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EVASÕES POÉTICAS

Alice Souto
Aline Lebens
Audrian Cassanelli
Danay Ferreira
Eduarda Farina
Eduardo Wildner
Emílio Juane Bruski
Gerli Mendes
Ibriela Bianca
Josif Nikto
Kairo Madah da Costa Moraes
Leonardo Nolde
Luana Terra
Maria Luiza Souza
Mariana Berta
Théo Fortes

ORGANIZAÇÃO
Fernando Boppré
Rubi Iara
“Desolado alquimista da Dor, Artista,
tu a depuras, a fluidificas, a espiritualizas,
e ela fica para sempre, imaculada essência,
sacramentando divinamente a tua Obra.”

CRUZ E SOUSA, Evocações


Prefácio
11 Uma coletânea de reexistências
do Oeste de Santa Catarina
por Fernando Boppré e Rubi Iara

19 O jardim de Berenice
Alice Souto
27 Passo a passo
Aline Lebens
35 Filho da soja
Audrian Cassanelli
39 Memórias de uma infância coletiva
Danay Ferreira
43 Antítese
45 Geopoema III
Eduarda Farina
47 Porque a solidão é boa mas
Eduardo Wildner
51 Dissidentes
53 Salve
Emílio Juane Bruski
55 A Capitolina
Gerli Mendes
59 mundo cão
62 andar nu
63 delibero o nada
Ibriela Bianca
65 Isolamento
Josif Nikto
69 Poema-digestão
Kairo Madah da Costa Moraes
73 Xapecorpos
Leonardo Nolde
77 Milho de São João
Luana Terra
81 Sapatão viva
Maria Luiza Souza
85 égua de raiva e mel
86 sem título
87 milpa fofoqueira
Mariana Berta
89 Fora da medida
Théo Fortes

93 Quem é quem
Prefácio Uma coletânea de reexistências
do Oeste de Santa Catarina

Fernando Boppré
Rubi Iara

Um encontro-coletânea de evasões poéticas. Prosas


e poemas que retiram les escritories do mundo que violenta
por ser o mundo que é. Um mundo que avança de coturno.
Pisa, chuta e tropeça no que lhe é invisível. Quais são essas
evasões poéticas? Quais os subterfúgios vividos? De onde
se contempla o mundo que tropeça na pessoa que contem-
pla o tropeço? Um livro assim é um destes tropeços
do mundo com o invisível. (Trecho da convocatória
de Evasões poéticas)

Este livro é um arquivo de insubordinações. Vozes evasivas


que fazem da escrita poética uma força irradiadora do viver. Não
que a morte e o extermínio não apareçam aqui. Estão distribu-
ídos em doses cavalares ao longo da construção de cada escri-
torie. Afinal, são sujeitos que, de um modo ou de outro, equili-
bram-se para sobreviver neste mundo que ruma entre labaredas
e convulsões em direção ao abismo.
São dezesseis autories que atenderam a uma convocatória
aberta em 2021 e concluída em maio de 2022. Ao todo, cinquenta e
três inscrições, das quais foram selecionados oito homens, sendo
dois destes pessoas transmasculinas; uma pessoa transbigê-
nera; e sete mulheres cisgênero. Essa configuração é resultado
da chamada que estimulou a participação de pessoas que vivem

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na intersecção de diferentes opressões, como racismo, miso- mente metafórica, fornece. Sedução em mão dupla: despertar o
ginia, homofobia, transfobia, xenofobia e preconceito de classe. interesse da pessoa que escreve a partir de um lugar social, assim
Este período corresponde aos últimos anos do governo evocado, encontrando a oportunidade de realizar seu desejo de
de extrema-direita de Jair Bolsonaro. Direitos foram violados, publicar, por uma parte, e, por outra, despertar em quem publica
avanços em direção à justiça social foram contidos e a boiada o desejo de estar nesse lugar, sentir-se reexistindo ou testemu-
passou sobre nossas matas e corpos. Para piorar, vivemos em nhando reexistências.
um estado sulista, Santa Catarina, que registra elevados índices
de violência de gênero e política, acompanhados de histórias ⚫ ⚫ ⚫

assombrosas de dogmatismos e segregacionismos.


Assim sendo, dedicar-se à arte, conduzir um trabalho Ao longo das escritas, é possível perceber a presença da
artístico por aqui é um exercício desgastante e pouco valorizado. paisagem urbana contemporânea, mas também a permanência
Cruz e Sousa (1861-1898) que o diga. Poeta que a branquitude do modo de vida campesino, aqui elaborado como poética do
supremacista catarinense obrigou a se exilar no Rio de Janeiro. existir. Se, por um lado, o espaço da cidade é cenário de deam-
Uma estrela luminosa da literatura mundial que por aqui foi bulações (Gerli Mendes, Kairo Madah da Costa Moraes), fonte
tratado como um ser inferior e relegado ao racismo, à miséria e de perturbação (Ibriela Bianca, Leonardo Nolde) e produtor de
às doenças. Não por acaso, a epígrafe deste livro o homenageia. solidões (Eduardo Wildner, Josif Nikto); por outro, o ambiente
rural surge mais bem-humorado (Luana Terra, Mariana Berta),
⚫ ⚫ ⚫ sem deixar de lado a crítica cerrada ao agronegócio, já que, na
história recente, o acesso à terra é sinônimo de exclusão e luta. É
Parte do texto da convocatória divulgada em websites, possível escutar nas entrelinhas a reverberação de movimentos
redes sociais e cartazes — assinado por “Rubi Iara (Universidade sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
Federal da Fronteira Sul), Fernando Boppré (Editora Humana) (MST) e do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC).
e Giba Duarte (Plataforma Açu), três pessoas brancas de classe Aqui está o registro de impasses estruturais da socie-
média dizendo ‘só vem’” —, declarava o seguinte: “A ideia é dade brasileira contemporânea: a violência sistemática contra a
publicar escritas que se evadam do mundo violento, escritas de mulher (Aline Lebens, Maria Luiza Souza), as investidas do capital
reexistências de pessoas hipersingulares. Interessa incorporar contra o bem viver e as espécies companheiras (Audrian Cassa-
também o que cês querem. Não é isso que move a escrita que se nelli, Danay Ferreira), a tentativa de apagamento de vidas que
evade? Temos coisas para decidir ainda.” não se encaixam no status quo (Alice Souto, Eduarda Farina) e a
Na chamada, fizemos, pois, um convite para o jogo de possi- guerra cultural travada em torno da liberdade de gênero (Emílio
bilidades que a metáfora instaura com o título do livro: “evasões Juane Bruski, Théo Fortes).
poéticas”. Evadir-se para escapar da opressão, a fuga como gesto
de resistência, para que se permita a respiração e a liberdade. ⚫ ⚫ ⚫

Apostamos na ferramenta de sedução que a linguagem, comu-

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A publicação deste Evasões poéticas, entre outras ações, é o desenho estampado na capa, sintetizando bem o espírito desta
o resultado da execução de um projeto de extensão em cultura publicação; com Marília Amorim, livreira da Humana Sebo e
na área de literatura, coordenado pela professora Rubi Iara, Livraria, que atuou como produtora do projeto submetido a um
vinculada ao projeto de pesquisa “Efeitos metafóricos em dife- edital de cultura estadual; com Ricardo Machado, que colabora
rentes espaços de apresentação de textos”, do grupo de pesquisa voluntariamente no conceito e nos trabalhos da Editora Humana.
“Língua(gem), Discurso e Subjetividade”, da Universidade Federal Cabe registrar que, embora fortalecidos nesta rede colabora-
da Fronteira Sul (UFFS), campus Chapecó, coordenado pelo tiva que articulou escritories, editories, artistas e profissionais do
professor Valdir Prigol. Através desse projeto, a publicação mercado editorial, nosso percurso não foi fácil. Fomos sabotades
da coletânea contou com recursos da Fundação de Amparo à pelo Prêmio Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura, da Fundação
Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (FAPESC) e da Catarinense de Cultura/Governo do Estado de Santa Catarina.
Editora Humana, de Chapecó, selo da Humana Sebo e Livraria. No ano de 2022, inscrevemos projeto em busca de recursos para
É uma iniciativa inovadora articular pesquisa e extensão a ampliação da tiragem, o pagamento de direitos autorais, bem
universitária, ações de um grupo de pesquisa e uma editora local, como para a realização de ações de contrapartida social. Contudo,
o que aponta para as possibilidades da produção cultural como alegando a inexistência de uma assinatura — que, com definitiva
forma de atuação da universidade na região em que se insere. certeza, estava inserida conforme determinado pelo edital —,
Este livro compõe a coleção Humana Poesia, um esforço de fomos barrades na etapa de admissão de documentos. Ainda que
curadoria, invenção e reunião de registros poéticos provindos tenhamos interposto um recurso, fomos excluídes.
do entorno ou das distâncias. Considerando a falta de editoras Apesar da insensibilidade e do amadorismo do órgão esta-
voltadas à literatura, às artes e às ciências humanas no Oeste de dual de cultura, é louvável a possibilidade de se utilizar recursos
Santa Catarina, a Humana tem insistido na circulação da poesia destinados à pesquisa acadêmica para a publicação de um livro
em forma de livro, como forma de preservar o caráter imprescin- realizado em plena atividade de extensão à comunidade literária
dível da escrita poética. Considerando que um milhão e duzentas do entorno. Com o recurso previsto pela FAPESC, foram finan-
mil pessoas conformam a população do Oeste, é espantosa a rari- ciados o projeto gráfico, a revisão, a impressão de cinquenta
dade dos que escrevem e publicam livros em prosa ou poema. exemplares e o ebook, sendo o restante dos serviços editoriais
Estas Evasões poéticas, que inicialmente tinham o subtítulo coberto pela Editora Humana, selo da Humana Sebo e Livraria.
Uma coletânea do Oeste Catarinense, mas que, por opção edito- Trata-se de um movimento independente que luta para sobre-
rial, transferimos para o título deste prefácio, é um esforço para viver como espaço de encontro entre pessoas, ideias e livros no
publicar mais autories, para que sintam o estímulo, a valorização Centro de Chapecó. Dizemos isso, pois, entre outros motivos, não
e continuem sua produção literária aqui ou em outras paragens. é fácil fazer existir uma livraria de rua em tempos de Amazon
Além disso, estas páginas surgiram de práticas colabo- e de todo o comércio desleal que esta maldita multinacional
rativas que ativaram importantes parcerias: com a Plataforma pratica com o setor livreiro no Brasil.
Açu, através da participação indispensável no processo da
convocatória de Giba Duarte e de Iam Campigotto, que nos cedeu ⚫ ⚫ ⚫

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As contribuições são de uma grande diversidade de
estilos de escrita, como poderão ler. As memórias e os grilhões
do passado, as potências e agruras do tempo presente, do aqui
e agora. A escrita de si como estratégia narrativa é recorrente,
registrando ou ficcionalizando a experiência vivida como ponto
de partida e/ou pano de fundo de contos e poemas. Permite
refletirmos sobre a metáfora como uma forma de mediação não
apenas da leitura, mas da escrita – à medida que les escrito-
ries, de diferentes formas, inscrevem seus textos como evasões
poéticas.

Verão escaldante de 2023.

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Alice Souto O jardim de Berenice

Desde que deixou o emprego na sua cidade para acompa-


nhar o homem que agora é seu ex-marido, Berenice sente um
enorme constrangimento quando lhe perguntam o que ela faz.
No contrato de locação da singela casa de madeira onde mora,
para seu desgosto, consta a ocupação do lar. “Praticamente um
barraco”, ela pensa. Mas as pessoas de Chapecó olham para sua
casa e dizem com um misto de pena e ternura: “parece casa de
vovó”. Certamente ela já morou em lugares muito piores. Agora
pelo menos tem um quintal onde consegue cultivar suas ervas. Já
não suportava mais ficar enfiada dentro de um espaço pequeno
todo o tempo em função do menino. Era como se só existisse nos
momentos em que seu filho dormia. E desde bebezinho o piá já
era meio diferente. Depois do diagnóstico, veio a separação. Era
como se o marido não suportasse conviver com uma criança
atípica. Mas agora ao menos havia os fins de semana do pai,
quando ela podia se dedicar à sua paixão, a escrita.
Uma escrita, porém, marcada por muitas interrupções e
pouca prática. Não lhe faltava imaginação, mas sobrava reali-
dade. Parece que tudo, menos a literatura, acabava sendo uma
prioridade. Embora um edital fosse uma oportunidade econô-
mica para dar vazão a uma publicação — poupando-a da
energia de editar um livro próprio —, era também uma exce-
lente oportunidade de ser excluída. Para uma pessoa cuja marca
de origem é a constante sensação de exclusão, é preciso muita
disposição para oferecer assim a sua autoestima de bandeja.
Berenice pensa que, se ao menos se tratasse de um concurso com
um prêmio em dinheiro, seria mais fácil, já que se humilhar por
causa de dinheiro é uma prática corriqueira de sua classe social.

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Mas buscar humilhação gratuita apenas em função de um sonho Neste dia bom, Doraliz, antes de despertar completamente,
é um luxo que não sabia se cabia no seu orçamento emocional. sente uma presença quentinha em sua cama e percebe que seu
Desse modo, até muito próximo do prazo final da inscrição, filho veio se deitar ao seu lado de madrugada sem que ela perce-
ela ainda não havia se decidido. Porém, hoje de manhã, recebeu besse. Então ela se dá conta de que esta é a primeira vez em
uma mensagem de uma colega de seu ex-marido, que é professor muito tempo que tem uma noite de sono contínuo e seu coração
da Federal, dizendo que havia sido prorrogado. E aquele pequeno se enche de alegria com a possibilidade de que esse se torne um
gesto pesou na balança. Quem diria que os doutorados poderiam novo hábito. Ainda antes de se levantar, ela sente o hálito doce
estar interessados na sua participação! Além disso, era sinal de da criança e pensa que valeu a pena a luta para que escovasse os
que até aquele momento havia poucas inscrições, o que aumen- dentes antes de dormir.
tava sua chance. Fora o fato de que coincidiu de ser o dia do Levanta-se devagar e ainda tem tempo de tomar um banho
menino com o pai. Então ela acende um baseado e decide final- quente e demorado antes de ir acordar o menino. Deita-se ao seu
mente redigir uma prosa sob o pretexto de uma personagem lado e vai chamando seu nome. A primeira coisa que o pequeno
com o nome similar ao seu. faz é agarrá-la pelo pescoço e dar uma deliciosa risada. Antes de
A história versa sobre um dia no cotidiano de Doraliz, que, começar a dar mil gritinhos, correr de um lado para o outro ou
assim como sua autora, é divorciada e mãe de um menino autista escalar todos os móveis da casa, o menino abre os olhos e por
de quatro anos de idade. Berenice sabe que pode parecer uma alguns segundos sustenta o olhar. E aquele simples olhar, que é
sinopse pouco promissora, mas o edital dizia qualquer coisa tão corriqueiro na vivência de qualquer mãe comum, para a mãe
sobre “reexistência”, e essa palavra a tocou, pois o que ela queria, atípica é uma vitória. Doraliz se alegra e pensa: “finalmente acho
justamente, era afirmar que ela existe. Isso porque dificilmente que as terapias estão funcionando!” O menino ainda não fala e tem
encontrava uma mulher como ela representada na literatura. pouco interesse por qualquer coisa que vá além de seu próprio
Parecia que mulheres como Berenice, na melhor das hipóteses, corpo. Sua característica principal é da busca sensorial; por isso
estavam fadadas às histórias tristes de superação. E ela ainda se diverte com toda sorte de estímulos, que frequentemente fogem
desconfiava que alguma coisa naquele edital clamava por uma ao controle. Um abraço se transforma rapidamente em arranhão,
vítima. Não que não houvesse momentos em que se sentisse um beijo em mordida e um carinho em puxão de cabelo.
miseravelmente frustrada diante das expectativas da família ou Mas hoje seu filho estava um pouco mais tranquilo, e Doraliz
da normalidade, mas definitivamente sua vida não se resumia se sentia confiante, pois o sustentar do olhar é prenúncio de co-
àqueles olhares de pena. Muito mais que uma pobre abandonada municação. E enquanto ela descascava uma fruta para o café da
pelo marido, ela queria dizer que era alguém capaz de cultivar manhã, teve uma inspiração para um poema sobre aquele dia
filho, flores e narrativas. E quando o beck bate com toda força, bom. Ela começa a escrever um verso rapidamente no celular,
Berenice sente a urgência em gritar para o mundo que não há mas o menino insiste em arrancá-lo da sua mão. Pensa rápido
nada a ser superado na condição de seu filho. Pelo contrário, que alguma coisa que possa distraí-lo e ergue uma enorme melancia
a vida de uma mãe atípica pode ser abundante e repleta de gozo. que havia comprado na feira. Não funciona, mas ela ri interna-
Mas para isso ela vai ter que fazer o recorte de um dia bom. mente do fracasso do ditado que diz: se quer aparecer, bota uma

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melancia na cabeça. O devaneio fez com que se desequilibrasse, difere de fumar um baseado. Por isso a estratégia de usar de uma
deixando cair a melancia no chão, o que causou um terremo- personagem autoficcional para poder falar dos maravilhosos
to doméstico. O incidente acabou inclinando a casa de madei- efeitos da sua erva sobre a maternidade atípica.
ra suspensa sobre quatro pilares desgastados sobre o chão. Por Doraliz, depois de alimentar o menino, concordou em
sorte, o menino não foi atingido e ainda acabou se divertindo ao deixá-lo assistir à Galinha Pintadinha. Agora, todos os olhares
subir sobre a fruta. E só então desistiu de pegar o celular. do moleque estavam inteiramente voltados para aquela maldita
Nesse ponto do texto, a onda do baseado de Berenice começa vedete de plumas azuis, que consegue atrair toda atenção que ela
a baixar. Ela sente fome, sente tesão, dispersão e vontade de mesma nunca conseguiu extrair dele. E Doraliz escreve: tenho
fazer qualquer coisa diferente de escrever. Resolve se masturbar. ciúmes da Galinha Pintadinha. Não era bem isso que ela havia
Pensa que talvez tenha sido um erro fumar um para começar pensado para o seu poema. Mas a essa altura, que poema? Queria
a escrever, pois o que sobra em entusiasmo acaba faltando em escrever uma poesia, mas tem muita louça na pia. Ela resolve
foco. Mas uma coisa é certa: se ela fosse descrever detalhada- que vai fazer a louca e deixar de lavar a louça. Hoje era dia de
mente todas as ações do dia da vida de sua personagem, escre- comemorar a vitória daquele olhar.
veria tantas páginas que excederia o limite do edital. O que não Por isso, Doraliz resolve sair do script e fumar aquela
deixaria de ser um tapa na cara de todos aqueles que acham pontinha da noite passada. Mas logo entra o anúncio do Youtube,
que a vida da mãe dentro de casa é “parada”. Berenice se lembra e ela aproveita para desligar a televisão. Agora o piá já tá bem
de certa vez que mostrou um conto para um amigo escritor, e louco de novo olhando para várias direções como se visse anjos,
ele disse que faltava ação. Bom, ação talvez seria se a melancia luzes, cores, assombrações... Talvez dentro da sua cabeça exista
caísse sobre a cabeça do piá e ela, sua personagem, tivesse que ir uma festa rave. No sentimento do menino, a mãe está sendo
correndo para o pronto-socorro. Mas definitivamente esse não chata, pois fica insistindo em tirá-lo do seu barato. Ora, se não
seria o acontecimento de um dia bom. seria maravilhoso rolar pelo tapete e ignorar solenemente a
Berenice resolve segurar a onda, pois ao fim do dia vai existência do Bolsonaro? Estes são pensamentos que brotam na
encontrar seu namorado. Um homem simples, operário, que consciência alterada de Berenice e a ajudam a compreender e
cuida da mãe doente e mora no bairro. Ela pensa que preci- aceitar melhor a existência do seu menino. E quando a brinca-
saria terminar o conto antes de ele chegar, e também que tem deira de rolar sobre o tapete como quem faz um passo de break já
uma louça enorme na pia ainda de ontem para ser lavada. Ou começava a ficar um pouco extrema, Doraliz lança mão da massa
talvez ela devesse desistir deste edital e simplesmente postar de modelar. Só a massinha salva!
aos poucos sua história no Instagram. No entanto, até hoje nunca Quando o namorado de Berenice chega em casa, ele
teve coragem de publicar nada que envolvesse cannabis no seu pergunta: “Conseguiu terminar o seu texto?” Ela responde que
perfil. Sabe que é muito escândalo para esta cidade conserva- está pensando em desistir porque acha que não vai dar tempo.
dora, e risco até de perder a guarda do filho. A ironia é que o “Deixa que eu arrumo as coisas e faço um macarrão enquanto
seu próprio menino, graças a Jah e a uma neuropsiquiatra ilumi- você escreve mais um pouco”. E ela pensa alguma forma de incluir
nada, também toma suas gotinhas de CBD. O que evidentemente um homem como este na história. Não que seja uma coisa assim

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tão extraordinária que ele seja um adulto funcional. Mas defini- que chega a dar a sensação de fazer a casa de madeira se inclinar
tivamente é uma forma de rebater a ideia de que seja impossível um pouco mais, em direção ao chão. Um orgasmo tão bom que
para uma mãe atípica divorciada ter ao seu lado um compa- Doraliz até peida. Um orgasmo tão maravilhoso que a faz retomar
nheiro colaborativo. Mas um namorado para Doraliz, a esta a narrativa da sua vida e terminar aquele poema. E Berenice fica
altura da história, exigiria muito desdobramento. Os caracteres tão entusiasmada após a deliciosa macarronada que, na hora de
vão chegando ao fim e talvez a masturbação feminina seja ainda transar com o seu namorado, faz sacudir tanto a casa que chega
subversiva. Quantos encontros ruins a mulher hétero não poderia a quebrar o pilar. E ela pensa que esta deve ser uma excelente
evitar pelo simples poder da siririca? É isso. Só a siririca salva! forma de terminar a história, no seu computador inclinado numa
Na casa de Doraliz, o menino esfrega a massa de modelar casa que um dia chegou a tombar de prazer.
no nariz, no cabelo e na testa. Joga no chão e vai pisando cada
vez mais rápido. Pega do pé com a mão e já se percebe que não
consegue conter a excitação. Lança para a mãe um breve olhar,
desses de piá que vai aprontar. Encosta a massinha nos lábios, e
Doraliz diz: “Na boca, não!” O guri faz um movimento rápido, mas
não tanto como a mão de Doraliz, heroína, que consegue segurar
seu braço. E, de repente, vira o tempo. É como se Doraliz fosse a
polícia e ele, o bandido. Bateu a bad, e o menino virou bicho. Puxa
cabelo, arranha, chora e grita. Felizmente tem macarrão pronto
na geladeira e já era mesmo hora do almoço. “Mamãe vai te dar
outra massinha, filho! Vem papar!”
E depois do almoço é hora de levar para a escola. Doraliz
volta para casa saltitante com aquela leveza de entregar a
criança e ter aquelas únicas quatro horas do dia de existência
própria, fora do plantão diário. Voltar para casa com a firmeza
no propósito de terminar aquele baseado precocemente apagado
antes de lavar os pratos. Na sequência, lembra-se de seu próprio
corpo e resolve fazer um alongamento. Neste ponto, Doraliz se
sente tão bem que é como se algo acordasse dentro dela. E ela
sente vontade de ter algo dentro dela. Mais especificamente um
vibrador, que estava muito bem guardado no fundo da gaveta das
calcinhas.
Berenice pensa que um excelente jeito de terminar este
texto só pode ser com um orgasmo. Mas um orgasmo tão bom

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Aline Lebens Passo a passo

A nossa guerra é diferente destas tantas outras guerras.


A nossa guerra,
embora singular,
é feita de plurais.
A nossa guerra
é feita de
guerras.

A nossa guerra
é destas que não se pede para ter,
não se pede para lutar.
É destas que se nasce predestinada a lutar.
Por sina ou destino
ou fado, ou ideia de poder de alguns.
Ideia de poder de alguns,
vinda da desigualdade,
da superioridade.

A nossa guerra
é destas que não se pede para ter,
não se pede para lutar.
É destas que se nasce predestinada a lutar.
Ou se luta,
ou
se luta.

Não pedimos esta guerra


que hoje

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é nossa. Escolher a rua
Eu não pedi esta guerra mais movimentada,
que hoje mais iluminada.
é minha. Compartilhar a localização com alguém.
Aliás, Olhar para trás.
ela sempre foi nossa, Apertar o passo.
ela sempre foi minha. “Hoje não.” “Hoje não.” “Hoje não.”
Foi nos dada, juntamente, com duas opções:
ou lutar, Todo dia.
ou A mesma guerra. A mesma luta.
lutar. Segunda a domingo.
Domingo a segunda.
De arma? Descer do ônibus.
Uma espécie de rotina. Apertar o passo.
Uma espécie de circuito: Olhar para trás.
um “passo a passo” Escolher a rua
mais movimentada,
Descer do ônibus. mais iluminada.
Apertar o passo. Compartilhar a localização com alguém.
Olhar para trás. Olhar para trás.
Escolher a rua Apertar o passo.
mais movimentada, “Hoje não.” “Hoje não.” “Hoje não.”
mais iluminada.
Compartilhar a localização com alguém. Da casa pro trabalho.
Olhar para trás. Do trabalho pra casa.
Apertar o passo. Descer do ônibus.
“Hoje não.” “Hoje não.” “Hoje não.” Apertar o passo.
Olhar para trás.
Todo dia. Escolher a rua
Todo dia lutar a guerra que não pediu. mais movimentada,
Descer do ônibus. mais iluminada.
Apertar o passo. Compartilhar a localização com alguém.
Olhar para trás. Olhar para trás.

28 29
Apertar o passo. Estatística.
“Hoje não.” “Hoje não.” “Hoje não.” Se tornar só mais um número
de violentada,
Da casa pra faculdade. de violada.
Da faculdade pra casa. Se tornar só mais um número
Descer do ônibus. e um motivo
Apertar o passo. para que justifiquem.
Olhar para trás.
Escolher a rua “Batom vermelho?
mais movimen… Ela merecia!”
“Horário?
Nem, ao menos, Ela pediu!”
uma mísera oportunidade “Roupa curta?
de escolher a rua, Ela merecia!”
de decidir se queria essa luta “Andando sozinha?
ou não. Ela pediu!”
Poder de decisão... “Mãe solteira?
Autonomia corporal... Ela merecia!”
Tudo tirado dela, “‘Tava’ bêbada?
tudo predestinado a não ser dela, Ela pediu!”
desde o dia que alguém descobriu que
ela era ela. 66 mil. ¹
Não por sina, Sessenta e seis mil.
não por destino, 66 mil bocas vermelhas pelo batom.
não por fado. 66 mil horas inadequadas.
66 mil nuas.
Descer do ônibus. 66 mil minissaias.
Apertar o passo. 66 mil calças.
Olhar para trás. 66 mil fraldas.
Escolher a rua
mais movimen… 66 mil sendo “ela”
Se tornar número… 66 mil.
só mais um número. Sessenta e seis mil.

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66 mil justificativas.
Mas nenhuma justificativa
para essa guerra
que ninguém pediu para
lutar.

¹ 66 mil: Escrito no ano de 2020, o poema usa dados estatísticos. Segundo o


Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do ano anterior, onde consta que
foram registrados 66.123 boletins de ocorrência de estupro, sendo 85,7%
vítimas do sexo feminino. Entretanto, sabe-se que este número pode ser ainda
maior, tendo em vista que a maioria das mulheres não denuncia o agressor e
a violência sofrida.

32
Audrian Cassanelli Filho da soja

Desde sempre estive rodeado pelas monoculturas. Da


janela de meu quarto conseguia observar os campos de soja nos
arredores da cidade. Vez ou outra ainda na infância visitei tais
campos. E o que me chamou atenção não foi a imponência de
um manto verde de soja, plantadas lado a lado em uma simetria
perfeita. O que me deixou interessado mesmo foi poder observar
plantas outras, que, como meu pai mesmo dizia: “Eram sem
serventia para o agronegócio”. Plantas que nasciam entre os pés
de soja que meu pai cuidava com tanto afinco.
Esses inços, cada qual a seu jeito, insistiam em nascer na
terra lavada por Roundup, teimavam em crescer onde ninguém
queria que eles nascessem. Rebrotavam mesmo depois de todas
as investidas de meu pai em exterminá-los. Iam contra toda a
lógica de uma sociedade estruturada em torno da ideia de produ-
tividade no campo, isso de nascer, crescer, dar lucro e morrer.
Eu nunca fui soja, era o filho não planejado, criado por mãe
solo, certamente eu era uma peste. Tanto isso é fato que meu
pai agricultor, destes que plantam soja desde que se entende
por gente, assim que me identificou como inço, ainda criança,
me arrancou de sua vida com o mesmo vigor que ele insistia em
eliminar todas as ervas daninhas da lavoura.
Em uma das visitas de final de semana, ele disse: “Filho
meu não vai ser maricas! Não tenho mais filho!”
Ouvi a porta bater atrás de mim. Esta porta nunca mais se
abriu.
Cresci em meio às monoculturas, de grãos e principal-
mente de mentes. Tentei me encaixar, mas tal quais os inços nas
lavouras, minha presença destoava daquele lugar. Hoje entendo

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que meu lugar é aqui, em meio à soja. Pode parecer contraditório,
mas, ao invés de fugir, eu escolhi resistir daqui do chão de onde
nasci. Rodeado pela soja e pelos coronéis financiados pelo agro-
negócio, em um dos estados mais fascistas do país. Sigo sendo
professor e procurando outros inços, outras bixas do mato, toda
a sorte de gentes-pestes e filhos expulsos.
Se eu nasci filho da soja, hoje me tornei filho das ervas-
daninhas.

36
Danay Ferreira Memórias de uma infância coletiva

Reintegração de posse
Começa uma fumaça, um cheiro forte, todos estão caminhando de
um lado para o outro, olhos grilados e punhos cerrados, coração
apertado, olhos fitando as luzes vermelhas. Estou sentada no
asfalto olhando para as luzes vermelhas, a minha sensação é
uma mistura de nervosismo e graça, estou junto com outras
crianças e estamos curiosas. As duas luzes vermelhas discutem
sobre o asfalto, o que se sabe é que uma quer jogar mais fumaça
e a outra está tentando “negociar”. Estamos ali horas olhando e
nada acontece.

Disco
Quando ela começava, era um baile, todos corriam, gritavam e
saíam a pregar os barracos, colocar lona nos buracos, buscar
lenha, recolher as roupas, chamar as crianças numa tentativa
perdida de fazer com que elas não se molhassem. A chuva era
um acontecimento, todos corriam para a rua de pés descalços
cantando, dançando e brincando. Quando ela acalmava, era a
hora deles, os discos voadores. A gente se reunia nos barracos
coletivos, todos abriam eles com as mãos e os fritavam. Lembro
que só um já era suficiente, a gente sentava e comia os discos
vendo e sentindo a chuva cair sobre a lona.

Banho
No entardecer sobre as casas pretas, uns quantos pequenos
e pequenas iam com suas mães descendo em fila indiana um
barranco, um rumor de choro e gritos, lembro que no verão era
uma gritaria e gargalhadas e rostinhos brilhando, a água era bem

39
fresquinha. As mães faziam a gente tomar banho rápido, éramos esse momento, para poder visita-lo várias vezes durante a minha
sempre os primeiros. Era tão bom o cheiro de sabão de soda vida. Sempre quando estou no meio de uma multidão, eu abro os
e a sensação do frescor da tarde caindo sobre a sanga onde as braços e fecho os meus olhos, na tentativa momentânea de sentir
mães e as crianças tiravam o cansaço do dia, chegar no barraco e mais e mais uma vez a sensação de pertencer a um só corpo.
tomar um leite batido bem quentinho. Marcha de livramento a São Gabriel 2006.

Fogueira
Flores
Ao entardecer a gente se reunia, em volta dela um clarão amarelo
No meu sonho, estou em um lugar cheio de flores e rosas. Eu
que exalava o calor doce e o cheiro de chá. Sobre a fogueira,
caminho sobre elas, vou sentindo o cheiro forte que elas exalam,
olhos curiosos, lembro das músicas dos rostos das pessoas,
fico horas ali caminhando entre as flores, meio que tonta com o
das histórias, do Vulcano, assim que a gente chamava, quando
forte cheiro delas. Não consigo dizer quantas vezes já contei este
ele chegava. Todos nós ficávamos muito animados, era o nosso
sonho, hoje eu sei que é uma memória. A minha mente recons-
momento da noite, o brilho nos nossos olhos era quase como o
titui o lugar, e assim a memória afetiva entra em cena. O lugar é
brilho da fogueira. E lá estava ele: enchia a boca de líquido infla-
um lago calmo e convidativo, perto dali tem uma casa na árvore,
mável, cuspia fogo e só se ouviam os nossos gritos. Aquele fogo
muitos pés de nozes, embaixo deles foi onde vi o rosto ilumi-
enchia o nosso peito inocente de uma alegria momentânea.
nado de minha mãe, quando anunciaram o lugar onde estarí-
amos hoje, lembro o momento que vi seus olhos e seu sorriso,
Marcha do vento que soprou naquela tarde. Hoje sobre a soleira da porta
Se eu caminho sobre o asfalto, eu sou parte de construção. Meu onde escrevo, penso em um fragmento do Ferreira Gullar que diz
suor paira sobre ele. As pegadas. Os gritos. A imensidão e tudo que somos feitos de carne e de memória.
que eu enxergo são olhos e rostos. Vou até a frente e sento, fico
Acampamento do MST na Chácara das flores São Gabriel 2006.
fitando as fileiras e sobre elas vejo cruzarem, sobre os dois lados
do meu corpo, das minhas mãos, assim levanto e abro os meus
braços bem no meio, fecho os olhos e, lá no escuro dos olhos
fechados, dá para sentir os rumores das vozes, essa sensação
que adoça a boca e aquece o peito. Eu abro os meus olhos e vejo
os rostos cansados e neles tem algo que faz o corpo caminhar
a uma paz embaraçosa que é impossível não sentir um medo-
-coragem. O sol é quente, este calor se reflete na força daquele
momento. E nesse instante dá para sentir a multidão, e ela está
toda ali. Novamente fecho os meus olhos para que tudo ali fique
na minha cabeça. Quero conseguir guardar de alguma maneira

40 41
Eduarda Farina Antítese

escrever entre a fronteira e a fenda


viver entre o instante e os séculos
subir a montanha como quem diz:
não me submeto às formas do mundo.

43
Geopoema III

sento, olho para as mãos


no ato de ler
de quando o livro acaba
penso que o mundo
quando desenhado em forma de mapa
ganha tantas mais dobras
do que já tinha
furtivas as geometrias
todo lugar é tão imóvel e ágil
que os mapas dobrados
encorpados e cheios
segredam o tédio
de estarem eternos
diante do espelho

45
Eduardo Wildner Porque a solidão é boa mas

porque a solidão é boa


mas às vezes é agoniante perceber
que os cabelos abraçados ao ralo e perdidos no chão são apenas
os teus
que as roupas amassadas jogadas no canto são apenas as tuas
também
que não há marcas de batom nas fronhas, xícaras e bitucas de
cigarro
que os óculos não estão sujos por causa de um beijo
que não há brincos na gaveta esquecidos ontem por um alguém
que há três dias ninguém senta no vaso além de você
que não há outro perfume além do teu
que apenas a tristeza te abraça
que não há ninguém para comer as balas de banana junto contigo
que apenas para ti serve o vinho e o café
que tua boca apenas encontra a escova, o fio dental, a xícara
o cigarro, a comida, a manteiga de cacau, o travesseiro,
o lápis e os dedos aflitos
que não existe ninguém para compartilhar as alegrias e
expulsar as angústias presas na garganta a não ser teus amigos
imaginários que no fundo só te refletem
que apenas você reflete no espelho, na vidraça e nas telas
desligadas
que quando o sol bate só existe a tua sombra
que por onde quer que olhe só enxerga você
que não há outras pegadas além das tuas
que as formigas, aranhas e lagartixas são suas únicas
companheiras, e que até elas têm um propósito e se unem para

47
construir algo
que as teias de aranha são mais fortes que a tua confiança
que existem saídas de emergência para incêndios e outras
catástrofes menos pra tua tristeza e melancolia
que a luz da luminária é bem mais forte que a tua própria
que só ouve o teu coração batendo
que sequer ouve o teu coração batendo
a solidão é boa
mas nem sempre

48
Emílio Juane Bruski Dissidentes

Eu vejo seus medos de corpos dissidentes


Suas verdades corrompidas escorrem como
saliva entre seus dentes
– Moççççç… e!

Te amedronta a nova língua


porque ela dá nome à corpa subversiva
que você não quer que exista
nem nomeada, nem viva

Você aponta quando eu falo


dizendo que meu gênero não é “natural”,
deposita sua masculinidade no falo
O que seria de você sem o seu…? rsrs

Tem mais fantasia no seu gênero binário


do que no armário de Nárnia
Querem meninos que não choram
e meninas de saia
Seu patriarcado é instrumento do capital
e pra vocês um homem violento
é o maior exemplo de moral

Não, você não entrou no banheiro errado.


É que você não tá acostumado
a ver um corpo não binário
transitando livremente por onde se sente bem
É que não passou pela sua cabeça

51
que meu corpo não é público! Salve
Ele não pertence a ninguém… além de mim

Sinceramente, suas leis sem fundamento


não governam meu corpo templo salve latinoamérica, soy EJ
Vou tomar de volta cada pedacinho meu brasileño del suelo de las araucárias
levado por esse CIStema traiçoeiro más transgénico que el maíz de mi
Aliás, fazia muito tempo que eu não me sentia pamonha poeta desde el vientre cegonha
assim… ...tão inteiro experimentador de revueltas literarias

52 53
Gerli Mendes A Capitolina

Companheira de altas horas da madrugada, a Capitolina,


magrela, elegante, esguia, urbana, barata, silenciosa, até que eu
tente freá-la. Prefiro a companhia dela quando vou beber. Mas
ainda não sei se é uma boa ideia. Eu tava com a Capitolina naquela
noite. Ela ficou me esperando na porta do boteco, como sempre,
paradinha, a observar o entra e sai, e a me vigiar, num ciúme
distribuído por cada centímetro do seu corpo ergométrico.
O boteco improvisado ficava na varanda de uma coroa que
já foi aeromoça, professora de inglês e pedagoga. Agora, dona
daquele boteco onde a bebida mais exótica era água ionizada. Eu
gostava dali porque recebia tratamento de restaurante francês
por um preço muito barato. Ela sempre mantinha os cabelos
impecáveis e gestos harmoniosos de aeromoça. Apesar de o
bar ser numa varanda-de-um-porão-na-beira-de-uma-ro-
dovia-de-uma-cidade-de-fronteira, aquela atendente era uma
senhora tão bem maquiada que, com a cerveja barata servida, eu
me sentia uma princesa.
Eu bebi caipirinha de butiá, iguaria da fronteira sul. A
promoção era aproveitar os butiás da jarra e encher com mais
cachaça por cinco reais.
– Aproveite a promoção, disse a ex-aeromoça num sorriso
sedutor.
Eu olhei pra Capitolina, que esperava na frente do bar.
Àquela altura, ela parecia exausta, doida pra voltar pra casa,
com medo do escuro, com preguiça, dolorida de ficar encostada
naquela grade enferrujada. Eu buscava a aprovação da Capi-
tolina. Ela não fez nem que sim, nem que não. Tudo estava na
minha cabeça: julguei que ela estava cansada, com medo, preo-

55
cupada com meu estado de embriaguez, irritada com o entra e Cheguei no prédio, carreguei a ingrata no colo por cada
sai de gente que não prestava. Julguei que, na minha loucura, degrau dos três andares da kitnet amontoada do Frigeri. Meu
poderia me distrair e, quando voltasse a olhá-la, Capitolina não braço doía. Abri a porta com dificuldade pra acertar o buraco da
estaria mais lá pra mim. fechadura. Encostei Capitolina na parede e fiquei olhando, com a
Tanto faz, a Capitolina não tem sentimentos. testa ralada. Não era a mesma de antes. Ela tava diferente, trazia
– Pode encher mais uma jarra, por favor, minha aeromoça linda! consigo um perigo. Ou ele sempre esteve ali, como fruto dentro
– Aeromoça… isso já faz muito tempo. Eu fui casada com da casca?
um policial lá na Bahia, ela sorriu, ficando jovem novamente
enquanto lembrava. Seu sorriso mudava as rugas de lugar,
transformando-as em linhas de expressão de felicidade.
– Você continua impecável!
A Capitolina não conseguiu disfarçar seu descontenta-
mento. A dona do bar percebeu que a olhei com preocupação e
perguntou:
– Você quer colocar ela pra dentro?
– Não, não precisa. Vou tomar mais essa e já vou.
– Tá bem então. Você quem sabe.
Tomei tudo em meia hora, ergui cambaleante, me pendurei
na Capitolina e fui. Eu virava o guidão pra direita, e a Capitolina
ia pra esquerda. Buraco. Eu mirava pra esquerda, ela, teimosa,
ia pra direita. Poça d’água. Eu freava na descida, mas ela, com a
recém-adquirida vontade própria, acelerava. Capitolina ganhava
sua liberdade na ladeira, e meus olhos se arregalaram enquanto
eu contraía no selim meu cu de bêbada assustada.
Ela ganhou uma velocidade tal que parecia ter asas e voar,
mas não, estávamos a cada centímetro mais perto do chão. Coin-
cidiu os pneus Pirelli com a fresta do bueiro. Pronto. Capitolina
travou ali mesmo e me arremessou por cima do seu guidão. Caí
de cara no asfalto. Levantei de sobressalto, joguei a sacripanta
pro lado. Ela se fez de passiva. Passei a mão na testa pra saber
se tava sangrando. Olhei os dedos manchados, decepcionada.
Resgatei a magrela, fui empurrando pra casa numa incessante
dúvida. Capitolina me traiu?

56 57
Ibriela Bianca mundo cão

escrito em papelão
caligrafia desesperada
de quem aprende a rabiscar um
pedido de socorro
um grito de fome
desviar o olhar resolve o instante
acelerar o tempo até
que o sinal abra logo

a cidade automática e triste


— já não há circo na itinerância
dos semáforos —
amargurada nos vidros fechados
e ignorantes dos carros
das casas
dos estabelecimentos comerciais
parece passar incólume
— sinto muito
só tenho cartão

quantas moedas há em cada sinal


fechado?

no mundo cão
a arte de rua esmola restos
malabares, guizos e pernas-de-pau
castrados
sistematicamente violentados

59
a cada golpe na sarnenta família tapetes
faminta engana-se quem assume que
uma passagem só de ida estamos anestesiadas

nesse mundo cão falta dizer que a vida cotidiana


nos ensinaram essa
que somos culpadas maquínica repetitiva seriada
porque nos disseram virtualmente severa e real
uma e outra vez tão real que sua e pigarreia
e mais outra emaranhada no delírio nosso
e mais outra vez de cada dia
que a voz da mulher é quando amém
silencia essa coisa de que se diz sem sentido
— e que não use a boca enrosca o sapato vazio
para falar — nos tapetes cabeludos
que o frio é pouco a suportar da ascensão
ao sabor do trabalho noturno e cai
nós, Madalenas, resistimos
a cada dentada na hóstia cai como quem voa
dos andaimes de Chico
quanta obediência há em um sinal cai como quem salta
vermelho? “varado pelo estertor
dessa agonia lenta”
nesse mundo cão cai como quem de amor
somos parasitas escala o topo dos trapézios
malcheirosas e “com os pés agudos em ponta”
e escondidas no subsolo uma lâmina certeira cai
— porque a vida cotidiana
não cabe no poema —
pra gente sobrou a seca
o sonho a cachaça
no corpo famélico
cabelos da loucura feito

60 61
andar nu delibero o nada

hoje à tarde gosto mais quando escrevo sobre nada


sob o auge da minha miopia com palavras encontradas ou
saí pra rua lentamente escolhidas
sem máscara rabiscadas — digitadas — deletadas
senti — naquele lapso de tempo gosto mais quando me repito
o frescor do outono quando não estou
urbano gosto quando me demoro no depois de
a liberdade e o poder amanhã
de quem anda nu porque a revolta é essa poeira
sobre a sacada
as folhas molhadas
cabelos pentelhos
sob meus pés

a revolta liberta

62 63
Josif Nikto Isolamento

Isola, em italiano, é ilha


Isolar-se é fazer-se ilha
Isolamento é o processo
Isso é o tal sentimento
Como me faz uma falta ver o mar
Ah, as ilhas de Palmas do Arvoredo!
Oh, os nostálgicos e belos sentimentos!
Pequenas ilhotas no meio do mar
Ilhas corajosas, rochosas
Ilhas verdejantes e vivas
Me provocavam e provocam
O que existe lá?
Sentimentos de Cristóvão Colombo
Sentimentos de Pedro Álvares Cabral
Ver aquilo que emerge do mar ao longe
Ver aquilo que ainda não se pode tocar
E como sentia paz olhando para elas
Elas pareciam lá distantes e seguras
O sol do verão, o vento e o cheiro do mar
São temas correntes nas lembranças que tenho de lá
Me tornei uma ilha
Uma tribo isolada
Coreia do Norte
Pax
Ordem
Sobriedade romana
Exagero embriagado
Dramas

65
Sobretudo monólogos
E é assim que sorrio
E assim sou feliz

66
Kairo Madah da Costa Moraes Poema-digestão

depois do banho quente e do tragar da fumaça doce do tabaco


me entrego ao cais de milton
invento o cais, sou o cais
eu me solto, eu me lanço.
naquele meio tempo entre ver o dia vivido passar
diante dos olhos e de dormir
ao sentir o corpo se aquecendo aos poucos sob o cobertor
pesado
ouço um ronco estranho e longínquo
etéreo, quase musical
numa percepção fugaz
em meio às memórias soltas na malha do sono
eu o vejo de canto de olho
no interno dos pensamentos
mesmo sem querer
eu o vejo ali
me observando
encarando minha surpresa fingida
como se eu nunca o tivesse notado.
existe este ser faminto dentro de mim
escondido nas sombras do que há de mais puro e admirável do
meu ser
ele tem no olhar labaredas de fogo ao contemplar o vasto
mundo
os olhos queimam de dor
tem na boca uma sequidão incômoda
que nem toda água da Terra poderia apaziguar
por muito tempo ele repousou vadio nas crateras antigas do

69
meu peito parece errado, mas na dose certa veneno é remédio
camas empoeiradas e confortáveis é preciso engolir e vomitar, é preciso gritar e cuspir
levantando a cabeça moribunda vez por outra, logo sendo é preciso acolher os sentimentos
repreendido por mais desagradáveis que sejam
feito um cão velho que, ao acordar, e procurar o dono pois nem só de amor e perdão se vive
ouve dele mais uma vez ainda mais quando se é trans no brasil.
“vai deitar”. “eu amo como você pode ser meio maquiavélico às vezes…
agora, porém, a contragosto mesmo sendo um amor de pessoa” foi o que um amigo me disse
me obrigo a dar-lhe a graça da minha atenção e é bom, eu gosto assim.
faço isso porque sei que ignorar por mais tempo
irá me apodrecer por dentro e me matar por fora pela mão
daqueles que me querem exausto e gentil
que me querem passiva
permissiva
fada
me querem nada.
eu afago os pelos toscos
os dedos explorando as texturas
o toque
sou atacado e mordo de volta,
finco as unhas no mais profundo,
sou mastigado e comido
eu devoro e arroto, me farto
eu acolho e recebo o abraço.

eu preciso da raiva. ela que eu tanto reprimi.


é prazeroso ver a criatura consumir e digerir os restos da
mocinha
crente-dedicada-prodígio-obediente-prestativa-exemplo
que eu fui
é estranho e desconfortável, e gostoso
sentir o poder nas mãos de dizer o não, de ser
teimoso, agressivo, exigente, vulgar, barraqueiro, egoísta.

70 71
Leonardo Nolde Xapecorpos

Uma cabeça está parada olhando para baixo, para os pés,


e vê um passeio feito de pavers, vários blocos pequenos unidos
para formar um conjunto, alinhados de forma que compõem
uma calçada, mas uma de paver, e não de concreto, uma calçada
de pequenas partes contrastando com o negrume em frente,
aparentemente liso e supostamente homogêneo; ele olha
para cima, não o paver nem o asfalto — estes não podem ver,
lembre-se, quem olha é o sujeito — mas apenas o suficiente
para ver o final da calçada, esta anuncia, com uma faixa amarela
suja e evanescente, que os blocos acabaram, que findaram os
conjuntos nucleares e que agora começa o asfalto; no plano do
asfalto, é tudo muito regular, mas isso apenas num olhar super-
ficial, não tarda a revelar-se que ali existem buracos e estria-
mentos, pequenas linhas de fuga no cancro que cobre a pele da
Terra; seguindo por alguns corpos de distância, fala-se aqui de
métrica humana, de corpos humanos, não de cães, de ervas ou
de fantoches e quando a medição imaginária acaba, começa um
novo corpo, de lata e borracha, e alimentado por peixes-dinos-
sauros e plantas, de um amarelo vivo e fresco, contrário ao do
amarelo sujo e apagado do meio-fio, e que corta o plano; por trás
do corpo sobre rodas, estruturas de metal em branco surgem de
monolitos, compostos por concreto e ornados em pastilhas azul-
-escuras; posteriormente às estruturas em pastilhas e concreto
e em metal surgem corpos quadrados — inicialmente ocos —
repletos de outros corpos, mas corpos de plástico, corpos de
emaranhados de fios, corpos rígidos e gelados em palitos; estes
espaços corpóreos, porém inanimados, abrem-se mediante
outros organismos, estes humanoides; tais espaços não fariam

73
nada se não fosse pelo labor das formigas bípedes que dia após com pequenas sutilezas, tocam em seguida corpos de plástico
dia dedicam-se aos seus templos — poderia ser no Japão, que, como pavers, se unem em um corpo maior, com marcações
mas o que é o Japão? — por de trás do observador, o mesmo em letras como as presentes neste texto; eles emitem sons uns
se repete, com exceção do ônibus — este não caberia para trás para os outros constantemente; isso se repete ao infinito, as coisas
dos olhos da cena — pilares com pastilhas azul-escuras, estru- que veem por trás dos olhos e que sentem o outro por trás do
turas metálicas em branco, corpos caixas preenchidos de corpos ouvido parecem não ser absolutamente a mesma coisa, ao passo
de plástico e de carne, e os rígidos e gelados corpos em palitos, que não parecem ser absolutamente nada, da mesma forma que
e formigas bípedes em corpos templos; sobre a consciência que as coisas por trás disso tudo, as orelhas, os corpos gelados e em
experimenta tudo, sobem lâminas de acrílico azul desbotado palitos, mas não de fantoches nem de ervas, estes parecem não
e encardido, em frente aos olhos e, por trás deles, as cadeias ouvir coisa alguma além da coisa por trás das coisas.
mostram-se ostentando uma captura quase totalizante, entre-
tanto, por entre as estruturas simétricas em pavers, colunas e
acrílico, corta a paisagem uma faixa de céu, com um azul estra-
nhamente opaco, pincelado com nuvens brancas, magras e ligei-
ramente compridas; as pernas carregam os olhos, e o que vê por
trás dos olhos, e também as mãos, porque o que vê por trás dos
olhos precisa das mãos para levar as pernas que carrega (e são
empurradas) pela bunda e os braços até o banco de plástico que
fica dentro do corpo de lata e borracha em amarelo vivo e fresco
mas que agora está enlameado; depois de olhar demasiados
corpos, um que brilha forte no céu, outro que se mantém alto e
austero na distância — porque o que desliza sobre o cancro da
pele não é a bunda nem o que vê por trás dos olhos, mas o corpo
em lata e borracha, assim, não o que sente por trás da bunda, não
possui imediatez com o cancro da terra que se fixa num corpo
alto e austero, não na distância, mas na proximidade — e corpos
com supostos ques que veem por trás dos olhos, chegam enfim
as formigas devotas, aquelas, sabe, que carregam aquelas outras
coisas, e que entram religiosamente num corpo de concreto, este
com estrutura curiosa, mas que não cabe mais na coisa por trás
dos olhos que veem este texto, mas que não o leem, o que lê é a
coisa por trás dos olhos; entra no aquário, corpos de formigas-
-lagostas emitem padrões sonoros idênticos dia após dia, porém

74 75
Luana Terra Milho de São João

No dia do casório do filho mais novo


Seu pai vem do paiol com duas espigas na mão:
“Esse é o milho colorado, que se planta em data de São João
Da farinha desse milho já cresceu três geração!
Tome de herança o milho e a terra,
Que é garantida a boa plantação”.

O rapaz era esforçado


Pegou na enxada, foice, arado
E no dia 24 de junho, a semente do milho já tava no chão
Plantou arroz, melancia, amendoim, mandioca e feijão
E do suor no trabalho com a terra
Garantiu uma boa alimentação

A família foi crescendo, a lavoura foi crescendo,


E o trabalho era suado!
O vizinho chamou pra um lado, falou:
“Rapaz, tu tá trabalhando errado!
Planta desse milho aqui, passa secante, passa arado
Nem precisa capinar!”
O rapaz impressionado resolveu do transgênico plantar.

Ele plantou desse transgênico lado a lado com o colorado


Quando colheu, viu que o colorado já foi ficando amarelado
No outro ano, aquele milho foi crescendo tão minguado
Mal e mal deu pro pasto do gado
Que dirá pra farinha do pão!
O vizinho achou engraçado:

77
“Rapaz, tu tá trabalhando errado!
Semente e insumo desse milho todo ano tem de ser comprado
Se tu quiser colher um milho do bom!”

Ele comprou do milho tratado


Semente e insumo foi financiado
E mesmo sendo um milho melhorado, pelas lagartas foi atacado
Quando viu o preço do mercado foi ficando mesmo preocupado:
“Depois de tanto trabalhado ainda fiquei endividado?
Devo tá trabalhando errado!”
Se sentiu foi enganado por esse milho geneticamente modificado
Não pagar sua plantação

“Meu pai, desse milho colorado se o senhor tiver um punhado


Pra eu poder fazer roçado nessa data de São João
Aprendi minha lição, e hoje eu tomo muito cuidado
Desse tal de milho transgênico eu não planto mais um grão
E esse milho colorado por São João abençoado
Há de ser muito bem guardado pro plantio da próxima geração
Meu pai, muito obrigado!
E que essa chuva caindo abençoe tudo as nossas plantação!”

Escrita no dia 24.06.2018, Dia de São João.


Dedicada aos movimentos da Via Campesina.

78
Maria Luiza Souza Sapatão viva

Sociedade que me atormenta


E, é claro,
Eu corro risco!
Ser sapatão pra mim sempre foi profissão perigo.

São 20 anos sendo questionada


Se sou menina ou menino,
E há quem fique impressionada
Se me apresento como sinto.
Maria,
Quase um estado de espírito
M-A-R-I-A
Maria macho que sempre optou pelo bem-estar,
Sem cabelos longos, saia
Saltos para andar.
Eu sempre acreditei,
Que ser mulher é arriscar
Todas as possibilidades de ser e se expressar,
Ser livre e liberta
pra poder se reinventar.

Mas…
eu sei que corro risco!

Foram diversas Luanas Barbosas com seu futuro interrompido


Viver em alerta
Até em banheiro feminino,
Eu entro, e o coração acelera

81
O olhar eu inclino,
são cinco minutos de pressa
Que eu não posso dar vacilo,
E sempre vem uma na certa
“Moço, aqui não é o masculino”
Juro na minha pele “cês”
já teriam desistido.

Pois não basta ser invisível


Quando o assunto é estatística
De mulheres como eu,
Que como mulheres
não são vistas.
Pelo homem branco cis
E seu estado machista.

Protesto!!!

Não serei mais uma vítima


Da polícia genocida,
Pois combinaram de nos matar
Mas por vingança eu sigo viva!

82
Mariana Berta égua de raiva e mel

a noite, essa estranha que me inaugura


essa égua de pelo lustro e pata pesada
que arregaça meu peito de carícia bruta
e de dentro do travesseiro
acorda a dor no céu da boca
adormecida de freio

essa égua prenha de amanhã


que se acomoda no vão entre meus seios
e se contorce e se espalha
em larga e poderosa vigília

tu me reconhece pelo cheiro, égua antiga


e sempre veio de pataço
pelo pasto alheio
mas, agora, agora que te sinto sem arreio
me embrenho por dentro
do teu corpo cólera
encaixamos nossas virilhas
em tenso abraço
e ofegamos juntas, madrugada adentro,
medos e fúrias

85
milpa fofoqueira

enquanto meu umbigo desabrocha quando o feijão trepa no milho


os bicos de meus seios mudam de cor a abóbora se esparrama pelo chão
uma montanha brota do meio de mim e a mandioca se afunda debaixo da terra,
e mil pétalas por dia a chuva cai do céu
rebentam da minha garganta e fala no ouvidinho das minhocas cegas
o segredo do big & bang
vem, acordando uma canção, vida minha que só adão & eva sabiam
e sussurro teu nome elas se fofoqueiam e rapidamente
um pedacinho por dia a Neusa benzedeira de verme fica sabendo
e manda um zap pra mãe
que liga pra pastoral perguntar
se é verdade

86 87
Théo Fortes Fora da medida

Droga, ela vem aí, pensei comigo mesmo. Respirei fundo,


inflei o peito, separei as pernas e dei um pigarro buscando encon-
trar uma segurança em minha fala e uma rouquidão “máscula”
que nunca me pertenceu. Estava em uma loja de departamentos,
perdido entre as araras de roupas da sessão masculina e em mim
mesmo tentando encontrar qualquer camisa social branca que
tivesse uma chance remota de servir no meu corpo. Mas nunca
servia, não as peças para adultos. O que de certa forma constituía
uma humilhação e piada interna, que no fim se tornava pública
e traumática. Nada servia, nada cabia, nada se ajustava. Nada de
roupa, nada de camisa, nada de calça, nada de corpo, nada de
voz, nada de barba, nada de nada e…
—Moço, posso te ajudar?
Meus pensamentos ansiosos foram interrompidos por
uma simpática atendente.
—Ahm... não, obrigado.
Balbuciei qualquer conjunto de sílabas e peguei a primeira
camisa que encontrei em minha frente em um movimento
brusco e um tanto agressivo, sobressaltando a mulher. Consegui
o que queria.
Dito isso, saltei para longe em direção aos caixas, sentindo
um grande desconforto. Ela devia estar me achando doido, doido,
doido, louco, estranho, bagunçado, afetado, gay, feminino, mulher.
Corre, menino, corre, desvia da norma, evita as perguntas, aja
como homem, endireite os ombros. Não! Os seios! Esconda!
Merda, estranho de novo. Mas tudo é estranho. Esse não corpo,
que é corpo, que fala, que vê, que transforma, que disforma e
que grunhe por uma masculinidade. Coisa estranha, desengon-

89
çada, pequena, ridícula. É isso que pensam. Meio homem, quase —Pra presente quem sabe? Questionou novamente o
homem, homem de meia-tigela, sapatão metida a macho. Cadê atendente.
o pau? Cadê a buceta? Falta o essencial. E o DNA? Esse não nega. —Sim! Meu irmão! Tratei logo de inventar qualquer
E Deus? Que Deus? desculpa, desejando sair e seguir meu caminho.
A fila do caixa em que estava aguardando para ser atendido Vai embora. Logo. Pega essa sacola e vai para casa, um lugar
permanecia imutável, sendo que minha inquietude aumentava e seguro, sozinho. Sem esse “cistema” que te enlouquece ou agrava
o ritmo frenético de meu pé batendo contra o solo parecia incon- sua falta de equilíbrio, nessa corda bamba social que poda, ataca,
trolável. Todas as vezes que precisava comprar alguma peça de morde e sangra. Uma hemorragia de singularidades, de corpos
roupa, o caos era instaurado em minha vida, sendo que a ansie- e identidades que escorre por entre meus poros e extremidades,
dade era a diretora e a disforia era a atriz principal. deixando-me vazio, seco feito uma uva passa, enrugado. Só vai
Quando se é um homem trans, pequenos afazeres do dia a embora. Vai. Logo.
dia podem se transformar em situações aterrorizantes. Preciso Quando coloquei os pés para fora da loja e distanciei-me
dessa camisa, tenho uma formatura. É adequada? Será que alguns metros, tirei a camisa para fora da sacola, notando que
disfarçará meus peitos? Vou ficar bonito? Bonito? Importante é algo não estava correto. Vasculhei a peça erguendo e esticando.
passar despercebido no evento. Mas vão perceber. O quê? Você. Observei a etiqueta: o tamanho era G. Eu? Vestia PP.
Seu corpo. E o banheiro? Não vou. Não vai dar. Vão me expulsar
do feminino, bater-me no masculino. Não é o meu lugar. Não
há lugar para mim. Eu e meu corpo estamos em “não lugares”.
Banheiro. Salão. Multidão. Sociedade. É solitário. E no “não lugar”
cabe somente a mim e o desrespeito.
Respiro fundo dando um passo ou dois à frente, aproxi-
mando-me do caixa e escorando meu corpo contra o balcão.
Alcanço a camisa para o atendente em silêncio, o pensamento
acelerado.
—Esta camisa é pra você? Perguntou o rapaz.
Fiquei calado, sem saber o que responder. Por que ele quer
saber? O que respondo? Também não sei se é para mim, para
meu “eu” ou outro “eu”. Que outro “eu” se eu sou inteiro. Inteiro
errado, inteiro confuso, mas em dualidades que dividem meu
“eu” em várias vidas, contextos, momentos, traumas, pancadas,
tapas e chutes. Cada “eu” constrói-me, juntando cacos, pesares,
vitórias e fagulhas. É para mim? Ou para meu outro “eu”? Quem
seria ele?

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Quem é quem ALICE SOUTO é uma poeta carioca, escritora, mãe
atípica do Caetano e doutora em psicologia. Integra os
coletivos Balalaica de Poesia e Performance, no Rio de
Janeiro (RJ); Coletivo Manivas e Sarau Nuvem Colona,
em Chapecó (SC). Possui três publicações indepen-
dentes e artesanais (fanzines): Traça a Traço (2012);
Poesia Auto-Sustentável (2013) e Beijo Azul (2015).

ALINE LEBENS nasceu em fevereiro de 2002, no muni-


cípio de São José do Cedro (SC). Atualmente reside
em Chapecó (SC), onde cursa licenciatura em Ciên-
cias Sociais da Universidade Federal da Fronteira Sul
(UFFS) e integra o coletivo estudantil independente
Fronteira Cultural. Em meio a (re)encontros e desen-
contros artísticos e de vida, dedica-se à arte e à escrita.

AUDRIAN CASSANELLI é bixa do mato nascida em


Xanxerê (SC), mestre em Artes Visuais pela Univer-
sidade Federal de Santa Maria (UFSM). Graduado
em Artes Visuais pela Universidade Comunitária
da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ). Cofundador
do Coletivo Inço, integra os grupos de pesquisa
LabFoto (UFSM) e LabFotoFilo (UFG). Já participou
de diversas exposições, nacionais e internacio-
nais, de bienais e salões de arte. Sua pesquisa tem
como foco o autorretrato fotográfico associado
às ervas-daninhas.

DANAY FERREIRA é natural do Rio Grande do Sul (RS),


indígena Guarani, bibliotecária, modelo, agente cul-
tural e militante do MST.

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EDUARDA FARINA é arquiteta, urbanista e pesquisa- KAIRO MADAH tem 26 anos. Artista, professor e
dora independente. Reside e trabalha em Chapecó pesquisador transgênero, por vezes se arrisca na
(SC). Pesquisa e escreve desde 2018. Atualmente escrita literária. Embora a atuação artística seja mais
dedica-se às pesquisas em torno da cultura visual frequente nas artes visuais e na arte Drag, ao longo
contemporânea, imagem e teoria da arquitetura. da sua trajetória, tem nutrido uma intensa relação
Escreve poesias, muitas no formato de haikais, por com a palavra, encantando-se com sua potência que
meio das quais percorre reflexões sobre o tempo, o transcende conjecturas, numa tentativa de fazer dela
espaço e os elementos — terra, água, fogo e ar. uma amiga. A poesia permite a aproximação com
a palavra, a exploração e expressão daquilo que o
EDUARDO WILDNER é pesquisador e poeta. Nasceu constitui como ser no mundo.
em Seara (SC) e mora em Chapecó (SC). Mestre em
direito, atualmente trabalha no sistema peniten- GERLI MENDES é professora, aspirante à escritora
ciário, também em Santa Catarina. Escreve porque de coisas para a infância, jornalista não praticante
não tem escolha, para encarar o abismo que a vida é e produtora cultural. Autora de Clíris e a caneta
e para fugir de seus fantasmas e demônios. de ouro (Caiaponte, 2021), com ilustrações de Jean
Magnus. Geminiana, mineira e CID F31.8.
EMÍLIO JUANE BRUSKI, EJ, é um multiartivista não
binário que atua em Chapecó (SC) e região como IBRIELA BIANCA é professora, doutora em literatura
produtor cultural, poeta e MC. Sua arte traz a pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
vivência transmasculina e reflexões sobre gênero, pesquisadora independente de literatura brasileira
classe e afeto. contemporânea. Atua em projetos culturais ligados
ao incentivo à leitura, à performance poética e à
FERNANDO BOPPRÉ é aquariano com ascendente em leitura dramática. É integrante da Coletiva Abrasa-
virgem. Mestre em História Cultural pela Univer- barca, com quem lançou dois livros, Abrasabarca
sidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Escritor, (Medusa, 2018) e Revoluta (Caiaponte, 2019). Tem
curador, editor e livreiro da Humana Sebo Livraria vídeo-poemas publicados no Youtube da Lua Caolha.
Editora. Desde 2017 vive e trabalha em Chapecó
(SC). É autor dos livros Poço certo (Caiaponte, 2020), JOSIF NIKTO, je pense, donc je suis. Mora em Chapecó
Sándor Lénárd no fim do mundo (Humana, 2022) e (SC), embora o pseudônimo sugira que ele seja um
Termas da desolação (no prelo). escritor do realismo russo. Normalmente, em 400
caracteres, acha que não seria capaz de entreter ou

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informar sobre a sua vida, mesmo ela sendo muitís- Hoje é moradora da cidade de Florianópolis (SC) e
simo enfadonha, sendo um trabalho fácil, mas ente- estuda Ciências Sociais na Universidade Federal de
diante. “Deixe minha literatura falar por mim e me Santa Catarina (UFSC).
esqueçam”, diz.
RUBI IARA é professora de sociologia na Universidade
LUANA TERRA, Lu, Luanx ou Luana Rockenbach. Agri- Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Chapecó, e
cultore. Pessoa transbigênero dedicada à produção artista. Coordena o grupo de estudos transgêneres
e conservação de sementes crioulas e aos saberes na mesma instituição. Como professora, procura
tradicionais vinculados à agricultura agroecológica. articular ensino de sociologia e arte-educação,
promovendo a produção de instalações e perfor-
LEONARDO NOLDE é leitor, quando pode. Escritor, mances artísticas entre discentes como meio de
quando convém. Proletário, sempre. Na leitura ensino e aprendizado. Como artista, realiza, entre
encontra um leito duro; na escrita, um meio para outras coisas, a performance “gosto de rachar lenha
novas lutas. com machado”, na qual explora a estética do deboche
nos contrastes que surgem nas relações entre texto,
figurino e ação.
MARIANA BERTA é artista visual, professora e escri-
tora. Nasceu e cresceu no interior da cidade de
Concórdia (SC) e possui formação em artes visuais THÉO FORTES tem 25 anos. Escritor, advogado, homem
pela Universidade do Estado de Santa Catarina trans, sempre foi um apaixonado pela escrita, sendo
(UDESC). É autora dos livros Sagu (Editora editora, que, desde os quatro anos, recitava histórias para
2018) e Sermão das Criaturas Subterrâneas, este que a mãe escrevesse por ele, já que ainda não era
último escrito em parceria com Paulo da Costa completamente alfabetizado. Nada parava a vontade
Pereira Neto (Ouriço, 2022). de escrever e transmitir para o mundo ideias, cria-
tividade e sentimentos. A palavra é muito impor-
tante para a sua existência, pois está relacionada à
MARIA LUIZA SOUZA nasceu na cidade de Mauá (SP), profissão e às diversas formas de expressar a pessoa
tem 22 anos e desde 2016 participa ativamente de que é e o contexto no qual está inserido.
coletivos culturais, sendo fundadora e organizadora
do coletivo Máfia das Minas (fundado em 2017). No
ano de 2022 ingressou na Universidade Federal da
Fronteira Sul (UFFS), campus Chapecó, onde atuou
culturalmente com os coletivos residentes da cidade.

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A reprodução parcial sem fins lucrativos deste livro, para uso privado Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
ou coletivo, em qualquer meio, está autorizada desde que citada a fonte. (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Se for necessária a reprodução integral, solicita-se entrar em contato
com a editora.

Evasões poéticas / organização Fernando Boppré, Rubi Iara.


Edição — Chapecó, SC : Humana Editora : Universidade Federal
FERNANDO BOPPRÉ da Fronteira Sul, 2023. — (Coleção humana poesia)
RUBI IARA
Revisão textual Vários autores.
DENIZE GONZAGA ISBN 978-65-981663-4-2

Desenho da capa 1. Poesia brasileira - Coletâneas I. Boppré,


IAM CAMPIGOTTO Fernando. II. Iara, Rubi. III. Série.
Projeto gráfico e editoração
TINA MERZ 23-187867 CDD-B869.108

Conselho Editorial
CASSIANO MIGNONI
DAIANA SCHVARTZ Índices para catálogo sistemático:
FERNANDO VOJNIAK 1. Poesia : Antologia : Literatura brasileira B869.108
GUSTAVO MATTE
INAJÁ NECKEL Tábata Alves da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9253
JANAÍNA CORÁ
RICARDO MACHADO

Coordenação Editorial
FERNANDO BOPPRÉ

Este livro amplia e diversifica o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Editora Humana é um selo da Humana Sebo e Livraria
de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Rua Mal. Bormann, 82D, Sala 13 – Centro
89.801-050 – Chapecó, SC, Brasil
Tel.: (49) 3316-4566
www.humanasebolivraria.com.br
Livro publicado com o apoio financeiro da
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS)
e da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação
do Estado de Santa Catarina (FAPESC),
com recursos provenientes do edital Nº 380/GR/
UFFS/2021 para o fomento a grupos de pesquisa.

Este livro foi composto com as fontes Elza (títulos) e Silva (textos)
sobre papel Avena 80g/m². Tiragem de 300 exemplares.
Impresso na Gráfica Pallotti.
A Editora Humana é um selo da Humana Sebo e Livraria
de Chapecó, Santa Catarina, Brasil
www.humanasebolivraria.com.br
AME LUTE LEIA

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