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BRI.

MAYA T I W A R I

O CAMINHO
DA PRÁTICA
A cura feminina pela alimentação, respiração
e pelo som

Tradução de Anna Maria lobo


Para o meu Satguru,
Sua Santidade Swami Dayananda Saraswati,
e para os Grandes Rishis, que são
a fonte de toda a sabedoria do universo.
ORAÇÃO DE ABERTURA PARA A
MÃE DIVINA

Sharanagata dinarta paritrana parayane


Sarvasyarti hare Devi Narayani namo’stu te

Saudações, Oh Deusa Narayani,


protetora dos aflitos e dos abandonados
que buscam refúgio em Você,
a Deusa que remove os sofrimentos de todos.
PREFÁCIO

Conheci Maya Tiwari no Rio de Janeiro, em 1999, quando ela


veio ministrar um curso em Ayurveda. Ela sabia que havia no Rio
uma pessoa que também, como ela, havia estudado com o Sri
Swami Dayananda Saraswati. Perguntou a algumas pessoas por
mim e fui ao encontro dela. Este já foi, desde o início, um forte
laço que nos uniu. Mesmo antes de efetivamente nos en-
contrarmos. Eu havia estudado em Bombaim, na Índia, por vários
anos, com o mesmo Swami Dayananda que, alguns anos mais
tarde, tornar-se-ia também mestre de Maya.
O estudo de Vedanta não é como um estudo universitário. A
exigência de comprometimento é muito maior. O aluno, inde-
pendentemente de sua idade ou situação social, deve morar num
ashram ou monastério com seu mestre e outros estudantes. As
aulas são intensivas, requerendo dedicação total de todas as horas
do dia, sem feriados ou fim de semana. Mas, além de aulas e
meditações, há um processo pessoal de análise e maturidade
psicológica-emocional pelo qual cada um passa e que é essencial.
Um conhecer-se melhor em suas dificuldades, suas reações,
obstáculos internos e, neste processo, há necessariamente o
objetivo de ultrapassá-los. Uma situação única de vida, somente
comparável a ela mesma, apesar de seus muitos aspectos serem
isoladamente conhecidos. E, neste estudo e vivência, o professor
torna-se mestre para a pessoa que o elege como tal. Estabelece-se
um laço para toda a vida.
Mesmo sem conhecê-la, eu já a conhecia, pois sabia que ela
sem dúvida vivera momentos como os meus — intensos,
transformadores, até mesmo difíceis, mas geradores posterior-
mente de gratidão. Ter o mesmo mestre nos vinculou, e nos
abraçamos no dia em que nos conhecemos.
Nosso mestre possui muita clareza no conhecimento de
sânscrito e dos textos tradicionais de Vedanta — como a Bha-
gavadgita, as Upanishads e tantos outros, além de vivência,
observação e sensibilidade para perceber as características dis-
tintas e dificuldades a serem resolvidas nos seres humanos, tanto
da sociedade indiana como da ocidental. Mas tem principalmente
o poder de ensinar, transmitir com clareza a visão do Todo do
qual o indivíduo faz parte, de forma que o seu aluno (ou aluna)
tenha igualmente clareza e possa fazer, a partir desta
compreensão, uma mudança cognitiva em sua vida.
Vedanta mostra que nosso sentimento de insuficiência e
constante carência, apesar de comum a toda a humanidade, é um
problema ilegítimo, pois o que verdadeiramente somos é eternos e
completos. O que é de natureza limitada é o não-eu, todo o
universo em constante mutação. Na descoberta do eu eterno e já
livre há uma mudança no sujeito, na forma em que ele encara a si
mesmo, o mundo ao redor e seus objetivos neste.
Como é uma vivência forte e transformadora, ela norteia
nossa vida futura e nos vincula a quem passou pelo mesmo estudo
com o mesmo mestre.
Mas Maya, que recentemente foi iniciada como swamini,
uma renunciante vestida de laranja — a cor do fogo que é sím-
bolo do conhecimento por revelar o que existe ocultado pela
escuridão ou ignorância, e agora sendo chamada de Swamini
Mayatitananda Saraswati, tem mais uma qualificação! Sua vida
após a descoberta do câncer e a cura alcançada pelo reencontro
consigo mesma e com a tradição de seus ancestrais, e com os
ensinamentos da ciência da saúde e da vida — o Ayurveda.
Swamini Mayatitananda nasceu na cultura védica que era
mantida por muitos imigrantes hindus na Guiana. Ela tem em si a
devoção a Deus em sua forma completa, que inclui tudo o que
existe. Se vamos nos relacionar com Deus e dar a "Ele" um sexo,
temos definitivamente que dar ambos — masculino e feminino. O
Ilimitado Senhor deve incluir em si mesmo tudo o que existe,
todas as formas no universo pertencem a Ele. Ele é a Inteligência
presente em tudo e é a forma que se expressa em infinitos
detalhes. É o Senhor, é a Mãe Divina, a Deusa.

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A autora deste livro — O caminho da prática, nos oferece
este belo e profundo trabalho apontando um estilo de vida onde a
consciência de você mesmo é o ponto de partida. Um livro
dedicado às mulheres, mas onde os homens também são bem-
vindos, que oferece um crescimento emocional e total à medida
que você consegue perceber você mesmo, como pessoa e
fundamentalmente.
As mulheres dentro dos Vedas, e portanto na Índia, são vistas
como a expressão da Mãe Divina, pelo seu poder inato de gerar.
O feminino é o poder de criação, de beleza, de capacidade de
acolher, além da expressão de recursos e riquezas. Nenhuma
criação é concebida sem o poder de criar que é chamado Shakti
ou Maha Shakti. Cada cultura possui mitos que permanecem no
inconsciente coletivo de seu povo. Os mitos védicos sempre
apresentam a mulher nem superior, nem inferior ao homem, nem
em busca de igualdade com ele. Ela é aquela que lhe dá potência,
que está a seu lado como um acréscimo na vida dele e que em
troca dá um apoio a ela.
Duas grandes mulheres são principais na Índia e até hoje
fontes de inspiração — Sita, do grande épico Ramayana, e
Draupadi, de outro grande épico, o Mahabharata. Ambas estão,
todo o tempo, ao lado de seus maridos, mas são também iguais a
eles em valor, conhecimento de seus deveres e direitos, ainda que
pacientes em relação a estes últimos. São nobres mulheres que
apoiam incondicionalmente seus maridos e ao mesmo tempo
comandam respeito, atenção e presença. Estas até hoje estão vivas
como modelo para as mulheres.
Agradeço à Maya Tiwari por nos oferecer este livro que
mergulha profundo no universo das dificuldades e oferece meios
para um crescimento além dos obstáculos, que é, como ela mesma
chamou — uma vida de sadhana.

GLORIA ARIEIRA Dia das Mães Maio 2003


AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, minha gratidão à Mãe Divina, guardiã e


protetora de minha jornada e Aquela a Quem eu sirvo, e a todos
os Seus inspirados emissários: minha editora na Ballantine
Books, Leslie Meredith, guerreira e visionária espiritual, cujo
talento sem concessões e competência absoluta tornaram este
livro possível; e a minha agente Janis Vallely, cujo apoio inaba-
lável e constantes esforços concorreram para que este livro se
tornasse realidade.
Minha profunda gratidão e reconhecimento à notável editora
Deborah Chiei, cuja percepção, conhecimento e compreensão
intuitiva do pensamento védico ajudaram a dar forma e
objetividade às minhas palavras para que confirmassem um
trabalho coerente.
Minha gratidão à Dra. Christiane Northrup, a liana Rubenfeld
e a Sri. Deepak Chopra por seus sinceros comentários sobre o
livro.
Minha profunda gratidão ao Satguru Sivaya Subramuniyas-
wami e aos swamis e sadhakas de Hinduism Today, por seu apoio
a meu trabalho.
Muito obrigada à minha gerente, Patrícia Isa Peluso, que
cuida de meu trabalho de forma geral, e também à equipe e
alunos da Wise Earth School of Ayurveda pela ajuda na disse-
minação destes ensinamentos. Obrigada a Pritha Singh, Karna
Singh, Radha Singh, Bonnie Kirk e Anu Priya pelo seva feito na
Mother Om Mission; e a Vic Insanally e Annette Arjoon,
protetores do trabalho da Mother Om Mission, na Guiana, Amé-
rica do Sul.

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Obrigada a Holly Hammond por seu apoio e inestimável
ajuda na edição do texto; a Leslie Hawkins pela ajuda com o
manuscrito; e a Marnie Mikell pela perícia do traço na execução
dos desenhos.
Finalmente, minha gratidão e estima à minha mãe biológica,
Kalidevi, e a minha mãe mais velha, Jayadevi, pelo apoio amo-
roso; a meu irmão Chandra, cujo sacrifício possibilitou que eu
trilhasse meu caminho espiritual; e a meu irmão Subhas, cujo
apoio espiritual me ajuda a permanecer no caminho espiritual.
INTRODUÇÃO

Eu sou uma monja védica — uma brahmacharini. Desde minha


iniciação em 1992 pelo mestre Swami Dayananda Saraswati,
tenho me dedicado a viver de acordo com os ritmos naturais do
universo; a ensinar a sabedoria e as práticas de cura dos Vedas,
as escrituras sagradas da Índia que datam de aproximadamente
1500 a.C; e a ajudar outras pessoas a encontrar a cura física e
emocional. Em meu centro, a Wise Earth School of Ayurveda,
localizado nas montanhas ao redor de Asheville, Carolina do
Norte, ensino o conhecimento e a prática da sadhana e a cura
ayurvédica.
Por causa de minhas diversas experiências, acumulei grande
quantidade de informações — sobre práticas de respiração, me-
ditação, sons, ioga e alimentação natural — capazes de ajudar as
pessoas, especialmente as mulheres, a viverem vidas saudáveis,
promoverem comunidades de cura e ajudarem a si mesmas e aos
outros a se curarem de doenças físicas e emocionais. Entre meus
alunos incluem-se médicos, enfermeiros, professores de ioga,
nutricionistas, artistas, assistentes sociais, pessoas de centros
urbanos que lidam com jovens, e leigos interessados.
Os ensinamentos da sadhana Wise Earth se destinam a todas
as pessoas — mulheres, homens e crianças. Na verdade, cerca de
35 por cento de meus alunos são homens. Entretanto, este livro é
basicamente voltado para as mulheres, porque elas são as
guardiãs da vida sagrada e da nutrição. A intenção de O caminho
da prática é evocar, informar, fortalecer e salvaguardar a
memória das mulheres como guardiãs da cura sagrada. O livro
também pretende ajudar os homens a despertarem para a energia
primordial de cura da Mãe que existe dentro deles desde os
tempos mais remotos. Na verdade, a grande maioria dos ins-

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trutores espirituais cujo trabalho contribuiu para as minhas prá-
ticas é composta de homens.
Além disso, eu dirijo a Missão Mãe Om, uma organização de
caridade cujo propósito é educar comunidades de risco
informando-as sobre as variedades da sadhana, familiarizando
homens e mulheres com o poder primordial de cura que todo ser
humano possui. Também viajo pelo mundo promovendo
workshops para aqueles que se interessam em aprender o
caminho da prática, ou sadhana.
Sadhana é um termo sânscrito cuja raiz, sadh, significa
resgatar aquilo que é divino em nós, nosso poder de cura, nosso
poder de servir, de nos alegrarmos, ou de elevarmos nosso espí-
rito. As práticas da sadhana englobam todas as nossas atividades
diárias, desde as mais simples até as mais sublimes, desde a
preparação das refeições até a exploração de nosso ser interior na
meditação. A meta da sadhana é permitir o resgate de nossos
ritmos naturais e o realinhamento da vida interior e dos hábitos
cotidianos com os ciclos universais. Quando começamos a viver
e a nos mover de acordo com os ritmos da natureza, nossa mente
se torna mais lúcida e mais pacífica, e a saúde imediatamente
melhora. Toda a nossa vida se torna então mais fácil.
Quando iniciamos a jornada no caminho da prática, preci-
samos prometer a nós mesmos que teremos a coragem de nos
olharmos de forma clara, inclusive nos permitindo reconhecer os
vários disfarces e os falsos rostos que assumimos ao longo dos
anos. À medida que admitimos e reconhecemos cada um deles,
enxergamos além e conseguimos ver o ser verdadeiro. E à
medida que descobrimos mais sobre nós mesmos, sobre nossas
forças e fraquezas, também aprendemos mais sobre o corpo, a
mente e o espírito, e seu poder. Percebemos nossa capacidade
inata de cura. Quaisquer que sejam os tratamentos médicos
convencionais e ocidentais que você esteja usando, sempre po-
derá utilizar simultaneamente sua habilidade natural para a cura.
No caminho da prática, adotamos a convicção de que a
doença se origina dentro de nós, portanto a cura deve vir do
mesmo lugar. Concluímos que a falta de paz, o desconforto ou a
doença são razões suficientes para penetrarmos mais fundo
dentro de nós mesmos, examinando onde é preciso fazer
alterações para curar nossos corpos, nossos sentimentos ou
nossas vidas. Aceitamos a dor ou o desconforto como um
trabalho a ser feito, sabendo que para levá-lo a cabo precisaremos
pesquisar o assunto e a nós mesmos. Cada um de nós é um ser
único, ninguém pode fazer o dever de casa em nosso lugar. Não
podemos sequer depender da benevolência do universo para nos
salvar. O universo nos dará apoio, e nos ajudará, revelando seus
ritmos sagrados. Ele nos fará enxergar onde foi que saímos do
ponto de equilíbrio, e sempre nos permitirá o realinhamento com
este ponto. Mas é preciso fazermos o trabalho de
autoquestionamento e de cura apropriado para nossa vida interior
e exterior. Em nossa senda individual na jornada humana cada
um de nós precisará aprender determinadas verdades sobre sua
vida física, mental e espiritual, tanto naquilo que se refere
exclusivamente a nós como no que é compartilhado com os
outros. Estas verdades acabam por nos unir a nossas famílias,
tribo, à raça humana e ao universo em geral.
Muito cedo na vida eu descobri por mim mesma que doenças
sérias trazem grandes oportunidades de cura e de
autoconhecimento. Quando eu tinha vinte e três anos de idade —
no auge de meu sucesso pessoal e profissional como estilista de
moda na cidade de Nova York — fui diagnosticada com câncer
de ovário em estágio terminal. Dominada pela ambição, eu
estivera vivendo uma vida agitada, com muito trabalho de dia e
festas à noite. Estivera também fugindo de minha criação e
herança indianas tradicionais. A doença acabou por me forçar a
perceber que toda a dor é um lembrete de que nos afastamos dos
ritmos naturais da vida. Mas antes de ser capaz de aceitar esta
simples verdade eu me exauri em anos de luta contra o câncer,
por meio de tratamentos e cirurgias invasivos. Finalmente,
abandonei a luta, deixei minha vida e meus amigos em Nova
York, e fui para o interior gelado de Vermont, para me preparar
para morrer. Em vez disso, ao longo dos três solitários meses de
inverno, fui apresentada à oportunidade de admitir as mudanças

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que precisaria fazer em minha vida. Descansei, jejuei e sonhei, e
pouco a pouco comecei a ver onde havia me iludido; onde me
permitira o desequilíbrio.
Também chorei até não ter mais lágrimas para verter. Manti-
ve um diário, onde descrevi página após página a minha história
pessoal e espiritual. Tendo aprendido a meditar na infância,
lembrei-me novamente de como fazer isso. Em meditação, em
oração e em sonhos revivi a angústia de meus antepassados que
haviam sido arrancados de sua terra natal, a Índia, e trans-
plantados para uma terra estranha, a Guiana. Recebi a visita
espiritual de meu pai, que vivia longe, e que me convenceu a
recuperar minha vida e a realizar meu propósito neste mundo.
Também tive visões da Mãe Divina, a energia feminina infini-
tamente benevolente que todos nós podemos invocar para ajuda,
orientação e cura. Orei para recuperar minha fé em mim mesma e
no divino.
Quando as neves começaram a derreter do lado de fora da
cabana de toras, despertei para os sons e a beleza da natureza.
Ouvi cervos pastando na vegetação rasteira ao redor da cabana.
Um cardeal de peito vermelho brilhante cantava. A sinfonia da
primavera me despertou da reclusão, e me trouxe para o sol.
Naquele momento, como em tantos outros mais tarde, parecia
que o câncer me havia derrubado e arrancado todas as minhas
defesas apenas para que eu parasse de atrapalhar a mim mesma.
Ele me forçou a recuperar minha conexão com os antepassados,
com os ritmos naturais do universo, e com a luz infinitamente
amorosa e curadora da Mãe Divina.
Quando emergi da reclusão e retornei à cidade, os médicos
ficaram espantados. Disseram-me que não conseguiam encontrar
sinais de câncer em meu sangue ou nos nódulos linfáticos.
Decidida a viver uma vida saudável e serena, comecei a estudar
ioga, medicina oriental e o cultivo de alimentos naturais. No
outono de 1986, conheci meu guru, Sua Santidade Swami Daya-
nanda Saraswati, um monge e erudito do sul da Índia. Sob a
orientação de Swami Dayananda estudei intensivamente sâns-
crito e Vedanta, a parte dos Vedas que lida com o
autoconhecimento.
Entretanto, a minha intenção ao escrever este livro não é
convencer o leitor a se tornar um monge védico ou um instrutor
espiritual como eu. Também não recomendo o abandono de seu
atual estilo de vida nem a interrupção dos tratamentos que possa
estar fazendo. O que desejo compartilhar com todos é a minha
compreensão de algumas verdades profundas sobre o processo de
cura, obtidas através de minha própria doença e do curso tomado
por minha vida depois disto. O caminho da prática se destina a
guiar a todos em seu caminho de cura, especialmente as
mulheres. E um curso rápido sobre cura e sobre maneiras de
viver. Quer você esteja com boa saúde e deseje apenas atingir um
equilíbrio maior, quer tenha sido diagnosticado com alguma
doença — crónica ou aguda —, o livro mostra como promover
mudanças graduais na forma como conduzimos a vida cotidiana,
para que possam ocorrer mudanças profundas a curto e a longo
prazos. Como resultado destas práticas, você será mais feliz,
mais saudável, mais calmo e terá maior poder de recuperação. Na
verdade, perceberá que os efeitos destas práticas alcançam muito
além da vida individual. Como as mulheres sempre foram
consideradas guardiãs das práticas que conduzem a uma vida
mais saudável, quando fortalecemos nossa saúde e nosso poder
espiritual estamos também fortalecendo a saúde e a sabedoria dos
homens, das crianças e das comunidades que nos cercam.

"AQUILO QUE DEVE SER FEITO"

Para compreender a base filosófica do caminho da prática, é bom


conhecer alguma coisa sobre a história védica e sua cultura. A
cultura védica emanou da milenar tradição rishi, que data da
civilização Harapa na Índia. Da mesma forma que os rishis antes
deles, os iogues védicos empregam técnicas de focalização da
atenção e de deslocamento do campo de percepção. Em
meditação, eles entram em estados elevados para poder "ver" a

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verdade, buscando informações diretamente do universo para o
bem-estar de suas comunidades. As visões dos antigos iogues
criaram as artes curativas da ioga, meditação, japa (entonação
repetitiva de palavras sânscritas sagradas, ou mantras), e exercí-
cios respiratórios, além de produzir os Vedas, que são os textos
sagrados dos povos hinduístas da Índia.
O hinduísmo, a religião de meus antepassados, surgiu dos
textos védicos e das tradições que promovem a harmonia e a
união entre os povos. A cultura védica não é um conjunto de
crenças religiosas ou fdosóficas, mas uma forma universal e
sagrada de viver, baseada na ideia de que cada um de nós tem o
potencial para atingir a meta da moksha — a liberação do ciclo
de renascimento, a conquista da auto-realização e o reconhe-
cimento da imortalidade do espírito. A tradição védica não busca
converter pessoas de outras tradições e religiões, mas nos ensina
a descobrir nossa verdadeira essência e nosso propósito na vida.
Também ajuda as pessoas a encontrar o caminho de volta para as
autênticas tradições de sua herança cultural e ancestral.
Os Vedas consistem em quatro partes — Rig, Yajur, Sarna e
Atharva — e delineiam as leis sagradas do universo, além da
mitologia dos deuses e deusas e das energias criativas do univer-
so. Eles ensinam que a saúde é um estado que corresponde a
viver em harmonia com a natureza como um todo, e com nossa
natureza básica em particular. Como fomos formados pela natu-
reza e temos uma ressonância inata com ela, só a natureza pode
nos curar quando ficamos doentes. Ao comer quando sentimos
fome, descansar quando estamos cansados, e criar quando a
inspiração chega, vivemos em sincronia com os ritmos da na-
tureza. A doença não irá durar muito em um corpo-mente que
flui em harmonia com os ritmos do universo, os mesmos que
fornecem energia ao plano material.
De acordo com a Bhagavad Gita, um grande texto espiritual
indiano, a única forma de viver em harmonia com o universo é
"fazer o que tem de ser feito" no presente. Este é o coração da
sadhana — as práticas que refletem e recriam dentro de nós os
ritmos e energias do universo. Na índia contemporânea, a palavra
sadhana é geralmente empregada para descrever práticas
mecânicas, decoradas, rotineiras. Entretanto, por intermédio dos
ensinamentos que recebi e pela prática de minha vida, redefini o
termo sadhana, restaurando seu significado original, o das ações
que resgatam o divino dentro de nós. Praticar sadhana é agir por
meio de formas que nos conectem aos ritmos e à inteligência da
natureza. A sadhana recria a sagrada natureza por meio das
práticas cotidianas, que nos colocam em harmonia com os
grandes ciclos do universo e que nos reconectam com o divino
que está em nós: nosso poder de curar, de servir, de regozijar-se e
de elevar o espírito. Neste livro, as práticas da sadhana giram em
torno de exercícios respiratórios e meditação, canto e entonação
de sons naturais, e nutrição por alimentos naturais. Este caminho
liga a consciência interna aos ritmos externos, e mais cedo ou
mais tarde abrirá o portal de nossa própria sabedoria interior — a
certeza de que o que está dentro de nós e o que está fora existem
como um todo indivisível.

A JORNADA DE CURA

Cada um de nós está apto a penetrar no vasto universo que existe


dentro de nós e tornar-se consciente do Espírito Divino que fica
além da realidade material percebida pelos cinco sentidos. As
práticas da sadhana o ajudarão a mudar sua perspectiva e a entrar
em estado meditativo diversas vezes ao longo do dia. Você
acabará considerando os obstáculos e desafios da vida cotidiana
como oportunidades para aprender mais sobre você mesmo e
seus pontos fortes. À medida que vence cada dificuldade, você
fica mais concentrado e mais forte em seu propósito.
Cada um de nós tem um propósito único nesta terra, e foi por
ele que nascemos. Os Vedas o chamam de darma e quando
seguimos o caminho da prática funcionamos em harmonia com
este propósito. A harmonia já existe no âmago de toda vida
humana. Depois que nos tornarmos conscientes, seremos capazes
de reconhecê-la. Tomamos consciência de todas as bênçãos que

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nos circundam: a serenidade do lugar onde moramos depois de
um dia de trabalho; a beleza do crepúsculo visto através das
janelas; a doçura do canto dos pardais; o calor das cores nas
folhas de outono.
Quando temos consciência da harmonia interna, nossa in-
tuição se torna mais ativa. Tornamo-nos mais expressivos, mais
vivos, mais alinhados com nossos corpos e com as energias de
cura. Esta intuição, juntamente com nossa mente racional, nos
ajudará a encontrar a cura e a equilibrar melhor nossas vidas. A
mente racional é útil e tem sua função, mas ela é incapaz de nos
ajudar a promover a cura a partir de dentro. A cura profunda —
processada na fonte interior do desequilíbrio ou doença — não é
exatamente um processo racional. Por que uma doença surge, por
que bactérias ou vírus vitimam uma pessoa e não outra, são
mistérios que a medicina convencional alopática não pode
resolver. A medicina ocidental pode nos ajudar a lidar com os
sintomas físicos, proporcionando tempo para encontrarmos a
causa profunda da doença, mas ela não pode nos ajudar a
enxergar o sentido e a oportunidade contidos no desequilíbrio.
Porém sua intuição, que você descobrirá ao praticar as sadhanas
descritas neste livro, é capaz de fazer isso.
O caminho da prática aqui descrito foi inspirado por esta sa-
bedoria e representa o resultado de três importantes marcos em
minha vida. O primeiro foi quando me lembrei, mediante minhas
próprias experiências dolorosas e por meio da oração e da
concentração, das experiências de meus antepassados exilados.
Suas experiências foram importantes para mim porque a energia
de seus espíritos, seus desapontamentos e seus traumas foram
passados para mim, da mesma maneira que a forma, a cor e a
estrutura celular de meu corpo físico também foram passadas
para mim. Você, também, precisará explorar sua herança espiri-
tual e física para poder encontrar o melhor caminho na direção do
equilíbrio, da paz e da cura. Tentarei oferecer formas de revelar
aquilo que chamo de memória ancestral — as formas nas quais o
legado de seus antepassados afetam sua saúde e seu bem-estar.
O segundo marco foi minha jornada com o câncer, durante a
qual descobri que podia curar minha dor vivendo de acordo com
os ritmos do universo, despertando minha intuição, e seguindo
práticas capazes de me curar e me manter saudável.
A terceira passagem surgiu quando comecei a ajudar mu-
lheres, homens e crianças nos seus momentos mais escuros e
mais repletos de medo, colaborando para que restaurassem a fé
na intuição e redescobrissem seus ritmos naturais e sua herança
de harmonia, cura e paz.
A natureza se expressa oferecendo alimento a todas as espé-
cies, criando o ar e os meios de respirar, e movendo-se em ritmos
e ciclos para manter a vida em harmonia. As práticas de sadhana
da Wise Earth relativas à alimentação, respiração e sons nos
permitem manter a saúde, nos realinhar com os ciclos da natureza
e descobrir a maravilhosa dimensão interna da sabedoria. Elas
nos ajudam a "sentar em nós mesmos", a permanecermos
centrados em nossa consciência durante cada coisa que fazemos.
Ao encontrar harmonia espiritual nas rotinas diárias, podemos
encontrar esta paz também em outros lugares — em todos os
lugares. Se não formos capazes de encontrar harmonia em nossa
vida cotidiana, não a encontraremos em nenhum outro lugar.

ALIMENTO, RESPIRAÇÃO E SOM

Minha própria jornada em direção à saúde e à unidade interior


principiou pela alimentação. Lembrando-me da presença tran-
quila de minha mãe em nossa cozinha na Guiana, onde nasci,
depois que retornei ao apartamento de Nova York vinda dos
bosques de Vermont, decidi limpar e ocupar minha cozinha eu
mesma. Ali eu tostei grãos e os moí para fazer farinha; combinei
temperos aromáticos e moí para fazer as misturas de temperos
indianos tradicionais, chamadas masalas; sovei massa, enrolei e
assei chapatis sobre uma chama aberta. Mas eu não estava
apenas preparando refeições. Da mesma forma que minhas an-
tepassadas femininas haviam feito antes de mim, fortaleci a
batida do meu coração com os sons do grão sendo moído, equi-

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librei a respiração interior com os movimentos circulares de
moagem dos temperos, harmonizei os sentidos e calei a mente
com a música resultante de separar e peneirar feijão em uma
cesta. Nos capítulos 11 e 12 descreverei este processo com
maiores detalhes, e discutirei como é possível transformar sua
cozinha para uma abordagem mais orgânica e saudável da ali-
mentação e do preparo das refeições. Apesar de não ser necessá-
rio moer grãos para fazer farinha, descreverei alguns exercícios
de moagem para fortalecer seus ritmos interiores. Também ex-
plicarei a classificação ayurvédica dos tipos humanos, ou doshas,
e quais são os alimentos mais benéficos para cada tipo. Também
estão incluídos, a título de menus, exemplos e receitas fáceis de
fazer, adequados às pessoas de cada dosha, em cada uma das seis
estações. Ao contrário da ideia ocidental das quatro estações, o
calendário ayurvédico descreve seis estações para refletir os
estágios da jornada anual da Terra ao redor do Sol (falaremos
mais sobre as estações em capítulos posteriores).
A sadhana do alimento é parte inseparável de uma vida fa-
miliar feliz. Muitas culturas usaram e usam estas práticas para
unir família, amigos e comunidade. Há pouco tempo ouvi as
lembranças carinhosas de uma escritora das longas horas pas-
sadas fazendo o dever de casa na mesa da cozinha, enquanto sua
mãe preparava o jantar. Até os mais difíceis problemas de
álgebra ficavam mais fáceis, disse ela, quando os cálculos eram
pontuados pelos sons reconfortantes e familiares de sua mãe
picando vegetais, lavando arroz ou descascando batatas.
Eu não tenho videocassete, filmes gravados, videogames,
fastfoods, nem nada daquelas coisas que dizem que as crianças
gostam. Mas as minhas sobrinhas e sobrinhos, além dos filhos de
meus alunos, a maioria dos quais de famílias sofisticadas, adoram
me visitar porque mal conseguem esperar para enfiar as mãos na
minha massa, minhas especiarias e meus grãos. Minha sobrinha
de sete anos costuma pedir para deixá-la sovar a massa de
chapati, moer temperos para as masalas, e limpar os sabugos de
milho. Um outro menino amigo meu, que tem dois anos, ficou
tão encantado com o processo de sovar a massa que lavamos seus
pés, lhe demos uma enorme panela de massa, e deixamos que ele
se divertisse. Com o rosto radiante de prazer, ele imediatamente
começou a dançar na massa. Juntos, criamos refeições deliciosas
que alimentam o corpo e o espírito.
A vida física é sempre composta pelos mesmos elementos.
Terra, água, fogo, ar e espaço, contidos nos alimentos, nutrem a
terra, a água, o fogo, o ar e o espaço contidos em nossos corpos e
mentes. Enquanto permanecermos conscientes desta ligação
maior, cada pedaço de alimento ingerido se transforma em uma
bênção da Mãe Natureza. Com esta simples consciência, você
estará dando início à sadhana, seu caminho de prática. Quando
permanecemos conscientes de nossa alimentação, ela nutre e
influencia a força vital, os movimentos e a vida interna — os
ritmos pessoais, ou sons. Desta forma, o alimento se torna
consciência manifesta como pensamento e ação. Cada pensa-
mento e cada ação se transformam, portanto, em expressões da
nossa unidade com a Mãe Natureza.

Sasha, uma artista originária da América do Sul, recentemente foi


a um Programa para Praticantes da Sadhana da Alimentação da
Wise Earth School. Há mais de vinte anos, o pai dela havia
tentado suicídio e sofrido uma lesão cerebral. Desde então, tem
estado internado permanentemente em uma instituição
psiquiátrica na América do Sul. Sasha chorou ao contar que
apesar de se falarem por telefone esporadicamente, ela sentia
muita falta dele. Quando perguntei quando fora a última vez que
o visitara, ela enumerou uma série de sentimentos conflitantes —
raiva, culpa, medo e uma sensação de abandono — que a vinham
impedindo de vê-lo havia muitos anos.
Eu tinha notado que Sasha gostava dos tambores de nossas
aulas de canto, por isso sugeri que enviasse a seu pai uma gra-
vação dela mesma cantando e tocando o tambor. Ela balançou a
cabeça com tristeza, explicando que, apesar do pai adorar
música, a instituição não permitia que os residentes tivessem
instrumentos musicais nem fitas gravadas (achei esta política

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particularmente infeliz, uma vez que as pesquisas já demons-
traram o enorme valor terapêutico da música, como veremos
mais adiante).
"Então por que você não faz biscoitos para o seu pai?" su-
geri. "Você pode tocar o tambor entre os atos de peneirar, sovar e
dar forma à massa, para que o som penetre nos biscoitos."
Sasha já chegara ao ponto em que não conseguia mais aguen-
tar a dor da longa separação, e gostou da ideia de nutrir o pai
desta forma, talvez pequena mas certamente plena de significado.
Quando voltou para casa, assou uma batelada de biscoitos
ayurvédicos de aveia, usando o tambor e cantando ao longo do
processo. Enviou os biscoitos para ele, juntamente com fotos
recentes de si mesma. Logo após, ela telefonou para ele. A voz
dele parecia mais animada do que o habitual, e a primeira per-
gunta dele foi, "O que você fez com aqueles biscoitos? Nunca
comi nada tão gostoso. São tão bons que me fazem querer
cantar."
Quando praticamos sadhana como Sasha, exercitamos nossa
escolha divina de abraçar o caminho da prática em nossa vida
cotidiana. A sensação de bem-estar que obtive com minha
sadhana da alimentação me levou a praticar a respiração cons-
ciente, o segundo pilar da sadhana da Wise Earth. Os ensina-
mentos védicos nos dizem que a respiração não consiste apenas
de ar, mas ela é força vital, prana, a energia orgânica que com-
põe as correntes do corpo sutil. O corpo sutil é nosso corpo não-
físico, que inclui a força vital do corpo, o intelecto, a mente e o
ego. O corpo sutil é a nossa energia vital. O prana é gerado
dentro dos chacras, os sete centros de energia distribuídos ao
longo da coluna vertebral.
De acordo com o antigo folclore indiano, a linda donzela
Savitri estava sentada à beira de um lago tocando sua vina, um
instrumento musical de cordas. Enquanto tocava, os cisnes que
deslizavam pelo lago cantarolavam a melodia. Um eremita que
passava não conseguia acreditar em seus ouvidos. "Que poderes
você tem para cantar e tocar de forma tão divina?" perguntou ele
a Savitri e seus cisnes. Ela sorriu e respondeu, "Minha respiração
é completa." Os cisnes responderam, "Nós comemos o grão
sagrado." O sopro divino nos dá vida e nos inspira, permitindo
que vibremos em harmonia com a natureza e nos comuniquemos
por meio de seus ritmos (os cisnes), como também o fazem os
alimentos que vêm da natureza (o "grão sagrado").
A força vital de toda a criação, o prana, faz com que a Terra
gire em torno do Sol, e que a Lua orbite ao redor da Terra. O
prana movimenta o ar, a água, os nervos, as células de memória,
e as marés oceânicas. É a base do pensamento e da consciência
que habita dentro do corpo, e também a base de todas as criações.
A respiração consciente ajuda a acalmar a mente, para que nossos
pensamentos possam entrar em harmonia com a intuição.
Mais adiante neste livro, aprenderemos sobre o pranayama, o
controle e a expansão da respiração, uma das práticas centrais da
ioga. Descreverei diversas técnicas respiratórias especialmente
projetadas para controlar nossas energias mentais e físicas. A
consciência da respiração é a base da meditação. Quando a
respiração está agitada ou irregular, nossos pensamentos ficam
dispersos e as ações, confusas. Quando a respiração está firme, a
mente e o corpo a acompanham. Como você verá, a meditação
não é um ato da vontade ou simplesmente a prática de se sentar e
observar a respiração enquanto ela flui de forma calma e regular.
O propósito da meditação é acalmar a mente, proporcionar ao
sistema nervoso uma energia focada, e transcender a realidade
visível, audível e tangível. A consciência momento-a-momento,
cultivada pelas práticas de sadhana, constitui a meta verdadeira
da meditação.
Um grande obstáculo enfrentado pelos ocidentais que que-
rem atingir a harmonia com as forças da natureza é o hábito de
depender apenas da mente racional. Na tradição védica, o plano
mental é apenas um entre vários componentes de nossa inteli-
gência, aquele que nos ajuda a criar, a assimilar as experiências,
a analisar as situações, e a resolver os problemas da realidade
física. Entretanto, o pensamento sozinho não pode nos conectar
às dimensões interiores nem à consciência cósmica. Na verdade,
os julgamentos e os preconceitos da mente racional muitas vezes

21
nos afastam da Fonte Divina. A meditação, a contemplação, e as
práticas espirituais diárias nos permitem conectar nosso pen-
samento à consciência, ativando a intuição, ou buddhi.
No final da década de 1960, Herbert Benson, M.D., conduziu
uma pesquisa na Universidade de Harvard para medir as
respostas fisiológicas dos praticantes de meditação. Para sua
surpresa, Benson descobriu que a meditação desacelerava as
batidas cardíacas, a velocidade respiratória, e o metabolismo em
geral. Ele chamou este estado de reduzido estresse, exercendo um
sem-número de efeitos positivos nos diversos sistemas do corpo,
de "reação de relaxamento". As experiências de Benson
provaram às comunidades científicas e médicas aquilo que os
videntes védicos já sabiam há milhares de anos: a meditação faz
bem à saúde física e à saúde espiritual.
O uso do som é o terceiro pilar da sadhana da Wise Earth.
Os iogues empregam o som para despertar a consciência. De
acordo com os Vedas, o som é a origem de toda a vida. Apesar
de percebermos nossos corpos como matéria sólida, cada célula é
formada por vibrações e interações de energia. Somos feitos de
sons vivos, e nossos ritmos individuais dependem das vibrações
maiores do universo, que os alimentam. Nós carregamos o som
primordial do universo, dentro de nossos centros de energia, ou
chacras, também chamados de núcleos vibratórios de
consciência.
Os videntes védicos nos dizem que o som mais sagrado do
universo, o Om, vibra no espaço do sexto chacra, localizado na
altura das sobrancelhas, entre os olhos, na área conhecida como
"terceiro olho". "O Om é a essência do pensamento, da palavra e
do som", diz a Chandogya Upanishad. O Om representa a
consciência pura. Pelo emprego de cantos védicos e de palavras
sagradas sânscritas, conhecidas como mantras, cada uma das
quais começando ou terminando com "Om", podemos acessar o
poder interior da intuição.
Por meio da entonação de sons, o praticante evoca o enorme
poder que reside dentro dele, fortalecendo a respiração,
energizando a mente e imunizando o corpo. Os videntes védicos
definiram mantra como sendo tanto o meio sonoro empregado na
meditação que usa sons quanto a forma de invocar a energia
divina das deidades. E não sou apenas eu a acreditar que a terapia
do som é uma poderosa medicina. Na verdade, existe uma
enorme variedade de comprovações científicas a demonstrar o
poder curativo do som.
Na Wise Earth School usamos diferentes formas de sons e
cantos com a intenção de intensificar nossa sadhana, como será
explicado nos capítulos 9 e 10. Um bom exemplo da energia
universal do som funcionando a nível vibratório foi dado por
Joey, o filho de três anos de Marian, uma de minhas alunas. Joey
nasceu completamente surdo. Depois de várias baterias de
exames clínicos, os médicos declararam que sua condição era
irreversível e que ele nunca reagiria aos sons. Mas certa manhã,
enquanto Marian tocava tambor e cantava acompanhando uma de
minhas fitas de cantos védicos, Joey entrou no quarto e começou
subitamente a dançar, perfeitamente em harmonia com o ritmo
do canto. Perplexa com o comportamento dele, Marian chamou
seu nome alto. Joey não deu sinais de ter ouvido, mas continuou
a dançar pelo quarto. Tão logo ela desligou a música, ele parou
de dançar. Quando ela voltou a tocar a fita, ele recomeçou a se
movimentar no ritmo do tambor.
É claro que Joey não conseguia ouvir a música, mas conse-
guia sentir a vibração do tambor, e respondia no ritmo do canto.
O sorriso em seu rosto era a prova de sua excitação por ter
encontrado um jeito de "ouvir". Sons de cura, portanto, podem
ter um efeito muito mais profundo do que o que é apenas audível.
Da mesma forma que a Terra se move em harmonia com as
vibrações da música celestial, nós também podemos nos tornar
conscientes destes ritmos e nos movermos em harmonia com o
todo. Basavanna, um poeta espiritual que viveu em Karnataka,
Índia, em torno de 1200 d.C, declarou: "Façam de meu corpo a
trave de um alaúde. De minha cabeça, a cabaça de ressonância.
De meus nervos, as cordas. De meus dedos, as cravelhas. Então
abrace-me com força e toque, toque sua canção, oh Senhor dos
rios que se encontram."

23
SEGUINDO O PRÓPRIO CAMINHO

Qualquer prática genuína de qualquer tradição, quando executada


com consciência, pode ser considerada sadhana, quer seja a
dança dos sufis, o estudo do Talmude, um ritual africano de
iniciação, o jejum do Ramadan, ou o desfiar das contas de um
rosário. O mestre zen japonês Hakuin Zenji disse: "A mente
cotidiana é o caminho." Por mente cotidiana Hakuin queria dizer
nossa capacidade de permanecer no aqui e agora. Quando
vivemos cada momento sem nenhum medo relacionado ao
passado ou ao futuro, todas as nossas ações se tornam repletas de
consciência.
Se você conhece e gosta dos alimentos integrais e saudáveis,
e da música de sua própria cultura étnica, aconselho você a in-
corporá-los às sadhanas que descreverei nas páginas que se se-
guem. Lembre-se de que os ritmos espirituais inatos a cada um
de nós incluem memórias de comida, respiração e sons, vindas da
nossa infância. E especialmente dos alimentos que nossos pais ou
avós preparavam para nos dar, bem como a música que tocavam.
Mantenha-os em sua consciência enquanto estiver lendo O
caminho da prática, porque podem se tornar essenciais para
ajudá-lo a se lembrar, resgatando memórias ancestrais.
Uma vida onde se faz sadhana flui de forma suave e fácil,
não porque algum conjunto específico de regras ou dogmas seja
seguido, mas porque aprendemos a nos mover com as correntes
sonoras e energéticas que nos cercam. Levantamos com o sol,
deitamos com a lua, ingerimos o alimento produzido em cada
estação. Respiramos de acordo com os ritmos diários lunares e
solares. Conferimos voz ao nosso som interno, por meio dos
cantos de cura e das orações e, mais ainda, por meio do silêncio,
que é a raiz e o fundamento de todos os sons. Quando vivemos
desta forma simples, a paz permeia os nossos dias.
Este livro sugere diversas formas diferentes de praticar
sadhana, mas eu os convido a simplesmente começar pelo re-
conhecimento da força vital da respiração, pela alegria do som de
nossa voz, e pela bênção do alimento. Faça apenas os exercícios
de que gostar mais, uma vez que sempre poderá retornar àqueles
que lhe parecem menos atraentes. As sadhanas são práticas para
uma vida inteira, incorporadas gradualmente à rotina diária, até
que todos os seus pensamentos e ritmos estejam em sintonia com
a Mãe Natureza. Como você verá, também existem práticas a
serem feitas apenas em certas épocas do ano, ou em determinadas
circunstâncias.
Venho executando minhas práticas há mais de vinte anos, e
tenho alunos que vêm fazendo o mesmo há pelo menos uma
década. Quando iniciamos as práticas de consciência da alimen-
tacão, respiração e som, nossa saúde melhora e a felicidade
aumenta, ao mesmo tempo que a sabedoria interior desperta
gradualmente à medida que damos continuidade às práticas. Hoje
em dia não seríamos mais capazes de abandoná-las, da mesma
forma que não poderíamos parar de comer ou beber.
Uma palavra final sobre as orações e as invocações deste
livro: como sou uma monja védica, sinto-me naturalmente incli-
nada a apresentar as orações da minha própria tradição, e a in-
vocar os nomes das deidades que aprendi a chamar em minhas
meditações. Elas também representam sons universais em
sânscrito, que é uma língua derivada diretamente do som
cósmico. Qualquer que seja a sua religião, estes são os sons da
liberdade interior, e você pode utilizá-los para curar e ser curado,
sem medo de estar traindo sua crença principal. Os nomes de
Shiva, Shakti, Durga, Kali, Vishnu, Lakshmi, Brahma e
Saraswati fazem sentido para mim como indiana e como ser
universal. Todos os nomes do Espírito são sagrados, quer
falemos de Jesus, Buda, Jeová, Alá ou Tara. Se você se sentir
mais confortável usando um nome de sua própria religião ou
cultura, faça isso, por favor. Eu incentivo todos a explorar e usar
suas próprias heranças culturais e suas tradições, considerando a
sabedoria védica como uma herança universal que pertence a
todas as criaturas deste universo.
Comece despretensiosamente. Passe alguns minutos ali-
nhando sua respiração de manhã e à noite, conforme descrito no

25
exercício que se segue. Cozinhe uma refeição por semana
segundo os princípios ayurvédicos. Ouça música enquanto pre-
para a refeição; não importa se ouve cantos védicos, Chopin ou
Coltrane, desde que a música fale ao seu coração. Cante os sons
primordiais simples e monossilábicos om e ham, e os outros
mencionados no capítulo 10. Você verá que a prática da
alimentação, respiração e som são três aspectos de um todo in-
divisível, três manifestações diferentes da nutrição do espírito.
Eventualmente, estas três sadhanas alimentarão seu desejo de
intensificar a prática.
Enquanto lê O caminho da prática, lembre-se de que a sa-
dhana na verdade é uma jornada. Comece quando e onde puder,
com as práticas de que gosta. Você pode progredir tão devagar
quanto quiser. Pode, por exemplo, decidir passar um mês tra-
balhando em cada sadhana separadamente, e depois juntar as
três. Ou talvez prefira começar com as três ao mesmo tempo.
Abra a mente e o coração, e veja o que acontece. Talvez descubra
que o caminho da prática irá conectá-lo a um rico passado
ancestral, e a uma nova vida de alegria e saúde perfeita.
PRIMEIRA PARTE

ENCONTRANDO O
CAMINHO D A CURA

27
CAPÍTULO 1
ESPÍRITO IMIGRANTE:
AS MINHAS JORNADAS DE CURA

Em meus sonhos, imagino seus olhos negros tentando


enxergar através da neblina pesada que encobre a costa da
Guiana... Per Ajie, Eu vejo como
você ficava de pé com os ombros eretos,
a cabeça erguida,
o desafio no olhar.
E ninguém ousava contar a Sahib.
Chicoteado nos campos,
para que através dos amigos e parentes
da mulher violentada
não viesse a vingança.
- Extraído de Per Ajie,
do poeta guianense Rajkumari Singh

Segundo a tradição védica, cada pessoa nasce com um destino,


que é formado por nossa ancestralidade. Meu nome de família,
Tiwari, significa os "três Vedas" na tradição brâmane da índia.
Isso implica que meus ancestrais eram versados em três dos qua-
tro Vedas primários, que são o Rig, o Yajur, o Sarna e o Atharva
Veda. Meu destino está escrito em meu nome, carregado por uma
longa linhagem de sábios, monges e sacerdotes.
Entretanto, como muita gente, eu fiz uma longa viagem para
longe de minhas raízes, e depois foi preciso uma rota circular
para retornar a elas. Minha história é um exemplo de como
alguém se aliena de seu verdadeiro ser, para depois redescobrir
identidade, forças e talentos ao sintonizar-se aos ritmos fa-
miliares e culturais.

Descreverei minha infância e minha odisseia de cura,


desde o afastamento até a reconciliação, na esperança de que
minha história possa motivar vocês ao embarcarem em suas
próprias jornadas de cura. Espero que meu exemplo, por mais
extraordinário que pareça, sirva de inspiração e modelo, tanto
para a cura física quanto para a espiritual, ou as duas. No capítulo
2 falaremos sobre como um diário me ajudou a atravessar o
28
episódio mais assustador de minha vida, e no capítulo 8
discutiremos técnicas específicas de manutenção de diários, que
ajudam a recuperar memórias ancestrais. No momento,
recomendo que ao ler a minha história você comece a registrar
pensamentos, sentimentos ou intuições surgidos em relação a
temas recorrentes de seu passado, bem como reações a
experiências do presente. Preste especial atenção às memórias de
sons e de alimentos.

Venho de um povo de imigrantes. No final do século XVIII os


ingleses, na contínua tentativa de ampliar seu já vasto império,
confiscaram terras dos povos nativos das ilhas do Caribe, e a
seguir foram até a Africa e trouxeram pessoas de volta como
escravos. Mais tarde, eles atraíram pessoas empobrecidas em sua
terra natal na índia com a promessa de uma vida melhor no
ocidente longínquo, e as trouxeram como trabalhadores sob
contratos de servidão.
Meus antepassados foram exportados da Índia como se
fossem fardos de algodão. Juntamente com milhares de
compatriotas, suportaram uma aterrorizante travessia que durou
três a quatro meses em um oceano turbulento. A caminho das
índias Ocidentais, muitas mulheres indianas foram violentadas
por soldados ingleses; seus maridos foram espancados e jogados
no mar ou abandonados em praias isoladas. O espírito daqueles
que sobreviveram ficou alquebrado para o resto de suas vidas, e
os abusos que sofreram permaneceram indelevelmente gravados
no psiquismo das gerações posteriores.
O tecido de minha vida, e de minha doença, contém
alguns fios que começam na infância, e outros que vêm das vidas
de meus antepassados. Para poder encontrar meu caminho e sair
da confusão que o câncer representou, precisei desfazer os nós de
todos estes fios e olhar atentamente para as cores e as texturas, as
torções e os pontos desfiados.
Em menos de 200 anos de colonização na Guiana, os ingleses
conseguiram usurpar a terra ameríndia e mutilar a cultura nativa.
Também tentaram acabar com a cultura dos homens e mulheres
africanos forçados a viver na escravidão, de forma que não restou
virtualmente nenhuma prova de suas práticas tradicionais, exceto
por alguns traços na alimentação e na língua. A escravidão fora
29
abolida recentemente na Guiana quando o primeiro de meus
antepassados indianos chegou, em 1875. Foi-lhes oferecida uma
oportunidade para trabalhar a terra e, com o tempo, a
possibilidade de se tornarem donos dela, um privilégio muito
maior do que aquele dado aos africanos. Diante do que parecia
ser uma campanha sistemática para obliterar sua antiga e rica
cultura védica, eles conseguiram manter as práticas espirituais na
privacidade de seus lares e templos, mesmo que de forma
bastante reduzida.
Meus bisavós sobreviveram à brutal travessia oceânica
da índia e desembarcaram na Guiana com poucos recursos,
exceto por sua determinação em construir uma vida melhor. Os
indianos do século XIX raramente saíam de suas aldeias, e
evidentemente não faziam viagens marítimas. Como os povos de
todas as culturas antigas, tinham raízes profundas na terra e nos
darmas, valores e leis estabelecidos para eles por seus
antepassados. Entretanto, a maior parte da índia encontrava-se
imersa em pobreza. Desta forma, como milhares de outros
indianos, meus ancestrais embarcaram para construir uma vida
mais próspera em uma terra nova. Sua saída da índia já era, por si
mesma, contra as leis sagradas dos Vedas, que aconselham as
pessoas a não deixarem sua terra natal para atravessar oceanos.
Como desafiaram esta antiga tradição, meus antepassados
imigrantes despertaram o ressentimento daqueles que ficaram,
distanciando-se ainda mais de suas raízes ao se verem isolados
em uma terra nova.
Meus bisavós trouxeram com eles as sementes dos
alimentos indianos, e recorreram à terra fértil não apenas para
obter sobrevivência e nutrição mas também para curar seus
espíritos alquebrados. Na época em que eu cresci na Guiana, no
final da década de 1950, meus avós e seus compatriotas haviam
recriado a paisagem luxuriante da Índia. Haviam também
mantido vivas diversas práticas indianas tradicionais, como
confecção de cestas, redes de pescar, almofarizes de pedra e
pilões, além de pedras de moer; e a construção de moradias
segundo as formas consagradas pelo tempo.
Apesar de na infância eu não ter consciência das
experiências de meus pais, avós e bisavós, havia uma percepção
intuitiva de sua dor emocional. Com seis anos, tive a forte
sensação de que minha própria inocência havia sido violada,
30
apesar de minha família nunca falar do passado. Mas em algum
lugar dentro de mim havia a memória inconsciente das
atrocidades sofridas por eles. Só bem mais tarde eu iria descobrir
que essas intuições correspondiam, na verdade, a fatos históricos.
Estes sentimentos foram minha primeira experiência de acesso a
uma consciência maior, à qual mais tarde eu iria me conectar, e
da qual eu iria obter intuições, cura e o conhecimento da missão
de minha vida.
A geração de meus pais herdou as memórias dolorosas
da violência sexual sofrida pelos pais deles. Os homens cujas es-
posas eram violentadas muitas vezes culpavam as mulheres pelo
ocorrido, e por isso muitos rejeitavam suas mulheres. Esta he-
rança era passada para filhos e netos. Bater na mulher constituía
um fato corriqueiro entre os indianos da Guiana.
Eu amava minha família com todo o meu coração, e tentava
como podia aliviar a angústia muda que percebia neles. Servia às
minhas tias misturas e chás, untava seus pés com bálsamos de
ervas e penteava seus longos cabelos. Mas a tristeza continuava
gravada em seus semblantes, e eu podia até mesmo sentir o
cheiro dela nas peles crestadas de sol.
As mulheres só tinham permissão para dar vazão à dor
em elaboradas cerimónias funerárias, quando choravam e se
lamentavam, expressando seu pesar em gritos assustadores. Nos
casamentos e outras festividades, cantavam canções nativas com
encantamentos apaixonados em uma mistura de hindi, urdu e o
inglês da Guiana. Cantavam por muito tempo e com fervor, até
que sua agonia fosse temporariamente apaziguada. Depois disto,
uma vibração de alegria enchia o ar, como um brilhante raio de
luz rompendo as densas nuvens. Seus corpos se balançavam em
sensuais danças folclóricas, o sofrimento esquecido por um
instante.
Ainda que provavelmente nenhuma daquelas pessoas
tenha conseguido apagar de seus espíritos a dor acumulada ao
longo da história, eu aprenderia mais tarde que um espírito
devastado pode cicatrizar de novo; e corações partidos podem se
regenerar. Herdei o espírito ferido de minha família, e mais tarde
provoquei ainda mais dor para mim mesma e para o espírito
coletivo, o que provavelmente me levou ao câncer. Mas a minha
própria cura daquele câncer é um atestado da possibilidade de
redenção e recuperação. Nas palavras da poetisa contemporânea
31
Rashani:

Existe um estado de ruptura a partir do qual emerge


aquilo que é inteiro. Existe uma fragmentação da qual brota o
impossível de ser fragmentado. Existe uma tristeza que está além
de toda a dor, e que conduz à alegria. E uma fragilidade de cujas
profundezas emerge a força. Existe um espaço oco que é grande
demais para ser descrito, o qual temos que atravessar a cada
perda que sofremos, e em cuja escuridão somos confirmados para
a existência.

NA CASA DE MEU PAI

Meu bisavô pelo lado paterno veio para a Guiana em 1889, não
apenas porque queria uma vida económica melhor para a sua
família, mas também porque era um pujari, um sacerdote hindu.
Os ingleses haviam concordado em trazer alguns pujaris, em
resposta à convicção dos imigrantes indianos de que os sacerdo-
tes poderiam acabar com a grande seca de 1889 se executassem o
Chandi Homa, um ritual védico para chamar as chuvas. Não
obstante os sacerdotes jejuarem por dois meses e executarem
diversos rituais religiosos considerados indispensáveis para cha-
mar as chuvas, os céus continuaram secos sobre nossas cabeças.
Entretanto, meu bisavô perseverou. Recém-chegado a Port
Mourant, entrou no fosso cavado para os rituais védicos do fogo
e jejuou sozinho por mais dois meses, até que os céus finalmente
se abriram. Os aldeões levantaram seu corpo emaciado do fosso e
colocaram em seu lugar um Shiva lingam, a antiga "marca de
Shiva".
O primeiro mandir, ou templo, da Guiana foi construído
naquele local. Meu bisavô serviu como sacerdote chefe no Tem-
plo Shivala, como foi chamado, até sua morte, pouco após o fim
da seca.
Meu pai, Bhagwan Rampersaud Tiwari, era o filho mais
novo de uma família grande, e se tornou um grande professor.
Sua pele dourada, seu abundante cabelo negro e corpo musculoso
evocavam a beleza e o brilho de Surya, o deus sol védico.
Quando tinha dezoito anos, sua mãe adoeceu de forma terminal.
O pai tinha morrido havia poucos anos, por isso ele teve de
32
cuidar de sua mãe durante os últimos dias da vida dela. Esta
experiência teve um profundo efeito sobre ele, gerando uma
enorme compaixão.
Entretanto, meu pai tinha um lado rebelde, e acabou
arranjando duas esposas, o que, apesar de fazer parte da antiga
tradição, não é bem-visto entre os indianos modernos. Por isso
vivia tendo de acalmar as sensibilidades ultrajadas de suas duas
orgulhosas mulheres, Jayadevi, que eu chamava de "mãe mais
velha", e Kalideva, minha mãe biológica.
Depois do nascimento do primeiro filho, meu pai se
tornou menos rebelde e começou a se conectar mais à cultura
natal. Estudou as escrituras indianas e praticou as pujas, ou
sacrifícios rituais, que são observados em todos os lares indianos
ortodoxos. Um leitor constantemente interessado em tudo o que
havia disponível, além de um grande intelectual, ele fez cursos
por correspondência em universidades de diferentes países, além
de se formar como técnico dentário em uma conhecida escola
odontológica nos Estados Unidos. Ele fabricava até mesmo os
próprios instrumentos odontológicos. Vinham diplomatas das
ilhas próximas, inclusive Trinidad e Jamaica, para que meu pai
tratasse de seus dentes. Além disso, ele também era conselheiro
familiar, casamenteiro local, astrólogo, e um ávido tocador de
bandolim, cuja canção ocidental preferida era "Red River
Valley".
Nas horas vagas, meu pai construiu um templo indiano
em nossa aldeia. Era exímio no uso do sânscrito, do urdu e do
hindi. Depois de estudar as escrituras indianas, começou a
estudar a Bíblia e o Corão. Como resultado de sua compreensão
destas religiões, ele conseguia aconselhar o clero em nossa
região, diminuindo as diferenças entre hindus e muçulmanos,
africanos e indianos, ao citar suas escrituras e mostrar que, atrás
das aparentes diferenças, o Espírito era o mesmo. Enquanto per-
manecia firme como devoto da tradição hindu, administrava a
educação dos filhos para que crescêssemos com as mentes aber-
tas e tolerantes para com outras culturas, vivendo em amizade
com nossos vizinhos africanos.
Meu pai construiu praticamente sozinho nossa casa de
madeira, com suas amplas varandas, feitas de acordo com os pre-
ceitos da arquitetura védica. O tradicional fogão de barro, por
exemplo, ficava na parede oriental. Eu sempre penso em minha
33
mãe, com o rosto banhado pela dourada luz matinal, de pé em
frente ao fogão cozinhando o dhal, ou o feijão moyashi do café
da manhã. Nosso dia começava cedo, com os galos cantando às
quatro da manhã (hoje em dia, os galos cantam o dia todo, triste
prova de que também perderam sua conexão com os ritmos da
natureza). Depois que as mães nos acordavam, elas executavam
seus rituais matinais, enquanto papai liderava o canto em nossas
orações. O café da manhã era preparado na lareira de lenha, com
uma amostra da refeição sempre oferecida ao fogo
(representando o sacrifício para o Divino) antes de nos servirmos.
Então trocávamos nossos pijamas indianos pelo desconfortável e
rígido uniforme escolar — saias pregueadas azul-marinho, blusas
brancas engomadas, gravatas listradas. Com nossos pés descalços
envolvidos em sapatos pretos de verniz, saíamos para um dia
escolar totalmente inglês. Só ao voltar para casa retomávamos
nossas identidades indianas, com as lições de hindi e das
escrituras dadas por meu pai ou pela mãe mais velha.
Meu pai tentou preparar seus filhos (onze ao todo,
incluindo meu primo Mahendra, que foi criado em nossa casa
como irmão) para a vida na Guiana e no mundo fora de nossa
pequena comunidade. Pontuou nossa educação inglesa com as
âncoras de nossa própria tradição, porque entendia que só pela
formação acadêmica poderíamos romper os grilhões de dor
herdados das gerações anteriores.
Certas tardes, cansada da escola e de brincar, eu deitava a
cabeça no colo de minha mãe enquanto ela passava os dedos em
meu cabelo procurando piolhos, um problema recorrente em
nossa escola rural. As mulheres da aldeia, confortavelmente
sentadas em suas varandas, limpavam e peneiravam grãos e dhals
nas cestas feitas em casa. Shi, shi, shi, o sussurro reconfortante da
tarde que passava. Eram os sons da vida, as harmonias naturais,
os ritmos que nos uniam.
A atmosfera comunitária englobava a preparação das
refeições e todas as atividades da cozinha, como bater os grãos e
os temperos, bem como as outras preparações que eram parte de
nossa vida diária. A comunidade inteira encontrava-se ligada à
terra de maneiras que seriam difíceis para os moradores urbanos
de hoje imaginar. Do lado de fora de nossas casas havia grandes
pântanos recobertos de capim alto, onde os grous e outras espé-
cies selvagens se multiplicavam. Ainda posso sentir o cheiro da
34
lama da Guiana, que é diferente do cheiro da lama de qualquer
outro lugar no mundo. Era espessa, escura e aveludada, e quando
a chuva caía sobre ela fazia um som redondo e musical, como
sapos pulando em um lago. Eu tinha total consciência da
variedade dos sons da Guiana, e, apesar de haver visitado e
vivido em áreas rurais de diversas regiões, ainda não ouvi o tipo
de sons que podem ser ouvidos naqueles terrenos mistos de
oceano e selva. A Guiana era uma terra misteriosa, cheia de
acordes indianos, ritmos africanos e hierarquias inglesas.
Esta forma de vida, conectada aos ritmos e à sabedoria
da terra, plantou em mim as sementes da minha redescoberta da
sadhana muitos anos mais tarde. Apesar do sofrimento de meus
pais, avós e bisavós, de seu distanciamento da terra natal, não
obstante as realidades brutais da vida em uma sociedade colonial,
eles conseguiram preservar as formas antigas que estavam, já
naquele tempo, se perdendo na índia e no resto do mundo. Eles
entrelaçaram os ritmos do plantio, da colheita, do cantar e dançar,
e os teciam numa vida que acontecia ao redor do lar. Apesar de
tradicionalmente serem as mulheres as curandeiras e as
instrutoras das práticas antigas, meu pai fez questão de que suas
filhas recebessem uma boa educação formal — o que era pouco
convencional naquele tempo — e sempre deu prioridade aos
nossos deveres escolares em detrimento das tarefas da cozinha.
Depois que nosso país ficou independente dos ingleses
em 1966, irrompeu a guerra civil entre os guianenses das etnias
africana e indiana. Sessenta e cinco por cento da população in-
diana fugiu do país. A história se repetiu para minha família.
Meu pai planejou cuidadosamente a saída dos cinco filhos mais
velhos, inclusive eu, para três países diferentes — a Inglaterra, os
Estados Unidos e o Canadá — onde ele pretendia que conti-
nuássemos nossos estudos. O respeito que tinha pelas pessoas
independente da cor ou da raça acabou salvando sua vida e as
vidas de seus familiares. Quando a guerra civil se agravou e as
milícias negras do novo governo começaram a assassinar
indianos, os africanos da comunidade de meu pai o ajudaram a
fugir para o Canadá.
A imigração para Nova York em 1968 foi o início de mi-
nha escapada da tristeza que permeava minha família e meu país.
Fiquei triste em deixar a família, mas entusiasmada com a grande
aventura que se estendia à minha frente. Levada por um profundo
35
desejo de construir uma vida nova e independente para mim,
virei as costas ao passado. Eu evitava a crescente colônia de
imigrantes guianenses estabelecida em Queens, preferindo viver
em Greenwich Village, onde achei um apartamento na rua
Horatio. A Lancaster Village, onde eu crescera, era uma
comunidade de talvez 500 pessoas. Minha nova aldeia tinha mil
vezes mais habitantes, mas eu me senti confortável ali desde o
primeiro dia.

CONSTRUINDO A MÁSCARA

Com dezesseis anos, mergulhei de cabeça em minha paixão por


Nova York. Apesar de nunca ter visto a miséria urbana antes, e
de ficar perplexa com as ruas sujas e os metros cheios de lixo, a
cidade exalava liberdade — liberdade para me expressar.
Durante um mês frequentei uma escola de administração,
onde solicitei minha admissão à Universidade de Nova York.
Minha intenção era estudar Direito, como meu pai queria. Mas
enquanto esperava pela resposta da universidade, conheci Stella
Adler, a famosa professora de teatro. Depois de assistir a algumas
de suas aulas, meus planos académicos perderam o rumo — eu
acabara de me apaixonar pelo teatro. Stella desenvolvia peças
europeias e russas com a metodologia impecável absorvida de
Stanislavsky, o grande mestre teatral russo, adicionando à mesma
suas ideias americanas. Apesar de eu ser jovem demais para
poder frequentar os cursos, ela abriu uma exceção e, em 1969,
permitiu que eu me matriculasse no Conservatório Stella Adler,
onde me formei em 1973.
O teatro era o treinamento perfeito para minha nova vida,
uma vez que eu estava deliberadamente construindo uma perso-
nagem para mim mesma: uma jovem mulher moderna e bem-
sucedida. Ao representar papéis, estava aprendendo a funcionar
em um mundo inacreditavelmente diferente daquele no qual fora
criada.
À medida que trabalhava com Stella, ela se tornou minha
amiga, meu maior guia e meu anjo da guarda. Ela me preparou e
ajudou, desenvolveu meus pontos fortes, e me enviou para
treinamento de voz com Helena Monbo, uma professora de voz
extremamente respeitada. Devido ao génio de Stella, à sabedoria
de Helena e à minha inclinação natural para as artes dramáticas,
36
comecei a me tornar uma atriz disciplinada. Entretanto, no início
da década de 1970 a cor da pele de um ator era mais importante
do que é hoje, e não havia muitos papéis para mulheres de cor,
especialmente nas peças clássicas. Stella me enviou a Joseph
Papp, o fundador do famoso Teatro Público de Nova York, para
fazer o teste para o papel de Lady Macbeth. Mas até mesmo este
grande visionário do teatro, que dentro de pouco tempo abalaria a
comunidade dramática com suas escolhas de elencos racialmente
neutros, foi de opinião que a hora ainda não havia chegado. Em
vez disso, aconselhou-me a ser figurinista. Apesar da ideia
inicialmente não me atrair, Stella ajudou a me persuadir a
ingressar na indústria da moda.
Eu não tinha nenhum treinamento nesta nova área, mas
de alguma forma me convenci de que poderia me tornar diretora
de uma conhecida organização de varejo. Eu marcava entrevistas,
com qualquer pessoa importante do ramo da moda que aceitasse
me receber, porém após quarenta entrevistas ainda não tinha
nenhuma oferta concreta. Finalmente, conheci o diretor de moda
da Bergdorf Goodman, que me ajudou a arranjar meu primeiro
emprego em 1972, na Gimbels. Lá eu aprendi rapidamente os
rudimentos do ramo e, ao final do primeiro ano, havia
reestruturado completamente o departamento de moda da loja,
atualizando a imagem da principal filial da Gimbels. Os lucros
triplicaram nas áreas em que trabalhei, proporcionando o impulso
de que eu necessitava para criar um currículo. Sem pensar que eu
não tinha as qualificações necessárias para aquele trabalho,
jamais duvidei de minha capacidade.
Enquanto minha confiança crescia, era
inconscientemente atormentada pela ideia de que estava virando
as costas para minha família e meu passado. Sentia-me aliviada
por encontrar em Nova York uma cultura na qual a tristeza de
meu povo e meu próprio conflito interior, como anglo-indiana,
podiam ser momentaneamente esquecidos. Não me sentia
sozinha nem assustada, mas ao contrário, liberada. As palavras de
Rabin-dranath Tagore ecoavam em meu coração: "Liberdade é
tudo o que quero, mas sinto vergonha por desejá-la tanto." Eu
tinha vergonha por ignorar o desejo de meu pai, e essa vergonha
me afastava dele. Sentia-me também culpada por permitir que
minha família enfrentasse as atrocidades da guerra sem mim, e
por conquistar a liberdade individual tão longe da dor de meu
37
povo.
Enquanto isso, minha carreira florescia. Em 1974, com
vinte e dois anos, abri minha própria butique exclusiva na
Madison Avenue, onde vendia roupas desenhadas por mim para
celebridades como Jackie Onassis e Rudolf Nureyev. Um ano
depois eu havia inaugurado uma série de butiques, que chamei de
"Maya" dentro de algumas das mais famosas lojas da América:
Bloo-mingdale's, Saks da Quinta Avenida, I. Magnin, e Neiman
Marcus, entre outras.
Fui uma das primeiras estilistas a criar roupas com
tecidos stretch. Inspirada por meu pai, que criava seus próprios
equipamentos e máquinas, eu consegui que técnicos alterassem a
maquinaria de produção de tecidos para que eu pudesse trabalhar
com Spandex de novas formas, e também com tecidos naturais
como algodão, lã e linho. Logo as revistas de moda estavam
falando a meu respeito — e bem. Mary Reinholtz, editora de
moda da revista Women 's Wear Daily chamou-me de "a
sacerdotisa das roupas stretch" e Sally Kirkland, formadora de
opinião e editora da revista Life, disse que, graças a meus
desenhos, a América finalmente tinha sua própria moda.
Apesar do nome de minha linha de produtos ser simples-
mente meu nome próprio, não poderia ser mais perfeito. A pala-
vra sânscrita "maya", muitas vezes mal traduzida como "ilusão",
também significa a manifestação do deus único na multiplicidade
de formas do universo material, a ignorância que vela a face da
Realidade Única para que vejamos apenas sua aparente
diversidade, e a sabedoria que, em última análise, nos leva a
rasgar o véu e enxergar o Uno por trás da diversidade. Apesar de
haver experimentado o poder de maya em diferentes fases de
minha vida, durante minha carreira de estilista seu véu me en-
volveu completamente.
Meu batom brilhante, minhas roupas da moda e meus
sapatos plataforma me distraíam dos problemas de saúde que
começavam a surgir em meu corpo. Meu espírito se tornava mais
e mais exausto, e eu respondia mantendo-me freneticamente ocu-
pada e reprimindo a ideia de que poderia haver algo de errado em
minha vida. Os longos dias de trabalho muitas vezes alcançavam
a madrugada, seguidos por festas na companhia de outras pessoas
igualmente iludidas e envoltas em véus.
Participei inclusive daquele momento definitivo da
38
cultura popular americana, o festival de Woodstock de 1969.
Imersa na atmosfera caótica, por um instante enxerguei Swami
Satchida-nanda, em seu manto laranja brilhante, enquanto ele
abençoava com uma oração de abertura as milhares de pessoas
reunidas para festejar o rock & roll. Era ou não um sinal da
sincronicida-de divina o fato de que o evento cultural mais
revolucionário da década me enviara uma mensagem originária
de minhas raízes?
Nesta época, meus sonhos eram conturbados. Os
incêndios e o sangue das guerras raciais na Guiana invadiam meu
sono. Vivendo em Nova York, eu ignorava as notícias da Guiana
e me distanciava da família, tentando desesperadamente reescre-
ver meu passado ao criar um presente que literalmente excluía o
passado. Eu deveria saber que não conseguiria cortar as ligações
com as raízes ancestrais nem ignorar minha angústia interior e
meus pés fora do chão. Enquanto a guerra civil arrasava meu
país, o câncer iniciou sua guerra dentro de mim.

A JORNADA DO CÂNCER

Em março de 1975, com vinte e três anos, eu já suspeitava, havia


vários meses, que meu desconforto espiritual estava tomando
uma forma física dentro de meu corpo. Algo estava errado. Meus
sonhos eram cada dia mais conturbados, meus pensamentos
conscientes mais dispersos e irregulares. Uma grande nuvem
cinza havia descido e me envolvido. Minha energia era baixa e
meu apetite insignificante, o que não era normal. Meu abdómen
estava distendido. Marquei uma consulta com o ginecologista.
Na ida para a consulta, atravessei o Jackson Square Park,
em frente ao meu apartamento, como já fizera tantas vezes antes.
Todos os dias eu via um grupo de pombos lá, ciscando o chão
atrás de pão. Eles costumavam me ignorar, mas naquele dia ao
me aproximar deles voaram todos abruptamente para longe de
mim. Seu comportamento estranho me pareceu a confirmação de
que havia alguma doença assustadora dentro de mim. Mais carde
naquele dia, eu novamente me aproximei dos pombos. Mais uma
vez eles fugiram rapidamente.
Quando o ginecologista examinou o tumor em meu
útero, senti uma dor tão intensa que desmaiei na mesa de exames.
39
O diagnóstico, com base na biópsia, revelou um tipo pouco
conhecido de câncer ovariano que havia invadido meu útero, mas
que não era considerado fatal, caso operado imediatamente. Por
um lado, senti-me inexplicavelmente aliviada, porque o
diagnóstico explicava minha exaustão psicológica e espiritual.
Voltei para casa do consultório do médico depois de
receber o diagnóstico, e dormi por quase dois dias. Apesar do
médico ter repetido que o câncer provavelmente não seria fatal,
eu pensei que talvez fosse. Fiquei na cama com as luzes
apagadas, parei de comer e comecei a contemplar a possibilidade
da morte na juventude. Agora percebo que meu medo não era
medo da morte, mas sim das mudanças que sabia que teria de
fazer em minha vida. Eu provavelmente não teria tido a coragem
de mudar de direção se minha doença não fosse tão séria.
Só contei a notícia a três amigos queridos, e mantive o
peso do segredo comigo. Sabia que minha doença, e os passos
que eu teria de dar para ficar boa, seriam ainda mais difíceis se
fossem publicamente observados e comentados por todos. Com-
preendi que estava a ponto de começar a relação mais profunda e
mais importante de minha vida — meu noivado com o câncer.
O câncer se movera dos ovários para o útero, que é a
matriz sagrada da condição feminina. Roubara de mim a
prerrogativa feminina principal, a capacidade de ter filhos. Mas
também me tornara consciente da presença divina em minha
vida, de algo que estava além de minhas rotinas cotidianas de
trabalho e amigos.
Uma manhã, durante meu desespero mais profundo,
quando o brilho iridescente da aurora de Manhattan se infiltrava
pelos espaços entre as persianas, sentei-me de repente na cama. O
quarto estava cheio de luz, uma luz brilhante e pura como a lua
cheia. A Mãe Divina, vestida de branco, apareceu na janela,
envolta em uma luz cristalina. Em casa, na Guiana, eu crescera
cercada por imagens da Mãe Divina em suas diversas manifes-
tações, e havíamos oferecido rituais e orações diários em sua
honra. Agora, reconheci-a assim que apareceu. Seus braços
estavam abertos em um convite, as palmas voltadas para mim.
Senti meu espírito se libertar, meu coração sair da depressão. E
então ela se foi.
Alguns anos mais tarde, quando estudei os textos
védicos, aprendi sobre a natureza infinita e abrangente do espírito
40
da Mãe Divina. Sua energia feminina e seu espírito de cura são
transmitidos a todos, e ela nos outorga o poder de nutrir e prote-
ger. O Devi Mahatmya, o texto clássico do século V de louvação
à Mãe Divina, a descreve como "o poder que é a consciência de
todos os seres".
Na época de minha doença, entretanto, eu sabia apenas
que ela havia me concedido a dádiva da leveza e da serenidade.
Abri as persianas para deixar entrar a luz do dia e ar fresco.
Comecei a comer novamente. Na manhã seguinte, tive a visão de
um pequeno azulão parado no espaço, no mesmo local onde a
Mãe havia aparecido na manhã anterior. O pássaro me convidava
a voar com ele para o céu. Com medo de cair, hesitei, mas o
pássaro me transmitiu a sensação de que era seguro, e que eu
deveria obedecer. Quando me aproximei da janela, o pássaro se
transformou em um vasto campo de luz branca, no qual eu
parecia suspensa. Só então percebi que o azulão era outra
manifestação da Mãe Divina. Este pássaro sempre simbolizara
para mim a felicidade, e era por isso que ela se manifestara
naquela forma para mim.
As duas visitas da Mãe Divina em dois dias seguidos
marcaram um ponto de virada em minha vida. Decidi recuperar
minha vida e buscar ajuda. Aos poucos, comecei a perceber a
presença da Mãe em tudo o que veio depois.
Animada pelas visitas da Mãe, voltei ao médico que havia feito o
diagnóstico. Juntos, planejamos um tratamento que incluía uma
histerectomia total, a ser feita em junho de 1975, seguida por seis
meses de tratamento de radiação localizada. Apesar destas
terapias radicais, as chapas de raios X feitas logo após o final da
radiação revelaram três tumores, um no pulmão e dois em cada
um dos rins, e ainda a probabilidade de outros. A informação
mais perturbadora de todas foi quando o radiologista me disse
que ele suspeitava que a rápida erupção destes três tumores
poderia ter sido estimulada por um deslize do bisturi do cirurgião
durante a histerectomia. Isso poderia ter feito um tumor do
tamanho de uma bola de ténis abrir e derramar células
cancerígenas nos tecidos adjacentes.
Durante o tratamento de radiação, disse ele, estas células
cancerígenas haviam crescido para formar os seis ou sete tumores
adicionais em meus rins, pulmões e outros órgãos vitais. Para
determinar a natureza e o tamanho destes tumores ainda não
41
vistos, em cinco meses eu passei por três cirurgias exploratórias.
A seguir, durante o ano e meio que se seguiu, passei por mais
oito operações, inclusive duas operações de oito horas cada uma,
para retirar os tumores detectados nos raios X, além de outros
encontrados no estômago e intestino delgado.
Em outubro de 1977, eu me encontrava deitada em uma
maca fria de metal esperando pelo que seria minha última cirur-
gia. O cheiro dos anti-sépticos e a cacofonia infindável dos equi-
pamentos de aço quase me fizeram desesperar de novo. Mesmo
afastada de meu pai como estava, tentei imaginar seu rosto,
usando minha memória para acessar sua energia e seu conforto.
Voltando a um tempo em que eu tinha dois anos de idade,
lembrei-me de como papai tomara conta de mim quando tive dif-
teria. Naquela época, eu escutava sua voz forte me chamando, e
me mantendo viva com seu amor.
Enquanto as memórias inundavam minha mente, os aten-
dentes me empurraram de repente sob as luzes ofuscantes. Eu
usava uma ponte dentária parcial não removível, ligada aos
dentes laterais por elos de ouro.
Exatamente quando eu estava para adormecer sob o
efeito do gás, a ponte escorregou. Na fração de segundo antes de
ficar inconsciente pela anestesia, eu a senti obstruindo minha tra-
queia, e não podia dizer ou fazer nada para chamar a atenção da
equipe cirúrgica. Pensei brevemente como seria irónico morrer
durante a cirurgia, não da doença, mas sufocada por uma ponte
dentária.
Pouco tempo depois, acordei flutuando serenamente
sobre as cabeças da equipe cirúrgica com suas roupas verdes. Em
minha posição perto do teto, vi a mim mesma na mesa cirúrgica.
Percebi a ferida no abdómen, a pele repuxada com precisão como
o revestimento de uma pasta de couro. A mão do cirurgião foi
colocada na incisão, enquanto os dois atendentes secavam os
líquidos que saíam. A seguir percebi que havia uma preocupação
geral na sala: meus sinais vitais não estavam bons. A perplexa
equipe de médicos e enfermeiras tentava ansiosamente restaurá-
los para níveis normais.
Eu havia me tornado a testemunha de minha própria
operação, em uma clássica experiência fora do corpo de quase-
morte. Enquanto eu circulava por cima, uma enfermeira abriu
minha boca e descobriu que eu estava sufocando com alguma
42
coisa. Três atendentes rapidamente se aproximaram de meu rosto,
e um deles enfiou a mão em minha garganta para retirar a ponte.
Enquanto meu corpo físico permanecia sobre a mesa, já nas
garras da morte, meu corpo sutil (o veículo no qual reside a alma)
já havia iniciado a ascensão. Só com a remoção da ponte dentária
de minha garganta o corpo sutil foi atraído novamente para o
corpo físico.
Quando recobrei a consciência na gelada atmosfera de
necrotério da sala de recuperação, vi meu oncologista sorrindo
para mim. Fiquei com vergonha de retribuir o sorriso, mas ele
silenciosamente colocou a ponte em minha mão e sussurrou:
"Este será nosso segredo." Minha decisão insensata poderia
facilmente ter me custado a vida, bem como acarretado pro-
blemas infindáveis para todos os que participaram da cirurgia.
Entretanto, ele nunca me repreendeu.
No total, passei por vinte grandes operações cirúrgicas e
diversas rodadas devastadoras de quimioterapia em dois anos e
meio. Em novembro de 1977 meus médicos chegaram à con-
clusão de que o câncer era, de fato, terminal. Enquanto eu per-
manecia em minha cama de hospital depois de mais um raio X
para verificar os efeitos da última sessão de radiação, eles ad-
mitiram terem esgotado suas opções. Foram-me dados, no má-
ximo, dois meses para viver. A recomendação mais forte e mais
compassiva dos médicos era que eu permanecesse em suas mãos
enquanto eles me administravam grandes doses de morfina para
auxiliar com a dor e esperar pelo momento inevitável quando eu
exalaria o último suspiro.

O CONFORTO DA NEVE

Uma hora depois de receber minha sentença de morte, saí do


hospital sem falar com ninguém. Sentia-me sufocada de tristeza,
não tanto pela doença ou pela morte iminente, mas pela forma
deprimente de morrer que me estava sendo proposta. Viajei para
bem longe do hospital, o mais longe que consegui, buscando
refúgio na cabana de esqui de um amigo, em Sugarbush,
Vermont. A ideia de morrer com o espírito drogado me enchia de
horror. O oferecimento da morfina me trouxe de volta à rea-
lidade. Eu queria viver o tempo suficiente para descobrir meu
43
verdadeiro espírito. E estava determinada a me encontrar com o
criador com toda a dignidade que fosse capaz de reunir, por isso
me preparei para passar meus últimos dias sozinha, sem
intervenções médicas, e com um pedido desesperado aos deuses e
deusas para que libertassem minha alma.
Estávamos em dezembro, por isso mantive o fogo quei-
mando dia e noite na enorme lareira da cabana, com a lenha
estocada por meu anfitrião. Jejuei, chorei e coloquei os segredos
mais profundos de meu coração em um diário. Durante sonhos
conturbados e visões, vi a atormentada travessia de meu povo
para o Novo Mundo e a profunda tristeza sem palavras que nós,
os descendentes, ainda carregamos conosco. Eu havia tentado
fugir desta mágoa como se ela não fosse minha, mas o câncer a
recriara em minha vida. Esta dor não resolvida, eu entendia
agora, fora herdada por mim como energia bloqueada dentro de
meus tecidos vitais, e era capaz de produzir doença e sofrimento
emocional. Se eu tivesse enfrentado a dor mais cedo, talvez a
energia tivesse voltado a circular desimpedida dentro de mim, e o
autoconhecimento resultante teria me fortalecido em vez de me
fazer mal. Entretanto, como eu a ignorei e reprimi, ela ficou presa
dentro de meu corpo, naquela parte do corpo que liga cada
geração com a próxima. As células reprodutoras de todas as
pessoas são elos diretos com seus antepassados. Ao cortar minha
ligação com a família, eu fizera com que minha energia
regenerativa descarrilasse, ficando estagnada e doente. Graças a
Deus, a energia da Mãe Divina me fez procurar ajuda e me guiou
durante as cirurgias.
O amor e a sabedoria de meu pai também vieram em
meu auxílio. Uma noite, enquanto eu olhava fixamente para as
labaredas, o rosto de meu pai surgiu de repente dentro das
chamas. Olhando pela janela, eu o vi lá fora, vestido de branco.
Será que ele estava realmente lá ou eu estava alucinando e
criando imagens de sua presença? Não tinha certeza, e permaneci
imóvel em meu lugar. Um instante mais tarde, senti-me
dissolvendo em leveza. Subitamente fui confortada, e não me
senti mais tão sozinha. Algumas noites mais tarde, ele apareceu
de novo. Eu solucei enquanto contava a ele sobre minha solidão e
angústia, pedindo seu perdão por haver abandonado a família e
minhas raízes espirituais. Ele me falou com suavidade e firmeza,
lembrando-me de que se eu deliberadamente bloqueasse a força
44
vital, impedindo-a de fluir, em função de haver escolhido morrer,
minha próxima vida seria ainda mais difícil. Ele mostrou como
eu havia permitido que a dor do presente bloqueasse a lembrança
de minha conexão com o divino.
Depois ele leu para mim trechos da Bhagavad Gita que
falavam sobre a verdadeira natureza do carma e do darma.
Carma, explicou ele, tem consequências tanto negativas quanto
positivas para nós. A lei universal da causa e efeito nos impele a
inúmeros renascimentos, para que possamos reequilibrar e
desfazer os resultados negativos de ações anteriores.
No sistema tradicional hindu de crenças, todas as nossas
ações — inclusive palavras, pensamentos e atos — são sementes
que acabarão dando frutos, nesta vida ou na próxima. Podemos
modificar os resultados de nosso carma por meio de ações cons-
cientes no presente, mas não conseguiremos fazer isso se igno-
rarmos nossa responsabilidade para com o passado ancestral. Os
resultados de todas as ações, entretanto, estão sempre de acordo
com a lei divina, e devem ser considerados como bênçãos. Não
devemos nos apegar aos frutos de nossas ações nem às nossas
identidades individuais, uma vez que nada disso se deve
realmente ao nosso esforço, esperteza ou ancestralidade, mas se
origina de interações com as energias universais e com o divino.
Como disse Gandhi: "É preciso renunciar ao possuidor."
Ao reconhecer nossa ligação fundamental com o divino,
reconhecemos também as verdades ancestrais que dizem que
devemos viver de acordo com o papel ao qual estamos destinados
— nosso darma. Quando fugimos desta responsabilidade, diz a
Gita, plantamos sementes cármicas desafortunadas que
finalmente darão frutos, nesta vida ou em vidas futuras.
Os ensinamentos de meu pai atingiram o âmago de meu ser. Suas
palavras soavam como um toque de clarim me despertando para a
verdadeira identidade. Ele me mostrou que eu estivera me
matando espiritualmente, cortando a ligação com a energia
nutriente de meu povo ao me alienar de minhas raízes. Além
disso, eu havia fugido de meus deveres espirituais e naturais ao
aceitar a morte, e era preciso mudar minha mente e meu modo de
vida aqui e agora. Antes da aparição ir embora, ele me disse que
meu corpo ainda tinha prana suficiente, ou força vital, para
manter a vida. Isso foi um choque, porque eu havia aceito
inteiramente o prognóstico dos médicos de que minha vida
45
chegara ao fim.
Na esperança de recriar minha conexão com o divino,
rezei intensamente, implorando para recuperar a fé em mim
mesma, independente de poder ou não recuperar minha vida. A fé
em nós mesmos representa invariavelmente a fé no divino. Pedi
perdão por todos os erros que cometera na vida, reconheci mi-
nhas inseguranças e minha falta de auto-estima, que me levaram
a viver atrás de uma máscara, desonrando cultura e família.
Chorei durante semanas depois da visita de meu pai, até que
todos os medos, mágoas, raivas, feridas, humilhações, e culpa
foram dissipados do meu espírito. Depois de quatro meses traba-
lhando para reconciliar estes conflitos interiores, a dor emocional
e física começou a diminuir.
Quando o pior do inverno passou, fui atraída para fora e
para além de minha dor. O sol alto no céu brilhante iluminava o
gelo nas árvores. Eu me senti permeada pelas cores do arco íris.
A nuvem escura que me rodeava se levantou, e uma paz profunda
despontou dentro de mim. Maravilhei-me de haver conseguido
tanta tranquilidade, e me senti como se estivesse suspensa no ar,
flutuando como uma fita ao sabor da brisa, em um céu brilhante.
Primeiro, achei que estes sentimentos fossem a paz que a Mãe
Divina nos dá imediatamente antes da morte. Uma tarde, quando
passeava do lado de fora, ao ouvir o estalar dos galhos mortos na
neve derretida pensei que este som revigorante era exatamente o
que meu corpo precisava. (Mais tarde, usei o mesmo som para
mover energias de pacientes letárgicos ou paralisados.) Foi
naquele dia que acordei, o dia em que voltei a viver. Ao esperar
pela morte, encontrei vida nova. Não tinha mais dúvidas de que o
câncer começava a regredir.
Dois meses mais tarde, retornei a meu apartamento em
Manhattan. Logo após, visitei minha amiga e professora Stella
Adler. Passamos vários dias juntas, durante os quais descrevi
minhas experiências na cabana de inverno. Apesar de estar redu-
zida a pele e ossos, em parte pela doença e em parte pelos jejuns,
ela concordou que eu parecia haver adquirido vida nova.
Eu tinha vinte e oito anos e pesava apenas quarenta
quilos, com gordura e músculo apenas suficientes para me
carregarem no ritmo frenético da vida em Manhattan. Minhas
mãos e cabeça tremiam com movimentos involuntários, e um frio
gelado penetrava em minhas veias e meus membros. As
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terminações dos nervos estavam em frangalhos. Sentia-me
exposta e vulnerável, tremendo a qualquer barulho mais alto.
Tinha lapsos frequentes de memória recente, e meu sono era
perturbado. Seria muito difícil manter a paz que havia descoberto
em Vermont, mas a sensação de cura permanecia. Minha missão,
portanto, era reconstruir minha vida em torno da presença
curadora da Mãe Divina. Ao iniciar minha viagem de volta à
saúde, eu não tinha ideia de aonde ela me levaria. Mas estava
certa de que se permanecesse na intenção de abrir meu coração
para a energia curadora da Mãe, eu descobriria o caminho que
Ela havia traçado para mim.

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CAPÍTULO 2
OS DIVERSOS ROSTOS DA MÃE DIVINA

Oh Aditi, Mãe poderosa dos


governantes justos, rainha daqueles
que guardam a ordem cósmica, grande
protetora cujo alcance profundo não
sofre a limitação do tempo, guia
graciosa, a Você recorremos.
- Yajur Veda (21.5)

Quando voltei a Nova York, a Mãe Divina me concedeu uma


vida mais suave do que aquela que eu havia abandonado, aju-
dando-me a cada volta do caminho. Por exemplo, poucos meses
após retomar minha vida na rua Horatio, ocorreu a celebração
védica anual da Mãe, a Navaratri, com suas cerimónias de nove
dias de rituais de fogo, música, canções, orações e meditações.
Um grupo de aproximadamente cem devotos se reuniu no Centro
de Ioga Integral, em frente ao meu apartamento, o que facilitou
que meu corpo enfraquecido atravessasse a rua. Isso também
representou um evento de sincronicidade em minha alma. A
Navaratri honra a Mãe em suas três formas principais: como
Lakshmi, a criadora que concede a prosperidade; Saraswati,
aquela que outorga sabedoria e criatividade; e Durga ou Kali, a
governante que defende e preserva as leis cósmicas e a reverência
universal.
Você pode se envolver com a energia do divino na forma
que lhe for mais familiar, mas eu convido todos a conhecerem
melhor a Mãe Divina, de forma a entender melhor o poder do
feminino e o potencial de cura disponível em nossas vidas.
Como a própria Mãe diz em um texto medieval chamado
Shakta Advaita: "Quem e o que eu realmente sou — uma cons-
ciência cósmica tão vasta que posso manter sem esforço trilhões
de universos na palma de minha mão — está além da capacidade
da mente humana de entender. Portanto, imagine-me da forma
que gostar mais, e prometo que virei até você nesta forma."
Depois dos festejos da Navaratri, sonhei com a Mãe na forma de
Kali, que significa a escuridão: o vazio escuro do útero cósmico.
Kali é honrada na índia na forma da Mãe de onde o universo
48
emergiu e a quem retornará. Para seus devotos, ela é a grande
Mãe que os nutre e toma conta deles. Mas ela é também a força
que insiste em refazer os pensamentos e as ações que não estão
em harmonia com suas leis e ritmos, e é aquela que dissolve o
universo na hora designada.
Quando o delicado equilíbrio da força vital é perturbado,
e um dos ecossistemas sai de alinhamento com o resto, quando as
criaturas se voltam umas contra as outras, a Mãe toma a forma de
Kali, a guerreira feroz e poderosa que defende a ordem individual
e universal. A canção "Devi Stotram" louva o poder de Kali:

Reverência à Durga (um dos nomes de Kali), que tem


três olhos, cujo brilho é semelhante ao relâmpago, que está
sentada no leão (o rei dos animais), que é feroz e servida
por donzelas com armas e clavas. Reverência à Durga de
oito braços, que traz em suas mãos o disco, a concha, o
tridente, a clava, a espada, o arco com a corda retesada, e o
lótus, e em cuja oitava mão ostenta a mudra da paz.

A energia protetora da guerreira é a parte primária do


instinto maternal de todas as mulheres. Muitas histórias foram
contadas sobre mulheres que executam façanhas extraordinárias
de força física para salvar seus filhos do perigo. Esta força femi-
nina encontra-se em todas as fêmeas de todas as espécies. Há
alguns anos, viajando pela índia, por exemplo, eu testemunhei
uma mãe elefanta destruir a locomotiva de um trem depois que
este atropelou e matou seu filhote. O povo de minha mãe veio de
Chennai, no sul da índia, onde a Deusa Guerreira tem muitos
devotos. Eles atribuem a ela sua força e bem-estar. Minha mãe
continua até hoje a seguir as práticas espirituais que buscam a
proteção de Kali — e é fácil ver como esta graça chegou até mim
para me proteger. Uma vez invocada, a proteção de Kali
permanece ativa por muitas gerações.

O ESPÍRITO DE PROTEÇÃO

Na forma de Kali, a Mãe reformula seu universo, criando fenó-


menos naturais como furacões, tornados e terremotos. Ela tam-
bém é a origem de perturbações emocionais como doenças,

49
decepções e fracassos, que tendem a nos impedir de nos mo-
vermos, e de caminharmos para a frente. Estas forças negativas e
destrutivas, quer se manifestem como turbulência externa ou
interna, podem ser percebidas como oportunidades espirituais
para promover mudanças construtivas em nossa vida. Elas assi-
nalam a época de fazermos uma pausa, examinarmos a nós
mesmos e nossas motivações, e nos reorientarmos. Todos temos
que lutar para entender o sentido dos chamados desastres, que
são, apesar de difíceis de reconhecer de imediato, expressões do
grande amor e do espírito nutriente da Mãe. Quando nos
afastamos do caminho divino, a Mãe responde com um amor
duro, com sua força e seus atos. Da mesma forma que nos envia
situações e desastres que nos apavoram, ela também nos dá
coragem para vencer nossos medos.
Há alguns anos, recebi um telefonema frenético de
Gloria, uma aluna de origem inglesa que estava retornando aos
Estados Unidos depois de várias semanas na Inglaterra. Apesar
de ter um visto válido para entrar nos Estados Unidos, as
autoridades de imigração do aeroporto de Heathrow, a pequena
distância de Londres, haviam se recusado a permitir que ela
entrasse no avião. Desesperada para obter ajuda, ela me chamou
da sala de imigração do aeroporto, perguntando o que fazer.
"Existe uma razão para isso acontecer", disse eu a ela. "O
que você tem que fazer ainda na Inglaterra?"
Gloria começou a chorar e por cerca de um minuto tudo
o que ouvi foram seus soluços. Finalmente, ela conseguiu se acal-
mar o suficiente para me dizer que havia perdido contato com sua
família há sete anos. Durante a infância de Gloria seu pai era um
alcoólatra, e apesar de estar sóbrio agora, ela ainda trazia dentro
de si as cicatrizes psíquicas de suas fúrias durante as bebedeiras.
Ela prometera a si mesma que nesta viagem procuraria a família,
mas os dias passaram e sua intenção se enfraqueceu, e ela nunca
chegara a telefonar para eles.
A solução me parecia óbvia. "A Mãe Divina não vai
deixar você sair da Inglaterra enquanto não restabelecer contato
com a família", disse eu. "Acho que você não tem escolha —
volte para Londres e telefone para eles."
Relutantemente, Gloria concordou em seguir minha
sugestão. Da próxima vez que deu notícias, estava de volta a San
Francisco e sua voz parecia leve e cheia de entusiasmo. "Não
50
apenas telefonei para eles, mas cheguei a passar uns dias com
eles", disse ela. "Ficaram tão contentes de me ver, e consegui
trabalhar diversos sentimentos negativos do passado. Foi óti-mo
passar uns dias com meu pai sem ter que me preocupar se ele ia
ter um acesso de fúria. Você deve ter razão sobre a Mãe Divina,
porque quando apareci em Heathrow uma semana depois, não
houve nenhum problema com a imigração."
Eu invoquei a Mãe Kali para me ajudar a vencer a dor da
convalescença e os obstáculos de minha vida espiritual. Há vinte
anos, procurei um astrólogo védico que me deu um mantra de
Kali, que uso até hoje para convidar a energia curadora da Mãe
Divina a fazer parte de minha vida. A Mãe Kali já me ajudou
diversas vezes a vencer diferentes medos e limitações.
Para utilizar este poder feminino, imagine-se como uma
guerreira feminina, e passe alguns minutos todos os dias invo-
cando a presença de Kali em sua vida. Encontre um lugar calmo,
onde você sabe que não será interrompida, e repita o mantra de
Kali quantas vezes achar que é apropriado (uma jovem aluna
minha, que é corretora de imóveis, canta o mantra de Kali ao
fazer o percurso de quarenta minutos entre sua casa e o escritório.
Ela diz que o mantra a prepara para lidar com as diversas crises
que inevitavelmente ocorrem no trabalho).

OM SRI KALYAI NAMAHA

OM é o som cósmico, o nome místico de Deus. sri invoca a Mãe


Divina, em todos os seus aspectos, kalyai invoca a Mãe Divina
em seu aspecto de destruidora das forças negativas e removedora
de obstáculos. namaha significa "a este Nome Divino", e é uma
forma de fechamento dos mantras védicos.

A Prática: A Contemplação da Deusa Guerreira


Quando você precisar de orientação espiritual ou de coragem
para lidar com uma situação especialmente difícil, você pode
visualizar os cinco diferentes aspectos de Kali, cada um dos quais
nos ensina uma importante lição de vida (ver box a seguir).

51
Depois da visualização, recite o mantra de Durga para selar as
lições da Deusa Guerreira e a proteção dela dentro de você.
Talvez queira arranjar um póster da Guerreira Kali e pendurá-lo
em um lugar onde possa contemplá-lo em silêncio, olhando para
seu semblante marcante. Ao meditar, invoque dentro de si os
cinco aspectos da deusa, de forma a remover as barreiras de seu
caminho físico, emocional e es-pi ri tual.

OS CINCO ASPECTOS DE KALI


1. Eu sou a Beleza - a protetora apaixonada da vida.
* Kali é jovem, linda e tem a pele escura. Seu cabelo é longo,
vermelho, e repleto de vitalidade.
2. Eu sou a Dançarina - aquela que confere a criatividade e
restaura a equanimidade.
* Kali dança sobre Shiva e Shakti, o casal cósmico cuja união faz
emergir a criação.
3. Eu sou a Sabedoria - a ausência de paixão que corta a
ignorância.
* Em suas mãos, Kali traz a espada do conhecimento, que corta a
ignorância; tesouras, que cortam o apego; uma cabeça decepada,
simbol izando o abandono da mente racional e do ego; e o lótus,
que representa a realização da vida espiri tual.
4. Eu sou Shakti - a energia primordial da criação.
* A cobra enrolada em torno do corpo de Kali mostra os poderes
transformadores de Shakti.
5. Eu sou o Renascimento - a memória cósmica de tudo o que
existe.
* Kali usa uma guirlanda feita de cabeças em volta do pescoço,
enfiadas no cordão umbilical da alma, representando a sabedoria
acumulada e a lembrança coletiva da existência humana.

A Prática: Recitação do mantra de Durga


O Mantra de Durga é uma forma de selar a proteção e a energia
curadora da Grande Guerreira dentro de você. Todos os dias,
passe alguns minutos recitando o mantra de Durga. (0 número
dezoito e seus múltiplos têm um forte significado na numerologia
védica. 0 número um representa o processo de evolução em
direção ã não-dualidade - o todo infinito. 0 número oito, maya,

52
representa a Manifestação Divina através da qual a alma evolui.
Portanto, seria útil repetir o mantra pelo menos dezoito vezes.)

OM SRI DURGAYAI NAMAHA

durgayai invoca a Mãe Divina em seu aspecto de destruidora das


forças negativas e removedora dos obstáculos nas áreas maternal,
material e espiritual.

AS CURVAS DE CURA E A CONVALESCENÇA


Depois de voltar a Nova York, tratei de fortalecer meu espírito
com a recitação repetida do mantra e retornei ao mundo da moda
para pagar minhas contas. Ao mesmo tempo, comecei a estudar
os textos tântricos clássicos, nos quais descobri diversos
ensinamentos maravilhosos sobre a Mãe Divina. Isso foi um
grande conforto para mim, não apenas devido à intensa dor física
do câncer e à alienação de minha família e minha herança
cultural, mas também porque a histerectomia causara grande
angústia e tristeza. Sendo uma mulher jovem, eu de alguma
forma esperava vir a ser mãe algum dia, e a retirada do útero foi
vivida como uma grande perda. Foi só depois que a Mãe entrou
em minha vida que o vazio que substituíra meu útero foi
preenchido por Sua luz. Um verso da Devi Upanishad descreve
bem meus sentimentos sobre Ela: "Eu saúdo a Você, Mãe, aquela
que dispersa o medo, repele as grandes dificuldades e é a
essência da compaixão."
A crescente consciência da presença da Mãe em minha
vida me levou a diversas passagens de fé. No dia de Ano Novo
de 1979 conheci Sundari, uma linda dançarina clássica indiana,
que me ensinou a dança clássica de Devi. (Devi significa "ser que
brilha", referindo-se à Mãe Divina em seus diversos aspectos.)
Logo depois, senti a força vital, ou prana, movendo-se em meu
abdómen vazio. Durante o ano que se seguiu, estudando dança
sob a orientação compassiva de Sundari, iniciei minha cura.
Dançar ajudou-me a mover a respiração harmoniosamente ao
longo da coluna vertebral e pelo corpo todo, fortalecendo a força
vital. Dançar também tinha o efeito de me aproximar da presença

53
da Mãe. Entendi que cada gesto que fazemos pode fluir em
harmonia com as energias da Mãe Divina, invocando-as, se
tivermos consciência da sua imensa presença em nossas vidas.
Durante o período inicial de minha recuperação, também busquei
conforto na leitura da "Canção do Senhor", a Bhagavad Gita,
composta há 2.500 anos. A Gita abriu outros caminhos para mim
e me fez descobrir as gerações mais recentes de místicos
indianos, como os Alvars e os Bauls, que compuseram o
Bhagavata-Purana e a Gita-Govinda, obras que falam sobre a
redenção pelo amor e pela devoção a Deus. No Bhagavata-
Purana o Senhor é tratado como se fosse um amante: "Da mesma
forma que o fogo alto reduz a madeira a cinzas, a devoção a Mim
remove todos os pecados." A Gita-Govinda usa metáforas
sensuais para demonstrar a paixão física que um devoto
experimenta quando ele ou ela contemplam o Divino: "Ele me
deitou em uma cama de cachoeiras. Por um longo tempo, des-
cansou em meu peito, enquanto eu o acariciava e beijava.
Abraçando-me, ele bebeu de meu lábio inferior."
Tendo a Mãe como guia, comecei a experimentar uma
profunda paixão, um senso de propósito, e a rezar muito.
Comecei também a me religar à minha família e sua reverência
pela Mãe Natureza, pelas práticas tradicionais de danças
espirituais, poesia, canções, posturas de ioga e preparação de
alimentos naturais. Mediante estes atos de devoção para com a
Mãe, a debilidade de meu corpo e de meu espírito começaram a
sarar. Por meio desta prática inicial de sadhana, comecei a
entender que nunca mais estaria sozinha, porque agora a Mãe
Primordial estava comigo.
A medida que minha fé na Mãe crescia, comecei a
entender que era preciso reconhecer meus pontos vulneráveis —
aqueles momentos quando eu me sentia mais ferida e indefesa do
que nunca. Aprendi que eu podia me voltar para a Mãe para que
ela me ajudasse a obter nova compreensão e força — em resumo,
era preciso permitir que um renascimento ocorresse. Esse foi meu
primeiro pressentimento do real significado de minha
feminilidade — a energia que os mestres védicos chamam shakti,
a energia feminina primordial dentro de todos nós, sempre capaz
de emergir para nutrir e curar todas as coisas.
De acordo com os videntes védicos, a feminilidade da
mulher não pode existir separada de sua shakti — a energia una
54
de onde emergem todas as coisas. Shakti é o poder da Mãe por
trás da criação, englobando os mistérios sagrados da criação,
regeneração e destruição — uma metáfora para a feminilidade.
No início da criação, conforme descrito no Shakta Advaita, a
Mãe Divina tomou forma e colocou em andamento a roda da
manifestação. Ela outorgou seu espírito de cura ao útero e às
energias regeneradoras de todas as fêmeas de todas as espécies
do universo. Nós recebemos a energia shakti, transmitida pela
linhagem feminina, como parte de nossa memória ancestral, pelo
útero de nossa mãe. As sagradas escrituras do Tantra nos
informam que esta energia primordial permanece em sua forma
potencial nos homens, e está ativa nas mulheres. Para crescer
espiritualmente, para evoluir em nosso nível de consciência, os
dois sexos precisam reverenciar e refinar a shakti dentro deles.
A Mãe Divina concedeu dois dons a todas as mulheres: o
poder de nutrir e o poder de proteger. A shakti é mais do que
apenas a energia de reprodução. E o espírito que protege o que é
sagrado, que coleta os alimentos, que reverencia o divino, que dá
à luz as crianças, as inspirações, as ideias e a arte. O Atharva
Veda fala do espírito que nutre: "A Deusa cujo nome é 'Nutrição'
habita em sua própria ordem cósmica. E por causa dela que as
árvores são verdes, e verdes suas guirlandas de flores."
Como Aditi, a Mãe alimenta os deuses com seu leite e
lhes ensina os segredos de cura contidos na memória celular das
plantas, ervas e minerais. No ayurveda, as ervas representam a
Deusa. Desde o início dos tempos, as curas que ajudam e dão
suporte à vida sempre vieram do lado feminino. Ela faz voltar ao
corpo a alegria, a saúde e a sabedoria, por meio de suas ervas,
chás, unguentos, alimentos e rituais. Todas as mulheres levam a
nutrição de Aditi em sua memória maternal, sua intuição e seu
espírito.
Você pode iniciar o processo de nutrir a si mesma,
nutrindo também indiretamente seu marido, filhos e todas as
outras cria turas ao invocar o poder da shakti. Vandana Shiva
conta uma história fascinante que ilustra esta verdade em Non-
violence in Animais. Uma mulher na índia protestou contra a
abertura de uma pedreira, e continuou a protestar mesmo depois
de apanhar e de ser apedrejada. Perguntaram a ela, "O que lhe dá
toda esta shaktiT Ela respondeu: "Está vendo o capim crescendo?
Nós cortamos este capim todos os anos, e ele cresce novamente.
55
O poder do capim é o mesmo poder que está em mim. Está vendo
as árvores crescendo? Elas têm duzentos anos. Todos os anos
cortamos estas árvores para alimentar o gado e manter vivos
nossos filhos, para que eles possam ter leite para beber, e as
árvores continuam crescendo e é esta shakti que está em mim.
Está vendo o riacho de água limpa? Esta água me dá vida e
também me dá shakti."
O primeiro passo para invocar a sua shakti é admitir que
você já a possui. Reconheça-a dentro de si, em seus sentimentos
e suas ações. Preste atenção à Mãe. Comece a perceber sua pre-
sença em tudo o que a cerca. Uma boa forma de iniciar é encon-
trar uma imagem ou aspecto da Mãe que a atraia — Aditi, Gaia,
Istar, Afrodite, a Virgem Maria, Avilokiteshvara, ou qualquer
outra forma da Mãe Divina — e mantenha-a perto de seu cora-
ção. Você pode vê-la em seus sonhos ou pode virar uma esquina
e encontrá-la no gesto de bondade de um estranho, em um ensi-
namento especial de um professor, ou no parceiro de seus sonhos.
Sua imagem pode aparecer onde você menos espera, para
proteger, confortar ou redirecionar você a novos níveis de rea-
lização.
Ontem apanhei um galho caído em meu jardim e vi,
naturalmente gravado no padrão da madeira, um claro retrato da
deusa Saraswati, sentada com sua vina, um antigo instrumento de
cordas, no colo. Algumas semanas atrás, eu estava mergulhada
nas fontes quentes de água sulfurosa perto de minha casa nas
montanhas Smoky. Inclinei-me para trás, entrei em silêncio
profundo, e olhei para o claro céu de outono. De repente, uma
borboleta pousou em meu rosto. Eu podia senti-la mordiscando,
quase imperceptivelmente, as gotas de água em meu rosto. Ela
ficou ali por um bom tempo antes de voar para longe. A borbo-
leta era um sinal da Mãe, um lembrete e um reconhecimento de
que tudo estava em paz em minha vida e dentro de mim.
Devemos reconhecer a Mãe em todos os seus aspectos.
Para os sábios, os rios que fluem nos Himalaias são a divindade
de Dhari Devi, a "Deusa da Corrente". Os picos himalaios como
o Badrinath e o Kadarnath são também adorados como manifes-
tações Dela. Da próxima vez que estiver em um campo aberto,
perceba como sua mente muda quando você observa o vento
soprando no capim. Quando está em uma tempestade chuvosa,
ouça seu coração bater juntamente com a pulsação das gotas e
56
com o ritmo da água. Esse alinhamento com as forças da natureza
vem de nosso shakti-prana, a respiração da Mãe movendo-se
dentro de nós.
Uma forma poderosa de cultivar o shakti-prana da Mãe
Divina é praticar a postura da deusa, a shakti asana.

A Prática: A Postura da Deusa

Shakti asana, a
postura da Deusa.
Com a cabeça apontada para o leste, deite de costas e es-
tique as pernas, abrindo-as na largura dos quadris. Deixe os
braços esticados ao longo do corpo, com as palmas voltadas para
cima. Junte as palmas dos pés de forma que os joelhos caiam
naturalmente de cada lado, aumentando o alongamento sem
forçar demais. Sinta o alongamento da bacia, e visualize a
respiração entrando por sua vagina. Deixe que esta energia flua
até seu abdómen. A seguir solte lentamente a energia,
expulsando-a pela vagina. Com cada inspiração, imagine a shakti
na forma de uma luz branca que inunda seu abdómen. Ex-
perimente o esplendor da shakti dentro de você. Mantenha a
postura por aproximadamente 5 minutos, a menos que sinta al-
gum desconforto. Gradualmente, aumente o tempo de pratica
desta postura, ficando cada vez mais confortável nela.
É importante lembrar que o shakti-prana não é exclusivamente
para mulheres, mas que pode ser experimentado por homens,
crianças, e por todas as formas de vida.

57
Seu corpo é o templo de seu espírito. Ele se compõe do
corpo sutil e do corpo físico. O corpo sutil é uma rede complexa
de energia dentro de nós, constituída por respiração, memória,
mente, intuição e consciência. Nossa alegria e bem-estar não
dependem do corpo físico, mas de aprender mais sobre o espírito
dentro de nós e da força vital maior do universo. Este conheci-
mento sobre o espírito nos ajuda a cuidar melhor de nossos
corpos e de nós mesmos de forma geral. Depois de meu câncer,
ao estudar as energias sutis, entendi que nunca poderia retornar a
uma vida baseada apenas no mundo material. Apesar de ainda
passar muitas horas por dia desenhando roupas, já não me
identificava com minha carreira. Agora o trabalho havia se
tornado uma forma de pagar as contas.

CRIANDO U M ESPAÇO SAGRADO

À medida que o espaço interior em meu corpo e minha mente


foram clareando, entendi que precisava resgatar o espaço físico
existente dentro de mim e ao meu redor. Um ambiente sereno
promove uma mente serena e ajuda o processo de cura. Como
fomos criados a partir do espaço primordial, recriar este espaço
ao nosso redor, em casa e no trabalho, é indispensável para resga-
tar a vastidão de nosso espírito, e a liberdade da alma. O Rig
Veda diz: "A Vastidão Primordial é o céu; a Vastidão Primordial
é o espaço... A Vastidão Primordial é tudo o que já nasceu e
nascerá."
Depois de promover uma boa limpeza em meu
apartamento, eu tinha certeza de que conseguiria respirar melhor
e obter um maior equilíbrio emocional e mental. Comecei
limpando os arquivos. Fiz um fogo cerimonial na lareira e
queimei a maior parte de minha correspondência e dos antigos
diários e poesias, todos carregados da tristeza do câncer. Depois
disto, desfiz-me de um grande número de objetos que se haviam
tornado irrelevantes. O processo de inspecionar meus pertences e
selecionar o que ficaria e o que iria embora também representou
uma oportunidade para rever o passado, o que ajudou em minha
recuperação. Antigos fardos psíquicos começaram a ficar mais
leves. Declarando as intenções de meu coração, fiz um voto
58
silencioso de nunca mais cortar meus vínculos com os ritmos da
Mãe.
A seguir fiz um altar, colocando estátuas de deuses e
deusas indianos em minha prateleira de oração, como um
lembrete diário dos meus deveres devocionais. Todos os dias eu
oferecia flores frescas em uma tigela e queimava incenso de
sândalo para refletir a pureza que buscava. Eu também rezava
pedindo clareza, para minha família e meus mestres, e para todos
os que me ajudaram na batalha contra o câncer. Rezava por grati-
dão, e em reconhecimento ao espírito divino que habitava dentro
de mim. Meu espírito estava começando a ficar mais forte, e eu já
entrevia uma relativa paz.
A seguir comecei a limpar a cozinha, dando de presente
os aparelhos eletrodomésticos que não eram mais compatíveis
com minha intenção de preparar e ingerir alimentos saudáveis e
nutritivos. As lembranças da cozinha simples de minha casa na
Guiana inundavam minha mente, mas como não podia converter
em pau a pique as paredes do apartamento de Nova York, nem
trocar o fogão a gás pelo velho fogão a lenha, decidi comprar
tigelas de barro e madeira, cestas de vime, uma peneira, um
almofariz grande e um pilão. Até onde podia, tentei copiar o
ambiente de sadhana da cozinha da minha infância. Da mesma
forma que meu povo havia se voltado para as sadhanas ime-
moriais da Mãe Natureza para curar seus espíritos alquebrados no
Novo Mundo, eu também encontrei conforto e cura seguindo a
sabedoria das estações nos alimentos sagrados fornecidos pela
natureza.
A seguir, voltei a atenção para o quarto de dormir. Não
podia viver com as memórias que haviam permeado aquela cama
durante os meses que passara soluçando ali quando doente. Pedi
a um carpinteiro para fazer uma moldura de madeira para uma
nova cama, bem baixa, porque os videntes antigos nos dizem que
devemos tocar a terra várias vezes ao dia. Isso nos permite
comungar com as energias magnéticas da terra, o que por seu
lado ajuda a revitalizar a energia de nossos tecidos vitais e de
nossas memórias. Minha amiga Aveline Kushi me deu de
presente um futon trazido por ela do Japão.
Finalmente, reorganizei meus armários, convertendo um dos
closets em um escritório onde podia tratar da correspondência,
pagar as contas e lidar com os detalhes do cotidiano. Também
59
limpei a área ao redor da cama e criei um canto para ler e es-
crever, separado do resto do quarto por painéis de madeira e
papel de arroz.
Mais tarde, eu estudaria arquitetura védica, uma matéria na
qual as estruturas são posicionadas especificamente para se
manterem alinhadas com as energias astrológicas da terra. Atra-
vés dos anos, continuei a refinar os ritmos de minha vida e de
minha casa. Agora minha cama está totalmente fora da linha de
entrada da porta do quarto, posicionada de tal forma que minha
cabeça aponta para o sul, para poder absorver as energias da lua e
as poderosas energias de Shiva, que dizem sentar-se ao sul. (Os
videntes védicos acreditam que virar a cabeça da cama para o
leste também é auspicioso, porque assim renovamos as energias
solares do corpo, vindas de Surya, o sol.)
Fiquei surpresa com a sensação de alegria e leveza surgida
ao esvaziar os armários de roupas, acessórios e guardados. Pa-
recia haver me livrado de grandes quantidades de peso morto.
Mais tarde entendi que guardar objetos e papéis, e depois esque-
cer o que foi guardado, é uma metáfora de nossas memórias
ancestrais. Quando nossos armários estão repletos, já não sabe-
mos mais o que há lá dentro. Quando o espaço está organizado e
em uso constante, sabemos do que dispomos para trabalhar.

Depois de haver alterado e redesenhado minha casa, notei


que a clareza mental aumentara e que eu tinha mais tempo para
minhas práticas. Comecei a fazer ioga no Centro Integral de Ioga.
Novos amigos me indicaram o Kushi Institute em Boston, onde
passei a ir por duas semanas em cada mês para estudar os
princípios básicos da cura oriental, baseada principalmente no
zen budismo. Fui gradualmente adaptando o que aprendia à
minha própria tradição védica.
Recordando a beleza dos campos férteis e dos jardins de
meu avô na Guiana, aprendi agricultura orgânica, com suas
formas de plantio, colheita e preparação de alimentos. Cerquei-
me de sons harmoniosos em passeios pelos parques de Boston e
Nova York, e também de uma grande coleção de música. O
resultado foi que todo o meu ser começou a ressonar com um
vigor e uma alegria renovados.
À medida que fui me livrando das antigas posses e identida-
de profissional, minha família e suas tradições foram ocupando
60
mais lugar em minha vida. Localizei e visitei meus pais e irmãos,
que haviam imigrado havia quatro anos para o Canadá. Doze
anos haviam se passado desde a última vez que os vira, mas eles
me abraçaram com carinho, sem reprimendas nem palavras
duras. O encontro com meu pai foi especialmente caloroso e
emocional. Choramos por vários dias e festejamos por outros
tantos. Apesar de havermos sido violentamente arrancados de
dois países, todos havíamos reconstruído nossas vidas; eu me
recuperara da luta contra o câncer dos últimos cinco anos, e eles
da guerra civil que destruiu a Guiana.
Depois de ouvir as notícias sobre as atividades de todos
desde que nos víramos pela última vez, voltei a Nova York re-
novada pelo amor deles. Ao reconhecer e abraçar minha família,
finalmente consegui a cura no mais recôndito de minha alma,
podendo finalmente começar a ser a pessoa que eu estava desti-
nada a ser.
No dia em que retornei a Greenwich Village, andei até o
Jackson Square Park. Quando me aproximei do meu banco
favorito, uma nuvem de pombos aterrissou em busca de comida.
Eu os observei atentamente, perguntando-me se eles confirma-
riam minha nova sensação de bem-estar. Na verdade, quando me
sentei, eles se juntaram ao redor de meus pés, bicando o chão e
me olhando para ver se eu tinha algo a lhes dar. Senti-me
acolhida e bem-vinda por estes emissários da Mãe.
Há milhares de anos os pássaros são considerados
mensageiros da Mãe Divina. O povo inuit do Artico acredita que
os xamãs assumem o espírito de pássaros durante suas jornadas
de transe. Como aqueles duplamente nascidos, que nasceram
primeiro da Mãe e depois do ovo, os pássaros simbolizam o
renascimento espiritual nesta mesma vida. Portanto, este foi o dia
do meu renascimento espiritual.
Eu sabia que minha saída da indústria da moda era
apenas uma questão de tempo. A medida que meu interesse pelas
coisas mundanas diminuía, aumentava o desejo de buscar a saúde
do espírito. Comecei a visitar pacientes com câncer e a com-
partilhar com eles meus novos segredos nutricionais. Mesmo
naquele estágio inicial de minha longa jornada de aprendizado
holístico, este tipo de paciente havia se tornado para mim uma
espécie de comunidade de sadhana, arautos de meu futuro traba-
lho e missão. Minha mente sentia uma alegria natural quando eu
61
me dedicava ao serviço e a viver de acordo com os ritmos da
natureza.

O PRESENTE DE MEU PAI

Quase sete anos após ter sido diagnosticada com câncer pela
primeira vez, comecei gradualmente a perder meu equilíbrio e a
reverter ao estilo de vida frenético de antes. Apesar de estar
saindo aos poucos da indústria da moda, ofereceram-me a opor-
tunidade de desenvolver uma franquia internacional de minhas
roupas, e mais uma vez caí nas malhas do desejo de deixar uma
marca como estilista. Durante uma conversa telefónica com meu
pai, admiti que estava tentada pela perspectiva de expandir meu
negócio em outro país. Percebendo que eu corria o perigo de
retornar à antiga forma de ser, meu pai veio me visitar. Ele me
ajudou a ver que eu estava sucumbindo às forças que já me
haviam derrubado antes, e lembrou o quanto me custara
reaprender as verdades de minha alma. Ele também me preveniu
que eu ficaria irreparavelmente ferida nesta vida se abandonasse
a sabedoria e o aprendizado que conquistara, para perseguir
metas mundanas.
A estadia de meu pai foi se prolongando de semanas para
meses enquanto ele se dispunha a aprofundar meu conhecimento
da vida holística, ensinando-me as escrituras védicas e diversas
formas de nutrição. Todos os dias quando eu voltava do trabalho,
fazíamos compras nos mercados chineses e nas lojas de comidas
naturais. Apesar de ambas as minhas mães, assim como suas
próprias mães, serem boas cozinheiras, eu realmente só aprendi a
cozinhar naqueles meses com meu pai. Ele me ensinou como
usar os antigos princípios ayurvédicos de equilíbrio cósmico em
cada refeição. Minhas horas de trabalho reduzi-ram-se ao mínimo
enquanto eu corria para casa todos os dias para as lições de
ayurveda e da sublime filosofia do Vedanta — os ensinamentos
da mãe índia desenvolvidos ao longo de milénios. Eu costumava
encontrar meu amado pai com o rosto tingido pela luz rósea do
crepúsculo de Manhattan, preparando o jantar ou afundado em
suas queridas escrituras. Da mesma forma que fizera durante as
visões que tive com ele em Vermont, ele me explicou a
Bhagavad Gita e as Upanishads, expandindo as explicações para
62
incluir os significados mais profundos de conceitos como carma
e darma.
Tivemos grandes conversas sobre o conhecimento
transmitido por ele naquela cabine em Vermont. Como turistas
excitados que voltavam de uma viagem a um país fascinante,
comparamos impressões sobre nossas jornadas visionárias. Pelas
visões que tivera de mim naquela época, ele sabia tudo sobre
minha luta contra o câncer, e contou-me que, exatamente na
época em que ele aparecera para mim, eu também aparecera para
ele no plano astral — o plano mais elevado que nossa
consciência e nosso espírito podem visitar — e ele conseguiu ter
ideia de minha dor e minha culpa. As datas, horas, e os conteúdos
de nossas visões mútuas coincidiam extraordinariamente. Meu
pai sabia até mesmo o momento exato em que eu finalmente me
livrara do câncer. Ele estava em seu jardim em Lancaster, Guia-
na, quando uma enorme gaivota — outro emissário da Mãe
Divina — pousou ao lado dele. Naquele momento ele soube, e
ficou feliz com minha cura.
Agora, disse meu pai, minha vida estava novamente
envolvida com um excesso de atividades, especialmente mentais.
Por isso ele tratou de replantar as sementes da tradição védica nas
profundezas de minha alma. Contou-me muitas histórias sobre
sua mãe, que era uma grande devota da Mãe Divina. Uma
história em particular deixou em mim uma impressão profunda.
Como eu já disse antes, meu pai tinha dezesseis anos de idade
quando sua mãe ficara doente. Seus irmãos e irmãs já estavam
casados, e ele era o único que ainda morava com ela. Ele tomou
conta da mãe enquanto o estado dela se deteriorava. Durante os
dois anos que precederam sua morte, ele a banhou, vestiu e
alimentou. "Toda a boa sorte que tive na vida se deve às bênçãos
de minha mãe", repetia ele. Sua generosidade e devoção à mãe
lhe trouxeram, realmente, uma graça imensurável, além de
aproximá-lo da Mãe Divina.
Além dos ensinamentos espirituais, meu pai me mantinha
ocupada com diversas atividades saudáveis, como moer grãos,
enrolar chapati, esmagar sementes de temperos, sovar massa e
mexer dhals. Quando eu ficava impaciente, ele me lembrava do
grande legado de sadhana que eu herdara de meus antepassados.
Uma tarde ele anunciou que iríamos ao Jackson Square
Park, do outro lado da rua em frente ao meu apartamento, para
63
assar pão. Diversas estrelas do mundo da moda e do
entretenimento moravam em meu prédio, e meu primeiro
pensamento foi, E se um de meus amigos passar e vir meu pai e
eu acocorados em frente ao fo gol
"Papai, é um parque público", protestei
desanimadamente. "Melhor ainda", retrucou ele, apanhando a
sacola de ingredientes e saindo pela porta para ir ao parque.
Minha vergonha desapareceu assim que ele se acocorou na terra
para demonstrar a arte milenar de assar pão. Vi um homem que
se recusava a restringir sua liberdade pessoal ou disfarçar a
reverência pela Mãe Terra. As pessoas começaram a se
aproximar e a observar com evidente fascinação enquanto
cavávamos um buraco, juntávamos gravetos e acendíamos o fogo
dentro do buraco. (Meu porteiro, geralmente um sujeito metido a
besta, foi ao porão de nosso prédio e retirou as pernas de madeira
das cadeiras quebradas empilhadas no canto, trazendo-as para
alimentar o fogo.) Enrolamos a massa e a colocamos sobre
alguns gravetos, que pusemos sobre a terra. Então meu pai pegou
uma pedra grande e cobriu o buraco, deixando um pequeno
espaço para ventilação. Quando o pão ficou pronto, ele se sentou
e sorridentemente respondeu às perguntas feitas pelas pessoas
aglomeradas ao nosso redor. Uma vez o pão assado,
compartilhamos o alimento com a multidão e alimentamos
nossos queridos pombos.
Papai havia surgido novamente em minha vida com um
propósito definido: religar-me ao meu passado ancestral. Ele
explicou que nossas memórias ancestrais são como um rio,
fluindo continuamente de geração a geração. Apesar de
podermos manipular o rio, não podemos alterar seu destino final.
Ele explicou que estamos de pé sobre os ombros de nossos
antepassados, mas se não nos alinharmos aos seus ritmos,
teremos de carregá-los nas costas. Entretanto, se dermos
continuidade à sadhana, esta energia nos fortalecerá. Ele me
lembrou que eu nasci em um dia auspicioso, o aniversário do
Senhor Rama, e que meu caminho na vida era um caminho
espiritual que podia ser traçado de volta por milhares de anos.
Sempre irei me lembrar de suas últimas palavras antes de
deixar Nova York: "Você é abençoada, Maya, e nunca deve
esquecer a presença de Devi — a Mãe Divina — em sua vida.
Ela a salvou para que você ajudasse os infelizes neste mundo, e
64
trouxe você de volta ao seu verdadeiro caminho." Muito tempo
depois dele haver voltado para casa, os ensinamentos de meu pai
ainda permaneciam em minha mente. Tudo o que consegui desde
então foi devido às suas palavras amorosas e ao seu profundo
amor pela Mãe, e também graças ao espírito imigrante de meus
antepassados. Meu pai fez com que eu recuperasse meu
verdadeiro propósito na vida e encerrasse o estágio dos desejos
materiais.
Enquanto esteve em Nova York, meu pai previu sua
morte iminente, que ocorreu quando ele fez setenta anos, alguns
meses depois de nos separarmos. Unidos pela tristeza comum,
minhas mães, irmãos e eu nos aproximamos, reaprendendo quem
éramos uns para os outros. A morte de meu pai foi um grande
golpe para mim, e senti o ímpeto de me jogar em seu fogo cre-
matório. Ele havia me tocado na parte mais recôndita de minha
alma, e agora partira. Eu acabara de dar meus primeiros passos
espirituais, e me perguntava como iria prosseguir sem a sua
orientação. Dois pilares me haviam sido retirados — minha
maternidade, na forma do útero, e agora meu pai.

A LUZ DO GURU

Orei para que a Mãe me mostrasse o caminho, e ela respondeu


uma semana após a morte de meu pai. Tive um sonho no qual ele
aparecia sentado de costas para mim, usando seu manto branco
de sacerdote e executando o ritual do fogo. Fiquei muito feliz em
vê-lo, mas quando me aproximei não pude deixar de me censurar
por meu excessivo apego à forma, que podia atrapalhar meu pai
em sua jornada após a morte. Mas naquele instante ele se virou, e
o fogo tingiu o manto de laranja. Entendi que a pessoa sentada ali
não era meu pai, mas alguém que eu não conhecia, um homem
estóico que me olhava nos olhos.
Duas semanas mais tarde, um amigo deu-me uma fita
com cantos védicos, dizendo, "Você vai ouvir sua própria voz
aqui". Fiquei apaixonada pela beleza da fita. E quando olhei para
a fotografia na caixa, qual não foi minha surpresa ao reconhecer
o rosto de meu sonho! A pessoa que cantava era Swami
Dayananda Saraswati, que se tornaria mais tarde meu amado
guru.
65
Ainda sinto falta de meu pai, mas continuo a sentir sua
energia. Sou muito grata por ele ter sido meu primeiro e principal
instrutor nesta vida. Quando ele me foi retirado, a Mãe Divina
trouxe Swami Dayananda, que desde então passou a ser mãe e
pai para mim. A Shiva-Samhita explica os méritos de um mestre
espiritual, ou guru, desta forma: "Não há dúvida de que o guru é
pai, o guru é mãe, o guru é Deus. Portanto ele (ela) deve ser
servido em atos, palavras e pensamentos."
Depois da morte de meu pai, deixei Nova York e o
mundo dos negócios para me dedicar exclusivamente aos estudos
vé-dicos, sob a orientação de Swami Dayananda, que eu
conhecera no outono de 1986. Tornei-me a primeira pessoa de
meu povo, em cento e onze anos, a retornar à índia, onde
Swamiji me proporcionou uma introdução elementar à terra
natal. Enquanto íamos de carro, no primeiro dia, para seu ashram
em Rishikesh, ele pediu ao motorista para parar o carro. Levou-
me até as margens do rio Ganges, encheu as mãos de água, e
borrifou-a em mim. "Bem-vinda de volta à sua Mãe", disse ele.
Cinco anos mais tarde, voltei ao rio sagrado com meu
mestre para receber sua iniciação à vida de brahmacharini. Este
termo significa literalmente "aquele que se conduz como
Brahman", alguém cuja conduta provém da consciência. Na
véspera de minha iniciação, enquanto eu observava uma vigília
de silêncio, uma tempestade uivou a noite toda. Grandes rajadas
de vento enviavam nuvens de poeira em rodamoinho, vindas da
margem do rio, criando imagens magníficas de rostos ancestrais
contra o céu escuro. Foi como se a tempestade erradicasse todos
os carmas não resolvidos de meu povo, trazendo seus espíritos
para testemunharem um evento que iria mudar minha vida. A
separação do espírito sofrida por eles podia ser curada agora,
transformada em união, abençoada com a santidade. Compreendi
que eles sempre haviam estado comigo para me ajudar a
atravessar o vale da dor ancestral, e que me haviam conduzido
até este momento. Uma jornada que englobava três gerações
finalmente encerrava seu ciclo.

66
CAPÍTULO 3
AS ORIGENS E A
PRÁTICA DA SADHANA
Da mesma forma que existe óleo nas sementes de
gergelim, manteiga no creme, água no leito do rio, fogo
na lenha seca, também o Espírito está em nós quando
buscamos a Consciência.
- Svetasvatara Upanishad (1.1)

No começo, havia o silêncio absoluto. Nada existia — nem


tempo nem espaço, nem deuses nem deusas. Nem alimento, nem
respiração, nem som; só a consciência estava presente, aquela
que não tem dimensões. Shiva, a força primordial que sustenta o
universo, despertou então. Repleto de amor imortal, Kameshvara,
outro nome para Shiva, criou a lua e as constelações, as estrelas e
as luzes celestiais, estabelecendo os ritmos do amor e da
procriação. O universo teve início.
O criador Brahma hibernou no útero de lótus da
Mãe Universo. O lótus floresceu e Brahma despertou.
Inspirado por Ar-dhanaranari, Shiva, na forma de meio
homem e meio mulher — o símbolo unificado da criação
e do cosmos, o uno em si mesmo — Brahma, criou os
seres vivos.
Primeiro, ele criou Prajapatis, o pai de toda a criação, e a seguir a
bela Ushas, a primeira mulher, cujo nome significa "a luz da
aurora que iluminou o mundo". Tão bela era Ushas que o próprio
Brahma se consumiu de amor por ela. Para escapar a esta
obsessão, Ushas fugiu dele, mudando de forma e assumindo
formas animais. Shiva não conseguiu suportar a fraqueza de
Brahma, e por isso tomou a forma do colérico Rudra, separan-do-
se da testa de Brahma para salvar Ushas de seu assédio. Ele
atirou em Brahma uma flecha incandescente, e o pregou no céu.
Os deuses se curvaram diante de Shiva, reconhecendo-o como a
Mente do Cosmos, nas palavras dos rishis, os discípulos de
Shiva: "Como símbolo de nossa devoção a você, oh poderoso
Shiva, nós agora o denominamos Pashupati, o protetor dos ani-
mais, aquele que controla nossa paixão bestial."
67
Inteiramente transformado pela flecha incandescente de
Shiva, Brahma pediu a Ushas para permitir que fosse seu
consorte, e não seu mestre. Ushas reinventou a si mesma como
Saraswati, aceitou a oferta de Brahma, e lhe deu a sabedoria e a
criatividade necessárias para criar o universo e suas criaturas.
Juntos, eles criaram os seres celestiais, bem como os fantasmas,
espectros e duendes do mundo dos espíritos.
Saraswati se tornou a Mãe de todos os seres animados.
Mas logo as pessoas e os animais ficaram com fome, tornando-se
impacientes e violentos. Buscaram seu protetor, Pashupati, para
pedir ajuda. Shiva movimentou sua energia para o útero da Mãe
Terra, produzindo tanto calor que ela se tornou fértil, e gerou
uma multidão de árvores, plantas, ervas, capins, arbustos e
trepadeiras. Os pássaros famintos e os animais se saciaram com a
vegetação abundante, e festejaram seu mestre Shiva, entoando o
nome de Vriksha-Natha, o senhor da vegetação.
A seguir, Shiva criou os elementos: terra, água, fogo, ar e
espaço. "Sem morte, não há continuidade para a vida", pensou
ele, e por isso criou a morte — não como um ponto final, mas
como um portal para uma nova vida. O renascimento assegurou
os ciclos harmoniosos de vida indispensáveis para o desenvol-
vimento da consciência. Shiva considera os seres como livres de
nascimento e morte, mas cada um deles passando pelo processo
de renascimento, a autoperpetuante roda do carma necessária
para burilar a consciência individual e coletiva.
Logo após, as criaturas se tornaram descontentes e
impacientes, e lutavam entre si. Shiva não suportou o caos e a
desarmonia que testemunhou, e chamou sua consorte Shakti,
colocando-a dentro dele mesmo e enviando as duas polaridades
da manifestação de volta à origem. Da união destas duas energias
obtivemos o símbolo do desenvolvimento da consciência e o
propósito por trás da prática da ioga. Movendo-se em uníssono,
eles ascenderam juntos ao topo da consciência, para descobrir a
mente cósmica, que o próprio Shiva havia criado. Shiva percebeu
que os seres humanos eram sempre apanhados na teia da
desilusão, afastando-se da verdadeira realidade da existência — a
harmonia e a unidade.
Fundido em Shakti, Shiva projetou seu pensamento até o
âmago do cosmos, que ficava dentro dele mesmo. Explorou as
vastidões da mente universal e percebeu que Brahma havia
68
criado não apenas o mundo da matéria, mas também o mundo da
mente. Shiva viu que as mentes dos seres eram vulneráveis,
suscetíveis às percepções dos sentidos e aprisionadas pela ten-
tação das manifestações externas, que as afastava dos ritmos da
lei universal. Shiva reconheceu que as mentes das criaturas
precisavam ser nutridas e por isso decretou a lei universal do
darma, que visava proteger e nutrir todos os seres.
Shiva sabia que os seres eram capazes de cultivar
serenidade espiritual e física, que lhes daria saúde, e que a única
forma de adquirir consciência era vivendo de acordo com as leis
sagradas da natureza, o darma. Compreendeu que a consciência
se expressa de forma contínua e simultânea em uma variedade de
dimensões e formas. O darma é o fator de coesão deste processo
dinâmico, que governa e equilibra as leis naturais.
Desta forma surgiu Manu, o primeiro legislador da
humanidade, que veio para apoiar o darma, ordenando que os
seres humanos deviam cumprir o darma através do oferecimento
ao universo de determinadas obrigações especiais. Estas
obrigações eternas são as seguintes: Pitri Rina — a dívida para
com os antepassados; Rishi Rina — a dívida para com os gurus e
mestres espirituais, tanto antigos quanto contemporâneos; e Deva
Rina — a dívida para com os deuses, seres celestiais e a natureza.
Dentre estas três obrigações humanas, a terceira é a mais
importante. "Reverência para com o Divino, reverência para com
a Natureza — com a terra, os rios, os ventos, o fogo e o espaço,
para com os animais, as plantas e para com cada folha de capim e
cada partícula de terra", dizem os Vedas. O caminho da prática
vem aprimorar esta visão.
Mas o trabalho de Shiva ainda não estava completo. Ele
sabia que as leis cósmicas só poderiam ser seguidas se as mentes
dos seres fossem iluminadas o suficiente para que entendessem o
darma, o foco espiritual da vida. Ao sentar-se em contemplação,
ele meditou sobre a questão: "Como posso guiar a mente da
criação na direção da iluminação?"
A criação permaneceu imóvel até que Shiva despertou
finalmente de sua jornada interior, havendo encontrado uma
forma de estimular a iluminação: ele reconheceu que precisava
demonstrar aos seres que todas as formas de destruição, deterio-
ração e doença são causadas por conflitos que têm seu início na
mente. Os seres só percebem a si mesmos na forma visível,
69
audível e tangível da encarnação, em vez de se perceberem como
a fonte da iluminação. Ele precisava encontrar uma forma de
fazer com que eles vissem que o corpo/mente é uma fonte de
iluminação.
Por isso, Shiva assumiu o papel de instrutor cósmico, e
por meio de seu poder de darshana, o princípio da transmissão es-
piritual, comunicou a verdade da iluminação às mentes dos seres
celestes, videntes e sábios. Ele descobrira o caminho da
harmonia, pelo qual as mentes dos seres celestiais e humanos
podiam fluir de acordo com o darma. A meta final do darma é a
integração do indivíduo ao universo por meio do desenvolvi-
mento da consciência. A ioga, o caminho interior que funde a
mente com os ritmos cíclicos do cosmos, é um meio de atingir
esta meta. Ao aperfeiçoar a prática da ioga, Shiva mostrou aos
videntes como transcender seus campos de percepção e como
descobrir a realidade ocultada do ser e do universo, ocultada atrás
da miragem representada por Maya.
Como Dakshinamurti, o instrutor benevolente que se
senta em silêncio de frente para o sul, Shiva é o primeiro guru da
auto-sabedoria. Os deuses, sábios e seres celestiais corriam para
estar na presença de Shiva e receber sua darshana da verdade
cósmica. Devido à sua inesgotável compaixão, Shiva expulsou a
escuridão da ignorância das mentes de seus discípulos, os seres
celestiais e os sábios, para que pudessem se libertar do samsara, a
infelicidade resultante da separação entre a mente e a
consciência. Eles atingiram moksha, a liberação dos ciclos
implacáveis de nascimento e morte. Os videntes védicos
descreveram este momento sublime da história cósmica da
seguinte maneira: "Este grande Senhor, através do poder de Sua
compaixão, transmitiu o conhecimento 'Tat Tvam Asi' (a mais
elevada forma de ver-se Uno com o Todo). Com Seu gesto de
mão, a jnana mudra, ou 'selo da sabedoria', Shiva baniu as ilusões
de nossa mente, demonstrando que toda a realidade vem da
Consciência Una e Infinita, a verdade inefável do Ser." O hino
dos sábios antigos em louvor a Shiva também louva Shakti, o
poder por trás de Shiva. Eles sabiam que a consciência que
haviam experimentado era o resultado da integração entre estas
duas energias primordiais, Shiva e Shakti. O grande sábio Adi
Shankara, em seu poema ílSaundarya-lahar'r coloca a questão da
seguinte maneira: "Unido a Shakti, Shiva fica dotado do poder de
70
criar universos. Sem ela, ele é incapaz até mesmo de
movimento." A ioga de Shiva surgiu da integração com os
poderes de Shakti dentro dele.

Jnana
mudra
A VISÃO VÉDICA

A antiga e tradicional história védica da criação mostra uma


profunda intuição da interação entre as matérias física e sutil,
entre energia, corpo e mente, e entre espírito individual e cons-
ciência cósmica. E uma linda descrição de verdades básicas, feita
para nos ajudar a lembrar de nossas origens humanas e
espirituais, e de nossas obrigações espirituais não só para com
nós mesmos, mas para com aqueles que nos trouxeram a esta
vida, e para com as energias universais que nos nutrem e sus-
tentam. Ela também enfatiza a importância da sadhana diária no
drama épico sobre as origens da sadhana.
Apesar de ser uma história rica e complexa, que já foi
interpretada de diversas formas através dos séculos, o tema
principal de que eu gostaria de que vocês lembrassem como
contexto para sua prática de sadhana é que existe uma força que
sustenta toda a vida. Os mestres védicos chamam esta força de
Brah-man, o infinito, a consciência sem dimensões, os
ensinamentos mais elevados das Upanishads e do não dualismo,
encontrados na parte final dos Vedas. Essa parte final dos Vedas
é chamada de Advaita Vedanta, a fonte de onde surgiu a tradição
da ayur-védica Wise Earth.
Segundo a visão do Advaita Vedanta, a matéria e a
71
energia física e sutil, todas as formas de criação, todas as coisas
conhecidas e desconhecidas, visíveis e invisíveis, o indivíduo e o
universo, cada forma separada bem como todas juntas são es-
sencialmente uma coisa só, o todo — que é completo em si
mesmo. Tudo no universo está representado por duas categorias
básicas — aham (literalmente, "eu"), o sujeito, e idam (literal-
mente, "isto"), o objeto — e tudo o que existe se encaixa em uma
ou outra categoria. O sujeito nunca é independente do objeto. Na
verdade, o individual e o universo separadamente e em conjunto
constituem o todo infinito e sem dimensões. Praticar sadhana é
descobrir as interligações entre aham e idam — o ser indivíduo e
o mundo material, nossos pensamentos e nossas ações — e
transcender a variedade da experiência, transformando-a em
percepção.
Cada um de nós tem a capacidade de colocar em ação
seus poderes de percepção e se libertar do hábito nocivo de
identificar o Ser consciente e uno com uma de suas partes —
corpo, mente, memória, ego, volição, pensamento ou ação. No
Sarna Veda é dito: "O Ser reside no lótus do coração. Sabendo
disto, e consagrado ao Ser, o vidente entra diariamente neste
santuário sagrado. Absorvido no Ser, o vidente se liberta da
identificação com o corpo e emerge na consciência pura." A
sadhana trata do despertar de nosso Ser verdadeiro mediante
práticas de unidade, onde reconhecemos cada centelha de vida
como o todo. Por meio da sadhana e dos rituais, podemos
conscientemente integrar as diversas energias universais
existentes dentro de nós e em nosso mundo, movendo-nos em
direção à cura e à integração.
Agora vamos tentar iluminar nossa compreensão um
pouco mais, explorando a visão védica da integração das energias
primordiais. Deixe seu espírito retornar à aurora do universo.
Faremos juntos uma jornada ao útero ancestral da Mãe Divina,
que deu à luz o cosmos, e aprenderemos sobre a inseparável e
una força cósmica do universo, denominada Shiva e Shakti.
Descobriremos a harmonia interior por intermédio da milenar
prática da ioga — que significa a unificação do corpo, mente e
espírito.
Para nos prepararmos para o próximo estágio de nossa prática
espiritual, usaremos um mantra que evoca os espíritos de Shiva e
Shakti. Você pode passar alguns instantes todas as manhãs
72
recitando este mantra de Shiva e Shakti:

Mangalam Dishatu Me Maheshwari


Mangalam Dishatu Me Sada Shiva
Que a Deusa Maheshwari seja auspiciosa para
comigo
Que o Deus Shiva seja auspicioso para comigo

Os Vedas nos dizem que Shiva é a consciência não mani-


festa — uma energia que permeia toda a criação mas não pode
ser vista a olho nu. Sem Shiva, a criação não poderia ter ocorrido.
Nos últimos dias de minha convalescença do câncer, quando fui
abençoada com as visitas de meu pai, consegui entender, sob a
orientação dele, que os nossos pais compartilham a energia
masculina primordial de Shiva. Quando os pais e outros homens
paternais benevolentes usam esta energia de forma sábia, eles
constroem um alicerce forte de onde todos podemos crescer em
direção à Unidade de consciência. As aulas de meu pai me
ajudaram a fortalecer minha fé em minha própria tradição
espiritual, que acabou me conduzindo à devoção pela Mãe
Divina. As energias pai-mãe trabalham juntas.
A Shakti representa a consciência expressa na forma — a
energia cósmica através da qual a manifestação ocorre. Shiva,
tendo visto a verdade do mundo, representa a inteligência cós-
mica, e Shakti, que criou o ritmo das leis cósmicas e que rege o
universo, representa as influências terrenas. A Shakti é uma força
dinâmica — uma força yang. Shiva é uma energia universal, uma
força yin. Como forças de consciência que a tudo permeiam,
Shiva é chamado de Parashiva e Shakti de Parashakti. Eles são a
coluna e a plataforma da criação, a mais importante metáfora
para a harmonia interior. Todos nós carregamos dentro de nós
estes dois poderes que se interligam.
A Yoga Chudamani Upanishad nos informa: "O
propósito da ioga é unir estes dois princípios para que Shiva e
Shakti se tornem unos com o Ser." A palavra "ioga" é derivada
da palavra sânscrita yuj, que significa juntar ou unir. Refere-se à
união com o Divino, o caminho interior que se funde na mente
com os ritmos cíclicos do cosmos. A ioga, que representa muito
mais do que apenas posturas físicas, inclui uma grande variedade

73
de práticas espirituais: dhyana (meditação), pranayama (práticas
respiratórias), hatha ioga (posturas de ioga), mantra (sons rít-
micos), mudra (gestos sagrados), sruti (orações, cantos e invo-
cações), e yajna (rituais), para mencionar apenas alguns.
Quando der início às práticas de ioga sugeridas neste
livro, por favor reconheça que as energias de Shiva e de Shakti
estão manifestas dentro de você: os princípios ha e tha
representam as forças lunares e solares. A meta básica da ioga é a
união destas duas energias primordiais e a integração das forças
vitais. O desenvolvimento da ioga constitui a sadhana, que é
também um caminho para a boa saúde e a elevação da
consciência.

A INTEGRAÇÃO DAS ENERGIAS PRIMORDIAIS

Ao iniciar o processo de integração, vamos explorar os dois


aspectos da força primordial que continuamente se sobrepõem,
dando suporte a toda a criação. Shiva é a força primordial mas-
culina, e Shakti, a força primordial feminina. Todos nós carre-
gamos estas energias sagradas dentro de nós e nos conectamos
com elas de formas visíveis e invisíveis, imagináveis e não
imagináveis, conscientes e inconscientes. A consciência total
envolve a visão de Shiva e Shakti.

MUDRA: A PRÁTICA IOGUE DE INTEGRAÇÃO QUE


SERVE PARA QUALQUER PESSOA

Uma prática de ioga bastante simples que pode ser utilizada para
integrar nossas energias femininas (lunares) e masculinas
(solares) é a antiga e poderosa mudra. A palavra "mudra" é de-
rivada da raiz sânscrita mud ("trazer alegria"). E um gesto sa-
grado feito com a mão que usamos para fundir as duas energias
primárias, Shakti e Shiva, selando-as dentro de nosso corpo.
A mudra, como prática espiritual, pode ser encontrada
nos mais antigos rituais védicos da Deusa. Os deuses e deusas do
panteão hindu são retratados com suas mãos em diversas mu-
dras, evocando enormes poderes. A mudra nos conecta com
nossa divindade interna e leva a consciência ao corpo sutil — o
campo pessoal de energia que nos cerca, nosso duplo energético
74
ou campo vibratório. A mudra também nos torna conscientes de
nossas mãos como partes sagradas de nosso corpo que alcançam
todo o universo e conduzem a energia para dentro e para fora.
Da mesma forma que a prática do mantra, a mudra é
usada como instrumento de meditação, redirecionando a energia
da respiração (prana), aumentando a força vital, e estabilizando a
energia do corpo.

A MUDRA DE SHIVA LINGA

A prática da mudra de Shiva linga, que funde as energias de


Shakti e Shiva, serve para equilibrar o sistema nervoso e a res-
piração. Ela acalma nossa mente, expandindo a intuição e me-
lhorando a saúde. Linga significa literalmente "atributo" ou "sinal
de Shiva". Os sábios conceberam este e outros símbolos sagrados
como formas de adoração, uma vez que a maioria das pessoas
necessita de uma forma tangível e visível para obter acesso ao
Espírito intangível, invisível e infinito.
Existem diversas lendas sobre o Shiva linga. De acordo
com o Padma Purana, o sábio Bhrigu chegou ao monte Kailas
para encontrar Shiva e Shakti tão absortos em seu amor um pelo
outro que se recusaram a reconhecer sua presença. Enfurecido
por esta rejeição, Bhrigu amaldiçoou Shiva e desejou que ele
fosse lembrado como um linga, uma pedra com a forma de um
falo, preso na vagina de Shakti. Em outras palavras, o linga não
pode ficar de pé sem ter Shakti como sua base — a energia
masculina emerge da força feminina e é sustentada por ela. O
Linga Purana nos diz que o linga é a coluna cósmica de Shiva,
que emerge da base da Terra, Shakti, e se ergue infinitamente ao
céu. Esta coluna de infinidade emite o Som Cósmico, OM.
A mudra do Shiva linga é uma prática essencial para
fortalecer o prana, ou energia da respiração, o que, por seu lado,
tornará você consciente dos ritmos de seu corpo sutil. Esta práti-
ca produz um profundo estado de calma dentro do corpo e cria
harmonia para você e para seus relacionamentos.

A Prática: A Mudra de Shiva Linga

75
Encontre um local calmo e sente-se de pernas cruzadas de
forma confortável, sobre uma almofada, ou talvez com as costas
eretas em uma cadeira com o espaldar reto. Aproxime sua mão
esquerda do peito com a palma voltada para cima. Mantenha os
dedos juntos. Faça um punho com a mão direita e coloque-o bem
apoiado sobre a palma esquerda. Estique o polegar direito para
cima. A mão direita é uma metáfora para a respiração solar e a
mão esquerda para a respiração lunar. A configuração desta
mudra integra as energias de Shiva e Shakti dentro de você.
Feche os olhos e medite no deus Shiva, o Sutil. Vi suaii-ze-o
sob a forma de um linga, sentado firmemente sobre a base de
Shakti. Agora, visualize Shakti, a Formidável. Mantenha a mudra
por cerca de cinco minutos, e a seguir solte os braços. Continue
sua meditação visual izando a energia de Shakti dando suporte a
Shiva dentro de você.
Para ajudar sua visualização de Shiva, talvez você queira ter
uma representação dele, assim como um retrato ou uma pequena
estatua.

Os Sete Aspectos Cósmicos de Shiva

• Shiva tem a cor azul do céu (símbolo daquele que a tudo


permeia).
• Ele tem quatro braços e carrega o tridente. (Seus braços
representam as quatro direções: o tridente representa as três
forças cósmicas da atividade, equilíbrio e inércia.)
• Ele traz a lua crescente em seu longo cabelo embaraçado. O rio
Ganges flui a partir do topo de sua
cabeça. (O crescente representa a
energia masculina primordial e o rio
Ganges simboliza o fluxo de
consciência e os meios de
purificação.)
• Ele está untado com cinzas sagradas e
usa uma guirlanda de caveiras.
(Símbolos da renúncia completa.)
• Ele tem três olhos. (Estes representam o Sol, a Lua e o fogo.
Seu "terceiro" olho representa o fogo primordial.)
• Ele tem uma serpente ao redor do pescoço. (Sinal da kun-
dalini-shakti.)
76
• Ele está sentado sobre uma pele de tigre. (A pele representa o
poder de Shakti).

A mudra do Shiva linga Um linga em


sua base
Se você executar regularmente esta prática simples,
começará aos poucos a perceber seus ritmos naturais, que estão
alinhados aos ritmos da natureza. Sua prática se desenvolverá ao
longo do tempo e deve ser feita devagar, sem pressa. Gradual-
mente, você irá se sentindo mais forte e terá mais paz, sendo
capaz de sentir um crescente espírito de unidade em relação a
todas as coisas.
Visualizar Shiva em seus sete aspectos é uma prática
importante para mim. Restaura minha vitalidade e clareza mental,
evocando o espírito da unidade dentro de mim. Os homens ga-
nham confiança ao fazer este exercício, e praticar este exercício
facilita as práticas mais avançadas.
Enquanto você executa cada uma de suas rotinas diárias
— acordar, respirar, tomar banho, orar, cozinhar, comer, andar,
cantar, trabalhar, fazer compras, meditar, dormir — tente man-
ter-se consciente de seus pensamentos, suas ações e sua fala. As
sadhanas diárias, pela própria natureza, participam das energias
solares e lunares, masculinas e femininas. De acordo com os
Vedas, tudo no universo existe como resultado do equilíbrio entre
estas duas energias, por meio da consciência delas e das práticas
espirituais, cujo coração é a sadhana. Ao longo do livro,
descreverei práticas específicas de sadhana que se assemelham a
rituais, todos eles da escola védica de pensamento, visando
promover a fusão das energias de Shiva e Shakti dentro de cada
um de nós, e portanto facilitando nossa união com o cosmos.

77
A SABEDORIA SIMPLES DA SADHANA

Depois que meu pai morreu, voltei à terra natal de nossos an-
cestrais na tentativa de descobrir e reviver as antigas práticas da
sadhana que constituíam a herança de meu povo na Guiana.
Entretanto, a índia que encontrei não era a índia de minhas
fantasias infantis, nem aquela que meus bisavós tinham deixado
para trás havia décadas.
Cheguei à mãe-pátria para constatar que as práticas
simples haviam diminuído, especialmente nos centros urbanos.
Elas ainda podem ser encontradas hoje em dia em algumas
aldeias das regiões rurais, mas a maioria já foi abandonada.
Precisei subir alto nos Himalaias para encontrar práticas que
satisfizessem minha intuição sobre como a sadhana deve ser
praticada, e como a Terra e a Mãe Divina devem ser honradas.
Visitei a aldeia da família de meu pai, que por acaso fica próxima
ao ashram de meu mestre. A seguir encontrei um antigo templo
de Krishna, onde meu bisavô fora pujari. Disseram-me que eu me
parecia muito com ele.
Enquanto viajava pela índia, percebi que de certo modo
eu tivera sorte de nascer fora de lá, em um lugar que mantivera as
sadhanas vivas. Como a Guiana estava cerca de cem anos atra-
sada em relação ao mundo tecnológico, conseguimos preservar as
lembranças de nossos antepassados.
Lá, meus bisavós e seus corajosos companheiros de
viagem haviam preservado as práticas que apoiam a vida,
mediante o cuidado incessante com os campos de arroz, as
plantações, as florestas, os rios e os animais. A terra era o centro
das práticas de meu povo. Através da sadhana, eles cultivaram
uma aliança com os ritmos naturais. Os rituais védicos que eles
executavam não eram repetições de ações e sílabas decoradas,
tudo o que resta atualmente na índia, mas uma recriação viva do
sagrado, ligada às dádivas da terra e ao suor das pessoas.
Ao preservar as memórias amadas da terra natal, meus
pais e avós resgataram o sagrado dentro deles e iniciaram o
processo de cura para seus espíritos alquebrados. O amor, a
redenção ou a cura que conseguiram gerar em suas vidas são
devidos ao poder da sadhana. Meu avô por parte de mãe, por
exemplo, era um agricultor devotado que passava todo o seu
tempo na plantação. Raramente ia para casa, preferindo viver à
78
sombra das bananeiras, que o protegiam do escaldante sol
tropical.
Meu avô passou a maior parte de sua vida em silêncio.
Quando meus irmãos e eu fomos visitá-lo em suas terras, ele nos
serviu alimentos frescos de seus campos, cozidos sobre um fogo
aberto. Ele curava muita gente por meio de um simples toque e
era famoso por reparar uma luxação ou uma fratura simplesmente
segurando a parte afetada com firmeza entre suas mãos calejadas.
Minha mãe fazia a mesma mágica, massageando gentilmente
nossas cabeças para curar dores de cabeça e tocando diversos
pontos no corpo para curar dor de estômago. Ela lavava nossos
pés à noite para que tivéssemos um bom sono, e antes das provas
colocava minha cabeça em seu colo, o que parecia permitir que
eu retivesse na memória enormes quantidades de fatos e de
informações. Todos estes confortadores atos de amor
incentivavam a energia da sadhana, passada para ela por seu pai,
e que florescia nos corações de seus filhos.
Mais tarde, quando a guerra civil expulsou grande parte
da população indiana da Guiana, parecia ser parte do Plano
Divino espalhar as sementes da sadhana pelo mundo afora.
O Buda ensinou que não existem pessoas iluminadas, mas
simplesmente ações atentas e conscientes que conduzem à ilu-
minação. Nas palavras de Swami Dayananda: "Medite em si
mesmo o tempo todo e encontrará o caminho." Para uma mente
que está sempre ligada à consciência, vivendo no momento
presente, cada pensamento é um reflexo da consciência.
Quando acolhemos cada novo momento sem ter medo do
que virá depois, passamos a viver o espírito da sadhana e todos
os instantes ficam plenos de divindade. A sadhana pode ser
praticada simplesmente respirando, tendo um pensamento com-
passivo, dizendo uma palavra bondosa, pegando uma folha de
grama, alcançando uma fruta no pé, sentando-se ao sol para sentir
seu calor ou tocando a terra com os pés descalços. Em resumo,
sadhana é permanecer consciente da ligação que nos mantém
dançando ao ritmo das vibrações cósmicas. Nossa percepção
contínua desta conexão constitui o coração da sadhana.
Uma história védica ilustra a coragem e a beleza da vida
humana quando reconhecemos o espírito que habita dentro de
nós. Um cervo saiu procurando a fonte do maravilhoso aroma
almiscarado que estava no ar. Ele procurou longe, por toda a
79
floresta, sem perceber que o cheiro, na verdade, vinha dele
mesmo. Ao contrário deste cervo que buscava a fonte do próprio
aroma, temos a capacidade de reconhecer nosso próprio cheiro
"almiscarado" — a consciência dentro de nós. Depois de
desenvolvermos esta consciência, ficamos mais atentos às nossas
atividades e a todos os momentos do nosso existir. Ao nos
aproximarmos do espírito, passamos a viver no presente, e
cessamos nossa eterna preocupação com o que virá depois.
Quando permanecemos atentos a cada instante,
preenchendo nossos dias com as práticas nutrientes que
regeneram o corpo, a mente e o espírito, curamos a nós mesmos e
ajudamos os outros a se curarem. O caminho da prática nos ajuda
a encontrar nossa própria voz e trilhar nosso verdadeiro caminho.
Só então poderemos viver uma vida de simplicidade, em real
harmonia com os ritmos cósmicos.
A natureza nos dá uma base variada para a prática
espiritual. Podemos começar a sadhana prestando atenção ao
óbvio: o som das gotas de chuva caindo no lago, o cheiro do ar
fresco em uma manhã de primavera, o gosto do primeiro pêssego
do verão, o frio dos ventos que anunciam o inverno. O som, o
cheiro, o gosto e a sensação da natureza despertam
imediatamente a nossa consciência. Podemos imitar a experiência
da natureza em nossa própria cozinha, sentindo o aroma rico da
ghi ao ser preparada (ver receita na p. 319) ou picando legumes
em suas linhas de vida (as linhas de força vital inscritas em todos
os alimentos, através das quais eles recebem energia e vitalidade
da Mãe Terra). Quando treinamos nossa mente para observar os
detalhes mais simples e evidentes, como por exemplo a "linha
vital" de um alimento, estamos vivendo espiritualmente de forma
pacífica. A escritura Tamil Tirukural aconselha: "Qual é o bom
caminho? E o caminho que tenta evitar machucar ou lesar qual-
quer ser vivo." Quando adotamos este tipo de prática, nossa
respiração se move com facilidade, a mente se torna pacífica, e a
inspiração aparece.
A sadhana é a prática da meditação em movimento, e
esta prática é como um lótus. Profundamente enraizado na lama,
o lótus expressa sua essência em uma linda flor. Como o abrir-se
das pétalas do lótus, a sadhana deve ser gradual e contínua em
nossa vida, em consonância com os ritmos da natureza. Estas
práticas podem fazer de cada momento uma meditação. Como
80
resultado, despertamos para nosso propósito e nossa memória
individual, atingindo a compreensão de que o Ser é sagrado.
Pratique sadhana como uma ação divina. Pratique para
refinar suas ações e não pelos resultados aparentes. Plante uma
semente de alegria apenas pelo prazer de plantar. Viver na sa-
dhana vivifica nossa aliança com o universo. Ao praticar de
acordo com os ritmos cósmicos e desistir de controlar nossa vida
e a natureza, o senso de separatividade da presença da Mãe
Divina se evapora, juntamente com nossa dor e nossa sensação
de luta pela vida.
Termine todas as ações que começar. Os ritmos da
natureza pedem que cada ocorrência chegue ao seu final. Ao
terminar cada ato iniciado, você pede ao universo que lhe dê
tempo para restaurar as energias naturais. A cada ação terminada
se-gue-se um sentimento de exuberância — a alegria que surge
depois de plantar os campos naquele ano, terminar um quadro, ou
lavar os pratos depois de uma refeição deliciosa e saudável. O
coração se torna leve e bem resolvido, e o prana flui suavemente
por ele. O espírito da graça, trazendo gratidão pelas dádivas
recebidas, é fortificado.
Sempre que termino um projeto, separo alguns dias para
sentar-me em silêncio ou encontro outra forma de renovar meu
espírito e minhas energias. Recentemente terminei dois pro-
gramas de treinamentos intensivos, que duravam uma semana
inteira cada um. Em vez de mergulhar de cabeça na próxima
obrigação, decidi visitar minha mãe, que vive a várias horas de
distância de mim. Ela estava no processo de se mudar para uma
nova casa, e senti-me abençoada por poder passar algum tempo
com ela, ajudando-a a empacotar os objetos e se aprontar para a
mudança.
Enquanto arrumávamos suas coisas, separando o que ela
queria manter e o que seria dado, compartilhamos muitas lem-
branças. Rimos e choramos ao rememorarmos vários incidentes
de minha infância na Guiana, e eu realmente senti a presença da
Mãe Divina em minha própria mãe. As tarefas simples que
compartilhamos — preparar o mingau de aveia matinal, lavar a
roupa, encher as caixas com roupas e objetos, todas elas ajuda-
ram a descansar minha mente e a renovar meu prana, de forma
que voltei para casa ansiosa para dar início ao próximo projeto.
Uma tarefa terminada com um "muito obrigada" se torna uma
81
invocação à Mãe Divina. Mas precisamos reservar o tempo
necessário para executar a tarefa, e também para assinalar seu
fim. O primeiro passo é reordenar e recuperar o caminho da sa-
dhana na vida cotidiana, para que possamos resgatar os padrões
universais e os ritmos necessários para a saúde e a consciência.
Apesar de nos últimos dois séculos ter havido um grande lapso
nas tradições de sadhana, ainda podemos ser catalisadores de
uma consciência mais elevada por meio do exemplo e do esforço
individual. Como escreve Robert Muller em Birth of a Global
Civilization: "A espécie humana está passando por uma enorme
transformação. Por intermédio da espécie humana, o universo se
torna consciente de si mesmo."
Você pode iniciar sua jornada visando à integração do
corpo, mente e espírito através das três sadhanas principais da
respiração, do som e da alimentação. Cada uma delas é essencial
à existência: não podemos funcionar sem a respiração; estamos
imersos no som do coração de nossa mãe e dos ritmos biológicos
desde o momento da concepção; e somos dependentes das
dádivas de alimentos que a natureza nos oferece para nosso
sustento e crescimento.

TRÊS ESTÁGIOS DIFERENTES DA SADHANA DA


NATUREZA: OJAS, PRANA E TEJAS

De acordo com os Vedas, três estados são os responsáveis pelo


surgimento da criação: ojas, prana e tejas. Para citar a Svetas-
vatara Upanishad: "O incriado criador de tudo é a Consciência
Pura. Ele é o criador do tempo, o todo-poderoso, o onisciente.
Ele é o Senhor do Espírito e das três condições da natureza."
Assim como a respiração, o som e o alimento estão integralmente
conectados entre si, as três essências cósmicas das quais estes se
originam também estão. De certa maneira, eles podem ser
considerados como os fatores imunológicos do corpo, porque é
impossível manter a vida sem eles.
Assim como não podemos separar corpo, mente e alma,
também não podemos separar ojas, prana e tejas. Os três são
interligados: se o prana se tornar desequilibrado, tejas e ojas
também entrarão em desequilíbrio. Funcionam como uma uni-
dade inseparável e preparam nossa consciência para se tornar
viva. Podemos considerar ojas como a nutrição da alma, prana
82
como a respiração da alma, e tejas como a vibração da alma. De
uma perspectiva universal, ojas é o recipiente onde prana e tejas
são levados, insuflando vida na manifestação.
Ojas traz a memória cósmica para a Terra por meio dos
alimentos na natureza. Prana traz a força vital para a terra por
intermédio dos movimentos da natureza. Tejas traz a vibração
cósmica para a Terra por meio dos sons harmoniosos da natureza.
Nós obtemos a nutrição essencial de nossas três essências através
das sadhanas da respiração, do som e do alimento.
Ojas, que mantém nosso corpo físico, nossos ritmos e
impulsos, é o responsável pelas funções internas do corpo. Ojas,
que significa o brilho da saúde que revela um sistema imuno-
lógico forte e vibrante, é a força da água, que nos permite manter
a atividade de nossas vidas.
Prana é o responsável pela respiração, intuição e
memória (ou por nosso corpo astral), e anima nossa força vital. A
força mais penetrante em nossas vidas, é formado pelo elemento
ar que criou o corpo astral, a fonte de nossa força vital, além das
emoções do entusiasmo, da coragem e da alegria.
Tejas, o fogo sutil de nossa mente, torna o som cósmico
audível e produz nossos poderes interiores de transformação,
nossa voz interna e nossa intuição. Tejas dá vida ao som cósmico
e gera nossa capacidade de mudar. E responsável pela manu-
tenção do componente mais sutil de nosso corpo, o corpo causal.
Da mesma maneira, as projeções cósmicas do alimento,
da respiração e do som também são inseparáveis. Quando abraça-
mos uma forma de sadhana, inevitavelmente estamos abraçando
também as outras duas. Esse foi o caso, por exemplo, de Jody,
uma jornalista que fez comigo um workshop de fim de semana
para pacientes de câncer, muitos anos atrás, em Nova York. Jody
havia sido diagnosticada havia alguns meses com câncer de
fígado, e já tinha feito uma cirurgia para remover o tumor. Seu
médico acreditava que com quimioterapia ela provavelmente
poderia sobreviver. Apesar do prognóstico positivo, Jody se
sentia sem esperanças e deprimida com a situação. Mais tarde,
ela me contou que decidira ir ao satsanga (reunião com um
instrutor espiritual) porque achou que eu talvez lhe oferecesse
algum conselho espiritual ou conforto.
Jody ouviu atentamente, até mesmo anotando algumas
coisas, enquanto eu falava sobre formas védicas de vida, mas eu
83
podia ver na expressão de seu rosto que perdera o interesse assim
que comecei a descrever as práticas alimentares que haviam me
ajudado tanto durante minha própria recuperação. Durante um
dos intervalos, perguntei a ela se pretendia tentar qualquer uma
das sadhanas de preparação de alimentos e receitas que
acabáramos de discutir. "Acho que não", disse ela. "Estou
ocupada demais com meu trabalho, e além disso detesto
cozinhar."
Fiquei impressionada com a veemência de sua resposta, e
pedi que me contasse alguma coisa a seu respeito. Ela contou
como seu trabalho exigia muito dela, o quanto de sua vida era
ocupada por prazos e pela pressão para conseguir a próxima
matéria. A seguir, ela mencionou quase por acaso que no passado
tivera uma outra carreira totalmente diferente, a de pianista. "Mas
não conseguia sobreviver de música, e sempre tive facilidade
para escrever, por isso entrei para o jornalismo", disse ela. "Faz
anos que não chego perto de um piano. Hoje em dia, não tenho
tempo nem para ouvir música."
Ao se separar do instrumento de expressão criativa que a
música representava, Jody havia cortado sua ligação com as
vibrações cósmicas, com tejas. A alegria que o piano lhe dera no
passado havia sido substituída por raiva e ressentimento. "Você
estaria interessada em retomar o piano?" perguntei. Ela sacudiu a
cabeça, não, esta parte de sua vida estava encerrada. Mas
concordou com minha proposta de que, como parte do processo
de cura, iria separar um tempo todos os dias para ouvir algumas
das suas gravações favoritas de música clássica.
Um mês mais tarde, Jody me enviou uma carta dizendo
que se sentia muito feliz por ter redescoberto os prazeres da
música. Começara, inclusive, a visitar regularmente uma amiga
que tinha um minipiano de cauda, para poder tocar de novo.
"Minha técnica está muito enferrujada", disse ela, "mas assim
que coloco meus dedos no teclado sinto uma felicidade profunda,
minha velha conhecida, que me tem feito tanta falta há tanto
tempo."
Eu respondi sugerindo que adicionasse à sua prática os
cantos que eu havia ensinado no workshop. Logo depois disso,
recebi um pacote de Jody — uma fita dela cantando meus
cânticos e acompanhando a si mesma no piano. Ela adicionara
também um bilhete: "Sinto-me muito melhor, e tenho mais
84
esperanças de recuperação. Diminuí um pouco minha carga de
trabalho, e estou tentando incorporar à minha vida mais práticas
aprendidas no workshop. Mas ainda não quero fazer a sadhana da
alimentação."
Minha próxima sugestão para Jody foi que ela comprasse
um suribachi, um almofariz e pilão redondos japoneses usados
para moer temperos. Os músicos tendem a gostar do suribachi,
porque quando os usam criam padrões de sons rítmicos contí
nuos. "Eu sei que você não quer cozinhar, Jody, mas gostando de
som como você gosta, vai se divertir fazendo música em sua
cozinha", escrevi.
Não fiquei surpresa quando Jody me informou na carta
seguinte que fizera as pazes com a cozinha, tendo até mesmo
feito diversos masalas ensinados no workshop (ver as receitas
nas pp. 308-310). Logo depois disso, ela escreveu que começara
a fazer pratos completos, combinando o canto com a cozinha. Da
última vez que recebi notícias dela, gozava de saúde e estava
otimista, e começara a praticar ioga, meditação e outras
atividades que fortalecem a respiração.
No caso de Jody, a atividade de uma das sadhanas — o
som — atraiu as outras sadhanas e energias para sua vida, de
forma que todas acabaram se alinhando. Talvez você queira
começar sua prática com alimentação ou com respiração, sa-
bendo que não importa onde comece, porque todas estas energias
logo estarão harmonizadas. Mais adiante neste livro, darei
instruções práticas para resgatar as sadhanas da respiração, do
som e da alimentação, para que você possa viajar de forma se-
gura e com sucesso entre as diversas dimensões de seu ser, ex-
plorando o imenso mundo da energia, da memória e do espírito.

85
CAPÍTULO 4
O PODER NATURAL DO SHAKTI-PRANA
0 poder que é Consciência em todos
os seres
Reverência a Ela, Reverência a
Ela, Reverência a Ela
A força que existe como Shakti em
todos os seres Reverência a Ela, Reverência a
Ela, Reverência a Ela
- Devi Mahatmya

Minha herança espiritual védica retrocede mais no tempo do que


a tradição S h a k t a da índia, onde a religião da Deusa ainda
floresce e a Mãe do cosmos é uma realidade viva nos corações e
mentes de milhões de devotos. Quanto mais nutrimos a semente
da Mãe dentro de nós, mais participamos de sua extraordinária
energia. Por exemplo, à medida que a presença da Mãe foi
despertando dentro de mim durante a minha recuperação, eu tive
diversas intuições sobre o que ocorria em meu corpo sutil e
espiritual. A S h a k t i é a força mais poderosa da Mãe dentro de
nós e do universo.

O PODER DA
KUNDALINI-SHAKTI
Como a força ativa de manifestação, a Mãe Divina é muitas
vezes retratada como k u n d a l i n i - s h a k t i e simbolizada pela
serpente. A palavra sânscrita k u n d a l na verdade significa
"aquela que está enrolada". A energia da serpente também
representa a respiração da Mãe e seus ritmos dentro de nós. A
serpente está associada às deusas de diversas culturas pelo
mundo afora. Coatique, a mãe das deidades astecas, é chamada
"Aquela que tem a Saia de Serpentes". A Sacerdotisa Minoana da
Cobra em Creta é uma Deusa. Na cultura maia da América
Central, a deusa da lua, Ixchel, usa a serpente como uma coroa na
cabeça. No Egito, o hieróglifo para "serpente" também representa
a palavra "deusa".
A energia da k u n d a l i n i - s h a k t i "dorme" no chacra
raiz, o centro de energia localizado na base da coluna, onde ela é

86
retratada enrolada três vezes e meia ao redor do lingam, o
símbolo de Shiva. A poderosa energia da k u n d a l i n i - s h a k t i
influencia e controla os ritmos do corpo, mente e espírito. Tanto
homens quanto mulheres podem evocar as experiências da
k u n d a l i n i , que não é de forma alguma um fenómeno
exclusivamente feminino. Antigas imagens em pedra mostram
Shakti com a serpente k u n d a l i n i emergindo de sua y o n i , ou
vagina, um símbolo poderoso da energia feminina e do potencial
de transformação espiritual. O movimento da serpente subindo
pela coluna resulta em iluminação.
Eu já tive diversos encontros pessoais com os
movimentos da k u n d a l i n i depois de anos de prática de
s a d h a n a , meditação e silêncio. Quando o s u k s h m a -
p r a n a — a respiração sutil — começou a ficar mais forte
dentro de meus chacras, minha k u n d a l i n i - s h a k t i foi
despertada e começou sua subida celestial pelo canal central de
minha coluna, um processo que durou três anos. Neste período,
todos os meus sentidos ficaram mais refinados, especialmente a
intuição, e em muitas situações eu conseguia "enxergar" a
situação de uma pessoa antes que ela ou ele me desse qualquer
informação sobre a natureza do problema.
Um dia, quando eu saí do lado de fora de minha casa para
apanhar a correspondência, meus pés de repente se elevaram do
chão, e eu flutuei até a caixa de correio. Um de meus vizinhos,
que estava passando, me cumprimentou com um aceno,
aparentemente sem achar que nada de extraordinário estivesse
ocorrendo. Eu entendi que meu corpo sutil havia se elevado, mas
o corpo físico continuava no chão. Este fenómeno aconteceu
diversas vezes durante minhas meditações. De repente eu sentia o
corpo se elevando do chão enquanto o p r a n a latejava do lado
direito de minha têmpora.

87
7.Chacra Sahasrara (o de
mil pétalas). Localizado
além do tempo, do 6. Chacra Ajna
espaço, e dos elementos. (poder infinito). Localizado
Rege a Consciência além dos elementos.
Infinita. Rege as Visões.

88
.

5.Chacra Vishuddha
(o puro). Elemento:
espaço
Rege a Expressão.

4.Chacra Anahata (o
som espontâneo). 3. Chacra Manipura (o
Elemento: Ar. Rege a local das jóias).
Intuição e a Compaixão Elemento: Fogo. Rege o
Mental.

2.Chacra
Svadhisthana (o local de
assento do eu). Elemento
1.Chacra
Água. Rege o Ego e a
Muladhara (alicerce ou
Sexual idade.
raiz). Elemento: Terra.
Rege a Sobrevivência.

Sete chacras: emitindo a energia kundalini: o movimento das energias


lançadas pelos chacras. Cada chacra está enraizado na sushumna, um canal
localizado ao longo da espinha dorsal e emana sua própria energia,
interagindo com a energia dos outros chacras.

89
Enquanto a k u n d a l i n i subia dentro de mim, durante
muitas semanas a parte interna de meu corpo queimou: o fogo da
Mãe limpando as impurezas de meu corpo. Muitas vezes eu a
sentia esbarrando em minhas têmporas como nuvens passando
por meu rosto, ou como a carícia de plumas macias. Vivi por uns
tempos em estado de êxtase, e nessa época tudo o que eu en-
xergava, dentro e fora de mim, era dourado. Eu via em tudo a luz
da Mãe e de seu filho celestial, Surya, o sol.
Em minha mente eu ouvia preciosas melodias védicas,
que mais tarde identifiquei como canções do A t h a r v a V e d a
e da C h a n - d o g y a U p a n i s h a d . Uma destas canções diz:
"Agora, a imagem dourada vista dentro do sol tem uma barba
dourada e cabelos dourados. Ele é lindamente luminoso, até as
pontas dos dedos. Seus olhos são como o lótus de Kapyasa. Seu
nome é o Elevado. Ele está acima de todas as impurezas do
mundo. Na verdade, aquele que tem ciência destas coisas se eleva
bem alto."
Depois que as energias da k u n d a l i n i foram se
acalmando, percebi que minha intuição espiritual havia
aumentado na mesma medida que a s h a k t i aumentara. A
s h a k t i é o espírito de nossas energias femininas internas
primordiais, e sua atividade promove a união de corpo, mente e
espírito. Os ritmos da deusa Shakti estão em movimento dentro
do corpo de cada homem, mulher, criança ou criatura, por meio
do s h a k t i - p r a n a , ou respiração da Mãe, que permeia os dois
chacras inferiores localizados perto do períneo e do osso sacro. O
s h a k t i - p r a n a é a força vital do organismo, e protege os
órgãos do sistema reprodutor, em especial a energia feminina
primordial da Shakti contida em nossos órgãos genitais, útero e
abdómen. Ele também nos confere o poder de criar a vida, mover
energia, e curar a nós mesmos. Trabalhando com mulheres no
mundo todo, tenho presenciado grandes milagres quando as
90
mulheres se tornam conscientes de seu poder de s h a k t i .
Devemos resgatar a consciência do sagrado feminino dentro de
cada uma de nós, para podermos evocar a energia curadora para
homens e crianças, por intermédio da s a d h a n a .
O poder da s h a k t i é mais do que o espaço do útero e a magia
tradicional de trazer vida nova ao mundo. O útero tem uma
função divina, que é guardar e nutrir os poderes de cura da Mãe
contidos dentro de nós. Ao trabalhar com sua s h a k t i , você
descobrirá a saúde física e espiritual. Ao fazer isso, como mulher,
você estará afetando e influenciando o bem-estar de todos os
seres vivos.

ENERGIA LUNAR

Os videntes védicos nos ensinam que a


s h a k t i de uma mulher — seu poder, sua
fertilidade, sua capacidade de nutrir — está
ligada ao ciclo lunar e à substância sagrada da
Mãe Lua. Os antigos chamavam os dias
escuros da lua de "lua de mulher" ou "lua de
descanso", ligando o estado físico, emocional
e espiritual da mulher ao ciclo lunar. Energia lunar Muitas
outras culturas também reverenciaram a ligação sagrada da
mulher com a lua. Os camponeses alemães chamavam o sangue
menstrual d i e M o n d , a lua. Os franceses chamavam de l e
m o m e n t d e l a l u n e , o momento da lua. Na índia, uma veia
específica da vagina é chamada de c h a n d r a - m a u l i , a regida
pela lua, e a vagina propriamente dita é conhecida como
c h a n d r a - m u k h a , a cara da lua.
Na antiguidade, a primeira vez que a lua crescente era
vista emergindo das profundezas do horizonte ocidental constituía
motivo de alegria e comemoração. A lua crescente representava a
ressurreição da Mãe — uma metáfora para o ciclo menstrual
feminino. Uma canção dos pigmeus do Gabão relata o relacio-
91
namento íntimo das mulheres com a lua: "Lua, Oh Mãe Lua, Oh
Mãe Lua, Mãe de todos os seres vivos, ouça a nossa voz, Oh Mãe
Lua. Mantenha longe de nós os espíritos dos mortos. Ouça a
nossa voz, Oh Mãe Lua, Oh Mãe Lua, Oh Mãe Lua."
A lua passa seu dom de nutrição para os alimentos da na-
tureza e para os tecidos do corpo, e controla a nota musical da
batida de nosso coração e as curvaturas da respiração. Ela man-
tém também a essência da vida e da procriação dentro do útero da
mulher. Da mesma forma que as marés oceânicas são afeta-das
pelos movimentos da lua, também as águas do útero são afetadas
da mesma forma.
Os ritmos naturais femininos são sustentados pelos ciclos
mensais menstruais. Nossas primeiras ancestrais femininas sa-
biam desta verdade a nível celular. Profundamente harmonizadas
com os ciclos naturais, elas menstruavam com a lua nova, quando
a energia o j a s da lua (que protege o corpo físico) está em seu
ponto mais baixo, e as energias absorventes do sol estão em seu
ponto máximo. Quando o sangue menstrual começava a fluir, elas
se separavam dos homens e crianças para observar a s a d h a n a
do descanso e da renovação. A lua nova era a época em que as
mulheres temporariamente abandonavam o fardo das
responsabilidades, para se concentrarem apenas na auto-re-
novação e na autonutrição, dentro de um espírito de irmandade e
comunidade.
Em nossa era pós-industrial, o uso de pílulas e
dispositivos anticoncepcionais, terapias hormonais, antibióticos, e
a alteração química das fontes mundiais de alimentos
desequilibraram os ritmos internos do corpo, fazendo com que
nossos ciclos menstruais saíssem de alinhamento com o ciclo
lunar. Esta falta de alinhamento prejudica o fluxo do s h a k t i -
p r a n a , o p r a n a sutil feminino básico, o que por sua vez
produz desequilíbrios hormonais e doenças.
92
A energia s h a k t i oferece uma ampla base para a cura de fe-
rimentos físicos e emocionais. Todas as células, tecidos e lem-
branças do corpo de uma mulher são permeados pelos bilhões de
anos de memórias e energias herdadas da s h a k t i da Mãe
Divina. O leite Dela flui em nossos seios, e quando a lua está
cheia Seu néctar percorre nossos úteros, determinando a época da
ovulação. Durante a gravidez, enquanto nossas barrigas incham
com a vida nova, nós imitamos a Mãe Shakti e engordamos, indo
da magreza prateada da lua crescente para a plenitude redonda da
lua cheia. A Mãe que nos cerca também está dentro de nós sob a
forma de s h a k t i - p r a n a .
Nosso s h a k t i - p r a n a circula através e ao redor do
útero, a área de maior vulnerabilidade da mulher. Esta é uma lição
que aprendi pessoalmente. Muitas vezes nós não reconhecemos a
santidade do útero, nem do p r a n a sagrado que o governa. Aqui
está o paradoxo do s h a k t i - p r a n a : esta profunda fonte
feminina de poder também torna as mulheres extremamente
suscetíveis a doenças. Quando você cuida de seu útero, honrando
o s h a k t i - p r a n a , você harmoniza sua força vital feminina e se
protege das doenças.
Desde a minha recuperação do câncer ovariano venho
tentando educar e informar as mulheres sobre a energia s h a k t i
e sua ligação com o ciclo lunar. Menstruar com a lua nova é a
principal prática para recuperar a saúde. A cada ano, eu ajudo
quase mil mulheres a realinhar seus ciclos menstruais com a lua
nova. Muitas mulheres conseguem alterar seus ciclos após três
meses de prática consciente, mas algumas levam até seis meses
ou mais. A maioria das mulheres relata uma grande melhora em
sua saúde tão logo o ciclo menstrual começa a fluir com a lua
nova.

93
O CICLO LUNAR FEMININO

O primeiro passo para fortalecer o s h a k t i - p r a n a é se


familiarizar com seus ritmos internos. Todas as criaturas se
curvam à cadência da natureza. Os machos de todas as espécies se
movem com os ritmos do sol. As fêmeas de todas as espécies se
movem com os ritmos da lua. Mulheres nativas medem o passar
dos anos pelo número de filhos que deram à luz, e marcam a
passagem dos meses pelos ciclos menstruais. Para ajudá-la a
marcar seus ciclos, eu gostaria que usasse um calendário que
mostre as fases da lua. O simples fato de saber se a lua está em
fase crescente ou minguante ajuda a entrar em sintonia com o
ritmo natural. Sugiro também que você anote em seu calendário
lunar as datas para executar certas s a d h a n a s que descreverei
mais tarde.
Nossa menstruação afeta diretamente o s h a k t i -
p r a n a , porque o ciclo mensal é um dos meios básicos de
revitalização, limpeza e restauração deste p r a n a . Com base em
minhas experiências e minha intuição, acredito que a cultura
védica honre o s h a k t i - p r a n a por reconhecer que o sangue da
mulher é o assento de sua s h a k t i , e que este sangue contém o
potencial da Mãe Divina para produzir vida nova e renascimento.
Os videntes atribuíram estes fenómenos ao h i n d u vermelho, a
semente cósmica da Deusa Shakti localizado no chacra raiz, onde
fica a k u n d a l i n i . Quando o s h a k t i - p r a n a está forte, o
h i n d u funciona como um ímã, puxando a energia da lua para
revitalizar o útero. O ritmo do h i n d u vermelho também faz com
que as mulheres descartem o revestimento do útero na época
apropriada, durante a fase da lua nova, de forma que os níveis
hormonais se restabeleçam naturalmente.
Níveis hormonais desequilibrados, juntamente com
nutrição de má qualidade, estresse, excesso de exercício, e uma
indiferença geral pelos ritmos naturais são as causas principais de
problemas menstruais tais como amenorréia (ausência do período
menstrual) ou menorragia (sangramento menstrual excessivo).
94
Por mais que estas condições prejudiquem nossa saúde e nossa
vida, curá-las pode ser um processo bem simples, usando-se
métodos naturais para restaurar o s h a k t i - p r a n a . Jennifer,
uma jovem mulher que mora perto de minha escola na Carolina
do Norte, veio me procurar porque não havia menstruado durante
seis meses. Ela não estava grávida, e com trinta e um anos de
idade era ainda jovem demais para a menopausa. Além de não ter
uma menstruação regular, Jennifer também se sentia inchada e
letárgica, queixando-se de insónia, e dizendo que muitas vezes se
sentia congestionada.
Minha primeira pergunta, como sempre, foi, "O que está
ocorrendo atualmente em sua vida?"
"Estou aborrecida porque acabei de perder meu emprego ', disse
ela. "Nos últimos oito meses eu trabalhava no departamento de
marketing de uma empresa que vende alimentos orgânicos. Então
eles decidiram mudar sua sede para outro estado. Queriam que eu
fosse junto, mas meu marido está fazendo pesquisa na
universidade local e não pode deixar o laboratório."
"Você gostava de seu trabalho?" perguntei.
"Gostava demais", respondeu ela, enfática. "Antes disso,
fui chefe de cozinha por sete anos, o que significava trabalhar
cinco noites por semana até a meia-noite. Eu ficava tão ligada que
não conseguia ir para a cama até duas ou três horas da manhã.
Passava a maior parte do dia dormindo e pouco via meu marido.
É claro que agora que estou desempregada, voltei a ser uma
coruja. Fico acordada até tarde, vendo TV, e depois durmo até as
onze da manhã."
A razão de Jennifer não menstruar não tinha nada a ver
com o estresse de perder o emprego. Ao passar a dormir com o
sol e a acordar com a lua ela havia interferido nos ritmos naturais
do corpo. Meu conselho inicial foi que ela retornasse a um ho-
rário mais normal de sono, levantando às seis ou sete e fazendo
95
uma caminhada, mas com a advertência de evitar qualquer ex-
cesso de exercícios por enquanto. Aconselhei-a a cozinhar ali-
mentos integrais, algo que eu sabia não constituir problema uma
vez que ela gostava de cozinhar. Também lhe disse que durante o
ciclo da lua escura (uma semana antes e uma semana depois da
lua nova) ela devia tomar doses de t r i k a t u duas vezes ao dia,
uma combinação de p i p p a l i (um tipo de pimenta), mais pimen-
ta-do-reino e gengibre, que dão fogo ao corpo. Por fim, sugeri
banhos mornos e uma massagem na base da coluna com gengibre
fresco ralado, enrolado em um pano de prato ou um lenço.
Jennifer começou a menstruar de novo no mês seguinte
durante a lua nova. Seu s h a k t i - p r a n a , que estivera
estagnado, foi revivido e a letargia desapareceu rapidamente.
Num instante seu ânimo melhorou. Da última vez que falei com
ela, quatro meses mais tarde, ela ainda não havia encontrado
trabalho, mas estava menstruando normalmente por ocasião da
lua nova, e sentia-se otimista em sua busca por um novo emprego.

SADHANAS PARA AS MULHERES

De acordo com o Ayurveda, todos os problemas relacionados ao


útero — puberdade prematura, menstruação irregular, fraca ou
excessiva, síndrome pré-menstrual, infertilidade, infecções vagi-
nais, doenças venéreas, osteoporose, câncer de útero, de ovário e
de mama, e má formação congénita, para citar apenas alguns,
estão ligados ao ciclo menstrual. Portanto, não é surpreendente
que as mulheres sejam especialmente vulneráveis aos desequi-
líbrios entre a mente e o corpo quando estão menstruando. Tanto
quanto possível, durante seu ciclo menstrual, você deveria reduzir
e desacelerar as atividades, deixando apenas aquelas realmente
indispensáveis, para que o corpo possa experimentar um mínimo
de estresse. Evite banhos prolongados e limite-se a chuveiradas
rápidas e frescas, ou a banhos de esponja. Abstenha-se de
atividades sexuais. Evite também as s a d h a n a s dos alimentos
para impedir que as poderosas energias do sangue menstrual
96
penetrem na alimentação. Mantenha uma dieta leve, mas nutriti-
va, de saladas, sucos frescos, grãos leves (arroz b a s m a t i ,
painço, cuscuz, pau-roxo), massas, tofu, folhas verdes e frutas
frescas. Os chás de ervas, como, por exemplo, de framboesa,
rosas orgânicas, menta, gengibre, limão, lúpulo e camomila,
também ajudam a trazer revitalização nesta época, da mesma
forma que qualquer alimento tradicional que traga alegria ao seu
espírito.
Mesmo que os seus ciclos não coincidam mais com os rit-
mos da lua, você pode observar as s a d h a n a s descritas abaixo,
que ajudam a restaurar os ciclos naturais. Se você já entrou na
menopausa, deve continuar a praticar estas s a d h a n a s por al-
guns dias durante a lua nova até os sessenta anos de idade. Esta
prática ajudará a manter níveis hormonais saudáveis, fortalecendo
os ritmos naturais de seu s h a k t i - p r a n a e a vitalidade do
espírito feminino.
A lua cheia é a época natural para usufruir e festejar a
feminilidade. Quando a lua está cheia, você fica sob uma
influência refrescante e produtora de o j a s , que inspira a
ovulação e aumenta a vitalidade e o impulso sexual. É a época
natural para fazer sexo e para praticar as s a d h a n a s como
aromaterapia, banhos mornos e fragrantes, e massagens com óleo.
Alimentos produtores de o j a s também são recomendados, tais
como: leite orgânico, panquecas, crepes, pães feitos em casa,
sopas, caçarolas, risotos, polenta, grãos integrais e grãos partidos
(trigo sarraceno, cuscuz, arroz integral, arroz b a s m a t i , arroz
arbóreo), feijões, massas, legumes frescos, saladas e sobremesas,
tais como pudins, tortas de frutas, tortas ácidas e s t r u d e l s .
Também alimentos tradicionais que enfatizem o espírito de
abundância e a celebração são apropriados para esta época.

SADHANAS DA LUA NOVA

97
As práticas descritas abaixo a ajudarão a fortalecer seu s h a k t i -
p r a n a , reequilibrar o sistema hormonal e rejuvenescer o útero e
o espírito feminino.

A Prática: Ativação da Respiração Solar para fortalecer o shakti-


prana.
Você pode começar a deslocar o seu ciclo menstrual para a lua
nova ativando a respiração solar (direita) alguns dias antes do
início da menstruação, independente da fase da lua em que o
ciclo ocorrer.
Deite-se do lado esquerdo, feche a narina esquerda, e
lentamente inspire e expire pela narina direita aberta. Faça isso
por alguns minutos, todos os dias, nos três dias que antecedem o
início de seu ciclo menstrual. A respiração solar, ou ha invoca o
poder do bindu vermelho, a shakti de seu chacra raiz, e ajuda a
reunir forças para coletar integralmente os resíduos menstruais
antes de expeli-los do corpo.

Yoni Mudra - O Selo do Útero

A próxima prática é chamada de yoni mudra (selo do útero). E a


mudra mais poderosa de todas para atrair o poder da Shakti para
nossos corpos e para nosso útero ou abdómen, fortalecendo e
apurando o p r a n a dentro de nós. Como as mudras enfatizam a
respiração, eles trazem consciência ao corpo sutil. Esta mudra
fortalece o s h a k t i - p r a n a e governa o sangue menstrual,
fazendo com que o fluxo comece na época da lua nova.
A yoni mudra é especialmente sagrada para as mulheres.
Entre outros benefícios, ela tranca a abertura do útero, portanto a
circulação do s h a k t i - p r a n a nesta região permanece dentro
do corpo, e fica mais forte. À medida que for praticando esta me-
ditação, você sentirá o movimento sutil da respiração na área do
chacra raiz. A respiração pode ser percebida como um movimento
leve, sinuoso e fibroso ao longo da coluna, ou como uma pressão
latejante na região do útero. Esta prática de cura é útil mesmo que
você já não esteja menstruando mais, ou mesmo que não seja
sexualmente ativa.

98
Você deve praticar a yoni mudra juntamente com a respiração
solar, nos três dias que antecedem a lua nova e a cheia. Também
pode usá-las sempre que sentir necessidade de revitalizar o
s h a k t i - p r a n a , c o m e x c e ç ã o dos dias da menstruação.
Como um lembrete para ajudá-la a fazer esta prática todos os
meses, assinale estas datas em seu calendário lunar.

A Prática: Yoni Mudra - Fortalecendo o shakti-prana


Sente-se em uma postura meditativa e junte as mãos em taça, com
as palmas voltadas para cima. Cruze o dedo mínimo da mão
direita sobre o dedo mínimo da mão esquerda e estenda
completamente os dois dedos médios de forma a se encontrarem
na ponta, formando uma pirâmide. Cruze os dedos anulares por
trás dos dedos médios estendidos e mantenha-os em posição com
os indicadores. Dobre os polegares para dentro, tocando as
bases dos dedos médios. Mantenha este gesto por pelo menos
cinco minutos.
Se seus dedos não forem flexíveis, você inicialmente pode
ter dificuldades em realizar esta complicada mudra, mas com o
tempo os dedos irão se acostumando e aumentando em flexi-
bilidade. Depois da primeira semana de pratica, os dedos co-
meçarão a dobrar com mais facilidade, e dentro de um mês, à
medida que o prana melhora o seu útero, você achará essa mu-
dra cada vez mais simples e satisfatória.

Yoni
mudra

99
A observar: Suspensão mensal das tarefas femininas Durante o
ciclo menstrual, a s a d h a n a básica consiste em permitir que a
riqueza do sangue flua de volta para a terra. Nos tempos antigos,
as mulheres se reuniam em um local que os homens haviam
preparado e destinado para este fim, e acocoravam-se no chão de
forma que seu sangue nutrisse a energia s h a k t i da terra. A
prática védica tradicional incentiva as mulheres a se revezar para
cuidar e alimentar as famílias das mulheres menstruadas. Você
também pode pedir a seu marido ou filhos mais velhos que
participem das s a d h a n a s de alimentos e tomem conta da
cozinha durante estes dias.

Sadhanas da Lua Cheia

No início da noite, durante os primeiros três dias de lua cheia,


comece a invocar a abundância e fertilidade de seu espírito fe-
minino através das três práticas que se seguem: a postura de
cócoras, a k a p a l a b h a t i (a respiração do fogo), e banhe-se nos
raios da lua cheia. Marque estes dias em seu calendário lunar,
para lembrar-se de desempenhar a prática da lua cheia.

A postura de
cócoras
100
A Prática: A postura de
cócoras - abertura do
feminino
Nos tempos antigos, as mulheres
ficavam de cócoras durante o
ciclo menstrual para devolver
seu sangue ã terra. Nossas
ancestrais femininas conseguiam
controlar o fluxo menstrual
porque estavamem perfeito al
inhamento com o poder da
shakti. Entretanto, o shakti-
prana das mulheres de hoje é
mais fraco, porque não fazemos
um uso adequado dele. Por esta
razão, é bom evitar fazer
pressão sobre o útero ou gerar
um fluxo de sangue
demasiadamente forte
acocorando-se durante a gravi-
dez ou o ciclo menstrual. A
postura de cócoras é
especialmente benéfica no
tratamento de doenças como
câncer de útero, ovários ou
mama, ciática, inferti1idade,
disfunções sexuais, disfunções
menstruais, infecções, dores de
cabeça, hemorróidas, prisão de
ventre, ressecamento excessivo
da pele; e na saúde materna em
geral após o parto. Mantenha-se
na postura de cócoras,
posicionando os pés a um
quadril de espaço um do outro,
separados e paralelos, e
dobrando os joelhos. Se não
conseguir que os calcanhares
permaneçam no chão, coloque
uma pequena almofada por
baixo dos calcanhares para dar
apoio. Incline-se levemente para
a frente, e descanse as palmas
das mãos no chão. A seguir,
expire vigorosamente pelas duas
narinas. Depois de haver
esvaziado os pulmões, inicie
uma série de inspirações e
expirações suaves, mantendo a
postura. Continue por cinco
minutos. A seguir, passe para a
próxima prática.

A Prática: Kapalabhati -
a respiração do fogo
A respiração ê um exercício de
purificação para todas as

102
pessoas, e especialmente
benéfica para as mulheres. 0
abdómen funciona como um fole
que alimenta o fogo interior.
Para recarregar o shakti-
prana e a energia sexualmente
regeneradora, sente-se no chão
em uma posição confortável,
com as pernas cruzadas. Expire
forçando o ar para fora pelas
duas narinas por dezoito vezes,
de forma rápida e rítmica. Para
se assegurar de que está
expirando completamente,
coloque sua mão direita sobre a
barriga e sinta omovimento de
bombeamento do diafragma.
Depois, inspire profunda e
lentamente, e inicie uma nova
série de expirações rápidas.
A respiração
Kapalabhati é uma prática
poderosa que ativa o poder
magnético do bindu, a
shakti do chacra raiz. Ela
puxa a essência da lua cheia
para o seu útero e alinha suas
energias femininas com os
ritmos da lua. Você pode

126
praticar esta respiração nas
semanas da lua cheia, mas deve
evitar fazer isso na lua nova.

A observar: Banhando-se nos


raios da lua cheia Na prática
védica, as mulheres se reúnem
na terceira noite da lua cheia
para se banhar ou passear ao
luar, ou para se sentarem juntas
em meditação sob os raios da lua
cheia. As mulheres camponesas
da costa de Corentine, onde eu
cresci, reuniam-se para tocar
tambor e cantar canções para a
Mãe Lua. Elas cantavam
"Chandra ma ma,
Ayiye, ayiye, ayiye" —
uma invocação à Mãe Lua,
pedindo que esta se aproxime de
nós. As mulheres indianas hoje
em dia ainda se reúnem nos
primeiros três dias da lua cheia
para passar óleos fragrantes
umas nas outras e cantar canções
para a Mãe Divina. Eu convido
regularmente minhas alunas a
celebrarem comigo o ritual da
Lua da Terceira Noite. Nós nos

104
sentamos em um círculo, em um
local onde a lua cheia possa ser
claramente vista, tocamos o
d h o l a k (tambor tradicional do
norte da índia, semelhante a um
barril), e cantamos canções
védicas para a Mãe Divina.
Depois, observamos silêncio. Eu
incentivo as mulheres a
continuarem esta prática em
minha ausência, e muitas de
minhas alunas mulheres se
reúnem em pequenos grupos
para homenagear a Mãe Lua
com o ritual da Lua da Terceira
Noite.

O LEGADO DE NOSSAS
MÃES

É possível aprofundar o processo


de cura do s h a k t i - p r a n a ex-
plorando e reformulando nossa
relação com nossas ancestrais,
começando por nossa própria
mãe. O vínculo que temos com
nossas mães é profundo:
carregamos suas alegrias (e

126
dores) em nosso espírito, e seus
padrões de respiração e memória
celular em nosso s h a k t i -
prana.
Eu nunca havia dado
grande valor à minha mãe,
achando que ela estava lá e
pronto, mas depois da morte de
meu pai comecei a cultivar um
relacionamento mais íntimo e
mais caloroso com ela, e
também com minha mãe "mais
velha". Hoje em dia, amo
sinceramente as duas, e sinto-me
próxima delas. Muitas vezes nos
sentamos juntas para observar
cerimónias tradicionais, cantar
canções, ou simplesmente para
tocar o d h o l a k e o harmónio.
Suas energias e experiências
estão na raiz de minha intuição e
minha força.
Cada mãe teve um papel
diferente em minha infância: a

106
mãe mais velha tinha mais
autoridade dentro de casa. Ela
recebera mais educação formal
do que minha mãe biológica, por
isso me ajudava com meus
trabalhos de casa e com meus
diversos passatempos, inclusive
desenhando roupas e pintando
aquarelas. Minha mãe biológica
guiou meu desenvolvimento
espiritual e me ensinou as
orações diárias e os rituais. Ela
costumava me dar banho e
massagens, ensinando-me
também a plantar, colher e tomar
conta do jardim e da horta.
Se eu tivesse
permanecido mais próxima dela
durante meus primeiros anos
com certeza teria sido uma
pessoa mais saudável e mais
gentil. Quando conversamos
sobre o câncer de ovário,

126
descobri que ela também tivera
diversos problemas sérios no
útero. Quando eu nasci ela só
tinha dezessete anos, e foi um
parto longo e doloroso. Depois
disso ela teve um aborto natural,
dois partos por cesariana, e uma
histerectomia.
Eu já observei diversas
vezes que as mulheres que têm
relacionamentos difíceis com
suas mães também têm
deficiências em seu s h a k t i -
p r a n a e não conseguem se
conectar à energia purificadora
da Mãe Divina. A sensação de
separação da Mãe pode causar
raiva e frustração — dois
sentimentos que debilitam a
pessoa. Essas emoções
bloqueiam a capacidade de se
comunicar e de tocar a vida para
a frente. Você pode dar o

108
primeiro passo no sentido de
dissolver estas barreiras
emocionais reconhecendo que
grande parte da raiva e da
frustração vem de seus próprios
sonhos não realizados e de
desejos frustrados, assim como
de escolhas de vida que nunca
foram feitas, ou da necessidade
de viver a visão de uma outra
pessoa sobre como você deveria
viver sua vida. Por exemplo, eu
tentei ignorar meu chamado
espiritual escondendo-me atrás
do intelecto e de uma carreira
que exigia muito de mim.
Mantive-me distante de minha
mãe — a única pessoa que
sempre conheceu meu
verdadeiro propósito — porque
eu evitava meu próprio caminho.
Depois de minha recuperação,
entendi que a completa

126
honestidade de minha mãe me
incomodara — a mesma hones-
tidade que é hoje a origem de
meu espírito e do meu propósito.
Antes de podermos
começar a alterar nossa rota para
navegarmos em direção à luz, é
preciso primeiro d e s e j a r ir
além da raiva e do ressentimento
que sentimos contra nossas mães
ou outras ancestrais femininas.
Para iniciar o processo de
recuperação da confiança e do
amor maternos, recomendo um
exercício respiratório simples
chamado s i t a l i , ou respiração
da serpente, que esfria a
respiração e dissipa a raiva.

A Prática: O exercício da
respiração da serpente
Enrole sua língua formando um
U e inspire, o que produzirá um
chiado quando você inspirar.
Mantenha a respiração presa

110
por cerca de 20 segundos ou
mais, e a seguir expire através
das narinas. A respiração sitali
é excelente para começar a
resolver relacionamentos
difíceis com a mãe e para
diminuir a quantidade de fogo
no corpo e na mente.
Outro método simples de
dissolver a raiva é dizer a si
mesmo: "Não vã para este lugar.
Um pensamento raivoso é um
pensamento tóxico." Depois de
alguns anos de prática, a mente
começa a se policiar, e fica
difícil registrar um pensamento
raivoso.
Antes de podermos lidar
com as dores de nossas feridas
maternas, é preciso ser capaz de
apreciar as coisas femininas. A
natureza nos mostra a toda hora
como a energia feminina
permeia tudo que nos cerca. Nas
matas perto de minha casa,
observei uma corça
mordiscando porções de capim
fresco cheio de orvalho, e
gentilmente alimentando seu

126
filhote. Também fiquei olhando
encantada enquanto uma mãe
pintassilgo construía um ninho
no parapeito de minha janela
para colocar seus quatro ovos.
Depois que os filhotes saíram
dos ovos, ela os manteve sob
vigilância, só deixando o ninho
ocasionalmente para buscar
comida. Dez dias mais tarde, ela
levou os pequenos pássaros para
lhes ensinar o primeiro vôo. Eles
voltaram para o ninho naquela
noite pela última vez. Na manhã
seguinte, ao raiar do dia,
haviam partido. Estas criaturas
me mostraram a força e
vitalidade naturais de Shakti.
Todas as mães de todas as
espécies sabem instintivamente
quando suas crias precisam de
ajuda. Recentemente, escorre-
guei e rolei por uma encosta
cheia de lama. 0 telefone tocou
no instante em que entrei em
casa. Era minha mãe, dizendo:
"Tive um impulso de telefonar e
saber se tudo estava bem com
você." Talvez vocês tenham

112
histórias parecidas a contar
sobre seus encontros com a Mãe
Divina na natureza, ou com sua
própria mãe.
Apesar de algumas mulheres
serem mais prejudicadas do que
nutridas pelo contato com suas
mães, tais casos são exce-ções.
Em quase todos os casos, o
conflito pode ser resolvido e o
relacionamento refeito mediante
a observação de praticas
espirituais que mantêm o
coração aberto e a energia
desimpedida. Tente colocar de
lado as suas expectativas em
relação a quem você pensa que
sua mãe deveria ser, e "veja-a"
como ela realmente é. Este ato
sagrado de simplesmente "vê-la"
dissolverá a negatividade entre
vocês. Você pode cultivar
compaixão por suas ancestrais
femininas e reconhecer seus
esforços na vida se puder
enxergá-las como os
maravilhosos espíritos que
realmente são.
Você ficaria surpresa em ver

126
como gestos simples ãs vezes
podem significar tanto para
quem os recebe. Todos os
outonos, por exemplo, eu faço
buques de ervas de meu jardim e
distribuo para as mulheres que
me são mais caras. Ãs vezes eu
seco as ervas e faço saches,
borrifando neles óleos
essenciais. Também faço
preparados naturais para lavar
o rosto, usando mung dhal e sal
do Mar Egeu. Eu os coloco em
pequenos sacos de papel pardo,
e os amarro com folhas de
capim compridas e secas de meu
jardim. Um presente não precisa
ser caro, quando a intenção ê
transmitir ã pessoa presenteada
nosso carinho e atenção.
Você pode desejar recitar a
invocação que se segue em lou-
vor ã Mãe Terra, aquela que nos
alimenta, ou então rezar para
outra divindade pela qual tenha
devoção, para evocar a força
feminina que nos cerca.

Oh, Mãe Terra,

114
que nos dá
sustento, saúde e
sabedoria,
Guardiã dos
segredos mágicos
da Terra! Que eu
possa sempre
celebrar sua
beleza, sabedoria
e graça,
Que eu
possa sempre
encontrar a saúde
dentro de mim.
Preencha-me com
sua divindade e
sua visão, para
que eu possa
apreciar o
sagrado feminino,
presente em tudo o
que nos cerca.

CONECTANDO OS PONTOS
DA CADEIA DA SAÚDE

Além da ligação espiritual e


emocional com nossas mães, nós
também herdamos os ritmos

126
físicos da saúde delas. Como
conselheira espiritual de
centenas de mulheres com cistos,
tumores e câncer, notei que suas
doenças muitas vezes se relacio-
nam com a condição do útero
maternal durante a gravidez. As
mulheres podem se beneficiar
muito conhecendo as ligações
possíveis entre suas questões de
saúde e as das mulheres da
família, retornando no tempo
pelo maior número possível de
gerações.
A história de Claire é
uma ilustração disto. Conheci
Claire sete anos atrás quando ela
foi a um workshop para
mulheres dado por mim no New
York Open Center. Ela estava
então com trinta anos de idade.
Seis meses antes disto havia
descoberto um fibróide do
tamanho de uma g r a p e f r u i t ,
que continuava a crescer em seu
útero. Foi uma das primeiras

116
pessoas a se aproximar de mim
no intervalo do almoço. "Eu
queria evitar a cirurgia" disse
ela, depois de descrever o
tamanho e a localização do
fibróide. "Que terapias
ayurvédicas você pode me reco-
mendar?"
Perguntei se alguma
coisa difícil ou fora do habitual
ocorrera em sua vida nos últimos
dois anos. Seus olhos
imediatamente se encheram de
lágrimas. "Eu estava vivendo
com alguém, já fazia quatro
anos. Nos separamos há um ano,
por vontade dele."
A seguir perguntei,
como sempre faço ao tentar
diagnosticar a origem dos
problemas femininos, sobre o
relacionamento de Claire com
sua mãe. "Nós nos damos bem",

126
disse ela. "Mas ela é difícil às
vezes. Desde que se divorciou de
meu pai há cinco anos, ficou
nervosa e deprimida, e agora
toma medicação para
depressão."
Como parte de um
regime não-invasivo para ajudar
a reduzir o tamanho do tumor,
sugeri que Claire passasse algum
tempo conversando com a mãe
sobre as três últimas gerações de
mulheres da família, e as
dificuldades que pudessem ter
tido para dar à luz. Também
recomendei um regime nutritivo
da Wise Earth que inclui
vegetais orgânicos e ervas tais
como couve, endívia, radite e
mostarda, grãos integrais,
especialmente cevada e painço, e
feijões, tais como feijão
moyashi, aduki, soja, grão-de-

118
bico e feijão-preto, todos muito
bons no tratamento de fibrói-des.
Sugeri que tomasse banhos de
imersão em água morna com pó
de t r i p h a l a e gel de a l o e
v e r a , e também que tomasse
chá de framboesa, pétalas de
rosa e cravo vermelho.
Um mês mais tarde
Claire escreveu documentando
suas recentes descobertas. A
bisavó havia feito uma
histerectomia após dar à luz o
segundo filho, e a avó havia sido
submetida a uma cesariana no
nascimento da mãe de Claire. A
própria Claire era prematura,
tendo nascido cinco semanas
antes do prazo.
Da mesma forma que
suas ancestrais do lado materno,
Claire carregava uma fraqueza
no útero. Apesar de não haver

126
dito que se sentia solitária, isso
me pareceu óbvio, uma vez que
ainda lamentava a perda do
parceiro. Ela também
mencionara seu desejo de
encontrar um novo
relacionamento, mas dissera que
não havia encontrado ninguém a
quem quisesse se ligar. Sua dor
era aumentada pela depressão e
pelos desejos não satisfeitos da
mãe. Depois de vários anos
conversando com mulheres que
têm fibróides, não pude deixar
de perceber que todas comparti-
lham uma profunda solidão, quer
admitam isto ou não. Claire
tinha também linhas profundas
que iam dos cantos do nariz até
abaixo da boca, o que, de acordo
com o diagnóstico ayurvédico, é
uma clássica indicação de dor e
solidão ancestrais. Desta forma,

120
ela havia preenchido o vazio em
seu útero com um fibróide.
Claire conseguiu acessar
as lembranças ancestrais da
linhagem materna por meio de
situação de seu próprio útero.
Seu processo de cura teve início
apoiado pelas práticas de
s a d h a n a da Wise Earth, e
dentro de um ano havia se
livrado do fibróide. Da outra vez
que a vi, ela irradiava boa saúde,
e as linhas do rosto mostravam-
se consideravelmente menos
pronunciadas. Pareceu alegre e
vibrante enquanto falava das
aulas de desenho que estava
frequentando. Já não se
lamentava mais por não ter um
parceiro, e em vez disso buscava
formas de expressar a si mesma.
Claire também
influenciou a cura da mãe,

126
depois que as duas tomaram
consciência de que a sensação de
perda e solidão as havia tornado
vulneráveis à doença. Ela
compartilhou com a mãe o
regime da Wise Earth e lhe
ensinou as posturas de cura
aprendidas no workshop, além
da dieta ayurvédica. Ao
reconhecerem suas
vulnerabilidades, as duas
conseguiram redi-recionar o
relacionamento de forma a
cultivar o amor e a expressão
criativa.

REACENDENDO O FOGO
INTERIOR

Para recapturar o s h a k t i -
p r a n a é preciso cultivar uma
visão mais ampla de quem
somos. Você não é apenas uma
mãe, esposa, filha, irmã, amiga

122
ou uma mulher de carreira neste
mundo. Você também vive no
plano sutil, o plano do espírito.
Desde tempos imemoriais, os
rituais têm sido usados para
invocar nossa consciência do
plano sutil e nossa conexão com
ele. Y a j n a , a antiga prática de
reverenciar as divindades e suas
energias por meio do ritual de
fogo, é observado em milhões de
lares indianos. Na verdade, o
fogo é a energia elementar em
todos os rituais védicos
devotados a apaziguar deuses e
deusas. 0 R i g V e d a nos diz:
"Os devotos que executam
cerimónias solenes são levados
ao limiar do santuário interno do
Divino. No sacrifício do fogo,
conchas colocadas ao leste
alimentam o fogo com manteiga
derretida, assim como a vaca
lambe seu bezerro, ou como o
rio acaricia os campos."
Rituais de fogo,
combinados com meditação,
geram calor dentro do corpo para

126
queimar as impurezas físicas,
iluminar a mente e facilitar nossa
comunhão com os seres celestes.
O ritual de fogo de Devi,
descrito abaixo, é um poderoso
rito védico feminino que
aumentará sua consciência da
Mãe Divina e também de sua
mãe terrena na vida cotidiana.
Ele também pode ajudar a
restaurar a saúde e as lembranças
ancestrais da linhagem materna.
Devi é outro nome para a Mãe
Universal, mas no ritual você
pode contemplar qualquer
imagem ou aspecto da Mãe com
que se sinta confortável, seja
Devi, Virgem Maria, Gaia,
Gwan Yin, Avilokiteshvara,
Nammu, Hahai'i Wuhti, Au
Sept, Mawu, Ishtar, Akua'ba, ou
qualquer outra.
Minha memória mais antiga de

124
minhas duas mães é de seus
rostos iluminados pelo fogo dos
rituais de manhã cedo. O ritual
de fogo de Devi serve para todas
as mulheres, não importando o
tipo de relacionamento que
mantêm com a mãe. Homens e
crianças também podem
participar, mas as crianças
devem ser mantidas a uma
distância segura do fogo. Pode
haver momentos em que você
desejará invocar a energia
s h a k t i da Mãe mesmo sem
executar a cerimónia. Você pode
fazer isso mantendo a imagem
da Mãe na tela de sua mente
enquanto recita a oração de sua
escolha, ou cantando o mantra
de Devi que é dado a seguir.
Outra forma de fazer o ritual é
simplesmente visualizar a g h i
sendo oferecida e derramada no

126
fogo (manteiga sacrificial, ver
receita na p. 319), em vez de
fazer isso fisicamente. Os sábios
muitas vezes conduziam a
cerimónia desta forma.
Todos os dias são o dia
da Mãe, mas 3- e 6- feiras são os
melhores da semana para fazer
oferendas à Mãe, pois são aque-
les que os videntes devotaram a
ela. Eu reverencio a Mãe todos
os dias, e você pode fazer a
mesma coisa, se quiser, com o
ritual de fogo de Devi que se
segue:

A Prática: O Ritual de Fogo de


Devi
Você precisará dos seguintes
utensílios e ingredientes, que
devem ficar separados para
serem usados exclusivamente
neste ritual. Os itens marcados
com um asterisco (*) podem ser
comprados em lojas indianas ou

126
em lojas de comida integral.
• uma imagem da Mãe
• um pequeno pote de barro,
com 15 cm de diâmetro
• uma concha pequena
• alimento para o fogo, como
resina de cânfora*, sálvia seca,
dhup* ou outro material
combustível.
• ghi* (uma garrafa, a ser usada
apenas em rituais e orações)
• pétalas de flores vermelhas ou
rosas (opcional)
• fósforos
Se possível, faça este ritual ao ar
livre. Se não, lembre-se de abrir
as janelas para não disparar o
alarme de incêndio. 0 chão, um
rio ou o mar são os locais mais
auspiciosos para dispor das
cinzas rituais sagradas, mas
você também pode colocá-las em
vasos de plantas.

Instruções:
Escolha um local tranquilo em
sua casa, preferivelmente de
frente para o leste, e prepare
uma bandeja com todos os in-
gredientes e utensílios. Coloque
uma imagem da Mãe onde possa

126
vê-la claramente. Derrame
dentro do pote um pouco de
combustível para o fogo, por
exemplo sálvia ou um cubo de
cânfora, e acenda o fogo. Com a
mão direita, use a concha para
derramar uma colher de sopa de
ghi no fogo, juntamente com
as pétalas de flores (se as estiver
oferecendo). Deixe o com-
bustível queimar completamente.
Enquanto a oferenda queima, ol
he di retamente para o rosto da
Mãe e recite o mantra de Devi
(abaixo). Concentre-se naquilo
que deseja dela. Você saberá
quando ela estiver satisfeita com
seus esforços. Algumas vezes ela
sorri. Outras vezes, pisca um
olho.

Mantra de Devi: OM SRI DEVI


MA

Invocar Sri Devi Ma a ajudará a


resgatar suas lembranças mater-
nas e sua intuição — o poder
divino existente em todas as mu-

128
lheres que serve como
instrumento para a cura de todas
as coisas de dentro e de fora. A
história da Rainha Madalasa, dos
P u r a n a s , mostra o poder e a
sabedoria que existem no amor
de uma mãe. Madalasa era uma
mulher iluminada, e todos os
seus filhos se tornaram santos.
Quando estava grávida, ela
passava muito tempo meditando
e adorando o Espírito Que
Habita em Nós (Atman). Depois
do nascimento de cada filho,
ninava a criança cantando a
canção do espírito:

Shuddhoshi Buddhoshi
Niranjanoshi Samsara
Maya Parivarjitoshi

Oh, meu filho, você não é este


corpo, você é o espírito. Você é
iluminado, você é o puro Atman
(o Espírito Que Habita em Nós)

Podemos cantar esta linda


canção de ninar védica sempre
que sentirmos que estamos

126
perdendo o contato com o
Espírito Divino que existe em
nós.

Como mulheres, devemos tentar


recriar nossa vida em torno de
nossas memórias maternas e
nossa capacidade inata de curar.
A mãe terrena é instrumento de
amor e sabedoria. Sentimos
alegria ao perceber que nossas
energias maternas estão intactas
e completas dentro de nós, e que
somos capazes de transmitir esta
alegria a todos os seres.
Quando você atualiza
seu s h a k t i - p r a n a , está
revelando a magnífica anatomia
espiritual feminina. Agora que
começou a se alinhar com a
herança materna, está na hora de
explorar suas ligações inatas
com as sutilezas da respiração,
da mente e da consciência —
ligações estas que são
compartilhadas por todas as

130
criaturas, machos ou fêmeas, de
todas as espécies.

126
SEGUNDA PARTE

A RESPIRAÇÃO DA VIDA

132
CAPÍTULO 5
A ANATOMIA E A PRÁTICA
DA RESPIRAÇÃO

Tudo o quese move neste


universo,
Tudo o queé visto ou ouvido,
Tudo o queestá dentro ou fora
-
É permeado pela
respiração.
- Maha Narayana Upanishad

Os Vedas nos dizem que a vida é definida não pelo número


de anos que uma pessoa vive nesta terra, mas pelo número de
respirações que cada alma recebe em sua jornada. A Isha
Upanishad nos diz "Vá, respiração minha, em direção à
respiração imortal. Então, que este corpo se transforme em
cinzas". Quando gastamos nossa cota de inspirações e
expirações, a jornada termina. Portanto, os antigos nos
aconselham a sincronizar lentamente os ritmos da respiração
com os ritmos da natureza. A respiração também é um
aspecto intrínseco do prana, a força primordial de vida, que
controla a qualidade da nossa vida e também nossa
longevidade. O prana é a respiração da alma, uma ponte
entre o corpo e a mente, por isso as práticas respiratórias
conscientes podem nutrir nosso espírito e curar até mesmo as
piores feridas espirituais e emocionais.
Os sábios desenvolveram a ciência da respiração,
chamada pranayama, que literalmente significa
"manifestação da energia cósmica mais elevada". O
pranayama engloba uma variedade de práticas, todas
projetadas para recolocar o fluxo respiratório em harmonia
com os ritmos do universo. "Aquele que obtém o controle da
respiração obtém o controle da mente", diz a Chan-dogya
Upanishad. Swami Rama, um famoso iogue contemporâneo,
descreve a mente como "uma parede [localizada] entre o
133
iogue e a realidade. Quando o aluno entra em contato com as
forças sutis, chamadas prana, ele pode aprender a controlar a
mente, porque esta está amarrada ao prana como uma pipa a
um barbante. Quando o barbante é manipulado com habilida-
de, a pipa, que gosta de voar para cá e para lá, fica controlada
e voa na direção desejada".
Quando temos a intenção de controlar a mente mediante
as práticas de pranayama, reduzimos gradualmente a barreira
contínua de pensamentos invasivos e as sensações
cambiantes que impedem nosso acesso à compreensão
espiritual e à consciência. Desta forma, o pranayama
promove o princípio iogue da unificação da mente e do
cosmos. À medida que começamos a transcender às
distrações da mente e do corpo, passamos além da dimensão
física para uma percepção mais ampla de nossa unidade
interna com o universo. Mircea Eliade, um proeminente
filósofo da tradição e história religiosas do século XX,
descreve o pranayama como "atenção dirigida para a vida
orgânica do indivíduo, um conhecimento exercido por meio
da ação, uma entrada calma e lúcida na própria essência da
vida".
O pranayama também é uma forma maravilhosa de
aumentar a duração e a qualidade de nossa vida. Se você
nunca praticou o pranayama, seu padrão respiratório
provavelmente consiste de respirações rápidas e superficiais
que começam e terminam no peito. Tente se lembrar de
momentos quando ficou com raiva, com medo, ou sob
estresse, como por exemplo durante uma discussão com seu
patrão quando achou que foi tratada injustamente, ou então o
que sentiu ao ouvir a sirene da polícia quando sabia que
estava em excesso de velocidade. A pessoa inicia
imediatamente uma respiração rápida e superficial que é a
marca registrada da resposta corporal estressada de fugir-ou-
lutar.
E claro que esta reação é adequada em situações de
estresse, mas o problema em nossa cultura é que nós
costumamos respirar desta forma mesmo em condições
normais. A respiração de peito não permite suficiente
absorção de oxigénio para alimentar adequadamente a parte
inferior dos pulmões, de tal forma que o sistema
134
cardiovascular e os outros sistemas biológicos ficam
impedidos de operar de forma eficiente. Assim, passamos
grande parte de nossas vidas involuntariamente nos privando
de oxigénio suficiente — e do prana que acompanha a
respiração profunda —, o que nos deixa em um estado
energético e espiritual bastante empobrecido.
Podemos corrigir esta deficiência prânica por meio da
prática de exercícios respiratórios simples, todos baseados na
respiração abdominal profunda. Você pode começar sua
prática com a respiração diafragmática, um método que
transforma a respiração superficial em um ritmo mais
profundo, que facilita o fluxo do prana por todo o sistema
corpo-mente, revitalizando a pessoa em diversos níveis. O
exercício que se segue, conhecido como shavasana (que
significa literalmente a "postura do cadáver", ou "postura
tranquila"), usa a respiração diafragmática juntamente com
visualizações. E um excelente ponto inicial para outras
práticas respiratórias mais avançadas.
A respiração diafragmática é bastante fácil de fazer,
depois que tomamos consciência de como a mesma difere da
respiração de peito. Depois de praticar a respiração a partir
do diafragma, enquanto permanece deitada em uma postura
tranquila, você pode começar a incorporar esta respiração
mais relaxada e mais profunda à sua vida cotidiana. E
possível praticar a respiração diafragmática em qualquer
lugar, mesmo em sua mesa de escritório ou em seu carro. Eu
particularmente recomendo a postura tranquila sempre que se
sentir exausta, estressada, deprimida ou simplesmente sem
forças.

A Prática: A Postura Tranquila


Deite-se de costas em um tapete, esteira de ioga ou
outra superfície capaz de apoiar confortavelmente o seu
corpo. Coloque uma mão sobre o peito, e a outra mão na
parte inferior das costelas, onde começa o abdómen.
Inspire levando o ar até a barriga, de forma a sentir a
barriga se elevando, arredon-dando-se, enquanto o
diafragma se move para baixo, permitindo que os
pulmões fiquem repletos de oxigénio. (Não importa o
que aparece nas revistas de moda. Se você puxar o

135
estômago para dentro para parecer magra, estará
roubando respiração, oxigénio e prana de si mesma.)
Permita que a respiração viaje lentamente até o
diafragma, depois até o peito, e finalmente até as
clavículas. Seu peito deve permanecer relativamente
parado. Quando terminar a inspiração, comece a expirar
devagar, e sinta a barriga se contraindo ã medida que o
diafragrama sobe. Continue esta prática por vários
minutos até que o processo comece a lhe parecer natural.
Agora que começou a respirar lenta e profundamente,
permita que a respiração viaje coluna acima, e sinta-a
circulando em todo o seu corpo. Estenda os braços ao
longo do corpo, com as palmas para cima. Estique as
pernas e separe-as um pouco, deixando-as paralelas uma
â outra. Feche os olhos e visualize a respiração como um
fluxo de luz dourada, tranquila e fresca, que sai do co-
ração e se irradia para todos os pontos do corpo. Sinta-a
nas pontas dos dedos das mãos e dos pés, em cima da
cabeça, em cada uma das vértebras, atrás das pálpebras,
e na garganta.
Descanse a mente com a serenidade desta respiração. Per-
mi ta-se rei axar nesta postura, respi rando devagar e paci
fica-mente, por uns quinze minutos. (É melhor ficar
acordada, mas se adormecer na postura, é evidente que você
precisa do descanso, por isso aproveite a soneca!) Agora abra
os olhos, e suavemente sacuda as mãos, os braços e as
pernas. Olhe ao redor da sala, e preste atenção ao que vem ã
sua mente enquanto observa este local familiar. Permita-se
uma transição gradual até estar totalmente desperta,
sentando-se devagar e demorando o tempo que for necessário
antes de recomeçar suas atividades habituais.

A postura do cadáver ou postura tranquila

136
Estes exercícios respiratórios se baseiam na compreensão
de como o prana flui através do corpo, tendo sido projetados
para aumentar a energia prânica. Lily, a esposa de um enge-
nheiro mecânico de uma comunidade indiana de Toronto que
eu visito com frequência, experimentou há pouco tempo os
efeitos poderosos de uma cura pelo prana. Lily estava se sen-
tindo muito bem ao entrar com o carro em uma rua
superlotada perto de casa em uma bela manhã de outubro. Ela
havia acabado de comprar uma estátua de Saraswati e estava
contente com a aquisição. A estátua se encontrava no banco,
ao lado do motorista. Ela comprara a estátua em honra ao
Dipavali, o festival indiano das luzes. Logo as ruas estariam
iluminadas com fileiras de luzes brilhantes em honra ao
festival. Quando ela freou no sinal amarelo de um
cruzamento congestionado, sua mente estava preocupada
com o jantar e os preparativos para a festa.
A seguir, quando abriu os olhos, estava em uma cama de
hospital, o braço direito engessado e latejando de dor. Ela não
tinha nenhuma lembrança de como ou por que fora parar na-
quele hospital, e ficou chocada quando seu marido lhe disse
que um carro batera nela por trás, com tanta força que o carro
dela deslizara sem controle para dentro do cruzamento,
capotara, e terminara com as rodas para cima. O carro ficara
destruído, e ela fora retirada das ferragens com ferramentas
especiais. O pessoal da emergência declarou sua surpresa por
ela não ter sofrido mais do que uma concussão e um braço
quebrado.
Cerca de quatro semanas após o acidente, o gesso foi
removido e Lily passou a usar o braço na tipóia. Começou um
tratamento de fisioterapia por duas semanas e meia, mas foi
ficando desanimada rapidamente, porque mal conseguia
mover o braço. Lily esperava fazer parte das aulas de ioga
que eu daria no centro comunitário indiano local. Devido à
dor e ao pouco movimento do braço, ela não podia fazer nem
sequer as posturas mais simples.
Expliquei a Lily que quando sofremos um trauma grave
em qualquer parte do corpo, precisamos nos preocupar não

137
apenas com a dor e a lesão muscular, mas também com a
lesão emo cional que a acompanha — todos os medos e
ansiedades que aparecem naturalmente em uma situação de
trauma. O prana dela havia ficado bloqueado pelo choque do
acidente, e o fluxo de prana precisava ser restabelecido antes
que a cura física pudesse ocorrer.
Com a ajuda das outras alunas da turma, pedi a ela que
deitasse sobre o lado esquerdo, na postura da lua adormecida.
Esta é uma postura bastante simples: a pessoa se deita sobre o
lado esquerdo, em posição fetal, com a testa quase tocando os
joelhos, e respira normalmente. A postura da lua adormecida
pretende fazer a pessoa voltar a um estado psíquico
semelhante ao do feto no útero da mãe. Ajuda a restaurar o
shakti-prana e é muito útil para mulheres que tiveram aborto
ou mesmo outros tipos de trauma, como por exemplo o
acidente de Lily.
Cobri-a com uma manta leve e disse-lhe que fechasse os
olhos, inspirasse profundamente enchendo a barriga, e a
seguir expirasse totalmente, dirigindo a respiração para o
braço. Enquanto ela seguia minhas instruções, expliquei que a
cada expiração ela estava enviando uma mensagem do útero
— a parte mais profunda da barriga — para o braço. Seu
rosto se desanuviou e o corpo relaxou, enquanto ela
permanecia calmamente na postura, e sua respiração profunda
era o único som que se ouvia na sala.
Depois de cinco minutos, fiz com que ela se sentasse,
envolvesse o braço direito com o esquerdo, e ninasse o braço
como se fosse um bebê. A seguir pedi que inspirasse
profundamente e expirasse lentamente, enquanto ao mesmo
tempo emitia um som semelhante a um zumbido. Esta
respiração imita o zumbido de uma abelha grande ou zangão,
e constitui uma técnica poderosa. A respiração e o som,
trabalhando juntos, aliviam o medo, a ansiedade e a exaustão.
Empreguei uma determinada combinação de zumbidos e
pranayamas — minha própria técnica respiratória, que ensino
a todos os meus alunos de ioga.

138
Depois de fazer este tipo de respiração por vários
minutos, Lily parou de repente e apontou para o braço direito.
"Está tremendo!" disse ela nervosa. "Estou sentindo algo
latejando dentro do braço." Respondi que não se preocupasse,
que era exatamente esta reação que desejávamos. O prana
parado havia sido desperto e estava circulando ao longo do
braço.
Lily praticou laboriosamente os dois exercícios
respiratórios durante os sete dias que se seguiram. A cada dia,
o tremor no braço aumentava, mas a dor e a falta de
movimentos diminuíam. No final da semana, ela entrou
correndo na aula de ioga e anunciou: "Vejam o que posso
fazer."
Lily agora podia fazer a torção da coluna, uma postura na
qual era preciso estender o braço sobre a cabeça por trás das
costas, colocando a palma no chão enquanto torcia o corpo na
direção do braço estendido. A seguir ela repetiu com o outro
braço. A dor desaparecera, e a mobilidade do braço pratica-
mente voltara ao normal. Em poucas semanas estava comple-
tamente boa.
Como prova da sincronicidade divina, a estátua de
Saraswati também sobrevivera ao acidente de carro,
absolutamente intacta a não ser pelo braço direito quebrado.
Lily pretendia jogar a estátua fora, mas eu disse a ela que
amarrasse o braço da estátua com uma atadura de pano e
recitasse orações de cura para a estátua durante o próximo
mês. Ainda estou esperando para saber se o braço da estátua
ficou bom.
Como os exercícios respiratórios fizeram com que Lily se
curasse tão depressa? Os Vedas nos dizem que a respiração
não é apenas um fluxo de ar que constitui o subproduto do
processo respiratório. A respiração é também a força vital ci-
nética que liga a interação dinâmica entre toda a criação. Este
conceito foi lindamente descrito pelo Mestre Grande Nada de
Sung-Shan, no Cânone Taoísta da Respiração, quando ele
diz: "Ninguém tem forma sem a respiração. Portanto, a

139
respiração e a forma devem ser atingidas juntas. Isso não é
evidente?"
E o prana que impele a órbita terrestre ao redor do Sol e
a órbita da Lua em redor da Terra. Ele anima os ventos e a
água, assim como as marés cheias e vazantes. As ondas de
prana no corpo formam a base da consciência. A memória
navega nas ondas da respiração.
Quando o prana está equilibrado, as memórias são abun-
dantes. Prana e memória juntos formam a segunda camada
de nossa anatomia — o pranamaya kosha, ou corpo de
respiração. Quando a respiração está desequilibrada, a
memória sofre, e vice-versa. Ao restaurar o fluxo de prana,
Lily forneceu a seus tecidos corporais a nutrição necessária
para vencer as lembranças de medo e do ferimento que
sofrera, restabelecendo a memória celular de um braço
saudável.

PRANAYAMA: UM SISTEMA EM CINCO


PARTES

De acordo com o pensamento védico, o prana é composto de


cinco "ares" que têm funções diferentes em nosso corpo-
mente. Os sábios desenvolveram a ciência do pranayama
como uma forma de realinhar o corpo-mente para que possa
funcionar harmoniosamente no universo. O corpo é
constantemente fortalecido pelo ritmo natural de inspirações e
expirações profundas e ritmadas, de forma que as cinco
energias prânicas — prana, udana, samana, apana e vyana
— possam cada uma delas governar adequadamente uma área
diferente do corpo.

Prana
A primeira das cinco subenergias, ou ares, que constituem o
prana é também chamada igualmente de prana. Os antigos a
chamavam de "alma do corpo assentada no trono do

140
coração", e o prana é a testemunha silenciosa de todas as
nossas jornadas. O prana inunda a região entre a laringe e o
coração, dando apoio ao coração, à voz, à inteligência e à
respiração. O prana faz com que possamos acalmar a mente,
entrar no universo interno, e descobrir nossa verdadeira
natureza. Quando o prana não está funcionando bem, nossa
força vital encontra-se ameaçada.

Udana
O segundo ar, chamado udana, ou ar que sobe, sustenta nossa
voz ou som individual, bem como a memória cósmica do
universo. O udana funciona por meio da respiração. Quando
a respiração está calma, fria e rítmica, conseguimos aumentar
a duração de nossa vida e servir melhor ao nosso propósito na
Terra. Quando a respiração é superficial, apressada e fatigada,
encurtamos nossa estadia aqui e deixamos a jornada
inacabada.
A nossa voz deveria ser um lembrete de nossa origem sa-
grada, uma vez que ela expressa, por meio da respiração, o
som do criador. Produzir sons harmoniosos permite vibrar em
harmonia com a vasta consciência imutável. Produzir sons
que contêm desarmonias interrompe nosso ritmo respiratório
e nos aliena dos ritmos sonoros da natureza. O udana também
ajuda a produzir e preservar nossa voz interior ou nosso som,
aquele que nos permite cultivar a percepção das coisas.

Samana
O terceiro dos ares do prana é samana, o mantenedor do
equilíbrio. Samana estimula nosso espírito de discernimento e
nossa flexibilidade, regendo o metabolismo e os processos
digestivos. Quando samana está bem equilibrado, temos
equanimidade e satisfação. A razão do corpo então surge,
ajudando-nos a determinar o que é válido e o que não é, o que
tem valor e o que não tem, o que é sagrado ou o que é
sacrílego. Samana nos permite a consciência do Divino e da

141
santidade da vida dentro de nós e, como resultado, atingimos
uma vida de equilíbrio com a natureza.

Apana
O quarto ar é apana. Este ar preserva nossa capacidade de
reproduzir e nutrir a vida. Apana regula nosso desapego aos
objetos materiais, e nos ensina a nutrir a nós mesmos sem
incorrer em excessos. Sendo o ar dominante no corpo de uma
mulher, apana flui para baixo para ajudar a preservar a saúde
do sistema reprodutor e dos tecidos, inclusive as glândulas
mamárias e o útero. Prana e apana trabalham juntos. Quando
o shakti-prana, que funciona por intermédio do apana, está
impedido de fluir, o apana também fica enfraquecido. O
apana funciona como um receptor para o prana na parte
inferior do corpo. O apana rege os intestinos e promove a
descarga de tudo o que é tóxico ou excessivo em nossas
vidas, retendo ao mesmo tempo os nutrientes. Para manter a
boa saúde da região pélvica, o prana e o apana devem fluir
harmoniosamente.

Vyana
O quinto ar é chamado vyana, e se manifesta nos corações de
todas as coisas vivas. Vyana ajuda a distribuir a energia
extraída da respiração do universo e dos alimentos nutrientes
dentro do corpo. Vyana é o poder de circulação, e faz surgir o
desejo de liberdade pessoal. Ele também é a origem do
movimento para fora que nos leva a fazer caridade e a
cultivar boa vontade com tudo o que é vivo. Suave e
onipresente, o movimento encorajador do vyana torna
possível agir harmoniosamente dentro da família e da
comunidade, e cumpre nossa parte no Plano Divino.

Os cinco ares do prana não apenas inundam a região do


coração e do peito, mas também o rosto e o cérebro. Eles nos

142
ajudam a mastigar e engolir a comida e levam nutrição a
todos os tecidos do corpo. Eles também mantêm a vitalidade
de nosso espírito, sendo os "porteiros do mundo celestial",
nas palavras da Chan-dogya Upanishad, porque permitem
transcender a ideia da dualidade e eventualmente atingir a
fusão com o Uno Universal.

HARMONIZANDO NOSSA RESPIRAÇÃO COM


OS RITMOS SOLARES E LUNARES

Todas as pessoas têm dois canais principais de respiração —


o solar e o lunar. A respiração lunar funciona de acordo com
o ritmo da Lua, e a respiração solar de acordo com o ritmo do
Sol. Estes dois magníficos luminares foram colocados no céu
para guardar a criação: à medida que a Terra gira em seu
eixo, criando o dia e a noite, a respiração cósmica se move de
acordo com a Terra. A respiração muda constantemente do
canal direito para o esquerdo, e vice-versa. Em um corpo
saudável, a respiração lunar está mais ativa durante o dia, e a
solar mais ativa durante a noite. Existem quatro junções
distintas a cada dia — o nascer do sol, o meio-dia, o pôr-do-
sol e a meia-noite — que marcam quatro trocas de pranas,
ocasiões em que nossa respiração passa do ciclo solar para o
lunar. Quando estamos saudáveis, os dois canais do prana
dentro da coluna vertebral — ida (canal esquerdo) e pingala
(canal direito) funcionam naturalmente de acordo com estas
mudanças na respiração cósmica.
A pingala, a corrente solar, é dominante durante o dia, e a
ida, a corrente lunar, fica mais ativa durante a noite.
Recebemos as energias solares do cosmos através da
respiração direita, e as energias lunares através da respiração
esquerda. Nossa respiração solar permeia o lado direito do
corpo e controla as funções corporais de comer, digerir e
excretar. A respiração lunar permeia o lado esquerdo do
corpo e controla as funções corporais de ingestão e
assimilação de fluidos e a urina.

143
Tanto a respiração solar quanto a lunar também têm
funções específicas em nosso corpo emocional. A respiração
direita controla as atividades rotineiras e racionais —
trabalhar, pensar, fazer exercícios, planejar, ou aquilo que
chamamos de funções do hemisfério cerebral esquerdo. Esta
respiração fica naturalmente aumentada durante atividades
cansativas ou agressivas. A respiração esquerda controla
nossas funções criativas — meditação, oração, canto,
escrever, ou tudo o que chamamos de atividades do
hemisfério cerebral direito. Esta respiração geralmente é
aumentada durante atividades agradáveis, pacíficas ou
relaxantes.
Quando alinhamos nossa respiração com os ritmos
diários lunares e solares, cultivamos a boa saúde e uma maior
consciência, que são a base de nosso trabalho espiritual e os
fatores que, em última análise, nos conduzirão à harmonia
interior. Ao equilibrar os dois canais de prana, a meta é
alinhar nosso ritmo respiratório com a respiração cósmica, ou
o prana universal.

O sol nascente, por exemplo, emite poderosas energias


solares. A respiração esquerda deve, portanto, ser ativada ao
nascer do sol, para que as energias lunares do corpo
aumentem e complementem as poderosas energias solares.
Caso contrário, se a respiração direita permanecer
dominante, as tendências agressivas se tornarão
excessivamente ativas. As instruções que são dadas a seguir
podem parecer inicialmente complicadas, mas eu prometo
que estas práticas respiratórias aumentarão sua energia e lhe
proporcionarão momentos preciosos em sua vida cotidiana.

ATIVANDO A RESPIRAÇÃO
SOLAR E LUNAR

O que se deseja é uma respiração esquerda ativa a partir do


nascer do sol e durante todo o dia, e uma respiração direita

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ativa a partir do pôr-do-sol e por toda a noite. Em um
organismo saudável, a respiração solar tende a ser mais ativa
durante a noite, mas existem alguns casos em que a
respiração lunar deveria ser ativada durante a noite. Por
exemplo: antes de beber fluidos, porque a respiração lunar
resfria os tecidos digestivos, permitindo uma absorção
otimizada do líquido; e antes de urinar, para resfriar o canal
urinário e permitir que o apana colete todos os resíduos
líquidos e os retire do corpo de forma eficiente.
Quando o corpo não está bem, ou quando está ocupado
em convalescença, a respiração esquerda tende a se tornar
mais ativa, porque o corpo precisa usar mais energia para
facilitar a recuperação. Entretanto, no caso de uma doença
séria que exija um longo processo de recuperação, o padrão
normal da respiração esquerda ativada durante o dia deve ser
mantido tanto quanto possível. Depois que você consegue
ativar a respiração esquerda durante o dia, a respiração direita
entrará automaticamente em alinhamento durante a noite.
Apesar da respiração solar ser mais fácil de ativar ao pôr-
do-sol, para equilibrar as energias lunares, certas
circunstâncias podem exigir que a respiração solar seja
ativada durante o dia.
Algumas destas circunstâncias são: imediatamente antes
de comer, para fortalecer o fogo digestivo; imediatamente
antes de defecar, para que o apana possa eficientemente
coletar os resíduos e levá-los para baixo e para fora do corpo;
e imediatamente antes de atividade sexual, para fortalecer o
fluxo descendente do apana em direção aos genitais,
aumentando assim a fertilidade e o prazer da união sexual.
Depois do ato sexual, a respiração esquerda deve ser ativada
para recarregar o prana e trazer o corpo de volta a um estado
de tranquilidade.
Ao redirecionar o fluxo da respiração dos canais
esquerdo e direito para o canal central, você une as duas
respirações e provoca um estado interno de vitalidade e
harmonia. Esta prática a protegerá contra a ansiedade, o
desespero e a doença. Ela também lhe proporcionará a base

145
necessária para a meditação, explicada mais adiante neste
capítulo. A prática das respirações lunar e solar também
constitui uma forma poderosa de integração das energias
feminina e masculina. Depois que os canais do prana estão
equilibrados, eles naturalmente se harmonizam com os ciclos
universais de prana.

Eu cheguei à conclusão de que o segredo mais importante


para uma boa saúde é a prática revitalizante de respirar de
acordo com os ritmos da natureza. Vejamos, por exemplo, o
caso de Joanie, que timidamente se aproximou de mim
durante um evento de lançamento de livro que promovi em
uma pequena livraria na Carolina do Sul. Com ombros
encurvados e olhos inchados, ela parecia muito infeliz. Viera
até mim por puro desespero, após ler meus livros sobre
nutrição e cura ayurvédi-cas, esperando que eu pudesse
ajudá-la a sair da ansiedade e da depressão. Convidei-a a
tomar um chá comigo e me contar o que a estava
perturbando.
"Eu venho chorando sem parar há várias semanas", disse
ela. "Tudo o que tenho vontade de fazer é dormir."
Ela continuou, explicando que havia um ano que vivia
apavorada. "Sou professora, mas precisei parar de trabalhar.
Sinto como se tivesse um grande buraco no estômago, pelo
qual a vida escorre. Sinto-me fisicamente mal com esta dor.
Não tenho nenhuma energia. Tudo o que faço é ver TV, dia e
noite. Minha casa está de pernas para o ar, meu marido está
furioso comigo, e minha mãe diz que meu problema está na
cabeça."
Ela afundou na cadeira enquanto os olhos se enchiam de
lágrimas. "Eu também tenho terríveis ataques de pânico e epi-
sódios de claustrofobia, especialmente em multidões. Não
consigo entrar em elevadores, ir a restaurantes ou cinemas,
porque começo a ficar ansiosa assim que o lugar se enche de
gente."

146
Joanie estava frequentando um psiquiatra, porque tinha
alterações abruptas de humor que muitas vezes resultavam
em explosões de fúria durante as quais telefonava para os
amigos a qualquer hora do dia ou da noite fazendo acusações
infundadas contra eles. O médico havia receitado medicação
para o que ele denominava episódios "maníaco-depressivos",
mas Joanie achou que sua situação piorara depois dos
remédios. Ela também tinha medicação contra a ansiedade,
para a claustrofobia. Nos dias piores, bastante frequentes, ela
engolia pílulas como se fossem balas.
Certo dia, desesperada, engoliu um vidro inteiro de
calmantes. Uma amiga por acaso passou na casa dela,
encontrou-a inconsciente, e imediatamente chamou uma
ambulância. Joanie saíra do hospital havia menos de um mês,
e ainda se sentia muito instável e dolorida. "Eu teria morrido
se minha amiga não passasse por lá, e ultimamente fico
pensando que seria melhor se ela não tivesse ido lá naquele
dia", disse ela.
Eu disse a Joanie que conhecia uma prática respiratória
simples que eu tinha certeza que poderia aliviar seus sintomas
mais dolorosos. Expliquei que se equilibrasse a respiração
lunar e a solar ela recuperaria o alinhamento adequado entre o
ritmo interno e o ritmo universal. Pedi que praticasse todos os
dias por um mês, mesmo que se sentisse extremamente
deprimida ou zangada. "No início, talvez seja difícil cumprir
sua promessa, mas logo você experimentará os primeiros
resultados, e isso vai reforçar sua determinação", disse eu.
Joanie concordou em praticar os exercícios respiratórios
solares e lunares, inclusive a respiração por narinas
alternadas, três vezes por dia (ver a seguir as instruções).
"Obrigada", disse ela levantando-se para ir embora. "Eu
realmente aprecio sua ajuda. Além do mais, nessa altura não
tenho mais nada a perder, e não custa tentar, especialmente
porque não implica tomar mais um remédio."
Um mês mais tarde, recebi uma carta de Joanie. "Não
consigo acreditar direito, mas estou me sentindo muito
melhor. Estou bem menos deprimida, e tenho mais energia.

147
Na verdade, os sintomas melhoraram tanto que quando fui ao
psicanalista na semana passada ele reduziu pela metade a
dose do remédio — e eu continuo me sentindo bem. Até meu
marido notou a diferença. Outro dia, ele e eu fizemos uma
caminhada de três milhas, algo que no passado fazíamos o
tempo todo. Foi ótimo estar de novo ao ar livre, e ele ficou
espantado por eu conseguir acompanhá-lo."
Depois disto Joanie se matriculou na Escola Wise Earth.
Já se passaram três anos, e ela continua sua prática
respiratória diária e também já incorporou as sadhanas do
som e da alimentação à sua vida. Hoje em dia não toma
medicação alguma, voltou a dar aulas para a sexta série, e
está totalmente saudável e funcional.

A Prática: Verificando a Respiração Solar e Lunar


Para poder alinhar sua respiração aos ritmos solares e
lunares é preciso primeiro determinar qual a narina que
está dando vazão a uma quantidade maior de ar.
Pressione um dedo levemente contra a narina esquerda
para bloquear o fluxo de ar, e expire com força pela
narina direita, mantendo a mão embaixo do nariz. Sinta a
força do ar que é expelido. A seguir faça a mesma coisa
do lado oposto, bloqueando a narina direita e expirando
pela esquerda. 0 lado dominante é aquele pelo qual o ar
sai com maior força. Quando o ar é mais forte do lado
direito, isso quer dizer que a respiração solar está
ativada. Quando o lado esquerdo é mais forte, a
respiração lunar está ativada.
0 motivo na sadhana é sempre harmonizar o corpo
com o meio ambiente. Nós nos harmonizamos com o dia
ao ativar a respiração lunar, e com a noite ao ativar a
respiração solar.

A Prática: Ativando a Respiração Lunar


Verifique a respiração de manhã para determinar qual
delas é dominante. Se for a lunar, ou esquerda, você está
pronta para começar seu dia em harmonia com os ritmos
cósmicos. Se for a solar, ou a direita, faça um punho com a
mão esquerda, e coloque-o com firmeza sob a axila direita

148
(veja o desenho do punho colocado sob a axila, a seguir).
Usando a mão direita (veja a seguir a imagem da mudra feita
com a mão), alterne a respiração de narina para narina
durante alguns minutos, ou até sentir que a respiração
esquerda adquiriu um volume maior do que a direita (ver a
seguir o exercício para al ternar as nari nas). Ti re a mão da
axi 1 a e torne a veri f i car a respiração. Agora a respiração
lunar e fria deveria estar mais ativa. (Mesmo que não esteja,
não faça este exercício por mais de quinze minutos. Como
regra geral, você não deve executar exercícios com prana por
mais de quinze minutos, porque pode gerar estresse e
enfraquecer, em vez de fortalecer, os canais solar e 1 unar, e
consequentemente a respiração.)

A Prática: Ativando a Respiração Solar


Verifique a respiração de manhã para determinar qual
delas é dominante. Se for a solar, ou direita, você estã pronta
para começar a sua noite em harmonia com os ritmos

cósmicos. Se a respiração lunar, ou esquerda, for a mais for-

Mudra de mão para


Postura da mão em punho
alternar as respirações sol
colocada sob a axila ar e 1unar

te, faça um punho com a mão direita, e coloque-o com


firmeza sob a axila esquerda. Usando a mão esquerda, alterne
a respiração de narina para narina durante alguns minutos, ou

149
até sentir que a respiração direita adquiriu um volume maior
do que a esquerda. Tire a mão da axila e torne a verificar a
respiração. Agora a respiração solar e quente deveria estar
mais ativa. (Não faça este exercício por mais de quinze
minutos.)

A Prática: Respiração por narinas alternadas


Sente-se em posição confortável com as pernas cruzadas,
usando uma almofada de meditação ou um travesseiro, ou
então em qualquer postura confortável. Bloqueie a narina
esquerda com o dedo anular direito e o mínimo, e inspire pela
narina direita (ver a descrição da respiração por narinas
alternadas abaixo). A seguir bloqueie a narina direita com o
polegar direito e expire pela narina esquerda. Continue
alternando as narinas por aproximadamente dez minutos.
Inspire sempre pela mesma narina usada na última expiração.
0 nome sânscrito da respiração por narinas alternadas é
anuloma viloma. A fórmula clássica para a relação entre a du-
ração da inspiração e da expiração manda reter a respiração
por um período de tempo quatro vezes maior do que a
duração da inspiração, e a seguir expirar por um período de
tempo duas vezes maior do que a duração da inspiração.
Depois de se familiarizar com esta prática, talvez você queira
contar silenciosamente os segundos da inspiração, e a seguir
tentar aumentar a expiração para duas vezes esse valor. À
medida que a pessoa vai ficando mais proficiente, pode tentar
chegar a uma inspiração de oito e uma expiração de
dezesseis. Depois di sso, pode incorporar técnicas mais clãssi
cas, com a retenção da respiração entre a inspiração e a
expiração. Comece com 4:16:8 (de forma a que a retenção
corresponda a quatro vezes a duração da inspiração e a
expiração corresponda a duas vezes a duração da inspiração),
e trabalhe em direção a 8:32:16.

150
Respiração por narinas alternadas
A Prática: Equilibrando a Respiração Solar e a Lunar
Como já mencionei, a respiração de um corpo saudável tende
naturalmente a entrar em equi 1 íbrio durante as quatro junções do
dia - nascer do sol, meio-dia, pôr-do-sol e meia-noite. Durante
estes breves períodos de transi ção, tanto a respi ração solar
quanto a lunar fluem na mesma proporção. Por esta razão, os
momentos diários de junção são considerados momentos
auspiciosos para praticar ioga e meditação.
Atingir e manter um estado de equilíbrio interior pode ser uma
experiência extremamente regeneradora, mas as pessoas que estão
envolvidas e ativas no mundo não devem tentar manter
indefinidamente um estado equilibrado de prana. De forma geral,
a respiração segue o ritmo dos movimentos da pessoa. Quando
você está em atividade, a respiração fica mais ativa, porque o
prana é o combustível de sua atividade. Se você tentar impor
práticas que levam a respiração a um estado inerte de equilíbrio, e
se ignorar a ideia de viver realmente assentado em seu próprio
Ser, ideia que é inseparável da respiração equilibrada, você estará
usando a sagrada intenção do prana de uma forma errónea. A
atividade mundana cria um certo caos no corpo, e forçar a
respiração a estar sempre em equilíbrio só aumenta este caos.
Estamos praticando o alinhamento da respiração aos ritmos
solares e lunares, e agora veremos como o universo nos oferece a
oportunidade, por ocasião das junções, de atingir o equi 1 íbrio
interior. Ao nascer do sol, ao meio-dia ou ao pôr-do-sol, sente-se
em uma postura confortável, de frente para o sol. Ao nascer do
sol, sente-se de frente para o leste (o sol está se levantando); ao
crepúsculo, vire-se para o oeste (o sol está se pondo); ao meio-dia,
volte-se para o norte (o sol está diretamente acima de você, e o
norte simboliza o sol diário do planeta, que não vemos). Caso
esteja acordado à meia-noite, volte-se para o sul (o sul representa
o sol "no-turno": a lua). Verifique sua respiração para saber qual
das duas é preponderante.

151
A exi stênci a de uma respi ração cl aramente domi nante
durante uma das junções é uma clara indicação de que a saúde
está desequilibrada. Se este for o caso, faça um punho com a
mão que está do mesmo lado que a narina bloqueada e
coloque-a debaixo da axila oposta. Faça a respiração das
narinas alternadas por dez minutos. A respiração que estava
bloqueada ou diminuída deve agora se tornar mais ativa.
Pratique isso ao nascer do sol, ao meio-dia e ao pôr-do-sol,
quando as duas respirações deveriam estar praticamente
equilibradas. Não se esqueça de voltar-se na direção certa ao
praticar os exercícios. Lembre-se de que, quando o corpo está
saudável, o prana será 1igeiramente mais forte no canal
esquerdo durante as junções.
Uma vez que o prana esteja equi 1 ibrado, você pode
usufruir do estado de serenidade natural, sentindo a perfeita
harmonia de seus ritmos internos.
Uma advertência: se o seu prana estiver cronicamente fora
de sincronia com os ciclos cósmicos, não passe mais de
quinze minutos exercitando-o nos períodos de junção. A
pratica da meditação e as sadhanas do som e da alimentação
descritas em outros pontos deste livro, juntamente com os
exercícios respiratórios, gradualmente promoverão a
tranquilidade do corpo, da mente e do espírito.

Os exercícios de respiração lunar e solar podem ajudar a


aliviar não só problemas emocionais, como no caso de Joanie,
como também sintomas de ordem física, como no caso de Ed-
ward. Um alcoólatra em recuperação, Edward lidera o serviço de
recrutamento e seleção e aconselhamento de um centro co-
munitário caribenho em uma cidade de New Jersey, próxima a
Nova York. Edward procurou minha ajuda quando dei um work-
shop em seu centro, porque ele tinha uma série de sintomas que
incluíam insónia, depressão e fadiga mental. Ele também tem
diabetes, e toma injeções diárias de insulina. Mostrei a Edward
como verificar e equilibrar a respiração solar e a lunar, e disse a
ele que praticasse duas vezes por dia. Também sugeri que
adotasse uma alimentação mais saudável, especialmente ingerindo
grãos integrais e arroz.
Quando voltei um ano depois para um novo workshop no
centro, Edward saudou-me com um enorme sorriso. "A depressão
passou, e já consigo dormir à noite", disse ele. "Minha energia
anda excelente. Em vez de fazer duas reuniões dos Alcoólatras
Anónimos por semana, agora faço quatro."
E ainda havia mais boas notícias: "Minha taxa de glicose está
normal, e não preciso mais tomar insulina."
A execução rigorosa da prática, duas vezes por dia, ao nascer
e ao pôr-do-sol, havia transformado estes dois momentos nas duas
âncoras de sua vida. Assim como Edward, cada um de nós pode
executar a sadhana de realinhar a respiração ao dia e à noite.
Quando funcionamos em sincronia com os ritmos naturais, nossa
respiração flui segundo os ritmos cósmicos, protegendo
automaticamente os processos mentais e redirecionando os
pensamentos para um estado de quietude.
A Mãe Divina diz, no Devi Sukta: "Eu expiro com a força do
vento, enquanto retenho comigo todos os mundos e todas as
coisas que existem." Depois que aprendemos a navegar nos
ventos interiores da respiração e a atravessar os caminhos da
mente, acabamos nos transformando em instrumentos de cons-
ciência. Ao harmonizar a respiração, ficamos mais conscientes do
movimento harmonioso de nossa força vital. Este é o início da
meditação.

153
CAPÍTULO 6
A ARTE VÉDICA DA
MEDITAÇÃO

Assim como o pássaro cansado voa para


toda parte mas termina
descansando em seu poleiro, ao
qual permanece amarrado,
também a mente finalmente vem
repousar em seu próprio Ser.

- Chandogya Upanishad

No ano passado, trinta dos meus alunos e eu comemoramos juntos


os nove dias da festividade Navarati da Mãe Divina, no mosteiro
Wise Earth. Cantamos para a Mãe todas as manhãs ao nascer do
sol e praticamos juntos s a d h a n a s respiratórias, sonoras e de
alimentação. No último dia do programa, depois de realizar um
ritual de fogo em honra a Saraswati — a deusa da sabedoria,
criatividade e expressão espiritual —, tivemos um banquete
delicioso, que preparamos juntos durante os nove dias. A refeição
foi um momento adorável e pleno de alegria, abençoada também
pela presença do Iogue Ramananda, um adepto de setenta e cinco
anos que me visitava naquela ocasião, vindo de Bangalore, na
índia.
Quando terminamos de comer, as bancadas da cozinha e a pia
continham pilhas e pilhas de pratos sujos e panelas pegajosas.
Estávamos a ponto de organizar uma equipe de limpeza quando
Iogue Ramananda anunciou que queria lavar a louça sozinho.
"Mas o senhor é o meu ilustre convidado", protestei. Iogue
Ramananda sorriu e insistiu que a tarefa era dele. "Então,
arranjaremos ajudantes", disse eu. Ele sacudiu a cabeça e me
expulsou da cozinha. Ia fazer tudo sozinho.
Finalmente, desisti e fui cuidar de outras tarefas. Voltei uma
hora depois, e encontrei tudo limpo. Iogue Ramananda guardava
as últimas panelas no armário.
"Como conseguiu terminar tão depressa?" perguntei.
"Do início ao fim, havia um único pensamento em minha
mente", respondeu o iogue. "Lavar a louça."
Iogue Ramananda compreendia que pensamento e ação de-
vem fluir juntos. Depois de anos de prática de meditação, ele
atingira um estado de equanimidade evidente até mesmo quando
fazia as tarefas mais simples. Sua mente estava amarrada à
respiração, regulando e energizando tudo o que fazia, quer fosse
um passeio no bosque, a execução de posturas de ioga, o canto de
mantras védicos, ou varrer o chão da cozinha.
Os r i s h i s — os antigos videntes cujas visões inspiradas se
tornaram a fonte da tradição védica — diziam que a meditação é a
prática fundamental da vida cotidiana. Eles a recomendavam
como a s a d h a n a principal para a exploração, desenvolvimento e
expansão da mente e dos caminhos internos da consciência. A
meditação é pura concentração, que conduz a mente para a
quietude e mantém o foco interno na consciência. As Upani-shads
dizem: "a meditação revela a mente." O psicólogo inglês John H.
Clark, em seu livro A M a p o f M e n t a l S t a t e s , coloca essa
questão da seguinte forma: "A meditação é o método pelo qual
uma pessoa se concentra mais e mais em menos e menos. A in-
tenção é esvaziar a mente e, ao mesmo tempo, permanecer alerta."
Através dos séculos surgiram muitas escolas de meditação,
como por exemplo Zen, Budismo, Vipassana e Meditação
Transcendental. Diversas escolas aconselham a meditação como
um exercício, como um meio para se atingir um fim — clareza e
paz de espírito, por exemplo, experiências transcendentais, ou
iluminação espiritual. E possível obter-se grandes benefícios
quando se faz um esforço para cultivar este estado de silêncio e
percepção a intervalos regulares, durante o dia ou à noite. Mas à
medida que vamos progredindo nas s a d h a n a s , acabamos
desejando levar a meditação para além destes momentos prede-
terminados. A meditação, enquanto prática, não deveria ser uma
coisa separada de nossas atividades cotidianas habituais.

155
14Ô
A explicação védica para "meditar" é "discernir, medir, ponderar,
contemplar e finalmente libertar-se de todas as limitações e
padrões pelos quais estamos acostumados a nos avaliar". A
meditação nos conduz à consciência universal que reside dentro
de nós, à percepção não-egóica daquilo que é maior do que nosso
corpo-mente, e a uma realidade e uma dimensão que estão além
da riqueza e do sucesso materiais. Através da meditação,
conseguimos intuir nosso propósito individual, e aprendemos a
nos afastar das atraentes miragens e ilusões que entulham nossa
vida cotidiana.
Os videntes védicos nos dizem que devemos proteger, nutrir e
preservar tanto a verdade interior do ser quanto a verdade
cósmica da natureza. Parte de nosso propósito espiritual tem a ver
com encontrar coragem para mostrar ao mundo nosso verdadeiro
rosto. Eu aprendi esta lição sob a mais extrema das cir-
cunstâncias, e compreendo muito bem como é difícil e doloroso
optar pela autenticidade. Todos nós provavelmente nos lem-
bramos de ocasiões em que tínhamos medo de perder um em-
prego ou de ferir os sentimentos de alguém, ou de não sermos
aprovados por uma pessoa. Para manter a paz, sacrificamos nossa
verdade interior. Com o passar dos anos aprendemos a fazer isso
quase que naturalmente, porque estamos acostumados a
desempenhar certos papéis e a nos esconder atrás de uma
variedade de disfarces.
A meditação pode nos ajudar a redescobrir quem somos,
retirando as máscaras que nos afastam de nossa natureza essencial
e de nossos desejos mais profundos. Ao nos ajudar a descobrir a
verdade mais recôndita, a meditação faz com que integremos as
energias da mente, corpo e espírito, transforman-do-as em saúde e
unidade interior. A meditação também implica a tarefa maior de
servir ao Ser Universal. A verdadeira prática da meditação
implica nada menos do que a observância diária, a todos os
instantes, da s a d h a n a .
Durante a meditação, viajamos internamente para explorar a
verdadeira natureza da mente, e não as distrações mundanas ou
obsessivas que nos assaltam. Meu mestre, Sua Santidade Swa-mi
Dayananda, diz que os videntes que elaboraram a ideia da

157
meditação "meditavam em si mesmos", e isso permeava todas as
suas palavras e atos. A meta suprema da meditação é ultrapassar
as percepções, os pensamentos, a imaginação, e até mesmo as
visões e revelações. A meditação conduz a pessoa além das
informações dadas à mente pelos cinco sentidos. Para chegar ao
universo interior, é preciso ir além das percepções visuais e
auditivas, além dos elementos, além até mesmo daquilo que a
inteligência propicia, e entrar na dimensão da consciência pura,
que os r i s h i s chamavam de a n a n d a m , "a alegria infindável e
a plenitude completa".
Durante os mais de vinte anos durante os quais venho
praticando a meditação, já experimentei diversos saltos de
consciência. As vezes, em meu universo interior, as divindades
adquirem vida, e ocasionalmente falam comigo. Já vi espetáculos
de luzes maravilhosos, acompanhados de instrumentos de sopro
de tom agudo. A medida que fui me tornando experiente, um
silêncio e serenidade maiores surgiram dentro de mim. Na medida
em que você intensifica sua prática de meditação, descobre que
sua consciência adquire vida própria, e então começa a ansiar
pelos momentos de meditação. Haverá longos momentos de
lucidez e clareza. Sua intuição aumentará, e você saberá quem
está telefonando antes de pegar o telefone. Quando o inesperado
acontecer, você não se surpreenderá.
Hoje em dia, uma quantidade cada vez maior de médicos
e terapeutas importantes começa a reconhecer o valor da medi-
tação. Em maio de 1998, o Beth Israel Medicai Center de Nova
York convidou Sua Santidade o Dalai Lama, líder espiritual do
Tibet, para falar para um grupo de famosos neurocientistas,
médicos e clínicos do corpo/mente sobre as possibilidades do uso
de práticas meditativas em hospitais e outros locais do sistema de
saúde.
Os médicos e pensadores ocidentais estão começando a
reconhecer aquilo que os rishis viram há milénios: a natureza é um
campo unificado e o corpo e a mente humanos estão inse-
paravelmente ligados a ela e entre si. As práticas milenares da
ioga e da meditação estão atualmente sendo usadas pelos neu-
rocientistas para mapear os caminhos bioquímicos do cérebro.
E eles estão descobrindo aquilo que os videntes védicos já sa-
biam: a meditação estimula o conhecimento, a intuição e a cura.
A meditação é eficaz para qualquer pessoa disposta a dedicar
algum tempo à prática. Patanjali, o erudito do século III,
professor e autor dos I o g a S u t r a s , o texto mais antigo e
clássico sobre ioga e meditação, escreveu: "Através do foco, da
concentração e dos processos meditativos, podemos ir além das
percepções sensoriais." Você também pode viajar para além da
mente alimentada pelos cinco sentidos. No mínimo, você chegará
a um ponto onde poderá observar como a mente funciona.
Para um iniciante, uma meditação bem-sucedida é simples-
mente aquela que o faz se sentir tranquilo e descansado. En-
quanto a mente se esvazia das distrações, as energias internas
começam a fluir em harmonia umas com as outras. Do período de
meditação, você obtém uma capacidade maior de se concentrar
completamente na atividade que estiver desempenhando no
momento.
A S v e t a s v a t a r a U p a n i s h a d diz: "Mediante um esforço
consciente, mantenha os sentidos sob controle. Controlando a res-
piração, regule suas atividades vitais." A medida que o fluxo
respiratório se torna mais controlado, o coração passa a bater
mais lentamente e as emoções se acalmam. Navegando nas ondas
da respiração, nossos pensamentos se tornam menos frenéticos e
prolixos, e a mente se aproxima de uma quietude maior.
O exercício que se segue é uma excelente preparação para a
meditação, porque faz a pessoa ter mais consciência dos mo-
vimentos da respiração. Esta prática também será útil quando
você estiver ansiosa, com raiva, ou sentindo qualquer emoção
perturbadora. A beleza desta prática é sua simplicidade. Ela pode
ser feita em qualquer lugar, a qualquer momento, para relaxar e
preparar a mente e o corpo para a meditação. Lem-bre-se:
qualquer que seja sua situação, onde quer que você esteja, é
sempre possível respirar e prestar atenção à respiração.

A Prática: Simplesmente Respire


Para iniciar a prática, encontre um local confortável
para sentar-se, seja no chão com as pernas cruzadas ou
em uma cadeira com os pés tocando o chão. Feche os
olhos e coloque as mãos nos joelhos ou no colo. Inspire
lenta e profundamente pelo nariz. Expire pelo nariz,
produzindo sons curtos e sibilantes, ã medida que vai
soltando o ar. Repita mais duas vezes. Preste atenção
em como se sente ao inspirar ou expi rar. A batida
cardíaca se torna mais lenta? Fica mais cons ciente da
tensão acumulada nos ombros, ou em outra parte do
corpo na qual você armazena estresse e emoções
negativas? Faça respirações diafragmáticas completas e
sinta a diferença no peito e na barriga.
Inspire novamente, e desta vez permita que a
respiração flua entre a base da coluna e o alto da
cabeça, circulando por todo o corpo, e chegando até a
ponta dos dedos do pé. Expire lenta e silenciosamente
pelo nariz, a partir da parte mais profunda. Continue a
respirar pelo nariz, com o ar fluindo fãci1 e
naturalmente. Tente perceber a respiração sem
controlã-la. Ã medida que as inspirações e as
expirações se tornam mais calmas e menos frequentes,
você começará a ficar mais calma e relaxada.

O próximo passo da preparação para a meditação é aprender


a postura sentada clássica da ioga, a s u k h a s a n a , ou "posição
fácil". Sentada em s u k h a s a n a , suas costas permanecem eretas,
o que facilita o fluxo da respiração pelo canal principal da coluna
e também incentiva o p r a n a . Com o tempo, à medida que a
prática começar a evoluir, você descobrirá o verdadeiro
significado da s u k h a s a n a — leveza e felicidade na postura
sentada.
Caso sinta-se desconfortável no chão, faça os exercícios em
uma cadeira, com as solas dos pés no chão. Vinte e um anos
atrás, quando comecei a praticar a s u k h a s a n a , minhas juntas
estavam endurecidas e eu não conseguia que os joelhos se
aproximassem do chão. Meu professor de ioga, Dr. Narasimha
Rao, dizia: " A b h y a s a , a b h y a s a , a b h y a s a ] Pratique,
pratique, pratique!" Como tantas outras coisas na vida, a ioga
realmente requer a b h y a s a . Até mesmo alguns minutos de
prática diária
ajudam enormemente. Depois que você começar a circular o
p r a n a , vai se tornar mais flexível, e a rigidez gradualmente
desaparecerá.

A Prática: A Postura Fácil


Sente-se na beira de uma almofada média ou de um
cobertor dobrado colocado sobre uma esteira ou sobre o
carpete. Isso impedirá que você flexione os quadris e
curve a parte inferior da coluna. Com as costas eretas,
sente-se de pernas cruzadas. Abaixe ligeiramente o
queixo para soltar a nuca, e ali-nhe-a com o resto da
coluna.
Silenciosamente conte até seis enquanto inspira, a
seguir expire levando o dobro do tempo que levou para
inspirar. Con-centre-se no fluxo de prana ao longo da
coluna. Com cada respiração, verá que o corpo relaxa
mais na postura sukhasana.

A postura s u k h a s a n a é uma das posturas básicas da meditação


e das práticas respiratórias, porque aumenta a força vital do corpo.
Eu a recomendo como alívio para dores emocionais e mentais,
bem como para problemas nos órgãos e tecidos reprodutores. O
hábito regular de sentar-se em s u k h a s a n a melhora condições
tais como insónia, letargia, problemas cardíacos, perda de
memória, problemas alimentares e problemas de falta de atenção.
Kathryn, a irmã mais nova de uma de minhas alunas, é um
exemplo maravilhoso de alguém cujos sintomas foram aliviados
pelo simples ato de sentar-se na postura de s u k h a s a n a . A pri-
meira vez que a vi foi em um lindo dia de primavera quando ela
subia a ladeira em direção à minha cabine de tábuas, os ombros
dobrados até as orelhas como se carregasse um saco de tijolos nas
costas. Quando abri a porta para que entrasse, pude ver um rosto
marcado por linhas de ansiedade e olhos vermelhos de exaustão.
Não precisei perguntar a razão de sua visita. As palavras
começaram a jorrar antes de eu conseguir dizer alô.
"Sou uma estudante de química de pós-graduação", disse ela,
sentando-se na beirada da cadeira e puxando nervosamente o
cabelo comprido. "Já fiz todo o trabalho para o doutorado mas
ainda preciso escrever a tese. Não consigo me concentrar,
nem dormir, e acabei de ser diagnosticada com a síndrome hi-
perativa do distúrbio da atenção." Ela levantou as mãos para o
ar. "Olhe para mim, sou uma pilha de nervos! Estou tão deses-
perada que acabei de dirigir setenta quilómetros até este lugar
porque achei que talvez você pudesse me receitar ervas ou
qualquer outra coisa para me acalmar."
Meu impulso era dizer, "Kathryn, você tem de
desacelerar", mas aquilo que é óbvio costuma ser precisamente o
que não queremos ouvir. "Vamos começar com uma xícara de
chá", sugeri. Enquanto enchia a chaleira com água, vi que
Kathryn respirava rapidamente, como se estivesse participando
de uma corrida e não pudesse ser eliminada. Bem, era uma boa
metáfora, pensei. Ela havia me contado um pouco a seu respeito
pelo telefone quando pedira para vir, e tive a impressão de que
estava fugindo, com medo de toda aquela pressão interna.
Pela janela, vi que o sol brilhava lá fora e as árvores
floresciam em extravagantes flores brancas. No seu estado atual,
Kathryn não poderia enxergar a abundante beleza da natureza.
Perguntei-me se ela teria sequer percebido o aroma de incenso de
sândalo que perfumava a casa toda desde as orações matinais.
Enquanto eu preparava o chá de framboesa, ela tagarelou
nervosamente, respondendo às minhas perguntas em rompantes
enquanto os olhos passeavam rapidamente pelo ambiente.
Coloquei uma fita de cantos védicos para tocar ao fundo, ofe-
reci-lhe uma caneca de chá, e saí para apanhar flores e propor-
cionar-lhe alguns momentos de solidão.
Quando voltei, ela havia se acomodado mais confortavel-
mente na cadeira e até mesmo conseguiu sorrir. "Sua casa é muito
calma", murmurou, tomando o chá. "Gostaria de que houvesse
uma maneira de criar calma em minha vida."
"Conte-me mais sobre seu trabalho", disse eu, arrumando
as flores em um vaso.
Kathryn começou a puxar o cabelo de novo, e era fácil
ver a ansiedade retornando à sua voz enquanto ela respondia à
minha pergunta. Falava em jatos de palavras, começando e
parando bruscamente, e por fim disse: "Eu só preciso sobreviver
aos próximos meses, e então as coisas vão melhorar. Não consigo
acreditar que tenho distúrbio de atenção. Nunca tive problemas
para estudar no colégio nem na faculdade, como isso foi me
acontecer?"
Eu suspeitava que o diagnóstico dela estivesse errado. Ka-
thryn não respirava direito nem dava a si mesma tempo para
relaxar e simplesmente existir, vivendo num rodamoinho de
preocupação, medo e insegurança. Em vez de explicar tudo isso,
perguntei: "Você está disposta a tentar uma simples postura de
meditação e algumas técnicas de respiração para conduzir mais
oxigénio à mente?"
Ela pareceu desapontada. Devia saber pela irmã que eu uso
várias ervas e outros preparados para curar, e suspeitei que ela
tivesse vindo em busca de um remédio rápido — algum tipo de
pílula, óleo ou preparado de ervas que funcionasse como uma
panaceia para todas as suas dificuldades.
"Tudo bem, eu faço a respiração, mas vou precisar de muito mais
do que meditação para curar meus problemas", disse ela.
M u i t o m a i s d o q u e m e d i t a ç ã o ! Não consegui
imaginar o que pudesse ser isso. Mas Kathryn teria de descobrir
por si mesma que uma prática regular de meditação é um remédio
muito mais poderoso do que um armário cheio de calmantes,
antidepressivos, ansiolíticos e outras drogas.
"Se a meditação e a respiração não ajudarem, podemos dis-
cutir outros remédios", disse eu. "Por favor, dê uma chance a elas,
e vamos ver o que acontece."
Primeiro ensinei a Kathryn o processo de respiração dia-
fragmática simples descrito no Capítulo 5. Depois coloquei minha
esteira de ioga no chão, dei a Kathryn uma almofada de
meditação, e mostrei a ela como colocar as pernas na postura de
s u k h a s a n a . "Não consigo que minhas pernas fiquem perto do
chão como as suas", disse ela, lutando para ficar confortável.
"Apenas faça o que puder", disse eu. "A flexibilidade vem
com o tempo e a prática."
Estávamos sentadas com os olhos fechados respirando na postura
de s u k h a s a n a havia uns quinze minutos quando fui despertada
de minha meditação por um ronco suave. Olhei para Kathryn e vi
que estava dormindo. Saindo da cabine na ponta
dos pés, fui trabalhar em minha horta, depois voltei e respondi a
diversas cartas. Uma hora havia se passado antes que Kathryn
acordasse.
Ela levantou a cabeça de repente e olhou ao redor da sala. "Que
vergonha", disse ela. "Desculpe-me, mas eu dormi." "Como se
sente?"
"Otima", disse ela, esticando os braços. "O melhor sono que
tive em muitos dias. Será que vou dormir cada vez que praticar a
meditação?"
"Só quando estiver muito exausta", respondi.
"Isso ajudará o distúrbio da atenção?"
'Tenho certeza de que sua capacidade de concentração vai
aumentar", disse eu. "Ligue para mim daqui a duas semanas e me
diga como está. E não se esqueça de respirar, por favor!"
Kathryn telefonou exatamente duas semanas mais tarde,
dizendo que estava se sentindo com muito mais energia, e que
tinha menos problemas de concentração e clareza. Na verdade, os
sintomas atribuídos ao distúrbio da atenção eram agora tão pouco
frequentes que ela decidira suspender a medicação, pelo menos
no momento.
Fiquei encantada em saber de seu progresso. "Mas por favor, vá
devagar e faca os exercícios regularmente", adverti. "Para não
sair dos trilhos novamente ao enfrentar muita pressão."
Seis meses se passaram antes que eu tivesse notícias de
Kathryn novamente. Desta vez, ela telefonou para dizer que
acabara de escrever sua tese, e que lhe haviam oferecido ensinar
na universidade em tempo parcial. Ela se sentia ótima e já não
tinha mais insónia. Seu médico agora achava que o diagnóstico
do distúrbio da atenção fora um engano. Kathryn estava tão
ansiosa para aprender técnicas mais avançadas de meditação que
eu sugeri que viesse estudar comigo na Escola Wise Earth,
quando seus horários permitissem.
Logo após, Kathryn conseguiu tempo para frequentar um de meus
cursos de uma semana, em que aprendeu outras práticas de
meditação e de s a d h a n a . Desde então ela tem sido uma aluna
entusiasta também de ioga. Ainda tenho notícias dela duas vezes
por ano, e apesar de sua vida continuar muito cheia
e ativa, ela não se queixa mais de fadiga nem de dificuldades de
concentração.

COMO MEDITAR

Encontre um lugar em sua casa no qual não vá ser incomodada


por nada nem ninguém, inclusive telefone, fax ou televisão.
Mantenha um bloco e uma caneta a seu lado, de forma que
quando se sentar para meditar possa anotar os assuntos pendentes:
a lista de supermercado, o menu do jantar que vai dar na próxima
semana, e as coisas que precisa fazer depois de meditar.
Sente-se em s u k h a s a n a , com as mãos em s h a n t i mudra,
apoiadas no joelho, as palmas voltadas para cima para receber
energia, e o dedo indicador e o polegar tocando levemente um no
outro, formando um círculo.
Comece fechando os olhos, e não se permita esquecer de sua
intenção. Silenciosamente, repita: "Estou sentada em meditação.
Estou meditando. Estou onde eu estou." Esta intencionalidade e
esse observar a si mesma impedirão que sua mente se desvie para
"Estou sentada em meditação, mas meus pensamentos estão no
Havaí... O que será que a Karen vai fazer nas férias?... Oh, quase
esqueci que tenho hora no dentista hoje... Será que desliguei o
fogão?"
E claro que os pensamentos vão continuar a surgir, mas não
tente forçá-los a desaparecer. Um dos pontos mais importantes
durante a meditação é não seguir nenhum pensamento específico
que apareça. Observe-o apenas, e ele irá embora. Outro surgirá.
Observe-o, e deixe-o ir. Concentre-se na respiração, e não no
pensamento, e o pensamento se dissolverá.
Mesmo que seu ambiente esteja calmo, estamos sempre cercados
de barulho de um tipo ou de outro, inclusive os ruídos
provenientes de nossa própria agitação interna. Não tente ignorar
o barulho. Em vez disso, concentre-se na expiração. Com o
tempo, você descobrirá que até mesmo os ruídos mais dissonantes
podem entrar em harmonia com o som da respiração.
Comece praticando durante dez a quinze minutos de cada vez.
Quando achar que está pronta, aumente o tempo para vinte
minutos, e depois para meia hora. Mantenha um relógio por
perto. Você provavelmente vai descobrir, depois de várias
sessões de meditação, que sabe exatamente quanto tempo se
passou, e também sabe quando está pronta para terminar a
meditação.
Pode-se meditar a qualquer hora do dia ou da noite, mas os
momentos ideais são durante as junções do dia, quando a res-
piração solar e lunar estão equilibradas. Para a maioria de nós, as
melhores junções são o nascer do sol, meio dia, e o pôr-do-sol.
De acordo com os Vedas, o tempo mais auspicioso para a prática
espiritual é B r a h m a m u h u r t a , cerca de quatro horas da
madrugada, quando a mente está em seu estado mais lúcido e
tranquilo. Mas a menos que você goste de se levantar muito cedo,
a prática da meditação antes do nascer do dia provavelmente
representa um ideal pouco realista. Assim sendo, fixe para si
mesma uma meta mais realista, tentando meditar na mesma hora
todos os dias, de manhã, no final da tarde, ou à noite. Como já foi
dito antes, depois de alguns anos de prática, se eu adiar minha
meditação por mais de alguns minutos, surge uma energia
pulsante na têmpora direita que vai se tornando mais persistente
quando eu a ignoro. Sinto-me chamada a meditar, e tenho de
parar o que estiver fazendo, sentar, e dar plena atenção a este
chamado e ao fluxo do p r a n a .
Como eu já disse, algumas pessoas têm dificuldades para se
sentarem no chão de pernas cruzadas. Não há problema algum em
meditar em uma cadeira. O segredo é manter as costas eretas. A
meditação não deve ser um castigo. Quando meditamos,
queremos a plenitude do ser, não o vazio. Queremos consciência
do ser, sem culpas nem recriminações. Se surgir uma dor em
qualquer parte do corpo, faça o que for preciso para aliviar esta
dor. Se seu pé ficar dormente, movimente-o. Faça isso com
consciência. Envie a respiração para a perna ou para a parte do
corpo em que sente dor. Mova-se devagar, e torne a se acomodar.
Se o desconforto se tornar intolerável, levante-se e ande um
pouco, mantendo a consciência na respiração, até que a circulação
esteja restaurada.
Uma prática regular e contínua de meditação pode produzir
diversos benefícios. A nível psicológico, a respiração vai se
tornando gradualmente mais profunda e mais equilibrada, por
períodos maiores do dia e da noite. Se você tiver pressão alta, a
pressão diminuirá. A batida cardíaca e o consumo de oxigénio
diminuirão, e as tensões musculares serão liberadas. No nível
mental, você desenvolverá mais clareza sobre os assuntos coti-
dianos. Em vez de se jogar de cabeça em situações familiares,
profissionais ou sociais que são estressantes ou que contêm alta
carga emocional, você terá mais facilidade para permanecer
apenas como a testemunha que não julga, e que não se envolve
no caos e na confusão. Talvez também se liberte de certos
comportamentos compulsivos ou de dependências, além de
atingir uma sensação de paz que não depende da ingestão de
substâncias nem da posse de bens materiais ou de relaciona-
mentos pouco saudáveis.

Uma Ferramenta de Meditação: A


Manutenção de um Diário

Como podemos ver, a prática da meditação produz uma abundân-


cia de material vindo da mente. Em minha experiência, uma das
ferramentas mais úteis para explorar este material e ao mesmo
tempo manter o equilíbrio interior é a manutenção de um diário
de meditação. Durante meu primeiro ano de prática de meditação,
mantive um diário escrito que me permitiu testemunhar as
alterações de consciência pelas quais passei. Chamei-o de C o m -
p a n h e i r o C e l e s t i a l , e ele se tornou um relato diário de meu
progresso espiritual e físico. Nele eu pude observar alterações ou
melhorias na respiração, na energia e na saúde. Meus hábitos
alimentares foram mudando gradualmente, e comecei a perceber
os tipos e a qualidade dos alimentos que eu colocava em meu
corpo, porque tudo se encontrava documentado em meu diário.
Observei especialmente o fluxo dos pensamentos,
prestando uma atenção especial às contínuas transformações que
ocorriam em meus processos mentais enquanto a prática se
aprofundava.
Por exemplo, ao fim do primeiro mês de prática, percebi que
estava julgando menos e também que me sentia menos disposta a
conversas superficiais, tanto dentro de minha própria mente
como com outras pessoas.
Durante o primeiro ano de meditação, o diário se transformou em
confidente e aliado. À medida que hábitos e estilos de vida
arraigados começaram a ser substituídos por novos padrões,
muitas vezes me senti confusa, perturbada e atordoada. Nessas
horas, o diário foi de grande valia. Quando eu me sentia cansada
demais para sentar e meditar, deitava-me na cama e lia ou
escrevia o C o m p a n h e i r o C e l e s t i a l . Todas as vezes em que
registrei lágrimas e medo naquelas páginas, acabei por me sentir
melhor aparelhada para vencer os desafios e obstáculos que
impediam meu progresso espiritual.
A medida que minhas experiências espirituais foram se
aprofundando, senti-me como se estivesse subindo a escada da
consciência interior. De vez em quando eu me percebia atingindo
novos patamares de percepção e serenidade. Agora, muitos anos
depois, relendo o velho diário, vejo o incrível progresso que fiz
naquele primeiro ano. Ao reler o que escrevi, percebo que a
prática da meditação — juntamente com minha disposição de
abrir meu coração nas páginas brancas do diário — tornaram
possível a remoção dos obstáculos que bloqueavam meu
caminho.
Eu a convido a manter um diário no qual você possa registrar suas
jornadas de meditação. Na primeira página, talvez você queira
escrever o mantra da Deusa Saraswati que vem abaixo, ou talvez
prefira uma oração ou invocação criada ou escolhida por você.

Mantra de Saraswati AIM SARASWATYAI NAMAHA

Saraswati é a deusa da sabedoria, criatividade e luz. Seu mantra


ajuda a mente a mergulhar em sua própria intuição inata, ou
b u d d h i . Invocar Saraswati faz a pessoa se sentir renovada,
aberta, e pronta para colocar seus pensamentos no papel.
Antes de começar o diário, pergunte a si mesma: o que a
meditação significa para mim? Como me sinto a respeito do
fato de embarcar em uma jornada espiritual? Quais são algu-
mas das mudanças que eu gostaria de fazer em minha vida
co-tidiana? Que desejos e metas quero realizar? Que imagem
de mim mesma gostaria de ver daqui a um ano?
Faça a primeira anotação registrando a hora e local
da primeira meditação. Não se censure nem tenha
preocupações com gramática, pontuação, estilo literário, ou
se está ou não "fazendo direito". Não julgue o texto; o que
vier à mente merece ser registrado e investigado. Depois de
terminar a meditação, pegue a caneta ou o lápis e mantenha-o
em movimento sobre a página. Permita que seus sentimentos
e motivos, pensamentos e reações fluam levemente sobre a
superfície da consciência enquanto você registra a
experiência de meditação. Foi fácil ou difícil? Você
conseguiu rapidamente prestar atenção à respiração ou de-
morou alguns minutos? Os ruídos externos a distraíram ou
você conseguiu eliminá-los da mente? Seu corpo se sentiu
confortável na posição de meditação ou suas costas doeram,
seu pé ficou dormente, os ombros doendo? Você ficou
impaciente ou calma? Tente não se deixar prender a um único
fio interminável de pensamentos e sentimentos. Inicialmente,
considere que dez a vinte minutos de meditação são um
período bem razoável.
O diário é uma ferramenta poderosa para observar o
progresso da meditação. A medida que os ritmos de sua
respiração e consciência vão entrando em sincronia com os
ritmos da natureza, você vai se tornando mais consciente de
sua natureza individual e seu propósito, ou seja, de seu ser
verdadeiro. Ao mesmo tempo, torna-se mais receptiva às
emissões sagradas do universo.
CAPÍTULO 7
DESPERTANDO A MEMÓRIA
CÓSMICA E A INTUIÇÃO

Aquele que atravessou a


fronteira e realizou o Ser não
é mais ferido nem sente dor.
Quando a fronteira é
atravessada, a noite se torna
dia; porque o universo de
Brahman é a própria luz.
- Chandogya Upanishad (8.4.2)

O elefante é reverenciado pelos hindus há milhares de anos


como um ser sagrado. De acordo com a tradição védica, ele é
o ancestral animal mais antigo da Terra. Dois ícones da
espécie são honrados por milhões de devotos todos os dias
nos templos do sul da índia — Gajendra, Senhor dos
Elefantes; e Ganesha, o filho de Shiva com cabeça de
elefante, o que concede a vitória em novos empreendimentos
e removedor de obstáculos. Até recentemente, podia-se ouvir
o estrondo dos elefantes procurando alimento nas densas
florestas das Colinas Nilgiri ao sul da índia. Mas por ocasião
de minha última visita, esta região tradicionalmente pacífica,
localizada na fronteira de Kerala, teve sua atmosfera
corrompida pelo medo e pela dor dos elefantes. No final da
década de 1990 caçadores ilegais haviam matado mais de
20.000 elefantes para retirar o marfim precioso. As pessoas
das aldeias vizinhas contavam histórias horripilantes sobre o
sofrimento dos animais e seu êxodo apavorado das florestas
que sempre foram seu abrigo milenar.
Duas semanas antes de minha última viagem ao ashram
de meu mestre em Coimbatore, um filhote de elefante ferido
abandonou seu lar nas colinas e viajou quatro quilómetros até
o templo mais próximo, erigido em honra de seus ancestrais,
na pequena aldeia de Anaikatti. O filhote aparentemente fora
ferido ao tentar atravessar as cercas de arame farpado
colocadas pelos guardas florestais para afastar os caçadores
ilegais e manter os elefantes na floresta. A ferida
infeccionara, e os aldeãos disseram que o filhote entrou
mancando no terreno sagrado do templo e se deitou prostrado
diante da imagem do deus elefante, Gajendra.
Milhares de devotos e homens sagrados acorreram ao
templo na tentativa de tratar o filhote e devolver-lhe a saúde.
Apesar das orações oferecidas a Shiva, Ganesha e Gajendra
por três dias e três noites seguidas, o pequeno elefante não
pôde ser salvo. Mas ninguém naquela região do sul da índia
pensaria em questionar por que um animal ferido caminharia
quatro quilómetros para morrer na presença de seu ancestral
sagrado. Eles sabem que cada criatura carrega em seu cérebro
o instinto da espécie, formado .pela memória cósmica de toda
a matéria e energia do universo, desde o início dos tempos.
Devido à memória cósmica, o elefante ferido sentiu-se
chamado ao templo de seus ancestrais, para morrer em
terreno sagrado.
A memória cósmica é minha teoria, retirada dos Vedas, e
um dos alicerces das sadhanas da Wise Earth. E mais ou
menos análoga ao conceito de inconsciente coletivo de Carl
Jung, só que mais abrangente, porque engloba não apenas as
lembranças e associações espirituais e culturais dos seres
humanos, mas também de todos os seres vivos e das energias
inanimadas. Outra versão de memória cósmica pode ser
encontrada na teoria do bioquímico Rupert Sheldrake sobre
ressonância mórfica. Sua teoria propõe que os
comportamentos aprendidos são passados para diferentes
grupos de uma mesma espécie localizados em lugares
distantes, por meio de um campo energético, sem necessidade
de comunicação ou influência física direta. Sheldrake propõe
como hipótese básica que a "memória é inerente à natureza",
e que os "sistemas naturais tais como as colónias de cupins,
os pombos, as orquídeas ou as moléculas de insulina herdam
a memória coletiva de todos os seres de seu tipo que vieram
antes, mesmo que muito distantes no espaço e no tempo".
Desta forma, a palmeira não precisa se lembrar do que é
preciso fazer para produzir cocos, nem o cavalo duvida de
que sua prole terá a sua imagem e não a de um gerânio.
Os Vedas nos dizem que nossos tecidos se lembram de
suas funções predeterminadas, da mesma forma que o
alimento que ingerimos lembra sua estrutura e propósito,
transmitindo esta informação aos nossos corpos. A memória
cósmica é armazenada e refinada pelo código genético, o
DNA, a estrutura molecular das formas de vida. Nós
chamamos à consciência nossas próprias memórias genéticas
e as honramos por meio dos alimentos que ingerimos e de
como os preparamos, como tratamos a terra, como
respiramos, e como ouvimos a nós mesmos e ao universo
vivo que nos cerca. A chave para a cura das doenças físicas,
psicológicas e espirituais reside na evocação destas memórias
genéticas ou ancestrais, impressas em nosso corpo-mente e
espírito.
Além das memórias ancestrais, cada espécie carrega seu
próprio bloco de memórias cósmicas. Mais do que apenas o
conhecimento necessário para que uma espécie sobreviva,
este bloco de memórias cósmicas representa a dádiva que
cada espécie traz para o planeta. Por exemplo, aranhas tecem
teias devido ao instinto dentro de seu cérebro, um instinto
formado pela memória ancestral da espécie. Alguns animais
peludos constroem represas. Certas criaturas com penas voam
para o sul no outono. Morcegos apanham insetos em vôo
usando so-nares. As cabras das montanhas desafiam a
gravidade e ficam quase que de cabeça para baixo nos picos
do Himalaia. Todas estas habilidades ancestrais fazem parte
de uma memória cósmica mais ampla.
A habilidade instintiva dos seres humanos é a intuição,
que, na tradição védica, é uma função mental e espiritual
maior e mais rica do que reconhecem as culturas ocidentais.
O termo sânscrito para intuição é buddhi, que significa
conhecimento individual, consciência e memória. Os rishis
disseram que a consciência humana emergiu da memória do
cosmos, a consciência maior que a tudo permeia. Todas as
células de nosso ser são formadas pelas memórias essenciais
de toda a criação.
Cada espécie é formada por seu próprio conjunto de
memórias. A memória contém a verdade do universo. Ela
representa tanto a orientação interior de cada vida como
também o meio de troca com as outras criaturas.
As primeiras tribos humanas conheciam a memória do
universo porque observavam os animais selvagens com quem
compartilhavam a terra. Ao caçar e comer os animais
selvagens, os primeiros humanos herdavam poderes animais,
sua memória instintiva. Os próprios rishis copiaram os
movimentos e as posturas dos animais ao criar a hatha ioga
— uma prática pela qual podemos aumentar a circulação do
prana de acordo com as memórias cósmicas. Animais e
plantas são modelos maravilhosos. Quando aprendermos a
observar conscientemente o que nos cerca, cada grão de areia
nos ajudará a entrar em con-tato com nossas memórias.
Tanto as memórias cósmicas quanto as individuais se ex-
pressam por intermédio de nossos corpos. Nossos tecidos car-
regam as memórias coletivas e individuais que formam nosso
corpo-mente particular e único. Por meio destas memórias,
cada forma de vida consegue se adaptar às exigências do
ambiente e funcionar em todos os renascimentos. Ritmos
cósmicos específicos também estão codificados em nossos
bancos de memórias: o ciclo das estações, as energias dos
sete chacras, os estágios do envelhecimento, os ritmos diários
da respiração, e nossos tecidos vitais. A memória de cada
vida individual juntamente com a memória coletiva do
universo encontram-se mescladas para sempre no tecido do
nosso ser.

DESPERTANDO A INTUIÇÃO

Os corações dos rishis estavam abertos para a natureza, por


isso puderam atingir uma perfeita comunhão com a mesma
por meio da linguagem interior da intuição. Como diz Steven
Pinker em seu livro The Language Instinct: "Nós somos uma
espécie de primatas que têm seu próprio talento, a facilidade
para comunicar informação sobre quem fez o quê a quem."
Podemos fazer isso por causa das memórias cósmicas e
ancestrais que, como espécie, carregamos dentro de nós, de
vida para vida, em nossa intuição, ou buddhi. Fisicamente,
esta mente intuitiva ou bloco de memórias cósmicas está
localizada na parte frontal do cérebro, e às vezes é chamada
de mente maior. Os sábios dizem que a meditação
desenvolve nossa sabedoria individual, inteligência e
memória — a buddhi —, que é o veículo para nos
conectarmos à ideia de nos tornarmos Unos com o Todo, ou
como dizem os rishis, o todo em um e o todo em muitos.
Buddhi é uma intuição consciente e uma consciência
intuitiva, que desce até nós seres humanos, proveniente do
grande universo. Pode se tornar nosso guia interno, porque
nos permite expressar a consciência de forma verdadeira.
Nossa mente individual determina como iremos expressar as
memórias contidas em nossa consciência ou buddhi. Quando
a mente está alinhada com buddhi, nós nos expressamos
conscientemente, como por exemplo quando cultivamos a
compaixão ou as práticas espirituais. À medida que
percebemos o poder de buddhi, nos tornamos mais sensíveis,
introspectivos e perceptivos, fluindo em harmonia com os
ritmos naturais. Quando isso ocorre, nossos pensamentos
passam a refletir a consciência pura e sem flutuações de
buddhi, passando então a ser guiados por ela.
Da mesma forma, quando estamos fora de equilíbrio com
estes ritmos, a mente se distrai e surge uma abundância de
pensamentos, bloqueando a intuição. A meditação e os
exercícios respiratórios — sadhana — são a forma mais
eficaz de nos conectarmos às nossas habilidades inatas para
desenvolvê-las. A meditação nos permite despertar
internamente e agir de forma consciente no mundo. Da
mesma forma, buddhi nos permite sermos um espírito ou
consciência em ação.
Muitas vezes em nossa vida cotidiana somos guiados in-
conscientemente pela intuição. Quando alguém importante
para nós está ferido ou doente, muitas vezes sabemos disso,
mesmo quando geograficamente distantes. Minha vizinha
Jane estava preparando o almoço quando escorregou e caiu
no chão da cozinha. Alguns minutos depois o telefone tocou.
A professora de sua filha ligava da escola para dizer que Sara
havia caído da escada e se machucado. Jane lembrava-se de
que antes de escorregar e cair ela sentira uma enorme
preocupação com Sara.
Com a prática da sadhana, o poder de buddhi cresceu
dentro de mim ao longo dos anos. Posso atualmente realizar
em alguns dias o que no passado levaria alguns meses. Eu
experimento o milagre de buddhi todos os dias em minha
vida. Recentemente, estava em uma mercearia quando uma
senhora idosa teve uma convulsão. O gerente da loja e
diversos fregueses correram para ajudar, mas enquanto a
rodeavam, as convulsões pioraram. Percebi que a melhor
forma de ajudar seria entrar em estado meditativo e enviar
luz para ela. Fiquei imóvel e fechei os olhos. Visualizei-a
dentro de uma luz branca, que comecei a projetar para ela.
Depois de um minuto ou dois, as convulsões cessaram. A
mulher ficou de pé, andou até mim e tomou minhas mãos
entre as suas. Ela não precisava palavras para me agradecer
pela energia de cura que eu lhe enviara.
Angélica, que tem estudado comigo pelos últimos cinco
anos, ensina atualmente as sadhanas da Wise Earth em San
Francisco e em conferências por todo o país. Há cerca de um
ano, depois de meses de cantos e meditações com exercícios
respiratórios diversas horas por dia, Angélica de repente
sentiu uma nova consciência do mundo, como se sua
consciência houvesse se expandido. Logo depois, estava
andando em uma rua desconhecida quando notou uma linda
casa antiga em estilo vitoriano. Ao parar para admirar a
arquitetura, deparou-se com a visão de uma imagem de
Hanumam, o deus macaco dos Vedas, bem acima da casa.
Ficou tão espantada com a visão que me telefonou para
perguntar o que eu achava daquilo.
Eu sabia que já havia algum tempo Angélica vinha
planejando encontrar um novo local para seu estúdio de
sadhana, e achei que o aparecimento de Hanumam era um
sinal de que sua intuição a levara àquela casa. "Eu nunca
poderia pagar um lugar como aquele", disse Angélica
tristemente quando comentei com ela a respeito de minha
interpretação. Na semana seguinte, chegou uma carta de uma
empresa de hipotecas dizendo que o pedido de empréstimo
que ela fizera havia algumas semanas fora aprovado.
Angélica ficou pasma, porque tinha certeza de que sua renda
anual não permitiria a obtenção do empréstimo.
Ela comprou a casa onde vira Hanumam, e desde este dia
já teve muitas outras visões, inclusive visitas frequentes de
meu mestre, Swami Dayananda, que ela nunca encontrou em
pessoa, e também visitas minhas, quando ela tem perguntas
importantes a fazer a um de nós.

O CAMINHO DA B U D D H I I O G A

Na Bhagavad Gita, o Senhor Krishna ensina a atitude interna


de tranquilidade e compaixão que deve existir por trás de
todas as ações, que ele descreve como buddhi ioga.
"Atribuindo em pensamentos todas as ações a Mim,
concentrado em Mim, recorrendo à buddhi ioga, permaneça
constantemente focado em Mim." Desta forma, quando
operamos por meio de buddhi, em vez da mente racional e do
ego, reconhecemos continuamente o Ser como instrumento da
vontade divina e todas as nossas ações como consequência da
Graça Divina. Sempre que meu mestre recebe um elogio, ele
responde da mesma forma: "Isvara's Daivam", "Tudo vem do
Divino". A atitude de transferir as realizações humanas para o
Divino tem origem em buddhi. Como possuidores deste bloco
de memórias cósmicas, devemos preservá-lo e mantê-lo,
ajudando todas as espécies a refinar seus respectivos blocos
de memórias cósmicas.
Os antigos recomendavam a buddhi ioga (a meditação
desinteressada do capítulo anterior) como a melhor forma de
rejuvenescer a mente, acessar lembranças, e aumentar a
intuição. Quando desempenhamos qualquer atividade em
excesso, seja pensar, trabalhar, dormir ou brincar, criamos
uma certa toxicidade mental que bloqueia a intuição. O
propósito da sadhana — e da prática espiritual em geral — é
despertar buddhi, tor-nar-se consciente de sua função, e
colocar-se a seu serviço. É por isso que a maioria dos
exercícios espirituais, como meditação, ioga, atenção
constante, canto, ou o emprego de koans zen são todos
projetados para nos conduzir além da mente ocupada,
distraída e alimentada pelos cinco sentidos, permitindo que
buddhi prevaleça.
A buddhi ioga evoca nossa capacidade intuitiva de trans-
cender ao pensamento racional, de forma que a consciência
coletiva do universo penetre em cada átomo, célula, tecido e
lembrança de nosso ser. A medida que sua prática de medita-
ção se aprofunda e a intuição aumenta, você começa também
a se expandir, o que traz unidade e integração para a família e
as comunidades maiores dentro das quais você vive.
Alice veio para a Escola Wise Earth para estudar medita-
ção. Assistente social trabalhando no sistema de previdência
de Nova York, ela se envolvia tanto com os problemas dos
clientes que seu casamento começava a ser prejudicado.
Noite após noite Alice sentava-se para jantar com o marido
contando as histórias tristes que testemunhara durante o dia.
Muitas vezes o telefone tocava e era um dos clientes pedindo
conselhos ou relatando novas desgraças. O marido cansou de
pedir que ela deixasse a secretária eletrônica atender o
telefone, para que tivessem tempo para ficar à vontade juntos.
Mas Alice não conseguia ignorar os pedidos de ajuda, e sua
dedicação integral ao trabalho começou a se tornar uma fonte
de atrito entre ela e o marido.
Um amigo lhe sugeriu a meditação para limpar a mente e
achar alguma tranquilidade em meio às questões de vida e
morte que seus clientes lhe traziam diariamente. Alice já
ouvira uma palestra minha no Open Center de Nova York e,
incentivada pelo marido, decidiu tirar uma semana de férias
para estudar meditação. Ela reagiu especialmente bem à
meditação com a respiração Bhramari, que descrevo adiante,
e continuou a prática depois de voltar para casa.
Cerca de seis meses mais tarde ela me escreveu uma
longa carta, dizendo que havia obtido mudanças positivas em
sua vida: já conseguia limitar as longas conversas sobre
trabalho com o marido, e não recebia mais telefonemas em
casa, a não ser em emergências. A meditação, disse ela,
"tornou-se uma parte preciosa de minha rotina matinal. Já não
imagino começar o dia sem meditar. A prática também me
proporcionou un novo nível de energia, e no final de catorze
horas de trabalho sinto bem pouco cansaço".
Seus colegas ficaram impressionados com a nova
energia, e pediram que ela compartilhasse a meditação com
eles. "Uma vez por semana, praticamos como um grupo, e o
resultado é que nossa equipe profissional está funcionando de
forma mais eficaz."
Alice conseguiu se desapegar do trabalho de maneira sau-
dável. Durante as meditações, algumas vezes tinha visões dos
clientes, e em vez de rejeitar essas visões, conseguia aceitar
as imagens, entender qual era a melhor forma para lidar com
certas situações, e depois abandonar aquele pensamento. Isto
permitiu que ela se voltasse para as soluções, em vez de
continuar se envolvendo obsessivamente com os problemas
dos clientes, como no passado. Em vez de se preocupar
ansiosamente com estas questões, Alice se tornou mais
compassiva e mais eficiente no trabalho. Ciente do quanto
havia sido ajudada pela prática da meditação, persuadiu seus
supervisores a deixá-la ensinar meditação a um grupo de
mulheres e crianças de um centro para mulheres vítimas de
violência doméstica, todas sujeitas a estresse severo, traumas
e condições caóticas de vida.
Como demonstra a história de Alice, a meditação não é
uma válvula de escape para nossos problemas, mas um cami-
nho para uma clareza maior, conduzindo a comportamentos
que ajudam a solucionar os conflitos e as dificuldades. Revela
como a prática da meditação, além de promover a intuição e a
lucidez, também expande nossa percepção, conectando-nos às
pessoas que fazem parte de nosso ambiente assim como a
todas as outras criaturas vivas do planeta. Dessa forma, a
buddhi ioga é o primeiro passo para ajudar a expandir a
memória cósmica e a intuição. Quanto mais praticamos
meditação, e especialmente a meditação com respiração
bhramari, mais aumenta nosso campo de percepção e nossa
conexão com o corpo sutil.

A MEDITAÇÃO COM RESPIRAÇÃO


BHRAMARI: PREPARANDO O TERRENO PARA
A MEMÓRIA CÓSMICA
A meditação com respiração bhramari é uma meditação ou
prática de buddhi ioga que nos conecta diretamente à Mãe
Divina. Além de ajudar com as metas maiores de
conhecimento do Ser e de uma maior consciência de nosso
relacionamento com o Divino, a meditação da respiração
bhramari, que vincula som, respiração e postura, propicia
inúmeros outros benefícios. Ela equilibra o sistema nervoso e
o sistema imunológico; fortalece o fluxo de prana para o
coração e o cérebro; e ressona no centro energético
localizado entre as sobrancelhas, o local onde a mente se
funde em buddhi (ajna, o sexto chacra).
A raiz sânscrita bhram significa literalmente "abelhas" e
se refere ao zumbido ressonante da consciência interna,
semelhante ao som de muitas abelhas. Como Bhramari-Devi,
a Mãe assumiu a forma de abelha rainha. Cercada de abelhas,
Bhramari-Devi simboliza a elevação da mente aos píncaros
da percepção.
De acordo com os videntes, o som só pode ser usado em
conjunto com algumas posturas específicas. Esta prática
milenar é uma das principais posturas que se enquadram
neste caso, e parte essencial da sadhana de meditação da
Wise Earth. Na meditação com respiração bhramari,
vibramos as cordas vocais utilizando sons semelhantes a
zumbidos, que ativam o sistema nervoso e o cérebro e levam
a mente a um estado de equilíbrio. O zumbido também
purifica os canais de respiração solar e lunar, o que resulta em
uma clareza muito maior para a mente.

A Prática: Meditação com Respiração Bhramari -


Desenvolvendo a Respiração Sutil
Sente-se em uma posição confortável onde não seja interrom-
pida. Elimine o ar residual do corpo com uma expiração forte
pelas narinas, e continue a prática da meditação.
Use os dedos das duas maos para fechar os olhos, narinas,
ouvidos e boca, conforme mostra o diagrama abaixo.

Posição das mãos para a meditação com


respiração bhramari
Depois que as aberturas dos órgãos dos sentidos estiverem
fechadas, contraia a musculatura anal, fechando-a também.
Relaxe levemente os dedos sobre as narinas, e inspire pro-
fundamente, enchendo a barriga. A seguir feche as narinas e
mantenha a posição das mãos, ou mudra. Enquanto mantém a mus-
culatura anal fechada, solte a respiração lentamente,
zumbindo ao mesmo tempo que expira. Talvez você não ouça
realmente o som que estã fazendo, mas sentira a vibração
ressonando dentro do chacra ajna.
Solte a musculatura anal e desfaça a mudra. Você sentirá um
surto de energia correndo por seu corpo, seguido por uma
sensação de calma, e uma percepção mais aguçada de tudo o que
a cerca. Esta percepção é produzida pela potente combinação de
uma respiração oxigenada e vibrações sonoras internas, agindo
como conduítes de energia entre o corpo físico e o corpo
sutil. Os ritmos da respiração e da vibração ajudam-na além da
mente alimentada pelos cinco sentidos, até um local de paz
profunda, dentro de si mesma. Esta percepção aumentada, que
alcança além da mente racional, é o ponto inicial da intuição.
Cada um de nós tem a capacidade de despertar a intui ção, ou
buddhi, e penetrar nesta dimensão de silêncio e conhecimento.
CULTIVANDO O SILÊNCIO INTERIOR

Todas as tradições espirituais mencionam o silêncio interior. O


Shukla Yajur Veda aconselha: "Que os sábios, conhecedores de
Brahman, tendo-O realizado, pratiquem Sua sabedoria. E que não
usem muitas palavras, porque a fala só produz cansaço."
O silêncio interior transcende à mente, permitindo ao coração
lembrar-se de sua natureza compassiva. A tradição védica coloca
o coração imortal no quarto chacra, o anahata. Simbolizado pelo
antílope negro, este chacra é o local no corpo onde reside o amor
cósmico. Ao entrar no silêncio, entramos no coração e no som
primordial que reverbera ali. Anahata significa "sem fricção,
espontâneo" e se refere ao som puro da criação.
O silêncio é um componente básico da meditação, ou buddhi
ioga. No início de sua prática, o silêncio equivalerá a uma espécie
de jejum para a mente, da mesma forma que as pessoas podem
ocasionalmente se abster de comer para descansar, limpar ou
rejuvenescer o sistema digestivo. Cultivar o silêncio interior é
uma forma poderosa de despertar a intuição e, portanto, a
memória cósmica.
Minha própria jornada espiritual me ensinou o valor do si-
lêncio, e seu poder de despertar a intuição e a memória cósmica.
Meu primeiro longo período de silêncio foi durante meu tempo de
reclusão no inverno quando fui diagnosticada com câncer. Mas só
entendi realmente o silêncio como uma prática espiritual quando
fui estudar no mosteiro de meu mestre, na índia.
Quando cheguei lá pela primeira vez, tive dificuldades para
me ajustar à cultura indiana, devido à barreira da língua. O fato de
minha origem ser indiana mas eu não saber falar a língua só
piorava as coisas. Finalmente, decidi que, enquanto permanecesse
no mosteiro, observaria silêncio total, para poder escapar das
perguntas infindáveis dos bem-intencionados devotos de meu
mestre.
Quanto mais eu praticava, mais profundo o silêncio se tor-
nava. Observei meus pensamentos se transformarem, e com o
tempo passei a explorar o território sagrado do coração e de
buddhi. Depois de alguns meses de contemplações silenciosas,
comecei a experimentar uma mudança significativa na mente, que
provocou uma série de visões. No terceiro aniversário da morte
de meu pai, ele apareceu para mim durante uma meditação. Havia
ascendido a um plano mais alto, celestial, onde servia água para
crianças no portão de um lindo templo branco de alabastro.
Austeramente vestido de branco, ele também estava silencioso.
Mais tarde, ele passou para outro nível daquele plano, onde o vi
sentado em profundo silêncio. A seguir ele subiu para outro local,
onde eu já não podia me conectar a ele. Entretanto, eu sabia que
ele estava bem e que seu espírito continuava a proteger os
membros de sua família e de seu rebanho.
Em uma meditação subsequente, meu pai reapareceu. Desta
vez, ele apareceu para mim em um rio tumultuado, vermelho
escarlate. Enviou-me a seguinte transmissão silenciosa: "Este é o
rio do seu coração. Cuide bem de seu coração, porque ele é o
guardião do Som. Se você não cuidar bem dele, terá de atravessar
este rio bravio depois que morrer. Eu sei, porque acabei de fazer
minha própria travessia."
Uma semana após esta meditação, o guru de meu mestre teve
um ataque cardíaco. A sincronicidade desta visão de meu pai, que
morrera de enfarto, parecia uma revelação de minha buddhi.
Interpretei como uma advertência aos facilitadores e instrutores
espirituais que dão muito de si, e que precisam prestar atenção
especial à saúde de seus corações e seus corpos. Depois disto,
tornei-me instrutora e curadora, e já recapitulei muitas vezes as
mensagens contidas nestas visões. Elas são exemplos profundos
de sabedoria cósmica, intuição e memória transmitidas por
buddhi.
Cultivar períodos de silêncio também me fez conhecer um
pouco os desejos profundos de meu coração, o que me ajudou a
progredir em direção à intuição e à liberdade interior. A Chan-
dogya Upanishad diz, "As pessoas são iguais aos seus desejos. E
o nosso desejo mais profundo que molda a próxima vida. Por
isso, vamos direcionar nossos desejos para o conhecimento do
Ser" — um Ser que nasce do silêncio e da canção. Só precisamos
reconhecer esta maravilhosa divindade dentro de nós para receber
a dádiva celestial que reside no coração.

A Prática: Meditação Pranava


Swami Jyotirmayananda diz em seu livro Mantra Kirtan: "0 OM
é a mãe de todos os mantras. É a origem de todas as palavras e
sons. Desta forma, OM é o símbolo perfeito, o nome místico de
Deus." Refletir sobre a sílaba sagrada OM é o caminho mais
rápido para acalmar a mente, o foco da buddhi ioga. Quando
pronunciamos OM, usamos todo o espectro de alcance vocal, da
garganta até os lábios. OM evoca um fenómeno milenar - o som
cósmico da consciência. A pranava upasana, uma prática da
buddhi ioga baseada na contemplação de OM, acalma a mente e
abre o portal para a vasta dimensão interior do silêncio e da
memória cósmica. Quando penetramos no silêncio, buddhi assume
o comando.
Uma vez por mês, experimente usar um dia (ou algumas ho ras)
para praticar o silêncio. Comece seu dia com vinte minutos de
meditação pranava. Permaneça aproximadamente cinco minutos em
cada um dos quatro estágios da meditação. Ã medida que sua
capacidade de acalmar a mente aumentar, talvez você deseje
estender a meditação para uma hora.
Sente-se no chão na postura sukhasana (de pernas cruzadas)
ou em uma cadeira com as costas eretas e os pés firmemente
plantados no chão. Concentre-se na primeira sílaba de OM, que
é A. (Em sânscrito, a palavra "om" é composta de três sí-
labas, a-u-m. Os sons a-u-m representam os três estados de
consciência existentes no cosmos. 0 aspecto A refere-se ao
corpo físico, ao universo e ao estado de vigília.) Diga A
contando um, a seguir faça uma pausa e conte um. Concentre-se
na pausa silenciosa entre as repetições do A. Faça isso por
cinco minutos.
Agora, concentre-se na segunda sílaba de OM, que é U. (0
aspecto U está ligado ao corpo sutil ou astral, â mente cós-
mica e ao estado de sonho.) Diga U contando um (pronuncie a
sílaba com os lábios em círculo), a seguir faça uma pausa e
conte um. Concentre-se na pausa si lenciosa entre as
repetições do U. Faça isso por cinco minutos.
A seguir, concentre-se na última sílaba de OM, que é M
(pronunciado com os lábios fechados). M representa o corpo
causal e o estado de sono profundo. Também se refere ao es-
tado de imobilidade cósmica - o não-manifesto. Diga M con-
tando um e a seguir faça uma pausa e conte um. Concentre-se
na pausa silenciosa entre as repetições do M. Faça isso por
cinco minutos.
Por fim, concentre-se em todo o OM. Diga OM contando um e a
seguir faça uma pausa e conte um. Concentre-se na pausa si-
lenciosa entre as repetições do OM. Faça isso por cinco mi-
nutos.
Observe silêncio enquanto continua com suas atividades pelo
resto do dia.

Durante um retiro de silêncio, pude confirmar a enorme


importância de descansar e jejuar a mente periodicamente,
mantendo-me em contato com buddhi. Naquela ocasião, consegui
deixar para trás o tagarelar incessante da mente e repousei abaixo
da superfície da percepção cotidiana. Como não estavam mais
ocupados com pensamentos e estímulos superficiais, meus
sentidos voltaram para sua origem em buddhi, onde se reco-
nectaram — por meio da memória cósmica — com sua recep-
tividade original. Os objetos então se tornaram luminosos e
nítidos. Eu via cada folha de grama com uma aura de neon. Podia
ouvir um falcão voando a milhas de distância e minhocas
rastejando no solo sob meus pés. Tive a nítida consciência da
união inseparável que existe entre Criador e criação, e tive
certeza de que a luz de buddhi sempre me ajudaria a discernir
meu propósito.

CARMA, RENASCIMENTO E
O CAMINHO PARA AS
MEMÓRIAS ANCESTRAIS

Como hindu que sou, acredito nas leis do carma e da reencar-


nação: todos os atos desta vida moldam nosso futuro imediato
bem como nossas vidas futuras, da mesma forma que a vida atual
é o resultado cumulativo das ações de vidas passadas. Os videntes
védicos nos dizem que cada alma tem de atravessar muitas vidas
e muitas ocorrências para atingir a plena consciência. O
conhecimento adquirido por intermédio das experiências da vida
nos permite conhecer nosso carma, ou nossos ritmos pessoais,
para que possamos redirecionar nossa jornada. Como heranças
espirituais, a fama e a boa sorte, a doença e o desespero fazem
todos parte de meu legado cármico desta vida. Independente de
serem alegres ou dolorosos, estes eventos conduzem, todos
juntos, ao renascimento e ao despertar. Ao reconhecer os eventos
de minha história pessoal como pedras de calçamento no caminho
da sabedoria, acabei sentindo gratidão pelo carma.
Nossa experiência é o nosso ouro. Quando você reconhece o
valor de seu carma, pode começar a explorá-lo. As experiências
que tivemos nesta vida, desde o útero até o presente, estão
consciente ou inconscientemente codificadas em nossos tecidos e
células, produzindo atitudes e convicções que afetam nossas vidas
de forma positiva ou negativa. Os terapeutas estão familiarizados
com estas impressões armazenadas, enterradas em músculos e em
tecidos conectivos profundos. Muitas impressões antiquíssimas
vivem nos genes herdados de nossos pais e ancestrais, regredindo
no tempo por inúmeras gerações. Estas impressões também
precisam subir à consciência, para que não se manifestem como
doença ou como compulsões inexplicáveis por determinados
comportamentos ou ideias.
O Rig Veda diz: "Quando uma pessoa enfraquece, seja por
velhice ou doença, ela se liberta destas impressões como uma
manga ou um figo se libertam do galho, e a pessoa se apressa
novamente, segundo seu ponto de entrada e seu local de origem,
em retornar à vida." Mesmo que você não acredite que as vidas
passadas são uma verdade literal, elas representam uma metáfora
útil para o fenómeno de renascer periodicamente em posições e
missões diferentes, nesta mesma vida. Você pode já ter passado
por mudanças de carreira, ou por uma atração por um sistema
diferente de crenças, ou uma mudança de perspectiva sobre você
mesma e sobre o mundo.
A regressão a vidas passadas vem se tornando uma forma
muito praticada de tratamento terapêutico. Dois peritos neste
campo são Roger Woolger, Ph.D., e Brian Weiss, M.D. Apesar de
eu não concordar com tudo o que dizem, algumas de suas ideias
podem ajudá-los a trabalharem com os ensinamentos que apre-
sento. De acordo com Woolger, memórias conscientes de vidas
passadas podem ser consideradas como estados importantes do
inconsciente que influem em sua atual situação de vida. "A mente
inconsciente sempre produzirá uma história de vida passada
quando convidada da maneira adequada", diz Woolger em Other
Minds, Other Selves. "Mesmo se a mente consciente não acreditar
na realidade das vidas passadas como lembranças históricas, o
inconsciente acredita e está lá simplesmente esperando que lhe
perguntem."
A roda do carma gira e nos conduz a um novo início no ciclo
atual. Obtemos licença do Criador para entrar em um corpo físico
e continuar nosso treinamento nas lições da alma. Ainda que
permaneçamos inconscientes de nossa ligação com tudo o que
existe, mesmo em nossa profunda ignorância, a luz de buddhi
atravessa as barreiras e nos ajuda. Quando buscamos acessar a
dimensão da intuição e da consciência, descobrimos o espírito
Uno que permeia todas as experiências. Quando atingimos o fim
da vida ou o final de um ciclo de aprendizado, um outro ciclo
surge para nos impelir em direção a uma auto-rea-lização mais
completa. Estes ciclos continuam até que todo o carma individual
tenha sido vivido e o conhecimento incondicional de si mesmo
tenha sido realizado. Na junção final da vida da alma, o
individual se dissolve na iluminação. A consciência absoluta,
moksha, é então atingida.
De acordo com os Vedas, o embrião humano se lembra de
todas as suas vidas passadas no momento exato em que deixa o
meio aquoso do útero e emerge no mundo aberto aqui fora.
Depois desta passagem, perdemos gradualmente a consciência de
nossa magnífica herança, e começamos a funcionar experi-
mentalmente, sob a ilusão de que somos egos separados e iso-
lados.
Para resgatar completamente nosso poder de memória cós-
mica (intuição ou buddhi) e de consciência, precisamos primeiro
resgatar, honrar e sanar as memórias ancestrais. Elas são os
tijolos básicos de nossas vidas. Sem lidar com este vínculo
inefável que compartilhamos com os ancestrais masculinos e
femininos, continuará sempre a faltar alguma coisa em nossas
orações e nosso propósito, em nossa santidade e nosso sucesso,
em nosso desejo e nosso destino. A medida que você continua a
ler O caminho da prática, aprenderá como resgatar as lembranças
ancestrais — e facilitar a cura — por meio da sadhana e da
prática de rituais expressamente projetados para honrar o legado
dos ancestrais.

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