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Pai d’água

(Heitor Gomes)

Ainda cedo, a gente descia do ônibus. Já sem camisa, meus irmãos se


aproveitavam do sol, pegando pareia em seus cambitos, pra ver quem chegava primeiro
a lugar nenhum. A afoiteza de bicho quando vê a cancela aberta. Eu, mais novo,
cambaio na existência, era arrastado pela mão de minha mãe, a gritar esganiçada que
eles nos esperassem.

Mãe devia era ter medo da perdição anunciada naquele mundaréu de gente.
O fuzuê de procurar pelos dois naquela areia toda queimando a planta do pé, mesmo que
bem cedinho. Porque a chinela e nada era a mesma coisa. Areia fina não tá nem ligando
se é rider ou havaianas. A diferença mesmo é só na hora da lapada. Havaiana é que
estalava doce no lombo. E disso a gente entendia.

É que os meninos queriam mesmo era cortar o mar, aos chutes, numa
voadora certeira, arremedo de mergulho de gente que nunca aprendeu a nadar em
escolinha. Não porque a gente não queria. É que o dinheiro era tão fino quanto aquela
areia que subiu depois dos meninos terem se ido na carreira. Ardia no olho igualzinho,
que nem eu peguei mãe chorando no escondido lá em casa no dia em que pai não esteve
mais com a gente. Só eu e os meninos comemos.

Mas a gente desceu do ônibus bem cedinho e os meninos foram com tudo.
Nem aí pro esganiçado de mãe. Galope afoito, tilibufo na água. De cá, mãe cuidava para
que eu, couro e osso, não embrenhasse no meio da perdição de gente.

Não lembro que idade eu tinha.Só de ver que mãe ficava feliz por ter uma
mão obediente ali de junto dela. Eu queria mesmo era correr. Arremessar pra longe
aquela havaiana azul afofada pelo desenho do pé do irmão mais velho, que passou de pé
em pé até caber no meu. A ponta do calcanhar desbotado na espuma; as tiras de
borracha roída de machucar entre dedo. Dava uma raiva.

Queria mesmo era sair de perto daquela mão suada apertando minhas juntas
com tanta força. Quem vê mãe, não sabe da força que carrega nas mãos. Força e suor.
Parece que o corpo buscou uma forma de não deixar aquele mulher tão bruta. Que nem
cacto, sabe? Que dá até flor e acumula água pra dentro. Pois ela escorria pra fora. A
bruteza era só distração.

Falando assim até parece que não gosto de mãe. É que ela se esquecia de
que apertar demais quebra. Alguma coisa sempre quebra. E naquela época, eu não sabia
falar de coisa assim. Só queria saber das águas geladinhas que vinham até a beirada.
Aquele veuzinho de espuma enfeitando renda nas franjas do mar. Isso sim era bom.
Distraía.

Quando dei por mim, mãe já estava com a toalha estendida na areia mais
molhada, mas nem tanto, que era pra não arder nos olhos. Porque ficar em mesa de bar
com cadeira de se deitar e tudo ela não ficava. Tinha que pagar a conta depois e a gente
só tinha mesmo o dinheiro do ônibus, uns trocados pra comprar picolé e um bronzeador
fuleiro. Sim, bronzeador. Ajudava a tirar a cara de anemia do rosto, mas não da vida.

Por isso, tirando a minha roupa, mãe me besuntava todo com aquele óleo
que parecia mais era ser de cozinha. Talvez fosse, quem haveria de questionar. Pobre
tem que acreditar em tudo mesmo pra fingir que tem alguma coisa de qualidade na vida.
Viver era mesmo fingir que estava tudo bem. Que nem quando mãe disse que tinha
batido o olho no armário da cozinha e os vizinhos tiraram pai de casa dizendo pra ele
não voltar. Ela pensa que não, mas eu sei. Só não digo que sei.

Os meninos voltaram na carreira pra junto da gente. Era tudo na pressa com
eles. Se jogaram com tudo no chão, espalhando areia nas coisas de mãe. Deu até pra ela
torcer a orelha de um e dar um cascudo no outro pra aprenderem a não sair de junto
dela.Queria rir na cara deles, mas me segurei. Pelo menos, o que estava escorrendo no
corpo deles era sal de mar e não de suor como no meu, que fingia gostar de fazer
castelos. A maresia me chamava e eu cutucava a areia como quem abre caminho na
entoca pra se perder no mundaréu de gente. Uma parte de mim ia. Talvez a mais
verdadeira. O filho que ela nem sabia que tinha. Que nem eu mesmo sabia que era.
Quem ficava ali de junto de mãe era uma casca que ela precisava ter entre as mãos.

Um arrepio me lambendo do couro ao osso. Olhei para o mar e me senti


parte dele. Parte de todos os corpos que estavam nele. Era isso viver? Sentir o outro no
arrepio lambido da pele?
Mãe queria a gente de junto sei nem pra quê. Deitava de costas na toalha,
enquanto o sol ainda tinha misericórdia. Fechava o olho e esquecia de tudo. Até dela
mesma, eu acho. Era só depois que virava de frente, com o sol mais ardido.Assim era
bom pra ela. Escondia as manchas roxas no corpo. Até quando, não sei. Só que ela
sempre voltava a sorrir depois disso.

Foi bem assim, nesse ensaio de liberdade, que corri cambaio. Nem aí se os
meninos me atropelariam em suas afoitagens. Desenhava com o pé a areia cada vez
mais molhada. Passei por aqui, vejam. Foi aí que eu me dei conta de que eu gostava sim
de ter os pés lambidos pelas línguas de sal que o mar tem. E que eu gostava sim daquela
imensidão e das pessoas naquela imensidão e do cheiro daquela imensidão e da
liberdade daquela imensidão... Parei. O medo tremendo nos joelhos que já nem via,
afogados na água que tanto queria.

Se o mar me puxasse pro fundo, quem haveria de me escutar? E depois pra


mãe me achar? Quedei ali mesmo. A areia abrindo espaço pra eu me acomodar de junto
dela. Nenhum apertão. Só ia enchendo mesmo os buracos de tudo em que ela cabia. Eu,
a areia e o mar. Uma coisa só e o mundaréu de gente. Era isso a perdição, as línguas de
sal lambendo meu corpo por inteiro? Isso sim era estalo doce. Sentir na pele mais do
que as lapadas de tudo que mãe zunia quando estava danada com a vida que passou a
ter.

Tapei o nariz com a mão e, quando estava bem cheião, abaixei a cabeça com
tudo. Mergulhei do meu jeitinho, sem cortar o mar, como fizeram meus irmãos. E
pareceu que eu ouvia uma voz fuxicando alguma coisa para mim. Não entendi foi nada.
Só sei que era como se eu tivesse em casa. Tentei abrir os olhos lá embaixo, pra ver o
que era que tinha, mas ardeu tanto. Será assim que mãe sentia?

Pensar nisso fez sumir o ar. Tentei subir e me equilibrar naquele balanço
todo. A areia parecia que nem ali estava mais. O olho queimando. A água sapecando a
garganta por dentro. Acho que gritei, mas ninguém me ouvia. E uma onda veio
atropelando como se me quisesse ali dentro dela e eu fui rolando sei nem pra onde mas
fui eu ia morrer e mãe nem saberia então era disso que ela tanto temia? Até que eu parei
de rolar. Um corpo sustentava o meu. Será gente?
Uma mão me segurou pelo braço. Um arrepio percorrendo do couro ao osso.
Diferente daquele primeiro. Era couro encontrando couro, osso encontrando osso. Sem
machucar as juntas, como já era de costume. Encontro de aprumar a vida em terra firme.
A água queimando em mim vindo à tona.

A mão tinha um corpo que tinha uma voz que tinha um nome que nem sei
qual é. Sei apenas que a voz desse corpo queria saber se estava tudo bem se eu estava
sozinho pra eu não ficar com medo que ele ia cuidar de mim. Ele. Não era os meninos,
que meus irmãos não são desse tipo. Também não era meu pai porque nunca mais
notícia. Era ele. Pensei nisso enquanto esfregava o olho pra abrir e me dar conta de onde
estava. Era ele, que poderia ser pai, mas irmão sei que não. Tinha nem idade pra isso,
mas a barba poderia ser de pai. Poderia ser de algo além de pai, hoje eu sei o nome
disso. Naquela época não. Naquela época, só sabia que foi na água que me senti vivo e
seguro.

Falei de minha mãe e dos meninos da toalha estendida e mãe deitada e ele
foi comigo na procura. Minha mão agora amortecida pela dele. Será isso viver? Queria
demorar mais naquela perdição.

Avistei os meninos jogando bola com um coco vazio, não muito longe dali.
Apontei pra onde meus irmãos estavam e disse pra ele que já não estava mais perdido.
A minha mão querendo desmentir tudo junto da dele. Ele ouviu,mas fez que não. Quis
seguir até lá de junto de mim. Desconversei. Não que eu não quisesse, mas mãe não ia
gostar nada de me ver assim de mão dada com alguém quem não fosse ela.

Disse obrigado e saí correndo. Não sem antes apertar a mão dele com força,
que é pras juntas dele não se esquecerem de mim. Porque naquela época, eu achava que
era com a força da brutalidade que se grava a existência na vida. Nem olhei pra trás.
Será que ele ficou ali olhando?

Sentei devagar de junto de mãe. Ela já estava de barriga pra cima. Será que
se deu conta que eu não estava ali? Voltei a cutucar o chão. Olhar perdido na imensidão
toda. Ele já não estava ali. Torci para que a água subisse rápido e chegasse até a gente,
só pra eu sentir novamente as lambidinhas do mar e, quem sabe, me perder de novo.
Mas ainda era cedo demais pra maré encher e mãe tinha deixado o almoço pronto antes
de sair de casa.
Não demorou muito e o vendedor de picolé passou com a sua sineta. Aí foi
que mãe despertou com o sorriso na cara. Nem se deu conta da imensidão que aconteceu
ali. Catou as moedas na bolsa e reuniu as crias na ostentação de uma família feliz.
Compramos um, de mangaba; dois, de amendoim; e um, de maçã-verde. Felicidade
sempre foi assim pra mim, a doçura que azeda no finzinho.

Voltamos antes do horário de almoço para que a barriga não começasse a


gritar desesperada. De dor mesmo, já bastava a da areia quente queimando os pés, agora
mais quente ainda com o sol quase ficando a pino. Corri com os olhos pela última vez e
nada dele.

Subimos no ônibus que não demorou a chegar. Os meninos, aproveitando a


multidão, passaram por baixo da catraca. Eu e mãe cruzamos juntos, eu todo
espremidinho enquanto ela girava a borboleta. Adormeci no colo dela sem me dar conta
de quanto tempo durou o percurso até a nossa casa.

Quando chegamos, fui tomar banho. Vesti roupa limpa para o almoço
requentado e, sentado à mesa, senti como se meu corpo estivesse dentro daquele cheião
todo e as vozes do mar voltassem a me chamar. Elas estavam dentro de mim, as línguas
de sal. Indo e vindo, com toda a sua lambeção. Senti a onda afoita me revirando nas
profundezas. A minha mão amortecida na dele, não apertada. A barba de pai que nunca
tive, mas que poderia ter. Só do rosto que não lembrava bem. Será que o reconheceria
no mundaréu de gente por aí?

Não contei nada a ninguém, nem a mãe, nem aos meninos, com medo de
que eles, aos chutes, quisessem cortar o mar que havia dentro de mim, numa voadora só.

(14/06/2021)

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