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2º CICLO

MESTRADO EM ESTUDOS MEDIEVAIS

O Infante D. Fernando (1433-1470):


elementos para uma biografia
Maria Teresa Nunes Pedro Palma Coelho

M
2019
Maria Teresa Nunes Pedro Palma Coelho

O Infante D. Fernando (1433-1470)


Elementos para uma biografia

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Medievais, orientada pelo Professor


Doutor Luís Miguel Ribeiro de Oliveira Duarte
e coorientada pela Professora Doutora Maria Cristina Pimenta Aguiar Pinto

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Setembro de 2019
O Infante D. Fernando (1433-1470): elementos para uma
biografia

Maria Teresa Coelho

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Medievais, orientada pelo Professor


Doutor Luís Miguel Ribeiro de Oliveira Duarte
e coorientada pela Professora Doutora Maria Cristina Pimenta Aguiar Pinto

Membros do Júri

Professora Doutora Maria Cristina Almeida e Cunha Alegre


Faculdade de Letras - Universidade do Porto

Doutora Maria Barreto Dávila


Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova do Lisboa

Professor Doutor José Augusto Pereira de Sotto Mayor Pizarro


Faculdade de Letras - Universidade do Porto

Professor Doutor Luís Miguel Ribeiro de Oliveira Duarte


Faculdade de Letras - Universidade do Porto

Classificação obtida: 19 valores


Para os meus pais, a quem devo tudo.
Sumário
Declaração de honra ................................................................................................................10
Agradecimentos ..........................................................................................................................11
Resumo .......................................................................................................................................12
Abstract .......................................................................................................................................13
Lista de abreviaturas e siglas.......................................................................................................14
Introdução ...................................................................................................................................15
Fontes ......................................................................................................................................17
Bibliografia Crítica..................................................................................................................22
Capítulo 1 – Os primeiros anos: a infância de D. Fernando ........................................................33
1.1. Da gravidez da rainha à adopção pelos infantes D. Henrique e D. Fernando (1433-1436)
................................................................................................................................................33
1.2. A morte de D. Duarte .......................................................................................................38
1.3. A educação de um príncipe ..............................................................................................48
Capítulo 2 – A década de 1440: da morte do condestável D. Diogo a Alfarrobeira (1442-1449)
....................................................................................................................................................59
2.1. A chegada à Ordem de Santiago ......................................................................................59
2.2. O casamento .....................................................................................................................61
2.3. Alfarrobeira ......................................................................................................................67
Capítulo 3 – O Pós Alfarrobeira e a década de 1450...................................................................73
Capítulo 4 – D. Fernando e o Norte de África ............................................................................77
4.1. As idas a Marrocos ...........................................................................................................78
4.1.1. De Ceuta a Alcácer-Ceguer .......................................................................................78
4.1.2. A ‘maldita’ Tânger: sepultura de Yfantes de Portugal ..............................................84
4.1.3. Cai o pano em África: Anafé .....................................................................................89
4.2. (...) Porque se deveria todo deixar de fazer guerra de taõ pouco proveito (...) ................91
Os pareceres sobre Marrocos: uma ‘tradição’ entre os príncipes de Avis ...............................91
Capítulo 5 – A morte do infante D. Henrique e o problema das alterações testamentárias .......101
Capítulo 6 – A Casa e o Património de um príncipe .................................................................108
6.1. A primeira casa de D. Fernando e o problema da herança do Infante Santo ..................108
6.2. Herdar do Infante D. Henrique .......................................................................................114
6.2.1. Títulos, bens, doações e privilégios de D. Fernando em torno dos anos de 1450 e
1460...................................................................................................................................114
8
Capítulo 7 – O infante, as ilhas e o mar ....................................................................................125
Capítulo 8 – D. Fernando, governador e administrador das Ordens Religioso-Militares de
Santiago (1444-1470) e de Cristo (1461-1470) .........................................................................146
Conclusão ..................................................................................................................................158
Fontes ........................................................................................................................................164
Fontes Manuscritas................................................................................................................164
Fontes Impressas ...................................................................................................................165
Bibliografia ...............................................................................................................................169

9
Declaração de honra

Declaro que a presente dissertação é de minha autoria e não foi utilizada previamente
noutro curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As referências a outros
autores (afirmações, ideias, pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da
atribuição, e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências
bibliográficas, de acordo com as normas de referenciação. Tenho consciência de que a
prática de plágio e auto-plágio constitui um ilícito académico.

Porto, 26-09-2019

Maria Teresa Coelho

10
Agradecimentos

As minhas palavras de agradecimento são dirigidas, em primeiro lugar, aos


orientadores desta dissertação.
Ao professor Luís Miguel Duarte, meu professor de muitos anos, agradeço a
ajuda incansável, os inúmeros livros emprestados, as sugestões, o rigor, o interesse,
dedicação e tempo despendido a discutir e a corrigir mais este trabalho final de ciclo.
Escrevi mais um trabalho porque também aceitou ser o meu orientador do Seminário
final de licenciatura, em História Medieval, concluído em 2016. Estou grata pela sua
amizade e apoio ao longo do meu percurso académico, bem como pelas sessões de
orientação em que se propôs a trabalhar ao meu lado.
À doutora Cristina Pimenta, agradeço a empatia e proximidade que comigo
estabeleceu desde o primeiro momento em que se disponibilizou para me apoiar e
orientar neste mestrado. Registo a amizade, a ajuda, o acesso a inúmera bibliografia que
me facultou e o incentivo de nos deslocarmos ao Arquivo Nacional, para consultar e
sumariar documentação das Ordens Militares de Cristo e Santiago. Com ela entrei pela
primeira vez, e recordando uma expressão sua, com o pé direito, na Torre do Tombo.
Agradeço igualmente a todos os professores de História Medieval da Faculdade
de Letras da Universidade do Porto.
Para o meu colega Duarte Babo segue igualmente uma palavra de agradecimento
pela companhia de muitas horas na biblioteca da faculdade, pelas sugestões que me fez
e pelo auxílio na construção da minha base de dados em Excel, que deu corpo ao
trabalho.

11
Resumo

Nesta dissertação pretendemos estudar a figura do infante D. Fernando (1433-


1470), irmão de D. Afonso V. Abordaremos as várias dimensões, que consideramos
essenciais, da sua vida, tentando reconstruir os momentos mais marcantes da mesma e
compreender a evolução dos seus poder, património e influência política. Herdeiro do
infante D. Henrique e seu filho adoptivo, tornou-se num dos senhores mais ricos e
poderosos do reino, governando os seus bens no continente e as ilhas no oceano, que
administrou com autoridade, atentamente e na mira de uma tradição e legado que lhe
tinha sido passado pelo seu antecessor, D. Henrique. Vasto património ao qual
acrescentou o governo de duas ordens militares: Santiago e Cristo. Na sua estreita
ligação ao Norte de África (militar e não só) encontraremos um dos aspectos mais
interessantes da sua vida: a forma como contraditoriamente se posicionou face ao
assunto e como o relacionou com os temas mais prementes da política nacional de
então. Elementos estes que estão plasmados no parecer que redigiu para o monarca nos
inícios da década de 1460. Será nosso objectivo sustentar as interpretações deste
trabalho tendo em linha de conta, sempre que nos for possível, as ambições e posição do
infante na documentação emitida e produzida pelo próprio.
Infante, príncipe, duque, condestável, governador de ordens militares, e senhor de
imensos bens, D. Fernando afirmou-se como um dos protagonistas do século XV
português.

Palavras-chave: D. Fernando, duque de Viseu-Beja; D. Afonso V; Infante D.


Henrique; Portugal; Política Atlântica.

12
Abstract
This dissertation investigates and describes the historical figure of Infante
Ferdinand (1433-1470), Duke of Viseu and Beja, Afonso V’s brother. Our approach
includes not only all the essential aspects of his life, in an attempt to reconstitute its
most outstanding moments, but we also tried to understand the progression of his power
and his wealth development, along with his political clout. As Prince Henry’s main heir
and adopted son, Ferdinand has soon become one of the wealthiest and powerful lords
in the Portuguese kingdom, managing with firm hand his estates in Portugal mainland,
as well as in the islands. Aside from upholding Prince Henry’s legacy, he managed to
extend it too, as he became the Master of the Orders of Christ and of Santiago. The most
significant aspects of his life, not merely in military terms, is deeply connected to
Northern Africa due to the contradictory positions he has assumed concerning this issue
and the way he later focused on these very same positions, in regards to the most
burning matters in national politics. These elements are reflected on the reports he
himself drafted to the monarch in the early years of the sixties. We aimed to support the
various interpretations of this research paper according to Infante Ferdinand’s
aspirations and stance, by analysing his own scripts. Either as a Prince, an Infante, a
Duke, a Constable, a Master of Military Orders or even as the owner of extensive
personal assets, Ferdinand has surely been one of the most remarkable figures of the XV
century in Portugal.

Keywords: Ferdinand, duke of Viseu-Beja; Afonso V; Prince Henry the Navigator;


Portugal; Atlantic Politics.

13
Lista de abreviaturas e siglas

Crónica de D. Af. V - Chronica do Senhor Rey D. Affonso V

Crónica do Conde D. D. - Crónica do Conde D. Duarte de Meneses.

Crónica de D. D. - Chronica do Senhor Rey D. Duarte.

DCR- Documentos das Chancelarias Reais anteriores a 1531 relativos a


Marrocos.

MH- Monumenta Henricina.

L. Cav. - Livro da Ensinança da Arte de Cavalgar Toda Sela.

VB - O Livro da Virtuosa Bemfeitoria do Infante Dom Pedro.

14
Introdução

Esta dissertação procura ser uma primeira tentativa de biografar o infante D.


Fernando (1433-1470), filho de D. Duarte e irmão de D. Afonso V.
Para além dos trabalhos e estudos que já existem sobre ele, tentámos construir uma
perspectiva mais ampla e integrada da sua vida, que não seja apenas marcada por uma
visão deste infante enquanto filho adoptivo do infante D. Henrique, irmão de D. Afonso
V, marido de D. Beatriz e pai do rei D. Manuel. Encarámos o infante em si mesmo,
tentando compreender a sua personalidade enquanto um dos homens mais ricos e
influentes do Portugal da sua época, nos anos em que viveu e que é patente na forma
como administrou e chefiou os arquipélagos atlânticos, manteve o seu património e
construiu a sua numerosa casa, que tentámos estudar, conduziu a Universidade, na
ausência do seu ‘pai’ e se envolveu nas questões políticas que preocupavam D. Afonso
V.
Em 1433 nascia o segundo filho varão de D. Duarte e de D. Leonor. A morte
prematura do rei, que teve consequências políticas graves, plasmadas no
desentendimento entre os infantes e a rainha, fez com que o pequeno infante e o futuro
rei tivessem uma infância difícil e conturbada. É verdade que a mãe sempre tentara ter
os filhos junto a si, mas não demoraria até que o regente D. Pedro obtivesse a sua tutoria
e ficasse responsável pelos sobrinhos. Quanto a D. Leonor, foi obrigada a exilar-se em
Castela, onde morreu pouco depois.
Os elementos acerca da educação de D. Afonso V de que dispomos e que
envolveram directamente o infante D. Pedro, pensamos poder aplicá-los à educação que
D. Fernando terá recebido. A cronística e as obras régias redigidas pelos Avis na
primeira metade do século XV fornecem pistas importantes no sentido de estabelecer
um modelo educativo do príncipe, que é amplo. Este tanto abrange as actividades
físicas, relacionadas com a caça, o contacto com cavalos e manuseio de armas, e sobre
as quais D. Duarte abundantemente escreveu, como se debruça sobre aspectos mais
intelectuais, alicerçados no conhecimento dos autores icónicos e carismáticos da Idade
Média. Como veremos, a Bíblia é o livro por excelência, mas muitas outras obras nos
15
surgem citadas nestes textos de D. Duarte e do infante D. Pedro, ou seriam do seu
conhecimento, nomeadamente o célebre Vegécio, igualmente utilizado por D. Fernando
aquando da redacção do seu parecer sobre a guerra em Marrocos. Todos estes elementos
estavam disponíveis na corte portuguesa de então, o que ajuda a explicar que D. Afonso
V tenha sido educado por humanistas. Estamos em crer que D. Fernando poderá ter
beneficiado destas mesmas condições.
Tanto quanto possível decidimos seguir um fio condutor cronológico da vida do
infante. Assim e antes de herdar o espólio henriquino, estudaremos o infante antes de
este se tornar um grande senhor. Tal abrange as décadas de 1440 e de 1450. Veremos
que estes anos são aqueles em que contrai matrimónio com a sua prima-irmã, D.
Beatriz, em que se torna condestável e fronteiro do sul do reino, em que recebe a Ordem
de Santiago, o ducado de Beja, Serpa e Moura, bem como os da sua presença em
Alfarrobeira. Não menos importante será a sua estreia militar em Marrocos. Participará
nas batalhas de Alcácer Ceguer, nas várias de Tânger (que já não verá conquistada em
sua vida) e em Anafé. Estudar o infante e o Norte de África de um ponto de vista
meramente militar torna-se demasiado redutor, uma vez que é preciso pensá-lo
igualmente de uma forma política, patente na posição que o infante assume em inícios
da década de 1460 no conselho que redige ao rei.
O auge do seu poder será estudado nos últimos capítulos deste trabalho. Talvez um
dos momentos mais impactantes da vida do infante D. Fernando tenha sido a morte
daquele que o adoptara como filho, o infante D. Henrique. É com o desaparecimento
deste último que o infante se torna um grande senhor e associa a si mais um ducado,
Viseu. Como veremos, através de doações ainda henriquinas e depois régias e as
respectivas confirmações, receberá os bens henriquinos, dos quais parece ter sido um
competente e interessado administrador. Este controlo e administração dos seus bens é-
nos testemunhado pela maior quantidade de documentação e estudos de que dispomos
para esta fase da sua vida, durante a década de 1460, e visível nas cartas e regimentos
que endereçou às ilhas, sobretudo à Madeira. Sem dúvida que uma das dimensões do
infante que mais privilegiaremos será a senhorial, motivados igualmente pelas próprias
circunstâncias históricas da sua época em que as grandes casas senhoriais são

16
estruturantes no Portugal do seu tempo e, para o infante, não deixarão de ser uma
‘herança familiar’. Um dos problemas mais importantes que tentaremos colocar
relaciona-se precisamente com as origens da sua casa senhorial e a evolução da mesma,
e com a forma como a construiu e administrou os seus bens.
Abordaremos o Norte de África e o papel que desempenhará junto das ordens
militares, bem como as polémicas que o envolveram relativamente a estes dois tópicos,
tal como a intrigante alteração testamentária do infante D. Henrique face a D. Fernando
e as interrogações acerca da herança do Infante Santo.
Por fim, pretenderemos abordar o infante/príncipe D. Fernando, delimitando os
passos e momentos mais marcantes da sua vida; compreender o seu poder e influência,
nomeadamente junto do rei, e perceber a forma como os consolidou durante cerca de
uma década em que foi dos mais poderosos e ricos do reino. Como veremos e já
afirmámos acima, D. Fernando merece ser estudado isoladamente, per se, uma vez que
as próprias fontes da época lhe deram largo protagonismo, notoriedade e visibilidade.

Fontes

Tentar biografar a vida de um infante implicou a consulta e o estudo de várias


fontes. Tal não será de estranhar uma vez que este trabalho procura dar resposta, ainda
que nalguns casos parcial, a várias questões que nos propusemos delinear desde o início.
A tipologia das fontes utilizadas explica-se pela própria complexidade da figura que
estamos a estudar, que foi o grande herdeiro do infante D. Henrique, um dos homens
mais ricos e poderosos do Portugal do seu tempo, detentor de uma imensa casa
senhorial, governador de duas ordens militares, duque de Beja e um atento
administrador dos seus territórios insulares, para além de ter contraído matrimónio com
uma mulher notável, ter sido progenitor de uma numerosa descendência e se ter
envolvido directa e impulsivamente nos assuntos africanos, que tanto preocupavam a
elite portuguesa da época.

17
Para a reconstrução das etapas essenciais da vida do infante, o testemunho que
se revelou mais importante foi a Crónica de D. Afonso V1, de Rui de Pina. Se é verdade
que, na maioria dos casos, não encontramos os pormenores e as explicações de que
gostaríamos, mas uma mera descrição encadeada de acontecimentos, também é justo
referir que este texto de Pina é fundamental para entendermos os primeiros anos de vida
e o período da infância de D. Fernando (é habitual sabermos muito pouco sobre esta
fase da vida, mesmo de pessoas muito destacadas). É aliás característica da escrita deste
cronista apresentar a história como base naquilo que os documentos oficiais relatam,
numa sequência cronológica da realidade2. Assim considerámos que o maior contributo
desta crónica para o nosso estudo se relaciona precisamente com este primeiro período
da vida de D. Fernando, e, talvez um pouco menos, para outros acontecimentos
marcantes que dela também fizeram parte e que são igualmente descritos na crónica. No
entanto, para muitos deles não é possível encontrar informação complementar noutras
fontes, o que ajuda a reiterar a importância deste texto. Ainda dentro do universo da
cronística régia e nobiliárquica, recorremos a outras crónicas, sendo a maioria mais
tardias que os textos de Pina. A única excepção foi a Crónica de D. Duarte de
Meneses3, de Gomes Eanes de Zurara, onde são relatados dois dos episódios pelos quais
o infante é célebre e que considerámos mais sugestivos acerca de D. Fernando: a
usurpação do quinto de uma cavalgada levada a cabo por D. Duarte de Meneses e as
circunstâncias de desentendimento com as ordens militares pelo frete de navios que
transportariam os seus freires para o norte de África, em 1464. Trata-se da única crónica
de Zurara onde o infante D. Fernando é mencionado, o que não é de estranhar uma vez
que os temas sobre os quais escreveu na Crónica da Tomada de Ceuta (iniciada antes de
1449 e na Crónica de D. Pedro de Meneses são historicamente anteriores ao infante D.
Fernando. No caso da Crónica dos Feitos da Guiné4, relativamente aos acontecimentos

1
PINA, Rui de - Chronica do Senhor Rey D. Affonso V, int. e rev. de M. Lopes de Almeida. Porto: Lello
e Irmão editores, 1977.
2
GOMES, Rita Costa – “Rui de Pina”. In LANCIANI, Giulia, TAVANI, Giuseppe (coord.), Dicionário
da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993, p. 598.
3
ZURARA, Gomes Eanes de - Crónica do Conde D. Duarte de Meneses: edição diplomática de Larry
King. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa (FCSH), 2006.
4
Para brevemente situarmos os cronistas e as crónicas no tempo recorremos à consulta destas obras:
18
lá tratados, não encontrou Zurara razões para se referir ao filho adoptivo do seu
admirado e altamente elogiado infante D. Henrique porque o seu protagonismo e poder
políticos seriam ainda muito ténues por essa altura, pelas décadas de 1440 e 1450, e
porque não se lhe conhecem quaisquer viagens para essas regiões.
Seguem-se nas nossas fontes dois importantes autores do século XVI: Damião
de Góis e Duarte Nunes de Leão5. Do primeiro utilizámos a Crónica do Príncipe D.
João6, já de 1567 e, portanto, redigida muito depois dos reinados de D. Afonso V e de
D. João II terem terminado e que denota uma influência de Pina e de Garcia de Resende
(como ele próprio afirma). Claro que sendo Pina o cronista oficial a ocupar-se da tarefa
de redigir a história dos reis de Portugal e o primeiro a fazê-lo sobre os tempos de D.
Duarte e D. Afonso V, aqueles que se lhe seguiram redigiram as suas crónicas muito
baseados nos seus textos. Estes dois cronistas não foram excepção a isso e, ainda mais,
se tivermos em conta o que é ser um autor naquele período, em que glosar, traduzir
livremente e copiar conteúdos sem pedir autorizações (o que hoje nos colocaria muitas
reservas) não é um problema, nem coloca restrições de espécie alguma. Diríamos que
este aspecto é um ‘não assunto’ na Idade Média. Assim e nestes textos do século XVI,
muitas das informações que encontramos a respeito do infante D. Fernando e a própria
ordem com que estas nos são apresentadas e desenvolvidas parecem (e talvez sejam) um
decalque da Crónica de D. Afonso V, de Rui de Pina7. No entanto, não deixa de ser
interessante detectar alguns pormenores que fazem divergir os cronistas uns dos outros.
Referimo-nos, por exemplo, à discordância que existe entre os autores relativamente a
quem foram os padrinhos do príncipe D. João, quando este nasceu em 1455 e se D.
Fernando transportou, ou não, o pequeno príncipe até ao altar. Deparámos igualmente
com diferenças do uso do discurso directo entre as crónicas e com alterações nas

SERRÃO, Joaquim Veríssimo – Cronistas do Século XV posteriores a Fernão Lopes. Lisboa: Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa, 1989, pp. 27-32. SARAIVA, António José, LOPES, Óscar – História da
Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora, 2001.
5
LEÃO, Duarte Nunes de - Crónicas dos Reis de Portugal, introd. e rev. por M. Lopes de Almeida.
Porto: Lello & Irmão, 1975.
6
GÓIS, Damião de - Crónica do príncipe D. João, ed. comentada por Graça Almeida Rodrigues, Lisboa:
Universidade Nova de Lisboa (FCSH), 1977.
7
A título de exemplo refira-se que Garcia de Resende, secretário pessoal de D. João II, copiou
visivelmente Rui de Pina em trabalhos seus e outros também o fizeram. SARAIVA, LOPES, 2001, pp.
283-284.
19
descrições da participação do infante no cerco a Alcácer Ceguer, o que nos coloca
questões historiográficas. De resto e de uma maneira geral, as crónicas convergem na
organização dos assuntos e nos temas. No entanto, estas colocam-nos muitos problemas
de datação8, de localização dos acontecimentos e até dos próprios momentos políticos
em que são escritas, senão não faria sentido questionarmo-nos por que é que na
transição do século XVI para o XVII9 encontramos historiadores, como Duarte Nunes
de Leão a (re)escrever as histórias e crónicas dos antigos reis, em 1600, decalcadas de
textos muito anteriores. Para além destes problemas, coloca-se outro relacionado com a
alteração de pequenos detalhes que variam entre os cronistas que em nada alteram a
visão que se constrói do infante. Assim é-nos relatado um percurso de vida, sem que
haja muitos dados e muito protagonismo por parte do irmão do rei, porque esse não é o
objectivo do texto, até ao momento da sua morte, tendo acontecido tudo com muyta
honra e grande sollenydade e com synaaes de grande dor e sentimento por parte dos
familiares do príncipe. Tais menções elogiosas nunca são descartadas pelos cronistas na
hora da despedida de alguém tão importante, ainda que no caso do infante D. Fernando,
ao contrário de outras figuras, nenhum nos tenha dado uma descrição física e
intelectual/psicológica deste.
Grande parte da documentação recolhida nas colectâneas Monumenta
Henricina10, Descobrimentos Portugueses11 e os Documentos das Chancelarias Reais
anteriores a 1531 relativos a Marrocos12, são fontes sobre D. Fernando, que o referem e
citam, permitindo destrinçar aspectos de como construiu e conciliou a sua casa, de como
formou o elemento humano da mesma, como geriu os seus bens e foi adquirindo o seu

8
No caso de Rui de Pina, que redigiu a mais antiga Crónica de D. Afonso V, deparamos com alguns
problemas de datação de acontecimentos. No entanto, estas inconsistências são também detectadas em
textos mais tardios, como é o caso da obra de Gaspar Dias de Landim, onde são cometidos mesmo alguns
erros de datação e, consequentemente, de idade dos intervenientes. Veja-se, como exemplo, o engano das
idades de D. Afonso V e de D. Fernando, no momento em que estes ficam aos cuidados de D. Pedro:
LANDIM, Gaspar Dias – O Infante D. Pedro. Lisboa: Escriptorio, 1892, vol. II, p. 8.
9
COELHO, Jacinto do Prado – Historiografia. In COELHO, Jacinto do Prado (dir.) - Dicionário de
Literatura. Porto: Figueirinhas, 1997, vol. 2, p. 407.
10
Monumenta Henricina (dir. António Joaquim Dias Dinis). Coimbra: Comissão Executiva do V
Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1960-1974, 15 vols.
11
Descobrimentos Portugueses: documentos para a sua história, pub. e pref. por João Martins da Silva
Marques. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1988, 5 vols.
12
Documentos das chancelarias reais anteriores a 1531 relativos a Marrocos, dir. de Pedro de Azevedo.
Lisboa: Academia das Sciências de Lisboa, 1915-1934, 2 vols.
20
património, assim como as suas relações familiares. A maior parte da documentação
presente nestas compilações é oriunda da Chancelaria de D. Afonso V e compreende
sobretudo cartas de perdão, a fonte mais importante na reconstrução da casa senhorial
do infante D. Fernando e na busca de indivíduos que estiveram presentes em episódios
marcantes célebres da sua vida. Para além da sua riqueza e de terem sido fundamentais
neste processo de pesquisa, as cartas de perdão colocaram-nos muitos problemas
relacionados com a homonímia medieval e a proveniência de todo este pessoal
associado ao infante. A estas ainda acrescentaríamos aqueles documentos que
encontrámos na Chancelaria de D. João II, assim como as várias doações, confirmações
e textos referentes aos arquipélagos, igualmente presentes nestas colectâneas. Mas todos
estes testemunhos referem o infante ou sobre ele tratam, ainda que o seu papel tenha
sido pacífico na produção da cronística que referimos, ou da documentação presente em
chancelarias ou noutros domínios como os das ordens militares que governou.
Queremos dizer com isto que nos foi possível recolher um número considerável
de documentação produzida pelo próprio ou pela sua chancelaria13. João Silva de Sousa
refere que esta se foi perdendo com o tempo e que será hoje extraordinariamente
sumária, o que nos permite apenas uma ideia muito superficial dos movimentos
insulares e dos problemas internos14. Este dado deixa de ser muito significativo se
compararmos D. Fernando com outros membros da sua família no que toca à produção
escrita, mas no entanto é revelador o espírito com que escreve o conselho para o rei
sobre a guerra em Marrocos (seguindo uma já longa tradição da casa de Avis na qual os
reis pediram pareceres aos seus familiares mais próximos sobre a guerra no Norte de
África); a preocupação na centralização e no bom funcionamento da sua administração

13
Sobre a qual temos dois indícios de que terá existido: a referência ao chanceler do infante. Por uma
carta de perdão datada de 24 de Março de 1469, tomamos conhecimento de que o dito chanceler de D.
Fernando (não identificado) e seu ouvidor Gil Afonso se veem envolvidos num caso de justiça de um tal
Gil Gonçalves que fugira da prisão, depois de ter sido encarcerado por ter cometido falsidades no seu
ofício. Chancelaria de D. Afonso V, liv. 31, fl. 20. A segunda referência data de 1467, quando D.
Fernando confirma terra maninha dada a Fernão Gonçalves de Outeiro, no termo da aldeia de Joane, para
ele continuar a explorar com as mesmas condições que já tinha em tempos do infante D. Henrique. Esta
era destinada a sumagral e fora-lhe dada através do sistema de sesmaria. Por essa primeira carta ter
ardido, este homem pediu ao infante uma outra, que ele dá para que ele aja livremente, tal como é
declarado na carta. e manda asellar aa minha chançallaria. MH, vol. XIV doc. 150, pp. 340-341.
14
SOUSA, João Silva – Os Herdeiros do infante e o governo dos Açores. Arquipélago, 2ª série, IV, nº2
(2000), p. 24.
21
insular patente na redacção de dois regimentos endereçados à ilha da Madeira, de várias
cartas, sentenças e decisões importantes de carácter económico que fez questão de
tomar e de resolver respondendo às suas gentes das ilhas, quase todas elas datadas da
década de 1460. Esta documentação, que é do maior interesse e importância para este
trabalho, foi reunida no Tombo 1º do Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal -
Arquivo Histórico da Madeira15; para além das cartas e alvarás que dirigiu aos lentes,
bedel e reitores da Universidade de Lisboa, da qual foi protector16. Por fim, de
mencionar as crónicas de Jerónimo Román17 e toda a documentação e fundos que
consultámos na Torre do Tombo.
Em jeito de conclusão, foi-nos permitido estabelecer uma divisão entre as fontes
que estudámos para o biografado: se por um lado, e na sua maior parte, temos
documentos relativos ao infante D. Fernando presentes nas compilações documentais
que indicámos, por outro lado encontramo-lo a operar directamente através da escrita de
numerosos documentos (de diversa tipologia e com fins distintos) que invocam as suas
preocupações na gestão dos seus domínios, no fazer cumprir as últimas vontades do seu
pai adoptivo D. Henrique, na construção e reforço da sua casa e até em aspectos da
política nacional.

Bibliografia Crítica

Estudar a vida de um infante da casa de Avis no século XV, significa tocar em


muitos temas da historiografia portuguesa, como a nobreza e a relação com a coroa e os
infantes; a organização de uma casa senhorial de um príncipe; as políticas marroquinas
e as incursões no Norte de África, a Expansão marítima e as tendências atlânticas; o

15
Tombo 1º do Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal - Arquivo Histórico da Madeira, pub. por
Luís Francisco Cardoso de Sousa Melo. Funchal, 1972. Série documental, vol. XV.
16
A documentação referente à acção de D. Fernando na Universidade de Lisboa encontra-se nos volumes
VI e VII dos Chartularium Universitatis Portugalensis.
17
ROMÁN, Fr. Jerónimo – História das Ínclitas Cavalarias de Cristo, Santiago e Avis, (dir. Luís Adão
da Fonseca, coord. Paula Pinto Costa). Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2008. Militarium
Ordinum Analecta.

22
povoamento e administração das respectivas ilhas; os governos das ordens militares e a
sua tutela por parte dos Avis, assim como a organização interna destas instituições
eclesiásticas, o pensamento político da época; a cultura na corte de Avis e a criação dos
grandes ducados atribuídos pela primeira vez aos herdeiros e sucessores de D. João I.
Devido à época em que D. Fernando viveu, estes temas devem ser abordados. No
entanto, seria desnecessário e sem sentido apresentarmos aqui toda a bibliografia sobre
eles. Assim, não é nosso objectivo expor ‘toda’ a produção bibliográfica sobre o século
XV português (e sobre os assuntos acima). Entendemos mais útil identificar as obras e
principais autores que julgamos mais importantes para reconstruir a vida do infante D.
Fernando.
Procederemos a uma sumária organização em duas alíneas: uma mais baseada nos
estudos e monografias sobre o tempo e as principais figuras políticas do nosso século
XV; outra que aponte para estudos exclusivamente sobre o infante D. Fernando.
A bibliografia sobre a dinastia de Avis e os seus protagonistas é extensa e antiga,
dentro ou fora do círculo académico. Todos os seus reis e rainhas já foram alvo de
biografias, editadas pelo Círculo de Leitores e pela Quidnovi, e mesmo os infantes (que
não reis) e infantas foram objectos de livros e dissertações académicas, nos últimos e
mais recentes anos. No entanto, e apesar de um maior destaque ser dado aos monarcas, a
verdade é que outros membros da casa de Avis não têm sido descurados, começando
pelo próprio infante D. Henrique, que conta com várias biografias e amplos e
numerosos trabalhos desde Dias Dinis18 e Alberto Iria19 até Peter Russell20, João Silva
de Sousa21, João Paulo Oliveira e Costa22, entre outros. O mesmo se aplica a outros
filhos da casa de Avis: o infante D. Pedro, que nunca foi objecto de uma biografia
integrada e completa, mas sim de um congresso e de trabalhos mais ou menos dispersos
sobre a sua vida, política e obra em autores como Saul António Gomes, Humberto
Baquero Moreno e artigos variados23. Já o seu filho, o condestável D. Pedro, fora

18
DINIS, A. J. Dinis - Estudos Henriquinos. Coimbra: Universidade, 1960
19
IRIA, Alberto - Estudos Henriquinos. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1989.
20
RUSSELL, Peter - Henrique, o Navegador. Lisboa: Livros Horizonte, 2004. (1ª ed.); RUSSELL, Peter
– Henrique o Navegador. Lisboa: Livros Horizonte, 2016. (2ª ed.)
21
SOUSA, João Silva de - A casa senhorial do Infante D. Henrique. Lisboa: Horizonte, 1991.
22
COSTA, João Paulo Oliveira – Henrique, o Infante. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2009.
23
VV.AA., Actas do Colóquio Dedicado ao Infante D. Pedro, Biblos, vol. LXIX, Coimbra, 1993.
23
estudado em dissertação de licenciatura24 e, posteriormente, no pioneiro doutoramento
por Luís Adão da Fonseca: o Condestável D. Pedro de Portugal25. No caso dos infantes
D. João e D. Fernando, o seu percurso de vida foi analisado em duas dissertações de
mestrado de Maria Dulcina de Medeiros26 e de João Inglês Fontes27, respectivamente.
Em França, Monique Sommé publicaria a biografia de D. Isabel28, filha de D, João I. De
resto, faltar-nos-ia mencionar a tese de doutoramento de Humberto Baquero Moreno
sobre a batalha de Alfarrobeira e sobre todo esse clima político, que se instaurou após a
morte de D. Duarte, desencadeando o conflito entre o rei e o infante D. Pedro, então
regente do reino.
Também no lado da casa de Bragança, as investigações têm prosseguido desde o
antigo trabalho de Montalvão Machado, médico que biografou o conde de Barcelos29,
passando pelas actas do congresso do conde de Ourém, pelas dissertações de mestrado e
doutoramento de Mafalda Soares da Cunha30, de Rui Pereira31 e pela mais recente
biografia do condestável D. Nuno Álvares Pereira, da autoria de João Gouveia
Monteiro32. Faltaria destacar os trabalhos de Maria Barreto Dávila33 e de Odete
Martins34 dedicados à infanta D. Beatriz, duquesa de Beja e mulher de D. Fernando.

24
FONSECA, Luís Adão da - O Condestável Dom Pedro de Portugal: Subsídios para o estudo da sua
mentalidade. Porto: edição policopiada, 1968. (2 vols.)
25
FONSECA, Luís Adão da - O Condestável D. Pedro de Portugal. Porto: Instituto Nacional de
Investigação Científica, Centro de História da Universidade do Porto, 1982.
26
MEDEIROS, Maria Dulcina – O infante D. João (1400-1442): subsídios para uma biografia.
Universidade de Lisboa: edição policopiada, 1999.
27
FONTES, João Inglês - Percursos e memória: do Infante D. Fernando ao Infante Santo. Cascais:
Patrimonia, 2000.
28
SOMMÉ, Monique - Isabelle de Portugal duchesse de Bourgogne: une femme au pouvoir au XV siècle.
Paris: Presses Universitaires du Septentrion, 1998.
29
MACHADO, J. T. Montalvão – Dom Afonso Primeiro Duque de Bragança, Sua Vida e Obra. Lisboa:
Edição do Autor, 1964. Ainda deste autor, o artigo: MACHADO, J. T. Montalvão – Dom Afonso, 8o
Conde de Barcelos, fundador da Casa de Bragança. Separata da Revista de Guimarães, vol. LXXIII.
Guimarães, 1963.
30
CUNHA, Mafalda Soares da - Imagem, Parentesco e poder: a casa de Bragança (1384-1483). Lisboa:
Fundação da Casa de Bragança, 1990.
31
PEREIRA, Rui Filipe Ferreira - D. Afonso, Duque de Bragança: da morte de D. Duarte a Alfarrobeira.
Porto: edição policopiada, 2016.
32
MONTEIRO, João Gouveia – Nuno Álvares Pereira: Guerreiro, Senhor Feudal, Santo – os três rostos
do condestável. Lisboa: Manuscrito, 2017.
33
DÁVILA, Maria Barreto — Dom Fernando I, 2º Duque de Bragança: vida e acção política.
Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa, 2010.
DÁVILA, Maria Barreto – Governar o Atlântico. D. Beatriz e a Casa de Viseu (1470-1485). Dissertação
de Doutoramento apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
24
Em poucas linhas se percebe a amplitude do interesse historiográfico por estes
personagens e por este tempo, mas como referimos anteriormente não foi nosso objetivo
transpor para este ‘estado da arte’ listas bibliográficas extensas e exaustivas. Então,
interessar-nos-á debater, numa segunda fase, o que tem sido o percurso de estudos
dedicados ao infante D. Fernando e ao seu tempo e que mais dizem respeito a este
trabalho. É verdade que este filho de D. Duarte não tem sido objecto de muitos estudos
e investigações, sendo muito poucos os trabalhos que lhe têm sido dedicados de forma
exclusiva. Um dos nossos pontos de partida para a justificação do tema deste projeto foi
o trabalho de Sebastiana Pereira Lopes35, cujo objetivo central foi o estudo do infante
enquanto senhor de Serpa e Moura e a reconstrução das famílias que dominavam esses
territórios, como se relacionavam com eles, assim como com o infante e com o poder
central, isto é, a Coroa. Uma primeira parte é dedicada à formação do seu outro
património, uma vez que era o filho adotivo do seu tio Infante D. Henrique e foi, por
isso, agraciado com os títulos de duque de Viseu e de Beja e senhor de muitos
territórios, cujas jurisdições e domínio antigamente pertenceram a D. Henrique. Refere-
se, igualmente, todos os outros títulos como o de condestável de Portugal e de fronteiro-
mor no Alentejo; o casamento e a respetiva descendência e o seu envolvimento nos
assuntos de administração da Madeira, assim como nas campanhas do Norte de África e
no ultramar. Outro tópico superficial é a sua presença nas ordens militares, que não foi
descurada pela autora, mas a alusão cinge-se meramente a indicar os anos a partir dos
quais seria governador, assim como alguns episódios considerados mais paradigmáticos
da própria personalidade do infante patente no governo destas instituições; diz-se que o
infante herda o cargo de mestre de Santiago na sequência da morte do infante D. Diogo,
seu primo, e respeita a prática iniciada pelo avô, D. João I; aborda-se o problema da
permanência de cavaleiros no Norte de África, situação acerca da qual o infante se
impõe; quanto à Ordem de Cristo, discute-se a ruptura com Afonso V no que respeitou à
administração desta após a morte do infante D. Henrique, uma vez que o rei estava

Lisboa, 2016. Recentemente editou mais um trabalho dedicado à infanta: DÁVILA, Maria Barreto – A
Mulher dos Descobrimentos: D. Beatriz, infanta de Portugal. Lisboa: a Esfera dos Livros, 2019.
34
MARTINS, Maria Odete – Dona Brites- uma mulher da Casa de Avis. Quidnovi, 2009.
35
LOPES, Sebastiana Alves Pereira - O Infante D. Fernando e a Nobreza Fundiária de Serpa e Moura
(1453-1470). Beja: Câmara Municipal.
25
interessado neste mestrado, mas D. Fernando conseguirá os seus objetivos36, sujeitando
os interesses da Coroa aos seus. Por fim a autora menciona uma outra ocorrência nas
circunstâncias expansionistas em África, mais concretamente na tentativa de conquista
de Tânger, na qual o infante D. Fernando obrigou os seus cavaleiros de Cristo e
Santiago a exagerados pagamentos, o que fez com que estes o ameaçassem com a
possibilidade de fazer apelo ao papa. O infante acaba por ceder37. Sebastiana Lopes
reconhece que não analisou a documentação das ordens de Cristo e Santiago para
estudar o pessoal da casa do infante, porque esse não era o propósito central do seu
trabalho38. De qualquer forma, a autora foi quem primeiro reuniu mais dados sobre este
infante, numa sistematização da sua vida e casa senhorial que se impunha e continua a
impor.
Contudo, antes desta dissertação já Humberto Baquero Moreno redigira dois
trabalhos sobre o irmão de D. Afonso V. Sendo artigos curtos e pouco desenvolvidos,
não deixam de oferecer um guia com os principais acontecimentos da vida de D.
Fernando, baseados essencialmente na Crónica de D. Afonso V e nas doações que
encontrou na chancelaria deste monarca, feitas ao irmão. Redigido no âmbito do III
Colóquio Internacional da História da Madeira, o historiador traça uma biografia do
infante, concentrando os dados biográficos mais significativos, mas reflete, igualmente,
sobre a sua intervenção na política da época; bens, propriedades, doações (muitos deles
outorgados por D. Afonso V), os diversos títulos e o envolvimento nas campanhas de
Marrocos. Enquanto herdeiro do tio, o infante D. Henrique sucedeu-lhe como
administrador da Madeira (aspecto, a nosso ver, ainda pouco aprofundadamente
estudado, sobretudo tendo em conta que no ano de 1461, o infante outorgava um
Regimento ao Funchal, que significou uma boa administração e uma valorização das
potencialidades económicas desse território). Também a menção às ordens militares de
Santiago e Cristo é patente: lembra-se que na sua qualidade de mestre de Santiago lhe
são outorgados diversos privilégios por D. Afonso V, em 1450. Quanto à Ordem de
Cristo refere-se apenas que recebe vitaliciamente o governo dessa instituição, a partir de

36
LOPES, p. 63.
37
LOPES, p. 72.
38
LOPES, p. 83.
26
1461 e com o compromisso de continuar a guerra contra os sarracenos. A muito sucinta
biografia de Baquero Moreno oferece, a nosso ver, a solidez e segurança de um trabalho
histórico norteado pelo recurso constante a fontes e que nos permite, igualmente,
estabelecer um quadro de recursos históricos que devemos utilizar. Refira-se ainda de
Humberto Baquero Moreno: As Ordens Militares na sociedade Portuguesa do século
XV. O apogeu e a queda do Mestrado de Santiago39. Neste artigo de síntese sobre a
evolução da ordem de Santiago em paralelo com as suas relações com a coroa
portuguesa, o autor não pode deixar de referir a solicitação de D. Fernando para mestre,
na sequência da morte de D. Diogo (filho do infante D. João40), assim como considerar
que o período de D. Fernando corresponde a uma fase de apagamento do mestrado desta
instituição41.
Para além destes trabalhos mais antigos e exclusivamente sobre este infante,
encontramo-lo citado noutros títulos de âmbito mais geral, como as biografias régias
que já referimos, ou nas dissertações dos últimos anos sobre a sua mulher, a infanta D.
Beatriz, e que já referimos. No entanto, devemos destacar o trabalho de Peter Russell,
biógrafo do infante D. Henrique e autor de diversos trabalhos sobre a história política,
militar e cultural da Península Ibérica da Baixa Idade Média. Na sua biografia do
infante D. Henrique, propõe uma explicação e uma interpretação para um dos problemas
mais interessantes sobre a vida do infante D. Fernando e da relação com o seu tio e pai
adoptivo: a questão dos testamentos henriquinos e as mudanças que o moribundo
infante lhes fez na véspera da sua morte. D. Fernando perderia parte dos bens deste tio,
com os quais quase sempre contara, e que passariam para D. Afonso V. O rei, por sua
vez, manterá as disposições iniciais e fará executar a mais antiga versão do testamento
de D. Henrique, através da qual D. Fernando herda tudo.
Posteriormente, outros autores abordariam de forma breve a vida de D.
Fernando: Luís Miguel Duarte, na sua biografia sobre D. Duarte, lembra-o enquanto

39
MORENO, Humberto Baquero - As Ordens Militares na sociedade Portuguesa do século XV. O apogeu
e a queda do Mestrado de Santiago. IZQUIERDO BENITO, Ricardo, RUIZ GÓMEZ, Francisco (coord.)
– Las Órdenes Militares en la Península Ibérica: Volumen I: Edad Media. Cuenca: Ediciones de la
Universidad de Castilla - La Mancha, 2000. pp. 773- 796.
40
MORENO, 2000, p. 793.
41
MORENO, 2000, p. 796.
27
filho do rei; Saul António Gomes obrigatoriamente e com mais sentido também o faz,
enunciando os aspectos mais importantes da vida deste príncipe, sobretudo o seu
envolvimento nas campanhas do Norte de África e pouco dando a conhecer a relação
entre irmãos e, por fim, João Paulo Oliveira e Costa dedica-lhe um capítulo42, enquanto
pai do seu biografado D. Manuel I e fundador da casa de Beja. Na sequência dos
estudos sobre o infante D. Henrique e a sua casa, João Silva de Sousa redigiria alguns
43
artigos sobre o infante D. Fernando; pequenas biografias onde aborda igualmente os
principais aspectos da sua vida, para além de menções noutros trabalhos44.
Talvez seja no domínio da bibliografia sobre as ordens militares que as menções
ao infante sejam mais numerosas, ainda que na sua maioria pouco aprofundadas. Tal
explica-se por este não ser o tema de investigação nos estudos que consultámos. Veja-
se, a título de exemplo, o trabalho de António Pestana de Vasconcelos45, que tem como
fonte principal os estatutos da Ordem de Cristo de 1503, e data já do reinado de D.
Manuel I, rei que acumula o cargo de governador da Ordem de Cristo e que nessa altura
reúne capítulo em Tomar para atualizar os estatutos dos membros. A referência desta
obra pode parecer-nos tardia46, mas o autor debruça-se sobre o entendimento daquilo
que é um mestre e um governador em meados do século XV, tendo em consideração os
estatutos de 1449, durante o governo do infante D. Henrique. Não nos poderão passar ao
lado as disposições e prerrogativas daquilo que é ser um governador da instituição nesta
fase e cuja grande alteração parece ter sido o facto de já não se eleger o mestre, mas este

42
COSTA, João Paulo Oliveira -D. Manuel I: um príncipe do renascimento. Mem Martins: Círculo de
Leitores, 2005.
43
SOUSA, João Silva - “As origens da Casa Senhorial de D. Fernando, Duque de Viseu e de Beja”. In
Anais do Município de Faro, nº 20, Faro, pp. 201-209;
SOUSA, João Silva - “Os Herdeiros do Infante e o Governo dos Açores (1560-1485)”. Arquipélago, nº2,
2ª série, IV, (2000).
44
SOUSA, João Silva – “Casas Senhoriais no Portugal Quatrocentista”. Separata da Revista de Ciências
Históricas, nº IX, Universidade Portucalense, 1994;
SOUSA, João Silva – “O Ducado de Viseu no Século XV”. Anais de História de Além-Mar, vol. II, 2001,
pp. 139-156;
SOUSA, João Silva – Senhorias Laicas Beirãs no século XV. Lisboa: Livros Horizonte, 2005.
45
Tese de Mestrado em História Medieval apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto
em 1995 e editada pela Militarium Ordinum Analecta em 1999. VASCONCELOS, António Maria Falcão
Pestana de - A Ordem militar de Cristo na Baixa Idade Média: espiritualidade, normativa e prática.
Militarium Ordinum Analecta. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1999.
46
Uma vez que o governo de D. Fernando na Ordem de Cristo abrange os anos de 1461 a 1470, ou seja, o
início da segunda metade do século XV.
28
cargo tornar-se de nomeação régia, confirmada, posteriormente, por bula papal47. Ora
tal processo verificou-se com D. Fernando e a sua entrada para Cristo, enquanto
sucessor do seu tio D. Henrique. São igualmente estudadas as funções do mestre ou
governador, enquanto modelo de educação moral e espiritual, que deveria ouvir os
freires da ordem, era o responsável pela administração financeira do convento, bem
como pelo provimento material, no qual se incluía o alimentar. É ainda o mestre ou
governador quem gere o património da ordem de Cristo, quer por intervenção direta,
quer através de delegação, sendo ele a celebrar contratos, emprazamentos, aforamentos,
a concessão de privilégios, etc.48. Acerca desta última função do mestre ou governador
encontramos testemunho da outorga de um alvará e de um emprazamento de D.
Fernando49, que se encontra no cartulário do Livro dos Copos da Ordem de Santiago e
que nos obrigará a estabelecer uma comparação entre aquilo que é ser um
mestre/governador em Cristo e em Santiago.
Fica assim assegurado o importante contributo do trabalho de António Pestana
de Vasconcelos para o nosso estudo, na medida em que a sua mais importante conclusão
consiste em perceber que o período da governação do infante D. Henrique constitui uma
viragem dentro da Ordem de Cristo já submetida aos interesses joaninos da Expansão, à
qual o infante D. Fernando não foi alheio. Este é o herdeiro daquele no compromisso
daquilo que são as funções do governador e como canalizar os cavaleiros de Cristo para
as exigências da Expansão50.

47
VASCONCELOS, 1999, p. 33.
48
VASCONCELOS, 1999, pp. 33-35.
49
Apesar de ainda não conhecermos a documentação dos fundos das duas ordens que estudaremos por
isso implicar deslocação e trabalho no ANTT, julgamos que iríamos encontrar sobretudo diplomas de
caráter económico, o que se coaduna perfeitamente com as funções e atribuições dos mestres nesta altura
e às quais D. Fernando não constitui exceção.
50
Relembremos os documentos papais da década de 60, através dos quais os papas revogam e confirmam
a não obrigação das ordens militares de Cristo, Avis e Santiago de construção e fundação e conventos em
África. (Livro dos Copos e Monumenta Henricina). Acrescente-se outro testemunho que evidencia a
participação das Ordens de Cristo e de Santiago nas conquistas ultramarinas ao tempo do infante D.
Fernando, na Crónica do Conde D. Duarte de Meneses. ZURARA, 2006, p. 347. Ordenava o infante no
âmbito da conquista de Tânger, relativamente aos cavaleiros de Cristo e de Santiago: a todollos
cavalleyros que o servissem aas suas próprias despesas e ainda pagavom os fretes dos navyos ao Jffante
mesmo em que passarom, exigência que gerou controvérsia e indignação dos cavaleiros.
29
Passemos ao trabalho de Isabel Morgado e Silva: A Ordem de Cristo – 1417-
152151. Contrariamente ao de António Pestana de Vasconcelos, que se debruça sobre a
análise da normativa e dos estatutos para assim conseguir reconstruir os cargos e toda a
hierarquia desta instituição nos finais da Idade Média, Isabel Morgado amplia a
cronologia e estuda as estruturas jurídicas de Cristo nas suas ligações com a monarquia,
com a Santa Sé e internamente, isto é, as comendas, as visitações e os rendimentos;
desenvolve, através de listas, as hierarquias de dignidades: mestres, comendadores,
vigários, claveiros. Trata-se de um trabalho da maior importância para o nosso estudo,
na medida em que abrange o período no qual nos movemos, ou seja, o mestrado do
infante D. Fernando. Este aparece referido logo no primeiro capítulo, uma vez que nele
se traça o elenco dos administradores da ordem nesta cronologia. Mas o objetivo final
não é o estudo do governo do infante na Ordem de Cristo, antes perceber o que é esta
instituição de forma geral, privilegiando as suas dimensões económicas e jurisdicionais
e, em parte, políticas (Cristo é exemplar nas boas relações que a Monarquia portuguesa
queria manter com as suas instituições religioso-militares52 e sempre foi de todas elas a
mais próxima e institucionalizada pela Coroa). Assim, volta a acentuar-se o peso
reforçado da Coroa junto desta ordem, com D. Henrique a orientá-la no sentido dos
objetivos da monarquia, tendo em vista a cruzada53. Quanto a D. Fernando, ficamos a
saber acerca das suas viagens a África, doações, atuação política, casamento, morte e
algumas sucintas linhas acerca dele, enquanto governador de Ordem de Cristo. Por fim,
saliente-se a importância desta obra pela panorâmica que oferece sobre o século XV e
que deve ser complementada com as dimensões mais normativas, estudadas por
António Pestana Vasconcelos e que já referimos, nomeadamente o estatuto de 1449, que
apanha o governo do infante D. Fernando assim como com a dissertação de
doutoramento54 sobre os indivíduos que pertenciam às ordens no final da Idade Média.
Este último aspeto é essencial para entender as estratégias das linhagens dentro das

51
SILVA, Isabel Morgado – A Ordem de Cristo - 1417-1521. Militarium Ordinum Analecta. Porto:
Fundação Eng. António de Almeida, 2002.
52
SILVA, 2002, p. 45.
53
SILVA, 2002, p. 66.
54
VASCONCELOS, António Pestana de – Nobreza e Ordens Militares: Relações Sociais e de Poder.
Militarium Ordinum Analecta. Porto: CEPESE, 2012.
30
ordens militares, assim como as dimensões reais de poder e de sociedade emanadas
destas instituições religiosas, entre os reinados de D. João I e os finais do de D Manuel
I. A principal preocupação da obra é o estudo linhagístico e sociológico, que permite ao
autor concluir que a inclusão destes indivíduos da nobreza nos universos das ordens
militares é tanto mais acentuada quanto mais nos aproximamos da baixa Idade Média.
Para além de analisar a evolução destas instituições desde o final recente da
Reconquista55 já com D. Dinis, até D. Manuel I, propõe-se sempre essa visão das
relações entre a Coroa e as ordens, bem como as suas diferenças e proximidades no que
às regras, práticas, hábitos, profissão, cargos e administração diz respeito.
Consideramos que o grande contributo deste trabalho para nós é a evolução no sentido
da laicidade que estas instituições acusam ao longo destes reinados, assim como as
formas que esses reis foram encontrando de orientar as ordens militares para os seus
interesses, objetivos e estratégias56, entre as quais os governos de D. Fernando em
Santiago e Cristo são paradigmáticos.
Em As Ordens de Avis e de Santiago na Baixa Idade Média: o governo de D.
Jorge57, Cristina Pimenta volta a privilegiar muito daquele que tem sido o fio condutor
na investigação em ordens militares nas últimas duas a três décadas: as relações entre
estas instituições monástico-militares e a monarquia, tendo como enfoque principal a
administração de D. Jorge, filho de D. João II, abordando os níveis de relacionamento
entre as duas ordens e o poder régio durante os seus longos anos de governo. Cristina
Pimenta também refere a administração de D. Fernando, enquanto dirigente da ordem
de Santiago numa lógica clara e sequencial de infantes que se vão sucedendo nestes
governos desde o reinado de D. João I. Nesta parte discute as opções tomadas pelo
infante D. Pedro durante o período da Regência, que o terão motivado para a escolha do
jovem infante para a ordem de Santiago58. São também mencionados diplomas da altura
do seu governo e que denotam uma preocupação constante com a manutenção e

55
Termina com D. Afonso III, mas a dissertação de Pestana de Vasconcelos começa no reinado de D.
Dinis.
56
Nomeadamente a guerra e a expansão no Norte de África.
57
PIMENTA, Cristina - As Ordens de Avis e de Santiago na Baixa Idade Média: o governo de D. Jorge.
Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2001. Militarium Ordinum Analecta.
58
PIMENTA, 2001, p. 47.
31
confirmação de privilégios concedidos pela Santa Sé à ordem de Santiago59 e
simultaneamente uma ausência assinalável no governo desta ordem, que a autora
justifica com a sua ativa participação nas campanhas expansionistas empreendidas pelo
irmão, D. Afonso V60. O sentido deste governo parece ser de continuidade com aquilo
que é a política portuguesa no século XV. Cristina Pimenta é também autora de um
artigo61 sobre as ordens de Cristo e Avis ao tempo de Alfarrobeira, que oferece uma
panorâmica geral sobre estas instituições em Portugal em meados do século XV, assim
como as suas relações com a monarquia. O governo de D. Fernando em Santiago é
abordado numa postura de aproximação à milícia e numa prática de continuidade de
colaboração com a Coroa (mesmo após a morte do regente). Finalmente são referidas as
suas preocupações face à concessão de benesses, privilégios, doações e confirmações à
ordem.
No que se refere à nomeação de D. Fernando para governador da ordem de
Santiago, também Luís Filipe Oliveira62 avança com esta questão de forma breve,
pensando aquilo que poderá ter sido a sua ação enquanto governador em paridade com
as suas escolhas políticas, isto é, o apoio a D. Afonso V na ocasião da batalha de
Alfarrobeira63, na qual o infante D. Pedro faleceria, em 1449.
A referência a D. Fernando nesta dissertação surge quando estuda os mestres de
Santiago, seguindo um modelo prosopográfico, bem como os comendadores, para além
de não perder de vista os respetivos perfis sociológicos, a lenta aristocratização que se
vai fazendo sentir nestes últimos e a administração interna destas instituições desde
1330 até ao final da Regência, em 1449.

59
Documentos que já descriminámos no Livro dos Copos.
60
PIMENTA, 2001, p. 53.
61
Sobre a situação das ordens de Santiago e Cristo à época da batalha de Alfarrobeira vejam-se: SILVA,
Isabel Morgado – A Ordem de Cristo ao tempo de Alfarrobeira. In FONSECA, Luís Adão da; AMARAL,
Luís Carlos; SANTOS, Maria Fernanda (coord.) Os Reinos Ibéricos na Idade Média: Livro de
Homenagem ao Professor Doutor Humberto Carlos Baquero Moreno. Porto: Faculdade de Letras da
Universidade do Porto e Civilização Editora, 2003. Vol. II. pp. 511-517; PIMENTA, Maria Cristina – As
Ordens de Avis e Santiago no século XV: o antes e o depois de Alfarrobeira Ibidem, Vol. II. pp. 987-994.
62
OLIVEIRA, Luís Filipe – A Coroa, os Mestres e os Comendadores.: As Ordens Militares da Avis e de
Santiago (1330-1449). Universidade do Algarve, 2009. Sobre o infante D. Fernando vejam-se as páginas
283-285.

32
Capítulo 1 – Os primeiros anos: a infância de D. Fernando

1.1. Da gravidez da rainha à adopção pelos infantes D. Henrique e D. Fernando


(1433-1436)

D. João I morre em meados de Agosto de 1433. A morte do monarca, e a


simbologia em torno dela, significou não apenas o início de um novo reinado, como
seria de esperar, apesar de D. Duarte há muito cogovernar com o seu pai e estar
activamente envolvido nos assuntos políticos do reino, mas também a primeira
referência a um novo príncipe de Avis que estava por nascer. A morte de D. João I,
como se sabe, fora retratada de forma perfeita e exemplar, digna de um rei. No entanto,
modelar tinha sido igualmente a actuação de D. Duarte que, ainda infante e futuro rei,
tendo casado em Setembro de 1428, já começara a produzir herdeiros. Casara com uma
infanta dita de Aragão, D. Leonor e com ela teve nove filhos. Logo no primeiro ano de
casamento nasce D. João, com o nome do avô e fundador da casa dinástica, mas que
morreria pouco depois. Em 1430 nasce D. Filipa, que não ultrapassou os oito, nove
anos; em 1432 nascem, para nosso espanto, o herdeiro e futuro rei D. Afonso V e uma
menina, Maria, certamente muito pouco saudável, que morreria pouco depois. Em 1433
nasce D. Fernando, que ganha o nome do avô paterno Fernando de Antequera, nome
que seguia também uma linha de nomes de reis e príncipes do lado português. Seguir-
se-iam ainda, Leonor em 1434, a futura imperatriz da Alemanha; em 1436 nasceria
Catarina e em 1439 Joana, que D. Duarte já não viria a conhecer.
Como se percebe, o Eloquente tivera a maior parte dos seus filhos ainda antes de
se tornar rei, garantindo a segurança da sua casa e dinastia e cumprindo aqueles que
eram, sem dúvida, os seus deveres políticos como futuro rei.
Referimos que a morte e a celebração das exéquias de D. João I significaram
também a menção de que um novo infante estava para vir. Esta é a primeira referência
documental que temos relativamente a D. Fernando, ainda antes de nascer e no ventre
da rainha sua mãe, simplesmente por esta se encontrar em período final de gestação, de
tal modo que não pôde comparecer às cerimónias e cortejos que permitiram trasladar o

33
corpo do sogro para Santa Maria da Vitória na Batalha, local de resto muito querido a
D. João I64. Pela mesma razão foi sentida a ausência da mulher do infante D. Pedro.
Foi da máxima preocupação de D. Duarte a organização das cerimónias fúnebres
do seu pai para o panteão dos Avis na Batalha (ocorridas sensivelmente dois meses
depois da morte do rei), que contaram naturalmente com as mais importantes figuras e
dignidades do reino, como muitos abades, toda a clerezia, prelados relevantes, todos os
infantes, o conde de Barcelos e os respectivos filhos, conde de Arraiolos e conde de
Ourém e as mais ilustres senhoras: condessa de Barcelos, a infanta D. Isabel, mulher do
infante D. João, a condessa de Arraiolos e outras donas e senhoras do reino. Neste dia
grandioso e certamente muito emotivo para todos, apenas se registaram as ausências da
rainha D. Leonor e da sua cunhada Isabel de Urgel, duquesa de Coimbra.
No entanto, a morte de D. João I abriu oportunidade para que os dois filhos mais
velhos do falecido monarca se reaproximassem: o rei D. Duarte e o infante D. Pedro.
Este último fora o único a não estar presente à cabeceira do pai, aquando do momento
da sua morte. A partida para a Batalha significou um regresso à corte por parte de D.
Pedro, como explica Rui de Pina. No entanto o seu papel ainda viria a ser mais
determinante, significativo e provavelmente marcante na infância de D. Afonso V e do
irmão, D. Fernando. De facto, D. Pedro andara afastado de todo este processo e o seu
próprio casamento, anos antes, gerara algum desconforto e desencontros, mas não
hesitou em dirigir-se aos Paços de Belas para se encontrar com D. Duarte, donde
seguiram para Sintra, onde D. Pedro prestou as primeiras menagens ao seu irmão como
rei recém aclamado. Para além das amizades, apoios e vassalagens devidamente
restabelecidas, Pina refere que foi introduzida uma outra novidade nesta altura: o infante
D. Afonso, muito pequeno, foi jurado herdeiro do seu pai e chamado príncipe, o que até
então nunca tinha acontecido. Foi o primeiro infante herdeiro a ter esta designação. A
D. Fernando, consequentemente, pouco depois seria dada essa mesma oportunidade,
quando viesse a ser jurado herdeiro.
A morte de D. João I coincidiu portanto com o próximo nascimento de mais um
dos seus netos, que já não conheceram o avô. Assim foi o início da vida de D. Fernando,

64
PINA, Rui de – Chronica do Senhor Rey D. Duarte, int. e rev. de M. Lopes de Almeida. Porto: Lello e
Irmão editores, 1977, p. 499.
34
que acabaria por nascer no dia 17 de Novembro de 1433 em Almeirim e, segundo D.
Duarte, numa terça feira tres oras ante meio dia65. O nascimento de mais um infante
nesta terra ribatejana não é descabido, uma vez que D. Duarte permaneceu praticamente
todo o mês de Novembro desse ano em Santarém (no âmbito de cortes) e efectuou
algumas deslocações a localidades próximas da vila, como Almeirim e Coruche (a
primeira precisamente onde o infante nasceu.) Tal indica-nos a provável proximidade da
rainha e dos outros infantes ao rei66, que acompanhavam com frequência a corte e o rei.
Como explica Humberto Baquero Moreno, existe uma clara tendência de D. Duarte para
se restringir aos territórios entre Santarém e Évora e pouco se deslocar ao centro e norte
do país. Tal inclinação estendeu-se a outros reis da casa de Avis67, que pareceram pouco
valorizar as regiões do norte relativamente ao centro e sul. Com a necessária cautela, é
de supor que o infante D. Fernando acompanhou estas deslocações e participou desta
propensão da corte e dos reis para viverem mais por Lisboa, pelo Ribatejo e Alentejo,
uma vez que a documentação permite poucas conclusões acerca dos locais por onde ele
viveria.
As Crónicas de D. Duarte e de D. Afonso V de Rui de Pina são as fontes que
mais pormenores e informações nos oferecem acerca desta fase da vida do infante.
Tentar reconstruir o percurso da infância de alguém, ainda que de um príncipe, para um
período tão recuado é algo que abre espaço a muitas especulações. Pouco sabemos sobre
a infância dos filhos de D. Duarte e sobre a de D. Fernando, em concreto. No entanto,
sabemos mais do que aquilo que se poderia esperar. Isto é, o contexto político que se
segue à morte de D. Duarte, com a menoridade de D. Afonso V, explicam algumas
referências que temos à vida do infante durante estes primeiros anos da sua vida e
crescimento. A situação de confusão política, de desentendimento entre os infantes de
Avis e a rainha viúva e de outros episódios de que falaremos revelam-nos uma infância
instável, conturbada e talvez comprometedora para quando chegasse o momento de
escolher lados políticos, nos momentos finais da Regência de D. Pedro. Mas não nos

65
DUARTE, D. – Livro dos Conselhos de El- Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa), ed. e transc. João Alves
Dias. Lisboa: Editorial Estampa, 1982, p. 146.
66
MORENO, Humberto Baquero – Itinerários de El-Rei D. Duarte (1433-1438). Lisboa: Academia
Portuguesa de História, 1976, pp. 11-12.
67
MORENO, 1976, pp. 34-35.
35
adiantemos, sem antes referir as grandes festas que D. Duarte organizou com grande
solenidade e grandiosidade em Lisboa, em 1435 e tendo o infante apenas dois anos68.
Festejavam-se as unções pelos santos óleos dos filhos do rei, que contaram com a
presença dos grandes do reino. No entanto, um problema de ordem familiar pareceu
abalar o rei nesse dia e toda a sua alegria se converteu em tristeza e dor, uma vez que
fora notificado que os seus cunhados - o rei D. Afonso de Aragão e de Nápoles, D. João
rei de Navarra e D. Henrique, mestre de Santiago de Castela - tinham sido feitos
prisioneiros no mar pelos Genoveses e estavam agora nas mãos do duque de Milão, que
também era senhor de Génova. Pina não menciona mais pormenores, mas apenas que D.
Duarte cancelou tudo e ficou sem disposição. Questiona-se o cronista acerca de como
havia senhores em Itália a aprisionarem reis hispânicos e continua com um breve
apontamento sobre os infantes de Aragão69.
Regressemos à infância de Fernando. Sabemos que não conheceu os avós, e que
poucas memórias teria dos seus pais, dado que D. Duarte morreu quando ele tinha
apenas cinco anos e que ficaria junto da sua mãe por pouco tempo, passando depois para
os cuidados do infante D. Pedro, seu tio. Qual terá sido a sua percepção dos
acontecimentos da crise política que se fez sentir após a morte do rei? Sabemos que era
apenas uma criança, mas deverá ter sentido alguns desses efeitos, sobretudo quando o
separaram da mãe, que nunca mais voltou a ver70. Quem o educou e como foi educado?
Que influência e papel, efectivamente, desempenhou o infante D. Pedro junto do seu
sobrinho? Como e quando foi constituída a sua casa? E qual a relação com os outros
irmãos, sobretudo com D. Afonso, de quem permaneceu mais perto nesta fase? Qual a
proximidade com os seus outros tios infantes, irmãos do pai? Não conseguimos
encontrar resposta para a maior parte destas interrogações. No entanto, algumas alusões
na cronística da época permitem-nos estabelecer um fio condutor para estes primeiros
anos e ajudar a lidar com algumas destas perguntas.
Sabemos que os anos de 1435 e 1436 foram marcados pela cerimónia,
cancelada, dos santos óleos aos filhos de D. Duarte e pela adopção pelos seus tios,

68
PINA – Crónica de D. D, p. 509.
69
PINA, Crónica de D. D, pp. 509 e ss.
70
Esta faleceu em 1445.
36
infante D. Henrique e D. Fernando, do pequeno infante. Por esta altura o infante D.
Henrique andava obcecado em prosseguir as incursões militares em terras de África,
para além de não podermos esquecer o parecer sobre a guerra em Marrocos71 que
redigiu a pedido de D. Duarte, que o mostra como um verdadeiro cruzado e defensor
convicto deste tipo de práticas militares e religiosas. Opinião menos convincente
(relativamente à dos outros seus irmãos D. Pedro e D. João), mas igualmente
paradigmática numa personalidade e caráter como os do infante D. Henrique,
encontramos no seu parecer, de 1436. São unânimes Peter Russell72 e Luís Miguel
Duarte73 ao referirem a previsibilidade e total falta de originalidade de D. Henrique,
neste texto. No seu parecer ressaltam desde logo os valores de guerra santa e de
cruzada, que tornam este texto num testemunho único e radicalmente diferente do dos
seus irmãos e sobrinhos. Dizemos diferente porque defende ardentemente a guerra em
Marrocos, como de resto o fará ao longo da sua vida.
Peter Russell, um dos seus biógrafos, chama à atenção para a incoerência e falta
de nexo do texto, quando comparado com os dos outros autores e refere a construção de
uma imagem de asceta e de cruzado, que D. Henrique quis legar para a posteridade74.
Menciona apenas que é justo e correto fazer a guerra contra os mouros porque a igreja o
determina e defende, pela fé, glória eterna, honra e prazer. Conceitos que não surgem
devidamente explicados nem fundamentados e que revelam uma argumentação pobre.
Talvez sentindo-se incapaz de convencer o irmão D. Duarte para que o autorizasse a
prosseguir com a guerra em África, decidiu-se pela adopção do segundo filho varão do
rei. Como explica Pina, tal expediente pretendia atingir a rainha, para que ela se sentisse
inclinada nesse seu desejo e o ajudasse a persuadir o rei75. O infante D. Fernando, que
subscrevia as opiniões do seu irmão mais velho, recorreu à mesma táctica, sobretudo
porque queria ser armado cavaleiro em cenário de guerra, como Duarte, Pedro,
Henrique e João. Então, nas vésperas de Tânger, ficou estipulado que depois das mortes

71
“Resposta do infante D. Henrique … (1436)” in Monumenta Henricina, vol. V, doc. 101, pp. 201-204.
72
RUSSELL, 2016. p. 160.
73
DUARTE, Luís Miguel – D. Duarte: requiem por um rei triste. Rio de Mouro: Temas e Debates, 2007.
p. 315.
74
RUSSELL, 2016, pp. 160-161.
75
PINA – Crónica de D. D, p. 520.
37
dos dois infantes, o seu sobrinho D. Fernando herdaria tudo de ambos. Da parte do
infante D. Fernando, ‘o santo’, tal decisão não poderia ser mais clara: E, avendo hi
tantos de meus beens per que todallas cousas e legados conteudas em este meu
testamento seiam compridas e pagadas, mando e quero que o iffante dom Fernando,
meu prezado e amado sobrinho herde de meus beens, movis e de rraiz , todo o que
sobeiar.76 Esta afirmação, que coincide com o discurso de Pina, surge-nos no
testamento de D. Fernando, datado de 18 de Agosto de 1437, onde após descrição
exaustiva e pormenorizada de como e onde queria que fossem as suas exéquias (na
eventualidade de morrer em África) e depois de enumerar as doações e pagamentos que
queria fazer a mosteiros e ao pessoal da sua casa, mandava que todos os bens móveis e
de raiz e o que sobrasse ficassem nas mãos do seu sobrinho, o pequeno D. Fernando,
como já vimos. A este testamento antecipara-se o infante D. Henrique, que redigira ou
mandara redigir um alvará (ou primeira forma de testamento) em Março de 1436, no
qual doava e deixava tudo ao sobrinho adoptado. Nesse documento toma-o por filho e
herdeiro77. Mas voltaremos ao problema dos testamentos.
O tempo, por sua vez, mostraria ao ainda pequeno infante D. Fernando a enorme
diferença de ser herdeiro de D. Fernando e de D. Henrique.

1.2. A morte de D. Duarte

Dilacerado com o encarceramento do seu irmão Fernando, em Fez, e atacado pela


peste, D. Duarte morre a 10 de Setembro de 1438 em Tomar. Todos os familiares mais
próximos foram avisados da doença e da morte do rei, à excepção do infante D. João,
que também se encontrava doente na altura e a quem foram ocultadas a doença e o óbito
do rei. O infante D. Pedro viera mais cedo de Coimbra para organizar as cerimónias
fúnebres do falecido rei e para providenciar aquele que deveria ser o passo seguinte: a

76
MH, vol. VI, doc. 52, 1964. p. 130.
77
MH, vol. V, doc. 102, 1963. pp. 205-207. Publicado também em: Descobrimentos Portugueses, vol. I,
docs. 96-97, p. 125.
38
aclamação de um novo monarca, neste caso D. Afonso V78. O rei era uma criança de
apenas seis anos e os tempos que se seguiriam seriam de um árduo caminhar até que D.
Pedro conseguisse estabilizar a sua regência e a situação política no reino, tendo em
conta uma menoridade régia sempre delicada.
Após a morte do rei, a rainha fez com que se procedesse ao conhecimento do
testamento do marido, mandando reunir o Conselho e trazer junto de si o infante D.
Pedro e o arcebispo de Lisboa. Pina explica que parte do conteúdo desse documento
previa que a rainha, sem a ajuda de mais ninguém, ficaria tutora exclusiva dos seus
filhos, herdeira de todos os bens temporais e regente do reino. Acrescentava D. Duarte o
seu desejo de que o seu irmão mais novo fosse libertado das mãos dos muçulmanos e
que se entregasse Ceuta em troca dele.
No entanto, a situação estava longe de ser simples; e nas últimas linhas da Crónica
de D. Duarte, Pina pretendeu ‘adivinhar’ os conflitos, desentendimentos, escrevendo
que antre a Raynha e o Ifante Dom Pedro ouve grandes divissoees e mudanças, de que
a ella se seguio e causou despois sua morte, e sua sayda destes Regnos com muyto
trabalho, e ao Regno e naturaaes delle pouco descanso79.
Não é este o lugar para descrever exaustivamente a evolução dos acontecimentos e
do clima político durante estes anos, mas apenas para tentar recordar os episódios mais
marcantes que implicaram o infante D. Fernando.
Como explica Humberto Baquero Moreno, a vinda do infante D. Henrique (que
ainda não aparecera na Corte desde o desastroso ataque a Tânger) do Algarve a Tomar
traria alguma calma à rainha e aos cunhados e entre todos se decidiu que se deveria
reunir cortes80. Para além desta decisão, outros assuntos foram tratados em Tomar,
como a trasladação dos restos mortais de D. Duarte, que só ocorreu no Outubro
seguinte. No entanto, é também desta altura que data a importante iniciativa do infante
D. Pedro, enquanto esperava por cortes e que D. Duarte tivesse o seu funeral, para que o
muito jovem infante D. Fernando (de apenas cinco anos) fosse intitulado e jurado por
príncipe e herdeiro do seu irmão. D. Pedro preocupava-se com a descendência do irmão
78
PINA – Crónica de D. D., pp. 574-575.
79
PINA – Crónica de D. D., p. 575.
80
MORENO, Humberto Baquero – A Batalha de Alfarrobeira – antecedentes e significado histórico.
Universidade de Lourenço Marques, vol. V, serie B, 1973, p. 8.
39
e o prosseguimento da sua casa. Os seus argumentos relacionavam-se com a
menoridade de D. Afonso V, do muito tempo que ainda faltava até que se fizesse um
homem maduro e adulto, se casasse e tivesse herdeiros; para além de que a vida podia
ser muito efémera e perigosa. Não apenas no caso do pequeno rei, mas também em
todos os meninos da sua idade, que sujeitos a muytos casos e desastres, de que Deos
nosso Senhor ho guarde (ao rei) e defenda 81. Para que não houvesse qualquer dúvida e
insegurança, D. Pedro elaborou um discurso, reproduzido um tanto ficcionadamente
pelo cronista, no qual se batia pelo juramento do sobrinho enquanto herdeiro do rei.
Nesse momento, tal medida de segurança proposta pelo infante D. Pedro pareceu
funcionar apenas na teoria, para que as relações com a rainha serenassem um pouco, e
para mostrar que ele próprio não tinha quaisquer ambições. Na prática, perante dois
varões herdeiros tão novos, a decisão mais importante estava por vir: quem regeria o
reino. Desta forma, o infante D. Fernando intitulou-se príncipe até ao nascimento do
príncipe D. João, herdeiro de D. Afonso V.
Neste acto solene em Tomar estiveram presentes todos os grandes senhores do
reino, entre os quais os infantes e o conde de Barcelos, enquanto aguardavam as cortes.
No entanto, não temos notícias concretas onde se encontrava D. Fernando no momento
da morte do pai e nos dias que se seguiram até à aclamação do novo rei e à sua
intitulação enquanto príncipe herdeiro. Provavelmente estaria junto dos tios, do irmão e
sobretudo da mãe, uma vez que todos se encontravam reunidos em Tomar nestes dias. É
natural que assim fosse; a proximidade à rainha era seguramente maior e assim se
manteria, pelo menos nos tempos mais próximos. Ao que parece, o discurso de D. Pedro
funcionou e alcançou os seus objectivos, uma vez que todos pareceram concordar que
tal intitulação seria benéfica naquele momento e eficaz na manutenção de relações
tranquilas com a rainha. Tal ficaria comprovado com a aceitação, por parte do infante
D. Pedro e de D. Leonor, de uma vontade manifesta de D. Duarte, o casamento entre o
príncipe herdeiro e a filha do duque de Coimbra, D. Isabel. Tais afirmações do cronista
serão essenciais para tentarmos compreender, em momento oportuno, as decisões acerca
dos casamentos dos filhos de D. Duarte, pensados e consolidados pelo infante D. Pedro.

81
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 593.

40
No entanto, estes acontecimentos que precedem as cerimónias fúnebres de D. Duarte e
as cortes de Torres Vedras não estão ainda isentos de alguma tensão, bem como o
momento da chegada do corpo do rei ao Mosteiro da Batalha. Estávamos em Outubro
de 1438 e o infante contava apenas com cinco anos. Como se consegue vislumbrar na
Crónica de D. Afonso V, a tensão e a discórdia teriam início nesta fase de reunião em
Cortes, em Torres Vedras, na escassa simpatia dos procuradores pela rainha e nas
contradições sobre quem devia deter o regimento. Após a abertura das cortes, a rainha
solicitou de imediato ao infante D. Henrique que convocasse para junto dela o infante
D. Pedro. Este respondeu prontamente, em gesto de muito respeito, e juntos decidiram
que a rainha teria a responsabilidade de criar os seus filhos e teria a seu cargo a fazenda
do reino, ficando ao infante D. Pedro o regimento da justiça e o tytulo de defensor dos
reynos por elrey82.
Como explica Humberto Baquero Moreno, os debates das cortes prologaram-se
durante alguns dias e o infante D. Henrique não deixou de participar nas principais
decisões políticas da altura, relacionadas com o regimento. Ele era um profundo
conhecedor dos problemas latentes e antigos que se começavam a revelar: o escasso
entendimento entre D. Pedro e a rainha, a indisfarçada oposição do seu meio-irmão o
conde de Barcelos, que parecia estar contra tudo, os desentendimentos, igualmente
sentidos, por parte dos povos, desconfiados de uma regência entregue a uma mulher
(pior do que isso: uma mulher estrangeira!), mas igualmente das ligações fortes entre os
filhos de D. João I. Estas foram mais uma vez patentes na protecção dada ao infante D.
João, para que não soubesse da doença e morte de D. Duarte, dado o seu estado de
fragilidade e porque o rei o tinha educado e amado sempre como seu próprio filho. Esta
ligação, segundo Pina, remonta ao período da morte de D. Filipa de Lencastre, que
deixara dois filhos pequenos: os infantes D. João e D. Fernando. Duarte tomara sempre
conta de D. João e o rei, D. João I, olhara sempre por D. Fernando. D. João por sua vez
construiria uma relação forte com o seu outro irmão, o infante D. Pedro, que lhe valeu
em momentos muito importantes do início da sua regência. Estas informações, que não
deixam de ser curiosas, poderão estar na origem das decisões levadas a cabo pelo

82
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 599.
41
regente aquando de organizar os casamentos dos sobrinhos e nas quais o infante D.
Fernando está directamente envolvido, como se verá mais adiante.
Regressemos às propostas do infante D. Henrique e sobretudo às que dizem respeito
à educação dos sobrinhos Afonso e Fernando. Defendia o infante que a rainha devia ser
tutora e curadora do rei e dos seus restantes filhos, e que os outros poderes seriam
repartidos, nomeadamente entre o infante D. Pedro e o conde de Arraiolos. A rainha não
consentiu tal porque desejava que o regimento ficasse integralmente para ela.
Permaneciam os filhos com a rainha e junto com o seu aio, Nuno Martins de Silveira,
quando se iniciou o seu regimento; e faleceu entretanto a infanta D. Filipa. Estávamos
em Março de 1439. Esta menina deixava o mundo com onze anos, devido à peste que
grassava em Lisboa. Mas uma nova infanta estava para nascer, D. Joana; seria dada à
luz em Almada, junto dos seus irmãos e para onde a rainha se mudara. A partir desde
momento os jovens príncipes e a sua mãe nunca mais estabilizariam, fixando-se em
alguma vila ou cidade do reino, para aí crescerem e serem educados. A rainha
permaneceu algum tempo na sua quinta de Monte Olivete (Almada), onde foi
frequentemente visitada pelo infante D. Pedro. Tal dever-se-ia, supomos, à presença dos
dois infantes varões junto da mãe, com quem terão permanecido até Julho de 143983. A
partir de então, os infantes terão deixado a quinta e regressado a Lisboa, passando a
viver com a rainha em Sacavém. Os tempos seguintes seriam de grande turbulência,
viagens constantes motivadas pela própria insegurança da rainha e pelas circunstâncias
políticas confusas, pouco definidas e em constante mudança. Esta situação existiu em
grande parte devido ao facto de nunca ter existido uma aceitação sincera, por parte do
infante D. Pedro, naturalmente ambicioso, de que a sua cunhada fosse uma regente
legítima e capaz84. As desconfianças mútuas sempre prevaleceram e estão patentes em
episódios bastante ilustrativos, como o alvoroço que se sentiu em Lisboa, alimentado
pelos principais da cidade e pelos oficiais da Câmara, e que motivou a intervenção do
infante D. Pedro para os repreender; ou como o castelo mais importante do reino, o de

83
MORENO, 1973, p. 28.
84
Bem como pela desconfiança que lhe suscitavam os belicosos e muito mais ambiciosos “Infantes de
Aragão”, irmão de Leonor.
42
Lisboa, foi entregue ao infante D. João, o grande aliado de Pedro,85 expulsando aqueles
que sustinham a cidade pela causa da rainha e que a ela se justaram depois. Este é um
momento chave, o da adesão da capital do reino à causa do infante D. Pedro, para além
do corte de relações definitivo entre os dois: a rainha ainda estava em Sacavém com os
filhos, quando o infante D. Pedro lá passou para se despedir do rei. Dirigiu-se então à
cunhada, referindo os problemas em que estavam envolvidos e que atéely a raynha o
tevera como ella queria, e que d’ hy em dyante o tomaria como o achase86, e que dela
só recebera ódio e má vontade. A tudo isto, acrescente-se as cartas que D. Pedro enviou
para todas as Cidades e Vylas do Reyno a informá-las dos movimentos e evolução da
cena política, para que estivessem do seu lado, quando chegasse um momento de
urgência. Talvez o infante o tenha feito para provocar um levantamento contra a rainha
e por algum receio dos infantes de Aragão que poderiam ser um perigo para Portugal,
mas Pina não tem a certeza. No entanto, julgamos que considerou tal acção do infante
muito justificável, pelas mesmas razões que a rainha fizera o mesmo, ao escrever a
fidalgos poderosos que viessem ter com ela e a protegessem. Como explica o cronista, o
yfante o nom o faria sem causa (...)87.
Por sua vez, a rainha perturbada com os desacatos em Lisboa, mandava expulsar da
sua casa duas senhoras de quem desconfiava serem apoiantes do infante D. Pedro88.
Eram elas filhas de Isabel Gomes da Silva, mulher do vedor da fazenda. Tal
comportamento de D. Leonor gerou grande indignação em Lisboa e foi tida como a
primeira grande demonstração de que era efectivamente inimiga do infante D. Pedro,
que cada vez reunia mais as preferências do povo. Não nos é possível referir com
certeza, mas correria o ano de 1439 quando este episódio sucedeu e a rainha encontrava-
se com os filhos em Sacavém.
A partir do momento em que Lisboa fica garantida para apoiar o infante D. Pedro,
através da presença do infante D. João, que ‘segurou’ a cidade para o irmão, os

85
Veja-se o capítulo XLI da Crónica de D. Afonso V, pp. 630-632. Para evitar escândalos e tragédia, o
infante D. João convenceu a mulher de D. Afonso, alcaide-mor de Lisboa por parte da rainha, tal como o
seu filho, a entregar-lhe o castelo sem alvoroço e até porque o povo já começara a manifestar-se.
86
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 620.
87
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 619.
88
Veja -se o capítulo XXIII da Crónica de D. Afonso V.
43
acontecimentos começam a desenrolar-se a um ritmo mais acelerado. A maior e mais
importante cidade do reino assiste a discussões do foro jurídico e mesmo religioso para
justificar que o rei e a regência não deviam ser entregues a uma mulher e que D. Pedro
deveria reger sozinho. Discutiam os vereadores e pessoas em quem o povo confiava,
como o doutor Diogo Mangancha e Lopo Fernandes, tanoeiro de Lisboa que chamavam
a atenção para os perigos de uma governação feita por uma mulher, assim como os
malefícios que uma educação ministrada pela rainha ao seu filho também poderia trazer:
era grande perigo e alleijam elrey ser mais criado em poder de mulheres (...89).
As tensões faziam sentir-se cada vez mais e a rainha encontrava-se isolada com os
filhos. Depois das escaramuças em Lisboa, D. Leonor retira-se de Sacavém para
Alenquer, onde ainda não se sentia segura pela proximidade à capital. Aí permanecerá
com os filhos e com a sua casa durante algum tempo, enquanto Lisboa se declara
abertamente pelo infante D. Pedro: o ‘povo da cidade’ (através dos seus líderes
autoproclamados, como já acontecera em 1383-85)) elabora e assina um documento
segundo o qual não consentiria que o infante não fosse regedor do reino.
Outros episódios se seguiriam nesta luta pela regência e pela educação do pequeno
rei. Apesar de não termos datas concretas, acreditamos que a rainha ficou tempo
suficiente em Alenquer para tomar a decisão de lá se amuralhar, após a assinatura do
acordo de Lisboa, que colocava a regência nas mãos do cunhado, e por ter receio que
este a cercasse e lhe tirasse o rei para o levar a cortes. Tal comportamento não veio a
suceder. No entanto D. Leonor mandou vellar, afortalezar e repairar a vylla, de muros,
gentes, armas e mantimentos e se pôs em som de defesa, se tal caso sobreviesse90. De lá
procurou a viúva de D. Duarte desenvolver um intenso envio de cartas para os seus
apoiantes, entre os quais, pensava ela, o infante D. Henrique. Escreveu-lhe secretamente
para tentar semear a discórdia entre ele e o infante D. Pedro, mas este apercebeu-se do
plano e conseguiu interceptar a missiva. Os infantes acabariam por se encontrar e por
acordar que o infante D. Henrique teria um desempenho moderador, sendo incumbido
de se dirigir à rainha para que esta autorizasse o rei a vir às cortes de Lisboa.

89
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 625.
90
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 633.
44
Ambiente revolucionário é uma expressão91 de Humberto Baquero Moreno para
descrever toda esta fase de crise, uma vez que, em certa medida, se estava a desrespeitar
as vontades do anterior rei, D. Duarte. Dado o protagonismo da cidade de Lisboa em
todo este processo, chega a ser tentador relembrarmos a Lisboa da crise de 1383-85: um
verdadeiro pronunciamento patriótico e masculino contra a, neste caso, regente-
mulher-estrangeira92.
Entretanto os infantes reuniam-se e procuravam uma solução para o problema
político que dividia o reino, uma vez que a rainha não consentia que o regimento lhe
fosse retirado, nem os seus filhos. Será o infante D. Henrique o responsável por
demover a cunhada nos seus propósitos; por fim ela acompanhou-o de Alenquer para
Lisboa apenas um dia depois. Na comitiva estavam também o rei e o príncipe D.
Fernando, tendo-se mudado de Alenquer para Santo António, Câmara do Arcebispado
de Lisboa. Chegaram na véspera de Natal de 1439, tendo-a celebrado nesse local. Já
falámos na proximidade entre o infante D. Henrique e D. Leonor. O infante parece ter
usado isso em 1436, quando fez do sobrinho D. Fernando seu herdeiro para convencer
D. Duarte a dar o aval positivo sobre Tânger; e D. Pedro, que também se apercebera
disso, enviou D. Henrique para a convencer a estar presente em Lisboa aquando da
reunião de Cortes. Conseguiram ambos o que queriam e agora chegava D. Afonso V,
com a rainha-mãe, o seu irmão D. Fernando e outros ilustres do reino, a Lisboa. Escreve
Pina que entraram solenemente a cavalo, passaram pela Sé e pelos Paços da Alcáçova,
onde se realizou a abertura solene das cortes. Como explica Armindo de Sousa, estas
cortes realizavam-se pelas exéquias do primeiro aniversário de morte de D. Duarte,
apesar de não se saber quando se terão iniciado93, o que se junta a muitas inexatidões e
omissões cronológicas que fomos encontrando ao longo do texto de Pina. Os objectivos
destas cortes centraram-se na abolição daquilo que tinham sido as disposições das
anteriores, isto é, das cortes de 1438, celebradas em Torres Novas. Nestas últimas, o
ponto mais sustancial tinha sido a decisão sobre quem teria o regimento do reino, para
além das várias menagens prestadas ao rei menino. Na sequência delas estabelecera-se
91
Porventura demasiado forte.
92
SOUSA, Armindo de – As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490). Porto: Instituto Nacional de
Investigação Científica, 1990, p. 356.
93
SOUSA,1990, p. 354.
45
também uma concórdia entre a rainha e o infante D. Pedro, que dividiram tarefas entre
si, como dissemos atrás: a rainha criaria os filhos e ficaria com a governação de toda a
fazenda e D. Pedro com o regimento da justiça e a responsabilidade de defender o reino,
em nome do rei94. Mas a crescente tensão entre cunhados levaria a que o acordo se
quebrasse e, nas cortes do ano seguinte, a rainha tentaria mesmo boicotá-las, exortando
os seus apoiantes a que não comparecessem às cortes. Esta tensão plasmava-se
igualmente nas divisões internas que se faziam sentir no reino: porque a nobreza estava
firme na sua opinião de que se não podia, nem devia tirar o governo á Rainha; o povo e
procuradores insistiam tumultosamente que se havia de dar inteiramente ao Infante D.
Pedro; a terceira opinião era dos Infantes D. Henrique e D. Affonso, e dos condes de
Ourem e de Arrayollos, com outras pessoas de grande qualidade que queriam que se
repartisse o governo entre a Rainha e o Infante na forma de concordia entre eles feita
(...).95 Com o acordo sem efeito e os desentendimentos com o infante, pretendia D.
Leonor impedir que o anterior acordo de 1438 fosse revisto e abrogado por uma moção
de ordem96, nas palavras de Armindo de Sousa. Mas foi também no âmbito destas cortes
que se reflectiu sobre o destino do rei e a sua educação. Sobre estas matérias se
pronunciou um homem do Norte, João Gonçalves, procurador da cidade do Porto e já
no momento em que se encerravam os trabalhos. Num discurso certamente recriado ou
inventado, mas muito importante porque reflecte o espírito da época e as circunstâncias
que então se estavam a viver, refere este procurador os múltiplos danos de o rei ser
educado por uma mulher: tornar-se-ia fraco e efeminado e colocar-se-ia contra o regente
e contra o seu próprio povo. Se tal já era perigoso para um homem comum, quanto mais
para um rei. Todos os procuradores do Povo insistiram que o rei e o irmão D. Fernando
deveriam ficar em poder do infante D. Pedro. Não nos interessa aqui descrever todos os
assuntos debatidos nesta reunião de estados, mas sim reter duas das suas mais
importantes conclusões: as cortes colocaram a regência nas mãos do infante D. Pedro e
decidem o destino do jovem do rei o seu irmão D. Fernando. Manifestou-se a opinião
generalizada de que os príncipes não deveriam ficar com a mãe, pelas razões que já

94
PINA, Crónica de D. Af. V, pp. 598-599.
95
LANDIM, 1892, vol. I, p. 40.
96
SOUSA, 1990, p. 355.
46
expusemos e de facto a rainha acabaria por ser privada dos seus filhos. D. Pedro teria
hesitado antes de tomar a decisão de receber os sobrinhos, mas acabou por ceder e
aceitar. A rainha também não conseguiu resistir e deixou os filhos varões com D. Pedro,
permanecendo com as filhas e retirando-se para Sintra; aí foi o regente buscar os
sobrinhos. Apesar de a cronística não nos dar um dia concreto, Humberto Baquero
Moreno data criticamente este acontecimento de Janeiro de 1440. A separação da mãe
dos filhos parece ter sido trágica, como era de esperar. O episódio é-nos descrito por
Pina97 quando D. Leonor fez allevantar os Fylhos da cama, mas Gaspar Dias de Landim
ainda conseguiu atribuir maior tragicidade e dramatismo à cena em questão: E com
estas se despediu d’elle e do Infante D. Fernando a quem teve por outro espaço em seus
braços com tão grande pranto seu e do mesmo Rei e Infante, e de todos os mais que se
achavam presentes que foi para todos um triste e choroso espectaculo (...)98.
A regência do infante D. Pedro iniciava-se oficialmente e este tornava-se o tutor,
educador e principal responsável pelas duas crianças. Mas as dissensões com a rainha
não ficariam por aqui. Seguir-se-ia uma campanha militar contra o prior do Crato, forte
apoiante de D. Leonor.
D. Fernando estava a caminho dos sete anos, praticamente não conhecera o pai,
nunca mais veria a mãe, mudara-se para Lisboa para receber a sua casa e os seus
próprios oficiais (até então partilhava-os com o seu irmão rei, como explica Pina), já
tinha sido jurado herdeiro do trono e era-o também do seu tio D. Henrique; seria
educado por D. Pedro, certamente em conjunto com o jovem D. Afonso V. Fora uma
viragem muito importante na sua vida e com tão reduzida idade.

97
PINA, Crónica de D. Af. V, capítulo LI.
98
LANDIM, 1893, vol. II, p. 21.
47
1.3. A educação de um príncipe99

A partir do início de 1440, os pequenos Afonso V e Fernando ficavam, portanto, em


poder do tio, o infante D. Pedro. Quem melhor do que um príncipe para educar outros
dois? D. Pedro não era, de forma alguma, uma má escolha. Quiçá um dos responsáveis
pela introdução das ideias humanistas em Portugal, tradutor e autor, profundo
conhecedor da política internacional do seu tempo, desenvolveu uma complexa teoria
do poder, na Virtuosa Benfeitoria, onde para além de expor as suas visões políticas,
revela uma profunda cultura necessária ao comentário e à escrita de uma obra desta
envergadura.100
A obra é partilhada com frei João Verba e o tema da autoria tem sido abordado por
especialistas, havendo, no entanto, partes desta que pertencem sem dúvida ao infante,
como a carta-dedicatória, bem como as múltiplas referências que faz aos senhores e
príncipes. Quanto ao seu coautor, frei João Verba, Joaquim de Carvalho citado por
Sebastião de Pinho, identifica-o no método expositivo, na escrita escolástica e no
desenvolvimento da erudição escriturária, teológica e filosófica.101.
O tema permanece em aberto. Mas encontramos em D. Pedro, tal como no pai e
no irmão Duarte, a presença constante da Bíblia e o recurso constante aos antigos e
alguns dos principais teólogos medievais. Vejam-se os seguintes excertos: Aristotilles
philosopho muy sottil, querendo enssinar o modo perq uymos em conhecimento das
cousas. Diz no postumeiro liro da lógica, q primeyramente devemos de saber da cousa

99
Alguns excertos desta alínea são provenientes do meu relatório final de Seminário de História Medieval
intitulado “A questão da autoria na literatura dos Príncipes de Avis” e publicado em Omni Tempore:
Encontros da Primavera 2016.
100
A obra é partilhada com frei João Verba e o tema da autoria tem sido abordado por especialistas,
havendo, no entanto, partes desta que pertencem sem dúvida ao infante, como a carta-dedicatória, bem
como as múltiplas referências que faz aos senhores e príncipes. Quanto ao seu coautor, frei João Verba,
Joaquim de Carvalho citado por Sebastião de Pinho, identifica-o no método expositivo, na escrita
escolástica e no desenvolvimento da erudição escriturária, teológica e filosófica.100.
101
PINHO, Sebastião Tavares – “O Infante D. Pedro e a Escola de Tradutores da Corte de Avis”. In
Biblos, vol. LXIX, 1993. p. 134.
48
se ella he;102 no capítulo da obra em que dá graças a Deus pela conclusão da mesma,
recorre a S. Gregório. Escreve então: E porem diz sam gregorio no XXV livro da obra
moral, que deos he dentro em todo sem ençarramento, e he fora de todo, nom seendo
apartado, e sem baixeza o mundo sostem, sobre todo se exalça sem perlongança103. O
Infante parecia não encontrar melhor ideia e princípio para exaltar a Deus e assim serve-
se de um grande entendido sobre a matéria.
A Virtuosa Bemfeitoria evidencia uma vasta gama de essências distintas e
inscreve-se na tipologia de traduções da época, assente numa constante e sistemática
medievalização dos textos e das ideias presentes no original. Bastaria, ainda que muito
diminuta, a amostra dos excertos citados para demonstrar essa variada proveniência de
ideias e de conhecimentos que comentam o De Beneficiis, de Séneca: a Sagrada
Escritura, autoridades medievais, como S. Gregório; antigas, como Aristóteles (que
acentua a sua presença na cultura portuguesa nos séculos finais da Idade Média, sendo
amplamente aproveitado pelos Avis na sua dimensão ético-política104) e mesmo num
sentido mais ficcional, quanto à comparação da importância de lugares ocupados pelo
rei Príamo e pelo seu filho Heitor na sociedade com a hierarquização que estabelece
entre os benefícios e as partes da obra.105 Heitor ocupa o segundo lugar face ao rei, seu
pai, porque este se encontra acima de tudo, enquanto monarca. No entanto, por ser
majestoso cavaleiro o filho é a figura que imediatamente se lhe segue. Estará o infante a
apelar à hierarquização social e à valorização da cavalaria, enquanto atributo e valor da
nobreza? Eis um possível exemplo da continuação da medievalidade na obra de D.
Pedro, na forma como relaciona as ideias e os princípios de Séneca com os da sua época
e com as concepções de construção de um texto. A VB resulta da visão medieval de uma
tradução comentada e amplificada do De Beneficiis106. O benefício é apresentado como

102
PEDRO, Infante D., O Livro da Virtuosa Bemfeitoria do Infante Dom Pedro, ed. e anotado por
Joaquim Costa, Porto: Empresa Industrial Gráfica do Porto, 1946, p. 31.
103
VB, p.334.
104
CAEIRO, Francisco da Gama – “Aristotelismo em Portugal (período medieval)”. In LANCIANI,
Giulia, TAVANI, Giuseppe (coord.), Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa:
Caminho, 1993, p. 61-62.
105
VB, p.34.
106
GOMES, Rita Costa – “Virtuosa Benfeitoria”. In LANCIANI, Giulia, TAVANI, Giuseppe (coord.),
Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993, p. 681.
49
forma de reforçar as relações entre os grupos sociais, o que nos remete mais uma vez
para a orgânica da sociedade medieva.
Comentar e traduzir um texto de um autor clássico, que vive no século de
Augusto (século primeiro da nossa era), com base na Bíblia, em Santo Agostinho, S.
Gregório e evidenciando o espírito de cavaleiro é prova mais do que suficiente dessa
medievalização textual. O infante conferiu uma tonalidade do seu tempo (charneira
entre duas épocas, em que conviviam tradição e modernidade)107 e onde a realeza e o
príncipe aparecem como um ofício, que pressupõe instrução e formação, adquirida
através do contacto com bons autores108e a afirmação do papel mais centralizador do
estado, bem como da definição dos direitos e deveres de governados e governadores. Na
Baixa Idade Média, o príncipe é como um espelho109 ou exemplo de virtudes da
comunidade, que vai de encontro à forma como a época via a sociedade110. Assim se
explica também a VB, não apenas como essa janela para o medievo, mas igualmente
como portadora da herança clássica na cultura portuguesa de finais da Idade Média.
Uma herança que só se concebe numa perspectiva de prolongamento e actualização,111
nas palavras de Michel Zimmermann. Da mesma forma estes princípios de construção
de uma obra aplicaram-se ao Livro dos Ofícios.
Como explicam António José Saraiva e Óscar Lopes, o advento da dinastia de
Avis intensificou na corte portuguesa o interesse pelos problemas teóricos e
doutrinários, religiosos, políticos, morais e até psicológicos112. Tal afirmação resume
aquela que foi a produção literária dos reis D. João I e D. Duarte e do infante D. Pedro
ao longo da primeira metade do século XV, patente em obras como o Livro da
Montaria, de D. João I; o Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda a Sela e o Leal
Conselheiro, de D. Duarte. Todos eles didáticos, informativos e provavelmente
inspirados naquela que era literatura lida e utilizada à época: os espelhos de príncipes.

107
SOARES, Nair de Castro – “A Virtuosa Benfeitoria”. In Biblos, vol. LXIX, 1993. p.298.
108
SOARES, 1993, p.293.
109
Tema acerca do qual D. Duarte tinha o livro Regimento de Príncipes, de Egídio Romano.
110
MONTEIRO, João Gouveia, “Orientações da Cultura de Corte na 1ª metade do séc. XV (a literatura
dos príncipes de Avis)”. In Vértice, 2ª Série, nº 5, Agosto,1988, p.92.
111
ZIMMERMANN, Michel – “Abertura do Colóquio”. (2001) In Michel Zimmermann (dir.), Auctor &
Auctoritas. Invention et conformisme dans l’écriture médiévale. Actes du Colloque de Saint-Quentin-en-
Yvelines (14-16 juin 1999), Paris: École des Chartes. p.11.
112
SARAIVA, LOPES, 2001, p. 111.
50
D. Pedro via a sociedade medieva como muitos dos seus contemporâneos, através de
uma concepção antropomórfica,113 como um grande organismo colectivo, que apelava à
cooperação entre os seus constituintes para que se gerasse harmonia. À cabeça estava o
príncipe que deveria ser o exemplo máximo das virtudes. João Gouveia Monteiro
explica o surgimento desta nova linha literária, e a sua influência na corte de Avis, pela
crise que varreu a Europa na baixa Idade Média e que fez com os príncipes fossem
encarados como o motor de desenvolvimento e de recuperação dos reinos.114 Para tal
deveriam ser ilustres e muitíssimo bem formados. Os espelhos, tidos como a arte de
bem governar, tão em voga ao longo de toda a Idade Média, ganhavam agora um novo
fôlego e entraram na nossa cultura. Zurara recorda que D. João I ordenava que se lesse
frequentemente o regimento de Egídio Romano na sua câmara e que por essa mesma
altura se mandara traduzir para a rainha D. Filipa de Lencastre a Confessio Amantis, de
John Gower,115 igualmente sobre o bem governar. Estas preocupações serão depois
transportadas para as obras dos príncipes de Avis, pelo que os séculos XIV e XV são
propícios ao aparecimento de homens que medeiam entre uma mentalidade medieval e
humanista, sendo, portanto, difíceis de ‘catalogar’ e dos quais Alonso de Cartagena, D.
Duarte e o infante D. Pedro são exemplos notáveis.116 Trata-se de uma época sensível a
múltiplas mudanças e a tentativa de uma caracterização demasiado maniqueísta,
aplicada a estas figuras, pode ser historicamente perigosa e um tanto deformadora da
realidade.
A breve exposição que fizemos sobre as principais orientações culturais da corte
de Avis serve-nos para compreendermos o ambiente político, moral e cultural em que
D. Afonso V e D. Fernando terão sido educados, debaixo do olhar atento do seu tutor.
No entanto, há vários problemas relacionados desde logo com as próprias diferenças
entre o monarca e o infante. Isto é, temos alguns elementos que comprovam que o
infante D. Pedro investiu na educação do sobrinho mais velho, e que lhe terá passado

113
MONTEIRO, 1988, p.102.
114
MONTEIRO, 1988, p. 92.
115
MONTEIRO, 1988, p. 94.
116
Veja-se a este propósito, por exemplo, a sexta alínea da introdução de José María Liste ao Doctrinal de
los Cavalleros, de Alonso de Cartagena, sobre as ambiguidades da obra deste e a existência de uma
tensão de mentalidades medieval e renascentista. CARTAGENA, Alonso, Doctrinal de los Cavalleros,
ed. José María Viña Liste, Universidade de Santiago de Compostela, 1995, p. LX.
51
muito das suas cultura e erudição políticas, mas relativamente a D. Fernando poderemos
apenas imaginar e especular que D. Pedro teve com ele os mesmo cuidados e formação
que teve com o futuro rei: D. Fernando era um príncipe que devia ser devidamente
preparado, caso algo trágico ocorresse com D. Afonso V. Por isso estamos em crer que
D. Fernando participou das orientações educacionais que D. Pedro preparou, durante a
regência, para D. Afonso V. O regente não pode ter deixado de delinear a instrução e a
disciplina do pequeno Fernando.
O jovem monarca foi educado por italianos: Estêvão de Nápoles e Mateus
Pisano, chamados por D. Pedro, para o efeito. O rei, por sua vez, encomendaria ao
humanista Justo Baldino a tradução para latim das crónicas portuguesas, e seria
mecenas de Zurara117. Como refere Joaquim Veríssimo Serrão, a presença de Mateus
Pisano já era sentida em Portugal a partir de 1446, sendo perceptor do monarca por essa
altura. Era poeta e filósofo e a sua vinda para o reino confirma a existência de uma
corrente italiana nos meados do século XV que exerceu acção fecunda na cultura
portuguesa.118 Comporia em latim a descrição da tomada de Ceuta, para que D. Afonso
V conseguisse dar uma projecção europeia ao feito. Passou também para latim uma
Crónica de D. Pedro de Meneses, entretanto perdida. Toda esta influência italiana deve
ser pensada tendo também em conta as viagens que o agora tutor do rei e de D.
Fernando fizera na década de 1420. Terá visitado várias cidades italianas e levanta-se a
possibilidade de ter conhecido a obra de Dante nessa altura,119 tal como outros livros
que terá adquirido, nomeadamente em Veneza, como uma cópia da tradução latina do
Livro de Marco Paulo, possivelmente o exemplar que existia na biblioteca de D.
Duarte.120 Nessas viagens também adquiriu o infante conhecimentos cartográficos, que
talvez estejam na origem do interesse por parte de D. Afonso por este saber, e que o
motivariam a encomendar um mapa a Fra Mauro.

117
SARAIVA. LOPES, 2001, p. 177.
118
SERRÃO, 1989, p. 38.
119
SODRÉ, Paulo Roberto – “A vertuosa compilaçom do Infante D. Pedro e Frei João Verba”. In
MONGELLI, Lênia Márcia (coord.), A Literatura Doutrinária na Corte de Avis, São Paulo: Martins
Fontes, 2001. p. 346.
120
SIMÕES, M – “Pedro, Dom (Infante e Duque de Coimbra)”. In LANCIANI, Giulia, TAVANI,
Giuseppe (coord.), Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993, p.
529.
52
Entre a medievalidade e o humanismo que estava a despontar, preocupou-se o
infante com a educação dos dois sobrinhos que tinha a cargo e que se plasmou no
conhecimento erudito e escrito da época e em gerar governantes informados, cultos e
preparados, para os quais terá mandado traduzir obras.121 D. Pedro conhecia bem as
obras do seu tempo que tratavam destes temas da conduta e decoro dos príncipes,
invocando-as no vigésimo sexto capítulo do livro II da Virtuosa Benfeitoria: (...) o livro
da ensynança dos prinçipes, que compos meestre frey thomas de aquyno, e o livro do
rregimento dos prinçipes, composto per frey gill de Roma122. Enunciava e recomendava
o infante estas obras para aqueles que quisessem saber mais sobre as benfeitorias e
benefícios outorgados pelos príncipes perante qualquer estado.
Mas tais contornos da educação de um príncipe não se medem apenas no
domínio das letras. Quando, por finais de 1439 ou princípios de 1440, os cidadãos de
Lisboa se dirigem ao infante D. Pedro para o convencer de que deve ser ele o regente do
reino e o tutor do rei, são ditas as referidas palavras: Antes pois em vós pera ysso há
tantas rezoões, he rezam que o crieis, e façaes insynar em letras, e reaaes custumes, e o
leveis ao monte e aa caça, e lhe mostreis per vós o exercicio das armas, e per
enxemplos e doutryna, e merecimentos da cavalaria. E assy as outras cirimonias,
manhas, e cousas que ao Estado de hum tal Pryncepe convem, assy pera os tempos
publicos, como secretos, e com esto elle he de tam saaõ, e perfeito entender, que
conhecera que o servis bem e lealmente123. Esta afirmação de um discurso directo
construído por Pina sintetiza bem aqueles que são os principais vectores da educação de
um príncipe e que, certamente, fizeram parte do crescimento e da vida de D. Fernando,
enquanto senhor e infante. Estes não se restringem ao domínio intelectual, mas também
abrangem uma forte componente física relacionada com o cavalgar, a luta, a caça e a
montaria, apanágios dos príncipes e dos nobres. Assim, não é de estranhar que o
monarca D. Fernando tenha ordenado a Pero Menino, seu falcoeiro, a feitura do
chamado Livro de Falcoaria. Antes dele, e nos tempos de D. Dinis, o seu físico pessoal,

121
Muitas vezes o próprio D. Pedro ocupou-se dessas traduções, como a do Livro dos Ofícios.
122
VB, p. 150.
123
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 645.
53
mestre Giraldo, tinha escrito um Livro d’Alveitaria124. Esta tradição de uma literatura
mais técnica e prática passaria para a corte de Avis e seria visível nas obras de D. João I
e de D. Duarte: o Livro da Montaria e o Livro da Ensinança de Bem Cavalgar toda
Sela, respectivamente. O primeiro é um livro de caça e de assuntos práticos, mas não só.
Atrever-nos-íamos a referi-lo, para além de um tratado técnico e de gineta, como um
espelho da relação entre o Homem e a Natureza. Uma leitura mesmo pouco aprofundada
permite detectar um conjunto de sinestesias (de cheiros, de sons…) só perceptíveis por
quem, de facto, se desloca para tomar contacto com o mundo natural e experiencia essas
actividades com os animais e com a Natureza. É nesta última característica e na sua
complexidade que residem as singularidades do Livro da Montaria: a sensibilidade com
o que o mundo natural é abordado e por esta advir de um contacto directo com este, que
o rei compôs com a ajuda e o acordo de muytos bõos monteiros125. Caçar e ir para o
monte, entre muitas outras coisas, eram as propostas de D. João I. Quanto ao Livro de
Cavalgar, de D. Duarte, há que lhe reconhecer uma vertente técnica intimamente ligada
com o domínio militar, uma vez que o rei reflecte acerca das selas, das bestas, fornece
conselhos sobre como cavalgar, sobre o freio, as correias, como cavalgar numa justa,
como ferir com a espada e com a lança, como ferir com as esporas e como usar os
estribos. No entanto, o que interessava reter para a posteridade era o seguinte: ...screvo
principalmente pera enssynar meus subdictos126 ou faço por ensinar os que tanto nom
souberem (…).127 Alguns capítulos reportam-se a considerações sobre a honra e o bem
dos quais os cavaleiros e escudeiros são merecedores por cavalgarem de forma
‘correcta’, como se observa no capítulo I ou mesmo nas primeiras linhas do prólogo: a
manha de seer boo cavalgador he hua das principaaes que os senhores cavalleiros e
scudeiros devem aver128, screvo alguas cousas per que seran ajudados pera a melhor
percalçar. Claramente há o princípio de que os exercícios militares, as boas práticas de
cavalaria, de caça e de montaria devem integrar a boa formação do nobre e D. Duarte

124
MONTEIRO, 1988, p. 92.
125
Livro da Montaria Feito por D. João I, rei de Portugal- “Prologo”, pub. Academia das Sciências de
Lisboa por Francisco Esteves Pereira, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1918. p.I.
126
DUARTE, D. - Livro da Ensinança da Arte de Cavalgar Toda Sela, ed. crítica de Joseph Piel, Lisboa:
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986, p. 131.
127
L. Cav., p.1.
128
L. Cav., p.1.
54
reconhece-o no excerto que acabámos de expor. O rei faleceu precocemente, não
podendo ver os seus filhos crescer e, quiçá, cavalgar pela primeira vez, mas estas
preocupações técnicas e formativas não foram certamente esquecidas pelo tio D. Pedro.
Este escreveu sobre elas ao reflectir acerca dos benefícios que os pais devem fazer aos
filhos para os bem educar. O infante estabelece que são dois: o castigo e a boa
ensinança. Mas é neste último que a disciplina física adquire a atenção de D. Pedro no
que à educação dos príncipes diz respeito. Refere D. Pedro que o imperador Octaviano
educou exemplarmente os seus herdeiros: (...) fez enssynar seus filhos em todallas artes
de cavallaria a correr e em fazer saltos e a nadar e rremessar per todollos modos que
sse pode fazer e a ferir com bestas e pedras de maao e de funda. E mandoulhes
aprender as maneiras per que soportaryam melhor as peleias, e as artes com q seriam
em ellas mais avisados129. As meninas, por sua vez, seriam ensinadas a fiar, e a teçer, e
usavam de todallas artes en que sse occupar o stado das molheres, e que pudessem
fazer vestidos, e a coser as mandou acostumar (....).130 As valências da Antiguidade na
Idade Média, uma vez que o infante se inspirou em Policrato para redigir este pequeno
excerto sobre a formação dos herdeiros de Augusto, são um exemplo que em certa
medida se mantinha na sua época.
Não sabemos até que ponto o infante se terá envolvido em todas estas
actividades educacionais e se o fez com algum sucesso, até porque a cronística não nos
oferece um retrato deste príncipe que nos permita especular acerca das suas qualidades
físicas e intelectuais. Sabemos que o popular Vegécio, tão citado e conhecido na Idade
Média, lhe era familiar, e provavelmente talvez mais alguns autores. No entanto, não
podemos afirmar com segurança se conheceria as obras do avô, do pai e do seu tio, o
regente D. Pedro. Contudo, os treinos físicos, o montar, a caça, o contacto com animais
como os cães e os falcões, as aprendizagens relacionadas com a etiqueta e a postura
eram praticadas desde a infância e adolescência, como explica Rita Costa Gomes.131
Sobre estes assuntos existia literatura suficiente à época, como vimos.

129
VB, p. 148.
130
VB, p. 148-149.
131
GOMES, Rita Costa – D. Fernando. Lisboa: Círculo de Leitores, 2005, p. 47.
55
Outro aspecto fundamental diz respeito àquilo que a autora chama de mediação
na educação do príncipe, isto é, a autoridade sobre os infantes pertence ao pai, mas esta
pode ser distribuída e delegada noutros agentes que auxiliem nesse processo
formativo.132 Outros personagens interagiam com os infantes e educavam-nos mais de
perto e directamente do que o pai, ou neste caso, o tio D. Pedro. É neste tópico que
emergem as figuras dos aios que D. Fernando terá tido, responsáveis pela sua formação
e por todos os cuidados que lhe deviam ser prestados. O aio é uma extensão da
autoridade paterna, sempre presente junto dos filhos. Foram aios e educadores do
infante D. Fernando, e na maior parte das vezes em conjunto com D. Afonso V, Nuno
Martins da Silveira e Álvaro Gonçalves de Ataíde. O primeiro fora escrivão da puridade
de D. Duarte e embaixador. Pertencia ao conselho régio e era governador e regedor da
sua casa, confiando-lhe D. Duarte a educação dos seus filhos (incluindo o rei e o infante
D. Fernando133). Com a subida ao poder do regente, viu-se afastado dos cargos de
escrivão da puridade e de governador das casas do rei D. Afonso e de D. Fernando134 e
foi substituído por Álvaro Gonçalves de Ataíde, governador da casa do infante D.
Pedro, membro do conselho do rei, sendo também cavaleiro de D. Pedro. A sua vida
atravessa os reinados de D. João I, D. Duarte e D. Afonso V. Talvez a enorme confiança
depositada nele pelo infante D. Pedro explique a sua escolha para aio de D. Afonso V e
de D. Fernando.135 Em 1452 deparamos ainda com um amo do infante D. Fernando,
Luís Afonso, quando D. Afonso V concede a Duarte, filho daquele, 3530 reais brancos,
para mantimento do seu estudo na universidade, pagos anualmente136. No entanto, mais
nada sabemos sobre este amo do infante, nem quando terá, efectivamente,
desempenhado essa função.
Os anos da regência foram os anos do crescimento físico e intelectual do infante
e do seu irmão Afonso V. Foram os tempos da infância dos infantes meninos, essa fase

132
GOMES, 2005, p. 46.
133
O seu filho, Fernão da Silveira, seria fidalgo da casa do infante D. Fernando. Após o falecimento deste
último, passou a integrar o conselho do rei. MORENO, 1973, pp. 957-958.
134
MORENO, 1973, p. 962-966.
135
FREIRE, Anselmo Braamcamp - Brasões da Sala de Sintra. Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
Lisboa, 1973, vol. I, p. 81.
136
Chartularium Universitatis Portugalensis, vol. V. doc. 1634, pp. 264-265.
56
tão importante do desenvolvimento humano, como explica Armindo de Sousa.137 Foi
nela que, talvez juntos, os irmãos terão ganhado interesse e gosto pelos livros, pela ars
militaris, pela escrita, pela cavalaria e pelas atividades físicas. Sem dúvida que D.
Afonso V, enquanto rei, terá adquirido maior protagonismo no processo, até pela
motivação que terá sentido para a redacção de textos, que hoje se encontram perdidos:
Tratado da Milícia conforme o Costume de Batalhar dos Antigos Portugueses e
Discurso em que se Mostra que a Constelação chamada Leão Celeste consta de Vinte e
Nove Estrelas e a Menor de Duas138. No entanto, acreditamos que o pequeno Fernando
acompanhou o irmão nesta etapa até porque, como explica Saul António Gomes, na
corte avisina de Quatrocentos a educação processava-se inter principes, com vários
fidalgos a serem educados em conjunto com o rei D. Afonso V, ambiente que
certamente terá servido para os seus próprios filhos e quiçá, anteriormente, para o seu
irmão mais novo139.
Seria da maior importância, para explicar decisões e comportamentos posteriores
do infante, conhecermos um pouco da relação que teria com o seu pai adoptivo, o tio D.
Henrique e os afectos, relacionamentos e proximidades que terá estabelecido com outros
membros da sua família, nomeadamente com o seu maior responsável, o infante D.
Pedro. Nos finais de 1448, este escrevia ao seu sobrinho, o conde de Arraiolos, em
quem confiava, demonstrando todo o desconforto que sentia à época pela existência de
inimigos e de pessoas descontentes com a sua regência. Nesta carta encontramos um D.
Pedro ressentido e ameaçado, que se vê chegar a uma situação política insustentável,
relembrando a criação dos príncipes meninos, tutoria que conseguira nos inícios da
regência: Nom curo de fazer aqui mençam dos feitos de começo de meu regimento e de
como me ouve em elle, asi em a criaçam delrrei e de seus irmãaos (...)140
Dos anos que medeiam entre as cortes de Lisboa de 1439 (e os princípios de
1440) e o período pré-Alfarrobeira, muitos aspectos permanecem desconhecidos acerca
do infante D. Fernando: a evolução na constituição da sua casa senhorial (que já deveria

137
SOUSA, Armindo – 1325-148). In MATTOSO, José (dir.), A Monarquia Feudal, 2º vol. da História
de Portugal (coord.J osé Mattoso)Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 505.
138
GOMES, Saul António – D. Afonso V. Lisboa: Temas e Debates, 2009, p. 73.
139
GOMES, 2009, p. 74.
140
MH, vol. IX, doc. 211, p. 356.
57
estar em marcha desde tenra idade), a relação que teria com os seus tios e com o irmão
rei, onde viveria, e de que bens já seria, efectivamente, senhor, quais seriam as suas
ambições. No entanto, temos notícias do seu casamento nesta década de 1440, bem
como de outros acontecimentos.

58
Capítulo 2 – A década de 1440: da morte do condestável D.
Diogo a Alfarrobeira (1442-1449)

2.1. A chegada à Ordem de Santiago

Foi durante a década de 1440 que D. Fernando viveu os anos da sua adolescência.
Continuamos sem saber a que espaços do reino se deslocou, qual a efectiva dimensão e
localização da sua casa e bens patrimoniais. No entanto, nesta altura, temos notícias da
entrega que lhe é feita do mestrado de Santiago, da celebração do seu contrato de
casamento e da sua participação na batalha de Alfarrobeira.
A nossa escolha do ano de 1442 para iniciarmos o estudo desta fase da vida do
infante recai exclusivamente na morte do condestável D. Diogo e o que tal significou
para o seu primo irmão.
Como é sabido os inícios dos anos de 1440 ficaram marcados por várias mortes no
seio da família de Avis: em Outubro de 1442 falece o infante D. João, nos inícios do
ano seguinte morre o seu filho, D. Diogo, entretanto nomeado pelo regente, condestável
do reino e mestre de Santiago, e ainda nesse ano, mas mais tardiamente morre em
África D. Fernando, o infante Santo. Como se verá, todas estas mortes terão uma
relação e um peso directos na vida do jovem D. Fernando: o precoce desaparecimento
do seu primo D. Diogo traria o mestrado de Santiago para a sua posse; casaria com a
filha do infante D. João, falecido, e era, desde criança, herdeiro do cativo infante D.
Fernando.
Não temos dúvidas de que o infante D. Pedro, enquanto regente, mas também
enquanto irmão e pai, manobrou estrategicamente a atribuição dos mestrados nesta
altura e preparou os casamentos dos sobrinhos, filhos dos seus irmãos já desaparecidos
(D. Duarte e o infante D. João), não esquecendo a sua condição de tutor dos filhos do
primeiro, onde se inclui o rei.

59
Assim, após a morte do sobrinho D. Diogo, o regente apressou-se a enviar a Roma o
bispo de Ceuta, D. João Manuel para assegurar a sucessão no mestrado de Santiago141.
Numa carta de quitação de 1446, entre as despesas enunciadas e levadas a cabo pelo
bispo de Ceuta, D. João Manuel, menciona-se o custo de quinze ducados pelas letras de
dispensa de casamento do Infante D. Fernando, cujo contrato data igualmente do ano
desta quitação passada pelo infante D. Pedro. Refere-se no documento que no ano de
1443, o regente enviara à Santa Sé este emissário. Os resultados desta ida revelar-se-iam
com data de 23 de Maio de 1444, com Eugénio IV a emitir duas bulas: uma delas
dirigida ao infante D. Fernando a nomeá-lo governador e administrador da ordem de
Santiago142 e uma outra endereçada aos cavaleiros da instituição para que o
reconhecessem como tal143. Sendo o infante menor e apenas com a idade de onze anos
(idade não perfeita para ocupar a dignidade, de acordo com a norma)144, o pontífice
determina na primeira bula que o governo da ordem fosse entregue a dois freires
escolhidos pela Coroa. Como explica Luís Filipe Oliveira, D. Pedro foi muito rápido a
decidir-se quanto aos destinos da ordem de Santiago pela instabilidade política que se
vivia em Castela nesses anos e por facilmente controlar um sobrinho muito novo, que o
ajudaria a tomar igualmente o controlo dessa instituição. Contava o infante em ter nas
suas mãos a principais forças do reino dado o perigo de um conflito com Castela145. O
autor ainda afirma que os primeiros tempos do governo de Santiago por parte do infante
D. Fernando são marcados pela direcção e tomada de decisões levadas a cabo pelo
regente D. Pedro146. É citada alguma documentação da chancelaria de D. Afonso V,

141
Carta de Quitação de Junho de 1446 publicada em MH, vol. IX, doc. 126, pp. 169-171. Também
publicada em Documentos das Chancelarias Reais anteriores a 1531, relativos a Marrocos, tomo I, doc.
CCLXXXV, 1915, pp. 322-324.
142
MH, vol. VIII, doc. 107, pp. 165-168. Cfr. BARBOSA, Isabel Maria Lago – A Ordem de Santiago em
Portugal nos finais da Idade Média. In As Ordens de Cristo e de Santiago no início da Época Moderna: a
normativa. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1998, 120, nt. 42. Militarium Ordinum Analecta.
143
MH, vol. VIII, doc. 108, pp. 168-169.
144
A idade perfeita seria ter já 14 anos. Cfr. Estabelecimentos ordenados pelo mestre D. Henrique de
Aragão em 1440 e prevê os 14 anos feitos. Publicado BARBOSA, p. 141 e 174.
145
OLIVEIRA, 2009, p. 283. Para uma visão global da conjuntura política na Península Ibérica nestas
cronologias veja-se FONSECA, Luís Adão da - La época de Enrique IV y Juan II de Aragón. In Historia
General de España y América, tomo V. Madrid: Rialp, 1981, pp. 405-447; FONSECA, Luís Adão da -
Una elegia inédita sobre la família de Avis. Un aspecto de la propaganda política en la Península Ibérica a
mediados del siglo XV, Anuario de Estudios Medievales, vol. 16, 1986, pp. 449-463.
146
OLIVEIRA, 2009, pp. 283-284.
60
onde entre alvarás, quitações e decisões sobre comendas, é o infante D. Pedro quem tem
a última palavra e intervenção directa nos assuntos da ordem, provavelmente na
nomeação de um regedor para a ordem, enquanto o infante D. Fernando não atingisse a
idade para o cargo. Foi este Fernão Martins Mascarenhas, comendador-mor de Santiago
que, em 1444, foi apontado como o regente da milícia e recebe da coroa as comendas de
Mouguelas e da Roliça da comarca de Óbidos, pela morte de Gonçalo Mendes de
Vasconcelos com todas as rendas e respectivos direitos147. Apesar dos seus tenros onze
anos e do assumido controlo por parte do tio regente é com as bulas papais de 23 de
Maio de 1444 que se inicia a ligação do infante D. Fernando a esta Ordem Militar. Mais
tarde, como ainda veremos, ficará responsável, em simultâneo, pela Ordem de Cristo.
Tais responsabilidades, a que acrescem diversos bens e propriedades auferidas desde
cedo, podem, no futuro, explicar as fontes de riqueza e a diversidade dos seus domínios
assim como a sua capacidade de intervenção política148 no quadro geral do reino.

2.2. O casamento

É necessário regressarmos à carta de quitação de Junho de 1446 outorgada pela


Coroa para encontrarmos a referência mais antiga ao casamento do infante D. Fernando,
que por essa altura se estaria a equacionar. Este documento tem efeitos retroactivos uma
vez que é referente a despesas efectuadas no ano de 1443, entre as quais deparamos com
os quinze ducados pagos pelas letras de dispensa do casamento do infante D. Fernando.
Não é possível saber a partir de que altura o matrimónio deste infante terá começado a

147
Chancelaria de D. Afonso V, liv. 24, fl. 32.
148
Relativamente à sua importante proximidade política com o rei, veja-se este documento (confirmação
a D. Isabel de Urgel da aprovação do seu contrato de casamento com o infante D. Pedro.) no qual D.
Fernando aparece conjuntamente com o rei e a rainha na titulação em conjunto: Dom Affonsso, pella
graça de Deus, etc. Emsembra com minha molher, a rrainha dona Isabell, que sobre todas amamos e
preçamos, e com o iffante dom Fernando, meu muito prezado e amado irmãao. MH, vol. IX, doc. 175, p.
276. Na verdade, desde que fora retirado à mãe nunca mais o infante D. Fernando parecera afastar-se do
seu irmão D. Afonso. Encontramo-lo a confirmar este contrato de casamento dos duques de Coimbra já
nos finais da regência de D. Pedro e num momento em que este já se encontrava um tanto debilitado
politicamente, mas também o encontramos em Lisboa, junto do rei, quando este se dirige pela primeira
vez a cortes e no momento em que ambos se casam. Apesar de tudo D. Fernando era um príncipe herdeiro
e interessava a D. Pedro mantê-lo perto de si e, talvez, até incluí-lo na titulação de documentação neste
ciclo difícil que antecede Alfarrobeira, que lhe pudesse garantir ainda alguma estabilidade política.
61
ser preparado, mas devemos fazer remontá-lo a 1443. Voltaremos a ter notícia do
matrimónio só em 1446, através da celebração do respectivo contrato. D. Fernando
casou com D. Beatriz, filha do seu já falecido tio, o infante D. João. O contrato data de
9 de Outubro de 1446,149 e nele se estabelece que se não acontecesse o casamento entre
o rei de Castela e D. Isabel, sessenta mil florins seriam entregues ao infante D. Fernando
e a D. Beatriz para se casarem. Porquê a referência à outra irmã da infanta D. Beatriz?
Tal deve-se ao facto de existir uma carta régia mais antiga do que este contrato assinado
em Évora. Poucos dias antes, a 28 de Setembro, os infantes D. Pedro e D. Henrique e o
duque de Bragança acordaram em Coimbra os casamentos das filhas do Infante D. João,
já falecido. D. Isabel deveria casar com o rei de Castela e D. Beatriz com o irmão do rei,
o infante D. Fernando. São referidos os dotes e o destino das suas heranças, em caso de
mortes ou de herdeiros (ou o contrário). Dita então o contrato que: se D. Beatriz e o
infante morressem com filhos, estes herdariam aquilo que lhes era devido; mas se a
união não gerasse descendentes, os bens herdados pela infanta da sua mãe, D. Isabel de
Barcelos, regressariam aos herdeiros do condestável D. Nuno Álvares Pereira (o conde,
que surge mencionado).150 É importante relembrar e sublinhar esta ligação de Beatriz e
Fernando ao velho companheiro de D. João I porque os bens que D. Beatriz herda e que
D. Fernando recebe, por ocasião do seu casamento, chegam-lhes por via de Isabel de
Barcelos, neta do condestável. Esta tinha-os herdado do avô em 1422, tal como os
outros netos, os condes de Ourém e de Arraiolos151.
Pina referencia duas vezes o casamento do infante D. Fernando. Fá-lo aquando
da menção da morte do infante D. João e ao descrever a sua descendência, entre a qual
D. Beatriz, futura esposa do infante. Antecipa-se um pouco e acrescenta que esta será a
mãe de D. Manuel I e da rainha D. Leonor, mulher de D. João II152. A segunda
indicação é a do momento do casamento: escreve o cronista que o infante D. Pedro
casou as sobrinhas, filhas do falecido irmão, nas Alcáçovas, no alto Alentejo: o
casamento terá ocorrido em inícios de 1447, quando o regente e o rei se deslocaram de
Évora para as Alcáçovas nessa altura: E no começo do ano de mil e quatrocentos e
149
MH, vol. IX, doc. 138, pp. 191-201.
150
MH, vol. IX, doc. 134, pp. 186-188.
151
DÁVILA, 2019, p. 30.
152
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 688.
62
quarenta e sete, ho Yfante Dom Pedro se partio com ElRey da Cidade d' Evora pera o
lugar das Alcaçovas, honde per concerto veo a Yfante Dona Ysabel Molher do Yfante
Dom Joam, e trouxe consygo duas Fylhas, que ally juntamente casaram (...), e Dona
Briatiz com o Yfante Dom Fernando (...)153.
Entretanto, o regente preparava D. Afonso para ser rei, levara o jovem monarca
a cortes pela primeira vez, no ano anterior de 1446, quando este atingira a maioridade
(completara catorze anos), para lhe entregar o reino. As reuniões dos estados tinham
sido gerais e tinham decorrido em Lisboa. Depois das decisões e do cerimonial, o rei
recolheu à sua câmara onde estavam o infante D. Henrique, outros senhores e o seu
irmão, o infante D. Fernando.154
Como temos visto, o infante D. Pedro esteve à frente dos destinos dos seus
sobrinhos e, naquilo que aos seus casamentos disse respeito, optou por uma política
matrimonial que tivesse em vista o reforço da coroa e dos laços entre os vários membros
da casa de Avis. Terá sido esse o pensamento e o objectivo do infante D. Pedro ao casar
a sua filha com o rei D. Afonso e o infante D. Fernando com D. Beatriz, filha do infante
D. João. Os casamentos foram estrategicamente programados de forma a garantir a
estabilidade política e da dinastia e terão extravasado os próprios domínios nacionais,
uma vez que interessaria ao infante D. Pedro manter as boas relações com Castela, quiçá
casando uma sobrinha com o rei vizinho, por razões de estado, tal como veio a suceder.
Contrariamente àquilo que o seu avô, o conde de Barcelos, teria desejado. Este queria
tê-la casado com D. Afonso V.
Arriscamos referir que as visões e objectivos políticos dos líderes da casa de
Avis ou de outros senhores de grandes casas senhoriais são idênticos, no sentido de,
através dos casamentos, enobrecerem ou fortaleceram mais as suas casas ou a coroa,
conforme os casos. Veja-se, a título de exemplo, o casamento planeado por D. João I do
seu filho natural D. Afonso com a filha do homem mais poderoso de Portugal à altura,
com todo o seu prestígio e enorme riqueza. Como explica Maria Helena da Cruz
Coelho, o rei ainda propusera ao condestável que a sua filha casasse com o herdeiro, por
forma a que a que a coroa integrasse o domínio deste grande senhor, Nuno Álvares

153
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 698.
154
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 696.
63
Pereira155. Para o rei e para o seu condestável estabelecer-se-ia a satisfação de interesses
mútuos. Tal como D. Pedro, que casara uma das suas sobrinhas em Castela e guardara a
outra para um âmbito nacional, ao casá-la com o irmão do rei; mas a nosso ver esta
jogada também poderá ter tido contornos pessoais.
D. Beatriz nunca poderia competir com a futura fortuna do seu marido. Grande
parte do poder e notoriedade que obterá durante as décadas de 1470 e de 1480156 deve-
os a infanta ao seu marido e à impressionante herança que este lhe deixara. A
emancipação de D. Beatriz ocorre após a morte do cônjuge, tornando-a numa das
mulheres mais poderosas, ricas e influentes do Portugal da segunda metade do século
XV. Visibilidade que extravasou os limites do próprio reino e se estendeu a níveis
ibéricos, uma vez que a encontramos directamente envolvida nas Terçarias de Moura e
no Tratado de Alcáçovas-Toledo.
Tal como a sua geração de primos irmãos e a anterior, D. Beatriz nasceu em
berço de ouro. Era filha do infante D. João e de D. Isabel, filha do conde de Barcelos e,
portanto, neta de D. João I e do seu filho mais velho D Afonso. Como se pode calcular,
a união dos seus pais tivera certamente em vista uma legitimação e enobrecimento da
casa de Barcelos, o que não é estranho nem pouco usual para os membros da Casa de
Avis, nesta altura. Quanto à riqueza, experiência e movimentação em jogos políticos, o
infante D. João seria ultrapassado pelo irmão e sogro D. Afonso, conde de Barcelos.
Mas D. João I, através deste casamento de um dos seus filhos mais novos, repetiria em
certa medida aquilo que tinha feito com o seu primeiro filho, ao casá-lo com a herdeira
de uma grande casa senhorial e ao estabelecer uma maior proximidade à coroa.
Mas como explica Maria Odete Martins, o infante D. João pouco trazia para o
casal157. A sua casa seria muito diminuta relativamente à dos seus irmãos mais velhos,
detentores de ducados, apesar de ser administrador da Ordem de Santiago a partir de
1418. Com o seu casamento recebeu, em 1424, o reguengo e lugar de Colares e

155
COELHO, Maria Helena da Cruz, D. João I: O que re-colheu Boa Memória. Rio de Mouro: Temas e
Debates, 2008, p. 177.
156
Mais concretamente até 1484-85, quando o seu filho é assassinado por D. João II, o poder e influência
política da duquesa começam a desvanecer-se e a manutenção e administração da sua casa passam para as
mãos do Príncipe Perfeito, como sugere Maria Barreto Dávila. DÁVILA, 2016, pp. 313-314.
157
MARTINS, 2009, p. 17.
64
Serpa,158 assim como o paço de Belas com todas as suas terras, tributos e bens. Como se
vê, não era senhor de uma casa muito abastada, sendo incomparavelmente menor do que
a dos seus irmãos, os D. Pedro e D. Henrique e a do seu sobrinho, o infante D.
Fernando, cuja componente humana da casa senhorial tentámos reconstruir.
Mais pobre em bens, mas não em capacidade e destreza intelectual face aos
irmãos, como é sabido. O sogro do infante D. Fernando é conhecido pelo seu papel de
mediador entre os seus familiares em momentos essenciais que marcam a história
política desta época e que bem poderiam ter evitado o desfecho de Alfarrobeira,159 mas
igualmente pelo seu brilhantismo, patente na forma como expôs os seus argumentos
relativamente às campanhas militares portuguesas no Norte de África, em 1432.160 Mas
a acção deste filho de D. João I não se esgota nestes aspectos. Se regressarmos aos
contornos familiares visíveis nas estratégias matrimoniais levadas a cabo pelo infante D.
Pedro para os sobrinhos, pensamos que é possível explicar, em parte, o casamento de
Fernando e Beatriz pelas fortes ligações e afeição entre os infantes D. Pedro e D. João.
A sintonia e apoio mútuo entre irmãos são constantes e mais do que evidentes. Isso foi
sempre claro em episódios importantes e em momentos decisivos: no primeiro caso
referimo-nos às cortes de Leiria de 1438, palco do debate sobre o desastre de Tânger e o
problema do cativeiro do infante D. Fernando, onde os dois infantes se uniram e se
bateram pela entrega de Ceuta e pela libertação do irmão sem alguua mais detença, nem
impidimento (...)161. Acerca da guerra em África concordaram sempre, ao invocarem
argumentos semelhantes e resumindo a D. Duarte, no decorrer da década de 1430, as
razões pelas quais os portugueses não deveriam continuar com essas campanhas.162
Quanto aos momentos decisivos, como se disse, o infante D. João foi o grande aliado do
infante D. Pedro para que este conseguisse e mantivesse a regência, convencendo-o dos
males e da vergonha que seria serem governados por uma rainha estrageira, se D. Pedro

158
SERRÃO, Joaquim Veríssimo – “Infante D. João”. In SERRÃO, Joel (dir.) - Dicionário de História
de Portugal. Porto: Figueirinhas, 1986, p. 604.
159
SERRÃO, Joaquim Veríssimo – História de Portugal (1415-1495). Editorial Verbo, vol. II, p. 14.
160
“Conselho do Infante D. João… (8 de maio de 1432)” in Monumenta Henricina, vol. IV, doc. 23, pp.
111-123.
161
PINA – Crónica de D. Duarte, pp. 567-568.
162
Posterior ao parecer do infante D. João é o conselho do infante D. Pedro: “Conselho do infante D.
Pedro… (1437)” in Monumenta Henricina, vol. VI, doc. 1, pp. 1-7.
65
não aceitasse ser regente, para além do desacordo e da divisão que se gerariam no
reino.163 É o infante D. João quem chama a atenção ao irmão mais velho para estes
problemas numa fase de grande instabilidade governativa e em que ainda não era claro
quem detinha ou deteria o regimento. Os encontros entre estes dois irmãos para
discutirem o reino parecem ser recorrentes nestes tempos de grande indefinição política,
ao mesmo tempo que D. Pedro se preparava para assumir a regência.
A crise que se vivia gerava constantes mudanças em Lisboa, confusões e
alvoroços, deixando a rainha desconfortável. É nessa fase que D. João decide dar mais
uma mostra da sua enorme cumplicidade com D. Pedro ao ‘conquistar’ o castelo de
Lisboa para a causa do irmão, castelo esse que estava em mãos de partidários da rainha:
D. Afonso senhor de Cascais e seu filho D. Fernando.164 Com a moderação e a
temperança que parecem caracterizá-lo e que são evidentes no discurso165 que fez a D.
Maria de Vasconcelos, mulher do alcaide de Lisboa, o infante D. João segurou a cidade
mais importante do país para o seu irmão. Se por um lado encontramos o infante D.
Henrique mais inclinado para apoiar a rainha (ainda que por vezes as suas acções nos
pareçam um tanto nebulosas e difíceis de compreender), por outro lado encontramos D.
João a incentivar a que o rei e o seu irmão D. Fernando fossem entregues ao infante D.
Pedro166.
Relativamente ao infante D. João, sintetiza Maria Helena da Cruz Coelho: a sua
morte abrupta aos 42 anos de idade retirou um forte e mesmo imprescindível esteio à
causa pedrista.167
O desafortunado infante deixava quatro filhos: Diogo, Isabel, Beatriz e Filipa.
Para além dos contornos políticos que terão motivado o infante D. Pedro a preparar os
matrimónios destas sobrinhas (Isabel e Beatriz), como poderia o infante regente
esquecer os filhos de um dos seus mais fiéis e queridos irmãos e, quiçá, um dos
responsáveis pela sua regência, como expusemos anteriormente. Se bem que devamos

163
PINA, Crónica de D. Afonso V, pp. 609-610.
164
Veja-se o capítulo XLI da Crónica de D. Afonso V.
165
Encontramos um discurso quase igual do infante D. João na crónica sobre o infante D. Pedro de
Gaspar Dias de Landim. Apenas lhe altera o autor alguns vocábulos. Veja-se o capítulo XXVI de O
Infante D. Pedro, vol. I.
166
LANDIM, 1893, vol. II, p. 11.
167
COELHO, 2008, p. 169.
66
entender a acção e as decisões tomadas pelo infante D. Pedro dentro de uma linha de
centralização política,168 como sublinhou Luís Adão da Fonseca,169 podemos arriscar o
apontar de alguma amizade ou afinidade que sentiria pelos sobrinhos, filhos dos irmãos
que já perdera e com os quais trocara tanto apoio e cumplicidade. D. Pedro mantinha as
ambições políticas, fortalecia a regência e assegurava supostamente um futuro
promissor aos seus filhos e sobrinhos, por meio dos casamentos que organizou.
Deste modo, D. Beatriz, uma menina que recebeu da sua mãe um riquíssimo e
diversificado dote,170 celebrava o seu casamento com o príncipe de Portugal D.
Fernando, entre as joias, esmeraldas, prata, ouro, rubis, pérolas, crespinas de ouro, de
cambraia e de veludo, as toucas, os mantos, tabuleiros, cortinas, castiçais, perfumes,
picheis, saleiros, as arcas da Flandres e os cofres de Aragão e outras peças de grande
preciosidade171. Toda a riqueza digna daqueles que não foram, mas poderiam ter sido,
reis de Portugal.

2.3. Alfarrobeira

Chegados aos finais da década de 1440, o poder, a influência e o respeito por aquele
que tinha sido o regente do reino estavam claramente em declínio. A partir de 1447
assistiremos a um conjunto e sequência de episódios demonstrativos da tensão que se
vivia entre o rei, juntamente com o duque de Bragança, e o infante D. Pedro e que
estarão na origem da morte deste último. Mais uma vez a Crónica de D. Afonso V, de
Rui de Pina, oferece-nos uma descrição, naturalmente incompleta e enviesada, de todos
estes acontecimentos, que relembraremos brevemente, seguindo de perto apenas este
texto.

168
FONSECA, 1982, p. 34.
169
Patente no controlo do acesso aos cargos de condestável e administradores das ordens militares e nos
casamentos dos sobrinhos, por exemplo, e que explica todas as decisões de reforço militar e político que
levou a cabo durante a regência e relativamente às quais o infante D. Fernando não ficou imune; tal como
o seu filho, o condestável D. Pedro, nos surge como um simples instrumento nas mãos paternas, o mesmo
se aplicou ao seu primo irmão mais novo, D. Fernando, por parte de D. Pedro.
170
Veja-se a este respeito: DÁVILA, 2019, pp. 33-37.
171
SOUSA, António Caetano de - Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa. Coimbra:
Atlântida, 1947, tomo I, livro III, pp. 289-296.
67
Temos que referir a desonrosa concórdia de paz orquestrada pelo duque de Bragança
ao mesmo tempo que a corte dirigia a todas a cidades e vilas do reino cartas de geeraes
percebimentos de guerra,172 sem que D. Pedro e o seu filho condestável as recebessem;
para se livrar de todas as mentiras e culpas de que o acusavam mostrou o infante D.
Pedro ao enviado do rei, Diogo da Silveira, os seus castelos de Montemor e de Coimbra,
para comprovar que não se preparava para prejudicar o rei com armas e mantimentos,
como se dizia; os ‘saneamentos’ que D. Afonso V levou a cabo de pessoas que eram
fiéis e da confiança do infante: tirou ao conde de Abranches o castelo de Lisboa, a Aires
Gomes da Silva o ofício de regedor de justiça da Casa do Cível e a Luís de Azevedo o
ofício de vedor da fazenda. As mortaaes perseguiçõoes a D. Pedro continuariam durante
estes anos e assumiriam contornos particularmente graves para este quando o rei
ordenou que desarmasse a sua casa e entregasse as armas que teria nos seus arsenais e
armazéns em Coimbra, o que o infante se recusou a fazer; mas também uma guerra
eminente quando D. Pedro decidiu impedir a passagem de D. Afonso, duque de
Bragança, dirigindo-se para a Lousã e depois para Serpins na companhia do seu grande
apoiante, o conde de Abranches, que colocou na retaguarda e de D. Jaime, seu filho, que
colocou na vanguarda dos seus exércitos. D. Pedro estava mesmo preparado para um
conflito armado.
No entanto, não se sentindo suficientemente seguro, o duque de Bragança evita
um recontro directo com o seu irmão, consegue atravessar a muito custo a Serra da
Estrela e escapar a D. Pedro, chegando até junto do rei que se encontrava em Santarém.
Por esta altura, para D. Afonso V, D. Pedro já era visto como rebelde e desleal.
Entretanto D. Pedro também já não era regente desde Julho de 1448, o que se traduziu
numa perda de influência junto do jovem rei, mas também levou a que na corte
denegrissem a sua imagem e chegassem a acusá-lo da morte dos seus irmãos e da sua
cunhada, D. Leonor, entretanto falecida em Castela.173 O infante lamentava todas as
invejas e incómodos que causara a inimigos e opositores, que nunca descansariam até
lhe retirarem a regência do reino e a tutela dos infantes príncipes; estes teriam sido
convencidos de que D. Pedro nunca abdicaria do poder para o devolver ao rei, quando

172
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 707.
173
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 704.
68
fosse tempo disso.174 Numa carta de 1448 endereçada ao seu sobrinho, o conde de
Arraiolos, D. Pedro dá conta do desconforto e perigo que sente relativamente aos
comportamentos recentes de que tinha sido alvo e, nomeadamente, de que o conde de
Ourém o implicara numa intriga, o perseguira armado e o mandara espiar, fazendo o
infante temer pela vida e deixando-o assustado.175 O conde de Ourém tornara-se um
forte inimigo do antigo regente no momento em que este lhe negara o acesso ao cargo
de condestável do reino; e este odio do Conde d’Ourem foy a causa pryncipal da morte,
e destruyçam do Yfante Dom Pedro, como se diraa.176
No decorrer desse ano, D. Pedro percebeu que tamanhas rupturas só poderiam
ser resolvidas mediante um conflito armado e começou a preparar-se para fazer frente
aos seus inimigos, o duque de Bragança e o seu filho conde de Ourém, as personagens
que agora dominavam o rei.177 O resultado culmina com a morte do infante no arraial
onde terá decorrido a batalha, perto de Alverca, junto de hum ribeiro que se diz
d’Alferrobeira.
Esta breve exposição sobre o evoluir dos acontecimentos entre os finais da
regência e o conflito de Alfarrobeira serve-nos apenas para compreender com mais
clareza o estado do reino durante esses anos do crescimento e adolescência de D.
Fernando. Não é nosso objectivo, nesta dissertação, aprofundar os motivos de D. Pedro
e dos seus inimigos, as agressões perpetradas entre eles, nem como tudo se desenrolou,
mas sim tentar compreender as suas acções, nesta altura, e o que elas significaram. Tal
exercício não é muito fácil, uma vez que temos pouquíssimas referências ao infante D.
Fernando durante este período pré-Alfarrobeira. Contudo, sabemos que é nesta fase que
adquire o cargo de condestável do reino, que fora concedido pelo seu irmão, D. Afonso
V, na sequência do afastamento de vários apoiantes do infante D. Pedro de cargos muito
importantes. Mais uma vez, o conde de Ourém tentaria a sua sorte pedindo directamente

174
GOMES, 2009, p. 88.
175
MH, vol. IX, doc. 211, 1968. pp. 344-356.
176
Rui de Pina, na posse privilegiada de informação e conhecendo o futuro que se avizinhava para D.
Pedro e para os restantes membros da casa de Avis, interpreta a desilusão e o ódio do conde de Ourém
como o responsável pela morte do ex-regente em Alfarrobeira. Este afastamento entre sobrinho e tio fora
motivado pelo facto de D. Pedro ter atribuído o cargo de condestável ao seu filho D. Pedro, pela morte de
D. Diogo, filho de infante D. João, que detinha o cargo e não tinha mais irmãos varões. PINA, Crónica de
D. Af. V, pp. 689-690.
177
GOMES, 2009, p. 92.
69
o lugar ao condestável D. Pedro, mas o rei negou-lhe essa honra, atribuindo-o ao seu
irmão D. Fernando. Tal deverá ter ocorrido por Dezembro de 1448.178 No entanto, as
trocas de cargos e novas nomeações, que pretendiam afastar os partidários do ex-
regente, não ficaram por aqui. Tal foi particularmente sentido por D. Fernando, uma vez
que para além ter sido agraciado com o cargo de condestável, recebeu também, por esta
altura, o de fronteiro mor no Alentejo e no Algarve.179 As nomeações percebem-se
devido à necessidade de D. Afonso V colocar pessoas próximas e de confiança em
postos-chave, sobretudo militares, o mesmo se aplicando à nomeação de fronteiro de
Trás-os-Montes e Entre-Douro-e-Minho a favor do duque de Bragança. O verdadeiro
significado da atribuição destes cargos ao muito jovem infante D. Fernando prende-se
com a desconfiança face a D. Pedro, com o objectivo de o afastar politicamente. No
entanto, para Luís Adão da Fonseca e Humberto Baquero Moreno, tal também teve a
ver com o possível envolvimento de Castela em todo este processo de desentendimento
entre rei e ex-regente e com os receios de D. Afonso V e da alta nobreza face a Álvaro
de Luna.
As enormes divergências, cada vez mais acentuadas, entre D. Pedro e o rei à
medida que a situação foi evoluindo até à batalha de Alfarrobeira permitiram que o
infante D. Fernando fosse adquirindo mais protagonismo e, consequentemente, mais
poder, mas também que tivesse obrigatoriamente que optar por um lado, um partido. É
óbvio que a sua escolha seria pelo irmão, contra o tio. E se as suas acções e escolhas se
mantiveram silenciosas nas fontes (o que nos poderia fazer pensar que até determinada
altura se manteve neutro), a ida em auxílio do duque de Bragança tira-nos qualquer
dúvida acerca da opção que havia tomado. Na tentativa de convencer o seu pai a
avançar para Santarém (ao mesmo tempo que D. Pedro se encontrava em Serpins para
se defrontar com o duque de Bragança), o conde de Ourém convence D. Fernando a
ajudar, a colocar-se do lado do duque180 e a dirigir-se ao arraial deste quando esteve
quase a entrar em choque com D. Pedro. Antes o infante enviara cartas ao duque de
Bragança a confirmar-lhe o seu apoio: E porém o Yfante Dom Fernando como era de

178
FONSECA, 1982, p. 52.
179
MORENO, 1973, p. 330.
180
Vejam-se os capítulos XCIX e CIII da Crónica de D. Afonso V.
70
muy pequena ydade em que o sangue fervya, nom somente satisfez ao Conde com cartas
que ordenou aa sua vontade, mas aynda se ofereceo hir em pessoa em ajuda ao Duque
(...)181
O apoio prestado ao duque de Bragança foi igual ao apoio prestado ao irmão, o
rei, na batalha de Alfarrobeira182. Terá estado presente nesta, juntamente com alguns
membros da sua casa. Não teve particular protagonismo militar na batalha (nem faria
sentido que tivesse, dadas as características da batalha), o que é notório no pessoal da
sua casa senhorial que levou consigo, e que combateu em Alfarrobeira. Entre estes
destacam-se D. Martinho de Ataíde, seu mordomo-mor;183 Gonçalo Vaz de Castelo
Branco, fidalgo e seu cavaleiro184 e João de Cáceres, fidalgo da sua casa e que terá
combatido na batalha junto do infante.185 Podemos sugerir a presença de mais pessoas
junto do infante no conflito, apesar de nada sabermos sobre a sua casa nesta altura;
contudo apenas nos é confirmada a ida destes três homens, que contrasta fortemente
com a presença de outras casas senhoriais, das quais destacaríamos a casa de D.
Henrique, de D. Afonso e mesmo do infante D. Pedro (todas elas reconstruídas por
Humberto Baquero Moreno, ao estudar os partidários do rei e do infante na batalha).
As opções tomadas pelo infante D. Fernando nunca poderiam ter sido outras:
alinharia sempre pelo lado do irmão, independentemente da pressão feita pelo seu
primo, o conde de Ourém. Esta poderá apenas ter acelerado a decisão e o envolvimento
em todo este processo movido contra D. Pedro e que significou a ida de Fernando até
Alfarrobeira ao lado do irmão. Mas seria importante percebermos o que o oporia de
facto ao ex-regente, qual a relação entre ambos ao longo do crescimento do infante.
Haveria proximidade entre tio e sobrinho? Como é que D. Pedro cuidou da infância de
D. Fernando? Teria o jovem príncipe, desde tenra idade, algum ressentimento devido ao
brusco afastamento da mãe? É possível colocar muitas questões numa tentativa de
explicar algum desagrado que sentisse relativamente ao tio que o criou ou que ordenou
que o criassem e como deviam fazê-lo. Não temos como estudar a relação que manteve

181
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 715.
182
MORENO, 1973, p. 531.
183
MORENO, 1973, pp. 726-729.
184
MORENO, 1973, p. 769.
185
MORENO, 1973, p. 752.
71
com os seus familiares, e menos ainda com o infante D. Pedro. A verdade é que em
1455, quando D. Afonso V se preparava para acalmar ânimos depois do conflito com o
tio e decidiu finalmente dar descanso ao corpo deste no local que lhe era devido (sem
dúvida devido à intervenção muito dura da tia, D. Isabel de Borgonha), nem o conde de
Ourém, nem D. Fernando compareceram na trasladação de D. Pedro para o mosteiro da
Batalha186. Pina quis destacar estas ausências, ainda que não as explique: (...) e vieram
todolos Senhores e Senhoras pryncipaaes do Reyno, salvo o Ifante Dom Fernando, e o
Marques de Vallença, que tomaram outra opiniam contraira ao prazer e contentamento
da Raynha. Quanto ao conde de Ourém (o marquês de Valença) arriscamos a referir que
manteria a animosidade contra D. Pedro e cujo motivo é conhecido. Relativamente a D.
Fernando, não conseguimos explicar a sua ausência, a não ser pela existência de
ressentimentos que nos são desconhecidos, bem como a sua origem.
Se quisermos seguir a ideia de Armindo de Sousa187 de que o maior fracasso político do
infante D. Pedro se revelou na forma como educou ou ordenou que fosse educado o seu
sobrinho D. Afonso V, não o conseguindo conquistar ou cativar para suas ideias de
‘Estado’ e permitindo que fosse presa fácil para aqueles que seriam os seus maiores
inimigos, poderemos afirmar o mesmo para o príncipe D. Fernando. Este sofrera
exactamente com as mesmas circunstâncias do irmão rei, tendo ambos comido o pão da
instabilidade afectiva, sem qualquer modelo disponível de pai.188 Talvez nesta primeira
fase da sua vida se encontrem os motivos de todo o distanciamento e desconfiança que
sentiria desde muito cedo pelo tio e que facilmente o levariam a virar-se contra ele.

186
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 770.
187
SOUSA, Armindo – 1325-1481. In MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal: a Monarquia
Feudal. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 505, vol. II.
188
Armindo de Sousa não perguntou, e por isso atrevemo-nos a fazê-lo, por que razão D. Pedro, tutor, não
foi esse modelo de pai.
72
Capítulo 3 – O Pós Alfarrobeira e a década de 1450
Decidimos tomar o ano da batalha de Alfarrobeira como ponto de partida para
entrarmos na década de 1450 e no que ela significou para a vida de D. Fernando. Como
vimos a sua participação neste conflito não se revestiu de qualquer protagonismo.
Julgamos igualmente que não terá lucrado com a morte de D. Pedro, num momento em
que o seu irmão já governava o reino, contando com a proximidade do duque de
Bragança e do infante D. Henrique. O período de maior poder e riqueza para o infante
ainda demoraria cerca de uma década a concretizar-se.
Até 1449, a sua casa senhorial não parece ter grande relevância, apesar de nada
sabermos: quantos efectivos teria, que estrutura, que nível de património, rendas e bens
de outro tipo? Afirmámos que ela existe a partir do momento em que D. Pedro se torna
tutor e protector do rei e do irmão, mas o problema da caracterização da Casa persiste.
Certamente seria ainda pequena e muito distante das grandes casas senhoriais existentes
à época; a grande herança que D. Fernando viria a receber ainda tardaria a cair-lhe nas
mãos. Referimo-nos a todo o património do infante D. Henrique, que por esta altura se
encontrava vivo e continuaria por mais dez anos e que, pouco tempo antes de falecer,
decidiria proceder a alterações no testamento, retirando ao infante D. Fernando uma
parte valiosa da herança que inicialmente lhe caberia, como veremos mais à frente. No
entanto o desfecho não será esse devido à intervenção de D. Afonso V.
O facto de ainda não ser detentor de uma casa senhorial forte e rica não
significou que por esta altura não tivesse cargos e poder. Como vimos, já era
condestável e fronteiro-mor do Alentejo e Algarve, não esquecendo a administração da
Ordem de Santiago. Explicámos, igualmente, as circunstâncias em que tais nomeações
ocorreram. O destaque do infante nesta altura é ainda comprovado quando, em 1451, em
Lisboa, nas celebrações, do casamento da sua irmã Leonor com o imperador germânico,
é mencionado repetidas vezes a participar activamente nas magníficas recepções
organizadas por D. Afonso V para o efeito. A sua presença é notória em todos os
festejos e cerimónias mais formais, ocupando sempre um lugar destacado. D. Fernando
esteve no seu melhor pela forma como se apresentou no dia 13 de Outubro, durante as

73
festas: Depois veio o infante D. Fernando, com a sua corte, muito engalanada todos
numa só cor, bem vestidos; trazia uma carta na mão, anunciando a sua chegada como
seu exército, para tomar parte nesta festa nupcial189. O embaixador e autor do texto
conta que o irmão do rei tinha a sua própria corte e que vestia aqueles que o
acompanhavam de forma muito rica. Com os seus 18 anos, Fernando evidenciava
enorme riqueza, antes de herdar o que quer que fosse... A referência a uma corte sugere
que teria uma entourage que o acompanharia, tão típica e digna da sua condição de
príncipe. Quanto a vestir bem os seus homens era prática entre os grandes senhores da
altura: enquanto esperava, no Algarve, pelo sobrinho regressado de África, o infante D.
Henrique comprou sedas e lã em Cádis para vestir toda a gente que se encontrava com
os infantes em Castro Marim;190 e já quase quarenta anos antes do casamento que aqui
referimos, em 1414, D. Henrique encomendara em Lisboa e no Porto panos de lã e seda
para a realização de umas festas em Viseu.191 Certamente que o infante D. Fernando
queria o seu séquito bem vestido porque tal era uma expressão de poder e de distinção
social. Não temos a descrição de como o infante e os seus homens foram exactamente
vestidos para as festas de Lisboa, mas certamente que o gosto pelo luxo da sociedade da
época esteve presente nas escolhas de traje, bem como a elegância, os adornos, a
exuberância das cores e a riqueza dos tecidos e das vestes.192
Nas sete referências ao infante que nos surgem nesta fonte sobressaem o seu
protagonismo, o envolvimento e conhecimento das questões de estado e a constante
proximidade ao poder e ao rei, como aconteceria noutros momentos da sua vida.
Nos anos 50 do século XV, D. Fernando tornar-se-ia duque de Beja, arrecadaria
mais umas vilas alentejanas como Serpa e Moura e teria os primeiros contactos com o
norte de África, nomeadamente do ponto de vista militar. A relação com este espaço
duraria até praticamente às vésperas da sua morte e foi reveladora de ‘contradições’
ditada pelas próprias circunstâncias desses anos. Estas escassas ideias resumem o que de

189
VALCKENSTEIN, Nicolau Lanckman de - Leonor de Portugal, Imperatriz da Alemanha: diário de
viagem do embaixador Nicolau Lanckman de Valckenstein, ed. do texto lat. e trad. Aires A. Nascimento.
Lisboa: Cosmos, 1992, p. 33.
190
PINA, Crónica de D. Af. V, pp. 766-767.
191
SOUSA, João Silva de – 1394-1494: Do Infante a Tordesilhas. Cascais: Patrimonia, 1995, p. 26.
192
MARQUES – A. H. de Oliveira – A Sociedade Medieval Portuguesa. Lisboa: Esfera dos Livros, 2010
(6ª ed.), pp. 47-58.
74
mais importante sucedeu a D. Fernando durante os anos de 1450, que para ele
significaram sobretudo a criação de um novo ducado e o alcance de influência militar.
Este por sua vez é demonstrativo de mais e novos sinais de poder do infante, que muito
devem à sua capacidade de chamar a atenção e de manobrar junto de D. Afonso V.
Seria ainda nesta década que os filhos de D. Duarte manteriam uma acesa troca de
correspondência com o tio, o rei D. Afonso V, rei de Aragão e, depois, com D. João II
do mesmo reino (cartas escritas 1450 e 1459193. Os assuntos abordados entre o rei e os
sobrinhos variavam entre as recomendações de servidores194 que o rei aragonês fazia
aos infantes, o norte de África até ao agradecimento das notícias que tivera do rei e dos
infantes de Portugal sobre o seu entusiasmo relativo à cruzada e à organização de uma
armada contra o turco, que pareceria interessar o monarca aragonês (ou ele cortesmente
dava sinais disso). Entre outros assuntos que se discutem entre Portugal e Aragão,
nestes anos, esteve o casamento entre D. Catarina e o príncipe D. Carlos de Viana, que
parecer interessar muito D. Fernando.195
Por fim, um episódio importante é o batizado do príncipe D. João (futuro D.
João II), filho de D. Afonso V, que foi levado à pia batismal da Sé de Lisboa nos braços
do infante D. Fernando,196 para ser batizado197; estávamos em 1455. Pina refere que
foram padrinhos o duque de Bragança, o prior do Crato e Dona Beatriz de Vilhena. Os
cronistas não são unânimes quanto aos padrinhos de pequeno D. João,198 mas
concordam que foi D. Fernando que o transportou até à pia baptismal. Pouco depois
destas cerimónias, D. Afonso V nomeava o infante D. Henrique e o infante D. Fernando
curadores do príncipe D. João,199 para que os três estados o reconhecessem como
senhor. Os dois infantes receberiam as menagens e juramentos que fossem feitos ao

193
Documentação que se encontra publicada nos volumes XI, XII e XIII dos Monumenta Henricina.
194
Recomenda por exemplo o seu monteiro e mossem Vasco de Gouveia. (MH, vol. XII, doc. 96, pp.
187-188). Sabemos que este Vasco de Gouveia viria a pertencer ao conselho de D. Afonso V e que, em
1456, o rei lhe doaria a vila de Gouveia, antiga propriedade do infante D. Henrique. Este último tinha-a
doado ainda em vida ao rei. (MH, vol. XIII, doc. 38). Como veremos, esta seria propriedade do infante D.
Fernando, ainda antes também de o infante D. Henrique falecer.
195
MH, vol. XIII, p. 199.
196
MH, vol. XII, doc. 68, 1971. p. 133.
197
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 769.
198
Os indicados por Damião de Góis (GÓIS, Crónica do príncipe D. João, pp. 12-13, cap. II) e Duarte
Nunes de Leão (LEÃO, Crónicas dos Reis de Portugal, p. 862, cap. XXV) diferem dos de Pina.
199
MH, vol. XII, doc. 73, pp. 143-145.
75
jovem príncipe. As personagens que vêm manifestar a sua obediência surgem todas
devidamente identificadas: o conde de Barcelos, D. Pedro, mestre de Avis, os condes de
Ourém, Arraiolos, Vila Real, Atouguia e Marialva; os arcebispos e bispos, o prior do
Hospital, toda a clerezia do reino, assim como os ricos homens, cavaleiros, escudeiros,
alcaides, representantes dos concelhos e povo das cidades. Todos se encontravam na
sala grande do Paço régio de Lisboa, ocupando o infante uma das mais importantes
posições na disposição hierárquica da cerimónia. De seguida começou a celebração e D.
Fernando fez um discurso, no qual reconhece D. João como herdeiro do trono; é
interessante pensarmos que, ao formalizar a posição de herdeiro legítimo do pequeno
João, Fernando estava a enterrar para sempre algum sonho ou ambição que tivesse de
suceder ao seu irmão. Segue-se o infante D. Henrique a prestar a sua homenagem. E o
mesmo fizeram, em sequência, todas as dignidades presentes.200

200
MH, vol. XII, doc. 74, pp. 145-151.
76
Capítulo 4 – D. Fernando e o Norte de África
São fáceis de contar o historial e os momentos que o infante D. Fernando passou em
África. Com esse espaço manteve uma relação e um interesse de muitos anos, revelando
opiniões, por vezes contraditórias, sobre qual deveria ser o rumo dos portugueses
relativamente a Marrocos. Isto é, se por um lado o encontramos a exercer um esforço
constante de persuasão junto do rei para que prossiga as tentativas de tomar Tânger, por
outro, vemo-lo a aconselhar D. Afonso V a ser prudente com Marrocos e a pesar os
contras de uma campanha que muito poderia prejudicar o reino. A ligação do infante ao
norte de África foi um misto de impulso e obstinação e de prudência e pragmatismo
político, que em determinado momento pareceram caracterizar o seu discurso. Atitudes
e sentimentos opostos, mas que D. Fernando manifestou, revelando que, apesar de
facilmente sintetizável a sua participação militar em Marrocos, esta revestiu-se ainda
assim de alguma complexidade, assente nessa aparente contradição.
O seu percurso ‘marroquino’ não foi excepcional nem esteve perto disso. Foi tantas
ou mais vezes a África do que os seus importantes familiares e defendeu opiniões
diversas: se houve momentos em que a teimosia ou obstinação pura e a persistência
falaram mais alto, também houve circunstâncias em que se preocupou com a ameaça
castelhana se o rei abandonasse Portugal, ou se questionou se o reino teria os efectivos
suficientes para confrontar o rei de Fez. O seu pensamento e acção fazem-nos lembrar
as tomadas de posição assumidas pelos infantes D. Henrique e D. Pedro: um genuíno
espírito cruzadístico aliado a uma ambição e a uma teimosia de que falávamos e dos
quais D. Henrique não abriu mão até morrer; e os perigos de um colapso económico,
bem como a falta de recursos humanos para os quais o infante D. Pedro chamara a
atenção. Encontramos no discurso e na actuação do infante D. Fernando um pouco das
ideias dos tios. Não sabemos até que ponto conheceria aquilo que estes pensavam acerca
da política marroquina e nem podemos afirmar que houve uma influência directa dos
pareceres destes sobre o do infante D. Fernando. No entanto, estes assuntos circulavam
e eram debatidos junto do rei e da corte e nas mais altas esferas do poder político, e o
infante estaria familiarizado com eles. Regressaremos a estes pareceres mais adiante.

77
Para além da semelhança de opiniões e ideias, tal como os tios e o pai, o infante D.
Fernando estrear-se-ia militarmente em Marrocos.

4.1. As idas a Marrocos

4.1.1. De Ceuta a Alcácer-Ceguer

O primeiro contacto do infante com Marrocos dá-se, segundo Pina, em 1457,


ainda que no seu discurso a idade de D. Fernando e o ano em que esta situação ocorre
não coincidam:201 em 1457, quando D. Afonso V se encontrava em Évora teve com o
irmão alguns desentendimentos por pedidos que este último fez ao rei e que não foram
satisfeitos. De seguida, Pina enuncia que vários motivos podem explicar a subsequente
deslocação, quase clandestina, do jovem infante para o norte de África. Muito
provavelmente estaria desapontado com as decisões do irmão em não lhe conceder
aquilo que desejaria, mas o cronista acrescenta o seu intuito de querer alcançar honra e
glória por meio da guerra e o objectivo de se encontrar, em Nápoles, com o seu tio D.
Afonso V de Aragão, que não tinha filhos herdeiros.202 De Évora rapidamente alcançou
o Guadiana, onde lhe prepararam uma caravela que o levou até Ceuta. Entristecido com
a atitude do irmão, D. Afonso V não perdeu tempo a preparar o regresso de Fernando ao
reino, ordenando a alcaides e ao capitão de Ceuta, o conde D. Sancho, que o fizessem
regressar. De Ceuta foram avistadas duas embarcações: huma galee e huma caravella
ambas juntas, e a galee era de hum Peroso cosairo ytaliano, que naquele estreyto
andava d’armada, e na caravella vinha o Ifante após quem o cosairo vinha, já avysado
de quem era, e pera o deter e nom leixar passar(...).203

201
Para além das motivações de D. Fernando que o levaram a escapar secretamente para África, adverte
ainda Braamcamp Freire que o cronista põe a primeira sexta feira de Quaresma do ano de 1453 no dia 17
de fevereiro, mas fora a 16; Serpa só passou a ser seu senhorio em Fevereiro de 1457, sendo também o
primeiro documento onde é intitulado duque de Beja. Quanto aos outros títulos de senhor de Moura,
condestável e governador da ordem de Santiago, surgem todos no instrumento de 25 de Junho de 1455 de
juramento de príncipe D. João (FREIRE, Anselmo Braamcamp - Brasões da sala de Sintra. 2ª ed.
Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930, vol. III, p. 279-280).
202
PINA, Crónica de D. Af. V, pp. 764-765.
203
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 765.
78
Assim que desembarcou em Ceuta, D. Fernando visitou Santa Maria de África e foi-
lhe entregue com grande pompa a vara da governação e capitania da cidade pelo seu
capitão, que D. Fernando recusou. D. Afonso V, entretanto, já se deslocara ao Algarve e
encontrava-se em Tavira quando obteve notícias do irmão em Ceuta. É igualmente
informado dos propósitos de D. Fernando de ser fronteiro em Ceuta, posição que
obteve, mas por pouco tempo, uma vez que rapidamente regressou ao reino devido à
peste que grassava no norte de África. É-nos relatada uma última troca de impressões
que manteve com o conde D. Sancho, na qual manifesta solidariedade com este ao
pedir-lhe que apare a sua barba, que o conde mantinha bastante crescida pelo luto de
familiares próximos, como era costume da época.
De regresso a Portugal esperava-o o seu pai adoptivo, D. Henrique, em Castro
Marim. Pina refere que por todo o amor que lhe tinha o tratara muito bem e ordenara a
organização de festas. O entusiasmo de receber o sobrinho terá sido tamanho que o terá
vestido a si e aos fidalgos que o acompanhavam de muytos panos de seda e de laã, que
em Callez pera ysso mandou comprar. Depois de passar oito dias com o infante no
Algarve, D. Fernando dirige-se ao Alentejo, passando por Mértola até se encontrar com
o rei em Beja, onde o rei lhe faz as doações das vilas de Beja, Serpa e Moura.
Não fora muito auspicioso este primeiro contacto do infante com o norte de África,
mas a fuga e o ressentimento levaram a melhor. Conheceria bem D. Afonso V e saberia
como proceder para o pressionar por forma a que o monarca acabasse por ceder àquilo
que pretendia. As relações humanas nunca são lineares e simples e no caso destes dois
irmãos, agora no que à Ordem de Cristo disse respeito, a quezília que os opôs não
mostrou um monarca que facilmente cedesse perante o seu irmão infante, ao contrário
do que se poderia pensar. No entanto, cremos que D. Fernando, apesar de nem sempre
ter os resultados imediatos daquilo que desejava, soube pressionar e manter a atenção e
o constante interesse do monarca de todas as vezes que lhe desobedeceu, fugindo para
Ceuta e tentando tomar Tânger pela segunda vez sem a autorização do rei, por exemplo.
Os episódios de desavenças entre os irmãos mais visíveis que conhecemos tiveram
sobretudo como pano de fundo Marrocos, em situações nas quais a autoridade régia foi
claramente questionada pelo infante. Mas as intervenções de D. Afonso V relativamente

79
a D. Fernando não se esgotaram em episódios africanos, como veremos. As premissas
da relação com D. Afonso V devem, a nosso ver, ser entendidas como a base do seu
poder, alicerçado no vasto património e nas instituições que controlou.
Na sua curta vida, D. Fernando parece nunca se ter distanciado politicamente de
D. Afonso V e as questões de estado, relacionadas com África e bastante debatidas à
altura, envolveram-no profundamente, como é verificável nas crónicas de Rui de Pina e
de Zurara. No entanto, não nos é possível apurar se seria tão escrupuloso religiosamente
e zeloso de um espírito cruzadístico como o monarca, seu irmão, ou como o tio de
ambos, o infante D. Henrique. São vários os testemunhos que nos permitem afirmar que
essa característica esteve presente nestas duas personalidades, mas no caso do infante D.
Fernando as certezas não são de forma alguma óbvias. A sua presença em Ceuta, na
tomada de Alcácer Ceguer, nas duas tentativas falhadas de conquistar Tânger, na
destruição de Anafé e na correria a Benamaqueda revelam o seu interesse nestes
territórios, mas não necessariamente que os propósitos de ‘dilatar’ a fé estivessem
totalmente presentes. Queremos com isto dizer que talvez estivesse mais inclinado para
obter dividendos materiais, protagonismo pessoal e poder ao manter-se junto do rei, ao
apoiá-lo e, por vezes, ao sugerir-lhe ataques, como fez. Tudo isto é comprovável pelas
várias vezes que esteve em Marrocos, mas não só. Julgamos que esta ambição que o
caracterizava o fez ter atitudes condenáveis pelos próprios cronistas do seu tempo (que
decerto faziam eco de opiniões mais generalizadas ao tempo, pelo menos nos círculos
da Corte), patentes em dois dos episódios mais conhecidos. Estes são-nos relatados por
Zurara na Crónica de D. Duarte de Menezes e referem D. Fernando como um usurpador
do quinto dessa espécie de fossado que o capitão de Alcácer Ceguer levara a cabo,204
assim como o episódio das ordens militares de Cristo e Santiago, no qual o Infante D.
Fernando, ao preparar a armada para Tânger, ordenou que estes cavaleiros pagassem as
suas próprias despesas e os fretes dos navios que usassem. Estes reuniram e 'lembrarão'
ao infante as suas tradicionais “liberdades”, com a ameaça de recorrerem ao papa. O
infante ouviu os cavaleiros e respondeu que compreendia e que não os faria servirem-no

204
ZURARA - Crónica do Conde D. D., pp. 334-335, cap. CXXXVII.
80
daquela forma, justificando que o seu pedido/ordem tinha sido por necessidade.205 Tais
episódios contribuíram para um reforço, dentro de um mesmo texto, de uma imagem
negativa de D. Fernando, algo que Zurara não se preocupou em esconder.
As conquistas militares em África durante o reinado de D. Afonso V estão
amplamente estudadas, não tendo cabimento repetir descrições. Interessa-nos apenas
compreender a participação do irmão de D. Afonso V nas campanhas.
As fontes cronísticas são muito claras: o infante D. Fernando esteve presente na
conquista de Alcácer Ceguer, em 1458, onde se estreou militarmente. Como vimos, não
fora a sua primeira vez em África, nem a primeira que se envolvera em assuntos
africanos, já tendo estado anos antes em Ceuta e tendo pedido autorização ao monarca
para ir socorrer, em vésperas de partida para Marrocos, o conde de Odemira, D. Sancho,
face à ameaça do rei de Fez em cercar a cidade. É quando esta expedição é organizada
que D. Afonso, mudando de ideias, decide atacar Alcácer em vez de Tânger. Esta
alteração de planos pode ser explicada estrategicamente, uma vez que Alcácer seria um
bom ponto de apoio para os portugueses206 relativamente à praça-forte de Ceuta, que se
queria protegida, para além de ser uma base de constantes ataques ao Algarve, que urgia
suprimir; ou, prosaicamente, O “Africano” não se sentiu com confiança para encarar
Tânger, sendo Alcácer Ceguer bem mais acessível. Mais uma vez uma ida sobre Tânger
ficaria adiada, mas não a intenção.
Mas agora tudo se preparava para a ida a Alcácer, com os responsáveis a
tratarem de todas as tropas e recursos necessários para a viagem e campanha, entre os
quais (responsáveis) se contavam o infante D. Henrique, o marquês de Valença e o
conde de Odemira, que contribuíra com quatro fustas e um barinel, segunda Pina. Neste
estado de preparação da armada que seguiria para Alcácer, sabemos que D. Fernando
passara pella grande doença de febre (...), de que Deos em breve o livrou,207 de que D.
Afonso V se terá apercebido em Setúbal, encontrando o irmão nesse estado. No entanto,
a força e a vontade seriam tantas que recuperou e chegou a exigir que o levassem

205
ZURARA - Crónica do Conde D. D., pp. 347-349, cap. Clij.
206
BRAGA, Paulo Drumond – A Expansão no Norte de África. In SERRÃO, Joel, MARQUES, A. H.
DE Oliveira (dir.) – Nova História de Expansão Portuguesa: A Expansão Quatrocentista. Lisboa:
Editorial Estampa, 1998. Vol. 2, p. 270.
207
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 775.
81
mesmo doente, no leito, para o mar e para prosseguir viagem. Juntar-se-ia ao seu irmão
e ao seu primo co-irmão, o antigo condestável D. Pedro, que unira esforços com o rei de
Portugal, e passando além do Cabo de S. Vicente, seguiriam para Sagres, onde eram
aguardados pelo infante D. Henrique e onde esperaram por frotas de outros lugares do
reino. Tudo isto sucedeu em finais de Setembro de 1458, uma vez que uma notícia do
dia 27 dava conta que a frota saiu de Setúbal no último dia desse mês,208 para chegar ao
Algarve e daí partir para África. Na nau Santo António fizera o convalescido a viagem
até ao Algarve e aos domínios do pai adoptivo, onde todos já reunidos escutariam um
discurso do monarca; o infante D. Fernando, num gesto de profunda admiração e apoio
ao irmão, colocou-se de joelhos perante ele e beijou-lhe as mãos, antes de partirem de
Lagos209. D. Fernando voltaria a destacar-se já no arraial de batalha, instigando ao
orgulho, fervor e esperança dos homens que ali se encontravam para combater,
mandando tocar as trombetas, ordem que partilhou com o irmão, de quem se manteve
sempre próximo no decorrer do conflito,210 nomeadamente quando os portugueses
recorreram a engenhos de guerra. Nessa altura terá combatido junto das escadas
entretanto colocadas junto aos muros da cidade. Das façanhas do infante D. Henrique
em Alcácer foram notificados o rei e D. Fernando. Quando o velho infante D. Henrique
ordenou que os mouros fossem atacados por uma bombarda, que os fez desesperar e
pedir a clemência deste, ele respondeu que não procurava bens, nem resgates, apenas
queria que os muçulmanos abandonassem a cidade e libertassem os cativos, algo que
aconteceria na manhã seguinte ao combate. D. Fernando encarregar-se-ia da saída em
segurança dos habitantes de Alcácer, assegurando que, de seguida, o rei entrasse com os
seus súbditos para dentro da cidade e se dirigisse desde logo à mesquita, entretanto
convertida em igreja de Santa Maria de Misericórdia. Tudo isto sucedeu numa quarta-
feira pela manhã, ficando o rei em Alcácer até domingo. Não sabemos se D. Fernando
se manteve nesta praça ou saiu juntamente com o irmão, que em determinada altura
regressou a Faro, no Algarve. Não teremos mais notícias do infante até ao momento em
que pede autorização ao rei para, de Alcácer, partir em cavalgada e foy correr humas
208
MH, vol. XIII, doc. 84, pp. 149-150. Publicado também em: Descobrimentos Portugueses, vol. I, doc.
432, pp. 551-552.
209
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 775.
210
GÓIS, Crónica do príncipe D. João, pp. 37- 39.
82
aldeas, que sam na faldra da serra de Benaminir terra muito fragosa, e muyto
povorada (...) de que mataram até duzentos Mouros, e trouxeram cativos duzentas e
vinte almas com muito gado e outro grande despojo, e se tornou a Alcacere. Quis o
Ifante aver e ouve pera sy o quynto desta cavalgada211, que pertenciam ao conde e
capitão de Alcácer D. Duarte de Meneses. Já nos tínhamos referido a este episódio de
muita gravidade e o desrespeito pelas tradições cavaleirescas, pela ilegalidade cometida
pelo infante, também presente no texto de Zurara. Com explica Oliveira Marques, os
fossados eram prática antiga no reino de Portugal e serviam para penetrar em território
inimigo, explorar esses campos e retirar os despojos que lá se encontrassem, com
regresso ao ponto de partida. Do saque que era recolhido, a quinta parte pertencia ao rei,
ao senhor responsável ou a quem os representava. Tal prática significou, nos primeiros
tempos do reino, a ligação entre o norte e o sul, no âmbito da Reconquista212.
Tal como o cronista seu antecessor, Rui de Pina não deixa de destacar que esta
situação gerou agravo para D. Duarte, a quem pertenciam os quintos da vila e que D.
Afonso V teve, posteriormente, que compensar, pagando a dívida contraída pelo irmão
com dinheiro da sua própria fazenda. Parecia que o infante e as suas atitudes uma vez
mais levavam a melhor. É facilmente compreensível a gravidade da situação, uma vez
que esta prática bélica tinha as suas regras definidas desde os tempos dos primeiros reis,
chegando ao período henriquino, no qual os portugueses continuavam não a fazer
fossados em território nacional, mas pelas serras e aldeias marroquinas, como esta
cavalgada na qual o infante participara. A ’reconquista’ aos mouros mantinha-se, apenas
o cenário se alterara para África.
Os primeiros esforços militares do infante não pareciam muito meritórios, nem
particularmente brilhantes. Como príncipe que era estaria presente na batalha, junto com
o seu irmão monarca. Mas como notou Luís Miguel Duarte, os cronistas que escreveram
sobre o confronto de Alcácer (Zurara, Pina e Damião de Góis) convergiram no facto de
o comando das operações ter pertencido ao infante D. Henrique, que com o seu

211
PINA, Crónica de D. Af. V, pp 799-800.
212
OLIVEIRA MARQUES, A. H. – A Expansão no Atlântico. In SERRÃO, Joel, MARQUES, A. H. DE
Oliveira (dir.) – Nova História de Expansão Portuguesa: A Expansão Quatrocentista. Lisboa: Editorial
Estampa, 1998. Vol. 2, pp.11-12.
83
prestígio, idade e experiência ‘resolveu’ a batalha213 e foi decisivo para o seu resultado
final, talvez obscurecendo a participação do rei e do infante D. Fernando. No entanto,
esta questão extravasa a imagem de D. Fernando nas crónicas e a forma como a sua
participação é apresentada pelos seus autores, uma vez que deve ter pesado também o
facto de que era jovem que nenhuma experiência bélica tinha à altura, sendo por isso
natural que fosse alguém mais experiente a coordenar as operações quando fosse
necessário. Não é de estranhar que o jovem infante assumisse pouco protagonismo
militar no momento do conflito. Terá permanecido sempre junto ao rei e aguardado o
momento, em que foi informado de que o tio preparara a expulsão dos mouros da
cidade. Pouco depois desrespeitara o tradicional fossado português, algo que passou
impune. Mas as ‘aventuras’ africanas de D. Fernando não ficariam por aqui.
No intervalo entre a campanha de Alcácer e os preparativos dos anos seguintes
para assediar Tânger e para premiar a condição da cavalaria e nobreza operante no
Norte de África, D. Afonso V cria a Ordem de Espada (1459-1460), restrita a 27
pessoas; entre os primeiros escolhidos para a integrarem conta-se o infante D.
Fernando.214
Seria ainda na altura do seu governo na Ordem de Santiago que Alcácer do Sal
passaria a ser designada como tal. O sal era sinónimo da riqueza desse espaço e o
objectivo foi distinguir as duas Alcáceres portuguesas (Alcácer do Sal e Alcácer-
Ceguer)215.

4.1.2. A ‘maldita’ Tânger: sepultura de Yfantes de Portugal

Após o êxito experimentado na conquista de Alcácer-Ceguer, a partir de


1462 o rei de Portugal começa de novo a equacionar a hipótese de tomar Tânger216.
Como se sabe, a ideia nunca abandonara D. Afonso V. Pode ter sido reforçada com a
queda de Constantinopla às mãos dos turcos. Não tendo participado em cruzadas contra
213
DUARTE, Luís Miguel – África. In BARATA, Manuel Themudo, TEIXEIRA, Nuno Severiano –
Nova História Militar de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2003. Vol. 1, p. 425.
214
MARQUES, A.H. de Oliveira - Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV. Lisboa: Editorial Presença,
1987, p. 261. (Volume IV da Nova História de Portugal, dir. SERRÃO, Joel, MARQUES, A. H. Oliveira
)
215
PEREIRA, Maria Teresa Lopes – Os Cavaleiros de Santiago em Alcácer do Sal: século XII a fins do
século XV. Lisboa: Edições Colibri, 2015.
216
DUARTE, 2003, p. 426.
84
o turco, D. Afonso V procuraria reforçar as posições portuguesas em África. O primeiro
alvo fora a pequena povoação de Alcácer, que naquela altura não era muito mais do que
um local de piratas.
Após esta primeira conquista, a partir de 1460 o impulso militar em África
ganha um novo rumo com os portugueses a ‘regressarem’ a Tânger. Foi neste contexto
que o monarca pediu opiniões e conselhos dos seus familiares mais próximos sobre uma
nova investida em Marrocos. Trataremos a matéria na parte seguinte.
No decorrer das campanhas de 1463217 e 1464, houve duas tentativas de tomar
Tânger, que se saldaram por (mais) dois fracassos. Pina relata o início das operações e a
partida do rei e do infante D. Fernando do Algarve para Marrocos numa altura em que
tinham sido aconselhados a aguardar, pela tempestade que se anunciava no mar. D.
Afonso V teimosamente não cedeu e durante dias enfrentou a tormenta no mar até irem
dar a Ceuta218. Com isso perderam-se homens e recursos; o começo não tinha sido o
melhor.
De Ceuta o rei partiria para Alcácer: Pina não diz se o infante o acompanhou,
mas é provável que o tenha feito. A partir de Alcácer, D. Afonso V prepararia o
escalamento de Tânger. Sabe-se que o infante D. Fernando e o antigo condestável D.
Pedro se juntaram ao exército do rei por terra (paralelamente a navios que seguiam por
mar), mas os muçulmanos da cidade estavam preparados para um ataque às muralhas
com uma bombarda; a investida redundou num falhanço para os portugueses. De facto,
D. Afonso V fora aconselhado a desistir de tal ideia, o que acabou por fazer. O

217
Em Outubro de 1463 escrevia o rei D. Afonso V aos fidalgos, cavaleiros, vereadores, juízes,
procuradores e homens bons a anunciar a sua passagem por África, deixando o seu filho, príncipe D.
João, como regedor do reino. O rei explicava que queria voltar a Alcácer e a Ceuta, enquanto tivesse
idade e disposição e para que as pessoas da sua corte e da casa dos seus irmão e primos pudessem fazer
algum serviço a Deus e exercitar-se na guerra, dando continuidade ao legado de D. João I; o infante D.
Fernando teria sido um dos conselheiros do rei neste assunto e a incentivá-lo. Alguns são dispensados de
ir, excepto aqueles que por cartas régias ou de D. Fernando estivessem convocados para aexpedição: E
assy como em nossa corte e assy em casa do Iffamte meu muito prezado e amado irmaao e nas cassas de
meus primos e doutros senhores e fidalguos dos dittos nossos regnos ha muta jente que ao pressemte
pouco trabalha em serviço de deus propossemos e detriminamos com comsselho do dito meu irmaao e
dos sobre ditos e doutros de nosso comsselho. Com ajuda de nosso senhor por alguuns messes passarmos
a çeeepta e alcaçeer (...) Livro Antigo de Cartas e Provisões dos Senhores Reis D. Afonso V, D. João II e
D. Manuel I, pref. e notas de Artur de Magalhães Basto. Porto: Publicações da câmara Municipal do
Porto, vol. V, p. 6.
218
PINA, Crónica de D. Af. V, pp. 797-798.
85
problema centrara-se na descoberta, por parte dos habitantes de Tânger, das manobras
do atacante, e numa entrada de mar que era muito perigosa para os efectivos
portugueses. Certamente desiludido, o rei regressa a Alcácer e depois a Ceuta, na
companhia do seu irmão. O desapontamento e a sensação de fracasso devem ter sido
tais tanto maiores quanto o rei e o infante D. Fernando, segundo Zurara, tinham
manifestado tamanha alegria e entusiasmo com a possibilidade de conquistar Tânger
que não quiseram prestar atenção aos conselhos em sentido contrário, nomeadamente os
do experiente conde D. Duarte. Segundo o cronista, D. Fernando pensava ir reconhecer
dissimuladamente o terreno; responsável por duas ordens militares, deveria empenhar-se
mais ainda na expansão da fé católica. Zurara acrescentou: E como aaquel tempo [o
infante] era a principal pessoa do regno despois de seu Jrmãao, caasy todos pedyam
licença pera o yr servyr naquella yda.219
Entretanto o rei pensou também em atacar Arzila, mas nunca houve
oportunidade para tal, até por ser Inverno. Mas tudo isto nos vai dando sinais da
estratégia totalmente errante (ou da ausência de estratégia) do rei de Portugal, nesta
volumosa e cara expedição a África: vamos até Ceuta e Alcácer; claro, se pudermos
finalmente conquistar Tânger; e já agora, porque não Arzila, que é grande, importante e
nem fica longe? Na guerra contam-se pelos dedos os ‘milagres’; este não foi um deles.
E, apetece dizê-lo, nem Afonso V o merecia, tal o desnorte, a imprudência e o não
escutar a opinião de quem sabia, que manifestou.
Por sua vez D. Fernando não abandonava a ideia de Tânger, querendo pôr um
fim a este assunto. Como sabemos tal glória não lhe estava destinada: Tânger cairia
apenas em 1471, um ano após a sua morte. Mas nestes anos de 1463 e 1464 revelou-se
muito determinado nos assaltos à cidade, chegando para isso a reunir um conselho de
pessoas, gente ilustre, para discutir Tânger. Acerca deste tópico, e relativamente à
Crónica de D. Afonso V, de Pina, a Crónica de D. Duarte Menezes oferece mais
detalhes sobre a forma como o infante conduziu os preparativos para mais duas
tentativas de submeter a cidade. O cronista recorre ao discurso directo entre o infante e
os condes dodemyra e de vyana e de maryalva e com o marichal e gomez freyre e com o

219
ZURARA - Crónica do Conde D. D., p. 312.
86
comendador moor de christus e com Joham de sousa e Fernam tellez e aquelles
aazadores do scallamento.220 Começou o infante por referir que, na ausência do rei,
devia ser ele a tomar a iniciativa do ataque. Foi questionado sobre o número de homens
necessários para tal ataque. O assunto foi tratado sem cuidado nem profundidade, ao
ponto de uns sugerirem apenas vinte homens e outros duzentos; e tudo isto sem o rei ser
informado. Nos pontos substanciais, do número de efectivos e do pedido de autorização
ao rei, o infante não revelou quaisquer preocupações. Desta forma despreocupada e
irreflectida foi pensado o segundo ataque a Tânger entre D. Fernando e os homens com
quem se reuniu. Os argumentos de que encontraria muitos combatentes inimigos na
cidade, bem armados e equipados e muito superiores em número, não detiveram o
infante na sua obstinação. Pina conta que D. Fernando se considerava para altas
cavalarias e que sempre sospirou por grandes e arduas empresas; não se contentava em
obedecer nem estar sob o mando de alguém quando de façanhas militares se tratasse. O
infante parte então para Tânger, mas o monarca é avisado. Tendo andado desencontrado
durante quase um dia e depois reencontrando-se, o infante não escaparia a uma dura
repreensão do monarca por lhe ter desobedecido e ter preparado tudo em segredo.
Acabava assim a segunda tentativa de tomar Tânger em tempos do rei D. Afonso V e a
terceira desde tempos de D. Duarte. Mais uma vez, a falta de preparação estratégica e
táctica, o impulso e a inconsciência, bem como a arrogância de não querer ouvir os que
sabiam mais, foram os principais culpados.
Os relatos relativamente a Tânger não ficam por aqui. As crónicas mencionam
ainda mais um ataque em tempos de D. Fernando, um terceiro assalto, portanto. Depois
da repreensão do irmão, D. Fernando manteve-se em Alcácer, quando o rei se dirigiu a
Ceuta. A Ceuta iria também D. Fernando, para desta vez, pedir autorização ao irmão
para avançar sobre a cidade. Esta foi-lhe concedida, apesar de D. Afonso se encontrar
francamente pessimista e deixar tudo nas maãos de Deos. Regressa D. Fernando a
Alcácer e no dia 19 de Janeiro de 1464 parte desta cidade até Tânger, mandando
carregar quatro escadas. Os fracassos anteriores explicam o desaventurado pronostico
referido por Pina e pressentido pelos homens que acompanharam com o infante nesta

220
ZURARA - Crónica do Conde D. D., p. 337.
87
terceira tentativa, para além de ‘avisos’, muito habituais ao tempo, que terão surgido no
céu à medida que se deslocavam: parece terem avistado sobre um monte, um cometa
que lançavam raios de fogo em forma de dragão. O projecto parecia estar condenado à
partida.
As escaramuças iniciar-se-iam na manhã seguinte e entre pontes, lutas, escadas e
movimentações de tropas, os muçulmanos rapidamente se aperceberam da presença e
das intenções portuguesas e mobilizaram a cidade. O infante dirigiu-se para os muros,
donde comandou parte das operações, onde os homens se foram amontoando, sem
espaço para combater. Houve enormes perdas entre os cristãos porque o alcaide de
Tânger fez deslocar rapidamente besteiros e espingardeiros para um pomar próximo da
localização portuguesa, infligindo muitas perdas. As escadas do infante também foram
prontamente tomadas pelo inimigo. E assim, sendo as escallas tomadas nom tynham
algum remedio de salvaçam221. João de Sousa avisa o infante que não deixe subir mais
ninguém, mas o infante insistiu em subir uma escada encostada à muralha, porque
achava que deveria morrer com os seus servidores e bons criados (o tipo de
comportamento aparentemente heróico e de mártir, mas que na prática agravava o
desastre e permitir-lhe-ia não responder pela sua incompetência como líder militar).
Mas foi detido pelo conde de Odemira e pelo comendador mor de Cristo, que o
convenceram a não cometer mais uma imprudência. A falta de um Príncipe era diferente
da falta de um simples soldado: o Reyno teria delle pera sempre muita myngoa e grande
necessidade, uma vez que Tangere fosse tantas vezes sepultura de yfantes de Portugal.
Não queriam que isso se repetisse. D. Fernando acabou por aceitar e regressou a
Alcácer. O resultado seria a morte e o cativeiro de muitos combatentes portugueses,
mais um pranto para o reino e o terceiro fracasso do infante em Tânger.
Não se nega que tivesse feito prova de valentia e coragem quando se acercou das
escadas e mostrou a intenção de morrer junto dos seus homens no topo do muro, mas
fora ambicioso, impulsivo, teimoso e correra perigo de vida, vendo-se envolvido numa
situação muito perigosa. Curiosamente, Fernando parece ter decalcado as características
militares do ‘pai’, o infante D. Henrique, que tinha tanto de corajoso (a raiar a

221
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 807.
88
inconsciência) como de péssimo comandante militar, como provou em 1415, em Ceuta,
e em 1437, em Tânger. Alguma da mais destacada e experiente nobreza de Portugal,
com o marechal à frente, deixa-se sacrificar numa aventura irresponsável liderada por
infante militarmente inepto.222 É quase certo que teria morrido se não tivesse sido
impedido de escalar as muralhas da cidade. Tânger continuaria perdida e poderia ter
causado a morte de um segundo Fernando de Portugal.
A cidade norte-africana era um objectivo militar muito difícil; D. Fernando deve
ter compreendido que não seria prudente insistir mais nela. Já D. Afonso V cumpriria o
sonho de a ocupar.
Apesar destas desventuras africanas, o infante permaneceria interessado no
território, não pondo um fim à sua ligação a Marrocos após os desastres consecutivos de
Tânger. Como resume Luís Miguel Duarte: do ponto de vista militar, a armada de
1463-1464, foi Portugal no seu pior.223

4.1.3. Cai o pano em África: Anafé

Anafé e a sua destruição foram o último episódio africano que envolveu


directamente a participação do infante D. Fernando, cinco anos após a última fatalidade
vivida em Tânger, porque morreu pouco depois, em 1470. O seu entusiasmo e até
resiliência relativamente aos territórios africanos sugerem-nos que teria gostado muito
de estar presente nas conquistas de Arzila e, finalmente, na ocupação de Tânger em
1471.
Escreve Rui de Pina que Fernando, sempre com o desejo de alcançar honra e
Estado, procurou fazer, mais uma vez, guerra contra os muçulmanos em África. Decide
então organizar uma armada (com a ajuda de D. Afonso V, como tinha de ser), que teve
por certo alguma dimensão, dada a descrição do cronista de que as gentes de Anafé,
quando viram aproximar-se uma grande frota, não lhe ofereceram qualquer resistência.
À vista dos barcos portugueses, os habitantes abandonaram a povoação, que foi
invadida e saqueada pelos portugueses. Anafé teria uma muralha forte: D. Fernando

222
DUARTE, 2003, p. 428.
223
DUARTE, 2003, p. 429.
89
percebeu que não a poderia defender e manter com os recursos que levara consigo. Por
isso decidiu destruir tudo e regressar ao reino, em 1469.224 Segundo Damião de Góis
terá levado consigo dez mil homens, mandando primeiro espiar o porto marroquino, por
Estêvão da Gama. Este fizera-se passar por mercador de figos do Algarve e depois por
marinheiro que vendia esses figos pela vila225. O infante D. Fernando montara este ardil
para obter informações sobre a terra, as suas gentes, quão forte era esse espaço e
quantos efectivos seriam precisos para o tomar. Damião Góis acrescenta que D. Afonso
V teve interesse na sua destruição, porque de lá vinham embarcações que atacavam e
faziam uma pirataria violenta sobre as costas de Castela e de Portugal.226
No discurso de Pina aparentemente a decisão do infante não revelara qualquer
preocupação estratégica num ataque a Anafé, mas este era um conhecido porto de galés
e fustas de corso, sobretudo de pirataria vinda de Salé,227 como é referido por Damião
de Góis. Duarte Nunes de Leão ainda acrescenta um dado novo: o interesse do rei de
Portugal por Anafé prendia-se igualmente por lá se colher bom trigo: Da grandeza, e
formosura della daõ bom testemunho alguns edificios, que ainda hoje se veem. Era
aquella Cidade tambem celebrada, e nomeada pello muito, e bom trigo, que em sua
comarca se colhe, donde veio a semente do trigo, que em Portugal se chama Anafil, que
quer dizer de Anafee228 Assim o infante poderá ter ajudado a resolver temporariamente
um problema. Portugal manteria o interesse em Anafé para, em 1487, tentar a sua
conquista, claramente por ser uma base de piratas e corsários e de espionagem
portuguesa. Faz sentido: o raid de D. Fernando terá então sido muito mais do que um
ataque gratuito e desmiolado a um porto de pescadores, que se ficou pelo saque e pela
destruição.
De forma mais positiva e produtiva, em Anafé terminavam as nem sempre
felizes peripécias do infante D. Fernando por terras africanas.

224
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 816. Segundo Damião de Góis o infante D. Fernando foi a Anafé no ano
de 1468. GÓIS, Crónica do príncipe D. João, pp. 54-55, cap. XVII.
225
Um interessantíssimo indicador da importância daqueles frutos e do seu comércio por estes anos.
226
Tais dados não são referidos por Pina na Crónica de D. Afonso V. GÓIS, Crónica do príncipe D.
João, pp. 54-55.
227
VICENTE, Paulo David – Anafé. In DOMINGUES, Francisco Contente (dir.) – Dicionário da
Expansão Portuguesa (1415-1600). Porto: Círculo de Leitores, 2016. Vol. 1, p. 72.
228
LEÃO, Crónicas dos Reis de Portugal, p. 895.
90
A cidade seria depois doada, de juro e herdade, com toda a jurisdição cível e
crime e sem reserva da alçada para o rei, ao duque de Viseu e Beja, D. João, em Julho
de 1472 – prova que a destruição esteve longe de ser total.229

4.2. (...) Porque se deveria todo deixar de fazer guerra de taõ pouco proveito (...)

Os pareceres sobre Marrocos: uma ‘tradição’ entre os príncipes de Avis

O século XV português ficou marcado por uma intensa discussão política em


torno da conquista de novas praças e territórios no espaço norte africano – da expansão
marroquina, em suma. Para além de outros testemunhos nas fontes da época, são de
realçar os conselhos por escrito nas décadas de 1430 e 1460, a pedido dos reis da altura.
Tudo começou com a ida a Ceuta, profundamente debatida, antes, e profundamente
debatida (manter ou abandonar a cidade) depois da conquista. Mas desses debates não
temos testemunhos escritos na primeira pessoa, apenas relatos de Zurara. A segunda
fase inicia-se nos anos 30, tendo como pretexto uma possível participação do Infante D.
Henrique na Guerra de Granada, sob o comando do rei de Castela, e depois uma
expedição militar para conquistar Tânger. Contou com as opiniões do infante D. João230,
do conde de Barcelos231 e dos seus filhos, o conde de Ourém232 e o conde de

229
Chancelaria de D. Afonso V, liv. 30, fl. 122.
230
“Conselho do Infante D. João… (8 de maio de 1432)” in MH (dir. António Joaquim Dias Dinis),
Coimbra: Comissão Executiva do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, vol. IV, doc. 23, 1962.
pp. 111-123.
231
“Conselho do Conde de Barcelos… (19 de maio de 1432)” in MH (dir. António Joaquim Dias Dinis),
Coimbra: Comissão Executiva do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, vol. IV, doc. 24, 1962.
pp. 123-126.
232
“Conselho do Conde de Ourém… (4 de junho de 1432)” in MH (dir. António Joaquim Dias Dinis),
Coimbra: Comissão Executiva do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, vol. IV, doc. 26, 1962.
pp. 129-133.
91
Arraiolos233 (todas de 1432); e nesse debate procurou-se refletir em geral sobre a justeza
e a legitimidade da guerra em territórios do ‘infiel’, assim como acerca da cruzada e do
papel do rei neste tipo de evento. Em 1436 (já no reinado de D. Duarte) caberia ao
infante D. Henrique234 a responsabilidade de redigir o seu testemunho e, por fim, em
1437, ano do desastre de Tânger, seria o infante D. Pedro235 a pronunciar-se sobre o
assunto.
No entanto, estas preocupações não cessariam, uma vez que em 1460 (passadas
quase três décadas), e preparando-se D. Afonso V para novas incursões militares em
África, volta a recorrer àqueles que lhe são próximos, nomeadamente ao seu irmão, o
infante D. Fernando, e a dois dos seus primos irmãos, o conde de Arraiolos (e marquês
de Vila Viçosa) e o condestável D. Pedro. Portanto duas gerações distintas debateram
um mesmo problema, mas em conjunturas diferentes; o infante D. Fernando foi apenas
mais um interveniente. É do maior interesse registar as profundas diferenças de opinião
entre os textos, o recurso a autores e autoridades, a argumentação e aquelas que foram
as principais ideias e concepções políticas (sobretudo relacionadas com a guerra justa e
santa) dentro da aristocracia e das mais importantes figuras políticas dos finais da Idade
Média portuguesa. Relembre-se, no entanto, que não estamos na presença de autores
políticos por natureza, mas sim de textos inspirados naquilo que inquietava os reis, os
infantes e os seus familiares relativamente à guerra africana que a todos envolveu. São
testemunhos reveladores das principais preocupações do Portugal da época.
A tradição de pedir conselhos sempre que se planeava uma incursão militar é
muitíssimo antiga e está atestada pelo menos desde as mal chamadas “civilizações pré-
clássicas”. Em Portugal e na 2ª dinastia, como acabámos de resumir, começa quando D.
João I se preparava para atacar Ceuta. Antes da conquista já o rei debatera com a sua
entourage mais directa e restrita e com os seus filhos e infantes mais velhos qual a

233
“Conselho do Conde de Arraiolos… (22 de abril de 1432)” in MH (dir. António Joaquim Dias Dinis),
Coimbra: Comissão Executiva do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, vol. IV, doc. 21. pp.
99-108.
234
“Resposta do infante D. Henrique … (1436)” in MH (dir. António Joaquim Dias Dinis), Coimbra:
Comissão Executiva do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, vol. V, doc. 101, 1963. pp. 201-
204.
235
“Conselho do infante D. Pedro… (1437)” in MH (dir. António Joaquim Dias Dinis), Coimbra:
Comissão Executiva do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, vol. VI, doc. 1, 1964. pp. 1-7.
92
melhor opção a tomar. Sabe-se que D. João I planeara a organização de grandiosas
festas para armar os seus filhos cavaleiros. Tal terá desagradado aos infantes, que
preferiam receber essa honra após uma batalha digna. Pedir opinião e o aconselhamento
de homens experientes, próximos do rei e conhecedores do território inimigo parece ter
sido prática corrente com D. João I, D. Duarte e D. Afonso V quando as circunstâncias
assim o exigiram (como era prática por todo o mundo conhecido do tempo). Como
aponta Luís Filipe Reis Thomaz, já na fase final da sua vida (D. João I) e para fazer face
às obstinações do Infante D. Henrique em ir ajudar os castelhanos na reconquista
granadina, o velho rei começou a pensar seriamente numa grande expedição real a
Tânger ou a Arzila.236 É quase sempre claro nestes textos e pareceres sobre a guerra em
Marrocos que a última palavra cabe ao rei, que apesar de ser, com frequência,
aconselhado a não avançar com a guerra, decide precisamente o contrário (ou, dito de
outro modo, antes de pedir opiniões alheias, o monarca já tinha a sua decisão tomada).
Contudo, não eram só os reis que procuravam conselho junto dos seus próximos ou dos
notáveis da corte. O caso do infante D. Fernando é disso exemplo. Conta-nos Zurara
que, quando o príncipe entendeu que queria pôr um fim ao problema de Tânger, reuniu
e aconselhou-se com os condes de Odemira, de Marialva, com o marechal, com Gomes
Freire, com o comendador mor de Cristo, com João de Sousa e Fernão Teles, que o
ouviram e lhe fizeram perguntas sobre a preparação da expedição. Entre todos
discutiram os efectivos necessários para um escalamento da cidade.237 Num episódio
posterior da Crónica de D. Duarte de Menezes, o infante voltaria a falar com o conde de
Odemira e com o comendador mor de Santiago, que lhe recomendaram que
prosseguisse a empresa contra Tânger. D. Fernando inscrevia-se assim numa tradição
herdada do seu avô e pai de se aconselharem para melhor fundamentarem as suas
decisões.
Esta forte expressão do debate em torno da guerra e da sua legitimidade não é de
estranhar, uma vez que praticamente todo o século XV português se confronta com os
avanços do comércio marítimo e da expansão, o interesse por novos espaços, e
igualmente, com conquistas e projetos militares que incluíram as Canárias, o reino de

236
THOMAZ, Luís Filipe – De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994. p. 85.
237
ZURARA - Crónica do Conde D. D., pp. 312.
93
Granada e o Norte de África. Evidentemente, conforme as conjunturas políticas e os
reinados, assim a maior ou menor inclinação dos governantes para uma aposta mais na
economia e no comércio externo, no avanço das explorações marítimas e do
reconhecimento territorial (como aquela que se assume ter ocorrido no período da
regência do Infante D. Pedro – 1439-1448); ou para uma vertente mais conquistadora e
militar, patente em Afonso V e que muito envolveu o infante D. Fernando.
Naturalmente estes desígnios podiam ser contraditórios ou complementares.
Regressando ao problema dos debates acerca da guerra em Portugal, já frisámos
porque é que estes fizeram sentido ao longo das décadas deste século, tendo
acompanhado sobretudo os reinados de D. Duarte e de D. Afonso V. São de resto uma
fracção da prática de aconselhamento dos monarcas da Cristandade.238 Assim se explica
igualmente o contexto e o propósito da carta de Bruges, um verdadeiro tratado político
de temática variada, que o infante D. Pedro escreve para o irmão, D. Duarte, ainda este
não era rei. Esta carta, datada de 1426, não esquece o problema de Marrocos e revela
uma opinião forte, que seria semelhante à do seu parecer emitido em 1436 ou 1437
aquando dos debates sobre a ida a Tânger. Escreve o infante que enquanto Ceuta
mantiver a administração como então tinha he muy bom sumydoiro de gente de vossa
terra e d’ armas e de dinheiro (...)239.
A interpretação que demos à Carta de Bruges serve para percebermos melhor o
significado dos pareceres escritos na década de 1430 e de 1460, durante os reinados de
D. Duarte e de D. Afonso V, respetivamente.
Estamos perante textos de opinião, pareceres, sobre a guerra no norte de África,
que comprovam a ideia de um debate vivo e expressivo na sociedade política do
Portugal de então e que visam analisar os prós e os contras de uma possível incursão
militar e de conquistas em Marrocos. Se é verdade que existe alguma semelhança nas
preocupações e nos temas, os textos devem ser lidos em conformidade com os contextos
políticos de cada década e tendo em conta que os autores e as argumentações são

238
Veja-se o trabalho de Béatrice Leroy– Du Franc Parler en Politique: aimer et devoir écrire aux
souverains en Castille au XVe siècle. Limoges: Pulim, 2014.
239
DUARTE, D. – Livro dos Conselhos, p. 37. Acrescenta ainda o infante que a ideia de os portugueses
manterem a cidade no norte de África não era muito bem vista por fidalgos ingleses, com quem, durante
as suas viagens, D. Pedro terá tomado contacto.
94
distintos, o que acaba por fazer deles textos desiguais, quer na extensão, quer na
organização e conteúdo. Acrescente-se que, apesar dos textos se debruçarem mais sobre
aspetos práticos, logísticos e consequências económicas, sociais e demográficas que
uma guerra poderia trazer a Portugal, que recomendariam que esta não se viesse a
realizar, estes pareceres não esquecem alguns temas essenciais de teoria política.
Tal como D. Duarte pedira conselho aos seus mais próximos, também D. Afonso
V seguiu a mesma linha de ideias. Esta prática da Casa de Avis parece converter-se
numa tradição e, em 1460, o rei volta a pedir conselho aos grandes do reino. Os anos de
1460/61 ficam marcados pela preparação de novas expedições militares que o rei tem
em mente (e acerca das quais já vimos a participação e envolvimento do infante D.
Fernando) e pela morte de alguns dos actores mais decisivos do Estado e de Portugal
durante este período: o conde de Barcelos (e primeiro duque de Bragança), o seu filho, o
conde de Ourém e o Infante D. Henrique; também já não estavam D. Pedro e D. João.
Todos tinham sido consultados por D. Duarte, acerca da guerra com Granada ou em
Marrocos. Agora D. Afonso V recorreria a outras pessoas para lhe darem a sua opinião,
numa altura em que o rei se preparava para uma nova expedição em África. Como
explica Rocha Madahil: o rei quis ouvir a opinião daqueles Grandes do Reino que, não
constituindo propriamente um corpo consultivo ou Conselho constitucional do rei,
acompanham, não obstante, amiúde, com a sua opinião e avisos, a política
desenvolvida pelo monarca.240 Nesta fase são três os pareceres conhecidos241 destinados
a ajudar D. Afonso V na sua política africana: o do infante D. Fernando, o do conde de
Arraiolos (que emite a sua opinião pela segunda vez) e o de D. Pedro, antigo
condestável e filho do infante D. Pedro.
O infante D. Fernando foi herdeiro de todos estes desafios, problemas e ideias
que vinham desses antigos textos dos seus tios e primos irmãos da década de 1430; e ao
que parece conhecia-os e assimilou-os bem. O seu parecer pouco abona em favor de
teorias políticas e de uma argumentação baseada nelas. Não defende a continuação da

240
ROCHA MADAHIL, A.G. - A Política de D. Afonso V apreciada em 1460. Biblos. Vol. VII (nº 1 e 2)
(1931), Coimbra: Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra. p. 41.
241
Os três pareceres de 1460 foram publicados no artigo de A. G. da Rocha Madahil: “A Política de D.
Afonso V apreciada em 1460”. Biblos, nº 1-4 (Jan.-Abril), Coimbra: Faculdade de Letras, vol, VII, 1931.
pp. 35-61/pp. 123-140.
95
guerra em Marrocos, explicando ao seu irmão, o rei, que tal não seria apropriado para
um reino como Portugal. O seu conhecimento do território africano e das cidades é
notório, assim como dos efetivos militares do rei de Fez o que o faz aconselhar D.
Afonso V a desistir da empresa. A argumentação do longo texto baseia-se apenas em
exemplos práticos e de comparação constante entre o reino português e o reino de Fez,
com as suas cidades, que o rei ia tentar conquistar. D. Fernando, na sua visão
aristocrática do problema da guerra marroquina, afirma em primeiro lugar o erro que
seria fazer da cavalaria a força motriz do exército, muito mais fraco do que aquele que o
rei de Fez conseguiria reunir, recorrendo a experiências que o próprio infante tinha
vivenciado, como a conquista de Alcácer. Relembra a D. Afonso V que o rei de Fez não
conta apenas com o exército do seu próprio reino, mas que este pode ser composto por
homens recrutados das Serranias e dos logares escomtra Ceita242. Fernando conhecia
bem as táticas guerreiras dos mouros do norte de África. A guerra era desvantajosa,
ruinosa e iria acarretar problemas de vária ordem política: atrapalharia as negociações
do casamento da irmã do rei, poderia significar uma invasão castelhana de Portugal,
uma vez que D. Afonso V se encontrava em África e o reino ficava sem o seu rei;
estavam ainda por pagar as dívidas relativas ao matrimónio da irmã Leonor com
Frederico III (o dote); estaria a pôr em causa o número de homens que ficara de enviar
ao papa para a participação da cruzada contra os turcos e, como explica D. Fernando, a
não muita certeza que hi ha de serviço de Deus (…) e perigo que tam soomente
sospeitariamos que Deos nam nos ajudaria mas que nos estorvaria.243 Explica que os
livros estão cheios de exemplos de um Deus vingador e que destrói os reis e os seus
exércitos em plena batalha. Seguem-se outros problemas como a falta de confiança que
tinha nos mouros que residiam em Portugal: Senhor, nam cuido que venham á vossa
obediência nem se queiram tornar Cristaõs; questiona-se sobre onde se irá buscar o
dinheiro, a comida, os mantimentos, como se pagarão as despesas de uma guerra; os
próprios corsários de vários países aproveitariam a situação e atacariam os navios
portugueses, e os franceses, tão desejosos de tomarem as ilhas portuguesas, não
perderiam tal ocasião. Não nega que se trata de um serviço a Deus - e nesta opinião

242
Conselho do Infante D. Fernando…, p. 50.
243
Conselho do Infante D. Fernando…, p. 52.
96
convergem todos os autores dos pareceres, mas pensa que são sempre maiores as
desvantagens, a incapacidade militar, os problemas sociais assentes na falta de gente, as
dívidas por saldar e a falta de recursos. Termina D. Fernando, dando a entender que os
problemas do reino requerem atenção e que não é o momento oportuno para tal
expedição, até porque os mouros poderiam pensar que dois mil cavaleiros seriam todo o
poder militar de Portugal e perderiam o medo: e vendo os Mouros que vós e quantas
pessoas ha de maneira que Portugal estáa em Ceita com dous mil cavalos cuidaram
que he todo o poder do Reino (…)244.Dever-se-ia fazer serviço a Deus, mas com as
condições adequadas e só quando Portugal estivesse preparado e sem compromissos
mais urgentes, nomeadamente aqueles que D. Afonso V tinha com o papa na luta contra
o turco. Comparado aos exemplos, às argumentações do marquês de Vila Viçosa e às
teorias sobre o modelo de rei do condestável D. Pedro, D. Fernando apresenta, na nossa
opinião, o texto mais objectivo e realista dos três, e que muito poderá ter servido D.
Afonso V. Sem teorias, sem razões teóricas, os factos eram aqueles e não havia como
contorná-los. Nas suas linhas ecoam as ideias do infante D. Pedro, e mesmo do infante
D. João, quando reflecte sobre a incapacidade de Portugal, em tomar e manter
territórios, alicerçada na falta de pessoas e de recursos, nos graves custos e despesas que
isso traria ao reino e ao colocar-se na perspectiva dos inimigos, lembrando que não
teriam qualquer interesse em tornar-se cristãos. Para além da falta de um exército capaz,
outros problemas militares se levantavam, baseando-se em Vegécio: (...) os Mouros
sabiam parte da vosa gente e vos nam da sua, e que pensavam que vos recolhieis q he
cousa que poem grande esforço aos cometedores e grande emfraquecimento aos que se
recolhem; isso mesmo os vossos iriam mui cansados e jemte nam mui bem tratada, de
que Vegecio faz muita estima (...).245 O texto do infante D. Fernando, passados bastantes
anos, é testemunho de que os mesmos óbices e dificuldades permaneciam em Portugal.
Os factores detectados pelo infante já o tinham sido pelos seus tios quase trinta anos
antes. Os desafios e problemas do reinado de D. Duarte, devidamente sublinhados pelos
infantes da primeira geração de Avis, eram os mesmos em tempos de D. Afonso V. Para
além de tudo isto, é importante notar que o infante não deixa de propor, ainda que

244
Conselho do Infante D. Fernando…, p. 59.
245
Conselho do Infante D. Fernando…, p. 51.
97
implicitamente, um modelo de rei, no qual a responsabilidade, a prudência e o
compromisso são os princípios que mais ressaltam e que maior importância parecem ter,
para ele.
No entanto, o conselho de D. Fernando torna-se mais interessante quando
observamos a sua acção e atitude, nos preparativos e nos campos de batalha africanos,
nos anos seguintes. Podemos questionar-nos sobre o que terá ocorrido para que a sua
opinião e pensamento mudassem, quase radicalmente, num espaço de três a quatro anos,
fazendo com que a sua posição de discordância relativamente às conquistas em
Marrocos evoluísse para o contrário. Em 1460 encontramo-lo cauteloso, prudente e
receoso acerca dos custos que uma guerra sem qualquer proveito possa trazer a
Portugal, desaconselhando totalmente o rei a ir para África; nos anos das campanhas de
Tânger (1463-1464) o seu comportamento parece alterar-se e contradizer-se, revelando
a já referida obstinação e teimosia em prosseguir com conquistas falhadas e que tanto o
parecem caracterizar nesta fase. Depois de se conhecer o seu contributo nos anos em
que esteve por Alcácer e a tentar tomar Tânger, ler e interpretar a posição do infante D.
Fernando no seu parecer sobre a guerra no norte de África coloca-nos questões de difícil
interpretação.
Segue-se a opinião de D. Pedro, filho do infante D. Pedro e antigo condestável
do reino. Tal como o seu pai, são-lhe atribuídas várias obras. Trata-se, como é sabido,
de uma tradição dos Avis desde D. João I, passando por D. Duarte e pelo infante D.
Pedro, autor da obra de teoria política mais importante da primeira metade do século
XV em Portugal.246 É inegável a sua enorme cultura, experiência militar e política, que
ajudam a explicar o pedido do rei para que este se pronunciasse sobre a guerra, que D.
Pedro desaconselha completamente, recomendando que o monarca governasse com
retidão, justiça e fosse presente nos assuntos internos do seu reino, permanecendo mais
em Portugal. Talvez pensasse que D. Afonso V passava demasiado tempo em África e
envolvido a planear conquistas em Marrocos, algo que o seu conhecimento e
experiência política (pelo menos da realidade ibérica, e não apenas de Portugal, uma vez
que ainda foi rei de Aragão durante cerca de dois anos) levariam a avaliar com

246
FONSECA, 1982, p. 308.
98
prudência. O lugar do rei era no seu reino, a governar com justiça e salvaguardar-se de
perigos externos, que poderiam advir por se encontrar fora da sua ‘área de conforto’. D.
Pedro oferece-nos assim o seu modelo de rei, que parece não sair muito das ideias
dominantes sobre o soberano ideal.
O último parecer foi escrito pelo conde de Arraiolos, já chamado por D. Duarte,
na década de 1430, para se pronunciar sobre a guerra. Começa com uma breve
comparação da guerra com o fogo e as labaredas, que rapidamente se podem
desencadear e espalhar, mostrando-se contra esta, de uma maneira geral, e que agrada a
Deus que venha aconselhar o rei de Portugal numa matéria tão delicada para a casa real,
assim como para a Espanha (a Península Ibérica). As suas ideias, para além dos diversos
exemplos históricos e bíblicos247, apontam sempre no sentido de uma guerra defensiva e
santa, que deve ser sempre justificada por uma forte necessidade: pera todos elles se
naõ for necesidade de guerra que vos constranja pero vos defender ou mandados da
igreja que pertença aa fee248.O parecer encontra-se dividido em duas partes: na primeira
critica a adulação ao rei na corte e aconselha o rei a manter a paz com os castelhanos,
não se envolvendo nos seus problemas internos. Relembra constantemente a D. Afonso
V uma das máximas do seu texto: E as cousas pasadas sam exemplo das cousas que
sam por vir,249 sobrecarregando o parecer com exemplos e episódios da história
castelhana, aragonesa e até mesmo navarra. Portugal dever-se-ia manter à margem e
nunca esquecer aquele que tinha sido um valioso contributo de D. João I, ao conseguir
as pazes com Castela. Pouca honra teria o rei de Portugal se se convertesse numa
espécie de mercenário nos reinos vizinhos: Rey de Portugal, que ao outro dia dizia que
queria conquistar Afriqua, andar por soldadeiro dos cavalheiros de Castella; muito
abateria na victoria que lhe Deos deo no seu proveito que a tal desonra se poode
igualar250. Só depois de todo este discurso sobre uma herança histórica de paz, que
caberia a D. Afonso V manter, o marquês de Vila Viçosa se debruça sobre a guerra em
África. Do seu longo texto o que nos interessa diz respeito essencialmente ao conceito

247
Que ajudam o autor a justificar a importância do seu conselho escrito para o rei: e por esto o rei deve
amar muito todos aqueles que sobre boas tenções lhe dizem a verdade (…), p. 130.
248
Conselho do Marquês de Vila Viçosa…, p. 128.
249
Conselho do Marquês de Vila Viçosa…, p. 131.
250
Conselho do Marquês de Vila Viçosa…, p. 132.
99
de guerra. O marquês vê-a como algo que deve ser espoletado apenas em casos de
necessidade ou de defesa. Sem dúvida uma posição pacifista, na medida em que
aconselha o rei a manter-se em paz e, para isso, avança uma ideia clássica altamente
sugestiva: por que, como diz Boecio, nao há no mundo tam maa ventura como depois de
boa ventura cahir em maa ventura.251 Explica que os reis não devem fazer guerra por
cobiça, fama e desejo de glória, mas apenas por justiça. A causa tem, portanto, que estar
garantida, ser justificável, justa. Qualquer governante que planeie uma guerra deve
aconselhar-se: em tal guisa que vier carregue sobre muitos e nam sobre hu; entaõ se
poderaa milhor remedear, eu asi vos conselho que mandeis primeiro chamar todos os
grandes e todos os povos de vosos reinos e que em cortes ho determineis polas razoes
acima declaradas e isto vos conselho mas soomente por vosso proveito.252 Para isto
escreve o marquês que Ricardo II de Inglaterra, filho do Príncipe de Gales, organizou
uma guerra contra a vontade do reino e, quando dela regressou, tinha sido substituído.
Foi depois preso e no cárcere morreu. Para todas estas matérias reconhece o autor q ho
livro da vida dos Princepes que muito proveitozo seraa a todos os Reys.253
Depois de refletir sobre a importância das alianças políticas, nomeadamente com
Castela e sobre o equilíbrio político que deve existir na Península Ibérica, o marquês
sintetiza as ideias mais importantes do seu texto sobre a guerra e como ele a entende: e
porem escusado he a nenhum Rey seu vizinho lha aver de dar senaõ por necessidade de
se defender ou polo que pertence á fee pola qual cada hum he obrigado a aventurar se
a morrer e a perder o que tiver.254 Mostra-se contra a guerra entre cristãos e explica
que, se tiver de haver conflitos armados, que sejam em África e que aqueles que
desejam fazer guerra contra os castelhanos canalizem os seus esforços, trabalhos e
objetivos para um conflito em Marrocos.

251
Conselho do Marquês de Vila Viçosa..., p. 134.
252
Conselho do Marquês de Vila Viçosa..., p. 135.
253
Conselho do Marquês de Vila Viçosa..., p. 134.
254
Conselho do Marquês de Vila Viçosa..., p. 136.
100
Capítulo 5 – A morte do infante D. Henrique e o problema
das alterações testamentárias
Nos inícios da década de 1460, acabámos de o lembrar, ocorreram várias mortes
no seio da família de Avis: falecia o conde de Ourém, o duque de Bragança, seu pai e o
infante D. Henrique. Este último desaparecimento viria a ter um profundo impacto em
D. Fernando. O quarto filho de D. João I morria no Algarve, aos sessenta e seis anos de
idade na sua Vila do Infante perto de Sagres, por causa desconhecida. As crónicas255
revelam a participação e envolvimento do infante D. Fernando nas cerimónias fúnebres
de D. Henrique. Zurara refere que foi ele que procedeu à trasladação das ossadas do tio
da Igreja de Lagos para o Mosteiro da Batalha, fazendo-o com grande respeito e
honra,256 colocando-as na capela de D. João I.257
A aproximação da morte traz consigo os testamentos e a preocupação com estes
e, no caso do infante, esta parece ter sido renovada poucos dias antes de falecer. Os seus
testamentos desdobram-se em vários textos: desde o alvará de 1436 até ao testamento
final de 1460, passando por outros instrumentos testamentários e pelo “Escritos das
Capelanias”, onde são contabilizadas e enumeradas todas as obras de fé e igrejas que
mandara construir fora de Portugal.258 Para o infante D. Fernando estes dois testamentos
são da maior importância e levantam talvez uma das mais interessantes questões acerca
da sua vida: referimo-nos às alterações testamentárias levadas a cabo pelo pai adoptivo,
pouco antes de morrer, no seu segundo testamento e que culminara no deserdamento
parcial de D. Fernando. É sabido que em 1436 o infante D. Henrique nomeara o
príncipe como seu pleno herdeiro. No entanto, em 1460 o infante anulará parte dessas
disposições sem que se saiba as verdadeiras razões que o motivaram. Como aconteceu

255
Veja-se o excerto em latim de Martinho da Boémia sobre a trasladação de D. Henrique para o panteão
dos Avis: Tunc rex jussit ire fratem infantem dominum Ferdinandum, ducem de Begia, et episcopos e
comites, ut corpus portarent usque ad monasterium de Batalha supradictum, ubi rex corpus defuncti
exspectabat. Et positum est corpus infantis in capellam pulcherrimam et magnam, quam fecit pater
ipsius, rex Johannes, ubi idem rex jacey et uxor ejus, domina Philippa, ater ejus, et quinque frates ipsius,
quorum omnium laudabilis memoria est usque in sempiternum. Et requiescant in sancta pace. Amen.
Narrativa publicada em MH, vol. XIV, doc. 17, pp. 76-77.
256
ZURARA - Crónica do Conde D. D., pp. 276-277.
257
GÓIS, Crónica do príncipe D. João, p. 48.
258
RUSSELL, 2016, p. 321.
101
com a maior parte dos biógrafos e estudiosos do infante D. Henrique, só nos é possível
levantar a questão e sugerir uma ou outra resposta, sem obter respostas definitivas ou,
sequer, seguras.
Em 1436 D. Henrique redigia um texto sintético, sem as formalidades legais de
um testamento, evocando que a vida dos Homens é efémera e que todos desejam ter
geração sucessória e prosseguia doando os seus bens ao seu sobrinho, o infante D.
Fernando. Neste documento toma-o igualmente por filho e, consequentemente, herdeiro.
A ele deveriam pertencer todos os bens móveis e de raiz que tinha no reino. Reservava
para si um terço das rendas destinadas a missas e orações pela sua alma259. Garante que,
os bens que viesse a herdar da coroa ficassem depois em mãos do infante D. Fernando,
algo que D. Duarte, certamente agradado, confirmará.260 Tal documento tem um claro
objectivo político, como vimos, relacionado com a ida a Tânger. Terá tido a eficácia
desejada pelo seu autor, como explica Dias Dinis ao classificá-lo de testamento
sumário, de urgência.261
Nesta sequência documental segue-se o pedido do infante D. Fernando para que
o rei D. Afonso V volte a confirmar, em 1451,262 o alvará testamentário do infante D.
Henrique e a primeira confirmação de D. Duarte, não datada. Por que teria sentido o
jovem infante D. Fernando necessidade de pedir ao rei uma reconfirmação da herança
do seu pai adoptivo? Será que, pelos inícios da década de 1450, havia algum
desconforto entre ambos que sugerisse a D. Fernando que o tio poderia mudar de ideias?
Não é possível saber. No entanto, por esta altura e com esta carta régia percebe-se que
tal decisão não estaria ainda na mira de D. Henrique. Mais uma vez insistimos como
seria importante conhecer a relação entre tio e sobrinho para perceber o aspecto mais
surpreendente do segundo testamento do infante D. Henrique, datado de 1460.
Enquanto, em 1436, nomeara o seu sobrinho D. Fernando seu herdeiro universal,
deixando-lhe tudo o que fossem os seus bens móveis e imóveis, passados quase trinta
anos anula estas disposições e faz do rei D. Afonso V seu herdeiro universal: E o leixo

259
MH, vol. V, doc. 102, pp. 205-207. Publicado também em: Descobrimentos Portugueses, vol. I, docs.
96-97, p. 125.
260
MH, vol. V, doc. 103, p. 207.
261
DINIS, A. J. Dias – Estudos Henriquinos. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1960, vol. I, p. 114.
262
MH, vol. XI, doc. 96, pp. 118-119.
102
por meu herdeiro de todo o que a mym pertencer aa ora de minha morte, assy de rraiz
como de movvell, rresalvando o de que fiz herdeiro ho senhor ifante dom Fernando,
meu filho. Esta última ressalva não deixa de ser reveladora e interessante, uma vez que
não se conhecem quaisquer doações do infante D. Henrique a D. Fernando desde o
alvará de 1436 até praticamente à sua morte. Tal leva-nos a crer que só verdadeiramente
com a morte do duque de Viseu é que D. Fernando deverá ter herdado e reunido parte
do antigo património do tio. A ressalva, provavelmente, não contaria com bens que
passassem para D. Fernando, uma vez que as referências documentais de doações
henriquinas de património continental263 a este, antes da morte do primeiro, que
encontrámos são apenas a doação de Gouveia, em Maio de 1460 e segundo a qual D.
Afonso V doa a vila ao infante D. Fernando pela morte de Vasco de Gouveia, e uma vez
que ela faz parte dos bens do infante D. Henrique.264 A outra referência é-nos facultada
por Dias Dinis: em Agosto de 1460, o infante D. Henrique doa ao sobrinho a
temporalidade das ilhas da Terceira e Graciosa, que D. Afonso V confirmará no
Outubro seguinte.265 Como a perfilhação nunca tinha sido alterada, o próprio rei doava
aqueles que sabia serem territórios do infante, directamente, ao seu irmão.
Quando em 1460, sem que se saiba porquê, o infante altera o seu herdeiro
universal, há bens que ainda ficam em mãos do infante D. Fernando, para além daqueles
que D. Afonso V pudesse desejar distribuir pelo irmão. Este último aspecto seria uma
escolha do rei, mas a ressalva feita àquilo que já era património do infante D. Fernando
inclui as terras que o infante D. Henrique teve da coroa, como afirma no primeiro
testamento. Não se percebe com o que o ficaria D. Fernando pela ressalva feita em
1460. No entanto, parece-nos que teria apenas o senhorio dessas duas ilhas dos Açores e
Gouveia, uma vez que tudo o resto reverteria para a coroa. Quanto à Madeira, o
problema já seria mais grave para D. Fernando, uma vez que impedia o acesso a uma
riqueza considerável, numa altura em que o desenvolvimento económico do arquipélago
já se fazia sentir fortemente.266 Acrescente-se a tudo isto os bens do ducado de Viseu,

263
Existem ainda doações de ilhas ao infante D. Fernando antes da morte de D. Henrique, que serão
referidas mais adiante, na parte do património do infante.
264
MH, vol. XIII, doc. 170, pp. 274-275.
265
DINIS, 1960, pp. 213-214.
266
RUSSELL, 2016, p. 324.
103
do Algarve e a Ordem de Cristo.
Num importante trabalho que intitulou Reflexos Políticos do Segundo
Testamento Henriquino267 e onde aborda a questão do deserdamento do infante D.
Fernando, Dias Dinis enumera e sugere factores que poderão explicar essa decisão de D.
Henrique. Um deles prende-se com o uso da Lei Mental, segundo a qual D. Afonso V
não poderia ter encontrado ilegalidades na perfilhação do infante D. Fernando, até
porque D. Duarte a confirmara, como vimos, sendo tudo legal. Aconteceram várias
circunstâncias que revelaram alguma animosidade entre D. Fernando e o rei D. Afonso,
às quais já fizemos referência neste trabalho. Relacionam-se com o facto de o rei não ter
querido que fosse o irmão a comandar a frota que levou a irmã de ambos, D. Leonor,
para se casar com o imperador alemão. Tal teria perturbado o ambicioso infante, que por
essa altura também fugiria para Ceuta sem autorização do irmão. A partir de então
começam as sucessivas dádivas régias para apaziguamento do insaciável D.
Fernando,268 gerando um maior entendimento entre os irmãos. No entanto, D. Afonso
V poderá ter convencido o tio a restringir as doações ao seu irmão uma vez que os dois
filhos de D. Duarte tinham uma relação complicada e Fernando poderia vir a tornar-se
demasiado poderoso face ao monarca, que também se debatia com graves problemas
financeiros. Mais provavelmente, e como sugere Peter Russell,269 a decisão de D.
Henrique pode ter sido motivada por um distanciamento que se esboçou entre ele e o
seu filho adoptivo, sem que tal também possa ser fundamentado. Talvez não tenha
gostado do seu desapego à ideia de cruzada e de tentar travar uma guerra que seria
ruinosa para o reino, obrigando os homens que não queriam ser cristãos a sê-lo. Se o
infante tivesse tomado conhecimento de tais opiniões do seu herdeiro ter-se-ia sem
dúvida enfurecido, porque elas contrariavam toda a vida de Henrique. Dada a
personalidade de D. Henrique, pensamos que esta hipótese levantada por Peter Russell é
a mais verosímil. O argumento é forte, mas também nos questionamos se seria
suficiente para deserdar o filho. Permanece o problema em aberto.
Que fim? D. Afonso V não respeitará as disposições e últimas vontades do

267
Incorporado nos Estudos Henriquinos, pp. 213- 246.
268
DINIS, 1960, p. 228.
269
RUSSELL, 2016, p. 325.
104
infante D. Henrique patentes no seu derradeiro testamento, uma vez que D. Fernando
acaba por herdar tudo tal como estava previsto de 1436. Ignorado por completo o velho
infante D. Henrique, D. Fernando começava agora a reunir a sua promissora herança,
vindo a ser o mayor Senhor, que nunca houve em Hespanha, que naõ fosse Rey.270
Contrariamente ao irmão, D. Fernando pareceu preocupar-se de verdade com as
últimas vontades do pai adoptivo e nisso evidenciou bastante sensibilidade: começou
por fazer cumprir um dos últimos desejos de D. Henrique, ao fazê-lo descansar
eternamente na Batalha, manteve o sustento dos criados do infante, como ele pedira no
seu último testamento. Escreve a este propósito João Silva de Sousa que documentos
posteriores ao desaparecimento de D. Henrique, relacionados com os criados deste,
comprovam que o infante se preocupou com estas pessoas. Os seus percursos foram
diferenciados: desde serem incorporados nas casas do infante D. Fernando ou do rei, até
serem nomeados para cargos de responsabilidade,271 sem que seja possível apurar se
todos foram protegidos. Por fim, talvez das mais importantes preocupações do infante
D. Henrique que o filho fez cumprir: as missas de sufrágio. O infante D. Fernando
asseguraria esta obrigação durante vários anos, entre 1461 até 1466. Logo no dia 23 de
Novembro de 1461 escrevia, de Tomar, três cartas destinadas a três locais e
destinatários distintos: uma endereçada ao seu almoxarife na ilha da Madeira, Manuel
Afonso, para lhe referir que o infante D. Henrique estabelecera no seu testamento
capelas e missas que lhe deveriam ser cantadas anualmente pela sua alma. Seria isto nas
ilhas da Madeira, Porto Santo e Deserta, onde houvesse igrejas e capelães que lhe
cantassem missa todos os sábados, sobretudo na igreja de Santa Maria a Maior, a
principal da ilha da Madeira. O infante mostra-se disposto a fazer cumprir estas
disposições testamentárias e ordena ao almoxarife que pague aos vigários e capelães as
missas que D. Henrique tinha pedido, para o ano de 1462. Porto Santo e Deserta não são
tão povoados, mas recebem a mesma quantia para que sejam ditas as missas.272 A
segunda seguiria para o seu almoxarife na Beira a relembrar que o infante D. Henrique

270
SOUSA, António Caetano - Historia Genealogica da Casa Real Portugueza. Coimbra: Atlântida, cap.
VIII, tomo II, pp. 284-289.
271
SOUSA, 1991, pp. 268-269.
272
MH, vol. XIV, doc. 65, pp. 186-187. Publicado também em: Descobrimentos Portugueses, vol. III,
doc. 6, pp. 12-13.
105
estabelecera no seu testamento que em certas capelas se cantassem anualmente missas,
responsos e orações. Para além das capelas e igrejas nas ilhas, esta carta tem como
destinatário o Mosteiro da Batalha, na sua capela e onde se encontrava o seu jazigo. Lá
se deveriam rezar três missas pelo custo de 16 marcos de prata, através das rendas das
terras de Tarouca e Valdigem. Fala-se também de 320 marcos de prata, aos quais
Fernando renuncia para o pagamento destes sufrágios ao prior e guardião do dito
mosteiro. Reconhece que as despesas do testamento do infante D. Henrique são bastante
altas e difíceis de suprir, pelo que decide quitar estes 320 marcos de prata para ajudar.
Algumas partes interessantes do documento dizem respeito a uma certa espiritualidade e
ao desejo de cumprir os desejos dos seus antepassados, afirmando que houve coisas que
Deus encomendou aos homens: devem-se cumprir os desejos dos mortos para assegurar
a salvação das suas almas; em segundo lugar, ele tinha uma forte obrigação perante D.
Henrique, seu pai adoptivo e que tudo lhe deixou e, por último, fazer o que queria que
os seu sucessores e herdeiros lhe fizessem e reconhecer que tudo isto era um serviço a
Deus273. A terceira e última segue para Lisboa, destinada a Pero de Barcelos, seu
escrivão da câmara, escudeiro da sua casa e seu recebedor da vintena da Guiné na
cidade de Lisboa, a lembrar outra vez que o infante D. Henrique deixara no seu
testamento que lhe fossem cantadas missas. Mas esta carta diz respeito a frei Antão
Gonçalves (provedor dos sufrágios pela alma de D. Henrique), comendador e alcaide-
mor do castelo de Tomar, ao qual deveriam ser entregues anualmente sete marcos de
prata, a partir de janeiro do “próximo ano”, ou seja, de 1462 e para sempre, da dita
vintena274. Nos Monumenta Henricina encontramos mais uma carta fernandina, emitida
em 1462, na qual o infante escreve a João Borges, seu almoxarife nas terras da Beira, a
lembrar os sufrágios e encomendas de alma que o infante D. Henrique deixou em
testamento. Ordena-lhe um complemento da carta de 23 de Novembro, ano anterior, e
que os 16 marcos que mandou entregar na Batalha pelas missas diárias de D. Henrique
sejam pagos a 1200 reais o marco, o que produz um total anual de 19200 reais,
extraídos das suas terras de Tarouca e Valdigem. D. Fernando acrescenta algo que não

273
MH, vol. XIV, doc. 66, pp. 188-190.
274
MH, vol. XIV, doc. 67, 1973, pp. 190-192. Publicado também em: Descobrimentos Portugueses, vol.
III, doc. 7, pp. 12-14.
106
tinha na carta anterior: como quer que se pague o marco275.
Tal situação continuaria até ao reinado de D. Manuel, filho do duque de Viseu,
relativa ao infante D. Henrique e ao seu ‘pai’, D. Fernando, quando o rei ordena, em
1508, que haja pela primeira vez na igreja maior da cidade do Funchal oito raçoeiros,
com obrigação de dizerem missa pela alma do infante D. Fernando, pai do rei, pelos
benfeitores da ordem de Cristo e pelo infante D. Henrique, tal como mandava o seu
testamento.276

275
MH, vol. XIV doc. 88, 1973. pp. 229-230. Outras são mencionadas em SOUSA, 1991, p. 263.
276
MH, vol. XV, doc. 96, pp. 151-153.
107
Capítulo 6 – A Casa e o Património de um príncipe

6.1. A primeira casa de D. Fernando e o problema da herança do Infante Santo

São várias as informações que comprovam a ligação próxima que o infante D.


Fernando manteria com o rei, seu irmão, e provavelmente com a corte avisina do seu
tempo. Os múltiplos episódios em que o encontramos junto do monarca e,
provavelmente, junto do infante D. Henrique levam-nos a crer que, a constante
proximidade ao mais alto poder, terá influenciado a construção do imenso património de
que viria a ser detentor já nos últimos anos da sua curta vida. A relação nem sempre
muito fácil e linear com D. Afonso V e o aparente deserdamento, patente no testamento
final do infante D. Henrique, não impediram que D. Fernando se viesse a tornar um dos
mais poderosos, ricos e influentes senhores do Portugal da segunda metade do século
XV. No entanto, não é fácil reconstruir o percurso da sua casa, uma vez que nos
escasseia a documentação e a informação mais relativa à sua evolução, gestão, relação
com seus dependentes (ainda que por vezes o encontremos a conceder privilégios e a
interceder por alguém junto de D. Afonso V), às rendas e à riqueza bruta adquirida. Até
quanto iria a sua fortuna? Como se combinavam as rendas? Quando e como começou a
desenvolver negócios relacionados com o mar e outros centros económicos que não os
seus, uma vez que tinha variadas embarcações como galeotas, fustas e naus? Que tipo
de riqueza lhe provinha daí? Perguntas a que não nos é possível responder, para além
daquela mais central e importante e que se relaciona com a forma como terá herdado o
património do infante D. Henrique: um filho que herda uma herança à partida já
delapidada. Como terá o infante lidado com esse problema? Se as dúvidas e as
interrogações se acumulam, a origem da sua casa e aquilo de que efectivamente foi
senhor não oferecem especiais obstáculos sobre o quando e o quê.
A primeira e mais antiga referência à possível casa do infante é-nos facultada por
Pina, numa circunstância muito especial, e que mudaria para sempre a vida dos
pequeninos varões de D. Duarte, quando o infante D. Pedro se torna o responsável e
tutor dos sobrinhos. Foram os infantes D. Pedro e D. João a Santo António buscar os
meninos trazendo-os para Lisboa, onde a cada um deram uma casa com os respectivos
108
oficiais, porque até aí tudo isso tinham partilhado277. Ficamos a saber que, desde a mais
tenra idade, teria os seus oficiais e casa separados do irmão, certamente escolhidos pelos
tios. O atento D. Pedro não terá descurado igualmente as escolhas para os amos dos
meninos, como de resto já vimos, que fazem parte da fase inicial e infantil dos
príncipes.
Sobre esta ‘primeira’ casa e oficiais do infante mais nada sabemos. Iniciava-se agora
a regência de dez anos do infante D. Pedro e faltava ainda muito para o desenrolar dos
acontecimentos que levariam ao encontro de Alfarrobeira. Seria preciso chegarmos a
esse momento para, na batalha, encontrarmos indivíduos relacionados com D.
Fernando, que já mencionámos. Relembrando estes homens: D. Martinho de Ataíde, seu
mordomo-mor278; Gonçalo Vaz de Castelo Branco, fidalgo e seu cavaleiro279e João de
Cáceres, fidalgo da sua casa. Talvez estivessem presentes mais, ao lado do infante, mas
tal é-nos desconhecido. No entanto, a existência de um mordomo e de cavaleiros
pressupõe uma casa senhorial, pelo menos em embrião, que certamente teria muitos
mais oficiais e cargos senhoriais e de cariz doméstico, administrativo e económico a
operar junto do infante. A vida senhorial de D. Fernando na década de 1440 é muito
obscura relativamente às décadas seguintes, nas quais a documentação permite uma
melhor percepção daquilo que seriam a sua casa e património, sobretudo a partir de
1460. Que opções terá tomado o infante D. Pedro ao constituir as casas dos sobrinhos?
Poucos anos antes, D. Duarte escrevera sobre estes assuntos e justificava as restrições
dentro das casas senhoriais como favoráveis às reduções de gastos, de inutilidades, de
corrupção e de vícios dos senhores.280 Até sobre a gestão da sua casa e a reforma que
nela fez, o responsável e cauteloso D. Duarte pareceu ter uma opinião cuidada. As
restrições de pessoal encontrariam eco entre os irmãos Pedro e Fernando,
estabelecendo-se uma lista ‘ideal’ de oficiais de serviço doméstico e religioso que
deveriam servir os respectivos senhores,281 contabilizando-se um total de 373

277
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 647-648.
278
MORENO, 1973, pp. 726-729.
279
MORENO, 1973, p. 769.
280
FARO, Jorge – Receitas e Despesas da Fazenda Real de 1384-1481. Lisboa: Instituto de Nacional de
Estatística, 1965, p. 156.
281
Veja -se a lista em FARO, 1965, pp. 157-158.
109
servidores. Será este número aplicável aos inícios da casa do infante D. Fernando?
Parece demasiado. Um pequeno príncipe requereria todo este pessoal? Ou estamos a
referir-nos a casas já estabelecidas de grandes senhores? Teria o infante D. Pedro
seguido os conselhos do irmão ao constituir as casas dos príncipes? Não nos é possível
saber e muito menos perceber se alguma vez na sua vida o infante D. Fernando se
preocupou com os gastos excessivos relativos ao seu pessoal e oficiais, como o seu pai
D. Duarte fez. Em 1434 o monarca dava um espelho daquilo que deveria ser uma casa
de um senhor e do número exacto de oficiais e servidores, desde os capelães aos moços
de capelas, aos escudeiros, moços de copa de monte, caçadores, trombetas, porteiros,
moços de câmara, de estribeira, reposteiros, confessores, cavaleiros, entre outros. Uma
imagem de poder e de riqueza a que estes infantes aderiram e que o infante D. Henrique
parece ter extravasado, tendo em conta os cerca de 900 indivíduos que o serviram ao
longo da sua vida; no caso do infante D. Fernando, nada sabemos.
Além dos problemas de estudo que se colocam para esta fase da vida do infante,
não temos notícias de quaisquer doações que lhe tenham sido feitas nesta altura. Tal
pode sugerir que não teria uma casa e bens de grande visibilidade e riqueza ao
momento, apesar de ter a Ordem de Santiago e da suposta herança do outro infante D.
Fernando, morto em 1443. Ilações aceitáveis se as compararmos com as décadas que se
seguem.
Apesar de nada sabermos sobre estes anos, em 1443 o infante D. Fernando
morreu cativo em Fez. Tal como ficara referido no seu testamento, antes da partida para
Tânger, ele nomeava herdeiro o seu sobrinho, filho segundo de D. Duarte: E, avendo hi
tantos de meus beens per que todallas cousas e legados conteudas em este meu
testamento seiam compridas e pagadas, mando e quero que o iffante dom Fernando,
meu prezado e amado sobrinho herde de meus beens , movis e de rraiz , todo o que
sobeiar. Eram estas as vontades de um tio que não tinha um património particularmente
extenso e do qual nos parece que o infante D. Fernando não iria usufruir nem
provavelmente herdar, como ficara em testamento, como se verá.

110
Como explicou Oliveira Marques, a formação de grandes senhorios é uma das
características mais marcantes dos finais da Idade Média portuguesa282. Os filhos e
netos de D. João I foram os grandes protagonistas desse processo que se começa a
desencadear a partir de 1411, data a partir da qual é consensual afirmar que se começam
a conceber esses senhorios. No entanto, também é verdade que o rei começara a cuidar
do património dos filhos mais cedo, já nas cortes de Évora de 1408,283 pouco depois de
regressar de Ceuta, e que a estas casas foram sendo acrescentadas novas doações e
mercês régias ao longo do tempo, como por exemplo a doação do mestrado de Cristo ao
infante D. Henrique em 1420.
Muitos são os trabalhos disponíveis sobre os bens e ducados da primeira geração
dos infantes de Avis: vejam-se os estudos de Dias Dinis284, de João Silva de Sousa285,
de Peter Russell286, de Humberto Baquero Moreno,287 que trouxeram luz sobre o amplo
património dos vários infantes. Interessa-nos relembrar sinteticamente a constituição de
três destes fortes núcleos patrimoniais para perceber aquilo que viriam a ser as doações
e o próprio património do infante D. Fernando, uma geração depois. Cronologicamente
faz sentido começar por mencionar os bens de um dos filhos mais novos de D. João I, o
infante D. Fernando, uma vez que este faleceu muito antes do infante D. Henrique e que
o seu sobrinho D. Fernando terá herdado os seus bens. A inexistência de documentação
que comprove que a herança foi recebida pelo jovem sobrinho coloca-nos dúvidas
relativamente àquilo que, dentro de todo o património do infante D. Fernando, terá sido
herdado do seu tio. Isto é, será que herdou efectivamente algo do que eram os bens do

282
MARQUES, A.H. de Oliveira – A propriedade Fundiária e a Produção. In SERRÃO, Joel,
MARQUES, A. H. de Oliveira (dir.) - Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV. Lisboa: Editorial
Presença, 1987, p. 82.
283
SOUSA, 2001, p. 139.
284
DINIS, António Joaquim Dias – O Primeiro Duque de Viseu. Estudos Henriquinos, vol. 1, Coimbra,
Universidade de Coimbra, 1960.
285
SOUSA, João Silva de – A casa Senhorial do Infante D. Henrique... e os artigos: “D. Duarte, infante e
rei e as casas senhoriais (1411/1415-1438)”, Lisboa, Sociedade Histórica da Independência de Portugal,
1991, e as Casas Senhoriais no Portugal Quatrocentista. Revista de Ciências Históricas, vol. IX, 1994, pp.
95-104.
286
A já citada biografia do infante D. Henrique.
287
MORENO, Humberto Baquero – A Batalha...; “O infante D. Pedro e o Ducado de Coimbra”, Revista
de História, vol. V, Porto, 1983-84, pp.27-51. Acrescente-se sobre o infante D. Pedro o artigo de Maria
Helena Coelho no volume da revista Biblos dedicado exclusivamente a este: COELHO, Maria Helena –
“O infante D. Pedro duque de Coimbra”, Biblos, vol. LXIX, 1993, pp. 15-57.
111
infante D. Fernando? Entre 1429 e 1431 recebia o “Infante Santo”, do seu pai, aquilo
que viria a constituir o eixo central do seu pequeno património: a vila de Salvaterra,
com a sua jurisdição, padroado, termo e igreja, a lezíria de Romão e os direitos régios
sobre o campo de Sacarabotão; a vila de Atouguia da Baleia, com os respectivos direitos
e rendas e, em data já desconhecida, as ilhas das Berlengas e do Baleal, a feira franca
anual de Salvaterra de Magos, para além dos acrescentamentos proporcionados por ser
governador e administrador de Avis e de bens que teria em Alcobaça.288 Relativamente
à milícia sabemos que o infante não foi dela governador; quanto ao cenóbio
alcobacense, não temos quaisquer notícias da ligação deste a D. Fernando. No que diz
respeito às ilhas que pertenciam ao tio, nunca o infante terá sido delas senhor nem após
a morte do homónimo, uma vez que foram doadas ao infante D. Henrique289 em
Dezembro de 1449, nem após a morte deste último, dado que em Abril de 1464, D.
Afonso V as doaria a Jorge de Vasconcelos, filho de um fidalgo régio, tal como
Atouguia.290 Assim, do principal núcleo de bens do infante D. Fernando, a feira de
Salvaterra foi transferida para o jovem infante, ainda o tio não tinha falecido cativo.291
A doação da feira ao infante D. Fernando, irmão do rei, ocorre em Junho de 1439,
quando o seu senhor ainda era vivo no norte de África. Por esse documento o rei
confirmava todas as prerrogativas e privilégios da feira franca de Salvaterra tal como a
tinha o tio do infante desde 1434: era anual, tinha início no dia 10 de Setembro, durava
oito dias, isentava os que a ela fossem do pagamento de metade as sisas, excepto no
caso da venda de carne de talho, do vinho de taberna e de outros bens de raiz, que não
lhe fossem retiradas as bestas ou impostos, que não fossem presos, acusados por crimes
ocorridos fora do recinto da feira. Para além de que proibia a correição de meirinhos e
corregedores na mesma.292 Recebia assim o infante D. Fernando, de apenas seis anos, a
sua primeira doação e privilégio de feira de Salvaterra de Magos, provavelmente pelas
disposições testamentárias do malogrado infante Fernando, que o tornaram seu herdeiro,

288
FONTES, 2000, pp. 26-35.
289
MH, vol. X doc. 96, p. 150.
290
Chancelaria de D. Afonso V, liv. 8, fl. 67v. O diploma régio contempla igualmente a doação da
Atouguia, o que significa que não caíra em mãos do infante D. Fernando (como era de prever) num
momento em que a constituição da sua casa, património e poder atingiam o auge.
291
RAU, Virgínia – Feira Medievais Portuguesas. Lisboa: Editorial Presença, 1983, p. 147.
292
Veja-se o referido diploma régio em Chancelaria de D. Afonso V, liv. 18, fl. 80-80v.
112
mas sem que isso seja uma explicação directa, uma vez que todo o outro património não
parece ter-lhe sido atribuído, como vimos. Posteriormente, em 1451 receberia do
monarca a confirmação do senhorio da referida feira, com as mesmas condições.293 No
entanto, a feira de Salvaterra não seria a única doação dentro dos bens do “Infante
Santo” a chegar a mãos do infante D. Fernando. Em Abril de 1461 era-lhe confirmada a
doação dos lugares do Campo de Sacarabotão e de Romão,294 associados também a
Salvaterra e que tinham pertencido ao infante D. Fernando. Não sabemos quando esta
doação foi feita, apenas que lhe foi confirmada já depois da morte do infante D.
Henrique.
Como veria tudo isto o infante preso em África, numa altura em que ainda se
correspondia com o irmão regente?295 O problema da herança do infante D. Fernando,
que aparentemente não foi respeitada, agrava-se quando deparamos com a existência de
um segundo e último testamento seu. Frei João Álvares referiu que D. Fernando, em
1441, se propôs redigir um segundo e final testamento, para além de dois codicilos que
terá enviado ao infante D. Pedro na mesma altura. Dias Dinis reconhece que os textos
não são conhecidos, o que nos coloca a questão obrigatória sobre as alterações a que o
infante terá procedido no seu último testamento. Teria voltado atrás nas suas
disposições iniciais de manter o jovem infante D. Fernando enquanto seu herdeiro? É
verdade que essa decisão fora tomada em circunstâncias muito especiais, para persuadir
D. Duarte a aceitar o ataque a Tânger? Mas as preocupações do infante cativo pareciam
agora ser outras. Numa das suas cartas endereçadas a D. Pedro, D. Fernando revela as
ajudas preciosas com que tinha contado no acesso aos bens de primeira necessidade
como a alimentação, para a qual recebeu ajuda e o dinheiro de mercadores genoveses,
que cita nessa carta. Pede o infante a D. Pedro que o infante D. João, que este nomeara
para cuidar dos bens e fazenda de D. Fernando, procedesse ao pagamento do dinheiro
que estes homens lhe haviam emprestado para que sobrevivesse: (...) ao infante D.
João, nosso irmão, eu bos peço, por merce lhe façais esto saber e isto mesmo que
mandeis a meus officiaes que correjão este erro, que certamente he tamanho, porque eu
293
Chancelaria de D. Afonso V, liv. 34, fl. 135.
294
SOUSA, 1991, p. 280.
295
“A Última Carta do Infante Santo e a Falência do Seu Resgate”, (pub. Domingos Maurício Gomes dos
Santos), Anais da Academia Portuguesa da História. Série II, Vol. 7, (1956), pp. 9-32.
113
e os meus sedo poderei perecer de fame e que logo trigosamente se encaminhe o
pagamento de todo o que devido for a mice Venceguerree também tudo o que ora me
tem emprestado o dito mice Pollo de Franquèm (...).296 Ainda surge o nome do
mercador maiorquino Cristóvão Axalón, grande auxílio do infante, e dos que com ele se
encontravam no cárcere. Além de pedir que fizessem estes pagamentos, o infante
voltava mais uma vez a preocupar-se com a protecção das famílias daqueles que o
serviam no cativeiro, encomendando a sua mercê ao infante regente.297 À semelhança
do que fizera no seu primeiro testamento, seriam estes os novos contemplados do seu
segundo texto, juntamente com os mercadores que mencionámos? Manteria a posição
de herdeiro do seu sobrinho no novo texto? Ou não o mencionou, o que pode explicar o
porquê de este ter herdado apenas a feira de Salvaterra e as terras envolventes? No
entanto, é pouco provável que os infantes em Portugal tivessem conhecimento deste
último texto, uma vez que quem o terá transportado até ao Regente em Portugal,
Cristóvão Axalón, morreu na viagem para viagem para Lisboa.298
Independentemente da existência de um segundo documento tido como
testamento do “Infante santo”, o infante D. Fernando herdaria apenas deste tio,
Salvaterra (a feira e os supracitados campos), espartilhando-se assim o pouco extenso
núcleo patrimonial do primeiro.

6.2. Herdar do Infante D. Henrique

6.2.1. Títulos, bens, doações e privilégios de D. Fernando em torno dos anos de 1450 e 1460

A data do falecimento do infante D. Henrique deverá ser vista como um dos


momentos cruciais da vida do infante D. Fernando. Como vimos, a herança que
supostamente deveria receber do “infante santo” nunca foi sua. Assim, seria com o
desaparecimento do seu pai adoptivo que D. Fernando se tornaria duque de Viseu e
governador da Ordem de Cristo. Para além dos óbices colocados pelo infante D.

296
“Carta do Infante Santo ao Regente D. Pedro, datada da masmorra de Fez a 12 de junho de 1441”
(pub. por António Joaquim Dias Dinis), Anais da Academia Portuguesa de História, 2ª Série, vol. XV,
1965, p. 166.
297
Carta do Infante Santo..., p. 170.
298
Carta do Infante Santo..., p. 160.
114
Henrique a que D. Fernando herdasse o seu património, como já se referiu, a verdade é
que a partir de 1460 a casa de Viseu ganha um novo senhor para aqueles que eram os
extensos domínios continentais do infante D. Henrique e os respectivos bens insulares.
Ainda que a documentação relativa à administração de património de D. Fernando
seja quase inexistente, interessa lembrar as posses do infante D. Henrique para
compreendermos aquilo que D. Fernando herdou, ainda que não nos seja possível
traduzir isso em riqueza efectiva.
Como se sabe, a bibliografia e a dedicação dos investigadores ao infante D.
Henrique é ampla e tal inclui, como devia, o estudo dos seus bens e casa. Tais estudos já
foram citados nos momentos próprios deste trabalho e remetem-nos para o património
henriquino, que se conjuga com uma das características mais importantes do século XV
português, a formação dos grandes senhorios, dos quais o do infante D. Henrique terá
sido certamente um dos mais poderosos. Uma breve história destes grandes senhorios299
tem que entroncar obrigatoriamente na Coroa, quando a partir de 1411 o rei D. João I
começa a constituir o património dos seus filhos mais velhos300: D. Pedro e D.
Henrique. D. Pedro torna-se duque de Coimbra, concentrando em si territórios em torno
dessa cidade e à volta de Aveiro; e o infante D. Henrique, cujo património laico se
distribuía pela Beira (Viseu, Covilhã, Gouveia, Lafões, Linhares, Seia, S. Romão,
Penalva, Celorico da Beira, Tarouca, Aguiar da Beira, Sátão, Rio de Moinhos, Guardão,
Calvos, Lalim, Valdigem, Sul, Gulfar, Matança, Vila Cova, Santa Marinha, Reriz, etc.),
se prolongava até ao Algarve (Alvor e Lagos), até todas as ilhas que o infante povoou e
administrou e aos bens da Ordem de Cristo, que também lhe ‘pertenciam’. Ainda dele
foram Pombal e Tomar (comendas de Cristo, onde manteve comendadores que a ele se
encontravam ligados e que geriam esses espaços), os lugares de Montalvão, Alpalhão e
Arez (no Alentejo - arredores de Nisa), alguns bens em Évora, as pousadas de Alenquer
já no Ribatejo, bens imóveis em Lisboa, nomeadamente em S. Vicente de Fora, nas
tercenas da cidade, junto à casa de Ceuta, uns quartos no Lumiar e casas na freguesia de
S. Nicolau;301 fora protetor do estudo geral na capital, cargo continuado a exercer pelo

299
E não nos ocupando aqui da Casa de Barcelos sobretudo após a titularidade de Nuno Álvares Pereira.
300
MARQUES, 1987, pp. 86-87.
301
Para todos estes espaços, lugares e vilas henriquinos veja-se SOUSA, 1991, pp. 87-97.
115
seu herdeiro. Pese o facto de todas estas terras se encontrarem distribuídas por diversas
regiões do reino, desde o norte-centro, passando pela capital (proximidade à coroa e à
gestão dos assuntos ultramarinos como a Casa de Ceuta, por exemplo) até ao Ribatejo,
sobretudo Alto Alentejo e Algarve. Um bom ‘panorama’ para um infante herdeiro que
tantas vezes demonstrou ser ambicioso.
Ainda relacionados com todas estas terras e bens, devem ser acrescentados todos
os direitos e monopólios de D. Henrique. A doação de territórios vem sempre
acompanhada dos respectivos direitos senhoriais e de outros rendimentos. O infante, tal
como outros senhores do seu tempo, teve o direito de julgar e de aplicar justiça
(nomeadamente através de prisões, que as tinha, tal como o infante D. Fernando
também teve),302 de organizar e comandar303 dentro das suas terras, tendo em parte para
isto essas cadeias, como as tinha o infante D. Fernando, com os respectivos carcereiros;
tinha o direito de receber rendas em serviços, géneros ou dinheiro; era senhor das feiras
na cerca da Vala da Cidade de Viseu e de Tomar e dos valiosíssimos privilégios da de
Trancoso, de longe a maior feira do país, para além de outras riquezas materiais que
passaremos a enumerar. João Silva de Sousa fala de uma transumância organizada
pelas suas terras da Beira, através da qual beneficiaria da exploração da lã. Esta foi
apenas uma das várias ‘indústrias’ das quais o infante retiraria ainda mais dividendos,
como as madeiras das ilhas (com as suas variadas utilizações, nomeadamente para
utensílios agrícolas, mas também para negócios da expansão ultramarina em que esteve
envolvido); as saboarias de sabão preto e branco, que tinha em Lisboa, na Ribeira de
Santarém e noutros locais do reino, das quais chegou mesmo a ter o monopólio; as
pescarias (nas sua coutadas de pesca) realizadas entre Portugal e os espaços
ultramarinos nas ilhas atlânticas e na costa africana e o exclusivo de algumas delas

302
Numa carta perdão de 1490 é-nos contada a história de Pedro Fernandes, escudeiro de Alcácer do Sal e
que fora preso em Setúbal por proferir palavras ofensivas contra os seus juízes. Refere-se de seguida que
o carcereiro o trazia solto nos antigos paços do infante D. Fernando em Setúbal, onde também ficava a
cadeia (Chancelaria de D. João II, liv. 13, fl. 25v-26). Veja-se ainda outro exemplo: em 1465, estando a
cadeia do infante D. Fernando, que andava perante Gil Afonso, seu ouvidor, em Celorico da Beira, fora
dado o encargo ao réu Fernão Vasques de a guardar durante uns dias por o carcereiro estar ocupado. Este
deixou os presos escapar da cadeia (Chancelaria de D. Afonso V, liv. 14, fl. 56v. 57). E por fim, a menção
a um carcereiro do infante D. Fernando na prisão de Beja: João Vasques (Chancelaria de D. Afonso V,
liv. 14, fl. 92v).
303
SOUSA, 1991, p. 189.
116
(como o da pesca do atum e da pesca do coral em Portugal); os exclusivos da tinturaria
e da exploração de pastel, riqueza a que se somaram o ouro, os escravos africanos e o
acesso à malagueta da Guiné,304 com os quais gastou largas quantias de dinheiro, mas
que significaram o engrossar poderoso do seu património e riqueza.
Antes de receber a herança henriquina, D. Fernando já era duque de Beja e senhor
de Serpa, Moura e da feira de Salvaterra, sucedendo aqui ao “Infante Santo”, como
vimos, e governador da Ordem de Santiago. No que a títulos diz respeito, para além de
ser duque de Beja, era ainda condestável do reino e fronteiro-mor no sul. Estes eram os
cargos, títulos e bens que o infante já tinha antes da morte do infante D. Henrique.
Acrescente-se as doações henriquinas de Gouveia,305 já por nós referidas, e do temporal
das ilhas da Terceira e Graciosa, feitas ainda antes da morte do ‘Navegador’, em Maio e
Agosto de 1460, respectivamente. Destas duas últimas falámos em momento oportuno.
Cabe agora acrescentar as doações feitas ao infante relativamente às ilhas e que também
aconteceram antes do falecimento do infante D. Henrique: a primeira data de 1457,306
quando D. Afonso V doa ao infante D. Fernando e aos seus sucessores todas as ilhas
que este venha a descobrir e que delas faça seu senhorio, assim como das suas gentes; o
rei reserva para si os feitos crime que impliquem morte ou talhamento de membros, uma
vez que os outros pleitos cíveis e crimes seriam os oficiais de D. Fernando a
desembargar. A segunda doação307 é feita pelo próprio infante D. Henrique, já em
Agosto de 1460, quando, manifestando o infante D. Fernando o desejo de povoar
algumas ilhas, como serviço de fé a Deus, perante ilhas henriquinas que estão
desabitadas, decidiu o seu pai adoptivo fazer-lhe esta doação, a ele e aos seus
descendentes. Estes são citados como sendo de linha lidima mascolina; doa-lhes então a
ilha de Jesus Cristo, a ilha Graciosa com todas as suas rendas, direitos, jurisdição, cível
e crime e mero e misto império, resguardando para a Ordem de Cristo a espiritualidade
das mesmas, assim como a vintena e a responsabilidade de lá colocar vigário,

304
SOUSA, 1991, pp. 191-216.
305
MH, vol. XIII, doc. 170, pp. 274-275.
306
MH, vol. XIII, doc. 66, 1972. pp. 113-114. Publicado também em: Descobrimentos Portugueses, vol.
I, doc. 425, pp. 543-544.
307
MH, vol. XIII, doc. 187, 1972. pp. 335-337. Publicado também em: Descobrimentos Portugueses, vol.
I, doc. 450, pp. 574-576.
117
confirmado pelo governador. Por fim, o infante D. Henrique demite-se do senhorio
destas ilhas. Ainda antes do desaparecimento do infante D. Henrique, em 1459, obteve o
infante D. Fernando as lezírias dos Barrocais de Redinha. No ano seguinte receberia do
rei os quartos régios do Lumiar, a quinta de Carnide, os bens que João Fernandes
Pacheco tinha em Lisboa e casais em Loures308.
Refere ainda António Caetano de Sousa que o infante herdou as terras que foram da
sua sogra, D. Isabel, a mulher do infante D. João, seu tio.309 Tal faz todo o sentido pelos
seus laços matrimoniais com a filha desta. Talvez esta herança explique a razão pela
qual o infante tenha pedido ao irmão que, em 1463, os lavradores, caseiros e
reguengueiros do reguengo de Colares, da infanta D. Isabel, fossem isentos do
pagamento de impostos e encargos concelhios, de serem postos por besteiros do conto,
bem como do direito de pousada.310 D. Isabel de Barcelos era detentora das terras e
jugados de Lousada; da terra de Paiva e de Tendais, com suas rendas e direitos; da vila
de Almada com suas rendas e direitos311 e das rendas e direitos de Loulé e seu termo.
Tudo isto tinha D. Isabel obtido pela doação do seu avô, o condestável D. Nuno, em
1422.312 Os bens seriam herdados pela filha, e certamente pelo genro que, se herdou,
terão sido os da sogra e os do sogro, o infante D. João.

A adopção pelo infante D. Henrique (e do qual não foi o único herdeiro directo) fez
com que ficasse com o ducado de Viseu, o que significou o acesso a todos os bens e
património que elencámos em cima. Tal dar-lhe-ia ainda o senhorio sobre as terras de
Besteiros, Lafões, Catam, Covilhã, a alcaidaria da Guarda, Tavira, Marvão e os direitos
reais de Santarém, a judiaria, a mouraria e reguengo daquela vila313. Ainda nem um mês
se passara desde a morte de D. Henrique, e já o infante estava a receber a Madeira e as
ilhas açorianas e cabo-verdianas; a 9 de Dezembro desse mesmo ano D. Afonso V
entregava ao irmão as saboarias brancas e pretas de todo o reino, no mesmo regime em

308
SOUSA, 1991, p. 279.
309
SOUSA, 1947, pp. 284-289.
310
Chancelaria de D. Afonso V, liv. 9, fl. 54v.
311
Com a excepção dos direitos da quinta de Murfacém - dados a Gil Aires enquanto fosse vivo.
312
MONTEIRO, 2017, p. 196.
313
SOUSA, António Caetano de - Historia Genealogica da Casa Real Portugueza. Coimbra: Atlântida,
1947, pp. 284-289, cap. VIII, tomo II.
118
que as tivera o infante D. Henrique314, isto é, em monopólio e que determinara no seu
testamento que passariam para D. Fernando. O monopólio das saboarias causa protesto
entre os povos: as queixas pelo facto de estas serem monopólio dos duques de Viseu
prolongam-se e agravam-se já desde os tempos do infante D. Henrique. Tal é visível
num capítulo de cortes de Março de 1473,315 pouco depois da morte do infante D.
Fernando, quando há reclamações que querem o fim do monopólio do fabrico e venda
de sabão no reino por parte dos duques de Viseu. Alegam que é grande agravo não
poderem fazer o seu próprio sabão do seu azeite para uso doméstico: (...) porque asas he
gramde agravo nam poder cada huu ffazer sabam do seu azeite, sequer pera despesa de
sua casa; relembram umas cortes feitas em Santarém nas quais já se falara em tal
assunto e que o rei dissera que não poderia retirar esse monopólio ao seu tio, mas que
com a sua morte iria agradar ao povo. Ora tal não se verificou, porque continuou em
mãos do seu irmão; e como este agora já falecera, tentavam as pessoas conseguir esse
benefício. O rei responde que fizera essa mercê ao seu sobrinho e que era necessário o
problema ser examinado, acabando por deixar o assunto em suspenso. Foi-lhe dado o
ducado de Viseu; o senhorio da Covilhã;316 o monarca concedeu privilégios aos pastores
castelhanos que trouxessem os seus gados a Campo de Ourique a pedido do infante,317
em Março de 1461. A ordem de Cristo também acabaria por lhe ser entregue em 1461;
em 1462 o rei doar-lhe-ia as ilhas de Cabo Verde encontradas por António da Noli com
todos os direitos e jurisdições, reservando o rei para si a alçada e crimes que pudessem
implicar pena de morte e amputação.318 Em 1463 era senhor de Goujoim, termo de
Santão;319 em 1464, D. Afonso V doa ao irmão vitaliciamente a vila henriquina de
Lagos e o seu castelo com a sua jurisdição cível e crime, rendas e direitos, ressalvando
para a Coroa a sua correição.320 Lagos trazia consigo um privilégio desde os tempos do
infante D. Henrique e que se estende a D. Fernando. Tal é demonstrado num documento

314
MH, vol. XIV, doc. 35, pp. 108-109.
315
MH, vol. XV, doc. 42, 1974. pp. 62-63.
316
Por exemplo: em 1463, D. Afonso V privilegia o irmão, concedendo à ferraria de Teixoso, termo da
Covilhã, isenção do pagamento da sisa, de outros tributos pagos sobre a venda do ferro e da prestação de
serviços para as pessoas que nela trabalhassem. Chancelaria de D. Afonso V, liv. 9, fl. 79v.- 1463
317
SOUSA, 1991, p. 280.
318
Chancelaria de D. Afonso V, liv. I, fl. 61.
319
Chancelaria de D. Afonso V, liv. 9, fl. 24.
320
Chancelaria de D. Afonso V, liv. 8, fl. 34.
119
de D. João II, onde este confirma duas cartas de D. Afonso V, de 1460 e de 1470, já
depois das mortes dos infantes D. Henrique e D. Fernando. Estas dizem respeito ao
privilégio da cidade de Lagos ser sempre real e não ser dada a nenhum senhor. Na
primeira o infante D. Henrique pede que depois da sua morte a vila não seja dada a mais
ninguém; D. Afonso V compromete-se a cumprir tal requerimento. No entanto, o
estatuto de a vila ser sempre realenga não parece significar que não seja dada a outro
membro da família real, uma vez que D. Afonso V fará mercê dela ao seu irmão, o
infante D. Fernando, verificada em carta de 1470 e onde se pede que se ratifique o
privilégio do infante D. Henrique, depois da morte de D. Fernando. D. João II
confirmaria isto a Lagos321. Na vila, D. João II confirmaria a Diogo Gil, em 1486, o
cargo de juiz dos órfãos de Lagos, como já o tinha por carta de D. Afonso V (de 7 de
Novembro, 1470), do infante D. Henrique e do infante D. Fernando.322 Por fim, o novo
duque de Viseu alcançava a protecção e o governo da Universidade, um outro resquício
do poder henriquino que remontava aos inícios da década de 1420.323 Exerceu o seu
poder na Universidade, de forma atenta, tal como o faria em outros âmbitos dos seus
domínios: a sua acção desdobrou-se junto dos lentes, reitores e estudantes do estudo
geral de Lisboa. As boas normas, a conduta adequada, o respeito pelas regras, pela
324
instituição e pela excelência da mesma preocuparam-no tal de forma que, ao longo
da década de 1460, redigiu alvarás como aqueles em que se dirige a Fernão Gonçalves,
bedel da Universidade de Lisboa, para que tenha cuidado e vigie os lentes que não
leccionarem as respectivas lições, para que lhes seja descontado no soldo; para aqueles
que colocarem outros a dar as suas aulas, ordena o infante que apenas se lhes pague
metade; o bedel devia entregar estas informações ao reitor.325 Ainda no mesmo dia (24
de Julho) escrevia aos reitores, lentes, e conselheiros do estudo e universidade de

321
Chancelaria de D. João II, liv. 8, fl. 216-17.
322
Chancelaria de D. João II, liv. 19v, fl.6v.
323
COSTA, 2009, p. 134.
324
Tal também pareceu preocupar o rei quando, em 1469, escreve ao irmão, que enquanto protector da
universidade deveria fazer com que as cadeiras de ciências do dito estudo fossem dadas pelos mais
afamados e prudentes lentes, segundo o regimento e estatutos do estudo. Alerta-o para ver bem as rendas
do estudo, para mandar que sejam remunerados os bons lentes e letrados segundo o mérito de seus
trabalhos e a excelência do seu saber e engenho. Chartularium Universitatis Portugalensis, vol. VI, doc.
2245, pp. 472-473.
325
Chartularium Universitatis Portugalensis, vol. VI, doc. 2002, p. 237.
120
Lisboa, proibindo os lentes e estudantes do estudo geral de atentarem contra a
instituição, sob pena de os lentes perderem o salário de um ano de cada vez que tal
fizessem. Este dinheiro era entregue pelo bedel ao recebedor, que o não devia entregar
em caso de incumprimento. Se fossem escolares a transgredir as regras, D. Fernando
ordenava que fossem postos fora do estudo e que não fossem aceites até o infante lhes
dar mercê em contrário.326 Em Outubro de 1467, instituía uma certidão que
comprovasse que os lentes tinham trabalhado durante o ano na universidade. Estes só
deveriam receber o seu salário com este alvará de certidão. Tal documento seria passado
pelo bedel. Especifica-se o lente de teologia, que deverá ter tal alvará quando for
receber o seu salário junto do infante.327 Tratou o infante ainda da gestão do património
da universidade, mediando um conflito relacionado com um emprazamento da Quinta
dos Mogoos (que pertencia à instituição). Fora este primeiramente feito a João da Porta
Nova, mas que o licenciado mestre Joane, cavaleiro da sua casa, refere como ilegítimo e
que seria necessário desfazer. Serve este documento para desfazer o emprazamento e o
transferir para o referido Joane, considerando que assim seria mais proveitoso.328
Os três alvarás fernandinos passados à Universidade de Lisboa (dois de 1462 e o
último de 1467) deverão ter causado impacto e ter-se tornado estruturais na condução
dos assuntos internos da mesma, para que em 1471, já depois da morte do infante, o rei
acentue que eles deveriam ser cumpridos e os confirme.329
Ao mesmo tempo que recebia a herança henriquina, o infante recebia um
assentamento de 2 208 561 reis, entre os anos de 1461 e 1469, retirados pelo menos dos
seguintes almoxarifados: Setúbal, Faro, Tavira e Beja330. Terá sido este o maior
assentamento feito no reinado de D. Afonso V, neste caso, para o seu irmão. Na
inexistência de qualquer documentação que contenha dados quantitativos sobre o

326
Chartularium Universitatis Portugalensis, vol. VI, doc. 2003, p. 238.
327
Chartularium Universitatis Portugalensis, vol. VI, doc. 2192, pp. 423-424.
328
Chartularium Universitatis Portugalensis, vol. VI, doc. 2260, pp. 483-484.
329
D. Afonso V dirige-se aos reitores, lentes e conselheiros e a outros oficiais do estudo de Lisboa,
referindo que viu três alvarás do infante D. Fernando a essa instituição. Serve esta carta para os confirmar
e para que estes os cumpram. Estabelece que os lentes vão aos conselhos a cada quinze dias, que
cumpram os horários e determina as obrigações do bedel: esteja atento se os oficiais cumprem o seu
serviço como devem e, se não, que tome nota daqueles que não fazem bem o seu serviço à universidade.
Se este não cumprir as suas obrigações deverá ter cortes no salário. Chartularium Universitatis
Portugalensis, vol. VII, doc. 2335, pp. 8-9.
330
FARO, 1965, p. 198.
121
dinheiro que um senhor como o infante teria, estes dados são reveladores sobre a
enorme quantidade de numerário de que deveria precisar para se sustentar a si e a todos
aqueles que protegia e que dele dependiam. Usufruiria deste valor até praticamente às
vésperas da sua morte, ou não fosse um senhor ciente da necessidade de manter o seu
poder, a representação social e de engrossar a sua riqueza e património.
Como poderoso e influente que era, D. Fernando obteve e concedeu privilégios para
aqueles que habitavam e trabalhavam nos seus domínios, tendo intercedido por várias
pessoas. Talvez um dos mais notáveis privilégios que tenha recebido esteja relacionado
com Ceuta, cidade da qual nunca foi governador, ao contrário do seu pai adoptivo, mas
à qual esteve sempre muito ligado. Em 1462, D. Afonso V concedia ao conde de Vila
Real, capitão de Ceuta, amplos privilégios e faculdades no governo desta cidade, tais
como os infantes D. Henrique e o seu irmão as tinham tido. Eram estas: o poder de
nomear e dar todos os ofícios da cidade, como o vedor da fazenda, tesoureiro-mor,
contadores, escrivães da fazenda e contos e recebedores; poder criar outros ofícios que
ache necessários para a governança da cidade; que tenha inteiramente a jurisdição das
lezírias, reguengos e jugadas da cidade; que ele seja responsável pelos oficiais e pelas
terras e por quem as lavre, arrenda, explora e pelas suas rendas; que a partir do janeiro
seguinte os mercadores que têm firmado trato com o rei sobre a governação da cidade
acudam ao conde ou a quem a ele mandar; e por esta carta deixam de estar obrigados
perante o rei, mas sim perante o conde, tal como os dinheiros que deste trato faziam
parte. O rei concede ainda poder para que o conde possa controlar os mercadores e os
rendeiros, poder sobre os oficiais, as terras, rendas e tudo o que seja associado à cidade;
manda que todos os oficiais, rendeiros e pessoas que lhe obedeçam em tudo e que
executem os seus mandatos, tal como se fosse o rei a ordenar; se tal não fizerem o rei dá
poder ao conde para lhes aplicar a pena que melhor lhe parecer.331
No caso dos pedidos que D. Fernando fez ao rei e pelos quais intercedeu e dos
privilégios que concedeu enquanto senhor, vejam-se os exemplos que se seguem. Em
1463 queixava-se o concelho de Beja do agravo que os oficiais de justiça sofriam ao
pagar portagens noutras zonas do reino. Pedem ao rei que penalize quem não cumprir o

331
MH, vol. XIV, doc. 77, pp. 210-212. Publicado também em: Descobrimentos Portugueses, vol. III,
doc. 15, pp. 23-25.
122
privilégio, pagando 6000 soldos d' encoutos, que os almoxarifes deverão arrecadar, com
o que D. Afonso V concorda, querendo fazer graça ao seu irmão, senhor da vila de
Beja.332 Outro caso é o de Estêvão Eanes do Monte, morador em Beja, para quem o
infante pede, em 1469, privilégios, honras, liberdades e franquezas, como não andar por
mar, nem por terra, em períodos de paz ou de guerra, ou de qualquer outra forma junto
do rei, do príncipe e do respectivo infante333. Conhecemos o exemplo de João Garcês,
que foi feito cavaleiro pelo infante em Anafé,334 privilégio que recebeu directamente do
infante. Quando em 1486 D. João II confirma aos moradores de Alcácer do Sal,
sobretudo aos moradores do castelo, um privilégio geral, de escusa de aposentadoria
(aplica-se esta às casas de morada, adegas, cavalariças, roupa de cama, alfaias de casa,
pão, vinho, cevada, palha, lenha, galinhas, gados, bestas de sela nem de albarda), nem
outra nenhuma coisa que seja conta sua vontade, nem vão com presos, nem com
dinheiros, nem sejam postos nem dados por besteiros do conto, ficamos a saber que tais
privilégios tinham sido concedidos pelo infante a 16 de Janeiro de 1466.335
Já em 1450 tinha pedido a D. Afonso V que privilegiasse Gonçalo Martins
Azambujo, morador em Alcácer e criado do infante D. João, isentando-o do pagamento
de diversos impostos e de ir à guerra, salvo com os infantes.336 Em 1468 o infante surge
envolvido num outro caso onde apela ao rei por alguns homens. O contexto deste
documento da Chancelaria de D. Afonso V implica a conturbada alcaidaria de Pedro
Caldeira em Marvão. Tinha-a obtido na sequência da batalha de Alfarrobeira. Durante a
sua vigência como alcaide vários são os conflitos com homens que o tentaram matar e
várias cartas de perdão são passadas nesse contexto. Dois dos seus homens acabam
feridos. E é nesse esforço de conciliar as partes que encontramos o infante D. Fernando
a interceder pelos homens que foram contra o alcaide: Fernão d' Álvares, João

332
Chancelaria de D. João II, liv. 8, fl. 193v.
333
Chancelaria de D. João II, liv. 8, fl. 193v.
334
Em 1481, D. João II concede-lhe o título de fidalgo e cota de armas (e aos seus descendentes
vitaliciamente, com todos os direitos e privilégios que os senhores sempre tiveram) por ser cavaleiro da
sua casa, escrivão da sua fazenda, e por todos os serviços que prestou ao reino e ao rei. Entre estes
contam-se os combates em Alcácer, a presença na expedição militar que matou D. Duarte de Meneses, na
cidade de Anafé e onde foi feito cavaleiro pelo infante D. Fernando, bem como nos combates em Arzila e
Tânger e em outras batalhas, entre as quais se conta a batalha de Toro, como se refere. Chancelaria de D.
João II, liv.2, fl. 157.
335
Chancelaria de D. João II, liv. 8, fl. 224-224v.
336
Chancelaria de D. Afonso V, liv. 34. fl. 75v-76.
123
Gonçalves, João Afonso Marnarouro e Martim Afonso Marques, moradores em
Marvão. A queixa recai sobre estes e sobre Luís e Diogo de Sousa, que tentaram matar o
alcaide, mas acabaram por ferir James e Afonso Martins, homens deste. Estes últimos
passam uma certidão de perdão, num instrumento público de um tabelião do rei em
Marvão, que é assinada por D. Fernando.337 Em 1469 intercede o infante por Vicente
Chileiros, homiziado há 28 anos em Castro Marim por morte de um homem em Vale de
Boi (termo de Lagos), que sendo já de idade de 70 anos e “fraca disposição”, pede ao rei
que o deixe usufruir dos bens que a família lhe quer deixar em Portugal. Isto porque os
seus filhos e quatro netos iam morar para a ilha de Santiago e queriam que o pai ficasse
em Sagres, onde tinham bens, nomeadamente um couto, que o rei aceita.338 Caso
semelhante é o de Catarina Fernandes, moradora em Beja, que cometera adultério e
incesto contra o marido e que o rei decidira que seria açoitada publicamente. D.
Fernando pede que a pena seja comutada noutra, porque o marido não a aceitaria mais.
O pedido é aceite e ela condenada a pagar 2500 reais a Pero Vaz, capelão do rei.339 Em
1468 pediria ainda pelos homicidas de Rui do Cadaval, escudeiro de D. João, sobrinho
do rei – André Gomes Jordeiro,340 João Vasques341 e Pero Vasques.342 Este último
escudeiro do infante.
Talvez estes casos sejam apenas uma amostra dos privilégios e ajuda que pediu
para pessoas que, de uma maneira ou outra, o serviram ao longo dos anos,
demonstrando ter por elas cuidado e atenção. A todos o rei anuiu, concedendo aquilo
que lhe foi pedido pelo irmão, como em todas outras circunstâncias que temos vindo a
analisar.

337
Chancelaria de D. Afonso V, liv. 31, fl. 6. Sobre este caso da alcaidaria de Marvão veja-se também
DUARTE, 1993, pp. 331-334.
338
Chancelaria de D. Afonso V, liv. 31, fl. 114v.
339
Chancelaria de D. Afonso V, liv. 9, fl. 136v.-137.
340
Chancelaria de D. Afonso V, liv. 28, fl. 112v.
341
Chancelaria de D. Afonso V, liv. 28, fl. 109v.
342
Chancelaria de D. Afonso V, liv. 28, fl. 110v.
124
Capítulo 7 – O infante, as ilhas e o mar

A partir de 1460, D. Fernando, por ser filho do infante D. Henrique, torna-se senhor
incontestado de todas as ilhas descobertas à época. Como vimos já recebera, por doação,
a ilha de Jesus Cristo e a Ilha Graciosa, pouco tempo antes de o infante falecer.
Recebera-as por estas serem ilhas henriquinas que estavam por povoar e porque
mostrara interesse e vontade nesse aspecto. Em Setembro de 1460, D. Henrique tentava
fazer cumprir as últimas disposições testamentárias e redige uma carta confirmando a
salvaguarda das condições reservadas à ordem de Cristo relativas à espiritualidade, à
vintena e aos vigários e acrescenta que esses vigários, durante a sua vida e depois da sua
morte (do infante D. Henrique) deveriam celebrar todos os sábados uma missa de Santa
Maria por sua alma assim como rezar o Pai Nosso e a Avé Maria343. Nesse mesmo dia
faz o infante D. Henrique doação a D. Afonso V, rei de Portugal, das ilhas de S. Luís, S.
Dinis, S, Jorge, S. Tomás, S. Eirea, com as mesmas condições que doara as de Jesus
Cristo e Graciosa ao outro sobrinho, o infante D. Fernando344. Como sabemos, esta era
uma das novidades do último testamento henriquino: à excepção das ilhas que já tinham
sido doadas ao sobrinho, as restantes ficariam para a Coroa. Como as últimas vontades
do infante não foram respeitadas, D. Afonso V transfere as ilhas para os domínios do
irmão, fazendo-lhe mercê das seguintes: Madeira, Porto Santo, Deserta, S. Luís, S.
Dinis, S. Jorge, S. Tomás, S. Eyrea, Jesus Cristo, Graciosa, S. Miguel, Sta Maria, S.
Jacobo e Filipe, ilhas Mayas, ilha de S. Cristovão, ilha Lana345, com todas as rendas,
direitos e jurisdições tal como as tinha o infante D. Henrique. Acrescenta ainda o
monarca que esta doação se estendia ao filho barão primogénito de D. Fernando e que
os reis que se seguiam deveriam respeitar e manter esta mesma doação e disposição346.

343
MH, vol. XIII, doc. 191, pp. 343-345. Publicado também em: Descobrimentos Portugueses, vol. I,
doc. 456, pp. 581-582.
344
MH, doc. 192, vol. XIII.
345
MH, vol. XIV doc. 31, pp. 103-104. Publicado também em: Descobrimentos Portugueses, vol. I, doc.
464, pp. 593-594.
346
A 11 de Janeiro de 1473 (já D. Fernando era falecido), D. Afonso V faz doação das ilhas Deserta e da
de Porto Santo, tal como as havia o infante D. Fernando e com todas as suas jurisdições, rendas e direitos,
a D. Diogo, duque de Viseu e de Beja e filho do infante. MH, vol. XIV doc. 31, pp. 103-104. Publicado
também em: Descobrimentos Portugueses, vol. I, doc. 464, pp. 593-594.
125
Para além das ilhas henriquinas que herda, D. Fernando achara ou descobrira ilhas
também já em seu tempo: em 1462, D. Afonso V relembrava uma carta que lhe foi
mostrada pelo infante D. Fernando, de 1457, onde este lhe fazia doação a si e aos seus
herdeiros, de todas as ilhas que fossem encontradas, com a jurisdição cível e crime, à
excepção das alçadas de morte e talhamento de membro; entretanto foram descobertas
12 ilhas, como se diz: cinco por António de Noli (ilha de Santiago, S. Filipe, das Mayas,
S. Cristóvão, e ilha do Sal- que são na Guiné e ainda em tempo de D. Henrique) e mais
sete achadas por D. Fernando: ilha Brava, ilha de S. Nicolau, ilha de S. Vicente, ilha
Rasa, ilha Branca, ilha de Sta Luzia, e a ilha de S. Antão, que são em Cabo Verde.
Concedia agora o monarca o último grupo de ilhas ao infante D. Fernando, que já
foram descobertas entre 3 de Dezembro de 1460 e 19 de Setembro de 1462 e já em
tempo do infante. Estas ilhas mais recentes foram: Brava, S. Nicolau, ilhéus Raso e
Branco, Santa Luzia e Santo Antão. Doação que se estenderia aos seus descendentes,
com o seu senhorio, povoamento e com o livre usufruto dos rios, ancorações, madeiras,
pescarias, coral, tintas, aviveiros, vieiros e com todos outros direitos e jurisdição cível e
crime, reservando o rei para si as alçadas criminais de morte e talhamento347.
Definidas as doações e o património henriquino que herda em ilhas, bem como
aquele que acrescenta de sua própria iniciativa, interessa-nos agora perceber o papel do
infante D, Fernando enquanto administrador dos seus bens ultramarinos. A Madeira
ocupa um lugar único e cimeiro neste processo até porque a documentação de que
dispomos é mais numerosa no que a esta ilha diz respeito. Muito chamou à atenção Joel
Serrão para a riqueza do Arquivo Distrital do Funchal para se conhecer melhor os
meandros da exploração e administração económica da Madeira do período do infante
D. Fernando, referindo-se às várias cópias do regimento que endereçou ao Funchal348.
Foram estas feitas entre os anos de 1461 e 1466 e revelam bem a importância de tal
documento, para a colonização da ilha, nesta fase.

347
MH, vol. XIV, doc. 86, pp. 225-227. Publicado também em: Descobrimentos Portugueses, vol. III,
doc. 22, pp. 33-34.
348
SERRÃO, Joel – O infante D. Fernando e a Madeira (1461-1470): elementos para a formulação de um
problema. In Temas Históricos Madeirenses. Funchal: Secretaria do Turismo, Cultura e Emigração, 1992,
p. 35.
126
Assim pouco tempo após se ter tornado senhor da ilha, dirigia-se o duque aos
habitantes do Funchal por meio de um regimento que tratava dos assuntos mais
diversos. Era este dado em resposta a capítulos que a câmara e povo do Funchal
apresentaram ao infante através dos seus procuradores Pedro Lourenço e João
Fernandes, escudeiros e criados do falecido infante D. Henrique. Mandava o infante D.
Fernando a sua resposta endereçada a João Gonçalves de Câmara de Lobos, seu
cavaleiro e capitão na ilha da Madeira e aos escudeiros, cavaleiros, juízes, vereadores,
procuradores e homens bons desse território. Estes tinham-lhe mandado, por escrito,
assuntos sobre os quais queriam que o infante se pronunciasse. Assim, o 1º item dizia
respeito aos capelães, que o povo se queixava serem poucos (uma vez que no tempo do
infante D. Henrique as gentes eram poucas, mas agora a população crescera e eram
necessários mais). Responde o infante que peçam ao vigário da ilha e que depois lhe
enviem a sua resposta para que decidisse; o 2º item dizia respeito à justiça e à
implementação de dois procuradores na ilha; o 3º tópico relaciona-se com a eleição de
juízes, vereadores e procurador, que deve ser feita todos os anos e que esta se faça
conforme os costumes do reino, com a participação dos pelouros e dos homens bons; o
4º item refere-se ao escrivão da câmara e da almotaçaria que devem ser postos no
concelho e somente através de cartas do infante; o 5º ponto refere as cartas de
segurança, que ordena poderem ser passadas pelo seu capitão na ilha para que estas
sejam utilizadas em alguns negócios e homizios; o 6º ponto é sobre a dízima e sobre
uma queixa que o povo lhe fez de um almoxarife que lhes mostrava um regimento em
que se cobrava dízima sobre coisas e materiais, algo que o infante desmente. Entre estes
contam-se a pedra e a madeira que cada um utiliza para a construção das suas casas, a
lenha e para as forcas e trizeas e outra madeyra delgada, que sse poem nas latadas e
vinhas e tapadura. Refere o infante que, nestes assuntos, mantém os regimentos e foral
que tinha feito o infante D. Henrique (desconhecido); mantém que não se pague dízima
desde que não seja madeira de cedro e de teixo; o 7º tópico recai sobre a dízima da
pedra que se leva do reino para a ilha para fazer cal- é dízima real e deve ser mantida; 8º
item diz respeito aos serviçais e braceiros e à dízima sobre eles e para que esta não se
pague. Neste ponto o infante não se alonga referindo que, nesse momento, não encontra

127
outra forma de resolver o problema a não ser como o infante D. Henrique o tinha
estipulado (o que não sabemos). O 9º ponto é relativo ao carregamento de vinhos,
açúcar e madeira, pão e etc sem pagar a dízima da carga o que o infante não permite e
refere que se devem manter mais os seus interesse do que os do povo, tal como o infante
D. Henrique havia decidido; o 10º ponto diz respeito aos judeus e genoveses que não
tratem na ilha, ao que o infante responde que se mantenham as disposições de D.
Henrique (que também desconhecemos); o 11º assunto refere-se à venda exclusiva do
sal pelo capitão da ilha, e que os moradores não o levem para casa para as suas despesas
e ao aumento do preço do mesmo, ao que responde o infante que tudo se mantenha tal
como o D. Henrique tinha estipulado; o mesmo se aplicaria ao sabão, do qual o infante
detém o monopólio, não permitindo que alguém o faça, venda e leve de um lado para o
outro, a não ser a pessoas por ele autorizadas, como João Gonçalves, capitão da Madeira
que lá detém as saboarias. O 12º item relata que a gente mais poderosa não deixa que os
pobres cortem madeira e ordena o contrário, porque é disto que a gente miúda vive, à
excepção de áreas cercadas. O 13º tópico incide sobre as altas coimas que a gente
poderosa coloca sobre a bestas e gado e para as quais devem ser seguidas as posturas do
concelho, com os preços estipulados. De seguida debruça- se sobre o assunto de quem
tem a posse das águas e dos seus engenhos na ilha, referindo que ao contrário daquilo
que as pessoas pensavam, o capitão da ilha não tinha qualquer carta de mercê que lhe
desse o monopólio de fazer uso das águas, de engenhos e moenda, mas este não tem
moinhos. Assim, dá autorização a pessoas do seu termo que os façam com a condição
de lhe pagarem trinta alqueires de trigo. Responde o infante que considera que as
pessoas estão a ser prejudicadas por não terem moinhos mesmo de construção e ordena
ao capitão que faça os moinhos do Funchal de parede ou madeira, cobertos de telha, de
tal maneira que o povo que neles moer não receba danos e perdas pela eventual chuva e
vento. Quanto aos moinhos do termo, esses devem continuar a pagar a maquia ao seu
dono, aquele que o construir e nada ao capitão. No 15º tópico fala-se dos fornos e que o
capitão não deixa as pessoas ter em casa os seus fornos para cozerem o próprio pão, à
excepção de fornalha que leva hum alqueire; responde o infante que os fornos são
senhoriais e que dando licença de que cada um tenha um, perde-se o direito deles, o que

128
ele não acha bem. No próximo item pede o povo da ilha autorização para eleger,
anualmente, dois homens bons, que repartam as águas para os seus açúcares e lugares;
ele aceita e autoriza. Segue-se um pedido sobre as sesmarias, que duram cinco anos para
as terras serem exploradas, e que depois desse período são dadas a outras pessoas.
Queixam-se as pessoas de que os cinco anos são um período muito curto, uma vez que
as terras são bravas e têm muitos arvoredos e pedem que lhe aumente o tempo das
sesmarias. O infante considera que cinco anos é um tempo razoável para se explorar
qualquer terra, mas autoriza que se alguém tiver na posse de uma terra e a tiver
explorado sempre e se os cinco anos não chegarem, que peça ao almoxarife do infante
que lhe estenda o tempo. Depois pedem autorização para fazer uma casa da relação e
outra para audiência, com as quais concorda e ordena ao capitão e ao almoxarife que
ordenem lugares para estas serem feitas. Detectam-se problemas com a venda de trigo
para a Guiné, ficando estes habitantes com dificuldades em vender e carregar o pão em
qualquer parte e expostos à arbitrariedade dos mercadores - quanto a isto refere o
infante que nada se pode fazer uma vez que se trata de um trato real. Coloca-se, de
seguida um problema relacionado com o privilégio de que estes habitantes não
respondam perante justiça alguma, a não ser perante os seus juízes e se em Portugal os
demandassem, que fosse apenas perante o seu ouvidor. Tal privilégio, já passado pelo
infante D. Henrique, confirma-o o infante D. Fernando. Pedem, de seguida, as
liberdades que tinham em tempos do infante D. Henrique, como o não pagarem peita,
nem finta, nem taxa, nem pedido, nem portagem e que não fossem constrangidos por
nenhuns serviços; refere o infante que lhe prazerá requerer isto ao rei e fazer o que
estiver ao seu alcance para lhe serem outorgadas essas liberdades, porque não tem
menos vontade disso daquela que tinha o infante, seu pai. Pedem-lhe selo e bandeira, ao
que o infante responde que lhes mandará dois: uma das suas armas para as coisas da
justiça e tudo a que ele disser respeito e outro dos sinais e a bandeira, logo nos
primeiros navios que para a ilha forem. Pedem que lhe seja enviada ao traslado da carta
de mercê do capitão da ilha para ser registada no livro da câmara e saber a mercê que
lhe foi feita: o capitão não pode ultrapassar o que nela se diz e em instituir outros foros e
costumes, o que o infante irá fazer. Já a aproximar-se do fim, manda que ao capitão,

129
juízes e vereadores e outros que guardem este seu regimento. Acrescenta, ainda no fim,
que volta atrás sobre a questão dos fornos, permitindo que no lugar onde está Santa
Maria, a Maior, que essas herdades tenham os seus fornos e por ter respeito ao bem e
segurança dessa terra e aos moradores dela, permite que assim seja349. É possível
deduzir aspectos muito importantes e estruturantes na administração da ilha nesta altura
e que são visíveis no longo regimento que o infante passou ao Funchal. Em primeiro
lugar detecta-se claramente uma ‘política’ de continuidade350 relativamente aos actos do
infante D. Henrique, enquanto senhor da ilha, isto é, não são poucas as vezes que D.
Fernando mantém medidas que o seu antecessor tinha aplicado, fazendo nomeadamente
referência a um foral, que nos é desconhecido hoje e que o novo duque de Viseu decide
continuar a aplicar. Assume-se ainda que a ilha está num período de crescimento
populacional, uma vez que a população está a pedir mais capelães ao infante; que
existem claramente aspectos que são exclusivos ao trato real, e que nesses domínios o
infante D. Fernando não pode interferir, nomeadamente com a arbitrariedade dos
mercadores que, na ilha, tratam do trigo da Guiné. Tenta ainda o infante que as suas
ordens e directivas sejam cumpridas. Ele é quem é, efectivamente o senhor, e reduz,
nalgumas circunstâncias, como vimos, o poder do capitão donatário, colocando os seus
interesses, enquanto senhor, acima de tudo e de todos. Mantém um certo padrão
tradicional naquilo que ao monopólio da venda do sal e da produção do sabão diz
respeito, mantendo-as nas mãos do capitão. No entanto também não esquece o bem-
estar da população, preocupando-se com a segurança da mesma. Por isso também
respondeu favoravelmente a alguns dos pedidos que lhe foram feitos. Joel Serrão
acrescenta que D. Fernando também ocupou grande parte do seu regimento tratando de
assuntos que se relacionam com o pão e que vão desde as farinhas e os moinhos, até aos
fornos, bem como o trigo para a Guiné. Tal explica-se pela importância que o cereal
ocupava neste momento na economia madeirense e no conjunto económico português

349
MH, vol. XIV doc. 58, pp. 162-172. Publicado também em: Tombo 1º do Registo Geral da Câmara
Municipal do Funchal - Arquivo Histórico da Madeira, I, doc. 4, pp. 11-20.
350
Veja-se este exemplo de confirmação: Menda Afonso, estimador nomeado pelo capitão donatário,
advoga ser isento de encarregos do conselho por ter recebido um alvará do infante D. Henrique e que lhe
fora confirmado pelo infante D. Fernando. Vereações da Câmara Municipal do Funchal - século XV, pub.
por José Pereira da Costa. Funchal: Secretaria Regional de Turismo e Cultura: Centro de Estudos de
História do Atlântico, 1995, pp. 29-30.
130
do Atlântico351. Como explicou Vitorino Magalhães Godinho, o trigo era de facto muito
importante nesta altura, o que ajuda, igualmente a explicar, as várias preocupações do
infante com este assunto. Chegava a produzir-se em quantidades excendentárias para a
população que habitava a ilha, em meados do século, o que permitia que algum fosse
reservado ao embarque para se exportar. Assim se compreendem as menções de D.
Fernando do trato de Guiné, através do qual o rei fizera contrato com mercadores que
para lá deveriam levar esse trigo e para mais nenhuma parte352. Percebe-se então a razão
pela qual o infante nada podia fazer relativamente aos agravos deste monopólio de que
se queixavam os madeirenses. A exportação fernandina de trigo estender-se-á pela
década de 1470 e continuará desde 1466, quando o infante embarcou os trigos por conta
de um mercador catalão ou chamado Catelam e quando, posteriormente, D. Beatriz
firma contrato com Batista Lomelim, com o mesmo objectivo353. Ainda em 1466,
quando há, pela primeira vez, protestos por se embarcar o trigo, o infante não pode
voltar atrás, mas permite que se importe trigo, durante um ano. Questiona-se Godinho
se tal decisão se relaciona com um mau ano de colheita ou se já se iniciava o défice
crónico, quando na verdade o trigo nunca teve um ciclo de excelência na
Madeira?354Abre-se agora um novo período: o da importação de cereal.
Entretanto a Madeira tornar-se-á um produtor e um mercado de açúcar bastante bem
reputado. Tal realidade, como é sabido, remonta ao período henriquino, mas a
importância e o papel do açúcar na economia da ilha também os herdaria o infante D.
Fernando. Assim se explica a documentação fernandina existente sobre este assunto e as
preocupações com os impostos e os preços que deram que pensar ao infante na década
de 1460. Por fim e relativamente ao seu regimento de 1461, Miguel Jasmins Rodrigues
chamou à atenção para o facto de já se desenhar, nesta altura, na Madeira, a existência
de uma elite concelhia suficientemente organizada para tentar obter privilégios
significativos em três domínios: redução de alguns tributos devidos ao duque;
vantagens no seu contencioso económico com o capitão e formalização da sua

351
SERRÃO, 1992, p. 37.
352
GODINHO, Vitorino Magalhães – A Expansão Quatrocentista Portuguesa. Lisboa: Dom Quixote,
2008 (1ª ed.-1962), pp. 303-304.
353
GODINHO, 2008, p. 304.
354
GODINHO, 2008, p. 305.
131
organização colectiva355. Em suma, o infante cerceou o os poderes do capitão donatário,
negou a redução dos seus tributos a pagar pelos madeirenses e estimulou a
hierarquização dentro da organização social e económica da ilha nos vários temas para
os quais a documentação nos remete e sobre os quais teve que se pronunciar, enquanto
senhor.
Em 1462, o duque emitia, de Tomar, uma carta destinada à Madeira356. Era esta
sobre os direitos do açúcar que se deveriam pagar e que nos dá a entender tratar-se de
uma resposta do infante D. Fernando ao seu povo na ilha da Madeira sobre o açúcar.
Refere-se que em tempos do infante D. Henrique se pagava de cada alçaprema por mês
uma arroba e meia e que agora o almoxarife de D. Fernando pedia o terço do açúcar que
as pessoas produziam em casa, referindo que assim estava escrito no regimento. As
pessoas pedem que se continue a fazer como em tempos de D. Henrique, porque o
contrário os prejudica. D. Fernando autoriza que assim seja. Acrescenta o infante que se
o seu povo alguma vez se sentir constrangido com alguma das suas medidas, que o
avise, que ele ficará mui ledo em poder resolver. Era um valor exorbitante a pagar ao
senhor e D. Fernando, perante a ameaça de não mais se produzir açúcar, volta atrás na
sua política tributária. Ao fazer esta exigência D. Fernando aproximava-se do seu auge
enquanto senhor da Madeira, algo que ainda se faria sentir aquando do seu projecto de
monopólio do açúcar em 1469357. Como se pode constatar, o infante não abandonava a
ideia de vir a poder monopolizar o açúcar, contra a qual os madeirenses sempre se
manifestaram. Desejava evitar-se uma prepotência económica do duque, mas também
combater a influência externa de mercadores e estrangeiros358. Assim se compreende
que a resistência ao objectivo de D. Fernando vá diminuindo.
Ainda nesse ano recebia o duque mais uma ilha, que diz ter sido vista por Gonçalo
Fernandes morador em Tavira, a loes noroeste das Canárias e da Madeira, ao regressar
de pescarias do rio do Ouro. Pediu o infante ao rei que lha desse, tal como D. Afonso V

355
RODRIGUES, Miguel Jasmins – Organização dos Poderes e Estrutura Social – a Madeira (1460-
1521). Cascais: Patrimonia, 1996, pp. 59-60.
356
Descobrimentos Portugueses, vol. III, doc. 9, pp. 15-16. Publicado também em: Tombo 1º do Registo
Geral da Câmara Municipal do Funchal - Arquivo Histórico da Madeira, I, doc. 6, pp. 25-26.
357
RAU, Virgínia, MACEDO, Jorge de – O Açúcar da Madeira nos fins do século XV: problemas de
produção e comércio. Lisboa: Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, 1962, pp. 26-27.
358
RAU, MACEDO, 1962, p. 27
132
já tinha feito com outras sete ilhas que Diego Afonso, seu escudeiro, tinha achado
através de Cabo Verde. Concede-lhas com todas a rendas, direitos e jurisdição359. A sua
administração e governo prosseguiam até por outros arquipélagos (como os Açores), ao
longo dessa década, com o duque a doar a Jos de Utra, da Flandres, e aos seus
descendentes por linha masculina a capitania da ilha do Faial, nos Açores360. Uma das
razões parece ter sido a das boas relações entre este e os flamengos que se encontravam
nesta ilha. Esta capitania é dada com os mesmos poderes que os outros capitães de D.
Fernando têm. Terá direito à dízima do que houver na ilha e a redízima lhe será dada
pelo almoxarife e escrivão do infante361. É conhecido ainda um outro acto, enquanto
governador e senhor da Terceira, quando em, 1470 envia frei Gonçalo para a referida
ilha para aí ser capelão362. Rute Gregório acredita que a passagem da Terceira para o
governo do infante foi mais dinâmica relativamente ao povoamento da ilha, pelos seus
desejos de divisão da capitania da mesma. Refere inclusive a existência de um projecto
fernandino para a Terceira, sem que se alongue no assunto363. Por sua vez e,
incentivando o referido povoamento, nos finais de década de 1460, o infante motivará
uma segunda ida de emigrantes flamengos para o arquipélago dos Açores364,
prosseguindo com a política de crescimento e desenvolvimento da ilha.
Ao longo da década de 1460, o infante manterá sempre o contacto com a ilha,
correspondendo-se com alguma frequência ao longo destes anos e revelando um
governo atento, visível no envio de mais regimentos365. A 7 de Maio de 1466, o duque

359
Descobrimentos Portugueses, vol. III, doc. 23, pp. 34-35.
360
Quanto às ilhas açorianas, sabemos que eram as possessões mais antigas do infante, uma vez que
recebera de D. Henrique as ilhas Terceira e Graciosa ainda antes da morte do infante D. Henrique, que
lhas doara antes de falecer. Recebera-as o infante em Agosto de 1460, como vimos.
361
Descobrimentos Portugueses, vol. III, doc. 54, pp. 76-77. Este documento coloca dúvidas quanto à
datação. Tal doação viria a ser confirmada por D. Manuel, duque de Beja, a 5 de Março de 1491.
Descobrimentos Portugueses, vol. III, doc. 245, pp. 366.367.
362
Archivo dos Açores, ed. Ernesto do Canto. Ponta Delgada: tipografia do Archivo dos Açores, 1881,
vol.III, p. 9.
363
GREGÓRIO, Rute – Terra e Fortuna: os primórdios da humanização da Ilha Terceira (1450?-1550).
Ponta Delgada: Centro de História de Além-mar (FCSH-Universidade Nova), 2007, pp.31-32.
364
VERLINDEN, Charles - La position de Madère dans l’ensemble des possessions insulaires portugaises
sous L’ Infant Dom Fernando (1460-1470). Colóquio Internacional de História da Madeira. Funchal:
Secretaria Regional do Turismo e Cultura /Centro de Estudos de História do Atlântico, 1989, vol. I, pp.
59.
365
Por exemplo para retribuir a Nuno da Cunha, o direito de três dias de água da ribeira de S. Francisco,
que Dinis Eanes lhe tinha usurpado. Serviu esta carta para tirar esse direito de um para outro, que
133
emite dois diplomas para a Madeira: num deles pronuncia-se sobre o sal e a sua venda:
uma vez que o povo se queixava de que o capitão o vendia mais caro do que aquilo que
tinha sido estipulado pelo infante D. Henrique (o alquer do sal por meio real de prata).
O capitão vendia a dez reais. Conclui o infante que nada pode fazer até o capitão ser
ouvido, mas sugere que lhe enviem um instrumento com todas as queixas e razões para
que se possa dar despacho e resolver o problema366. Na outra carta responde ao pedido
dos fidalgos, cavaleiros e escudeiros da ilha para este isentar da dízima todas as armas e
selas, que à ilha chegarem, ao que o infante responde favoravelmente. Disseram-lhe que
os rendeiros dos seus gados cortam a carne e não a querem vender pelo preço dos
carniceiros da terra, mas sim pelos preços que lhe apraz, queixando-se deste agravo; ao
que ordena o infante que os preços sejam os mesmos, para que mais não se prejudique o
povo. De seguida queixam-se que a mulher do capitão João Gonçalves, que tem o
monopólio do fabrico e venda do sabão, o vende muito caro e pedem-lhe que fixe um
preço. Este decide que o sabão se venda a dez reais o arratall. Por fim, pedem-lhe que
nenhum homem bom esteja fora dos ofícios do concelho e que não sejam escusados
deles. Todos eles devem servir nesses ofícios. É também nesse ano que D. Fernando
envia Dinis Anes da Grã, cavaleiro e ouvidor da sua casa, para a Madeira em seu
serviço, com o seu poder e em seu nome. Este fica incumbido de fazer a eleição dos
juízes e oficiais, segundo lhe parecer proveitoso para a ilha e para o serviço do infante;
deve despachar os feitos crimes e cíveis sobre dívidas e contratos, sem que estes
cheguem ao infante; resolver os problemas relacionados com as águas, mas se ele e o
capitão estiverem em desacordo nas decisões a tomar, que lhe escreva um requerimento
com as razões de cada um, para que o infante possa decidir justamente e dar as ditas
águas a quem não as tiver e sem prejudicar ninguém. Este tinha ainda a
responsabilidade de repartir correctamente as águas de forma a que toda a terra seja
aproveitada, resguardando-se a justiça e o proveito do infante e deve enviar aos

ocorreria de 20 em 20 dias. Descobrimentos Portugueses, vol. III, doc. 40, pp. 60-61. Em Novembro do
ano seguinte, 1468, D. Fernando emitia uma carta de sentença para confirmar e manter na posse do autor
o direito: os tais três dias de água da ribeira de S. Francisco, como uma Maria Afonso a ficar com a posse
de um dia. Descobrimentos Portugueses, vol. III, doc. 41, pp. 61-62.
366
Tombo 1º do Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal - Arquivo Histórico da Madeira, I, doc.
8, pp. 29-30.
134
tabeliães e oficiais de justiça todas as querelas, denuncias e penas, para assim cumprir
devidamente o serviço nesse lugar367. As causas do envio deste homem para a ilha são
justificas e enumeradas pelo próprio infante: referindo que sempre se preocupa com a
boa ordenança da ilha, com a administração da justiça, e o proveito comum dos
moradores e que por ter muito serviço no reino e sabendo que estas coisas se encontram
frouxas na ilha, mandou uma pessoa para assegurar a boa governação, referindo, no
entanto, a sua vontade de ir à ilha se tal se justificasse, mas conhecendo a bondade e
discrição de Dinis Eanes da Grã e confiando nele, ordenou que ele fosse para a ilha,
mandando a todos os fidalgos, juízes, cavaleiros, procuradores, homens bons,
vereadores e povo que lhe obedeçam368. Este não demora a fazer uso do seu poder e
prerrogativas ao dirigir-se ao capitão João Gonçalves, capitão da ilha, aos juízes,
vereadores, procuradores e homens bons, para os informar de que os oficiais da câmara
lhe tinham requerido que este lhes desse coutada para os seus gados: bois de arar e
bestas. Então decide dar-lhas enunciando que: da Ribeira Seca como vaa da praça
fremosa asy como vay emtestar na terra de pero gomçalvez de crara e pllo caminho do
comçelho atee o mar E que ho gaado alferio e porcos e ovelhas e vacas e eguas que
nom emtrem nella sob pnna de pagar por cada cabrça dez reais pera camara do
concelho369.
Em Novembro de 1466, enviava ao Funchal, o infante, outro importante
regimento ou apontamentos, onde o tema predominante parece ser o açúcar370. D.
Fernando dirige-se aos fidalgos, cavaleiros, escudeiros, juízes, vereadores, homens bons
e povo da sua ilha da Madeira, através de Vasco Fernandes, com as respostas às
questões que estes lhe tinham enviado através dele. O primeiro assunto diz respeito ao
contrato que fizeram com o infante sobre lhe pagarem o quarto do açúcar, quando
antigamente era o quinto e que isto lhes traz agravo; manda o infante que os seus

367
Tombo 1º do Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal - Arquivo Histórico da Madeira, I, doc.
10, pp. 32-33.
368
Tombo 1º do Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal - Arquivo Histórico da Madeira, I, doc.
11, pp. 34-35.
369
Tombo 1º do Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal - Arquivo Histórico da Madeira, I, doc.
12, pp. 35-36.
370
Ao contrário do que fora no primeiro regimento de 1461, onde tudo que se relacionasse com o pão e o
trigo ocupou um lugar prevalecente.
135
almoxarifes recebam aquilo que lhe pertence. Segue-se, o pedido destas pessoas para
carregarem as suas novidades para fora do reino e para não lhes levar qualquer direito, a
não ser do que trouxerem de regresso porque tal era bom serviço para o infante e o
enriqueceria; decide o infante, tendo em conta que o seu predecessor o infante D.
Henrique que tinha tão boa experiência em todas as coisas e que sempre nelas acertava,
não mudar, em nada, o que este tinha estipulado. Queixam-se, a seguir, dos grandes
trabalhos exigidos pela produção de açúcar, que os mancebos se vão embora e também
pela redízima e os que ficam querem levar tam grandes soldadas que amtes os leyxam
por nam tirarem per roll do serviço que lhes fazem emcarregamdo mais em negros lhes
pode viir algum perigo E que me pidem por meçee que lhes releve; decide o infante que
tudo se mantenha; objecta-se acerca da míngua da lenha e que os donos das terras a
limpam através de queimadas; responde o infante, que limpem as terras doutra forma,
sem ser com fogo. De seguida pedem-lhe que suprima o ofício de distribuidor, que para
nada serve e só traz encargo para o povo; responde o infante que não há-de tirar, mas
aquele que o quiser ter, ele ordena, que não leve dinheiro algum ao povo. Sobre o selo:
que seja como nos outros concelhos do resto do reino. De seguida pedem-lhe que lhes
perdoe a dízima sobre o trigo que for de fora e manda vender o seu, o que o infante lhe
faz mercê. Pede-se ainda ao infante que os proveja de missas pelo vigário, que afirma
que não é obrigado a celebrar missas a não ser ao domingo e ocasião de festas; responde
o infante que não é costume no reino os vigários e priores dizerem missas para além dos
domingos e dos dias de festa e que neste caso, o vigário tem a sua cargo as missas por
alma do infante D. Henrique e que, ainda aqueles que quiserem mandar dizer missas
que, o façam às suas custas. Pedem também ao infante que lhes faça mercê da dízima de
algumas coisas que enviaram à Canária para provimento da sua casa e do retorno: carne,
queijos e os escravos que foram em seu serviço; diz-lhes que não visa alterar o que o
infante D. Henrique tinha ordenado. Segue-se o pedido de que mande melhor prover os
lagares assim como para seu serviço, como para serviço do povo; responde o infante
que tal é sua intenção e que tal vai mandar fazer. Existe a preocupação com a vigaria de
Machico; responde o infante que lhe praz que qualquer homem pode desempenhar um
cargo, se for honesto, de boa vida e se for frade que tenha licença do seu maior e

136
autoridade do vigário de Machico para cantar. Pede-se que não haja procuradores, algo
que o infante responde que não pretende mudar, até porque eles lhe tinham pedido que
ele lhos desse, como relembra. Segue-se um pedido de isenção da dízima, a qual são
obrigados a pagar pelo privilégio; responde o infante que já falou nisso ao rei, mas
ainda não parece estar resolvido. Por fim refere-se problema entre os juízes ordinários e
os capitães e de quem ouve os feitos, que são os juízes e não os capitães, aos quais
ficam reservados as apelações e agravos e que não devem soltar nenhum preso que os
juízes prenderam, apenas quando for por apelação. O problema aqui era o povo sentir-se
agravado pelos capitães, aos quais o infante responde que lhe mandem que lhe enviem
carta quando isso acontecer, que este se entenderá directamente com o capitão371.
Dentro daquilo que se mantém relativamente ao regimento de 1461, continua o
infante a querer melhor controlar e diminuir os poderes dos capitães, no que a aspectos
económicos diz respeito, mas igualmente em matéria de justiça e, como explica Joel
Serrão, o fortalecimento da organização concelhia implicava necessariamente o
enfraquecimento do poder do capitão donatário372. Percebe-se também que o açúcar era
a grande fonte de preocupação do duque que já tinha conseguido impor valores
exorbitantes relativos ao mel e ao açúcar. Os açucareiros pediam-lhe ainda que os
aliviasse na exportação do produto para fora do reino, ao qual se recusava alegando a
continuidade daquilo que tinham sido as decisões do infante D. Henrique. Recusará
também prejudicar os mercadores e ao mesmo tempo não elimina a dízima dos bens que
foram enviados para as Canárias.
A documentação dá conta que o ano de 1469 foi importante para os supracitados
projectos de monopólio do açúcar do infante, sendo talvez dos actos coloniais mais
importantes de D. Fernando para tentar impor, sem sucesso, o monopólio.
Apercebendo-se o infante do desfallecimento que se seguirá pela baixa do açúcar, cujo
preço está baixo em todo o lado e tentando arranjar uma solução, antes que os
inconvenientes surjam, propõe que os mercadores pudessem fazer algum trato em
Bruges. Refere que falou com pessoas, que o fizeram entender que o açúcar ainda é

371
Tombo 1º do Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal - Arquivo Histórico da Madeira, I, doc.
13, pp. 36-40.
372
SERRÃO, 1992, p. 40.
137
mercadoria devassa, que vai para a Flandres através de marinheiros e outros homens que
não o vendem pelo preço que o valorizaria. Tenta arranjar um conserto com os
mercadores de Lisboa para fixar o seu preço e assegurar o seu monopólio da venda na
Flandres, que seja de proveito para todos, nomeadamente os fidalgos, cavaleiros e
escudeiros da ilha, que veriam concertados os preços e as condições justas da venda do
seu açúcar373. O que significa esta hipótese colocada por D. Fernando. Na verdade, o
aumento da produção que se fazia sentir nesta época fazia, inevitavelmente, com que os
preços já não fossem tão apetecíveis para este. Pretendia, o infante, salvaguardar os seus
direitos senhoriais, mas fazer com que os negócios prosseguissem e fossem executados
por mercadores em seu nome. Daí que este refira os mercadores de Lisboa que lhe
compram o produto e com eles se aconselhe para solucionar o problema dos preços.
Como explica Joel Serrão existe uma competição entre os preços do açúcar dos
madeirenses e os do infante374. Este, que não estava a receber os valores que quereria
pela descida dos preços, queria que os madeirenses se tornassem apenas produtores e
não mais comerciantes. Então pretenderia que os açúcares fossem vendidos da mesma
forma e sem qualquer disparidade nas transações. Por isso falara com os mercadores que
lho compravam e que com ele concordaram que deveria ‘unir os dois açúcares’ e assim
atingir um monopólio. É este último aspecto que está em causa nesta carta fernandina.
A respectiva resposta dos fidalgos, cavaleiros, escudeiros e povo da ilha da Madeira
é negativa. Referem, depois de escutarem o que foi proposto pelo infante, que acham
que este não devia aceitar tal partido e enunciam as razões pelas quais isto não era
proveito para o infante: em primeiro lugar porque é desvantajoso fazerem trato com um
só mercador, até porque todos os meses e semanas circulam na ilha outros mercadores e
mercadorias, os quais compram açúcar; porque seria uma sujeição comprar e vender a
um só mercador, quando há tantos para negociar e que a rua dos mercadores, junto do
mar, está povoada daqueles que fazem trato do açúcar375. Não aceitaram porque havia
tantos mercadores que ainda seria possível conseguir bons preços (por vezes até quase

373
Descobrimentos Portugueses, vol. III, doc. 45, pp. 65-66. Publicado também em: Tombo 1º do Registo
Geral da Câmara Municipal do Funchal - Arquivo Histórico da Madeira, I, doc. 17, pp. 45-47.
374
SERRÃO, 1992, p. 44.
375
Descobrimentos Portugueses, vol. III, doc. 48, pp. 67-68. Publicado também em: Tombo 1º do Registo
Geral da Câmara Municipal do Funchal - Arquivo Histórico da Madeira, I, doc. 18, pp. 47-49.
138
1000 r., quando os valores andavam entre os 650 e 800 r; o que aconteceria à
prosperidade comercial e económica do Funchal se esses mercadores se fossem
embora? A verdade é que D. Fernando não levaria a melhor, desta vez, e tudo se
manteve. Em 1470 respondia o infante a estas disposições ao povo e procuradores da
Madeira na sequência da referida carta, informando que tem recebido informação de
feitores da Flandres e outros homens. Refere que tem outras maneiras de fazer o abate
do preço e que todas as ordenanças e posturas devem passar pela sua autorização,
nomeadamente no que toca ao carregamento de meles. Muito menos, neste assunto,
poderiam os povos e vassalos do duque tomar medidas sem o seu conhecimento e
confirmação, uma vez que este assunto tanto lhe interessava e a ele estava ligado. No
entanto, estes parecem ter agido sem a sua outorga, não tendo a informação de que
baixariam os preços do açúcar e o valor dos meles. De seguida explica o que causou a
baixa dos açúcares: a muita multiplicação deles, andarem em muitas mãos, serem
vendidos a muitos preços; e que o remédio seria haver apenas uma mão e este ser
vendido por apenas um feitor, que por o infante foi apontado. Quanto aos meles, explica
que o seu preço não desceu pelo míngua do mel da abelha, uma vez que em lugar dele
se gastam açúcares376. Continuava o infante a insistir em controlar sozinho os negócios
do açúcar e que a culpa dos preços estarem em tão má situação se deveria ao facto de
haver tantos comerciantes a transacioná-lo.
No entanto, a documentação fernandina para o governo da Madeira não se cinge ao
assunto sacarino. Esta aborda ainda outros temas como a nomeação e o controlo do
desempenho dos ofícios os usos e usufrutos das águas, dos engenhos, as construções
que devem ser feitas, as questões religiosas, económicas e de monopólios que o infante
doara ao capitão, bem como aspectos ligados à justiça e de jurisdição377. Como explicou

376
Tombo 1º do Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal - Arquivo Histórico da Madeira, I, doc.
23, pp. 52-53.
377
Destacamos apenas alguns desses documentos, uma vez que a lista é longa. Em Julho de 1470, D.
Fernando escrevia ao seu capitão na ilha da Madeira na parte do Funchal, João Gonçalves da Câmara, e
aos juízes e oficiais homens bons, como resposta dada a apontamentos que lhe foram feitos por Gonçalo
Eanes de Velosa, seu escudeiro e procurador. O problema consistia nos tabeliães que escolhiam e punham
escrivães nos seus ofícios, o que tal não podiam fazer. Pedem ao infante que resolva este problema e este
concorda em não conceder mais alvarás aos tabeliães, ordenando ao capitão e juízes que, a partir desse
momento, que estes ponham pessoas que estejam habilitadas a desempenhar o cargo. Tombo 1º do
Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal - Arquivo Histórico da Madeira, I, doc. 24 pp. 53-54.
139
Charles Verlinden378, o governo do infante D. Fernando foi essencial para o
desenvolvimento da cultura do açúcar na Madeira e no que à sua comercialização para o
exterior disse respeito (a Europa).
Peter Russel escreveu que houve um conjunto de ilhas atlânticas a ser descoberto já
na última década de vida do infante D. Henrique por navegadores que partiam para a
Guiné. Estamos a referir-nos a Cabo Verde, cujas ilhas foram do infante D. Fernando.
Não seria feito qualquer esforço para as colonizar em vida de D. Henrique379. Assim,
seria o seu filho aquele que se encarregaria de as povoar, acção que deverá ter
começado a desenvolver desde 1462380. Rapidamente a Ilha de Santiago, cujos

O infante escreve ao capitão do Funchal, João Gonçalves da Câmara, avisando que o procurador
dos homens bons e do povo, Gonçalo Anes Velosa, que lhe fez apontamentos sobre o Funchal enquanto
vila. Isto é, que o Funchal, enquanto vila, devia ter determinados estruturas, como casa para a câmara, um
curral do concelho, para se acomodarem as bestas e o gado. Pedia o procurador que o infante autorizasse
porque estas coisas eram necessárias e porque se este se envolvesse estas construções teriam fim. O
infante parece aceitar que as coisas sejam terminadas, se disso os habitantes se encarregarem. Tombo 1º
do Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal - Arquivo Histórico da Madeira, I, doc. 25, pp. 54-
55.
Em 1461, D. Fernando escreve aos seus juízes e oficiais na ilha da Madeira e ao capitão da ilha,
João Gonçalves a informar que a ele foi mostrada uma carta, onde se inscreviam agravos feitos aos
sapateiros do Funchal. Refere o infante que, depois de tudo examinado, anualmente se acorde com os
ditos sapateiros que estes ganhem o terço dos ganhos, segundo o costume de Tomar e de Santarém; e se
venderem os sapatos por maior preço que os percam; que um vedor verifique se os sapateiros cumprem as
regras. Por fim, salva os sapateiros das penas que lhe são impostas. Tombo 1º do Registo Geral da
Câmara Municipal do Funchal - Arquivo Histórico da Madeira, I, doc. 74, pp. 111-112.
D. Fernando dirige-se ao seu capitão João Gonçalves da Câmara, aos juízes, vereadores, procurador e
homens bons, a informar que fora avisado dos agravos dos sapateiros, barbeiros, alfaiates, ferreiros e
outros oficiais. Estes queixavam-se que os acima os constrangiam que fizessem taxa e que lhe mostram
estormentos públicos e em como também o infante lhes mandara uma carta como anualmente, se corte
com os sapateiros e tirados todos os custos, lhe seja dado o terço do ganho, segundo o costume de
Santarém e Tomar. Manda o infante que a sua carta seja guardada e cumprido o seu conteúdo e que não se
introduzam novidades nomeadamente relacionadas com as taxas de Lisboa, porque não é geral no reino,
nem se faz noutro lugar. Tombo 1º do Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal – Arquivo
Histórico da Madeira, I, doc. 74, pp. 112.
378
VERLINDEN, 1989, pp. 53-63.
379
RUSSELL, 2016, p. 118.
380
Por este documento de 1466, ficamos a saber que D. Afonso concedeu privilégios aos moradores da
ilha da Santiago, que o infante D. Fernando começara a povoar havia quatro anos, que por ser muito longe
de Portugal, ninguém queria ir para lá viver a não ser com grandes liberdades e franquezas. Assim pediu o
infante D. Fernando ao rei, seu irmão, essas liberdades. Outorga o rei: a alçado do cível e do crime sobre
os mouros, brancos e negros e todas as suas gerações que estejam na ilha e sejam cristãos; permite que os
moradores da ilha possam com navios tratar nas partes da Guiné, ressalvando a zona de Arguim; que
sejam isentos de pagarem dízimas sobre as mercadorias que houver nas ilhas, ou que colham nas suas
herdades e propriedades e de coisas que comprem ou escambem nas Canárias, Madeira, Açores e Porto
Santo e em todas as ilhas no oceano que sejam de Portugal. As Gavetas da Torre do Tombo, XI (gav. XX,
maços, 8-15). Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos da Junta de Investigações Científicas do
Ultramar, 1975, pp. 32-34. Tais privilégios parecem vir a ser confirmados por carta de declaração e
140
habitantes recebiam os mesmos privilégios de outros colonos das ilhas portuguesas a
pedido do infante D. Fernando em 1466, se tornaria num privilegiado e próspero
empório marítimo e escala para o comércio da Alta Guiné em geral e do comércio de
escravos em particular381. A verdade é que Portugal não descuraria este Arquipélago,
pela sua óptima posição estratégica relativa ao estreitar de laços comerciais e de
exploração da costa ocidental, como então se levava a cabo. Assim, a investida do
infante D. Fernando torna-se mais clara, pela riqueza da região e os lucros que daí lhe
poderiam advir. O povoamento ordenado pelo infante começa logo em 1462, quando
envia o seu escudeiro Diogo Afonso para reconhecer as dez ilhas, sendo acompanhado
dos primeiros colonos num interesse claramente comercial, no que respeita à zona sul
do Bojador382. Abriam-se fortes vantagens para quem fosse viver para Santiago,
nomeadamente a possibilidade de estabelecer trato comercial com a Guiné, com
excepção de Arguim, que era domínio da Coroa383.
Como em todas as ilhas desta altura, também este arquipélago sentiu a necessidade
de, ao ser povoado, lhe concedido um modelo de administração. Neste caso, uma
administração senhorial uma vez que era pertença da Casa de Viseu-Beja, tal como o
eram os Açores e a Madeira, confirmada pela doação de 1462 de Cabo Verde ao infante:
no início do documento, D. Afonso V relembra uma carta que lhe foi mostrada pelo
infante D. Fernando, em 1457, onde este lhe fazia doação a si e aos seus herdeiros, de
todas as ilhas que fossem encontradas, com a jurisdição cível e crime, à excepção das
alçadas de morte e talhamento de membro. Entretanto foram descobertas 12 ilhas, como
se diz: cinco por António de Noli (ilha de Santiago, S. Filipe, das Mayas, S. Cristóvão, e
ilha do Sal- que são na Guiné e ainda em tempo de D. Henrique) e mais sete achadas
por D. Fernando: ilha Brava, ilha de S. Nicolau, ilha de S. Vicente, ilha Rasa, ilha
Branca, ilha de Santa Luzia, e a ilha de S. Antão, que são em Cabo Verde. Concede-se
agora o último grupo de ilhas ao infante D. Fernando, que já foram descobertas entre 3

limitação de D. Afonso V, em 8 de Fevereiro de 1472, já o infante tinha falecido. Descobrimentos


Portugueses, vol. III, doc. 81, pp. 107- 109.
381
RUSSELL, 2016, p. 118.
382
TEIXEIRA, André – O Arquipélago de Cabo Verde. In SERRÃO, Joel, MARQUES, A.H.de Oliveira
(dir.) – Nova História de Expansão Portuguesa: A colonização Atlântica. Lisboa: Editorial Estampa,
2005, tomo II, p. 14.
383
As Gavetas... XI (gav. XX, maços, 8-15), pp. 32-34.
141
de Dezembro de 1460 e 19 de Setembro de 1462384, já em tempos exclusivos de D.
Fernando. Estas ilhas mais recentes foram: Brava, S. Nicolau, ilhéus Raso e Branco,
Sta. Luzia e Santo Antão. Doação que também foi feita para os seus descendentes, com
o seu senhorio, povoamento e o livre usufruto dos rios, ancorações, madeiras, pescarias,
coral, tintas, aviveiros, vieiros, peçoos e com todos outros direitos como jurisdição cível
e crime, reservando o rei para si as alçadas criminais de morte e talhamento, e que possa
também colocar foros, tributos e direitos como bem quiser. Mercê que foi feita sem
embargo da lei mental, de outras leis e ordenações. A carta dá conta das amplas
propriedades e poderes conferidos a D. Fernando e aos posteriores administradores da
Casa de Viseu-Beja: a nível jurisdicional, jurídico (com a salvaguardas das alçadas
régias), económico e fiscal, podendo criar e aplicar o duque os foros, direitos e tributos
que quiser. D Fernando engrossava ainda mais o seu já imenso património.
Os inícios do povoamento trouxeram consigo também a construção dos primeiros
edifícios, entre os quais a igreja do Espírito Santo na Ribeira Grande que teria sido
mandada construir pelo infante, entre 1466 e 1470385. Damo-nos ainda conta de que se
terão gerado grandes fortunas pelas doações e mercês que o infante terá feito a esses
primeiros colonos que muito enriqueceram por serem senhores de ricas terras da ilha386,
bem como os tratos económicos e comercias que estabelecera durante o seu governo387.
Relativamente ao arquipélago de Cabo Verde foi o infante capaz de acabar de
descobrir novas ilhas, como vimos, e criar condições para o desenvolvimento
económico, ancorado no tráfico de escravos, na exploração do coral e no comércio de

384
MH, vol. XIV, doc. 86, pp. 225-227. Publicado também em: Descobrimentos Portugueses, vol. III,
doc. 22, pp. 33-34.
385
TEIXEIRA, 2005, p. 205.
386
MATOS, Artur Teodoro – O Mundo Insular Atlântico. In SERRÃO, Joel, MARQUES, A.H.de
Oliveira (dir.) – Nova História de Expansão Portuguesa: A colonização Atlântica. Lisboa: Editorial
Estampa, 2005, tomo II, p. 477.
387
Por uma carta de Setembro de 1469, ficamos a saber do trato que o infante D. Fernando fizera da
urzela das suas ilhas de Cabo Verde com os mercadores João de Lugo e Pedro de Lugo, mercadores
castelhanos e moradores em Sevilha, com a condição de levarem a urzela em navios de Castela. Estes,
com receio e medo de represálias, pediram um salvo seguro ao rei de Portugal, que lho concede. Assim
podem circular de forma segura em portos, rios, águas, ancorações, sem qualquer tipo de represália,
embargo ou retenção. Descobrimentos Portugueses, vol. III, doc. 49, pp. 69-70.
142
plantas tintureiras. Conseguiu tudo isto através da obtenção dos privilégios do trato da
Guiné e da redução de direitos junto do rei388.
As ligações ao mar do infante D. Fernando não convergiram apenas nas suas
ambições atlânticas e no governo dos arquipélagos que lhe pertenciam, uma vez que
manteve frota no Mediterrâneo e com ela procedeu a saques. Estamos a referir-nos
àquele que ocorreu sobre a caravela Santa Maria do valenciano Daniel Valleriola, em
1462389. Numa acção de corso, a caravela foi capturada e os seus homens presos,
causando um enorme prejuízo a todos os mercadores envolvidos neste negócio, quando
iam comerciar ao Norte de África, a Honein e a Orão. A partir de 1464 iniciar-se-á um
processo pela indemnização destes homens, pelos danos causados pela frota do infante,
e que nunca virá a ser resolvido.
Na verdade, logo após o assédio à caravela, o infante D. Fernando e o rei são
alvo de cartas e missivas com vista a resolver o problema. A primeira data de uma
semana depois do incidente, e nela pretenderam os valencianos informar o infante D.
Fernando do tinha sucedido.390 Não são conhecidas quaisquer respostas do rei e do
irmão. Outras cartas se seguiram praticamente iguais em termos de conteúdo. Uma é
importante no sentido em que é dirigida ao secretário do infante D. Fernando e na qual
as autoridades valencianas lhe agradecem os esforços que fez na recuperação da
caravela assaltada391.
O prejuízo do corso causado pela frota do infante aos valencianos converteu-se
na necessidade de impor tributos especiais aos mercadores estrangeiros, algo muito em
voga nos reinos medievais.392 Apesar de ser temporário, o Dret dos portugueses tornou-
se definitivo e estendeu-se ao século XVI, numa extensa área de implementação e

388
BETHENCOURT, Francisco – Configurações do Império. In BETHENCOURT, Francisco,
CHAUDHURI, Kirti (dir.) – História da Expansão Portuguesa: a formação do império (1415-1570).
Navarra, Círculo de Leitores, 1998, p. 346.
389
Sobre o Dret dos Portugueses seguimos os seguintes artigos: DÍAS BORRÁS, Andrés; TRENCHIS
ÒDENA, José – El Fracasso de la Expansión Portuguesa em el Mediterráneo a través de la
documentación valenciana: 1450-1500. Estudis Castellonencs. Castellón: Diputación de Castelló. Nº 4
(1987/88) 377-440; MONTALVO, José Hinojosa – Intercambios Comerciales entre Portugal y Valencia a
fines del siglo XV: El “Dret Portogues”. Actas das II Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval.
Porto: Instituto de Investigação Científica, 1987. pp. 759-779.
390
DÍAS BORRÁS, TRENCHIS ÒDENA, 1987, p. 413.
391
DÍAS BORRÁS, TRENCHIS ÒDENA, 1987, p. 417.
392
MONTALVO, 1987, p. 763.
143
prejudicou as relações comerciais entre Portugal e Valência. Era assim uma represália
contra os comerciantes portugueses.
Mais do que um novo imposto que se incorporava na fiscalidade de Valência, o Dret
dos portugueses ilustra bem aqueles que eram os produtos e os locais envolvidos neste
comércio dos dois espaços, sendo que a prova de que os portugueses nunca
indemnizaram os valencianos dos danos económicos causados, reside nas cartas que se
prolongam até, pelo menos 1503 e que vão identificando os locais onde esse direito
deveria ser ou continuar a ser aplicado.
Desde pelo menos 1452 que embarcações do infante circulam pelos mares. A
primeira notícia que temos data precisamente desse ano, quando D. Afonso V se dirige
ao almoxarife da alfândega de Lisboa, Álvaro Borges, ordenando o pagamento, ao
infante D. Fernando, de uma coroa por cada tonelada que levar sob a coberta da sua nau,
que acabara de chegar da Flandres. Pagamento que era feito pela dízima da carga da
referida nau e, se fosse insuficiente, também pela dízima da primeira viagem que
fizer.393
Em 1459, nos capítulos da cidade do Porto, apresentados nas cortes de Lisboa, é
referida a nau do infante D. Fernando e as suas trocas com a Flandres, que para lá, nos
parece que, carregava barris de mel.394 São ainda muitas as referências à galiota do
infante D. Fernando em cartas de perdão, para onde vários foram condenados a
trabalhar por D. Afonso V. Em 1455 temos notícias de que esta já se perdera395 e no ano
396
anterior temos referência a uma fusta do infante. Seria ainda proprietário de uma
397
caravela. Pouco sabemos sobre estas embarcações, uma vez que a documentação é
escassa e a que existe não nos fornece grandes pormenores acerca do que
transportavam, por onde circulavam e para onde se dirigiam (à excepção da Flandres,
que surge aqui destacada). Este problema é tanto mais notório quando nos debruçamos
sobre a política dos descobrimentos após 1460, uma vez que existe um suposto

393
Descobrimentos Portugueses, vol. I, doc. 392, pp. 491-492.
394
Descobrimentos Portugueses, vol. I, doc. 1195, pp. 580-581.
395
MH, vol. XII, doc. 55, 1971, pp. 108-109. / Documentos das Chancelarias Reais anteriores a 1531,
relativos a Marrocos, tomo II, doc. CCLVII, 1934, pp. 267-268.
396
Documentos das Chancelarias Reais anteriores a 1531 relativos a Marrocos, tomo II, doc. CXCVII,
1934, pp. 203-204.
397
MH, vol. XIII, doc. 121, 1972. pp. -192-193.
144
enfraquecimento desta, sob a liderança do infante. Talvez tal tenha sucedido com a
direcção das descobertas na mão do infante, a quem esta coube com a morte de D.
Henrique. Nada se sabe sobre esta fase no que ao prosseguimento da exploração e
descobrimento fernandinos diz respeito398
São muito importantes estas afirmações de Oliveira Marques, dado que vêm
confirmar parte das nossas interpretações: a predominância em D. Fernando de
prosseguir com conquistas Marroquinas, no decorrer da década de 1460, e de controlar e
governar as ilhas atlânticas. Ambições que encontramos no infante e que são muito mais
acentuadas do que, provavelmente, a continuação da progressão pela costa africana, que
se fazia nesta altura. Tal poderá ajudar a explicar a ausência destas referências na
documentação e o sugerido por Oliveira Marques e também por Joel Serrão399.

398
MARQUES, 1998, p. 83.
399
SERRÃO, 1992, p. 47.
145
Capítulo 8 – D. Fernando, governador e administrador das
Ordens Religioso-Militares de Santiago (1444-1470) e de
Cristo (1461-1470)

Ficou já referido neste texto que o Infante D. Fernando recebe, em momentos


diferentes da sua vida, a responsabilidade do governo das Ordens de Santiago e de
Cristo, um aspecto que tentaremos abordar nas próximas páginas. Não nos será possível
apresentar um estudo detalhado sobre a sua acção mas, ainda assim, estamos em crer
que valerá a pena reflectir em torno desta faceta, porventura a mais desconhecida400, o
que encontra a sua melhor explicação na dificuldade de identificação da documentação
disponível. Ela é, de facto, diminuta401.
Outras ajudas, de diferente proveniência foram fundamentais; basta pensar na
cronologia que sustenta a sua passagem pela Ordem de Santiago (a que D. Fernando
recebe mais precocemente) para se perceber o inegável valor do trabalho de Luís Filipe
Oliveira (que, no entanto, termina a sua investigação em 1449) ou de Isabel Morgado
Silva (que estuda a Ordem de Cristo entre 1417-1521, a segunda que o Infante
recebe)402. Relembrando, ainda, obras de carácter mais específico - por exemplo,
dedicadas ao estudo de uma das comendas de Ordem - socorremo-nos de alguns títulos,
com destaque para o trabalho de Maria Teresa Lopes Pereira sobre a comenda de

400
Vd. o que se escreveu no Capítulo da Bibliografia Crítica e onde fica claro que, no que se refere às
duas Ordens Militares, a dedicação dos historiadores mais comprometidos com a matéria não foi muito
além de breves referências circunstanciais.
401
Os fundos específicos de documentação sobre estas duas Ordens Militares estão referidos no elenco
das Fontes. No entanto, gostaríamos de explicar que o critério que presidiu à sua escolha foi unicamente o
critério cronológico, isto é, com base no inventário Mesa da Consciência e Ordens (ed. Farinha; Jara,
1997) foi consultada a documentação cujas balizas temporais estavam definidas no referido inventário,
relacionadas com o tempo de governo do Infante em Santiago (1444-1470) e em Cristo (1461-1470). Na
verdade e apesar de não muito abundante, os documentos encontrados constituem um núcleo esclarecedor
de algumas das prerrogativas deste administrador e cumpriram o seu propósito de nos ajudar a identificar
a linha de conduta que manteve o Infante à frente das referidas Ordens Militares. Uma palavra, ainda,
para os fundos gerais, com destaque para a Chancelaria de D. Afonso V e a Leitura Nova (Mestrados),
dois fundos que, por razões diferentes nos foi possível consultar.
402
OLIVEIRA, 2009, SILVA, 2002.
146
Alcácer do Sal. Também esta autora reconhece a parcimónia da documentação entre
1444-1470, tal como se pode ler no seu livro Alcácer do Sal na Idade Média403.
Certamente que com estas limitações, de igual forma impostas pelo tempo
disponível para a realização desta dissertação, nunca nos será possível apresentar um
quadro detalhado que caracterize a acção deste Infante no governo de ambas as Ordens;
tão-somente, alguns exemplos dela ilustrativos. Se esse fosse o nosso objectivo, tal
implicaria uma investigação, quer ao nível das fontes, quer ao nível da imensa
bibliografia existente, que poderá ser unicamente considerada numa outra oportunidade.
Se o pudéssemos ter feito, é óbvio que não se estranharia a presença tutelar do Infante
no quadro da resolução de problemas colocados pelas instituições, da mais variada
índole, como transparece no caso de outros períodos já estudados404.
Com efeito, e no caso da Ordem de Santiago importa começar por lembrar que
os primeiros documentos de que há notícia datam do ano de 1444, e são anteriores ao
recebimento da Bula que nomeia o Infante para a dignidade405. Dada a idade de D.
Fernando, será o Rei (através do Regente D. Pedro) quem mantém a gestão quotidiana.
Exemplos importantes desta década de 40 são a já mencionada doação que a coroa faz a
Fernão Martins Mascarenhas, comendador-mor de Santiago e conselheiro régio, pelos
serviços prestados, uma vez que este ocupava o lugar de regedor da ordem, enquanto D.
Fernando não atingisse a idade perfeita, para além de ser comendador de Mouguelas e
406
da Roliça (na comarca de Óbidos) ou as cartas de nomeação do comendador de
Sesimbra, João Fogaça, uma localidade vaga pela renúncia de Diogo Mendes de
Vasconcelos ou Diogo Pereira, o moço, comendador de Arrábida, que recebe a comenda
de Samora Correia407. No mesmo mês, também Vasco Gomes de Parada, comendador
da Chouparia, recebe confirmação da doação enquanto prouver ao infante D. Fernando,

403
PEREIRA, Maria Teresa Lopes - Alcácer do Sal na Idade Média. Lisboa: Edições Colibri, 2000, pp.
20-22.
404
Cfr. a relação apresentada por OLIVEIRA; FONSECA; PIMENTA, COSTA, 2011, pp. 440-457.
405
OLIVEIRA, 2009, pp. 283-285.
406
Chancelaria de D. Afonso V, liv. 24, fl. 32 de 8 de Fevereiro de 1444. O monarca, refere que D.
Fernando ainda não está “… em hidade de a Reger…” De facto, a idade mínima para se receber o hábito
consta dos Estabelecimentos ordenados pelo mestre D. Henrique de Aragão em 1440 e prevê os 14 anos
feitos. Publicado BARBOSA, p. 141 e 174.
407
Chancelaria de D. Afonso V, liv. 24, fl. 40-40v, de 20 de Fevereiro de 1444 e Chancelaria de D.
Afonso V, liv. 24, fl. 25v de 28 de Fevereiro do mesmo ano, respetivamente. Cfr. OLIVEIRA, 2009,
pp.421-422.
147
governador da Ordem de Santiago, de todas as rendas e direitos que a ordem tem nas
estalagens de Coimbra e nos Casais da Nogueira do Ramo, termo da Feira408.
Deste mesmo ano, a chancelaria informa, ainda, a existência de uma série de
cartas pelas quais o monarca, em nome do Infante D. Fernando, confirma ofícios de
tabeliães409 ou privilegia homens da Ordem, como acontece com Vicente Eanes
Camarinha almoxarife da comenda de Ferreira, isento do pagamento de pedidos régios,
pelos serviços prestados ao infante D. João, anterior administrador da Ordem410, entre
outros.
Luís Filipe Oliveira que já tinha identificado estes primeiros momentos da vida
do Infante na Ordem de Santiago411, escreve o seguinte sobre a evolução dos anos
subsequentes: O infante só assumiria o governo da milícia depois de casar com a sua
prima, Beatriz, em 1447, no ano em que completava 14 anos. A união ajustara-se em
1445, o mais tardar, e rendia-lhe, aliás, uma legitimidade acrescida, pois, além de
sucessor no mestrado, passava a ser genro e herdeiro do seu tio, o infante João. A
partir daquele ano, multiplicam-se, de facto, as notícias do infante à frente da
milícia412. Não se estranha, pois, que a 23 de Novembro de 1450, o Infante D. Fernando
receba uma carta de confirmação dos privilégios para a Ordem que dirigia, carta essaque
confirma o teor de uma outra concedida por D. João I ao Mestre Mem Rodrigues de
Vasconcelos em 26 de Novembro de 1403, na sequência de uma queixa deste face ao
comportamento dos corregedores, juízes e justiças nas terras da Ordem413. Este exemplo

408
Chancelaria de D. Afonso V, liv. 24, fl. 15. Estes rendimentos, certamente muito compensadores,
acabam por justificar uma carta posterior pela qual, em 6 de Agosto de 1460, o Comendador da
Chouparia e cavaleiro da casa do Infante D. Fernando, Afonso Gonçalves, arrenda os frutos da sua
comenda a João Afonso, pelo valor de 4.300 reais a pagar pelo Natal, com reserva do rendimento da
estalagem para si próprio. (TT, Ordem de Santiago, Documentos Particulares, maço 3, doc. 2).
409
A 3 de Fevereiro de 1444, D. Afonso V confirma nomeação de João Esteves enquanto tabelião geral
da Ordem de Santiago. (Chancelaria de D. Afonso V, liv. 24, fl. 43v) e a 24 do mesmo mês, confirma a
nomeação de Diogo Álvares, criado do comendador mor de Santiago, para o cargo de tabelião do cível e
crime na Messejana (TT, Chancelaria de D. Afonso V, liv 24, fl. 22).
410
Carta de 18 de Março de 1444 (Chancelaria de D. Afonso V, liv. 24, fl. 50v).
411
OLIVEIRA, 2009, pp. 283-285.
412
OLIVEIRA, 2009, pp. 284-285Ainda assim, é relevante que a 2 de Outubro de 1447, em Coimbra, na
rua da Calçada, Vasco Gomes de Parada, comendador de Podentes e da Chouparia apresente uma
procuração datada de 1425 que lhe havia outorgado o Infante D. João (anterior governador da Ordem)
para poder aforar uma vinha e um olival a Gil Peres (TT, Ordem de Santiago, Documentos Particulares,
maço 2, doc. 35).
413
TT, Chancelaria de D. Afonso V, liv. 34, fl. 181; TT, Leitura Nova, Mestrados, 195v-196v.
148
ajuda a perceber a importância do relacionamento entre as ordens e os demais poderes à
sua volta e justifica o interesse da instituição numa avaliação detalhada do seu
património. Percebe-se, sem dificuldade que D. Fernando tenha enviado visitadores às
comendas da Ordem, nomeadamente, em 1458 (a Samora Correia414) ou, mais tarde, ao
Mosteiro de Santos415 (já em 1461). Para cumprir tal tarefa foi destacado Frei Rodrigo
Amado, Prior-Mor da Ordem, que as conduziu. Apesar de serem ainda muito escassas
as menções a este tipo de acção nas terras da Ordem em meados do século XV, é bem
conhecido que o modelo “visitação” será amplamente utilizado nos tempos
subsequentes416.
Ainda nessa década de 60, pode referir-se que, por via de Fernão Pereira, fidalgo
da casa do Infante D. Fernando, é dado conhecimento a António Vaz, juiz ordinário em
Setúbal e ao tabelião Diogo Álvares, de uma carta do governador, de 23 de Novembro
de 1462 pela qual se faz saber ao concelho de Aljezur que os cavaleiros e
comendadores da Ordem tinham privilégios do Papa, do Rei e do próprio Infante, pelos
quais, nas terras de Santiago, não se podia ordenar nenhuma postura, costume novo e
taxa, sem o comendador do lugar ser chamado à vereação417.
Também Alcácer do Sal, convento sede da Ordem nestas cronologias e pertença
da Mesa Mestral da Ordem desde tempos imemoriais418, se apresenta com elevada
importância para o Governador, tal como, em sede própria, já estudou Maria Teresa

414
OLIVEIRA, Luís Filipe, Em demanda das Visitações da ordem de Santiago. As actas anteriores a
1468. In As ordens militares e as ordens de cavalaria na construção do mundo ocidental. Palmela, coord.
Isabel Cristina F. Fernandes, Lisboa: Ed. Colibri/Câmara Municipal de Palmela, 2005, pp. 524-525. Este
autor publica a visitação a Samora Correia no citado estudo, pp. 531-535.
415
MATA, Joel Silva Ferreira – A Comunidade Feminina da Ordem de Santiago: A Comenda de Santos
na Idade Média. Porto, Faculdade de Letras (ed. pol.), 1991, p. 106. Este autor informa que, na ocasião, a
comendadeira de Santos era D. Beatriz de Meneses, a qual, por ocasião da visita, faz instruir uma avença
e transacção entre o Mosteiro e Maria Rodrigues, sacristã, em razão de um furto, por esta praticado.
416
Nomeadamente durante o século XVI. Cfr. PIMENTA, 2001, pp. 20-23, Quadro nº2. Para uma visão
geral da importância destes momentos na orgânica interna das Ordens Militares, veja-se COSTA, Paula
Pinto, As visitações: As Ordens Militares Portuguesas entre poderes? In As Ordens Militares. Freires,
Guerreiros, Cavaleiros, coord. Isabel Cristina F. Fernandes, vol. 1, Palmela: GEsOS/Município de
Palmela, 2012, pp. 407-428 e demais bibliografia aí citada.
417
TT, OS/CP, Livro 272, fl. 211-211v. Publicado Livro dos Copos, doc. 244, 2006, pp. 431-432.
418
Pelo menos, desde 1327. Cfr. Establecimentos de D. Pedro Escacho de 26 de Maio de 1327, TT.,
Ordem de Santiago, Códice nº 141, fl. 1-13v (publicada por BARBOSA, pp. 231-235), e Ordem de
Santiago, Códice nº 272, fl. 179-182, publicado Livro dos Copos, pp. 371-377.
149
Lopes Pereira419. O poder régio terá em linha de conta o significado dos rendimentos de
Alcácer para a chefia da Ordem e, assim, por cartas420 de 5 de Março de 1445 e de 13 de
Março de 1453, fica determinado que os Comendadores deveriam prover ao pagamento
da colheita pela passagem da Ribeira do Roxo (entre Beja e Santiago do Cacém), em
benefício do Infante D. Fernando, seu governador. Outros assuntos, não de menor
interesse, foram identificados num conjunto de cartas relativas à Igreja de Santa Maria
dos Mártires421 e, assim, para o conjunto da comenda, salientamos o documento de 31
de Janeiro de 1463 pelo qual Pero Gil422, mandatado pelo Infante D. Fernando, solicita
ao seu ouvidor, Nuno Afonso, a outorga de todas as escrituras relativas à referida
Igreja423. Não se admira, pois, que nos apareça uma carta de 30 de Novembro do mesmo
ano424, pelo qual Gonçalo de Avis425, escudeiro e almoxarife do infante D. Fernando e
João Martins, escrivão do almoxarifado de Alcácer do Sal, investem o mesmo Pedro
Gil, bacharel, na posse da igreja de Santa Maria dos Mártires para dela ser perpétuo
administrador.
O interesse pela localidade é, ainda, ressaltado, por carta do Infante D. Fernando
de 16 de Janeiro de 1466, pela qual os moradores do castelo, recebem escusa de
aposentadoria (aplicava-se esta às casas de morada, adegas, cavalariças, roupa de cama,

419
PEREIRA, 2000 e PEREIRA, 2015, em especial.
420
TT, Leitura Nova, Mestrados, fl. 194v-195 e TT, Leitura Nova, Mestrados, 195v
421
PEREIRA, 2000, p. 156 e ss. PEREIRA, O Culto de Nossa Senhora dos Mártires em Alcácer do Sal, a
Senhora da Cinta e as Cantigas de Santa Maria. Medievalista [Em linha]. Nº6, Julho de 2009. [Consultado
18.06.2019]. Disponível em http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/ e O Santuário de Santa Maria dos
Mártires de Alcácer do Sal (Séculos XIII a XVI). In Actas do V Encontro sobre Ordens Militares, ed.
Isabel Cristina F. Fernandes, C. Municipal de Palmela/GEsOS, 2009, pp. 635-676.
422
PEREIRA, 2009, p. 676 balizou a sua acção entre 1462 e 1496.
423
TT, Ordem de Santiago, Documentos Particulares, maço 3, doc. 5. Com base nestes documentos que
recebe, inicia uma sistemática gestão dos bens da Igreja, de que são exemplo vários diplomas:
emprazamento de um pardieiro e chão, com data de 1 de Dezembro de 1462 (TT, Ordem de Santiago,
Códice nº 357, fl. 10-11), emprazamento de um chão com oliveiras e figueiras a Bartolomeu Afonso, de
25 de Fevereiro de 1463 (TT, Ordem de Santiago, Documentos Particulares, maço 3, doc. 6),
emprazamento de um olival, chãos e oliveiras a 1 de março de 1463 (TT, Ordem de Santiago, Códice nº
357, fl 8-8v), emprazamento de uma vinha e olival a Fernão Amado, de 7 de Março de 1463 (TT, Ordem
de Santiago, Documentos Particulares, maço 3, doc. 7) ou emprazamento de uma vinha a Fernão Afonso,
de 30 de Outubro de 1465 (TT, Ordem de Santiago, Documentos Particulares, maço 3, doc. 12), entre
outros. Cfr. PEREIRA, 2015, pp. 320-336.
424
TT, Ordem de Santiago, Códice nº 357, fl.9v-10. O documento refere, alguns detalhes sobre o
conteúdo da referida Igreja: onze livros, um caderno, vestimentas (mouriscas, de linho, umas compridas,
outras velhas), mantos, toalhas lavradas com cruzes vermelhas, toalhas francesas, mantéis de linho,
fronhas, frontais de pano mourisco e de linho.
425
Referido por PEREIRA, 2000, p. 174.
150
alfaias de casa, pão, vinho, cevada, palha, lenha, galinhas, gados, bestas de sela nem
d’albarda), ao que acresce que não vão com presos, nem com dinheiros, nem sejam
postos nem dados por besteiros do conto426.
Atenção semelhante fica patente por carta de D. Afonso V de 10 de Julho de
1465427. Através dela sabemos que a comenda de Cacela se encontrava muito
despovoada e que non avia hy outras casas senam o castello em que o Comendador
morava. Para prover a esta situação e a pedido do Infante, o rei concede privilégios para
10 homens que aí quisessem morar e fazer casas, nomeadamente que não paguem fintas,
talhas, peitas, serviços nem empréstimos, sejam régios ou concelhios, nem sejam postos
por besteiros nem tenham cavalo nem armas. Importa notar que a carta refere
expressamente que tais moradores não devem servir a Cepta nem a Alcacer.
Para além do interesse manifestado perante tais acções do quotidiano da gestão
corrente da Ordem de Santiago, importa, ainda, ressalvar o papel do Infante D.
Fernando no processo de desvinculação da obediência da Ordem para com o ramo
castelhano. Tal fica resolvido pela bula de 17 de Junho de 1452428, a instância do
Infante D. Fernando, enquanto governador da Ordem de Santiago, que solicita ao papa
Nicolau V as mesmas isenções, concessões e privilégios já na posse da homónima
castelhana. Com este diploma, a Ordem em Portugal ficava isenta de toda a jurisdição,
senhorio, poderio e visitação por parte do convento castelhano de Uclés, dependendo
unicamente da Santa Sé, como explica Isabel Lago Barbosa429.
Para enquadrar esta decisão, recorremos a palavras já escritas:

O contexto que envolve esta decisão papal, o qual colhe antecedentes


importantes na solicitação ao Papa dos mestrados para os Infantes ou para familiares
dos monarcas, não poderia fazer prever um cenário distinto: a Santa Sé, enquanto

426
Esta disposição foi, mais tarde, alvo de confirmação por parte de D. João II, já em 1486 (Chancelaria
de D. João II, liv. 8, fl. 224-224v). Este documento foi confirmado por D. Manuel (Chancelaria de D.
Manuel, liv. 28, fl. 97v), tal como se pode ler em PEREIRA, 2000, p. 60 e p. 169.
427
TT, Leitura Nova, Mestrados, fl. 199-199v.
428
Deve ver-se: TT, Ordem de Santiago, Códice nº 272, fls. 35v-39;33v-34v;32v-33v e 34v-35v. Publ.
Militarium Ordinum Analecta, 2006, pp. 124-134. MH, vol. XI, docs. 143 e 144, pp. 189-194.
429
1998, p. 120. Cfr. TOOMASPOEG, Kristjan, «Règle», Prier et Combattre - Dictionnaire européen
des Ordres Militaires au Moyen Âge, direcção de Nicole Bériou e Philippe Josserand, Paris, Éditions
Fayard, 2009, p. 774
151
veículo legitimador destas instituições religioso-militares, acedeu às súplicas régias
que apontavam no sentido da demarcação política entre as ordens. A conjuntura em
que este processo se inscreve aproxima-se claramente dos interesses expansionistas da
coroa portuguesa, igualmente sancionados positivamente pelos Pontífices, um
argumento que pesou certamente na consolidação, por um lado, do papel da milícia
enquanto instituição portuguesa e, por outro lado, na sua vinculação à monarquia. […]
a partir daqui irá permanecer intacta a unidade regulamentar entre as instituições,
porventura um reflexo da clara expressão da auctoritas do Papado que, para as
monarquias que acolhem as ordens nos seus territórios, estaria, nestas cronologias,
fora de questão contrariar430.

Importava, pois, deixar bem clara a separação política entre os ramos de


Santiago, embora, como se sabe, a normativa posterior a este período exiba muitos
exemplos de colaboração e proximidade entre as Ordens peninsulares. Em boa verdade,
a condução do governo da ordem ficava, agora, muito comprometida com “as
431
orientações da própria monarquia portuguesa” . Este processo, de resto, vai ser
fundamental para entender a condescendência papal relativamente a Portugal e, no caso,
para com D. Afonso V e o Infante D. Fernando, a propósito do governo de uma outra
ordem militar.
Tal momento, constitui uma segunda fase importante na vida do Infante a surgir
quando, após a morte do Infante D. Henrique, recebe a administração da Ordem de
Cristo. Como vimos, antes de tal acontecer, é o próprio D. Afonso V que a recebe do
Papa432. A coroa, no entanto, havia acautelado a possibilidade do Infante D. Fernando
receber o governo de uma segunda Ordem Militar, possibilidade prevista na bula de 13

430
PIMENTA, Maria Cristina, A Ordem de Santiago em Portugal: fidelidade normativa e autonomia
política. In As Ordens Militares. Freires, guerreiros, cavaleiros (coord. Isabel Cristina F. Fernandes),
vol.I, Palmela: Município de Palmela/GEsOS, 2012, p. 395. Cfr. FONSECA, Luis Adão; PIMENTA,
Maria Cristina; COSTA, Paula Pinto, The Papacy and the Crusade in XVth Century Portugal. In The
Papacy and the Crusades. Proceedings of the VIIth conference of the Society for the Study of the
Crusades and the Latin East, Crusades-Subsidia, 3, ed. Michel Balard, 2011, pp. 141-154.
431
PIMENTA, 2012, p. 394.
432
MH, vol. XIV, doc. 42, 1973, pp. 125-129.
152
de Março de 1456, de Calisto III433. Este tema não é pacífico e tem subjacente o
conteúdo de uma carta de D. Afonso V a D. Fernando da Guerra onde o rei menciona
que o infante D. Fernando, após a recente morte do Infante D. Henrique, lhe requereu o
mestrado de Cristo. O rei explica que tal não desejava porque o havia solicitado para si
ou para o seu filho, o que terá deixado D. Fernando descontente434. O futuro dirá que a
vontade de D. Afonso V seria adoptada pelos seus sucessores, mas, por agora, o certo é
que no Verão de 1461435, D. Fernando podia intitular-se Governador das Ordens de
Santiago e de Cristo.
A avaliar por uma recente investigação, centrada no estudo dos livros da Ordem
encomendados a Pedro Álvares Seco, sabemos que no período que medeia entre 1460 a
1484, Pedro Álvares apenas transcreve 32 documentos, dos quais 14 pontifícios e oito
régios. Parece ter sido um período de menor intervenção régia na Ordem436. Tratando-
se de uma obra orientada para a preservação de uma memória da Ordem, quer
patrimonial, quer institucional, a quantidade diminuta dos diplomas não prejudica, antes
ajuda a compreender melhor os objectivos das compilações feitas. Para o nosso caso,
este trabalho foi uma ajuda preciosa, ao qual acrescentamos, na medida do possível pelo
tempo disponível, outra documentação que nos ajuda a construir o retrato da breve
passagem do Infante pela Ordem de Cristo.
Os objectivos deste príncipe, para além da importância da conotação da Ordem
de Cristo com a expansão portuguesa à qual não ficou alheio, passaram, como já vimos
acontecer no caso da Ordem de Santiago, por tentativas de organizar o território e
proventos da Ordem, objectivos importantes e imprescindíveis para qualquer
governador. É, assim, muito interessante, a existência de excertos de uma visitação ao
mestrado, ordenada em 1462, e levada a cabo por Frei Diogo da Cunha, ao que acresce

433
MH, vol. XII, doc. 138, pp. 289-291. Referido por LENCART, Joana, Pedro Álvares Seco: A
Retroprojeção da memória da Ordem de Cristo no século XVI, Porto: FLUP, 2018, pp.43-44.

434
MH, vol. XIV, doc. 37, 1973, pp. 110-114. Cfr VASCONCELOS Antonio Pestana de, MENDONÇA,
Manuel Lamas de, The Recruitment of the Portuguese Military Orders: A Sociological Profile (1385-
1521). In The Military Orders 5. Politics and Power, ed. Peter Edbury, Aldershot, 2012, p. 387-400.
435
MH, vol. XIV, doc. 57, 1973, pp. 158-162. Bula de Pio II de 11 de Julho de 1461. LENCART, 2018,
p. 44.
436
LENCART, 2018, p. 172.
153
a probabilidade para a existência de outras, entre 1462 e 1466437. Talvez neste
enquadramento se possa inserir um documento pelo qual Diogo da Cunha, cavaleiro da
Ordem de Cristo e comendador de Casével e visitador da ordem eleito e com a
concordância de Frei João Martins, prioste-mor do convento de Tomar, a quem pertence
a comenda do Sonegado, emprazou a João Esteves e a sua mulher Constança
Gonçalves, um olival da referida comenda438.
Com uma acção muito circunscrita a Tomar439, como seria de esperar uma vez
que aí se localizava o convento-sede da Ordem, o Infante inicia prontamente o
cumprimento das disposições que, por ser herdeiro do Infante D. Henrique, estava
obrigado. Assim, ordena o pagamento de certas prestações anuais, em prata, ao vigário e
capelães das igrejas da Ordem de Cristo, nas ilhas da Madeira, Porto Santo e
Desertas440. Para o cumprir, em Setembro de 1465, toma medidas no sentido de
apresentar Frei Pedro de Abreu como vigário de Tomar e, pouco depois, a 5 de Outubro,
sabemos da existência do documento de posse do referido vigário441. Esta nomeação,
muito prestigiante, permitiria ao infante um relativo afastamento dos afazeres diários da
gestão da Ordem, o que fica claro pela outorga, ao mesmo Frei Pedro de Abreu, de uma
licença para dar terras de sesmaria, em Tomar e no termo442.
Certamente que, a tipologia dos acontecimentos ditaria, também, a dedicação do
infante e o exercício das suas prerrogativas de administrador. Por isso falamos de um
relativo afastamento. Foi o que aconteceu, cremos, em Fevereiro de 1463, quando o
infante profere uma sentença ordenada a Frei Antão Gonçalves, alcaide-mor da vila de
Tomar relativamente aos direitos da alcaidaria mor443. Este processo encontra a sua
explicação na idade avançada do alcaide, pelo que D. Fernando nomeia frei Fernando,

437
SILVA, 2002: p. 158; LENCART, 2018 pp. 66-67).
438
Carta de 7 de Junho de 1462, Junho, 7. TT, Ordem de Cristo, Documentos Particulares, maço 6, doc.
39. Outro caso pode ler-se em TT, Ordem de Cristo, Documentos Particulares, maço 7, doc. 2 (carta de
Janeiro de 1467, pela qual Frei João Martins, prior mor da ordem de Cristo, empraza a Vasco Afonso,
morador em Tomar, um olival com terra e mato).
439
SILVA, 2002, pp. 83 e ss.
440
Carta de 1461.11.23. Publ. Descobrimentos Portugueses, vol. 3, nº 6, pp. 12-13.
441
TT, OC/CT, liv. 52, fls. 9v-11v.
442
Documento de 17 de Janeiro de 1466. TT, OC/CT, liv. 2, fls. 47r-47v.
443
MH, vol. XIV, doc. 151, pp. 342-346.
154
vigário de Tomar, para juiz dos feitos da alcaidaria444. Intervenção de igual importância
acontece já em Setembro de 1468, quando D. Fernando celebra um contrato com o
concelho de Vila Franca determinante para assegurar os direitos da ordem nessa
localidade445. Na ocasião, estando presente D. Fernando foi informado por Estevão
Pires, juiz, por Diogo Pires, João do Paço e Estevão Afonso, vereadores, por João
Martins procurador do concelho e outros muitos homens bons da vila que, desde há
muito tempo que o alcaide da ordem, Diogo Anes de Valadares movera uma demanda
com base na nomeação de um sucessor para a alcaidaria. O que parece estar em causa
nesta contenda são os rendimentos das carceragens, a portagem paga por Mouros e
Judeus, a posse das chaves da judiaria, a dízima dos bens transportados pelo Tejo, da
madeira que vier por mar e por terra, entre outros de que o alcaide usufrui e que a
Ordem subscreve, evidentemente446.
Estes breves exemplos não nos autorizam a dar por finalizada esta reflexão em
torno da relação entre o infante e as Ordens. Muito pelo contrário.
A ausência de D. Fernando do reino em 1463 para participar na expedição a
Tânger e o desfecho que daí advém, acaba por ajudar a compreender o seu perfeito
entendimento da condição de Miles Christi a acarinhar por parte de um governador de
uma Ordem religioso-militar. Esta circunstância obriga-nos a algumas palavras finais.

O que tentámos apresentar foi, com as deficiências decorrentes da redutora


pesquisa documental que nos foi possível fazer, uma imagem do infante, enquanto
governador de Santiago e de Cristo.
A dotação de dois mestrados nas mãos do irmão do Rei de Portugal nos anos
centrais do século XV corresponde, de facto, a uma fase interessante da associação, num
membro da família real, das Ordens de Cristo e Santiago, modelo que não vai prevalecer

444
MH, vol. XIV, doc. 109, 1973, pp. 268-269, carta de 6 de Agosto de 1463. Mais tarde, em 13 de
Fevereiro de 1468, a questão ainda persistia, existindo queixas feitas contra frei Antão Gonçalves, desta
feita sobre os direitos e foros da alcaidaria. MH, vol. XIV, doc. 151 1973, pp. 342-346.
445
TT, OC/CT, Documentos Particulares, mç. 7, nº 4.
446
Este diploma permite conhecer, através do elenco das testemunhas, Diogo Gil Moniz, vedor da
fazendo do infante e Luís de Sousa, claveiro da ordem de Cristo na época.
155
por muito tempo. Como já escreveu Luís Adão da Fonseca, haverá …uma alteração
profunda que se verifica com D. João II: se a Ordem de Cristo continua ligada à
família do Infante D. Fernando, Avis e Santiago passam a estar associadas à Casa
Real, numa situação que se mantém até entrado o século XVI447. Por esta razão,
devemos insistir e sublinhar que a administração conjunta de D. Fernando das Ordens
de Santiago e de Cristo, referida a vários títulos ao longo desta dissertação, deve ser
entendida como uma realidade que se entrecruza com as diversas fases da vida do
infante e, como tal, não poderia ter sido considerada de outra forma. Que saibamos, não
existe, ainda, um estudo que aborde, em exclusivo, esta dimensão, pelo que acreditamos
valer a pena escrever algumas reflexões a este propósito.
A solicitação ao Papa de um Mestrado para um membro da família real
portuguesa era um procedimento já habitual quando o Infante D. Fernando recebe o
governo da Ordem de Santiago em 1444. Por maioria de razão, em 1461, tornando-se
Governador da Ordem de Cristo, persiste uma normalidade já anteriormente anunciada e
praticada. Mesmo este acumular de dois mestrados num só administrador, apanágio da
vontade régia na Idade Média tardia foi visível nesta década de 40, no quadro do que já
se chamou o ciclo de Alfarrobeira448. Exemplo de tal situação é o da Ordem de Avis,
concedida ao Infante D. Henrique após Alfarrobeira (quando já possuía a administração
do mestrado de Cristo449.)
Mais tarde, sabe-se que este será o caminho que a monarquia vai encontrar para
uma aproximação decisiva às ordens solicitando-as ao Papado para os herdeiros do
trono. E por esta razão vale a pena perguntar: onde se fundamenta o binómio
religioso/militar que justifica e ampara estas instituições desde a sua origem?
Para o podermos esclarecer torna-se importante ressaltar a importância do
espírito das Ordens na conformação das estratégias ultramarinas da monarquia
portuguesa450, um aspecto que já foi amplamente considerado nesta dissertação. Com

447
FONSECA, Luís Adão – As Ordens Militares e a Expansão. In A Alta Nobreza e a Fundação do
Estado da Índia (coord.. João Paulo Oliveira e Costa e Vítor Luís Gaspar Rodrigues). Lisboa:
Universidade Nova de Lisboa, 2004, p. 326. Cfr. LENCART, 2018, p. 44-45.
448
FONSECA, 2004, pp. 324-325.
449
MH, vol. X, docs. 7 e 50. Cfr. MORENO, MORENO, 1973, pp. 547-548; AYALA MARTINEZ,
Carlos - Las Órdenes Militares Hispânicas en la Edad Media. Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 527.
450
FONSECA, 2004, p. 334.
156
efeito, é inegável que a monarquia portuguesa sentiu, desde muito cedo, necessidade de
utilizar o conceito de cruzada para alicerçar muitas das suas opções políticas,
nomeadamente no quadro da expansão marítima que aparecia, assim, legitimada. As
decisões tomadas nestes anos centrais do século XV no que ao Norte de África e à Costa
Ocidental Africana se referem, encontram a sua melhor fundamentação no referido
conceito (agora adaptado a uma época mais tardia451) e, a Ordem de Cristo, por maioria
de razão, será a sua expressão mais visível, o seu rosto.
De resto, bastará lembrar a atribuição à Ordem de Cristo da jurisdição espiritual
sobre todas as terras descobertas, um atributo que, concedido pela Santa Sé, poderia vir
a justificar que o seu futuro governador, o rei de Portugal D. Manuel I suscitasse no
reino a crença de estar fadado para recuperar Jerusalém do poder Infiel452. Este monarca
é, como sabemos, filho do Infante D. Fernando. Não será extemporâneo dizer que It was
in the realm of ideas and images that crusading could still excite and inspire…453.

451
HOUSLEY, Norman – Introduction. In HOUSLEY, Norman (ed.) – Crusading in the Fifteenth Century.
Message and Impact. Houndmills: Palgrave Macmillan, 2004, pp. 3-9. Cfr. FONSECA, PIMENTA, COSTA,
2011, p. 141-156
452
THOMAZ, Luís Filipe Reis. e ALVES, Jorge dos Santos, Da Cruzada ao Quinto Império. In A
Memória da Nação (org. F. Bethencourt e D. R. Curto), Lisboa: Sá da Costa Editora, 1991, pp. 89-100 e
pp.156-159).
453
HOUSLEY, Norman, Contesting the Crusades. Oxford: Blackwell Publishing, 2006, p. 140.
157
Conclusão

Em 1469, depois de regressar de Anafé, o infante D. Fernando adoecia. Não se


sabe o problema que terá contraído, mas Pina refere que este foi vitimado por uma
doença prolongada que lhe tiraria a vida no dia 18 de Setembro de 1470454. Morria o
irmão do rei aos 36 anos de idade (depois de tanto termos falado dele, da sua vida, dos
títulos, das honras, do património, das responsabilidades políticas e militares, da sua
Casa, parece estranho termos a consciência de que ele morreu tão jovem!), em Setúbal,
rodeado pelos familiares mais próximos: a infanta D. Beatriz sua mulher e o monarca
seu irmão (que viveria ainda onze anos). Seria enterrado no Mosteiro de S. Francisco de
Setúbal e só depois trasladado para Beja, para o Mosteiro da Conceição, fundado pela
infanta D. Beatriz.
Com a sua mulher, D. Fernando demorara muito tempo a gerar herdeiros. Na
verdade, já tinham passado cerca de dez após o casamento quando o casal teve o seu
primeiro filho em 1458, neste caso, uma menina, D. Leonor.455 Posteriormente, o
infante foi progenitor de uma extensa descendência: as filhas - Leonor, Isabel e
Catarina, e os filhos – João, Diogo, Simão, Duarte, Dinis e Manuel456. Estranhamente,
Pina não refere nem Dinis, nem Catarina,457 que são acrescentados por Caetano de
Sousa. Duarte Nunes de Leão também não os cita.458 Da mesma forma, os cronistas não
dão qualquer indicação dos anos de nascimento dos filhos dos duques.
No entanto, D. Fernando, já doente e antes de falecer, tivera ainda tempo de
acordar com o rei o casamento do príncipe D. João com a sua filha mais velha, D.
Leonor e de concertar o da sua outra filha Isabel com o conde de Guimarães, depois
duque de Bragança.459 O futuro dos filhos começava a ser assegurado. D. Leonor seria
rainha, D. Isabel duquesa de Bragança, os filhos João, Diogo e Manuel seriam duques

454
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 817.
455
DÁVILA, 2019, p. 42.
456
SOUSA, cap. VIII, tomo II.
457
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 817.
458
LEÃO, Crónicas dos Reis de Portugal, pp. 900-901.
459
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 816.
158
de Viseu-Beja e este último rei pela morte do filho de D. João II. Quanto a Duarte, o
Pryncepe recolheo pera sy, e criandoo em sua casa com muyta honrra e grande amor
como proprio Fylho, falleceo em moço (...)460. Simão faleceu também ainda menino,
numa altura em que a mortalidade infantil era deveras alta. Em 1471, D. João, duque
Viseu e de Beja obtinha do rei todos os privilégios e liberdades como se de infante se
tratasse461.
António Caetano de Sousa descreveu o infante como magnânimo, generoso e
altivo, e afirmou que a sua casa era servida com magnificência e liberalidade, que atraía
ao seu serviço os principais fidalgos do reino, aos quais fazia mercê das comendas das
ordens. A sua casa assemelhava-se à corte de um soberano. A grandiosidade, ostentação
e riqueza em que viveria foi notada nas fontes da época, quer no diário do embaixador
alemão que se dirigiu a Portugal aquando do casamento da infanta D. Leonor (como
vimos), quer na Crónica de D. Afonso V, quando Pina refere que o Yfante Dom
Fernando veo com seus ventureiros vestidos de guedelhas de seda fina como selvajens ,
em cima de bõos cavalos envistydos e cubertos de figuras e cores (...) e o Ifante Dom
Fernando por milhor justador venceo entam o grado (....).462 Sem dúvida que chamou a
atenção nestes festejos do casamento da irmã, uma vez que ambas as fontes coincidem
nesse aspecto. Um protagonismo, riqueza e influência que o tornaram num dos maiores
senhores do seu tempo, algo favorecido pela morte do seu pai adoptivo, o infante D.
Henrique. Esse foi o momento decisivo que lhe permitiu tornar-se duque de Viseu,
senhor da Covilhã, governador de Cristo, protector da Universidade (para a qual redigiu
três importantes alvarás), entre outros bens, e senhor incontestado do Atlântico. No
oceano e pelas costas africanas o infante, totalmente ao contrário do “Navegador”, não
parece ter apostado no prosseguimento do reconhecimento e exploração do território
(nenhuma fonte o refere), mas manteve com toda a autoridade e preocupação a
administração colonial desses espaços ultramarinos. Os seus interesses enquanto senhor
deveriam vir em primeiro lugar relativamente aos capitães donatários que manteve nas
ilhas e ao povo que as colonizava. É de assinalar a forma como dirigiu os assuntos

460
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 817.
461
Chancelaria de D. Afonso V, liv. 16, fl. 125v.
462
PINA, Crónica de D. Af. V, p. 761.
159
insulares, patente nos regimentos que redigiu para o governo das ilhas e que demonstra
a sua enorme preocupação com os assuntos económicos do trigo e do açúcar que
animavam a Madeira naquela fase. Sobre este último, o açúcar, tentou o infante obter o
monopólio da produção, algo que nunca conseguiu, mas que mostra bem os seus
interesses no trato do produto e o quanto investiu neste ao contactar com mercadores de
Lisboa e da Flandres a fim de resolver uma crise de preços baixos que se agravava nesta
altura.
Foi na sua dimensão senhorial que encontrámos o seu poder efectivo, que se
começou a desenhar desde muito cedo, logo quando fica sob a tutela do infante D.
Pedro que lhe concede uma casa ainda ele era uma criança pequena. Tivemos que
prosseguir até meados da década de 1440 e de 1450 para encontrarmos outras
referências ao seu claro protagonismo na corte (desde 1444 ascende ao governo da
Ordem de Santiago), à influência junto do monarca, com quem julgamos ter sido
devidamente formado e educado dentro dos principais valores da educação de um
príncipe medieval. Disciplinado e profundo conhecedor da cultura do seu tempo, bem
como da arte da guerra, D. Pedro terá facultado ou mandado por intermédio de amos e
aios que essa educação chegasse aos seus sobrinhos herdeiros. As letras, a cavalaria, o
gosto pela guerra e o acesso àqueles que eram os textos mais importantes na educação
de um príncipe não terão certamente passado despercebidos ao pequeno Fernando.
Nunca saberemos que peso a experiência de uma infância difícil terá tido na sua
personalidade e se motivou a oposição que fez ao seu tio em Alfarrobeira, ainda que se
compreenda que nunca poderia ter ficado contra o rei.
Ainda nesta fase inicial e dos primeiros anos de vida deverá ter fomentado o seu
espírito senhorial e desenvolvido as competências que eram necessárias para se
comportar como um grande senhor. As múltiplas referências ao seu legado enquanto
administrador e à sua casa senhorial, que tentámos estudar, não nos permitiram, no
entanto, perceber com clareza a evolução da mesma. O mesmo se poderá dizer em
relação às ordens militares. A documentação é escassa e, em alguns casos inexistente.
Pudemos obter apenas alguns quadros isolados, que não deixam de ser reveladores da
enorme riqueza a que teve acesso, ainda que não se consiga explicar o estado em que

160
recebeu a herança e fortuna delapidada do infante D. Henrique. No entanto, Zurara
descreve-o da seguinte forma: E o iffante dom Fernando como se vya filho delRey
liidemo huum soo Iffante no regno de sua natureza criado no berço com seu Irmãao
trazido a este mundo de tam grandes avoengas que ou per vya dereita ou colleteral
cingya e abraçava toda a mayor parte do nobre / sangue de christiandade duas vezes
duque com Senhoryo e mando de tantas fortellezas villas e lugares e de tanta e de tam
specyal cavallarya como ha nas ordeens de christus e santyago aallem de condes e
cavalleyros segraaes que eram postos em seu livro por seus vassalos e que por ello
recebyam delle grandes teenças e mercees.463
Para além da faceta senhorial, Marrocos e o Norte de África constituíram um
outro aspecto relevante na sua vida e onde a sua personalidade complexa se revelou
plena de contradições dentro de um curto espaço de tempo. As suas preferências
pessoais incidiram sobre este espaço e sobre como governar as possessões atlânticas,
ainda que não tenha manifestado interesse nas actividades mercantis da expansão, ao
contrário de D. Henrique.
Peça central do senhorialismo português do século XV, senhor da guerra,
poderoso, influente, muito rico e crítico junto do rei, relativamente a quem sempre levou
a melhor em todas as disputas e desentendimentos entre ambos, o infante D. Fernando
conseguiu afirmar-se com uma personagem quase única, no panorama dos príncipes de
Avis, em muitos momentos da sua vida.
Adrian Goldsworthy, notável historiador da Antiguidade clássica romana,
escreveu a propósito das incoerências e contradições do imperador Augusto,464
demonstrando que estas são naturais e inevitáveis em homens de grande poder. Não
estamos a comparar épocas e figuras, mas podemos pedir emprestada esta ideia para D.
Fernando. Assim, o infante foi o homem que cresceu numa fase conturbada da história
portuguesa e que foi ‘protegido’ pelo seu tio D. Pedro; mas também foi o homem que,
chegado o momento de assumir uma posição, se colocou contra o seu tutor em
Alfarrobeira.

463
ZURARA - Crónica do Conde D. D., p. 341.
464
GOLDSWORTHY, Adrian – Augusto: de revolucionário a imperador de Roma. Lisboa: Esfera dos
Livros, 2016, pp. 486-487.
161
Foi o homem que seguiu entusiasmado para conquistar mais uma praça no Norte
de África, Alcácer Ceguer, em 1458, mas também foi aquele que, em 1460, ou seja, dois
anos depois, tentou demover o irmão de prosseguir com os assédios marroquinos,
invocando fortes argumentos políticos, um enorme ‘sentido de estado’ e o peso que a
responsabilidade do rei deveria significar. Mas foi também o homem que poucos anos
depois se revelaria irredutível, obstinado, determinado e impulsivo em continuar a
política de conquistas, chegando a colocar a sua vida em risco sob as muralhas de
Tânger.
Foi o homem que governou a Ordem de Santiago, símbolo de riqueza e poder
plasmado na localização dos seus territórios e na exploração de recursos apetecíveis à
exportação, mas também foi o homem que administrou a Ordem de Cristo aquela que
colocou no mar os homens, o reino e a cruz.
Foi o homem que manobrou o poder no sentido da realização dos seus projectos
e interesses, mas também foi o homem que se preocupou com os pedidos daqueles que
dependiam das suas ordens e viviam nos seus domínios.
Foi o homem que desrespeitou as tradições, sendo ambicioso, prepotente e
desobediente ao apoderar-se do quinto da cavalgada pertencente a D. Duarte de
Meneses e ao fugir para África sem a autorização de D. Afonso V, mas também foi o
homem que mostrou sensibilidade e nobreza de carácter pela forma como se encarregou
de transportar as ossadas do infante D. Henrique para o panteão dos Avis, como
protegeu os seus apaniguados e servidores e pessoalmente fez cumprir os últimos
desejos deste. O infante explica os motivos: primeiramente, aas almas de nossos
padres, as quaaes devemos conprir per ssua ssalvaçam, naquelo que per eles, aa ora de
ssua morte, fforam ynstetuydas; e a ssegunda por a obrigaçam que ao dicto meu padre
tenho, por dele ssoçeder e aver as cousas que me, per ssua morte, fficaram; e a terceyra
por ffazer o que devo e que eu queria que os meus ssoçessores e herdeyros em meus
estabileçimentos ffezessem. E, conhoçendo ssobretodo o grande serviço que em elo a
Deus ffaço.465

465
MH, vol. XIV, doc. 66, p. 189.
162
Por fim, D. Fernando, condestável do reino, fronteiro-mor do Alentejo,
governador das ordens de Santiago e Cristo e duque de Viseu e de Beja, príncipe,
infante e senhor, foi o homem a quem as matérias da morte e da alma, tão importantes
na época, também preocuparam ou não se rezassem, ainda em 1508, duas missas diárias
pelo infante, no Funchal por ordem do seu filho, o rei D. Manuel I.466

466
Tombo 1º do Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal - Arquivo Histórico da Madeira, IIII,
doc. 326, pp. 517-519.
163
Fontes

Fontes Manuscritas

TT, Chancelaria de D. Afonso V467

TT, Chancelaria de D. João II

TT, Leitura Nova, Mestrados468

Ordem de Cristo

TT, OC/CT, Documentos Particulares, mç. 6 (1419-1462)


TT, OC/CT, Documentos Particulares, mç. 7 (1463-1502)

TT, OC/CT, Livro 52 (1465-1546) [Livro das notas do convento de Tomar]

Ordem de Santiago

TT, OS/CP, Documentos Particulares, mç. 2 (1407-1459)


TT, OS/CP, Documentos Particulares, mç. 3 (1460-1482)
TT, OS/CP, Convento de Palmela, Maço 1 (docs. 34-39)
TT, OS/CP, Livro 357 (1425-1475)

467
A consulta desta chancelaria foi possível devido à existência de uma base de dados disponível na
Intranet da Torre do Tombo (consultada a 25-26 de Julho de 2019) que nos permite identificar o diploma
para, depois, comprovarmos a sua existência na edição online da referida chancelaria
(https://digitarq.arquivos.pt/details?id=3815943).
468
A razão pela qual optámos pela consulta deste fundo prende-se com o facto do mesmo se referir
totalmente às Ordens Militares, o que nos pareceu uma boa escolha para a identificação de importantes
cartas.
164
Fontes Impressas

Archivo dos Açores, ed. Ernesto do Canto. Ponta Delgada: tipografia do Archivo dos
Açores, 1881, vol.III.

Chartularium Universitatis Portugalensis: 1288-1537, documentos publicados por A.


Moreira de Sá. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1966-2004, 16 vols. vol VI- 1974; vol.
VII – 1978.

Documentos Inéditos de Marrocos: Chancelaria de D. João II (pub. P. M. Laranjo


Coelho). Lisboa: Imprensa Nacional Casa de Moeda, 1943, vol. I.

Documentos das chancelarias reais anteriores a 1531 relativos a Marrocos, (dir. de


Pedro de Azevedo). Lisboa: Academia das Sciências de Lisboa, 1915-1934, 2 vols.

Documentos para a História e Cidade de Lisboa: cabido da Sé, sumários de Lousada,


apontamentos dos Brandões, Livros dos bens próprios dos reis e rainhas. Lisboa:
Câmara Municipal de Lisboa, 1954.

Descobrimentos Portugueses: documentos para a sua história, pub. e pref. por João
Martins da Silva Marques. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1988,
5 vols.

Documentos sôbre várias indústrias portuguesas, pub. por Sousa Viterbo. Coimbra:
Imprensa da Universidade, 1918.

165
DUARTE, D. – Livro dos Conselhos de El- Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa), ed. e
trasc. João Alves Dias. Lisboa: Editorial estampa, 1982.

DUARTE, D. - Livro da Ensinança da Arte de Cavalgar Toda Sela, ed. crítica de


Joseph Piel, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986.

FARO, Jorge - Receitas e Despesas da Fazenda Real de 1384-1481. Lisboa: Instituto de


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