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Eduardo CalBUCCI
JUCENIR Rocha

S OCIOLOGIA

anglo
SISTEMA DE ENSINO
Sociologia
Prof.:

Índice-controle de Estudo
Módulo 4

Aula 19 Identidade cultural – padronização e diversidade

Aula 20 Cultura, conhecimento e poder

Aula 21 Cultura, memória e história

Aula 22 Cultura, mídia e poder

Aula 23 Cultura brasileira – I

Aula 24 Cultura brasileira – II


Código: 82707248
anglo
SISTEMA DE ENSINO

CONSELHO EDITORIAL
Guilherme Faiguenboim
Nicolau Marmo

COORDENAÇÃO EDITORIAL
Assaf Faiguenboim

EDIÇÃO
Maria Ilda Trigo

ASSISTÊNCIA EDITORIAL
Creonice de Jesus S. Figueiredo
Kátia A. Rugel Vaz
Maria A. Augusta de Barros
Paula P. O. C. Kusznir
Silene Neres Teixeira Paes

ARTE E EDITORAÇÃO
Gráfica e Editora Anglo Ltda.

IMPRESSÃO E ACABAMENTO
Gráfica e Editora Anglo Ltda.

Gráfica e Editora Anglo Ltda.


MATRIZ
Rua Gibraltar, 368 - Santo Amaro
CEP 04755-000 - São Paulo - SP
(0XX11) 3273-6000
www.angloconvenio.com.br

Código: 82703248
2008
Módulo 4

CULTURA – AS CIÊNCIAS DOS HOMENS


(CULTURA E MÍDIA)
Aula
19
Identidade cultural – padronização e diversidade
Para debater
Observe a imagem e leia a letra da canção que segue:

Leo Caldas e Alexandre Belém. Foto do Maracatu Rural Cambinda Brasileira, com sede no en-
genho Cumbe, em Nazaré da Mata (Pernambuco), conhecida como a terra dos maracatus.

Etnia Não há mistérios em descobrir


(Chico Science e Lúcio Maia) O que você tem e o que você gosta.
Não há mistérios em descobrir
Somos todos juntos uma miscigenação O que você é e o que você faz.
E não podemos fugir da nossa etnia:
Índios, brancos, negros e mestiços, Maracatu psicodélico,
Nada de errado em seus princípios, Capoeira da pesada,
Bumba meu rádio,
O seu e o meu são iguais,
Berimbau elétrico,
Corre nas veias sem parar,
Frevo, samba e cores,
Costumes, é folclore, é tradição
Cores unidas e alegria,
Capoeira que rasga o chão,
Nada de errado em nossa etnia.
Samba que sai da favela acabada, (Chico Science & Nação Zumbi, Afrociberdelia, 1996.)
É hip hop na minha embolada.
Entendendo etnia, de acordo com o Dicionário
É o povo na arte, Houaiss, como um grupo “de indivíduos que se diferen-
É arte no povo, cia por sua especificidade sociocultural, refletida prin-
E não o povo na arte cipalmente na língua, religião e maneiras de agir”, ana-
De quem faz arte com o povo. lise o significado de versos como “não podemos fugir
da nossa etnia” ou “nada de errado em nossa etnia”. O
Por de trás de algo que se esconde, que pode haver de errado em uma etnia? Por que acei-
Há sempre uma grande mina de conhecimentos e tamos a idéia de que há etnias certas e outras erradas?
sentimentos. Que visão de mundo estaria por trás dessa concepção?

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Um pouco de teoria As teorias deterministas, a despeito da inconsis-
tência de seus princípios, serviram para emprestar
Unidade na diversidade credibilidade a toda sorte de preconceitos: do arianis-
No módulo 1, falamos um pouco sobre o concei- mo às crenças pueris de que as pessoas são mais
to de cultura. Mostramos que, para os antropólo- preguiçosas em países tropicais. Trata-se de uma for-
gos, a cultura engloba os padrões de comporta- ma sofisticada de os grupos que detêm o poder as-
mento, as crenças e os valores, os conhecimentos e sumirem uma postura de superioridade em relação
os costumes de cada grupo social. É por meio dela a outros grupos, condenados a uma inferioridade
que os membros de uma mesma coletividade inter- inexorável.
pretam o mundo de modo mais ou menos pareci- Atualmente, como aponta muito bem Roque de
do, uma vez que a cultura também remete a formas Barros Laraia, as diferenças entre os agrupamentos
abstratas de pensamento, aos símbolos pelos quais humanos:
compreendemos e avaliamos o que ocorre a nossa
volta. não podem ser explicadas em termos das limi-
Não existem, como já dissemos, culturas inferio- tações que lhes são impostas pelo seu aparato bio-
res ou superiores. Existem culturas diferentes. O lógico ou pelo seu meio ambiente. A grande quali-
que talvez aproxime todos os grupos humanos seja dade da espécie humana foi a de romper com suas
a busca pela identidade cultural, e isso pressupõe a próprias limitações (…). Tudo isso porque difere
afirmação das diferenças, das especificidades, das dos outros animais por ser o único que possui cul-
particularidades de uma comunidade. Assim, há uma tura.
unidade na diversidade: a unidade entre as cultu-
ras se dá exatamente pela sua procura constante pe- É certo que o “aparato biológico” ou o “meio am-
la diversidade. Em outras palavras: o que nos iguala biente” podem influenciar a conduta humana. Mas
é o fato de sermos diferentes e de lutarmos pela afir- não se trata de determinismo. Até porque o que
mação dessa diferença. mais influi em nosso comportamento é a cultura,
Mas o fato de vivermos num mundo de diferen- que consiste num conjunto de valores e crenças vi-
ças não nos impede de encontrar elementos cultu- vos, dinâmicos, do qual o indivíduo participa ativa-
rais praticamente universais. É verdade que o mo- mente. Os homens são, ao mesmo tempo, construí-
do como esses elementos universais se concreti- dos pela sua cultura e construtores dela.
zam em cada cultura é bastante diverso. Vejamos o
caso da religiosidade, por exemplo: a maioria dos
povos estudados pelos antropólogos cultiva algu- Cultura e dominação: padronização cultural
ma forma de prática religiosa. Embora essas práti-
cas variem de cultura para cultura, é inegável que
todas elas têm a mesma finalidade: aproximar o ser
humano de uma realidade transcendente, que ele
acredita existir.

Contra todos os determinismos: a cultura


Durante algum tempo, sobretudo na virada do
século XIX para o XX, aceitou-se a validade de uma
teoria pseudocientífica chamada determinismo. Os
deterministas defendiam que o comportamento hu-
mano era condicionado exclusivamente por três fa-
tores: a raça, o meio e o momento histórico. Os
homens seriam menos indivíduos do que um pro-
duto da etnia a que pertencem, da região em que Anna Bella Geiger. Brasil nativo / Brasil alienígena. Fotografia,
1977.
vivem e da época em que nasceram. Não há von-
tade; não há transgressão; não há surpresa. Tudo
ocorre como foi predeterminado por fatores que Quando admitimos que a cultura interfere dire-
não podemos controlar. tamente em nossa conduta, ainda que de um modo

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não-determinista, aceitamos também que pessoas Antropofagia como resistência
pertencentes a um mesmo grupo seguem os mes-
mos padrões culturais, uma vez que estão sujeitas
às mesmas coerções.
O Dicionário de Sociologia, da editora Globo,
define os padrões culturais como:

formas relativamente homogêneas e socialmente


aceitas de pensamentos, sentimentos e ações, as-
sim como objetos materiais que lhes são correla-
tos. Um padrão cultural resulta de interação social
e exerce função de conservar uma forma de orga-
nização social.

Assim, a padronização é inevitável, pois é uma


conseqüência natural do fato de as pessoas per-
tencerem a um mesmo grupo. A afirmação da iden-
tidade cultural passa pela existência de um padrão
de conduta. No entanto, ela é perigosa, na medida
em que pode tornar-se uma regra a ser seguida.
Tomada como imposição, a padronização pode le-
var aos etnocentrismos, pois os “diferentes” (ou seja,
aqueles que não seguem as normas preestabele-
Caetano Veloso vestindo Parangolé P4 capa 1, criação de Hélio
cidas) podem ser tachados de inferiores. Além dis- Oiticica.
so, um povo mais forte que outro – econômica ou
militarmente – pode tentar impor seus padrões cul- A cultura não é um bloco monolítico, imune a
turais como forma de aumentar seu raio de domi- mudanças. Ao contrário, ela é viva, dinâmica e po-
nação. de se alterar devido a fatores internos ou externos.
No mundo de hoje, embora ainda ocorram Neste último caso, tem-se a aculturação: processo
guerras, as imposições culturais ocorrem de modo de modificação cultural por meio do qual um gru-
mais sutil. Por meio do cinema, da música, da im- po se adapta a outra cultura. Esse processo pode
prensa e do poder do capital, por exemplo, os Es- significar a perda de traços culturais significativos,
tados Unidos conseguiram tornar o american way como ocorreu com os índios brasileiros, ou pode
of life popular em diversos países. A própria glo- ser menos traumático, o que caracterizaria a mera
balização, ao diminuir as fronteiras culturais por troca cultural.
meio das facilidades de acesso à informação, pos- Todas as culturas, atualmente, mantêm entre si
sibilitando cada vez mais intercâmbios entre povos um intenso intercâmbio, pois, como nota Roque de
distantes, gera uma forma de padronização cultu- Barros Laraia:
ral.
Interessa aos detentores dos meios de produção
É praticamente impossível imaginar a existência de
no mundo capitalista ampliar os mercados consumi-
um sistema cultural que seja afetado apenas pela
dores. Para isso, é necessário que as pessoas pas-
mudança interna. Isto somente seria possível no
sem a ser todas iguais, tenham os mesmos gostos,
caso, quase absurdo, de um povo totalmente isola-
as mesmas crenças e os mesmos valores. Em outras
do pelos demais.
palavras, uma cultura altamente padronizada é ga-
rantia de aumento dos lucros daqueles que detêm os
meios de produção. Aqui vem o grande paradoxo da cultura con-
Mas isso não quer dizer que as pessoas se sub- temporânea. De um lado, a intensificação das trocas
metam passivamente a esse processo de padroni- culturais, a aculturação “comandada” pelos povos
zação cultural: embora não seja tarefa fácil, os po- mais poderosos e a globalização aceleram a padro-
vos geralmente buscam modos de resistir à do- nização cultural. De outro, reafirma-se a necessidade
minação. de cada grupo manter a própria identidade, o que

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implica destacar diferenças – processo que nem
A Conferência Geral da Organização das Nações
sempre se dá de forma pacífica. Lembremos que,
Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura, em
além das motivações políticas e econômicas, as di-
sua 33-ª reunião, celebrada em Paris, de 03 a 21 de
ferenças culturais costumam estar na base de mui-
outubro de 2005,
tos conflitos armados (exemplo disso são as guer-
ras étnicas). Afirmando que a diversidade cultural é uma carac-
Mas não apenas de conflitos (armados ou não) terística essencial da humanidade,
vive a resitência cultural: uma das formas mais inte- Ciente de que a diversidade cultural constitui patri-
ressantes de resistência que conhecemos é a antro- mônio comum da humanidade, a ser valorizado e
pofagia. Proposta por Oswald de Andrade em 1928, cultivado em benefício de todos,
no Manifesto antropófago, esse movimento propu-
(…) Ciente de que a diversidade cultural se fortalece
nha uma nova maneira de enxergar a relação entre
mediante a livre circulação de idéias e se nutre das
a cultura brasileira e a estrangeira. Num país misci-
trocas constantes e da interação entre culturas,
genado, marcado por sincretismos étnicos, religiosos
e políticos como o Brasil, é muito difícil falar em pa- (…) Sublinhando o papel essencial da interação e da
dronização cultural. Oswald propõe que ser brasi- criatividade culturais, que nutrem e renovam as expres-
leiro não é nem fechar os olhos para a cultura es- sões culturais, e fortalecem o papel desempenhado
trangeira nem aceitá-la de modo passivo e submisso. por aqueles que participam no desenvolvimento da
Mais do que isso: a idéia é reconhecer sua existência cultura para o progresso da sociedade como um todo,
e devorá-la, digeri-la antropofagicamente, de modo (…) Adota, em 20 de outubro de 2005 , a presente
que se neguem, simultaneamente, a xenofobia e o Convenção.
imperialismo cultural. O resultado desse processo se-
ria um elemento cultural inteiramente novo, fruto de
Adotar uma convenção como essa significa afir-
um embate que se dá (e se resolve) no dinamismo da
mar a importância da diversidade cultural, do di-
própria cultura.
reito à identidade cultural e das trocas culturais e,
Vejam-se as palavras iniciais do Manifesto an- sobretudo, criticar os excessos da padronização cul-
tropófago: tural.

Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economi-


camente. Filosoficamente. exercícios
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos
os individualismos, de todos os coletivismos. De to- Em novembro e dezembro de 2006, reali-
das as religiões. De todos os tratados de paz. zou-se no Brasil o II Fórum Cultural Mundial.
Numa conferência intitulada “Hegemonia e di-
Tupi or not tupi that is the question. (…)
versidade cultural”, o então Ministro da Cul-
tura Gilberto Gil afirmou:
A antropofagia, pela sua postura revolucionária
A noção de diversidade pode se contrapor à rea-
e provocativa, foi influência decisiva, por exemplo,
lidade das hegemonias (…), mas gostaria de frisar a
para o tropicalismo, movimento artístico que, em
vocês que não podemos descartar a validade do que
1968, mudou os rumos da cultura brasileira.
chamamos de humano, mesmo que isso esteja infini-
Oswald admitia, já em 1928, que as trocas cul-
tamente em aberto, esvaziado do velho conteúdo
turais poderiam ser um processo de enriquecimen-
civilizador. Que a humanidade signifique entre nós
to da cultura brasileira. Hoje, inúmeros organismos
esse desejo de completar-se no outro. Seja no vizinho,
internacionais reconhecem que essas trocas são uma
ou no desconhecido. Que possamos nos completar
maneira de os povos interagirem sem perder a
uns aos outros para além da tolerância (…).
identidade.
(http://diplo.uol.com.br/2007-01,a1481)

A Unesco e a proteção das diversidades culturais 1. Logo no início do texto há uma palavra que po-
de ser associada à idéia de padronização cultural.
Em Paris, a 20 de outubro de 2005, a Unesco Que palavra é essa? Explique sua resposta.
adotou a Convenção sobre a proteção e promoção
Trata-se da palavra hegemonia. Ao falar da “realidade
da diversidade das expressões culturais. O docu-
mento começa da seguinte forma: das hegemonias”, em oposição à “noção de diversidade”,

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o Ministro reconhece a tendência contemporânea de O texto a seguir é um fragmento do artigo
diluir a diversidade cultural na uniformização de pensa- “Não há fronteira que não se ultrapasse”, de
Edouard Glissant, e foi publicado no Le monde
mentos e valores, de acordo com as ideologias domi-
diplomatique, em outubro de 2006:
nantes. Convivemos com as fronteiras não como símbolos
e elementos do impossível, mas como lugares de pas-
sagem e de transformação. Na Relação, a influência
mútua das identidades, individuais e coletivas, requer
2. A despeito da diversidade cultural, Gil reconhe- uma autonomia real de cada uma dessas identidades.
ce haver um valor universal que igualaria todas A Relação não é confusão ou diluição. Posso mudar
as pessoas. Que valor é esse? me transformando com o outro, sem me perder nem
me desnaturalizar. Por isso temos necessidade de fron-
Esse valor está associado a tudo o que “chamamos de teiras, não mais para nos deter, mas para exercermos
humano, mesmo que isso esteja infinitamente em aber- essa livre passagem para o outro, para salientar a mara-
to”. Para Gil, a humanidade deveria ser entendida
vilha do aqui-lá.
(http://diplo.uol.com.br/2006-10,a1425)
como o “desejo de completar-se no outro. Seja no vizinho,
ou no desconhecido.” A partir das idéias de Glissant, responda:
1. Qual a importância cultural das fronteiras entre
países?
As fronteiras são importantes porque ajudam a garan-
3. Tornou-se comum, nas últimas décadas do sé- tir “uma autonomia real” às identidades culturais.
culo XX, marcadas pelo “politicamente correto”,
falar-se na necessidade de tolerância em relação
às diferenças culturais. Nesse contexto, que sen-
tido adquire a afirmação de Gil de que devemos
nos completar “para além da tolerância”? 2. Que relação existe entre as fronteiras e as tro-
cas culturais?
Gil propõe que se deve repensar a questão da tolerância:
As fronteiras são “lugares de passagem e de transfor-
“tolerar” o diferente significa, ainda, colocar-se numa
mação”, pois permitem “a influência mútua das iden-
relação de superioridade: eu “tolero” o diferente, apesar
tidades”. Essa influência “não é confusão ou diluição”,
de continuar achando que eu sou “o certo”. O contato
pois é possível que ocorram mudanças culturais sem
com o outro deve dispensar as relações de poder, consti-
que as identidades se percam. As fronteiras, assim, não
tuindo-se num contato entre iguais, que se “estranham” e
são obstáculos, mas uma “livre passagem para o outro,
se influenciam mutuamente.
para salientar a maravilha do aqui-lá.”
Tarefa mínima

3. As fronteiras facilitam ou dificultam o inter-


câmbio e as mudanças culturais?
Para Glissant, as fronteiras facilitam o intercâmbio cul-
tural, pois nos colocam frente a frente com o outro.
Dessa relação com o outro, nascem as trocas culturais
(motivadas por fatores externos).

Fronteira entre Tijuana (México) e San Diego (EUA).

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Tarefa complementar tins é interessante: “Até que ponto estamos dis-
O fragmento a seguir foi extraído de “A revo- postos a defendê-la, quando ela entra em con-
lução do Outro”, de Antonio Martins, também flito com outros valores e interesses?”.
publicado no Le monde diplomatique, em ja- Pensemos especificamente no caso do Brasil.
neiro de 2007: Num país como o nosso – de miscigenação, de
sincretismo religioso, de multiculturalismo, de
Um paradoxo notável marca, há muito, o conceito enorme extensão territorial –, será que existe
de diversidade. Ele está cada vez mais incorporado, respeito à diversidade? Como os diversos Bra-
como valor positivo e desejado, em vastos terrenos sis (o sertanejo, o caipira, o sulino) dialogam en-
da vida social. Nas artes e produtos culturais, a antiga tre si? Como as pessoas dos morros, dos man-
preferência acrítica pelo que era proveniente do Nor- gues, do sertão e das cidades convivem?
te do planeta vem sendo substituída pela apreciação Em sua opinião, no Brasil, estamos dispos-
internacional, e já não restrita a pequenos círculos, de tos a defender a diversidade cultural acima de
novas tradições: o cinema iraniano, chinês ou argen- qualquer coisa? Baseie sua resposta em exem-
tino; os músicos de Cuba ou do Mali; o design da plos concretos, extraídos de sua vivência.
África; a culinária da Índia ou do Peru, entre tantas
outras. Nos comportamentos, cultivam-se as várias A resposta não está fechada e pode resultar tanto de
formas de identidade sexual e desejam-se as cidades uma reflexão pessoal quanto de um amplo debate com a
multiétnicas. Na política, emergem os Fóruns Sociais, turma. No Manual do Professor há sugestões para o en-
que celebram a possibilidade de transformar o mundo
caminhamento da discussão.
articulando distintas ações de múltiplos sujeitos so-
ciais – e estimulando desde as grandes mobilizações
globais até as ações quotidianas que vão demons-
trando, por meio do exemplo, que é possível organizar
a sociedade com base em valores pós-capitalistas.
E, no entanto, pouco se reflete sobre os sentidos
da diversidade? Até que ponto estamos dispostos a
defendê-la, quando ela entra em conflito com outros
valores e interesses? As práticas concretas fornecem
as respostas de cada um. Durante décadas, os gover-
nos dos Estados Unidos procuraram se apresentar como
grandes defensores da “liberdade de escolha” – por-
que ela podia servir de contraponto à homogeneidade
e ao dirigismo que prevaleciam no bloco soviético. Em LEITURA COMPLEMENTAR
2005, porém, Washington guerreou até o último mo-
mento para tentar impedir que fosse aprovada, na
A Guerra de Canudos:
Unesco, a Convenção Mundial para Promoção e De-
um caso de resistência cultural
fesa da Diversidade Cultural. Temia que as sociedades
e governos se apoiassem neste princípio para estimu-
lar seus próprios criadores, ao invés de consumir eter-
namente produtos como o cinema de Hollywood, a
Coca-Cola ou o McDonalds. O pragmatismo freqüen-
ta outros territórios. No próprio Fórum Social Mundial,
não é raro surgirem propostas que sugerem “organi-
zar” a imensa diversidade do encontro, escolhendo,
em nome da eficácia, um pequeno conjunto de cam-
panhas “centrais” – ao invés de cultivar as milhares
que surgem a cada ano. (…)
(http://diplo.uol.com.br/2007-01,a1499)

Atualmente, é consenso defender a diversi- Desenho do povoado de Canudos, feito por Euclides da Cunha.
dade cultural como elemento fundamental pa-
ra garantir a pluralidade de crenças e valores Quando o Tenente Pires Ferreira deu a ordem de
pelo planeta, mas a pergunta de Antonio Mar- fogo contra a jagunçada, no povoado de Uauá, a 21

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de novembro de 1896, seguramente não imaginava ra, entretanto, revela que o conflito deve suas ori-
estar deflagrando um dos episódios mais sangren- gens a muito mais fatores do que às lembranças
tos e controvertidos da História do Brasil. Estava retrógradas da monarquia.
iniciada a Guerra de Canudos, na Bahia. A observação das condições de vida nos sertões
Quando a guerra começou, o Presidente da Repú- do Brasil, em fins do século passado, não pode dei-
blica era o paulista Prudente de Morais. Vivia-se o xar de enfatizar a profunda miséria em que viviam as
primeiro governo civil da República, depois do con- populações do campo. Dito assim, de maneira fria,
turbado período dos marechais Deodoro e Floriano pode parecer um dado insuficiente para a caracteri-
Peixoto. O mercado sentia ainda os efeitos da crise zação das causas de um movimento como esse.
do encilhamento. Na Europa, uma crise econômica Acrescente-se, no entanto, que a expectativa média
ameaçava a estabilidade dos preços do café. E, co- de vida da população dos sertões nordestinos, no
mo desgraça pouca é bobagem, os militares florianis- final do século XIX, pouco passava dos trinta anos
tas não se conformavam com a perda do poder e o de idade. Uma média ligeiramente acima da esperan-
fracasso da industrialização. O momento era um ça de vida dos europeus que viveram o apogeu do
tanto delicado para a consolidação da República. O feudalismo, dez séculos antes. Convenhamos: havia
país passava por uma transição entre a Revolta da algo errado.
Armada, de inspiração monarquista, e a gestação E como é que aquela gente costumava reagir a
da política do “café-com-leite”. condições tão desfavoráveis de vida? A forma mais
Mas como seria possível que sertanejos nordes- comum era a migração. Costume, aliás, até hoje pra-
tinos, tidos como um bando de fanáticos atrasados, ticado: abandonar a terra de origem atrás de traba-
sem qualquer armamento moderno ou treinamento lho e felicidade. A virada do século conheceu também
militar sofisticado, pudessem bater-se contra o exér- o cangaço. Uma saída violenta, normalmente origi-
cito de uma nação e desafiar os herdeiros dos heróis nada pela disputa de terras, e que resvalou para o
da Guerra do Paraguai? Seria viável que aquele Bra- banditismo ou para um “robinhoodismo” tropical:
sil arcaico e simplório vencesse o Brasil urbano e vol- tirar dos ricos para dividir com os pobres a parca
tado para o século XX? Esta foi uma das questões renda dos sertões. É da época a origem do bando do
que se colocaram de imediato para Euclides da Cu- Lampião, nos lados de Serra Talhada. Uma terceira
nha, correspondente do jornal O Estado de São Paulo, reação contra a miséria extrema é a que nos interessa:
enviado àquelas distantes paragens do Cocorobó, a saída chamada messiânica.
nos sertões da Bahia. Bem cedo, no entanto, Euclides A profunda religiosidade do povo do campo,
se perguntava: o que é o arcaico e o que é o moderno? quando combinada com o quadro de miséria e con-
Os sertões (1902), obra em que Euclides expõe traposta à violência dos “coronéis”, freqüentemente
sua visão sobre o que houve em Canudos, extrapo- tem produzido movimentos de caráter messiânico.
la os limites da guerra movida contra Antônio Con- Veja-se o caso dos beatos milagreiros que perambu-
selheiro e seus seguidores, e busca elucidar as ori- lam pelo sertão, muitas vezes acompanhados de se-
gens de um fenômeno sociológico complexo, que guidores. Daí vem a tentação de classificar o Con-
deixou nuas as contradições da sociedade brasilei- selheiro como mais um desses beatos, só que em es-
ra. Trata-se de uma reflexão crítica sobre os graves cala aumentada pelas circunstâncias da História.
problemas que impedem o desenvolvimento e sobre Que bom seria se as coisas fossem tão simples…
as forças sociais que insistem em conservar estru- Normalmente, os movimentos messiânicos são
turas de conflito, desde que úteis a seus interesses. mobilizações populares, de base essencialmente ru-
Mas a lucidez sociológica e o brilho literário de ral, que procuram organizar populações pobres con-
Euclides não foram fortes para impedir a manipu- tra a ordem social vigente, sem, contudo, recorrer
lação de informações que condenou a história da a motivações políticas; seus líderes optam pela mo-
chacina de Canudos a interpretações simplistas e bilização a partir de mensagens religiosas. A refe-
mistificadoras, senão mesmo ao mero esquecimen- rência a um mundo místico de fartura e paz é cons-
to. A visão do “bando de fanáticos seguidores de um tante. O messianismo provém da espera do líder,
louco visionário que pregava a volta à monarquia” do “messias”, realizador do novo mundo. As pessoas
serviu durante muito tempo à glorificação dos “he- esperam, então, por um elemento externo ao grupo
róicos militares que sacrificaram a própria vida na que venha ajudá-las a superar suas dificuldades.
defesa dos ideais republicanos perigosamente amea- A história do Conselheiro e do Movimento de
çados”. Um levantamento das condições em que se Canudos contém elementos que podem ser conside-
desenvolveram o movimento social e a própria guer- rados messiânicos e características que contradi-

ensino médio – sociologia 10 sistema anglo de ensino


zem o conceito cristalizado. Se, por um lado, a or- O caráter pacífico do movimento não esvazia sua
ganização do arraial passa necessariamente pela contestação aos costumes estabelecidos. Das prega-
religiosidade mobilizadora da população sertaneja, ções de um beato que poderia ter sido apenas mais
o líder não pode ser considerado exatamente um um dentre tantos, nasceu um líder político. Mesmo
elemento externo ao grupo social. O “messias” não que seu discurso não fosse essencialmente político,
parecia esperado; ele estava materializado na figura sua ação organizatória foi. Surgiu assim uma lideran-
do líder teocrático em que se constituiu o Conselhei- ça estranha ao jogo político das oligarquias. Havia
ro. Como se pode ver, a compreensão do problema que ser absorvida ou destruída. A liderança do Con-
é complexa. selheiro não se apresentava como democrática, já
Mas por que Antônio Conselheiro tornou-se tão que sua palavra era recebida e assimilada pelo grupo
perigoso, a ponto de os coronéis moverem os canhões como a do chefe escolhido pelo destino e aceito pelos
da República contra seus seguidores e a Igreja fe- eleitos para a construção do mundo novo, sem ex-
char os olhos ao genocídio? Não parece que Antônio ploração. Só ele poderia conduzir o povo eleito à ter-
Vicente Mendes Maciel tenha sido um simples bea- ra prometida, em que “o sertão seria mar e jorraria o
to pregador, nem tampouco o fanático enlouqueci- leite das serras”, visto que só ele já havia conseguido
do defensor da volta à monarquia, a partir do nú- arrancá-los do domínio dos coronéis e apontado o
cleo do Belo Monte, em Canudos. caminho para o fim do mundo da miséria e do man-
Até que ponto o Movimento de Canudos amea- donismo dos senhores. Nos limites daquela cultura, a
çava o status quo da sociedade nordestina é uma figura do Conselheiro parecia se confundir com a do
questão difícil de responder. É ponto pacífico que próprio D. Sebastião, salvador do povo de Deus. Ele
não agrada às elites dominantes qualquer mobiliza- era o messias. Os novos tempos já estavam começan-
ção popular fora de seu controle. Mas não consta do. Como pensar em voltar atrás? Se a República mo-
que as pregações do Conselheiro tenham chegado à via suas forças contra seu líder e seu Belo Monte dos
defesa da luta armada contra o Estado pela restau- Canudos, a República era o mal. E seus militares eram
ração da monarquia no Brasil. Com exceção de pe- os agentes do fim do mundo. Havia que resistir.
quenos conflitos com a polícia por causa de impos- Se esse raciocínio já era, por si só, difícil de ser
tos cobrados dos sertanejos e das querelas com os aceito pelo meio urbano burguês, imagine-se nos
bispos da Bahia, o movimento pode ser classificado meios militares florianistas jacobinos, que sonhavam
como pacífico. Principalmente após a fixação do gru- cegamente com a retomada do poder. Tentaram usar
po nas baixadas do Vaza Barris e nos morros onde Canudos contra o governo Prudente e foram usados
crescia a favela, uma pequena árvore que fornece para a glória dos republicanos paulistas. O Florianis-
boa madeira para a marcenaria. Por que a sociedade mo morreu em Canudos junto com Antônio Conse-
dominada pelos coronéis latifundiários não podia ad- lheiro. Os grandes vencedores não foram à guerra;
mitir que aquela comunidade vivesse pacificamente mas gozaram dos frutos de sua vitória nos luxuosos
sua vida? salões de chá da República, regada a café-com-leite.

ensino médio – sociologia 11 sistema anglo de ensino


Aula
20
Cultura, conhecimento e poder
Para debater

Ester Grinspum. Sem título, lápis sobre papel.

O trabalho da artista plástica brasileira Ester Neste excerto, bem como em diversas outras pas-
Grinspum coloca, de maneira muito simples, uma sagens de Vidas secas, Fabiano admite ser “bruto”.
questão muito cara à Sociologia (e que será objeto Desse modo, ele se apresenta como um inculto, que
de estudo desta aula): as relações entre conhecimen- “nunca havia aprendido”, que “não sabe falar direi-
to e poder. to” e que, por isso, pertence às camadas sociais me-
Comecemos nossa reflexão com a leitura do frag- nos privilegiadas. A pergunta que ele faz tem uma
mento a seguir, extraído do romance Vidas secas. profundidade sociológica notável: ser pobre, ser sim-
Nessa passagem, Fabiano é arbitrariamente preso, ples, não ter estudado é motivo para meter “um ho-
após um mal-entendido entre ele e um soldado. O mem na cadeia”?
vaqueiro não consegue explicar-se diante das au- A resposta óbvia é “não”. Mas ficam outras ques-
toridades policiais, toma uma surra e acaba fican- tões, que discutiremos nessa aula: quais as possíveis
do uma noite na cadeia. Eis suas reflexões sobre o relações entre poder e cultura? A quem “pertence”
caso: uma cultura? A uma classe social? Existe um mo-
nopólio da cultura? Por quê? Qual o motivo da difi-
Era um bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, culdade de acesso dos pobres a certos bens culturais?
não sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era?
Então mete-se um homem na cadeia porque ele não Um pouco de teoria
sabe falar direito? Que mal fazia a brutalidade dele? Vi-
Cultura e conhecimento
via trabalhando como um escravo. Desentupia o bebe-
douro, consertava as cercas, curava os animais – apro- É comum que as pessoas entendam cultura no
veitara um casco de fazenda sem valor. Tudo em ordem, seu sentido mais popular, ou seja, como a ilustra-
podiam ver. Tinha culpa de ser bruto? Quem tinha cul- ção de uma pessoa: “culto” é aquele que tem conhe-
pa? cimentos sobre arte, estuda música clássica, fala
(Graciliano Ramos, Vidas secas.) mais de um idioma ou compreende o mundo da

ensino médio – sociologia 12 sistema anglo de ensino


política. No sentido mais técnico – do modo como A cultura e o conhecimento estão sempre sendo
a palavra é usada na Antropologia –, cultura ad- construídos e, por isso, são avessos a qualquer for-
quire outro significado. Waldenyr Caldas, por exem- ma de sistematização estática e perene. Até porque
plo, afirma: são criações coletivas. Não é apenas o indivíduo,
mas todo o grupo social que os produz.
Cultura, quando aplicada ao nosso estilo de vida, ao Dentro de cada cultura, existem certos “conheci-
convívio social, nada tem a ver com a leitura de um mentos” que costumam ser mais valorizados do que
livro ou aprender a tocar um instrumento, por exem- outros. Por exemplo, na cultura ocidental – sobre-
plo. Na realidade, o trabalho do antropólogo (…) co- tudo urbana –, aquilo que se aprende numa uni-
meça pela investigação das culturas, ou seja, pelo modo versidade para exercer a medicina ou o direito con-
de vida, pelos padrões de comportamento, sistemas figura um tipo de Saber desejado por quase todos
de crenças característicos de cada sociedade. Nou- os indivíduos. No entanto pessoas que nunca che-
tras palavras, pode-se dizer que nenhuma sociedade, garam ao ensino superior podem possuir outros
nenhum povo (…) jamais agirá de forma idêntica à saberes (como cozinhar ou dirigir um trem) igual-
dos demais. mente importantes para a vida social. E qual a re-
lação entre essas formas de conhecimento?
Se a cultura é, como vimos, um elemento essen-
cial para definir a identidade de um grupo social, Saber e saberes: uma questão de poder
pois cada povo tem a sua, é preciso lembrar que os
membros desse grupo vão incorporando essa iden-
tidade naturalmente, muitas vezes sem terem cons-
ciência disso.
Seja pela família, seja pela escola, seja pela lín-
gua que falamos, vamos adquirindo uma maneira
de pensar e agir que não é exatamente individual,
já que as demais pessoas do grupo também têm
visões de mundo parecidas. É isso que define a cul-
tura.
Como o mundo está em constante mudança, os
valores também mudam, as crenças também mu-
dam, a cultura também muda. Os padrões culturais
se alteram à medida que os indivíduos começam a
se comportar de maneira diferente. O que é natu- Gary Hill, detalhe da instalação Eu acredito que é uma imagem
na luz de outra, 1991/92. A imagem pode ser entendida como
ral. Nas palavras de Camões: “Mudam-se os tem- uma alegoria de nossa relação com o conhecimento. Afinal, até
pos, mudam-se as vontades”. que ponto “ser” é “saber”?
Muitas das mudanças culturais estão associadas
à noção de conhecimento. Entre os vários senti- Quando se fala em Saber (com letra maiúscula
dos desse termo, um é mais importante para nós: mesmo), vem à cabeça a idéia de um tipo de conhe-
“o conjunto das informações e princípios arma- cimento institucionalizado, aceito por grande parte
zenados” pelos povos ou por toda a humanidade. do grupo como indiscutível. É claro que isso só ocor-
Acontece que o conhecimento humano é altamente re porque esse conhecimento é referendado pelas
dinâmico: a eletricidade, os automóveis, os aviões, elites sociais. Marilena Chauí é taxativa nesse ponto:
as bombas nucleares, os computadores – só para
ficar com invenções recentes – provam isso. E uma Para a classe dominante de uma sociedade, pensar
parte importante da cultura advém do conheci- e expressar-se é coisa fácil: basta repetir idéias e
mento. Por isso, as informações a que temos aces- valores que formam as representações dominantes
so e os princípios que seguimos (melhor dizendo: o da sociedade (…) [e] reiteram o senso comum que
conhecimento que possuímos) também ajudam a permeia toda a sociedade e que constitui o código
definir nossa identidade. imediato de explicação da realidade, tido como
Portanto os homens são, ao mesmo tempo, pro- válido para todos.
dutos e produtores de sua cultura e do seu conheci-
mento. Ter cultura ou ter conhecimento não é do- É isso que justificaria a tese, ainda de acordo
minar um número predeterminado de informações. com Chauí, de que:

ensino médio – sociologia 13 sistema anglo de ensino


membros dessas elites se interessassem pela cul-
a cultura é algo que alguns fazem e possuem enquan-
tura das classes trabalhadoras. O problema é a exis-
to os demais a recebem passivamente. Com essa pers-
tência de uma espécie de censura cultural de classe.
pectiva, simplesmente aderimos à forma atual da ideo-
Caldas, sobre isso, escreve:
logia, a ideologia da competência, que divide a socie-
dade entre aqueles que sabem, e por isso mandam, e
Não é à toa (…) que membros de outras classes soci-
aqueles que não sabem, e por isso obedecem.
ais procurem se distanciar de produtos culturais da
classe operária, muito embora às vezes (como é caso
Logicamente, para as classes dominantes, que de- da música sertaneja) até gostem de alguns deles.
têm o Saber (definido por elas mesmas), é muito fácil
fazer uma distinção entre o “culto” e o “inculto” – o
Na verdade, até o gosto é um valor cultural. Ele
que, na verdade, pressupõe a distinção entre domi-
está ligado ao tipo de cultura que valorizamos e, por-
nadores e dominados, entre as elites e o povo. Dessa
tanto, à classe social a que pertencemos. Não gosta-
distinção, Chauí extrai três conclusões:
mos ou deixamos de gostar de algo por razões pura-
mente estéticas. Nosso interesse por certos produtos
1) a cultura e as artes distinguiram-se em dois tipos
culturais depende muito do ambiente em que vive-
principais: a erudita (ou de elite), própria dos intelec-
mos e das formas de conhecimento a que tivemos
tuais e artistas da classe dominante, e a popular, pró-
acesso. Daí vem o incômodo de admirar coisas que
pria dos trabalhadores urbanos e rurais;
nosso grupo rejeita e a quase “obrigação” de cele-
2) quando pensadas como produções ou criações do brar o Saber, os valores instituídos. Estamos diante
passado nacional, formando a tradição nacional, a do que poderíamos chamar de coerções culturais.
cultura e a arte populares receberam o nome de fol-
clore, constituído por mitos, lendas e ritos popula- A cultura científica e o problema da “verdade”
res, danças e músicas regionais, artesanatos, etc.;
Um exemplo de Saber é tudo aquilo que se apren-
3) a arte erudita ou de elite passou a ser constituí- de nas universidades. De uma maneira geral, nin-
da pelas produções e criações das belas-artes, con- guém desmerece a cultura profissional, o conheci-
sumidas por um público de letrados, isto é, pessoas mento, os anos de estudo de um médico, de um en-
com bom grau de escolaridade, bom gosto e con- genheiro, de um advogado ou de um professor.
sumidoras de arte. Todos eles, de uma maneira geral, são portadores do
que poderíamos chamar de cultura científica.
Assim, quem pertence à classe dominante simples- Especialmente na sociedade brasileira, chegar à
mente despreza os saberes da cultura popular ou se academia é um desejo praticamente unânime, co-
interessa por eles pelo que eles têm de anedótico, de mo se freqüentar um curso superior fosse garantia
pitoresco, de folclórico. Tudo é, pois, uma relação de de entrar no seleto território das elites. Penetrar no
poder. Impõe-se o Saber, como se ele fosse válido para mundo da ciência é conhecer a “verdade” das coi-
todos, e só se aceitam os saberes populares enquanto sas. Não por acaso, como aponta Caldas, há uma
“produções ou criações do passado nacional”. Assim, “tendência natural da sociedade como um todo de
mantêm-se as assimetrias sociais. A cultura a ser va- supervalorizar a cultura científica”, que, por sua
lorizada é a erudita, das elites, dos letrados. vez, teria o poder de “monopolizar a verdade”. De
Interessante é que as elites pretendem que se fato, existe:
considere sua cultura como superior, mas não dese-
jam democratizá-la. Pelo contrário. Como notou Karl uma tradição entre nós (…) em respeitar e até reve-
Mannheim: renciar a figura do homem culto, com título univer-
sitário. Há até na cultura popular a expressão “dou-
O distanciamento na sociedade hierarquicamente tor”, quando se quer demonstrar respeito, admiração
organizada afeta (…) as atitudes com respeito aos e apreço por uma pessoa. Nesse caso, muitas vezes,
objetos culturais. (…) As elites aristocráticas procu- o cidadão chamado de “doutor” (…) jamais freqüen-
ram criar uma “elite cultural” própria. Com isso pre- tou os bancos da academia. Essa reverência, na ver-
tendem que certos traços essenciais de sua cultura dade, expressa a admiração do povo de modo geral
(…) não sejam partilhados pelos demais. pela cultura adquirida na Universidade.

Se, de um lado, a cultura erudita é praticamente O fato é que a ciência muitas vezes se engana.
vedada ao povo, de outro, nada impediria que Quantas vezes, mesmo após pesquisas detalhadas

ensino médio – sociologia 14 sistema anglo de ensino


da indústria farmacêutica, descobre-se que um de- A cultura popular e a cultura de massa
terminado medicamento traz menos benefícios às
pessoas do que se imaginava? Quantos institutos
de pesquisa eleitoral, valendo-se de modelos estatís-
ticos complexos, falham nas suas previsões? Quan-
tas teorias econômicas, quando aplicadas no mundo
real, simplesmente não funcionam como se espe-
rava?
Não se pode, no entanto, dizer que a cultura cien-
tífica, por estar sujeita a equívocos, não serve para
nada. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra.

A cultura erudita e o status quo


A cultura científica faz parte de um amplo espec-
tro das atividades sociais, a que poderíamos generi- Banda de pífanos: artesanato em barro de autoria de Severino
Vitalino dos Santos, filho do famoso artesão Mestre Vitalino
camente chamar cultura erudita (em oposição à (Caruaru, Pernambuco).
cultura popular). Trata-se de um termo repleto de
juízo de valor, como se os eruditos fossem “superio- Segundo Antonio Augusto Arantes, a cultura
res” ao povo. No entanto somos obrigados a reconhe- popular existe “em contraste ao saber culto domi-
cer, como fez Caldas, que: nante”. Caldas vai mais longe, afirmando que ela
“se realiza fora do universo acadêmico e das insti-
No Estado capitalista, a produção e o consumo da tuições científicas”. Talvez por isso seu raio de al-
cultura obedecem a priori à lógica de classe e à lei cance seja tão amplo. De fato, ainda de acordo com
da estratificação social. Noutras palavras: por mais Arantes, a cultura popular:
democrática que seja a sociedade, (…) existe no ca-
pitalismo a lógica de classe que estratifica, que se- remete (…) a um amplo espectro de concepções e
para o consumo da produção cultural de acordo pontos de vista que vão desde a negação (implícita
com as classes sociais. Essa é uma lei da qual a so- ou explícita) de que os fatos por ela identificados
ciedade de classes não pode prescindir. Aliás, não contenham alguma forma de “saber”, até o extremo
só no plano da cultura, mas em todos os setores da de atribuir-lhes o papel de resistência contra a domi-
atividade humana. nação de classe.

A palavra “erudito” vem do latim eruditus, usada No primeiro caso, considera-se a cultura popular
para designar aquele “que obteve instrução”, que é como a negação do Saber ou, pelo menos, como a
“conhecedor, sábio”. No mundo capitalista, obtêm valorização de saberes diferentes daqueles celebra-
instrução, sobretudo, os membros das classes domi- dos pela ciência ou pelas universidades. O popular é
nantes. Daí a conclusão de que a cultura erudita é a o que está nas ruas, nos pontos de ônibus, nos ban-
cultura das elites, imposta ao restante da sociedade cos de praça, nas plantações de cana, no sertão.
como sinônimo de “bom gosto”, de “alto nível”, de “re- Nem sempre essa forma de cultura está compendia-
quinte”, de “sofisticação”. da nos livros. Muito dela é transmitida oralmente.
Não há transgressão na cultura erudita. Ao con- No segundo caso, atribui-se à cultura popular um
trário, existe uma tentativa de manutenção do status papel transformador na sociedade, como se ela pudes-
quo, do establishment. Desse modo, é fácil defender se “desmontar o senso comum social”, nas palavras
a cultura erudita, pois – como apontou Chauí – “os de Chauí. A cultura erudita precisaria ser combatida,
interlocutores já estão identificados com os conteú- da mesma forma que as classes que a produziram.
dos dessa fala”. Mesmo quem não pertence ao gru- Dessa maneira, a justiça social começaria com a cele-
po dos “eruditos” (ou seja, a maior parte da popu- bração da cultura popular, que implicaria novos para-
lação) costuma valorizar essa cultura. É como se ir a digmas, novos juízos de valor, novos gostos, diferen-
um concerto ou conhecer os grandes nomes da Fi- tes daquilo que se vê habitualmente na sociedade. A
losofia pudesse levar o sujeito a ascender socialmen- revolução social seria iniciada pela via cultural.
te. Assim, o desejo pela cultura erudita apenas es- Dentro da cultura popular, podemos ainda re-
conderia o desejo da ascensão social. conhecer a existência de uma cultura de massa, a

ensino médio – sociologia 15 sistema anglo de ensino


ser estudada com mais cuidado nas próximas aulas.
Por enquanto, fique-se com a idéia de que certos ob- exercícios
jetos culturais – que podem até originar-se da cultu-
ra erudita – são transformados em mercadorias para Os trechos a seguir também pertencem ao
consumo em grande escala, como se fossem um sa- romance Vidas secas. Trata-se de passagens em
bonete ou um aparelho de DVD. que o narrador, penetrando no universo de Fa-
biano, procura traduzir os pensamentos e as
A contracultura como forma de transgressão sensações do vaqueiro:
O segundo sentido que apontamos para a cultura Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o
popular se aproxima da noção de contracultura. direito de saber? Tinha? Não tinha. (…)
Esse termo, surgido nos anos 60, designa a postura Se aprendesse qualquer coisa, necessitaria apren-
daqueles que acreditam no poder transformador, na der mais, e nunca ficaria satisfeito.
capacidade de transgressão da cultura popular. A Lembrou-se de seu Tomás da bolandeira. Dos
contracultura nasce como reação, sobretudo, à cultu- homens do sertão o mais arrasado era seu Tomás da
ra de massa, ao consumismo capitalista e à padroni- bolandeira. Por quê? Só se era porque lia demais.
zação cultural imposta pelas classes dominantes. (…)
A definição de contracultura do Houaiss é interes- Em horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-
sante: “subcultura que rejeita e questiona valores e -lo: dizia palavras difíceis, truncando tudo, e con-
práticas da cultura dominante da qual faz parte”. O vencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se perfeita-
termo subcultura indica que a contracultura só mente que um sujeito como ele não tinha nascido
existe como negação, como rejeição dos valores ins- para falar certo.
titucionalizados. Além disso, ela só existe porque re- (Graciliano Ramos, Vidas secas.)
conhece esses valores institucionalizados, ainda que
seja para refutá-los. 1. A avaliação que Fabiano faz da cultura erudita
A Beat generation (ao pé da letra, “geração per- (aquela que se aprende nos livros, na universi-
dida”) nos Estados Unidos, o Maio de 68 na França, a dade) é positiva ou negativa? Justifique com
Primavera de Praga na antiga Tchecoslováquia e o uma passagem do texto.
movimento hippie podem ser considerados exemplos Negativa. Fabiano achava que, como seu Tomás da
de contracultura. Trata-se de movimentos minimamen-
bolandeira “lia demais”, ele era “o mais arrasado” dos
te organizados e estruturados, que passam a funcio-
nar como uma alternativa à cultura dominante, ne- “homens do sertão”. Além disso, se Fabiano “apren-
gando a dominação exercida pela burguesia e expri- desse qualquer coisa, necessitaria aprender mais, e
mindo as aspirações e os sonhos de uma parte da
nunca ficaria satisfeito”. Daí seu desinteresse pela cul-
população que não se sente representada pelo es-
tablishment. tura erudita.
O espírito contestador da contracultura encontra
guarida sobretudo nos jovens, que, de um modo ge-
ral, mostram-se mais dispostos a transgredir as nor-
2. Fabiano se mostra sempre satisfeito com a
mas sociais impostas pela padronização cultural, o
própria ignorância? Explique sua resposta.
que tem reflexos sobre a maneira de vestir, os hábi-
tos sexuais, os gostos musicais, as gírias utilizadas, O texto afirma que “Fabiano dava-se bem com a ignorância”.
etc. Acontece que às vezes, na tentativa de imitar seu
Não deixa de ser interessante que a cultura domi-
Tomás da bolandeira e, assim, ascender a um universo
nante, quando não pode mais fechar os olhos para
esse espírito contestador dos jovens, acaba aproprian- cultural diferente do seu, ele “dizia palavras difíceis,
do-se dele. Assim, o estilo de roupa usado por punks truncando tudo, e convencia-se de que melhorava”. Mas
ou hippies passa a ser “vendido” em lojas de grife; o
ele não conseguia e acaba julgando “que um sujeito
rap, a música de protesto dos negros oprimidos nos
Estados Unidos, embala as elites em casas noturnas como ele não tinha nascido para falar certo”. Há, pois,
da moda; o grafite vira obra artística exibida em mu- uma acomodação de Fabiano em relação à sua posição
seus. Isso não deixa de ser um fenômeno interessante
na sociedade.
de aculturação, em que a contracultura é absorvida
pelo poder estabelecido.

ensino médio – sociologia 16 sistema anglo de ensino


Tarefa mínima advogada dos enfermos e professora dos pássaros”.

Os trechos que seguem foram extraídos de Por fim, ainda “declarou feriado nacional o dia do seu
O outono do patriarca, de Gabriel García Már- nascimento”. Esse tipo de imposição não deve nada à
quez. Leia-os com atenção: dominação cultural exercida habitualmente pelas classes
Convencido pela evidência, ele saiu afinal das bru- dominantes.
mas de seu luto, saiu pálido, duro, com uma banda no
braço, resolvido a utilizar todos os recursos de sua au-
toridade para conseguir a canonização de sua mãe
Bendición Alvarado com base nas provas abrumadoras
de suas virtudes de santa, mandou a Roma seus minis-
tros letrados, voltou a convidar o núncio apostólico Tarefa complementar
para tomar chocolate com bolachinhas nas poças de
luz do caramanchão de amores-perfeitos. (…) No final de 1970, início de 1971, Vinicius de
(…) apareceu no gabinete ao fim de tantos meses Moraes havia composto uma valsa e pedido
de desídia e assumiu de viva voz e de corpo presente que Chico Buarque fizesse a letra. Chico fez,
a responsabilidade solene de interpretar a vontade po- mandou-a a Vinicius, que fez a seguinte suges-
pular mediante um decreto que concebeu por inspi- tão para o título da canção:
ração própria e editou por conta e risco sem prevenir Dei-lhe o nome de “Valsa hippie”, porque pa-
as forças armadas nem consultar a seus ministros, e rece-me que tua letra tem esse elemento hippie que
em cujo artigo primeiro proclamou a santidade civil de dá um encanto todo moderno à valsa, brasileira e
Bendición Alvarado por decisão suprema do povo livre antigona. Que é que você acha? O pessoal aqui no
e soberano, nomeou-a padroeira da nação, advogada princípio estranhou um pouco, mas depois se amar-
dos enfermos e professora dos pássaros e declarou fe- rou à idéia. Escreva logo, dizendo o que você achou.
riado nacional o dia do seu nascimento. (…)
Chico responde da seguinte maneira:
1. Nesses fragmentos, há o uso de cargos políti- – “Valsa hippie” é um título forte. É bonito, mas
cos para obter vantagens pessoais? Por quê? pode parecer forçação de barra, com tudo o que há
Sim, já que a personagem mostra-se disposta “a uti- de hippie à venda por aí. “Valsa hippie”, ligado à
filosofia hippie como você o ligou, é um título per-
lizar todos os recursos de sua autoridade para con-
feito. Mas hippie, para o grande público, já deixou de
seguir a canonização de sua mãe Bendición Alvarado ser a filosofia para ser a moda pra frente de se usar
com base nas provas abrumadoras de suas virtudes de roupa e cabelo. Aí já não tem nada a ver.
santa”. Eis como ficou a letra da canção:
Valsinha
Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de
sempre chegar,
2. De acordo com sua resposta da primeira ques- Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sem-
tão, analise se, no segundo fragmento, as ati- pre costumava olhar,
tudes da personagem funcionam ou não como E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de
imposição cultural. sempre falar,
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande es-
Claro que funcionam. Além do interesse pessoal na canoni-
panto convidou-a pra rodar.
zação da mãe, que envolve dos “ministros letrados” ao
“núncio apostólico”, a personagem concebe um decreto Então ela se fez bonita como há muito tempo não
queria ousar,
“por inspiração própria”, como se se tratasse da “von-
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de
tade popular”, e “sem prevenir as forças armadas nem tanto esperar,
consultar a seus ministros”, para proclamar “a santi- Depois os dois deram-se os braços como há muito
tempo não se usava dar
dade civil de Bendición Alvarado por decisão suprema do
E, cheios de ternura e graça, foram para a praça e
povo livre e soberano” e nomeá-la “padroeira da nação, começaram a se abraçar.

ensino médio – sociologia 17 sistema anglo de ensino


E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda ris, a França e – por que não? – o mundo, em maio
despertou, de 1968. Suas palavras poderiam figurar em qual-
E foi tanta felicidade que toda a cidade se iluminou quer outro texto de qualquer outro canto do plane-
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos ta nos anos 60.
como não se ouvia mais, Muitas novidades abalavam certezas, transforman-
Que o mundo compreendeu, e o dia amanheceu em paz. do o cenário mundial. A Guerra Fria se acirrava,
por meio da obsessiva corrida armamentista e es-
Em sua opinião, a canção poderia chamar-
pacial. Tal fenômeno político foi decisivamente mar-
se “Valsa hippie”? Por quê? Há contracultura
cado pela construção do Muro de Berlim, em 1961,
nesta letra? Chico tem razão quando fala que
que dividiu não só de fato, mas também no plano
“hippie, para o grande público, já deixou de ser
simbólico, o mundo em duas esferas de poder: os
a filosofia para ser a moda pra frente de se
“azuis” e os “vermelhos”, os EUA e a URSS. Neste
usar roupa e cabelo”?
contexto, ganhava o centro das atenções a revolução
A resposta não está fechada e poderá resultar tanto socialista em Cuba, que trazia a “ameaça vermelha”
de uma reflexão pessoal como de um amplo debate com à América e fortalecia os soviéticos. A ofensiva do
Tio Sam disseminou o vírus das ditaduras militares
a turma. No Manual do Professor há sugestões para o
no continente.
encaminhamento do debate. (…)
Os anos 60 foram, sobretudo, os anos de uma
nova “juventude transviada”, que substituiu James
Dean e Elvis Presley pela rebeldia de Che Guevara e
Jimi Hendrix. Novos pôsteres na parede; novas idéias
na cabeça. Por mais que possa parecer estranho apre-
sentar o líder da revolução cubana, morto em com-
bate nas selvas bolivianas, em 1967, ao lado do revo-
LEITURA COMPLEMENTAR
lucionário guitarrista de Woodstock, morto em Lon-
dres por uma intoxicação de barbitúricos, em 1970,
o fato é que eles representam as duas faces da moeda
da década. Simbolizam duas maneiras de viver, so-
nhar e morrer: ou se vivia, ou se sonhava, ou se mor-
ria como eles. Ou tudo isso junto. O que importava
era a revolução, desde que em benefício do homem,
em nome da liberdade.
Havia dois ideais revolucionários correndo em
paralelo. De um lado, a revolução política; de outro,
a cultural. Se havia jovens empenhados na luta pela
transformação social, acreditando na via política de
atuação, também existiam outros mais interessados
em chacoalhar as bases da cultura oficial, propondo
a transformação comportamental.
(…)
Grosso modo, seria possível dizer que, enquanto
Estudantes feridos durante a greve geral de maio de 1968, que certos jovens erguiam bandeiras em nome da revo-
levou o governo francês à beira de um colapso.
lução socialista, outros desfraldavam faixas em prol
Os anos 60: jovens e malditos da revolução “existencialista”. Os que se vêem mais
“A revolução que está começando questionará não só a ligados ao perfil de Che, acreditam que a época pro-
sociedade capitalista como também a sociedade industrial.
duziu em essência uma arte política, uma cultura di-
A sociedade de consumo tem de morrer de morte violenta.
A sociedade da alienação tem de desaparecer da História. rigida à problemática social. Os mais afinados com
Estamos inventando um mundo novo e original. os acordes de Hendrix defendem que a maior con-
A imaginação está tomando o poder.” tribuição do momento foi sem dúvida no plano com-
Este é um trecho de um manifesto afixado à en- portamental, que materializava uma nova cultura, a
trada da tradicional Universidade Sorbonne, du- “contracultura”.
rante as manifestações estudantis que abalaram Pa- (…)

ensino médio – sociologia 18 sistema anglo de ensino


Ainda que em muitas vezes os símbolos “Che” e mão-de-obra, o elogio à máquina, à razão, à obje-
“Hendrix” se excluam, em muitas outras se combi- tividade, à ordem, à família, à propriedade, ao con-
nam, completando-se. Os loucos e jovens dos anos sumo, ao pudor etc. A cultura underground, margi-
60 são esta moeda de duas faces: a cara é Guevara; nal, se opõe a tudo isso. Seu espírito revolucionário,
a coroa, Jimi. Ou vice-versa, pouco importa. Anos libertário, propõe um retorno hedonista à natureza,
de baionetas e de guitarras. De repressão e liber- ao primitivo, ao poder.
tação. De um lado, o engajamento político; de outro, O novo homem deve estar de acordo com seus
a participação “contracultural”. instintos, muito diferentes dos que são artificialmen-
Já está na hora de se acrescentar ao conhecido te instituídos pela indústria cultural, pelos meios de
trinômio “sexo, drogas e rock’n’roll” a palavra polí- comunicação de massa. Para a contracultura, há
tica. O mais completo slogan da década é, então, coisas mais importantes do que ficar lustrando car-
“sexo, drogas, rock’n’roll e política”, ainda que na ros, contando notas verdes, acumulando eletrodomés-
época muitos jovens tivessem de optar por uma das ticos. Como diziam os hippies do “Flower Power”,
causas, que no fundo buscavam como único fim dar chegava a vez do poder da flor se opor ao poder das
ao homem o direito de ser livre a feliz. armas e das máquinas. A filosofia que norteava o
(…) movimento era o do “drop out”, ou seja, saltar o mu-
A cultura oficial cria o germe de sua própria des- ro e cair fora do sistema desacreditado.
truição, e tal germe é a contracultura. A cultura oci- (…)
dental, oficial, assenta-se sobre valores tradicionais, (Paulo César Carvalho e Renan Garcia Miranda,
como a exaltação do trabalho, a especialização da Arte e cultura nos anos 60.)

ensino médio – sociologia 19 sistema anglo de ensino


Aula
21
Cultura, memória e história
Para debater

Imagem de autoria de Epitácio Pessoa (Agência Estado), publicada no


jornal O Estado de S. Paulo, em 16/09/2007.

Um elemento fundamental para compreender a Outras dificuldades propõe o tempo. Uma, porventu-
gênese das culturas é o tempo. São várias as manei- ra a maior, a de sincronizar o tempo individual de cada
ras de apreendê-lo. É possível, por exemplo, valo- pessoa com o tempo geral das matemáticas, tem sido
rizar o passado e adotar uma posição saudosista, ou largamente apregoada pelo recente alarme relativista, e
preferir o futuro e manter uma postura esperançosa. todos se lembram dela — ou lembram-se de a ter lem-
Além disso, nada impede que se deixem de lado pas- brado até há pouquíssimo tempo. (Eu recupero-a assim,
sado e futuro para ficar com o presente, atitude re- deformando-a: Se o tempo é um processo mental, como
sumida pela conhecida expressão carpe diem (que podem compartilhá-lo milhares de homens ou mesmo
significa “aproveite o momento”). E ainda seria ad- dois homens diferentes?)
missível, dependendo da situação, optar por cami- (Jorge Luis Borges, “História da eternidade”.
nhos híbridos, que misturassem saudade, esperan- In: Obras completas, volume I. Lisboa, Teorema.)
ça e desejo de aproveitar a vida agora.
O problema, para os estudiosos da cultura, é sa- Um pouco de teoria
ber até que ponto nossas relações com o tempo são
Um problema “de memória”
individuais ou coletivas. Se o tempo fosse captado
de modo único por cada indivíduo, não caberia es- Marilena Chauí, em sua obra Cidadania cultural:
tudá-lo, pois haveria tantas relações temporais quan- o direito à cultura, mais especificamente no capí-
tas fossem as pessoas do planeta. Mas será que o tulo “Direito à memória”, faz um breve histórico
tempo pode ser captado, de alguma maneira, cole- sobre os significados que o termo cultura foi
tivamente? adquirindo ao longo do tempo nas ciências hu-
O escritor argentino Jorge Luis Borges tem uma manas. Num dado momento, ela afirma que a
reflexão interessante a esse respeito: palavra:

ensino médio – sociologia 20 sistema anglo de ensino


passou a significar a relação que os humanos, social- Memória coletiva e memória individual
mente organizados, estabelecem com o tempo e com
o espaço, com os outros humanos e com a natureza,
relações que se transformam e variam em condições
temporais e sociais determinadas. Agora, cultura tor-
na-se sinônimo de história. [Ela é o reino] da transfor-
mação racional; portanto, é a relação dos humanos
com o tempo e no tempo.

Considerar a cultura como o território da “trans-


formação racional” acaba sendo uma forma de
reconhecer a racionalidade humana, em oposição
à irracionalidade das outras espécies que vivem no
planeta. Se o homo sapiens sapiens (nome científi-
co que hoje se dá à espécie humana) é racional, ele
tem cultura, e vice-versa. Por isso, não se pode ad- Haruo Ohara, sem título.

mitir a existência de cultura entre cachorros, ba-


Em seu livro Memória e sociedade: lembrança
buínos ou samambaias.
de velhos, Ecléa Bosi escreve:
Na verdade, no processo de hominização, os seres
humanos adquiriram, como mostra Ulpiano Bezerra
de Meneses, duas capacidades cognitivas – a abstra- A memória do indivíduo depende do seu relaciona-
ção e a articulação – muito ligadas ao desenvolvimen- mento com a família, com a classe social, com a es-
to de nossa caixa craniana. Com essas capacidades, os cola, com a Igreja, com a profissão; enfim, com os gru-
homens puderam englobar fenômenos particulares pos de convívio e os grupos de referência peculiares
em “categorias de eventos”, o que lhes deu “a possi- a esse indivíduo.
bilidade de previsão, de projeto, de programação”.
Acontece, ainda de acordo com Meneses, que a De fato, o que está em jogo não é apenas o que
memória exerce um papel fundamental nesse pro- cada pessoa lembra individualmente, mas “a reali-
cesso de desenvolvimento da capacidade racional do dade interpessoal das instituições sociais”, ou seja,
homem, pois “ainda que eu fosse capaz de abstrair e a memória coletiva que se manifesta em cada mem-
articular, sem memória teria que recomeçar as res- bro do mesmo grupo cultural.
postas adequadas a cada novo impulso”. As relações entre o individual e o coletivo sem-
Porém nem isso basta, uma vez que a memória, pre estiveram na base das reflexões sociológicas,
a priori, é individual. Quem permite que a memória antropológicas e políticas. Mas, no caso da memó-
se torne coletiva é a linguagem. Meneses afirma: ria, a questão se torna mais complexa, pois, ainda
que pertença a um grupo – que, por sua vez, apre-
É a linguagem que permite que a memória seja um senta sua identidade cultural –, o indivíduo tende a
veículo de socialização das experiências individuais. recordar, a lembrar, a memorizar aquilo que é im-
As capacidades de abstração e de articulação, por- portante para a manutenção da sua própria identi-
tanto, não morrem no nível individual. No indiví- dade. Bosi ainda vai mais longe, mostrando que:
duo, elas têm continuidade, mas podem também se
transmitir a uma comunidade de pessoas. Por muito que deva à memória coletiva, é o indi-
víduo que recorda. Ele é o memorizador e das ca-
O francês Maurice Halbwachs (1877 – 1945) – her-
madas do passado a que tem acesso pode reter ob-
deiro da tradição sociológica de Durkheim e um
jetos que são, para ele, e só para ele, significativos
dos maiores estudiosos do assunto – também vê a
dentro de um tesouro comum.
memória como um processo de socialização. Para
ele, os fatos sociais são mais importantes do que Por mais estranho que pareça à primeira vista,
eventos particularizados. O que interessa à Socio- a memória coletiva só existe porque está presente em
logia é o que se repete. Daí vem a noção de uma cada indivíduo que crê nesse “tesouro comum” –
memória coletiva, compartilhada pelos indivíduos depósito coletivo de lembranças, construído na in-
por meio da linguagem. teração entre indivíduos por meios da linguagem.

ensino médio – sociologia 21 sistema anglo de ensino


Assim, o coletivo se alimenta do individual. E o que A língua organiza nossa maneira de ver o mundo,
importa para nossa análise é esse coletivo. de modo que falantes da mesma língua já possuem,
Como dissemos, se os homens não tivessem me- inevitavelmente, laços culturais entre si. Por isso
mória, seria impossível transmitir conhecimentos aprender um idioma estrangeiro não é simplesmente
de geração a geração. A cultura de um povo só se conhecer novas palavras e novas frases. Falar inglês
mantém porque há quem se lembre dela. Maria Lu- ou francês, por exemplo, significa ter acesso a outra
cia Montes, por exemplo, defende que: maneira de compreender o mundo. O que, em por-
tuguês, chamamos de “carneiro”, os ingleses podem
cultura e memória são construções da vida humana chamar de mutton (para carne de carneiro) ou sheep
em sociedade. Não há cultura de um indivíduo iso- (para o carneiro propriamente dito). Já em francês a
lado, assim como não há memória de quem não per- “carne” para comer é viande, enquanto “carne”, nos
tença a uma coletividade. Nós nos lembramos da- demais sentidos, é chair.
quilo que podemos compartilhar, tal como uma língua Um aspecto fundamental para entender a impor-
sobrevive e permance viva enquanto existe a comu- tância da língua para as culturas é sua dimensão oral.
nidade de seus falantes. Aprendemos a falar muito antes de ler e escrever. Aliás,
o aprendizado da fala é natural, enquanto a leitura e a
escrita exigem estudo, aula, professores. Não é então
Língua, oralidade e crise da memória por acaso que falamos mais do que escrevemos e ou-
vimos mais do que lemos. Em inúmeras situações co-
tidianas – como pedir informações na rua, contar uma
história aos amigos ou fazer uma pergunta ao profes-
sor –, reconhecemos a importância da oralidade.
É claro que a linguagem escrita foi fundamental
para o desenvolvimento da humanidade. A escrita
tem uma perenidade que a fala não tem. Ela permite
o armazenamento de uma quantidade gigantesca de
informações e, portanto, é uma forma importantíssi-
ma de preservação da memória. Porém, se levarmos
em conta que uma língua que não é falada está mor-
ta, somos obrigados a reconhecer que a oralidade
também exerce um papel fundamental na manuten-
ção da identidade cultural.
O filósofo Walter Benjamin, num famoso artigo
intitulado “O narrador”, discute o valor da orali-
dade para a sociedade contemporânea. Ele afirma
Rosana Paulino. Protótipo para bastidores, 1996 – 1997.
categoricamente que “a arte de narrar caminha
para o fim”. E justifica-se:
Um dos elos mais fortes para a manutenção da
identidade é a língua. Uma comunidade, um grupo Torna-se cada vez mais raro o encontro com pessoas
social, um povo, uma etnia, um país só tem memória, que sabem narrar alguma coisa direito. (…) É como
só apresenta uma cultura porque há uma língua per- se uma faculdade, que nos parecia inalienável, a mais
mitindo a comunicação e, mais do que isso, fazendo garantida entre as coisas seguras, nos fosse retirada.
com que os indivíduos passem a ver o mundo de Ou seja: a de trocar experiências.
uma maneira mais ou menos parecida.
Márcio Seligmann-Silva confirma essa tese di- Benjamin, ao falar sobre “a arte de narrar”, não está
zendo: pensando na literatura escrita. Ao contrário: para ele,
as verdadeiras narrativas são orais. Eis suas palavras:
A língua é um meio vivo de relacionamento com a
tradição e com os outros. Ela não deve ser reduzida A experiência que anda de boca em boca é a fonte
à simples comunicação, pois a língua de certa forma onde beberam todos os narradores. E, entre os que
cria o nosso mundo a cada momento. Língua é ci- escreveram histórias, os grandes são aqueles cuja
mento que alicerça simbolicamente as culturas e, so- escrita menos se distingue do discurso dos inúmeros
bretudo, meio de compreensão entre os indivíduos. narradores anônimos.

ensino médio – sociologia 22 sistema anglo de ensino


O filósofo alemão escreveu esse texto muito in- A preservação dos patrimônios
fluenciado pelo clima pessimista dos anos posterio-
res à primeira Guerra Mundial, como se as batalhas
tivessem tornado as pessoas “mais pobres em expe-
riência comunicável”. Mas a verdade é que, atual-
mente, também devemos reconhecer que a memória
coletiva dos povos tem perdido parte de sua força.
Jean-Pierre Rioux acredita que, devido à domi-
nação cultural de um grupo por outro, muitas cul-
turas perderam:

seu ponto de equilíbrio, já que as fronteiras físicas


que delimitavam o espaço de movimentação das
coletividades e dos indivíduos, dissolveram-se frente
aos novos meios de comunicação. Imagem da vila de Itororó, construída na década de 1920, no bair-
ro do Bixiga (Bela Vista), São Paulo. Tombada pelo patrimônio his-
tórico municipal e estadual, a vila encontra-se em péssimo estado
Esses meios de comunicação, em lugar de per- de conservação.
mitirem uma experiência intercultural verdadeira,
acabaram por igualar todas as culturas, agrupan- Para diminuir os efeitos da padronização cultural
do-as no mesmo mercado consumidor universal, e, assim, manter vivas as identidades culturais da me-
num processo típico da cultura de massa. Daí que mória coletiva, existem organismos internacionais co-
Rodolfo Fiorucci conclua: mo a Unesco (Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura) e nacionais como
Sendo assim, progressivamente as tradições regionais o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
ou locais que davam liga a uma cultura compartilha- Nacional). Montes afirma que eles foram criados para:
da por um determinado grupo e, conseqüentemente,
estruturavam sua memória em torno de referências resgatar também uma outra memória, aquela situa-
permanentes, desaparecem devido à massificação im- da do outro lado da barreira do poder, a memória
posta à sociedade como um todo. dos grupos subalternos da sociedade, muitas vezes
negada e soterrada.
A memória a serviço do poder
Assim, um patrimônio histórico ou artístico
Se a arte de narrar (de trocar experiências com deve ser lembrado porque imortaliza uma certa cul-
a espontaneidade da língua oral) caminha real- tura, independentemente de ela ser a oficial ou a
mente para o fim, isso se deve, sobretudo, ao fato marginal. A memória coletiva também deve ser en-
de as relações entre as culturas, no mundo globali- tendida em termos de “diversidade”. O que a Unesco
zado, serem assimétricas, o que permite a domina- e o Iphan fazem, muitas vezes, é servir como alter-
ção cultural. Assim, a memória coletiva de uns so- nativa à cultura dominante, que, na prática, não pre-
brepõe-se à de outros, num processo que inclui a cisaria de órgãos desse tipo para se perpetuar.
perda da espontaneidade e o isolamento. Agora não se pense que o patrimônio histórico
Os grupos mais influentes na sociedade impõem engloba apenas bens materiais, arquitetônicos, con-
sua memória aos demais. Um museu, em última ins- cretos. No universo da cultura, há bens – como a lín-
tância, expõe uma cultura oficial, a cultura da classe gua, as danças, a comida, as festas – que também
dominante – ou seja, daqueles que detêm o poder têm valor inestimável. E precisam receber atenção
político ou econômico e, por isso, podem celebrar da memória. A Constituição Federal, em seu artigo
sua memória de modo mais efetivo. 216, garante essa atenção:
Portanto, se deixamos de contar histórias e de va-
lorizar nossa identidade, isso pode ser resultado da
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os
“massificação imposta à sociedade como um todo”,
bens de natureza material e imaterial, tomados indivi-
que faz tábula rasa da diversidade cultural da hu-
dualmente ou em conjunto, portadores de referência à
manidade, trazendo para o universo da memória –
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos for-
como disse Montes – “os jogos de poder que acon-
madores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
tecem na vida em sociedade”.

ensino médio – sociologia 23 sistema anglo de ensino


I- as formas de expressão; que vem dando sinais de cansaço, na cidade onde, en-
tretanto, a missa ainda é rezada na língua de Cristo.
II- os modos de criar, fazer e viver; (http://www2.uol.com.br/historiaviva/noticias/
III- as criações científicas, artísticas e tecnológicas; a_lingua_de_cristo_luta_contra_a_extincao.html)

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e de-


mais espaços destinados às manifestações artís-
tico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, arqueológico, paleontoló-
gico, ecológico e científico.

No primeiro parágrafo do referido artigo, ainda


se diz que “O Poder Público, com a colaboração da
comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio
cultural brasileiro”.

exercícios

Vimos em aula a intrínseca relação que há


entre língua, memória e cultura. Tendo isso em
vista, leia a matéria a seguir, publicada em 28
de maio de 2008 no site da revista História viva, 1. O aramaico é um idioma “bastante estudado
e responda ao que se pede. por lingüistas e historiadores”. Isso é suficiente
A língua de Cristo luta contra a extinção para considerá-lo uma língua viva? Por quê?
Graziella Beting Não. Línguas vivas são aquelas que ainda são faladas
Foi declarado pelas Nações Unidas que 2008 é o pelas comunidades originais, “em seu local de origem”. A
Ano Internacional das Línguas. Há tempos, a diver- definição de “língua viva” do Houaiss, aliás, é: “qualquer
sidade lingüística é um assunto que preocupa espe-
língua, enquanto é usada como meio de comunicação
cialistas, já que, ao longo das próximas gerações,
estima-se que mais da metade das 7 mil línguas fala- natural por uma comunidade lingüística e que está su-
das no mundo corre o risco de desaparecer. Isso sig- jeita a mudanças”.
nifica que uma língua some a cada 15 dias.
No mapa das línguas em risco está o aramaico,
aquela que foi supostamente a língua materna de
Jesus Cristo, hoje falada só na região de Maalula, per-
to de Damasco, na Síria. Uma das línguas com maior
permanência na história, com mais de 3 mil anos, que
chegou a se espalhar por todo o Oriente Médio, o ara-
maico tornou-se um dialeto local (que não é mais es- 2. Analise se a inauguração de “uma escola que dá
crito), falado atualmente por cerca de 1.800 mora- aulas de aramaico” em Maalula pode ser uma
dores de Maalula, segundo dados da Unesco. maneira de valorizar a memória coletiva de um
Diferentemente de línguas indígenas ou africanas, povo e preservar um patrimônio cultural da hu-
que provavelmente morrerão sem deixar registros, o manidade.
aramaico é bastante estudado por lingüistas e histo-
A defesa de uma língua “com mais de 3 mil anos, que
riadores. Mas isso não a torna uma língua viva. Para
tanto, ela precisa ser praticada em seu local de ori- chegou a se espalhar por todo o Oriente Médio”, é sem
gem. Em Maalula, onde 25% da população é muçul- dúvida uma maneira de preservação cultural. Para que a
mana, foi inaugurada, no ano passado, uma escola
preservação seja completa, é importante que a língua
que dá aulas de aramaico. A idéia é fazer com que as
crianças da cidade aprendam a falar e escrever a língua continue sendo usada por seus falantes nativos. Assim,

ensino médio – sociologia 24 sistema anglo de ensino


a escola pode dar vida ao aramaico, fazendo com que O presidente do Condephaat (Conselho de Defesa
esse idioma não se torne coisa de especialista, como do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Tu-
rístico), Adilson Avansi, diz que não há nenhuma po-
aconteceu com o latim ou com o grego clássico.
lítica do órgão para incentivar os donos desses imóveis
a identificá-los, mas diz que isso seria “desejável”.
O superintendente regional do Iphan (Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em São
Paulo, Victor Hugo Mori, diz que a maior parte do
patrimônio tombado apresenta placas, mas elas são
pouco visíveis. “O Iphan entendia que a placa tinha
que estar no local mais discreto possível, que não
Tarefa mínima atrapalhasse na leitura do bem tombado. As placas
Observe a reportagem a seguir, escrita por Ri- estão próximas de rodapés, são pequenas”, diz.
cardo Sangiovanni e Talita Bedinelli e publicada O levantamento da Folha, que considerou ape-
na Folha de S. Paulo em 25 de janeiro de 2008: nas placas de tombamento facilmente visíveis, apon-
tou que, dos 11 prédios do Iphan analisados, 4 apre-
sentavam identificação.
Para o superintendente, a presença das placas
poderia contribuir com a conservação dos imóveis e
ajudar a diminuir o vandalismo.

Como foi a pesquisa


A Folha visitou, entre 22 e 30 de novembro,
todos os edifícios da cidade tombados pelo patri-
mônio histórico da esfera federal e estadual – res-
pectivamente Iphan e Condephaat.
A pesquisa analisou acesso, visibilidade, identifica-
ção, estado de conservação e tipo de uso, entre outros.
Dois prédios visitados estavam em ruínas e não
foram incluídos nas estatísticas finais, já que não
havia paredes ou outros elementos para avaliar.
A Constituição Federal afirma, no primeiro
parágrafo do artigo 216, que “O Poder Público,
Valor histórico fica escondido nas ruas
com a colaboração da comunidade, promoverá
Levantamento mostra que 83% dos prédios são e protegerá o patrimônio cultural brasileiro”.
visíveis da rua e 75% estão abertos a visita, mas A partir da leitura da reportagem da Folha,
só 19% têm identificação você acha que a CF é suficiente para garantir a
Na principal avenida da cidade, só 10% dos que memória cultural do país? Por quê?
passam por casarão sabem de seu valor histórico; Não. O fato de um imóvel ser tombado não significa
veja roteiro de prédios indicados muita coisa, já que muitos continuam, devido à falta de
Nove de cada dez pessoas que passam pelo ca- sinalização, sujeitos à ação de vândalos. Além disso, o
sarão número 1.919 da avenida Paulista não sabem a
fato de praticamente metade dos prédios tombados da
importância histórica da casa, segundo uma enquete
feita pela Folha em frente ao imóvel. O lugar é um cidade de São Paulo terem sofrido danos ou alterações
dos 78 prédios históricos que, segundo levantamento na fachada, associado à falta de “incentivo para a popu-
inédito feito pela reportagem, não têm nenhuma
lação conhecer os lugares”, indica que apenas uma lei
identificação que informe sobre o tombamento.
A placa não é obrigatória pelas leis federais e es- não garante o respeito à memória coletiva.
taduais, mas, de acordo com a arquiteta Leila Diê-
goli, poderia servir de incentivo para a população
conhecer os lugares. A pesquisa mostrou que 75,5%
dos prédios tombados aceitam receber visitantes.

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Tarefa complementar LEITURA COMPLEMENTAR
O texto a seguir foi escrito pelo poeta Manoel
de Barros e, de maneira figurativa, fala sobre a
importância da memória. Leia-o com atenção: Universidade, memória e
Escova patrimônio cultural
Eu tinha vontade de fazer como os dois homens Promovido pela Faculdade de Letras e pela Co-
que vi sentados escovando osso. No começo achei que leção Archivos, da Unesco, o Colóquio Internacio-
aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam nal dedicado ao tema Invenção do Arquivo Literário
sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois conta com a participação de renomados especialis-
aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que tas brasileiros e estrangeiros. Julgo importante res-
eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que saltar que a realização desse evento situa-se no âm-
eles queriam encontrar nos ossos algum vestígio de bito de um conjunto de iniciativas, ações e inter-
antigas civilizações que estariam enterradas por sécu- venções voltado para a questão da memória e do
los naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. patrimônio histórico, cultural e artístico. Exemplo
Porque eu havia lido em algum lugar que palavras mais recente é o da restauração e revitalização do
eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás antigo Conservatório de Música, destinado a abri-
dos clamores antigos que estariam guardados dentro gar de forma permanente o acervo artístico e cul-
das palavras. Eu já sabia também que as palavras pos- tural da Universidade. Outra iniciativa importante
suem no corpo muitas oralidades remontadas e mui- foi a criação de uma Comissão de Política de Acer-
tas significâncias remontadas. Eu queria então escovar vos, empenhada no mapeamento dos diversos acer-
as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. vos da UFMG, com vistas a indicar medidas de pre-
Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bí- servação e organização.
grafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escri- São iniciativas que caracterizam um desejável e
vaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado necessário cuidado com a nossa memória, regional e
no quarto, trancado a escovar palavras. Logo a turma nacional. Trata-se de garantir uma gestão mais trans-
perguntou: o que eu fazia o dia inteiro trancado na- parente e eficiente do patrimônio documental, cien-
quele quarto? Eu respondi a eles, meio entresonhado, tífico e cultural da Universidade, de preservar seus
que eu estava escovando palavras. Eles acharam que centros de documentação e seus arquivos, unida-
eu não batia bem. (…) des fundamentais para a geração de informação e
(Manoel de Barros, Memórias inventadas – a infância.) a organização de fontes de pesquisa.
A relevância e o significado de tais medidas e ini-
Você acha importante escovar ossos? E es- ciativas podem ser melhor avaliadas diante do contex-
covar palavras? Aliás, o que Manoel de Barros to atual de globalização e cultura mundializada, mar-
entende por escovar? cado por uma intensa preocupação com os lugares da
E, na sua cidade, na sua região, há coisas que memória e, ao mesmo tempo, por forte pressão de
precisariam ser “escovadas”, para que se encon- mecanismos de amnésia social e histórica, responsá-
trem “vestígio de antigas civilizações”, “conchas vel pela fetichização do passado, convertido em mer-
de clamores antigos” e “muitas oralidades remon- cadoria no Disney World. Vivemos, paradoxalmente,
tadas e muitas significâncias remontadas”? Jus- uma crise da memória. Crise alimentada pelas trans-
tifique sua resposta. formações de nossas concepções do passado e das re-
lações com ele estabelecidas. Antes transparente e
A resposta não está fechada e poderá resultar tanto
natural, segundo uma concepção linear e evolutiva do
de uma reflexão pessoal quanto de um amplo debate tempo histórico, o conteúdo do passado tornou-se-
com a turma. No Manual do Professor há sugestões -nos opaco, fonte de incertezas e inquietações.
para a condução do debate. Por outro lado, cabe destacar o papel importante
das universidades na tarefa de preservação do pa-
trimônio arquivístico, bibliográfico e até museo-
lógico de nosso país. É o que demonstra a criação
de diversos centros de documentação e de memó-
ria a partir dos anos 70, sobretudo na área das ciên-
cias humanas, dedicados ao trabalho de reunião,
organização e preservação de arquivos e coleções,

ensino médio – sociologia 26 sistema anglo de ensino


de conjuntos documentais diversos. Assim, à fun- tornar a informação mais próxima do pesquisador,
ção original de organização e geração de novas in- contribuíram também para o cuidado e a preocu-
formações, incorporaram também a tarefa de pre- pação com a documentação local, para a preser-
servação e organização de fontes originais de pes- vação da memória regional. Eles são hoje instâncias
quisa. Ante à carência de investimentos por parte vitais para a construção do conhecimento científi-
do poder público na preservação de seu patrimô- co e a ampliação das possibilidades de cidadania,
nio e às dificuldades de acesso às fontes originais na medida em que, ao torná-la acessível ao maior
de pesquisa, essa função acabou transferindo-se número de pessoas, transformam a informação es-
parcialmente para as universidades. pecializada em conhecimento público.
Com isso, a criação dos centros de documen- Reinaldo Marques, http://www.universia.com.br/materia/mate-
tação e memória, a geração e preservação de arqui- ria.jsp?id=5693)
vos nas nossas instituições universitárias, a par de

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Aula
22
Cultura, mídia e poder
Para debater

Sebastião Marinho. Consumidores observam aparelhos eletrodomésticos, 1982.

O texto a seguir é de autoria do curitibano Paulo pode ser entendida como sinônima de “meios de
Leminski, um dos mais provocativos poetas da se- comunicação”. Na verdade, o termo já existia em
gunda metade do século XX no Brasil: latim: media é o plural de medium, substantivo
entre a dívida externa neutro que significa “meio, elemento intermediá-
e a dúvida interna rio, mediador”. De acordo com o Dicionário
meu coração Houaiss:
comercial
alterna a palavra e a pronúncia inglesas (em especial, a
(Paulo Leminski, Caprichos e relaxos.)
pronúncia norte-americana) se exportaram, graças
Costuma-se chamar esse tipo de texto de poe- ao seu maciço poder de cultura, comércio e finan-
ma-pílula (ou poema-minuto), pela sua brevidade ças, manifestos em particular, no caso brasileiro,
e pelo seu poder de síntese, que lembram a con- nas agências de propaganda comerciais.
cisão do slogan publicitário. Em que sentido essa
espécie de referência aos procedimentos da publi-
cidade reforça o conteúdo do poema? Em Portugal, país que costuma ser menos influ-
enciado pelas imposições lingüísticas estrangeiras,
Um pouco de teoria emprega-se a palavra médias, com artigo masculi-
Mídia, média, media no (“os médias”), uma vez que os substantivos neu-
A palavra mídia chegou ao Brasil pelo inglês tros do latim se tornaram palavras masculinas em
media (pronuncia-se “mídia”, com som de /i/) e português.

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Como podemos perceber, a própria origem da
Na primeira esfera, ela noticia os assuntos referentes
palavra mídia, no Brasil, já está ligada à noção de
aos processos relacionais, que se dão nos âmbitos
dominação cultural. Em vez de o termo nos ter che-
maiores da cultura e da política; na segunda, ela
gado pelo latim, como seria o esperado, já que nossa
propaga o universo da circulação das mercadorias,
língua é neolatina, ele veio pelo inglês, trazendo con-
no âmbito mais restrito das relações, normas e re-
sigo, inclusive, a pronúncia norte-americana.
gras da economia de mercado.
Não se pretende, aqui, numa manifestação de na-
cionalismo lingüístico, demonizar a palavra, tentan-
Faça-se apenas a ressalva de que, no capitalis-
do substituí-la por “médias”, como fazem os portu-
mo globalizado, muitas vezes a cultura e a política
gueses, ou usando sempre “meios de comunicação”.
se tornam mercadorias, com a economia de mer-
Continuaremos usando o termo mídia, que existe no
cado regendo os demais setores da vida em socie-
português brasileiro, está dicionarizado e registra-
dade.
do no Vocabulário ortográfico. Mas não deixa de ser
curiosa sua origem.
A comunicação de massa

Mas, afinal, o que é mídia?

A palavra mídia, como dissemos, pode ser usa-


da como equivalente de meios de comunicação. Se
pensarmos na estrutura básica da comunicação,
em que um emissor produz uma mensagem, que
é destinada a um receptor, podemos deduzir que a
transmissão de informações só é possível se algu-
ma coisa colocar o emissor e o receptor em conta-
to, criando um canal de comunicação e permitindo
que a mensagem seja, de fato, veiculada.
Durante grande parte da história da humanidade,
para que duas pessoas se comunicassem era preciso
que elas estivessem lado a lado, face a face. Even-
tualmente, sinais de fumaça ou pinturas nas paredes
permitiam a comunicação à distância. Com a inven- Charles Chaplin em cena do filme O grande ditador, sátira ao
regime nazista realizada em 1940. A divulgação das idéias nazis-
ção da escrita e, posteriormente, da prensa, a trans- tas, tal como ela ocorreu, só poderia ter se dado no contexto de
missão de informações tornou-se menos dependen- uma sociedade midiática.
te de um contato direto entre as pessoas.
Mas o fato é que nunca como no século XX a pos- Em nossa sociedade, continuam a existir meios
sibilidade de nos comunicarmos à distância desen- de comunicação social interpessoais, como as con-
volveu-se tanto. O rádio, o telefone, a televisão, o cine- versas entre amigos ou os diálogos públicos e pri-
ma, a imprensa, a publicidade, os computadores, a vados – que, pelo seu caráter multifacetado e par-
internet, os celulares, o mundo digital ou surgiram ou ticular, pouco interessam à pesquisa sociológica.
popularizam-se no século passado. Assim, a idéia de Importa-nos estudar, sobretudo, os mass media,
um “meio”, de um “elemento intermediário” que per- isto é, os meios de comunicação de massa. A exis-
mite a comunicação em larga escala, ganhou a força. tência de uma “cultura de massa” como concebe-
A palavra mídia passou então a ser utilizada para de- mos hoje, em que impera a padronização cultural
signar, de novo segundo o Houaiss, “todo suporte de (e, por extensão, a tentativa de unir todos os indi-
difusão da informação que constitui um meio interme- víduos do planeta no mesmo grupo de consumi-
diário de expressão capaz de transmitir mensagens”. dores), só é possível porque existem meios que per-
Quando se diz que vivemos numa sociedade mi- mitem a transmissão das informações consideradas
diática, referimo-nos ao fato de que, no mundo atual, mais relevantes.
mais do que em qualquer outra época, a mídia tem Uma das características desses meios, segundo
um papel fundamental nos processos de interação Ferreira, é que “o número de pessoas que expres-
social. Delson Ferreira explica esse fenômeno, mos- sam uma opinião é sempre muito menor do que o
trando que a mídia se desdobra em “duas esferas das que recebem”. Daí vem sua definição de
distintas e complementares entre si”: massa:

ensino médio – sociologia 29 sistema anglo de ensino


Para Adorno, pode existir, sim, uma cultura que
uma coleção abstrata de indivíduos que viveriam a re-
nasça das classes populares e se espalhe pelo mundo.
ceber impressões e opiniões já formadas, antes cons-
No entanto a indústria cultural não brota da massa.
truídas e depois veiculadas pelos meios de comunica-
É o contrário. Ela brota das classes dominantes e
ção de massa. No sentido dessas definições, o termo
atinge a massa. Para tal, as manifestações culturais
massificar refere-se à ação de orientar e/ou influen-
são transformadas em mercadorias, que podem ser
ciar indivíduos e grupos por meio desse tipo de comu-
comercializadas.
nicação social.
De fato, atualmente, como aponta Teixeira Coelho,
“o padrão maior de avaliação tende a ser a coisa, o
Theodor Adorno e Max Horkheimer, dois dos prin- bem, o produto; tudo é julgado como coisa, portan-
cipais filósofos da chamada Escola de Frankfurt, já to tudo se transforma em coisa”, inclusive a cultura.
haviam falado sobre esse paradoxo da sociedade Talvez seja difícil imaginar a vida sem os diverti-
massificada, em que há “poucos centros de pro- mentos proporcionados pela indústria cultural: um
dução e uma recepção difusa”, de tal modo que fica cinema aos finais de semana, um seriado na tele-
fácil supor – pensando em termos econômico-cul- visão, uma exposição de arte contemporânea, o últi-
turais – que as assimetrias entre a classe dominante mo disco da nossa banda favorita. Tudo é planejado
(os “centros de produção”) e a classe trabalhadora (a para agradar e, presumivelmente, tornar a vida mais
“recepção difusa”) geram a dominação cultural. suportável.
A reificação e a alienação ganham aqui grande Acontece que “o sistema inflado pela indústria
importância. Como já mostramos em aulas anterio- dos divertimentos não torna, de fato, a vida mais
res, na sociedade capitalista contemporânea, tudo humana”, nas palavras de Adorno e Horkheimer.
é tratado como “coisa” (reificação) e o homem não Trata-se de um jogo de sedução que apenas faz per-
recebe todos os benefícios do próprio trabalho (alie- manecerem vivas as desigualdades sociais e a aliena-
nação). A cultura de massa que surge numa época ção. Ainda de acordo com os filósofos da Escola de
assim não poderia, portanto, deixar de ter uma di- Frankfurt:
mensão reificada e alienada. Teixeira Coelho afirma:
A idéia de “exaurir” as possibilidades técnicas dadas,
Nesse quadro, também a cultura – feita em série, in- de utilizar plenamente as capacidades existentes pa-
dustrialmente, para o grande número – passa a ser ra o consumo estético da massa, faz parte do sistema
vista não como instrumento de livre expressão, crí- econômico que se recusa a utilizar suas capacidades
tica e conhecimento, mas como produto trocável por quando se trata de eliminar a fome.
dinheiro e que deve ser consumido como se conso- A indústria cultural continuamente priva seus con-
me qualquer outra coisa. sumidores do que continuamente lhes promete.

A indústria cultural A felicidade proporcionada pelo cinema e pela


televisão, pelas músicas nas rádios e pela internet, é
O conceito de indústria cultural foi proposto enganadora. Ela é produzida por uma indústria, está
por Adorno e Horkheimer no célebre ensaio “A in- a serviço da padronização de comportamentos e não
dústria cultural – o Iluminismo como mistificação da tem a espontaneidade que se espera de qualquer ma-
massa”, que data de 1947. Quinze anos depois, numa nifestação cultural. Mas será que conseguiríamos vi-
série de conferências radiofônicas que se deram na ver sem ela?
Alemanha, Adorno fala que ele e Horkheimer, tra-
tando do “problema da cultura de massa”, empre- O mundo pop
garam o termo indústria cultural:
Já tratamos das diferenças entre a cultura popu-
lar e a cultura erudita. No âmbito da cultura popular,
a fim de excluir de antemão a interpretação que
embora com todas as especificidades que aponta-
agrada aos advogados da coisa; estes pretendem,
mos, está a cultura de massa (que pode ou não estar
com efeito, que se trata de algo como uma cultura
a serviço da indústria cultural). Mas nesse universo
surgindo espontaneamente das próprias massas,
cultural ainda há espaço para o que se convencio-
em suma, da forma contemporânea da arte popu-
nou chamar de cultura pop.
lar. Ora, dessa arte a indústria cultural se distingue
Essa expressão também veio do inglês e designa,
radicalmente.
segundo o Houaiss, a “cultura popular disseminada

ensino médio – sociologia 30 sistema anglo de ensino


pelos meios de comunicação de massa”, traduzindo mundo do que com o próprio mundo. Em outras pa-
também a idéia de algo que é “conveniente à maio- lavras, em vez de apreendermos a realidade diretamen-
ria das pessoas”, que é “aceito ou aprovado pela te, por observação dos fatos, tomamos contato com
maioria”. ela pelos meios de comunicação, que fazem a sua “lei-
Por esse motivo falamos em arte pop ou em músi- tura” do mundo e divulgam-na como se fosse a ver-
ca pop. São manifestações culturais populares, com dade absoluta. Além disso, sobretudo na imprensa,
tendências à massificação, que costumam ganhar a percebe-se um interesse cada vez maior em fazer com
atenção principalmente dos jovens. Mais do que isso, que essa “leitura”, essa interpretação da realidade seja
são produtos da indústria cultural, que, em linhas ge- um sucesso do ponto de vista econômico. Não interes-
rais, apenas reiteram os valores institucionalizados, sa o fato em si mesmo, mas sim a maneira de inter-
sem jamais questioná-los. pretá-lo. A idéia é torná-lo uma coisa, um produto,
Muitos estudiosos e a maioria dos intelectuais en- uma mercadoria para ser consumida em larga escala.
gajados costumam opor a cultura popular “autênti- Os jornais e revistas, para a maioria da popula-
ca” e a cultura pop. Como escreve Teixeira Coelho: ção, transmitem informações de modo neutro e im-
parcial. Muitos não percebem que os veículos de im-
Para esses, a cultura popular (a soma dos valores tra- prensa – sejam impressos, eletrônicos ou digitais –
dicionais de um povo, expressos em forma artística, não têm apenas a função de noticiar. Eles opinam in-
como danças e objetos, ou nas crendices e costumes formando ou, quando menos, informam opinando.
gerais) abrange todas as verdades e valores positivos, E essas opiniões dependem, sobretudo, das crenças,
particularmente porque produzida por aqueles mes- dos valores, das posições pessoais daqueles que de-
mos que a consomem, ao contrário do que acontece têm os meios de comunicação.
com a pop. Este traço da produção pelo próprio gru- No entanto, independentemente das opiniões sub-
po (caracterizando o valor de uso da cultura) é posi- jacentes a qualquer reportagem, percebe-se uma lu-
tivo (…). ta dos veículos de imprensa para conquistar cada vez
mais audiência, para vender mais exemplares, para
conseguir mais acessos. Por isso, ocorre com mais
Teixeira Coelho, porém, não acha justa a demo-
freqüência o fenômeno de espetacularização da no-
nização da cultura pop, a despeito de reconhecer que
tícia. É o sensacionalismo moderno. O que faz as
ela tenha como característica “poucos centros de pro-
pessoas comprarem determinada revista, assistirem
dução e uma recepção difusa”, o que é meio caminho
a determinado canal, ou acessarem um site é o grau
andado para a dominação e para a padronização
de “espetáculo” que tal veículo proporciona.
cultural.
Guy Debord, autor de A sociedade do espetáculo,
obra publicada em 1967 – ano que antecedeu as
Sociedade do espetáculo
transformações culturais do Maio de 68, na França –,
analisa sociológica e filosoficamente essa noção de
espetáculo, afirmando:

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as con-


dições modernas de produção se anuncia como uma
imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era di-
retamente vivido se afastou numa representação.

Debord crê que o espetáculo funciona como ins-


trumento de unificação da sociedade de massa, pois
“ele é expressamente o setor que concentra todo o
olhar e toda a consciência”. Com efeito, tomamos
consciência do mundo muitas vezes pela espetaculari-
zação oferecida pelos meios de comunicação. Acon-
Espectadores assistem
a filme usando óculos
tece que o espetáculo é a “inversão concreta da vida”,
3D, década de 60. “é o movimento autônomo do não-vivo”, “é o lugar
do olhar iludido e da falsa consciência”. Seu movi-
Na sociedade midiática, da comunicação de massa, mento de unificação é, na verdade, mais um caso de
temos muito mais contato com as representações do padronização cultural e, portanto, de segregação.

ensino médio – sociologia 31 sistema anglo de ensino


Alguns poderão supor que o espetáculo da mí- Antes, os erros eram só de procedimento, a tal
dia não tem tanto poder assim, que é exagero culpá- “espetacularização” de prender os suspeitos com câ-
-la pela manutenção das injustiças sociais e pela cres- meras de TV adentrando a casa alheia e com o uso
cente dominação cultural. Afinal, a mídia só trabalha de algemas de pobre em gente tão rica. Agora, pas-
com “imagens”. Debord faz uma observação interes- saram a ser de conteúdo (…).
sante a esse respeito: Segundo Tarso, o substituto de Protógenes, Ri-
cardo Saadi, é de “altíssimo nível” e o inquérito in-
O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas corporará uma profusão de adjetivos: será “mais
uma relação social entre pessoas, mediatizada por profundo”, “mais técnico”, “mais sofisticado”, “com
imagens. mais qualidade” e “menos midiático”.
(…)
(http://www1.folha.uol.com.br/fsp/
Se a mídia só trabalhasse com imagens que não
opiniao/fz2407200804.htm)
tivessem relação alguma com a vida social, seria exa-
gero considerá-la tão influente no mundo globali- 1. De acordo com o texto, as ações da Polícia Fe-
zado. Porém as imagens são fundamentalmente um deral nesse caso se aproximam dos ideais da
“meio” para estabelecer relações entre indivíduos e, “sociedade do espetáculo”? Por quê? Qual o
portanto, não são tão inofensivas assim. Mais uma papel da imprensa nesse processo?
vez, citamos Debord: Sim. Quando a jornalista fala da “espetacularização de

O mundo ao mesmo tempo presente e ausente que o prender os suspeitos com câmeras de TV”, percebe-se
espetáculo faz ver é o mundo da mercadoria domi- que, no mundo de hoje, até as ações policiais se tornam
nando tudo o que é vivido. E o mundo da mercado- espetáculos midiáticos. A imprensa colaborou para o
ria é assim mostrado como ele é, pois o seu movi-
ocorrido, uma vez que, ao acompanhar as diligências
mento é idêntico ao afastamento dos homens entre
si (…). da PF, pareceu mais preocupada com a audiência que
isso poderia lhe trazer do que com a privacidade necessária
As imagens, a cultura se tornam definitivamente à operação.
mercadoria. Essa passa a funcionar como media-
dora das relações entre os homens, que se afastam
um dos outros na sociedade do espetáculo.

exercícios 2. O que o ministro Tarso Genro quer dizer quan-


do afirma que Ricardo Saadi é “menos midiáti-
co” que Protógenes Queiroz?
O texto a seguir é o início de um artigo de
Eliane Cantanhêde, publicado na Folha de S. Paulo, Para Tarso, em linhas gerais, Saadi é mais compe-
em 24 de julho de 2008. Trata-se de um comen- tente que Protógenes, pois tem “mais qualidade” e é
tário da jornalista a respeito da maneira como a
Polícia Federal vem agindo no momento de exe- “mais profundo”, “mais técnico” e “mais sofisticado” do
cutar mandados de prisão. Especificamente, ela que seu antecessor. Ao afirmar que Saadi é também
trata da “Operação Satiagraha”, que levou o ban- “menos midiático”, o ministro sugere que Protógenes se
queiro Daniel Dantas, o investidor Naji Nahas e o
preocupava demasiadamente em divulgar suas ações e
ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta a passar al-
gumas horas na cadeia: suas conclusões para a mídia, em vez de simplesmente
conduzir o inquérito de maneira sigilosa, como seria
Erros e acertos
esperado.
BRASÍLIA - Não foi nenhum acusado, advogado
ou curioso quem disse que há “erros” no inquérito
do delegado Protógenes Queiroz sobre o trio Daniel
Dantas, Naji Nahas e Celso Pitta. Foi, nada mais
nada menos, o ministro da Justiça e chefe da PF,
Tarso Genro.

ensino médio – sociologia 32 sistema anglo de ensino


Tarefa mínima Agora, mais de dez anos depois, é com prazer que
comunico a meus detratores essa nova técnica de
O texto a seguir, intitulado “Como fazer críti-
crítica musical. Continuarei sem ouvir CDs que preve-
ca musical só vendo fotos”, foi publicado no Folha-
jo horríveis. Mas vou prestar muita atenção nas fotos
teen, em 28 de abril de 2008. Trata-se da coluna
dos artistas. Está tudo lá. Ah, a sabedoria que os anos
“Escuta aqui”, de Álvaro Pereira Júnior, que co-
trazem…
meçava com a seguinte imagem:
(http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ folhatee/fm2804200818.htm)

1. Você acha que o autor desse texto está sendo


irônico ou que ele, como crítico, acredita real-
mente na possibilidade de avaliar discos sem
ouvi-los?
Resposta pessoal.

Olha a foto da banda Foals. 2. Ao afirmar que, “em se tratando de cultura pop”,
é uma vantagem “sacar as coisas ‘de prima’, sem
Em seguida, vinha o texto: grande esforço”, Álvaro acaba criticando ou elo-
giando a cultura pop? Explique sua resposta.
NÃO SE ASSUSTE, mas eu tenho idade para ser seu
avô. Chegar aos 45 traz algumas vantagens (a falta de Criticando. Ao dizer que é possível avaliar produtos da cul-
cabelos e o bloqueio da visão do solo pela própria tura pop sem conhecê-los, Álvaro sugere que se trata de
barriga não estão entre elas). A principal, pelo menos
algo descartável, feito para consumo imediato. Não deixa
em se tratando de cultura pop, é “figure things out”,
como dizem os gringos, ou seja, sacar as coisas “de de ser curioso o fato de ele citar a expressão em inglês
prima”, sem grande esforço. Foi o que aconteceu comi- “figure things out”, como se fosse mérito imitar a linguagem
go ao ver uma foto do novo grupo inglês Foals. Repito:
dos “gringos”. Sem querer, ele dá mostras de como o mun-
uma FOTO, nada mais. Quando escutei uma música
deles, sem saber de quem era, no segundo compasso do pop massificado sofre com a padronização cultural.
pensei: “Isso deve ser aquele Foals”. Olhei a lista das
faixas (o CD tinha sido queimado pelo amigo Paulo
Cesar Martin) e não deu outra: era.
Uma batucadinha caucasiana, aquela total falta
de groove, vocalzinho de filhinhos de papai de facul- Tarefa complementar
dade, uma sopa rala de clichês new rave… Estava tudo
O palestrante e professor do Anglo Pierluigi
naquela foto, e o som confirmou. Que pesadelo.
Piazzi, mais conhecido como Pier, em seu livro
No século passado, escrevi um texto para a Ilustra-
Aprendendo inteligência diz que, para “evitar bur-
da apontando a subserviência da crítica brasileira a
rice”, é necessário fugir da televisão. Vejam-se
Chico Buarque. Depois de muitos anos, Chico lançava
suas palavras:
um disco de inéditas, recebido com um oba-oba as-
sustador mesmo para os padrões rastejantes do jor- O mais instrutivo documentário do canal educa-
nalismo cultural de nossa terra. tivo é tão imbecilizante quanto um “teste de fideli-
Acho até que o texto estava bem argumentado, dade” ou outra baixaria qualquer.
mas o mundo caiu na minha cabeça porque eu dizia Eu sei que isso parece paradoxal, mas a explicação
que não tinha ouvido nem iria ouvir o novo do Chico – é simples. Esse efeito imbecilizante se deve, primor-
tinha certeza de que, musicalmente, ele estava para- dialmente, a dois fatores.
do havia 20 anos. Um é comportamental: como a televisão, infeliz-
“Fascista” e “autoritário” foram os xingamentos mente, está constantemente ligada nos lares e nos lo-
mais brandos que recebi. cais públicos, as pessoas se sentem no pleno direito

ensino médio – sociologia 33 sistema anglo de ensino


de não prestar atenção nela e até conversarem entre ca da cultura de massa. Suas críticas acabam
si enquanto alguém, na telinha, está se esforçando se destinando, sobretudo, aos jovens.
para captar sua atenção. Você, como jovem do século XXI, concorda
Instintivamente esse comportamento acaba sen- que a televisão e o MSN podem fazer uma pes-
do adotado sempre, seja num cinema, num templo, soa ficar menos inteligente? Será que a leitura
numa conferência ou numa aula. (…) é, de fato, mais divertida do que a televisão? A
O segundo fator é mental. A televisão substituiu linguagem das salas de bate-papo revela “de-
a mais útil, divertida, fantástica e maravilhosa forma bilidade mental”?
de prazer: a leitura. A resposta não está fechada e poderá resultar tanto
É muito mais fácil ligar a TV do que abrir um livro.
de uma reflexão pessoal quanto de um amplo debate
Moral da história: já foram criadas, pela TV, pelo me-
nos três gerações com grandes porcentagens de anal- com a turma. No Manual do Professor há sugestões
fabetos funcionais (que são aqueles que conseguem para o encaminhamento da discussão.
transformar letras em sons, mas não em idéias). (…)
Mais à frente, Pier faz um ataque a outro
ícone da sociedade midiática:
(…) com a chegada da internet, um mundo de LEITURA COMPLEMENTAR
possibilidades gigantesco se abriu.
Infinitas possibilidades de pesquisa, cruzamento
de informações, troca de conhecimento passaram a O texto que segue reforça a idéia de que é ne-
estar ao alcance de qualquer pessoa com um mínimo cessário estar atento aos males gerados pela mídia,
de inteligência e curiosidade. em especial pela internet. Leia-o com atenção.
Eu disse “…um mínimo de inteligência…”: esse é o
problema! A ansiedade de exposição
Com toda essa sabedoria ao seu alcance, o que os Primeiro, uma confissão: venho me servindo do
idiotas fazem? ensaísta e crítico cultural Lee Siegel há anos. Não, ele
Instalam o ICQ ou MSN! Usando a internet para não vai me processar por assédio sexual. As idéias de
fofocar dessa forma idiota passam, imediatamente, a Lee Siegel me socorreram quando algum fenômeno
ter três sérios problemas: da cultura popular americana me colocava na con-
Primeiro problema: Acham que fazer uma pesquisa tramão do gosto coletivo e me batia uma solidão da-
na internet é copiar trabalhos feitos por outros sem nada em festas ou papos de bar. Em parte por causa
se dar sequer ao trabalho de lê-los completamente. dele me mantive assinante da revista The New Re-
(…) public. E desconfiei que havia algo malcheiroso no
Segundo problema: Na tentativa de serem “diferen- incidente que levou-o a uma suspensão temporária
tes”, nivelam-se no baixo nível da maioria. Está cer- desta publicação por ter assumido um pseudônimo
to escrever “vc” no lugar de “você” se estiver com para se defender de ataques de leitores sociopatas.
pressa, mas escrever “aki naum” no lugar de “aqui Volto à celeuma já, já. Mas, no espírito da transpa-
não” já denota um avançado estado de debilidade rência editorial, foi na condição de tiete que, ao ver
mental! (…) o novo livro de Siegel exposto na livraria, decidi pro-
Terceiro problema: Pesquisas sérias e recentes reve- curá-lo ao terminar a primeira página do prefácio.
lam fatos assustadores: a internet e, em particular o Afinal, se você aprecia o piano de Bill Evans como
MSN (ou similares), viciam tanto quanto drogas quí- eu, já não é um primeiro estímulo para tomarmos
micas. um café juntos? Como não podia convidar um estra-
Vemos, hoje em dia, jovens se transformando em nho para tomar café, recorri ao velho truque, um dos
“autistas cibernéticos” que passam horas em salas de poucos privilégios que sobraram na nossa escorra-
bate papo (…), deixando de fazer esportes, deixando çada profissão. O jeito era lançar a isca da entrevista.
de se relacionar socialmente com outras pessoas, Marquei uma gravação lá em casa. A assessora de
deixando de estudar, em resumo… imprensa da nova editora Spiegel and Grau não ques-
tionou o endereço do compromisso, em meio a tan-
… deixando de viver! (...) tos que estava marcando para seu autor. “Vinte minu-
As posições do professor Pier vão de en- tos, hein”, ela confirmou. Concordei, é claro. Os 20
contro às dos defensores da sociedade midiáti- minutos duraram quase 3 horas, interrompidas por

ensino médio – sociologia 34 sistema anglo de ensino


um telefonema convocando o entrevistado a ir cor- diu e acelerou, como a pedofilia, a violência porno-
rendo render a babá do filho de 18 meses. gráfica e o isolamento resultante de doença mental.
No prefácio de Against the Machine, Being Human Ele convida o leitor a considerar o caso do auto-
in the Age of the Electronic Mob, Siegel resume o móvel, o ícone sagrado da prosperidade americana.
que faz dele um personagem démodé do jornalis- No começo da década de 60, 50 mil americanos mor-
mo contemporâneo: “As coisas não têm que ser riam anualmente nas estradas. Havia detalhes de en-
como são”. genharia específicos e conhecidos para alterar a fabri-
No auge do baba-ovo geral com a série Sex & the cação, mas o carro como símbolo de status e individua-
City, em 2002, um ensaio solitário de Siegel, “Rela- lismo era intocável. Até que foi publicado o clássico
tionshipism”, na New Republic, chamou atenção para Unsafe at Any Speed (Inseguro a Qualquer Velocida-
o fato de que as quatro mulheres usavam a própria de), de Ralph Nader, sobre a negligência criminosa da
independência para, entre outros comportamentos indústria de automóveis. O grande público ficou hor-
destrutivos, confundir sexo com afeto e submeter-se rorizado, gradualmente os engenheiros passaram a
a humilhações sistemáticas. Siegel estava defenden- ser ouvidos e milhares de mortes foram evitadas.
do as mulheres delas mesmas. As coisas não tinham que ser como eram.
(…) Siegel não sugere que a internet seja letal como
O argumento central do livro é que a internet veio o automóvel, é claro, mas compara as duas tecno-
acelerar uma tendência cultural preexistente – o fato logias pela sua recepção triunfal e acima da crítica.
de que nunca na história o indivíduo foi tão elevado Ambas foram saudadas sob a retórica da liberdade
acima da sociedade, e satisfazer o próprio desejo tor- e da democracia. Siegel lembra a famosa previsão
nou-se mais importante do que equilibrar os rela- de Lênin sobre o imperialismo como a fase final do
cionamentos com o outros. “Nós vivemos dentro da capitalismo. Ele discorda: “A fase final do capitalis-
nossa cabeça mais do que qualquer sociedade em mo, a fronteira sem fundos, é a exposição pública
qualquer outro momento e, para alguns, agora, a rea- do universo privado, da psique. A privacidade vi-
lidade só existe dentro da cabeça deles.” Siegel não rou performance. É uma transação pública. Against
está condenando e sim apontando o fato de que a the Machine propõe uma moratória nas platitudes
tecnologia é neutra e amoral. “A internet”, diz, “não triunfalistas e um resgate da cultura adulta. (…)
criou patologias de comportamento”, mas as difun- (Lúcia Guimarães, O Estado de S. Paulo, “Aliás”, 2/3/2008.)

ensino médio – sociologia 35 sistema anglo de ensino


Aula
23
Cultura brasileira – I
Para debater

Luiz Braga. Sombrinha estampada e anjos. Fotografia, 1999.

O texto a seguir é a letra da canção “Canta, Brasil”, Oh! Este rio turbilhão,
de David Nasser e Alcir Pires Vermelho. Ela foi Entre selvas e rojão,
gravada por Gal Costa no LP Fantasia, de 1981: Continente a caminhar:
No céu, no mar, na terra,
As selvas te deram nas noites teus ritmos bárbaros, Canta, Brasil!
E os negros trouxeram de longe reservas de pranto,
Os brancos falaram de amor em suas canções, A letra dessa canção começa fazendo referência
E dessa mistura de vozes nasceu o teu canto. aos índios (representados pelos “ritmos bárbaros”),
aos negros e aos brancos, retomando aquela velha
Brasil, minha voz enternecida idéia de que o Brasil é, como disse Olavo Bilac, a
Já dourou os teus brasões “flor amorosa de três raças tristes”. Para os com-
Na expressão mais comovida positores, a cultura brasileira – o nosso “canto” – se
Das mais ardentes canções. originaria “dessa mistura de vozes”.
Mas será que é tão fácil explicar a origem da
Também, na beleza deste céu, cultura brasileira? Aliás, será que é fácil definir, de-
Onde o azul é mais azul, limitar, precisar a cultura brasileira?
Na aquarela do Brasil, É o que começaremos a ver nesta aula.
Eu cantei de norte a sul.
Um pouco de teoria
Mas agora o teu cantar,
Meu Brasil, quero escutar “Plural, mas não caótica”
Nas preces da sertaneja, Com essa expressão, bastante feliz, o professor
Nas ondas do rio-mar. Alfredo Bosi avalia a cultura brasileira. Ele mostra

ensino médio – sociologia 36 sistema anglo de ensino


que, durante algum tempo, a busca pela identidade Indústria cultural no Brasil
nacional passava pela necessidade de apontar uma
única linha mestra da nossa cultura, como se ela fosse
unitária, coesa, com valor universal. Bosi então afir-
ma:

(…) não existe uma cultura brasileira homogênea,


matriz dos nossos comportamentos e dos nossos
discursos. Ao contrário: a admissão do seu caráter
plural é um passo decisivo para compreendê-la
como um “efeito de sentido”, resultado de um pro-
cesso de múltiplas interações e oposições no tempo
e no espaço.

Essa pluralidade advém de vários fatores. Em


primeiro lugar, como em qualquer outro país, mis-
turam-se no Brasil elementos da cultura popular e
da erudita, da cultura de massa e da cultura “de
raiz”. Além disso, pela dimensão territorial, é de
esperar que haja regionalismos espalhados pelo
país. Outro fator importante é a miscigenação étni-
ca, que, aliada à chegada de imigrantes em vários
momentos de nossa história, torna a cultura bra-
sileira um mosaico de tradições, de hábitos, de
Abelardo Barbosa, o Chacrinha (1917 – 1988), um dos maiores
crenças, de valores. Sobre isso, diz Bosi: comunicadores da TV brasileira e ícone da cultura de massa no
Brasil. Um de seus populares bordões: “Eu vim para confundir e
não para explicar”.
Há imbricações de velhas culturas ibéricas, indíge-
nas e africanas, todas elas também polimorfas, pois Ainda que o capitalismo brasileiro seja tardio
já traziam um teor considerável de fusão no mo- em relação ao das nações desenvolvidas, o Brasil
mento do contato interétnico. E há outros casa- também já convive plenamente com sua cultura de
mentos, mais recentes, de culturas migrantes, quer massa.
externas (italiana, alemã, síria, judaica, japonesa…), Na sociedade midiática, a transmissão de infor-
quer internas (nordestina, paulista, gaúcha), que pe- mações, as trocas culturais e os debates sociais ocor-
netraram fundo em nosso cotidiano material e mo- rem, sobretudo, pelos meios de comunicação. No
ral. Sem esquecer a presença norte-americana, que século XXI, com a popularização dos computadores
vem representando, desde a Segunda Guerra Mun- pessoais, o número de pessoas com acesso à inter-
dial, uma fonte privilegiada no mercado de bens net tem crescido vertiginosamente. Dessa forma, a
simbólicos. rede mundial se tornou fundamental para a com-
preensão dos caminhos que segue a cultura de massa
em épocas de globalização.
Mas não se pense que essa pluralidade leva, De acordo com uma pesquisa do Ibope/NetRa-
necessariamente, ao caos. Pelo contrário. A plurali- tings, havia, no começo de 2008, 21,1 milhões de
dade da cultura brasileira é comprovação de sua internautas residenciais ativos no Brasil. O número
diversidade, enquanto, de novo nas palavras de Bosi, cresce se levarmos em consideração que o país
essa: possui cerca de 40 milhões de pessoas, com 16 anos
ou mais, que acessam a internet na própria casa,
no trabalho, na escola ou em lan houses. O que mais
impressão de caos e nonsense ficará por conta do
impressionou na pesquisa foi o fato de o brasileiro
estilo de show alucinante montado por essa gigan-
ficar, em média, 23 horas e 12 minutos por mês na
tesca fábrica de sombras e revérberos chamada
frente do computador. Com esse tempo médio de
civilização de massa.
navegação, o Brasil fica à frente da França (21 ho-

ensino médio – sociologia 37 sistema anglo de ensino


ras e 38 minutos), dos Estados Unidos (20 horas e 39 assim como editoras especializadas em lançar obras
minutos) e da Austrália (19 horas e 13 minutos). para o grande público. Mas o fato é que uma bi-
Entretanto a internet ainda está longe de des- blioteca ou uma livraria oferecem opções de esco-
bancar a televisão. Segundo o IBGE, em 2005, o lha mais amplas que os jornais impressos, o rádio ou
PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domi- a televisão.
cílio) mostrou que há 162,9 milhões de pessoas que Mas o brasileiro ainda lê pouco: 1,3 livro por
moram em domicílios com televisão colorida, o ano, segundo a pesquisa “Retratos da Leitura no
que corresponde a quase 90% da população bra- Brasil”, feita pelo Ibope em 2007 com pessoas que
sileira. Espanta saber que apenas 123,2 milhões de não estão mais na escola. Já os estudantes lêem 7,2
brasileiros moram em casas com rede de esgoto. livros por ano. Desses, 5,5 são didáticos ou indica-
Assim, praticamente 40 milhões de pessoas têm dos pela escola; apenas 1,7 é lido por escolha própria.
tevê a cores em casa, mas não têm acesso a sanea- Outros dados da pesquisa que merecem des-
mento básico. taque são:
O poder de penetração da televisão é, portanto,
muito alto. Nem se compara, por exemplo, com o dos
• 46% dos estudantes do país dizem não freqüen-
jornais. Em 2007, a Folha de S. Paulo, o maior jornal
tar bibliotecas.
comercial do país, teve uma tiragem média pouco
superior a 300 mil exemplares por dia, de acordo • O Brasil possui 36 milhões de compradores de
com o IVC, Instituto Verificador de Circulação, totali- livros e, entre eles, a média é de 5,9 exemplares
zando pouco mais de dois milhões de jornais por se- adquiridos por ano.
mana. Só como parâmetro de comparação, a Folha • 67% dos entrevistados afirmou que sabe da exis-
Universal, jornal semanal da Igreja Universal do Reino tência de uma biblioteca pública em sua cidade,
de Deus, detém a maior tiragem absoluta do país: 2,3 mas 73% declararam que não costumam usar o
milhões de exemplares. serviço.
Um aspecto fundamental para entender o fun- • 8% dos brasileiros, cerca de 15 milhões de pes-
cionamento da indústria cultural nos meios de co- soas, não têm nenhum livro em casa.
municação é saber que eles vivem principalmente
da publicidade. Teixeira Coelho afirma que:
A luta contra a indústria cultural: o enraizamento
os jornais brasileiros têm na publicidade mais de 80%
do seu faturamento, enquanto TVs e rádios dela de- Num mundo de grandes mídias e poucos livros,
pendem em 100% – e boa parcela dessa publicidade, em que o número de produtores culturais é muito
especialmente para os jornais, vem de órgãos dos go- menor que o de receptores e em que as informações
vernos municipal, estadual e federal, o que revela de em larga escala solapam a diversidade, há uma cons-
imediato a grande dependência desses veículos em re- tante luta de certas comunidades para manter seus
lação a seus anunciantes “comerciais’ ou “ideológicos”. costumes, suas tradições, seus valores. É o enraiza-
mento. Simone Weil o define como:
Além da dependência em relação à publicidade,
os meios de comunicação brasileiros ainda sofrem a necessidade mais importante e mais desconhecida
com a dependência tecnológica e informativa. José da alma humana e uma das mais difíceis de definir.
Marques Melo mostra que 75% das emissoras de O ser humano tem uma raiz por sua participação
televisão “importaram recursos técnicos diretamen- real, ativa e natural na existência de uma coletivi-
te dos EUA”. Além disso, emissoras regionais e dade que conserva vivos certos tesouros do passa-
jornais de cidades pequenas costumam reproduzir do e certos pressentimentos do futuro.
notícias de agências (nacionais ou internacionais),
deixando de lado a produção de reportagens que, Ecléa Bosi salienta que o enraizamento não pres-
de fato, interessem à população daquela região. supõe xenofobia ou coisa do gênero. Não se trata de
Trata-se, pois, de uma forma de “colonialismo cul- “isolar um meio social de influências externas”, até
tural”. porque isso seria impossível. O enraizamento é uma
Nesse universo, os livros surgem como uma pos- forma de proteger uma cultura de ser dominada e
sibilidade de resistir à dominação cultural. É claro destruída sumariamente, como aconteceu com os
que nem todos os livros à venda fogem à lógica da índios em várias partes do continente americano. A
indústria cultural: há que faça de tudo para vender, professora acredita que:

ensino médio – sociologia 38 sistema anglo de ensino


Capivara (PI), além das cidades de Diamantina (MG),
A conquista colonial causa desenraizamento e morte
Ouro Preto (MG), Congonhas do Campo (MG), Olin-
com a supressão brutal das tradições. A conquista
da (PE) e São Miguel das Missões (RS).
militar, também. Mas a dominação econômica de
Mas há ainda os patrimônios culturais imate-
uma região sobre outra no interior de um país causa
a mesma doença. Age como conquista colonial e mi- riais. Em 17 de outubro de 2003, a Unesco aprovou
litar ao mesmo tempo, destruindo raízes, tornando um documento intitulado “Convenção para salva-
os nativos estrangeiros em sua própria terra. guarda do patrimônio cultural imaterial”, em que
se afirma explicitamente:

É interessante essa idéia de pessoas se sentirem que os processos de globalização e de transformação


estrangeiras em seu próprio país. Isso pode aconte- social, ao mesmo tempo em que criam condições pro-
cer (e acontece) quando o indivíduo participa de um pícias para um diálogo renovado entre as comunida-
universo cultural diferente daquele “vendido” pelos des, geram também, da mesma forma que o fenômeno
meios de comunicação. É certo que podemos credi- da intolerância, graves riscos de deterioração, desa-
tar isso ao mundo globalizado, como se fosse impos- parecimento e destruição do patrimônio cultural ima-
sível reverter esse quadro de padronização. Mas é terial, devido em particular à falta de meios para sua
igualmente certo que há diversas organizações – go- salvaguarda (…).
vernamentais e não-governamentais – que se es-
forçam para garantir a preservação da diversidade
Ao definir o “patrimônio cultural imaterial”, a
cultural.
Unesco afirma:
Os patrimônios culturais
Entende-se por “patrimônio cultural imaterial” as prá-
ticas, representações, expressões, conhecimentos e téc-
nicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos
e lugares culturais que lhes são associados – que as co-
munidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos
reconhecem como parte integrante de seu patrimônio
cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se
transmite de geração em geração, é constantemente
recriado pelas comunidades e grupos em função de
seu ambiente, de sua interação com a natureza e de
sua história, gerando um sentimento de identidade e
continuidade e contribuindo assim para promover o
respeito à diversidade cultural e à criatividade huma-
na. Para os fins da presente Convenção, será levado
em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que
seja compatível com os instrumentos internacionais
de direitos humanos existentes e com os imperativos
de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indi-
víduos, e do desenvolvimento sustentável.
Arte gráfica dos índios Wajãpi, do Amapá.
E continua, dizendo que o patrimônio cultural
Quando se fala em patrimônio cultural, imedia- imaterial se manifesta “em particular nos seguintes
tamente vem à cabeça a realidade material, como se campos”:
só fosse possível preservar um prédio, uma cidade,
uma praia ou uma floresta. De fato, esses patrimô- a) tradições e expressões orais, incluindo o idioma
nios existem e devem ser valorizados. No Brasil, a como veículo do patrimônio cultural imaterial;
Unesco reconhece como patrimônios culturais ou b) expressões artísticas;
naturais da humanidade a Costa do Descobrimen- c) práticas sociais, rituais e atos festivos;
to, a região da Mata Atlântica entre São Paulo e Pa- d) conhecimentos e práticas relacionados à natureza
raná, o centro histórico de Salvador (BA) e de São e ao universo;
Luís (MA), o Parque Nacional de Iguaçu (PR), o Plano e) técnicas artesanais tradicionais.
Piloto de Brasília (DF), o Parque Nacional Serra da

ensino médio – sociologia 39 sistema anglo de ensino


No Brasil, o samba de roda baiano, em 2005, e a dade em mais de 150 países se deve aos mestres, que
Arte Kusiwa, desenvolvida pelos índios Wajãpi (uma tiveram sua habilidade de ensino reconhecida.
tribo do Amapá), em 2003, foram escolhidos pela Segundo o ministro interino Juca Ferreira, a vo-
Unesco como patrimônios culturais da humanidade. tação foi um momento de reparação em relação a
esta prática afro-descendente. “Nós estávamos de-
vendo isso aos mestres de capoeira, responsáveis por
exercícios uma das manifestações mais plurais e brilhantes de
nossa cultura”, afirma.
Observe a imagem e leia o fragmento jorna- (…)
lístico a seguir para responder ao que se pede: (http://portal.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?
id=13993&sigla=Institucional&retorno=detalheInstitucional)

1. A capoeira pode ser considerada um patrimô-


nio cultural material ou imaterial do Brasil? Por
quê?
Imaterial. Trata-se de uma mistura de dança e luta, que,
originada das senzalas, tornou-se uma forma de ex-
pressão artística tipicamente brasileira.

2. Qual a vantagem de um bem tornar-se patri-


mônio cultural?
De acordo com o texto: “Uma vez registrado o bem, é
Rugendas. Jogar capoeira ou Danse de la guerre, 1835.
possível elaborar projetos e políticas públicas que envol-
Depois de dar a volta ao mundo e alcançar reco- vam ações necessárias à preservação e continuidade da
nhecimento internacional, a capoeira se tornou o
manifestação.”
mais novo patrimônio cultural brasileiro. O registro
desta manifestação foi votado no dia 15 de julho, em
Salvador, pelo Conselho Consultivo do Patrimônio
Cultural do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional), que é constituído por 22 repre-
sentantes de entidades e da sociedade civil, e delibe-
ra a respeito dos registros e tombamentos do patri- 3. Como explicar a presença dos embaixadores
mônio nacional. do Senegal e da Nigéria ao evento em questão?
O instrumento legal que assegura a preservação A capoeira é uma “prática afro-descendente”, o que jus-
do patrimônio cultural imaterial do Brasil é o regis- tifica sua relação com certos países africanos.
tro, instituído pelo Iphan. Uma vez registrado o bem,
é possível elaborar projetos e políticas públicas que
envolvam ações necessárias à preservação e conti-
nuidade da manifestação.
Estiveram presentes ao evento o ministro interino
da Cultura, Juca Ferreira, o governador da Bahia,
Jacques Wagner, o presidente do Iphan, Luiz Fernan- Tarefa mínima
do de Almeida, o presidente da Fundação Palmares, Na “Convenção para salvaguarda do patrimô-
Zulu Araújo, os embaixadores da Nigéria e do Sene- nio cultural imaterial” da Unesco, afirma-se que
gal, além de autoridades locais. a convenção tem quatro finalidades principais:
O presidente do Iphan anunciou a inclusão do a) a salvaguarda do patrimônio cultural imate-
ofício dos mestres da capoeira no Livro dos Saberes, rial;
e da roda de capoeira no Livro das Formas de Ex- b) o respeito ao patrimônio cultural imaterial das
pressão. A divulgação e implementação dessa ativi- comunidades, grupos e indivíduos envolvidos;

ensino médio – sociologia 40 sistema anglo de ensino


c) a conscientização no plano local, nacional e Samba de roda baiano é proclamado
internacional da importância do patrimônio patrimônio da humanidade pela Unesco
cultural imaterial e de seu reconhecimento
Paris – O samba de roda da Bahia foi proclamado
recíproco;
sexta-feira (25/11) pela Unesco Patrimônio da Huma-
d) a cooperação e a assistência internacionais.
nidade na categoria de expressões orais e imateriais. O
1. Em sua opinião, uma iniciativa como essa é im- anúncio das 43 novas obras-primas do Patrimônio Oral
portante por quê? e Imaterial da Humanidade foi feito pelo Diretor-Geral
da Unesco, Koichiro Matsuura, com o objetivo de distin-
Porque permite conscientizar as pessoas da necessidade
guir as formas de expressão populares e tradicionais e
de manutenção da diversidade cultural, por meio da salva- sensibilizar a opinião pública para o reconhecimento do
guarda a festas, formas de artesanato, tradições orais, valor de seu patrimônio.
expressões artísticas, rituais simbólicos, práticas sociais –
Nascido no Recôncavo Baiano, o samba de roda é
um estilo musical afro-brasileiro tocado por um con-
muitas vezes esquecidas pela sociedade de consumo. junto de pandeiro, atabaque, berimbau, viola e cho-
calho, acompanhado por canto e palmas, e está as-
sociado a datas festivas do candomblé. É a segunda
manifestação cultural brasileira a ganhar o título de
patrimônio da humanidade. Em 2003, foram premia-
2. A convenção da Unesco é suficiente para ga-
das as expressões gráficas dos índios Wajãpi, uma
rantir a preservação do patrimônio cultural
tribo que vive no Amapá.
imaterial da humanidade? Por quê?
O título internacional de Obra-Prima do Patrimô-
Não. A convenção é uma declaração de intenções e não nio Oral e Imaterial da Humanidade foi criado pela
tem valor de lei. É claro que ela facilita políticas de Unesco, em 2001, como forma de estimular os gover-
nos, as ONGs e as próprias comunidades locais a re-
preservação cultural, mas, para que isso de fato ocorra,
conhecer, valorizar, identificar e preservar o seu pa-
é preciso que governos, ONGs e a sociedade como perce- trimônio intangível. A proclamação ocorre a cada
bam “no plano local, nacional e internacional da importância dois anos, a partir de uma seleção, feita por meio de
um júri internacional, de espaços e expressões de
do patrimônio cultural imaterial” da humanidade.
excepcional importância dentre candidaturas ofere-
cidas pelos países. No caso do Brasil a candidatura
do samba de roda foi estimulada pelo Ministro da
Cultura, Gilberto Gil, e coordenada pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Tarefa complementar (http://www.unesco.org.br/noticias/ultimas/sam-
baderoda/mostra_padrao)

O samba de roda, agora, é patrimônio da hu-


manidade, assim como as tradições dos índios
Wajãpi. Você conseguiria pensar em outros ele-
mentos da cultura brasileira que mereceriam esse
título? Em caso positivo, como você argumentaria
para que eles fossem escolhidos pela Unesco?
A resposta não está fechada e poderá resultar tanto
de uma reflexão pessoal quanto de um amplo debate com
a turma. No Manual do Professor há sugestões para o
encaminhamento da tarefa.

Samba de roda baiano

A matéria a seguir foi publicada na versão


brasileira do site da Unesco, em 28 de novem-
bro de 2005. Leia-a com atenção:

ensino médio – sociologia 41 sistema anglo de ensino


LEITURA COMPLEMENTAR çadas de desaparecimento e conhecimento sobre a
natureza. O mesmo acontece no caso dos afro-des-
cendentes, que apresentam os piores indicadores
Cultura - contexto brasileiro
sociais do país, mas que apenas nos últimos anos
Contexto favorável: O cenário atual é favorá- passaram a ser alvo de políticas sociais específicas,
vel à expansão das atividades de promoção cultu- o que também poderia ser aperfeiçoado com uma
ral e de preservação do patrimônio no Brasil. De abordagem cultural mais profunda.
fato, a ação estatal nesse setor passa por um perío- Cultura e desenvolvimento: O impacto econô-
do de forte afirmação no país. A consciência da di- mico da cultura é amplamente reconhecido no Bra-
mensão econômica da cultura vem crescendo, assim sil. Entretanto, pouco foi feito no sentido de uma
como a de seu papel na concepção de políticas sociais avaliação precisa desse fenômeno. Ademais, a rela-
que favoreçam o respeito à diversidade cultural, ao ção entre cultura e desenvolvimento vai muito além
pluralismo e aos direitos humanos. Nesse contexto, dos aspectos econômicos; o que significa desafio
uma série de políticas culturais foram formuladas, ainda maior para a mensuração e o monitoramento
entre elas: ações normativas como a Lei do Livro e a do impacto das ações concebidas. O Brasil é campo
emenda constitucional que cria o Plano Nacional de fértil para o desenvolvimento de projetos em que a
Cultura; o estabelecimento de um sistema de gestão cultura tenha papel central, devido a sua notável
para o campo da museologia; campanha nacional diversidade criativa. Áreas como o artesanato tra-
em favor da definição de um orçamento anual míni- dicional, pequenas manufaturas, moda e design
mo para a cultura; e o estabelecimento de mecanis- são estratégicas para o país, em vista de sua po-
mos mais claros para a alocação dos recursos desti- tencialidade em termos da melhoria das condições
nados a projetos culturais. de vida das populações mais pobres. Em outras pa-
Algumas prioridades na agenda: O Plano Na- lavras, as relações com a salvaguarda do patrimô-
cional de Cultura definiu os temas prioritários que nio cultural tangível e intangível podem ser as prin-
devem nortear as ações entre 2005 e 2015: admi- cipais referências para as políticas nesse campo.
nistração pública da cultura; direitos culturais e cida- Povos indígenas: Existem atualmente no Brasil
dania; cultura e desenvolvimento; patrimônio cul- cerca de 215 grupos indígenas distintos, falando 180
tural; comunicação é cultura. O Plano Plurianual de línguas diferentes. Em sua maior parte, trata-se de
Investimentos (PPA 2004/2007) também reflete as sociedades muito pequenas – a maioria delas com
linhas programáticas acima citadas e aponta a pre- menos de mil pessoas. As políticas brasileiras con-
sença da cultura em outras políticas transversais. centram-se na demarcação do direito à terra dos po-
Gestão pública da cultura: Apesar da intenção vos indígenas, o que vem ocorrendo numa escala sem
de conferir à cultura o status real de política pública precedentes no mundo, embora as terras demarca-
no Brasil, a área ainda sofre com a falta de recursos das ainda estejam sujeitas à invasão por minerado-
humanos qualificados, seja devido à falta de recur- res, fazendeiros, madeireiros e outros. Além disso, o
sos na administração pública, ou em razão da maior governo concentra-se em melhorar as condições de
abrangência do objeto da ação cultural, que exige saúde e a situação educacional das populações indí-
perfis profissionais cada vez mais diversificados. De- genas. O fato de muitos desses territórios incluírem
finir as responsabilidades dos órgãos públicos e pri- regiões ricas em diversidades biológicas converteu
vados e da sociedade civil, construir instrumentos de os povos indígenas em ator importante no complexo
governança, introduzir atividades inter-setoriais, in- cenário das políticas étnico-ambientais.
tensificar a qualificação profissional e criar novos con- Patrimônio cultural: O Brasil possui ampla tra-
ceitos e mecanismos de financiamento da produção dição em políticas públicas relacionadas à proteção
cultural são desafios enfrentados pelos setores públi- do patrimônio que, em parte, explica suas estreitas
co e privado e pela sociedade civil. relações com a Unesco nessa área. O desafio atual é
Direitos culturais e cidadania: A relação entre adotar uma abordagem inter-setorial, tanto no que
cultura e direitos humanos, bem como de seu papel diz respeito ao patrimônio tangível quanto ao in-
na luta contra a discriminação, são questões que o tangível, e melhorar a relação do patrimônio com o
Brasil enfrenta. Entretanto, a integração da cultura desenvolvimento, especialmente no que tange ao
com as demais políticas sociais é uma experiência desenvolvimento urbano dos sítios históricos. É tam-
recente que necessita ser aperfeiçoada. Falta ainda bém de alta relevância a divulgação e a consolidação
uma abordagem cultural mais profunda com rela- da experiência recente de salvaguarda do patrimô-
ção aos povos indígenas, tradições, línguas amea- nio intangível.

ensino médio – sociologia 42 sistema anglo de ensino


Comunicação é cultura: Um desafio atual, no transmissão de conteúdos culturais são objeto de
Brasil como também em outros países, é compre- ampla discussão no Brasil. Trata-se, na realidade, de
ender e encontrar soluções práticas, em termos de questões extremamente sensíveis e especializadas,
políticas e regulamentação públicas para o impacto fazendo-se necessário, portanto, o aprofundamento da
das novas tecnologias sobre a produção e a difu- reflexão e do debate, bem como a qualificação es-
são dos conteúdos culturais. O impacto da internet pecializada de profissionais na área.
sobre os direitos autorais e as novas formas de (http://www.unesco.org.br/Brasil/contextoCLT//mostra_padrao)

ensino médio – sociologia 43 sistema anglo de ensino


Aula
24
Cultura brasileira – II
Para debater
Observe a imagem e leia o poema que segue:

Candido Portinari. Mestiço. Óleo sobre tela, 193

Cabo Machado Segue todo rico de jóias olhares quebrados


Cabo Machado é cor de jambo, Que se enrabicharam pelo posto dele
Pequenino que nem todo brasileiro que se preza. E pela cor-de-jambo.
Cabo Machado é moço bem bonito.
Cabo Machado é delicado, gentil.
É como si a madrugada andasse na minha frente.
Entreabre a boca encarnada num sorriso perpétuo Educação francesa mesureira.
Adonde alumia o Sol de ouro dos dentes Cabo Machado é doce que nem mel
Obturados com um luxo oriental. É polido que nem manga-rosa.
Cabo Machado é bem o representante de uma terra
Cabo Machado marchando Cuja Constituição proíbe as guerras de conquista
É muito pouco marcial.
E recomenda cuidadosamente o arbitramento.
Cabo Machado é dançarino, sincopado,
Só não bulam com ele!
Marcha vem-cá-mulata.
Cabo Machado traz a cabeça levantada Mais amor menos confiança!
Olhar dengoso pros lados. Cabo Machado toma um jeito de rasteira…

ensino médio – sociologia 44 sistema anglo de ensino


Mas traz unhas bem tratadas Cultura brasileira “tipo exportação”
Mãos transparentes frias,
Não rejeita o bom-tom do pó-de-arroz.
Se vê bem que prefere o arbitramento.
E tudo acaba em dança!
Por isso Cabo Machado anda maxixe.
Cabo Machado… bandeira nacional!
(Mário de Andrade, Losango cáqui, 1924.)

O modernismo brasileiro caracterizou-se, entre


outras coisas, pelo empenho dos artistas em com-
preender e retratar a identidade nacional. Tendo em
vista os emblemáticos trabalhos de Mário de Andra-
de e de Candido Portinari aqui apresentados e o que
estudamos na aula anterior, discuta: o Brasil de Mário
de Andrade e de Portinari é também o “seu” Brasil?

Um pouco de teoria
Cultura popular e folclore
São extremamente ricas as manifestações da cul-
Carmen Miranda (1909 – 1955), primeiro ícone da cultura de
tura popular no Brasil. Principalmente a cultura dita
massa brasileira a conquistar sucesso internacional, con-
“de raiz”, mais autêntica – pois menos influenciada tribuiu para a formação da imagem do Brasil no exterior.
pela padronização imposta pela sociedade capita-
lista –, assume muitas nuances diferentes ao longo Pensemos num prato típico brasileiro – como a
de nosso vasto território. feijoada – ou numa festa – como a de São João. É di-
Dentro do amplo universo em que se constitui a fícil imaginar que algum brasileiro – salvo em con-
cultura popular, podemos dar destaque ao que cha- dições de extrema exclusão – nunca tenha provado
mamos de folclore. Nascido da junção de duas pa- feijoada ou nunca tenha ido a uma festa junina. Nin-
lavras inglesas – folk (“povo”, “nação”, “raça”) e lore guém precisa de uma aula, de um livro ou de um pro-
(“ensinamento”, “instrução”, “lição”) –, esse termo foi grama de televisão para conhecer essas manifesta-
criado na Inglaterra para designar a “sabedoria po- ções, que podem ser consideradas símbolos de nos-
pular”, em oposição à cultura erudita. Aos poucos, sa cultura e ajudam a construir a identidade nacional.
passou-se a empregar a palavra em outros idiomas. No entanto, embora as tradições de uma cultura
Atualmente, chamamos de folclore, de acordo com existam independentemente da sociedade midiática, a
o Houaiss, o “conjunto de costumes, lendas, provér- verdade é que o establishment costuma se apropriar
bios, manifestações artísticas em geral, preservado, delas, transformando-as em produto de consumo, que,
através da tradição oral, por um povo ou grupo na maior parte das vezes, contribuem para a cons-
populacional”. Assim, toda manifestação folclórica trução de um estereótipo – daí se falar em cultura “tipo
pode ser considerada parte da cultura popular, mas exportação” ou, popularmente, em cultura “para inglês
nem toda cultura popular é folclórica. ver”. Trata-se de um fenômeno comum no mundo ca-
O folclore é a memória cultural mais remota de pitalista. Quando uma determinada manifestação cul-
um povo. Transmitidas de geração para geração, tural, ainda que não tenha se originado das classes
oralmente, por centenas e até milhares de anos, dominantes, passa a fazer parte da memória coletiva e
essas tradições – que envolvem narrativas popula- não há como desprezá-la, as elites socioeconômicas se
res, lendas, pratos típicos, danças, festas, rituais reli- apoderam dela e passam a tratá-la como mercadoria.
giosos, expressões artísticas – fazem parte de uma Isso explica a exploração que o turismo, por exem-
espécie de “inconsciente coletivo” de um país, de plo, faz da cultura popular: uma manifestação cultu-
uma região. A questão é: como fazer, principal- ral viva, alicerce de uma identidade, transforma-se
mente numa sociedade em que tudo parece estar em possibilidade de lucro. Não se pode negar o valor
fadado ao descarte, à banalização, para que essas de iniciativas para a valorização e a divulgação da
tradições não se transformem em “verbete de di- cultura nacional – das quais a atividade turística pode
cionário” e continuem a fazer parte da dinâmica cul- ser um exemplo. Entretanto, deve-se atentar para
tural da sociedade? que essas mesmas iniciativas não concorram para a

ensino médio – sociologia 45 sistema anglo de ensino


mercantilização da cultura popular, tirando dela a O “vazio cultural” gerado pela indústria cultural
possibilidade de reinventar-se, com o intuito de acontece justamente porque a sociedade de consumo,
agradar ao “grande público”. a quem interessa a padronização cultural, destrói
todas as formas de diversidade e divulga uma cultu-
O carnaval a serviço da indústria cultural
ra popular pasteurizada, distanciada de seus valores
Praticamente todos concordam que o carnaval – originais. Coutinho vai mais longe, dizendo que:
cujas origens remontam à Antigüidade clássica –
parece ter se abrasileirado ao longo dos séculos, a generalização da “lógica” capitalista e monopolista no
transformando-se na mais emblemática manifesta- plano da cultura provoca um espontâneo privilegiamen-
ção cultural brasileira. Das escolas de samba do Rio to do valor de troca sobre o valor de uso dos objetos
de Janeiro aos bonecos de Olinda, passando pelos culturais, o que abre caminho para a criação e difusão de
trios elétricos de Salvador e pelas festas de rua de uma pseudocultura de massa que, transmitindo valores
tantas outras cidades, o carnaval brasileiro é interna- alienados, serve como instrumento de manipulação das
cionalmente conhecido e, ao lado do futebol, con- consciências a serviço da reprodução do existente.
tribuiu para a construção da imagem do país.
Sem negar a riqueza do carnaval brasileiro, em Portanto, ao contrário do que se poderia imagi-
toda sua diversidade e vitalidade, deve-se questionar nar numa primeira análise, a exploração midiática
até que ponto essa manifestação cultural não tem do carnaval não é uma forma de democratização da
sido “engolida” pelo sistema capitalista. Senão veja- cultura. Ao contrário disso, ela descaracteriza a festa
mos: o espírito do carnaval sempre foi a liberdade. popular, que perde sua essência libertária, tornando-
Durante a festa, anulam-se as fronteiras de classe, de -se “reprodução do existente”, e não mais produção
etnia, de idade. Além disso, as pessoas se tornam, si- de uma maneira particular de ver a realidade.
multaneamente, espectadoras e artistas. Não há re-
gras, não há padrões a serem seguidos, não há co- O Brasil pop
erções sociais. Trata-se de um breve período em que, É claro que podemos destacar apenas os aspec-
momentaneamente, “tudo” é permitido. tos negativos da cultura de massa no Brasil. Entre-
Nos morros do Rio ou nas ruas de Salvador, por tanto, considerando que é impossível deixar de re-
exemplo, o carnaval sempre foi uma festa do povo. conhecer sua existência no mundo contemporâneo,
Hoje, porém, há horários para os desfiles, paga-se – seria o caso de também apontar algumas particu-
e paga-se caro – para participar deles. Muitos, por laridades positivas da cultura pop brasileira.
falta de recursos, ficam apenas na posição de espec- Já dissemos que, muitas vezes, a dominação eco-
tadores. Em Salvador, ou em outras cidades que nômica de um país por outro gera efeitos sobre a
aderiram às micaretas – ou carnaval fora de época –, cultura. Veja-se o caso do cinema norte-americano,
só pode “correr” atrás dos trios quem está devida- que divulga os valores do american way of life por
mente uniformizado. Não fica difícil perceber que a todo o planeta, transformando os astros de Hollywood
festa transformou-se num verdadeiro negócio, movi- em celebridades mundiais. Com a música, ocorre fe-
mentando milhões de reais por ano. Nesse contexto nômeno semelhante: uma grande banda americana
há pouco espaço para a liberdade e, principalmente, ou inglesa lança um disco novo, que rapidamente
para a participação popular. “vira febre” em muitos países.
Pode-se argumentar que essa espetacularização No Brasil, as coisas não são tão simples. Por in-
do carnaval é benéfica para nossa cultura, pois o fato crível que pareça, há uma cultura de massa nacional
de ela se tornar cada vez mais conhecida poderia, que chega a rivalizar com a estrangeira. No “Rela-
em tese, servir para reforçar nossa identidade. Po- tório do Desenvolvimento Humano 2004”, da ONU,
rém, quando a sociedade de consumo incorpora a numa passagem intitulada “Globalização e escolha
cultura popular (e isso tem ocorrido sistematicamen- cultural”, afirma-se:
te), esta acaba por perder sua legitimidade. Carlos
Nelson Coutinho afirma que: De cada dez pessoas que saem de casa para ir ao cine-
ma no mundo inteiro, 8,5 verão um filme dos Esta-
esse processo de monopolização da indústria cultural dos Unidos. De cada dez habitantes do planeta Terra,
gerou uma forte expansão quantitativa dos chama- um assistiu à produção norte-americana Titanic (1997),
dos bens culturais, o que, antes de mais nada, serviu o filme mais visto de todos os tempos. De cada US$
para ocultar o fenômeno do vazio cultural, que é um 10 que são gastos numa bilheteria de qualquer lugar
fenômeno de natureza qualitativa. do globo, US$ 3,5 vão para Hollywood.

ensino médio – sociologia 46 sistema anglo de ensino


No caso do Brasil, saliente-se que, dos três filmes A pluralidade, o universo pop, o carnaval e de-
mais vistos na história do cinema brasileiro, ao lado de mais festas populares, o cinema e a música são ele-
Tubarão (1975) e de Titanic, está o nacionalíssimo Dona mentos fundamentais para a compreensão da cul-
Flor e seus dois maridos, baseado no romance homôni- tura brasileira. Mas há outro aspecto que não pode
mo de Jorge Amado. Dona Flor ficou à frente de clás- ser desconsiderado: a religiosidade.
sicos do cinema de entretenimento como O exorcista De acordo com uma pesquisa do Datafolha de
(1973), ET – o extraterrestre (1982) ou Ghost (1990). Mes- 2007, 97% dos brasileiros afirmam acreditar total-
mo filmes como Os Trapalhões nas minas do Rei Salo- mente em Deus, 2% dizem ter dúvidas e 1% não acre-
mão (1977) e Os Saltimbancos Trapalhões (1981) leva- dita. Mesmo entre os que não têm religião (cerca de
ram mais gente ao cinema do que fenômenos mundi- 7% da população), 81% acreditam que Deus existe.
ais como Super-Homem (1978) e O Rei Leão (1994). Para que se tenha um parâmetro de comparação,
Na música, verifica-se fenômeno semelhante. Em- o sociólogo Phil Zuckerman, especialista em religião,
bora seja muito difícil precisar quais são os discos mais num artigo publicado na obra Atheism: contemporary
vendidos de todos os tempos, uma vez que as grava- rates and patterns, mostra – apesar de a margem de
doras nem sempre divulgam esses dados oficialmente, erro da pesquisa ser alta – a lista das 50 nações com
números anteriores à “institucionalização” da pirata- maior porcentagem de pessoas que não acreditam
ria de CDs mostram que nenhum disco estrangeiro em Deus ou não se preocupam com esse assunto. Há
chega perto dos quatro maiores sucessos brasileiros: nove países em que mais da metade da população é
de ateus: Suécia (85%), Vietnam (81%), Dinamarca
1º- Músicas para louvar o Senhor (1998), Padre (80%), Noruega (72%), Japão (65%), República
Marcelo Rossi: 3.228.468 cópias Tcheca (61%), Finlândia (60%), França (54%) e Coréia
2º- Xou da Xuxa 3 (1988): 3.216.000 cópias do Sul (52%).
3º- Leandro e Leonardo (1990): 3.145.814 cópias Se, de um lado, é fácil concluir que o Brasil está
4º- Só Pra Contrariar (1997): 2.984.384 cópias entre as nações com menor número de ateus do
(Fonte: Associação Brasileira de Produtores de Disco e planeta, de outro, é complicado explicar como as
Gravadoras) religiões dialogam na sociedade brasileira.
Apesar da ampla maioria católica (64% dos bra-
O disco mais popular de todos os tempos no mun- sileiros se declararam assim ao Datafolha em 2007),
do (Thriller, lançado em 1982 por Michael Jackson) existem diversas outras religiões importantes no Bra-
teria vendido, segundo números extra-oficiais, “ape- sil: as pentecostais, as protestantes, o espiritismo, a
nas” um milhão de cópias no Brasil. umbanda, entre outras. É interessante notar que,
muitas vezes, apesar de ter uma religião, as pessoas
Cultura e religião incorporam valores de outra. É comum um católico
ir a um centro espírita, ou alguém sem nenhuma re-
lação mais forte com a cultura africana vestir-se de
branco e fazer, nas primeiras horas do ano novo,
uma oferenda à Iemanjá, orixá do candomblé. É isso
que chamamos de sincretismo religioso. Para Luiz
Fernandes Oliveira e Ricardo Cesar Rocha da Costa,
essa “mistura”:

(…) é o resultado do contato cultural entre povos e


grupos, uma espécie de contaminação. É a existên-
cia comum de traços culturais e religiosos, considera-
dos incompatíveis ou diversificados. É a união de ele-
mentos religiosos e culturas diferentes, e até antagô-
nicos, em um só elemento.

Mas, muitas vezes, esse sincretismo – uma im-


portante característica da cultura brasileira – não é
José Bassit, Lapinha (Juazeiro do Norte, CE, 2000). A tradição da
bem visto pelas religiões – que, na maior parte dos
lapinha, série de pequenos autos encenados diante do presépio, casos, estão sempre em busca de novos fiéis. Assim,
ainda é viva no Nordeste brasileiro. ocorre uma espécie de disputa pela fé. Em nossa so-

ensino médio – sociologia 47 sistema anglo de ensino


ciedade midiática, isso significa acionar jornais, re- realidade das pessoas, ainda que “menos pura”, ou seja,
vistas, internet, programas de rádio e de televisão. fundida a outras manifestações (novas ou antigas).
Delson Ferreira chega a dizer:

A comunicação de massa usa e é amplamente utiliza-


da pelas grandes religiões institucionalizadas, uma vez
que a propagação de seus propósitos é, em última ins-
tância, comum. De um lado, os meios de comunicação
2. Leia a seguinte reportagem, publicada no suple-
de massa faturam vultosas somas com o movimento
mento de Turismo da Folha, em 23 de novembro
voltado para o consumo do negócio da fé. De outro,
de 2006. Depois responda ao que se pede:
essas religiões buscam conquistar e garantir fatias
maiores de seu público-alvo, os fiéis consumidores. Próximo dia 8 inaugura temporada de festas
Procissão de Nossa Senhora da Conceição da Praia
Então nada escapa mesmo do domínio da indús- abre seqüência de festejos até o final do Carnaval
tria cultural? A partir de dezembro, a cidade de Salvador entra
em um ritmo de festas que só acaba no Carnaval.
exercícios Na verdade, um pouco depois.
A temporada começa oficialmente no dia 8 de
dezembro, dia da festa de Nossa Senhora da Con-
1. O trecho a seguir, de autoria da antropóloga
ceição da Praia, em homenagem à padroeira da
Lilia Moritz Schwarcz, é um comentário sobre a
cidade, em que uma procissão sai da basílica dedi-
obra de Edison Carneiro, importante folclorista
cada à santa e percorre as ruas do Comércio.
brasileiro. Leia-o com atenção para responder
Dada a largada, há programas para todos os dias
ao que se pede:
e noites. Mas não necessariamente para todos os
(…) gostos. Essa é a terra do axé, e, quanto a isso, há
A voga folclórica sentiu profundamente a chegada poucas exceções – o Festival de Verão e as bandas
dos anos 1960 e a institucionalização de outras esco- de marchinhas no Carnaval do Pelourinho são algu-
las de pensamento, que, com as universidades, pas- mas das poucas.
saram a entender a cultura de forma mais dinâmica, Quem é do axé usa a agenda acima para progra-
sem a perspectiva de “resgate”. E o livro de Edison mar sua saída. Quem não é usa a mesma agenda
Carneiro também se ressentiria com a chegada dessas para fugir da folia.
novas perspectivas. Não se resgata o que insiste em se No meio da programação, há festas que mere-
alterar, assim como não se preserva, simplesmente. cem destaque. Entre as populares, os destaques são
O folclore é mesmo um grande inventário que não a Lavagem do Bonfim e a festa de Iemanjá.
deixa esquecer. Vale a pena, porém, ter certa cautela A primeira é quase um pré-Carnaval. Com muita
diante de documentos como esses, que revelam lógi- gente, é preciso esforço para chegar às escadarias
cas de alguma maneira superadas. Se lembrar é um da igreja do Senhor do Bonfim, onde acontece a
ato dos mais saudáveis, sobretudo num país de me- “faxina” que dá nome à festa.
mória curta, não é o caso de aprisionar culturas em A segunda é no Rio Vermelho e está entre as fes-
nome de sua preservação. Edison Carneiro salvou-as tas favoritas dos baianos. Uma procissão parte da
de um determinado esquecimento, mas não pôde evi- Conceição da Praia e, pela manhã, os pescadores da
tar que elas se alterassem e não se curvassem à lógi- vila que fica no Rio Vermelho começam a sair para
ca do tempo movediço. A história é mesmo um bardo o mar levando oferendas a Iemanjá. Ao longo do
malvado quando se trata de reter a mudança. Cul- dia, uma fila se forma para embarcar presentes à
turas são, por definição, avessas a definição. orixá nos barcos que vão partindo. (…)
(O Estado de S. Paulo, 15/06/2008.)
A reportagem sobre os festejos apresenta ele-
Sem desconsiderar o que se convencionou mentos que nos faz pensar em dois fenômenos:
chamar folclore, a antropóloga aponta a neces- um deles é uma característica importante da cul-
sidade de uma visão diferente sobre a tradição. tura brasileira; o outro está ligado à cultura de
Qual é essa visão? massa. Identifique esses fenômenos:
A visão de que a tradição só faz sentido se estiver viva, O fenômeno característico da cultura brasileira é o sin-
ou seja, se de alguma maneira ainda estiver presente na cretismo cultural e religioso: o carnaval se funde à reli-

ensino médio – sociologia 48 sistema anglo de ensino


giosidade, assim como a fé católica abre espaço para os
rituais do candomblé. O outro é a massificação das
manifestações culturais populares, especialmente as de
cunho religioso, como a lavagem das escadarias da igreja
que, no texto, é tratada como “quase um pré-Carnaval”.
Note-se que a intenção do texto é “vender” a temporada de
festas em Salvador. Para isso, tudo vira festa concorrida,
com turistas, jornalistas e baianas de saia rodada.

Tarefa mínima
Os dados que seguem foram coletados pelo
Datafolha e divulgados na Folha de S. Paulo, em
27/07/2008. Observe-os com atenção para respon-
der ao que se pede.

1. De acordo com esses dados, o que é possível


concluir sobre a relação dos jovens brasileiros
com a religião?
A partir dos dados coletados pelo Datafolha, conclui-se
que a juventude brasileira é consideravelmente religiosa,
a ponto de a Igreja ser a instituição que mais agrega e
mobiliza os jovens, ficando à frente do trabalho e de organi-
zações políticas.

2. Considerando a importância da religiosidade pa-


ra o povo brasileiro, esses dados surpreendem?
Não. Em princípio, pode-se considerar estranho o fato
de os jovens terem tanta fé e participarem de cultos re-
ligiosos, já que se costuma associar juventude à rebeldia e
ao questionamento dos valores estabelecidos, dentre eles
os religiosos. Mas, se pensarmos na importância cultural
da religiosidade para o brasileiro, percebe-se que a ligação
do jovem com a Igreja e sua crença em Deus justifica-se
culturalmente.

ensino médio – sociologia 49 sistema anglo de ensino


3. Agora, leia o trecho inicial da reportagem da Tarefa complementar
qual os gráficos anteriores fazem parte:
Jovem se organiza na igreja
Participação em organizações religiosas bate de
longe a reunião em grupos políticos
(Juliana Lugão)

O som ensurdecedor dos acordes da guitarra era


acompanhado pelas cabeças que balançavam ao
mesmo ritmo das batidas do baterista e de uma
letra que não se entendia muito bem. A cada inter-
valo da música, uma mensagem de amor a Jesus
Cristo. A noite se estenderia madrugada adentro,
com poucas variações entre os shows do Crash So-
cial Concert, organizado por membros da Crash
Church.
(…)
Com base no trecho, responda: a descrição Lucélia Santos e Rubens de Falco, protagonistas da novela Es-
crava Isaura, produzida e exibida pela Rede Globo entre outubro
que a jornalista faz do culto – freqüentado pre- de 1976 e fevereiro de 1977.
dominantemente por jovens em São Paulo –
traz indícios de que também a religião não está
A teledramaturgia brasileira – em especial a
imune à massificação cultural? Justifique.
telenovela – afirmou-se como um produto cultural
Sim. O culto religioso está cheio de elementos pop, oriundos de grande sucesso de público, no Brasil e no ex-
da indústria cultural. Em princípio, não se deve condenar terior. Talvez o melhor exemplo disso seja a no-
vela Escrava Isaura, adaptação do romance A es-
determinada religião pelo fato de incorporar elementos
crava Isaura, escrito por Bernardo Guimarães em
de seu tempo. Afinal, vivemos numa sociedade midiática 1875. Sobre ela, leia as seguintes “curiosidades”:
e, conforme já vimos, a cultura é algo vivo, que se trans- • Exibida no Brasil 5 Vezes (1976 / 1977 / 1979 /
forma continuamente. Assim, nada, nem mesmo as religiões, 1982/ 1990).
estariam imunes a esse processo. A questão é saber se • Exibida em 100 países.

essa fusão de elementos de uma religiosidade tradi- • A Itália foi o primeiro país da Europa a exi-
bir a novela.
cional (culto a Jesus) com outros da indústria cultural
• Fez a Rússia incorporar em seu vocabulário
(o rock) foi algo espontâneo (ou seja, produzida pela a palavra “fazenda”.
vivência daqueles que participam do culto), ou se está • Foi transformada em álbum de figurinhas e
sendo usada como instrumento de manipulação das mudou a hora do racionamento de energia
em Cuba.
massas. Nesse caso, teríamos uma manifestação reli-
• Na Hungria um menino cego enfrentou horas
giosa que se enquadra nos padrões de consumo da so-
de fila só para conhecer a “Isaura/Lucélia”.
ciedade capitalista.
• Havia um cessar-fogo na guerrilha da Bós-
nia quando a novela entrava no ar.
• Lucélia ganhou os prêmios “Águia de Ouro”,
na China, e “Latino de Ouro”, na Venezuela,
por seu desempenho na novela.
• Quando Lucélia e Rubens visitaram a Polô-
nia, colocaram mais pessoas nas ruas que o
Papa; a população fez “vaquinha” para liber-
tar a escrava.
(http://www.arquivoluceliasantos.com/fichatecnica/
novela/escravaisaura.htm)

ensino médio – sociologia 50 sistema anglo de ensino


1. Responda: o que essas “curiosidades” revelam canos, confundem-se mitologicamente com o próprio
sobre a cultura de massa brasileira? começo da raça e do universo. Essas formas – que no
Essas “curiosidades” sobre a novela Escrava Isaura dão Brasil apenas as tribos indígenas segregadas pos-
suem e que, nesse caso, devem ser preservadas – não
provas de que a indústria cultural no Brasil é bastante fazem parte do universo cultural do brasileiro. A de-
“forte”, chegando a rivalizar com a indústria cultural fesa da cultura brasileira, a meu ver, nas condições
norte-americana, tanto nacional quanto internacional- atuais, diz respeito muito mais a questões políticas e
práticas, da atualidade, do que à recuperação de fon-
mente.
tes e arquétipos culturais e raciais. A nossa visão de
cultura nacional, portanto, tem que refletir esses tra-
ços específicos e voltar-se muito mais para o pre-
sente e o futuro do que para o passado.
Sem dúvida que temos também um passado cul-
tural e que ele conta em certa medida mas não
como, por exemplo, no caso do Peru e do México,
2. Esta novela é um caso isolado, ou você conhe- onde assume o caráter de um outro que não se
ce outros produtos da indústria cultural brasi- consegue integrar na atualidade. (…) A cultura
leira que alcançaram sucesso nacional e/ou in- brasileira é um produto da História recente: vem se
ternacional? Cite exemplos. formando através do transplante e assimilação de
A resposta não está fechada. No Manual do Professor formas culturais alienígenas e como produto das
condições específicas de vida que se criaram e se
há sugestões de resposta.
vão criando no país.
A nossa é uma cultura que não nasce da mitolo-
gia, nem dos deuses e que se, mais tarde, os adota,
adota-os mais em função da prática que da mística,
mais em função da festa que do rito. Tudo nela é
adquirido, adotado, produzido no processo da vida,
sem muito mistério e quase sem preconceitos. Não
LEITURA COMPLEMENTAR reconhecemos como nosso o passado histórico e cul-
tural dos povos que nos constituíram: nem do índio,
nem do negro, nem do português. Essa é uma his-
Encerraremos nosso curso com trecho de um im- tória anterior à nossa existência e a indagação sobre
portante texto sobre cultura brasileira, escrito por ela nos “desfaz”. Não obstante, alimentamos um aris-
Ferreira Gullar, poeta e crítico de arte, em 1977, em tocrático e descomprometido orgulho de sermos “o
plena vigência do regime militar. Nesse período, vale produto de três raças” – algo novo. O nosso precon-
lembrar, estava em voga um discurso de defesa da ceito é o da modernidade.
cultura nacional contra os “inimigos” externos (a cul- E com razão, porque inutilmente buscaríamos
tura estrangeira) e internos. A concepção de cultura as raízes profundas de nossa cultura. Quando nos
brasileira defendida por Gullar vai contra a concep- voltamos para o passado, o que descobrimos é o
ção oficial da época e endossa os estudos antropo- processo de adaptação européia ao seu novo ha-
lógicos contemporâneos, que defendem ser a cultura bitat, a ânsia de atualização com respeito àquela
algo dinâmico. Leia-o com atenção. cultura, o empanturramento “erudito” e a delibe-
Considerações em torno do conceito rada disposição de construir uma literatura, um
de cultura brasileira país.
(…)
(…) a defesa da cultura brasileira não implica a (Ferreira Gullar. Indagações de hoje.
preservação de formas que, como no caso dos afri- São Paulo, José Olympio, 1987.)

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