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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO

PRO-REITORIA ACADÊMICA
PROGRAMA DE MESTRADO EM FILOSOFIA

A noção aristotélica de causalidade

JOSÉ DÁCIO SANTOS OLIVEIRA

RECIFE-PE
2023
JOSÉ DÁCIO SANTOS OLIVEIRA

A noção aristotélica de causalidade

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-graduação em Filosofia
da Faculdade Católica de Pernambuco,
como requisito parcial à obtenção do
título Mestre em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. José Marcos Gomes de Luna

RECIFE-PE
2023
JOSÉ DÁCIO SANTOS OLIVEIRA

A noção aristotélica de causalidade

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-graduação em Filosofia
da Faculdade Católica de Pernambuco,
como requisito parcial à obtenção do
título Mestre em Filosofia.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________
Profº Dr. José Marcos Gomes de Luna

UNICAP, Orientador

__________________________________
Profº

UNICAP, Membro interno

__________________________________
Profº. Dr.

UNICAP, Membro interno

__________________________________
Profº Dr.

UNICAP, Membro externo


Dedico esta Dissertação em primeiríssimo lugar
Àquele que é o único e digno de toda honra e
glória, ao meu Deus. Aos meus pais João José
de Oliveira e Maria de Lourdes Santos. Esta
conquista é fruto deles.
AGRADECIMENTOS

A gratidão é uma marca autêntica da pessoa humana e revela um coração humilde


e generoso. Revela, sobretudo que nossas conquistas nunca são isoladas, mas se dão na
intersubjetividade e na contribuição de tantas pessoas. Dessa forma, hoje para mim é um
dia gratidão a tantos que fazem parte do meus estudos.
De antemão, agradeço a Deus pelo dom maravilhoso que recebi Dele: a vida.
Agradeço-Lhe profundamente pelos meus pais João José de Oliveira e Maria de Lourdes
Santos e a todos os meus familiares que me incentivam a seguir nos caminhos de Deus,
mesmo diante dos momentos difíceis da vida.
Agradeço a todos os meus amigos que sempre estão presentes na minha vida
mesmo que estejamos fisicamente separados. Obrigado pelos momentos que
vivenciamos juntos, pelas lágrimas que derramamos, pelas vitórias e derrotas!
Agradeço a Sua Excelência Reverendíssima Dom Valdemir Ferreira dos Santos,
meu pastor, pelo incentivo aos estudos. Agradeço a professora Verinha, minha primeira
professora do pré-escolar. Grato a todos os meus professores por toda formação que eu
recebi até a conclusão da filosofia. Ao Reverendíssimo Pe. Wellington, irmão no
sacerdócio, muito obrigado pelo incentivo aos estudos!
Grato a todos que formam o Seminário Maria Mater Ecclesiae do Brasil, em
Itapecerica da Serra -SP, por toda formação filosófica que recebi.
Grato a todos que formam a Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP,
especialmente ao meu orientador Prof. Dr. Marcos Gomes de Luna, sacerdote. Muito
obrigado pela paciência para comigo.
Agradeço a Sua Excelência Reverendíssima Dom Henrique (in memoriam) meu
grande Pai Espiritual pela ajuda no meu processo de discernimento vocacional e por
tantos conselhos que hoje os entendo perfeitamente o no meu Ministério Sacerdotal.
Agradeço a Maria Monteiro de Melo (in memoriam) foi por meio desta serva de
Deus que comecei a frequentar minha paróquia e participar do grupo dos coroinhas,
despertando, assim, a vocação sacerdotal.
Agradeço ao Reginaldo Dullys, grande servo de Deus pela oração e amizade. A
todos vós muito obrigado! Vós sois a motivação aos meus estudos!

Enfim, agradeço a Virgem Maria, minha querida Mãe, que sempre está presente
em minha vida.
Obrigado, Senhor, por tudo!

Domine, in manus tuas commendo vitam meam!

(Senhor, em tuas mãos eu entrego a minha vida!).


“Além disso, quem conhece as causas com mais
exatidão, e é capaz de ensinar, é considerado em
qualquer espécie de ciência como mais
filósofo.”

Aristóteles
RESUMO

Nesta dissertação, procuraremos dar uma possível resposta a problemática que


levantamos, a saber, a existência da causalidade é uma verdade evidente?. Para alcançar
tal resultado, exporemos os argumentos aristotélicos da excelência da sapiência sobre os
demais saberes, bem como da análise de causa na doutrina de alguns filósofos que
precederam Aristóteles, pois foram os primeiros a procurar uma arché eterna que fosse o
fundamento responsável pela existência das coisas. Em seguida, introduziremos a noção
de causa como αἰτία (aitia) termo introduzido por Aristóteles, na Metafísica, para
designar “causa”, o porquê de uma coisa em seu sentido mais profundo e amplo.
Culminaremos na conexão e relação entre as causas e como a causa final é a causa de
todas as causas. Veremos que estas explicam as transformações no mundo do devir por
meio tanto da doutrina do hilemorfismo teleológico quanto do ato e da potência.
Notaremos a partir de uma profunda fundamentação filosófica da causalidade que ela foi
o alicerce para o mundo ocidental. Deste modo, ao adentrar esse domínio complexo,
exploraremos não só a natureza intrínseca da causalidade, mas também sua contribuição
ao conhecimento científico.

Palavras-chave: Aristóteles. Causalidade. Cosmos. Ciência. Contemporaneidade.

ABSTRACT

In this dissertation, we will try to provide a possible answer to the problem we have raised,
namely, is the existence of causality a self-evident truth? In order to achieve this result,
we will expose the Aristotelian arguments for the excellence of wisdom over other
knowledge, as well as the analysis of causation in the doctrine of some philosophers who
preceded Aristotle, since they were the first to search for an eternal arché that was the
foundation responsible for the existence of things. Next, we will introduce the notion of
cause as αἰτία (aitia), a term introduced by Aristotle in the Metaphysics to designate
"cause", the why of a thing in its deepest and broadest sense. We will culminate in the
connection and relationship between causes and how the final cause is the cause of all
causes. We will see that these explain the transformations in the world of becoming
through the doctrine of teleological hylemorphism as well as act and potency. We will see
from a profound philosophical foundation of causality that it was the foundation for the
Western world. Thus, by entering this complex domain, we will explore not only the
intrinsic nature of causality, but also its contribution to scientific knowledge.

key words: Aristóteles. Causality. Cosmos. Science. Contemporaneity.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..................................................................................................11
2 A NOÇÃO ARISTOTÉLICA DE CAUSALIDADE........................................14
2.1 A EXCELÊNCIA DA SAPIÊNCIA EM ARISTÓTELES.................................14
2.1.1 A ensinabilidade do conhecimento das causas............................................15
2.1.2 A universalidade do conhecimento das causas..........................................18
2.1.3 O grau da perfeição do conhecimento das causas.....................................21
2.2 CONHECIMENTO DA CAUSALIDADE NO MUNDO DO DEVIR.............23
2.1.1 Ato, Potência, Forma e Matéria como explicação da causalidade no
mundo das transformações...................................................................................24
2.3 A CRÍTICA DE ARISTÓTELES AOS SEUS ANTECESSORES....................32
2.4 FILÓSOFOS QUE FICARAM NO NÍVEL DA CAUSA MATERIAL E DA
CAUSA MOTORA.................................................................................................33
2.4.1Tales de Mileto: a água como princípio gerador de todas as coisas............34
2.4.2 Anaximandro de Mileto: o ápeíron como princípio indefinido-infinito
gerador de todas as coisas.....................................................................................36
2.4.3 Anaxímenes de Mileto: o ar infinito como princípio gerador de todas as
coisas......................................................................................................................37
2.4.4 Diógenes de Apolônia: o ar-inteligência, de natureza infinita, como
princípio gerador de todas as coisas ....................................................................38
2.4.5 Leucipo e Demócrito: o atomismo como princípio gerador de todas as
coisas......................................................................................................................39
2.4.5 Heráclito de Éfeso: o perene escorrer de todas as coisas e o devir universal
revelam-se como harmonia de contrários............................................................40
2.4.6 Parmênides e a doutrina do ser: o ser é e o não ser não é............................42
2.5 FILÓSOFOS QUE ULTRAPASSARAM A CAUSA MATERIAL E A
MOTORA...............................................................................................................43
2.5.1 Empédocles de Agrigento: o primeiro dos pluralistas e a teoria
cosmogônica dos quatro elementos......................................................................44
2.5.2 Anaxágoras de Clazômenas: a descoberta das homeomerias e da
inteligência ordenadora........................................................................................47
2.5.3 Platão: mundo das formas e o mundo sensível...........................................50
2.6 A NOÇÃO DE CAUSALIDADE NA METAFÍSICA.......................................53
2.6.1 O termo causalidade em Aristóteles............................................................54
2.7 AS QUATRO CAUSAS....................................................................................55
2.7.1 Causa formal-αἰτία εἰδική .........................................................................56
2.7.2 Causa material-αἰτία ὑλική ........................................................................58
2.7.3 Causa eficiente- αἰτία ἐνεργείᾳ....................................................................59
2.7.4 Causa final αἰτία τελική...............................................................................60
2.8 GANHOS OBTIDOS DO CAPÍTULO.............................................................61
2.8.1 Primazia da sabedoria sobre as demais formas de conhecimento:
distinção e harmonia.............................................................................................61
2.8.2 Conhecimento holístico das coisas...............................................................62
2.8.3 Causa definida como αἰτία: uma compreensão mais ampla da
realidade.................................................................................................................63
3 A CAUSA DAS CAUSAS NA DOUTRINA ARISTOTÉLICA......................65
3.1 A CONEXÃO ENTRE AS CAUSAS................................................................66
3.1.1 A relação entre causa final e causa motora.................................................67
3.1.1.1 Telos e função: a causa teleológica é exclusivamente aplicabilidade?....68
3.1.2 A relação entre causa final e causa formal...................................................70
3.1.3 A relação entre causa final e material.........................................................71
3.2 O ACASO: UM FRACASSO DA FINALIDADE?...........................................72
3.3 CENTRALIDADE E IMPORTÂNCIA DA CAUSA FINAL NO
PENSAMENTO ARISTOTÉLICO........................................................................77
3.4 A DEFESA DA TELEOLOGIA ......................................................................81
3.4.1A convergência das três causas para uma só no livro II da
Física......................................................................................................................82
3.5 A NECESSIDADE DA CAUSA FINAL...........................................................87
3.5.1 Explicação abrangente.................................................................................88
3.5.2 Explicação teleológica..................................................................................89
3.5.3 Ênfase na essência.........................................................................................90
3.5.4 Compatibilidade empírica...........................................................................91
3.5.5 Influência na Ética e na Política...................................................................92
3.5.6 Na aplicação de fenômenos ou coisas abstratos..........................................93
3.5.7 Na compreensão científica do mundo..........................................................95
3.6 INFLUÊNCIA DA CAUSALIDADE EM ALGUNS ÂMBITOS....................96
3.6.1 Influência na Ciência Antiga........................................................................97
3.6.2 Transição para a Ciência Medieval............................................................97
3.6.3 Legado na Filosofia da Ciência....................................................................98
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................99
5 REFERÊNCIAS...............................................................................................101
1 INTRODUÇÃO

É imprescindível destacar a legitimidade da causalidade aristotélica como conceito


fundamental tanto para o pensamento filosófico quanto para o pensamento científico, que
trabalha com o pressuposto que existem causas para tudo. A causalidade, efetivamente, indica
como o mundo progride. É um conceito objetivo ou ontológico tão fundamental no qual dele se
originam e se fundamentam outros conceitos mais básicos. É ainda o conteúdo fundamental da
explicação e sem este salto qualitativo da razão o homem é incapaz de conhecer as coisas com
objetividade, além de que, ficaria numa discussão e debates infrutíferos.
Dessarte, a noção de causalidade aristotélica moldou a nossa reflexão durante o
desenvolvimento desta dissertação que se dedicou, a fundo, no estudo acerca deste tema,
partindo do pressuposto é a condição primária, a raiz para a inteligibilidade. Aristóteles que
deixou um vasto conhecimento acerca da realidade das coisas e como estas se encontram em
uma perfeita harmonia no cosmos.
Tivemos como pretensão responder à problemática levantada, a saber: “a existência da
causalidade no mundo físico é uma verdade evidente?” Julgamos importante essa dedicação a
ela, visto que certas concepções filosóficas tendem a contestá-la colocando em risco a validade
e a objetividade deste princípio metafísico tão significativo para o pensamento ocidental e para
as ciências modernas. Por isso, percebemos como foi pertinente o estudo sério, aprofundado,
de toda sua fundamentação filosófica que foi o alicerce para o mundo ocidental e
consequentemente para os tempos atuais.
E para argumentá-la tomamos como nosso objeto de estudo duas principais obras deste
filósofo: Física e Metafísica. Nestas, a partir do conceito de αἰτία (aitia) que designar “causa”,
o porquê de uma coisa em seu sentido mais profundo .ele explica que o homem só pode
conhecer as coisas por meio das causas, sem estas não se pode conhecer nada. Deste modo,
mergulhamos nas categorias das causas material, formal, eficiente e final, desenterrando as
nuances que ele atribuiu à complexa teia de relações que dá forma ao universo.
Propusemos como objetivo geral “investigar a concepção aristotélica de causalidade
em sua fundamentação filosófica” e como objetivos específicos “analisar as raízes da
concepção aristotélica de causalidade” e “aprofundar o debate em torno da pertinência e da
validade atual da concepção de causalidade”. E para corroborar em nosso desenvolvimento,
estruturaremos este trabalho em dois capítulo.

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No primeiro capítulo, argumentamos que para conhecer qualquer ente, devemos, a
priori, fazer uso das causas, conhecê-las, visto que só conhecemos uma determinada coisa
quando atingimos sua primeira causa. Neste capítulo, abordamos sobre a excelência da
sapiência em Aristóteles destacando três argumentos: a ensinabilidade do conhecimento das
causas, a universalidade do conhecimento das causas e o grau da perfeição do conhecimento
das causas.
Em seguida, fizemos uma breve alusão ao pensamento de alguns filósofos predecessores
de Aristóteles. Isso é importante porque a noção de causa, de um princípio gerador de todas as
coisas não surgiu propriamente com Aristóteles, mas com esses primeiros filósofos os quais
procuravam uma arché eterna que fosse o fundamento responsável pela existência das coisas.
Analisamos tanto aqueles que se detiveram na causa material e motora como aqueles que a
ultrapassaram, chegando mesmo que de modo confuso a noção de causa final, conforme o
Estagirita.
Continuando nosso argumento, apresentamos o pensamento aristotélico de causalidade
e sua definição de como “aitia” ou “aitio. Aprofundaremos nossos argumentos acerca das
quatro causas, analisando-as e explicando-as. Afirmamos que nada é causa de si mesmo e o que
não existia e passou a existir teve uma causa, um motivo. Terminamos o primeiro capítulo
elucidando os ganhos obtidos do capítulo, que foram precisamente três: Conhecimento holístico
das coisas; Primazia da sabedoria sobre as demais formas de conhecimento: distinção e
harmonia; e Causa definida como αἰτία: uma compreensão mais ampla da realidade.
No segundo capítulo, tratamos sobre “a causa das causas na doutrina aristotélica”, isto
é, a causa final ou teleológica. Apreendemos que esta é a causa por excelência, sendo assim,
ela é superior às demais. Deste modo, o finalismo parte de sua teoria metafísica e filosofia da
natureza que propõem uma explicação sobre a natureza dos seres e sua composição, enfocando
a relação entre matéria e forma (hilemorfismo teleológico) bem como a noção de finalidade na
natureza e sua conexão e relação com as demais, a causa material, formal e eficiente.
Afirmamos que essas causas não devem ser concebidas como justapostas ou isoladas, mas como
uma ordem determinada, em uma sequência lógica, isto é, em uma mútua relação entre causas
extrínsecas e intrínsecas.
Depois, vimos que Aristóteles concebe o acaso como uma realidade extra rationem,
uma causa por concomitância. Em seguida, abordamos a centralidade e importância da causa
final no pensamento aristotélico onde a defenderemos por meio do livro dois da Física. Disto
decorreu a necessidade de afirmarmos a causa final por meio de argumentos, tais como:

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Explicação abrangente, Compreensão das mudanças, Explicação teleológica, Ênfase na
essência, Compatibilidade empírica, Influência na ética e na política, na Compreensão dos
fenômenos abstratos e na Visão científica do mundo.
Além disso, explicamos que a ciência trabalha com pressupostos que existem causas
neste mundo. Ela analisa os fenômenos naturais buscando minuciosamente as respostas ou
simplesmente as causas deles para depois formar as leis. Dessa forma, negá-las é negar a própria
ciência, sua capacidade de usufruir da natureza. Na verdade, a causalidade serve como
embasamento, suporte ao conhecimento cientifico. Finalizamos este capítulo destacando
influência da causalidade em alguns âmbitos, tais como: na Ciência Antiga, Transição para a
Ciência Medieval e no Legado na Filosofia da Ciência.
Enquanto aos intérpretes usamos: Joseph de Finance com a obra El Conocimiento Del
Ser: Tratado de Ontología, Giovanni Reale com a obra Filosofia Pagã; Lucas Angioni com
alguns de seus artigos, dentre outros. E ainda, para enriquecer esta pesquisa colocamos durante
o desenvolvimento algumas explicações e questionamentos em nota de rodapé que serviram
como reflexão ao leitor despertando o interesse para aprofundar na noção de causalidade
aristotélica.
Ademais, salientamos que os textos originais das obras foram traduzidos pelo autor
deste trabalho e que é de sua inteira responsabilidade.

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2 A NOÇÃO ARISTOTÉLICA DE CAUSALIDADE

Este capítulo, tem como objetivo tratar da essência do conhecimento, em Aristóteles,


que se dá por meio das causas. E para o desenvolvimento argumentativo é imprescindível, não
só abordar a sapiência (em grego σοφία) como a forma mais elevada de saber, mas também
trazer a crítica que ele faz às doutrinas de alguns de seus predecessores acerca do problema da
causalidade que evoca a origem das coisas presentes no cosmos.
Para melhor compreensão e assimilação dos argumentos a serem abordados,
estruturaremos este capítulo em quatro seções, da seguinte forma:
Na primeira seção, apresentaremos a excelência da sapiência enquanto conhecimento
das causas sobre as outras formas de conhecimento, a saber: a sensação, a experiência e a
memória.
Na segunda seção, abordaremos a causalidade no mundo do devir, pois julgamos ser
isso substancial, ou seja, uma condição sine qua non para a compreensão das causas.
Na terceira seção, apresentaremos o pensamento de alguns predecessores de Aristóteles.
Veremos a crítica deste a eles, destacando aqueles que se detiveram na causa material daqueles
que a ultrapassaram.
Na última seção, avançando no raciocínio, culminaremos na possível noção de
causalidade na Metafisica.

2.1 A EXCELÊNCIA DA SAPIÊNCIA EM ARISTÓTELES

Embora existam as formas do conhecimentos como a experiência, a memória e a


sensação, Aristóteles, no primeiro livro da Metafísica, considera somente a arte e a ciência
como sapiência e demonstra isso como muita maestria por meio de exemplos e
argumentabilidade. Ele considera a excelência da sapiência como um dos mais altos ideais
humanos relacionando-a intimamente com a busca pela eudaimonia ou uma vida
verdadeiramente boa e feliz. Sendo assim, a busca pela σοφία envolve o desenvolvimento do
conhecimento teórico e prático, bem como a constante reflexão sobre as verdades mais
profundas e universais da existência. É um tema central em sua filosofia moral e ética, que
influenciou altamente a tradição filosófica ocidental.
Dessa forma, em um encadeamento racional, ele expõe três argumentos para elucidar a
excelência e a superioridade do conhecimento das causas: a ensinabilidade do conhecimento
das causas, a universalidade do conhecimento das causas e o grau de conhecimento das causas.
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Vamos considerá-los detalhadamente nestas próximas subseções para um profícuo êxito desta
nossa pesquisa.

2.1.1 A ensinabilidade do conhecimento das causas

O primeiro argumento refere-se à ensinabilidade. Trata-se da arte de ensinar, visto que


é próprio da ciência ser ensinável e do sábio ter o conhecimento das coisas difíceis e saber
ensinar com propriedade e eloquência, mediante o conhecimento das causas. Isso não acontece
na experiência, pois esta não pode ser ensinável e tampouco detentora de um saber das causas
e dos princípios.
Essa capacidade de ensinar por meio do conhecimento das causas e princípios, é
chamado por Aristóteles de arte, que não se identifica com o modo de ensinar da experiência,
como destaca Santo Tomás de Aquino:

Os homens de arte podem ensinar porque conhecem as causas [...] os homens


da experiência não podem ensinar, porque não podem conduzir à ciência,
porque ignoram a causa. E se os homens da experiência comunicam aos outros
o que eles aprendem, não o fazem de modo científico, mas ao modo de uma
opinião ou crença. Por isso, fica evidente que os homens de arte são mais
sábios e capazes de ensinar do que os homens da experiência. (AQUINO,
2016, p.44-45).

Assim, conforme o pensamento do filósofo há duas categorias de homens: os da arte e


os da experiência. Os homens da arte são detentores do conhecimento científico, pois o que os
diferencia dos homens da experiência é o conhecimento transmitido com profundidade, quer
dizer, conhecimento embasado na causa, sabem o porquê de tal coisa e não simplesmente
opinam sobre elas, como bem deixa claro na citação acima quando afirma os homens de arte
podem ensinar porque conhecem as causas.
Em Metafísica 981ª 24-30, Aristóteles argumenta o motivo pelo qual a arte é superior a
experiência: a experiencia se limita a ao dado, ao particular; enquanto a arte vai além do dado,
alcança a realidade última, o porquê, é universal. Portanto, próprio da arte fazer com que a
inteligência seja elevada a um grau superior na ordem do conhecimento sem ficar na
mesmidade.
No entanto, não se trata de uma mera relação sujeito – objeto sem que este não seja
percebido efetivamente por aquele, senão um sujeito que se volta para o objeto de forma
consciente e reflexiva, pois na epistemologia aristotélica o verdadeiro conhecimento implica
explicar a forma do objeto conhecido, implica defini-lo. Esse processo é o que chamamos de
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conhecimento por causa. Esse conhecimento é mais profundo ao filósofo, “além disso, quem
conhece as causas com mais exatidão, e é capaz de ensinar, é considerado em qualquer espécie
de ciência como mais filósofo”, diz Aristóteles. (ARISTÓTELES, 1973, p. 213). Isso significa
que os filósofos deveriam se esforçar para compreender a natureza da realidade, as causas de
tudo o que existe e a verdade subjacente das coisas em sua totalidade. a sapiência encontra-se
em um patamar bem mais elevado porque somente quem possui essa arte é capaz de ensinar e
isso o faz.
O Estagirita não está negando as outras formas de conhecimento (veremos que ele
analisa as doutrinas de seus predecessores) mas afirmando que o fato de conhecer as coisas por
meio das causas origina um conhecimento superior, quer dizer, o conhecimento das causas com
maior precisão é um dos critérios para determinar quem é mais filósofo em qualquer campo de
estudo, visto que esse conhecimento produz um, entendimento mais profundo e abrangente
daquilo que está investigando.
Deste modo, a sapiência (sophia) é o conhecimento daquelas realidades que estão acima
das capacidades humanas, ou seja, é uma ciência teorética, cuja finalidade é buscar o saber pelo
saber, e, por isso, exige pela sua própria natureza, um esforço intelectual para exercitá-la.
Assim, fica claro neste raciocínio aristotélico que a ensinabilidade requer um avanço qualitativo
do sujeito cognoscente.
Desta forma, o filósofo ou o sábio é aquele que não simplesmente faz as coisas
baseando-se nas crenças e costumes ou que possui um saber prático tradicional transmitido
oralmente ou de maneira informal, senão que entende o que está fazendo, sabe o motivo e a
causa do seu agir. Constata-se, então, quem conhece as causas é mais apto para ensinar. Mas
qual o porquê? Aristóteles diria por que tem a ciência, comunica esse conhecimento de forma
ordenada, lógica e profunda. Isso pode levar a uma compreensão mais profunda e significativa
do objeto de estudo.
Tomemos um exemplo para fomentar nosso argumento: uma senhora que faz um bolo
o faz perfeitamente: sabe dos ingredientes, o tempo que dever levar ao forno etc., todavia, para
Aristóteles ela não tem a ciência da causa, não sabe o porquê de todo esse processo. Ora, qual
o porquê? Porque é um conhecimento do particular, veio da experiência. Ora, ter ciência
significa ter domínio sobre as coisas, sabe de suas constituições e suas funções. Na verdade,
sem o uso delas não se pode conhecer nada que se enquadre no campo da sapiência.
No entanto, não se trata de qualquer saber, Aristóteles está consciente de que o
conhecimento que deve ser adquirido é o das causas primeiras o qual é capaz de conhecer a

16
realidade das coisas, ao passo que é próprio do intelecto humano conhecer a essência das coisas,
o que é, o que existe e não ficar simplesmente no dado empírico. Esse processo é feito pela
razão que conhece e sabe que conhece:

[...] Consideramos que o saber e o entender sejam mais próprios da arte do


que da experiência, e julgamos os que possem a arte mais sábios do que os
que só possuem só a experiência, na medida de que estamos convencidos de
que a sapiência, em cada um dos homens, corresponda à sua capacidade de
conhecer. E isso porque os primeiros conhecem a causa, enquanto os outros
não a conhecem. Os empíricos conhecem o puro dado de fato, mas não seu
porquê; ao contrário, os outros conhecem o porquê e a causa.
(ARISTÓTELES, Metafísica 981ª 25).

O filósofo não está desprezando o conhecimento empírico até porque a base de todo
conhecimento na doutrina aristotélica passa pelo mundo das experiências desde o nível mais
básico como as sensações, a memória e a imaginação, que produzem a experiência até a
formulação de conceitos. Ele está salientando que o modo de conhecer as diversas realidades
não se dá de modo unívoco, mas diverso, e dentre essas formas de conhecimento, a arte está em
um grau maior.
Fazendo uma análise mais ampla do pensamento aristotélico, até aqui exposto, nota-se
que apesar de experiência parece um pouco semelhante à ciência e à arte, considerando que os
homens adquirem a ciência e a arte por meio da experiência, como o próprio Aristóteles diz
(Metafísica 981a), não obstante, o conhecimento das causas sobressai ao da experiência, o saber
e o entender são os que estão mais próximos da arte e não da experiência, pois o que distingue,
como vimos, quem sabe de quem não sabe é a capacidade de ensinar.
Dado isto infere que o motivo pelo qual a sapiência é o saber mais elevado é que ela é
o conhecimento das causas primeiras e dos princípios e estes são as condições para todo
processo de inteligibilidade. A experiência refere-se sempre ao particular, é conhecimento
restrito dos particulares e dos mutáveis, mas a sapiência dá o conhecimento da totalidade e
transcendendo aquilo que é acidental consegue chegar ao universal, que é imutável.
Sendo assim, os empíricos não têm a ciência das causas, limitam-se aos aspectos
acidentais e contingentes de uma determinada coisa, que é característico do conhecimento
particular, como a cor, o tamanho, a espessura ou até mesmo ficam limitados em crenças e
opiniões e não conseguem transmitir o conhecimento, pode até fazê-lo, mas nãos seria
embasado na sapiência. Mas os sábios têm a arte e a ciência, referem-se ao universal, ao porquê
e a causa das coisas, como se diz na linguagem de Santo Tomas de Aquino:

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Os homens da experiência conhecem o porquê de fazer, mas desconhecem a
causa do porquê de algo ser feito. Os homens de arte, de fato, conhecem a
causa e o porquê de algo ser feito, e não só o porquê de fazer. Portanto, são
mais conhecedores e mais sábios os homens de arte do que os homens de
experiência. (AQUINO, 2016, p. 43-44).

Dito de outro modo, a experiência é marcada de instabilidade e por conseguinte não


consegue dizer com clareza o que a coisa é, e menos ainda emitir um juízo com exatidão a seu
respeito, conhecem o porquê de fazer, mas não do porquê de algo ser feito, que é a sua causa.
Aqui “o porquê de fazer”, refere-se ao “como uma coisa é feita”, “o modo”, que pode ser
observado na experiência.
Em Metafísica 981b 5-10, o Estagirita esclarece que os homens da arte são mais sábios
por duplo motivo: em primeiro lugar, porque eles são cientes do como e do porquê; em segundo
lugar, porque há neles algo bem característico do sábio: a ensinabilidade. Sabem ensinar com
facilidade distinguindo o que é conhecimento empírico e sensível daquilo que é sapiência, o
que é essencial.
Conclui-se que na perspectiva aristotélica o conhecimento por causa é universal, é
superior daquele que fica nas dimensões empíricas, isto é, o particular, que aprofundaremos
nesta próxima subseção.

2.1.2 A universalidade do conhecimento das causas

O segundo argumento que afirma a excelência da sapiência sobre as demais ciência diz
respeito à distinção entre o universal e o particular. Este é uma forma de conhecimento que é
voltado ao objeto considerando-o na sua singularidade, e por isso não pode ser uma ciência de
causa, assim, um homem que tem esse conhecimento age pela força de seus hábitos e crenças,
entretanto, não é capaz de fazer ciência interrogando a realidade ao seu redor, pois só conhece
o dado empírico e não consegue dizer o porquê. Ora, perguntar para entender o porquê de uma
coisa ser de tal forma, é buscar a sua causa, ultrapassando as coisas em suas particularidades.
Poder-se- ia dizer, então, que a experiência quer saber o “como”, como é tal coisa, seu
aspecto externo com suas respectivas características acidentais como a quantidade; enquanto a
ciência indaga o porquê, o que a coisa significa. Ademais, o próprio particular é limitado e
sujeito as transformações.
É legítimo afirmar que os homens que têm a ciência possuem até mesmo o conhecimento
das coisas particulares, todavia, os da experiência não têm a sapiência no tocante ao universal,
isso porque o universal veio do partilhar, mas o particular não tem conhecimento do universal.

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Passemos, agora, a tratar da memória que está no mesmo nível das sensações, pois se
trata dos sentidos e dos particulares, quer dizer da experiência, e por isso também não é
considerada sapiência. Aliás, por mais que o conhecimento se inicie através da experiência das
realidades particulares, não tem o término nestas. O fato é que o particular não é ciência das
causas e fica em um campo muito limitado do saber. É neste sentido que Santo Tomás de
Aquino diz que “assim como a arte está para a razão universal, a experiência está pra a razão
particular e o costume está para a memória nos animais.” (AQUINO, 2016, p. 38).
Aristóteles ao discursar sobre a memória ou lembranças, especifica que nos animais
estas estão ligadas as coisas sensíveis, ao contrário de que no homem além das lembranças
sensíveis manifestam, mesmo em nível particular, as lembranças abstratas. Assim, no gênero
humano a experiência deriva da memória, entretanto, nem a memória e tampouco a sensação
está acima da sapiência a qual é capaz de fazer uso das causas:

Ademais, consideramos que nenhuma das sensações seja sapiência. De fato,


se as sensações são, por excelência, os instrumentos do conhecimento dos
particulares, entretanto não nos dizem o porquê de nada: não dizem, por
exemplo, por que o fogo é quente, apenas assinalam o fato de ele ser quente.
(ARISTÓTELES, Metafísica, 981b 10).

Nota-se, que as sensações não explicam a natureza das coisas, não elucidam, por
exemplo a natureza do fogo, o porquê de ele ser quente, apenas sabem, conhecem, sentem,
contudo, não sãos conhecedoras das causas. Mas conquanto não sejam sapiência, pois são
conhecimentos dos particulares e não dos universais, fazem parte da dimensão do saber, visto
que existem graus e tipos de conhecimentos, e de certa forma trazem benefícios e prazer ao
homem, sobretudo, por meio da visão.
É bem típico do pensamento grego a superioridade da visão e do ver sobre os demais
sentidos. Dessa forma, Aristóteles rechaça a ideia de inatismo para reconhecer formas, e que as
sensações são em nada úteis ao conhecimento humano, como admitia Platão, pois estão no
campo da opinião (doxa); mas as sensações (aisthesis) são a base de todo conhecimento, ao
passo que é incogitável o homem adquirir conhecimento sem passar pelo contato com a
dimensão material das coisas para a construção de experiência.
De fato, o indivíduo só chega a formular conceitos universais, por meio da abstração,
por causa dos sentidos e das sensações, e neste processo, cabe à memória reter lembranças e
informações do mundo sensorial. No entanto, somente a arte ou a técnica (techné) se enquadram
na sapiência, que é a ciência (episteme) por excelência, porque saber a causa de uma é coisa,
em outros termos, significa conhecê-la em si mesma.

19
Assim, somente pela sensação não se conhece as coisas em si mesmas; não conhece a
árvore enquanto árvore, ou seja, sua essência que é universal, e por isso se pode atribuir a todas
as árvores, mas somente o que os sentidos veem; o que estes nos dizem dela: sua cor, seu
tamanho, sua espessura.
Percebe-se, que não há uma rejeição entre particular e universal no pensamento
aristotélico. Na verdade, a essência está nas próprias coisas e não em um mundo inteligível. Em
Aristóteles, o homem com as faculdades intelectivas não fica preso ao dado particular, mas será
capaz de ter conhecimento universal e verdadeiro das coisas porque o acumular quantitativo
dos particulares não é capaz de diferenciar uma coisa de outra, não apreende a essência.
Portanto, a episteme é um conhecimento científico e demonstrável que se baseia em
princípios universais e necessários, ela envolve raciocínio lógico e argumentação sólida. Tem
como características a Universalidade e a Demonstrabilidade, como vimos. Quanto à
Universalidade, lida com conhecimento universal e necessário, ou seja, afirmações que são
verdadeiras em todas as situações e não estão sujeitas a mudanças, logo contrasta com a opinião,
que pode ser variável e subjetiva. Já a demonstrabilidade afirma que episteme é demonstrável
por meio de argumentos lógicos baseando-se em premissas seguras e segue uma linha de
raciocínio que conduz a conclusões necessárias.
Pode-se dizer que ela é caracterizada também pela certitude, isto é, pela certeza. Quando
alguém possui episteme em um determinado campo, tem confiança absoluta na validade de seu
conhecimento, segurança em sua argumentabilidade, além do mais, argumenta com
propriedade. Aristóteles acreditava que ela era o tipo mais elevado de conhecimento e era
alcançada por meio do estudo sistemático e do pensamento lógico. Ele também reconheceu que
diferentes áreas do conhecimento poderiam ter suas próprias epistemes, como a episteme
matemática, a episteme física e assim por diante.
Portanto, a distinção entre episteme e outras formas de conhecimento revela a magnitude
da filosofia aristotélica, e sua abordagem à busca da verdade e do entendimento na filosofia
natural e em outras disciplinas.

20
2.1.3 O grau da perfeição do conhecimento das causas

O último argumento da excelência da sapiência relaciona-se com à hierarquia do saber


e com o grau de perfeição. No cosmos, percebe-se que há coisas mais perfeitas que outras desde
um plano mais sensível a um plano inteligível. Logo, no processo de conhecimento quanto mais
longe estiver um conhecimento do servir a objetivos práticos, tanto mais puro o é, e se enquadra
no campo da sapiência. De fato, “maximamente são cognoscíveis são os primeiros princípios e
as causas; de fato, por eles e a partir deles se conhecem todas as outras coisas, enquanto ao
contrário, eles não se conhecem por meio das coisas que lhes são sujeitas.” (ARISTÓTELES,
Metafísica, 98b).
Isso significa que o grau da perfeição do conhecimento das causas abrange todas as
causas desde a causa material até a causa final. É capaz de explicar completamente uma
realidade, isto é, não apenas compreende as causas individuais, mas também como elas se
relacionam e interagem para produzir um determinado fenômeno em questão, em sua totalidade.
Portanto, quanto mais abrangente e profundo for o conhecimento das causas, mais perfeito será
o conhecimento de acordo com a filosofia aristotélica.
Santo Tomás de Aquino ao argumentar acerca da natureza e da perfeição da Sabedoria,
segue o mesmo raciocínio de Aristóteles, enfatizando que se deve buscar a sapiência, por ser a
ciência das causas inteligíveis ou cognoscíveis, em seu grau de perfeição maior; diferente da
experiência no mundo do devir:

Do mesmo modo, essa ciência deve ser naturalmente reguladora das outras,
pois ela é maximamente intelectual. Ora, essa ciência é maximamente versada
sobre os inteligíveis. Primeiro, pela ordem do saber. De fato, as coisas, das
quais o intelecto tem certeza, parecem ser as mais inteligíveis [...] por isso,
aquela ciência que considera as primeiras causas maximamente parece ser
reguladoras das outras [...] segundo, pela comparação do intelecto com os
sentidos. De fato, porque o conhecimento dos sentidos é sobre os particulares,
parece que o intelecto difere deles porque conhece os universais [...] terceiro,
pelo próprio conhecimento do intelecto. Como cada coisa tem aptidão de ser
inteligível, enquanto separada da matéria, é preciso que ela trate ao máximo
dos inteligíveis, que ao máximo são separados da matéria. (AQUINO, 2016,
p.23-24).

Primeiramente é importante saber que na linha de Aristóteles e depois dos escolásticos:


“Nihil est in intellectu quod primum non est in sensu”, ou seja, nada está no intelecto que
primeiro não estivesse nos sentidos. Dessa forma, todo conhecimento começa pela experiência
que se caracteriza pelo método indutivo, particular, todavia, vai além deste porquê, ao passo
que o homem é um ser intelectual de alma racional.

21
Assim, Aristóteles (apud LUCAS, 2003, p. 58, tradução nossa), dizia “que o
conhecimento intelectual é “quodammodo omnia1”, porque não é limitado no que se refere ao
campo de seu interesse.” Quer dizer, o conhecimento intelectual não está restringido dentro da
sensibilidade dos diversos órgãos dos sentidos e tampouco preso ao tempo e ao espaço. Decerto,
muitas coisas que estão em seu campo de interesse, e que o próprio homem experimenta, são
de natura intelectual, ou seja, são independentes da matéria, como a própria ideia de bem,
justiça, amor, ódio, causalidade etc.
Poder-se-ia dizer, que a existência dessa dimensão intelectual, no homem, é confirmada
por intermédio dos conceitos universais, dos juízos e raciocínios bem como por meio da própria
linguagem a qual não está circunscrita ao conhecimento das coisas empíricas. Dessa forma, a
doutrina aristotélica explica como se dá o conhecimento: há uma estrutura no conhecimento
humano, ou seja, tem duas dimensões, uma sensível (que corresponde as duas primeiras fases,
sensações externas e percepção interna), e a outra intelectual (que corresponde a três fases,
conceitos, juízos e raciocínios), no entanto, são inseparáveis.2
Então, deve recorrer à sapiência que é o conhecimento certo e universal por sua causa,
tem sua legitimidade nas realidades últimas das coisas. Ela é a ciência que tem profundo
conhecimento ente enquanto ente e de suas propriedades e causas últimas. É a ciência que busca
os primeiros princípios da realidade e não dependem das realidades que estão ao seu redor.
Além disto, ela tem como objeto o ente; este é quilo que é; que existe “id quod est”. Ora, se o
ente é objeto dela isso significa que ele é a melhor forma de explicar a realidade, visto que
abarca tudo.
Portanto, a sapiência leva o sujeito actante ao conhecimento das realidades últimas, que
é a metafísica ou ciência primeira (próte philosophía), e desta dependem os princípios das
demais ciências. Deste modo, não se trata de conhecimento abstrato ou um saber apriorista, mas
um conhecimento fundamentado na experiência, pelo contrário, é um saber que parte da
experiência (como veremos nesta próxima seção), e produz substâncias imóveis e, por isso, é
superior às outras, como a física, por exemplo. Assim sendo, ela, a sapiência, é uma espécie de
ciência universal que busca a causa de toda a realidade. (Cf. BERTI, 2012, p. 127-128).

1
Quer dizer, o homem, em certo sentido, conhece todas as coisas, pois é dotado de conhecimento universal. Como
diz Ramón Lucas Lucas: O conhecimento intelectual supera essencialmente os limites individuais da coisa e a
capta em suas dimensões universais.” (LUCAS, 2003, p. 58, tradução nossa).
2
Ramón Lucas Lucas explica como se dá o processo de conhecimento, a saber: o conhecimento humano passa
por várias etapas, entretanto, tem um caráter unitivo formando em um conjunto toda uma estrutura dinâmica e
que não se pode definir uma sem levar em consideração a outra. Esses elementos dessa estrutura unitária podem
ser esquematizados destra forma: duas dimensões e cinco formas no processo cognoscitivo. (Cf. LUCAS, 2003,
p. 60)
22
2.2 CONHECIMENTO DA CAUSALIDADE NO MUNDO DO DEVIR

Após termos tomado ciência da excelência da sapiência do conhecimento das causas


sobre as outras formas de conhecimento como a experiência, a memória e a sensação, que não
se pode negar, como vimos anteriormente, passaremos a falar da noção da causalidade no
mundo das transformações, quer dizer, do devir. Efetivamente, o conhecimento da causalidade
no mundo do devir (ou do vir a ser) desempenha um papel significativo na filosofia de
Aristóteles. O filósofo estava preocupado em entender como as coisas mudam e se transformam
no mundo natural.
Em vista disso, ele desenvolveu uma abordagem sistemática acerca das noções de ato,
potência, forma e matéria, que são os Princípios da Inteligibilidade, para compreender a
causalidade inserida no contexto do devir com suas transformações. Por conseguinte, esses
princípios devem ser abordados, uma vez que na própria noção de causalidade está justaposta
a noção de movimento, que somente pode ser compreendido levado em consideração a esses
princípios da inteligibilidade, acima citados.
Isto posto, depreende-se como consequência que a teoria aristotélica tanto do ato e da
potência como da forma e da matéria são a estrutura constitutiva de todo o real. É uma realidade
que se impõe à nossa inteligência e serve para resolver muitos problemas que se encontram no
âmbito da física e da metafísica. Certamente, para entender todas essas realidades não é
suficiente fazer uma abordagem das quatro causas, mas é uma condição essencial acrescentar à
explicação das quatro causas a própria noção de ato e potência, visto que “a primeira
determinação do ato e da potência surge da análise do movimento.” (ALVIRA; CLAVELL;
MELENDO, 2001, p. 79).
Além de tudo, esses conceitos: ato, potência, forma e matéria são inseparáveis a ponto
de não entender um sem o outro. De fato, o que faz com que a potência se torne ato? O que faz
com que uma simples semente se torne árvore na perspectiva aristotélica? Qual é a causa disso?
Ora, sabemos que é justamente devido à causa eficiente ou motora que o movimento pode ser
compreendido, e este é a passagem da potência para o ato. Portanto, não se pode falar de
movimento sem mencionar a causa eficiente. Ou ainda, as transformações não podem ser
explicadas somente com as noções de causa material e de causa final as quais são responsáveis
pela mudança.
Conclui-se que sempre um agente, ou uma causa externa á coisa, será responsável pelo
movimento, pela passagem da potência ao ato, que fará com que haja mudanças substancias e
acidentais, como por exemplo, uma argila que em ato é apenas argila, mas em potência pode
23
ser um belo vaso. Observa-se que neste exemplo do vaso está a noção de todos esses
componentes do ente: o ato e a potência, a forma e a matéria como forma de explicar o todo.
Também veremos que tudo no mundo do devir é ao mesmo tempo um composto de ato
e potência, de matéria e forma. Essa unidade faz-se necessária para a explicação e o
conhecimento mais profundo da estrutura de todos os entes, ou seja, de toda realidade.

2.1.1 Ato, Potência, Forma e Matéria como explicação da causalidade no mundo das
transformações

Aristóteles bem tinha observado que não existe o caos ou a desordem no cosmos, pelo
contrário, não só as coisas são ordenadas e organizadas mantendo uma ordem teleológica, mas
também o próprio cosmos se organiza de maneira lógica e bem estruturada como a própria
experiência mostra.
Constatou que tudo no mundo do devir é ao mesmo tempo um composto de ato e
potência, de matéria e de forma os quais explicam a estrutura de todos os entes bem como as
suas perfeições e capacidades. Percebeu, pela experiência, que todas as coisas são marcadas por
mudanças e que não existe somente a realidade estática das coisas senão a dinâmica. Dessa
forma, por meio da análise do movimento elaborou a sua doutrina do ato e da potência cuja
finalidade era explicar a origem do movimento na natureza dando um salto qualitativo à
etiologia, quer dizer, ao estudo e compreensão das causas:

A primeira determinação do ato e da potência surge da análise do movimento.


Parmênides, com sua rígida concepção do ser, único e imutável, não pôde
explicar a realidade da mudança, relegando-a ao âmbito da aparência: o ser é
e o não-ser não é; consequentemente, é impossível a passagem de um a outro.
Com mais realismo, Aristóteles entendeu que a mudança não é uma novidade
a absoluta, uma passagem do não-ser ao ser, mas o devir de um sujeito de um
estado a outro, como por exemplo, a água que passa de fria a quente.
(ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 79-80, tradução nossa).

O ato é a perfeição de qualquer sujeito, é aquilo que ele possui atualmente. É algo
acabado, determinado, perfeito; enquanto a potência é “a capacidade de” ou “a possibilidade de
vir a ter uma perfeição”, é algo indeterminado, inacabado, imperfeito. Por exemplo, a semente
enquanto semente é ato, no entanto, tem a potência para se tornar árvore e quando isso acontece
dizemos que a potência foi atualizada.
Na disputa entre Heráclito que afirmava apenas o aspecto dinâmico do ser ao ponto de
afirmar que o que existe é o puro devir; e de Parmênides que defendia somente o aspecto estático
do ser, Aristóteles apresenta uma possível solução para esse problema com sua teoria
24
hilemórfica, ou seja, os entes são compostos de matéria e forma, de ato (que explica o aspecto
estático de Parmênides) e de potência (que explica o aspecto dinâmico de Heráclito). Deste
modo, nota-se a mutação ou transformação mediante a realidade do movimento fazendo com
que os entes adquiram qualidades que antes não tinham ou passem por perdas.
Com efeito, o próprio Aristóteles percebeu que as coisas adquiriam através da mudança
e perfeições que antes não tinham, ou seja, a mudança sempre é em vista de algo, muda-se para
possuir uma determinada perfeição que antes não tinha e essa passagem sempre é efetuada
através da ação de algo que já está em ato.
Consequentemente, o ato e a Potência, a Forma e a Matéria não devem ser dissociados,
porque estão intrinsecamente entrelaçados. O ato assume a função da forma e a potência da
matéria. Potência é potencialidade, possibilidades, a matéria é pura indeterminação. Esta é
potencialmente outra coisa, como por exemplo, quando uma pessoa morre há uma destruição
da união substancial, de matéria e a forma, a ponto de não ser mais uma pessoa. A forma
substancial, que é a sua alma, não se encontra mais unida ao seu corpo, que é a matéria, e
assume uma outra forma3. Logo, é a própria determinação da forma que leva a matéria a sair da
potência para o ato assumindo uma outra forma, neste caso, a de cadáver.
Todavia, para que aconteça essa mudança requer que o sujeito tenha a qualidade, que
alcança com o movimento, isto é, qualquer mutação é realizada levando em consideração a
essência das coisas:

Entretanto, é preciso que o sujeito seja capaz de ter a qualidade que alcança
com o movimento. Os exemplos aristotélicos são claros: nem um animal nem
uma criança pequena sabem resolver problemas matemáticos, mas o animal
nunca poderá fazê-lo, enquanto a criança pode aprender; um pedaço de
madeira informe ainda não é uma estátua, mas tem a capacidade de chegar a
converter-se em escultura nas mãos do artista, enquanto a água e o ar não
possuem essa possibilidade. (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 80,
tradução nossa).

Pode-se dizer que a potência é o sujeito que recebe o ato e a experiência nos mostra que
todos os atos e perfeições se dão na realidade em sujeitos capazes deles, ou seja, não
encontramos atos e perfeições que existem separados: existem homens justos, imagens belas,
papéis brancos e não justiça, a beleza, a brancura. Em outros termos, toda potência se reconhece
por seu ato.

3
Estes componentes constitutivos do ente: a matéria e a forma, o ato e a potência, estritamente falando, só
subsistem por causa da substância. Toda realizada é marca por eles, com exceção do Motor Imóvel de Aristóteles,
que é Ato Puro. (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 201).
25
Joseph de Finance diz que a noção de ato não precisa de nenhuma necessidade de
explicação pelo fato de ele ser determinado, inteligível, é o pensamento capta em primeiro lugar
até que reflita que o ser não está eternamente em ato. Todavia, a noção que é mais difícil de
entender é de potência porque é algo inacabado, indeterminado, uma espécie de “vazio
ontológico”, todavia, não se pode considerá-la como uma “pura negação”, um “nada do ato”,
ora ela está relacionada ao ato; em outras palavras supõe um sujeito. Também não é “pura
indeterminação”. A potência é simplesmente algo que não está em ato. (FINANCE, 1965, p.
236).
O ato é limitado pela potência - cada homem adquire a ciência segunda a medida
4
acrescentada por sua capacidade intelectual, também o ato é multiplicado pela potência.
Ademais, ato e potência se relacionam como participante e participado. Participar é ter algo em
parte, supõe que o outro sujeito também goza da perfeição mas nunca ambos na totalidade:
todas as cores brancas participam da cor branca sem esgotar a plenitude da brancura, ou por
exemplo cada homem possui um grau de animalidade, mas nunca a esgota. (ALVIRA;
CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 88-89).
Tudo isso implica que o ato supera a potência, tem primazia de perfeição porque ele é
perfeito e a potência imperfeita. Também prioridade cognoscitiva porque no processo do
conhecimento o ato tem que vir primeiro. (Cf. Ibid., p. 86).
De fato, conhece primeiro o que coisa é para depois perceber o que pode ser; prioridade
causal, pois só passa da potência ao ato por ser em ato; e por último o ato goza de prioridade
temporal, esta se funda na causal, ou seja, a potência remete a uma causa anterior em ato que
atualize:
Aquilo que a filosofia primeira pode dizer acerca desses dois significado de
ser, isto é, o ser em potência e o ser em ato, é que o ato é anterior à potência
quer segundo à noção, enquanto não é possível ter a noção da potência sem
ter antes a do ato; quer segundo o ser, enquanto não podem existir entes em
potência, isto é, mutáveis, se não existem antes entes em ato, isto é, as
perspectivas causas motoras. (BERTI, 2012, p.138).

Dessa maneira, não se pode negar que o movimento é a passagem da potência ao ato e,
para que isso ocorresse, houve um ser que estava em ato; ou seja, no processo do conhecimento

4
Referente ao uno e ao múltiplo Aristóteles explica que todo ente quanto enquanto todo é uno, é ato; e enquanto
em partes é diverso, é potência. Por exemplo, pode-se dizer que o homem é um todo, uma unidade substancial,
mas é múltiplo em acidentes seja contingente seja essencial: gordo, bonito, inteligente etc. Logo, as partes
existem no todo não como ato senão com potência. Portanto, percebemos que a doutrina do ato e da potência
como princípios constitutivos de todo ente seja este material ou não. Explica a realidade do movimento, do uno
e do múltiplo como também do movimento e da multiplicidade sem cair em contradição. Para se aprofundar
nesta temática, ver: ALVIRA, Tomás; CLAVELL, Luis; MELENDO, Tomás. Metafísica. 8ª ed. Espanha: Eunsa,
2001.
26
o ato tem que vir primeiro para garantir a passagem, ele é anterior à potência (ALVIRA;
CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 86).
Como vimos, na ordem do ser, o ato tem prioridade, assim, Aristóteles, no livro nono
da Metafisica, enumera uma série de exemplos para explicar a relação entre o ato e a potência,
e a primazia do ato em todos os sentidos que uma coisa pode ser anterior a outra: segundo a
noção, quanto ao tempo, também pela sustância.
Contudo, quanto ao tempo, explica o Estagirita5 que o ato em outro sentido não é
anterior a potência:

[...] O ato é anterior quanto ao tempo, no seguinte sentido: (a) se o ser em ato
é considerado especificamente idêntico a outro ser em potência da mesma
espécie, então, é anterior a este; se, ao contrário, o ser em ato e o ser em
potência são considerados no mesmo individuo, o ser em ato não é anterior.
Dou alguns exemplos: deste homem particular que já existe em ato, e deste
trigo e deste olho particular que está vendo, na ordem temporal é anterior a
matéria, a semente e a possibilidade de ver, que são o homem, o trigo e o
vidente em potência e não ainda em ato. Mas anteriores a estes, sempre na
ordem temporal, existem outros seres em ato, dos quais eles são derivados: de
fato, o ser em ato deriva do ser em potência sempre por obra de outro ser já
em ato.” (ARISTÓTELES, Metafísica 1049 b 15-25).

Deste modo, quando se considera o indivíduo em seu aspecto particular, nele, a potência
é anterior ao ato, e a razão é que antes de ser plenamente em ato, o indivíduo foi a potência.
Como bem esclarece Santo Tomás: “mas certas coisas existentes em ato foram anteriores,
segundo o tempo, a tais coisas existentes em potência, a saber, pelos quais as coisas são
reduzidas ao ato.” (AQUINO, 2016, p. 80-81).
Todavia, não devemos entender ato e potência como princípios iguais. Percebe-se essa
distinção quando o ato está separado da potência correspondente, por exemplo, a vista às vezes
se encontra no ato de ver, e outras não; assim como o animal que se encontra em repouso tem
a potência de movimentar-se.
Aristóteles teve que argumentar contra os eleatas e megáricos os quais aceitavam
somente a identidade do real e do atual ao passo de duvidarem dos sentidos, admitindo, assim,
a unidade absoluta e considerava o ser e o bem como idênticos. Feriria o princípio de identidade
que afirma que uma coisa não pode ser a outra. (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p.
43).

5
Refere-se a Aristóteles pelo fato de ele ter nascido em Estagira, cidade da Macedônia. Expressão usada por
Giovanni Reale (Cf. em Sumários e Comentários, 2002, p. 56).
27
Além disso, pretendiam dizer não teria distinção entre ato e potência: “Só há potência
quando há ato e, quando não há ato não há potência: assim, o que não constrói não tem a
potência de construir, mas só quem constrói, e no momento em que constrói.” (FINANCE,
1965, p. 218, tradução nossa). Mas essa teoria, conforme Aristóteles, acaba arruinando o
movimento e o devenir, toda a existência:

A argumentação dos megáricos chega, portanto, a aniquilar o movimento e o


devenir. O ser que está de pé estará sempre de pé, e o ser que está sentado
estará sempre sentado; não poderá se levantar se está sentado, pois o que não
tem a potência de se levantar se encontrará na impossibilidade de levantar-se.
Mas se querem admitir estas consequências, resulta evidente que a potência e
o ato devem ser coisas diferentes. (FINANCE, 1965, p. 219, tradução nossa).

Aristóteles rechaça essa ideia dos megáricos pelo fato de esses raciocínios reduzem à
potência ao ato, ao passo que se a potência não se distingue do ato, ninguém poderia possuir
qualquer arte ou aptidão para fazer alguma coisa a não ser que esteja atualmente exercendo,
executando tal ação. Mas isso cairia em um contrassenso, pois neste raciocínio o professor
quando parasse de ensinar, mesmo que provisoriamente, perderia a sua arte. Assim sendo, deve
admitir junto ao ato a potência para explicar a origem do movimento na natureza e as inúmeras
transformações que os entes contingentes sofrem, independentemente de qualquer
determinação particular. Existe, então, o que é em ato e o que é em potência.
Portanto, partindo dessa noção de ato e potência e do próprio devir, nota-se essa
realidade inquestionável: o movimento no mundo. Ora, diante desta realidade, podem-se
deduzir duas reflexões: ou afirma esse jogo de movente e movido até o processo ad infinitum,
entretanto, admitindo isso, afirmaria que o movimento existe, contudo, não poderia ser
explicado; ou que, nesse jogo para que o movimento tenha iniciado, teve que existir um ser só
em Ato, Imóvel que seja causa de todo móvel, como havia dito o Filósofo.6
Decerto, quando se analisa o mundo, percebe-se que as coisas se movem, e elas não
podem ser simultaneamente e no mesmo aspecto, moventes e movidas; porque estaria ferindo
o princípio da não- contradição7. Assim, um determinado ente em um aspecto é movido por um
movente, depois ele passa a ser o movente de outro ente, para ajudar este na passagem da
potência ao ato.
É neste contexto de movimento que surgirá ideia do Primeiro Motor Imóvel que é a
causa final de tudo. Dele provém todo movimento, mas não é movido por nada. Como não está

6
Um dos títulos que os medievais deram para Aristóteles é o “Filósofo.” (AQUINO, 2016, p. 23).
7
O princípio da não-contradição também conhecido como princípio da contradição significa que uma determinada
coisa “não pode ser e ser simultaneamente e no mesmo aspecto.” (CHAUÍ, 2000, p. 73)
28
submetido às leis do movimento que rege o cosmos, ele é eterno e imutável e imaterial. A
fórmula: “Tudo o que se move, é movido por outro 8”, foi considerada como a primeira fórmula
do princípio de causalidade, ou seja, a impossibilidade de que o que está em potência dê o ato
a si mesmo. Refere-se à irredutibilidade absoluta entre a potência e o ato:

[...] para explicar cada movimento, é preciso referir-se a um Princípio que, em


si, não seja movido, pelo menos em relação àquilo que move. Com efeito,
seria absurdo pensar que se pode remontar ao infinito, de motor em motor,
porque seria impensável nesses casos um processo ao infinito. Ora, sendo
assim, não apenas deve haver princípios ou motores relativamente imóveis,
dos quais derivam os movimentos singulares, mas também, com tanto mais
razão, deve haver um Princípio absolutamente primeiro e absolutamente
imóvel, do qual deriva o movimento de todo o universo [...] esse Princípio
deve ser inteiramente privado de potencialidade, isto é, ato puro. Com efeito,
se possuísse potencialidade, poderia também não mover em ato; mas isso é
absolutamente absurdo [...] Esse é o "Motor Imóvel", que outra coisa não é do
que a substância suprassensível que buscávamos. (REALE; ANTISERI, 2003,
p. 201).

Ora, a inteligência humana não aceita o processo ad infinitum, pois o homem não
conseguiria conhecer nada e estaria ferindo a natureza do bem, que é o fim em todas as coisas,
aliás de modo geral, em toda a natureza o fim é o sumo bem.” (ARISTÓTELES. Metafísica,
982b 5). Logo, fica claro que este Motor Imóvel não tem potência, visto que seria contrário à
sua natureza.
Neste sentido, a causalidade do Moto Imóvel não é do tipo eficiente, porque estaria
atribuindo movimento a ele, mas causalidade de tipo final, move-se como perfeição:

Evidentemente, a causalidade do Primeiro Motor não é causalidade do tipo


‘eficiente" (do tipo exercido pela mão que move um corpo, pelo escultor que
modela o mármore ou pelo pai que gera o filho), sendo, mais propriamente,
causalidade de tipo ‘final’, portanto, move como perfeição [...] No âmbito das
coisas que nos conhecemos existe algo que saiba mover sem ele próprio se
mover? Aristóteles responde apresentando como exemplos de coisas assim
“objeto do desejo e da inteligência."(REALE; ANTISERI, 2003, p. 201).

Por isso, que a noção de causa automaticamente nos levar a de movimento. É importante
compreendermos essa relação entre ambos, dado que muitas vezes entendemos o movimento
só no sentido de movimento local. Deveras, se o compreendermos dessa forma, estaremos
afirmando que uma pedra que cai está viva, porque se move de um lugar para outro enquanto
uma flor que se encontra num vaso não está viva, já que ela aparentemente não se move.

8
Vide também (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 201).
29
Sendo assim, o movimento pode ser definido também como o ato do ente em potência
enquanto potência. Em outros termos, é uma ação imanente a qual um determinado ente atualiza
suas próprias potências, porque faz parte de sua essência, de sua estrutura ontológica. Essa ação
modifica interiormente o ente sem nenhum efeito exterior, por isso imanente: “permanece em”
(Cf. FINANCE, 1965, p. 391), ao contrário numa ação transitória o entre necessita de agente
externo a si para ajudá-lo atualizar suas potencias; por isso transitória: transita, “passa do agente
ao paciente.” (Ibid., 391).
É de se considerar também que ato e potência podem ser “demostráveis” recorrendo a
exemplos ou até mesmo pela experiência direta: “Por exemplo, vidente e aquele que neste
momento vê (vidente em ato), mas também aquele que tem olhos sãos, mas neste momento os
fechou, e não está vendo: este é vidente porque pode ver, e neste sentido é em potência.”
(REALE; ANTISERI, 2003, p. 193).
Portanto, podemos conhecer a causalidade por meio do mundo marcado pelo devir e
pelas transformações, como por exemplo, as noções de ato e de potência os quais foram
analisados e argumentados. Além disso, a própria experiência testifica essa realidade.
Outra experiência da causalidade no mundo do devir marcado pela mudança é a nossa
própria linguagem. Com efeito, nossa linguagem é rica em discurso causal, como diz Brian
Garrett usamos inúmeras expressões com a palavra causa e até verbos que pressupõem a
causação: fumar causa câncer, suas palavras causaram ofensa, eles haviam empurrado o carro
etc. Este discurso faz emergir inúmeras questões acerca a da natureza da própria causação.
(GARRETT, 2008, p. 63).
Isso é demonstrável e afirmado com a própria existência do homem, este tem
conhecimento que sua existência não lhe pertence, estritamente falando, não se deu a existência.
Logo, suas mudanças são causadas por outro:

Experiência externa: observamos, por exemplo, a mútua influência entre os


objetos exteriores a nós, influxo que distinguimos perfeitamente da mera
contiguidade temporal: ninguém sustenta que o três seja a causa do quatro,
ainda que sempre se encontrem um depois do outro em qualquer sucessão
numérica [...]. Experiência interna: cada um adverte também que é causa de
seus próprios atos por exemplo: mover uma mão, caminhar ou seguir em pé,
e experimenta o efeito poder da vontade sobre as demais potência interiores:
quando queremos, recordamos ações passadas[...]. Experiência interno-
externa: por fim, somos conscientes de nossa atividade causal sobre o exterior
e do influxo que as coisas que nos rodeiam exercem sobre nós: somos capazes
de modelar um corpo, de instruir a outras pessoas [...]. (ALVIRA; CLAVELL;
MELENDO, 2001, p. 198, tradução nossa).

30
Efetivamente o que caracteriza o mundo da experiência é o devir, isto é, as mutações
que os entes sofrem em muitos aspectos, como: local, qualitativo, quantitativo e, sobretudo,
substancial. Ora, bem se sabe que essas transformações não são realizadas pelas próprias coisas,
o que seria inadmissível. É incogitável, por exemplo, uma casa fazer-se a si mesma, um carro
andar sozinho sem a intervenção de um agente responsável por tal ação, haja vista que seria o
devaneio contra o princípio da causalidade que afirma: “tudo que começa tem uma causa.”
(Ibid., p. 201, tradução nossa).
Portanto, é nesta linha de raciocínio que se deve compreender a causalidade o seu valor
ontológico o qual diz que tudo que existe tem uma causa, um motivo de sua existência; e
consequentemente um fim a realizar, pois como disse Cícero (apud FINANCE, 1965, p. 349,
tradução nossa) “não há nada de mais vergonhoso como dizer que algo pode produzir-se sem
causa.” É neste prisma que se deve entender as noções de ato e potência estão intrinsecamente
entrelaçados com a causalidade.
Ainda mais, quando se volta para a contingência dos entes, vê-se a necessidade afirmá-
la. De fato, é absurdo admitir que um ser contingente seja causa de si mesmo. O ser contingente
é o ser que existe, mas poderia não existir. Se poderia não existir, não existe necessariamente,
ou seja, não existe em virtude de sua essência, não se autoexplica. Ora, se não existe em virtude
da própria essência, existe em virtude de outro ser. Logo, existir em virtude de outro é ter nele
a sua causa, sua razão de ser, ou seja, só veio à existência por causa dele:

Das formulações indicadas sobre o princípio da causalidade se destaca que


nada pode ser causa de si mesmo, pois produziria no ser para chegar a ser, o
que implica que seria e não seria a vez, atentando contra o princípio de
contradição. Por isso, ao conhecer que uma coisa é limitada, imediatamente
infere-se que é causada, e causada por um princípio transcende a ela mesma.
É essencial que o princípio de conduza (agente) nos conduza de ente a outro
(o efeito de suas perfeições a alio, recebidas de outro). (FINANCE, 1965, p.
303, tradução nossa).

Por isso, que tudo que começa tem uma causa, ou seja, o que não possui um determinado
ato não é capaz de fazer-se a si mesmo, a não ser por um determinado influxo de outro que já
goze dele. É inadmissível à razão, exemplificando, não só que um tijolo faça a si mesmo, mas
que ele atualize suas próprias potências, a não ser pela intervenção dum outro princípio exterior
a si, neste caso, se pode dizer do pedreiro, que seria sua causa eficiente. Então, percebe-se que
nada é causa de si. E que “tudo o que é contingente necessita uma causa.” (FILHO, 2000, p.
32), pois é notório que os entes providos de matérias estão sujeitos à corrupção, se desvanecem.

31
Destarte, no mundo das transformações as causas aristotélicas (material, formal,
eficiente e final) estão interligadas com os conceitos de ato e potência. A compreensão desses
conceitos ajuda a explicar como as coisas mudam, crescem e se desenvolvem no mundo natural,
fornecendo uma estrutura filosófica para entender a causalidade e as transformações ocorridas
no cosmos.

2.3 A CRÍTICA DE ARISTÓTELES AOS SEUS ANTECESSORES

Antes de adentrarmos na noção propriamente ao possível conceito de causa em


Aristóteles, faz-nos necessário o entendimento acerca do pensamento de alguns de seus
predecessores, visto que a ideia de causa, de um princípio responsável pela geração das coisas,
não foi inventada especificamente por ele, mas era uma realidade já especulada entre os seus
predecessores9.
Embora Aristóteles tenha dito que uma grande parte desses filósofos10 ficaram somente
na causa material: “Os que por primeiro filosofaram, em sua maioria, pensaram que os
princípios de todas as coisas fossem exclusivamente matérias.” (ARISTÓTELES, Metafísica,
983b, 10). Entretanto, em outra passagem Aristóteles, concluindo o primeiro livro da Metafisica,
afirma que os seus predecessores falaram de todas as causas: “Mas eles falaram delas de
maneira confusa. Em certo sentido, todas foram, mencionadas por eles, noutro sentido não
foram absolutamente mencionadas”. (Ibid.,993ª, 15). Por isto, aqui devemos aprofundar
fazendo necessária uma análise de suas doutrinas.
Apresentaremos, nesta seção, alguns filósofos que ficaram no nível da causa material e
da motora daqueles que a ultrapassaram chegando à noção, mesmo que de forma confusa, de
causa formal e de causa final. A causa formal e material, como veremos mais adiante, explicam
a constituição dos seres; enquanto a causa eficiente e a causa final explicam o movimento e a
mudança.

9
O termo arché não fora especificamente utilizado por Tales, não pertence a ele. Talvez tenha sido introduzido
por Anaximandro. A ideia é como se a physis fosse a manifestação visível da arché invisível.
10
Os filósofos que, a partir de Tales de Mileto até o fim do século V a.C., indagaram a respeito da physis foram
denominados "Físicos" ou "Naturalistas", todavia, somente recuperando a concepção arcaica do termo e
captando adequadamente as peculiaridades que a diferenciam da acepção arcaica moderna o leitor poderá
entender seus pensamentos e suas doutrinas cosmológicas. (Cf. REALE; ANTISERI, 1990, p.19). Portanto,
não se deve confundir os termos “físicos e naturalistas” no sentido moderno que nega a essência das coisas e
tem uma concepção naturalista e mecanicista das coisas. Os iniciadores da filosofia foram chamados físicos e
naturalistas por causa da visão cosmológica de mundo, quer dizer, foi a partir de sua visão de mundo que eles
atribuíram um princípio que fosse fundamento essencial para a geração das coisas.
32
2.4 FILÓSOFOS QUE FICARAM NO NÍVEL DA CAUSA MATERIAL E DA CAUSA
MOTORA

A busca pelo saber é inerente à natureza humana. Todavia, poderíamos indagar-nos: O


que fez com que despertasse no homem o interesse incansável pela busca de uma causa, de um
princípio gerador das coisas? De onde lhe vem esse desejo que se perpetua entre todas as
civilizações? Essas questões sobre o fundamento último das coisas, que faz com que estas
existam sempre estiveram presentes na história da filosofia.
Ora, o fato de o homem procurar resolver os problemas do cosmos e, especialmente, o
da sua existência é simplesmente porque ele não vive como os animais ou como os seres
inanimados. O ser humano é capaz de ensimesmar-se, entrar dentro de si. Ele tem a consciência
de sua existência, ou seja, o anseio pelo conhecimento é intrínseco ao homem, faz parte de sua
essência questionar-se e questionar as coisas para buscar possíveis respostas no mundo diante
das transformações e acontecimentos ao seu derredor.11 Essa forma de saber é natural ao
homem: “todos os homens, por natureza, tendem ao saber.” (ARISTÓTELES. Metafísica,
980a).
Foi partindo dessa verdade que a maioria dos filósofos que precedeu Sócrates buscou
entender a natureza a partir de uma visão logocêntrica, dando, assim, primazia à razão, e
deixando, em certo sentido, as explicações míticas12. Dessa forma, cada um deles atribuiu um
elemento como physis13 ou arché, que seria o fundo perene responsável pela geração das
diversidades de seres. Ela, embora seja imperecível, dá origem a todos os seres infinitamente
variados e diferentes do mundo, seres que, ao contrário do princípio gerador, são perecíveis ou
mortais (Cf. CHAUÍ, 2000, p. 41), como veremos nestas subseções.

11
Segundo Ramón Lucas: “Com base na autoconsciência, o homem não apenas sabe, mas sabe que sabe. O eu
conhecido é, portanto, uma pessoa: um eu subsistente, porque eu sou aquele que age, aquele a quem os atos
pertencem; um eu diferente, porque junto com todas as minhas ações sou um indivíduo;” (LUCAS, 2003, p.
115, tradução nossa). Isto é, ele tem consciência de sua existência e de toda a realidade criada.
12
Quando dizemos que houve uma visão mais logocêntrica não estamos afirmando a ruptura radical com os mitos,
pelo contrário, lembremo-nos que estes sempre estiveram presentes na história da filosofia e eles transmitem
mensagens verídicas. Parmênides recorrer à poesia da deusa para explicar sua epistemologia. Platão recorre ao
mito da caverna. Todavia, não se trata de qualquer mito, mas de uma realidade que é dotada de racionalidade
e não carente de sentidos. Essa visão logocêntrica deve-se ser entendida no sentido de que estes filósofos
investigavam minuciosamente a origem das coisas pela razão, esta se torna primordial. Entretanto, isso não
significa que os mitos gregos homéricos como, por exemplo, Ilíada e Odisseia não buscassem compreender a
realidade das coisas. Ora, os estudiosos observaram que o poeta não se limitava a narrar apenas fatos, mas
pesquisava suas causas e razões. Enfim, aquela mentalidade embora no nível mítico e fantástico despertará na
filosofia à busca duma “causa”, dum “princípio”, do porquê último das coisas.
13
Eis a definição de Physis: “O fundo eterno, perene, imortal e imperecível de onde tudo brota e para onde tudo
retorna é o elemento primordial da Natureza e chama-se physis (em grego, physis vem de um verbo que
significa fazer surgir, fazer brotar, fazer nascer, produzir). A physis é a Natureza eterna e em perene
transformação. (CHAUÍ, 2000, p. 41).
33
2.4.1Tales de Mileto: água como princípio gerador de todas as coisas

Tales de Mileto, pré-socrático, filósofo da Escola Jônica (Cf. CHAUÍ, 2000, p. 41) e
iniciador da filosofia da physis, comungava do pensamento que o cosmos era eterno e partindo
da observação e da experiência chegou à conclusão que tudo foi criado a partir de um único
elemento, que ele atribuiu a água ou o úmido, como sendo o princípio responsável pela geração
de tudo.
Segundo Jean Bernhardt é o “primeiro a imaginar uma realidade sensível, a água, como
o substrato e a força geradora de todas as coisas.” (CHÂTELET; BERNHARDT; AUBENQUE,
1973, p. 27). Ela seria então, essa força renovadora, princípio vital, capaz de atravessar séculos
e permanecer intacta. O filósofo percebia através da observação que tudo tinha água a qual era
necessária à vida de forma em geral. Assim, tudo precisa dela: as plantas, os animais, o homem,
a natureza em si. Ele analisava ainda que todas as coisas são úmidas e quando uma pessoa morre
fica seca. Isso se explica pela ausência desse princípio que é capaz de sustentar toda realidade
seja humana ou não.
Aristóteles, ao falar de Tales, atribui a ele essa concepção física da água como sendo o
princípio causal de toda a realidade:

Tales, iniciador desse tipo de filosofia, diz que o princípio é a água (por isso
afirma também que a terra flutua sobre a água), certamente tirando esta
convicção da constatação de que até o calor se gera do úmido e vive no úmido.
Ora, aquilo de que todas as coisas se geram é o princípio de tudo. Ele tirou,
pois esta convicção desse fato e também do fato de que as sementes de todas
as coisas têm uma natureza úmida, sendo a água o princípio da natureza
úmida. (ARISTÓTELES. Metafísica, 983b, 20-25).

Assim, o conceito de "arché" refere-se ao princípio fundamental que constitui a base de


todas as coisas no universo. Ou seja, como a própria citação confere aquilo de que todas as
coisas se geram é o princípio de tudo. Para o filósofo, esse princípio subjacente era a água. Ele
postulou que a água não só era a substância fundamental que dava origem a tudo o que vemos
e experimentamos no mundo, mas também universal visto que ela não era apenas uma
característica local ou regional, mas uma substância universal que existia em todos os lugares.
Era o princípio da natureza úmida. (Cf, Ibid., Metafísica, 983b, 20-25). Era elemento primordial
que permeava o cosmos. Além disso, poderia assumir diferentes formas, como líquido, sólido
(gelo) e vapor (gás).

34
Entretanto, quando o filósofo diz que tudo veio da água e esta é o princípio originador
de todas as coisas presentes no cosmos, parece não estava falando dela simplesmente do modo
como conhecemos. Pelo contrário, o filósofo estava explicando que tudo veio de um princípio
unitário, de uma única realidade ou ainda de uma physis na qual a água que bebemos é apenas
uma de suas manifestações. Desta maneira, a ideia do filósofo é que esse princípio14 se faz
presente em tudo e se fosse para expressá-lo visivelmente seria a água, por isso, que ele chegou
a dizer que tudo tem uma alma:

Mas não se deve acreditar que a água de Tales seja o elemento físico-químico
que hoje bebemos. A água de Tales deve ser pensada de modo totalizante, ou
seja, como a physis liquida originária da qual tudo deriva e da qual a água que
bebemos é apenas uma de suas tantas manifestações. [...] Tales, portanto,
fundamenta suas asserções sobre o raciocínio puro, sobre o logos; apresenta
uma forma de conhecimento motivado com argumentações racionais
precisas.” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 19).

Então, a água seria a causa responsável pela existência de todos os seres, sejam estes
vivos ou não. Ela funcionaria como princípio de todas as coisas, visto que estas são constituídas
por ela ao passo de Tales dizer: “o princípio de todas as coisas é a água.” (ibid., p. 17). Para o
filósofo, esse elemento é vida, logo tudo está cheio de vida. Assim, onde existe água existe
vida, consequentemente se não tem água não é possível ter vida.
Nada obstante, sua visão tenha sido superada por ideias posteriores na história da
filosofia e da ciência, o fato é que ele foi o primeiro filósofo a buscar uma explicação racional
e natural para a origem e a natureza do mundo, em vez de recorrer a explicações míticas ou
sobrenaturais.
Nietzche (apud COPLESTON, 2021, p. 89) ao falar de Tales comunga da ideia que o
filósofo via a água como princípio unitário, que ele levanta a questão do Um, não simplesmente
uma mera hipótese: “Mas Tales foi além da mera hipótese científica: chegou a uma doutrina
metafísica, a de que Tudo é Um.” (Ibid., p. 89).
Sua doutrina tendo a água como "arché" pode ser entendida como um passo inicial do
conhecimento filosófico que recorre à realidade material como explicação do cosmos. Seu
pensamento representou um passo importante no desenvolvimento do pensamento racional e
na transição da mitologia para a filosofia.

14
Dizer que água é princípio de todas as coisas significa que ela é a fonte e a origem de todas as coisas, de tudo
que é criado. É substancia de tudo, pois o princípio quer dizer: “aquilo do qual provém, aquilo no qual se
concluem e aquilo pelo qual existem e subsistem todas as coisas.” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 18).
35
2.4.2 Anaximandro de Mileto: o ápeíron como princípio indefinido-infinito gerador de
todas as coisas

Anaximandro, provavelmente discípulo de Tales de Mileto, também pertencente a


Escola Jônica (Cf. CHAUÍ, p. 40) não concorda com o pensamento de seus mestre. Ele objetava
que o princípio de todas as coisas fosse um elemento observável e submetido à experiência ou
determinado como, por exemplo: a água, o fogo ou o ar. Ele é conhecido por suas contribuições
significativas para a filosofia e a cosmologia antigas, e foi um dos primeiros filósofos a buscar
uma explicação racional para a origem e a natureza do universo, em vez de recorrer a
explicações míticas. Também por elaborar um tratado Sobre a natureza, do qual chegou temos
acesso apenas a alguns fragmentos. Trata-se do primeiro tratado filos6fico do Ocidente e do
primeiro escrito grego em prosa (Cf. REALE; ANTISERI, 2003, p. 19).
O filósofo defendia que o "ápeiron" era eterno e existia antes de todas as coisas. Ele
não via o "ápeiron" como tendo um começo ou um fim, mas como algo que sempre existiu e
sempre existirá. Dessa forma, para a cosmologia em Anaximandro o mundo surgiu de um estado
inicial indiferenciado e indeterminado do ápeiron. Não se há nele características particulares,
como forma, tamanho ou até mesmo qualidade. Desta substância eterna provêm todas as coisas
limitadas, toda realidade empírica, verificável, contudo, ele mesmo é privado de determinação,
é indeterminado, ilimitado pois está além ele é imperecível, infinito na duração:

O termo usado por Anaximandro é o á-peiron, que significa aquilo que está
privado de limites, tanto externos (ou seja, aquilo que é espacialmente e,
portanto, quantitativamente infinito), como internos (ou seja, aquilo que é
qualitativamente indeterminado). Precisamente por ser quantitativa e
qualitativamente ilimitado, o princípio-ápeiron pode dar origem a todas as
coisas, delimitando-se de vários modos. Esse princípio abarca e circunda,
governa e sustenta tudo [...] todas as coisas geram-se a partir dele, nele
consistem e nele existem. (REALE; ANTISERI, 2003, p. 19-29).

Anaximandro rechaçando os elementos observáveis dá um salto qualitativo, de fato, esse


filosofo não só fica na observação - como Tales - mas adota a postura do filósofo: a especulação.
Ele sugeriu que as coisas individuais no mundo surgiram por meio de processos de separação e
diferenciação a partir desse estado primordial. Na verdade, não só surgem, senão todas as
coisas, nele consistem e nele existem. (Cf. Ibid., p. 19-29).
Desse modo, o "ápeiron" era fonte subjacente de todas as mudanças, responsável pelas
transformações que observamos no universo. Para Anaximandro, representava uma substância
indeterminada e infinita da qual todas as coisas tinham origem e para a qual todas as coisas

36
eventualmente retornavam. Essa visão influenciou o desenvolvimento posterior da filosofia pré-
socrática e contribuiu para o desenvolvimento do pensamento racional na Grécia Antiga.
François Châtelet ao mencionar Anaximandro disse: “Encontramos nele as qualidades
de observador e a audácia especulativa de Tales, do qual ele toma também, para reforçar suas
exigências, o sentido da argumentação.” (CHÂTELET; BERNHARDT; AUBENQUE,1973, p.
27). Porém, Tales não havia proposto a pergunta sobre como e o porquê de as coisas serem
derivadas dum princípio, no entanto, Anaximandro a fez.

2.4.3 Anaxímenes de Mileto: o ar infinito como princípio gerador de todas as coisas

Anaxímenes de Mileto, discípulo de Anaximandro de Mileto, também elaborou tratado


um Sobre a natureza, em sóbria prosa jônica, chegaram-nos três fragmentos, além de
testemunhos indiretos. Esse filósofo da Escola Jônica adota uma posição “intermediária”,
concorda com seu mestre que o elemento único no qual tudo veio dele, é indeterminado e
consequentemente infinito, mas discordou ao situá-lo em um campo muito abstrato. Segundo
ele, todas as coisas existentes são resultado da condensação ou da rarefação do ar e tudo teria
como natureza esse “aer” (Cf. REALE; ANTISERI, 2003, p. 21).
Assim, esta arché seria o "aer", palavra grega, que geralmente é traduzida por “ar”,
entretanto, não devemos concebê-lo como o ar que conhecemos atualmente, mas com
características e atributos bem diferentes. Seria uma espécie de névoa densa, mais similar ao
que chamaríamos de vapor. Anaxímenes afirmou: “Exatamente como a nossa alma (ou seja, o
princípio que dá vida), que é o ar, se sustenta e se governa, assim também o sopro e o ar abarcam
o cosmos inteiro.” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 21).
Logo, é infinito ou em outras palavras quase inobservável. Está presente em tudo,
transpassava tudo, soprava o movimento de todos os seres e era infinito. Certamente o motivo
pelo qual esse filósofo recorrer ao ar como princípio e fundamento das coisas seja pelo fato de
o ar se presta melhor do que qualquer outro elemento e transformações necessárias para fazer
nascer as diversas coisas:

É evidente que ele sentia necessidade de introduzir uma realidade originaria


que dela permitisse deduzir todas as coisas, de modo mais lógico e mais
racional do que fizera Anaximandro. Com efeito, por sua natureza de grande
mobilidade, o ar se presta muito bem (hem mais do que o infinito de
Anaximandro) para ser concebido como em perene movimento. Além disso,
o ar se presta melhor do que qualquer outro elemento às variações e
transformações necessárias para fazer nascer as diversas coisas. (Ibid., p. 21).

37
Desta maneira, a arché, o ar infinito, seria a realidade mais excelente e estaria em um
grau superior aos de seus antecessores. Dizia que o primeiro era muito abstrato (ápeiron de
Anaximandro); e o segundo muito palpável (água de Tales de Mileto). Assim, esse princípio
adquire outra conotação: esse “ é princípio infinito, mas que deva ser pensado como ar infinito,
substância aérea ilimitada. (Ibid., p. 21, grifos do autor). Segundo ele, todas as coisas existentes
são resultado da condensação ou da rarefação do ar. Então, tudo que existe é resultado da
condensação ou da rarefação do ar: por meio da condensação, resfria-se e se torna água e,
depois, terra; ao se distender (ou seja, rarefazendo-se) e dilatar, esquenta e torna-se fogo.

2.4.4 Diógenes de Apolônia: o ar-inteligência, de natureza infinita, como princípio gerador


de todas as coisas

Poder-se-ia dizer que Diógenes de Apolônia não identificou precisamente um elemento


material específico, como água ou fogo, como os pré-socráticos anteriores haviam feito. Em
vez disso, ele propôs que e o ar-inteligência, de natureza infinita, como princípio gerador de
todas as coisas.
No entanto, segundo Santo Tomás de Aquino, há diferenças entre as opiniões de
Anaxímenes e Diógenes, pois enquanto o primeiro pôs o ar como princípio absoluto das coisas;
o segundo diz que o ar não pode ser o princípio de todas as coisas, porque era composto de
espírito divino. (AQUINO, 2016, p.75).
Assim, o ar é dotado de inteligência, e é divino. O filósofo elaborou uma filosofia
bastante eclética, combinando não só as teses filosóficas de Anaxímenes e de Anaxágoras (Cf.
REALE; ANTISERI, 2003, p. 40), mas também dos pluralistas Empédocles, Anaxágoras e
Leucipo, como afirma Giovanni Reale (Cf. em Sumários e Comentários, 2002, p. 22).
Logo, em certo sentido, Diógenes adaptou as teses do “Nous” de Anaxímenes, o “ar”,
com a doutrina de Anaxágoras (que veremos mais adiante) quando fala de inteligência
ordenador:

Diógenes de Apolônia combina as teses de Anaxímenes com as de


Anaxágoras, afirmando que o princípio seja ar-inteligência, de natureza
infinita. Introduz na explicação do mundo o conceito de fim; o escopo que as
coisas têm depende da inteligência do princípio do qual derivam. (REALE;
ANTISERI, 2003, p. 40).

Dessa forma, na doutrina de Diógenes há uma certa finalidade, quer dizer, o princípio
seja ar-inteligência, mas há uma finalidade nas coisas que depende da inteligência responsável

38
pela sua existência. O ar se condensa, se rarefaz e sofre mutações de qualidade, produzindo as
outras coisas em suas formas. (Cf. Ibid., p.40). Esse princípio, ar infinito e consciente, é ativo
e criativo ao passo que na concepção do filósofo ele agia para criar e manter o mundo, dando
origem a todas as coisas a partir de si mesmo. Também organizador: dava forma e ordem ao
universo. Era responsável pela regularidade e harmonia que se observava na natureza.
É inegável que a visão cosmológica de Diógenes de Apolônia se consistia na busca por
uma explicação racional e finalista para a origem do mundo, afastando-se de explicações
mitológicas. Sua visão do "ar-inteligência" como um princípio infinito e inteligente contribuiu
para o desenvolvimento do pensamento filosófico na Grécia Antiga.

2.4.5 Leucipo e Demócrito: o atomismo como princípio gerador de todas as coisas

Leucipo e Demócrito - fundadores do atomismo lógico - propuseram como origem de


todas as coisas os átomos. Estes seriam as partículas incansáveis, indivisíveis, infinitas em
número e configuração. Eles adotaram a ideia de que os átomos são o princípio originador de
tudo, e que as coisas se originam mediante o choque entre os átomos no vazio. Argumentavam
que as coisas sensíveis nascem, morrem e sofrem em virtude do processo de agregação e
desagregação destes átomos.
Além disso, estes eram concebidos como variados em forma e tamanho, dotados de
movimento. (Cf. Ibid., p. 40). Isso se dava por meio de um movimento aleatório, isto é, estavam
constantemente em movimento aleatório no vácuo. Esse movimento aleatório dos átomos era a
base para a explicação das mudanças e fenômenos observados no universo.
Portanto, o "arché" na filosofia atomista de Leucipo e Demócrito era a concepção de
átomos como as unidades fundamentais e indivisíveis que compunham o universo. Suas ideias
representaram uma tentativa pioneira de entender a natureza da matéria e da realidade por meio
de uma abordagem materialista e naturalista, ou seja, não há uma causa final, uma ordem, um
projeto:

Leucipo e seu seguidor Demócrito afirmam como elementos o cheio e o vazio,


e chamam um de ser e o outro de não-ser; mas precisamente, chamam o cheio
e o sólido de ser e o vazio de não-ser; e por isso sustentam que o ser não tem
mais realidade do que o não-ser, pois o cheio não tem mais realidade que o
vazio. E afirma esses elementos como causas materiais dos seres. [...] Mas ele
também, como os outros, negligenciaram a questão de saber de onde deriva e
como existem nos seres o movimento. (ARISTÓTELES. Metafísica, 985 b 5-
20).

39
Percebe-se que a doutrina atomista é, em certo sentido, materialista e mecanicista na
qual algo é feito sem ordem, sem uma mente organizadora, mas simplesmente fruto do acaso,
algo fortuito. Resta-nos então questionar: como pode algo ser feito sem uma Inteligência que a
pensou? Decerto é ilógico admitir que alguma coisa venha vir a ser sem intervenção de uma
Inteligência, de um princípio que a organizou e que ela não tenha uma finalidade:

Mas isso não quer dizer que eles não atribuem causas ao nascer do mundo [...],
mas sim que não estabelece uma causa inteligente, uma causa final. A ordem
(o cosmos) é feito de um encontro mecânico entre os átomos não projetados e
não produzidos por uma Inteligência. (REALE; ANTISERI, 2003, p. 46).

O pensamento de Leucipo e Demócrito sobre os átomos que são os responsáveis pela


origem de tudo, é confuso quando afirmam que toda a realidade pode ser explicada em sentido
mecanicista a partir dos átomos e do vazio. O problema é pensar em ordem e geração das coisas
sem uma causa Inteligente, final que possa reger as leis do universo. Para Aristóteles, estes
filósofos atomistas ficaram presos na causa material, com a concepção dos átomos, e
desconheceram a causa final.
Eles afirmam que “o ser não nasce, não morre e tampouco está no nível do devir, pois
isso implicaria mutação e ele é imutável e indivisível, e não se adapta a realidade sensível, adere
porém aos fundamentos da realidade sensível, isto e, aos átomos.” (REALE; ANTISERI, 2003,
p. 40). Dessa maneira, os átomos não têm qualidades e só podem ser captados pelo intelecto;
as coisas sensíveis nascem, morrem e sofrem mutação.

2.4.5 Heráclito de Éfeso: o perene escorrer de todas as coisas e o devir universal revelam-
se como harmonia de contrários

Heráclito de Éfeso escreveu um livro intitulado Sobre a natureza, do qual chegaram até
nós fragmentos. (Cf. REALE; ANTISERI, 2003, p. 22). Ficou conhecido como “o obscuro”15
e o “Pai da Dialética”16. Ele tinha uma visão muito dinâmica do ser, para ele existiria no

15
Heráclito ficou conhecido como “o obscuro” porque tinha caráter desencontrado e temperamento esquivo e
desdenhoso. Não quis participar da vida pública “Fez isso para evitar o desprezo e a caçoada daqueles que, lendo
coisas aparentemente fáceis, acreditam estar entendendo aquilo que, ao contrário, não entendem. Por esse motivo
foi denominado "Heráclito, o obscuro". (REALE; ANTISERI, 2003, p. 22).
16
A dialética propõe a busca da verdade através da relação entre dois conceitos opostos, numa relação de
interdependência. Por isso que para ele “há, portanto, guerra perpétua entre os contrários que se aproximam.”
(REALE; ANTISERI, 2003, p. 23). Quer dizer: “das coisas diferentes nasce a mais bela harmonia e tudo se gera
por meio de contrastes"; ‘harmonia dos contrários’, como a harmonia do arco e da lira.( Ibid., p. 23, grifo do
autor).

40
mundo um eterno devir, uma constante kinesis no universo de modo que não podemos entrar
duas vezes no mesmo rio. Dessa forma, a permanência é pura ilusão:

Tudo se move, tudo escorre (panta rhei), nada permanece imóvel e fixo, tudo
muda e se transmuta, sem exceção [...]: Não se pode descer duas vezes no
mesmo ri n o e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo
estado, pois, por causa da impetuosidade e da velocidade da mudança, ela se
dispersa e se reúne, vem e vai. [...] Nós descemos e não descemos pelo mesmo
rio, nós próprios somos e não somos. (REALE; ANTISERI, 2003, p. 23).

Em Heráclito, as coisas acabam se diluindo em uma nesta espécie de devir, visto que
não existe nenhum substrato que seja responsável pela existência das coisas. Com essa
concepção dinâmica do ser faz com que o indivíduo não conheça nada duradouro, pois os
sentidos captam as coisas, entretanto, estas mudam constantemente assim como o homem.
O filósofo creditava que o mundo está constantemente em um estado de mudança
afirmava não se pode entrar duas vezes no mesmo rio, o que significa que, dado que a água está
sempre fluindo, o rio nunca é o mesmo a cada momento. Da mesma forma, todas as coisas no
universo estão em constante fluxo e transformação.
Via o fogo como princípio único, subjacente ao movimento que governa todas as coisas.
Ele acreditava que o fogo era o princípio fundamental que unificava e controlava todas as
mudanças no universo. Por conseguinte, atribui ao fogo como princípio fundamental, e
considerou todas as coisas como transformações deste princípio. Esse fogo governa tudo, como
ele mesmo esse se expressa: “Esse fogo é ‘como raio’ que governa todas as coisas. E aquilo que
governa todas as coisas é a ‘inteligência’, é ‘razão’, é ‘logos’, é lei racional.” (REALE;
ANTISERI, 2003, p. 24).
Assim sendo, Heráclito é conhecido por sua filosofia do fluxo constante, da unidade dos
opostos e da importância do fogo como elemento primordial. Sua abordagem desafiou ideias
anteriores e influenciou significativamente o desenvolvimento da filosofia ocidental,
especialmente na obra de filósofos como Friedrich Nietzsche (o eterno retorno) e Hegel (a
dialética).

41
2.4.6 Parmênides e a doutrina do ser: o ser é e o não ser não é

Enquanto Heráclito tinha essa visão dinâmica de todo o cosmos; Parmênides passa para
uma visão estática, quer dizer, rejeitando a concepção heraclitiana da existência marcada pelo
devir17; passa a tratar o ser como imóvel e muito menos mutável ou falso. Pelo contrário, ele é
imutável, uno, indiviso, indestrutível, é a physis do cosmos; ademais somente ele pode ser
pensado, dito, ao passo que o não-ser é inimaginável:

Por conseguinte, o ser é também imutável e imóvel, porque tanto a mobilidade


quanto a mudança pressupõem um não-ser para o qual deveria se mover ou no
qual deveria se transformar. Assim, o ser de Parmênides é todo igual; o ser se
amálgama com o ser, sendo impensável um mais de ser pressuporiam uma
incidência do não-ser. (REALE; ANTISERI, 2003, p. 33).

Com esta qualidade imobilista da noção de ser em Parmênides18, há uma novidade no


pensamento, ou seja, pode-se falar de uma teoria do ser, um estudo do ser, da ontologia: “O
grande princípio de Parmênides, que é o próprio princípio da verdade [...] é este: o ser é e não
pode não ser; o não-ser não é e não pode ser de modo nenhum.” (Ibid., p. 33). Assim, pode-se
considerar o ser é o princípio de tudo e não está preso às realidades sensíveis que são
enganadoras é a única via para a verdade, não tem passo e além do mais, completo e perfeito.
Portanto, argumentava não só que o ser, ou ser uno, era a única realidade verdadeira e que tudo
o mais era ilusório, mas também que era eterno, imutável, homogêneo e indivisível.
Todavia, conforme Tomás Melendo com a concepção rígida do ser de Parmênides a
ponto de uma rejeição total do não-ser, introduzirá a metafísica em uma via morta, pois o não-
ser em algum sentido pode ser pensado, que o não ser é, em algum sentido:

[...] Parmênides, ao rejeitar o não-ser, introduz a metafísica por uma via


morta: dela surgirão, ao cabo de algum tempo, todas as aporias dos sofistas
(entre elas, a destruição da ética). E por isso, Platão, com o objetivo der fazer
avançar a filosofia primeira, terá de se afastar de Parmênides, e chegará a
cometer um “parricídio”: admitirá, em sentido contrário ao que Parmênides
ensinava, que o não-ser é. [...] explicará a possibilidade da vida humana tal
como se encontra na realidade, marcada em muitos casos pela contradição,
porém capaz de ser vivida com plenitude e retidão. (MELENDO, 2002, p. 53,
grifos do autor).

17
A dicotomia entre o "ser" eterno e imutável de Parmênides e o mundo mutável da aparência perceptual foi um
tema central na filosofia ocidental e ainda é debatido e explorado em várias tradições filosóficas.
18
Muitos veem nesta doutrina de Parmênides sobre o ser, “a primeira grande formulação do princípio da não-
contradição, isto é, daquele princípio que afirma a impossibilidade de que os contraditórios coexistam ao mesmo
tempo.” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 33).
42
A crítica de Platão a Parmênides consistia na sua concepção rígida como uma substância
essencial que não podia mudar, dividir-se ou deixar de existir. O filósofo enfatiza em seu poema
Sobre a Natureza (Cf. REALE; ANTISERI, 2003, p. 58), em grego, Peri Physeos, onde
apresenta suas ideias sobre o ser e o não-ser em forma poética e narrativa. Entretanto, trouxe
consequências para o campo da ética, isto é, da ações humanas, visto que o próprio agir humano
é condicionado e marcado por contradição e isso não impede de o homem viver feliz e buscar
sua realização.
Consequentemente isso desembocaria na negação do indivíduo como um ser real e
atual, pois “equivaleria a suprimir a possibilidade mesa de compreender metafisicamente em
minha concreta singularidade participada e, e consequência, de compreender meu próprio ser
[...] (Cf. Ibid., p. 53). Traria, portanto, grandes complicações para o campo da aplicabilidade
das ações humanas.
Deste modo, Platão vai conceber o ser de outras formas superando a visão monolítica
de Parmênides. Em um primeiro momento, como uma realidade que corresponde a identidade:
algo é verdadeiro quando é idêntico a si mesmo, depois o ser como algo parecido ao que nós
entendemos por existir ou dar-se de fato, aquilo que se expressa com o verbo impessoal.
Assim também acontecerá com o não-ser atribuindo-lhe dois significados, a saber:
diversidade e não-existir. Ora, “esta diversidade de sentidos pode admitir num universal
metafísico simples o não-ser: algo que não é numa das acepções propostas poderia, sem
problema, ser na outra. “(Ibid., p. 55, grifos do autor). Neste sentido, qualquer realidade finita
pode se enquadrar no não-ser com causa de sua diversidade em relação às demais realidades,
por exemplo, o homem não é o cachorro. À vista disso, o homem não é o cachorro, opõe-se á
perfeita identidade (de fato o homem não é cachorro) e compreensível à razão humana, também
pode ser entendida na segunda explicação platônica de dar-se de fato, haver ou existir. (Cf.
REALE; ANTISERI, 2003, p. 55) ao passo que o é não exclui a outra realidade: o cachorro
existe.
Esse embate entre Heráclito e Parmênides acerca do ser será compreendida com a
doutrina do ato e da potência em Aristóteles, que analisaremos mais adiante. Por agora, veremos
os filósofos que ultrapassaram a causa material e a motora.

43
2.5 FILÓSOFOS QUE ULTRAPASSARAM A CAUSA MATERIAL E A MOTORA

Se é verdade o desejo pelo conhecimento é intrínseco ao homem, faz parte de seu ser,
também o é que ele sempre age por um determinado objetivo. Isso é tão evidente que muitos
filósofos começaram a olhar e analisar suas próprias ações bem como suas próprias motivações
interiores ao agir. Ora, essa postura, indubitavelmente, evoca a ideia de finalidade, em uma
linguagem tomista seria finis operationis, quer dizer, o fim da ação, um agir intencionado, não
se trata de um simples agir, sem um porquê.
Dessa forma, o pensamento dos primeiros filósofos vai amadurecendo cada vez mais
quando eles adotam uma postura mais especulativa diante do mundo. O olhar sobre as coisas
adquire um novo panorama. No entanto, percebe-se que esta cosmovisão se dá em um processo
lento o qual exige raciocino, especulação. Assim, nota-se, pensamentos e ideias confusos na
doutrina acerca da arché e da causalidade em cada filósofo.
Todavia, não se pode analisar um filósofo de modo isolado. Deve levar em consideração
que o pensamento é construído sempre com bases em argumentos de doutrinas anteriores. Isso
é muito perceptivo nestes filósofos. De fato, em cada teoria percebemos algo semelhante à
teoria do filósofo anterior, como vimos em Diógenes, uma certa adaptação das teses do “Nous”
de Anaxímenes, o “ar”, com a doutrina de Anaxágoras da Inteligência ordenadora, contudo,
sempre tem algo de inovador.
Nesta seção, abordaremos o pensamentos de alguns filósofos e suas respectivas
doutrinas, a saber: Empédocles de Agrigento, Anaxágoras de Clazômenas e Platão. Estes,
possivelmente, ultrapassaram a causa material e a causa eficiente, mesmo de modo confuso ou
ambíguo mencionaram em suas doutrinas as noções de causa formal e de causa e final19.

2.5.1 Empédocles de Agrigento: o primeiro dos pluralistas e a teoria cosmogônica dos


quatro elementos

Empédocles, o primeiro dos pluralistas, seguindo o raciocínio acerca da natureza das


coisas, isto é, da origem, volta o seu pensamento para a ideia na qual os elementos da natureza
material são quatro, a saber: a terra, o fogo, o ar e a água. Sua doutrina do conhecimento está
embasada na afirmação de que a origem do universo se dá por meio de forças antagônicas.

19
Poder-se-ia dizer, que todo ser vivo age em vista de um fim, mesmo sem fazer uso da razão, como, por exemplo,
acontece com o animal que sedento vai à fonte saciar sua sede, a criança que chora como forma de expressar sua
fome, o seu medo, sua insegura etc. e, é tranquilizada quando está no colo de sua mãe.
44
É considerado um físico pluralista, porque sua visão cosmogônica (como ele concebia
a geração do cosmos), segue, em certo sentido, a mesma dos pré-socráticos que buscavam a
arché na physis, não de maneira moonista, pois não via o ser como uma realidade estática,
imóvel como na teoria parmenidiana. Neste sentido, sua doutrina se aproxima a de Heráclito ao
passo que o ser fluir, está em constante devir, movimento:

Água, ar, terra e fogo são movidos e governados por duas forças cósmicas, o
Amor e o ódio: uma agrega, a outra desagrega. Quando prevalece o Amor,
temos perfeita unidade (o Esfero); quando prevalece o ódio em sentido
extremo, temos ao invés o mínimo de desagregação (o Caos). Nas fases de
relativo predomínio do ódio, gera-se o cosmo. (REALE; ANTISERI, 2003, p.
39).

Deste modo, todos os seres seriam compostos por esses quatro elementos, podendo
variar. O amor e o ódio, sendo os dois sentimentos humanos: o amor une elementos semelhantes
e afasta aquilo que é dessemelhante no ser. O ódio separa os elementos dessemelhantes. Assim,
esses dois princípios são responsáveis pelo surgimento das coisas no cosmos. Assim, a relação
amor-ódio é de geração.
Contudo, se afasta destes filósofos a parir do momento que adota uma finalidade
pluralista, quer dizer, enquanto os outros filósofos buscavam na physis um único princípio,
causador de todas as coisas; ele afirmava, como vimos anteriormente, a existência de quatro
elementos: a terra, o fogo, o ar e a água, como que as raízes de todas as coisas:

Segundo Empédocles, da mesma forma que para Parmênides, o “nascer” e o


“perecer”, entendidos como um vir do nada e um ir ao nada, são impossíveis
porque o ser é e o não-ser não é. Assim, não existem “nascimento” e “morte”:
aquilo que os homens chamam com esses nomes, ao contrário, são o misturar-
se e o dissolver-se de algumas substâncias que permanecem eternamente
iguais e indestrutíveis. Tais substâncias são a água, ao ar, a terra e o fogo, que
Empédocles chamou raízes de todas as coisas. (Ibid., p. 60).

É importante salientar que essas duas forças, Amor ou Amizade, em grego philía , e
Ódio ou Discórdia, em grego neîkos, nada têm a ver com sentimentos que humanos, pelo
contrário, trata-se de forças de forças cósmicas as quais são responsáveis por unir ou desunir.
Deste modo, o devir ,as transformações das coisas bem como o surgimento e desaparecimento
delas, devem-se à mistura desses elementos distribuídos em várias proporções.
Dessarte, segundo Empédocles, era a partir do caos que era caracterizado pela união e
pela separação desses elementos que todas as coisas surgiam, inclusive o cosmos. O devir, as
transformações das coisas bem como o surgimento e desaparecimento delas, devem-se à

45
mistura desses elementos distribuídos em várias proporções. Para ele, o ódio separa e o amor
une.
Santo Tomás de Aquino comentando a análise que Aristóteles faz de Empédocles, diz
que este errou duplamente. Primeiro, porque não abordou causas suficientes, mas se limitou à
natureza das coisas particulares. Segundo, porque faltou a ciência naquilo que investigou, quer
dizer, falhou no que investigou: que o amor une e o ódio dispersa. Ora, para Santo Tomás de
Aquino pode-se ocorrer o contrário do que aparece na doutrina a de Empédocles, ou seja, o
amor pode separar ou dividir e o ódio unir ou juntar:

Quando o universo se dissolve pelo ódio em suas partes, como na geração do


mundo, então todas as partes do fogo se reúnem e são conjugadas umas com
as outras e, de modo semelhante, cada uma das partes dos outros elementos,
unem umas com as outras. O ódio não só divide as partes do fogo em partes
do ar, mas também reúne as do fogo. Mas, se os elementos se unem pelo amor,
que ocorre na dissolução do universo, então é necessário que as partes do fogo
se separem entre si e, do mesmo modo, reciprocamente se separem as partes
dos singulares. Ora, o fogo não pode, de fato, misturar-se ao ar, exceto, se as
partículas de fogo estiverem separadas entre si. E as do ar não podem se
misturar, exceto se esses elementos se compenetrarem entre si. Assim, não só
o amor une as coisas diferentes, mas também as separa [...] (AQUINO, 2016,
p. 90-91).

Portanto, consoante Santo Tomás não seria função do amor ou da amizade somente
unir, senão separar, como também acontece com o ódio que não somente divide, mas pode unir.
O ódio dissolve o universo, mas reúne as partes do fogo, o amor une as coisas, como na
dissolução do universo, também as separa, como as partes do fogo que são separas entre si.
Aristóteles argumenta que esses quatro elementos presentes na doutrina de Empédocles:
a terra, o fogo, o ar e a água, não são usados como se fossem quatro, mas apenas dois: o fogo
por conta própria e os demais - terra, ar e água. Assim, se trata de naturezas distintas, visto que,
Empédocles contrapõe esses elementos como única natureza.

Empédocles, em todo caso, diferentemente de seus predecessores, foi o


primeiro a introduzir a distinção dessa causa, tendo afirmado não um único
princípio do movimento, mas dois princípios diferentes e até mesmo
contrários. Ademais, ele foi o primeiro a dizer que os elementos da natureza
material são quatro em número. (De resto, ele não se serve deles como se
fossem quatro, como se fossem apenas dois: de um lado o fogo por conta
própria e, de outro, os outros três – terra, ar e água – contrapostos como uma
única natureza). (ARISTÓTELES. Metafísica, 985b 25-30, 985ª).

Nota-se, que no pensamento de Aristóteles (apud ANGIONI, 2009, p. 57), mesmo com
o pensamento obscuro de Empédocles, ele foi o filósofo que mais fez uso das quatro causas, e
consequentemente mais se aproximou da noção de causa final ao considerar a amizade como
46
causa do bem, considerou em certo sentido, a causa final, embora de modo contraditório, ainda
não tinha clareza e ciência sobre a causa final e tampouco relacioná-la com a causa motora e as
demais:

Empédocles utiliza muito mais suas causas do que Anaxágoras, mas não se
serve delas adequadamente e de maneira coerente. Amiúde, pelo menos no
contexto de seu discurso, a Amizade separa e a Discórdia une. Quando o todo
se dissolve nos elementos por obra da Discórdia, o fogo se reúne formando
uma unidade, assim como cada um dos outros elementos. Quando ao
contrário, pela obra da Amizade os elementos se recompõem na unidade da
Esfera, as partes deles necessariamente se separam entre si. (ARISTÓTELES.
Metafísica, 985a 20-25).

Empédocles postulou que o amor e o ódio eram forças cósmicas que impulsionavam as
combinações e separações dos elementos. Assim, o Amor (ou Amizade) une os elementos e os
combina em uma unidade, que a Esfera. Quando os elementos são unidos por essa força, eles
formam uma esfera harmônica e completa. No entanto, ele também argumentava que, devido à
ação do Ódio, essa unidade eventualmente se desfaz, e os elementos se separam novamente.
Aristóteles criticou esse pensamento argumentando suas incoerências e não fornecia
uma explicação científica adequada para os fenômenos naturais, como vemos na citação acima
quando ele diz Empédocles utiliza muito mais suas causas do que Anaxágoras, mas não se
serve delas adequadamente e de maneira coerente, ora a amizade deveria ser sempre em todos
os casos união e a discórdia separação, mas isso não se vê em Empédocles, pois a amizade
separa e o ódio une.

2.5.2 Anaxágoras de Clazômenas: a descoberta das homeomerias e da Inteligência


ordenadora

A filosofia de Anaxágoras é caracterizada pela teoria cosmológica das homeomerias,


isto é, das sementes infinitas que formam e estruturam o universo. Conforme o pensamento
deste filósofo, a composição das homeomerias é produza por uma inteligência cósmica que não
se submente às transformações das realidades sensíveis.
Mas o cosmos foi formado em um determinado momento, quer dizer, foi submetido ao
tempo e ao espaço:
Com o agregar-se das sementes, nascem todas as coisas. E em cada urna das
coisas que assim se produzem estão presentes, em diversas proporções, todas
as homeomerias; as que prevalecem determinam as diferenças específicas. De
tal modo, movidas especificas. De tal modo, em todas as coisas estão presentes
traços de todas as qualidades (tudo está em tudo), e deste modo se explica a

47
razão peia qual as coisas podem se transformar uma na outra. (REALE;
ANTISERI, 2003, p. 39).

Por isso, Aristóteles reconheceu que quem acreditou que o cosmos não é fruto do acaso,
mas de uma intervenção, ou seja, de uma Inteligência Ordenadora pareceu ser o único filósofo
sensato diante dos discursos vãos de filósofos que o precederam. Ele atribuiu ao filósofo
Anaxágoras20 esse pensamento pelo fato de ele ter exposto essas noções, embora, mesmo
alcançando as duas a causa material e a causa do movimento, de modo confuso e obscuro, como
que sem a devida sapiência, que não ignora as causas e os princípios últimos:

Parece que esses, como dissemos, alcançaram só duas das “quatro” causas
[...], a saber: a causa material e a causa do movimento, mas de modo confuso
e obscuro, tal como se comportam nos combates os que não se exercitam:
como estes [...] O próprio Anaxágoras, na constituição do universo, serve-se
da Inteligência como um deus ex machina, e só quando encontra dificuldade
para dar a razão de alguma coisa evoca à Inteligência; no mais, atribui a causa
das coisas a tudo, menos, à Inteligência. (ARISTÓTELES, Metafísica, 984 b
15).

Com exatidão, não concebe que do acaso provenha ordem e os que discordam se
contradizem, pois, no cosmos não reina a desordem, mas ao contrário, há uma ordem, uma
Inteligência fundada no valor ontológico das leis que todo o universo. Apesar de Anaxágoras
tenha mencionado a ideia de um princípio inteligente como causa do movimento, não o fez de
forma coerente e clara a causa final, senão de modo obscuro e inadequado. No entanto, para
Aristóteles (apud ANGIONI, 2009, p.57) ele quando evoca a causa do bem e associa ao
movimento vislumbrou em certo sentido a causa final.
Para o defensor do Mundo das Formas Inteligíveis, Platão, na Obra Fédon 97b-99d, o
filósofo que mais se aproximou da noção de causa final, mesmo que de forma obscura e confusa,
foi Anaxágoras. Segundo ele, foi o primeiro a elaborar uma doutrina finalista do mundo
ordenado que explica a origem de todas as coisas e o decurso do cosmos, introduzindo o
conceito de nous, (espírito), como causa organizadora e geradora de todas as coisas. No
entanto, critica-o ao recorrer a essa teoria apenas para explicar a origem do movimento no
universo, e a produção das coisas, o cosmos ficava abandonado a forças mecânicas:

20
Notar-se-á que uma grande parte dos filósofos antigos desenvolveu suas doutrinas do princípio originário de
todas as coisas, com base na causa material. Para Tales era a água, para Anaxímenes e Diógenes o ar. Já para
Heráclito era o fogo. Depois vem Empédocles com os quatro elementos e Anaxágoras com as homeomerias. O
fato é que esses pensadores perceberam que esse princípio não era suficiente para explicar o dever das coisas,
assim, surge a necessidade de buscar um princípio movente, surge, portanto, com Anaxágoras a doutrina de uma
Inteligência Ordenadora. Para mais consulta, vide (Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e
comentário de Giovanni Reale. v. III. trad. Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002).
48
Ora justamente, ouvi um dia ler excertos de um livro que era, segundo se disse,
de Anaxágoras. Aí se afirmava que era o Espírito o ordenador e a causa de
todas as coisas. Rejubilei com tal explicação, pois, em certo sentido, pareceu-
me vantajoso que fosse o Espírito a causa de tudo. Porque se assim é (pensei),
se é o Espírito que ordena todas as coisas, então por certo que as ordena e
dispõe da forma que for mais conveniente para cada uma delas [...] Pois bem,
meu amigo, esta maravilhosa esperança, tive de passar sem ela! À medida que
avançava na leitura, descubro um homem que não fazia o mínimo caso do
Espírito, que nenhuma responsabilidade lhe atribuía na ordenação das coisas,
remetendo-a sim para o ar, o éter, a água e tantas outras causas
despropositadas. (PLATÃO, 1988, p. 103).

É inegável que entre os pré-socráticos ou os filósofos da physis, Anaxágoras se destacou


pelos seu posicionamento diferenciado, percebe-se tal afirmação tanto em Aristóteles como em
Platão, contudo, para este, o erro que esse filósofo comete é usar de uma Inteligência que explica
exclusivamente a origem das coisas; não o decurso destas. Essa crítica é bem visível quando
diz “descubro um homem que não fazia o mínimo caso do Espírito, que nenhuma
responsabilidade lhe atribuía na ordenação das coisas.” (Ibid., p.103).
Também é perceptivo nesta crítica, que a decepção do filósofo foi perceber como a
doutrina de Anaxágoras desemboca no mecanicismo, pois todas as suas explicações são tiradas
do ar, do éter e da água, nada justifica a ordem estrutural do universo por esta Inteligência. Esta
não estaria presente no universo após seu funcionamento tampouco ela ordenaria as coisas
criadas, explicando-as por meio de causas finais.
Isto é, faltou explanar como se dá a relação entre essa Inteligência Ordenadora com o
mundo criado, bem como diz José de Finance “o Espírito está lá apenas para desencadear o
movimento, mas não dá razão da estrutura do universo.” (FINANCE, 1965, p. 405, tradução
nossa). Em outros termos, não se vê rigorosamente como o nous opera no cosmos, nas
realidades criadas.
Essa crítica à teoria obscura de Anaxágoras também é presente no comentário à
Metafísica de Aristóteles por Santo Tomás de Aquino, que também faz a abordagem obscura
do pensamento deste filósofo ao buscar o princípio gerador de todas as coisas, e ao mesmo
tempo atribuir causas diferentes para as outras coisas:

[...] Anaxágoras se serviu do intelecto para a geração do mundo e pareceu falar


artificialmente, e não duvidou colocar o primeiro intelecto, caso necessitasse,
como causa da geração do universo, não se importando de reduzir a geração
do mundo a uma outra causa distinta da coisa. Mas, para todos as outras coisas
designam outras causas, que não é o intelecto, como para a natureza das coisas
especiais. (AQUINO, 2016, p. 90).

49
Santo Tomás também percebe que Anaxágoras somente se serviu da Inteligência para a
explicar a origem do cosmos, entretanto, para as outras coisas, atribui causas distintas, quer
dizer, a mesma Inteligência que opera na geração do mundo não a faz com as outras coisas. Não
evoca uma unidade entre o intelecto e as realidades criadas. Esse pensamento leva a noção
contraditória e confusa de Inteligência como princípio gerador de tudo na doutrina
anaxagoriana, visto que não se pode falar de uma inteligência como causa única a qual sustente
o cosmos.

2.5.3 Platão: mundo das formas e o mundo sensível

O filósofo Platão defenderá o “Mundo das Ideias21 e será muito criticado por
Aristóteles”. Estas não são simples conceitos mentais ou entidades abstratas, senão, realidades
essenciais que subsistem em si mesmas. Em outros termos, trata-se de Formas Imutáveis, e por
conseguinte eternas e inteligíveis, que se encontram em um plano que está além da realidade
empírica que é transitória, enganadora:

Afirmar que as Ideias existem em si e por si significa dizer, por exemplo, que
o Belo ou o Verdadeiro não são tais apenas relativamente a um sujeito
particular [...] nem constituem realidades que possam ser manipuladas ao
sabor dos caprichos do sujeito, mas, ao contrário, se impõem ao sujeito de
modo absoluto. Afirmar que as Ideias existem em si e por si significa que elas
não são arrastadas pelo vértice do devir que carrega todas as coisas sensíveis:
as coisas belas sensíveis tornam-se feias, sem que isso implique que se torne
feia a causa do belo, ou seja, a Ideia do belo. Em resumo: as verdadeiras causas
de todas as coisas sensíveis, por natureza sujeitas às mudanças, não podem
elas mesmas sofrer mudança, do contrário não seriam as verdadeiras causas,
não seriam as razões últimas e supremas. (REALE; ANTISERI, 2003, p. 140).

Deste modo, fica claro que a teoria platônica não permite a introdução de novas ideias
no mundo Inteligível. Nota-se, que a principal novidade no platonismo, consiste na descoberta
de uma realidade superior ao mundo sensível, ou seja, uma dimensão suprafísica ou metafisica
cuja essência é não depender dos particulares.
A epistemologia platônica (quer dizer, a ciência do conhecimento em Platão) busca
superar o fluxo perpétuo heraclitiano bem como o imobilismo da teoria parmenidiana passando
do mundo sensível ao Mundo Inteligível. Assim, poder-se-ia dizer que o mundo sensível é o do
não-ser; enquanto o Mundo Inteligível seria o do ser. De fato, para este filósofo, o conhecimento

21
Com a expressão “Ideias”, se traduzem geralmente os termos gregos idéa e éidos. Entretanto, são usados na
contemporaneidade com um sentidos diferentes de Platão. Este utiliza idéa ou eidos para indicar a estrutura
metafisica ou essência de natureza requintadamente inteligível, e usa como sinônimo ousía, isto é substância ou
essência. (Cf. REALE; ANTISERI, 2003, p.139).
50
não é só saber o que é certo e o que é errado ou o verdadeiro do falso, mas também distinguir o
certo do errado, o verdadeiro do falso:

O mundo inteligível resulta da cooperação bipolar imediata dos dois


Princípios supremos; o mundo sensível, ao contrário, tem necessidade de um
mediador, de um Deus-artífice que Platão chama de "Demiurgo"; este cria o
mundo animado pela bondade: toma como modelo as Ideias o Demiurgo e
plasma a chora, isto e, o receptáculo material informe. o Demiurgo procura
descer na realidade física os modelos do cosmo mundo ideal, em função das
figuras geométricas e dos números. (REALE; ANTISERI, 2003, p. 137).

Ademais, o conhecimento em Platão, caracteriza-se pela anamnese22, isto é, recordação


de verdades e fatos que desde sempre conhecidas pela alma e que reemergem de vez em quando
na experiência concreta, mas o espírito só pode ascender ao mundo inteligível, com o auxílio
desse Demiurgo. ou seja, o homem pode se libertar, com o exercício da inteligência, das amarras
das sensações para chegar ao conhecimento das verdades do ser. Logo, o mundo material,
somente se torna compreensível quando está em com o mundo Inteligível.
Esse mundo deriva do Uno e nele se pode adentar na realidade do Bem que tem a mesma
essência do dele. Na verdade, para Platão o Uno é o princípio do ser e todo o mundo inteligível
como as Ideias e as Formas derivam dele; mas ele não deriva de nenhuma realidade, pois é
indeterminado e ilimitado. (REALE; ANTISERI, 2003).
Aristóteles, ao analisar minuciosamente, a doutrina de Platão, diz que ele ficou em duas
causas, a saber: a material e a formal.

[...] os que afirmam a existência de Formas explicaram mais do que todos os


outros. De fato, eles não consideram as Formas como matérias das coisas
sensíveis nem o Um como matéria das Formas; tampouco consideram as
Formas como princípio do movimento [...]. Eles apresentam as Formas como
essência de cada uma das coisas sensíveis e o Um como essência das Formas.
(ARISTÓTELES. Metafísica, 98b).

Mesmo reconhecendo que ele tenha mencionado a causa material e a formal, também,
em certo sentido, a final a qual está relacionada à noção de Bem, Aristóteles faz uma crítica a

22
Em Platão, existe toda uma estrutura e sequência a respeito do conhecimento: “Platão apresenta esta teoria do
conhecimento tanto em modo mítico (as almas sio imortais e contemplaram as Ideias antes de descer nos corpos)
quanto em modo dialético (todo homem pode aprender e a dialética por si verdades antes ignoradas, por exemplo,
os teoremas matemáticos). O conhecimento ocorre por graus: simples opinião (doxa), que se subdivide em
imaginação e crença; ciência (episteme), que se subdivide em conhecimento mediano e pura inteleção. O
processo do conhecimento é a dialética, que pode ser ascensional ou sinótica (remontar do mundo sensível as
Ideias) e descensional ou diairética (partir das ldeias gerais para descer as particulares).” (REALE; ANTISERI,
2003, p.146). Para aprofundar na teoria epistemológica de Platão, vide: REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario.
História Pagã Antiga. 3ª ed. v. I. trad. Ivo Storniolo. Paulus, 2003.

51
sua doutrina. Em Metafísica 990b 1-8, o Estagirita argumenta que com o mundo das ideias, os
Platônicos duplicam o mundo sensível, além disso, estas não explicam nada: “dizer que as
Formas são modelos e que coisas sensíveis participam delas significa falar sem dizer nada e
recorrer a meras imagens poéticas.” (ARISTÓTELES, Metafísica, 991a 20), assim, essas Ideias
não servem nem para o conhecimento das coisas nem de si próprias. Não acrescentaria nada ao
conhecimento humano e tampouco teria utilidade na vida do indivíduo que anseia pelo saber e
pela verdadeira ciência.
Desa forma, podemos destacar duas críticas de Aristóteles a Platão: Crítica à Teoria das
Ideias e Crítica à Ênfase no Conhecimento Abstrato. Analisemo-las.
a) Crítica à Teoria das Ideias. Aristóteles criticou a teoria das ideias de Platão por
considerá-la excessivamente abstrata e divorciada do mundo real. No pensamento do Estagirita
as formas não existiam separadamente das coisas materiais e que as formas eram imanentes nas
coisas. Propôs uma ontologia concreta, a posteriori, onde as formas estavam incorporadas nas
substâncias individuais, em oposição à visão platônica de que as formas eram transcendentais.
O problema de fundo da metafísica é o seguinte: existem apenas substâncias sensíveis,
ou também substâncias suprassensíveis? Aristóteles reconhece que sim e deve ser imóvel,
porque, se a causa fosse móvel, requereria outra causa, e esta ainda outra, ao infinito, sem
nenhuma potencialidade, pura forma imaterial. (Cf. REALE; ANTISERI, 2003, p. 194).
Efetivamente que para o filosofo existe essa realidade material e imaterial até porque ele vai
elaborar sua doutrina a hilemórfica, entretanto, difere de Platão que afirmava estando a essência
no Mundo das Ideias e não nas realidades concretas.
b) Crítica à Ênfase no Conhecimento Abstrato. Essa cítrica se dirige a Platão pelo
enfoque demasiado no conhecimento abstrato e teórico em detrimento do conhecimento prático
e empírico. Ele argumentou que a filosofia deveria se preocupar com a investigação do mundo
natural e com a compreensão das coisas como elas são, em vez de se concentrar apenas em
princípios metafísicos abstratos. Aristóteles distinguiu as ciências em três grandes ramos: 1)
ciências teoréticas, são aquelas que buscam o saber em si mesmo; 2) ciências praticas, isto é,
ciências que buscam o saber para que por meio dele alcance a perfeição erótica e moral e 3)
ciências poiéticas ou produtivas, que buscam o saber em função do fazer, com o objetivo de
produzir determinados objetos. (Cf. REALE; ANTISERI, 2003, p. 195).
Portanto, a do Estagirita aos seus predecessores refletiram seu desejo de desenvolver
uma abordagem filosófica única que combinasse empirismo com raciocínio lógico, enfatizando

52
a importância das causas e das investigações do mundo natural como parte integral da filosofia.
Analisemos a noção de causalidade na Metafísica.

2.6 A NOÇÃO DE CAUSALIDADE NA METAFÍSICA

Depois de termos analisado a doutrina de alguns dos predecessores de Aristóteles no


tocante a causalidade, abordaremos agora a noção de causa neste filósofo, na Metafísica.
Perceberemos que não se tem, com exatidão, uma definição de causalidade como sendo uma
realidade isolada, mas algo que remete à uma explicação última de uma coisa analisada em sua
totalidade e expansão. Dessa forma, o filósofo para fomentar e esclarecer seus argumentos
acera das causas dará recorrerá a muitos exemplos explicando-os. .
Na verdade, é típico de Aristóteles recorrer a exemplos, principalmente, quando se trata
de realidades mais inteligíveis as quais sobressaem à dimensão empírica. Na verdade, os entes
que são mais perfeitos são mais inteligíveis em si mesmos23, mas o intelecto é limitado e não
pode esgotar a inteligibilidade desses seres, porém isso não nos leva a deduzir que eles não
existam, pelo simples fato de não serem demonstrados pela experiência sensível.
Concluísse, então, que a raiz do conhecimento é a imaterialidade ou em outros termos,
a inteligibilidade requer imaterialidade. É neste prisma que sobressai a importância do princípio
da causalidade que se faz presente em todo cosmos nos diversos fenômenos de ação e reação.
Trata-se de uma realidade profunda, e a imperfeição de nosso entendimento impede esgotar sua
inteligibilidade. (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 199-200, tradução nossa).
O pensamento de Aristóteles é que todos não fiquem simplesmente na imanência, quer
dizer, na experiência sensível, mas convidando-os a transcender o mundo empírico para
construir um saber sistemático, não desprezando, evidentemente, o sensível, mas ultrapassando-
o. Esse processo só é possível adquirindo a ciência das causas primeiras e últimas.
De fato, é próprio do intelecto humano conhecer através dos entes materiais, marcados
de acidentes, a essência das coisas. Apesar de o conhecimento sensível e o intelectual não serem
a mesma coisa, eles não devem ser separados, pois entre o conhecimento sensível e o intelectual
há distinção, mas não separação; existe unidade, mas não identificação.

23
Neste sentido, pode-se afirmar que todas as causas são princípio, no entanto, nem todos os princípios são causas,
quer dizer os princípios da não contradição, princípio de identidade e do terceiro excluído não causam efeitos
nas coisas. Eles procedem de qualquer modo, sem incluir um influxo positivo no ser do procedido, ou seja, há
neles uma natureza cuja operação é diferente das causas; e assim como estas, não estão sujeitos à demonstração
empírica, pois são autoevidentes. Esses princípios são fundamentais para o conhecimento, são as raízes da
inteligibilidade.
53
Portanto, a causalidade, de acordo com os argumentos expostos até aqui, pode ser
definida como um “princípio que influi no ser de alguma coisa ou de que depende o ser da coisa
ou o acontecimento de um fenômeno.” (SELVAGGI, 1988, p. 303).
Na Metafísica, como argumentaremos nesta próxima subseção, Aristóteles não usa o
termo “causalidade”, mas o vocabulário αἰτία (aitia) para designar “causa”, o porquê de uma
coisa em seu sentido mais profundo.

2.6.1 O termo causalidade em Aristóteles

A expressão “aitia” ou “aition” referem-se as realidades que possuem caráter de poder


sobre as outras”, entretanto, não há uma definição clara na visão aristotélica. Trata-se de uma
explicação. Sendo assim, causa e explicação estão ontologicamente unidas. Ora, somente há
explicação quando há causa:

De fato, Aristóteles denomina como “aitia” ou “aition” aquilo que


formulamos em resposta à pergunta “por quê?” possui poder explanatório. No
entanto, nem toda explicação capta aquilo a que Aristóteles por vezes se refere
com o termo “aition”: trata-se de entidades ou propriedades das quais outras
dependem, e que têm o poder de determinar outras propriedades ou outros
estados de coisas. (Aristóteles apud ANGIONI, 2009, p. 253).

Logo, “aitia” evoca poder de “explanation”24 e se refere à causa primeira, esta que tem
como objeto os princípios primeiros e as realidades últimas dos entes. De fato, para explicar tal
coisa deve saber o porquê, quer dizer, suas propriedades e capacidades, e isso é possível por
meio da “aitia”. Ademais, é próprio do saber levar a explanação. De fato, Aristóteles (Física
194 b 16), argumenta que “[...] não julgamos conhecer cada coisa antes de apreendermos o
porquê de cada uma (eis o que é apreender a causa primeira).”
Nota-se, aqui, dois desafios: Como se adquire esse conhecimento? E em que consiste
esse conhecimento? O homem é capaz de conhecer a coisa in se? Sabe-se que o conhecimento
humano se inicia na experiência e através dos sentidos externos e internos, o homem conhece
a coisa em si, sua essência, pela virtude da abstração, apreende o conceito universal. Porém,
aqui o Estagirita se refere ao conhecimento não por meio da empiria, senão das causas. Ora, o
conhecimento para ele se dá por meio das causas e dos princípios.
A metafísica de Aristóteles exige um profundo conhecimento acerca da causalidade.
Não é simplesmente “causa” senão “causas”. Ele rejeitou, como foi exposto anteriormente, a

24
Conforme Lucas Angioni os termos “aitia” e “aition” foram traduzidos por expalnation e não por “cause”.
Trata-se de uma tendencia recente no mundo anglo-saxão. Aristóteles (apud ANGIONI, 2009, p. 253).
54
ideia de que há somente um princípio que seja responsável pela geração dos entes, e assim
reprova alguns de seus antecedentes os quais deram início à filosofia, pelo fato de eles terem
ignorado a causa eficiente e se deterem exclusivamente na causa material (ARISTÓTELES,
Metafísica, 983b, 10).
Passaremos a tratar das quatro causas tão importantes não só para a filosofia aristotélica,
mas também para todo desenvolvimento filosófico e científico no ocidente.

2.7 AS QUATRO CAUSAS

A compreensão das causas em Aristóteles faz-se necessária para entender efetivamente


os entes e como eles são constituídos. Assim, diante dessas realidades tão complexas ao
intelecto humano, mas tão inteligíveis em si mesmas, requer uma análise minuciosa acerca da
noção aristotélica de causalidade para compreender mais fidedignamente essa filosofia primeira
e ter ciência de como se adquire o conhecimento.
O filósofo abordará as quatro causas a partir da ideia de αἰτία como explicação de toda
realidade:

Num certo sentido, dizemos que a causa é a substância e a essência [...] num
segundo sentido, dizemos que a causa é a matéria e o substrato; num terceiro
sentido, dizemos que a causa é o princípio do movimento; num quarto sentido,
dizemos que a causa é o oposto do último sentido, ou seja, é o fim e o bem
[...]. (ARISTÓTELES. Metafísica, 983ª, 25-30)

Aqui se depara claramente com o conceito das quatro causas: formal, material, eficiente
ou motriz25 e final. As duas primeiras são consideradas intrínsecas, pois, são o princípio interno
da coisa causada. Por conseguinte, as duas últimas são externas, ou seja, significa que o
princípio é exterior à coisa causada.
Diante do sistema das quatro causas podemos levantar um questionamento: Todos os
entes têm necessariamente as quatro causas? De antemão, deve-se compreender que: “Tudo o
que não sempre foi, se começa a ser, necessita de algo que seja causa de seu ser.” (ALVIRA;
CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 201). Isso significa que tudo que existe tem uma causa, um
motivo, ou melhor, mais de uma causa.
Pode-se dizer que existem várias causas para uma mesma coisa, todavia não dá mesma
forma. Por exemplo, tanto a arte de esculpir como o a madeira são causas da cadeira não
enquanto ela é outra coisa, mas enquanto cadeira, embora não do mesmo modo; uma é como a

25
A causa eficiente conforme também pode ser chamada de causa motriz. (REALE; ANTISERI, 2003).
55
matéria - que seria a causa material - e a outra como aquilo de onde provém o movimento: a
causa motriz.
Portanto, com a noção destas causas, percebemos que por trás delas existem quatros
perguntas às quais nos ajudam identificar cada uma delas. A primeira: O que a coisa é?
Levando-nos a noção causa formal. A segunda: De que a coisa é feita? Refere-se à causa
material. Terceira: Quem a fez? Corresponde à causa eficiente. Quarta: Para que foi feita? Esta
nos faz deparar com a causa final pela qual o agente foi impulsionado a realizar uma operação.
De fato, toda pessoa opera por uma finalidade. (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001). É
o que veremos detalhadamente cada uma delas e suas respectivas características.

2.7.1 Causa formal - αἰτία εἰδική

A causa formal equivale à essência ou à forma: “A causa formal identifica-se com efeito
à forma enquanto a forma explica as propriedades que dela decorrem necessariamente [...].”
(CHÂTELET; BERNHARDT; AUBENQUE, 1973, p. 143). Em outros termos, a causa formal
diz o que a coisa é, e sem a intervenção dela os entes não existiriam, porque ela é necessária
para atualizar a matéria. Nota-se que há uma relação entre substância e essência na definição
de causa dada por Aristóteles, que identificamos como sendo a causa formal 26.
A palavra substância vem de οὐσία (ousia) e deriva do particípio presente do verbo ser
em grego εἶναι (einai). Os filósofos latinos traduziram este termo aristotélico como essentia
(essência) ou substantia (substância) que vem do latim sub-stat que significa aquilo que está
debaixo, que subjaz, sustenta. Portanto, substância, como estrutura necessária, é um termo que
pertence à metafísica tradicional e pode ser pode ser traduzida como essência necessária. (Cf.
Cf. ABBAGNANO, 2007, p. 925).
Portanto, na concepção aristotélica a substância ou essência trata-se de uma realidade
cuja essência consiste ser em si mesma e não em outro. Neste sentido, a substância é aquilo pelo
qual todas as outras propriedades dependem para existir. Nela se fundam todas as categorias ou
predicados, estes não podem subsistir separados da essência:

Portanto, é evidente que cada um daqueles predicados é ser em virtude da


categoria da substância. Assim, o ser primeiro, ou seja, não um ser particular,

26
Muitas vezes o termo essência se utiliza como equivalente de substância. A essência determina um modo de ser
ao que compete existir; e a substância não é mais que esse modo de ser subsistindo. A ideia é que a essência
determina a substância, e quando falamos nesta pressupõe um ser que já se encontra no plano da existência.
Dessa forma, a essência tem mais a função de determinar a substância e esta tem a função de sustentar os
acidentes. (Cf. ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 55).
56
mas o ser por excelência é a substância. Ora, o termo “primeiro” entende-se
em muitos significados, mas a substância é o primeiro em todos os
significados do termo: (a) pela noção, (b) pelo conhecimento e (c) pelo tempo.
(c) De fato, nenhuma das outras categorias pode ser separada, mas só a
substância. (a) Ademais, ela é a primeira pela noção, porque na noção de cada
categoria está necessariamente incluída a noção de substância. (b) Enfim,
consideramos conhecer algo sobretudo quando conhecemos, por exemplo,
essência do homem ou a essência do fogo, mais do que quando conhecemos a
qualidade ou a quantidade ou o lugar; de fato, conhecemos essas mesmas
categorias quando conhecemos a essência da quantidade ou da qualidade.
(ARISTÓTELES. Metafísica, 1028a 25-35, 1028b).

Nessa citação supracitada notamos que efetivamente a substância tem uma certa
prioridade ontológica, em todos os sentidos, pois é por ela que todos os outros modos de ser
dependem para existir ou como vimos na citação ela é a primeira pela noção, porque na noção
de cada categoria está necessariamente incluída a noção de substância. No livro quinto da
Metafisica ele define substância como substrato último e no livro sétimo (1028ª ss) a define
como fundamento de todos os predicados ou qualidades. Isso ele deixa esclarece quando afirma:
“[...] algumas das categorias significam essência, outras qualidade, outras a quantidade, outras
a relação, outras o agir ou o padecer, outras onde e outras o quando.|” (Ibid., 1017ª 25).
É importante compreender que para Aristóteles há duas categoria de substância:
substância primária que é individual, singular e concreta. Entendemos aqui os conceitos de
matéria e forma, é a existência específica de algo, por exemplo, um homem, um cavalo. E a
substância secundária ou se segunda ordem, é a essência que une várias substâncias primárias
sob uma categoria comum: a humanidade é a substância secundária que une todas as pessoas
como seres humanos, por exemplo.
Sendo assim, para conhecer um determinado ente é necessária a compreensão das
causas, podemos dizer que dentre elas, destacar-se-ia a formal, que equivale à substância, pois
é esta que atinge o conceito, que é universal, diz o que a coisa é: isto é uma casa, isto é um
homem etc.
Portando, na doutrina aristotélica, a noção de substância é essencial e os diversos
sentidos do ser 27 como a qualidade ou a quantidade ou o lugar sempre serão propriedades de
uma substância. Esta é o que faz com que ume ente seja o que ele é e não outra coisa.

27
Aristóteles enumera dez categorias ou predicamentos: Substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo,
posição, posse, ação e a paixão. (Cf. FINANCE, 1965, p.446).
57
2.7.2 Causa material-αἰτία ὑλική

A causa material refere-se ao sujeito, a matéria, ou simplesmente, aquilo que são feitas
as coisas e aquilo de que derivam. Ela se caracteriza como princípio potencial passivo, tendo
a capacidade de ser atualizada, por isso, atribuímos também a expressão indeterminada ou até
mesmo informada. (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 217). Sendo assim, a matéria
é causa de todas as coisas sensíveis . Por exemplo, se considerarmos uma escultura de bronze,
a causa material dessa escultura é o próprio bronze. Este é o material físico, o substrato, que
constitui a estátua.” (ARISTÓTELES, Física, 194b 23-25). Logo, se não existe bronze não
existe não pode existir a estátua).
Por outro lado, para que a matéria seja informada dependerá de um agente externo para
atualizá-la. Com efeito, “não é o substrato que provoca mudança em si mesmo.”
(ARISTÓTELES. Metafísica, 984ª, 20), ou seja, a potência passiva deverá ser atualizada por
uma potência ativa que pode ser exterior ou interior ao ente. Então, precisa-se de um agente
externo ao ente para ser responsável pelas modificações deste. Verdadeiramente é inconcebível
que, por exemplo, a madeira possa ser a causa de suas próprias modificações, não é a madeira
que faz a mesa, mas é outro princípio exterior a si, requer a ação do escultor, ou seja, da causa
eficiente:

A causa material é uma potência passiva que contém o efeito como potência
em ato, ou seja, de forma imperfeita, como mera capacidade. A imagem, por
exemplo, está incluída no mármore disforme, pois dele pode ser derivada, mas
de forma potencial e deficiente, pois para se tornar estátua requer a ação do
escultor. (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 216, tradução nossa).

Logo, precisa procurar outro princípio que seja responsável pela origem do movimento.
Esse princípio é, como foi exposto anteriormente, a causa eficiente a qual é responsável pelo
movimento, é o princípio que faz surgir a forma na matéria. No entanto, a causa material por si
só não é suficiente para explicar completamente a realidade de um objeto.
Portanto, a causa material se refere à matéria física subjacente que compõe uma coisa,
mas é apenas uma das quatro causas que, juntas, fornecem uma explicação completa e
abrangente de um ente.

58
2.7.3 Causa eficiente- αἰτία ἐνεργείᾳ

Quando falamos de causa eficiente estamos nos referindo àquela que é responsável por
iniciar um determinado movimento ou ação, “ a causa eficiente ou agente é o princípio a partir
do qual flui primariamente qualquer ação que faz com que algo seja, ou seja de alguma forma.
(ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 223, tradução nossa). Isso significa que em uma
ordem cronológica ela vem antes, visto que como a própria citação diz do qual flui
primariamente qualquer ação que faz com que algo seja. Caracteriza-se “como princípio
extrínseco ao efeito diferentemente das causas formais e materiais que são princípios internos
ou intrínsecos:

Em oposição às causas formais e materiais, a causa eficiente realiza-se como


princípio extrínseco ao efeito: dá-lhe um ser verdadeiramente diferente do seu,
embora dele na verdade provenha; enquanto a causa formal e material não tem
outro ser senão aquele do composto em que subsistem. (Ibid., p. 224, tradução
nossa).

Essa ação ou realização é acontece de dois modos: por emanação e por participação. A
primeira consiste “na transferência de qualquer coisa do agente ao paciente [...].” (SELVAGGI,
1998, p. 305), como, por exemplo, a nascente causa o rio, emanado água que se transfere da
nascente para o próprio rio28. Quanto à causalidade por participação, o “efeito participa, toma
parte “na” perfeição da causa e não toma uma parte “da” perfeição da causa” (Ibid., p. 305).
A causalidade por participação se caracteriza por uma comunicação da perfeição
própria, quer dizer, acrescenta algo de novo, enquanto a outra não. Por exemplo: o professor é
causa eficiente da ciência (por participação) do conhecimento do aluno. Este toma parte no
conhecimento do professor e não do conhecimento dele.
Decerto não houve alteração no conhecimento do professor, mas algo novo foi
produzido no aluno. No livro dois da Física, capítulo três, Aristóteles define a causa eficiente
como “aquilo de onde provém o começo primeiro da mudança ou do repouso [...]”
(ARISTÓTELES, Física 194b 23). Portanto, a causa eficiente, é aquela que desencadeia uma
mudança ou movimento no mundo natural.

28
É importante compreendermos que as noções de causa eficiente por emanação e por participação, não são
conceitos propriamente de Aristóteles. Essas noções foram elaboradas, em muitos séculos depois, por um de
seus intérpretes, o filósofo Filippo Selvaggi (Cf. SELVAGGI, 1998, p. 305).
59
2.7.4 Causa final- αἰτία τελική

A causa final também conhecida como causa teleológica é aquela em vista da qual algo
é feito, quer dizer, o objetivo do agente ao executar uma determinada ação, por isso que ela está
intreisecamente liga à causa eficiente, mas isso não significa que esta lhe é superior. Ela tem
prioridade ontológica, isto é, uma importância maior em relação às outras causas:

A causa final é aquela em vista da qual algo é feito (id cuius gratia aliquid
fit), isto é, aquilo para o qual o agente decide agir, o objetivo para o qual ele
tende com suas operações: o carpinteiro trabalha a madeira para fazer um
mesa, o pai de família exerce sua profissão para sustentar a esposa e os filhos
[...]. (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 241, grifos do autor).

Nota-se que a causa final está intrinsecamente relacionada com a causa eficiente quando
diz que a causa final é aquilo para o qual o agente decide agir . Existe entre ambas um elo
ontológico que nos faz compreender que uma depende da outra, de fato, é inadmissível falarmos
de um fim sem mencionar um agente que o projetou. Em outras palavras, se presenciamos na
natureza a existência de um plano, de uma ordem, consequentemente há uma mente que seja
responsável por isso.
Notemos, então, que a causa final é muito importante para entendermos que tudo no
cosmos tem uma finalidade mesmo às coisas inanimadas; estas operam por um fim como uma
flecha disparada pelo arqueiro que tem como finalidade atingir o alvo. Dessa forma, deve
considerar a causa final em relação às outras: a ideia ou noção de uma causa eficiente, ou seja,
de uma mente organizadora a qual deu início ao movimento fazendo introduzir a forma na
matéria e uma vez realizada tal ação é direcionada sempre a um fim. Negar esta realidade é um
contrassenso, porque não se concebe que qualquer ente possa ter em si mesmo a razão der ser.
Agora, pode-se entender, também, que a causa material como sendo intrínseca precisa
de um agente externo, ou seja, de uma causa eficiente para atualizá-la. Assim, acontece com a
madeira que para tornar-se tal mesa tem que ter a intervenção do carpinteiro, sem o qual ela não
existiria, pois não poderia fazer-se a si mesma. Na verdade, as causas estão intrinsecamente
unidas. Não obstante, quando se refere à causa eficiente, tem que necessariamente existir uma
Causa Primeira que seja responsável por todas as ações visto que não se pode conceber que elas
sejam infinitas.
Enfim, se conhecer uma coisa é conhecê-la por suas causas, e uma vez, se admitindo o
processo ad infinitum; tornar-se-ia impossível conhecer seja o que for. Ou como diz Aristóteles:

60
“Mas os que defendem o processo ao infinito não se dão conta de suprimir a realidade do bem.”
(ARISTÓTELES. Metafísica, 994b, 10-15).
Tratando-se, ainda, da causa final ou à noção de Telos, conforme Aristóteles (apud
ANGIONI, 2009, p. 261) pode ser entendida ao menos de dois modos: “[...] como escopo da
ação ou da produção [...]” que se refere à argumentação acima, ou seja, em vista de que a pessoa
agiu; ou como “[...] perfeição intrínseca á qual nada mais é preciso acrescentar.” (Ibid., p. 261),
que seria a ideia de que a coisa está completa, acabada. Assim, seguindo esse raciocínio a
finalidade pode ser intrínseca, se o agente tender ao fim da operação segundo a forma natural,
que é uma perfeição, ou extrínseca, se tender a uma operação segundo a forma adquirida (Ibid.,
p. 261).
Portanto, a noção de causa final na "Metafísica" de Aristóteles é uma parte central de
sua filosofia e ajuda a explicar como ele entende a natureza e a realidade. Na verdade, suas
quatro causas e sua ênfase na causa final desempenham um papel essencial na explicação das
coisas, enquanto a busca pela causa primeira é vista como a busca mais profunda e fundamental
na filosofia aristotélica.

2.8 GANHOS OBTIDOS DO CAPÍTULO

Tendo percorrido esse primeiro capítulo e refletido sobre a noção de causalidade em


Aristóteles, analisando as quatro causas, se chega a um conhecimento mais amplo e profícuo
da realidade. De fato, sua filosofia marcou uma transição importante da especulação
cosmológica dos seus predecessores para uma abordagem mais sistemática, científica e ética,
abrindo caminho para a filosofia clássica posterior. Sua epistemologia traz uma série de
conceitos tais como: compreensão integrada da realidade, particularidades e universalidades,
forma e matéria. Tudo isso reflete um pensamento voltado para a realidade do cosmos.
Portanto, dentre tantos resultados decorrentes desta reflexão, podemos mencionar três
ganhos obtidos, a saber: a primazia da sabedoria sobre as demais formas de conhecimento:
distinção e harmonia, o conhecimento holístico das coisas e a causa definida como αἰτία.
Exporemos e analisemos cada um deles nas subseções seguintes.

2.8.1 Primazia da sabedoria sobre as demais formas de conhecimento: distinção e


harmonia

Aristóteles ao falar da sabedoria como a forma mais elevada de conhecimento e


considerando somente a arte e a ciência como sabedoria (σοφία) ao passo que a experiência,
a memória e a sensação não o são, pois estão no domínio do empírico, ressalta duas coisas. A
61
primeira é que existe um desejo intrínseco no homem que naturalmente o faz agir pela busca de
conhecimento. De fato, em Metafísica 980a o filósofo evidencia e argumenta essa afirmação,
quando diz que todos os homens por natureza tendem ao saber.
Esse desejo começa por intermédio sentidos externos: visão, audição, paladar, olfato e
tato. Mostram como o homem percebe o mundo ao seu redor, as sensações, os sentimentos, as
lembranças, a quantidade etc. porém não nos dizem o porquê, mas ficam no como, pois estão
no nível do particular. Não são essenciais para compreender o que está por trás de um
determinado evento ou ação muto menos a natureza das coisas em sua totalidade.
A segunda é que há uma hierarquia ou graus do conhecimento que vai do particular ao
universal. Dito de outro modo, o que é característico na ciência é o estudo elevado das causas
e princípios primeiros da realidade cuja finalidade está em si mesma, na sua essência e não na
utilidade. Assim, a finalidade de uma cadeira é ser ela mesma, cadeira. Vimos que a finalidade
não se reduz a aplicabilidade ou serventia, mas deve ser entendida como acabamento. Neste
campo, encontram-se a arte e a ciência, que não se detém só ao “o que”, mas também o
“porquê”, aquilo que está subjacente em cada ação e fenômenos observados, nas transformações
e das coisas. Pode-se dizer que elas estão em um patamar ontológico.
Sendo assim, a riqueza do pensamento aristotélico é harmonizar essas realidades
(particulares, experiência, memória e sensação com as universais, a arte e ciência) no cosmos
que, embora sejam distintas não se separaram, embora uma seja superior (neste caso a arte e a
ciência) não se contradizem. Isso influenciou o pensamento ocidental bem como muitas
correntes filosóficas e científicas ao longo dos séculos.
Portanto, mesmo que a sabedoria seja considerada a forma mais elevada de
conhecimento há uma complementariedade entre esses saberes para uma compreensão mais
completa de um objeto. Na epistemologia aristotélica o conhecimento particular, empírico, era
imprescindível para o conhecimento a ciência ou conhecimento universal. A divisão entre
particular e universal não se encontra na filosofia aristotélica senão na platônica, com o mundo
das formas e o mundo sensível, que foi criticada por Aristóteles, como vimos na subseção 2.5.3.

2.8.2 Conhecimento holístico das coisas

O conhecimento holístico das coisas refere-se a uma abordagem de compreensão que


valoriza a apreensão integral e abrangente de objetos fenômenos analisando-os não apenas em
seus aspectos acidentais senão essenciais. Busca compreender as coisas em seus s contexto mais

62
amplos, em contraste com uma análise fragmentada ou isolada. Assim sendo, são muitas as
vantagens dessa abordagem, tais como: compreensão integrada, soluções mais abrangente.
Assim, enquanto os filósofos que antecederam Aristóteles tinham uma visão mais
fragmentada da arché, o Estagirita avança concebendo-a sob sua doutrina epistemologia que
parte do a posteriori, da experiência, evitar cair, conforme ele, nos erros dos filósofos
anteriores, como Platão. Ele parte do pressuposto que a essência se encontra nos próprias entes
com suas propriedades, todavia não fica presa a essa realidade.
Aristóteles argumentava que o telos de um organismo vivo era alcançar seu pleno
desenvolvimento e cumprir suas funções naturais, fazendo isso eles chegariam a perfeição.
Assim, em, sua obra De Anima, ele quer provar que a forma é natureza, é superior à
matéria. No cosmos uma ordem nos distintos seres vivos, a saber: animais, vegetais e no próprio
homem. Estes operam de acordo com sua natureza que é intrínseca a essência de cada um, pois
como bem diz Santo Tomás de Aquino (apud SELVAGGI, 1988, p. 329) “todos os agentes
naturais não produzem qualquer efeito ao acaso, mas tendem sempre a um mesmo termo, que
é determinado pela própria natureza do agente”.
Dessa forma, nota-se a presença dessa abordagem holística em Aristóteles a começar
pelo método filosófico, pois ao passo que seus predecessores estavam interessados em encontrar
princípios ou elementos fundamentais que compunham a natureza (por exemplo, água, fogo, ar
etc.), o filósofo introduziu uma abordagem mais sistemática e científica à filosofia: explora a
origem do cosmos e da realidade por meio da especulação, utilizando o método indutivo, que
parte das observações particulares e chegando a generalizações universais.
Vimos, por exemplo, que mediante essas noções de matéria e forma, ato e potência, ele
supera a dicotomia que existia entre Heráclito e Parmênides acerca do ser, afirmando que as
coisas são compostas de matéria e forma, ato e potência. Assim sendo, “concilia” o aspecto
dinâmico e estático do ser , dando um salto qualitativo ou essencial no pensamento da época,
que perdura até dos dias hodiernos.
Outra realidade desse conhecimento holístico está na compreensão das causas e efeitos:
busca identificar as causas e os efeitos das partes individuais e como eles se relacionam ao
funcionamento.

2.8.3 Causa definida como αἰτία: uma compreensão mais ampla da realidade

Aristóteles desenvolveu o conceito αἰτία como parte integrante de sua filosofia com a
finalidade de explicar a existência das coisas de maneira abrangente, ou seja, sua essência. Para
chegar a definição de causa como αἰτία ele parte da análise doutrinal de seus predecessores.
63
Diferencia destes pois os entes presentes no cosmos não são formados simplesmente por uma
realidade como a água (para Tales), o ar (Anaxímenes) os átomos (Leucipo e Demócrito) dentre
outros.
O conceito de αἰτία se volta para uma explicação mais profunda e complexa dos entes.
É uma realidade bastante complexa que reflete um enfoque holístico e se faz necessária na
apreender os entes. Para o filósofo não temos conhecimento de nada até entendermos o porquê,
ou seja, sua causa. Assim, em Física. II, 3, 194b 17-20; e Metafísica I, 3, 983a 25-983b abordará
as quatro causas. Ele buscava entender não apenas a causa imediata de uma mudança, mas
também sua forma, substância e finalidade última.
Trata-se de analisar os entes por meio das quatro causas que unidas explicam a
existência deles. Assim sendo, a causa material (αἰτία ὑλική), causa eficiente (αἰτία τελική),
causa formal (αἰτία εἰδική) e causa final (αἰτία τελική) se complementam, são convergem e a
partir dessa correlação pode chegar a uma explicação causal de um determinado objeto
estudado, bem como suas qualidades essenciais e acidentais.
Essas quatro causas surgem como tentativa de solucionar um dos primeiros problemas
filosóficos: o problema da mudança ou movimento. Ele usou seus conceitos de ato e potência
para explicá-lo: considera a mudança ou movimento como um passo do ser ao não-ser, em
potencial, e um passo do não-ser ao ser, em ato. Logo, mudança tem como consequência uma
"causa" que explica o “porquê” das transformações.
Portanto, a causa definida como αἰτία e ao desenvolver as quatro causas aristotélicas
traz uma compreensão precisa da realidade do cosmos. Ademias, é inegável que essa
abordagem causal além de refletir na visão de que o pensamento filosófico deveria buscar uma
compreensão completa e abrangente da realidade em seu sentido mais profundo, influenciou a
ciência e a teologia ao longo dos séculos.

64
3 A CAUSA DAS CAUSAS NA DOUTRINA ARISTOTÉLICA

Após termos discorrido acerca da causalidade em Aristóteles, bem como em alguns de


seus predecessores que, conforme o Estagirita, ficaram no nível da causa material e da motora;
outros que a ultrapassaram chegando à noção (mesmo que de forma confusa) de causa formal
e de causa final, somos levados a questionar se dentre as quatro causas qual seria a dominante.
Trata-se, portanto, desta problemática: há uma causa que sobressai as demais? É possível chegar
a essa conclusão dentro do Corpus Aristotelicum? Caso seja possível como ela se relaciona com
as outras?
É certo que não se pode conceber essas quatro causas isoladas, pois estaria contrariando
a própria definição de causalidade formulada pelo filósofo como “aitia” ou “aition”, cujas
expressões evocam o poder de “explanation”, isto é, explanação, explicação. Também não se
pode negar a presença da causalidade, visto que nada pode conceber a si mesmo, necessita de
algo que seja causa de seu ser. Isto significa que cada coisa tem uma causa.
Todavia, em sua filosofia, Aristóteles reconheceu que algumas coisas na natureza têm
uma causa final clara e evidente, enquanto outras podem não ter um propósito intrínseco tão
óbvio, como é o caso do eclipse e de certos fatos nas matemáticas (Cf. ARISTÓTELES apud
ANGIONI, 2009, p. 263).
Assim, com estas implicações, este capítulo, visa descobrir qual seria a causa por
excelência na doutrina aristotélica. Seria a causa formal pelo fato de ela está ligada à essência
ou à forma do ente com suas propriedades? Seria a causa material visto que os espíritos não
têm matéria ao passo que não se pode negar o mundo espiritual? Ou seria a causa eficiente a
qual é responsável pelo início da ação? Ou até mesmo a causa final partindo da pressuposição
que mesmo às coisas inanimadas operam em vista de um fim como uma flecha disparada pelo
arqueiro cuja finalidade é atingir o alvo? Todos esses questionamentos são válidos e dignos de
ser aprofundados.
No pensamento aristotélico, as causas são aspectos inseparáveis de uma explicação
completa e são necessárias para entender plenamente como as coisas funcionam e porque
existem. Dentre elas, sobressair a causa final que desempenha um papel essencial ao destacar o
propósito inerente a tudo na natureza direcionando e unificando as outras causas em direção ao
objeto específico.

65
À vista disso, Aristóteles formula a teoria do hilemorfismo teleológico29 para refutar os
seus predecessores materialistas que queriam explicar a existência dos entes naturais
exclusivamente por meio de causas materiais e eficientes, quer dizer, sem fazer uso das causas
formais e finais que são imprescindíveis para conhecer a realidade como um todo.
Deste modo, o hilomorfismo teleológico parte de sua teoria metafísica e filosofia da
natureza a qual propõe uma explicação sobre a natureza dos seres e sua composição, enfocando
a relação entre matéria e forma, bem como a noção de propósito ou finalidade (telos) na
natureza.
Neste segundo capítulo, discorremos sobre o finalismo na concepção aristotélica, depois
em que sentido a causa final está relacionada com as outras, a saber: causa material, formal e
eficiente.

3.1 A CONEXÃO ENTRE AS CAUSAS

O fim é a causa da causalidade de todas as coisas e goza de precedência ontológica. Ele


é necessário para que as demais causas aconteçam. A causa eficiente é a que desencadeia a
mudança ou a criação. Quanto à causa formal é o que define a identidade da coisa e a causa
material é a substância da coisa. Já a causa final é o propósito ou a finalidade que guia o
processo juntas essas causas formam compressão completa do objeto ou o fenômeno em
questão. Em outros termos: “O fim move o agente, o agente elicia a forma, e a forma organiza
a matéria.” ( ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 251).
Todavia, essas causas não devem ser concebidas como justapostas ou isoladas, mas
como uma ordem determinada, em uma sequência lógica, isto é, em uma mútua relação entre
causas extrínsecas e intrínsecas. Assim, todas as causas estão entrelaçadas em uma explicação
ampla, são inseparáveis. Poderíamos entender desta forma essa perfeita relação causal:

Em resumo, é causa a matéria da qual algo é feito (causa material); a forma


intrínseca à coisa, que atualiza essa matéria (causa formal); o princípio que dá

29
No hilomorfismo teleológico, hilemorfismo refere-se à união de dois conceitos: Hyle (matéria) é a substância
subjacente que compõe os objetos físicos. É a parte material e mutável dos seres. Poderia ser entendido como a
composição química e estrutural de um objeto. Morphe (forma) é a estrutura, organização e características
específicas que definem a essência de um objeto. É o que lhe confere identidade e função. Em termos modernos,
seria a informação genética e o designa que determinam como a matéria se manifesta. Aristóteles sustentava que
todo objeto ou ser no mundo é feito desses dois elementos inseparáveis, matéria e forma. No entanto, o que
distingue o hilemorfismo teleológico é a ideia de finalidade ou finalidade na natureza (teleologia). Ele acreditava
que todo objeto tinha um propósito ou uma causa final, ou seja, uma razão pela qual existe e funciona da maneira
que funciona. Essa ideia contrasta com a visão mecanicista da natureza que se desenvolveria mais tarde na
história da filosofia. Por exemplo, na teoria aristotélica, uma árvore tem a forma específica de "árvore" e é feita
de matéria, mas também tem um propósito inerente: crescer e se desenvolver em uma árvore completa. O
propósito não é imposto de fora, mas é parte intrínseca da própria natureza da árvore.
66
origem à forma na matéria (causa eficiente) e, por último, o fim para o qual
tende o agente (causa final). (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p.
210, tradução nossa).

Entende-se como confere a citação acima que nessa relação de dependência ontológica
dá a compressão efetiva de um ente, pois este é analisado por meio desses gêneros causais,
assim a causa material só o é por causa da causa formal, que a atualiza; porém isso é possível
por meio da causa eficiente que é tem como função dá origem à forma na matéria. Por
conseguinte, é a causa final que move a causa eficiente.
Passaremos a tratar de cada uma destas causas nesta subseção e como elas se relacionam
com a causa final ou teleológica.

3.1.1 A relação entre causa final e causa motora

A causa final está ligada à causa eficiente ou motora visto que ela é o que motiva a ação
do agente eficiente para que este possa realizar tal ação. Ora, é inconcebível que um agente
fazendo uso de suas faculdades intelectivas aja sem finalidade, sem ser tomado por um desejo
ou propósito anterior a sua ação. No entanto, a causa motora não é a causa da causalidade do
fim, quer dizer, não faz com que o fim seja fim:

O agente é movido por um fim (motor movido: movens motum), enquanto o


fim já não é movido por nada, motor imóvel em seu gênero: movens immobile)
[...]. Mas a causa eficiente não faz do fim um fim, não é a causa da causalidade
do fim: como vimos, a razão pela qual o fim é desejado em sua própria
natureza de bem, o fato de constituir uma perfeição; portanto, o agente não faz
do fim um fim (que seja bom), mas simplesmente que a bondade que o fim
supõe é obtida. (Ibid., p. 251, tradução nossa).

Percebe efetivamente que a causa final está intrinsecamente relacionada com a causa
motora, embora esta não seja a causalidade do fim. O que é peculiar da causa final é a bondade
e a causa motora faz com que essa bondade se torne evidente. Por conseguinte, a causa final
move as demais, entretanto, não é movida. Trata-se aqui da teoria do Motor Imóvel formulada
por Aristóteles (abordamos no primeiro capítulo) e isso se comprova quando se diz na citação
enquanto o fim já não é movido por nada, motor imóvel em seu gênero: movens immobile.
Tomemos este exemplo: qual seria a finalidade de uma mesa? Seria fornecer uma
superfície plana para colocar objetos? Não necessariamente! Na verdade, essa seria uma
compreensão muito reduzida e equivocada da causalidade final, assentando-a simplesmente ou
exclusivamente no plano funcional ou usual. Trata-se aqui da relação entre telos e função, isto

67
é, fim e aplicabilidade, que abordaremos a partir de agora para maior compressão da causa final
e sua relação com as outras.

3.1.1.1 Telos e função: a causa teleológica é exclusivamente aplicabilidade?

Votemos a pergunta: qual seria a finalidade de uma mesa? Seria fornecer uma superfície
plana para colocar os objetos? Isso se explicaria pelo fato de a causa final sê o fio condutor que
guiou o carpinteiro (causa eficiente) a moldar a madeira nesse formato específico e para esta
finalidade atribuindo-lhe tal formato? Deparamo-nos com dois erros presentes na concepção de
causa final e causa formal que, inclusive, ainda é muito propagado. O primeiro é confundir
forma com formato; o segundo finalidade com aplicabilidade. A forma se refere à coisa, o que
ela é, aponta para a essência; enquanto o formato aponta para o acidental, o contingente. O fim
é visto como acabamento, perfeição, em vista de quê, remete à uma realidade última e melhor,
em termos aristotélicos (Cf. Fis. 194ª 27).
Por exemplo, uma cadeira pode ser de madeira, de plástico, grande, pequena, trata-se do
formato, modelo. Já a forma é o que ela é: cadeira, pois independentemente de seus aspectos
acidentais (tipo de madeira, espessura) não deixará de ser cadeira. Essas qualidades não são a
sua forma. Esta vem do grego είδος que significa essência necessária ou substância das coisas
que têm matéria. Deste modo, não só se opõe a matéria, mas a pressupõe. (Cf. ABBAGNANO,
2007, p.468). Lembremos que o conhecimento universal não se reduz ao aspecto da aplicação,
isto é, da prática.
Aristóteles usa, portanto, esse termo com referência às coisas naturais que são
compostas de matéria e forma (hilemorfismo teleológico) e observa que είδος (eidos) é mais
natureza que a ὕλη (hylé), é superior, é perfeição, uma vez que de uma coisa diz aquilo que ela
é em ato (a forma) e não o que é em potência. (Cf. Fis. 193b 6). Dando constância à
argumentação em Física 193b 28, o filósofo faz a distinção entre forma e matéria, quando teia:
“visto que a natureza se concede de duas maneiras – a forma e a matéria.”
Assim sendo, nas causas extrínsecas, “o agente é a causa do fim em termos de realização
ou aquisição, uma vez que o fim é alcançado pelas operações do agente.” (ALVIRA;
CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 251). As causas intrínsecas referem-se a forma e a matéria ,
pois a forma organiza a matéria e lhe dá o ser). Portanto, as causas extrínsecas (motora e final)
são causas das intrínsecas (material e formal) dado que a matéria e a forma dependem
necessariamente de um agente para se unir, este qua opera motivado pelo fim (Cf. Ibid., 251,
tradução nossa).

68
Analisemos o segundo erro que é pensar o finalismo aristotélico reduzindo-o à
funcionalidade, quer dizer, para que a coisa serve. No caso em questão, da mesa, poderíamos
argumentar que a finalidade de uma mesa, de acordo com a “visão aristotélica”, seria
proporcionar um suporte estável para objetos, tornando-os acessíveis e organizados em um
espaço. Todavia, essa não é a causa final, última da mesa enquanto perfeição. Deste modo, a
causa final é ela mesma, vez acabada, pronta.
Isto posto, a causa final motiva a causa eficiente sendo que o propósito o objetivo final
é o que dá origem a ação que traz a coisa existência, como vimos no exemplo acima, da mesa,
mas não é a utilidade que determina a causa final. De fato, uma mesa pode ter inúmeros fins
práticos e funcionais na vida cotidiana: suporte para objetos, refeição, trabalho, estudo,
decoração etc. Logo, mesmo que a causa final tenha motivado o agente para que ele iniciasse
a ação para assim chegar a forma de mesa (causa formal) com suas diversas características
como tamanho, espessura, não se pode reduzi-la à aplicabilidade, isso consistiria em negar a
natureza da coisa, seu princípio intrínseco.
Efetivamente a causa final está intrinsecamente ligada à aplicabilidade, mas não fica
preso a ela. Seria um erro tremendo aplicar isso a Aristóteles que veemente criticou as
concepções materialistas de seus predecessores (Cf. Metafísica 988a 15ss) por meio de sua
teoria teleológica, a respeito da causalidade.
Aristóteles dá o exemplo das andorinhas, das plantas e aves que agem com uma
finalidade, entretanto não são movidas por um intelecto, não se trata de uma ação consciente e
volitiva, embora chegue à perfeição enquanto realização do ser:

Isso é evidente sobretudo no caso dos outros animais, que produzem não por
técnica, tampouco depois de ter examinado ou deliberado. Daí alguns se
embaraçam em saber se é com inteligência ou com algo diverso que operam
as aranhas, as formigas e outros desse tipo. E a quem passo a passo procede
dessa maneira, evidencia-se que até mesmo nas plantas surgem coisas
convenientes ao acabamento, por exemplo, as folhas em vista da proteção do
fruto. Por conseguinte, se é por natureza e em vista de algo que a andorinha
faz o ninho, a aranha faz a teia, bem como as plantas fazem as folhas em vista
dos frutos, e as raízes para baixo, não para cima, em vista do alimento, é
manifesto que há uma causa de tal tipo nas coisas que vem a ser e são por
natureza. E uma vez que a natureza é dupla, uma como matéria, outra, como
forma e, dado que esta última é acabamento e as demais coisas são em vista
do acabamento, é ela que é causa em vista de quê. (ARISTÓTELES, Física,
199ª 20-32, grifos do autor).

Certamente é inaceitável pensar que as andorinhas fazem os ninhos conscientemente,


quer dizer, que elas tenham consciência de sua ação e sabem o porquê de realizá-la. Contudo,
69
é ilógico afirmar que a nidificação não é feita em vista de algo, no caso das andorinhas, para
incubação de seus ovos. Ou que as plantas fazem as folhas em vista dos frutos. Assim sendo, a
finalidade é a busca de objetivos inerentes à sua natureza e à sua sobrevivência como parte do
mundo natural.

3.1.2 A relação entre causa final e causa formal

Agora veremos em que sentido podemos afirmar que a causa final está ligada à causa
formal. Há algo peculiar nesta relação, pois o fim para chegar ao acabamento, implica a noção
de forma. Significa então que a causa formal é superior à causa final? Não. Implica dizer que a
finalidade está enraizada na natureza ou na essência do ente. Em outros termos, a causa formal,
que é intrínseca, depende ontologicamente da causa final, bem como da causa motora, como
foi dito. Em função disso, o fim também está ligado à causa formal por meio do propósito que
define a forma da coisa.
Poder-se-ia dizer que do mesmo modo que a causa formal é causa com respeito a matéria
isto é, a causa formal é ato da matéria (Cf. ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 218-
219) igualmente a causa final faz com que a causa formal seja realizada, é o fator teleológico
que estimula as outras causas tornando-as inteligíveis e aplicadas em diferentes contextos nas
áreas do saber. Portanto, é próprio da natureza do fim atrair:

O fim causa por modo de atração: é justamente o que caracteriza a causalidade


do fim em oposição aos gêneros de causas. Matéria e forma exercem sua
causalidade em sua união mútua como potência e ato; o agente, educando uma
nova forma de matéria; o fim, atraindo o agente para si, movimentando algum
tipo de apetite ou orientação natural, e assim atualizando as potências
operativas da causa eficiente: a característica do fim é atrair. (Ibid., p. 242,
tradução nossa).

Duas coisas devemos considerar nessa citação: a primeira é que o fim atrai o agente para
si, a segunda é que esse movimento de “atração” o distingue dos demais gêneros causais. De
fato, é algo bastante peculiar, pois isso não acontece nas outras causas. É certo como vimos que
o agente, educando uma nova forma de matéria; entretanto a própria causa motora é motivada
pela causa final, ou seja, o agente ao começar uma determinada ação foi movido pelo fim.
Se alguém perguntasse, por exemplo: “por que a forma da estátua (pensemos em
qualquer estátua significativa) atrai tanto a atenção das pessoas? Certamente, a resposta de
Aristóteles seria embasada em sua doutrina teleológica: o fator que explica por que a estátua

70
tem a forma que lhe foi atribuída é o propósito para o qual a estátua foi concebida, sua
finalidade, a causa da motivação do agente.
Deste modo, na arte, o telos de uma obra de arte era o efeito emocional ou poderia dizer
estético que ela buscava alcançar. Compreender a finalidade de uma obra de arte permitiria
apreciá-la em sua totalidade. A noção de causa final desempenha um papel importante em sua
metafísica, ética, filosofia da natureza, bem como na teoria do conhecimento.
Essa concepção de que há uma teleologia presente na natureza perpassa toda a obra
aristotélica. No capítulo três do livro da Física no contexto das quatro causas ao falar da causa
final o Estagirita diz: “além disso, denomina-se ‘causa’ como o fim, ou seja, aquilo em vista de
quê, por exemplo, do caminhar, à saúde, de fato por que caminha? Dizemos a ‘fim de que tenha
saúde’ e, assim dizendo, julgamos ter dado a causa.” (ARISTÓTELES. Física 194b 23, grifo
do autor).

3.1.3 A relação entre causa final e material

A causa material é moldada para alcançar a causa final desejada por essa finalidade.
Também há uma dependência ontológica, isto é, a causa material, que é intrínseca, depende
ontologicamente da causa final, e consequentemente da causa motora. De fato, o objetivo final
de alguma coisa muitas vezes influencia o material escolhido para criá-la, por exemplo se o
objetivo final é criar uma ferramenta durável a escolha do material será influenciada.
Aristóteles, no livro dois da Física, admite a existência de várias causas para uma mesma
coisa, mas não por concomitância, ou seja, que se manifeste ao mesmo tempo, no mesmo
aspecto:

[...] há várias causas para uma mesma coisa, não por concomitância; por
exemplo, tanto a arte de esculpir como o bronze são causas da estátua não
enquanto ela é outra coisa, mas enquanto estátua, embora não do mesmo modo
- uma é como matéria, a outra é como aquilo de onde provém o movimento.
(Ibid., 195ª 3).
Como se percebe nessa citação, não é errado pensar em um ente e lhe atribuir causas.
No exemplo de Aristóteles, vemos que tanto a arte de esculpir quanto o bronze são causas da
estátua, porém não enquanto ela é outra coisa, mas enquanto a forma de estátua, o que é em si
mesma, sua essência. Dito de outro modo, quando se analisa uma estátua percebe que houve
uma atualização, quer dizer, uma passagem da potência para o ato, pois o que era madeira,
tornou-se uma bela escultura. Contudo, esse movimento só foi possível por meio da causa

71
motora, por isso que ele diz em Física 195ª 3, embora não do mesmo modo - uma é como
matéria, a outra é como aquilo de onde provém o movimento.
Ademais, a inteligência humana quando pensa na causa motora (de onde provém o
movimento) consequentemente é levada a pensar na causa final. Como também quando pensa
no material a ser escolhido bem como na finalidade ao esculpir uma estátua impõe-lhe
limitações sobre as propriedades que a forma pode vir a adquirir. Por essa razão, se diz que a
causa final determina as demais.
Neste mesmo exemplo da estátua, pode levantar esta pergunta: “por que a matéria da
estátua é a madeira? A resposta inteligível estará na causa final, foi porque ao fazer a estátua a
finalidade (enquanto a forma) era bem especifica e o material era o mais apropriado no
momento, ainda que pudesse ser o mármore ou o bronze etc. mas uma vez acabada não poderia
ser outra coisa a não ser ela mesma: estátua.

3.2 O ACASO: UM FRACASSO DA FINALIDADE?

Temos argumentado durante esta pesquisa, de modo mais profícuo na seção anterior,
que tudo que há no cosmos encontra-se em um perfeita harmonia sejam nas coisas animadas
como inanimados e tudo se dirige pela teleologia. Tomamos conhecimento que existe uma
necessidade de uma causalidade final para explicar o mundo natural com seus diversos
fenômenos. Além disso, analisamos a importância e a excelência desta causa em relação com
as outras, a material, formal e eficiente.
Faz-se necessário avançar em nossa pesquisa nos deparando com este questionamento:
se tudo que existe está em uma perfeita harmonia no cosmos e segue uma teleologia, como se
explica o acaso? Seria o acaso um fracasso da finalidade? Em que sentido esse termo deve ser
compreendido no contexto da teleologia aristotélica?
Em Física II, 4-6, Aristóteles desenvolve sobre um conjunto de fenômenos que parecem
escapar à determinação teleológica. Deste modo, novamente ele restringem-se ao quadro da
crítica às teorias mecanicistas dos físicos anteriores. Alguns destes atribuíam a criação das
coisas ao acaso, por exemplo o céu (Cf. Física 196a 24). Nessa visão, o acaso não teria causa,
mas seus efeitos sim. Todavia, o que intriga Aristóteles é: o que diferencia um evento fruto do
acaso de um que não o é?
Logo, a tarefa do Estagirita é esclarecer que o acaso não é um tipo de causa (como as
demais que vimos) porém os resultados são causados, isto é, têm causas; e explicar quando uma

72
coisa é proveniente ou não do acaso. Isso, conforme, o filósofo não foi colocado pelos seus
predecessores.
Seguindo esse raciocínio, ele vai abordar a temática do acaso, também do espontâneo30,
em contraste com a teoria das quatro causas (Cf. Física 195b 31-35), com um acréscimo peculiar
da causa final ou em vista de que, acabamento (Cf. Física, 194a 27). Apresenta as noções de
acaso como tychê e de autómaton, termos traduzidos por Lucas Angioni acaso e fortuna. (Cf.
ARISTÓTELES apud ANGIONI, 2009, p. 279). Culminará na afirmação de que a relação entre
matéria e forma se resolve com a relação teleológica.
Deste modo, ele concebe o acaso como uma realidade que foge à razão, extra rationem,
pois se trata de um fenômeno que é incapaz de a inteligência humana prever, são fenômenos
não naturais, consequentemente incognoscíveis. Assim, Aristóteles o coloca no âmbito do
irracional e do oculto:

É correto dizer que o acaso é algo que foge à razão, pois a razão se aplica às
coisas que são sempre ou às que são no mais das vezes, mas o acaso está no
domínio das coisas que vêm a ser à parte delas. Por conseguinte, visto serem
indetermináveis as coisas que são causas desse tipo, também o acaso é
indeterminável. (ARISTÓTELES. Física, 197ª 18).

A citação supracitada confere que o acaso efetivamente para o filósofo em questão foge
dos ditames da racionalidade, são indetermináveis, logo não se pode atribuir uma causa
específica. Em Metafísica 1025ª 20-25, Aristóteles esclarece que uma causa fortuita é
indeterminada. Dado isto, infere que o acaso é inconstante, por conseguinte não pode ser
considerado como uma causa (Cf. Física 196b,13-22), introduz a noção de concomitância para
explicar as relações casuais na produção de um evento casual (Cf. Ibid. 196b, 23-31). Neste
caso, o acaso não ocorre “no mais das vezes” (hôs epi to poly) tampouco “sempre da mesma
maneira” (aei hosautôs). Decerto, não se tem como prever, esperar que aconteça,
diferentemente, por exemplo do eclipse, que acontece, e hoje isso é factível pela ciência (Cf.
ARISTÓTELES apud ANGIONI, 2009, p. 287-288).

30
Já o espontâneo difere-se do acaso por causa de sua amplitude de ação, ou seja, ele atua no âmbito das coisas
naturais e não depende da deliberação e do pensamento. Em Física 197ª 13, Aristóteles diz: “Já o espontâneo se
atribui também aos outros animais e mesmo a muitos inanimados.” Sendo assim, o espontâneo é um determinado
tipo de ação que ocorre sem deliberação. O filósofo cita dois exemplos para ilustrar seu pensamento. De um
cavalo que veio espontaneamente, porque se salvou ao vir, mas não veio em vista de ser salvo; como também o
tripe que caiu espontaneamente, pois ficou de modo a servir de assento, mas não caiu em vista do servir de
assento. (Cf. Física 97ª 13).
73
Na verdade, o próprio Aristóteles afirma que há coisas que ocorrem no domínio do que
acontece em vista de algo ou em vista de quê, embora elas mesmas não sejam em vista de algo,
quer dizer, sem finalidade ou sem um propósito intrínseco:

Entre as coisas que vêm a ser, umas vêm a ser em vista de algo, mas outras
não; entre aquelas, uma são por escolhas, outras não por escolhas, mas todas
elas estão entre as coisas que vêm a ser em vista de algo; por conseguinte, é
evidente que, mesmo entre as coisas que vêm a ser à parte daquilo que é
necessário ou no mais das vezes, há algumas a respeito das quais é possível
que se dê em vista de algo. (ARISTÓTELES. Física, 196b 17).

Percebe-se que mesmo que não lhe confira uma necessidade essencial ao acaso, por
causa da sua irregularidade, ele não é negado na doutrina aristotélica. No livro dois da Física,
se alega que o em vista de algo poderia se dar por acaso, nas palavras do filósofo: “E o em vista
de quê, bem como aquilo que é em vista dele, poderia ocorrer também por acaso.” (Cf. Ibid.,
199b 14).
Aristóteles dá o exemplo de alguém que vai à praça por acaso, ou seja, sem intenção
nenhuma, de recobrar um empréstimo, porém sucede que encontra o devedor e o desfecho foi
o ressarcimento. Mas, não foi em vista disso que ele foi à praça. É nesta linha de raciocínio que
ele recorre à causação por concomitância, como abordamos, para diferenciar as coisas que
podem ser feitas a partir do pensamento (a razão) daquelas frutos do acaso (concomitância).
Em Física 196b 13, o filósofo afirma: “mas, dado que, além dessas, há também outras coisas
que vêm a ser, as quais todos afirmas ser por acaso, é evidente que o acaso e o espontâneo são
algo [...]”.
Para ilustrar esse pensamento, adotaremos um exemplo desse filósofo sobre a
causalidade por concomitância:

Pois bem: quando tais coisas vêm a ser por concomitância, dizemos que elas
são por acaso (pois, assim como certa coisa é algo em si mesma ou por
concomitância, também cabe que algo seja causa do mesmo modo; por
exemplo, de uma casa, o construtor é causa em si mesmo, mas o branco ou
musical são causas por concomitância; assim está já determinado aquilo que
causa em si mesmo, mas é indeterminado aquilo que é causa por
concomitância, pois ilimitadas coisas podem ser atribuídas como
concomitantes a algo. (Ibid., 196b 21ss).

Com esse exemplo da casa coincide que a mesma pessoa é conjuntamente construtor e
músico, mas não do mesmo modo ou como sendo a mesma causa: o construtor é causa em si
mesmo da casa (kath’ hautên); enquanto o musical o é por concomitância (kata symbebêkos).
A explicação de Aristóteles é que aquilo que é causa em si mesmo é determinado ao passo que
74
é indeterminado aquilo que é causa por concomitância. Ora, quando falamos músico por
concomitância, significa que não é apenas enquanto músico, mas enquanto é também outra
coisa. O construtor em si mesmo é a causa da casa, mas o músico também o é, porém por
concomitância, pois é atributo de alguém que é músico ser também construtor.
Aristóteles segue esse mesmo raciocínio no livro quinto da Metafísica quando explica
sobre os significados do ser atribuindo-lhe um sentido acidental (per accidens) e por si (per se).
Deste modo, a causalidade por concomitância é dita como causalidade per accidens:

[...] Do mesmo modo quando dizemos que o “músico constrói uma casa”,
porque pode ocorrer que o “músico” seja “construtor”, ou que o “construtor”
seja “músico”. De fato, “isto é aquilo” significa que isto é acidente daquilo
[...]. Portanto, as coisas que são ditas em sentido acidental, o são: (a) ou por
serem atributos pertencentes a uma mesma coisa que é, (b) ou por se tratar de
um atributo que pertence à coisa que é [...]. ( ARISTÓTELES, Metafísica,
1017ª 7- 23).

Santo Tomás de Aquino comentando essa citação enfatiza que o ente se diz por si e por
acidente. Aqui se debruça tanto sobre a natureza essencial, isto é, aquilo que faz algo ser o que
é, quanto as qualidades, os acidentes, que podem variar sem alterar a essência do ente. O Doutor
Angélico deixa claro que essa divisão do ente por si e por acidente não é a mesma que o divide
em substância e em acidentes, ou seja, não se trata aqui das nove categorias com as quais se diz
sobre o ser. (Cf. AQUINO, 2016, p. 95). Deve entender o “acaso” como “acidente” deste modo:
“acidente é tudo o que acontece por acaso, isto é, pela inter-relação e o entrelaçamento de várias
causas, mas sem uma causa determinada.” (ABBAGNANO, 2007, p. 13).
Assim, pode-se afirmar que uma das formas de causalidade em Aristóteles é a
causalidade por concomitância, também conhecida como causalidade simultânea ou
causalidade acidental. Esta acontece quando dois eventos ocorrem juntos, sem que haja uma
relação direta entre eles, visto que ocorrem devido a circunstâncias contingentes e externas,
mesmo que estejam ligados por meio de uma relação de coexistência. Dessa forma, no livro
dois da Física, no capítulo cinco, está a primeira definição para o acaso: trata-se de uma causa
por concomitância, foge da razão, do pensamento, este é racional, como bem diz o Estagirita:
“a escolha não se dá sem pensamento.” (Cf. Física 197a 5).
Entretanto, essa discrepância nesta divisão, conforme Lucas Angioni, o pensamento de
Aristóteles permanece confuso, pois ele não esclarece quais são as coisas que ocorrem em vista
de algo que dependem de um a gente racional daquelas que não dependem. No argumento de
Angioni essa explicação de Aristóteles poderia ser aplicada em certas às ações humanas (que
são contingentes e se articulam em vista de algo) contudo, não satisfazem a condição
75
apresentada em Física 196b 22, das coisas em vista de algo pela natureza, porque “elas estão a
parte daquilo que é necessário ou no mais das vezes” (Cf. Ibid., 196b 17), ora, mas estas são
necessárias sejam no sentido de que são sempre ou no mais das vezes do mesmo modo (Cf.
ARISTÓTELES apud ANGIONI, 2009, p. 289).
De fato, parece até meio contraditório o argumentado de Aristóteles quando diz em 196b
17-22, entre as coisas que vêm a ser, umas vêm a ser em vista de algo, mas outras não. Ora,
em vista de algo evoca finalidade, propósito (como ele menciona em DA 415ª 22) fica ambíguo
seu pensamento quando ele acrescenta mas outras não. O que está em jogo é argumentar e
esclarecer como uma coisa pode ser em vista de algo por decisão (pressupõe a vontade, razão,
pensamento) daquela que é em vista de algo independentemente da escolha de um ser livre.
Mas conforme consta no livro dois da Física, no capítulo oito, é possível cogitar a teleologia
sem a deliberação, ou seja, ela não se reduz à deliberação.
Se Aristóteles enquadra o acaso à causalidade por concomitância bem como por
acidente; José de Finance também o faz reduzindo-o à categoria de causalidade por acidente31,
faz isso recorrendo a Santo Tomás de Aquino:

Assim o acaso é reduzido à causalidade por acidente. O efeito fortuito, como


tal, não tem unidade verdadeira e, consequentemente, não tem ser; portanto,
não requer uma causa e não há razão para atribuir-lhe um fim. (SANTO
TOMÁS DE AQUINO apud FINANCE, 1965, p. 429, tradução nossa).

Essa citação de Santo Tomás de Aquino corrobora o pensamento de Aristóteles em não


atribuir uma causa final para o acaso (a não ser por concomitância). Ainda seguindo o raciocínio
de José de Finance “às vezes afirmar-se que o acaso é simplesmente uma forma ou um nome
de nossa ignorância.”(FINACE, 1965, p. 429, tradução nossa).
Portanto, tudo que se segue na natureza essencialmente tem a causa final, como vimos.
Na perspectiva aristotélica, dado que o acaso é “causa por concomitância, no domínio daquilo
que é por escolha, de coisas que viriam a ser em vista de algo.” (Física. II, 5, 197a 5 ). Por isso
que Aristóteles nos Analíticos Posteriores (em grego, Ἀναλυτικὰ ὕστερα) enfatiza: “o que se
produz em ordem a um fim, nunca se produz por acaso.” (AnPo. II, 11, 95a 15-16).
Sendo assim, embora o acaso para Aristóteles (Física. II, 4, 196b 6) permanece como
uma realidade obscura ao entendimento humano, pois são irregulares, pode ser definido como

31
Na Metafísica, Aristóteles define o termo acidente: “Acidente significa o que pertence a uma coisa e pode ser
afirmado com verdade das coisa, mas não sempre nem habitualmente [...]. Portanto, do acidente não existirá nem
mesmo uma causa determinada, mas só uma causa fortuita, que é indeterminada.” (ARISTÓTELES, Metafísica
1025ª 15-25). Acidente é, portanto, oposição a per se.
76
uma causa por acidente (ou concomitância) cujos efeitos pertencem a ordem daqueles que
podem vir a ser em vista de algo.

3.3 CENTRALIDADE E IMPORTÂNCIA DA CAUSA FINAL NO PENSAMENTO


ARISTOTÉLICO

Vimos, no primeiro capítulo, que a noção de finalismo nem sempre esteve presente no
mundo arcaico grego de forma clara, basta recordar os filósofos mecanicista como Leucipo e
Demócrito, fundadores do atomismo lógico, os quais explicaram o mundo sem fazer nenhuma
menção a ideia de finalidade, mas exclusivamente por intermédio de realidades materiais, os
átomos. (Cf. FINANCE, 1965, p. 404). Trata-se de uma explicação puramente mecanicista do
cosmos que não admite nada que não seja material, visível ou palpável. Não tem espaço para
uma realidade fora da física tampouco para uma Inteligência Ordenadora.
No entanto, houve filósofos que ultrapassaram essa visão chegando a uma certa noção
de causa final, como Anaxágoras, conforme Aristóteles (Cf. Metafísica. I, 3, 984 b 15-20) e
Platão (Cf. Fed., XLVI) que admite a noção de fim é a causa total que se dirige para o bem.
Sendo assim, o finalismo abarca toda a realidade criada e explica de forma ordenada e
estruturada:

Doutrina que admite a causalidade do fim, no sentido de que o fim é a causa


total da organização do mundo e a causa dos acontecimentos isolados. Essa
doutrina implica duas teses: 1ª o mundo está organizado com vistas a um fim;
2ª a explicação de qualquer evento do mundo consiste em aduzir o fim para o
qual esse evento se dirige. Essas duas teses frequentemente estão unidas ou
confundidas, mas às vezes elas são diferentes e procura-se admitir uma sem
admitir a outra. Segundo relato de Platão e de Aristóteles, Anaxágoras foi o
primeiro dos antigos a admitir a causalidade do fim. (ABBAGNANO, 2007,p.
457).

Nessa citação supracitada onde nos deparamos com a definição de causalidade revela
duas coisas. Primeira, que o cosmo se dá em vista de um fim. Segunda, que cada coisa se dirige
para o seu acabamento ou finalismo. Entretanto, isso não exige deliberação ou nas palavras de
Lucas Angioni: “a teleologia da natureza não exige que o ente natural conceba o acabamento
como bom e o proponha como meta a ser realizada.” (ANGIONI, 2009, p. 262).
Em Física 199b 26 enfatiza na natureza está o em vista de algo, assim sendo, a natureza
existe um princípio intrínseco à coisa movida conduzindo-a ao acabamento (Cf. Ibid., 199b 14),
como por exemplo, “nas plantas há o em vista de algo, embora seja menos articulado.” (Cf.

77
Ibid., 199b 9), pois as plantas fazem as folhas em vista de algo, e as raízes para baixo, não para
cima, em vista do alimento [...] (Cf. Ibid., 199a 20).
Tudo isso aponta para a centralidade e a importância da causa final no pensamento
aristotélico. Em Metafísica 1044a 31, Aristóteles diz claramente que a causa final é o fim do
homem, a realização de seu potencial humano. Além disso a identifica com a causa formal, ou
seja, tende a identificar o fim com a mesma substância. Já em De Anima 434a o Estagirita
afirma que "tudo aquilo que é por natureza existe para um fim.”
Aristóteles ao estudar a natureza das coisas destaca o movimento e a pluralidade para
refutar as concepções do monismo eleático que desconsiderava os diversos modos de dizer o
ser. A tentativa do filósofo é fazer aquilo que seus precursores não fizeram: buscar a causa mais
extrema de cada coisa como uma realidade imprescindível para o conhecimento:

É preciso sempre buscar a causa mais extrema de cada coisa, como nos outros
casos (por exemplo: o homem constrói casa porque é construtor, e o construtor
constrói segundo a arte da construção: ora, esta última é anterior, e é assim em
todos os demais casos); além disso, de gêneros, é preciso buscar como causas
gêneros e, de particulares, particulares (por exemplo, escultor é causa de
estátua, mas esse escultor é causa dessa estátua), assim como, das coisas
possíveis, é preciso buscar como causas capacidades, ao passo que, em relação
àquilo que está sendo efetuado, as causas efetivamente atuantes.
(ARISTÓTELES. Física, 195b 21).

Não basta simplesmente dizer que existem as quatro causas e estas explicam a
composição das coisas, precisa ir a fundo, buscar a causa operante, àquela que por natureza é
superior, mesmo que esteja intrinsecamente ligada as demais. Isso se faz necessário porque
somente analisar as causas não explicam a realidade última das coisas. Por exemplo, a causa
formal e a causa material explicam, de fato, as coisas, entretanto, quando a olhamos do ponto
de vista do devir, das transformações e mutações, elas já não bastam. Precisa recorrer à uma
realidade exterior a elas.
Poder-se-ia dizer que Aristóteles quer alcançar à essência, àquela realidade que não
depende do contexto, da dimensão empírica. Se analisamos o homem apenas em seu aspecto
aparente vemos um corpo animado o qual pode ser explicado biologicamente, porém, ele traz
consigo interesses, desejos profundos os quais ultrapassam sua corporeidade. Em outras
palavras, não está somente “no mundo”, mas atua, age, é movido por essas realidades
propriamente humanas.
Chega-se, então, a noção de causa eficiente e causa final. O finalismo é uma realidade
que não só abarca toda a sua doutrina, mas também tem a primazia sobre as demais causas. Isto

78
se percebe claramente em todo Corpus Aristotelicum .Conforme Joseph de Finance a causa
final tem essa primazia (também para Platão), por intermédio da noção de Motor Imóvel, que
opera no cosmos a não ser pelo desejo. (Cf. FINANCE, 1965, p. 408).
Efetivamente se comprova a existência de um finalismo na natureza ao examinar a
estrutura dos entes naturais, isto é uma ordem interna das ações da natureza levando a conclusão
que o fim é causa da ordem. Assim, por exemplo, no organismo vivente, cada órgão tem sua
função, os dentes estão para comer; os pulmões para respirar ;os olhos para ver etc. todavia,
nestas naturezas inanimadas é mais difícil perceber o fim, visto que se trata de entes menos
perfeitos (Cf. ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 246-247).
Santo Tomás de Aquino viu na doutrina aristotélica uma riqueza incomensurável a
ponto de falar de seu autor, Aristóteles, como “O Filósofo”. Retoma, assim, o seu pensamento
acerca do finalismo e o faz com muita propriedade, aplicando-o tanto na moral bem como na
própria teologia. Deste modo, o fim passa ser o fundamento para a metafísica teológica. O fim
é a necessidade própria dos movimentos naturais, é a necessidade natural que inere nas coisas
e as dirige, estas foram “imprimida por Deus, que as destina a um fim, do mesmo modo como
a necessidade com que a flecha se desloca e graças à qual se dirige para o alvo foi-lhe imprimida
por quem a lançou e não pertence à flecha." (Cf. S. Th., I, q. 103, a. 1).
Dessa forma, na filosofia tomista a noção de fim adquire outras conotações, como limite
ou terminação, definição, perfeição e finalidade. Esta se aplica tanto para uma ação inteligente
como para de uma tendência cega. Logo, para Santo Tomás de Aquino o fim que explica o
"para quê" de todas as coisas é a verdadeira causa da causalidade eficiente, a causa causarum,
isto é, a causa das causas:

O fim é a primeira das quatro causas, o pressuposto necessário para que os


outros tipos de causalidade ocorram [...] ‘o fim é a causa da causalidade do
agente, porque faz que este produza seu efeito; da mesma maneira, faz que a
matéria seja causa material e que a forma seja causa formal, já que a matéria
não recebe a forma se não pelo fim ( é dizer, em ordem a produção de um
novo ente, ou de uma nova perfeição acidental), e a forma inerente a matéria
pelo mesmo motivo. E esta é a razão de que se afirme que o fim é a causa das
causas (causa causarum), porque é causa da causalidade de todas as causas.
(ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 250, tradução nossa, grifos do
autor).

Deduz-se que dentre as causas material, formal e eficiente, a final é superior. Mas qual
o por qual motivo? Porque ela é a primeira, tem precedência, como afirma nessa citação.
Ademais, é a condição para que as outras possam ocorrer. Faz com que as outras alcancem a
perfeição, atualizem suas potências, isso fica claro quando se diz já que a matéria não recebe
79
a forma se não pelo fim. Por exemplo, um escultor se propõe fazer uma escultura (causa final),
assim, em virtude desse desejo, se move, atua (causa eficiente) para fazer uma nova escultura
(causa formal); e para isso escolherá o material que será utilizado (causa material).
Todavia, a partir deste exemplo algumas indagações podem ser levantadas: estas
afirmações não trariam complicações epistemológicas? Ou seja, como é possível conceber que
a excelência da causa final sobre as demais visto que ao mencioná-la deve-se necessariamente
pressupor uma causa eficiente? Como entender que a causa final tem precedência às demais?
Ora, aqui deve se distinguir ente precedência cronológica da precedência ontológica. O
que dissemos a respeito da relação entre ato e potência, pode aplicar nesse contexto, ou seja,
assim como ato é anterior à potência, a causa final o é em relação as demais: segundo à noção,
prioridade cognoscitiva porque no desenvolver de uma ação ela tem que vir primeiro, pois todo
agente opera com uma intencionalidade, finalidade “Omne agens agit propter finem.”
(FINANCE, 1965, p. 409, tradução nossa).
Decerto, o homem ao fazer uma casa já parte de uma intenção, de uma motivação que o
leva a executar tal ação, pois a ausência de finalidade implicaria o indeterminismo absoluto,
seria um contrassenso à razão humana, além disso, não se poderia conhecer de conhecer as
coisas. Portanto, “embora no âmbito da realização do efeito o fim seja a última coisa a ser
alcançada, na ordem da inclinação para causar é sempre o primeiro.” (ALVIRA; CLAVELL;
MELENDO, 2001, p. 250, tradução nossa). Ora, ainda seguindo esta linha de raciocínio de
Joseph de Finance o finalismo explicava verdadeiramente as coisas e a causa motora lhe é
subordinada:

Não seria possível dizer com mais claridade que a causa verdadeira, a única
que explica verdadeiramente as coisas e os atos, é o fim. A causa motora
apenas tem a função subordinada: é o que permite que o fim se realize [...]
também em Aristóteles encontramos uma concepção resolutamente finalista.
(FINANCE, 1965, p. 406, tradução nossa).

A causa motora, como vimos, faz com que o fim se realize, mas não goza de prioridade
ontológica tampouco se encontra em um grau de superioridade em relação à causa final. Por
isso que se diz que a causa final tem grau transcendental e se encontra no âmbito espiritual. O
finalismo move com efeito o agente e o faz iniciar uma ação. 32 Por exemplo, uma pessoa não
iniciaria seus estudos se não fosse movida pelo desejo natural de saber e com a finalidade de
ter uma vida digna.

32
Aqui se usa espiritual não no sentido religioso, mas filosófico e metafisico. Trata-se das faculdades intelectuais.
Essência da vida incorpórea , transcendental.
80
Diante de tudo o que foi exposto, a nossa tarefa é entender, a partir de agora, como se
dá essa relação entre a causa final com as outras no sistema aristotélico, sem a pretensão de
querer chegar a uma ciência perfeita da causalidade. Cabe agora saber como se dá a relação
desta para com as outras, quer dizer, até existe uma dependência? Ou pode pensar em uma causa
final sem fazer uso das demais?

3.4 A DEFESA DA TELEOLOGIA

É imprescindível defender e destacar a legitimidade da causalidade aristotélica como


conceito fundamental tanto para o pensamento filosófico quanto para o pensamento científico,
que trabalha com o pressuposto que existem causas para tudo, por isso, julgamos importante
dedicar-se a ela, visto que certas concepções filosóficas tendem a contestá-la colocando em
risco a validade e a objetividade deste princípio metafísico tão significativo para o pensamento
ocidental e para as ciências modernas.
Na verdade como diz Brian Garret a nossa linguagem é rica em discurso casual, pois
constantemente usamos a própria palavra causa em nossos cotidiano e atribuímos isso as coisas,
como por exemplo, fumar causa câncer, suas palavras causaram ofensa – mas também usamos
verbos que pressupõem a causação: eles haviam empurrado o carro. Esses questionamentos
colocam o homem diante de uma realidade metafísica: a natureza da causação. (Cf. GARRETT,
2008, p. 63).
No entanto, com o advento da ciência moderna, houve um afastamento entre a filosofia
aristotélica e outras formas de saberes, passando a negar a metafisica bem como os entes e suas
finalidades intrínsecas em nome de explicações científicas baseadas em leis naturais. O fato é
que ainda hoje é possível fazer uma ciência teleológica sem negar a validade dos outros saberes.
Ora, assim fez Aristóteles, basta analisar suas obras para ver sua abastadíssima abordagem
acerca de tantas realidades presentes na Física, na Biologia, botânica, música, lógica,
astronomia, medicina, dentre tantos:

Aristóteles também argumenta com base na analogia entre natureza e arte: a


arte imita a natureza, e é justamente por meio de procedimentos semelhantes
que chega aos mesmos resultados. Portanto, se há propósito nos produtos da
arte, também deve haver propósito nos produtos da natureza.(FINANCE,
1965, p. 407, tradução nossa).

Essa citação só corrobora o desenvolvimento desta pesquisa, pois temos enfatizado que
a teleologia perpassa todo o pensamento aristotélico. O filósofo parte do dado experimental
81
(aposteriori) do ente singular para explicar que a essência está nas coisas, ou em outras
palavras, a essência de uma coisa estava relacionada ao seu propósito ou função na ordem
natural.
Isso comprova a força de sua doutrina a qual continua a ser uma parte importante da
história da filosofia e da compreensão da natureza e do propósito no mundo natural, com o seu
hilemorfismo teleológico. Aliás, é inegável sua contribuição na formação da ética e da
moralidade em várias tradições filosóficas e religiosas.
Portanto, a causalidade em Aristóteles faz-se necessária não só para uma integrante
abordagem das coisas, mas também ao conhecimento e à explicação do mundo. Ela permite
uma compreensão mais profunda da realidade. Quer identificar as causas corroborando, por
meio de sua investigação filosófica, para a construção e a explicação do conhecimento
cientifico. Dessarte, as noções de causalidade continua a ser uma parte importante da história
da filosofia e da filosofia da ciência.

3.4.1 A convergência das três causas para uma só no livro II da Física

No livro dois da Física aristotélica, a causa final está intimamente ligada à noção de
teleologia, que é a explicação das coisas em termos de seus objetivos ou fins. De fato,
Aristóteles afirma diversas vezes ao longo deste livro que a natureza opera em vista de algo.
Há uma finalidade intrínseca em cada ente para que ele o leva à perfeição ou ao seu fim último.
Diante disso, o filósofo ateniense desenvolve uma série de argumentos acerca da causa final
bem como ela se relaciona com as demais.
O esforço de Aristóteles é fugir, como vimos no decorrer deste trabalho,
especificamente no primeiro capítulo, é fugir das concepções materialistas de alguns de seus
antecedentes, e formular um sistema de causal que explique o movimento do devir com suas
transformações. Para isso ele considera as quatro causas analisando-as em seus aspectos
relacionais. Observa que convergem em uma só a causa formal, final e eficiente:

Uma vez que as causas são quatro compete ao estudioso da natureza conhecer
todas, e ele há de explicar o porquê de maneira própria à ciência natural na
medida em que se reportar a todas elas, a matéria, a forma, aquilo que movem,
aquilo em vista de quê. Mas, muitas vezes, estas três convergem para uma só:
o ‘ que é’ e aquilo em vista de quê são uma só, e lhes é especificamente
idêntico aquilo de que precede primeiramente o movimento, pois é o homem
que gera um homem [...].” (ARISTÓTELES. Física, 198ª 22-24).

Nesta argumentação do filósofo, percebe uma certa tendência de Aristóteles em reduzir


as três causas em uma só: “o que é”, pode pressupor que ele esteja se referindo à causa formal,
82
“em vista de quê”, pode implicar que seja a causa final e a eficiente quando diz “é
especificamente idêntico aquilo de que precede primeiramente o movimento”. Dá a entender
que elas são da mesma natureza. Todavia, o argumento do texto não é claro, por exemplo, quais
causas estão sendo reduzidas a qual? Há uma forma mais plausível de interpretar o texto: não é
sob a mesma descrição que se reportam à mesma coisa.
Na verdade, ele radicaliza dizendo que a causa final bem com a causa eficiente se
relacionam com a causa final. Em certo sentido, o fim assume o papel da causa formal, por
isso, ela deve ter atenção maior porque é a causa da matéria, não o inverso. De fato, é bem
típico do pensamento aristotélico nas palavras de José de Finance que “tudo o que existe, existe
por um fim.” (FINANCE, 1965, p. 412, tradução nossa), entretanto, não exclui as outras causas.
Ainda no pensamento de Finance:

[...] e é verdade que a causa final, assim como a causa eficiente, se encontra
em Aristóteles, muito próxima da causa formal. A forma é representada como
algo divino, objeto do “desejo” da matéria, ao mesmo tempo agente e fim da
geração. até certo ponto, desempenha o papel da Ideia. Por outro lado, o
filósofo tem prazer em definir os seres pela sua função: agora, então, o fim,
ou melhor, a relação com o fim, desempenha o papel de causa formal. (Ibid.,
p. 407, tradução nossa).

Essa citação leva-nos a duas conclusões, a primeira é que dentre as quatro causas,
material, formal e eficiente, a causa final tem primazia ontológica, encontra-se em um grau
elevado; a segunda é que essa superioridade (da causa final) se dá por meio de uma perfeita
relação. Dito de outro modo, embora o fim esteja em outro patamar em relação às outras causas,
há uma dependência ontológica. Essa realidade é inegável quando na própria citação vemos:
que a causa final, assim como a causa eficiente, se encontra em Aristóteles, muito próxima da
causa formal, enquanto a forma é “desejada” pela matéria. Isso significa que a matéria está
teleologicamente organizada e estruturada em vista de um acabamento, e apesar de o fim não
ser possível sem ela, o fim não é devido a ela:

Pois bem: é manifesto que, vê nas coisas naturais, o que é necessário é aquilo
que nos referimos como matéria, bem como os movimentos dela. E ambas as
causas devem ser enunciadas pelo estudioso da natureza, mas, sobretudo, a em
vista de quê, pois ela é causa responsável pela matéria, ao passo que esta
última não é causa responsável pelo acabamento. E o acabamento é aquilo em
vista de quê, assim como é o princípio pela definição e pelo anunciado [...]
(ARISTÓTELES, Física, II, 9 200ª 30).

83
Essa citação corrobora o que foi argumentado anteriormente e confere duas coisas: que
a causa final é responsável pela matéria; e que a causa final não fica preso à matéria. Em outros
termos, a teleologia33 depende da matéria necessariamente, mas não fica preso a ela. A causa
final é superior àquilo que é potência e indeterminação, matéria. De fato, a matéria é vista como
potência ou possibilidade; enquanto o ato é visto como perfeição ou acabamento. Isso foi bem
colocado no primeiro capítulo.
Isto posto, o finalismo estaria presente em toda a criação, não somente em coisas que
possam pressupor deliberação, razão. Aristóteles acreditava, por exemplo, que os organismos
naturais, como plantas e animais, eram governados por causas finais, e que cada parte do
organismo contribuía para a sua função global. Assim, as folhas de uma planta existem para
capturar a luz solar e realizar a fotossíntese, e os órgãos de um animal existem para cumprir
funções específicas que ajudam na sobrevivência e reprodução. Dessa maneira, todo esse
processo uma vez acabado chega a perfeição do entes, embora eles não tenham a consciência
de tal processo:

A causa final tem razão de bem: o fim é aquilo em que repousa o apetite, o
que satisfaz uma determinada inclinação: assim, o desejo de saber repousa
quando a ciência é alcançada, que é o seu fim. O fim de qualquer tendência
constitui uma perfeição para o seu sujeito. Se o fim atrai, é precisamente
porque é bom e porque, como tal, pode aperfeiçoar outros. (ALVIRA;
CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 242, grifos do autor).

É bem típico do pensamento aristotélico atribui o bem como sendo a causa final de tudo.
O bem enquanto perfeição, ação executada. Quando um determinado ente realiza uma ação
atingiu sua perfeição. Obviamente que isso se dá em graus de perfeição. Isso significa que o
fim não só é bom, mas também que ele transmite sua bondade que se dá no aperfeiçoando.
Alcançar o fim ou objetivo último de algo é uma realização positiva e a causa final tem uma
razão de bem, pois representa a finalidade ou objetivo que determina o valor intrínseco das
coisas.

33
A noção de teleologia, finalidade, evoca a de entelequia ou enteléquia. Expressão, que na, filosofia aristotélica,
significa realização plena e completa de uma tendência, potencialidade ou finalidade natural, concluindo um
processo transformativo de todo e qualquer ser animado ou inanimado do universo. Em outros termos, é o
caminho natural que um determinado ente percorre para chegar a tal objetivo, propósito que o impulsionou a
agir, executar uma ação. Trata-se, portanto, de um ser em ato, isto é, plenamente realizado, em oposição ao ser
em potência. (Cf. ABBAGNANO, 2007, p. 334). Conforme Frederick Copleston Aristóteles “através de sua
teoria da enteléquia, da forma substancial imanente, que tende à sua realização nos processos da natureza, pôde
dar um sentido e uma realidade ao mundo sensível que faltavam a filosofia de Platão, e que sua particular
contribuição à filosofia dá um tom e sabor característico ao aristotelismo enquanto distinto do platonismo. (Cf.
COPLESTON, 2021, p. 366).
84
Por isto, que há verdadeiramente uma necessidade de afirmar a causa final34 como sendo
a raiz do conhecimento mesmo que esse se trate de uma realidade de difícil compreensão. Mas,
é neste prisma que sobressai a importância do princípio da causalidade que se faz presente em
todo cosmos nos diversos fenômenos de ação e reação:

Perceber a causalidade, de todos os modos, não significa compreendê-la


exaustivamente; conhecemos que existem causas e que significa causar, mas
nem por isso temos uma ciência perfeita da causa. Ocorre aqui algo parecido
ao que sucede com o ser das coisas, no que a causalidade se funda: se trata de
uma realidade profunda, e a imperfeição de nosso entendimento impede
esgotar sua inteligibilidade. (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p.
199-200, tradução nossa).

Evidentemente, não conseguimos compreender claramente a causalidade, visto que ela


vai além de nossa capacidade intelectual. Ela sobressai também toda dimensão sensível, mesmo
que se manifeste nela através dos fenômenos de causas e efeitos os quais estão intrinsecamente
unidos a ponto de afirmarmos que ambos se requerem mutuamente; e de não poder entender
um sem o outro.
É inegável que a toda ação humana se funda neste influxo causal. Assim, a causalidade
é uma exigência da razão35; ela se faz necessário para construir qualquer conhecimento. E,
mesmo que os sentidos não consigam retirar da experiência36 esse conceito, o intelecto o abstrai,

34
Caso o leitor queira se aprofundar na causa final ou teleológica ver O De Anima que se tata de uma obra de
Aristóteles na qual ele elabora toda uma teoria bastante complexa sobre a alma enfatizando os aspectos
teleológicos de sua filosofia da natureza. Adota o uso das causas finais na natureza o que não era presente na
filosofia dos materialistas. Esta obra é sistematizada em três livros. O filósofo Estagirita aprofunda a noção de
alma e suas funções teleológicas colocando-a como causa e princípio do ser vivente. Façamos uma análise mais
minuciosa: “E, do corpo vivente, a alma causa e princípio. E estes se dizem de muitos modos, mas a alma é
semelhantemente causa conforme três dos modos delimitados: pois ela é aquilo de onde o movimento bem como
aquilo em vista de quê, e também como essência dos corpos animados a alma é causa. Ora, que ela é causa como
essência, é evidente: pois, para todos os antes, o responsável pelo ser é a essência, e o ser para os que vivem e o
viver, e deste, é a alma que é causa e princípio.” (Ibid., 415b 8, grifos do autor). Ainda, no De Anima, defende
sua teoria teleológica, mais precisamente no livro dois, ao argumentar sobre os dois sentidos “em vista de quê:
(i) como em direção a algo; (i) como para o benefício de algo. Notoriamente alma é tida como uma causa final
de tipo (i): ou seja, as diversas capacidades da alma são em direção a algo, à sua função.(Cf. Ibid., 415ª 22).
35
O pensamento de Aristóteles é que todos não fiquem simplesmente na imanência, quer dizer, na experiência
sensível, mas convidando-os a transcender o mundo empírico para construir um saber sistemático, não
desprezando, evidentemente, o sensível, mas ultrapassando-o. Esse processo só é possível adquirindo a ciência
das causas primeiras e últimas. De fato, é próprio do intelecto humano conhecer por meio dos entes materiais,
marcados de acidentes, a essência das coisas. Apesar de o conhecimento sensível e o intelectual não serem a
mesma coisa, eles não devem ser separados, pois entre o conhecimento sensível e o intelectual há distinção, mas
não separação; existe unidade, mas não identificação.
36
Aristóteles muitas vezes é apresentado como empirista. No entanto, não entendamos o termo “empirista” no
sentido moderno, pejorativo no qual reduz todo conhecimento à mera experiência (que iremos ver mais adiante).
Aristóteles reconhece que a essência se encontra nas coisas particulares (CHAUÍ, 2000, p. 276) que Platão
discordara - E o homem, uma vez as conhecendo, dá um salto qualitativo, ou seja, do ente particular fica com o
conceito universal. Este não é aceito pelos empiristas modernos.
85
tal precioso conceito: “[...] quando a causa não é manifesta na experiência, deve ser afirmada
pela razão.” (SELVAGGI, 1988, p. 314).
Se estivermos passando por um determinado lugar e nos depararmos com um grande
estouro, automaticamente a nossa razão quer procurar a causa de tal fenômeno, nossa reação
seria: O que aconteceu?! O que foi isso?! Ora, procurar o motivo de algo é procurar sua causa.
As causas são as condições para que o filósofo construa seu conhecimento sob uma
estrutura lógica, também constituem um edifício no qual o conhecimento é construído. Dessa
forma, conhecer a causa é conhecer o porquê que explica a necessidade de a coisa ser como ela
é; de sua existência, visto que todos os seres presentes na natureza não têm em si mesmos a
razão suficiente.
Em outras palavras, no mundo os entes são contingentes, quer dizer, não são causas de
si mesmos, dependem de circunstâncias para atualizarem suas potências. Consequentemente
necessitando de um princípio que seja exterior a si que deve ser responsável pelo seu ato pela
sua origem. Isso só ratifica a perfeição do princípio de causalidade aplicada ao ser, reveste de
grande importância porque o contingente exige uma causa realmente distinta dele:

Tudo o que existe ou passa a existir deve ter uma razão que explique a sua
existência ou a sua chegada, razão essa que se encontra no ser considerado ou
fora dele. No primeiro caso, o ser, por possuir em sua natureza tudo o que
necessita para existir, existe necessariamente. No segundo caso, a existência
do ser é contingente: por si só, esse ser não tem o que precisa para existir. Daí
a conclusão: todo ser contingente requer, para ser, uma causa.
Especifiquemos: uma causa eficiente, porque é somente através da causa
eficiente que as outras (a final e a exemplar) exercem a sua influência.
(FINANCE, 1965, p. 361, tradução nossa).

Assim sendo, como diz José de Finance tudo o que existe ou passa a existir deve ter
uma razão que explique a sua existência, visto que se trata de uma realidade contingente
necessita de uma causa eficiente para exercer influência sobre ele. Seria inconcebível que uma
determinada coisa enquanto potência, por exemplo, uma madeira, chegasse a ser mesa sozinha,
quer dizer, fosse a causa de sua própria atualização ou perfeição.
Portanto, ainda que a causalidade aristotélica tivesse sido revista e criticada ao longo
dos séculos por várias correntes filosóficas, é inegável sua contribuição filosófica como o
alicerce para o mundo ocidental. Deste modo, no pensamento aristotélico, a causa final é vista
não só como uma explicação profunda e ampla da realidade, mas também se relacionado a todas
as outras causas. Ela fornece o propósito objetivo pelo qual algo existe.

86
Todavia, a ênfase na causa final não significa que Aristóteles negligenciou as outras
causas material, formal e eficiente, mas ele considerava a causa final como a mais elevada e
significativa afinal. Era ela que atribuía, como bem foi exposto, propósito e direção à realidade
unindo o mundo natural com a ideia de um propósito universal e uma ordem intrínseca.
Portanto, entender as causas finais é fundamental para cumprir a natureza e o
funcionamento das coisas. Pode-se afirmar que a natureza opera teleologicamente, isto é, todas
as coisas têm uma finalidade intrínseca que as orienta vai alcançar seu pleno desenvolvimento
cumprindo assim seu objetivo.

3.5 A NECESSIDADE DA CAUSA FINAL

Vimos na sessão anterior como se dá a conexão entre as causas e como a causa final
sobressai. Há, de fato, uma necessidade da causa final para a efetivação das demais, embora
todas estejam entrelaçadas. Observa-se nos exemplos dados e na argumentabilidade que uma
relação de subordinação entre a causa final para com as outras.
O finalismo aristotélico é, sem dúvida, apropriado e necessário para entender
completamente a existência de uma coisa ou fenômeno particular. As causas materiais e formais
por si só não são suficientes para fornecer uma explicação completa de um ente, assim a causa
a causa final desempenha um papel único na compreensão do para quê e do propósito
subjacente. Ela está intrinsecamente relacionado ao fenômeno e análise explicite como
propósito ou objetivo contribui para a compreensão do fenômeno.
Aristóteles trata da causa final em sua obra De Anima refere-se à finalidade ou propósito
pelo qual a alma existe e exerce suas funções específicas. É um conceito que destaca a
importância de entender não apenas a estrutura e o funcionamento das coisas, mas também o
porquê por trás delas, ou seja, a finalidade que guia suas ações e característica. Ela está
intrinsecamente ligada à natureza de algo e ao seu funcionamento. Como vimos, o filósofo
defende aplicação de causas teleológicas no domínio da natureza contra a teoria dos
materialistas que não reconhecia tais causas. Isso significa que todos os entes operam
teleologicamente.
É inegável como diz Frederick Copleston que Aristóteles contribuiu para o
desenvolvimento da filosofia da natureza por intermédio da doutrina da essência imanente
como uma síntese da doutrina platônica da essência transcendental bem como com a noção de

87
finalidade, colocando-a em nível superior às demais. Assim, a natureza segue uma finalidade
e o próprio fim do homem é uma atividade. (Cf. COPLESTON, 2021, p. 366).
Na Metafísica, ao falar dos sentidos de perfeição, trata desta como finalidade, quer dizer,
são perfeitas as coisas que tendem para um fim, a perfeição é vista como alcance de um fim,
este é “o propósito último das coisas”. (ARISTÓTELES, Metafísica 1021b 23-25). A
necessidade da causalidade em Aristóteles pode ser observada em vários aspectos de sua
filosofia. Sendo possível sua aplicação à biologia, a ética, bem como na própria filosofia da
natureza.
Pode-se argumentar sobre a necessidade da causa final sem negar as demais de várias
maneiras, dentre elas, destacam-se: Explicação abrangente, Compreensão das mudanças,
Explicação teleológica, Ênfase na essência, Compatibilidade empírica, Influência na Ética e
na Política, na compreensão dos fenômenos abstratos e na visão científica do mundo.
Passemos a considerá-las, sem a pretensão de querer esgotar a noção aristotélica de
causa final, senão analisá-la para perceber como é uma condição sine qua non para entender
com propriedade uma determinada coisa ou fenômeno.

3.5.1 Explicação abrangente

Significa que as quatro causas oferecem uma explicação profunda e holística da natureza
em sua complexidade. E a causa final tem um aspecto bastante peculiar pois analisa um
determinado objeto considerando-o não só em seus aspectos materiais e formais, mas também
os teleológicos, ao passo que a finalidade natural exige uma inteligência ordenadora. (Cf.
ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 249).
Consequentemente a abordagem do finalismo auxilia na compreensão das mudanças.
Quer dizer, outro argumento a favor da necessidade da causalidade final aristotélica é que ela é
útil para explicar mudanças e transformações: a causa material lida com substrato físico, a causa
formal descreve a mudança na forma (essência), a causa eficiente é tomada pela causa final
fazendo com que o move o agente execute uma determinada ação.
Também é indubitável que o fim na perspectiva aristotélica pode ser aplicado à Filosofia
da Natureza bem como na Ciências Biológicas. O próprio Aristóteles argumentou que todos os
eventos naturais tinham causas que podiam ser identificadas e explicadas a partir da sua
cosmovisão teleológica de mundo que oferecia um explicar o funcionamento dos seres vivos e
como há neles um propósito que os direcionavam para a realização mais plena, alcançando

88
assim a perfeição. Assim sendo, por meio do desenvolvimento de suas potencialidades eram
capazes de cumprir suas funções biológicas.

3.5.2 Explicação teleológica

Aqui nos deparamos com a riqueza da doutrina sobre o finalismo. Pode-se dizer que é o
coração de todo pensamento aristotélico. Dessa forma, a causa final em sua peculiaridade
destaca que os objetos naturais têm um propósito intrínseco, o “para quê “ das coisas levando a
uma compreensão mais profunda e significativa do mundo natural. Como diz Santo Tomás de
Aquino: “o fim é encontrado no começo de toda causalidade; é a causa das causas . (SANTO
TOMÁS DE AQUINO apud FINACE, 1965, p. 425, tradução nossa).
É importante ter ciência que o fim adota uma multiplicidade de formas, de acordo com
o aspecto sob o qual é considerado. Dessa maneira, há fim intrínseco e transcendental, fim
último e fins próximos, fim honesto, deleitável e útil, fim produzido e fim possuído. (Cf.
ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 244). Analisemos, portanto, os tipos de causa
final.
a) Fim intrínseco e transcendental. “O fim intrínseco de uma operação é o resultado
natural da operação.” (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 2001, p. 243). Quer dizer, é o fim
efeito enquanto é produto da própria ação. Por exemplo, a causa da ebulição é a vaporização,
o aumento da temperatura da água é o fim da ação do fogo sobre ela, como também a obra do
carpinteiro é a mesa que ele produziu com seu trabalho. Já o fim transcendental se refere ao
objetivo ou propósito para o qual a ação está dirigida, como por exemplo, de um cão que mesmo
por instinto vai a um lugar concreto em busca de comida. Ora, a alimentação é fim rem relação
à ação de caminhar. Ele caminhou em vista disso, embora essa ação não tenha sido deliberada.
Todavia, quando se trata de seres livres, ou seja, fins conscientes, é as vexes furto da escolha,
pois se deu no campo da vontade. (Cf. Ibid. p. 243).
b) Fim último e fins próximos. É importante compreender que se entende fim último e
fins próximos por meio de uma sequência de causas finais que estão correlacionadas. Sendo
assim: “Fim último é aquele pelo qual se entendem todos os demais fins de uma determinada
área, fim próximo, por outro lado, é aquele que se destina em vista de outro fim ulterior.”
(ALVIRA; CLAVELL; MELENDO, 200, p. 244), como por exemplo, a paz perdida por causa
da guerra é a causa final de um exército, as vitórias parciais são fins próximos. (Cf. Ibid., p.
244).

89
c) Fim honesto, deleitável e útil. Está no campo da ética e da moral, é deleitável e útil.
O fim honesto é “aquele que se quer em si mesmo, enquanto é efetivamente bom para o ente
que o deseja.” (Ibid., p. 244). O bem deleitável é o mesmo bem honesto enquanto traz gozo. Já
o bem útil é o bem que se quer por meio, quer dizer, não por si mesmo. Como exemplo, temos
a medicina. Esta é um bem útil, porém não se quer por si mesma, mas em vista do bem corporal.
E a satisfação produzida, a cura, a paz são bens deleitáveis. (Cf. Ibid., p. 244).
d) Fim produzido e fim possuído. Trata-se da produção e da relação. O primeiro se
refere à perfeição do agente; o segundo se refere ao desejo ou apetite do agente. Estão
relacionados às ações que tem como resultado um objeto que antes não existia (fim produzido),
como por exemplo um artista que faz uma determinada arte, ele é causa dessa obra, é autor
desse fim. Também há casos em que se relaciona com uma realidade já existente (fim possuído),
logo, não é fruto de sua ação. É o caso de um homem que ama outra pessoa por meio do
movimento da vontade, mas não a cria, não é produção sua. (Cf. Ibid., p. 244).
Portanto, a explicação teleológica é fundamental para argumentar sobre a necessidade
da causa final, visto que porque influencia significativamente não só o pensamento filosófico,
mas também científico e ético ao longo da história e continua a ser objeto de estudo e debate
nos dias de hoje. Oferece uma perspectiva única sobre a natureza e a finalidade das coisas no
cosmos, explica com mais exatidão o mundo natural.

3.5.3 Ênfase na essência

Significa que a causa final se volta para a essência de ente, isto é sua análise vai além
das causas imediatas ou observáveis, mas busca compreender a verdadeira natureza de uma
coisa. Trata-se, portanto da razão ou do porquê de o agente agir de tal forma. É questionar as
demais causas, por exemplo, o motivo de uma estátua ser de bronze e não ficar meramente em
seus aspectos acidentais ou circunstancias. Pelo contrário, ao focar na essência, o indivíduo é
capaz de transcender toda realidade empírica e conhecer as coisas com clareza:

A doutrina de Aristóteles demonstra a estreita conexão entre a noção de causa


e a de substância. A causa é o princípio de inteligibilidade porque
compreender a causa significa compreender a organização interna de uma
substância, isto é, a razão pela qual uma substância qualquer (p. ex., o homem,
Deus ou a pedra) é o que é e não pode ser ou agir diferentemente P. ex., se o
homem é "animal racional", o que ele é ou faz depende da sua substância assim
definida, que opera como força irresistível para produzir as determinações do
seu ser e do seu agir. (ABBAGNANO, 2007, p. 125).

90
Nessa citação, percebe-se a relação intrínseca entre causa e substância (essência) quando
se diz que a causa é o princípio de inteligibilidade e compreendê-la significa compreender a
organização interna de uma substância. Isso significa que por meio da causa o homem é capaz
conhecer não só as coisas, mas também sua natureza, quer dizer, seu agir.
Com efeito, fazendo o uso do finalismo aristotélico se pode chegar a uma compreensão
mais integral dos entes e de suas propriedades essenciais. Assim, a causa final aponta para a
perfeição, o em vista de quê das coisas considerando-as em sentido último. Portanto, a causa é
“a forma ou o modelo, isto é, a essência necessária ou substância de uma coisa.” (Cf. Ibid., p.
125). E a causa final sobressai, ela é a causa primeira e fundamental, um porquê privilegiado,
que é dado pela essência racional da coisa, pela substância. (Cf. ARISTÓTELES DA I, 1, 639b
14 apud ABBAGNANO, 2007, p. 125).

3.5.4 Compatibilidade empírica

Apesar de o filósofo David Hume37, como a tradição tem mostrado, questionar a noção
tradicional de causalidade argumentando que não podemos conhecer a relação causal entre
eventos por meio da razão pura, a causalidade aristotélica pode contribuir efetivamente com a
observação empírica. Ela pode ajudar a interpretar os dados observacionais de maneira mais
profunda e a revelar padrões que podem ser negligenciados por abordagens mais superficiais
que a ciência por si só não consegue.

37
Embora a causalidade seja uma verdade evidente ao intelecto humano (ALVIRA; CLAVELL; MELENDO,
2001, p. 199) ela foi negada por várias correntes filosóficas dentre elas, destaca-se o Empirismo o qual consiste
segundo Antônio Joaquim, numa “teoria epistemológica que a firma a radical derivação, direta ou indireta, de
todo conhecimento da experiência sensível, seja ela interna ou externa.” (JOAQUIM, 2007, p.108). David Hume,
um filósofo escocês do século XVIII, é conhecido por suas contribuições à filosofia empirista e à epistemologia.
Ele também abordou o conceito de causalidade em suas obras, particularmente em sua obra "Investigação sobre
o Entendimento Humano" (An Enquiry Concerning Human Understanding). Uma de suas ideias centrais é sua
"tese da uniformidade da natureza" onde observou que a crença na causalidade é baseada na nossa experiência
constante de certos eventos seguindo padrões previsíveis. Por exemplo, quando vemos um evento A seguido
repetidamente por um evento B, começamos a esperar que, quando ocorre o evento A novamente, o evento B
também ocorrerá. Todavia, ele não negou a causalidade, mas sim desafiou nossa compreensão e capacidade de
fundamentá-la de maneira sólida e absoluta. Argumentou que não temos uma justificação lógica ou empírica
para acreditar que essa sequência de eventos continuará ocorrendo no futuro. Nossa mente, conforme sua
doutrina, tende a criar uma associação habitual entre os eventos, mas isso não nos permite afirmar com certeza
que a causalidade é uma propriedade objetiva do mundo. Hume destacou que a causalidade não é algo que
possamos perceber diretamente com nossos sentidos, mas sim uma inferência mental que fazemos com base em
nossa experiência passada. O fato é que, embora, o princípio da razão suficiente esteja presente em todo cosmos,
ele não se submete à demonstração empírica, pois é evidente à razão. Contudo, isso não nos leva a deduzir que
ele não seja válido ao conhecimento humano, como pretendeu Hume. Como não faz parte desta pesquisa, não
iremos abordar a teoria humeana, entretanto, caso o leitor queira se aprofundar nesta temática, ver: BERKELEY,
George. Tratado sobre os princípios do conhecimento humano; Três diálogos entre Hilas e Filonous em oposição
aos céticos e ateus; HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano: Ensaios morais, políticos e
literários. Traduções de Antônio Sérgio... et al. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
91
Sendo assim, é possível existir uma perfeita harmonia e complementariedade entre a
causalidade e o conhecimento empírico até porque toda estrutura do pensamento aristotélico
parte da observação e da afirmação que a essencial dos entes encontram neles mesmos.
Efetivamente, a própria experiência leva a razão a chegar ao conhecimento da causação por
meio de ações cotidianas, também a própria existência do homem prova que ele é causado, pois
como diz Jose de Finance: “sempre que a existência começa, é preciso afirmar que é causada.”
(FINANCE, 1965, p. 360, tradução nossa).
São muitos os argumentos a favor da compatibilidade empírica entre experiência e
causalidade, como a contingência dos entes, as mudanças que ocorrem no cosmos, as
experiências que a pessoa humana realiza e tem consciência que são efeitos causais bem como
a própria experiência da finitude, da limitação corrobora a existência e validade desse princípio.

3.5.5 Influência na Ética e na Política

Outro argumento a favor da necessidade do finalismo aristotélico encontra-se na ética e


na política. Deveras a noção de causa final traz implicações para o campo ético e moral, visto
que o fim é o bem e não o desejar seria ferir a natureza da própria bondade. O primeiro conceito
de política foi exposto em Ética, de Aristóteles. (Cf. ABBAGNANO, 2007, p.773). Ele
argumentava que os seres humanos tinham um propósito final de alcançar a felicidade
(eudaimonia) e que a ética e a política deveriam ser orientadas para esse fim.
Deste modo, eudaimonia era vista como causa final deste homem da pólis. Era a
perfeição, estado de plenitude, realização e felicidade que as pessoas deveriam buscar alcançar
ao longo de suas vidas, por isso que a ética aristotélica é muitas vezes descrita como uma ética
teleológica, se concentra nos fins e objetivos das ações humanas. Sendo assim, Aristóteles,
“insistiu no caráter contemplativo da felicidade em seu grau superior, a bem-aventurança.”
(Ibid., p. 434). A felicidade é, portanto, algo absoluto e autossuficiente sendo também a
finalidade da ação. É a busca da realização mais alta e duradoura, que é alcançada por meio da
prática da virtude moral:

[...] autossuficiente pode ser definido como aquilo que, em si, torna a vida
desejável por não ser carente de coisa alguma, e isto em nossa opinião é a
felicidade; ademais, julgamos a mais desejável de todas as coisas não uma
coisa considerada boa em correlação com outras - se fosse assim ela se tornaria
obviamente mais desejável mediante a adição até do menor dos bens, pois esta
adição resultaria em um bem total maior, e em termos de bens o maior é
sempre mais desejável. Logo, a felicidade é algo final e autossuficiente, e é o
fim a que visam as ações. (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco 1097b ).

92
Desta forma, a felicidade é a finalidade de todas as coisas, logo, um bem supremo
realizável pelo homem. Ela é autossuficiente, mas não no sentido isolado, senão como a própria
citação confere: autossuficiente pode ser definido como aquilo que, em si, torna a vida desejável
por não ser carente de coisa alguma. Esta é alcançada por meio da prática das virtudes que se
dá no cotidiano por meio do exercício ativo das faculdades da alma. (Cf. Ibid., 1098ª).
Portanto, para o Estagirita, a eudaimonia era uma atividade contínua pela busca da
felicidade que envolve as atividades intelectuais e morais ao longo da vida, buscando sempre
melhorar e aprimorar as virtudes pessoais. Está intrinsecamente ligada à virtude e à excelência
moral (aretê).

3.5.6 Na aplicação de fenômenos ou coisas abstratos

O uso das causas, e neste caso a causa final, auxilia à compreensão de fenômenos
abstratos. Tomemos como exemplo um eclipse e a matemática para aplicar as quatro causas
aristotélicas, assuntos tratados por Aristóteles no livro dois da física, no capítulo cinco.
Veremos que é possível visto que não se trata de olhá-las isoladamente, senão um conjunto de
causas que contribuem para a cognoscibilidade das coisas. É importante salientar duas coisas:
que o fim não se reduz à aplicabilidade ou funcionalidade, como vimos, também que é possível
alguma coisa ser em vista de algo, embora não tenha agido deliberadamente.
Continuemos nossa argumentabilidade sobre o eclipse que pode ser definido como
“privação da luz na lua devido à interposição da Terra.” (Cf. ARISTÓTELES apud ANGIONI,
2009, p. 287-288). Pensemos que a causa material de um eclipse solar é a interposição da Lua
entre a Terra e o Sol. A Lua, como um objeto físico, constitui a matéria que está envolvida nesse
fenômeno. A causa formal: A causa formal está relacionada à configuração específica da
interposição da Lua entre a Terra e o Sol. A forma particular como a Lua se alinha com o Sol e
a Terra determina a aparência e as características do eclipse.
Já causa eficiente são os movimentos orbitais da Terra, da Lua e do Sol. Trata-se,
portanto, da interação gravitacional e orbital entre esses corpos celestes que resulta na posição
da Lua bloqueando parcial ou completamente a luz do Sol. Mas a causa final, qual seria para
fazer jus a teoria hilemórfica teleológica deste filósofo? Ora, no caso de um eclipse solar, não
se trata necessariamente de um propósito consciente, mas sim da expressão das leis naturais e
das relações entre os corpos celestes conforme o funcionamento do sistema solar, também não
ocorre sempre.

93
No entanto, poderia dizer que a causa final seria esse fenômeno ocorrido, quer dizer,
seu acabamento. De fato , o próprio Aristóteles em Física 194ª 27-36, enquadra a causa final
como o bom fim. Argumenta que a deliberação do agente envolvido não é condição necessária
para o caráter teleológico de um determinado processo. Dito de outro modo, pelo fato de não
haver um proposito consciente no eclipse não significa que ele não tenha um fim. Aristóteles
reconhecia que nem todos os eventos naturais eram governados por um propósito intrínseco ou
finalidade. Sendo assim os eclipses são fenômenos naturais que ocorrem devido às posições
relativas da Terra da lua e do Sol eles podem ser atrás das leis da física e da astronomia.
Assim, o eclipse se enquadra nesta explicação, conforme Lucas Angioni:

Aristóteles afirma que “A ocorre sempre ou necessariamente da mesma


maneira”, mas isso não quer dizer que “A existe eternamente nem toda a
duração, da mesma maneira”. O termo A é modo abreviado de exprimir uma
relação causal ou uma relação atributiva: “o eclipse sempre ocorre do mesmo
modo” não quer dizer que o eclipse existe sempre. (ARISTÓTELES apud
ANGIONI, 2009, p. 287, grifos do autor).

Nesse caso uma relação causal atributiva envolve atribuir um fator como uma
contribuição para um resultado, mas não necessariamente como a causa única ou a principal
desse resultado, ou seja, não necessariamente implica uma relação de causa e efeito direta. Por
exemplo, se alguém disser que a alta taxa de criminalidade em uma área é atribuída à falta de
oportunidades de emprego, isso sugere uma relação atributiva. A falta de oportunidades de
emprego é atribuída como um dos fatores que contribuem para a alta taxa de criminalidade, mas
não necessariamente implica que a falta de emprego seja a causa única ou direta da
criminalidade.
Logo, destes argumentos resulta que é importante notar que as quatro causas
aristotélicas procuram oferecer uma explicação abrangente e holística, considerando todos os
aspectos do fenômeno em questão. Sendo assim, em um eclipse solar, todas essas causas
interagem para produzir o evento observado. Isso significa que embora não ocorra sempre
eclipse, não significa que ele não exista, como também não se pode afirmar que ele sempre
existe. Todavia, uma vez ocorrendo esse fenômeno atingiria sua perfeição como acabamento,
ato.38

38
Caso o leitor queira se aprofundar nesta temática, ver: Segundos Analíticos 75b 34-5, (em grego, Ἀναλυτικῶν
προτέρων) onde Aristóteles desenvolver toda uma argumentabilidade.
94
Quanto à matemática. É no mesmo raciocínio: abordagem das quatro causas de
Aristóteles não se aplica diretamente à matemática39 da mesma maneira que se aplica à filosofia
natural. Isso ocorre porque a matemática lida com objetos abstratos e relações formais, que não
têm a mesma natureza material e causal que os objetos naturais.
Portanto, a riqueza da complexidade da causalidade é que ela pode oferecer uma
explicação dos eventos naturais e objetos do mundo físico. Além disso, o enfoque nas causas
pode levar a uma compreensão mais simplificada ou incompleta de certos fenômenos
complexos.

3.5.7 Na compreensão científica do mundo

A ciência trabalha com pressupostos que existem causas neste mundo. Ela analisa os
fenômenos naturais buscando minuciosamente as respostas ou simplesmente as causas deles
para depois formar as leis. Dessa forma, negá-las é negar a própria ciência, sua capacidade de
usufruir da natureza. Afinal, negá-la é negar explicitamente toda validade da ciência, pois esta
trabalha com pressupostos que existem causas para tudo que por mais que não sejam de cunho
metafísico, é incapaz de se separar dela.
Analisa também os fenômenos naturais buscando minuciosamente as respostas ou
simplesmente as causas deles para depois formar as leis. Ela faz todo esse percurso com o
objetivo de melhorias para as relações humanas. Assim, o médico quer descobrir a causa de tal
doença que se manifesta num determinado paciente causando reações ou efeitos desagradáveis
a ele.
E quando ele passa qualquer medicação, esta pode causar reações ou efeitos colaterais
diversos no paciente tais como: sonolência, náusea, problemas intestinais, entre outros. Ora, é
inegável que tudo isso foi devido à medicação. O paciente está totalmente lúcido, consciente de
que não é fruto de sua imaginação, mas algo que ele mesmo pôde sentir.

39
No entanto, podemos fazer uma analogia para ilustrar como as quatro causas podem ser interpretadas em relação
à matemática: Causa Material: Nesse contexto, a "causa material" pode ser vista como os elementos numéricos
que compõem uma expressão matemática. Por exemplo, nos números que compõem uma equação ou fórmula.
Causa Formal: A "causa formal" na matemática pode ser entendida como a estrutura e as relações formais entre
os elementos numéricos. É a forma como esses números estão organizados e relacionados. Causa Eficiente: Na
matemática, a "causa eficiente" poderia ser associada aos processos de cálculo e dedução que levam a resultados
matemáticos. Os métodos, algoritmos e procedimentos que usamos para chegar a conclusões matemáticas. Causa
Final: A "causa final" na matemática não tem o mesmo significado que nas ciências naturais. No entanto, pode
ser interpretada como os objetivos ou propósitos matemáticos subjacentes. Por exemplo, resolver um problema
específico, explorar relações entre números ou demonstrar uma teoria. Lembrando que essa analogia é uma
interpretação abstrata e adaptada da abordagem das quatro causas de Aristóteles ao contexto da matemática. A
matemática é uma disciplina que se concentra em relações formais e abstratas, não envolvendo os mesmos tipos
de causas que ocorrem nos fenômenos naturais. Portanto, a aplicação direta das quatro causas à matemática pode
ser considerada uma metáfora ou uma analogia.
95
Da mesma forma, a gravidade descoberta e explicada por Newton é a causa da
estabilidade das coisas. A seleção natural é a causa da evolução das espécies encontrada por
Darwin. Compreende-se, aliás, que esse princípio não é só objeto da razão, mas da própria
ciência, “ora, para agir sobre a natureza é preciso conhecer as causas que podem exercitar uma
determinada atividade, modificar o curso dos eventos e produzir os efeitos que se querem.”
(SELVAGGI, 1988, p. 315).
Portanto, é somente por meio das causas que o homem pode usufruir da natureza,
questioná-la e analisá-la, procurando respostas aos seus questionamentos. O método científico
tem como elemento primordial a causalidade. Esta se encontra em todo cosmos e somente por
ela o conhecimento pode ser construído. Contudo, esse princípio não depende do meio
empírico, não se constata de forma direta. Todavia, isso não justifica que ele não exista, ou não
seja útil. Decerto, a realidade não se reduz à visibilidade. 40.
Embora a ciência tenda a enfatizar mais as causas eficientes e materiais, buscando
explicar os eventos em termos de relações causais observáveis e mensuráveis, a noção de
causalidade auxilia na crescente compreensão científica do mundo. Fazendo com que om
conhecimento cientifico avance pois a doutrina causal aristotélica encaixa melhor em uma
compreensão científica do mundo, onde a teleologia (enfoque nas causas finais) explica a
finalidade das coisas e a perfeita conexão entre as causas.

3.6 INFLUÊNCIA DA CAUSALIDADE EM ALGUNS ÂMBITOS

Não se pode negar uma vasta contribuição do princípio aristotélico da causalidade em


muitos âmbitos basta pegarmos manuais de filósofo e analisarmos suas doutrinas quer seja para
defendê-la ou criticá-la. Assim, a noção de causa está presente em Kant (apud FINANCE,
A1965, p. 351, tradução nossa) que afirmou: “Todo ser contingente requer uma causa eficiente
de sua produção.” Também em Cícero, Descartes, Leibniz, Wolff, Santo Tomás de Aquino e
muitos outros como o próprio David Hume (Cf. FINANCE, 1965, p. 349-353).
Portanto, perceberemos claramente como perdura até hoje a noção de causa no cosmos
das transformações. Analisemos nestas subseções, a presença marcante da causalidade, neste

40
Isso implica dizer que, “A ausência da evidência não é a mesma coisa da evidência da ausência”, ou seja, pelo
fato de não vermos uma determinada coisa - pala falta de evidência - não significa que esta não exista. Para os
que acreditam que a realidade se reduz a visibilidade, ou a evidência empírica, estão destruindo a ideia de um
bem, de um princípio gerador de tudo.
96
campos: Influência na Ciência Antiga, Transição para a Ciência Medieval, bem como o
Legado na Filosofia da Ciência.

3.6.1 Influência na Ciência Antiga

Na antiguidade, a filosofia aristotélica e sua noção de causa tiveram uma influência


significativa na maneira como os pensadores gregos abordavam a investigação natural. Nota-
se, que Aristóteles no primeiro da Metafisica recorda seus predecessores e analisa suas
doutrinas acerca desta realidade causal. Ora, isso significa que era uma preocupação da época
compreender a origem do cosmos, da vida, a morte, o sentido do agir humano etc. Assim,
filósofos mecanicistas como Empédocles, Demócrito, Leucipo, depois Epicuro explicam a
noção de finalismo. (Cf. FINANCE, 1965, p. 404).
Dessa maneira, a noção de que os entes naturais tinham um propósito intrínseco, quer
dizer, uma causa final, influenciou a biologia e a zoologia, levando ao estudo das características
e comportamentos dos seres vivos em relação aos seus “fins”.

3.6.2 Transição para a Ciência Medieval

A filosofia aristotélica desempenhou um papel central na Idade Média, quando a


investigação científica estava fortemente ligada à teologia e à filosofia. Nesse contexto, a
causalidade final foi usada para explicar muitos fenômenos naturais, incluindo os movimentos
dos planetas no sistema geocêntrico. Durante a Revolução Científica do século XVI e XVII, as
ideias aristotélicas sobre causa final enfrentaram desafios significativos. Cientistas como
Galileu Galilei e Isaac Newton (como vimos no exemplo da gravidade, na subseção 3.5.7)
desenvolveram teorias que explicavam o movimento dos corpos sem apelar para causas finais,
mas sim usando leis matemáticas e causas eficientes. Isso marcou uma transição para uma
abordagem mais empírica e mecanicista da ciência, que se afastava das explicações
teleológicas.
Também é de suma importância destacar a importância e contribuição do pensamento
de Santo Tomás de Aquino no pensamento medieval, inclusive comentou a Metafísica de
Aristóteles analisando as bases do pensamento metafísico e aprofundando em sua filosofia
primeira o que influenciou positivamente a teologia até os dias atuais.

97
3.6.3 Legado na Filosofia da Ciência

Embora a causa final tenha sido substituída como explicação principal na ciência
moderna, ainda é discutida na filosofia da ciência. Alguns filósofos exploram como a causa
final se encaixa em uma explicação científica mais ampla, enquanto outros a veem como uma
abordagem desatualizada. Como diz Túlio Aguiar:

A noção de causalidade ocupa uma posição central no cenário filosófico da


época moderna [...]. O problema metafísico consiste em buscar compreender
que tipo de coisa a causação é. O problema epistemológico configura-se com
a tentativa de determinar a maneira de detectar conexões causais genuínas.
No intenso debate sobre a causação no período moderno, o foco de interesse
desloca-se progressivamente do problema metafísico para o problema
epistemológico. (AGUIAR, 2008, p.19, grifo do autor)

De fato, como bem confere a citação supracitada o foco de interesse desloca-se


progressivamente do problema metafísico para o problema epistemológico, pois a ciência
moderna, baseada na observação, experimentação e formulação de leis naturais, tende a evitar
explicações que dependam da causa final. Em vez disso, ela busca entender os processos
naturais por meio de causas eficientes e mecanismos físicos.
O problema não é sabe o que a coisa é, sua essência, mas como se conhece, seus aspectos
acidentais. Em certo sentido, isso permitiu um avanço significativo no entendimento das leis da
natureza e na previsão de fenômenos. No entanto, com o advento da ciência moderna e a ênfase
em causas eficientes e mecanicistas, a causalidade final foi gradualmente substituída por
abordagens mais empiricamente orientadas na ciência. causa final é mais frequentemente
discutida no contexto da história da filosofia e da filosofia da ciência, por exemplo, a Teoria da
Regularidade. Esta afirma que a causalidade é uma relação constante entre eventos Foi
desenvolvida por Hume. (Cf. GARRETT, 2008, p.71).
Portanto, a influência das ideias de Aristóteles sobre as causas ainda pode ser vista em
várias áreas da filosofia e das ciências, especialmente na filosofia da biologia e em discussões
sobre a natureza da causalidade. Sua ênfase na busca por explicações completas e na
consideração das causas ainda influencia o pensamento científico contemporâneo,
especialmente em disciplinas como a filosofia da ciência e a teoria da explicação científica.

98
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para introduzir as considerações finais resgataremos a problemática norteadora durante


todo o desenvolvimento desta dissertação, a saber, que “a existência da causalidade no mundo
físico é uma verdade evidente?”
Durante nossa argumentabilidade cumprimos o objetivo geral “investigar a concepção
aristotélica de causalidade em sua fundamentação filosófica”. E isso fizemos, pois não só
aprofundamos o conceito de causalidade desde as antigas reflexões filosóficas até os avanços
científicos contemporâneos, sem a pretensão de tal realidade, mas também procuramos
compreender suas raízes, ou seja, como essa noção molda a essência mesma do nosso
entendimento sobre o cosmos marcado pelo devir e pelas transformações.
Assim sendo, por meio de uma leitura logocêntrica e baseada em argumentos sólidos
compreendemos a natureza da relação entre causa e efeito, e, consequentemente, a legitimidade
da causalidade e a importância de não a reduzir a nenhum pensamento filosófico. Por isso,
percebeu-se como é pertinente o estudo sério, aprofundado, de toda sua fundamentação
filosófica que foi o alicerce para o mundo ocidental, fazendo jus aos dois objetivos específicos
“analisar as raízes da concepção aristotélica de causalidade” e “aprofundar o debate em torno
da pertinência e da validade atual da concepção de causalidade. Abordamos a defesa da
causalidade bem como as contribuições em vários âmbitos como na ética e na política, no
conhecimento científico bem como na própria filosófico desde o período clássico até os dias
atuais.
Portanto, podemos elucidar três grandes considerações ou contribuições que estão em
conformidade com a problemática bem como com os objetivos que apresentamos.
A primeira, trata-se da real necessidade de afirmar a validade do princípio da
causalidade. E, assim, arrematamos o primeiro capítulo ratificando a importância da correlação
entre as quatro causas, a partir da noção de aitia e o fim como sendo a causa da causalidade de
todas as coisas e goza de precedência ontológica.
A segunda, diz respeito inteligibilidade da causalidade, quer dizer, embora esse
princípio seja afirmado pelo intelecto humano, ele não se submete à experiência sensível
conforme os ditames de algumas correntes filosóficas, o empirismo, por exemplo.
A terceira grande contribuição corresponde ao nosso segundo objetivo específico desta
pesquisa: “Aprofundar o debate em torno da pertinência e da validade atual da concepção de
causalidade.” Quer dizer, após percorrido toda uma trajetória fica claro a necessidade de
aprofundar nesta temática para que se possa chegar a alguns argumentos sólidos de defesa da
99
noção aristotélica de causalidade alcançando uma exposição consistente, enfrentando, assim,
os ataques e os debates modernos em torno dela.
É imprescindível destacar a legitimidade da causalidade aristotélica como conceito
fundamental tanto para o pensamento filosófico quanto para o pensamento científico, visto que
certas concepções filosóficas tendem a contestá-la colocando em risco a validade e a
objetividade deste princípio metafísico tão significativo para o pensamento ocidental e para as
ciências modernas. Portanto, sugere-se que alguns estudos ampliem o conhecimento da
causalidade e reafirme sua validade e necessidade tanto para o desenvolvimento filosófico
quanto para o científico.

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