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ISSN 1980-5772

eISSN 2177-4307
10.18227/2177-4307.acta.v17i43.8062 ACTA Geográfica, Boa Vista, v. 17, n. 43, jan./abr. 2023. Pp. 222-239

REGIONALIZAÇÃO, CIDADES E URBANODIVERSIDADE NA AMAZÔNIA


BRASILEIRA*

Regionalization, cities and urban-diversity in the Brazilian Amazon

Regionalización, ciudades y diversidad urbana en la Amazonía brasileña

Saint-Cair Cordeiro da Trindade Júnior


Universidade Federal do Pará
stclair@ufpa.br

Resumo
Sustenta-se que a complexidade socioespacial amazônica exige reconhecimento de sua diversidade
natural (biodiversidade), social (sociodiversidade) e urbana (urbanodiversidade). Para isso,
mostram-se particularidades sub-regionais da Amazônia brasileira e a diversidade urbana delas
decorrente. O argumento central considera a noção de espaço socialmente produzido e a perspectiva
teórico-metodológica do desenvolvimento geográfico desigual e diferenciado, de forma a mostrar, a
partir de diferentes tipos de cidades, a expansão de frentes capitalistas na região, assim como
contrarracionalidades e resistências de natureza econômica, política e sociocultural que configuram
o território regional internamente. Conclui-se, chamando a atenção para a necessidade de políticas
territoriais e urbanas descentradas que estejam em plena sintonia com as particularidades regionais,
de modo a garantir tomadas de decisão e formas de gestão que se contraponham às tendências de
homogeneização do espaço regional e de padronização da vida urbana.
Palavras-chave: Regionalização. Urbanização. Cidades. Urbanodiversidade. Amazônia Brasileira.

Abstract
The article argues that the Amazonian sociospatial complexity requires recognition of its diversity
in its natural (biodiversity), social (sociodiversity) and urban (urban-diversity) dimensions. In order
to do so, it indicates sub-regional particularities of the Brazilian Amazon and the urban-diversity
that results from them. The central argument considers the notion of socially produced space and
the theoretical-methodological perspective of uneven and differentiated geographic development, in
an effort to indicate, starting from different types of cities, the expansion of capitalist fronts in the
region, as well as economic, political and sociocultural counter-rationalities and resistance
movements that internally configure the regional territory. As a conclusion, the article draws
attention to the need for decentered territorial and urban policies that are fully in tune with regional
particularities, in order to ensure decision-making and management forms that counteract the trends
of homogenization of the regional space and standardization of urban life.

Keywords: Regionalization. Urbanization. Cities. Urban-diversity. Brazilian Amazones.

*
Este trabalho resulta de reflexões relacionadas ao projeto de pesquisa “Geografias e epistemologias do Sul: Amazônia,
olhares críticos em perspectiva”, desenvolvido como parte das atividades do autor na condição de bolsista de
produtividade de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, Brasil),
entidade do governo brasileiro voltada para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Uma primeira versão do
mesmo foi publicada nos anais do Simposio Internacional Ciudades para la Vida em la Amazonia (TRINDADE
JÚNIOR., 2021).
Resumen
Se argumenta que la complejidad socioespacial amazónica requiere el reconocimiento de su
diversidad natural (biodiversidad), social (sociodiversidad) y urbana (diversidad urbana). Frente a
estas premisas, se muestran las particularidades subregionales de la Amazonía brasileña y la
diversidad urbana resultante. El argumento central considera la noción de espacio socialmente
producido y la perspectiva teórico-metodológica del desarrollo geográfico desigual y diferenciado,
con el fin de mostrar, desde diferentes tipos de ciudades, la expansión de frentes capitalistas en la
región, así como las contrarracionalidades y resistencias de carácter económico, político y
sociocultural que configuran internamente el territorio regional. En conclusión, se llama la atención
sobre la necesidad de políticas territoriales y urbanas descentradas que puedan estar plenamente en
sintonía con las particularidades regionales, con el fin de asegurar la toma de decisiones y formas de
gestión que se opongan a las tendencias de homogeneización del espacio regional y estandarización
de la vida urbana.

Palabras clave: Regionalización. Urbanización. Ciudades. Diversidad urbana. Amazonía brasileña.

Introdução
Qual a relação entre a configuração territorial amazônica e seu processo de urbanização
intrarregional diferenciado? Com essa questão busca-se analisar a correspondência entre a
diversidade urbana e a diversidade socioespacial que nos permite falar não apenas de uma
Amazônia, mas de várias “amazônias” no território brasileiro. O argumento central considera a
perspectiva teórico-metodológica da produção social do espaço. Esta ajuda a pensar tanto a
racionalidade e a expansão hegemônica do capital nos últimos anos na Amazônia quanto as
contrarracionalidades e resistências de natureza econômica, política e sociocultural que nessa escala
regional se apresentam.
Do ponto de vista empírico, a análise se apoia em pesquisas realizadas em períodos
diferentes em várias sub-regiões do espaço amazônico brasileiro, onde foram assimilados dados e
informações a respeito das realidades urbanas visitadas, mas, sobretudo, em observações in loco por
meio de leitura sistemática da paisagem urbana. Apoia-se, igualmente, em literatura pertinente e em
diálogos com outros pesquisadores que se preocuparam em entender a região sob o ponto de vista
de sua urbanização e de sua diferenciação interna.
Sustenta-se que a complexidade socioespacial amazônica exige reconhecimento de sua
diversidade natural (biodiversidade), social (sociodiversidade) e urbana (urbanodiversidade). Para
isso, mostra-se, por meio da produção social do espaço, as particularidades sub-regionais presentes
e a diversidade urbana a elas associadas. Conclui-se, chamando a atenção para a necessidade de
políticas territoriais e urbanas descentradas que estejam em plena sintonia com tais particularidades,
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de modo a garantir tomadas de decisão e formas de gestão que se contraponham às tendências de
homogeneização do espaço e de padronização da vida urbana na região.

Amazônia: produção desigual e diferenciada do espaço regional


Não é rara a impressão de grandiosidade, de homogeneidade e de estranheza que a grande
região amazônica causa a muitos que a veem a partir de olhares externos. Lévi-Strauss (1996), por
exemplo, impressionou-se com a floresta, tal a sua densidade, a presença de outros seres e a
sensação que lhe causava de lhe manter à margem e de lhe parecer difícil de ser penetrada:

vista de fora, a floresta amazônica lembra um monte de bolhas imóveis, um amontoado


vertical de inchações verdes; parece que um distúrbio patológico atacou uniformemente a
paisagem fluvial. Mas quando se fura a película e se passa para o interior, tudo muda: vista
de dentro, essa massa confusa transforma-se num universo monumental. A floresta deixa de
ser uma desordem terrestre; poderíamos torná-la por um mundo planetário, tão rico quanto
o nosso e que o teria substituído (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 364).

Apesar da imagem de homogeneidade da região, quando vista internamente, como o próprio


autor adverte, tudo muda a ponto de se transformar em um universo monumental. Essa
monumentalidade, por sua vez, remete-nos à sua riqueza, especialmente àquela que decorre da sua
diversidade biológica, social e espacial. Não obstante a importância de se levar em conta o bioma
florestal amazônico, não raro, seu entendimento deixa escapar um dualismo entre a ideia de
natureza e a de sociedade. Avançar diante dessa interpretação pressupõe considerar a produção
social do espaço (LEFEBVRE, 1974), assim como a noção de formação socioespacial (SANTOS,
1982), pois ambas estabelecem a relação dialética que se dá entre sociedade e natureza, conforme
bem traduziu essa interação Swyngedouw (2001, p. 87-88):

[...] tanto a sociedade quanto a natureza são produzidas [...] A idéia de uma espécie de
natureza absolutamente pura (primeira natureza nos termos de Lefebvre) torna-se
crescentemente problemática à medida que a socionatureza produz uma “natureza”
inteiramente nova no espaço e no tempo e o número de híbridos e quase-objetos se
multiplica. De fato, desde o início da modernização, mas em ritmo acelerado na medida em
que ela avançava, os objetos e sujeitos da vida cotidiana tornaram-se gradualmente mais
socionaturais [...] Sem dúvida, o processo de produção da socionatureza inclui processos
materiais (edifícios e novos materiais genéticos), bem como múltiplas representações
simbólicas e discursivas da natureza [...].

O termo socionatureza parece se adequar muito bem ao entendimento da Amazônia. Nesta, a


separação natureza e sociedade é mera abstração, uma vez que, na primeira, de alguma maneira, a
sociedade se faz presente, seja de forma direta, por meio de alterações visíveis na paisagem, seja de
forma indireta, mediante representações e valores socioculturais; e, na segunda, a natureza se
integra de maneira mais ou menos alterada aos demais elementos socioespaciais criados pelo
trabalho humano, assim como aos imaginários simbólico-culturais da vida cotidiana.

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O espaço socialmente produzido aparece, assim, como uma noção importante para
reconhecer essa relação. De fato, conforme discutido por autores como Lefebvre (1974) e Santos
(1986), a noção de espaço, tido como produção social pelo primeiro, e instância social pelo
segundo, representa a superação daquela dicotomia, por ser um terceiro elemento resultante da
interação sociedade e natureza e que incorpora um e outro em uma relação dialética.
Ao modo do tempo social, que não é cronológico, mas relação, o espaço não é mera
extensão, mas, sobretudo, materialidade e representação de relações sociais (LEFEBVRE, 1974).
Como o tempo, ele é socialmente produzido, a ponto de o capitalismo ter conseguido sobreviver até
hoje produzindo um espaço para si (LEFEBVRE, 1973). Iguala-se à força produtiva, à maneira
concebida por Lefebvre (1973, 1974), que procura conferir a ele o mesmo status ontológico
atribuído por Marx (1988a) ao capital e ao trabalho, sendo, ao mesmo tempo, produto, condição e
meio de reprodução das relações sociais.
Ao tratarmos o espaço nesses termos não se quer simplesmente afirmá-lo em face dos
processos sociais, mas, antes, inserir a espacialidade como um elemento possível de compreensão
da sociedade. Nesse caso, ele não contém o processo de reprodução, uma vez que, de fato, integra
esse processo, constituindo-se força necessária à sua existência. Portanto, não é procedente
concebê-lo como um receptáculo da sociedade e de sua dinâmica, mas sim como uma de suas
dimensões, compondo com aquela uma unidade dialética, morfologia espacial e social
(LEFEBVRE, 1991), sendo, assim, forma e conteúdo simultaneamente. Temos em conta que essa
perspectiva ajuda a pensar a Amazônia de maneira a concebê-la como uma formação socioespacial
no conjunto do território brasileiro e sul-americano.
Santos (1986), ao considerar o espaço como uma das instâncias da sociedade, reserva a ele o
mesmo grau de importância que é dado às demais instâncias (econômica, jurídico-política,
ideológico-cultural) comumente mencionadas nas discussões marxistas. Para o período atual, as
transformações na instância espacial tendem a acompanhar aquelas outras mudanças que se
verificam nas demais instâncias da sociedade; momento em que particularizam, ao nível do espaço,
formações econômicas e sociais diferenciadas no contexto do modo de produção capitalista,
permitindo visualizar a expansão desigual e combinada do mesmo no plano mundial. Nesse sentido,
regiões como a Amazônia se revelam como espaços funcionais ao todo, fruto de combinações de
formas-conteúdos, de sistemas de objetos e ações, e de conjuntos de fixos e fluxos (SANTOS, 1988,
1996).

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Diferenciação interna do espaço amazônico e diversidade da vida urbana
No caso amazônico, considera-se que a complexificação da divisão do trabalho se manifesta
territorialmente pela diversificação dos objetos e das ações, com densificação técnica dos territórios,
que resulta em assimetrias entre os subespaços. Para desvendar tal complexificação, a noção de
composição orgânica do território (SANTOS, 1992, 1993) ajuda a entender a diferenciação do
espaço amazônico em relação a outras regiões brasileiras, assim como sua própria diferenciação
interna.
Conforme Marx (1988b), o aumento, no processo produtivo, dos investimentos em capital
constante (meios de produção) em detrimento do capital variável (mão de obra) tem como
consequência uma maior composição orgânica do capital. Na esteira desse raciocínio, Santos (1992,
1993) concebe a ideia de composição orgânica do território. Esta ocorre, segundo o autor, na
medida em que o espaço, na condição de instância social, passa a apresentar, junto com as unidades
de produção capitalistas que assimilam grandes investimentos em tecnologia, uma maior densidade
técnica, aumentando, no plano territorial, sua composição orgânica.
Dessa maneira, as regiões de maior composição orgânica do território são mais densas
tecnicamente, sendo nelas onde se localizam os elementos de comando; diferentemente daquelas
onde a composição orgânica do território é menor, que tendem a se constituir em regiões do fazer e
do obedecer. Daí as fortes assimetrias regionais em diferentes escalas no momento atual, chamado
de período técnico-científico informacional (SANTOS, 1996).
Pressupondo o espaço como uma das instâncias sociais, o mesmo autor sugeriu a noção de
formação socioespacial, que, igualmente, reúne elementos importantes para reconhecer as
particularidades espaciais de uma região como a Amazônia, haja vista que aquela nada mais é que a
espacialidade da formação socioeconômica (SANTOS, 1982), noção bastante presente na
abordagem marxista, e na qual Santos também se apoiou para estabelecer a relação dialética entre o
todo e a parte, bem como para reconhecer a unidade da diversidade, pois designa, conforme sugere
Martins (1996), tanto um segmento do processo histórico – a formação econômico-social capitalista
– quanto o conjunto do processo histórico demarcado pelo modo de produção.
A noção de formação socioespacial, mais utilizada para estabelecer a compreensão do
Estado-nação, parece também ser um instrumento teórico em potencial para reconhecer diferenças
regionais em diferentes escalas, ao nível supra e também infranacional. Ela revela particularidades
do modo de produção ao nível do território, levando-nos à sua leitura a partir do papel que as
regiões desempenham na divisão territorial do trabalho. Nesse caso, as instâncias sociais
(econômica, política, ideológico-cultural e espacial) em conjunto são assim consideradas para
auxiliar no reconhecimento do que é particular no plano territorial, como forma-conteúdo, ou, se

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quisermos, como um conjunto particular indissociado de sistemas de ações e de objetos no contexto
do modo de produção dominante (SANTOS, 1996).
É dessa maneira que os processos de regionalização na Amazônia podem ser associados à
teoria do desenvolvimento geográfico desigual (SMITH, 1988; HARVEY, 2006); desenvolvimento
este promovido pela mobilidade e pela lógica capitalista no espaço ao longo do tempo em seu
anseio de lucro e de acumulação, mas, igualmente, como manifestações de processos diferenciados
(LEFEBVRE, 1970a, 1974; HARVEY, 2004), em razão das potencialidades imprimidas pela
natureza e seus recursos e pela cultura dos povos que se estabeleceram na região ao longo de sua
história milenar.
Um dos conceitos que, no contexto do espaço amazônico, têm sido mobilizados para a
leitura das desigualdades e diferenciações que nele se expressam, tendo em vista a racionalidade
capitalista, é o de fronteira. A fronteira econômica e tecnoecológica, proposta por Becker (1990a,
2004), refere-se a um movimento pioneiro de ocupação de um território, onde se verificam avanços
em manchas de processos de reprodução capitalista em suas versões mais atuais, sendo, por isso,
um espaço estratégico de expansão, de imposição e de negociação dos interesses capitalistas.
Inicialmente, a autora falava de um vetor técnico-industrial de reprodução ampliada, a
fronteira econômica (BECKER, 1990a), e que hoje, cada vez mais, assume uma versão
pretensamente sustentável de desenvolvimento (BECKER, 2004), mas nem por isso desvinculada
dos mesmos propósitos de reprodução econômica. Trata-se de espaço diverso de estruturação do
território brasileiro, alterando-se, sobremaneira, a organização socioespacial anterior de maneira
mais intencional ou mais espontânea de ocupação (BECKER, 1990a; MACHADO, 2000).
Assentada na perspectiva do espaço socialmente produzido e como materialidade de uma
formação econômica, a fronteira apresenta-se como parte de processos sociais e espaciais, assim
como de estratégias geopolíticas e econômicas que configuram no território brasileiro uma
particularidade regional na sua porção mais setentrional. Articula, assim, a configuração social e
espacial dos processos às diferentes formas de poder/controle do território por parte de agentes que
aí se fazem presentes, com especial ênfase ao Estado e ao grande capital (BECKER, 2004), que
criam diferenças internas apoiadas em distintas densidades técnicas em cada porção do território.
Como parte desse processo, várias frentes de expansão se constituíram, dentre elas a
“fronteira urbana”, responsável por configurar a “floresta urbanizada”, um fenômeno diretamente
ligado à expansão da fronteira econômica, que já nasce urbana, seja pela presença estratégica das
cidades, seja pela difusão de um modo de vida urbano (BECKER, 1990a, 2004). Nesse contexto,
não há um padrão de organização único na região, por isso a urbanização se apresenta polimorfa e
desarticulada, havendo nela diferentes formas de interação socioespacial e de formações

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microssociais híbridas que definem elementos e frentes responsáveis por configurar diferentes
expressões da urbanização regional (BROWDER; GODFREY, 1997).
A noção de fronteira sociocultural, de Martins (1997), também se acrescenta a essa ideia
anterior, ao considerar a dimensão socioantropológica dos novos processos que se configuram,
sendo, por isso, espaço de encontro/desencontro de diferentes. Sugere, nesse entendimento, que,
para além do modo de produção e da formação econômica, considerem-se elementos da alteridade
sociocultural e política dos sujeitos, com seus conflitos e resistências, que demarcam a
muldimensionalidade da vida social regional e que incluem práticas espaciais, representações e
concepções diferentes de espaço-tempo (MARTINS, 1997). Manifestação por excelência do
conflito social, a Amazônia é, assim, o lugar do encontro dos que por múltiplas razões são
diferentes, mas, a um só tempo, de descoberta do outro e de desencontro, fruto de concepções de
vida diversas e de visões de mundo de cada grupo existente (MARTINS, 1997).
Soma-se a isso os novos conteúdos da vida moderna por meio de uma “urbanização
extensiva”, na qual a extensão do urbano se dá para além das cidades, através de seus valores
(MONTE-MÓR, 2004). Assim, a difusão da sociedade urbana (LEFEBVRE, 1970b) representa a
difusão de novos ritmos e tempos na região, cujo modo de vida urbano passa a ser marcante, não
necessariamente pelo domínio da cidade na paisagem, mas pelos valores que, no plano regional, são
difundidos a partir dela (OLIVEIRA, 2000). Tal complexidade desemboca na natureza da fronteira
enquanto espaço socialmente produzido, que, não sendo homogêneo, configura desigualdades e
diferenciações internas.
Não obstante tais diferenciações, ainda são recorrentes as interpretações dualistas a respeito
dela; dualismos esses que giram em torno da polarização entre elementos como, por exemplo, a
natureza e a sociedade, o rural e o urbano, o tradicional e o moderno, o interno e o externo, a
floresta e a cidade, a preservação e a exploração e o rio e a rodovia. Para tentar ultrapassar tais
visões dualistas, buscaremos aqui focar esta última particularidade que gira em torno da circulação
fluvial e da rodoviária. Ainda que esses dois tipos de circulação sejam os mais expressivos na
região, conforme se observa no Mapa 1, a complexidade e a diversidade da forma e da vida urbana
não se constroem a partir delas apenas, conforme é possível constatar em cinco sub-regiões que aqui
selecionamos para análise.

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Mapa 1 – Amazônia: formas de circulação e configurações sub-regionais
Elaboração: Estêvão Barbosa a partir de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE, 2018, 2019, 2021).

Ultrapassado o olhar cartográfico mais geral, se focarmos os detalhes dos ordenamentos sub-
regionais (I, II, III, IV, V) identificados no mapa referenciado, e tomados aqui a título de
exemplificação, é possível constatar quão complexos e diferenciados são os ordenamentos
territoriais e as formas e conteúdos urbanos que aí se fazem presentes.
De início, é importante levar em conta que as cinco sub-regiões em detalhe têm como
referências cidades consideradas intermediárias na rede urbana regional. Não se trata
necessariamente de cidades de porte médio, aquelas que possuem população acima de 100 mil
habitantes, mas de cidades que se destacam pela intermediação de processos de naturezas diversas
(econômica, política e sociocultural) e onde são disponibilizados uma série de serviços, bens,
equipamentos, infraestrutura etc. que atendem às suas respectivas sub-regiões; daí o papel de
intermediação entre esses subespaços, com os quais interagem diretamente, e com as metrópoles
regionais, em relação às quais possuem relativa dependência econômica, política, administrativa e
sociocultural.
Também é possível identificar, grosso modo, diferentes subespaços menos impactados e
mais resistentes a novos processos capitalistas e outros mais intensamente transformados por esses
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processos. A estes últimos chamaremos da Amazônia dos grandes projetos e das grandes rodovias, e
aos primeiros de Amazônia dos grandes rios. Trata-se de mera denominação, uma vez que tanto os
grandes projetos e as rodovias estão presentes nesta última, como os grandes rios também se fazem
presentes na primeira. A nomeação ajuda apenas a identificar algumas das características e formas
de circulação que estão mais presentes em uma e em outra.
Na primeira, tecnicamente menos densa em seu plano territorial, é flagrante a presença
daquilo que Santos (1996) chamou de tempo lento, posto que seus ritmos ainda acompanham,
mesmo que parcialmente, os processos e movimentos da natureza; bem diferente das primeiras, que
tendem a ser comandadas por ritmos mais rápidos, articulados àquilo que o mesmo autor chamou de
meio técnico-científico informacional. Nessa configuração dos espaços, Santos (1996) se refere a
duas dimensões, uma mais técnica, vinculada aos objetos e elementos da paisagem, a tecnosfera; e
outra, formada de valores e comportamentos, a psicosfera. Para as cidades aqui consideradas, talvez
seja possível nos referirmos a tecnosferas e psicosferas das cidades mais ligadas à floresta e aos
rios, e outras mais associadas aos valores que chegam através dos novos objetos técnicos e dos
meios mais rápidos de transporte, como as rodovias; mas não apenas por meio delas, pois
igualmente ferrovias, aerovias, meios de comunicação etc. são portadores de inovações que ajudam
a difundir a sociedade urbana (LEFEBVRE, 1970b), reafirmando a não polarização entre rios e
rodovias.
O grau de complexidade quanto à forma de articulação por meio de diferentes tipos de
transporte aumenta da sub-região I até a sub-região V, ratificando o desenvolvimento geográfico
desigual e diferenciado e as variadas densidades técnicas do território no interior da Amazônia. A
sub-região I (Médio Solimões), onde se encontra a cidade de Tefé, corresponde a uma porção da
Amazônia dos grandes rios. Nessa porção, além da conexão que se estabelece pela via fluvial, há
complementaridade e relativa dependência dos fluxos aéreos que a conectam especialmente com
Manaus, a capital do Estado do Amazonas. Caracterizada por sua centralidade periférica nessa sub-
região (QUEIROZ, 2017), a cidade de Tefé tem destaque e importância pelo apoio que proporciona
às interações sub-regionais e ao restante da Amazônia.
A sub-região II (Baixo Tocantins), onde se localiza a cidade de Cametá (Estado do Pará),
compõe uma porção da região dominada pelos grandes rios, mas que teve alteração em seu
ordenamento territorial em razão da presença de rodovias, mesmo que precárias, paralelas ao
Tocantins, o rio principal, e por se situar entre dois grandes projetos instalados no espaço regional
(a Usina Hidrelétrica de Tucuruí e o complexo urbano-industrial-portuário de Barcarena). Portanto,
diferentemente da sub-região de Tefé, no Baixo Tocantins tem-se a alteração de fluxos que incluem

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o modal rodoviário, assim como o fato de que se trata de uma sub-região impactada por grandes
empreendimentos, mesmo que indiretamente.
A sub-região III (Bragantina-Salgado), onde está situada a cidade de Bragança, e que a
exemplo de Cametá constitui uma das mais antigas da Amazônia paraense e brasileira, fundadas
ainda no século XVII, corresponde a uma porção da Amazônia que não foi dinamizada pelos
grandes rios no decorrer de seu processo histórico. Seus vínculos com o litoral, com a Estrada de
Ferro de Bragança, hoje desativada, e com as rodovias, são bem mais fortes. Elemento importante
na produção do espaço sub-regional foi a colonização agrária por migrantes, especialmente do
Nordeste do Brasil, assentados ao longo da extinta ferrovia. Interligando Bragança a Belém, essa
linha ferroviária foi concebida no auge da economia gomífera da Amazônia, definindo fluxos e o
ordenamento territorial dessa sub-região desde o início do século XX até o final dos anos 1960,
quando então foi substituída pelas rodovias. Ainda assim, entretanto, conservou parte de seu
ordenamento territorial antigo, reconhecido por Miranda (2009) como o padrão “ferrovia-terra
firme-colônia”.
A sub-região IV, o Baixo Amazonas, onde se situa Santarém (Estado do Pará), sua principal
cidade, corresponde a uma Amazônia ainda mais híbrida, cujo ordenamento territorial acompanha a
importância dos rios, mas, ao mesmo tempo, se dinamiza por importantes rodovias: a Cuiabá-
Santarém e a Transamazônica. Por estar a meio caminho e, ao mesmo tempo, relativamente distante
das principais metrópoles regionais (Belém e Manaus), tem também na interligação aérea uma de
suas importantes formas de articulação intrarregional e com as demais regiões do país.
Por fim, tem-se a sub-região V (Sudeste Paraense), onde se situa a cidade de Marabá. Esta
sub-região, mesmo com a presença de grandes rios, como o Tocantins e um de seus principais
afluentes, o Itacaiúnas, tende a ser referenciada como fazendo parte da Amazônia das rodovias,
como a Transamazônica e a PA-150, e dos grandes projetos, especialmente pela presença do
empreendimento da empresa Vale S.A., voltada à produção/exportação do minério de ferro extraído
na Serra de Carajás, no Município de Parauapebas, pertencente a essa sub-região do Estado do Pará.
As rodovias, nesse caso, ainda que sejam hoje as mais importantes formas de articulação da
cidade com a sua sub-região e com outras porções do espaço amazônico e brasileiro, divide ainda
seus fluxos de transporte com outros modais de circulação. Além dos rios, tem-se a presença da
ferrovia de Carajás e as conexões aéreas como importantes formas de articulação regional. De
qualquer forma, foi principalmente pelas estradas que chegou um grande número de migrantes
responsáveis pelo crescimento da cidade e por sua configuração atual, com destaque para a
particularidade de seus núcleos principais, que constituem várias cidades em uma só (a Velha
Marabá, a Nova Marabá e a Cidade Nova), e outros dois menores (São Félix e Morada Nova).

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Tefé, por integrar uma região ainda pouco dinamizada pelas frentes econômicas capitalistas
que se instalaram em outras porções da região, apresenta ainda uma forte presença de populações
locais1, com poucos impactos de processo migratórios, assim como uma economia de base
“tradicional”2; elementos esses que se refletem também nos conteúdos urbanos presentes na
cidade3. Esta apresenta uma forma de “urbanização tradicional” (BECKER, 1990b), com
predomínio, em razão da circulação fluvial, do tempo lento em detrimento do tempo rápido, ainda
que no interior da cidade chamem atenção os grandes fluxos de motocicletas utilizadas como umas
das principais formas de circulação intraurbana. Visualiza-se, igualmente, o domínio daquilo que
Santos (1979) chamou de circuito inferior da economia urbana4, mas, ainda assim, com forte nexos
pontuais de difusão da sociedade urbana; elementos esses que remetem, na paisagem, a um processo
de segregação socioespacial pouco perceptível, dada a relativa homogeneidade dos padrões de vida
visivelmente caracterizados pelas populações de baixo poder aquisitivo.
Perfil semelhante possui a cidade de Cametá na sub-região do Baixo Tocantins. Não
obstante os novos elementos na configuração e dinâmica socioespacial, como as rodovias paralelas
ao rio principal, trata-se de uma sub-região constituída predominantemente por populações de
origem local e de pouca presença de migrantes, dinamizada em grande parte por uma economia de
base tradicional (agroextrativista) (TRINDADE JÚNIOR, 2009). Na cidade de Cametá há ainda o
domínio do tempo lento e da maior presença do circuito inferior da economia que se combina a
poucas atividades do circuito intermediário. A difusão da sociedade urbana, por seu turno, faz-se
presente, mas flagrantemente diferenciada e de modo pontual, a ponto de ser ainda uma cidade que
se distingue pelas tradições econômicas e culturais do passado amazônico e com fortes

1
Como populações locais, referimo-nos àquelas originárias da própria região, a exemplo das chamadas populações
tradicionais (indígenas, quilombolas e caboclas de um modo geral), não sendo frutos de processos migratórios mais
recentes; por isso, possuem fortes laços de enraizamento e de identidades regionais. Diferenciam-se daquelas outras que
chegaram à região mais recentemente, notadamente em razão de movimentos migratórios, induzidos ou mais
espontâneos, e que trouxeram consigo elementos outros, frutos de suas inserções e identidades econômicas e culturais
para com as regiões de origem.
2
Consideraremos “economia tradicional” aquele conjunto de atividades (produtivas, extrativas, manufatureiras e de
comércios e serviços) mais relacionadas a produtos locais e/ou de pequena escala; ao passo que a “economia moderna”
abrange atividades que chegaram à região notadamente a partir da segunda metade do século XX com as frentes
capitalistas de produção, a exemplo da mineração em grande escala, assim como da agricultura e da pecuária modernas,
e que transformaram e impactaram sobremaneira os biomas e as estruturas socioeconômicas locais.
3
Quando traduzidos para as cidades, tais perfis econômicos e populacionais caracterizam, ainda que em graus
diferenciados, uma urbanização mais moderna, como é o caso das cidades associadas à produção mineral e aos
agronegócios, ou a uma urbanização mais tradicional (BECKER, 1990b), como se vê nas cidades ditas ribeirinhas,
pouco transformadas pelas frentes econômicas mais recentes.
4
Para Santos (1979, 1994), o circuito inferior corresponde às formas de reprodução social das populações mais pobres;
o superior, relaciona-se às modernizações tecnológicas e organizacionais e aos esquemas corporativos de reprodução
econômica; e o intermediário, ou superior marginal, aproxima-se em parte do superior, na busca de adequação a
parâmetros modernos, mas que tem muito do perfil do circuito inferior, dado o seu caráter subordinado e à sua
vinculação às demandas mais locais e/ou regionais.
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enraizamentos que incluem os valores ribeirinhos e da vida da floresta, o que é facilmente
reconhecido nas formas de circulação intrarregional e nas práticas econômicas e culturais locais.
Essas duas cidades diferenciam-se de Bragança, cuja região em que se situa recebeu uma
quantidade significativa de população migrante desde a transição do século XIX para o XX. A
história particular da Bragantina define um perfil populacional que é um híbrido de valores e
tradições de populações locais e de migrantes que não são tão recentes, posto que se trata de
populações que colonizaram o entorno da ferrovia desde a época do período áureo da borracha e
que hoje se caracteriza por um perfil de produção econômica tradicional, mas com modernização
pontual de algumas atividades que se voltam para mercados mais dinâmicos, seja da Grande Belém,
seja de fora dela (MIRANDA, 2009).
Ainda que a presença das rodovias dê novos dinamismos a toda a sub-região, no caso de
Bragança, trata-se ainda de uma urbanização com forte traços da vida local do passado e de relativa
presença do tempo lento, onde é visível o domínio de um circuito inferior da economia urbana, com
algumas manifestações do circuito intermediário e com poucos nexos de difusão da sociedade
urbana, apenas esparsamente presentes na paisagem da cidade. No geral, entretanto, trata-se de um
perfil populacional de fortes raízes sub-regionais, com preservação de costumes e valores culturais e
com pouca diferenciação interna do ponto de vista do padrão de vida no interior do espaço urbano.
Mesmo que seja perceptível a segregação socioespacial, esta não apresenta grandes contrastes
sociais entre classes de baixa e alta rendas, uma vez que o padrão de habitação e infraestrutura
presente nos objetos socioespaciais da cidade revela o domínio das classes populares de baixa renda
(classe baixa e classe média baixa).
O mesmo não se verifica em Santarém, onde se constata tanto a presença de uma população
de origem local, como também aquela fruto de migrações mais recentes, como a decorrente da
expansão da soja na Amazônia, e do passado, como a população do Nordeste brasileiro que se
dirigiu para a região em momentos diferentes, a exemplo da que migrou no período áureo da
borracha e, em um segundo momento, quando se procurou reestabelecer a produção desse produto
na região, antes mesmo dos processos de integração regional do período militar, pós-1960. Afora
isso, são diferentes e numerosos os grupos de migrantes de várias regiões do país que chegaram ao
Baixo Amazonas em momentos diferentes, mas especialmente com o processo de abertura das
rodovias a partir da segunda metade do século XX5. Trata-se, portanto, de uma sub-região que se

5
A instalação de projetos de desenvolvimento econômico e de infraestrutura na sub-região a que pertence Santarém,
como a Usina Hidrelétrica de Curuá-Una e a exploração mineral de bauxita nos municípios de Oriximiná e de Juruti,
reafirmou a importância da cidade, que foi acrescida pelo incremento da atividade turística, a ponto de se tornar porto
de parada de transatlânticos, atraídos por sua condição ribeirinha, por suas praias fluviais, pelo encontro das águas do
Tapajós e do Amazonas e por outros encantos ecoturísticos e manifestações culturais.
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caracteriza por uma superposição de eventos e processos diversos, mas que, ainda assim, mantém,
em grande medida, suas feições ribeirinhas e de forte ligação com a vida da floresta.
A exemplo do perfil populacional, a economia sub-regional acompanha o hibridismo
característico. Abarca uma economia mais “tradicional”, ainda ligada aos povos e tradições da
floresta, mas que também é demarcada por frentes econômicas diversas, inclusive aquelas de
natureza mais moderna e que hoje desemboca na forte tendência de expansão da produção e da
circulação da soja e de outros produtos a ela articulados, assim como na importância logística e
portuária de Santarém no processo de exportação de produtos do agronegócio para os grandes
mercados mundiais (TRINDADE, 2015). Tal complexidade se manifesta em sua configuração
urbana, que apresenta uma diversidade interna relacionada a diferentes padrões de ordenamento
espacial, mas, ainda, com fortes traços ribeirinhos (COSTA, 2014).
Apesar dos novos objetos socioespaciais que chamam atenção na paisagem urbana, como o
porto graneleiro da empresa Cargill situado nas margens do Rio Tapajós, trata-se de um espaço
urbano que contém rugosidades históricas – elementos significativos do passado presentes na
paisagem atual (SANTOS, 1986) –, por ser uma das cidades pioneiras no processo de ocupação
territorial da Amazônia. Sua complexidade urbana se reflete, assim, tanto no tempo mais lento das
populações ribeirinhas, como nos tempos mais velozes ligados às necessidades de circulação do
capital e de difusão da sociedade urbana que, cada vez mais, fazem-se presentes tanto na cidade
como no restante do espaço sub-regional. Exemplo disso é também a convivência e a justaposição
dos três circuitos da economia urbana, de fácil percepção no espaço urbano e já demonstradas em
vários estudos, como em Trindade Júnior, Trindade e Oliveira (2014), Costa (2014), Trindade
(2015) e Oliveira (2017).
Essa diversidade intraurbana revelada em Santarém leva a constatar a presença de uma
psicosfera urbana ribeirinha justaposta e mesmo imbricada àquela outra proveniente dos valores que
chegam por meio da rodovia, a exemplo da cultura e da economia associados à expansão dos
agronegócios. Nessa cidade, a presença mais visível das classes sociais também permite distinguir
na própria paisagem urbana um maior processo de diferenciação e de segregação socioespacial.
Um outro perfil é apresentado pela cidade de Marabá. Na configuração da cidade e da sub-
região há uma grande presença da população migrante, vinda de diferentes pontos do território
brasileiro atraída pelas várias frentes econômicas que aí se formaram e que levaram a economia
local e sub-regional a um franco processo de modernização, ainda que os retornos dos
investimentos não se convertam necessariamente em benefícios diretos à população local. Daí se
tratar de um espaço urbano que revela alta complexidade, com tendência de domínio do tempo
rápido em detrimento do tempo lento e de convivência dos diversos circuitos da economia urbana,

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mas com flagrante presença do circuito inferior que manifesta formas alternativas de sobrevivência
de populações mais carentes e excluídas dos benefícios da economia moderna presente na cidade e
na sub-região.
As transformações vivenciadas, entretanto, levaram a um notório domínio de uma psicosfera
urbana, mesmo que precária, e de grande presença daquilo que aqui estamos chamando de uma
cultura da estrada, que coloca em segundo plano os valores e a cultura ribeirinha e da floresta
(NUNES, 2015). Marcada pela pobreza generalizada em todos os núcleos que compõem a cidade, é
possível visualizar, de qualquer forma, a presença de setores seletivos no interior do espaço urbano
e que, por meio da paisagem percebida, nos revelam graus diferenciados de segregação
socioespacial, de acordo com a configuração de cada um desses núcleos que caracterizam a
complexa malha urbana marabaense.
Assim, as cinco sub-regiões e suas respectivas cidades, apresentadas como exemplos da
regionalização interna e da diversidade urbana da Amazônia brasileira, ajudam-nos a problematizar
a realidade regional para além dos dualismos geralmente atribuídos a determinados aspectos da
realidade socioespacial da região. Nesse sentido, tais exemplos revelam, mesmo que parcialmente, a
urbanodiversidade amazônica e a realidade regional bem mais complexa do que parece à primeira
vista, para além, portanto, da dualidade rio-rodovia; complexidade essa que, quando bem
compreendida, auxilia a pensar políticas públicas urbanas e regionais descentradas que possam ir ao
encontro da diversidade regional, contrapondo-se ao processo de homogeneização do urbanismo e
da vida urbana em curso.

Considerações finais
A regionalização apresentada e a complexidade da vida urbana presente na Amazônia, vistas
através dos detalhes das sub-regiões e de suas respectivas cidades, remetem-nos ao pensamento de
Santos (1996), que nos fala das horizontalidades e das verticalidades para entender as regiões
contemporâneas. Para o autor:

nas atuais condições, os arranjos espaciais não se dão apenas através de figuras formadas de
pontos contínuos e contíguos. Hoje, ao lado dessas manchas, ou por sobre essas manchas,
há também, constelações de pontos descontínuos, mas interligados, que definem um espaço
de fluxos reguladores. As segmentações e partições presentes no espaço sugerem, pelo
menos, que se admitam dois recortes. De um lado, há extensões formadas de pontos que se
agregam sem descontinuidade, como na definição tradicional de região. São as
horizontalidades. De outro, há pontos no espaço que, separados uns dos outros, asseguram
o funcionamento global da sociedade e da economia. São as verticalidades. O espaço se
compõe de uns e de outros desses recortes, inseparavelmente. É a partir dessas novas
subdivisões que devemos pensar novas categorias analíticas (SANTOS, 1996, p. 225).

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A complexidade e a diversidade da vida urbana na Amazônia resultam do entrecruzamento,
da superposição e da tensão entre horizontalidades e verticalidades. As cidades com fortes vínculos
locais e com valores da floresta traduzidos para os seus conteúdos urbanos nos fazem pensar mais
em horizontalidades. Por outro lado, as cidades demarcadas sobretudo pelas verticalidades tendem a
negar, em grande medida, o seu passado regional e a muldimensionalidade da floresta,
estabelecendo vínculos com outras demandas, tal a forte interação com espaços e valores extralocais
que, inclusive, propendem-se a comprometer o ciclo metabólico da floresta. De qualquer maneira,
horizontalidades e verticalidades convivem cada vez mais em uma mesma realidade urbana, de
modo tenso e conflitivo.
Tendo em vista a necessidade de pensarmos utopicamente em novas formas e conteúdos
para as cidades amazônicas mais sintonizadas com a vida da floresta, seja enquanto bioma, seja
enquanto realidade sociocultural, cabe muito mais falarmos não necessariamente em oposição entre
horizontalidades e verticalidades, mas de processos que, juntos, demarcam a realidade urbana
regional atual com vistas a uma visão prospectiva.
Inicialmente, há que se pensar em políticas de desenvolvimento urbano e regional
descentradas e apoiadas principalmente nas demandas internas do espaço amazônico; pressuposto
este que nos leva a refletir sobre ações e práticas socioespaciais que estejam de fato em sintonia
com o metabolismo da floresta e com os valores socioculturais que a ela foram agregados ao longo
de sua história. Para isso cumpre, a princípio, considerarmos a floresta não apenas como um simples
bioma, mas igualmente como uma socionatureza, nos termos de Swyngedouw (2001), mencionado
anteriormente. Nesse caso, também é importante ter em conta a natureza não apenas como simples
recurso econômico, conforme se coloca para os interesses corporativos, e nem como simples
elementos de contemplação, conforme se coloca muitas vezes para as políticas voltadas para o
turismo, mas de vê-la sobretudo em sua multidimensionalidade, a saber: recurso material e
econômico, território de circulação, espaço de ludicidade e de realização de atividades cotidianas e,
igualmente, lugar de representações e de imaginários socioculturais.
Afora isso, as cidades para a vida da floresta, articuladas às demandas locais e regionais,
contrapõem-se às políticas estandardizadas e homogeneizantes presentes, por exemplo, em cidades
hospedeiras das grandes empresas e voltadas para os interesses corporativos das formas capitalistas
de produção e de circulação que se apresentam nas escalas locais e sub-regionais. Nesse sentido, é
preciso atentar para os processos de resistência das populações locais e para as estratégias criativas
de geração de trabalho e renda que nessas realidades se manifestam a partir dos saberes e práticas
locais, como os que decorrem de circuitos populares de reprodução econômica e que, muitas vezes,

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são responsáveis pelo atendimento de grande parte das demandas das populações regionais, em
contraponto aos grandes circuitos que costumam atender a interesses extralocais.
Essa perspectiva tem a ver também com o interesse de pensarmos em novas formas de
centralidade a serem apoiadas no sentido de garantir a vida e a existência de algumas cidades,
especialmente as pequenas e médias, que nem sempre se articulam aos dinamismos dos grandes
mercados. Fala-se aqui de centralidades socioterritoriais, que estão articuladas ao circuito inferior
da economia urbana e ao circuito intermediário, mas, igualmente, a outras demandas e fluxos.
Dizem respeito especialmente a atividades e serviços diversos responsáveis por configurar aquilo
que Bitoun (2009) chamou de “responsabilidade territorial” dessas cidades para com o entorno local
e regional, em oposição à responsabilidade corporativa e voltada para os mercados globais.
Tais elementos tendem a promover gradativamente uma outra forma de ordenamento
territorial que pressupõe espaços urbanos inclinados ao atendimento de demandas precipuamente
cidadãs, conforme sugeriu Santos (1987) ao pensar o espaço brasileiro à luz de um arranjo cívico-
territorial como possibilidade e verdadeira condição de cidadania. As cidades para a vida na
floresta devem se inspirar naquele tipo de responsabilidade e neste tipo de ordenamento territorial,
de forma a garantir cidadania e qualidade de vida como pressuposto de existência de vida biológica
e sociocultural no interior da floresta.

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