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Direitos Fundamentais

Elementos de apoio

Elaborados por

Andreia Sofia Pinto Oliveira

Benedita MacCrorie

Primeira edição: Abril de 2010

Última actualização: Abril de 2015


Índice

Nota prévia 5

I – Programa 9

II – Bibliografia geral 11

III – Apontamentos 16

1ª Aula 16

2ª Aula 24

3ª Aula 34

4ª Aula 42

5ª Aula 47

6ª Aula 52

7ª Aula 64

8ª Aula 73

9ª Aula 87

10ª Aula 92

IV – Programa das aulas teórico-práticas


100

Grelha a aplicar na análise de casos práticos de

leis restritivas de direitos, liberdades e garantias


101

Grelha a aplicar na análise de casos práticos sobre

Apresentação de queixa ao TEDH


103

Casos práticos e propostas de resolução

Caso 1
105

Caso 2
116

Caso 3
121

Caso 4
130

Caso 5
133

Caso 6
137

Selecção de jurisprudência
141
Nota prévia

A última alteração ao Plano de Estudos da


Licenciatura em Direito na Universidade do Minho,
efectuada em 2006, trouxe um novo enquadramento à
disciplina de Direitos Fundamentais.

De uma unidade curricular integrada no 2º Ano do


Curso da Licenciatura, na continuidade da disciplina de
Direito Constitucional, transitou para o 2º semestre do último
ano do Curso.

Este novo enquadramento funcionou em pleno no


ano académico 2008/2009.

Abriram-se, naturalmente, novas possibilidades e


perspectivas a este Curso de Direitos Fundamentais com esta
mudança. Temos, agora, diante de nós, Estudantes que já
dominam as bases do Direito Constitucional, do Direito
Internacional Público, do Direito da União Europeia, do
Direito Administrativo e do Direito Penal. A vocação que a
disciplina já tinha, mesmo no seu anterior enquadramento,
para a transversalidade, para o cruzamento de disciplinas
várias – e que lhe fora imprimida pelo Prof. Doutor Pedro
Bacelar de Vasconcelos – assumiu outra dimensão.

As docentes responsáveis pela disciplina notaram,


no entanto, que esta perspectiva coloca dificuldades várias
aos Estudantes. Em primeiro lugar, obriga-os a cruzar
diferentes níveis de protecção dos direitos fundamentais –
universal, regional e estadual – e a manejar com fluidez
instrumentos vários de protecção dos direitos humanos – da
Constituição à Declaração Universal dos Direitos do Homem,
passando pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem e
pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,
entre outros. Em segundo lugar, deparam-se ainda com
dificuldades na obtenção de um suporte bibliográfico
adequado para a disciplina.

Este livro vai ao encontro desta segunda


necessidade.

É um volume despretensioso, onde se juntam


materiais vários, assumida e propositadamente incompletos,
que reunimos aqui apenas em função da utilidade que nos
pareceu que poderiam ter para a orientação dos Estudantes
neste curso de Direitos Fundamentais e que, ano após ano,
vamos melhorando e enriquecendo.

De seguida, encontrarão o programa da disciplina


e a selecção de bibliografia básica essencial disponível.

Divulgamos ainda o texto, os apontamentos, que


serviram de base às nossas aulas, sem nenhuma pretensão de
originalidade, e advertindo para que a leitura destes
apontamentos não dispensa a consulta e o estudo da
bibliografia básica seleccionada, na qual estes se inspiram, e
das obras para as quais, em alguns pontos, explicitamente
remetemos.

Este material encontra-se organizado em dez


aulas, cada uma acompanhada do respectivo sumário.

Finda esta parte, que se serve de guia às aulas


teóricas, dedicamo-nos à disponibilização de materiais de
trabalho que serão utilizados nas aulas práticas – “casos”,
relatos de situações hipotéticas que suscitam problemas
relevantes de direitos fundamentais. Será dada particular
ênfase à análise de jurisprudência.

Esperamos que os Estudantes beneficiem destes


Elementos de Apoio.

Braga, Fevereiro de 2012

Andreia Sofia Pinto Oliveira

Benedita MacCrorie

Programa

Direitos Fundamentais

I - Momento da consagração
O Estado como berço da noção de direitos
fundamentais. A evolução histórica dos direitos fundamentais
e a importância actual dos sistemas de protecção
internacional – regionais e universais.

As “gerações” de direitos fundamentais.

As influências recíprocas entre o sistema estadual e


os sistemas supra-estaduais de protecção dos direitos
humanos.

II – Momento da protecção especial: a definição


de um

regime particular dos direitos fundamentais

O sistema constitucional de direitos fundamentais:


divisão entre direitos, liberdades e garantias e dos direitos
económicos, sociais e culturais, na Constituição Portuguesa
em confronto com outras fontes de direitos fundamentais.

O regime geral aplicável a todos os direitos


fundamentais.

O regime específico dos direitos, liberdades e


garantias.

A vinculação das entidades privadas: o problema


dos direitos fundamentais nas relações entre particulares.

O regime específico dos direitos económicos,


sociais e culturais.
III – Momento da efectivação da protecção:

meios de reacção a violações de direitos


fundamentais

Meios formais e informais, jurisdicionais e não-


jurisdicionais, estaduais e internacionais de defesa de direitos
fundamentais.

O papel do Provedor de Justiça e de outras


autoridades administrativas.

O direito de petição.

O direito de resistência.

A ausência de um recurso de amparo.

O direito de queixa ao Tribunal Europeu dos


Direitos do Homem.

A protecção jurisdicional dos direitos fundamentais


na União Europeia.

Os mecanismos de protecção dos Comités das


Nações Unidas.

Bibliografia geral:

AFONSO VAZ, MANUEL – CARVALHO, RAQUEL


– SANTOS BOTELHO, CATARINA – FOLHADELA,
INÊS – RIBEIRO, ANA TERESA, Direito Constitucional. O
sistema constitucional português, Coimbra Editora, Coimbra,
2012.
ALEXY, ROBERT, Teoria de los derechos
fundamentales, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid,
1993.
ALMEIDA RIBEIRO, GONÇALO – PEREIRA
COUTINHO, LUÍS (org.), O Tribunal Constitucional e a
Crise - Ensaios Críticos, Almedina, Coimbra, 2014.
BACELAR GOUVEIA, JORGE, Manual de Direito
Constitucional, Vol. II, 5ª Edição, Almedina, Coimbra, 2013.
BARBAS HOMEM, ANTÓNIO PEDRO - BRANDÃO,
CLÁUDIO, Do Direito Natural aos Direitos Humanos,
Almedina, Coimbra, 2015.
BARRETO, IRENEU CABRAL, Convenção Europeia
dos Direitos do Homem Anotada, 4ª Edição, Coimbra,
Coimbra Editora, 2010.
BLANCO DE MORAIS, CARLOS, Curso de Direito
Constitucional, Tomo II, Vol. 2, Teoria da Constituição em
Tempo de Crise, Coimbra Editora, Coimbra 2014.
BLANCO DE MORAIS, CARLOS – DUARTE,
MARIA LUÍSA – BRÍZIDA CASTRO, RAQUEL
ALEXANDRA (org.) Media, Direito e Democracia,
Almedina, Coimbra, 2014.
BLANCO DE MORAIS, CARLOS – DA SILVA
RAMOS, ELIVAL (coord.), Perspectivas de Reforma da
Justiça Constitucional em Portugal e no Brasil, Almedina,
Coimbra, 2012.
CASALTA NABAIS, JOSÉ, Por uma Liberdade com
Responsabilidade, Coimbra Editora, Coimbra, 2007.
GOMES CANOTILHO, JOSÉ JOAQUIM, Estudos
sobre Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra, 2º
Edição, 2008;
- Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª
Edição, Almedina, Coimbra, 2003;
- “Métodos de protecção de direitos, liberdades e
garantias”, in Volume Comemorativo do 75.º Aniversário do
Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 2003;
- “Tomemos a sério os direitos económicos, sociais e
culturais”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor
Ferrer Correia, Coimbra, 1991.
GOMES CANOTILHO, JOSÉ JOAQUIM –
MOREIRA, VITAL, Constituição da República Portuguesa
Anotada, Vol. I, 4ª Edição, Coimbra Editora, 2007;
- Fundamentos da Constituição, Coimbra Editora,
Coimbra, 1991.
LOUREIRO, JOÃO CARLOS, Direito da Segurança
Social, Coimbra Editora, Coimbra, 2014.
MAC CRORIE, BENEDITA, A Vinculação dos
Particulares aos Direitos Fundamentais, Coimbra,
Almedina, 2005.
-“O recurso ao princípio da dignidade da pessoa humana
na jurisprudência do Tribunal Constitucional”, in Estudos em
Comemoração do 10.º Aniversário da Licenciatura em
Direito da Universidade do Minho, Almedina, 2003.
MARTINS, ANA MARIA GUERRA, Direito
Internacional dos Direitos Humanos, Coimbra, Almedina,
2014 (? – é uma reimpressão).
MARTINS, ANTÓNIO, A jurisprudência constitucional
sobre as leis do Orçamento do Estado e
(in)constitucionalidade do OE2014, Almedina, Coimbra,
2014.
MEDEIROS, RUI, “A Carta dos Direitos Fundamentais
da União Europeia, a Convenção Europeia dos Direitos do
Homem e o Estado Português”, in Nos 25 anos da
Constituição da República Portuguesa de 1976, Lisboa,
2001, p. 7 e seguintes.
MELO ALEXANDRINO, JOSÉ, Direitos
Fundamentais. Introdução e Teoria Geral, 2.ª Edição,
Principia, Estoril, 2011;
O Discurso dos Direitos, Coimbra, Coimbra Editora,
2011.
MIRANDA, JORGE, Manual de Direito Constitucional,
Tomo IV, 5.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012;
- “A abertura constitucional a novos Direitos
Fundamentais”, in Estudos em Homenagem ao Professor
Doutor Manuel Gomes da Silva, Coimbra Editora, Coimbra,
2001;
- “Regime específico dos Direitos Económicos, Sociais
e Culturais”, in Estudos jurídicos e económicos em
Homenagem ao Professor João Lumbrales, Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, 2000;
- A Constituição de 1976. Formação, estrutura,
princípios fundamentais, Livraria Petrony, Lisboa, 1978.
MIRANDA, JORGE – MEDEIROS, RUI, Constituição
Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora,
Coimbra, 2010.
MOREIRA, ISABEL, A Solução dos Direitos,
Liberdades e Garantias e dos Direitos Económicos, Sociais e
Culturais na Constituição Portuguesa, Almedina, Coimbra,
2007.
MOREIRA, VITAL – MARCELINO GOMES,
CARLA, Compreender os Direitos Humanos, Coimbra
Editora, Coimbra, 2014.
MOTA PINTO, PAULO, “Autonomia privada e
discriminação. Algumas notas”, in Estudos em homenagem
ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Vol. II,
Coimbra Editora, Coimbra, 2005.
OLIVEIRA, ANDREIA SOFIA PINTO, O direito de
asilo na Constituição Portuguesa de 1976 – Âmbito de
protecção de um direito fundamental, Coimbra Editora,
Coimbra, 2009.
PIEROTH, BODO – SCHLINK, BERNHARD,
Grundrechte, Staatsrecht II, 21ª Edição, C. F. Müller Verlag,
Heidelberg, 2005 (tradução Direitos Fundamentais, Direito
Estadual II, Universidade Lusíada, Lisboa, 2008).
PIOVESAN, FLAVIA, Direitos Humanos e Justiça
Internacional – Um estudo comparativo dos sistemas
regionais europeu, interamericano e africano, 2ª Edição,
Editora Saraiva, São Paulo, 2011;
- Direitos Humanos e o Direito Constitucional
Internacional, 12ª Edição, Editora Saraiva, São Paulo, 2011.
QUEIROZ, CRISTINA, O Tribunal Constitucional e os
Direitos Sociais, Coimbra Editora, Coimbra, 2014;
- Direitos Fundamentais – Teoria Geral, 2ª Edição,
Coimbra, Coimbra Editora, 2010;
- Direitos Fundamentais Sociais – Funções, Âmbito,
Conteúdo, Questões Interpretativas e Problemas de
Justiciabilidade, Coimbra, Coimbra Editora, 2006.
RAPOSO, VERA LÚCIA, O Direito à Imortalidade,
Almedina, Coimbra, 2014.
REIS NOVAIS, JORGE, Em Defesa do Tribunal
Constitucional, Almedina Coimbra, 2014;
- Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional em
Estado de Direito Democrático, Coimbra Editora, Coimbra,
2013;
- Direitos Sociais. Teoria Jurídica dos Direitos Sociais
enquanto Direitos Fundamentais, Wolters Kluwer – Coimbra
Editora, Coimbra, 2010;
- Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria,
Coimbra Editora, Coimbra, 2006;
- Os princípios constitucionais estruturantes da
República Portuguesa, Coimbra Editora, 2004.
- As restrições aos direitos fundamentais não
expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra
Editora, Coimbra, 2003.
SAMPAIO VENTURA, CATARINA, “Os direitos
fundamentais à luz da quarta revisão constitucional”, in
Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXXIV, 1998.
Direitos Humanos e Ombudsman. Paradigma para uma
instituição secular, Provedoria da Justiça, 2008.
SANTOS BOTELHO, CATARINA, A tutela directa
dos direitos fundamentais. Avanços e recuos na dinâmica
garantística das justiças constitucional, administrativa e
internacional, Almedina, Coimbra, 2010.
SÉRVULO CORREIA, Direitos Fundamentais –
Sumários, Lisboa, AAFDL, 2002.
SILVA SAMPAIO, JORGE, O Controlo Jurisdicional
das Políticas Públicas de Direitos Sociais, Coimbra Editora,
Coimbra, 2015.
SOUSA PINHEIRO, ALEXANDRE, Privacy e
protecção de dados pessoais: a construção dogmática do
direito à identidade informacional, A.A.F.D.L., Lisboa,
2015.
TEIXEIRA DA MOTA, FRANCISCO, O Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem e a Liberdade de Expressão
– Os Casos Portugueses, Coimbra Editora, Coimbra, 2009.
VIEIRA DE ANDRADE, JOSÉ CARLOS Os Direitos
Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5ª
Edição, Almedina, Coimbra, 2012.

Apontamentos

Aula nº 1

Sumário
Os direitos fundamentais: da ideia ao Direito.
A construção jurídico-constitucional dos direitos
fundamentais.
A internacionalização dos direitos fundamentais.

A ideia de que aos seres humanos deve ser


reconhecido um estatuto especial, um conjunto de direitos e
de deveres adequados à sua especial natureza foi sendo
desenvolvida por diversas correntes filosóficas ao longo da
História das Ideias.

Desde a Antiguidade Clássica que encontramos


autores que reflectiram sobre valores como a dignidade e a
igualdade, havendo na filosofia clássica importantes
afloramentos das ideias de igualdade e dignidade. O
Cristianismo e a afirmação de que todos os seres humanos
são filhos de Deus, de que cada ser humano é único e de que
têm igual dignidade marcou decisivamente a nossa cultura e
o modo como nela se manifestam os direitos fundamentais.

Seria, no entanto, aguardar pelo final do século


XVIII para que estas ideias fossem positivadas. É com o
Estado constitucional de final do século XVIII, em particular,
com as Revolução Americana e Francesa, que se dão as
primeiras consagrações globais, universais e com valor
constitucional dos direitos fundamentais. Em 1776, o
primeiro Bill of Rights, do Estado de Virginia, dizia no seu
artigo 1º

“Todos os homens são por natureza igualmente


livres e independentes e possuem certos direitos que lhes são
imanentes e dos quais quando entram para o Estado de uma
sociedade, não podem ser privados ou despojados.”

Este “Bill of Rights” de Virginia serviu de modelo


a outros dos Estados da Pensilvânia, Maryland, etc.

A Constituição Federal americana de 1787 retoma


estes direitos.
Em França foi a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 1789, o marco mais importante
para a afirmação dos direitos fundamentais na Europa
continental. No artigo 1º, afirma que os homens nascem e
permanecem livres e iguais em direitos. O fim da sociedade é
preservá-los e esses direitos são a liberdade, a propriedade, a
segurança e a resistência à opressão. No artigo 16º, proclama
que “qualquer sociedade em que a garantia dos direitos não
esteja assegurada, nem esteja consagrada a separação de
poderes, não tem uma Constituição”.

Começou assim, em finais do século XVIII, um


movimento de positivação dos direitos fundamentais, que
fora já iniciado na Inglaterra há alguns séculos atrás, mas que
agora se expande universalmente. Por todo o lado surgem
“Declaraöçes de Direitos”, dirigidas ao próprio Estado, que
as edita. São direitos que o Direito não cria, mas reconhece,
declarando-os.

- Que direitos?

Na tradição americana, os direitos consagrados são,


sobretudo, o direito de resistência, direito de voto, liberdade
de imprensa, liberdade religiosa, liberdade de reunião e
petição, justa indemnização; direito à reparação, princípio
nulla poena, sine lege, presunção de inocência, etc.. As
regras do processo penal como direitos humanos são, nesta
altura, uma especificidade americana: julgamento por júri,
direito de confronto directo com as testemunhas; direito a
apresentar testemunhas de defesa; direito a não testemunhar
contra si próprio; habeas corpus; proibição de penas cruéis e
da dupla pena.

Na França e, por influência francesa em toda a


Europa continental, a compreensão dos direitos era muito
restrita à liberdade, segurança e propriedade e, mesmo em
relação a estas, o seu âmbito era delimitado pela lei. E esta
concepção marcou definitivamente a Constituição Portuguesa
de 1822 e Carta de 1826, bem como outras Constituições
europeias continentais do século XIX.

O que levou Georg Jellinek a afirmar no século


XIX – “Sem a América, sem as constituições dos seus
diversos Estados, talvez tivéssemos uma filosofia de
liberdade, mas nunca teríamos uma legislação que
garantisse a liberdade”(1892).

- Contra que poder era necessário proteger os


indivíduos?

Também aqui há diferenças entre a tradição


francesa e a tradição americana.

Os direitos aqui, na tradição europeia continental,


são concebidos como escudos de defesa face ao Executivo,
ao Rei, à Administração.

Na América, os direitos são concebidos como


escudos de defesa face ao legislativo.

Por isso, a historiografia mais recente põe em causa


a coerência do programa liberal e do movimento
constitucional com que ele se identifica: o liberalismo como
o “primado dos direitos sobre o direito” – a constituição de
liberdades individuais.

Na tradição constitucional do continente, os


direitos aparecem secundarizados face ao Direito. A
explicação histórica para isto parece estar no facto de, na
Europa continental, o projecto constitucional ter por detrás
um projecto político de desmantelamento de sociedades
feudais, em que as situações a que se queria pôr termo
estavam garantidas juridicamente por direitos de índole
privada: direitos aos cargos públicos, direitos às prestações
feudais e senhoriais; direitos a posições de privilégio, direitos
ao desempenho de funções jurisdicionais. Neste contexto, um
Estado garante de direitos não era desejável. O que se queria,
antes, era um Estado em que o predomínio da vontade do
poder, materializada na lei, se impusesse.

- A internacionalização dos direitos fundamentais

Se é verdade que o Estado foi o berço dos direitos


fundamentais, nos nossos dias, é também verdade que o
Estado não detém o monopólio da defesa destes direitos.

No século XX, deu-se a transição desta matéria de


“domestic affair” para matéria de “international concern”.

Esta transição dá-se com particular força após a


Segunda Guerra Mundial, muito embora importantes
instrumentos de protecção dos direitos fundamentais tenham
sido adoptados na primeira metade do século XX e mesmo no
século XIX.

A Carta das Nações Unidas, Carta de São


Francisco, de 1945, refere-se à necessidade de os Estados
cooperarem na defesa de direitos e liberdades fundamentais,
embora esta consagre igualmente o princípio de não
ingerência nos assuntos internos de cada Estado.

E, desde aí, muitos instrumentos internacionais


surgiram com o objectivo de reconhecer a nível internacional
um conjunto de direitos humanos que, como se diz no
Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem,
de 1948, a “dignidade inerente a todos os membros da
família humana e seus direitos iguais e inalienáveis”.

E, apesar de a Declaração não ter formalmente


força vinculativa, foi o instrumento impulsionador e uma
referência para outros instrumentos internacionais que, a
partir dela, se haveriam de elaborar no quadro das Nações
Unidas, como particular destaque para os Pactos
Internacionais sobre Direitos Civis e Políticos e sobre
Direitos Económicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966.

A partir daí uma série de instrumentos que tratam


de direitos fundamentais autonomamente – discriminação
racial, tortura, discriminação contra as mulheres, direitos da
criança, direitos da pessoa com deficiência, direitos do
trabalhador migrante, etc. – foram adoptados sob a égide das
Nações Unidas – uns com mais sucesso do que outros.

E este sucesso afere-se, entre outros factores, pela


existência ou não de mecanismos de tutela e garantia destes
direitos que permitam às pessoas que se sintam vítimas de
violações de direitos humanos reagir a essas violações,
apresentando queixas mesmo contra os Estados de que são
nacionais. Veremos, mais tarde, como funciona este
mecanismo.

O reconhecimento de direitos fundamentais na cena


internacional enfrenta, naturalmente, dificuldades – desde
logo, pela heterogeneidade cultural que se faz sentir numa
organização internacional de vocação universal.

Também por isso, o reconhecimento de direitos


humanos no plano internacional não se faz apenas no âmbito
da ONU. Faz-se também através de organizações de âmbito
regional.

Assim aconteceu também na Europa, em que, no


quadro do Conselho da Europa, logo em 1950, foi aprovada a
Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do
Homem e a Salvaguarda de Liberdades Fundamentais.

“The arrival of human rights on the


international scene is, indeed, a remarkable event because it
is a subsersive theory destined to foster tension and conflict
among States. Essentially it is meant to tear aside the veil
that in the past covered and protected sovereignity, giving
each State the appearance of a fully armoured titanic
structure, perceived by other States only 'as a whole', the
inner meahanisms of which could not be tampered with.
Today the human rights doctrine forces the States to give
account of how they treat their nationals, administer justice,
run prisons, and so on, Potentially, therefore, it can subvert
their domestic order and, consequently, the traditional
configuration of the international community as well.
On the whole, one can say that within the
international community this doctrine has acquired the value
and significance which, within the context of domestic
systems, was accorded to Locke's theory of a social contract,
Montesquieu's concept of the separation of powers, and
Rousseau's theory of the sovereignity of the people. Just as
these political ideas eroded absolute and despotic monarchy,
democratizing the fondations om which kingdoms rested, so
the doctrine of human rights has lent and still lends, in the
world community, tremendous impetus to respect for the
dignity of all human beings, and also to the democratization
of States”

Antonio Cassese, International Law, Oxford, 2005.

- Esclarecimento terminológico – direitos humanos


ou direitos fundamentais?
Existe, quanto ao objecto desta disciplina uma
discussão quanto ao exacto significado e alcance dos termos
utilizados para descrever o objecto do seu estudo.

O conceito de “direitos humanos” é,


frequentemente, utilizado numa acepção mais moral e
internacionalista, convertendo-se numa expressão algo
ambígua, podendo referir-se com ela uma pretensão moral ou
um direito subjectivo protegido por uma norma jurídica.

Pelo contrário, o conceito de “direitos


fundamentais” é, muitas vezes, usado numa acepção restrita,
pretendendo abranger apenas os direitos reconhecidos numa
ordem constitucional concreta e deixando de fora as outras
vias normativas de reconhecimento de direitos.

Pela nossa parte, designamos como direitos


fundamentais aqueles que são protegidos por normas
jurídicas de carácter vinculativo – sejam estas de nível
internacional, europeu ou estadual.

(A bibliografia aconselhada sobre esta matéria é a


seguinte: Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais, p.
17-50 ;Horst Dippel, História do Constitucionalismo
Moderno - Novas Perspectivas, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 2007; Antonio Cassese, International Law, 2ª
edição, Oxford University Press, 2005, p. 375-396)

Aula nº 2

Sumário

As gerações de direitos.

O conjunto dos direitos fundamentais na CRP.

Como vimos na última aula, os direitos


fundamentais foram objecto de um processo longo de
consolidação – primeiro no campo das ideias, da filosofia;
depois, nas Constituição dos Estados; mais recentemente, no
plano internacional.

Na aula de hoje, vamos atentar neste processo de


reconhecimento de direitos fundamentais.

-As gerações de direitos

Normalmente, quando os autores se referem a este


problema do reconhecimento progressivo de um acervo de
direitos fundamentais, costumam usar uma figura, uma
metáfora – que é a metáfora das gerações.

Tal como a história humana se faz pela sucessão


de gerações, também a história dos direitos se poderia contar
usando a mesma metáfora.
O uso desta metáfora remonta aos anos 70 do
século XX, sendo a sua autoria atribuída a Karel Vasak, que
analisou o processo europeu de reconhecimento progressivo
aos direitos fundamentais, associando à metáfora das
gerações a triologia da Revolução Francesa. E, assim,
defendeu que os direitos da primeira geração – direitos de
defesa do indivíduo perante o Estado – se associavam ao
ideal de Liberdade; os direitos de segunda geração – direitos
sociais – estavam ao serviço do ideal da Igualdade; os
direitos de terceira geração – direitos de solidariedade entre
povos e gerações – estavam ao serviço da Fraternidade.

Nos direitos de primeira geração incluir-se-iam a


liberdade física, as liberdades intelectuais e espirituais – de
pensamento, de consciência, de religião, de expressão, de
criação artística.

Nos direitos de segunda geração, encontraríamos


o direito à saúde, o direito à educação.

Finalmente, os direitos de terceira geração


abrangem o direito dos povos à autodeterminação, o direito
ao desenvolvimento e o direito ao ambiente

Esta metáfora das gerações foi, depois, usada por


muitos autores, cada um fazendo a sua própria leitura das
principais etapas no processo de desenvolvimento do
conjunto dos direitos fundamentais.
- Outra leitura sobre a evolução histórica dos
direitos fundamentais (Vieira de Andrade)

Seguindo, por exemplo, a proposta de Vieira de


Andrade (Os Direitos Fundamentais, p. 51-70), descobrimos
um primeiro grupo de direitos, que coincide com a que
expusemos anteriormente, composta pelos direitos à
liberdade, direito à propriedade, reconhecidos como direitos
de defesa do indivíduo perante o Estado, direitos que exigem
do Estado, fundamentalmente, uma postura de abstenção
perante as pessoas. São direitos que cumprem uma função de
defesa do indivíduo perante os poderes públicos, aos quais
corresponde um status negativus, um dever de abstenção, de
não ingerência, de não restrição, de não violação. Nas
palavras do autor:

“São liberdades sem mais, puras autonomias sem


condicionamentos de fim ou de função, responsabilidades
privadas num espaço autodeterminado.

Liberdades individuais que, no entanto, não são


caoticamente ou anarquicamente entendidas, pois actuam
num contexto social e político organizado, onde procuram a
segurança colectiva em contrapartida da qual aceitam
(aceitaram) limitar-se.”(Vieira de Andrade, Os Direitos
Fundamentais, p. 51)

Num segundo grupo de direitos, encontraríamos


os direitos de participação política – direitos que reconhecem
na pessoa um ser capaz de participar no processo de
autodeterminação comunitária – votando, manifestando-se,
reunindo-se, associando-se, sindicalizando-se.

Num terceiro momento, os direitos sociais –


direito à saúde, direito à educação, direito à habitação, direito
à segurança social – direitos que exigem do Estado um
conjunto de prestações de serviços ou pecuniárias para
satisfazer as necessidades individuais. São direitos
estruturalmente diferentes dos direitos de defesa; são direitos
a prestações. Correspondem a uma visão do Estado não como
inimigo das liberdades, mas como um ente que necessita de
intervir para garantir os direitos fundamentais.

- Novos direitos

Desde o último quartel do século XX têm surgido


diversas correntes que reclamam o reconhecimento de novos
direitos: por exemplo, os direitos relacionados com a
protecção do ambiente – direitos que se relacionam com a
protecção de interesses colectivos e transgeracionais; direitos
contra a manipulação genética, à identidade genética, à
autodeterminação bioética, o direito a morrer com dignidade,
de que agora tanto se fala; os direitos que se prendem com a
utilização da informática e a defesa de liberdades pessoais
face a novas ameaças; os direitos dos povos à paz, à boa
governação; e até os direitos dos animais.

(Ver, sobre a matéria, Maria Luísa Neto, Novos


Direitos, UPorto, 2010)
- Críticas à teoria das gerações

Esta compreensão geracional dos direitos não é


isenta de críticas. Ela indicia que os direitos das novas
gerações se substituem aos da geração anterior e não é assim.
A evolução do acervo de direitos reconhecidos como
fundamentais tem obedecido a uma lógica de acumulação e
não de substituição.

E a cada nova geração não são só novos direitos


que se acrescentam aos existentes, mas são também novos
sentidos e novas dimensões que vêm enriquecer o sistema
dos direitos fundamentais.

Além disso, aos direitos de primeira geração tende


a ser reconhecida uma densidade normativa máxima que
tende a regredir de geração em geração. Dessa diferença entre
direitos de densidade normativa forte e direitos de densidade
normativa fraca, trataremos melhor quando estudarmos os
regimes dos direitos fundamentais e atentarmos na definição
feita pela nossa Constituição entre direitos, liberdades e
garantias e direitos económicos, sociais e culturais.

Em função desta evolução, podemos caracterizar


o sistema de direitos fundamentais como tendo as seguintes
características/ideias-força a orientar esta evolução:
acumulação, variedade, abertura (Vieira de Andrade, Os
Direitos Fundamentais, p. 67/68).

Acumulação – cada época histórica formula novos


direitos, típicos do seu tempo, que se vêm somar aos antigos.
Os direitos típicos de cada geração subsistem a par dos da
geração seguinte.

Variedade – o leque abre-se e acrescentam-se


novas dimensões e sentidos ao sistema – que se torna cada
vez mais complexo e multi-funcional.

Abertura – os catálogos não são nunca obras


acabadas. Por interpretação vão-se descobrindo sempre novas
dimensões aos direitos pré-existentes e vão-se descobrindo e
acrescentando novos direitos.

- A diferenciação entre os direitos no plano


internacional
O processo de consagração dos direitos
fundamentais ao nível internacional também se ressentiu
destas distinções – aqui o problema não foi “geracional”, mas
geopolítico.

Tivemos, durante a Guerra Fria, duas doutrinas de


direitos fundamentais em confronto:

- a doutrina ocidental, que valorizava direitos civis


e políticos, punha em especial relevo as liberdades cívicas –
como a liberdade religiosa, de pensamento, de consciência e
de expressão e desvalorizava os direitos económicos, sociais
e culturais.

- a doutrina socialista, que valorizava os direitos


económicos, sociais e culturais, mas defendia que os direitos
fundamentais era matéria de exclusivo interesse doméstico
dos Estados na qual nem outros Estados nem organizações
internacionais deveriam poder intervir; defendiam o direito à
autodeterminação.

Em consequência desta distinção, temos que na


DUDH – encontramos direitos dos dois tipos misturados –
mas nos Pactos Internacionais de 1966 já encontramos o
reflexo desta distinção geopolítica e vemos a divisão dos
direitos em dois Pactos: o Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos
Económicos, Sociais e Culturais.

Ainda hoje se tenta vencer na Comunidade


Internacional o estigma que esta distinção representou.
Assim, em 1993, a Conferência Mundial sobre os Direitos
Humanos, de Viena, no parágrafo 5, pode ler-se: “Todos os
Direitos Humanos são universais, indivisíveis,
interdependentes e interrelacionados. A comunidade
internacional deve considerar os Direitos Humanos,
globalmente, de forma justa e equitativa, no mesmo pé e com
igual ênfase. Embora se deva ter sempre presente o
significado das especificidades nacionais e regionais e os
diversos antecedentes históricos, culturais e religiosos,
compete aos Estados, independentemente dos seus sistemas
políticos, económicos e culturais, promover e proteger todos
os Direitos Humanos e liberdades fundamentais.”. Esta
declaração tem sido repetida posteriormente inúmeras vezes,
mas, no plano do direito internacional geral, esta igualdade e
equiparação entre os direitos ainda parece estar longe.

Mesmo na Europa, cujo modelo de


desenvolvimento dá um especial relevo aos direitos sociais,
se atentarmos na Convenção Europeia dos Direitos do
Homem, constatamos que só lá estão consagrados direitos de
primeira geração, direitos de defesa dos indivíduos perante os
Estados, estando remetidos para a Carta Social Europeia os
restantes. Ou seja, no seio do Conselho da Europa, reflecte-se
a mesma cisão que se verifica ao nível das Nações Unidas.

- O conjunto dos direitos fundamentais


consagrados na CRP

A Constituição Portuguesa dispõe de uma catálogo


de direitos fundamentais extenso, que as diversas revisões
constitucionais têm enriquecido progressivamente e onde
estão presentes direitos das diversas “gerações” e mesmo
vários dos chamados “direitos novos”, como o direito ao
ambiente (artigo 66º), o direito à fruição cultural (artigo 78º).

A CRP consagra no seu art. 1.º o princípio da


dignidade da pessoa humana. Tal significa que a concepção
antropológica consagrada na nossa Constituição é a do
humanismo ocidental, ou seja, é uma concepção liberal
moderna. Neste contexto deve entender-se o princípio da
dignidade da pessoa humana como o princípio de valor que
confere unidade de sentido e fundamento ao conjunto de
preceitos relativos aos direitos fundamentais.

As normas de direitos fundamentais previstas na


CRP dividem-se em normas relativas a direitos, liberdades e
garantias (DLG) (artigos 24.º a 57.º da CRP) e normas
relativas a direitos económicos, sociais e culturais (DESC)
(artigos 58.º a 79.º da CRP). Dentro das normas relativas a
direitos, liberdades e garantias podemos distinguir entre:

- direitos, liberdades e garantias pessoais (artigo


24.º a 47.º);

- direitos, liberdades e garantias de participação


política (artigo 48.º a 52.º);

- e direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores


(artigo 53.º a 57.º).

O catálogo de direitos fundamentais constante da


CRP tem também explícita a nota caracteística de abertura
que acima referimos. Esta encontra-se no artigo 16º da
Constituição. De acordo com esta “cláusula aberta”, os
direitos fundamentais reconhecidos na ordem jurídica
portuguesa não são apenas aqueles que constam do catálogo
contido na Parte I da Constituição, mas são também todos os
direitos consagrados em normas de direito internacional ou
mesmo na lei a que deva reconhecer dignidade de direitos
fundamentais.

Assim, além dos direitos fundamentais “em


sentido formal” ou tipificados no catálogo, temos ainda
direitos fundamentais dispersos na Constituição, ou seja,
direitos fundamentais constitucionais, mas que se encontram
previstos fora da parte I, sendo assim direitos fundamentais
dispersos, temos direitos fundamentais extra-
constitucionais, de fonte internacional ou legal.

Na identificação dos direitos fundamentais extra-


catálogo, podemos socorrer-nos de um simples critério de
analogia com os direitos do catálogo ou podemos socorrer-
nos de um critério material de direitos fundamentais (ver,
neste sentido, critérios propostos por Vieira de Andrade, Os
Direitos Fundamentais, p. 79 e seguintes).

Já vimos que a existência de uma dicotomia entre


direitos, liberdades e garantias e direitos económicos, sociais
e culturais está, antes do mais, relacionada com a própria
evolução histórica dos direitos fundamentais e é ainda
oriunda dos textos de Direito Internacional. Para além disso,
esta distinção parte do entendimento de que os direitos,
liberdades e garantias se consubstanciam em direitos de
defesa, de não intervenção, dos particulares face ao Estado,
enquanto os direitos económicos, sociais e culturais são
direitos a prestações estaduais positivas.

Convém realçar que, na nossa ordem jurídica, esta


não é uma distinção meramente teórica, uma vez que tem
consequências práticas significativas: por um lado, implica o
reconhecimento de um regime mais protector, estabelecido na
CRP para os direitos, liberdades e garantias; por outro lado,
também releva na intimação para a protecção de direitos,
liberdades e garantias (uma vez que esta se aplica apenas a
estes direitos e não já a direitos económicos, sociais e
culturais, nos termos que depois veremos).

Aula nº 3
Sumário
Introdução ao estudo do regime de protecção
especial dos direitos fundamentais.
O sistema constitucional português de direitos
fundamentais.
Regime geral dos direitos fundamentais.

Depois de referidas as circunstâncias em que os


direitos fundamentais se afirmam como elementos centrais
das Constituições, do direito internacional e do direito
europeu, é chegado o momento de analisar em que é que se
traduz, do ponto de vista substancial, a atribuição a um
qualquer direito do adjectivo fundamental.

Este é um problema que se põe, fundamentalmente,


no plano interno, onde os direitos fundamentais convivem
com outras pretensões que não são qualificadas como direitos
fundamentais.

E foi por isso que as Constituições e as jurisdições


constitucionais criaram um regime particular para defesa e
garantia dos direitos fundamentais, que, a seguir
estudaremos.
Esse regime veio, no entanto, a criar mecanismos
de protecção e de defesa dos direitos fundamentais que foram
depois reproduzidos pelas instâncias internacionais que se
ocupam da protecção dos direitos fundamentais – em
particular, pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem,
sediado em Estrasburgo, que é a instância de protecção
internacional dos direitos fundamentais com a qual as
jurisdições constitucionais mais têm dialogado. Neste diálogo
vem participando, cada vez mais, o Tribunal de Justiça da
União Europeia, como já vimos.

- O sistema constitucional português de protecção


direitos fundamentais

As normas de direitos fundamentais previstas na


CRP dividem-se em normas relativas a direitos, liberdades e
garantias (DLG) (artigos 24.º a 57.º da CRP) e normas
relativas a direitos económicos, sociais e culturais (DESC)
(artigos 58.º a 79.º da CRP). Esta distinção marca de modo
acentuado o regime aplicável aos direitos fundamentais. Não
se trata de uma mera questão de arrumação dos direitos em
categorias, uma vez que esta distinção tem consequências
práticas significativas: por um lado, implica o
reconhecimento de um regime mais protector, estabelecido na
CRP para os direitos, liberdades e garantias; por outro lado,
também releva do ponto de vista da protecção judicial dos
direitos, havendo meios específicos de protecção de direitos,
liberdades e garantias, que excluem os direitos económicos,
sociais e culturais.

- Defesa de uma concepção unitária dos direitos


fundamentais: Reis Novais

Tem havido da parte da doutrina alguma


contestação a esta separação estabelecida na Constituição.
Jorge Reis Novais, por exemplo, tece várias críticas à
consagração de regimes diferenciados para os DLG e DESC.
Este Autor considera que a ideia de hierarquização dentro dos
direitos fundamentais, com uma pretensa superioridade dos
direitos, liberdades e garantias (uma vez que gozam de um
regime de protecção mais reforçado), é contrária à ideia de
direitos fundamentais em Estado de Direito e não é
compatível com a vivência prática destes direitos. Esta
distinção pressupõe a consideração do direito na sua
globalidade e aquilo que acontece na vida de todos os dias
são conflitos e limitações, não do direito como um todo, mas
de modalidades e dimensões particulares, específicas,
parcelares do direito.

Por outro lado, segundo o Autor, é também


comum na doutrina procurar a justificação da consagração
constitucional de um regime privilegiado de protecção aos
direitos, liberdades e garantias no facto de estes direitos
terem uma relação mais próxima com princípios nucleares do
Estado de Direito, como sejam a dignidade da pessoa
humana, a autonomia ou autodeterminação pessoal, etc.

No entanto, considera que também esta tentativa é


infundada, porque não há razões objectivas que a sustentem.
Por que, por exemplo, se deverá considerar que o direito de
antena (DLG pessoal na enumeração constitucional) está
mais vinculado à dignidade ou à autonomia pessoal que o
direito a uma habitação condigna?

Assim sendo, Jorge Reis Novais defende a


aplicação de uma dogmática unitária extensível a todos os
direitos fundamentais.
“As ideias directrizes desta proposta são as de
atribuição aos direitos sociais de uma relevância plena
enquanto direitos fundamentais, acompanhado do
reconhecimento de uma especificidade de natureza de que
resultam consequências de diferenciação num quadro de
uma dogmática una e abrangente de protecção jurídica aos
direitos fundamentais.
Ser um direito fundamental significa, em Estado
constitucional de Direito, ter uma importância, dignidade e
força constitucionalmente reconhecidas que, no domínio das
relações gerais entre o Estado e o indivíduo, elevam o bem, a
posição ou a situação por ele tutelada à qualidade de limite
jurídico-constitucional à actuação dos poderes públicos.
Significa, por outro lado, já no plano das relações entre os
poderes públicos, que os bens, posições ou situações
tuteladas pelos direitos fundamentais são retirados da plena
disponibilidade decisória do poder político democrático,
sendo a sua garantia atribuída, em última análise, à justiça
constitucional. (...)
Assente aquele reconhecimento [de que os direitos
sociais são direitos fundamentais], ele não pode prescindir da
atribuição da devida relevância à especificidade que os
direitos fundamentais apresentam no sistema dos direitos
fundamentais. Designadamente, há que dar a devida
relevância ao facto de os direitos sociais (...) serem ainda
sujeitos a uma reserva do financeiramente possível e, logo,
das margens de decisão e apreciação que (...) cabem ao
legislador democrático e ao poder judicial” (Reis Novais,
Direitos sociais, 251-253).

- Regime geral dos direitos fundamentais


Antes porém de entrarmos nas particularidades de
regime de cada tipo de direitos, vamos analisar os traços
comuns do seu regime. A nossa Constituição estabelece,
antes do mais, um regime geral dos direitos fundamentais, ou
seja, um regime que se aplica quer a direitos, liberdades e
garantias, quer a direitos económicos e culturais e que está
previsto no Título I da Parte I da CRP.

Os elementos fundamentais desse regime –


universalidade, igualdade – são elementos reafirmados na
generalidade das constituições e nos instrumentos
internacionais como pilares essenciais a qualquer afirmação
de direitos fundamentais.

Vamos então fazer uma breve análise do regime


constitucional, constatando sempre os pontos comuns
existentes entre os traços característicos deste regime e os
instrumentos internacionais

- Artigo 12º

Consagra o princípio da universalidade, segundo o


qual todos os cidadãos gozam dos direitos consignados na
Constituição e estão sujeitos aos mesmos deveres. Tal não
invalida que certos direitos pressuponham, pela sua própria
natureza, uma certa idade, como é, por exemplo, o caso da
generalidade dos direitos políticos, nomeadamente dos
previstos no art. 49.º (direito de voto) e no art. 122.º
(elegibilidade para Presidente da República), ou ainda que
haja direitos reservados, pela sua natureza, a certas categorias
de pessoas, como é o caso dos arts. 51.º ss (direitos dos
trabalhadores), ou do art. 71.º (cidadãos portadores de
deficiência).

Quanto às pessoas colectivas, segundo o disposto


no artigo 12º, n.º 2, estas gozam dos direitos e estão sujeitas
aos deveres compatíveis com a sua natureza. Tal significa
que as pessoas colectivas gozam de direitos fundamentais que
não pressuponham características intrínsecas ou naturais do
homem. (No Acórdão n.º 198/85, o Tribunal Constitucional
reconheceu, por exemplo, que o sigilo da correspondência
constitui um daqueles direitos compatíveis com a natureza
das pessoas colectivas, o que não significa que tal direito se
aplique a estas nos mesmos termos e com a mesma amplitude
que se aplica às pessoas físicas.)

- Artigo 13.º

Consagra o princípio da igualdade, que, segundo


alguns autores é uma exigência que decorre já do princípio do
Estado de Direito, entendido em sentido material, isto é,
como um Estado comprometido com a realização da justiça.
A inserção do princípio nesta parte da CRP significa que, em
matéria de direitos fundamentais, a garantia de igualdade
entre os cidadãos é medular do próprio sistema constitucional
dos direitos fundamentais, que são estruturas de igualdade e
não de privilégios.

Tal não implica, necessariamente, uma igualdade


absoluta, visto que o princípio da igualdade visa apenas
proibir as discriminações arbitrárias, sem fundamento
razoável. O princípio da igualdade poderá inclusivamente
justificar tratamentos diferenciados das pessoas quando haja
fundamento objectivo para tal diferenciação.

(Ver sobre este princípio essencial e de análise


complexa, Maria da Glória Ferreira Pinto, Princípio da
igualdade. Fórmula vazia ou fórmula “carregada” de
sentido, Lisboa, 1987; e Maria Lúcia Amaral, “ O princípio
da igualdade na Constituição Portuguesa”, em Estudos em
Homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes,
Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 35-57.)

- Artigo 14.º

Refere-se aos direitos fundamentais de cidadãos


portugueses residentes no estrangeiro, estabelecendo que
estes gozam dos direitos que não sejam incompatíveis com a
ausência do país. Como exemplo de um direito que não pode
ser gozado por cidadãos portugueses que não residam em
Portugal podemos referir a capacidade eleitoral passiva, na
maioria dos actos eleitorais. Já a capacidade eleitoral activa
poderá ser exercida também por aqueles que residam no
estrangeiro, nos termos previstos na CRP e na lei.

- Artigo 15.º

Quanto aos estrangeiros e apátridas, nos termos do


artigo 15º da Constituição, estes gozam também dos direitos
consignados na Constituição para os cidadãos portugueses.
Este artigo estabelece, então, um princípio da equiparação.

Os estrangeiros e apátridas estão apenas excluídos


do gozo do leque de direitos que pertencem exclusivamente a
cidadãos portugueses e que estão previstos no n.º 2 deste
artigo – direitos políticos, exercício de funções públicas que
não sejam de carácter meramente técnico e direitos
fundamentais que a Constituição ou a lei reservam para os
nacionais. Esta disposição parece dar “carta branca” ao
legislador ordinário para alargar as excepções, reservando aos
cidadãos portugueses quaisquer direitos que entenda. No
entanto, tem-se entendido que as excepções a estabelecer por
lei ordinária àquela regra não são livres, devendo as leis que
eventualmente reservem direitos deste tipo para cidadãos
portugueses ser consideradas verdadeiras leis restritivas e
sujeitas às condições de legitimidade estabelecidas no artigo
18.º.

Os restantes números (3, 4 e 5) do art. 15.º


consagram excepções às excepções. Assim, sob condição de
reciprocidade, podem ser reconhecidos alguns direitos
políticos limitados a estrangeiros com residência em Portugal
(números 4 e 5); um estatuto especialíssimo de acesso a
elevados cargos do Estado para cidadãos de Estados de
língua portuguesa (estatuto de que, neste momento, só os
cidadãos brasileiros podem beneficiar – número 3).

(Sobre a interpretação que o Tribunal


Constitucional tem feito do sentido e alcance desta norma,
ver Ana Luísa Pinto e Mariana Canotilho, “O Tratamento dos
Estrangeiros e das Minorias na Jurisprudência Constitucional
Portuguesa”, em Estudos em Homenagem ao Conselheiro
José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra, Coimbra Editora,
2005, p. 231- 248)
Aula n.º 4

Sumário

O regime específico dos direitos, liberdades e


garantias.
Aplicabilidade directa e vinculação das entidades
públicas aos direitos, liberdades e garantias

Vimos que a CRP estabelece uma dicotomia entre


direitos, liberdades e garantias e direitos económicos sociais
e culturais. Vimos também que essa distinção não é
meramente teórica, tendo consequências no regime aplicável
aos diferentes direitos.

Independentemente da bondade desta


diferenciação (que já vimos que é contestada), vamos ver
qual o regime estabelecido pela Constituição para os direitos,
liberdades e garantias e que visa proteger, com especial
intensidade, estes direitos.

- Regime específico dos direitos, liberdades e


garantias

Dentro do regime específico dos direitos,


liberdades e garantias, podemos distinguir entre: um regime
material, um regime orgânico e um regime de revisão
constitucional.

- Regime material

O regime material específico está essencialmente


previsto no artigo 18.º da Constituição (embora haja também
outras disposições constitucionais que atribuem um regime
mais protector a estes direitos, como é o caso dos arts. 19º,
20º, nº 5, 21º, 22º e 272º, nº3).

- Aplicabilidade directa
O n.º 1 do artigo 18.º estabelece que os direitos,
liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam
as entidades públicas e privadas. Assim sendo, este regime
material específico consubstancia-se, em primeiro lugar, na
aplicabilidade imediata, o que significa que os preceitos
constitucionais vinculam todos os órgãos ou agentes do poder
sem necessidade de mediação legislativa.

No entanto, a aplicabilidade directa das normas


consagradoras de direitos, liberdades e garantias não implica
sempre a transformação automática destes em direitos
concretos e definitivos.

É necessário distinguir consoante as normas de


direitos, liberdades e garantias sejam ou não exequíveis por si
mesmas. Se a norma constitucional for exequível por si
mesma, ela pode ser imediatamente invocada, ainda que haja
falta ou insuficiência de lei. A regulamentação legislativa não
é essencial, sendo apenas útil pela certeza e segurança que
cria quanto às condições de exercício dos direitos ou quanto à
delimitação frente a outros direitos. Pelo contrário, se a
norma não for exequível por si mesma (ex: art. 26º, n.º 2), o
sentido a atribuir ao art. 18.º é o de que o legislador está
vinculado a editar as medidas legislativas necessárias, não
tendo o poder de apreciação quanto á oportunidade de
legislar. A falta dessas medidas implica uma
inconstitucionalidade por omissão, sujeita ao regime de
controlo do artigo 283º.

(Ver, sobre esta matéria da aplicabilidade directa,


em particular, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais,
p. 191-205).

- Vinculação de entidades públicas

Por outro lado, o art. 18.º estabelece a vinculação


das entidades públicas e privadas aos direitos, liberdades e
garantias. Segundo esta disposição os direitos, liberdades e
garantias obrigam tanto entidades públicas como entidades
privadas.

Quanto às entidades públicas, retiramos deste


preceito que o Estado está, que todos os poderes públicos
estão vinculados aos direitos, liberdades e garantias.
Abrangem-se aqui obviamente os órgãos legislativos, os
órgãos jurisdicionais e toda Administração Pública,
estendendo-se este imperativo de respeito pelos direitos,
liberdades e garantias mesmo a poderes que não sejam
estaduais, mas exercidos através de pessoas colectivas
públicas, com autarquias, universidades, ou outras.

O legislador está vinculado aos direitos


fundamentais. Não é ao legislador que cabe determinar e
circunscrever autonomamente o âmbito de protecção dos
direitos fundamentais. Hoje em dia, de acordo com uma
célebre expressão, são as leis que gravitam à volta dos
direitos fundamentais e não os direitos fundamentais que
gravitam à volta das leis (Krűger).

O legislador tem um papel essencial na protecção


dos direitos fundamentais, através de leis que podem ampliar,
ordenar e concretizar o gozo e o exercício de direitos
fundamentais.

Tem também um papel mais ingrato, que é o de


intervir antecipando conflitos entre os direitos fundamentais
ou entre estes e bens comunitários essenciais através de leis
que restringem direitos, liberdades e garantias. Os termos
concretos desta vinculação específica estão previstos nos
números 2 e 3 do artigo 18º que, a seguir trataremos.

- Vinculação do poder judicial aos direitos,


liberdades e garantias
O papel dos juízes na protecção dos direitos
fundamentais, como amigos das liberdades do cidadão,
obriga os tribunais a uma vinculação estrita em matéria de
direitos, liberdades e garantias. Esta vinculação impõe-lhes
uma actuação particularmente célere nos processos em que
estão em causa, de modo mais flagrante, direitos
fundamentais – em particular naqueles em que há lesão
iminente de bens jurídicos fundamentais (quando há arguidos
presos, quando se trata de um recurso perante o TC em que
estão em causa direitos, liberdades e garantias, quando se
requer uma providência cautelar para defesa de direitos,
liberdades e garantias – sobre isto, veremos, mais à frente,
concretizações legais específicas destas exigências).

Na substância das suas decisões, o dever de


interpretar normas em conformidade com a Constituição e de
recusar a aplicação de normas que com não se conformam
com a Constituição tem uma expressão mais intensa quando
se trata de normas relativas a direitos, liberdades e garantias.

- Vinculação da Administração

Ao contrário do poder judicial, o poder


administrativo começou por ser considerado a principal
ameaça às liberdades dos cidadãos. A vinculação das
entidades administrativas às normas de direitos, liberdades e
garantias, prevista no art. 18º/1 e reforçada no artigo 266º da
Constituição, significa que a Administração tem o dever de
interpretar a lei em conformidade com as normas de direitos,
liberdades e garantias, tem o dever de quando actua em
domínios de discricionariedade, respeitar os direitos,
liberdades e garantias e assumi-los como parâmetros
decisivos para o preenchimento dos espaços livres de pré-
determinação legislativa (devendo o cumprimento deste
dever ser objecto de controlo judicial) e pode ter ainda o
dever, em circunstâncias excepcionais e muito limitadas, de
recusar a aplicação de normas com fundamento na violação
de direitos, liberdades e garantias.

(Ver sobre esta matéria, André Salgado de Matos,


A Fiscalização Administrativa da Constitucionalidade,
Almedina, 2004, 215 e seguintes.

Aula nº 5
-Vinculação das entidades privadas aos direitos
fundamentais.

Mais controvertida é a questão de saber em que


termos é que os privados, nas relações que estabelecem entre
si, estão vinculados a estes direitos, pelo que vamos ver mais
detalhadamente as diferentes posições que têm vindo a ser
defendidas a este respeito.

Apesar de a nossa Constituição referir


expressamente a vinculação das entidades privadas no n.º 1
do artigo 18.º, tem-se entendido que esta norma não é
inteiramente conclusiva.

Dentro da categoria dos direitos, liberdades e


garantias existem normas de direitos fundamentais que
devem ser excluídas desta discussão, uma vez que são, em
princípio, inoponíveis aos particulares, na medida em que
têm por destinatário exclusivamente os órgãos estatais. Será o
caso, por exemplo, do direito a tutela jurisdicional efectiva,
da responsabilidade civil do Estado, do direito de petição, do
direito de asilo e não extradição, etc.

As principais teorias defendidas a este propósito


dividem-se entre as que negam a vinculação dos particulares
aos direitos fundamentais, as que advogam a aplicabilidade
imediata destes preceitos constitucionais nas relações entre
sujeitos privados (posições monistas) e aquelas que só
indirectamente admitem a relevância dos direitos
fundamentais nesta área (posições dualistas), abrangendo nós
aqui a tese da eficácia mediata e a tese dos deveres de
protecção.

As teorias monistas defendem que os direitos


fundamentais são directamente aplicáveis nas relações
jurídicas privadas, ou seja, não carecem da mediação de
disposições de direito privado para que possam ser opostas a
particulares. Esta doutrina foi formulada, pela primeira vez,
por Nipperdey, na altura presidente do Bundesarbeitsgericht
(BAG).

As teorias da eficácia mediata, por seu lado,


desenvolveram-se a partir da formulação de Dürig e
defendem que a influência dos direitos fundamentais é apenas
indirecta e deverá levar-se a cabo, principalmente, através da
densificação de cláusulas gerais e conceitos indeterminados
do direito privado.

Finalmente, para a teoria dos deveres de protecção,


os direitos fundamentais vinculam apenas os entes públicos,
mas estes, para além do dever de os respeitar e concretizar,
têm ainda a responsabilidade de os proteger contra quaisquer
ameaças, ainda que essas ameaças resultem da actividade de
outros particulares. Parte-se aqui da distinção entre direitos
fundamentais enquanto direitos de defesa em relação ao
Estado e direitos fundamentais enquanto deveres de
protecção. Canaris é um dos principais defensores desta
teoria na sua aplicação às relações jurídicas privadas.
Segundo ele, o destinatário deste dever de protecção nas
relações entre particulares é o legislador de Direito Civil e,
particularmente, o julgador do Direito Civil.

Independentemente da posição adoptada, a


existência de uma vinculação dos particulares, seja qual for a
sua forma e o seu alcance, é, hoje, inquestionável. E apesar
das divergências entre as teorias referidas, na prática estas
conduzem muitas vezes ao mesmo resultado. Ainda assim, há
diferenças no que se refere ao alcance do papel do juiz na
ausência de lei ordinária. Neste último caso, enquanto a
teoria da eficácia imediata aplicará o direito fundamental
constitucionalmente consagrado em quaisquer circunstâncias,
a teoria dos deveres de protecção apenas o fará quando esteja
em causa um défice de protecção.

Consideramos que a tese da eficácia mediata não


tem devidamente em conta a evolução sofrida pelos direitos
fundamentais, limitando-se a defender uma ideia de
interpretação conforme à Constituição. Por outro lado, a
teoria dos deveres de protecção acaba por se reconduzir a
uma vinculação das entidades públicas, pois é aos poderes
públicos que cabe o dever de proteger os direitos
fundamentais contra quaisquer ameaças, ainda que essas
ameaças resultem da actividade de outros particulares. Ora a
CRP diz algo mais do que isso, ao consagrar expressamente
que os direitos fundamentais vinculam as entidades privadas
e ao não estabelecer quaisquer limites a essa vinculação.

Por conseguinte, entendemos ser de reconhecer


uma vinculação directa “prima facie” dos particulares aos
direitos fundamentais. Considerar que há uma vinculação
imediata dos particulares não implica, no entanto, que deva
haver uma equiparação total entre pessoas públicas e
privadas. Sendo ambas as partes do conflito titulares de
direitos fundamentais, a sua solução dependerá sempre das
circunstâncias do caso concreto e dos direitos fundamentais
em causa, tendo de se levar a cabo uma ponderação de bens
ou valores.

Um dos critérios fundamentais a ter em conta


nessa ponderação é o grau de desigualdade fáctica entre as
partes. Quanto mais uma das partes da relação se encontre
numa posição de supremacia, maior será a sua vinculação ao
respeito do direito fundamental em causa. Entre iguais, a
regra deve ser o princípio da liberdade.

Por outro lado, parece fazer sentido distinguir entre


a vinculação dos particulares ao princípio da igualdade e a
vinculação aos restantes direitos, liberdades e garantias. Ao
contrário do Estado que, em toda a sua actuação, está
obrigado a respeitar o princípio da igualdade, os particulares
deverão poder livremente escolher com quem contratar, sem
justificações nem preocupações igualitárias, sob pena de se
estar a restringir excessivamente a sua autonomia. Assim, à
partida, este princípio não deve oferecer um conteúdo
limitativo da autonomia privada. Há, no entanto, situações
em que poderá ser legítima a imposição, por via legislativa,
de deveres específicos de igualdade de tratamento.

É também relevante nesta sede saber se estamos


perante entidades privadas detentoras de um poder social ou
económico de facto. Ainda assim, a intensidade com que o
princípio da igualdade deve actuar não será sempre a mesma,
devendo variar em função do desequilíbrio negocial existente
e da autonomia real das partes.

(Ver sobre esta matéria, a seguinte bibliografia,


Benedita MacCrorie, A Vinculação dos Particulares aos
Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra, 2005; Ingo
Wolfgang Sarlet, “Direitos Fundamentais e Direito Privado:
algumas considerações em torno da vinculação dos
particulares aos direitos fundamentais”, em Ingo Wolfgang
Sarlet (org.), A Constituição Concretizada, Livraria do
Advogado Editora, Porto Alegre, 2000; João José Nunes
Abrantes, A Vinculação das Entidades Privadas aos Direitos
Fundamentais, Associação Académica da Faculdade de
Direito de Lisboa, 1990; Jorge Reis Novais, “Os direitos
fundamentais nas relações jurídicas entre particulares”, em
Jorge Reis Novais, Direitos Fundamentais: Trunfos contra a
Maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pp. 69 ss e “A
intervenção do Provedor de Justiça nas relações entre
privados”, AAVV, O Provedor de Justiça – Novos Estudos,
Provedoria de Justiça, Lisboa, 2008, pp. 229 ss; Vieira de
Andrade, “Os direitos fundamentais nas relações entre
particulares”, em Documentação e Direito Comparado,
Separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 5, Lisboa,
1981, pp. 233 ss; Gomes Canotilho, “O Provedor de Justiça e
o efeito horizontal dos direitos, liberdades e garantias”, em
Provedor de Justiça – 20º Aniversário 1975 – 1995, Sessão
Comemorativa na Assembleia da República, 30 de Novembro
de 1995, Lisboa, 1996, pp. 59 ss e “Dogmática de direitos
fundamentais e direito privado”, em Ingo Wolfgang Sarlet
(org.), Constituição, Direitos Fundamentais e Direito
Privado, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2003,
pp. 339 ss; Paulo Mota Pinto, “A influência dos direitos
fundamentais sobre o direito privado, in António Pinto
Monteiro – Jőrg Neuner – Ingo Wolfgang Sarlet (orgs.),
Direitos Fundamentais e Direito Privado. Uma Perspectiva
de Direito Comparado, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 145
ss..)

Aula nº 6
Sumário
O regime específico dos direitos, liberdades e
garantias (cont.).
As restrições de direitos, liberdades e garantias.

Vamos agora tratar o problema das restrições legais


aos direitos, liberdades e garantias.

Quando falamos de restrições estamos a referir-nos


a uma acção que afecta desvantajosamente o conteúdo de um
direito fundamental, ou seja, a restrição implica um
enfraquecimento do âmbito de protecção do direito.

Por que é que o legislador precisa de restringir


direitos fundamentais?

Os direitos fundamentais não são absolutos nem


ilimitados. A própria necessidade de co-existência de
diversos direitos fundamentais titulados por múltiplos
sujeitos cria a necessidade de intervenções legislativas que,
nalguns casos, inevitavelmente, vão limitar o “espaço” que se
poderia considerar protegido por uma liberdade ou um direito
fundamental.

Essa actuação legislativa é, naturalmente,


problemática, porque permite ao legislador interferir no
espaço de liberdade de cada um, regulando-o, daí que a
Constituição crie um conjunto de requisitos, de “cautelas”
que devem ser verificadas sempre que estejamos perante leis
restritivas de direitos, liberdades e garantias.

Antes, porém, de estudarmos quais são esses


requisitos, convém entendermos melhor o que são leis
restritivas, começando por enfrentar o problema da
determinação do âmbito de protecção dos direitos.

-Determinação do âmbito de protecção dos direitos


fundamentais.

Só estamos perante uma lei restritiva quando esta


comprime o âmbito de protecção do direito, tal como ele
resulta da norma (ou das normas) que o consagra(m).

A determinação do âmbito de protecção é, pois,


uma tarefa prévia essencial para que se possa concluir quanto
à verificação ou não de uma restrição.

Ora, nesta matéria, há duas formas de circunscrever


o âmbito de protecção: uma é a teoria do âmbito de protecção
alargado e outra é a teoria de âmbito de protecção estreito.

Segundo as teorias do âmbito de protecção


alargado, este deve ser definido, abrangendo o mais amplo e
completo conjunto de manifestações possíveis do direito
fundamental. Não cabe ao intérprete excluir prima facie do
âmbito de protecção do direito situações que estão dentro das
margens semânticas da norma, cujos pressupostos devem ser
amplamente interpretados (posição defendida por Robert
Alexy).

Segundo as teorias do âmbito de protecção estreito,


deve tentar afastar-se ab initio do âmbito de protecção do
direito as manifestações meramente aparentes do direito.
Nem tudo o que cabe nas “margens semânticas” da norma
que consagra o direito fundamental constitui uma conduta
protegida enquanto manifestação desse direito. Ao intérprete
cabe a tarefa de identificar os limites dessa garantia,
atendendo ao sentido e ao alcance da norma constitucional e
às condutas que se devem considerar efectivamente como
alvo de protecção.

Também na doutrina portuguesa estas posições se


confrontam.

Como é fácil de compreender, as teorias do âmbito


de protecção alargada potenciam os conflitos entre direitos
fundamentais enquanto as teorias estreitas os limitam.

Jorge Reis Novais defende que na delimitação do


âmbito de protecção do direito deve excluir-se apenas aquilo
que, com toda a evidência, não pode ser considerado pela
consciência jurídica própria de Estado de Direito como
exercício jusfundamentalmente protegido – comportamentos
que apresentem intolerável danosidade social ou sejam
radicalmente incompatíveis com os requisitos mínimos da
vida em comunidade e que, por isso, suscitam reprovação
social e jurídica consensuais.

- Requisitos das leis restritivas

Quais são as condições que a Constituição


estabelece para a restrição de DLG?

A nossa Constituição prevê, nos números 2 e 3 do


artigo 18º seis requisitos substanciais para a restrição legal de
direitos, liberdades e garantias: previsão constitucional
expressa; restrição justificada pela necessidade de
protecção de bens constitucionalmente relevantes; respeito
pelo princípio da proporcionalidade; necessidade de as
restrições terem carácter geral e abstracto; carácter
prospectivo (eficácia projectada no futuro) das restrições;
respeito pelo conteúdo essencial dos direitos.

Grande parte da doutrina tem uma posição crítica


quanto ao primeiro e ao último requisitos constitucionais,
tendendo a desvalorizá-los ou a contorná-los.

- Previsão constitucional expressa

O art. 18.º, n.º 2 estabelece uma exigência de


previsão constitucional expressa da respectiva restrição. Ora
esta exigência constitucional coloca uma série de problemas,
uma vez que há muitos preceitos constitucionais que não
prevêem expressamente restrições legislativas. (ex: direito à
vida, à integridade pessoal e outros direitos pessoais - arts.
24.º a 26.º, liberdade de aprender e de ensinar - art. 43.º,
direitos de deslocação e emigração - art. 44.º, direito de
reunião e manifestação - art. 45.º, etc.)

A doutrina tem procurado diferentes vias para


contornar este requisito de previsão constitucional expressa
da possibilidade de restrição, seja através da ideia de limites
imanentes, da existência de restrições implícitas ou ainda do
apelo ao art. 29.º da DUDH.

Jorge Reis Novais, cuja tese de doutoramento trata


precisamente o problema das restrições não expressamente
previstas na Constituição, considera, por seu lado, que a
consagração constitucional de um direito fundamental sem a
simultânea previsão da possibilidade da sua restrição não
deve constituir qualquer indicação definitiva sobre a sua
limitabilidade. Segundo este autor, “[t]omado a sério, o
limite do n.º 2 do artigo 18.º CRP significaria serem
inconstitucionais hipotéticas normas ordinárias que, por
exemplo, possibilitassem à Administração impor medidas de
vacinação obrigatória em caso de epidemia (por violação do
art. 25.º, n.º 1), que permitissem a um corpo policial ou de
bombeiros entrar, sem autorização, no domicílio de alguém
em caso de incêndio (por violação do art. 34.º) ou que
proibissem um culto religioso que envolvesse a prática de
crimes (por violação do art. 41.º, n.º 1) (…).”
Assim, partindo da natureza principiológica da
generalidade das normas constitucionais de direitos
fundamentais, o Autor entende que estas consagram garantias
subordinadas a uma reserva geral imanente de ponderação
ou necessidade de compatibilização com valores, bens ou
interesses dignos de protecção.

O reconhecimento de uma reserva geral imanente


de ponderação despe de todo e qualquer sentido útil o
requisito da necessidade de previsão constitucional expressa,
pois onde a Constituição preveja, implícita ou explicitamente,
a necessidade de restrição, já o legislador estava autorizado a
restringir com base naquela reserva.

- Necessidade de salvaguarda de outros direitos ou


interesses constitucionalmente protegidos

Por outro lado, a restrição só se pode justificar para


a salvaguarda de um outro direito ou interesse
constitucionalmente protegido: o interesse que se visa
acautelar tem que ter suficiente e adequada expressão no
texto constitucional (ex: defesa nacional, a segurança interna,
ordem pública, etc.). O fim que se visa com a restrição de um
bem jurídico fundamental tem de ter dignidade
constitucional, sob pena de a restrição ser ilegítima,
injustificada.

- Princípio da proporcionalidade

Não basta, no entanto, que haja outros direitos ou


interesses constitucionalmente protegidos a garantir. É ainda
exigido que a restrição se limite ao necessário para
salvaguardar esses outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos, nos termos do artigo 18º,
número 2. Está aqui em causa o princípio da
proporcionalidade, que obriga a que entre o conteúdo de uma
decisão estadual e o fim que ela prossegue haja um
equilíbrio.

Podemos distinguir três critérios no seio do


princípio da proporcionalidade: a idoneidade, a
necessidade e a proporcionalidade em sentido restrito.

O princípio da idoneidade ou adequação obriga a


que se tenha em conta se um dado meio é apto para a
realização do fim em vista. O que se requer é um juízo de
razoabilidade, bastando provar que razoavelmente, em
circunstâncias normais, o meio escolhido é apto para alcançar
o fim de interesse público que justifica a medida estadual.

Quanto ao princípio da necessidade, trata-se de


apreciar se não existe outra medida menos gravosa capaz de
assegurar o objectivo com o mesmo grau de eficácia. O que
se pretende avaliar é se não haverá outro meio igualmente
apto para a prossecução do fim mas que seja menos oneroso
para os direitos fundamentais.
Finalmente, na proporcionalidade em sentido
restrito, deve aferir-se se a medida adoptada é equilibrada no
sentido de as desvantagens dela decorrentes não serem
superiores aos benefícios que se poderão alcançar.
- Necessidade de as restrições terem carácter geral
e abstracto

O art. 18.º, n.º 3 exige ainda que as restrições de


direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e
abstracto. Ou seja, as normas que as prevêem têm de ter
como destinatários um número indeterminado ou
indeterminável de pessoas e devem aplicar-se a um número
indeterminado ou indeterminável de situações.

- Não podem ter carácter retroactivo

Esta exigência visa tornar claro que, se a


possibilidade de leis retroactivas – sempre indesejável num
Estado de Direito, preocupado em garantir e respeitar a
segurança jurídica dos cidadãos – não é sempre
inconstitucional, em matéria de restrições a direitos,
liberdades e garantias, é inadmissível. Ou seja, não deve
haver aqui margem de ponderação no sentido de perceber se
o fim que legitima a restrição sobreleva as expectativas
juridicamente protegidas. Se essas expectativas se referem a
direitos, liberdades e garantias, estas devem sempre
prevalecer.

-Respeito pelo conteúdo essencial

Podemos distinguir aqui entre as teorias absolutas,


que defendem que o conteúdo essencial consiste num núcleo
intocável presente em cada direito fundamental e que é
independente da colisão de interesses verificada no caso
concreto, e as teorias relativas, que reconduzem o requisito
do conteúdo essencial ao princípio da proporcionalidade.

A dificuldade que levanta a teoria absoluta é a de


saber em que é que consiste efectivamente o âmbito nuclear
intocável de cada direito fundamental, não sendo fácil a
distinção entre elementos nucleares ou essenciais e elementos
aureolares ou acidentais.

Depois: deve o conteúdo essencial proteger a


posição subjectiva do titular do direito fundamental afectado
(teoria subjectiva), ou o preceito constitucional enquanto
norma referida a valores, a bens jurídicos como tal
considerados (teoria objectiva)?

A teoria subjectiva não parece poder ter aplicação


naquelas situações mais difíceis em que as intervenções
restritivas reduzem drasticamente ou excluem mesmo
qualquer possibilidade de exercício de determinado direito
fundamental pelo seu titular.

Por outro lado, a protecção que a teoria objectiva


confere tem pouco significado prático, porque ao referir-se
apenas ao preceito enquanto norma de valor, só protege de
situações extremas de esmagamento total das liberdades.

Quanto às teorias relativas, que tudo reconduzem a


juízo casuístico quanto à parcela do direito que deve ser
poupada à restrição na situação concreta, a crítica que se lhes
aponta é o facto de, no limite, admitirem a anulação integral
da eficácia de um direito e, no fundo, acabam por se
reconduzir ao princípio da proporcionalidade.

Perante estas dificuldades, Jorge Reis Novais


considera que a garantia do conteúdo essencial não
desempenha, hoje, qualquer papel autónomo significativo
nem desenvolve qualquer efeito jurídico efectivo enquanto
limite aos limites dos direitos fundamentais e,
consequentemente, para a limitação dos poderes de restrição
dos direitos fundamentais.

Convém ter, no entanto, presente que este requisito


em particular do conteúdo essencial não é uma
“excentricidade” da Constituição portuguesa. Está presente
também noutras Constituições e consta actualmente de modo
expresso do artigo 52º, número 1 da Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia, ao lado dos requisitos do
princípio da proporcionalidade. Donde se deve atentar no
facto de, também ao nível da União, se fazer uma
consideração autónoma do requisito do respeito pelo
conteúdo essencial.

- Regime orgânico

A matéria dos direitos, liberdades e garantias está


sujeita a reserva de lei num duplo sentido material e formal.
Por um lado, só a lei pode intervir na esfera reservada e
protegida pelos direitos fundamentais. Por outro lado, só o
Parlamento pode legislar em matéria de direitos, liberdades e
garantias. Estes fazem parte da reserva relativa da
Assembleia da República, o que está previsto no art. 165º, n.º
1, alínea b) da Constituição. Há, no entanto, determinadas
matérias relativas a direitos, liberdades e garantias que estão
abrangidas pela reserva absoluta da Assembleia da
República. É o caso das alíneas a),b),c),e),h),i),j),l),m) e o) do
art. 164º.

- Regime da revisão constitucional


Finalmente, a alínea d) do art. 288.º da CRP integra
os direitos, liberdades e garantias como limites materiais de
revisão constitucional. No entanto, tal não significa que não
se possa alterar de forma alguma a parte da Constituição que
os consagra. Não são os preceitos constitucionais em si que
são irrevisíveis, mas o sentido dos princípios ou normas que
visam proteger (veja-se, por exemplo, as alterações
introduzidas por revisão constitucional nos artigos 33º e 34º,
admitindo a extradição de nacionais em situações
excepcionais e admitindo a entrada no domicílio durante a
noite para repressão de criminalidade grave).

- O regime específico e os direitos de natureza


análoga a direitos, liberdade e garantias

Agora que já vimos em que é que se consubstancia


o regime específico dos DLG, podemos voltar à questão que
ficou pendente na última aula, que é a de saber em que
termos é que os direitos previstos noutros lugares da CRP, na
lei e em normas internacionais aplicáveis que sejam
análogos, pela sua natureza, aos direitos enumerados no
Título II, Parte I da CRP, são equiparados, para efeitos de
regime, a DLG, nos termos do artigo 17.º.

Quanto aos direitos análogos constantes do Título


I, Parte I da CRP não parece haver dissensão doutrinária:
tem-se entendido que estes (ex: direito de acesso a tribunal;
direito de resistência, etc.), devem ficar sujeitos ao regime
jurídico dos direitos, liberdades e garantias na sua plenitude.

Já no que se refere aos demais direitos análogos


(extraconstitucionais) podemos encontrar diferentes posições
na doutrina: Jorge Miranda e Casalta Nabais entendem que só
o regime material é que deve ser aplicado. Gomes Canotilho,
Bacelar Gouveia e Vieira de Andrade, por seu lado,
consideram que também se deve aplicar o regime orgânico,
sendo que este último Autor defende ainda que o regime de
revisão se deve aplicar, na medida em que não se deve inserir
na Constituição nenhum preceito que vá contra o direito em
causa. Sérvulo Correia considera que os direitos
fundamentais análogos de carácter formal (direitos que se
encontram na CRP, mas que não estão no Título II da Parte I
da CRP) devem estar não apenas submetidos ao regime
material, mas também ao regime orgânico e ao regime de
revisão constitucional dos direitos, liberdades e garantias. Já
quanto aos direitos fundamentais análogos previstos na lei e
nas normas internacionais entende que não incidem sobre
eles, por natureza, os limites de revisão constitucional. Por
outro lado, considera ainda que não faz sentido a sujeição
destes direitos análogos à reserva de Parlamento.

- Colisão entre direitos, liberdades e garantias

Para além das situações de previsão abstracta de


conflitos resolvidos através de restrição legislativa, subsistem
ainda muitas situações de colisão entre direitos fundamentais
- situações em que o direito fundamental de A colide com
outro direito fundamental de B. Essa colisão pode ser mais ou
menos intensa consoante afecte faculdades mais ou menos
nucleares dos direitos fundamentais em causa.

Para estas situações não dispomos à partida de uma


hierarquia entre os direitos fundamentais, que nos autorize a
sacrificar direitos menos fundamentais do que os outros que
pretendemos salvaguardar.

Devemos partir sempre de uma ideia de igual valor


dos direitos fundamentais em conflito e formular juízos de
ponderação entre os bens constitucionais em conflito
tentando encontrar para a situação concreta uma solução
adequada, equilibrada e razoável – o que nos remete para a
aplicação do princípio da proporcionalidade. Os direitos em
conflito hão-se ser sacrificados apenas na estrita medida do
que se revele necessário para permitir a realização do direito
conflituante.

Para se encontrar a solução para o conflito, uma


vez que não partimos de uma hierarquia abstracta, temos de
atender às circunstâncias concretas do caso, seleccionando
quais os elementos que devem ser relevantes para o juízo de
ponderação que se impõe.

Aula n.º 7
Sumário
O regime específico dos direitos económicos,
sociais e culturais.

Estivemos na aula passada a tratar o regime


específico dos direitos, liberdades e garantias, que se
encontra expressamente previsto na CRP. Nesta aula vamos
dedicar-nos à análise do regime específico dos direitos
económicos, sociais e culturais.

A primeira constatação que se impõe é que, ao


contrário do que acontece com os direitos, liberdades e
garantias, não há na CRP nenhum preceito que se refira
especificamente a um regime específico, que deva ser
aplicado aos direitos sociais.

Apesar dessa ausência, podemos também


identificar nesta sede um regime material, um regime
orgânico e um regime de revisão específicos próprios dos
direitos económicos, sociais e culturais – que, a seguir
trataremos.

Esse regime tem de levar em linha de conta a


especificidade destes direitos. Esta especificidade decorre,
fundamentalmente, do facto de estarem previstos em normas
cujo conteúdo é largamento indeterminado e poder a
concretização destes direitos ser feita por diversas vias,
diversos modelos, relativamente aos quais pode existir
profundo dissenso político.

- Regime material

De algumas normas constitucionais que consagram


direitos sociais, podemos retirar uma imposição legislativa
concreta das medidas necessárias para tornar exequíveis os
preceitos constitucionais.

Nesses casos, o incumprimento pelo legislador das


tarefas constitucionais ligadas aos direitos sociais é
susceptível de ser qualificado como uma
inconstitucionalidade por omissão, quando esteja em causa
o incumprimento de uma norma certa e determinada. Há
omissão legislativa sempre que o legislador não cumpre, ou
cumpre insuficientemente, o dever constitucional de cumprir
imposições constitucionais concretas. Ora a CRP acompanha
a previsão de alguns direitos sociais da imposição de tarefas
legislativas destinadas a obter as condições necessárias à sua
realização, mencionando a própria estrutura fornecedora de
prestações que o Estado deve criar (ex: artigo 63.º, n.º 2 -
sistema de segurança social e 64.º, n.º 2 – serviço nacional de
saúde).

Para além disso, os preceitos constitucionais


relativos aos direitos sociais também servem de padrão
positivo de controlo da constitucionalidade das leis, podendo
sustentar juízos de inconstitucionalidade por acção.

Mas como apurar a inconstitucionalidade da norma


legislativa por violação do direito social, se as normas
consagradoras de direitos sociais se caracterizam pela
indeterminabilidade?

Nestes casos podem levantar-se situações de


eventual de inconstitucionalidade por acção, quando o
Estado já tinha avançado na concretização dos direitos sociais
que resultam da norma constitucional e vem posteriormente a
suprimir ou restringir essas realizações – a retroceder no grau
de protecção já alcançado para o direito social em causa.

Neste contexto, e para aferir uma eventual violação


da Constituição por acção, alguns autores entendem que, se o
Estado já garantiu um determinado grau de efectivação de um
direito económico, social e cultural, ele não poderá voltar
atrás: aplica-se o princípio da proibição do retrocesso social.

Este princípio da proibição do retrocesso tem, no


entanto, vindo a ser criticado, uma vez que a sua utilização
abusiva pode implicar a destruição da autonomia da função
legislativa. A ordem de prioridades de uma maioria política
não deve adquirir um grau de rigidez que a subtraia à
margem de decisão de novas maiorias democraticamente
legitimadas.

Apesar disso, ainda que hoje seja mais ou menos


consensual que se pode retirar da jurisprudência
constitucional que o retrocesso por si só não implica qualquer
violação da constituição, há determinadas situações em que o
Tribunal Constitucional tem considerado que o legislador não
pode retroceder, atribuindo, consequentemente, uma força
acrescida às normas de direitos sociais:

- em primeiro lugar, quando há uma imposição


legislativa específica na constituição que foi concretizada
pelo legislador ordinário – neste caso, o não retrocesso deriva
da determinabilidade da norma constitucional que, por essa
razão, goza de aplicabilidade directa. Logo no Acórdão
39/84, relativo ao Serviço Nacional de Saúde, o Tribunal
associa a proibição do retrocesso à determinabilidade das
normas constitucionais. Nas palavras do TC: “Note-se que,
em qualquer caso, se está perante normas constitucionais bem
qualificadas: a) São verdadeiras e próprias «imposições
constitucionais» e não simples «normas programáticas»; b)
Prescrevem concretas e definidas tarefas constitucionais ao
Estado e não vagas e abstractas linhas de acção”.

Também no Acórdão 509/02, relativo à alteração


legislativa do rendimento mínimo garantido, e na sua
conversão em rendimento social de inserção, o TC estabelece
que: “Aí, por exemplo, onde a Constituição contenha uma
ordem de legislar, suficientemente precisa e concreta, de tal
sorte que seja possível «determinar, com segurança, quais as
medidas jurídicas necessárias para lhe conferir
exequibilidade» (cfr. acórdão nº 474/02), a margem de
liberdade do legislador para retroceder no grau de protecção
já atingido é necessariamente mínima, já que só o poderá
fazer na estrita medida em que a alteração legislativa
pretendida não venha a consequenciar uma
inconstitucionalidade por omissão”.

- outro campo de aplicação da proibição do


retrocesso social refere-se, em segundo lugar, às situações em
que com esse retrocesso se viola simultaneamente algum
princípio constitucional fundamental (a igualdade, a
proporcionalidade ou a protecção da confiança, por
exemplo). Assim, o TC tem considerado que uma vez
concretizado legislativamente um direito social, a sua
posterior alteração legislativa deve ser aferida pelos
princípios constitucionais fundamentais.

Podemos referir exemplificativamente, atendendo à


jurisprudência mais recente do Tribunal, o Acórdão 188/09,
em matéria de pensões, no qual o TC diz o seguinte: “A
proibição do retrocesso social opera (…) quando a alteração
redutora do conteúdo do direito social (…) implique, pelo
«arbítrio ou desrazoabilidade manifesta do retrocesso», a
violação da protecção da confiança (…).” O TC associa
portanto a violação da proibição do retrocesso à violação do
princípio da protecção da confiança legítima.

Também no Acórdão 03/10, relativo à mesma


matéria, o TC diz que: “a jurisprudência do Tribunal, por seu
turno, tem-se caracterizado por perfilhar a visão de que o
princípio [da proibição do retrocesso] apenas poderá valer
numa acepção restrita, valendo, por conseguinte, apenas
quando a alteração redutora do conteúdo do direito social se
faça com violação de outros princípios constitucionais.”

Ainda no Acórdão 353/12, relativo à suspensão


total ou parcial do pagamento dos subsídios de férias e de
Natal, o Tribunal ao pronunciar-se sobre esta medida, fá-lo à
luz dos princípios constitucionais fundamentais,
considerando que a medida viola o princípio da igualdade, na
vertente de igualdade proporcional.

- Finalmente, o legislador não poderá retroceder


quando esteja em causa o mínimo para uma existência
condigna, ou o conteúdo essencial dos direitos. No Acórdão
509/02, o Tribunal considera que: “o princípio do respeito da
dignidade humana (…) implica o reconhecimento do direito
ou da garantia a um mínimo de subsistência condigna.”
Daqui se retira que o Tribunal considera que este mínimo
contém um efeito vinculativo mais intenso.

O direito a um mínimo para uma sobrevivência


condigna, ainda que não se encontre expressamente
consagrado na CRP, foi progressivamente reconhecido na
última década pelo Tribunal Constitucional.

Também no já referido Acórdão 188/09, o TC diz


ainda o seguinte: “A proibição do retrocesso social opera
assim apenas quando se pretenda atingir «o núcleo essencial
da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da
pessoa humana» (…). Ou, ainda, (…) quando a alteração
redutora do conteúdo do direito social afecte a «garantia da
realização do conteúdo mínimo imperativo do preceito
constitucional» (…)

Ainda no Acórdão 3/10, o TC reafirma a mesma


ideia, ao estabelecer que: “Não há dúvida de que "os direitos
sociais contêm também − ou podem conter − um conteúdo
mínimo, nuclear ou, porventura essencial directamente
aplicável" (…)”.

De tudo o que vimos, podemos retirar que as


normas de direitos sociais gozam de uma força acrescida,
sendo parâmetro aferidor de inconstitucionalidades:

- em primeiro lugar quando a norma de direitos


sociais seja suficientemente determinada ou determinável ao
nível constitucional. Nestes casos, parece-nos que o grau de
protecção deve ser máximo, não havendo margem do
legislador quanto à concretização desta exigência
constitucional. Tal significa que alterações a este nível
exigem revisão constitucional.

- em segundo lugar, quando esteja em causa o


conteúdo mínimo do direito. Nestas situações, aquilo que é
protegido é um mínimo do direito, mas em relação a esse
mínimo o grau de protecção é máximo, ou seja, quanto ao
mínimo do direito, não há também margem para ponderações
do legislador.

- finalmente, quando o legislador vem introduzir


alterações à lei que veio densificar a norma constitucional de
direitos sociais – nestes casos falamos já de um grau de
protecção médio, uma vez que neste âmbito há espaço para a
ponderação do legislador, ainda que o Tribunal
Constitucional possa avaliar se essa ponderação respeita ou
não os princípios constitucionais fundamentais. Assim,
independentemente de se considerar que a concretização
legislativa da norma constitucional assume a força de norma
jusfundamental, a alteração legislativa posterior deve ser
aferida pelos princípios constitucionais fundamentais.

- A possibilidade de aplicação do regime das leis


restritivas

Vimos já que Jorge Reis Novais considera não


fazer sentido a contraposição dos regimes de protecção dos
direitos de liberdade e dos direitos sociais, defendendo uma
“dogmática unitária” dos direitos fundamentais.

Segundo o Autor, o que está aqui em causa, nestas


situações em que se reconfigura o regime legal de um direito
social, comprimindo o seu conteúdo, é um problema de
restrições de direitos fundamentais.

Partindo do direito fundamental


constitucionalmente consagrado e da concretização
legislativa desse direito, se o legislador vier posteriormente a
diminuir o grau de protecção conferido ao direito, estaremos
perante uma restrição – que não é, necessariamente ilegítima.
Tal como pode haver restrições a DLG legítimas, o mesmo
pode acontecer no que se refere aos DESC.

Tal como acontece com os DLG, também estes são


restringíveis, desde que o legislador tenha razões
suficientemente fortes para justificar a necessidade de
restringir direitos fundamentais.

Para Jorge Reis Novais, as normas ordinárias que


determinam o conteúdo dos direitos sociais passam a
integrar, com as normas constitucionais a que dão realização,
uma “unidade sistemática” que é retirada à livre
disponibilidade do legislador. Assim, não há razões que
justifiquem um tratamento diferente entre os direitos,
liberdades e garantias e os direitos sociais se a
indeterminação que caracteriza estes já tiver sido suprida.

Contrapondo-se a esta posição, Vieira de Andrade


entende que esta tese parece pressupor que a concretização
legal de um direito social implica a constitucionalização do
respectivo conteúdo, retirando ao legislador a margem de que
este dispõe para alterar qualquer lei, no respeito pela
Constituição. Para além disso, entende que a restrição de um
direito legal derivado de um DESC não deve estar sujeita às
mesmas regras apertadas que estão constitucionalmente
previstas para a restrição de direitos, liberdades e garantias

- Regime orgânico
Ao contrário do que vimos em relação aos DLG, a
matéria relativa aos DESC é, em geral, matéria concorrencial.
Tal significa que se trata de matéria em que tanto o Governo
como a Assembleia da República podem livremente legislar.
Apesar disso, integram a reserva relativa as bases
do sistema de segurança social e do serviço nacional de
saúde, as bases do sistema de protecção da natureza, do
equilíbrio ecológico e do património cultural e o regime geral
do arrendamento urbano (art. 165.º f), g) e h).). Integram
ainda a reserva absoluta as bases do sistema de ensino (art.
164.º, i).

- Regime de revisão constitucional


Finalmente, os DESC não são também, na sua
generalidade, limites materiais de revisão da Constituição.
Apenas estão consagrados no art. 288.º, e), os direitos dos
trabalhadores, alguns dos quais se integram na matéria dos
direitos económicos, sociais e culturais.

Aula nº 8

Sumários
Meios de defesa internos

Meios de defesa não jurisdicionais


Meios de defesa jurisdicionais
- Tutela judicial dos direitos em geral
- Direito de acção popular
- Habeas corpus
Meios de defesa internacionais
A queixa ao TEDH.

O verdadeiro teste a um Estado amigo dos direitos


fundamentais não se faz lendo a respectiva Constituição e
apreciando a extensão do catálogo de direitos fundamentais
nela contido ou verificando quais as convenções
internacionais de direitos humanos ratificadas e aplicáveis
nesse Estado. Os indicadores da verdadeira amizade de um
Estado pelos direitos fundamentais estão numa cultura de
defesa dos direitos fundamentais, numa opinião pública
atenta, organizada e capaz de denunciar as compressões aos
direitos mais básicos da pessoa humana , no modo como o
processo penal está estruturado e – no que aqui agora nos
interessa – na previsão de meios formais de reacção a
violações desses direitos.

Não basta consagrar direitos e qualificá-los como


fundamentais, é preciso que as situações em que esses
direitos fundamentais - reconhecidos como tal pela
comunidade - são violados sejam tratadas de modo
preferencial relativamente a outras em que não estão em
causa bens jurídicos tão essenciais à comunidade política
organizada. É preciso reconhecer aos direitos fundamentais
uma prefered position em sede de tutela desses direitos.

Ora, constatamos que o nosso sistema tem aqui


debilidades. São poucos os mecanismos formais de protecção
específica dos direitos fundamentais, que habilitem os
cidadãos que se sintam vítimas de actuações que ponham em
causa bens jurídicos fundamentais a uma reacção célere e
eficaz.
- Meios não jurisdicionais

Temos meios de reacção não jurisdicionais


previstos na própria Constituição: o direito de petição ao
Provedor de Justiça ou a qualquer outro órgão de soberania
(previstos nos artigos 23º e 52º da Constituição). A figura do
Provedor de Justiça e as suas funções específicas deve ser
aqui enaltecida como figura especialmente atenta e
vocacionada para a defesa e promoção dos direitos
fundamentais dos cidadãos, com uma estrutura preparada
para acolher queixas e dar-lhes seguimento (para uma análise
mais detalhada, ver o Estatuto do Provedor de Justiça,
regulado na Lei n.º 9/91, de 9 de Abril
(alterada pela Lei nº 30/96, de 14 de Agosto
e pela Lei n.º 52-A/2005, de 10 de Outubro).

Temos ainda a possibilidade de resistir a ordens


que ofendam os nossos direitos mais básicos – direito de
resistência, previsto no artigo 21º da Constituição - e de a
invocação desse direito de resistência servir como causa de
exculpação de eventuais ilícitos praticados – como crime de
desobediência, por exemplo.

Os cidadãos têm ainda direito de reagir junto da


Administração Pública a actos que ofendam os direitos
fundamentais – como sejam actos de revogação de actos
administrativos constitutivos de direitos (artigo 140º/1/b)) -,
através de impugnações administrativas, como reclamações,
recursos hierárquicos – próprios, impróprios ou tutelares
(artigos 158º a 177º do Código do Procedimento
Administrativo).

Existem diversas autoridades administrativas


independentes que, sectorialmente, tratam da protecção dos
direitos fundamentais – veja-se, por exemplo, o ACIDI, Alto
Comissariado para a Imigração e para o Diálogo
Intercultural, a ERC, Entidade Reguladora da Comunicação
Social, a CNPD, Comissão Nacional de Protecção de Dados.

Estes meios não jurisdicionais revelam-se, no


entanto, frequentemente, pouco eficazes para deter e
sancionar violações de direitos básicos das pessoas. A
intervenção das autoridades judiciais é, muitas vezes, a única
alternativa verdadeiramente operante que resta.

- Meios judiciais para defesa de alguns direitos,


em especial

Ora, nós verificamos que, no nosso sistema, temos


alguns mecanismos judiciais vocacionados para a defesa de
direitos fundamentais específicos – o habeas corpus, previsto
como meio de reacção a situações de privação ilegal da
liberdade no artigo 31º da Constituição, e a acção popular,
prevista no artigo 52º/3 da CRP, que permite a intervenção
em juízo de pessoas que, não sendo titulares de interesses
directos e pessoais, podem defender interesses difusos e,
nalguns casos, fundamentais, que são de todos em geral e de
ninguém em particular : saúde pública, ambiente, património
cultural.

Tirando estes dois mecanismos de aplicação restrita


a situações de violação de alguns direitos em particular, não
temos mais nenhum mecanismo previsto especificamente na
Constituição para a garantia jurisdicional de direitos
fundamentais.

Em 1997, deu-se, no entanto, uma inovação


importante quando a Constituição acrescentou uma
imposição ao legislador no artigo 20º/5:

“Para defesa dos direitos, liberdades e garantias


pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos
judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de
modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças
ou violações desses direitos”.

- Justiça constitucional

O nosso Tribunal Constitucional não aprecia


queixas de cidadãos motivadas especificamente pela
necessidade de reacção a violações de direitos fundamentais.

As suas competências estão muito centradas no


controlo normativo, isto é, no controlo da constitucionalidade
de normas.
Aprecia, assim, pedidos de fiscalização da
inconstitucionalidade de normas promovidos pelo Provedor
de Justiça, por exemplo – podendo a iniciativa deste ser
motivada por queixas dos cidadãos relativas a violações de
direitos fundamentais por parte de normas – ou recursos de
decisões judiciais em que se discutiu nos tribunais a quo a
eventual inconstitucionalidade das normas aplicáveis ao caso.

Não é, no entanto, relevante para o Tribunal, do


ponto de vista da determinação da sua competência tratar-se
de um caso em que estão em causa violações de normas
constitucionais relativas a direitos fundamentais ou quaisquer
outras questões de constitucionalidade.

É igual a competência – limitada às situações em


que há normas julgadas inconstitucionais ou não
inconstitucionais pelo tribunal a quo ou às situações em que
as normas, na interpretação que lhes foi dada pelo tribunal,
suscitam os mesmos problemas de inconstitucionalidade. A
única diferença é a celeridade na tramitação, que se prevê, na
Lei do Tribunal Constitucional, após a revisão desta de 1998
(Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro), que deve ser prioritária
quando estão em causa direitos, liberdades e garantias
pessoais (ver, neste sentido, artigo 79º-B, número 3 e 39º,
número 1, alínea h))

A ausência de um recurso de amparo


constitucional, apesar de não ser unanimemente sentida pela
doutrina como uma debilidade do sistema, é expressão de um
não reconhecimento aos direitos fundamentais da tal prefered
position em matéria de justiça constitucional.

Em 1989 e 1997, a introdução de um recurso de


amparo junto do TC foi discutida, durante os processos de
revisão constitucional, mas não houve consenso quanto a esta
matéria. O único resultado destas discussões foi o referido
artigo 20º, número 5, da Constituição, supra-transcrito.

Esta norma suscitou modificações importantes no


domínio do acesso aos tribunais administrativos, mas, em
matéria de justiça constitucional, mais não implicou do que
as alterações já referidas na Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro,
Lei do Tribunal Constitucional, tornando os processos em
que estão envolvidos direitos, liberdades e garantias pessoais
prioritários.

As objecções que têm sido opostas à introdução de


um mecanismo de amparo constitucional podem
esquematizar-se em três tipos de argumentos: argumento de
desnecessidade (a latitude com que o Tribunal Constitucional
tem admitido a fiscalização concreta torna esta um quasi-
amparo); argumento da sobrecarga do Tribunal
Constitucional, que seria agravada pela criação de mais um
mecanismo de acesso àquele Tribunal; e um último
argumento relacionado com o risco de aparecimento de
atritos entre jurisdições.

Pela outra parte, os argumentos em favor da


introdução de um recurso de amparo salientam a
incompletude do actual sistema e a necessidade de
clarificação dos termos da intervenção do TC em sede de
recurso de constitucionalidade – no sentido de se saber se a
fiscalização concreta é ainda um mecanismo de controlo
normativo da constitucionalidade ou se já deixou de o ser e é
– encapotadamente – mais uma instância de recurso de
decisões judiciais. Opõem ao risco de aluvião de processos
no Tribunal Constitucional a possibilidade de, “em troca”, se
restringir o recurso de decisões negativas de
inconstitucionalidade (artigo 280º, número 1, alínea b)).

- Justiça administrativa

Em sede de justiça administrativa, a imposição


legiferante constitucional contida no artigo 20º/5 haveria de
ser cumprida pela reforma do Contencioso Administrativo,
ocorrida em 2002 e que entrou em vigor em 2004, e que
entendeu que esta tutela especialmente célere e prioritária dos
direitos fundamentais exigia uma tutela cautelar especial e,
ao lado desta, subsidiariamente, uma tutela urgente, que
permite soluções rápidas e definitivas da questão de mérito,
para situações em que a tutela cautelar se revelasse
impossível ou insuficiente.

Surgiram, assim, dois mecanismos: o decretamento


provisório de providências cautelares, previsto no artigo
131º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos, e
a intimação para protecção de direitos, liberdades e
garantias, prevista nos artigos 109º e seguintes do mesmo
Código.

Um dos problemas que se colocou foi o de saber a


que direitos fundamentais se aplicavam estes meios de
protecção preferenciais. A norma constitucional – artigo 20º,
número 5 - referia-se apenas à necessidade de protecção
célere e prioritária de “direitos, liberdades e garantias
pessoais”, mas o legislador alargou essa protecção a todos os
direitos, liberdades e garantias. Deveriam as normas do
Código de Processo dos Tribunais Administrativos ser
interpretadas restritivamente à luz da norma constitucional?

Outro dos problemas, nesta sede, refere-se aos


direitos análogos a direitos, liberdades e garantias. Deverá
admitir-se o uso daqueles meios processuais para protecção
de direitos análogos?

A jurisprudência administrativa deu às duas


questões uma resposta generosa, no sentido em que abriu
aqueles dois mecanismos à protecção de todos os direitos,
liberdades e garantias, mesmo aqueles que, não estando como
tal consagrados, são de natureza análoga.

(Ver, sobre esta matéria, em particular, Catarina


Santos Botelho, A tutela directa; Jorge Reis Novais,
"'Direito, liberdade ou garantia': uma noção constitucional
imprestável na justiça administrativa?" em Cadernos de
Justiça Administrativa, 73, Jan.-Fev. 2009, pp. 44-59)
- O direito de queixa perante o Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem

Além destes mecanismos previstos internamente, a


nível internacional, há também mecanismos de reacção a
violações de direitos consagrados em instrumentos
internacionais.

Está prevista a possibilidade de fazer uso destes


mecanismos por parte de Estados (queixas interestaduais,
previstas nos artigos 28º e 51º do PIDCP, por exemplo, e no
artigo 33º da CEDH) e através de queixas individuais por
parte de vítimas de violações de direitos humanos
fundamentais consagrados nos respectivos instrumentos.

No que a Portugal diz respeito, o meio mais


relevante é o mecanismo de queixa ao Tribunal Europeu dos
Direitos do Homem, previsto na CEDH, onde Portugal já foi
alvo de várias queixas. Existem também, no entanto, outros
no âmbito das Nações Unidas, nomeadamente, a queixa ao
Comité dos Direitos do Homem, criado para defesa dos
direitos consagrados no Pacto Internacional de Direitos Civis
e Políticos (que veremos na próxima aula).

Estes mecanismos têm requisitos específicos que


constam dos instrumentos internacionais em que estão
previstos, mas têm uma característica comum: são
subsidiários em relação aos meios internos de protecção dos
direitos fundamentais, o que significa que quem pretenda
lançar mão deles tem de fazer prova da prévia exaustão das
vias internas de tutela dos direitos em causa.

- Requisitos de admissibilidade de uma queixa ao


TEDH

Para que a queixa seja bem sucedida, é necessário


que esta cumpra requisitos de admissibilidade e que, numa
análise do mérito da queixa, se prove ter havido
efectivamente uma violação de direitos e liberdades
consagrados na CEDH.

Antes da adopção do protocolo nº 14, estas fases


sucediam-se, isto é, só se passava à apreciação do mérito
depois de proferida decisão sobre a admissibilidade. A actual
redacção do artigo 38º permite que se proceda à apreciação
do mérito sem haver decisão quanto à admissibilidade e que
as queixas sejam apreciadas na mesma decisão quanto à sua
admissibilidade e o seu mérito.

No que diz respeito ao procedimento de queixa


junto do TEDH, este justifica-se sempre que alguém se sinta
vítima de uma actuação contrária a algum ou a vários direitos
previstos na Convenção Europeia dos Direitos do Homem –
competência ratione materiae - por um Estado-parte nessa
mesma Convenção.

A queixa tem de ser formulada por pessoas


singulares, ONG ou grupos de particulares contra um Estado-
Parte da Convenção – competência ratione personae (artigo
34º da CEDH).

O Tribunal só aprecia queixas em que sejam


imputadas ao Estado-parte acções ou omissões de deveres de
protecção que resultem em violações de direitos consagrados
na Convenção. A queixa é sempre dirigida contra o Estado.

Não obstante o Tratado de Lisboa e a actual


redacção da CEDH, após o Protocolo nº 14, ainda não estão
definidas as consequências desta adesão para efeitos do
mecanismo de queixa ao Tribunal.

- Competência ratione loci

Nos termos do artigo 1 da CEDH, esta aplica-se


nas relações entre os Estados-parte e as pessoas que estão sob
a sua jurisdição. Assim sendo impõe-se que os factos que são
apontados como constituindo violações da Convenção
tenham ocorrido no território dos Estados-parte ou,
excepcionalmente, fora do território, mas em situações em
que o Estado-parte esteja a exercer a sua jurisdição fora do
território. (Vejam-se a este propósito o recente caso Hirsi e
outros contra Itália, de 23 de Fevereiro de 2011).

- Exaustão das vias de recurso internas

Nos termos do artigo 35º, o Tribunal “só pode ser


chamado a conhecer de um assunto depois de esgotadas
todas as vias de recurso internas”.
Este requisito obriga as eventuais vítimas de
violações de direitos consagrados na Convenção a utilizarem
todos os meios internos disponíveis para obterem a satisfação
dos seus direitos.

Será necessário lançar mão de todos os meios?

O Tribunal Europeu tem adoptado aqui uma


postura de grande flexibilidade e de recusa de formalismos
excessivos, entendendo que só é necessário provar que se
tentaram todos os meios que eram, na situação concreta,
acessíveis, adequados, eficazes e suficientes. A petição ao
Provedor de Justiça, por exemplo, não é meio efectivo e
adequado de protecção, pelo que não é necessário fazer prova
da sua existência antes de recorrer ao TEDH. Também se
excluem meios que, pela sua demora excessiva, tornem
irrazoável a exigência de que sejam exauridos previamente à
queixa.

- Prazo

A queixa ao Tribunal Europeu está sujeita a prazo,


o que significa que se exige aqui diligência à vítima, que só
dispõe de seis meses a contar da notificação da decisão
interna definitiva para apresentar queixa. Se for apresentada
decorrido esse prazo, é considerada inadmissível por ser
intempestiva (artigo 35º/1).

- Outros requisitos
Só será apreciada uma queixa cujo autor esteja
devidamente identificado e que tenha conteúdo novo, isto é,
não seja idêntica a outra queixa anteriormente apreciada pelo
Tribunal ou já submetida a outra instância internacional de
inquérito e decisão, excepto de contiver factos novos (artigo
35º/2).

Será considerada inadmissível uma queixa


manifestamente infundada, ou seja, uma queixa em que não
existem indícios de que tenha havido violação de direitos
consagrados na CEDH ou abusiva, porque visa um desejo de
propaganda ou publicidade ou outro, sem estar apoiada por
quaisquer factos que relevem da CEDH.

- Exigência de prejuízo significativo

Nos termos do Protocolo nº 14, impõe-se ainda um


novo critério: a vítima deve ter sofrido um prejuízo
significativo. Este requisito de formulação vaga suscitou
alguns receios, que o Tribunal tem vindo a mostrar que são
largamente injustificados.

Este requisito está associado à ideia de que uma


violação de um direito deve ter um mínimo de gravidade para
que seja analisada perante um tribunal internacional. Esta
avaliação é relativa e depende das circunstâncias concretas do
caso concreto.

A gravidade da violação deve partir da percepção


subjectiva do requerente, mas não basta essa percepção
subjectiva – a percepção subjectiva tem de se apoiar em
razões objectivas

A violação da convenção pode assentar em razões


de princípio e implicar um prejuízo significativo
independentemente da existência de um prejuízo pecuniário.

- Apreciação do mérito e decisão

Ao Tribunal compete apreciar o mérito das queixas


que cumpram todos os requisitos de admissibilidade. Dessa
apreciação resultará uma decisão em que o Tribunal ou
constata ter havido violação de um direito reconhecido pela
Convenção ou pelos seus Protocolos ou constata não ter
existido a violação alegada pela vítima.

A decisão de existência de violação é normalmente


acompanhada pela condenação do Estado-parte ao pagamento
de uma justa compensação ao autor da queixa.

- Possibilidade de resolução amigável

O Tribunal pode tentar, a todo o momento, que seja


alcançada entre as partes uma resolução amigável do assunto,
mas esta tem de respeitar os Direitos Humanos, tal como
resultam da Convenção e o tribunal deve assegurar o respeito
por estes (artigo 39º). O Tribunal reserva-se, assim, o papel
de supervisionar a resolução do litígio quando esta seja feita
por acordo entre o Estado e o autor da queixa, no sentido de
garantir uma solução que não ofenda os valores protegidos
pela Convenção.

- Eficácia das decisões no plano interno

Para além das consequências da decisão no plano


internacional, no plano interno, após as recentes reformas do
Código do Processo Civil e do Código do Processo Penal foi
incluído como possível fundamento de um pedido de revisão
de sentença a existência “de uma sentença vinculativa do
Estado português, proferida por uma instância
internacional”, que seja “incompatível com a condenação ou
suscitar grandes dúvidas sobre a sua justiça” (Código do
Processo Penal – art. 449º/1/g) e no Código do Processo
Civil , art. 771º/f): “A decisão transitada em julgado (...)
pode ser objecto de revisão quando (...) seja inconciliável
com decisão definitiva de uma instância internacional de
recurso vinculativa para o Estado Português”.

(Ver sobre esta matéria, Fausto de Quadros, O


princípio da exaustão dos meios internos na Convenção
europeia dos Direitos do Homem e a Ordem Jurídica
Portuguesa, Separata da Revista da Ordem dos Advogados,
ano 50, I, Lisboa, Abril, 1990; Catarina Santos Botelho, A
Tutela Directa, 2010; e Ana Maria Guerra Martins, O Direito
Internacional dos Direitos do Homem, Coimbra, Almedina,
2006, p. 192-268)

Aula nº 9
Sumário
O crescente papel da União Europeia na
protecção dos direitos fundamentais.

É por todos já conhecido que, ao contrário


do Conselho da Europa, que sempre se afirmou como uma
organização internacional com o objectivo político bem
determinado de promover os direitos fundamentais, a União
Europeia começou por ter por objectivo apenas a integração
económica entre os Estados-membros, com vista à criação de
um mercado comum. Do Tratado de Roma estava ausente
qualquer referência a direitos fundamentais. Jónatas Machado
diz, a este propósito que os Tratados começaram por ser um
“Bill of Powers” e só recentemente se tornaram um “Bill of
Rights”.

Não obstante, desde 1969, com o caso Stauder,


encontramos jurisprudência do Tribunal de Justiça com
referências expressas aos direitos fundamentais. De modo
bastante claro, no acórdão, Internationaler
Handelsgesellschaft, pode ler-se “a salvaguarda desses
direitos, inspirando-se nas tradições comuns aos Estados
membros, deve ser assegurada no quadro da estrutura e dos
objectivos da Comunidade” (1970). No caso Nold (1975),
acrescentou o Tribunal de Justiça a referência à Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, adoptada no seio do
Conselho da Europa.

Esta circunstância motivou, aliás, um Acórdão do


Tribunal Constitucional Federal Alemão de 1974, em que
este Tribunal afirmou claramente, contra o princípio do
primado do direito comunitário que, enquanto não existisse
uma garantia suficiente no plano comunitário quanto à
protecção dos direitos fundamentais, aquele tribunal não
podia deixar de proceder ao controlo da compatibilidade dos
actos de direitos comunitário derivado com os direitos
fundamentais.

Só em 1992 é que o Tratado de União Europeia,


após a revisão de Maastricht, veio a incluir uma norma
escrita e expressa sobre a salvaguarda dos direitos
fundamentais, nos seguintes termos:

“ A União respeitará os direitos fundamentais tal


como os garante a Convenção Europeia de Salvaguarda dos
Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais,
assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950, e tal como
resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-
membros, enquanto princípios gerais do direito
comunitário.” (artigo F do Tratado da União Europeia).

Mais tarde, em 1997, o Tratado de Amesterdão


alterou esta norma, que passou a ter a seguinte redacção:

“A União assenta nos princípios da liberdade, da


democracia, do respeito pelos direitos do homem e pelas
liberdades fundamentais, bem como do Estado de Direito,
princípios que são comuns aos Estados-membros.” (art. 6º).

No Tratado de Amesterdão faz-se também


referência aos direitos sociais fundamentais, tal como
definidos na Carta Social Europeia, assinada em Turim, em
18 de Outubro de 1961, e na Carta Comunitária dos Direitos
Sociais Fundamentais e dos Trabalhadores, de 1989”.

O passo seguinte consistiu na adopção pela União


Europeia do seu próprio “Bill of Rights” – o que veio a
acontecer, em 2000, na Cimeira de Nice, com a proclamação
da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. A
esta Carta começou por ser negada eficácia vinculativa, mas
esta veio a ser-lhe reconhecida pelo Tratado de Lisboa, que
lhe reconhece o mesmo valor jurídico dos Tratados.

- A sistematização original dos direitos na Carta

A Carta dos Direitos Fundamentais organizou-se


de modo original, adoptando seis temas, seis valores maiores:
Dignidade, Liberdades, Igualdade, Solidariedade,
Cidadania e Justiça, pondo assim de lado a solução tantas
vezes adoptada da distinção entre direitos económicos,
sociais e culturais e outros direitos, da qual resulta sempre a
suspeita de que os direitos económicos, sociais e culturais
não são tão “direitos” como os outros.

Segundo Maria Luísa Duarte, a Carta confere


visibilidade e certeza quanto aos direitos fundamentais
reconhecidos pela União, reconhece a centralidade aos
direitos fundamentais na União Europeia, marcada por um
início associado exclusivamente aos objectivos de integração
económica, coerência sistemática e axiomática.

A vinculação da Carta está limitada pelos artigos


51º a 54º, com a redacção que lhes foi dada pela Conferência
Intergovernamental sobre o Futuro da Europa, de 2004. Os
seus destinatários são as instituições, órgãos e organismos da
UE. A vinculação do Estado não está excluída, na medida em
que a sua actividade se estenda a domínios comunitários ou
execute actos comunitários.

Já começaram a surgir na jurisprudência do


Tribunal de Justiça as primeiras decisões que aplicam a Carta
e que, com base nela, invalidam actos comunitários
(particularmente relevante parece-nos o Acórdão Test-
Achats, de 1 de Março de 2011, no processo C-236/09, que
não permite a diferenciação de prémios de seguro automóvel
entre homens e mulheres, por violação do artigo 21º da
Carta).

O Tratado de Lisboa abriu ainda a porta para a


possibilidade de a União se tornar parte da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, à qual, até este momento,
só estão vinculados Estados. Os termos concretos em que esta
adesão irá decorrer estão ainda por definir.

(Sobre esta questão particular da protecção de


direitos fundamentais no âmbito da União Europeia,
deixamos aqui algumas propostas de leitura:
Sobre a evolução histórica das Comunidades em
matéria de Direitos Fundamentais até ao Tratado de
Amesterdão, Fausto de Quadros, Direito da União Europeia,
Almedina, 2004, p. 125-178 e Moura Ramos, “A carta dos
direitos fundamentais da UE e a protecção dos direitos
fundamentais”, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor
Rogério Soares, p. 963-989.

Sobre o Tratado de Lisboa e o sentido e alcance das


alterações por ele introduzidas, Ana Maria Guerra Martins,
Ensaios sobre o Tratado de Lisboa, Almedina, 2011, p.
69-124; Jónatas Machado, Direito da União Europeia,
Coimbra Editora, 2010, p. 256-269 e Maria Luísa Duarte,
Estudos sobre o Tratado de Lisboa, Almedina, 2010, p.
91-115.

Sobre jurisprudência mais recente (2004 – 2010)


em matéria de protecção dos direitos fundamentais pelo
Tribunal de Justiça, Alessandra Silveira, “Princípio do
respeito aos direitos fundamentais”, em Princípios de Direito
da União Europeia – Doutrina e Jurisprudência, 2ª edição,
2011, p. 71-102.)

Aula nº 10
Sumário
O direito de queixa perante os Comités das
Nações Unidas
– Comité dos Direitos do Homem
- Comité para a Eliminação da Discriminação
Racial
– Comité contra a Tortura
- Comité para a Eliminação da Discriminação
contra as Mulheres
- Comité sobre os Direitos da Pessoa com
Deficiência

No âmbito das Nações Unidas, os diversos tratados


internacionais que foram sendo celebrados e, depois,
devidamente ratificados pelos Estados-membros, tiveram não
só a preocupação de conter enunciados claros que incluíssem
um nível adequado de protecção dos direitos humanos, como
se preocuparam também em instituir órgãos e mecanismos
adequados para velar pela protecção dos direitos
consagrados.

- Criação dos Comités

Assim os tratados criaram os chamados treaty


monitoring bodies, com o objectivo de, como o próprio nome
indica, vigiarem o respeito dos direitos contidos nos tratados
pelos respectivos Estados-parte. Assim aconteceu com os
principais tratados internacionais de direitos humanos (core
human rights treaties): Pacto Internacional de Direitos Civis
e Políticos instituiu, no seu artigo 28º, o Comité dos Direitos
do Homem; Convenção Internacional sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial também criou,
pelo artigo 8º, o Comité para a Eliminação da
Discriminação Racial; a Convenção sobre os Direitos da
Criança instituiu, no artigo 43º, o Comité dos Direitos da
Criança; a Convenção para a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra as Mulheres instituiu, no seu
artigo 17º, o Comité para a Eliminação da Discriminação
contra as Mulheres; a Convenção contra a Tortura e Outras
Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes
criou o Comité contra a Tortura, no seu artigo 17º. Mais
recentemente, no âmbito da Convenção sobre os Direitos da
Pessoa com Deficiência foi instituído também o Comité
sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (artigo 34º).

Também a Convenção Internacional sobre a


Protecção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes
e dos Membros das Suas Famílias criou um Comité, pelo
artigo 72º, mas Portugal não assinou nem ratificou aquela
Convenção, pelo que não está por ela vinculada.

O único Tratado fundamental de Direitos Humanos


que não previu a criação de um órgão de fiscalização foi o
Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e
Culturais, que entregou as tarefas de vigilância do
cumprimento das disposições do Pacto ao Conselho
Económico e Social (ECOSOC). Foi pela Resolução deste
Conselho 1985/17, de 28 de Maio de 1985, que foi criado o
Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais,
tendo este órgão sido incumbido de vigiar o respeito pelas
normas do Pacto. A 5 de Maio de 2013 entrou em vigor o
Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional de Direitos
Económicos, Sociais e Culturais, sendo hoje possível intentar
queixas individuais por violações dos direitos previstos no
Pacto perante o Comité.

-Funções dos Comités

Estes Comités exercem a sua função de vigilância e


garantia pelo respeito das normas contidas nas respectivas
Convenções através de três tipos fundamentais de
competências: exame de relatórios periódicos elaborados
pelos Estados-parte, em que estes dão conta das medidas que
tomaram para tornar efectivos os direitos constantes dos
Tratados e quais os progressos no gozo daqueles direitos; a
apreciação de queixas interestaduais, em que um Estado parte
comunica ao Comité que outro Estado-parte não está a
cumprir as suas obrigações resultantes do Tratado; e o
mecanismo das queixas individuais, que é o que aqui
fundamentalmente nos interessa.

- Mecanismo das queixas individuais

Este mecanismo permite aos indivíduos reagirem


perante os Comités a situações em que Estados-parte tenham
cometido violações de direitos humanos previstos nas
respectivas Convenções.

Não é difícil imaginar que os Estados sentem


relutância em aceitar que os seus cidadãos ou outras pessoas
que estão sob a sua jurisdição possam apresentar queixas
contra si junto dos Comités.

As queixas interestaduais são raras. Os Estados não


gostam de expor outros a queixas em órgãos internacionais,
como forma de se protegerem mutuamente.

As queixas individuais são as vias mais eficazes de


conseguir uma verdadeira efectivação dos compromissos
internacionais em matéria de direitos humanos.

Esta relutância justifica que a competência para


apreciação de queixas esteja frequentemente prevista em
Protocolos Facultativos, mesmo que assinados
simultaneamente, de modo a permitir aos Estados
vincularem-se às Convenções sem que isso implique
automaticamente a aceitação destes mecanismos de queixas.
É o que sucede com o Comité criado para a protecção de
direitos de pessoas com deficiência.

Noutras vezes, consta da própria convenção a


possibilidade de o Comité receber queixas, mas os Estados
têm de declarar expressamente que reconhecem a
competência do Comité para receber e examinar queixas
emanadas de pessoas submetidas à sua jurisdição. Veja-se,
nesse sentido, o artigo 14º da Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Racial e o artigo 22º
da Convenção contra a Tortura.

Apesar de hoje já ter sido possível criar, a nível


internacional, tais mecanismos para todos os instrumentos
fundamentais dos direitos humanos, há Comités que ainda
não exercem a totalidade destas funções.

- Regras de admissibilidade

As regras relativas a estas queixas não são comuns


a todos os processos, embora o procedimento de apresentação
de queixa e de tramitação seja muito semelhante. Não são
admitidas queixas colectivas em nenhum Comité. Também
não o são queixas anónimas.

São admitidas queixas individuais e, no caso dos


Comités para a Eliminação da Discriminação Racial e contra
as Mulheres, também são admitidas queixas de grupos de
indivíduos.

O procedimento seguido por estes Comités é


simples. Recebidas as queixas, apreciam-na quanto à sua
admissibilidade.

- Competência ratione temporis, ratione loci e


ratione materiae

Todos estes requisitos que acima explicitámos para


o Tribunal Europeu são aqui exigidos também para a
apreciação das queixas.

No que diz respeito à competência ratione


temporis, só são admitidas queixas por violações ocorridas
após a vinculação do Estado-parte ao instrumento
internacional. Admitem-se, no entanto, comunicações em
casos de violações continuadas, se os efeitos de determinada
situação continuam e constituem violação continuada da
mesma.

Das poucas queixas apresentadas contra Portugal


junto do Comité dos Direitos do Homem, pelo menos, uma
foi considerada inadmissível por a suposta violação ter
ocorrido antes da ratificação por Portugal do Pacto e do
Protocolo Facultativo (caso Abel da Silva Queiroz e outros,
queixa 969/2001, relacionada com a situação dos “espoliados
de Angola”).

- Requisitos que previnem duplicação de


procedimentos (simultâneos ou sucessivos)

Há também regras para evitar a duplicação de


procedimentos internacionais, isto é, evitar que a mesma
situação seja apreciada por dois órgãos internacionais (a
única excepção é o Comité contra a Discriminação Racial,
em que a Convenção nada dispõe sobre a matéria).

Estas normas não são, no entanto, todas iguais.


Junto do Comité dos Direitos do Homem, não são admitidas
queixas apenas quando a mesma situação esteja a ser
examinada por outra instância em simultâneo.

Noutros, proíbem-se quer as queixas simultâneas


quer as queixas sucessivas, ou seja, também não são
admitidas se a mesma situação já tiver sido examinada no
âmbito de outro procedimento internacional – é o caso do
Comité sobre a Discriminação contra as Mulheres e do
Comité contra a Tortura e do Comité sobre as Pessoas com
Deficiência.

Tal significa que uma situação pode já ter sido, por


exemplo, apreciada no âmbito do Tribunal Europeu dos
Direitos do Homem e o autor da queixa, descontente com o
resultado, pode ainda apresentar queixa junto do Comité dos
Direitos do Homem (junto do qual não há exigências de
prazo para apresentar queixa).

Foi o que sucedeu, por exemplo, no caso Correia


de Matos contra Portugal (comunicação 1123/2002, sobre a
qual o Comité dos Direitos do Homem se pronunciou em
2006, concluindo que houve efectivamente violação do Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, após o Tribunal
Europeu ter considerado a queixa sobre o caso inadmissível
em 2001, por ser manifestamente infundada).

O contrário não pode acontecer por causa da


exigência de prazo (seis meses) presente na Convenção
Europeia.

- Esgotamento das vias internas de recurso

Outro requisito essencial é o esgotamento das vias


de recurso internas, que é, mais uma vez, o garante de que as
instâncias internacionais só intervêm subsidiariamente, isto é,
quando internamente não foi possível satisfazer os direitos da
vítima.
- Tramitação das queixas na fase de apreciação do
mérito e decisão

Se a queixa é admitida, o Comité dirige-se então ao


Estado visado para que este se pronuncie sobre a situação, dê
uma explicação ou clarificação quanto ao mesmo e indique se
já tomou alguma medida para o resolver.

Da resposta do Estado é dado conhecimento ao


autor da queixa que pode apresentar os comentários que
entenda sobre a mesma.

Após este procedimento, o Comité formula as suas


observações sobre o caso, concluindo quanto à existência ou
inexistência de violação dos direitos previstos nos
instrumentos em causa.

No caso de concluir pela existência de violação


recomenda aos Estados a adopção de medidas que ponham
termo à violação constatada.

(Ver sobre esta matéria, Ana Maria Guerra


Martins, Direito Internacional dos Direitos Humanos,
Coimbra, Almedina, 2006, p. 121-188).

Programa das aulas teórico-práticas


Nas aulas teórico-práticas, será discutida a
resolução de casos práticos e haverá oportunidade para a
análise de uma selecção de jurisprudência relevante em
matéria de direitos fundamentais.

Junto seguem alguns casos práticos resolvidos


para ajudar os alunos a identificarem os problemas jurídicos
relevantes que um caso prático nesta matéria pode suscitar; a
localizarem as normas de diversas fontes que podem ajudar à
solução do caso e para, finalmente, aplicarem as normas ao
caso concreto, assim resolvendo a situação hipotética relatada
no enunciado do caso prático.

Segue-se também uma lista com as decisões a


partir das quais serão seleccionados casos para análise nas
aulas e que servirão também para a realização de trabalhos
pelos alunos.

Grelha a aplicar na análise de casos práticos

relativos a leis restritivas de direitos, liberdades


e garantias

A. Determinação do âmbito de protecção

a. Houve enfraquecimento desse âmbito?

b. Estamos diante de medida que evidencia limites


imanentes?
c. Estamos perante uma verdadeira restrição?

A. Constitucionalidade orgânica e formal

a. O legislador era competente?

b. Usou a forma legislativa adequada (na sequência de


procedimento conforme às exigências constitucionais)?

A. Constitucionalidade material

a. Onde radica a previsão constitucional que permite ao


legislador restringir o DF?

b. A lei tem eficácia retroactiva?

c. A lei é individual e concreta?

d. A lei foi justificada pela necessidade de protecção de


bens com dignidade constitucional?

e. A restrição é proporcional? É adequada ao fim legítimo


que justificou a restrição? É necessária para atingir esse
fim, no sentido de não haver outra que permita o mesmo
resultado e seja menos onerosa para os DF? As
vantagens que se retiram para a protecção de bens
jurídico-constitucionais são superiores aos prejuízos que
resultam da restrição?

f. A restrição atinge de modo tão grave o conteúdo do DF


que se pode discutir se ela viola o conteúdo essencial do
DF?

Grelha a aplicar na análise de casos práticos


relativos à possibilidade de apresentação de
queixa no

Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

A. Competência ratione materiæ

a. Está em causa a violação de um dos direitos previstos na


Convenção ou nalgum dos seus Protocolos?

b. A queixa não é idêntica a outra já apresentada no


Tribunal, não contendo factos novos?

A. Competência ratione personæ

a. O autor da queixa (pessoa singular, grupo de pessoas ou


ONG) está devidamente identificado e foi vítima de
uma violação de um direito CEDH ou dos Protocolos?

b. A queixa é apresentada contra um Estado-parte na


Convenção (ou no Protocolo em causa)?

A. Competência ratione temporæ

a. A ofensa ocorreu depois da entrada em vigor da CEDH


ou do Protocolo no Estado em causa?

b. A queixa foi apresentada no prazo de seis meses após


notificação da decisão interna definitiva?

A. Competência ratione loci

a. A ofensa verificou-se no território do Estado que é alvo


da queixa?

b. No caso de não se ter verificado no território, a vítima


estava sob a jurisdição do Estado em causa?
c.

B. Exaustão das vias de recurso internas

a. Antes de apresentar a queixa, foram exauridas as vias de


recurso internas?

b. O queixoso tentou obter a satisfação do seu direito


através de todos os meios acessíveis, adequados,
eficazes e suficientes?

A. Jurisdição internacional

a. O caso foi submetido à apreciação de outra instância


internacional?

A. Existência de prejuízo significativo

a. A vítima sofreu um prejuízo pecuniário elevado?

b. Se não há prejuízo financeiro, há razões de princípio


que justificam a análise do mérito da causa?

Casos práticos e propostas de solução

Caso prático 1: Internamento compulsivo de


pessoas portadoras de doença infecto-contagiosa
Foi publicado um decreto-lei destinado a
permitir que se proceda ao internamento compulsivo do
doente que sofre de tuberculose pulmonar e recusa
tratamento. No preâmbulo do referido diploma legislativo
pode ler-se que se justifica a aplicação de medidas desta
natureza e gravidade por se tratar de uma situação de
perigosidade decorrente não de um facto objectivamente
criminoso mas da própria natureza da doença.

Tomás foi internado a 20 de Dezembro


suspeitando-se de que sofria de pneumonia. No hospital,
detectaram-lhe tuberculose pulmonar e, desde essa data,
não o deixaram sair, mantendo-o detido e em isolamento
contra a sua vontade.

Não concordando com esta medida, Tomás,


dirige-se a si para que o ajude a defender-se nesta
situação.

1. Que apreciação faz da medida legislativa do Governo, do


ponto de vista da defesa dos direitos fundamentais?

1. Que mecanismos estariam ao dispor de Tomás, a nível


interno, para fazer valer as suas pretensões?

1. Poderia, ainda, eventualmente, accionar meios


internacionais de defesa de direitos humanos neste caso?
Como? Perante que órgãos? Com que fundamentos?
Proposta de solução

O decreto-lei do Governo enferma de diversos


vícios que permitem pôr em causa a sua validade jurídica.

Desde logo, a matéria sobre que versa este acto


legislativo refere-se a direitos, liberdades e garantias. Há aqui
um problema de conflito entre direitos fundamentais (o
direito à liberdade e o direito à saúde) e a medida legislativa
do Governo vem restringir a liberdade de Tomás.

Ora, as restrições a direitos, liberdades e garantias,


nos termos da Constituição da República Portuguesa (CRP)
só podem ser feitas por acto legislativo da Assembleia da
República ou, excepcionalmente, por acto legislativo do
Governo, autorizado pela Assembleia da República (artigo
165º/1/b)). No primeiro caso, o acto legislativo reveste a
forma de lei da Assembleia da República (lei, em sentido
formal). No segundo caso, o acto legislativo reveste a forma
de decreto-lei autorizado do Governo e tem como
pressuposto a existência de uma prévia lei de autorização da
Assembleia da República, que respeite os requisitos
constantes do artigo 165º da CRP.
Onde no artigo 18º/2 da CRP se lê que “A lei só
pode restringir direitos, liberdades e garantias nos casos
expressamente previstos na Constituição (...)”, deve, pois,
ler-se, por interpretação desta norma conjugada com o artigo
165º/1/b), só a lei pode restringir direitos, liberdades e
garantias.

O não cumprimento destas normas constitucionais


faz com que o decreto-lei em causa sofra de vícios de
competência e de forma.

O decreto-lei do Governo padece de uma


inconstitucionalidade orgânica, por ter sido praticado pelo
Governo em matéria que a CRP reserva expressamente à
Assembleia da República. E padece igualmente de uma
inconstitucionalidade formal, por não ser um decreto-lei
simples um acto adequado à criação de leis nesta matéria.

Os vícios que podem ser imputados a este decreto-


lei não se relacionam, no entanto, apenas com aspectos
orgânicos e formais, atingem também o seu conteúdo.

O direito à liberdade está previsto no artigo 27º da


CRP.

E, dada a essencialidade deste bem jurídico que é a


liberdade física, a liberdade de ir e vir, a liberdade de se
poder movimentar sem ingerência das autoridades públicas, o
legislador constituinte consagrou o direito, no número 1
daquele artigo 27º e, logo de seguida, preocupou-se em
identificar, de modo taxativo, em que situações pode uma
pessoa ser privada daquele direito fundamental.

No número 2, estabeleceu a primeira excepção


relacionada com as consequências jurídicas, decretadas pelos
tribunais, da prática de actos de natureza criminal (pena de
prisão ou medida de segurança).

No número 3, elencou outras situações, de natureza


muito variada, em que poderão ser aplicadas medidas de
detenção. Em nenhuma das alíneas deste número 3 se refere a
possibilidade de internamento compulsivo de portadores de
doenças infecto-contagiosas que recusem tratamento. A única
situação de internamento compulsivo prevista refere-se às
pessoas portadoras de anomalia psíquica, devendo este
efectuar-se em “estabelecimento terapêutico adequado” e
tendo de ser “decretado ou confirmado por autoridade
judicial competente”(artigo 27º/3/h))

Face a esta norma, é legítimo questionar se o


legislador ordinário tem ou não autorização constitucional
para criar leis que restrinjam o direito à liberdade fora das
situações tipificadas pelo artigo 27º da CRP.

Tenha-se presente que o artigo 18º/2 da CRP


admite intervenções legislativas restritivas apenas “nos casos
expressamente previstos na Constituição”. Ora, se é verdade
que, em muitas normas constitucionais que prevêem direitos
fundamentais, não encontramos, no enunciado dessas
normas, autorizações que conformem o poder de o legislador
restringir direitos, liberdades e garantias, tal omissão não se
verifica no artigo 27º da CRP. Relativamente a este direito, a
Constituição contém indicações expressas ao legislador,
identificando as situações em que é admissível restringir a
liberdade pessoal.

Deve, pois, ter-se por ilegítima qualquer


intervenção legislativa restritiva do direito de liberdade
que não encontre autorização expressa no artigo 27º da
CRP.

Poderá admitir-se a aplicação analógica do artigo


27º/3/h) da CRP a situações de doença infecto-contagiosa,
por analogia com a perigosidade decorrente de doença
mental?

Não nos parece admissível o recurso à analogia


para estender excepções ao direito à liberdade, contidas num
elenco que se pretendeu taxativo de restrições aos direitos,
liberdades e garantias. Se se admitisse o recurso à aplicação
analógica neste matéria, permitir-se-ia aos intérpretes e
aplicadores do Direito subverter o juízo de ponderação de
bens jurídicos em conflito com a liberdade, que possam
justificar a restrição desta, juízo esse que o legislador
constituinte, neste domínio tão sensível, chamou a si.

Em todo o caso, deve salientar-se que, mesmo


relativamente ao internamento compulsivo de portadores de
anomalia psíquica, a Constituição impõe condições à
detenção: o local e a intervenção da autoridade judicial, de
modo a garantir que há controlo, nomeadamente de
proporcionalidade, sobre a aplicação da medida a situações
individuais e concretas. Quase poderíamos afirmar que o
legislador constituinte teve em conta a velha frase, cantada
por Caetano Veloso: “ninguém de perto é normal”.

Por isso, mesmo que se admitisse, o que não nos


parece defensável, a intervenção legislativa prevendo a
possibilidade de internamento compulsivo de portadores de
doenças infecto-contagiosas sem prévia autorização
constitucional expressa nesse sentido, Tomás deveria ter
direito a que a sua situação fosse, de modo célere e prioritário
(tal como impõe o artigo 20º/5 da CRP), apreciada por uma
autoridade judicial – idealmente antes da aplicação da medida
de detenção.

Uma outra via pela qual poderia tentar-se a defesa


de uma intervenção legislativa de conteúdo semelhante à
apresentada na hipótese seria apelando ao artigo 5º/1/e) da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), que
prevê expressamente a possibilidade de “detenção legal de
uma pessoa susceptível de propagar uma doença
contagiosa”.

O apelo à CEDH far-se-ia, então, para assumir no


ordenamento jurídico português uma excepção ao direito à
liberdade que o legislador constituinte manifestamente não
quis assumir. A CEDH foi um dos textos, à semelhança da
Declaração Universal dos Direitos do Homem, que inspirou a
Constituição Portuguesa. O legislador constituinte português
quis aqui, porém, ser mais exigente e mais protector da
liberdade do que aquilo a que o obrigava a CEDH, a que
Portugal veio a aderir em 1978.

Os instrumentos internacionais de protecção dos


direitos humanos reflectem um consenso internacional quanto
a um nível adequado de protecção dos direitos, mas, de modo
nenhum, impedem os Estados de irem mais longe na
protecção desses mesmos direitos. Veja-se, neste sentido, a
norma contida no artigo 53º da CEDH.

Assim, sem querermos pronunciar-nos, nesta sede,


sobre a questão mais vasta – e que divide a doutrina - da
possibilidade de, por um princípio de interpretação conforme
aos instrumentos de direito internacional se poder chegar a
um resultado interpretativo que restringe o âmbito de
protecção dos direitos fundamentais, tal como estão
constitucionalmente consagrados, parece-nos que, no que diz
respeito a este direito em concreto, os contornos definidos
pelo legislador constituinte para a restrição do direito à
liberdade não deverão ser modificados em sentido restritivo
por força do apelo à CEDH.

A isso se opõe um argumento histórico – o


legislador constituinte conhecia a CEDH e recusou aquela e
outras excepções nela previstas ao direito de liberdade – e um
argumento teleológico – os instrumentos internacionais
reflectem os consensos possíveis a nível internacional quanto
ao grau de protecção dos direitos fundamentais, sendo
desejável que os Estados, internamente, conformem os
direitos fundamentais em termos que se situem para além e
nunca aquém daquele grau (ver, neste sentido, artigo 53º da
CEDH).

Em conclusão, um acto legislativo que admita o


internamento compulsivo de portadores de doenças infecto-
contagiosas padece de inconstitucionalidade material,
porque ultrapassa os limites da autorização constitucional
dada ao legislador para restringir o direito à liberdade.

2 – Para responder a esta questão, precisávamos de


saber se a decisão de sujeitar Tomás a esta medida de
detenção foi praticada por uma autoridade administrativa
(integrada na Administração hospitalar) ou se foi decretada
por autoridade judicial. Nada nos é dito a este propósito no
enunciado, pelo que partiremos do princípio de que não
houve intervenção da autoridade judicial.

Tomás poderia lançar mão de um conjunto amplo


de mecanismos, previstos no ordenamento jurídico português,
de defesa dos direitos fundamentais. Entre estes, contam-se
meios não jurisdicionais e meios jurisdicionais.

Começando pelos meios não jurisdicionais, Tomás


poderia apresentar uma queixa ao Provedor de Justiça, tal
como se encontra previsto no artigo 23º da CRP, pedindo-lhe
que interviesse junto dos poderes públicos que determinaram
a sua detenção, recomendando-lhes a adopção de uma
conduta que não agredisse os seus direitos fundamentais. E,
tendo em conta as competências específicas do Provedor de
Justiça, em sede de fiscalização da inconstitucionalidade,
podia chamar a atenção para as inconstitucionalidades de que
padece aquele decreto-lei e que foram acima expostas, tendo
em vista a possibilidade que assiste ao Provedor de requerer
junto do Tribunal Constitucional a declaração da
inconstitucionalidade com força obrigatória geral de normas
(artigo 280º e 281º da CRP).

Tomás poderia ainda fazer uso dos meios de


impugnação administrativa que o Código de Procedimento
Administrativo, nos artigos 158º e seguintes, reclamando para
o autor do acto que ordenou o seu internamento ou
recorrendo hierarquicamente do mesmo.
O direito de petição a órgãos de soberania,
nomeadamente à Assembleia da República, previsto no artigo
52º da CRP poderia também ser exercido por Tomás.

Nenhum destes meios garantia, no entanto, a


Tomás a possibilidade de, num curto espaço de tempo, ver
emitido um acto de conteúdo positivo que fizesse cessar a sua
situação de detenção. Para tal, impõe-se o recurso à via
judicial. E aí Tomás dispõe de vários meios de que pode
lançar mão para fazer valer o seu direito à liberdade.

Desde logo, a Constituição prevê, no artigo 31º a


possibilidade de face a situações de abuso de poder, de que
resulte a detenção ilegal, se recorrer à providência de habeas
corpus. É um meio específico de defesa do direito à
liberdade, decidido em prazo curto (oito dias).

Além disso, o Código de Processo dos Tribunais


Administrativos (CPTA) prevê, no seu artigo 109º, um
processo urgente, a intimação para protecção de direitos,
liberdades e garantias que “pode ser requerida quando a
célere emissão de uma decisão de mérito se revele
indispensável para assegurar o exercício em tempo útil, de
um direito, liberdade ou garantia”.

É certo que esta intimação tem como pressuposto a


impossibilidade ou a insuficiência da tutela cautelar para
assegurar o exercício deste direito. Salvo melhor opinião, e
sem querer aqui tomar posição quanto às divergências
doutrinais quanto à validade e à interpretação deste
pressuposto, parece-nos que na situação em causa, tal
pressuposto se pode admitir verificado, devendo aceitar-se o
recurso à figura prevista no artigo 109º CPTA.

Em qualquer disputa judicial, Tomás deveria


defender a inconstitucionalidade da norma ao abrigo da qual
o internamento foi decretado e suscitar, consequentemente, o
incidente da inconstitucionalidade, pedindo ao tribunal que
não aplicasse as normas daquele decreto-lei por infringirem o
disposto na Constituição (artigo 204º CRP).

Tal conduta processual abriria a Tomás a


possibilidade de aceder, em última instância, ao Tribunal
Constitucional, apresentando recurso de decisões
eventualmente desfavoráveis que viessem a aplicar o decreto-
lei, não obstante a sua inconstitucionalidade ter sido
suscitada, em termos oportunos e adequados, durante o
processo (artigo 280º/1/b)).

3 – Quanto aos meios internacionais de que Tomás


poderia valer-se para defender o seu direito à liberdade, caso,
internamente, não conseguisse fazê-lo, há,
fundamentalmente, dois organismos internacionais diante dos
quais Tomás poderia apresentar queixa: o Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem (TEDH), que vigia o cumprimento
das normas contidas na CEDH e nos seus Protocolos
Adicionais, e o Comité dos Direitos do Homem (CDH), que,
nos termos do Protocolo Facultativo referente ao Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos (PF ao PIDCP), a
que Portugal de vinculou, apreciar comunicações de
particulares, nas quais estes aleguem violações de direitos
consagrados no Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos (PIDCP).

O TEDH teria, porventura, face à redacção do


artigo 5º/1/e) da CEDH, pouca legitimidade para intervir a
favor do particular numa situação desta natureza.

A CEDH permite expressamente a detenção de tais


pessoas. Ora, não tendo o Estado português assumido um
compromisso internacional de respeito pelo direito à
liberdade naquelas circunstâncias, dificilmente poderá ser
sancionada a conduta das autoridades portuguesas nesta sede.

Já o PIDCP prevê o direito à liberdade em termos


mais gerais, no respectivo artigo 9º.

Diante do Comité dos Direitos do Homem, poderia


Tomás argumentar que a sua detenção foi ilegal, fundada em
acto legislativo inconstitucional, e como tal se deve entender
a sua detenção como contrária àquele artigo 9º do PIDCP.
Em qualquer caso, para recorrer a esta instância
internacional de protecção de direitos humanos, teria de
provar que, além de ser vítima de uma violação do artigo 9º
do PIDCP, esgotou todos os recursos internos disponíveis
(nos termos do artigo 2º e 5º/2/b) do PF ao PIDCP) e que a
mesma questão não está a ser examinada por outra instância
internacional (artigo 5º/1/a) do PF ao PIDCP).

Caso prático 2: M.

M., uma criança de 13 anos, sofreu várias


lesões em consequência de uma queda de bicicleta. Na
sequência deste acidente, foi transportado por seus pais
para o Hospital. Nessa altura, foi-lhes comunicada a
necessidade imperiosa de proceder a uma transfusão de 6
milímetros de plaquetas, para fazer face a uma situação
de alto risco hemorrágico. Os pais recusaram o referido
tratamento invocando fundamentos religiosos. No
entanto, mostraram todo o interesse e total
disponibilidade para uma solução que não implicasse a
transfusão sanguínea. Informados com a inexistência de
alternativas, mostraram-se inconformados e solicitaram a
alta do menor para procurar noutras instituições
respostas compatíveis com o seu credo. Cientes do risco
de vida que o menor corria, os profissionais do Hospital
não concederam a alta, optando por recorrer aos
tribunais como forma de obter a autorização necessária
para proceder à transfusão.

A decisão judicial, favorável, foi acatada pelos


pais da criança, que nada fizeram para impedir o
tratamento prescrito. Porém o menor, sem qualquer
interferência de seus pais, recusou o tratamento
manifestando terror perante essa solução. Perante esta
reacção, os médicos consideraram contraproducente
proceder ao tratamento. Face a esta situação, os pais
pediram, mais uma vez, para levar a criança a outros
centros hospitalares na procura de tratamento
alternativo. Assim procederam.

O tempo passou e, sem a necessária transfusão,


M., em casa, entrou em coma profundo. O Tribunal
decidiu então consentir a entrada no domicílio do menor
para que este fosse assistido, autorizando a realização de
todos os tratamentos considerados necessários.

M., já com sinais clínicos de morte cerebral por


hemorragia, foi novamente transportado para o Hospital,
onde foi finalmente transfundido. Não conseguiu resistir e
veio a falecer no mesmo dia.

Poderão os pais de M. vir a ser


responsabilizados criminalmente pela sua morte?

(Adaptado, com alterações, de

Rita Marques e Patrícia Gonçalves,

“A recusa de transfusão de sangue:

da prática à jurisprudência”,

em Sub Judice, n.º 38, 2007.

Aprecie o problema que este caso suscita do


ponto de vista do que estudou em matéria de direitos
fundamentais da pessoa humana.

Proposta de solução

Estamos perante um verdadeiro dilema


constitucional, no sentido em que qualquer solução para este
caso implica uma escolha entre dois bens constitucionais
distintos protegidos por direitos fundamentais – direito à vida
e liberdade religiosa -; dessa escolha resultará
inevitavelmente uma perda fundamental de um daqueles
bens.

Coloca-nos, pois, perante um caso muito difícil.

Temos aqui, de um lado, o direito à vida da


criança, que ele, a sua família e os profissionais de saúde
estão interessados em proteger, e, do outro lado, a liberdade
religiosa de seus pais, que lhes impõe a busca de alternativas
terapêuticas à transfusão de sangue e a recusa deste
tratamento, e a própria liberdade religiosa de M., que, tendo
13 anos, sente que a transfusão violenta a sua consciência.

O direito à vida é um valor primeiro no conjunto


dos direitos fundamentais. A liberdade de consciência,
religião e de culto também é uma liberdade essencial à
possibilidade de realização plena do ser humano.

Temos, pois, de olhar para este caso sem dispor de


uma indicação de preferência abstracta entre bens
constitucionais, dada a essencialidade de ambos os valores
em conflito.

As ferramentas, a que habitualmente recorremos,


para resolver conflitos constitucionais – a ponderação entre
bens e conflitos, que aspira a encontrar uma solução de
concordância prática entre os bens conflituantes – não nos
permitem superar a paralisia que um conflito deste género
inflige ao aplicador do direito.

Como se pode resolver, então, a questão de saber


se o comportamento dos pais de M. é passível de censura
penal, por terem colocado em risco a vida de M., ao tomarem
uma decisão que sabiam, à partida, que podia ter como
consequência a morte do seu filho?

A solução passará por determinar, atendendo às


circunstâncias com que o caso se apresenta, qual o bem que
deverá em concreto prevalecer: a liberdade religiosa, mesmo
quando o seu exercício possa fazer perigar a vida de outrem,
ou o direito à vida, mesmo implicando a sua defesa o recurso
a terapias que podem violentar a consciência de quem educa
e representa legalmente a criança.

É importante clarificar que este conflito, assim


apresentado, só existe a partir do momento em que se prove a
impossibilidade de recorrer, em tempo útil, a terapias
igualmente eficazes que não atentem contra as opções
religiosas. Essa solução óptima – de conseguir salvar a vida
sem desrespeitar as convicções religiosas dos pais -, se fosse
sempre possível, transformaria estas situações num conflito
entre bens fundamentais cuja solução não implicava um
sacrifício absoluto de um dos bens em conflito.

Neste caso, porém, as alternativas ou não eram


possíveis ou o recurso a estas implicava uma espera, que era,
em si mesma, um risco intolerável para a vida de M..

Outra questão pertinente poderia ser aqui a da


relevância da liberdade religiosa do menor, que o levou a
manifestar recusa do tratamento. Circunscrevendo-se, no
entanto, a questão colocada ao juízo do comportamento dos
pais, este problema quanto à capacidade de o menor não
consentir, por razões religiosas, um tratamento torna-se
irrelevante.

Para poder concluir se a actuação dos pais


constituiu exercício legítimo da sua liberdade religiosa e do
seu direito de educar os seus filhos de acordo com as suas
convicções, protegida constitucionalmente, ou se actuaram
em desrespeito do valor da vida, temos de optar por uma das
seguintes soluções:

OU: a liberdade religiosa dos pais deve prevalecer


quando estão em causa decisões das quais pode depender a
vida dos filhos;

OU: o direito à vida dos menores deve prevalecer


sobre quaisquer opções religiosas dos pais quando estas
possam conflituar com aquelas.

Pensamos que, nestes casos, o direito à vida deve


prevalecer. Os pais não podem pôr em perigo a vida dos
filhos por força de opções religiosas que livremente
abraçaram e nas quais decidiram educar os filhos. O respeito
pela vida e integridade física dos filhos sobrepõe-se à
liberdade religiosa dos pais.

A liberdade religiosa não pode implicar o sacrifício


radical e definitivo da vida de outrem.
Caso prático 3: A liberdade de informação e o
direito ao bom-nome

A esteve preso durante o período em que


vigorou um regime autoritário em Portugal, por motivos
políticos. Escreveu as suas Memórias, nas quais relata ter
sido bem tratado no período em que esteve preso e afirma
que não acredita ter existido tortura aos presos políticos
naquele tempo. Nunca viu ninguém ser torturado ou
queixar-se de o ter sido, “muito embora, muitos
camaradas seus de cárcere, depois de terem sido
libertados, tenham afirmado ter sido vítimas de bárbaros
maus-tratos por parte dos guardas prisionais, com o
intuito de serem considerados heróis perante as suas
famílias, os seus amigos e a opinião pública”. No tempo
em que estiveram presos, não se queixaram de nada e até
pediam favores aos guardas, que, normalmente, “eram
simpáticos e acediam”.

Entre as pessoas que denuncia por tal


comportamento estão B, C e D, figuras públicas
importantes da cena política nacional.

Quando a obra estava prestes a ser publicada, B


decide requerer uma providência cautelar, de modo a
impedir a publicação da obra, que lesa o seu bom-nome,
contém uma visão da História e do tratamento que era
conferido aos presos políticos comprovadamente errada,
porque há suficientes documentos históricos a sustentar
que muitos dos interrogatórios aos presos políticos era
acompanhados de formas diversas de tortura como modo
de forçar denúncias. Nunca deu o seu consentimento para
a publicação da obra contendo o seu nome. Além disso,
alega B que uma tal obra, de elogio ao regime ditatorial,
atenta contra os valores fundamentais da Constituição
Portuguesa de 1976, que, nos termos do seu Preâmbulo,
tem como razão de ser a libertação de “Portugal da
ditadura, da opressão” e proíbe as “organizações (...) que
perfilhem ideologia fascista” (artigo 46º). Do mesmo
modo, a ordem constitucional vigente não poderá
consentir obras que divulguem essa mesma ideologia, a
pretexto de umas “falsas memórias”.

Na perspectiva do autor e da editora


responsável pela publicação, o Autor é livre de exprimir a
sua leitura quanto ao tratamento dado aos presos
políticos no período da Ditadura e a publicação daquelas
notícias com identificação dos nomes dos presos a que era
referidas era justificada, porque existe um interesse do
público naquelas figuras e no conhecimento de como era
vida dos presos políticos.

1 - Aprecie este caso, tendo em conta o que


estudou em matéria de direitos fundamentais, e ensaie
uma solução para este conflito entre direitos
fundamentais.

2 – Poderia a parte vencida num processo


judicial em que viesse a ser discutida esta questão
recorrer para o Tribunal Constitucional para defesa dos
seus direitos fundamentais?

3 – Poderia a parte vencida, depois de


transitada em julgado a decisão sobre este caso,
apresentar queixa no Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem?

Proposta de solução

O caso presente é uma situação típica de colisão


entre dois direitos fundamentais, de que são titulares duas
pessoas diferentes – no caso, o conflito opõe A e a sua
Editora (uma pessoa colectiva), que invocam a liberdade de
expressão, e B, que invoca o seu direito ao bom nome e
reputação.

O direito à liberdade de expressão é um direito


fundamental, é uma liberdade que está consagrada em termos
muito amplos, quer na Constituição Portuguesa, no artigo
37º, quer no artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos
do Homem, quer em instrumentos das Nações Unidas, como
o artigo 19º da Declaração Universal dos Direitos do Homem
e no artigo 19º do Pacto Internacional dos Direitos Civis ou
Políticos.
Esta liberdade está prevista em termos amplos em
todos estes instrumentos, no entanto, ela não é absoluta nem
ilimitada. Em quase todas as ordens jurídicas está prevista a
sanção – normalmente, criminal -para opiniões que ponham
em causa, como acontece neste caso, o bom-nome e a
reputação pública de outrem.

Numa sociedade livre, é essencial a circulação de


informação, pelo que os limites à liberdade de expressão
devem ser excepcionais.

O direito ao bom-nome e à reputação são também


direitos pessoais fundamentais e, por isso, compreende-se
que B se sinta atingido na sua honra se vê negados factos que
são essenciais à sua reputação pública.

Uma vez que o que aqui está em causa não é a


formação de um juízo de censura penal quanto ao
comportamento de A (que podia acontecer, A podia ser
acusado de um crime de difamação ou outro), nem a
apreciação da existência de um eventual dever de
indemnização de A a B, mas apenas uma decisão quanto a
permitir ou não a divulgação das Memórias de A, a análise
que aqui faremos gira à volta de quatro pontos essenciais: o
interesse público da informação, a veracidade da mesma, a
condição das pessoas envolvidas e a ausência de
consentimento de B.

Quanto ao primeiro aspecto, o interesse público


da informação, parece-nos que este é indiscutível. O
tratamento dado aos presos políticos no período da ditadura é
um aspecto importante da História Portuguesa
contemporânea, para o qual os testemunhos de quem sofreu
tais privações de liberdade são muito importantes. Não se nos
afigura, pois, discutível o interesse público na divulgação de
tais factos e opiniões.

Quanto ao segundo aspecto, a veracidade dos


factos contidos na dita publicação, não nos parece que os
tribunais devam apreciar tais factos no sentido de decidir se é
ou não admissível a publicação de uma obra. Diferente seria
obviamente o caso se estivesse em causa um qualquer juízo
quanto à censurabilidade do comportamento de A, mas aqui
está apenas em causa saber se tais factos e opiniões se devem
tornar do domínio público ou se devem ser impedida a
respectiva publicação. Ora, pensamos que não compete aos
tribunais veicularem e defenderem uma determinada visão da
história, impedindo a discussão sobre a mesma. Admitir tal
controlo judicial seria, a nosso ver, uma forma de censura
expressamente proibida pelo artigo 37º, número 2, da
Constituição Portuguesa e por outras normas de Direito
Internacional.

Quanto ao penúltimo aspecto, a condição das


pessoas envolvidas: B é uma figura pública e, como tal, está
mais exposta à divulgação de informações sobre a sua pessoa
do que um comum cidadão. Os factos divulgados dizem
respeito a aspectos da sua vida anteriores ao momento em
que se tornou uma figura pública, mas que se relacionam com
o seu passado político e que fazem, por isso, parte de
domínios da sua vida que podem ser livremente escrutinados.
Obviamente que tal não pode significar uma eliminação
completa do seu direito a defender a sua reputação, mas, para
esse fim, B dispõe de igual liberdade de expressão como A e
a Constituição expressamente lhe reconhece o direito de
resposta e de rectificação, “em condições de igualdade e
eficácia” (artigo 37º, número 4).

Por fim, a questão do consentimento: seria


necessário A ou a sua Editora obter o consentimento de B
para a publicação? Parece-nos que não existe uma tal
exigência jurídica (muito embora possa existir um dever de
cortesia nesse sentido). A liberdade de expressão autoriza a
divulgação de informações sem o consentimento dos visados.
Se só fosse autorizada a divulgação de factos relacionados
com figuras públicas mediante o consentimento destas, dava-
se-lhes um poder de manipular os meios de comunicação no
sentido de construírem sobre si uma imagem e impunha-se,
na prática, uma limitação à liberdade de expressão,
intolerável numa sociedade livre e democrática

2 – Em Portugal, não existe uma acção para


defesa dos direitos fundamentais junto do Tribunal
Constitucional. Os cidadãos podem aceder ao Tribunal
Constitucional, mas apenas quando pretendam recorrer de
uma decisão tomada por outra instância judicial, que tenha
apreciado a constitucionalidade de uma qualquer norma e
tenha decidido, em função dessa apreciação, aplicá-la (se a
considerou não inconstitucional) ou recusar a respectiva
aplicação (se a considerou inconstitucional). Ou seja, as
funções do Tribunal Constitucional, tal como estão previstas
no artigo 280º, número 1, resumem-se ao controlo da
constitucionalidade de normas.

É sabido que o Tribunal Constitucional Português


tem alargado muito o seu âmbito de competência, em matéria
de recurso de constitucionalidade, ao admitir que pode
apreciar a constitucionalidade de normas, na interpretação
que delas foi feita pela instância decisória, em que aqui o
Tribunal Constitucional não aprecia apenas a norma
abstractamente considerada mas a norma+interpretação dada
pela instância judicial.

Essencial é, no entanto, que seja possível recortar


uma norma e a sua interpretação que possam ser objecto de
incidente de inconstitucionalidade junto do Tribunal que
julgue a causa e, depois, objecto do recurso para o Tribunal
Constitucional.

Ora, neste caso, não se vislumbra qual a norma


que pudesse aqui ser considerada para este efeito.

Já seria diferente a solução do caso se existisse


uma norma no ordenamento jurídico português que proibisse
a negação da tortura aos presos políticos no período da
ditadura (hipótese que, apesar de poder parecer absurda, não
deve ser olhada com demasiado espanto, atenta a existência
de normas em Estados livres e democráticos que
criminalizam a negação do Holocausto – caso da Alemanha -
ou a negação do genocídio arménio – caso da França).

Assim sendo, parece-nos que, neste caso, não


caberia recurso para o Tribunal Constitucional da decisão que
viesse a ser proferida pelos tribunais comuns, mesmo depois
de esgotadas todas as vias de recurso ordinária legalmente
previstas.

Esta era uma das situações em que se evidencia a


diferença que a eventual introdução do recurso de amparo
pode significar, pois tratando-se de matéria nuclear de
direitos fundamentais, aqui nem os caminhos ínvios do
recurso de decisões interpretativas parecem poder levar-nos
ao Tribunal Constitucional.

3 – Quanto à possibilidade de recurso para o


Tribunal Europeu, temos de distinguir, consoante a parte
vencida fosse A ou B.

Se A perdesse nas instâncias portuguesas a sua


tentativa de defesa da liberdade de expressão e de
transmissão de ideias podia invocar a existência por parte do
Estado Português de uma violação do artigo 10º da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que garante
tais liberdades e ao qual o Estado Português se encontra
vinculado.

Se B perdesse nas instâncias portuguesas, poderia,


eventualmente, invocar perante o Tribunal de Estrasburgo
uma violação do seu direito à privacidade, previsto no artigo
8º (uma vez que o direito ao bom-nome não está previsto. O
Tribunal Europeu tem aceitado que o conceito de vida
privada não se limita a uma esfera íntima de vida pessoal,
mas pode ter um âmbito mais alargado. Ora, A divulga sem o
consentimento de B factos que se relacionam com o seu
pretenso comportamento durante o período em que esteve
detido, quando não era figura pública e que, por isso, são
factos que relevam da sua vida privada e relativamente aos
quais o Estado não protegeu os direitos de B ao não impedir a
respectiva publicação.

Admitindo que ambos estavam em condições de


provar que sofreram violações de direitos protegidos pela
Convenção por um Estado-parte na mesma, era necessário
provarem que cumprem os restantes requisitos de
admissibilidade da queixa.

Era necessário provar que exauriram as vias de


recurso internas ao seu dispor e que lançaram mão de todos
os meios disponíveis, acessíveis e eficazes para obterem
internamente a satisfação dos direitos que julgam ter sido
violados.

Era necessário que a queixa fosse apresentada


dentro do prazo de seis meses contados da notificação da
decisão interna definitiva.

Era necessário, nos termos do Protocolo número


14, provar que sofreram prejuízo significativo com a violação
dos direitos em causa.

Cumpridos estes requisitos, podia, efectivamente,


a parte vencida, qualquer que ela fosse, apresentar queixa no
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

Caso prático nº 4: direito ao subsídio de


desemprego por funcionários públicos

Imagine que o Provedor de Justiça veio, com


base no número 1 do artigo 283º da Constituição,
requerer ao Tribunal Constitucional que apreciasse e
verificasse a inconstitucionalidade resultante da falta das
medidas legislativas necessárias para conferir plena
exequibilidade, no que aos trabalhadores da função
pública diz respeito, à norma contida na alínea e) do nº1
do artigo 59º da lei fundamental.

A concretização legislativa ordinária de tal


direito encontra-se plasmada no Decreto-Lei n° 79-A/89,
de 13 de Março, que institui o designado «subsídio de
desemprego» e do qual beneficiam apenas os
trabalhadores vinculados pelo regime jurídico privado
decorrente do contrato individual de trabalho, motivo
pelo qual o âmbito de aplicação deste diploma, no qual se
esgota a disciplina da assistência material aos
trabalhadores quando se encontrem involuntariamente
em situação de desemprego, não abrange os funcionários
e agentes da Administração Pública.

O Tribunal Constitucional veio, na sequência


desse pedido, a verificar a inconstitucionalidade.

1 – Quais os fundamentos para uma tal decisão


do Tribunal Constitucional?

Proposta de solução

Nesta situação está em causa o eventual


incumprimento de um direito económico, social e cultural,
previsto na alínea e), do n.º 1 do art. 59.º CRP,
concretamente, o direito dos trabalhadores a assistência
material, quando involuntariamente se encontrem em
situação de desemprego.

A Constituição distingue direitos, liberdades e


garantias de direitos económicos, sociais e culturais (DESC)
e essa distinção não é meramente teórica, na medida em que
tem consequências no regime aplicável aos diferentes
direitos. Os DESC não são, em princípio, directamente
aplicáveis. Ainda assim, são juridicamente vinculantes,
manifestando a sua força jurídica também no facto de
podermos retirar das normas que consagram direitos sociais a
imposição de medidas legislativas concretas, podendo o seu
incumprimento pelo legislador da desencadear uma
inconstitucionalidade por omissão.

Essa omissão inconstitucional apenas tem lugar, no


entanto, quando a Constituição estabelece uma obrigação
concreta e precisa de legislar.

Gomes Canotilho (Constituição Dirigente e


Vinculação do Legislador, Coimbra Editora, 1982, 332 e
segs. e 481 e segs.) diz que "omissão legislativa, jurídico-
constitucionalmente relevante, existe quando o legislador
não cumpre ou cumpre incompletamente o dever
constitucional de emanar normas destinadas a actuar as
imposições constitucionais permanentes e concretas".

Assim, para que o Tribunal Constitucional possa


verificar a inconstitucionalidade por omissão, a obrigação
que decorre da norma constitucional para o legislador tem de
ser suficientemente precisa e concreta. Neste caso parece que
estamos perante uma concreta e específica imposição de
legislar, na medida em que a norma em causa impõe ao
Estado a obrigação de prestar assistência material aos
trabalhadores em caso de desemprego involuntário, o que
pressupõe que se crie uma prestação social para esse efeito.

Uma vez que o legislador apenas consagra essa


assistência material, através da atribuição de um subsídio de
desemprego apenas aos trabalhadores vinculados pelo regime
jurídico privado, há aqui não só uma situação que enfraquece
o direito fundamental constitucional, mas também uma
violação do princípio da igualdade, na medida em que não se
verifica um fundamento objectivo, razoável, que possa
justificar a diferenciação de tratamento. Assim sendo,
estamos perante uma omissão parcial, porque o legislador
conferiu exequibilidade à norma constitucional apenas
relativamente a alguns trabalhadores, criando, com este seu
comportamento, uma situação de diferenciação injustificada
no tratamento dos cidadãos.

(Ver, sobre a matéria, o Acórdão 474/02, do


Tribunal Constitucional)

Caso prático nº 5: direito ao reagrupamento


familiar

Slobodan é um cidadão sérvio residente regularmente


em Portugal há vários anos. Trabalha no sector da hotelaria e
conseguiu agora atingir um nível de vida suficiente que lhe
permite trazer a Mulher e a filha menor de ambos para
Portugal. Na lei 23/2007, de 4 de Julho (com a redacção que lhe
foi dada pela lei 29/2012, de 9 de Agosto, pode ler-se:

“O cidadão com autorização de residência válida tem


direito ao reagrupamento familiar com os membros da família que
se encontrem fora do território nacional, que com ele tenham
vivido noutro país, que dele dependam ou que com ele coabitem
(...)”

Slobodan apresentou pedido de reagrupamento


familiar e o seu pedido foi deferido. Contudo, estão a ser postas
dificuldades pelas autoridades consulares portuguesas à Mulher
e à filha na concessão do visto para poderem viajar para
Portugal. Slobodan está desesperado e procura um advogado que
o aconselha a propor nos tribunais administrativos um processo
urgente de intimação para protecção de direitos, liberdades e
garantias.

Com que fundamentos poderá Slobodan fazer uso da


intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias
neste caso concreto?

Proposta de solução

Para que possa fazer uso deste meio processual previsto no


CPTA, Slobodan tem de vencer três obstáculos fundamentais:

Primeiro, tem de provar que o seu caso é urgente e que a


sua pretensão não fica satisfeita com uma mera regulação provisória
conseguida pela via cautelar, mas que necessita de uma decisão de
mérito definitivo. Atendendo à situação concreta e aos interesse em
presença, concretamente, a necessidade de garantir a unidade
familiar através da deslocação dos membros do agregado familiar
para Portugal, facilmente se conclui ser justificado o recurso à figura.

Segundo, Slobodan tem de provar que o direito


que está a ser concretamente violado pela actuação das
autoridades consulares portuguesas é um direito fundamental.

O catálogo de direitos fundamentais constante da CRP tem


explícita a nota característica de abertura. Esta encontra-se no artigo
16º da Constituição, que consagra uma cláusula aberta dos direitos
fundamentais, nos termos da qual, os direitos fundamentais
reconhecidos na ordem jurídica portuguesa não são apenas aqueles
que constam do catálogo contido na Parte I da Constituição, mas são
também todos os direitos consagrados em normas de direito
internacional ou mesmo na lei a que deva reconhecer dignidade de
direitos fundamentais.

Assim, além dos direitos fundamentais “em sentido


formal” ou tipificados no catálogo, temos direitos fundamentais
extra-constitucionais, de fonte internacional ou legal.

A circunstância de o direito que Slobodan pretende ver


garantido estar previsto na lei não é, pois, por si, suficiente para
afastar a possibilidade de este ser considerado um direitos
fundamental. Para sustentar a posição segundo o qual o direito ao
reagrupamento familiar é um direito materialmente fundamental,
podemos socorrer-nos de um simples critério de analogia com os
direitos do catálogo – sendo evidente a analogia entre o direito ao
regrupamento familiar e o direito previsto e garantido pelo artigo 36º
da Constituição.

Terceiro, não bastava que Slobodan provasse a natureza


fundamental deste direito. Impunha-se ainda que provasse que o
direito tinha natureza de direito, liberdade e garantia, porque a
intimação está limitada à protecção destes direitos e não já a direitos
económicos, sociais e culturais, nos termos que depois veremos.

Dada a analogia evidente entre o direito ao


reagrupamento familiar, enquanto garante do direito à unidade da
vida familiar, e os direitos à protecção da família, previstos no artigo
36º da Constituição, parece-nos que deveria ser reconhecido ao
direito ao reagrupamento a qualidade de direito de natureza análoga a
direitos, liberdades e garantias.

Mesmo provando a natureza análoga a direitos, liberdades


e garantias deste direito ao reagrupamento familiar, discute-se se
devem ser considerados para efeitos de aplicação deste processo
urgente os direitos de natureza análoga a direitos, liberdades e
garantias ou se deve entender-se que esta providência é restrita aos
direitos, liberdades e garantias do catálogo constitucional. Em apoio
de uma interpretação restritiva, a norma constitucional contida no
artigo 20º/5 da Constituição - que esteve na base da imposição
legiferante que veio a motivar a introdução da figura da intimação no
CPTA – refere-se apenas a direitos, liberdades e garantias pessoais,
revelando um intenção de não tratar todos os direitos fundamentais
como merecendo tratamento judicial prioritário. A jurisprudência dos
tribunais administrativos tem, no entanto, admitido que direitos
fundamentais de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias
sejam protegidos por esta via da intimação para protecção de
direitos, liberdades e garantias.
Caso prático nº 6: liberdade religiosa

Imagine que, no ano lectivo 2014/2015, o Governo aprovou


um diploma através do qual passou a exigir que todas as escolas
secundárias públicas e privadas integrassem nos seus curricula
uma disciplina designada “Ética e liberdade religiosa”, cujo
programa inclui a religião no mundo, a história da religião em
Portugal e sistemas éticos variados (religiosos ou não). O
propósito da criação desta disciplina é inculcar nos estudantes a
abertura à diversidade e ao respeito pelos outros, promovendo o
reconhecimento dos outros. É também exigido que a disciplina
seja ensinada numa perspectiva neutra ou imparcial.

Uma escola secundária privada católica opôs-se a esta


exigência, pois apesar de estar de acordo com o objectivo de
expor os alunos a várias culturas religiosas e sistemas éticos,
entende que não se compadece com a sua natureza confessional
ensinar estas matérias de um ponto de vista neutral ou objectivo.
Fazê-lo contrariaria o seu estatuto de escola secundária privada
católica. Nessa medida, requereu ao Ministério que aprovasse
um programa alternativo que permitisse atingir os objectivos da
implementação da disciplina, leccionando-a de um modo não
neutral. O Ministério rejeitou o pedido, concluindo que o
enquadramento católico do conteúdo programático desvirtuava
os objectivos da disciplina e, em consequência disso, a escola
secundária decidiu recorrer judicialmente da decisão.
Imagine que é o advogado que vai representar a Escola.
Como tentaria justificar a sua pretensão?

(baseado no caso Loyola High Scholl vs Québec)

Proposta de solução

Estamos neste caso perante uma medida restritiva do Estado,


uma vez que se vem, pelo menos em alguma medida, limitar a
liberdade religiosa e a autonomia privada desta (e de outras)
escola(s) privada(s), bem como dos alunos e pais que optaram por
educar os filhos numa escola católica, obrigando-a(s) a leccionar a
disciplina em causa de um modo neutro.

Estando em causa uma restrição de direitos, liberdades e


garantias, temos de verificar se são respeitados os chamados “limites
dos limites” instituídos pela Constituição nos números 2 e 3 do art.
18.º. Assim, em primeiro lugar temos de aferir se a restrição foi feita
por acto legislativo, seja lei da Assembleia da República ou decreto-
lei do Governo, desde que devidamente autorizado pela Assembleia
da República (artigo 165º/1/b). Neste caso não decorre do enunciado
qual a forma adoptada pelo Governo para a implementação desta
medida, pelo que poderia colocar-se a questão de não estar a ser
respeitada esta exigência do art. 18.º, padecendo o acto de vícios de
competência e de forma.

Outra das exigências do art. 18.º prende-se com a necessidade


de previsão constitucional expressa da possibilidade de restrição do
direito, liberdade e garantia em causa. Ora o art. 41.º, que consagra a
liberdade religiosa, não prevê a possibilidade de restrição deste
direito. Ainda assim, uma vez que há inúmeras normas de direitos
liberdades e garantias que não consagram expressamente (nem
remetem para o legislador ordinário) a possibilidade da sua restrição
e existe a necessidade de harmonizar os diferentes direitos
fundamentais constitucionalmente previstos que inevitavelmente
entram em conflito, a doutrina tem proposto diferentes vias para
contornar este requisito da previsão constitucional expressa da
possibilidade de restrição, seja através da ideia de limites imanentes,
da existência de restrições implícitas, do apelo ao art. 29.º da DUDH,
ou do reconhecimento de uma reserva geral imanente de ponderação
nas normas de direitos fundamentais.

Também se poderia aqui invocar, a par com a liberdade


religiosa, o direito à autonomia privada.

Para que se possa justificar a actividade restritiva do Estado, o


art. 18.º exige ainda que haja um direito ou um interesse
constitucionalmente protegido que possa justificar a restrição. Neste
caso, o objectivo da introdução desta disciplina nos curricula das
escolas secundárias é o de inculcar nos estudantes a abertura à
diversidade e ao respeito pelos outros, promovendo o
reconhecimento dos outros, ou seja, assegurar a liberdade religiosa
desses mesmos estudantes, promovendo a educação para a tolerância
e o conhecimento acerca das diferentes religiões existentes,
potenciando uma escolha mais consciente.

Sendo este o interesse público que se visa promover, importa


avaliar se a medida adoptada pelo Governo respeita o princípio da
proporcionalidade nas suas três vertentes: adequação, necessidade e
proporcionalidade em sentido restrito.
No que diz respeita a adequação da medida, parece que se
poderá entender que esta exigência está preenchida, uma vez que esta
é apta, idónea para a prossecução da finalidade que se visa
prosseguir. O mesmo parece não se poder dizer quanto à necessidade
da medida. Uma medida será necessária quando não haja outra,
igualmente eficaz, capaz de atingir os mesmos objectivos. Neste
caso, bastaria a leccionação da disciplina, ainda que não
necessariamente numa perspectiva neutra, para assegurar a finalidade
pretendida. Tendo em conta que a escola privada e os seus alunos/ou
pais não devem estar vinculados, nos mesmos termos em que o
Estado está, a uma exigência de não confessionalidade ou
secularismo, parece bastar a introdução da disciplina nos curricula
das escolas, não sendo de exigir que os seus conteúdos sejam
leccionados de forma neutra. Trata-se de uma escola secundária
católica, pelo que a natureza e teleologia intrínsecas desta instituição
parecem justificar que lhe não lhe deva ser imposta a mesma
objectividade que se pode impor a uma instituição pública quando o
que está em causa é o ensino de uma disciplina que não se pode
desligar dessa vertente confessional. Poderia ainda assim distinguir-
se aqui eventualmente entre matérias da disciplina em que essa
neutralidade não seria de exigir e matérias onde poderia fazer mais
sentido essa exigência, como é o caso da parte respeitante a sistemas
éticos variados, apesar das dificuldades evidentes em traçar esta
fronteira.
Selecção jurisprudência

Tribunal Constitucional
Acórdão 6/84 – (direito à imagem face a
regulamento que obriga empregados de transportes colectivos
de passageiros a apresentarem-se barbeados e de uniforme ao
serviço)

Acórdão 148/94 – (direito ao ensino


tendencialmente gratuito e actualização do valor das
propinas)

Acórdão 355/97 – (base de dados com registos


oncológicos e reserva de lei)

Acórdão 72/2002 – (direito à aposentação e


cidadania)

Acórdão 255/02 – (princípio da igualdade;


estrangeiros; proibição de exercício de profissão de
segurança privada; videovigilância)

Acórdão 509/02 – (direito ao mínimo de


subsistência; regime do rendimento social de inserção e
exclusão deste benefício social dos cidadãos entre os 18 e os
25 anos)

Acórdão 486/03 – (princípio da igualdade;


diferenças significativas entre os prémios para os atletas
paraolímpicos e para os atletas olímpicos)
Acórdão 144/04 – (crime de lenocínio)

Acórdão 232/04 – (direito à unidade da família e


pena acessória de expulsão)

Acórdão 247/05 – (princípio da igualdade e


moldura penal aplicável aos actos homossexuais com
adolescentes)

Acórdão 05/06 – (intimação para proteção de


direitos, liberdades e garantias)

Acórdão 155/07 – (recolha de vestígios biológicos)

Acórdão 101/09 – (princípio da dignidade da


pessoa humana e procriação medicamente assistida)

Acórdão 359/09 – (princípio da igualdade e


casamento entre pessoas do mesmo sexo)

Acórdão 75/2010 – (direito à vida e interrupção


voluntária da gravidez)

Acórdão 396/11 – (reduções remuneratórias dos


trabalhadores do sector público)

Acórdão 353/2012 – (corte nos subsídios dos


funcionários públicos)

Acórdão 187/13 – (LOE 2013)

Acórdão 862/13 – (convergência das pensões)

Acórdão 176/14 – (referendo sobre adopção e


coadopção)

Acórdão 413/14 – (LOE 2014)

Acórdão 545/14 – (dia de descanso semanal e


liberdade religiosa)

Acórdão 141/15 – (período mínimo de residência


em Portugal para obtenção de RSI)

Supremo Tribunal Administrativo


Acórdão do STA de 27 de Julho de 2011, Processo
0442/11 – Intimação para protecção de direitos, liberdades e
garantias.

Acórdão do STA, de 8 de Julho de 2010, Processo


1106/09 - Reserva da vida privada e dever profissional de
decoro e dignidade indispensáveis ao exercício de funções.

Acórdão do STA, de 30 de Outubro de 2008, no


Processo 0878/08 - Transcrição de escutas telefónicas
proibidas em processo penal para processo disciplinar.

Tribunal Central Administrativo do Sul


Acórdão do TCASul, de 10 de Fevereiro de 2011,
no Processo 7118/11 – videovigilância

Acórdão do TCASul, de 10 de Fevereiro de 2011,


no Processo 6347/10 (com anotação de Miguel Nogueira de
Brito e Ana Robin de Andrade publicada nos Cadernos de
Justiça Administrativa, nº 108).

Acórdãos do TCASul, de 17 de Dezembro de 2009,


no Processo 5523, e de 30 de Abril de 2009, no Processo
4973/09 - Investigação de “casamentos brancos” e reserva da
intimidade da vida privada

Acórdão do TCASul, de 6 de Junho de 2007, no


Processo 02539/07 – Intimação para protecção de direitos
análogos a direitos, liberdades e garantias (com anotação de
Jorge Reis Novais publicada em Cadernos de Justiça
Administrativa, nº 73).

Tribunais europeus
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

Caso Soering contra o Reino Unido, de 07 de Julho de


1989 (pena de morte).
Caso Kokkinakis contra a Grécia, de 25 de Maio de 1993
(proselitismo).
Caso Dahlab contra a Suíça, de 15 de Fevereiro de 2001
(uso de véu islâmico).
Caso Vo contra a França, de 8 de Julho de 2004 (Início da
vida humana).
Caso Leyla Sahin contra a Turquia, de 10 de Novembro
de 2005 (uso de véu islâmico).
Caso Evans contra Reino Unido, de 10 de Abril de 2007
(direito à procriação).
Caso Dickson contra o Reino Unido, de 4 de Dezembro
de 2007 (A recusa de inseminação artificial a recluso).
Caso N. contra o Reino Unido TEDH 27 de Maio de
2008 – (ameaça de expulsão de portador de HIV).
Caso I. contra a Finlândia, de 17 de Julho de 2008 –
(confidencialidade de dados de saúde).
Caso Bogumil contra Portugal, de 7 de Outubro de 2008
– (consentimento para a prática de actos médicos).
Caso Women on Waves contra Portugal, de 03 de
Fevereiro de 2009 (liberdade de expressão).
Caso Assunção Chaves contra Portugal, de 31 de Janeiro
de 2011 (Direito de acesso a um tribunal, vida privada e
familiar).
Caso Lautsi contra Itália, de 18 de Março de 2011
(Crucifixos nas salas de aula).
Caso von Hannover contra Alemanha, de 07 de Fevereiro
de 2012 (reserva da vida privada vs. Liberdade de imprensa),
Caso Hirsi Jamaa e outros contra a Itália, de 23 de
Fevereiro de 2012 (direito de asilo).
Caso N.B. contra a Eslováquia, de 12 de Setembro de
2012 (esterilização forçada).
Caso X. e outros contra a Áustria, de 19 de Fevereiro de
2013 (Adopção por casais homossexuais).
Caso Gross contra a Suíça, de 14 de Maio de 2013
(eutanásia).
Caso S.A.S. contra a França, de 01 de Julho de 2014 –
(uso de burca e niqab).
Caso McDonald contra o Reino Unido, de 20 de Maio de
2014 (apoio domiciliário).

Tribunal de Justiça da União Europeia

Acórdão de 14 de Outubro de 2004, no processo C- 36/02 (Omega)

Acórdão de 1 de Março de 2011, no processo C-236/09 (Test-Achats)

Acórdão de 26 de Fevereiro de 2013 no processo C-399/11 (Melloni).

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