olhou-a
inquisitivamente, uma expressão assustada no rosto.
- Eu, eu... - Gale parou, umedecendo os lábios, pois sua boca estava
seca, dificultando as palavras. Nunca lhe passara pela cabeça que
isso acontecesse. Se tivesse imaginado por um segundo que sua mãe
chegaria a saber do fato, Gale teria se recusado a participar do
plano de Tricia. Como Trevis descobrira seu nome? Por mais que
forçasse a memória, a resposta não aparecia, e Gale perguntou-se
se isso seria um mistério para sempre. Fitou a mãe, notou a quase
angústia em sua face pálida e cansada, e sem hesitação decidiu que
a única saída era contar a verdade, mesmo que chocasse sua mãe.
Seria inútil mentir - começou -, mas não é tão mau quanto parece.
Eu ocupei um quarto e Julius outro.
- Julius? - interrompeu depressa a sra. Davis. - Julius Spiridon. o
grego? - e, quando Gale acenou afirmativamente com ar de nada
compreender, acrescentou: - Edward mencionou o nome dele. e
contou que lhe dera muita atenção no churrasco. Edward disse que
ele não tirou os olhos de você.
- Isso não tem nada a ver com a história do rancho.
- Deve ter. Você acabou de dizer que esteve lá com ele.
- Não com ele, não do jeito que você sugere, mamãe. Dormimos em
quartos separados. - Sua mãe a teria interrompido de novo, mas
Gale apressou-se em relatar a história toda, desejando ver as

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
feições tensas e duras relaxarem pelo menos um pouco; ao invés
disso, para seu espanto, viu uma expressão de horror desenhar-se
vagarosamenu no rosto da mãe. - Você não crê numa só palavra -
arfou, percebendo só agora quão inverídica sua história deveria
parecer.
- Não sei como você se atreve a mentir tão descaradamente! -
A sra. Davis terminou com um soluço, continuando depois de um
minuto, mas murmurando mais para si mesma que para Gale: Você
puxou a seu pai... e depois de todas as minhas orações para que isto
não acontecesse. Uma mentirosa! Ah, sim, ele também me contou
umas mentiras, no tempo dele, para se desculpar pelas noites fora
de casa, mas nunca inventou uma história como esta. Mentiroso e
depravado sempre foi, mas a vida era suportável enquanto eu tinha
você e Edward, é claro. E agora você também me trai. . .
Ainda falava consigo própria, longe da filha, que só conseguia olhá-la
fixamente, chocada com suas palavras. Esperava ser repreendida
por uma ação que Julius definira como criminosa, no que Gale agora
concordava por completo. Sim, ela esperava uma severa reprimenda
por aquilo, e se tinha preparado para aceitá-la sem ao menos uma
palavra em defesa própria. Mas jamais imaginara que a mãe se
comportasse deste modo, recusando-se a crer nela, qualificando-a
como igual ao pai.
- Dormir com um homem, e um grego, ainda por cima! - A sra. Davis
levantou os olhos; Gale vacilou a sua expressão, mordendo o lábio
até machucar. - Há quanto tempo você o conhece? - A mãe balançou
a cabeça enquanto falava, e prosseguiu sem dar a Gale oportunidade
de responder a sua pergunta. - Não pode fazer muito tempo, porque
você nunca falou dele. - Um longo suspiro estremecido escapou dela.
- Dormir com um estranho!
- Eu não dormi com ele! - A raiva tomou conta de Gale, embora o
remorso fosse a emoção que prevalecia. Causara um grande
sofrimento à mãe, por quem tinha um amor imenso. Tal
reconhecimento causou-lhe uma quase dor física no coração. - Você

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tem que acreditar; é a pura verdade!
Mas a sra. Davis não se conformava, e a moral de Gale foi-se ao
chão. Como poderia convencer a mãe? Tentou, insistiu por muito
tempo; suas emoções eram um misto de frustração e angústia por
magoar quem mais amava no mundo.
- Existe alguma possibilidade de vocês se casarem? - perguntou a
mãe finalmente, como se Gale não tivesse sequer dito coisa alguma
há mais de meia hora. - Ou é apenas uma aventura, um romance para
passar o tempo?
Gale explicou que não havia a menor possibilidade de casamento,
mesmo porque Julius e ela não eram nem amigos. Eram meros
conhecidos - disse, e tentou novamente convencer a mãe de que
nada houvera entre ambos.
- Não adianta - disse a sra. Davis desanimada. - Você está mentindo;
talvez você não saiba, mas ficou corada o tempo todo em que falava
nesse homem e negava qualquer relação com ele.
Corada. . . É, ela sentira o sangue subir-lhe à face - e isso por
lembrar-se das intenções abusivas de Julius. Se ele não tivesse sido
impedido de levar a cabo suas intenções, a história que Gale teria
para contar seria totalmente diferente. Ficou corada, sim; e esse
incidente serviu para enfraquecer ainda mais uma história que já
não era muito convincente.
- Eu nunca vou perdoá-la - disse a sra. Davis, magoada. -. Perdoaria
caso vocês estivessem considerando a possibilidade do casamento.
Os tempos já não são os mesmos;
hoje em dia é normal um relacionamento íntimo mesmo antes do
casamento. É. . . eu aceitaria a situação. Mas pensar que você foi lá
sabendo que não se casaria com ele.
Sabendo que qualquer tentativa de sua parte seria inútil, Gale
deixou a mãe ali e saiu. Pegou o carro e pôs-se a vagar pelos campos,
onde ainda podia encontrar paz.
Mas sua mente era um caos, e o coração sofria pela mãe. Edward já
havia profetizado que ela. Gale, se arrependeria de seu estilo de

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
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vida. Mas Gale ria, confiante de que sempre sairia vitoriosa onde
quer que estivesse. Essa, porém, era uma situação delicada,
diferente de todas as outras. . . por diversos motivos. . .
Ficava uma pergunta: quem teria informado Trevis? A única pessoa
que lhe ocorria era o próprio Julius, mas ele não estava na
Inglaterra.
Julius. . . de cabelos jeitosos e de personalidade nobre e
autoritária. Já no primeiro encontro Gale sentira algo indescritível
e irreal como os detalhes de um sonho ao acordar, mas presente o
tempo todo. E aquela manhã no rancho? Ela o teria resistido? A
força dele certamente combateria toda e qualquer resistência
física por parte dela. Contudo, ceder
não seria o mesmo que render-se. O que preocupava Gale, muito
embora ela estivesse fora de perigo, é que poderia ter sido forçada
a render-se totalmente. . . em
função do charme daquele homem e de seus próprios sentimentos
em relação a ele. Reconhecer seus dotes físicos, saber que mexia
com ela até a raiz, isso obviamente
concorreria para enfraquecer suas resistências quando lhe
aplicasse táticas tão experientes. Ela declarara veementemente sua
inocência à mãe, mas era mesmo inocente?
O acaso a salvara, mas mesmo agora.
honestamente. Gale tinha que reconhecer que o sentimento de vazio
que deixou sua fuga trazia em si um elemento de frustração. E,
como o reconhecimento a envergonhou, procurou logo desviar o
pensamento para uma direção menos comprometedora.
Mesmo assim, em que mais ela poderia pensar senão nisso? Era
natural que a coisa reincidisse ininterruptamente. Julius ainda era o
centro. Ela mais uma vez refletiu sobre a afirmação do irmão de que
julius não tirava os olhos dela; e apesar disso, mais tarde, enquanto
conversavam, Julius declarou que ela teria que esperar séculos
antes que ele se deixasse cair por seus encantos. Isso queria dizer
que ele era impermeável a esses encantos... e ainda assim a beijara,

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e confessara que esse fora seu desejo quando a viu pela primeira
vez.
Que homem estranho! Sendo oriental e culto como era, educado na
Inglaterra, ainda assim possuía aqueles traços tão diferentes dos
ocidentais. Seu temperamento e suas características físicas eram
diferentes. Tinha o fogo natural da paixão dos gregos. Tinha
também o espírito dominador, tradicional desde os tempos
homéricos. Os gregos possuem as mulheres: são suas propriedades,
suas subordinadas; obedecem-nos cegamente; isso também faz
parte da tradição. A ordem dos maridos é seguida à risca e só
prevalecem seus desejos.
"Que estrutura mais antiquada", pensou Gale, associando duas
coisas que Julius lhe dissera: a primeira, que o casamento só se
verifica quando a mulher certa aparece; a segunda, que até pouco
tempo atrás nem pensava em casamento. Gale deixou-se tocar com a
idéia de casamento de Julius, mas por que isso iria afetá-la? Seu
estilo de vida não era problema dela. Ela fizera tudo para discutir o
assunto, mas Julius logo mudou de conversa, deixando-a curiosa.
Ela acabara de parar o carro e tencionava caminhar pela avenida
arborizada, mas mudou de idéia e voltou para casa. Como sempre o
pai estava fora, mas, para a surpresa de Gale, a mãe também. Gale
começou a pensar.onde a mãe poderia ter ido, pois sempre estava
em casa à noite. Na verdade, deve ter saído para ir às compras, por
uma hora mais ou menos, não mais que isso. Por um acaso o
comportamento de Gale tinha algo a ver com essa saída? Preocupou-
se com isso. Onde poderia ter ido a mãe?
Dez minutos depois Gale encontrou o bilhete; fora deixado no
aparador, mas quando Gale abriu a porta, o vento deve ter
derrubado o Papel no chão. Gale apenas o viu ao sentar-se.
"Não espere por mim acordada; devo chegar tarde" era o que
dizia, em palavras abruptas e breves. Bastou isso para que Gale
ficasse com os nervos à flor da pele. Porém, como não havia nada a
fazer, decidiu-se ficar calma.

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Sabrina no. 14
A mãe havia dito qualquer coisa sobre um filme. Quem sabe tinha
ido ao cinema?
Quando chegou, entretanto, recusou-se a dizer à filha onde
estivera
- Eu lhe disse que não me esperasse acordada - disse quase
gritando. - Por que esperou?
Surpresa com a rispidez da mãe, Gale olhou para ela procurando as
razões de tão drástica mudança.
- Preocupei-me, é claro. Você nunca sai e não podia imaginar onde
você tinha ido.
- Nunca saio, não é? Pois é o que vou fazer de hoje em diante, e nem
você nem seu pai precisam saber onde vou! - e assim deixou Gale
falando sozinha e subiu para
o quarto. Gale esperou o pai, que só chegou às duas e meia da
madrugada.
- Que bicho lhe mordeu? - perguntou com voz gutural, e então lhe
ocorreu: - Sua mãe. . . ela não está doente, está?
- Faz alguma diferença para você? - disse Gale friamente, enquanto
observava a expressão no rosto do pai. Ele estivera bebendo, mas
não até aquela hora da noite.
- O que houve? - perguntou ele novamente, dirigindo-se ao sofá.
- Mamãe saiu hoje e só voltou depois da meia-noite. O pai franziu a
testa.
- Onde ela foi?
- Não disse. - Hesitou um pouco antes de contar ao pai o que
acontecera há pouco. - Tenho certeza de que foi isso o que a levou a
sair - concluiu afinal.
- Você foi a Cumberland e esteve com um grego? - O pai contorceu-
se de tanto rir. - Tirando suas casquinhas, hein?. . .
- Pare com isso! - gritou, batendo o pé no chão para enfatizar suas
palavras. - Eu lhe contei a verdade!
- Mas sua mãe não acreditou!
- Já lhe disse isto também. . .

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- Pois nem eu acredito - disse o pai, rindo com os dentes cerrados. -
Espero que você tenha se lembrado do que. . . Está bem. esqueça.
Uma diversão não faz mal a ninguém. O problema de sua mãe é ser
um pouco moralista demais.
Gale fuzilou de raiva. Quisera poder avançar no pai e apagar ele riso
irónico de seu rosto.
- Moralista demais, é?!!! O que você diria se ela começasse a fazer o
que você faz?
Bastou isso para que ele fechasse a carranca.
- Onde ela estaria a essa hora da noite? - perguntou bruscamente,
aumentando o menosprezo de Gale. Ele podia dar suas voltinhas, mas
a esposa tinha que permanecer correta.
- Já disse que ela se recusou a dizer onde esteve.
Ela não conhece ninguém. Ou melhor, não poderia estar visitando um
vizinho porque nunca se mistura com eles.
Gale concordou.
- Não, ela jamais iria à casa de um vizinho. - A mãe era gentil e
educada, mas muito tímida para ir além de um contato formal por
ocasião de um casamento, doença ou nascimento. - Estou muito
preocupada com ela - continuou Gale, enquanto o pai se mantinha
pensativo e em silêncio. - Ficou tão nervosa com o que aconteceu,
com o que acha que aconteceu, tenho certeza de que saiu por causa
disso.
- Provavelmente foi passear a pé - completou o pai, após breve
pausa. - Ê, ela é assim mesmo; vagueia pelas ruas a meditar. Fazia
isso há muito tempo, mesmo antes de você e Edward nascerem.
- Ela vagava por aí sozinha? Por quê? Ele deu de ombros sem se
importar.
- Por causa desse meu jeito safado - reconheceu.
- Você já era assim no início do casamento? - Olhou para -o pai
desgostosa, mas ele retribuiu-lhe o olhar sem demonstrar a menor
vergonha.
- Sua mãe e eu não nascemos um para o outro, e desde o começo já

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sabíamos disso.
- Ela teve dois filhos - interrompeu Gale, com .fogo nos olhos.
- E o que isto tem a ver? Mulheres frias podem ter filhos. Gale
calou-se. Quase. Quase engasgou. Odiou essa conversa, e
mesmo assim ainda disse:
- Você deveria ter tido um harém.
Ele limitou-se a rir e dizer que concordava com ela.
- Todos os homens deveriam ter mais de uma mulher - disse e e
ignorando o desdém no olhar da filha. - Os povos do Oriente
podem nos ensinar muito. Veja bem, há quem tenha quatro mulheres
Nada é mais sensato.
Ela se permitiu medir o pai da cabeça aos pés, totalmente
consciente do fato de que nunca tinha tido uma conversa do
género. Nenhum dos dois tinha inclinação para
interromper o diálogo. Havia muito a ser dito, e muito a ouvir sobre
a vida dos pais. Quanto mais ele falava de coisas passadas, mais o
coração de Gale se voltava
para a mãe. Viver com um homem por tanto tempo, dar-lhe dois
filhos e ser-lhe fiel, enquanto ele maculava tudo o que havia de
sagrado no casamento. . . A mãe fora uma santa; foi o que Gale
percebeu, então.
- No lugar dela, eu o teria abandonado - disse Gale, quando o pai
terminou. - Eu o teria abandonado para fazer exatamente o que
você fazia.
- Você, sim. Mas sua mãe. não! - Quanta confiança no que dizia!
- Sua mãe vai passar o resto da vida comigo porque ela é -assim.
- E você. . . você pretende continuar assim indefinidamente? disse
Gale após uma longa pausa, durante a qual digeriu o que o pai
dissera... e concordou com ele. A mãe passaria o resto da vida com
ele.
- Até que eu já não sirva para. . . - interrompeu o que estava por
dizer, e o riso malandro voltou. - Até eu ficar velho, e então a gente
sossega e vive a velhice feliz e em paz.

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- Então mamãe precisa esperar até envelhecer para ser feliz? Você
não pode mudar, pai? Você deve tê-la amado um dia.
- Um dia? Eu ainda a amo.
- Seu. . .! Não seja ridículo! É impossível que você a ame.
- Você não entende, Gale. Não há dúvidas sobre meu amor por ela.
Como Gale poderia crer nisso?
- E mesmo assim você a deixa, noite após noite? Se eu não ficasse
com ela duas ou três noites por semana, ela passaria sozinha todas
as noites da vida.
O pai bocejou; já não estava mais interessado no assunto e, quando
afundou na poltrona, percebeu que ele já estava fechando os olhos.
- É melhor irmos dormir - sugeriu, levantando-se da cadeira.
- Você ainda não me disse por que ficou acordada - disse, e bocejou
novamente.
- Foi para lhe contar sobre mamãe. Eu estava muito preocupada
e que não podia sequer imaginar onde teria ido.
- Pois é, agora você sabe. Ela esteve andando por aí. - Ele apontou o
indicador para Gale. - E desta vez você é culpada por ela star
nervosa. Quando inventar de se
divertir daquele jeito, pelo amor de Deus, tenha cuidado.
- Não me diverti daquele jeito, segundo suas palavras.
- Desista, Gale. Não há como fingir comigo. Você sabe que eu nunca
a recriminaria. . .
- Você é odioso! - disse-lhe, e deixou-o só na poltrona, desmaiado de
sono.

CAPÍTULO V

Quando a mãe insinuou que continuaria saindo, Gale entendeu que


essas palavras tinham sido ditas apenas em função do momento.
Esperava que a mãe voltasse à vida rotineira. Contudo, contrariando

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as expectativas da filha e do marido, a sra. Davis continuou a sair
três a quatro vezes por semana. Não havia argumento de Gale ou
ameaça do marido que a fizesse confessar o que fazia enquanto
estava fora.
- Onde ela pode estar indo? - Esta já era a terceira semana, e o sr.
Davis estava furioso. - Ela vive calada!
Confusa como estava, Gale de repente disse:
- Você não tem o direito de reclamar. Por acaso você diz a ela onde
vai?
Os olhos do pai inflamaram-se.
- Se me passasse pela cabeça que ela anda com um homem. . . Os
olhos de Gale revelavam desprezo.
- Se é que ela tem um amante, o que isso tem a ver com você?
- Eu sou o marido dela - gritou em resposta à filha, fazendo-a
assustar-se.
- Não é um pouco tarde para se lembrar disto?
- Cínica, como sempre. Bem, minha cara, não é porque você tem sua
guerra particular contra os homens que vai ajudar a instigar sua
mãe a rebelar-se contra mim. Se por um só segundo eu acreditasse
que ela estava com um homem - disse novamente por entre Os
dentes -, eu a estrangularia!
- Você faz meu sangue ferver! Ela deve levar uma vida super.
regrada, enquanto você se diverte desse jeito? Não sei como você
tem cará para dizer isso! - A raiva era grande; entretanto, Gale
estava ansiosa, pois realmente parecia que sua mãe tinha um amante
E como seria muita coincidência que algum homem tivesse
convenientemente aparecido há três semanas, Gale não pôde evitar
supor que a mãe conhecera esse alguém anteriormente, mantendo-o,
porém, à distância por seus altos ideais de fidelidade. E agora,
convencida de que a filha estava entregue às mesmas práticas do
marido, atirara os ideais pela janela e estava vivendo um romance.
- Se necessário, posso até segui-la. Gale ergueu as sobrancelhas.
- Mamãe pode ser simplória para seus padrões, mas não a ponto de

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permitir que você a siga.
O sr. Davis saiu, afinal, depois de consultar repetidamente o
relógio. Obviamente tinha um encontro, pensou Gale, seguindo-o
com menosprezo nos olhos enquanto passava pela janela da sala de
estar em direção à garagem. Quantas vezes a mãe tinha saído
naquele carro? Podiam ser contadas na mão! O carro desapareceu
ruidosamente. Gale
sentou-se no sofá, meditando sobre a mudança de comportamento
da mãe e o precipício resultante de sua ida ao rancho e -passar lá a
noite. A sra. Davis mal falara
com a filha durante as últimas três semanas, por isso a atmosfera
da casa era de tensão, com marido e mulher não se falando, mãe e
filha falando-se apenas quando necessário, e pai e filha discutindo
cada vez em que se achavam a sós.
Gale sentiu que não suportaria por muito mais tempo, e já tinha
inclusive considerado a idéia de mudar de emprego; ir trabalhar no
outro lado da cidade e dividir um apartamento com uma amiga que
alugara um grande demais. Mas, embora a idéia lhe agradasse por
um momento, logo a pôs de lado. A mãe ficaria ainda mais infeliz se
ela fosse e, de todo modo, Gale estava certa de que era apenas uma
fase no relacionamento entre ambos. Logo a velha camaradagem
seria restabelecida. Se ao menos soubesse o que a mãe estava
fazendo! Deve estar em algum lugar!
As reflexões melancólicas de Gale foram abruptamente
interrompidas pelo toque da campainha. Dirigiu-se à entrada para
ver quem era.
- Julius! - exclamou arfando e recuando imediatamente, após
abrir a porta. - O que...
Sorrindo educadamente, os olhos sobre ela como se não pudesse
deixar de roubar um olhar de admiração.
- Posso entrar? Você está sozinha, portanto podemos ter uma
tranquila e amigável conversa.
Ela franziu a testa com ar de nada compreender. Mas moveu-se

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para o lado e fez um gesto; ele passou por ela e a porta foi fechada.
- Por aqui. - Gale abriu a porta da sala de estar e ele a precedeu
através do apartamento grande e bem-arrumado. - Sente-se, por
favor.
- Obrigado. Será. que meu carro estará bem lá fora, na rua?
- Claro que sim. - Ela se sentiu desconfortável, apesar de sua
autoconfiança. Mas tanto ela como ele estavam recordando o que
tinha acontecido na última vez em que
tinham-se encontrado. - Por que está aqui, Julius? Pelo que tinha
entendido, você não voltaria à Inglaterra por algum tempo. . .
- Você não me perguntou como eu soube que você estava sozinha
- comentou ele, ignorando o que ela dissera.
- Acho que fui tomada de muita surpresa por sua aparição para
prestar atenção no que você disse. Como soube que estaria sozinha?
com um agradável sorriso dançando-lhe nos lábios, disse:
- Sua mãe me contou.
- Minha. . .! - Ela lançou-lhe um olhar estupefato. - Quando você viu
minha mãe?
- Várias vezes ultimamente.
- Mas você estava na Inglaterra todo o tempo? - Gale mirou-o com
ar de suspeita e divagou por um momento, perguntando com voz
muito suave: - Você contou a Trevis que eu estive no rancho aquela
noite?
O olhar dele era todo censura, e ela abaixou os cílios.
- Não conheço Trevis - respondeu-lhe laconicamente e com o
sotaque mais evidenciado em virtude da raiva. - E se conhecesse,
você honestamente acredita que eu falaria a ele de sua ida ao
rancho?
Ela balançou a cabeça, mas ainda disse:
- Alguém disse a ele.
- Chegaremos aí mais tarde - decidiu ele. - O que importa é que
você chocou sua mãe com suas atitudes maldosas, mas é claro que
você sabe disto. Ela lhe expôs sua opinião em termos bem explícitos

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imagino?
Ela fitou-o por um minuto e depois se sentou numa cadeira de
frente para a janela.
- Não é melhor você começar desde o início? - pediu, cruzando uma
perna esguia sobre a outra e recostando-se de maneira a aparentar
estar à vontade. Os últimos raios
de sol caíram sobre seu rosto e cabelos, iluminando seus contornos
e cores. Seus olhos violetas eram grandes e curiosos, a boca larga e
ligeiramente aberta, como que num convite. A atenção de Julius
estava toda concentrada no quadro adorável que ela fazia, e, ao
notar a mudança de expressão nele, ela sentiu o sangue subir-lhe às
faces, colorindo-as e aquecendo-as. Ele sorriu para si mesmo e...
seria sua imaginação, ela se questionou, ou havia de fato um brilho
de triunfo naqueles olhos escuros e perturbadores? Ela engoliu em
seco, rememorando com absoluta clareza a cena no quarto antes do
estouro do cano. Ela fora deixada num vácuo de, de... Era mesmo
decepção? Na época a pergunta fora colocada e posta de lado, mas
agora... O homem sentado lá ainda estava observando-a firmemente,
e ela baixou a cabeça, esperando que não fosse tarde para esconder
os pensamentos, mas com muito medo de que ao astuto grego nada
escapasse.
- Pelo começo. - Ele ficou absorto, as feições angulares fortes
delineando linhas pensativas. - Fico me perguntando por onde
começar. - Contudo, começou a explicação
de imediato. Gale foi informada de que sua mãe tinha telegrafado a
Julius dizendo que desejava vê-lo. - Vim imediatamente - disse ele,
e prosseguiu:
- Sua mãe está inconsolável.
- Só porque ela se recusa firmemente a crer em minhas palavras
- cortou Gale indignadamente.
- Você pode culpá-la por isso? - ele questionou com uma ponta de
sarcasmo. - Elas não merecem credibilidade.
- Como não? - ela retrucou iradamente. - Como é que a verdade não

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merece credibilidade?
- Voltemos ao ponto em que estávamos - disse suavemente. Sua mãe
está inconsolável porque, segundo ela, você puxou a seu pai.
- Quer dizer, mamãe falou-lhe tudo sobre meu pai? - Ela fitou-o
com descrença.
- Tenho certeza de que ela não me falou tudo - respondeu ele com
humor -, mas contou o suficiente para que eu entendesse como
ela chegou a se sentir dessa forma em relação a você. Ela diz que a
nica coisa que lhe devolverá a paz de espírito é o casamento. Ela
perdoará sua travessura se eu fizer de você uma mulher honesta.
Bastante antiquado, deve admitir, mas, enquanto a geração de sua
mãe estiver conosco, estes ideais prevalecerão. - Ele falava com
tal serenidade, quase sem expressão, que Gale só pôde mirá-lo
estupefata, tentando afastar a incrível idéia que estava se
instalando em sua mente.
- Por que você veio aqui? - conseguiu ela verbalizar finalmente,
e Julius levantou uma das sobrancelhas com ar de admoestação e
replicou: - Esse ar de satisfação não cabe agora, Gale. Você sabe
muito bem para que eu vim.
- Acho que devo estar sonhando. - Confusa, ela balançou a cabeça,
mas seu coração estava agindo estranhamente, batendo rápido
demais. Julius riu e assegurou-a de que ela estava bem acordada.
Então você está louco - ela declarou, e de novo ele riu. Quão
extraordinariamente belo ele era, com aquela risada enrugando-lhe
os cantos dos olhos cor de basalto, aqueles fartos cabelos escuros,
mas um pouco mais claros nas têmporas, formando um atraente
contraste com sua pele morena. Gale pôs termo a seu pensamento e
esperou que ele falasse.
- Qual é sua resposta? - perguntou, e recostou-se, estendendo as
longas pernas a sua frente.
- Gostaria de ouvir a pergunta primeiro.
- Romântica? Mas você sempre deu a entender que não o era.
- Seus olhos riram. Fez uma pausa, absorto pela expressão dela, que

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
mostrava surpresa à menção da palavra romântica. - Quer se casar
comigo, Gale? - finalizou brevemente.
Parecia haver uma só coisa a fazer frente a esta situação irreal:
gargalhar. Gale, porém, sabia que não era o caso de se rir; Julius
estava totalmente sério. Ele viera especialmente para propor-lhe
casamento, mas, certamente, não apenas a fim de mitigar a dor de
sua mãe?
- Estou interessada em saber a razão desta súbita proposta disse
ela.
- Maldita neutralidade e eu gosto de você por isso. - Vários
segundos se passaram enquanto ele a olhava com admiração.
Pergunto-me se alguma mulher já recebeu um
pedido de casamento com compostura mais neutra que a sua.
- Não este tipo de pedido - respondeu ela com certo orgulho.
- Deveria imaginar que estas circunstâncias são únicas, e que
nenhuma mulher já se viu em sua posição.
Ela nada teve a dizer a isso, e por um curto período de tempo sua
mente ocupou-se com reflexões sobre comentários que Julius tinha
feito em diversas ocasiões. Ela era provocante e desejável. Talvez a
frase mais significativa tivesse sido aquela relativa a casamento.
Ele não pensara muito no assunto até recentemente, dissera.
Até recentemente. . . Até conhecê-la? Por mais incrível que
parecesse, Gale sabia que era verdade. Mas o único interesse dele
por ela era, naturalmente, o prazer
que seu corpo lhe proporcionaria. Os gregos eram assim; poucos
deles se casaram por amor e, -por certo, não fora o amor que o
levara a fazer este pedido. Enviando-lhe um olhar desafiante,
disse-lhe:
- Você ainda não me disse a razão por que deseja se casar comigo.
- Cavalheirismo - retrucou ele prontamente. - Os gregos dão muito
valor a isso - acrescentou, evitando seus olhos.
- Tolice! Você não se preocupa nem um pouco com os sentimentos de
mamãe.

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
- Não? Então você tem idéias próprias sobre o porquê de eu querer
desposá-la?
Gale encarou-o, sem trair o que ia em sua mente.
- Você deliberadamente está evitando dar uma resposta a minha
pergunta - lembrou.
A impaciência transpirava no tom de voz quando ele disse:
- Creio ter-lhe dado uma razão perfeitamente válida para meu
desejo de me casar com você. Sua mãe faz questão absoluta disso.
Você é uma mulher perdida aos olhos dela.
- Chega de brincadeira! E talvez você possa ser um pouco mais claro
sobre tudo isso! Quem, por exemplo, informou mamãe de minha
estada no rancho?
- Isto! Se você se lembra bem, eu chamei-a de Gale. - Julius fez um
gesto com as palmas das mãos para indicar que isto já bastava para
explicar tudo, mas acrescentou: - Aquele idiota da mansão
mencionou esse nome a Trevis e, como sua amiga Tricia tinha falado
de você ao noivo, ele naturalmente descobriu quem você era ou, pelo
menos, teve uma pista para seguir. Umas perguntinhas aqui e ali, e
logo Trevis obteve seu sobrenome. Por pura vingança, telefonou a
sua mãe e, assim, você e eu estamos metidos nesta confusão.
- Confusão? Você não está numa confusão - disse ela.
- Não exatamente - admitiu. - De qualquer modo, sinto-me um pouco
responsável pelo que sua mãe está sentindo. Ela e eu conversamos
muito, e não me foi difícil apreender
que ela tem sido infeliz por todos esses anos. Seu único consolo
parece ter sido os filhos. Ela a tinha na mais alta conta, e esta sua
aventura despedaçou-lhe o coração. Como já disse, nada aliviará o
sofrimento dela, exceto nosso casamento. Por isso, acabei
prometendo pedir você em casamento.
Os olhos de Gale se estreitaram, um ato quase inconsciente. Mas
bem no íntimo ela sentiu uma brecha nesta situação.
- Não lhe ocorreu reforçar minha história contando a ela a verdade,
que nós ocupamos quartos separados? - Uma coloração rosada

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Sabrina no. 14
tingiu-lhe as faces, e ela virou a cabeça com raiva e rapidez, ao ver
o brilho divertido voltar aos olhos dele.
- A idéia certamente me ocorreu. Mas imediatamente vi que isso em
nada influenciaria sua mãe, naquele estado de espírito. Sem sombra
de dúvida me teria acusado de conspirar com você para enganá-la.
Não, Gale, não teria dado certo.
A brecha permaneceu, apesar da explicação fácil e simples de
Julius. Em primeiro lugar, Gale não podia imaginar a mãe pedindo a
Julius que propusesse casamento à filha. A sra. Davis era de
natureza excessivamente tímida, especialmente com homens... e
Julius Spiridon não era um homem comum. Sua personalidade
arrebataria uma mulher do mundo, por isso sua mãe jamais teria
reunido a coragem suficiente para sugerir a ele que a desposasse.
Mas mesmo que o tivesse feito, a sugestão deveria ter sido
recusada. Esta era a imagem que Gale fazia das coisas. . . mas uma
outra muito diferente tinha surgido.
- Não consigo compreender! - suspirou longamente, fitando-o com
dúvida, mesmo estando convencida de que ele ignoraria sua
surpresa. Foi o que ele realmente fez.
- É tudo muito simples, Gale. A paz de espírito de sua mãe depende
de nosso casamento, pois, segundo ela cré, nós realmente passamos
a noite juntos. Estou disposto a me casar com você a fim de que ela
tenha essa paz de espírito. Agora o resto é com você.
Ela umedeceu os lábios, assombrada por sentir uma certa euforia
pulsando em suas veias, aturdida pela descoberta de que o
casamento com este quase-deus grego de feições sérias e bem
feitas não era nada desagradável. Pelo contrário. . . Corando, pousou
automaticamente uma das mãos no rosto. Não adiantava fingir, ela o
desejava exatamente quanto ele a desejava. Frágil base para um
casamento. Naturalmente, ela não tinha intenção de desposá-lo; o
desejo extinguir-se-ja logo que ele e ela se dissessem
adeus para sempre. Ou será que. . . ?
- Não tenho a menor intenção de me casar - ela disse a Julius por

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fim. - Você conheceu meu pensamento a respeito do assunto; tomei
uma resolução há cinco anos e nada aconteceu para induzir-me a
mudar de idéia.
Julius apertou levemente a mandíbula. Não houve outra indicação de
que a resposta dela o desapontara. Cortesmente inclinou a cabeça e
pareceu por momentos aceitar sua decisão. Levantou-se da cadeira
e. de pé, fitou-a com um sutilíssimo toque divertido a emoldurar-lhe
a boca grande e sensual. Então disse inesperadamente: - É óbvio que
você desconhece as repercussões que esta decisão causará. Sua
mãe pretende, se eu não fizer de você uma mulher honesta, deixar
você e seu pai. Irá viver com o amante dela.
Um silêncio cheio de eletricidade caiu sobre a sala. Gale fixou o
olhar nele, aturdida, os nervos tensos a ponto de estalar.
- Não é verdade - murmurou afinal, os lábios brancos como cera.
Sua mãe. . . fazer isso! Impossível! - Minha, minha mãe não tem um
amante. - Palavras forçadas; Gale soubera todo o tempo que a mãe
deveria estar se encontrando com um homem. - E, se ela tivesse -
continuou inconscientemente -, ela não o diria a ninguém. E ela
nunca, nunca iria morar com um homem. Ora, você mesmo acabou de
dizer que ela tem preconceitos com esse tipo de relação. - O rosto
de Gale ainda estava sem cor. Ela não podia imaginar que Julius
mentisse sobre um assunto tão delicado. - Ela sempre ficou
horrorizada com a forma pela qual as pessoas se pavoneiam de
imoralidade - disse ainda Gale.
Julius deu uma olhada no relógio de pulso.
- Tenho que ir embora. Quanto à sua mãe e às respectivas
intenções, sugiro que tenham uma conversa.
Gale olhou pela janela por muito tempo depois que o grego partiu.
Ele parecia estar com pressa de sair. Todavia, Gale sentia
instintivamente que, tivesse sua resposta sido o que ele desejava,
teria ficado com ela durante toda a noite. Agora ela se sentia
perdida, esgotada. . . com saudade da presença de um homem cujo
desejo por ela o levara a pedi-la em casamento, um homem cujo

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desejo despertara nela algo que jamais conhecera antes. com auto-
repugnância, tentou destruir a verdade, dizendo a si mesma que as
mulheres eram diferentes dos homens; de qualquer modo, nunca
experimentavam o desejo meramente por estar com um homem. Só
o macho é que conhecia esses impulsos primitivos.
Levantou-se da cadeira que ocupara desde a partida dele e dirigiu-
se à cozinha para fazer um pouco de chá. Acreditava que esta ação
prosaica restabeleceria sua tranquilidade?
Julius Spiridon tinha-lhe despertado certas emoções já em seu
primeiro encontro. E fora o único homem a fazê-lo desde o
rompimento com Malcolm cinco anos atrás. Gale acreditara estar
totalmente imune; foi um choque descobrir que essa imunidade
poderia ser destruída, e ainda por cima por um grego. Mas ele era
tão completamente diferente de todos os outros homens, com
aquele ar de superioridade e aquela masculinidade ditatorial que, ela
já admitira, poderia assustar.
Levou a xícara de chá para a sala, e sentou-se novamente,
meditando sobre o que Julius estava fazendo e adivinhando com
certeza que ele estava pensando nela e sabendo-a neste turbilhão
de dúvida. Dúvida? Claro que não! Não tinha a menor intenção de se
casar com Julius. Ora, eles estraçalhariam um ao outro a cada
momento. . . Não, nem tanto. . .
Ela estremeceu frente às próprias imagens que vinham a sua
cabeça. Que vida! Estar em harmonia apenas quando estivessem
fazendo amor! Cerrando os dentes com impaciência
por causa de suas meditações, pousou o pires e a xícara e começou a
andar pela sala, como um urso enjaulado. Se pelo menos sua mãe
chegasse, a fim de que ela descobrisse
um pouco mais além do que Julius lhe contara! Mas a mãe não vinha,
e Gale rodeou a sala mais uma vez, fez mais chá, sentou-se e, após o
que pareceu uma eternidade, ouviu o ruído de chave na fechadura.
Sabia que era seu pai. Ele veio até a sala onde Gale passara toda a
noite, a maior parte dela sozinha, atormentada pela indecisão. Sim,

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ela admitiu por fim, porque era obrigada a fazê-lo. Casamento com
Julius. A vida seria sempre emocional e ardente; rusgas e
reconciliação, daí o amor. E talvez, no final, cada um seguisse seu
próprio caminho, simplesmente por não haver nada além de uma
frágil paixão a uni-los - nada espiritual, nada intelectual, apenas uma
mera atraçâo física.que se apaga e morre à falta de outros
interesses que os apaixonados inevitavelmente compartilham.
- Que aconteceu? - O pai no meio da sala estudava o rosto da filha.
- Um bicho te mordeu?
- Onde você esteve? - Era a primeira vez que fazia tal pergunta. Ele
mostrou-se impaciente com isso.
- Diabo! O que você tem a ver com isso? Onde está sua mãe? O que
diria ele se calmamente respondesse que a mãe saíra com
um homem?! Disse afinal:
- Não sei. Estou esperando que ela chegue; quero conversar com ela.
- Sobre o quê? - Irritado, olhou de relance para o relógio na parede.
Estava prestes a dar meia-noite. - É impossível que ela esteja
fazendo algo de bom até essa hora!
- Pois você mesmo acabou de chegar - disse Gale sem tirar os olhos
do pai. Sua vontade era a de escancarar a porta para expulsar o
odor de cerveja que o pai trazia no bafo e na roupa. Junto a isso
havia o cheiro de fumo - era fumaça de cigarro impregnando a
jaqueta e o cabelo. Gale pôs-se a pensar como era o amante da mãe
e se ele fazia o género fino. . . como Julius, que não fumava e bebia
pouquíssimo; dava sempre a impressão de estar saindo do banho;
tinha as camisas sempre em perfeito estado. O cabelo brilhava
brilhava como aço polido, e ele usava uma loção após barba
maravilhosa, que fazia Gale sonhar com o que de puro a natureza lhe
dava.
- Ela não tem o direito de sair! Eu vou esperar acordado e darlhe o
que merece! - Procurou sua poltrona e mergulhou, nas almofadas.
- Você não vai relar o dedo na mamãe enquanto eu estiver aqui.
- Relar o dedo? - Arregalou os olhos. - E eu já usei de violência com

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sua mãe?
Impaciente, ela respirou fundo.
- E isso é um crédito a seu favor? - perguntou Gale após uma longa
pausa.
- Eu sempre disse que um homem jamais deve usar de sua
superioridade para subestimar uma mulher. Este tem sido para mim
um princípio, menina. Talvez, se eu lhe desse um puxão de orelha,
você ficasse menos impertinente. Você não estaria aí feito um juiz,
olhando para mim desse modo. Seu próprio pai! Sente-se, se é que
quer esperar por ela!
- Acharia melhor você ir para cama. Quero falar com mamãe a sós.
- É sobre o quê? - exigiu novamente.
- Assunto particular. - Percebeu que os olhos dele já estavam
prestes a se fechar. - Por que você não sobe? Você pode dizer o que
pretende amanhã cedo, quando estiver se sentindo melhor.
- Você quer dizer quando eu estiver sóbrio? - Ele riu da expressão
de desagrado no rosto da filha e mais uma vez mandou que se
sentasse.
- vou dormir. - Saiu e deixou-o sozinho. Porém não pregou os olhos;
alerta para uma briga que houvesse, esperava. Sentiu-se culpada ao
pensar sobre a paz que reinara em sua casa antes daquela noite
fatídica em que resolvera fazer Trevis pagar pelo sofrimento
causado à amiga.
É verdade, a vida da mãe não fora feliz, mas pelo menos
não havia tanta tensão quanto agora. Gale e a mãe, por vezes,
passeavam pelo parque à noite ou simplesmente conversavam. Gale
saía com os amigos, é claro, mas procurava
sempre estar em casa pelo menos três noites por semana. O pai
optou por um caminho, mas jamais, houve uma troca de palavras
rudes. A própria Gale era tão cordata que acatava o modo de vida
do pai sem tecer comentários. E agora, por causa de Gale, havia
conflito e tremor por todo lado.
Seu corpo enrijeceu por debaixo dos lençóis ao ouvir a mãe entrar

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em casa e fechar a porta cuidadosamente. Nenhum som de vozes. O
pai obviamente adormecera na poltrona;
não havia terremoto que o acordasse até a manhã seguinte. Gale
pulou da cama e vestiu o robe que estava pendurado atrás da porta.
Pé ante pé, foi até o quarto dos pais.
- Algo errado? - A sra. Davis olhou para ela preocupada. . . e, por um
motivo incompreensível. Gale teve a impressão de que a mãe estava
fingindo. Tanta coisa acerca da mãe era agora confusa e causava
perturbações. Gale sempre quis crer que a compreendia
perfeitamente; todavia, estava começando a duvidar que um dia
chegasse a compreendê-la.
- Você não sabe o que há de errado, mamãe?
A sra. Davis acenou a cabeça negativamente, tirou o casaco e abriu
o guarda-roupa à procura de um cabide... um dos que ela passara
tanto tempo cobrindo, preparando, enfeitando para que ficassem
bonitos. Todos na casa tinham desses cabides, inclusive Edward e a
esposa.
- Eu nem imagino o que é que está errado.
- E você não me parece nem um pouco perturbada.
- E por que eu estaria? Você se cuida sozinha, seu pai também
e eu também. Se temos problemas, devemos resolvê-los sozinhos,
sem a ajuda dos outros.
Os olhos de Gale luziram. Observou a mãe, que pendurava o casaco
no cabide com muito cuidado, a fim de que não amarrotasse.
- Julius Spiridon esteve aqui.
- Oh! Ele disse mesmo que viria vê-la.
- E disse que você tem... - Gale interrompeu o que dizia por um
momento, hesitando por causa da delicadeza do assunto, e então
perguntou: - É verdade que você tem um amante?
A sra. Davis fechou a porta do guarda-roupa, e aí virou-se. De
repente Gale teve a impressão de que a mãe era dez anos mais
jovem e estava muito bonita. E o vestido estava dez centímetros
mais curto do que normalmente ela usava. Observou atentamente a

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barra. Fora feita a mão. Gale pasmou. A última coisa que imaginaria
era a mãe dando-se ao trabalho de encurtar um vestido.
- Nojentos! - dizia a mãe, quando os vestidos ficavam logo acima dos
joelhos!
- Tenho um amante sim.
- Um amante?
- Um amante.
Gale chocou-se mais com a afirmação da mãe do que com a notícia
que Julius lhe dera aquela noite.
- Há quanto tempo você o conhece?
- Não é de sua conta, mas vou lhe contar assim mesmo. Conheço-o
há mais de três anos.
- Três anos!
- Ele me convidou para sair, mas recusei. Dois erros não equivalem a
um acerto, pensei cá comigo. Seu pai tinha o jogo dele, mas não era
por isso que deveria ter o meu. Além disso, tinha que pensar em
você; não queria perder seu respeito. Agora tanto faz, porque o
respeito de uma filha como você já não é tão importante.
Gale retraiu-se. Não reconhecia a mãe. Lá estavam as duas olhando-
se, e as lágrimas começaram a brotar nos olhos de Gale.
- Eu nunca fiz o que você acha que fiz. Julius deveria ter negado
isso também.
- Ele é um homem honesto, de bem. Ele a pediu em casamento? Gale
com a cabeça fez que sim. Por que a mãe estaria fingindo?
E que tipo de papel estava representando? Tudo isso parecia uma
insensatez.
- Você disse a ele que abandonaria papai e eu para morar com
esse homem, se eu não aceitasse casar-me com Julius?
- Disse, sim. - com que calma pronunciou tais palavras! Seria
essa a mesma mãe que era tão tímida e decente como o pai a
descrevia ?- Gale achou-se totalmente sem fala, e simplesmente
balançava a cabeça de um lado para o outro,
querendo crer que estava sonhando. Disse, por lim:

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- Você não disse isso sério.
- Não a condeno por ser cética. Mas estou falando sério. Por que
deveria morar nesta casa com duas pessoas imorais como você e seu
pai? Era melhor eu procurar algo que me aprouvesse.
- Você o ama?
- Praticamente desde que nos conhecemos. - Um toque de tristeza
invadiu o ambiente; o coração de Gale estava magoado e, por um
momento descuidado, desejou à mãe toda a sorte do mundo! Mas
logo recuperou-se. Não era certo que a mãe fizesse isso; ela logo
iria lamentá-lo e sentir-se culpada. A sra. Davis era assim mesmo.
- Você desiste dele se eu me casar com Julius? - Gale olhou nos
olhos da mãe. Notou que o rosto empalidecera um pouco.
- Eu nunca vou desistir dele, mas seria incapaz de ir morar com ele.
Um longo silêncio antecedeu as palavras de Gale.
- Em outras palavras, você leva adiante uma ameaça que é nada mais
que uma chantagem. Ou eu me caso com Julius, ou você nos
abandona.
- Chame isso de chantagem, se quiser - respondeu-lhe a mãe com
indiferença. - Eu disse a Julius que o seu comportamento havia
destruído todos os meus ideais. Disse que a única coisa que me
deixaria menos amargurada seria o casamento de vocês dois. Eu já
sugeri isso a você, se é que se lembra.
- E eu disse que não havia qualquer possibilidade de casamento,
mesmo porque Julius e eu somos meramente conhecidos. - A mãe
não disse nada. Limitou-se a ir à penteadeira e apanhar um
removedor de maquilagem.
- Você me obrigaria a casar-me com um homem que não amo?
- Não houve resposta. A sra. Davis passou a retirar a maquilagem.
Gale ficou rígida. - Eu disse a Julius que havia algo que eu não
compreendia; e há mesmo. Já lhe ocorreu que alguns aspectos dessa
situação são impraticáveis? Que a mim não parecem verdadeiros?
Eu a conheço o suficiente para saber que você não gostaria que eu
me casasse com um homem por quem não estou apaixonada e que

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jamais seria capaz de me amar.
Essas últimas palavras tocaram a mãe profundamente. Sem dúvida
ela fez menção de falar alguma coisa, mas as palavras foram
engolidas. Gale estava com os nervos à flor da pele. Queria muito
saber o que é que a mãe quase dissera, mas percebeu que mesmo
assim não estaria satisfeita. Se a mãe quisesse que ela ouvisse,
teria dito com certeza. Impaciente e mal podendo respirar, Gale
disse: - Está acontecendo algo muito estranho, algo que só você e
Julius sabem.
- Teria a mãe desencadeado estas palavras? Gale não conseguia
estar certa disso, e então suspirou novamente. - Eu não vou me
casar com ele. Acho que isso encerra o assunto.
A sra. Davis voltou à penteadeira, pegou um lenço de papel e
enxugou o rosto.
- Então eu vou morar com Jack.
Gale corou, pois a menção do nome pareceu colorir o romance com
os tons da realidade.
- Você não pode estar falando sério, mamãe!
- Pois então espere para ver. - A sra. Davis terminou sua toalete e
concluiu o assunto dizendo: - Estou cansada, Gale. Você também.
Boa noite.
- Mas mamãe!
- Boa noite, Gale.
- Essa é sua última palavra? Você vai mesmo nos abandonar? A sra.
Davis engoliu em seco; Gale não percebeu isso, pois estava
novamente observando o comprimento do vestido da mãe. Tão
antiquada que ela era, e agora. . . Tinha pernas bem torneadas, para
surpresa de Gale, e o cinto apertado moldava bem a cintura e
acentuava as curvas bem feitas. Pareceu a Gale que a mãe tinha
apenas 44 anos. Antes parecia que ela já estava na casa dos 50.
- É minha última palavra, Gale. Não quero morar com duas pessoas
imorais e sem-vergonha. Basta um e, se você for ficar, quem sai
sou eu.

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Inacreditavelmente, a sra. Davis apontou-lhe a saída e pediu-lhe
que fechasse a porta sem fazer barulho ao sair, pois preferia que o
marido ficasse onde estava a noite toda. Gale pasmou, magoada e
irritada, furiosa consigo mesma, com Tricia e Trevis, por terem sido
a razão primeira de tudo isso. Estava com raiva de Julius também,
por ter concordado em desposá-la. Ainda assim, o mais estranho é
que ela estava menos irritada com a mãe do que com os outros. Não
sabia porque, mas algo lhe dizia que o motivo apareceria mais cedo
ou mais tarde.

CAPITULO VI

Gale estava no pátio e suspirou. A lua crescente brilhava naquela


paisagem vulcânica - três massas montanhosas formadas de rochas
ígneas vomitadas das profundezas do mar, há milhares de anos. Um
tipo de beleza indescritível existia nesse campo árido, inteiramente
diverso das colinas, cobertas de rica vegetação, que se elevavam
da praia arenosa logo abaixo da casa de Julius, próxima à vila de
Chora.
Virando a cabeça, ela encontrou o olhar dele, e virou-se para o
outro lado novamente.
- Estou pronta para sair quando você quiser - informou-lhe com gelo
na voz. - Já que teve que voltar lá dentro, poderia pelo menos ter
resistido à tentação de parar e ficar batendo papo. Ou me fez
esperar de propósito?
Julius, imaculado no terno preto e camisa branca, falou suavemente,
aproximando a boca do ouvido dela.
- Desde o nosso casamento, há um mês atrás, venho repetidamente
lhe avisando para tomar cuidado com o modo de falar comigo. Se
você tiver cabeça, Gale, você me ouvirá, ou vai achar a vida um tanto
desagradável. com uma mão possessiva segurou-lhe o braço, e com a

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outra lhe arranjou o xale. Ela se virou violentamente, mas a pressão
em seu braço fê-la voltar-se para ele de novo. - Se vamos brigar
novamente, será no carro, não no pátio de nossos anfitriões.
Poderiam ouvir-nos. Venha!
Obedecer era a única alternativa. A pressão que exercia em seu
braço não iria enfraquecer até chegar ao carro, estacionado na
saída do pátio.
- Por que você me obrigou a esperar tanto? - perguntou ela assim
que entrou no carro. - Você demorou mais de dez minutos e disse
que levaria um minutinho só!
- Linguagem figurada, que você deveria ter entendido. Todos
dizem que vão demorar um minutinho só. - O motor roncou e o
automóvel deslizou pelo caminho que levava à estrada principal. Eu
me esqueci de discutir um pequeno detalhe com Adónis e os outros.
- Você não disse que seria um almoço de negócios! Eu entendi que
seria um encontro social; poucas vezes eu me chateei mais com uma
conversa!
- Havia mulheres com quem você poderia conversar. Gale não
escondeu sua irritação.
- Nunca saberei o que me induziu a casar-me com você.
Ele virou-se para ela que, furiosa, notou o risco irónico pintado nos
lábios dele.
- É mentira - disse-lhe calmamente. - Você está perfeitamente
ciente de que se casou comigo pelas mesmas razões por que eu me
casei com você.
Ela corou, mas ergueu o rosto e negou rapidamente.
- Nada disso. Casei-me com você por causa de minha mãe! Julius
caiu na gargalhada. Isso a enervava, mas conhecia o motivo
do riso antes mesmo que ele falasse.
- Você percebe que acabou de reconhecê-lo? Você está tão irritada
e com raiva de mim que fala sem pensar. Acaba de admitir que, na
verdade, se casou comigo por querer. Você me queria tanto quanto
eu a queria; sempre foi assim, desde o início. Não, não replique,

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Gale. Seja honesta para variar e reconheça que as mulheres têm as
mesmas tendências que os homens.
- Eu me casei com você pelo bem de minha mãe.
- Deixe de ser teimosa, Gale. Um dia desses minha paciência ainda
vai se esgotar,
- Suas ameaças não me amedrontam, Julius. Eu sei me defender.
- Disse isso com segurança, porque, contrariando suas expectativas,
Julius demonstrava ser mais tolerante que rígido, mais
compreensivo que impaciente. Era fácil manipulá-lo. Ele discutia,
naturalmente, quando ela o provocava demais, e seus avisos vinham
sempre em intervalos regulares. Gale não ligava muito para eles,
pois Julius raramente mantinha a palavra. Ameaçava e depois
parecia esquecer a ameaça. A vida com Julius era menos turbulenta
do que Gale previra quando, depois de vários dias de indecisão,
resolvera aceitar a proposta de casamento.
Muita coisa aconteceu antes de ela tomar uma decisão.
Basicamente, a atitude inflexível da mãe, o fato de ter juradp que
iria viver. Om o tal de Jack, caso a filha se recusasse a desposar
Julius. Gale ievou adiante a discussão até se esgotar, achando que a
mãe não tinha intenção de levar a cabo a ameaça. Parecia que era
isso mesmo. Todo esse tempo, o pai de Gale ignorou a rixa entre
mãe e filha. fez ameaças à esposa, jurou que a faria sofrer caso
estivesse saindo com um homem, mas ficou o dito pelo não dito;
confiava tanto na mulher, que a preocupação inicial foi substituída
por sua atitude passiva e maleável de antes. Chegou a dizer a Gale
que a mãe saía com outra mulher, e disse mesmo que se alegrava
com o fato de ela ter encontrado uma amiga.
Apesar das constantes ameaças da mãe, Gale poderia até resistir
ao casamento com Julius, mas, em duas decisões, sentira-se como
se estivesse na mesma situação do rancho, embora não tão
perigosamente. A primeira delas foi quando Julius apareceu
novamente e, ao encontrar Gale sozinha - como, aliás, confessaria
mais tarde saber - tomou-a nos braços, riu de suas resistências e

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beijou-a com a mesma paixão e ardor que sentira no rancho.
- Você ainda se casará comigo - dissera-lhe com fervor, sem no
entanto tentar colocar-lhe a mão sobre o coração. Mas ele sabia
exatamente como despertar seus desejos. Julius sabia que seu
poder era uma arma que lhe garantiria a vitória. Sentia-se seguro,
confiante... porque era excepcionalmente atraente, belo físico,
ótima aparência e vasta experiência com mulheres. - Eu a quero,
Gale, e sei que acabará se casando comigo, porque não vai resistir. -
Ele já não a tinha mais nos braços. Limitara-se
a olhar bem no fundo dos olhos dela. Não restava dúvida de que
fora capaz de captar a tontura que sua paixão provocara em Gale.
Foi quando ele riu mansinho, um riso que não dizia nada a Gale.
Soltou-a e disse com seu modo prosaico: - Gale, meu amor, não sei
como você está se sentindo, mas sei que uma xícara de café lhe
faria bem.
A segunda oportunidade em que ele a tivera totalmente sob seu
poder foi numa festa. Sentindo falta de ar, Gale procurou
distanciar-se um pouco, de modo que Julius a visse. Ele a seguiu pela
escuridão, no silêncio do jardim. Poderia ter-se esquivado, disse a si
mesma mais tarde; poderia ter voltado à casa antes mesmo que ele
a alcançasse. Não tentou fugir, e mais uma vez confirmou que sua
atração por ele, desfrutada nos momentos seguintes, era difícil de
evitar.
Seus caminhos se separariam um dia, pensou, mas naquela hora só
havia um a ser seguido - o casamento, pelo qual Julius havia optado
Antes, o que parecia era que ele tinha intenções de manter um caso
com ela. Essa idéia aos poucos
foi esquecida, e Gale não procurou pensar no tipo de futuro que a
aguardaria, caso isso se tornasse realidade. Ela teria resistido, já
que não resistiria ao casamento?
Como o problema não fora levantado, Gale procurou dissipar os
pensamentos e ficou mais aliviada com isso.
Julius estava manobrando o carro quando um solavanco trouxe Gale

Livros Florzinha - 75 -
Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
de volta ao presente. A lua estava bem no alto e reluzia. Sons e
aromas despertaram seus sentidos.
Gale logo saiu do automóvel e ficou ao lado do marido, que abrira a
porta para ela.
- As flores ficam lindas à noite - comentou. - E as cigarras, elas são
mesmo um belo momento de magia! - Sua expressão se transformou.
A porta do carro bateu. Julius tomou-a no colo e levou-a até a
varanda, onde Apolo deixara a luz acesa.
Apolo era o criado grego de Julius, cujos serviços bastavam até a
vinda de Gale. Agora, à disposição de Gale, havia Katriana, que
tratavam de Kate.
- Devo carregá-la até o quarto, ou você quer jantar? - Ela odiou a
prepotência na voz dele e disse:
- Quero jantar, é claro.
Colocou-a no chão e encarou-a com sarcasmo.
- Então você vai ter que jantar, quer queira, quer não, minha cara.
Quanto mais esperar, mais excitada você vai ficar.
- Ou mais fria - retrucou antes mesmo que ele completasse o que
disse. Ele olhou-a furioso e ela respondeu fechando os lábios.
Quisera ser complacente, o que ele percebeu quando estavam no
carro. Mas, agora, tudo o que ela queria era afastar-se, e junto a
isso ainda havia um sentimento de autodepreciação. Isso acontecia
sempre; e aí ela voltava aos 18 anos - crédula e loucamente
apaixonada por Malcolm. Atração mental e espiritual viera antes;
mais tarde viera a atração física - não podia negá-lo. Não podia
conceber a idéia de uma satisfação sexual até que Malcolm se
casasse com ela.
E agora estava casada única e exclusivamente por atração sexual.
Não havia nada mais entre o marido e ela, nem mesmo uma amizade
agradável. E isso provavelmente ocorria porque um menosprezava o
outro em segredo, cientes do motivo que os levara ao casamento.
Quanto tempo isso duraria? Era a pergunta que sempre a
preocupava. Julius disse, desde o início, que seria para sempre, pois

Livros Florzinha - 76 -
Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
ele era grego, e gregos se opõem ao divórcio. Limitar-se-iam a
compartilhar a casa, quando atingissem o ponto de saturação. Pela
primeira vez, Gale lamentou ter aceito casar-se com ele.
Ergueu o rosto em direção ao marido e viu que seus olhos luziam,
mas ele apenas disse:
- Então vamos entrar, e assim você pode dizer a Kate o que quer
para o jantar.
Essa indiferença irritava; ela preferiria que ele perdesse a
paciência às vezes. Irracionalmente, sentiu que havia se esquivado à
toa, que fora malograda, apesar de não poder afirmá-lo com
segurança.
O jantar foi servido em dez minutos; Gale recebeu-o com
desagrado. A refeição que tinham tomado na casa de um amigo fora
fortíssima, ela sentiu que seria incapaz de comer outra vez tão
cedo. E agora era obrigada a lambiscar pelo menos um sanduíche e o
café que Kate preparou.
- Você não vai querer nada? - Pergunta supérflua; ela estava
consciente disso. Julius normalmente comia pouco. Nessa hora, com
certeza, não comeria.
- É pena, mas não posso lhe fazer companhia - disse, e levou a mão à
boca disfarçando um bocejo. - Aliás, se você me desculpar, acho que
vou dormir. - Beijou-lhe de leve a testa e saiu. Sem saber porque.
Gale observou-o até que fechasse a porta. Empurrou a bandeja para
o lado e pousou o olhar perdido por sobre a comida. De repente
tocou a sineta e pediu a Kate que levasse a bandeja. A grega olhou
para a comida e a bebida que nem tinham sido tocadas, estranhou e
obedeceu à ordem.
Uma hora depois, Gale entrou no quarto. A cama estava vazia, a
colcha dobrada e a camisola estendida na cama, como se estivesse
disposta numa vitrine de lingerie. Kate sempre fazia isso - tinha o
dom de artista como muitas mulheres gregas o têm; era caprichosa
com flores e com a decoração da mesa. A visão da camisola, imóvel
desde que Kate a colocou ali, preenchia o silêncio do lugar. Algo

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
estava acontecendo! Julius dormia sozinho no quatro anexo. Voltou
os olhos para a porta semicerrada
e caminhou naquela direção. Sim, estava lá, adormecido, e respirava
tranquilamente. Deixa estar! Que continuasse a dormir sozinho!
Isso pelo menos resultaria numa situação em que seu auto-respeito
se recomporia.
Acordou mais cedo que o normal na manhã seguinte, curiosa para
saber como ele se comportaria, como a cumprimentaria e se faria
algum comentário sobre o fato de ter dormido em outro quarto.
- bom dia, Gale. - Olhos preguiçosos mediram-na da cabeça aos pés.
- Já de pé? Não conseguiu dormir? - O sol batia na pele morena e
fazia brilhar o cabelo. Gale estivera de pé ali, apoiada na grade da
varanda, e admirava o mar turquesa, leve como uma pluma, e que se
espalhava em direção às praias da Ásia Menor. Uma sensação de paz
a envolvia e foi quebrada com a intromissão de Julius.
- Pelo contrário! Há muito tempo não dormia tão bem. - Ela esperava
que ele acreditasse, que não estivesse dando mostras da noite de
cão que tivera.
- Que estranho - logo veio o tom de voz bem estudado -. eu
também. Acho bom usarmos essa tática com mais frequência.
Silêncio. Ela baixou a cabeça e olhou para a mão apoiada na grade.
De um lado da videira crescia uma samambaia maravilhosa, fazendo
uma verdadeira cortina pela calha e protegendo a varanda dos raios
de sol. Do outro lado da varanda via-se uma trepadeira com flores
violeta e laranja que cobriam a parede adjacente. A mesma planta
cobria o muro no fundo do jardim, onde havia laranjeiras e
limoeiros. Qual seria a intenção de Julius? Essa era a pergunta que
não a deixava em paz. . . e o silêncio persistia. Seria bom usarem
aquela tática com mais frequência. . . Na noite anterior ela imaginou
que ele continuaria a dormir sozinho... e, poucas horas mais tarde, lá
estava ela num persistente estado de incerteza. Fazer de conta que
não seria honesto, achava. Conforme Julius dissera certa vez, ela o
queria tanto quanto ele. O orgulho fazia sair palavras que ela não

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
queria dizer.
- Boa idéia, Julius. Você deve ter notado que é bem mais
confortável, não é? Além do ambiente ficar muito abafado, nós
estamos mesmo acostumados a dormir sozinhos. Sorriu com doçura
para ele enquanto falava, mas um sinal de amargura manchou-lhe a
voz. . . novo silêncio se fez. O marido manteve a postura arrogante
que a irritava e o ar irónico que a deixava com os nervos à flor da
pele.
- Pode ser que você esteja acostumada a dormir sozinha, mas como
é que pode ter certeza de que estou?
No momento, as implicações do que ouvira lhe passaram
despercebidas. O que realmente sentiu foi um nó na garganta e algo
que parecia querer explodir lá dentro.
- Suas piadas podem ser inteligentes para uma bela manhã como
esta, mas são de completo mau gosto.
- Por quê? A moda agora não é que marido e mulher falem de seus
casos anteriores?
- Neste caso, isso seria inteiramente parcial.
- E aí você estaria perdendo terreno?
De repente ela lançou-lhe um olhar feroz. Ele tinha se movido e
estava
confortavelmente encostado no pilar do canto da varanda. O jeito
dele, lânguido e descompromissado,
os olhos estreitos e a inclinação arrogante de uma sobrancelha. . .
tudo isso aumentou seu mau humor.
- Podemos ir tomar café? - ela interrompeu. - Já deve estar pronto!
Ele lançou-lhe um olhar questionador.
- Você está se sentindo lograda, querida? Gale rangeu os dentes.
- Você está um tanto provocador hoje, Julius - disse-lhe
imediatamente. - Nem imagino onde você quer chegar, mas não
estou a fim de competir com você. Sinto muito se isso decepciona,
mas é isso ai.
Ele riu, aproximou-se, e antes que ela tivesse tempo de escapar-lhe,

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
ele já estava dando-lhe palmadinhas nas faces e dizendo:
- Tirando o time de campo, é? Isso é falta de coragem de sua parte.
Não leve isso adiante, pois eu bem que prefiro nossas batalhas; elas
nos divertem e impedem a monotonia. - com que fluência ele disse
isso!. . . parecia nem se deixar afetar pelo que a mulher poderia
estar sentindo.
- Monotonia? Mas já? - A voz não mostrou o medo que já lhe
invadira o coração. - A vida ao meu lado é monótona?
- Eu disse que ela poderia tornar-se monótona.
Ela odiava aquele ar de indiferença, aquele conformismo que poderia
desgastar o romance.
- Você deveria ter levado isso em consideração antes de me coagir
a casar-me com você.
- Coagi-la? Minha cara mulher, você estava louca para se casar
comigo!
- Essa sua autolatria é demais! - disse-lhe cheia de ódio. Cuidado,
Julius, para não me provocar demais. Não há amor neste casamento,
não se esqueça. Eu posso simplesmente resolver ir embora.
Um pesado silêncio pairou entre os dois. Quando finalmente ele
falou, foi em tom de gozação. Continuava seguro de si. Ele sabia que
ela jamais o abandonaria.
- Para a barra da saia da mamãe? Ela não a aceitaria. Muito
antiquada, lembra-se? Ela lhe diria que o lugar de uma esposa é ao
lado do marido.
- Diria? - Curioso o jeito de Gale expressar-se. - Mas mamãe tinha
intenções de abandonar meu pai, trocá-lo por outro homem. Os
olhares cruzaram-se antes que Julius desviasse o seu, como se
estivesse mais interessado no belo besouro que pousara sobre a
grade da varanda. Teria sido pego de surpresa? Quando voltou
novamente os olhos para a esposa, ela recordava mentalmente o
fato de que algo misterioso acontecera às circunstâncias que os
levaram ao casamento.
- Sua mãe provavelmente lembrou-se de que já tinha dado muitas

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chances a seu pai. De qualquer modo, tinha uma boa desculpa para
abandoná-lo, pois ele sempre foi infiel a ela.
- Eu nunca vou entender como é que ela foi confiar tanto em você.
Não faz sentido, pois ela sempre foi tão recatada. - Gale ainda
tinha viva na lembrança a mudança que a mãe sofrera desde que
houve o incidente no rancho. Chegara até a crer que a mãe estava
representando quando ameaçou juntar-se ao amante.
- Às vezes é mais fácil conversar com um estranho do que com uma
pessoa da família ou até mesmo com um amigo - disse Julius.
- Sua mãe parecia imensamente aliviada por ter-se aberto comigo e
contado os seus problemas.
- Isto só aumenta o mistério - murmurou Gale quase para si mesma.
E continuou: - Nunca hei de me convencer de que ela teria partido
para viver com outro homem. Ela é muito ingénua.
Julius sorriu ao ouvir tal palavra, mas não teceu comentários.
- Se você tinha tanta certeza disso, então não havia por que se
casar comigo. - Uma questão sutil e também uma assertiva. Gale
engasgou, incapaz de dizer qualquer coisa em contraposição a isso.
Julius então continuou, com calma e de um jeito tal que parecia a
estar odiando, mas ela não tinha certeza disso. - Você se casou
comigo porque sabia muito bem que não viveria sem mim, como já
disse antes. Qualquer dia você ainda será honesta a ponto de
reconhecer isto.
As faces coraram mais ainda diante do que ouvira e, incapaz de
responder à altura, saiu pela tangente:
- Já lhe disse que não estou para competições hoje. Aliás, há muito
estou pronta para tomar o café. Vamos entrar?
O marido riu e nada a fazia esquecer a possibilidade de que ele
estivesse irritado com ela, ao ouvi-lo dizer:
- Fugindo do assunto novamente, não é? Bem, meu amor, não vou
mais incomodá-la. - Deixou a posição confortável na varanda e
acompanhou-a, entrando em casa.
Mais tarde foram até a praia e nadaram juntos um bocado. Julius

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Sabrina no. 14
estava afável e sorridente; Gale, fria como sempre. A intenção era
manter o marido a distância,
principalmente porque, assim, quando fosse chegando o momento do
adeus, não haveria necessidade de se lamentar. Lamentar?. . .
Estranho que a idéia tenha lhe ocorrido.
Na ausência do amor, como é que pode haver lamentação, ainda mais
que o fogo da atração sexual se tornara nada mais que cinzas?
Gale sentou-se na areia e ficou a olhar pensativa para o nadador lá
adiante - o homem que era seu marido, o homem cuja personalidade
forte e marcante a impressionara desde o primeiro encontro. Como
ele nadava bem! Tudo era fácil para ele. No dia anterior o carro
parou e, sem hesitar, ele arregaçou as mangas e meteu-se debaixo
do veículo. Vinte minutos mais tarde o carro estava deslizando
novamente. Mesmo o trabalho não parecia causar-lhe a menor dor
de cabeça. Passava umas duas horas no escritório, após o almoço, e
saía sempre satisfeito e sem embaraços. Dedicava-se ao jardim
eventualmente, e na semana passada chegou a lavar as janelas na
ausência de Apolo.
Mais atenta ficou Gale ao notar que alguém nadava na direção de
Julius. Os dois se encontraram no meio da água; Gale viu a garota
sacudir a cabeça, viu os longos cabelos louros tocar os ombros
morenos do marido.
Emergiram da água juntos e caminharam na direção de Gale. O casal
conversava como se fossem velhos amigos; Julius riu com alguma
coisa que a moça disse e tocou-lhe os cabelos num gesto
brincalhão. . . coisa que Gale jamais esperava dele. Estranhou esse
ato de intimidade e lembrou-se de que Julius tivera muitas
mulheres. Seria essa uma delas?
Alguns segundos depois as moças estavam se cumprimentando, uma
examinando a outra com indisfarçável curiosidade, enquanto Julius,
divertindo-se com a expressão no rosto da esposa, pegou uma
toalha e começou a se enxugar.
- Foi uma surpresa saber que Julius estava casado - dissi -Daphne.

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
penteando os lindos cabelos com uma das mãos. - Ele
é mesmo imprevisível. - Olhou para ele enquanto falava, com modos
visivelmente
possessivos.
- Você mora aqui perto? - perguntou Gale com frieza, e mediu o belo
corpo bronzeado da moça, que devia ter uns vinte anos. Curvas
perfeitas e formas esculturais
que, sem dúvida, prendiam os olhares masculinos. Usava um biquini,
assim como Gale. No entanto, o sutiã de Gale pouco revelava,
enquanto o dela pouco deixava por conta da imaginação. Gale estava
desgostosa. Jamais se permitia considerar a palavra ciúme.
- Somos vizinhos de Julius. Estivemos fora por algumas semanas.
Por isso não fomos apresentadas ainda. - Havia algo de muito
estranho na voz da moça, algo que as palavras não revelavam. Eu me
vou e deixo um amigo solteirão sozinho. Quando volto, eu o encontro
casado. Nossos criados me contaram, mas eu me recusei a acreditar
- Não diga! - soou a voz agridoce de Gale. - Bem, agora ten que
acreditar, não é? - Gale evitou o olhar do marido, mas
sabia perfeitamente que a censurava. Daphne
engasgou deliberadamente e de modo bastante audível, para que
Julius pudesse perceber.
- Eu disse alguma coisa errada? - questionou inocentemente, com
brilho de preocupação no azul dos olhos. - Julius, por favor me diga
se não fui educada.
- Não que eu tenha percebido, Daphne - sorriu Julius. - Sentem-se,
meninas; vou apanhar uma bebida ou talvez um sorvete, se vocês
preferirem.
Gale virou-se e disse: - Já está quase na hora do almoço, Julius.
Você não acha que deveríamos voltar? - com expressão no olhar,
informou-lhe que provavelmente a amiga ficaria pouco à vontade se
ficassem. Julius compreendeu e concordou que já se fazia tarde.
Mesmo assim perguntou novamente a Daphne se ela gostaria que ele
trouxesse alguma coisa da barraca. Ela, sem tirar os olhos de Gale,

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
agradeceu:
- Obrigada, Julius - murmurou, e Gale permitiu-se um vasto sorriso.
Julius foi o primeiro a se mexer; afastou-se subitamente,
surpreendendo as mulheres. Seguiram-no
com os olhos até que ele apanhou a toalha e pendurou-a no pescoço.
Daphne disse: - Você o controla tanto quanto quer, não é? Esperta,
você! Muita mulher ficaria boquiaberta, pois obediente nunca foi um
qualificativo do poderoso e arrogante Julius Spiridon. Você deve
ter algo que ninguém tein! Eu, por exemplo, nunca poderia ter dado
a ele uma ordem como essa. Cuidado, minha amiga! Julius nunca foi
humilde. Sorrindo de modo muito especial, Gale respondeu:
- Obrigada pelo aviso, se é essa sua intenção. Mas não é necessário.
Até logo; a gente ainda se vê, já que somos vizinhas.
Julius tinha parado, e esperou que Gale se aproximasse. Sua
saídade-banho ficara em casa. Gale percebeu os olhos dele
passearem por sua figurinha adorável. Levantou o rosto para lançar-
lhe um sorriso aberto quando o alcançou, e instantaneamente sentiu
o sorriso gelar em seus lábios.
- Algo errado? - perguntou, lembrando-se do que Daphne acabara
de dizer sobre o dar ordem a Julius. - Você parece irritado com
alguma coisa - acrescentou com perplexidade simulada.
- Só espere até chegarmos em casa - retrucou ele
ameaçadoramente. - Aí você descobrirá o que há de errado.
Uma comichão correu por toda a espinha de Gale. De repente,
desejou que estivesse vestida.
- Eu. . . eu não sei se compreendi. Alguma coisa que eu fiz o
aborreceu? - Sua voz não estava muito firme, e certamente toda a
sua presumida confiança desvaneceu-se. Pela primeira vez, desde
que o conhecera, ela viu a fúria abrasar os olhos dele, e a mão que
segura a toalha, mão musculosa e sensível, estava tão fortemente
fechada que os ossos das articulações pareciam estar a ponto de
emergir da pele morena e tesa.
- Aborreceu! - Julius repetiu, as narinas fungando colericamente.

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- Você acha mesmo que pode me sujeitar à humilhação e não sofrer
nada?
Um nó incómodo subiu à garganta de Gale. Ela recordou que o único
homem a amedrontá-la fora Julius, naquela manhã fatal em que o
estouro do cano evitou que ele a possuísse. E agora ele estava lhe
causando medo novamente; ao dar-se conta disso sentiu raiva, mas
Gale prudentemente deu ouvidos à voz que a avisava que deveria
reprimi-la. Seria inteligente pedir desculpas, ela sabia, mas sentiu
que isso era impossível.
- Você está imaginando coisas, Julius. Por que eu iria sujeitá-lo a
uma humilhação? - A pergunta pareceu atear fogo às brasas da
ira dele, e ela imediatamente se arrependeu de ter feito a pergunta
- Você vai aprender, menina, que é fatal me dar uma ordem!
- Ordem? - ela interrompeu, esforçando-se agora para dissipar a ira
dele, pois estava temerosa de ir para casa com ele nesse estado.
- Oh, não, Julius!
Ele se dirigia a passos largos ao lugar onde o carro estava
estacionado, no fim da praia; apressou o passo para conseguir
acompanhá-lo.
- Restou-me poder escolher entre humilhá-la perante Daphne,
mostrando-lhe seu devido lugar, ou acatar sua ordem. Ordem! -
repetiu enraivecido, e andava cada vez mais rápido, de tal modo que
Gale por vezes não o acompanhava. - Acatar sua ordem de irmos
embora concluiu, quando finalmente recuperou o fôlego.
Gale umedeceu os lábios. Calou-se ao ouvi-lo dizer algo acerca de
mostrar-lhe o devido lugar. E por que ele não o fez, já que se
aborrecera tanto com a situação? Parecia até que ele próprio
sofreria a humilhação, em lugar de expor a esposa a uma situação
delicada diante da ex-namorada. Era mais que evidente o fato de
Daphne ter sido sua namorada, o que foi provado pela própria
Daphne, ao mencionar que Gale devia ter algo que ela não tinha, e
que Julius nunca fora humilde. Daphne o conhecia bem, era óbvio.
- Você está exagerando - disse ela, mas logo foi interrompida.

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- Não é aqui que a gente vai tratar disso. Aqui eu nem sequer posso
fazer o que realmente quero!
Poucas vezes ela se sentiu mais angustiada, mais temerosa. O que
pretendia ele fazer?
- com o que você está me ameaçando? - Alcançaram o automóvel e
Julius abriu a porta do carro com um gesto rude.
- Entre - ele mandou, numa voz que agora parecia tremer um pouco
por causa da raiva que o consumia. Instantaneamente, Gale
relembrou as várias vezes, nos últimos tempos, em que desejara que
ele perdesse a paciência, por sentir que isso seria preferível àquela
austeridade fria que ele, às vezes, adotava quando ela se mostrava
particularmente desagradável. Bem, cá estava seu desejo realizado,
com uma vingança! Isto era, de fato, mais que impaciência, era fúria
escaldante. Ele, de pé ao lado dela, esperava. Tão grande, forte e
gigantesco que ele era! Gale sentiu-se minúscula, ao se comparar.
Reconheceu o desconforto do coração latejando no peito e começou
a dizer que não ia para casa com ele, mas o olhar dele, como que
a retalhando em pedaços, dispensava outras palavras para deixar
claro. a ela, a estupidez de sua afirmação.
- Julius - começou ela nervosamente, mas antes que pudesse dizer
mais, seu braço foi agarrado e foi jogada para dentro do carro. A
porta bateu com força desnecessária e, atirando a toalha para o
assento de trás, Julius pôs-se à direção, e em segundos o carro
disparava pela praia, deixando atrás uma nuvem formada pela areia
revolta.
Durante alguns horríveis momentos houve silêncio no carro, mais
que silêncio, pensou Gale, o coração disparando quanto mais se
aproximavam da casa; era como se a jibóia preparasse o bote, era o
ar parado que antecede a tempestade. Baixou os olhos e, então,
olhou para o perfil do marido. Um frio horripilante percorreu-lhe a
espinha nesse momento.
- Julius - disse como um recurso, sem saber o que dizer em seguida.
Ele não respondeu. Ali estava ela novamente, em busca de algo a ser

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dito, ou pronto a mergulhar em pesado silêncio. A segunda hipótese
era intolerável! Em silêncio, a imaginação poderia compor a cena que
aconteceria quando, no quarto, Julius a tivesse à sua mercê. - Se
aquilo lhe pareceu ser uma ordem - continuou, impotente diante do
que dizia, mas sentindo a necessidade de precaver-se antes que
chegassem à vila - então. . . então acho que devo pedir desculpas.
Aquilo valeu apenas como uma sugestão. . .
- Gale foi obrigada a interromper. Aquele perfil sinistro, aqueles
dedos agarrando a direção com força incomum, tudo fazia com que
os nervos dela aflorassem, a ponto de, sabe-se lá como, mal poder
respirar. Aquelas mãos. . . pareciam estar prestes a estrangulá-la!
Sim, foi apenas uma sugestão - continuou, praticamente com a
respiração presa, e desta vez notou que já tomavam o caminho da
vila
- . . .porque. . . porque já se fazia um pouco tarde.
- Aquilo valeu como uma ordem!, por causa de Daphne! Ela irritou
você, e aquela foi a sua desforra!
Por um instante Gale perdeu as estribeiras. O veneno estava na
ponta da língua.
- Se suas amiguinhas me insultarem, com certeza vou me desforrar.
Disse que ela tinha que acreditar que estávamos casados,
simplesmente pelo que ela dissera antes. Talvez a tenha insultado,
mas foi ela quem começou.
- Não estou falando do que você disse a ela - interrompeu-a.
- Eu estou falando do que você disse a mim, portanto não desvie a
conversa. Acho bom lhe avisar, de uma vez por todas, que essa
atitude para comigo só servirá para fazê-la sofrer por muito tempo
e isso você há de descobrir logo, logo.
Gale empalideceu, mas reagiu para dizer o que já dissera antes.
- com o que exatamente você está me ameaçando, Julius?
Foi o bastante para ele parar o carro. Tomou-lhe o queixo com
aquela mão rija e virou o rosto dela com tamanha força que até seu
pescoço estalou.

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
- Toda mulher que adota esse tipo de atitude comigo está fazendo
sua própria armadilha. Você tem abusado um pouco demais, e dessa
vez foi além dos limites. Acho
que fui tolerante demais com você por permitir-lhe agir assim até
hoje, fingi ter a paciência que na verdade não tenho. Entretanto, já
lhe avisei o bastante, mostrei que seu jogo é perigoso e, se você me
conhecesse melhor, já teria me dado ouvidos muito antes.
Soltou-a e deu a partida novamente. - Prepare-se para uns
momentos bem desagradáveis - acrescentou, e mais uma vez perdeu
as estribeiras quando Gale disse que esperava não estar sendo
ameaçada de violência física. Isso fê-lo voltar-se para ela e dizer
calmamente:
- Se não tomar cuidado, vai começar a sofrer já. - Visivelmente
trémula, Gale apanhou a toalha e cobriu as pernas. Foi uma reação
automática, um ato compulsivo que ela mesma qualificou de tolo.
- Você acha que isso vai protegê-la? - perguntou com o mesmo tom
agridoce.
Ela nada disse. Limitou-se a mexer com a ponta da toalha até que
entraram na vila e Julius estacionou em frente à varanda. Ele teria
a intenção de esbofeteá-la?
Ela abriu a porta com os dedos trémulos, mas procurando controlar-
se. As pernas, porém, pareciam ter perdido a função natural de
mante-la de pé.
- Para dentro - ordenou rispidamente. Por mais que ela tentasse
obedecê-lo, seus passos falhavam. Foi empurrada em direção à
escada e, como autômata, obrigada a subir cada degrau. Levava a
toalha pendurada nos ombros. Julius a tomou e atirou na grade.
- Julius - tentou, meio virada na direção dele: - perdoe-me. . .
- Foi tudo o que pôde dizer; não havia dó naquela escultura grega de
olhos negros. Eis o grego descrito nos livros - impiedoso quando
inspirado por aqueles instintos cruéis herdados dos ancestrais,
capazes de torturar, ferir e matar sem compaixão.
- Suas desculpas chegam tarde demais. - com um último impulso,

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atirou-a para dentro da sala de estar. - Suba - ordenou. - Você tem
mexido com fogo desde que nos casamos, e agora vai se queimar.

CAPITULO VII

Com o coração acelerado, Gale afastou-se do marido enfurecido


que. após fechar a porta, encostou-se nela. com o fogo do olhar
percorreu o corpo de Gale até pousá-lo no rosto pálido e assustado.
Um certo grau de satisfação surgiu das profundezas daquele olhar,
conforme ela deixava maior a distância entre si e o marido; só parou
quando a barriga da perna tocou a cama.
- Quer dizer então que finalmente você está com medo, não é?
- A voz vibrava com a raiva que o possuíra desde que fora humilhado
por Gale. - Venha cá - ordenou apontando para um ponto do carpete
para o qual Gale ojhou sem se mover um milímetro.
- Ai de você se tocar um dedo em mim. - As palavras se perderam
quando, com três ou quatro passos, ele avançou e lhe prendeu o
braço nu com um forte aperto de mão.
- O que você está pretendendo? - Os rostos estavam próximos. Ela
podia
ouvi-lo respirar e bufar, sinal de que a fúria ainda haveria de
crescer. - Como é? Responda!
Ela tentou engolir o medo travado na garganta; Julius a sacodiu e
repetiu a pergunta.
- Não sei qual é a sua intenção, mas...
- Não diga!!! - Julius a sacudiu com tamanha violência que ela quase
perdeu os sentidos e, por um momento, ela realmente parecia ter
ficado inconsciente, pois a própria mente fora obscurecida pelo
medo. Se pelo menos não fosse tão corpulento, tão forte, ela talvez
pudesse tentar escapar. - Então não lhe ocorreu que posso lhe dar
uma bela sova?
Ela empalideceu e, apesar da idéia já lhe ter ocorrido no carro, ela

Livros Florzinha - 89 -
Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
o ameaçou dizendo que procuraria a polícia caso ele fosse usar de
violência. Para seu espanto, ele apenas gargalhou, e lembrou-lhe que
na Grécia o marido é o senhor supremo, e se ela fosse tola a ponto
de levar a cabo a ameaça, certamente mandariam que ela voltasse
ao marido imediatamente. Pareceu descrente por um segundo e,
então, já mais irritada que temerosa, empenhou-se para livrar-se
das mãos dele. Foi inútil e um tanto dolorosa a tentativa. Ela gritou
quando depois de sacudi-la continuamente com o aperto no braço
cada vez mais forte, a fúria dele finalmente amainou.
- E agora - disse ele, soltando-a - talvez você pense duas vezes
antes de abrir a boca e perder a calma!
A porta entre os dois quartos fechou-se brandamente. Gale olhou
para lá, petrificada e machucada. Jamais vira alguém
inflamar-se tanto quanto Julius durante aqueles
minutos. Ao entrar na casa, algo lhe dizia que deveria chamar Kate,
mas mudara de idéia; levou em conta o fato dos criados serem
fofoqueiros inveterados. A última
coisa que desejava na vida é que chegasse aos ouvidos de Daphne
que a esperteza dela trouxera o furor de Julius à tona.
- Desça para o almoço em meia hora! - A última ordem de Julius
atingiu os ouvidos de Gale quando ele passou para o quarto. Ela não
desceria! Não era a hora apropriada
para sentar-se dignamente enquanto Kate e Apolo estivessem
servindo a mesa. Tinham radares nos olhos, e o rosto de Gale estava
ligeiramente inchado, tantas eram as lágrimas que derramara e
ainda derramava, como reação nervosa.
Lavou-se, vestiu-se e penteou os cabelos. Julius andava pelo quarto
quando ela bateu de leve na porta.
- Entre.
- Não quero almoçar - disse-lhe sem hesitar, ao ver uma
interrogação estampada no rosto dele. Os olhos dela ainda estavam
em lágrimas, mas ela não tinha a menor intenção de mostrar-lhe que
a vitória tinha sido toda dele, daí o olhar rebelde que lhe lançou.

Livros Florzinha - 90 -
Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
Os olhos dele se afinaram.
- Você está querendo mais? - perguntou com calma.
Ela corou de raiva, mas controlou-se. Sem dúvida ele a sujeitaria a
mais sofrimento caso não se comportasse bem. Sem responder,
voltou ao quarto e fechou a porta vagarosamente. As lágrimas
correram livres. Como é que se metera nessa? Olhando de relance
para o espelho, viu em que estado se encontrava. Por que se casara?
Pois não foi ela mesma quem disse que teria dó da mulher que se
casasse com ele? ela mesma se casara com ele, entregando-se ao
charme que tinha força magnética, e
tanta que mesmo agora ela não seria capaz de conceber a vida sem o
amor dele. Envergonhada por reconhecer tal coisa, Gale foi ao
banheiro e lavou os olhos de modo a eliminar qualquer evidência de
lágrimas.
Julius estava na varanda quando ela entrou na sala de jantar, Ele
apontou para uma cadeira em frente à poltrona onde estava
sentado, gla limitou-se a atravessar a porta de vidro e foi-se sentar
na cadeira que lhe cabia. Os olhares se cruzaram e o dele trazia um
riso irónico, toda a ira havia passado e fora substituída pelo
costumeiro ar de segurança e a distância cuidadosamente mantida.
Gale cruzou as mãos sobre o colo e concentrou sua atenção nas
inúmeras flores do jardim, cujo perfume invadia a varanda e a sala
de jantar, trazido pelo meltemi, o vento das ilhas. Laranjeiras
estavam lado a lado com os jacarandás floridos; magnólias enchiam
o ar com seu aroma.
Ibiscos dos mais variados tipos e cores cresciam por entre loendros
e outros arbustos. Trepadeiras invadiam os terraços serpenteando
pelos muros e paredes, confundindo-se
com as parreiras, plantadas com o único propósito de fazer sombra.
O rosa-rubro das papoulas tornava ainda mais calma a beleza do
lugar, mas nada havia de mais lindo
que o azul e laranja das estrelísias, a ornamentar cada passo dos
imensos jardins da vila.

Livros Florzinha - 91 -
Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
- Então você resolveu que seria mais prudente obedecer-me
observou Julius finalmente, e Gale voltou-se para ele. A palavra
"obedecer" fora o bastante para que o sangue lhe subisse ao rosto.
Não havia ,a menor necessidade da palavra, mas imaginou que ele a
teria usado nessa hora apenas pelo prazer de usá-la, principalmente
tendo em vista o que acontecera no quarto. - Ainda bem, Gale. Se
você tivesse me provocado um pouco mais eu lhe teria marcado por
toda a vida!
Marcado por toda a vida! Será que ele imaginava que ela esqueceria
o que lhe acontecera? Pelo contrário, era algo que ela carregaria
pelo resto da vida, e Gale jurou que jamais o perdoaria por isso. Ele
desviou o olhar para os jardins e para os chorões que ladeavam o
caminho para a praia, além da qual o mar turquesa se espalhava
tranquilamente em direção à linha do horizonte. Gale observou-o de
perfil; nesse momento, era como se a atração que lhe exercia fosse
estimulante e depressiva ao mesmo tempo. Ele era tão distinto, com
o nariz perfeito, os traços bem delineados, a arrogância e a posição
distante... e aqueles cabelos escuros, espessos e ondulados. . .
Sentindo-se observado, Julius olhou para ela, deixando-a sem jeito
com sua expressão gozadora. Ela fez menção de falar, mas não
soube o que dizer. De qualquer modo, os olhos do marido moviam-se
de um braço a outro e. . . ela estava imaginando coisas ou aquela
Expressão realmente mudara? Não havia dúvida de que algo o
preocupava. Deliberadamente ela tocou uma das manchas roxas do
braço com o dedo, esperando que isso causasse
nele um sentimento de culpa. Observando melhor, descobriu que
isso era nada mais que um novo erro de sua parte. Contrariamente à
sua expectativa, ele parecia ainda
mais orgulhoso de seus feitos - foi essa a paga que Gale logrou, por
tencionar fazê-lo sentir-se culpado.
- Toque a sineta, Gale! - disse inexpressivamente, erguendo a mão
para apontar a sineta que estava mais perto dela que dele.
Apolo já pode servir o almoço.

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
Castigada, sentindo-se como uma criança punida, Gale obedeceu e
então levantou-se. Julius também se levantou e tomou-a pela mão.
Antes mesmo que ela pudesse se refazer
da surpresa, ele já contraía os lábios contra os dela daquele modo
possessivo e ardente que nunca obedeceu a qualquer sentimento que
porventura houvesse por parte
dela. Mas ela não correspondeu; foi capaz de manter-se inerte.
- Eu deveria ter-lhe arrebentado - disse decididamente. - É o único
meio de se lidar com mulheres como você. - Gale não sabia se
poderia ou não esperar tal comportamento. - Devo entender que
meus beijos não são bem aceitos? - Apesar do menosprezo
transmitido pela pergunta, ele ainda tinha ares de suprema
segurança. Maldito homem! Se pelo menos ele não ostentasse tanta
superioridade, se não a levasse sempre à rendição. . . Criatura
convencida e pomposa estava ali, orgulhoso de seus dotes de
conquistador! Gale jogou a cabeça para trás, olhou bem no fundo
dos olhos dele e disse:
- Eles são altamente indesejáveis. Eu os odeio!
- Que coisa extraordinária! - respondeu-lhe indiferente e rápido.
- Sempre tive a impressão de que meus beijos. . . e minhas carícias
- acrescentou, saboreando a agradável sensação que lhe causava o
rubor no rosto dela, que já previa o que estava por ouvir - davamlhe
imenso prazer.
Ela não despregou os olhos dele. O rubor, por sua vez. era mais
evidente em seu belo rosto.
- Já lhe disse que a modéstia não era uma de suas qualidades
- lembrou-lhe, perfeitamente consciente do toque recebido no
braço.
- E eu lhe disse, então, que a falta de sinceridade não era um de
meus defeitos. Você não vive sem mim, Gale, e ainda assim não
reconhece isso.
- Eu vivo sem você perfeitamente bem! - devolveu-lhe, soltando-se
das falsas algemas. - Perfeitamente bem!

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
- Quem é que você está tentando convencer? Você mesma? - e
continuou, antes que ela pudesse retrucar: - com certeza você não
está me convencendo, querida, e nunca me convencerá. Venha -
disse subitamente ríspido e impessoal -, vamos almoçar. Você vai se
sentir melhor quando comer.
Soubera o dia todo que ele novamente passaria a noite em seu
próprio quarto. Ainda assim, e por muito tempo, já deitada, pôs-se a
olhar para aquela porta meio aberta.
A lua deixava um brilho alvíssimo por sobre ela. Observou muito, até
que, por fim chegou a querer vê-la abrir-se e trazer-lhe o marido.
Ele a olharia bem nos olhos, de cima de seu porte superior e, então
deixaria cair o roupão. . .
Finalmente dormiu. Acordou cansada e infeliz e com uma inclinação
quase irresistível de entrar no quarto do marido e conversar. Sobre
o quê? Como é que uma mulher vai ao quarto do marido para lhe
dizer que o quer? Um suspiro profundo escapou-lhe. Ainda havia um
mundo de diferenças entre os privilégios de um sexo e outro. Julius
poderia vir até ela, mas ela não poderia procurá-lo. Poderia, é claro,
mas que tipo de recepção teria? Se Julius a quisesse, certamente
teria vindo. . . Ou estaria ele simplesmente experimentando-a? Ele
afirmara que ela não era capaz de viver sem ele e, confiante,
declarara que seus beijos e carícias lhe davam imenso prazer.
E naturalmente ele estava certo.
Então deveria mesmo estar testando Gale. Repentinamente, ela não
mais teve dúvidas sobre os motivos que o levaram a se manter
afastado dela. O sangue de Gale ferveu. Ele ainda lamentaria isso!
Pois quando ele viesse - e viria, claro que viria - ela iria lhe mostrar
se seria ou não capaz de viver sem ele. Custasse o que custasse,
resistiria a ele. Ele não poderia mais continuar nesse estado de
confiança arrogante de que se casara com uma mulher que, sem o
menor esforço por parte dele, se transformaria em sua fiel
escrava. Ela não era grega, servil, criada aprendendo a considerar o
sexo masculino como superior em todos os sentidos. Se era isso que

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
Julius queria, então deveria ter se casado com uma mulher de sua
própria raça.
Após tomar um banho e vestir-se. Gale ficou atenta. Mas no quarto
dele tudo estava quieto. Será que ainda estava dormindo? Sacudiu
os ombros e desceu. Ele já estava sentado à mesa do café e
começara a comer. Ela parou na entrada por alguns instantes,
descrente do que via. Julius, um fiel seguidor de etiquetas, jamais
iniciara uma refeição sem que ela estivesse também servida.
- Faz tempo que você desceu? - Fez a pergunta enquanto se
sentava. Sem nem olhar para ele, pegou uma colher e começou a
comer o grapefruit que Apolo deixara preparado para ela.
- Uns vinte minutos. Uma pausa e, então: - Dormiu bem? Ela lambeu
os lábios.
- Muito. Você?
Ele riu e sacudiu a cabeça num gesto de impaciência e aspereza.
- Por um mero acaso, sou uma dessas pessoas felizardas que adoram
dormir. Sim, minha querida Gale, dormi feito uma pedra, obrigado.
Ele ria dela por dentro. No rosto estampou-se um ar de indiferença,
e a refeição terminou sem qualquer outra troca de palavras.
Esse estado de indiferença por parte dele, e o de teimosia por
parte de Gale, persistiram por três dias mais. Iam nadar pela
manhã, mas era como se fossem desconhecidos. Daphne reuniu-se a
eles numa ocasião, e a diferença na atitude de Julius foi
literalmente gritante. Ele sorriu e papeou; riu das piadas da ex-
namorada e, finalmente, convidou-a para almoçar na vila no dia
seguinte.
- Eu não vou aceitá-la à minha mesa! - disse Gale, no caminho de
casa. - Nem sei como você pôde convidá-la. É horroroso ter que
receber uma de suas. .. suas... - Interrompeu ao notar os lábios
comprimidos do marido. Uma repetição daquela cena era a última
coisa que ela podia desejar; por isso. retomou o que dissera: - Não é
muito legal você trazer Daphne para casa. Você sabe muito bem que
isso me deixa sem jeito.

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
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- Política de boa vizinhança, nada mais - retrucou, sem se
interessar. - Ela provavelmente nos convidará dentro em breve.
- Não irei.
- Isso é com você. Eu, sem dúvida, vou aceitar o convite.
- Nem quero recebê-la amanhã - avisou Gale novamente, e dessa vez
o marido virou a cabeça para o lado violentamente - as narinas
latejavam, como da outra vez.
- Isso não é de sua conta - disse-lhe rispidamente. - é melhor você
se cuidar. Gale. Já lhe dei uma demonstração de génio que tenho.
Imaginei que essa seria a última coisa no mundo que você gostaria
de rever.
- Quer dizer que, se eu me recusar a receber Daphne, você vai me
bater?
- Já disse que não é de sua conta - repetiu. - Daphne virá. para o
almoço, amanhã, e você será gentil com ela. Entendeu?
- Não posso ser gentil com ela! - Para sua própria surpresa, os olhos
encheram-se de lágrimas. - Eu a odeio! Como é que posso ser gentil
com ela?
- Odeia, é. . . ? - disse baixinho, já trazendo o carro até a frente da
varanda. Essa palavra é um pouco forte, não acha?
- Não gosto dela. Não vou conseguir ficar à vontade, numa mesa,
com uma de suas ex-mulheres.
Julius surpreendeu-se com o modo como ela colocou a coisa. Desceu
do carro e deu a volta até a outra porta.
- Uma delas? - Pousou a mão, com delicadeza, sobre o braço da
moça, a fim de ajudá-la a descer. Sua gentileza magoava de um
modo tal que Gale não pôde percebê-lo. Seu toque era delicado,
quando faziam amor, mas essa era a primeira vez que ele mostrava
delicadeza em outra situação.
- Você confessou que teve muitas mulheres - disse Gale, e ele
assentiu, como se estivesse se confessando novamente após
refrescar a memória. - É diferente quando a esposa não conhece
essas mulheres - continuou. - Não fica em maus lençóis.

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- Em maus lençóis? - Ele estava junto a ela e lhe tocava o queixo,
erguendo-o, de modo que pudesse ler o que estava escrito nos olhos
dela. Ela baixou as pálpebras e, uma vez mais, não viu sentido no que
fizera. Porém, era imperativo que ele não a sujeitasse a um de seus
olhares penetrantes e inquisidores. - Os casos que tive no passado
lhe causam incómodo, Gale? - Percorria o braço da mulher com os
dedos e, como sempre, ela estava perfeitamente ciente do prazer
que aquele toque causava. Ela baixou o olhar quando um movimento a
seus pés chamou-lhe a atenção momentaneamente. Um belo lagarto
verde e rosa estava a percorrer a calçada. - Eu lhe fiz uma
pergunta - insistiu o marido. Ela ergueu o rosto de novo; os olhos,
com certeza, estavam mais uma vez nublados.
- Não me entenda mal - começou. - É que se trata de Daphne, e isso
porque fomos apresentadas. - Ela fez uma pausa, esperando algum
comentário, mas Julius estava
simplesmente olhando para ela e esperando que continuasse. - Como
é que você se sentiria se eu convidasse um de meus ex-namorados
para vir aqui em casa?
O silêncio persistiu, mas, de repente, a expressão no rosto do
marido se transformou. Ele parecia irritado, pensou, e a cena
de alguns dias atrás voltou-lhe à memória.
O toque gentil no braço tornou-se uma fonte de dor, e ela gemeu.
Até quando ela teria
que carregar aquelas manchas roxas? Ela nem se livrara das
outras ,. agora,
certamente, já havia mais uma.
- Desculpe-me, Gale - disse ele. - Não tive a intenção de machucá-la.
E ela disse, quase contra sua vontade, porque alguma força
compulsiva a obrigou:
- Você não respondeu à minha pergunta, Julius.
Os olhos do marido faiscaram, e a seriedade se instalou em seu
rosto. Num movimento involuntário da mandíbula, mas com vo
carregada de arrogância e prepotência, dando-lhe tapinhas suave na

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maçã do rosto como fizera uma vez, ele disse:
- Provavelmente eu a estrangularia, querida.
Boquiaberta, ela permaneceu exatamente no mesmo lugar, apesar de
Julius começar a se afastar.
- E mesmo assim, você espera que eu receba Daphne aqui?
- Os homens têm o privilégio de poder manter as velhas amiza dês.
As mulheres devem ser mais recatadas. - Palavras tão brandas Gale
teria pensado que ele a estava
gozando, não fosse pela expressão dele, que claramente lhe dizia
que, com certeza, não estava.
- Não serei cortês com ela. - Gale dizia novamente, no dia seguinte,
um pouquinho antes de a convidada chegar. - Aliás,
estou pensando em deixar vocês dois ficarem
sozinhos.
Ele deu de ombros.
- Se você prefere almoçar sozinha, então faça-o - disse ele
fazendo-a vacilar.
- Diga-me, inquiriu ela repentinamente -, o que, exatamente você
está tentando fazer comigo?
Notou uma inflexão estranha na voz do marido, quando respondeu
dizendo não ter entendido bem.
- Você terá que ser mais explícita - acrescentou, os olhos fixos com
agudo interesse, no rosto dela.
- Você não é mais o mesmo. . .
- Não sou mais o mesmo como?
Ela hesitou; as palavras pareciam não querer sair.
- Bem. . . ultimamente. . . - Mas ela corou, ao lhe ocorrer um
pensamento.
- Sim, querida - interferiu gentilmente -, você começou a dizer
qualquer coisa. . .
Ela engoliu em seco.
- Você deveria saber como mudou. - Por que falar assim? perguntou-
se.

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Ela deveria dizer-lhe, sem mais delongas, que estava fazendo um
jogo com ela. Por que não dizer que tanto faria se ele ficasse
sozinho no quarto? Informá-lo de que tudo poderia continuar assim?
O que houvera para que ela não lhe apresentasse abertamente a
solução a que chegara: a de que o relacionamento deveria continuar
nas mesmas bases em que se encontrava agora, visto que Julius
começara tudo?
- Será que - ele murmurou, com calma serena e sincera você sente
falta de meus beijos e carícias, apesar de sua atitude demonstraro
contrário?
- De modo algum! Não é disso que estou falando! - Será que sabia
que ela estava mentindo? Era bem provável, pensou Gale, pois Julius
era extraordinariamente astuto.
- Não? - Ele bocejou e verificou o relógio. - Daphne já deve estar a
caminho; vou encontrá-la, pois deve estar a pé. Você poderia dar
uma olhada na mesa e verificar se Kate organizou tudo como
deveria. Ah, e se você resolver almoçar sozinha, faça com que seu
lugar seja eliminado.
Ela observou-o, ao vê-lo sair pela porta de vidro, atravessar o pátio
e vencer os degraus com dois pulos atléticos.
- Eu odeio você! - sussurrou, cheia de raiva. - Quisera nunca na vida
ter-me casado com você!
Não almoçou só; aliás, desde o início soubera que seria assim. Por
que deixaria os dois a sós, conversando sobre os velhos tempos? Se
era isso o que queriam, que arranjassem outra oportunidade. Idéias
desse tipo repentinamente varreram os pensamentos de Gale. Seria
um verdadeiro desespero se o marido e Daphne começassem a se
encontrar amiúde novamente. Por mais que isso pudesse ser-
verdadeiro. Gale recusava-se a admitir a idéia de ter ciúmes da
outra mulher.
Daphne estava deslumbrante, num vestido de verão enfeitado com
uma faixa bordada na cintura e no colo. Usava um bracelete
finíssimo,

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com brincos combinando. Seu modo de mexer com o bracelete,
diante
dos olhos de Julius, convenceu Gale de que o lindo conjunto deveria
ter sido presente dele. . . pelos favores recebidos? A idéia magoava
e um repentino franzir de testa se estampou no rosto de Gale.
Julius o percebeu e teve uma expressão interrogativa no rosto. Ela
desviou o olhar e perdeu-se em seus próprios pensamentos. Daphne
não parava de falar sobre festas e recepções a que comparecera
nos últimos tempos. Julius, por vezes, a interrompia com uma ou
outra palavra.
- Você perde a maioria dos acontecimentos sociais, Julius - dizia
Daphne. - Não lhe interessam mais, agora que é um homem casado?
- Nunca me interessaram tanto quanto a você, Daphne.
Era provável que a moça ficasse entediada a maior parte do tempo,
concluiu Gale. Foi quando imaginou o que porventura aconteceria a si
mesma quando perdesse Julius para sempre - um dia, certamente,
viria a perdê-lo, já que não havia uma base sólida naquele
casamento. Baseado unicamente em atração física, era muito
provável que viesse a ruir e tornar-se tão irreal quanto um sonho.
Gale sentiu-se chocada de repente. Jogou o garfo e a faca no prato,
fazendo barulho. O que estava acontecendo? - dizia o olhar do
marido. Ela apanhou o garfo novamente e começou a brincar com a
carne no prato. Que frio estranho era esse que passara pela
espinha quando pensara na possibilidade de perder Julius? Gale
teria analisado isso, ou pelo menos tentado, mas Daphne não parava
de falar sobre o iate que o pai acabara de comprar. Julius parecia
altamente interessado. Assentia com a cabeça, às vezes, como se
aprovasse cada detalhe descrito pela convidada.
- Papai pretende dar uma festa a bordo, logo, logo - continuou
Daphne, enquanto os cílios postiços produziam o efeito que
podiam.
- Vocês irão, é claro?
- Se formos convidados, sim. Iremos com certeza.

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Daphne respondeu dizendo que sem dúvida seriam convidados.
Julius então voltou a dizer qualquer coisa - melhor desculpa não
havia para que Gale deixasse a conversa correr sem interrompê-los.
Vez por outra, Julius olhava para ela como que a convidando a
participar, mas, por estranho que fosse, ela ficou a ouvir, ouvir
vagamente, pois que não lhe saía da mente a possibilidade da
separação.
Ela mesma cogitara o esvaecimento daquele ardor, de modo que,
quando viesse a hora certa, tanto ela como o marido estariam
prontos para enfrentar a separação. Um
casamento duradouro fora-lhe anunciado quando ficara noiva de
Malcolm, mas desde os dezoito anos já não mais lhe parecia tão
animador. Uma mulher é sempre vítima das feridas que os homens
insistem em causar às vezes. Esse era o tipo de risco que Gale não
se propunha a correr pela segunda vez. com Julius. a única emoção
sentida estava ligada à idéia de fazer amor.
Ela reconheceu, sem assentimento, que o que sentira naquele dia no
rancho, fora uma doída e profunda frustração. No subconsciente
ela amaldiçoava o acaso que, segundo as palavras de Julius, "salvara"
a pele de Gale. O que teria sido a consequência última de sua
rendição? Casamento, não! Certamente. Os gregos não se casam com
as mulheres que seduzem. Não. Seria meramente um caso, ainda
mais considerando-se que Gale concordava com a idéia de. Julius de
que mais tarde a sensação seria outra.
Um caso. . . Quanto tempo levaria até que Julius se cansasse dela?
Até que outra mulher surgisse. . . Essa possibilidade fê-la voltar a
atenção para a bela garota sentada à mesa do almoço. Julius, um
dia, devia ter-se cansado dela... e ainda eram amigos. Um franzir de
testa. Se isso acontecesse com ela, nunca mais se aproximaria de
Julius. E com certeza seria incapaz de sentar-se à mesa junto à
mulher cujo charme tinha suplantado o seu.
Julius sugeriu que tomassem o café no pátio, e todos se levantaram
da mesa. Ele tomou Daphne pelo braço, o bastante para Gale ranger

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os dentes. Qual a razão de levar a moça pelo braço, da sala de
jantar ao pátio? Mas Daphne gostou disso, obviamente, pois cobriu
as mãos de Julius com as suas, como se impedindo-o de soltá-la.
- Daphne, querida, sente-se naquela cadeira ali; assim você pode
colocar a bandeja naquela mesinha ao lado.
Ela, porém, não mereceu a menor atenção por parte dele. Durante o
tempo todo, não dedicou o menor interesse à mulher. Quando
chegou a hora de Daphne se retirar, ele a acompanhou até a casa.
Gale ficou a observá-los quando os dois se afastaram pela avenida
de árvores até a estrada. Algo muito mais profundo que raiva
encheu o coração de Gale. Era um sentimento
estranho e incompreensível, algo como um peso morto e vazio. O que
seria essa coisa tão nova e confusa que tomava conta dela?
Pensativa, não tirou os olhos do casal, até que chegassem à curva
onde pararam um pouco para conversar, o que a chateou ainda mais.
Por que parar? Poderiam conversar enquanto caminhavam. Julius
deu uma olhadela para trás. visível apenas aos olhos atentos de
Gale, e deslizou a mão pelo braço da companheira.
Gale umedeceu os lábios. Mais um alvoroço no coração, e dessa
vez doeu tanto e tão profundamente que ela sentiu a necessidade
de buscar as causas. Seria necessário buscar longe demais?
Nascera do medo, disse a si mesma, medo de que o marido fosse
infiel a ela e que decidisse que a ex-amante era, no fim das contas,
mais desejável que a própria esposa.

CAPÍTULO VIII

Na volta, Julius deu à esposa a ingrata notícia de que iria a Munique


a negócios e ficaria fora umas duas semanas.
- Tanto tempo assim? - protestou. - Eu não posso ir com você? Ele
disse que não, e explicou que ela logo se aborreceria, pois teria

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
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compromissos o tempo todo.
- Eu nem poderia passar as noites com você, porque nós sempre
acabamos discutindo os negócios durante um jantar. Você pode
explorar a ilha - sugeriu, sem muito compromisso. - Já conhecemos
boa parte, mas ainda falta muito. Peça a Apolo que a leve a alguns
lugares interessantes.
Partiu cedo na manhã seguinte. Apolo levou-o ao porto, onde tomaria
uma balsa até Rodes e, de lá, tomaria um avião.
Duas semanas. . . Parecia muito tempo, pensou Gale, mas então se
lembrou de que em uma ou duas oportunidades ele passara
duas semanas na Inglaterra. O que faria ele
com tanto tempo? Voltaria à Inglaterra? Ainda era tempo. É. Passar
dez dias em casa era a melhor idéia.
Apolo ajudou em tudo, conhecia os horários de voo e tudo o mais
Kate preparou as malas e, apenas dois dias depois de o marido partii
para Munique, ela já estava a caminho da Inglaterra. Telegrafou à
mãe com antecedência, avisando o horário aproximado de sua
chegada Mas, para sua surpresa, não havia ninguém em casa quando
chegou. Ficou a ver navios por umas duas horas, até que, às cinco e
meia apareceu o pai.
- Sua mãe está de férias - disse, mesmo antes de colocar a chavi na
fechadura. - Recebi seu telegrama, mas tive um compromisso
na universidade e não pude chegar a tempo de esperá-la.
- Mamãe está de férias? - estranhou Gale. - Ela nunca está de
férias!
Ele pareceu ranger os dentes. Gale não tinha certeza disso, mas
Ouvira muito bem a porta bater com força. A casa toda tremera.
- Sua mãe tem feito muitas coisas que não fazia antes. - com um
gesto, apontava para todos os cantos da sala que adentravam.
Essa droga não vê um espanador desde que ela foi embora. E
eu não como uma comida decente.
- Aonde ela foi? - Gale pôs a mala no chão e sacudiu a cabeça num
gesto de descrença. - Quando ela se foi?

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Sabrina no. 14
- Faz uma semana. Foi para Cornwall. - Jogou a pasta na poltrona e
voltou-se para a filha. - Não posso dizer que estou muito feliz por
vê-la numa hora destas - reclamou, e continuou declarando que ela
era culpada por ter procedido daquela maneira. - Se você tinha que
se divertir daquele jeito, por que diabos não fez às escondidas?
Para quê?! Gale lamentava a decisão repentina que a trouxera para
casa. -
- Você faz tudo às escondidas? - perguntou ela num gesto de
desprezo.
- Deixe minha vida em paz! O que aconteceu com você, hein? O
casamento já foi por água abaixo?
Ficou ainda mais irritada.
- Julius viajou a negócios; por isso estou aqui. Achei que seria bom
rever mamãe. . . e você - acrescentou, como se propositalmente. Os
lábios do pai tremeram.
- Para você, tanto faria encontrar-me ou não; então não me venha
com essa baboseira. - Fez uma pausa, breve o suficiente para
chegar até Gale, que ainda vestia suas roupas de viagem. - Você
arruinou nossas vidas; espero que isso seja motivo de orgulho para
você.
- Não ponha a culpa em mim, papai. Você e mamãe não têm nada em
comum há muito tempo, mas você sabe disso muito bem. E sabe de
quem é a culpa, se as coisas já
não são como eram.
- Ela era submissa! Só depois que você a decepcionou é que ela
mudou. Custa-me acreditar.
Vagarosamente, Gale desabotoou o casaco de seu terninho e tirou-
o.
- Você tem o endereço de onde ela está?
- Não. Recusou-se a deixá-lo. Jurei que não a deixaria viajar
sozinha. . . sozinha - disse, em tom de descontentamento. - Você
acha que ela foi com um homem?
- É claro que não! - Mas Gale não estava certa disso. E se a mãe

Livros Florzinha - 104 -


Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
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estivesse de férias com Jack?. . . Parecia inacreditável.
Você estava dizendo que não a deixaria
viajar. . . ?
- É, eu disse que ela não iria, e pronto. Ela não reclamou, e eu achei
que tudo estava em ordem. Dois dias depois, ao chegar do trabalho,
encontro um bilhete. Tinha ido para Cornwall por quinze dias! Deus
meu! Nunca lhe teria dado tanto dinheiro para as despesas com a
casa, se soubesse que ela iria economizar para uma viagem de
férias! Olhou para Gale da cabeça aos pés. Afastou-se um pouco
para melhor ver o finíssimo terninho que ela estava usando e a mala
de couro ao lado, cuja capa tinha o nome de Gale gravado em ouro. -
Deu-se bem, afinal de contas, depois de toda aquela algazarra que
você fazia para não se casar. - Interrompendo-se, ele apontou o
indicador para ela. - Alguma coisa não me cheira bem, nesse seu
romance. Muito esquisito ele se casar com você quando pôde tê-la
sem. . .
- Basta! E ele não me teve "sem", conforme você afirma tão
vulgarmente!
Ele deu de ombros. . . e repentinamente ela notou seu respirar
profundo e pesado. Estava assim por causa dos nervos, talvez, mas. .
. havia algo de estranho na fisionomia do pai. - Você poderia me ver
um chá, já que está aqui? - pediu.
Gale concordou, mas hesitou, colocando antes o casaquinho no
encosto de uma cadeira.
- Você está se sentindo bem? Está pálido!
- Dá para aguentar. A cabeça é que está confusa. Veja alguma coisa
para eu comer. Você sabe onde é a cozinha.
- Vai sair hoje? - perguntou Gale mais tarde, quando se
encontravam sentados à mesa para o lanche que Gale preparara com
o que encontrara na geladeira.
- vou. Por quê? Algum comentário? - disse em desafio.
- Não, nada! - respondeu Gale com calma. - Eu só perguntei porque
não pretendo ficar sentada aqui sozinha.

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
- Então você também vai sair? Visitar um de seus namorados? Ela
ignorou a frase, caso contrário haveria uma briga e ela logo
tomaria o avião de volta à Grécia. Queria ver a mãe, que estaria de
volta em uma semana. Gale esperava que pudessem passar três dias
juntas. Mas, se discutisse com o pai nesse meio tempo, dificilmente
ficaria em casa.
- Não espere por mim - disse o pai ao sair. depois de haver-se
vestido cuidadosamente e ter colocado um cravo na lapela. - vou
chegar tarde.
E pronto. Gale olhou a porta fechada da sala de estar e deu um
suspiro! Que volta ao lar, aquela! Sem as boas-vindas dos pais.
Apenas uma casa vazia com uma atmosfera
de desunião a penetrar por todos os cantos. Correu os olhos pela
sala toda, comparando-a àquela onde Julius e ela se sentavam
quando não estavam na varanda ou na sala de jantar. Mais um
suspiro. A mãe fora tão esforçada, mas pouco havia com que
instigar seus instintos. Fora uma vida dura e não muito feliz.
Nenhum luxo, simplesmente porque o marido desperdiçava a maior
parte do salário com outras mulheres. Isso naturalmente trouxe de
volta a idéia de a mãe estar de férias. Teria ela economizado, ou o
amante era quem financiava tudo? Incapaz de visualizar a mãe de
férias com outro homem, Gale sacudia a cabeça de um lado para
outro. Era inconcebível, mas com quem mais a mãe poderia ter
viajado? Que fosse do conhecimento de Gale, ela nunca tivera uma
amiga, nem primas ou irmãs.
"É um mistério, suspirou. Levantou-se e foi até a porta. "E se
mamãe pretendia viajar, poderia muito bem ter mencionado sua
intenção em uma de suas cartas."
Gale subiu para seu quarto de solteira. Dissera ao pai que não
pretendia ficar em casa sozinha a noite toda, mas aonde poderia ir?
Havia Tricia, claro, e um ou dois outros amigos antigos... De repente
sentiu-se perdida e só, totalmente só. A razão era que ela estivera
ansiosa por ver a mãe, conversar com ela como de costume, isto é,

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Sabrina no. 14
antes de o incidente no rancho trazer tanta desunião para dentro
de casa.
Gale cria que seu casamento com Julius endireitara as coisas entre
ela e a mãe. De fato, as cartas da mãe eram muito afetuosas e
sempre
traziam mensagens de esperança de que os dois estivesem felizes.
Contudo, nenhuma menção fora feita sobre essas férias.
Gale cuidou de tomar um banho, trocar-se e maquilar o rosto.
Depois saiu, chamou um táxi e foi até um telefone público, de onde
descobriu que Tricia estava em casa. O motorista levou-a até a casa
dos Sims, onde foi entusiasticamente recebida pela sra. Sims e a
filha que descansavam no jardim.
- Como é bom revê-la. Gale querida! Nem imaginávamos que
você pudesse estar na Inglaterra, até que recebemos seu
telefonema. Venha contar-nos por que veio e quanto tempo
pretende ficar.
- Tricia faz vinte e um anos na segunda-feira.
- Você ainda estará aqui? Vamos dar uma festa para ela.
Animada com a acolhida que teve, Gale sorriu e sentou-se na
cadeira que lhe foi oferecida.
- Ainda estarei aqui. Vai ser ótimo poder vir à festa. - Explicou por
que estava só, sem o marido, na Inglaterra. Desviou o olhar para
Tricia diversas vezes. A expressão no rosto da amiga indicava, que
ela ainda não fora capaz de recuperar-se da perda do
noivo para outra mulher. Mesmo assim, estava bem melhor que
naquele dia fatal
em que sugerira a Gale que humilhasse Trevis diante dos olhos do
sogro.
- Ela conheceu alguém! - disse a sra. Sims a Gale, quando se
encontravam a sós na sala de estar enquanto Tricia se preparava
para o jantar. - Mas, apesar de meu marido e eu gostarmos
enormemente do rapaz, Tricia simplesmente vai levando o namoro.
Acredito até que Tricia perdoaria Trevis agora mesmo, se ele

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viesse pedir-lhe para aceitá-lo de volta.
Estava claro que Tricia não informara a mãe a respeito do incidente
no rancho. Gale falou, embora arredia:
- Leva algum tempo até que a gente se recupere de uma decepção.
Não é só a mágoa, o orgulho pessoal também entra em jogo. Uma
mulher adquire um tremendo complexo de inferioridade quando o
homem que ela ama, e que a escolheu como esposa, descobre que
prefere outra.
A sra. Sims compreendeu exatamente o ponto de vista de Gale.
- Percebo. Gale. E, é claro, Tricia é do tipo que tem pouca confiança
em seus dotes. E com Stephen, o rapaz com quem ela tem saído
ultimamente, já se convenceu de
que, caso se deixe apaixonar por ele, vai ser tratada da mesma
forma que Trevis a tratou. Não adianta convencê-la do contrário;
ela não dá ouvidos ao pai, nem a mim.
Gale assentiu.
- Eu me sentia exatamente assim - disse ela.
- Sim, sem dúvida. Mas agora você está bem casada. E como ficamos
surpresos! Conversando com meu marido, eu recordei que você jurou
jamais se casar. Ouvi dizer que o Julius é extraordinariamente
bonito.
- É sim. - Gale sentiu-se tímida, uma experiência nova para
ela. baixou a cabeça, desconcertada por causa do comentário da sra.
Sims.
- Conte-me sobre sua casa - pediu a sra. Sims, cujo interesse era
genuíno. - Seu marido é um homem abastado, pelo que se comenta, e
quero crer que isso é verdade, muito embora os comentários não
sejam sempre verdadeiros.
- É uma bela casa, com lindos jardins e uma magnífica vista das
colinas, a praia e o mar.
- Você é uma mulher de sorte - comentou a sra. Sims, e
acrescentou, um bocado ansiosa: - Quisera ver Tricia com a vida
estabilizada.

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
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- Logo será assim - afirmou Gale confiante. - Esse Stephen, ele
pretende assumir um compromisso sério?
- Disse a mim que tinha essa intenção.
- Ele-sabe de Trevis?
- Sabe. Diz que Trevis foi um tolo por perdê-la. Um certo
desconsolo tomou conta de Gale.
- Isso pouco serve para consolar Tricia.
- Imagino que você mesma tenha ouvido esse tipo de coisa.
- Ouvi, mas não adiantou nada. - Interrompeu-se um instante e
refletiu. -
É estranho, agora, lembrar-me do quanto aquilo me atingiu, na
época. Tinha a impressão de que seria uma fase insuperável, mas
não foi.
- É como uma morte em família. Quando perdi meu primeiro marido,
achei que iria morrer. Até que, para minha surpresa, descobri que
poderia amar novamente, como aconteceu com você, Gale. Tentei
convencer Tricia de que é possível amar mais de uma vez, mas,
quando se é jovem, acha-se difícil acreditar nisso.
Gale estava estranhamente calada, impressionada com as palavras
da mãe da amiga de um modo que não sabia definir. A única sensação
perceptível era a de culpa, pois se sentiu hipócrita por permitir que
a sra. Sims acreditasse que amava Julius. Era como estar vivendo
uma mentira.
Durante o jantar, Tricia sugeriu que a amiga passasse uns dias com
eles, durante a ausência da mãe.
- Isto é - adiantou Tricia -, se é que seu pai não vai se importar.
- Claro que não - respondeu Gale, com esperanças de que o modo
com que se referira ao pai não tivesse sido notado pelas outras
pessoas.
- Então você vem?
- Venho. E obrigada pelo convite. - Quando posso vir?
- No fim de semana, ou qualquer outro dia que quiser. - A sra. Sims
olhou para ela com olhos questionadores. - Imagino que você deve

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ter outros amigos, para visitar, enquanto está aqui. . .
- Um ou dois - respondeu Gale, sem pensar. Houve troca de
correspondência com uma ou duas pessoas com quem Gale tinha uma
certa amizade, mas cada vez mais o entusiasmo arrefecia.
Gale combinou voltar na manhã de sexta-feira para ficar até
segunda ou terça, dependendo de como estivesse se sentindo. A
festa seria no Hotel Roebuck, em Burton, e Gale teve o prazer de
comprar um vestido novo para a ocasião, já que não trouxera trajes
sociais consigo. Saiu, também, à procura de um presente adequado
para Tricia e outro para a sra. Sims; era uma maneira de agradecer-
lhe pela hospedagem.
Ficou surpresa com a expressão do pai, quando soube do convite que
recebera e aceitara.
- Você vai embora e me abandona às traças? Quanta gentileza! Se
você tem alguma consideração por seu pai, deve desistir do convite,
mesmo porque você veio por muito pouco tempo.
- Não imaginei que você fosse ligar para o que eu fizesse. Você
pretende passar as noites comigo, caso eu venha a recusar o
convite?
- perguntou, sem a menor intenção de voltar atrás.
- Passar as noites aqui? Eu nunca faço isso.
- Então não vai sentir minha falta - acrescentou com simplicidade.
- Café da manhã e chá - disse ele. - Quero que me sirvam uma ou
duas refeições decentes.
Gale odiou o pai por isso.
- Eu não sou a mamãe - replicou.
- Cale a boca, Gale! Você costumava saber respeitar seu pai. Vai
recusar o convite ou não?
- Não vou. O que é que eu poderia fazer aqui em casa, sozinha o
tempo todo? E que bela noite eu teria, sentada numa cadeira,
sozinha?
- Você poderia entreter-se com os serviços de casa.
Casa? - interrompeu, e lançou um olhar de indignação para o

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pai.
- Eu não viajei para cuidar de casa. Estou de férias.
- A princesa! A poderosa, heim? Ainda mais agora que arrumou um
marido rico, não é?
- Se mamãe estivesse em casa, iria ajudá-la, naturalmente, como
sempre fiz, mas como não está, vou para a casa de Tricia.
- Há uma semana que não me limpa esta casa!
- Tenho a impressão de que você nem nota a diferença. Nunca o ouvi
comentar isso, por mais que a mamãe se empenhasse para manter a
casa em ordem.
Ele não retrucou, mas saiu e deixou-a a ver navios. Ela lavou a louça
e tomou um táxi até à casa de outra amiga. Não demorou. Às nove e
meia já estava na cama.
Deitou-se e pôs-se a pensar em Julius e a imaginar o que ele estaria
fazendo. Devia estar se divertindo, sem dúvida. Essas viagens de
negócios eram também viagens de prazer, pensou Gale, lembrando-
se que o marido não perdia uma festa quando ia à Inglaterra. Devia
ter algum amigo em Munique, assim como o professor íngham, que o
apresentaria a um círculo como esse que conhecera na Inglaterra.
- Ele poderia ter me levado - disse ao travesseiro. - Poderia mesmo,
se quisesse.
Sem dúvida, não quisera.
Apesar do que dissera, Gale passou a quinta-feira inteira limpando a
casa. Preparou uma lauta refeição para quando o pai chegasse. Ele
não fez nenhum comentário sobre a comida nem notou o que ela
fizera na casa, apesar de ela ter lavado e passado suas camisas e
outras roupas.
- Até mais ver - disse-lhe o pai, na manhã de sexta-feira, quando
saiu. - Divirta-se - E arrematou: - Tomara que você não tenha uma
tremenda dor de consciência!
- Não há perigo - respondeu-lhe, com sutil doçura na voz. - Você é
mesmo filha de sua mãe! - reclamou ele, e saiu batendo a porta com
força.

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Gale lavou a louça do café, pôs a mesa para o lanche dele, arrumou
as camas e deixou tudo em ordem antes de sair. Dava-lhe
satisfação, embora soubesse que
o pai não reconheceria o trabalho que ela tivera. A festa de Tricia
foi um jantar dançante. Gale foi apresentada a Stephcn e ficou
encantada com ele. Dançaram. Mais tarde, Gale disse a Tricia o
quanto ela era felizarda por tê-lo consigo. Ao ver os olhos da amiga
irem ao encontro de Stephen, que estava num grupo de rapa es,
Gale calou-se. Tricia estava esquecendo Trevis aos poucos talvez,
mas tudo indicava que isso era verdade.
Quando dançava com Gale, Dave Ingham perguntou-lhe pelo marido.
- Ele está em Munique a negócios - disse-lhe.
- Então você decidiu voltar e visitar os amigos?!
- Vim principalmente para visitar minha mãe, mas, infelizmente, ela
viajou. Por isso estou hospedada com Tricia. - O professor Ingham
nada comentou e, passados alguns instantes e um pouco hesitante,
ela perguntou:
- Você tem visto Trevis?
- Ocasionalmente - respondeu.
Mais um movimento de hesitação e então:
- Ele ainda frequenta o rancho?
- Acho que sim. - O descomprometimento da resposta deveria tê-la
desencorajado a persistir no assunto. Porém, inexplicavelmente,
havia uma força incontrolável que a impelia a continuar. Perguntou
se os amigos usavam o rancho quando o próprio Trevis não estava lá.
Ela olhava bem nos olhos de Dave. que sorriu sorrateiramente. Por
mais estranho que fosse, isso a fez recordar um diálogo que ouvira
entre ele e Julius, que fizera seu sangue ferver com o tom de
desdém com que seu sexo fora discutido.
- É, Trevis empresta o rancho aos amigos.
Gale deu um suspiro impaciente, pois sua sutíleza não surtira o
menor efeito, e calou-se. Limitou-se a dançar com seu par, embora
estivesse pensando

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no marido, no jeito de ele dançar, soberbo e com a graça arrogante
dos antigos atletas helénicos.
- Você está muito quietinha - observou Dave, passados alguns
minutos.
- Suas respostas às minhas perguntas são tão sucintas que con
versar parece ser uma grande perda de tempo - disse-lhe com
franqueza, e, para sua surpresa, ele riu.
- Você quer dizer que perguntar é perda de tempo, não é? Gale
enrubesceu.
- Vamos mudar de assunto, Dave?
- Não. Acho que não. O que é que você quer saber? Foi obrigada a
rir e então disse:
- Diga! Por acaso você sabe como é que Julius e eu viemos a nos
casar? - Gale lamentou a pergunta no momento em que a computou,
apesar de tê-la feito da maneira
mais indireta. Parecia íntima, agora que fora colocada com palavras
simples; não era para ser formulada assim, apesar de Dave ser
amigo de seu marido, amigo de longa data.
- Você quer saber se Julius me confessou alguma coisa?
Ela não respondeu imediatamente, limitou-se a analisar as palavras
do rapaz. Nada havia para deduzir, exceto um sinal de
constrangimento. Porém, isso era tudo de que precisava para
responder à pergunta.
- É claro que ele não lhe confessou coisa alguma - declarou Gale.
Dave assentiu, e aí ela completou: - Esqueça.
Ele não compreendeu.
- Você me deixa confuso, Gale. Seu casamento não foi como a
maioria dos casamentos. Devo confessar que todos ficamos
surpresos com Julius. - E concluindo, justificou-se: - Ele era
considerado um solteirão ortodoxo e, por isso mesmo, o casamento
foi um fenómeno. Tudo foi feito em silêncio, e tão repentinamente!
Mas, a bem da verdade, eu mesmo sabia que ele estava ligado era
em você. Portanto, nada me ocorreu que pudesse me causar

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
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estranheza no casamento. Agora, porém, você me pôs a pensar e me
confundiu.
- Quer se abrir comigo?
Ela mordeu os lábios, irritada consigo mesma por ter feito a
pergunta que despertara sua curiosidade, fazendo-o pensar em
coisas que antes não o preocupavam.
- Não, não quero me abrir - respondeu firmemente, acrescentando:
- Como é que você sabe que ele estava ligado em mim?
Ingham deu de ombros.
- Era óbvio. Olhava para você o tempo todo. Acho que muitos sabiam
como ele se sentia em relação a você.
Gale refletiu sobre essas palavras; lembrou-se do irmão dizendo
que Julius estava impressionado com a beleza dela, que não tirara
os olhos dela a noite toda. O erro de Dave estava no fato de,
segundo ele, o interesse do amigo ser puro amor. Seria isso mesmo?
Algo lhe dizia que Dave não se iludia quanto à natureza da atração
que Julius tinha por ela. A idéia fê-la recordar a conversa entre
Dave e Julius na noite do churrasco. Riam e teciam comentários
ofensivos a respeito das mulheres. Sem personalidade, dissera
Dave. E tão fáceis de se conquistar. Julius concordara, mas dissera
também que preferia batalhas.
Logo após é que dissera a frase que fizera o sangue de Gale subir-
lhe à cabeça: - Ponha a mão sobre o coração de uma mulher e ela
será sua instantaneamente.
A música terminou, e foi com alivio que Gale voltou à mesa. Estava
um bocado sem jeito e até envergonhada. Era intolerável a idéia de
que Dave e provavelmente todas as outras pessoas acreditassem
que o grego alto e belo, tido como solteirão empedernido, se tivesse
casado com Gale por simples atração sexual. No entanto, Gale tinha
que aceitar essa idéia, que não lhe saía da cabeça. Uma noite
estragada! Às vezes olhava em volta e captava expressões dos que
olhavam em sua direção. O que estariam pensando?, perguntava-se.
Lá pelo fim da noite, sentou-se com Tricia num canto da sala e

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papearam, enquanto bebericavam seus drinques. Mas Gale foi
obrigada novamente a ouvir uma conversa
do professor Ingham com alguém cuja voz Gale não pode
reconhecer. Mais tarde, Tricia, informou-a de que se tratava de um
amigo de seu pai, Lawrence Hyatt. Os dois
homens encontravam-se numa saleta ao lado, e Gale não desconfiara
como estavam próximos, até que ouviu a voz de Dave:
- Você o viu em Paris? Tem certeza? Ele disse à esposa que iria a
Munique.
- É claro que tenho certeza. Eu o conheço muito bem de vista.
Estive no churrasco, lembra-se? Ele estava com uma loira.
- Ele está casado há apenas algumas semanas. A moça era inglesa?
- Sim.
- Julíus.com uma loira em Paris! Quem diria!
Ambas ficaram caladas e, quando falaram fizeram-no ao mesmo
tempo. Disse Tricia:
- Vamos sair daqui - E Gale, pálida como cera, balbuciou:
- Vamos. . . andando?
- Gale - começou Tricia, quando já se encontravam distantes do
lugar onde tinham estado sentadas -, não ligue. Não é verdade. Você
sabe muito bem como são os homens quando se põem a conversar. . .!
- Sua voz enfraqueceu quando percebeu como era inútil seu esforço
para confortá-la.
- É claro que é verdade. - Mal se ouvia a voz de Gale. Sentiu-se
quase doente, teria dado tudo para que alguém a levasse até seu
quarto, em casa, onde pudesse se
esconder e não deixar ninguém ver a humilhação que dela tomara
conta ao ouvir aquelas palavras.
Julius em Paris! Julius em Paris. . . com uma loira. Será que o nome
da loira era Daphne? Será que o marido estava com outra mulher?
Gale lembrou-se do pai, de Malcolm e Trevis, e teve ódio de todos
os homens! Sim, todos eles!
- Nenhum presta - protestou consigo mesma. As lágrimas caíram,

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
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mas Gale se lembrou de que essa era a festa da amiga e fez um
esforço supremo para contê-las, e que só conseguiu quando
esfregou as mãos sobre os olhos.
- Sinto muito. - A própria Tricia parecia magoada. - Nem
sei o que dizer.
- Não há nada a dizer. Vamos esquecer! Mais um drinque?
- Estou certa de que deve haver algum engano - insistiu Tricia. ; -
Por que não vamos até lá para conversar com aqueles dois e
descobrir o que aquele amigo de
papai quer dizer?
- Não há engano algum. Quanto a falar com eles. . . - Gale engoliu em
seco - é a última coisa que eu faria. Você conhece as circunstâncias
que me levaram ao casamento;
portanto, não adianta fingir que Julius me ama.
Tricia mal conseguia pensar no que dizer.
- Então por que é que se casou com você? Sei exatamente como sua
mãe se sentiu, você me contou tudo, na época. Mas Julius não
precisava ter-se casado com você. Deve ter havido algum motivo.
Além do mais, todo mundo notava como ele olhava para você. E sei
que numa festa ele disse que só havia uma mulher bonita no lugar, e
era você. Pois é, havia algum bom motivo para esse casamento,
independente de você achar que ele não a ama. - Tricia achava que
estava ajudando, e só descobriu seu erro quando Gale, percebendo
que não havia motivos para segredo - depois do que Tricia ouvira
- contou-lhe que a única atração que sentia por Julius era sexual.
- Os gregos são notáveis por isso - continuou. - Desde que moro lá,
tenho aprendido muitas coisas. Raramente se casam por amor. Um
homem vê uma mulher que lhe agrada e logo procura os pais dela e
trava negociações para o casamento. A única coisa que conta é o
sexo; nada mais. Os homens gregos são os mais sensuais do mundo,
e isso deve responder as suas dúvidas.
Tricia não encontrou nada para dizer, no início. Ficou lá, meio
estarrecida, meio preocupada.

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- Se isso é verdade, devo me sentir mais culpada que nunca -.
suspirou por fim; trazia nos olhos um pedido de perdão.
- Não é sua culpa - declarou Gale.
- Eu quis me casar com ele.
Novo silêncio se fez. Tricia não tirou os olhos da amiga, numa
tentativa de descobrir o real significado de tal confissão.
- Você o amava desde o início? - perguntou, descrente. - Mas você
sempre jurou que jamais iria se apaixonar. . . Como é que você
descobriu isso?
Gale umedeceu os lábios. Sabia que uma ou duas pessoas não
tiravam os olhos delas - e em virtude do que ouvira, achou que esses
olhares estavam encobertos por um fino véu de escárnio. Quisera
nunca ter obedecido ao impulso que a trouxera à Inglaterra. Mas
momentos depois reconheceu que estava contente por ter
descoberto a traição do marido. Ela nunca quisera sentir-se na
posição de mulher ingénua, que é traída e desconhece o fato. Muito
melhor agora que ela sabia de tudo, e, daí por diante, poderia
armar-se contra os encantos dele. O desânimo e a miséria eram
como peso morto em suas costas, diante do futuro que se delineava
para ela. Fim aos carinhos e ao sexo, pois ela se recusaria - e isso, é
claro, significava o princípio do fim. Julius certamente buscaria o
prazer com outras.
- Eu não me apaixonei - admitiu Gale, desperta de seus pensamentos
por um pequeno movimento de Tricia indicando que ainda aguardava
uma resposta. - Nós dois nos casamos pelo mesmo motivo.
Tricia pasmou.
- Não acredito! - exclamou. - Os homens se casam por esse motivo,
eu lhe garanto, e talvez como você mesma diz, esse seja o caso da
maioria dos gregos. Mas as mulheres, jamais!
Gale teve que sorrir, apesar de seu estado.
- Você não é muito realista, Tricia. As mulheres também, mas
raramente, são capazes de reconhecê-lo.
- Acho que você se apaixonou por ele - afirmou Tricia, ignorando as

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considerações da amiga. - Sei que isso teria acontecido comigo, se
eu tivesse merecido a atenção de Julius Spiridon. Ora, você sabe
muito bem que todas as mulheres eram loucas por ele!
- Eu não me apaixonei- por ele - negou Gale. - Foi atração sexual de
ambos os lados, e sabíamos desde o começo que isso não iria durar.
- Falava por Julius e por si mesma, pois estava ciente que o que
dizia era a pura verdade. - Durou menos do que eu esperava, e por
isso estou me sentindo tão frustrada. Mas nem se preocupe! O que
não tem remédio, remediado está. Vamos lá! Estou louca para beber
alguma coisa!

CAPITULO IX

Mais tarde, Gale mal podia imaginar como fora capaz de ficar na
casa dos Sims no fim de semana; adotara uma tranquilidade tal que
só Tricia sabia se tratar de puras
aparências. E na hora de partir não se sentiu nada melhor; estava
voltando para a casa de um pai para quem era indiferente sua
presença. Apesar disso, seriam apenas mais duas noites daquelas
para aguentar. Após isso, a mãe estaria de volta.
- Pensei que você fosse ficar fora até amanhã - disse o pai, ao
voltar para casa, onde uma refeição fora preparada e uma lareira
fora acesa. Gale sentira frio, tremera o dia todo.
- Eu disse que dependeria de como eu estivesse me sentindo.
- Então não atingiu as expectativas. - Parou repentinamente e
novamente ela pôde observar a respiração pesada do pai. Ele,
porém, parecia estar em perfeito estado de saúde e ela nem
comentou o que observou.
- Tive vontade de voltar - disse-lhe a filha.
- Bem, suponho que você saiba o que quer. Até que sua mãe chegue,
já vai estar na hora de você voltar.

Livros Florzinha - 118 -


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Ela confirmou, mas lembrou-o de que ainda tinha três dias. No
início, ela chegou a considerar a possibilidade de voltar antes do
planejado, só para satisfazer sua curiosidade e verificar se Daphne
estava na ilha. Se ela estivesse fora, não haveria dúvidas sobre a
loira com quem Julius estava; se ela estivesse em casa, isso
significaria que Julius tinha outra mulher em estoque - loira
também. Mas Gale brecou o impulso de voltar a Patmos. Ela viera
até a Inglaterra especificamente para visitar a mãe, e não seria
sensato partir sem ao menos passar uns dois dias com ela. Além
disso, esperava encontrar a mãe com o génio mais comunicativo que
antes. Esperava conhecer coisas sobre esse Jack e saber se ele era
o companheiro escolhido para as férias.
As esperanças de Gale estavam destinadas a se realizarem, pois,
após recuperar-se da surpresa de encontrar a filha em casa, a sra.
Davis se abriu e conversou. Gale soube que Jack realmente estivera
com a mãe em Cornwall, mas ficaram em hotéis vizinhos.
- Ele pagou por suas férias?
- Pagou tudo. - Uma pausa, e então, ansiosa como sempre: Você me
condena?
- Não sou seu juiz - respondeu Gale prontamente. - Acho que você
foi uma santa até agora. De qualquer modo, você acabou de dizer
que ficaram em hotéis separados.
- Ficamos, e é verdade. Jack é um homem honrado. Sabe como me
sinto a respeito desses modos modernos e entende.
Gale sorriu amarelo. Por quanto tempo ele seria capaz de entender,
segundo as palavras da mãe? Ele era um homem, e isso era o
bastante para Gale duvidar de sua sinceridade.
Olhou bem para o rosto da mãe e suspirou. Tão ingénua ainda, e
crédula, A mágoa não tardaria, e Gale poderia chorar por ela.
- Conte-me mais sobre ele, querida - pediu. - Como é? Ê solteirão ou
viúvo? - Provavelmente casado, pensou seu coração sentido.
- É viuvo há oito anos, e jamais se interessou por outra mulher até
que me conheceu, três anos atrás.

Livros Florzinha - 119 -


Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
- Que estória! - Gale continuou, sem o menor sinal de cinismo.
- Qual a idade dele?
- Quarenta e oito. E ele é tão bonito quanto o seu Julius, quase. É
alto e forte. . . e não bebe - acrescentou a sra. Davis com muita
ênfase.
- A esposa? Ele costuma falar nela?
- Uma vez só, e achei muito bacana - continuou a sra. Davis, com um
sorrisinho remanescente dos tempos de menina. -
É que ele falou nela com muito carinho. Foram
apaixonados até o fim. Ele diz que ela sabia que ia morrer com um
ano de antecedência e o fez prometer que viria a casar-se
novamente. Ele prometeu, apenas para agradá-la, mas não tinha a
mínima intenção de fazê-lo... até que nos conhecemos. Mas é claro
que não podemos nos casar. . . A voz doce e harmoniosa veio a calar-
se e uma tristeza muito profunda travou a garganta de Gale.
Contudo, foi capaz de perguntar à mãe quais eram seus planos.
- Não temos planos.
Gale compreendeu e quis saber como haviam se conhecido.
- Não foi nada romântico! - A voz da sra. Davis fluiu livre de novo;
chegou até a rir consigo mesma. - Eu saí do supermercado
carregada, trazia dois daqueles sacos, porque eu havia esquecido
minha sacola grande no ônibus, por pura distração. Bem, você sabe
que não se pode confiar naqueles sacos, e não foi um só que furou,
mas os dois. Toda a compra se espalhou pela calçada! Todos estavam
olhando, e você pode imaginar como me senti! - Gale assentiu e teve
que sorrir. Tão tímida, a mãe! Aquele devia ter sido o momento mais
embaraçoso de sua vida. - Algumas coisas rolaram até a sarjeta.
Havia tomates e cebolas rolando para todos os lados. - Parou de
falar, porque as duas riam como há muito tempo não conseguiam rir.
- Continue - pediu Gale, quando conseguiu parar de rir. Esse Jack
apareceu nessa hora, é claro.
- Ele parou o carro, mas, a essa altura, as mais diversas pessoas já
estavam de lá para cá apanhando as coisas. Mas eu não tinha onde

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
pô-las. Jack logo tomou a dianteira e surgiu com uma caixa de
papelão, e pediu às pessoas que colocassem tudo dentro. Disse
então que deveria trazer-me para casa. Foi o que fez, e tomou uma
xícara de chá. No dia seguinte, voltou para saber como eu estava.
- Para saber como você estava? - disse Gale, confusa. - Você se
machucou? - Ela não se lembrava de ter visto a mãe com qualquer
problema de saúde.
- Era apenas uma desculpa! Você sabe disso. Começou a visitarme
regularmente, mas, depois de algumas semanas, comecei a me
preocupar por causa dos vizinhos. Você sabe como essas mulheres
conseguem distorcer as coisas. Além do mais, comecei a me sentir
culpada pela coisa toda, e para completar, comecei a gostar muito
dele. É fácil, Gale, principalmente quando lhe falta o amor do marido
há tanto tempo. - Ela se interrompeu e olhou para a filha como quem
pede compreensão.
- Eu entendo, mamãe - disse Gale com ternura. A mãe prosseguiu em
seu relato sobre o quanto relutou e a decisão de pedir a Jack que
não viesse mais.
- Eu queria que fosse um rompimento, mas não conseguimos,
Gale..não conseguimos. Jack concordou em que não deveria mais
voltar à casa, mas sugeriu que nos encontrássemos em outro lugar.
Eu me recusei terminantemente, mas você já sabe disso.
- Mas vocês mantiveram contato, obviamente. - Gale começava a
rever sua opinião sobre o homem. Parecia sincero, afinal.
- Sim. Costumávamos telefonar um ao outro.
- Um ao outro? Como é que ele lhe telefonava?
- Eu costumava ir ao quiosque, a uma certa hora, e ele ligava para lá.
Ele tinha a idéia de que eu não tinha muito dinheiro. Decidiu que ele
telefonaria para podermos conversar mais. Às vezes eu mesma
telefonava, quando estava deprimida. - Parou de falar
e um breve silêncio se fez; ambas estavam dispersas em seus
pensamentos.
- Esse tipo de namoro deve ter durado muito tempo - comentou

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
Gale afinal, e a mãe confirmou.
- Até você, isto é. . . - Aquele jeitinho infantil e envergonhado...
Como ela estava bonita, pensou Gale. Obra do amor, amor
verdadeiro, não aquela coisa superficial chamada atração sexual, em
que seu casamento era baseado. Aqueles dois viveram três anos
unicamente às custas de amor espiritual. . .
- Até eu ficar no rancho com Julius - Gale completou para ela. A
mãe virou o rosto, sem saber como encarar a filha. Gale pensava
com convicção de que a mãe estivera representando um papel, de
que algo pairava sobre aquele casamento, algo misterioso e
inexplicável.
- Sim, até você fazer aquilo. - As palavras pareciam sair forçadas;
ela ainda não conseguia olhar a filha de frente. - Eu me senti à
vontade para viver minha própria vida, depois daquilo.
- Daí vocês resolveram encontrar-se regularmente?
- Exatamente.
- Diga - disse Gale de modo pensativo -, você ainda crê que dormi
com Julius?
- Gale, querida, por favor, não me use essas expressões modernas! -
A mãe cortou seu pensamento, e Gale acabou rindo.
- O que há de moderno nisto? Você está com um atraso de
cinquenta anos, minha cara. Você ainda não respondeu minha
pergunta!
- insistiu Gale.
- Eu não. . . não. . . não sei exatamente.
- Não? - Gale gostaria que a mãe olhasse para ela, mas isso não
ocorreu. - Você não conhece a filha que tem?
A mãe não sabia o que dizer, e Gale de repente se convenceu de
que, fosse o que fosse o que dissesse, a mãe não diria as palavras
que ela queria ouvir. E isto apenas aumentava o mistério. Como o
silêncio persistia. Gale mudou de assunto, perguntando se poderia
conhecer Jack.
- Eu ia sugerir isso - respondeu-lhe a mãe, em pronta confirmação. -

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
Ele quer conhecer você e Edward, mas, naturalmente, eu nunca o
deixaria ver Edward, que é tão parecido comigo, por não apreciar
esses modos modernos. - Parou e deu de ombros, desalentada,
respondendo assim ao humor que subitamente surgira nos olhos da
filha. - Sabe o que quero dizer? - acrescentou afinal.
- Claro, querida, mas continue.
- Ligarei para ele hoje à noite e combinaremos ir jantar em algum
lugar. Ele vai ficar tão contente com a idéia de conhecê-la! Ele até
já sugeriu que ele e eu fôssemos para Patmos em algum fim de
semana, a fim de que ele pudese conhecê-la, e a Julius, é claro - a
sra. Davis acrescentou, como que completando o pensamento.
- Você sai para jantar com ele regularmente? - Gale perguntou,
refletindo sobre a mudança na vida da mãe e decidindo que
concordava totalmente com ela.
- Sim, desde que nós... eu... Oh, querida, eu não tenho nem um pouco
de tato.
- Desde o episódio. . . Vamos chamá-lo assim sempre que for
necessário nos referirmos a ele?
- Você está brincando comigo, querida, e isso não é próprio de você,
nem é gentil!
- Não é próprio de você, nem é gentil classificar-me como uma sem-
vergonha. - Gale não pôde evitar o revide, mas novamente não
obteve a satisfação de ler a expressão da mãe. - Só tenho três
dias, no máximo - Gale relembrou-a, decidindo que não fazia sentido
prolongar um assunto que jamais levaria a algo de concreto.
- Quero estar de volta antes de Julius.
- Sim, claro, querida. Sairemos amanhã à noite.
- Jack não terá nada para fazer?
Um sorriso de confiança resultou dessa pergunta.
- Se tivesse, ele o cancelaria - foi a resposta, num tom que não
admitia a menor sombra de dúvida.
- Você parece muito confiante nele, e feliz.
- Estou feliz, mas não completamente, é claro. Porém, estou

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Sabrina no. 14
agradecida ao destino, por me ter enviado Jack. Ele está fazendo a
vida ser suportável. - Gale ouvia e seus olhos se enchiam de
sombras, mas não pela mãe, desta vez. Era de si mesma que ela
sentia dó; perdera tanto, ao se casar, pela razão por que se tinha
casado. Via isto agora via e admitia que o amor espiritual, unido a
uma porfunda atração mental, era a base real de um casamento. O
amor físico era importante, muito importante, mas devia ser
cimentado pelas outras duas emoções, sob o risco de todas
inevitavelmente perecerem.
Ao notar esse ar melancólico e preocupado, a sra. Davis perguntou à
filha, sem esconder a profunda ansiedade que a dominava: - Gale
querida, você é feliz com Julius?
Você deve ser! - A exclamação surgiu de um impulso, e a expressão
no rosto de Gale continuava profundamente melancólica.
- Sou feliz... sim - disse ela, mas sem o menor entusiasmo, e, para
sua surpresa, os olhos da mãe brilharam. Falou, como se não se
importasse com a presença de Gale:
- Ele a ama. Você deve ser feliz! Ah! Se você não fosse, depois do
que fiz! Seria horrível, eu nunca me perdoaria por. . . por. .. Calou-
se. Os olhos e ouvidos de Gale estavam aleitas. Estava convicta de
que, mais do que nunca, estava prestes a conhecer o mistério de
eventos que antecederam seu casamento.
- Continue, mamãe - encorajou-a, mas era tarde demais. A sra.
Davis recuperou-se e silenciou por mais algum tempo. No entanto,
parecia mais confusa que nunca. Olhou bem os olhos da filha e disse:
- Você o ama, agora? Eu sei que não o amava no início, mas e agora?
Diga que sim, Gale, ou jamais voltarei a ser feliz enquanto viver.
- Eu aprendi a amá-lo depois que nos casamos - retrucou Gale,
tencionando apenas aliviar a consciência da mãe, mas foi com
irreverência que a verdade se fez presente.
Ela estava sendo sincera.
O aconchegante hotelzinho, situado num pequeno pomar e apenas
maculado pelas modernas caldeiras, era tão caseiro quanto a

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
cozinha de uma cabana. O fogo estava aceso na enorme grelha
preta. Vigas, as mais loucas, davam apoio ao teto ainda mais louco e
se prendiam a paredes extremamente confusas. Havia até um forno
de marinheiro que divertia qualquer um que o visse. Lamparinas
eram a única iluminação, por sinal, muito íntima. Viam-se flores por
todos os cantos, em vasos, e a trilha suave de uma valsa invadia a
pequena sala de jantar, vinda de uma caixa de som oculta.
- Sua mesa de costume está reservada, madame. - O sorridente
garçom apontou para o bar. - Aceitaria um drinque antes?
- Naturalmente - disse, sem muita confiança no modo de falar, mas
o suficiente para Gale tremer. Que transformação sofrera a mãe! O
amor fazia mais do que simplesmente trazer mais luz ao olhar de
uma pessoa, era o que parecia.
Estavam sentadas perto da grelha, quando a atenção da sra. Davis
fcfoi desviada.
- Aquele é o carro dele. Conheço o barulho do motor. Gale virou-se
automatkamente para a janela. O sereno começava a cair; tudo o
que pôde ver foi a figura
alta que desceu do carro, fechou a porta e pôs-se a caminho do
salão. Jack deu a volta pelo lado do prédio e entrou pela mesma
porta que Gale e a mãe. Os pensamentos de Gale voltaram-se para o
pai; ela não podia evitar a visão do pai entrando e flagrando a mãe
ali sentada, bela e charmosa, à espera do namorado.
Mais alguns segundos e Gale estava admirando o rosto jovem e
bonito, tão diferente do rosto do pai, cujas aventuras tinham
marcado há tanto tempo. Esse homem era distinto. Não havia rugas
em sua i pele firme e bronzeada, nem cheiro de álcool ou nicotina
emanando das roupas. Pelo contrário, havia o saudável aroma do
linho recém-lavado e outro mais incomum ainda, a loção após-barba.
O cabelo brilhava, í bem como os dentes alvos e uniformes; o terno
cinza de casemira era impecável, assim como os sapatos de camurça.
Era corretor imobiliário, contara a mãe, e tinha seu próprio negócio
com filiais em diversas outras cidades.

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Sabrina no. 14
- É mesmo um grande prazer conhecê-la, Gale - sorriu, enquanto
falava, e não foi difícil imaginar como ele conquistara o coração da
mãe. Polido e gentil, tinha um aperto de mão firme e amigável.
- Isso vale para Gale também - a sra. Davis não pôde deixar de
observar, ao notar a expressão no rosto da filha.
- Não sei! - Olhou para Gale e aguardou um momento antes de
completar: - Gale deveria poder falar por si mesma, querida.
- É um prazer - murmurou com um sorriso. Ele sentiu que ela estava
aliviada; riu, ao sentar-se ao lado da mãe, e fez sinal para o garçom.
- Fui aprovado, imagino? - Havia no olhar dele aquele desafio
satírico típico de Julius, ao fazer esse tipo de perguntas. Gale
concluiu que, apesar de ele esperar que fosse aprovado, não teria a
intenção de implorar por isso. Era óbvio o porquê de a mãe ter caído
por ele! Ele tinha tudo, mesmo aquele certo grau de arrogância que
é uma faceta essencial de suprema masculinidade. Gale não podia
calar-se.
- A minha aprovação é muito importante? - Sentiu-se pouco à
vontade, ao notar que não sabia como tratá-lo.
- Sua mãe ficaria sem jeito, se você resolvesse que não gosta de
mim.
Ela imediatamente interferiu e deixou patente sua opinião a
respeito da afirmação de Jack.
- Seria impossível não gostar de você.
Ela baixou a cabeça, deixando a luz do bar refletir-se no cabelo,
sobre os poucos fios prateados.
- Obrigado, Gale. É com sinceridade que digo o mesmo a você. Eu já
a conhecia através de sua mãe, é claro. - Ele pausou e sorriu
afetuosamente para a mãe dela. -
Conhecia tanto a você quanto a seu irmão. Dois dos melhores filhos
do mundo.
- Jack, querido!
- Está bem, não vou desconcertá-la mais. - Seu drinque fora
servido; insistiu para que aceitasse outro, mas recusaram-se e

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apanharam seus copos quando Jack disse sério: - Bebamos ao futuro
e a nossa felicidade. - Gale levou o copo até a boca, mas já estava
satisfeita. Onde se encontrava essa coisa chamada felicidade?
Poderia ser encontrada e capturada, mas escorregava antes que
fosse presa com segurança. . . e fazia trapaças ao escapar. Que
felicidade poderia haver para os três sentados ali, nessa saleta
íntima de um hotel velho, escondido, lugar secreto onde os amantes
podiam se encontrar com certa segurança? Gale meditou sobre os
dois, encontrando-se em seu lugar secreto, que de algum modo
haviam encontrado e, que, provavelmente, outros como eles também
encontraram. À meia luz, com mesas discretas, cinco ao todo. Devia
ter sido planejado exclusivamente para encontros clandestinos.
- Você está em outro mundo, Gale. - A voz de Jack trouxe-a de
volta e ela sorriu para ele do outro lado da mesa. A luz das chamas
dourou-lhe o rosto. - Onde você estava? Na Grécia com seu marido?
Ela hesitou. Tentou imaginar até que ponto a mãe teria contado
coisas a seu respeito. Nada, era o mais provável. com certeza, ele
teria perguntado por que ela estaria sozinha na Inglaterra. A mãe
provavelmente teria dito que o marido se encontrava em Munique, a
negócios, o que levara Gale a aproveitar a oportunidade e visitar a
família.
- De certo modo, eu estava, sim. - Era uma mentira descarada, e
isso ficou patente em seu rosto. - Eu estava pensando em
felicidade.
Um pequeno silêncio se fez, e Gale carecia do apoio da mãe, que
estava grata pelo que tinha, grata e satisfeita. Desviou o olhar para
aquele homem, que era tão atraente que parecia impossível ainda
não ter sido laçado até então. Muitas mulheres deviam ter-se
apaixonado por ele como por Julius. Mas ele não tirava proveito
delas. . . A lembrança de que o marido se aproveitara de uma mulher
magoava-a imensamente. Procurou desviar do pensamento a
descoberta do dia anterior; tentou convencer-se
de que não era verdade. Não se apaixonara pelo marido, não seria

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Sabrina no. 14
tola a tal ponto. Jurou nunca colocar-se em posição tão vulnerável
pela segunda vez. E havia ainda o fato de que ficara imune por cinco
anos.
Qual o quê! Era muito mais forte a verdade, e prevalecia sobre
qualquer protesto ou resistência por parte dela. Estava apaixonada
por Julius. . . e fora traída pela segunda vez. Ela merecia o que
sofrera.
Dois dias após o aconchegante jantar, Gale estava de volta a
Patmos, aguardando a chegada de Julius. Julius avisara
Apolo que estaria lá por volta das seis da tarde, e essa informação
foi transmitida a Gale tão logo ela chegou à vila. Agradeceu a
Apolo e, com as mais sutis perguntas, deu um jeito de descobrir que
Daphne também estava viajando. Agora Gale apenas aguardava,
chateada, porém decidida, a volta do marido, a quem daria sua
própria informação. Diria de uma vez por todas que o casamento
estava terminado. Ele poderia ficar com Daphne e passar o tempo
que desejasse com ela em Paris, se fosse o caso. Gale o convenceria
de que, para ela, não tinha a menor importância.
Ele chegou de táxi e Gale viu o automóvel aproximar-se da casa
vagarosamente, até que parou perto de onde ela estava, no pátio, à
luz do sol que se punha. com sua elegância e graça costumeiras,
Julius desceu do automóvel, pagou o motorista, pediu-lhe que
entregasse a bagagem a
Apolo e foi, passo a passo, até onde a mulher se encontrava. Olhou-
a de cima com um riso matreiro.
- Muita saudade, querida?
O rosto de Gale não demonstrava nem um milésimo sequer da
sensação que percorria o seu corpo.
- Por que eu sentiria saudade? - contrapôs, sem poder dar vazão à
fúria que ameaçava explodir com toda a força. - Você se divertiu em
Munique?
- Eu não fui para me divertir, e você sabe disso. - Parecia
preocupado e confuso. Acrescentou uma certa rispidez na voz e

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disse:
- O que há de errado com você? Eu esperava as boas-vindas e olhe
só o que me espera: uma esposa com cara de lobisomem. Você sentiu
muita saudade! Agora saiba assumir isso!
O sangue dela ferveu. A raiva brotou fundo, mas foi a amargura, a
desilusão que fez com que as lágrimas brotassem. Como ele estava
bonito, mesmo agora, com o cabelo esgadelhado e os traços do
rosto marcando um ar de arrogância. Os olhos pareciam mais
escuros que nunca - quase negros. com uma ponta de vergonha ela
reconheceu que o que mais queria na vida era ser abraçada por ele
e tocada na altura do coração. . .
Tais pensamentos deixaram-na acabrunhada, e mais ainda a testa
dele se franziu, sem compreender a razão de tão repentina
mudança.
- Sinto desapontá-lo, Julius - procurou controlar-se de modo a
parecer sensata. - Eu também estive viajando. Fui para casa.
- Foi? Então você nem sentiu minha falta, afinal?!
- Exato. Nem senti sua falta.
- Entendo. - Ele pareceu afastar-se um pouco com essa notícia, e ela
pensou: "Dá a impressão que ele viajou apenas para me testar, para
descobrir se eu sentiria saudades".
Mas, sem dúvida, não era esse o motivo de sua ausência. Ele tinha
uma razão bastante diversa para ausentar-se.
- Mamãe mandou lembranças - disse ela, olhando-o de perto. No
rosto ele trazia uma máscara indecifrável. Tudo o que disse foi:
- Muito gentil da parte dela. Agradeça, quando escrever. Mantinha
rigidez na voz, mas parecia bem cansado. Cansado. . . bem, isso era
esperado!
Ela disse num impulso que não poderia ser reprimido:
- Daphne também viajou.
Ele arregalou os olhos e pareceu mais preocupado ainda.
Ela olhou-o descrente. Nem um sinal de culpa em seus olhos, nem um
indício de vergonha em sua postura. Um ator e tanto!

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- Acho que ela foi a Paris.
Silêncio. Finalmente Gale achou que havia tocado em seu ponto
fraco. Mesmo assim, bem no fundo do coração, sua paixão por ele
crescia e ardia por dentro, chamava por ele. Se ela levasse adiante
aquele diálogo, fatalmente estaria abdicando àqueles beijos quentes
e apaixonados, ao corpo forte e presente no seu, à doçura
persuasiva daqueles lábios conquistadores, senhores, escravos... De
todo o coração ela o desejava e foi quando, no clímax do que sentia,
uma estranha inflexão na voz do marido fê-la ouvir: - Alguma razão
especial para você mencionar onde Daphne esteve? - Uma pergunta
tentadora, que exigiu uma reação por parte dela. A resposta mais
óbvia estava na ponta da língua, mas não saía. Tentou novamente e
acabou reprimindo. As lágrimas machucavam-lhe os
olhos, pedindo para correrem livres, e ela baixou
as pálpebras em Busca de conforto. Sabia que o marido a observava
de perto, e dava graças a Deus pela noite que ia caindo e
sombreando seu rosto choroso. - Não, Julius - conseguiu afinal, com
a voz trémula. - Nenhuma razão especial. - Parou, o pânico tomando
conta dela, para o caso de ele mesmo levar o assunto adiante,
levá-lo ao ponto de onde não haveria recuo para nenhum dos dois.
Se já tivesse se cansado dela, não se importaria nem um pouquinho
em se expor a suas críticas. Ele a observava com uma expressão tão
estranha! Ele sabia que estivera em Paris com Daphne, e o fato
mesmo de Gale mencionar que Daphne tinha estado em Paris deveria
tocá-lo como uma flecha certeira - o que era a intenção dela,
seguida rapidamente de arrependimento:
- Só mencionei isso por. . . por interesse, porque eu sempre quis ir
lá.
Os olhos que se apertaram fizeram-na, durante um momento
assustador, sentir que ele a faria se explicar de uma maneira mais
plausível. Mas, de repente, Julius parecia relaxar, e ela recuperou a
respiração normal. Entretanto, seu alívio não era a sensação pura e
simples que teria desejado. Julius ficara tão ansioso quanto ela por

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não conduzir as coisas ao ponto em que "fim" é a palavra inevitável.
Isso significava que ele ainda não se cansara dela, que o desejo
ainda o animava quanto a ela. Assim, o alívio, mesmo sendo bem-
vindo, trouxe-lhe pequena satisfação. Levantou os olhos para Julius
e perguntou-se se a umidade nos cílios era visível. Achou que não,
porque ele teria comentado, com certeza. Em vez disso perguntou,
suavemente e com interesse:
- Como você sabe que Daphne esteve em Paris? - Ela sabia que a
pergunta surgiria e estava preparada. Mas abaixou a cabeça quando
a mentira saiu de seus lábios.
- Apolo mencionou isso. Foi ele quem me contou que Daphne tinha
saído de férias.
- Sei... A voz que se esmaeceu preocupou-a, pois denunciava a
possibilidade de ele interrogar
Apolo, que jamais mencionara Paris Mas sua ansiedade logo se
desvaneceu; Julius estava no andar superior falando daquele seu
jeito com os empregados.

CAPITULO X

Eles tinham seguido o caminho dos peregrinos, subindo à gruta onde


João, o Apóstolo, escreveu o Apocalipse e agora estavam no pátio
do Mosteiro Bizantino, observando
um padre ortodoxo grego de barba preta que falava a um grupo de
pessoas que viera do navio branco ancorado perto de Skala, o porto
de Patmos, tão pequeno que os passageiros dos transatlânticos
tinham que ser trazidos a terra de lancha.
- Ele é feliz, a seu modo - Julíus.falou à esposa, com voz fria e
impessoal, como vinha fazendo nos últimos três dias, desde que
retornara da viagem de negócios.
- Os turistas trazem dinheiro aos cofres do mosteiro.

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Gale olhou-o de relance. Ele usava uma cruz de ouro pequena mas
valiosa. Muitos homens gregos usavam tais emblemas religiosos, mas
com Julius isso parecia estranho, considerando-se seu caráter. Era
tão duro, tão preocupado com coisas práticas. . .
- O mosteiro é muito rico? - Sua própria voz era fria, imitando a
dele. Mas doía-lhe ter que falar assim, agora. Ela implorava aos céus
que alguma ternura possuísse o relacionamento dos dois. Jamais
aconteceria, naturalmente; mesmo o desejo parecia ter morrido
pelo menos do lado de Julius, já que ele não mais viera a ela desde
seu regresso. Estranhamente, a grande necessidade que sentia dele
incomodava-a bem menos que seu amor explosivo, cuja força a
estava fazendo questionar sua convicção de que o desposara
somente por desejo. Na época, amor nem lhe ocorrera, mas agora
estava começando a imaginar se a profunda atração por ele
exercida tinha despertado nela algo muito mais poderoso que
desejo. Frequentemente pensava em Daphne, e o ciúme surgia com
tal força que sentia que devia deixar sair o que sabia, só para
descobrir a reação do marido e quanto exatamente Daphne
significava para ele.
- Riquíssimo - respondeu Julius à sua pergunta. - Eles têm terras em
várias ilhas gregas e também em Chipre. - Sugeriu que
-fossem ao terraço e admirassem a magnífica vista - a ilha de Leros
; e as ilhotas de Arki e Lipsi podiam ser vistas de lá, disse a ela. Ele
parecia entediado, pensou Gale, e mordeu o lábio até machucar.
Parecia impossível que sua atração por ela tivesse diminuído tão
rapidamente. Será que ele estava perdido na memória
de Paris e Daphne? Era evidente a Gale que a outra moça podia dar
a ele muito mais que ela. . . e então, se era assim, Gale pensou um
momento mais tarde, por que ele não se casara com ela? Poderia,
naturalmente, ser a velha razão - que um grego nunca desposa uma
mulher com quem já fez amor. Sim, isso parecia ser a explicação
justa. Suspirando, Gale balançou a cabeça, pois um relâmpago de
memória trouxe de volta sua convicção de que havia um mistério por

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trás dos acontecimentos que a conduziram ao casamento.
- Por que o suspiro? - A voz profunda e agradável do marido
interrompeu-a e ela olhou para cima. Deveria ter sabido que a ele
não escaparia aquele sinalzinho de frustração. - Você parece estar
preocupada com alguma coisa.
- Não, não estou - começou. Aí parou, tendo percebido a expressão
de curiosidade no rosto de Julius. Estava mais interessado do que
de costume em sua resposta; também
parecia um tanto satisfeito consigo próprio, ela notou de repente. -
Por que você parece tão satisfeito? - A pergunta escapara antes de
poder considerá-la, e ele franziu o cenho, como se aborrecido com
isso. Mas seu tom de voz era afável o suficiente quando falou:
- Não me dei conta de que eu parecia satisfeito. Você não
respondeu a minha pergunta.
- Sua pergunta?
Franziu o cenho de novo. Era evidente que tudo o que o interessava
no momento era a natureza da resposta dela a seu interrogatório.
- Perguntei se você estava preocupada com alguma coisa.
Eles tinham alcançado o terraço e Gale ficou a fitar o norte, onde
as ilhas Fourni brilhavam sob os raios de sol e o contorno maior de
Ikaria parecia um navio tranquilo aproximando-se do porto.
Gale movia-se sem descanso, cônscia do interesse permanente do
marido e de sua leve impaciência pela demora de sua resposta. Ele
insistiria em ouvi-la, ela sabia, e a evasão parecia imperativa, pois
seu estado de espírito era tal que ela estava quase a ponto de
confessar que sabia que ele estivera com Daphne em Paris - ou
melhor, relembrá-lo de que ela sabia. E isto ocasionaria o tipo de
cena que poderia muito bem levar ao fim do casamento, já que
Julius seria forçado u admitir que Daphne ainda era objeto de
profunda atraçâo para ele. . Sob estas circunstâncias, Gale - se
tivesse algum orgulho - encontraria a única alternativa para uma
saída tão digna quanto possível. Ela teria que retornar à Inglaterra,
para casa. Seu pai gozaria dela. o coração da mãe se quebraria, pois

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Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
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não havia dúvidas para Gale que a mãe queria, acima de tudo, que a
filha fosse feliz. Não, Gale não poderia forçar tal situação e disse,
rapidamente agora, como se para compensar o tempo perdido, e
assim afastar quaisquer suspeitas que Julius pudesse ter de que ela
estava buscando uma mentira plausível com a qual respondesse à
pergunta dele e o satisfizesse:
- Estou preocupada, sim: com minha mãe.
- Sua mãe? - Era imaginação, Gale perguntou-se, ou sua resposta o
tinha realmente desapontado? Certamente apagou aquele olhar
satisfeito do rosto dele. Seria possível que ele tivesse assumido que
ela estava preocupada com eles próprios? Se era isso, ele estava
certo, é claro, e à medida que Gale encarava essa nova idéia
percebia que as batidas de seu coração aumentavam rapidamente,
pois parecia que ele queria trazer o casamento à baila. Queria falar
sobre separação. . . ou sobre fazerem algo pelo casamento? Das
duas possibilidades, Gale só podia pensar na primeira, por causa do
que soubera acerca da estada dele em Paris com Daphne. As batidas
de seu coração aumentaram ainda mais, à medida que o medo
crescia. Perdê-lo. . .
- Contei a você sobre ela... e as férias... e que nós todos nos
encontramos. - Gale falou depressa, lutando contra as lágrimas que
forçavam escapar-lhe. - Estou. . . estou preocupada porque ela não
está feliz.
Julius não fez nenhum comentário por um tempo, mas fixou os olhos
nos dela, tentando descobrir se ela estava ou não mentindo sobre o
porquê de seu suspiro tristonho há poucos momentos atrás. Afinal
sacudiu os ombros, como se acreditasse nas palavras dela.
- Ela nunca me pareceu particularmente infeliz - disse. Parecia
resignada por jamais poder casar com Jack, e agradecida por. pelo
menos, tê-lo.
Isto era verdade; Gale chegara à mesma conclusão mas,
naturalmente, não poderia informá-lo agora disso.
- É tudo muito triste - murmurou ela, absorta nos próprios

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pensamentos agora, momentaneamente esquecendo dos problemas
pessoais, enquanto via a mãe permanentemente
vivendo separada do homem a quem amava. Será que Jack
continuaria a ser-lhe fiel, e satisfeito com tal arranjo? com um
pouco de medo, Gale imaginava se ele algum
dia trairia a mãe.
- De certo modo, é triste - concordou Julius. Mas acrescentou:
- Pelo menos eles têm amor para ajudá-los a ir em frente. - Ele
parecia amargo, pensou, olhando-o rapidamente. Seria possível que
ele quisesse amor em sua vida? Ele que tinha sempre lhe dado ta
impressão de que suas necessidades podiam ser satisfeitas apenas
com atração física?
Ele virou-se e olhou a paisagem. Momentos depois ele estava
apontando para Leros e as ilhotas de Arki e Lipsi. A conversa
tornou-se impessoal e mesmo fria. Uma grande
barreira se instalara entre eles quando retornaram à vila.
- Para a senhora Julius. - Kate parecia um tanto apreensiva
enquanto entregava o telegrama a Gale. - Chegou um minuto depois
que os senhores saíram, mas não consegui alcançá-los na estrada.
Gale e Julius estavam na entrada da vila; ele ficou observando as
mãos trémulas que abriam o envelope e os olhos assustados que liam
a mensagem.
- O que houve? - ele perguntou, ao notar a cor desaparecer do rosto
dela. – Sua mãe. . . ?
- Meu pai. Ele teve um enfarte. - Automaticamente estendeu o
telegrama para ele. - Preciso ir para casa. - Ela sentiu-se perdida e
só, exatamente como na ocasião
em que estava em casa sozinha, após ter esperado tão ansiosamente
ver a mãe novamente. Se apenas Julius se oferecesse para ir à
Inglaterra com ela. . . mas ele não o faria. Ele provavelmente
adoraria sua ausência. Dar-lhe-ia a oportunidade de estar com
Daphne... A depressão estivera tomando conta de Gale durante todo
o caminho para casa e agora, apesar de seus esforços para se

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controlar, ela escondeu o rosto nas mãos e chorou.
- Pode se retirar, Kate. - Gale ouviu a voz do marido, baixa e
estranhamente presa. - Venha - disse ele gentilmente - chorar não
vai ajudar. - Inesperadamente, pôs um braço em volta de seus
ombros e guiou-a à sala de estar. - Sente-se. vou buscar um drinque
para você.
Ela balançou a cabeça, com a ansiedade pintando-lhe os olhos.
- Preciso tomar informações sobre o voo. Você leu o telegrama
Papai está gravemente doente.
- Faça o que digo, Gale - ele interrompeu, calmo, mas firme mente. -
Tomarei todas as providências para nosso voo.
Surpresa e com descrença nos olhos, ela fitou-o, piscando para
enxugar as lágrimas.
- Você vai comigo?
Ele levantou as sobrancelhas, em sinal de censura.
- Certamente você esperava que eu fosse, não?
Gale moveu a cabeça num gesto de estupefação. Mas as palavras não
vinham. Ela estava muito perturbada para falar agora, não só por
causa da notícia recebida de casa, mas também por causa da onda
de alívio que lhe atravessou o corpo.
Contrariamente a suas expectativas, Julius não tinha agarrado esta
oportunidade de estar com Daphne.
Após trazer-lhe um drinque e fazê-la sentar-se no sofá, saiu para
telefonar. Havia um voo do Pireu no dia seguinte, disse-lhe ele ao
voltar. Teriam que tomar a balsa
que saía dali a duas horas.
- Viajaremos durante parte da noite, mas consegui reservar uma
cabina.
- Obrigada, Julius. - Ela não tinha tocado na bebida que ek lhe
trouxera, e agora ele severamente lhe ordenava que a bebesse
- Você vai ver como se sentirá melhor - garantiu-lhe e, de fato. ela
reconheceu que precisava mesmo de um trago. Será que o pai
viveria e seria uma eterna cruz para a mãe carregar, ou será que

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ele... Gale tremeu da cabeça aos pés.
- Não quero que ele morra - sussurrou de modo quase inaudível.
- Ele tem sido perverso, mas. . . - Ergueu os olhos para Julius. olhos
embotados de lágrimas. - Ele é meu pai e quando Edward e eu
éramos crianças ele até brincava conosco, às vezes.
Julius não disse nada, mas, ao perceber a expressão no rosto dele.
Gaie concluiu que achava que seu pai não fizera pelos filhos o que se
esperava de um pai. Como num passe de mágica, Gale chegou a
esquecer tudo em um segundo; é que lhe ocorreu a imagem de Julius
como pai de seus filhos. Ele seria um bom pai, e amável, mas
avia sempre a reputação de que os homens gregos não são nada
sentimentais.
- Não pense na morte dele - disse Julius gentilmente. - Nós
não conhecemos a gravidade de seu estado.
- Minha mãe não é de exageros.
- Concordo, mas isso não é motivo para esperarmos o pior. Voce não
deve deixar-se levar pela imaginação, Gale. vou ficar
bravo com você se se deixar adoecer por isso. Está me entendendo?
Gale assentiu, surpresa com a humildade com que recebera a
chaftada do marido. Era agradável poder ser controlada, por que
não admiti-lo? Julius tomou nas mãos o copo vazio e fê-la encostar-
se Ra almofada e relaxar. Como era estranho; tanta gentileza para
alguem tão superior e arrogante. Gale voltou sua atenção ao pai,
novamente.
Lamentou ter sido tão grosseira com ele por ocasião de sua última
visita. Descobriu que deveria ter dado mais atenção àquela
Respiração sofrida do pai. Cheia de remorso, mencionou o fato a
Julius e novamente, não pôde conter as lágrimas. Mantendo-se
calmo, Julius disse:
- Não há do que se sentir culpada, Gale. Então esqueça isso. Não
havia nada a ser feito.
- Eu deveria tê-lo aconselhado a consultar um médico.
- Ele a teria ouvido?

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Embora relutante, ela foi obrigada a admitir que muito
provavelmente ele não lhe teria dado ouvidos.
- Eu poderia ter notificado minha mãe, então - completou, e
percebeu um suspiro escapar dos lábios do marido. Um sinal de
impaciência.
- Basta, Gale. Invariavelmente há sentimentos de culpa quando
essas tragédias ocorrem, e quase sempre não há a menor
necessidade de tais sentimentos. Já lhe disse que vou ficar bravo
se isso deixá-la doente.
Gale guardou para si seus pensamentos daí por diante; e foi
obrigada a almoçar, pois Julius não tirava os olhos dela o tempo
todo. Após o almoço, tiveram apenas alguns minutos de espera antes
que Apolo os levasse a Skala, onde tomaram a balsa. Só quando
foram levados à cabina é que
ela percebeu que Julius havia reservado
apenas uma e não duas, como era de se esperar. Quando ele
mencionara o fato, ela estava um pouco fora de si e sem condições
de prestar atenção no que ouvia. Ela fitou-o antes de entrarem e,
então, fechou a porta.
- Você se importa? - Ele lançou-lhe um olhar difícil de Se
interpretado.
- Prefiro ficar com você - ela admitiu, após breve pausa, durante a
qual criou esperanças de que ele não a interpretasse mal. - para me
dar conforto - acrescentou, só para garantir.
Ele sorriu de leve, mas não fez comentários. Bem mais tarde quando
estava na cama, ele ajeitou o cobertor para ela, beijou-lhe a fronte,
e voltou para sua própria cama. De lá, apagou a luz.
O sr. Davis estava deitado na cama, os olhos estatelados, a boca
inerte. Gale ficou de pé a vê-lo, estarrecida com a mudança na
aparência do pai. Um lado do rosto estava repuxado de um modo
feio e grotesco que fê-la tremer por dentro.
- O médico já deve chegar - balbuciou a sra. Davis; o rosto estava
pálido, os olhos cheios de culpa. Ela comentara, pouco antes, que era

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tudo por causa dela, de suas saídas sem dizer ao marido onde ia. -
Está se acabando - disse ela, mas Gale não concordou.
- Se fosse isso, ele mesmo já teria parado de sair de casa disse, por
achar injusto a culpa recair sobre a mãe.
- Eu nunca vou me perdoar. - A sra. Davis falou como se as palavras
de Gale não tivessem sido ditas. - Eu deveria ter desistido de Jack.
Julius, que também estava no quarto, tornou-se tão sério em
relação à sogra quanto fora com Gale na tarde do dia anterior,
quando ela também começou a se sentir culpada.
- A culpa não cabe a nenhuma de vocês - disse ele, e olhava para
uma e para a outra. - Para ser franco, a minha opinião é de que o
estado de seu marido é fruto da
vida que ele estava levando. Nossos corpos têm que sucumbir
quando deles cobramos mais energia do que podem nos oferecer.
Palavras lógicas, concordou a sra. Davis, e as mesmas ditas pelo
médico no dia que o enfarte aconteceu.
"Não que todo enfarte seja resultado de um abuso", dissera o
médico, "mas nesse caso devo dizer que seu marido causou sua
própria destruição."
Gale, ao lado da cama com a mãe, não tirou da cabeça essas palavras
que o médico havia dito à mãe. Todas as noites, pelo que Gale podia
lembrar, ele passava bebendo. A coisa mais comum, por exemplo,
era ele chegar às quatro da manhã. E isso acontecia mesmo que ele
tivesse que estar na universidade às nove. - Devo sair, mamãe? -
Gale perguntou no momento em que o médico entrou.
- Não, querida. Fique, por favor!
Dez minutos depois, o médico já havia saído. A notícia era a de que
ele viveria apenas mais algumas horas.
- Você foi muito gentil, Julius - dizia a sra. Davis uma semana após o
funeral. -
É bom ter um ombro em que se apoiar, alguém que tenha espírito de
iniciativa.
Acho minha filha uma jovem de muita sorte. - Olhou para Gale com

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ternura. Mas Gale evitou aquele
opinar, pois ela mesma não tinha certeza de ter tanta sorte, com
as coisas no pé em que estavam. É verdade que ele não tinha
aproveitado
a oportunidade para ficar com Daphne, mas Gale chegou à conclusão
de que, apesar de toda
a gentileza e preocupação, a decisão de acompanhá-la à Inglaterra
surgira de uma mera obrigação moral. Era coerente com seu caráter
considerar uma obrigação acompanhar
a esposa. E quanto mais Gale refletia sobre isso, mais deprimida
ficava. Essa depressão só serviu para confirmar a hipótese de que,
se não fosse pela obrigação, Julius teria mil vezes preferido ficar
com Daphne. Ao fitá-lo, notou um ar de preocupação, mas não sabia
se isso era em virtude das palavras da mãe ou de algum pensamento
secreto.
- Não foi nada - disse ele. - Numa hora dessas a gente gosta
de se sentir útil.
- Você fez de tudo por nós, Julius, e quero agradecê-lo por isso.
- A sra. Davis interrompeu-se quando o genro ergueu a mão. - Está
bem. Não vou dizer mais nada, mas vou sempre me lembrar do que
você fez por nós.
Estavam jantando fora, no aconchegante hotelzinho onde ficaram
de encontrar-se com Jack. A sra. Davis teria recusado a sugestão
de Jack, quando ele os visitou, quatro dias após o funeral, mas
Julius tomou a iniciativa uma vez mais. Segundo ele, seria muito
agradável marcar um encontro antes que ele e a esposa voltassem à
Grécia. Eles resolveram ficar um pouco mais na Inglaterra por duas
razões: em primeiro lugar, Gale não tinha a intenção de deixar a
mãe sozinha tão cedo, o que Julius achou muito plausível; em
segundo lugar, Julius decidira cuidar de negócios enquanto
estivesse na Inglaterra.
No dia seguinte ao funeral, aproveitou para ir a Londres por uns
dois dias. No dia seguinte, Julius visitaria alguns amigos, e só então

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tomariam o avião de volta à Grécia.
Jack já estava lá quando chegaram. Era o primeiro encontro social
entre os dois homens. Ao vê-los juntos, qual não foi o espanto
de Gale notar a semelhança física
dos dois, ambos elegantemente vestidos e com o mesmo aspecto de
segurança e autoridade. Era evidente
que iriam se dar bem. Antes do fim da noite, Julius fez questão
de convidar Jack e a sra. Davis para passarem alguns dias na Grécia.
- O convite fica em aberto - completou. - Sei que vocês não
gostariam de ir tão cedo - olhou para Gale e, perspicaz como era.
percebeu o alívio que fora para ela ouvir essas palavras sensatas.
Ela. por sua vez, notou a expresão de surpresa nos olhos dele.
Estava claro que, se ela mesma tinha dúvidas a respeito do futuro, o
marido não tinha nenhuma, pelo menos, estava implícito que não
cogitava de uma separação ainda.
Por um breve momento, Gale recriminou-se; se tivesse um pouco de
amor-próprio, não aceitaria viver com um marido quc a tivesse
traído. . . Mesmo assim, ela bem sabia que jamais o deixaria por
iniciativa própria.
No dia seguinte Julius se ausentou, deixando Gale e a mãe a sós por
algum tempo. Prometeu que estaria de volta para o jantar.
A sra. Davis carregava no rosto uma expressão de ansiedade. Gale
concluiu que isso se devia ao momento que ela estava passando
Porém, quando conversavam durante a tarde, perguntou à filha
- mesmo que perguntara em outra ocasião.
- Gale. querida, você é feliz com Julius?
Gale, fitou-a e percebeu a mesma expressão preocupada de antes.
O mistério parecia estar ressurgindo novamente.
- Você ficaria muito triste se eu lhe dissesse que não sou feliz
- Não tirava os olhos da mãe, que empalideceu tão logo aquelas
palavras foram pronunciadas.
- Sim, sem dúvida isso me entristeceria! Você deve saber que. . que
é feliz - disse com ansiedade. - Você é! Diga que é!

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O que aconteceria se ela dissesse a verdade? Se dissesse que não
era feliz? Nada deixaria Gale mais satisfeita que poder dizer isso.
só para ver se, assim, a mãe
ficaria mais comunicativa. Mas Gale não poderia magoá-la numa hora
dessas e, para aliviar a ansiedade da mãe, disse:
- Eu sou feliz, querida. Não se preocupe. O que a levou a fazer
essa pergunta?
Um breve suspiro de alívio eliminou as sombras do olhar da sra.
Davis.
- Você não me parece feliz, não como se espera de uma noiva; eu
não suportaria saber que você está arrependida do casamento,
ainda mais depois de. .. de...
- Diga, mamãe.
- Bem. . . depois de eu insistir que você se casasse com Julius.
Porém, já que você não lamenta o casamento, e é feliz, não devemos
nais falar nisso. - Estava ansiosa por mudar de assunto e, antes que
Gale pudesse interferir, disse: - Ficaria muito mal se Jack e eu
fôssemos passar o Natal com você e Julius?
- Claro que não! Que mal há em passarem o Natal conosco?
- Seria muito natural para mim, mas e Jack?
- Você merece ser feliz - disse-lhe Gale gentilmente. - Não
há motivos para censurar-se. Você foi uma esposa boa e fiel, e
tencionava ficar com papai, apesar de amar outro homem. Não há
motivos para que vocês não viajem juntos.
- Mais tarde, nos casaremos.
- É claro,
- Edward não aprovaria minha atitude se eu levasse Jack.
- Querida, não é o mesmo que vocês dormirem juntos.
- Gale! Quisera que você fosse um pouco mais delicada! Os jovens
dizem coisas muito embaraçosas!
Gale acabou rindo, apesar da atmosfera solene que imperava.
- Você ainda é um pouco antiquada, não é, mamãe? Talvez Jack
consiga mudá-la.

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- Eu não quero mudar, conforme você diz. Estou bem como sou.
- Julius acha que você é antiquada, mas a admira por ter ideais. A
mãe corou.
- Eu gosto muito de Julius, Gale. Sorte sua que ele tenha se
apaixonado por você. - Parou no momento em que percebeu a
mudança na expressão da filha. Gale fez menção de falar, mas
naquele momento a campainha tocou e Jack apareceu. Ele estivera
visitando um terreno na vizinhança e decidira fazer-lhes uma visita.
Como estava na hora do chá, foi convidado a ficar e, quando saía,
Julius chegou de táxi. Gale suspirou.
Foi muito estranho o modo como o marido a tratou durante o jantar.
Foram tomar o café na sala de estar. Gale estava o tempo todo
atenta às atitudes curiosas do marido; os olhares que ele lhe
lançava demonstravam que algo estava acontecendo, algo que
afetava a ele tanto quanto a ela.
Falou, tão logo se encontravam no quarto, após darem boa
noite à mãe de Gale.
- Será possível que você andou ouvindo conversas de Dave Ingham
pela segunda vez? - perguntou sem preâmbulos, e a resposta de
Gale demonstrava o espanto que a pergunta lhe causava.
- Você esteve com ele hoje?
- Eu lhe fiz uma pergunta, Gale. - Palavras suaves, seguidas de um
suspiro impaciente. Gale fez sinal cora a cabeça. - O que foi que
você ouviu?
Não houve resposta, e Julius repetiu a pergunta erguendo o rosto
dela. Não tirou a mão do queixo dela até que respondesse.
- Ouvi, ouvi o amigo dele dizer. . . - Retraiu-se. - Não vou lhe dizer!
Não quero falar sobre aquilo. - Ela parou quando Julius fê-la virar-
se para ele com uma forte pressão nos ombros. Estava sério, mas
não trazia no rosto a menor expressão de culpa.
- Por que você não quer falar disso? - Exigiu, mas nem sequer lhe
deu a oportunidade de responder. - Só pode haver um motivo: medo!
Você teme a revelação que, segundo você, vai pôr um fim em nosso

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casamento. Corrija-me se estou errado.
Fitou-o trémula e confirmou. - Você percebe o que essa confissão
significa? Você sabe o que significa para mim? Confusa, ela fez um
sinal negativo com a cabeça. - Você está falando por enigmas,
Julius.
- Você ouviu o professor Ingham e o amigo conversarem a meu
respeito; diziam que eu estava em Paris com uma loira.
- O outro homem disse isso, mas Dave ficou surpreso; eu percebi
pelo modo como ele recebeu a notícia.
Os olhos de Julius faiscaram
- Acho que não interessa quem disse isso! E você acreditou? Isso
serviu para que Gale sentisse a pulsação acelerar.
- Não é verdade?
Cerrou a boca com força, e o aperto no braço começou a doer.
- É verdade que eu estava em Paris, e é verdade que eu estava
com uma loira. Mas não era Daphne, nem ninguém importante. Por
acaso era a mulher de um sócio com quem me hospedei. Como ela
e eu tínhamos que ir à cidade naquela manhã, fomos no mesmo
automóvel. Depois que ela estacionou, andamos juntos mais um ou
dois quarteirões quando então ela foi para o cabeleireiro e eu para
o escritório onde tinha um encontro marcado. - Fez uma pequena
pausa e quase engoliu Gale com os olhos. - Existe algo mais que
eu possa explicar? - havia algo em seu modo de se expressar que
Gale admitiu fosse uma espécie de alívio. Ele, pelo menos, estava
contente por colocar os pingos nos is.
- Você disse que iria a Munique - lembrou-lhe finalmente, e afastou-
se quando a pressão em seu braço diminuiu. - Eu fui. A viagem a
Paris resultou de negociações que fiz por lá. Viajar faz parte de
minhas atividades rotineiras, Gale, e os negócios normalmente me
levam a isso.
Gale calou-se por um instante.
- Daphne viajou exatamente na época em que você viajou. Você há
de concordar que é uma coincidência esquisita. - Eu nem estava

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sabendo disso - retrucou imediatamente.
E completou: - Você mentiu quando disse que Apolo lhe contara que
Daphne estava em Paris, mas eu não sabia disso até hoje, quando
Dave começou a puxar minha orelha por causa de uma loira. Eu
naturalmente percebi que devia haver alguma relação entre isto e o
fato de você mencionar a ida de Daphne a Paris. Logo descobri que
conversaram a meu respeito na festa de Tricia e, assim, foi fácil
concluir que você devia ter ouvido a conversa. Isso deve ter
acontecido! Ninguém viria até você especialmente para lhe contar
que eu fora visto com outra mulher.
Pega de surpresa, ela disse:
- Realmente, não! De nada vale um homem que não é leal! Ele riu.
- Tudo se explica agora. - Ela nunca poderia esperar a doçura que se
fez presente na voz dele. - Fiquei decepcionado com a recepção que
você me fez quando voltei.
- Fez uma pequena pausa, correndo-lhe os olhos de cima abaixo. -
Viajei, a princípio, unicamente para descobrir se você sentiria minha
falta - disse-lhe, e os olhos dela se arregalaram.
- Tive essa exata impressão - exclamou ela.
- Se você tivesse sentido saudades - continuou, como que ignorando
a interrupção -, isso significaria que você me amava, e eu teria
respondido que seu amor era correspondido.
Ela pasmou, incapaz de crer no que ouvia. Teria voltado a falar,
teria perguntado se realmente era com sinceridade que ele dizia
aquilo, mas essa oportunidade foi negada por Julius, que, sem dó,
continuou:
- Está vendo o que você perdeu por causa de sua esperteza? Você
ouviu alguém dizer que eu estava em Paris com uma loira; você soube
através de Apolo que Daphne tinha viajado, viajado, entenda bem!
Ninguém lhe disse que ela estava em Paris. Mas, com a típica
desconfiança feminina, você juntou os pauzinhos e montou a história
que lhe aprazia; a história de um marido infiel que lhe dissera que
faria uma viagem de negócios a Munique quando, na verdade, ele

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estava mesmo indo para Paris, com sua ex-namorada. Tenho a
impressão de que você mergulhou numa profunda autopiedade;
posso até imaginar a cena que você preparou; aliás, você até
começou a encenação, mas mudou de idéia. E isso, Gale, foi porque
você tinha medo de me perder! Não, não se atreva a negar! Eu
mesmo não vou negar que tive medo de perdê-la, e foi por isso que
não toquei no assunto. Se você tivesse me recebido de outra forma
ele continuou, e nem sequer deu atenção aos gestos dela, que
tencionava fazê-lo cessar aquele discurso torturante -, eu poderia
ter dito por que me casei com você.
- Por quê. . .? - Assombrada, ela encarou o marido. - Não foi por
atração sexual?
Julius manteve-se calado por um bom tempo antes que, com a voz
mais doce que ela jamais ouvira, ele confessasse que se apaixonara
por ela desde o momento em que a vira. Mas ele foi honesto o
bastante para acrescentar que o casamento não lhe havia ocorrido
inicialmente; estava antes interessado em ter um caso com ela. Ela
corou e ele a trouxe para si. Beijou-a com o ardor que ela esperava
por ocasião de sua volta de Paris.
- Amada - sussurrou quando, afinal, os lábios se soltaram. Só havia
uma resposta para a pergunta que fiz há pouco. Quero ouvir essa
resposta.
Ela estava feliz demais para poder falar; isto era como um milagre
e, embora ainda houvesse perguntas vitais que precisava fazer, ela
simplesmente levantou o rosto de novo, convidando-o para um beijo.
Julius aderiu, os olhos escuros triunfantes, de uma maneira que a
fez arrepiar, pois era o triunfo ao amor.
- Você quer dizer - ela pôde dizer afinal -, a pergunta sobre o que
minha confissão significava para você?
- Adiando, é? - Julius lançou-lhe um olhar de relance que era
fcolorido de humor. Ou está só fazendo charme? É necessário?
Quando eu sei muito bem que você me ama?
Ela se ruborizou maS já que agora estava tão segura a respeito

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dele, arriscou dizer;
- Podia haver uma razão bem diferente para eu evitar o
rompimento. Casamo-nos por desejo, lembre-se, e, assim, poderia
ter sido o desejo que me fez relutar diante
de algo que pusesse um fim ao nosso casamento - foi logo
interrompida enquanto, violentamente, ele a sacudiu.
- Desejo! Não ouse dizer isso! Era amor como foi comigo. E que
história é essa de nos casarmos por desejo? Acabei de dizer que
me casei com você por amor.
- Claro. - Silenciou pensativa. - Agora eu sei, Julius, que do meu lado
também era amor.
Ele compreendeu, mas disse que quisera ter certeza disso antes.
- Veja você - ele continuou a explicação -, a idéia de que você
não me amava realmente resultou nessa minha atitude defensiva. Eu
não conseguiria dizer-lhe a verdade; pelo menos enquanto
acreditasse que você não me amava realmente. - Ele curvou a
cabeça e deu-lhe um beijo terno. E, por alguns instantes,
contentaram-se em ficar ali, abraçados, no silêncio do quarto.
- Mamãe -. disse Gale então, com a intenção de desvendar o
mistério que ela sabia ter acontecido por ocasião de seu casamento.
- Ela agiu de um modo totalmente irracional ao forçar-me ao
casamento.
Julius respondeu sem hesitar, e disse a Gale que, apesar de a mãe
tê-lo chamado, era simplesmente para descobrir a verdade, para
saber se realmente Gale e ele estiveram juntos no rancho.
- Eu lhe contei a verdade; ela estava cheia de remorso, e dizia que
tinha julgado você mal, dizendo que só a perdoaria se você
considerasse a possibilidade do casamento.
Bem, meu amor, era uma chance que eu não poderia perder. Eu sabia
que, se dependesse de uma resposta sua, não haveria mesmo
casamento algum. Você insistia em ser uma solteirona, lembra-se? -
Colocou na voz um tom de brincadeira, o que a fez rir.
- Eu me lembro, Julius - disse-lhe e pediu que continuasse com a

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história.
- Bati alguns papos com sua mãe, tentando convencê-la de que eu a
amava feito louco.
- De jeito nenhum - interrompeu firmemente. - Feito louco, não.
Você, não.
- Feito louco, minha vida, e não me interrompa! Depois de uma boa
dose de persuasão, dei um jeito de conseguir a cooperação dela.
- Então foi isso! Uma conspiração? Agora eu entendo tudo.
- É? Bem, então não há mais nada para eu dizer.
- Sim, por favor, conte-me o resto.
- Ela concordou com minha sugestão de que ela ameaçasse fugir com
Jack.
- Você sugeriu isso? E ela concordou! Julius, você deve ter se
derretido em charmes para convencer minha mãe de uma coisa
dessas!
- Eu a convenci de que nós éramos feitos um para o outro. Prometi
que você ainda me amaria. Disse-lhe que sua felicidade estava nas
mãos dela, e que, se ela se recusasse a colaborar, e mais tarde você
viesse a ter um casamento infeliz, ou ficasse com sua idéia de nunca
mais se casar, a culpa seria toda dela.
- Como é que você pôde fazer uma coisa dessas? Coitada da minha
mãe! - Ela se afastou dele. - Que falta de consideração. Não sei
como você pôde ser tão grosseiro.
- Você preferia que eu não tivesse feito isso? - perguntou curioso.
- É, não. . . quero dizer. . .
Ele riu e puxou-a para si novamente.
- Vamos parar com essa bobagem. Você está muito agradecida por
eu ter sido grosseiro com a coitada da sua mãe, conforme você diz.
- Como você é convencido! Eu sempre soube disso! - O que quer que
ela viesse a dizer em seguida foi calado por um beijo dele.
- Eu sabia que mamãe não tinha cara de pedir-lhe que se casasse
comigo - disse Gale, quando finalmente lhe foi dada a oportunidade
de falar. - Eu deveria ter sabido logo no início que a idéia não era

Livros Florzinha - 148 -


Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
dela. - Disse a Julius que ela estivera ciente o tempo todo de que
havia algum mistério, falou dos foras que a mãe dera, mas que não
ajudaram-na a desvendar o mistério. - Ela me pareceu um bocado
perturbada, certa vez, quando pensou que eu poderia não estar
feliz.
- Você não lhe disse que não estava feliz?!
- Eu não consegui. . . mas, oh! como aquilo me deixou frustrada!
- A curiosidade peculiar das mulheres, heim? - ele riu. - Creio que
você estava furiosa com todos os envolvidos quando foi forçada a
casar-se comigo, não é?
- Estava, sim. Mas é estranho - acrescentou, num tom reflexivo.
- Eu nunca fiquei furiosa com mamãe como com as outras pessoas.
Deve ter sido porque, no subconsciente, eu estava feliz por ela
forçarme a aceitar o casamento.
Julius sacudiu os ombros. Gale aproveitou para relembra
vários incidentes e, entre eles, perguntou por que ele não havia se
enfurecido, aquele dia na praia, no momento em que ela fora rude
com Daphne.
- Você não disse uma palavra até que a deixamos - completou Gale,
olhando para ele curiosa. Vexada, ela perguntou-se por que fora tão
tola a ponto de levantar o assunto numa hora dessas.
- Rude com Daphne? Foi a ordem que você me deu que lhe trouxe
complicações! - Gale compreendeu. Julius deixou-a perder-se em
seus pensamentos, mas ainda disse: - O motivo pelo qual você se
safou é que eu não queria humilhá-la na frente de Daphne. Eu amava
você, lembre-se disso, e um homem que ama não gosta de ver sua
mulher em situações embaraçosas.
Ela mordeu os lábios.
- Sinto muito, Julius - murmurou -, foi uma coisa estranha, mas eu
tive a impressão de que você relutou em humilhar-me. Acho que fui
cega o tempo todo.
- Muito, meu amor. Você deveria ter desconfiado quando lhe disse
que não havia ainda pensado em casamento.

Livros Florzinha - 149 -


Beijo nas trevas (A Kiss from Satam) Anne Hampson
Sabrina no. 14
- Eu me lembro disso - disse-lhe -, mas pensei que você me queria
para. . .
- Bem, eu não queria! Queria você como companheira, amiga, e
também como amante.
Gale vibrou com essas palavras, mas teve que dizer:
- O que seria de nós se aquele cano não tivesse estourado? Ele riu o
quanto pôde.
- Só mesmo uma mulher para pensar nisso. Estourou mesmo, e
livrou-a de um destino mais cruel que a própria morte.
Ela foi obrigada a rir, também, em resposta ao riso dele.
- Prefiro pensar que você teria se casado comigo assim mesmo.
- Prefiro pensar o mesmo - concordou Julius, e abraçou-a
novamente.

FIM

Livros Florzinha - 150 -

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