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Raízes

v.32, n.1, jan-jun / 2012

AS CONTRIBUIÇÕES DE PLÁCIDE RAMBAUD PARA A APLICAÇÃO DA DISTINÇÃO


CONCEITUAL ENTRE CAMPO/RURAL E CIDADE/URBANO

Ana Louise de Carvalho Fiúza, Neide Maria de Almeida Pinto, Patricia Ferraz do Nascimento

RESUMO

Neste artigo apresentamos uma revisão bibliográfica das contribuições de Placide Rambaud sobre os conceitos de “Campo” e “Rural”, e de
“Cidade” e “Urbano”, diferenciando-os em termos de forma e conteúdo. Discutimos sua concepção teórica de “urbanização” do campo,
argumentando que este processo aponta para a possibilidade de acesso a um padrão/estilo de vida que se torna acessível aos indivíduos tanto
da cidade, quanto do campo. Argumentamos que é pertinente a utilização da expressão “campo urbanizado”, quando se tratar de um espaço
marcado por um processo de diferenciação das atividades econômicas, de especialização da divisão social do trabalho e, portanto, de dife-
renciação do tecido social.

Palavras-chave: Campo; cidade; rural; urbano.

PLACIDE RAMBAUD’S CONTRIBUTIONS TO THE USE OF CONCEPTUAL DISTINCTION


BETWEEN COUNTRYSIDE/RURAL AND CITY/URBAN

ABSTRACT

In this article we present a literature review of the contributions done by Placiede Rambaud on the concepts of “Field” and “Rural” and
“City” and “Urban”, differentiating them in terms of form and content. We discuss the theoretical concept of “urbanization” of the field,
arguing that this process points to the possibility of accessing to a standard/lifestyle which becomes accessible to individuals from both the city
and the countryside. We also argue to be pertinent using the term “field urbanized” in the case of a space marked by a process of economic
activities differentiation, specialized division of labor and therefore of the social tissue differentiation.

Mots-clés: Field; City; Rural; Urban.

Ana Louise de Carvalho Fiúza. Professora e coordenadora da Universidade Federal de Viçosa. E-mail: louisefiuza@ufv.br. Neide Maria de
Almeida Pinto. Professora do programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Viçosa. E-mail:nalmeida@ufv.br. Patricia Ferraz do
Nascimento. Mestranda da Universidade Federal de Viçosa. E-mail: patifena@hotmail.com

Raízes, v.32, n.1, jan-jun / 2012


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INTRODUÇÃO valores de um dado grupo de pessoas, para as
normas que seguem e para os bens materiais
É coerente cientificamente a utilização que criam.
da categoria “Campo Urbanizado” ou de “Ci- Já “campo” e “cidade” correspondem
dade Ruralizada”? O conceito de “Campo” é a características concretas do dito meio, re-
o mesmo de “Rural” e o de “Cidade” corre- fletindo a necessidade social dominante em
sponde ao de “Urbano”? Apresentamos, neste um determinado período histórico. Segundo
artigo, de forma destacada, as discussões de Sanchez-Casas (2009), o aparecimento do ex-
Plácide Rambaud acerca do processo de ur- cedente na agricultura marca o processo inicial
banização da sociedade rural na França. Acr- de diferenciação entre a “cidade” e o “campo”;
editamos que este autor, ainda pouco debatido entretanto, esta contradição entre “campo” e
na sociologia rural brasileira, traz importantes “cidade” fica subsumida na contradição entre
contribuições para a compreensão das transfor- centro e periferia, que se consolida com o sur-
mações sociais pelas quais o campo vem pas- gimento do “Estado Moderno”. A cidade muda
sando, sem vitimá-lo a uma condenação, mas, qualitativamente incorporando o campo como
ressaltando, antes, a conexão temporal entre os sua periferia, constituindo uma relação que
habitantes do campo e da cidade, a qual afe- unifica a ambos, campo e cidade, no território
ta os seus modos de vida. Comportamentos, nacional, o qual se torna a base sobre a qual se
práticas, hábitos e tradições estão em constante estabelece o Estado Moderno. Posteriormente,
transformação, independente do lugar, campo com a consolidação da globalização ocorre a
ou cidade. Modos de vida tradicionais se trans- perda de capacidade do Estado de territori-
formam. O processo de urbanização da socie- alizar o suporte da formação social. Ocorre,
dade se expande, englobando tanto o campo, então, um novo salto qualitativo: a dialética
como a cidade. Este é tema desenvolvido neste centro-periferia típica do Estado Moderno é
artigo, que além de apresentar de forma de- subsumindo na dialética global-local. Assim, o
stacada a concepção de Rambaud a aproxima global passa a absorver a autonomia local das
de autores como Sanches-Casas, Lefebvre e au- diferentes formações sociais.
tores brasileiros contemporâneos, mais vincula- O processo de urbanização não significa
dos à geografia. a perda das especificidades locais, da cultura
Para Sanchez-Casas (2009), “Campo” que se enraíza em cada localidade e dos mo-
e “Cidade” não têm conteúdo exclusivamente dos de vida que sobre ela vão se tecendo. O
ou predominantemente espacial. “O rural” e urbano está relacionado a um padrão/estilo de
“o urbano” não correspondem a formas físicas vida caracterizado pela possibilidade de escol-
espacializadas, mas, antes, concretizam as car- ha, de acesso à tecnologia, a bens de consumo
acterísticas do modo de assentamento, as quais industrializados, a determinados bens cult-
refletem os efeitos das estratégias de satisfação urais (cinema, teatro, biblioteca...), a serviços
das necessidades sociais dominantes em termos (saúde, educação, saneamento básico...). Por
de reprodução biológica, socioeconômica e so- outro lado, o rural está relacionado, também,
cioambiental. Assim, “rural” e “urbano” apon- a um padrão/estilo de vida marcado pelo rústi-
tariam para o plano cultural, para a esfera dos co, pelo artesanal, por relações sociais do tipo
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face a face, etc. Contudo, tais padrões/estilos ainda, em profusão, restaurantes de comidas
de vida “urbanos” ou “rurais” podem se estab- regionais típicas, com seus fogões artesanais.
elecer tanto na cidade, como no campo. Logo, Presenciamos eventos culturais tais como fes-
cidade e urbano são conceitos distintos, assim tivais de música sertaneja, cavalgadas e eventos
como campo e rural também o são. A cidade religiosos. Por outro lado, é possível, ao estar
pode consumir e absorver o rural, assim como no campo, encontrar pista de pouso para aviões
o campo pode consumir e absorver o urbano, e helicópteros, casas com todos os confortos
sem que isto signifique a homogeneização espa- urbanos, barzinhos para a moçada, restauran-
cial e social do campo ou da cidade, conforme tes de cozinhas internacionais e, tudo isto, con-
afirma Rua (2002). vivendo, lado a lado, com o modo de vida das
Quando utilizamos a categoria “Cam- pessoas do lugar, que continuam fazendo as
po Ruralizado”, estamos definindo um espaço suas procissões, as suas festas, a ter formas de
com características físicas específicas, como sociabilidade comuns à época de seus avós, en-
pequena densidade demográfica, natureza com fim, pessoas que convivem e absorvem o mod-
pequeno grau de artificialização, dentre outras, erno sem que, com isto, tenham que abrir mão
mas com a presença de bens e serviços típicos do tradicional, de hábitos e costumes genuínos
do padrão de urbanização. Assim, um “campo do lugar onde se criaram.
Ruralizado” pode absorver os padrões urbanos Lefebvre (2009) aponta para uma socie-
sem perder as suas especificidades culturais. dade urbana em constituição. Acredita que esta
Contudo, a relação entre “rural” e “urbano” sociedade tem suas origens no processo de in-
é uma relação marcada por um ativo processo dustrialização quando a superação da precarie-
de aculturação entre os modos de vida. Como dade foi possibilitada pela evolução tecnológi-
destaca Rambaud (1969) os rurais absorvem a ca. Contudo, afirma que nem toda sociedade
Cultura urbana na sua própria cultura, selecio- tem acesso aos meios necessários para vencer
nando o conteúdo a ser absorvido, bem como tal precariedade. Logo, a chamada sociedade
dando forma e ritmo próprio a este processo urbana é uma projeção, uma virtualidade. Tal
de aculturação. A este processo de aculturação, sociedade refere-se à qualidade de vida, quali-
que, segundo Rambaud, é de caráter individual dade nas relações humanas. Pode ser, assim,
e não coletivo, o autor denomina de “constitu- compreendida como um processo que se coloca
ição do Canivar particular de cada indivíduo”. de forma diferenciada em cada espaço, sendo,
Diante dessas colocações é possível afir- portanto, heterogênea e não implicando homo-
mar que o campo no Brasil nunca foi tão ur- geneidade das culturas locais.
bano como agora, nem as cidades tão rurais. O processo de urbanização torna pos-
Em toda grande cidade é possível se perceber sível perceber que no campo pode haver crian-
a existência de vilas, seja na periferia ou nas ça, sem haver infância, pode haver jovem, sem
regiões centrais, onde as pessoas se conhecem haver juventude, pode haver velho, sem haver
e se tratam pelo nome, sem nenhum traço Terceira Idade, pode haver mulher rural, sem
do anonimato urbano. Há, também, as áreas haver mulher com individualidade própria, en-
verdes preservadas, os vazios demográficos, as fim, pode haver pessoa, sem haver indivíduo.
habitações rústicas e precárias. Encontramos, O processo de urbanização é marcado por al-
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gumas características próprias: a diferenciação Rurale et Urbanisation, também, destaca este
do tecido social; a crescente divisão social do processo de envolvimento do campo pelo modo
trabalho, com seu processo de especialização de vida urbano, que se desenvolve primeira-
das funções; a diversificação dos espaços e das mente nas cidades, mas que vai englobando, de
identidades, bem como pela presença do Esta- forma crescente, a sociedade como um todo,
do, em termos de aplicação das leis e prestação inclusive o campo. No Brasil, o campo vem
de serviços, assim como pela organização da sofrendo, principalmente após a década de
sociedade civil (sindicatos, partidos políticos, setenta, mudanças tecnológicas, econômicas e
ONGs, associações etc). sociais significativas. Antes agrícola, o campo
Desse modo, pode-se considerar com- passa a ser, também, cenário para o desenvolvi-
pletamente pertinente a utilização da categoria mento de “atividades multifuncionais”, absor-
“campo urbanizado”, quando se tratar de um vendo demandas que vão além da produção de
espaço marcado por um processo de diferen- alimentos.
ciação das atividades econômicas, de especial- O processo de urbanização do campo
ização da divisão social do trabalho e, portanto, vem se traduzindo em um amplo fenômeno
de diferenciação do tecido social. Já pode-se fa- de mudanças das relações sociais: o camponês
lar de “Campo ruralizado” quando o espaço, vai perdendo gradativamente a sua autonomia
no qual se desenvolvem as relações sociais, é face ao crescente processo de industrialização
marcado por um modo de vida que reflete uma das atividades produtivas no campo, transfor-
pequena diferenciação social do trabalho e do mando-se, também, em consumidor de bens
tecido social, sendo, também, marcado por uma e serviços, sem que, contudo, isto signifique a
menor inter-relação e interdependência com a perda da sua identidade. O que ocorre é que
cidade. o processo de urbanização aproxima campo e
cidade, em função dos agricultores deixarem
de ser apenas produtores de alimentos, ficando,
1. DISCUSSÕES RELEVATES quase que fechados no espaço agrícola. Nesse
processo, eles passam a ser, além de outras coi-
Para explicar o processo de urbaniza- sas, ofertantes de serviços demandados pelos
ção, Lefebvre (2001) realiza uma periodização citadinos na sua busca por um maior contato
estabelecendo três grandes eras: a agrária, a in- com a natureza, com as suas raízes e as suas
dustrial e a urbana. Na Era Agrária existia uma tradições distantes.
nítida separação entre campo e cidade baseada Assim, o campo passa a se constituir em
na divisão do trabalho, ficando o campo com um espaço de oferta de turismo voltado para
o trabalho manual e a cidade com o trabalho o contato com a “natureza”, através, inclusive,
intelectual. Na Era Industrial generaliza-se a do esporte, bem como através da busca das
troca e comércio, o solo se transforma em mer- tradições gastronômicas, culturais, religiosas,
cadoria, e na Era Urbana, ainda por se concreti- etc. Diferentemente do que se poderia pen-
zar em toda a sua abrangência, se generalizaria sar, portanto, este processo de urbanização do
a realidade urbana. campo não deve ser entendido como o seu de-
Rambaud (1969), em sua obra Société saparecimento, mas, pelo contrário, como um
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processo de crescente interdependência e co- em um primeiro instante, ocorre sob uma per-
municação entre pessoas que transitam amiúde spectiva urbana. Esse retorno à mãe natureza
entre os dois espaços. Uma das características só é imaginável pelos citadinos, mediante a sua
engendradas por esse processo de crescente associação com o conforto e a acessibilidade,
urbanização do campo que nos interessa aqui e sem perder o vínculo com a cidade e com a
analisar é o fenômeno da pluriatividade, a par- mídia. Nesse sentido, o que impulsiona as ativi-
tir da concepção teórica trazida por Carneiro dades consideradas como pertencentes ao novo
(1998). A autora, ao estudar a vida de peque- rural é uma demanda urbana, ou como indaga
nos agricultores dos Alpes franceses, identifi- o autor, “(...) será que as pessoas voltariam para
cou que os mesmos, para além de desenvolver- o campo sem eletricidade e outros confortos já
em atividades agrícolas e não-agrícolas, como incorporados como necessidades, com base em
tantos agricultores part-time tradicionalmente referenciais urbanos?” (ENDLICH, 2010, p.
faziam, desenvolviam tal combinação em um 29).
contexto territorial marcado pela franca comu- Neste contexto, para Lunardi E Souza
nicação entre o campo e a cidade. (2009), o desenvolvimento da atividade turísti-
A demanda dos citadinos por turismo, ca, enquanto uma atividade rural não agrí-
lazer, gastronomia e cultura propiciava que, cola, tem se dado como parte do processo de
para além das atividades agrícolas, se desen- reestruturação do campo no Brasil, especial-
volvessem, nas propriedades rurais, outras for- mente, após a década de 1990, como modo de
mas de prestação de serviços. Não se tratava reprodução econômica e social de muitas famí-
mais, portanto, de enxergar um campo exclu- lias agricultoras. Segundo Carneiro (1998), o
sivamente agrícola, fechado dentro da sua fun- turismo é uma atividade que permite o contato
ção agrícola, tradicional, de produzir alimen- entre os valores e as representações sociais de
tos. O campo, ora observado, incorporava uma diferentes grupos, resultando, deste encontro,
dimensão multifuncional, realizando atividades uma cultura singular que não é rural, nem ur-
e desempenhando funções para além das agrí- bana, pois não é determinada por um espaço
colas. As famílias pluriativas desenvolvem di- físico. Assim, o turismo rural expressa uma
versas atividades não agrícolas paralelamente à nova relação entre campo e cidade, incorpo-
agricultura: atividades agroindustriais, artesan- rando novas funções produtivas para além da
ato, lazer e turismo. vinculada à tradicional oferta de alimentos in
Seria, portanto, um equívoco interpre- natura.
tar o contexto, no qual a pluriatividade se de- Neste sentido, Rambaud (1969) defende
senvolve, no campo como um retorno ao rural a perspectiva de uma Cultura Urbana como he-
tradicional ou como um renascimento de valores gemônica, embora absorvida de forma diferen-
rurais. O desenvolvimento da pluriatividade é ciada e, mesmo individualizada, por pessoas de
um fenômeno que reflete o processo de urban- diferentes localidades, compondo contornos
ização crescente do campo e não um retorno ao próprios acerca das manifestações culturais em
rural tradicional. Segundo Endlich (2010), essa nível local. Segundo o autor, quando os rurais
proposta de volta ao campo e de revalorização se tornam consumidores, começam a fazer par-
da natureza, diferente do que se pode imaginar te da sociedade urbana. Destaca, ainda, a ideia
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de acessibilidade da cidade, caracterizando-a trabalhadores tinham em relação ao chefe, que
como o lugar onde pessoas de diferentes par- comandava o seu trabalho, enquanto no campo
tes (bairros, periferias, campo e outras cidades) cada um sabia o que fazer e fazia como queria.
poderiam buscar o que lhes falta ou que dese- Pesava-se, também, o fato de que o trabalho
jam. O individuo poderia montar, assim, o seu mais livre do campo não contava com os mes-
próprio canivar, o seu estilo pessoal, com o que mos benefícios e garantias sociais que se tinha
escolhe pegar da cultura urbana. Desta forma, na cidade, como salário e garantias trabalhis-
embora Rambaud afirme haver um processo tas. A educação também se constituía em outro
de aculturação, revela que este se dá de forma ponto destacado como positivo pelos rurais,
processual, não tendo um caráter coletivo, mas principalmente, por permitir às crianças um
individual. ensino de melhor qualidade. A cidade era dese-
Perceber os espaços como “urbaniza- jada por jovens e mulheres por ser vista como
dos” ou “ruralizados” nos permite dimensionar oferecendo maiores oportunidades de diversão.
de uma forma mais clara os modos de vida con- Em contrapartida, acreditava-se que na cidade
struídos pelas pessoas na atualização do her- faltava humanidade, havendo pouco convívio
dado do passado,, com o filtrado do presente. com a família – as pessoas eram vistas como se
Tais modos de vida, re-significados, expressam, conhecendo, mas não se mostrando, vivendo o
justamente, uma atividade consciente de junção anonimato e a solidão.
da cultura local com as transformações incorpo- Tais representações dos rurais acerca do
radas através das manifestações características campo e da cidade mostram o caráter relacio-
de um determinado tempo histórico, as quais nal que os mesmos fazem de ambas, mas, acima
apresentam, inclusive, as visões de mundo dos de tudo, destacam a forma como avaliam, de
rurais acerca da cidade e do campo. forma consciente, os prós e os contras, como se
Ao estudar o processo de urbanização estivessem diante de uma vitrine em que pudes-
do campo na França do Pós-Segunda Guerra sem escolher o melhor dos dois mundos, segun-
Mundial, Rambaud (1969) destaca a atitude do o seu julgamento de valor. Saindo, agora,
ativa dos rurais, ao avaliarem os pontos positi- da esfera das representações dos rurais acerca
vos e negativos do campo e da cidade, a fim de do “Campo” e da “Cidade”, Rambaud passa a
procederem à filtragem dos aspectos que lhes apresentar os contrastes que observa entre os
convinha em ambos. Assim, destaca o autor que modos de vida que se estabelecem entre um
os rurais associavam a cidade com o dinheiro “Campo Urbanizado” e outro “Ruralizado”.
e a descontração. Por outro lado, a cidade era O “Campo Ruralizado”, segundo Ram-
vista como exigindo das pessoas o pagamento baud (1969), é lugar do falar pouco em virtude
por tudo. Todavia, a vida na cidade era vista do se trabalhar muito. Prepondera, assim, a
como sendo mais fácil, com a pessoa tendo economia de palavras – em função da suprema-
tudo à mão. cia do fazer face ao falar. O trabalho no campo
Na cidade a pessoa era percebida como é solitário ou em família, a pessoa volta-se para
podendo se tornar mais independente da na- si mesma. Os rurais utilizam-se de línguas de
tureza, tendo mais tempo livre. Mas, por outro caráter local - os patoás, que seriam uma espé-
lado, percebia-se a maior dependência que os cie de dialeto, que se caracterizam pela econo-
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mia de palavras. O patoá pode ser visto como pensar em termos de futuro, conforme destaca
uma expressão da tradição de um campo ru- Rambaud (1969).
ralizado. Já a urbanização propiciaria ao indi- Frente a este processo de urbanização,
víduo fluxos contínuos de interação, levando- os jovens rurais sentem-se atraídos pela cidade
as a utilizarem a fala e dentro de parâmetros em virtude desta ser percebida, antes de tudo,
normativos mais universais. Assim, a linguagem como lugar de trabalho com ganho seguro. Esta
urbana propiciaria ao indivíduo o acúmulo de percepção indica uma noção de trabalho como
experiências e troca de informações com uma emprego diferente da concepção de trabalho
gama muito maior de pessoas. agrícola. A cidade, por ter se tornado pólo de
Mas, se, de um lado, há um processo atividades secundárias e terciárias, oferece pos-
consciente de escolha e seleção por parte dos sibilidades de trabalho mais numerosos que o
rurais acerca da formação do seu próprio Ca- campo, exercendo por este fato uma atração
nivar, do seu estilo, a partir das influências da profissional. Assim, quando o campo urban-
cultura urbana; por outro lado, há uma vivên- izado passa a oferecer a ampliação de trabalhos
cia inconsciente da absorção deste processo de não agrícolas e que exigem uma formação pro-
urbanização. Ao utilizar as transformações ab- fissional, este passa a exercer um maior atrativo
sorvidas através do modo como o tempo e o para a fixação deste grupo.
trabalho passam a ser vivenciados pelos rurais, O processo de urbanização no campo
evidencia-se a sua perspectiva de englobamento vem, assim, mexer com esta noção tradicio-
universal de todos os indivíduos em um mesmo nal de ocupação profissional. Segundo destaca
tempo histórico, ainda que ressaltando que as Rambaud (1969), o trabalho representa uma
influências culturais trazidas com a urbanização função essencial de toda a sociedade, e caso a
não sejam absorvidas de forma homogênea pe- sociedade não possa suprir estas expectativas
los indivíduos e pelas diferentes localidades. do grupo, este a repudia. Certamente, os rurais
Na sociedade rural, o tempo não tinha não percebem a falta de emprego no campo em
muitas repartições, a natureza ditava o ritmo termos de desemprego, pois essa noção é de ori-
da vida, não sendo este ainda medido e toma- gem urbana. “estar desempregado” supõe que
do como mercadoria, tendo um preço e sen- se tenha exercido uma profissão assalariada.
do pago em dinheiro. O dinheiro trazia uma Em contraste, o “estar sem emprego”, para os
perspectiva de certeza porque era associado ao rurais, significa que se está procurando um tipo
pagamento recebido quando se tinha um em- específico de ocupação, aquela que lhe exige
prego, enquanto no campo o ganho era perce- estar apto a ter um lugar na esfera da produção
bido como incerto, por depender dos caprichos ou da prestação de serviço qualificado. Assim,
da natureza: seca, enchente, pragas etc. Assim, a falta de trabalho típica dos períodos de sa-
a perspectiva do salário introduz no campo zonalidade no campo ruralizado é vista de
uma reviravolta, sendo interpretado como um forma diferenciada do estar desempregado em
símbolo de segurança de ganho, em que o din- um campo urbanizado. No campo ruralizado,
heiro torna presente a liberdade no campo, em “não estar trabalhando” significa apenas seguir
virtude de diminuir o medo do risco em in- o ritmo da natureza que estabelece períodos sa-
vestimentos futuros, propiciando ao indivíduo zonais de trabalho e não trabalho. Contudo, no
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campo urbanizado o indivíduo vivencia o des- urbanização do campo traz argumentos con-
emprego, julgando o espaço propício para con- tundentes de contestação, fundamentados em
struir a sua vida a partir da suficiência ou insu- torno da percepção das transformações em tor-
ficiência permanente de trabalho. O mundo do no da vivência do tempo, não mais o tempo da
trabalho constitui-se, assim, para os rurais, em natureza, mas o da imposição parcial da tecno-
mais uma fonte de confrontação entre campo e logia sobre o meio. Mesmo que não se reduza
cidade, ou entre um campo ruralizado e outro a perspectiva de campesinato a uma autarquia,
urbanizado. a um sistema agrícola auto-suficiente, fechado
sobre si mesmo, não se pode negar as transfor-
mações em torno das sociedades camponesas
2. CONSIDERAÇÕES FINAIS de outrora. Contudo, se o camponês pode ser
percebido como parte de uma vida pretérita,
Desenvolvemos a argumentação ao isto se dá em função da vitalidade do campo,
longo deste artigo de que a não distinção en- em decorrência da diversificação e diferencia-
tre “Campo” e “Rural” e entre “Cidade” e ção do tecido social e econômico.
“Urbano” causa muitos equívocos teórico-met- A perspectiva em torno de uma Socie-
odológicos. Aqueles que interpretam o proces- dade Urbana, da qual o campo é parte integran-
so de urbanização como algo que se efetivaria te, aponta para um processo de expansão da
de forma homogênea, como uma urbanização urbanização que, embora nasça na cidade, gen-
completa da sociedade, não consideram que o eraliza-se, englobando e envolvendo, também,
processo de aculturação provocado pela urban- o campo. Esta marcha da urbanização provoca
ização se dá de forma heterogênea e em ritmos mudanças nos modos de vida, nos hábitos e
diferenciados, sendo este um processo de forte valores. A crescente industrialização do campo
conotação individual e não de massificação co- retira dos camponeses a sua autonomia rela-
letiva. tiva, transformando também eles em consumi-
Outro equívoco que a utilização da dores, modifica a sua concepção de trabalho,
perspectiva de urbanização do campo permite de tempo livre, de futuro, envolvendo-os em
desfazer é em relação àqueles que defendem a um processo de aculturação contínuo ao modo
perspectiva de um “novo rural”. Ao se diferen- de vida urbano. Contudo, isto não significa o
ciar conceitualmente “Campo” como espaço desaparecimento das especificidades identi-
físico, de “Rural” como estilo/modo de vida, tárias do campo.
podemos perceber que, embora o campo venha A urbanização do campo revela que,
experimentando um crescimento das suas ocu- tal como a cidade, também este espaço físico
pações, estas se dão em torno de atividades e as pessoas que nele habitam absorvem de
não-agrícolas. Portanto, o campo que experi- diferentes formas as transformações que são
menta um processo de expansão é o campo em próprias do seu tempo. Nesse processo, uma
processo de urbanização. Mas, sobretudo, para das faces mais claras do entrelaçamento entre
aqueles que apostam na recriação do campo campo e cidade pode ser vista através das de-
e do campesinato, como forma de resistência mandas geradas pelos citadinos em termos de
ao sistema capitalista, a perspectiva teórica da lazer e turismo no campo. O crescimento das
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