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Habitac;Oes Indígenas

Sylvia Caiuby Novaes (organizadora)


Maria Elisa Ladeira
Aracy Lopes da Silva
Lux Vidal
Cristina Sá
Dominique Gallois
Lucia Hussak van Velthem

Nobel
Editora da Universidade de Sao Paulo
Sylvia Caiuby Novaes é antropóloga e profes-
sora do Departamento de CiAncias Sociais da
FFLCH da USP. Participou da funda~o do
Centro de Trabalho Indigenista sendo, atual-
mente, sua presidente. Desenvolve tese de
doutoramento que tem por tema a questAo da
identidade étnica.
Maria Elisa Ladeira é antropóloga. Desde 1974
se dedica fj¡ pesquisa entre os grupos Timbira
do Maranhno e Goiás. Em 1982 defendeu dis-
sertac;no de mestrado na área de Antropologia
Social da USP. Desde 1975 vem trabalhando
na área de educac;no indígena. É assessora do
Centro de Trabalho Indigenista e trabalha na
coordenac;no do Projeto Kraho, vinculado a
esta entidade.
Aracy Lopes da Silva é professora de Antro-
. pologia do Departamento de CiAncias Sociais
da FFLCH da USP. Em 1972 iniciou pesquisas
entre os Xavante do Mato Grosso. Em 1980,
defendeu tese de doutoramento em Antropo-
logia Social na USP. Coordenou a elaborac;Ao
do livro A Questso ds Educa~o lndlgens (Ed.
Brasiliense, SAo Paulo, 1981 ), publicac;Ao da
ComissAo Pró-lndio/ SP.
Lux Boelitz Vidal foi professora do Liceu Pas-
teur e é, desde 1969, professora de Antropo-
logia do Departamento de CiAncias Sociais da
USP, instituic;Ao pela qual se doutorou. É res-
ponsável pelo Museu Plfnio Ayrosa da USP.
É, atualmente, Presidente da ComissAo Pró-
lndio/ SP. Autora de Morte e Vida de,. uma
Sociedade lndlgena Brasileira e de vários ar-
tigos.
Cristina Sá é formada em Arquitetura e Ar-
queologia pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro e obteve mestrado em História da Ar-
quitetura pela FAUUSP. Desde 1976 se de-
dica ti pesquisa e ao ensino. O objeto de suas
pesquisas atuais é: " Habitac;oes Indígenas
Brasileiras".
Dominique Gallois é antropóloga. Em 19n
comec;ou a pesquisar a história dos WaiApi do
Amapá. Defendeu dissertac;Ao de mestrado
em Antropologia Social na USP. Na tese de
doutorado, em desenvolvimento, estuda o
trabalho indígena nas miss0es religiosas de
Marajó durante o século XVIII.
Lucia Hussak van Velthem é museóloga, mes-
tre em Antropología Social na USP e assis-
tente de pesquisa do Museu Paraense Emilio
Goeldi. Fez estágios no Museu de Folclore e
no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista no
Rio de Janeiro. Realizou pesquisas entre os
Tukano, Munduruku e Wayana-Aparai.
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HabitacOes Indígenas
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f V
Obra publicada
com a colabora9io da

UNIVERSIDADE DE SAO PAULO

Reitor: Prof. Dr. Antonio Hélio Guerra Vieira

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO

Presidente : Prof. Dr. Mário Guimaraes Ferri

Comissio Editorial :

Presidente : Prof. Dr. Mário Guimaraes Ferri (1 nstituto


de Biociencias). Membros: Prof. Dr. Antonio Brito da
Cunha (Instituto de Biociencias), Prof. Dr. Carlos da
Silva Lacaz (Faculdade de Medicina), Prof. Dr. Oswaldo
Fadigas Fontes Torres (Escola Politécnica) e Prof. Dr.
Oswaldo Paulo Forattini (Faculdade de Saúde Pública).

V
Coordena«;ao editorial:
Carla Milano Benclowicz
Equipe de produ«;ao:
Myriam Carvalho dos Santos e Sueli Geraldo Pereira
Capa:
Desenho de autoria do menino Canela Antonio Hyino.
Contracapa:
Desenho de autoria do indio Bororo Canajó Adugo Kirimida.

CI P-Brasil. Catalogac;:ao-na-Publicac;:ao
Camera Brasileíra do Livro, SP

Habitac;:oes indígenas / Sylvía Caíuby Novaes (organizadora). - Sao Paulo


H126 Nobel : Ed. da Universídade de Sao Paulo, 1983.

Coletanea de artígos por vários autores.


Bibliografia. · ·
ISBN 85-213-0159-6

1. indios da América do Sul - Brasil - Habitac;:oes l. Novaes, Sylvia Caiuby.

83-0936 COD-392.3600917498

Índices para catálogo sistemático:


1. Brasil : Habitac;:oes indfgenas 392.3600917498
2. indios : Brasil : Habítac;:oes 392.3600917498

VI
Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - Coleção Nicolai
www.etnolinguistica.org

Habitat;Oes Indígenas

Sylvia Caiuby Novaes (org.)


Maria Elisa Ladeira
Aracy Lopes da Silva
Lux Vidal
Cristina Sá
Dominique Gallois
Lucia Hussak van Velthem

Livraria Nobel S.A.


Editora da Universidade de Sao Paulo

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V 11
© Livraria Nobel S.A.
lmpresso no Brasil/ Printed in Brazil
1983

É proibida a reproduc;ao

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida sem a permissao por escrito dos
editores, através de quaisquer meios - xérox, fotocópia, fotográfico, fotomeca-
nico. Tampouco poderá ser copiada ou transcrita, nem mesmo transmitida através
de meios eletrónicos ou gravac;e>es. Os infratores serao punidos através da Lei
5.998, de 14 de dezembro de 1973, artigas 122-130.

Livraria Nobel S.A.


Rua da Balsa, 559
CEP 02910 Freguesia do ó
Sao Paulo, SP

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ÍNDICE

INTRODU<;AO
Sylvia Caiuby Novaes (organizadora) 1

UMA ALDEIA TIMBIRA


Maria Elisa Ladeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

XAVANTE: CASA - ALDEIA - CHAO - TERRA - VIDA


Aracy Lopes da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

AS CASAS NA ORGANIZA<;AO SOCIAL DO ESPACO BORORO


Sylvia Caiuby Novaes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

O ESPA<;O HABITADO ENTRE OS KAIAPÓ-XIKRIN (JE) E OS PARAKANA


(TUPI), DO MÉDIO TOCANTINS, PARÁ
Lux Vidal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

OBSERVA<;OES SOBRE A HABITA<;AO EM TRES GRUPOS INDÍGENAS


BRASILEIROS
Cristina Sá . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103

A CASA WAIAPI
Dominique Gallois . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147

ONDE OS WAYANA PENDURAM SUAS REDES?


Lucia Hussak van Velthem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169
X
INTRODUCÁO

Sylvia Caiuby Novaes

1
..
"La maison, plus encare que le paysage, est un état d'áme. "
Gastan Bachelard ( 1957:77)

A casa é, para Gastan Bachelard, urna imagem poética, que emerge na cons-
ciencia como um produto direto do cora9ao, da alma, da essencia humana presa a
sua realidade (1957:2). Bachelard procura ver na casa nao um espa<;o qualquer a
ser medido e pensado a partir da geometría, mas sim um espa90 que tem lugar na
imagina9ao e que é, antes de mais nada, um espa90 vivido, vivido pelos homens,
no seu cotidiano e na sua imagina9ao. A imagina9ao imagina e se enriquece de
novas imagens (1957:18). E é precisamente esta riqueza da casa imaginada que
Bachelard quer explorar.

Para Jung, que se dedicou em profundidade ao estudo dos símbolos mais freqüen-
tes da humanidade, a casa é também um importante instrumento para a análise da
alma humana, senda muitas vezes tomada como símbolo do "self". Ou, como diz
ainda o autor escolhido para a epígrafe desta introdu9ao: " ... les images de la
maison marchent dans les deu:x sens: elles sont en nous, autant que nous sommes
en elles". (1957:19) .

Ouem já saiu a ver casas, para alugar ou comprar, sentiu de perta o quanto este
filósofo e este psicólogo tem razao. Eu mesma tive que ver várias. Via tres, quatro
por dia. Por razoes que só vim a descobrir depois, ficava exausta e nao via a hora
de chegar ao meu próprio canto. Por coincidencia, todas as casas que eu ia olhar
estavam ainda habitadas. E era exatamente este fato que me deixava inquieta e
exausta: fotos na parede de urna familia que eu nem tencionava conhecer, móveis
e decora<;oes de extremo mau gasto (leia-se - que nao coincidiam com o meu
gosto), ch~iro s em todos os cantos.

Entrar numa casa montada é invadir um mundo, é penetrar na intimidade daqueles


que aí convivem. Ótima sensa<;ao para quem se identifica com as pessoas que a
habitam, ou que quer conhece-las; sensa9ao extremamente desagradável para
quem quer fazer daquele um outro espa90, que nao se deixe impregnar pelo
anterior.

De repente, por circunstancias de ordens diversas, vi-me as voltas com o tema do


espa<;o doméstico . Estava procurando urna casa para morar e organizando urna
coletanea sobre habita9oes indígenas.

Falando com corretores, lendo classificados nos jornais, olhando casas para com-
prar, comecei a pensar no que seria urna casa aconchegante. Tenho agora a
impressao de ·que é aquela que podemos tomar como urna das referencias para .
elaborarmos a nossa identidade, é aquela na qual nos fundimos (mesmo sem

3
querer invocar origens etimológicas) qual molusco em concha . E a casa que nos
localiza no espac;o, é ela "notre coin du monde" .
E a partir da minha casa, que continuo procurando - passei as casas indígenas.
!mediatamente me chamou a atenc;ao um fato que, agora, parece-me de grande
importancia. Lendo os artigos que compBem esta coleta nea, percebe-se que, para
os vários grupos indígenas aqui analisados, nao é a casa o ponto de referencia a
ser tomado para a elaborac;ao da identidade, mas sim um espac;o mais amplo e
que, em geral, é a aldeia (como para os Bororo, os Xavante, os Wayana, os Xin-
guanos e os Xikrin), ou a casa comunitária (Waiampi), ou o espac;o territorial
tradicional de ocupac;ao do grupo (Parakana) .

Confirmando esta minha impressao, Rapoport (1972:97) apohta dois tipos mais
gerais de aglomerac;ao concentrada. Na tradic;ao urbanística, a casa é considerada
"como a totalidade do quadro de vida e a aglomerac;ao, quer seja um povoado ou
urna cidade, como um tecido conectivo, quase como um lugar ' perdido' a atra-
vessar, e como sendo, pois, de natureza secundária." No caso das culturas indí-
genas " a aglomerac;ao como um todo foi considerada como o quadro de vida,
enquanto que a casa era simplesmente urna parte deste domínio, mais íntima,
mais fechada e mais resguardada."
Todas as vezes que eu ia fazer pesquisa de campo entre os Bororo, levava lápis e
papel e pedia as crianc;as que desenhassem o que quisessem. Além de animais -
macacos, antas, jabotis - os mais freqüentes eram desenhos que representavam
o círculo de casas da aldeia, com a casa dos homens no centro. O interessante a
ser observado é que as crianc;as Bororo (ao contrário das " nossas" crianc;as)
jamais desenhavam urna única casa isolada, e sim um conjunto delas, formando a
aldeia.
Estive em todas as aldeias Bororo e em apenas urna delas - na aldeia do Meruri
- o inverso ocorreu, e nao poderia ser de outra forma. Há oitenta anos os Bororo
do Meruri vem sendo catequizados pelos missionários salesianos. A tradicional
aldeia circular, com casas de palha, foi, no Meruri, substituída por casas de alve-
naria dispostas em duas ruas, de modo a formar um ele . Nao há aí a casa dos
homens e as atividades comunitárias se resumem quase que exclusivamente aque-
las patrocinadas pela missao: missas, terc;o, filmes, bingo.

Nunca obtive no Meruri um desenho infantil que retratasse a aldeia tradicional.


Havia apenas desenhos de casas isoladas, ou de igrejas.

Estive no Meruri no inicio de 1982 e pude notar que a vida comunitária que carac-
terizava as outras aldeias lá se restringe a dos grupos familiares. Além disso, os
Bororo pareciam estar passando por um processo de crise de identidade - apesar
de nao se considerarem como "civilizados", sempre frisavam que já nao eram
como os autenticos Bororo.

A meu ver, este dado é bastante significativo. Ele revela que, num certo sentido,

4
é possível dizer que a concepc;ao que os Bororo tem de si mesmos está íntima-
mente ligada a estrutura da aldeia e ao que ela significa, o que também é verdade
para os índios Kraho, pois, como diz Maria Elisa Ladeira, eles se definem como
"índios de verdade" pelo formato circular de suas aldeias.

Nos vários artigas aquí apresentados, o que se pretende é nao apenas dar urna
visao dos aspectos mais propriamente arquitetOnicos das casas, mas, fundamen-
talmente, mostrar como se dá a produc;ao do espac;o nas sociedades indígenas,
dado essencial para que se possa formar o quadro do cotidiano nestas sociedades.
Procuramos mostrar como sao concebidos os vários espac;os reconhecidos por
urna sociedade e mais, como a casa aparece nesta configurac;ao mais geral. Por
urna coincidencia que nao deve ser desconsiderada - já que a casa é, salvo
excec;ao que eu desconhec;a, de domínio feminino - todos os artigas foram
escritos por mulheres.

Nenhum dos artigas se detém em extensas análises ecológicas, ou nas limitac;oes


impostas pelo meio ambiente em que vive a sociedad e que será analisada. Se
passamos "ao largo" destes temas, nao é por desconsiderá-los, mas sim por nos
sentirmos com mais competencia para tratar da casa e de toda a organizac;ao do
espac;o de urna sociedade, a partir de um ponto de vista social e cultural.

Falar das habitac;5es indígenas a partir deste angulo nao significa, de modo algum,
empobrecer o tema, pois, como diz Rapoport (1972:65): "Dado um certo clima, a
possibilidade de se encontrarem certos materiais, as limitac;5es e os meios de um
certo nível técnico, o fator que, finalmente, decide a forma de urna habitac;ao,
modela os espac;os e suas relac;oes, é a visao que um pavo tem da vida ideal.
O ambiente procurado traduz numerosas forc;as sócio-culturais, que compreendem
as crenc;as religiosas, a estrutura da família e do cla, o modo de se ganhar a vida e
as relac;5es sociais entre os indivíduos. Eis porque as soluc;oes sao muito mais
variadas que as necessidades biológicas, os meios técnicos e as condic;5es climá-
ticas".
Os dados de que dispomos atualmente sobre habitac;oes indígenas no Brasil en-
contram-se dispersos nas. várias monografías, onde a casa aparece, mas sempre
como tema secundário. Mesmo em termos de artigas publicados em revistas, sao
excec;oes aqueles que se dedicaram a urna análise profunda da casa indígena, seja
em termos arquitetónicos, sócio-culturais, económicos ou simbólicos 1• O fan-

(1) Urna destas poucas exce~oes é a coletanea de artigas publicados no volume 61 do "Journal
de la Societé des Américanistes" (París, 1972) e organizados por Simone Dreyfus a partir de urna
reuniao de um grupo de trabalho sobre a no~ao de território e habitat nas sociedades indígenas da
floresta amazónica na América do Sul (embora nenhuma das sociedades analisadas se localiza em
território brasileiro). Há ainda um artigo de Curt Nimuendaju intitulado "A Habita~ao dos Tim-
bira" e publicado na Revista do Servi~o do Patrimonio Histórico e Artístico Nacional, n? 8,
Rio de Janeiro, 1944 e reproduzido na coletanea Leituras de Etnologia Brasileira, organizada por
Egon Schaden (Cia. Editora Nacional, Sao Paulo, 1976).

5
tástico artigo de Bourdieu sobre a casa Kabyle 1 - "La Maison ou le Monde
Renversé" - nao parece ter deixado suas marcas na etnología brasileira, nem
tampouco a importante análise de Maria lsaura Pereira de Oueiroz sobre " O si-
tiante tradi cional e a percepc;ao do espac;o" 1 •

A análise da casa indígena e da percepc;ao que os membros de urna determinada


sociedade tem do espac;o por eles habitado é, a meu ver, extremamente impor-
tan te. Em primeiro lugar, porque revela as diferentes formas possíveis de concep-
9ao do espa90, concepc;ao que envolve nao apenas urna adapta9ao ecológica
específica ao meio ambiente, mas, sobretudo, formas diferenciadas de apropria9ao
e hierarquizac;ao do espac;o habitado.

Apesar de todos os artigas se deterem mais especificamente na descric;ao e análise


da casa, apontam para a necessidade de se verificar como esta unidade espacial
aparece na composic;ao dos outros espac;os reconhecidos pelo grupo em questao.
A análise da casa nos remete diretamente a compreender toda a concepc;ao de
espa90 elaborada por urna sociedade.
E aí percebemos que, apesar das sociedades indígenas serem muito diferentes
entre si, é possível dizer que em nenhuma delas há o alto grau de especializac;ao do
espa90, tal como acorre na nossa sociedade. Nós ternos locais nítidamente dis-
tintos e separados por urna enorme distancia , para trabalhar, para o convívio
familiar, para a socializa9ao formal das crian9as, para lazer, para cuidados com a
saúde, e assim por diante.
Com isso nao quera dizer que as sociedades indígenas concebam seu espa90
como algo homogeneo e indiferenciado. Os artigos aqui apresentados mostram
exatamente o contrário. No entanto, nas sociedades indígenas as atividades se
dao num espac;o que é, fundamentalmente , um espa90 integrado (e nao comparti-
mentado como o nosso) e cu jo ambito é relativamente menor.

Aí nao acorre algo que é muito comum nas sociedades como a nossa, onde há
urna nítida separa9ao entre a casa, unidade doméstica, e o local de trabalho,
unidade de produc;ao. Passamos um ter90 de nosso tempo num local altamente
especializado, onde nao há espac;o para quem nao esteja desempenhando urna
func;ao para a qual aquele espa90 foi criado. As crianc;as, por exemplo, nao tem o
que fazer e atrapalham se estao no local onde suas maes trabalham. Marido e
mulher tem, em geral, suas atividades de trabalho em locais separados, e aos
nossos velhos dedicamos muito pouco espa90.
Nas sociedades indígenas sao exce9oes os espa9os a que só tem acesso um grupo
muito específico de pessoas. Há, certamente, em várias sociedades, locais estri-
tamente reservados a homens iniciados, como a casa das flautas entre os xin-

(2) In: Bourdieu, Pierre : " Esquisse d' une théorie de la pratique". Librairie Droz. Paris, 1972.
(3) In: Pereira de Oueiroz, Maria lsaura: O Campesínato Brasíleiro . Editora Vozes, Sao Paulo,
1973.

6
guanos, ou a casa dos solteiros entre os Xavante, a que nao tem acesso mulheres
e crianc;:as; ou ainda locais mais típicamente femininos , que os homens nao fre-
qüentam habitualmente, como certas áreas do rio, entre os Bororo, onde as mu -
lheres se reúnem . No entanto, comparando-se com a nossa sociedade, sao, pri-
meiramente, poucos estes locais especializados, e aí as pessoas permanecem um
tempo relativamente curto. Em segu ndo lugar, sao locais que ficam a pouca dis-
tan cia de outros, geralmente ao alcance da voz.
Vendo de perta como urna sociedade constrói seu espac;o, podemos aquilatar como
sao arbitrárias e desorganizadoras certas medidas tomadas contra as sociedades
indígenas para transferir um grupo de seu território original, para que aí se esta-
belec;:a alguma obra que, se é "imprescindível" a nossa sociedade, em nada diz
respeito aos grupos que habitavam originariamente estes locais. Entre muitos exem-
plos, podemos citar o caso dos indios Parakana, que tiveram que ser transferidos de
suas terras, em virtude da instalac;:ao da hidrelétrica de Tu curuí e, mais recente-
mente, o dos Avá -Guaranis, que ocupam urna área a ser alagada com o fechamento
das comportas da hidrelétrica de ltaipu . Sao também inúmeras as medidas que
visam a " melhorar" , " moralizar", " tornar mais saudáveis" os padrees de habitac;:ao
tradicional, tal como pretendiam os missionários salesianos que se estabeleceram
no Meruri.

As sociedades indígenas sao sociedades extremamente bem adaptadas ao meio


ambiente em que vivem (o que já nao ocorre para aquelas que tem que pagar o
" prec;o do progresso" ) e podem perfeitamente prescindir de nossas boas intenc;:oes .

Na verdade, estas boas intenc;oes se traduzem historicamente em medidas que


visam diretamente a apropriac;ao do território indígena, ou dos recursos naturais aí
existentes. Medidas desastrosas para as sociedades indígenas, urna vez que incidem
sobre o elemento que. une, identifica e dá significado a urna sociedade enquanto tal
- o espac;o de seu território.

Com relac;:ao aos artigos apresentados nesta coletanea, gostaria, finalmente , de


salientar mais alguns pontos. Todos eles sao o resultado de um contacto direto com
a populac;ao estudada; sao dados de pesquisa de campo realizada ao longo de vários
anos. Com excec;ao de Cristina Sá, que é arquiteta, todos os outros artigos sao de
autoría de antropólogas.

Nestes sete artigas procuramos mostrar como é elaborada a organizac;ao espacial


em nove sociedades indígenas diferentes, pertencentes aos seguintes troncos lin-
güísticos:

Apaniekra, Ramkokamekra, Kraho


Je
lXavante
X'ikrin

¡
. Parakana
T up1 W ·- · ·
a1ap1

7
Aruak Yawalapiti

Caribe Wayana

!solados Karajá e Bororo (muitas vezes associados aos Je)


Como se ve, todos os grandes grupos lingüísticos estao aqui representados. Pelo
mapa da página 9 vemos que os grupos aqui analisados se situam em diferentes
regioes do Brasil : regioes de cerrado, áreas de transic;:ao entre floresta e cerrado e
zonas de floresta primária.
O importante a notaré que cada sociedade adotou urna soluc;:ao específica quanto a
sua adaptac;:ao ao meio ambiente. Nos vários artigas, vemos que algumas socie-
dades, apesar de terem seu território em regioes muito próximas (como os Wayana
e os Waiapi) e as vezes até vizinhas (como os Xavante e os Bororo), concebem o
espac;:o a ser habitado de forma absolutamente distinta.
O que há de comum, em todas estas sociedades, é o fato de que a organizac;:ao
espacial reflete urna concepc;:ao de sociedade que é, nitidamente, igualitária. Além
deste fato, pouco há de comum entre elas; se as regioes habitadas sao semelhantes
em termos ecológicos, isto nao significa que haverá soluc;:oes identicas em termos
de organizac;:ao espacial. E nao poderia ser de outra forma, urna vez que o espac;:o
habitado e a concepc;:ao que o engendra sao frutos de toda urna concepc;:ao de
mundo, que é única para cada povo 4 •

(4) As fotos cuja autoria nao está assinalada foram tiradas pelas autoras.

8
1 Boro ro
2 Xavante
3 Yawalapiti
4 Ka rajá
5 Kaiapó-Xikrin
6 Canela
7 Para ka na
8 Wayana
9 Waiampi

1. Mapa do Brasil - Localiza<;:ao geográfica dos grupos indígenas citados neste trabalho .

9
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

BACHELARD, Gastan - La Poétique de /'Espace. Presses Universitaires de France.


París, 1957.
BOURDIEU , Pierre - La Maison ou Le Monde Renversé. In: Esquisse d'une théorie
de la pratique. Librairie Droz. París, 1972.
DREYFUS, Simone: Études sur le territoire et l'habitat dans l'ouest amazonien.
In : Journal de la Société des Américanistes, tome LXI. Paris, 1972.
NIMUENDAJU, Curt - A Habita9ao dos Timbira. Id: Revista do Servi90 do Patri-
monio Histórico e Artístico Nacional, n? 8, Río de Janeiro, 1944; e In: Schaden,
Egon (org . ): Leituras de Etnologia Brasileira. Cia. Editora Nacional, Sao Paulo,
1976.
PEREIRA DE OUEIROZ, Maria lsaura - O sitiante tradicional e a percep9ao do es-
pa90. In: O Campesinato Brasileiro. Editora Vozes. Sao Paulo, 1973.
RAPOPORT, Amos - Pour une Anthropologie de la Maison. Dunod. Paris, 1972.
DREYFUS, Simone - Études sur le territoire et l'habitat dans l'ouest amazonien.
In: Journal de la Société des Américanistes, tome LXI. París, 1972.

10
UMA ALDEIA TIM·BIRA *

Maria Elisa Ladeira

(*) Este artigo foi originalmente escrito em 1975. Na época, estava preocupada coma aná lise das
categorías espa<;:o-temporais de urna sociedade Timbira: os Ramkokamekra. Para esta publica<;:ao,
achei interessante apresentar algumas destas reflexoes. O conhecimento posterior de outros
grupos Timbira, os Apaniekra e os Krahó, tornou possível generalizar a todos os Timbira as afir-
ma<;:oes feitas para os Ramkokamekra. Apesar de possuírem ca racterísticas próprias (quanto ao
número de casas, limpeza dos caminhos, etc.), estruturalmente estas aldeias sao identicas.

11
2. Desenho de Kopkwyi - mulher Canela (27 anos) - Ramkokamekra, 1974, MA.

a - Cidade de Barra do Corda.


b - A ldeia Guajajara.
e - Aldeia do Ponto, Ramkokamekra .
d Aldeia de Porquinhos, Apaniekra.
e - Aldeia da Taboquinha, KrTcati.

12
Os Timbira, quandó falam de sua própria sociedade, destacam a aldeia (e nao as
casas) como a unidade fundamental para suas referencias 1 , definindo-se como
"índios de verdade" principalmente pelo formato circular de suas aldeias. Os
Apaniekra nao consideram os índios Guajajara (tupi), seus vizinhos no município
de Barra do Corda (MA), como " índios de verdade", porque estes nao moram em
aldeias circulares 2 • Nimuendaju, em 1930, já apontava que, "enquanto os Timbira
possuirem a sua consciencia ethnica nao se deixarao persuadir a abandonar esta
forma de habitar em conjunto, íntimamente ligada a sua organizac;ao social" (pará-
grafo 112).

Procurar apreender o princípio organizador das aldeias Timbira levou-nos a ver o


espac;o da aldeia como um espac;o determinado pelo modo como se movimentam
as pessoas, e que revela o modo como estas pessoas se relacionam. A aldeia e a
maneira como os indivíduos se deslocam em seu espac;o pode ser pensada como
um diagrama, onde se imprimem e se descobrem as relac;oes sociais (cf. Matta,
1976:67). Como diz M. C. da Cunha "o uso de categorías espaciais nao é um
recurso metafórico, mas o meio mais fiel de expressar o pensamento KrahO que
transforma e atualiza as oposic;oes que apreende ou postula em distinc;oes espa-
ciais" ( 1975:15). Podemos estender esta afirmativa a todos os Timbira, onde cada
diferenc;a espacial é e permanece urna diferenc;a qualitativa . Neste sentido é que a
análise das posic;oes, dos deslocamentos, do espac;o no sentido amplo de urna
sociedade, possibilita-nos apreender as linhas demarcatórias que orientam as rela-
c;oes socia is e, através delas, chegar aos pontos de articulac;ao desta sociedade 3 •

(1) Matta (1976:61) faz a mesma afirmac;:ao quando se refere aos Apinayé, que sao também um
grupo Timbira.
(2) "Urna sociedade pode revelar muito de si própria através das características que ela mesma
escolhe como um termo de comparac;:ao com outra sociedade" (Seeger, 1980:45).
(3) Ao analisar a circularidade das aldeias Timbira e a maneira como os individuos se deslocam
neste espac;:o, creio ter feito estas sociedades parecerem mais sistemáticas e rígidas do que real-
mente sao.

13
A CASA

Os Timbira atuais 4 estao localizados nos campos de cerrado do Maranhao e de Goiás


Suas aldeias sao construídas em lugares planos, em solo nao pedregoso e perta de
córregos d'água. Nas proximidades deve haver mata ciliar para os roc;ados; quando,
em conseqüencia das derrubadas anuais, esta mata se acaba, a aldeia é recons-
truída em outro lugar. Mas atualmente a construc;ao de casas em alvenaria (escala,
enfermaría, etc.) do Pasto Indígena da FUNAI ( Fundac;ao Nacional do indio) abriga,
de certa maneira, a fixac;ao da aldeia num mesmo lugar.

Numerosos caminhos estreitos cortam a mata ciliar em todos os sentidos, indo ter
aos lugares de banho, cac;a e pescaría. Os caminhos das roc;as sao sempre relati-
vamente largos e limpos, para que as mulheres possam passar livremente com seus
cestos de ca rga.

A forma das casas (ikré) 5 diverge um pouco de um grupo Timbira a outro, mas
todas atualmente sao construídas para que durem por alguns anos e de maneira
muito parecida com as casas dos moradores mais pobres da regiao, de quem
decerto adotaram este tipo de moradia . A planta é retangular, com um dos lados
maiores formando a frente da casa, que tem por vezes urna cobertura de 4 águas,
feita de folhas de babac;u ou inajá . Do mesmo material sao feítas as paredes. Toda a
ligac;ao é feita por amarrac;ao com cipó. Todas as folhas de palmeira sao aplicadas
em posic;ao horizontal, com os folíolos pendentes para um lado só. Algumas vezes,
as folhas sao aplicadas em sentido vertical, de ponta para baixo e comos folíolos·em
posic;;ao natural - parece ser esta a maneira original dos Timbira fazerem paredes.

A casa completa, principalmente entre os Ramkokamekra, é fechada por paredes


em todos os quatro lados; as vezes, porém, falta a parede da frente, total ou
parcialmente, ou somente urna parte da casa forma urna espécie de quarto fechado .
A porta sempre é feita no lado maior, voltada para o pátio da aldeia. A esta porta da
frente corresponde outra, na parede dos fundos, dando para o "quintal". Nas
casas Timbira nao há janelas. Entre ·os Kraho sao mais comuns as casas com
cobertura de duas águas e porta ao lado do esteio da cumieira e se utilizam mais das
folhas de piac;ava para a cobertura de suas casas.

(4 ) Por Timbira, entende-se aqui os Timbira orientais, atualmente representados pelos KrahO,
Apaniekra-Canela, Ramkokamekra -Canela, Krlkati e Pykopje. A lgumas das afirmac;CSes feitas sao
verdadeiras também para os Apinayé, grupo Timbira oriental, cuja descric;ao, feita por Matta
(1976), foi-me altamente sugestiva .
(5) Para descric;ao mais detalhada sobre a casa Timbira, vide Nimuendajú (1930 - pp. 112,
113 e 114) de onde selecionei várias referencias.

14
3. Casa Ramkokamekra, 1974 4. Teto de casa Ramkokamekra, 1974
(foto Gilberto Azanha ). (foto Gilberto Azanha ).

5. Casa Apanjekra e as mulheres, 1975 (foto Gilberto Azanha ).

15
Atualmente os Timbira comec;;am a construir suas casas de taipa, ou mesmo de
adobe - pelo menos alguma de suas paredes, ou fazendo urna divisao interna.
"Ocorre algumas vezes que a casa Krahó tenha paredes internas; mas nao há nada
de comum entre a divisao interna de urna casa e as demais . As casas dos sertanejos
civilizados tem geralmente urna varanda, onde se recebem visitas, um quarto e urna
cozinha. A casa indígena geralmente é sem divisoes; algumas vezes separam um
re9into destinado a ser cozinha de outro destinado a ser quarto; mas logo algum
casal da casa se instala na cozinha, enquanto outro comec;;a a cozinhar no quarto e a
primitiva divisao se transforma" (Melatti, 1975:24) . As poucas famílias que conheci,
que tinham suas casas inteiramente feitas de taipa ou adobe, passavam a maior
parte do tempo tora dela, num " puxado" coberto de palha, construído logo atrás da
casa, e que servia de cozinha. A casa, só se recolhiam para dormir.

Enquanto as casas Apaniekra e Ramkokamekra sao geralmente bem construídas,


a casa Kraho, como aponta Melatti, "dá sempre a impressao de estar por termir:ar;
nunca acaba de ser construída: planeja-se urna casa de paredes de barro, as quais
nao se completam e recebem um enchimento provisório de palha, que se torna
definitivo; as duas águas do teto da casa devem ser complementadas idealmente
por dois triangulas laterais inclinados, que contribuem para aumentar a área coberta
da casa; algumas vezes se veem as estacas fincadas no chao a espera do prolon-

6. "Puxado" e quintal de urna casa Apanjekra, 1977 (foto Gilberto Azanha).

16
gamento do telhado, que nao chega a ser construído em urna das extremidades"
(1975:24).

No interior da casa vamos encontrar alguns jiraus com algumas esteiras de embira
de buriti que servem para forrá-los, nivelando as desigualdades, ou mesmo utilizadas
como cobertas nas noites mais frias. Idealmente "as jovens tem seu jirau armado
nos travessé'Ses do teto, os casais novos dormem em jiraus de pouco mais de um
metro de altura, enquanto os casa is de meia idade os tem a pouca altura" ( Melatti,
idem:24). O jirau nao serve somente para dormir, é também banco e mesa. Em
algumas casas encontramos urna "adaptac;;ao" do jirau como prateleira, mas, nor-
malmente, os objetos de uso encontram-se presos na palha das paredes ou do teto,
ou guardados nos inúmeros cestos que ficam pendurados nos caibros do telhado.
Comp5em ainda o interior das casas duas ou tres caba9as grandes, ou mesmo um
pote de barro com água, algum banco e algumas toras de bur.iti (já utilizadas nas
corridas) para sentar, que sao usadas também para fechar parcialmente a porta da
casa, impedindo a entrada dos porcos que por vezes criam. Há também o fogo da
cozinha com sua trempe de pedras e as panelas de ferro.

7. Mulher Krahó e sua"casa semiconstruída, 8 . Mulher Apanjekra no interior de sua casa,


1975 (foto Gilberto Azanha) . 19n (foto Gilberto Azanha ).

17
Assim, quando dos "acampamentos" nas ro9as, das expedi9oes de coleta, pesca,
ou das visitas aos moradores vizinhos em busca de alguma farinha, arroz ou sal,
os poucos utensílios da casa sao transportados facilmente pelas mulheres, em seus
cestos. Os Timbira, há cerca de 150/200 anos atrás, eram grupos predominante-
mente ca9adores e coletores, semi-ne>mades, que durante determinado período do
ano perambulavam pelos cerrados maranhenses. Após o contato com o branca,
esta situac;;ao vem se alterando: a limitac;ao do território e a escassez da cac;a fazem
com que a agricultura tenha cada vez mais importancia. Mas continuam sendo urna
sociedade de ca9adores e coletores. Os artefatos materiais que fabricam - basi-
camente em palha - abundante no cerrado - revelam o aproveitamento máximo
na explora9ao deste meio ecológico.

9. Homens Ap~njekra saindo para cayar no cerrado, 1977 (foto Gilberto Azanha).

18
A ALDEIA

10. Desenho de Antonio Hyino - menino Canela - Ramkokamekra, 1974, MA.

,/

\,.

a caa (pátio)
b caa ma pry (caminho radial)
e - kricape (caminho circular)

19
·.

11 . Mulher Apanjekra correndo pelo kricape, 1975 (foto Gilberto Azanha ).

As aldeias Timbira sao circulares !> e o círculo é formado porque todas as casas
distam igualmente do pátio (caa) que se torna, assim, centro da aldeia . Cada casa
tem seu próprio caminho que a liga ao pátio, e estes caminhos radiais (caa ma
·pry) sao ig uais para todas, o que significa que " todas tem o mesmo peso social"
(Matta, 1976:75) e que estao relacionadas de um mesmo modo ao pátio, centro das
decisoes políticas e de toda a vida ritual.

Esta disposic;:ao espacial das casas forma assim o círculo maior da aldeia , comu -
mente chamado pelos antropólogos de periferia. Diante das casas passa um cami-
nho circular, o krlcapé (onde kri = aldeia). É na periferia que tem lugar as atividades
domésticas ligadas a produc;:ao, e as casas aparecem como unidades fisicamente
definidas e demarcadas.

Cada casa abriga os dois únicos grupos sociais da vida cotidiana Timbira : a familia
elementar (pai, mae e filhos) e o grupo doméstico, o que quer dizer que urna casa

(6) A forma ci rcular das aldeias Timbira tem merecido a aten9ao dos antropólogos, vide Matta
(1976), M elatti (1974) e Carneiro da Cunha (1978).

20
compoe-se de pelo menos duas famílias elementares. Os homens, ao se casarem,
devem residir na casa da mae de sua esposa (residencia uxorilocal); assim, as famí-
lias elementares de urna mesma casa, que constituem o grupo doméstico, sao
ligadas pelos lac;:os mae-filhas . Os grupos domésticos (as casas) constituem uni-
dades de produc;:ao e consumo auto-suficientes e polivalentes do ponto de vista
técnico, "capazes de ac;:ao independente", como diz Matta ( 1976:75).

Nas sociedades indígenas e em particular nas sociedades Timbira, os indivíduos


ocupam urna mesma posic;:ao no processo produtivo: ao nível da produc;:ao todos
podem ser os mesmos, todos sao equivalentes e substituíveis uns pelos outros. O
que equivale dizer que, nestas sociedades, as relac;:oes sociais nao se estabelecem
entre grupos que desempenham papéis diferentes no processo produtivo - como
no capitalismo. Entre os Timbira, os grupos se diferenciam a partir do parentesco e
da nominac;:ao (recebimento dos nemes próprios de cada indivíduo que o situam
perante o resto da sociedade).

As casas, enquanto unidades produtivas, sao unidades iguais (equivalentes e substi-


tuíveis urnas pelas outras). A forma da aldeia assinala esta igual distancia das casas,
esta igualdade nas relac;:oes de produc;:ao. Assinala ainda a única distinc;:ao que pode
ser dada ao nível da produc;:ao; aquela entre os sexos: o centro" (lugar do homem) e a
periferia (lugar da mulher).

lnscrever as relac;:oes sociais num espac;:o é tornar legível este mesmo espac;o, é
dar-lhe sentido . E a "legibilidade" de urna aldeia Timbira é tal, que ela é a expressao
ou traduc;:ao das áreas mais significativas da sociedade (pátio e periferia) e nela
figuram os caminhos possíveis (kricapé e caa ma pry) do estabelecimento de toda e
qualquer relac;:ao social. A maneira como os Timbira se deslocam, recortando
diferencialmente o espa90 circular (igualitário) da aldeia, é um dos elementos que
nos permite apreender as linhas demarcatórias que orientam ,o conjunto das rela-
c;:5es socia is 7 •

Ao observar os deslocamentos entre as casas, vi que, por vezes, o indivíduo per-


corria o caminho que liga sua casa ao pátio (caa ma pry) e, atravessando o centro da
aldeia, percorria o caa ma pry da casa desejada . Assim procedendo, ele fazia
o trajeto equivalente ao diametro da aldeia. Se ele tomasse o caminho circular, o
kricapé, as casas estariam em distancias diferentes mas, deslocando-se deste modo
(vide figura 13), as casas ficam distando igualmente dois raios da sua (o caa ma pry
equivale a 1 raio da circunferencia da aldeia). Mas, por vezes, o mesmo individuo
percorria o kricapé para deslocar-se de urna casa a outra, ou seja: nao atravessava
o pát io, condic;:ao para que as distancias se tornassem as mesmas.

(7) Mary Douglas, ao descrever a superfície de urna organiza9ao social, considera que "os indi-
víduos pensam seu meio social como um conjunto de pessoas reunidas ou separadas, segundo
linhas .de demarcai;;ao que se faz necessário respeitar" ( 1976:94).

21
12. Aldeia Krahó da Pedra Branca, 1976 (foto Gilberto Azanha).

Os Timbira tem, assim, duas maneiras de se movimentarem no espac;o circular da


aldeia e que expressam os dois modos de se relacionarem com os outros: as rela-
9oes socia is estabelecidas com os "afins", ou no dizer dos Timbira, com seus
nao-parentes (através do pátio) e as estabelecidas comos "consangüíneos" ou, no
mesmo dizer, com aqueles que sao seus parentes (pelo krTcapé).

As pessoas atravessam o pátio para irem de urna casa a outra, quando suas casas
estao ligadas pelo pátio. Esta passagem pelo pátio indica que a relac:;ao estabelecida
entre estas casas é mediada por ele: sao relac:;oes que devem ser públicas (alianc:;as
matrimoniais, ámizade formal, nominac:;ao). Neste sentido, as casas onde residem
os afins de um individuo estao numa mesma distancia para ele, podem ser as
mesmas. Perguntávamos com freqüencia aos Ramkokamekra e aos Apaniekra onde
se devia "buscar marido". E a resposta era sempre a mesma: do outro lado da
aldeia, afirmac:;ao acompanhada do gesto que apontava o lado aposto da aldeia.
Mas esta afirmac:;ao nao era comprovada por meus dados de campo, que nao me
indicavam que os casamentos eram estabelecidos entre casas diametralmente apos-
tas urnas as outras. Mas esta afirmac:;ao era categórica porque todas as casas onde
se pode buscar marido estao, pelo trajeto que deve ser percorrido (equivalente ao
diametro da aldeia) , numa mesma distancia, estao todas do outro lado da aldeia 8 •

As pessoas nao atravessam .o pátio para se deslocarem entre as casas ligadas a sua
por urna linha de parentes femininos. A este grupo de casas de maes e irmas,
os antropólogos se referem, acredito que por falta de um termo melhor, como seg-

(8) Foi esta "ilus~o " que talvez tenha levado Nimuendajú a afirmar a existencia de " metades
exogamicas" entre os Timbira.

22
mento residencial. A subdivisao do grupo doméstico formando novas casas é a
responsável por sua formac;ao. Urna família levantará sua própria casa quando tiver
condic;oes de se tornar, pelo casamento de suas filhas, urna unidade produtiva
independente e auto-suficiente (quando um genro vira sogro).
A proximidade física, espacial, das pessoas que residem numa mesma casa, é
proporcional a unidade que formam no processo produtivo, sendo também um
indicador desta unidade. No interior da casa, cada família elementar possui um
espac;o próprio para dormir e comer. E é por esta separac;ao apresentar-se no
próprio interior da casa que ela contém, em si, a possibilidade de desmembrar-se,
formando o segmento residencial. O espac;o interior de urna casa é assim repartido
entre as famílias elementares que, sintomaticamente, durante as refeic;oes, comem
separadamente, em grupos distantes uns dos outros, a comida preparada conjun-
tamente pelas mulheres e distribuída pela mais velha. Essa distancia é assim o
esboc;o e a possibilidade de urna outra que se aprofunda, a medida em que parte da
casa para os limites do segmento residencial.

A s unidades formadas pelos segmentos residenciais nao sao expressas concreta:


mente. Nao ternos nenhuma marca cohcreta, nenhum limite demarcatório - como
o sao as paredes das casa~ - que indique esta unidade. Entretanto, os limites dos
segmentos residenciais sao reconhecidos por todos os seus membros. Urna mulher
sabe trac;ar os limites do seu segmento residencial com seguranc;a, diz: " minha 'rua'
comec;a na casa de fulana e vai até a casa de sicrana". A referencia ao segmento
residencial é dada pelo termo em portugues 'rua'. A aplicac;ao deste termo talvez
tenha um significado preciso no contexto onde é empregado, pois 'rua' para o
sertanejo do interior maranhense e goiano quer dizer "o lugar público ond~ se pode
circular livremente". Quando um morador isolado do cerrado diz: "eu vou para a
rua", está querendo dizer que vai para a cidade. Assim, quando as mulheres se
referem ao seu segmento residencial como sendo sua "rua", parecem querer dizer

13. Esquema de circula~~o.

23
que aí elas podem circular livremente, marcando deste modo urna área semi-pública
ao nível da periferia.

As casas que formam um segmento residencial estao em distancias diferentes urnas


das outras. Esta distancia diferente, longe de ser anulada pelo trajeto através do
pátio, é assinalada pelo uso do krTcapé (o caminho
. circular que passa em frente as
~

casas). Urna pessoa, em seu segmento, terá que andar muito mais para se dirigir a
3? ou 4? casa depois da sua, do que para a casa vizinha. Esta distancia entre as
casas é indica dora de urna outra. As obrigac;:CSes que cada casa tem para com todo
seu segmento residencial serao cumpridas na proporc;:ao desta distancia espacial:
quanto mais próximas as casas mais o mecanismo da distribuic;:ao (de urna cac;:a, por
exemplo) é operante, quanto mais distante menos se faz sentir.

Esta gradac;:ao do segmento residencial pode ser percebida em como os indivíduos


se deslocam dentro deie. Geralmente, o fundo das casas, os " quintais", sao como
que um afunilamento das casas de um grupo de irmas reais ou de maese filhas. Em
segmentos residenciais muito grandes (encontramos alguns com 9 a 10 casas na
aldeia Ramkokamekra) as casas mais próximas sao as formadas por irmas reais
(filhas de ur:na mesma mae), em duas gerac;:CSes, que constituem subgrupos dentro
do segmento. Estas mulheres irao de urna casa a outra pelos fundos. Este quintal,
que nao chega a ser o mesmo, pois cada casa reconhece um espac;:o nele como
próprio, é um livre transito, urna passagem sempre aberta entre estas casas. Entre-
tanto, conforme as casas se distanciem no segmento residencial, as mulheres pas-
sam a se utilizar do krTcapé, como se, assim procedendo, reconhecessem publi-
camente a separa<;ao entre suas casas, a distancia de seu parentesco (sao os
"classificatórios") . A esta distancia no tempo (entre as gerac;:CSes) corresponde,
assim, urna distancia no espac;:o: os parentes mais distantes genealogicamente
dentro do segmento residencial sao aqueles que residem nas casas mais afastadas.

Os segmentos residenciais possuem urna posic;:ao definida na periferia da aldeia 9 •


Ouando urna aldeia se transfere de. um lugar para outro, as casas se distribuem na
mesma posic;:ao em que estavam no antigo local. lsto assegura a manutenc;:ao da
mesma ordem nas relac;:CSes sociais. Na periferia sao as mulheres as grandes respon-
sáveis pela t omada de decisCSes e é nítido o peso político do segmento residencial na
vida social da aldeia. Estes grupos de irmas (que se visitam por detrás das casas, que
sentam juntas no pátio, que se banham ou vao para a roc;:a juntas) tem, perante o
resto da sociedade, as mesmas obrigac;:CSes, sao as mesmas: todas chamam de
irmaos ou maridos aos mesmos homens. Quanto mais casas e mulheres tiver um
segmento residencial , mais forc;:a terá, pois sao as alianc;:as estabelecidas entre os
vários segmentos que garantem a estabilidade política da aldeia .

(9) " ... seria possível dizer que urna parentela (ou, acrescente eu, um segmento residencial ),
poderia ter várias ikré (casas) mas apenas ... um lugar a ocupar na aldeia" (grifo meu, M atta,
op. cit., p . 75).

24
14. Mulheres Krahó (aldeia do Galheiro) de um segmento residencial, sentadas no seu lugar no
oátio, 1981 !foto Gilberto A~anha L
15. Mulheres Apanjekra assistem, do seu lugar no pátio, ~ realiza~ao do Tepjarkwa (Festa do
Peixe), 1977 (foto Gilberto Azanha) .

25
"No domínio do pátio os homens nao representam seu grupo doméstico. O pátio é o
lugar da manifestac;:ao de grupos específicos: as metades cerimoniais e as classes de
idade. Os primeiros sao responsáveis pela conduc;:ao da vida ritual e os segundos
pela vida política, em sentido amplo. Dentro desse sistema é difícil um homem
impor seus interesses privados, isto é, os interesses do seu grupo doméstico, pois aí
as categorias de parentesco, que poderiam ser manipuladas para tal fim, nao vigo-
ram. O pátio chama para si toda a diversidade geradora de conflitos, reduzindo-os
a urna ordem que ultrapassa os interesses meramente individuais. A própria forma
das aldeias Timbira espelha isto: tudo confluí para o pátio e aí deve ser resolvido .. . O
pátio permite a conexao de domínios quase autónomos e separados (os segmentos
residenciais) . É também o lugar público onde tudo é visto e onde os individuos
formalizam suas relac;:oes com os outros. A cautela que tem os Timbira em nao
permitir que conflitos originados na periferia, no interior dos grupos domésticos,
cheguem até o pátio, resume todo o esforc;:o propriamente político destas socie-
dades. Se porventura chegarem até o pátio, toda a sociedade se verá envolvida,
os homens terao que tomar partido, defender um interesse doméstico. Os Canela
dizem que.os fuxicos devem morrer onde nascem, na periferia" (Azanha, 1977:24).
As cisoes de aldeia, processo freqüente entre os Timbira, podem ocorrer quando os
conflitos surgidos na periferia da aldeia extravazam seus limites e impregnam o
pátio.

16. Aldeia ApAnjAkra, 1977 (foto Gilberto Azanha).

26
17. Homens Apanjekra no seu lugar no pátio (reuniao do " conselho"), 19n (foto Gilberto
Azanha ).

Nao tenho informac;:oes e nem conhec;:o nenhuma aldeia Timbira cujo diametro fosse
inferior a 150 metros aproximadamente. Aldeias muito populosas terao obrigatoria-
mente diametros maiores, mas a circunferencia formada pelas casas nao é neces-
sariamente proporcional a seu número. Aldeias com poucas casas podem, portante,
ter um círculo (e um diametro) equivalente ou mesmo superior. a aldeias com um
número maior de casas (cf. Melatti, 1975:23).

Os nossos dados de campo nos indicam que o número de segmentos residenciais


nao apresentam urna variac;:ao significativa em relac;ao ao número da populac;ao.
Parece que urna aldeia Timbira precisa, para seu funcionamento, quer tenha 200 ou
800 habitantes, de um mesmo número de segmentos residenciais (entre 9 a 12).
O que acontece é que, nas aldeias mais populosas, os segmentos residenciais sao
compostos de um número maior de casas, enquanto nas aldeias pequenas eles se
reduzem, por vezes, a duas ou tres casas, quase coincidindo com o grupo domés-
tico. lsto nos leva a pensar que estruturalmente as aldeias Timbira sao capazes de
suportar urna grande densidade populacional. Há referencias de algumas aldeias
Timbira com urna populac;ao aproximada de 3.000 índios no comec;:o do século
passado e final do século XVIII, quando do contato comas frentes de penetrac;:ao da
sociedade nacional. Atualmente a aldeia mais populosa é a dos Ramkokamekra,
com cerca de 900 habitantes e 70 casas, aproximadamente.

27
Pensar que o círculo da aldeia remete a um espa90 fechado urbanisticamente, cujo
padrao apresentaria dificuldades no acréscimo ou decréscimo de popula9ao, é ter
como referencia o nosso padrao urbano, cujas possibilidades de crescimento popu-
lacional sao consideradas infinitas (é só colocar no final da rua mais urna casa) (cf.
Matta, 1976:67). A expansao das aldeias Timbira nao é dada de forma linear: En1
1978, quando estive pela última vez entre os Ramkokamekra, o círculo periférico da
aldeia já nao suportava mais a constru9ao de novas casas, o que significava que
estavam tendo um incremento populacional acelerado. As novas famílias estavam
construindo suas casas atrás das casas das quais se haviam desmembrado, ou seja,
geralmente as filhas morando atrás das maes. Ao visitar, acompanhada por 'minha
irma', as casas mais distantes do 'meu' segmento residencial onde moravam
'minhas' irmas e maes classificatórias, tomos pelo caminho tradicional do krTcapé
mas, ao voltarmos, minha irma falou: "agora nós vamos andar na 'rua' de trás".
Pareceu-me confusa "essa outra rua", porque as casas estavam muito distantes
urnas das outras, nesse novo círculo. Mas nao creio que as aldeias Timbira tenham
tido no passado váríos círculos concentricos de casas. Paree~ mais correto pensar
que em momentos ou situa95es de grande acréscimo populacional e de estabilidade
política, ao invés da ocorrencia de cis5es, as aldeias podem ampliar o círculo
(aumentando o diametro da aldeia), abrindo-o para trás. Nesta sítua9a0, e imagi-
nando a aldeia vista de um aviao, nao a veríamos como um conjunto concentrico de
círculos de casas em torno de um pátio, mas sim um círculo de tra9ado irregular,
com casas mais distantes ou mais próximas do pátio. Com o passar do tempo, as
casas do antigo círculo tenderiam a desaparecer, restando somente o novo círculo
periférico com um perímetro maior, já que as novas gera9oes teriam construído suas
casas no círculo de trás e as da frente desapareceriam. Essa é, sem cisao, a forma
T1mbira de expansiio: a aldeia reproduzindo-se como tal, identica na sua forma.

Pela própria dinámica da estrutura social Timbira, suas aldeias nao poderiam ter
vários círculos concentricos de casas, já que as filhas constroem suas casas ao lado
da casa da sua mae, e nao atrás, como os Bororo. Nas aldeias Bororo, mesmo com
poucos habitantes, as casas formam dois (ou mais) círculos concentricos, o que
aponta urna hierarquía ou diferen<;:a entre as gera9oes: a cada círculo corresponde
urna gerac;ao. As aldeias Timbira eliminam a marca do tempo, as diferentes gera-
95es de mulheres nao manifestam nenhuma hierarquia espacial e o seu "concen-
trismci" é marcado somente pelo círculo periférico das casas e pelo círculo central
do pátio, e que revela a oposi9ao fundamental da estrutura social Timbira; aquela
entre os homens (pátio) e as mulheres (periferia) e a complementaridade essencial
entre ambos, a aldeia.

O concentrismo das aldeias Timbira, além dísso, serve de base para a ordena9ao do
universo. Todos os seres e coisas que povoam o mundo estao sit~ados neste
espa<;o da aldeia: homens, mulheres, animais, plantas, seres mitológicos, etc ... sao
classificados ou como "filhos do pátio" (caa-mii-akra), ou como "filhos do fundo
das casas" (atyc-mii-akra), senda estes os nomes das metades cerimoniais as quais
todos os Timbira se vinculam através da nomina9ao. "Estas metades remetem ime-

28
diatamente ao universo Apinayé (Timbira) e servem como paradigmas para urna
série de oposi9oes cosmológicas. Estas oposi9oes podem ser estendidas ou contraí-
das. Assim, é possível come9ar com quaisquer pares e, por extensao, chegar aos
outros" (Matta, id., p . 103).

Caa-ma-akra A tyc-ma-akra
sol lua
día noite
fago água
nascente poente
vermelho preto
"verao" (seca) "inverno" (chuvas)

\\
a~ \

/
~

18. Desenho de Augusto Rlir~c -velho Canela (mais de 60 anos) - Ramkokamekra, 1974, MA.

29
Oeste modo, um homem caa (ou ainda wacmejé) poderá viajar tranqüilo durante o
" verao", pois este é o seu tempo (íhpimrac), enquanto um homem atyc (ou ca-
tamja) ficará alegre quando o tempo estiver nublado; um homem caa fará sua bor-
duna de "pau-roxo" ou de pau-brasil, enquanto um atyc o fará de "jatobá-de-
vaqueiro" . E esta classifica~~o dos seres e coisas a partir do espa~o da aldeia é o
que possibilita o domínio Timbira do cosmos. É neste sentido que a aldeia é tida
como o centro do universo, por ser a partir dela que ele é significado, isto é, dife-
renciado.

....

/'f

19. O cosmos segundo Augusto Rilrilc - Ramkokamekra, 1974, MA.

30
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZANHA, G. - 1977 (relatório apresentado a FAPESP, mimeo. ).

CARNEIRO DA CUNHA, M. - 1978, Os Martas e os Outros (Hucitec, Sao Paulo).

DOUGLAS, M. - 1976, Pureza e Perigo (Perspectiva, Sao Paulo).

MATTA, R. da - 1976, UmMundo Dividido: a estrutura social dos índios Apinayé


(Vozes, Petrópolis).
. f--
MELATTI, J. C. - 1974, "Porque a aldeia Krahó é redonda". In: Informativo
FUNAln?s 11/12 (Brasília).
_ _ - 1975, Ritos de uma tribo Timbira (mimeo.).

NIMUEN.DAJÚ, C. - 1930 (?), Os Timbira Orientais (manuscrito em portugués,


Museu Nacional, Rio de Janeiro).

SEEGER, A. - 1980, Os indios e Nós (Editora Campus Ltda., Rio).

31
XAVANTE:
CASA - ALDEIA - CHÁO - TERRA - VIDA

Aracy Lopes da Silva

33
20.

É noite de lua cheia, em tempo de seca, no Planalto Central. Noite clara, cerrado a
vista, caminhos alumiados. De urna clareira aberta no campo, perto do riacho,
ouvem-se cantos e risos. É noite alegre na aldeia Xavante .

As casas estao quase vazias. As esteiras de dormir foram trazidas para fara e postas
defronte das casas para aninhar casais e receber crian<;as adormecidas. É o mo-
mento de trocar idéias, comentar o dia, contar estórias. No pátio central, alguns
homens se reúnem e incentivamos jovens, que dan9am e cantam. Dan9am de maos
dadas, em círculo - o mesmo círculo presente na planta de suas casas tradicionais;
a mesma idéia básica que orienta a disposi9ao dessas casas ao redor de um pátio,
dando a aldeia a sua forma peculiar: um círculo incompleto, aberto, voltado para a
água do río, dos banhos, de matar a sede e fazer comida.

Urna mesa redonda nao tem cabeceira. Os movimentos de cada um sao facilmente
controlados pelos demais. As posi9oes convergem para um centro comum. O cír-
culo mostra-se, assim, figura ideal para expressar idéias básicas de igualdade e
intensidade de vida social.

35
A maior parte dos povos indígenas do Brasil Central dispoe as suas casas de modo a
dar a aldeia urna forma circular. Da Matta demonstrou que, mesmo vivendo em
casas construídas ao longo de ruas, alinhadas paralelamente, os Apinayé continuam
a pensar a sua aldeia e a representá-la em forma circular (1976:61-68) . A con-
cepc;:ao original permanece como modelo de referencia, apesar de urna prática
transformada. Nao só os Apinayé, mas todos os Timblra e também todos os Kayapó
(Vidal, 1978:60-76) veem no círculo a disposi9ao ideal de suas casas. Os Xavante -
também falantes de urna língua Je, como os anteriores - levam a idéia um pouco
além: nao só su as aldeias, como a própria planta de su as casas tradicionais, sao
circulares. Sao estruturas de madeira totalmente recobertas com folhas de palmeira,
tendo a aparencia final de urna colméia. Num diametro de seis ou sete metros sao
fincados na terra paus (de cerca de 15 cm. de diametro na base), "a distancia de
meio metro um do outro, de modo que pendam para o interior. No centro, é fincado
um pau mais grosso, ao qual se fixam as pontas dos outros paus, por meio de
ligaduras" (Giaccaria e Heide, 1972:44). De altura, tem aproximadamente 4,50
metros, no ápice (Maybury-Lewis, 1967:58).

21 .

36
Do trabalho de constru9ao participam homens e mulheres. Estas fazem "convergir a
estaca para o centro, servindo-se de urna vara grande feito gancho, enquanto o
homem, do alto, procura fixá-la na estaca central com urna amarra" (Giaccaria e
Heide, 1972:44). Pronta essa primeira parte, sao providenciadas taquaras que, cor-
tadas ao meio, sao dispostas horizontalmente sobre a madeira e atadas com cipós.
Sobre essa arma9ao é que serao colocadas, pelas mulheres, as folhas de palmeira,
que constituem a cobertura da casa. No lado da casa voltado para o centro da aldeia
é deixada urna abertura nao muito alta, que serve de entrada. Nos dias de muita
chuva, ou de vento muito forte, "urna combina9ao freqüente em terra Xavante",
essa abertura é tapada com um tufo de folhas de palmeira, seguro por um tronco
apoiado.no chao e colocado em posi9ao diagonal (Maybury-Lewis, 1967:96).

22. Etapas de construc;;ao da casa Xavante tradicional (desenho de Maria Carolina Young Rodri-
gues).
Ouando a noite avan9a e se faz fría, é hora de recolher as crian9as e as esteiras,
e preparar-se para dormir. No centro da casa, a estaca central foi geralmente
retirada assim que a cobertura da casa ficou pronta. Em seu lugar, crepita inces-
santemente urna fogueira. É a única da casa, utilizada durante o dia pelas mulheres
de todas as famílias que vivem aí, para o preparo dos alimentos. A noite, aqueee o
ambiente.

Ao entrar, os Xavante percorrem um pequeno corredor de estacas e folhas de


palmeiras, que leva ao centro da ca~a (Giaccaria e Heide, 1972:43; Maybury-Lewis,
1967:96). De cada lado da entrada, separadas por essas paredes de palha, acomo-
dam-se as famílias para dormir. No liv ro que publicaram sobre os Xavante, os
missionários salesianos esclarecem que o lado esquerdo é geralmente ocupado pelo
casal mais idoso; a filha mais velha, seu esposo e filhos dispCSem suas folhas de
palmeira como um colchao e recobrem-nas com sua esteira de dormir, no lado
direito da entrada; as demais famílias ocupamos espa9os ao redor da circunferencia
da casa (Giaccaria e Heide, 1972:44). Já David Maybury-Lewis, antropólogo ingles
que viveu durante um longo período, no fim da década de 50, entre os Xavante,
afirma que nao há regras formais que estabele9am quem deva ocupar que lado da
casa (1967:96) 1 •

Cada família tem, portante, o seu espa90 dentro da casa . Ouando alguma das meni-
nas da casa come9a a se desenvolver e a receber visitas do seu noivo, a noite, os mais
velhos constroem para ela um abrigo de palha, algo assim como um biombo, para
que o novo casal possa desfrutar de certa intimidade em seu namoro. Essa divisao
serve, também, como um sinal ostensivo e urna demonstra9ao explícita da vincu-
la9ao do rapaz a casa de sua noiva, onde deverá passar a viver depois de forma-
lizado o casamento .

Dentro de cada casa podem viver tres ou quatro famílias, todas aparentadas através
de suas mulheres. Urna das saudades mais doídas que os Xavante podem conceber
é aquela que a separa9ao entre mae e filha provoca, já que urna mulher Xavante vive

(1) Convém esclarecer que há certas diferen.yas culturais, embora pequenas, entre os Xavante
Ocidentais (os que vivem nas cabeceiras dos formadores do Xingu e no Alto rio das Mortes)
e os Xavantes Orienta is (nas proximidades de Xavantina, a leste do rio das Mortes). Os salesianos
tem suas missCSes entre os primeiros; Maybury-Lewis trabalhou principalmente entre os segundos.
Esse é um ponto, porém, que mereceria urna investiga.y~o mais detalhada. De qualquer maneira, as
razCSes em que Maybury-Lewis se baseia sao menos etnográficas e mais estruturais: dada a regra
da uxorilocalidade - segundo a qual as mulheres vivem durante toda a sua vida na casa em que
nasceram, enquanto que os rapazas devem, depois do casamento, mudar-se para a casa de suas
esposas - "um homem entra numa casa ocupando o status de genro e passa mais tarde ao de
sogro. Quando, por sua vez, o genro de Ego passar a viver nessa mesma casa, ele deverá se
acomodar no espa90 antes ocupado pelo sogro de Ego já falecido. Assim, se o sogro está a direita
da entrada numa gera9~0 e o genro a esquerda, na gera.y~o seguinte haverá urna inversao da
justaposi.y~o. Por fim, depois da morte dos sogros, urna das filhas e seu marido, em geral, vivem
num dos lados da entrada, enquanto que sua irm~, com o marido, .vivem no outro." (Maybury-
Lewis, 1967:96-97).

38
sempre com sua mae. Se as filhas sao muitas, passam a viver em construcoes
adjacentes a da mae, para evitar o desconforto de urna casa muito cheia.

Para dormir, cada casal acomoda-se com seus filhos num desses compartimentos
que os moradores identificam em cada casa. Nao é bom dormir só. Quem darme só,
sente fria e tristeza. Por isso é que as avozinhas, quando viúvas, tem sempre um ou
dais netos para cuidar durante a noite e aquecer a solidao. As crian9as de peito
estao invariavelmente com a mae. Se duas mulheres sao casadas com o mesmo
homem, ocupam juntas um mesmo compartimento, deitadas cada urna de um lado
do marido, seguidas de seus filhos. ·

Se o sano nao vem lago, é comum as conversas continuarem um pouco. As vezes,


já acomodados, há tempo e disposi9ao para alguma brincadeira comos vizinhos. A
cobertura de palha permite que se converse de urna casa para outra e, entao, o riso
explode. Masé a noite, também, que a saudade aperta mais forte e entao se ouvem
os charos rituais, melodiosos, mas profundamente tristes, com que os ~ Xavante
expressam sua dor e a falta que sentem de seus mortos e das pessoas queridas que
estao distantes.

É durante a noite que os rapazinhos, que estao senda preparados para as festas da
inicia9ao, sao convidados a demonstrar publicamente sua resistencia física , sua
tolerancia ao fria e sua boa disposi9ao. Rapazes mais velhos, encarregados de sua
forma9ao, ensinam-lhes novos cantos e os conduzem ao centro da aldeia. O silencio
da noite é repentinamente cortado pelos sons fortes e compassados dos cantos e
pelas batidas ritmadas de pés que dan9am. Terminada a dan9a, eles voltam para a
sua casa, a casa dos solteiros, ho, a casa dos meninos, onde a entrada das mulheres
é vedada, onde a coopera9ao e a igualdade sao a regra, onde tudo deve ser feito em
conjunto por esse grupo de reclusos em prepara9ao para a vida.

Nas casas, as pessoas ouvem os cantos, que acham bonitos, waparidzeti, gastosos
de ouvir. Essas músicas nascem ali e tomam a aldeia : sao compostas individual-
mente, também durante a noite, dentro de casa. Esse é o lugar, por excelencia,
poftanto, da cria9ao e da reprodu9ao: dos cantos, dos filhos, dos nomes. Nomes,
cantos e choras rituais nascem de urna inspira9ao que assedia os Xavante a noite,
em casa. Nos sonhos é que "captam" as novas idéias, as novas melodias e até os
nomes pessoais inéditos, aihda desconhecidos. É durante o sono que o espírito vaga
por lugares distantes e pode chegar até a aldeia dos mortos; e é, ainda, durante o
sano, que os Xavante recebem a visita das almas de seus parentes mottos (May-
bury-Lewis, 1967:288). Esses parentes lhes trazem novas ensinamentos e inspira9ao
e tuda isso é possível porque o carpo está em seguran9a e aconchegado, em casa.
A movimenta9ao come9a cedo, as vezes antes mesmo do sol nascer. A primeira
providencia é mandar as crianc;as ao rio, para que se banhem . Mulheres e crianc;as
voltam trazendo água nas caba9as e nos baldes que sempre tem reservados para
esse fim. Além de caba9as, há sempre muitas cestas dependuradas em estacas,
onde se guarda algum alimento a ser preparado e os bens pessoais. Outros objetos

39
23. Sao Marcos - casa dos homens (foto Virginia Valadao).

sao guardados entre a palha da cobertura, apoiados nas taquaras que formam sua
estrutura. Hoje, além das caba9as, armas, esteiras e cestas tradicionais, o mobiliário
de urna casa Xavante se ve acrescido de bens tomados aos costumes dos brancas
(ou impostas pelo contato): sao redes, panelas de alumínio, pratos, talheres e copos
de todo tipo. Quase toda casa dispese, agora, de um pequeno jirau, bastante alto para
estar fora do alcance das maozinhas mexedeiras das crianc;as, sobre o qual há
sempre urna ou duas malas. Dentro delas, bens e guardados pessoais e especiais:
documentos, mapas das terras Xavante, fotografias da família, dos parentes, das
pessoas queridas, ornamentos em confecc;ao, estoques de matéria-prima para seus
artefatos (sementes de capim navalha e unhas de veado para os colares, fios de
algodao, penas de aves diversas).

Durante odia, o ambiente dentro de casa é de penumbra. É preciso sair e colocar


urna esteira ao ar livre, ou aproveitar a luz que entra pela porta e atinge o centro, se
se quer fazer algum trabalho. Nas horas do sol mais quente, quando é penoso
ficar-se forado abrigo da casa, os Xavante deitam-se um pouco para descansar, ou
aproveitam para executar com tranqüilidade alguma tarefa. Se a vontade é de tra-
balhar num colar, por exemplo, pode-se afastar a palha da cobertura lateral num
ponto e numa altura convenientes, junto ~ esteira onde se está recostado, para
permitir a entrada de um pouco mais de luz. Essas "janelas" podem ser abertas a

40
qualquer momento e em qualquer lugar. É por elas, também, que urna pessoa pode
acompanhar o movimento de toda a aldeia, lá fara, sem deixar o conforto de sua
esteira.

A temperatura dentro da casa é agradável. Na opiniao de Giaccaria e Heide, a


constru9ao tradicional possibilita "um isolamento térmico notável, atenuando
assim, no interior, o efeito das perigosas e freqüentes quedas de temperatura"
(1972:45). A palha permite urna boa circula9ao de ar, de modo que a casa é bem
ventilada . Na esta9ao das chuvas, quando a intensa umidade domina a regiao,
a casa é o abrigo mais indicado. É, portante, muitíssimo adequada ao ambiente
onde vivem os Xavante.

24.

41
25. a Corte: vista do interior e planta de urna casa Xavante.
b Abrigos construídos nos acampamentos durante as expedic;oes de cac;a e coleta .
Abrigam apenas urna família nuclear cada um. Como sao habitac;oes provisórias, sao
menores e recobertas com menos zelo que as casas das aldeias. Note-se a disposic;ao
constante de cada família relativamente as demais, seja dentro da casa, nas esteiras
(fig.a) seja nos abrigos dos acampamentcis (fig. b) (Desenho de Maria Carolina
Young Rodrigues).

A B C - Localizac;ao das famílias nucleares


1. " Paredes" de estacas de taquara e folhas de palmeiras que delimitam o "corredor" de entrada.
2. Esteiras de dormir.
3. " Biombo" que protege o namoro da noiva.
4. Estaca centra l.
5. Fogueira

42
COM A CASA NAS COSTAS: OS PERIODOS DE NOMADISMO

Antes de seu contato mais freqüente comos brancas (que se intensificou a partir de
fins da década de 40), os Xavante eram semi-nómades. Viviam em su as aldeias
apenas pouc·o s meses por ano. No resto do tempo percorriam o seu território, em
grandes grupos, fazendo expedi9oes de cac;a e coleta. Nessas ocasioes, andavam
de dia e acampavam antes do pór-do-sol. Sua rela9ao com suas casas era, portanto,
bastante diversa daquela que os povos sedentários costumam manter com o lugar
onde vivem. A própria aldeia nao tinha urna localizac;ao definitiva: urna comunidade
Xavante ocupava um espac;o durante alguns anos e depois mudava sua aldeia-
base para terras novas, sem detritos acumulados e mais descansadas para o cul-
tivo 2. As casas costumavam também ser refeitas a cada dais anos, aproximada-
mente. Muitas vezes elas pegavam fogo quando a palha já estava seca demais. O
risco de incendios na estac;ao seca era muito grande. Além disso, havia a perma-
nencia constante "fora de casa", nos acampamentos. A aldeia, no entanto, era
sempre recriada: nos acampamentos, "os abrigos eram versoes em miniatura das
casas da aldeia-base. Um círculo de troncos flexíveís de árvores novas era fincado
ao chao com firmeza e suas pontas eram amarradas juntas com faixas de entre-
casca. Essa estrutura era entao recoberta com folhas de palmeiras e com galhos.
Um abrigo como esse nao costuma ultrapassar um metro de altura e qois metros de
diametro" . E ainda: "a posí9ao relativa desses abrigos é constante e corresponde
exatamente a ordem das casas na aldeia-base. Nao há, porém, urna relac;ao fixa
preestabelecida entre o semicírculo da aldeia e os pontos cardeais. O semicírculo
pode até estar ''do avesso" , contanto que cada grupo doméstico mantenha sempre
os mesmos vizinhos". (Maybury-Lewis, 1967:58).
Da mesma forma quando, na aldeia-base, os membros de um grupo doméstico
estao construindo urna casa nova, eles ajeitam para si abrigos como esses. Cada
família nuclear (pai, mae e filhos) ocupa um deles e, aqui também, a disposic;ao das
famílias dentro da casa é mantida.
Seja a unidade a aldeia, seja a casa, a disposic;ao dos grupos sociais que a consti-
tuem - grupos domésticos num caso, famílias nucleares no outro - se mantém
constante 3 . As referencias, portanto, sao essencialmente socia is. Socia is, mas
expressas concretamente através da disposic;ao das esteiras e das casas, invólucros
e cenários particulares de grupos sociais de contornos definidos.

(2) As r0<;:as Xavante, embora imprescindíveis e localizadas a mais ou menos um quilómetro das
aldeias-base, nao forneciam o essencial de sua alimenta9ao. O milho, a abóbora e o feijao que
cultivavam eram consumidos, principalmente, nos grandes rituais. Os produtos da ca9a e, mais
ainda, os da coleta, é que constituíam a base de sua dieta (Maybury-Lewis, 1967:43-51 ).
(3) Durante as expedi9oes de ca9a e coleta , aliás, "os abrigos dos Xavante sao dispostos ao redor
de fogueiras comuns, de modo que os membros de um mesmo grupo doméstico ocupam vários
abrigos, mas continuam a fazer suas refei9oes juntos" (Maybury-Lewis, 1967:58).

43
O ESTILO XAVANTE DE ORGANIZAR SEU ESPACO

26.

Da Matta, seguindo Lévi-Strauss ( 1970), já afirmou que a organizac;ao espacial dos


grupos Je-Timbira pode ser apreendida através de um modelo constituído por cír-
culos concentricos, que vao do ambiente mais natural ao mais social (1976:61 -65) 4 •
O mesmo se aplica ao caso Xavante, o ponto central sendo o pátio da aldeia - onde
se destaca o warii, ponto de encontro diário do conselho dos homens maduros,
instituic;ao política fundamental da vida Xavante - espac;o eminentemente público
e jurídico, cenário dos grandes rituais. Esse espac;o central é circundado por um
caminho amplo, que passa defronte as portas das casas, 5 estabelecendo, portanto,
a mediac;ao física entre o espac;o central associado aos homens e a esfera domés-·
tica, domínio das mulheres. De cada casa partem camin hos que levam seus mora-
dores ao pátio, ao warii, e ao rio. Um outro caminho envolve as casas por detrás e
marca os limites entre o espac;o social constituido pela aldeia e os domínios nao
domesticados, os campos cerrados. Do lado em que o círculo nao se completa,
sao a mata-galería e o próprio rio, que servem de divisa.

(4) Também Clastres, em "O Arco e o Cesto", faz menc;ao a esse modelo de organizac;ao do
espa90 para o caso Guaiaki, no Paraguai (1978:73).
(5) Urna aldeia Xava nte tradicional costumava ter entre vinte e trinta casas e urna popula9ao que
variava de 150 a 250 habitantes (Giaccaria e Heide, 1972:42).

44
Junto a urna das extremidades do arco formado pelas casas, há sempre urna propo-
sitalmente "desalinhada". É a casa dos solteiros, de que falei páginas atrás. Ouero
deter-me, agora, um pouco mais, aqui. Sua construc;ao é identica a das demais
casas Xavante, mas ela é única quanto a populac;ao que nela habita: nao há mulhe-
res aí e, se há fogo, ele serve exclusivamente para aquecer os meninos que, espacial
e socialmente separados de suas familias, estao sendo preparados para a vida
adulta, treinados pelos mais velhos em suas habilidades e sabedoria. Essa casa tem
mais urna peculiaridade na sua construc;ao, além de localizar-se fora do círculo das
outras casas: sua porta nao é voltada para o centro da aldeia, como as demais mas,
ao contrário, volta-se geralmente para os lados do rio. É, na verdade, urna casa
construida " de costas" para o burburinho da vida na aldeia. lsso se explica pelo fato
de seus moradores manterem para com a quase totalidade dos adultos e, espe-
cialmente, para com as mulheres da aldeia, urna relac;ao de distanciamento, de
evitac;ao e respeito. Estao fora da vida social plena, a qual só vao voltar urna vez
iniciados; essa "volta" será simbolizada pela queima da sua "casa dos solteiros" e
sua reincorporac;ao as casas da aldeia.

Partindo dos limites da aldeia, em várias direc;oes, há trilhas que levamos moradores
de cada casa a sua roc;a. As roc;as sao plantadas nas terras mais férteis, junto aos
córregos e rios maiores, depois da derrubada de urna área na mata-galeria. Os
Xavante nao costumavam construir casas nas roc;as, já que se dedicavam pouco a
agricultura. De qualquer modo, as roc;as representam, como já disseram vários
autores, espac;os onde um pouco mais de intimidade é possível entre um casal, ou
os membros de urna família nuclear; da mesma forma, representam extensoes da
aldeia, no sentido de espac;o domesticado, marcas da presenc;a humana.

Mais perto da aldeia, os homens abrem algumas clareiras na mata próxima ao


rio. Sao espa9os quase sempre exclusivamente masculinos, já que associados
ao ritual maior dos Xavantes, o wai'a, vivido basicamente só por homens 6 • Nessas
clareiras é que os homens se ornamentam e se preparam para o ritual.

O último espac;o, nesse modelo, seria constituído pelas áreas percorridas pelos
Xavante moradores de cada aldeia nas suas expedic;oes de cac;a e coleta que carac-
terizam seus períodos de nomadismo. Essa área corresponde, na verdade, ao
próprio território do grupo.

Da mesma forma , dentro de cada casa, essa mesma concepc;ao de organizac;ao do


espac;o se reproduz: cristaliza-se no arranjo dos espac;os familiares ao redor de um
ponto central, simbolizado pelo fogo.

(6) Para urna descri9ao completa do ritual e das condi90es de participa9ao das mulheres, veja
Maybury-Lewis, 1967:255-269 e Giaccaria e Heide, 1972:181 -209. Para urna descri9ao e análise dá
ornamenta9ao corporal no wai'a, e nos demais rituais, veja Müller, 1976.

45
ngues).
27. (desenho de Maria Carolina Young Rod.

46
E O CERCO APERT A ...

"Reduc;:ao dos limites do território controlado pelos índios; perda de áreas ricas em
produtos da coleta; escassez da cac;:a pela proximidade de fazendas e vilas; dese-
quilíbrio demográfico (reduc;:ao drástica da populac;:ao nos anos iniciais do contato,
podendo ou nao havet recuperac;:ao posterior) devido a doenc;:as e eventualmente a
conflitos na disputa pela terra; necessidade de bens manufaturados e experiencias
coma venda da forc;:a de trabalho parecem ser compulsoes que necessária e inexo-
ravelmente se impoem as populac;;oes indígenas em contato com a sociedade
nacional."

" Os Xavante nao escaparam a regra. No seu caso específico, a primeira grande
alterac;:ao afetou o padrao semi-nómade de explorac;:ao do meio ambiente. O pro-
cesso de abandono das expedic;:oes coletivas de cac;a e coleta (dzomoii) está hoje
quase completo. Elas sobrevivem, com freqüencia bem menor do que a época do
contato, apenas em Pimentel Barbosa e Areoes. lsto significa diminuic;:ao da fre-
qüencia de atividades económicas coletivas e traz, como alternativa para a sobre-
vivencia, um aumento da importancia da agricultura .como fonte de alimentos.
Enfase na agricultura significa, além da sedentarizac;:ao, enfase em atividades eco-
nómicas individuais (as roc;:as Xavante pertencem as famílias nucleares). Urna das
conseqüencias da dedicac;;ao de um número maior de horas de trabalho para a
subsistencia é a diminuic;:ao das oportunidades para as atividades comunitárias
(sociais, rituais) ." (Lopesda Silva, 1980:11 -12).

Dois fatores, basicamente, explicam alterai;oes profundas no jeito Xavante de morar


- 1?) a sedentarizac;:ao, que traz a necessidade de casas mais duráveis que as
tradicionais; 2?) o contato como situac;:ao de dominac;:ao, variante do colonialismo,
em que o povo dominado é levado a incorporar padrees estéticos e sociais típicos da
sociedade invasora .

Assim, nao se encontra mais, no mundo Xavante, urna paisagem uniforme do ponto
de vista da ocupac;:ao e da organizac;:ao do espac;:o. De um lado, as roc;:as cresceram
muito e diversificaram a sua produc;:ao 7 ; de outro, as casas de estilo serta nejo
proliferaram-se, tomando o lugar, em várias aldeias, das casas tradicionais, e
impondo a traca d0 círculo pelo retangulo. Nao só a construc;:ao das casas alterou-

(7 ) Pla ntam agora mamao, mela ncia, mandioca e aipim, banana e, acima de tudo, arroz . Desde
1979, a Funai vem implantando entre os Xavante um projeto económ ico de rizicult ura m ecanizada
(ao lado das roc;;as familiais, "de toco") para a prodw;:ao de excedente com ercializável. Grandes
extensoes da mata-ga leria foram derrubadas, numa tentativa de cria<;:ao de um capital extra
empregado na satisfac;;ao das necessidades criadas pelo contato. Os Xava nte sao hoje mais de
·3.500 pessoas, vivendo em vinte aldeias, distribuídas em seis reservas na reg iao de Barra do Ga r9a,
Ma ~o Grosso .

47
28. 29.

30.

31. (foto de Virgfnia Valadao).

48


se, porém. Também a disposic;:ao das casas sofreu, em certas circunstancias,
profundas mudanc;:as, que vao desde o U a rua e ao aglomerado de casas, de modo
que o semi-círculo, antigamente de contornos tao nítidos, nem sempre pode ser
agora reconhecido.

Casas de pau-a-pique ou adobe, de planta retangular, moradias freqüentes dos


regionais nas pequenas vilas matogrossenses - as corrutelas - podem eventual-
mente ser encontradas em algumas aldeias Xavante. Elas sao mais freqüentes na
Reserva Indígena Kuluene, junto ao rio do mesmo nome e há urna razao histórica
para isso: na época de sua "pacificac;:ao" pelo Servic;:o de Protec;:ao aos indios, os
Xavante que originalmente habitavam essa regiao foram atraídos para urna área
bem mais a oeste (na regiao dos ríos Batovi e Paranatinga). Durante mais de vinte
a
anos viveram juntos postos do SPI e da Funai. Em 1974 comec;aram a retomada de
suas terras de origem. Durante sua ausencia, atividades de garimpo deram origem a
forma c;:ao de um " Patrimonio" , vilarejo onde viviam os garimpeiros. Depois de
muita tensao diante da eminencia de conflitos pela terra, os Xavante conseguiram,
em 1975, a criac;:ao, pela Funai, de um Posto Indígena e a demarcac;ao de suas
terras. Os Xavante ocuparam as easas dos moradores nao-índios na regiao (de pau-
a-pique ou taipa, quase todas), fazendo , do Patrimonio, urna de suas aldeias. Nas
outras duas que fundaram na mesma regiao, construíram eles mesmos casas como
essas. Embora mais duráveis que as de palha, tem o sério inconveniente de favo-
recer, como se sabe, a proliferac;:ao dos insetos. A perda em termos de saúde e
higiene, em relac;:ao a casa tradicional, é notável.

Mais freqüentemente ocorreu a absorc;:ao de casas como a dos sertanejos, mas em


palha, sobre plano retangular. Várias aldeias sao constituídas por urna combinac;:ao
de casas tradicionais e casas retangulares, de palha . Nestas últimas, ocorre as vezes
que, em seu interior, urna pessoa se sinta no meio de um espac;:o circular. Urna
dispo'sic;ao especial dos objetos, jiraus, cestas, etc. explica o mistério: recria, inter-
namente, urna circularidade de que, de fora , nao se pode sequer desconfiar. Eis aí
urna indicac;:ao para a importancia simbólica do espac;o circular dentro da casa (e por
que nao dize-lo, da aldeia, já que os Xavante englobam as duas, casa e aldeia, numa
categoria única, ri ), fundamental para o estabelecimento "correto" das relac;:oes
sociais entre os Xavante.

Nessas aldeias de formas inovadas, a casa dos solteiros, significativamente, tende a


aparecer sob forma de construc;:ao tradicional, mesmo quando é a única excec;:ao
num conjunto de casas "modernas" . A dos solteiros, porém, mantém-se como
repositório da tradic;:ao viva, das verdades básicas, garantia da formac;:ao de pessoas
verdadeiras na concepc;:ao Xavante.

Algumas soluc;:oes originais foram adotadas pelos Xavante, no sentido de aliar a


durabilidade (que sua permanencia definitiva junto as suas roc;:as agora exige) a
beleza da forma circular. Nesse sentido, ve-se, em algumas aldeias, o surgimento de
urna nova "casa Xavante". Sobre urna parede circular, de pal ha, é coristruído um

49
32 . (foto de Virgínia Valadao).

50


33. (foto de Virgínia Valadao). 34. (foto de Virgínia Valadao).

35. (foto de Virgínia Valadao). 36. (foto de Virgínia Va ladao}.

51
teto cónico, também de palha. A palha, como na casa tradicional, recobre urna
arma9ao de madeira . Nesse novo estilo de construc;ao, os troncos usados sao mais
grossos e resistentes. Geralmente sao abertas janelas "fixas", em madeira. Urna
maior durabilidade parece também ser obtida grac;as a construc;ao do teto em sepa-
rado8.

Há aldeias que tanto respeitam o trac;ado original quanto o estilo tradicional da


construc;ao. Mesmo aí, porém, podem surgir dificuldades específicas na construc;ao
de certas instala9oes, incorporadas através do contato, como escolase enfermarías.
No caso da escola, por exemplo, as atividades que se desenvolvem em seu interior
requerem urna claridade que a casa Xavante típica nao tem . Fazem-se, entao,
"adaptac;oes", como as encontradas na aldeia de Dom Sosco, em Sangradouro 9 •
Urna solu9ao foi a abertura de janelas fixas, para permitir a entrada da luz. Man-
teve-se o estilo tradicional, exce9ao feita ao chao que, originalmente de terra, passa
a ser cimentado. Na maior parte das reservas, porém, escalas e enfermarías sao
construc;oes de alvenaria e telhas (ou folhas de zinco), por determina9ao da Funai e
por exigencia dos índios.

Nessas aldeias Xavante de hoje, a paixao pela cac;a permanece. O território é ainda
percorrido pelos ca9adores Xavante e pelas mulheres que saem coletando cocos,
frutas, alimentos. O que quase já nao é mais possível fazer é ausentar-se da aldeia e
da ro9a. O território perde, portante, aquele caráter de área de domínio e explora9ao
de um grupo Xavante que o percorria sistematicamente e passa a ser o pedac;o de
terra cujo domínio é preciso assegurar para a garantía da sobrevivencia de todo um
povo. Os limites de seu território passam a ser a divisa entre dois mundos, entre os
quais a realidade de urna rela9ao simétrica parece estar ainda distante.

(8) Este tipo de casa é freqüente nas aldeias da Reserva Indígena de S~o Marcos, em área de
influencia das missoes salesianas.
(9 ) Reserva Xavante onde atuam também missionários salesianos.

52
CONCLUSAO OU ONDE A MULHER TEM PODER:
A CASA XAVANTE

A oposi9ao entre o espa90 periférico, doméstico, domínio feminino e o espa90


central, jurídico, público, nas aldeias dos índios Je do Brasil Central foi notada ,
descrita e analisada pela maior parte dos autores que se dedicaram a essas socie-
dades 10 . No caso Xavante, o espa90 central é claramente masculino: é ali que se
reúne o conselho dos homens e é ali que fazem os seus discursos; é o cenário dos
rituais públicos, de que os homens Xavante participam muito mais ativamente que
as mulheres; é onde se localiza o agora imprescindível campo de futebol. As crian -
9as também gostam de usar o pátio para as suas correrias e brincadeiras - mas
crian9as sao crian9as - e nao ocupam, ainda, plenamente, posi9oes definidas na
sociedade Xavante. Por isso, tem acesso a todas as casas e todos espa9os lhes sao
abertos; " entrada proibida" é algo que parecem desconhecer.

Na verdade, a esfera das decisoes que dizem respeito a toda a comunidade está nas
maos dos homens. E, de acordo com a ideologia Xavante - acatada, inclusive,
pelas mulheres - os "h~mens é que sabem" e, portante, sao eles os que decidem .
.Mestres de cerimónia nos grandes rituais e chefes políticos de fac9oes e de comu-
nidades, os homens dominam os campos sociais supra-domésticos. Os grandes
rituais, na sociedade Xavante sao, aliás, rituais masculinos - quer se trate do w ai'a,
que já mencionei atrás, quer se trate da inicia9ao dos meninos solteiros a idade
adulta (simbolizada, basicamente, pela fura9ao dos lóbulos das orelhas e inser9ao
de algo como pequenos cilindros de madeira - os " brincos" ou batoques auri-
culares). Dentre os demais rituais Xavante, os mais importantes, do ponto de vista
das mulheres, sao a·sua nomina9ao e o seu casamento.

Argumentei, num outro trabalho, que a cerimónia na qual mulheres recebem nomes
pessoais é social e simbolicamente mais importante para os homens - que criam,
escolhem e dao os nomes - que para as próprias mulheres ( Lopes da Silva,
1980: 107-108). No mesmo trabalho, descrevi o rito do casamento (p. 75-78), afir-
mando-o como o equivalente, para as mulheres, a inicia9ao para os rapazes. De
fato, é a formalizac;ao do casamento que marca a passagem de urna menina a
maturidade, ou seja, acondi9ao plena de mulher. Essa cerimónia nao é realizada no
pátio central da aldeia, como seria qualquer outro evento público. Na verdade, é
concebido pelos Xavante como algo semi-doméstico: metade dos ritos acontece
dentro de casa, na presen9a apenas dos seus moradores e de um convidado central,
representante dos " de fora" - um tio materno muito especial, que desempenha
aqui o papel de padrinho e conselheiro ou, melhor ainda, de " pai cerimonial".

(10 ) Como, entre outros, os trabalhos de Carneiro da Cunha, 1978; Da Matta, 1976; Seeger.
1980; Vidal, 1978. E ainda, com rela<;:ao aos Bororo, Viertler, 1976 e Caiuby Novaes, 1979.

53
Quando o noivo entra em cena - chegando de urna ca9ada coletiva e presenteando
a casa e o tio da noiva com urna enorme quantidade de carne a ser distribuída para
toda a aldeia - é que tem início a segunda parte dos ritos, do lado de fora .
A noiva sai, mas apresenta-se defronte a sua casa, no caminho que circunda o
pátio. Trata-se, portanto, de urna cerimonia quase-doméstica que tem, sem dúvida,
o seu aspecto público. Público, sim, "pero no mucho!". E isso porque as mudanc;as
de "status" , na vida de urna mulher Xavante, dependem muito mais de características
individuais - como o seu desenvolvimento físico, o número de filhos que venha a
ter, etc . - do que da sanc;ao pública, supra-doméstica, de mulheres de mesma
gerac;ao encaradas coletivamente .1 i.

O que há de comum, porém, é o fato já mencionado de, em cada casa, conviverem


várias mulheres aparentadas entre si: sao mae e filhas; as vezes, netas. Os maridos é
que vem de fara, de outras casas e os irmaos é que, da mesma forma, tem que sair.
Ao longo da vida, atenua-se, pela convivencia, urna certa tensao inicial entre genros
e sogro. A tensao interna a casa, entre os homens, explica-se muito em func;ao de
disputas externas e do faccionalismo que caracteriza a vida política de qualquer
aldeia Xavante. Longas razoes, que nao cabe.aquí expor 12 , explicam porque sogro e
genros geralmente pertencem a facc;oes políticas diversas e até apostas. Outros
autores preferem explicar tais tensoes como resultado da disputa pela autoridade,
entre o pai e o marido, sobre urna mesma mulher.

A casa, no entanto, é reino das mulheres. A mais velha delas detém a sua posse e
comanda as mais jovens. De modo geral, ·as mulheres sao as que mandam em casa.
Esse poder lhes vem, sobretudo, do controle que tem sobre os alimentos, seu
preparo e sua distribui9ao. Os homens sentem-se pouco a vontade para interferir
nesse campo. Na ausencia momentanea de suas esposas, jamais repartem a comida
ou se atrevem a administrar a despensa doméstica. A maior parte do trabalho
necessário para a produc;ao dos alimentos vegetais é feminino, de acordo com os
ditames da divisao sexual do trabalho entre os Xavante. Embora a derrubada da
mata, a queima e o destacamento do terreno para a formac;ao de urna roc;a sejam
tarefas masculinas, do plantío participam tanto homens quanto mulheres e todo o
cuidado das roc;as, a colheita e a coleta sao tarefas basicamente femininas. Os
produtos do trabalho masculino de cac;a e, eventualmente, de pesca, sao igual-
mente entregues a mulher, para que os redistribua.

Se produzir, cozinhar e distribuir alimento é um encargo que as vezes pode pesar,


é também fonte essencial do poder que a mulher desfruta na esfera doméstica.
Assim, sua palavra será ouvida nas questoes domésticas como, por exemplo, nas
decisoes sobre quem escolher como futuro marido ou mulher de seus filhos e filhas,
netos e netas. Destituída de poder ao nível da sociedade como um todo, a mulher

(11) Tratei dessa questao de modo mais detido l:ls páginas 100-107 do trabalho citado (1980).
(12) Mas que podem ser encontradas em Maybury-Lewis, 1967:Cap. V.

54
Xavante domina, no entanto, a esfera doméstica. É aí, no espac;:o da casa, portanto,
que ela informalmente pratica seu poder, através de influencias pessoais e de trocas
de informac;:ao e formalmente, enquanto dona da casa e dos alimentos.

A casa Xavante é, enfim, o locus da reproduc;:ao por excelencia - e, nesse sentido,


ela parece partilhar urna característica básica com outras casas, de outros muitos
povos.. É o espac;:o do repouso, do aconchego e da intimidade; da comida e da
reposic;:ao de energías; dos carinhos e dos filhos. É na casa, por alguns momentos
vazia de homens, que nascem as crianc;:as. Amparada por outras mulheres queridas
e experientes, urna mulher tem, de cócoras, o seu filho . E é no chao dessa mesma
casa, no ponto onde de manha cedo o sol bate primeiro, que ela enterra a placenta e
o sangue, selando, assim, seu compromisso, com esse espac;:o que é seu, e com a
vida.

55
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

.
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VIERTLER, Renate - As Aldeias Bororo. Alguns Aspectos de sua Organiza<;ao


Social. Revista do Museu Paulista, série de Etnologia, vol. 2, SP, 1976.

56
-
AS CASAS NA ORGANIZACAO SOCIAL
DO ESPACO BORORO

Sylvia Caiuby Novaes

57
37. A s aldeias Bororo sao tradicionalmente circulares. Aldeia do Córrego Grande, 1971 .

58
ALDEIAS

A sociedade Bororo conta atualmente com urna populac;ao de 628 indivíduos,


divididos em sete aldeias localizadas em várias áreas (que já nao constituem um
território único e contínuo) no Estado de Mato Grosso do Sul. Estao situadas no vale
do Rio Sao Lourenc;o, tendo .como limite ao norte o Río das Mortes e, ao sul,
o Rio Pequiri. Para que se tenha urna idéia da expressao desta sociedade no
passado, basta dizer que as áreas ocupadas atualmente pelos Bororo correspondem
a O, 1% do seu território tradicional de ocupa9ao .

Em termos ecológicos, as aldeias Bororo estao geograficamente assentadas em


áreas de cerrado, excetuando-se a aldeia do Tadarimana, localizada numa área onde
60°/o é floresta, e a aldeia do Perigara, situada no complexo do Pantanal.

As sete aldeias que constituem a sociedade Bororo: Perigara, Córrego Grande,


Tadarimana, Sangradouro, Meruri, Gar9as e Jarudori sao praticamente autónomas
do ponto de vista político, económico e ritual. As rela9oes entre elas se estabe-
lecem, atualmente, através das inúmeras visitas que sao feítas entre membros das
várias aldeias (visitas que podem durar até seis meses), dos casamentos e das rela-
9oes de parentesco.

As aldeias Bororo sao tradicionalmente circulares. Um número variável de casas se


dispoe ao redor de um círculo com um diametro de aproximadamente 100 metros
(EB 1, p. 434), que tem no centro a casa dos homens (baimana gejewu) e o pátio
(bororo). Como em várias aldeias do grupo lingüístico Ge, - Kraho, Xikrin, Xa-
vante, etc. - a periferia constituída pelas casas corresponde a esfera doméstica e
feminina da sociedade Bororo, ao passo que o baimana gejewu e o bororo· corres-
pondem a esfera jurídica, política e ritual desta sociedade que, embora ocasional-
mente freqüentados pelas mulheres, caracteriza-se por ser urna esfera típicamente
masculina.
O que diferencia os Bororo de outros grupos indígenas é o fato de que as unidades
fundamentais da organiza9ao social desta sociedade se inscrevem na própria morfo-
logía da aldeia, no espa90 ocupado por cada casa na sua disposi9ao relativa ao redor
do círculo.

A aldeia circular, constituídá de casas que mantem, nao apenas a mesma distancia
entre si, mas também a mesma distancia do centro da aldeia (da esfera política e
jurídica) denota claramente que esta é urna sociedade igualitária e que os diversos
grupos que a compoem (clas, grupos domésticos, linhagens) mantem entre si urna
rela9ao de complementaridade nas suas diferen9as, e nao urna rela9ao do tipo
domina9ao/subordina9ao, tal como acorre entre nós (rela9ao que também pode ser
apreendida através da disposi9ao das casas em qualquer urna das nossas grandes
cidades).

59
38. As casas mantem entre si a mesma dist~ncia.

39. Na missao salesiana do Meruri, os padres resolveram dispor as casas de alvenaria de modo a
formar um L.

60
Os Bororo tem sempre como referencia um modelo de aldeia que é circular e é
através deste modelo que eles representam a sua sociedade e o seu universo.
Atualmente, embora a aldeia circular continue senda o modelo a ser, atingido,
poucas sao as que apresentam esta forma. Na aldeia do Perigara, as casas estao
espalhadas pela área. Na aldeia do Tadarimana, as casas se dispoem ao longo do
córrego que lhe dá o nome. Em Jarudori, a populac;:ao que resiste aos avanc;:os da
cidade sobre suas terras mora em cinco casas de palha, alinhadas ao pé de um
morro. Das aldeias Bororo, Córrego Grande, situada a cerca de 100 km da cidade
de Rondonópolis, é a única que sempre manteve urna forma circular de disposic;:ao
das casas.

A Reserva Indígena Meruri, que canta atualmente com cerca de trezentos indiví-
duos, está há oitenta anos sob a interferencia dos missionários salesianos. Aí a luta
pela terra levou aos episódios que culminaram, em 1975, com a morte do índio
Bororo Simao e do missionário salesiano Rodolfo Lunkenbein. Por esta época,
vários individuos da aldeia do Meruri (principalmente aqueles vindos da antiga aldeia
do Paraíso) resolveram estabelecer urna nova aldeia, mais afastada da missao, onde
poderiam viver sem a interferencia direta dos salesianos. Esta nova aldeia - a aldeia
do Garc;:as - visava também a ocupar um território que se via constantemente
ameac;:ado por posseiros e fazendeiros . Esta atitude dos Bororo, de defesa de suas
terras e de garantia de seus direitos é, coerentemente, acompanhada pela retomada
da forma circular das aldeias. Se no Meruri eles moravam em casas de alvenaria
alinhadas em duas ruas, de modo a formar um ele, na aldeia do Garc;as todas as
casas sao de palha, e estao dispostas num círculo, tal como no modelo tradicional.

Se o contacto coma sociedade envolvente forc;:ou urna modificac;ao na disposic;:ao


das casas (funcionários da FUNAI construíram as novas aldeias, nao levando em
canta a disposic;ao circular, os missionários tentaram interferir na organizac;ao social
Bororo, introduzindo a aldeia em ele) nao chegou, no entanto, a alterar a forma pela
/ ' .
qual os Bororo concebem a sua sociedade e a relac;ao entre seus membros. E por
isso que a forma circular continua senda o modelo utilizado para expressar o modo
pelo qual ele~ se representam. Mesmo quando situados em aldeias com casas
dispostas em ruas, eles apontavam para as casas como se elas estivessem dispostas
em círculo, descrevendo deste modo as relac;:oes sociais entre seus moradores .

As aldeias reproduzem o modelo ideal de organizac;:ao social Bororo. Cada casa está
associada a urna linhagem. Em termos de descendencia, os Bororo sao matrili-
neares, ou seja, urna crianc;a, ao nascer, será identificada ao grupo de parentes de
sua mae - comumente denominado cla. O eta, por sua vez, divide-se internamente
em tres sub-clas, cada um deles contendo um número variável de linhagens.
Sabe-se que um indivíduo pertence a tal ou qual linhagem pelo nome que ele tiver
recebido na cerimónia de nominac;:ao, realizada logo após o seu nascimento.

Estas linhagens ou títulos sao a expressao atual de _heróis que em tempos míticos
estabeleceram as bases da organizac;ao social Bororo, foram protagonistas de fac;:a -

61
nhas prodigiosas e criaram urna série de estilos ou modos de ser Bororo. " Os nomes
e títulos representam modos variáveis, no tempo e no espa90, de ser a mesma
coisa ... " (Viertler, 1978:345) . Praticamente todos os homens Bororo podem enu-
merar a ordem de distribui9ao destes títulos ao redor da aldeia.

O sistema de parentesco Bororo e as genealogías sao pensados em termos de urna


maior ou menor proximidade do título de um Bororo com o de outrem, e esta
proximidade é medida em termos das posi9oes dos títulos dentro do modelo circular
da aldeia, pois a distribui9ao dos lugares dos títulos é fixa , apresentando pouca
varia9ao no tempo e no espa90. (Viertler, 1978:63 ).

A circularidade é algo extremamente presente no cotidiano da vida Bororo. É com


um movimento circular do bra90 estendido que eles apontam para o céu, indicando,
através da posi9ao do sol, ou da estrela Venus, a hora do dia a que querem se
referir . A própria cartografía Bororo concebe o território desta sociedade tendo
como limites vários acidentes geográficos que se dispoem de modo a formar um
grande círculo. No canto Barogo Biri Bataru Dada, que registrei em 1975, os pontos
geográficos do território Bororo sao enumerados pelo cantador, que vai indicando
com o brac;:o estendido a sua localiza9ao, come9ando pelo Rio Sao Louren90, indo
gradativamente enumerando outros lugares conhecidos, até o ponto em que o sol
nasce, continuando a enumerá-los até o local do sol poente, quando o cantador terá
.
completado o círculo em volta de si mesmo, e terminado o canto. Outras formas de
expressao da circularidade, como bem aponta Viertler (1978:63), sao as coreografias
das dan9as funerárias, a roda da cerimónia do marido (buriti), a forma descrita pelos
zunidores agitados no ar e astáticas de guerra, que envolvem círculos concentricos
em volta do inimigo.

Em suma, é muito significativo que os Bororo continuem tendo em mente um


modelo de aldeia circular para representar a sua sociedade, mesmo quando moram
em aldeias onde as casas estao dispostas de urna outra forma. Os Bororo se
mantem, até hoje, como urna sociedade igualitária, dividida internamente em seg-
men tos que nao se opoem numa perspectiva vertical, mas em clas e linhagens,
cujas diferen9as implicam numa rela9ao de complementaridade.

Creio que este aspecto se constituí num importante fator de resistencia da socie-
dade Bororo como um todo as mudan9as e transforma9oes impostas pelo contacto
com a sociedade nacional. E se este contacto impoe urna altera9ao na forma
tradicional de disposi9ao das casas, o modelo ideal de aldeia, que rege as rela9oes
entre os indivíduos e que permite urna representa9ao desta sociedade, continua a
ser a aldeia circular.

62
ASPECTOS DA ARQUITETURA DA CASA BORORO

As casas tradicionais Bororo sao extremamente simples do ponto de vista arqui-


tetonico. Sao casas de palha, com cobertura de duas águas que nao chegam até o
solo e que sao constituídas de um único cOmodo, sem divisOes internas.

Atualmente, os Bororo moram em casas construídas de diferentes tipos de mate-


riais; sao casas de alvenaria (aldeia do Meruri, próxima ti missao), de pau-a-pique
(algumas das casas da aldeia do Tadarimana), de madeira (casas da aldeia do Peri-
gara). Mas as casas mais comuns continuam sendo as de palha (Córrego Grande,
várias das casas do Perigara, as recém-construídas no Meruri e no Tadarimana,
todas as de Jarudori e da aldeia do Gan;as). As de palha, constituídas de um único
comodo, temas paredes feitas de urna espécie de esteira, tran<;ada pelas mulheres
da casa.

Além disso, embora varie o número de indivíduos que convive numa mesma casa
(um mínimo de dois e um máximo de dezoito, como pude constatar nas diversas
vezes que estive em campo), todas elas tem, em geral, urna área de 45 metros
quadrados.

40. Casa da aldeia do Perigara, 1971 .

63
41 . Sao as mulheres que confeccionam as paredes de palha.

As casas de palha, com chao de terra batida, continuam a ser as mais adequadas
para o clima local. Nas horas mais quentes do día o interior é fresco e o fogo, que
permanece constantemente aceso, espanta os mosquitos infernais que a regiao
prodigamente oferece. As noites em Mato Grosso sao em geral frias, mas a casa
guarda um pouco do calor do día e o local fica agradável.

Os missionários salesianos introduziram no Meruri as casas de alvenaria com divi-


soes internas; a experiencia nao parece ter sido bem sucedida, pois os índios
preferem passar odia no puxado de palha que eles mesmos construíram atrás das
casas. Nas de alvenaria o calor é insuportável durante o dia, e a noite elas sao frias.
Como o solo é de tijolos, as condi9oes higienicas se tornam mais precárias. Mas o
principal problema destas casas, segundo os próprios Bororo, sao as divisoes
internas introduzidas pelos missionários. Aquilo que constituía para os salesianos
um impositivo moral se transformou em algo sem sentido para os índios, acostu-
mados a urna casa sem divisoes internas, onde nada está tora das vistas (Caiuby
Novaes, 1980:16, 38). A casa tradicional permite acompanhar simultaneamente o
alimento que está sendo cozido no fogo central , certificar-se que o bebe continua
dormindo na rede, vigiar toda a casa para que o moleque do vizinho nao venha
roubar cocos, ver se os velhos nao precisam de alguma coisa.

64
43. As condi95es térmicas das casas Bororo s~o
extremamente adequadas ao clima local.

42. Os índios preferem passar o diano " puxado"


de palha, atrás das casas. Meruri, 1982.

A casa Bororo é extremamente versátil na sua simplicidade. Nela, praticamente


tuda está ao alcance das maos, ou dos pés. É muito comum ver urna mulher
a
sentada numa esteira beira do f ago, tomando chimarrao, tran9ando algum arte-
fato de pa lha e embalando, com urna co rdinha amarrada no dedo do pé, urna red e
onde está urna crianc;a. Pedras usadas para apoiar as panelas que vao ao fago
servem também para .quebrar os inúmeros tipos de cocos. Como a casa tem um
úrico cómodo, sem divisoes internas, nenhuma galinha que entre passará desper-
cebida e será lago enxotada com urna vara comprida.

Com rela9ao aos espa9os sociais da casa Bororo nota-se que, embora haja numa
mesma casa duas ou tres famílias nucleares, cada urna delas mantém urna nítida
separac;ao espacial, tanto de dia quanto de noite. Os limites dos espa9os familiares
sao marcados pelos jiraus, usados atualmente para dormir, ou entao pelas esteiras e
redes. O espa90 de cada família sempre se localiza nas extremidades da casa, nunca
no centro . Nestes lugares guardam todos os seus pertences, é aí que dormem e
comem, aí recebem suas visitas cotidianas. A noite é muito freqüente ver um casal
conversando baixinho e fazendo em suas esteiras um artefato qualquer. Tem-se, as
vezes, a impressao de que sao duas ou tres casas distintas numa única casa, o que
talvez reflita a situac;ao anterior em que cada urna destas família s tinha a sua casa e
os homens passavam a maior parte do tempo no bái mána gejéwu .

65
44. Interior de urna casa na aldeia do Gan;;as, 1982.

O centro da casa parece constituir um local especial, que nao é exclusividade de


nenhuma família em particular. É aí que sao recebidas as visitas consideradas
importantes, de alguém que chega de urna longa e demorada viagem, daqueles que
voltaram saos de um tratamento de saúde na cidade e que sao aí recebidos de modo
formal , com choro ritual e várias ofertas de alimento .

O centro da casa é também o espac;:o destinado aos rituais. Certas fases de um ritual
ocorrem dentro da casa (outras no pátio bororo, numa clareira denominada aije-
muga ou na casa dos homens, o bái mána gejéwu) e sao sempre realizadas no
centro, nunca nas extremidades. Este espac;o central passa a ser a representac;:ao
física da casa, que é por sua vez o local onde se circunscreve a primeira unidade de
organizac;:ao social Bororo, que é a linhagem. É esta unidade social que tem no plano
da aldeia o seu lugar específico.

É também no centro da casa que colocam o fogo , continuamente avivado para


cozinhar, espantar mosquitos, ou simplesmente como fonte de calor, durante a
noite. Antigamente, parece que cada família nuclear tinha o seu fogo ( Enciclopédia
Bororo, p . 448) mas hoje ele é usado por todos os membros do grupo doméstico, o
que parece justificar sua localizac;:ao central.

66
PERCEPCAO DO ESPACO DOMÉSTICO

Se em praticamente todas as sociedades a casa é o reino das mulheres, na dos


Bororo este aspecto é ainda mais nítido. Eles sao tradicionalmente uxorilocais, ou
seja, quando dois indivíduos se casam, o homem deve mudar-se para a casa de sua
mulher. Embora haja várias ocasioes em que esta regra nao é seguida (Caiuby
Novaes, 1979:27-32), ela é, certamente, a norma ideal de residencia entre os
Bororo.

lsto significa que urna casa será geralmente, embora nem sempre, habitada por um
casal mais velho, suas filhas casadas, com seus respectivos filhos e os filhos
homens ainda solteiros. A casa Bororo abriga também indivíduos vindos de outras
aldeias que pertencem ao mesmo cla que as mulheres da casa. Mais adiante
trataremos da relac;ao entre casas e clas.

Por enquanto, interessa ressaltar que a casa se caracteriza por ser um campo social
nitidamente feminino . Embora os homens freqüentem a casa para dormir e comer,
sao as mulheres que nela permanecem mais tempo, senda que aí sao realizadas as
tarefas tipicamente femininas, como a prepara9ao dos alimentos e dos artefatos de
palha. Apesar do fluxo constante de pessoas que se agregam e deixam a casa
Bororo, este é relativamente menor por parte das mulheres. No caso da separac;ao
do casal, por exemplo, (as taxas de separac;ao sao altíssimas entre os Bororo e nao é
raro um individuo casar-se cinco vezes) as mulheres permanecem na moradia com
seus filhos e filhas.

45. Freqüentemente as mulheres cozinham atrás das casas.

67
46 Alguns rituais sao realizados a noite, no bororo .
o pátio em frente a casa dos homens.

47 . Nos rituais os homens se trans -


formam em aroe, os heróis míti-
cos da sociedad e Bororo.

- . . ..

--.~ -

48 . A oposi9ao centro-periferia foi freqüentemente caracterizada como urna oposi9ao entre cul-
tura e natureza.

68
Como em todos os lugares do mundo, homens e mulheres brigam e fazem alianc;as.
As grandes "fofocas" surgem da baatada (que compreende o círculo de casas da
periferia da aldeia) e, dada a própria morfologia da aldeia, espalham-se com incrível
rapidez. Além disso, embora as mulheres morem a poucos metros de distancia
urnas das outras, estao continuamente se visitando e trocando favores. As casas se
constituem, assim, no centro da sociabilidade cotidiana, por oposic;ao ao pátio
(bororo) e a casa dos homens (báí mána gejéwu), locais tipicamente masculinos
(mesmo que freqüentados ocasionalmente pelas mulheres), de desempenho dos
rituais e das relac;:oes formalizadas.

Se pensarmos na oposic;:ao natureza/ cultura, extensamente desenvolvida por Lévi-


Strauss e outros autores estruturalistas, poderemos caracterizar o centro da aldeia
como senda o domínio da cultura por excelencia, onde tem lugar as representac;:oes
de aroe, os heróis míticos que deram origem a sociedade Bororo. Em contrapartida,
as casas se constituem no espac;:o onde se dao as grandes transformac;:oes naturais:
a procriac;:ao e o envelhecimento, a transformac;:ao dos alimentos crus em cozidos.
Além disso, é no espac;:o da casa que sao criados os lac;:os de substancia (Da Matta,
1976) que unem os individuos ca-residentes. Estes lac;:os de substancia comum
advem do fato de que estas pessoas compartilham do mesmo alimento, moram sob
o mesmo teto, participam da mesma substancia vital - rakare - contida nos
fluidos trocados: sangue, semen, sangue menstrual e leite materno. Obviamente
esta substancia natural que identifica e une os indivíduos de urna mesma casa só
pode ser pensada e vivida através de todo um quadro cultural. A través desta mesma
perspectiva podemos ·também afirmar que, se a periferia das casas é pensada como
o domínio da natureia (este é o domínio do bope, entidade responsável pelas
grandes transformac;:oes naturais, como a morte e a procriac;:ao), esta é também
urna natureza pensada através da cultura.

Se a oposic;:ao natureza/ cultura pode ser vista como urna oposic;:ao entre a periferia
e o centro da aldeia, num outro angulo é a aldeia como um todo - centro e periferia
- que se opoe ao espac;:o imediatamente circundante, constituído pelas roc;:as. Se
na aldeia praticamente tudo é público, do conhecimento de todos, na roc;:a se
consegue urna. privaci(:iade que nao é possível no dominio da aldeia. Este é o local
preferido para que a família se veja a sós e, embora parec;:a paradoxal, é também o
local mais propicio para as relac;:oes extra-conjugais.

Por outro lado, as roc;:as constituem um espac;:o onde os caminhos sao trilhados, um
espa90 cultivado e conhecido, por oposic;:ao a floresta, habitat do bope, onde as
pessoas inúmeras vezes se perdem, ou sao acometidas de visoes delirantes de
espiritos e entidades sobrenaturais. Assim, um indivíduo se transforma em bari,
xama, quando, após ter tido visoes extraordinárias, dirige-se, a convite de um
determinado espírito, a urna cac;:ada solitária na floresta. "Lá chegando aparece-lhe
o espírito, quase sempre com aspecto de macaco, que lh.e pergunta se lhe quer per-
tencer de alma e carpo. O índio, com grande agitac;:ao e perturbac;:ao, caso queira,
declarará sua obediencia" ... (Enciclopédia Bororo, vol. I, p. 243).

69
49. Cerca construída atrás das casas na aldeia do Córrego Grande.

Soube também do caso de urna mulher, já bem mais velha que, tendo se perdido na
floresta, passou fome e resolveu comer a única c9isa que achara - ovos de ema - .
Morreu logo depois de ter chegado a aldeia, pois ovos de ema sao alimentos do
bope, que nao podem ser ingeridos por qualquer pessoa antes de passarem pelo
xama.

O universo Bororo é assim constituído de urna série de espac;os adjacentes, a partir


de um ponto central - o pátio e a casa dos homens - onde se situa o dominio da
cultura por excelencia, sendo seguido imediatamente pela periferia das casas, pela
clareira do aije-muga, pelas roc;as e, finalmente, pelo mato e a floresta.

A partir deste primeiro ponto de referencia, os espac;os seguintes vao sendo cada
vez mais caracterizados como dominio da natureza. Observe-se, no entanto que,
em termos da concepc;ao que os Bororo tem da morfologia de seu território, nao
existe urna oposic;ao absoluta e dicotOmica entre natureza e cultura. O que há é urna
passagem gradativa de um espac;o mais cultural para um espac;o mais impregnado de
natureza. A oposic;ao pátio - casa dos homens/floresta só pode ser pensada
através de um continuum pátio - casa dos homens/periferia das casas; aldeia
(pátio, casa dos homens, periferia) / roc;as; roc;as/ floresta.

centro periferia roc;as floresta


CULTURA - -- - -- - -- -- - - - - - - NATUREZA

70

,
A CASA COMO UM CAMPO SEMÁNTICO

Os rapazes Bororo que atingiram a puberdade sao iniciados durante as fases finais
de um funeral. Esta iniciac;ao ocorre após toda urna preparac;ao física e social que é
realizada em local afastado da aldeia (para descric;ao minuciosa da iniciac;ao e dos
eventos que a precedem,· consulte-se a Enciclopédia Bororo, vol. 1, pp. 627-642).

Separados de suas famílias, os iniciandos sao guiados por homens experientes, os


erubadaré-ge (traduzidos em portugues como 'padrinhos') e submetidos a todos os
trabalhos dos homens, principalmente cac;a e pesca, manejo e fabricac;ao de arcos,
flechas e redes de pescar; sao, durante esta fase, instruídos na confecc;ao de arte-
fatos e com relac;ao aos mitos e tradic;oes da sociedade Bororo.
50. O rapaz a ser iniciado é levado a clareira do aije-muga,
situada a uns 20 m da aldeia.

51. Nesta clareira, homens adultos, representantes de seres


mitológicos, v~o submeter o rapaz a urna sériede provas.

71
Con:io se sabe, a sociedade Bororo é dividida em duas metades: ecerae e tugarege,
a
sendo que os indivíduos pertencerao ao mesmo cla e, portante, mesma metade
que sua mae. Estas duas metades sao exogamicas, ou seja, um indivíduo deverá
escolher como cónjuge alguém da metade aposta a sua. Do mesmo modo, os
parentes maternos do rapaz a ser iniciado escolherao para padrinho um membto da
metade aposta a do iniciando. Esta escolha deverá levar em considerac;ao nao
apenas as metades, mas também os sub-clas em que o rapaz poderá escolher a
própria esposa: entre estes será escolhido o padrinho (EB 1, p. 639).

Escolhido o padrinho, este é levado ao centro do pátio e lá os parentes clanicos do


rapaz entregam-lhe os brotas de babac;u com os quais ele deverá confeccionar os
estojos penianos a serem dados ao iniciando. A entrega dos brotas é feita com as
palavras: "Kaegáe gáe, kaegáe gáe, kaegáe gáe: este broto será mesmo tua es-
posa".

Os vários estojos penianos sa_o colocados num cordel que o rapaz deverá cingir a
guisa de coroa . Na madrugada seguinte o rapaz é levado por seus parentes ao
centro do pátio. Logo a seguir vao buscar o padrinho e o fazem danc;ar ao redor do
jovem ornado com os estojos penianos, dizendo as mesmas palavras da véspera :
"Kaegáe gáe, etc. Este estojo peniano será mesmo a tua esposa." (EB 1, p. 640).
O padrinho coloca entao o estojo peniano e o acompanha até a casa de suas
madrinhas (que pertencem ao cla do padrinho, na metade aposta a do iniciando),
que executam um choro ritual. Depois o rapaz vai até a casa de sua mae, que
também chora ritualmente.

Segundo a Enciclopédia Bororo, "A in1posi9ao do estojo peniano é urna ceri-m onia
solene pela qual um rapaz, real ou supostamente púbere, deixa a sociedade dos
meninos para ingressar na dos homens. Depois desta func;ao é reconhecido pela
colet ividade como homem, com todos os direitos, inclusive o de assistir as festas
próprias dos homens e o de casar-se" . (p. 628) .

Se me detive a descrever alguns aspectos da iniciac;ao dos rapazes Bororo é porque


há urna estreita relac;ao entre este ritual e a concepc;ao que os Bororo tem da casa,
de seu espac;o doméstico. Urna casa é, certamente, abrigo de homens, mulheres e
crianc;as. Mas para os Bororo ela é mais do que isso: é o local onde se inscreve a
principal unidade de funcionamento da sociedade Bororo, que é a linhagem. Há,
assim, a casa da linhagem de Baitogogo, de Tadugo, de Aturua, de Akaruio
Bokodori, de Ki Bakororo, etc. Praticamente todos os homens Bororo sao capazes
de enumerar a ordem em que se dispoem estas várias casas ao redor do círculo da
aldeia . No entanto, para que estas casas estejam neta concretamente represe n-
tadas, é necessário que haja indivíduos que pertenc;am a estas linhagens e que
possam ocupar as casas.

Há entre os Bororo urna série de prescric;oes matrimoniais que estabelecem quais


linhagens deverao se unir matrimonialmente . Como a descendencia é matrilinear,
urna crian<;;a pertencerá ao mesmo cla que sua mae . Por outro lado, é só após ter

72
,

sido iniciado que um rapaz pode efetivamente casar-se e fazer filhos. Ao se casar, ele
deverá, como já assinalamos, transferir-se para a casa de sua esposa, e aí procriar
filhos para o cla dela.

A língua Bororo designa como mesmo termo tanto a casa como o estojo peniano
que o rapaz recebe no ritual de jniciac;ao: bá. É inconcebível que um homem, depois
de iniciado, apare9a publicamente sem o bá. Por outro lado, nao se pode conceber
um homem Bororo sem urna categoría social que o identifique e o relacione aos
outros membros do grupo.

Neste sentido sao extremamente significativas as palavras dos parentes maternos


do iniciando, e de seu padrinho: " ... este estojo peniano será mesmo a tua esposa",
nao só porque é só após ter sido iniciado e ter recebido o bá que o jovem poderá
casar-se, mas também porque é entre as mulheres do cla de seu padrinho que ele
deverá escolher sua futura mulher.

Quando dais jovens se casam, eles passam a ter na casa da mae da mulher um
espac;:o próprio. É a criac;:ao deste novo espa90, - que se concretiza na localiza9ao
das esteiras ou jiraus onde o casal deverá dormir e guardar seus pertences - que
indica o estabelecimento de urna nova família nuclear. Ao que parece, antigamente
esta nova família deveria se estabelecer numa outra casa, construída atrás da casa
da mae da jovem esposa, portanto no mesmo raio do círculo em que está a casa da
frente. As aldeias Bororo eram assim constituídas de vários círculos concentricos.
Hoje, provavelmente em virtude da depopulac;:ao, as famílias nucleares ligadas pelo
lado materno tendem a ocupar a mesma casa, com espa9os sociais distintos no seu
interior.

A casa Bororo se transforma de modo análogo as transformac;::oes por que passam


seus membros. Novos espac;:os sao criados, nao só para urna mulher solteira que se
case, mas também para familias que venham de urna outra aldeia e que1ram se
estabelecer na casa por um tempo mais longo, o que é muito comum.

A morte é, c~rtamente, a principal transformac;:ao que ocorre na vida de um indi-


víduo, fato atestado pelo funeral Bororo, cerimOnia extremamente longa e com-
plexa. As pessoas que mantinham com o morto urna identidade social (por serem
membros da mesma linhagem), ou de substancia (por pertencerem a mesma família
nuclear - pai, mae e filhos) passarao a observar o luto e a viver num estado de
marginalidade social.

Os enlutados devem se restringir a periferia da aldeia; seu espa90 se limita a esfera


doméstica da sociedade, afastando-se, portanto, do pátio e da casa dos homens
(o domínio público da sociedade) . Na casa do morto as portas e janelas que dao
para o centro da aldeia permanecem fechadas. Confinadas em suas casas, as
mulheres deixam de acompanhar o que se passa na aldeiá, fato que jamais ocorre
em épocas normais.

73
Os enlutados sao pessoas que, em todos os sentidos, situam-se a margem da vida
social e que se despojam de todos os atributos que os qualificam como indivíduos
sociais portadores de urna determinada cultura. O luto situa as pessoas num estado
liminar, entre a natureza e a cultura. Para se sentarem, nao se utilizam de esteiras;
sentam-se no chao (como os animais, segundo os próprios Bororo). Nao usam
pinturas corporais (atributo de identidade clanica, esteticamente valorizada) e as
roupas que incorporaram dos civilizados nao sao nunca lavadas; vao deixando no
corpo apenas uns trapos sujos que, com o passar dos dias, vao também desapa-
recendo.

"Sope koia", é por causa do bope, disse-me urna das enlutadas, que as coisas estao
assim . As mulheres confinadas em suas casas vazias, o corpo sujo e feio (sem
ornamentac;ao ou roupas), sem cabelos (os enlutados arrancam todos os cabelos da
cabec;a por ocasiao da morte de urna pessoa com quem tinham urna identidade), ou
com cabelos que crescem as soltas, sem serem domesticados. A morte de um
indivJduo contamina os seus 'iguais' , que passam a viver num estado de 'poluic;ao'
física e social.

Se a formac;ao de urna nova família leva a criac;ao de novos espac;os na casa Bororo,
a morte de um de seus habitantes esvazia por completo o interior da casa, pois
todos os objetos que pertenciam ao morto, que foram por ele doados, ou com os
quais ele tinha alguma ligac;ao sao destruídos ou queimados. Ainda com relac;ao a
casa, note-se que durante o luto apenas a porta de trás, a que dá para o caminho
~

que leva a roc;a e ao mato (lugar de bope) fica aberta e é utilizada.

Tudo o que pertenceu a um indivíduo deverá ser destruído após sua morte e,
evidentemente, sua casa nao poderia permanecer intacta: também ela deverá ser
queimada . Neste sentido é possível ver a casa Bororo e todo seu ciclo de transfor-
mac;oes (os novos espac;os que sao criados em seu interior, portas e janelas que
permanecem fechadas durante o luto, queima da casa quando da morte de um de
seus membros) como urna das expressoes materiais da concepc;ao que os Bororo
tem da vida e de sua organizac;ao social .

Se a rnorte poe fim a um homem concreto, também sua casa deverá desaparecer.
No entanto, assirh como a identidade social de um indivíduo deverá permanecer
após sua morte através do aroe maiwu (indivíduo da metade oposta ao morto e que
é escolhido para ser seu representante social no mundo dos vivos), também a cate-
goria social que aquela casa representa deverá permanecer. Urna nova casa será
entao construída naquele mesmo espac;o.

Como já disse Gaston Bachelard (1957:19), a casa é um importante instrumento de


análise para que se possa entender a alma humana. Para os Bororo, esta afirmac;ao
também se aplica, com a ressalva de que aqui nao é apenas ela que nos permitirá
melhor entende-los, mas também a aldeia como um todo, e as relac;oes que se
estabelecem entre as várias casas.

74
A aldeia Bororo tem, nas casas que se dispoem ao redor do círculo, a representac;:ao
das várias linhagens que compoem esta sociedade. É assim urna espécie de "mapa"
da sociedade Bororo. Neste sentido, ser Bororo é, antes de mais nada, ter um lugar
específico neste espac;:o, é ser, por exemplo, Akaduie e situar-se entre Bakorokudu e
Kurugugua, ou ser Okoge Kigadureu e ter urna relac;:ao prevista, em tempos míticos,
com Birimodo e Araru Kurireu.

52. As casas tem urna posic;ao definida no círculo da aldeia.

75
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

ALBISETTI , César e VENTURELLI, Angelo - Enciclopédia Bororo, volume l.


Museu Regional Dom Sosco. Campo Grande, 1962.
BACHELARD, Gaston - la Poétique de l'Espace. Presses Universitaires de France.
París, 1957'.

CAIUBY NOVAES, Sylvia: Mulheres, Homens e Heróis. Dinamica e permanencia


através do cotidiano da vida Bororo. Dissertac;:ao de Mestrado (mimeo. ); USP,
1979.
VIERTLER, Renate - O Estudo do Parentesco e as Práticas de Nominac;:ao. In:
Revista de Antropología, vol. 21, 1·~ parte. 1978.

76

O ESPACO HABITADO ENTRE OS


KAIAPÓ-XIKRIN (JE) E OS PARAKANA (TUPI),
·oo MÉDIO TOCANTINS, PARÁ

Lux Vidal

77
78
INTRODUCAO

Nas terras baixas da América do Sul impoe-se urna constata9ao: o ambiente eco-
lógico é bastante semelhante e o nível de tecnologia desenvolvido pelos diferentes
pavos indígenas apresenta urna certa homogeneidade. Porém, os meios de adap-
tac;ao, tanto no nível ecológico como no social e no religioso, desenvolvidos por
estes pavos, oferecem urna grande diversidade. Cada grupo, entre as centenas que
vivem nesta vasta área geográfica, apresenta um tipo de configurac;:ao global que o
diferencia de maneira inequívoca de qualquer outro grupo. E isto se aplica também
ao caso que aqui nos interessa, a casa indígena.

Sem dúvida, nas terras baixas da América do Sul, o material usado para a cons-
tru9ao de casas e abrigos varia pouco: a matéria-prima é a madeira para esteios e
travessoes, as folhas de ·palmeiras para a cobertura e as tiras de embira para a
amarra9ao. Mesmo assim, podemos imediatamente reconhecer urna casa Wai-Wai
e distingui-la de urna casa Xavante ou Kamayurá.

lsto entendido, é preciso acrescentar que o estudo da casa em si, isoladamente, ou


vista apenas do ponto de vista arquitetónico, é de pouco interesse para urna
compreensao adequada de sua func;:ao no contexto etnográfico mais amplo de cada
pavo indígena. O uso do espa90 habitado, no seu conjunto, é o que deve ser consi-
derado e a func;ao da casa, em particular, semente adquire sentido quando inserida
e comparada aos outros espa9os ocupados, em momentos e ocasioes específicos,
por diferentes grupos sociais.

As grandes casas dos Tukano, do Alto Uapés, por exemplo, abrigam urna comu-
nidade inteira e lá dentro se desenvolvem tanto as atividades cotidianas, como os
grandes rituais. Neste caso, a importancia atribuída a casa manifesta-se no requinte
arquitetónico e decorativo e no grande número de símbolos atribuídos a casa, até
nos mínimos detalhes. Para outros pavos, porém, a casa pode ser vista simples-
mente como l)ma unidade, com func;oes específicas, dentro de um contexto espa-
cial habitado mais amplo, como a aldeia, ou mesmo o território tribal, quando se
trata de grupos semi-nómades.

53. A aldeia Xikrin em 1962.

79
OS KAVAP0-XIKRIN, GRUPO JE DO SUL DOPARÁ

AS CASAS DA ALDEIA E OS ABRIGOS NA FLORESTA

Os Kayapó-Xikrin do río Cateté vivem em área de floresta, entre o rio Araguaia e


Xingu , ao sul .da Serra Carajás. A comunidade é de urnas 250 pessoas, que vivem de
ca<;:a, pesca, coleta e agricultura; formam urna unidade autónoma do ponto de vista
político, económico e de casamento e sao assistidos por um Posto da Funai.

No século passado, os grupos kayapó, as vezes reunidos em aldeias de mais de mil


pessoas, ocupavam um vasto território dorio Tocantins ao Xingu e do rio ltacaiúnas
ao norte, até o rio Tapirapé, ao sul. Fritz Krause, que visitou um acampamento
Kayapó no río Arraias, no ano 1908, escreve o seguinte :
" A aldeia que visitei era urna povoa9ao de estiagem , constituída de ranchos de
constru9ao pouco sólida . Contavam-me que na esta9ao chuvosa fazem casas mais
sólidas. Nao tive a oportunidade de ver a casa apropriada a esta9ao chuvosa que me
disseram ser semelhante a habita9ao dos moradores brasileiros ... Consistía a aldeia
em 14 ranchos compridos, dispostos em círculo e abrangendo, pois, urna enorme
pra9a de aldeia . Cada cabana representava, pois, um segmento de círculo. Da
fig. 54 depreende-se a maneira de construc;ao desses ranchos . .. Todas as ligac;oes
sao feítas com imbira. As entradas ficam nos dais lados estreitos. O lado anterior é ,
em vários pontos, coberto com f eixes de folhas de palmeira (f), do mesmo modo
como o lado posterior (e) .. . As casas sao habitadas por várias famílias, conjunta -
mente. Todavía nao existem repartic;Bes no interior ... Cozinha-se fora da habitac;ao .

... ...................... ...... .... . ....


.. .. • •
.. • • • •
• •
• .. e
• o o o o o •
• o • ... .. .. . ., ....... .. t .... ~.. o I>
o ... \ ··.. ~

54. Proje9ao horizontal e vertical dos ranchos dos Kayapó. (Fritz Krause) .

80
No telhado costumam enfiar objetos de toda espécie; colocam as armas ao longo da
parede ou encostam-nas nos caibros compridos. Cónservam o milho em· bolsas, e as
penas em cestinhas e cuias, que pendem das vigas transversais das casas. (Nos
Sertoes do Brasil. Revista do Arquivo MXCll 92, pp. 166-167.)

Se me alonguei um pouco na cita9ao, é porque nada ou pouco mudou desde aquela


época longínqua, o que vem a demonstrar a persistencia de certas características
culturais, como a forma da aldeia e a ocupa9ao do espa90 doméstico e público entre
os grupos Je da Amazonia.

Protásio Frikel é o primeiro a descrever urna aldeia de inverno, acompanhando o


texto de planta-baixa e detalhes de construc;ao da casa (fig. 55).

55. A casa Xikrin . Planta baixa e detalhes da constru9ao da casa . (Protásio Frikel. Os Xikrin.
Museu Goeldi. Publicacoes avulsas n? 7. Belém, Pará).

A casa da aldeia é um barracao retangular de urna área aproximada de 4 x 8, mas


pode variar bastante, segundo o número de familias que aí vivem. Nao há divisoes
internas. Tres paredes sao fechadas com palha de baba<;:u e a frente fica aberta para
o pátio (foto 56).

A palha do teto chega a pouca distancia do chao. Atrás das casas pequenas,
constru<;:oes abrigam o forno de terra. Na foto 57 podem ser vistos os dais tipos de
casas, o abrigo mais antigo e construido durante a vida nómade, geralmente pelas
mulheres, e~ casa maior, ao lado, construída pelos homens.

81
57. (foto Pe. R. Caron).

82
A DIVISAD DO ESPA<;O

A aldeia kayapó é circular, um anel constituído pelas unidades residenciais (Fig. 58


e foto 59) .

58. Planta da aldeia em 1969.


A, B, C, ... as unidades residenciais
X, o forno de terra
Atukbe, a casa dos homens.

59.

83
As casas pertencem as mulheres. Sob o mesmo teto vivem várias famílias nuclea-
res, relacionadas pelo lado materno, como, por exemplo, urna mulher de idade,
suas filhas e os maridos e filhos destas. Oeste modo, urna mulher kayapó nasce,
vive e morre na mesma casa, unidade residencial que possui o seu lugar certo no
círculo de casas. Os homens, pelo contrário, aos oito ou dez anos passam a viver na
casa dos homens e, após o casamento, mudam-se para a casa da família da esposa,
o que é chamado de residencia uxorilocal. Assim, o que os Kayapó designam de o
"meu lar" varia segundo o ponto de vista de urna mulher e de um homem, sendo
que este transita por várias moradas e divide suas lealdades entre vários grupos
sociais durante a sua vida. lsso explica, também, porque homens e mulheres
possuem urna visao distinta da aldeia. Na fig. 60 um homem representou a aldeia
dando maior enfase ao espac;;o masculino, o conselho, no meio da aldeia e onde,
antigamente, dormiam os rapazes solteiros. Deve ser ressaltado que neste lugar nao
se ergue nenhuma construc;;ao, é um espac;;o definido pelo seu uso social e os
símbolos que lhe sao atribuídos. Na fig. 61, por outro lado, o desenho de urna aldeia,

60.

84
~
elaborado por ·urna mulher, mostra os quatro catres-cama que representam o
espac;o ocupado por quatro irmas e suas respectivas famílias dentro de urna mesma
casa. A casa nao é representada e parece possuir um valor residual com relac;ao aos
catres. lsto, por sua vez, nao impede que urna mulher seja capaz de representar a
sua aldeia de forma abstrata e sintética. Na fig. 62, a pintora representa a aldeia
como um modelo espac;o-temporal, relacionado ao homem e ~s tres categorias
de idade diferenciadas e politicamente importantes na comunidade kayapó.

61. a b c a - a mata
b - o centro da aldeia e o conselho
e - os 4 catres - cama de um grupo de irmfts.

62.

85
Dentro das casas, cada família nuclear possui um espa90 que lhe é atribuído e que
se define pelo lugar onde a família dorme. A única mobília é um catre familiar, que
serve de cama de noite, e é usado durante o dia como assento, ou lugar onde
colocar coisas. Os catres constroem-se com quatro forquilhas com as respectivas
travessas, sobre as quais se colocam ripas de paxiúba; durante a noite, outra ripa,
na largura do catre, serve de travesseiro. Entre os catres das famílias existe um fogo,
que serve essencialmente para o aquecimento pessoal. Como o mostra a foto 63,
diferentes cestas, cofos e cuias ficam dependurados dos esteios e miudezas sao
enfiadas na palha das paredes.

63.

Durante o dia, a mulher se atarefa fora da casa, na roc;a, a beira do rio, ou no pátio
a
frente casa, onde coloca em altos jiraus ou em cima de esteiras (foto 64), os
produtos vegetais que devem secar ao sol. Para cozinhar, o forno de terra fica atrás
da casa . A mulher tao semente permanece dentro de casa, de tarde, na volta da
roc;a e do banho, para fiar algodao, pintar os filhos com genipapo, ou simplesmente
descansar durante as horas mais quentes do dia . Nestas ocasioes senta no chao, em
cima de esteiras de folhas de palmeira, ou tran9adas de pínulas de baba9u . A foto 65
mostra urna avó, sua filha e seu neto descansando e brincando; a pouca distancia
se ve o espa90 ocupado por urna outra filha e sua família.

Na casa dos homens, um grande barracao aberto, localizado a leste e um pouco


afastado do círculo das casas, os rapazes solteiros dormem em cima da palha,
simplesmente colocada no chao. O grupo de meninos menores, recém-introduzido,
fica incumbido, todas as tardes, de renovar o tapete de folhas de palmeira.

Em épocas de festas, ninguém permanece dentro de casa; estas sao literalmente


abandonadas. As festividades, cantos e danc;as ocorrem na prac;a e os observadores
carregam suas esteiras e dormem ao relente.

86
64.

65.

De noite, as reunioes de homens e mulheres, sempre separadamente, também se


realizam na prac;a. O conselho dos homens fica bem no meio do pátio, enquanto que
o lugar de reuniao das mulheres é em frente a casa da esposa do chefe da aldeia .

Assim, a casa se reduz a abrigar certas pessoas, durante o día, e a família toda, para
dormir. Na verdade, os diferentes grupos sociais ocupam urna grande diversidade
de espa9os, segundo o momento do dia, a época do ano e o tipo de atividades
desenvolvidas .

87
O ACAMPAMENTO

Un1a das características dos grupos kayapó é o revezamento entre a vida sedentária
em aldeias e a vida nómade, especialmente em época de seca, quando os índios
percorrem o seu território a procura de ca9a, coleta de frutos silvestres, cocos,
castanhas e palmitos, assim como matéria-prima para a confec9ao de artefatos e
plantas medicinais, sendo a aldeia, porérn, sempre o ponto de retorno. Os acampa-
mentos sao locais de pouso provisórios, em meio a floresta e, geralmente, os
Kayapó nao ficam mais do que alguns dias no mesmo lugar. Na medida do possível,
o acampamento é circular e os segmentos residenciais colocam-se na mesma ordem
obedecida na aldeia. Os abrigos sao construc;CSes simples, hoje um pouco diferentes
daqueles descritos por Krause (foto 66). Abre-se urna clareira e o chao é limpo de
raízes e capim e recoberto de folhas de palmeira baba9u, sobre as quais se estendem
as esteiras, renovadas a cada novo acampamento. Os homens ajudam um pouco na
construc;ao do abrigo, saindo lago para a ca9a. Na floresta, sao as mulheres que
cortam, trazem e preparam as folhas de palmeira para cobrir o teto e forrar o chao,
dispersando-se depois para as atividades de coleta.

66.

88
67. (foto Pe. R. Caron).

Ouando a época é de seca, muitas vezes nao é preciso construir um abrigo; basta
colocar as esteiras familiais em forma de anel, para reconstituir o espa90 habitado
das casas (foto 67); em seguida, limpa-se o centro da clareira, para formar o pétio,
o conselho dos homens e o dormitório dos rapazes. Durante estas expedi9oes,
a comida é abundante, por isso sao construídos dois ou tres fornas de pedra, onde
colocam a assar grandes porc;oes de anta, queixada, caitetu e veado, assim como
palmito em grande quantidade. De tarde a fumac;a cobre o pequeno acampamento e
todos vao tomar banho no igarapé. A vida corre tranqüila e tuda é mais íntimo no
ambiente da floresta . Depois da refei9ao da tarde, os índios conversam de urna casa
para outra; o chefe e o xama contam mitos e feitos guerreiros. As maes acabam
caindo no sono e dormem com seus filhos peq~enos ao longo do flanco, o marido
em frente. Os fagos sao reavivados para afastar a onc;:a faminta e porque as madru-
gadas sao frias e úmidas soba abóbodaescura da floresta. Se chove, nao se dorme
muito no acampamento, goteja por todos os lados, cada qual procura um lugar seco
e espera, com paciencia, odia amanhecer.

Durante o dia o espa90 habitado é bastante reduzido e reina urna desordem geral,
que acentua o informal, o provisório e a intimidade, muito diferente da vida na
aldeia. As maes, sem muito o que fazer, quando nao se pintam, procuram urna
clareira, onde os filhos possam tomar o pouco de sol que mal consegue atravessar
o teto da espessa folhagem.

89
O ESPA<'.;;0 HABITADO E A VISÁO DE MUNDO

os· Kayapó se consideram parte integrante de um mundo e universo circular e veem


o processo do universo e da vida como cíclico, os ciclos do tempo ecológico e
estrutural que determinam e acompanham a vida e as at1vidades humanas.

O centro do mundo é representado pelo centro do pátio da aldeia, onde se reúne o


conselho dos homens (foto 68) e se desenvolvem os rituais e a vida pública em
geral. O símbolo do centro do mundo e do universo é o maracá, instrumento
musical, redondo e em forma de cabec;a, ao som do qual os índios can tam e
danc;am, seguindo um t rac;ado circular e que acompanha a t rajetória sola r, desde o
por-do-sol até o amanhecer. Danc;ando, os índios dizem que remontam o tempo até
as origens míticas, recriando assim a energía necessária a continuidade e estabili-
a
dade do meio ambiente, dos recursos necessários sobrevivencia, a reprodu c;ao
contínua da vida e das diferentes instituic;oes sociais que garantem o equilíbrio
indispensável a vida em comunidade. O espac;o doméstico e feminino é constituído
por um círculo de unidades residenciais, as casas, de onde pode-se observar a
aldeia, mas nao ser visto, um espac;o privado, onde ninguém entra sem ser convi-
dado e onde se discutem e resolvemos assuntos privados da comunidade.

68.

90
Na comunidade kayapó, homens e mulheres desempenham suas atividades, inde-
pendentes enquanto grupos, e espacialmente separados. A casa dos homens é o
lugar onde estes se reúnem para discutir e preparar as suas tarefas cotidianas;
é também o local onde fabricam os seus artefatos e a parafernália ritual (foto
69) . É um barraca aberto, ao lado do qual todos passam, quando se dirigem ao
banho. É apenas durante o Aruana , ritual adquirido dos Carajá, que a casa dos
homens se transforma em casa das máscaras e é totalmente fechada com folhas de
palmeira, espa90 proibido as mulheres e nao iniciados (foto 70).

As mulheres, por sua vez, agrupadas em urna sociedade de mulheres, ocupam ,


durante as suas atividades de pintura corporal coletiva, um espac;;o específi co, o
alpendre da casa do chefe, onde se dedicam exclusivamente, a cada oito dias, a esta
atividade (fot0 71) .

69. (foto Vincent Carelli).

70. (foto Dr. Joao Paulo Botelho).

91
71 .

92
OS EFEITOS DO CONTATO COMA SOCIEDADE REGIONAL

Nestes últimos anos, o contato entre certos elementos da comunidade Xikrin e a


sociedade nacional tem sido bastante freqüente. Na verdade, pouca coisa mudou, •
a nao ser o aumento paulatino de urna situa9ao de dependencia e de cerco terri-
torial. As casas residenciais, porém, sofreram várias modifica9oes, nao tanto do
. ponto de vista da estrutura arquitetOnica, como da divisao interna do espa90.
Nota-se, atualmente, urna tendencia a construir casas menores e, pelo contrário,
a aumentar o tamanho das casas dos dois chefes da aldeia, que se tornaram
também lugar de reuniao e depósitos de produtos a serem divididos. Algumas casas
sao construídas c;om paredes de pau-a-pique, janela e porta. Muitas apresentam,
hoje, divisoes internas, formando quartos (foto 72). A tendencia é a construc;:ao de
urna casa para duas famílias, com dois quartos fechados, separados por urna
área aberta e comum, no meio, para cozinhar, trabalhar e brincar. Hoje todos os
Xikrin usam roupa e possuem redes de algodao comp~adas no comércio de Marabá
ou Belém. Adquiriram maletas, rádios e algum objeto de valor que precisam de
maior cuidado e serem menos expostos aos olhos dos curiosos. Além da casa na
aldeia e do abrigo na floresta, os Xikrin constroem um barraco grande, sempre do
mesmo tipo, mas aberto dos quatro lados, próximo as suas roc;:as e onde passam a
viver por alguns dias, ou semanas, durante o período das atividades agrícolas.

Os Xikrin dedicam-se, também, a coleta da castanha do Pará, que comercializam no


mercado regional; em cada coloca9ao do castanhal, o grupo de trabalho constrói
um grande barraco, onde passa a residir com as familias, na época da safra.

Finalmente, quando os índios sao obrigados a se deslocarem para as cidades como


Marabá ou Belém, sao geralmente alojados em um prédio chamado Casa do indio,
cuja arquitetura, localiza9ao e aparencia, só tem como paralelo o total descaso e
abandono ao qual o indio é submetido . Jogado no chao sujo de cimento, sem
referencias que o ajudem a se orientar, é deixado a sonhar sobre os privilégios e
amarguras de um tutelado do Estado.

93
OS PARAKANÁ DO P.I. PUCURUÍ E P.I. LONTRA,
GRUPO TUPI DO MÉDIO TOCANTINS


Em junho de 1980 visitei pela primeira vez vários grupos Tupi do Pará. Fiquei urna
semana entre os índios Parakana, que vivem a margem esquerda do médio To-
cantins, entre Marabá e Tucuruí, a poucos quilómetros da Transamazónica .

Devo reconhecer que, ao longo dos anos de pesquisa, inconscientemente, eu me


tinha acostumado a pensar a categoría índio e kayapó como t.Jma só e mesma coisa.
O contato prolongado com um único grupo leva a urna rápida aculturac;:ao etno-
gráfica. Os Xikrin adoram carne de anta e eu adoro carne de anta. Detestam capi-
vara e eu nao chego nem perto de capivara e, macaco, só quando nao tiver coisa
melhor.

Por outro lado, trabalhando comos Je, muitos autores tentaram explicac;:Bes sobre
as raz5es de aldeias redondas, do porque de urna visao circular e cíclica do universo
e de um espac;:o tao nítidamente dividido e estruturado. A idéia que vai se formando
é que o modelo indígena seria o mais adequado do ponto de vista de suas fun9oes
adaptativas, onde, queira-se ou nao, a adaptac;:ao ecológica sempre tende a preva-
lecer. A minha primeira impressao, ao chegar entre os Parakana, foi, sem dúvida,
o fato de me sentir perdida, sem referencias espaciais conhecidas e chegando
mesmo a estranhar a falta de ordenac;:ao espacial que caracteriza os povos Je.
Esses índios, porém, pouco aculturados, viviam na mesma regiao que os Kayapó-
Xikrin, alimentavam-se dos mesmos produtos e desenvolviam as mesmas ativi-
dades. Faziam as mesmas coisas, mas de maneira totalmente diferente, a come<;:ar
pelo processamento da mandioca e o cozimento das carnes. Tive outras surpresas.

Como todo pesquisador, procurei o meu lugar na sociedade e o espac;:o que poderia
concretamente ocupar. Nao o encontrei e, assim, fiquei no Posto. Nao existe entre
os Parakana a nítida separac;:ao dos sexos no que se refere a divisao do trabalho, do
lazer e dos lugares e espac;:os ocupados por cada grupo. Eu nao podia automati-
camente participar das atividades femininas sem me imiscuir na vida privada de urna
família nuclear que, na maioria das vezes, desenvolvia em conjunto as atividades
cotidianas, a nao ser que acabasse ficando como "mais ou menos" a segunda ou
terceira esposa de um homem . Entre os Kayapó-Xikrin, onde as roc;:as e as casas
pertencem as mulheres, urna vez adotada pela esposa do chefe, eu sempre me senti
perfeitamente em casa, como outra mulher qualquer vivendo sob o mesmo teto.

73. Vista parcial da aldeia Parakana do 3? Acampamento (P. 1. Pucuruí), aparecen do duas cabanas
e urna "cozinha " lateral, ~ direita. Desenho feito a partir de fotografia de maio de 1980.
(André Amaral de Toral ).

94
Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - Coleção Nicolai
,
www.etnolinguistica.org

Entre os Parakana a casa é da família, chefiada pelo homem. A família é a unidade
de produ9ao e consumo e, ainda mais, é essencialmente urna unidade de vivencia
cotidiana, separada das outras unidades familiares da aldeia. Marido e esposa
desempenham juntos muitas atividades e a mulher nao raras vezes acompanha o
marido numa expedi9ao de cac;a. Mesmo quando se dedicam a atividades dife-
rentes, eles compartilham do mesmo espa90, o tapiri familiar, ao lado da casa.
Homens de maior prestígio, com vários filhos casados, formam, em certos momen-
tos, grupos maiores, mas o q ue prevalece sao as unidades familiares individuali-
zadas. De noite, a nao ser durante os rituais religiosos, cada grupo de famílias fica
confinado ao seu espa90. Nada de parecido com os agrupamentos comunitários
dos kayapó: o conselho dos homens, a noite, no meio da aldeia; a roda feminina
sempre agitada e fofoqueira a soltar gargalhadas; as dan9as e cantos de noite no
pátio. A família Tupi é tranqüila e reservada. Quando urna noite decidi gravar alguns
cantos, a pedido dos próprios índios, tive que me deslocar de casa em casa, para
atender um por um a todos aqueles que se recusariam a reunirem-se num mesmo
espa90 para urna ocasiao semelhante. O espírito competitivo, porém, era mareante,
cada indivíduo cantando sozinho e para ser ouvido por todos.

No posto indígena Pucuruí (fig . 73), o grupo era demograficamente muito reduzido,
sobrando, de urna desastrosa pacifica9ao, 35 pessoas, apenas. A aldeia consistía
em seis casas bem próximas urnas das outras e como que formando duas fileiras.
Eram construc;oes em forma de um triangulo, cobertas de palha até o chao, com
urna abertura mínima para sair e entrar (foto 74). Em cada casa vivia um homem
com sua ou su as esposas e filhos e, as vezes, a mae do chefe da família.

95
74.

Dentro das casas, muito limpas, havia simplesmente as redes de fibra vegetal,
tecidas pelas próprias índias e alguns pertences pendurados, ou enfiados na parede.
Cada família possuía, porém, ao lado da casa um tapiri-cozinha-oficina, coberto de
palha, mas aberto dos lados, onde os índios passavam o dia desempenhando suas
tarefas, divididos em famílias nucleares·, que pouco se comunicavam.

Nao havia entre os Parakana as divisoes nítidas dos Je, agrupados em urna grande
diversidade de metades, classes de idade, sociedades de homens etc ...

A pergunta com rela9ao aos Parakana era a seguinte: de . que forma se articulam
estas diferentes famílias e quais os mecanismos de reprodu9ao biológica e social
deste grupo? Os quatro dias que passei no Pucuruí nao me permitiram nenhum
esclarecimento sobre os aspectos religiosos e as atividades rituais. Consegui, entre-
tanto, já que o grupo é tao reduzido demograficamente, levantar' a genealogia,
estabelecer as rela9oes de parentesco e as regras de casamento. O diagrama sinté-
tico apresentado a seguiré de urna clareza absoluta. O modelo nao poderia superar
a realidade das rela9oes concretas. Os Parakana do Pucuruí sao o próprio paradigma
da estrutura social Tupi. Desde Anchieta, que escreveu um dos mais importantes
documentos sociológicos do Brasil quinhentista, "lnforma9oes dos casamentos dos
indios do Brasil" (Cartas, lnforma9oes, Fragmentos Históricos e Sermoes, 1554-
1594) até Lévi-Strauss (Les Structures Elémentaires de la Parenté), a história se
repete e o cerco se fecha.

O diagrama revela urna estrutura de duas sec9oes. As quatro pessoas mais velhas
da aldeia sao um grupo de irmaos, dois homens e duas mulheres. Os casamentos
entre os descendentes sao entre tio e sobrinha (preferencial) e entre primos cru-
zados, formando metades exogamicas.

Através da genealogia e dos casamentos, pode-se entender a organiza9ao espacial


da aldeia e como os indivíduos se dividem e se agrupam por casas: Casas 5 e 6,
casas 4 e 3, casa 2, casa 1; sem dificuldade, o diagrama pode ser superposto a
planta da aldeia (figs. 75 e 76).

96

! 7
a
1
[fil]
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•-'4 ~---·---·-- ---·--- -- -----·- - - -- ------------ ..
m

a : grande barracao FUNAI


b : rádio P. l.
e : farmácia •
d : residencia do chef e de Posto
C. : cozinhas dos índios
1
2
3 - Casas e f amílias dos Parakana
4
5
6
7 : Ramal em dire9ao a Transamazónica
(7 km).

75 . Aldeia Parakana 3? acampamento.


P. l. Pucuruí Maio de 1980.

76. Genealogía parcial - ALDEIA PUCURUÍ - 3 ? Acampamento .

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CASAMENTO PREFERENCIAL

CASA6 CASAS CASA2 CASA3E4 CASA 1

97
No Pucuruí, por ser o grupo tao reduzido, o posto da Funai era quase do tamanho
da aldeia. A constru9ao principal era um grande barraco-galpao coberto, que os
funcionários da Funai e os índios usavam, em certos momentos do día, como casa
grande e lugar de reuniao (foto 77).

77.

No posto indígena Lontra (figs. 78 e 79), o grupo numericamente maior, 118 pessoas,
abrigava-se em duas grandes casas de mais ou menos 50 metros de comprimento,
com mais de 50 pessoas em cada urna e sem divisoes internas (foto 80). As paredes
eram de ripas de madeira, colocadas urna ao lado da outra, e o teto, de palha. No
meio da casa, um espa90-corredor, e de cada lado os espa9os familiares definidos
pelas redes de um homem, sua ou suas esposas e filhos. Os homens dormem do
lado da parede, mulheres e crian9as do lado do corredor. Os espa9os contíguos
eram ocupados por grupos de irmaos, ou por um pai e filhos homens e suas
respectivas famílias. O chefe-pajé da casa ocupava urna das extremidades. Havia
várias aberturas que davam para o exterior. Dos dois lados da aldeia e a pouca
distancia das casas, havia um certo número de constru9oes de palha, fechadas de
tres lados, mas abertas do lado da casa comprida e que eram grandes tapiri, onde
várias famílias nucleares aparentadas passavam o dia, cozinhando, moqueando a
carne, torrando a farinha (foto 81 ), fabricando flechas. As famílias que compar-
tilham do mesmo tapiri relacionam-se pelo lado paterno e cada grupo é encabe-
9ado por um homem mais velho e de prestígio.

Marido e mulher, as vezes, trabalham juntos, sentados na mesma rede, sendo que
muitos jovens sao casados com mulheres mais velhas (foto 82), o que muito
contribuí para o equilíbrio e a tranqüilidade da vida familiar).

98
78. Aldeia Parakana dorio Lontra . Estado do Pará, 1980.

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Io ---- o ---- 2
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2 2

a b e d

-----------------
e
3

1. Casa grande, em número de duas sem divisoes internas


1a. Espa90 familiar ("nicho")
1b . Corredor central
2. Cozinhas
3. Casa do Post o Indígena (FUNA I)
3a. Farmácia
3b. Ouarto
3c. Rádio
3d. Cozinha
3e. Varanda
4. Ramal para a Transamazónica (Distancia aproximada: 18-20 km ).

99
79. Esquema do espa90 reservado a cada núcleo fami liar na maloca Parakana.
Modelo de "nicho" familiar. Parakana - R. Lontra, 1980.

--- - -- -- - o
-= =- a. Espac;o reservado a família
f b. Corredor Central
<::::::: "» ® distribuic;ao das redes :
h : homem

_rn_!~~ - - - -
m 1 : rede da primeira mulher
m 2 : rede da segunda mulher
o f : filho(a)

80.

100
81.

No Lontra, ao contrário do que acontecia no posto Pucuruí, urna única mulher,



a enfermeira, e dois bra9ais tomavam conta do grupo. Nao havia estrada que
chegasse a aldeia, nem pista de pouso . A interferencia era mínima e o posto,
também construido de palha, era dividido em tres cómodos: o quarto, a enfermaría
e o entreposto. Os índios Parakana foram vítimas de urna das mais desastrosas
pacifica9Bes da FUNAI, na época da constru9ao da TransamazOnica. Em junho de
1980, apesar de debilitados pela freqüencia das epidemias de malária que assolam a
regiao, estes indios estavam se recompondo e gozavam de urna relativa tranqüili-
dade. Infelizmente, destinados a terem o seu território inundado pelo reservatório da
hidrelétrica de Tucuruí, nenhuma solu9ao de transferencia foi prevista a tempo pelo
Estado. Em setembro de 1981, diante do avanc;o das moto-serras e do rápido
desmatamento, os índios decidiram fugir, sem assistencia, para urna nova área,
ainda nao demarcada. O grupo, em estado grave de anemia e assolado por novas
epidemias de malária, reconstruiu, porém, as suas casas de palha.

Pretendem, também, se possível, reconstruir a casa grande. Haverá palha? Haverá


saúde? Haverá espac;o e sossego? Haverá esperanc;a e vontade de sobreviver?

101
82.

Os últimos Tupi da Amazonia, tardiamente redescobertos, também falam um pouco


a nossa língua (ou nós a deles?), as mulheres se chamam lracy e Jurema, os homens
Tukumakuera e o ser supremo Maíra. Urna cuia eles chamam de cuia, um menino de
"curumim", urubu é "urubu", e tuca no é "tu ka", comem "ja bu ti", pintam-se de
"genipapo" e " urucu ", gostam de um "tucunaré" e bebem " caxiri". É preciso
reconhecer o óbvio : a 7 km da Transamazónica, aos pés da faraónica hidrelétrica de
Tu curuí, os Tupi continuam Tupi. Após a estranha e exótica aventura etnográfica
entre os J e, como explicar esta reversao do tempo, a impressao de reviver um
capítulo de nossa história, com interesse renovado, com o sentimento tranqüilo de
quem volta para casa, " prá nossa Taba"? Mas, por quanto tempo?

102
, •

OBSERVACOES SOBRE A HABIT ACAO


EM TRES GRUPOS INDÍGENAS
BRASILEIROS*

Cristina Sá

(*) Nota da Coordenacao : a nao adocao, neste artigo, da convencao internacional ut ilizada
para citac;:ao de nome de tribos indígenas obedece ao desejo expresso da autora.

103
BRASILIA
• ...

S. PAULO
•• •

o 500 1000 KM

1 1 1:

83 . Localizac;:ao geográfica . Y -== Yawalapiti; K = Karajá; X :.: Xavante.

104

• '
NOTAS QUANTO AO MÉTODO UTILIZADO

Sao muitas as abordagens utilizadas no estudo da habita9ao das diversas socie-


dades ou grupos sociais em geral e das sociedades indígenas em particular. Na sua
maioria, essas abordagens privilegiam a forma e a tecnologia construtiva (in-
cluindo os materiais e as técnicas disponíveis) como sendo os critérios mais signi-
ficativos para a elabora9ao de urna tipologia, a partir da qual se realiza urna análise,
que pode ser sincrónica ou diacrónica, na qual os tipos e suas varia9oes no espa90
ou no tempo sao interpretados como resultantes da a9ao de fatores condicionantes
diversos, tais como o meio ambiente, a organiza9ao social, a economia, os padroes
estéticos, etc. No entanto, quando estudamos a habita9ao de sociedades ou grupos
sociats submetidos a intensos processos de mudan9a cultural, essa abordagem
pode levar a resultados nao muito significativos, pois fatores antes dados como
condicionantes passam a influir cada vez menos sobre os novos tipos obtidos, nos
quais a forma e a tecnologia, modificando-se com rapidez inusitada, entram fre-
qüentemente em desacordo, urna tecnologia tomada de empréstimo podendo
servir a manutenc;:ao de formas consagradas pela tradi<;ao ou , ao contrário, formas
novas sendo obtidas a partir de técnicas e materiais tradicionais. Um critério mais
seguro para análise parece ser o da organizac;ao do espac;:o da habitac;:ao ou do
conjunto de habitac;oes, muito mais resistente a mudanc;:a cultural, cujas ligac;:oes
com urna cultura determinada e com sua manutenc;ao sao tao estreitas, que permi-
tem a essa organizac;:ao servir como indicador na diferenciac;:ao de grupos sociais
aparentemente muito próximos e ter sua permanencia assegurada por um período
de tempo muito mais longo do que a forma e a tecnología construtiva.

Vamos analisar aqui a habitac;ao de tres grupos indígenas brasileiros - Yawalapiti,


Karajá e Xavante - antes e depois do contato com a sociedade nacional envol-
vente (ver figura 83). Esses grupos, que apresentavam originalmente diferentes graus
de mobilidade no espa90, sofrem hoje restri9oes a essa mobilidade, de acordo com
as diferentes situac;:oes de contato que vivenciam: os yawalapitis, que se movimen-
tavam relativamente pouco dentro do seu território, continuam mantendo seu
padrao tradicional, grac;:as a situac;ao privilegiada em que ainda se encontram,
protegidos dentro do Parque do Xingu; os karajás, que tradicionalmente deslocavam
sua aldeia duas vezes por ano, estao hoje obrigados ao sedentarismo e praticamente
encurralados pelas fazendas de criac;:ao de gado na ilha do Bananal, em situac;:ao de
contato permanente com a populac;ao regional; os xavantes, que tradicionalmente
praticavam um nomadismo acentuado, estao hoje obrigados ao sedentarismo,
embora sejam livres para realizar excursoes de cac;a e coleta dentro das suas re-
servas, tendo contatos tanto com a populac;:ao de centros urbanos próximos quanto
com regionais vizinhos.

105
A HABITACAO YAWALAPITl 1

Em 1877 foram feítos os primeiros contatos com os diversos grupos indígenas da


regiao do Alto-Xingu, mas somente a partir de 1946 é que esses contatos passaram
a ser regulares, quando vários desses grupos já tinham desaparecido e os restantes
estavam drasticamente reduzidos, como conseqüencia das epidemias que se suce-
deram nesse intervalo de tempo. Gra<;as, porém, a urna atividade assistencial bem
orientada, que visou a garantir-lhes a sobrevivencia através de cuidados médicos e
da prote9ao dos territórios, evitando ao mesmo tempo urna brusca desorganiza9ao
da vida triba.I, esses grupos puderam se recompor, embora ainda nao sejam tao
numerosos quanto antes do contato, quando cada um deles ocupava várias aldeias,
enquanto hojea cada grupo corresponde apenas urna única aldeia.

A regiao do Alto-Xingu, atualmente compreendida dentro do Parque do 'Xingu,


é urna área de transi<;ao entre o meio ambiente de floresta e o de cerrado, que
apresenta numerosos ríos e lagoas extraordinariamente ricos em peixes e tartaru -
gas. Existem apenas duas esta<;oes, que sao bem diferenciadas: o inverno, esta9ao
das chuvas e das cheias, que vai de outubro a abril, época de muito calor, e o verao,
estayao seca, que vai de maio a setembro, com dias quentes e noites frias. Os
grupos indígenas xinguanos, isto é, que habitam o Alto-Xingu, apresentam um nível
de adapta<;ao tao satisfatório a esse ambiente, que podem até mesmo desprezar
recursos alimentares que poderiam ter importancia na sua dieta, tal como fazem
com a ca9a. A base da alimenta<;ao desses grupos, que sao todos agricultores, é
constituída pela mandioca e pela pesca, vindo em segundo lugar o piqui e os ovos
de tartaruga . Vários outros vegetais, alguns cultivados e outros silvestres, sao
também consumidos, embora em menor quantidade, acrescentando-se ainda o mel
e algumas espécies de pássaros e de insetos.

Esses grupos indígenas que hoje habitam o Alto-Xingu ali chegaram em diferentes
épocas, vindos de diversas regioes e falando línguas pertencentes a troncos lingüís-
ticos distintos . Devido a um intenso processo de trocas culturais, que incluí comér-
cio, cerimonias e casamentos intertribais, e que é anterior aos primeiros contatos
com a sociedade brasileira, esses grupos apresentam urna relativa homogeneidade
cultural, embora persistam ainda algumas diferen<;as, tais como a língua e a espe-
cializa<;ao artesanal, como recursos de identifica9ao tribal. Desse modo, pratica-
mente todas as observa<;oes feítas quanto a habita<;ao do grupo Yawalapiti (tronco
lingüístico Aruak) sao válidas também para a dos grupos Mehinaco (também

(1) Algumas ilustra9éSes, assim como parte do texto, foram publicadas anteriormente em Encon-
tros coma Civiliza980 Brasileira n? 12, 1979, sobo título "Habita9~0 Indígena no Alto-Xingu" , com
texto e levantamentos arquitetOnicos de Cristina C. Sá, ilustrados por fotografias de Eduardo
Bacellar Correa.

106
Aruak), Kamayurá (Tupi) e Kalapalo (Karib), podendo provavelmente ser generali-
zadas para os outros grupos indígenas xinguanos.

Ouando come9aram os -primeiros contatos regulares com a sociedade nacional,


os yawalapitis tinham diminuído tanto, que os individuos remanescentes já se
haviam dispersado por várias aldeias de outros grupos xinguanos. Essa dispersao,
porém, durou apenas alguns anos, voltando todo o grupo a se reunir numa única
aldeia, fundada dentro de seu território tradicional. Por essa época, o processo de
depopula9aojá tinha sido controlado, gra9as aos servi9os médicos, iniciando-se um
novo aumento populacional em toda regiao que, no entanto, nao era suficiente para
assegurar aos yawalapitis um número razoável de componentes em curto espa90 de
tempo, razao pela qual foram entao modificadas as regras de residencia após
o casamento: qualquer indivíduo de outra aldeia que se casasse com um yawa-
lapiti, homem ou mulher, iria morar na aldeia deste último, ao contrário do
que geralmente acontece entre os xinguanos, que prescrevem para um novo casal a
moradia na casa da família da mulher durante o primeiro ano de casamento, ou até
nascer o primeiro filho, e daí em diante, entao, na casa da familia do marido. Dessa
maneira, o número de habitantes da aldeia yawalapiti pOde crescer rapidamente,
permitindo que fosse retomada a antiga organiza9ao social que, em grande parte,
dependia da existencia de um número razoável de membros no grupo para a sua
manuten9ao. Hoje, porém, já prevalecem, em muitos casos, as antigas regras de
residencia após o casamento.

Todos os grupos indígenas do Alto-Xingu apresentam urna baixa mobilidade espa-


cial : a mudan9a de local da aldeia ocorre geralmente em. intervalos de pelo menos 10
ou 15 anos, sendo citadas como causas dessas mudan9as diversos fatores, tais
como a morte de muitos habitantes, ou o aparecimento de formigueiros. Essas
mudan9as podem o"correr independentemente das observadas para novas ro9as ou
para acampamentos temporários de pesca ou coleta (ver figura 84).

---R • Acampamentos

'R o Aldeias

R Ro~as

84. Mobilidade no espa~o entre os grupos indígenas xinguanos.

107
As aldeias xinguanas sao geralmente implantadas perto de um riacho ou lagoa e nao
muito distantes das áreas de florestas, onde sao feitas as roc;as segundo a técnica de
queimada, utilizando-se o terreno durante apenas dois ou tres anos consecutivos e
abandonando-o a seguir durante pelo menos 20 a 25 anos. A distancia entre a aldeia
yawalapiti e o local de banho, no rio Tuatuari, na esta<;ao seca de 1978, era de quase
um quilómetro, bem maior do que a média das outras aldeias, algumas das quais
distavam apenas algumas dezenas de metros da água . A distancia entre a aldeia e as
roc;as era· de cerca de dez quilómetros (duas horas a pé), o que pode ser considerado
ainda dentro do padrao xinguano, embora algumas aldeias tivessem pelo menos
parte das roc;as plantadas bem mais próximas. Os acampamentos temporários para
coleta de sal e pesca coletiva situavam-se a distancias variáveis, geralmente a várias
horas de viagem a pé, ou de canoa.

Como todas as aldeias do Alto Xingu, a aldeia yawalapiti tema forma de um círculo,
comas casas dispostas na periferia e o espac;o central constituindo-se num grande
pátio, no meio do qual, assinalada por urna cerquinha baixa, fica a sepultura dos
capitaes, isto é, dos homens de maior prestígio, geralmente líderes dos grupos
domésticos. Junto a sepultura, ligeiramente afastada do centro da aldeia, fica a
casa dos homens ou casa das flautas (que nao é local de moradia, mas apenas de
reuniao), a qual as mulheres nao tem acesso, tendo em frente um grande tronco
descascado, usado como banco pelos homens, que ali ficam sentados conver-
sando, geralmente a tardinha, quando nao tem nada para fazer. Bem afastada do
centro fica a gaiola do gaviao real, propriedade do chefe do grupo, cujas penas sao
consideradas muito valiosas para a confecc;ao de determinados ornamentos (ver
figura 85) .

Entre os yawalapitis, assim como entre os demais xinguanos, para que um indi-
víduo seja considerado membro de urna aldeia é preciso nela ser residente perma-
nente e pertencer ou nao a urna determinada aldeia é importante, pois seus mem-
bros tem direitos exclusivos sobre os recursos naturais do território, cuja posse
pelo grupo da aldeia é reconhecida por todos os outros grupos. Os membros de outra
aldeia, a sós ou em grupo, só chegam para visita pelo largo caminho principal, en-
quanto os moradores tem, além desse, vários caminhos secundários a sua escolha
que, ao contrário do principal, nao dao acesso diretamente ao pátio, mas simas áreas
dos fundos das casas. Esses caminhos externos, que formam urna rede ao redor da
aldeia, ligam-na a vários pontos específicos, tais como as ro<;as, locais de banho ou
de pesca, outras aldeias etc. No espac;o do pátio central também existem caminhos
previamente determinados, que ligam as casas entre si e com a casa dos homens
mas que, muitas vezes, só se tornam perceptíveis pela observac;ao da sua utilizac;ao,
nada havendo a diferenciá-los do restante da área do pátio, quando a vegetac;ao baixa
que ali cresce é retirada. Esses caminhos secundários internos sao de dois tipos
distintos: o situado na periferia, que interliga as áreas próximas das portas da frente
das casas, e que é usado preferencialmente pelas mulheres, e os caminhos radiais,
que interligam essas áreas entre si e com a área que circunda a casa dos homens,

108
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1 a 7 == casas (1, 2 e 3 == casas em padrao t radicional, com estrutura simplificada; 4 = casa em


padrao tradicional, a maior da aldeia e primeira a ser const ruída; 5 == casa com planta baixa em falsa
elipse, tal como as tradicionais, porém com diferenciac;:ao entre teto e paredes; 6 e 7 == casas com
planta baixa retangular e diferenciac;:ao entre t eto e paredes) .
8 - jiraus para secagem de mandioca
9 - balizas para jogo de futebol
10 - gaiola de gaviao
11 - casa dos homens
12 - tronco descascado
13 - sepultura.

85. Aldeia Yaw alapit i em julho de 78.

109
passando pelo centro do pátio e que sao usados preferencialmente pelos homens
(ver figura 86) .

86. Áreas e caminhos masculinos e femininos na aldeia Yawalapiti.

- •- PREFER. FEMININO :: -·.;:: PREFER. MASCULINO

Além da distin9ao entre caminhos masculinos e femininos, existe urna outra a ser
feita entre áreas e caminhos particulares e públicos. Sao particulares, isto é, de
propriedade exclusiva de um determinado grupo doméstico, a área próxima de sua
casa e parte dos caminhos que a ela conduzem, principaln1ente dos que conduzem a
porta dos fundos, isto é, dos caminhos externos, e qualquer pessoa que nao per-
ten9a a esse grupo doméstico deve anunciar sua presen9a antes de penetrar nessas
áreas, a menos que esteja acompanhada por um adulto do grupo. Entre .esses
caminhos particulares existem alguns que sao propriedade de um indivíduo determi-
nado, geralmente um. xama, sendo evitados pelos outros membros da aldeia . As
crian9as tem maior liberdade de .m ovimentos, podendo circular nessas áreas parti-
culares e mesmo entrar nas casas vizinhas, coisa que os adultos raramente fazem;
em alguns casos, até mesmo a_s meninas, quando pequenas, podem entrar na casa
dos homens, enquanto as mulheres, além de proibidas de ali penetrar, também
evitam passar pela área que a circunda. Sao considerados como públicos, isto é, que
podem ser utilizados pelos membros de todos os grupos domésticos, o pátio da
aldeia, o caminho principal de acesso á afdeia e a área de banho principal. Existem
ainda outras áreas e caminhos que, apesar de públicos, permitem ao indivíduo
um relativo isolamento, tais como as áreas de banho secundárias e parte dos cami-
nhos secundários exteriores. Na esta9ao seca, quando o alimento é abundante,
muitas vezes um homem que volta de urna pescaría bem sucedida entra na aldeia
pelo caminho principal e atravessa o pátio para chegar a sua casa, sendo visto por
membros de outros grupos domésticos, que podem pedir parte de seus peixes; já na
esta9ao das chuvas, quando o alimento escasseia, é mais provável que volte para
casa pelos caminhos secundários _exteriores, éntrando pela porta dos fundos, para
que o produto da pesca possa ser dividido apenas entre os membros do seu grupo
doméstico (ver figura 87).

110
87. Áreas e caminhos públicos e particulares na aldeia Yawalapiti.

~ÁREAS PÚBLICAS :-.:;:!: ÁREAS PARTICULARES

Em julho de 1978, a aldeia Yawalapiti tinha 82 habitantes distribuídos em sete casas,


variando o grupo doméstico de 3 a 23 moradores, sem que houvesse urna propor-
cionalidade entre o tamanho da casa e o do grupo doméstico, tal como se pode
observar no quadro abaixo (ver o numero da casa na planta geral da aldeia), fato
talvez provocado pelas condic;:oes de reduc;:ao, dispersao, reagrupamento e lento
aumento populacional do grupo.

n? da casa área número de


na planta geral aproximada
. .. moradores

1 194m2 3

2 173 m2 8

3 163 m 2 23

4 403m2 11

5 207m 2 12

6 95m2 19

7 90m2 6

11 56m 2
(casa dos homens)

111
Ouase sempre o grupo doméstico é formado por irmaos ou primos paralelos (filhos
de irmaos do mesmo sexo) com suas esposas, filhos e netos, havendo um nú-
cleo de moradores permanentes e famílias e indivíduos ocasionais. O grupo domés-
tico constituí urna unidade autOnoma de produc;ao de alimentos e mesmo os
moradores ocasionais contribuem para a alimentac;ao de forma identica a dos mora-
dores efetivos. Cada adulto é responsável por um fornecimento contínuo de co-
mida, tendo sua quota assegurada nas ocasioes em que nao puder contribuir.

As proporc;oes e a forma da casa tradicional xinguana variam ligeiramente de urna


aldeia para outra (ver figura 88) , mantendo-se porém muito semelhantes dentro de
urna mesma aldeia, o mesmo acontecendo com alguns detalhes construtivos.

88. Esquema da forma da casa tradicional xinguana : \\\\,....~.:· ....... ·········· ................. M
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Y = Yawalapiti; K = Kamayurá; M = Mehinaco.

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As diferentes partes da casa sao relacionadas com partes do corpo human9 ou


animal; assim, a casa possui peito (fachada principal) , costas (fachada aposta a
principal), alto da cabe9a (viga superior), brincos (troncos de árvores com raízes,
arremate lateral superior da casa), dentes (prolongamento superior da estrutura
vertical que se projeta para a frente) , costelas (varas horizontais onde é·amarrada
a palha da cobertura), pelos (palha de cobertura). Alguns informantes mencionam
ainda a existencia de boca (porta) e pernas (pilares).

Ouando a aldeia yawalapiti se deslocou cerca de 200 m, alguns anos antes deste
levantamento, foi construida inicialmente urna única casa nova, no padrao tradi-
cional (casa 4 na planta geral da aldeia), que abrigava todo o grupo. Todos os homens
da aldeia colaboraram nessa constru9ao, que durou cerca de 6 meses, havendo várias
cerimOnias durante esse período. Aos poucos, foram senda construídas outras seis
casas, mas nenhuma tao grande, nem tao bem acabada. Nesta aldeia, as tres casas
menores que mantem o padrao tradicional tem sua estrutura simplificada e as tres res-
tantes apresentam teto e paredes diferenciados e até planta retangular em duas delas,
embora nao existisse, em 1978, nenhuma casa com paredes de barro (taipa de mao),
tal como acontecía nas aldeias kamayurá e kalapalo. Com excec;ao da casa inicial,
cada urna das outras foi construída apenas pelos homens do grupo doméstico que
iría habitá-la, senda a ajuda eventual de outros homens sempre recompensada com
presentes ou favores. Nenhum dos moradores das casas que fugiam ao padrao
tradicional declarou-se satisfeito: informaram que pretendiam algum dia construir
casas tradicionais e que, se ainda nao o tinham ~eito, era devido ao fato das outras
serem de ·construc;ao mais rápida e fácil .

112

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Essa casa inicial, a maior da aldeia yawalapiti, foi construída do seguinte modo
(ver figuras e fotos de 89 a 92):

1. em janeiro, na esta9ao das chuvas, a madeira e os cipós come9aram a ser


cortados e trazidos para a aldeia. Inicialmente, foram levantados os cinco pilares,
ualapá, feítos em madeira denominada mari. Para fixar os pilares extremos, com 50
cm de diametro e cerca de 10 m de comprimento (8 m aparentes e 2 m enterrados)
foi preciso um día de trabalho para cada um. Esses pilares foram levantados com a
ajuda de arma9oes feitas com troncos mais finos, de 15 a 20 cm de diametro;

2. foram colocados os atati, mour5es que delimitam a falsa elipse da planta baixa,
feitos em madeira denominada matárri. Somente os quatro atati maiores, dos lados
das portas, fdram feitos em madeira mari (somente nesta casa os atati foram colo-
cados uns ao lado dos outros, sem espa9amento);

3. os pilares, ualapá, foram amarrados com duas vigas, mauanatáca, um pouco


abaixo do topo;

4. foi colocada a estrutura periférica vertical, matárri, troncos finos de madeira do


mesmo nome, amarradas nas vigas mauanatáca;

5. nessa estrutura vertical foram feitas as amarra9oes horizontais, ipúcu, sendo a


primeira logo acima do topo dos atati e aumentando o espa<;amento entre elas a
medida que se aproximavam das mauanatáca. Entre a primeira e a segunda ipúcu
foram colocados vários troncos finos, cobertos com entrecasca pintada com moti-
vos geométricos (semente esta casa foi decorada deste modo);

6. no alto dos pilares, ualapá, foi colocada a viga pá-naputaquá, que quer dizer
"alto da cabe9a da casa" (nas casas de estrutura simplificada nao existem as duas
vigas mauanatáca, somente a viga pá-naputaquá, onde sao entao amarrados os
matárri);
7. foram colocados pá-itseua e pá-itsserreti, respectivamente os dentes e os brincos
da casa (os brincos foram colocados apenas nesta casa);

8. atrás da estrutura- vertical, matárri, foram colocadas varas verticais chamadas


1jatárri, indo até a viga pá-naputaquá;
9. nas varas verticais, ijatárri, foram amarradas outras horizontais, chamadas talala-
cárri, as costelas da casa;
10. foi colocado o contraventamento (4 duplas de pilares em "x") para que a casa
melhor resistisse aos ventas da esta9ao das chuvas (este contraventamento nao
existe nas casas menores);

11. por último, no mes de junho, a palha itishe, o pelo da casa, foi cortada e
amarrada nas talalacárri (segundo os moradores, esse tipo de cobertura é muito
resistente, nao necessitando de manuten9ao nem de substitui9oes).

113
89. Casa Yawalapiti (casa 4 na planta geral da aldeia), 1978 (foto E. Bacellar).

90. Estrutura de casa Yawalapiti: planta baixa (casa 4 na planta geral da aldeia).

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ESCALA GRÁFICA EM METROS

114
CORTE CD
ESCALA GRÁFICA EM METROS

91 . Estrutura de casa Yawalapiti: cortes AB e CD (casa 4 na planta geral da aldeia ) e esquema


do método de coloca9ao dos pilares.

92. Estrutura de casa Yawalapiti (casa 1 na


planta geral da aldeia, de padrao t radicio-
nal com estrutura simplificada), 1978 (foto
E. Bacellar).

115
É a seguinte a organiza9ao do espa90 interno das casas (ver figura 93) : no centro,
junto aos pilares intermediários, entre as duas portas, fica o depósito de alimentos:
jirau com cestas de polvilho, panelas com água e grandes cestos, onde sao arma-
zenados os paes de mandioca, tranc;;ados gradativamente, de baixo para cima, a fjm
de guardá-los em maior quantidade, a medida que vao senda produzidos. Entre o
depósito e a porta de entrada fíca o setor social da casa, onde sao recebidos os
visitantes, sendo as danc;;as aí também realizadas; entre o depósito e a porta dos
fundos fica a cozinha, constituída de urna ou duas pequenas fogueiras, com alguns
apoios a sua volta, sobre os quais repousam um panelao para fins diversos e urna
grande panela rasa, onde é feito o beiju; também na cozinha fica, as vezes, um
pequeno jirau para moquém (peixe defumado); o lixo é jogado no terreno atrás da
casa. Nos semicírculos laterais sao armadas as redes: a da mulher, próxima ao solo,
a do marido, um pouco acima; crian9as de colo dormem coma mae, as outras tem
sua própria rede; a posi9ao ocupada pela rede de um indivíduo, ou pelo conjunto de
redes de cada família nuclear, vai depender da posic;;ao social ocupada por esse
indivíduo ou família dentro do grupo doméstico. Nas casas onde existem adoles-
centes em reclusao, a área destinada a eles é fechada com cobertores, madeira ou
palha. Como o interior das casas é muito escuro, durante a estac;ao seca pequenas
aberturas sao feitas, as vezes, retirando-se um pouco de palha, permitindo a entrada
de luz suficiente para a execuc;;ao de trabalhos, tais como a fiac;;ao de algodao ou a
confecc;;ao de artesanato em geral. A noite a casa é fechada com portas feitas de
madeira e palha e pequenas fogueiras sao acesas sob as redes, ficando o interior
com urna temperatura muito agradável. Do lado de tora, próximo a porta da frente,
e as vezes também a dos fundos, ficam jiraus para a secagem de alimentos, alguns
93. Casa Yawalapiti -- planta baixa com equipamento (casa 4 na planta geral da aldeia).

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1 o 2 · 10

ESCALA GRÁFICA EM METROS

116
com até 1,50 m de altura; a
sua sombra, ou a sombra da casa, as mulheres
trabalham no preparo da mandioca.

Todas as casas da aldeia yawalapiti seg wem o mesmo padrao de orga nizac;;ao es-
pacial. independentemente do fato de terem a forma tradicional, de se apresen-
tarem com diferenciac;;ao entre teto e parede, ou mesmo de terem planta baixa
retangular. Esse padrao é o mesmo observado nas casas de outras aldeias do
Alto-Xingu , mesmo naquelas que sao fortemente influenciadas por modelos exter-
a
nos cult ura xinguana, tais como as casas de taipa de m ao das aldeias kamayurá e
kalapalo (ver figuras 94 e 95).

94 Esquemas das casas da aldeia Yawalapiti em 1978.

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PORTA DOS FUNDOS 95. Padrao de organizai;ao espacial da casa
Yawalapiti .

o Fogueiras para cozinhar

DJJ Depósito de mandioca

~
Preparo e consumo de alimentos
(espa90 preferencialmente femini no )

o Panelas com água

B Redes

1/"71 Visitantes e dan9as


PORTA DO PÁTIO l.LLJ (espa<;o preferencialmente m ascu lino)

117
A HABITACAO KARAJA 2

Os índios Karajá, pescadores que falam língua do tronco Macro-Je, ocupavam as


margens do Rio Araguaia, no Brasil Central, datando de 1712 as primeiras notícias
que deles se tem : neste ano, urna expedic;:ao comandada pelo Cel. AntOnio Pires de
Campos atacou a principal aldeia Karajá, na ilha de Bananal, massacrando seus
habitantes e levando os sobreviventes como escravos, que foram trocados por gado
e cavalos nas fazendas do sertao. Em 1863, Couto de Magalhaes desceu o rio
Araguaia, tendo calculado em 7.000 a 8.000 o número de índios karajás que viviam as
su as margens. Em julho de 1977, quando foi realizada essa pesquisa de campo
no Parque Indígena do Araguaia, na ilha do Bananal (que foi desativado nesse
mesmo ano), esse número tinha diminuído para cerca de 800 indivíduos, em pés-
simas condic;:Oes de nutric;:ao e saúde, vivendo em grande parte como pedintes
e alcoólatras, em conseqüencia da espoliac;:ao que sofrem há mais de dois sécu-
los. Toda a ilha está tomada por posseiros criadores de gado e, por esse mo-
tivo, os karajás foram obrigados a abandonar o relativo nomadismo, que era
essencial para que pudessem manter seu antigo padrao de subsistencia, mas como
nenhuma ajuda efetiva lhes foi dada para que pudessem adquirir novas técnicas de
obtenc;:ao de alimento, sao obrigados a comprá-lo em cidades próximas, tais como
S. Félix do Araguaia e Luciara. Paralelamente, adquiriram novas necessidades,
tornando-se dependentes de diversos artigos industrializados, tais como objetos de
metal, roupas, remédios, sabao, etc. Por esses motivos, viram-se forc;:ados a parti-
cipar da economia regional, vendendo pec;:as de artesanato a intermediários das
cidades próximas, a FUNAI, ou diretamente a turistas, e também aproveitando as
escassas oportunidades de trabalho da regiao, onde sao preteridos em favor de
nao-índios.

No entanto, apesar do esmagamento que sofre há séculos, a cultura Karajá ainda


está viva, mesmo que ao turista desavisado aquele bando de esfarrapados que
o cerca no aeroporto, ou no hotel, durante sua temporada de pesca no Araguaia,
nada tenha em comum como índio genérico, colorido e saudável, típico da imagi-
nac;:ao do habitante dos grandes centros urbanos. O índio karajá muitas vezes se
confunde fisicamente comos regionais nao-índios e sua habitac;:ao, a primeira vista,
também parece ser bastante semelhante a do caboclo das regiOes vizinhas. Na
verdade, esta semelhanc;:a se dá apenas no nivel superficial da forma e da técnica

(2) Algumas ilustrac;:Oes e a maior parte do texto foram publicadas anteriormente na Revista
Projeto n? 23, 1980, sob o título " A aldeia Karajá de Santa Isabel do Morro", com texto e
levantamentos arquitetOnicos de Cristina C. Sá, ilustrados por fotografías de Eduardo Bacellar
Correa e dos arquivos do Museu do Índio - FUNAl - RJ , assim como por desenhos feítos pelos
próprios moradores da aldeia pesquisada.

118
construtiva, enquanto que a organizac;ao espacial mostra claramente as diferen9as
existentes entre esses tipos distintos de habitac;ao.

Enquanto mantiveram seu ciclo anual de subsistencia, de acordo com os padr~es


tradicionais, os karajás nao possuíam aldeia permanente: no inverno, esta9ao das
chuvas e das cheias dorio Araguaia, que vai de outubro a abril, a aldeia era cons-
truída nos barrancos mais altos das margens, acima do nível das enchentes; no
verao, estac;ao seca que vai de maio a setembro, a aldeia se transfería para as praias
do rio, facilitando a pesca e a ~aleta de ovos de tracajá, base da alímenta9ao nesse
período. Em qualquer época, porém, as casas eram alinhadas ao longo da margem,
voltadas para o rio, conservando o mesmo lugar relativo dentro do conjunto, e a
única a ficar afastada era a casa dos homens, chamada Casa de Aruana ou Casa do
Bicho, local de reuniao para os homens e de aprendizado para os rapazes solteiros,
durante o período de cerca de quatro a seis anos que antecedia o casamento (ver
figura 96 ).

Na estac;ao das chuvas, a casa tradicional karajá possuía urna estrutura sólida,
formada por tres arcos, com vigas de amarrac;ao junto ao piso, e tetos-par:edes em
palha, que possibilitavam seu completo fechamento, para prote9ao das chuvas e
dos ventas (ver figuras 97 e 98). Na esta9ao seca, a casa erguida nas praias do río
Araguaia era como que urna simplifica9ao da utilizada na esta9ao das chuvas, um
·simples paravento de palha e madeira (ver figuras 99 e 100). Como o território karajá
se situava em regiao de cerrado, suas casas difícilmente poderiam ser tao grandes e
imponentes como as de alguns grupos indígenas que se utilizam da madeira ex-

96. "Aldeia antiga ", desenho de Karovina (sexo masculino, idade aproximada 60 anos), lápis
cera sobre papel .

A Casa dos homens


A B Danc;;arinos de Aruana
e - Casas
o Moradores
E Canoas
F Rio Araguaia

119
traída de florestas tropicais, que possu1 arvores muito altas, de tronco reto e em
grande quantidade. Além disso, como as casas tradicionais dos karajás eram recons-
truídas a intervalos de tempo relativamente curtos, nao poderiam ser de construc;ao
demorada, nem delas se exigia que fossem muito resistentes, o que pode explicar
o pouco cuidado a elas dispensado, nao só do ponto de vista da manutenc;ao e do
cuidado nos acabamentos ou da arrumac;ao dos utensílios no seu interior, mas
também do ponto de vista formal , que aterece um contraste curioso com as várias
manifestac;oes artísticas, tao valorizadas pela cultura Karajá, tais como pintura cor-
poral, ceramica, plumária e cestaria, confecc;ao de esteiras com desenhos geomé-
tricos, etc., onde a preocupac;ao estética e o gosto pelos detalhes ainda hoje se
fazem presentes.

97. " Casa da estac;ao das ch uvas" , desenho de Wataú (sexo masculino, idade aproximada
60 anos), lápis-cera sobre papel.
98. Capitao Arutana fazendo a maquete de urna casa tradicional da estac;ao das chuvas , 1977
(foto de E. Bacellar, 1977).

120
99. " Casa da estac;:ao seca", desenho de Wataú (sexo masculino, idade aproximada 60 anos),
lápis-cera sobre papel.
100. Casa tradicional Karajá, da esta9ao seca (Foto dos arquivos do Museu do indio, FUNAI,
Rio de Janeiro).

121
A aldeia karajá de Santa Isabel do Morro, situada na ilha do Bananal, Estado de
Goiás, tinha, em julho de 1977, cerca de 300 habitantes, senda constituida por 55
casas, na sua maioria dispostas em duas filas paralelas, tal como um pequeno
povoado do interior brasileiro, com casas alinhadas ao longo de urna rua central.
No entanto, esse tipo de organizac;ao espacial pode ser interpretado como sendo a
duplicac;ao do esquema tradicional de aldeia karajá, e nao a cópia do esquema
neo-brasileiro: essa interpretac;ao é sugerida pelo fato de que, na fileira de casas que
fica entre a rua central e o río, quando existe urna porta única, esta fica voltada para
o rio, que continua a ser o principal marco de referencia (ver figuras 101, 102 e 103).

Na aldeia de Santa Isabel do Morro, além de servir para a circulac;ao, a rua central é
também local de trabalho para as mulheres, campo de futebol para os meninos,
local de descanso onde, a tardinha e a noite, as familias colocam suas esteiras para
conversar, comer ou dormir. Existem caminhos secundários, passando pela porta
das casas da fileira próxima ao rio e pelos fundos das casas da outra fileira, que sao
usados preferencialmente pelos rapazes solteiros. Outros caminhos, saindo da rua
central, levam aos partos e locais de banho e, na direc;ao aposta, a casa de Aruana
ou casa dos homens, interditada as mulheres e crianc;as (ver figura 104).

101. Aldeia Karajé de Santa Isabel do Morro, 19n.

122

102. Vista geral da aldeia Karajá de Santa Isabel do Morro, 1977


(foto E. Bacella r) .

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103. Esquemas de organizac;ao: A = aldeia Karajá, com casas voltadas para o rio; B = povoado
a
neo-brasileiro que, mesmo margem de um rio, tem suas casas voltadas para a rua central.

-------
104. Esquema da utilizac;ao dos caminhos na aldeia Karajá de Santa Isabel do Morro. A = utili-
zados por todos os moradores; B = utilizados apenas pelos homens (inclui rapazes solteiros e
meninos já iniciados); C = utilizados preferencialmente por rapazes solteiros.

123

Apesar da forma da casa ter-se modificado, parece nao ter havido diferenc;as
sensíveis quanto a composic;ao do grupo doméstico: cada casa é habitada por urna
família extensa, formada por várias famílias nucleares. A residencia é do tipo matri-
local e, senda assim, o grupo doméstico é formado geralmente por um casal mais
velho, seus filhos e fil has solteiras, suas fil has casadas, genros e netos. Coma morte
do casal mais velho, as irmas, filhas desse casal, continuam morando na mesma
casa com suas respectivas famílias nucleares e quando a família extensa se torna
muito numerosa, os casais jovens podem construir sua própria ca"sa, próxima
a dos pais ou dos tios da mulher.
Atualmente, as casas karajás possuem planta retangular ou quadrada, senda aparen-
temente bastante semelhantes as casas dos caboclos da regiao. A estrutura é
identica, apresentando um ou dois pilares centrais que suportam o madeiramento
do telhado, ou mais raramente esses pilares sao substituídos por tesouras de telha-
do. O piso é em terra batida, ligeiramente elevado e o telhado é de quatro águas, em
palha de babac;u, que é trocada a cada dois anos, podendo durar o dobro disso
quando sao feítas trocas parciais da palha antiga por nova, ou por materiais
industrializados, nos lugares mais danificados (ver figura 105). As paredes nao tem
func;ao estrutural, sendo simplesmente de vedac;ao, quer na casa do caboclo, quer
nas dos karajás. Os caboclos moram em casas de paredes de tijolos de adobe, de
taipa de mao ou, mais raramente, tijolos cozidos, enquanto que os karajás moram
em casas com paredes de palha, de taipa de mao ou também de adobe, mas estas
últimas nao foram construídas por eles. Somente as casas de adobe e de tijolos
cozidos tem fundac;oes e, nas primeiras, as paredes sao em tijolos cozidos até mais
ou menos 30 cm de altura, para evitar que se desmanchem com as chuvaradas do
inverno. Nao existem instalac;oes sanitárias, nem nas casas de caboclos, nem nas
dos karajás.
105. Crianc;:as Karajá junto a urna das casas da aldeia de Santa
Isabel do Morro, 19n (foto E. Bacellar).

124
Urna diferenc;;a entre casas de karajás e de caboclos é que as primeiras nao tem
janelas que, aliás, sao desnecessárias, pois as paredes sao de palha e a ventilac;;ao,
iluminac;;ao e exaustao de fumac;;a se fazem através de frestas da palha. Nas casas
karajás de taipa de mao, a ausencia de janelas é parcialmente compensada pelo fato
do barro nao cobrir toda a armac;;ao (grades de madeira) da parede, deixando aproxi-
madamente 30 cm .para ventilac;;ao entre o topo da parede e o vigamento do telhado.
Outra diferenc;;a é que as casas dos caboclos apresentam geralmente um puxado
que é utilizado como cozinha e, as vezes, um jirau externo, junto a urna janela, com
ligeiro caimento, sobre o qual é colocada urna bacia com água, que é utilizada como
pia. Algumas casas karajás tema cozinha num pequeno puxado, embora a fogueira
para cozinhar sempre seja no chao, mas nenhuma possui esta pia improvisada. No
entanto, a principal diferenc;;a entre casas de karajás e de caboclos é a divisao interna,
inexistente entre os karajás. Nas casas dos caboclos, existem paredes dividindo a
casa em ambientes com diferentes tipos de utilizac;;ao: quarto, sala e cozinha. Nas
casas karajás o espac;;o é dividido apenas com esteiras, cada urna delas delir:nitando
o espac;o onde urna familia nuclear darme a noite e trabalha ou descansa durante
odia (ver figuras e fotos 106 a 111 ).

~ PROJECAO DA COBERTURA
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ACESSO
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o 2 5
ESCALA GRÁFICA EM M ETROS
ESCALA GRÁFICA EM M ETROS

106. Planta baixa de casa Karajá (casa do 107. Corte esquemático de casa Karajá (casa· do Capitao
Capit!o Arutana) . . Arutana ).

125
108. Vista externa de casa Karajá(casa do Capitao Arutana), 1977 (foto E. Bacellar).

109. Interior de casa Karajá (casa do Capitao Arutana), 1977 (foto E. Bacellar).

126

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PAREDES EM BARRO

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MAQUINA DE COSTURA

ACESSO

o 2

ESCALA GRAFICA EM M ETROS

110. Planta baixa de casa de caboclo situada na ilha do Bananal, próxima a aldeia Karajá de
Santa Isabel do Morro.
111 . Vista externa de casa de caboclo situada na ilha do Bananal, próxima a aldeia Karajá de
Santa Isabel do Morro, 1977 (Foto E. Bacellar) .

.......
- - •

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. .- .-.

127
Em julho de 1977 existia, em Sa nta Isabel do Morro, urna casa de taipa de mao, onde
moravam um homem ka rajá, sua mae também karajá, sua mulher branca e os dois
filhos do casal, sendo .esta casa a única da aldeia onde aparecia urna d ivisao interna
formando o quarto do casal (ver fig uras 112 e 113).

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;; FOG~O.A LENHA

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PROJ~ODO
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JANELA

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PROJ~AO DA ES TRUTURA
DO TELHADO
t
ACESSO

o 2 6

ESCALA GRÁFICA EM METROS

112 . Planta baixa de casa da aldeia Karajá de Santa Isabel do Morro, onde moram cinco pessoas :
mu lher mais velha e seu filho (ambos Karajá ). mulher mais jovem (esposa do filho, nao-
índia) e duas crian<;:as (fil has do casal) .
113 . Esquemas de organiza<;:ao espacial. A = casa Karajá; B = casa de caboclo; C = casa da fi-
gura 112 (homem Karajá casado com mulher nao -índia).
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Fogo (preparo de alimentos)
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128
Existem diversas construc;:oes neo-brasileiras na aldeia karajá de Santa Isabel do
Morro, todas utilizadas de maneira precária, ou mesmo nao utilizadas. Essas cons-
tru9oes nao sao adequadas ªºlocal, pois ignoram as condic;:oes climáticas, os mate-
riais e as técnicas da regiao, oferecendo péssimas condi9oes de conforto ambiental,
sendo de difícil manutenc;:ao e tendo sido seu custo bastante elevado, pois nelas foi
empregado material industrializado, que ali chega após longas viagens de cami-
nhao, balsa, ou mesmo aviao. Contudo, o pior defeito dessas constru9oes é, no seu
projeto, nao terem sido considerados os aspectos sócio-culturais mais fundamentais
da popula9ao local. Como exemplo, podemos citar o hospital, a escala, as casas
para funcionários da FUNAI e as casas de alvenaria construídas pela FUNAI
para os tres capitaes (chefes) da aldeia, Wataú, Arutana e Maluaré . A melhor crítica
que se pode fazer a essas constru9oes é mostrar como seus proprietários as utili-
zam: Wataú nao mora na sua casa, pois já construiu urna outra de palha no final da
aldeia. Maluaré mora na casa de alvenaria, tend o construido apenas urna pequena
cozinha de palha ao lado e sua mulher nos disse que " a casa de palha é muito
perigosa, o cachaceiro entra; na casa de tijol o nós fechamos a porta, eles batem
mas a gente nao abre, só depois que eles vao embora", mas talvez a necessidade de
seguran9a seja mais acentuada na familia de Maluaré devido a urna antiga rixa deste
com um grupo da aldeia. Arutana construiu urna casa de pal ha ao lado da casa de
alvenaria, morando na primeira e utilizando a segunda como depósito e para receber
visitantes nao-índios. Da primeira vez que o visitamos, tomos recebidos no cubículo
que é a sala, indo depois para a casa de palha . Todas as outras vezes em que o visi-
tamos tomos recebidos na casa de palha ou na esteira que a tardinha é colocada na
sombra, em frente acasa de alvenaria . Quando perguntamos onde dormía a familia ,
Arutana respondeu que dormía no terreiro e que de madrugada, quando esfriava,
todos entravam na casa de alvenaria e dormiam juntos no quarto da frente (ver
figuras 114 e ll5).

114. Casas dos cap.it~es da aldeia de Santa Isabel do Morro. Arutana: casa construida pela FUNAI
e casa de palha; Maluaré: casa construida pela FUNAI e cozinha de palha; Wataú : casa
construida pela FUNAI,, que nunca foi utilizada . Nas casas construidas pela FUNAI, 1 -
quartos; 2 = sala; 3 = cozinha e 4 = banheiro.

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ARUTANA MALUARE WATAÚ

5 O 10 30 METROS
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129
115. Vista das casas dos capit~es da aldeia de Santa Isabel do Morro. Da esquerda para a direita:
casa de Arutana, casa de palha também pertencente a Arutana, casa de Maluaré (com
cozinha de palha ao lado, que n~o é visível na fotografia) e casa de Wataú, 19n.
(foto E. Bacellar).

130
A HABITACAO XAVANTE 3

As primeiras notícias sobre os xavantes indicam que, no século XVIII, estes habi-
tavam o norte de Goiás, tendo sido parcialmente submetidos, durante algumas
décadas, ao regime de aldeamentos. Na segunda metade do século XIX, porém,
deslocaram-se para Mato Grosso, estabelecendo-se na regiao da Serra do Ronca-
dor e impedindo que brancos e índios aí penetrassem. No início do século XX pas-
saram a atacar os grupos indígenas vizinhos, Karajá e Bororo, tornando-se muito
temidos em toda a regiao entre o río das Mortes e o Araguaia. Contatos amisto-
sos foram tentados a partir de 1934, mas foi apenas em 1946 que os xavantes
aceitaram trocar presentes e apenas em 1953 urna comunidade consentiu em se
estabelecer perto de brancos. Como as comunidades, isto é, os grupos de mora-
dores de urna mesma aldeia xavante, eram políticamente independentes, era neces-
sário estabelecer contato com cada urna delas separadamente, o que levou vários
anos para se concretizar.

Tal como acontece com outros grupos indígenas da família lingüística Je (do tronco
Macro-Je), o Xavante se caracterizava tradicionalmente por um alto nível de com-
plexidade sócio-cultural, pela grande mobilidade no espac;o e por urna tecnología
muito simples. O ritmo da vida xavante tradicional obedecía a um ciclo anual e,
tendo urna aldeia-base como ponto de referen cia , grandes migrac;oes eram reali-
zadas, tanto na estac;ao seca quanto na das c~uvas . Era a coleta, atividade fem i-
nina, que constituía a fonte primária de obtenc;ao de alimentos. A cac;a era alta-
mente valorizada como a atividade masculina por excelencia, apesar da carne
geralmente nao ser consumida todos os días, havendo cac;adas individuais ou em
pequenos grupos e também grandes cac;adas coletivas que exigiam um planeja-
mento mínucioso e que podiam durar várias semanas. A pesca , de pouca impor-
tancia, era praticada apenas ocasionalmente. A agricultura era pouco desenvolvida,
exigindo ~lgumas semanas de trabalho distribuídas em tres períodos distintos do
ano, fican.do as roc;as sempre situadas em áreas de floresta, de solo mais fértil que o
.d o cerrado, sendo o terreno preparado para o plantio pelo método de queimada e
utilizado por intervalos de no máximo cinco a seis anos. Fora dos períodos de
trabalho agrícola , os habitantes ficavam na aldeia, ou partiam em migrac;oes,
permanecendo em acampamentos temporários, cujo tempo de ocupac;ao variava de
um até vários dias e que geralmente ficavam situados a cerca de duas horas de
viagem a pé, uns dos outros (ver figura 116) . É possível que essa mobilidade no

(3) Para urna análise detalhada da habitac;:~o xavante, ver SÁ, Cristina . Aldeia de S. Marcos:
transforma96es na habita9ao de uma comunidade xavante. Universidade de S. Paulo, Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo. Dissertac;:ao apresentada para obtenc;;ao do grau de Mestre em His-
tória da Arquitetura . S. Paulo, junho de 1982. Mimeo.

131
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. , .,. 116. Mobilidade no espac;o do grupo indígena Xavante .

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Ro9as

Acampamentos

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Aldeia Base

Pequenos grupos (ca9a e coleta)


Grande grupo (ca9ada comunal)
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espa90 estivesse relacionada a manutenc;ao da estrutura sócio-cultural .e nao apenas


as necessidades imediatas de subsistencia, que poderia provavelmente ser assegu-
rada sem que fosse necessário atingir um grau tao acentuado de nomadismo.

Tradicionalmente, a aldeia xavante ficava no cerrado, perto de um río ou, sempre


que possível na confluencia de um rio maior com um menor e nao muito distante das
áreas de floresta, onde se faziam as plantac;oes. Essa aldeia, que tinha a forma de
um arco voltado para o rio maior, padrao seguido também nos acampamentos
temporários, é descrita da seguinte maneira por Giaccaria e Heide ( t972, p. 42 e 43):

"No centro da a/deia, se encontra o Wara, o lugar no qua/ se desenvolve boa parte
da vida social dos Xavantes: aí os homens tomam as decisoes mais importantes,
e nao há rito ou festa que nao contemplem o Wara. Sao admitidos somente os
homens, enquanto os Ritey'wa (rapazes solteiros, porém já iniciados) se reúnem em
un1 espar;o periférico, e as mulheres e os Wapte (meninos ou rapazes nao iniciados)
sao excluídos completamente. . . . . . . . . . A distancia entre uma cabana e outra é de
alguns metros, enquanto, entre a Ho - a casa dos Wapte - e a cabana mais
próxima, há uma distancia dupla ou tripla em relar;ao normal. A Ho se acha a
colocada na extremidade esquerda ou direita da ferradura de cava/o, de acordo com
a classe de idade de seus habitantes. Toda a/dela conta de vinte a trinta cabanas,
o que significa que a popular;ao total importa em cerca de 150-250 pessoas. Além
deste limite máximo, se cría, na a/dela, uma situar;ao de desequilíbrio, que traz o
fracionamento do grupo e o aparecimento de uma a/dela nova. Característica é a
rede dos caminhos na a/dela: caminhos internos ligam uma cabana com outra,
todas as cabanas com o Wara; dois caminhos periféricos, um interno e outro ex-
terno as cabanas, sao percorridos geralmente, o prime(ro noite e o segundo a
durante o dia, enquanto os caminhos que levam ao centro da aldeia sao radia/mente
dispostos. O caminho principal que leva ao Pañou sai do Wara, e é aquele usual-
mente percorrido pelas mulheres e homens quando vao banhar-se. É no ria que as
mu/heres buscam água, se nao existe na proximidade da aldeia um curso d'água
menor ou uma nascente. Enfim, um caminho liga a Ho como Pañou, habitualmente
seguindo o trar;ado mais breve; é percorrido pelos Wapte quando vao tomar o

132

banho. Os Ritey'wa, para banhar-se, devem escolher um lugar particularmente


afastado, que pode estar no curso d'água secundário, desde que seja protegido por
uma moita espessa. Na proximidade da água - que pode ser tanto a do curso maior
quanto a do curso menor - os homens vao pintar-se para os vários ritos, e, uma vez
que em toda cerimónia se dividem em dois grupos, existem dois espa9os, com os
relativos caminhos que os ligam a aldeia. Finalmente, um caminho leva a moita de
buriti, onde se desenvolve a corrida do buriti, enquanto inumeráveis pistas ligam a
a/d(]ia comas ro9as" (ver figura 117).

Cuanto a casa Xavante, é descrita da seguinte maneira por Giaccaria e Heide (1972,
p. 43 e 44):

"A casa Xavante é de planta circular, como diametro de cerca de 5-6 metros, forma
que recorda a de uma cúpula. A única entrada, um tanto baixa, está voltada para o
centro da aldeia. Um breve corredor conduz para dentro. No centro da cabana, se
encontra o fogo; comum a todas as famílias que a habitam, geralmente em número
de duas ou tres, e até mais, todas aparentadas entre si. A posse da cabana - posse
tomada em sentido lato, porque na sociedade Xavante nao se encontra.m os nossos
a
conceitos de posse e de propriedade - é atribuída mu/her mais ve/ha que seja mae
de algumas ou eventualmente de todas as jovens que habitam a cabana com os seus
maridos. A residencia é, pois, matriloca/".

117. Aldeia tradicional xavante~ a aldeia de Parawadzáradze em 1953 (apud B. GIACCARIA


e A. NEIDE, 1972: 41 ).

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133
A área destinada a cada família nuclear era delimitada por esteiras colocadas sobre
folhas de palmeira, nao havendo paredes divisórias que isolassem essas famílias
urnas das outras, exceto no caso de um casal jovem, com ou sem filhos, que tinha
seu próprio compartimento separado durante alguns anos, até a classe de idade do
homem ter participado de determinados rituais referentes a iniciac;:ao de urna classe
de idade mais nova. Perta da área destinada a cada família eram feitas pequenas
aberturas na palha, próximas do chao, para que a luz ali penetrasse e também para
que pudesse ser .observada a movimentac;:ao do lado de tora (ver figura 118).

118. Esquema de casa tradicional xavante.

FAMILIA NUCLEAR
(CASAL J OVEMJ

FAMILIA NUCLEAR

PEOUENA ABERTURA ;f
NA PALHA

ENTRAOA

A comunidade de cada aldeia se dividia em dois ou tres grupos para as migrac;:oes,


que partiam .em direc;:oes diferentes, acampando ao longo de todo o trajeto. Esses
acampamentos temporários também eram em forma de arco, com .o wara ao
centro, e as casas, embora menores e construídas as pressas, tinham a mesma
forma de cúpula das casas da aldeia, mantendo a mesma posic;:ao relativa no arco .

Em 1956, um grupo de xavantes acampou em terras ocupadas por um fazendeiro,


senda levado dali para a Missao de Meruri por missionários salesianos, que os insta-
laram junto aos índios bororo. Em 1958 esses mesmos salesianos fundaram a Missao
de S. Marces, para lá.deslocando os xavantes acolhidos em Meruri, que vieram a se
constituir como o núcleo inicial de moradores da aldeia de S. Marcos, ao qual se
juntaram posteriormente vários outros xavantes, vindos de outras aldeias. Em ja-
neiro de 1981, S. Marcos era a maior aldeia xavante, tendo pouco mais de 600 habi-
tantes e superando em muito o tamanho da aldeia tradicional xavante, apesar
de já se ter fracionado em diferentes ocasioes, dando origem a quatro outras
pequenas aldeias cuja número de habitantes variava de poucas dezenas a menos
de duas centenas. Atualmente, os habitantes de S. Marcos tem na agricul-
tura a sua principal fonte de subsistencia, tendo-se tornado produtores de arroz e
estando dependentes de produtos industrializados tais como óleo, ac;:úcar, sal,
farinha de trigo, etc., que compram na Missao Salesiana ou em cidades próximas,

134
A área destinada a cada família nuclear era delimitada por esteiras colocadas sobre
folhas de palmeira, nao havendo paredes divisórias que isolassem essas famílias
urnas das outras, exceto no caso de um casal jovem, com ou sem filhos, que tinha
seu próprio compartimento separado durante alguns anos, até a classe de idade do
homem ter participado de determinados rituais referentes a inicia<;ao de urna classe
de idade mais nova. Perto da área destinada a cada família eram feitas pequenas
aberturas na palha, próximas do chao, para que a luz ali penetrasse e também para
que pudesse ser observada a movimentac;ao do lado de tora {ver figura 118).

118. Esquema de casa tradicional xavante.

FAMILIA NUCLEAR
{CASAL JOVEMl

FAMILIA NUCLEAR

PEOUENA ABERTURA
NAPALHA
..J

ENTRADA

A comunidade de cada aldeia se dividía em dois ou tres grupos para as migrac;oes,


que partiam.em direc;oes diferentes, acampando ao longo de todo o trajeto. Esses
acampamentos temporários também eram em forma de arco, com .o wara ao
centro, e as casas, embora menores e construídas as pressas, tinham a mesma
forma de cúpula das casas da aldeia, mantendo a mesma posic;ao relativa no arco.

Em 1956, um grupo de xavantes acampou em terras ocupadas por um fazendeiro,


sendo levado dali para a Missao de Meruri por missionários salesianos, que os insta-
laram junto aos índios bororo. Em 1958 esses mesmos salesianos fundaram a Missao
de S. Marc0s, para lá .deslocando os xavantes acolhidos em Meruri, que vieram a se
constituir como o núcleo inicial de moradores da aldeia de S. Marcos, ao qual se
juntaram posteriormente vários outros xavantes, vindos de outras aldeias. Em ja-
neiro de 1981, S. Marcos era a maior aldeia xavante, tendo pouco mais de 600 habi-
tantes e superando em muito o tamanho da aldeia tradicional xavante, apesar
de já se ter fracionado em diferentes ocasioes, dando origem a quatro outras
pequenas aldeias cujo número de habitantes variava de poucas dezenas a menos
de duas centenas. Atualmente, os habitantes de S. Marcos tem na agricul-
tura a sua principal fonte de subsistencia, tendo-se tornado produtores de arroz e
estando dependentes de produtos industrializados tais como óleo, ac;úcar, sal,
farinha de trigo, etc., que compram na Missao Salesiana ou em cidades próximas,

134
No ent anto, neste círculo, os xavantes distinguem duas casas, chamadas am'ra
e am 'ra amo, respectivamente a primeira e a última casa, ou seja, os extremos
do arco e, no caso, de um arco que nao mais está voltado para o rio, mas
sim para a Missao, ou talvez para a hó , a casa dos Wapte (meninos e rapazes
nao iniciados) que, desde o início, os missionários retiraram do arco da aldeia
e fizeram construir ao lado da Missao, fazendo com que a mesma passasse a
funcionar como colégio interno, onde os adolescentes, abrigados pela tradi9ao ao
afastamento do convívio social, mais facilmente seriam catequizados. No entanto,
em determinadas ocasioes, tais como a corrida do Noni, que faz parte do ciclo de
cerimonias de iniciac;ao masculina, continua prevalecendo a orienta9ao tradicional,
sendo a corrida feita numa linha reta perpendicular ao rio, que antigamente corres-
ponderia ao eixo de simetria do arco da aldeia (ver figura 120) . No pátio da aldeia,
onde agora existe um campo de futebol e que, em determinadas épocas, fica
parcialmente ocupado por plantac;oes, ainda se realizam as danc;as e, no lugar
específico denominado Wara, os homens continuam se reunindo para discutir ou
simplesmente jogar cartas. Embora as mulheres participem de danc;as no pátio,
podendo mesmo assistir a algumas reunioes, e as crian9as ali brinquem durante o
dia, o pátio continua sendo um espac;o essencialmente masculino. A rua da aldeia é
utilizada por todos, mas os Ritey'wa, que mesmo morando atualmente tora da
aldeia podem nela permanecer, o que nao acontece com os Wapté , utilizam prefe-
rencialmente o caminho que passa por trás das casas (ver figuras 121 e 122).

RIACHO

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EIXO DA CORRIDA DO NONI E DA LUTA DE 01'0 ?f \
(CAMIN HO PARA O RIACHO) // \

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EIXO DAS CASAS E DA CORRIDA DE TORAS DE
BURITI (CAM INHO DE CHEGADA A ALDEIA) \ • ea•
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120. Esquema da aldeia xavante de S. Marcos, com seus eixos.

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ALDEIA XAVANTE TRADICIONAL ALDEIA XAVANTE DE S. MARCOS


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121 . Esquemas comparativos de aldeia xavante tradicional e da aldeia de S . Marcos.

122. Áreas e caminhos masculinos e femininos na aldeia xavante de S. Marcos.

137
Em janeiro de 1981, a aldeia de S. Marcos tinha 53 casas e 29 outras constru-
c;oes (depósitos, galinheiros, escala bilíngüe, casa de hóspedes), distribuídas num
círculo com aproximadamente 250 metros de diametro, mas nem todas essas
construc;oes estavam situadas no perímetro da aldeia, havendo trechos em que
se formavam aglomerados e outros com grandes espac;amentos, senda os depó-
sitos e galinheiros geralmente construídos atrás das casas. Havia ainda mais 3 casas,
situadas fara da aldeia. O número de moradores de cada casa variava de 4 a 30,
entre adultos e crianc;as, distribuídos em 1 a 5 famílias nucleares. O tamanho das casas
variava de 35 m 2 até cerca de 100 m 2 , tendo a maioria delas em torno de 50 m 2 •
O espac;amento entre duas casas nunca era de menos de 6 metros, senda normal-
mente o dobro disso, ou mais.

Em 1979 a inda existiam na aldeia de S. Marcos algumas casas de padrao tradicional


xavante, mas, em janeiro de 1981, excetuando-se duas que eram retangulares,
todas as outras já seguiam o novo modelo introduzido pelos missionários salesianos,
onde a palha e a madeira continuavam senda utilizadas, porém com urna técnica
construtiva diferente. Essas novas casas, de planta baixa poligonal, teto e paredes
diferenciados e apresentando geralmente duas portas, sao de construc;ao demo-
rada, porém muito mais resistentes e somente nos galinheiros e depósitos, feítos as
pressas ou destinados a urna curta utilizac;ao, é que podem ser observadas as técni-
cas construtivas tradicionais. No Natal de 1980, um grande presépio foi construído
entre a Missao e a aldeia, a maneira de urna casa tradicional, porém com urna
grande abertura permitindo a visao do seu interior, utilizando a cruz ali existente
como pilar central (ver figuras 123 e 124).

A composic;ao dos grupos domésticos variou um pouco, mas embora muitos deles
tenham-se fracionado, geralmente ainda prevalece a regra de residencia matri-
local após o casamento. Cada família nuclear tem sua área delimitada dentro da
casa, algumas apenas com esteiras ou cauros de boi, outras com um jirau baixo,
sobre o qual as esteiras sao colocadas, senda comum atualmente o uso de redes,
muitas vezes armadas acima das esteiras; os casais jovens tem sua área cercada por
divisórias de madeira e palha, tal como nas casas tradicionais. Divisórias seme-
lhantes sao colocadas dos dais lados das portas, formando um corredor de entrada,
pelo menos na porta que é considerada principal, isto é, a porta que dá para o pátio
da aldeia. A fogueira utilizada para cozinhar fica geralmente situada entre o pilar
central e a porta dos fundos e, como em diversos casos os alimentos sao enterrados
sob as brasas, urna pequena depressao acaba se formando no local da fogueira.
Tanto as sementes quanto os alimentos estacados sao guardados dentro das casas
na estac;ao das chuvas, em jiraus baixos, ou em cestas penduradas fora do alcance
dos animais domésticos; na estac;ao seca, no entanto, eles sao, as vezes, deixados
do lado de fora, perto das casas. Em quase todas elas existem máquinas de costura,
as vezes urna para cada família nuclear; em todas existem malas, as vezes várias
delas, utilizadas para guardar os objetos mais valiosos. Ouase todas as casas
possuem duas portas, medida de seguranc;a para fuga em caso de incendio, adotada

138
123. Casas da aldeia de S. Marcos, janeiro de 1981.
124. Presépio construído na aldeia de S. Marcos, ti maneira de casa tradicional xavante, utili-
zando a cruz já existente como pilar central, dezembro de 1980 .

139
por indicac;ao dos missionários, depois de várias casas terem sido destruídas pelo
fogo há alguns anos atrás. Muitas apresentam urna ou mais janelas. O acúmulo
de bens, as modificac;Oes na forma e a tendencia crescente ao fracionamento do
grupo doméstico, porém, nao impedem que seja mantido o padrao tradicional de
organiza<;ao do espa<;o (ver figura 125).

Em janeiro de 1981 , a casa de hóspedes do chefe da aldeia e duas das casas de


habitac;ao permanente tinham planta retangular. Apenas a casa de hóspedes, utili-
zada esporadicamente por visitantes nao-índios, tinha divisOes internas, mas as
outras seguiam a mesma organiza<;ao do espac;o das casas poligonais, ou seja,
o padrao tradicional de organizac;ao (ver figuras 126, 127 e 128).

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ESCALA GRAFICA EM METROS

125. Casa de Aniceto Tsudzawéré Tsahobo, chefe da aldeia de S. Marcos, em janeiro de 1981 .

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PORTA PARA RUA E


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ESCALA GRÁFICA EM METROS

126. Casa de planta baixa retangular, na aldeia de S . rv:arcos, janeiro de 1981.

141
127. Casa de hóspedes da aldeia de S. Marcos, janeiro de 1981.

MÁQUINA DE ESCREVER ~
PORTA DOS FUNDOS

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PORTA PARA RUA E PATIO DA ALDEIA

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ESCALA GRÁFICA EM M ETROS

128. Esquemas de org an iza<;~o do espac;:o de casas da aldeia de S. Marcos e de casa tradicional
xavante .
CASA XAVANTE TRADICIONAL CASAS DA ALDEIA XAVANTE DE S. MARCOS

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FOGUEIRA COMUM A TODO O GRUPO DOMÉSTICO

142

L
OBSERVACOES FINAIS

Nessa análise da habitac;ao de tres grupos indígenas brasileiros - Yawalapiti, Karajá


e Xavante - e das modificac;ees nela acorridas em conseqüencia da mudanc;a
cultural, incluindo-se aí também a influencia de modelos de habitacao da sociedade
'
nacional envolvente, a organizac;ao do espac;o se evidencia como muito mais resis-
tente a mudanc;a do que a forma ou a tecnología construtiva, quer se trate do
espac;o da unidade de habitac;ao ou do conjunto de habitac;ees, isto é, de casa ou da
aldeia. Os tres grupos indígenas aqui enfocados sao culturalmente distintos, tendo
tradicionalmente diferentes graus de mobilidade espacial e vivenciando atualmente
diferentes situac;ees de contato com a sociedade envolvente, mas a habitac;ao de
todos os tres reage de maneira identica a mudanc;a ~ultural: as modificac;:ees que
primeiro aparecem , e que sao as mais facilmente perceptíveis, sao as da forma e da
tecnología construtiva, mantendo-se a organizac;ao do espac;o dentro dos padrees
tradicionais por muito mais tempo, seja de modo completo, seja a maneira de um
compromisso entre os padrees tradicionais e as inovac;ees trazidas pelo contato
com a sociedade envolvente.

Essa resistencia a mudanc;a indica que a organizac;ao do espac;:o é mais importante


para esses tres grupos indígenas do que a forma e a tecnología construtiva, senda
muito provável que essa importancia venha do fato de reproduzir simbolicamente
toda urna visao do mundo, que é diferente para cada grupo, vindo a se constituir
como tao necessária a manutenc;ao de um todo cultural coerente que nao pode ser
descartada sem afetá-lo. Além disso, parece bastante provável que a organizac;ao
do espac;;o seja nao somente reproduc;:ao simbólica, mas também um agente ativo,
capaz de agir sobre cada um desses todos culturais, modificando-o ou revitali-
zando-o, atuando como referencia de comportamento e constituindo-se em sistema
simbólico nao-verbal de informac;ao.

Finalizando, é possível supor que a organizac;ao do espac;:o seja tanto urna repro-
duc;ao simbólica quanto um agente ativo, nos moldes aqui especificados, nao
apenas para os tres grupos indígenas analisados, mas para as sociedades de pequena
escala de um modo geral, ou talvez até mesmo para os diferentes grupos sociais
dentro da nossa própria sociedade. Tal suposic;:ao, no entanto, para ser compro-
vada, necessita ainda de muitos e minuciosos estudos nesse campo, pois os tra-
balhos já existentes sao insuficientes para urna generalizac;:ao.

143
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145
A CASA WAIAPI

Dominique Gallois

147
129. Aldeia do Nipuku, 1980·

148
Entre as populac;oes indígenas da Guiana Brasileira, os Waiapi constituem-se como
o único grupo de língua tupi, numa regiao onde predominam pavos de língua caribe
como os Wayana, os Aparai e os Tirió. Todos estes grupos vivem nos confins do
Brasil com a Guiana Francesa e o Suriname, com assentamentos em ambos os
lados das fronteiras.

No Brasil, os Waiapi contam com urna populac;ao de aproximadamente 250 indi-


víduos, senda que outra parte do grupo vive nas margens do rio Oiapoque, na
Guiana Francesa, totalizando 350 pessoas. Os Waiapi do Brasil, chamados "Waiapi-
puku" pelos índios do Oiapoque, apresentam urna cultura diferenciada do ponto de
vista da língua e da cultura material; conservaram mais que os outros sua orga-
nizac;ao espacial dispersa. De fato, apesar de sua reduzida populac;ao, dividem-se
em pequenas unidades políticas independentes e economicamente auto-suficientes:
os grupos locais.

130. Casa palafítica instalada no centro de urna roca. Mariry, 1980.

149
TIPOS DE AGLOMERACOES DOS WAIAPI

As habitac;:Oes dos índios Waiapi variam, conforme os assentamentos sejam tempo-


rários ou definitivos; o tipo de explorac;:ao do meio efetuado pelo grupo caracte-
riza -se por urna grande mobilidade dentro do território tribal. Por esta razao, o grupo
local nao é representado espacialmente por urna aldeia, mas por urna área onde
existem vários assentamentos alternativa ou sucessivamente ocupados pelos mem-
bros do grupo.

A existencia de urna aldeia central nao é necessária para que se defina um grupo
local , podendo este existir, mesmo se seus membros vivam dispersos em núcleos·
próximos - geralmente urna série de habitac;:Oes nas roc;:as - conservando, entre-
tanto, lac;:os suficientemente estreitos, para que se concretize a cooperac;:ao a nível
de certas atividades econOmicas e cerimoniais.

A mobilidade das aglomerac;:Oes dos Waiapi acompanha o ciclo agrícola. Na con-


cepc;:ao ideal de suas habitac;:Oes, consideram primordial urna curta distancia entre
casa de residencia e roc;:ado; as casas, e portanto as aldeias, seguem as roc;as.

A cada ano se abre um novo roc;ado, mesmo tendo urna roc;a de mandioca,
sua principal produc;:ao agrícola, um ciclo de dois anos. Em média, cada 5 ou 6 anos
as terras localizadas nas proximidades de urna aglomerac;ao ~o esgotadas. Ocorre,
entao, um deslocamento para nova regiao, onde novos assentamentos ~o for-
mados.

Nao existe época do ano prefixada para a construc;ao de novas habitac;Oes; todavía,
sucede geralmente a época de abertura das roc;as, quando a mudanc;a do local
agrícola implica num afastamento do antigo sítio de habitac;ao. Por esta razao,
confundem-se os critérios de escolha do local de residencia - ou melhor, o local
para a construc;:ao de casas - comos critérios de escolha de um sítio para agric~l­
tura . Destes critérios, o principal é que a área a ser aberta para a nova roc;a situe-se
numa zona de floresta primária; além disto, influi a proximidade de rio ou igarapé de
fácil acesso, com portos e pontos de banho ideais. Os Waiapi também examinam
com cuidado o tipo de solo, evitam áreas infestadas de pragas ou reconhecidas
como zonas de doenc;:as, ou ainda lugares assolados pelos espíritos moradores de
certas árvores, e com acidentes geográficos. Finalmente, escolhem a área em
func;:ao da existencia de matéria-prima para a construc;ao das casas, como a palha
preta e a palmeira ubim, que no momento da instalac;ao da aldeia serao utilizadas em
grande quantidade para a cobertura das casas.

A vida útil de urna casa, decorrente da durac;ao de seus materiais, varia entre 5 a 6
anos (existem entretanto diferenc;as segundo o tipo de palha utilizada para a cober-
tura), ciclo que corresponde praticamente ao da mudanc;a do sítio agrícola. De

150
qualquer modo, estando a casa deteriorada, dificilmente é consertada. Os índios
preferem construir urna nova casa; neste caso, adiantam urna mudanc;a de local já
prevista para um outro ano, instalando-se no lugar escolhido para a roc;a nova.

Além dos movimentos periódicos, correspondendo t:t mudanc;a de roc;a, outros


acontecimentos podem influir no abandono de urna habitac;ao, implicando na cons-
truc;ao de novas casas. É o caso de falecimentos, urna vez que a morte de. um
indivíduo, seja crianc;a ou adulto, afasta obrigatoriamente os habitantes da casa do
morto, ou de toda a aglomerac;ao, quando se trata de um homem importante do
grupo. Estes afastamentos sao atualmente provisórios,.. enquanto que antigamente
implicavam num abandono definitivo do local. No passado, os defuntos eram enter-
rados soba própria casa; hoje, as sepulturas sao afastadas da habitac;ao no limite do
pátio da aldeia e da mata. Em certos casos, tensoes decorrentes da marte de um
indivíduo, comq acusac;oes de pajelanc;a, causam o abandono da aglomerac;ao,
o grupo desmembrando-se e separando-se em novas unidades locais.

Os processos de cisao dos grupos locais sao ainda freqüentes entre os Waiapi do·
Brasil, apesar do abalo demográfico que limita a expansao por ramificac;ao dos
grupos. Estas cisoes sao perceptíveis pelo grande número qe agrupamentos exis-
tentes atualmente na regiao do Amapari, e especialmente na zona do igarapé Onc;a .
Destas aglomerac;oes poucas tem chance de tornarem-se verdadeiramente o centro
de um grupo local numeroso e estável na composic;ao.de sua populac;ao; a formac;ao
de um novo grupo local depende essencialmente da forc;a política do líder para
reunir - para convivencia durável - um número suficiente de parentes.

Finalmente, mudanc;as recentes e alheias aos padrees de organizac;ao dos Waiapi


influíram na organizac;ao espacial do grupo; decorrem da invasao de certas porc;oes
do território por garimpeiros e da política de assistencia colocada em prática pela
FUNAI, esta última resultando na fixac;ao e na concentrac;ao da populac;ao em
determinadas áreas, no detrimento de outras regioes que sao progressivamente
desativadas.
Existem tres tipos de assentamentos entre os Waiapi do Amapari, que formariam
praticamente um "continuum" de situac;oes ou fases intermediárias no ciclo de
mobilidade tradicional das aglomerac;oes do grupo:

1. a aldeia tradicional, correspondendo a um grupo local estável, como era o caso,


até recentemente, do assentamento dorio Nipuku (fig. 131 );

2. habitac;oes de roc;a, dispersas num raio de 3 a 5 km, correspondendo a um único


grupo local ou a um grupo local em fase de cisao;

3. habitac;oes reunidas artificialmente na proximidade de um centro de atrac;ao -


no caso, o P. l. Amapari - onde se misturam vários grupos loca is representados por
famílias que escolheram, por razoes pessoais, conviver mais perta do Pasto da
FUNAI, mas que se relacionam com outras aglomerac;oes, onde eventualmente
possuem outra casa e um roc;ado (fig. 132).

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131. Aldeia do N .ipu ku , 1980.

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C Campo de Pouso (800 m ).
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132 . A glomerac;:oes na regi~o de lgarapé On9a, 1981.

153

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A CASA, DOMINIO FAMILIAR

Qualquer que seja o tipo de assentamento, as casas dos Waiapi, oka, correspondem
. a unidade familiar e, na maioria dos casos, sao ocupadas por apenas urna família
nuclear, conforme o padrao de residencia tradicional; a tradic;ao oral do grupo nao
menciona casas comunitáriás do tipo " maloca".

Em cada casa vivem de 5 a 7 pessoas. Este número pode ser aumentado com o
casamento das filhas, pois observando a regra de residencia ,..uxorilocal, o jovem
casal deve habitar por um tempo a casa dos pais da esposa; entretanto, forma nova
unidade e por isto mantém um fogo separado. Após o nascimento do primeiro filho
- e em certos casos, ·antes - o casal passa a habitar urna casa diretamente vizinha
a dos país da esposa. Entre as· duas se observa estreita colaborac;ao nas atividades
diárias, tanto para as femininas - como a preparac;ao dos alimentos - como
masculin~s - na construc;ao de casas, abertura e trabalhos da roc;a. Esta colabo-
rac;ao diminui com o desenvolvimento da nova unidade doméstica, após o nasci-
mento dos filhos, quando o casal pode se instalar - mas raramente o faz - numa
aglomerac;ao distante.

A disposic;ao das casas na aldeia corresponde a estes lac;os de parentesco, ainda


mais visíveis quando se trata , como na regiao do igarapé Onc;a, de habitac;oes
dispersas na roc;a, onde praticamente cada assentamento corresponde a urna famí-
lia extensa matrilocal.

Contudo, a casa nao representa a totalidade do quadro de vida familiar, incluindo-


se, além desta, o domínio particular de cada família: o tapiri, ou casa de cozinha, um
caminho de acesso a roc;a e eventualmente um ponto de banho e de água. Em
certas aldeias é possível distinguir vários pátios correspondendo a grupos de paren ~
tesco, embora a prac;a seja considerada de domínio público (fig. 133). Etn oposic;ao
aos pátios individuais situados em frente de cada casa, é na prac;a central, ou no
pátio principal da · aldeia, que se realizam todas as atividades comunitárias, nao
semente rituais, como as danc;as e os cantos que acompanham as festas de caxiri,
como também as reunioes diárias dos homens, a noite, ou durante odia, enquanto
confeccionam artesanato. No pátio também sao tomadas as refeic;oes comunitárias,
a época das grandes cac;adas e pescarias.

133. Casa tipo tapiri, instalada numa aldeia; homem trabalhando o aruma perto de sua habitayao.
Caitetu, 1981.

154
TIPOS DE CASAS DOS WAIAPI

Da mesma forma que os aldeamentos Waiapi apresentam grandes diferenc;as entre


si, a configurac;ao de suas habitac;oes oferece a mesma impressao de variedade e
ausencia de um padrao característico. Na realidade, existem dois tipos básicos de
casas, cada urna com suas variantes no tamanho e na cobertura. Na prática nao
existem duas casas identicas, cada família adaptando para suas necessidades o
modelo básico da oka tradicional.

A construc;ao mais simples, geralmente para fins de ocupac;ao provisória, é o tapiri,


cujas proporc;oes variam com o uso. Medem de 3 a 5 metros de comprimento por
1,5 a 3 metros de largura. O tapiri é construído durante as viagens na mata, para
abrigar urna família no tempo da pausada, com espac;o justo, suficiente para cobrir
as redes. Serve também de abrigo para urna família em visita a urna aldeia distante,
onde permanece algumas semanas, ou mesmo alguns meses. O tapín" também é
construído para acolher urna mae e o filho recém-nascido, durante o mes de res-
guardo após o parto, quando ficam afastados da aldeia num abrigo construído para
este fim, a bei_ra da roc;a. Finalmente, as casas deste tipo sao usadas como casas de
cozinha, okawu, construídas perta das habitac;oes permanentes, servindo a deter-
minados grupos familiais.

155
O segundo tipo de habita9ao é a casa permanente, de propor9e>es maiores e acaba-
mento mais complexo. Neste tipo se distinguem a casa térrea (ywy'o) e a casa
palafítica (iura), que se diferenciam unicamente pela existencia, no segundo mo-
delo, de um estrado colocado sobre estacas a 1,5 ou 2 metros do chao, ao qual se
acede por urna escada de tronco entalhado (iura propriamente dito) (fig. 135 e 136).

A estrutura básica da casa térrea e da palafítica, assim como a forma da cobertura,


sao semelhantes. Seguem um padrao tradicional que se define pelas seguintes
características:

casa de base retangular, de cobertura arqueada sem distin9ao de paredes;

extremidades diferenciadas:

na frente, abertura protegida pelo avan90 da cober-
tura e extremidade posterior arredonda.

134. Os tres tipos de casa Wail!ipi: no centro a casa palafftica, a esquerda urna casa térrea,
a direita um tapiri provisório. Caitetu, 1980.

156
135. Casa palafítica. Casa térrea.

136 Estrutura de urna casa palafítjca

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157
137. Casa palafítica com cobertura do tipo tradicional; vista da frente da casa. Molokopote, 1980.

138. Vista interna da cobertura de urna casa, na parte posterior arredondada. Mitiko, 1977.

158
139. Detalhe de urna casa palafítica: a escada iura. Castanhal, 1981 .

159
160
Conforme fontes antigas e depoimentos dos índios, o modelo tradicional incluía
sempre o estrado e a ·escada iura; entretanto, a ado<;ao pelos Waiapi da casa térrea,
na qual sao conservadas as demais características no acabamento da cobertura, já é
antiga. Atualmente os critérios utilizados para definir urna casa bem acabada se
concentram na forma e material da cobertura, que deve ser ogival, de ubim, e com
acabamento semi-circular numa das pontas.

As varia<;CSes entre casas térreas ou palafíticas seguem, portanto, a preferencia de


cada indivíduo, sendo que alguns julgam o estrado perigoso para as crian<;as, ou
consideram que este tipo de habita<;ao é mais trio, por ser exposto aos ventos.
Enfim, existem outras variantes no tamanho, que seguem exigencias da família ou
da disponibilidade de material.

A ado<;ao de um ou outro tipo de habita<;ao permanente depende sobretudo da


permanencia prolongada ou nao num assentamento, visto que o tempo requisitado
para a constru<;ao de urna casa sobre estacas é maior; assim, as casas da aldeia do
Nipuku eram todas do tipo iura, enquanto as da regiao do igarapé On<;a, onde a
mobilidade é acentuada, sao geralmente térreas, por sinal muito mal acabadas.

Finalmente, devem ser mencionadas outras alternativas que modificam a planta


tradicional, e que aparecem com freqüencia nas casas recém-construídas. Estas
variantes afetam essencialmente a ..cobertura e derivam de urna economía de traba-
lho ou da ausencia de matéria-prima, determinando urna cobertura mais curta nos
lados, preenchendo-se o espa<;o das paredes com talas de paxiúba. Derivam tam-
bém da ado<;ao de padrees neo-brasileiros, com a instala<;ao de portas - e even-
tualmente fechaduras - e de paredes divisórias. No teto, observa-se o desapare-
cimento da forma ogival-arqueada, substituída por urna cobertura de duas águas em
angulo reto, sem acabamento nas pontas. A substitui<;ao da cobertura de ubim,
considerada a palha mais resistente (dura até 8 anos) por pal ha de bacabeira ou a<;aí
'(palha utilizada para tapid provisórios) deriva também de urna economia de tempo,
ou. da ausencia de folhas de ubim em quantia necessária para se fazer urna cobertura
durável.

'

140. Casa palafítica com paredes de paxiúba e escada iura. Nipuku, 1980.

161
141. Casa térrea em constrw;;ao, na fase de amarra~ao das folhas de ubim. Aramira, 1981.
142. Casa palafítica com cobertura simplificada e tapiri de cozinha com a canoa-recipiente para
o caxiri. Nipuku, 1980.

162
143. Detalhe da cobertura: amarra~~º interna das folhas de ubim. Aramir~ , 1981 .

144. Detalhe de constru~~o; amarra~~º do pilar e da viga suportando o estrado de paxiúba. Caitetu,
1981.

163
UTILIZACAO DO ESPACO DOMÉSTICO:

A utilizac;ao do espac;o dentro da casa, pela disposic;ao dos objetos e a distribuic;ao


das atividades, pouco se modifica, segundo a casa é palafítica ou térrea, com a
única diferenc;a, no último caso, de estarem concentradas num único plano.

As redes sao armadas paralelamente na parte central da casa, amarradas as vigas


transversais; cada adulto tem sua rede, senda que as crianc;as de colo dormem com
a mae, e as crianc;as de 4 a 5 anos dormem juntas numa mesma rede. Quando a casa
é ocupada por mais de urna família nuclear, nos casos de residencia uxorilocal
provisória, por exemplo, esta segunda unidade dispoe suas redes num canto sepa-
rado da casa, geralmente na parte posterior arredondada .

Os objetos pessoais sao pendurados nas vigas longitudinais do telhado, ou intro-


duzidos na palha da cobertura. Pec;as de roupa, tangas, colares e outros elementos
de adorno sao guardados em maletas de palha (kareru) ou de aruma (pagara),
dependuradas ao teto. Da mesma forma guardam outros objetos como facas,
anzóis, materiais para confecc;oes de flechas ou de adornos de plumária. As maletas
e os outros objetos, tais como cestos para depósito de farinha, de algodao, etc., sao
geralmente presos a maxilares de parco do mato, que servem de ganchos.

As armas, flechas e arcos, sao deposité;ldas num jirau alto, a entrada da casa;
as espingardas sao guardadas na palha da cobertura, onde também se encontram
os cartuchos, anzóis grandes, limas, terc;ados, fusas de algodao.

Em certas casas, especialmente nas dos homens mais velhos da aldeia, sao guar-
dados os instrumentos musicais utilizados nos rituais; flautas, maracás e bastoes de
ritmo sao atados a cumeeira, ou depositados num jirau confeccionado para este fim.

Finalmente os bancos apuka, quando nao utilizados, sao cuidadosamente apoiados


a um pilar da casa, transversalmente.

Com estas pec;as e com os tranc;ados utilizados na preparac;ao dos alimentos,


completa-se a mobília das casas Waiapi.

O fogo permanece constantemente aceso, instalado numa das extremidades da
casa, geralmente na parte posterior arredondada. Nas casas do tipo iura, onde o
estrado é feito de talas de paxiúba, o fogo é colocado sobre urna roda de barro de
1 metro de diarr1etro, cingida por cipós (tatarena). Sobre este conjunto, ou dire-
tamente ao lado, um jirau (puraty, mara) serve para depositar alimentos, cuias,
tranc;ados, etc. Este fogo doméstico é utilizado tanto pelas mulheres na preparac;ao
dos alimentos, como pelos homens, na confecc;ao de artefatos.

Entretanto, na maioria dos casos, as mulheres Waiapi nao utilizam o fogo da casa
para a cozinha. No que diz respeito a preparac;ao de alimentos a base de mandioca,
estes nunca sao elaborados dentro da casa de habitac;ao; utilizam para tanto as

164
145. Disposic;;ao das redes numa casa Wai~pi.

PANELA S FOGOE
<b JIRAU

146. Vista interna de urna casa térrea, com as redes, os jiraus e em primeiro plano um pil~o para
o milho. Caitetu, 1980.

165
casas de cozinha, okawu, ou, quando estas nao existem, de um fago e de jiraus
diretamente vizinhos a habita9ao.

De fato, a casa é pouco utilizada durante odia, tanto pelos homens, cujas atividades
se desenvolvem em grande parte tora da aldeia, como pelas mulheres, que passam a
maior parte do tempo nas tarefas ligadas ao processamento da mandioca. O espa90
doméstico nao se limita, portanto, a casa de habita<;ao, mas inclui as casas de
cozinha e o pátio situado em frente as casas.

Homens: Mesmo quando nao se encontram tora da aldeia para ca<;ar, pescar, ou
abrir um ro9ado, passam pouco tempo dentro da casa, a nao ser para descansar
após o banho, quando voltam de urna expedi9ao na mata. Nas aldeias dos Waiapi-
puku, ·nao há casa de reunioes para os homens, como existem entre os Waiapi do
Oiapoque. Eles se reúnem para confec9ao de artesanato, ou para discussoes na
frente de urna ou outra casa, na casa do chefe do grupo, ou ainda no pátio central,
quando o assunto é importante.

Crian<;as: As crian9as tampouco ocupam a habita<;ao durante o dia; quando gran-


des, acompanham o pai ou a mae nas atividades de cada sexo; quando pequenas,
brincam com outras crian9as da mesma idade, no pátio da aldeia.

Mulheres: repartem seu dia entre as idas a ro9a, ao rio e a cozinha, nos tapiri cons-
truídos para este fim. O processamento da mandioca, que requer muito tempo e
I
espa90, é raramente realizado individualmente, mas em grupos de duas ou tres
ligadas por la<;os de parentesco direto, como mae e filha , irmas, e, mais raramente,
urna mulher e sua nora .

Nas casas de cozinha se encontram todos os artefatos necessários para estes tra-
balhos, como o tipiti, instalado na sua arma9ao, o coxa, para ralar a mandioca
( kurata), os tornos para confec9ao de farinha ou de beiju, os recipientes para caxiri e
água, e os diversos tran9ados utilizados para peneirar e conservar os produtos da
mandioca .

Nas casas okawu também podem-se encontrar panelas para o cozimento das
carnes, caba<;as e água, etc.; estes últimos objetos, entretanto, sao geralmente
guardados nas casas de habita<;ao, onde as mulheres cozinham a carne, indivi-
dualmente, para sua família.

Contudo, é na casa de cozinha que sao preparadas, geralmente sobre um moquém,


as grandes quantidades de carne ou peixe, ou ainda confeccionadas as bebidas a
base de frutas (a<;aí e bacaba), senda estes alimentos distribuídos depois entre as
famílias das mulheres que participaram do trabalho.

Quando urna mulher tem filho pequeno, arma urna rede perta . dela no tapiri de
cozinha e lá deixa a crian<;a dormir enquanto trabalha, ou se senta para ama-
mentá-lo .

166
147. A lareira tatarena, instalada sobre o estrado de urna casa palafftica. Nipuku, 1980.
148. Casa de cozinha okawu, como moquém, o jirau, o coxo para ralar a mandioca, e a armac;ao
para o tipiti. Caitetu, 1981 .

..
167
Após as tarefas de cozinha, de transporte de água ou de lenha, ou entre urna e outra
atividade, a mulher senta na rede, na casa de habitac;:ao - numa iura, na parte
inferior - para separar ou fiar algodao; ou ainda se ocupa da confec<;ao de redes e
tipóias em teares instalados perto de sua rede. Na confecc;:ao da ceramica, entre-
tanto, ocupa o pátio em frente a sua casa, por ser urna atividade que requer sol e
espa90.

As únicas atividades familiais que ocorrem no interior da casa sao geralmente o


descanso e as refeic;:CSes. Estas, familiais, - de manha cedo e a tarde após a volta
dos homens da cac;:a ou da pesca - sao tomadas individualmente por cada família
nuclear dentro de sua habitac;:ao, perto do fogo. Em certas ocasiOes, refeic;:CSes
comunitárias sao organizadas e tomadas na prac;:a da aldeia, separando-se homens e
mulheres. O mesmo acontece comas festas de caxiri: os convidados para o caxiri,
preparado por urna só mulher, instalam-se perto da casa do hóspede, disper-
sando-se depois na prac;:a central para danc;:ar e cantar.

A descric;:ao das atividades domésticas e familiais dos Waiapi mostrou que a casa
nao constituí em absoluto a totalidade do quadro de vida desses índios, e por isto
nao pode ser considerada independentemente do sistema de aglomerac;:CSes parti-
, culares a este grupo indígena, sistema este que vem se modificando rapidamente
nos últimos anos, em decorrencia de mudanc;:as introduzidas no tipo de explorac;:ao
do meio ambiente. Estas transformac;:CSes sao condizentes com as modificac;:CSes
observadas nas casas de habitac;:ao dos Waiapi.

De fato, em rela9ao a documentac;:ao antiga existente sobre as habitac;:CSes destes


índios, e que se referem a urna relativa regularidade nas técnicas de constru9ao e na
forma das casas, assim como na utilizac;:ao do espac;:o da habitac;:ao, opCSem-se, hoje,
as múltiplas variac;:CSes e inovac;:~es observadas, tanto na arquitetura da casa, como
nos padrCSes de residencia praticados pelo grupo.

168
ONDE OS WAYANA
PENDURAM SUAS REDES?*

Lucia Hussak van Velthem

( * l Os índios Wayana pertencem a família lingüística Karib e habitam o río Paru de Leste e seu
afluente río Citaré, no Parque Indígena de Tumucumaque, Estado do Pará. Outros grupos Wayana
habitam o Suriname e Guiana Francesa . No Brasil, os Wayana estao em processo de fusao comos
indios Apara i, igualmente de língua Karib, através de sucessivos casamentos, que em muitos casos
resultam ern aldeias mistas. Devido a isto, sao conhecidos na literatura antropológica como sendo
os Wayana-Aparai e o contingente populacional é de aproximadamente 300 pessoas.
A pesquisa para este artigo foi realizada entre os Wayana e, assim, referir-se-á unicamente a este
grupo indígena.

169
149. Aimoré diante de sua casa tece um cesto de aruna.

170
Nós deseemos o rio Paru de Leste e chegamos a urna aldeia que nos informaram ser
Xuixuimómen e, lugar do grande Xuixui, ave mitológica. É também conhecida como
A imorepatá, do nome de seu chefe, Aimoré, índio Wayana, como os demais habi-
tantes, com excec;ao de sua jovem esposa, Aparai .

Degraus irregulares, escavados no barranco, conduzem-nos do porto até o local


onde se encontram as casas. Atravessamos o pátio central, pyroro, onde se desen-
volve a vida pública, tanto em tempos quotidianos, como em rituais. Neste terreiro,
um pouco a esquerda, vemos o " fogo da aldeia", uapot pata, centro desta e
igualmente do universo social indígena. Este fogo, aceso ao alvorecer e ao entar-
decer, e mantido pelos jovens adolescentes, congrega os homens da aldeia e os
aquece após o banho matinal e do frio noturno, enquanto conversam, ensinam
mitos, ou discutem as decisoes importantes para a comunidade. Neste local exe-
cu tam manufaturas, sobretudo cestaria, e tomam suas refei9oes comunitárias.

Chegamos a urna casa grande, plantada quase no centro da aldeia. Sentamo-nos


em pequenos bancos, kororo, e aguardamos o tulakanin entapikatop, a " refeic;ao do
visitante" 1. Esta é oferecida unicamente aos homens e consiste geralmente numa
panela contendo molho de tucupi, beiju e urna cuia de água; esta é ofertada por
Meruru, a mais velha das esposas de Aimoré, que nos saúda. Um após o outro nos
aproximamos desta refeic;ao e partimos um minúsculo pedac;o de beiju, que molha-
mos no caldo, comemos, ou cuspimos e depois lavamos a boca . Na realidade, nao é
urna refeic;ao para nos alimentar, é apenas urna indica9ao de que em Xuixuimó
passaremos a ter comida e bebida. Aimoré, como todos os chefes, tamuxi, é o
último a chegar e ainda nos oferece longos cigarros de tauari, tame. Expressamos o
desejo de repousarmos da viagem e mais urna atenc;ao de boas vindas nos é reser-
vada - as esposas de Aimoré amarram nossas redes nesta casa .

Após o descanso, fazemos um reconhecimento. Esta aldeia está situada numa ilha,
um dos locais de estabelecimento favoritos, pois, entre outros motivos, protege
seus ocupantes de ataques de felinos e serpentes; os homens podem assim partir
em cac;adas prolongadas, deixando as mulheres sozinhas. Outros fatores sao reque-
ridos para a implantac;ao de urna aldeia - proximidade de água límpida e piscosa,
de terras propícias ao cultivo, de combustível, de lajedos; distanciamento de águas
profundas, de antigas povoa9oes, abandonadas após falecimento 2• A aldeia de
Xuixuimó apresenta dois partos, ou "beiradas", etpitairé. O principal deles possui
lajedos, nos meses do verao, setembro a dezembro, quando as águas do rio Paru
descem consideravelmente. Esses lajedos possuem grande importancia ritual e
mitológica. O porto principal é mais "social", nele aportam os visitantes. O porto
secundário é doméstico e serve ainda para banhos, aprovisionamento de água e o
despejo dos detritos domésticos.

(1) Schoepf, D. (1979:16).


(2) Van Velthem, L.H . (1980:7/ 8).

171
Na margem aposta, em frente ao porto principal, vemos a pequena aldeia de
Tokoró, irmao de Aimoré. Entre as folhagens percebemos urna grande casa circular,
em construc;:ao, e outras casas menores. Aimoré nos aponta, um pouco além das
casas, as roc;:as, tanto as recentes como as antigas e as capoeiras e, com um largo
gesto, pois sao invisíveis, no interior da mata, os locais fornecedores de matéria-
prima vegetal, como determinadas palmeiras e o aruma. A outra margem do rio é
coberta pela floresta densa e nao é explorada.

No total sao apenas vinte os habitantes das duas pequenas aldeias. E por que nao
estao reunidos na mesma maloca? A resposta está relacionada com princípios de
organizac;:ao social e política, baseada no sistema de parentesco. Este dá preferencia
a casamentos com primos cruzados (filhos do irmao da mae ou da irma do pai) e a
residencia matrilocal (o esposo deve residir na aldeia dos sogros) . Os genros perten-
cem a categoría peito e devem aos sogros obediencia e execuc;:ao de diversas obri-
gac;:oes. Na atualidade, em parte devido ao fraco contingente populacional, e a
outros fatores da própria dinamica da organizac;:ao social Wayana, que se modifica
com a depopulac;:ao, e o contato mais intenso com a sociedade envolvente, a
composic;:ao dos grupos de residencia possui grande flexibilidade em relac;:ao aos
padrees tradicionais, resultando em pouca coesao entre os membros de determi-
nadas aldeias e urna grande mobilidade destes indivíduos, que passam de urna
aldeia para outra 3 • Um esforc;:o para manter operante este sistema é representado
~

pelos pequenos núc1eos de Aimoré e Tokoró: país de família com seus filhos, cada
qual com autoridade sobre sua aldeia e, ao mesmo tempo, suficientemente pró-
ximos para operacionalizar um sistema de cooperac;:ao que incluí trocas alimentares,
abertura de roc;:as, confecc;:ao de casas, pescarías e cac;:adas coletivas.

Voltamos para a aldeia e suas casas, de tamanhos e formatos dive·rsos. Sao em


número de sete e encontram-se dispostas em círculo irregular, com a projec;:ao de
urna delas para o centro. Urna descric;:ao desta aldeia ofereceria pouca semelhanc;:a
coma fornecida por Claude Tony, em 1769 ao visitar um povoamento Wayana na
Guiana Francesa: "A aldeia está situada numa pequena elevac;:ao, as roc;:as se esten-
dem ao seu redor a um quarto de légua; quatro caminhos triplos terminam em
angulo reto no meio desta aldeia, onde numa espécie de prac;:a pública, exis~e urna
espécie de torre muito elevada , terminada em forma de domo, possuindo quatro
janelas, urna para cada caminho. As casas estao na beira dos caminhos e formam
urnas espécies de .ruas. Suas casas sao feitas em princípio como a de todos os
outros índios, mas abaixo do assoalho que fazem ordinariamente a seis ou sete pés
da terra, distribuem alojamentos, cujas paredes, muito bem feítas, sao de case.a de
árvore, bem unida e limpa. Pintam nestas paredes diversos tipos de animais, como
onc;:as, tamanduás, macacos e pássaros" 4 •

(3) Schoepf, D . (1979:72).


(4) Tony, C. (1843:225/226).

172
Estes tempos eram outros, as guerras intertribais se sucediam e havia necessidade
de protec;ao adicional as aldeias, oferecida pela torre de observac;ao, palic;adas e
casas como as atuais, mas inteirarnente forradas de casca da árvore kupariman,
visando a proteger seus ocupantes das flechadas.

Na aldeia Xuixuimó vemos casas sem paredes, com a excec;ao de urna, confec-
cionada com achas de madeira; cobertura de palha; armac;Oes de madeira e liga-
duras de fibras vegetais; o assoalho é o próprio chao e nenhuma delas possui o
grande jirau onde se dorme, muito embora duas casas estejam prontas para recebe-
lo proximamente. Pequenos jiraus sao encontrados em todas as casas e destinam-se
ao armazenamento de objetos e alimentos. A aldeia de Aimoré nao possui casa de
recepc;ao, mas urna delas está em construc;ao na aldeia em frente.

Mas quais sao os diferentes tipos de habitac;ao dos Wayana? Sem nos aprofun-
darmos em detalhes técnicos de construc;ao, descreveremos a seguir cada um dos
tipos encontrados e explicados por Aimoré e Araibá.

TUKUSSIPAN

OTOMAN

. •
1
1

1
11

PAKORO TELAKAMAN HARPEY TYIARITAN

150. Esquemas de plantas baixas de casas Wayana . Apud Frikel, P., 1973.

173
TUKUSSIPAN

151. Casa tipo Tukussipan. Aldeia Apalai, 1977.

Este termo derivaria de tuku (ponta) e pan (afirmac;ao), ou seja, casa terminada em
ponta 5 . Há informac;oes bibliográficas de que este tipo de construc;ao também se
denominaria monta 6 . Em portugues, os Wayana referem-se a ela como "prefei-
tura".

A tukussipan está geralmente situada no centro da aldeia, ou numa posic;;ao desta-


cada. Sua construc;;ao é circular, com um diametro de oito a dez metros, possuindo
um teto em forma de cúpula e sem paredes. A parte interna apresenta urna altura de
cerca de dais metros, como esteio central projetando-se além da cobertura por mais
um metro e meio. Neste esteio sao introduzidas tres panelas de barro de tamanhos
diferentes e destinadas a impedir que a parte superior da cobertura seja levada pelo
vento e igualmente prevenir contra as goteiras 7 •

(5) Ahlbrinck, W. (1956:461 ).


(6) Bos, G. (1973:145).
De Goeje, C. H. (1908:3).
(7) Roth, W. E. (1924:257).

174
152. Casa tipo Tukussipan, em construc;ao . Aldeia de Tokoró, 1978.
153. Amarrac;ao do caibro e viga. 154. Amarrac;:ao que sustenta a cobertura .

175
No seu interior, a tukussipan ostenta, presa ao teto, a maruana. Trata-se de urna
" roda de teto" de aproximadamente um metro de diametro. Este disco é extraído da
sapopema da sumaumeira, desbastado com facao e queimado numa das faces,
formando assim urna base negra para a pintura. Esta é executada coletivamente por
dois ou tres homens, que utilizam pincéis com pontas feitas de chumac;o de algodao
e tintas minerais nas cores branca, ocre, vermelho-castanho e cinza, as mesmas
utilizadas para a pintura da ceramica. As figuras pintadas representam diversos
seres mitológicos - kaukukuxi; kuruake (espécies de lagartas); kanakotó (híbrido de
pássaro e peixe) e outros animais como aves, batráquios e mamíferos. A maruana é
urna pec;a de decorac;ao que conjuga formas estéticas e linguagem nao verbal,
referente a tempos pretéritos e atuais, pois kuruake (literalmente "comedor de
folhas de curuá", urna palmeira) ainda vive na floresta.

A cobertura externa da tukussipan é utilizada muitas vezes para a secagem do beiju


uru e no seu interior, suspensas nas vigas, sao guardadas as grandes flautas, tulé,
e as armac;oes da máscara ritual, orok. Faz-se fogo dentro da tukussipan , mas
unicamente para aquecimento.
155. Roda de teto de casa tipo Tukussipan. Aldeia Assai, 1956. (foto Protásio Frikel) .

176
A construc;ao desta habitac;ao é um trabalho masculino e comunal, trabalho este
que se estende também para a coleta da matéria-prima necessária.

Esta atividade é realizada na estac;ao seca, que principia em setembro e se estende


até dezembro, pois é necessário que as folhas de ubim, empregadas para a cober-
tura, sequem ao sol antes de serem amarradas, evita.ndo-se assim seu apodreci-
mento precoce.

·A tukussipan é destinada sobretudo a f0rnecer abrigo aos viajantes de passagem,


sejam eles Wayana ou Aparaí, índiós de outras tribos ou nao indígenas, os karaioá
(os brasileiros). Sua func;ao principal é, pois, a de urna casa de acolhimento,
notadamente no período das festivida'des. Nesta época, além de abrigar todos os
convidados, torna-se igualmente um dos centros de celebrac;Oes. No século ante-
rior, quando a populac;ao Wayana contava cerca de mil pessoas, urna aldeia podia
ter duas tukussipan, pois nas festividades havia muita gente a ser abrigada.

Nas atividades .quotidianas esta casa é um lugar de reuniao e estar dos homens,
onde executam tranc;ados e tomam refeic;Oes comunitárias no período das chuvas,
ou quando faz muito calor. Adolescentes solteiros podem igualmente residir na
tukussipan, se o desejarem. Nao existem interdic;Oes quanto a permanencia de
mulheres em seu interior, contudo raramente elas se demoram sob seu teto.
,

Apesar de ser um tipo de construc;ao comum aos Wayana e Aparaí, nem todas as
aldéias dorio Paru e seu afluente rio Citaré possuem casas tukussipan 8 • No caso da
l

Aldeia Apalai, esta construc;ao sempre teve outras atividades além das tradicionais.
Nesta aldeia estao localizados o campo de pouso da Forc;a Aérea Brasileira (FAB),
a casa da Fundac;ao Nacional do indio (FUNAI) e nela atuaram, até 1976, missionários
do Instituto Lingüístico de Verao (SUMMER). Durante longo período esses missio-
nários realizaram culto religioso na tukussipan, aos domingos. Esta prática consistia
na leitura de trechos do Novo Testamento e da entoac;ao de canticos religiosos. Em
1978, trabalhadores da FAB, vindos a Aldeia Apalai para a ampliac;ao da pista de
aterrissagem, invadiram a tukussipan e a transformaram em depósito de grandes
recipientes de gasolina, motores, e até de um pequeno trator. As máscaras e as
flautas foram retiradas e nesta tukussipan nao mais se realizam atividades tradi-
. .
c1ona1s.

É ainda importante assinalar que outros grupos indígenas de língua Karib, como os
Tiriyó, Makuxi, Kalina, possuem casas de acolhimento, cujos nomes - tukuxipa,
tukuchipan e tukusiban, respectivamente, e o aspecto, em tudo se assemelham a
construc;ao Wayana 9 •

(8) Schoepf, D. (1972:50).


(9) Frikel, P. (1973:20). Ahlbrinck, W. (1956:120). (Estes dois autores possuem excelentes referen-
cias sobre a construt;~o de casas e dos materiais utilizados).
MAITÁ

Este tipo de construc;ao nao é mais realizado atualmente. Possuía forma cónica,
semelhante a tukussipan, com a cobertura projetando-se até o chao, portanto
inteiramente fechada, com urna única abertura, previda de tapagem. A maitá era
construída na orla da floresta e para lá dirigiam-se todas as noites, procurando
dormir a salvo dos insetos. Para esta casa costumavam carregar panelas d~ cera -
mica contendo brasas para aquecimento, que eram colocadas embaixo das redes.
Esta prática está em vias de desaparecimento, com a introduc;:ao de mosquiteiros e
cobertas.

Araibá, um dos mais velhos Wayana, contou diversas histórias de como mulheres e
crianc;:as que se demoraram pela manha na maitá foram su rpreendidas e devoradas
por onc;as. Para explicar o desaparecimento desta casa disse : "agora tem mosqui-
teiro, nao precisa mais maitá.,,

PAKORO

Pakoro é um termo genérico, que designa tanto as casas de moradia como a sua
cobertura. Existem diversos tipos de pakoro:

OTOMAN, OTOPAN, OU AINDA TIALAKIM

Esta é a mais elaborada das residencias. É ovalada em seu aspecto, devido a exis-
tencia em suas extremidades de anteparos semicirculares. Este tipo de casa pode ter
oito metros de comprimento por cinco de largura e tres e meio de altura . Urna
variante pode ter urna altura interna de até seis metros, quando recebe um segundo
andar soba forma de grande jirau . A cobertura da otoman desee até cerca de um
metro e meio do chao, mas nao há paredes nem aberturas.

A construc;:ao da otoman e das demais casas de moradia é um trabalho masculino e


individual. Cada homem, ao casar-se, constrói sua casa na aldeia de seu sogro,
executando o tipo que mais lhe convier. A otoman, devido a complexidade de
execuc;ao, é um tipo de casa permanente; um homem , ao executá-la, indica que se
demorará por longos anos naquele lugar.

Atualmente a otoman, assim como as demais casas de moradia, congregam apenas


a família nuclear, composta dos pais e filhos nao casados. Contudo, um parente
próximo, como urna irma da mae, pode igualmente habitar na mesma casa. Como
foi di to anteriormente, home ns nao casados podem morar na tukussipan, caso o
desejarem.

178
156. Construy~O do beiral de casa do tipo Otoman . Aldeia Apalai, 1977.

179
157. Casa tipo Otoman . Aldeia Xuixuimó, 1978.
158. Teto oe casa do tipo Otoman. A ldeia Xuixuimó, 1978.

180
HARPEY TYIARITAN, TYMKOROEM

Este tipo de casa possui aspecto semi-oval e se diferencia da casa otoman ao


apresentar apenas numa das extremidades o anteparo semi-circular. É igualmente
sem portas, a cobertura projetando-se para baixo, formando assim os flancos. Possui
dimensoes mais reduzidas do que a casa precedente; um exemplar observado media
cinco metros de comprimento por tres e meio de largura e dois e meio de altura . Este
tipo de casa pode abrigar um jirau de dormir, mas, na maioria dos casos, encen-
tra-se apenas o jirau de armazenamento. A casa tymkoroem é atualmente mais
difundida do que a otoman e pertence, como esta, a categoría das casas perma-
nentes, executadas com esmero e materiais apropriados.

159. Casa tipo Harpey tyaritan. Aldeia Apalai, 1977.

181
TELAKAMAN, TYRAKAN

160. Vista da aldeia Xuixuimó. Casa de Aimoré. Observar o


moquém em primeiro plano e as paredes laterais da casa
tipo Telakaman , feitas de achas de madeira.

Esta é a moradia mais freqüentemente encontrada. Ao que parece, seria inspirada


no modelo das casas dos caboclos da regiao amazónica 10 • É urna casa com teto de
duas águas, sem paredes, senda, por conseguinte, mais devassável do que as
demais. Este é um dos motivos porque alguns construtores adicionam-lhe paredes
de achas de madeira ou de talas da palmeira paxiúba. Este tipo de construc;ao pode
apresentar os tamanhos os mais variados, de acordo com as necessidades. É urna
casa sob certa forma provisória, pois de confecc;:ao mais ligeira, devido ao material
empregado. Ouando se instalam numa nova aldeia, constroem inicialmente este
tipo de habitac;ao que, ao ser substituída por urna otoman ou tymkoroem, trans-
forma-se em cozinha, ou numa espécie de atelie para a confecc;ao de ceramica ou
outras manufaturas.

MEKOROPAN

Este tipo, como o nome indica, é um elemento aculturado dos negros refugiados do
Suriname e Guiana Francesa, os Djuka, Saramaká e Boni, indistintamente denomi-
nados pelos Wayana de mekoro. Nao observei nenhuma construc;ao deste tipo, mas
as indicac;:oes f ornecidas apontam semelhanc;:as comos tapiri s - pakoro.

( 10) Schoepf, D. (1972:50).

182
PAKORO

O termo pakoro, genenco para casa e cobertura, é ainda utilizado para a ma1s
simples das construc;oes, o tapiri.

É um tipo com cobertura de duas águas, semelhante ao te/akaman, mas muito mais
rudimentar. Como a anterior, pode ser construída de diversos tamanhos, inclusive
bem diminutos, pois é sempre urna moradia para uso temporário, geralmente er-
guida nas roc;as afastadas, as quais exigem a permanencia do casal Wayana durante
o plantio.

Pequenos tapiris sao construídos em ilhas, muitas vezes rochosas, ou nas margens,
unicamente para pausada por ocasiao de viagens, ou prolongadas cac;adas e pesca-
nas.

A casa pakoro é também construída para outros fins que nao a moradia:

161. Casa tipo Pakoro. Aldeia Aramapukú, 1978.

183
162. Tapiri de roc;:a. Pakoro . Roc;:a de Jaraki, 1978.

A) PAKORO TUMAIETOP OU UAPOT PAKORON

Esta é a cozinha onde preparam e guardam alimentos. É construída bem próximo a


casa de dormir, ou como um prolongamento desta. Sao geralmente baixas e peque-
nas, enegrecidas pela.fumac;a.

8) KAIAMAETOP PAKORON

O termo indica que é urna "casa de farinha ", mas a confecc;ao e utilizac;ao desta
pelos Wayana é muito restrita. Neste abrigo desenvolvem-se igualmente atividades
relacionadas com a confecc;ao do beiju , que compreendem o ralar da mandioca,
a extra9ao do líquido venenoso pelo tipiti e o cozimento num torrador de terracota
de um metro de diametro, sustentado por tres panelas velhas. Muitas vezes guar-
dam na kaiamaetop pakoron a kanawá, um grande recipiente, semelhante a urna
canoa, e destinado a confecc;ao de bebidas fermentadas.

'Esta constru9ao pertence ao indivíduo que a construiu, mas é geralmente utilizada


por diversas famílias.

184
C) KAIKUI PAKORO

É a casa dos cachorros, construída próximo acasa dos donos. Cada família costuma
ter muitos deles, alguns treinados para cac;adas. Até recentemente a criac;ao de caes
era um elemento importante no sistema de tracas corn os negros refugiados do
Suriname e da Guiana Francesa.

Numa aldeia sao ainda encontrados jiraus uruanotop, semelhantes a urna mesa,
confeccionados exclusivamente para a secagem dos beijus, que podem igualmente
secar.na cobertura das casas, sobretudo na da tukussipan.

Voltemos a aldeia de Aimoré e visitemos sua casa, mas antes perguntemos a quem
pertencem as residencias. ·

163. Tipo de casa que apresenta paredes confeccionadas com lascas de paxiúba.Aldeia Apalai, 1978.

Urna casa pertence ao seu construtor, no caso o homem Wayana, que a edifica para
si e sua esposa, a co-proprietária. Esta forma de propriedade, que nao é a única, tem
ligac;oes com o individualismo econOmico que o grupo indígena apresenta 11 • Rela-

(11 ) Koehn, S. (1975:100).

185
ciona-se também coma concepc;ao de conhecimento, no que se refere as manufa-
turas, medidas a partir do que pode ser produzido concretamente. Na execu9ao de
um objeto, ou de urna casa, um pouco do indivíduo é transmitido a estes, algo como
urna marca registrada, que permite reconhecer o executor e que possui com este
estreitas ligac;:oes. Assim, as casas sao de posse individual e, quando urna família
parte de urna aldeia, ninguém ocupa sua casa. Se voltam para urna visita, habitam-
na novamente e, quando partem, desta vez definitivamente, os que ficaram deixam-
na simplesmente apodrecer a ac;:ao do tempo.

O procedimento é diferente quando falece o proprietário de urna casa. A maior parte


das vezes esta é queimada, assim como seus pertences. Ouando, por algum motivo,
nao o fazem, denominam-na metaforicamente de pakoro utpe, "casa queimada" .

É muito importante para um Wayana morrer em sua casa, deitado na rede. O seu
princípio vital, o akwa/i 12 , ao deixar o corpo, possui um caminho bem estruturado,
cheio de perigos, que deve enfrentar. Este caminho principia pela empunhadura da
rede,· prossegue pela corda, viga, esteio e cobertura da casa e daí em diante perde
contato com os homens. Morrer longe de sua aldeia pode, muitas vezes, repre-
sentar o desgarramento do akwali, do morto, que fatalmente se perderá. Os pajés,
pyaí, sao geralmente cremados, mas as pessoas comuns podem ser enterradas em
suas casas, sobretudo se a esposa deseja permanecer morando nesta. Neste caso,
o morto tem sua sepultura embaixo da rede da esposa.

A casa de Aimoré ocupa a posic;:ao mais afastada do porto principal e está bem pró-
xima da descida que conduz ao porto secundário. É urna residencia do tipo tela-
kaman , com dez metros de comprimento por tres de largura. Denominam-na igual-
mente de pakoro tewanmaron; pakoro tumaietop, uapot pakoro e pakurepu; assim,
aprendemos que urna moradia, além de seu nome próprio, como otoman, te/aka-
man, pode ser igualmente denominada de acordo com sua utilizac;ao, como uapot
pakoro (cozinha); com a matéria-prima de que é feita, por exemplo: pakurepú
(esteios de paku) ; com sua localizac;ao na aldeia: ramnaporó (está no meio, no caso,
a otoman) ; enfim, se o construtor faleceu e a casa nao é queimada, ela passa a ser
considerada como urna pakoro utpe (casa queimada).

Ao aproximarmo-nos, vemos que variados vegetais domésticos estao plantados ao


redor da casa : batata doce, urucu, pimenteiras diversas, algodao, todas no kopy, o
terreiro doméstico. A moradia de Aimoré difere das demais. Possui urna espécie de
parede, que cobre seus flancos, e constituída por achas de madeira sustentadas por
varas verticais, fincadas no chao. Esta madeira é utilizada como combustível e é
substituída . A parte posterior é fechada com folhas de bacaba, matéria-prima
igualmente empregada para a cobertura . A casa possui tres aberturas em direc;:oes
opostas, a parte anterior é completamente aberta e ali se estabeleceu a cozinha

(12) Hurault , J . (1968:11).

186
164. Entrada lateral da casa de Aimoré. Observar o uso de um caibro para sustentar o tipiti,
quando este é distendido. Aldeia Xuixuimó, 1978.

propriamente dita, muito embora esta casa seja na realidade urna cozinha / depósito.
Mas, como em Xuixuimó nao há tukussipan, urna casa do tipo otoman, também
pertencente a Aimoré, passou a desempenhar este papel. Ouando a tukussipan da
aldeia de Tokoró ficar pronta, acorrerá a mudan9a desta família para a otoman. Este
fato é bem ilustrativo da dinamica interna das aldeias e dos arranjos efetuados para a
manuten9ao de determinadas normas sociais.

Entramos na casa pela cozinha, uaparuretop, "onde se faz fogo" . Em cima deste,
alimentado continuamente, há urna espécie de trempe, onde peda9os de carne
moqueiam, assim como alguns peixes. Acima, como urna guirlanda, pendem do
teto diversos cestos de trama aberta, enegrecidos pela fuma9a , conservando ali-
mentos diversos. Pelo chao, panelas de alumínio e ceramica guardam restos de
alimentos, água (esta também armazenada em grandes caba9as), ou simplesmente
esperam a vez para serem postas ao fogo cozinhando alguma proteína bem gorda e
com muita pimenta, de acorde C"'m o paladar Wayana.

Percebemos que nao existe o jirau de dormir, tyarak, apenas o jirau para guardar
objetos, atyrarmit. As redes sao amarradas nas vigas e esteios e na casa de Aimoré
estao dispostas ao longo das paredes. Primeiramente ternos, a direita, a sua rede,
ao seu lado a de Rubí (cerca de 7 anos) ao lado deste a de Yéyé (cerca de 12 anos).

187
,

165. Parte inferior de urna casa tipo Harvey tyaritan. Este é um local de trabalho,
prepara<;:ao de alimentos e armazenamento. Aldeia Apalai, 1977.

Atrás estao as redes das esposas, a de Concha a direita, sendo que esta dorme com
sua pequena filha na mesma rede, e a de Meruru, a esquerda, partilhando com Fin
(cerca de 3 anos) o mesmo mosquiteiro, mas dormindo em redes separadas.

As redes, otat, sao de algodao, tecidas pelas mulheres, amarradas com cordas de
fibra de curuá e os mosquiteiros sao feitos com fazendas industrializadas, nas ma1s
diversas cores.

" No tempo dos antigos os Aparaí e os Wayana nao possuíam redes. Dormiam em
arma95es semelhantes aos moquéns. Um Aparaí, ·ao empreender longa viagem,
encontrou um povo que possuía redes. Estas eram feitas pela Akari-notó a 'avó das
aranhas' e possuíam apenas fios longitudinais. Ao regressar, o Aparaí descreveu a
viagem e as redes e outros Aparaí puseram-se a caminho para conhece-las, contudo
nao se deitaram nelas com medo de que os fios se rompessem. A Akari-noto
fez-lhes, por isso, redes com interliga9oes transversais. Obtiveram desta nao apenas
as redes, mas também o algodao necessário para confeccioná-las e o plantaram em
suas ro9as. Os Wayana aprenderam dos Aparaí o plantio do algodao e o processo
de fabrica9ao de redes" 13 •

(13) Rauschert, M . (1967:194).

188
Nossos olhos passeiam curiosos pelos jiraus, pela palha da cobertura da casa,
que tanta coisa esconde. De um modo geral cada pessoa guarda seus pertences
junto ou acima de sua rede, nos locais mencionados. Os homens tem ao alcance da
mao suas flautas, a espingarda e a patrona, e suspensos os cestos pakará com os
enfeites plumários, maletas de alumínio da Guiana Francesa, cheias de fios de
mi9angas. As mulheres penduram ao lado de sua rede a tipóia para carregar o filho,
e de suas belas cestas de aruma sobressaem fusos, colares de mi9angas, peda9os
de pano vermelho.

166. Beiral interno de casa do tipo Otoman. Neste local sao guardados diversos objetos, inclusive
flautas, como se observa na foto. Aldeia Xuixuimó, 1978.

167. Jirau de casa . Neste local sao guardados objetos considerados valiosos, tais como adornos,
mic;angas, armas, cestos e também alimentos.

189
A costumados a penumbra , vislumbramos dezenas de elementos, coisas, objetos,
a tal ponto que se torna difícil urna descric;ao detalhada: ali estao mandíbulas de
porco para a confecc;ao de raspadores; há penas de mutum , amarradas em pencas,
para a emplumac;ao de flechas; pequenas cabac;as com sementes diversas; mais
adiante, panelas novas dependuradas e colheres fincadas nas palhas, assim como
as flautas, tufos de apurukunin para nao esquecerem de fazer tinta negra para os
tranc;ados. Mais atrás, molhos de fasquias de aruma pendem das vigas. No jirau,
cestos inacabados, malas e latas, trouxas com as poucas roupas que possuem
(necessárias para o deslocamento a Belém), cestinhas com algodao, esteiras arma-
zenando grandes beijus.

Saímos da casa de Aimoré . Como partimos, despedimo-nos formalmente de todos,


dizendo a cada um deles a mesma fórmula . Ninguém nos acompanha ao porto para
o último adeus. É assim mesmo; e depois, para que? "Karaioá diz que volta, mas
nunca volta".

168. Teto de casa tipo Otoman, apresentando em 1? plano jirau armazenando cestos destinados
avenda. Aldeia Xuixuimó, 1978.

190
QUADRO DAS PRINCIPAIS MATÉRIAS-PRIMAS VEGETAIS
EMPREGADAS NA CONSTRUCAO

A) Cobertura:

1 - Matéria-prima: mararia - ubim (geonoma baculifera)


tarihaká - ubim (folhas maiores)
Utiliza<;ao: casas tipo - tukussipan, otoman, maitá, harpey tyiaritan, tela -
kaman
2 - Matéria-prima: diversas palmáceas (sao utilizadas as folhas)
kumu - bacaba (oenocarpus bacaba)
maripá - inajá (maximiliana maripa)
wapú - a<;aí (euterpe oleracea)
kuraiwat - curuá (atallea sp)
Utiliza<;ao: casas tipo harpey tyiaritan, telakaman, os diversos tipos de pakoro.
A tukussipan pode ser excepcionalmente coberta de folhas de a<;aí. Esses
tipos de palmáceas fornecem coberturas menos resistentes do que as de
ubim, outra palmácea.

8) Beiral:

Matéria-prima: folhas das palmáceas citadas no item 2 de cobertura, nota-


damente bacaba.
Utilizac;ao: bordo inferior dos diferentes tipos de casas.

C) Amarrar;ao :
1 Matéria-prima: mami - timbó a<;u - (espécie de cipó)
Utilizac;ao: para amarrar ubim
2 Matéria-prima: okarat - (urna espécie de tauari)
kuña - "munguba" (amaz)
Utilizac;ao: amarrar as demais folhas de palmáceas.

D) Esteios: epu

Matéria-prima: troncos das seguintes árvores:


kunawá - (minguartia guianenses)
karapana - "preciosa" (amaz)
wapa - ( eperua falcata) ( + )
wakap - (voucapoua americana) ( + )
paku - (?)

• 191
E) Vigas: ehewatetop

Matéria-prima: troncos das seguintes árvores:


mírímí - "aritu" (amaz)
píxat - (?)
aipaway - (swartia sp) ( +)
osí etpí - (vismia guianensis) ( + )

F) Caíbros: tararan

Matéria-prima: sao as mesmas madeiras utilizadas para as vigas.

G) Roda de teto: maruana



Matéria-prima: kumaká - sumaumeira (ceiba pentandra)

( + ) Referencias fornecidas por J. Hurault (1965:74-79).

192
BIBLIOGRAFIA

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FRIKEL, G. P. - Os Tiriyó - Seu sistema adaptativo - Hannover - 1973.


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Roucoyens (1769) - Nouvelles Annales de Voyage - 4~ Annee - 1843.

VAN VELTHEM, L. H. - O Parque Indígena de Tumucumaque - Bol. Mus.


Paraense Emílio Goeldi - Antropología n? 76 - 1980.

Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - Coleção Nicolai


www.etnolinguistica.org

193
DADOS SOBRE AS AUTORAS

SYLVIA CAIUBY NOVAES, nascida em Sao Paulo em 1949, iniciou sua pesquisa entre os índios
Bororo em 1970. Formou-se em 1971 pelo Departamento de Ciencias Sociais da Faculdade de
Filosofía, Letras e Ciencias Humanas da USP e recebeu , em 1980, o título de Mestre em Antro-
pología Social pela FFLCH da USP tendo apresentado o trabalho intitulado " Mulheres, Homens e
Heróis - dinamica e permanencia através do cotidiano da vida Bororo", sob orientar;:ao de
Thekla Hartmann, e que tem como tema principal a análise do grupo doméstico Bororo e sua
importancia para a organizar;:ao social desta sociedade. É desde 1974 professora do Departa-
mento de Ciencias Sociais da USP na área de Antropología. Fundou em 1979, juntamente com
outros antropólogos, indigenistas e educadores ligados a luta pela autodeterminar;:ao dos povos
indígenas o Centro de Trabalho Indigenista, entidade da qual é atualmente presidente. Desen-
volve para tese de doutoramento um projeto que tem como tema a questao da identidade étnica.

MARIA ELISA LADEIRA, 31 anos, antropóloga. Em 1974 iniciou sua pesquisa entre os Ramkoka-
mekra e Apaniekra, grupos Timbira do Maranhao, tendo se dedicado primeiramente ao estudo das
representar;:oes espar;:o-temporais. Em 1975 estendeu sua pesquisa aos Kraho, também do Grupo
Je Timbira, centrando sua preocupar;:ao na análise da organizar;:ao social, especialmente nas
questoes ligadas ao parentesco, nominar;:ao e alianr;:as matrimoniais. Em 1982 defendeu sua
dissertar;:ao de mestrado: "A troca de nomes e a troca de cónjuges: urna contribuir;:ao ao estudo
do parentesco Timbira" na área de Antropología Social da USP. Desde 1975 vem trabalhando na
área de educar;:ao indígena, tendo organizado material para alfabetizar;:ao em portugues para os
índios Kraho, Guarani e Txukarramae. É coordenadora, juntamente com Gilberto Azanha, de um
projeto de desenvolvimento comunitário entre os Kraho, vinculado ao Centro de Trabalho Indi-
genista, entidade da qual é também assessora.

ARACY LOPES DA SILVA, nascida em Bauru, Sao Paulo, em 1949, é , desde 1974, professora de
Antropología no Departamento de Ciencias Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciencias
Humanas da USP. Em 1972 iniciou suas pesquisas entre os Xavante do Mato Grosso, tendo se
dedicado primeiramente ao estudo da mitología e, mais tarde, a análise da organizar;:ao social,
especialmente a questoes ligadas a nominar;:ao e amizade formal. É autora de "Nomes e Amigos:
da prática Xavante a urna reflexao sobre os Je", tese de doutoramento em Antropología Social
pela Universidade de Sao Paulo, defendida em 1980. Coordenou a elaborar;:ao do livro A Questíio
da Educa~o lndfgena (Editora Brasiliense, SP, 1981 ), publica~o da Comissao Pró-lndio/ SP,
entidade a qual é filiada. Com Maria Carolina Y. Rodrigues, escreveu Histórias de Verdade, para
crianr;:as, sobre as sociedades indígenas no Brasil e sua problemática atual (no prelo).

LUX BOELITZ VIDAL nasceu em Berlim, Alemanha. Estudou na Franr;:a, Espanha e nos Estados
Unidos, onde obteve o título de Bachelor of Arts em Filosofía, Antropología e Teatro. Radicada no
Brasil desde 1956, foi professora no Liceu Pasteur. É, desde 1969, professora de Antropología no
Departamento de Ciencias Sociais da Universidade de Sao Paulo, instituir;:ao onde obteve os
títulos de Mestre e Doutor. Tem como áreas de interesse Teoría Antropológica, Índios do Brasil,
Sociedades Je e Etnoestética. É responsável pelo Museu Plínio Ayrosa da USP. É, atualmente,
Presidente da Comissao Pró-Índio/ SP. É autora do livro Morte e Vida de uma Sociedade lndfgena
Brasileira e de vários artigos sobre pintura corporal e plumáriá entre índios brasileiros.

CRISTINA SA. Nasceu em 1946, no Rio de Janeiro. É graduada ·em Arquitetura (Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro - 1970). e. Arqueología
(Faculdades Integradas Estácio de Sá - Rio de Janeiro - 1979). Com pós-graduar;:ao em Arqueo-
logia (Museu Nacional - Universidade Federal do Rio de Janeiro - 1980) e mestrado em História

195
da Arquitetura (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Sao Paulo - 1982).
Depois de ter trabalhado alguns anos em projetos de arquitetura, vem, desde 1976, se dedicando
ao ensino e a pesquisa. Atualmente, cursa doutorado em História da Arquitetura (Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Sao Paulo - Curso de Pós-graduac;ao em Estru\uras
Ambientais Urbanas) e desenvolve pesquisa sobre Habita<;:ao Indígena Brasileira, como bolsista do
CNPO - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

DOMINIOUE GALLO IS, 32 anos, antropóloQa, iniciou sua pesquisa entre os Waiapi do Amapá em
1977, com um estudo sobre a história deste povo, trabalho apresentado como dissertac;ao de
mestrado no Programa de Pós-graduai;:ao em Antropología Social da Universidade de Sao Paulo
em 1980. Atualmente prossegue sua pesquisa sobre esta sociedade Tupi, enfocando a atividade
xamanística. Na pesquisa para a elaborai;:ao de tese de doutoramento dedica-se a etnohistórica
dos povos indígenas do Baixo Amazonas e Amapá, desenvolvendo um estudo sobre o trabalho
indígena nas missoes religiosas de Marajó durante o século XVIII.

LUCIA HUSSAK VAN VEL THEM, museóloga, mestranda em Antropologia Social na Universidade
de Sao Paulo, assistente de pesquisa do Museu Paraense Emílio Goeldi no Pará . Fez estágios no
-
Museu de Folclore e no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista no Rio de Janeiro, neste
pesquisando plumária Tukano. Contratada pelo Museu Goeldi em 1975, efetuou pesquisa de
campo entre os Munduruku no sul do Pará e entre os Wayana-Aparai. Entre estes realiza atual-
mente estudos etnomuseológicos e de cultura material, tanto com relai;:ao aos aspectos tecno-
lógicos e etnográficos, como aos etnoestéticos, com enfase especial nos motivos decorativos. A
dissertai;:ao de mestrado enfoca estes aspectos a partir do estudo da cestaria Wayana-Aparai.
Trabalhos para a demarcai;:ao do Parque Indígena de Tumucumaque sao realizados desde 1979.
Publicac;oes: Plumária Tukano (1975); Representaryoes gráficas Wayana -Aparai (1976); O Parque
Indígena de Tumucumaque (1980); Arte Plumária do Brasil (1980), com outros autores.

196

Este livro foi impresso


( com filmes fornecidos pela Editora)
na Gráfica Editora Bisordi Ltda.,
a Rua Santa Clara, 54 (Brás),
Sao Paulo.
Na mesma cole9ao:

A Hispanidade em Sio Paulo, de Aracy A .


Amara!
Retratos Quase Inocentes, de Carlos Eugénio
Marcondes de Moura (org.), Aracy A . Amaral,
Carlos A . C. Lemos e Jean-Claude Bernardet.

Próxima publica9ao:

lnicia(:io ao Barroco Mineiro, de Affonso


Avila

Atendemos pelo Reembolso Postal:


Rua da Balsa, 559 Tel.: 857 9444
Cep. 02910 - Sao Paulo - SP
Esta coletanea trata da organizac;ao social do espac;o domés-
tico de algumas sociedades indí enas brasileiras. O objetivo
-s>

principal é fornecer da s e ogr icos sobre a casa e sua


construc;ao, além de. ostrar a perc pc;ao que tem os mem-
bros de urna determin das~ ~ade o espac;:o por eles habi-
-o

tado. Apesar dos artig s se d terem ais especificamente na


descri9ao e análise da a, odo apontam para a necessi-
dade de se verificar como unidade espacial aparece na
composic;:ao dos outros esp reconhecidos pelo grupo em
questao.
Por urna coincidencia que n deve ser desconsiderada - já
que a casa é, predominant 0
11T1
110
nte, de domínio feminino -
todos os artigas foram eser por mulheres e, ~ excec;ao de
urna arquiteta, todos os d is sao de autoria de antropó-
logas.
Há ainda urna característica '""''...... um a ser destacada: todos os
trabalhos sao o resul tato direto com a popu-
lac;:ao estudada; s ados d campo realizada ao
longo de vário nos cuJa co o Leitor, é faci-
litada pela fa iconografia a
ra, Ramkoka-
mekra, K .J.-~~~~~t--+-+--'-~..W......-L----T
güístico Je), .
Parakana ayana (Ca-
tibe), Bor s regi·oes do
Brasil: regi tre floresta e
cerrado e z 1gos procuram
abordar tam tac;ao social ao

Nobel
ISBN 85-213-0159-6 Edusp

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