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A Natureza do espaço para

Milton Santos
Rui Ribeiro de Campos
Graduado em Geografia, Mestre em Educação pela PUC-Campinas, Doutor em Geografia pela UNESP,
Professor de Epistemologia da Geografia, Pensamento Geográfico Brasileiro e Geografia Política da
Faculdade de Geografia na PUC-Campinas

INTRODUÇÃO fo Milton Santos (1926-2001) a respeito do


mundo, uma “soma, que também é síntese,
de eventos e lugares. A cada momento, mu-
“O espaço se globaliza, mas não é mundial
dam juntos o tempo, o espaço e o mundo.”
como um todo, senão como metáfora. Todos
os lugares são mundiais, mas não há espaço Por isso, em cada período histórico o espaço
mundial. Quem se globaliza, mesmo, são as geográfico é outro, e as ferramentas concei-
pessoas e os lugares.” (SANTOS, 1994, p. 31) tuais para a sua análise precisam ser revita-
lizadas. Daí ser difícil estabelecer o signifi-
Não há espaço global e sim espaços de glo- cado de diversos conceitos utilizados pelo
balização, não existe um tempo global e autor, notadamente de um geógrafo fecundo,
único mas somente um relógio mundial, e pois eles não possuem o mesmo significado
as redes globais transportam o universal ao em toda a sua trajetória intelectual. O con-
local. Todavia, são as redes locais as cons- ceito de espaço geográfico é um exemplo.
tituidoras das condições técnicas do traba- Um dos motivos é o fato de a realidade es-
lho direto. Os vetores da hegemonia criam tar sempre se modificando, se tornando mais
localmente uma desordem, suas normas são complexa e fazendo com que o conceito não
indiferentes aos contextos nos quais se inse- dê mais conta de seu entendimento pois se
rem pois sua finalidade é o mercado global, aplicava a uma outra realidade. Outro mo-
a mais-valia universal. Pontos distantes são tivo está no fato de que, no início de uma
unidos, pela telecomunicação, numa mesma carreira, normalmente se adota os conceitos
lógica produtiva, estabelecendo processos dominantes no ambiente universitário viven-
globais. O mundo, ativo através das empre- ciado como aluno. E ainda, porque caracte-
sas gigantes, é um conjunto de possibilida- riza o verdadeiro intelectual a busca perma-
des dependente das oportunidades ofertadas nente, a crítica constante, principalmente de
pelos lugares; ele necessita da mediação dos si mesmo. Dogmatismos empedernidos não
lugares pois estes é que lhe oferecem a pos- habitam a mente de intelectuais verdadeiros.
sibilidade de realização, de se tornar espaço.
A ordem global procura impor uma única ra- Por estas razões e pelos objetivos deste tex-
cionalidade e os lugares vão responder con- to, preferimos ficar com o significado dado
forme os modos de sua própria racionalidade. a diversos conceitos em duas de suas obras A natureza do espaço para
Milton Santos
Estas são algumas das afirmações do geógra-
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1. Este texto se baseia, essencialmen- recentes¹. E de maneira alguma se pretende O ponto de partida da análise de Milton San-
te, em dois livros de Milton Santos:
A natureza do espaço: técnica e tem-
aqui esgotar os significados dos mesmos. tos é a noção de espaço como “[...] o conjunto
po, razão e emoção. São Paulo: HU- Nossa pretensão é procurar desvendar o pen- indissociável de sistemas de objetos² naturais
CITEC, 1996 (308 pp.), e Técnica, samento de um autor significativo, é realizar ou fabricados e de sistemas de ações, deli-
espaço, tempo: globalização e meio
técnico-científico informacional. uma introdução ao pensamento de Milton beradas ou não.” (SANTOS, 1994, p. 49) É
São Paulo: HUCITEC, 1994 (190 Santos (ou seja, a primeira finalidade é didá- o espaço, portanto, o meio, o lugar material
p). Foi elaborado, com finalidades
basicamente didáticas, de introdu-
tica) e proporcionar um pequeno texto para da possibilidade dos eventos. Desta noção
ção ao pensamento miltoniano. debates. É uma tentativa de apresentar alguns procura reconhecer as categorias analíticas
conceitos por ele utilizados e/ou criados. Não internas (como paisagem, configuração ter-
2. Normalmente, o autor usa a
expressão “sistema de objetos” re- é nossa intenção uma análise dos mesmos e ritorial, divisão territorial do trabalho, es-
ferindo-se ao conjunto de artefatos nem, a partir deles, procurar aqui um enten- paço produzido ou produtivo, rugosidades,
técnicos construídos pelo trabalho
humano ao longo do tempo, dando dimento do mundo e de seu atual período. formas-conteúdo), levanta a questão dos re-
menor relevância aos artefatos ditos cortes espaciais (debatendo problemas como
naturais.
região e lugar, rede e escalas) e discute a
A NATUREZA DO ESPAÇO questão da racionalidade do espaço, propó-
sitos que pressupõem o reconhecimento de
A Geografia, se tem a pretensão de ser trata- alguns processos básicos que, originaria-
da como uma ciência, precisa ter uma forma mente, são externos ao espaço (como téc-
específica de analisar a contemporaneidade. nica, ação, objetos, normas e eventos, uni-
Se estabelecer como eixo a análise do terri- versalidade e particularidade, totalidade e
tório, realizará uma análise mais abrangente totalização, símbolos e ideologia, e outros).
e integradora do que outras ciências, se estas
se limitarem a partes, ao presente ou a inte- O espaço geográfico é indissociável do tem-
resses minoritários, e não estiverem voltadas po. É, no dizer de Carlos Walter Gonçalves,
a um futuro mais justo, pacífico e universa- “[...] um ‘espaço-tempo’, para o que a perio-
lizante da cidadania. A análise do presen- dização se torna central enquanto fundamen-
te deve descobrir nele o futuro que projeta; to teórico-metodológico” (apud SANTOS,
se não é o almejado, propostas e ações para 2002, p. 179), pois ela permite a identificação
abortá-lo devem ser feitas. Um economista do que é novo no processo e possibilita uma
que propõe que uma nação se abstenha da ação transformadora lúcida. “[...] o espaço
condução de seu próprio destino, que ana- tem um papel privilegiado, uma vez que ele
lisa as medidas político-econômicas sob a cristaliza os momentos anteriores e é o lugar
ótica de interesses hegemônicos de grupos de encontro entre esse passado e o futuro,
externos, que sobrepõe o mercado à socie- mediante as relações sociais do presente que
dade, além de ser um simples serviçal, não nele se realizam.” (SANTOS, 1994, p. 122)
é um cientista social e nem um intelectual, Quando um novo momento chega para subs-
na significação mais profunda destes termos. tituir outro, ele encontra no espaço geográfi-
Se o geógrafo reconhece uma inseparabili- co formas preexistentes às quais ele deve se
dade entre sociedade e espaço geográfico, adaptar para poder se estabelecer (1978). As-
se consegue ver o território como objeto das sim, o espaço é a condição para a realização
ações e também como sujeito, como fazia do novo modo de produção e os objetos geo-
Milton Santos, não só estabelece uma forma gráficos existentes, instalados para realizar os
geográfica de compreender o mundo, como objetivos da produção em um dado momento,
o faz diferente de outras abordagens e com influenciam o modo que se instala e podem
importância social por possuir uma visão não permanecer com novas funções e retratando
fragmentada dos processos existentes, pois o o passado que possibilitou o período atual.
território – o atual objeto da Geografia – ana-
lisado como algo dinâmico, é o grande reve- Estas sobras materiais foram por ele de-
lador dos principais problemas de uma nação. nominadas de rugosidades, uma metáfora
de inspiração geomorfológica. São obje-
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tos do passado que permanecem e servem
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ao presente; existiram como significado técnica atual (informacional), define o atual 3. Do grego, “systema”: reunião,
grupo.
e se comportam como um traço de união meio geográfico como técnico-científico-in-
com os novos significados da vida social. formacional. Nos espaços da racionalidade, 4. Em seus últimos textos, Milton
Santos preferia a palavra meio à es-
As rugosidades são o espaço construído, o tem- [...] o mercado é tornado tirânico e o Estado paço, tanto por ser esta mais usada
para o espaço sideral, quanto pela
po histórico que se transformou em paisagem, tende a ser impotente. Tudo é disposto para que
palavra espaço ter ganhado um uso
incorporado ao espaço. [...] nos oferecem [...] os fluxos hegemônicos corram livremente, des- crescentemente metafórico em diver-
restos de uma divisão de trabalho internacio- truindo e subordinando os demais fluxos. Por sas ciências.
nal, manifestada localmente por combinações isso, também, o Estado deve ser enfraquecido,
particulares do capital, das técnicas e do traba- para deixar campo livre (e desimpedido) à ação 5. Meio técnico-científico: “[...] o
soberana do mercado. (SANTOS, 1994, p. 34) momento histórico no qual a cons-
lho utilizados. [...] O modo de produção que,
trução ou reconstrução do espaço se
[...] cria formas espaciais fixas, pode desapa- dará com um crescente conteúdo de
recer – e isto é freqüente – sem que tais formas ciência e de técnicas. [...] O fim do
O meio geográfico, que já foi meio natural
fixas desapareçam. (SANTOS, 1978, p. 138) século XVIII e, sobretudo, o século
e meio técnico, é atualmente um meio téc- XIX vêem a mecanização do territó-
nico-científico-informacional, pois ciência, rio: o território se mecaniza. ..., esse
A periodização permite entender o movimen-
momento é o momento da criação
to do mundo, permite compreender que é o tecnologia e informação constituem a base do meio técnico, que substitui o meio
homem que, bem ou mal, o constrói (é por técnica da vida social atual. No começo da natural. [...] A partir, sobretudo, do
fim da Segunda Guerra Mundial
isso que a atual globalização não é irrever- História, segundo Santos (1994, p. 49), exis- [...] as remodelações que se impõem,
sível), que tempos diversos coabitam num tiam tantos sistemas técnicos quanto eram tanto no meio rural, quanto no meio
urbano, não se fazem de forma in-
mesmo período e que, mudando a realidade, os lugares; no decorrer da mesma aconteceu diferente quanto a esses três dados:
o instrumental precisa ser readequado. Se o ciência, tecnologia e informação.”
uma diminuição da quantidade de sistemas
espaço é um sistema³, ele é um conjunto de (SANTOS, 1994, p. 139) O perío-
técnicos, principalmente durante o capitalis- do técnico científico é que possibilita
elementos, materiais ou não, entre os quais inventar a natureza, criar sementes
mo, que acelerou o movimento de unifica-
existe uma relação que deve ser procurada como se elas fossem naturais (Ibi-
ção, de tal modo que atualmente se observa dem, p. 143); foi a biotecnologia
e definida. É um todo, permeado por idéias
a predominância de um único sistema téc- que permitiu que os cerrados do
ou princípios que lhe dão sentido e expli- Centro-Oeste se transformassem em
cam sua estrutura, seus resultados. E, como nico como base material da mundialização. um caleidoscópio de produtos.

um sistema aberto do mundo dos físicos,


Pela primeira vez na história do homem, nos
pode trocar energia e massa com o exterior.
defrontamos com um único sistema técnico,
presente no Leste e no Oeste, no Norte e no Sul,
Se o espaço geográfico é um sistema de obje- superpondo-se aos sistemas técnicos precedentes,
tos, ele é um conjunto de coisas que, funcio- como um sistema técnico hegemônico, utilizado
nalmente entrelaçadas, formam um todo coe- pelos atores hegemônicos da economia, da cul-
rente e constituem uma unidade completa. Se tura, da política. (SANTOS, 1994, p. 42/43)
é um sistema de ações, é um conjunto de ges-
tos, forças, atos, atitudes, que fazem mover a O meio técnico-científico5 é formado pela
sociedade. Um sistema influencia o outro e é tecnoesfera e psicoesfera. A primeira, “[...]
por ele influenciado, formando um conjunto é o resultado da crescente artificialização do
maior chamado espaço geográfico. Visto as- meio ambiente. A esfera natural é crescente-
sim, os dois conjuntos são indissociáveis e mente substituída por uma esfera técnica, na
a amplitude deste todo na análise geográfica cidade e no campo.” A psicoesfera, por sua
depende da escala de análise. E a análise des- vez, “[...] é o resultado das crenças, desejos,
tes sistemas é que permite levantar os proble- vontades e hábitos que inspiram comporta-
mas – e não só os econômicos – da totalidade mentos filosóficos e práticos, as relações in-
terpessoais e a comunhão com o Universo.”
estabelecida. Por isso, parece-nos que, em
(SANTOS, 1994, p. 32) A tecnoesfera é,
determinados momentos, espaço geográfico,
portanto, “[...] uma natureza crescentemen-
meio geográfico e território usado, são con-
te artificializada, marcada pela presença de
ceitos quase similares nos textos miltonianos4.
grandes objetos geográficos, idealizados e
construídos pelo homem, articulados entre si
Tendo como eixo o fenômeno técnico, visto
em sistemas” (Ibidem, p. 127) O prático-iner-
como um todo, e a partir das condições da A natureza do espaço para
Milton Santos
te local6 é formado por uma tecnoesfera (“a
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6. Categoria do prático-inerte (de esfera do mundo técnico que se superpõe e Nesta nova fase histórica, o Mundo está marcado
Sartre): “o resultado de totalizações por novos signos, como: a multinacionalização das
tantas vezes substitui a natureza” – SANTOS,
do passado, criando configurações
2002, p. 106 –, que mais pertence ao reino da firmas e a internacionalização da produção e do
resistentes na vida social.” (SAN-
TOS, 1994, p. 84) produto; a generalização do fenômeno do crédito,
necessidade) e por uma psicoesfera (um dado
que reforça as características da economização da
empírico não-material, que pertence ao rei- vida social; os novos papéis do Estado em uma so-
no da liberdade). Concebe as técnicas como ciedade e uma economia mundializadas; o frenesi
sistemas demarcadores de diversas épocas e de uma circulação tornada fator essencial da acu-
como algo onde o humano e o não-humano mulação; a grande revolução da informação que
são inseparáveis. São elas “[...] um conjun- liga instantaneamente os lugares, graças aos pro-
gressos da informática. (SANTOS, 1994, p. 123)
to de meios instrumentais e sociais, com os
quais o homem realiza a sua vida, produz e,
ao mesmo tempo, cria espaço” (SANTOS, Assim, na Geografia, o tempo deve ser traba-
1996, p. 25) e as técnicas nos dão a forma lhado pelo eixo das coexistências, da simulta-
principal da relação homem-natureza, de in- neidade (diferente do tempo como sucessão,
termediação da união, no trabalho, entre es- que é o chamado tempo histórico). Em um lu-
paço e tempo. Fundamentos possíveis de uma gar, o tempo das diversas ações e dos diversos
teoria do espaço – “o espaço é formado de ob- agentes, o modo como utilizam o tempo, não
jetos técnicos” –, as técnicas são datadas e se é o mesmo. Os fenômenos que acontecem são
constituem em uma medida do tempo. Entre- também concomitantes. O tempo como suces-
tanto, a consideração das técnicas de produ- são é o que se chama de tempo histórico, mas
ção de modo isolado leva a uma maior com- o tempo geográfico é o da simultaneidade.
partimentação da realidade (espaço agrícola,
espaço industrial, espaço dos transportes, e No espaço, para sermos críveis, temos de con-
siderar a simultaneidade das temporalidades
outros) e, por isso, a noção de espaço geo-
diversas. [...] ... não há nenhum espaço em
gráfico só pode ser alcançada se o fenômeno que o uso do tempo seja o mesmo para todos os
técnico for visto em sua total abrangência. homens. Pensamos que a simultaneidade dos
diversos tempos sobre um pedaço da crosta da
Apesar de suas vocações originais, é o espaço Terra é que seja o domínio propriamente dito
o redefinidor dos objetos técnicos ao colocá- da Geografia. (SANTOS, 1994, p. 164).
los num conjunto coerente, e o valor de cada
elemento é dado pelo conjunto da sociedade. A Geografia deve se ocupar das relações entre
O meio geográfico foi durante milênios um a sociedade e seu entorno em diversas escalas,
meio natural (pré-técnico), durante dois ou tanto de toda a comunidade humana como do
três séculos um meio técnico (maquínico) e lugar menor. Subdividir esta ciência é tirar o
hoje um meio técnico-científico-informacio- seu caráter globalizante. Não há como separar
nal. Toda técnica contém história, a revela, sociedade e espaço geográfico, não importa o
congelando o tempo, e não se deve pensar sentido dado a este último, pois o que chama-
em um espaço geográfico situado fora do mos de meio geográfico é o resultado de “[...]
tempo – o transcurso, a sucessão de eventos uma adaptação sucessiva da face da Terra às
e sua trama. Daí ser a sociedade humana se necessidades dos homens” (SANTOS, 2002,
realizando – no uso de seu espaço e de seu p. 81). Esse meio, em cada período histórico,
tempo – o ponto de partida, e o lugar, ao rela- é um novo meio e ele se torna mais produtivo
tivizar seu uso e integrá-las num conjunto, o quanto maior for o seu conteúdo em ciência,
atribuidor de realidade histórica às técnicas. tecnologia e informação. Por isso, o rotulou
de meio técnico-científico-informacional;
Nas fases anteriores da História, as ati-
mas o meio não se manifesta de modo igual
vidades dependeram da técnica e da ci-
no planeta, sendo em alguns lugares (como
ência mas, recentemente, ocorre uma in-
Europa, América Anglo-Saxônica, Japão e
terdependência da ciência e da técnica
parte da América Latina) de forma extensa e
em todos os aspectos da vida, fato que
contínua, e em outros (o restante do mundo)
se verifica em todas as partes do mundo.
Rui Ribeiro de Campos
apenas se manifestando como manchas ou

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pontos. Uns são espaços adaptados às exi- dadeira unicidade técnica, pois em todos
gências das ações características da globali- os lugares os conjuntos técnicos existentes
zação (espaços luminosos); outros são áreas são, aparentemente, os mesmos, a despei-
não dotadas das virtualidades necessárias ao to dos diferentes graus de complexidade;
atual momento (espaços opacos). Também outro é a fragmentação do processo produ-
por isso é que afirmou que não existe espaço tivo em escala internacional, que se efetua
global, mas apenas espaços de globalização. em função desta mesma unicidade técnica.

De qualquer modo, o espaço é uma Antes, os sistemas técnicos eram apenas locais, ou
reunião dialética de fixos e fluxos. O regionais, e tão numerosos quantos eram os luga-
res ou regiões. Quando apresentavam traços seme-
[...] espaço como conjunto contraditório, formado lhantes não havia contemporaneidade entre eles, e
por uma configuração territorial e por relações de muito menos interdependência funcional. Por ou-
produção, relações sociais; e, finalmente, [...] o tro lado, a impulsão que recebem esses conjuntos
espaço formado por um sistema de objetos e um técnicos atuais (ou suas frações) é única, vinda de
sistema de ações. Foi assim em todos os tempos, uma só fonte, a mais-valia tornada mundial ou
só que hoje os fixos são cada vez mais artificiais mundializada, por intermédio das firmas e dos
e mais fixos, fixados ao solo; os fluxos são cada bancos internacionais. (SANTOS, 1994, p. 125)
vez mais diversos, mais amplos, mais numero-
sos, mais rápidos. (SANTOS, 1994, p. 110)
Os atuais sistemas técnicos se definem pela
sua onipresença, pela universalidade e por sua
Os fixos, que podem ser fábrica, plantação,
tendência à unificação. Os dominantes, “[...]
casa, loja ou porto, emitem fluxos que se
aqueles que servem aos atores hegemônicos
constituem em movimentos entre os fixos.
da economia, da cultura, da política, tendem a
Os fluxos necessitam dos fixos para se rea-
ter a mesma composição em todos os lugares.”
lizarem e são comandados pelas relações so-
(SANTOS, 1994, p.112) Estes exigem cada
ciais. Se os fixos são alterados pelos fluxos,
vez mais uma unidade de comando. Outro
estes também se modificam ao encontro dos
aspecto importante é que os objetos “[...] são
fixos. “Os fluxos não têm a mesma rapidez, a
criados com intencionalidades precisas, com
mesma velocidade. As coisas que fluem e que
um objetivo claramente estabelecido de ante-
são materiais (produtos, mercadorias, mensa-
mão. Da mesma forma, cada objeto é também
gens materializadas) e não materiais (idéias,
localizado de forma adequada a que produza
ordens, mensagens não materializadas) não
os resultados que dele se esperam.” (Ibidem)
têm a mesma velocidade.” (SANTOS, 1994,
p. 166) Os fixos podem ser econômicos, so-
A intencionalidade é mercantil mas, freqüen-
ciais, religiosos, culturais, e outros, como lo-
temente, é antes simbólica (por exemplo, a
jas, hospitais, escolas, praças, hotéis. Há fixos
obra a ser feita é a salvação da região, vai
públicos, que se instalam com base em prin-
trazer o progresso ou a modernidade); ou
cípios sociais, e fixos privados, localizados
seja, estes objetos novos exigem discursos.
segundo a lei da oferta e da procura, segundo
Nas regiões “[...] onde o sistema de objetos
as exigências do lucro. Uma cidade é um fixo
e o sistema de ações são mais densos, aí está
cruzado por fluxos (pessoas, mercadorias, or-
o centro do poder.” (Ibidem, p. 114) Onde
dens, idéias, ...). Uma cidade difere da outra
são menos complexos e menos inteligentes,
também por seus fixos e seus fluxos (diversos
reside a sede da dependência, da incapaci-
em volume, duração, intensidade e sentido) e a
dade de dirigir a si mesmo. O termo região7
alteração deles modifica a própria significação
significa reger, comandar, mas atualmente
da cidade para seus moradores, significação 7. Em latim, Rego, regere significa
(em sentido figurado): ter o coman-
que é diferente conforme as classes sociais. [...] há cada vez mais regiões que são apenas re- do de, dirigir, reger, comandar.
giões do fazer, e, cada vez menos, regiões do man-
O aparecimento de dois novos fenômenos dar, regiões do reger. Aquelas que são regiões do
constitui a base de explicação histórica da fazer são cada vez mais regiões do fazer para os
A natureza do espaço para
nova realidade do espaço. Um é uma ver- outros. [...] Os objetos obedecem a quem tem o Milton Santos

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poder de comandá-los. [...] Não é por acaso que toricamente, diversos espaços geográficos.
a raiz da palavra ‘cibernética’ é a mesma da pala- Um exemplo citado pelo autor esclarece: uma
vra ‘governador’. [...] Conhecendo os mecanismos bomba de nêutrons faria o que na véspera era
do mundo, percebemos por que as intencionalida-
espaço ser uma paisagem após a explosão. O
des estranhas vêm instalar-se em um dado lugar,
e nos armamos para sugerir o que fazer no inte- espaço é “[...] a síntese, sempre provisória,
resse social. (SANTOS, 1994, p. 114, 116 e 117) entre o conteúdo social e as formas espaciais”
(SANTOS, 1996, p. 88). Ele “[...] é forma-
O conjunto de objetos geográficos nos dá a do por um conjunto indissociável, solidário e
configuração territorial e nos define o próprio também contraditório, entre sistemas de obje-
território e são cada vez mais carregados de tos e sistemas de ações, não considerados iso-
informação8. Aqueles criados pelas atividades ladamente, mas como o quadro único no qual
hegemônicas são dotados de intencionalidade a história se dá.” (SANTOS, 1994, p. 111)
específica, o que faz “com que o número de
fluxos sobre o território se multiplique tam- A noção de intencionalidade fundamenta o
bém”. (Ibidem, p. 140) Há objetos que são o processo da inseparabilidade dos objetos e
tempo cristalizado mas não se faz, necessa- das ações, num movimento incessante de dis-
8. Talvez possamos afirmar que os
objetos em geral podem ser conside- riamente o que se quer com os mesmos, pois solução e recriação do sentido, de sucessão
rados como fixos, mas somente são também decidem o que se pode fazer com eles. de formas-conteúdo. A categoria chave para
objetos geográficos se considerados,
de modo indissociável, com os fluxos, o entendimento deste processo é a de tota-
dos quais as redes são um exem- Entretanto, o espaço é atualmente, um siste- lidade, que existe dentro de um permanente
plo. São os fluxos que colocam (ou
ma de objetos cada vez mais artificiais e mais processo de totalização, que faz com que os
tendem a colocar) os fixos em uma
mesma escala, em um mesmo tempo tendentes a fins que são estranhos ao lugar lugares, a cada movimento da sociedade, se
ou ritmo. e a seus moradores. Para Santos, interessam recriem e se renovem. O motor deste movi-
à Geografia os objetos móveis e os imóveis, mento e, portanto, da diferenciação espacial,
mas objetos como sistemas e não somente é a divisão do trabalho, responsável, a cada
como coleções. Integrante do presente, o ob- cisão da totalidade, de levar aos lugares um
jeto não é um vestígio da ação mas seu teste- novo conteúdo e um novo significado. Os ve-
munho; a significação e o valor geográficos tores desta mudança são os eventos, portado-
dos objetos derivam do papel desempenhado res de um acontecer histórico e, portanto, de
por eles no processo social, dentro de um sis- um tempo concreto. A trilha a ser percorrida
tema de ações. Hoje, muitas das ações exer- pelo geógrafo, “[...] seria partir da totalidade
cidas em um lugar derivam de necessidades concreta como ela se apresenta neste perío-
alheias, o que força a distinção entre a escala do de globalização – uma totalidade empírica
de suas realizações e a escala de seu coman- – para examinar as relações efetivas entre a
do. Também não se deve separar, na análise Totalidade-Mundo e os Lugares” (SANTOS,
geográfica, objetos e ações, até porque a efi- 1996, p. 92). Pois é a totalidade – a realida-
cácia de uma ação relaciona-se com a adequa- de em sua integridade – que explica as par-
ção ao objeto. Recoloca-se, aí, a noção de tes, até porque o todo é maior que a soma
forma-conteúdo, da hibridez do espaço geo- de suas partes; mas é uma totalidade sempre
gráfico, pois a forma se recria a cada evento; incompleta, sempre procurando fazer-se.
este, para se realizar, encaixa-se na forma dis-
ponível mais adequada à realização das fun- O mundo começou a ser internacional nos sé-
ções das quais é portador. Não é nem forma, culos XV e XVI, e só virou mundial agora.
nem conteúdo, mas forma-conteúdo, unindo Tornou-se mundial talvez em função da for-
passado e futuro, natural e social, processo e ma de visão do globo. [...] Temos assim diante
de nós o mundo ‘globalizado’; é diferente da
resultado, função e forma. Também distingue
‘internacionalização’, que, de alguma forma,
paisagem (conjunto de formas, sistema mate- é um trunfo do marxismo. A totalidade se tor-
rial que não se explica por si mesmo) de es- nou empírica, não é uma criação de nosso pen-
paço (resultado da intrusão da sociedade nas samento. (SANTOS, 1994, p. 178 e 179)
formas-objetos), o que nos permite concluir
Rui Ribeiro de Campos
que uma mesma paisagem pode compor, his-
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A divisão do trabalho, movida pela produ- O entendimento das diferentes formas históri-
ção, é o motor da diferenciação espacial, ao cas de estruturação, funcionamento e articula-
atribuir, a cada modificação sua, novos con- ção dos territórios depende do conhecimento
teúdos e funções aos lugares; hoje, o que im- dos sistemas (uma técnica não aparece só e
pulsiona a divisão internacional do trabalho é nem funciona isoladamente) técnicos suces-
a informação, cujo resultado é a divisão ter- sivos, dos instrumentos artificiais usados pelo
ritorial do trabalho. Para o autor, o valor real homem (a ferramenta, a máquina, o autôma-
de um recurso (seja ele população, produto, to). O atual (e prolífico) casamento da técnica
dinheiro ou inovação) depende de sua quali- e da ciência (tecnociência) é a base material e
ficação geográfica, da “[...] significação con- ideológica que fundamenta o discurso e a prá-
junta que todos e cada qual obtêm pelo fato tica da globalização. Inovação galopante, di-
de participar de um lugar” (SANTOS, 1996, fusão rápida (comandada por uma mais-valia
p. 107). Fora dos lugares, são abstrações pois que opera no nível do mundo e em todos os
a definição conjunta e individual de cada um lugares), envolvimento de muito mais gente
depende de sua localização, o que faz da for- e colonização de muito mais áreas, caracteri-
mação sócio-espacial9 – e não do modo de zam o sistema atual. Vivemos a era da infor-
produção – o principal instrumento para o en- mação e ela é a base do poder; o computador
tendimento da história e do presente de cada é o símbolo do período e a informatização o
país. O lugar está sempre acolhendo determi- modo dominante de organização do trabalho. 9. A expressão formação social foi ra-
nados vetores e descartando outros, processo Esta era das telecomunicações se criou em ra- ramente utilizada por Marx e, quan-
do a utilizou, foi com o significado de
formador e mantenedor de sua individualida- zão da combinação realizada entre tecnologia sociedade. Foi muito usada por mar-
de. O acolhimento de uma nova divisão do digital, política neoliberal e mercados globais. xistas estruturalistas que procuravam
distinguir “[...] o conceito científico de
trabalho não exclui, necessariamente, os res-
‘formação social’ da noção ideológica
tos de divisões anteriores, dando uma com- Ao “território das regiões superpõe-se um de ‘sociedade’, [...]” (BOTTOMORE,
binação específica (e, portanto, distingüidora) território das redes” (SANTOS, 2002, p. 82) Tom (ed.). Dicionário do pensamento
marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
de temporalidades diversas, pois cada divisão As redes não são virtuais e sim realidades Editor, 1988, p. 159) A expressão, no
cria um tempo próprio, diferente do anterior. concretas, “[...] formadas de pontos interliga- seu uso concreto, refere-se a tipos de
sociedade ( feudal, burguesa, ...) e a
Neste processo permanece, nos lugares, um dos que, praticamente se espalham por todo
sociedades particulares (a sociedade
trabalho morto, o meio ambiente construído o planeta, ainda que com densidade desigual, brasileira, p. ex.). Outros marxistas
que influi na repartição do trabalho vivo; e o segundo os continentes e países.” (Ibidem) preferiram a expressão “formação
econômica e social”, que tem um certo
que fica do passado como forma (as rugosida- São elas a base da atual modernidade, são valor “[...] na medida em que revela
des). O lugar é o depositário obrigatório dos elas a condição de realização da economia explicitamente a idéia presente no
conceito marxista de sociedade de que
eventos, que são sempre novos e supõem a e da sociedade globais (ou seja, a condição
os elementos econômicos e sociais estão
ação humana, o que torna evento e ação sinô- da globalização e a essência do atual meio interligados numa estrutura; mas
nimos. Os eventos não são apenas fatos mas geográfico), são o “veículo mediante o qual não faz referência aos elementos ideo-
lógicos [...]” (Ibidem). Milton Santos
também idéias, não se dão de modo isolado fluem as informações”, sendo estas últimas reinventou esta expressão, tornando-
mas em conjuntos sistêmicos, e são sempre o motor fundamental dos dinamismos dos a mais densa e historicamente mais
adequada para as análises atuais,
presente mas não necessariamente instantâne- grupos hegemônicos. A qualidade e a quan-
incluindo o espaço como fundamen-
os, pois se considera a duração, o tempo de tidade de redes são hoje um elemento distin- tal para o entendimento de qualquer
presença eficaz. A sucessão de eventos altera guidor de regiões e lugares, inclusive de suas sociedade. É ver o espaço banal (sobre
ele, ver nota 12) em suas conexões sis-
o sentido das formas; o objeto pode perma- posições, se relevantes ou se subordinadas. têmicas com a totalidade.
necer pois pode ter autonomia de existência
mas não a tem de significação. O mundo Outra característica de nossa época é a uni-
em movimento redistribui, constantemente, cidade do tempo, a convergência de mo-
eventos (materiais ou não), valorizando di- mentos, a possibilidade de conhecer eventos
ferencialmente os lugares; estes e as regiões longínquos instantaneamente e de percebê-
(um lugar, como as cidades grandes, também los simultâneos, através das técnicas de co-
pode ser uma região) se definem como fun- municação. São momentos coetâneos, mas
cionalização do mundo, pois é neles e por não iguais. Os satélites convergem tempo e
eles que se percebe empiricamente o mundo. espaço pois, para eles, todos os lugares estão A natureza do espaço para
Milton Santos
à mesma distância e esta não altera o custo
GEOGRAFARES, nº 6, 2008 • 161
da transmissão, não fazendo mais da distân- empresas e instituições que o habitam, e assim
cia um fator de isolamento. Mas o que mais dinamizado é, por sua vez, tornado atuante”
circula são informações pragmáticas que (SANTOS, 2002, p. 47). Território brasileiro,
não atingem a todos os lugares, manipuladas por exemplo, “[...] é onde vivem, trabalham,
por poucos atores em seu próprio benefício. sofrem e sonham todos os brasileiros”, é “o
O setor financeiro é regulador da economia repositório final de todas as ações e de todas
internacional e o planeta se transformou em as relações, o lugar geográfico comum dos
um campo único de concorrência. Vivemos o poucos que sempre lucram e dos muitos per-
tempo dos objetos, e se antes o material de- dedores renitentes, [...]” (Ibidem, p. 48). Por
terminava como o objeto seria fabricado, hoje isso ele é o melhor revelador das situações
a forma do objeto e a função dele esperada é conjunturais e estruturais, e das crises. Para
que vão determinar o material; e o envelhe- Milton Santos, achamos nós, é o território
cimento rápido do patrimônio técnico não é o lugar geográfico por excelência, pois é a
realizado por uma razão técnica mas sim por construção de uma base material sobre a qual
uma doutrina (e prática) política: a competi- a sociedade brasileira produz a sua história.
tividade. Esta possui como vetor fundamental
a informação10 e os territórios são equipados O território é um conjunto, formado pelos
para facilitar sua circulação. Daí considerar sistemas naturais e artificiais (ou seja, os
um equívoco a idéia de que o Estado se tor- sistemas naturais mais os acréscimos histó-
nou desnecessário, defendendo que “[...] a ricos materiais colocados pelo homem, que
emergência de organizações e firmas multina- compõem a base técnica e que permitem as
10. “Se, no passado, os nexos que de-
finiam a organização regional eram cionais realça o papel do Estado” (SANTOS, novas modernizações quando implantados)
nexos de energia, cada vez mais, 1996, p. 195). Da mesma maneira é um erro e pelas pessoas, instituições e empresas (ou
hoje, esses nexos são nexos de infor-
mação.” (SANTOS, 1994, p. 92)
proclamar o fim do território, da região ou seja, as práticas sociais, o uso do substrato fí-
falar em não-lugar quando “[...] nenhum su- sico) nele abrigadas. Constitui, pelos lugares
bespaço do Planeta pode escapar ao processo (é a “comunidade dos lugares”), o “quadro da
conjunto de globalização e fragmentação, isto vida social”, no qual tudo é interdependente
é, individualização e regionalização” (Ibi- e onde o local, o nacional e o global se fun-
dem, p. 196). O tempo acelerado amplia a di- dem. É unitário, o que não significa que não
ferenciação dos lugares e estes se distinguem possa ser desagregado quando o Estado, que
pela diferente capacidade de fornecer renta- regula seu uso, não age em sua defesa e se
bilidade aos investimentos, o que permite fa- transforma em agente dos atores hegemôni-
lar em produtividade espacial ou geográfica, cos da atual globalização, quando este Estado
que não é duradoura (permanece até outro é regulador do externo, tentando matar a so-
lugar oferecer melhores vantagens de locali- lidariedade social e a própria idéia de nação,
zação), dada a existência de um exército de e impingindo como norma a desregulação.
reserva de lugares que estabelece uma com-
petição interlocal, uma guerra dos lugares. Hoje, nos arranjos espaciais, há pontos des-
contínuos, mas interligados, definidores de
O território é a categoria central em suas aná- um espaço de fluxos reguladores, onde se
lises, pois é ele que delimita fronteiras, é por admite dois recortes: as horizontalidades
seu meio (através de seus atributos e das polí- (os processos diretos da produção) e as ver-
ticas fiscais existentes) que o capital penetra. ticalidades (os processos de circulação). As
Por isso, o território é hoje um “subsistema do horizontalidades são pontos que se agregam
planeta” e um “subsistema da sociedade”. É a sem descontinuidade, a fábrica da produção
base da vida material, seu uso é regulado pelo propriamente dita, o locus de uma coopera-
Estado e nele, atualmente, não há mais espa- ção mais limitada, o palco do cotidiano: “[...]
ços vazios, sendo os mesmos ocupados de espaços contínuos, formados de pontos que se
modo real ou intencional. Não é uma tabula agregam sem descontinuidade, como na defi-
rasa, um simples palco, “[...] porque é indis- nição tradicional de região. [...] Horizontali-
Rui Ribeiro de Campos
sociavelmente integrado a todas as pessoas, dades são áreas produtivas: regiões agrícolas,
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cidades, os conjuntos urbano-rurais.” (SAN- quando retiram os elementos de comando da 11. Um exemplo, talvez não muito
preciso, ocorre com uma língua ver-
TOS, 1994, p. 93) De outro modo: é o espaço própria região) conduzem a verticalização. tical (a inglesa) e a língua portugue-
da vida, o espaço banal, é o tempo lento dos sa, que ainda permanece horizon-
que ali habitam e não se interessam somen- Para Santos, a marcha do processo de racio- tal. A língua inglesa não é universal
mas é universalizante, é a que se usa
te pela dimensão econômica; é o espaço no nalização, que já atingiu os outros setores, para se referir às ações hegemônicas.
qual se desenvolve uma contra-racionalidade. estaria agora se instalando no próprio meio O saber vertical, normalmente um
vetor técnico (eficaz, contudo carece-
geográfico, no meio de vida dos homens. dor de sentido e que inclui a língua
As verticalidades são “[...] pontos no espaço Por ser um campo de ação instrumental, o vertical) e pretensamente universal,
que, separados uns dos outros, asseguram o espaço pode ser considerado racional em vir- tenta se impor ao saber local autên-
tico, horizontal.
funcionamento global da sociedade e da eco- tude de a técnica ser também técnica infor-
nomia” (SANTOS, 1994, p. 93; 1996, p. 225), macional. E, ao contrário do que aparenta, a
que dão conta dos outros momentos da produ- adaptação aos imperativos da modernização
ção (circulação, distribuição, consumo) e são globalizadora é mais difícil na cidade que no
os vetores de uma racionalidade superior, do campo, pois naquela é mais trabalhoso re-
discurso pragmático dos setores hegemônicos, novar a materialidade por ela ser mais rígi-
criadores de um cotidiano obediente. As ver- da em razão de seu estoque de capital fixo.
ticalidades, segundo Santos (1994, p. 93) são
os sistemas urbanos. Se as verticalidades “são As cidades locais mudam de conteúdo. Antes,
vetores de uma racionalidade superior e de eram as cidades dos notáveis, hoje se transfor-
mam em cidades econômicas. A cidade dos no-
seu discurso pragmático”, as horizontalidades
táveis, onde as personalidades marcantes eram o
padre, o tabelião, a professora primária, o juiz, o
[...] são tanto o lugar da finalidade imposta promotor, o telegrafista, cede lugar à cidade eco-
de fora, de longe e de cima, quanto o da con- nômica, onde são imprescindíveis o agrônomo
trafinalidade, localmente gerada, o teatro de (que antes vivia nas capitais), o veterinário, o
um cotidiano conforme, mas não obrigatoria- bancário, o piloto agrícola, o especialista em adu-
mente conformista e, simultaneamente, o lugar bos, o responsável pelos comércios especializados.
da cegueira e da descoberta, da complacên- [...] Tudo isso faz com que a cidade local deixe
cia e da revolta. (SANTOS, 1994, p. 93/94) de ser a cidade no campo e se transforme na ci-
dade do campo. (SANTOS, 1994, p. 148 e 149)
As atuais horizontalizações são a condição e
o resultado das novas condições da produção. Ainda cabe observar que a partir da implan-
E as verticalizações se constituem no resulta- tação da racionalidade dominante, implan-
do das novas necessidades de intercâmbio e tam-se contra-racionalidades, tanto do pon-
da regulação. (Ibidem p. 104) A verticalidade to de vista social (entre pobres, migrantes,
representa o poder dos de fora, é o domínio minorias), do econômico (atividades, tra-
da racionalidade triunfante, instrumental, que dicional ou recentemente, marginalizadas)
se interessa por uma única dimensão (a eco- e do geográfico (áreas menos modernas,
nômica), que tenta comandar e exigir rapidez opacas). Incapaz de se subordinar às ra-
ou um tempo diferente do realmente vivido cionalidades dominantes, esta experiência
no lugar. “As verticalidades são formadas de escassez é a base para uma adaptação
por pontos, as horizontalidades por planos.” criadora, o que faz destas irracionalidades
(Idem, 2002, p. 110) São simultâneas e com- outras formas de racionalidade e que apon-
plementares, e entre elas não há uma separa- tam para a construção de um novo sentido.
ção real; suas “[...] racionalidades coexistem Ao mesmo tempo em que amplia a signifi-
e se interpenetram, modificam-se mutuamen- cação dos capitais fixos (como estradas, ter-
te, cada qual se afirmando, a cada instante, em ra arada, silos etc.) e dos capitais constantes
função de seus próprios objetivos.” (Ibidem, (como maquinário, sementes, adubos, bio-
p. 111)11 As cidades são, em geral, o ponto cidas etc.), torna-se maior a necessidade de
de intersecção entre horizontalidades e verti- movimento, aumentando o número e a impor-
calidades. Forças centrípetas (de agregação, tância dos fluxos, assim como do dinheiro, e
de convergência) conduzem a horizontaliza- dando um relevo peculiar à vida de relações. A natureza do espaço para
Milton Santos
ção e as forças centrífugas (de desagregação,
GEOGRAFARES, nº 6, 2008 • 163
Como a localização das diversas etapas do sigo é de pouca ajuda para a luta cotidiana
processo produtivo (produção, circulação, dis- – quanto menos inserido, mais o indivíduo
tribuição e consumo) pode, de agora em dian- sofre o choque da novidade – e, por isso, ne-
te, ser dissociada e autônoma, amplificam as cessita criar uma terceira via de entendimento
da cidade. Assim, o espaço geográfico atual
[...] necessidades de complementação entre os lu- é um conjunto indissociável de sistemas de
gares, gerando circuitos produtivos e fluxos cuja objetos e de sistema de ações; essas ações
natureza, direção, intensidade e força variam se-
constituem, no plano global, “normas de uso
gundo os produtos, segundo as formas produtivas,
segundo a organização do espaço preexistente e os dos sistemas localizados de objetos” mas,
impulsos políticos. [...] Os circuitos produtivos são no plano local, é o próprio território a nor-
definidos pela circulação de produtos, isto é, de ma- ma para o exercício das ações. A partir destes
téria. Os circuitos de cooperação associam a esses dois planos se constituem a razão global e a
fluxos de matéria outros fluxos não obrigatoria- razão local, “[...] que em cada lugar se su-
mente materiais: capital, informação, mensagens,
perpõem e, num processo dialético, tanto se
ordens. As cidades são definidas como pontos no-
dais, onde estes círculos de valor desigual se encon- associam, quanto se contrariam” (Ibidem, p.
tram e se superpõem. (SANTOS, 1994, p. 128) 267). As redes, como instrumentos de produ-
ção, circulação e informação mundializadas,
“Cada lugar é, a sua maneira, o mundo” são globais e são elas que transportam o uni-
(Idem, 1996, p. 252) e a atual história con- versal ao local. É o lugar que oferece ao mun-
creta recoloca a questão do lugar numa po- do a possibilidade de sua realização pois, para
sição central. Milton Santos insistia na visão “se tornar’ espaço’, o Mundo depende das
de totalidade e fazia restrições à valoração virtualidades do Lugar” (Ibidem, p. 271). A
demasiada, estreita, do aspecto econômi- ordem global procura impor uma única racio-
co. Nada fazemos atualmente, dizia ele, que nalidade a todos os lugares e estes respondem
não seja a partir dos objetos que nos circun- ao mundo conforme as diversas maneiras de
dam, o que força o geógrafo a trabalhar com sua própria racionalidade. Por isso, “[...] cada
todos os objetos e todas as ações; o espaço lugar é, ao mesmo tempo, objeto de uma ra-
12. Espaço banal, “[...] isto é, o es- banal12 é o espaço dos geógrafos. Para ele, zão global e de uma razão local, convivendo
paço de todos os homens, de todas as
firmas, de todas as organizações, de a cidade grande é um enorme espaço banal, dialeticamente” (Ibidem, p. 273). Um lugar
todas as ações – numa palavra, o es- é o lugar mais significativo, é o espaço no permanece em um mesmo ponto de intersec-
paço geográfico.” (SANTOS, 1994, ção das coordenadas geodésicas (a posição
p. 53). É um conceito que “[...] com-
qual os fracos podem subsistir, até por es-
porta a coexistência do diverso, onde caparem ao totalitarismo da racionalidade. física), mas sua localização está sempre mu-
coabitam os objetos naturais – para dando (a posição econômica e sócio-política).
Milton Santos, a natureza está cada
vez mais envolvida pela sociedade –, Por isso, defendia que, na cidade, são os po- As ações realizadas em um lugar podem ser
os objetos técnicos, a informação e a bres que mais olham para o futuro. Vivem estranhas a ele e a seus habitantes por serem
comunicação, enfim, um espaço com- produtos de necessidades alheias e gera-
plexo distinto do econômico, do social
eles nas zonas opacas (espaços de criativida-
ou de qualquer outro espaço temático, de) opostas às zonas luminosas (espaços da das em pontos distantes (as verticalidades).
de qualquer campo do conhecimento.” exatidão), e suas carências os forçam a ima-
(Gonçalves, in: SANTOS, 2002, p.
176) Esse lugar da coexistência do ginar um outro futuro (o desconforto criador).
diverso não pode ser visto sem suas Distingue a cultura de massas, hegemônica, CONSIDERAÇÕES FINAIS
conexões sistêmicas com a totalidade,
com a formação sócio-espacial.
amolecedora da consciência e que se alimenta
das coisas, da cultura popular, profunda, que A chamada globalização, o estágio atual do
se nutre dos homens. Esta última possui raí- processo de internacionalização, constitui
zes na terra em que se vive, “[...] simboliza o “[...] a amplificação em ‘sistema-mundo’ de
homem e seu entorno, encarna a vontade de todos os lugares e de todos os indivíduos, em-
enfrentar o futuro sem romper com o lugar” bora em graus diversos.” (SANTOS, 1994, p.
(SANTOS, 1996, p. 262) e, por isso, quando 48) Ela procura unificar, homogeneizar (em
alguém migra para a cidade grande se defron- benefício de um pequeno número de atores)
ta com um espaço que não ajudou a criar, do mas, necessariamente, ainda não integra (as
qual desconhece a história. O que traz con- novas tecnologias possibilitam a integração
Rui Ribeiro de Campos
mas ainda não a realizaram). “As tentati-
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vas de construção de um mundo só sempre __________. A natureza do espa-
conduziram a conflitos, porque se tem bus- ço: técnica e tempo, razão e emoção.
cado unificar e não unir.” (Ibidem, p. 35) São Paulo: HUCITEC, 1996, 308 p.
E o fato de que __________. O país distorcido: o Bra-
sil, a globalização e a cidadania.
[...] o processo de transformação da sociedade in-
dustrial em sociedade informacional não se com- São Paulo: Publifolha, 2002, 221 p.
pletou inteiramente em nenhum país, faz com que
vivamos, a um só tempo, um período e uma crise, e
assegura, igualmente, a percepção do presente e a
presunção do futuro, desde que o modelo analítico RESUMO
adotado seja tão dinâmico quanto a realidade em
O artigo procura caracterizar, de modo di-
movimento e reconheça o comportamento sistê-
mico das variáveis novas que dão um significação dático, os principais conceitos utilizados
nova à totalidade. (SANTOS, 1994, p. 121/122) pelo geógrafo Milton Santos (1926-2001).
Com base em suas obras, o texto busca dar
Com produção e informação13 globaliza- uma visão do pensamento miltoniano no fi- 13. Informação não é sinônimo de
das (permitindo o lucro em escala mundial), comunicação, pois “[...] podemos
nal do século XX, que possui as técnicas transmitir informações sem criar-
os lugares tendem a ser tornar globais, com
como sistemas demarcadores de uma pe- mos ou alimentarmos quaisquer
o que ocorre em um repercutindo nos de- laços sociais. [...] Na experiência
riodização, procurando esclarecer concei- comunicacional intervêm processos
mais. Mas as relações globais são ainda re-
tos como globalização, espaço geográfico, de interlocução e de interação que
servadas a um pequeno número de agentes criam, alimentam e restabelecem os
formação sócio-espacial, território, espa-
(bancos e empresas transnacionais, e alguns laços sociais que partilham os mesmos
Estados) que necessitam do controle dos es- ço luminoso e opaco, totalidade e outros. quadros de experiência e identificam
as mesmas ressonâncias históricas de
píritos para a regulação das finanças. Por um passado em comum. Comunicar
isso, o discurso globalizado, para ter eficácia Palavras-chave: Milton Santos – espaço geo- [...] etimologicamente significa ‘pôr
em comum’.” (SANTOS, 1996, p.
nos lugares, necessita de pensadores nacio- gráfico – espaços luminosos e espaços opacos. 253).
nais associados e de um sotaque doméstico.

Há hoje uma realidade histórica unitária em ABSTRACT


um mundo extremamente diversificado. An- The article aims to define, in a didactic
tes havia uma história de lugares, regiões, way, the main concepts used by the geogra-
países. Podiam até ser continentais, em fun- pher Milton Santos (1926-2001). Based in
ção de alguns impérios que se estabelece- his work, the text approach is a view of the
ram; agora é que se inicia, verdadeiramen- Milton’s thought in the end of the 20th Cen-
te, a história universal (SANTOS, 2002, p. tury, which contains techniques as age marker
153). Por isso, os protestos contra a atual systems, as an attempt to explain concepts
situação do mundo não podem ser rotulados such as globalization, geographical space,
de antiglobalização, pois não buscam um social and spacial formation, territory, lumi-
retorno a um período anterior às Grandes nous and opaque spaces, totality and others.
Navegações; são movimentos sociais contra
esta e favoráveis a uma outra globalização. Key Words: Milton Santos – geographical
spaces – luminous spaces and opaque spaces.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SANTOS, Milton. Por uma geografia nova:


da crítica da geografia a uma geografia crítica.
São Paulo: HUCITEC/EDUSP, 1978, 236 p.
__________. Técnica, espaço, tempo: glo-
balização e meio técnico-científico informa-
A natureza do espaço para
cional. São Paulo: HUCITEC, 1994, 190 p. Milton Santos

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