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O RECRUTA

Robert Muchamore
Tradução de Jorge Freire

Oo
O que é a CHERUB?

Durante a Segunda Guerra Mundial, um grupo de civis


franceses organizou um movimento de resistência contra as
forças alemãs que ocupavam o seu país. Muitos dos seus agen-
tes mais úteis eram crianças e adolescentes. Alguns deles tra-
balhavam como batedores e mensageiros e outros fingiam ser
amigos de soldados alemães com saudades de casa, recolhendo
informações que permitiam à resistência sabotar operações
militares alemãs.
Um espião inglês chamado Charles Henderson trabalhou
com estas crianças francesas durante quase três anos. Depois
de regressar à Grã-Bretanha, usou o que aprendera em França
para treinar vinte rapazes britânicos, para que colaborassem
em operações secretas. O nome de código escolhido para a sua
unidade foi CHERUB.
Henderson morreu em 1946, mas a sua organização pros-
perou. CHERUB tem hoje mais de duzentos e cinquenta
agentes, todos com idades iguais ou inferiores a dezassete anos.
Apesar de se terem proporcionado muitos avanços técnicos no
mundo das operações secretas desde que a CHERUB foi fun-
dada, a razão para a sua existência é a mesma de sempre: os
adultos nunca suspeitam de que as crianças os estão a espiar.

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1. Ciências

James Choke detestava a disciplina de Ciências. Afinal


nas aulas deveriam usar tubos de ensaio, jatos de gás com faís-
cas a voarem por todo o lado, como tinha imaginado quando
andava na escola primária. Mas na verdade, o que ele tinha de
fazer era empoleirar-se num banco e observar a professora
Voolt a escrever no quadro. Por algum motivo, era preciso
escrever tudo – apesar de a fotocopiadora ter sido inventada
há quarenta anos.
Faltava só esta aula e mais uma, chovia lá fora e começava
a escurecer. James sentia-se ensonado porque o laboratório
estava quente e tinha ficado acordado até tarde na noite ante-
rior, a jogar Grand Theft Auto.
Samantha Jennings estava sentada ao lado dele. Os pro-
fessores achavam que Samantha era fantástica: oferecia-se
sempre para fazer tudo, trazia o uniforme impecável e tinha as
unhas pintadas. Copiava os esquemas com três canetas de
cores diferentes e encapava os livros de exercícios em papel de
embrulho, para que ficassem mesmo elegantes, mas quando os
professores não estavam a olhar, Samantha era uma verdadeira
estúpida. James odiava-a, porque estava sempre a gozá-lo por a
sua mãe ser gorda.

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– A mãe do James é tão gorda que têm de untar a banheira


senão fica lá presa.
Os coleguinhas da Samantha riam-se, como sempre.
A mãe do James era enorme. Tinha de encomendar a roupa
através de um catálogo especial para pessoas gordas. Era um
pesadelo andar com ela na rua, porque as pessoas apontavam e
olhavam fixamente. As crianças mais pequenas imitavam a
maneira de ela andar. James adorava a mãe, mas tentava sempre
arranjar desculpas quando ela queria ir a algum lado com ele.
– Ontem corri oito quilómetros – disse Samantha. – Dei
duas voltas à mãe do James.
James olhou para ela.
– Que engraçado, Samantha. Mais engraçado do que as
outras três vezes que o disseste.
James era um dos miúdos mais rijos do 7.° ano. Qualquer
rapaz que gozasse a sua mãe levava um soco, mas o que podia
ele fazer se o trocista fosse uma rapariga? Na próxima aula
tinha de se sentar o mais longe possível de Samantha.
– A tua mãe é tão gorda…
James estava farto das provocações. Saltou e o seu banco
caiu para trás.
– Qual é o teu problema, Samantha? – gritou James.
O laboratório ficou silencioso. Todos olharam para ver o
que se passava.
– O que se passa, James? – riu-se Samantha. – Não aguen-
tas uma piada?
– Menino Choke, apanhe o banco e volte ao trabalho –
gritou a professora Voolt.

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– Se dizes mais uma palavra, Samantha, eu…


James nunca fora bom a responder a piadas que lhe eram
dirigidas.
– Juro que…
Samantha deu uma risadinha.
– O que vais fazer, James? Vais para casa e enroscas-te no
colo da tua mãezinha gigante?
James queria tirar o sorrisinho idiota da cara da Samantha.
Agarrou-a, arrancou-a do banco e encostou-a à parede; depois,
rodou-a para que ela olhasse para ele. Parou, chocado. Escorria
sangue da cara da Samantha. A sua bochecha tinha um grande
corte provocado por um prego saliente na parede.
James recuou, assustado. Samantha tapou o sangue com as
mãos em concha e começou a gritar como uma louca.
– James Choke, estás metido em sérios sarilhos! – gritou a
professora Voolt.
Os colegas de turma de James estavam em alvoroço. Ele
não conseguiria justificar o que fizera e ninguém acreditaria
que tinha sido um acidente. Correu para a porta.
A professora agarrou o casaco de James.
– Aonde pensas que vais?
– Saia da frente! – gritou James.
Deu-lhe um empurrão e ela caiu para trás, esbracejando e
esperneando como um inseto virado ao contrário.
James fechou a porta com força e correu pelo corredor. Os
portões da escola estavam fechados, mas conseguiu escapar
pela saída para carros que havia no parque de estacionamento
dos professores.

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*
James saiu impetuosamente da escola, resmungando cons-
sigo próprio mas sentindo-se, pouco a pouco, menos zangado e
mais assustado, à medida que se apercebia que estava metido
no maior sarilho da sua vida.
Dentro de uma semana faria doze anos e começava a per-
guntar-se se viveria até lá. A sua mãe ia matá-lo. Seria certa-
mente suspenso. O que acontecera era até suficientemente
grave para que fosse expulso.
Quando chegou ao pequeno parque, perto do aglomerado
de apartamentos onde vivia, sentiu-se enjoado. Olhou para o
relógio. Se fosse para casa assim tão cedo, a sua mãe saberia
que se tinha passado alguma coisa. Não tinha dinheiro que
chegasse para um chá. A única coisa que podia fazer era ficar
no pátio, dentro do túnel de cimento que lá havia, e abrigar-se
do chuvisco que caía.
O túnel parecia mais pequeno do que o que James se lem-
brava. Estava coberto de grafitos e cheirava a chichi de cão.
James não se importava, e até achava que merecia estar num
sítio frio que cheirasse a cão. Esfregou as mãos uma na outra
para se aquecer e lembrou-se de quando era pequeno.
Nesse tempo, a sua mãe não era – nem de longe – tão
gorda como agora. A sua cara aparecia com um sorriso pateta
ao fundo do túnel e ela dizia-lhe com uma voz profunda:
– Vou comer-te, James.
Era fixe, porque o túnel fazia um eco espetacular quando
se estava lá dentro. James experimentou o eco:
– Sou um perfeito idiota.

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O eco concordou com ele. Puxou a gola do casaco e aper-


tou o fecho até cima, até lhe tapar metade da cara.
*
Depois de meia hora à espera, James sabia que tinha duas
opções: ficar no túnel para o resto da vida ou ir para casa e ser
castigado.
Entrou no hall do apartamento onde vivia e olhou para o
telemóvel pousado em cima da mesa, debaixo do bengaleiro:

12 CHAMADAS PERDIDAS
NÚMERO NÃO IDENTIFICADO

Parecia que a escola tinha tentado desesperadamente


entrar em contacto com a sua mãe, mas ela não tinha aten-
dido. James agradeceu a Deus, mas perguntava por que motivo
a mãe não teria respondido às chamadas. Foi aí que reparou
que o casaco do Tio Ron estava pendurado no bengaleiro.
O Tio Ron surgira quando James era ainda pequeno. Era
como ter um tapete sujo e malcheiroso no apartamento. Ron
fumava, bebia e só saía para ir ao pub. Tivera apenas um
emprego na vida, que não durara mais de quinze dias.
James sempre achara Ron um idiota e a sua mãe acabou
por concordar com ele, expulsando Ron de casa – mas só
depois de casar com ele e ter tido uma filha. A mãe de James
ainda tinha um fraquinho por Ron. Não chegaram a divorciar-se
e Ron aparecia uma ou duas vezes por mês, supostamente para
ver a filha, Lauren, mas vinha principalmente quando ela
estava na escola e ele com pouco dinheiro.

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James entrou na sala. A sua mãe, Gwen, estava estendida


num sofá. Apoiava os pés num banco e a sua perna esquerda
estava protegida por uma ligadura. Ron estava numa poltrona,
com os pés em cima da mesinha da sala e os dedos a espreita-
rem pelos buracos das meias. Estavam os dois embriagados.
– Mãe, não devias beber, por causa dos comprimidos – disse
James, tão irritado que se esqueceu dos seus próprios problemas.
Ron endireitou-se e puxou um bafo do cigarro.
– Olá, puto, o pai chegou – disse Ron, rindo-se.
James e Ron olharam-se nos olhos.
– Não és meu pai, Ron – disse James.
– Pois não – respondeu Ron. – O teu pai deu à sola mal
viu a tua cara feia.
James não queria falar do que se passara na escola na pre-
sença de Ron, mas estava a remoê-lo não contar a verdade.
– Mãe, aconteceu uma coisa na escola. Foi um acidente.
– Voltaste a fazer chichi nas calças, não foi? – disse Ron,
rindo-se.
James não queria cair na armadilha.
– Ouve, James, querido – disse Gwen, arrastando as pala-
vras. – Seja qual for o problema em que te meteste desta vez,
falamos depois. Bebi uns copinhos a mais e é melhor não con-
duzir.
– Desculpa, mãe, mas é mesmo grave. Tenho de te dizer…
– Vai mas é buscar a tua irmã, James – disse a sua mãe
severamente. – A minha cabeça está a latejar.
– A Lauren já é suficientemente crescida para vir para
casa sozinha – respondeu-lhe James.

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– Não, não é – interrompeu Ron. – Faz o que te mandam.


Se queres a minha opinião, ele precisa é de um bom pontapé
no traseiro.
– Quanto dinheiro é que ele quer desta vez? – perguntou
James sarcasticamente.
Gwen acenou de forma aborrecida. Estava farta dos dois.
– Vocês não conseguem estar dois minutos juntos sem dis-
cutirem? James, vai à minha carteira. Compra qualquer coisa
para o jantar quando vieres para casa. Esta noite não cozinho.
– Mas…
– Vai-te embora, James, antes que perca a paciência.
James mal podia esperar até ter idade suficiente para tra-
tar do Tio Ron. A sua mãe não era má quando ele não estava
por perto.
James encontrou a carteira da mãe na cozinha. Dez libras
chegavam para pagar o jantar, mas tirou duas notas de vinte.
Ron roubaria tudo o que encontrasse na carteira antes de ir
embora, por isso James não seria acusado. Sabia bem pôr qua-
renta libras no bolso das calças do seu uniforme escolar. Gwen
não deixava nada pela casa que pudesse ser roubado por Ron e
James, e guardava as grandes quantias de dinheiro no andar de
cima, dentro do cofre.

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