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Paulino de Jesus Francisco Cardoso

Karla Leandro Rascke


(Orgs.)

Formação de Professores:
produção e difusão de conteúdos sobre
história e cultura afro-brasileira e africana

1a Edição
Florianópolis

2014
Prof. Dr. Antônio Heronaldo de Souza
Reitor
Prof. Dr. Marcus Tomasi
Vice-Reitor
Prof. Dr. Mayco Morais Nunes
Pró-Reitor de Extensão, Cultura e Comunidade
Prof. Dr. Emerson César de Campos
Diretor Geral do Centro de Ciência Humanas e da Educação
Prof. Dr. Fábio Napoleão
Diretor de Extensão do Centro de Ciências Humanas e da Educação
Prof. Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso
Coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros – NEAB/UDESC
Revisão
Cristiane Mare da Silva
Secretaria e Colaboração Técnica
Karla Leandro Rascke
Doutoranda em História Social pela PUC-SP
Colaboração Técnica
Ana Júlia Pacheco; Carol Lima de Carvalho; Carolina Corbellini Rovaris
Graduandas em História pela UDESC
Projeto gráfico e diagramação
Gustavo Coelho da Costa

FICHA CATALOGRÁFICA
Catalogação na publicação – CIP – Brasil
Arquivo Público do Estado de Santa Catarina
F724 Formação de professores: promoção e difusão de conteúdos sobre história e
cultura afro-brasileira e africana / Paulino de Jesus Francisco Cardoso,
Karla Leandro Rascke (orgs.). – Florianópolis : DIOESC, 2014
248 p. : il. ; 23 cm

Inclui bibliografia.

1. Formação de Professores. 2.História do Negro – Brasil. 3. Relações


Étnico-Raciais – Escola – Santa Catarina. 4. Cultura Afro-Brasileira.
5.Cultura Africana – Brasil. I. Paulino de Jesus Francisco Cardoso. II. Karla
Leandro Rascke. III. Título.

CDD 371.12098164

Ficha catalográfica elaborada por Vanessa Pereira CRB - 14/1446


Diretoria da Imprensa Oficial e Editora de Santa Catarina
Rua Duque de Caxias, 261 - Saco dos Limões
CEP 88045-250 - Florianópolis - SC
SUMÁRIO

Apresentação 7

MÓDULO 1 - Introdução 11
Capítulo 1 - Lei Federal 10.639/03, discussão de con-
ceitos: multiculturalismo, diversidade, ações afirmati-
vas, racismo, preconceito, afrodescendente, negro,
entre outros  12
Paulino de Jesus Francisco Cardoso
Karla Leandro Rascke
Capítulo 2 - O Movimento Negro brasileiro e as Dire-
trizes da Educação Nacional: a Lei Federal 10.639/03
é L.D.B! 29
Jeruse Maria Romão

MÓDULO 2 - Relações Étnico-Raciais na Sociedade 42


Capítulo 1 - Relações raciais na escola: currículo e
responsabilidades, livro didático, mídias e escola 43
Maristela dos Santos Simão
Angelo Renato Biléssimo
Capítulo 2 - Histórico do Movimento Negro no
Brasil, luta e resistência da militância às Políticas de
Ação Afirmativas, a Declaração de Durban até a Lei
10.639/03: a dívida social do Brasil com a população
negra após o 13 de maio 60
Willian Robson Soares Lucindo
Capítulo 3 - Multiculturalismo e Políticas de Ação
Afirmativa: Luta pela Promoção da Igualdade Racial
no Brasil 76
Paulino de Jesus Francisco Cardoso

MÓDULO 3 - Introdução a História da África 94


Capítulo 1 - África, um continente - geografia, aspec-
tos políticos e sociais, diversidade, multiculturalismo
e religiosidade 95
Maristela dos Santos Simão
Angelo Renato Biléssimo
Capítulo 2 - A História de Antigas Sociedades e Rei-
nos Africanos 122
Maristela Simão
Angelo Renato Biléssimo
Capítulo 3 - Colonização europeia, escravidão e tráfico 140
Amailton Magno Azevedo
Willian Robson Soares Lucindo
Capítulo 4 - Descolonização e África Contemporânea 154
Paulino de Jesus Francisco Cardoso
Tamelusa Ceccato do Amaral

MÓDULO 4 - História das Populações de Origem


Africana no Brasil 166
Capítulo 1 - O Brasil dos séculos XVI a XIX: popula-
ções de origem africana, cativeiro, identidades, soli-
dariedades, religiosidade e resistências 167
Claudia Mortari
Fábio Amorim Vieira
Capítulo 2 - O Brasil após a Abolição e a inserção
social das populações de origem africana 184
Willian Robson Soares Lucindo
Karla Leandro Rascke
Capítulo 3 - As populações de origem africana em
Santa Catarina 198
Tamelusa Ceccato do Amaral
Karla Leandro Rascke
Capítulo 4 - As manifestações afro-brasileiras: Arte,
literatura e religiosidade 215
Amailton Magno Azevedo
Capítulo 5 - Os séculos XX e XXI: O caminho em
direção à igualdade 225
Jeruse Maria Romão

Sobre os Autores 243

Sobre os Organizadores 246


Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Apresentação
Apresentamos a todos e todas este trabalho desenvolvido pela equipe
de profissionais do curso “Formação de Professores: produção e difusão de
conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana”, ação 1 do Pro-
grama Diversidade Étnica na Educação (PDEE-UNIAFRO), desenvolvido
pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade do Estado de Santa
Catarina (NEAB/UDESC), sob a coordenação do Prof. Dr. Paulino de Jesus
Francisco Cardoso.
O PDEE-UNIAFRO tem por finalidade contribuir para a implementa-
ção da Lei Federal 10.639/03, que inclui no currículo oficial a obrigatoriedade
da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” e o Parecer CNE 003/2004,
que cria as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Afri-
cana.
O curso foi oferecido para professores e professoras da rede básica de
ensino (pública e privada) do estado de Santa Catarina. Possui a carga horária
de 180 horas, sendo estas divididas entre encontros presenciais nas cidades de
Chapecó, Criciúma, Florianópolis, Joinville e Lages (40 h) e atividades a dis-
tância através da Plataforma Moodle da UDESC (140 h).
As atividades presenciais serão divididas entre introduções aos quatro
módulos didáticos, oficinas e a discussão das atividades finais. As atividades
à distância incluem a leitura dos capítulos de textos dos módulos didáticos e
dos materiais complementares (documentos, vídeos, mapas, imagens, textos,
artigos científicos e outras indicações pertinentes), a participação nos cinco
fóruns propostos, a elaboração da atividade final e a resposta ao questionário
de avaliação do curso.
O público-alvo de nosso curso é formado por professores e professoras
da rede básica de ensino (pública e privada) de Santa Catarina, com ofereci-
mento de 1.500 vagas divididas entre as regiões de Chapecó, Criciúma, Floria-
nópolis, Joinville e Lages (300 vagas para cada região). O curso tem duração
entre 12/03/2014 e 15/08/2014. Os critérios para participação, continuidade
e certificação em nosso curso exigem que o/a professor/a cursista deve reali-
zar as seguintes atividades: participar dos cinco fóruns propostos dentro dos
prazos estipulados, elaborar e enviar a atividade final, responder ao questio-
nário de avaliação do curso e participar dos encontros presenciais (frequência
mínima de 80%).

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Além disso, são considerados critérios para continuidade e certificação


no curso:
ӹӹ o cumprimento dos prazos para as postagens nos fóruns de discussão,
conforme a agenda do curso;
ӹӹ as respostas dos fóruns devem seguir os critérios estabelecidos nos
mesmos: a articulação das discussões com os conteúdos estudados nos
materiais didáticos e a sua relação com a prática pedagógica;
ӹӹ sempre que solicitado o aprofundamento da discussão dos fóruns pelo/a
tutor/a, o/a cursista deverá, necessariamente, responder novamente;
ӹӹ caso solicitado pelo/a tutor/a a reformulação ou pequenas alterações
na atividade final, esta deverá ser realizada e enviada novamente para
avaliação.
Este material pedagógico, bem como a dinâmica do curso, contou com
a colaboração e empenho de diferentes profissionais, aos quais agradecemos e
mencionamos nesta apresentação, de modo a visibilizar a atuação nesta equipe.
A coordenação geral da ação está sob a responsabilidade do professor Dr. Pau-
lino de Jesus Francisco Cardoso, coordenador do NEAB/UDESC e presidente
da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN). A equipe de
professores/as autores/as dos textos e participantes das atividades de formação
presencial compõe-se dos seguintes nomes: Professora Dra. Cláudia Mortari,
Professora Ma. Jeruse Maria Romão, Professor Dr. Amailton Magno Azevedo,
Professora Ma. Karla Leandro Rascke, Professor Me. Willian Robson Soares
Lucindo, Professora Ma. Maristela dos Santos Simão, Professor Me. Angelo
Renato Biléssimo, Professora Tamelusa Ceccato do Amaral e Professor Fábio
Amorim Vieira.
Também contamos com profissionais ativos e dedicados nas atividades
presenciais compostas por oficinas cujos responsáveis são: Professora Cris-
tiane Mare da Silva, Professora Estela Maria Cardoso, Professora Ma. Jeruse
Maria Romão, Professora Milena Rosa Senhorinha, Professora Ma. Patrícia
Maria Macedo Alves e Professor Me. Valmir Ari Brito.
Nosso trabalho também contou com a colaboração de supervisoras de
tutoria, a saber, Professora Ma. Karla Leandro Rascke e Professora Mariana
Heck Silva, responsáveis pelo acompanhamento dos/as professores/as tutores/
as. A profissional Graziela dos Santos Lima tornou possível o andamento de
muitas questões envolvendo a gestão da informação e a coordenação finan-
ceira deste curso.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Esta relação de componentes da equipe do curso também conta com a


colaboração fundamental de um grupo de professores/as que atuaram como
tutores/as nas salas virtuais da Plataforma Moodle, sendo responsáveis pelas
ações didáticas, pedagógicas e motivacionais nas atividades a distância, o que
possibilita permanente diálogo com os/as cursistas e garante uma operaciona-
lização do processo de ensino-aprendizagem. Compõem o grupo: Professora
Carina Santiago dos Santos, Professora Ma. Helenice Moreira Dias, Profes-
sora Cristiane Mare da Silva, Professor Me. Willian Robson Soares Lucindo,
Professor Fábio Amorim Vieira, Professora Estela Maria Cardoso, Professora
Ma. Thaís Regina de Carvalho, Professora Camila Evaristo da Silva, Professora
Simone Barboza de Carvalho Ogassavara e Professora Natasha Aleksandra
Bramorski.
Além de toda a equipe de profissionais participantes desta trajetória
cujos desdobramentos foram a efetivação do curso e a concretização deste
livro, contamos com a colaboração de uma equipe de bolsistas do NEAB-
-UDESC atuante em todas as etapas do trabalho desenvolvido. Agradecemos
Ana Júlia Pacheco, Fernanda Costa e Souza, Larissa Canuto, Carol Carvalho e
Franciéle Carneiro Garcês pelo empenho e parceria.
Neste caminho trilhado também recebemos apoio de diferentes institui-
ções e setores facilitadores da realização dos encontros presenciais do curso,
bem como possibilitaram deslocamentos, pagamentos, encaminhamentos
e recepcionaram nossa equipe nas cidades-polo. Em Lages contamos com o
apoio fundamental do Diretor de Extensão do CAV-UDESC, Prof. Dr. Gil-
berto Massashi Ide (2011-2014) e do atual Diretor de Extensão do referido
Centro, Prof. Dr. Clóvis Eliseu Gewehr, bem como de toda a equipe do Setor
de Serviços Gerais.
São José foi sede dos encontros da região da Grande Florianópolis nas
duas primeiras formações presenciais do curso, ao que agradecemos em espe-
cial à Profa. Me. Janaína Amorim da Silva do Setor de Educação das Relações
Étnico-Raciais e Gênero da Prefeitura Municipal de São José e a toda a equipe
do CEM Prof.ª Maria Iracema Martins de Andrade - Barreirão.
Em seguida, a partir da terceira formação presencial, o polo foi transfe-
rido para a UDESC (Florianópolis), no Centro de Ciências Humanas e da Edu-
cação (CCE/FAED) onde contamos com o apoio de todo o setor de Serviços
Gerais, em especial dos senhores Eduardo Antônio Angeloni, Piter Kerscher e
Nilvânio Batista de Souza; do setor financeiro do Centro, com atenção impor-
tante da senhora Andréia Paternolli e do senhor Heverton Vieira da Silva; e

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

de toda a equipe Diretora do CCE/FAED, em particular ao Prof. Dr. Émerson


César Campos (Diretor Geral), ao prof. Dr. Fábio Napoleão (Diretor de Exten-
são) e à senhora Rosane Rosa (Diretora de Administração).
Agradecemos ao Centro de Ciências Tecnológicas (CCT/UDESC) que,
de forma muito gentil, cedeu seu espaço físico para a realização de todos os
encontros referentes ao polo da região de Joinville, em especial ao Diretor
Geral Leandro Zvirtes, ao Diretor de Extensão Maurício Aronne Pillon e a
toda a equipe do Setor de Serviços Gerais deste Centro.
Fundamental também para a concretização dos encontros presenciais,
em Criciúma, a equipe ligada à Coordenadoria da Promoção da Igualdade
Racial (COPIRC) possibilitou que todas as formações presenciais ocorressem.
Agradecemos em especial às Profas. Iolanda Lima e Munique do Nascimento
(Coordenadoras da COPIRC), bem como toda a equipe de suporte e infraes-
trutura.
Em Chapecó nossa equipe contou com o apoio e a atenção da Profa.
Dra. Renilda Vicenzi que se engajou na luta pela promoção da igualdade racial
na região oeste e permitiu uma parceria muito importante com a Universi-
dade federal Fronteira Sul (UFFS). Também agradecemos imensamente a toda
a equipe de logística desta região.
À Reitoria e à Pró-Reitoria de Extensão da UDESC, em especial ao
Magnífico Reitor Antonio Heronaldo de Souza e ao Ilustríssimo Pró-Reitor de
Extensão Maycon Nunes, bem como a todas as pessoas engajadas na concreti-
zação deste projeto que atuaram nestes espaços citados ensejamos com muito
apreço nossos agradecimentos. Agradecemos toda a dedicação do Centro de
Educação a Distância (CEAD) da UDESC que nos apoia há anos nos cursos
de extensão on-line, disponibilizando as salas na plataforma Moodle e pos-
sibilitando o suporte técnico, bem como o uso de ferramentas e espaço para
webconferências. Obrigada pela parceria, paciência e prontidão com que sem-
pre nos têm tratado. Com carinho especial, também agradecemos à SECADI,
financiadora deste trabalho e concessora desta realização. Muito Obrigada!
Agradecemos imensamente a toda a equipe pelo empenho e dedicação
com esta obra e com a realização do curso.
A todos e todas uma ótima leitura!

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

MÓDULO 1 - Introdução
O primeiro módulo deste curso, que também se apresenta por meio
deste livro, discute alguns conceitos de fundamental importância para a com-
preensão da sociedade em que vivemos e a necessidade de discutir as relações
étnico-raciais. Tratam-se de conceitos produzidos ao longo dos anos e preci-
sam ser conhecidos, repensados, criticados e transformados.
Neste sentido, o Módulo 1 convida a todos e todas para reflexões acerca
de termos, expressões e sentidos relacionados ao dia a dia, às vivências esco-
lares, às experiências em ambientes de trabalho, rodas de conversas, espaços
familiares, enfim onde existirem pessoas, pois, como sabemos, onde estas este-
jam, existem também relações, tensões, disputas e sonhos.
Compreender os sentidos do termo negro, afrodescendente, políticas de
ação afirmativa, racismo, Lei Federal 10.639/03 e tantas outras referências con-
ceituais e debates que compõem nossa vida em sociedade atualmente, permite
percebermos papéis sociais, lugares, histórias e memórias.
Vamos aos capítulos e suas proposições para estudo!

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Capítulo 1 - Lei Federal 10.639/03, discussão de conceitos:


multiculturalismo, diversidade, ações afirmativas, racismo,
preconceito, afrodescendente, negro, entre outros

Paulino de Jesus Francisco Cardoso


Karla Leandro Rascke

O primeiro capítulo de nosso curso discute termos e conceitos funda-


mentais para a compreensão de nossa sociedade, em especial em que medida
mecanismos de discriminação e preconceito operam de modo a distribuir de
forma desigual status, prestígio e poder entre grupos populacionais de nosso
país, possibilitando a reprodução de hierarquias sociais, cuja a origem encon-
tra-se no nosso passado colonial e escravista. Um sistema de dominação que
produz, ao mesmo tempo, a destruição da autoestima dos descendentes de
africanos e configuram, igualmente, no dizer do saudoso Guerreiro Ramos,
sociólogo e senador, a psicopatologia do branco brasileiro.
Em se tratando de um texto com muitos conceitos e termos chaves para
discussão, nos apoiaremos em exemplos cotidianos, em situações que permi-
tam melhor compreender o que pretendemos expor nestas breves linhas.
Para começar, iniciaremos o diálogo por conceitos hiperpresentes em
nosso caminho: raça, negro, afrodescendente. Nossa intenção é explorar,
dimensionar as implicações sociais e políticas do seu uso em nosso país.

O CONCEITO DE RAÇA

O conceito de raça como


nós conhecemos foi engendrado “Infelizmente, desde o início, eles se
na Modernidade Europeia (1500- deram o direito, em nome de sua autori-
1900) para resolver o problema da dade científica, de hierarquizar as chama-
diversidade humana no planeta. das raças, ou seja, de classificá-las numa
escala de valores superiores e inferiores,
Seguindo o modelo das ciências criando uma relação intrínseca entre o
da natureza que parecia ter solu- corpo, os traços físicos, a cor da pele e as
ção para tudo, tal conceito serviu qualidades intelectuais, culturais, morais e
na prática, tal como as orquí- estéticas.” (MUNANGA, 2010, p. 187).
deas, bois, cavalos e bodes, para

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

classificar os seres humanos em pequenos grupos, passíveis de serem apreen-


didos por meio de seus atributos físicos. Leia-se, partindo de características
fenotípicas (cor de pele, formato do crânio, boca e nariz, textura dos fios de
cabelo), seria possível determinar a que raça uma pessoa pertencia.
Aqueles que acreditam que as raças existem são denominados racia-
listas. Como lembra Kwame Appiah (1997), embora seja um erro cognitivo,
de graves implicações morais, do ponto de vista das ciências biológicas, este
conceito caiu por terra, pois existe apenas a raça humana. Porém, seja no seu
sentido arcaico, ligado a definição quase sempre negativa de grupos de origem
(fulano pertence a raça dos Rascke), seja como associada a qualidade de pes-
soas ou grupos (tenacidade, persistência, diligência), o termo continua em uso
e basicamente é utilizado para produzir distinções entre as pessoas.
Segundo Kabengele Munanga, qualquer tentativa explicativa do racismo
implica necessariamente no uso e entendimento do significado de raça. Assim,
“todos os estudiosos que lidam com a ideologia racista, entre eles os envol-
vidos hoje com o debate nacional sobre cotas para negros nas universidades
públicas, não conseguem fugir do uso da palavra raça, mesmo aqueles que
combatem as cotas” (MUNANGA, 2010, p. 191).
Equivocadamente muitos se utilizam do termo em seu sentido bioló-
gico, questão há muito tempo discutida e comprovada como não existente.
Neste sentido é importante compreendê-la enquanto “uma construção socio-
lógica e político-ideológica, pois embora não exista cientificamente, a raça
persiste no imaginário coletivo e na cabeça dos racistas e, consequentemente,
continua a fazer vítimas em nossas sociedades” (MUNANGA, 2010, p. 192).

“A nomeação raça mostra-se importante para o combate ao racismo porque expli-


cita e afirma sua existência. Também explicita a trajetória de resistência e de pro-
dução de conhecimento de inúmeras pessoas e de organizações dos movimentos
sociais negros que, histórica e sistematicamente, têm reivindicado a necessidade
de denunciar as discriminações raciais, propondo ações e políticas públicas para
que o Estado assuma para si a responsabilidade de investir na promoção da igual-
dade das relações étnico-raciais”. (SOUZA; CROSO, 2007, p. 19).

Assim, nosso quotidiano é permeado de expressões como relações


raciais, categoria cor/raça em censos estatísticos e outros mais. No caso destes
levantamentos censitários, pesquisas ou para a organização de políticas públi-
cas que atinjam uma determinada população, é preciso atentar para estes cri-

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

térios que são fenotípicos, mas envolvem também autoidentificação de cada


sujeito.
No entendimento de Hédio Silva Jr.,
A escola racialista, especialmente a francesa, que data de
meados do século XIX até os primeiros decênios do século XX,
utilizou-se da aparência física para tentar determinar aspectos
psicológicos e cognitivos dos seres humanos, estabelecendo
como modelo o homem branco europeu. Esses aspectos
comparados davam as ‘medidas’ de potenciais – inteligência,
habilidades, sociabilidade, criminalidade, tendências a desvios
sociais e sexuais – os quais não possuíam e não possuem validade
científica, mas podem fazer parte de crenças construídas pelo
senso comum, nas sociedades nas quais a raça (cor) das pessoas
assuma relevância na distribuição e fruição de direitos. Deste
modo, a impropriedade científica do uso da categoria raça para
a classificação de seres humanos não impede que o fenótipo
dos indivíduos seja socialmente tratado como atributo racial,
derivando daí o emprego do critério racial como elemento
diferencial de direitos e oportunidades. (SILVA JR., 2002, p. 15).

Assim, conforme destaca o autor, o racialismo (doutrina que acredita


na existência de diferentes raças) criou critérios baseados na aparência física
das pessoas a partir de um padrão europeu e branco de beleza e “inteligência”.
Como bem percebemos, Hédio Silva Jr. afirma que o fenótipo ainda é utilizado
quando tratamos de oportunidades e direitos para populações não brancas.

NEGRO OU AFRODESCENDENTE?

Estes termos necessitam de uma explicação e análise histórica, pois ter-


mos e palavras possuem sentidos que se alteram ao longo do tempo. A noção
de afrodescendentes ou populações de origem africana foram conscientemente
forjados para enfrentar a noção de raça. Os afros, como carinhosamente se
denominam, remetem a um grupo que exalta sua ascendência africana como
forma de identificação. Ao pensar em populações de origem africana, desper-
tamos para possibilidades amplas, podendo inserir e tentar vislumbrar dife-
rentes povos e experiências.
Lilia Schawrcz, ao estudar o último quarto do século XIX, entendeu
que, em meio a um contexto “caracterizado pelo enfraquecimento e final da
escravidão, e pela realização de um novo projeto político para o país, as teorias

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

raciais se apresentavam enquanto modelo teórico viável na justificação do


complicado jogo de interesses que se montava” (SCHWARCZ, 1993, p. 18).
Estas teorias contribuíram para que, no processo da Abolição da escra-
vatura e pós-emancipação, fossem reatualizadas hierarquias sociais, antes
vigentes pela estrutura escravista e, agora, excluindo diferentes populações das
oportunidades de acesso a bens, riquezas e poder.
Se durante o Regime Escravista o termo negro foi muito utilizado para
indicar a condição de pessoa cativa, atuando como sinônimo de escravo, no
pós-Abolição, com uso das teorias raciais, o termo passou a abarcar a tota-
lidade dos africanos e seus descendentes no Brasil e associá-los a uma série
de ideias negativas cujo objetivo era desumanizar os membros deste grupo e
privá-los de direitos e oportunidades.
No entanto, é preciso pensar de que modo as populações de origem afri-
cana se apropriaram ou não deste termo enquanto significante identitário. Por
exemplo, Willian Robson Soares Lucindo (2010), discutindo os processos de
escolarização, organizados pelos afros em São Paulo entre o final do século
XIX e primeiras décadas do século XX, compreende que o termo negro foi
utilizado enquanto categoria de classe, sendo a ideia de uma identidade negra
pensada pelas elites negras letradas, muitas vezes não atingindo as “camadas
populares”.
Assim, como nos chama a atenção Antonio Sérgio Alfredo Guimarães,
precisamos atentar porque a ideia de identidade negra tanto revela quanto
esconde: revela no sentido de congregar diferentes denominações vindas das
classificações herdadas do sistema escravista (“negros”, “pretos”, “pardos”, etc.),
enquanto um grupo diferente em relação aos grupos dominantes; no entanto,
esta ideia esconde as múltiplas estratégias e experiências de identificação
(GUIMARÃES, 2003).
Na década de 1970, após processos de mobilização do Movimento
Negro no Brasil, o termo negro recebeu novo sentido e passou a ser forte-
mente utilizado enquanto luta política. Por isso, discussões atuais acabam
enfatizando este termo, mas é preciso pensá-lo para além do discurso atual,
em que negro tem significado identitário e positivado. Enquanto professores e
professoras, precisamos compreender que ao discutir histórias sobre o período
da escravidão, por exemplo, podemos incorrer no risco de criar uma identi-
dade não existente entre as pessoas daquele momento, visto que associamos
nosso conhecimento ao que vivemos atualmente. É importante que pensemos

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

as populações e suas experiências a partir das conjunturas econômicas, políti-


cas e sociais de seu próprio tempo.
Para melhor compreensão destes termos e seus usos, pensemos nos
seguintes exemplos:
- Ao discutir história da África no século XVI, por exemplo, o/a
professor/a de história deve atentar para não afirmar uma identidade negra
existente no continente, visto serem povos absolutamente diferentes, com
propostas culturais (modos de vida) diversos, onde a referência a cor da pele
não faz nenhum sentido. Deste modo, o mais adequado é se referir ao povo
ou região em discussão; ou em casos mais amplos, utilizar o termo africano,
apesar de sua ampla abrangência, não pretende indicar homogeneidade, nem
informar uma unidade africana em termos culturais, sociais, políticos e histó-
ricos.
- Quando lidamos com um debate atual envolvendo políticas públicas,
ações afirmativas e melhores oportunidades para a população negra, o termo
consolidado nas lutas do Movimento Negro é este, negro.

NEGRO-AFRICANO

De acordo com o processo histórico comentado brevemente na discus-


são dos termos anteriores, não existem negros em África. Africanos/as se veem
como pertencentes aos seus grupos/povos/nações (iorubá, zulu, angolano, por
exemplo), ou até mesmo, como vimos em algumas populações mais atuais,
como descendentes de portugueses, holandeses e assim por diante, devido ao
processo colonizador.
Algumas vertentes que estudaram África, e publicaram seus estudos
fazem referência utilizando este termo – negro, abrangendo a parte do conti-
nente abaixo do Saara. A posição que adotamos no curso acredita que a gene-
ralização do continente categorizado enquanto negro pode moldar a ideia de
uma história única, “um tipo africano” essencializado, idêntico. Em contraste,
é importante pensarmos que as populações africanas são múltiplas. São milha-
res de povos, línguas e culturas espalhados por trinta e dois milhões de quilô-
metros quadrados.
Atualmente, muitos estudiosos utilizam esta noção de negro-africano
indicando identidades comuns entre as populações africanas e seus descen-
dentes no Brasil. Mas de um modo geral, tal distinção parte do pressuposto
que o deserto do Saara constituiu-se durante milênios como uma barreira

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

natural a separar a parte “negra”, subsaariana, bárbara e incivilizada, da região


norte da África, mediterrânea e berço das matrizes culturais que tornaram o
Ocidente possível. Em suma, uma “África branca”.
Neste sentido, reafirmamos a importância de mencionar povos, cultu-
ras e experiências enquanto componentes de modos de vida diversos e por
isso, necessários de ser explicitados. Gostos, paladares, aromas, tecnologias,
histórias e vivências são distintas de lugar para lugar e em África não seria
diferente. Para vislumbrar todos esses universos culturais que, equivocada-
mente são tachados como
Eurocentrismo: “forma de etnocentrismo singu- um “país da pobreza”, é
lar, qualitativamente diferente de outras formas necessário ampliar o olhar
históricas. Isso porque ele é a expressão de uma e atentar para questões
dominação objetiva dos povos europeus ocidentais que nunca indagamos ou
no mundo. Neste sentido, Samir Amin (1994), por não nos foram colocadas
exemplo, definiu o eurocentrismo como a crença
anteriormente. Precisamos
generalizada de que o modelo de desenvolvimento
nos desvincular de pre-
europeu-ocidental seja uma fatalidade (desejável)
conceitos, discriminações
para todas as sociedades e nações. Segundo este
autor, uma ideologia, cuja genealogia deveria ser e estereótipos que temos
buscada no Renascimento, remontando à gênese cunhados em nossas men-
do capitalismo como sistema mundial, ou, em suas tes e formação acadêmica
palavras, como modo de produção realmente exis- ou social marcada pela
tente”. (BARBOSA, 2008, p. 47) hegemonia da história e do
fazer eurocêntrico.

RACISMO

Trata-se de uma ideologia cujos pressupostos fundamentam a ideia de


superioridade da raça branca sobre outras, constituindo-se como uma rede
complexa de atitudes e ações sociais para discriminar negativamente um
grupo social.
Sua manifestação pode ser Racismo: “Doutrina que defende a
individual, caracterizada por atos dis- superioridade de certos grupos raciais
criminatórios de indivíduos contra e étnicos. É um modo hierárquico de
outros, bem como ser institucional, o classificação dos seres humanos que
que supõe práticas de isolamento, de os distingue com base nas proprie-
exclusão e de discriminação desen- dades físicas e nos marcos culturais”.
volvidas direta ou indiretamente pelo (SOUZA; CROSO, 2007, p. 19)

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Estado. Independente da forma de manifestação, o racismo é pautado na vio-


lência, seja ela física ou simbólica.
De acordo com as palavras de Hédio Silva Jr., professor conceituado na
área do Direito, em especial direito de igualdade racial, o racismo,
guardadas as devidas proporções, consiste em um fenômeno
histórico cujo substrato ideológico preconiza a hierarquização
dos grupos humanos. Diferenças meramente culturais e/
ou fenotípicas são utilizadas como justificações para atribuir
desníveis intelectuais e morais aos seres humanos, a partir do
que estes passam a ser classificados. (SILVA JR., 2002, p. 19).

Neste sentido, a partir de características físicas e exposição de códigos


culturais, muitos grupos, pessoas e sociedades sofrem as consequências do
racismo por serem consideradas inferiores.
Outra categoria importante e
Preconceito Racial: “Opinião que se que chama atenção por sua recorrên-
emite antecipadamente com base em cia nas mídias e em espaços públi-
informações acerca de pessoas, grupos cos, inclusive educacionais, é a ideia
e sociedades, em geral infundadas ou de preconceito racial, que difere de
baseadas em estereótipo, que se trans-
formam em julgamento prévio nega- racismo e de discriminação racial,
tivo.” (SOUZA; CROSO, 2007, p. 21) como veremos a seguir. O preconceito
racial pode ser definido como um
fenômeno “intergrupal, dirigido a pes-
soas, grupos de pessoas ou instituições sociais, implicando uma predisposição
negativa, isto é, tomado como um conceito científico, preconceito dirige-se
invariavelmente contra alguém.” (SILVA JR., 2002, p. 21). Assim sendo, o pre-
conceito racial envolve um julgamento antecipado sobre determinados grupos
de modo negativo.
Na sequência, vemos que outro termo bastante utilizado em diversos
espaços sociais e na escola também,
tendo em vista que a escola se cons-
Grosso modo, o estereótipo pode ser
titui socialmente, a ideia de estereó- comparado a um carimbo impresso em
tipo, ligada ao campo da percepção, determinados grupos, a partir do que
da imagem, do visual e seus impac- os indivíduos deste grupo passam a ser
tos. Os estereótipos são “construções considerados não em sua individuali-
indesejáveis porque rígidas, resisten- dade, mas em razão do carimbo (cigano
tes à educação e são uma forma de é ladrão; negro é vagabundo; judeu é
sovina).” (SILVA JR., 2002, p. 23)
raciocínio que representa um ‘desvio

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

da inteligência’, tendo como veículos mais comuns a linguagem, as imagens,


a publicidade, a propaganda, os livros didáticos, personagens de telenovelas,
etc.” (SILVA JR., 2002, p. 23).
Este tipo de ideia fixa em relação a grupos ou pessoas pode indicar
justificativa para a opressão e a rejeição de “outros”, ou como chama atenção
Hédio Silva Jr., “podem justificar, até mesmo, sistemas de exploração tais como
a escravidão”. (SILVA JR., 2002, p. 23). Neste sentido, quando nos baseamos em
estereótipos para lidar ou pensar sobre grupos e pessoas, tendemos a cometer
equívocos e preconceitos, pois julgamos e enxergamos estes sujeitos com base
nos rótulos que a sociedade os cunhou, como um “carimbo”.
Vimos até agora alguns apontamentos importantes sobre os conceitos e
suas trajetórias, implicações, usos e sentidos. Partimos agora para um termo
conhecido e que tem marcado presença em escolas, empresas e, principal-
mente, estádios de futebol, aparecendo nas mídias frequentemente. “A injúria
que acontece até nos campos de futebol quando os jogadores negros são cha-
mados de macacos é uma discrimina-
ção racial que tem uma violência sim-
bólica, pois a esses jogadores é negada Discriminação racial: A discriminação
racial é o racismo e o preconceito mate-
a sua humanidade” (MUNANGA, rializados em ações e condutas que des-
2010, p. 178). qualificam e inferiorizam um grupo em
Estamos falando de discrimi- detrimento de outro. No Brasil, temos
nação racial, ou seja, do preconceito legislação que proíbe a discriminação
externado e que implica negar igual- racial, ou seja, o ato de discriminar o
outro por conta de suas características
dade de tratamento ao “outro”, con- étnico-raciais. (SILVA JR., 2002, p. 22)
duta ou ato que “viola direitos com
base em critério racial, independentemente da motivação que lhe deu causa (o
credo no racismo, o porte de preconceito, um interesse qualquer, ou simples
temor de represália, a exemplo do recrutador que não contrata um negro para
determinada vaga por pressupor e/ou temer que a instituição à qual pertence
não seria simpática a uma tal escolha).” (SILVA JR., 2002, p. 25-26).

AÇÕES AFIRMATIVAS
As ações afirmativas constituem um conjunto de medidas voltadas
a determinados grupos discriminados ou que sofrem com a exclusão social
ocorridos no passado ou no presente. Estas medidas possuem o objetivo de eli-
minar desigualdades existentes de modo a estabilizar oportunidades, ou seja,
impedindo uma discrepância de oportunidades entre diferentes grupos.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Várias são as ações que diferentes países, dentre eles o Brasil, criaram
e ainda criam para diminuir as desigualdades sociais, econômicas, raciais, de
gênero, etc.
Neste sentido, a Índia e os EUA possuem medidas para tratar de suas
populações pobres e excluídas há muitas décadas, com programas que per-
mitem renda, ampliação de oportunidades e direitos. No Brasil, muitas destas
medidas são conhecidas também há décadas, como o caso dos 30% de vagas
para mulheres nos partidos políticos, cotas para deficientes físicos em con-
cursos públicos, programas sociais como o Bolsa Família, além de diferentes
programas de acesso ao Ensino Superior, o que permite mudança significativa
na vida de milhares de pessoas, bem como de seus familiares.
A partir do governo do presi-
“Os dados sobre as populações negras bra- dente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-
sileiras teimam em demonstrar a manu- 2010), o ensino superior brasileiro
tenção das desigualdades estruturais entre passou por profundas transforma-
brancos e negros. Logo, as desigualdades ções, constituindo a primeira etapa
raciais seriam o resultado do acúmulo de o aumento no número de vagas. O
desvantagens confirmadas nos indicado-
res de escolaridade, emprego, habitação e
Programa Universidade para Todos
consumo de bens. Desta forma, houve um (PROUNI), instituído pela Lei nº
reconhecimento no campo da educação e 11.096, em 13 de janeiro de 2005, nas-
em outros campos, da inoperância das ceu com o objetivo de ampliar a con-
políticas universalistas no que diz respeito cessão de bolsas de estudo integrais
à inclusão dos negros no ensino superior e e parciais em cursos de graduação e
nos demais níveis de ensino”. (REZENDE, sequenciais de formação específica,
2005, p. 158) em instituições privadas de educação
superior.
Segundo informações publicadas no site do Ministério da Educação, as
IES privadas e comunitárias que aderem ao Programa, recebem como contra-
partida, isenção de alguns tributos. Desde sua criação em 2004 até 2012, cerca
de um milhão de estudantes foram beneficiados. Destes, 67% com bolsas inte-
grais. Vale lembrar que, uma reestruturação do Programa de Financiamento
Estudantil (FIES), possibilitou a celebração de 01 milhão de contratos em 2012.
Outro importante ponto de ação foi a regulamentação, por parte do
Ministério da Educação (MEC), em tempo recorde, da Lei Federal 12.711/2012.
A famosa Lei de cotas, aprovada pelo Congresso Nacional, no mesmo ano, e
que instituiu a obrigatoriedade da reserva de vagas para estudantes de esco-
las públicas, negros e indígenas, nos vestibulares das instituições federais de
ensino. O decreto Nº 7.824, de 11 de outubro, obrigou a totalidade das institui-
ções a iniciar a implementação ainda em 2012.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Ampliando ainda mais o acesso a direitos, bens e oportunidades, recen-


temente, sob forte pressão dos movimentos negros e militantes da causa
antirracista, foi assinada a Lei de Cotas para concursos públicos federais com
reserva de vagas para negros/as. Sendo assim, a adoção de ações afirmativas
em diferentes âmbitos e espaços têm permitido que homens e mulheres excluí-
dos socialmente galguem espaços e possam sonhar com condições mais dignas
de vida.

MULTICULTURALISMO E DIVERSIDADE
O entendimento que propomos acerca das ideias de multiculturalismo
e diversidade importam no sentido de repensarmos, ou pelo menos, refletir-
mos sobre, qual educação queremos e como podemos atuar para torná-la mais
adequada às realidades socioculturais de nossa sociedade. Vivemos uma rea-
lidade que indica, a todo instante, mudanças, constituição de novas identida-
des, dúvidas, um novo tempo na qual a ideia de uma identidade única, nacio-
nal, pautada na figura de algum “grande herói”, não é capaz de dar conta da
imensidão de experiências e sujeitos nas suas mais variadas formas, vivências
e expressões culturais.
Portanto, termos como diversidade e multiculturalismo servem para
dialogarmos com este “novo tempo”
e com suas demandas que, nada mais Diversidade: “As educadoras Gomes e
são do que demandas construídas e Silva nos indicam que ‘o trato da diver-
sidade não pode ficar a critério da boa
reivindicadas por grupos sociais. vontade ou da implantação de cada um.
Com base no glossário de Ele deve ser uma competência político-
termos e expressões antirracistas da -pedagógica a ser adquirida pelos profis-
obra Orientações e Ações para a Edu- sionais da educação nos seus processos
formadores, influenciando de maneira
cação das Relações Étnico-Raciais, positiva a relação desses sujeitos com os
editada pela SECADI/MEC, diversi- outros, tanto na escola quanto na vida
dade e multiculturalismo podem ser cotidiana’ (2002, p. 29-30). (…) Afirma
definidos nos seguintes termos, con- Nilma Lino Gomes: ‘Assumir a diversi-
dade cultural significa muito mais do que
forme quadros destacados. um elogio às diferenças. Representa não
Percebemos que a diversidade, somente fazer uma reflexão mais densa
neste caso em especial, ressalta a sobre as particularidades dos grupos
importância de pensarmos os sujei- sociais, mas, também, implementar polí-
ticas públicas, alterar relações de poder,
tos históricos e seus grupos culturais redefinir escolhas, tomar novos rumos e
a partir de um olhar crítico sobre suas questionar a nossa visão de democracia’
vivências. A ideia é compreender os (2003)” (SECADI/MEC, 2005, p. 218).

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

diferentes grupos e sujeitos nas suas particularidades e relações, bem como,


intensificar ações para a concretização de um país que permita aos seus cida-
dãos o alcance a cidadania plena, acessando direitos e oportunidades que lhes
são cabíveis.
Multiculturalismo: “Coexistência de várias culturas no mesmo espaço, no mesmo
país, na mesma cidade, na mesma escola. Para Gonçalves e Silva, ‘embora o multi-
culturalismo tenha se transformado, com apoio da mídia e das redes informais, em
um fenômeno globalizado, ele teve início em países nos quais a diversidade cultural
é vista como um problema para a construção da unidade nacional (…) Em suma, o
multiculturalismo, desde sua origem, aparece como princípio ético que tem orientado
a ação de grupos culturalmente dominados, aos quais foi negado o direito de preser-
var suas características culturais’ (2001, p. 19-20). Ainda que da perspectiva do mul-
ticulturalismo seja apresentada uma visão relativista dos valores, Capelo pondera que
‘o multiculturalismo não pode abrir mão da igualdade de direito e das necessidades
compensatórias, caso contrário terá contribuído para excluir, para separar, para frag-
mentar, permitindo que a dominação sobre a minoria seja ainda mais eficiente’ (2003,
p. 129)” (SECADI/MEC, 2005, p. 220).

Sem dúvida, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, na


conjuntura da consolidação democrática, as diferentes agências públicas pas-
saram a ser questionadas quanto ao modo como dialogavam com cidadãos e
cidadãs. Como diria Charles Taylor, filósofo canadense, radicado nos Estados
Unidos da América, em sua reflexão sobre o sentido de multiculturalismo e
as diversas lutas de grupos minoritários nos países ocidentais, as pessoas em
situação de desvantagem passaram a defender o reconhecimento público de
suas diferenças e desigualdades (TAYLOR, 2003).
Durante anos o Brasil foi representado como um país mestiço, formado
por um cadinho de raças e culturas, com seus inúmeros heróis. Uma nação em
que os cidadãos vivem em harmonia e paz. No entanto, esses padrões nacio-
nais são incapazes de representar a multiplicidade de sujeitos constitutivos da
nação, conforme depreendemos de lutas feministas e antirracistas que têm
dificuldades em se identificar com os varões da pátria, como Duque de Caxias,
Marechal Deodoro ou D. Pedro II (CARDOSO, 2007).
LEI FEDERAL 10.639/03
Esforços de diferentes agentes na luta antirracista, em especial mili-
tantes do Movimento Negro culminaram, em 2003, na promulgação da Lei
Federal 10.639/03, pelo então presidente da República, Luiz Inácio Lula da
Silva. A referida Lei tornou obrigatório o ensino de História e Cultura africana

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

e afro-brasileira em todos os níveis de ensino. Em 2004 foram publicadas as


diretrizes que orientam os diferentes atores sociais do processo educacional,
de modo a contemplar em seus planos de aula e ações pedagógicas a educação
das relações étnico-raciais, bem como conteúdos sobre história e cultura afri-
cana e afro-brasileira. Estes dois pontos são fundamentais para a compreensão
da importância da construção de uma educação transformadora, pautada na
reeducação das relações, dos conceitos e das práticas. A Lei Federal 10.639/03
legitima a luta por direitos e por uma história não eurocêntrica, que sempre
esteve pautada na figura de grandes heróis brancos.
Neste sentido, importa trazer para o debate, qual educação e história
pretendemos ensinar aos nossos alunos e perpetuar em nossa sociedade. O
tema da Lei Federal 10.639/03 será muito bem explorado no próximo capítulo,
de autoria da professora Jeruse Maria Romão, de modo a contextualizar lutas
e conquistas por uma educação mais igualitária e condizente com as múltiplas
realidades de nosso país.
ESCOLA E SOCIEDADE EM COMPROMISSO COM A IGUALDADE
A partir destes apontamentos iniciais do curso podemos compreender
que temos uma tarefa complexa de atuação, em nós mesmos e na sociedade,
de modo a possibilitar vivências mais respeitosas, antirracistas e a criação de
espaços de desenvolvimento adequados a crianças e adolescentes em nos-
sas escolas. “Predomina na escola um ‘discurso da igualdade’ que encobre a
existência das diferenças e alimenta o mito da democracia racial”. (SOUZA;
CROSO, 2007, p. 45).
Este discurso - pautado normalmente no mito da democracia racial, que
vivemos numa sociedade miscigenada e, por isso, sem problemas raciais, ape-
nas sociais -, informa que as pessoas não veem o que acontece no cotidiano ou
não querem vê-lo. Afinal, quando professores/as de educação infantil apelidam
crianças de Bombom, dizem que as crianças negras gostam de ficar quietas e
isoladas ou brincando sozinhas com algum brinquedo, provavelmente, esta-
mos vislumbrando que nosso olhar não está preparado ou não quer perceber
o que está posto. Desde os primeiros contatos com a educação instituciona-
lizada, crianças negras conhecem os sentidos e os significados de sua cor, do
racismo e da discriminação que sofrem cotidianamente (VANZUITA, 2013;
GAUDIO, 2013).
A Lei Federal 10.639/03 possibilita alterações nesta realidade apesar de
que, passados 10 anos de sua promulgação, ainda é preciso enfatizar a reali-
dade escolar como um todo, bem como mobilizar gestores e educadores para

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

sua efetivação. Atualmente, como bem ressaltou a professora Jeruse Romão


(2013), as ações para implementação da Lei 10.639/03 mantêm-se centradas
na figura do professor a partir dos cursos de formação de professores. No
entendimento de Nilma Lino Gomes, existe na educação escolar, “um ima-
ginário pedagógico que tende a considerar que a questão racial é uma tarefa
restrita aos professores e professoras que assumem publicamente uma postura
política diante da mesma ou um assunto de interesse somente dos professores/
as negros/as” (GOMES, 2010, p. 103).
Necessitamos ampliar ações e efetivar parcerias em outros âmbi-
tos da escola e da gestão da educação, sensibilizando para a importância de
um ambiente escolar capaz de compreender as relações étnico-raciais e que
vislumbre história e cultura africana e afro-brasileira não apenas no mês de
novembro, mas em todas as atividades escolares e, em especial no currículo. O
“currículo escolar, tal qual a sociedade brasileira, está pautado numa compre-
ensão de que apenas a cultura do colonizador – branca, masculina, heterosse-
xual e cristã – tem legitimidade para ser estudada” (PASSOS, 2008, p. 17).
Para além de dispositivos legais, implementar história e cultura afri-
cana e afro-brasileira no cotidiano das instituições de ensino significa inserir-
-se num novo processo de reeducação: “conhecer, entender, esmiuçar, rever,
reconstruir as ideias e noções e práticas que, até então, amparam as desigual-
dades étnico-raciais que se fazem presentes em todos os níveis de ensino”
(SOUZA; CROSO, 2007, p. 21).
Cremos que a educação representa uma das formas mais relevantes de
transformação social. Por conseguinte, propomos não apenas a inclusão de
conteúdos de história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos esco-
lares, mas o debate em torno das relações raciais, cujos resultados possam
“intervir nas atitudes de racismo e discriminação presentes em nossas esco-
las e nas práticas do nosso cotidiano” (RIBEIRO; AMANDIO; CARVALHO,
2008, p. 61).
Enfatizamos aqui que não se trata de apresentar “as contribuições dos
negros” à sociedade, mas compreender que as populações africanas e seus
descendentes atuaram como sujeitos na construção histórica, social e cultural
do país. Assim, se partirmos da ideia apenas da contribuição, ressaltando em
especial a culinária, a música, a dança, ocultamos “as relações de poder e os
conflitos sociais, culturais, políticos e econômicos existentes na sociedade bra-
sileira” (PASSOS, 2008, p. 18).

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Além disso, história e cultura afro-brasileira e africana devem ser pen-


sadas em suas dinâmicas, disputas, vivências, em todas as dimensões da vida,
muito mais do que restringir à participação na música, na dança, na culinária,
etc. Não que estas dimensões devem ser desconsideradas, mas necessitamos ir
além, discutir arranjos políticos, conhecer os diferentes povos, suas tecnolo-
gias, suas artes, de forma a não homogeneizá-los.
Normalmente, conteúdos de livros didáticos e práticas pedagógicas
constantes “esquecem” de discutir certos assuntos após a chamada temática
escravidão. Para onde foram as populações negras? Saíram do cativeiro e tam-
bém da história. História esta que, apesar de estereotipada, vitimizadora e
insensível a experiências de pessoas comuns, acabava por citá-los, dizendo ao
menos sua existência.
Nossos materiais didáticos e nossa compreensão de história indicam
quase que um desaparecimento dessas pessoas. Necessitamos compreender
que estas populações criaram estratégias de sobrevivência, organizaram gru-
pos culturais, sociedades musicais, recreativas e religiosas, pensando possibili-
dades para o entendimento de práticas culturais e, também, visualizando que
as pessoas continuaram lá, buscando objetivos, trabalhando, vivendo, se movi-
mentando por ruas, avenidas e cidades. Queremos, acima de tudo, indicar que
as pessoas não desapareceram, num passe de mágicas, mas foram invisibiliza-
das, como muitas vezes continuam sendo, até os dias atuais.
É importante pensar que a diáspora (deslocamento forçado e constante
de milhões de pessoas africanas para diferentes países, dentre eles o Brasil)
provocou um processo de reinvenções, incorporações de culturas e identida-
des. Sendo assim, temos sujeitos diversos que, ao se encontrarem num novo
território, desenvolveram novas formas de organização, solidariedade, alian-
ças, vivências...
Percebemos que estas populações foram sistematicamente excluídas dos
espaços instituídos de educação formal, através de sua expulsão dos ambientes
escolares, pela negação de sua presença na composição da sociedade brasileira.
Além deste debate envolvendo a exclusão dos ambientes formais de escolariza-
ção disponibilizados pelo Estado especialmente, homens e mulheres de origem
africanas têm suas trajetórias de vida e luta invisibilizadas, estigmatizadas e
estereotipadas pelos materiais didáticos, pela formação equivocada destinada
aos/às professores/as e pelo racismo institucional que opera impedindo e/ou
dificultando a valorização e o sucesso escolar de crianças negras.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

A escola possui um grande desafio na concretização de currículos mais


plurais, de materiais didáticos antirracistas, permitindo assim que valores cul-
turais e históricos de diferentes culturas sejam incorporados à prática pedagó-
gica e à vivência escolar.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Capítulo 2 - O Movimento Negro brasileiro e as Diretrizes da


Educação Nacional: a Lei Federal 10.639/03 é L.D.B!

Jeruse Maria Romão

Vivemos no tempo em que a educação das relações étnico-raciais se


insere no campo das políticas educacionais brasileiras. Embora tenhamos um
conjunto de ações históricas que articuladas nos levam a esse contexto durante
um longo período, foi a sanção da Lei Federal 10.639 de 2003 que impulsionou
essa temática para um novo patamar no contexto da educação brasileira.
Com a sua aprovação, as políticas previstas passaram a fazer parte da Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, diluindo parte da invisibilidade
das políticas das relações educacionais étnico-raciais no Brasil. Esse artigo não
esgota o tema. Apresenta-o de forma introdutória, mas, desejando que os/as
leitores/as se sintam motivados ao aprofundamento das reflexões e questões
históricas resgatadas a seguir.

DEBATER, EMBATER E CONSTRUIR OS MOVIMENTOS SOCIAIS EM


AÇÃO PELAS DIRETRIZES DA EDUCAÇÃO NACIONAL

Assim que promulgada a Constituição Federal de 1988, no mesmo


ano, no mês de novembro, o deputado Federal Octávio Elísio apresentou na
Câmara um projeto de lei fixando as diretrizes e bases nacionais para a educa-
ção brasileira.
Assim que iniciou a sua tramitação, o projeto passou a ser acompa-
nhado por entidades da educação e movimentos sociais. Seu projeto de lei foi
apresentado com 83 artigos e o autor justifica estar fundamentado “em estudo
elaborado pela ANPED (Associação Nacional de Pós e Graduação e Pesquisa)”
em reunião anual, realizada também naquele ano na cidade de Porto Alegre.
Dos 83 artigos apresentados na primeira proposta, nenhum tratava de
políticas étnicas, sejam elas para negros ou indígenas. No caso da população
negra, vale lembrar que 1988 - ano em que foi apresentada a proposta de LDB
- foi amplamente discutido e celebrado como o ano do Centenário da Abolição
da Escravatura no Brasil. Governos, instituições, movimento, imprensa, cor-
reios, editoras, Congresso Nacional, cada qual de sua forma, trataram de refle-
tir sobre a escravidão, o papel e a contribuição dos negros, bem como, as con-
sequências do racismo. Contudo, essas reflexões não repercutiram no texto da

29
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

lei. Das chamadas minorias, observa-se que os acolhidos pelo primeiro texto
da lei foram os “portadores de necessidades especiais”, pensados também pela
primeira vez no sistema educacional brasileiro.

No ano do Centenário da Abolição da Escravatura muitas ações foram realizadas por


instituições públicas, movimento negro, entre outros. Os Correios e a Casa da Moeda,
por exemplo, participaram criando selo e moedas comemorativas celebrando a data.

Enquanto o projeto do deputado Elísio tramitava, uma comissão coor-


denada pelos deputados Florestan Fernandes e Jorge Hage recebia propostas
resultantes de audiências com vários setores da sociedade. Com estas propos-
tas foi elaborado o primeiro substitutivo ao projeto original, que passou a ser
debatido pela Câmara Federal pela sociedade.
A mobilização dos segmentos e dos movimentos sociais foi articulada
pelo Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (FDEP), criado em 1989,
para debater e acompanhar os trâmites da Constituição de 1988 e permanece-
ram articulados para acompanhar a tramitação do projeto das diretrizes edu-
cacionais.
A proposta do fórum para a LDB foi discutida em diversos
eventos educacionais e, depois de sistematizada, foi apresentada
ao parlamento pelo então deputado Otávio Elísio, na intenção de
promover um debate democrático sobre o tema. Na proposta de
LDB apresentada, é defendido um conceito amplo de educação,
de trabalho e de qualificação do trabalhador docente, visando
como principal objetivo a formação do cidadão1.

1 “O embate político coloca-se entre o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública na LDB
(FNDEP), formado por 26 entidades (científicas, sindicais e estudantis, de especialistas de
educação, de secretários estaduais de educação e de dirigentes municipais de educação)

30
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

No início de 1990 um novo substitutivo foi apresentado, acrescido de


outras tantas propostas e alterações na redação. Neste foram incorporadas as
propostas apresentadas pelo movimento indígena brasileiro, passando a com-
por o texto, um capítulo específico para esta população, tratando de suas espe-
cificidades culturais e educativas. (Ver GRUPIONI, 1991)
Havia polos extremos colocados e conteúdos ideológicos em disputa.
Nas décadas de 1980 e 1990, os conteúdos de movimentos sociais, sindicatos
e centros acadêmicos da educação, posicionavam-se fortemente contra a glo-
balização, a concepção de estado mínimo, a privatização do ensino e lutavam
pela valorização do magistério, por um outro modelo de educação infantil,
entre outros temas.
As questões étnicas passaram distante destes movimentos. Embora fértil
e ativo nestas décadas, as questões apontadas pelos movimentos sociais negros
não foram levadas em consideração, porque, no discurso dominante a preo-
cupação era com uma educação universal e da base curricular comum. Esse
movimento da LDB caminhava em sentido contrário às demandas dos movi-
mentos negros que, pretendiam uma escola plural e com conteúdos calcados
nas pluralidades étnicas e culturais brasileiras. Esse, então, era o debate central
posto e que não encontrei repercussão entre os parlamentares e participantes
de movimentos em defesa da escola pública.
Mas, enquanto o projeto tramitava na Câmara dos Deputados, aguar-
dava no Senado Federal três projetos substitutivos aos anteriores. Foram
necessários muitos acordos políticos para que fossem respeitadas as dinâmi-
cas anteriores e estes projetos aguardassem os encaminhamentos dados pela
Câmara e pelos movimentos da sociedade.
Contudo, contrariando as recomendações, o Senador Darcy Ribeiro,
com apoio do governo federal, apresentou um projeto substituto (o terceiro)
àquele que estava sendo discutido pela Câmara. A apresentação deste substitu-
tivo não considerava o acúmulo dos debates levados a cabo por anos pela socie-
dade e os parlamentares. Houve divisão e muitas renúncias de participação de

e as entidades que representam o ensino privado, a Confederação Nacional dos Estabe-


lecimentos de Ensino (CONFENEN), do lado do grupo empresarial, e do lado do grupo
confessional, a Associação de Educação Católica (AEC), congregando escolas e professores
do ensino fundamental e médio e a Associação Brasileira de Escolas Superiores Católicas
(ABESC), congregando educadores e escolas superiores católicas”. OLIVEIRA, Regina T.C.
Os movimentos sociais na educação: o processo de elaboração da LDB – 1988 a 1996.
Disponível em http://sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe2/pdfs/Tema2/0208.pdf.
Acesso em 09 de janeiro de 2014.

31
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

parlamentares, que as faziam ou para protestar contra a alteração do processo,


ou então, para dificultar o processo e arrefecer as críticas sociais. Os deba-
tes estavam ideologicamente bem colocados. Segmentos sociais e setores da
educação mobilizaram-se na defesa de seus interesses. Defensores da escola
pública de um lado e segmentos privados e religiosos de outro.

A LDB E AS AFRICANIDADES BRASILEIRAS

O autor do terceiro substitutivo, o senador Darcy Ribeiro embora um


antropólogo dedicado também a estudar relações raciais no Brasil e, em parte
o negro, não trouxe para o texto da lei seu conhecimento.
Para seus críticos Darcy apoiou-se na teoria da “Democracia Racial”,
embora tenha estudado e escrito sobre os negros e as relações de poder e
racismo das quais eram vitimados. Refletiu, em suas obras, sobre o papel fun-
damental das populações africanas, tanto, que de certa vez publicou:
Calculo que o Brasil, no seu fazimento, gastou cerca de 12
milhões de negros, desgastados como a principal força de
trabalho de tudo o que se produziu aqui e de tudo que aqui
se edificou. (RIBEIRO, 1995, p. 220)

Foi, no entanto, com a chegada de Benedita da Silva ao senado (1995-


1998), que as propostas do Movimento Negro começaram a ser discutidas,
embora com muita resistência. Benedita propôs, através do projeto de lei n. 18
de 1995, o ensino da “História das Populações Negras do Brasil”, como também,
“a obrigatoriedade do ensino da história das populações negras do Brasil”.
Plano Nacional de Educação

Interessante observar que, um ano após a sanção da LDB, em 1997, realizou-se


na cidade de Belo Horizonte, o 2º Congresso Nacional de Educação, (CONED),
quando se elaborou a proposta da sociedade civil para o Plano Nacional de Educa-
ção, refletindo também que:
Permeando a educação brasileira, em todos os seus níveis e modalidades, regis-
tram-se, também, as consequências sociais do fenômeno da dupla, por vezes tri-
pla, exclusão, quando ao viés socioeconômico se soma e integra o viés de raça e/ou
gênero: além de pobre, ser mulher, negra ou indígena, significa, como regra, estar à
margem dos produtos e benefícios socialmente produzidos.
Novamente movimentos e pesquisadores reuniram-se para debater a educação
brasileira e, neste contexto tão próximo da sanção da LDB, observa-se atenção
para as questões étnico-raciais na primeira versão do texto do Plano.

32
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Ao negar as suas propostas, com base no discurso de que se pretendia


uma educação de base comum, as pressões trouxeram a seguinte redação para
a LDB: “Art 26º- O ensino de História do Brasil levará em conta as contribui-
ções das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, espe-
cialmente as matrizes indígena, africana e européia”. Essa redação, como vere-
mos mais adiante, vai ser modificada quando sancionada a Lei 10.639 de 2003.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n. 9.394, foi san-
cionada em 1996 e, à época, ficou também conhecida como Lei Darcy Ribeiro.

BREVE HISTÓRICO DA LEI FEDERAL 10.639/03

Com a ausência da temática


dos afro-brasileiros na LDB, os depu- Esther Pillar Grossi, deputada fede-
ral pelo estado do Rio Grande do Sul é
tados federais Esther Grossi (RS) e professora, formada em matemática.
Ben Hur Ferreira (MT) apresenta- Notabilizou-se internacionalmente por
ram, no ano de 1999, um projeto de sua defesa por educação pública de qua-
lei de número 259, propondo a obri- lidade e, sobretudo, por propostas inova-
gatoriedade do ensino de História e doras na educação de jovens e adultos em
Cultura Africana e Afro-Brasileira seu estado. Foi sindicalista e Secretária
Municipal de Educação de Porto Alegre,
nas escolas. no governo do Partido dos Trabalhado-
O deputado Ben Hur, tinha res.
como chefe de gabinete o militante e
jornalista negro Edson Cardoso, a quem se credita o conhecimento sobre um
projeto de lei arquivado, apresentado pelo então deputado Humberto Costa
sobre a temática.
O projeto do deputado Humberto Costa atendia a reivindicação de
militantes do movimento negro de seu estado, Pernambuco. Registra-se que
a ideia já havia sido apresentada na
Eurídio Bem Hur Ferreira, Nascido em Câmara de Recife e na Assembleia de
1964, natural do estado Mato Grosso, foi Pernambuco sem obter sucesso em
o deputado mais votado e o mais jovem sua aprovação.
eleito pelo Partido dos Trabalhadores de
seu estado (1993-2003), licenciando-se Contudo, a proposta de Hum-
em 2003 para exercer o cargo de Secre- berto Costa não foi a única sobre
tário de Educação do Mato Grosso. For- o tema a tramitar na Câmara ou
mado em Direito e Filosofia, não obteve Senado, como nos aponta Gatinho
sucesso na reeleição e é professor da Uni- (2008). Há um conjunto de projetos
versidade Católica de Campo Grande.
de lei que, desde 1979, insistem em

33
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

fazer debater na Câmara dos Deputados e no Senado, a necessidade de uma


educação com a presença da história africana e afro-brasileira nos currículos.
Desarquivado, o projeto passou a tramitar na Câmara dos Deputados, rece-
bendo pareceres favoráveis no período de 1999 a 2002.
Importante destacar que em seu texto na Câmara, o projeto não fazia
referência a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Essa referência vai
constar em seu texto quando o projeto tramita no Senado.
Enviado para o Senado em abril de 2002, o projeto caminhou com pare-
ceres favoráveis, sendo que, um dos pareceres sugeriu a alteração de sua reda-
ção. O parecer nº 1.318, da Comissão Diretora do Senado apresentou para
votação a redação final do projeto. Sua proposta foi a seguinte:
Redação final do Projeto de Lei da Câmara nº 17, de 2002 (nº
259, de 1999, na Casa de origem).
A Comissão Diretora apresenta a redação final do Projeto de Lei
da Câmara nº 17, de 2002 (nº259, de 1999, na Casa de origem),
que dispõe sobre a obrigatoriedade da inclusão, no currículo
oficial da Rede de Ensino, da temática “História e Cultura Afro-
Brasileira” e dá outras providências, com alterações redacionais
para adequação à Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de
1998, com a Redação final do Projeto de Lei da Câmara nº 17, de
2002 (nº 259, de 1999, na Casa de origem).
Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece
as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências.

O Congresso Nacional decretou:

Art. 1º A Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar


acrescida dos seguintes arts.
26-A, 79-A e 79-B:
“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e
médio, oficial e particular, toma-se obrigatório o ensino sobre
História e Cultura Afro-Brasileira”.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo
incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos
negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação
da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro

34
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do


Brasil.
§ “2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-brasileira
serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em
especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História
Brasileiras.”
§ 3º As disciplinas História do Brasil e Educação Artística, no
ensino médio, deverão dedicar, pelo menos, dez por cento de seu
conteúdo programático anual ou semestral à temática referida
nesta Lei”.
“Art. 79-A. Os cursos de capacitação para professores deverão
contar com a participação de entidades do movimento afro-
brasileiro, das universidades e de outras instituições de pesquisa
pertinentes à matéria.”
“Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro
como ‘Dia Nacional da Consciência Negra.”
Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

O texto da Lei Federal 10.639/03 - que nasceu como lei ordinária, mas,
quando sancionada tornou-se lei complementar à Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional - foi assim votado e aprovado. Quando assinada pelo pre-
sidente da república, foram vetados os parágrafos 3º do artigo 26 A e o artigo
79 A.
No ano de 2008, a lei foi alterada para acrescer as populações indígenas
em seu texto e contexto, ficando assim sua redação:

Lei Federal n. 11.645 de 2008


Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada
pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História
e Cultura Afro-Brasileira e Indígena.
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de
ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo
da história e cultura afro-brasileira e indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá
diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a
formação da população brasileira, a partir desses dois grupos
étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos,
a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura

35
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da


sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas
social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira
e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito
de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação
artística e de literatura e história brasileiras.

Outra alteração ocorreu no ano de 2013 quando, foi acrescido o inciso


XII, ao artigo 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que, esta-
belece os princípios da educação:
Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes
princípios

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;


II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura,
o pensamento, a arte e o saber;
III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas;
IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;
V - coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
VI - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
VII - valorização do profissional da educação escolar;
VIII - gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei
e da legislação dos sistemas de ensino;
IX - garantia de padrão de qualidade;
X - valorização da experiência extraescolar;
XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas
sociais.
XII - consideração com a diversidade étnico-racial. (Grifos
meus)

DIRETRIZES CURRICULARES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES


ÉTNICO-RACIAIS E SUAS IMPLICAÇÕES

Diretamente relacionadas à Lei 10.639/03 estão as Diretrizes Curricu-


lares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNERER). Sua elabora-
ção também está relacionada com as lutas do movimento negro por educação.
Vejamos.
Em 2002, depois de consultado o movimento negro brasileiro, foi
nomeada pelo Presidente da República para fazer parte do Conselho Federal

36
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

de Educação, a professora doutora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, da


Universidade Federal de São Carlos, São Paulo. A professora Francisca Novan-
tino Pinto de Ângelo, da etnia Pareci, assumiu uma cadeira, indicada pelo
movimento indígena.
Após a sanção da Lei, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, membro da
Câmara Superior do Conselho Nacional de Educação, instituiu e coordenou
um grupo de trabalho para tratar da regulamentação da Lei 10.639/03.
O grupo, formado por militantes negros que trabalhavam
em alguns órgãos federais, elaborou o que eles chamaram
de “Programa para a Educação da População Negra” e foi de
fundamental importância a elaboração das Diretrizes, pois
mesmo antes da comissão bicameral do CNE, responsável
por encaminhar como ocorreria o processo de elaboração das
Diretrizes e se manifestar a respeito do processo, o grupo já
indicava quais passos seriam possíveis nesta articulação.2

Até a aprovação da Lei 10.639/03, outros estados e municípios já haviam


tomado iniciativa semelhante e tornaram obrigatório o ensino de conteúdos
afro-brasileiros e/ou africanos nas escolas. Citamos como exemplo Belém,
Aracaju, São Paulo. Em Santa Catarina, antes da lei federal, já haviam sancio-
nado leis os municípios de Itajaí, Florianópolis e Criciúma.
As iniciativas ocorreram por parte do movimento social negro que, com
longa trajetória no debate sobre acesso à educação e combate ao racismo na
escola, dedicou ao ensino destes conteúdos estratégia necessária para alcançar
seus objetivos educacionais e políticos. Assim, organizações negras demanda-
ram para as câmaras municipais a pauta sobre normativas para o sistema edu-
cacional no que se referia ao tema. Estas iniciativas, conhecidas da Conselheira
Petronilha, também serviram de subsídios para sua proposta de diretrizes.

2 “Esta parcela ou grupo do movimento negro formada por Petronilha Silva - UFSCAR/
CNE, Ivair A. A. dos Santos – MJ/SEDH, Maria Auxiliadora Lopes - MEC, Maria Siqueira
– MINC/Fundação Palmares, Raimundo Miranda - CNE, Jeruse Romão – UNESCO/UNI-
SUL e Zélia Amador de Deus – MDA/INCRA elaborou o Programa para Educação da Pop-
ulação Negra e entregou a comissão de transição do Presidente que estava recém-eleito em
2002, Luis Inácio “Lula” da Silva, as propostas para a expansão da participação da população
negra nos sistemas de ensino que, entre outras coisas, solicitava ao Presidente da República
a inclusão da cultura e da história do povo negro como conteúdo escolar. Petronilha Silva
cita este documento em relatório de prestação de contas ao movimento negro de sua partici-
pação no CNE como um dos documentos mais importantes articulados com a participação
dela” (GATINHO, 2008, p. 102).

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

As DCNERER estabelecem orientações, definições e princípios para


educação das relações étnico-raciais e, sua questão central envolve o currí-
culo, ou seja, orienta e inspira os sistemas para a construção de novas bases
curriculares, através de novos conteúdos sobre os africanos e seus descenden-
tes brasileiros. Esses conteúdos são compreendidos como bens culturais, de
interesse humano, coletivo e com relações de pertencimento que envolvem
toda a humanidade, não são estanques, exigindo uma relação dialógica com
saberes comunitários e redes de pertencimento dos alunos, professores e
comunidade do entorno das escolas. Não são conteúdos a serem despejados,
mas para serem construídos, na medida em que há apenas 10 anos as esco-
las brasileiras se colocaram nesse lugar de ensinar e aprender sobre um tema
ausente dos conteúdos escolares.
As Diretrizes analisam historicamente as relações étnico-raciais no pas-
sado, suas consequências na dinâmica social presente e propõe que através do
ensino, os sujeitos - negros e brancos - sejam reeducados.
Todo aquele processo, iniciado com os debates da LDB, traziam como
centro o desejo de uma escola com novas posturas didáticas, pedagógicas e,
sobretudo, com novas referências e abordagens sobre o negro. Trazia em si, a
larga experiência do movimento negro que em seus projetos educativos ou em
parceria com escolas, verificavam mudanças e avanços nas pessoas e sistemas,
quando estes acessavam novas abordagens.
As DCNERER são pautadas na reparação, e seu texto informa:
A demanda por reparações visa a que o Estado e a sociedade
tomem medidas para ressarcir os descendentes de africanos
negros, dos danos psicológicos, materiais, sociais, políticos e
educacionais sofridos sob o regime escravista, bem como em
virtude das políticas explícitas ou tácitas de branqueamento
da população, de manutenção de privilégios exclusivos para
grupos com poder de governar e de influir na formulação de
políticas, no pós-abolição. Visa também a que tais medidas se
concretizem em iniciativas de combate ao racismo e a toda sorte
de discriminações. (DCNRER, 2004, p. 11)

Assim sendo, espera-se que as ações de reparação se concretizem através


da educação das relações étnico-raciais, que segundo as DCNERER, “Impõe
aprendizado entre brancos e negros”.
Os princípios das diretrizes, quais sejam, “consciência política e histó-
rica da diversidade; fortalecimento de identidades e direitos e ações educativas

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

de combate ao racismo e discriminações” orientam a condução das ações dos


sistemas, unidades escolares e dos professores, para que a escola como espaço
de ensino, deseduque para o racismo.

Contextos catarinenses: Lei Complementar 263, de 23 de janeiro de 2004


A Lei 170 de 1998 que dispõe sobre o Sistema Estadual de Ensino, em 2004 foi
alterada pela Lei complementar 263. As alterações buscaram inserir nas normati-
vas estaduais, as questões étnico-raciais conforme preveem legislações federais e,
assim, verticalizar algumas das políticas propostas.
A lei trouxe para as políticas do estado, as comunidades quilombolas e suas especi-
ficidades educativas, o respeito às características étnicas ao processo de educação
escolar dos sistemas e redes; dispondo sobre oferta básica para as comunidades
quilombolas e:
Art. 3º Acrescenta alíneas ao inciso IV do art. 29 da Lei Complementar nº
170, de 1998, que passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 29 IV - a) O
ensino de História incluirá conteúdos que versem sobre a cultura e história
de matriz Afro-brasileira, observando o estudo da História da África e dos
africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro
na formação estadual e nacional, resgatando a contribuição do povo negro
nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. b) As
redes de ensino através de seus órgãos competentes promoverão a forma-
ção dos professores para os conteúdos de história e cultura Afro-brasileira.
As alterações foram propostas pela professora Jeruse Romão e o projeto de lei apre-
sentado na Assembleia Legislativa de Santa Catarina é de autoria do ex-deputado
estadual Vilson Vieira (Dentinho), da cidade de Joinville. Para conhecer as altera-
ções na íntegra acesse: http://www.cpisp.org.br/htm/leis/page.aspx?LeiID=28

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Agora que você leu esse artigo, acredito que já possa compreender um
pouco melhor as trajetórias do movimento negro por educação no Brasil e em
Santa Catarina. Gostaria que você refletisse sobre as mudanças que os movi-
mentos sociais – negros, mulheres, indígenas, necessidades especiais entre
outros - promoveram na educação buscando ver refletidas em seus princípios
a questão de identidade de cada um.
Pensando nos conteúdos de matriz africana e afro-brasileira no currí-
culo, como determina o artigo 26ª da LDB, é importante refletir sobre o por-
quê da necessidade de uma lei para que os conteúdos sobre África, africanos e
seus descendentes pudessem fazer parte do currículo da escola brasileira, se na
sociedade onde essa escola se insere, a população negra é maioria.

39
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

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Federal n 10.639/03. SECADI: Brasília, MEC, 2005 ( Coleção Educação Para
Todos)
VALADARES, Fabiana C e ROCHA, Marisa L da. Fórum nacional em defesa
da escola pública na LDB: a questão da docência. Revista Estudos e Pesquisa
em Psicologia; RJ, UERJ, n.2, 2006.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

MÓDULO 2 - Relações Étnico-Raciais na Sociedade


Neste módulo do curso abordaremos aspectos importantes relativos
às relações étnico-raciais em nossa sociedade, especialmente atentando para
reflexões em torno dos currículos escolares e dos materiais didáticos que ser-
vem de suporte aos processos de escolarização, bem como a compreensão
das lutas do Movimento Negro e os avanços provocados pelas conquistas no
âmbito das ações afirmativas.
Os capítulos que seguem aprofundam alguns debates vigentes sobre a
imagem perpetuada em livros didáticos e materiais de apoio escolar quando
lidamos com a história e a cultura africana e afro-brasileira. Estereótipos nega-
tivos e a imagem de sofrimento e inferioridade, aliada às heranças da escra-
vidão tornaram a presença de africanos e seus descendentes em livros didáti-
cos, e também nas mídias, uma marca vislumbrada como ruim. Assim sendo,
torna-se difícil positivar a trajetória de sujeitos negros no espaço da escola se a
imagem que os representa está vinculada apenas à escravidão.
Muito tem sido discutido e produzido para questionar esta imagem
estereotipada e negativa, trazendo à tona elementos da história e da cultura
dos diferentes povos de origem africana, mas ainda lidamos com uma reali-
dade que se modifica a passos curtos e lentos. Também, como movimento em
direção à construção de novas visões, perspectivas e conquistas, o Movimento
Negro e os intelectuais antirracistas transformaram lutas políticas em pautas
para as demandas destes grupos sociais, constituindo um olhar diferenciado
a respeito da política e dos papéis dos governos. Neste novo momento, faz-se
necessário reivindicar direitos em forma de políticas públicas.
Reconhecendo dívidas históricas e crendo na construção de um novo
projeto de país, os governos desta última década têm se mostrado atentos às
demandas reivindicatórias de militantes e intelectuais antirracistas que há
tempo exigem para as populações marginalizadas e excluídas oportunidades,
direitos e acesso a bens culturais e materiais. Assim, em pauta atualmente, de
diferentes formas, as ações afirmativas e um olhar mais humanizado e posi-
tivado das vivências africanas e afro-brasileiras permitem pensarmos num
projeto de país, capaz de lidar com suas diversidades e com as relações étnico-
-raciais inerentes.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Capítulo 1 - Relações raciais na escola: currículo e


responsabilidades, livro didático, mídias e escola

Maristela dos Santos Simão


Angelo Renato Biléssimo

Esse capítulo tem por objetivo dar continuidade às questões discutidas


nos capítulos anteriores, abordando perspectivas sobre Relações Raciais na
escola, currículo e responsabilidades, livro didático, mídias e escola.
Neste sentido, nossa proposta é apresentar subsídios para uma compre-
ensão crítica da sociedade brasileira no que tange às Relações Raciais e suas
implicações no cotidiano. Buscamos, a partir do teórico, propor a aplicação de
práticas reflexivas que reafirmem o compromisso com uma abordagem antir-
racista, enfatizando a educação, em uma perspectiva de superação de desi-
gualdades, preconceitos e invisibilidade das populações de origem africana na
nossa sociedade.
Organizamos este texto a partir da contribuição de autores relevantes e
vídeos que complementam as discussões. Deste modo é muito importante que
a leitura do material seja acompanhada da visualização dos vídeos. Um bom
estudo a todos nós!

RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO BRASIL

Para iniciarmos a discussão, propomos a visualização e reflexão desse


vídeo elaborado pela UNICEF, intitulado Por uma Infância sem racismo:

Vídeo 1: Por uma infância sem racismo. Fonte: youtu.be/BfkZLkSHWR8

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Concordamos que a sociedade brasileira é constituída por diferentes


grupos que a caracterizam, em termos culturais, como uma das mais ricas do
mundo. Entretanto, sua história é marcada por desigualdades e discrimina-
ções, especificamente contra populações de origem africana e indígenas, impe-
dindo, desta forma, seu pleno desenvolvimento econômico, político e social.
Nos últimos anos, no entanto, e em especial na última década, o Bra-
sil tem concentrado esforços no sentido de reverter esse processo, a par-
tir da construção de políticas públicas específicas para esses segmentos,
além de várias iniciativas que contemplem os direitos dessas populações.
Porém, pensar essas políticas, suas aplicações e consequências na socie-
dade, passa por diversos embates e discussões, com diversos interesses,
sejam estes políticos ou teóricos. Tem avançado de forma significativa a
produção bibliográfica sobre o tema, auxiliando a reflexão sobre esse pro-
cesso. Assim, traçar uma linha teórica para tal entendimento torna-se um
desafio e faz-se de suma importância.
Afinal, as políticas não são apenas implementadas, mas mantém-se em
permanente movimento, sendo continuamente reinterpretadas e ressignifica-
das pelos sujeitos (BALL, 2009). Cabe assim, a nós enquanto sujeitos desse
processo, compreendermos os termos que definem essas políticas, para que
possamos auxiliar na construção de uma sociedade mais igualitária e diversa.
E a partir desse referencial, concordamos com Carvalho (2013),
que a transposição das normas para a execução das políticas
nunca é direta, é sempre mediada por diversos atores sociais,
por interesses múltiplos e muitas vezes divergentes, no caso das
relações raciais fortemente marcadas por formas de compreensão
socialmente determinadas e muitas vezes arraigadas. Portanto,
o processo é sempre de incorporação parcial, eivado de
contradições, muitas vezes com interpretações, traduções e
ressignificação das normativas nas redes (CARVALHO, 2013, p.
21).

Ao longo dos últimos anos, pesquisadores, ativistas e educadores vêm


pautando suas ações no sentido de implementar políticas públicas em busca
de igualdade e respeito à diversidade. A luta antirracista se dá em diversos
cenários. É necessário perceber quais atitudes e comportamentos, em especial
nos meios de comunicação e nas escolas, são potentes ferramentas para a pro-
pagação das ideias. Assim, é preciso uma atenção especial por parte daqueles

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

que buscam a valorização da diversidade e o combate a preconceitos e discri-


minações.
Propostas vêm sendo debatidas, e como principal marco legal aponta-
-se, no que tange às populações de origem africana no Brasil, a Lei 10.639/03
(BRASIL, 2003). Tal lei caracteriza a importância do Ensino da Cultura e His-
tória Africana e Afro-brasileira estarem presentes nos currículos oficiais de
ensino, modificando o artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB) (BRASIL, 1996), tornando obrigatório o ensino de história e
cultura africana e afro-brasileira em todas as unidades de educação. Em março
de 2008 a Lei n° 11.645, modifica a Lei 10.639/03 incluindo nela a temática
indígena.
Segundo Paulino Cardoso,
As mudanças trazidas na Lei 9.394/96, Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, são facilmente compreendidas quando
associadas ao parecer do Conselho Nacional de Educação N
03/04, que propôs as Diretrizes para a Educação das Relações
Étnico-raciais e para o Ensino de Cultura e História Afro
Brasileira e Africana. Esta norma legal, além de eliminar
silêncios, melhorou significativamente o texto da Lei 10.639/03,
ao criar orientações para sua implementação nas redes de ensino
oficiais do país. (CARDOSO, 2008a, p.102).

Em parecer às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educa-


ção das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
-Brasileira e Africana, sua relatora, Conselheira Petronilha Gonçalves e Silva,
afirma:
O parecer procura oferecer uma resposta, entre outras, na área
da educação, à demanda da população afrodescendente, no
sentido de políticas de ações afirmativas, isto é, de políticas
de reparações, e de reconhecimento e valorização de sua
história, cultura e identidade. Trata-o, da política curricular,
fundada em dimensões históricas, sociais e antropológicas
oriundas da realidade brasileira, e busca combater o racismo
e as discriminações que atingem particularmente os negros
(BRASIL, 2004, p.10).

Neli Góes (CARDOSO, 2008a), argumenta que durante muito tempo


o tema das relações raciais foi silenciado em nome do mito da democracia
racial incutido ao povo brasileiro. Desde o início da colonização europeia no

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Brasil, sempre houve grande permissividade em relação ao racismo e às prá-


ticas discriminatórias com relação às populações de origem africana e seus
descendentes. Mais do que isso, há episódios de uma clara postura legal ativa
do país nessa direção.
A sombra que esse cenário exerce sobre a educação não pode ser negli-
genciada. Embora necessária, a abordagem do tema não é tarefa fácil. Durante
muito tempo se conviveu com a ausência quase completa de conteúdos cur-
riculares que tratassem satisfatoriamente das características multiculturais do
país e sua população. Mais longe ainda esteve a discussão, dentro da educação,
dos efeitos dessa realidade e de sua fundamentação racista e discriminatória.
Para Góes,
o racismo que nos referimos encontra-se presente nos currículos
escolares, no qual a tradição eurocêntrica exclui conteúdos de
valorização da história dos povos africanos e de sua trajetória
de luta e resistência na diáspora. Folcloriza e subestima as
expressões de sua cultura e realidade, invisibiliza sua presença
e importância na sociedade passada e atual. (CARDOSO, 2008a,
p. 60)

Assim, o entendimento sobre Educação para Relações Étnico-Raciais,


segundo a resolução no 1, de 17 de junho 2004, vem ao auxílio das discussões,
como ato legal e esclarecedor. Portanto, a Educação para as Relações Étnico-
-Raciais tem
por objetivo a divulgação e produção de conhecimentos, bem
como de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos
quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de
interagir e de negociar objetivos comuns que garantam, a todos,
respeito aos direitos legais e valorização de identidade, na busca
da consolidação de democracia brasileira.(BRASIL, 2004, p.11)

Dentro deste esforço, ganha destaque a aprovação do Estatuto da Igual-


dade Racial, em julho de 2010, que tem como objetivo “garantir à população
negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étni-
cos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais
formas de intolerância étnica” (BRASIL, 2010). Os caminhos percorridos até
a aprovação da lei e alguns de seus pontos principais são discutidos no docu-
mentário “Raça”, de Joel Zito Araújo.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Vídeo 2: Entrevista - Documentário “Raça” discute igualdade racial. Fonte: youtu.be/rcvKiRBg8-Q

Do mesmo diretor, ver também o documentário “A Negação do Brasil” (2001),


sobre a participação de atores negros nas telenovelas brasileiras, e “As Filhas do
Vento” (2005), ficção sobre uma família no interior de Minas Gerais.

Ainda que seja tarefa de considerável monta, o Estado não está sozinho
na discussão, pelo contrário, é a partir da sociedade civil organizada, pensado-
res, pesquisadores, acadêmicos, ativistas, que a busca do enfrentamento desta
situação tem se verificado atualmente no Brasil. Entre os estudos que nos auxi-
liam nas discussões que aqui propomos, podemos destacar os trabalhos sobre
a Educação para as Relações Étnico-Raciais no Brasil (MUNANGA, 1999,
2005, 2006; GOMES, 2006; PAIXÃO, 2003; CARDOSO, 2008a, 2008b; GON-
ÇALVEZ e SILVA, 2008; CAVALLEIRO, 2001), além de pesquisas de escopo
mais locais, com destaque para os desenvolvidos dentro do Núcleo de Estu-
dos Afro-Brasileiros da Universidade do Estado de Santa Catarina (NEAB/
UDESC). Destacamos também a rica produção do governo federal, a partir
dos Ministérios, principalmente o MEC e suas secretarias, SECADI e SEPPIR.

AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS, A MÍDIA,


O LIVRO DIDÁTICO E A ESCOLA

De todas as pessoas que encontramos em nosso cotidiano, poucas são


as que conhecemos de modo mais aprofundado. Muitas vezes nossa impressão
sobre um indivíduo se dá apenas pelo que podemos enxergar imediatamente.
É comum que, de alguma forma, utilizemos o jeito que alguém se veste, seu

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

penteado, os acessórios que usa, o que carrega ou como o faz, para julgar as
pessoas. E nessa observação entra a cor da pele. Mas, as conclusões que tira-
mos de cada uma dessas características mudam, dependendo de quem faz a
observação.
Nessa perspectiva, o Projeto Cor da Cultura propõe uma reflexão bem
interessante. Em síntese:

“Como o que nos interessa apurar no momento é o preconceito racial, inventamos


um jogo para descobrir até que ponto a cor da pele de uma pessoa influencia, de
fato, no julgamento que se dá pela aparência. Os vinte entrevistados, escolhidos
aleatoriamente, relacionaram as fotografias de duas famílias, uma negra e outra
branca, à habitação e ao local de trabalho do chefe de cada uma delas. Quer ver o
resultado?
Um senhor foi o primeiro a apontar a família negra como moradora da casa mais
humilde. Uma moça loura garantiu que qualquer um daquelas fotos poderia tra-
balhar no consultório médico. Já a jovem branca classifica a família negra com o
aspecto mais feliz. Depois de um rapaz negro reclamar que a sociedade branca não
oferece oportunidades aos afrodescendentes, um homem branco liga os negros à
casa mal acabada, afirmando que fez esta associação motivado pela cor da pele de
seus membros”.

Essas associações não acontecem por acaso. Na maioria dos filmes,


novelas e peças publicitárias pessoas negras aparecem vinculadas às piores
condições de trabalho e moradia.
As grandes conquistas, a grande maioria do protagonismo e as melho-
res condições de vida são associadas a personagens interpretados por atores e
atrizes brancos. Essa situação ainda é muito presente, mesmo que a situação
tenha melhorado nos últimos anos. E os livros didáticos também seguem esse
caminho, conforme explicitado no vídeo:
A atriz Zezé Motta, por exemplo, foi protagonista do filme ‘Xica
da Silva’, dirigido por Cacá Diegues em 1976, e é hoje uma das
figuras mais importantes da dramaturgia brasileira. Zezé Motta
vasculha suas mais remotas lembranças antes de afirmar que
o negro é totalmente invisível no material escolar. “Não tenho
lembrança de aprender sobre heróis ou celebridades negras na
sala de aula, mas sempre encarei isso com naturalidade”, conta. E
é verdade. Os negros sempre aparecem desempenhando funções
subalternas, atividades exclusivamente manuais, em situações de
penúria ou dignas de piedade na maioria dos livros didáticos e
para-didáticos.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

“Ora, se nos informamos e formamos majoritariamente pelo que é emitido pelos sis-
temas midiáticos, o que podemos depreender dos discursos sobre o negro e a mulher
negra, veiculados por programas televisivos e radiofônicos, peças e anúncios publicitá-
rios, jornais impressos e eletrônicos, novelas e congêneres? Olhando se soslaio para a
paisagem midiática brasileira podemos observar um trajeto, pontilhado por estigmas e
estereótipos, que parece se repetir indefinidamente. As malhas verbovisuais que com-
põem a cena intersemiótica (imagens, textos escritos, som, projeções gráficas e diagra-
máticas) posicionam sujeitos e temas nos espaços de representação de modo a fixá-los
em categorias predeterminadas. As imagens contemporâneas têm ligação subterrânea
com imagens de tempos pretéritos. As referências do passado ás vezes parecem desapa-
recer, mas em termos de articulação ganham nova roupagem, permanecem, na maioria
das vezes, como suporte de construção de imagens de negros, índios (o cinema ameri-
cano que o diga), mulheres e outros segmentos vulneráveis” (BORGES, 2012, p. 188).

Vídeo 3: A Negação do Brasil - O Negro nas Telenovelas Brasileiras. Fonte: youtu.be/Fp6x9OtYuVo

Vídeo 4: A Negação do Brasil - O Negro nas Telenovelas Brasileiras. Fonte: youtu.be/6b1_aS-kvaI

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Mas há aspectos ainda mais deletérios da sombra projetada por essa


questão na educação. Vários estudos demonstram que muitos problemas
educacionais atingem uma maior parcela da população negra, em compara-
ção com outras origens. Questões como analfabetismo, altas taxas de evasão
e baixa escolaridade da população são exemplos citados. Como outros pro-
blemas verificados na educação, suas causas são complexas e se espraiam por
vários aspectos de nossa sociedade. Logo, a superação destas dificuldades
envolve esforços variados, dos quais iniciativas como a Lei 10.639/03, constitui
apenas um dos caminhos necessários. Ainda assim, a valorização da História
da África, e a superação de estereótipos de africanos e descendentes podem
ser de grande valia na construção de uma sociedade que realmente valorize
suas mais variadas origens, e as diversas contribuições ocorridas durante sua
construção.
A partir dessa abordagem o Projeto Cor da Cultura propõe outra refle-
xão. Traz um exemplo específico, entre tantos que podem ser elencados, sobre
como o corpo humano é representado nos livros didáticos e a forma como é
apreendido pela sociedade.

Vídeo 5: A cor da Cultura. Nota 10: Corpo. Fonte: youtu.be/oi2V37fOkb4

Síntese da proposta:

“Por que será que todos os livros que tratam do tema ‘corpo humano’ mostram
exclusivamente corpos brancos? Será que os negros são diferentes por dentro ou
é apenas uma questão de preconceito por parte dos livros? A fim de descobrir se
os brancos diferem anatomicamente dos negros fizemos uma série de radiografias
cujos ‘pacientes’ eram um negro e um branco. Estes raios x foram mostrados para

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

pessoas que circulavam num determinado centro cultural e que deveriam identifi-
car a cor das pessoas radiografadas. Adivinha o que eles responderam?
Um rapaz branco disse que ‘não tem como ver a pele da pessoa porque o raio x é
uma fotografia de ossos’. Outro rapaz com a pele bem clara também comentou que
era impossível definir porque ‘a única diferença entre ambas as raças é a melanina’.
Uma moça branca reconheceu que ‘não tem como saber a cor’. Muito bem. Um
jovem branco, no entanto, ponderou que ‘um nariz largo pode ser afro’ diante de
um raio x e houve uma mulher negra que arriscou um palpite: ‘acho que essa chapa
é de uma pessoa branca por causa da mandíbula afilada’.
Dois pulmões, um fígado, um estômago, um coração, a mesma quantidade de ossos.
Tudo que existe no corpo de um branco também pode ser encontrado no corpo de
um negro. Daí a dificuldade das pessoas de identificar, a partir de uma radiografia,
qual a etnia do dono dos ossos fotografados. Esta mesma pesquisa poderia ter sido
feita com amostras de sangue porque as respostas seriam as mesmas. Isso porque
brancos, negros, pardos e até albinos fazem parte de uma única espécie: a humana”.

Embora a utilização de razões fisiológicas ou biológicas para qualquer


discriminação tenha sido sepultada por estudos das mais variadas áreas do
conhecimento, questões étnico-raciais continuam sendo tratadas de forma
discriminatória em nossa sociedade. De acordo com o vídeo anterior:
Se não há diferenças por dentro, como explicar as diferenças que
vemos por fora? Na cor da pele e na textura do pêlos de todos
os seres humanos há um pigmento amarelo-escuro chamado
melanina, que é produzido com a função de nos proteger
dos raios solares. Na presença de grande concentração de
melanina, a pele humana adquire uma tonalidade marrom ou
preta. Em baixas quantidades, a pele assume um tom branco-
rosado. Portanto, a única diferença entre negros e brancos está
na variação da quantidade de uma substância. É ou não é um
motivo muito pequeno, que não justifica as grandes diferenças
sociais entre as duas raças? “Aqui no Brasil, o preconceito é de
marca, não de origem. Então, são seus traços, seu cabelo, a cor
da sua pele, as linhas do seu rosto que indicam que você é negro
e é essa a marca que propicia a discriminação”.

Reside, assim, na educação a fonte da propagação e reiteração de com-


portamentos discriminatórios. Nessa perspectiva, entendemos que a constru-
ção de outras práticas e políticas pedagógicas na educação, visando o compro-
misso com uma abordagem inclusiva e não discriminatória – seja pela cor da
pele, orientação sexual, idade, deficiências, e outras formas de preconceitos
– deve partir da concepção de uma educação para a diversidade.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Educar para a diversidade difere de segregação, respeita as


especificidades e busca a inclusão social. A preocupação com a
elaboração de currículos que contemplem a diversidade pauta
as ações e propostas pedagógicas, pois não se pode conceber
educação inclusiva partindo de currículos universalistas,
trabalhados igualmente com todos os grupos, não levando em
consideração especificidades, nem diversidades. (ENEJA, 2006)
Sob essa perspectiva, trazemos para auxiliar na discussão estudos sobre
a educação multicultural, que acreditamos ser um referencial de grande rele-
vância e importância. A educação multicultural, movimento presente em todo
o globo, tem entre seus objetivos permitir a construção, por parte dos alunos,
de conhecimentos, atitudes e habilidades capazes de ajudar na construção de
cidadãos que busquem a justiça social, tanto no cenário global quanto dentro
de seus países e comunidades. Para que esses objetivos sejam possíveis, é muito
importante que essa transformação seja desenvolvida, de forma coordenada,
nas escolas. Segundo Banks:

Educação multicultural é uma ideia que designa que todos os


estudantes, independentemente do grupo a que pertençam, tais
como aqueles relacionados a raça, cultura, classe social ou língua
– possam vivenciar a igualdade educacional nas escolas. Alguns
estudantes, por suas características raciais, étnicas, sociais e
culturais têm maiores chances de sucesso intelectual, já que
estão mais bem estruturados em relação a estudantes de outros
grupos. (BANKS, 2006)

A construção de uma educação multicultural, no entanto, vai muito


além da atuação do professor. Mudanças estruturais – no material utilizado,
no currículo, na atuação de administradores, nas regras, processos e cultura
das escolas e universidades – são necessárias para que os processos de ensino
e aprendizagem possam responder positivamente aos desafios que se impõem.
Ainda, no entendimento de Banks,
Por conseguinte, para transformar a escola no sentido de facilitar
a igualdade educacional, todos os seus componentes devem ser
substancialmente mudados. Focar qualquer uma das variáveis na
escola – tais como o currículo obrigatório – não implementará
a educação multicultural. No entanto, a integração do currículo
ao conteúdo multicultural é o ponto lógico para começar o
processo de reforma escolar. Como a educação multicultural
é um processo contínuo que tenta viabilizar metas idealizadas

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

– como igualdade educacional e erradicação de todas as formas


de racismo e discriminação – pode não ser plenamente alcançada
na sociedade. (BANKS, 2006)

AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E A BUSCA POR DIREITOS

A diferença entre os indicadores estatísticos sobre afrodescendentes e


outras populações no Brasil não se resume aos educacionais. Profundamente
ligadas a essas diferenças, questões como nível de desemprego, trabalho infor-
mal e baixa remuneração também apontam uma diferença profunda no tra-
tamento dispensado. Algumas constatações, apresentadas pelo Projeto Cor da
Cultura podem nos ajudar a compreender esta situação:

Vídeo 6: Nota 10 - Igualdade de tratamento e oportunidades. Fonte: youtu.be/QCLs72tEhOY

“Alguns anúncios pedem que o candidato tenha carro próprio, outros exigem nível supe-
rior. Há os que solicitam domínio do inglês ou experiência comprovada. Antigamente as
pessoas deviam preencher um item importante para concorrer a um posto de trabalho:
a chamada ‘boa aparência’. Essa exigência foi considerada racista, o que torna a empresa
passível de processos. Hoje, muitos empregadores substituíram a ‘boa aparência’ pelo
envio de fotografias. Será que o pedido de fotos dos candidatos é uma atitude inocente
ou uma prova de preconceito racial? Para responderam estas questões, fizemos um jogo
com pessoas comuns nas ruas. Diante das fotografias de cinco brasileiros em busca de
emprego, entre brancos e negros, vamos ver quais foram escolhidas para ocupar as vagas
fictícias, por parecerem representar melhor a empresa também sediada na ficção”.

Já há algum tempo a sociedade busca punir atos de discriminação, e


muita coisa mudou nesse período. Mas, infelizmente, ainda estamos distantes
do ideal nesse quesito. Mesmo que atos abertos de preconceito sejam muitas

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

vezes repudiados com veemência, isso não impede que versões camufladas e
veladas ou sub-reptícias dessas atitudes sejam comuns, conforme elencadas no
vídeo:
O racismo aparece nas relações de trabalho de forma explícita
e implícita. E muitas vezes os negros não só são discriminados
pelo mercado profissional, mas também vêem caírem sobre seus
ombros a culpa por não terem tido as mesmas oportunidades
educacionais que os brancos. “A sociedade brasileira construiu
ao longo dos séculos uma percepção muito negativa dos povos
de origem africana e a escola tem um papel importantíssimo:
mudar essa imagem, traduzir de outra forma o que é a história
dessa comunidade negra no Brasil”, defende a historiadora Vânia
Sant’anna.

Vídeo 7: Política de cotas raciais e mercado de trabalho – entrevista.


Fonte: http://youtu.be/D0JZk8HWj70

“Uma moça branca escolheu três brancos e dois negros, alegando que o critério
adotado foi ‘simpatia’. Houve um negro que selecionou, majoritariamente, afrodes-
cendentes. ‘No mercado de trabalho seria o inverso. Enquanto não quebrarmos
essa coisa de ‘o branco sabe mais do que o preto’, nunca vamos chegar a um mundo
melhor’, opina. Uma garota loura selecionou três negros entre cinco candidatos um
rapaz afrodescendente deu visível preferência a pessoas da etnia negra.
Nesta pesquisa informal, o público elegeu mais candidatos negros do que brancos,
mas será que esta mesma tendência se repete no cotidiano do mercado de trabalho?
‘Quem é vítima da discriminação, muitas vezes não toma nem conhecimento de
que está sendo discriminado’, rebate o advogado Eloá dos Santos Cruz, ele mesmo
alvo de discriminação racial. A experiência de atriz Daniele Ornelas também indica
que não.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

‘Fui fazer um teste para um filme em São Paulo, depois de conversar com a pro-
dutora pelo telefone. Ela havia ficado super empolgada com meu currículo, tanto
que marcou um encontro. Chegando lá, estou vendo uma pessoa passar de um
lado para o outro. Até que ela se aproximou e perguntou se eu estava procurando
alguém. Quando me apresentei, a primeira reação foi de espanto: ‘ Você é a Daniele?
Nossa! Imaginei você tão diferente, não sabia que você era assim’. Assim negra. ‘A
gente percebe o preconceito velado, lamenta a atriz’.”

Para uma discussão mais completa e efetiva sobre estas questões, busca-
mos abordagens teóricas sobre diversidade e educação para as relações étnico-
-raciais e para o ensino de História e cultura Afro-Brasileira e Africana – Lei
10.639/2003, e destacamos o referencial, abordado pelo MEC, apresentado
na Proposta de Plano Nacional de Implementação das Diretri-
zes Curriculares Nacionais, sobre a temática, em 2008. Para o órgão,
podem-se identificar pelo menos três dessas abordagens. Uma abordagem
possível tem
por base o binômio inclusão/exclusão, que busca incorporar
os excluídos a um modelo instituído de política a partir da
perspectiva socioeconômica, desconsiderando suas identidades
específicas. Em tal abordagem a questão étnico-racial se dilui, e
a diversidade não resulta em revisão das concepções, modelos
e referências das políticas educacionais. (BRASIL, MEC/MJ/
SEPPIR, 2008, p. 23)

Aceitando-se que há diferenças nas condições de geração de oportuni-


dades a indivíduos de determinados grupos, uma ação específica é necessária.
Dessa observação surge outra abordagem possível.
Nela, a compreensão é que a situação de pobreza e/ou
desigualdade social em que se encontram determinados grupos
sociais como os negros, índios e mulheres não pode ser atribuída
exclusivamente aos indivíduos isoladamente. Assim, as condições
adscritas como etnia, raça, sexo e a definição de pertencimento a
um grupo são consideradas nos programas e políticas do MEC,
como por exemplo, no Programa Universidade Para Todos
(ProUni). (BRASIL, MEC/MJ/SEPPIR, 2008, p. 23)

Ainda que as abordagens acima sejam de grande importância em situ-


ações específicas, uma outra talvez possa auxiliar mais efetivamente no que
aqui propomos. Ela busca um questionamento mais profundo das questões
envolvidas, além do reconhecimento de processos históricos, que permitam

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

entender a diversidade étnico-racial como um valor por si, capaz de coadunar


as diferentes contribuições de variadas origens como base para o desenvolvi-
mento da sociedade.
Na terceira abordagem a diversidade é tratada na chave das
“políticas de diferença”, as quais se distinguem das políticas de
inclusão social e das políticas da ação afirmativa não pela ênfase
no particularismo, mas pela demanda pelo igual reconhecimento
do direito das diversas culturas a se expressarem e atuarem na
esfera pública. Essa abordagem questiona frontalmente as práticas
associadas ao mito da democracia racial e aponta para mudança
das concepções e das formas de organização que orientam as
políticas educacionais. Essa abordagem ainda não recebeu a
devida atenção na agenda do MEC. […] A implementação efetiva
da lei n. 10.639/2003 exige o desenvolvimento dessa terceira
abordagem de forma sistêmica, refletida em novo desenho de
política educacional que articule o Ministério da Educação em
seu conjunto na direção do combate ao racismo e da valorização
da educação das relações étnico-raciais. (BRASIL, MEC/MJ/
SEPPIR, 2008, p. 23)

Reconhecemos, assim, que a escola é reflexo da sociedade na qual se


insere e, também o inverso é verdadeiro. A sociedade está sempre se reestrutu-
rando e permanentemente se construindo. Deste modo, não é preciso esperar
que a sociedade mude para que a escola mude. Ao contrário, a educação é um
caminho privilegiado para a edificação de uma sociedade mais próxima da
qual desejamos.
Depois de tudo posto, para concluir trazemos a seguinte reflexão:

Vídeo 8: A Cor da Cultura - Projeto Cantando a História do Samba.


Fonte: youtu.be/5wA6pn5z4nI

56
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

“Ninguém é igual a ninguém. Mas ao longo da vida a gente acaba descobrindo que
tem pessoas parecidas com a gente e outras nem tanto. E é nessa relação de alteri-
dade, no diálogo, no jogo de oposições e aproximações que formamos nossa iden-
tidade. Às vezes a gente acaba pertencendo a este ou aquele grupo por escolha, mas
certas características identitárias têm a ver com o país onde nascemos, a família de
onde viemos, a cultura da qual fazemos parte, a língua que falamos, nosso gênero,
nossa cor, etc.
Diferenças existem. Vão existir sempre. E é bom que existam. O problema é quando
as diferenças servem para produzir preconceitos e desigualdades. É fundamental
que a escola seja um espaço de valorização da identidade e da diversidade. E um
dos passos é romper com a vinculação do negro à escravidão, como se a herança
negra e africana ao Brasil se resumisse à mão de obra. Joaquim Nabuco disse: “Os
negros deram um povo ao Brasil”. É o reconhecimento da função civilizadora dos
negros no Brasil, como explica o escritor e professor Muniz Sodré. É a afirmação
do patrimônio e dos valores civilizatórios afro-brasileiros e, consequentemente, da
nossa humanidade e brasilidade.
Valorizar a identidade étnico racial dos alunos vem sendo um dos objetivos de
uma iniciativa realizada no estado de São Paulo. Um dos desafios enfrentados pelos
professores é a questão da religiosidade. E uma das alternativas foi utilizar a lite-
ratura e a música, assim a questão dos mitos africanos e da ancestralidade pode
ser trabalhada de forma lúdica. A valorização da identidade pode trazer resultados
surpreendentes não só em termos de aprendizado, mas também na forma como o
aluno se coloca diante do mundo.
Gênero, raça, etnia, orientação sexual, origem geográfica, língua, religião, herança
histórica, posicionamento político, comportamento alimentar, time de futebol,
categoria profissional... É, vários aspectos sócio-políticos, históricos e culturais
podem compor a identidade de um indivíduo. E as pessoas, que já não nascem
iguais umas as outras, tornam-se ao longo da vida ainda mais únicas, originais,
diferentes. E viva a diferença!” (Projeto a Cor da Cultura - Programa Nota 10 http://
antigo.acordacultura.org.br/nota10/programa/9)

Referenciais Bibliográficos

BALL, Stephen. Diretrizes políticas globais e relações políticas locais em


educação. Currículo sem Fronteiras, v. 1, n. 2, p. 99-116, jul./dez. 2001. Dis-
ponível em: <http://www.curriculosemfronteiras.org/vol1iss2articles/ball.
pdf>
______. Ciclo de políticas/análise de políticas. Rio de Janeiro: UERJ,
09/11/2009. (Palestra ministrada para professores e alunos da pós- graduação
UERJ).

57
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

BANKS, James. Reformando escolas para implementar igualdade para dife-


rentes grupos raciais e étnicos. In: Cadernos Penesb – Periódico do Pro-
grama de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira – FEUFF. Rio
de Janeiro/Niterói – Quartet/EdUFF, 2006. N. 7, nov/2006.
BILÉSSIMO, Angelo. Entre a Praça e o Porto: Grandes fortunas nos inventá-
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oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o
combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. Brasília,
2010.
______. Lei 10.639 de 09 de janeiro de 2003 que altera a Lei 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temá-
tica “História e cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Brasília,
2003.
______. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
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______. Proposta de Plano Nacional de Implementação das Diretri-
zes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais
e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília:
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______. MEC/CNE/CP Resolução 1/2004. Diário Oficial da União, Brasília,
22 de junho de 2004, Seção 1, p.1.
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Étnico-raciais. Brasília-DF: MEC/SECAD, 2006.
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br> Acesso em 21/08/2013.
CARDOSO, Paulino (org.) Multiculturalismos e educação: Experiências de
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58
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

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Benedito dos Homens Pretos, em Desterro (1860-1880). Casa Aberta: Itajaí,
2008.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Capítulo 2 - Histórico do Movimento Negro no Brasil, luta


e resistência da militância às Políticas de Ação Afirmativas, a
Declaração de Durban até a Lei 10.639/03: a dívida social do Brasil
com a população negra após o 13 de maio

Willian Robson Soares Lucindo

AS PRIMEIRAS ORGANIZAÇÕES DE LUTA CONTRA A DISCRIMINA-


ÇÃO DE COR NO BRASIL

Atualmente, associações e organismos antirracistas se baseiam na uni-


dade racial, inspirados nos projetos de identidade de organizações dos Estados
Unidos no período de luta por direitos civis, nos movimentos Pan-africanistas
e Negritude. Embora muito importante para formular a unificação de pessoas
a partir da raça e questionar a mestiçagem no Brasil, as primeiras organiza-
ções das populações afrodescendentes contra o preconceito e a discriminação
racial, que incorporava todas as pessoas de origem africana, iniciaram nos pri-
meiros anos após a Abolição.
Desde o final do século XIX é possível encontrar jornais e sociedades
beneficentes de afrodescendentes, que buscaram criar uma rede de solidarie-
dade entre ex-escravizados e descendentes e, assim, garantir a ascensão social,
ter visibilidade e respeitabilidade. As irmandades, desde o período colonial,
criaram salas de aulas, fundos de auxílio, eventos em homenagens às/aos san-
tas/os padroeiras/os, conseguindo unir parte das populações de origem afri-
cana no Brasil. Mesmo não compreendendo que existia a luta e a identidade
racial, essas associações podem ser consideradas como o início do Movimento
Negro.
As Irmandades e as sociedades beneficentes fundadas entre o final do
século XIX e a década de 1930 não se organizavam a partir da noção de raça.
Local de origem, tom de pele, ascendência, posição social foram usadas para
demarcar seus/suas frequentadores/as. Deste modo, existiram irmandades de
pretos e outras de mulatos, além da divisão por nações, mais comum na Bahia.
Em Laguna, mulatos/as frequentavam a Sociedade Recreativa União Operária,
enquanto pretos/as participavam do Clube Cruz e Souza, no início do século
XX (ROSA, 2011). Em São Paulo, quem frequentava o baile das sociedades
se diferenciava dos demais pelas suas roupas e emprego, ficando conhecidos
como “negros de baile”, além disso, em meados da década de 1910, nas festas

60
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

do cordão Camisa Verde os “Negros da Glete”, não podiam participar, ou


melhor, “eles ficavam espontaneamente do lado de fora, bebendo pelos botecos
e garantindo a segurança”.3
Os frequentadores de sociedades beneficentes e jornais de imprensa
negra eram uma minoria das populações afrodescendentes, inseridas no
mundo das elites brancas dirigentes e compartilhando seu valor positivista e
também evolucionista das civilizações, valorizando, assim, “o modo como a
elite branca organizava o mundo” (CARDOSO, 1993, p. 19).
Algumas sociedades mantinham jornais, como o jornal Kosmos con-
trolado por um grêmio de mesmo nome. A finalidade dessa manutenção era
divulgar os eventos das associações, os acontecimentos dentro e fora da vida
associativa, destacando as condutas dos associados, mesmo que de outras ins-
tituições. O jornal A Liberdade teve uma sessão dedicada a expor seu desgosto
com a prática de pessoas que participavam desses espaços, e agiam contra
tudo que era pregado nas sociedades beneficentes. Dizia que estava desgos-
toso “com Justino Costa, por andar na zona estragada de sapato sujo” (Jornal
A Liberdade, 14 dez. 1919) ou “com a Isaura do Carmo, por ter arranjado um
novo marido e a mulher deste não sabe” (Idem, 14 dez. 1919).
Essas sessões foram classificadas como fofocas por Miriam Ferrara
(1981) e por José Correia Leite, um jornalista da época. Ele indica que a prática
de procurar os “podres” das pessoas era comum na imprensa negra, principal-
mente n’O Alfinete, que “não dava alfinetadas no sentido político ou ideológico.
Eram alfinetadas no sentido de corrigir a moral, denunciar pessoas que apa-
rentemente tinham dignidade mas escorregavam” (CUTI, LEITE, 1992, p. 33).
A finalidade de divulgar esses escorregões era mais do que meramente fofocar,
nos estatutos das principais sociedades beneficentes paulistanas do início do
século XX a conduta inadequada era punida de diversas formas, desde adver-
tência à expulsão do infrator. Deste modo, essas sessões podem ser vistas como
um mecanismo de correção moral.
“Denunciar qualquer acto prejudicial ao andamento, ao bom nome do
centro” (Estatuto do Centro Recreativo Smart, 1910, p. 2), era um dever dos
sócios do Centro Recreativo Smart. E, para ser admitido como associado do

3 Depoimento de Dionísio Barbosa à BRITTO, Ieda Marques. Samba na cidade de São


Paulo (1900-1930): um exercício de resistência cultural. São Paulo, FFLCH-USP, 1986,
p.69. Negros da Glete eram moradoras/es pobres da parte baixa da alameda Glete do bairro
operário da Barra Funda. Lá também existiu um time de futebol, São Geraldo, e seus joga-
dores ficaram conhecidos pela violência nos jogos.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Grêmio Recreativo Dramático Kosmos era preciso atender a algumas exigên-


cias: “ser proposto por um sócio em gozo dos seus direitos sociais, por escripto
e mencionado o nome, estado civil, profissão, residência”, ser maior de quinze
anos e “ter bom comportamento moral e civil” (Estatuto Grêmio Dramático e
Recreativo Kosmos, 1921, p. 1).
No Centro Recreativo Dansante Defensor da Pátria, poderiam fazer
parte do quadro associativo “todas as pessoas de ambos os sexos e de reconhe-
cida idoneidade moral”; o estatuto reforça a condição moral entre os sócios
contribuintes, afirmando que para se tornar um destes o candidato deveria ter
“bom comportamento moral e civil” (Estatuto Grêmio Recreativo Dansante
Defensores da Pátria, 1922, p. 1). Também não era permitida a entrada de
pessoas de atos duvidosos nas festas, nem mesmo como convidadas. O Alfi-
nete elogiou a “sempre Exma e gentil esposa [do presidente da Sociedade Chu-
veiro de Prata], ainda não mãe, [que] proibiu que ali [no Chuveiro de Prata]
entrassem Magdalena Roza, Fulgência de Conceição, etc., que são pessoas que
a moral manda que fiquem em casa” (Jornal O Alfinete, 27 set., 1921).
A vigilância também era feita por alguns membros das sociedades
detentoras de cargos específicos para isso: eram eles os 1º e 2º fiscais ou os
mestres-salas. Caso um sócio agisse de maneira inadequada, o fiscal do Kos-
mos ou do Smart deveria chamar a atenção dele por duas vezes em particular,
na próxima suspendê-lo e comunicar o presidente, isto nas festas ou reuniões;
maneira inadequada poderia ser comprometer uma dama antes que fosse dado
sinal para iniciar a quadrilha, voltar do centro do salão desacompanhado das
damas ou dos cavalheiros para as contradanças (Estatuto Grêmio Dramático
e Recreativo Kosmos, 1921, p. 4; e Estatuto do Centro Recreativo Smart, 1910,
p. 11). Além disso, haviam atos impróprios que poderiam causar a eliminação,
como frequentar qualquer atividade alcoolizado ou portando armas, ter “mau
comportamento dentro ou fora das festas ou reuniões”, faltar com respeito a
quem quer que fosse quando estivessem representando sua associação e des-
respeitar qualquer sócio ou convidado, assim como desacatar qualquer mem-
bro da diretoria (Ibidem).
O policiamento aos associados tinha uma dupla função nas sociedades
recreativas: garantir a desmontagem das bases de discriminação e repressão
das manifestações das populações afrodescendentes. Ou seja, as regras de con-
duta tentavam fazer com que os associados de sociedades beneficentes não se
comportassem de forma imoral aos olhos das elites dirigentes e, assim, não
poderiam ser discriminados por conta dos “vícios da raça”. Então, a imposição

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

de um governo das condutas era uma das formas de educação dos afrodes-
cendentes que participavam da vida associativa e liam esses jornais, visando
inculcar o respeito à ordem entre os afrodescendentes e, por consequência,
conquistar o respeito dos demais setores da sociedade brasileira.
Os jornais e as sociedades beneficentes de afrodescendentes das primei-
ras décadas do século XX criaram uma estrutura de comunicação entre si, que
fazia com que se agisse através de um entendimento, também proporcionou
uma ação comunicativa, que extrapolava as funções e conteúdo da comunica-
ção cotidiana, imprimindo a vontade do grupo. Isto significa que construíram
uma espécie de esfera pública letrada de afrodescendentes.
A discriminação não era combatida somente através do governo de con-
dutas, a esfera pública letrada de afrodescendente criou diversos espaços edu-
cativos. A criação de salas de leituras, bibliotecas, cursos de instrução, escolas
foram algumas iniciativas dessas pessoas que tentavam retirar as populações
afrodescendentes da condição subalterna na sociedade brasileira. Os avanços
econômicos das colônias estrangeiras fez confirmar esse período histórico
como momento de oportunidades, a ação, logo, tinha que se inspirar nas colô-
nias estrangeiras, como é apontado em O Alfinete.

É preciso que todos os homens de cor emitem os bellisimos


exemplos das colônias estrangeiras, procurando mandar ensinar
uma profissão para seus filhos ganharem a vida no futuro.
(…)
É preciso que os pretos tenham a aspiração de querer ser alguma
coisa no futuro; para isso é preciso que todos tenham força de
vontade, ensinando os nossos filhos o que os nossos Paes não
pouderam apreender.
Avante meus irmãos de cor, caminhae com o progresso da
nossa capital. Mandae vossas filhas, para aprenderem costura,
bordados e engomados; vossos filhos, depois que sahirem do
grupo escolar, mandae aprender officio de sapateiro (trecho
ilegível), mechanico encanador e typographo etc
Só assim é que todos nossos irmãos de cor, deixarão de ser
cosinheiros, copeiros e arrumadores de quarto.4

4 MARTINS, José Benedicto. Os Pretos e o Progresso. O Alfinete, 3 set., 1918.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Desta forma, as associações e os jornais passaram a se dedicar à cons-


trução de espaços escolares, que não fossem esvaziados pelos bailes e outras
atividades recreativas, criticando também os usos que os associados faziam
das suas instituições. O Alfinete de 1919 dizia:
Pensamos que as Sociedades, como ponto de reunião familiar,
não devem ser formados unicamente para dançar; precisamos
progredir, e para isso, precisamos [de] agremiações que possam
sustentar uma escola, um bibliotheca, etc. Apezar das desilusões
por que passou o articulista, quando a “Kosmos” inaugurou uma
pequena bibliotheca teve de pedir o seu fechamento por falta de
leitores, notando-se que os sócios e mesmo o Gremio não faziam
despeza alguma com a manutenção da mesma.5
Na continuação do artigo, o jornalista Frederico Souza pede que as
sociedades beneficentes se unissem e tentassem inculcar em seus associados
o “amor pelas cousas úteis”, pois não era “raro se encontrar grande numero de
rapazes, que (infelizmente) exhibem 5 ou 6 recibos de sociedades dançantes, e
esquecem, (porque não possuem) um só de uma sociedade beneficente”. Desta
forma, denunciava o esvaziamento das atividades beneficentes das sociedades,
por causa dos próprios associados que preferiam as atividades lúdicas, nem as
atividades dramáticas eram frequentadas, segundo o artigo.
Um artigo do mesmo jornal, publicado um ano antes, talvez nos dê
pistas para encontrar os motivos do esvaziamento das atividades beneficen-
tes. Indicava que os afrodescendentes estavam “opprimidos de um lado pelas
ideias escravocratas que de todo não desapareceram” e de “outro pela nefasta
ignorância em que vegetam”.6 Florestan Fernandes e Roger Bastide entendiam
que afrodescendentes, evitando as situações de discriminação racial, não
entravam na escola e alguns lugares vistos como próprios das pessoas brancas
(BASTIDE, FERNANDES, 2008). Portanto, a dupla opressão apontada pelo
jornal seria as duas faces da mesma moeda, o racismo.
A opção em pagar mensalidades de sociedades dançantes e não contribuir
com as ações beneficentes, era uma forma de se manter inserido na zona de con-
forto, entre as populações afrodescendentes, e longe do mundo das populações
brancas, um espaço que teria que lidar com os conflitos raciais. Mas, a esfera
pública letrada afrodescendente projetava táticas de superação desse problema,
sendo a principal criar a coesão, como demonstra o final do artigo:

5 SOUZA, Frederico Baptista de. Ilusão. O Alfinete, 9 mar., 1919.


6 OLIVEIRA. Para os Nossos Leitores. O Alfinete, 22 set. 1918, p. 1.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

se todos procurassem restringir este câncer que a corroe,


nasceria a iniciativa, da iniciativa, nasceria a força da cohesão da
cohesão, o ideal e do ideal a Victoria final, desse elemento que
uma vez, conhecendo o seu papel na marcha da nossa civilisação,
poderia ser um factor, muito mais importante da grandeza e
prosperidade da nossa querida patria.7
Assim, vivendo em um período em que “tudo se progride”, a vitória che-
garia se a humildade fosse combatida e se as populações de origem africana
estivessem apresentáveis, mas não só nas roupas e/ou nas condutas, era preciso
ir além. Seria “preciso freqüentar escolas, propagar a boa imprensa, instituir
sociedades Beneficentes, Educativas, Literárias, com reuniões intimas”, sem
usar como desculpa a falta de recursos, pois a união faria com que os mais
“destacados” ajudassem os mais carentes (Jornal O Clarim, 06 jan. 1924).
Apesar de não se reconhecerem em termos raciais, quando se propuse-
ram a debater os problemas sociais, sempre expuseram a existência da discrimi-
nação às populações consideradas oriundas da escravização, e para elas elabo-
raram discursos e ações em favor de sua ascensão econômica e reconhecimento
de suas culturas. Por esses motivos, a esfera pública letrada de afrodescendentes
do início do século XX é reconhecida como parte da história dos movimentos
sociais negros, mesmo sem reconhecer e/ou rejeitar a ideologia da raça.
A primeira grande manifestação antirracista pautada pela raça no Brasil
foi a Frente Negra Brasileira, entre 1931 à 1937. Ela foi fundada em São Paulo
por membros do Centro Cívico Palmares, o qual foi criado para ser um lugar
de debate em contraponto às sociedades beneficentes, que focavam mais no
baile e nas recreações. Quando o Palmares não conseguiu se sustentar, ao ten-
tar construir um salão para funcionar como escola para crianças afrodescen-
dentes, Arlindo Veiga dos Santos e outros membros continuaram a se encon-
trar para discutir a situação de pobreza em que viviam as populações de cor.
O jornalista estava atento aos debates sobre a raça no mundo e foi um dos
responsáveis pela mudança de postura nos jornais controlados por afrodes-
cendentes, que incorporaram o termo negro para autodenominação no final
da década de 1920.
A FNB teve como veículo de comunicação o periódico A Voz da Raça,
que além de denunciar a discriminação racial, trazia discurso de união e for-
jamento da raça brasileira, e não só raça negra. Baseado na experiência das

7 OLIVEIRA. Para os Nossos Leitores. O Alfinete, 22 set. 1918. p.1.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

outras associações paulistas cobrou de seu quadro associativo uma conduta


que não fosse criticada por nenhum outro setor da sociedade. Conseguiu
criar salas de aulas para crianças negras, manteve um grupo cênico e exaltou
a importância das populações africanas escravizadas na construção da socie-
dade do nosso país, a fim de elevar a autoestima de seus/suas descendentes.
Tal como os jornais anteriores, A Voz da Raça também lutava contra a
apatia das populações negras, frente aos seus problemas e na busca pela ele-
vação social. Porém, nas primeiras organizações acreditavam que a apatia se
formava por estarem oprimidos, “de um lado pelas ideias escravocratas que de
todo não desapareceram” e de “outro pela nefasta ignorância em que vegetam”
(Jornal O Alfinete, set. 1918), enquanto para a Frente Negra era criada pelos
“vícios da raça”. Para combater esses vícios intentaram diversas campanhas
contra o alcoolismo, a desunião, a prostituição feminina.
Maria Angélica Maués (1991), ao analisar a trajetória do discurso racial,
aponta que havia no discurso das lideranças das instituições da década de 1930
a assimilação da ideologia do branqueamento, ao se referirem como culpados
pelos ditos “vícios da raça”. De fato as falas das lideranças eram carregadas de
valores das elites brancas, isso também é encontrado nas ações dos membros
das primeiras sociedades beneficentes, e buscavam incorporar esses valores ao
restante das populações negras. Mas a assimilação também foi uma maneira
de luta, uma vez que ao agirem da maneira dita correta desarmavam o dis-
curso de que o problema estava nos modos como viviam. Assim escreviam no
número 8 de A Voz da Raça:
E havemos de vencer. Vencer ante a nós mesmos; vencer as paixões
ruins que nos dominam; as qualidades más, o álcool, o samba
desenfreado, o descrédito imerecido; vencer a incompreensão, a
cobiça, o orgulho, o despeito que vem confirmar a lúgubre frase
de Patrocínio - inimigo do negro é o próprio negro.
Ao passo que acreditavam poder superar os “vícios da raça”, a FNB
entendia que todos esses problemas ocorriam por conta da situação vivida e
não por ordem biológica. O perigo está na fácil conclusão de que as popula-
ções negras têm uma predisposição a esses “vícios”.
A FNB foi dissolvida no governo Vargas em 1937, o qual manteve pou-
cas associações desse caráter abertas. Na verdade, o combate à discriminação
racial era feito por associações que valorizavam a recreação e aspectos cultu-
rais, de forma pontual. A partir da década de 1940 as associações de afrodes-
cendentes voltaram a ter força, através de centros de culturas e humanitários,

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

companhias de teatros e jornais. Sensíveis às críticas, procuraram não abrir


conflito direto contra a discriminação (ANDREWS, 1998).

O NOVO MOVIMENTO NEGRO

Das diversas instituições de afrodescendentes criadas pós-Estado Novo


destacaram-se: União dos Homens de Cor, Teatro Experimental do Negro,
Centro de Cultura Negra, Cruzada Social e Cultural do Preto Brasileiro, Cen-
tro de Cultura Luiz Gama, Frente Negra Trabalhista; os jornais Alvorada,
Niger, Novo Horizonte, Mundo Novo, A Tribuna Negra, Quilombo e a revista
Senzala. Todas se preocuparam em debater e valorizar a cultura de origem
africana, elevar a autoestima das populações afrodescendentes e cuidar da
educação destas. Entretanto, aponta George Andrews,
surgiu um grupo de afro-brasileiros mais jovens que tendiam a
ser melhor instruídos que a maior parte dos brasileiros negros
(ou brancos), politicamente conscientes e profundamente
perturbados em relação ao seu status de negros em uma
sociedade racialmente estratificada (ANDREWS, 1998, p. 300).
Estes jovens acreditavam que tudo que vinham fazendo não era o sufi-
ciente, entendiam que a discriminação continuava oprimindo e não importava
o grau de instrução. Também estavam atentos aos movimentos internacionais
da Negritude, Pan-africanismo e aos processos de libertação dos países africa-
nos, além da luta por direitos civis nos Estados Unidos da América.
Abdias Nascimento fundou o Teatro Experimental do Negro (TEN) e
editava o periódico Quilombo, que se espalhou pelo país. Em 1950, o TEN
organizou o I Congresso do Negro Brasileiro, em que foi recomendado o
“estudo das reminiscências africanas no país bem como dos meios de remoção
das dificuldades dos brasileiros de cor e a formação de Institutos de Pesqui-
sas, públicos e particulares, com esse objetivo” (NASCIMENTO, 1968, p. 293).
Nascimento também questionava seus conteúdos, considerava o sistema edu-
cacional como instrumento para a manutenção da discriminação racial, que
praticava a ostentação da Europa e dos Estados Unidos.
Se a consciência é a memória e futuro, quando e onde está a
memória africana, parte inalienável da consciência brasileira?
Onde e quando a história da África, o desenvolvimento de suas
culturas e civilizações, as características, do seu povo, foram ou
são ensinadas nas escolas brasileiras? Quando há referência ao

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

africano ou negro, é no sentido do afastamento e da alienação


da identidade negra. Tampouco na universidade brasileira o
mundo negro-africano tem acesso. O modelo europeu ou norte-
americano se repete, e as populações afro-brasileiras são tangidas
para longe do chão universitário como gado leproso. Falar em
identidade negra numa universidade do país é o mesmo que
provocar todas as iras do inferno, e constitui um difícil desafio
aos raros universitários afro-brasileiros (NASCIMENTO, 1978,
p. 95).
Desta forma, exigia mudança nos conteúdos da educação formal, não
bastava entrar no sistema educacional. É importante lembrar que até o perí-
odo Vargas, a iniciativa privada era responsável por grande parte das escolas,
mesmo quando gratuita, por isso na esfera pública letrada de afrodescendente
a preocupação em criar e adentrar em espaços de instruções.
Por conta da ditadura militar de 1964, as organizações sociais tiveram
um refluxo e, mesmo sem desaparecer, as associações de afrodescendentes
tiveram problemas de atividades e de organizar protestos. No final da década
de 1970 foi possível o surgimento de organizações políticas, inclusive o surgi-
mento do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial – que
depois abreviou seu nome e até hoje é chamado de Movimento Negro Unifi-
cado ou MNU.
O surgimento do MNU estava combinado ao aniversário de 90 anos
da Abolição da escravatura e dois fatos extremos de discriminação racial que
ganharam destaque e se tornaram públicos. Em 28 de abril Robson Silveira,
um jovem negro, foi morto enquanto estava sob a custódia policial, com sinais
de tortura e sem nenhuma denúncia contra ele, e duas semanas depois quatro
jovens negros foram expulsos do Clube de Regatas Tietê, onde jogavam vôlei.
Durante os debates em comemoração ao 13 de maio de 1888, intelectuais, pro-
fessoras/es, artistas e estudantes negras/os que frequentavam as associações
culturais e cívicas apontaram para a necessidade de combater o racismo com
outras armas, além da instrução e conscientização de negras/os. Era preciso
pressionar as organizações públicas e privadas à “também combater e criar
ações para expandir as oportunidades econômicas, educacionais, saúde e etc.”
(ANDREWS, 1998, p. 302).
Desta maneira, o discurso e as ações mudaram totalmente. Se antes as
falas eram carregadas de valores das elites brancas, começaram a questioná-
-los, entendendo serem responsáveis pela discriminação. Portanto, não bas-
taria mais se educar, era preciso discutir a educação e como ela atuava (atua)

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

no reforço das práticas discriminatórias. Em vez de somente dizer que as/os


negras/os não buscam estudar, procuram saber o porquê disso e qual ação
seguir para a eliminação desse problema. Por conseguinte, o “problema do
negro” se torna o problema da sociedade brasileira.
Durante o processo de redemocratização as entidades do Movimento
Negro participaram de diversas discussões. Em 1986, houve a Convenção
Nacional do Negro pela Constituinte. Nela os representantes desejavam que na
educação fosse incluída a história do Negro no Brasil e da África, que também
a propaganda de preconceitos de religião, de raça, cor ou classe fosse proibida.
Ações estaduais e municipais também foram feitas, e alguns estados e cidades
constituíram leis surgidas das reivindicações do Movimento Negro.

MOVIMENTO NEGRO E AS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS

Em 1995, durante a comemoração dos 300 anos de Zumbi dos Palmares,


diversas organizações do Movimento Negro resolveram realizar uma grande
marcha em Brasília denunciando a discriminação racial, os crimes e mobili-
zando a luta contra a desigualdade racial. Os milhares de manifestantes con-
seguiram uma declaração de Fernando Henrique Cardoso, então Presidente
da República, concordando com a existência do racismo, seus males e o com-
promisso do governo brasileiro em combater toda e qualquer discriminação
racial. No ano seguinte foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial para
a Valorização da População Negra, responsável por pensar medidas de ações
afirmativas que atacassem as desigualdades sofridas pelas populações negras.
Entretanto, não foi a primeira vez que se discutiu políticas de ações
afirmativas para as populações negras no Brasil. Em 1983, o então deputado
federal Abdias do Nascimento apresentou o projeto de Lei 1332, que preten-
dia criar mecanismos de compensação à discriminação racial. Suas principais
propostas eram reservas de vagas para mulheres negras e homens negros no
serviço público, 20% para cada, além de incentivos à empresa privada que con-
tribuísse com a erradicação do racismo e incorporação da história e cultura
africana e afro-brasileira nos livros didáticos, que as demonstrassem de forma
positiva (SOARES, OLIVEIRA, 2012, p. 11-12). Tal projeto não foi aceito,
assim como outros, feitos por ele, objetivando colocar em evidência a cultura e
a história afro-brasileira, bem como a existência do racismo.
Os projetos de Abdias Nascimento não foram aprovados porque nega-
vam, consequentemente, a existência da democracia racial no Brasil, o que

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

era impossível na época. A pressão de Organizações Não Governamentais do


Movimento Negro e os fóruns internacionais sobre discriminação tornaram
possível pôr fim à ideia de democracia racial e, assim, discutir o racismo, a
desigualdade racial e todos os males causados por eles.
Outra situação importante para a discussão das relações raciais no Brasil
foi a III Conferência Internacional contra o Racismo, Xenofobia e Intolerân-
cias Correlatas, realizada em Durban, África do Sul, em 2001. Antes do evento,
houve encontros entre acadêmicos e militantes que elaboraram as diretrizes de
discussão a serem levados pela comitiva brasileira – o Brasil foi representado
por 41 delegados e 5 assessores técnicos –, também colocaram nos meios de
comunicação a brutal desigualdade racial existente entre brancos e negros no
Brasil.
A Conferência de Durban foi fundamental para o debate de políticas
de ações afirmativas no Brasil porque, mesmo com a declaração de reconhe-
cimento da discriminação e da desigualdade racial por Fernando Henrique
Cardoso, muitos setores do Poder Público se recusavam a elaborar propostas
contra os males do racismo. O Ministério de Educação foi um dos mais resis-
tentes, insistindo que a desigualdade racial no sistema escolar era um pro-
blema social e do mau funcionamento do ensino básico público. Para Antônio
Sergio Guimarães,
em Durban, o empenho pessoal do presidente levou a chancelaria
brasileira a aposentar definitivamente a doutrina da ‘democracia
racial’, reconhecendo, em fórum internacional, as desigualdades
raciais do país e se comprometendo a revertê-las pela adoção de
políticas afirmativas. Como consequência, depois de Durban,
vários segmentos da administração pública brasileira passaram
a adotar cotas de emprego para negros, tais como os ministérios
da Justiça e da Reforma Agrária. No entanto, no setor crucial, a
educação, tudo que se logrou foi a criação de uma comissão de
trabalho (GUIMARÃES, 2003, p. 255-256).
A criação de reservas de vagas para pessoas negras é uma política de
ação afirmativa, mas não é a única. Antes do Brasil, Estados Unidos, alguns
países da Europa e da Ásia já utilizavam tais políticas para enfrentar proble-
mas de intolerância e desigualdades causados por elas. Jacques d’Adesky define
ações afirmativas como um conjunto de experiências de correção de desigual-
dades oriundas de tensões raciais, étnicas ou religiosas, elas são formas de pro-
teção de grupos em desvantagem social. Na Índia foi onde se começou a usar

70
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

as ações afirmativas, ainda no processo de emancipação colonial, passando


pela Malásia, Holanda, Canadá, Inglaterra e França (GUIMARÃES, 2003).
A experiência dos Estados Unidos é referência para a implementação
do sistema brasileiro. Nos anos 1960, as instituições estatais norte-americanas,
sob pressão do movimento de direitos civis, constituíram políticas de ação afir-
mativa, com destaque para a criação da Comissão Presidencial sobre Igual-
dade no Emprego e a decisão da Suprema Corte de proibir o uso de testes ou
outros dispositivos para admissão que não se relacionassem ao desempenho
de tarefas do ofício, em 1971.
A proibição da Suprema Corte aconteceu no caso Griggs contra Duke
Power Company. Para atender às políticas de igualdade de direitos, a com-
panhia, que antes aceitava afro-americanos somente nos canteiros de obras,
impôs teste de QI e diploma de segundo grau para a contratação de pessoas nas
áreas fora do canteiro. Isso fez com que um número menor de pessoas negras
fossem contratadas em comparação às brancas, além disso, o teste não era
requisitado para os brancos e nem avaliava a competência em realizar as tare-
fas. Deste modo, para os juízes, a companhia realizava testes que não tinham
a função de saber a capacidade dos candidatos, seja ao emprego ou promoção,
mas sim discriminar afro-americanos.
Para Ronald Walters, o ato da Suprema Corte colocou em questão não
a intenção de discriminar, mas os efeitos dessas práticas sobre as vítimas. O
autor ainda afirma que a intenção em criar políticas de ação afirmativa é ajudar
na formação de uma sociedade democrática, e “a medida em que os negros,
no passado e no presente, são submetidos ao uso de critérios raciais em que
decisões básicas para as suas vidas são tomadas por outras pessoas que não são
eles mesmos, a promoção de igualdade exige um regime de melhoramento”
(WALTERS, 1995, p. 131).
Existem muitas críticas às políticas de ações afirmativas, em especial o
pensamento de que para garantir a democracia, deve-se dar chances iguais a
todos/as e que caberia aos negros adquirir as habilidades necessárias à parti-
cipação eficiente na ordem competitiva. Segundo Ronald Walters existe pro-
blema nessa argumentação. Em primeiro lugar, há uma lacuna construída his-
toricamente entre brancos e negros a tal ponto que os negros, muitas vezes,
não são capazes de competir com os brancos.
Em segundo lugar, mesmo nos espaços em que os negros possuem as
mesmas habilidades que os brancos, devido aos padrões injustos baseados na

71
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

discriminação racial, os negros continuam impossibilitados de competir. E,


por último, numa sociedade em que as formas de interação social são baseadas
em círculos de convivência, como laços familiares, relações de amizade, entre
outros, as oportunidades de empregos e negócios aparecem e são firmados
nesses espaços. Como a desigualdade racial provoca uma separação significa-
tiva, a falta de acesso dos negros a essas interações sociais com os brancos, em
termos de igualdade, lhes tem sido desvantajosa.
Em nosso país, o problema, como diz Antônio Sérgio Guimarães é o
fato do ideário antirracista de negação da existência de “raças”, fundiu-se rapi-
damente com uma política de negação do racismo como fenômeno social.
Tal ideário, combinado com as duas ditaduras, engessaram a sociedade civil,
contribuindo para a perpetuação de um silêncio criminoso sobre as múltiplas
violências que atingiram de forma brutal as populações não brancas. Então, as
raças no Brasil aparecem como produtos sociais, formas de identidade base-
ada numa ideia biológica errônea, mas eficaz socialmente para forjar, manter e
reproduzir diferenças e privilégios (GUIMARÃES, 1999).
Não por acaso, a primeira legislação antirracista, a famosa Lei Afonso
Arinos, partia do pressuposto de que o Brasil não era uma sociedade racista.
Sendo os poucos casos de agressão apenas manifestação de preconceito racial,
atitude individual que tornada contravenção penal, um ato ilícito de pequena
gravidade, que como tal, deveria receber uma punição branda.
Desse modo, as iniciativas positivas no sentido de promover o desenvol-
vimento das populações negras são ainda muito tímidas. Outra dificuldade é a
ausência de informações confiáveis que possam traçar em detalhe os aspectos
das desigualdades no cotidiano. Nos últimos anos, o Movimento Negro e seus
aliados antirracistas têm alcançado algumas vitórias importantes. O acesso ao
ensino superior através do sistema de cotas, em universidades públicas estadu-
ais e federais, e por meio do Programa Universidade para Todos do Ministério
da Educação (PROUNI), nas instituições privadas.
Segundo informações publicadas no diário Valor Econômico, edição
de 08.11.2011, com base nos Estudos do Data Popular, as mudanças sociais e
econômicas produzidas na última década, fizeram com que a renda bruta dos
negros chegasse em 673 bilhões de reais. Estes que correspondem hoje 51,7%
da população, segundo a PNAD de 2009. Neste sentido, de acordo com Renato
Meirelles, diretor do instituto, as políticas de ação afirmativa são fundamentais

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

para agregar valor à renda dessas pessoas por meio do acesso à educação supe-
rior.
Entretanto, outras políticas afirmativas foram as sanções das Leis 10.639
em 2003 e, a sua modificação, 11.645 em 2008, bem como as Diretrizes Curri-
culares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana de 2004. Essas medidas foram
criadas para lidar com os problemas na educação básica, grau de escolaridade
em que existe uma grande taxa de evasão das populações não brancas.
Militantes e pesquisadores preocupados com a saída prematura de estu-
dantes, notaram que uma justificativa repetitiva era a falta da sensação de per-
tencimento aos valores da escola. Isso ocorre porque os conteúdos ensinados
causam constrangimentos nos estudantes não brancos, associados somente
a escravos, índios dizimados na colonização, pessoas preguiçosas, que não
contribuíram positiva e intelectualmente para a sociedade brasileira atual. O
ensino universalista eurocêntrico transforma as populações de origem afri-
cana e indígenas em meros penduricalhos na história do Brasil.
As leis 10.639/03 e 11.645/08 e as Diretrizes exigem a mudança de foco
dessa história. Garantem que as populações indígenas e de origem africana
tenham espaço de estudo, a partir de dinâmicas próprias e expondo suas atu-
ações enquanto sujeitos na formação do Brasil e do mundo. Atualmente livros
didáticos reformularam seus conteúdos para se adequarem às leis, cursos de
formação de professores são oferecidos por secretarias de educação e diversas
linhas de financiamento são abertas para que as Leis sejam implementadas,
sendo problema a formação inicial. Mesmo com diversos concursos criados
para a disciplina de História da África nas universidades públicas, as leis não
exigem que esta disciplina seja obrigatória no ensino superior. Acabam vol-
tando-se mais ao ensino básico.

Referenciais Bibliográficos

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Bauru: EDUSC, 1998.
BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo:
ensaio sociológico sobre aspectos da formação manifestações atuais e efeitos

73
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

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2008.
BRITTO, Ieda Marques. Samba na cidade de São Paulo (1900-1930): um
exercício de resistência cultural. São Paulo, FFLCH-USP, 1986.
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ção do movimento negro anti-racista na cidade de São Paulo (1915 – 1931).
1993. Dissertação (mestrado em história) Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo.
CUTI. LEITE, José Correia. (Orgs). …E disse o velho militante José Correia
Leite: depoimentos e artigos. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura,
1992.
D’ADESKY, Jacques – Anti-Racismo, liberdade e reconhecimento. Rio de
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FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes.
São Paulo: Ática 3d. 2vols. 1978.
FERRARA, Miriam Nicolau. A imprensa negra paulista, 1915-1963. 1981.
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GUIMARAES, Antônio Sérgio Alfredo. Acesso de negros às universidades
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______. Racismo e Anti-racismo no Brasil. São Paulo, Fundação de Apoio à
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MOHELECKE, Sabrina. Ação Afirmativa: História e debates no Brasil. Dis-
ponível em http://www.scielo.br/pdf/cp/n117/15559.pdf
MOURA, Clóvis. A Imprensa negra em São Paulo. In: Imprensa Negra.
Estudo crítico de Clóvis Moura. Legendas Miriam Nicolau Ferrara. São
Paulo: Imprensa Oficial: Sindicato dos Jornalistas no Estado de São Paulo,
2002.
NASCIMENTO, Abdias do (Org.). O negro revoltado. Rio de Janeiro: Edi-
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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

______. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo masca-


rado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
SOARES, Cecília; OLIVEIRA, Evellin Silva. Uma nova cultura universitária:
a trajetória das ações afirmativas na Universidade do Estado da Bahia. Salva-
dor: Universidade do Estado da Bahia (monografia de graduação em pedago-
gia), 2012.
WALTERS, Ronald. O princípio da ação afirmativa e o progresso racial nos
Estados Unidos. Estudos Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro, CEAA/Universi-
dade Cândido Mendes, n. 28. Out, 1995.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Capítulo 3 - Multiculturalismo e Políticas de Ação Afirmativa:


Luta pela Promoção da Igualdade Racial no Brasil

Paulino de Jesus Francisco Cardoso

No presente texto queremos discutir algumas noções que sustentam a


luta pela promoção da igualdade em nosso país. Procuramos indicar os nexos
existentes entre os esforços de combate ao racismo no Brasil e os vínculos com
a história da modernidade ocidental, seus limites e desafios na contempora-
neidade. Esperamos que, ao final, o leitor tenha informações para compreen-
der nossa incrível e difícil jornada no caminho da democracia.

UM POUCO DE HISTÓRIA

No Brasil Gigante, imaginado pelo Regime Civil-Militar (1964-1985),


quando a escola era concebida, com a família, como uma esfera central na
formação do cidadão, as disciplinas História, Educação Moral e Cívica, Orga-
nização Social e Política do Brasil,
Estudos de Problemas Brasilei- Figura 1 - Luiz Alves de Lima e Silva,
ros (disciplina da universidade), Duque de Caxias, patrono do Exército
entre outras, tendiam a apresen- Brasileiro.
tar uma visão homogeneizada do
país e dos seus habitantes. Nelas,
éramos descritos como consti-
tuindo uma civilização herdeira
da cultura europeia, reelaborada
pelo contato com “outros” povos,
como bem assinalou Gilberto
Freyre.
Contudo, nos últimos
40 anos, com a emergência dos
novos movimentos sociais urba-
nos e rurais, esta imagem para-
disíaca do país foi sendo paula-
tinamente questionada. As femi-
nistas, os povos indígenas e os Fonte: http://www.sacralidade.com/
sacral2008/0113.caxias.html
militantes antirracistas tinham, e

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

continuam tendo, dificuldades em se identificar com os “grandes varões” da


pátria como Duque de Caxias, D. Pedro II, Marechal Deodoro da Fonseca ou
Rui Barbosa.
Estes grupos reivindicam uma política de reconhecimento, tanto de suas
diferenças, suas múltiplas identidades, como de suas desvantagens, desigual-
dades sociais, oriundas da discriminação social de gênero, de raça, de opção
sexual e origem regional.

Figura 2 - Feministas em protesto no Brasil (2013).

Fonte: http://odia.ig.com.br/portal/rio/integrantes-de-movimento-feminista-protestam-na-
-candel%C3%A1ria-1.558893 Acessado 23.02.14.

A título de exemplo, num estudo divulgado em novembro de 2013, o


Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicada (IPEA), sobre letalidade violenta
no país (Vidas perdidas e Racismo no Brasil), elaborado por Daniel Cerqueira
e Rodrigo Leandro Moura, indica uma profunda desigualdade de fundo racial
que torna pessoas negras e jovens vítimas preferenciais de homicídios no Bra-
sil. Em média, para cada um não branco, morrem 2,4 negros. Entretanto, em
alguns estados do nordeste estas taxas chegam ao absurdo. Em Alagoas, por
exemplo, enquanto a taxa de homicídios entre os brancos é de 4,6 por 100
mil, a taxa referente às pessoas negras alcança 80,5 (CERQUEIRA, MOURA,
2013).

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Figura 3 – Basta ao genocídio da população negra

Fonte: http://www.geledes.org.br/areas-de-atuacao/questao-racial/violencia-racial/12321-
-bahia-lidera-numero-de-crimes-contra-jovens-e-negros-no-brasil. Acessado em 23.02.2014.

Em vista disso, o Governo Federal, por meio da Secretaria Nacional de


Juventude e Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial,
lançou em 2013, o Plano Juventude Viva, criado para atacar os 132 municí-
pios que concentram 70% das mortes contra jovens no país, incorporando a
dimensão preventiva à violência, articulando políticas sociais nos campos da
educação, do trabalho, da cultura, do esporte, da saúde, do acesso à justiça e à
segurança pública, para ampliação dos direitos da juventude, combate às desi-
gualdades raciais e garantia dos direitos humanos.8
Quatro décadas de pesquisas sobre racismo no país colaboram com os
indicadores apontados pelo IPEA e indicam para a existência de uma profunda
assimetria entre nossa população, associada às hierarquias sociais oriundas da
escravidão. Dito de outro modo, apenas um século após a Abolição da Escra-
vatura, nosso país resolveu encarar os males da colonização europeia e imagi-
nar-se como plural, diverso, em uma palavra, multicultural.

8 SNJ- PR – Plano Juventude Viva. http://www.juventude.gov.br/guia/programas-da-


secretaria-nacional-de-juventude/plano-juventude-viva . Acesso 22.02.2014.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Isto significou um repensar do Estado brasileiro. Passamos do Estado


Democrático, centrado em uma experiência democrática, em que igualdade e
liberdade são expressões meramente formais, para o Estado Democrático de
Direito.9
Nesta busca por uma igualdade substantiva, diferentes instituições vêm
procurando desenvolver ações conhecidas por Multiculturalismo. Trata-se de
uma série de medidas institucionais desenvolvidas na sociedade civil (a popu-
lação organizada em associações, sindicatos, centros comunitários, etc.) e nos
diversos níveis de poder da República, voltadas para a compreensão do pro-
blema e elaboração de projetos capazes de atacar os mecanismos que permi-
tem a reprodução das desigualdades.
A palavra multiculturalismo é um termo típico da nossa contempora-
neidade globalizada, teve origem nas sociedades norte-americana e canadense
e foi uma resposta de mulheres, nativos americanos e afrodescendentes pelo
fim de toda forma de intolerância e por políticas públicas capazes de garantir
os direitos civis básicos a todos.
Nos EUA, a principal oposição liberal ao Multiculturalismo afirma que
a nossa falta de identificação com as instituições que servem aos propósitos
públicos e a impessoalidade das instituições públicas, é o preço que o indiví-
duo prazerosamente deveria pagar para viver em uma sociedade que trata a
todos como iguais. (GUTMANN, 1993, p. 15).
Desse modo, deveríamos defender a neutralidade das instituições públi-
cas, para que, independentemente de nossas identidades particulares, somente
fosse lembrada a nossa condição de cidadãos.
No entanto, lembra Charles Taylor, professor de filosofia e ciências polí-
ticas no Canadá e nos EUA, se tomarmos por identidade a visão que tem uma
pessoa de quem ela é e suas características definidoras fundamentais como ser
humano, o falso reconhecimento ou a falta de reconhecimento pode causar
danos. Pois, a cultura é o modo através do qual nos situamos no mundo. Neste
sentido, o não reconhecimento das formas específicas de viver o cotidiano
pode ser uma forma de prisão que encarcera os indivíduos em um modo de
ser falso, deformado e redutor...
Afinal, os adventistas e judeus possuem ou não o direito de guardar
o “sábado”? As Testemunhas de Jeová têm ou não direito de não aceitar a

9 GOMES, Joaquim B. Barbosa – O debate constitucional sobrea as ações afirmativas. Mimeo.


http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/21672-21673-1-PB.pdf Aces-
sado em 23.02.2014.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

transfusão de sangue, mesmo em casos de risco de vida? Devemos chorar, de


acordo com o preceito cristão, ou festejar, segundo os preceitos tradicionais de
vários povos africanos, o enterro dos nossos mortos? Por que devemos celebrar
a Páscoa Cristã e não São Cosme e Damião, os Ibejis, as crianças da Umbanda?
De uma perspectiva multiculturalista, os Estados democráticos têm a
obrigação de contribuir para que grupos em situação de desvantagem possam
conservar as suas culturas, contra as interferências das culturas majoritárias ou
de massas (GUTMANN, 1993, p. 17).
Desta forma, uma política voltada para o reconhecimento da diferença,
exige que as instituições públicas não passem por cima das particularidades...
Afinal, existem muitas maneiras de viver a vida em uma sociedade. E o mais
interessante é que, quando apreendemos e compreendemos o outro, podemos
perceber com nitidez o que somos e os valores que norteiam a nossa vida...

DESCOBRINDO A DIFERENÇA

Acreditamos que podemos aprofundar o debate colocando no foco de


análise a própria forma na qual aprendemos a perceber a existência dos outros
modos de ser e de estar no mundo.
Interessa-nos em especial, entender como a partir do século XIX, no
contexto da Revolução Industrial (1750/1830) e do Imperialismo, o Ocidente
foi procurando compreender e administrar a multiplicidade de povos e cultu-
ras com quem passou a travar relações. Este ponto nos leva para o estudo do
termo racialismo.

Racialismo

Como bem anotou Kwame Appiah (1997), ensaísta e profes-


sor de filosofia anglo-ganense, as teorias raciais que emergiram nos últi-
mos dois séculos foram frutos de uma tentativa de compreensão da
diversidade humana por parte dos intelectuais ocidentais. Essas teo-
rias produziram uma doutrina que o autor denominou de racialismo.
Trata-se da concepção de que existem características hereditárias, possuídas
por membros de nossa espécie, que nos permitem dividi-la num pequeno
conjunto de raças. Nesta visão, todos os membros dessas raças compartilham
entre si certos traços e tendências que eles não têm em comum com membros
de nenhuma outra raça (APPIAH, 1997, p. 33).

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Tais características conformariam uma essência racial a ser conservada.


No melhor dos casos, cada uma das raças teria uma mensagem a dar ao mundo.
Embora anote que o racialismo, em suas mais diferentes versões racistas, seja
responsável por muito sofrimento no mundo, ao considerá-lo uma mera defi-
ciência cognitiva, ou seja, um erro de graves implicações morais, Appiah omite
do debate a problemática do poder. Ele escamoteia um efeito de poder central:
o racismo se opõe ao reconhecimento da condição humana de todos os seres
de nossa espécie. Elemento chave na legitimação de todas as formas de intole-
rância e opressão de um povo sobre outro.
Tais questões nos levam de encontro de Jean Jacques Rousseau
(1712/1778). De acordo com Lilia Schwarcz (1995), historiadora e antropó-
loga, professora da Universidade de São Paulo (USP) na mais importante obra
do célebre escritor suíço, Discurso sobre a origem e o fundamento das desigual-
dades entre os homens (1775), lançou-se as bases de uma concepção naturalista
da igualdade humana (1996, 161). Para ele, todos nasciam livres e iguais.
Já nas inúmeras teorias raciais que ganharam peso institucional, logo
norteavam as ações governamentais e científicas, e se disseminaram pelo
século XIX, num contexto de rápida industrialização e de emergência do
Imperialismo, tratava-se de negar, a partir de uma naturalização das diferen-
ças, o princípio da igualdade natural entre os homens e as mulheres.
Numa Europa em movimento, carregada nas costas de vapores, encou-
raçados e locomotivas, a grande China dos Manchus, com seus navios de
junco, os milhares de samurais japoneses, as castas indianas, os rituais reli-
giosos entre os povos africanos, não passariam de manifestações de diferentes
graus de inferioridade racial. Ponto de partida para uma máquina colonial que
torna a opressão o fardo do homem branco.
No chamado “Novo Mundo”, as teorias raciais, transformadas em polí-
ticas institucionais, foram responsáveis por uma racialização de inúmeras
tensões sociais. Principalmente àquelas vinculadas ao desmonte do sistema
escravista no Brasil, na Argentina, na Colômbia, em Cuba e nos EUA. No con-
texto da luta abolicionista, tais doutrinas permitiram uma reatualização das
hierarquias sociais que contribuíram para excluir as populações não europeias
do acesso à riqueza, ao poder e ao prestígio.
Nunca é demais lembrar que a escravidão, ou melhor, o escravismo, não
constitui em si um sistema econômico. Ele foi um modo de vida que permitiu,
a uma minoria de europeus, construir e moldar uma sociedade de acordo com
seus interesses.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Sidney Chalhoub, (1996), Raquel Rolnik, Célia Marinho Azevedo


(1987) entre outros, apontaram em seus trabalhos, como esta doutrina racia-
lista norteou a política de imigração europeia e os processos de modernização
dos espaços urbanos nas regiões sul e sudeste do Brasil. Durante a Primeira
República (1889/1930), o Estado brasileiro, preocupado em colocar o país no
caminho da civilização, o atual mundo desenvolvido, empenhou-se num her-
cúleo esforço para, através de um aumento dos estoques raciais europeus, pro-
mover o branqueamento do país. Assim, em algumas décadas foram importa-
dos cerca de quatro milhões de imigrantes europeus. Praticamente, a mesma
quantidade de pessoas trazidas ao Brasil, como cativos, ao longo de quatro
séculos.
Em resumo, raça, enquanto termo que designa um grupo populacional,
tende a reduzir os membros deste grupo a um amontoado de estereótipos.
Parafraseando Ralph Ellison (1991), escritor norte-americano de origem afri-
cana, ao olhar para o grupo, o racista não é capaz de percebê-lo. Ele enxerga
apenas os fantasmas de sua própria imaginação.

Figura 3 - Redenção de Cã

Fonte: Redenção de Cã, Modesto Brocos y Gómez, óleo sobre tela, 200,7 x 166,4, 1895,
Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.

82
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

RACISMO E LUTA ANTIRRACISTA: BRASIL E EUA

Brasil e Estados Unidos, mais recentemente, países europeus, enfrenta-


ram de diferentes modos o problema do racismo e de outras formas de intole-
rância. Nos anos 1960, as instituições estatais norte-americanas, sob a pressão
do movimento de direitos civis, constituíram uma política de ação afirmativa,
conforme ressaltou o professor Willian Robson Soares Lucindo, no capítulo
anterior. Isto é, na série de ações voltadas para proteção de grupos em des-
vantagem social, sendo que um dos primeiros atos foi a ordem executiva nº
10925 de 06/03/1961, do então presidente John Kenedy, que criava a Comissão
Presidencial sobre Igualdade no Emprego. Contudo, a ação mais célebre foi a
decisão da Suprema Corte dos EUA no caso Griggs versus Duke Power Com-
pany, em 1971, conforme apontado no capítulo anterior de nosso curso.

Figura 4 – Rosa Parks.

Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Rosa_Parks. Acessado em 22.02.2014.


Legenda: Rosa Parks, ao recursar-se a ceder lugar a um branco em 1958, deu início ao boicote
aos ônibus que deflagrou o Movimento por Direitos Civis nos EUA.

Utilizando-se de critérios diferenciados para brancos e para negros no


acesso ao emprego, a companhia expôs mais uma vez o racismo latente. A

83
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Suprema Corte julgou o caso envolvendo os métodos adotados pela empresa.


Neste período, os EUA criaram políticas de ação afirmativa, o que permitiu
consolidar uma nova proposta de país, ajudando na formação de uma socie-
dade mais democrática.
O resultado é que, com toda a oposição conservadora, em 30 anos de
ações afirmativas, 30% dos afro-americanos ingressaram na classe média e
alta. Em 1988, dos negros com mais de 25 anos de idade, 75% haviam con-
cluído quatro anos do curso secundário, 26% quatro anos de curso superior.
Em 1995, existiam um milhão de jovens negros em “colleges”, faculdades em
pós-graduação. As políticas de ações afirmativas, não resolveram o problema
da desigualdade, mas, significaram um grande salto em direção a construção
democrática nos EUA.

Figura 5 - Barak Obama e família em 2008.


Eleito 44º presidente dos EUA (2008).

Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/posse-do-obama/vitoria-nas-urnas-obama-e-
-eleito-o-44-o-presidente-dos-eua/. Acessado em 21.02.2014.

Em nosso país, o quadro parece muito mais sombrio, principalmente


porque o mito da democracia racial brasileira manteve-se intacto até 1995,
quando o presidente Fernando Henrique Cardoso, no ato de criação do Grupo
de Trabalho Interministerial para o Desenvolvimento das Populações Negras,
assumiu oficialmente o caráter racista da sociedade brasileira.
O problema, como diz Antônio Sérgio Guimarães (1999), no Brasil, o
ideário antirracista de negação da existência de “raças”, fundiu-se rapidamente
com uma política de negação do racismo como fenômeno social.

84
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

De fato, as elites brasileiras, que até as primeiras décadas do século,


tinham lá suas dúvidas sobre a capacidade do país de superar a barbárie e
“alcançar os passos da civilização”, descobriram por volta de 1930, com obra
síntese de Gilberto Freire “Casa Grande e Senzala” de 1933, que o Brasil havia
constituído uma civilização original, um mundo lusotropical, fruto da amal-
gama de três grupos distintos: o branco, o negro e o índio.

Figura 6 – Formação do povo brasileiro: o negro, o índio e o branco.

Fonte: http://escolamariacarmelita.blogspot.com.br/2010_11_01_archive.html

Tal ideário combinado com longos períodos de exceção (1930-


1945/1964-1985) com o correspondente engessamento da sociedade civil,
contribuíram para perpetuação de um silêncio criminoso sobre as múltiplas
violências que atingiram de forma brutal as populações não europeias.
Para Antônio Sérgio Guimarães, as raças no Brasil aparecem como pro-
dutos sociais, forma de identidade baseada numa ideia biológica errônea, mas
eficaz socialmente para forjar, manter e reproduzir diferenças e privilégios.
Não por acaso, a primeira legislação antirracista, a famosa Lei Afonso
Arinos, partia do pressuposto de que o Brasil não era uma sociedade racista.
Sendo que, os poucos casos de agressão, tratavam-se apenas da manifestação
de preconceito racial, atitude individual que tornada contravenção penal, um
ato ilícito de pequena gravidade, que como tal, deveria receber uma punição
branda.
Somente, a partir da Constituição “Cidadã” de 1988, com a crimina-
lização de atos de racismo, é que todo um arcabouço jurídico passou a ser

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

organizado de modo a redefinir e combater a exclusão racial, caso da lei de


1989, e mais tarde da lei Paim de 1997.
Contudo, estas ações são consideradas políticas “negativas”, na medida
em que sua finalidade é de prevenção e repressão a este tipo de modalidade
criminosa, têm sido quase ineficazes no ataque às desigualdades estruturais
que sofrem as populações não europeias.

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LUTA ANTIRRACISTA


NA EDUCAÇÃO

Longa é a trajetória de luta contra o racismo na Educação Brasileira,


da qual não podemos negar o protagonismo dos movimentos antirracistas no
país desde o início do século XX. Nesta tradição, o acesso à educação escolar
era o principal instrumento de superação da herança escravista que pesava
sobre africanos e seus descendentes. Neste sentido, as políticas educacionais
de Getúlio Vargas a Fernando Henrique Cardoso, que culminaram na univer-
salização da educação básica nos anos 1990, constituem avanços fundamentais
para a nação brasileira. Entretanto, os números existentes, quando desagrega-
dos por raça, trazem dentro de si um grande fracasso, a inclusão das crianças
negras, a permanência e o sucesso escolar.
O gênero, a raça, a etnia e o local de nascimento de uma criança brasi-
leira ainda determinam, em grande parte, suas oportunidades futuras. Essas
desigualdades têm repercussões diretas também na saúde da mulher e na
razão da mortalidade materna, afirma Marie Pierre Poirier, coordenadora-
-residente interina do Sistema das Nações Unidas no Brasil, na apresentação
do relatório.10

EDUCAÇÃO PARA ROMPER BARREIRAS

O estudo ainda mostra que a tendência de universalização do ensino


fundamental, uma política mais geral, não voltada a determinadas etnias espe-
cificamente, beneficiou negros e brancos. Em 1992, o percentual de pessoas de
7 a 14 anos que frequentavam o ensino fundamental era de 75,3% para negros

10 Disponível em http://www.pnud.org.br/Noticia.aspx?id=2296 Acessado em 02.03.2014.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

ou pardos e 87,5% para brancos. Já em 2008, as porcentagens eram pratica-


mente iguais: 94,7% no primeiro caso e 95,4% no segundo.
Um dos efeitos desta universalização foi a queda da desigualdade no
analfabetismo. Na faixa etária de 15 a 24 anos, a taxa era de 95,6% para os
brancos e 86,8% para os negros, em 1992. Já em 2008 os números eram pareci-
dos: 98,7% para os brancos, 97,3% para negros ou pardos.
Já no ensino médio a desigualdade ainda persiste, embora em nível
menor. Em 1992, a proporção de brancos de 15 a 17 anos matriculados no
antigo colegial (27,1%) era quase o triplo se comparado ao de alunos negros
(9,2%). Em 2008, a diferença havia caído para 44% (61% entre os brancos,
42,2% entre negros ou pardos). Porém, quando se adiciona o componente
gênero, a questão se agrava. “As negras frequentam menos as escolas, apresen-
tam menores médias de anos de estudo e maior defasagem escolar”, pontua o
estudo.11

POUCOS REFLEXOS NA RENDA

Se o perfil educacional de negros e brancos ficou mais parecido, poderia


se esperar que o mesmo acontecesse com o rendimento. Mas não é o que tem
ocorrido. Segundo o estudo publicado, a distância entre trabalhadores brancos
e os de cor de pele preta ou de cor parda diminuiu, mas ainda é grande.
Em 2008, estes últimos recebiam somente 56,7% da remuneração dos
primeiros, enquanto dez anos antes o percentual era de 48,4%. “Tal diferencial
se deve, em grande medida, à menor escolaridade média da população preta
e parda, que, no entanto, não é suficiente para explicar as diferenças de rendi-
mentos”, afirma o relatório.
O confronto dos dados de 1998 com os de 2008 mostra que, nos dez
anos e para todas as faixas de escolaridade, os negros ou pardos sempre estive-
ram em situação pior na população ocupada. Ao longo desse período, a desi-
gualdade caiu entre quem tem até 4 anos de estudos (no máximo o antigo
primário, portanto) e quem tem de 9 a 11 anos de estudos (ensino médio com-
pleto ou incompleto) contudo, não mudou entre trabalhadores com 5 a 8 anos
de estudos (antigo ginásio completo ou incompleto) e aumentou entre os que
têm superior completo e incompleto.

11 Disponível em http://agencia.ipea.gov.br/images/stories/PDFs/100408_relatorio_
odm%20.pdf. Acessado 02.03.2014.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Quando consideramos não apenas os trabalhadores, mas toda a popula-


ção, a desigualdade se mostra estável. O relatório aponta que, em 1990, 37,1%
dos negros ou pardos viviam abaixo da linha de extrema pobreza do Banco
Mundial (US$ 1,25 ao dia, em dólar calculado pela paridade do poder de com-
pra, que desconta as diferenças de custo de vida entre os países). Em 2008,
a proporção havia caído para 6,6% - um recuo de 82% no período. Entre os
brancos, a queda foi semelhante (83%): de 16,5%, em 1990, para 2,8%, no ano
retrasado.

MAIS QUE O DOBRO...

Logo, os números mostram, que a proporção de pessoas muito pobres


entre os negros é mais que o dobro que entre os brancos. Sob esse ponto de
vista, a desigualdade racial abre um fosso de cinco anos entre os dois grupos:
a extrema pobreza de negros e pardos de 2008 era a mesma que a de brancos
de 2003. E o estudo evidencia, “apesar dos avanços, o objetivo da igualdade
racial requereria uma queda mais acelerada da pobreza extrema entre negros
e pardos”.12

AÇÕES AFIRMATIVAS

Neste sentido, sob a batuta da sociedade civil organizada, em diálogo


com um novo quadro político-partidário, produzimos uma revolução demo-
crática em nosso país. De certo modo, colaboramos para realizar um sonho
quase impossível para milhares de Hamiltons Cardoso: colocar as desigualda-
des raciais no centro da agenda política. Elaboramos uma pauta multicultura-
lista que deixou nus os mecanismos que reproduzem a dominação branca em
nosso país.
Do ponto de vista institucional, a legitimidade das políticas de ações
afirmativas foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar
improcedente a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, impe-
trada pelo Partido Democrata em 2009, contra o programa de ações afirma-
tivas para acesso ao ensino superior da Universidade de Brasília. O voto do
Ministro Ricardo Levandowisky, acompanhado pelos pares, naquele abril de

12 Fonte:http://noticias.terra.com.br/educacao/noticias/0,,OI4376799-EI8266,00-Des
igualdade+racial+persiste+apesar+de+melhorias+na+educacao.html . Acessado
23.02.2014

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Figura 6 - Militantes do Movimento Negro no Plenário do STF (2012).

Fonte: http://wap.portaldostrabalhadores.com.br/news-pt-br/2012-04-25/movimento-
-negro-comemora-legalizacao-de-cotas-nas-universidades/ Acessado 23.02.14.

2012, não apenas significou o reconhecimento por parte do Estado da existên-


cia do racismo, das desigualdades raciais dele decorrentes, mas a legitimidade
constitucional das medidas destinadas a enfrentá-los.
No Congresso Nacional as políticas negativas voltadas para punição de
práticas racistas deram lugar na agenda a outras reivindicações. Leis, como a
10.639/03 e a 11.645/08, que introduziram na Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
cação e tornaram obrigatório nas redes oficiais de ensino o estudo da história
e cultura africana, afro-brasileira e indígena, constituem avanços. Em 2010
aprovou-se o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/10), e, ato contínuo
ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal, em 2012, a Lei 12.711 que
determinou a existência de sistema de “cotas” sociais e raciais para o acesso
aos cursos de graduação nas instituições federais de educação superior. Além
disso, está em pauta a votação do projeto de lei nº4471/2012, que extingue
a utilização dos autos de resistência pelas forças de segurança - verdadeira
licença para exterminar negros por parte das corporações policiais.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

No Poder Executivo são muitas as experiências, a começar pela criação


da Fundação Cultural Palmares em 1988, pelo Presidente José Sarney, quando
das celebrações do Centenário da Abolição da Escravatura. Alguns anos mais
tarde, como resposta à Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela
Cidadania e a Vida, o então presidente Fernando Henrique Cardoso reconhe-
ceu, em 1995, a profunda desigualdade racial existente no país e instituiu o
Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra.
Postura que tomou vulto durante o processo de preparação para a III Confe-
rência Mundial de Combate ao Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas,
em Durban, África do Sul (2001).
No entanto, foi a partir do Governo de Luis Ignácio Lula da Silva (2003),
sob pressão do Movimento Negro, que a questão racial ganhou uma nova
dimensão, principalmente após a criação naquele ano da Secretaria Especial
de Políticas de Promoção de Igualdade Racial (SEPPIR), com status de minis-
tério, vinculada a presidência da República e a Política Nacional de Promoção
da Igualdade Racial (PNPIR). Mesmo com muitas dificuldades, causadas entre
outros motivos, pela persistência de um racismo institucional insidioso e para-
lisante, as ações voltadas para o enfrentamento do racismo e atendimento às
populações afrodescendentes se verticalizaram, atingindo diferentes áreas de
atuação governamental (Desenvolvimento Agrário, Justiça, Saúde, Juventude,
Direitos Humanos, Ciência e Tecnologia).
Na Educação, campo de maior acúmulo do Movimento Negro Brasi-
leiro, nestes anos, construímos um dos mais importantes arcabouços institu-
cionais para a sustentação normativa da política de promoção da igualdade,
digno do bordão pelo qual ficou marcado o ex-presidentes Lula, “nunca dantes
na história desse país”. Além das Leis Federais acima mencionadas, podemos
elencar as Diretrizes Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
e Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, Africana (2003), que estabe-
leceram as regras por meio das quais se pretende enfrentar o racismo e pro-
mover o respeito à diversidade cultural no cotidiano escolar. Agregue-se a ela
as Diretrizes Nacionais para Educação Escolar Quilombola (2012), o Plano
Nacional para Implementação da ERER (2009), a Regulamentação da Lei de
Cotas (2012), a emissão da Portaria Normativa MEC nº21/2013, que dispõe
sobre a inclusão da educação para as relações étnico-raciais, do ensino de His-
tória e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a promoção da igualdade racial e o
enfrentamento ao racismo nos programas e ações do Ministério da Educação.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Desde 2002, é significativa a presença de especialistas comprometidos


com a luta antirracista, ocupando funções, em especial, na Secretaria de Alfa-
betização, Educação Continuada, Diversidade e Inclusão que, em parceria
com organizações da sociedade civil, pesquisadores vinculados aos núcleos de
estudos afro-brasileiros (NEAB’S) e representantes de outras agências gover-
namentais têm contribuído para uma intervenção qualificada nas políticas
educacionais brasileiras.

OS DESAFIOS DA IGUALDADE...

2014 constitui uma data marcante no calendário da causa da igualdade.


Completa-se cinquenta anos do início da ditadura militar e três décadas de
experiência democrática. O mais longo período de liberdades civis de nosso
país em quinhentos anos de história. Fechamos agora um ciclo democrático
baseado no combate ao desemprego (4,8% em janeiro de 2014), na distribui-
ção de renda (54% da população na classe média de renda)13 e criação de opor-
tunidades (expansão do crédito, universalização do acesso à educação supe-
rior, tecnológica e profissional).
As políticas universalistas desenvolvidas na última década contribuíram
de forma decisiva para melhorar a vida dos brasileiros, mas, como indica a
experiência de outros países ocidentais, isto não é o suficiente para atacar a
persistente desigualdade racial e de gênero presente na sociedade brasileira,
tão bem expressa na pouca representação de mulheres e negros no Congresso
Nacional (apenas 10%).
Acreditamos que o Projeto de Lei Nº 6.738/13, que destina 20% das
vagas em concursos públicos federais para negros, de autoria do Executivo,
com a previsão de absorção de doze mil descendentes africanos nos próximos
três anos, poderá contribuir incrivelmente para o empoderamento dos negros,
principalmente em se tratando de cargos de grande status e prestígio na admi-
nistração federal.
Todavia, ações pontuais que não ataquem problemas institucionais
constituintes do racismo institucional, trazem poucas mudanças e efeitos.
Daí a importância da Reforma Política, com a criação do financiamento
público e exclusivo de campanha, que permitirá uma renovação significativa

13 http://exame.abril.com.br/economia/noticias/os-grandes-numeros-da-classe-
media-brasileira#2. Acessado em 23.02.2014.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

dos quadros no parlamento. A democratização do acesso à informação que


garanta o fortalecimento da produção regional, quebra de monopólios (TV,
Rádio, Jornais Impressos) e respeito a diversidade cultural e racial presentes na
sociedade brasileira.
Deste modo, consideramos fundamental, no âmbito da Lei Federal
12.288/10, a criação do Fundo Nacional de Promoção da Igualdade Racial com
finalidade de financiar as ações multissetoriais previstas na legislação.
Contudo, a tarefa mais importante é o fortalecimento da sociedade civil
na ação de controle e fiscalização da atividade governamental e, principal-
mente, na educação da população para a vivência democrática.

Referenciais Bibliográficos

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

MÓDULO 3 - Introdução a História da África


Mais um Módulo inicia e, neste momento, discutimos aspectos políti-
cos, históricos, culturais e geográficos do continente africano. Berço da civi-
lização humana, ainda há muito que se aprender sobre este espaço tão amplo
e diverso, permeado de culturas múltiplas. O objetivo deste módulo formado
por 4 capítulos é possibilitar a compreensão de aspectos introdutórios ao
estudo das Áfricas.
Em se tratando de uma temática ainda recente nas salas de aula da
educação básica, o estudo das Áfricas permite conectar elementos culturais
africanos à realidade de experiências vividas no Brasil, bem como conhecer
dinâmicas internas do continente e sua interação/inter-relação com os demais
continentes. Longe da ideia de um continente isolado, marcado pelas “impos-
sibilidades” do deserto do Saara, sabemos que o continente africano sempre
esteve em relação intensa com povos de outros continentes e também, impor-
tante destacar, suas próprias populações – diversas -, interagiam, trocavam
produtos materiais e culturais.
Uma grande parte da produção existente sobre história da África limita
o continente à escravidão, pautada numa visão eurocêntrica de que os povos
africanos constituem atraso e barbárie; um continente incapaz de lidar com
seus próprios problemas sociais, econômicos e culturais. Deste modo, mar-
cado por uma visão simplista e equivocada, o continente é enxergado de modo
distorcido e unilateral, impedindo que suas histórias sejam discutidas de forma
aprofundada, para além das marcas da escravidão e do colonialismo.
A intenção deste módulo é inserir você cursista, bem como demais lei-
tores deste material, num ambiente de diversidades, disputas e conhecimento.
Neste sentido, tentemos conhecer uma nova versão a respeito do continente
africano, nem sempre muito veiculada em materiais didáticos e nas mídias:
Áfricas dinâmicas, culturas múltiplas; muito além da visão hegemônica equi-
vocada do deserto aliado à pobreza extrema. Como atenta Chimamanda Adi-
chie, até que os leões contem sua própria história, a memória sobre eles será
sempre a dos caçadores! Está mais do que na hora de ouvirmos histórias das
Áfricas que sempre foram ditas, mas nunca ouvidas e compreendidas em seus
próprios termos.
Que nossas possibilidades de discutir Áfricas se ampliem!

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Capítulo 1 - África, um continente - geografia, aspectos políticos


e sociais, diversidade, multiculturalismo e religiosidade

Maristela dos Santos Simão


Angelo Renato Biléssimo

Buscamos neste texto, apontar alguns caminhos para um estudo da His-


tória da África que permita uma compreensão mais abrangente do conheci-
mento produzido atualmente sobre a temática. Ainda que o continente con-
tinue a ser, em certa medida, pouco estudado ou mal interpretado, há um
esforço em produzir material de qualidade, em especial na última década. Pen-
sando nisso, construímos esse texto a partir da contribuição de alguns autores,
sempre com o objetivo de indicar caminhos possíveis, tanto através de textos e
livros, como de vídeos, imagens e outros recursos.
Chamamos assim, atenção para a importância da leitura posterior
dos autores indicados, pois acreditamos que estes são as bases dos estudos.
Os vídeos apresentam-se como mais uma ferramenta importante, auxiliam
na compreensão individual e como suporte para nós, profissionais da educa-
ção, dentro dos espaços escolares. Dessa maneira, a visualização dos vídeos
se torna parte fundamental dos estudos aqui propostos, constituindo parte
do texto e a visualização colabora para a melhor compreensão da proposta.
Mapas e imagens fazem o teórico tornar-se mais palpável, contribuindo nas
representações. Páginas de internet indicadas também complementam essas
poucas laudas que seguem. Assim, buscamos aqui um pequeno passo nessa
longa jornada dos estudos sobre África.
Um bom estudo a todos nós!

INTRODUÇÃO SOBRE HISTÓRIA DA ÁFRICA

Desde 1500, a História do Brasil está intimamente vinculada a pro-


cessos e dinâmicas ocorridas no continente africano. A historiografia, entre-
tanto, tem, na maior parte das vezes, assumido um viés eurocêntrico, não só
dos acontecimentos no que é hoje o território brasileiro mas também do que
ocorre em África. Assim, a participação de milhões de indivíduos nos dois
lados do Atlântico por vezes é deixado de lado, e a história é contada exclusi-
vamente a partir de alguma corte portuguesa. Mais do que uma questão histo-
riográfica, essa discussão é atual e relevante ao pensarmos nossa sociedade e,

95
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

compreender a História da África. Tal ação é, também, combater visões racis-


tas e discriminatórias que minimizam as populações de origem africana e sua
participação no desenvolvimento da humanidade.
Segundo dados do IBGE, o Brasil possui, atualmente, mais de 100
milhões de pretos e pardos, constituindo 51% da população brasileira. Neste
sentido, conforme chama atenção o Projeto Cor da Cultura,
essas populações não podem ser consideradas uma minoria
num país que só perde para a Nigéria em quantidade de
afrodescendentes no mundo. O curioso é saber que mesmo com
toda a riqueza cultural, histórica e econômica que a sociedade
brasileira herdou da África, ainda conhecemos muito pouco
sobre o continente, onde vivem mais de 780 milhões de pessoas
das mais variadas etnias. (A Cor da Cultura)
Com as obrigações apresentadas pela Lei 10.639/03, que tornou obri-
gatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira, um outro
problema tomou forma: qual a visão de educadores e demais envolvidos na
educação sobre a África e os Afrodescendentes? Por uma série de razões, polí-
ticas, sociais e econômicas, históricas ou atuais, sabemos, via de regra, muito
pouco sobre o continente. Segundo Alberto da Costa e Silva,
Nos filmes, nas histórias em quadrinhos, nos seriados de tevê
e nos romances, a África é sempre um continente misterioso
e mágico, onde são possíveis todas as aventuras. A imagem
que nos transmitem diariamente os jornais e os noticiários de
rádio e televisão é outra: a de uma parte do mundo assolada
por secas, fomes, epidemias, guerras e tiranos. Uma visão não
desmente a outra, e ambas são incompletas. Se uma região da
África for atacada por nuvens de gafanhotos que devoram
todas as plantações, e nela há fome, nas outras a colheita se fez
normalmente [...] Se em determinado lugar há uma feroz luta
armada, noutros as crianças vão regularmente à escola, de roupas
limpas e sapatos lustrados. (SILVA, 2008. p. 11)
A verdade é que, quando se fala África, não há A ÁFRICA, porém AS
ÁFRICAS. O primeiro ponto a se compreender é a complexidade e a multipli-
cidade do continente. Se temos as grandes savanas, temos igualmente florestas
fechadas, picos permanentemente nevados e cidades vibrantes. Mais do que
isso, um continente vivo, em permanentes transformações e com pessoas tão
diversas entre si quanto qualquer outro continente. Nessa perspectiva, o pes-
quisador africano Elikia M’bokolo ressalta que “de ambos os lados do Saara,

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

do Mediterrâneo, do Atlântico e do Índico, se pode perceber mais que o inte-


resse pelo passado africano, uma autêntica necessidade de história africana. ”
(M’BOKOLO, 2003). E retoma:
Não será pouco dizer que a África se mexe. Os sons, os gritos,
as cores, as imagens que se fazem ouvir por todas as partes
do continente são os das sociedades empenhadas em tarefas
gigantescas que longe de ser em primeiro e apenas tarefas de
destruição e de morte, são as de actualizações, de refundações,
de contestações e de invenções. (M’BOKOLO, 2003. p. 7).
A complexidade do continente africano, no entanto, necessita ser com-
preendido em toda sua extensão. Nossa visão acerca daquele espaço, muitas
vezes responde mais a questões políticas que geográficas ou demográficas. O
escritor moçambicano Mia Couto, alerta:
A África vive uma tripla condição restritiva: prisioneira de um
passado inventado por outros, amarrada a um presente imposto
pelo exterior e, ainda, refém de metas que lhe foram construídas
por instituições internacionais que comandam a economia. A
esses mal entendidos se somou outra armadilha: a assimilação
da identidade por razões de raça. Alguns africanos morderam
essa isca. A afirmação afrocentrista sofre, afinal, do mesmo erro
básico do racismo branco: acreditar que os africanos são uma
coisa simples, uma categoria uniforme, capaz de ser reduzida
a uma cor de pele. Ambos os racismos partilham do mesmo
equívoco básico. Ambos se entreajudaram numa ação redutora
e simplificadora da enorme diversidade e complexidade do
continente. Ambos sugerem que o ‘ser africano’ não deriva da
história, mas da genética. E no lugar da cultura tomou posse a
biologia. (COUTO, 2005, p. 11).
Mesmo algumas tentativas de abarcar essa diversidade, por vezes nos
conduzem a teses reducionistas. Comumente a África é referida como um
espaço à margem do mundo, tanto dos processos políticos e culturais como
históricos. Continua Couto:
Outro lugar comum nesses exercícios de dar rosto ao continente
africano é o peso concedido à tradição. Como se outros
povos, nos outros continentes, não tivessem tradições, como
se o passado, nestes outros lugares, não marcasse o passo do
presente. Os africanos tornam-se, assim, facilmente explicáveis.
Basta invocar razões antropológicas, étnicas ou etnográficas.
Os outros, europeus ou americanos, são entidades complexas,

97
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

reservatório de relações sociais, históricas, econômicas e


familiares. (COUTO, 2005, p. 11).
A partir dessas reflexões, podemos concordar com o Projeto Cor da Cul-
tura, quando afirma que não é de hoje que os livros escolares e as notícias da
imprensa apresentam uma África estereotipada. Para discutir que imagem é
essa, o Projeto elaborou uma proposta de investigação simples, mas capaz de
apontar conclusões de grande importância e complexidade. Foi oferecido um
jogo a várias pessoas, para que essas apontassem quais características associa-
vam ao continente.
Em síntese:

“Dez pessoas foram convidadas a classificar a região a partir de alternativas. Você


acha que elas veem a África como sinônimo de desenvolvimento ou atraso? Saúde
ou doença? Riqueza ou pobreza? Estabilidade ou instabilidade política? Tribo ou
civilização?
Para um senhor com sotaque português, a África tem riquezas, sim, mas são mal
distribuídas. Uma jovem menciona a Aids como um dos fatores que a levam a
afirmar que o continente africano é associado à doença.
Outra entrevistada justifica a escolha de instabilidade política ao lembrar das guer-
ras que assolam o continente. Um depoimento, em especial, se destaca. É a fala de
uma moça que aponta todas as opções desfavoráveis e explica o motivo: ‘Escolhi os
aspectos negativos porque é o que a televisão mostra’”. (Projeto A Cor da Cultura)

Vídeo 9: África no currículo escolar. Fonte: youtu.be/IT2xFPVYXwk

Não podemos negar que várias regiões da África enfrentam graves pro-
blemas, incluindo os indicados no vídeo. Mas, muitas vezes, temos acesso,
através da televisão, jornais ou revistas, por exemplo, apenas sobre os proble-
mas encontrados por aquelas populações. Nessa imagem, há apenas a savana,

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

com seus leões e girafas, de um lado; e grandes populações, famintas, doentes


e em guerra, de outro.
O continente africano tem muitas histórias para contar. Existe hoje o
consenso de que a humanidade nasceu na África, e de lá partiu para os demais
continentes. Diferentes descobertas e análises científicas em sítios arqueológi-
cos apontam que o processo de hominização deu-se no continente africano14.
No entanto, as poucas histórias de conquistas africanas que nos são contadas,
em especial nos livros didáticos, de alguma forma extirpam conhecimentos
e imagens positivas sobre a África. A antiga civilização egípcia talvez seja o
maior exemplo. Magistral, com avanços no conhecimento de várias áreas,
colosso militar e político por muitos séculos, muitos livros omitem que o Egito
fica no continente africano. E isso que estamos falando dos egípcios, um dos
povos mais estudados em espaços escolares.
Na maioria dos livros didáticos, a desinformação prossegue, inclusive
quando se trata das populações de origem africana. A maior parte das infor-
mações dedicadas ao continente é sobre a temática da escravidão. Além disso,
a forma de tratar o assunto é, quase sempre, eurocêntrica, com os africanos
formando uma identidade única, amorfa, tendo como característica única a
servidão. Também aqui é preciso ressaltar a quantidade e a variedade de povos
e origens que formavam a multidão de escravizados trazida do continente
africano para o cativeiro nas Américas. Idiomas, culturas, valores, costumes,
crenças, aparência, as diferenças entre as pessoas eram representadas de forma
completa naquelas populações.
Assim, o continente africano constituiu-se formador do Brasil, contudo
sua atuação é frequentemente subestimada, diminuída em relação às forma-
ções de outras origens, em especial, europeias. Para o professor Kabengele
Munanga,
nossos livros didáticos têm uma orientação que não contempla
as raízes africanas do Brasil, influenciando negativamente na
formação da autoestima dos jovens brasileiros de ascendência
africana. Para qualquer pessoa se afirmar como ser humano ela
tem que conhecer um pouco da sua identidade, das suas origens,
da sua história (A Cor da Cultura).

14 Para informações detalhadas a respeito, consultar: MACEDO, José Rivair. História da


África. São Paulo: Contexto, 2013; em especial o capítulo 1 “Pré-história africana”.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

É esse cenário que iniciativas como a Lei 10.639/03 buscam combater.


Espera-se que os alunos, ademais de compreenderem processos como o feuda-
lismo na Europa, a Revolução Francesa e a independência dos Estados Unidos,
também tenham contato mais profundo com uma África complexa e multifa-
cetada.

DIVERSIDADE E MULTICULTURALISMO

A característica que mais chama a atenção quando estudamos o con-


tinente africano – e talvez o mesmo seja válido para os outros continentes,
também – é a diversidade. Diversidade de línguas, povos, paisagens, interpre-
tações, fauna, flora e culturas.

Vídeo 10: Como as histórias se espalharam pelo mundo. Fonte: youtu.be/57RnkJ7DI9w

O livro Como as histórias se espalharam pelo mundo, de Rogério Andrade Barbosa,


é animado pelo Projeto A Cor da Cultura, pontuando a diversidade cultural exis-
tente no continente africano. Para saber mais:
BARBOSA, Rogério Andrade. Como as histórias se espalharam pelo mundo. São
Paulo: Editora DCL, 2002.

Mas essa diversidade traz consigo a necessidade de redobrarmos a aten-


ção a algumas características dos textos. Machado nos chama muito bem aten-
ção para essas questões:

“Ao analisar um livro que aborda a questão da africanidade (como tema, autoria e
foco), o mediador de leitura deve estar atento a alguns aspectos que discutiremos
ao longo do nosso estudo. Houve um cuidado do editor em informar de onde
veio a história contada? É um reconto ou adaptação de história proveniente da
África? Ou é uma história inspirada nas tantas culturas desse continente? O que

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

caracteriza a obra com abordagem africana? O autor é africano? Vale a pena tra-
balhar a obra com os alunos? [...] Um passo importante é verificar as informações
contidas na obra, caso elas se refiram a um povo ou comunidade especifica. Elas
podem ser reconhecidas como verdadeiras pelo ou pela comunidade a que se refe-
rem? [...]
Há livros, por exemplo, que incluem elementos (artesanatos, bichos) de outras cul-
turas e nações em história africanas, equivocadamente. Outros que tratam o negro
como único representante étnico da África. Será? Outros que tratam o candomblé
como uma religião dos africanos. Por outro lado, há livros que enriquecem o texto
com palavras e expressões das diversas línguas faladas na África. Alguns têm o cui-
dado de trazer um glossário, para facilitar o entendimento. Há de se imaginar que,
mesmo com o português falado no Brasil. [...]
Cabe ressaltar que o conhecimento das diversidades – étnicas, sociais, culturais – é
de relevância a todas as crianças. Para tanto, o professor deve estar seguro quanto
ao objetivo do seu trabalho com os alunos. E deve conhecer a diversidade caracte-
rística da África. [...] Os livros escolhidos para um trabalho em sala de aula devem
ser compatíveis como os interesses, a bagagem pessoal e a capacidade cognitiva
dos alunos. As crianças gostam de se emocionar com a história, torcer pelo sucesso
ou fracasso de alguma personagem e, dessa maneira, enriquecer sua própria reali-
dade”. (MACHADO, 2012, p. 21-22)

RETRATO FÍSICO DO CONTINENTE AFRICANO

A África é um continente enorme, com grande diversidade geográ-


fica. Sua divisão política é dinâmica, e em 2011 a comunidade internacional
viu surgir mais um país, o Sudão do Sul, apresentando-se assim, atualmente,
com 54 países. Grande parte do continente conquistou sua independência das
potências coloniais a menos de 50 anos, sendo um dos resquícios do colo-
nialismo a questão das fronteiras geográficas, nem sempre resolvidas com a
independência.
O continente africano é cercado a nordeste pelo mar Vermelho, ao norte
pelo Mediterrâneo, a oeste pelo oceano Atlântico e ao leste pelo oceano Índico.
O istmo de Suez liga-o à península Arábica. A divisão política, no entanto,
nem sempre corresponde às divisões entre as populações existentes no conti-
nente. Essa situação cria permanentes conflitos, por vezes tratados de forma
violenta. Também influi em complexas questões de pertencimento, identidade
e contribui para as graves questões de imigração que a África enfrenta hoje.
Como bem lembra Isabel Castro Henriques, citando um poeta açoriano, “o
território não é o mapa”.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

“Algumas correntes da historiografia relativa à África contemporânea, aceitam,


sem discussão e frequentemente sem análise e sem crítica a ideia de uma perfeita
coincidência entre mapa e território, esquecendo que o mapa não é mais do que um
sistema de símbolos. [...] As expedições coloniais têm sempre como objetivo definir
parâmetros geográficos identificáveis. [...] O mapa não pode dar conta desta multi-
plicação de presença na medida em que não pode deixar de reduzir, de deformar a
realidade. Esta operação – a que se pode não recusar o suporte científico – permite
dar uma orientação e simultaneamente simplificar as tarefas de colonização e do
colonialismo que lhe está obrigatoriamente associado. Ou seja, o esforço colonial
vai no sentido de fazer coincidir território e mapa, de maneira a poder impor tare-
fas, entre as quais contam a expulsão ou a deslocação dos homens”. (HENRIQUES,
2004. p. 10-14)

Figura 1 - Mapa político da África.


Fonte: upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/8/86/African_continent-pt.
svg/2000px-African_continent-pt.svg.png?uselang=pt

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Figura 2: Hidrografia da África. Fonte: 1.bp.blogspot.com/-aZl0mcdu7vQ/UIdsUljj9MI/


AAAAAAAAAW8/81LfLdeBp1Q/s1600/africa_hidrografia.jpg

Para mais, das questões políticas, a diversidade de paisagens contribui


para a grande diversidade do continente. Alberto da Costa e Silva apresenta
um panorama:
Nela há de tudo: altas montanhas – algumas, como Kilimanjaro,
com picos permanentes cobertos de neve; grandes desertos,

103
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

como o Saara; florestas que parecem sem fim, como o Congo;


grandes extensões de matas baixas e estepes (nome que se dá
a áreas cobertas por capim e outras plantas rasteiras); e zonas
que estão sempre alagadas. Cerca de metade do continente é
formada, porém, por savanas, uma paisagem na qual o relvado
é interrompido por árvores baixas afastadas uma das outras.
Numa região, faz frio na maior parte do ano. Noutra, predomina
o calor úmido. E noutras, ainda, o calor seco ou a falta absoluta
de umidade característica do deserto. Nas regiões costeiras do
norte do continente e na parte meridional da África do Sul,
o clima é temperado, com as quatro estações bem definidas.
(COSTA E SILVA, 2011, p. 12)

“Os rios são os meios de comunicação mais importantes do continente. Entre eles
se destacam o Nilo, que nasce na região do lago Vitória e deságua no Mediterrâneo,
o Senegal, o Gâmbia, o Volta e Níger, que nascem nas montanhas da Fula Jalom e
desaguam no oceano Atlântico, em pontos diferentes da costa ocidental africana;
o Congo e o Cuanza, que nascem no interior de Angola e no coração da floresta
equatorial central e desaguam no oceano Atlântico, e finalmente, o Limpopo e o
Zambeze, no sudoeste do continente, que desaguam no oceano Índico, onde hoje
é Moçambique. São referências importantes os grandes lagos da região centro-
-oriental. A grande faixa do Saara divide o continente. Ali, onde um dia existiram
lagos, existem hoje algumas minas de sal”. (SOUZA, 2005, p. 11)

Mesmo diante das grandes diferenças encontradas no espaço africano,


podemos dividir a África em 5 regiões, como forma de facilitar nossos estudos.
Ainda assim, cabe sempre ressaltar que essa divisão é apenas uma ferramenta
didática, e temos grandes áreas de transição e profundas diversidades dentro
de cada região.

Região Países Relevo dominante Clima, vegetação e hidrografia Economia


Clima mediterrâneo no litoral
com vegetação de maqui
Agricultura mediterrânea
Planáltico, com (densas moitas de arbustos) e
de oliveiras e videiras no
Argélia, Egito, Líbia, destaque para a garripe (presença de carvalho
litoral e pastoreio nômade
Setentrional Marrocos, Saara cadeia do Atlas a e alecrim) e clima árido com
no deserto. Exploração de
Ocidental e Tunísia. noroeste. Planície vegetação xerófila no interior.
jazidas petrolíferas e de
junto ao litoral. Rede hidrográfica pobre, com
fosfato.
predomínio de rios temporá-
rios, exceção feita ao rio Nilo.

104
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Região Países Relevo dominante Clima, vegetação e hidrografia Economia


Benim, Burquina Faso,
Cabo Verde, Costa Clima tropical com vegetação Domínio agrícola de
do Marfim, Gâmbia, de florestas, estepes e sava- monoculturas de cacau,
Planáltico; domí-
Gana, Guine Bissau, nas. No interior predomina amendoim, café. Culturas
Ocidental nio de planícies no
Libéria, Mali, Mauri- o clima árido com vegetação de subsistências (milho e
litoral.
tânia, Níger, Nigéria, xerófila. Destaca-se a bacia do mandioca). Extração de
Senegal, Serra Leoa, rio Níger. petróleo e de diamantes.
Togo.

Camarões, Chade, Agricultura comercial


Congo, Gabão, Guiné Clima equatorial com densas como monoculturas extra-
Planáltico, desta-
Equatorial, República florestas. Região drenada tivismo vegetal. Explo-
Central ou cando-se o Monte
Centro-Africana, pelo rio Congo ou Zaire, o ração de petróleo, ferro,
Equatorial Camerum (4.070
República Democrá- maior em volume d’água do manganês, ouro, urânio,
metros)
tica do Congo, São continente. diamantes, bauxita, cobre
Tomé e Príncipe. e cobalto.

Clima tropical com savanas


Montanhoso Predomínio da agricultura
Burundi, Djibuti, Eri- e grandes porções de clima
recente: o maciço de subsistência (mandioca
tréia, Etiópia, Quênia, árido junto ao litoral. No
da África Oriental e arroz); agricultura
Oriental Ruanda, Somália, Sudão e na Etiópia problemas
apresenta as comercial do algodão.
Sudão, Sudão do Sul, climáticos decorrentes da
maiores altitudes Pastoreio nômade de
Tanzânia e Uganda. situação de margem do
do continente. bovinos e camelos.
deserto do Saara.
África do Sul, Angola, Fruticultura e cereais.
Planáltico, com
Botsuana, Lesoto, Clima tropical e subtropical Exploração de ferro,
destaque para os
Madagascar, Malauí, onde aparece a vegetação de carvão, diamantes, ouro
Meridional montes Drakens-
Moçambique, Namí- savanas. O clima árido domina e manganês. Indústria,
berg, no nordeste
bia, Suazilândia, no deserto do Kalahari. metalurgia, mecânica,
da África do Sul.
Zâmbia e Zimbábue. química.
Quadro 1: Regiões da África. Fonte: BENJAMIN, 2006. p. 7.

FAUNA E FLORA

Dentro das imagens que temos do continente africano, as variadas espé-


cies de animais e plantas são talvez o que mais chama a atenção no nosso ima-
ginário. Embora, o continente esteja longe de ser apenas um grande deserto ou
o extenso reino do Rei Leão, a fauna e flora africana são um dos destaques do
estudo do continente. Convém ressaltar porém, que a África não é um gigan-
tesco parque natural, mas ambiente de mais de um bilhão de pessoas, com
cidades, indústrias e, sim, grandes áreas naturais.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Vídeo 11: Bichos da África. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=_3wrM6UW_WI

Rogério Andrade Barbosa, em dois livros Bichos da África 1 e 2, apresenta um


pouco dessa fauna no imaginário de algumas sociedades africana e o Projeto A
Cor da Cultura nos apresenta em forma animada. Para saber mais:
BARBOSA, Rogério Andrade. Bichos da África 1. São Paulo: Melhoramentos, 1987.
BARBOSA, Rogério Andrade. Bichos da África 2. São Paulo: Melhoramentos, 1987.
Ou acesse: antigo.acordacultura.org.br/livros/content/bichos-da-%C3%A1frica-0

Alberto Costa e Silva conta muito sobre essa diversidade:


A fauna africana é, aliás, riquíssima. Em nenhum outro
continente há tantas espécies de grandes animais e em tão
considerável número. Mas é nas savanas que a maior parte deles
se encontra. Lá vivem os grandes mamíferos: o leão, o leopardo,
o guepardo ou chita, a hiena, o rinoceronte, a zebra, a girafa, o
búfalo e os vários tipos de antílopes, cada qual mais belo e ágil
do que o outro: o alande, o cudo, a impala, a palanca, o gnu,
o sim-sim, o inhacoso, o guelengue e as numerosas espécies de
gazelas. São muitas as aves, entre elas se destacando a avestruz, a
cegonha, o flamingo, o pelicano e águia-pesqueira.

Nas florestas, os grandes animais são menos numerosos: a pantera,


o crocodilo, o porco selvagem, o gorila e o chimpanzé. Nelas,
predominam os pássaros, os répteis, os pequenos mamíferos
que vivem em árvores, os insetos e os vermes. [...] O elefante
vive tanto na floresta quanto nas savanas. E o hipopótamo, onde
haja rios e lagoas. A crescente demanda por marfim na Ásia e na
Europa, desde a Idade Média, reduziu muito o número desses
dois animais – o dente de hipopótamo era tão apreciado quanto
a presa do elefante – sobretudo depois da introdução das armas

106
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

de fogo pelos europeus. A caça predatória fez enormes estragos


entre os mamíferos, felizmente hoje protegidos em grandes
reservas onde só se permite o uso das máquinas fotográficas e
das filmadoras.

De forma permanente, a África só domesticou dois de seus


animais nativos: a galinha d’ angola (pintada ou capote) e o
jumento. Recebeu da Ásia os animais que o homem pôs a seu
serviço: o boi, o carneiro, o cavalo, o camelo, o porco, a cabra.
Não conseguiu, para ficar de exemplo, selar a zebra ou atrelá-la
a um carro. No entanto, os africanos conseguiram, é certo, ter
animais selvagem em cativeiro e até criá-los e amansá-los. Os
neguses ou reis da Abissínia ou Etiópia, até quase os nossos dias,
criavam leões para exibi-los como símbolo de poder. (COSTA E
SILVA, 2011, p. 13-14)

Vídeo 12: Bruna e Galinha de Angola. Fonte: https://www.youtube.com/


watch?v=Tm0sDXDWwtI

No livro Bruna e a Galinha d´angola, a autora Gercilda de Almeida, animando


pelo Projeto A Cor da Cultura, além de trazer a galinha de angola para palco tra-
balha questões interessantes e atuais. Para saber mais:
ALMEIDA, Gercilda. Bruna e a Galinha d’Angola. Rio de Janeiro: Pallas, s/d.
Ou acesse: antigo.acordacultura.org.br/livros/content/bruna-e-galinha-d%E2%80
%99angola-e-berimbau

Embora os animais tenham grande destaque nos trabalhos sobre a


África, a flora do continente também chama a atenção. Variando de grandes
desertos, como o Saara, até florestas tropicais fechadas no Congo, sua beleza e
variedade rivalizam com a fauna que sustenta.

107
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

“As riquezas vegetais tiveram importância capital, também, no que concerne à pro-
visão de utensílios e indumentária e à moradia. A utilização de instrumentos de
madeira foi comum em quase toda a África, inclusive quando à construção de
cercas, estacas e armadilhas de caça. Usou-se casca de árvores para confecção de
vestimentas, recipientes e cordas, além da construção de abrigos que substituíram
as cavernas como habitação”. (BENJAMIN, 2006, p. 14)

Mas entre toda essa riqueza, uma espécie surge por especial interesse.
Espalhando-se por todo o continente com seu porte e aparência inconfundí-
vel, o baobá apresenta-se como um bom exemplo de um dos elos para toda a
África.

Figura 3: Baobá. Fonte: upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/a/ab/Chobe_


Riverfront%2C_Botswana_%282634676872%29.jpg

“Por seu imenso porte e longevidade, o baobá é fonte de inspiração para diversi-
dades lendas, ritos e poemas. Sob sua copa – semelhante a raízes – muitas comu-
nidades se reúnem para ouvir histórias, conselhos e ensinamentos dos anciões
ou de griôs, para os quais seu tronco pode servir de túmulo. O baobá – também
conhecido como embondeiro ou abansônia – é encontrado em quase todo o con-
tinente africano ao sul do Saara e serve de elo entre povos de línguas, hábitos, reli-
giões e culturas tão diversos quanto os nomes que lhe emprestam. Além de ser tida
como um símbolo do continente, essa árvore é emblema nacional do Senegal. E o
embondeiro é considerado um símbolo de Angola”. (MACHADO, 2012, p. 177)

108
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

A VARIEDADE DE POVOS

Habitando essa grande diversidade de cenários, há indivíduos de vários


grupos linguísticos e populacionais diferentes, que misturam-se e convivem,
por vezes de forma pacífica, por vezes violenta, por todo o continente. Soma-
-se a isso a importância da diáspora africana na formação de várias populações
ao redor do mundo, com destaque para as Américas. Marina de Mello e Souza
apresenta um panorama bem característico e adotado por muitos autores na
atualidade:
A África nilótica e saariana, as informações mais antigas acerca
dos povos africanos referem-se ao Egito, onde floresceu há 5 mil
anos, no vale do Nilo. Ainda na região do Nilo, outra grande
civilização a Núbia (750 a. C). Na mesma região do atual Sudão,
destacaram-se o Reino Meroé, em torno de 500 a.C., e Etiópia.
Os habitantes do norte da África, onde hoje se localizam a
Líbia, a Tunísia, a Argélia e o Marrocos, eram conhecidos como
berberes e sofreram influência árabe desde o século VII. Mas
berbere também é o nome dado a uma variedade de povos
nômades, que viviam na região do deserto, que criavam camelos
e conheciam os oásis e os poços de água, como os azenegues
e tuaregues. Os comerciantes tuaregues ligavam toda a região
do Sael, no passado também conhecido como Sudão ou Bilad
al-Sudan (que quer dizer terras de negros), ao norte islamizado
da África. Eles foram os principais difusores do islã por toda a
parte dessa região corresponde mais ou menos aos atuais países
do Sudão, Chade, Níger, Mali, Burquina Faso, Mauritânia e Saara
Ocidental. Foi ali que se formaram os antigos impérios de Gana
(sec. VI a XIII), Mali (sec. XIII a XVII) e Songai (XVII e XVIII).

Entre o Saara e o Atlântico, o que chamamos de África ocidental


é a região que se estende do rio Senegal ao rio Cross, mais ao
sul. Na região do rio Senegal viviam jalofos, sereres, bambaras,
mandigas e fulas, muitos convertidos a religião islâmica desde
século X. Na bacia do rio Gâmbia, os grupos predominantes eram
os beafadas, banhuns e também os mandingas, mas havia muitos
outros povos vivendo lado a lado. Na região que abrange do leste
do rio Volta até o delta do Níger – terra dos acãs, acuamus, evés,
dos povos iorubas e outros. Foi uma das regiões mais afetadas
pelo tráfico de escravos.

109
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Na África central, mais ao sul do rio Congo, viviam, e vivem,


povos que chamamos de bantos, que tem uma origem comum,
falam línguas semelhantes, e suas religiões e maneiras de se
organizar são parecidas. Eles teriam partido de Camarões, e
se espalharam por toda a África central, oriental e do sul. Essa
movimentação durou cerca de 2500 anos. Nas bacias do Congo e
Cuanza e nas terras ao redor também havia os povos ambundos,
imbangalas, bacongos, cassajes, ovimbundos, lubas, lundas,
quiocos. Mas ao sul, desalojados pelos bantos, os bosquímanos
(cóis) e também os hotentotes (sãs). No conjunto, os dois grupos
são chamados de cóisan. Na parte sul e oriental e centro oriental
do continente, na região dos rios Limpopo e Zambeze, habitava
grande variedade de povos bantos, como zulus, xonas, maraves
e iaôs. Em toda a costa oriental, de Mogadíscio, na atual Somália
até ao sul do atual Moçambique, diferentes povos que falam uma
língua franca chamada suaíli. (SOUZA, 2005, p. 14-23)

GRUPOS LINGUÍSTICOS

Dentre os muitos temas sobre História da África, as línguas estão entre


os de maior debate e embates entre os pesquisadores. Há vários “esquemas”
para auxiliar na compreensão dessas várias interações. É interessante pensar as
populações da África, por exemplo, a partir de grupos linguísticos, embora o
pertencimento a um mesmo grupo não signifique, automaticamente, o com-
partilhamento de culturas semelhantes. Marina de Mello e Souza apresenta
uma perspectiva, seguindo a linha que Elikia M´Bokolo mais detalhadamente
apresenta em sua obra África Negra: História e Civilizações.

“Para resumir esse retrato da África, podemos enxergá-la a partir dos seus quatro
grandes grupos linguísticos: afro-asiático, níger-congo, Nilo-saariano e cóisan. A
região do Saara e do Sael é habitada por povos falantes de língua afro-asiáticas,
formadas pelas misturas entre os povos locais e as levas de migrantes do Oriente
Médio. As regiões ao sul do Sael falavam a língua níger-congo, tronco que se sub-
divide em cinco outros grupos. Dois deles, as línguas banto e zande, se ligam a
expansão banto. Os outros quatro grupos existentes na África ocidental são o
kwa, ao qual pertencem línguas axante, ioruba, ibo, igala e falados nas regiões de
floresta e savana que estendem da costa atlântica até o Sael; o mande, falado na
região do alto e médio Níger; o atlântico ocidental, que abrange as línguas jalofo e

110
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

fula faladas na região do rio Senegal; e o voltaico, ao qual pertence a língua mossi,
falada na região do alto rio Volta. Os caçadores e coletores que não se misturam aos
bantos espalhados pela África central se fixaram no sudoeste do continente e são
falantes de línguas cóisan. Os falantes de línguas Nilo saarianas, eram nômades do
Saara e do Sael”. (SOUZA, 2005, p. 21)

ASPECTOS POLÍTICOS E SOCIAIS

Por vezes a história dos povos do continente africano é esquecida, e


muitos datam seu início a partir do contato com os europeus. Não poderiam
estar mais longe da verdade. Desde milênios as populações africanas têm se
organizado, desenvolvido tecnologias e construído vibrantes e dinâmicas
sociedades, em constante contato, seja pacífico ou violento, com outras popu-
lações do próprio continente e dos continentes vizinhos.

“Algumas sociedades africanas formaram grandes reinos, como Egito, o Mali, Son-
gai, Oió, Axante e Daomé. Outras eram agrupamentos muito pequenos de pessoas
que caçavam e coletavam o que a natureza oferecia ou plantavam o suficiente para
o sustento da família e do grupo. Mas todas, das mais simples às mais complexas,
se organizavam a partir da fidelidade ao chefe e das relações de parentesco. Assim,
todos ficavam unidos pela autoridade de um dos membros do grupo, geralmente
o mais velho.
Nas aldeias, que eram a forma mais comum de os grupos se organizarem, havia
algumas famílias, cada uma com seu chefe, sendo todos subordinados ao chefe
da aldeia. Se a forma básica de organização dos grupos girava em torno das rela-
ções de parentesco, a orientação de tudo na vida era dada pelo sobrenatural: como
os espíritos da natureza, com antepassados mortos e heróis míticos, que muitos
grupos consideravam os fundadores de suas sociedades. Todo conhecimento dos
homens vinha dos mais velhos e dos ancestrais, que mesmo depois de mortos con-
tinuavam influenciando a vida.
Várias aldeias podiam estar articuladas umas com as outras, formando uma con-
federação de aldeias, que prestavam obediência a um conselho de chefes. Além de
aldeias, das confederações, dos reinos e grupos nômades, havia sociedades orga-
nizadas em cidades, mas que não chegavam a formar um reino. Assim muitos são
exemplos de organização política e social, cabendo um estudo particular de cada
grupo, por exemplo os reinos do Sudão ocidental, os reinos Iorubás e Daomeanos,
o reino Monomotapa”. (SOUZA, 2006, p. 3)

111
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

FAMÍLIA

Na África, dada a extensão de territórios e diversidade de condições de


vida e culturas, a multiplicidade de organizações familiares é enorme. Varia-
dos arranjos matrimoniais, regidos por leis religiosas ou sociais, dão forma às
complexas relações do continente.

“Os povos islamizados praticavam –e ainda praticam – a poligamia, em geral várias


esposas habitando na mesma casa. Em algumas etnias a organização familiar é
matriarcal, ou seja, os filhos são criados pela mãe e a figura masculina que cuida
e dá assistência às crianças é um irmão dela. Certos grupos, em que é praticada a
exogamia (isto é, proibiam-se os casamentos entre pessoas do mesmo grupo, da
mesma família biológica extensiva), o homem deixava o grupo familiar biológico
e se transferia para grupo da esposa que escolhesse.
Há etnias em que se considere que pelo casamento da filha a família perde parte
de sua força de trabalho. Para casar, o noivo é obrigado a pagar certa quantia, em
dinheiro ou em bens, para compensar tal perda. Em outros grupos, é a noiva que
está obrigada a constituir um patrimônio – o dote – para que a esposa não fique
na dependência das condições do marido. Os colonizadores cristãos impuseram,
com pouco sucesso, o modelo europeu. Nos países islamizados prevalece a lei do
Alcorão”. (BENJAMIN, 2006, p. 26)

Vídeo 13: O Filho do Vento. Fonte: youtu.be/1thkoFONasY

A ORALIDADE

Outro ponto que chama a atenção quando se estuda África é o papel


das tradições e dos conhecimentos transmitidos oralmente. Diferentemente de
nossa cultura ocidental, fortemente apoiada na escrita, para muitas populações

112
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

africanas é a oralidade a principal forma de transmissão e construção de


conhecimentos. Questão problema, que por muito tempo embasou a premissa
de que o continente africano não tinha história, pois não tinha escrita.
O diplomata e escritor Ahmadou Hampâté Bâ, nascido no Mali,
dedicou parte de sua vida à luta pela preservação das tradições
orais africanas. Sobre essa questão da memória, ele salienta que
saber e escrita são coisas distintas: a escrita (os livros) não é o
saber em si; o saber está dentro do homem. O que acontecerá
com o saber de uma humanidade sem memória, transmitido
sem a emoção da voz humana? Para muitos povos africanos, a
palavra falada é associada a uma origem divina, sendo o homem
o único animal capaz de utilizá-la. Daí sua importância, o seu
caráter sagrado. Daí a necessidade de se fazer uso da palavra
exata: devido a seu caráter mágico, o uso leviano da palavra pode
provocar a ruptura da harmonia. E qual seria a palavra exata?
Aquela que segue a tradição e o conhecimento legados pelos
ancestrais. (MACHADO, 2012, p. 126)
Mas, se basear fortemente na oralidade não significa menor capacidade
ou menor complexidade cultural. As populações africanas desenvolveram, ao
longo de sua trajetória, maneiras de lidar com essa característica sem colocar
em risco a conservação e a transmissão de conhecimentos. Nas palavras de
A. Hampatê Bá, seria um equívoco valorizar a escrita, enquanto suporte de
memória sobre o passado, como único testemunho verdadeiro sobre o pas-
sado. Para ele, “o testemunho, seja escrito ou oral, no fim não é mais que tes-
temunho humano, e vale o que vale o homem” (HAMPATÊ BÁ, 2010, p. 181).
Dentro deste cenário, despontam alguns especialistas na preservação da
memória pela oralidade, como a figura de tradicionalistas e de griôs.

“Guardião dos segredos da Gênese e das ciências da vida, o tradicionalista, geral-


mente dotado de uma memória prodigiosa, normalmente também é o arquivista
de fatos passados transmitidos pela tradição, ou de fatos contemporâneos. (…)
De maneira geral, os tradicionalistas foram postos de parte, se não perseguidos,
pelo poder colonial que, naturalmente procurava extirpar as tradições locais a fim
de implantar as suas próprias ideias”. (HAMPATÊ BÁ, 2010, p. 188)

“Dotados de memória prodigiosa, os griôs são artesãos da palavra. Como os anti-


gos aedos gregos, que apresentavam suas composições acompanhadas pela cítara,
os griôs também contam suas histórias com apoio de instrumentos musicais. No

113
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

livro Homens da África, o escritor Ahmadou Kourouma nos diz que a figura do
griô surgiu no Mali, na Idade Média, criada pela antiga civilização mandiga, da
qual se originaram diversos grupos étnico-linguísticos. Nesse antigo reino, cada
príncipe tinha o seu griô, que funcionava como espécie de conselheiro particular.
[...]
Considerados verdadeiras bibliotecas vivas, esses homens e mulheres, cuja pro-
fissão é hereditária, são capazes de narrar, com emoções e riqueza de detalhes, os
feitos de seu protetor e de seus ancestrais, de maneira a louvar a memória da gene-
alogia dos clãs. Devido à sua importância, em casos de guerra, os griôs não podiam
ser presos ou mortos. Atualmente, só os ricos têm seus griôs particulares. Mas há
também os que, sem pertencer a ninguém, circulam livremente entre as aldeias,
anunciam novidades de interesse geral para as pessoas, mediam conflitos, montam
espetáculos em praças públicas e sobretudo, contam histórias que tragam algum
ensinamento”. (MACHADO, 2012, p. 130)

Vídeo 14: Galissa - Griot - Mestre de Korá. Fonte: youtu.be/UEL5Y7vFZmw

Como baseia-se na oralidade, o portador do conhecimento é a própria


pessoa. Atualmente, em África e/ou fora dela, há os chamados Griôs contem-
porâneos, conhecidos mais como músicos, parte da profissão. Muitas vezes, a
função de contar a história tradicional de suas sociedades é deixada de lado e
vídeos e músicas belíssimas são produzidas. No entanto, como visto no vídeo
6 (Galissa - Griot), não deixam de trazer à tona suas práticas culturais. Assim,
valoriza-se sobremaneira aqueles que carregam consigo mais conhecimento,
reconhecimento este presente na relação com os idosos.

“Acolhidos como aqueles que mais receberam a sabedoria dos ancestrais, os velhos
têm um papel relevante na organização social do grupo. Cabe a eles a transmissão

114
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

de conhecimento aos mais jovens, e sua experiência e saber de vida devem ser
tomados como exemplo. Para ressaltar a importância do papel dos anciões, o
escritor Ahmadou Hampâté Bâ cunhou uma frase que se tornou famosa, quase
um provérbio: ‘Na África, cada velho que morre é uma biblioteca que se queima’”.
(MACHADO, 2012, p. 146)

RELIGIOSIDADES

As religiosidades africanas compõem um campo bastante complexo,


com várias manifestações locais e influências externas, em especial do cristia-
nismo e do islamismo, que junto aos orixás, tão conhecidos no Brasil, e outras
divindades locais dão vida a um complexo universo de religiosidades, símbo-
los e relações. Cosmogonia que se apresenta de maneira muito particular em
cada sociedade.

“Os povos yorubá, da região da África onde hoje se situam Benim, Nigéria e Togo,
com nomenclaturas diferentes, cultuavam os orixás, divindades espirituais presen-
tes na criação do mundo. [...] Em algumas cidades da Nigéria, como Abeokuta,
cultuava-se Iemanjá, e em outras, como Oyó, os cultos eram dedicados a Xangô.
Por isso, a manifestação religiosa difundida pelo Brasil e conhecida como candom-
blé é constituída de rituais, símbolos e especificidades que mudam de acordo com
o grupo que lhe deu origem”. (MACHADO, 2012, p. 151)

Vídeo 15: Mojubá. Fonte: youtu.be/zJarZrAlql8


Os programas MOJUBÁ, do Projeto Cor da Cultura, trazem um material diverso, que trata de
vários temas. Saiba mais em:
antigo.acordacultura.org.br/mojuba/programas
E acesse os outros programas da série em: youtu.be/gi6uix9D9HU

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Vídeo 16: Ifá, o adivinho. Fonte: youtu.be/VlR-frWu8ho

Pedro Rafael, em Ifá, o adivinho, apresenta um pouco do fazer e do refazer das


religiões ditas africanas, seja na diáspora ou no próprio continente. Também este
material está apresentado de forma animada pelo Projeto A Cor da Cultura.

Para saber mais: PRANDI, Reginaldo. Ifá, O Adivinho. São Paulo: Cia das Letri-
nhas, 2002.
Ou acesse: http://antigo.acordacultura.org.br/livros/content/if%C3%A1-o-adivi-
nho-

A religiosidade de muitos povos, tanto em África como em outros luga-


res do mundo, está intimamente ligada ao quotidiano e suas vivências culturais
não se dissociam desta experiência, manifestada também em formas artísticas,
cultura material produzida. As mais variadas representações artísticas – pin-
tura, escultura, tecelagem, máscaras, cerâmica – são, objetos que não se atêm
apenas à forma, constituindo manifestações associadas às práticas do quoti-
diano e às experiências religiosas, culturais.
Um componente comum às diferentes manifestações religiosas africa-
nas é a ancestralidade, um modo de vida pautado no poder dos ancestrais. Em
consonância com a valorização da oralidade e o valor dado aos mais velhos
pelo conhecimento e sabedoria que possuem, é a ancestralidade que, muitas
vezes, une populações. A ancestralidade está amparada no território, no corpo
e na memória. Qualquer pessoa que perdeu seu corpo físico é um potencial
ancestral (SOMÉ, 2003, p. 28).

116
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

“Para muitos povos africanos, o pilar que sustenta o equilíbrio de forças dentro
de uma comunidade - ou seja, a harmonia - é a ancestralidade. Assim, a arte afri-
cana visa assegurar a harmonia da comunidade, a partir do respeito aos ances-
trais. Quando essa harmonia é rompida, os membros da comunidade costumam
consultar seus sacerdotes ou curandeiros, em busca de uma explicação para os
infortúnios, doenças, pragas etc. Para expulsar as forças malignas, os sacerdotes ou
curandeiros utilizam, além da palavra, alguns objetos, como esculturas e máscaras,
e símbolos gráficos, como pinturas corporais, tatuagens e nas fachadas das casas.
Algumas esculturas, por exemplo, servem para proteger os lares, ao passo que
algumas máscaras, geralmente com forma de animais, são usadas para sensibilizar
os espíritos da natureza, para que protejam plantações e assegurem a fertilidade.
Devido à sua importância, o processo de criação desses objetos implica rituais e
saberes específicos, como conhecer os segredos de árvores e plantas, bem como a
técnica de entalhes. Depois de prontas, as máscaras e esculturas precisam ser inves-
tidas pelo sacerdote, por meio de orações ou com o acréscimo de novos acessórios,
adornos e símbolos. Isso talvez explique o fato de algumas esculturas em madeira
terem sua decoração modificada, às vezes mais de uma vez, com sementes, contas,
pedacinhos de vidro”. (MACHADO, 2012, p. 159)

Apresentação 1: Artes e Áfricas. Fonte: prezi.com/tfqw1y6efupv

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando que, neste texto, buscamos apenas indicar alguns cami-


nhos possíveis para as pessoas interessadas em estudos africanos, é neces-
sário observar que somente arranhamos a gigantesca diversidade existente
em África. E talvez seja esse o principal ponto de partida para uma maior

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

compreensão do continente africano: perceber que comporta inúmeras mani-


festações, sejam religiosas, econômicas, sociais, políticas, naturais e etc... Reco-
nhecer essa diversidade é o início de uma caminhada que se distancie de pre-
conceitos e estereótipos que tanto interferem na vida de populações em todo
o mundo. Esperamos, assim, que os caminhos aqui apontados possam auxiliar

“É preciso considerar que há desdobramentos significativos dessas questões no


cenário educativo brasileiro atual, quando vivenciamos o processo de investi-
mentos em uma educação anti-racista ou educação das relações étnico-raciais.
É comum encontrarmos professores que optam por estudar a história e cultura
africana resgatando a mitologia e a literatura africana, com vistas a favorecer uma
valorização da herança e produções culturais africanas. Esse movimento, instigante
e inovador, sobretudo para os estudantes, pode – e deveria – ser acompanhado de
análises históricas e sociológicas do continente, o que nem sempre ocorre. Essa
exclusão da análise propriamente histórica e sociológica tem, por vezes, contri-
buído para um retorno ao que seria uma África ancestral, mítica, a-histórica ou
compreendida apenas por seus traços considerados valiosos no seio da positivação
da auto-estima dos brasileiros afro-descendentes.
Um dos objetivos do trabalho sobre a pluralidade cultural, apresentado nos Parâ-
metros Curriculares Nacionais - PCN, é permitir que cada aluno tenha a oportu-
nidade de conhecer as suas origens e, dessa forma, sentir-se inserido em algum
grupo cultural específico. O sentido de pertencimento favorece a constituição de
uma autonomia positiva, o que possibilita à criança expor suas ideias e vivencias e
orgulhar-se do grupo ao qual pertence. Pode acontecer de maneira contrária, pois
o conceito que fazemos de nós mesmos não depende apenas da maneira como
nos percebermos. Ele é formado também, e em grande parte, pela maneira como
somos percebidos pelos outros. (MACHADO, 2012, p. 24)
Por isso, é importante ter sempre em mente que o processo de construção do
conhecimento não pode se limitar ao acúmulo de informações objetivas, embora
elas sejam igualmente importantes. A escola deve permitir que o aluno tenha cons-
ciência das tradições que constituem a totalidade a que ele pertence, e a literatura,
infantil e juvenil, em suas diversas formas, vem se consolidando como instrumento
socializador de uma cultura. Essa consciência será de grande valia para a defesa da
tolerância às diferenças”. (MACHADO, 2012, p. 43)

a reconhecer essas questões, e construir, a partir de nossas práticas diárias,


uma atuação que sirva de ferramenta para lutarmos por um mundo melhor
do que este que encontramos, tolerante e respeitoso diante das diferenças. A
luta antirracista se dá em diversos cenários. É necessário perceber que atitudes
e comportamentos, em especial nos meios de comunicação e nas escolas, são
potentes ferramentas para a propagação das ideias. Deste modo, é preciso uma

118
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

atenção especial, por parte daqueles que buscam a valorização da diversidade


e o combate a preconceitos e discriminações. E não há maneira mais eficiente
de realizar esta tarefa do que a educação.
Reconhecemos, assim, que a escola é reflexo da sociedade na qual se
insere e também o inverso é verdadeiro. A sociedade está sempre se reestrutu-
rando e permanentemente se construindo. Não é preciso esperar que a socie-
dade mude para que a escola mude. A educação é um caminho privilegiado
para a edificação de uma sociedade mais próxima da qual desejamos.
Diante do exposto, para concluirmos trazemos as reflexões de renoma-
dos estudiosos sobre o Continente Africano:

Vídeo 17: Elikia M’Bokolo. Fonte: youtu.be/kpBjk13BH2E


Vídeo 18: Alberto da Costa e Silva. Fonte: youtu.be/sZ_XvPiaPfI
Vídeo 19: Kabengele Munanga. Fonte: youtu.be/BDKzWSouaqo

Referenciais Bibliográficos

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

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120
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

______. As Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e os Africanos no


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121
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Capítulo 2 - A História de Antigas Sociedades e Reinos Africanos


Maristela Simão
Angelo Renato Biléssimo

Para iniciar nossa conversa,


propomos uma provocação a par- Vídeo sugerido:
- A África antes do século XV – História,
tir do vídeo indicado ao lado: Por Ensino Médio, Telecurso.
que conhecemos tão pouco sobre
a África e sua cultura? Ademais, Disponível em: youtu.be/hSDhPrMz7IQ
o que conhecemos daquele conti-
nente sobre o período que costumamos chamar de Antiguidade e da Idade
Média?
Nos últimos anos, e em especial na última década, o Brasil tem con-
centrado esforços no sentido, de reverter processos historicamente colocados,
a partir da construção de políticas públicas específicas para esses segmen-
tos, além de várias iniciativas que contemplem os direitos dessas populações.
Entretanto, pensar essas políticas, suas aplicações e implicações na sociedade,
passam por diversos embates e debates, com diversos interesses. Sejam políti-
cos e/ou teóricos, avançaram de forma significativa, e uma rica e extensa pro-
dução bibliográfica tem sido produzida, auxiliando-nos a pensar tais dinâmi-
cas. E como principal marco legal aponta-se, no que tange às populações de
origem africana no Brasil, a Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003).
Nessa perspectiva, houve um importante incremento no interesse do
tema, levando diversos profissionais a realizar pesquisas e publicar estudos que
diminuem a invisibilidade destas populações. Ainda assim, pouco se tem estu-
dado sobre as antigas sociedades africanas.
Muitas vezes o continente africano foi, e ainda é, descrito como um con-
tinente sem história. Em nossos livros didáticos, na maioria das vezes, o mundo
antes da expansão europeia, ocorrida a partir do século XV, se resume ao entorno
do mediterrâneo, e mesmo a algumas partes das regiões africanas, como o Egito
e Cartago, nos são apresentados a partir do contexto europeu. Contudo é preciso
considerar que, desde sempre, a maior parte da população mundial esteve fora da
Europa, e as várias populações do continente africano desenvolveram sociedades
complexas, com variados modelos políticos e sociais.
Ainda que recebam pouca atenção do público mais geral, as antigas
organizações sociais africanas deixaram muitas marcas em nossa sociedade.

122
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

No Brasil, em especial, muito se pode perceber dos aspectos culturais e religio-


sos desses povos, e sua indubitável influência em nossa cultura. Alguns museus
brasileiros, por exemplo, possuem importante acervo, produção bibliográfica
e processos expográficos, relativos a esse tema, como o Museu de Arqueologia
e Etnologia da Universidade de São Paulo – MAE/USP e o Museu Afro-Brasi-
leiro – MAfro, da Universidade Federal da Bahia.
O acervo de etnologia africana e afro-brasileira do MAE-USP
é composto em maioria por peças relacionadas a culturas da
África ocidental, e também por peças brasileiras relacionadas
aos candomblés. Além de amostras das artes tradicionais da
África, nele se destacam as coleções sobre metalurgia, entre elas
a de jóias africanas e a dos bronzes ogboni. (www.mae.usp.br)
Museu Afro-Brasileiro – MAfro, da Universidade Federal da
Bahia, é um dos poucos no país a tratar exclusivamente das
culturas africanas e sua presença na formação da cultura brasileira.
Através de importantes elementos materiais, representativos
dessas culturas, o museu apresenta conteúdos que facilitam a
compreensão dos aspectos históricos, artísticos e etnográficos
que identificam as sociedades africanas e permitem uma reflexão
sobre a importância dessa matriz para o desenvolvimento da
sociedade brasileira. (www.mafro.ceao.ufba.br)

Figura 4: Acervo em exposição no MAfro. Fonte: arquitetandonanet.blogspot.com.br/2010/05/


museu-afro-brasileiro-terreiro-de-jesus.html

123

Vídeo sugerido:
- A África antes do século XV – História,
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

A África já existia antes da


colonização europeia. E por isso Vídeo sugerido:
- Educação Brasileira 66 - História da
é importante estudá-la sob esse África / Cultura Afro-brasileira – Entre-
prisma, e não apenas sob o olhar vista com Marina de Mello e Souza.
eurocêntrico. Em uma entrevista Disponível em: youtu.be/q_Y_mCFvA-4
(sugerida ao lado) a historiadora
Marina de Mello de Souza argumenta a importância de compreendermos a
História da África como um todo:
Assim como é importante a História da China, a História
da Índia, a História do Japão (...) principalmente no mundo
globalizado como o nosso que a gente está vendo entrar o tempo
todo, chegar informação sobre o mundo inteiro, é interessante
você saber e entender, conhecer a história da humanidade na
sua totalidade e não só a história do mundo ocidental, europeu
ocidental, que nos foi ensinado.
E assim começa nossa reflexão, tentando compreender um pouco de
uma África antes da colonização europeia, com diversas organizações sociais,
como reinos e estados. Sociedades tão complexas e organizadas quanto as exis-
tentes em outros locais do planeta. Segundo o pesquisador Elikia M’Bokolo,
O conhecimento hoje pormenorizado dos estados que a África
conheceu depois permite ler de outras maneiras a história destes
primeiros estados, nos quais se viu durante muito tempo o
prolongamento de sistemas políticos mediterrâneos e orientais,
e que nos aparecem agora como a primeira expressão do gênero
político africano. (M’BOKOLO, 2003. p.76)
A história da África, através de seus estados, impérios e reinos, traz
alguns dos mais antigos exemplos de sistemas políticos organizados que se
tem registro. Ainda que por vezes existam algumas dificuldades de fontes para
pesquisa, a existência destes sistemas são, milênios mais antigos do que a colo-
nização europeia. Segundo Costa e Silva,
Há mais de 5 mil anos, com certeza, pois data dessa época a
união dos dois grandes estados que havia no Egito. Por volta de
2000 a.C., os egípcios se referiam ao reino de Cuxe, na Núbia. E
o reino de Axum já existia no primeiro século da era cristã. Não
só os reinos surgiram muito cedo na África, como alguns deles
perduraram durante séculos. Pode-se escrever uma história
política com duração de muitos séculos não só do Egito, mas
também de outros países. A da Etiópia, por exemplo, alonga-se

124
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

desde Axum até a atual república, com uma interrupção da


independência, durante o domínio colonial da Itália, que durou
apenas cerca de dez anos, 1931 a 1941. O reino de Benim, que
ainda hoje existe, integrado à Nigéria, tem mais de oito séculos
de existência. Assim como os emirados de Kano, Zária e Katsina,
também na Nigéria. Zanzibar foi um estado independente
durante mais de 700 anos. Já outros, embora tenham sido
poderosos, tiveram pouca duração: o reino angúni de Gaza, em
Moçambique, durou pouco mais de 60 anos, e o sultanato fula de
Macina, no atual Mali, apenas 44 anos. (COSTA E SILVA, 2008,
p.23)
De modo geral, essas sociedades africanas eram estruturadas de forma
muito diversas entre si. Normas de ascensão social, estrutura familiar, formas
de governo e outras características mudavam muito, mesmo em estruturas de
uma mesma cultura ou origem comum. E como toda cultura, se inventando e
reinventando a todo o momento.
A maioria das sociedades africanas era altamente hierarquizada.
Nobres, plebeus, estrangeiros, escravos, homens e mulheres, cada
qual conhecia o seu lugar - nele ficavam desde o nascimento e, em
muitos povos, até após a morte, pois de acordo com suas crenças,
o morto, se era aristocrata, continuava, no além. Outras que se
regiam pelo mérito, nas quais o poder do sangue se restringia
às estirpes reais, e tanto um plebeu quanto um escravo podiam
ascender às mais altas funções do estado, à fama e à opulência.
Em outras, era a riqueza que determinava a posição social de
cada indivíduo. E em outras, ainda, não havia diferenças, só se
distinguindo dos demais os idosos que formavam o conselho
dos anciões e, em caso de guerra, momentaneamente, aqueles
tidos por mais capazes para conduzir a luta. (COSTA E SILVA,
2008, p.19)
Por vezes, torna-se difícil compreender tamanha complexidade, com
variação tanto no tempo quanto no espaço. Algumas publicações podem auxi-
liar nesta tarefa, principalmente se pensarmos no trabalho a ser realizado em
sala de aula. Há vários mapas, infográficos e aplicativos úteis, como o exemplo
abaixo, disponibilizado pela Revista Escola da Editora Abril, cuja versão inte-
rativa – muito interessante – pode ser acessada pelo link abaixo da figura. O
material destaca alguns dos principais, ou mais conhecidos, impérios, reinos
e estados.

125
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Figura 5: Revista Nova Escola. A África de todos nós. Fonte: revistaescola.abril.com.br/swf/


animacoes/exibi-animacao.shtml?187_africa_info.swf

Claudia Lima apresenta um resumo cronológico para melhor compre-


ensão de como podemos trabalhar os marcos temporais para além das divisões
estabelecidas pelo ocidente, em especial os referenciais nomeados pelo colo-
nizador.
Na apresentação das grandes civilizações africanas, em 1000 a.C.,
povos semitas da Arábia emigram para a atual Etiópia. Depois,
em 715 a.C. o Rei de Cush, funda no Egito a 25ª dinastia. Em 533
a.C. transfere sua capital de Napata para Meroé, onde, cerca de
cinqüenta anos depois, já se encontra uma metalurgia do ferro,
altamente desenvolvida. Por volta do ano 100 a.C. desabrocha,
na Etiópia, o Reino de Axum.

O tempo que se passou até a chegada dos árabes à África


Ocidental foi, durante muitos séculos, considerado um tempo
obscuro, face à absoluta ausência de relatos escritos, que só
apareceram nos séculos XVI e XVII, com o “Tarik-Al-Fattah” e o
“Tarik-Es-Sudam”, redigidos, respectivamente, por Muhammad
Kati e Abderrahman As Saadi, ambos nascidos em Tombuctu.

126
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Mas o trabalho de arqueólogos do século XX, aliado aos relatos


da tradição oral, conseguiu resgatar boa parte desse passado.

O mais antigo desses reinos foi o da Etiópia. Entre os séculos III


e VII, a Etiópia teve como vizinhos outros reinos cristãos: o Egito
e a Núbia. Contudo, com a expansão do islamismo essas duas
últimas regiões caíram sob o domínio árabe e a Etiópia persistiu
como único grande reino cristão da África. Antes do efetivo
início do processo de islamização do continente africano, a África
Ocidental vai conhecer um padrão de desenvolvimento bastante
alto. E os antigos Estados de Gana, do Mali, do Songai, Iorubá e
Benin, são excelentes exemplos de pujança das civilizações pré-
islâmicas. (LIMA, s/d. p.1)
Como já vem sendo abordado, com o fascínio que a África exerce,
muito tem sido produzido sobre o continente. Embora uma seleção criteriosa
sempre se faça necessária, há iniciativas de grande valia para uma introdução
ao assunto. Os documentários, por exemplo, que visam nos localizar no tempo
e no espaço, com a utilização de vários recursos e fontes – como imagens,
entrevistas e mapas – apresentam-se como recurso valioso na construção do
conhecimento. No entanto, como ocorre com outros assuntos, é preciso um
olhar crítico e conhecimento para selecionar informações relevantes e perce-
ber mistificações e generalizações simplificadoras. Assim canais como Dis-
covery e BBC tem se destacado em tais produções. Entretanto, e em especial
no caso da BBC, emissora estatal britânica, durante muito tempo foram um
importante instrumento de popularização de visões preconceituosas e simpli-
ficadoras sobre as populações da África e de outras regiões sob o jugo colonial.
Indicamos aqui, uma série de vídeos que podem nos dar uma pequena intro-
dução sobre os vários Estados africanos.
Mesmo que essas produções
nos auxiliem a perceber mais dida- Vídeo sugerido:
- Civilizações Perdidas – África [Disco-
ticamente como se organizavam e very Civilization]
viviam essas populações africanas, youtu.be/vsIal27mtAA
para um estudo mais aprofundado Disponível em: youtu.be/vsIal27mtAA
obras de maior escopo são indis-
pensáveis. A abordagem do congolês Elikia M’Bokolo em sua obra “África
Negra: História e Civilizações” – em especial o primeiro volume, trata sobre
essas primeiras sociedades, reinos e estados – nos parece muito apropriada.
E para fins didáticos seguimos aqui a divisão apresentada pelo autor, que

127
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

organiza seus estudos sobre esse tema em três grupos: A África do Nordeste,
os Estados Sudaneses e os Estados das Savanas meridionais.

1. A ÁFRICA DO NORDESTE

1.1 Egito
Segundo José Rivair Macedo, o
Egito localiza-se no nordeste da África, Ao longo do Nilo, via natural da
passagem entre a África mediter-
entre o deserto da Líbia e o Mar Verme- rânea e os países ao sul, as relações
lho, sendo uma das mais antigas civili- eram visivelmente antigas. Mas
zações da humanidade. As inundações até onde no sul, e antigas desde
anuais do Nilo tornaram a região fértil. quando? (M’BOKOLO, 2003, p. 31)
Politicamente unificada cerca de três
milênios a.C., formando um “Estado” de caráter teocrático, foi governado por
trinta e uma dinastias de Faraós. Suas capitais foram: Tebas, Mênfis e Saís. Seu
território marca a história da humanidade com grandes monumentos e teste-
munhos arquitetônicos e estéticos, como é o caso das pirâmides, dos templos
e dos palácios pomposos e colossais, mas também das construções menores,
que possuem características de relevo e pinturas também peculiares. Nesta
área desenvolveram-se também conhecimentos acerca de sistemas de irriga-
ção para aproveitamento das águas do Nilo, astronomia, estudos matemáticos
e médicos (MACEDO, 2013, p. 24-25).
Algumas tensões registram as disputas em torno da memória e da histó-
ria do Egito. Nas palavras de Elikia M’ Bokolo,
Há já cerca de duzentos anos que a questão das relações entre
Egipto faraónico e a África negra se tornou um dos problemas
mais tratados na historiografia africana e um dos pontos
de fixação privilegiados pela memória negro-africana. Mas
contrariamente às ideias difundidas na opinião corrente, não
se trata apenas de saber se estes egípcios eram negros, questão
que se podia de resto decompor indeterminadamente: quais
egípcios (função de critérios sócio-político ou de localizações
geográficas) e em que épocas? (M’BOKOLO, 2003. p. 53).

1.2 Núbia e Kush


Os nomes de Núbia e Kush possuíam, para os africanos, um conteúdo
muito vago: a Núbia designava os territórios situados ao sul do Egito e irrigados

128
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

pelo Nilo, e Kush numa fração


mais restrita, correspondendo Vídeos sugeridos:
grosso modo ao vale médio - Os Faraós do Reino de Kush – parte 1
do Nilo. Os habitantes de Disponível em: http://youtu.be/oWBpD-
4Q8FK0- Os Faraós do Reino de Kush – parte 2
Núbia constituíam uma ame- Disponível em: youtu.be/TsiRq4BFSu8
aça para o equilíbrio do poder - Os reinos perdidos da África vol. 1 – Núbia.
faraônico. “Os faraós relacio- Disponível em: http://youtu.be/Sxmb09Xh2sU
navam-se, às vezes, de modo
pacífico, outras pela guerra com os povos núbios que habitavam os territórios
de yam, Kerma e Kush, abaixo da primeira catarata do Nilo, até que, por volta
de 1530 a.c., foram dominados” (MACEDO, 2013, p. 24-25).
Enquanto o Egito, contido a sul por um estado poderoso, se
tornava cada vez mais mediterrâneo, Kush apesar das referências
insistentes aos símbolos políticos e rituais do Egito faraônico,
voltava a encontrar a plenitude do seu gênio africano. Para
garantir a segurança de sua capital os kushíticos começaram
nos princípios do século VI a.C. a transferi-lo para Meroé.
(M’BOKOLO, 2003. p. 83)

1.3 Meroé
Meroé era um reino africano muito bem organizado. Apresenta algu-
mas características marcantes no que se referem a reinos africanos. A maneira
de designar o soberano, bem como a natureza da realeza e o modo de assegu-
rar o controle do poder real.
Meroé foi assim o primeiro reino assentado nos princípios
da realeza sagrada: identificação da integridade física do rei
e da integridade do reino, assimilação da beleza física e das
qualidades morais do rei a propriedade e a glória do reino;
realização de cerimônias rituais reatualizando a coroação do
rei e destinadas a rejuvenescer o rei e o seu reino; organização
de uma execução ritual, mais frequentemente sob a forma de
suicídio, se estas prescrições não fossem respeitadas ou se o reino
acumulasse catástrofes ou todas as espécies de pragas. [...] A
posição do reino e seus recursos próprios fizeram de Meroé uma
das placas giratórias do negócio internacional na antiguidade.
(M’BOKOLO, 2003. p. 83)
Do primeiro ao século III d. C o reino entrou em declínio, “consequên-
cia simultânea da evolução do mundo mediterrâneo e da audácia dos povos

129
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

nômades” (M’BOKOLO, 2003, p. 86). Meroé sofreu perante a hegemonia


ascendente de Axum e não conteve os povos nômadas dos quais este último
conseguiu tornar-se senhor.

1.4 Etiópia e Axum


O nome Axum apli- Vídeo sugerido:
cava-se ao mesmo tempo ao - BBC Os reinos perdidos da África – Etiópia
reino e à capital. A emergên- e Axum
cia de Axum deve estar prova- Disponível em: youtu.be/5RbJlAoalzI
velmente relacionada com as
evoluções do negócio internacional através do Mar Vermelho. Segundo inter-
pretação de Elikia M’Bokolo, do século III ao VI, no momento da sua maior
prosperidade, Axum “controlava com o Estreito de EL-Mandebi uma das três
encruzilhadas comerciais mais importantes do mundo antigo (com os estreitos
de Malaca e de Gibraltar) e impunha-se como o intermediário obrigatório”
(M’BOKOLO, 2003, p. 86) no comércio envolvendo países do Mediterrâneo e,
do lado oriental, com a Ásia oriental e com a Azânia. Tal reino, ocupava lugar
central como ponto de passagem nestas trocas entre o Império Romano, pelo
Mar Vermelho (ponto de articulação entre povos africanos e árabes), países da
Ásia e da Azânia, conforme já mencionamos.
No caso da Etiópia, trata-se de região muito antiga, desenvolvendo
relações milenares com povos do sul da Arábia e regiões arredores. Em sua
longa história, “talvez o acontecimento mais impactante tenha sido a adoção
do Cristianismo no século IV, seguindo a versão copta (egípcia) que era mono-
fisista e, portanto, ortodoxa”. (PIRES, 2010, p. 1)
O Cristianismo assumiu status de religião oficial no século IV, sendo
que o representante máximo da hierarquia era o rei (título de Negus), como
descendente de Salomão e da rainha de Sabá. A partir do século VIII com
o avanço dos muçulmanos no norte da África e com a invasão do Egito em
622, a Etiópia sentiu o isolamento formado pelo islã. O contato etíope com
Bizâncio era frequente, ocorrendo trocas entre embaixadas e uma relação de
aproximação, embora existissem diferenças nas práticas católicas do Império
Romano Oriental e dos espaços onde se consolidou em África. “No século XV
os bizantinos são derrotados pelos otomanos em 1453, resultando no isola-
mento ainda maior da Etiópia cristã, colocando-a mais ainda à mercê dos seus
vizinhos muçulmanos” (PIRES, 2010, p. 1).

130
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Chama atenção alguns resquícios monumentais construídos durante


o catolicismo na região, como é o caso do governante Lalibela, da dinastia
dos Zagwe, que ordenou a construção das “famosas igrejas cravadas na rocha,
entre as quais a igreja do Redentor do Mundo, construções magníficas e úni-
cas por sua forma, por sua beleza e por sua expressão original do sentimento
religioso africano” (MACEDO, 2013, p. 31).

1.5 Berberes
Os habitantes do Norte da Vídeo sugerido:
África - onde se situa a Líbia, a
- Os reinos perdidos da África – O reino
Tunísia, a Argélia e o Marrocos berbere de Marrocos
-, eram conhecidos como Berbe- Disponível em: youtu.be/EpTr9Op0Eik
res, recebendo forte influência
árabe desde o século VII, pelo menos. “Mas Berbere também é o nome dado a
uma variedade de povos nômades, que viviam na região do deserto, que cria-
vam camelos e conheciam os oásis e poços de água, como os Azenegues e
Tuaregues”. (SOUZA, 2008. p. 14)

2. OS ESTADOS SUDANESES
Antes de os europeus toma- Vídeo sugerido:
rem conhecimento da África sub- - Os reinos perdidos da África – África
Ocidental
saariana, ou também chamada
África Negra, existiram, nessa Disponível em: youtu.be/AdYItZ5XFPw
região, sociedades que merecem
nossa atenção. As principais se localizavam na região que chamamos de delta
interior do Rio Níger (SOUZA, 2006, p. 34).

2.1 Mali
O primeiro império da África subsaariana sobre o qual se tem notícias
mais precisas é o Mali. O antigo Mali foi criado por povos da região situada
entre o rio Senegal e o rio Níger. Nele Tombuctu, Jené e Gaô foram impor-
tantes cidades, centros de troca e de concentração de pessoas, permitida por
uma rede de rios que fertilizava as terras e facilitava o transporte na região
da curva do Niger. Segundo Laura de Mello e Souza, vestígios arqueológicos
indicam que desde cerca de 800 d. C. havia ali cidades e formas de comércio. A
população do Mali era composta de várias etnias, sendo os mandingas (malin-
quês ou também conhecidos por manden) a principal delas. “No século XIV o

131
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

império era composto de povos da região do Rio Senegal, como Jalofos, Sere-
res, Tucolores e Fulas; das cabeceiras do Níger, como Bambaras e Soniquês;
a leste subjugou os Songais e aproximou-se da terra dos Hauçás” (SOUZA,
2006. p. 34-35). No entanto, apesar de seu poderio e dos territórios extensos
possuídos, a partir do século XV o império sentiu-se enfraquecido, declinando
com dificuldades de manter seus domínios. Novos povos disputando espaço e
poder político contribuíram para o acirramento de disputas e para o enfraque-
cimento do Mali (MACEDO, 2013, p. 58).

2.2 Gana e Assante


Antes do Mali, Gana,
ao norte do Rio Senegal, foi Vídeo sugerido:
um reino fundado no século - Os reinos perdidos da África – O Reino de
Assante/Gana
IV, organizado política e
economicamente, no qual Disponível em: youtu.be/DJ8KBITtI5M
se deram negócios entre os
comerciantes que traziam o ouro do sul e dos caravaneiros rumo aos portos
do Norte da África.
“Sua posição de destaque durou mais ou menos do ano de 500 ao 1000,
quando o Mali começou a se fortalecer com a mudança das rotas do deserto
mais para leste, em direção ao delta interior do Níger” (SOUZA, 2006. p.
34-35).
Notável nos relatos de viajantes e cronistas de época, a presença de um
exército organizado e imenso constituía arma poderosa contra outros povos.
“O declínio de Gana ocorreu a partir da segunda metade do século XI e está
associado à sua derrota diante das tropas de cavaleiros e cameleiros muçulma-
nos provenientes do Marrocos” (MACEDO, 2013, p. 55). O declínio de Gana
facilitou o acesso e a difusão do islã na África Ocidental.
No caso do Estado Assante (ou Achanti), suas características militaris-
tas e expansionistas marcaram a atuação dos governantes. As origens deste
Estado datam de aproximadamente 1690, quando da fundação da cidade de
Kumasi. Nos idos de 1820, instalara-se uma Confederação Achanti cujos domí-
nios expandiam-se sobre quarenta povos. Havia um exército forte e bastante
numeroso (estima-se 80 mil homens). A cidade de Kumasi possuía estrutura
impactante para a época, contando com 15 mil habitantes, dividia-se em dife-
rentes bairros baseados em hierarquias sociais e políticas, constituindo uma

132
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

metrópole com grande circulação de mercadores, dignitários, negociantes e


diferentes chefes e autoridades (MACEDO, 203, p. 79).
O Estado Achanti constituiu relações de comércio com os europeus,
inclusive a militarização e a escravidão pautavam a vida da região. Diferentes
foram as disputas envolvendo achantis, britâncos, portugueses e outros povos
por conta de domínios, captura de escravizados e interesses mercantis.

2.3 Songai
No final do século XV Son-
gai passou a ser o principal estado De todas as cidades, Tombuctu desta-
cou-se como a mais brilhante devido
do médio Níger. A cidade Gao era ao renome dos sábios que ensinavam
importante centro comercial, polí- nas escolas corânicas. Para lá se diri-
tico e econômico. O império Son- giam homens com boa formação em
gai formou-se por um processo de teologia, astronomia, matemática,
expansão militar, destacando-se literatura e poesia, originários do pró-
prio Sudão ou do Marrocos e do Egito.
Sonni Ali como um grande conquis- Foram esses eruditos, entre os quais al-
tador e estrategista, tomando Tom- -Sadi e Mahmud Kati, que redigiram
buctu e Djenné, além de outras cida- as primeiras crônicas com os relatos
des. O império se expandiu para o históricos dos povos da bacia do Níger
leste, dominando as cidades Hauçás, nos séculos XVI e XVII. O mais influente
mantendo-se como o estado mais dos sábios de Tombuctu chamava-se
Ahmed Baba, viveu entre 1556 e 1627,
forte do Sudão ocidental até 1591, escreveu cerca de livros e se mantém até
quando foi invadido por exércitos hoje como referência de autoridade para
vindos do Marrocos. os chefes religiosos locais”. (MACEDO,
Construções e monumen- 2013, p. 61)
tos construídos ao longo dos sécu-
los foram destruídos por povos que invadiram a região. Mesquitas, escolas e
bibliotecas foram destruídas, os sábios deportados, as estruturas de mando
e de justiça foram arrasadas. A urbanização e o comércio “cederam espaço
para as atividades agrícolas e de pastoreio, as religiões tradicionais voltaram a
florescer e o islã, que se alimentava das caravanas que atravessavam o deserto,
levando e trazendo, além de mercadorias, peregrinos e especialistas em teolo-
gia, passou para segundo plano” (SOUZA, 2006, p. 34-35).

2.4 Iorubás e Daomeanos


Cabeças e placas esculpidas e moldadas em metal, que datam dos sécu-
los XV e XVI, época em que os portugueses chegaram a essa região da África

133
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

apresentam elementos do que temos conhecido sobre Ifé e o reino do Benim.


Além das placas que expõem situações de vida desses povos e que “decora-
vam os palácios reais, as histórias contadas de geração em geração falam do
papel de heróis fundadores de novas cidades e reinos, a partir de uma origem
comum em Ifé, como Ododua, cujos ancestrais teriam fundado outras cida-
des” (SOUZA, 2006, p. 36-37). Ifé era centro espiritual, sendo seus governantes
designados oni, uma espécie de liderança religiosa.
No século XVI, enquanto os reinos Iorubás ascenderam, Ifé entrou em
declínio. A “presença de comerciantes na costa atlântica forneceu às cidades
mais próximas dos lugares em que ancoravam, trazendo em seus navios novas
mercadorias, que passaram a ser desejadas pelos chefes africanos”. (SOUZA,
2006, p. 36-37)

3. OS ESTADOS DAS SAVANAS MERIDIONAIS

Ao sul da grande e variada floresta equatorial, a emergência dos Estados


continua a ser um processo ainda mal conhecido. “Existiram provavelmente
numerosas unidades políticas de dimensão muito diversas dos quais emergi-
ram os dois Estados a respeito dos quais as fontes europeias carreiam as infor-
mações mais numéricas: o Mwene Mutapa e o Reino do Kongo”. (M’BOKOLO,
2003, p.162)

3.1 Congo
Na margem meridional do baixo Rio Congo, existiu um reino conhe-
cido por sua influência sobre os povos da região, pelos relatos feitos por euro-
peus que conheceram este território e/ou que nele moraram. Estes, além de
suas observações, registraram a história oral dos povos locais.
O reino do Congo se formou a partir da mistura, por meio
de casamentos de uma elite tradicional com uma elite nova,
descendente dos estrangeiros que vieram do outro lado do Rio.
Isso ocorreu no início do século XV, e quando os portugueses a
ele chegaram (o primeiro contato se deu em 1483) encontraram
uma sociedade hierarquizada. Com aglomerados populacionais
que funcionavam como capitais regionais e uma capital central na
qual o Mani Congo, como Obá de Benin e muitos outros chefes
de grupos diversos, vivia em construções grandiosas, cercado de
mulheres e filhos, conselheiros, escravos e ritos. (SOUZA, 2006,
p. 38-40)

134
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Os limites do reino eram traçados pelo conjunto de aldeias que pagavam


tributos ao poder central. Essa formação estatal compunha-se de diferentes
povos originários do grupo mbundu ou ambundu, mas as linhagens domi-
nantes eram bacongo. Para assuntos do âmbito terreno, como também para o
além, o manicongo, representante máximo do poder e responsável pelas boas
relações com os espíritos e com os ancestrais.
Mbanza Congo, assim como a capital do Benin, estava no rol das cida-
des imponentes cuja extensão e porte assemelhava-se a capitais europeias da
época. “Por mais de três séculos congoleses e portugueses mantiveram rela-
ções comerciais e políticas, pautadas pela independência dos dois reinos, mas
os portugueses acabaram por controlar a região” (SOUZA, 2006, p. 40), terri-
tório que hoje corresponde ao norte de Angola.

3.2 O Reino do Monomotapa


Monomotapa está
Vídeo sugerido:
entre os reinos bantos. Os
- Os reinos perdidos da África – O Grande
povos formadores da região Zimbábwe
tinham “ligação com uma Disponível em: youtu.be/3q8riNW54OQ
outra sociedade que existiu
mais ao sul, da qual o pouco que restou impressionava. São enormes muralhas
de pedra, chegando a cinco metros de altura por mais dois de largura sem
nada a uni-las, a não ser a sobreposição de uma a outra”(SOUZA, 2006, p. 34).
Essas muralhas, como ficaram conhecidas, eram o Grande Zimbábue, assim
nomeado justamente por seu significado: “grande casa de pedra”. A muralha
mede 10 metros de altura e foi erguida com a sobreposição de blocos de pedra.
Sua “dimensão, ostentação de complexidade” compõem o cenário de impacto,
onde se situam mais de 100 sítios arqueológicos. (MACEDO, 2013, p. 36-37)
Quando os portugueses passaram a frequentar a costa africana oriental,
no início do século XVI, tomaram conhecimento dos Zimbabués. Comercian-
tes árabes e os primeiros exploradores lusitanos contribuíram para a divulga-
ção desse monumento, bem como do reino em questão. Souberam, os portu-
gueses, que havia um grande reino a noroeste do Rio Zambeze, “governado
por um chefe muito poderoso, a quem chamavam de Monomotapa. O ouro
que viam chegar aos portos de Sofala, Angoche e Queliname vinha desse reino,
e não mais da região dos Zimbabués”. (SOUZA, 2006, p. 34)

135
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo sobre os impérios e reinos africanos antigos enfrenta, de modo


especial, dois desafios. O primeiro é a questão historiográfica, relativa às fontes
de pesquisa disponíveis. Enquanto regiões como Roma e Grécia são objeto
de estudos historiográficos mais ou menos estruturados há centenas de anos,
as chamadas civilizações africanas apenas recentemente começaram a receber
tratamento semelhante. Eram, via de regra, estruturas baseadas na oralidade,
que não deixaram grande quantidade de documentos escritos, mas desenvol-
veram outras formas de registro e que têm sido estudados por especialistas
interessados na compreensão destas formas de organização e, em especial,
chama atenção os grandes impérios e monumentos construídos em África. O
Egito possui sua história profundamente estudada e fartamente documentada.
Não por coincidência, muitas vezes é apresentado descolado do continente
africano, sendo constantemente colocado junto a Grécia e Roma em contraste
com a suposta falta de história da África.
Parte deste contexto, o segundo desafio enfrentado quando se estuda
História africana. Frequentemente a História da África é contada a partir dos
movimentos coloniais europeus, com completo esquecimento em relação aos
processos e dinâmicas internas do continente. Nas palavras do moçambicano
Mia Couto:
Outro lugar comum nesses exercícios de dar rosto ao continente
africano é o peso concedido à tradição. Como se outros
povos, nos outros continentes, não tivessem tradições, como
se o passado, nestes outros lugares, não marcasse o passo do
presente. Os africanos tornam-se, assim, facilmente explicáveis.
Basta invocar razões antropológicas, étnicas ou etnográficas.
Os outros, europeus ou americanos, são entidades complexas,
reservatório de relações sociais, históricas, econômicas e
familiares. (COUTO, 2005. p. 11).
É neste cenário que se torna primordial um estudo aprofundado dos
vários aspectos da África e de suas populações. Ainda que seja um caminho
longo e, por vezes, desafiador, a construção de conhecimentos mais adequa-
dos sobre o continente é requisito fundamental para repensarmos o papel da
África na história mundial, inclusive contemporânea. E talvez em nenhum
outro lugar isso seja mais importante do que no momento atual do Brasil.

136
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

A complexidade do con-
tinente africano, no entanto, Vídeo sugerido:
necessita ser compreendido África: passado e presente (conferência profe-
em toda sua extensão. Nossa rida por Alberto da Costa e Silva)
visão daquele espaço muitas Disponível em: youtu.be/gJVnA8Va1is
vezes responde mais a ques-
tões políticas que geográficas ou demográficas.
A África vive uma tripla condição restritiva: prisioneira de um
passado inventado por outros, amarrada a um presente imposto
pelo exterior e, ainda, refém de metas que lhe foram construídas
por instituições internacionais que comandam a economia. A
esses mal entendidos se somou outra armadilha: a assimilação
da identidade por razões de raça. Alguns africanos morderam
essa isca. A afirmação afrocentrista sofre, afinal, do mesmo erro
básico do racismo branco: acreditar que os africanos são uma
coisa simples, uma categoria uniforme, capaz de ser reduzida
a uma cor de pele. Ambos os racismos partilham do mesmo
equívoco básico. Ambos se entreajudaram numa ação redutora
e simplificadora da enorme diversidade e complexidade do
continente. Ambos sugerem que o ‘ser africano’ não deriva da
história, mas da genética. E no lugar da cultura tomou posse a
biologia. (COUTO, 2005. p. 11).

Assim, o desafio está em nossa frente. E não há como avançar nesse


particular sem buscar um conhecimento aprofundado sobre a África e sua
história. Mesmo que reconheçamos o tamanho do desafio, esperamos que o
presente texto possa ser uma contribuição na direção dos primeiros passos.

Referenciais Bibliográficos

BENJAMIN, Roberto. A África está em nós: História e Cultura Afro-Brasi-


leira. Livro 4. João Pessoa: Grafset, 2006.
BRASIL. Lei 10.639 de 09 de janeiro de 2003 que altera a Lei 9.394, de 20
de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacio-
nal, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da
temática “História e cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Brasí-
lia, 2003.

137
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

______. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações


Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
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Etnicorraciais. Brasília-DF: MEC/SECAD, 2006.
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COUTO, Mia. Prefácio a HERNANDEZ, Leila. A África na sala de aula:
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Colonial (1872-1926). Lisboa: CHUL, 2004.
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legado africano no cotidiano brasileiro. Belo Horizonte: Mandyala, 2008.
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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

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Formação de professores e educadores sociais – A lei 10.639 para além dos
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139
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Capítulo 3 - Colonização europeia, escravidão e tráfico


Amailton Magno Azevedo
Willian Robson Soares Lucindo

COLONIZAÇÃO – BREVE REVISÃO HISTORIOGRÁFICA

O “Descobrimento”, termo atribuído genericamente para tratar das con-


quistas europeias sobre os continentes africano, asiático e americano, serviu
como baliza explicativa para realçar uma visão eurocêntrica sobre a História
entre os séculos XV e XXI. A Europa de fato se espalhou como modelo civili-
zatório para outros mundos. No entanto, a historiografia tem sugerido outras
possibilidades para entender a colonização, pautadas, não apenas, no universo
europeu. Isto posto, podemos afirmar que povos não europeus também impri-
miram suas visões de mundo para formar as novas sociedades das Américas
e as relações culturais híbridas travadas nas franjas do continente africano até
o final do século XIX, e nas rotas comercias do Oriente, em especial, a Índia.

PORTUGAL

Vários países europeus apostaram na conquista de povos, mares e terras.


Podemos citar França, Inglaterra, Espanha, Suécia, Holanda e Dinamarca. Mas
vale destacar Portugal, como o pioneiro no projeto de colonização além-mar.
Sua posição geográfica contribuiu na conquista de rotas comerciais que levas-
sem a montagem do Império luso na África, América e Ásia; bem como sua
prática comerciante na Europa. Ancorados em três continentes, os “conquis-
tadores ibéricos” protagonizaram o projeto de colonização diante de outros
países europeus. Circulando nas franjas do continente africano desde o século
XV, buscavam alcançar o comércio com as Índias e estabelecer uma rota que
fosse possível extrair lucros em excesso.
“E se mais mundo haverá, lá chegará” (FERRO, 1996, p. 43). Tal frase,
expressa os desejos de conquista dos portugueses no além-mar. Orgulho e gló-
ria de uma civilização que se pretendia escolhida por Deus, como assim pen-
sava o infante D. Henrique. Comércio e propagação da fé cristã resumiam as
pretensões de alcançar os limites e o centro do planeta.
Munidos de um conhecimento cartográfico, herdado dos italianos, os
portugueses puderam desenvolver seus primeiros atlas de oito mapas desde o

140
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

século XVI. As caravelas que substituíram as antigas barcas igualmente con-


tribuíram para Portugal se tornar o centro-europeu da construção naval e se
assenhorear dos mares do Atlântico.
Após conquistarem Madeira e Açores, chegam à Gâmbia, sem esboçar
nenhum interesse de fixar-se. Em 1444 chegam ao Cabo Verde e aos rios da
Guiné e, alguns anos mais tarde, em 1460, em Serra Leoa. Em 1482, Diogo
Cão chegou à República Democrática do Congo. Bartolomeu Dias dobrou o
cabo das Tormentas em 1487-8. Depois da África, os portugueses miraram as
Índias.
Quando Vasco da Gama che-
gou à Calicute, em 1498, exigiu para Samoris de Calicute: Calicute era
seu rei o controle sobre os mares um entreposto vital de comércio do
Oriente, disseminado por uma ampla
indianos, o que foi prontamente rede com caminhos que penetravam
negado pelos samoris de Calicute e no golfo Pérsico e no mar Vermelho,
os sultões de Gujerate. Após a der- outra que se dirigia para o golfo de
rota para o Sultão do Egito, no final Cambaia, e ainda outras duas para
do século XV, os portugueses reorga- Bengala e Malaca.
nizam sua força naval para controlar Vasco da Gama recebera ordem
expressa para expulsar os mouros de
os mares ocupando Goa, a ilha de Calicute e agarrar o monopólio comer-
Socotora, Ormuz e Málaca, impondo cial.
assim um controle sobre a parte Disputas pelo território que era de
ocidental do oceano Índico. O inte- interesse de Portugal, fizeram com que
resse maior não eram as terras e sim o imperío construísse uma Fortaleza
na cidade de Calicute, em Kerala, na
o controle marítimo. Desse modo, costa sudoeste da Índia.
podiam monopolizar o comércio das
riquezas da Índia.

A INVENÇÃO DO BRASIL: COLONIZAÇÃO LUSO-AFRICANA

O Brasil sempre foi pensado como uma continuidade da expansão por-


tuguesa. Versão incompleta, pois a historiografia recente sugere uma nova
perspectiva, qual seja:
a colonização portuguesa, fundada no escravismo, deu lugar a
um espaço econômico e social bipolar, englobando uma zona de
produção escravista situada no litoral da América do Sul e uma
zona de reprodução de escravos centrada em Angola. Desde o
final do século XVI, surge um espaço aterritorial, um arquipélago

141
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

lusófono composto dos enclaves da América portuguesa e das


feitorias em Angola. É daí que emerge o Brasil no século XVIII
(ALENCASTRO, 2000, p. 9).
Portanto, a colonização do Brasil ocorreu no circuito do Atlântico Sul.
Tal interpretação desfaz versões canhestras de pensar o país sob a lente euro-
cêntrica. Chegaram ao Brasil oito vezes mais africanos que portugueses, até
1850. Isso tornou o Brasil, segundo Luiz Felipe de Alencastro Brasil, um país
de colonização africana e europeia. Esse fluxo demográfico permitiu uma
renovação constante das memórias africanas e um prolongamento dos valores
e costumes pela vida social e cultural do Brasil. Diante dos dados demográfi-
cos, não seria exagero a afirmação de Alberto da Costa e Silva, de que o Brasil
estaria mais próximo da África do que dos reis da França (2004).

ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA
Falar de escravidão em solo africano é algo difícil, porque o continente
é muitas vezes tratado como local de escravos e, consequentemente, africanos
se tornam sinônimos de escravos. Entretanto, escravidão é uma instituição
antiga, presente na vida de vários povos em diferentes contextos históricos.
Não podemos, então, limitar essa experiência como algo somente africano
(LOVEJOY, 2002, p. 55). Além disso, nas sociedades africanas nem sempre
houve o que podemos chamar de escravidão, pelo menos não como definida
pela historiografia europeia. As práticas de escravização foram transformadas
com a entrada dos europeus no comércio de pessoas.
Carlos Serrano e Maurício Waldman dizem que, numa tentativa de
“minimizar o papel pioneiro do mundo mercantil em expansão nos eventos
brutalizantes que gerenciaram um processo de transmigração compulsório de
enorme contingente humano”, alguns estudos focam somente na cumplicidade
de chefes e reis africanos, considerando que sem ela não seria possível lotar os
navios de escravos para o restante do mundo (2008, p. 161). A cumplicidade
não é negada pelos autores, mas acreditam que apresentar as transformações
do sistema é importante para compreender as conexões comerciais, relações
de poder e as dinâmicas das sociedades africanas.
Numa tentativa de colocar os africanos como agentes da formação do
mundo atlântico e demonstrar as conexões da escravização com a cultura afri-
cana, John Thornton aponta que “não se deve aceitar a teoria de que eles (mer-
cadores ou líderes políticos africanos) foram compelidos a participar sobre
coerção ou a tomar decisões irracionais” (THORNTON, 2004, p.124). Ainda,

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

é preciso considerar que as vítimas do comércio de escravizados não foram


“aquelas pessoas que decidiram participar”, estas formavam as elites dominan-
tes e foram quem lucraram com tal comércio (SERRANO: WALDMAN, 2004,
p. 122-123). Apesar de a escravidão ter provocado mudanças significativas,
demograficamente e na formação do imaginário do continente, não podemos
acreditar que os africanos escravizaram seus “irmãos”, ao contrário, escraviza-
ram seus inimigos. Como apontam Claudia Mortari e Fabiana Pires:
uma visão racialista ou homogênea das populações africanas no
contexto estudado constitui-se de um equívoco de interpretação
histórica. As relações entre homens e mulheres africanos (as),
suas identificações, os laços de pertencimento construídos, as
redes de solidariedades e de conflitos se estabeleciam a partir de
uma diversidade de critérios que não está pautada na ideia de
raça negra ou de etnicidade. (2013, p. 2)
Ademais, ao exibir lucros e vantagens para as elites das sociedades afri-
canas, rompendo com a ideia de irracionalidade de suas ações, enxergamos
suas contradições e formas de exploração, que estão presentes nas relações
humanas de sociedades complexas (SERRANO; WALDMAN, 2008).
Para Lovejoy, um escravo, independente da sociedade africana ou não,
é uma propriedade, entendida como bem móvel; estrangeiros; adquiridos e
mantidos através da violência e coerção; uma força de trabalho a serviço de
seu dono; um não portador de direitos à sua sexualidade; estando sob em uma
condição herdada ou hereditária, na maioria dos casos (2002, p.29-30). Apesar
dessa definição, em nenhum caso sua humanidade deixa de ser reconhecida,
ao contrário. A capacidade criativa, sua inteligência humana é fundamental no
uso de suas atividades. Assim, a condição jurídica (de mercadoria) não anula a
condição humana de um sujeito escravizado.
Neste mesmo sentido é fundamental também considerar que
o africano e seus descendentes escravizados (seja nas Áfricas
ou nas Diásporas) precisam ser pensados e vistos a partir da
sua condição, ou seja, da situação social definida pelo lugar
que vão ocupar nas relações de produção ou reprodução da
sociedade que os utilizam. É por esta razão que encontraremos
diferentes atribuições e hierarquias dentro da própria categoria
destes trabalhadores. Por exemplo, aqueles que possuíam maior
conhecimento e habilidade em seus trabalhos, podiam gozar
de alguns privilégios junto ao seu senhor. Evidentemente não é
possível desconsiderar que as relações entre senhores e escravos
estão pautadas na violência e na subordinação. No entanto,

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

pela sua condição de seres humanos, os sujeitos escravizados


sempre lutaram pela sua sobrevivência articulando, dentro
das possibilidades existentes e nas sociedades que estavam
inseridos, uma forma de viver a vida, apesar de... Trabalhar
nessa perspectiva permite que se dê dignidade a esses sujeitos no
passado e no presente. (MORTARI, PIRES, 2013, p. 3-4)
O tráfico estimado de 15 milhões de pessoas escravizadas para a Amé-
rica, além de causar prejuízos demográficos, fez com que se criasse um imagi-
nário estigmatizado do continente da escravidão. Como afirma o historiador
Joseph Miller,
[...] é preciso reafirmar que estes mitos que prevalecem na
cultura popular, sejam eles racistas ou românticos, também
derivam dos conceitos da era colonial sobre os africanos como
ausentes ou distintos dos valores da modernidade e, portanto,
oferecem olhares limitados que se desviam das diferentes
estratégias e percepções que os estudiosos mais atuais revelam ter
existido entre os africanos. A coerência de uma visão alternativa
emergente depende do abandono de um conjunto compreensivo
e politizado de suposições herdadas de construções equivocadas
do racismo do século XX. E, mesmo os estudiosos mais
experientes nos estilos da história que prevaleceram em outras
regiões do mundo ainda lutam para entender a África em
outras premissas que não as interpretações benignas e antigas,
extremamente parciais, quando não altamente equivocadas
(2011, p. 24).
Neste sentido, para compreender a existência de escravizados em África,
é preciso entender as sociedades africanas e a diversidade do próprio tráfico
nas diversas partes do continente.
Nas diversas sociedades africanas que se conhece alguma forma de
escravização, torna-se quase impossível encontrar o mesmo sentido de pro-
priedade escrava da modernidade ocidental, até o tráfico atlântico. Existem ao
menos três tipos de escravismo: incidental, institucional e o modo de produ-
ção escravista (LOVEJOY, 2002). Na primeira forma, a população escravizada
é pequena e a atuação dela é marginal, suas atividades são realizadas junto
com outras pessoas livres, inclusive com aquelas que mantêm o controle da
sua condição.
O escravismo institucional existia nas sociedades aristocráticas e as pes-
soas escravizadas formavam uma classe social, e elas eram colocadas nessa
condição como consequência de guerra, de sequestros e punição por alguns

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

crimes cometidos. Já o modo de produção escravista, pode ser reconhecido


quando a estrutura social e econômica de uma sociedade inclui um sistema
integrado de escravização, tráfico e utilização interna dos cativos, conside-
rando que a escravização e o comércio são fundamentais para consolidação
deste modo (LOVEJOY, 2002, p. 40-41).
Antes da entrada de europeus no comércio de escravos, não existiu em
solo africano um modo de produção escravista, considerando que “o sistema
escravista só se efetiva e se realiza em sua plenitude numa economia de mer-
cado de compra e de venda, pois gera uma classe distinta das demais” (MOR-
TARI, PIRES, 2013, p. 2). Porém, nesse cenário, uma pessoa escravizada não era
uma propriedade, mas um patrimônio. O sujeito escravizado era um “‘produto
social’ envolvendo relações sociais, militares, econômicas, jurídicas e políticas,
colocando frações da sociedade muito mais numa situação de servidão do que
como simples mercadoria” (SERRANO, WALDMAN, 2008, p. 169-170).
A maior parte dos escraviza- Razia: termo que designa a invasão
dos foi colocada nessa condição por de território inimigo ou estrangeiro,
causa das razias, batalhas ou guerras. adentrando rapidamente com o obje-
Eram, geralmente, crianças e mulhe- tivo de saque (de rebanhos, alimentos,
res. Elas vinham de povos vizinhos, pessoas).
em momentos de rupturas das esta- “(...) causou efeitos trágicos nas popu-
lações da África Central e do Leste.
bilidades políticas. Existiram outras Parece, entretanto, que foi sobretudo
formas de escravizar pessoas: crian- no século XIX que elas foram dizima-
ças nascidas de mães escravizadas e das pelas razias dos negreiros árabes”
pais livres que não eram resgatadas; (História Geral da África, Vol. V, p. 24)
condenação por quebrar as normas “(...) quando as guerras entre aristo-
cracias rivais não forneciam mais um
culturalmente aceitas - estas pessoas número suficiente de prisioneiros, a
inclusive poderiam ser vendidas, organização de razias no campo tor-
principalmente se fosse adúltera. nava-se corriqueira, principalmente ao
Desta forma, existiu um comércio de sul do Saara”. (História Geral da África,
longa distância que permitia a com- Vol. V, p. 44)
pra, o endividamento e, por fim, a “O gosto pelas mercadorias europeias
estimulava as razias de escravos que,
escravidão voluntária de pessoas que por sua vez, suscitavam a resistência
se viam ameaçadas por outras pes- dos grupos agredidos”. (História Geral
soas ou que não tinham condições de da África, Vol. V, p. 449)
garantir a própria subsistência. Neste
caso, podiam se oferecer como escravas para ter proteção – uma medida que
não foi comum.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Apesar do fato da escravização de muitas pessoas ocorrer através das


guerras e conflitos, a escravização foi um subproduto e não causa. Ou seja,
fazia-se guerras por consequência de instabilidades políticas, expansão de ter-
ritórios, ambições comerciais, entre outros motivos e, na tentativa de amenizar
os custos e fazer prevalecer a dominação, tomava-se os vencidos como cativos
para venda, principalmente, ou para usá-los na produção local. Em muitas
sociedades a pessoa escravizada não podia ser transferida da sociedade onde
se encontrava, os casos de adultérios foram exceções. No que podemos cha-
mar de escravidão doméstica, quem se encontrava nessa situação por causa de
guerras ou razias “tornava-se identificado com a linhagem à qual servia”.
Um provérbio bawoyo informa o seguinte: compra-se um
homem (como escravo), mas não se compra um clã. Dito de
outro modo, o provérbio esclarece ser possível comprar um
homem estranho ou um cativo, mas jamais seu clã ou alguém
que integra seu clã. O provérbio indica que a escravidão na
sociedade tradicional estava monitorada por regras bastante
diferentes das que vigoraram com o escravismo mercantilista,
vedando a ruptura com as formas consensadas de organização
e estratificação social (SERRANO; WALDMAN, 2008, p. 172).
Apesar dessas diferenças, não podemos ignorar que escravizados foram
colocados em condições de submissão, com perdas de liberdade e em determi-
nados momentos vítimas de arbitrariedades de governantes, que tinham ambi-
ções de acumular mais riquezas. Também houve abusos em castigos físicos.
Mesmo sendo controladas por leis, algumas pessoas foram violentadas até a
morte durante sessões de punições. Desta maneira, as relações de poder esta-
vam presentes nas sociedades africanas e a escravidão contribuía para reforçar
as desigualdades.
A difusão do islamismo na África foi tão importante na difusão da
escravização, que não sabemos as características desse processo antes disso.
O que temos conhecimento é que parte das práticas africanas foi usada no
mundo islâmico, que as formas de utilização de escravizados variou muito de
acordo com os sistemas de organizações de cada sociedade.
Nas sociedades com escravatura doméstica ou de linhagem a aquisição
de escravos vinha das guerras, das punições de membros da comunidade, do
resgate de dívidas e das trocas comerciais, contudo não havia um mercado de
compra e venda. O trabalho era realizado por pessoas livres e complementado
por escravizados, a produção era voltada à subsistência.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Os estrangeiros poderiam ser integrados à linhagem a quem serviam,


conforme incorporavam a cultura local deixavam de ser “estranhos”, por isso
começavam a pertencer ao lugar. Isso ocorria porque nesse tipo de organi-
zação social, se fechar para quem fosse de fora poderia significar o fim dela,
uma vez que o trabalho de membros ativos sustentava os inativos (crianças,
idosos, incapacitados) e a produtividade era fraca, enquanto a taxa de morta-
lidade, alta. Dessa forma, além da reprodução natural, através do nascimento,
a incorporação de pessoas estrangeiras mantinha a balança de ativos e inativos
equilibrada.
Como mulheres e crianças eram a maioria entre os escravizados atra-
vés da captura, também se atendia a demanda de reprodução: “a entrada de
uma mulher púbere em uma aldeia, aumenta proporcionalmente a capa-
cidade reprodutiva do local. Mas um homem, não indicaria grande avanço
nessa questão”, pois para fecundar um só bastaria (MORTARI, PIRES, 2013,
p.4). Além disso, a linhagem, em muitos casos, era atribuída pela família do
marido, assim a criança nascida era descendente de uma linhagem daquela
sociedade, tornando mais vantajosa a incorporação feminina. Isso não impe-
diu que homens adultos escravizados criassem sua linhagem de descendentes
através do casamento com mulheres da comunidade, mas foi menos comum.
As pessoas que não conseguiam ser incorporadas ao processo de repro-
dução social, poderiam ser usadas em sacrifícios religiosos ou penhorados em
caso de dívidas. A escravatura doméstica não rompia com a exploração de
estrangeiros e a negação de direitos e privilégios a estes, por isso, mesmo sendo
identificados à família para qual serviam, tornando-se parentes, os escravos
eram portadores somente de deveres. Ainda, usava-se escravos comprados nos
sacrifícios, os quais muitas vezes eram punidos com sua escravização e venda
para fora de onde esteve estabelecido a vida toda.
O mundo islâmico seguiu a tradição de incorporar escravizados à socie-
dade, tanto ao norte do Saara, quanto ao longo das costas do oceano Índico.
Mas, em suas sociedades a forma de escravatura mais comum foi a institu-
cional. O Corão não condenava a escravização, tinha regras de como tratar o
escravizado, reconhecendo-o como criatura de Deus, e recomendava a escra-
vização como obra reparadora. Os muçulmanos fizeram uso de escravizados
das diversas populações, cristãos e judeus foram por um tempo impedidos de
sujeição, sob a justificativa de serem “pessoas do livro”, ou seja, pertencentes
a uma mesma tradição religiosa. Com as guerras de dominação e expulsão da
Europa, alguns cristãos desse continente foram escravizados.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

A população escravizada foi usada largamente nos serviços domésticos,


administrativos, bélicos e na vida social. As mulheres eram destinadas aos
haréns e outras áreas da exploração sexual e reprodução, enquanto os homens
eram usados na administração, política e, uma grande quantidade, nos servi-
ços militares. A escravatura não era uma instituição autoperpetuadora, poucos
nasciam na condição de escravizados, até porque a assimilação à sociedade era
uma constante.
Uma concubina que tivesse um bebê de seu amo tornava-se livre, junto
com a criança. E muitas ocupações exigiam a castração dos homens, princi-
palmente quando estavam na administração, como os eunucos. Deste modo, a
maioria de descendentes das populações escravizadas nascia livre, sendo subs-
tituída por novos cativos, adquiridos nas campanhas de sequestros e guerras,
e escravizados do comércio - que era pequeno antes do século XV e que teve
um grande aumento no século XIX -, ao mesmo tempo que se questionava na
Europa e na América o uso da escravidão.
É preciso ponderar um ponto importante: a integração e a alforria de
crianças nascidas de escravas com homens livres não significava o fim da mar-
ginalização.
O ex-escravo e seus descendentes continuavam na borda
da comunidade, mas num processo, que podia durar várias
gerações, de integração e desalienação pessoal. Enquanto isso
durava, o liberto, seus filhos, netos e bisnetos continuavam
manchados pela escravidão, a eles aplicando-se geralmente
os estereótipos – de feiúra, sujeira, preguiça, deslealdade,
estupidez, covardia – empregados para inferiorizar o escravo.
A persistência da nódoa ignominiosa tornava-se mais visível,
quando o ex-escravo pertencia a um grupo de aparência física
distinta da predominante entre os senhores. Como o franco de
cabelos louros e olhos azuis. Ou como o africano de pele escura
e cabelo encarapinhado (SILVA, 2002, p. 55-56).
Na tradição islâmica a raça não era importante na hora da escravização,
mas a fé e o compartilhamento da cultura religiosa sim. O que também não
significava que logo após a conversão ao islamismo era concedida a liberdade.
As sociedades africanas ao sul do Saara continuaram a manter a escra-
vatura como uma forma marginal, não era ela que estruturava a produção, as
relações sociais e os aspectos culturais. Entretanto, o comércio com os isla-
mizados começou a se tornar importante na economia e quando os europeus

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

entraram nessa estrutura econômica, novos agentes do governo ganharam


força.
O modo de produção escravista surgiu na África, pelo menos enquanto
modelo mais difuso, com a chegada dos europeus. A grande demanda euro-
peia provocou mudanças, segundo Serrano e Waldman, na sociedade bawoyo
uma nova liderança ganha força. O manfuca era responsável por negociar e
tributar diretamente com os traficantes de escravos, quem ocupava esse cargo
podia fazer prevalecer a vontade do rei, como também competia com os mem-
bros da sociedade. “É em torno dessa autoridade, desse elemento político, que
parece iniciar o processo de articulação de dois modos de produção distintos:
o de linhagem e o capitalista-mercantil” (2008, p. 175), assim, mesmo o cres-
cente uso de escravizados nas organizações econômicas das sociedades africa-
nas, principalmente nas áreas litorâneas, não anulou a prática da assimilação
à linhagem.
Para participar do comércio africano, os europeus tentaram primeiro
a dominação das sociedades, as quais foram resistentes, fazendo com que os
europeus tivessem grandes perdas (THORNTHON, 2004). Então, estabelece-
ram feitorias, pagando tributos aos chefes locais e sendo submissos a normas
e leis em vigor no local. As feitorias foram importantes para que os europeus
atuassem mais próximos aos administradores responsáveis pelo comércio e
aprendessem como ele funcionava.
Quando os europeus perceberam que com suas caravelas eram
mais rápidas do que os barcos utilizados pelos comerciantes
africanos, começaram a participar do comércio de cabotagem,
que era famoso e intenso na costa e que consistia na compra e
revenda de produtos em diferentes regiões. Dessa forma, os
europeus compravam cativos em Mina, que eram revendidos
aos acãs da floresta, comércio feito por intermédio dos diulas
(comerciantes africanos); com o ouro que era pago pelos acãs, os
europeus compravam pimenta malagueta em Gâmbia e no leste
da atual Nigéria, voltavam a Mina para adquirir novos cativos e
revendiam estes na Europa. (MORTARI; PIRES, 2013, p. 8)
O lucrativo comércio com os africanos, que tinha os portugueses como
principais representantes europeus, chamou a atenção de holandeses, france-
ses, ingleses e espanhóis. A demanda de escravizados também teve forte rela-
ção com a consolidação da colonização da América. Ainda, os altos lucros
adquiridos com o comércio e o estreitamento das relações entre comerciantes

149
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

europeus e administradores africanos, fez com que surgissem sociedades


escravocratas onde havia poucos escravos, deixando a marginalidade para se
tornar uma instituição fundamental (LOVEJOY, 2002, p. 54).

O TRÁFICO: UM INFAME COMÉRCIO

Os estudos que tratam do tráfico atlântico o definem como algo infame,


torpe e desprezível; um tipo de comércio que desonrou os africanos na traves-
sia dos mares. Tal experiência, junto com a escravidão, ainda deixa os africa-
nos de joelhos perante o mundo e si próprios.
Grosso modo, podemos situar o tráfico entre os séculos XV e XIX,
quando milhões de africanos foram violentamente arrancados de suas terras e
trazidos nos tumbeiros sombrios; nutrindo um lucrativo comércio internacio-
nal. Experiência traumática, devastadora, uma catástrofe vivida por homens,
mulheres e crianças durantes os séculos de escravidão.
Tal questão vem sendo debatida exaustivamente por historiadores,
cientistas sociais e literatos dos mais variados matizes e nacionalidades. De
ponto de vista dos historiadores a questão, durante muito tempo, foi compre-
endida sob o viés econômico, demográfico e das relações internacionais. A
partir dessa lente, privilegiou-se a questão do comércio, números, taxas, cifras,
acordos tácitos entre reis, países e os diferentes personagens envolvidos com o
tráfico; esquecendo-se dos principais atores: os escravizados.
Contudo, a História Social sugeriu novas perspectivas de como abordar
o assunto, quando passou a se debruçar sobre as vivências dos traficados, suas
formas de resistência, suas visões e anseios; o que permitiu desfazer a imagem
do escravizado vítima e indefeso, bem como, a participação ativa africana no
infame comércio. A partir desse viés, pode-se compreender os africanos como
agentes históricos e não mero amontado de estatísticas cifradas.
Múltiplos sujeitos se envolveram no tráfico: capitães dos navios, serta-
nejos, colonos, pombeiros, autoridades metropolitanas, sobas (reis) africanos,
traficantes brasileiros, marinheiros, trabalhadores, entre outros. Diferentes
agentes criaram nas embarcações uma intrincada teia étnica e cultural.
Quanto à produção de escravos a questão também é complexa, pois
os africanos praticavam a escravidão no continente. Mas, “foi por meio do
comércio negreiro que milhões de seres humanos escravizados deixaram com-
pulsoriamente sua terra de origem, atravessaram oceanos e foram obrigados
ao trabalho em ‘terra de branco’” (RODRIGUES, 2005, p. 25).

150
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Evidentemente que os europeus, ao entrarem em cena redefiniram


a prática do escravismo dentro e fora da África. “Embora os
europeus não tivessem invadido o continente e capturado os
escravos, eles promoveram, no entanto, sua comercialização
por meio de uma pressão militar indireta, criada pelo controle
europeu de uma tecnologia militar importante, como cavalos e
armas de foro” (THORNTON, 2004, p. 153).
Mesmo sendo os africanos, os produtores de escravos, a política promo-
vida pelos europeus “levou os africanos a buscar mais escravos do que precisa-
vam para seus objetivos políticos e econômicos, e a despovoar seu país contra
sua própria vontade”. (THORNTON, 2004, p. 154)
Esvaziamento, desterramento e desterritorialização. Uma catástrofe.
Isso retirou, sem dúvida, um potencial de desenvolvimento. “Os africanos
seriam, assim, parceiros subdesenvolvidos, desamparados e explorados em
um comércio dirigido pela Europa” (THORNTON,2004, p. 154). Tudo isso,
leva-nos a acreditar na tese de Walter Rodney: a Europa teria subdesenvolvido
a África.
Esse argumento é em parte razoável, mas não é todo verdadeiro, pelo
menos até 1680, quando os estados africanos centralizados praticavam, antes
e após a chegada dos europeus, a escravidão - como fonte de renda e ganhos
políticos, através de guerras internas. Contudo, mesmo que estados africanos
e europeus compartilhassem da produção de escravos e do infame comércio,
isso não retira o caráter destruidor e imoral da escravidão moderna; que ainda
persiste como uma experiência traumática e desonrosa.
é evidente que os europeus forneceram novas técnicas militares
e tecnologia, talvez ao preço de participar mais ativamente do
comércio de escravos do que seria o desejo de seus clientes”...
“Pode-se concluir que a influência da Europa sobre o comércio
de escravos não foi significativa no primeiro século e meio,
ao se constatar que os africanos possuíam escravos e os
comercializavam. Além disso, as formas iniciais da tecnologia
militar e a organização europeia não foram críticas para o
sucesso dos exércitos africanos. (THORNTON, 2004, p. 171).
Apenas no primeiro século e meio, pois após esse período “pode-se
ainda argumentar que, por fim, os europeus forçaram os africanos a exce-
der sua capacidade de fornecer escravos em um período posterior, quando
demandas elevadas e a tecnologia militar aperfeiçoada tiveram um papel mais
importante” (THORNTON, 2004, p. 175).

151
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

De todo modo, é preciso também considerar, na travessia, as condições


sub-humanas oferecidas nos navios, que tornavam as pessoas escravizadas
vulneráveis às doenças como “varíola, escorbuto, lepra, cólera, febre amarela,
disenteria, distúrbios digestivos em geral, entre outras moléstias” e a morte.
(RODRIGUES, 2005, p. 40).
Em relação ao Brasil, o tráfico impôs vários ciclos de saída e entrada de
africanos entre os séculos XVI e XIX; trazendo povos jejes-nagôs da África
do Oeste e, bantus, da África Central e da região de Moçambique. Na entrada
“desde o início da colonização, Bahia e Pernambuco concentraram grandes
volumes de importação de africanos, a partir do início das atividades mine-
radoras no Centro-sul do país, o Rio de Janeiro ampliou seu peso no comér-
cio marítimo da colônia, especialmente na importação de escravos” (RODR-
GUES, 2005, p. 29). A partir de meados do século XVIII, o Rio de Janeiro, se
consolidou como o principal porto importador de africanos do Brasil.
Paradoxalmente, o tráfico e a escravidão, acabaram por gerar um con-
junto de valores culturais africanos que impregnou o mapa geocultural da
colônia, do império e da república; tornando o Brasil, um país mais próximo
dos jejes-nagôs e dos bantos, do que exatamente de algum rei europeu.

Referenciais Bibliográficos

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no Atlântico Sul (Séculos XVI e XVII). São Paulo: Companhia das Letras,
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152
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

MILLER, Joseph C. Restauração, reinvenção e recordação: recuperando iden-


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rios do Tráfico Negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo:
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153
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Capítulo 4 - Descolonização e África Contemporânea


Paulino de Jesus Francisco Cardoso
Tamelusa Ceccato do Amaral

Para entendermos alguns aspectos da História da África do século XX


até a atualidade, precisamos saber também um pouco sobre o contexto vivido
pelos outros continentes - sobretudo a Europa, parte da Ásia e da América do
Norte – após o fim da II Guerra Mundial, em 1945.
Nas primeiras páginas deste capítulo, vamos apresentar a você cursista,
um panorama deste período que influenciou a história de praticamente todos
os cantos do mundo, inclusive do continente africano.

O MUNDO PÓS-GUERRA

O fim da II Guerra Mundial trouxe mudanças políticas e econômicas no


cenário internacional. Na Europa aconteceram os maiores combates, sofrendo
grande prejuízo, tanto pelas pessoas que as batalhas dizimaram, como pelos
territórios por onde as tropas passaram, quase completamente arrasados.
Somente a antiga União Soviética (URSS) perdeu cerca de 20 milhões de pes-
soas no conflito.
Durante a Guerra, mas principalmente no ano de 1945, alguns encon-
tros internacionais foram realizados com o objetivo de estabelecer condições
de paz. Nessas reuniões, os rumos que o mundo deveria seguir eram definidos
segundo os interesses das nações que estavam saindo do conflito como vence-
doras. A última e mais importante foi a Conferência de Potsdam e aconteceu
após a rendição dos alemães.
Com a queda da Europa, os Estados Unidos e a União Soviética emer-
gem como superpotências, e junto à Inglaterra se reúnem para decidir o des-
tino da Alemanha. Os líderes aliados decidiram que a Alemanha seria divi-
dida em quatro zonas de ocupação, sob a administração francesa, britânica,
norte-americana e soviética. Além disso, discutiram questões de reparação de
guerra, estipulando que a Alemanha fizesse o pagamento de indenizações aos
países com os quais lutou. Nesta conferência iniciou-se uma organização do
que mais tarde seria chamada de Tribunal de Nuremberg.
Neste contexto, surgem novas organizações internacionais, como
a ONU - até hoje o principal organismo de gestão de conflitos, defesa dos

154
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

direitos humanos e das liberdades


O Tribunal de Nuremberg foi o palco
individuais, o Banco Mundial e o do julgamento de líderes nazistas que
Fundo Monetário Internacional, foram condenados a morte e trouxe
criados para garantir a estabilidade pela primeira vez o conceito de “crimes
e crescimento econômico dos países de guerra”.
capitalistas.
Em 1949, as duas superpotências dividiram a Alemanha, com a cons-
trução do Muro de Berlim, e esta construção se tornou o símbolo da divisão
que já estava acontecendo mundialmente: de um lado o bloco socialista, lide-
rado pela União Soviética, e de outro o bloco capitalista, liderado pelos Esta-
dos Unidos.

A GUERRA FRIA

Com a passagem dos Estados Unidos e da União das Repúblicas Socia-


listas Soviéticas para o primeiro plano da política internacional, e a divisão
do mundo entre capitalistas e socialistas, surge uma disputa entre estes dois
países pela hegemonia mundial. Ambos queriam manter ou ampliar suas áreas
de influência, e para isso recorreram à propaganda de seus sistemas sociais e
políticos, à pressão diplomática e à intervenção militar. Neste sentido, as alian-
ças militares como Pacto de Varsóvia e Organização do Tratado do Atlântico
Norte (OTAN), foram fundamentais no processo de desmontagem do antigo
sistema colonial herdado do século XIX.
Os países tinham em seu poder armamentos capazes de destruir o pla-
neta, e esta guerra não declarada mantinha o mundo sob a tensão de uma
possível guerra nuclear. A rivalidade das duas superpotências - sendo um dos
produtos a corrida para o espaço sideral, e, outro, a indústria bélica que se
consolidou desde a II Guerra Mundial -, levou a chamada corrida armamen-
tista, em que a bomba atômica era o produto final. Esta disputa, de quem tinha
maior poder de destruição (ou extermínio) gerou, nas décadas de 1960 e 1970,
movimentos pacifistas, que reivindicavam o desarmamento mundial.

A CONFERÊNCIA DE BANDUNG

De modo geral, o mundo estava dividido em dois, como vimos anterior-


mente. No entanto, muitos países não se sentiam parte dos dois grandes blocos
que se enfrentavam durante a Guerra Fria. Foi assim, que entre 18 e 24 de abril

155
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

1955, reuniram-se 29 líderes de países africanos e asiáticos, na chamada Con-


ferência de Bandung.
A maioria dos países participantes da conferência originava-se da
amarga experiência da colonização, que impunha o domínio econômico,
político e social, e que submetia os povos colonizados à discriminação racial.
Lutando pelo seu desenvolvimento econômico, por condições de vida e sub-
sistência mais dignas e contra a opressão do racismo, do colonialismo e do
imperialismo, estas nações não viam sentido na disputa entre Estados Uni-
dos e União Soviética. O objetivo do encontro era promover uma coopera-
ção econômica e cultural, centrada na manutenção dos valores culturais das
sociedades da África e da Ásia, em confronto com a tentativa das duas grandes
potências e de outras nações influentes de impor sua cultura, e inferiorizar as
demais.
A conferência finaliza com a elaboração de dez princípios e de acordo
com a Carta da ONU: respeito aos direitos fundamentais; respeito à soberania
e integridade territorial de todas as nações; reconhecimento da igualdade de
todas as raças e nações, grandes e pequenas; não-intervenção e não-ingerência
nos assuntos internos de outro país; respeito pelo direito de cada nação defen-
der-se, individual e coletivamente; recusa na participação dos preparativos da
defesa coletiva destinada a servir aos interesses particulares das superpotên-
cias; abstenção de todo ato ou ameaça de agressão, ou do emprego da força,
contra a integridade territorial ou a independência política de outro país; solu-
ção de todos os conflitos internacionais por meios pacíficos; estímulo aos inte-
resses mútuos de cooperação; respeito pela justiça e obrigações internacionais.
Outrossim, marcou a presença política dos países do Terceiro Mundo e levaria
à formação do Movimento dos Países Não-Alinhados, o que não agradou os
Estados Unidos.
Para os norte-americanos, a neutralidade significava não juntar forças
contra o comunismo, e arriscar-se a ser considerada potencial inimiga. Esta
política levou os EUA a numerosos conflitos com as nações em desenvolvi-
mento que não se inclinavam para nenhum dos dois lados.

A LUTA CONTRA O COLONIALISMO

O processo conhecido como a Partilha da África, constituído durante


a segunda metade do século XIX e normatizado na Conferência de Berlim
de 1885, retaliou o continente em zonas de colonização que ficaram sob o

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

domínio, principalmente de países europeus. A colonização do continente


explorou os recursos naturais, enriquecendo as metrópoles, e na divisão terri-
torial povos foram separados em colônias distintas, uma amostra da violência
e desrespeito que os colonizadores tinham pelas culturas africanas.
Embora a presença europeia tenha sido de poucas décadas de domi-
nação direta, os impactos do colonialismo europeu foram mais profundos do
que qualquer outra invasão ou deslocamento de povos que tenha ocorrido
na história da África. Neste curto espaço de tempo, uma série de melhorias
foi implantada, como construções de pontes, portos mais adequados, linhas
de telégrafos, escolas e hospitais, entre tantos outros. Contudo, estes serviços
eram destinados a atender as necessidades europeias, e não se estendia a toda
a população. Quando isso acontecia, como por exemplo, em campanhas sani-
tárias contra a malária, era para beneficiar os colonizadores, facilmente conta-
minados por doenças tropicais.
No caso das escolas, quando estas existiam, o objetivo era “civilizar”
mentes e corpos africanos. A montagem de uma estrutura econômica voltada
para exploração de matérias-primas e exportação de mercadorias industriais
por parte das metrópoles, levou a uma desestabilização de estruturas econômi-
cas tradicionais, com o estabelecimento de plantations de mercadorias expor-
táveis como cacau, café, amendoim, etc. E a monetarização da economia por
meio da obrigação de pagamento de impostos.
Como era de se esperar, a divisão do continente e a grande distância
social entre os colonizadores e os africanos, gerou muitos conflitos que, com
o passar do tempo, e sob a influência das ideias do Pan-africanismo, foram se
configurando movimentos pela independência em toda a África, que tomaram
fôlego com o declínio da Europa após a II Guerra Mundial. Marco deste pro-
cesso de tomada de consciência foi a ocupação militar da Etiópia por forças do
exército italiano do ditador Benito Mussolini. A Liga das Nações, organismo
multilateral criado após a Grande Guerra (1914-1918), pouco fez para conter
o conflito e a devastação produzida pela ambição imperial fascista sob o país
símbolo da autonomia política africana, indicando a parcialidade nas relações
entre os povos naquela instituição.

O PAN-AFRICANISMO

A primeira vez em que o termo Pan-africanismo apareceu foi em 1900,


em uma conferência de intelectuais negros realizada em Londres, organizada

157
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

por um advogado de Trinidad, Sylvester Willians, que levantava sua voz con-
tra a expropriação de terras pelos europeus na África do Sul e reivindicava o
direito dos negros a sua própria identidade.
A partir desta contextura começa a se disseminar a ideia de uma consci-
ência africana, e o movimento foi se configurando em uma corrente crítica do
racismo e do colonialismo, pregando a libertação e reabilitação das civilizações
africanas, da dignidade do homem negro, o retorno à África e a unificação
dos africanos em todo o mundo. Na Jamaica, Marcus Mosiah Garvey funda a
Associação Universal para o Progresso dos Negros, unida em torno do lema
“África para os africanos”.
Em 1919, acontece o primeiro Congresso Pan-Africano em Paris, sob
a liderança de Willian Edward Brurghardt Du Bois, um dos intelectuais com
grande influência sobre o movimento. Outros congressos se seguiram em
1921, 1927, e em 1945. Este último foi realizado em Manchester, e se caracte-
riza por ser mais incisivo do que os anteriores, reivindicando independência
para os povos da África. Aliás, o manifesto aprovado nesta conferência resume
bem este objetivo: “Resolvemos ser livres: povos colonizados e subjugados do
mundo inteiro, uni-vos”.
Desse modo, desde a data do congresso tais projetos se fortaleceram,
sendo adotados por vários políticos e intelectuais que viviam em território
africano, futuros líderes de uma África independente. Entre esses novos líde-
res, destacaram-se: Jomo Kenyatta (Quênia), Peter Abrahams (África do Sul),
Hailé Sellasié (Etiópia), Namdi Azikiwe (Nigéria), Julius Nyerere (Tanzânia),
Kenneth Kaunda (Zâmbia) e Kwame Nkrumah (Gana).

AS INDEPENDÊNCIAS AFRICANAS

Em um continente tão vasto e diverso, não deve surpreender que a der-


rocada do colonialismo na África não tenha sido um processo homogêneo.
Em alguns países, intensas mobilizações e a organização de movimentos de
libertação nacional – inspiradas no Pan-Africanismo, como já vimos foram
responsáveis pela expulsão de colonialistas, através da luta armada. Em outros,
a mobilização política por si só favoreceu o convencimento dos colonizadores
a abrir mão dos territórios ocupados, por meio de outras formas indiretas de
domínio como a Commonwealth, a comunidade britânica de nações.
As décadas de 1950 e 1960 foram importantes para a África, pois a
maioria dos países conquistou a independência. Em 1960, por exemplo, 17

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

países das colônias francesas e inglesas se tornaram independentes. Da mesma


forma, as colônias sob o domínio da Itália, Espanha e Bélgica, de forma geral,
se emanciparam sem grandes confrontos. Apenas França, no caso da Argélia
(1962), e mais propriamente Portugal, como veremos a seguir, colocaram obs-
táculos aos militantes pela independência.

O COMBATE AO ULTRACOLONIALISMO E A INDEPENDÊNCIA DO


MUNDO LUSO

Enquanto França, na maior parte de suas possessões, e Inglaterra nego-


ciavam a gestão das suas colônias em África, Portugal queria manter a todo
custo sua política colonial em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambi-
que e São Tomé.
Portugal vivia um momento muito peculiar de sua história quando o
processo de ascensão às independências se configurou. O Estado Novo, ou
Salazarismo, regime autoritário semelhante ao Fascismo, entre suas caracterís-
ticas, não reconhecia o princípio da autodeterminação dos povos, estabelecido
pela ONU após a II Guerra Mundial.
Como forma de burlar as constantes pressões da comunidade interna-
cional para que se retirasse de suas colônias, Portugal passou a considerá-las
províncias ultramarinas, o que significava dizer que eram parte do território
português, constituindo uma única nação junto à metrópole. Através desta
“reforma” administrativa, os salazaristas argumentavam que sendo legítimos
territórios portugueses, não havia sentido
lutar pela independência, pois Portugal já
era uma nação livre. Para saber mais, visite:
Apesar das tentativas de permane- http://blogueforanadaevao-
tres.blogspot.com.br/2009/06/
cer no domínio de suas colônias, Portugal guine-6374-p4452-controver-
teve que enfrentar as ideias que levaram à sias-15-o.html
busca por uma “África para os africanos”,
que foram se disseminando através de líde-
res como Amilcar Cabral. As reivindicações dos africanos e o trabalho das suas
organizações de resistência, obrigada à clandestinidade, originaram severas
repressões, levando a conflitos armados.
As insurreições aumentavam e massacres aconteciam contra os africa-
nos revoltosos. Vejam alguns dos antecedentes que acabaram levando as guer-
ras de libertação nos territórios da colônia portuguesa:

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

ӹӹ Em 1953, uma revolta em São Tomé teve como resultado o massacre de


mais de 1.000 pessoas;
ӹӹ Em agosto de 1959, em Bissau (Capital da Guiné-Bissau) deu-se
a insurreição do Cais de Pidjiguiti. Os colonialistas portugueses
massacraram 50 trabalhadores do porto em greve, que reivindicavam
melhores condições do trabalho e aumento salarial;
ӹӹ Em janeiro de 1961, um dos mais violentos massacres aconteceu em
Angola, como resposta a uma revolta de trabalhadores algodoeiros;
ӹӹ Logo em seguida, em fevereiro, ocorreu uma série de ataques a presídios
de Luanda com o objetivo de libertar presos políticos (nacionalistas
angolanos), e as autoridades portuguesas reprimiram com muita
violência. Prisões, mortes, tortura e um clima de tensão e conflitos
raciais entre a população lusa e os angolanos ganharam repercussão
internacional;
ӹӹ Em 15 de Março de 1961, o massacre dos colonos no norte de Angola,
vítimas do ataque da UPA (União das Populações de Angola), liderada
por Holden Roberto.
Por outro lado, o comprome-
Para saber mais sobre o início das timento do orçamento do país, que
guerras coloniais portuguesas, leia chegou a mobilização de mais de
este texto da revista Ciência Hoje: duzentos mil soldados, inviabilizava
http://www.cienciahoje.pt/index. sua organização econômica. A ten-
php?oid=47211&op=all são social e as dificuldades políticas
do regime justificaram a formação de
uma insurreição militar, conhecida como Revolução dos Cravos, em 1974, pôs
fim ao Salazarismo e Portugal inicia as negociações para a independência das
novas nações...

DESAFIOS

Entre 1960 e 1990 (MACEDO, 2013, p. 163), as jovens nações africa-


nas foram redefinindo suas relações com suas velhas metrópoles e os novos
países hegemônicos. Herdaram países em que 2/3 dos seus 450 milhões de
habitantes viviam em áreas urbanas, 97% eram analfabetos, poucos quadros
qualificados e tímidas estruturas educacionais. Países muito desiguais quanto
às potencialidades econômicas, riquezas naturais, estruturas administrativas e
produção para o comércio internacional. Como lembra Roland Oliver (1994),

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

dar continuidade aos antigos limites coloniais, o problema da manutenção


dessas fronteiras artificiais, habitado por uma diversidade de povos, tornou-se
um grande desafio inicial.
Disputados pelos grandes blocos à esquerda (economia planejada, cen-
tralização estatal) ou à direita (alinhamento com interesses das antigas metró-
poles, incremento de produção para exportação, etc.), os países enfrentaram
muitas dificuldades para superar as fragilidades do período colonial e o enga-
jamento na consolidação da soberania nacional e bem estar da população.
Da consciência destes limites, surgiu, por obra de 31 chefes de Estado,
na cidade de Adis Adeba, capital da Etiópia, a Organização da Unidade Afri-
cana, com atenção no respeito à soberania dos Estados, na manutenção de suas
fronteiras, na resolução pacífica dos conflitos e no não alinhamento em relação
aos blocos socialistas e capitalistas.
Se de um lado a OUA foi importante na mediação de diferentes conflitos
interestados, igualmente enfrentou inúmeras dificuldades para a estabilização
política da maioria dos Estados africanos. Assim, entre as décadas de 1960
e 1970, regimes de exceção foram instituídos em diversos países: Burundi,
Ruanda, Argélia, Líbia, Gana, Serra Leoa, Congo-Kinshassa, Congo-Brazza-
ville, Sudão, Etiópia, Nigéria e Mali. Em todos, as singularidades étnicas, con-
taminadas pelas descobertas de vastas riquezas minerais e interesses geoestra-
tégicos das grandes potências tornavam-se pontos de tensão e conflito.
Um grande exemplo das tensões que levaram a golpes militares foi o
caso da República Democrática do Congo. Com um território quatro vezes
maior que o da França, na qual sobressai o majestoso Rio Zaire (antigo Congo),
descoberto para os ocidentais por Diogo Cão, navegador português, em 1484
(HERNANDEZ, 2005, p. 443). Região disputada entre as diferentes potências
imperiais, tornou-se propriedade pessoal do Rei Leopoldo II, da Bélgica, que
comandou uma gigantesca pilhagem da região por meio de companhias de
comércio e dizimação da população africana nos campos de trabalho forçado
para produção de borracha, algodão ou obras públicas.
Por meio de uma Carta Colonial, em 1908, o Congo foi entregue ao
Governo Belga que passou a construir uma estrutura de administração colo-
nial mais intensa, baseada na prática generalizada da exploração do trabalho
forçado e cobrança de impostos. No final dos anos 1950, por pressão dos movi-
mentos de resistência entre eles o Movimento Nacional Congolês, liderado por
Patrice Lumumba, iniciou-se o processo de concessões políticas, colimando
na independência em 30 de junho de 1960. Lumumba, nomeado primeiro

161
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

ministro, devido às tensões internas, aproximou-se da União Soviética, como


forma de obter os meios para realizar a centralização política e a unidade ter-
ritorial do Congo. Entretanto, com apoio dos colonialistas belgas, a região
da Catanga, rica em minérios, tornou-se independente em 1960, posterior a
demissão e ao assassinato de Lumumba. As Forças Armadas, tornadas cada
vez mais o fiel da balança política, patrocinou um golpe militar que entronizou
Mobutu Sese Seko na presidência da república.

A ÁFRICA DO SUL E O APARTHEID

Já à época da Organização da Unidade Africana, um dos temas mais


conflitantes foi como lidar com o governo de maioria branca da antiga União
Sul Africana. Tornada República, em 1948, a minoria branca impôs uma polí-
tica de segregação racial à maioria nativa denominada apartheid, visando o
desenvolvimento igual e separado dos diferentes grupos étnico-raciais do país.
Na prática isto significou o controle pelos brancos de 87% das terras férteis do
país, das valiosas minas de ouro e diamantes, forças armadas, governo, proibi-
ção de acesso ao voto e a representação política.
Ao longo de décadas, a resistência foi coordenada pelo Congresso Nacio-
nal Africano, criado em 1912, e que fez da estratégia da não violência modus
operandi da luta pela deslegitimação do Regime do Apartheid, na África do Sul
e no mundo. Eles organizaram, nos anos 1940, cerca de 40 greves, mobilizando
mais de 60 mil pessoas (MACEDO, 2013, p. 170). A Resposta do governo foi
a instalação de uma gestão repressiva marcada pelo terror a qualquer forma
de contestação. Assim, em 1960, em Shaperville, uma manifestação contra os
passes, que proibiam a população negra de circular livremente pelas cidades
e demais regiões africanas, confinando estas populações em reservas, os ban-
tustões, foram recebidos a bala pela polícia local. Em vista disto, o Congresso
Nacional Africano mudou sua estratégia de luta, sob a liderança do jovem
advogado Nelson Mandela, a organizar milícias armadas. Preso em 1962,
Mandela foi condenado em 1964 a prisão da qual só sairia 27 anos depois.
Nos anos 1970 e 1980, o Governo Sul Africano, mesmo com grande
descrédito internacional, mas contando com apoio da Inglaterra de Margareth
Thatcher e dos Estados Unidos do tristemente célebre Ronald Reagan, apro-
fundou as políticas de consolidação do Apartheid. Em 1976, travou-se uma
revolta estudantil contra a obrigatoriedade do ensino de africânder nas esco-
las, no bairro de Soweto, Joanesburgo. A dura repressão, abrindo fogo contra

162
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

cinco mil estudantes, deixou 600 pessoas mortas. Naqueles anos, Steve Biko,
idealizador do movimento de Consciência Negra foi preso e assassinado sob
tortura.
Diante da pressão de muitos países, governo e sociedade civil, além da
ampliação da resistência negra, o Regime do Apartheid libertou Nelson Man-
dela e este, coordenou uma difícil transição até sua eleição para presidente da
república em 1994.

O TEMPO PRESENTE...

Os últimos vinte anos não foram fáceis para as populações do conti-


nente africano. O fim da Guerra Fria, com a derrota e a eliminação da União
Soviética, implicou em uma perda da importância estratégica da região. De
um modo geral, os países chegaram aos anos 1990, endividados, sem acesso ao
crédito internacional, assolados por doenças endêmicas e conflitos bélicos Por
sinal, por interesse na exploração de recursos naturais, especialmente minérios
e petróleo, a África tornou-se o grande receptáculo de toneladas e toneladas
de armas utilizadas nos mais diferentes conflitos internos. Instituições como
Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional, agindo de modo a garantir
o pagamento aos credores internacionais, vaticinou suas políticas neoliberais,
baseadas na desregulamentação, desentrave de atividades produtivas, especial-
mente aquelas associadas à produção para exportação.
De fato, o continente africano recebeu vasto fardo da experiência colo-
nial. É hoje a região com os piores índices de desenvolvimento econômico,
diversificação da sua produção e condições de governabilidade. Tudo isto
agravado por alterações climáticas que destroem milhões de hectares de áreas
férteis, o alastramento da infecção por HIV-AIDS, e a pior crise econômica das
últimas décadas que levou a perda de milhões de empregos no mundo, mas,
principalmente, restrições a aquisição de bens de baixo valor agregado, na qual
se concentram a maioria das economias africanas.
Entretanto, o advento de um mundo mais multipolar com a emergên-
cia de novas potências regionais como Índia, Brasil, China, Rússia e África
do Sul, a organização do G-20, o grupo de economias em desenvolvimento,
tem apresentado novas perspectivas para o continente africano. Na década de
2010, a África desponta como um centro de grande investimento em obras
de infraestrutura, portos, ferrovias, hidrelétricas. A presença dos BRICS tem
possibilitado mediações, com foco nas relações Sul-Sul, atuando como uma

163
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

fonte significativa de créditos externos, treinamento e incremento de comércio


bi e multilateral. Vale lembrar que, a partir de 2001, enquanto o crescimento
médio nos anos 1990, era de 2,4%, passou para 4,5% entre 2000 e 2005, e para
5,5 entre 2007 e 2008. Os países da região possuem reservas comprovadas de
petróleo (60 bilhões de barris de petróleo), 35% do potencial hidrelétrico, 15%
dos minerais estratégicos para indústria.
Neste contexto, que os países da região refundaram o mecanismo de
governança global, constituindo em 2001 A União Africana (UA) foi formal-
mente estabelecida em julho de 2001. As razões de sua criação foram anuncia-
das em setembro de 1999 na “Declaração de Sirte” dos Chefes de Estado e de
Governo da antiga Organização da Unidade Africana: acelerar o processo de
integração regional; promover e consolidar a unidade do continente; fomentar
a união, a solidariedade e a coesão; eliminar o flagelo dos conflitos; e habilitar
a África a fazer face aos desenvolvimentos políticos, econômicos e sociais da
ordem internacional.

Referenciais Bibliográficos

BRUNSCHWIG, Henri. A Partilha da África Negra: 1880-1914. São Paulo:


Perspectiva, 2013.
CARDOSO, Paulino. Negros em Desterro: experiências das populações de
origem africana em Florianópolis na segunda metade do século XIX. Itajaí:
Casa Aberta, 2008.
CANEDO, Letícia Bicalho. A descolonização da Ásia e da África. São Paulo:
Atual, 1994.
HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita à História con-
temporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005.
KI-ZERBO, Joseph (Coord.). História Geral da África. São Paulo: Ática/
Unesco, 1982.
MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Contexto, 2013.
M’BOKOLO, Elikia. África negra. História e civilizações. Salvador/São
Paulo: EDUFBA/Casa das Áfricas, 2009.
OLIVER, Roland. A experiência africana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1994.

164
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

SADER, Emir (Org). Lula e Dilma: Dez anos de governos pós-neoliberais no


Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013.
SERRANO, Carlos. Memória D’África – A temática africana em sala de aula.
São Paulo, Cortez, 2010.
WESSELING, H. L. Dividir para dominar: a partilha da África (1880-1914).
Rio de Janeiro: UFRJ / Revan, 1998.

165
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

MÓDULO 4 - História das Populações de Origem Africana no Brasil

Conhecer as experiências de africanos e africanas no Brasil constitui


tarefa fundamental para compreender as dinâmicas culturais, sociais e econô-
micas do país em que vivemos. De muitos modos, a história destes homens e
mulheres de origem africana ficou atrelada apenas aos dissabores e sofrimen-
tos da escravidão, invisibilizando qualquer experiência vivida para além da
condição jurídica de ser, ou estar, escravo.
Nossa proposta neste módulo, finalizando as discussões deste curso e
deste material, é permitir ampliar as possibilidades de olhares sobre histórias
de homens e mulheres simples, muitos deles cativos, mas que atuaram cultural,
econômica e socialmente na construção da sociedade brasileira. Tratam-se de
sujeitos que criaram irmandades, fundaram jornais e clubes recreativos, orga-
nizaram escolas e clubes de futebol, mobilizaram autoridades e conhecidos
para suas lutas, desfilaram em ruas diversas nos momentos de carnaval, e de
festas aos seus santos padroeiros, cultuaram Nossa Senhora em seus Cacum-
bis, cultivaram seus alimentos, venderam seus serviços e lidaram com uma
sociedade dura desde os tempos coloniais.
O intuito deste módulo composto por 5 capítulos é apresentar alguns
subsídios indicativos de uma história ainda não contada em nossas escolas e
sociedade. Necessitamos atentar para a formação não equitativa que propor-
cionamos às nossas crianças, pois o sucesso ou o fracasso destas está implicita-
mente ligado ao nosso papel e ao nosso olhar. Como bem enfatizado anterior-
mente em diferentes capítulos, a escola molda identidades ou estereótipos que
impedem o sucesso escolar de determinados grupos, em especial não brancos,
ao invisibilizar ou distorcer histórias e culturas, tornando o sujeito de origem
europeia o grande herói e os demais povos e culturas como simplesmente
dominados, “sem lei, nem rei, nem história”.
Talvez nosso maior desafio seja permitir a nós mesmos e a nossos
alunos um olhar mais dinâmico, crítico e plural acerca das experiências dos
povos, abrindo mão de nossa formação até então eurocêntrica e monocultural.
O mundo vai além da Europa... e de sua autodenominada civilização...
Vamos à leitura!

166
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Capítulo 1 - O Brasil dos séculos XVI a XIX: populações


de origem africana, cativeiro, identidades, solidariedades,
religiosidade e resistências

Claudia Mortari
Fábio Amorim Vieira

Este capítulo aborda alguns aspectos acerca das experiências das popu-
lações de origem africana no Brasil, no período compreendido entre os séculos
XVI ao XIX, visando apontar a diversidade de vivências no tocante a questões
que envolvem o cativeiro, as identidades, as solidariedades, a religiosidade e
as resistências. Evidentemente, toda produção que se propõe a discutir sobre
essas temáticas acaba por priorizar algumas questões em detrimento de tantas
outras e, por isso, é preciso considerar que para o escopo deste texto abor-
daremos apenas alguns aspectos que consideramos pertinentes ao ensino da
temática em sala de aula.
O período a se tratar é caracterizado por diferentes aspectos políticos,
administrativos, sociais e culturais que possuem suas especificidades: a cha-
mada América Portuguesa, quando o Brasil constituía-se enquanto Colônia
de Portugal, seguida da posterior condição de Estado Imperial. No entanto,
há algo comum relativo a todo este período: a escravização de africanos e seus
descendentes durante quatro séculos de história brasileira.

O CATIVEIRO, PARA ALÉM DE UM SISTEMA ECONÔMICO

Diferentes são as abordagens e as hipóteses historiográficas sobre a


necessidade e a permanência da escravização das populações de origem afri-
cana. Estas, grosso modo, apoiam-se em justificativas econômicas (mão de
obra para o trabalho compulsório), religiosas (a legitimação da escravidão
dos não cristãos) e raciais (SCHWARTZ, MENARD, 2002, 03-19). Embora
cada uma contribua de alguma forma para compreendermos tal processo, não
podem ser tomadas como exemplos únicos para explicar inúmeros e diferentes
contextos americanos nos quais a escravização esteve presente. Além disso, a
perspectiva de que a prática escravista e a sua manutenção decorrem apenas
de questões econômicas é problemática, visto implicar uma ideia de que as
transformações e os fatos procedem apenas de uma lógica de produção, de

167
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

mercado e de demanda, desconside-


O Costume: As relações sociais esta-
rando as lutas e tensões dos próprios belecidas no Brasil escravocrata só
sujeitos destas histórias enquanto podem ser compreendidas tendo por
agentes sociais. base a noção de costume, através do
Pensando especificamente na qual os diferentes sujeitos confrontam-
sociedade brasileira durante o perí- -se. É com base no costume, prática
odo colonial, é preciso, além das de “tempos imemoriais”, instituída nas
relações sociais, não pela lei, mas invo-
questões apontadas anteriormente, cada como tradição, que os diferen-
ter presente a existência de uma con- tes sujeitos sociais tentam fazer valer
cepção de hierarquia social que legi- suas vontades e desejos. O costume é
timava, de forma jurídica e costu- uma prática antiga que podia adquirir
meira, as desigualdades e, portanto, tanto o caráter de privilégio, quanto de
direito, produzido e transmitido pelas
a escravização (MATTOS, 2001). pessoas comuns e perpetuado de forma
Essa hierarquia, característica do oral. Os costumes, nas relações pater-
Império católico português, era jus- nalistas são reproduzidos e recriados
tificada com base numa concepção pelas pessoas comuns em suas experi-
religiosa cristã, repleta de concep- ências, sendo, portanto, um espaço de
ções de nobreza tradicionais. Sendo negociação entre os diferentes sujeitos
sociais (THOMPSON, 1988, p. 86-89).
assim, não era o fato de ser índio ou
africano que os tornavam passíveis
de escravização, mas sim sua condição de bárbaros e ateus diante do olhar
católico português (MATTOS, 2000, 15).
A escravização era embasada na naturalização de direitos e privilégios e,
desse modo, durante todo o período colonial, e até meados do século XIX, os
fatos jurídicos que estabeleciam a condição livre ou escravizada foram produ-
zidos, inicialmente, com base nas relações costumeiras e socialmente reconhe-
cidas, sempre dependentes das relações de poder pessoal. Quando não existia
este reconhecimento, eram necessários os documentos, bem como a decisão
jurídica da coroa (MATTOS, 2000; MATTOS, 2001; LARA, 2000).
Quando da independência em 1822, o Brasil surgiu como uma monar-
quia constitucional de base liberal que, teoricamente, considerava todos os
cidadãos livres e iguais, mas a instituição da escravidão permaneceu inalterada
e garantida pelo direito de propriedade expresso na nova Constituição.
Na constituição encontram-se elementos tanto do princípio do libera-
lismo – a absolutização do direito de propriedade, que só poderia ser confis-
cada pelo estado mediante indenização – quanto elementos da legitimação de
privilégios e hierarquias herdadas do Antigo Regime, expressos nas disposições

168
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

censitárias que estabeleciam direitos


A legislação: A lei era expressão da
vontade do soberano, mas também
e privilégios a alguns poucos e ape-
não estava isenta das negociações entre nas direitos a muitos outros (MAT-
as várias instâncias hierárquicas do TOS, 2000, p. 34).
governo. É impossível pensar numa A escravidão, portanto, era
separação absoluta entre o público e o uma prática considerada legítima
privado, visto que o exercício do poder,e justa por meio das leis divinas
encarnado pelo monarca, pressupu-
nha o bem comum de todos os seus da igreja, dos direitos jurídicos e
súditos, respeitados os fundamentos da naturalização ou costume dos
hierárquicos de organização social. homens. Enquanto fato e prática,
A maior parte da legislação colonial no contexto colonial e imperial bra-
não visava ordenar a realidade, mas sileiro, esteve presente em pratica-
produzir meios para a coroa arbitrar
sobre os conflitos que nela ocorriam.
mente todos os segmentos sociais.
As decisões apoiavam-se num corpus Essa questão permite compreender a
legislativo que basicamente compu- existência, por exemplo, de afrodes-
nha-se pelas Ordenações, pela Legisla- cendentes forros que eram proprie-
ção Extravagante e pelas decisões reais tários de escravos (MATTOS, 2001,
tomadas juntamente com seus minis- 143-162). Alguns princípios comuns
tros e conselheiros: as Ordenações
Afonsinas, as ordenações Manuelinas e na sociedade escravista, como a pro-
as Ordenações Filipinas. priedade de pessoas escravizadas, a
violência, a coerção física e psicoló-
gica, constituíam-se meios para atin-
gir a submissão necessária ao funcionamento do sistema (WISSENBACH,
1998, p. 61-62).
Por outro lado, a condição cativa acabou se configurando de múltiplas
formas devido às necessidades advindas das atividades desenvolvidas por estes
trabalhadores, bem como de suas referências culturais. A condição escrava,
mesmo inserida num contexto de dominação senhorial, não pressupunha uma
subordinação passiva, uma incapacidade de perseguir objetivos próprios ou de
afirmar-se enquanto diferente (CHALHOUB, 1998, p. 95-122). Além disso, se
parte da legislação do período colonial e imperial foi construída, a partir das
relações costumeiras estabelecidas entre senhores e escravos, tal fato é indício
da existência de um campo de negociações estratégicas, inclusive no que se
refere à alforria e ao estabelecimento de vínculos familiares através do casa-
mento, por exemplo. Assim, essa perspectiva de análise histórica torna possí-
vel não apenas dar visibilidade, mas entender que diversas foram as experiên-
cias das populações de origem africana na sociedade brasileira deste período.

169
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Direitos Políticos: Implantou-se, portanto, o voto censitário: o cidadão passivo


(sem renda suficiente para ter direito a voto), o cidadão ativo votante (com renda
suficiente para escolher, através do voto, o colégio de eleitores), e o cidadão ativo
eleitor e elegível, sendo que, em relação a este, ainda se fazia uma distinção: deveria
ter nascido “ingênuo”, isto é, não deveria ter nascido escravo. A partir dessas prer-
rogativas, percebe-se que se os descendentes de africanos libertos tivessem posses,
poderiam exercer os seus direitos políticos; os escravizados nascidos no Brasil,
mesmo que fossem alforriados, não poderiam exercer os plenos direitos reconhe-
cidos aos cidadãos e súditos. E, ainda mais, “Apesar da igualdade de direitos civis
entre os cidadãos brasileiros reconhecida pela Constituição, os não brancos con-
tinuavam a ter até mesmo o seu direito de ir e vir dramaticamente dependente do
reconhecimento costumeiro de sua condição de liberdade” (MATTOS, 2000, p. 21).

HOMENS E MULHERES DE COR E DE QUALIDADE: AS


IDENTIDADES DAS POPULAÇÕES DE ORIGEM AFRICANA

É consenso entre pesquisadores que nenhuma região americana esteve


tão ligada ao continente africano quanto o Brasil, seja em extensão cronoló-
gica, seja em relação ao número de pessoas trazidas e escravizadas. Segundo
estimativas, entre os séculos XVI e XIX, 40% dos quase 12 milhões de africa-
nos que chegaram à América desembarcaram em portos brasileiros.
Desde o sequestro violento em África, passando pela longa travessia
transatlântica e culminando na trágica chegada ao Brasil escravocrata, onde
foram submetidos a um regime de trabalho e de vida incompreensível para
nós, homens e mulheres do século XXI, africanos e africanas vivenciaram
diversos processos de transculturação, reinventando as suas identidades e
recriando, dentro das possibilidades existentes, suas vidas. No novo contexto,
estes africanos e posteriormente seus descendentes, acabaram criando e esta-
belecendo diversas estratégias de sobrevivência e, apesar de todas as violências
e da escravidão, construíram suas vivências.
Mas afinal, quem eram estas, a quem denominamos populações de ori-
gem africana?
É corrente na escrita da história a homogeneização de pessoas das mais
diversas origens e categorias sociais a partir da utilização do termo negro e
escravo. Ainda que possuíssem a cor como uma insígnia da escravização, os
homens e as mulheres de origens africanas multiplicavam-se nos patamares
hierárquicos de uma sociedade marcada por complexas relações e experiências

170
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

na qual a noção de cor estava relacionada diretamente a qualidade (entendida


aqui como condição jurídica – escravo, livre ou liberto – e de origem – afri-
cano, crioulo, português, dentre outros) das pessoas. Dessa forma, cabe apre-
sentar a diversidade dos protagonistas destas histórias.
Nem sempre a noção de cor designava somente um grupo racial ou
níveis de mestiçagem, mas delimitava também lugares sociais. Dito de outra
forma, etnia e condição jurídica eram indissociáveis. Nesta perspectiva, as
populações de origem africana, até meados do século XIX, por exemplo, geral-
mente tinham atribuídos a si diversos termos a delimitarem sua condição e
origem.
O termo preto referia-se, na maioria das vezes, àqueles homens e mulhe-
res trazidos do continente africano através do tráfico atlântico que, na docu-
mentação da época, vinham acompanhados da denominação de nação. Esta
não possuía correlação com as formas por meio das quais os africanos cos-
tumavam identificar-se nas diversas regiões do continente africano. Geral-
mente, nação referia-se ou a portos de embarque, a região de onde eram pro-
venientes os cativos, ou a uma identificação dada pelos próprios traficantes
em razão de algumas semelhanças atribuídas pelos europeus aos africanos.
Assim, nomes de portos e locais de partida em África destes homens e mulhe-
res eram frequentes, como por exemplo, Angola, Congo, Monjolo, Mina, Ben-
guela, Cabinda, Costa (este mais genérico que poderia se referir a toda a Costa
Atlântica africana).
Além disso, o próprio territó-
rio africano era marcado por guerras Os sentidos da cor e da condição social:
e trânsitos populacionais, migrações O termo pardo era utilizado para os for-
ros ou livres e crioulos e mulatos para
internas, aprisionamento de cativos escravos e forros, ambos nascidos no
antes e durante o tráfico atlântico, Brasil. Preto era indicativo da condi-
além do deslocamento de popula- ção de escravo ou forro, para homens
ções cativas do interior para o lito- e mulheres africanas. Esses referenciais
ral a fim de serem embarcadas para nos permitem perceber o sentido atribu-
a América. Neste sentido, somente ído à cor: guardava relação com a con-
dição social do indivíduo. Dificilmente
é possível apontar as regiões de um africano, um crioulo ou um pardo, de
procedência destes africanos, e não condição livre ou forra, antes do século
exatamente a que grupos étnicos XX, se atribuiria a identidade de negro
pertenciam nas diversas regiões do porque tal termo era indicativo da con-
continente. dição de escravo (MATTOS, 1998, p. 30;
CARDOSO, 2004, p. 205).

171
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Entretanto, aqui é importante acrescentarmos uma questão fundamen-


tal: o tráfico atlântico, o desenraizamento e a escravização desestabilizaram os
vínculos que os africanos possuíam em África, mas não os anulou enquanto
sujeitos, o que permitiu a reinvenção de suas identidades. Dito de outro modo,
a diáspora africana não significa apenas o deslocamento forçado, mas tam-
bém a redefinição histórica, social e cultural de pertencimento, perceptível
através da construção de novas identificações, formas de devoção, rearranjos
de sobrevivência, de experiências históricas de lutas por autonomia e por liber-
dade.
As culturas e as identidades formadas no chamado Novo Mundo são
indissociáveis da experiência da escravidão, mas em especial dos fluxos e tro-
cas culturais através do Atlântico (GILROY, 2001). As experiências de desen-
raizamento, deslocamento e a inserção dos africanos num novo contexto
resultaram nesse processo de reinvenção de identidades e culturas. Nesta pers-
pectiva, o próprio conceito de diáspora não possui a ideia de dispersão que
carrega consigo a promessa de retorno redentor. Ele representa um processo
de redefinição social, cultural e histórica do pertencimento, e implica, para
além do deslocamento, mudança, transformação.
Ao entrarem em contato no contexto da diáspora, as identidades torna-
ram-se múltiplas, de forma que, junto ao elo que liga o sujeito a sua terra de
origem, outras identificações foram criadas. Portanto, não são fixas e resultam
de formações de histórias específicas relacionadas a determinados contextos,
ou o que se denomina de conjunto de posições de identidade: dependem da
pessoa, do momento, do contexto. As escolhas identitárias são políticas, asso-
ciativas, e não definitivamente determinadas: “[...] cada uma dessas histórias
de identidade está inscrita nas posições que assumimos e com as quais nos
identificamos” (HALL, 2003, p. 34 e 433).
Logo, as identidades criadas ou reinventadas durante o processo diáspó-
rico não podem ser tomadas como resultado de assimilação, pois representam
novas configurações marcadas pelo processo de transculturação, que, por sua
vez, não ocorre de mão única: a construção ou reinvenção de identidades e de
diferenças é dialógica, é troca, embora saibamos que hierarquicamente não
há um equilíbrio, pois são inscritas em, e através de, relações de poder, o que
implica analisar dependências, subordinações e resistências, características do
colonialismo (HALL, 2003, p. 67).
Nesse sentido, pensemos na produção e circulação transnacional e
transcultural de ideias, mas também na incorporação e ressignificação a partir

172
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

das especificidades históricas e culturais de cada sociedade (HANNERZ, 1997,


p. 121-122).
Tal abordagem é extremamente importante porque considera mútua,
embora desigual, a influência das diferentes culturas, sem, contudo, reduzir
a história das populações de origem africana apenas à sua vitimização. E se
partirmos do pressuposto de que as identidades, no contexto da diáspora, são
transformadas e ressignificadas, podemos considerar que os nomes de nação,
embora atribuídos aos africanos, podem ter sido assumidos por eles próprios
no processo de reorientação dos critérios de identidade.
Por exemplo, segundo Oliveira, Nagô foi o nome escolhido no circuito
do tráfico que se organizou em direção à Bahia para denominar os povos de
língua ioruba. Em África, no entanto, esses grupos tinham um modo próprio
de se descreverem ou se identificarem, referindo-se aos nomes de suas cida-
des/regiões de origem. No contexto da diáspora, ao mesmo tempo em que
esses povos aceitavam a pretensa unidade expressa pelo nome nagô em suas
relações particulares, o que se chamou de “uso doméstico”, ao mesmo tempo
mantinham os nomes que consideravam como sua marca de origem.
Tal fato aponta indícios acerca das diferenças presentes entre os diversos
grupos diante da aceitação do nome imposto. Dito de outra forma, os nomes
de nação atribuídos aos africanos acabaram sendo assumidos por esses como
verdadeiros etnônimos, nomes em sentido étnico, no processo de organização
de suas comunidades (OLIVEIRA, 95/96, p. 63 e 66).
Assim, em vez de discutir as procedências das populações africanas ou
buscar a reconstituição de uma cultura original, é importante identificar os
grupos de procedência (SOARES, 1997) organizados na sociedade brasileira
no contexto escravista. Essa abordagem, sem dúvida, parece ser a principal
para pensar as reinvenções de identidades das populações africanas na diás-
pora. Pensar as articulações sociais estabelecidas por estas populações atra-
vés da designação de “grupos de procedência” nos permite conceber a cultura
como algo em constante transformação.
É a partir dos pressupostos colocados anteriormente que consideramos
o processo de escravização dos africanos e de reinvenção das suas identidades.
Descobrir, analisar e discutir a multiplicidade de experiências dos africanos
escravos e libertos possibilita compreender as características históricas e cul-
turais da sociedade brasileira. Permite também abranger a complexidade dos
arranjos de convivência, relações entre cor, condição social, região de proce-
dência e lugar social ocupado no período.

173
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Um exemplo emblemático ocorreu no dia 20 de julho de 1854, às oito


horas da manhã, quando a escrava Amélia de nação mina, adentrou no Largo
da Sé, nas vizinhanças da secular igreja de Nossa Senhora do Rosário no Rio
de Janeiro, dirigiu-se ao local onde Josefa Alves Meneses, crioula liberta da
Bahia, vendia seus produtos. Do encontro entre as duas travou-se uma grande
briga, resultando num processo judicial em que outras mulheres, de diferentes
origens e condições jurídicas, serviram de testemunhas. A briga entre Amélia,
africana, e Josefa, crioula, é uma evidência das disputas entre grupos sociais,
nesse caso, formados por quitandeiras que disputavam o mercado informal de
trabalho (GOMES, 2005, p. 212).
Não apenas em processos judiciais, mas em jornais de época, em relatos
de viajantes e mesmo nas pinturas de artistas europeus que estiveram no Brasil
no contexto do século XIX, as diferenças entre as populações de origem afri-
cana podem ser percebidas. Essas podiam estar relacionadas a origem (afri-
cana ou crioula), a cor (preto, pardo, crioulo), a categoria jurídica (escravo,
liberto ou livre), ao trabalho desenvolvido (carregador, vendedor, doméstica,
quitandeira, entre outros). Ao lado, temos um anúncio de jornal que possibi-
lita perceber os detalhes utilizados para caracterizar uma africana que havia
fugido do cativeiro. Ademais, lança evidências de laços de solidariedade
estabelecidos, haja vista que ela andava em companhia de outra africana. Tal
exemplo é emblemático de práticas recorrentes no contexto brasileiro, indícios
de que apesar da escravização e da violência, as populações de origem africana
encontraram alternativas para resistir
e sobreviver. “Fugiu no dia 29 de junho passado
O que é importante ressaltar uma preta de nação mina, ladina, bem
diante da discussão até o momento falante, com os sinais seguintes: alta
aqui empreendida? Na contramão de magra, proporcionada, bonita, bem
um dado discurso da história que tra- feita, e com bons dentes, levou camisa
de algodão americano, vestido de ris-
tava sobre as populações de origem cadinho escuro, um lenço no pescoço
africana somente sob o viés da escra- e outro amarrado na cabeça, à maneira
vidão e de sua função como mão de das pretas da Bahia, e um pano riscado
obra (escravo e, portanto, negro), o a costa com que se costuma embrulhar;
que os novos estudos têm evidenciado ela anda pela cidade porque foi encon-
trada na rua do Ouvidor e no largo do
é a existência de uma população com- Capim em companhia de uma outra
posta por diversos sujeitos que cotidia- preta mina que vende galinhas no largo
namente definiam e redefiniam simbó- do Capim e tem casa no Valongo, onde
licas fronteiras e espaço de legitimação. mora” (GOMES, 2005, p. 220).

174
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Mas em quais atividades as populações de origem africana estavam


envolvidas?

CARREGANDO, VENDENDO, COZINHANDO, LAVRANDO: AS FOR-


MAS DE TRABALHOS

Os novos estudos sobre a economia colonial e imperial brasileira têm


questionado o modelo baseado na ênfase das grandes propriedades, da mono-
cultura de exportação e do trabalho escravo, evidenciando a importância da
economia de subsistência para a própria manutenção do sistema agroexpor-
tador.
Para Barickman (2003), por exemplo, as grandes propriedades não
eram autossuficientes, pois dependiam de gêneros produzidos por pequenas
propriedades para suprir suas necessidades. Esse fato acabou desvendando um
complexo mercado de abastecimento ao redor das grandes propriedades e dos
centros urbanos, bem como a produção agrícola de regiões que não estavam
diretamente relacionadas ao mercado exportador. Dessa forma, para o autor,
não se pode classificar a agricultura e o comércio de abastecimento como ativi-
dades subsidiárias, ou acessórios da economia de exportação (BARICKMAN,
2003, p. 30).
Por consequência, ao se voltar para a análise do universo social de áreas
exportadoras e não exportadoras, os novos estudos têm discutido o papel do
mercado interno e da utilização de trabalhadores, principalmente escravi-
zados, fundamentais para o desenvolvimento da economia local e nacional.
Os resultados desses trabalhos enfatizam a importância de estudar contextos
históricos específicos, evitando-se, assim, falsas generalizações. Além disso,
remetem a uma ideia importante: a da relação estreita entre o meio rural e o
urbano. Se é lícito afirmar que vilas e cidades coloniais e imperiais comercia-
lizam, exportam e importam produtos, elas irão se desenvolver em função da
produção agrícola de inúmeras freguesias da região.
Mas, importa aqui pensar que os espaços sociais foram historicamente
produzidos de forma que, além das questões econômicas, políticas ou militares
determinantes em suas configurações e desenvolvimentos, foram construídos
por pessoas que neles viviam ou que por eles transitavam de passagem. Essas
instituíram suas marcas pelos espaços rurais e urbanos, contínua e cotidiana-
mente. Pertencentes a diferentes origens e condições sociais, as fazendas, os
cais dos portos, as casas, os rios, as vielas e as ruas das vilas e cidades coloniais

175
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

e imperiais foram lugares de trabalho, sobrevivência, de sociabilidades. Dentre


essas pessoas, as que especificamente interessam ao estudo aqui proposto: as
populações de origem africana, - escravos, libertos e livres africanos, criou-
los e pardos. É preciso considerar que, apesar de utilizarmos a categoria
“escravos”, não se pressupõe que estes sejam um grupo homogêneo. Inse-
ridos nessa categoria encontravam-se africanos e crioulos, que possuíam
condições de vida e práticas de trabalho diversificadas, tanto no âmbito
rural quanto no urbano, bem como diferenças de cunho étnico e cultural.
Pois bem, a escravidão e suas características, objeto de inúmeras pes-
quisas, acabaram por evidenciar algumas particularidades, resultando numa
relativização do modelo de escravidão. Dito de outra forma, existiam diferen-
tes características do trabalho desenvolvido e da condição dos escravizados no
espaço urbano e nas áreas de grandes plantações voltadas para a exportação.
No âmbito rural as populações escravizadas desempenhavam uma série
de atividades: nas plantações, nas atividades dos engenhos, como cozinheiras,
roceiros, pescadores, entre outras. É importante pontuar que estas empreen-
deram cotidianamente formas de resistência, muitas delas, pautadas na nego-
ciação com os seus senhores, o que não acabava com a escravidão, mas possi-
bilitava melhores condições de vida dentro do possível.
Um exemplo emblemático pode ser percebido na Petição datada de
1789, elaborada pelos escravos do engenho Santana de Ilhéus, na Bahia, que
exemplifica as pressões escravas por melhores condições de vida.

“Tratado Proposto a Manuel da Silva Ferreira pelos seus escravos durante o tempo
em que se conservaram levantados (c.1789).
Meu senhor, nós queremos paz e não queremos guerra; se meu senhor também
quiser nossa paz há de ser nessa conformidade, se quiser estar pelo que nós qui-
sermos saber.
Em cada semana nos há de dar os dias de sexta-feira e de sábado para trabalhar-
mos para nós não tirando um destes dias por causa de dia santo.
Para podermos viver nos há de dar rede, tarrafa e canoas.
Não nos há de obrigar a fazer camboas, nem a mariscar, e quando quiser fazer
camboas e mariscar mandes os seus pretos Minas.
Para o seu sustento tenha lancha de pescaria ou canoas do alto, e quando quiser
comer mariscos mande os seus pretos Minas.
Faça uma barca grande para quando for para Bahia nós metermos as nossas cargas
para não pegarmos fretes.
Na planta de mandioca, os homens queremos que só tenham tarefas de duas mãos
e meia e as mulheres de duas mãos.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

A tarefa de farinha há de ser de cinco alqueires rasos, pondo arrancadores bastan-


tes para estes servirem de pendurarem os tapetes.
A tarefa de cana há de ser de cinco mãos, e não de seis, a dez canas em cada feixe.
No barco há de pôr quatro varas, e um para o leme, e no leme puxa muito por nós.
A madeira que se serrar com serra de mão embaixo hão de serrar três, e um em
cima.
A medida de lenha há de ser como aqui se praticava, para cada medida um corta-
dor, e uma mulher para carregadeira.
Os atuais feitores não os queremos, faça eleição de outros com nossa aprovação.
Nas moendas há de pôr quatro moedeiras, e duas guindas e uma carcanha.
Em cada uma caldeira há de haver botador de fogo, e em cada terno de faixas o
mesmo, e no dia de sábado há de haver remediavelmente peija no Engenho.
Os martinheiros que andam na lancha além de camisa de baeta que se lhe dá, hão
de ter gibão de baeta, e todo vestuário necessário.
O canavial de Jabirú o iremos aproveitar por esta vez, e depois há de ficar para pasto
porque não podemos andar tirando canas por entre mangues.
Poderemos plantar nosso arroz onde quisermos, e em qualquer brejo, sem que para
isso peçamos licença, e poderemos cada um tirar jacarandás ou qualquer pau sem
darmos parte para isso.
A estar por todos artigos acima, e conceder-nos estar sempre de posse da fer-
ramenta, estamos prontos para o servimos como dantes, porque não queremos
seguir os maus costumes dos mais Engenhos.
Poderemos brincar, folgar, e cantar em todos os tempos que quisermos sem que
nos empeça e nem seja preciso licença.”

Especificamente em relação à escravidão urbana, os estudos, principal-


mente a partir da década de 80, realizaram a análise do escravizado enquanto
sujeito social e, deste modo, agente transformador de sua própria vida, mesmo
em sua condição de cativo. Esses estudos, referentes a contextos históricos
específicos, passaram a analisar o funcionamento dos mercados urbanos e,
nestes, o trabalho da população cativa. Outrossim, objetivavam perceber a prá-
tica dos escravos e a relação estabelecida por estes com o restante da sociedade.
Abordagens teóricas e metodológicas e o uso de fontes diversas eviden-
ciaram o perfil heterogêneo das relações escravistas nas cidades, no Brasil colo-
nial e imperial, e a própria aplicação dessa mão de obra nos diferentes setores
da sociedade, conforme a diversidade de ocupações às quais eram designados.
Demonstraram que, além do controle e da violência princípios comuns nas
relações escravistas, estes foram também cotidianamente reelaborados, através
de diferentes estratégias estabelecidas entre os escravizados. Em suma, a escra-
vidão urbana, o viver citadino, tinham suas particularidades.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Assim, nas cidades e vilas do Brasil, além das atividades domésticas,


trabalhadores escravos, forros e livres, realizavam uma infinidade de funções
urbanas: de domésticas, de venda de produtos pelas ruas, de carregadores de
mercadorias no porto, de construção de casas, de serviços de ganho ou de
aluguel, de iluminação pública, de transporte marítimo, como marinheiros e
pescadores, de ofícios mecânicos ou na agricultura das pequenas propriedades
existentes ao redor dos núcleos urbanos.
É preciso considerar que os
trabalhadores escravizados, mesmo O trabalhador escravizado nas áreas
envolvidos nas atividades domés- urbanas trabalhava junto ao seu pro-
ticas, precisavam, em sua maioria, prietário, era alugado ou trabalhava por
conta própria, levando posteriormente
se deslocar pelas ruas para comprar uma parte da quantia que ganhava ao
mantimentos, pegar água ou lavar seu proprietário. Era o sistema de tra-
roupas nas fontes, levar dejetos para balho chamado de “ganho”. A existên-
fora das casas e até mesmo levar reca- cia dos escravos de ganho é um dos
dos. De forma que a sua presença nas exemplos que evidencia a variedade de
atividades desenvolvidas pelos cativos
ruas era uma constante.
e em contrapartida a complexidade
Os estudos, portanto, apontam das relações escravistas no contexto.
que além de realizarem uma série Essa prática de trabalho permitia, em
de funções, desde as domésticas, alguns casos, que o cativo ficasse como
de transporte ou atividades comer- pagamento o valor que ultrapassava
ciais de subsistência e artesanais, as o “jornal” estipulado pelo seu senhor
possibilitando a acumulação de um
populações de origem africana por pecúlio para a compra da sua alforria
possuírem uma liberdade de circu- (SOARES, 1988).
lação no cenário urbano, acabaram
por constituir espaços de tensão, nos
quais procuravam expandir sua autonomia e no dizer de Chalhoub, tentavam
viver como pessoa livre. Evidentemente, não eram os únicos a desempenhá-
-las, é certo, porém era sobre suas costas e cabeças que a cidade se organizava
e se movia. O aspecto mais importante é perceber as populações de origem
africana como sujeitos históricos, que trabalharam a sua realidade de acordo
com seus objetivos.

“Em que medida, pelo menos no caso da Corte, foram os movimentos dos pró-
prios negros que instituíram esta cidade onde as distinções entre livres pobres e
escravas se desmanchavam lentamente? (...) o pardo Bráulio, escravo do Barão de
Três Ilhas, fugiu de uma fazenda em Valença e conseguiu alcançar a Corte. Passou

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

então a se chamar Braz, pardo livre, carpinteiro por profissão. Ele chegou a morar
na Rua Estreita de São Joaquim por seis meses antes de ser detido – ‘por suspeito
de ser escravo’ – ao procurar tomar um vapor de volta para a Bahia, sua terra Natal.
(...). O preto Serafim (...) ao relatar sua fuga de uma fazenda da Província de Minas
para a Corte, contou que viajara sempre a noite, repousando ‘ora numa ora noutra
fazenda, com escravos e ora no mato’. Os escravos, ‘seus conhecidos e até desconhe-
cidos’, lhe davam os mantimentos necessários para a continuação da viagem. Ou
seja, durante a fuga pelas áreas rurais, Serafim tomou todo o cuidado para que não
se tornasse suspeito ou fosse reconhecido como escravo. Na Corte, o preto viveu
pelo menos um ano, talvez até três anos – ele declarava não saber calcular o tempo
–, e foi preso apenas porque se envolveu numa briga com um cocheiro português
e um praça de polícia em janeiro de 1884. As autoridades policiais e judiciárias
só ficaram sabendo da condição de cativo de Serafim a partir das declarações do
próprio preto. Podemos lembrar ainda de negros libertos condicionalmente, como
Desidério e Cristina (...). Vivendo uma situação ambígua, não sendo perfeitamente
livres nem escravos, estes negros pautaram sua conduta na tentativa de se tornarem
livres de fato – o curador de Cristina explicou que ela praticava ‘fatos de plena liber-
dade’, que no caso eram ‘viver só’ e não pagar jornal” (CHALHOUB, 1990, p. 216).

MODOS DE VIVER E DE RESISTIR: VÍNCULOS FAMILIARES E


SOLIDARIEDADES

Nestes contextos espaciais, rurais e citadinos, homens e mulheres afri-


canas e afrodescendentes protagonizaram não só atuações profissionais e de
trabalho, mas também teceram fios relacionais com seus semelhantes. Dessa
maneira, os vínculos elaborados por estes sujeitos imersos em experiências
sociais, encontros e desencontros, constituem suas vivências através de laços
familiares e de solidariedade, além de relações conflituosas durante os séculos
de história brasileira.
Em relação aos vínculos familiares, documentações de época como
registros de batismo e de casamento fornecem dados sobre as populações de
origem africana, escravos e libertos, a estabelecerem laços afetivos e de prote-
ção. Inseridos numa sociedade na qual casamentos, batismos e apadrinhamen-
tos eram normas socialmente dominantes estabelecidas pela Igreja Católica,
estas populações tiveram de se adaptar aos novos contextos, apropriarem-se e
utilizar o que estava posto pela sociedade para criar os seus próprios vínculos
afetivos e familiares.
Entre esses vínculos, os de consanguinidade, resultaram na formação de
famílias nucleares, compostas por pai e mãe; famílias matrifocais, compostas

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

por mãe e filho; e famílias extensas, formadas por pai, mãe e avós. Nos regis-
tros de batismo, as crianças nascidas entre casais unidos sob os preceitos cató-
licos do matrimônio eram consideradas legítimas; as nascidas de uniões con-
sensuais, isto é, do casal unido, mas sem a benção da Igreja, eram naturais; e,
finalmente, as crianças nascidas de mães solteiras eram tidas como ilegítimas
(VENÂNCIO, 1999).
O casamento de escravos, pela doutrina da Igreja, estava previsto nas
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1720, que estabelecia, de
acordo com “o direito divino e humano”, que os escravos poderiam se casar
com pessoas cativas ou livres e seus senhores não poderiam impedir o matri-
mônio “nem o uso dele em tempo e lugar conveniente, nem por esse respeito
os podem tratar pior, nem vender para outros lugares remotos, para onde o
outro, por ser cativo, ou por ter outro justo impedimento o não possa seguir”
(SILVA, 1998, p. 188).
Mesmo com o estabelecimento deste preceito católico e uma pressão
fervorosa por parte das autoridades da igreja para que senhores incentivassem
o casamento entre seus escravizados, o reduzido número de crianças legítimas
de africanos e afrodescendentes escravos, em relação ao percentual de filhos
ilegítimos de mães solteiras, evidencia que essa prática não foi recorrente.
A explicação para este fato, segundo a historiografia, é a de que os
senhores não incentivam o casamento entre seus escravos, pois tal união res-
tringiria seus direitos enquanto proprietários. Em tese, os cativos deveriam
escolher seus parceiros de vida dentre aqueles e aquelas disponíveis na pro-
priedade onde viviam, o que, no caso de pequenas propriedades, poderia ser
dificultado, ao contrário das maiores. Estes limites impostos teriam resultado
em uma tendência à endogamia e numa expressiva presença de famílias nas
propriedades maiores, visto haver maiores chances de se encontrar parceiros
(SLENES, 1987, p. 217-227; MOTTA, 1999).
Se é legítimo considerar a interferência dos senhores sobre o destino
de suas propriedades, o que não poderia ser diferente numa sociedade escra-
vista, por outro lado é possível que as próprias populações de origem africanas
escravizadas, em especial os africanos, não tenham buscado estabelecer seus
vínculos familiares a partir de preceitos católicos. Nesta perspectiva, o prin-
cípio de análise se amplia na medida em que se considera que os mesmos,
em determinados momentos, fizeram escolhas no campo das possibilidades
existentes, e essas eram resultados de sua própria cultura. Talvez isso explique
o reduzido número de casamentos de escravos e ao mesmo tempo a existência

180
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

de um elevado número de mulheres escravas africanas que tiveram filhos,


cujos pais não aparecem nos registros de batismo, o que não significa, porém,
a ausência de relacionamentos.
É preciso considerar também que, apesar de as sociedades africanas
serem marcadas por diferenças no que diz respeito às relações de parentesco
e se apresentarem tanto em formato matrilinear quanto patrilinear e, ainda
outras variantes no interior de uma mesma região, em todos os casos dava-se
fundamental importância à formação da família e ao parentesco, este base-
ado tanto em afinidade quanto consanguinidade (RUSSEL-WOOD, 2001, p.
11-50).
Dentro da vivência e do cotidiano destes homens e mulheres, o espaço
comercial caracterizado pela existência de portos, praças, ruas e becos possuía
muitos trabalhadores escravizados envolvidos em diferentes atividades e, em
determinado momento de suas vidas muitos desses indivíduos se cruzaram
e, mesmo pertencendo a proprietários diferentes, acabaram conquistando ou
ganhando a permissão para constituírem suas famílias.
As experiências de tais homens e mulheres diaspóricos são pontos de
partida para a possibilidade de pensá-los enquanto sujeitos vindos da África,
cujas posturas sociais, costumes e práticas culturais fugiam aos moldes euro-
peus e católicos então desejados pelas classes dominantes.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Capítulo 2 - O Brasil após a Abolição e a inserção social das


populações de origem africana

Willian Robson Soares Lucindo


Karla Leandro Rascke

Neste capítulo temos o objetivo de apontar alguns aspectos das experi-


ências das populações afrodescendentes após a abolição da escravatura e sua
inserção social. Para isso, traremos alguns apontamentos acerca da atmosfera
de expectativas, lutas e projetos pela Abolição, bem como uma discussão breve
sobre o surgimento do campo de estudo pós-Abolição e os espaços que afro-
descendentes ocuparam para fazer intervenções na sociedade. Nos primeiros
anos após o fim da escravidão no Brasil, as populações de origem africana fun-
daram jornais, associações esportivas, culturais e educativas, além de continu-
arem organizados em irmandades religiosas, atividades que trouxeram grande
visibilidade, como é possível notar nas notas de imprensa da época. Entretanto,
o que era nítido – ações e circulação de pessoas de origem africana – é invisível
na construção do conhecimento histórico escolar. Com exceção à Revolta da
Chibata, não existe o protagonismo negro, parece que o branqueamento ven-
ceu e todas as pessoas não brancas foram extirpadas da história do Brasil, ou
uma ideia de que nasceram e morreram sem causar nenhum impacto social.

O FIM DA ESCRAVIDÃO

De acordo com o Código de Posturas de 1845 de Desterro (em Santa


Catarina), “ficam proibidos d’aqui em adiante, os ajuntamentos de escravos,
ou libertos para formarem batuques; bem como os que tiverem por objetos
os supostos reinados africanos, que por festas costumam fazer.”15 A incidência
de ações repressoras às práticas festivas de origem africana já estava manifes-
tada antes, no Código de 1828, mas foram expressas enfaticamente em 1845,
quando outro Império se expandia no Brasil. Havia decorrido pouco tempo da
organização, entre cativos malês (1835) desencadeadora do Levante em Sal-
vador, e a sociedade brasileira vivia sob os medos de novas mobilizações, sem
esquecer os acontecimentos desencadeados no Haiti entre 1792/1804, contra o
sistema escravocrata (RASCKE, 2013, p. 125-126).

15 AHAL/SC. Desterro, Código de Posturas. Lei n. 222 de 10 de maio de 1845.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Uma das ações possíveis, além de intensificar a vigilância policial nas


ruas e impedir a movimentação de cativos sem passe dos senhores, no perí-
odo noturno, foi a repressão às festas, momentos de encontro. Estes encontros,
movidos a danças, músicas, cantos e comidas mobilizavam e identificavam
inúmeros homens e mulheres de origem africana e, aos olhos das elites gover-
nantes, representavam um perigo ao “sossego público”.
Segundo Walter Fraga Filho e Wlamyra de Albuquerque, o século XIX
foi marcado pelo fantasma do “haitianismo” que
atormentou as cabeças de que defendia e inspirou quem atacava
a ordem escravocrata. Muitos críticos da escravidão na primeira
metade do século advertiam que se o tráfico e em seguida a
escravidão não desaparecessem o Haiti poderia repetir-se no
Brasil (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 173).
A Revolução Haitiana em fins
do século XVIII, os movimentos de “Os emancipacionistas, aqueles que
buscavam a libertação gradual e inde-
abolição e a concretização da liber- nizatória de todos os escravos do país,
dade em diversos países da Amé- apesar de um grupo heterogêneo –
rica Latina, contribuíram para uma alguns deles escravocratas perceberam
atmosfera de mobilizações ocorridas ser inexorável o processo de libertação
no Brasil, questionando o regime e buscavam ter a menor perda possível
-, foram os condutores de todo o pro-
escravista e a forma de organização cesso legislativo desde a votação da
da sociedade. A partir disso, pre- lei 2.040, Lei do Ventre Livre, encer-
tendemos explorar de que modo a rou as possibilidades de concessão aos
participação de africanos e afrodes- ‘direitos senhoriais de propriedade’ e
cendentes impactou sobremaneira o libertou, de vez, os escravos restan-
enredo que culminou na Abolição da tes, simples, rápida e definitivamente”
(DAUWE, 2008, p. 16).
Escravatura em 1888.
Várias leis foram criadas, em
especial na segunda metade do século XIX, como mecanismos de abolição
gradual da escravidão, contando com diferentes atores políticos e sociais neste
processo. A partir do final de década de 1860 diferentes crimes, revoltas e fugas
passaram a ocorrer em maiores proporções, ocasionando temores e grandes
mobilizações. Ainda de acordo com Walter Fraga Filho e Wlamyra de Albu-
querque, em 1867,
o imperador [d. Pedro II] encomendou aos seus conselheiros
propostas de extinção do trabalho escravo. Na ocasião, os
conselheiros elaboraram um projeto de emancipação que previa

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

a libertação dos filhos das escravas e a criação de um fundo


para custear a compra da liberdade (ALBUQUERQUE; FRAGA
FILHO, 2006, p. 176).
Em 1871 aprovou-se a Lei
“Até 1871, a alforria era, tal como as de 28 de Setembro ou Lei do ventre
relações entre cativos e proprietários, Livre, ou ainda denominada Lei Rio
considerada uma questão privada,
cabendo ao senhor decidir se devia ou Branco. Tal Lei contemplava alguns
não concedê-la e em que condições. direitos que na prática quotidiana já
(…) aconteciam, a exemplo da compra da
Ao retirar parte das prerrogativas carta de alforria por meio de pecúlio.
senhoriais sobre o escravo, garantindo- No entanto, a nova Lei em vigor per-
-lhe o direito à alforria por outros meios
mitiu ao escravizado acionar a justiça
que não os puramente derivados da
relação pessoal com o senhor, essa Lei caso o senhor se recusasse a conceder
abriu caminho para as disputas judi- sua alforria, como também criou um
ciais, as solicitações de arbitramento e fundo de emancipação que “libertava
à libertação pelo Fundo de Emancipa- os cativos com dinheiro proveniente
ção” (DAUWE, 2008, p. 29-33). de impostos sobre a propriedade
escrava” (FRAGA FILHO; ALBU-
QUERQUE, 2006, p. 177), tornou obrigatória a matrícula de escravizados e
libertou os filhos de mães escravizadas a nascer a partir daquela data. A Lei
abriu novas expectativas com relação a possibilidades de acesso à liberdade.
Interessante perceber, a partir de associações fundadas por afrodescen-
dentes nas décadas seguintes à Abolição, comemoravam as datas de leis eman-
cipatórias e de personalidades importantes no processo abolicionista. O dia 28
de setembro, por exemplo, tornou-se o dia da Mãe Negra, relembrando que
em 1871 foi garantido por lei que as crianças nascidas de ventres de mulheres
escravizadas seriam consideradas livres. E, entendiam os afrodescendentes,
que com isso as mulheres cativas deixaram de serem meras progenitoras para
se tornarem mães, porque podiam de
fato criar suas crianças. Os jornais No dia 28 de setembro comemora-se o
paulistas destinados às populações Dia da Lei do Ventre Livre. Esta data é
afrodescendentes, então, todo mês significativa para o contexto histórico e
de setembro traziam especiais sobre social do Brasil, afinal, garantiu liber-
dade aos filhos das mulheres escravi-
as mães, mulheres africanas, suas zadas que nasceram a partir de 1871.
descendentes, na condição de escra- A medida seguiu os passos de outras
vizadas, no período republicano. ações e pressões para a Abolição, em
1988.

186
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Retornando ao debate sobre


“Para Rebouças a luta contra a escra-
as Leis e as expectativas em torno vidão não podia ser desligada da luta
da Abolição, diferentes intelectuais pela cidadania dos ex-escravos e de
de origem africana estiveram envol- seus descendentes” (FRAGA FILHO;
vidos nos movimentos pelo fim ALBUQUERQUE, 2006, p. 184).
da escravidão. Luiz Gama, José do
Patrocínio, André Rebouças e Cas-
tro Alves constituem exemplos significativos de intelectuais engajados nos
movimentos abolicionistas. Diversas eram as perspectivas dos abolicionistas
e também suas formas de atuação, e resolver o “problema da escravidão” era
necessário.
Surgiram a partir do final de década de 1860 muitas associações aboli-
cionistas, em especial na Bahia, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul. As
associações dos demais estados surgiram apenas nas décadas seguintes, prin-
cipalmente nos idos de 1880, quando as pressões estavam maiores.
No dia 27 [de janeiro de 1880], quando o navio mercante Pará
ancorou no porto de Fortaleza, vindo do Norte para embarcar
um grupo de escravos, os jangadeiros se recusaram a transportá-
los até o navio.
Os jangadeiros eram liderados por Francisco José do Nascimento
e João Napoleão, ambos ex-escravos. Na ocasião, a polícia
ameaçou reprimir o movimento, mas terminou recuando diante
da multidão que se aglomerou no cais do porto. A multidão
começou a gritar: ‘No porto do Ceará não se embarcam mais
escravos’. Naquele mesmo ano, apesar das tentativas dos
traficantes de escravos de subornar os jangadeiros, o tráfico foi
completamente extinto nos portos de fortaleza (FRAGA FILHO;
ALBUQUERQUE, 2006, p. 177).

“Depois de 1885, as fugas coletivas se sucederam em várias regiões do país. (…)


Essas fugas coletivas são consideradas o maior movimento de desobediência civil
de nossa história. Nos anos que antecederam a abolição, a polícia havia perdido o
controle diante do volume de fugas e muitos policiais começaram a se recusar a
perseguir escravos fugidos, ou por terem aderido ao abolicionismo, ou por teme-
rem a reação popular nas ruas” (FRAGA FILHO; ALBUQUERQUE, 2006, p. 192).

Consolidou-se um clima de mobilização em diferentes âmbitos e espa-


ços agitando o regime escravista instituído. Estratégias e resistências do quo-
tidiano tomaram proporções amplas e espalharam-se de forma generalizada

187
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

na década de 1880. Crimes, fugas coletivas, aquilombamentos, furtos e tan-


tas outras formas de desobediência ao sistema sucederam em várias regiões
e levaram temores a autoridades, senhores e todos que ainda estavam condi-
zentes com a vigência da escravidão. Pouco a pouco via-se que a Abolição não
tardaria a ocorrer...
A questão então não envolvia mais as disputas por melhores condições
de vida e de trabalho no cativeiro, mas o fim deste cativeiro e o alcance da
liberdade, bem como a consolidação de projetos de vida, distantes da escravi-
dão. A busca era por cidadania, direitos, acesso à terra, possibilidades de andar
livremente, acessar as letras, poder desenvolver suas formas de religiosidade,
enfim, viver a vida em liberdade...
Diversas foram as preocupações desses ex-cativos e suas formas de
organização quando alcançaram a liberdade. A educação e os processos de
escolarização compunham repertório importante para a mudança na situação
de exclusão das populações de origem africana no pós-Abolição, importando
neste sentido, um distanciamento com a antiga condição cativa, vínculo com
a escravidão passada.
Neste sentido, muitas associações beneficentes, irmandades, clubes
sociais negros, escolas de samba e demais espaços criados por afrodescenden-
tes pensavam o acesso às letras como forma de ascensão social e melhores
condições de vida.

“No dia 13 de maio [de 1888] mais de 90 por cento dos escravos brasileiros já
haviam conseguido a liberdade por meio das alforrias e das fugas. Entretanto, a
destruição da escravidão foi um evento histórico de grande importância e marco
fundamental na história dos negros e de toda a população brasileira. Foi uma notá-
vel conquista social e política. Mas é preciso perceber como os ex-escravos bus-
caram viabilizar suas vidas após a abolição” (FRAGA FILHO; ALBUQUERQUE,
2006, p. 196).

Observarmos os projetos dos libertos, “sua visão do que seria a liber-


dade, os significados deste conceito para a população que iria, finalmente,
vivenciá-la, e não apenas para os que o definiram nos diferentes momentos
do processo de emancipação” (MATTOS, RIOS, 2004, p. 173). Assim, pensar
as décadas seguintes à escravidão implica perceber expectativas, a busca por
cidadania, projetos de vida e movimentações em torno de consolidações de
espaço, atuação política e melhores condições de existência.

188
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

O PÓS-ABOLIÇÃO: ESTRATÉGIAS, EXPECTATIVAS E PROJETOS

Não nos enganemos: a imagem que


fazemos de outros povos, e de nós mesmos,
está associada à História que nos ensinaram
quando éramos crianças. Ela nos marca para o
resto da vida. (Marc Ferro, 1983)

A frase de Marc Ferro é importante para pensarmos como a história


ensinada em nosso cotidiano escolar produz e reproduz visões negativas sobre
as populações não brancas, como a invisibilidade retira de africanos e indíge-
nas sua importância na formação da nossa sociedade, ou os coloca em uma
situação de subalternização eterna.
Um dos temas pouco trabalhados (e até mesmo inexistente) na educa-
ção básica brasileira é o destino das populações de origem africana após o 13
de maio de 1888. A historiografia tradicional e os livros didáticos, geralmente,
tratam a Lei Áurea como uma lei inexpressiva, feita para atender os anseios
da Inglaterra e do movimento abolicionista. Como nesta interpretação não há
uma discussão sobre os projetos elaborados para pôr fim ao cativeiro, também
não estão contempladas a participação e percepção das populações cativas e
libertas sobre o processo de abolição da escravatura, e a proclamação da Repú-
blica é o grande acontecimento do final do século XIX. O término da socie-
dade escravista inaugura a sociedade pautada pelo trabalho livre, em conjunto
com a política de imigração, e os trabalhadores europeus ficam marcados nos
primeiros anos da Primeira República, a massa de trabalhadores nacional é
ignorada pelos livros didáticos, que pouco problematizam o branqueamento
da política imigratória.
Isso é consequência de uma interpretação histórica que não compre-
endia a experiência escrava como algo presente na sociedade escravista. Os
estudos usados por livros didáticos, geralmente, se baseiam no entendimento
de que vontades e ações de escravizados eram reflexos do que desejavam os
seus senhores. Nesta visão, não havia nenhum tipo de autonomia escrava,
nem mesmo em seus pensamentos. Desta forma, todo processo abolicionista
foi visto de cima para baixo, em que expectativas e atitudes de escravizados
não estão contemplados. A consequência historiográfica dessa interpretação é
uma análise da Abolição como um não-fenômeno ou de menor importância,
que não pôde trazer mudanças concretas para a sociedade brasileira (RIOS;

189
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

MATTOS, 2005, p. 21). O campo de estudo pós-Abolição surge como contra-


ponto a essa interpretação histórica.
A preocupação com a sociedade escravista surgiu de uma tentativa
de explicar a dificuldade das populações afrodescendentes em se integrar ao
mundo do trabalho livre. Florestan Fernandes é um expoente dos estudos sobre
relações raciais na Primeira República. Para ele, a desigualdade entre negros e
brancos não é única e exclusivamente de caráter socioeconômico, sendo vin-
culada, também, ao aspecto racial. O preconceito racial seria um dos antigos
hábitos da sociedade escravista, que ajudava no favorecimento dos imigrantes
na busca pelos postos de trabalho e, quando imigrantes e afrodescendentes
disputavam trabalhos, faltavam aos últimos “coragem para ocupar posições
degradantes” e capacidade “para fomentar poupança”, qualidades que não fal-
tavam às populações imigrantes, que, por isso, conseguiram “eliminação dos
negros” dos postos de trabalho. Na sua visão, também era um problema a falta
de políticas em favor de ex-cativos e seus descendentes, deixados à “sua pró-
pria sorte”, responsáveis por si mesmos “embora não dispusesse[m] de meios
materiais e morais para realizar tal proeza” (FERNANDES, 1965, p. 1-5).
A construção histórica de disputa entre imigrantes europeus e afrodes-
cendentes por postos de trabalho nas primeiras décadas após a Abolição foi
explorada por outros pesquisadores. José de Souza Martins teorizou esses anos
como um momento de transição e substituição de mão de obra de origem
africana para a de origem europeia. Ele também diferencia a história da escra-
vidão da história do trabalho, uma vez que em seu entendimento o primeiro
sistema funcionava através de um trabalho irracional, sem que fosse possível
construir entre a mão de obra uma subjetividade (MARTINS, 1979).
Silvia Hunold Lara, ao problematizar a relação da história do trabalho
e a escravidão, aponta que na mesma medida em que as populações escra-
vizadas foram excluídas dessa historiografia, também os cativos beneficiados
pela Abolição e seus descendentes deixaram de ser discutidos e tematizados,
porque após o 13 de maio de 1888 o que importa para essa historiografia é a
ocupação dos imigrantes.
A partir da década de 1970, surgiram na historiografia da escravidão
estudos que passaram a considerar o sujeito escravizado como alguém por-
tador de vontades, expectativas, entendimento próprio do mundo, que eram
frutos de sua experiência em cativeiro. Com essa revisão, que colocou a pers-
pectiva escrava no foco de pesquisa, foi possível pensar novos problemas e
abordagens para o pós-Abolição.

190
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Quando se entende que uma pessoa escravizada planeja sua vida,


naquilo que é possível planejar, é plausível interrogar: quais as expectativas
dela em relação à abolição da escravatura? Assim, muitas pesquisas analisam
os destinos de ex-escravizados e seus descendentes, os projetos que foram for-
mulados por e/ou para elas, suas manifestações culturais, relações sociais, ou
seja, a complexa dinâmica das relações e dos conflitos da sociedade pós-escra-
vista, que emergiram marcadas pela escravidão (FRAGA FILHO, 2006, p. 21).
O pós-Abolição reavaliou a “herança escravista”, que continua impor-
tante, mas a situação das populações afrodescendentes deixou de ser resultado
pura e simplesmente desta “herança”. Segundo Hebe Mattos e Ana Lugão Rios,
O ponto de partida [dos estudos do pós-Emancipação] foi
a percepção de que a construção das identidades raciais
negras nas Américas não se fez como contrapartida direta da
violência intrínseca à ordem escravista. Trata-se de reconhecer
que o processo de destruição da escravidão moderna esteve
visceralmente imbricado com o processo de definição e
extensão dos direitos de cidadania nos países que surgiam das
antigas colônias escravistas. E que, por sua vez a definição e o
alcance desses direitos estiveram diretamente relacionados com
uma contínua produção social de identidades, hierarquias e
categorias raciais. Nesse sentido, a historicidade das identidades
e classificações raciais tornou-se questão central para o
entendimento dos processos de emancipação escrava e das
formas como as populações afrodescendentes e as sociedades
pós-emancipação lidaram culturalmente com os significados da
memória do cativeiro (RIOS; MATTOS, 2005, p. 21).
Deste modo, a desestruturação do sistema escravista aponta para aspec-
tos complexos da sociedade após o término da escravidão. Ela atenta para
a manutenção de antigas formas de dominação, em conjunto com outros
mecanismos, criados para manter privilégios e excluir determinados grupos.
Para os estudos de pós-Abolição, é importante analisar como as populações
afrodescendentes se relacionaram com os projetos de cidadania, como foram
absorvidas ou não, as táticas para se inserirem, os projetos de vida que cons-
truíram para si.

AS ASSOCIAÇÕES BENEFICENTES

Um bom foco de estudo do pós-Abolição é a formação de agrupamen-


tos de afrodescendentes, como as associações beneficentes e as irmandades,

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

porque foram, junto com os jornais, lugares usados pelas populações afrodes-
cendentes para intervir na sociedade nos primeiros anos de República em todo
o país. Através de seus estatutos e notícias, é possível notar a preocupação que
tinham com a educação, o sentimento de solidariedade, a busca pela ascensão
social e que seus membros se consideravam participantes de uma elite entre os
afrodescendentes, apesar de muitas vezes ter significado somente que possu-
íam uma ocupação remunerada.
Os membros das sociedades beneficentes, jornais e irmandades repre-
sentavam uma minoria entre as populações afrodescendentes, constituindo
lugares de gestão autônomas, onde buscaram construir laços de solidariedade,
identidades coletivas e mecanismos de ascensão social. Enquanto as irmanda-
des religiosas foram fortes expressões desde o período colonial, na República
as sociedades beneficentes surgiram com força em boa parte do território bra-
sileiro, a maioria delas ficou conhecida como sociedades recreativas por conta
das atividades lúdicas que tiveram maior adesão de sócios. Seus membros
eram considerados como uma elite, mas que economicamente se distinguiam
por terem uma ocupação fixa e participarem do mundo letrado, na maioria
das vezes. Compartilhavam dos valores e ideais das classes dominantes e luta-
ram contra a discriminação se afastando de posturas indesejadas pelas elites,
as quais poderiam reforçar os estereótipos.
Desta forma, a ação dos associados nas ruas era tão importante, quanto
nos eventos organizados pelas sociedades beneficentes. Os afrodescendentes
letrados buscavam o respeito do restante da sociedade, tentavam incorporar
os valores das classes dirigentes e agir a partir deles, desarmando argumen-
tos negativos sobre as maneiras de ser das populações de origem africana. As
roupas, as danças e os comportamentos precisavam ser vigiados para que nin-
guém pudesse falar algo contra a sociedade e seus associados.
Porém, a luta contra a discriminação não se limitava ao comportamento.
A convivência passava também pela instrução e educação, por isso espaços
destinados à leitura e ao estudo são objetivos presentes nos diferentes esta-
tutos. Na Sociedade Recreativa União Operária de Laguna/SC, aponta Júlio
Cesar da Rosa que seus fins era:
a) Proporcionar reuniões dançantes ou quaisquer outras festas
em que se reúnam amistosamente os sócios e seus familiares;
b) criar uma sessão de leitura variada e instrutiva para seus
sócios fazendo aquisições de jornais, livros e revistas boas; c)

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

intensificar e desenvolver-se por todos os meios ao seu alcance


os serviços de assistências sociais. (ROSA, 2011)
Uma das primeiras associações fundadas na cidade de São Paulo com
esse caráter era o Club 13 de Maio dos Homens Pretos, de 1902, e no seu esta-
tuto informava que, além de festejar a data da Abolição da escravatura, era seu
objetivo criar escolas noturnas e diurnas, assim que seus fundos permitissem.
Não há informações que este clube tenha conseguido criar uma sala de aula,
mas um de seus membros fundadores, Ignácio Amorim, tornou-se diretor do
Centro Cívico Palmares, no final da década de 1920, e emprestou sua casa para
servir de espaço de instrução, enquanto construía a nova sede em seu terreno.
Em um momento conturbado da história deste centro, a obra foi criticada por
conta do custo e de sua necessidade. Para se defender Amorim foi até a sede do
Clarim d’Alvorada, um dos jornais mais importantes entre os afrodescendentes
paulistas, e contou sobre sua história de luta desde a fundação do clube, pas-
sando por um pequeno periódico e sempre com o mesmo objetivo: instruir as
populações afrodescendentes.
A preocupação com a educação não aparece só nas sociedades benefi-
centes do início do século XX. Perses Cunha, em sua dissertação, aponta para
a existência de um curso de alfabetização na Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos de Florianópolis, em 1859
(CUNHA, 2004, p. 09). Na cidade de Campinas outra irmandade teve uma
experiência educativa importante, em 1892 a Irmandade de São Benedito dos
Homens Preto fundou uma escola em anexo à capela do santo protetor. A
escola foi obrigada a sair das dependências da Igreja quando se iniciou no Bra-
sil o processo de romanização do catolicismo, mas seus responsáveis consegui-
ram manter suas atividades educativas até meados dos anos 1940. Na cidade
de São Paulo, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Preto foi
criada em 2 de janeiro de 1711 e manteve, pelo menos na primeira metade do
século XX, uma escola regular para os seus irmãos.
A questão do acesso às letras e das implicações do conhecimento desta
ferramenta de poder, também era uma das preocupações da Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito de Desterro/Florianópolis (SC),
abrangendo o ensino da escrita aos associados, em especial aos filhos dos asso-
ciados pobres. Em 1859, a Irmandade organizou um curso destinado aos filhos
de associados, que ensinaria a ler, escrever e aprender as funções básicas mate-
máticas.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Que se fundasse na Sacristia da Capela da Confraria uma


escola de ler, escrever e contar as quatro espécies fundamentais
d’aritmética a filhos de irmãos pobres, que se achassem quites
com seus anuais; e isto até o número de vinte, ficando ficando
salvo ao respectivo Mestre receber mais alguns por ajuste
particular com os respectivos pais, ou superiores; e que este
mestre, que ficaria sob a imediata inspeção do Procurador da
Irmandade, fosse praticado com o mínimo de cem mil reis
anuais pagos mensamente16.
O debate ocorrido no consistório da associação durante a reunião de
04 de julho de 1859 indica a importância atribuída pela Irmandade à escolari-
zação. Os irmãos pobres, muitos deles cativos, aos quais se refere o discutido
em ata, teriam a possibilidade de encaminhar seus filhos à escola, em especial
para aprender a ler e escrever. Podemos inferir que, além dos filhos dos irmãos
pobres, os próprios membros, em contato com a escrita apreendida por seus
filhos, teriam acesso a novas oportunidades, inclusive conhecer este universo
letrado que se expandia com a República.
Também o Compromisso/Estatuto da Irmandade, aprovado em 1905
destacou a educação como ponto importante. Uma das preocupações mar-
cantes na virada do século era o conhecimento da escrita e da leitura. De certo
modo, o fato de desconhecer estes códigos de comunicação, implicava exclu-
sões, não apenas na sociedade republicana, do pós-Abolição, mas dentro da
própria Irmandade, onde alguns cargos exigiam estes conhecimentos e envol-
viam disputas por status.
Talvez, aprender a ler e a escrever tenha sido uma resposta à Igreja
Católica que pretendia controlar todos os passos das irmandades, em espe-
cial no final do século XIX e início do XX. Assim, não apenas “homens bran-
cos” teriam poder de registro escrito em atas e prestações de contas, mas os
“homens pretos”, sujeitos atuantes quotidianamente na associação, poderiam
expressar pontos de vista e argumentações a partir da escrita, da linguagem
formal. Uma linguagem combatente diante das tensões envolvendo a Igreja
Católica, os governos e órgãos públicos que, durante este período de reformas
urbanas viam a Irmandade enquanto problema, símbolo de práticas permea-
das por códigos culturais afros, cujos hábitos e marcas nos corpos expressavam

16 Ata de 04 de julho de 1859. Livro Ata 1 (1816-1861), p. 181 v. Acervo da Irmandade de


Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

um passado escravista não condizente com os objetivos da República – pro-


gresso, modernização, higiene, reformas, etc.
Segundo Marta Maria Chagas de Carvalho, nos anos finais da década de
10 do século XX quem não dominava as primeiras letras estava marcado como
inapto, produzindo, “assim, um deslocamento no discurso educacional: um
novo personagem irrompe, um brasileiro doente e improdutivo, peso morto a
frear o Progresso, substitui a figura do Cidadão abstrato, alvo das luzes esco-
lares” como foi pensado desde a ascensão do pensamento republicano no país
(CARVALHO, 2003, p. 35). Assim, oferecer a instrução elementar significava
aproveitar as potencialidades de pessoas que se sentiam desgraçadas, devolver-
-lhes a autoestima e fazer com que fossem vistas de forma respeitosa.
O reconhecimento do estado de pobreza econômica dos afrodescen-
dentes, o qual seria, ao mesmo tempo, causado e agravado pelo analfabetismo,
fazia com que os afrodescendentes letrados exigissem uma ação conjunta de
si pela formulação de espaços de ajuda mútua, evocando os deveres cívicos de
contribuir com a pátria e a dívida com os abolicionistas. O fracasso das socie-
dades beneficentes fez com que os grupos de letrados buscassem novas formas
de associações, que não valorizassem o lúdico mais do que o instrutivo, em
alguns casos que se rejeitasse o primeiro em favor do segundo.
Mas, a intenção de diminuir os espaços de recreação ou até eliminá-lo
dos objetivos da associação, nunca significou o rompimento do grupo de letra-
dos com as sociedades beneficentes, pelo contrário, mantiveram-se sempre no
mesmo círculo de atividades. O que se tentou foi criar métodos para alcançar
os objetivos comuns.
As diferentes associações tentavam que seus associados integrassem a
sociedade brasileira e o seu processo de desenvolvimento tão divulgado pelos
republicanos. Mas, ao mesmo tempo em que tentaram se parecer com as clas-
ses dirigentes, incorporando valores, regras, maneiras de interpretar o mundo,
os afrodescendentes disputaram a memória nacional, tentando colocar nas
comemorações cívicas elementos que os lembrariam e, assim, tornar essa
sociedade mais parecida com eles. Em seus jornais, é possível notar o esforço
em transformar José do Patrocínio e Luiz Gama em patronos da Abolição,
disputando lugar com a princesa Isabel.
Repensar memórias sobre a Abolição e atentar para os desejos dos liber-
tos em acessar terras, não serem mais tratados como cativos e poderem sonhar
com ascensão social constituiu planos e muitos fazeres de homens e mulheres
de origem africana em condição de liberdade.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

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2005.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Capítulo 3 - As populações de origem africana em Santa Catarina


Tamelusa Ceccato do Amaral
Karla Leandro Rascke

Por muito tempo, em nossa História, houve um silêncio sobre as popu-


lações de origem africana em Santa Catarina. Justificava-se que a escravidão e
a presença de africanos e afrodescendentes era insignificante, se comparada ao
sudeste do Brasil, onde a escravidão era a base da economia. Para os autores
que incluíram o tema em seus escritos, o objetivo era apontar o que a história
da escravidão aqui tinha ou não em
Plantation é um sistema agrícola comum com as regiões das grandes
caracterizado pela monocultura para plantations, explicando os dados
exportação. incomuns através de uma lista de
peculiaridades regionais.
De acordo com estes historia-
dores - como Walter Piazza, Oswlado Rodrigues Cabral, Fernando Henrique
Cardoso e tantos outros -, a então Província de Santa Catarina não possuía
produtos agrícolas que pudessem mover sozinhos a economia local. A produ-
ção agrícola era de subsistência, portanto, não havia a necessidade de muitos
trabalhadores em regime de escravidão e os poucos africanos cativos eram
ocupados basicamente no serviço
doméstico ou no ganho.
Denomina-se ganho, uma forma
A escolha da Ilha de Santa específica de exploração de africanos
Catarina como base militar e como e afrodescendentes cativos na qual os
ponto de apoio para o povoamento mesmos circulam pela cidade, vilas e
do sul do Brasil é outra particulari- povoados em busca de trabalho, tendo
dade, e provocou alterações no modo apenas a obrigação de pagar periodi-
de vida de Desterro, modificando a camente um valor estipulado ao seu
senhor.
base demográfica da ilha e o sistema
de ocupação da população.
Na perspectiva de mobilizar memórias e histórias a respeito de Santa
Catarina, em especial em torno de Desterro/Florianópolis, capital da provín-
cia/estado, esperamos que a visão existente sobre a baixa produção para expor-
tação e o “pequeno” número de cativos na região seja questionada, problema-
tizada.

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Procuramos, ainda, visibilizar experiências das populações de origem


africana em Santa Catarina, tendo em vista, que o “esquecimento” em relação
à memória e história destas pessoas é ideológico e articulado a projetos insti-
tucionais hegemônicos. Na historiografia catarinense, pelo menos na gama de
produções historiográficas tradicionais e clássicas sobre nosso estado, até os
anos de 1990 – praticamente -, é perceptível a ausência de estudos e publica-
ções referentes às experiências de africanos e afrodescendentes. Segundo Ilka
Boaventura Leite, a historiografia local não é o único fator responsável pela
invisibilidade dos afrodescendentes em nosso estado, pois os meios de comu-
nicação de massa também divulgam, anualmente, através das festas locais, a
imagem de um estado branco, voltado para a visibilidade das culturas de ori-
gem europeia, negando assim a presença destas culturas e memórias de origem
africana (LEITE, 1996, p. 233-236).

COTIDIANO E TRABALHO NO SÉCULO XIX

No século XVIII, contingentes militares foram transferidos para a Ilha


de Santa Catarina, levando consigo suas famílias, que passaram a conviver
com os agricultores e pescadores que ali viviam. Desterro recebeu também,
uma grande leva de populações lusas oriundas dos arquipélagos de Açores e
Madeira. Os “colonos” recrutados eram, em grande parte, camponeses, que
recebiam lotes coloniais pequenos e mal distribuídos.
Em análise sobre o aproveitamento do africano e afrodescendente em
cativeiro em Santa Catarina, Fernando Henrique Cardoso identifica como
setores básicos da economia da Ilha, na segunda metade do século XVIII, a
pesca, a agricultura e a pequena indústria rural e o comércio e pequeno arte-
sanato urbano. Dessas atividades, a que trouxe maior inversão de capital e
que teve maior complexidade na organização do trabalho foi o da pesca da
baleia. No auge de sua exploração pescava-se até 400 cachalotes por tempo-
rada, empregando-se cerca de 200 trabalhadores em cativeiro por unidade de
beneficiamento.
Na primeira metade do século XIX, a pesca da baleia sofreu uma intensa
crise e a produção entrou em colapso. Isso ocorreu, principalmente, devido à
deficiência de técnicas adequadas para a disposição das armações e a concor-
rência de baleeiros estrangeiros que dispunham de maiores recursos. A pesca
comum, por sua vez, continuou a ser exercida durante todo o século XIX,
desempenhando papel de certa importância na economia catarinense.

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Figura 1 – Mercado Público antigo, construído em 1855 e demolido em


1898 (Desterro/Florianópolis).

Fonte: APESC – Arquivo Público do Estado de Santa Catarina.

Desterro/Florianópolis, até fins do século XIX, esteve voltada para as


atividades portuárias: a comercialização de farinha de mandioca, água ardente
e de outros produtos vendidos para outros estados ou para o exterior; os tra-
balhadores envolvidos na atividade marinha, a pesca, os marinheiros. O porto
sempre foi lugar de trocas comerciais e também culturais, uma espécie de
janela “para o mundo” (CARDOSO, 2004, 2008; MALAVOTA, 2007; HÜBE-
NER, 1981). A imagem (Figura 1) do Mercado Público, nas proximidades do
Porto, permite perceber a circulação de pessoas, produtos e vivências.
Era através do porto que o abastecimento da população se concretizava,
além da ligação estabelecida com outras regiões. As articulações entorno do
porto possibilitaram o acúmulo de riquezas “criando uma próspera classe de
comerciantes, armadores e agenciadores de navios” (PEDRO, 1995, p. 37). No
entanto, em fins do século XIX as atividades portuárias tiveram um período
de decadência em atuação e importância. Nas primeiras décadas do século XX
o porto deixa de ser o centro das atividades. Entretanto, as atividades em volta
do Mercado se mantêm atuantes.
Com a derrocada da pesca da baleia, a economia catarinense baseou-se
na produção agrícola e nas atividades do porto de Desterro. A produção de

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farinha de mandioca manteve-se constante e com considerável ascensão na


produção, sem grande mudança no quadro de produtos da agricultura catari-
nense durante o século XIX, sendo este composto basicamente de mandioca,
milho, feijão, arroz, café, legumes, cana-de-açúcar e algum algodão.
O porto de Desterro foi o mais importante da Província, e criou uma
próspera classe de comerciantes, armadores e agenciadores de navios, especial-
mente, em meados do século XIX. Mesmo não tendo um movimento tão sig-
nificativo em relação ao Brasil, de forma geral, foi devido ao porto que a cidade
urbanizou-se. Em função dele, surgiram vários estabelecimentos comerciais,
promoveu o aparecimento de hotéis, estalagens, pensões, restaurantes, como
também de um comércio ambulante de comidas nos trapiches e ruas centrais.
Em outras localidades da província, para além de Desterro, muitos
homens e mulheres de origem africana também marcaram presença e consti-
tuíram elementos culturais nas regiões onde se encontravam. A atuação des-
tes africanos e de seus descendentes, principalmente daqueles em condição
de cativeiro, voltou-se a trabalhos de diversos tipos, de acordo com as neces-
sidades de expansão e desenvolvimento do estado. A abertura de estradas, o
trabalho em portos, os serviços domésticos, o trabalho na pesca, na estiva, na
agricultura, na pecuária, na produção de chapéus e sapatos, entre outros dife-
rentes ofícios desempenhados por populares de origem africana, sendo muitas
destas profissões exercidas também após a Abolição.
Nos últimos vintes anos, muitos estudos sobre as populações de origem
africana foram realizadas por diferentes áreas do conhecimento, porém, ainda
se fazem necessárias investigações sobre a presença africana e de seus descen-
dentes em Santa Catarina, já que muitos são os vestígios dessa existência, ativa,
cultivadora e formadora das experiências e vivências catarinenses, o que nem
sempre aparece nos materiais de conservação da memória, jornalísticos, da
historiografia ou literários do estado. A presença de expressivas comunidades
quilombolas, territórios negros urbanos e do samba e escolas de samba, pare-
cem contradizer a imagem de Europa tropical que insiste ser divulgada como
o diferencial de nosso estado.

IRMANDADES E CACUMBIS

Sabemos de investigações sobre as festas do Rosário na Penha, em Tiju-


cas, em São José, em Laguna, em Desterro/Florianópolis, em Itajaí, Lages,
Balneário Camboriú e, muito provavelmente outras centenas de cidades

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

vivenciaram as manifestações festivas de povos africanos ou afrodescendentes.


Trata-se de estudos circunstanciados, distante do grande público e das agên-
cias governamentais que pensam as políticas públicas educacionais, turísticas
e culturais. No presente capítulo pretendemos indicar alguns destes avanços,
ao passo que ainda há muito para ser pesquisado, em diferentes temas e áreas
do conhecimento.

A coroação de rei e rainha na Irmandade do Rosário de Desterro/Florianópolis


ocorreu até o ano de 1842 quando, a partir de um novo Compromisso, a Irman-
dade deixou de ter estes cargos. Além da extinção dos cargos, quem sabe até por
alguma proibição da Câmara Municipal ou da Assembleia do Estado, pois quase
uma década depois, a Irmandade encaminhou um pedido à Assembleia para poder
voltar a realizar seus reinados, com coroação de rei e rainha, visto que a proibição
diminuiu as arrecadações da associação e a participação de seus associados. O
pedido foi recusado (RASCKE, 2013).

As Irmandades surgiram por volta do século XV na Europa e no Brasil,


a partir do século XVI temos relatos dessas manifestações religiosas. No caso
das irmandades organizadas por africanos/as e seus descendentes, as primeiras
organizações são do século XVII, quando surgiram as Irmandades de Nossa
do Rosário dos Homens Pretos, fundadas por africanos. Há muitos trabalhos
sobre o tema das irmandades de origem africana no Brasil e, para este tra-
balho, levantaremos alguns apontamentos sobre estas organizações em Santa
Catarina, em especial Desterro/Florianópolis, São José, Laguna, Penha e Tiju-
cas, sobre os quais há produção existente e que permite compreender melhor
o funcionamento dessas instituições leigas, criadas e geridas por homens e
mulheres de origem africana.
Estas Irmandades passavam
pelas instâncias da Igreja para apro- O Compromisso ou Estatuto de uma
vação, mas eram mantidas, organi- Irmandade indica os objetivos da asso-
zadas e administradas pelos Irmãos ciação e os artigos que a gerenciam,
leigos, compostos numa Mesa possuindo orientações sobre associa-
Administrativa. Além da finalidade dos, festividades, funerais, formas de
religiosa impressa nas irmandades, arrecadação de fundos, etc.
tinham função social, auxiliando na
resolução de problemas econômicos, prestando assistência em caso de doen-
ças ou desamparo e pobreza (SCARANO, 1978).

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

No caso da Irmandade de Nossa do Rosário de Desterro/Florianópolis,


seu surgimento data do século XVIII, muito antes do primeiro Compromisso
da associação, que data de 1750 (SIMÃO, 2008; STAKONSKI, 2008). A cons-
trução da capela durou muito tempo e empenho. A primeira construção data
do século XVIII e foi feita em madeira, sendo quase toda destruída pela Inva-
são Espanhola ocorrida na Ilha de Santa Catarina em 1777. Após o episódio,
a Irmandade organizou-se para a construção de uma nova capela, obra que se
estendeu por longos anos, afinal eram os próprios irmãos, grande parte deles
cativos, que em seus dias de folga ou feriados, erguiam paredes, carregavam as
pedras, pintavam com o cal. Enfim, quase trinta anos de obras (SIMÃO, 2008;
RASCKE, 2013). Todavia, os reparos foram sempre constantes, afinal não ape-
nas as Posturas Municipais exigiam melhorias, mas os membros da Diretoria
(Mesa Administrativa) esforçavam-se para apresentar positivamente a capela
à comunidade.
Como muitas outras associações, a Irmandade do Rosário de Floria-
nópolis aderiu à imagem de São Benedito em seus cultos e devoção, sendo o
santo incorporado ao nome da Irmandade e às suas práticas. Assim, era pos-
sível vislumbrar nas ruas da região central, procissões festivas em homena-
gem aos padroeiros, encontros celebrativos para coroação de rei e rainha do
Rosário (até 1842), momentos de cantoria até o cemitério (antigamente, até a
construção da Ponte Hercílio Luz, o cemitério era na região onde se situa hoje
a cabeceira da Ponte) onde seria sepultado o corpo de um membro falecido da
associação.
Na Irmandade do Rosário dos Homens Pretos de São José, vizinha à
Desterro/Florianópolis, as comemorações com coroação de Rei e Rainha
foram mantidas por mais tempo, afinal, talvez as proibições das autoridades
municipais tenham ocorrido de modo diferente e em período posterior. Loca-
lizada no alto de um morro, nas proximidades do chamado Centro Histórico
hoje, a capela movimentou Irmãos e Irmãs e também as ruas da cidade, com
suas procissões, coroações, arrecadação de esmolas (doações de dinheiro para
a “bolsa” da Irmandade para as festas) (SILVA, 2011).
Muitas irmandades organizaram seus festejos até o século XX, mas a
maioria deixou de coroar reis e rainhas já no século XIX, quando as posturas
municipais intensificaram as cobranças sobre tais associações e proibiram a
coroação, em especial em praça pública, como aconteciam.
Interessante que as comemorações também compunham atividades
do cacumbi, manifestação de origem africana existente no Brasil há séculos,

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

permeada por devoção, enredos e músicas. Muito presente em estados como


Espírito Santo, Rio de Janeiro, Sergipe, Rio Grande do Sul, Bahia e Santa Cata-
rina, por exemplo. Com denominações que podem ser um pouco diversas na
escrita e pronúncia, os termos cacumbi, quicumbi, ticumbi, cucumbi e catumbi
constituem a mesma manifestação religiosa e festiva em homenagem a Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito.

“No Ticumbi, diferentemente de outros grupos congos, o enredo não versa em


torno da questão da morte e ressurreição, mas da conversão. O Rei Congo, bati-
zado, trava acirrados “combates” com o Rei Bamba, pagão, terminando por der-
rotá-lo e convertê-lo, em clara referência aos processos de conversão ao catoli-
cismo dos soberanos daquele reino africano, no século XV. O conflito tem origem
na pretensão do rei pagão de realizar uma celebração mais auspiciosa em honra a
São Benedito, motivo pelo qual envia seu secretário ao reino do rei Congo.
A comitiva é recebida de forma hostil, pois ao Rei Congo não agrada a ideia de um
pagão comandar os festejos dedicados ao santo negro. Após três batalhas verbais e
uma coreográfica luta de espadas (além da ajuda divina do santo homenageado), o
rei Bamba capitula diante do adversário e aceita a conversão. Batizado, o rei Bamba
junta-se ao rei Congo para juntos prepararem a festa para o santo.
Composto por 13 participantes, divididos em mestre, congos, secretários, reis e
um violeiro, é essencialmente masculino, característica que preservou ao longo
desses anos. Se depender do atual mestre, Tertolino Baldino, o mestre Terto, à
frente do grupo desde 1954, quando sucedeu a seu pai, essa tradição será mantida
por mais 300 anos. O folguedo constitui-se um marco de resistência, embalado por
memórias e referenciais de uma África distante, cujos filhos procuram dar sentido
e coesão com base numa identidade baseada na cor da pele e na consanguinidade”
(NEPOMUCENO, 2011, p. 160-161).

Em Santa Catarina vários cacumbis fizeram parte da história do estado


e dois muito conhecidos pelo tempo de existência e mobilização social são o
de Capitão Amaro (Florianópolis) e Catumbi de Itapocu (Araquari). Ambos
compunham cenários e enredos nas proximidades do Natal. Os cargos eram
acompanhados de vestimentas reais, dignos do desfecho da história, uma dis-
puta entre o capitão e os marinheiros.
Importante compreender que as manifestações festivas do Cacumbi não
possuem o objetivo de divertir o público, no entanto, a partir de suas práti-
cas culturais (devoção, performance e ritmo) coordenam uma ação envolta na
beleza e no divertimento, da cultura.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

CAMPANHA ABOLICIONISTA

O primeiro esforço para entendermos o fim da escravidão


é pontuar que ela não foi um presente, mas fruto de uma
conjuntura de fatores internos e externos. Importante situar que,
nas últimas duas décadas que antecederam a abolição, o número
de fugas, rebeliões e quilombos cresceu a olhos vistos. Além
disso, muitos escravizados já tinham adquirido sua liberdade,
seja pela compra de alforrias, ações judiciais contra senhores ou
outros meios, antes da abolição. (COSTA; GALLO, 2013, p. 58)
A campanha abolicionista em Santa Catarina não foi muito diferente
dos encaminhamentos que se deram em todo o Brasil, utilizando-se de argu-
mentos semelhantes. Nas últimas décadas do século XIX no Brasil, ocorreu
uma acirrada discussão em torno da questão do elemento servil e da abolição
gradual em todo o país. A Lei de 1850, que proibia efetivamente o tráfico de
africanos, a Lei do Ventre Livre, de 1871, a Lei dos Sexagenários, de 1885,
foram medidas que iam acalmando os ânimos dos senhores, até a extinção da
escravidão em 1888, com a Lei Áurea.
Entretanto, a imigração de um grande contingente de europeus para
a Província de Santa Catarina teve grande peso entre os estímulos do movi-
mento, já que se apostava nas teorias de branqueamento do país. A escravidão
era um obstáculo, tanto para a modernização econômica quanto para a pro-
moção da imigração.
Na segunda metade do século XIX, foi se tornando cada vez mais
comum a prática de alforriar cativos. Estas alforrias eram, em geral, registra-
das em cartório, e podem ser caracterizadas em três modalidades: gratuita –
quando o senhor “concede” a liberdade; onerosa – quando o cativo compra a
liberdade; e sob condições – quando são impostas condições a ser cumpridas
para a alforria se efetivar. Os esforços dos africanos e afrodescendentes em
tomar posse da sua própria vida, neste contexto, mostram que as lutas pela
cidadania sempre estiveram presentes em nossa História.

ASSOCIAÇÕES DE ORIGEM AFRICANA EM SANTA CATARINA

As associações organizadas por populações de origem africana no Bra-


sil existem desde o século XVII, alterando, ao longo do tempo, seus objeti-
vos e integrantes constituídos em cada período histórico e com características

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

próprias de cada uma dessas associações (irmandades, blocos carnavalescos,


escolas de samba, cacumbis, sociedades recreativas, associações dos homens
de cor, etc.).
Os clubes recreativos ou sociedades recreativas eram associações orga-
nizadas por “homens de cor”, uma “elite negra” bem trajada e com propostas
de educação, moral e visibilidade das pessoas que delas participassem. Foram
comuns em Florianópolis e em tantos outros municípios catarinenses com
presença de origem africana.
Estas agremiações pautaram suas preocupações em diferentes
âmbitos, dentre os quais a educação e os processos de escolarização
compunham repertório importante para a mudança na situação de exclusão
das populações de origem africana no pós-abolição, importando neste sentido,
um distanciamento com a antiga condição cativa, vínculo com a escravidão
passada.
Deste modo, não apenas “homens brancos” teriam poder de registro
escrito em atas e prestações de contas de irmandades, associações e clubes,
mas homens e mulheres afrodescendentes, sujeitos atuantes quotidianamente
na vida da cidade de Florianópolis, poderiam expressar pontos de vista e
argumentações a partir da escrita, de uma linguagem formal. Uma linguagem
combatente diante das tensões e rearranjos republicanos, neste período de
reformas urbanas, cujos hábitos e marcas nos corpos permeados por códigos
culturais africanos expressavam um passado escravista não condizente com os
objetivos da República.
Associações, clubes ou grupos possuíam interesses, expectativas e for-
mas diversas de autodenominação, como de inserção de seus/suas afiliados/
as. No caso de Florianópolis, alguns exemplos podem ser dados no sentido
de conhecer aspectos dessas agremiações. Em 1948, foi fundada oficialmente,
por afrodescendentes, a Escola de Samba Protegidos da Princesa, que existe
ainda hoje em Florianópolis. Assim como a Irmandade do Rosário, a Escola de
Samba Embaixada Copa Lord, o Clube “Brinca Quem Pode”, o Flor da Moci-
dade e o 25 de Dezembro, o Figueirense Futebol Clube constituíam territó-
rios marcados pela presença e atuação de populações de origem africana em
Florianópolis no pós-abolição. Territórios marcados por códigos culturais de
matriz africana e cujos traços envoltos no samba, na religiosidade e nas expec-
tativas de vida possibilitaram a criação e a consolidação de espaços múltiplos
de vivências, memórias e histórias.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Lisandra Macedo, a partir das fontes analisadas por esta autora, enfoca
aspectos da música popular em Florianópolis, nas décadas de 30 e 40 do século
XX, “período que parece ser de maior importância para o estabelecimento de
uma tradição musical popular e de uma identidade através da cultura nacio-
nal, tal como se pensa e se afirma entre o senso comum, hoje” (MACEDO,
2011). Pela escassez de informações mais precisas sobre o assunto, necessita-
mos atentar para a compreensão de que as escolas de samba são uma forma
de constituição expositiva do samba, mas este enquanto fenômeno cultural e
modo de vida transcende a experiência de escola.
A fundação das Escolas de Samba possibilitou uma nova realidade para
as populações de origem africana. Nos anos 1940 e 1950, os espaços de inser-
ção destas populações voltavam-se mais ao mundo do samba e do carnaval.
Se, anteriormente, muitos afrodescendentes tinham sua imagem vinculada aos
casos de polícia, a emergência das escolas de samba permitiu uma visibili-
dade positiva, baseada na cultura. No entendimento de Esiaba Irobi, trata-se
de pensar as práticas culturais trazidas por estas populações em suas bagagens,
as chamadas “escritas performativas” (IROBI, 2012, p. 273-293). Importa com-
preender como o corpo constitui “local de múltiplos discursos para esculpir
história, memória, identidade e cultura” (IROBI, 2012, p. 277).
Ao tratar a experiência da diáspora africana, a inteligência do corpo, a
performance, a dança constitui forte expressão de rememoração, sendo que
práticas estéticas e corpóreas (IROBI, 2012) permitem relembrar ou manter
laços culturais e identitários, como códigos culturais de matrizes africanas
(MACEDO, 2011, p. 16-18). Neste sentido, a música, a dança, principalmente
quando envolviam performances corporais, constituíram formas de manuten-
ção, reatualização e ressignificação cultural de Áfricas nas Américas.
Segundo Cristiana Tramonte, a escola de samba “é uma ação cultural que
processa e organiza as relações sociais, econômicas e políticas da parcela que
aí convive no que convencionamos denominar o ‘Mundo do Samba’” (TRA-
MONTE, 2001, p. 8). Para a autora, o samba constituiu e constitui tema de
interesse de inúmeros estudiosos na questão da identidade nacional, “na confi-
guração do que se convencionou denominar cultura nacional” (TRAMONTE,
2001, p. 13). Discutindo o samba desde sua formação, a autora aponta as modi-
ficações do movimento ao longo do tempo, enquanto era entrudo, depois sua
pomposidade elitista e a mobilização das classes populares em torno do ritmo
que as representava, em especial nas regiões periféricas dos centros urbanos.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Outros espaços importantes


A fundação do Centro Cívico Cruz e
de mobilização de atores sociais de Souza em Lages (1917) parece ter con-
origem africana são os clubes sociais tribuído para dar visibilidade para às
negros ou chamadas sociedades populações de origem africana, cons-
recreativas, que surgem no contexto tituindo-se, segundo Carvalho (2008),
da vida urbana do início do século como um espaço político e cultural. O
XX, momento em que se alteravam Centro simbolizava que as associações
de afrodescendentes se organizavam de
as relações que compunham o tecido forma própria, com estatuto, diretoria
social de diversas cidades brasileiras e patrono. Este era o espaço em “que
em sua transmutação para metrópo- os afrodescendentes viam-se como
les (de tipo europeu), sob a influên- iguais”, um clube que não regulava a
cia de discursos urbano-higienistas entrada de pessoas, tanto na questão
financeira quanto étnica.
(CARDOSO, 2012), em resposta a
situações de exclusão profissional
e marginalização social e cultural reforçada após a Abolição e mantidas nas
décadas seguintes.
Social, recreativo, cultural, literário, esportivo, as denominações que secun-
davam a razão social dessas instituições variavam de acordo com o propósito da
agremiação, não sendo raro, porém, que uma mesma organização reunisse duas,
três ou mesmo todas as designações acima referidas, condizentes, em muitos casos,
com a gama de atividades que promoviam, variando de piqueniques intermunici-
pais a chás dançantes, passando pela organização de recitais literários, concursos
de beleza e apresentação de grupos teatrais e bandas musicais, ademais dos bailes.
No entendimento de Maria das Graças Maria, pensando os clubes recrea-
tivos organizados em Florianópolis, estes territórios permitiram a construção de
laços de solidariedade e sociabilidades pautadas na constituição de uma visibili-
dade positivada, lutas políticas, conquista de prestígio social (MARIA, 1997, p.
149-151) das populações de origem africana.
Muitas análises foram construídas a partir da ideia de que os jornais, as
associações e as irmandades foram os embriões do Movimento Negro consoli-
dado na década de 1970. Mais do que isso, elas foram espaço de gestão autônomas
dos afrodescendentes, onde buscaram construir laços de solidariedade e meca-
nismos de ascensão social (ROSA, 2011, p. 25). Enquanto as irmandades religio-
sas foram fortes expressões desde o período colonial, na República as sociedades
beneficentes surgiram com força em quase todo território brasileiro, a maioria
delas ficou conhecida como sociedades recreativas por conta do destaque das ati-
vidades lúdicas.

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COMUNIDADES QUILOMBOLAS

A Constituição Federal de
“Hoje, remanescentes de quilombos
não necessariamente são descendentes 1988 garante às comunidades qui-
daquelas pessoas cativas que resistiramlombolas, comunidades compostas
à escravidão por meio da fuga e da for-pelos/as remanescentes das comuni-
mação de grupos de cativos/as fugidos/ dades de quilombos, a propriedade
as, como sugere o imaginário que se definitiva de suas terras. Preceitua
tem sobre quilombos”. De acordo com
Mariana Schlickmann e Camila Eva-
o Artigo 68 do Ato das Disposições
risto da Silva, no caso da Comunidade Constitucionais Transitórias: “aos
do Morro do Boi, em Balneário Cam- remanescentes das comunidades dos
boriú (SC), identificada pela Fundação quilombos que estejam ocupando
Cultural Palmares, “pessoas de origem suas terras é reconhecida a proprie-
africana ascendentes dos/as atuais dade definitiva, devendo o Estado
moradores/as da região do Morro do
Boi, ao que sugere a documentação, emitir-lhes os títulos respectivos”
construíram o espaço do Morro do Boi (CONSTITUIÇÃO, 1988). Reivindi-
como seu território por meio de teias cações do Movimento Negro, forta-
de relações com seus/suas senhores/as, lecido na década de 1980, que foram
de modo que, quando libertos/as, vie- contempladas após a abertura demo-
ram a ocupar tal região”. (2013)
crática, culminaram na garantia de
direitos e reconhecimento.
Quinze anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988 foi
publicado o Decreto 4887 de 20 de novembro de 2003, sob o Governo de Luiz
Inácio Lula da Silva, que regulamenta o procedimento para identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades dos quilombos (SILVA, 2013). Nesse sentido,
o termo “remanescentes de comunidades de quilombos” abriga uma diversi-
dade de grupos constituídos por diferentes processos. Ou seja, o termo qui-
lombo foi ressignificado para abranger novas categorias do tempo presente,
consonante com as políticas de reparação às populações de origem africana no
Brasil (SILVA, 2013).
A Associação Brasileira de Antropologia define que comunidades
quilombolas são grupos que desenvolveram práticas de
resistência e reprodução de seus modos de vida característicos
num determinado lugar. É importante ressaltar que nem sempre
as comunidades quilombolas atuais são originárias de fugas de
escravizados, há exemplos de terras doadas, terras ocupadas na
desagregação de lavouras, terras derivadas de ordem religiosa,

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terras recebidas em troca de serviços e outras situações. (…)


O que atualmente define uma comunidade quilombola é sua
autoclassificação. (…) Além disso, é preciso que a comunidade
em questão tenha uma relação histórica com o território
reivindicado. (COSTA; GALLO, 2013, p. 39)
De acordo com dados da Fundação Cultural Palmares, responsável por
“formalizar a existência destas comunidades, assessorá-las juridicamente e
desenvolver projetos, programas e políticas públicas de acesso à cidadania”
(www.palmares.gov.br), em Santa Catarina existem 12 comunidades certifi-
cadas pela Fundação, mas o processo de regularização do território enquanto
remanescente de quilombo passa por trâmites mais amplos, sendo o reconhe-
cimento da Palmares apenas o primeiro passo.

Tabela 1 - Comunidades Remanescente de Quilombos em Santa Catarina17

Comunidade Data de
Código do
Município Remanescente de Situação Publicação no
IBGE
Quilombos D.O.U.1

Balneário Camboriú 4202008 Morro do Boi Certificada 05/05/2009

Herdeiro da Invernada dos


Campos Novos 4203600 Certificada 04/06/2004
Negros*

Criciúma 4204608 Família Thomaz Certificada 05/05/2009

Florianópolis 4205407 Vidal Martins Certificada 25/10/2013

Garopaba 4205704 Aldeia Certificada 27/12/2010

Garopaba 4205704 Morro do Fortunato Certificada 13/12/2006

Monte Carlo 4211058 Campo dos Poli Certificada 02/03/2007

17 Dados coletados no site da Fundação Cultural Palmares. Disponível em: http://www.pal-


mares.gov.br/wp-content/uploads/2013/10/1-crqs-certificadas-ate-25-10-2013.
pdf. Acesso em 09 de fevereiro de 2014.

210
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Comunidade Data de
Código do
Município Remanescente de Situação Publicação no
IBGE
Quilombos D.O.U.1

Paulo Lopes 4212304 Santa Cruz Certificada 02/03/2007

Porto Belo 4213500 Valongo Certificada 10/12/2004

Praia Grande 4213807 São Roque* Certificada 10/12/2004

Santo Amaro da Imperatriz 4215703 Caldas do Cubatão Certificada 06/07/2010

Santo Amaro da Imperatriz 4215703 Tabuleiro Certificada 05/05/2009

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procuramos destacar, nestas breves linhas introdutórias, diferentes


temas da história de nosso estado, normalmente invisibilizados em materiais
didáticos ou em nossas formações. A intenção é que possamos vislumbrar
alguns aspectos formadores da região e perceber que muitos elementos cons-
titutivos de nossa realidade são pouco conhecidos e, consequentemente, não
discutidos ou tematizados em sala de aula.
Muito ainda poderia ser trazido à tona: personalidades e intelectuais
negros, ativistas, militantes antirracistas, educadores/as... São tantos os sujeitos
que se torna impensável discutir a história de Santa Catarina sem a presença
de diferentes homens e mulheres de origem africana que deixaram marcas na
constituição de nossa cultura e de nossas vidas, por mais que nem sempre o
saibamos.

Referenciais Bibliográficos

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abolicionista e a prática de alforriar cativos (1870-1888). Itajaí: UDESC/Casa
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211
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

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RASCKE, Karla Leandro. “Divertem-se então à sua maneira”: festas e morte
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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

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214
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Capítulo 4 - As manifestações afro-brasileiras: Arte, literatura e


religiosidade

Amailton Magno Azevedo

Os estudos em torno de circuitos África/Brasil têm privilegiado ques-


tões que tratam de mediações culturais da diáspora negra. Sugerem memó-
rias e heranças, saberes e fazeres no Atlântico, como narrativas deslocadas
da História Universal. As práticas sociais e culturais de escravos, ex-escravos,
colonizados e ex-colonizados apontam para a demolição de discursos que
glorificaram a expansão e a imagem de progresso e civilização euro-ocidental
(AZEVEDO; ANTONACCI, 2012, p. 7).
Do lado de lá do Atlântico Sul, as Áfricas e suas múltiplas historicidades
nos legam uma usina de saber, fazeres e filosofias que se prolongam em lito-
rais, matas, pantanais e florestas, fábricas e asfaltos brasileiros. Do lado de cá
da margem, impossível pensar o Brasil sem esses prolongamentos. Impossível
sim, pois, quando tratamos de artes, poesia, música, culinária, religião, mundo
afetivo e sensível, a presença do negro africano em torno dessas questões se faz
sentir de modo explícito e vigoroso.
Não seria exagero afirmar, que as culturas brasileiras guardam forte per-
tença de valores negro-mestiços. Além das pesquisas sobre Colônia, Império e
República, nosso cotidiano atual escancara, aos olhos dos vivos, seja no espaço
público, quanto no privado, esse legado inegável. Mas nada de pureza afri-
cana - muito pelo contrário-, o negro enlaçou-se de modo plástico por todos
os poros da vida brasileira; suportou e ainda suporta racismos, segregações à
moda tropical, porém resiste a extermínios físico e cultural pelas bordas, peri-
ferias, margens e subúrbios das metrópoles brasileiras. Permanece de modo
mágico-religioso, a recriar todo o mapa geo-histórico das culturas do Brasil.
Buscar uma pureza africana não tem sentido algum no mundo contem-
porâneo, já que a experiência da Diáspora reconfigurou valores, saberes e faze-
res. Os prolongamentos das Áfricas devem ser pensados a partir de um movi-
mento histórico descontínuo e irregular, pois, nas rotas do Atlântico formou-
-se diferentes redes de contato entre Áfricas, Europas e Américas. O Atlântico
Negro constituiu-se, através de uma dinâmica de reinvenções da expansão
africana, produzindo formas de resistências e reelaborando práticas culturais
herdadas. A perspectiva que tenta identificar, continuidades intactas africanas,
já está ultrapassada; o que interessa são as conexões, injunções, negociações,

215
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

misturas e as interferências ativas do negro-africano. Seja no tempo do tráfico,


da escravidão e no pós-abolição os negros tornaram suas expressões culturais,
formas efetivas de preservar um vasto repertório de signos afro-brasileiros.

MÚSICA

As musicalidades e as danças sempre foram, para os grupos negros, for-


mas de saberes que se expressaram como arte, comunicação e pensamento em
substituição ao discurso e à política de marcas ocidentais. “Não é nada novo
declarar que, para nós, a música, o gesto, a dança são formas de comunicação,
com a mesma importância que o dom do discurso” (GYLROY, 2001, 162).
A estética negra resulta nesta filosofia pautada pela música e pela dança.
Esse movimento se deve, sobretudo pela preferência por instrumentos per-
cussivos, onde a persistência da polirritmia (ritmos cruzados) africana nos
“batuques”, sambas, congadas, maracatus e outros estilos podem facilmente
ser identificados.
John Thornton afirma que “os princípios estéticos foram os elementos
da cultura africana que mais perduraram e resistiram nas Américas” (THORN-
TON, 2004, p. 296). Ninguém mais duvida que “a música e dança africanas
estão na raiz da música e da dança afro-americana e, além disso, que essas
manifestações culturais são as mais apreciadas e apropriadas à cultura euro-
péia e americana” (THORNTON, 2004, p. 296).
Quando se trata apenas de música, “a presença negro africana aflora a
cada passo, deixando-se flagrar do plano temático à seleção vocabular, do des-
tino da mensagem ao jogo das rimas, do artesanato paronomásico18 à simplifi-
cação sintática, enfim, da estruturação semântica ao estrato sônico” (RISÉRIO,
2007, p. 292).

O SAMBA

Dentre tantas variações de gêneros musicais, destaquemos o samba.


Sua história é bem conhecida. Suas origens se remetem aos bantos da região
Congo-Angola que “trouxeram formas musicais, padrões rítmicos, instrumen-
tos como a cuíca e o berimbau, estilos dançarinos” (RISÉRIO, 2007, p. 291).
Considera-se Bahia e Rio de Janeiro como lugares de seu desenvolvimento.

18 Popularmente conhecido como trocadilho. Palavras diferentes com sons semelhantes.

216
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Os estudos apontam para a presença de músicos de diferentes regiões do país,


como: São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco e outros estados, que viviam no
Rio de Janeiro e interferiram na formação do samba nas primeiras décadas do
século XX.
Mesmo sendo um gênero resultante das estruturas musicais europeias e
africanas, foi com os símbolos da cultura negra que o samba se tornou expres-
são musical em todo o Brasil.
Segundo os especialistas como André Diniz e Nei Lopes o samba con-
tém inúmeras ramificações: samba-choro, samba-canção, samba de terreiro,
samba de exaltação, samba-enredo, samba de breque, sambalanço, samba
de gafieira, bossa-nova, samba jazz, samba de partido-alto, samba de morro,
samba de quadra e samba rock.
De todas essas ramificações, os estudos revelam ser o samba de partido-
-alto a modalidade que mais preservou as origens dos batuques Congo-Angola
e está na base do surgimento de outros gêneros musicais do século XIX como
o lundu e do samba chula, maxixado e de morro (Estácio) (2008).

A “PEQUENA ÁFRICA”

Ao longo do século XIX, os negros chegaram a somar 50% da popula-


ção total da cidade do Rio de Janeiro. Essa presença impregnou fortemente os
costumes, valores e hábitos.
Negros baianos, que haviam migrado para a cidade do Rio de Janeiro,
após a Guerra de Canudos, formaram comunidades e passaram a residir em
bairros como a Gamboa, Saúde e Santo Cristo. No início do século XX, refor-
mas urbanísticas realizadas na cidade e, sobretudo na zona portuária e arredo-
res, provocaram a mudança desse reduto para a atual avenida Presidente Var-
gas e as imediações das ruas Visconde de Itaúna, Senador Eusébio, Marquês de
Sapucaí e Barão de São Felix (DINIZ, 2008, p. 26). Toda essa região passou a
ser conhecida como “Pequena África”.

PESSOAS HISTÓRICAS

A Pequena África transformou-se em núcleo irradiador do samba maxi-


xado. As festas que ocorriam nas casas e quintais das Tias Ciata, Dadá, Perci-
liana, Sadata e Amélia propiciavam vivenciar as cantorias, batuques, práticas
religiosas de matriz africana, choros e sambas. Além desse núcleo, havia a festa

217
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

da Penha, tida como a principal festa do Rio fora do carnaval. Nessas casas,
quintais e festas, circulou a primeira geração de sambistas que fixou o gênero
na cidade, entre os quais podemos citar: Caninha, Donga, Pixinguinha, Heitor
dos Prazeres, João da Baiana e Sinhô.

PIXINGUINHA: UM BREVE ELOGIO

A literatura que tratou de Pixinguinha o revelou como “gênio”, “maes-


tro”, “orquestrador”, “santo”, “a própria música”, “um dos pais da música popu-
lar brasileira”, “o maior de todos” entre outros elogios. Nas palavras do elo-
giado, dizia que a sua música não passava de “coisinhas simples”19. Essas “coisi-
nhas simples”, no entanto, ultrapassaram o número de mil composições, entre
as quais estão polcas, choros, tangos, sambas, maxixes e valsas; o que tornou
Pixinguinha um músico complexo; circulando por diferentes universos musi-
cais – do escrito ao oral; dos desafios à música de orixás, de instrumentos de
sopro como a flauta e o saxofone aos percussivos como o pandeiro, o omelê, a
caixeta, o prato e a faca que adquiriram destaque em suas orquestrações. Toda
essa gama de experiência fez de Pixinguinha um músico inclassificável, apesar
das muitas classificações atribuídas a ele.

SAMBA: SÍMBOLO DA NAÇÃO

Durante as primeiras décadas do século XX, o samba era considerado


música inferior, primitiva e lasciva. A partir dos anos 30, com a Era Vargas, o
samba passou a ser considerado símbolo da nacionalidade. Durante esse perí-
odo houve “incentivos ao carnaval das escolas e a utilização da recém-inau-
gurada radiodifusão”, ajudando “a expandir o gênero nacionalmente” (DINIZ,
2008, p. 16). Nos anos 40, o “samba passa ser sinônimo de brasileiro e ganha
fama internacional, de forma que hoje o mundo inteiro vê o Brasil como berço
do carnaval e do samba” (DINIZ, 2008, p. 16).

19 Todas essas referências podem ser encontradas em: CABRAL, Sérgio. Pixinguinha: Vida
e Obra, 1997; CALADO, Carlos Calado. Pixinguinha, 2010; SILVA, Marília T. Barboza;
OLIVEIRA, Arthur L. Filho de. Pixinguinha: filho de Ogum Bexiguento, 1998.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

NOVAS MUSICALIDADES NEGRAS: O FUNK E O RAP

Atualmente, o rap e o funk consolidaram uma nova estética negra nas


periferias das grandes cidades brasileiras. Desde os anos 70 que o funk vem
sendo incorporado pela juventude negra e pobre. Sobre o rap, podemos situar
a década de 80 como tempo de formação de uma nova modalidade musical
praticada por uma juventude com as mesmas características do funk. Em diá-
logo constante com as versões norte-americanas, seja pela via festiva do funk
ou pela via ativista e militante do rap, essas duas musicalidades passaram a se
firmar como símbolo de resistência cultural negra, pobre e periférica.
Os rappers, também denominados de MCs (Mestre de Cerimônia), são
na maioria das vezes os compositores e os vocalistas. O breack, enquanto dança
de rua, pode ser considerado de criação coletiva e de condicionamentos cor-
porais afrocêntricos, pois preserva movimentos cinéticos. Os breackers são os
praticantes e coreógrafos da street dance (dança de rua).
O grafite enquanto a expressão plástica do movimento tem nos grafi-
teiros seus artistas que fazem dos espaços da cidade como pontes, viadutos,
paredes, muros e portas seus quadros públicos, registrando seus sentimentos
e projetos.
O DJ enquanto instrumentista que através da pick-up produz os sons
riscando o disco em sentido contrário ao que o vinil está girando, construindo
assim o que se conhece como SCRACTH, além de construir combinações de
músicas e ritmos diferentes para a criar a base sobre a qual o rapper versa.
As posses, enquanto forma de organização criada pelos Hip-Hoppers com o
intuito de autossustentação das atividades e ainda um momento para troca de
informações, momento de descontração e lazer, empréstimo de equipamentos,
debates em torno de questões que dizem respeito às pessoas ligadas à comuni-
dade do Hip-Hop.
O rap enquanto estilo musical desenvolvido na Periferia da grande São
Paulo estava estruturado a partir de três atitudes de alto grau de transgressão:
estética, ideológica e comercial.
Transgressão estética porque rompe em caráter quase definitivo com as
normas daquilo que era definido como boa música. Declama-se a poesia em
vez de se cantar, muito embora haja uma obediência da tonalidade. Obser-
vamos que há uma tendência de modulação da voz solista, quando ocorre o
mesmo com os instrumentos de acompanhamento harmônico pré- gravado
denominado de base. Outra tendência é intercalar as declamações com trechos

219
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

cantados, em geral por um cantor que acabava se incorporando ao grupo prin-


cipal, composto por um ou mais rappers e um disc-jóquei20.
Transgressão ideológica porque parte significativa das letras dos rappers
tratava de temas pouco explorados na música brasileira, isso quer dizer ao
menos da maneira tão direta como acontece com algumas letras que falam
de racismo e violência policial contra os afrodescendentes. Rompendo com o
discurso ameno e dúbio de alguns compositores negros, tidos como engajados
na luta contra a discriminação. Nas letras utilizava-se de muitas gírias e pala-
vrões, numa linguagem usada por eles cotidianamente e sem meios termos, o
que fazia com que os rappers fossem acusados de radicais21.
Como não é possível tratar de todos os rappers nesse texto, destacaremos
o grupo de rap Racionais MC`s, como modelo de uma geração que passou a
explicitar o orgulho negro de modo vigoroso. Em 1999, quando entrevistamos
Mano Brown, os temas recorrentes em seu discurso eram Negritude, Revo-
lução, Autoestima, Periferia, Escravidão, Liberdade, África, Líderes negros
dos EUA. Todas elas se conectavam e expressavam uma narrativa autoral que
interpretava o Brasil, sob o prisma de crítica à Democracia Racial.
A imagem do Brasil dos anos 1990 e 2000 eram narradas por intelec-
tuais formados nas redes de informações da música. A mão que escrevia essa
narrativa era guiada por uma inteligência ancorada na cultura oral e perifé-
rica. Assim se explícita na música “O Homem na Estrada”, onde se observa
a vivência de um homem comum, desimportante e ex-prisioneiro que tenta
reconstruir sua vida na cidade. Racionais exploram com essa música, narrati-
vas miúdas, histórias pessoais e locais, espaços segregados, arquiteturas impro-
visadas, urbanidades caóticas. Em o “Homem na Estrada” sugerem um colapso
do modernismo paulista; a periferia seria o lugar onde se revelaria a farsa de
São Paulo. Nessa música optaram por melodias cinzentas, amargas, com bati-
das secas e agressivas; o que traduzia com fidelidade o teor da letra.
Rejeitavam também as imagens do Brasil exportação. As cores vibran-
tes e tropicais são substituídas pela moda urbana metropolitana com cores
escuras e monocromáticas associadas normalmente a um time de basquete
dos E.U.A. ou a um clube de futebol do Brasil. A morena sedutora, ingênua e
predisposta ao sexo é trocada pela mulher negra também sensual mais nunca
inocente; o bom crioulo pelo negro revolucionário; o bom malandro sambista

20 Essas referências podem ser encontradas em Amailton Magno Azevedo e Salomão Jovino
da Silva. Um Mundo Preto Paulistano. 1999. Texto em fase de publicação.
21 Idem.

220
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

pelo malandro sobrevivente na selva urbana; a romântica favela pela periferia


segregada e tomada pela violência, pobreza, drogas, crimes e desesperança.
No rap de São Paulo dos anos 90 se refutava a existência do realismo mágico
de um Brasil tropical, moreno e feliz; no seu lugar a desilusão de milhões de
habitantes apartados em favelas, morros e conjuntos habitacionais.
Expressavam uma poesia concreta sobre a era pós-industrial. Nada mais
era eterno, seguro e estável numa Era de fragilização das regras do mundo do
trabalho, onde emprego e desemprego conviviam lado a lado, frente a frente,
minuto a minuto. A Metrópole era o lugar onde se vivia e se vive essa atmos-
fera de insegurança, medo e distopia pelos seus habitantes. Os mais pobres
eram sempre os mais vulneráveis nessa economia guerreira e insana. Os per-
sonagens, nas letras do rap assumiam as feições de jovens negros, mestiços
e brancos pobres. Esses atores buscavam a sobrevivência nos subempregos e
no submundo do tráfico de drogas; quando, essas eram as regras e os espaços
ingratos, que sobravam na civilização do asfalto.

ARTES DO CORPO

Além da música, a busca para manter uma estética negra, se fez com as
artes do corpo: pintura, tecidos, estilo de cortes e penteados, tatuagens e moda.
Tais expressões tornaram possíveis também fazer perdurar signos africanos no
Brasil e nas Américas.
Na contramão das representações platônicas e cartesianas que conside-
ram o corpo um amontoado de órgãos desimportantes, o corpo nas cosmo-
gonias negras assume uma particularidade cultural. Música, dança, pintura e
evocação dos ancestrais significam modos de celebrar a vida; o que implica em
desafiar uma percepção desencantada e pessimista sobre o mundo.
Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes afirmam que
de uma ponta a outra do continente americano e do Brasil
a população negra utilizou o corpo como instrumento de
resistência sociocultural e como agente emancipador da
escravidão. Seja pela religiosidade, pela dança, pela luta, pela
expressão, a via corporal foi o percurso adotado para combate,
resistência e construção da identidade (2006, p. 116).
A capoeira pode ser considerada como um modelo desse processo. Seja
no período escravocrata ou no pós-abolição, as gingas e manhas do corpo
negro, agiram para enfrentar as adversidades. O corpo como festa, dança,

221
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

ritual se portou e se porta como um modo de resistir a processos de morte


cultural e mirar aquilo que Wally Salomão já afirmava: a felicidade negra é
uma felicidade guerreira.

RELIGIOSIDADES

A historiografia considera que a religião é o centro vital da vida afri-


cana, permeando todas as instâncias da vida social. Ela não está separada da
vida, como um departamento deslocado. “O universo é religioso” (RISÉRIO,
2007, p. 140). Sagrado e profano não possuem facetas autônomas e nem estão
separados. John Mbiti afirma que em muitas línguas africanas “inexiste um
vocábulo específico para ‘religião’” (RISÉRIO, 2007, p. 162). Religião na África
é uma cosmovisão. Uma visão de mundo integrada, onde os ancestrais e os
vivos estariam conectados; definindo uma filosofia existencial específica. No
processo de mudanças culturais vividas no Mundo Atlântico, essa dimen-
são existencial, bem como linguística, estética e das estruturas sociais foram
impactadas, formando um Cristianismo negro e europeu.
A religião
respondeu, como outros elementos da cultura, à sua dinâmica
interna e à nova dinâmica criada pelo contato cultural e à
transferência física. O resultado foi a emergência de uma nova
religião afro-atlântica identificada com freqüência como cristã,
especialmente no Novo Mundo, mas, na verdade era um tipo de
cristianismo que podia satisfazer o entendimento das religiões
africana e europeia (THORNTON, 2004, p. 312).

No Brasil, o negro impregnou o catolicismo popular com suas festas,


folguedos, danças e ritmos hidratando o tecido cultural e religioso da colônia,
império e república. Congadas, Calundus, Maracatus, Jongos, Visarias, Can-
domblés, Catolicismo popular, Umbandas e outras práticas confirmam uma
densa gama de crenças, deidades e rituais. O novo cristianismo negro-africano
“permitiu que a filosofia e o conhecimento de algumas religiões africanas se
acomodassem em um sistema religioso europeu” expressando fusões comple-
xas e inéditas. (THORNTON, 2004, p. 312)
Segundo Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes, a organização das
religiões negras e sincréticas no Brasil, como o Candomblé e a Umbanda fir-
maram-se ao longo do século XIX e em diferentes regiões do país com nomes e

222
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

ritos particulares: candomblé na Bahia, xangô em Pernambuco e Alagoas, tam-


bor de mina no Maranhão e Pará, batuque no Rio Grande do Sul e macumba
no Rio de Janeiro (MUNANGA, GOMES, 2006, p. 16).
Nos Candomblés, em particular, a cosmovisão africana perdurou na
evocação de orixás como ancestrais protetores, no papel pais e mães de santos
como mediadores dessa relação entre o sagrado e o profano; bem como res-
ponsáveis por preservar histórias orais que identificam e definem o papel e a
função de cada orixá. Na tradição iorubá alguns aspectos são partilhados: “a
relação com o meio ambiente; o vínculo religião-comunidade; a ausência de
corpos doutrinários sistemáticos; a coexistência de monoteísmo e politeísmo;
o antropocentrismo; o caráter pragmático da fé” (RISÉRIO, 2007, p. 161). John
Mbiti fala do caráter “extremamente antropocêntrico” das religiões africa-
nas; onde o “ser humano está numa posição-chave em relação a tudo o mais”
(RISÉRIO, 2007, p. 162). Em outras palavras, a divindade só existe, onde existe
o humano.
As religiões e liturgias de matriz africanas se manifestam através da
música e dança. Sendo assim, as artes, música e religiões negras se conectam
permanentemente, sobretudo, quando se trata de mundo sagrado. A música
sacra de bantos, jejes e nagôs, executada nos terreiros de candomblé, guardam
uma dimensão litúrgica e funcional. “É música para conduzir ao transe. Para
permitir a manifestação dos deuses nos corpos de seus sacerdotes” (2007, p.
294). Essas “criações estético-religiosas africanas” atravessaram o Atlântico e
os séculos. “Mantém-se, ainda hoje, em nossos terreiros” (RISÉRIO, 2007, p.
294).

Referenciais Bibliográficos

AZEVEDO, Amailton; ANTONACCI, Maria Antonieta M. Diáspora. Revista


Projeto História, São Paulo, n. 44, 2012.
DINIZ, André. Almanaque do Samba: A História do Samba, O que Ouvir, O
que Ler, Onde Curtir. 3° Edição, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
GILROY, PAUL. O Atlântico Negro: Modernidade e Dupla Consciência,
trad. Cid Caipel Moreira, São Paulo: editora 34, Rio de Janeiro: Universidade
Cândido Mendes, 2001.
LOPES, Nei. Partido Alto: Samba de Bamba. Rio de Janeiro: Pallas, 2008.

223
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

MBITI, John. African Religion and Philosoph. Portsmouth: Heinemann,


1992.
MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nilma Lino. Para Entender o Negro no
Brasil de Hoje: História, Realidades, Problemas e Caminhos. São Paulo: Glo-
bal: Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação, 2006.
RISÉRIO, Antonio. A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros, São Paulo:
Ed. 34, 2007.
THORNTON, John. A África e os Africanos na formação do Mundo Atlân-
tico (1400-1800). Tradução de Marisa Rocha Mota. Rio de Janeiro: Elsevier,
2004.

224
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Capítulo 5 - Os séculos XX e XXI: O caminho em direção à


igualdade

Jeruse Maria Romão

Com a Abolição da escravatura, em 1888, ao encontrar sua condição


de livre, esperava-se atingir o negro, toda sorte de direitos pertinentes a quem
é cidadão. Esperava-se. No entanto, a história brasileira mostra – ou às vezes
oculta - que as trajetórias para negros e brancos, em condições iguais de liber-
dade foram diferenciadas. E que, o estigma da escravidão perseguiu e ainda
persegue as populações de origem africana no mundo inteiro, inclusive no
Brasil, onde depois da Nigéria, localizamos a segunda maior população negra
do mundo.
Por pressuposto, é condição humana buscar modificar situações confli-
tantes quando essas situações nos deixam em situação de desconforto. Assim,
os negros e as negras brasileiras, desde os quilombos, se mobilizam social-
mente para enfrentar e modificar os entraves que vivenciam o sistema demo-
crático brasileiro, que embora democrático, convive e reproduz o racismo e
todos os mecanismos dele decorrentes.
É, pois, dos caminhos em busca da igualdade que trataremos.

DEMOCRACIA RACIAL

Nós, professores e professoras brasileiras, vivemos e fomos formados


numa conjuntura em que a ideia de que todos éramos e somos iguais foi cons-
tituída como preceito não praticado, mas aceito sem contestações. Essa ideia
de igualdade, discutiriam os movimentos sociais das chamadas minorias,
baseia-se no fato de que, os “diferentes”, ao saberem se portar em seus lugares
de submissão, manteriam a ordem sem conflitos e deste modo, a sociedade
viveria em plena harmonia.
As mulheres, por exemplo, ao se comportarem submissas e sabendo de
seu lugar na “ordem hierárquica sexual”, não haveriam de causar “problemas”
à estrutura vigente, em casa ou na sociedade. Haveríamos então de assistir
que as mulheres tinham “lugares”. E, os movimentos construídos durante
décadas, discutindo relações de gênero, destacam que o lugar da mulher é
em todo lugar.

225
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

A Teoria da Democracia Racial instituiu a ideia de que a escravidão bra-


sileira era branda, e afetuosas eram as relações entre senhores e escravos visto
que, o sistema escravocrata dependia exclusivamente da mão de obra de escra-
vizados/as, conforme alguns exemplos perceptíveis nas imagens a seguir:

Figura 1 - O retorno à cidade de um proprietário de chácara

Fonte: Jean Baptiste Debret (1768-1848)


http://www.ibamendes.com/2012/05/historia-do-brasil-atraves-da-arte-de.html

Figura 2 – Ama-de-leite

Fonte: - Foto Militão Augusto de Azevedo.


Disponível em: http://olhardascienciassocias.blogspot.com.br/2011/01/amas-de-leite-
ambigua-relacao-entre-o.html

226
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Figura 3 – Anúncio Ama-de-leite

Fonte: http://picaretasdatavola.blogspot.com.br/2010/09/esse-povo-de-deus-e-uma-benca.html

O trabalho escravo, forçado, era realizado em condições insalubres por


todos os grupos de africanos no que se refere à idade (de crianças muito peque-
nas a idosos) e a sexo (homens e mulheres). Os castigos físicos eram frequentes
e, segundo alguns observadores estrangeiros, se tratava aqui os escravos em
condições piores do que os animais.
Figura 4 - A loja de sapatos. Debret.

Fonte: http://www.ufrgs.br/gthistoriaculturalrs/sandra_jp.html

227
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Figura 5 - Pelourinho

Fonte: Debret (1835) – http://henrigomes.blogspot.com.br/

Contudo, os negros, a quem se destina a teoria da democracia racial,


negam a ideia de uma sociedade étnico racialmente harmoniosa e incidem em
denunciar o racismo na sociedade brasileira. É preciso, entretanto, estar atento
para compreender essa dinâmica, uma vez que a ideia comum é a de imputar
aos negros responsabilidades pela sua condição subalterna. O racismo viven-
ciado todos os dias, em textos explícitos ou ocultos, não é compreendido como
um dos aspectos da cultura da sociedade brasileira e, sim, como um comporta-
mento pessoal, individual, espontânea, inconsciente e não intencional.
Não sendo o racismo intencional, não haveria motivo para nenhuma
reação do negro. Junto com esse processo, vem a imposição de um compor-
tamento dócil, de quem “sabe o seu lugar”. Portanto, para que movimento em
defesa da igualdade? E essa questão não envolve só a discussão dos conflitos
de classe. As questões de raça são também parâmetros para hierarquizar as
pessoas e os grupos sociais.
Durante décadas, a cultura social impôs uma dinâmica branqueadora,
oriunda dos paradigmas políticos e chegando à escola como o lugar da ação
pedagógica do branqueamento.
Em todo o percurso da escola brasileira, a intenção pedagógica era
criar um cidadão com ideias e comportamentos brancos. Os livros didáticos
repercutiam toda e qualquer dinâmica deste projeto de sociedade. Os textos e
as imagens invisibilizavam a presença negra, ou a traziam de forma subordi-
nada. Negando essa situação que causou sérios danos à população brasileira,
os grupos articulados em torno da pluralidade de ações e temas do Movimento
Negro, reagiram a esse contexto.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Figura 6 – Cartilha “Racista, eu?”

AS AÇÕES DO SÉCULO XX E XXI: AS LUTAS CONTRA O RACISMO


As lutas do século XX

No século XX (1991-2000) a busca por igualdade é um tema amplo, se


tratado de forma aberta. Afinal foi o século das guerras, das novas vivências
no campo da cultura, da tecnologia, foi o século da aviação, das ditaduras e do
nazismo, das bombas atômicas e das lideranças como Ghandi e Martin Luter
King; da atuação da Igreja Católica em todos os continentes; das descober-
tas de remédios (penicilina) e de doenças mundiais (AIDS). Isso só para citar
alguns poucos exemplos.
O racismo foi muito vivenciado neste século. Muitas guerras tiveram
origem por conta de conflitos étnicos e o nazismo dizimou milhares de grupos
étnicos – brancos judeus, ciganos, africanos - motivados pelo ódio racial, o que
marcou para sempre a humanidade.
No século XV os europeus iniciaram a invasão do continente africano e,
ainda no século XX enfrentavam as resistências destes povos para ter seu ter-
ritório devolvido. Lembremos que no auge do tráfico atlântico, séculos XVIII

229
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

e XIX, o Brasil receberia milhares de levas de pessoas trazidas pelos traficantes


europeus.
Mesmo com o fim da escravidão de africanos no mundo, a Europa man-
teve suas ocupações nos países africanos, extensão diplomática e jurídica de
seus territórios fora da Europa. Contudo, na década de 1970 vislumbramos os
movimentos de descolonização no Continente Africano, o que na África do
Sul aconteceria apenas na década de 1980. Neste continente as lutas por igual-
dade ainda encontram-se em curso e parte delas, necessitam de mediações
externas, considerando as graves sequelas que a invasão europeia e, conse-
quentemente, o colonialismo, provocou nas dinâmicas de vivência e convivên-
cia naquele continente.
Mapa 1 - A partilha da África

Fonte: Revista Nova Escola

No século XX, nos Estados Unidos da América, os negros escreveram


importantes registros na história da luta contra o racismo. Embora sempre
houvesse a resistência negra norte-americana contra o racismo, a partir de
1950, os afro-americanos lutam por direitos civis e contra a segregação racial.
Em 1955, Rosa Parks, ao se recusar ceder lugar a um homem branco no ôni-
bus, como determinava a ordem norte-americana, deflagrou com seu gesto um
movimento nacional. Surge a figura de Martin Luther King Jr., pacifista negro,
que liderou os movimentos até ser assassinado, em 1968. Como resultado das

230
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

pressões, em 1964, o congresso dos Estados Unidos aprovou uma lei que fin-
dava legalmente a segregação racial nas escolas, nos espaços públicos e no pro-
cesso eleitoral.
Figura 7 - Martin Luther King Jr.

Fonte: http://www.google.com.br

No Brasil, os negros organizaram-se em agremiações como forma de


lutar contra o nosso modelo de segregação. Essa população, ainda considerada
de segunda categoria, não foi incorporada à sociedade de classes, pelos conte-
údos racistas invocados à sua presença. Sendo assim, ao perceberam a margem
social, sem fazer parte de classe nenhuma, se integraram a esse modelo, era a
inspiração política e social para os negros das primeiras décadas do século XX.
A luta contra a segregação indicava um comportamento inverso ao da
integração, assim, de início os negros lutaram para serem integrados na socie-
dade de classes, com exercício de seus direitos cidadãos. Esta foi para alguns
historiadores a primeira fase do movimento negro neste século. Na década
de 1940, com a criação do Teatro Experimental do Negro (TEN) no Rio de
Janeiro, o movimento ampliou sua atuação na imprensa negra, fundando um
jornal, mas, sobretudo, desenvolvendo os campos das artes e da educação, cen-
tralizando análises e intervenções pioneiras no Brasil.
O TEN surgiu contestando, também, a prática brasileira - e norte ameri-
cana – quanto a papeis de personagens negros utilizarem artistas brancos com a

231
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

pele pintada por cosméticos que tornavam a tonalidade da pele mais escura. Em
uma época em que o negro era expressivo no campo das artes, não havia espaço
de trabalho para este ator social por conta da hegemonia da estética branca.

Figura 8 – Ator Milton Gonçalves Figura 9 – Ator Sérgio Cardoso

Fonte: www.istoegente.com.br Fonte: revistaamiga-novelas.blogspot.com

O falecido ator Sérgio Cardoso (à direta), branco, pintado para deixar


a pele escura, foi escalado para interpretar o personagem central da novela “A
Cabana do Pai Tomaz” (1969-Brasil). Na mesma novela, atuava o ator negro
Milton Gonçalves (à esquerda) que interpretava um personagem secundário.
O Teatro Experimental do Negro contribuiu sobremaneira ao trazer
negros para personagens centrais das obras brasileiras. Além da educação, o
TEN também atuou em projetos de educação popular, tendo notoriedade o
curso de alfabetização mantido durante as décadas de 1950 e 1960.
Aliás, as experiências de educação desenvolvida por organizações negras
em diferentes períodos, desde a escravidão, são hoje reconhecidas. Aqui em
Santa Catarina, se evidencia a experiência de alfabetização de adultos do Clube
Negro Cruz e Souza, da cidade de Lages e também os projetos de escolarização
da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos
que, em 1859, idealizou um curso de alfabetização para os filhos dos associados.
Nas décadas de 1960 a 1970, a juventude negra influenciada pelos movi-
mentos musicais da Black Music, pelos movimentos de emancipação dos paí-
ses africanos, reorienta suas questões identitárias. Os cabelos e as vestimentas,
sobretudo, as ideias se alinham à identidade altiva, com referenciais próprios,

232
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

contestando o branqueamento cultural. Esse movimento foi cerceado pela dita-


dura militar brasileira, que via nos jovens negros do movimento musical, poten-
cial motivação para um levante social.

Figura 10 – Tony Tornado e o grupo de Black Music, cantando na BR3.22

Fonte:http://humbertodiscofunk.blogspot.com.br/2013/03/tony-tornado-o-soul-music-agra-
dece_6567.html

A juventude negra, além da música, se inspira em outras lutas políticas.


São relevantes duas ações importantes na década de 1970: a primeira, um ato
lançado pelo Grupo Palmares, em 1971, pela criação de um dia da Consciência
Negra. Em 1978, essa data foi incorporada pelo movimento negro do país e
hoje é uma data oficialmente celebrada nas escolas pela Lei Federal 10.639/03.
Mais de duzentas cidades brasileiras tornaram esse dia feriado municipal em
homenagem ao líder quilombola, Zumbi dos Palmares.
A outra ação fundamental foi o lançamento de um coletivo de entida-
des, em 1978, denominado Movimento Negro Unificado Contra a Discrimina-
ção Racial. Esse ato, motivado pelo assassinato de um jovem negro, foi acom-
panhado pela Ditadura Militar. Gerou um relatório onde consta:

22 Tony Tornado foi preso por inspiração pelos movimentos negros dos EUA.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Realizou-se em São Paulo, no dia 7 julho de 1978, na área fronteiriça


ao Teatro Municipal, junto ao Viaduto do Chá, uma concentração
organizada pelo autodenominado “Movimento Unificado Contra a
Discriminação Racial”, integrado por vários grupos, cujos objetivos
principais anunciados são: denunciar, permanentemente, todo tipo
de racismo e organizar a comunidade negra. Embora não seja, ainda,
um “movimento de massa”, os dados disponíveis caracterizam a
existência de uma campanha para estimular antagonismos raciais
no País e que, paralelamente, revela tendências ideológicas de
esquerda. Convém assinalar que a presença no Brasil de Abdias do
Nascimento, professor em Nova Iorque, conhecido racista negro,
ligado aos movimentos de libertação na África, contribuiu, por
certo, para a instalação do já citado “Movimento Unificado. (http://
maniadehistoria.wordpress.com/pesquisando-o-movimento-
negro-no-brasil/)

Figura 11 – Manifestação do MNU em 1978.

Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/na-rhbn/orgulho-da-cor-1

Já as décadas de 1980 e 1990 foram produtivas do ponto de vista orga-


nizativo e acadêmico. As organizações negras ampliaram sua atuação por
todo o país, ressurgindo e reafirmando sua identidade de matriz africana

234
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

de forma inquestionável. O movimento negro atentou-se à sua pluralidade,


numa compreensão que refuta uma das dimensões do racismo brasileiro
que entendia as populações negras enquanto uma identidade única de uma
só origem. Ao olhar para a pluralidade do continente africano e instigar
sobre as suas origens, o negro passou a compreender a sua multiplicidade
como reflexo da pluralidade do continente africano. E articulou-se bus-
cando “Unidade na Diversidade”.
Nestas décadas - 1980 e 1990 -, os movimentos da educação discu-
tiam o neoliberalismo e a globalização e as políticas do estado mínimo.
Os movimentos negros, além de articular as questões da diversidade, do
multiculturalismo e das relações raciais a estas questões, incidiu para que o
Estado dessa visibilidade as pautas por uma sociedade mais igualitária. Se
na década de 1980 foi o momento da realização de encontros para discutir
essas pautas, a partir da década de 1990 as pautas foram sendo defendidas
como políticas públicas.
Na década de 1980, a sociedade brasileira mobilizou-se em torno
da nova constituição. E os negros, organizados em Comissões Estaduais
Pró-Constituinte, participaram de um grupo para propor políticas para
as minorias, inicialmente, negros, indígenas e portadores de necessidades
especiais.
Decorrente dessa atuação e de suas intervenções, resultou visibilizar
e estabelecer políticas para um grupo até então desconhecido pelas estru-
turas institucionais e governamentais, as comunidades de remanescentes
de quilombos no Brasil. Ainda resultado das ações constituintes, uma das
conquistas da década de 1980 foi a criminalização jurídica do racismo,
com a sanção da Lei Federal 7.716 de 1989 que tornou o racismo crime
inafiançável.
Criminalizar o racismo exigiu preparar as lideranças negras para
compreender e apoiar a população na busca de direitos legais quando víti-
mas de racismo. E na década de 1990, muitas organizações negras - dentre
elas Geledés e CEERT, em São Paulo; CEAP, no Rio de Janeiro e o Núcleo
de Estudos Negros (NEN), em Santa Catarina -, apontaram conteúdos e
demandas no campo do direito no Brasil e, consequentemente, nas ações
de proteção da pessoa vítima de discriminação racial. Criaram no Brasil
uma rede, já existente em outros países, conhecida como S.O.S Racismo!

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Na década de 1990, deu-se iní- Figura 12 – Combate ao racismo


cio à tramitação de um projeto de lei
federal para inserção de conteúdos de
matrizes africanas, sancionado apenas
no século XXI, como lei, a 10.639/03
que traremos a seguir. Ainda no
século XX, nas políticas em defesa
da igualdade, não poderíamos deixar
de registrar, na luta por igualdade de
gênero, as ações das mulheres negras.

AS LUTAS DO SÉCULO XXI

O século XXI (2001-2100) é Fonte: www.google.com.br/imagens


notório como momento de concretiza-
ções do ponto de vista governamental, das políticas pautadas e defendidas por
negros e negras e militantes antirracistas no século XX. Também é o momento
que apresenta novos desafios a serem superados.
Nós registramos, em 2003, a sanção da Lei Federal 10.639 que torna
obrigatório o ensino de conteúdos de história e cultura afro-brasileira e afri-
cana nas escolas. Com a aprovação da lei, a escola passa a reconhecer-se
enquanto espaço plural, dialógico, revertendo sua estrutura tradicional mono-
cultural e eurocêntrica. Junto a provação da lei, outras demandas se colocam.
Novos olhares sobre a formação de professores, para a aquisição de recursos
didáticos, sobre a apresentação dos conteúdos nos currículos.
A identidade africana do brasileiro torna-se elemento fundamental a ser
compreendido e ensinado nas escolas. Identidade não só da pessoa negra, mas
também, da forma de ser e viver do brasileiro. Muitas publicações neste início
de século começaram a apontar essas relações intrínsecas. Esse conhecimento,
passou a ser divulgado mais amplamente não só pelo movimento e pelos pes-
quisadores negros, como também por centros acadêmicos das universidades
brasileiras.
No Brasil as políticas afirmativas existem desde a década de 1960 quando
foi sancionada uma Lei, conhecida como lei do boi (Lei n. 5.465, de 1969) e
que garantia uma reserva de vagas para filhos de agricultores nos cursos de
agronomia, nas universidades. Na década de 1980, as políticas afirmativas são

236
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

destinadas para as pessoas portadoras Figura 13 – Capa do livro


de necessidades especiais que, quando África e Brasil Africano
aprovada a constituição, garantiu-
-se em concursos públicos, um per-
centual de vagas reservadas para esse
público. Na década de 1990, as mulhe-
res conquistaram reservas de vagas no
processo eleitoral, quando se definiu
que 20% das candidaturas aos cargos
políticos através de eleições devem ser
pleiteadas por mulheres. É a Lei 9.504
de 1997.
Para negros, as políticas afir-
mativas preveem reserva de vagas em
concursos públicos em alguns muni-
cípios, para ingresso em Universida-
des Públicas e políticas com recorte
étnico em programas de saúde, entre
Fonte: http://cienciahoje.uol.com.br/revista-
outras ações. No caso das universida- -ch/2011/281/conhecimento-e-transformacao
des, estudos mostraram que 2% era a
média da presença de negros no ensino superior, sendo necessário construir
políticas afirmativas para que esse quadro fosse alterado.

Dos desafios a serem enfrentados estão:


a) Políticas para a juventude negra, especialmente enfrentamento em
relação a violência sofrida por este grupo em todo o país. O governo
federal criou o Plano Juventude Viva, com base no seguinte diagnóstico:
Os homicídios são hoje a principal causa de morte de jovens de
15 a 29 anos no Brasil e atingem especialmente jovens negros do
sexo masculino, moradores das periferias e áreas metropolitanas
dos centros urbanos. Dados do Ministério da Saúde mostram
que mais da metade (53,3%) dos 49.932 mortos por homicídios
em 2010 no Brasil eram jovens, dos quais 76,6% negros (pretos e
pardos) e 91,3% do sexo masculino. (http://www.juventude.gov.
br/juventudeviva/o-plano)
O Plano Juventude Viva, resulta das demandas das organizações negras
e comunitárias, bem como de militantes antirracistas. Demandas de quem atua

237
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

próximo deste público, entende suas expectativas e as barreiras que necessita


enfrentar no cotidiano.

Figura 14 – Campanha Nacional contra a Violência e o Extermínio de Jovens

Fonte: http://pt.slideshare.net/Marcielrocha/campanha-contra-o-extermnio-da-juventude

b) Políticas para Mulheres Negras, especialmente combater a violência


social e doméstica, apoiar medidas de acesso e permanência na escola,
combater o racismo no mercado de trabalho, adotar políticas nas áreas
da saúde e moradia. As mulheres negras desde a instituição da escra-
vidão, pioneiramente são descritas nas funções de trabalho no Brasil.
Foram as primeiras trabalhadoras, mas ainda assim, seu salário é o
menor na escala de renda no país.

As lutas das mulheres negras ocorrem em todo mundo, sendo o dia


25 de julho destinado para um debate mundial sobre a sua (in)visibilidade
e desafios.

238
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Figura 15 – 25 de Julho: Dia Internacional da Mulher Negra

Fonte: marchamulheres.wordpress.com

c) Políticas para as Comunidades Quilombolas que ainda enfrentam difi-


culdades para verem reconhecidas as suas terras. No ano de 2012 foram
aprovadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar
Quilombola (Resolução nº 08 de 2012, do Conselho Nacional de Edu-
cação). E, a partir delas, espera-se que os quilombolas tenham acesso
a uma educação com (re)conhecimento dos processos históricos nos
quais estão inseridos e são constitutivos.

Figura 16 – Capa das Diretrizes Curriculares Nacionais


para a Educação Escolar Quilombola

Fonte: www.mec.gov.br

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

d) Combater a Intolerância religiosa. Apesar do Brasil ser um Estado


laico, ou seja, não possui oficialmente uma religião e respeita a liberdade
de fé de todos os brasileiros, há uma perseguição para com as religiões
de matriz africana. O dia 21 de janeiro foi considerado dia nacional de
combate à intolerância religiosa, com vistas a oferecer, especialmente na
escola, oportunidades de reflexão sobre o princípio constitucional de
respeito de culto e de fé.

Figura 17 – Campanha contra a Intolerância Religiosa

Fonte: http://umaoutraopiniao.tumblr.com/post/11691314522/liberdade-
-religiosa-o-mundo-e-plural

d) Combater o racismo institucional, que é “aquele presente nas ins-


tituições públicas, na estrutura e organização da sociedade”. Uma das
manifestações do racismo institucional é a resistência em prontamente
executar as políticas públicas com o recorte étnico, como por exemplo,
implementar a Lei 10.639 nas escolas.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Figura 18 – Capa do Guia de enfrentamento ao Racismo Institucional

Fonte: www.geledes.com.br

As lutas do século XXI e os avanços foram possíveis, sobretudo, por um


determinante: o protagonismo de negros e negras.
Finalizamos este ensaio propondo que você pesquise sobre outras lutas,
conquistas e desafios do século XXI. Muitos temas podem ser pesquisados
como: saúde da população negra; o negro nas pesquisas e estudos nas uni-
versidades brasileiras; o negro nos meios de comunicação; violência policial
e juventude negra; racismo na educação e na escola; os avanços e desafios no
mercado de trabalho entre outros. Esperamos discutí-los em suas participa-
ções nos grupos de debate.

241
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Referenciais Bibliográficos

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola.


http://www.seppir.gov.br/arquivos-pdf/diretrizes-curriculares
LEITE, José Correia. ...E disse o velho militante José Correia Leite: depoi-
mentos e artigos. Organização e textos: Cuti (Luiz Silva). São Paulo: Secreta-
ria Municipal de Cultura, 1992.
ORGULHO DA COR. Em diálogo com outros países, o movimento negro
brasileiro cresceu nos anos 1970 sob vigilância da ditadura, para se afirmar
na democracia. In, http://www.revistadehistoria.com.br/secao/na-rhbn/
orgulho-da-cor-1
PEREIRA, Amauri Mendes. Para além do racismo e do antirracismo:
a construção de uma cultura de consciência negra. Itajaí: Editora Casa
Aberta, 2013.
SANTOS, Joel Rufino dos. “A luta organizada contra o racismo”. In: Bar-
bosa, Wilson do Nascimento (Org.). Atrás do muro da noite: dinâmica das
culturas afro-brasileiras. Brasília: Ministério da Cultura, Fundação Cultural
Palmares, 1994.
Sites/Blogs
http://maniadehistoria.wordpress.com/pesquisando-o-movimento-negro-no-
-brasil/

242
Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

SOBRE OS AUTORES

• Amailton Magno Azevedo - Professor do Programa de Estudos


Pós Graduados em História e do Departamento de História da
Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica
(PUC-SP). Possui graduação (Licenciatura e Bacharelado) em His-
tória pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1998),
mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (2000), doutorado em História pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (2006) e Pós-doutorado pela Universidade do
Texas em Austin (2011). Tem publicado diversos artigos com temá-
tica relacionada à música e à memória da Diáspora negra mestiça
no Brasil. Atua também como músico, tendo um disco gravado com
o título Mundo Atlântico de 2004.

• Ângelo Renato Biléssimo - Graduação em História pela Universi-


dade do Estado de Santa Catarina (2007) e mestrado em História
do Descobrimento e da Expansão pela Faculdade de Letras da Uni-
versidade de Lisboa (2011). Atualmente é historiador no Museu de
Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal de Santa Cata-
rina (MArquE/UFSC) e Pesquisador do Luisa Mahin - Instituto
de Estudos Culturais. Tem experiência na área de História, com
ênfase em História, Relações Econômicas e História do Brasil e de
Santa Catarina.

• Cláudia Mortari - Graduação em Licenciatura e Bacharelado em


História pela Universidade Federal de Santa Catarina (1995), Mes-
trado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (2000) e Doutorado em História pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2007). Atualmente
é professora adjunta da Universidade do Estado de Santa Catarina.

• Fábio Amorim Vieira - Graduado no curso de licenciatura e bacha-


relado em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina,
atuou no Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros - NEAB-UDESC
- de 2011 ao início de 2013 através de pesquisa com ênfase nas

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

populações de origem africana em Florianópolis nos séculos XIX e


XX. Realizou trabalho de conclusão de curso com pesquisa acerca
da história da África antiga e historiografia do Egito faraônico.
• Jeruse Maria Romão - Graduação em Pedagogia pela Universidade
do Estado de Santa Catarina (1983) e mestrado em Educação pela
Universidade Federal de Santa Catarina (2000). É consultora para a
implementação de políticas públicas para a promoção da igualdade
racial. Atua como coordenadora executiva em publicações na temá-
tica afro para a educação.

• Karla Leandro Rascke - Doutoranda em História Social pela Pon-


tifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e bolsista
CAPES. Mestrado em História Social pela PUC-SP (2013), Gra-
duada (Licenciatura e Bacharelado) em História pela Universidade
do Estado de Santa Catarina (2009). É pesquisadora associada ao
Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade do Estado de
Santa Catarina, Membro do Luisa Mahin - Instituto de Estudos Cul-
turais, atua na Coordenação Executiva e na Secretaria da Revista da
Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN). Pro-
fessora Formadora no Curso “Formação de Professores: produção e
difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e afri-
cana” organizado pelo NEAB-UDESC. Tutora a distância no curso
de Pedagogia da UDESC.

• Maristela dos Santos Simão - Graduação em História pela Universi-


dade do Estado de Santa Catarina (2006) e mestrado em História da
África pela Universidade de Lisboa (2011). Atualmente cursa espe-
cialização em Educação para a Diversidade com Ênfase em EJA do
IFSC, também é graduanda do Curso de Museologia da UFSC, pes-
quisadora do Instituto de Estudos Culturais Luisa Mahin e douto-
randa em Museologia pela Universidade Lusófona – Portugal. Tem
experiência na área de História e Educação, em ensino, pesquisa e
extensão, com ênfase em história africana e afro-brasileira, atuando
principalmente nos seguintes temas: diversidade, patrimônio, reli-
giosidade, cultura, identidade, educação e memória das populações
de origem africana.

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

• Paulino de Jesus Francisco Cardoso - Possui graduação em História


pela Universidade Federal de Santa Catarina (1988), mestrado em
História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1993) e
doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (2004). Atualmente é consultor - Casa das Áfricas, membro
da Comissão Técnica Nacional para Educação dos Afro-Brasileiros
do Ministério da Educação, membro do Conselho Nacional de Polí-
ticas de Promoção da Igualdade Racial da Secretaria de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR/SEPPIR) e professor
associado da Universidade do Estado de Santa Catarina. Coordena
o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UDESC. É presidente da
Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN). Tem expe-
riência na área de História, com ênfase em História e Populações de
Origem Africana no Brasil, atuando principalmente nos seguintes
temas: negros, educação, história, populações de origem africana e
multiculturalismo.

• Tamelusa Ceccato do Amaral - Possui pós-graduação (lato sensu)


em História Social no Ensino Fundamental e Médio pela Universi-
dade do Estado de Santa Catarina (2006). Atualmente é pesquisa-
dora associada do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Univer-
sidade do Estado de Santa Catarina (NEAB/UDESC) e professora
efetiva da Rede Municipal de Florianópolis, desenvolvendo traba-
lhos no assessoramento pedagógico na Diretoria de Ensino Funda-
mental - DEF.

• Willian Robson Soares Lucindo - Mestrado em História do tempo


presente pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)
sob a orientação do Professor Doutor Norberto Dallabrida e coo-
rientação do Professor Doutor Paulino de Jesus Francisco Car-
doso, com a dissertação intitulada “Educação no pós-Abolição: um
estudo sobre as propostas educacionais de afrodescendentes (São
Paulo/1918-1931)”. É professor da rede municipal de São Paulo,
também é membro do grupo de pesquisa: “Experiências das popu-
lações de origem africana em Santa Catarina no pós-abolição”,
desenvolvido pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiro da Universi-
dade do Estado de Santa Catarina (NEAB/UDESC).

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

Sobre os Organizadores
• Paulino de Jesus Francisco Cardoso

Graduação em História pela Universidade Federal de


Santa Catarina (1988), mestrado (1993) e doutorado em
História pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (2004). Atualmente é consultor - Casa das Áfricas,
membro da Comissão Técnica Nacional para Educação
dos Afro-Brasileiros do Ministério da Educação, mem-
bro do Conselho Nacional de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(CNPIR/SEPPIR) e professor associado da Universidade do Estado de Santa
Catarina. Coordena o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UDESC. É pre-
sidente da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) e
coordena o curso “Formação de Professores: produção e difusão de conteú-
dos sobre história e cultura afro-brasileira e africana” organizado pelo NEAB-
-UDESC com apoio do MEC-SECADI.

• Karla Leandro Rascke

Doutoranda em História Social pela Pontifícia Universi-


dade Católica de São Paulo (PUC/SP) e bolsista CAPES.
Mestrado em História Social pela PUC-SP (2013), Gra-
duação (Licenciatura e Bacharelado) em História pela
Universidade do Estado de Santa Catarina (2009). É pes-
quisadora associada ao Núcleo de Estudos Afro-Brasilei-
ros da Universidade do Estado de Santa Catarina, Conse-
lheira do Luisa Mahin - Instituto de Estudos Culturais, atua na Coordenação
Executiva e na Secretaria da Revista da Associação Brasileira de Pesquisado-
res/as Negros/as (ABPN). Professora tutora a distância no curso de Pedagogia
da UDESC. Recentemente foi agraciada com a 3ª Menção Honrosa no Con-
curso Silvio Romero de Monografias, edição 2014, com o trabalho “Divertem-
-se então à sua maneira”: festas e morte na Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito, Florianópolis (1888-1940).

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Formação de Professores: produção e difusão de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e africana

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IMPRESSÃO

ESTADO DE SANTA CATARINA


Secretaria de Estado da Administração
Diretoria da Imprensa Oficial e Editora de Santa Catarina

Rua Duque de Caxias, 261 – Saco dos Limões


CEP 88045-250 – Florianópolis – SC
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2014

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