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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO

PRO-REITORIA ACADÊMICA
PROGRAMA DE MESTRADO EM FILOSOFIA

JOSÉ DÁCIO SANTOS OLIVEIRA

A NOÇÃO ARISTOTÉLICA DE CAUSALIDADE

RECIFE-PE
2023
JOSÉ DÁCIO SANTOS OLIVEIRA

A NOÇÃO ARISTOTÉLICA DE CAUSALIDADE

Dissertação de Mestrado
apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Filosofia da Faculdade
Católica de Pernambuco, como
requisito parcial à obtenção do título
de Mestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. José Marcos Gomes de Luna

RECIFE-PE
2023
JOSÉ DÁCIO SANTOS OLIVEIRA

A NOÇÃO ARISTOTÉLICA DE CAUSALIDADE

Dissertação de Mestrado
apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Filosofia da Faculdade
Católica de Pernambuco, como
requisito parcial à obtenção do título
de Mestre em Filosofia.

BANCA EXAMINADORA

Profº Dr. José Marcos Gomes de Luna


UNICAP, Orientador

Profº
UNICAP, Membro interno

Profº. Dr.
UNICAP, Membro interno

Profº Dr.
UNICAP, Membro externo
Dedico esta Dissertação em primeiríssimo
lugar Àquele que é o único e digno de toda
honra e glória, ao meu Deus. Aos meus
pais João José de Oliveira e Maria de
Lourdes Santos. Esta conquista é fruto
deles.
AGRADECIMENTOS

A gratidão é uma marca autêntica da pessoa humana e revela um coração


humilde e generoso. Revela, sobretudo que nossas conquistas nunca são
isoladas, mas se dão na intersubjetividade e na contribuição de tantas pessoas.
Dessa forma, hoje para mim é um dia de gratidão a tantos que fazem parte do
meus estudos.
De antemão, agradeço a Deus pelo dom maravilhoso que recebi Dele: a
vida. Agradeço-Lhe profundamente pelos meus pais João José de Oliveira e
Maria de Lourdes Santos e a todos os meus familiares que me incentivam a
seguir nos caminhos de Deus, mesmo diante dos momentos difíceis da vida.
Agradeço a todos os meus amigos que sempre estão presentes na minha
vida mesmo que estejamos fisicamente separados. Obrigado pelos momentos
que vivenciamos juntos, pelas lágrimas que derramamos, pelas vitórias e
derrotas!
Agradeço a Sua Excelência Reverendíssima Dom Valdemir Ferreira dos
Santos, meu pastor, pelo incentivo aos estudos. Agradeço a professora Verinha,
minha primeira professora do pré-escolar. Grato a todos os meus professores
por toda formação que eu recebi até a conclusão da filosofia. Ao Reverendíssimo
Pe. Wellington, irmão no sacerdócio, muito obrigado pelo incentivo aos estudos!
Grato a todos que formam o Seminário Maria Mater Ecclesiae do Brasil,
em Itapecerica da Serra -SP, por toda formação filosófica que recebi.
Grato a todos que formam a Universidade Católica de Pernambuco –
UNICAP, especialmente ao meu orientador Prof. Dr. Marcos Gomes de Luna,
sacerdote. Muito obrigado pela paciência para comigo.
Agradeço a Sua Excelência Reverendíssima Dom Henrique (in
memoriam) meu grande Pai Espiritual pela ajuda no meu processo de
discernimento vocacional e por tantos conselhos que hoje os entendo
perfeitamente em meu Ministério Sacerdotal.
Agradeço a Maria Monteiro de Melo (in memoriam) foi por meio desta
serva de Deus que comecei a frequentar minha paróquia e participar do grupo
dos coroinhas, despertando, assim, a vocação sacerdotal.
Agradeço ao Reginaldo Dullys, grande servo de Deus pela oração e
amizade. A todos vós muito obrigado! Vós sois a motivação aos meus
estudos! Enfim, agradeço a Virgem Maria, minha querida Mãe, que
sempre está presente em minha vida.
Obrigado, Senhor, por tudo!

Domine, in manus tuas commendo vitam meam!

(Senhor, em tuas mãos eu entrego a minha vida!).

“Além disso, quem conhece as causas com


mais exatidão, e é capaz de ensinar, é
considerado em qualquer espécie de
ciência como mais filósofo.”

Aristóteles
RESUMO

Nesta dissertação, procuraremos dar uma possível resposta a problemática que


levantamos, a saber; a existência da causalidade é uma verdade evidente?. Para
alcançar tal resultado, exporemos os argumentos aristotélicos da excelência da
sapiência sobre os demais saberes, bem como da análise de causa na doutrina
de alguns filósofos que precederam Aristóteles, pois foram os primeiros a
procurar uma arché eterna que fosse o fundamento responsável pela existência
das coisas. Em seguida, introduziremos a noção de causa como αἰτία (aitia) termo
introduzido por Aristóteles, na Metafísica, para designar “causa”, entendendo o
porquê de uma coisa em seu sentido mais profundo e amplo. Culminaremos na
conexão e relação entre as causas e como a causa final é a causa de todas as
causas. Veremos que estas explicam as transformações no mundo do devir por
meio tanto da doutrina do hilemorfismo teleológico quanto do ato e da potência.
Notaremos a partir de uma profunda fundamentação filosófica da causalidade
que ela foi o alicerce para o mundo ocidental. Deste modo, ao adentrar esse
domínio complexo, exploraremos não só a natureza intrínseca da causalidade,
mas também sua contribuição ao conhecimento científico.

Palavras-chave: Aristóteles. Causalidade. Cosmos. Ciência. Contemporaneidade.

ABSTRACT

In this dissertation, we will try to provide a possible answer to the problem we have
raised, namely, is the existence of causality a self-evident truth? In order to
achieve this result, we will expose the Aristotelian arguments for the excellence
of wisdom over other knowledge, as well as the analysis of causation in the
doctrine of some philosophers who preceded Aristotle, since they were the first to
search for an eternal arché that was the foundation responsible for the existence
of things. Next, we will introduce the notion of cause as αἰτία (aitia), a term
introduced by Aristotle in the Metaphysics to designate "cause", the why of a thing
in its deepest and broadest sense. We will culminate in the connection and
relationship between causes and how the final cause is the cause of all causes.
We will see that these explain the transformations in the world of becoming
through the doctrine of teleological hylemorphism as well as act and potency. We
will see from a profound philosophical foundation of causality that it was the
foundation for the Western world. Thus, by entering this complex domain, we will
explore not only the intrinsic nature of causality, but also its contribution to
scientific knowledge.

key words: Aristóteles. Causality. Cosmos. Science. Contemporaneity.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................... 11
2 A NOÇÃO ARISTOTÉLICA DE CAUSALIDADE .................................... 14
2.1A EXCELÊNCIA DA SAPIÊNCIA EM ARISTÓTELES ........................... 14
2.1.1 .......................................................................................................... A ensinabilidade
do conhecimento das causas ......................................................... 15
2.1.2 A universalidade do conhecimento das causas. ......................... 18
2.1.3 O grau da perfeição do conhecimento das causas. .................... 21
2.2 CONHECIMENTO DA CAUSALIDADE NO MUNDO DO DEVIR. ......... 23
2.1.1 Ato, Potência, Forma e Matéria como explicação da
causalidade no mundo das transformações.........................................24
2.3 A CRÍTICA DE ARISTÓTELES AOS SEUS ANTECESSORES. ........... 32
2.4 FILÓSOFOS QUE FICARAM NO NÍVEL DA CAUSA MATERIAL E
DA CAUSA MOTORA ................................................................................ 33
2.4.1 .......................................................................................................... Tales de Mileto: a
água como princípio gerador de todas as coisas ........................... 34
2.4.2 Anaximandro de Mileto: o ápeíron como princípio indefinido-
infinito gerador de todas as coisas
36
2.4.3Anaxímenes de Mileto: o ar infinito como princípio gerador de
todas as coisas ....................................................................................... 37
2.4.4 Diógenes de Apolônia: o ar-inteligência, de natureza infinita,
como princípio gerador de todas as coisas
38
2.4.5 Leucipo e Demócrito: o atomismo como princípio gerador de
todas as coisas ....................................................................................... 39
2.4.5 .......................................................................................................... H
eráclito de Éfeso: o perene escorrer de todas as coisas e o devir
universal revelam-se como harmonia de contrários.
40
2.4.6 .......................................................................................................... Parmênides e a
doutrina do ser: o ser é e o não ser não é ....................................... 42
2.5 FILÓSOFOS QUE ULTRAPASSARAM A CAUSA MATERIAL E A
MOTORA.................................................................................................. 43
2.5.1 Empédocles de Agrigento: o primeiro dos pluralistas e a
teoria cosmogônica dos quatro elementos............................................44
2.5.2 Anaxágoras de Clazômenas: a descoberta das homeomerias
e da inteligência ordenadora...................................................................47
2.5.3Platão: mundo das formas e o mundo sensível ............................ 50
2.6 A NOÇÃO DE CAUSALIDADE NA METAFÍSICA .................................. 53
2.6.1O termo causalidade em Aristóteles. ............................................. 54
2.7 AS QUATRO CAUSAS......................................................................... 55
2.7.1 Causa formal-αἰτία εἰδική .............................................................. 56
2.7.2Causa material-αἰτία ὑλική.............................................................. 58
2.7.3Causa eficiente- αἰτία ἐνεργείᾳ ....................................................... 59
2.7.4Causa final αἰτία τελική ................................................................... 60
2.8 GANHOS OBTIDOS DO CAPÍTULO .................................................... 61
2.8.1 Primazia da sabedoria sobre as demais formas de
conhecimento: distinção e harmonia......................................................61
2.8.2 .......................................................................................................... Conhecimento
holístico das coisas ......................................................................... 62
2.8.3 Causa definida como αἰτία: uma compreensão mais ampla da
realidade...................................................................................................63
3 A CAUSA DAS CAUSAS NA DOUTRINA ARISTOTÉLICA.....................65
3.1 A CONEXÃO ENTRE AS CAUSAS ...................................................... 66
3.1.1 A relação entre causa final e causa motora. .................................. 67
3.1.1.1 Telos e função: a causa teleológica é exclusivamente
aplicabilidade?................................................................................68
3.1.2 .......................................................................................................... A relação entre
causa final e causa formal ............................................................... 70
3.1.3 .......................................................................................................... A relação entre
causa final e material ...................................................................... 71
3.2 O ACASO: UM FRACASSO DA FINALIDADE? .................................... 72
3.3 CENTRALIDADE E IMPORTÂNCIA DA CAUSA FINAL NO
PENSAMENTO ARISTOTÉLICO.............................................................. 77
3.4 A DEFESA DA TELEOLOGIA .............................................................. 81
3.4.1 ......................................................................................................... A
convergência das três causas para uma só no livro II da
Física ....................................................................................................... 82
3.5 A NECESSIDADE DA CAUSA FINAL. .................................................. 87
3.5.1Explicação abrangente. .................................................................. 88
3.5.2 Explicação teleológica ....................................................................89
3.5.3 .......................................................................................................... Ênfase na
essência. .......................................................................................... 90
3.5.4 Compatibilidade empírica. .............................................................. 91
3.5.5 .......................................................................................................... Influência na
Ética e na Política. ............................................................................ 92
3.5.6 .......................................................................................................... Na aplicação de
fenômenos ou coisas abstratos. .................................................... 93
3.5.7 .......................................................................................................... Na compreensão
científica do mundo. ........................................................................ 95
3.6 INFLUÊNCIA DA CAUSALIDADE EM ALGUNS ÂMBITOS ................. 96
3.6.1 ..............................................................................................................Influência na
Ciência Antiga. .................................................................................97
3.6.2 .............................................................................................................Transição para
a Ciência Medieval ..........................................................................97
3.6.3Legado na Filosofia da Ciência. .....................................................98
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................. 99
5 REFERÊNCIAS. .................................................................................. 101
1 INTRODUÇÃO

É imprescindível destacar a legitimidade da causalidade aristotélica como


conceito fundamental tanto para o pensamento filosófico quanto para o pensamento
científico, que trabalha com o pressuposto que existem causas para tudo. A
causalidade, efetivamente, indica como o mundo progride. É um conceito objetivo ou
ontológico tão fundamental no qual dele se originam e se fundamentam outros
conceitos mais básicos. É ainda o conteúdo fundamental da explicação e sem este
salto qualitativo da razão o homem é incapaz de conhecer as coisas com objetividade,
além de que, ficaria numa discussão e debates infrutíferos.
Dessarte, a noção de causalidade aristotélica moldou a nossa reflexão durante
o desenvolvimento desta dissertação que se dedicou a fundo no estudo acerca deste
tema, partindo do pressuposto de que ela seja a condição primária – a raiz – para a
inteligibilidade. Aristóteles que deixou um vasto conhecimento acerca da realidade das
coisas e como estas se encontram em uma perfeita harmonia no cosmos.
Tivemos como pretensão responder à problemática levantada, a saber: “a
existência da causalidade no mundo físico é uma verdade evidente?” Julgamos
importante essa dedicação a ela, visto que certas concepções filosóficas tendem a
contestá-la colocando em risco a validade e a objetividade deste princípio metafísico
tão significativo para o pensamento ocidental e para as ciências modernas. Por isso,
percebemos como foi pertinente o estudo sério, aprofundado, de toda sua
fundamentação filosófica que foi o alicerce para o mundo ocidental e
consequentemente para os tempos atuais.
E para argumentá-la tomamos como nosso objeto de estudo duas principais
obras deste filósofo: Física e Metafísica. Nestas, a partir do conceito de αἰτία (aitia) que
designa “causa”, o porquê de uma coisa em seu sentido mais profundo. Ele explica
que o homem só pode conhecer as coisas por meio das causas, sem estas não se
pode conhecer nada. Deste modo, mergulhamos nas categorias das causas material,
formal, eficiente e final, desenterrando as nuances que ele atribuiu à complexa teia de
relações que dão forma ao universo.
Propusemos como objetivo geral “investigar a concepção aristotélica de
causalidade em sua fundamentação filosófica” e como objetivos específicos “analisar
as raízes da concepção aristotélica de causalidade” e “aprofundar o debate em torno

11
da pertinência e da validade atual da concepção de causalidade”. E para corroborar
em nosso desenvolvimento, estruturaremos este trabalho em dois capítulos.

No primeiro capítulo, argumentaremos que para conhecer qualquer ente,


devemos, a priori, fazer uso das causas, conhecê-las, visto que só conhecemos uma
determinada coisa quando atingimos sua primeira causa. Neste capítulo, abordamos
sobre a excelência da sapiência em Aristóteles destacando três argumentos: a
ensinabilidade do conhecimento das causas, a universalidade do conhecimento das
causas e o grau da perfeição do conhecimento das causas.
Em seguida, faremos uma breve alusão ao pensamento de alguns filósofos
predecessores de Aristóteles. Isso é importante porque a noção de causa, de um
princípio gerador de todas as coisas não surgiu propriamente com Aristóteles, mas
com esses primeiros filósofos os quais procuravam uma arché eterna que fosse o
fundamento responsável pela existência das coisas. Analisamos tanto aqueles que se
detiveram na causa material e motora como aqueles que a ultrapassaram, chegando
mesmo que de modo confuso a noção de causa final, conforme o Estagirita.
Continuando nosso argumento, apresentaremos o pensamento aristotélico de
causalidade e sua definição de como “aitia” ou “aitio. Aprofundaremos nossos
argumentos acerca das quatro causas, analisando-as e explicando-as. Afirmamos que
nada é causa de si mesmo e o que não existia e passou a existir teve uma causa, um
motivo. Terminamos o primeiro capítulo elucidando os ganhos obtidos do capítulo, que
foram precisamente três: Conhecimento holístico das coisas; Primazia da sabedoria
sobre as demais formas de conhecimento: distinção e harmonia; e Causa definida
como αἰτία: uma compreensão mais ampla da realidade.
No segundo capítulo, trataremos sobre “a causa das causas na doutrina
aristotélica”, isto é, a causa final ou teleológica. Apreendemos que esta é a causa por
excelência, sendo assim, ela é superior às demais. Deste modo, o finalismo parte de
sua teoria metafísica e filosofia da natureza que propõem uma explicação sobre a
natureza dos seres e sua composição, enfocando a relação entre matéria e forma
(hilemorfismo teleológico) bem como a noção de finalidade na natureza e sua conexão
e relação com as demais, a causa material, formal e eficiente. Afirmamos que essas
causas não devem ser concebidas como justapostas ou isoladas, mas como uma
ordem determinada, em uma sequência lógica, isto é, em uma mútua relação entre
causas extrínsecas e intrínsecas.
Depois, veremos que Aristóteles concebe o acaso como uma realidade extra
12
rationem, uma causa por concomitância. Em seguida, abordamos a centralidade e
importância da causa final no pensamento aristotélico onde a defenderemos por meio
do livro dois da Física. Disto decorreu a necessidade de afirmarmos a causa final
por meio de argumentos, tais como: Explicação abrangente, Compreensão das
mudanças, Explicação teleológica, Ênfase na essência, Compatibilidade empírica,
Influência na ética e na política, na Compreensão dos fenômenos abstratos e na Visão
científica do mundo.
Além disso, explicaremos que a ciência trabalha com pressupostos e que
existem causas neste mundo. Ela analisa os fenômenos naturais buscando
minuciosamente as respostas ou simplesmente as causas deles para depois formar as
leis. Dessa forma, negá-las é negar a própria ciência, sua capacidade de usufruir da
natureza. Na verdade, a causalidade serve como embasamento, sendo um suporte
ao conhecimento científico. Com efeito, finalizaremos este capítulo destacando
influência da causalidade em alguns âmbitos, tais como: na Ciência Antiga, Transição
para a Ciência Medieval e no Legado na Filosofia da Ciência.
Enquanto aos intérpretes usaremos: Joseph de Finance com a obra El
Conocimiento Del Ser: Tratado de Ontología, Giovanni Reale com a obra Filosofia
Pagã; Lucas Angioni com alguns de seus artigos, dentre outros. E ainda, para
enriquecer esta pesquisa colocaremos durante o desenvolvimento, algumas
explicações e questionamentos em nota de rodapé que serviram como reflexão ao
leitor despertando o interesse para aprofundar na noção de causalidade aristotélica.
Ademais, salientamos que os textos originais das obras foram traduzidos pelo
autor deste trabalho e que é de sua inteira responsabilidade.

13
2 A NOÇÃO ARISTOTÉLICA DE CAUSALIDADE

Este capítulo, tem como objetivo tratar da essência do conhecimento, em


Aristóteles, que se dá por meio das causas. E para o desenvolvimento argumentativo
é imprescindível, não só abordar a sapiência (em grego σοφία) como a forma mais
elevada de saber, mas também trazer a crítica que ele faz às doutrinas de alguns de
seus predecessores acerca do problema da causalidade que evoca a origem das
coisas presentes no cosmos.
Para melhor compreensão e assimilação dos argumentos a serem abordados,
estruturaremos este capítulo em quatro seções, da seguinte forma:
Na primeira seção, apresentaremos a excelência da sapiência enquanto
conhecimento das causas sobre as outras formas de conhecimento, a saber: a
sensação, a experiência e a memória.
Na segunda seção, abordaremos a causalidade no mundo do devir, pois
julgamos ser isso substancial, ou seja, uma condição sine qua non para a
compreensão das causas.
Na terceira seção, apresentaremos o pensamento de alguns predecessores de
Aristóteles. Veremos a crítica deste a eles, destacando aqueles que se detiveram na
causa material daqueles que a ultrapassaram.
Na última seção, avançando no raciocínio, culminaremos na possível noção de
causalidade na Metafisica.

2.1 A EXCELÊNCIA DA SAPIÊNCIA EM ARISTÓTELES

Embora existam formas dos conhecimentos como a experiência, a memória e


a sensação, Aristóteles, no primeiro livro da Metafísica, considera somente a arte e a
ciência como sapiência e demonstra isso com muita maestria por meio de exemplos
e argumentabilidade. Ele considera a excelência da sapiência como um dos mais altos
ideais humanos relacionando-a intimamente com a busca pela eudaimonia ou uma
vida verdadeiramente boa e feliz. Sendo assim, a busca pela σοφία envolve o
desenvolvimento do conhecimento teórico e prático, bem como a constante reflexão
sobre as verdades mais profundas e universais da existência. É um tema central em
sua filosofia moral e ética, que influenciou altamente a tradição filosófica ocidental.
Dessa forma, em um encadeamento racional, ele expõe três argumentos para

14
elucidar a excelência e a superioridade do conhecimento das causas: a ensinabilidade
do conhecimento das causas, a universalidade do conhecimento das causas e o grau
de conhecimento das causas.

Vamos considerá-los detalhadamente nestas próximas subseções para um profícuo


êxito desta nossa pesquisa.

2.1.1 A ensinabilidade do conhecimento das causas

O primeiro argumento refere-se à ensinabilidade. Trata-se da arte de ensinar,


visto que é próprio da ciência ser ensinável e do sábio ter o conhecimento das coisas
difíceis e saber ensinar com propriedade e eloquência, mediante o conhecimento das
causas. Isso não acontece na experiência, pois esta não pode ser ensinável e
tampouco detentora de um saber das causas e dos princípios.
Essa capacidade de ensinar por meio do conhecimento das causas e princípios,
é chamado por Aristóteles de arte, que não se identifica com o modo de ensinar da
experiência, como destaca Santo Tomás de Aquino:

Os homens de arte podem ensinar porque conhecem as causas [...]


os homens da experiência não podem ensinar, porque não podem
conduzir à ciência, porque ignoram a causa. E se os homens da
experiência comunicam aos outros o que eles aprendem, não o fazem
de modo científico, mas ao modo de uma opinião ou crença. Por isso,
fica evidente que os homens de arte são mais sábios e capazes de
ensinar do que os homens da experiência. (AQUINO, 2016, p.44-45).

Assim, conforme o pensamento do filósofo há duas categorias de homens: os


da arte e os da experiência. Os homens da arte são detentores do conhecimento
científico, pois o que os diferencia dos homens da experiência é o conhecimento
transmitido com profundidade, quer dizer, conhecimento embasado na causa, sabem
o porquê de tal coisa e não simplesmente opinam sobre elas, como bem deixa claro
na citação acima quando afirma que os homens de arte podem ensinar porque
conhecem as causas.
Em Metafísica 981ª 24-30, Aristóteles argumenta o motivo pelo qual a arte é
superior a experiência: “a experiencia se limita ao dado, ao particular; enquanto a arte
vai além do dado, alcança a realidade última, o ‘porquê’, é universal”. Portanto, é
próprio da arte fazer com que a inteligência seja elevada a um grau superior na ordem
do conhecimento sem ficar na mesmidade, estativa.
No entanto, não se trata de uma mera relação sujeito e objeto, sem que este
15
não seja percebido efetivamente por aquele, senão um sujeito que se volta para o
objeto de forma consciente e reflexiva, pois na epistemologia aristotélica o verdadeiro
conhecimento implica explicar a forma do objeto conhecido, implica defini-lo. Esse
processo é o que chamamos de conhecimento por causa. Esse conhecimento é mais
profundo ao filósofo, “além disso, quem conhece as causas com mais exatidão, e é
capaz de ensinar, é considerado em qualquer espécie de ciência como mais filósofo”,
diz Aristóteles. (ARISTÓTELES, 1973, p. 213). Isso significa que os filósofos deveriam
se esforçar para compreender a natureza da realidade, as causas de tudo o que existe
e a verdade subjacente das coisas em sua totalidade. A sapiência encontra-se em um
patamar bem mais elevado porque somente quem possui essa arte é capaz de ensinar
e assim o faz.
O Estagirita não está negando as outras formas de conhecimento (veremos que
ele analisa as doutrinas de seus predecessores) mas afirmando que o fato de conhecer
as coisas por meio das causas origina um conhecimento superior, quer dizer, o
conhecimento das causas com maior precisão é um dos critérios para determinar quem
é mais filósofo em qualquer campo de estudo, visto que esse conhecimento produz
um, entendimento mais profundo e abrangente daquilo que está investigando.
Deste modo, a sapiência (sophia) é o conhecimento daquelas realidades que
estão acimadas capacidades humanas, ou seja, é uma ciência teorética, cuja finalidade
é buscar o saber pelo saber, e, por isso, exige pela sua própria natureza, um esforço
intelectual para exercitá-la. Assim, fica claro neste raciocínio aristotélico que a
ensinabilidade requer um avanço qualitativo do sujeito cognoscente.
Desta forma, o filósofo ou o sábio é aquele que não simplesmente faz as
coisas baseando-se nas crenças e costumes ou que possui um saber prático
tradicional transmitido oralmente ou de maneira informal, senão que entende o que
está fazendo, sabe o motivo e a causa do seu agir. Constata-se, então que, quem
conhece as causas é mais apto para ensinar. Mas qual o porquê? Aristóteles diria
porque tem a ciência, com efeito comunica esse conhecimento de forma ordenada,
lógica e profunda. Isso pode levar a uma compreensão mais profunda e significativa
do objeto de estudo.
Tomemos um exemplo para fomentar nosso argumento: uma senhora que faz
um bolo o faz perfeitamente: sabe dos ingredientes, o tempo que dever levar ao forno
etc., todavia, para Aristóteles ela não tem a ciência da causa, não sabe o porquê de
todo esse processo. Ora, qual o porquê? Porque é um conhecimento do particular,
16
veio da experiência. Ora, ter ciência significa ter domínio sobre as coisas, saber de
suas constituições e suas funções. Na verdade, sem o uso delas não se pode
conhecer nada que se enquadre no campo da sapiência.
No entanto, não se trata de qualquer saber, Aristóteles está consciente de que
o conhecimento que deve ser adquirido é o das causas primeiras o qual é capaz de
conhecer a realidade das coisas, ao passo que é próprio do intelecto humano conhecer
a essência das coisas, o que é, o que existe e não ficar simplesmente no dado
empírico. Esse processo é feito pela razão que conhece e sabe que conhece:

[...] Consideramos que o saber e o entender sejam mais próprios da


arte do que da experiência, e julgamos os que possuem a arte sejam
mais sábios do que os que possuem só a experiência, na medida de
que estamos convencidos de que a sapiência, em cada um dos
homens, corresponda à sua capacidade de conhecer. E isso porque
os primeiros conhecem a causa, enquanto os outros não a conhecem.
Os empíricos conhecem o puro dado de fato, mas não seu porquê; ao
contrário, os outros conhecem o porquê e a causa. (ARISTÓTELES,
Metafísica 981ª 25).

O filósofo não está desprezando o conhecimento empírico até porque a base


de todo conhecimento na doutrina aristotélica passa pelo mundo das experiências
desde o nível mais básico como as sensações, a memória e a imaginação, que
produzem a experiência até a formulação de conceitos. Ele está salientando que o
modo de conhecer as diversas realidades não se dá de modo unívoco, mas diverso, e
dentre essas formas de conhecimento, a arte está em um grau maior.
Fazendo uma análise mais ampla do pensamento aristotélico, até aqui exposto,
nota-se que apesar da experiência, parece um pouco semelhante à ciência e à arte,
considerando que os homens adquirem a ciência e a arte por meio da experiência,
como o próprio Aristóteles diz (Metafísica 981a), “não obstante, o conhecimento das
causas sobressai ao da experiência, o saber e o entender são os que estão mais
próximos da arte e não da experiência, pois o que distingue, como vimoso que
distingue um saber, do outro, é justamente a capacidade de ensinar”.
Isto infere que o motivo pelo qual a sapiência é o saber mais elevado é que ela
é o conhecimento das causas primeiras e dos princípios e estes são as condições para
todo processo de inteligibilidade. A experiência refere-se sempre ao particular, é
conhecimento restrito dos particulares e dos mutáveis, mas a sapiência dá o
conhecimento da totalidade e transcendendo aquilo que é acidental consegue chegar
ao universal, que é imutável.
17
Sendo assim, os empíricos não têm a ciência das causas, limitam-se aos
aspectos acidentais e contingentes de uma determinada coisa, que é característico do
conhecimento particular, como a cor, o tamanho, a espessura ou até mesmo ficam
limitados em crenças e opiniões e não conseguem transmitir o conhecimento, podem
até fazê-lo, mas não seria embasado na sapiência. Porém os sábios têm a arte e a
ciência, referem-se ao universal, ao porquê e a causa das coisas, como se diz na
linguagem de Santo Tomas de Aquino:

Os homens da experiência conhecem o porquê de fazer, mas


desconhecem a causa do porquê de algo ser feito. Os homens de arte,
de fato, conhecem a causa e o porquê de algo ser feito, e não só o
porquê de fazer. Portanto, são mais conhecedores e mais sábios os
homens de arte do que os homens de experiência. (AQUINO, 2016, p.
43-44).

Dito de outro modo, a experiência é marcada de instabilidade e por conseguinte


não consegue dizer com clareza o que a coisa é, e menos ainda emitir um juízo com
exatidão a seu respeito, conhecem o porquê de fazer, mas não do porquê de algo ser
feito, que é a sua causa. Aqui “o porquê de fazer”, refere-se ao “como uma coisa é
feita”, “o modo”, que pode ser observado na experiência.
Em Metafísica 981b 5-10, o Estagirita esclarece que os homens da arte são
mais sábios por duplo motivo: em primeiro lugar, porque eles são cientes do como e do
porquê; em segundo lugar, porque há neles algo bem característico do sábio: a
ensinabilidade. Sabem ensinar com facilidade distinguindo o que é conhecimento
empírico e sensível daquilo que é sapiência, o que é essencial.
Conclui-se que na perspectiva aristotélica o conhecimento por causa é
universal, é superior daquele que fica nas dimensões empíricas, isto é, o particular,
que aprofundaremos nesta próxima subseção.

2.1.2 A universalidade do conhecimento das causas

O segundo argumento que afirma a excelência da sapiência sobre as demais


ciências diz respeito à distinção entre o universal e o particular. Esta é uma forma de
conhecimento que é voltada ao objeto considerando-o na sua singularidade, e por isso
não pode ser uma ciência de causa. Assim, um homem que tem esse conhecimento
age pela força de seus hábitos e crenças, entretanto, não é capaz de fazer ciência
interrogando a realidade ao seu redor, pois só conhece o dado empírico e não
consegue dizer o porquê. Ora, perguntar para entender o porquê de uma coisa ser de
18
tal forma, é buscar a sua causa, ultrapassando as coisas em suas particularidades.
Poder-se- ia dizer, então, que a experiência quer saber o “como”, como é tal
coisa, seu aspecto externo com suas respectivas características acidentais como a
quantidade; enquanto a ciência indaga o porquê, o que a coisa significa. Ademais, o
próprio particular é limitado e sujeito às transformações.
É legítimo afirmar que os homens que têm a ciência possuem até mesmo o
conhecimento das coisas particulares, todavia, os da experiência não têm a sapiência
no tocante ao universal, isso porque o universal veio do partilhar, mas o particular não
tem conhecimento do universal.

Passemos, agora, a tratar da memória que está no mesmo nível das


sensações, pois se trata dos sentidos e dos particulares, quer dizer da experiência, e
por isso também não é considerada sapiência. Aliás, por mais que o conhecimento se
inicie através da experiência das realidades particulares, não tem o término nestas. O
fato é que o particular não é ciência das causas e fica em um campo muito limitado do
saber. É neste sentido que Santo Tomás de Aquino diz que “assim como a arte está
para a razão universal, a experiência está pra a razão particular e o costume está para
a memória nos animais.” (AQUINO, 2016, p. 38).
Aristóteles ao discursar sobre a memória ou lembranças, especifica que nos
animais estas estão ligadas as coisas sensíveis, ao contrário de que no homem além
das lembranças sensíveis manifestam, mesmo em nível particular, as lembranças
abstratas. Assim, no gênero humano a experiência deriva da memória, entretanto,
nem a memória e tampouco a sensação está acima da sapiência a qual é capaz de
fazer uso das causas:
Ademais, consideramos que nenhuma das sensações seja sapiência.
De fato, se as sensações são, por excelência, os instrumentos do
conhecimento dos particulares, entretanto não nos dizem o porquê de
nada: não dizem, por exemplo, por que o fogo é quente, apenas
assinalam o fato de ele ser quente. (ARISTÓTELES, Metafísica, 981b
10).

Nota-se, que as sensações não explicam a natureza das coisas, não elucidam,
por exemplo a natureza do fogo, o porquê de ele ser quente, apenas sabem,
conhecem, sentem, contudo, não sãos conhecedoras das causas. Mas conquanto não
sejam sapiência, pois são conhecimentos dos particulares e não dos universais, fazem
parte da dimensão do saber, visto que existem graus e tipos de conhecimentos, e de
certa forma trazem benefícios e prazer ao homem, sobretudo, por meio da visão.

19
É bem típico do pensamento grego a superioridade da visão e do ver sobre os
demais sentidos. Dessa forma, Aristóteles rechaça a ideia de inatismo para reconhecer
formas, e que as sensações são em nada úteis ao conhecimento humano, como
admitia Platão, pois estão no campo da opinião (doxa); mas as sensações (aisthesis)
são a base de todo conhecimento, ao passo que é incogitável o homem adquirir
conhecimento sem passar pelo contato com a dimensão material das coisas para a
construção de experiência.
De fato, o indivíduo só chega a formular conceitos universais, por meio da
abstração, por causa dos sentidos e das sensações, e neste processo, cabe à
memória reter lembranças e informações do mundo sensorial. No entanto, somente a
arte ou a técnica (techné) se enquadram na sapiência, que é a ciência (episteme) por
excelência, porque saber a causa de uma é coisa, em outros termos, significa
conhecê-la em si mesma.

Assim, somente pela sensação não se conhece as coisas em si mesmas; não


conhece a árvore enquanto árvore, ou seja, sua essência que é universal, e por isso
se pode atribuir a todas as árvores, mas somente o que os sentidos veem; o que estes
nos dizem dela: sua cor, seu tamanho, sua espessura.
Percebe-se, que não há uma rejeição entre particular e universal no
pensamento aristotélico. Na verdade, a essência está nas próprias coisas e não em um
mundo inteligível. Em Aristóteles, o homem, com as faculdades intelectivas, não fica
preso ao dado particular, mas será capaz de ter conhecimento universal e verdadeiro
das coisas porque o acumular quantitativo dos particulares não é capaz de diferenciar
uma coisa de outra, não apreende a essência.
Portanto, a episteme é um conhecimento científico e demonstrável que se
baseia em princípios universais e necessários, ela envolve raciocínio lógico e
argumentação sólida. Tem como características a Universalidade e a
Demonstrabilidade, como vimos. Quanto à Universalidade, lida com conhecimento
universal e necessário, ou seja, afirmações que são verdadeiras em todas as situações
e não estão sujeitas a mudanças, logo contrasta com a opinião, que pode ser variável e
subjetiva. Já a demonstrabilidade afirma que a episteme é demonstrável por meio de
argumentos lógicos baseando-se em premissas seguras e segue uma linha de
raciocínio que conduz a conclusões necessárias.
Pode-se dizer que ela é caracterizada também pela certitude, isto é, pela
certeza. Quando alguém possui episteme em um determinado campo, tem confiança
20
absoluta na validade de seu conhecimento, segurança em sua argumentabilidade,
além do mais, argumenta com propriedade. Aristóteles acreditava que ela era o tipo
mais elevado de conhecimento e era alcançada por meio do estudo sistemático e do
pensamento lógico. Ele também reconheceu que diferentes áreas do conhecimento
poderiam ter suas próprias epistemes, como a episteme matemática, a episteme física
e assim por diante.
Portanto, a distinção entre episteme e outras formas de conhecimento revela a
magnitude da filosofia aristotélica, e sua abordagem à busca da verdade e do
entendimento na filosofia natural e em outras disciplinas.

2.1.3 O grau da perfeição do conhecimento das causas

O último argumento da excelência da sapiência relaciona-se com à hierarquia


do saber e com o grau de perfeição. No cosmos, percebe-se que há coisas mais
perfeitas que outras desde um plano mais sensível a um plano inteligível. Logo, no
processo de conhecimento quanto mais longe estiver um conhecimento do servir a
objetivos práticos, tanto mais puro o é, e se enquadra no campo da sapiência. De fato,
“maximamente cognoscíveis são os primeiros princípios e as causas; de fato, por eles
e a partir deles se conhecem todas as outras coisas, enquanto ao contrário, eles não
se conhecem por meio das coisas que lhes são sujeitas.” (ARISTÓTELES, Metafísica,
98b).
Isso significa que o grau da perfeição do conhecimento das causas abrange
todas as causas desde a causa material até a causa final. É capaz de explicar
completamente uma realidade, isto é, não apenas compreende as causas individuais,
mas também como elas se relacionam e interagem para produzir um determinado
fenômeno em questão, em sua totalidade. Portanto, quanto mais abrangente e
profundo for o conhecimento das causas, mais perfeito seráo conhecimento de acordo
com a filosofia aristotélica.
Santo Tomás de Aquino ao argumentar acerca da natureza e da perfeição da
Sabedoria, segue o mesmo raciocínio de Aristóteles, enfatizando que se deve buscar
a sapiência, por ser a ciência das causas inteligíveis ou cognoscíveis, em seu grau de
perfeição maior; diferente da experiência no mundo do devir:

Do mesmo modo, essa ciência deve ser naturalmente reguladora das


outras, pois ela é maximamente intelectual. Ora, essa ciência é
maximamente versada sobre os inteligíveis. Primeiro, pela ordem do
saber. De fato, as coisas, das quais o intelecto tem certeza, parecem
21
ser as mais inteligíveis [...] por isso, aquela ciência que considera as
primeiras causas maximamente parece ser reguladora das outras
[...]segundo, pela comparação do intelecto com os sentidos. De fato,
porque o conhecimento dos sentidos é sobre os particulares, parece
que o intelecto difere deles porque conhece os universais [...] terceiro,
pelo próprio conhecimento do intelecto. Como cada coisa tem aptidão
de ser inteligível, enquanto separada da matéria, é preciso que ela trate
ao máximo dos inteligíveis, que ao máximo são separados da matéria.
(AQUINO, 2016, p.23-24).

Primeiramente é importante saber que na linha de Aristóteles e depois dos


escolásticos: “Nihil est in intellectu quod primum non est in sensu”, ou seja, nada está
no intelecto que primeiro não estivesse nos sentidos. Dessa forma, todo conhecimento
começa pela experiência que se caracteriza pelo método indutivo, particular, todavia,
vai além deste porquê, ao passo que o homem é um ser intelectual de alma racional.

Assim, Aristóteles (apud LUCAS, 2003, p. 58, tradução nossa), dizia “que o
conhecimento intelectual é “quodammodo omnia11”, porque não é limitado no que se
refere ao campo de seu interesse.” Quer dizer, o conhecimento intelectual não está
restringido dentro da sensibilidade dos diversos órgãos dos sentidos e tampouco preso
ao tempo e ao espaço. Decerto, muitas coisas que estão em seu campo de interesse,
e que o próprio homem experimenta, são de natureza intelectual, ou seja, são
independentes da matéria, como a própria ideia de bem, justiça, amor, ódio,
causalidade e etc.
Poder-se-ia dizer, que a existência dessa dimensão intelectual, no homem, é
confirmada por intermédio dos conceitos universais, dos juízos e raciocínios bem como
por meio da própria linguagem a qual não está circunscrita ao conhecimento das coisas
empíricas. Dessa forma, a doutrina aristotélica explica como se dá o conhecimento:
há uma estrutura no conhecimento humano, ou seja, tem duas dimensões, uma
sensível (que corresponde as duas primeiras fases, sensações externas e percepção
interna), e a outra intelectual (que corresponde a três fases, conceitos, juízos e
raciocínios), no entanto, são inseparáveis.22
Então, deve recorrer à sapiência que é o conhecimento certo e universal por

1 Quer dizer, o homem, em certo sentido, conhece todas as coisas, pois é dotado de conhecimento universal. Como diz
Ramón Lucas Lucas: O conhecimento intelectual supera essencialmente os limites individuais da coisa e a capta em
suas dimensões universais.” (LUCAS, 2003, p. 58, tradução nossa).
2 Ramón Lucas Lucas explica como se dá o processo de conhecimento, a saber: o conhecimento humano passa por
várias etapas, entretanto, tem um caráter unitivo formando, em um conjunto, toda uma estrutura dinâmica e que não se
pode definir uma sem levar em consideração a outra. Esses elementos dessa estrutura unitária podem ser
esquematizados destra forma: duas dimensões e cinco formas no processo cognoscitivo. (Cf. LUCAS, 2003, p. 60)

22
sua causa, tem sua legitimidade nas realidades últimas das coisas. Ela é a ciência
que tem profundo conhecimento do ente enquanto ente e de suas propriedades e
causas últimas. É a ciência que busca os primeiros princípios da realidade e não
dependem das realidades que estão ao seu redor. Além disto, ela tem como objeto o
ente; este é quilo que é; que existe “id quod est”. Ora, se o ente é objeto dela isso
significa que ele é a melhor forma de explicar a realidade, visto que abarca tudo.
Portanto, a sapiência leva o sujeito actante ao conhecimento das realidades
últimas, que é a metafísica ou ciência primeira (próte philosophía), e desta dependem
os princípios das demais ciências. Deste modo, não se trata de conhecimento abstrato
ou um saber apriorista, mas um conhecimento fundamentado na experiência, pelo
contrário, é um saber que parte da experiência (como veremos nesta próxima seção),
e produz substâncias imóveis e, por isso, é superior às outras, como a física, por
exemplo. Assim sendo, ela, a sapiência, é uma espécie de ciência universal que busca
a causa de toda a realidade. (Cf. BERTI, 2012, p. 127-128).

2.2 CONHECIMENTO DA CAUSALIDADE NO MUNDO DO DEVIR

Após termos tomado ciência da excelência da sapiência do conhecimento das


causas sobre as outras formas de conhecimento como a experiência, a memória e a
sensação, que não se pode negar, como vimos anteriormente, passaremos a falar da
noção da causalidade no mundo das transformações, quer dizer, do devir.
Efetivamente, o conhecimento da causalidade no mundo do devir (ou do vir a ser)
desempenha um papel significativo na filosofia de Aristóteles. O filósofo estava
preocupado em entender como as coisas mudam e se transformam no mundo natural.
Em vista disso, ele desenvolveu uma abordagem sistemática acerca das
noções de ato, potência, forma e matéria, que são os Princípios da Inteligibilidade,
para compreender a causalidade inserida no contexto do devir com suas
transformações. Por conseguinte, esses princípios devem ser abordados, uma vez
que na própria noção de causalidade está justaposta a noção de movimento, que
somente pode ser compreendido e levado em consideração a esses princípios da
inteligibilidade, acima citados.
Isto posto, depreende-se como consequência que a teoria aristotélica tanto do
ato e da potência como da forma e da matéria são a estrutura constitutiva de todo o
real. É uma realidade que se impõe à nossa inteligência e serve para resolver muitos
23
problemas que se encontram no âmbito da física e da metafísica. Certamente, para
entender todas essas realidades não é suficiente fazer uma abordagem das quatro
causas, mas é uma condição essencial acrescentar à explicação das quatro causas a
própria noção de ato e potência, visto que “a primeira determinação do ato e da
potência surge da análise do movimento.” (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 79).
Além de tudo, esses conceitos: ato, potência, forma e matéria são inseparáveis
a ponto de não entender um sem o outro. De fato, o que faz com que a potência se
torne ato? O que faz com que uma simples semente se torne árvore na perspectiva
aristotélica? Qual é a causa disso? Ora, sabemos que é justamente devido à causa
eficiente ou motora que o movimento pode ser compreendido, e este é a passagem
da potência para o ato. Portanto, não se pode falar de movimento sem mencionar a
causa eficiente. Ou ainda, as transformações não podem ser explicadas somente com
as noções de causa material e de causa final as quais são responsáveis pela mudança.
Conclui-se que sempre um agente, ou uma causa externa á coisa, será
responsável pelo movimento, pela passagem da potência ao ato, que fará com que
haja mudanças substanciais e acidentais, como por exemplo, uma argila que em ato
é apenas argila, mas em potência pode ser um belo vaso. Observa-se que neste
exemplo do vaso está a noção de todos esses componentes do ente: o ato e a
potência, a forma e a matéria como forma de explicar o todo.
Também veremos que tudo no mundo do devir é ao mesmo tempo um
composto de ato e potência, de matéria e forma. Essa unidade faz-se necessária para
a explicação e o conhecimento mais profundo da estrutura de todos os entes, ou seja,
de toda realidade.

2.1.1 Ato, Potência, Forma e Matéria como explicação da causalidade no mundo


das transformações

Aristóteles bem tinha observado que não existe o caos ou a desordem no


cosmos, pelo contrário, não só as coisas são ordenadas e organizadas mantendo uma
ordem teleológica, mastambém o próprio cosmos se organiza de maneira lógica e bem
estruturada como a própria experiência mostra.
Constatou que tudo no mundo do devir é ao mesmo tempo um composto de ato
e potência, de matéria e de forma os quais explicam a estrutura de todos os entes
bem como as suas perfeições e capacidades. Percebeu, pela experiência, que todas

24
as coisas são marcadas por mudanças e que não existe somente a realidade estática
das coisas senão a dinâmica. Dessa forma, por meio da análise do movimento
elaborou a sua doutrina do ato e da potência cuja finalidade era explicar a origem do
movimento na natureza dando um salto qualitativo à etiologia, quer dizer, ao estudo e
compreensão das causas:

A primeira determinação do ato e da potência surge da análise do


movimento. Parmênides, com sua rígida concepção do ser, único e
imutável, não pôde explicar a realidade da mudança, relegando-a ao
âmbito da aparência: o ser é e o não-ser não é; consequentemente, é
impossível a passagem de um a outro. Com mais realismo, Aristóteles
entendeu que a mudança não é uma novidade absoluta, uma
passagem do não-ser ao ser, mas o devir de um sujeito de um estado
a outro, como por exemplo, a água que passa de fria a quente.
(ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 79-80, tradução nossa).

O ato é a perfeição de qualquer sujeito, é aquilo que ele possui atualmente. É


algo acabado, determinado, perfeito; enquanto a potência é “a capacidade de” ou “a
possibilidade de vir a ter uma perfeição”, é algo indeterminado, inacabado, imperfeito.
Por exemplo, a semente enquanto semente é ato, no entanto, tem a potência para se
tornar árvore e quando isso acontece dizemos que a potência foi atualizada.
Na disputa entre Heráclito que afirmava apenas o aspecto dinâmico do ser ao
ponto de afirmar que o que existe é o puro devir; e de Parmênides que defendia somente
o aspecto estático do ser, Aristóteles apresenta uma possível solução para esse
problema com sua teoria hilemórfica, ou seja, os entes são compostos de matéria e
forma, de ato (que explica o aspecto estático de Parmênides) e de potência (que
explica o aspecto dinâmico de Heráclito). Deste modo, nota-se a mutação ou
transformação mediante a realidade do movimento fazendo com que os entes
adquiram qualidades que antes não tinham ou passem por perdas.
Com efeito, o próprio Aristóteles percebeu que as coisas sempre estavam em
mudança e perfeições que antes não tinham, ou seja, a mudança sempre é em vista
de algo, muda-se para possuir uma determinada perfeição que antes não tinha e essa
passagem sempre é efetuada através da ação de algo que já está em ato.
Consequentemente, o ato e a Potência, a Forma e a Matéria não devem ser
dissociados, porque estão intrinsecamente entrelaçados. O ato assume a função da
forma e a potência da matéria. Potência é potencialidade, possibilidade, a matéria é
pura indeterminação. Esta é potencialmente outra coisa, como por exemplo, quando
uma pessoa morre há uma destruição da união substancial, de matéria e a forma, a
25
ponto de não ser mais uma pessoa. A forma substancial, que é a sua alma, não se
encontra mais unida ao seu corpo, que é a matéria, e assume uma outra forma3. Logo,
é a própria determinação da forma que leva a matéria a sair da potência para o ato,
assumindo uma outra forma, neste caso, a de cadáver.
Todavia, para que aconteça essa mudança requer que o sujeito tenha a
qualidade, que a alcança com o movimento, isto é, qualquer mutação é realizada
levando em consideração a essência das coisas:

Entretanto, é preciso que o sujeito seja capaz de ter a qualidade que


alcança com o movimento. Os exemplos aristotélicos são claros: nem
um animal nem uma criança pequena sabem resolver problemas
matemáticos, mas o animal nunca poderá fazê-lo, enquanto a criança
pode aprender; um pedaço de madeira informe ainda não é uma
estátua, mas tem a capacidade de chegar a converter-se em escultura
nas mãos do artista, enquanto a água e o ar não possuem essa
possibilidade. (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 80, tradução
nossa).

Pode-se dizer que a potência é o sujeito que recebe o ato e a experiência nos
mostra que todos os atos e perfeições se dão na realidade em sujeitos capazes deles,
ou seja, não encontramos atos e perfeições que existem separados: existem homens
justos, imagens belas, papéis brancos e não justiça, a beleza, a brancura. Em outros
termos, toda potência se reconhece por seu ato.
Joseph de Finance diz que a noção de ato não precisa de nenhuma
necessidade de explicação pelo fato de ele ser determinado, inteligível; é o
pensamento capta em primeiro lugaraté que reflita que o ser não está eternamente em
ato. Todavia, a noção que é mais difícil de entender é de potência porque é algo
inacabado, indeterminado, uma espécie de “vazio ontológico”, todavia, não se pode
considerá-la como uma “pura negação”, um “nada do ato”, ora ela está relacionada ao
ato; em outras palavras supõe um sujeito. Também não é “pura indeterminação”. A
potência é simplesmente algo que não está em ato. (FINANCE, 1965, p. 236).
O ato é limitado pela potência - cada homem adquire a ciência segundo à
medida acrescentada por sua capacidade intelectual, também o ato é multiplicado pela
potência.4 Ademais, ato e potência se relacionam como participante e participado.

3
Estes componentes constitutivos do ente: a matéria e a forma, o ato e a potência, estritamente falando, só subsistem
por causa da substância. Toda realizada é marcada por eles, com exceção do Motor Imóvel de Aristóteles, que é Ato Puro.
(ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 201).
4
Referente ao uno e ao múltiplo Aristóteles explica que todo ente quanto enquanto todo é uno, é ato; e enquanto em partes é
diverso, é potência. Por exemplo, pode-se dizer que o homem é um todo, uma unidade substancial, mas é múltiplo em acidentes
seja contingente seja essencial: gordo, bonito, inteligente etc. Logo, as partes existem no todo não como ato senão com
26
Participar é ter algo em parte, supõe que o outro sujeito também goza da perfeição,
mas nunca ambos na totalidade: “todas as cores brancas participam da cor branca
sem esgotar a plenitude da brancura, ou por exemplo cada homem possui um grau
de animalidade, mas nunca a esgota”. (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 88-
89).
Tudo isso implica que o ato supera a potência, pois tem primazia de perfeição
porque ele é perfeito e a potência imperfeita. Também prioridade cognoscitiva porque
no processo do conhecimento o ato tem que vir primeiro. (Cf. Ibid., p. 86).
De fato, conhece primeiro o que a coisa é para depois perceber o que pode ser;
prioridade causal, pois só passa da potência ao ato por ser já em ato; e por último o
ato goza de prioridade temporal, esta se funda na causal, ou seja, a potência remete
a uma causa anterior em ato que atualize:
Aquilo que a filosofia primeira pode dizer acerca desses dois
significados de ser, isto é, o ser em potência e o ser em ato, é que o
ato é anterior à potência quer segundo à noção, enquanto não é
possível ter a noção da potência sem ter antes a do ato; quer segundo
o ser, enquanto não podem existir entes em potência, isto é, mutáveis,
se não existem antes entes em ato, isto é, as perspectivas causas
motoras. (BERTI, 2012, p.138).

Dessa maneira, não se pode negar que o movimento é a passagem da


potência ao ato e, para que isso ocorresse, houve um ser que estava em ato; ou seja,
no processo do conhecimento o ato tem que vir primeiro para garantir a
passagem, ele é anterior à potência (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 86).
Como vimos, na ordem do ser, o ato tem prioridade, assim, Aristóteles, no livro
nono da Metafisica, enumera uma série de exemplos para explicar a relação entre o
ato e a potência, e a primazia do ato em todos os sentidos que uma coisa pode ser
anterior a outra: segundo a noção, quanto ao tempo, também pela sustância.
Contudo, quanto ao tempo, explica o Estagirita5 que o ato em outro sentido não
é anterior a potência:

[...] O ato é anterior quanto ao tempo, no seguinte sentido: (a) se o ser


em ato é considerado especificamente idêntico a outro ser em potência
da mesma espécie, então, é anterior a este; se, ao contrário, o ser em
ato e o ser em potência são considerados no mesmo individuo, o ser
em ato não é anterior. Dou alguns exemplos: deste homem particular

potência. Portanto, percebemos que a doutrina do ato e da potência como princípios constitutivos de todo ente seja este material
ou não. Explica a realidade do movimento, do uno e do múltiplo como também do movimento e da multiplicidade sem cair em
contradição. Para se aprofundar nesta temática, ver: ALVIRA, Tomás; CLAVELL, Luis; MELENDO, Tomás. Metafísica. 8ª ed.
Espanha: Eunsa, 2001
27
que já existe em ato, e deste trigo e deste olho particular que está
vendo, na ordem temporal é anterior a matéria, a semente e a
possibilidade de ver, que são o homem, o trigo e o vidente em potência
e não ainda em ato. Mas anteriores a estes, sempre na ordem
temporal, existem outros seres em ato, dos quais eles são derivados:
de fato, o ser em ato deriva do ser em potência sempre por obra de
outro ser já em ato.” (ARISTÓTELES, Metafísica 1049 b 15-25).

Deste modo, quando se considera o indivíduo em seu aspecto particular, nele, a


potência é anterior ao ato, e a razão é que antes de ser plenamente em ato, o indivíduo
foi a potência. Como bem esclarece Santo Tomás: “mas certas coisas existentes em
ato foram anteriores, segundo o tempo, a tais coisas existentes em potência, a saber,
pelos quais as coisas são reduzidas ao ato.” (AQUINO, 2016, p. 80-81).
Todavia, não devemos entender ato e potência como princípios iguais.
Percebe-se essa distinção quando o ato está separado da potência correspondente,
por exemplo, a vista às vezes se encontra no ato de ver, e outras não; assim como o
animal que se encontra em repouso tem a potência de movimentar-se.
Aristóteles teve que argumentar contra os eleatas e megáricos os quais
aceitavam somente a identidade do real e do atual ao passo de duvidarem dos
sentidos, admitindo, assim, a unidade absoluta e considerava o ser e o bem como
idênticos. Feriria o princípio de identidade que afirma que uma coisa não pode ser a
outra. (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 43).
Além disso, pretendiam dizer não teria distinção entre ato e potência: “Só há
potência quando há ato e, quando não há ato não há potência: assim, o que não
constrói não tem a potência de construir, mas só quem constrói, e no momento em
que constrói.” (FINANCE, 1965, p. 218, tradução nossa). Mas essa teoria, conforme
Aristóteles, acaba arruinando o movimento e o devenir, toda a existência:

A argumentação dos megáricos chega, portanto, a aniquilar o


movimento e o devenir. O ser que está de pé estará sempre de pé, e o
ser que está sentado estará sempre sentado; não poderá se levantar
se está sentado, pois o que não tem a potência de se levantar se
encontrará na impossibilidade de levantar-se. Mas se querem admitir
estas consequências, resulta evidente que a potência e o ato devem
ser coisas diferentes. (FINANCE, 1965, p. 219, tradução nossa).

Aristóteles rechaça essa ideia dos megáricos pelo fato de esses raciocínios
reduzem à potência ao ato, ao passo que se a potência não se distingue do ato,
ninguém poderia possuir qualquer arte ou aptidão para fazer alguma coisa a não ser
que esteja atualmente exercendo, executando tal ação. Mas isso cairia em um

28
contrassenso, pois neste raciocínio o professor quando parasse de ensinar, mesmo
que provisoriamente, perderia a sua arte. Assim sendo, deve admitir junto ao ato a
potência para explicar a origem do movimento na natureza e as inúmeras
transformações que os entes contingentes sofrem, independentemente de qualquer
determinação particular. Existe, então, o que é em ato e o que é em potência.
Portanto, partindo dessa noção de ato e potência e do próprio devir, nota-se
essa realidade inquestionável: o movimento no mundo. Ora, diante desta realidade,
podem-se deduzir duas reflexões: ou afirma esse jogo de movente e movido até o
processo ad infinitum, entretanto, admitindo isso, afirmaria que o movimento existe,
contudo, não poderia ser explicado; ou que, nesse jogo para que o movimento tenha
iniciado, teve que existir um ser só em Ato, Imóvel que seja causa de todo móvel, como
havia dito o Filósofo.5
Decerto, quando se analisa o mundo, percebe-se que as coisas se movem, e
elas não podem ser simultaneamente e no mesmo aspecto, moventes e movidas;
porque estaria ferindo o princípio da não- contradição6. Assim, um determinado ente
em um aspecto é movido por um movente, depois ele passa a ser o movente de outro
ente, para ajudar este na passagem da potência ao ato.
É neste contexto de movimento que surgirá ideia do Primeiro Motor Imóvel que
é a causa final de tudo. Dele provém todo movimento, mas não é movido por nada.
Como não está submetido às leis do movimento que rege o cosmos, ele é eterno e
imutável e imaterial. A fórmula: “Tudo o que se move, é movido por outro 87”, foi
considerada como a primeira fórmula do princípio de causalidade, ou seja, a
impossibilidade de que o que está em potência dê o ato a si mesmo. Refere-se à
irredutibilidade absoluta entre a potência e o ato:

[...] para explicar cada movimento, é preciso referir-se a um Princípio


que, em si, não seja movido, pelo menos em relação àquilo que move.
Com efeito, seria absurdo pensar que se pode remontar ao infinito, de
motor em motor, porque seria impensável nesses casos um processo
ao infinito. Ora, sendo assim, não apenas deve haver princípios ou
motores relativamente imóveis, dos quais derivam os movimentos
singulares, mas também, com tanto mais razão, deve haver um
Princípio absolutamente primeiro e absolutamente imóvel, do qual
deriva o movimento de todo o universo [...] esse Princípio deve ser

5
Um dos títulos que os medievais deram para Aristóteles é o “Filósofo.” (AQUINO, 2016, p. 23).
6
O princípio da não-contradição também conhecido como princípio da contradição significa que uma determinadacoisa “não pode
ser e ser simultaneamente e no mesmo aspecto.” (CHAUÍ, 2000, p. 73)
7
Vide também (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 201).

29
inteiramente privado de potencialidade, isto é, ato puro. Com efeito, se
possuísse potencialidade, poderia também não mover em ato; mas
isso é absolutamente absurdo [...] Esse é o "Motor Imóvel", que outra
coisa não é do que a substância suprassensível que buscávamos.
(REALE; ANTISERI, 2003, p. 201).

Ora, a inteligência humana não aceita o processo ad infinitum, pois o homem


não conseguiria conhecer nada e estaria ferindo a natureza do bem, que é o fim em
todas as coisas, aliás de modo geral, em toda a natureza o fim é o sumo bem.”
(ARISTÓTELES. Metafísica, 982b 5). Logo, fica claro que este Motor Imóvel não tem
potência, visto que seria contrário à sua natureza.
Neste sentido, a causalidade do Moto Imóvel não é do tipo eficiente, porque
estaria atribuindo movimento a ele, mas causalidade de tipo final, move-se como
perfeição:

Evidentemente, a causalidade do Primeiro Motor não é causalidade do


tipo ‘eficiente" (do tipo exercido pela mão que move um corpo, pelo
escultor que modela o mármore ou pelo pai que gera o filho), sendo,
mais propriamente, causalidade de tipo ‘final’, portanto, move como
perfeição [...] No âmbito das coisas que nos conhecemos existe algo
que saiba mover sem ele próprio se mover? Aristóteles responde
apresentando como exemplos de coisas assim “objeto do desejo e da
inteligência."(REALE; ANTISERI, 2003, p. 201).

Por isso, que a noção de causa automaticamente nos levar a de movimento. É


importante compreendermos essa relação entre ambos, dado que muitas vezes
entendemos o movimento só no sentido de movimento local. Deveras, se o
compreendermos dessa forma, estaremos afirmando que uma pedra que cai está viva,
porque se move de um lugar para outro enquanto uma flor que se encontra num vaso
não está viva, já que ela aparentemente não se move.
Sendo assim, o movimento pode ser definido também como o ato do ente em
potência enquanto potência. Em outros termos, é uma ação imanente a qual um
determinado ente atualiza suas próprias potências, porque faz parte de sua essência,
de sua estrutura ontológica. Essa ação modifica interiormente o ente sem nenhum
efeito exterior, por isso imanente: “permanece em” (Cf. FINANCE, 1965, p. 391), ao
contrário numa ação transitória o entre necessita de agente externo a si para ajudá-lo
atualizar suas potencias; por isso transitória: transita, “passa do agente ao paciente.”
(Ibid., 391).
É de se considerar também que ato e potência podem ser “demostráveis”
recorrendo a exemplos ou até mesmo pela experiência direta: “Por exemplo, vidente
30
e aquele que neste momento vê (vidente em ato), mas também aquele que tem olhos
sãos, mas neste momento os fechou, e não está vendo: este é vidente porque pode
ver, e neste sentido é em potência.” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 193).
Portanto, podemos conhecer a causalidade por meio do mundo marcado pelo
devir e pelas transformações, como por exemplo, as noções de ato e de potência os
quais foram analisados e argumentados. Além disso, a própria experiência testifica
essa realidade.
Outra experiência da causalidade no mundo do devir marcado pela mudança é
a nossa própria linguagem. Com efeito, nossa linguagem é rica em discurso causal,
como diz Brian Garrett usamos inúmeras expressões com a palavra causa e até
verbos que pressupõem a causação: fumar causa câncer, suas palavras causaram
ofensa, eles haviam empurrado o carro etc. Este discurso faz emergir inúmeras
questões acerca a da natureza da própria causação. (GARRETT, 2008, p. 63).
Isso é demonstrável e afirmado com a própria existência do homem, este tem
conhecimento que sua existência não lhe pertence, estritamente falando, não se deu a
existência. Logo, suas mudanças são causadas por outro:

Experiência externa: observamos, por exemplo, a mútua influência


entre os objetos exteriores a nós, influxo que distinguimos
perfeitamente da mera contiguidade temporal: ninguém sustenta que
o três seja a causa do quatro, ainda que sempre se encontrem um
depois do outro em qualquer sucessão numérica [...]. Experiência
interna: cada um adverte também que é causa de seus próprios atos
por exemplo: mover uma mão, caminhar ou seguir em pé, e
experimenta o efeito poder da vontade sobre as demais potência
interiores: quando queremos, recordamos ações passadas[...].
Experiência interno- externa: por fim, somos conscientes de nossa
atividade causal sobre o exterior e do influxo que as coisas que nos
rodeiam exercem sobre nós: somos capazes de modelar um corpo, de
instruir a outras pessoas [...]. (ALVIRA; CLAVELL;MELENDO, 2001, p.
198, tradução nossa).
Efetivamente o que caracteriza o mundo da experiência é o devir, isto é, as
mutações que os entes sofrem em muitos aspectos, como: local, qualitativo,
quantitativo e, sobretudo, substancial. Ora, bem se sabe que essas transformações
não são realizadas pelas próprias coisas, o que seria inadmissível. É incogitável, por
exemplo, uma casa fazer-se a si mesma, um carro andar sozinho sem a intervenção
de um agente responsável por tal ação, haja vista que seria o devaneio contra o
princípio da causalidade que afirma: “tudo que começa tem uma causa.” (Ibid., p. 201,
tradução nossa).

31
Portanto, é nesta linha de raciocínio que se deve compreender a causalidade o
seu valor ontológico o qual diz que tudo que existe tem uma causa, um motivo de sua
existência; e consequentemente um fim a realizar, pois como disse Cícero (apud
FINANCE, 1965, p. 349, tradução nossa) “não há nada de mais vergonhoso como
dizer que algo pode produzir-se sem causa.” É neste prisma que se deve entender as
noções de ato e potência estão intrinsecamente entrelaçados com a causalidade.
Ainda mais, quando se volta para a contingência dos entes, vê-se a
necessidade afirmá- la. De fato, é absurdo admitir que um ser contingente seja causa
de si mesmo. O ser contingente é o ser que existe, mas poderia não existir. Se poderia
não existir, não existe necessariamente, ou seja, não existe em virtude de sua
essência, não se autoexplica. Ora, se não existe em virtude da própria essência, existe
em virtude de outro ser. Logo, existir em virtude de outro é ter nele a sua causa, sua
razão de ser, ou seja, só veio à existência por causa dele:

Das formulações indicadas sobre o princípio da causalidade se


destaca que nada pode ser causa de si mesmo, pois produziria no ser
para chegar a ser, o que implica que seria e não seria a vez, atentando
contra o princípio de contradição. Por isso, ao conhecer que uma coisa
é limitada, imediatamente infere-se que é causada, e causada por um
princípio transcende a ela mesma. É essencial que o princípio de
conduza (agente) nos conduza de ente a outro (o efeito de suas
perfeições a alio, recebidas de outro). (FINANCE, 1965, p. 303,
tradução nossa).

Por isso, que tudo que começa tem uma causa, ou seja, o que não possui um
determinado ato não é capaz de fazer-se a si mesmo, a não ser por um determinado
influxo de outro que já goze dele. É inadmissível à razão, exemplificando, não só que
um tijolo faça a si mesmo, mas que ele atualize suas próprias potências, a não ser pela
intervenção dum outro princípio exterior a si, neste caso, se pode dizer do pedreiro,
que seria sua causa eficiente. Então, percebe-se que nada é causa de si. E que “tudo
o que é contingente necessita uma causa.” (FILHO, 2000, p. 32), pois é notório que os
entes providos de matérias estão sujeitos à corrupção, se desvanecem.

Destarte, no mundo das transformações as causas aristotélicas (material,


formal, eficiente e final) estão interligadas com os conceitos de ato e potência. A
compreensão desses conceitos ajuda a explicar como as coisas mudam, crescem e se
desenvolvem no mundo natural, fornecendo uma estrutura filosófica para entender a
causalidade e as transformações ocorridas no cosmos.

32
2.3 A CRÍTICA DE ARISTÓTELES AOS SEUS ANTECESSORES

Antes de adentrarmos na noção propriamente ao possível conceito de causa


em Aristóteles, faz-nos necessário o entendimento acerca do pensamento de alguns
de seus predecessores, visto que a ideia de causa, de um princípio responsável pela
geração das coisas, não foi inventada especificamente por ele, mas era uma realidade
já especulada entre os seus predecessores8.
Embora Aristóteles tenha dito que uma grande parte desses filósofos9 ficaram
somente na causa material: “Os que por primeiro filosofaram, em sua maioria,
pensaram que os princípios de todas as coisas fossem exclusivamente matérias.”
(ARISTÓTELES, Metafísica, 983b, 10). Entretanto, em outra passagem Aristóteles,
concluindo o primeiro livro da Metafisica, afirma que os seus predecessores falaram de
todas as causas: “Mas eles falaram delas de maneira confusa. Em certo sentido, todas
foram, mencionadas por eles, noutro sentido não foram absolutamente mencionadas”.
(Ibid.,993ª, 15). Por isto, aqui devemos aprofundar fazendo necessária uma análise
de suas doutrinas.
Apresentaremos, nesta seção, alguns filósofos que ficaram no nível da causa
material e da motora daqueles que a ultrapassaram chegando à noção, mesmo que
de forma confusa, de causa formal e de causa final. A causa formal e material, como
veremos mais adiante, explicam a constituição dos seres; enquanto a causa eficiente
e a causa final explicam o movimento e a mudança.

2.4 FILÓSOFOS QUE FICARAM NO NÍVEL DA CAUSA MATERIAL E DA


CAUSA MOTORA

A busca pelo saber é inerente à natureza humana. Todavia, poderíamos


indagar-nos: O que fez com que despertasse no homem o interesse incansável pela
busca de uma causa, de um princípio gerador das coisas? De onde lhe vem esse

8
O termo arché não fora especificamente utilizado por Tales, não pertence a ele. Talvez tenha sido introduzido por Anaximandro.
A ideia é como se a physis fosse a manifestação visível da arché invisível.
9
Os filósofos que, a partir de Tales de Mileto até o fim do século V a.C., indagaram a respeito da physis foram denominados
"Físicos" ou "Naturalistas", todavia, somente recuperando a concepção arcaica do termo e captando adequadamente as
peculiaridades que a diferenciam da acepção arcaica moderna o leitor poderá entender seus pensamentos e suas doutrinas
cosmológicas. (Cf. REALE; ANTISERI, 1990, p.19). Portanto, não se deve confundir os termos “físicos e naturalistas” no sentido
moderno que nega a essência das coisas e tem uma concepção naturalista e mecanicista das coisas. Os iniciadores da filosofia
foram chamados físicos e naturalistas por causa da visão cosmológica de mundo, quer dizer, foi a partir de sua visão de mundo
que eles atribuíram um princípio que fosse fundamento essencial para a geração das coisas.
33
desejo que se perpetua entre todas as civilizações? Essas questões sobre o
fundamento último das coisas, que faz com que estas existam sempre estiveram
presentes na história da filosofia.
Ora, o fato de o homem procurar resolver os problemas do cosmos e,
especialmente, o da sua existência é simplesmente porque ele não vive como os
animais ou como os seres inanimados. O ser humano é capaz de ensimesmar-se,
entrar dentro de si. Ele tem a consciência de sua existência, ou seja, o anseio pelo
conhecimento é intrínseco ao homem, faz parte de sua essência questionar-se e
questionar as coisas para buscar possíveis respostas no mundo diante das
transformações e acontecimentos ao seu derredor.10 Essa forma de saber é natural
ao homem: “todos os homens, por natureza, tendem ao saber.” (ARISTÓTELES.
Metafísica, 980a).
Foi partindo dessa verdade que a maioria dos filósofos que precedeu Sócrates
buscou entender a natureza a partir de uma visão logocêntrica, dando, assim, primazia
à razão, e deixando, em certo sentido, as explicações míticas11. Dessa forma, cada
um deles atribuiu um elemento como physis12 ou arché, que seria o fundo perene
responsável pela geração das diversidades de seres. Ela, embora seja imperecível,
dá origem a todos os seres infinitamente variados e diferentes do mundo, seres que,
ao contrário do princípio gerador, são perecíveis ou mortais (Cf. CHAUÍ, 2000, p. 41),
como veremos nestas subseções.

2.4.1 Tales de Mileto: água como princípio gerador de todas as coisas

Tales de Mileto, pré-socrático, filósofo da Escola Jônica (Cf. CHAUÍ, 2000, p.

10
Segundo Ramón Lucas: “Com base na autoconsciência, o homem não apenas sabe, mas sabe que sabe. O eu conhecido é,
portanto, uma pessoa: um eu subsistente, porque eu sou aquele que age, aquele a quem os atos pertencem; um eu diferente,
porque junto com todas as minhas ações sou um indivíduo;” (LUCAS, 2003, p. 115, tradução nossa). Isto é, ele tem consciência
de sua existência e de toda a realidade criada
11
Quando dizemos que houve uma visão mais logocêntrica não estamos afirmando a ruptura radical com os mitos, pelo contrário,
lembremo-nos que estes sempre estiveram presentes na história da filosofia e eles transmitem mensagens verídicas.
Parmênides recorrer à poesia da deusa para explicar sua epistemologia. Platão recorre ao mito da caverna. Todavia, não se trata
de qualquer mito, mas de uma realidade que é dotada de racionalidade e não carente de sentidos. Essa visão logocêntrica
deve-se ser entendida no sentido de que estes filósofos investigavam minuciosamente a origem das coisas pela razão, esta se
torna primordial. Entretanto, isso não significa que os mitos gregos homéricos como, por exemplo, Ilíada e Odisseia não
buscassem compreender a realidade das coisas. Ora, os estudiosos observaram que o poeta não se limitava a narrar apenas
fatos, mas pesquisava suas causas e razões. Enfim, aquela mentalidade embora no nível mítico e fantástico despertará na
filosofia à busca duma “causa”, dum “princípio”, do porquê último das coisas.
12
Eis a definição de Physis: “O fundo eterno, perene, imortal e imperecível de onde tudo brota e para onde tudo retorna é o
elemento primordial da Natureza e chama-se physis (em grego, physis vem de um verbo que significa fazer surgir, fazer brotar,
fazer nascer, produzir). A physis é a Natureza eterna e em perene transformação. (CHAUÍ, 2000, p. 41).
34
41) e iniciador da filosofia da physis, comungava do pensamento que o cosmos era
eterno e partindo da observação e da experiência chegou à conclusão que tudo foi
criado a partir de um único elemento, que ele atribuiu a água ou o úmido, como sendo
o princípio responsável pela geração de tudo.
Segundo Jean Bernhardt é o “primeiro a imaginar uma realidade sensível, a
água, como o substrato e a força geradora de todas as coisas.” (CHÂTELET;
BERNHARDT; AUBENQUE, 1973, p. 27). Ela seria então, essa força renovadora,
princípio vital, capaz de atravessar séculos e permanecer intacta. O filósofo percebia
através da observação que tudo tinha água a qual era necessária à vida de forma em
geral. Assim, tudo precisa dela: as plantas, os animais, o homem, a natureza em si. Ele
analisava ainda que todas as coisas são úmidas e quando uma pessoa morre fica seca.
Isso se explica pela ausência desse princípio que é capaz de sustentar toda realidade
seja humana ou não.
Aristóteles, ao falar de Tales, atribui a ele essa concepção física da água como
sendo o princípio causal de toda a realidade:

Tales, iniciador desse tipo de filosofia, diz que o princípio é a água (por
isso afirma também que a terra flutua sobre a água), certamente
tirando esta convicção da constatação de que até o calor se gera do
úmido e vive no úmido. Ora, aquilo de que todas as coisas se geram é
o princípio de tudo. Ele tirou, pois esta convicção desse fato e também
do fato de que as sementes de todas as coisas têm uma natureza
úmida, sendo a água o princípio da natureza úmida. (ARISTÓTELES.
Metafísica, 983b, 20-25).

Assim, o conceito de "arché" refere-se ao princípio fundamental que constitui a


base de todas as coisas no universo. Ou seja, como a própria citação confere aquilo
de que todas as coisas se geram é o princípio de tudo. Para o filósofo, esse princípio
subjacente era a água. Ele postulou que a água não só era a substância fundamental
que dava origem a tudo o que vemos e experimentamos no mundo, mas também
universal visto que ela não era apenas uma característica local ou regional, mas uma
substância universal que existia em todos os lugares. Era o princípio da natureza
úmida. (Cf, Ibid., Metafísica, 983b, 20-25). Era elemento primordial que permeava o
cosmos. Além disso, poderia assumir diferentes formas, como líquido, sólido (gelo) e
vapor (gás).

Entretanto, quando o filósofo diz que tudo veio da água e esta é o princípio
originador de todas as coisas presentes no cosmos, parece não estava falando dela

35
simplesmente do modo como conhecemos. Pelo contrário, o filósofo estava explicando
que tudo veio de um princípio unitário, de uma única realidade ou ainda de uma physis
na qual a água que bebemos é apenas uma de suas manifestações. Desta maneira, a
ideia do filósofo é que esse princípio13 se faz presente em tudo e se fosse para
expressá-lo visivelmente seria a água, por isso, que ele chegou a dizer que tudo tem
uma alma:

Mas não se deve acreditar que a água de Tales seja o elemento físico-
químico que hoje bebemos. A água de Tales deve ser pensada de
modo totalizante, ou seja, como a physis liquida originária da qual tudo
deriva e da qual a água que bebemos é apenas uma de suas tantas
manifestações. [...] Tales, portanto, fundamenta suas asserções sobre
o raciocínio puro, sobre o logos; apresenta uma forma de
conhecimento motivado com argumentações racionais precisas.”
(REALE; ANTISERI, 2003, p. 19).

Então, a água seria a causa responsável pela existência de todos os seres,


sejam estes vivos ou não. Ela funcionaria como princípio de todas as coisas, visto que
estas são constituídas por ela ao passo de Tales dizer: “o princípio de todas as coisas
é a água.” (ibid., p. 17). Para o filósofo, esse elemento é vida, logo tudo está cheio de
vida. Assim, onde existe água existe vida, consequentemente se não tem água não é
possível ter vida.
Nada obstante, sua visão tenha sido superada por ideias posteriores na história
da filosofia e da ciência, o fato é que ele foi o primeiro filósofo a buscar uma explicação
racional e natural para a origem e a natureza do mundo, em vez de recorrer a
explicações míticas ou sobrenaturais.
Nietzche (apud COPLESTON, 2021, p. 89) ao falar de Tales comunga da ideia
que o filósofo via a água como princípio unitário, que ele levanta a questão do Um, não
simplesmente uma mera hipótese: “Mas Tales foi além da mera hipótese científica:
chegou a uma doutrina metafísica, a de que Tudo é Um.” (Ibid., p. 89).
Sua doutrina tendo a água como "arché" pode ser entendida como um passo
inicial do conhecimento filosófico que recorre à realidade material como explicação do
cosmos. Seu pensamento representou um passo importante no desenvolvimento do
pensamento racional e na transição da mitologia para a filosofia.

13
Dizer que água é princípio de todas as coisas significa que ela é a fonte e a origem de todas as coisas, de tudo que é
criado. É substancia de tudo, pois o princípio quer dizer: “aquilo do qual provém, aquilo no qual se concluem e aquilo
pelo qual existem e subsistem todas as coisas.” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 18).

36
2.4.2 Anaximandro de Mileto: o ápeíron como princípio indefinido-infinito
gerador de todas as coisas

Anaximandro, provavelmente discípulo de Tales de Mileto, também pertencente


a Escola Jônica (Cf. CHAUÍ, p. 40) não concorda com o pensamento de seu mestre.
Ele objetava que o princípio de todas as coisas fosse um elemento observável e
submetido à experiência ou determinado como, por exemplo: a água, o fogo ou o ar.
Ele é conhecido por suas contribuições significativas para a filosofia e a cosmologia
antigas, e foi um dos primeiros filósofos a buscar uma explicação racional para a
origem e a natureza do universo, em vez de recorrer a explicações míticas.
Também por elaborar um tratado Sobre a natureza, do qual temos acesso apenas a
alguns fragmentos. Trata-se do primeiro tratado filosófico do Ocidente e do primeiro
escrito grego em prosa (Cf. REALE; ANTISERI, 2003, p. 19).
O filósofo defendia que o "ápeiron" era eterno e existia antes de todas as
coisas. Ele não via o "ápeiron" como tendo um começo ou um fim, mas como algo que
sempre existiu e sempre existirá. Dessa forma, para a cosmologia em Anaximandro o
mundo surgiu de um estado inicial indiferenciado e indeterminado do ápeiron. Não se
há nele características particulares, como forma, tamanho ou até mesmo qualidade.
Desta substância eterna provêm todas as coisas limitadas, toda realidade empírica,
verificável, contudo, ele mesmo é privado de determinação, é indeterminado, ilimitado
pois está além, é imperecível, infinito na duração:

O termo usado por Anaximandro é o á-peiron, que significa aquilo que


está privado de limites, tanto externos (ou seja, aquilo que é
espacialmente e, portanto, quantitativamente infinito), como internos
(ou seja, aquilo que é qualitativamente indeterminado). Precisamente
por ser quantitativa e qualitativamente ilimitado, o princípio-ápeiron
pode dar origem a todas as coisas, delimitando-se de vários modos.
Esse princípio abarca e circunda, governa e sustenta tudo [...] todas
as coisas geram-se a partir dele, nele consistem e nele existem.
(REALE; ANTISERI, 2003, p. 19-29).

Anaximandro rechaçando os elementos observáveis dá um salto qualitativo, de


fato, esse filosofo não só fica na observação - como Tales - mas adota a postura do
filósofo: a especulação. Ele sugeriu que as coisas individuais no mundo surgiram por
meio de processos de separação e diferenciação a partir desse estado primordial. Na
verdade, não só surgem, senão todas as coisas, nele consistem e nele existem. (Cf.
37
Ibid., p. 19-29).
Desse modo, o "ápeiron" era fonte subjacente de todas as mudanças,
responsável pelas transformações que observamos no universo. Para Anaximandro,
representava uma substância indeterminada e infinita da qual todas as coisas tinham
origem e para a qual todas as coisas eventualmente retornavam. Essa visão
influenciou o desenvolvimento posterior da filosofia pré- socrática e contribuiu para o
desenvolvimento do pensamento racional na Grécia Antiga.
François Châtelet ao mencionar Anaximandro disse: “Encontramos nele as
qualidades de observador e a audácia especulativa de Tales, do qual ele toma
também, para reforçar suas exigências, o sentido da argumentação.” (CHÂTELET;
BERNHARDT; AUBENQUE,1973, p. 27). Porém, Tales não havia proposto a pergunta
sobre como e o porquê de as coisas serem derivadas dum princípio, no entanto,
Anaximandro a fez.

2.4.3 Anaxímenes de Mileto: o ar infinito como princípio gerador de todas as coisas

Anaxímenes de Mileto, discípulo de Anaximandro de Mileto, também elaborou


um tratado Sobre a natureza, em sóbria prosa jônica, no qual chegaram-nos três
fragmentos, além de testemunhos indiretos. Esse filósofo da Escola Jônica adota uma
posição “intermediária”, concorda com seu mestre que o elemento único, no qual tudo
veio dele, é indeterminado e consequentemente infinito, mas discordou ao situá-lo em
um campo muito abstrato. Segundo ele, todas as coisas existentes são resultado da
condensação ou da rarefação do ar e tudo teria como natureza a esse “aer” (Cf.
REALE; ANTISERI, 2003, p. 21).
Assim, esta arché seria o "aer", palavra grega, que geralmente é traduzida por
“ar”, entretanto, não devemos concebê-lo como o ar que conhecemos atualmente,
mas com características e atributos bem diferentes. Seria uma espécie de névoa
densa, mais similar ao que chamaríamos de vapor. Anaxímenes afirmou: “Exatamente
como a nossa alma (ou seja, o princípio que dá vida), que é o ar, se sustenta e se
governa, assim também o sopro e o ar abarcam o cosmos inteiro.” (REALE; ANTISERI,
2003, p. 21).
Logo, é infinito ou em outras palavras quase inobservável. Está presente em
tudo, transpassava tudo, soprava o movimento de todos os seres e era infinito.
Certamente o motivo pelo qual esse filósofo recorrer ao ar como princípio e
fundamento das coisas seja pelo fato de o ar se prestar – melhor do que qualquer outro
38
elemento – às transformações necessárias para fazer nascer as diversas coisas:

É evidente que ele sentia necessidade de introduzir uma realidade


originaria que dela permitisse deduzir todas as coisas, de modo mais
lógico e mais racional do que fizera Anaximandro. Com efeito, por sua
natureza de grande mobilidade, o ar se presta muito bem (bem mais
do que o infinito de Anaximandro) para ser concebido como em perene
movimento. Além disso, o ar se presta melhor do que qualquer outro
elemento às variações e transformações necessárias para fazer
nascer as diversas coisas. (Ibid., p. 21).
Desta maneira, a arché, o ar infinito, seria a realidade mais excelente e estaria
em um grau superior aos de seus antecessores. Dizia que o primeiro era muito
abstrato (ápeiron de Anaximandro); e o segundo muito palpável (água de Tales de
Mileto). Assim, esse princípio adquire outra conotação: esse “ é princípio infinito, mas
que deva ser pensado como ar infinito, substância aérea ilimitada. (Ibid., p. 21, grifos
do autor). Segundo ele, todas as coisas existentes são resultado da condensação ou
da rarefação do ar. Então, tudo que existe é resultado da condensação ou da
rarefação do ar: por meio da condensação, resfria-se e se torna água e, depois, terra;
ao se distender (ou seja, rarefazendo-se) e dilatar, esquenta e torna-se fogo.

2.4.4 Diógenes de Apolônia: o ar-inteligência, de natureza infinita, como


princípio gerador de todas as coisas

Poder-se-ia dizer que Diógenes de Apolônia não identificou precisamente um


elemento material específico, como água ou fogo, como os pré-socráticos anteriores
haviam feito. Em vez disso, ele propôs que seria o ar-inteligência, de natureza infinita,
como princípio gerador de todas as coisas.
No entanto, segundo Santo Tomás de Aquino, há diferenças entre as opiniões
de Anaxímenes e Diógenes, pois, enquanto o primeiro pôs o ar como princípio absoluto
das coisas;o segundo diz que o ar não pode ser o princípio de todas as coisas, porque
era composto de espírito divino. (AQUINO, 2016, p.75).
Assim, o ar é dotado de inteligência, e é divino. O filósofo elaborou uma filosofia
bastante eclética, combinando não só as teses filosóficas de Anaxímenes e de
Anaxágoras (Cf. REALE; ANTISERI, 2003, p. 40), mas também dos pluralistas
Empédocles, Anaxágoras e Leucipo, como afirma Giovanni Reale (Cf. em Sumários
e Comentários, 2002, p. 22).
Logo, em certo sentido, Diógenes adaptou as teses do “Nous” de Anaxímenes,

39
o “ar”, com a doutrina de Anaxágoras (que veremos mais adiante) quando fala de
inteligência ordenadora:

Diógenes de Apolônia combina as teses de Anaxímenes com as de


Anaxágoras, afirmando que o princípio seja ar-inteligência, de
natureza infinita. Introduz na explicação do mundo o conceito de fim;
o escopo que as coisas têm, depende da inteligência do princípio do
qual derivam. (REALE; ANTISERI, 2003, p. 40).

Dessa forma, na doutrina de Diógenes há uma certa finalidade, quer dizer, o


princípio que seja ar-inteligência, mas há uma finalidade nas coisas que depende da
inteligência responsável pela sua existência. O ar se condensa, se rarefaz e sofre
mutações de qualidade, produzindo as outras coisas em suas formas. (Cf. Ibid., p.40).
Esse princípio, ar infinito e consciente, é ativo e criativo ao passo que na concepção
do filósofo ele agia para criar e manter o mundo, dando origem a todas as coisas a
partir de si mesmo. Também sendo organizador: dando forma e ordem ao universo.
Era responsável pela regularidade e harmonia que se observava na natureza.
É inegável que a visão cosmológica de Diógenes de Apolônia se consistia na
busca por uma explicação racional e finalista para a origem do mundo, afastando-se
de explicações mitológicas. Sua visão do "ar-inteligência" como um princípio infinito e
inteligente contribuiu para o desenvolvimento do pensamento filosófico na Grécia
Antiga.

2.4.5 Leucipo e Demócrito: o atomismo como princípio gerador de todas as coisas

Leucipo e Demócrito - fundadores do atomismo lógico - propuseram como


origem de todas as coisas os átomos. Estes seriam as partículas incansáveis,
indivisíveis, infinitas em número e configuração. Eles adotaram a ideia de que os
átomos são o princípio originador de tudo, e que as coisas se originam mediante o
choque entre os átomos no vazio. Argumentavam que as coisas sensíveis nascem,
morrem e sofrem em virtude do processo de agregação e desagregação destes
átomos.
Além disso, estes eram concebidos como variados em forma e tamanho,
dotados de movimento. (Cf. Ibid., p. 40). Isso se dava por meio de um movimento
aleatório, isto é, estavam constantemente em movimento aleatório no vácuo. Esse
movimento aleatório dos átomos era a base para a explicação das mudanças e
fenômenos observados no universo.
40
Portanto, o "arché" na filosofia atomista de Leucipo e Demócrito era a
concepção de átomos como as unidades fundamentais e indivisíveis que compunham
o universo. Suas ideias representaram uma tentativa pioneira de entender a natureza
da matéria e da realidade por meio de uma abordagem materialista e naturalista, ou
seja, não há uma causa final, uma ordem, um projeto:

Leucipo e seu seguidor Demócrito, afirmam como elementos o cheio e


o vazio, e chamam um de ser e o outro de não-ser; mas precisamente,
chamam o cheio e o sólido de ser e o vazio de não-ser; e por isso
sustentam que o ser não tem mais realidade do que o não-ser, pois o
cheio não tem mais realidade que o vazio. E afirma esses elementos
como causas materiais dos seres. [...] Mas ele também, como os
outros, negligenciaram a questão de saber de onde deriva e como
existem nos seres o movimento. (ARISTÓTELES. Metafísica, 985 b 5-
20).

Percebe-se que a doutrina atomista é, em certo sentido, materialista e mecanicista na


qual algo é feito sem ordem, sem uma mente organizadora, mas simplesmente fruto
do acaso, algo fortuito. Resta-nos então questionar: como pode algo ser feito sem uma
Inteligência que a pensou? Decerto é ilógico admitir que alguma coisa venha vir a ser
sem intervenção de uma Inteligência, de um princípio que a organizou e que ela não
tenha uma finalidade:

Mas isso não quer dizer que eles não atribuem causas ao nascer do
mundo [...], mas sim que não estabelece uma causa inteligente, uma
causa final. A ordem (o cosmos) é feito de um encontro mecânico entre
os átomos não projetados e não produzidos por uma Inteligência.
(REALE; ANTISERI, 2003, p. 46).

O pensamento de Leucipo e Demócrito sobre os átomos que são os


responsáveis pela origem de tudo, é confuso quando afirmam que toda a realidade
pode ser explicada em sentido mecanicista a partir dos átomos e do vazio. O problema,
é pensar em ordem e geração das coisas sem uma causa Inteligente e final, que possa
reger as leis do universo. Para Aristóteles, estes filósofos atomistas ficaram presos na
causa material, com a concepção dos átomos, e desconheceram a causa final.
Eles afirmam que “o ser não nasce, não morre e tampouco está no nível do
devir, pois isso implicaria mutação e ele é imutável e indivisível, e não se adapta a
realidade sensível, adere, porém aos fundamentos da realidade sensível, isto e, aos
átomos.” (REALE; ANTISERI, 2003,
p. 40). Dessa maneira, os átomos não têm qualidades e só podem ser captados pelo

41
intelecto; as coisas sensíveis nascem, morrem e sofrem mutação.

2.4.5 Heráclito de Éfeso: o perene escorrer de todas as coisas e o devir universal


revelam- se como harmonia de contrários

Heráclito de Éfeso escreveu um livro intitulado Sobre a natureza, do qual


chegaram até nós fragmentos. (Cf. REALE; ANTISERI, 2003, p. 22). Ficou conhecido
como “o obscuro”14 e o “Pai da Dialética”15. Ele tinha uma visão muito dinâmica do
ser, para ele existiria no mundo um eterno devir, uma constante kinesis no universo
de modo que não podemos entrar duas vezes no mesmo rio. Dessa forma, a
permanência é pura ilusão:

Tudo se move, tudo escorre (panta rhei), nada permanece imóvel e


fixo, tudo muda e se transmuta, sem exceção [...]: Não se pode descer
duas vezes no mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma
substância mortal no mesmo estado, pois, por causa da impetuosidade
e da velocidade da mudança, ela se dispersa e se reúne, vem e vai.
[...] Nós descemos e não descemos pelo mesmo rio, nós próprios
somos e não somos. (REALE; ANTISERI, 2003, p. 23).

Em Heráclito, as coisas acabam se diluindo em uma nesta espécie de devir,


visto que não existe nenhum substrato que seja responsável pela existência das
coisas. Com essa concepção dinâmica do ser faz com que o indivíduo não conheça
nada duradouro, pois os sentidos captam as coisas, entretanto, estas mudam
constantemente assim como o homem.
O filósofo creditava que o mundo está constantemente em um estado de
mudança afirmava, não se pode entrar duas vezes no mesmo rio, o que significa que,
dado que a água está sempre fluindo, o rio nunca é o mesmo a cada momento. Da
mesma forma, todas as coisas no universo estão em constante fluxo e transformação.
Via o fogo como princípio único, subjacente ao movimento que governa todas as
coisas. Ele acreditava que o fogo era o princípio fundamental que unificava e
controlava todas as mudanças no universo. Por conseguinte, atribui ao fogo como

14
Heráclito ficou conhecido como “o obscuro” porque tinha caráter desencontrado e temperamento esquivo e desdenhoso.
Não quis participar da vida pública “Fez isso para evitar o desprezo e a caçoada daqueles que, lendo coisas aparentemente
fáceis, acreditam estar entendendo aquilo que, ao contrário, não entendem. Por esse motivo foi denominado "Heráclito, o
obscuro". (REALE; ANTISERI, 2003, p. 22).
15
A dialética propõe a busca da verdade através da relação entre dois conceitos opostos, numa relação de
interdependência. Por isso que para ele “há, portanto, guerra perpétua entre os contrários que se aproximam.” (REALE;
ANTISERI, 2003, p. 23). Quer dizer: “das coisas diferentes nasce a mais bela harmonia e tudo se gera por meio de
contrastes"; ‘harmonia dos contrários’, como a harmonia do arco e da lira.( Ibid., p. 23, grifo do autor).

42
princípio fundamental, e considerou todas as coisas como transformações deste
princípio. Esse fogo governa tudo, como ele mesmo se expressa: “Esse fogo é ‘como
raio’ que governa todas as coisas. E aquilo que governa todas as coisas é a
‘inteligência’, é ‘razão’, é ‘logos’, é lei racional.” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 24).
Assim sendo, Heráclito é conhecido por sua filosofia do fluxo constante, da
unidade dos opostos e da importância do fogo como elemento primordial. Sua
abordagem desafiou ideias anteriores e influenciou significativamente o
desenvolvimento da filosofia ocidental, especialmente na obra de filósofos como
Friedrich Nietzsche (o eterno retorno) e Hegel (a dialética).

2.4.6 Parmênides e a doutrina do ser: o ser é e o não ser não é

Enquanto Heráclito tinha essa visão dinâmica de todo o cosmos; Parmênides


passa para uma visão estática, quer dizer, rejeitando a concepção heraclitiana da
existência marcada pelo devir16; passa a tratar o ser como imóvel e muito menos
mutável ou falso. Pelo contrário, ele é imutável, uno, indiviso, indestrutível, é a physis
do cosmos; ademais somente ele pode ser pensado, dito, ao passo que o não-ser é
inimaginável:

Por conseguinte, o ser é também imutável e imóvel, porque tanto a


mobilidade quanto a mudança pressupõem um não-ser para o qual
deveria se mover ou no qual deveria se transformar. Assim, o ser de
Parmênides é todo igual; o ser se amálgama com o ser, sendo
impensável um mais de ser pressuporiam uma incidência do não-ser.
(REALE; ANTISERI, 2003, p. 33).

Com esta qualidade imobilista da noção de ser em Parmênides17, há uma


novidade no pensamento, ou seja, pode-se falar de uma teoria do ser, um estudo do
ser, da ontologia: “O grande princípio de Parmênides, que é o próprio princípio da
verdade [...] é este: o ser é e não pode não ser; o não-ser não é e não pode ser de
modo nenhum.” (Ibid., p. 33). Assim, pode-se considerar o ser é o princípio de tudo e
não está preso às realidades sensíveis que são enganadoras é a única via para a
verdade, não tem passo e além do mais, é completo e perfeito. Portanto, argumentava
não só que o ser, ou ser uno, era a única realidade verdadeira e que tudo o mais era

16
A dicotomia entre o "ser" eterno e imutável de Parmênides e o mundo mutável da aparência perceptual foi um tema central
na filosofia ocidental e ainda é debatido e explorado em várias tradições filosóficas.
17
Muitos veem nesta doutrina de Parmênides sobre o ser, “a primeira grande formulação do princípio da não- contradição,
isto é, daquele princípio que afirma a impossibilidade de que os contraditórios coexistam ao mesmo tempo.” (REALE;
ANTISERI, 2003, p. 33).

43
ilusório, mas também que era eterno, imutável, homogêneo e indivisível.
Todavia, conforme Tomás Melendo com a concepção rígida do ser de
Parmênides a ponto de uma rejeição total do não-ser, introduzirá a metafísica em uma
via morta, pois o não- ser em algum sentido pode ser pensado, que o não ser é, em
algum sentido:

[...] Parmênides, ao rejeitar o não-ser, introduz a metafísica por uma


via morta: dela surgirão, ao cabo de algum tempo, todas as aporias
dos sofistas (entre elas, a destruição da ética). E por isso, Platão, com
o objetivo de fazer avançar à filosofia primeira, terá de se afastar de
Parmênides, e chegará a cometer um “parricídio”: admitirá, em sentido
contrário ao que Parmênides ensinava, que o não-ser é. [...] explicará
a possibilidade da vida humana tal como se encontra na realidade,
marcada em muitos casos pela contradição, porém capaz de ser vivida
com plenitude e retidão. (MELENDO, 2002, p. 53, grifos do autor).
A crítica de Platão a Parmênides consistia na sua concepção rígida como uma
substância essencial que não podia mudar, dividir-se ou deixar de existir. O filósofo
enfatiza em seu poema Sobre a Natureza (Cf. REALE; ANTISERI, 2003, p. 58), em
grego, Peri Physeos, onde apresenta suas ideias sobre o ser e o não-ser em forma
poética e narrativa. Entretanto, trouxe consequências para o campo da ética, isto é,
das ações humanas, visto que o próprio agir humano é condicionado e marcado por
contradição e isso não impede de o homem viver feliz e buscar sua realização.
Consequentemente isso desembocaria na negação do indivíduo como um ser
real e atual, pois “equivaleria a suprimir a possibilidade mesma de compreender
metafisicamente em minha concreta singularidade participada e, e consequência, de
compreender meu próprio ser [...] (Cf. Ibid., p. 53). Traria, portanto, grandes
complicações para o campo da aplicabilidade das ações humanas.
Deste modo, Platão vai conceber o ser de outras formas superando a visão
monolítica de Parmênides. Em um primeiro momento, como uma realidade que
corresponde a identidade: algo é verdadeiro quando é idêntico a si mesmo, depois o
ser como algo parecido ao que nós entendemos por existir ou dar-se de fato, aquilo
que se expressa com o verbo impessoal.
Assim também acontecerá com o não-ser atribuindo-lhe dois significados, a
saber: diversidade e não-existir. Ora, “esta diversidade de sentidos pode admitir num
universal metafísico simples o não-ser: algo que não é numa das acepções propostas
poderia, sem problema, ser na outra. “(Ibid., p. 55, grifos do autor). Neste sentido,
qualquer realidade finita pode se enquadrar no não-ser com causa de sua diversidade

44
em relação às demais realidades, por exemplo, o homem não é o cachorro. À vista
disso, o homem não é o cachorro, opõe-se á perfeita identidade (de fato o homem não
é cachorro) e compreensível à razão humana, também pode ser entendida na segunda
explicação platônica de dar-se de fato, haver ou existir. (Cf. REALE; ANTISERI, 2003,
p. 55) ao passo que o é não exclui a outra realidade: o cachorro existe.
Esse embate entre Heráclito e Parmênides acerca do ser será compreendido
com a doutrina do ato e da potência em Aristóteles, que analisaremos mais adiante. Por
agora, veremos os filósofos que ultrapassaram a causa material e a motora.

2.5 FILÓSOFOS QUE ULTRAPASSARAM A CAUSA MATERIAL E A MOTORA

Se é verdade o desejo pelo conhecimento e intrínseco ao homem, faz parte de


seu ser, que ele sempre age por um determinado objetivo. Isso é tão evidente que
muitos filósofos começaram a olhar e analisar suas próprias ações bem como suas
próprias motivações interiores ao agir. Ora, essa postura, indubitavelmente, evoca a
ideia de finalidade, em uma linguagem tomista seria finis operationis, quer dizer, o fim
da ação, um agir intencionado, não se trata de um simples agir, sem um porquê.
Dessa forma, o pensamento dos primeiros filósofos vai amadurecendo cada
vez mais quando eles adotam uma postura mais especulativa diante do mundo. O
olhar sobre as coisas adquire um novo panorama. No entanto, percebe-se que esta
cosmovisão se dá em um processo lento o qual exige raciocino, especulação. Assim,
nota-se, pensamentos e ideias confusos na doutrina acerca da arché e da causalidade
em cada filósofo.
Todavia, não se pode analisar um filósofo de modo isolado. Deve levar em
consideração que o pensamento é construído sempre com bases em argumentos de
doutrinas anteriores. Isso é muito perceptivo nestes filósofos. De fato, em cada teoria
percebemos algo semelhante à teoria do filósofo anterior, como vimos em Diógenes,
uma certa adaptação das teses do “Nous” de Anaxímenes, o “ar”, com a doutrina de
Anaxágoras da Inteligência ordenadora, contudo, sempre tem algo de inovador.
Nesta seção, abordaremos os pensamentos de alguns filósofos e suas
respectivas doutrinas, a saber: Empédocles de Agrigento, Anaxágoras de
Clazômenas e Platão. Estes, possivelmente, ultrapassaram a causa material e a
causa eficiente, mesmo de modo confuso ou ambíguo mencionaram em suas

45
doutrinas as noções de causa formal e de causa e final18.

2.5.1 Empédocles de Agrigento: o primeiro dos pluralistas e a teoria


cosmogônica dos quatro elementos

Empédocles, o primeiro dos pluralistas, seguindo o raciocínio acerca da


natureza das coisas, isto é, da origem, volta o seu pensamento para a ideia na qual
os elementos da natureza material são quatro, a saber: a terra, o fogo, o ar e a água.
Sua doutrina do conhecimento está embasada na afirmação de que a origem do
universo se dá por meio de forças antagônicas.

É considerado um físico pluralista, porque sua visão cosmogônica (como ele


concebia a geração do cosmos), segue, em certo sentido, a mesma dos pré-socráticos
que buscavam a arché na physis, não de maneira moonista, pois não via o ser como
uma realidade estática, imóvel como na teoria parmenidiana. Neste sentido, sua
doutrina se aproxima a de Heráclito ao passo que o ser fluir, está em constante devir,
movimento:

Água, ar, terra e fogo são movidos e governados por duas forças
cósmicas, o Amor e o ódio: uma agrega, a outra desagrega. Quando
prevalece o Amor, temos perfeita unidade (o Esfero); quando
prevalece o ódio em sentido extremo, temos ao invés o mínimo de
desagregação (o Caos). Nas fases de relativo predomínio do ódio,
gera-se o cosmo. (REALE; ANTISERI, 2003, p. 39).

Deste modo, todos os seres seriam compostos por esses quatro elementos,
podendo variar. O amor e o ódio, sendo os dois sentimentos humanos: o amor une
elementos semelhantes e afasta aquilo que é dessemelhante no ser. O ódio separa os
elementos dessemelhantes. Assim, esses dois princípios são responsáveis pelo
surgimento das coisas no cosmos. Assim, a relação amor-ódio é de geração.
Contudo, se afasta destes filósofos a partir do momento que adota uma
finalidade pluralista, quer dizer, enquanto os outros filósofos buscavam na physis um
único princípio, causador de todas as coisas; ele afirmava, como vimos anteriormente,
a existência de quatro elementos: a terra, o fogo, o ar e a água, como que as raízes
de todas as coisas:

18
Poder-se-ia dizer, que todo ser vivo age em vista de um fim, mesmo sem fazer uso da razão, como, por exemplo, acontece com
o animal que sedento vai à fonte saciar sua sede, a criança que chora como forma de expressar sua fome, o seu medo, sua
insegura etc. e, é tranquilizada quando está no colo de sua mãe.
46
Segundo Empédocles, da mesma forma que para Parmênides, o
“nascer” e o “perecer”, entendidos como um vir do nada e um ir ao
nada, são impossíveis porque o ser é e o não-ser não é. Assim, não
existem “nascimento” e “morte”: aquilo que os homens chamam com
esses nomes, ao contrário, são o misturar- se e o dissolver-se de
algumas substâncias que permanecem eternamente iguais e
indestrutíveis. Tais substâncias são a água, ao ar, a terra e o fogo, que
Empédocles chamou raízes de todas as coisas. (Ibid., p. 60).

É importante salientar que essas duas forças, Amor ou Amizade, em grego


philía , e Ódio ou Discórdia, em grego neîkos, nada têm a ver com sentimentos que
humanos, pelo contrário, trata-se de forças cósmicas as quais são responsáveis por
unir ou desunir. Deste modo, o devir, as transformações das coisas bem como o
surgimento e desaparecimento delas, devem-se à mistura desses elementos
distribuídos em várias proporções.
Dessarte, segundo Empédocles, era a partir do caos que era caracterizado pela
união e pela separação desses elementos que todas as coisas surgiam, inclusive o
cosmos. O devir, as transformações das coisas bem como o surgimento e
desaparecimento delas, devem-se à

mistura desses elementos distribuídos em várias proporções. Para ele, o ódio


separa e o amor une.
Santo Tomás de Aquino comentando a análise que Aristóteles faz a
Empédocles, diz que este errou duplamente. Primeiro, porque não abordou causas
suficientes, mas se limitou à natureza das coisas particulares. Segundo, porque faltou
com a ciência naquilo que investigou, quer dizer, falhou no que investigou: que o
amor une e o ódio dispersa. Ora, para Santo Tomás de Aquino pode-se ocorrer o
contrário do que aparece na doutrina de Empédocles, ou seja, o amor pode separar
ou dividir e o ódio unir ou juntar:

Quando o universo se dissolve pelo ódio em suas partes, como na


geração do mundo, então todas as partes do fogo se reúnem e são
conjugadas umas com as outras e, de modo semelhante, cada uma
das partes dos outros elementos, unem umas com as outras. O ódio
não só divide as partes do fogo em partes do ar, mas também reúne
as do fogo. Mas, se os elementos se unem pelo amor, que ocorre na
dissolução do universo, então é necessário que as partes do fogo se
separem entre si e, do mesmo modo, reciprocamente se separem as
partes dos singulares. Ora, o fogo não pode, de fato, misturar-se ao
ar, exceto, se as partículas de fogo estiverem separadas entre si. E as
do ar não podem se misturar, exceto se esses elementos se
compenetrarem entre si. Assim, não só o amor une as coisas
diferentes, mas também as separa [...] (AQUINO, 2016, p. 90-91).
47
Portanto, consoante Santo Tomás não seria função do amor ou da amizade
somente unir, senão separar, como também acontece com o ódio que não somente
divide, mas pode unir.O ódio dissolve o universo, mas reúne as partes do fogo, o amor
une as coisas, como na dissolução do universo, também as separa, como as partes
do fogo que são separadas entre si.
Aristóteles argumenta que esses quatro elementos presentes na doutrina de
Empédocles: a terra, o fogo, o ar e a água, não são usados como se fossem quatro,
mas apenas dois: o fogo por conta própria e os demais - terra, ar e água. Assim, se
trata de naturezas distintas, visto que, Empédocles contrapõe esses elementos como
única natureza.

Empédocles, em todo caso, diferentemente de seus predecessores,


foi o primeiro a introduzir a distinção dessa causa, tendo afirmado não
um único princípio do movimento, mas dois princípios diferentes e até
mesmo contrários. Ademais, ele foi o primeiro a dizer que os
elementos da natureza material são quatro em número. (De resto, ele
não se serve deles como se fossem quatro, como se fossem apenas
dois: de um lado o fogo por conta própria e, de outro, os outros três –
terra, ar e água – contrapostos como uma única natureza).
(ARISTÓTELES. Metafísica, 985b 25-30, 985ª).

Nota-se, que no pensamento de Aristóteles (apud ANGIONI, 2009, p. 57),


mesmo com o pensamento obscuro de Empédocles, ele foi o filósofo que mais fez uso
das quatro causas, e consequentemente mais se aproximou da noção de causa final
ao considerar a amizade como causa do bem, considerou em certo sentido, a causa
final, embora de modo contraditório, ainda não tinha clareza e ciência sobre a causa
final e tampouco relacioná-la com a causa motora e asdemais:

Empédocles utiliza muito mais suas causas do que Anaxágoras, mas


não se serve delas adequadamente e de maneira coerente. Amiúde,
pelo menos no contexto de seu discurso, a Amizade separa e a
Discórdia une. Quando o todo se dissolve nos elementos por obra da
Discórdia, o fogo se reúne formando uma unidade, assim como cada
um dos outros elementos. Quando ao contrário, pela obra da Amizade
os elementos se recompõem na unidade da Esfera, as partes deles
necessariamente se separam entre si. (ARISTÓTELES. Metafísica,
985a 20-25).

Empédocles postulou que o amor e o ódio eram forças cósmicas que


impulsionavam as combinações e separações dos elementos. Assim, o Amor (ou
Amizade) une os elementos e os combina em uma unidade, que a Esfera. Quando os

48
elementos são unidos por essa força, eles formam uma esfera harmônica e completa.
No entanto, ele também argumentava que, devido à ação do Ódio, essa unidade
eventualmente se desfaz, e os elementos se separam novamente.
Aristóteles criticou esse pensamento argumentando suas incoerências e não
fornecia uma explicação científica adequada para os fenômenos naturais, como
vemos na citação acima quando ele diz Empédocles utiliza muito mais suas causas do
que Anaxágoras, mas não se serve delas adequadamente e de maneira coerente, ora
a amizade deveria ser sempre em todos os casos união e a discórdia separação, mas
isso não se vê em Empédocles, pois a amizade separa e o ódio une.

2.5.2 Anaxágoras de Clazômenas: a descoberta das homeomerias e da


Inteligência ordenadora

A filosofia de Anaxágoras é caracterizada pela teoria cosmológica das


homeomerias, isto é, das sementes infinitas que formam e estruturam o universo.
Conforme o pensamento deste filósofo, a composição das homeomerias é produzida
por uma inteligência cósmica que não se submente às transformações das realidades
sensíveis.
Mas o cosmos foi formado em um determinado momento, quer dizer, foi
submetido ao tempo e ao espaço:
Com o agregar-se das sementes, nascem todas as coisas. E em cada
uma das coisas que assim se produzem estão presentes, em diversas
proporções, todas as homeomerias; as que prevalecem determinam as
diferenças específicas. De tal modo, movidas especificas. De tal modo,
em todas as coisas estão presentes traços de todas as qualidades
(tudo está em tudo), e deste modo se explica à razão peia qual as
coisas podem se transformar uma na outra. (REALE; ANTISERI, 2003,
p. 39).

Por isso, Aristóteles reconheceu que quem acreditou que o cosmos não é fruto
do acaso, mas de uma intervenção, ou seja, de uma Inteligência Ordenadora pareceu
ser o único filósofo sensato diante dos discursos vãos de filósofos que o precederam.
Ele atribuiu ao filósofo Anaxágoras19 esse pensamento pelo fato de ele ter exposto

19
Notar-se-á que uma grande parte dos filósofos antigos desenvolveu suas doutrinas do princípio originário de todas as
coisas, com base na causa material. Para Tales era a água, para Anaxímenes e Diógenes o ar. Já para Heráclito era o
fogo. Depois vem Empédocles com os quatro elementos e Anaxágoras com as homeomerias. O fato é que esses
pensadores perceberam que esse princípio não era suficiente para explicar o dever das coisas, assim, surge a
necessidade de buscar um princípio movente, surge, portanto, com Anaxágoras a doutrina de uma Inteligência
Ordenadora. Para mais consulta, vide (Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de
Giovanni Reale. v. III. trad. Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002)
49
essas noções, embora, mesmo alcançando as duas a causa material e a causa do
movimento, de modo confuso e obscuro, como que sem a devida sapiência, que não
ignora as causas e os princípios últimos:

Parece que esses, como dissemos, alcançaram só duas das “quatro”


causas [...], a saber: a causa material e a causa do movimento, mas
de modo confuso e obscuro, tal como se comportam nos combates os
que não se exercitam: como estes [...] O próprio Anaxágoras, na
constituição do universo, serve-se da Inteligência como um deus ex
machina, e só quando encontra dificuldade para dar a razão de alguma
coisa evoca à Inteligência; no mais, atribui a causa das coisas a tudo,
menos, à Inteligência. (ARISTÓTELES, Metafísica, 984 b 15).

Com exatidão, não concebe que do acaso provenha ordem e os que discordam
se contradizem, pois, no cosmos não reina a desordem, mas ao contrário, há uma
ordem, uma Inteligência fundada no valor ontológico das leis que todo o universo.
Apesar de Anaxágoras tenha mencionado a ideia de um princípio inteligente como
causa do movimento, não o fez de forma coerente e clara a causa final, senão de modo
obscuro e inadequado. No entanto, para Aristóteles (apud ANGIONI, 2009, p.57) ele
quando evoca a causa do bem e associa ao movimento vislumbrou em certo sentido
a causa final.
Para o defensor do Mundo das Formas Inteligíveis, Platão, na Obra Fédon 97b-
99d, o filósofo que mais se aproximou da noção de causa final, mesmo que de forma
obscura e confusa, foi Anaxágoras. Segundo ele, foi o primeiro a elaborar uma doutrina
finalista do mundo ordenado que explica a origem de todas as coisas e o decurso do
cosmos, introduzindo o conceito de nous, (espírito), como causa organizadora e
geradora de todas as coisas. No entanto, critica-o ao recorrer a essa teoria apenas
para explicar a origem do movimento no universo, e a produção das coisas, o cosmos
ficava abandonado a forças mecânicas:

Ora justamente, ouvi um dia lendo excertos de um livro que era,


segundo se disse, de Anaxágoras. Aí se afirmava que era o Espírito o
ordenador e a causa de todas as coisas. Rejubilei com tal explicação,
pois, em certo sentido, pareceu- me vantajoso que fosse o Espírito a
causa de tudo. Porque se assim é (pensei), se é o Espírito que ordena
todas as coisas, então por certo que as ordena e dispõe da forma que
for mais conveniente para cada uma delas [...] Pois bem, meu amigo,
esta maravilhosa esperança, tive de passar sem ela! À medida que
avançava na leitura, descubro um homem que não fazia o mínimo caso
do Espírito, que nenhuma responsabilidade lhe atribuía na ordenação
das coisas, remetendo-a sim para o ar, o éter, a água e tantas outras
causas despropositadas. (PLATÃO, 1988, p. 103).

50
É inegável que entre os pré-socráticos ou os filósofos da physis, Anaxágoras se
destacou pelo seu posicionamento diferenciado, percebe-se tal afirmação tanto em
Aristóteles como em Platão, contudo, para este, o erro que esse filósofo comete é usar
de uma Inteligência que explica exclusivamente a origem das coisas; não o decurso
destas. Essa crítica é bem visível quando diz “descubro um homem que não fazia o
mínimo caso do Espírito, que nenhuma responsabilidade lhe atribuía na ordenação
das coisas.” (Ibid., p.103).
Também é perceptivo nesta crítica, que a decepção do filósofo foi perceber
como a doutrina de Anaxágoras desemboca no mecanicismo, pois todas as suas
explicações são tiradas do ar, do éter e da água, nada justifica a ordem estrutural do
universo por esta Inteligência. Esta não estaria presente no universo após seu
funcionamento tampouco ela ordenaria as coisas criadas, explicando-as por meio de
causas finais.
Isto é, faltou explanar como se dá a relação entre essa Inteligência Ordenadora
com o mundo criado, bem como diz José de Finance “o Espírito está lá apenas para
desencadear o movimento, mas não dá razão da estrutura do universo.” (FINANCE,
1965, p. 405, tradução nossa). Em outros termos, não se vê rigorosamente como o
nous operando no cosmos, nas realidades criadas.
Essa crítica à teoria obscura de Anaxágoras também é presente no comentário
à Metafísica de Aristóteles por Santo Tomás de Aquino, que também faz a abordagem
obscura do pensamento deste filósofo ao buscar o princípio gerador de todas as
coisas, e ao mesmo tempo atribuir causas diferentes para as outras coisas:

[...] Anaxágoras se serviu do intelecto para a geração do mundo e


pareceu falar artificialmente, e não duvidou colocar o primeiro intelecto,
caso necessitasse, como causa da geração do universo, não se
importando de reduzir a geração do mundo a uma outra causa distinta
da coisa. Mas, para todos as outras coisas designam outras causas,
que não é o intelecto, como para a natureza das coisas especiais.
(AQUINO, 2016, p. 90).
Santo Tomás também percebe que Anaxágoras somente se serviu da
Inteligência para a explicar a origem do cosmos, entretanto, para as outras coisas,
atribui causas distintas, quer dizer, a mesma Inteligência que opera na geração do
mundo não a faz com as outras coisas. Não evoca uma unidade entre o intelecto e as
realidades criadas. Esse pensamento leva a noção contraditória e confusa de
Inteligência como princípio gerador de tudo na doutrina anaxagoriana, visto que não
se pode falar de uma inteligência como causa única a qual sustente o cosmos.
51
2.5.3 Platão: mundo das formas e o mundo sensível

O filósofo Platão defenderá o “Mundo das Ideias20 e será muito criticado por
Aristóteles”. Estas não são simples conceitos mentais ou entidades abstratas, senão,
realidades essenciais que subsistem em si mesmas. Em outros termos, trata-se de
Formas Imutáveis, e por conseguinte eternas e inteligíveis, que se encontram em um
plano que está além da realidade empírica que é transitória, enganadora:

Afirmar que as Ideias existem em si e por si significa dizer, por


exemplo, que o Belo ou o Verdadeiro não são tais apenas
relativamente a um sujeito particular [...] nem constituem realidades
que possam ser manipuladas ao sabor dos caprichos do sujeito, mas,
ao contrário, se impõem ao sujeito de modo absoluto. Afirmar que as
Ideias existem em si e por si significa que elas não são arrastadas pelo
vértice do devir que carrega todas as coisas sensíveis: as coisas belas
sensíveis tornam-se feias, sem que isso implique que se torne feia a
causa do belo, ou seja, a Ideia do belo. Em resumo: as verdadeiras
causas de todas as coisas sensíveis, por natureza sujeitas às
mudanças, não podem elas mesmas sofrer mudança, do contrário não
seriam as verdadeiras causas, não seriam as razões últimas e
supremas. (REALE; ANTISERI, 2003, p. 140).

Deste modo, fica claro que a teoria platônica não permite a introdução de novas
ideias no mundo Inteligível. Nota-se, que a principal novidade no platonismo, consiste
na descoberta de uma realidade superior ao mundo sensível, ou seja, uma dimensão
suprafísica ou metafisica cuja essência é não depender dos particulares.
A epistemologia platônica (quer dizer, a ciência do conhecimento em Platão)
busca superar o fluxo perpétuo heraclitiano bem como o imobilismo da teoria
parmenidiana passando do mundo sensível ao Mundo Inteligível. Assim, poder-se-ia
dizer que o mundo sensível é o do não-ser; enquanto o Mundo Inteligível seria o do ser.
De fato, para este filósofo, o conhecimento não é só saber o que é certo e o que é
errado ou o verdadeiro do falso, mas também distinguir o certo do errado, o verdadeiro
do falso:

O mundo inteligível resulta da cooperação bipolar imediata dos dois


Princípios supremos; o mundo sensível, ao contrário, tem necessidade
de um mediador, de um Deus-artífice que Platão chama de

Com a expressão “Ideias”, se traduzem geralmente os termos gregos idéa e éidos. Entretanto, são usados na
20

contemporaneidade com um sentidos diferentes de Platão. Este utiliza idéa ou eidos para indicar a estrutura metafisica
ou essência de natureza requintadamente inteligível, e usa como sinônimo ousía, isto é substância ou essência. (Cf.
REALE; ANTISERI, 2003, p.139).

52
"Demiurgo"; este cria o mundo animado pela bondade: toma como
modelo as Ideias o Demiurgo e plasma a chora, isto e, o receptáculo
material informe. o Demiurgo procura descer na realidade física os
modelos do cosmo mundo ideal, em função das figuras geométricas e
dos números. (REALE; ANTISERI, 2003, p. 137).

Ademais, o conhecimento em Platão, caracteriza-se pela anamnese21, isto é,


recordação de verdades e fatos que desde sempre conhecidas pela alma e que
reemergem de vez em quando na experiência concreta, mas o espírito só pode
ascender ao mundo inteligível, com o auxílio desse Demiurgo. ou seja, o homem pode
se libertar, com o exercício da inteligência, das amarras das sensações para chegar ao
conhecimento das verdades do ser. Logo, o mundo material, somente se torna
compreensível quando está em com o mundo Inteligível.
Esse mundo deriva do Uno e nele se pode adentar na realidade do Bem que tem
a mesma essência do dele. Na verdade, para Platão o Uno é o princípio do ser e todo
o mundo inteligível como as Ideias e as Formas derivam dele; mas ele não deriva de
nenhuma realidade, pois é indeterminado e ilimitado. (REALE; ANTISERI, 2003).
Aristóteles, ao analisar minuciosamente, a doutrina de Platão, diz que ele ficou
em duas causas, a saber: a material e a formal.

[...] os que afirmam a existência de Formas explicaram mais do que


todos os outros. De fato, eles não consideram as Formas como
matérias das coisas sensíveis nem o Um como matéria das Formas;
tampouco consideram as Formas como princípio do movimento [...].
Eles apresentam as Formas como essência de cada uma das coisas
sensíveis e o Um como essência das Formas. (ARISTÓTELES.
Metafísica, 98b).

Mesmo reconhecendo que ele tenha mencionado a causa material e a formal,


também, em certo sentido, a final a qual está relacionada à noção de Bem, Aristóteles
faz uma crítica a sua doutrina. Em Metafísica 990b 1-8, o Estagirita argumenta que
com o mundo das ideias, os Platônicos duplicam o mundo sensível, além disso, estas
não explicam nada: “dizer que as Formas são modelos e que coisas sensíveis
participam delas significa falar sem dizer nada e recorrer a meras imagens poéticas.”

21
Em Platão, existe toda uma estrutura e sequência a respeito do conhecimento: “Platão apresenta esta teoria do conhecimento
tanto em modo mítico (as almas sio imortais e contemplaram as Ideias antes de descer nos corpos) quanto em modo dialético
(todo homem pode aprender e a dialética por si verdades antes ignoradas, por exemplo, os teoremas matemáticos). O
conhecimento ocorre por graus: simples opinião (doxa), que se subdivide em imaginação e crença; ciência (episteme), que se
subdivide em conhecimento mediano e pura inteleção. O processo do conhecimento é a dialética, que pode ser ascensional ou
sinótica (remontar do mundo sensível as Ideias) e descensional ou diairética (partir das ldeias gerais para descer as
particulares).” (REALE; ANTISERI, 2003, p.146). Para aprofundar na teoria epistemológica de Platão, vide: REALE, Giovanni;
ANTISERI, Dario. História Pagã Antiga. 3ª ed. v. I. trad. Ivo Storniolo. Paulus, 2003.
53
(ARISTÓTELES, Metafísica, 991a 20), assim, essas Ideias não servem nem para o
conhecimento das coisas nem de si próprias. Não acrescentaria nada ao conhecimento
humano e tampouco teria utilidade na vida do indivíduo que anseia pelo saber e pela
verdadeira ciência.
Desa forma, podemos destacar duas críticas de Aristóteles a Platão: Crítica à
Teoria das Ideias e Crítica à Ênfase no Conhecimento Abstrato. Analisemo-las.
a) Crítica à Teoria das Ideias. Aristóteles criticou a teoria das ideias de Platão
por considerá-la excessivamente abstrata e divorciada do mundo real. No pensamento
do Estagirita as formas não existiam separadamente das coisas materiais e que as
formas eram imanentes nas coisas. Propôs uma ontologia concreta, a posteriori, onde
as formas estavam incorporadas nas substâncias individuais, em oposição à visão
platônica de que as formas eram transcendentais.
b) O problema de fundo da metafísica é o seguinte: existem apenas
substâncias sensíveis, ou também substâncias suprassensíveis? Aristóteles reconhece que
sim e deve ser imóvel, porque, se a causa fosse móvel, requereria outra causa, e esta ainda
outra, ao infinito, sem nenhuma potencialidade, pura forma imaterial. (Cf. REALE; ANTISERI,
2003, p. 194).Efetivamente que para o filosofo existe essa realidade material e imaterial até
porque ele vai elaborar sua doutrina a hilemórfica, entretanto, difere de Platão que afirmava
estando a essênciano Mundo das Ideias e não nas realidades concretas.
c) Crítica à Ênfase no Conhecimento Abstrato. Essa cítrica se dirige a Platão
pelo enfoque demasiado no conhecimento abstrato e teórico em detrimento do
conhecimento prático e empírico. Ele argumentou que a filosofia deveria se
preocupar com a investigação do mundo natural e com a compreensão das coisas
como elas são, em vez de se concentrar apenas em princípios metafísicos
abstratos. Aristóteles distinguiu as ciências em três grandes ramos: 1) ciências
teoréticas, são aquelas que buscam o saber em si mesmo; 2) ciências praticas, isto
é, ciências que buscam o saber para que por meio dele alcance a perfeição erótica
e moral e 3) ciências poiéticas ou produtivas, que buscam o saber em função do
fazer, com o objetivo de produzir determinados objetos. (Cf. REALE; ANTISERI,
2003, p. 195).
Portanto, a do Estagirita aos seus predecessores refletiram seu desejo de
desenvolver uma abordagem filosófica única que combinasse empirismo com
raciocínio lógico, enfatizando a importância das causas e das investigações do mundo
natural como parte integral da filosofia. Analisemos a noção de causalidade na

54
Metafísica.

2.6 A NOÇÃO DE CAUSALIDADE NA METAFÍSICA

Depois de termos analisado a doutrina de alguns dos predecessores de


Aristóteles no tocante a causalidade, abordaremos agora a noção de causa neste
filósofo, na Metafísica. Perceberemos que não se tem, com exatidão, uma definição
de causalidade como sendo uma realidade isolada, mas algo que remete à uma
explicação última de uma coisa analisada em sua totalidade e expansão. Dessa forma,
o filósofo para fomentar e esclarecer seus argumentos acera das causas dará
recorrerá a muitos exemplos explicando-os. .
Na verdade, é típico de Aristóteles recorrer a exemplos, principalmente, quando
se trata de realidades mais inteligíveis as quais sobressaem à dimensão empírica. Na
verdade, os entes que são mais perfeitos são mais inteligíveis em si mesmos22, mas o
intelecto é limitado e não pode esgotar a inteligibilidade desses seres, porém isso não
nos leva a deduzir que eles não existam, pelo simples fato de não serem
demonstrados pela experiência sensível.
Concluísse, então, que a raiz do conhecimento é a imaterialidade ou em outros
termos, a inteligibilidade requer imaterialidade. É neste prisma que sobressai a
importância do princípio da causalidade que se faz presente em todo cosmos nos
diversos fenômenos de ação e reação. Trata-se de uma realidade profunda, e a
imperfeição de nosso entendimento impede esgotar sua inteligibilidade. (ALVIRA;
CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 199-200, tradução nossa).
O pensamento de Aristóteles é que todos não fiquem simplesmente na
imanência, quer dizer, na experiência sensível, mas convidando-os a transcender
o mundo empírico para construir um saber sistemático, não desprezando,
evidentemente, o sensível, mas ultrapassando-
o. Esse processo só é possível adquirindo a ciência das causas primeiras e últimas.
De fato, é próprio do intelecto humano conhecer através dos entes materiais,
marcados de acidentes, a essência das coisas. Apesar de o conhecimento sensível e o

22
Neste sentido, pode-se afirmar que todas as causas são princípio, no entanto, nem todos os princípios são causas, quer
dizer os princípios da não contradição, princípio de identidade e do terceiro excluído não causam efeitos nas coisas. Eles
procedem de qualquer modo, sem incluir um influxo positivo no ser do procedido, ou seja, há neles uma natureza cuja
operação é diferente das causas; e assim como estas, não estão sujeitos à demonstração empírica, pois são
autoevidentes. Esses princípios são fundamentais para o conhecimento, são as raízes da inteligibilidade.

55
intelectual não serem a mesma coisa, eles não devem ser separados, pois entre o
conhecimento sensível e o intelectual há distinção, mas não separação; existe unidade,
mas não identificação.

Portanto, a causalidade, de acordo com os argumentos expostos até aqui, pode


ser definida como um “princípio que influi no ser de alguma coisa ou de que depende o
ser da coisa ou o acontecimento de um fenômeno.” (SELVAGGI, 1988, p. 303).
Na Metafísica, como argumentaremos nesta próxima subseção, Aristóteles não
usa o termo “causalidade”, mas o vocabulário αἰτία (aitia) para designar “causa”, o
porquê de uma coisa em seu sentido mais profundo.

2.6.1 O termo causalidade em Aristóteles

A expressão “aitia” ou “aition” referem-se as realidades que possuem caráter de


poder sobre as outras”, entretanto, não há uma definição clara na visão aristotélica.
Trata-se de uma explicação. Sendo assim, causa e explicação estão ontologicamente
unidas. Ora, somente há explicação quando há causa:

De fato, Aristóteles denomina como “aitia” ou “aition” aquilo que


formulamos em resposta à pergunta “por quê?” possui poder
explanatório. No entanto, nem toda explicação capta aquilo a que
Aristóteles por vezes se refere com o termo “aition”: trata-se de
entidades ou propriedades das quais outras dependem, e que têm o
poder de determinar outras propriedades ou outros estados de coisas.
(Aristóteles apud ANGIONI, 2009, p. 253).

Logo, “aitia” evoca poder de “explanation”23 e se refere à causa primeira, esta


que tem como objeto os princípios primeiros e as realidades últimas dos entes. De fato,
para explicar tal coisa deve saber o porquê, quer dizer, suas propriedades e
capacidades, e isso é possível por meio da “aitia”. Ademais, é próprio do saber levar
a explanação. De fato, Aristóteles (Física 194 b 16), argumenta que “[...] não julgamos
conhecer cada coisa antes de apreendermos o porquê de cada uma (eis o que é
apreender a causa primeira).”
Nota-se, aqui, dois desafios: Como se adquire esse conhecimento? E em que
consiste esse conhecimento? O homem é capaz de conhecer a coisa in se? Sabe-se
que o conhecimento humano se inicia na experiência e através dos sentidos externos

23
Conforme Lucas Angioni os termos “aitia” e “aition” foram traduzidos por expalnation e não por “cause”. Trata-se de
uma tendencia recente no mundo anglo-saxão. Aristóteles (apud ANGIONI, 2009, p. 253).

56
e internos, o homem conhece a coisa em si, sua essência, pela virtude da abstração,
apreende o conceito universal. Porém, aqui o Estagirita se refere ao conhecimento
não por meio da empiria, senão das causas. Ora, o conhecimento para ele se dá por
meio das causas e dos princípios.
A metafísica de Aristóteles exige um profundo conhecimento acerca da
causalidade. Não é simplesmente “causa” senão “causas”. Ele rejeitou, como foi
exposto anteriormente, a ideia de que há somente um princípio que seja responsável
pela geração dos entes, e assim reprova alguns de seus antecedentes os quais deram
início à filosofia, pelo fato de eles terem ignorado a causa eficiente e se deterem
exclusivamente na causa material (ARISTÓTELES, Metafísica, 983b, 10).
Passaremos a tratar das quatro causas tão importantes não só para a filosofia
aristotélica,mas também para todo desenvolvimento filosófico e científico no ocidente.

2.7 AS QUATRO CAUSAS

A compreensão das causas em Aristóteles faz-se necessária para entender


efetivamente os entes e como eles são constituídos. Assim, diante dessas realidades
tão complexas ao intelecto humano, mas tão inteligíveis em si mesmas, requer uma
análise minuciosa acerca da noção aristotélica de causalidade para compreender mais
fidedignamente essa filosofia primeira e ter ciência de como se adquire o
conhecimento.
O filósofo abordará as quatro causas a partir da ideia de αἰτία como explicação
de toda realidade:

Num certo sentido, dizemos que a causa é a substância e a essência


[...] num segundo sentido, dizemos que a causa é a matéria e o
substrato; num terceiro sentido, dizemos que a causa é o princípio do
movimento; num quarto sentido, dizemos que a causa é o oposto do
último sentido, ou seja, é o fim e o bem [...]. (ARISTÓTELES.
Metafísica, 983ª, 25-30)

Aqui se depara claramente com o conceito das quatro causas: formal, material,
eficiente ou motriz24 e final. As duas primeiras são consideradas intrínsecas, pois, são
o princípio interno da coisa causada. Por conseguinte, as duas últimas são externas,
ou seja, significa que o princípio é exterior à coisa causada.

24
A causa eficiente conforme também pode ser chamada de causa motriz. (REALE; ANTISERI, 2003).

57
Diante do sistema das quatro causas podemos levantar um questionamento:
Todos os entes têm necessariamente as quatro causas? De antemão, deve-se
compreender que: “Tudo o que não sempre foi, se começa a ser, necessita de algo
que seja causa de seu ser.” (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 201). Isso
significa que tudo que existe tem uma causa, um motivo, ou melhor, mais de uma
causa.
Pode-se dizer que existem várias causas para uma mesma coisa, todavia não
dá mesma forma. Por exemplo, tanto a arte de esculpir como o a madeira são causas
da cadeira não enquanto ela é outra coisa, mas enquanto cadeira, embora não do
mesmo modo; uma é como a matéria - que seria a causa material - e a outra como
aquilo de onde provém o movimento: a causa motriz.
Portanto, com a noção destas causas, percebemos que por trás delas existem
quatros perguntas às quais nos ajudam identificar cada uma delas. A primeira: O que
a coisa é? Levando-nos a noção causa formal. A segunda: De que a coisa é feita?
Refere-se à causa material. Terceira: Quem a fez? Corresponde à causa eficiente.
Quarta: Para que foi feita? Esta nos faz deparar com a causa final pela qual o agente
foi impulsionado a realizar uma operação. De fato, toda pessoa opera por uma
finalidade. (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001). É o que veremos detalhadamente
cada uma delas e suas respectivas características.

2.7.1 Causa formal - αἰτία εἰδική

A causa formal equivale à essência ou à forma: “A causa formal identifica-se com


efeito à forma enquanto a forma explica as propriedades que dela decorrem
necessariamente [...].” (CHÂTELET; BERNHARDT; AUBENQUE, 1973, p. 143). Em
outros termos, a causa formal diz o que a coisa é, e sem a intervenção dela os entes
não existiriam, porque ela é necessária para atualizar a matéria. Nota-se que há uma
relação entre substância e essência na definição de causa dada por Aristóteles, que
identificamos como sendo a causa formal25.
A palavra substância vem de οὐσία (ousia) e deriva do particípio presente do

25
Muitas vezes o termo essência se utiliza como equivalente de substância. A essência determina um modo de ser ao que
compete existir; e a substância não é mais que esse modo de ser subsistindo. A ideia é que a essência determina a
substância, e quando falamos nesta pressupõe um ser que já se encontra no plano da existência. Dessa forma, a
essência tem mais a função de determinar a substância e esta tem a função de sustentar os acidentes. (Cf. ALVIRA;
CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 55).

58
verbo ser em grego εἶναι (einai). Os filósofos latinos traduziram este termo aristotélico
como essentia (essência) ou substantia (substância) que vem do latim sub-stat que
significa aquilo que está debaixo, que subjaz, sustenta. Portanto, substância, como
estrutura necessária, é um termo que pertence à metafísica tradicional e pode ser pode
ser traduzida como essência necessária. (Cf. Cf. ABBAGNANO, 2007, p. 925).
Portanto, na concepção aristotélica a substância ou essência trata-se de uma
realidade cuja essência consiste ser em si mesma e não em outro. Neste sentido, a
substância é aquilo pelo qual todas as outras propriedades dependem para existir. Nela
se fundam todas as categorias ou predicados, estes não podem subsistir separados da
essência:

Portanto, é evidente que cada um daqueles predicados é ser em


virtude da categoria da substância. Assim, o ser primeiro, ou seja, não
um ser particular, mas o ser por excelência é a substância. Ora, o
termo “primeiro” entende-se em muitos significados, mas a
substância é o primeiro em todos os significados do termo: (a) pela
noção, (b) pelo conhecimento e (c) pelo tempo.
(c) De fato, nenhuma das outras categorias pode ser separada, mas
só a substância. (a) Ademais, ela é a primeira pela noção, porque na
noção de cada categoria está necessariamente incluída a noção de
substância. (b) Enfim, consideramos conhecer algo sobretudo quando
conhecemos, por exemplo, essência do homem ou a essência do fogo,
mais do que quando conhecemos a qualidade ou a quantidade ou o
lugar; de fato, conhecemos essas mesmas categorias quando
conhecemos a essência da quantidade ou da qualidade.
(ARISTÓTELES. Metafísica, 1028a 25-35, 1028b).

Nessa citação supracitada notamos que efetivamente a substância tem uma


certa prioridade ontológica, em todos os sentidos, pois é por ela que todos os outros
modos de ser dependem para existir ou como vimos na citação ela é a primeira pela
noção, porque na noção de cada categoria está necessariamente incluída a noção de
substância. No livro quinto da Metafisica ele define substância como substrato último
e no livro sétimo (1028ª ss) a define como fundamento de todos os predicados ou
qualidades. Isso ele deixa esclarece quando afirma: “[...] algumas das categorias
significam essência, outras qualidade, outras a quantidade, outras a relação, outras o
agir ou o padecer, outras onde e outras o quando.|” (Ibid., 1017ª 25).
É importante compreender que para Aristóteles há duas categoria de
substância: substância primária que é individual, singular e concreta. Entendemos
aqui os conceitos de matéria e forma, é a existência específica de algo, por exemplo,
um homem, um cavalo. E a substância secundária ou se segunda ordem, é a essência
59
que une várias substâncias primárias sob uma categoria comum: a humanidade é a
substância secundária que une todas as pessoas como seres humanos, por exemplo.
Sendo assim, para conhecer um determinado ente é necessária a
compreensão das causas, podemos dizer que dentre elas, destacar-se-ia a formal,
que equivale à substância, pois é esta que atinge o conceito, que é universal, diz o que
a coisa é: isto é uma casa, isto é um homem etc.
Portando, na doutrina aristotélica, a noção de substância é essencial e os
diversos sentidos do ser26 como a qualidade ou a quantidade ou o lugar sempre serão
propriedades de uma substância. Esta é o que faz com que ume ente seja o que ele
é e não outra coisa.

2.7.2 Causa material-αἰτία ὑλική

A causa material refere-se ao sujeito, a matéria, ou simplesmente, aquilo que


são feitas as coisas e aquilo de que derivam. Ela se caracteriza como princípio
potencial passivo, tendo a capacidade de ser atualizada, por isso, atribuímos também
a expressão indeterminada ou até mesmo informada. (ALVIRA; CLAVELL;
MELENDO, 2001, p. 217). Sendo assim, a matéria é causa de todas as coisas
sensíveis . Por exemplo, se considerarmos uma escultura de bronze, a causa material
dessa escultura é o próprio bronze. Este é o material físico, o substrato, que constitui
a estátua.” (ARISTÓTELES, Física, 194b 23-25). Logo, se não existe bronze não
existe não pode existir a estátua).
Por outro lado, para que a matéria seja informada dependerá de um agente
externo para atualizá-la. Com efeito, “não é o substrato que provoca mudança em si
mesmo.” (ARISTÓTELES. Metafísica, 984ª, 20), ou seja, a potência passiva deverá
ser atualizada por uma potência ativa que pode ser exterior ou interior ao ente. Então,
precisa-se de um agente externo ao ente para ser responsável pelas modificações
deste. Verdadeiramente é inconcebível que, por exemplo, a madeira possa ser a causa
de suas próprias modificações, não é a madeira que faz a mesa, mas é outro princípio
exterior a si, requer a ação do escultor, ou seja, da causa eficiente:

A causa material é uma potência passiva que contém o efeito como


potência em ato, ou seja, de forma imperfeita, como mera capacidade.

26
Aristóteles enumera dez categorias ou predicamentos: Substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição,
posse, ação e a paixão. (Cf. FINANCE, 1965, p.446).

60
A imagem, por exemplo, está incluída no mármore disforme, pois dele
pode ser derivada, mas de forma potencial e deficiente, pois para se
tornar estátua requer a ação do escultor. (ALVIRA; CLAVELL;
MELENDO, 2001, p. 216, tradução nossa).

Logo, precisa procurar outro princípio que seja responsável pela origem do
movimento. Esse princípio é, como foi exposto anteriormente, a causa eficiente a qual
é responsável pelo movimento, é o princípio que faz surgir a forma na matéria. No
entanto, a causa material por si só não é suficiente para explicar completamente a
realidade de um objeto.
Portanto, a causa material se refere à matéria física subjacente que compõe
uma coisa, mas é apenas uma das quatro causas que, juntas, fornecem uma
explicação completa e abrangente de um ente.

2.7.3 Causa eficiente- αἰτία ἐνεργείᾳ

Quando falamos de causa eficiente estamos nos referindo àquela que é


responsável por iniciar um determinado movimento ou ação, “ a causa eficiente ou
agente é o princípio a partir do qual flui primariamente qualquer ação que faz com que
algo seja, ou seja de alguma forma. (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 223,
tradução nossa). Isso significa que em uma ordem cronológica ela vem antes, visto
que como a própria citação diz do qual flui primariamente qualquer ação que faz com
que algo seja. Caracteriza-se “como princípio extrínseco ao efeito diferentemente das
causas formais e materiais que são princípios internos ou intrínsecos:

Em oposição às causas formais e materiais, a causa eficiente realiza-


se como princípio extrínseco ao efeito: dá-lhe um ser verdadeiramente
diferente do seu, embora dele na verdade provenha; enquanto a causa
formal e material não tem outro ser senão aquele do composto em que
subsistem. (Ibid., p. 224, tradução nossa).

Essa ação ou realização é acontece de dois modos: por emanação e por


participação. A primeira consiste “na transferência de qualquer coisa do agente ao
paciente [...].” (SELVAGGI, 1998, p. 305), como, por exemplo, a nascente causa o rio,
emanado água que se transfere da nascente para o próprio rio27. Quanto à
causalidade por participação, o “efeito participa, toma parte “na” perfeição da causa e

27
É importante compreendermos que as noções de causa eficiente por emanação e por participação, não são conceitos
propriamente de Aristóteles. Essas noções foram elaboradas, em muitos séculos depois, por um de seus intérpretes, o
filósofo Filippo Selvaggi (Cf. SELVAGGI, 1998, p. 305).

61
não toma uma parte “da” perfeição da causa” (Ibid., p. 305).
A causalidade por participação se caracteriza por uma comunicação da
perfeição própria, quer dizer, acrescenta algo de novo, enquanto a outra não. Por
exemplo: o professor é causa eficiente da ciência (por participação) do conhecimento
do aluno. Este toma parte no conhecimento do professor e não do conhecimento dele.
Decerto não houve alteração no conhecimento do professor, mas algo novo foi
produzido no aluno. No livro dois da Física, capítulo três, Aristóteles define a causa
eficiente como “aquilo de onde provém o começo primeiro da mudança ou do repouso
[...]” (ARISTÓTELES, Física 194b 23). Portanto, a causa eficiente, é aquela que
desencadeia uma mudança ou movimento no mundo natural.

2.7.4 Causa final- αἰτία τελική

A causa final também conhecida como causa teleológica é aquela em vista da


qual algo é feito, quer dizer, o objetivo do agente ao executar uma determinada ação,
por isso que ela está intreisecamente liga à causa eficiente, mas isso não significa que
esta lhe é superior. Ela tem prioridade ontológica, isto é, uma importância maior em
relação às outras causas:

A causa final é aquela em vista da qual algo é feito (id cuius gratia
aliquid fit), isto é, aquilo para o qual o agente decide agir, o objetivo
para o qual ele tende com suas operações: o carpinteiro trabalha a
madeira para fazer um mesa, o pai de família exerce sua profissão
para sustentar a esposa e os filhos [...]. (ALVIRA; CLAVELL;
MELENDO, 2001, p. 241, grifos do autor).

Nota-se que a causa final está intrinsecamente relacionada com a causa


eficiente quando diz que a causa final é aquilo para o qual o agente decide agir . Existe
entre ambas um elo ontológico que nos faz compreender que uma depende da outra,
de fato, é inadmissível falarmos de um fim sem mencionar um agente que o projetou.
Em outras palavras, se presenciamos na natureza a existência de um plano, de uma
ordem, consequentemente há uma mente que seja responsável por isso.
Notemos, então, que a causa final é muito importante para entendermos
que tudo no cosmos tem uma finalidade mesmo às coisas inanimadas; estas operam
por um fim como uma flecha disparada pelo arqueiro que tem como finalidade
atingir o alvo. Dessa forma, deve considerar a causa final em relação às outras: a
ideia ou noção de uma causa eficiente, ou seja, de uma mente organizadora a qual
deu início ao movimento fazendo introduzir a forma na matéria e uma vez realizada
62
tal ação é direcionada sempre a um fim. Negar esta realidade é um contrassenso,
porque não se concebe que qualquer ente possa ter em si mesmo a razão der ser.
Agora, pode-se entender, também, que a causa material como sendo intrínseca
precisa de um agente externo, ou seja, de uma causa eficiente para atualizá-la. Assim,
acontece com a madeira que para tornar-se tal mesa tem que ter a intervenção do
carpinteiro, sem o qual ela não existiria, pois não poderia fazer-se a si mesma. Na
verdade, as causas estão intrinsecamente unidas. Não obstante, quando se refere à
causa eficiente, tem que necessariamente existir uma Causa Primeira que seja
responsável por todas as ações visto que não se pode conceber que elas sejam
infinitas.
Enfim, se conhecer uma coisa é conhecê-la por suas causas, e uma vez, se
admitindo o processo ad infinitum; tornar-se-ia impossível conhecer seja o que for. Ou
como diz Aristóteles: “Mas os que defendem o processo ao infinito não se dão conta de
suprimir a realidade do bem.” (ARISTÓTELES. Metafísica, 994b, 10-15).
Tratando-se, ainda, da causa final ou à noção de Telos, conforme Aristóteles
(apud ANGIONI, 2009, p. 261) pode ser entendida ao menos de dois modos: “[...]
como escopo da ação ou da produção [...]” que se refere à argumentação acima, ou
seja, em vista de que a pessoa agiu; ou como “[...] perfeição intrínseca á qual nada mais
é preciso acrescentar.” (Ibid., p. 261), que seria a ideia de que a coisa está completa,
acabada. Assim, seguindo esse raciocínio a finalidade pode ser intrínseca, se o agente
tender ao fim da operação segundo a forma natural, que é uma perfeição, ou
extrínseca, se tender a uma operação segundo a forma adquirida (Ibid., p. 261).
Portanto, a noção de causa final na "Metafísica" de Aristóteles é uma parte
central de sua filosofia e ajuda a explicar como ele entende a natureza e a realidade.
Na verdade, suas quatro causas e sua ênfase na causa final desempenham um papel
essencial na explicação das coisas, enquanto a busca pela causa primeira é vista como
a busca mais profunda e fundamental na filosofia aristotélica.

2.8 GANHOS OBTIDOS DO CAPÍTULO

Tendo percorrido esse primeiro capítulo e refletido sobre a noção de


causalidade em Aristóteles, analisando as quatro causas, se chega a um
conhecimento mais amplo e profícuo da realidade. De fato, sua filosofia marcou uma
transição importante da especulação cosmológica dos seus predecessores para uma
abordagem mais sistemática, científica e ética, abrindo caminho para a filosofia
63
clássica posterior. Sua epistemologia traz uma série de conceitos tais como:
compreensão integrada da realidade, particularidades e universalidades, forma e
matéria. Tudo isso reflete um pensamento voltado para a realidade do cosmos.
Portanto, dentre tantos resultados decorrentes desta reflexão, podemos
mencionar três ganhos obtidos, a saber: a primazia da sabedoria sobre as demais
formas de conhecimento: distinção e harmonia, o conhecimento holístico das coisas
e a causa definida como αἰτία. Exporemos e analisemos cada um deles nas subseções
seguintes.

2.8.1 Primazia da sabedoria sobre as demais formas de conhecimento: distinção


e harmonia

Aristóteles ao falar da sabedoria como a forma mais elevada de conhecimento


e considerando somente a arte e a ciência como sabedoria (σοφία) ao passo que a
experiência, a memória e a sensação não o são, pois estão no domínio do empírico,
ressalta duas coisas. A primeira é que existe um desejo intrínseco no homem que
naturalmente o faz agir pela busca de conhecimento. De fato, em Metafísica 980a o
filósofo evidencia e argumenta essa afirmação, quando diz que todos os homens por
natureza tendem ao saber.
Esse desejo começa por intermédio sentidos externos: visão, audição, paladar,
olfato e tato. Mostram como o homem percebe o mundo ao seu redor, as sensações,
os sentimentos, as lembranças, a quantidade etc. porém não nos dizem o porquê, mas
ficam no como, pois estão no nível do particular. Não são essenciais para
compreender o que está por trás de um determinado evento ou ação muto menos a
natureza das coisas em sua totalidade.
A segunda é que há uma hierarquia ou graus do conhecimento que vai do
particular ao universal. Dito de outro modo, o que é característico na ciência é o
estudo elevado das causas e princípios primeiros da realidade cuja finalidade está em
si mesma, na sua essência e não na utilidade. Assim, a finalidade de uma cadeira é
ser ela mesma, cadeira. Vimos que a finalidade não se reduz a aplicabilidade ou
serventia, mas deve ser entendida como acabamento. Neste campo, encontram-se a
arte e a ciência, que não se detém só ao “o que”, mas também o “porquê”, aquilo que
está subjacente em cada ação e fenômenos observados, nas transformações e das
coisas. Pode-se dizer que elas estão em um patamar ontológico.
Sendo assim, a riqueza do pensamento aristotélico é harmonizar essas
64
realidades (particulares, experiência, memória e sensação com as universais, a arte e
ciência) no cosmos que, embora sejam distintas não se separaram, embora uma seja
superior (neste caso a arte e a ciência) não se contradizem. Isso influenciou o
pensamento ocidental bem como muitas correntes filosóficas e científicas ao longo
dos séculos.
Portanto, mesmo que a sabedoria seja considerada a forma mais elevada de
conhecimento há uma complementariedade entre esses saberes para uma
compreensão mais completa de um objeto. Na epistemologia aristotélica o
conhecimento particular, empírico, era imprescindível para o conhecimento da ciência
ou conhecimento universal. A divisão entre particular e universal não se encontra na
filosofia aristotélica senão na platônica, com o mundo das formas e o mundo sensível,
que foi criticada por Aristóteles, como vimos na subseção 2.5.3.

2.8.2 Conhecimento holístico das coisas

O conhecimento holístico das coisas refere-se a uma abordagem de


compreensão que valoriza a apreensão integral e abrangente de objetos fenômenos
analisando-os não apenas em seus aspectos acidentais senão essenciais. Busca
compreender as coisas em seu contexto mais amplo, em contraste com uma análise
fragmentada ou isolada. Assim sendo, são muitas as vantagens dessa abordagem,
tais como: compreensão integrada, soluções mais abrangentes.
Assim, enquanto os filósofos que antecederam Aristóteles tinham uma visão
mais fragmentada da arché, o Estagirita avança concebendo-a sob sua doutrina
epistemologia que parte do a posteriori, da experiência, evitar cair, conforme ele, nos
erros dos filósofos anteriores, como Platão. Ele parte do pressuposto que a essência
se encontra nos próprios entes com suas propriedades, todavia não fica presa a essa
realidade.
Aristóteles argumentava que o telos de um organismo vivo era alcançar seu
pleno desenvolvimento e cumprir suas funções naturais, fazendo isso eles chegariam
a perfeição.
Assim, em, sua obra De Anima, ele quer provar que a forma é natureza, é
superior à matéria. No cosmos há uma ordem nos distintos seres vivos, a saber:
animais, vegetais e no próprio homem. Estes operam de acordo com sua natureza
que é intrínseca a essência de cada um, pois como bem diz Santo Tomás de Aquino
65
(apud SELVAGGI, 1988, p. 329) “todos os agentes naturais não produzem qualquer
efeito ao acaso, mas tendem sempre a um mesmo termo, que é determinado pela
própria natureza do agente”.
Dessa forma, nota-se a presença dessa abordagem holística em Aristóteles a
começar pelo método filosófico, pois ao passo que seus predecessores estavam
interessados em encontrar princípios ou elementos fundamentais que compunham a
natureza (por exemplo, água, fogo, ar etc.), o filósofo introduziu uma abordagem mais
sistemática e científica à filosofia: explora a origem do cosmos e da realidade por meio
da especulação, utilizando o método indutivo, que parte das observações particulares
e chegando a generalizações universais.
Vimos, por exemplo, que mediante essas noções de matéria e forma, ato e
potência, ele supera a dicotomia que existia entre Heráclito e Parmênides acerca do
ser, afirmando que as coisas são compostas de matéria e forma, ato e potência. Assim
sendo, “concilia” o aspecto dinâmico e estático do ser , dando um salto
qualitativo/essencial no pensamento da época, que perdura até dos dias hodiernos.
Outra realidade desse conhecimento holístico está na compreensão das causas
e efeitos: buscar identificar as causas e os efeitos das partes individuais e como eles
se relacionam ao funcionamento.

2.8.3 Causa definida como αἰτία: uma compreensão mais ampla da realidade

Aristóteles desenvolveu o conceito αἰτία como parte integrante de sua filosofia


com a finalidade de explicar a existência das coisas de maneira abrangente, ou seja,
sua essência. Para chegar a definição de causa como αἰτία ele parte da análise
doutrinal de seus predecessores. Diferencia destes pois os entes presentes no
cosmos não são formados simplesmente por uma realidade como a água (para Tales),
o ar (Anaxímenes) os átomos (Leucipo e Demócrito) dentre outros.
O conceito de αἰτία se volta para uma explicação mais profunda e complexa dos
entes. É uma realidade bastante complexa que reflete um enfoque holístico e se faz
necessária no ‘apreender os entes’. Para o filósofo não temos conhecimento de nada
até entendermos o porquê, ou seja, sua causa. Assim, em Física. II, 3, 194b 17-20; e
Metafísica I, 3, 983a 25-983b abordará as quatro causas. Ele buscava entender não
apenas a causa imediata de uma mudança, mas também sua forma, substância e
finalidade última. Trata-se de analisar os entes por meio das quatro causas que unidas
explicam a existência deles. Assim sendo, a causa material (αἰτία ὑλική), causa
66
eficiente (αἰτία τελική), causa formal (αἰτία εἰδική) e causa final (αἰτία τελική) se
complementam, são convergentes e a partir dessa correlação pode chegar a uma
explicação causal de um determinado objeto estudado, bem como suas qualidades
essenciais e acidentais.
Essas quatro causas surgem como tentativa de solucionar um dos primeiros
problemas filosóficos: o problema da mudança ou movimento. Ele usou seus conceitos
de ato e potência para explicá-lo: considera a mudança ou movimento como um passo
do ser ao não-ser, em potencial, e um passo do não-ser ao ser, em ato. Logo,
mudança tem como consequência uma "causa" que explica o “porquê” das
transformações.
Portanto, a causa definida como αἰτία e ao desenvolver as quatro causas
aristotélicas traz uma compreensão precisa da realidade do cosmos. Ademias, é
inegável que essa abordagem causal além de refletir na visão de que o pensamento
filosófico deveria buscar uma compreensão completa e abrangente da realidade em
seu sentido mais profundo, influenciou a ciência e a teologia ao longo dos séculos.

67
3 A CAUSA DAS CAUSAS NA DOUTRINA ARISTOTÉLICA

Após termos discorrido acerca da causalidade em Aristóteles, bem como em


alguns de seus predecessores que, conforme o Estagirita, ficaram no nível da causa
material e da motora; outros que a ultrapassaram chegando à noção (mesmo que de
forma confusa) de causa formale de causa final, somos levados a questionar se dentre
as quatro causas qual seria a dominante. Trata-se, portanto, desta problemática: há
uma causa que sobressai as demais? É possível chegar a essa conclusão dentro do
Corpus Aristotelicum? Caso seja possível como ela se relaciona com as outras?
É certo que não se pode conceber essas quatro causas isoladas, pois estaria
contrariando a própria definição de causalidade formulada pelo filósofo como “aitia” ou
“aition”, cujas expressões evocam o poder de “explanation”, isto é, explanação,
explicação. Também não se pode negar a presença da causalidade, visto que nada
que pode conceber a si mesmo, necessita de algo que seja causa de seu ser. Isto
significa que cada coisa tem uma causa.
Todavia, em sua filosofia, Aristóteles reconheceu que algumas coisas na
natureza têm uma causa final clara e evidente, enquanto outras podem não ter um
propósito intrínseco tão óbvio, como é o caso do eclipse e de certos fatos nas
matemáticas (Cf. ARISTÓTELES apud ANGIONI, 2009, p. 263).
Assim, com estas implicações, este capítulo, visa descobrir qual seria a causa
por excelência na doutrina aristotélica. Seria a causa formal pelo fato de ela estar
ligada à essência ou à forma do ente com suas propriedades? Seria a causa material
visto que os espíritos não têm matéria ao passo que não se pode negar o mundo
espiritual? Ou seria a causa eficiente a qual é responsável pelo início da ação? Ou até
mesmo a causa final partindo da pressuposição que mesmo às coisas inanimadas
operam em vista de um fim como uma flecha disparada pelo arqueiro cuja finalidade
é atingir o alvo? Todos esses questionamentos são válidos e dignos de ser
aprofundados.
No pensamento aristotélico, as causas são aspectos inseparáveis de uma
explicação completa e são necessárias para entender plenamente como as coisas
funcionam e porque existem. Dentre elas, sobressair a causa final que desempenha
um papel essencial ao destacar o propósito inerente a tudo na natureza direcionando
e unificando as outras causas em direção aoobjeto específico.

68
À vista disso, Aristóteles formula a teoria do hilemorfismo teleológico28 para
refutar os seus predecessores materialistas que queriam explicar a existência dos
entes naturais exclusivamente por meio de causas materiais e eficientes, quer dizer,
sem fazer uso das causas formais e finais que são imprescindíveis para conhecer a
realidade como um todo.
Deste modo, o hilomorfismo teleológico parte de sua teoria metafísica e filosofia
da natureza a qual propõe uma explicação sobre a natureza dos seres e sua
composição, enfocando a relação entre matéria e forma, bem como a noção de
propósito ou finalidade (telos) na natureza.
Neste segundo ponto, discorremos sobre o finalismo na concepção aristotélica,
depois em que sentido a causa final está relacionada com as outras, a saber: causa
material, formal e eficiente.

3.1 A CONEXÃO ENTRE AS CAUSAS

O fim é a causa da causalidade de todas as coisas e goza de precedência


ontológica. Ele é necessário para que as demais causas aconteçam. A causa eficiente
é a que desencadeia a mudança ou a criação. Quanto à causa formal é o que define
a identidade da coisa e a causa material é a substância da coisa. Já a causa final é o
propósito ou a finalidade que guia o processo, e que juntas essas causas, formam a
compressão completa do objeto ou o fenômeno em questão. Em outros termos: “O fim
move o agente, o agente elicia a forma, e a forma organiza a matéria.” ( ALVIRA;
CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 251).
Todavia, essas causas não devem ser concebidas como justapostas ou
isoladas, mas como uma ordem determinada, em uma sequência lógica, isto é, em
uma mútua relação entre causas extrínsecas e intrínsecas. Assim, todas as causas
estão entrelaçadas em uma explicação ampla, são inseparáveis. Poderíamos entender
desta forma essa perfeita relação causal:

28
No hilomorfismo teleológico, hilemorfismo refere-se à união de dois conceitos: Hyle (matéria) é a substância subjacente que
compõe os objetos físicos. É a parte material e mutável dos seres. Poderia ser entendido como a composição química e
estrutural de um objeto. Morphe (forma) é a estrutura, organização e características específicas que definem a essência de um
objeto. É o que lhe confere identidade e função. Em termos modernos, seria a informação genética e designando a determinância
de como a matéria se manifesta. Aristóteles sustentava que todo objeto ou ser no mundo, é feito desses dois elementos
inseparáveis, matéria e forma. No entanto, o que distingue o hilemorfismo teleológico é a ideia de finalidade ou finalidade na
natureza (teleologia). Ele acreditava que todo objeto tinha um propósito ou uma causa final, ou seja, uma razão pela qual existe e
funciona da maneira que funciona. Essa ideia contrasta com a visão mecanicista da natureza que se desenvolveria mais tarde
na história da filosofia. Por exemplo, na teoria aristotélica, uma árvore tem a forma específica de "árvore" e é feita de matéria,
mas também tem um propósito inerente: crescer e se desenvolver em uma árvore completa. O propósito não é imposto de fora,
mas é parte intrínseca da própria natureza da árvore.
69
Em resumo, é causa a matéria da qual algo é feito (causa material); a
forma intrínseca à coisa, que atualiza essa matéria (causa formal); o
princípio que dá origem à forma na matéria (causa eficiente) e, por último, o
fim para o qual tende o agente (causa final). (ALVIRA; CLAVELL;
MELENDO, 2001, p. 210, tradução nossa).

Entende-se como confere a citação acima que nessa relação de dependência


ontológica dá a compressão efetiva de um ente, pois este é analisado por meio desses
gêneros causais, assim a causa material só o é por causa da causa formal, que a
atualiza; porém isso é possível por meio da causa eficiente que tem como função dar
origem à forma na matéria. Por conseguinte, é a causa final que move a causa
eficiente.
Passaremos a tratar de cada uma destas causas nesta subseção e como elas
se relacionam com a causa final ou teleológica.

3.1.1 A relação entre causa final e causa motora

A causa final está ligada à causa eficiente ou motora visto que ela é o que motiva
a ação do agente eficiente para que este possa realizar tal ação. Ora, é inconcebível
que um agente fazendo uso de suas faculdades intelectivas aja sem finalidade, sem
ser tomado por um desejo ou propósito anterior a sua ação. No entanto, a causa
motora não é a causa da causalidade do fim, quer dizer, não faz com que o fim seja
fim:

O agente é movido por um fim (motor movido: movens motum),


enquanto o fim já não é movido por nada, motor imóvel em seu gênero:
movens immobile) [...]. Mas a causa eficiente não faz do fim um fim, não
é a causa da causalidade do fim: como vimos, a razão pela qual o fim
é desejado em sua própria natureza de bem, o fato de constituir uma
perfeição; portanto, o agente não faz do fim um fim (que seja bom), mas
simplesmente que a bondade que o fim supõe é obtida. (Ibid., p. 251,
tradução nossa).

Percebe efetivamente que a causa final está intrinsecamente relacionada com


à causa motora, embora esta não seja a causalidade do fim. O que é peculiar da causa
final é a bondade e a causa motora faz com que essa bondade se torne evidente. Por
conseguinte, a causa final move as demais, entretanto, não é movida. Trata-se aqui
da teoria do Motor Imóvel formulada por Aristóteles (abordamos no primeiro capítulo)
e isso se comprova quando se diz na citação enquanto o fim já não é movido por nada,

70
motor imóvel em seu gênero: movens immobile.
Tomemos este exemplo: qual seria a finalidade de uma mesa? Seria fornecer
uma superfície plana para colocar objetos? Não necessariamente! Na verdade, essa
seria uma compreensão muito reduzida e equivocada da causalidade final,
assentando-a simplesmente ou exclusivamente no plano funcional ou usual. Trata-se
aqui da relação entre telos e função, isto é, fim e aplicabilidade, que abordaremos a
partir de agora para maior compressão da causa finale sua relação com as outras.

3.1.1.1 Telos e função: a causa teleológica é exclusivamente aplicabilidade?

Votemos a pergunta: qual seria a finalidade de uma mesa? Seria fornecer uma
superfície plana para colocar os objetos? Isso se explicaria pelo fato de a causa final
sê o fio condutor que guiou o carpinteiro (causa eficiente) a moldar a madeira nesse
formato específico e para esta finalidade atribuindo-lhe tal formato? Deparamo-nos
com dois erros presentes na concepção de causa final e causa formal que, inclusive,
ainda é muito propagado. O primeiro é confundir forma com formato; o segundo
finalidade com aplicabilidade. A forma se refere à coisa, o que ela é, aponta para a
essência; enquanto o formato aponta para o acidental, o contingente. O fim é visto
como acabamento, perfeição, em vista de quê, remete à uma realidade última e
melhor, em termos aristotélicos (Cf. Fis. 194ª 27).
Por exemplo, uma cadeira pode ser de madeira, de plástico, grande, pequena,
trata-se doformato, modelo. Já a forma é o que ela é: cadeira, pois independentemente
de seus aspectos acidentais (tipo de madeira, espessura) não deixará de ser cadeira.
Essas qualidades não são a sua forma. Esta vem do grego είδος que significa essência
necessária ou substância das coisas que têm matéria. Deste modo, não só se opõe a
matéria, mas a pressupõe. (Cf. ABBAGNANO, 2007, p.468). Lembremos que o
conhecimento universal não se reduz ao aspecto da aplicação, isto é, da prática.
Aristóteles usa, portanto, esse termo com referência às coisas naturais que são
compostas de matéria e forma (hilemorfismo teleológico) e observa que είδος (eidos)
é mais natureza que a ὕλη (hylé); é superior, é perfeição, uma vez que de uma coisa
diz aquilo que ela é em ato (a forma) e não o que é em potência. (Cf. Fis. 193b 6).
Dando constância à argumentação em Física 193b 28, o filósofo faz a distinção entre
forma e matéria, quando teia: “visto que a natureza se concede de duas maneiras – à
forma e à matéria.”
Assim sendo, nas causas extrínsecas, “o agente é a causa do fim em termos de
71
realização ou aquisição, uma vez que o fim é alcançado pelas operações do agente.”
(ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 251). As causas intrínsecas referem-se a
forma e a matéria , pois a forma organiza a matéria e lhe dá o ser). Portanto, as causas
extrínsecas (motora e final) são causas das intrínsecas (material e formal) dado que a
matéria e a forma dependem necessariamente de um agente para se unir, este qua
opera motivado pelo fim (Cf. Ibid., 251, tradução nossa).

Analisemos o segundo erro que é pensar o finalismo aristotélico reduzindo-o à


funcionalidade, quer dizer, para que a coisa serve. No caso em questão, da mesa,
poderíamos argumentar que a finalidade de uma mesa, de acordo com a “visão
aristotélica”, seria proporcionar um suporte estável para objetos, tornando-os
acessíveis e organizados em um espaço. Todavia, essa não é a causa final, última da
mesa enquanto perfeição. Deste modo, a causa final é ela mesma, vez acabada,
pronta.
Isto posto, a causa final motiva a causa eficiente sendo que o propósito o
objetivo final é o que dá origem a ação que traz à coisa à existência, como vimos no
exemplo acima, da mesa, mas não é a utilidade que determina a causa final. De fato,
uma mesa pode ter inúmeros fins práticos e funcionais na vida cotidiana: suporte para
objetos, refeição, trabalho, estudo, decoração etc. Logo, mesmo que a causa final
tenha motivado o agente para que ele iniciasse a ação para assim chegar a forma de
mesa (causa formal) com suas diversas características como tamanho, espessura,
não se pode reduzi-la à aplicabilidade, isso consistiria em negar a natureza da coisa,
seu princípio intrínseco.
Efetivamente a causa final está intrinsecamente ligada à aplicabilidade, mas
não fica preso à ela. Seria um erro tremendo aplicar isso a Aristóteles que veemente
criticou as concepções materialistas de seus predecessores (Cf. Metafísica 988a 15ss)
por meio de sua teoria teleológica, a respeito da causalidade.
Aristóteles dá o exemplo das andorinhas, das plantas e aves que agem com
uma finalidade, entretanto não são movidas por um intelecto, não se trata de uma
ação consciente e volitiva, embora chegue à perfeição enquanto realização do ser:

Isso é evidente sobretudo no caso dos outros animais, que produzem


não por técnica, tampouco depois de ter examinado ou deliberado ato.
Daí alguns se embaraçam em saber se é com inteligência ou com algo
diverso que operam as aranhas, as formigas e outros desse tipo. E a
quem passo a passo procede dessa maneira, evidencia-se que até
72
mesmo nas plantas surgem coisas convenientes ao acabamento, por
exemplo, as folhas em vista da proteção do fruto. Por conseguinte, se
é por natureza e em vista de algo que a andorinha faz o ninho, a aranha
faz a teia, bem como as plantas fazem as folhas em vista dos frutos, e
as raízes para baixo, não para cima, em vista do alimento, é manifesto
que há uma causa de tal tipo nas coisas que vem a ser e são por
natureza. E uma vez que a natureza é dupla, uma como matéria, outra,
como forma e, dado que esta última é acabamento e as demais coisas
são em vista do acabamento, é ela que é causa em vista de quê.
(ARISTÓTELES, Física, 199ª 20-32, grifos do autor).

Certamente é inaceitável pensar que as andorinhas fazem os ninhos


conscientemente, quer dizer, que elas tenham consciência de sua ação e sabem o
porquê de realizá-la. Contudo, é ilógico afirmar que a nidificação não é feita em vista
de algo, no caso das andorinhas, para incubação de seus ovos. Ou que as plantas
fazem as folhas em vista dos frutos. Assim sendo, a finalidade é a busca de objetivos
inerentes à sua natureza e à sua sobrevivência como parte do mundo natural.

3.1.2 A relação entre causa final e causa formal

Agora veremos em que sentido podemos afirmar que a causa final está ligada
à causa formal. Há algo peculiar nesta relação, pois o fim para chegar ao acabamento,
implica a noção de forma. Significa então que a causa formal é superior à causa final?
Não. Implica dizer que a finalidade está enraizada na natureza ou na essência do ente.
Em outros termos, a causa formal, que é intrínseca, depende ontologicamente da
causa final, bem como da causa motora, como foi dito. Em função disso, o fim também
está ligado à causa formal por meio do propósito que define a forma da coisa.
Poder-se-ia dizer que do mesmo modo que a causa formal é causa com respeito
a matéria isto é, a causa formal é ato da matéria (Cf. ALVIRA; CLAVELL; MELENDO,
2001, p. 218- 219) igualmente a causa final faz com que a causa formal seja realizada;
é o fator teleológico que estimula as outras causas tornando-as inteligíveis e aplicadas
em diferentes contextos nas áreas do saber. Portanto, é próprio, da natureza do fim,
atrair:

O fim causa por modo de atração: é justamente o que caracteriza a


causalidade do fim em oposição aos gêneros de causas. Matéria e
forma exercem sua causalidade em sua união mútua como potência e
ato; o agente, educando uma nova forma de matéria; o fim, atraindo o
agente para si, movimentando algum tipo de apetite ou orientação
natural, e assim atualizando as potências operativas da causa
eficiente: a característica do fim é atrair. (Ibid., p. 242, tradução nossa).

73
Duas coisas devemos considerar nessa citação: a primeira é que o fim atrai o
agente para si, a segunda é que esse movimento de “atração” o distingue dos demais
gêneros causais. De fato, é algo bastante peculiar, pois isso não acontece nas outras
causas. É certo como vimos que o agente, educando uma nova forma de matéria;
entretanto a própria causa motora é motivada pela causa final, ou seja, o agente ao
começar uma determinada ação foi movido pelo fim.
Se alguém perguntasse, por exemplo: “por que a forma da estátua (pensemos
em qualquer estátua significativa) atrai tanto a atenção das pessoas? Certamente, a
resposta de Aristóteles seria embasada em sua doutrina teleológica: o fator que
explica por que a estátua tem a forma que lhe foi atribuída é o propósito para o qual
a estátua foi concebida, sua finalidade, a causa da motivação do agente.
Deste modo, na arte, o telos de uma obra de arte era o efeito emocional ou
poderia dizer estético que ela buscava alcançar. Compreender a finalidade de uma
obra de arte permitiria apreciá-la em sua totalidade. A noção de causa final
desempenha um papel importante em sua metafísica, também na ética, assim como
na filosofia da natureza, bem como na teoria do conhecimento.
Essa concepção de que há uma teleologia presente na natureza perpassa toda
a obra aristotélica. No capítulo três do livro da Física no contexto das quatro causas
ao falar da causa final o Estagirita diz: “além disso, denomina-se ‘causa’ como o fim,
ou seja, aquilo em vista de quê, por exemplo, do caminhar, à saúde, de fato por que
caminha? Dizemos a ‘fim de que tenha saúde’ e, assim dizendo, julgamos ter dado a
causa.” (ARISTÓTELES. Física 194b 23, grifo do autor).

3.1.3 A relação entre causa final e material

A causa material é moldada para alcançar a causa final desejada por essa
finalidade. Também há uma dependência ontológica, isto é, a causa material, que é
intrínseca, depende ontologicamente da causa final, e consequentemente da causa
motora. De fato, o objetivo final de alguma coisa muitas vezes influencia o material
escolhido para criá-la, por exemplo se o objetivo final é criar uma ferramenta durável
a escolha do material será influenciada.
Aristóteles, no livro dois da Física, admite a existência de várias causas para uma
mesma coisa, mas não por concomitância, ou seja, que se manifeste ao mesmo
tempo, no mesmo aspecto:

74
[...] há várias causas para uma mesma coisa, não por concomitância;
por exemplo, tanto a arte de esculpir como o bronze são causas da
estátua não enquanto ela é outra coisa, mas enquanto estátua, embora
não do mesmo modo
- uma é como matéria, a outra é como aquilo de onde provém o
movimento. (Ibid., 195ª 3).
Como se percebe nessa citação, não é errado pensar em um ente e lhe atribuir
causas. No exemplo de Aristóteles, vemos que tanto a arte de esculpir quanto o
bronze são causas da estátua, porém não enquanto ela é outra coisa, mas enquanto
a forma de estátua, o que é em si mesma, sua essência. Dito de outro modo, quando
se analisa uma estátua percebe que houve uma atualização, quer dizer, uma
passagem da potência para o ato, pois o que era madeira, tornou-se uma bela
escultura. Contudo, esse movimento só foi possível por meio da causa motora, por
isso que ele diz em Física 195ª 3, embora não do mesmo modo - uma é como matéria,
a outra é como aquilo de onde provém o movimento.
Ademais, a inteligência humana quando pensa na causa motora (de onde
provém o movimento) consequentemente é levada a pensar na causa final. Como
também quando pensa no material a ser escolhido bem como na finalidade ao esculpir
uma estátua impõe-lhe limitações sobre as propriedades que a forma pode vir a
adquirir. Por essa razão, se diz que a causa final determina as demais.
Neste mesmo exemplo da estátua, pode levantar esta pergunta: “por que a
matéria da estátua é a madeira? A resposta inteligível estará na causa final, foi porque
ao fazer a estátua a finalidade (enquanto a forma) era bem especifica e o material era
o mais apropriado no momento, ainda que pudesse ser o mármore ou o bronze etc.
mas uma vez acabada não poderia ser outra coisa a não ser ela mesma: estátua.

3.2 O ACASO: UM FRACASSO DA FINALIDADE?

Foi argumentado durante esta pesquisa, de modo mais profícuo na seção


anterior, que tudo que há no cosmos encontra-se em um perfeita harmonia sejam nas
coisas animadas como inanimados e tudo se dirige pela teleologia. Tomamos
conhecimento que existe uma necessidade de uma causalidade final para explicar o
mundo natural com seus diversos fenômenos. Além disso, analisamos a importância
e a excelência desta causa em relação com as outras, a material, formal e eficiente.
Faz-se necessário avançar em nossa pesquisa nos deparando com este
questionamento: se tudo que existe está em uma perfeita harmonia no cosmos e segue
uma teleologia, como se explica o acaso? Seria o acaso um fracasso da finalidade?
75
Em que sentido esse termo deve ser compreendido no contexto da teleologia
aristotélica?
Em Física II, 4-6, Aristóteles desenvolve sobre um conjunto de fenômenos que
parecem escapar à determinação teleológica. Deste modo, novamente ele restringem-
se ao quadro da crítica às teorias mecanicistas dos físicos anteriores. Alguns destes
atribuíam a criação das coisas ao acaso, por exemplo o céu (Cf. Física 196 a 24).
Nessa visão, o acaso não teria causa, mas seus efeitos sim. Todavia, o que intriga
Aristóteles é: o que diferencia um evento fruto do acaso de um que não o é?
Logo, a tarefa do Estagirita é esclarecer que o acaso não é um tipo de causa
(como as demais que vimos) porém os resultados são causados, isto é, têm causas; e
explicar quando uma coisa é proveniente ou não do acaso. Isso, conforme, o filósofo
não foi colocado pelos seus predecessores.
Seguindo esse raciocínio, ele vai abordar a temática do acaso, também do
espontâneo29, em contraste com a teoria das quatro causas (Cf. Física 195b 31-35), com
um acréscimo peculiar da causa final ou em vista de que, acabamento (Cf. Física, 194a
27). Apresenta as noções de acaso como tychê e de autómaton, termos traduzidos
por Lucas Angioni acaso e fortuna. (Cf. ARISTÓTELES apud ANGIONI, 2009, p. 279).
Culminará na afirmação de que a relação entre matéria e forma se resolve com a
relação teleológica.
Deste modo, ele concebe o acaso como uma realidade que foge à razão, extra
rationem, pois se trata de um fenômeno que é incapaz de a inteligência humana prever,
são fenômenos não naturais, consequentemente incognoscíveis. Assim, Aristóteles o
coloca no âmbito do irracional e do oculto:

É correto dizer que o acaso é algo que foge à razão, pois a razão se
aplica às coisas que são sempre ou às que são no mais das vezes,
mas o acaso está no domínio das coisas que vêm a ser à parte delas.
Por conseguinte, visto serem indetermináveis as coisas que são
causas desse tipo, também o acaso é indeterminável. (ARISTÓTELES.
Física, 197ª 18).

A citação supracitada confere que o acaso, efetivamente para o filósofo em

29
Já o espontâneo difere-se do acaso por causa de sua amplitude de ação, ou seja, ele atua no âmbito das coisas naturais
e não depende da deliberação e do pensamento. Em Física 197ª 13, Aristóteles diz: “Já o espontâneo se atribui também
aos outros animais e mesmo a muitos inanimados.” Sendo assim, o espontâneo é um determinado tipo de ação que ocorre
sem deliberação. O filósofo cita dois exemplos para ilustrar seu pensamento. De um cavalo que veio espontaneamente,
porque se salvou ao vir, mas não veio em vista de ser salvo; como também o tripé que caiu espontaneamente, pois ficou
de modo a servir de assento, mas não caiu em vista do servir de assento. (Cf. Física 97ª 13).

76
questão, foge dos ditames da racionalidade, são indetermináveis, logo não se pode
atribuir uma causa específica. Em Metafísica 1025ª 20-25, Aristóteles esclarece que
uma causa fortuita é indeterminada. Dado isto, infere que o acaso é inconstante, por
conseguinte não pode ser considerado como uma causa (Cf. Física 196b,13-22),
introduz a noção de concomitância para explicar as relações casuais na produção de
um evento casual (Cf. Ibid. 196b, 23-31). Neste caso, o acaso não ocorre “no mais das
vezes” (hôs epi to poly) tampouco “sempre da mesma maneira” (aei hosautôs).
Decerto, não se tem como prever, esperar que aconteça, diferentemente, por exemplo
do eclipse, que acontece, e hoje isso é factível pela ciência (Cf. ARISTÓTELES apud
ANGIONI, 2009, p. 287-288).

Na verdade, o próprio Aristóteles afirma que há coisas que ocorrem no domínio


do que acontece em vista de algo ou em vista de quê, embora elas mesmas não sejam
em vista de algo, quer dizer, sem finalidade ou sem um propósito intrínseco:

Entre as coisas que vêm a ser, umas vêm a ser em vista de algo, mas
outras não; entre aquelas, uma são por escolhas, outras não por
escolhas, mas todas elas estão entre as coisas que vêm a ser em vista
de algo; por conseguinte, é evidente que, mesmo entre as coisas que
vêm a ser à parte daquilo que é necessário ou no mais das vezes, há
algumas a respeito das quais é possível que se dê em vista de algo.
(ARISTÓTELES. Física, 196b 17).

Percebe-se que mesmo que não lhe confira uma necessidade essencial ao
acaso, por causa da sua irregularidade, ele não é negado na doutrina aristotélica. No
livro dois da Física, se alega que em vista de algo poderia se dar por acaso, nas
palavras do filósofo: “E o em vista de quê, bem como aquilo que é em vista dele,
poderia ocorrer também por acaso.” (Cf. Ibid., 199b 14).
Aristóteles dá o exemplo de alguém que vai à praça por acaso, ou seja, sem
intenção nenhuma, por exemplo, de recobrar um empréstimo, porém sucede que
encontra o devedor e o desfecho foi o ressarcimento. Mas, não foi em vista disso que
ele foi à praça. É nesta linha de raciocínio que ele recorre à causa ação por
concomitância, como abordamos, para diferenciar as coisas que podem ser feitas a
partir do pensamento (a razão) daquelas frutos do acaso (concomitância). Em Física
196b 13, o filósofo afirma: “mas, dado que, além dessas, há também outras coisas que
vêm a ser, as quais todos afirmas ser por acaso, é evidente que o acaso e o
espontâneo são algo [...]”.
Para ilustrar esse pensamento, adotaremos um exemplo desse filósofo sobre a
77
causalidade por concomitância:

Pois bem: quando tais coisas vêm a ser por concomitância, dizemos
que elas são por acaso (pois, assim como certa coisa é algo em si
mesma ou por concomitância, também cabe que algo seja causa do
mesmo modo; por exemplo, de uma casa, o construtor é causa em si
mesmo, mas o branco ou musical são causas por concomitância;
assim está já determinado aquilo que causa em si mesmo, mas é
indeterminado aquilo que é causa por concomitância, pois ilimitadas
coisas podem ser atribuídas como concomitantes a algo. (Ibid., 196b
21ss).

Com esse exemplo da casa coincide que a mesma pessoa é conjuntamente


construtor e músico, mas não do mesmo modo ou como sendo a mesma causa: o
construtor é causa em si mesmo da casa (kath’ hautên); enquanto o musical o é por
concomitância (kata symbebêkos). A explicação de Aristóteles é que aquilo que é
causa em si mesmo é determinado ao passo que é indeterminado aquilo que é causa
por concomitância. Ora, quando falamos músico por concomitância, significa que não
é apenas enquanto músico, mas enquanto é também outra coisa. O construtor em si
mesmo é a causa da casa, mas o músico também o é, porém por concomitância, pois
é atributo de alguém que é músico ser também construtor.
Aristóteles segue esse mesmo raciocínio no livro quinto da Metafísica quando
explica sobre os significados do ser atribuindo-lhe um sentido acidental (per accidens)
e por si (per se). Deste modo, a causalidade por concomitância é dita como
causalidade per accidens:

[...] Do mesmo modo quando dizemos que o “músico constrói uma


casa”, porque pode ocorrer que o “músico” seja “construtor”, ou que o
“construtor” seja “músico”. De fato, “isto é aquilo” significa que isto é
acidente daquilo [...]. Portanto, as coisas que são ditas em sentido
acidental, o são: primeiro, ou por serem atributos pertencentes a uma
mesma coisa que é; segundo, ou por se tratar de um atributo que
pertence à coisa que é [...]. ( ARISTÓTELES, Metafísica, 1017ª 7- 23).

Santo Tomás de Aquino comentando essa citação, enfatiza que o ente se diz
por si e por acidente. Aqui se debruça tanto sobre a natureza essencial, isto é, aquilo
que faz algo ser o que é, quanto as qualidades, os acidentes, que podem variar sem
alterar a essência do ente. O Doutor Angélico deixa claro que essa divisão do ente por
si e por acidente não é a mesma que o divide em substância e em acidentes, ou seja,
não se trata aqui das nove categorias com as quais se diz sobre o ser. (Cf. AQUINO,
2016, p. 95). Deve entender o “acaso” como “acidente” deste modo: “acidente é tudo o

78
que acontece por acaso, isto é, pela inter-relação e o entrelaçamento de várias causas,
mas sem uma causa determinada.” (ABBAGNANO, 2007, p. 13).
Assim, pode-se afirmar que uma das formas de causalidade em Aristóteles é a
causalidade por concomitância, também conhecida como causalidade simultânea ou
causalidade acidental. Esta acontece quando dois eventos ocorrem juntos, sem que
haja uma relação direta entre eles, visto que ocorrem devido a circunstâncias
contingentes e externas, mesmo que estejam ligados por meio de uma relação de
coexistência. Dessa forma, no livro dois da Física, no capítulo cinco, está a primeira
definição para o acaso: trata-se de uma causa por concomitância, foge da razão, do
pensamento, este é racional, como bem diz o Estagirita: “a escolha não se dá sem
pensamento.” (Cf. Física 197a 5).
Entretanto, essa discrepância nesta divisão, conforme Lucas Angioni, o
pensamento de Aristóteles permanece confuso, pois ele não esclarece quais são as
coisas que ocorrem em vista de algo que dependem de um a gente racional daquelas
que não dependem. No argumento de Angioni essa explicação de Aristóteles poderia
ser aplicada em certas às ações humanas (que são contingentes e se articulam em
vista de algo) contudo, não satisfazem a condição apresentada em Física 196b 22,
das coisas em vista de algo pela natureza, porque “elas estão a parte daquilo que é
necessário ou no mais das vezes” (Cf. Ibid., 196b 17), ora, mas estas são necessárias
sejam no sentido de que são sempre ou no mais das vezes do mesmo modo (Cf.
ARISTÓTELES apud ANGIONI, 2009, p. 289).
De fato, parece até meio contraditório o argumento de Aristóteles quando diz em
196b 17-22, entre as coisas que vêm a ser, umas vêm a ser em vista de algo, mas
outras não. Ora, em vista de algo evoca finalidade, propósito (como ele menciona em
DA 415ª 22) fica ambíguo seu pensamento quando ele acrescenta mas outras não. O
que está em jogo é argumentar e esclarecer como uma coisa pode ser em vista de
algo por decisão (pressupõe a vontade, razão, pensamento) daquela que é em vista
de algo independentemente da escolha de um ser livre. Mas conforme consta no livro
dois da Física, no capítulo oito, é possível cogitar a teleologia sem a deliberação, ou
seja, ela não se reduz à deliberação.
Se Aristóteles enquadra o acaso à causalidade por concomitância bem como
por acidente; José de Finance também o faz reduzindo-o à categoria de causalidade

79
por acidente30, faz isso recorrendo a Santo Tomás de Aquino:

Assim o acaso é reduzido à causalidade por acidente. O efeito fortuito,


como tal, não tem unidade verdadeira e, consequentemente, não tem
ser; portanto, não requer uma causa e não há razão para atribuir-lhe
um fim. (SANTO TOMÁS DE AQUINO apud FINANCE, 1965, p. 429,
tradução nossa).

Essa citação de Santo Tomás de Aquino corrobora o pensamento de Aristóteles


em não atribuir uma causa final para o acaso (a não ser por concomitância). Ainda
seguindo o raciocínio de José de Finance “às vezes afirmar-se que o acaso é
simplesmente uma forma ou um nome de nossa ignorância.”(FINACE, 1965, p. 429,
tradução nossa).
Portanto, tudo que se segue na natureza essencialmente tem a causa final,
como vimos. Na perspectiva aristotélica, dado que o acaso é “causa por
concomitância, no domínio daquilo que é por escolha, de coisas que viriam a ser em
vista de algo.” (Física. II, 5, 197a 5 ). Por isso que Aristóteles nos Analíticos Posteriores
(em grego, Ἀναλυτικὰ ὕστερα) enfatiza: “o que se produz em ordem a um fim, nunca
se produz por acaso.” (AnPo. II, 11, 95a 15-16).
Sendo assim, embora o acaso para Aristóteles (Física. II, 4, 196b 6) permanece
como uma realidade obscura ao entendimento humano, pois são irregulares, pode ser
definido como uma causa por acidente (ou concomitância) cujos efeitos pertencem
a ordem daqueles que podem vir a ser em vista de algo.

3.3 CENTRALIDADE E IMPORTÂNCIA DA CAUSA FINAL NO PENSAMENTO


ARISTOTÉLICO

Vimos, no primeiro capítulo, que a noção de finalismo nem sempre esteve


presente no mundo arcaico grego de forma clara, basta recordar os filósofos
mecanicista como Leucipo e Demócrito, fundadores do atomismo lógico, os quais
explicaram o mundo sem fazer nenhuma menção a ideia de finalidade, mas
exclusivamente por intermédio de realidades materiais, os átomos. (Cf. FINANCE,
1965, p. 404). Trata-se de uma explicação puramente mecanicista do cosmos que não
admite nada que não seja material, visível ou palpável. Não tem espaço para uma

30
Na Metafísica, Aristóteles define o termo acidente: “Acidente significa o que pertence a uma coisa e pode ser afirmado
com verdade das coisa, mas não sempre nem habitualmente [...]. Portanto, do acidente não existirá nem mesmo uma
causa determinada, mas só uma causa fortuita, que é indeterminada.” (ARISTÓTELES, Metafísica 1025ª 15-25). Acidente
é, portanto, oposição a per se.

80
realidade fora da física tampouco para uma Inteligência Ordenadora.
No entanto, houve filósofos que ultrapassaram essa visão chegando a uma
certa noção de causa final, como Anaxágoras, conforme Aristóteles (Cf. Metafísica. I,
3, 984 b 15-20) e Platão (Cf. Fed., XLVI) que admite a noção de fim é a causa total
que se dirige para o bem. Sendo assim, o finalismo abarca toda a realidade criada e
explica de forma ordenada e estruturada:

Doutrina que admite a causalidade do fim, no sentido de que o fim é a


causa total da organização do mundo e a causa dos acontecimentos
isolados. Essa doutrina implica duas teses: 1ª o mundo está
organizado com vistas a um fim; 2ª a explicação de qualquer evento do
mundo consiste em aduzir o fim para o qual esse evento se dirige.
Essas duas teses frequentemente estão unidas ou confundidas, mas
às vezes elas são diferentes e procura-se admitir uma sem admitir a
outra. Segundo relato de Platão e de Aristóteles, Anaxágoras foi o
primeiro dos antigos a admitir a causalidade do fim. (ABBAGNANO,
2007,p. 457).

Nessa citação supracitada onde nos deparamos com a definição de


causalidade revela duas coisas. Primeira, que o cosmo se dá em vista de um fim.
Segunda, que cada coisa se dirige para o seu acabamento ou finalismo. Entretanto,
isso não exige deliberação ou nas palavras de Lucas Angioni: “a teleologia da natureza
não exige que o ente natural conceba o acabamento como bom e o proponha como
meta a ser realizada.” (ANGIONI, 2009, p. 262).
Em Física 199b 26 enfatiza na natureza está o em vista de algo, assim sendo,
a natureza existe um princípio intrínseco à coisa movida conduzindo-a ao acabamento
(Cf. Ibid., 199b 14), como por exemplo, “nas plantas há o em vista de algo, embora
seja menos articulado.” (Cf.Ibid., 199b 9), pois as plantas fazem as folhas em vista de
algo, e as raízes para baixo, não para cima, em vista do alimento [...] (Cf. Ibid., 199a
20).
Tudo isso aponta para a centralidade e a importância da causa final no
pensamento aristotélico. Em Metafísica 1044a 31, Aristóteles diz claramente que a
causa final é o fim do homem, a realização de seu potencial humano. Além disso a
identifica com a causa formal, ou seja, tende a identificar o fim com a mesma
substância. Já em De Anima 434a o Estagirita afirma que "tudo aquilo que é por
natureza existe para um fim.”
Aristóteles ao estudar a natureza das coisas destaca o movimento e a
pluralidade para refutar as concepções do monismo eleático que desconsiderava os
81
diversos modos de dizer o ser. A tentativa do filósofo é fazer aquilo que seus
precursores não fizeram: buscar a causa mais extrema de cada coisa como uma
realidade imprescindível para o conhecimento:

É preciso sempre buscar a causa mais extrema de cada coisa, como


nos outros casos (por exemplo: o homem constrói casa porque é
construtor, e o construtor constrói segundo a arte da construção: ora,
esta última é anterior, e é assim em todos os demais casos); além disso,
de gêneros, é preciso buscar como causas gêneros e, de particulares,
particulares (por exemplo, escultor é causa de estátua, mas esse
escultor é causa dessa estátua), assim como, das coisas possíveis, é
preciso buscar como causas capacidades, ao passo que, em relação
àquilo que está sendo efetuado, as causas efetivamente atuantes.
(ARISTÓTELES. Física, 195b 21).

Não basta simplesmente dizer que existem as quatro causas e estas explicam
a composição das coisas, precisa ir a fundo, buscar a causa operante, àquela que por
natureza é superior, mesmo que esteja intrinsecamente ligada as demais. Isso se faz
necessário porque somente analisar as causas não explicam a realidade última das
coisas. Por exemplo, a causa formal e a causa material explicam, de fato, as coisas,
entretanto, quando a olhamos do ponto de vista do devir, das transformações e
mutações, elas já não bastam. Precisa recorrer à uma realidade exterior a elas.
Poder-se-ia dizer que Aristóteles quer alcançar à essência, àquela realidade
que não depende do contexto, da dimensão empírica. Se analisamos o homem
apenas em seu aspecto aparente vemos um corpo animado o qual pode ser explicado
biologicamente, porém, ele traz consigo interesses, desejos profundos os quais
ultrapassam sua corporeidade. Em outras palavras, não está somente “no mundo”,
mas atua, age, é movido por essas realidades propriamente humanas.
Chega-se, então, a noção de causa eficiente e causa final. O finalismo é uma
realidade que não só abarca toda a sua doutrina, mas também tem a primazia sobre
as demais causas. Isto se percebe claramente em todo Corpus Aristotelicum
.Conforme Joseph de Finance a causa final tem essa primazia (também para Platão),
por intermédio da noção de Motor Imóvel, que opera no cosmos a não ser pelo desejo.
(Cf. FINANCE, 1965, p. 408).
Efetivamente se comprova a existência de um finalismo na natureza ao
examinar a estrutura dos entes naturais, isto é uma ordem interna das ações da
natureza levando a conclusão que o fim é causa da ordem. Assim, por exemplo, no
organismo vivente, cada órgão tem sua função, os dentes estão para comer; os
82
pulmões para respirar ;os olhos para ver etc. todavia, nestas naturezas inanimadas é
mais difícil perceber o fim, visto que se trata de entes menos perfeitos (Cf. ALVIRA;
CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 246-247).
Santo Tomás de Aquino viu na doutrina aristotélica uma riqueza
incomensurável a ponto de falar de seu autor, Aristóteles, como “O Filósofo”. Retoma,
assim, o seu pensamento acerca do finalismo e o faz com muita propriedade,
aplicando-o tanto na moral bem como na própria teologia. Deste modo, o fim passa
ser o fundamento para a metafísica teológica. O fim é a necessidade própria dos
movimentos naturais, é a necessidade natural que inere nas coisas e as dirige, estas
foram “imprimida por Deus, que as destina a um fim, do mesmo modo como a
necessidade com que a flecha se desloca e graças à qual se dirige para o alvo foi-lhe
imprimida por quem a lançou e não pertence à flecha." (Cf. S. Th., I, q. 103, a. 1).
Dessa forma, na filosofia tomista a noção de fim adquire outras conotações,
como limite ou terminação, definição, perfeição e finalidade. Esta se aplica tanto para
uma ação inteligente como para de uma tendência cega. Logo, para Santo Tomás de
Aquino o fim que explica o "para quê" de todas as coisas é a verdadeira causa da
causalidade eficiente, a causa causarum, isto é, a causa das causas:

O fim é a primeira das quatro causas, o pressuposto necessário para


que os outros tipos de causalidade ocorram [...] ‘o fim é a causa da
causalidade do agente, porque faz que este produza seu efeito; da
mesma maneira, faz que a matéria seja causa material e que a forma
seja causa formal, já que a matéria não recebe a forma se não pelo
fim ( é dizer, em ordem a produção de um novo ente, ou de uma nova
perfeição acidental), e a forma inerente a matéria pelo mesmo motivo.
E esta é a razão de que se afirme que o fim é a causa das causas
(causa causarum), porque é causa da causalidade de todas as causas.
(ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 250, tradução nossa, grifos
do autor).

Deduz-se que dentre as causas material, formal e eficiente, a final é superior.


Mas qual o por qual motivo? Porque ela é a primeira, tem precedência, como afirma
nessa citação. Ademais, é a condição para que as outras possam ocorrer. Faz com
que as outras alcancem a perfeição, atualizem suas potências, isso fica claro quando
se diz já que a matéria não recebe a forma se não pelo fim. Por exemplo, um escultor
se propõe fazer uma escultura (causa final), assim, em virtude desse desejo, se move,
atua (causa eficiente) para fazer uma nova escultura (causa formal); e para isso
escolherá o material que será utilizado (causa material).
Todavia, a partir deste exemplo algumas indagações podem ser levantadas:
83
estas afirmações não trariam complicações epistemológicas? Ou seja, como é
possível conceber que a excelência da causa final sobre as demais visto que ao
mencioná-la deve-se necessariamente pressupor uma causa eficiente? Como
entender que a causa final tem precedência às demais?
Ora, aqui deve se distinguir ente precedência cronológica da precedência
ontológica. O que dissemos a respeito da relação entre ato e potência, pode aplicar
nesse contexto, ou seja, assim como ato é anterior à potência, a causa final o é em
relação as demais: segundo à noção, prioridade cognoscitiva porque no desenvolver
de uma ação ela tem que vir primeiro, pois todo agente opera com uma
intencionalidade, finalidade “Omne agens agit propter finem.” (FINANCE, 1965, p. 409,
tradução nossa).
Decerto, o homem ao fazer uma casa já parte de uma intenção, de uma
motivação que o leva a executar tal ação, pois a ausência de finalidade implicaria o
indeterminismo absoluto, seria um contrassenso à razão humana, além disso, não se
poderia conhecer de conhecer as coisas. Portanto, “embora no âmbito da realização
do efeito o fim seja a última coisa a ser alcançada, na ordem da inclinação para causar
é sempre o primeiro.” (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 250, tradução nossa).
Ora, ainda seguindo esta linha de raciocínio de Joseph de Finance o finalismo
explicava verdadeiramente as coisas e a causa motora lhe é subordinada:

Não seria possível dizer com mais claridade que a causa verdadeira,
a única que explica verdadeiramente as coisas e os atos, é o fim. A
causa motora apenas tem a função subordinada: é o que permite que
o fim se realize [...] também em Aristóteles encontramos uma
concepção resolutamente finalista. (FINANCE, 1965, p. 406, tradução
nossa).

A causa motora, como vimos, faz com que o fim se realize, mas não goza de
prioridade ontológica tampouco se encontra em um grau de superioridade em relação
à causa final. Por isso que se diz que a causa final tem grau transcendental e se
encontra no âmbito espiritual. O finalismo move com efeito o agente e o faz iniciar uma
ação31. Por exemplo, uma pessoa não iniciaria seus estudos se não fosse movida pelo
desejo natural de saber e com a finalidade de ter uma vida digna.

31
Aqui se usa espiritual não no sentido religioso, mas filosófico e metafisico. Trata-se das faculdades intelectuais.
Essência da vida incorpórea , transcendental.

84
Diante de tudo o que foi exposto, a nossa tarefa é entender, a partir de agora,
como se dá essa relação entre a causa final com as outras no sistema aristotélico,
sem a pretensão de querer chegar a uma ciência perfeita da causalidade. Cabe agora
saber como se dá a relação desta para com as outras, quer dizer, até existe uma
dependência? Ou pode pensar em uma causa final sem fazer uso das demais?

3.4 A DEFESA DA TELEOLOGIA

É imprescindível defender e destacar a legitimidade da causalidade aristotélica


como conceito fundamental tanto para o pensamento filosófico quanto para o
pensamento científico, que trabalha com o pressuposto que existem causas para tudo,
por isso, julgamos importante dedicar-se a ela, visto que certas concepções filosóficas
tendem a contestá-la colocando em risco a validade e a objetividade deste princípio
metafísico tão significativo para o pensamento ocidental e para as ciências modernas.
Na verdade como diz Brian Garret a nossa linguagem é rica em discurso casual,
pois constantemente usamos a própria palavra causa em nossos cotidiano e atribuímos
isso as coisas, como por exemplo, fumar causa câncer, suas palavras causaram
ofensa – mas também usamos verbos que pressupõem a causação: eles haviam
empurrado o carro. Esses questionamentos colocam o homem diante de uma
realidade metafísica: a natureza da causação. (Cf. GARRETT, 2008, p. 63).
No entanto, com o advento da ciência moderna, houve um afastamento entre a
filosofia aristotélica e outras formas de saberes, passando a negar a metafisica bem
como os entes e suas finalidades intrínsecas em nome de explicações científicas
baseadas em leis naturais. O fato é que ainda hoje é possível fazer uma ciência
teleológica sem negar a validade dos outros saberes. Ora, assim fez Aristóteles, basta
analisar suas obras para ver sua abastadíssima abordagem acerca de tantas
realidades presentes na Física, na Biologia, botânica, música, lógica, astronomia,
medicina, dentre tantos:

Aristóteles também argumenta com base na analogia entre natureza e


arte: a arte imita a natureza, e é justamente por meio de procedimentos
semelhantes que chega aos mesmos resultados. Portanto, se há
propósito nos produtos da arte, também deve haver propósito nos
produtos da natureza.(FINANCE, 1965, p. 407, tradução nossa).

Essa citação só corrobora o desenvolvimento desta pesquisa, pois temos

85
enfatizado que a teleologia perpassa todo o pensamento aristotélico. O filósofo parte
do dado experimental (aposteriori) do ente singular para explicar que a essência está
nas coisas, ou em outras palavras, a essência de uma coisa estava relacionada ao
seu propósito ou função na ordem natural.
Isso comprova a força de sua doutrina a qual continua a ser uma parte
importante da história da filosofia e da compreensão da natureza e do propósito no
mundo natural, com o seu hilemorfismo teleológico. Aliás, é inegável sua contribuição
na formação da ética e da moralidade em várias tradições filosóficas e religiosas.
Portanto, a causalidade em Aristóteles faz-se necessária não só para uma
integrante abordagem das coisas, mas também ao conhecimento e à explicação do
mundo. Ela permite uma compreensão mais profunda da realidade. Quer identificar as
causas corroborando, por meio de sua investigação filosófica, para a construção e a
explicação do conhecimento cientifico. Dessarte, as noções de causalidade continua
a ser uma parte importante da história da filosofia e da filosofia da ciência.

3.4.1 A convergência das três causas para uma só no livro II da Física

No livro dois da Física aristotélica, a causa final está intimamente ligada à noção
de teleologia, que é a explicação das coisas em termos de seus objetivos ou fins. De
fato, Aristóteles afirma diversas vezes ao longo deste livro que a natureza opera em
vista de algo. Há uma finalidade intrínseca em cada ente para que ele o leva à perfeição
ou ao seu fim último. Diante disso, o filósofo ateniense desenvolve uma série de
argumentos acerca da causa final bem como ela se relaciona com as demais.
O esforço de Aristóteles é fugir, como vimos no decorrer deste trabalho,
especificamente no primeiro capítulo, é fugir das concepções materialistas de alguns
de seus antecedentes, e formular um sistema de causal que explique o movimento do
devir com suas transformações. Para isso ele considera as quatro causas analisando-
as em seus aspectos relacionais. Observa que convergem em uma só a causa formal,
final e eficiente:

Uma vez que as causas são quatro compete ao estudioso da natureza


conhecer todas, e ele há de explicar o porquê de maneira própria à
ciência natural na medida em que se reportar a todas elas, a matéria, a
forma, aquilo que movem, aquilo em vista de quê. Mas, muitas vezes,
estas três convergem para uma só: o ‘ que é’ e aquilo em vista de quê
são uma só, e lhes é especificamente idêntico aquilo de que precede
primeiramente o movimento, pois é o homem que gera um homem [...].”
(ARISTÓTELES. Física, 198ª 22-24).
86
Nesta argumentação do filósofo, percebe uma certa tendência de Aristóteles
em reduzir as três causas em uma só: “o que é”, pode pressupor que ele esteja se
referindo à causa formal, “em vista de quê”, pode implicar que seja a causa final e a
eficiente quando diz “é especificamente idêntico aquilo de que precede primeiramente
o movimento”. Dá a entender que elas são da mesma natureza. Todavia, o argumento
do texto não é claro, por exemplo, quais causas estão sendo reduzidas a qual? Há uma
forma mais plausível de interpretar o texto: não é sob a mesma descrição que se
reportam à mesma coisa.
Na verdade, ele radicaliza dizendo que a causa final bem com a causa eficiente
se relacionam com a causa final. Em certo sentido, o fim assume o papel da causa
formal, por isso, ela deve ter atenção maior porque é a causa da matéria, não o
inverso. De fato, é bem típico do pensamento aristotélico nas palavras de José de
Finance que “tudo o que existe, existe por um fim.” (FINANCE, 1965, p. 412, tradução
nossa), entretanto, não exclui as outras causas. Ainda no pensamento de Finance:

[...] e é verdade que a causa final, assim como a causa eficiente, se


encontra em Aristóteles, muito próxima da causa formal. A forma é
representada como algo divino, objeto do “desejo” da matéria, ao
mesmo tempo agente e fim da geração. até certo ponto, desempenha
o papel da Ideia. Por outro lado, o filósofo tem prazer em definir os
seres pela sua função: agora, então, o fim, ou melhor, a relação com
o fim, desempenha o papel de causa formal. (Ibid.,
p. 407, tradução nossa).

Essa citação leva-nos a duas conclusões, a primeira é que dentre as quatro


causas, material, formal e eficiente, a causa final tem primazia ontológica, encontra-
se em um grau elevado; a segunda é que essa superioridade (da causa final) se dá
por meio de uma perfeita relação. Dito de outro modo, embora o fim esteja em outro
patamar em relação às outras causas, há uma dependência ontológica. Essa realidade
é inegável quando na própria citação vemos: que a causa final, assim como a causa
eficiente, se encontra em Aristóteles, muito próxima da causa formal, enquanto a forma
é “desejada” pela matéria. Isso significa que a matéria está teleologicamente
organizada e estruturada em vista de um acabamento, e apesar de o fim não ser
possível sem ela, o fim não é devido a ela:

Pois bem: é manifesto que, vê nas coisas naturais, o que é necessário


é aquilo que nos referimos como matéria, bem como os movimentos
87
dela. E ambas as causas devem ser enunciadas pelo estudioso da
natureza, mas, sobretudo, a em vista de quê, pois ela é causa
responsável pela matéria, ao passo que esta última não é causa
responsável pelo acabamento. E o acabamento é aquilo em vista de
quê, assim como é o princípio pela definição e pelo anunciado [...]
(ARISTÓTELES, Física, II, 9 200ª 30).

Essa citação corrobora o que foi argumentado anteriormente e confere duas


coisas: que a causa final é responsável pela matéria; e que a causa final não fica preso
à matéria. Em outros termos, a teleologia32 depende da matéria necessariamente, mas
não fica preso a ela. A causa final é superior àquilo que é potência e indeterminação,
matéria. De fato, a matéria é vista como potência ou possibilidade; enquanto o ato é
visto como perfeição ou acabamento. Isso foi bem colocado no primeiro capítulo.
Isto posto, o finalismo estaria presente em toda a criação, não somente em
coisas que possam pressupor deliberação, razão. Aristóteles acreditava, por exemplo,
que os organismos naturais, como plantas e animais, eram governados por causas
finais, e que cada parte do organismo contribuía para a sua função global. Assim, as
folhas de uma planta existem para capturar a luz solar e realizar a fotossíntese, e os
órgãos de um animal existem para cumprir funções específicas que ajudam na
sobrevivência e reprodução. Dessa maneira, todo esse processo uma vez acabado
chega a perfeição do entes, embora eles não tenham a consciência de tal processo:

A causa final tem razão de bem: o fim é aquilo em que repousa o


apetite, o que satisfaz uma determinada inclinação: assim, o desejo de
saber repousa quando a ciência é alcançada, que é o seu fim. O fim
de qualquer tendência constitui uma perfeição para o seu sujeito. Se o
fim atrai, é precisamente porque é bom e porque, como tal, pode
aperfeiçoar outros. (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 242,
grifos do autor).

É bem típico do pensamento aristotélico atribui o bem como sendo a causa final
de tudo. O bem enquanto perfeição, ação executada. Quando um determinado ente
realiza uma ação atingiu sua perfeição. Obviamente que isso se dá em graus de

32
A noção de teleologia, finalidade, evoca a de entelequia ou enteléquia. Expressão, que na, filosofia aristotélica, significa
realização plena e completa de uma tendência, potencialidade ou finalidade natural, concluindo um processo
transformativo de todo e qualquer ser animado ou inanimado do universo. Em outros termos, é o caminho natural que
um determinado ente percorre para chegar a tal objetivo, propósito que o impulsionou a agir, executar uma ação. Trata-
se, portanto, de um ser em ato, isto é, plenamente realizado, em oposição ao ser em potência. (Cf. ABBAGNANO, 2007,
p. 334). Conforme Frederick Copleston Aristóteles “através de sua teoria da enteléquia, da forma substancial imanente,
que tende à sua realização nos processos da natureza, pôde dar um sentido e uma realidade ao mundo sensível que
faltavam a filosofia de Platão, e que sua particular contribuição à filosofia dá um tom e sabor característico ao aristotelismo
enquanto distinto do platonismo. (Cf. COPLESTON, 2021, p. 366).

88
perfeição. Isso significa que o fim não só é bom, mas também que ele transmite sua
bondade que se dá no aperfeiçoando. Alcançar o fim ou objetivo último de algo é uma
realização positiva e a causa final tem uma razão de bem, pois representa a finalidade
ou objetivo que determina o valor intrínseco das coisas.
Por isto, que há verdadeiramente uma necessidade de afirmar a causa final34
como sendo a raiz do conhecimento mesmo que esse se trate de uma realidade de
difícil compreensão. Mas, é neste prisma que sobressai a importância do princípio da
causalidade que se faz presente em todo cosmos nos diversos fenômenos de ação e
reação:

Perceber a causalidade, de todos os modos, não significa


compreendê-la exaustivamente; conhecemos que existem causas e
que significa causar, mas nem por isso temos uma ciência perfeita da
causa. Ocorre aqui algo parecido ao que sucede com o ser das coisas,
no que a causalidade se funda: se trata de uma realidade profunda, e
a imperfeição de nosso entendimento impede esgotar sua
inteligibilidade. (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 199-200,
tradução nossa).

Evidentemente, não conseguimos compreender claramente a causalidade,


visto que ela vai além de nossa capacidade intelectual. Ela sobressai também toda
dimensão sensível, mesmo que se manifeste nela através dos fenômenos de causas e
efeitos os quais estão intrinsecamente unidos a ponto de afirmarmos que ambos se
requerem mutuamente; e de não poder entender um sem o outro.
É inegável que a toda ação humana se funda neste influxo causal. Assim, a
causalidade é uma exigência da razão33; ela se faz necessário para construir qualquer
conhecimento. E, mesmo que os sentidos não consigam retirar da experiência34 esse

33
Caso o leitor queira se aprofundar na causa final ou teleológica ver O De Anima que se tata de uma obra de Aristóteles
na qual ele elabora toda uma teoria bastante complexa sobre a alma enfatizando os aspectos teleológicos de sua filosofia
da natureza. Adota o uso das causas finais na natureza o que não era presente na filosofia dos materialistas. Esta obra
é sistematizada em três livros. O filósofo Estagirita aprofunda a noção de alma e suas funções teleológicas colocando-a
como causa e princípio do ser vivente. Façamos uma análise mais minuciosa: “E, do corpo vivente, a alma causa e
princípio. E estes se dizem de muitos modos, mas a alma é semelhantemente causa conforme três dos modos
delimitados: pois ela é aquilo de onde o movimento bem como aquilo em vista de quê, e também como essência dos corpos
animados a alma é causa. Ora, que ela é causa como essência, é evidente: pois, para todos os antes, o responsável pelo
ser é a essência, e o ser para os que vivem e o viver, e deste, é a alma que é causa e princípio.” (Ibid., 415b 8, grifos do
autor). Ainda, no De Anima, defende sua teoria teleológica, mais precisamente no livro dois, ao argumentar sobre os
dois sentidos “em vista de quê:
(i) como em direção a algo; (i) como para o benefício de algo. Notoriamente alma é tida como uma causa final de tipo (i):
ou seja, as diversas capacidades da alma são em direção a algo, à sua função.(Cf. Ibid., 415ª 22).
34O pensamento de Aristóteles é que todos não fiquem simplesmente na imanência, quer dizer, na experiência sensível,
mas convidando-os a transcender o mundo empírico para construir um saber sistemático, não desprezando,
evidentemente, o sensível, mas ultrapassando-o. Esse processo só é possível adquirindo a ciência das causas primeiras
89
conceito, o intelecto o abstrai, tal precioso conceito: “[...] quando a causa não é
manifesta na experiência, deve ser afirmada pela razão.” (SELVAGGI, 1988, p. 314).
Se estivermos passando por um determinado lugar e nos depararmos com
um grande estouro, automaticamente a nossa razão quer procurar a causa de tal
fenômeno, nossa reação seria: O que aconteceu?! O que foi isso?! Ora, procurar o
motivo de algo é procurar sua causa.
As causas são as condições para que o filósofo construa seu conhecimento
sob uma estrutura lógica, também constituem um edifício no qual o conhecimento é
construído. Dessa forma, conhecer a causa é conhecer o porquê que explica a
necessidade de a coisa ser como ela é; de sua existência, visto que todos os seres
presentes na natureza não têm em si mesmos a razão suficiente.

Em outras palavras, no mundo os entes são contingentes, quer dizer, não são
causas de si mesmos, dependem de circunstâncias para atualizarem suas potências.
Consequentemente necessitando de um princípio que seja exterior a si que deve ser
responsável pelo seu ato pela sua origem. Isso só ratifica a perfeição do princípio de
causalidade aplicada ao ser, reveste de grande importância porque o contingente
exige uma causa realmente distinta dele:

Tudo o que existe ou passa a existir deve ter uma razão que explique
a sua existência ou a sua chegada, razão essa que se encontra no ser
considerado ou fora dele. No primeiro caso, o ser, por possuir em sua
natureza tudo o que necessita para existir, existe necessariamente. No
segundo caso, a existência do ser é contingente: por si só, esse ser
não tem o que precisa para existir. Daí a conclusão: todo ser
contingente requer, para ser, uma causa. Especifiquemos: uma causa
eficiente, porque é somente através da causa eficiente que as outras
(a final e a exemplar) exercem a sua influência. (FINANCE, 1965, p.
361, tradução nossa).

Assim sendo, como diz José de Finance tudo o que existe ou passa a existir
deve ter uma razão que explique a sua existência, visto que se trata de uma realidade
contingente necessita de uma causa eficiente para exercer influência sobre ele. Seria
inconcebível que uma determinada coisa enquanto potência, por exemplo, uma
madeira, chegasse a ser mesa sozinha, quer dizer, fosse a causa de sua própria
atualização ou perfeição.

e últimas. De fato, é próprio do intelecto humano conhecer por meio dos entes materiais, marcados de acidentes, a
essência das coisas. Apesar de o conhecimento sensível e o intelectual não serem a mesma coisa, eles não devem ser
separados, pois entre o conhecimento sensível e o intelectual há distinção, mas não separação; existe unidade, mas não
identificação.
90
Portanto, ainda que a causalidade aristotélica tivesse sido revista e criticada ao
longo dos séculos por várias correntes filosóficas, é inegável sua contribuição
filosófica como o alicerce para o mundo ocidental. Deste modo, no pensamento
aristotélico, a causa final é vista não só como uma explicação profunda e ampla da
realidade, mas também se relacionado a todas as outras causas. Ela fornece o
propósito objetivo pelo qual algo existe.

Todavia, a ênfase na causa final não significa que Aristóteles negligenciou as


outras causas material, formal e eficiente, mas ele considerava a causa final como a
mais elevada e significativa afinal. Era ela que atribuía, como bem foi exposto,
propósito e direção à realidade unindo o mundo natural com a ideia de um propósito
universal e uma ordem intrínseca.
Portanto, entender as causas finais é fundamental para cumprir a natureza e o
funcionamento das coisas. Pode-se afirmar que a natureza opera teleologicamente,
isto é, todas as coisas têm uma finalidade intrínseca que as orienta vai alcançar seu
pleno desenvolvimento cumprindo assim seu objetivo.

3.5 A NECESSIDADE DA CAUSA FINAL

Vimos na sessão anterior como se dá a conexão entre as causas e como a


causa final sobressai. Há, de fato, uma necessidade da causa final para a efetivação
das demais, embora todas estejam entrelaçadas. Observa-se nos exemplos dados e
na argumentabilidade que uma relação de subordinação entre a causa final para com
as outras.
O finalismo aristotélico é, sem dúvida, apropriado e necessário para entender
completamente a existência de uma coisa ou fenômeno particular. As causas materiais
e formais por si só não são suficientes para fornecer uma explicação completa de um
ente, assim a causa a causa final desempenha um papel único na compreensão do
para quê e do propósito subjacente. Ela está intrinsecamente relacionado ao
fenômeno e análise explicite como propósito ou objetivo contribui para a compreensão
do fenômeno.
Aristóteles trata da causa final em sua obra De Anima refere-se à finalidade ou
propósito pelo qual a alma existe e exerce suas funções específicas. É um conceito
que destaca a importância de entender não apenas a estrutura e o funcionamento das
coisas, mas também o porquê por trás delas, ou seja, a finalidade que guia suas ações
e característica. Ela está intrinsecamente ligada à natureza de algo e ao seu
91
funcionamento. Como vimos, o filósofo defende aplicação de causas teleológicas no
domínio da natureza contra a teoria dos materialistas que não reconhecia tais causas.
Isso significa que todos os entes operam teleologicamente.
É inegável como diz Frederick Copleston que Aristóteles contribuiu para o
desenvolvimento da filosofia da natureza por intermédio da doutrina da essência
imanente como uma síntese da doutrina platônica da essência transcendental bem
como com a noção de finalidade, colocando-a em nível superior às demais. Assim, a
natureza segue uma finalidade e o próprio fim do homem é uma atividade. (Cf.
COPLESTON, 2021, p. 366).
Na Metafísica, ao falar dos sentidos de perfeição, trata desta como finalidade,
quer dizer, são perfeitas as coisas que tendem para um fim, a perfeição é vista como
alcance de um fim, este é “o propósito último das coisas”. (ARISTÓTELES,
Metafísica 1021b 23-25). A necessidade da causalidade em Aristóteles pode ser
observada em vários aspectos de sua filosofia. Sendo possível sua aplicação à
biologia, a ética, bem como na própria filosofia da natureza.
Pode-se argumentar sobre a necessidade da causa final sem negar as demais
de várias maneiras, dentre elas, destacam-se: Explicação abrangente,
Compreensão das mudanças, Explicação teleológica, Ênfase na essência,
Compatibilidade empírica, Influência na Ética e na Política, na compreensão dos
fenômenos abstratos e na visão científica do mundo.
Passemos a considerá-las, sem a pretensão de querer esgotar a noção
aristotélica de causa final, senão analisá-la para perceber como é uma condição sine
qua non para entender com propriedade uma determinada coisa ou fenômeno.

3.5.1 Explicação abrangente

Significa que as quatro causas oferecem uma explicação profunda e holística da


natureza em sua complexidade. E a causa final tem um aspecto bastante peculiar pois
analisa um determinado objeto considerando-o não só em seus aspectos materiais e
formais, mas também os teleológicos, ao passo que a finalidade natural exige uma
inteligência ordenadora. (Cf. ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 249).
Consequentemente a abordagem do finalismo auxilia na compreensão das
mudanças. Quer dizer, outro argumento a favor da necessidade da causalidade final
aristotélica é que ela é útil para explicar mudanças e transformações: a causa material
lida com substrato físico, a causa formal descreve a mudança na forma (essência), a
92
causa eficiente é tomada pela causa final fazendo com que o move o agente execute
uma determinada ação.
Também é indubitável que o fim na perspectiva aristotélica pode ser aplicado à
Filosofia da Natureza bem como na Ciências Biológicas. O próprio Aristóteles
argumentou que todos oseventos naturais tinham causas que podiam ser identificadas
e explicadas a partir da sua cosmovisão teleológica de mundo que oferecia um
explicar o funcionamento dos seres vivos e como há neles um propósito que os
direcionavam para a realização mais plena, alcançando assim a perfeição. Assim
sendo, por meio do desenvolvimento de suas potencialidades eram capazes de
cumprir suas funções biológicas.

3.5.2 Explicação teleológica

Aqui nos deparamos com a riqueza da doutrina sobre o finalismo. Pode-se dizer
que é o coração de todo pensamento aristotélico. Dessa forma, a causa final em sua
peculiaridade destaca que os objetos naturais têm um propósito intrínseco, o “para quê
“ das coisas levando a uma compreensão mais profunda e significativa do mundo
natural. Como diz Santo Tomás de Aquino: “o fim é encontrado no começo de toda
causalidade; é a causa das causas . (SANTO TOMÁS DE AQUINO apud FINACE,
1965, p. 425, tradução nossa).
É importante ter ciência que o fim adota uma multiplicidade de formas, de
acordo com o aspecto sob o qual é considerado. Dessa maneira, há fim intrínseco e
transcendental, fim último e fins próximos, fim honesto, deleitável e útil, fim produzido
e fim possuído. (Cf. ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 244). Analisemos,
portanto, os tipos de causa final.
a) Fim intrínseco e transcendental. “O fim intrínseco de uma operação é o
resultado natural da operação.” (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 243). Quer
dizer, é o fim efeito enquanto é produto da própria ação. Por exemplo, a causa da
ebulição é a vaporização, o aumento da temperatura da água é o fim da ação do fogo
sobre ela, como também a obra do carpinteiro é a mesa que ele produziu com seu
trabalho. Já o fim transcendental se refere ao objetivo ou propósito para o qual a ação
está dirigida, como por exemplo, de um cão que mesmo por instinto vai a um lugar
concreto em busca de comida. Ora, a alimentação é fim rem relação à ação de
caminhar. Ele caminhou em vista disso, embora essa ação não tenha sido deliberada.
Todavia, quando se trata de seres livres, ou seja, fins conscientes, é as vexes furto da
93
escolha, pois se deu no campo da vontade. (Cf. Ibid. p. 243).
b) Fim último e fins próximos. É importante compreender que se entende fim
último e fins próximos por meio de uma sequência de causas finais que estão
correlacionadas. Sendo assim: “Fim último é aquele pelo qual se entendem todos os
demais fins de uma determinada área, fim próximo, por outro lado, é aquele que se
destina em vista de outro fim ulterior.” (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 200, p. 244),
como por exemplo, a paz perdida por causa da guerra é a causa final de um exército,
as vitórias parciais são fins próximos. (Cf. Ibid., p. 244).

c) Fim honesto, deleitável e útil. Está no campo da ética e da moral, é deleitável


e útil. O fim honesto é “aquele que se quer em si mesmo, enquanto é efetivamente
bom para o ente que o deseja.” (Ibid., p. 244). O bem deleitável é o mesmo bem
honesto enquanto traz gozo. Já o bem útil é o bem que se quer por meio, quer dizer,
não por si mesmo. Como exemplo, temos a medicina. Esta é um bem útil, porém não
se quer por si mesma, mas em vista do bem corporal. E a satisfação produzida, a cura,
a paz são bens deleitáveis. (Cf. Ibid., p. 244).
d) Fim produzido e fim possuído. Trata-se da produção e da relação. O primeiro
se refere à perfeição do agente; o segundo se refere ao desejo ou apetite do agente.
Estão relacionados às ações que tem como resultado um objeto que antes não existia
(fim produzido), como por exemplo um artista que faz uma determinada arte, ele é
causa dessa obra, é autor desse fim. Também há casos em que se relaciona com uma
realidade já existente (fim possuído), logo, não é fruto de sua ação. É o caso de um
homem que ama outra pessoa por meio do movimento da vontade, mas não a cria,
não é produção sua. (Cf. Ibid., p. 244).
Portanto, a explicação teleológica é fundamental para argumentar sobre a
necessidade da causa final, visto que porque influencia significativamente não só o
pensamento filosófico, mas também científico e ético ao longo da história e continua
a ser objeto de estudo e debate nos dias de hoje. Oferece uma perspectiva única
sobre a natureza e a finalidade das coisas no cosmos, explica com mais exatidão o
mundo natural.

3.5.3 Ênfase na essência

Significa que a causa final se volta para a essência de ente, isto é sua análise
vai além das causas imediatas ou observáveis, mas busca compreender a verdadeira
natureza de uma coisa. Trata-se, portanto da razão ou do porquê de o agente agir de
94
tal forma. É questionar as demais causas, por exemplo, o motivo de uma estátua ser
de bronze e não ficar meramente em seus aspectos acidentais ou circunstancias. Pelo
contrário, ao focar na essência, o indivíduo é capaz de transcender toda realidade
empírica e conhecer as coisas com clareza:

A doutrina de Aristóteles demonstra a estreita conexão entre a noção


de causa e a de substância. A causa é o princípio de inteligibilidade
porque compreender a causa significa compreender a organização
interna de uma substância, isto é, a razão pela qual uma substância
qualquer (p. ex., o homem, Deus ou a pedra) é o que é e não pode ser
ou agir diferentemente P. ex., se o homem é "animal racional", o que
ele é ou faz depende da sua substância assim definida, que opera como
força irresistível para produzir as determinações do seu ser e do seu
agir. (ABBAGNANO, 2007, p. 125).

Nessa citação, percebe-se a relação intrínseca entre causa e substância


(essência) quando se diz que a causa é o princípio de inteligibilidade e compreendê-la
significa compreender a organização interna de uma substância. Isso significa que por
meio da causa o homem é capaz conhecer não só as coisas, mas também sua
natureza, quer dizer, seu agir.
Com efeito, fazendo o uso do finalismo aristotélico se pode chegar a uma
compreensão mais integral dos entes e de suas propriedades essenciais. Assim, a
causa final aponta para a perfeição, o em vista de quê das coisas considerando-as em
sentido último. Portanto, a causa é “a forma ou o modelo, isto é, a essência necessária
ou substância de uma coisa.” (Cf. Ibid., p. 125). E a causa final sobressai, ela é a
causa primeira e fundamental, um porquê privilegiado, que é dado pela essência
racional da coisa, pela substância. (Cf. ARISTÓTELES DA I, 1, 639b 14 apud
ABBAGNANO, 2007, p. 125).

3.5.4 Compatibilidade empírica

Apesar de o filósofo David Hume35, como a tradição tem mostrado, questionar

35
Embora a causalidade seja uma verdade evidente ao intelecto humano (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 199)
ela foi negada por várias correntes filosóficas dentre elas, destaca-se o Empirismo o qual consiste segundo Antônio
Joaquim, numa “teoria epistemológica que a firma a radical derivação, direta ou indireta, de todo conhecimento da
experiência sensível, seja ela interna ou externa.” (JOAQUIM, 2007, p.108). David Hume, um filósofo escocês do século
XVIII, é conhecido por suas contribuições à filosofia empirista e à epistemologia. Ele também abordou o conceito de
causalidade em suas obras, particularmente em sua obra "Investigação sobre o Entendimento Humano" (An Enquiry
Concerning Human Understanding). Uma de suas ideias centrais é sua "tese da uniformidade da natureza" onde
observou que a crença na causalidade é baseada na nossa experiência constante de certos eventos seguindo padrões
previsíveis. Por exemplo, quando vemos um evento A seguido repetidamente por um evento B, começamos a esperar
que, quando ocorre o evento A novamente, o evento B também ocorrerá. Todavia, ele não negou a causalidade, mas
95
a noção tradicional de causalidade argumentando que não podemos conhecer a
relação causal entre eventos por meio da razão pura, a causalidade aristotélica pode
contribuir efetivamente com a observação empírica. Ela pode ajudar a interpretar os
dados observacionais de maneira mais profunda e a revelar padrões que podem ser
negligenciados por abordagens mais superficiais que a ciência por si só não
consegue.
Sendo assim, é possível existir uma perfeita harmonia e complementariedade
entre a causalidade e o conhecimento empírico até porque toda estrutura do
pensamento aristotélico parte da observação e da afirmação que a essencial dos
entes encontram neles mesmos. Efetivamente, a própria experiência leva a razão a
chegar ao conhecimento da causação por meio de ações cotidianas, também a própria
existência do homem prova que ele é causado, poiscomo diz Jose de Finance: “sempre
que a existência começa, é preciso afirmar que é causada.” (FINANCE, 1965, p. 360,
tradução nossa).
São muitos os argumentos a favor da compatibilidade empírica entre
experiência e causalidade, como a contingência dos entes, as mudanças que ocorrem
no cosmos, as experiências que a pessoa humana realiza e tem consciência que são
efeitos causais bem como a própria experiência da finitude, da limitação corrobora a
existência e validade desse princípio.

3.5.5 Influência na Ética e na Política

Outro argumento a favor da necessidade do finalismo aristotélico encontra-se


na ética e na política. Deveras a noção de causa final traz implicações para o campo
ético e moral, visto que o fim é o bem e não o desejar seria ferir a natureza da própria
bondade. O primeiro conceito de política foi exposto em Ética, de Aristóteles. (Cf.
ABBAGNANO, 2007, p.773). Ele argumentava que os seres humanos tinham um

sim desafiou nossa compreensão e capacidade de fundamentá-la de maneira sólida e absoluta. Argumentou que não
temos uma justificação lógica ou empírica para acreditar que essa sequência de eventos continuará ocorrendo no futuro.
Nossa mente, conforme sua doutrina, tende a criar uma associação habitual entre os eventos, mas isso não nos permite
afirmar com certeza que a causalidade é uma propriedade objetiva do mundo. Hume destacou que a causalidade não é
algo que possamos perceber diretamente com nossos sentidos, mas sim uma inferência mental que fazemos com base
em nossa experiência passada. O fato é que, embora, o princípio da razão suficiente esteja presente em todo cosmos, ele
não se submete à demonstração empírica, pois é evidente à razão. Contudo, isso não nos leva a deduzir que ele não
seja válido ao conhecimento humano, como pretendeu Hume. Como não faz parte desta pesquisa, não iremos abordar
a teoria humeana, entretanto, caso o leitor queira se aprofundar nesta temática, ver: BERKELEY, George. Tratado sobre
os princípios do conhecimento humano; Três diálogos entre Hilas e Filonous em oposição aos céticos e ateus; HUME,
David. Investigação sobre o entendimento humano: Ensaios morais, políticos e literários. Traduções de Antônio Sérgio...
et al. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

96
propósito final de alcançar a felicidade (eudaimonia) e que a ética e a política deveriam
ser orientadas para esse fim.
Deste modo, eudaimonia era vista como causa final deste homem da pólis. Era
a perfeição, estado de plenitude, realização e felicidade que as pessoas deveriam
buscar alcançar ao longo de suas vidas, por isso que a ética aristotélica é muitas vezes
descrita como uma ética teleológica, se concentra nos fins e objetivos das ações
humanas. Sendo assim, Aristóteles, “insistiu no caráter contemplativo da felicidade em
seu grau superior, a bem-aventurança.” (Ibid., p. 434). A felicidade é, portanto, algo
absoluto e autossuficiente sendo também a finalidade da ação. É a busca da
realização mais alta e duradoura, que é alcançada por meio da prática da virtude moral:

[...] autossuficiente pode ser definido como aquilo que, em si, torna a
vida desejável por não ser carente de coisa alguma, e isto em nossa
opinião é a felicidade; ademais, julgamos a mais desejável de todas
as coisas não uma coisa considerada boa em correlação com outras -
se fosse assim ela se tornaria obviamente mais desejável mediante a
adição até do menor dos bens, pois esta adição resultaria em um bem
total maior, e em termos de bens o maior é sempre mais desejável.
Logo, a felicidade é algo final e autossuficiente, e é o fim a que visam
as ações. (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco 1097b ).

Desta forma, a felicidade é a finalidade de todas as coisas, logo, um bem


supremo realizável pelo homem. Ela é autossuficiente, mas não no sentido isolado,
senão como a própria citação confere: autossuficiente pode ser definido como aquilo
que, em si, torna a vida desejável por não ser carente de coisa alguma. Esta é
alcançada por meio da prática das virtudes que se dá no cotidiano por meio do
exercício ativo das faculdades da alma. (Cf. Ibid., 1098ª).
Portanto, para o Estagirita, a eudaimonia era uma atividade contínua pela busca
da felicidade que envolve as atividades intelectuais e morais ao longo da vida,
buscando sempre melhorar e aprimorar as virtudes pessoais. Está intrinsecamente
ligada à virtude e à excelência moral (aretê).

3.5.6 Na aplicação de fenômenos ou coisas abstratos

O uso das causas, e neste caso a causa final, auxilia à compreensão de


fenômenos abstratos. Tomemos como exemplo um eclipse e a matemática para
aplicar as quatro causas aristotélicas, assuntos tratados por Aristóteles no livro dois
da física, no capítulo cinco. Veremos que é possível visto que não se trata de olhá-las

97
isoladamente, senão um conjunto de causas que contribuem para a cognoscibilidade
das coisas. É importante salientar duas coisas: que o fim não se reduz à aplicabilidade
ou funcionalidade, como vimos, também que é possível alguma coisa ser em vista de
algo, embora não tenha agido deliberadamente.
Continuemos nossa argumentabilidade sobre o eclipse que pode ser definido
como “privação da luz na lua devido à interposição da Terra.” (Cf. ARISTÓTELES apud
ANGIONI, 2009, p. 287-288). Pensemos que a causa material de um eclipse solar é a
interposição da Lua entre a Terra e o Sol. A Lua, como um objeto físico, constitui a
matéria que está envolvida nesse fenômeno. A causa formal: A causa formal está
relacionada à configuração específica da interposição da Lua entre a Terra e o Sol. A
forma particular como a Lua se alinha com o Sol e a Terra determina a aparência e as
características do eclipse.
Já causa eficiente são os movimentos orbitais da Terra, da Lua e do Sol. Trata-
se, portanto, da interação gravitacional e orbital entre esses corpos celestes que
resulta na posição da Lua bloqueando parcial ou completamente a luz do Sol. Mas a
causa final, qual seria para fazer jus a teoria hilemórfica teleológica deste filósofo?
Ora, no caso de um eclipse solar, não se trata necessariamente de um propósito
consciente, mas sim da expressão das leis naturais e das relações entre os corpos
celestes conforme o funcionamento do sistema solar, também não ocorre sempre.

No entanto, poderia dizer que a causa final seria esse fenômeno ocorrido, quer
dizer, seu acabamento. De fato , o próprio Aristóteles em Física 194ª 27-36, enquadra
a causa final como o bom fim. Argumenta que a deliberação do agente envolvido não
é condição necessária para o caráter teleológico de um determinado processo. Dito de
outro modo, pelo fato de não haver um proposito consciente no eclipse não significa
que ele não tenha um fim. Aristóteles reconhecia que nem todos os eventos naturais
eram governados por um propósito intrínseco ou finalidade. Sendo assim os eclipses
são fenômenos naturais que ocorrem devido às posições relativas da Terra da lua e
do Sol eles podem ser atrás das leis da física e da astronomia.
Assim, o eclipse se enquadra nesta explicação, conforme Lucas Angioni:

Aristóteles afirma que “A ocorre sempre ou necessariamente da


mesma maneira”, mas isso não quer dizer que “A existe eternamente
nem toda a duração, da mesma maneira”. O termo A é modo
abreviado de exprimir uma relação causal ou uma relação atributiva:
“o eclipse sempre ocorre do mesmo modo” não quer dizer que o
eclipse existe sempre. (ARISTÓTELES apud ANGIONI, 2009, p. 287,
grifos do autor).
98
Nesse caso uma relação causal atributiva envolve atribuir um fator como uma
contribuição para um resultado, mas não necessariamente como a causa única ou a
principal desse resultado, ou seja, não necessariamente implica uma relação de causa
e efeito direta. Por exemplo, se alguém disser que a alta taxa de criminalidade em uma
área é atribuída à falta de oportunidades de emprego, isso sugere uma relação
atributiva. A falta de oportunidades de emprego é atribuída como um dos fatores que
contribuem para a alta taxa de criminalidade, mas não necessariamente implica que a
falta de emprego seja a causa única ou direta da criminalidade.
Logo, destes argumentos resulta que é importante notar que as quatro causas
aristotélicas procuram oferecer uma explicação abrangente e holística, considerando
todos os aspectos do fenômeno em questão. Sendo assim, em um eclipse solar, todas
essas causas interagem para produzir o evento observado. Isso significa que embora
não ocorra sempre eclipse, não significa que ele não exista, como também não se
pode afirmar que ele sempre existe. Todavia, uma vez ocorrendo esse fenômeno
atingiria sua perfeição como acabamento, ato.36
Quanto à matemática. É no mesmo raciocínio: abordagem das quatro causas
de Aristóteles não se aplica diretamente à matemática37 da mesma maneira que se
aplica à filosofia natural. Isso ocorre porque a matemática lida com objetos abstratos e
relações formais, que não têm a mesma natureza material e causal que os objetos
naturais.
Portanto, a riqueza da complexidade da causalidade é que ela pode oferecer
uma explicação dos eventos naturais e objetos do mundo físico. Além disso, o enfoque
nas causas pode levar a uma compreensão mais simplificada ou incompleta de certos
fenômenos complexos.

Caso o leitor queira se aprofundar nesta temática, ver: Segundos Analíticos 75b 34-5, (em grego, Ἀναλυτικῶν προτέρων)
36

onde Aristóteles desenvolver toda uma argumentabilidade.


37
No entanto, podemos fazer uma analogia para ilustrar como as quatro causas podem ser interpretadas em relação à
matemática: Causa Material: Nesse contexto, a "causa material" pode ser vista como os elementos numéricos que
compõem uma expressão matemática. Por exemplo, nos números que compõem uma equação ou fórmula. Causa
Formal: A "causa formal" na matemática pode ser entendida como a estrutura e as relações formais entre os elementos
numéricos. É a forma como esses números estão organizados e relacionados. Causa Eficiente: Na matemática, a "causa
eficiente" poderia ser associada aos processos de cálculo e dedução que levam a resultados matemáticos. Os métodos,
algoritmos e procedimentos que usamos para chegar a conclusões matemáticas. Causa Final: A "causa final" na
matemática não tem o mesmo significado que nas ciências naturais. No entanto, pode ser interpretada como os objetivos
ou propósitos matemáticos subjacentes. Por exemplo, resolver um problema específico, explorar relações entre números
ou demonstrar uma teoria. Lembrando que essa analogia é uma interpretação abstrata e adaptada da abordagem das
quatro causas de Aristóteles ao contexto da matemática. A matemática é uma disciplina que se concentra em relações
formais e abstratas, não envolvendo os mesmos tipos de causas que ocorrem nos fenômenos naturais. Portanto, a
aplicação direta das quatro causas à matemática pode ser considerada uma metáfora ou uma analogia.

99
3.5.7 Na compreensão científica do mundo

A ciência trabalha com pressupostos que existem causas neste mundo. Ela
analisa os fenômenos naturais buscando minuciosamente as respostas ou
simplesmente as causas deles para depois formar as leis. Dessa forma, negá-las é
negar a própria ciência, sua capacidade de usufruir da natureza. Afinal, negá-la é
negar explicitamente toda validade da ciência, pois esta trabalha com pressupostos
que existem causas para tudo que por mais que não sejam de cunho metafísico, é
incapaz de se separar dela.
Analisa também os fenômenos naturais buscando minuciosamente as
respostas ou simplesmente as causas deles para depois formar as leis. Ela faz todo
esse percurso com o objetivo de melhorias para as relações humanas. Assim, o
médico quer descobrir a causa de tal doença que se manifesta num determinado
paciente causando reações ou efeitos desagradáveis a ele.
E quando ele passa qualquer medicação, esta pode causar reações ou efeitos
colaterais diversos no paciente tais como: sonolência, náusea, problemas intestinais,
entre outros. Ora, é inegável que tudo isso foi devido à medicação. O paciente está
totalmente lúcido, consciente de que não é fruto de sua imaginação, mas algo que ele
mesmo pôde sentir.

Da mesma forma, a gravidade descoberta e explicada por Newton é a causa


da estabilidade das coisas. A seleção natural é a causa da evolução das espécies
encontrada por Darwin. Compreende-se, aliás, que esse princípio não é só objeto da
razão, mas da própria ciência, “ora, para agir sobre a natureza é preciso conhecer as
causas que podem exercitar umadeterminada atividade, modificar o curso dos eventos
e produzir os efeitos que se querem.” (SELVAGGI, 1988, p. 315).
Portanto, é somente por meio das causas que o homem pode usufruir da
natureza, questioná-la e analisá-la, procurando respostas aos seus questionamentos.
O método científico tem como elemento primordial a causalidade. Esta se encontra em
todo cosmos e somente por ela o conhecimento pode ser construído. Contudo, esse
princípio não depende do meio empírico, não se constata de forma direta. Todavia, isso
não justifica que ele não exista, ou não seja útil. Decerto, a realidade não se reduz à
visibilidade.38

Isso implica dizer que, “A ausência da evidência não é a mesma coisa da evidência da ausência”, ou seja, pelo fato de
38

não vermos uma determinada coisa - pala falta de evidência - não significa que esta não exista. Para os que acreditam
100
Embora a ciência tenda a enfatizar mais as causas eficientes e materiais,
buscando explicar os eventos em termos de relações causais observáveis e
mensuráveis, a noção de causalidade auxilia na crescente compreensão científica do
mundo. Fazendo com que om conhecimento cientifico avance pois a doutrina causal
aristotélica encaixa melhor em uma compreensão científica do mundo, onde a
teleologia (enfoque nas causas finais) explica a finalidade das coisas e a perfeita
conexão entre as causas.

3.6 INFLUÊNCIA DA CAUSALIDADE EM ALGUNS ÂMBITOS

Não se pode negar uma vasta contribuição do princípio aristotélico da


causalidade em muitos âmbitos basta pegarmos manuais de filósofo e analisarmos
suas doutrinas quer seja para defendê-la ou criticá-la. Assim, a noção de causa está
presente em Kant (apud FINANCE, A1965, p. 351, tradução nossa) que afirmou: “Todo
ser contingente requer uma causa eficiente de sua produção.” Também em Cícero,
Descartes, Leibniz, Wolff, Santo Tomás de Aquino e muitos outros como o próprio
David Hume (Cf. FINANCE, 1965, p. 349-353).
Portanto, perceberemos claramente como perdura até hoje a noção de causa
no cosmos das transformações. Analisemos nestas subseções, a presença marcante
da causalidade, neste campo: Influência na Ciência Antiga, Transição para a
Ciência Medieval, bem como o

Legado na Filosofia da Ciência.

3.6.1 Influência na Ciência Antiga

Na antiguidade, a filosofia aristotélica e sua noção de causa tiveram uma


influência significativa na maneira como os pensadores gregos abordavam a
investigação natural. Nota- se, que Aristóteles no primeiro da Metafisica recorda seus
predecessores e analisa suas doutrinas acerca desta realidade causal. Ora, isso
significa que era uma preocupação da época compreender a origem do cosmos, da
vida, a morte, o sentido do agir humano etc. Assim, filósofos mecanicistas como

que a realidade se reduz a visibilidade, ou a evidência empírica, estão destruindo a ideia de um bem, de um princípio
gerador de tudo.

101
Empédocles, Demócrito, Leucipo, depois Epicuro explicam a noção de finalismo. (Cf.
FINANCE, 1965, p. 404).
Dessa maneira, a noção de que os entes naturais tinham um propósito
intrínseco, quer dizer, uma causa final, influenciou a biologia e a zoologia, levando ao
estudo das características e comportamentos dos seres vivos em relação aos seus
“fins”.

3.6.2 Transição para a Ciência Medieval

A filosofia aristotélica desempenhou um papel central na Idade Média, quando


a investigação científica estava fortemente ligada à teologia e à filosofia. Nesse
contexto, a causalidade final foi usada para explicar muitos fenômenos naturais,
incluindo os movimentos dos planetas no sistema geocêntrico. Durante a Revolução
Científica do século XVI e XVII, as ideias aristotélicas sobre causa final enfrentaram
desafios significativos. Cientistas como Galileu Galilei e Isaac Newton (como vimos no
exemplo da gravidade, na subseção 3.5.7) desenvolveram teorias que explicavam o
movimento dos corpos sem apelar para causas finais, mas sim usando leis
matemáticas e causas eficientes. Isso marcou uma transição para uma abordagem
mais empírica e mecanicista da ciência, que se afastava das explicações teleológicas.
Também é de suma importância destacar a importância e contribuição do
pensamento de Santo Tomás de Aquino no pensamento medieval, inclusive comentou
a Metafísica de Aristóteles analisando as bases do pensamento metafísico e
aprofundando em sua filosofia primeira o que influenciou positivamente a teologia até
os dias atuais.

3.6.3 Legado na Filosofia da Ciência

Embora a causa final tenha sido substituída como explicação principal na


ciência moderna, ainda é discutida na filosofia da ciência. Alguns filósofos exploram
como a causa final se encaixa em uma explicação científica mais ampla, enquanto
outros a veem como uma abordagem desatualizada. Como diz Túlio Aguiar:

A noção de causalidade ocupa uma posição central no cenário


filosófico da época moderna [...]. O problema metafísico consiste em
buscar compreender que tipo de coisa a causação é. O problema
epistemológico configura-se com a tentativa de determinar a maneira
102
de detectar conexões causais genuínas. No intenso debate sobre a
causação no período moderno, o foco de interesse desloca-se
progressivamente do problema metafísico para o problema
epistemológico. (AGUIAR, 2008, p.19, grifo do autor)

De fato, como bem confere a citação supracitada o foco de interesse desloca-


se progressivamente do problema metafísico para o problema epistemológico, pois a
ciência moderna, baseada na observação, experimentação e formulação de leis
naturais, tende a evitar explicações que dependam da causa final. Em vez disso, ela
busca entender os processos naturais por meio de causas eficientes e mecanismos
físicos.
O problema não é sabe o que a coisa é, sua essência, mas como se conhece,
seus aspectos acidentais. Em certo sentido, isso permitiu um avanço significativo no
entendimento das leis da natureza e na previsão de fenômenos. No entanto, com o
advento da ciência moderna e a ênfase em causas eficientes e mecanicistas, a
causalidade final foi gradualmente substituída por abordagens mais empiricamente
orientadas na ciência. causa final é mais frequentemente discutida no contexto da
história da filosofia e da filosofia da ciência, por exemplo, a Teoria da Regularidade.
Esta afirma que a causalidade é uma relação constante entre eventos Foidesenvolvida
por Hume. (Cf. GARRETT, 2008, p.71).
Portanto, a influência das ideias de Aristóteles sobre as causas ainda pode ser
vista em várias áreas da filosofia e das ciências, especialmente na filosofia da biologia
e em discussões sobre a natureza da causalidade. Sua ênfase na busca por
explicações completas e na consideração das causas ainda influencia o pensamento
científico contemporâneo, especialmente em disciplinas como a filosofia da ciência e
a teoria da explicação científica.

103
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para introduzir as considerações finais resgataremos a problemática


norteadora durante todo o desenvolvimento desta dissertação, a saber, que “a
existência da causalidade no mundo físico é uma verdade evidente?”
Durante nossa argumentabilidade cumprimos o objetivo geral “investigar a
concepção aristotélica de causalidade em sua fundamentação filosófica”. E isso
fizemos, pois não só aprofundamos o conceito de causalidade desde as antigas
reflexões filosóficas até os avanços científicos contemporâneos, sem a pretensão de
tal realidade, mas também procuramos compreender suas raízes, ou seja, como essa
noção molda a essência mesma do nosso entendimento sobre o cosmos marcado
pelo devir e pelas transformações.
Assim sendo, por meio de uma leitura logocêntrica e baseada em argumentos
sólidos compreendemos a natureza da relação entre causa e efeito, e,
consequentemente, a legitimidade da causalidade e a importância de não a reduzir a
nenhum pensamento filosófico. Por isso, percebeu-se como é pertinente o estudo
sério, aprofundado, de toda sua fundamentação filosófica que foi o alicerce para o
mundo ocidental, fazendo jus aos dois objetivos específicos “analisar as raízes da
concepção aristotélica de causalidade” e “aprofundar o debate em torno da pertinência
e da validade atual da concepção de causalidade. Abordamos a defesa da
causalidade bem como as contribuições em vários âmbitos como na ética e na política,
no conhecimento científico bem como na própria filosófico desde o período clássico
até os dias atuais.
Portanto, podemos elucidar três grandes considerações ou contribuições que
estão em conformidade com a problemática bem como com os objetivos que
apresentamos.
A primeira, trata-se da real necessidade de afirmar a validade do princípio da
causalidade. E, assim, arrematamos o primeiro capítulo ratificando a importância da
correlação entre as quatro causas, a partir da noção de aitia e o fim como sendo a
causa da causalidade de todas as coisas e goza de precedência ontológica.
A segunda, diz respeito inteligibilidade da causalidade, quer dizer, embora esse
princípio seja afirmado pelo intelecto humano, ele não se submete à experiência
sensível conforme os ditames de algumas correntes filosóficas, o empirismo, por
exemplo.
104
A terceira grande contribuição corresponde ao nosso segundo objetivo
específico desta pesquisa: “Aprofundar o debate em torno da pertinência e da validade
atual da concepção de causalidade.” Quer dizer, após percorrido toda uma trajetória
fica claro a necessidade de aprofundar nesta temática para que se possa chegar a
alguns argumentos sólidos de defesa da noção aristotélica de causalidade alcançando
uma exposição consistente, enfrentando, assim, os ataques e os debates modernos
em torno dela.
É imprescindível destacar a legitimidade da causalidade aristotélica como
conceito fundamental tanto para o pensamento filosófico quanto para o pensamento
científico, visto que certas concepções filosóficas tendem a contestá-la colocando em
risco a validade e a objetividade deste princípio metafísico tão significativo para o
pensamento ocidental e para as ciências modernas. Portanto, sugere-se que alguns
estudos ampliem o conhecimento da causalidade e reafirme sua validade e
necessidade tanto para o desenvolvimento filosófico quanto para o científico.

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