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Henrik Johan Ibsen

(1828-1904)
Em 1851, aos vinte e três anos de idade, Ibsen assumiu o cargo de escritor-
residente do recém-estabelecido Teatro Nacional da Noruega, na cidade de Bergen.
Seis anos depois, foi nomeado Diretor do Teatro Norueguês, em Cristiânia (hoje Oslo),
posto que manteve até 1862. Ibsen considerava estes anos que passou no teatro
intensamente frustrantes. As cidades eram pequenas, com um público paroquial e de
mentalidade frívola. Suas peças deste período eram em sua maioriae dramas históricos,
algumas em versos, seguindo os modelos de Shakespeare, Schiller e Hugo.
Por fim, o Teatro Norueguês perdeu seu público, ficou sem dinheiro e, em
1864, depois de dois anos de pobreza (agravados pelo alcoolismo e pela depressão),
Ibsen trocou a Noruega pela Itália e, depois, pela Alemanha, países onde ele passaria
seus próximos vinte e sete anos. As duas primeiras peças que Ibsen escreveu neste seu
exílio autoimposto – os dramas em verso Brand (1866) e Peer Gynt (1867) – foram
suficientes para estabelecer sua reputação. No entanto, sua característica vontade férrea
fez com que ele alterasse seu estilo imediatamente. Trocou a escrita em versos pela
prosa (que era mais adequada, segundo o próprio, para “assuntos sérios”) e, a partir de
1877, não escreveu mais nenhuma peça baseada em assuntos históricos ou folclóricos.
Suas próximas peças (uma dúzia, indo de Os Pilares da Sociedade, de 1879,
a Quando Despertam os Mortos, de 1899) lidam todas com questões sociais ou
filosóficas contemporâneas, com sua ação ocorrendo entre a burguesia provinciana. No
geral, causaram escândalo e demoraram para cair no gosto dos críticos e do público de
classe média, cujas vidas e preocupações os textos dramatizavam. Outros críticos
(notadamente Archer e Shaw) lutaram em sua defesa e, por volta de seus sessenta anos
(período de suas melhores peças), Ibsen havia se tornando o grande senhor não só da
literatura escandinava, mas do teatro europeu em geral. As ‘peças-problema’ – das
quais ele é um pioneiro – têm sido um importante gênero teatral desde então. Ibsen
voltou para a Noruega em 1891. Ele ainda escreveria mais quatro peças antes de sofrer
uma série de derrames debilitantes em 1901, sendo o último destes fatal.

Hedda Gabler – o que acontece na peça


A ação passa na casa nova de Jorge e Hedda Tesman (Gabler quando
solteira), no dia seguinte ao retorno do casal de uma lua de mel que durou seis meses.
Um a um conhecemos os personagens principais. Tia Julia é uma solteirona de bom
coração; foi a responsável pela educação de seu adorado sobrinho, Tesman, e está

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deslumbrada com o casamento dele com Hedda, mulher sofisticada, ainda que um
pouco aterrorizante. Tesman, apaixonado tanto por Hedda quanto pelo conhecimento,
não consegue perceber que sua esposa não compartilha de seu entusiamo pelo
artesanato doméstico do século XIV; e anseia pelo posto de catedrático – especialmente
agora que seu principal rival, Eilert Lovborg, parece ter sido eliminado da disputa pelo
cargo por conta de sua devassidão.
O Juiz Brack, velho amigo de Hedda, foi quem organizou a compra da casa
nova e de toda sua mobília, e anseia por uma amizade triangular ‘confortável’ com o
novo casal, agora que estes retornaram – uma amizade onde ele possa entrar e sair como
bem lhe aprouver. Hedda, por sua parte, já está se sentindo profundamente entediada
com a domesticidade de seu casamento, reagindo com ironia e agudez, além de fazer
piadas e brincadeirinhas às custas de Tia Julia e Tesman. No entanto, ela rejeita a oferta
de intimidade feira por Brack: ela escolheu casar-se com Tesmam, e está preparada para
aceitar sua situação, ainda que às custas de sua própria felicidade. Apesar disso, Hedda
anseia por uma vida a qual ela possa ‘controlar’, pela qual posso se responsabilizar. Na
indigência de sua situação (tanto existencial quanto literal, já que Tesman ainda não
começou a ganhar um salário profissional), ela afirma que lhe resta apenas um único
consolo – as velhas pistolas de duelo de seu pai.
À essa situação unem-se dois estranhos. Vinda de uma outra a cidade, a Sra.
Elvested, antiga colega de escola de Hedda, chega em busca de Lovborg, tutor do filho
até seu desaparecimento recentemente. Ela afirma que ele é um outro homem, que ela o
ajudou a escrever um livro e que o ama. Brack anuncia que Lovborg é candidato à
mesma cadeira que Tesman; e, por fim, o próprio Lovborg chega, para consternação de
Tesman e Hedda. Tesman fica desconcertado (ainda que profissionalmente
entusiasmado) com o brilhantismo das ideias de Lovborg, particularmente com aquelas
contidas no manuscrito do novo livro que ele traz consigo. Hedda sente-se perturbada
pelas memórias de sua relação passada e com inveja da intimidade que existe entre
Lovborg e a Sra. Elvsted. Ainda assim, quando ele tenta cortejá-la, ela o rejeita, assim
como fez com Brack.
Os homens vão para uma despedida de solteiro na casa de Brack. A Sra.
Elvsted tenta, mas falha em impedir a ida de Lovborg, enquanto Hedda o incita a provar
que ainda tem o controle sobre seu próprio destino, retornando “com os louros da
vitória em seu cabelo”. A festa dura a noite toda e, quando Tesman retorna todo
desgrenhado, descobrimos que tudo acabou numa orgia bêbada, e que Lovborg ficou
tão bêbado que perdeu seu precioso manuscrito; mas que ele, Tesman, conseguiu salvá-
lo. Tesman entrega o manuscrito a Hedda, para que ela o devolva Lovborg, e vai deitar-
se.

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Hedda, no entanto, tem outros planos. Quando Lovborg chega, perturbado
pela perda de seu livro e culpando-se por “matar seu filho único” ao se entregar mais
uma vez à devassidão, em vez de contar a ele que o livro foi encontrado, ela dá a ele
uma pistola e pede que ele salve sua dignidade e integridade cometendo um suicídio
que seja “belo”. Assim que ele sai, ela atira o manuscrito no fogo e o deixa queimar.
Quando Tesman acorda, Hedda conta sobre o pacote e afirma que o queimou
para o bem de Tesman e porque ela está grávida do filho deles. Tesman, dominado pela
ideia de que Hedda de fato o ama e de que seu futuro está assegurado, sufoca seus
escrúpulos. Porém logo chega Brack para avisar que Lovborg morreu – não de maneira
“bela”, mas sordidamente, depois de uma briga num bordel. Tesman e a Sra. Elvsted
decidem reconstruir o livro a partir das notas de Lovborg e da memória da Sra. Elvsted
– Lovborg havia ditado todo o livro para ela.
Hedda pergunta se pode ajudar e eles a dispensam. Brack avisa a Hedda que a
polícia está com a pistola dela, e que ele será obrigado a contar a quem a arma pertence,
a não ser que ela concorde em viver sob “os termos dele”. Em vez de controlar o destino
de outro ser humano, ela acabou se colocando sob o poder de uma outra pessoa.
Despida de tudo que um dia teve ou de quem costumava ser, ela vai para a sala ao lado e
atira em si mesma.

A “Peça-Problema” e a “Peça Bem-Feita”


A peça-problema foi uma resposta do teatro europeu, em meados do século
XIX, ao aumento das discussões sobre questões sociais e filosóficas de grande monta
que despontavam entre a opinião pública. Entre os tópicos favoritos, encontravam-se as
diferenças naturais entre homens e mulheres, relações familiares, comportamento
sexual, religião, política e ética social. As peças traziam pessoas comuns,
contemporâneas de então, cujos dilemas no palco davam corpo às questões em debate
na sociedade. As peças-problema de alguns autores – por exemplo Bjornson na
Noruega, Sardou na França, Grundy e Jones na Inglaterra – eram geralmente frágeis e
artificiais; não passavam de sermões ou editorias disfarçados de arte. (Shaw inventou o
termo “Sardoodledum”, que acabou virando uma palavra com o significado de
“estrutura narrativa mecanicamente artificial e estereotipada ou caracterização pouco
realista em um drama”; Wilde memoravelmente disse “Existem três regras para o
jovem dramaturgo. A primeira regra é não escrever como Jones. A segunda e a terceira
também.”) Porém em outras mãos, notadamente nas de Ibsen, a concentração nos
personagens e nas tragédias pessoais elevou o estilo a um outro nível. Mesmo peças
mais didáticas, como Espectros e Um Inimigo do Povo, alcançam seu impacto mais

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pela vitalidade de seus personagens e situações do que pelas questões subjacentes a que
se dirige.
As regras para uma “peça bem-feita” foram formuladas na França, no início
do século XIX, e rapidamente se espalharam pela Europa. Elas eram tão rígidas quanto
as que Aristóteles estabeleceu para as tragédias antigas. Em uma “peça bem-feita”, a
ação deve ser organizada em três seções: a exposição do problema central, os alertas e
desvios, e o dénouement. A história deve ser articulada a partir de um segredo ou um
dilema que afeta o personagem principal. Ao público são oferecidos apenas dicas e
vislumbres deste segredo ou dilema conforme a peça se desenvolve. E tudo deve ser
completamente revelado apenas quando a ação se dirige para o dénouement. Deve
haver um reverso da fortuna – para cima numa farsa bem-feita, para baixo em um
melodrama bem-feito. E, por fim, cenários, diálogos e comportamentos devem ser
contemporâneos e convencionais. Dezenas de milhares de peças bem-feitas foram
escritas, e não por acaso a maioria foi esquecida. (Melodramas vitorianos são exemplos
típicos.) Mas nas mãos de hábeis escritores – como Duma em A Dama das Camélias e
nas farsas de Labiche, sem contar nas peças de Maugham e Rattigan num período mais
tardio – a receita levou a verdadeiras obras de arte. As convenções das peças bem-feitas
foram particularmente úteis, em todo ou em partes, aos escritores das peças-problema,
cujo efeito sobre o público dependia, em parte, em trazer uma reviravolta a
personagens, situações ou ideias aparentemente familiares.

Hedda Gabler
Hedda Gabler foi produzida pela primeira vez em 1890. A peça lida com um
dos temas preferidos de Ibsen: o conflito entre a liberdade individual espiritual e as
reivindicações das convenções e da sociedade. Ela se assemelha às peças que a
precederam (Os Pilares da Sociedade, Casa de Bonecas, Espectros, Um Inimigo do
Povo e O Pato Selvagem) no sentido de que é uma tragédia realista que se passa
inteiramente em um ambiente doméstico. (De fato, a vida doméstica é uma das
principais causas da tragédia.) Ao mesmo tempo, ela antecipa um pouco do simbolismo
e da ‘alteridade’ das peças que viriam depois, como Solness, o Construtor ou
Rosmersholm. Há momentos que não é apenas para si mesma, mas para os outros
personagens e para nós mesmos, que Hedda aparenta vir de um planeta diferente de
todo os outros. (Ibsen deveria ter isso em mente quando falou a respeito do
‘demonismo’ presente na peça.)
Hedda Gabler logo tornou-se consagrada, em partes por oferecer um desafio
tão soberbo à atriz que o protagoniza. Com apenas alguns meses de sua estreia

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norueguesa, o texta já havia sido encenado na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados
Unidos, sendo a peça de Ibsen com mais remontagens depois de O Pato Selvagem.
(Heddas notáveis em língua inglesa, ao longo dos anos, incluem Janet Achurch, a sra.
Patrick Campbell, Sonia Dresdel, Peggy Ashcroft e Fiona Shaw. Em 1975, Glenda
Jackson interpretou o papel em uma versão para as telas, recriando sua impressionante
performance no palco.) Influenciou dramaturgos de Shaw (Cândida segue sua estrutura
de maneira bastante próxima) a Albee (Quem Tem Medo de Virgínia Wolf recria com
variações sombrias os temas da incompatibilidade matrimonial, dependência
emocional e predação), e seu legado é também aparente em centenas de excelentes
filmes melodramáticos, dos veículos para Joan Crawford e Bette Davis nos anos 40, até
os ‘filmes-problema’ mais recentes e explicitamente mais feministas de atrizes como
Jane Fonda e Meryl Streep.

Forma
As peças da maturidade de Ibsen são formalmente impressionantes:
estruturadas com precisão, sem uma ponta solta ou uma palavra sobrando. Mas mesmo
dentre elas, Hedda Gabler é excepcional. Uma de suas características mais marcantes é
a harmonização que alcança entre as convenções da “peça bem-feita” e um conjunto
maior de “regras” – aquelas deduzidas das tragédias gregas clássicas e observadas por
Aristóteles. Hedda Gabler respeita as unidades: acontece eu um único espaço, em um
único recorte de tempo, e em uma sequência de ação que caminha sem interrupções ou
divergências do começo até o fim. Personagens e ação estão totalmente integrados:
mesmo Tia Rina, sem ser vista deitada em seu leito de morte, tem um papel crucial no
desdobramento dos eventos. A história é sobre uma “falha trágica” na personagem
principal: uma falha psicológica, a princípio imperceptível, mas que vai sendo
gradativamente revelada, engendrando a ruína da personagem. Esta ruína é inevitável
desde o início da peça e vai sendo inexoravelmente resolvida frente aos nossos olhos.
Há um momento de reconhecimento/identificação: um ápice climático em que a
protagonista se dá conta de que está presa às suas próprias natureza e ações, e que sua
destruição é inevitável. O evento catártico de violência se dá fora de cena.
Os ideais aristotélicos influenciam tanto a estrutura da peça quanto seus
temas. A organização característica das estruturas das tragédias gregas que chegaram
até nós é a de uma introdução seguida de cinco seções, das quais a última é uma espécie
de ‘coda’ musical estendida. Estas são intercaladas com seções corais que conectam,
emolduram e contrapõem a ação principal. A divisão em cinco atos da tragédia

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renascentista provavelmente imitava este padrão, tendo apenas retirada a presença dos
coros. Em Hedda Gabler, Ibsen segue um padrão de quatro atos, dispensando a ‘coda’.
Cada ato, assim como cada trecho falado na tragédia grega, contém em si
uma unidade temática, avançando a ação em uma única direção. O conteúdo dos atos
seguintes não é possível de ser previsto ao final do primeiro ato; os do terceiro e quarto
ato não são adivinháveis ao final do segundo, e assim por diante. E, ainda assim, em
retrospecto, reconhecemos que cada evento foi preparado e prefigurado nas ações que
ocorrem anteriormente. A sensação de uma progressão inevitável também é alcançada
pelo estreitamento do foco da ação. Cada ato é mais curto do que o anterior, e o amplo
circuito da abertura (a única exibição do personagem de Berta, por exemplo, antes de
revelar algo sobre os personagens de Hedda e Tesman através da maneira com que
tratam Tia Ju) não mais se repete; em vez disso, atem-se a uma atenção extremamente
próxima de momentos específicos, focando em elementos individuais que
desenvolvem uma única linha narrativa. A maneira com que, nas três ou quatro últimas
páginas do texto, Hedda é deixada sem nada e sem nenhum lugar a que recorrer é
extraordinária, dado que os ritmos da escrita são tão simples e cotidianos quanto os do
restante da peça. Seu poder vem da inexorável eliminação do não-essencial, do zoom in
no essencial que precedeu este momento e que seguiu ininterrupto desde os primeiros
instantes do Ato Um.

Destino e Hubris
Ainda que Ibsen siga as ‘regras’ da tragédia grega (tão de perto que é pouco
provável que seja mero acaso), ele cuidadosamente evita um de seus temas principais.
As tragédias gregas faziam parte de uma ocasião religiosa, e suas ações –
geralmente retiradas dos mitos – surgiam das tentativas dos seres humanos de
chegarem a um acordo com a natureza e com as demandas do sobrenatural. Os deuses
nas tragédias gregas são desonestos, todo-poderosos e implacáveis; e o destino que eles
orientam aos mortais é arbitrário (ao menos aos olhos mortais) e inescapável. A falha
trágica que destrói o protagonista é, em muitos casos, ‘hubris’ – a arrogância que faz os
mortais pensarem que podem transcender a própria mortalidade. Nada disso se aplica a
Ibsen. Severamente ateu, inabalavelmente racionalista, ele não permite que a religião
tome qualquer parte nos eventos de Hedda Gabler. Quando um personagem de fato
invoca a Deus (Tesman, a Sra. Elvsted, Tia Ju), é de maneira superficial, uma maneira
convencional de se falar, para adicionar ênfase a outros comentários brandos – e Ibsen,
irônico que era, ainda vai um passo adiante quando coloca Brack para invocar, com o
mesmo propósito, não uma divindade, mas o demônio. A única força ‘sobrenatural’ em

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Hedda Gabler é uma certeza sombria de que pensar é sofrer e assumir uma posição
moral é mesmo que morrer. Dois dos personagens mais religiosos, Tesma e a Sra.
Elvsted, estão envolvidos no maior comprometimento de princípios da trama. Isso não
é o Destino, mas uma espécie de personificação de pessimismo característico de Ibsen:
a inevitabilidade do fracasso parece quase uma força empoderadora, pelo menos até
que se alcance o fracasso.
A segunda força principal nos personagens de Ibsen, tão dominante quando a
observância religiosa nas tragédias gregas, é a convenção social. A sociedade e suas
regras podem ser construções humanas (da mesma forma que dogmas e ritos religiosos
também o são, rebateria Ibsen, o ateu); porém, nesta peça, suas cargas são tão pesadas
quanto se tivessem sido ordenadas por Deus. Os personagens podem se relacionar com
elas de dúzias de maneiras diferentes, indo de uma observância não refletida, passando
pela ironia da boca pra fora até à manipulação e o franco enfrentamento, mas as regras
em si quase não mudam. Dada a ‘estação” da vida de Hedda, e dada a situação de
Tesman e suas tias, não é possível que essas mentalidades se encontrem sem o
comprometimento autodestrutivo de uma das partes. Para Tesman (essencialmente um
personagem sem ‘nobreza’) se casar com Hedda foi um presente do destino, um golpe
de sorte a ser apanhado, como um desejo de conto de fadas, antes que ele desapareça.
Para Hedda (uma personagem ‘nobre), o casamento com Tesman foi um ato de hubris,
cuja improbabilidade de sucesso ela muito bem conhecia antes mesmo de casar-se. Eles
– e todos os outros personagens, de fato – estão aprisionados em si mesmos, cada um
dentro daquilo que é – outros dos temas mais comuns e gelados de Ibsen.

Linguagem
Por todo o texto, a rigidez da forma e a concentração temática são
balanceadas pela liberdade e coloquialismo extraordinários da linguagem. (A tensão
estilística que essa formação encorpora, sem que aparente ser forçada, forma uma
embante entre o controle Apolínio e o abandono Dionisíaco subjacente à narrativa.)
Apenas Tia Ju fala de maneira antiga, com expressões ligeiramente artificiais, como se
utilizasse uma linguagem aprendida nos livros ou em amostras mais do que na vida real.
Todos os outros personagens falam uma prosa enérgica e inequívoca, com uma
linguagem cheia de gírias e com uma autoconfiança que deve ter caído como uma
ducha de água fria nos ouvidos dos primeiros espectadores de Ibsen. Não há nenhum
traço de indiferença literária, do tipo que por vezes é transmitida por tradutores que
respeitam excessivamente o stauts de “clássico da literatura” outorgado a Ibsen. A
linguagem é intencionalmente comum; e esta simplicidade vernacular traz ritmo, vigor

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e a oportunidade de uma disputa sombriamente cômica e irônica. (Todo os
personagens, até Berta, se valem de ironia.)
Apesar dessa aparência despreocupada, Ibsen lida com esse continuum de
frouxidão cotidiana e naturalidade do falar com um virtuosismo que se casa
perfeitamente com o uso que ele faz da forma. Os ritmos dos diálogos, tanto nas
declarações individuais dos personagens (que refletem o movimento, ou a falta de
movimento, em suas mentes) quanto nas cenas e nos atos todos são controlados com
precisão. Críticos do início do século XX extravagantemente compararam Hedda
Gabler a uma sinfonia.
Seus quatro atos, diziam, assim como os movimentos de uma sinfonia,
podiam diferir de tema e conteúdo, mas eram todos partes reconhecíveis de um mesmo
conceito geral, todos aspectos de uma mesma paisagem mental. De fato, a analogia
musical apoia mais nosso entendimento da linguagem da peça do que de sua forma.
Ibsen controla o andamento, por exemplo; ou apresenta, repete e conduz variações de
ideias cruciais ou expressões, como um compositor sinfônico desenvolve temas
musicais. Um exemplo simples é o tema que transita por Hedda, Brack, Lovborg e (de
uma maneira menor) pela Sra. Elvsted, e que diz respeito às noções de confiança,
camaradagem e à necessidade de uma única ação ‘bela” na vida de cada pessoa, que
defina sua própria existência. Essas trocas brincam com uma dúzia de palavras
repetidas, como crianças que pegam seus brinquedos e os observam, passando-os de
mão em mão.
Um exemplo mais complexo, articulando a apresentação que Ibsen faz da
formalidade da sociedade em que esses personagens se movem, é a enorme variedade
de tratamentos empregados. Em inglês, têm-se talvez uma dúzia de maneiras diferentes
para nos dirigirmos a pessoas estranhos, a conhecidos ou a pessoas de nossa intimidade.
Já o norueguês do século XIX tinha muitas mais, e tais nuances eram notadas com
muito mais escrúpulo. Ibsen faz constante uso disso, trazendo ligeiras alterações de
tratamento com sentidos emocionais e psicológicos. Assim, o tratamento que Hedda
dispensa a Tesman, Lovborg e Brack – e a maneira com que ela varia esses tratamentos
quase fala a fala – refletem de maneira vital as mudanças em seu estado mental e os
comportamentos com que choca aos outros. Isso acontece não somente em passagens
óbvias (como, por exemplo, em sua primeira cena com Lovborg, em que é quase
possível deduzir-se, pela maneira com que tratam um ao outro, a profundidade da
paixão que havia na relação dos dois antes do casamento de Hedda), mas também pelos
fluxos e vazantes aparentemente brandos de diálogo ordinários. Por exemplo, a
mudança de sentimento de Hedda por Tesman e a sensação que ela tem do que quer dele

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refletem-se na maneira como ela o chama. Um exemplo simples ilustra o caso: a
colocação cuidadosa de Ibsen das raras ocasiões em que ela chama seu marido de Jorge.

Indicações de Cena
Aos olhos modernos, as peças de Ibsen podem parecer entulhadas com
indicações de direção desnecessariamente explícitas. Em especial, suas instruções para
os atores de como enunciarem suas falas podem parecer pedantes e pretensiosas. As
convenções modernas, temos de concordar, são diferentes; nós jogamos de acordo com
nossas próprias regras. Mas parece no mínimo plausível que Ibsen, tão escrupuloso
com todos os outros efeitos artísticos, tenha organizado a trajetória emocional de cada
cena com tanto cuidado com que fez todo o restante. O que temos, em resumo, pode ser
análogo menos às indicações de cena que vemos nas edições contemporâneas de textos
teatrais e mais às instruções voltadas às nuances de uma performance, como as que
compositores (novamente!) escrevem em suas músicas. Por esta razão, a presente
tradução retém todos as indicações originais, sejam elas excessivamente explícitas ou
não.
Kenneth McLeish, 1995

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