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ATENÇÃO!

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reconhecimento à obra para que futuramente seja publicado. O Tea & Honey Books não aceita doações de
nenhum tipo e proíbe que suas traduções sejam vendidas. Também deixamos claro que, caso o livro seja
comprado por editora no Brasil, retiraremos de todos os nossos canais e proibiremos a circulação através de
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reconhecidos no Brasil e fazer com que leitores que nunca comprariam a obra em inglês passem a conhecer.
Nunca diga que leu o livro em português, alguns autores (e eles estão certos) não entendem o motivo de
fazermos isso e o grupo pode ser prejudicado. Não distribua os livros em grupos abertos ou blogs. Além
disso, nós do grupo sempre procuramos adquirir as obras dos autores que traduzimos e também reforçamos
a importância de apoiá-los, se você tem condições, por favor adquira a obra também. Todos os créditos
aos autores e editora.
AVISO DE CONTEÚDO
por thb

Este livro é uma coletânea de contos que explora uma variedade de personagens,
incluindo tanto aqueles que são heterossexuais quanto aqueles que são gays. No
entanto, é importante ressaltar que o romance não é o foco principal, o que
significa que não há indicações específicas de tropes. Além disso, é importante
mencionar que os contos apresentam elementos sobrenaturais, como fantasmas e
aparições, assim como temas sensíveis, como relacionamentos abusivos,
mencionando suas dinâmicas e consequências. A obra também inclui referências
explícitas a sexo e abuso sexual, tratando esses temas de forma realista.

Entendemos que esses assuntos podem ser perturbadores ou desconfortáveis


para alguns leitores, portanto, encorajamos você a considerar suas próprias
sensibilidades antes de embarcar na leitura deste livro.
CONTEÚDO

Um estudo em preto e branco – Bridget Collins


O inquilino de Thwaite – Imogen Hermes Gowar
Os cantores de enguia – Natasha Pulley
Lily Wilt – Jess Kidd
A cadeira chillingham – Laura Purcell
O enforcamento dos greens – Andrew Michael Hurley
Confinamento – Kiran Millwood Hargrave
Monstro – Elizabeth Macneal
Sobre os autores
UM ESTUDO EM PRETO E BRANCO

Bridget Collins
Talvez se Morton não tivesse parado para enxugar a testa naquele exato ponto,
ele nunca teria notado a casa preta e branca. Sendo assim, ele havia acabado de
recolocar o boné e passado o pé por cima da barra da bicicleta quando avistou o
portão de ferro forjado na parede e, além, uma fugaz impressão de luz e
escuridão: tão breve que ele mal sabia o que tinha visto, apenas que isso o levou
a manobrar para o lado, meio empoleirado no banco, e espiar por entre as barras
de metal. Através das nuvens de sua respiração, ele viu uma casa do tipo
familiar, antiga e de enxaimel1, cercada por um jardim formal esparso. Era
como um esboço feito de caneta tinteiro: as vigas estreitas da casa, o caminho
invernal branco de geada, a simetria recortada dos teixos e suas longas
sombras… mas suas empenas inclinadas para o lado ou inclinadas para a frente,
cedendo com o peso dos séculos; esta era reto, suas linhas retas e seus ângulos
verdadeiros. E, no entanto, não era, ao que tudo indica, uma casa nova.
Morton observou-a longamente. Ele gostava de ordem, regras e disciplina;
esta casa, com sua recusa em transigir, seu aparente domínio sobre as forças da
gravidade e do tempo, encontrou a aprovação dele. Ele ficou parado por um
longo tempo, olhando através das grades do portão. Estava peculiarmente
quieto. O lugar o lembrou de alguma coisa, mas foi só quando ele – finalmente
– se afastou e pedalou um pouco pela estrada que ele percebeu o que era, e só
então porque ao olhar para trás ele viu a casa de outra direção, onde mais fileiras
de topiaria ficavam em ambos os lados de um amplo gramado. Essas árvores
foram cortadas em formas elaboradas e familiares: torres, cavaleiros, bispos, rei e
rainha, e na frente deles, as longas fileiras de peões. Num dia de verão, o efeito
poderia ser lúdico; sendo assim, na quietude fria, era sombria, cativante.
Morton e sua bicicleta balançaram, e ele lutou para recuperar o equilíbrio ao
dobrar a esquina. Sim, era isso. A casa o lembrava de um jogo de xadrez: uma
caixa de peças, uma tábua plana, o padrão monocromático de geada e sombra.
Era uma coincidência que ele tivesse pensado assim antes de ver a topiaria – a
menos que o dono da casa tivesse a mesma fantasia e projetado o jardim de
acordo – ou não, pensou Morton, ele deve ter tido um vislumbre subconsciente
das árvores através de uma abertura na parede, e fez a associação sem perceber.
Sem dúvida era isso.
Ele se curvou sobre o guidão e pedalou com mais força, resistindo ao
impulso de voltar. A princípio, ele pareceu sentir a casa se distanciar, como se
cada giro das rodas exigisse um esforço extra, mas depois de alguns minutos ele
encontrou uma colina muito exigente e o esforço necessário tirou todo o resto
de sua cabeça. O sol subiu mais alto, brilhando em seus olhos acima das árvores.
Ele ficou agradavelmente aquecido, e então com fome. Seu itinerário o levou em
forma de oito, de volta ao vilarejo onde planejava parar para almoçar em uma
famosa pousada antiga; mas a estrada pela qual ele voltou era diferente e,
quando finalmente desmontou no Cisne, não pensava em nada além de um litro
de cerveja local e um prato de ensopado de coelho ou rins apimentados. Entrou
no bar, tirou o gorro e as luvas e sentou-se diante do fogo.
Foi só então, quando sentiu uma lassidão agradável invadi-lo, que a casa
voltou à sua mente. Ele viu novamente os teixos cortados em suas fileiras, um
de frente para o outro no gramado claro, e em sua imaginação deu um pequeno
empurrão no peão da rainha, movendo-o para frente. Ele gostava de xadrez; ele
tinha boas lembranças de triunfos sobre seus primos e sua irmã – que certa vez,
em lágrimas, jogou o tabuleiro pela sala e se recusou a jogar desde então.
Poucas coisas eram tão satisfatórias quanto anunciar o xeque-mate ou observar o
dedo ressentido de um oponente apontando para o rei para conceder a derrota.
Ele ainda sentia o brilho interior de sua vitória em uma partida da Casa: ele
estava jogando contra o capitão do Clube de Xadrez, que lhe deu um aperto de
mão mole e odioso antes de fugir humilhado. Morton tinha gostado disso.
Uma voz de mulher disse:
— O que vai querer, senhor?
Morton piscou e pediu uma caneca de cerveja e – depois de alguma
deliberação – um prato de costeletas de carneiro. A comida, quando chegou,
estava surpreendentemente boa, e meia hora depois ele ainda estava sentado em
sua poltrona, sentindo-se tão saciado e contente quanto há algum tempo –
desde que, de fato, ele havia saído seu discurso anterior um tanto
precipitadamente, depois que um certo pequeno desconforto veio à tona. Eram
mais ou menos quinze quilômetros até sua pensão em Ipswich, mas ele afundou
mais na cadeira e pediu mais um litro de cerveja. Quando a empregada o
colocou diante dele, ele disse, observando a luz do fogo brincar no líquido
âmbar:
— Por acaso você conhece a casa a leste daqui, com as peças de xadrez de
topiaria?
Ela hesitou. Surpreso, ele ergueu os olhos bem a tempo de captar um
lampejo de cautela na expressão dela. Ela disse:
— A casa preta e branca, senhor?
— É essa mesmo — disse ele. De alguma forma, embora certamente essa
descrição pudesse ser aplicada a centenas de casas, ele tinha certeza de que ela
sabia a qual ele se referia.
— Sim — disse ela. Houve um silêncio e ela se virou.
Isso foi impertinência.
— Quem é o dono? — Morton disse, estendendo a mão, não que ele fosse
realmente segurá-la, naturalmente, mas sua mão estendida foi o suficiente para
fazê-la se encolher e parar no meio do passo.
— Ninguém local — disse ela. — O velho foi o último.
— Mas alguém deve ser o dono, um lugar como aquele. — Ela deu de
ombros. — Então, quem mora lá?
— Ninguém, no momento. — Ela se abaixou para limpar a mesa ao lado
dele, evitando seu olhar.
Uma estranha faísca saltou do peito de Morton. Ele disse:
— Está vazio, então?
Ela não respondeu e ele respirou fundo, reprimindo sua irritação. Eles talvez
não estivessem acostumados com homens educados nessas partes;
presumivelmente eles serviam mais para os camponeses e agricultores. Ele disse,
mais alto:
— Gostaria muito de ver o jardim. Para visitar, quero dizer.
— Os portões estarão trancados, imagino.
— Sim, estou bem ciente disso. Eu simplesmente me perguntei se... oh, não
importa. — Ele se jogou para trás na cadeira e agitou a mão para dispensá-la.
Ela saiu, sem pedir desculpas nem olhar para trás.
— Está para alugar.
Morton deu um salto. A voz – uma voz sedutora e seca – viera de um canto
escuro da sala, que até então ele presumira estar vazio; mas agora ele viu que
havia uma figura em uma pequena mesa ali.
— Desculpe? — disse ele, inclinando-se para a frente.
— A casa preta e branca — disse o homem, sem se mexer, de modo que seu
rosto permaneceu na escuridão. Até aquele momento, Morton não percebera
que o sol de inverno não chegava mais ao quarto e que a tarde estava chegando.
— Perdoe-me — continuou ele —, mas não pude deixar de ouvir. É uma bela
propriedade, não é?
— É certamente muito impressionante — disse Morton.
— Se você quiser dar uma olhada, imagino que o agente poderá mostrá-lo a
você. Letterman, na Praça. — O homem gesticulou; ele tinha um jeito
desajeitado e desajeitado, como se estivesse amarrado com um barbante. —
Perto do Guildhall. É melhor se apressar, ele fecha cedo no inverno.
— Sim. Sim, eu entendo. — Morton se viu de pé, embora apenas um
momento antes estivesse muito cheio e sonolento para se mover, e a maior parte
de sua cerveja ainda estava no copo. Ele estava contente com esta nova
informação, é claro, e ansioso para fazer perguntas no escritório de locação; sua
pressa não tinha nada a ver com os olhos brilhantes do homem, ou com o modo
como as sombras se amontoavam e tramavam na parede atrás dele. — Obrigado
— disse ele.
— Não há de quê.
— Boa tarde. — Morton procurou seu boné e luvas, derrubando um deles
no chão; ao se abaixar para recuperá-lo, viu que o homem estava sentado em
frente a um tabuleiro de xadrez. — Ah… — disse ele, consciente de que sua
pressa de fugir era imprópria — um colega entusiasta. —
— Sim — disse o homem, e sorriu. — Você pode dizer isso.
Houve um curto silêncio. Morton poderia, em outras circunstâncias, ter
demorado mais um pouco para se entregar a uma pequena conversa erudita
sobre, digamos, os méritos relativos das aberturas de peões de rei e peões de
rainha. Em vez disso, ele disse:
— Bem, obrigado. — E correu para fora, feliz por sentir a porta fechada
atrás de si e o ar frio em seu rosto.
O corretor de imóveis – um homenzinho de óculos e colarinho puído – não
conseguiu disfarçar sua surpresa com a pergunta de Morton, mas, depois de
arregalar os olhos pela primeira vez, disse:
— Sim, sim, claro, sim. — e pegou a chave com grande entusiasmo. — A
casa preta e branca — disse ele —, meu Deus, sim. Um aluguel muito razoável.
Muito razoável. Já procurou outras propriedades na área?
Morton explicou que havia alugado um quarto em uma pensão em Ipswich e
que até aquele dia não quisera nem lhe ocorrera – alugar uma casa. Ele esperava
mais perguntas, pois afinal de contas dificilmente uma posição racional, mas
depois de uma única contração de suas sobrancelhas o agente disse:
— Ah, sim, sim, de fato — e pegou seu chapéu. — Imagino que queira vê-
la.
Era mais perto do que Morton havia imaginado, apenas nos arredores da
aldeia, mas quando o agente destrancou o portão, o sol já havia se posto atrás
das árvores e o jardim estava na sombra. No crepúsculo que se aproximava, a
topiaria parecia maciça e sólida, como pedra negra. Ele fez uma pausa, virando-
se lentamente para olhar as fileiras de cada lado dele. Preto contra preto, ele
pensou, e sua nuca formigou.
— Sr. Morton? — O agente disse, da porta. — Podemos?
Morton se sacudiu.
— Desculpe-me — disse ele, e correu para encostar a bicicleta na parede.
— Como você vê, está totalmente mobiliada — disse o agente. — Entendo
que o atual proprietário não tem interesse, então a casa está exatamente como
era quando o velho... sim, bem. Um pouco antiquada, talvez, mas você pode se
mudar imediatamente. Esta noite, se você quiser! — Ele deu uma risadinha
zurrante. — Por aqui, por favor…
Estava escuro lá dentro; o teto era baixo e a mobília – que era mais do que
um pouco antiquada – ocupava tanto espaço que Morton teve que contorná-la
enquanto seguia o agente. Os cômodos eram compridos, com amplas janelas
gradeadas que brilhavam azuladas ao crepúsculo. Eles passaram por uma
passagem estreita e depois subiram as escadas; o agente disse:
— Aqui estão os quartos. — Mas agora ele estava se movendo rapidamente,
não dando a Morton tempo para olhar direito. — Está ficando tarde — disse ele
— e está bastante escuro aqui. Não quero te apressar, mas...
— Tem gás?
— Não... lâmpadas, ainda, receio. Ou velas, é claro. Mas estragaria o charme
ter gás, não acha? — Seu tom desmentia as palavras; ele se virou, passou por
Morton e desceu rapidamente as escadas. — Você já viu o suficiente?
Morton hesitou, olhando pela porta aberta para o quarto, onde havia uma
cama com cortinas, um espelho, uma mesa com pernas torcidas de açúcar de
cevada, um candelabro com velas meio queimadas envoltas em cera. Mas sua
atenção foi atraída pela visão do lado de fora, as fileiras de peças de xadrez
esperando no gramado. Foi difícil desviar o olhar.
— Sim — disse ele. — Bastante.
— Oh. Bem, então, vamos...? — O agente gesticulou, com o braço flácido.
— Não seria adequado para todos. Eu posso ver isso. Esses lugares históricos
podem ser opressivos no inverno.
— Eu vou ficar.
— E é claro... — Ele parou. — Perdoe-me?
— Vou ficar — repetiu Morton. Por que as pessoas locais eram tão lentas
para entender o enunciado mais simples? — Vou mandar trazer minhas coisas
amanhã. Devemos voltar ao seu escritório? Suponho que haja algo que devo
assinar.
— Oh... não, não, leva muito tempo, assim que estiver instalado… — disse
o agente, gaguejando. — Isso é... bem... fico feliz que o agrade. Resolveremos
os detalhes do contrato conforme sua conveniência.
Morton assentiu. Houve um breve silêncio; então, com uma leve
incredulidade, percebeu que o agente o esperava, para que pudessem partir
juntos.
— Vou ficar aqui — disse ele. — É tarde para pedalar de volta aos meus
aposentos. Imagino que posso jantar no Cisne?
— Certamente, mas–
— Você disse que eu poderia me mudar esta noite, se quisesse.
— Eu disse, sim. — O agente pigarreou. — Depende de você,
naturalmente. Se você está ansioso para tomar posse. — Ele estendeu a chave.
— Amanhã de manhã, então. Você sabe onde me encontrar. E… — Ele mudou
de pé para pé; depois acrescentou: — Se você mudar de ideia da noite para o
dia, não falaremos mais sobre isso.
— Tenho certeza de que vou conseguir — disse Morton. — Posso acender
um bom fogo na sala.
— Sim. Bem, boa noite, então. — O agente deu-lhe um aceno de cabeça e
desapareceu. Morton ouviu seus passos acelerarem pelo corredor e a porta da
frente se fechando pesadamente. Ele esperou até achar que o agente teria tempo
de percorrer o caminho e sair para a estrada. Então ele soltou um suspiro
profundo e satisfeito e caminhou ao longo da passagem, sentindo a emoção da
posse. Quão inesperado, quão milagroso! Ele quase podia rir com a memória –
tinha sido apenas esta manhã? – de ver a casa da estrada; agora era dele,
explorar, conquistar...
Nos últimos momentos a noite quase caiu, então ele pegou o candelabro da
mesa do quarto e acendeu as velas. Então ergueu o candelabro e foi de cômodo
em cômodo, contornando cadeiras com pés de garra e cadeiras empoeiradas.
tapeçarias para pegar livros nas prateleiras e abrir armários e gavetas. O agente
havia chamado a casa de ‘mobiliada’, mas era mais do que isso; dava a impressão
de ter sido deixada intocada, de ter sido abandonada entre uma badalada e
outra. Apenas um quarto estava em perfeita ordem: um quarto de criança, nos
fundos da casa, com uma estante arrumada de brinquedos, um taco de críquete
em miniatura apoiado em um canto e, no assento da janela, um tabuleiro de
xadrez infantil e uma pilha de livros. Morton parou na porta; então fechou a
porta com mais força do que precisava e seguiu em frente.
Em todos os outros cômodos havia vestígios do velho: nada tão óbvio quanto
comida deixada sem comer, ou um cachimbo meio fumado deixado em uma
mesa lateral – mas as velas, o sabonete deixado no lavatório, a toalha pendurada
em um trilho… Ele encontrou uma cópia do Chess Player’s Chronicle na sala,
espalhada no braço do sofá, como se o leitor quisesse marcar seu lugar. Em
frente a ele – no canto da sala, onde as sombras se reuniam – havia um tabuleiro
de xadrez, posto para o início de uma partida. Era feito de pedra – ou era
azeviche e marfim? Morton pegou um peão, sentindo seu peso suave como óleo,
e então o recolocou cuidadosamente na frente da rainha. Mais tarde, talvez, ele
encontrasse um problema de xadrez no Chronicle e o estudasse até ficar com sono
o suficiente para ir para a cama; ele sempre os achava mais fáceis quando podia
contemplar as peças em um tabuleiro real. Ele endireitou o peão com a ponta do
dedo, certificando-se de que estava exatamente no meio de sua casa, e então se
virou. Ao sair da sala, teve a sensação repentina e irracional de que esqueceu
algo – ou cometeu algum erro, como deixar um vidro onde uma manga
descuidada quase certamente o prenderia, ou uma janela destrancada antes de
uma tempestade. Mas foi só quando estava na cozinha, fazendo um balanço dos
produtos secos que ainda restavam nos armários, que percebeu, com um sorriso
irônico de seu próprio capricho: deveria, como qualquer jogador educado, ter
murmurado J'adoubeI.
Estava congelando. A primeira coisa a fazer era amortecer o frio cortante; e
enquanto olhava para a enorme cordilheira apagada, Morton teve que admitir
que não era, de fato, o lugar mais conveniente para passar a noite. Mas ele
parecia se lembrar que no caminho para cá o agente havia mencionado uma
faxineira – sem dúvida isso explicava a ausência de poeira e teias de aranha – e
amanhã ele poderia tomar as devidas providências para que ela cuidasse dele;
entretanto, havia algo de excitante em estar ali sozinho, procurando nos
armários tudo o que precisava. Certa vez, quando criança – depois de um ou
outro pequeno delito – ele se escondera por horas, ouvindo com crescente prazer
a voz de sua mãe enquanto ela ficava preocupada e, finalmente, com medo. Ele a
deixou chamar por um longo tempo antes de finalmente emergir, saboreando
seu poder. Ele não sabia por que isso lhe veio à cabeça agora, mas sentiu uma
espécie de sorriso seco e incomum em seu rosto enquanto procurava jornais
velhos e coisas do tipo, e então se ajoelhou para acender o fogo na grande lareira
da sala de visitas. Assim que acendeu o fogo, sentou-se de joelhos e deu uma
profunda respiração satisfeita. Pretendia ir à estalagem para jantar, mas não
estava com fome, e agora que o fogo estava aceso, não tinha nenhuma vontade
de se aventurar na noite amarga. Levantou-se, limpou as cinzas dos joelhos da
calça e foi até a janela para fechar as cortinas. Enquanto os desenhava, ele parou,
impressionado com a visão do jardim. A lua havia nascido, tingindo o gramado
de prata, as árvores e suas sombras de um preto denso; sob seu brilho invernal, o
mundo inteiro se transformou em pérola e ébano. Era de outro mundo,
estranho, e Morton pensou que nunca tinha visto nada tão adorável.
Mas ele não era o tipo de homem que se deixaria seduzir por algo tão
intangível quanto beleza. Ele fechou as cortinas com um puxão tão decidido
que uma nuvem de poeira o fez tossir e voltou para o quarto. Seu olhar foi
atraído por uma garrafa de conhaque no aparador. Ele cheirou – primeiro
cautelosamente, depois exultante – e derramou uma generosa dose em um dos
copos que estavam ao lado da garrafa. Em seguida, acomodou-se junto à lareira,
recostou-se no sofá e apresentou as solas dos sapatos ao fogo. Congratulou-se:
uma casa assim, por um aluguel baixo... O conhaque estava excelente, o fogo
estava tirando o frio do ar e depois do exercício da manhã e dos imprevistos da
tarde ele se sentia quase tonto. Ele podia sentir o calor envolvendo seus
tornozelos, espalhando-se pelo resto da sala; os estalos das chamas eram
acompanhados pelo rugido do ar na chaminé e pelos gemidos das velhas paredes
se assentando. As vigas suspensas murmuraram um pouco quando o ar quente
as alcançou. Quando os olhos de Morton começaram a se fechar, ele ouviu uma
longa cadeia de passos no chão, aproximando-se dele, e ele se ergueu de repente,
com o coração na boca, meio que esperando ver alguém ali. Seus olhos levaram
um momento para focar, e por um instante ele pensou ter visto um borrão
escuro passar e se dissolver em nada antes que ele pudesse piscar. Seu coração
deu um salto. Mas é claro que não havia ninguém. Deve ter sido a madeira se
deslocando nas juntas entre as tábuas; ele tinha ouvido outras casas velhas
fazerem barulhos que eram estranhamente como vozes ou passos. Ele relaxou,
tentou rir e deixou a cabeça cair para trás no canto do sofá. Ao mesmo tempo, a
poltrona de couro à sua frente, em frente ao tabuleiro de xadrez, deu uma
pequena afundada, como se alguém tivesse se acomodado nela.
Era fácil de explicar – ainda mais fácil do que as tábuas do assoalho: o ar
dentro da almofada devia ter se expandido e contraído, de acordo com algum
redemoinho de ar aquecido pelo fogo. Mas ele não podia deixar de olhar para a
cadeira com os olhos apertados e um coração martelando tolamente. Nada se
moveu. O couro tinha a forma de um corpo – um homem, ele pensou, ossudo e
de quadris estreitos, com o hábito de apoiar os cotovelos nos braços acolchoados
– e por uma fração de segundo Morton quase o viu ali, entre as sombras do fogo
que se esvaía. Ele piscou para afastar a imagem e tomou outro gole de
conhaque. A feroz doçura disso acalmou o arrepio em sua nuca. Ele deu um
grande gole para dar sorte e mexeu as nádegas, tentando encontrar o conforto de
alguns momentos atrás. Seu olhar se desviou para o tabuleiro de xadrez.
O peão branco estava fora do lugar.
Morton congelou. Em vez de esperar perfeitamente na fila, o peão avançou e
ficou longe dos outros: a abertura do peão da rainha. Era impossível. Ele o havia
recolocado – não havia dito a si mesmo, J'adoube?
Mas não. Ele deve ter movido. Ele o pegou para sentir o peso e o colocou de
volta novamente. Ele deve ter se lembrado mal de sua posição, era isso. Foi a
coisa mais natural do mundo, colocar aquele peão em uma nova posição – para
começar um jogo, automaticamente – tão automaticamente que mal havia
registrado – e então esquecer – de modo que agora, absurdamente, olhando para
ele, ele sentiu-se preso, com falta de ar... Ele estendeu a mão, mas sua mão
parou acima do tabuleiro como se tivesse encontrado um painel de vidro. Ele
não queria tocá-lo. Lembrou-se do peso na palma da mão e da leve oleosidade
que o fez se perguntar se era marfim, não pedra.
Ele recuou. Algum instinto o fez erguer novamente os olhos para a poltrona
nas sombras: mas estava vazia, e os contornos do couro eram impessoais, afinal,
apenas a forma de uma velha cadeira, marcada por anos de uso. A eletricidade
que formigava na espinha de Morton morreu, deixando apenas cansaço. Este foi
o efeito do esforço e da excitação e – ele olhou para o copo, notando que havia
bebido quase todo o conhaque – intemperança. Ele engoliu as últimas gotas e
colocou a taça ao lado do tabuleiro de xadrez. Era hora de dormir.
Ele dormiu inquieto. O quarto estava gelado e ele estava muito sensível para
rastejar para debaixo dos cobertores, preferindo deitar-se completamente
vestido no edredom e cobrir-se com o sobretudo; então talvez não fosse
surpreendente que em seus sonhos ele estivesse de volta ao dormitório do
colégio interno, parte lembrando, parte reinventando as intermináveis
travessuras e truques que ele havia infligido a outros meninos. Quando acordou
– assim que entendeu onde estava, pois as consequências vívidas de seu sonho
pairavam como névoa diante de seus olhos por alguns momentos – ele pensou
em café, água quente para fazer a barba e no alegre fogo na sala de jantar em sua
casa alugada. Ele amaldiçoou. O que deu nele para ficar aqui – pior, ter
concordado em alugar o lugar? Ele se jogou rigidamente para fora da cama e
mancou para o corredor e desceu as escadas, gemendo alto.
Mas quando ele passou pela janela no topo da escada, seu ânimo melhorou.
O dia estava claro como um diamante; o jardim era de um verde prateado ao
amanhecer, a topiaria era um milagre de simetria. Afinal, seria preciso muito
pouco para tornar este lugar habitável. Boas fogueiras, lençóis limpos, uma
entrega de mantimentos e os serviços de algum licitante respeitável, e então ele
seria – Morton sorriu – o mestre de tudo o que ele inspecionava... Ele desceu as
escadas apressado e saiu para o ar claro e revigorante; um minuto depois, ele
estava descendo o caminho em sua bicicleta, entrando e saindo das sombras das
árvores, e então saindo para a estrada que levava ao vilarejo.
E ele teve uma manhã muito satisfatória. Se o agente ficou surpreso com o
fato de Morton ainda estar tão ansioso como sempre para alugar a casa preta e
branca, ele escondeu isso admiravelmente e lidou com os papéis com tanta
rapidez que Morton deixou seu escritório em vinte e cinco minutos. Ele até deu
a Morton o endereço da faxineira que tinha o hábito de tirar o pó dos cômodos
uma vez por semana; e ela, com o brilho da avareza nos olhos, concordou em
fornecer comida para Morton esquentar e cuidar de sua lavagem e engomadoria
e de quaisquer outros detalhes domésticos que pudessem ser necessários.
Morton deixou seu chalé e andou pela Avenida Principal com o coração leve,
assobiando. Ele havia previsto apenas uma estada temporária aqui – alguns
meses no máximo, até que aquele infeliz emaranhado em casa acabasse –, mas
ele poderia ficar aqui mais tempo, mesmo permanentemente... Ele parou no
correio, para enviar instruções para sua pensão ter suas coisas entregues, depois
foi quebrar o jejum na estalagem. Desta vez, ele se sentou deliberadamente do
outro lado da sala, sentindo uma misteriosa relutância em encontrar o
cavalheiro que havia falado com ele anteriormente; mas, sendo dia de mercado,
a sala estava cheia de fazendeiros e comerciantes, e quando a multidão se abriu o
suficiente para Morton vislumbrar o canto sombrio oposto, ele viu que estava
vazio, e até mesmo a cadeira e o tabuleiro de xadrez haviam sido removidos,
presumivelmente para permitir maior aglomeração de pessoas.
Ele fez um longo desvio no caminho de volta para casa, curtindo o exercício
e a brisa limpa em seu rosto, e voltou para descobrir que, conforme combinado,
o filho da faxineira havia deixado uma torta de carne e um pote de pudim com
cheiro adocicado na porta. Morton os colocou na cozinha e – após uma longa
batalha – acendeu o fogão, sibilando de triunfo quando o velho animal
fuliginoso finalmente cedeu à sua vontade. Um pouco depois ele tinha água
quente. Ele realizou suas abluções atrasadas da melhor maneira que pôde –
embora usasse uma barra de sabão velho meio petrificada, parou de usar a
navalha de outro homem – e então, com uma agradável sensação de que havia
feito todas as suas tarefas, ele entrou na biblioteca, acendeu outro fogo ali e
começou a examinar as estantes. Claramente, o habitante anterior não era um
grande leitor, pois Morton pegou livro após livro – todas as belas edições dos
clássicos – apenas para descobrir que suas páginas não estavam cortadas.
Colocou-os de volta e seguiu em frente, até encontrar um pequeno volume
encadernado em tecido sobre a história local, mais um panfleto do que um livro.
Ele folheou as páginas, que estavam pontilhadas com esboços de edifícios
notáveis: o Guildhall, a igreja e – aha! – a própria casa em preto e branco.

Construída no final do século XVII por Sir Jeremiah Hope, de quem sabemos pouco,
exceto que ele era conhecido por seus vizinhos, em uma brincadeira com seu sobrenome,
como “Abandon”... Mais recentemente, a casa tornou-se notável por seu jardim formal e
elaborada topiaria, criada pelo atual habitante, Sr. EE Hope, MA (Cantab.) em memória
de seu filho, que herdou do pai a paixão pelo xadrez, tornando-se um prodígio antes de
sua trágica morte na tenra idade de…

Morton bocejou e avançou, mas havia muito pouco na casa e nada de


interessante. Ele se acomodou em uma cadeira longa e deixou o livro cair no
chão. Depois da noite mal dormida, do passeio de bicicleta e das conquistas do
dia, ele estava sonolento; ele dormiu, cochilou e dormiu de novo. Finalmente
ele voltou à si, com a cabeça limpa e apetite para o jantar. Quando ele se
levantou, sua mente correu para a torta de carne, e ele mal notou o panfleto sob
os pés; saindo para o corredor, ele fechou a porta da biblioteca e a esqueceu
completamente.
Depois do jantar – que foi substancial, embora não especialmente agradável
– ele retirou-se para a sala. Ele limpou a lareira, desajeitadamente, sujando as
calças de cinzas, e resolveu dizer à empregada, quando ela viesse, que apagasse
todos os fogos da casa; depois serviu-se de outro conhaque, acendeu as velas
contra o crepúsculo que se aproximava e sentou-se no lugar onde se sentara na
noite anterior. Foi então que ele se lembrou do livrinho e se perguntou se
poderia se dar ao trabalho de enfrentar a passagem ventosa para ir buscá-lo; mas
não, havia o Chess Player’s Chronicle e o tabuleiro pronto. Talvez, se fosse ficar
aqui muito tempo, devesse preparar um programa de leitura ou correspondência
para passar as horas solitárias. Nesse ínterim, haveria vários problemas
importantes no Chronicle para passar o tempo até que ele se sentisse cansado o
suficiente para dormir. Ele pegou o diário. Por acaso, ele caiu aberto em uma
página de problemas, com seus pequenos hieróglifos e ladrilhos quadriculados.
Por RB Wormald, BA, Londres. Branco para jogar e mate em três movimentos. À
primeira vista, ele podia ver um primeiro ataque promissor – o bispo para pegar
a torre –, mas havia um peão tentador na última fileira do tabuleiro, que levaria
apenas um movimento para se transformar em uma rainha. Ele puxou o
tabuleiro de xadrez para si, para colocá-lo. Seu coração tropeçou uma batida.
Outra peça havia sido movida.
Morton notou, automaticamente, que era a Defesa Holandesa: o peão do
bispo havia avançado duas casas, desequilibrar o tabuleiro, uma jogada agressiva
mas perigosa, enfraquecer o rei... Mas isso foi por acaso. Não havia possibilidade
de ele mesmo ter movido o peão preto. Na noite passada, ele poderia culpar o
esquecimento ou mesmo a embriaguez; mas agora ele tinha certeza - uma
certeza fria, doentia - de que não havia tocado na peça preta. E ainda estava lá.
Os dois peões se enfrentaram nas fileiras. Uma resposta. Como se um oponente
invisível tivesse–
Ele ergueu os olhos para a cadeira. Os músculos do pescoço e da cabeça
estavam rígidos, como se ele estivesse se preparando para um choque: mas a
cadeira estava vazia. Claro que a cadeira estava vazia. Restava apenas o couro
velho, com suas rachaduras e vales, a lembrança de membros e dedos. Ausência.
Ele olhou para ela, relutante em piscar. A luz do fogo tremeluzia e brincava, e
as sombras deslizavam pelas paredes; a madeira brilhava, lisa como água, sem
pó...
Morton exalou, bruscamente. A faxineira deve ter estado aqui. Deve ter sido
ela quem moveu a peça preta – ou seu filho, talvez, quando ele veio deixar a
comida. Sim, era mais provável que fosse o filho – a faxineira era velha e
ignorante, dificilmente o tipo que jogava xadrez –, mas qualquer um deles, era
uma audácia, uma maldita audácia, pensou Morton. Ele se perguntou
fugazmente se a mulher poderia ter batido no peão com um espanador. Mas a
jogada foi considerada – uma verdadeira resposta à sua abertura – e dificilmente
poderia ser uma coincidência. Foi definitivamente intencional, e
definitivamente o filho. Ele deve ter alguns rudimentos de educação. Morton
apertou a mandíbula. Ele não acreditou nem por um segundo que o menino
queria uma relação honesta no jogo de xadrez; meninos eram bichinhos
nojentos. Não, era para irritá-lo. Como ele ousa? Morton lembrou-se de uma
campanha semelhante na escola, que foi bem-sucedida – bem-sucedida demais.
Bem, ele não ia cair nessa.
Ele considerou o tabuleiro de xadrez por mais um momento. Então, com um
gesto rápido, ele empurrou o peão de seu rei para a casa ao lado de seu
companheiro. O gambito Staunton: oferecer um peão como sacrifício, a fim de
lançar um ataque ao rei preto. Isso mostraria ao pequeno bastardo que ele não
estava com medo. Ele recostou-se, esfregando as mãos nas coxas, imaginando a
expressão de decepção no rosto do menino quando percebeu que Morton havia
descoberto seu blefe.
Mas aquele lampejo de satisfação morreu quase no mesmo instante em que
Morton o sentiu, e alguns segundos depois ele se levantou e caminhou,
primeiro para o aparador e depois para a janela. Puxou a cortina para o lado,
mas o jardim estava às escuras – as nuvens encobriam a lua e as estrelas – e ele
não viu nada além de manchas indistintas de um preto mais profundo onde as
árvores se destacavam contra um céu obscuro. Mover seu próprio peão só
encorajaria a criança, a última coisa que ele queria fazer. Ele bateu as unhas
contra o vidro, pensando, mas o barulho ecoou estranhamente na sala silenciosa
e depois de um momento ele deixou cair a mão. O curso de ação mais digno
seria colocar as peças de volta em seus lugares. Ou – melhor ainda – guardá-los
fora de vista. O menino dificilmente poderia perguntar o que havia acontecido
com eles, poderia? E o próprio apetite de Morton por problemas de xadrez havia
perdido sua agudeza; na verdade, a presença da prancha atrás dele fazia suas
vértebras formigarem, como um olhar hostil. Ele girou para olhar para ele. Era
um absurdo, mas ele desejou, desejou sinceramente, não ter feito aquele contra-
ataque.
As velas estavam queimando baixo. Agora, a chama mais baixa se alargou,
ricocheteando avidamente para cima. Enquanto Morton observava, as sombras
no canto inclinavam-se para a frente, ávidas; então a chama da vela encolheu
para uma pequena bolha azul e desapareceu. Por um segundo – enquanto seus
olhos se ajustavam – as manchas na cadeira pareceram solidificar-se, como um
vaso se enchendo de fumaça, de modo que um olhar casual poderia dar a
impressão de que havia alguém ali. Algo nas entranhas de Morton se apertou e,
com uma resolução repentina, ele caminhou até o tabuleiro de xadrez, pegou a
caixa e jogou as peças dentro dela desordenadamente. Havia dois
compartimentos para preto e branco, mas ele os ignorou; ele empurrou e
empurrou a tampa até que finalmente algo cedeu – era a cabeça de um bispo, se
quebrando? – e se fechou. O som ecoou pelas paredes. Ele nunca havia parado
no meio de um jogo antes, nunca implorou por um quarto, nunca admitiu
fraqueza. Ele sentia isso agora, embora estivesse sozinho: uma curiosa mistura
de vergonha e desafio e, por baixo, um desconforto crescente. Outra vela
mergulhou, ameaçando vazar. Ele se encolheu. De alguma forma, o pensamento
de ser deixado aqui, sozinho com a luz do fogo, era insuportável. Ele agarrou
convulsivamente a haste do candelabro e saiu para o corredor; e embora a pele
entre as omoplatas se arrepiasse, ele não se permitiu olhar para trás.

Demorou muito para Morton adormecer. Ele desprezava aqueles que viviam
desnecessariamente no passado, mas por algum motivo ele encontrava memórias
de seus dias de escola passando por sua mente, repetidamente. Ele podia ver o
menino que ficara tão aterrorizado com as piadas deles – Simms Minor, era isso,
ou Simmons? – e seus olhos arregalados, na noite em que pedira ajuda a
Morton... De qualquer modo, ele fora um fracote. Ele deveria ter lidado com o
tratamento dado a ele como Morton lidou com o jogo de xadrez: varrendo-o
com desdém. Essa era a coisa viril a fazer. E o acidente... bem, não foi culpa de
Morton. Mesmo assim, Morton se sentia pegajoso e desconfortável, e se revirava
no edredom, enrolando-se ainda mais no sobretudo.
Mas ele deve ter cochilado, porque acordou. Havia uma quietude peculiar no
ar - a mesma quietude que ele havia notado quando viu a casa pela primeira vez
pelo portão, como se o próprio mundo estivesse ouvindo. Teve a impressão de
que algum som em particular, agora extinto, o havia acordado: isso, ou um
movimento dentro do quarto, como uma pessoa chegando a poucos metros de
sua cama. Não foi o último, pois quando se sentou estava claramente sozinho.
Claramente, porque a lua havia saído de trás das nuvens e brilhava através das
vidraças em quadrados de preto e branco.
Ele puxou o casaco para mais perto dos ombros e jogou as pernas para fora da
cama. O chão estava gelado sob seus pés descalços, mas ele se levantou e
caminhou silenciosamente até a janela. Ele ficou lá, esperando que o som se
repetisse. Ele não ouviu nada, nem mesmo o canto de uma coruja ou o
matraquear de uma corrente de ar sibilando pelas frestas do caixilho da janela.
Poderia ter sido a própria profundidade do silêncio que o tirou do sono? Mas
não, ele tinha certeza – quase certeza – de que tinha ouvido alguma coisa. Ele
tentou descrevê-lo para si mesmo: um ranger baixo, um rangido profundo e
ressonante, a meio caminho entre a madeira e a pedra. Ele olhou para as árvores,
sentindo uma espécie de vertigem que não era exatamente medo. A luz
sobrenatural – as formas escuras contra o céu encharcado de lua – a clareza do
contorno, a densidade das sombras... Ele sentiu o espaço se contrair, de modo
que por um segundo doentio as peças de xadrez eram grandes e pequenas o
suficiente para caber em sua mão. Ele fechou os olhos, mas isso o deixou tonto e
ele os abriu apressadamente. As sombras tremeluziam contra o brilho pálido da
lua, parecendo mudar.
Ele agarrou a moldura da janela. Ele pensou – apenas por um instante, ele
viu – Não. Não, nada mudou, nada se moveu. Deveria ter sido reconfortante ver
todas as árvores alinhadas, ordenadas, exatamente como deveriam ser: mas a
pressão cresceu em seus ouvidos, zumbindo. Se ele visse uma das árvores
avançando – o peão, digamos, avançando pela extensão prateada de grama –
então ele saberia que estava alucinando, ele quase ficaria aliviado. Mas essa
sensação de espera – e aquele peso no ar, as árvores imóveis, o jogo iniciado –
era insuportável, aterrorizante, de alguma forma pior; e ele não podia se mover,
ele não podia se virar.
Ele não sabia quanto tempo ficou ali, olhando para os pedaços, esperando por
algo que nunca veio. Por fim, percebeu que a lua havia se escondido atrás da
casa, uma brisa suave murmurava na chaminé e seus pés estavam dormentes de
frio. Ele andou de volta para a cama e, inesperadamente, ele caiu rapidamente
no sono, exausto como se tivesse lutado uma grande luta.
Ele foi acordado por batidas. Ele rolou escada abaixo e ao longo do corredor,
esfregando os olhos, e escancarou a porta da frente. Um menino estava parado
ali, com uma tigela de pudim e um embrulho de papel pardo. Ele os empurrou
para Morton.
— ... Vazios — ele murmurou.
— O que?
— Minha mãe disse para recolher os vazios.
— Você pode pegar eles amanhã — disse Morton, e começou a fechar a
porta.
— Você vai ficar coberto de neve amanhã.
Morton fez uma pausa. Em sua pressa meio adormecida de abrir a porta, ele
mal notou, mas era verdade que havia uma nova frieza no vento, e as nuvens
baixas eram planas e sem traços característicos.
— Tudo bem — disse ele. — Espere aqui. — Alguns momentos depois, ele
voltou com a panela vazia e o prato de torta e os estendeu. O menino mudava
de um pé para o outro como se precisasse ir ao banheiro; ele agarrou a louça
suja, enfiou-a em uma mochila e se virou para sair sem dizer mais nada. Sua
pressa, embora não de todo insolente, deixou Morton em choque: ele estava
pagando o salário da mãe da criança, não estava?
— Espere — Morton disse —, não tão rápido. Você andou brincando na
sala, não foi? Bem, você pode muito bem parar com isso.
O menino o encarou.
— Não estive lá dentro — disse ele, depois de uma pausa.
— Sua mãe, então. Eu não sou um idiota. — Morton olhou para ele, mas o
menino manteve seu olhar, sua expressão em branco. — Diga a ela para não
mexer em nada. Como ela fez ontem. Apenas diga a ela para manter as mãos
longe das coisas, certo?
— Ela também não apareceu ontem — disse o menino. — Ela só limpa aos
domingos. Domingos não tem nada andando.
— O que? — Mas o menino não respondeu. Ele curvou os ombros e os
deixou cair novamente. Morton respirou fundo. — O jardineiro, então. Há um
jardineiro, não é?
— Ele não tem a chave da casa. Só cuida das árvores.
— Bem, quem quer que seja — disse Morton —, se eu os pegar no ato…
O menino continuou olhando para ele, mordendo o lábio. Finalmente –
como se Morton tivesse perdido alguma oportunidade – ele se virou. Ele desceu
o caminho com os olhos no chão e, quando passou pela última fileira de árvores,
começou a correr.
Morton observou o menino até que ele fechou o portão e desapareceu na
estrada. Então voltou para dentro de casa, tremendo. Agora que tinha tempo
para perceber, podia sentir o cheiro metálico da neve. Talvez, afinal, fosse tolice
ficar aqui; talvez um quarto no Cisne pudesse ser mais benéfico... Mas isso
significaria admitir a derrota. Ele entrou na sala, batendo os braços contra o
corpo para se aquecer, e ajoelhou-se para cuidar do fogo. Suas mãos estavam
duras e sua cabeça doía. Ele se atrapalhou por um longo tempo com fósforos e
folhas de jornal antes que o fogo finalmente começasse. Então ele desabou no
sofá. Ele pode estar com alguma coisa; ele não estava com fome nem com sede,
embora ao consultar o relógio descobrisse que havia dormido muito tarde e já
passava do meio-dia.
Um único floco de neve passou pela janela, pálido contra o céu cinzento. Ele
piscou, imaginando se tinha sido um truque de seus olhos, mas então houve
outro e outro, até que um véu rodopiante apagou as nuvens baixas. Lentamente,
Morton relaxou. Era reconfortante estar lá dentro, ao lado do fogo crepitante,
enquanto a tempestade silenciosa girava em torno da casa. Ele mergulhou em
uma espécie de transe, observando a dança branca da nevasca, as quase formas
que sopravam e ondulavam contra as vidraças. Desta vez – talvez porque
estivesse mais frio lá fora do que antes – os gemidos e murmúrios à medida que
o calor se espalhava pela sala eram mais altos e distintos: o rangido das
dobradiças, o padrão de batidas nas tábuas do assoalho que soavam como passos,
o suspiro da cadeira... Ele virou a cabeça, reflexivamente, embora soubesse que
não haveria ninguém ali.
O tabuleiro de xadrez estava sobre a mesa.
O sangue rugiu em seus ouvidos. Ele inspirou uma respiração trêmula.
Certamente ele estava vendo coisas: mas não, estava lá, perfeitamente sólido,
um bispo quebrado no pescoço onde ele o havia empurrado com muita força
para dentro da caixa. Quatro peões estavam fora do lugar, dois brancos, dois
pretos. Alguém havia definido, meticulosamente, e feito outro movimento.
Alguém que estivera na casa; alguém que não era a faxineira, nem o jardineiro,
nem o menino.
E não estava lá quando Morton se ajoelhou para acender o fogo.
Ele ficou sentado muito quieto. Teria gostado de gritar ou sair correndo do
quarto, mas não conseguiu. Por um longo e horrível momento, ele pensou que
nunca mais poderia se mover. Então, finalmente, uma onda de raiva tomou
conta dele, forte o suficiente para afastar o terror que o paralisava. Ele se
impulsionou para a frente e com as mãos trêmulas varreu o conjunto para
dentro da caixa, abaixando-se para pegar um peão que rolou para o chão. Então
ele se arrastou até o fogo de joelhos e jogou a caixa e seu conteúdo nas chamas.
O fogo afundou sob o novo peso e, horrorizado, ele estendeu a mão para o
atiçador; mas então ele brilhou, saltando ao redor da caixa, agarrando-se nos
cantos e engolindo as peças que se projetavam do topo. Coroas escuras, torres e
cabeças de cavalos recortavam-se contra o brilho vermelho-ouro. Então eles se
foram, envoltos em chamas, e a sala estava cheia de luzes saltitantes. Morton
sentiu o triunfo inundá-lo. Ele se recostou, respirando com dificuldade. Então
ele olhou para o canto e o ar ficou preso em sua garganta.
Havia um homem na cadeira.
Um velho malévolo, ansioso e faminto, feito de sombras e buracos: ali e não
ali, murcho e fino como um fio, mas terrível, um homem cujo único desejo era
vencer…
Como Morton se levantou, ele não sabia; como ele cambaleou até a porta e
entrou no corredor, como ele abriu caminho cegamente até a porta e saiu... Ele
nunca soube como ele tropeçou na neve, ou se gritou por socorro, ou se aquele
terrível homem-sombra o seguiu ; tudo o que ele sentia era a consciência de sua
própria impotência e um pânico terrível e desesperado. Ele não teve tempo para
se perguntar quem era o homem, ou se importar. Tudo o que ele sabia era o
terrível fardo de seus erros e a impossibilidade, agora, de corrigi-los.

Não foi surpresa que Morton não tenha ficado na casa preta e branca; ninguém
nunca ficava. Desde que o velho morreu ali, apenas alguns estranhos
permaneceram mais do que algumas horas sob aquele teto, e todos eles partiram
sem avisar e nunca mais voltaram. Em geral, presumia-se que Morton, como os
outros, havia achado a atmosfera pouco acolhedora, empacotou suas coisas e
voltou para o lugar de onde viera; e a população local, que estava satisfeita em
não se preocupar com a casa, estava igualmente satisfeita em não se preocupar
com Morton. Se não fosse pela neve, ninguém, nem mesmo o agente, teria
pensado duas vezes nele. Do jeito que estava, apenas Robbie, o filho da
faxineira, questionou o que havia acontecido com ele; e ele contou uma história
tão bizarra que sua mãe o instruiu severamente a segurar a língua.
Parecia que, na manhã seguinte, quando a tempestade passou e o sol nasceu,
o pequeno Robbie se aventurou a brincar. O mundo era de um branco
brilhante, o céu azul e dourado com o sol do inverno, e ele havia vagado por um
longo caminho, jogando bolas de neve inconstantes e atravessando montes de
neve. Quando ele finalmente voltou para casa, seu caminho o levou até o portão
dos fundos da casa preta e branca. Ele fez uma pausa, estremecendo, ao olhar
através das grades, e viu... alguma coisa. No final, sua curiosidade superou sua
cautela habitual com o lugar, e ele se arrastou para o espaço deslumbrante para
olhar mais de perto.
O que ele viu foram as pegadas de um homem saindo da porta da frente:
borradas pelo vento e mais neve, mas ainda inconfundíveis. Ele caminhou –
talvez tenha corrido – em linha reta por um tempo, até estar entre as fileiras de
árvores, e então... Então, disse Robbie, os rastros mudaram. Eram irregulares,
ziguezagueando, em linhas quebradas, como se ele tivesse ido para lá e para cá
como um homem em um labirinto, e de vez em quando caísse e lutasse para se
levantar. Se ele estava fugindo de alguma coisa, não havia deixado vestígios na
neve branca. Mas o mais estranho, disse Robbie, era que os rastros terminavam
tão abruptamente, ao pé de uma das árvores mais altas; como se Morton tivesse
desaparecido completamente, levado pelo rei negro.

1. Uma técnica de construção na qual as paredes são montadas com vigas de madeira em
posições horizontais, verticais ou inclinadas, cujos espaços são preenchidos com material de fácil
utilização no local.
Nota I da autora. No xadrez, existe uma regra de que se você tocar uma peça, deve fazer um
movimento com ela, a menos que diga “J'adoube” (literalmente ‘eu ajusto’) primeiro.
O INQUILINO DE THWAITE

Imogen Hermes Gowar


Nós chegamos sob forte chuva, uma verdadeira tempestade que assustou os
cavalos. A noite estava negra e, enquanto a água escorria pelas janelas da
carruagem, pensei, a enchente veio para nos varrer todos nós e pressionei o pequeno
Stanley para mais perto de meu peito, mas ele estava dormindo profundamente
e nem notou. É um julgamento para mim, pensei, mas não chorei porque se meu
pai percebesse, ele apenas comentaria: “Sentindo pena de si mesma?”.
A princípio, havíamos feito um rápido progresso, mas à medida que a chuva
caía, a carruagem desacelerou, balançando e escorregando. Com uma
regularidade cada vez maior, meu pai punha a cabeça para fora da janela para
falar com o motorista e a puxava de volta com a água da chuva escorrendo pelo
nariz e pela barba. O cocheiro amaldiçoou os cavalos em um suspiro e arrulhou
para eles no seguinte, e fiquei com medo quando a carruagem balançou e os
animais se esbarraram, a cabeça de Stanley rolando em meu ombro. Por fim,
paramos onde a estrada divergia e não nos movemos mais.
— Tudo bem? — meu pai chamou, e o motorista fez um barulho que não
entendi. — Droga — disse meu pai, e pulou para baixo, a lama engolindo suas
botas. A água borbulhava sob as rodas da carruagem, a estrada virando rio, e eu
me sentei sozinha, exceto pelo meu garotinho, embalando seu rosto em minha
mão.
Quando meu pai voltou, ele disse:
— Não adianta. Devemos caminhar a partir daqui.
— O que? Quão longe?
Ele consultou o motorista.
— Três quilômetros. Um pouco mais.
— Somos uma mulher e uma criança — exclamei. — Certamente não se
pode esperar que...
— Idiota! Os cavalos vão escorregar se continuarmos; a carruagem vai virar.
Suponho que você prefira estar em perigo do que se sentir desconfortável.
Se fosse assim, eu poderia ter dito, ainda estaria em casa. Mas segurei minha
língua e, em vez disso, voltei minha atenção para despertar Stanley, que
enterrou o rosto ainda mais em minha capa e entrelaçou os dedos nos meus.
— Temos que caminhar — eu disse. — Você consegue caminhar?
— Mamãe, não!
— Vou carregá-lo — disse meu pai. — Você leva sua mala de viagem. O
baú vai ter que ficar. — Estava amarrado ao teto da carruagem e torci as mãos
para pensar em tudo, meus vestidos, meus broches, meus lenços, os brinquedos
e livros de Stanley, deslizando de um lado para o outro, a água da chuva
vazando pelos cantos e pelas costuras do porta-malas, sujando tudo o que era
bom e agradável.
Tirei Stanley do meu colo e coloquei-o nos braços de meu pai: ele gritou de
medo, a coisinha, mas não consegui encontrar palavras para confortá-lo. Não
havia mão para me ajudar a descer da carruagem, e eu pulei como se estivesse
no vazio, tropeçando ao cair na estrada. Pareceu-me que fiquei encharcada quase
imediatamente, mas quando a carruagem desapareceu na chuva e partimos ao
longo da estrada divergente – estreita, não pavimentada, morro acima – aprendi
o quão molhada uma pessoa realmente pode ficar. A água escorria sob meu
gorro e no meu cabelo; corria entre minhas omoplatas e se acumulava entre os
ossos de meu espartilho, onde bolhas de ar se moviam carnudas por meu corpo.
Minhas saias se arrastavam sobre minhas pernas e cada passo era de ansiedade,
pois eu não podia ter certeza de que o chão aguentaria sob meus pés; a água
correu pelas minhas botas e pensei: bem, tudo está arruinado.
Cega, surda, muda, segui a forma escura de meu pai enquanto ele tropeçava
na frente arrastando os pequenos membros de Stanley. Eu chorei então, não por
mim, mas pelo meu filho, que não pediu nada disso, que estava feliz onde
estava, com seus brinquedos e sua árvore de escalada favorita, seu cachorro Dash
e sua babá e até – Deus me perdoe! – seu papai. Que direito eu tinha de arrastá-
lo até aqui, quando ele não tinha nada a ver com nossa briga? Eu fui tão egoísta
quanto meu pai disse?
Eu estava tremendo quando chegamos em casa. Havia um caminho estreito
entre muros altos e depois degraus de pedra, todos de diferentes alturas, de
modo que cada um me confundiu, e eu escorreguei e cambaleei. Meu pai havia
enrolado sua capa de oleado em volta de Stanley, mas eu vi aquelas mãozinhas
pálidas entrelaçadas em seu pescoço, a cabeça loura pendendo sobre seu ombro.
Ah, o que eu fiz?
A velha casa Thwaite adquiriu alguma notoriedade entre mim e minha irmã.
Nunca havíamos visitado o lugar, mas nosso pai o havia feito com mais
frequência do que pensávamos ser necessário. Às vezes, ele não ia por um ano ou
mais, mas sempre que mencionava que estava ocupado “do jeito de Skipton” ou
“tratando de negócios em Bradford", Mariana e eu trocamos um olhar, pois
sabíamos que naquela direção também ficava a casa dos Thwaite. Ele tinha sido
um homem bonito em sua juventude – ele ainda era – e parecia óbvio o que ele
deveria fazer aqui. Supus que fosse um lugar espalhafatoso e opulento, com
tapetes densos e cortinas grossas; armários cheios de bebidas exóticas;
farfalhando vestidos mal usados, então você pode me perdoar a centelha de
curiosidade que senti quando meu pai destrancou a porta.
Não era nada como eu tinha imaginado. Uma única vela ardia no estreito
hall de entrada cujas paredes cinzentas exalavam um cheiro azedo como se não
tivessem sido muito habitadas; ao lado havia uma sala escura, escassamente
mobiliada de uma maneira feia e antiquada. Certamente nenhuma amante
ficaria feliz em ser trazida aqui. Meu pai deitou Stanley no sofá enquanto eu
permanecia no corredor, consternada. A água escorria do meu gorro, do meu
nariz, dos meus pulsos. Tirei minha capa e a coloquei sobre uma velha cadeira
enegrecida, esculpida naquele estilo torto e desagradável de duzentos anos atrás.
— Bem, senhorita — disse meu pai. Ele disse senhorita de uma forma dura
e peremptória, como se eu fosse um estranho que ele encontrou em seu
compartimento de trem favorito. — Vou deixar você em paz.
— Não saia com esse tempo — implorei. Eu estava morrendo de medo com
a perspectiva de ficar sozinha com Stanley em um lugar tão inóspito. — Fica.
Por favor. Deve haver espaço para você.
— Voltarei à carruagem na estalagem, se chegou tão longe. Se não, minha
ajuda será necessária. — Ele suspirou, e o suspiro disse: claro que você pode
descansar agora, Lucinda. Claro que seu dia acabou.
— Ah, pai — eu disse. Eu olhei para os pisos de pedra, o corredor tão
taciturno e vazio, sem flores estendidas para me receber. Havia uma gravura
desbotada de — A Jangada da Medusa — em uma moldura preta, e isso era
tudo. — Você realmente nos deixaria aqui? Sozinhos?
Ele não disse nada.
— Pai — repeti, desfazendo-me em lágrimas. Ele nunca suportou me ver
chorar, e eu não conhecia outra maneira de comovê-lo. Apelo impotente foi
minha única retórica. — Você não pode me ajudar?
— Minha menina — disse ele — esta é a ajuda.
Stanley estava tremendo quando o tirei do sofá, e seu cabelo estava liso na
cabeça, exalando um cheiro patético de filhote de animal que me lembrou de
sua infância. Ele ficou mudo, sem nenhuma curiosidade de explorar os quartos
como tinha feito no lindo hotel em Scarborough onde o hospedei pela primeira
vez, chamando de férias, ou na casa de Mariana para onde fugimos quando meu
dinheiro acabou. Eu supus que a exuberância era seu estado natural, que eu
poderia levá-lo a qualquer lugar e ele ficaria feliz o suficiente, mas agora toda a
alegria havia desaparecido dele. Nos aventuramos no andar de cima e
encontramos dois quartos. Um era grande, mas esquisito, com painéis escuros e,
a princípio, pensei que não havia janela alguma, até que verifiquei que uma
janela outrora considerável estava agora praticamente fechada, exceto por uma
fenda estreita bem no topo. A outra, no alto da escada, era menor e mais
acolhedora.
— Este será o seu quarto — eu disse. Ele colocou o polegar na boca.
A água da bacia me deixou fria até os ossos, mas não havia nada a fazer. Tirei
a roupa de Stanley e ele estremeceu e choramingou enquanto eu o esfregava,
cruzando os braços sobre seu peito branco.
— Não, mamãe — ele gritou, me empurrando para longe, mas eu persisti,
muito grosseiramente, talvez, apenas para acabar com isso, e ele me empurrou
com força. — Não!
— Como você ousa? — Chorei. Meus olhos arderam, assim como os lugares
em meus ombros onde suas palmas haviam pressionado.
— Eu quero ir para casa! — Sua voz falhou. Eu mal podia suportar isso. —
Porque estamos aqui?
Eu agarrei seu ombro, mas ele gritou e se afastou de mim.
— Comporte-se! — Eu disse, mas ele gritou de novo, seus pezinhos batendo
nas tábuas do assoalho, e ficou meio agachado, com os braços e as pernas bem
abertos, olhando para mim em um furioso desafio como um pequeno selvagem.
Não pela primeira vez desde que ele nasceu, eu me perguntei “o que eu criei?
Como tudo isso aconteceu?”, pelo menos eu pensei em guardar sua camisola de
flanela quente, e não estava tão úmida assim, mas quando eu a estendi para ele,
ele não quis usá-la, e eu o persegui pelo quarto até que ele gritou em puro grito
agudo. temperamento dentado, e a vela se apagou. — Bem, então você vai
dormir como está — exclamei, e bati a porta. Tinha um ferrolho do lado de
fora; Eu o virei rapidamente. Seus punhos martelavam, e eu fiquei no patamar
ouvindo sua raiva se transformar em medo.
— Mamãe! — ele gritou, então — Mamãe! — trêmula. Eu poderia ter
abrandado, mas ele rugiu novamente em fúria, e eu fui embora.
No andar de baixo, lutei para tirar o vestido e as anáguas que se
desmoronaram em tantas poças pantanosas no chão da sala: meu espartilho tirei
com cuidado, pois não tinha outro além do que estava em meu baú e, portanto,
talvez perdido para sempre. Coloquei-o no sofá, mas embaixo dele minha
camisola também estava encharcada. Meus sapatos estavam cobertos de lama,
que eu havia trilhado escada acima e abaixo; minha saia tinha manchado de
tinta em minhas meias. Agachei-me junto à lareira, tremendo de frio; meu
maxilar batia no crânio e minhas mãos se atrapalhavam com os fósforos.
— Vamos — murmurei para as faíscas que se desvaneceram nos gravetos
úmidos —, vamos, vamos — mas já fazia muito tempo desde a última vez que
o fogo foi aceso, e as chamas que acendi eram coisas fracas e doentias que se
enrolavam e fumado e expirado. Eu jurei.
No escuro, encostei os joelhos no peito. Meu corpo era desagradável sem o
espartilho: esta parte muito ossuda, aquela parte muito flexível, seios frouxos e
frios que caíam muito baixos em meu peito, sua parte inferior úmida grudada
em minha pele. O frio sacudiu meu corpo e os pelos das panturrilhas se
arrepiaram: eu olhei ao redor da sala e me perguntei se isso era o começo da
loucura ou se de fato ela estava invadindo há algum tempo. Não faz muito
tempo, eu era um enfeite para a casa do meu marido. Não vistosa, não, mas
polida, e eu considerava esse polimento uma qualidade pessoal inata minha,
assim como a felicidade de Stanley. E, no entanto, em poucas semanas, fui
reduzida a uma esquálida e desgastada viajante! A bela Lucinda Lisle, sem um
tostão e sem amigos, xingando sozinha em um quartinho desbotado enquanto
seu filho chorava lá em cima.
Peguei um tapete nas costas de uma cadeira e joguei-o sobre os ombros,
esperando que o calor se acendesse. Na minha cabeça comecei a redigir uma
carta para minha irmã Mariana, mas toda vez que eu pensava nela eu via a cara
dela quando eu disse a ela que tinha abandonado meu casamento. Primeiro ela
pareceu alarmada, depois desconfiada – então, de repente, completamente vazia,
como se tivesse trancado a porta contra mim. Por que você me expulsou? Eu queria
escrever. Como, quando você sabia o que eu tinha suportado?
Baque, baque, baque.
Eu congelo. O barulho voltou. thud thud thud. Passos, lá em cima! Pesados,
de homem, atravessando o corredor.
Mesmo sabendo que não era possível, pensei, Lisle nos encontrou. Ele está aqui!
Então, tum tum tum. Eu estava de pé. Oh, meu Deus, se não era meu marido,
então quem poderia ser? Alguém – alguém – estava lá em cima, onde meu
filhinho estava e eu não. Subi as escadas com meu tapete sobre o ombro como
um escocês das Terras Altas, mas soube assim que cheguei ao patamar que não
havia ninguém lá. Sabe-se quando outro corpo divide o seu espaço. E eu sabia
que estava sozinho.
Tal pavor passou por mim que não consigo descrever. Meu couro cabeludo
estava arrepiado; Juntei as mãos para evitar que tremessem. Bem, pensei, isso
resolve tudo. Estou deixando meus sentidos.
Nenhum ruído veio da porta de Stanley. Talvez ele estivesse dormindo. Abri
o ferrolho e disse:
— Você tem andado por aí?
— Não, mamãe. — Ele estava encolhido no chão em frente à porta, com o
polegar na boca.
— Espero que você não minta para mim.
— Não. Eu fique aqui. Eu estava com medo. — Ele estendeu os braços e fui
até ele sem hesitar. Seu rosto estava quente e molhado de lágrimas, e logo o
meu também. Quando ele era um bebê eu costumava ficar o dia todo com ele
em meus braços, cantando músicas e beijando seu rostinho. Eu tinha entendido,
então, que como mãe eu deveria ser abrangente, que ele e eu éramos uma
pequena e benevolente república de dois que ninguém poderia se intrometer. A
distância ocorreu quando ele foi despido, e seus lindos cachos todos cortados, e
se tornou, como os meninos devem, a criatura de seu pai.
— Está tudo bem — eu disse. — Agora, para a cama.
Ele se agarrou a mim.
— Não gosto daqui.
O que Lisle teria dito? Seja homem, Stanley! Houve um tempo em que eu
poderia ter dito isso também, mas agora sussurrei:
— Parecerá melhor pela manhã.
— Por favor, mamãe. Não vá embora.
— Eu não vou. — Afinal, eu estava exausto e abalado com o que havia
acontecido. Não posso enlouquecer, pensei. Eu simplesmente não posso.
Vesti minha camisola e o ajudei a vestir a dele. Ele obedeceu humildemente
agora. Entramos juntos no catre estreito e, embora eu hesitasse em cobrir-nos
com os cobertores úmidos, temendo que vermes eles pudessem abrigar, o frio
venceu. Primeiro Stanley chorou, depois estremeceu, mas aninhado contra mim
ele se aquietou e eu fiquei ouvindo sua respiração, pensando em como uma
criança adormecida é muito menos problemática e como é mais fácil amar.

Mas às vezes crianças dormindo causam problemas.


Sonhei que estava em Scarborough de novo, sentado no terraço enquanto
Stanley corria na areia lá embaixo. O sol estava baixo e iluminava o mar rosa-
dourado até o horizonte. Por mais bonita que fosse a visão, o que foi evocado de
forma mais poderosa não foi o lugar, mas o sentimento: uma empolgação cor-
de-rosa pelo amanhã, que eu presumi que deveria desaparecer naturalmente
com a juventude e nunca persistir após o casamento. O mais glorioso para mim
naquele dia em Scarborough foi a sensação de que meu futuro era totalmente
desconhecido: pela primeira vez na minha vida havia uma página em branco
diante de mim, e isso foi revigorante. Naquelas duas primeiras semanas longe
de Lisle, acreditei que o pior já havia passado e que, agora que havíamos
escapado dele, todos os nossos dias poderiam ser dias de Scarborough, longos e
despreocupados, corando no pôr do sol. Mas nesse sonho, eu segurava em
minhas mãos uma folha de papel rosa, e sobre ela li as palavras de minha irmã:

Você não pode chamar a si mesma de inocente.


Você poderia ter se esforçado mais.
Eu lavo minhas mãos disso.

Olhando para cima, vi que o mar estava cinza e corria para a costa. Olhei em
volta, mas não vi Stanley em parte alguma, e antes que pudesse correr para
encontrá-lo, a água me alcançou, girando em torno de meus tornozelos com um
frio terrível, subindo enquanto eu me debatia e tropeçava, minhas saias
enroladas em volta das pernas, encharcadas até o chão. osso, gritando sem voz,
procurando pela visão daquela querida cabeça loira, mas sabendo que ele já
estava perdido para mim.
Acordei ofegante. Os lençóis estavam molhados e cheios de um cheiro forte e
adocicado que subiu pelo meu nariz. Ainda estava bastante escuro e fiquei
desnorteada por um tempo, movendo minhas pernas com o horror que me
lembrava da infância, sentindo como os cobertores grudavam e o edredom jazia
com um peso estranho e mortal, pensando a princípio que eu mesmo havia feito
isso. Então percebi que era Stanley, é claro, e me joguei para fora da cama.
Minha camisola estava encharcada com a urina dele.
— Stanley! — Eu o sacudi. — Stanley! Acorde! Venha, venha, você precisa
sair da cama.
Ele acordou lentamente, depois de repente, e gritou desanimado quando
entendeu o que havia acontecido.
— Mamãe, eu não queria!
— Não importa. — Eu estava muito ocupada arrastando os lençóis da cama
para pensar muito nele, e então tive que lidar com o cobertor de lã grossa,
esperando desesperadamente que a bagunça não tivesse penetrado no colchão.
Não tive essa sorte: estava arruinado. — Oh, Stanley, como você tem líquido
em você? — Eu chorei, e ele começou a soluçar enquanto eu levantava o
carrapato da estrutura da cama. Acho que estava cheio de crina de cavalo, denso
e sem conforto, e, enquanto pendia em meus braços, lembrei-me de uma foto
que vi no Notícias Ilustradas – ‘Enterro ao Mar’ – onde marinheiros lutavam
com um fardo tão sem graça.
— Por que você não usou a panela? — Eu ofeguei quando o carrapato caiu
no chão.
A pobre criança colocou o rosto entre as mãos, os ombros levantando. Na
pouca luz que a lua nos proporcionava, suas pernas brilhavam.
— Eu estava com medo — ele soluçou.
— Venha agora, venha. Não há nenhum dano feito — eu disse. — Vamos
dormir no outro quarto.
— Não quero sair por aí, mamãe!
— Por que? — Eu perguntei bruscamente. Ele ouviu o que eu ouvi? O que
era pior? Que ele tinha ouvido ou que não tinha? Pobre criança! Ou havia um
intruso do lado de fora da porta do quarto ou uma mãe perturbada dentro dela;
ele dificilmente teve uma chance.
— Está escuro — disse ele.
— Isso não é nada para se temer. Venha comigo.
Acendi a vela e o conduzi para o corredor, embora minha mão vacilasse na
maçaneta. Os momentos necessários para cruzar para o outro quarto foram
tensos: a cada passo eu esperava que dedos invisíveis se fechassem em volta do
meu braço, ou um corpo se esbarrasse contra o meu, mas me mantive na frente
de Stanley e não deixei que ele percebesse meu medo.
Na segunda inspeção, não gostei mais do quarto. Os painéis antigos
drenavam toda a luz do lugar, seus cantos tão escuros que ofuscavam os olhos, e
aquela parte estreita da janela alta demais para permitir qualquer visão também
era perturbadora. Decidi imediatamente que deixaria a vela queimar a noite
toda. Ainda assim, fiquei satisfeita ao encontrar na imprensa uma pilha de
camisolas de senhoras dobradas que, embora já estivessem ali há algum tempo,
não eram estranhas a uma lavagem cuidadosa. Elas foram o primeiro vestígio
das mulheres de meu pai que encontrei na casa, e me senti um tanto enjoado
quando ajudei Stanley a enfiar uma pela cabeça, mas pelo menos nós dois
tínhamos algo para vestir.
— Você viu? — Eu sussurrei para Stanley uma vez que estávamos na cama.
— Deu tudo certo, não foi? Estamos seguros e aquecidos o suficiente. E você
está comigo, então nenhum mal pode acontecer a você.
Eu disse isso com mais convicção do que sentia, mas pareceu satisfazê-lo.
Envolvi meu braço em torno dele e puxei-o para mim, de costas para minha
barriga, seu pulso em minha mão para que eu pudesse sentir o piscar de seu
pulso quando ele voltou a dormir. Senti tanta dor por ele, que o arranquei de
um lar onde ele era feliz e seguro. Pois deixe-me ser clara, embora Lisle fosse
cruel comigo, nosso filho nunca esteve em perigo. Sua vida era de conforto e
diversão; ele era querido por todos. Minha objeção era que, embora a estrutura
de sua vida fosse agradável, não era boa: aos poucos ele seria contaminado por
Lisle, aprenderia a se gabar, a intimidar e a repreender, a zombar, menosprezar e
brutalizar. E como eu poderia me opor? Eu era apenas sua mãe; Eu não tinha o
direito de ditar que tipo de homem ele poderia ser. Pois há realmente apenas
uma maneira de homem, não é?
Thud thud thud.
Sentei-me ereta, com as mãos cruzadas no peito. Aqueles passos de novo!
Thud thud thud do lado de fora da porta, subindo e descendo o corredor, e agora
talvez uma bengala batendo no corrimão. Eram os passos de um homem
zangado, cheio de arrogância, um homem disposto a me assustar e a quem eu
deveria temer. Sentei-me imóvel.
Oh, o que é perceber que a única coisa pior do que ter alguém é não ter
ninguém. E ninguém estava lá, ninguém de carne e osso, ninguém cujo olhar eu
pudesse captar ou de cujos golpes eu pudesse me esquivar. Ninguém estava lá, e
eu tinha certeza de que eles me queriam um mal terrível.
Os passos continuaram com rápida urgência, botas pesadas e raivosas
patrulhando o patamar do lado de fora da minha porta, depois subindo e
descendo as escadas como se procurassem algo, invadindo a casa com o ar de
quem deseja ser notado, que não tem medo de tornar seu mau humor
conhecido. Entravam e saíam da sala, pela porta dos fundos e pela da frente,
voltando sempre para o meu quarto.
— Lisle? — Eu sussurrei estupidamente quando eles pararam do lado de
fora da minha porta.
Thud thud thud.
— Vá embora — sibilei.
A respiração de Stanley assobiou em seu nariz. Eu não o acordaria por nada:
coloquei a mão em suas costas e me consolei com sua tranquilidade. O barulho
continuou, para cima e para baixo, para cima e para baixo. Às vezes, quando ele
se retirava para o topo da escada, eu ousava esperar que meu visitante estivesse
saindo; às vezes os passos paravam e eu pensava: Pronto! Acabou! Mas ele sempre
voltava.
Lisle costumava destruir a casa dessa maneira. Quando ouvia seus passos se
tornarem rápidos e decididos, eu me escondia, mas ele ia de cômodo em
cômodo até me encontrar, o paletó esvoaçante, a camisa pela metade, abrindo
portas e abrindo cortinas. Ele me agarrava pelos pulsos e aproximava o rosto do
meu para cuspir sua raiva. Se eu recuasse, seria pior para mim.
Então fiquei na minha cama, ouvindo os circuitos do meu estranho novo
companheiro. Como eu poderia ter fugido de um homem zangado e encontrar
outro esperando por mim? Será que devo fazer alguma penitência? Era para ser
o albatroz em volta do meu pescoço?
Pouco a pouco, ouvi o balido de uma ovelha em alguma encosta e o guincho
de despedida de uma coruja. Então, como se uma enfermeira ao meu lado
acalmasse meus terrores, deixei minha mente se encher de cenas silenciosas do
amanhecer: cinzas brancas retiradas de uma grelha; leite aquecendo em uma
panela; uma cabeça inclinada sobre um velho livro de orações. Eles pertenciam
ao mundo gentil e comum ao qual eu acreditava que ainda poderia retornar e, à
medida que a manhã clareava, finalmente caí em um cochilo intermitente. No
momento em que Stanley se mexeu e passou os braços em volta do meu
pescoço, os passos haviam silenciado.
Rezei para que houvesse comida na casa, pois não servia para ser vista com
minha camisola emprestada, e a de Stanley era grande demais, com mangas tão
compridas que ele teve de agitar os braços como um hipnotizador para
encontrar as mãos quando cruzamos o corredor. pousar. Minha cabeça zumbia
com a falta de sono, mas à luz do dia a casa não parecia malévola: era apenas
surrada e cansada, nenhuma ruína gótica, e o pior de seu abandono poderia ter
sido remediado com alguns rolos de papel de parede bonito. Descendo as
escadas, olhei para a cadeirinha preta no corredor onde minha capa estava. As
tábuas do assoalho estavam escuras com a água que escorria, mas a capa em si
não estava lá.
Segurei a mão de Stanley, como se quisesse impedi-lo de tropeçar.
— Alguém esteve aqui — eu disse, e tentei parecer satisfeito, embora meu
coração tivesse acelerado e o sangue rugisse em meus ouvidos.
Ao pé da escada, espiei a sala e vi novamente as manchas escuras onde
minhas roupas estavam – mas novamente as próprias roupas haviam sumido. A
sensação mais peculiar percorreu todo o meu corpo, um rubor seguindo um
calafrio, então eu estava ao mesmo tempo com calor e frio, suando e ainda
tremendo. Alguém esteve aqui. Alguém se moveu por essas salas sem que eu
soubesse. Uma mão estranha torceu minhas meias encharcadas; um estranho
revirara as ceroulas de flanela que tão recentemente repousavam sobre minha
pele nua! Essas relíquias da noite mais escura que já vivi, os poucos pertences
que me restam! Pegados, inspecionados, removidos!
Eu tinha esquecido de respirar e estava quase desmaiando quando a porta dos
fundos se abriu e uma mulher de meia-idade entrou carregando um balde, seu
rosto redondo era uma máscara tão cansada de desgosto que não tive dúvidas de
que era ela quem pegou o que eu tinha deixado. Quando ela me viu parada ali,
sua expressão não mudou, embora ela olhasse para o meu filho com surpresa.
— Bom dia — eu disse. Segurei Stanley diante de mim pelos ombros, mas
ela não percebeu como eu usava pouco, como meu corpo era disforme sob a
camisola. Ela não disse nada, apenas largou o balde e ficou olhando para mim
com expectativa, como se houvesse algo que eu devesse dizer.
Eventualmente, ela resmungou:
— Então você fez essa bagunça.
— Sou a Sra. Lisle — insisti, sorrindo ainda mais — e este é meu filho
Stanley.
Ela lançou um rápido olhar perspicaz para ele quando soube que ele tinha o
nome do meu pai e acenou com a cabeça brevemente.
— Você estava lá em cima? — Perguntei.
— Sim, e descobri o que você fez lá também.
Apertei meu aperto nos ombros de Stanley.
— Isso não vai acontecer de novo — eu disse. Lisle me disse que quando ele
tinha a idade do nosso filho e sujou a cama, foi chicoteado e ridicularizado por
isso. Eu tinha começado a pensar que havia maneiras melhores de governar uma
criança do que com vergonha, se alguém tentasse governá-la.
— Bem — disse ela — eu sou a Sra. Farrar. Eu estou aqui. Não vou
incomodá-la por muito tempo.
— O que? — Eu vacilei. — Não haverá governanta? Nenhuma criada,
nenhuma governanta?
A Sra. Farrar parecia prestes a rir.
— Com todo esse espaço para eles?
Fiquei surpresa ao ponto de ficar sem palavras. Nunca em minha vida eu
havia me rendido aos serviços de uma diarista! Eram para as esposas dos
escrivães, mulheres pobres com móveis alugados e pretensões. O que meu pai
poderia estar pensando? Antes que eu pudesse evitar, as lágrimas nadaram em
meus olhos, chocantes em seu volume. Elas tremeram ali, ameaçando derramar,
e eu não pude esconder o rubor que subiu pelo meu pescoço, nem o músculo
que se contraiu em minha bochecha enquanto eu lutava para me recompor.
— O Sr. Stanley mandou roupas secas para você — ela disse depois de um
momento, em um tom mais gentil. — Há pão com leite para o menino, e você
pode tomar o chá que quiser. Ele disse isso.
Eu balancei a cabeça em silêncio, e as lágrimas despencaram. Uma espirrou
nas costas da minha mão perto da orelha de Stanley, mas ele não percebeu.
— Continue — disse a sra. Farrar. — Tenho trabalho a fazer. Você alimenta
o rapaz.
A cozinha ficava nos fundos da casa, outro quartinho simples e rústico, mas
de maneira imperceptível tão diferente dos outros. Onde o patamar havia se
erguido, a cozinha estava cheia de cordialidade acolhedora, e senti aquela
mesma paz se apossar de mim que me acalmava ao amanhecer. Este deveria ser o
domínio de um amigo solícito, para quem todas as panelas, potes e livros eram
companheiros queridos, que ofereciam bebidas quentes e conselhos gentis na
grande mesa cheia de marcas. Stanley comeu seu pão com leite e eu sentei ao
lado dele em silêncio, olhando para minha xícara de chá, tentando lembrar o
que sabia sobre os Thwaites. Eles eram o povo da minha avó, pensei, e havia um
cheiro neles - não exatamente impropriedade, mas vergonha, de que de alguma
forma eles não tivessem sido exatamente o que deveriam. A memória me iludiu.
Fui à procura da Sra. Farrar.
Encontrei-a nos fundos da casa, curvada sobre o carpete arruinado. Suas
mangas estavam arregaçadas até o cotovelo e ela estava sacudindo o espanador
em uma série de golpes fortes. Uma nuvem havia soprado para envolver a
colina, de modo que além dela não se via paisagem, nem casas, nem céu, como
se ela estivesse diante de um cenário de teatro.
— Eu tinha um baú — eu disse. — O que houve com ele?
— Está no New Inn. — Ela se afastou do carrapato e pressionou a mão na
parte inferior das costas. O quintal estava coberto de mechas curtas de cabelos
grisalhos. — Mas a passagem está inundada. Fácil o suficiente para andar por
cima, como eu faço, mas uma carroça não vai passar.
— Quanto tempo até que alguma coisa possa passar?
Ela semicerrou os olhos para o céu, não se podia ver muito dele.
— Se o tempo ficar bom, alguns dias. Se chover de novo, ora… — ela inflou
as bochechas — quem sabe?
Isso me irritou, pois eu estava precisando muito do meu jogo de toalete, mas
agora ela remexeu no bolso e tirou uma lata do tamanho de uma caixa de rapé.
— Acho que você vai querer isso — disse ela.
Estendi a mão para ele sem pensar. Ele chacoalhou quando ela o deixou cair
na palma da minha mão.
— O que é isso? — Perguntei.
Ela olhou em volta furtivamente, como se estivéssemos em uma rua
movimentada.
— Pílulas femininas. Poejo. Se eles não funcionarem, o Sr. Stanley conhece
um médico. Você ainda não está gestando, está?
Mais uma vez, todo o meu discurso me abandonou. Quase cambaleei e deixei
cair a caixa de comprimidos, fazendo-a bater nas lajes. Como fui ingênua ao
pensar que meu pai mantinha esta casa para suas seduções! Não houve
abandono aqui, e nem nenhum prazer ilícito: este era um lugar cruel, frio e
solitário para terminar um caso, não para começar um.
— Não! — eu resmunguei. — Senhora Farrar, você me tem errado. Não foi
para isso que vim. Sou uma dama respeitável com um pouco de dificuldade, só
isso.
— Oh, senhora — disse ela com pena. — Todos elas dizem isso.

Os dias se passaram. Stanley e eu, vestidos decentemente, embora com coisas


sujas emprestadas que eu nunca deveria ter escolhido, passávamos muito do
nosso tempo naquela cozinha genial, onde o fogo era confiável e o bule estava
cheio. De nossas breves incursões até o final da viagem, entendi melhor onde
estávamos, e era uma situação realmente remota. A casa se elevava na crista da
charneca, cercada de selva por três lados e, na maioria das vezes, assentada
diretamente em uma nuvem. A nascente, descortinava-se um vale, revelando –
consoante o tempo – uma vista que se estendia desde a chaminé de uma mina
de chumbo nos cumes, até um pequeno moinho no vale do rio, com uma aldeia
em volta. Os campos eram meio submersos, lagos cinzentos florescendo na
margem do rio, e eu apreciei como a estrada devia ser traiçoeira ao descer para
os campos inundados.
Eu me escondia na varanda enquanto Stanley corria de um lado para o outro
na entrada ou no pequeno jardim, prevalecendo sobre mim em voz alta e
queixosa para ver o que ele havia encontrado, venha experimentar seu novo
jogo, a bússola de seu jogo se aproximando de mim até sentamos lado a lado em
nosso banco inconstante, observando a chuva cair.
Foi na varanda que nos encontramos numa tarde que escurecia uma semana
depois de nossa chegada, com Stanley escalando quase no meu colo, embora eu
inclinasse minha cabeça sobre um livro.
— Mamãe! Mamãe, o que vamos fazer agora?
— Vamos sentar em silêncio por um tempo. — Os romances da casa eram
coisas baratas e sensacionais nas quais eu não conseguia me concentrar, mesmo
que não fosse por Stanley. Eu me perguntei muito sobre quem os trouxe aqui e
em que circunstâncias. Eles estavam tão entediados quanto eu? Tão entediado e
com tanto medo? Eles também ouviram aqueles passos?
A cada noite eles voltavam.
A batida de sua bengala, a batida de seus pés, o ranger do corrimão. Eu
reconhecia esses distúrbios com cansaço agora. Eu o chamei de Sr. Thwaite.
Pisando e batendo, ele roubou toda a paz de mim, e todas as noites eu deitava
minha cabeça não com alívio, mas com medo, alimentando a certeza de que não
teria descanso. Meus olhos ardiam, minha cabeça estava pesada. Eu estava
nervoso, nervoso, tenso demais para ser qualquer tipo de companheiro para meu
filho, que agora pegou meu queixo em suas mãos e o ergueu para olhar em meu
rosto, seus dedos cavando em minhas bochechas. Seus olhos eram de um azul
intenso e brilhante. Sua respiração estava na minha pele.
— Deixe-me em paz, Stanley — eu disse.
— Brinque comigo! — Ele agarrou os cantos da minha boca e os arrastou
para cima em um sorriso.
— Pare com isso. — Afastei suas mãos e ele saltou do meu colo.
— Mamãe horrível!
Levantei-me também, exclamando:
— Não diga isso! — e ele jogou os braços para trás e gritou de pura raiva na
minha cara. Não vi um garotinho rebelde, mas seu pai, cuja raiva poderia me
machucar, em quem a ternura pode se dissolver a qualquer momento em
tirania. Minhas bochechas estavam quentes. O livro ainda estava em minhas
mãos e, antes que eu percebesse o que fiz, peguei-o pelo colarinho e bati com ele
uma vez, duas vezes, no fundilho de sua calça. Houve um silêncio terrível por
um momento. Stanley e eu ficamos bastante estupefatos. Então ele começou a
chorar e eu engasguei: — Stanley - Stanley! Eu não quis dizer–
A voz de um homem interrompeu.
— É a esse ponto que seu experimento chegou?
Eu gritei e agarrei Stanley em meus braços, procurando o dono da voz. O Sr.
Thwaite estava aqui? Ele agora poderia me perseguir além do quarto?
Mas é claro que era meu pai, parado ao pé da escada, nos observando por
baixo da aba do chapéu. Eu soltei meu filho e fiquei afobado e com o rosto
vermelho, torcendo minhas mãos em minhas saias. Stanley também parou de
chorar: limpou o nariz na manga e eu o vi esfregar a ponta do sapato na
panturrilha.
A vergonha me deixou mudo enquanto meu pai subia os degraus. Ele pegou
o livro de onde estava, esparramado na terra, e o entregou a Stanley.
— Vá para dentro e devolva isto à estante, meu jovem. Fique com a Sra.
Farrar. Lucinda, venha passear comigo.
Ver meu filho desaparecer dentro de casa foi doloroso. Era tudo errado
mandá-lo embora miserável: eu queria juntá-lo novamente, mas, em vez disso,
virei e segui meu pai pela entrada. Ele deve ter notícias - um plano de como ele
nos ajudaria a seguir.
A estrada estava cheia de lama e irregular aqui e ali com pedras, nunca uma
superfície confortável para uma carruagem. Muito melhor fazer o que fizemos,
passando por um portão e entrando no caminho que contornava a charneca, suas
lajes de calcário assentadas por esforço heróico e solitário, onde o vento batia na
franja de meu gorro como uma mosca presa. Enrolei-me no xale e apressei o
passo para acompanhar meu pai.
— Eu nunca bato nele — balbuciei quando já tínhamos percorrido uma boa
distância. — Essa foi a única vez.
— Você gosta muito dele — disse ele.
Eu não respondi. Uma nuvem soprava, grossa como lã úmida, mas suas gotas
eram pontas de agulha frias e afiadas contra meu rosto.
— Muito zelosamente apegado — continuou meu pai. — Que tipo de
homem Stanley espera se tornar, com você tão apegado a ele?
— Um tipo melhor do que o pai.
Ele me estudou gravemente.
— Eu te perdôo por isso, porque você está chateada. Mas serve para ilustrar
como você é imprópria, como qualquer mulher é inadequada, para guiar um
menino até a masculinidade. Você é emotiva, impulsiva, infantil. Pense em
como te encontrei hoje.
— Eu nunca estive sozinha com ele antes! Ele está entediado aqui e infeliz.
Eu aprenderei, estou aprendendo. Vou fazer melhor...
— Não, Lucinda. O lugar dele é com Lisle, assim como o seu.
— Eu não vou ter esse homem perto do meu filho.
— Filho dele. Você não pode tratar a aliança do casamento como um mero
capricho: não foi assim que eu o criei.
Meu pai pronunciou essas palavras diante da própria casa em que escondia
suas próprias indiscrições. A repulsa tomou conta de mim, mas a reprimi e disse
baixinho:
— Lisle quebrou a aliança. Ele era o adúltero, o perdulário, o… — Esta
última palavra eu não poderia dizer. Meu coração lutou só de pensar nisso. Eu
me sinto doente. Agarrei a mão enluvada de meu pai e me recompus. — Ele
abusou de mim — sibilei. — Ele fez coisas...
Meu pai olhou para minha mão na dele e depois para mim.
— Como era seu direito — disse ele friamente.
As lágrimas correram-me aos olhos e fiquei novamente cego, como antes da
Sra. Farrar, com a vergonha queimando em minhas bochechas. Meu pai
caminhou como se não tivesse me marcado. Pensei “talvez ficasse aqui para
sempre”, ainda como a esposa de Lot, ainda como Myrrha quando as raízes
brotavam de seus pés e se enterravam no solo, e a vergonha e a dor endureciam
sua pele e enrijeciam seus membros até que gemiam na brisa. Seria agradável
desistir. Eu poderia ficar ali na charneca até que o vento soprasse tudo o que era
humano para fora de mim e permanecer insensível como um toco para sempre.
— Eu lhe dei um descanso — disse meu pai por cima do ombro. — Agora
você deve voltar para casa.
Isso me galvanizou.
— Eu quero o divórcio — eu disse corajosamente, perseguindo-o contra o
vento. — Isso pode ser feito. Seu adultério é bem conhecido.
Ele balançou sua cabeça.
— Isto não é suficiente.
— Então direi o que ele faz comigo.
— Todos os homens fazem isso com suas esposas! Você arrastaria sua família
para o Supremo Tribunal porque você não pode tolerar o que os outros as
mulheres suportam dez vezes mais? Você está alimentado, não está? Se ele bate
em você, não é sustentado, se ele é adúltero, dificilmente é em seu detrimento,
já que você não aceita suas atenções. Você gosta de lazer, diversão, roupas finas.
— Ele balançou a cabeça com pena. — Você não tem uma perna para se apoiar.
— Mas eu–
— E você percebe que já perdeu tudo? Você pode ter ficado com Stanley até
os sete anos, mas depois desse espetáculo... — Ele parou para beliscar a ponte
do nariz e fechar os olhos. Quando ele os abriu novamente, eles ficaram tristes.
— Isso é sequestro, Lucinda. Nenhum tribunal te acharia uma mãe adequada.
Eu me sentia como um bêbado, cambaleante e histriônico, meu terror
girando ao meu redor. Eu tateei em busca de fatos, de racionalidade, mas sabia
que não era capaz de nada além de uma explosão rudimentar de sentimento que
seria apenas grão para seu moinho. Eu caí, e segurei minha língua.
— As enchentes estão diminuindo — disse meu pai. — É seguro viajar para
casa, e este lamentável episódio não precisa ser mencionado. Você estendeu sua
visita a Scarborough, só isso.
A luz estava escurecendo, e nosso caminho, que havia feito uma grande curva
atrás da casa, agora se aproximava dela mais uma vez. Eu lancei meus olhos para
as janelas, esperando ver Stanley lá, mas meu olhar foi atraído para aquela janela
superior, fechada com tábuas por dentro. Algo estava irregular. A princípio não
consegui distinguir o quê, mas então vi: uma mão branca, palma e dedos
pressionados contra o vidro.
O frio passou por mim, mas não deixei meu passo vacilar, eu caminhei,
olhando, mal acreditando no que via. Quem estava no meu quarto? E como isso
era possível? Não era possível: não havia como alcançar a vidraça. Nem mesmo
uma pessoa do tamanho de Stanley caberia entre as tábuas e o vidro. E ainda
assim lá estava, uma mão pálida, os dedos espalmados contra a vidraça como se
estivesse apelando. Meu pai continuou falando – Mariana não falava uma
palavra; Lisle já havia perdoado minha bobagem – e eu não disse nada. É uma
loucura falar de fantasmas e superstições, tanto quanto de divórcio e amor
materno. Meus olhos doíam: eu pressionava meus dedos frios contra suas órbitas
para dissipar a dor. Fazia tanto tempo que eu não dormia.
— Pai — eu disse — como você veio a possuir este lugar?
— Os Thwaites eram da família da minha mãe. Emily Thwaite, a última
Sra. Thwaite, era sua irmã mais velha. Ela deixou o marido.
Ah. Pronto.
— Ela pode ter tido um bom motivo — eu disse.
— Ela abandonou os filhos — ele retorquiu — e eles foram mandados
embora, seu pai dificilmente poderia criá-los sozinho. Ele não chegou à velhice
e nem, receio, eles. Talvez você imagine que as esposas são insignificantes, mas
um castelo de cartas pode ser derrubado tão facilmente por um pip quanto por
um ás.
— Mas e ela? — Eu exigi.
— Quem pode dizer? Paris, talvez, ou Londres, o tipo de lugar onde essas
infelizes acabam. Deitada de costas sob os arcos Adelphi, não me admiraria.
Alcançamos o alto muro do jardim e entramos por uma cancela. Olhei mais
uma vez para aquela janela, mas nenhuma mão estava lá, e onde estivera, vi
distintamente os painéis de ripas, pretos como sempre.
— Eu sei o que acontece aqui — eu disse baixinho. — Aquelas mulheres.
Ele ficou parado e olhou para mim por um longo tempo.
— E?
— Se isso escapasse…
Ele riu.
— Não envergonhe a si mesma. Há uma diferença entre segredos e
conhecimento que ninguém quer: se você fizer uma cena sobre isso, vai acabar
pior para você do que para mim.
O crepúsculo era furtivo naquela tarde. Não havia longas sombras ou raios
de sol dourados, apenas um abafamento da luz, e a escuridão se infiltrando como
umidade. Quando chegamos à varanda, meu pai apertou minha mão.
— Eu sei que você é uma boa menina. Virei buscar você e Stanley amanhã.

Naquela noite, como todas as noites, Stanley adormeceu no sofá enquanto eu


lia. Não havia possibilidade de ele dormir sozinho no andar de cima: a ideia de
alguma entidade horrível barrando meu caminho até ele era intolerável. Quanto
a mim, sentei-me doente de tristeza. Eu pensei que meu pai estava me
protegendo ao nos trazer aqui, mas agora entendi que sua lealdade estava com
Lisle. O divórcio pelo qual eu havia conseguido desesperadamente era
impossível, e mesmo que meu pai tivesse permitido que eu ficasse aqui, o Sr.
Thwaite não me daria paz. Olhei para Stanley, caído no sofá ao meu lado, e
sabia que se ele deveria voltar para Lisle, então eu deveria ir com ele. Mesmo
que isso significasse testemunhar minha miséria; ainda que venha me desprezar;
mesmo que ele se tornasse um homem que eu temia. Meu lugar era com ele.
Levantei-me silenciosamente e comecei a recolher nossos poucos pertences
para embalar. Então eu o peguei em meus braços. Ele era pesado e se mexeu
quando o levantei, mas quando soube que era eu, deitou a cabeça em meu
ombro e seus membros relaxaram mais uma vez. Eu poderia tê-lo segurado ali
para sempre, respirando o calor atrás de sua orelha e a perfeita confiança
expressa por seus dedos semicerrados. Em vez disso, carreguei-o escada acima
para a cama.
O Sr. Thwaite chegou tarde da noite, fazendo a calha das velas. Sentei-me na
cama, sem paciência: agora que estava decidida a ir embora, suas passadas
agressivas me fizeram ferver o sangue.
— Deixe-me em paz — eu disse. — Deixe-me em paz!
Ele começou a correr furiosamente para cima e para baixo no patamar, o
corrimão vibrando, as tábuas do assoalho rangendo. Ouvi um estalo e o barulho
de vidro quebrando – um quadro caindo da parede, sem dúvida.
— Você realizou seu desejo — eu disse. — Estou voltando. Agora deixe-me
dormir, eu imploro.
No andar de baixo, outro estrondo: “A Jangada da Medusa”, batendo no
chão. Eu nunca o tinha visto tão febril em seus movimentos. Seus passos
vibraram nas tábuas do assoalho: as cortinas da cama estremeceram e os copos
de água na cômoda tilintaram.
Levantei-me da cama e fui agachar-me junto à porta, com a vela aos pés.
Pensei tê-lo sentido ali do outro lado, uma presença crepitante e enegrecida,
impaciente comigo. Pensei: Amanhã, onde quer que eu esteja, vou dormir, e senti
uma alegria triste e boba.
— Sr. Thwaite — eu disse.
Uma espécie de grunhido.
— Seu problema não é comigo. Eu não sou sua esposa. A Sra. Thwaite se foi
e você também deve ir.
Um silêncio. Um longo silêncio. Tudo o que ouvi foi a respiração de Stanley
saindo da cama, como a maré em uma noite tranquila: suave, imperturbável,
duradoura. Eu não tinha sido uma boa mãe, mas seria melhor. Aceitei agora que
não poderia nos libertar da maneira que havia imaginado: se não houvesse Lisle
haveria outros homens, pois eram todos por um e um por todos, uma hidra que
eu não poderia derrotar. Ora, até os mortos fizeram a sua parte! Ajoelhada,
pressionei minha testa contra a porta. O alívio que senti com a perspectiva de
conforto físico, de descanso, de sono após tal estada foi temperado pela dor por
aquela esperança breve e rosada que floresceu em mim em Scarborough,
observando Stanley correr pela areia. Mas a esperança se foi. Eu não poderia
vencer. Eu desisto.
E então, como se confirmando, ouvi o ferrolho deslizar.
O que! Sentei-me de cócoras, testei a porta uma vez de leve, depois mais
freneticamente. Estava trancado, isso era certo: trancado por fora. Levantei-me e
sacudi a maçaneta, mas não ousei aplicar mais força enquanto Stanley dormia.
Por mais terrível que fosse minha situação, quão mais terrível seria se meu filho
soubesse de alguma coisa!
— Não há saída — disse uma voz grave e rouca. Minha vela se apagou como
se tivesse sido presa entre o indicador e o polegar: eu meio que abafei meu
grito. Um ainda queimava na cômoda, mas em um momento também se
apagou. A sala estava escura como um túmulo, tão sem luz que meus olhos
tentaram inventá-la, e manchas vermelhas e verdes cresceram e se dispersaram
antes da minha visão. Eu tentei a porta novamente, inutilmente. Tateei meu
caminho pelas paredes revestidas até a janela, mão após mão, tropeçando em
objetos que não eram mais familiares. Eu esperava deixar entrar um pouco de
luar, se houvesse luar, mas não consegui enfiar os dedos sob as tábuas para obter
apoio e, além disso, eles foram acertados. Meu coração batia forte: descansei na
beirada da cama e juntei as mãos no colo, torcendo e retorcendo os dedos.
Mais ruídos abaixo – a cozinha agora – potes quebrando nas lajes de pedra,
panelas quebrando.
— Você não vai embora!
Ele continuou, andando de um lado para o outro no patamar como se
estivesse enjaulado, seus passos pontuados de vez em quando com outra
explosão de atividade no andar de baixo. Livros caíam das prateleiras, cadeiras
de madeira batiam de um pé para o outro. Não era mais uma campanha para
me ameaçar, mas uma volta da vitória. Ele era o esportista que, vendo o
adversário prostrar-se, aproveitava para vencê-lo com mais força, pois não
bastava vencer. Ele queria me quebrar.
Deitei-me ao lado de Stanley, em cima das cobertas, e deixei a raiva do Sr.
Thwaite agitar o ar em volta da minha cabeça mais uma vez. Uma lágrima
rolou pelo lado do meu rosto e no meu cabelo, quente e fria nas dobras da
minha orelha. Enxuguei os olhos, mas as lágrimas ainda vinham. Pensei em
como deveria voltar para Lisle e em como ele seria muito mais cruel agora que
eu havia tentado e falhado. Antes, pelo menos eu era irrepreensível; não teria
sido certo me usar tão mal. Mas agora – bem, ele teve uma provocação. Esta
minha viagem justificaria qualquer coisa que ele fizesse comigo.
Algo chamou minha atenção. Algo gentil e hesitante, nada parecido com o
Sr. Thwaite e ainda assim igualmente inegável. Não posso dizer que vi algo, ou
ouvi, ou se fui fisicamente tocado. Mas fiquei imediatamente alerta para outra
presença na sala.
Emily.
Não houve fala. Achei que o ar simplesmente me cumprimentou.
Emily, Emily, que insubstancialidade!
Ela ficou na janela cega que não deixava entrar a luz da lua, perto da vela
cuja chama havia sido apagada. E ainda assim eu a vi, cor de mariposa,
manchada, oscilando enquanto a escuridão flutuava. Ela usava um vestido claro
no estilo de sessenta anos atrás, manchado sobre manchas, e sua bainha e as de
suas anáguas penduradas em comprimentos diferentes onde pedaços haviam
sido rasgados para que propósitos variados eu não ousava imaginar. Seu cabelo
era longo e esfarrapado, e ela era magra, magra como alguém muito longe,
então suas juntas eram bulbosas, e seus lábios diminuídos se esforçavam para se
encontrar sobre os dentes, e seus olhos estavam pesados em cavidades profundas.
Do lado de fora, o Sr. Thwaite ainda estava furioso, resmungando:
— Nunca vai embora! Nunca vai embora! Ela nunca vai embora.
Eu pressionei minha mão na minha boca. A Sra. Thwaite não havia fugido.
Talvez ela tivesse ameaçado – talvez ela tivesse tentado – mas não teve sucesso.
Aqui ela se encolheu ouvindo a fúria de seu marido, e as vozes abafadas de seus
filhos partindo, e então o silêncio que eles deixaram. Ela deve ter visto a luz em
sua fresta da janela mudar de cor, sentido a hora e a estação se esticar e encolher,
esperou aqui impotente. E ninguém veio buscá-la, exceto a Morte.
Ela virou a cabeça no pescoço de galinha depenada e olhou para mim.
Eu cambaleei para trás, mas algo me segurou. Apesar de sua aparência
horrível, ela emanava doçura. E embora ela não se mexesse, parecia que vinha
sentar-se ao meu lado, como Mariana teria feito em outros tempos, como faria
qualquer amiga querida, para suportar comigo a minha infelicidade. Fazia
muito tempo que não sentia tanta solidariedade e chorei ainda mais. Ela se
sentou assim no escuro com as outras mulheres que meu pai trouxe aqui
enquanto esperavam que a dose fizesse efeito ou depois que o médico fosse pago.
Talvez uma ou duas estivessem aqui há muito tempo, grávidas de uma criança
que não podiam ser mães. Ela tinha suportado com eles. E ela esteve aqui
comigo todo esse tempo, colocando calor na cozinha e inundando meus
pensamentos com segurança e gentileza enquanto seu marido me impedia de
dormir.
Stanley suspirou e rolou. Eu coloquei minha mão em seu ombro para sentir
seu amado calor, sua carne, seus ossos, subindo e descendo. E uma insinuação
silenciosa me alcançou:
Você pode ir embora.
Eu hesitei.
Você deve ir embora.
— Meu pai irá me levar para casa amanhã — eu disse.
Emily Thwaite balançou a cabeça. Não! Não! Não vá com ele. Com esforço,
ela saiu da janela e caminhou até o centro da sala, os membros muito rígidos e
os tendões muito frouxos, então ela cambaleou e se curvou como uma
marionete. Senti a brisa de suas roupas quando ela passou por mim. Seu cabelo
estava em tufos; suas unhas longas e amarelas. Ela apontou para a porta.
Thwaite é o seu aviso, ela me disse. Eu sou seu aviso.
Eu vi Scarborough. A luz rosa e o brilho dourado na areia. As mãos do meu
filho ficaram vermelhas de frio e seus olhos se apertaram de alegria. Quando
escurecia, subíamos juntos a colina contando os degraus, e eu não reclamava que
ele estava nos segurando, mas, em vez disso, virava meu rosto para as estrelas e
desejava que nunca tivesse que acabar.

Acordei com o barulho da porta. Eu estava confuso demais para entender, a


princípio, se estava sonhando ou acordado, e gritei quando o ferrolho disparou e
a porta se abriu. A luz cinzenta do dia penetrou no patamar, não muito, mas o
suficiente para mostrar meu pai parado ali.
— O que é isso? — Ele perguntou, perplexo. — O que aconteceu lá
embaixo? Como você foi trancada?
Esfreguei os olhos. Eu ainda estava deitada sobre as cobertas, totalmente
vestida como na noite anterior, com Stanley enrolado como um arganaz nas
cobertas ao meu lado. Minha última lembrança era da Sra. Thwaite, seu rosto
contraído, sua mão estendida.
— Como isso aconteceu? — meu pai persistiu. — Quem fez isto?
— Stanley deve ter batido a porta — eu disse. — Muitas vezes notei que o
parafuso não é confiável. — Meu coração ainda batia forte: se ele tivesse me
estudado, teria visto sua pulsação perturbando as dobras em meu peito e
agitando meus punhos. Levantei-me, ajeitando minhas saias, e fui até a
penteadeira. — Estou feliz por você estar aqui — comentei levemente.
— Pelo menos você está vestida e pronta — disse ele, entrando na sala com
uma hesitação incomum. Eu o observei no espelho, mas não captei seu olhar, e
ele preferiu se virar e observar Stanley na cama. Ele o fez cuidadosamente
enquanto eu escovava e repartia meu cabelo, depois foi até a janela onde Emily
Thwaite estivera na noite anterior e inspecionou suas fortificações.
— Não gosto muito de ficar trancada aqui — eu disse, alisando o cabelo. Na
imagem do espelho, vi outra figura se juntar a ele, pálida e angulosa, uma
mancha no vidro ou um raio de luz refratado. Você pode ir embora, ela me disse.
Eu vacilei. Pressionei minhas mãos sobre a mesa para acalmar o tremor, mas
elas não paravam, e meus cotovelos batiam nos puxadores das gavetas.
— A Sra. Farrar está aqui? — Perguntei. — Devo dizer adeus.
— Eu disse a ela que não precisava vir hoje. Mas vejo que ela terá um acordo
para acertar na terça-feira.
Eu balancei a cabeça. Prendi o resto do meu cabelo no lugar e olhei para a
cama, onde Stanley se sentou e olhou em volta.
— Você está acordado! Venha, doce menino. Você está pronto para uma
aventura?
Ele balançou a cabeça e voltou a se deitar.
— Mamãe, não.
— Esta será a última vez — eu disse. — Sem mais passeios pelo país depois
disso. — Fui até ele e o peguei em meus braços, embalando-o em meu colo e
pressionando meu nariz em sua nuca sem vergonha, embora soubesse como meu
pai me olhava. Emily Thwaite o observou, e enquanto reprovação e tristeza se
misturavam em sua expressão, eu peguei outra emoção também: determinação.
Vesti Stanley rapidamente enquanto ele se agarrava a mim em um torpor de
bochechas quentes, e a voz da Sra. Thwaite veio a mim novamente: você pode ir
embora. Você pode ir embora. Você deve ir embora.
Ela se manteve perto da parede, movendo-se lentamente, agachada, com os
olhos fixos em meu pai, como uma pantera cativa que, embora desbotada e
emaciada, ainda ardia de instinto. Comecei a sentir medo.
Eu serei seu aviso, Emily Thwaite sussurrou. Ele saberá o que fez. Meu pai
folheava os livros no parapeito da janela, romances de mau gosto que o faziam
torcer os lábios.
— Vamos viajar na carruagem do vovô — disse alegremente a Stanley.
— Não gostei da última vez — disse ele, escondendo o rosto na minha saia.
— Não vai ser igual antes.
Havia na sala uma atmosfera que se espalhava como um perfume: era da doce
e paciente dor. Emily Thwaite estava sentada no canto, pressionando a testa
contra as mãos entrelaçadas e por um momento pensei que meu pai a visse, pois
ele se demorou algum tempo diante do espelho, semicerrando os olhos para o
reflexo do quarto. Mas havia muitas coisas que ele poderia ter visto e muitas
coisas que poderiam tê-lo perturbado.
— Você está vindo? — Eu perguntei a ele, pegando minha bolsa e varrendo
Stanley da sala diante de mim.
Ele parecia pensativo, como se algo estivesse se estabelecendo sobre ele como
nunca antes.
— Apresentável — disse ele.
Stanley já estava descendo as escadas. eu esperei até que meu pai estava de
costas antes de eu fechar a porta do quarto. Devagar, silenciosamente, deslizei o
ferrolho.
O corredor estava cheio de cacos de vidro e livros espalhados, a cozinha
saqueada. O sobretudo de meu pai estava estendido sobre a cadeira do corredor
e vasculhei seus bolsos até encontrar uma bolsa com dinheiro e, no forro, um
maço de notas suficientes para nos manter por algum tempo.
Stanley ficou me observando, franzindo a testa.
— Está tudo bem — eu disse. — Vovô vai se juntar a nós mais tarde. Ponha
o chapéu.
Peguei sua mão e saímos. Descendo os degraus, a carruagem esperava, os
cavalos sacudindo as cabeças, e quando o sol apareceu, a vista do vale finalmente
se revelou, névoa de madrepérola; reflexos nas janelas de fazendas e casas de
campo; a chaminé do moinho erguendo-se como que de uma miragem. Os
campos, os riachos, os muros tortuosos e as sebes de espinheiro estavam todos
cobertos por uma névoa rosa. Passei meus braços em volta de Stanley e o apertei
com força. Depois de ajudá-lo a subir na carruagem, virei-me para olhar a casa.
As janelas estavam vazias.
— Dirija — eu disse. — Leve-nos para Scarborough.
OS CANTORES DE ENGUIA

Natasha Pulley
Keita Mori conseguia se lembrar do futuro e, se fosse honesto, o que não
acontecia com frequência, não gostava disso.
Felizmente, ele era um péssimo ator, então não havia necessidade especial de
honestidade. Thaniel havia alugado o quarto vago dele por tempo suficiente
para saber quando ele estava infeliz.
Hoje à noite, eles estavam caminhando pelo mercado de Natal da vila
japonesa em Knightsbridge. Quando Thaniel veio morar em Knightsbridge,
alguns anos antes, o vilarejo era pequeno, montado em um amplo showroom,
mas provou ser tão popular que, depois de incendiada, os proprietários a
reconstruíram muito melhor, com belas pontes do lado de fora, pagodes e
santuários brilhantes com sinos de oração. As pessoas que viviam lá, todos
artesãos, traziam tudo para fora para a temporada. Havia barracas e luzes por
toda parte, brilhando em joias esmaltadas, sombrinhas, peças de quimono de
seda. A dona da casa de chá havia contratado uma equipe extra para andar por aí
com bandejas de chá matcha quente, que era tão brilhante que fez Thaniel
pensar naquele lindo musgo que crescia apenas nas florestas mais ricas. Você
poderia comprá-lo cortado com saquê ou uísque e, junto com a fumaça do
cachimbo de todos, o vapor doce enrolado e quente no ar noturno, tingido de
laranja pelas lâmpadas. O murmúrio da multidão era uma mistura de inglês e
japonês. O ar tinha uma efervescência feliz que parecia segurar a ponta dos
dedos sobre uma taça de champanhe recém-servida.
Mori parecia tão frágil que as vozes das crianças ao redor deles poderiam
destruí-lo em breve.
— Algo em sua mente? — Thaniel arriscou, levantando a gola do casaco
para se proteger do frio.
Logo à frente deles, Seis negociava com o fabricante de fogos de artifício, que
parecia preocupado com a possibilidade de estar perdendo o controle.
— Devemos resgatá-lo — disse Mori, acenando dessa maneira. — Antes que
ela conte a ele mais estatísticas.
— Algo mais? — disse Thaniel, que estava acostumado a táticas de diversão.
— Eu... não, estou bem — disse Mori, mas eles estavam chegando à barraca
do fabricante de fogos de artifício, onde o brilho crepitante dos estrelinhas o
iluminava fortemente. Fazia seu cabelo e seus olhos parecerem vidro preto. Ele
se encolheu e estendeu a mão sob a bandeja de matcha e uísque de um menino
um segundo antes de o menino deixá-la cair, depois de ter sido esbarrado por
um cachorro que passava. Mori devolveu.
Thaniel pensava com culpa sobre a bandeja. Provavelmente não era muito
honroso pensar nisso, mas Mori era de uma das mais antigas casas samurais do
Japão, uma que passou mil anos criando delicadas damas com menos de um
metro e meio de altura e cavaleiros cristalinos. Uma xícara deixaria Mori
bêbado e honesto rapidamente.
Os olhos de Mori deslizaram para longe e para baixo pouco antes de Seis
correr de volta para eles com um pacote de papel cheio do que provavelmente
eram muito mais fogos de artifício do que o fabricante de fogos de artifício
normalmente venderia para uma criança de oito anos. Como sempre, ela não
pegava na mão de ninguém. Em vez disso, ela roubou o relógio de bolso de
Mori, depois o de Thaniel, para poder andar entre eles no curto comprimento
das correntesI.
Thaniel a cutucou.
— Por que tantos fogos de artifício, pétala?
— Para que possamos ter uma exibição de fogos de artifício no dia de Natal,
para que pareça mais o Ano Novo para Mori e menos como um festival pagão
sobre invasão de domicílio e um pervertido preocupante — explicou ela.
— Certo — disse Thaniel. — Certo, pela décima quarta vez, vocês dois, a
história do presépio não é sobre invasão de casa e um pervertido preocupante. O
Anjo Gabriel aparece à Virgem Maria para lhe anunciar a boa nova da vinda do
Espírito Santo, só isso!
— Mas me faça um favor — Mori murmurou — e fuja se algum estranho
demente tentar vir até você com seu espírito santo.
Thaniel deu um soco nele.
Eles estavam saindo, e Thaniel quase não percebeu que Mori havia parado na
beira da calçada. Eles estavam prestes a atravessar a estrada, que zumbia com
táxis e cavalos, e pessoas passagem de e para o mercado. Um ônibus com um
anúncio do chá Lipton na lateral derrapou no gelo e andou sobre duas rodas por
um momento antes de cair de volta nas pedras. Algumas garotas aplaudiram o
motorista.
— Kei? — disse Thaniel.
Mori sorriu um pouco.
— Desculpe — disse ele. — Está ocupado, não é?
Thaniel levou um momento para entender. Quando o fez, sentiu-se
aborrecido consigo mesmo por não ter pensado nisso antes. Claro, se você fosse
um clarividente, então uma estrada movimentada e gelada poderia ter sido uma
confusão de horríveis memórias potenciais de ser esmagado sob rodas ou cascosII
Você não poderia perguntar a Mori se ele queria parar por um minuto até
que se sentisse melhor; ele se preocupava da mesma forma que a maioria das
pessoas ficavam sendo xingadas.
— Seis — disse Thaniel em vez disso — vamos comprar chocolate quente
naquela barraca ali? — Havia uma fila, e isso daria à multidão na estrada tempo
para diminuir.
Seis olhou, não com entusiasmo instantâneo. Uma barraquinha de chocolate
quente não estava na programação da caminhada habitual para casa, e variações
repentinas não eram algo que ela encorajava. Se ela pudesse colocá-los em
trilhos de trem com horários claros e sem solicitações de paradas, ela o faria.
Thaniel apertou seu ombro, tentando comunicar que ele não havia pedido
apenas para ser irritante. Ele a viu estudar Mori.
— Acho — disse ela gravemente — que seria maravilhoso.

Na casa da Rua Filigree, a oficina de Mori estava fechada para o Natal. Quando
eles entraram, Thaniel sentiu uma onda culposa de alívio. Ele adorava a oficina
e todos os reluzentes relógios de lá, mas era bom saber que ninguém estava
prestes a entrar e tocar a campainha da mesa agora. Até o Ano-Novo, a casa era
só deles, com fogos em todas as grades e lâmpadas acesas entre os azevinhos
retorcidos no corrimão da escada. O próprio Mori fez as luzes e dentro de cada
lâmpada os filamentos foram enrolados em diferentes formas: árvores, estrelas,
um castelo japonês. A luz era cor de mel e cheia de lar.
Quando Thaniel caiu na cama por volta da meia-noite, depois que Mori deu
a Seis um pouco de vinho quente, ele adormeceu quase imediatamente. Suas
costelas doíam de tanto rir. Seis geralmente era uma pessoa quieta, mas um
pouco bêbada, ela lhe deu um pequeno sermão sobre o porque era irritante
quando ele vestia um casaco diferente, e quando ele escrevia pessimamente no
diário Coisas Significativas Que Poderiam Acontecer Hoje na cozinhaIII.
Ele não tinha certeza de que horas eram quando algo o acordou. Ele se
sentou na cama, ouvindo. Vagamente, ele teve a sensação de que tinha sido um
estrondo, mas a memória estava embaçada pelo sono. Isso o fez pular quando
alguém bateu na porta.
— Seis, você está bem? — ele disse no escuro. Ele deve ter ouvido a escada
cair do sótão. — Está destrancado, pétala.
— Sou eu — disse a voz de conhaque de Mori. Ele parecia abalado. —
Posso…?
— Sim — Thaniel resmungou.
Eles viveram juntos por três anos e nenhuma vez Mori bateu na porta de
Thaniel. Era sempre o contrário, e Thaniel agonizava antes dele. Ele nunca
tinha certeza se era bem-vindo. Mori o deixava entrar, sempre, mas Mori era
Mori; ele não era inglês, não era cristão, havia crescido em um lugar onde uma
batida na porta entre amigos não era digna de nota. Isso não significava que ele
estava apaixonado, apenas que estava sendo educado. Thaniel não ousou
perguntar qual era. Era covardia, mas se ele não soubesse, poderia viver
esperando.
Mori entrou silenciosamente, fechou a porta novamente e então se dobrou no
espaço ao lado da cama, de costas para a parede e os braços em volta dos joelhos.
— Obrigado. Desculpe. Pesadelos vívidos.
— Sobre a estrada? — Thaniel perguntou suavemente. Ele moveu o cobertor
para que eles pudessem dividí-lo mais uniformemente. O luar e o frio vinham
da janela ao lado deles, que projetava sombras em forma de diamante sobre a
cama.
Mori assentiu.
— É apenas a época do ano. Todos os lugares estão carregados. Eu nunca
consigo me acomodar direito. — Ele passou as mãos pelos cabelos. — Está
piorando a cada ano. Eu não quero nem sair. Eu só... eu me lembro
infinitamente de ser atropelado ou cair, ou Seis passando debaixo de um táxi, ou
você, e então hospital e funerais e...
— Não saia então. É para isso que eu estou aqui — disse Thaniel, que ficava
grato quando podia ser por qualquer coisa. Ele não era, geralmente. Ele era
funcionário do Ministério das Relações Exteriores. — Eu posso fazer compras e
tal.
Mori deu a ele um olhar triste.
— Mas isso seria ceder.
— Cale a boca. Se eu continuasse fazendo algo que estava me machucando,
você seria o primeiro a me dar um tapa e me mandar sentar.
Mori riu.
— Verdade.
Tentativamente, Thaniel colocou um braço em volta dele e puxou-o para
perto. Ele teve uma emoção estúpida e feliz quando Mori o deixou.
— Existe alguma coisa que ajudaria? Podemos ir a algum lugar mais
tranquilo?
— Não podemos levar Seis para férias inesperadas, ela explodiria.
— Mas ela tem que viver no mundo — disse Thaniel. — E... pode me
chamar de filho da puta, mas não acho que as pessoas devam sacrificar a saúde
pelos filhos. Você acaba os odiando.
Mori ficou quieto por alguns segundos. Quando voltou a falar, o fez com
cuidado, como se estivesse testando o gelo na beira de um lago.
— Há um lugar onde não funciona.
— Não funciona?
— Tudo isso — disse Mori. Ele tocou sua própria têmpora. — Não sei por
quê.
— Como você sabe que não funciona lá? — Thaniel disse, lutando com toda
a ideia.
— Porque eu me lembro de nossa ida para lá, e nada mais. — Mori hesitou.
— Não consigo me lembrar de nada sobre. Normalmente eu saberia tudo. É
como... uma lacuna na trama de tudo.
— Onde?
— Os Fens. Rumo a... Peterborough.
— Achei que você ia dizer Mongólia — disse Thaniel, incrédulo. —
Peterborough fica a apenas algumas horas de trem. Por que ainda não estamos
lá? Vou persuadir Seis.
Mori deu a ele um olhar que era alegria e vergonha misturados, um que fez
Thaniel se sentir feliz por ter feito algo útil, mas terrivelmente jovem e inútil
também.

O pântano se estendia cinza e brilhante em todas as direções. O céu estava


escurecendo, e o maior que Thaniel já tinha visto, malva e estanho, de horizonte
a horizonte acima das silhuetas ondulantes dos juncos. Esta estação não tinha
nome; era apenas uma plataforma de madeira, sem escritório e sem guarda,
apenas um caminho que conduzia de um lado para o pântano.
Thaniel não se importava. Ele estava apenas grato por sair do trem.
A plataforma era a coisa mais alta para o que devia ter quilômetros de
distância. Ele não conseguia ver um único edifício, exceto talvez algo meio
arruinado à distância. Tinha que ser o lugar errado. Não poderia ter havido
pessoas aqui por mil anos.
— Não, é aqui — disse Mori. Ele parecia estar ouvindo.
A zeladora da casa de hóspedes deveria recebê-los, mas não havia sinal de
ninguém. Thaniel estava prestes a perguntar a Mori o que eles deveriam fazer
agora quando viu uma lâmpada, meio escondida entre juncos muito mais altos
do que ele pensava, e atrás dela, uma mulher e um homem envoltos em lenços e
chapéus. Eles acenaram.
— Boa noite! — os dois ligaram.
— Boa noite — Thaniel respondeu com gratidão.
Nunca gostando de gente nova, Seis pegou o relógio de Mori e enrolou a
corrente uma vez em sua mão para que ele não pudesse se afastar mais do que
quinze centímetros. Thaniel desceu correndo os degraus primeiro para garantir
que as pessoas não pensassem que estavam sendo rudes. Ele teve que piscar duas
vezes, porque eles estavam muito mais perto do que ele pensava. Algo sobre o
plano infinito tornava difícil dizer o quão perto ou longe algo estava.
— Olá, algum de vocês é o zelador?
— Isso mesmo — disse a mulher. — E vocês são o Sr. Stapleton e o Sr.
Mori? É por este caminho.
— Por aqui — repetiu o homem alegremente. — Alguma coisa para
carregar?
— Não, está tudo bem — disse Thaniel, que estava no serviço. Ele odiava
pessoas que entregavam todas as suas malas num piscar de olhos.
— É um pouco longe — o homem o advertiu.
— Um pouco — a zeladora acrescentou no final.
— Estamos bem — disse Mori. — Precisamos de um pouco de exercício.
Fica a cinco horas de Londres.
Ambos olharam para ele com uma atenção repentina e intensa que deixou
Thaniel inquieto. Ninguém em um lugar tão isolado poderia estar acostumado
com estrangeiros. Mas então os dois estavam sorrindo.
— Bem-vindos ao hreodwater!
— O que isso significa? — Thaniel perguntou, curioso e aliviado. Ele era de
Lincolnshire, não muito longe daqui, mas Fens era um lugar próprio e as
pessoas eram diferentes lá. Eles até pareciam diferentes, com cabelos escuros
aguados e olhos azuis aguados. Ninguém poderia ter se mudado para longe de
casa desde o Danelaw. O pântano os mantinha confinados. Deve ter limitado a
linguagem também.
— Ah… — Eles se entreolharam, e então riram. Eles devem se conhecer há
anos, porque fizeram exatamente ao mesmo tempo e da mesma maneira. —
Apenas um lugar!
Thaniel olhou instintivamente para Mori, que era um dicionário
internacional ambulante. Mas Mori estava balançando a cabeça. Thaniel nunca
o vira tão feliz. Olhando para ele agora, sem nenhum contexto, Thaniel teria
pensado que estava vendo um homem que sofria de enxaqueca por anos, e
naquele instante sentiu que ela havia desaparecido.
— Não faço ideia — disse Mori. Ele começou a rir, e a zeladora e seu marido
se juntaram a ele. Thaniel sorriu também, feliz por estar funcionando. Seis,
porém, estava olhando para todos eles de maneira estranha. Sem dizer uma
palavra, ela puxou a aba de papel de um dos Sparklers Auto-Acendentes de
Longa Vida do Sr. Tanaka e seguiu pelo pequeno caminho à frente de todos eles,
sua abóbada de sombra.
Por cerca de quatrocentos metros, eles não viram nada além de lamaçais e
juncos. Depois de Londres, o ar tinha um gosto doce – Thaniel sempre pensara
que era apenas uma coisa que as pessoas diziam, mas era verdade, e de olhos
vendados ele teria dito que alguém acabara de sacudir açúcar de confeiteiro.
Doce, terroso e frio. Às vezes, ele via pontos brancos brilhantes no pântano e
não conseguia distinguir o que eram até que um levantasse um longo pescoço.
Cisnes, dezenas deles. Seu senso de perspectiva mudou. Ele pensou que eles
eram muito menores e muito mais próximos. Foi uma sensação estranha, mas
veio com uma emoção também.
E então o equilíbrio entre a água e a terra mudou. O caminho parou e
tornou-se uma calçada de madeira, os suportes afundados em um trecho de água
negra.
Havia uma ilha, e nessa ilha, repentina e rígida, estava a casa. Suas luzes
pareciam incorpóreas daqui, de uma forma que fez Thaniel pensar em alquimia.
Ele olhou para Mori e sorriu. Ele nunca tinha visto um lugar assim antes, muito
menos ficado em um lugar assim. Ele se viu esperando por um fantasma.
A zeladora mostrou o caminho para a calçada. O pântano estava fazendo
mais truques, e o caminho era muito, muito mais longo do que parecia a
princípio. Seus passos ecoavam profundamente sob a madeira, que era tão velha
que a superfície tinha uma espécie de algo esponjoso. O musgo crescia ao longo
dos postes ferroviários. A escuridão havia se tornado mais densa agora, e a
lâmpada da zeladora cortava a luz um pouco mais à frente, lançando linhas
pretas ao longo da bainha de sua saia.
O pântano devia ter inundado algumas vezes, porque um alto lance de
degraus de madeira conduzia à porta da frente da casa. Em ambos os lados havia
um jardim preparado para legumes e ervas, mas a maior parte encharcada e
sufocada por juncos por enquanto. Mesmo sob o calor da luz da lamparina, a
casa era um lugar desolado, com paredes altas e escarpadas, pontas pontiagudas
e janelas estreitas. Mas quando a zeladora abriu a porta da frente, o calor
começou. Dentro, na generosa mesa da cozinha, havia uma cesta de comida e
instruções de como usar o forno (nem sempre os cavalheiros sabem). O fogão já
estava aceso, assim como todas as lâmpadas.
— A cesta deve servir bem, mas a aldeia fica a três quilômetros daqui —
disse a zeladora. Com a luz adequada, ela estava tão aguada que parecia que
poderia evaporar a qualquer momento. Ela e o marido apontaram para a lareira
ao mesmo tempo, ainda estranhamente sincronizados. — Mapas ao lado.
— Ao lado — seu marido se juntou.
— Bem — ela disse, e mais uma vez os dois sorriram para Mori. — Vamos
deixar você à sós!
Thaniel agradeceu e os despediu. Seis ainda estava no jardim, escrevendo seu
nome no ar com a faísca. A zeladora e seu marido logo não eram nada além do
orbe de sua lâmpada desaparecendo no cais. Uma vez no barco, começaram a
cantar; era uma música esquisita e sinistra, e eles começaram exatamente
juntos. Algo profundo nele reconheceu a língua, embora ele não entendesse.
Parecia antigo.
Thaniel olhou para Mori.
— Eles foram gentis. De um jeito “provavelmente guardado em um porão
há anos”.
Mori riu, e o coração de Thaniel doeu, porque Mori normalmente não ria tão
facilmente.
— Mas alegre.
Thaniel foi trazer Seis para dentro, porque o frio estava aumentando e uma
neve cinzenta começava a cair. Quando ele a trouxe de volta para a cozinha,
encontrou Mori de pé ao lado do fogão aberto, observando as chamas brincarem
sobre o carvão como se estivesse em transe.
— Tudo bem? — Thaniel perguntou, ansioso.
— Me observe não ter uma crise histérica, olha. — Ele colocou a mão perto
do fogo. — Talvez faíscas, talvez não, eu me importo? Nem um pouco. É por
isso que as pessoas brincam perigosamente com o mar, não é? Você não
consegue se lembrar de se afogar se tudo der errado. Cristo, você realmente teria
que tocar isso para sentir, não é... você se sente imortal o tempo todo ?
Thaniel riu e colocou a chaleira no fogo.
— Você pode dizer por que não funciona aqui? — ele disse.
— Não. Parece que… — Mori inclinou a cabeça. — É como se este lugar
fosse isolado. Existem outros como ele. Eles são sempre pequenos, apenas
alguns quilômetros quadrados aqui e ali. Há um na Rússia. Alguns no
Himalaia. Não sei por quê.
Thaniel olhou para trás, encantado, porque sem nenhuma memória futura,
Mori tinha sotaque. Obviamente, ele estava na Inglaterra há apenas alguns anos
e você não conseguia aprender inglês fluentemente do japonês e vice-versa em
muito menos de dez. Thaniel sabia disso dolorosamente. Ele sempre pensou que
estava ficando muito bom, mas então alguém lhe contou sobre política e tudo o
que seu cérebro pensou foi que ele gostava de polvos.
Seis estava olhando para a lareira. Como o fogão estava muito quente, a
grelha estava apagada. A neve já descia pela chaminé e se acomodava na grade.
— Tem um gato morto aqui — relatou ela. — Posso cutucá-lo?
Thaniel esperava algo horrível, mas era apenas um esqueleto enrolado entre
as cinzas na fogueira.
— Ah, não perturbe, pétala. Isso foi colocado lá por uma razão. As pessoas
por aqui costumavam fazer isso para afastar as bruxas.
— “Costumavam” significa semanas atrás? — Seis disse.
— Não, não, centenas de anos atrás.
— O calor já o teria deformado se estivesse aqui há centenas de anos.
Ela estava certa. Ele pensou na zeladoria, com sua canção antiga. Talvez
outras coisas antigas ainda estivessem vivas aqui também.
— Talvez seja apenas a coisa educada a fazer.
A neve manteve-se durante toda a noite. Thaniel sabia disso porque acordou
sobressaltado às duas horas da manhã no jardim.
Ele estava parado no portão, de frente para o lago negro, descalço na neve.
Deve ter sido o frio que o acordou. Ele não estava usando casaco, apenas
roupas de dormir, e o vento que sibilava entre os juncos era cortante. Ele olhou
para o chão, suas próprias mãos, o brilho da água, tentando dizer se isso era um
sonho especialmente realista ou se estava realmente acontecendo. Ele deu um
tapa no próprio pulso, com força.
Doeu. Acordado.
Nos poucos segundos que levou para ver que ele realmente estava do lado de
fora, que devia estar sonâmbulo, que a casa estava logo atrás dele, algo sob seu
coração se apertou cada vez mais, e agora se transformou em pânico, e ele estava
tremendo.
Ele correu de volta para casa e empurrou a porta com força, lembrou-se de
que todos estavam dormindo e fechou-a com muito mais cuidado. Ele teve que
ficar com a testa contra ela, tentando descobrir por que estava tão assustado.
Sonambulismo não significava que algo horrível estava errado com você; apenas
que você estava inquieto.
Depois da neve, o piso de ardósia estava quente.
— Você está bem? — Mori estava na escada. Ele pegou o cobertor grosso
dobrado sobre o corrimão e o estendeu, intrigado. Ele tinha um quimono preto
com faixa branca sobre suas roupas de dormir. Isso o fazia parecer como se
tivesse recebido ordens sagradas.
Thaniel pretendia rir e dizer, sim, tudo bem; uma coisa engraçada acabou de
acontecer. Ele disse:
— Não, acabei de acordar no portão e agora sinto que estou tendo um
ataque cardíaco.
Mori desceu até ele e colocou uma mão espalmada em seu peito, e esperou.
— Você não está. Isso costumava acontecer comigo quando meus irmãos iam
para a guerra. Você vai ficar bem. — Ele esfregou o braço de Thaniel. —
Sonambulismo, isso é novo, eu acho?
— Isso nunca aconteceu comigo antes.
— Devíamos tomar uma taça de vinho — disse Mori, vislumbrando. — Se
você está tendo problemas para dormir, então você deve ser adulto agora.
Finalmente. Isso é importante.
— Oh, você está velho e amargo — disse Thaniel, fraco de gratidão.
— E agora você também. Vamos. Vinho. — Mori o rebocou até a cozinha,
onde colocou Thaniel em uma cadeira perto do fogão. Ele pegou a pá de carvão
e raspou algumas das brasas ainda acesas em um copo, que deu a Thaniel para
segurar, depois um copo de vinho tinto da cesta da zeladora. Quando o fez, ele o
estudou em silêncio. — Você parece meio tom melhor. Você está?
Thaniel assentiu.
— Obrigado — disse ele suavemente. Ele segurou o copo de carvão contra o
coração. O sangue escorria por entre seus dedos.
Mori beijou sua testa. Thaniel avançou contra seu peito e se sentiu seguro
novamente, mas também envergonhado. Fora o tipo de beijo que se daria a uma
criança que se emocionou por causa de uma aranha.

De manhã, tudo estava branco. Seis desceu as escadas já de casaco e botas, e


ficou agitada até que Mori abriu a porta para ela.
Thaniel tinha crescido com muito frio o tempo todo, então ele estava
sentado perto do fogão com uma xícara de chá, sentindo-se grato por estar lá
dentro, sem intenção de sair, mas Mori estava olhando para tudo como se fosse
Magia.
Ocorreu a Thaniel que ele poderia vencer uma guerra de bolas de neve se
Mori não soubesse quando as bolas de neve chegariam.
— É uma pena não dar um passeio também — disse ele alegremente.
O pântano era diferente à luz do dia. Ele se estendia para sempre, mudo sob
uma gaze de névoa.
O lago era tão claro que você podia ver todo o caminho. No fundo havia uma
estranha impressão de ondas que poderiam ser campos de ervas daninhas
escuras. Mas havia outras coisas também, brilhando ao redor dos suportes da
passarela. Moedas e formas maiores que poderiam ser facas ou joias e ossos. Ele
podia até distinguir os dentes no que tinha quase certeza de que era a
mandíbula de um cavalo.
Instantaneamente, ele odiou. Ele nem gostava de passar por cima dela na
calçada. Mori estava contando a Seis que às vezes, em lugares antigos, as pessoas
deixavam oferendas na água – todo mundo tinha esquecido o quê, mas eles
tinham – mas Thaniel mal ouvia o que eles diziam. Por mais linda que fosse, a
água parecia morta. Todo o seu esqueleto ansiava por fugir disso. O que era
idiota. Ele nunca havia decidido em sua alma que um lugar era ruim antes, até
hoje ele teria dito que o tipo de pessoa que decidia coisas assim provavelmente
também era propensa a fantasias brilhantes e concursos de ortografia com O
Outro Lado. Deve ter sido a noite perturbada.
Assim que desembarcaram, Seis disparou sozinha, mas foi fácil vê-la, seu
casaco era vermelho brilhante. Não havia árvores, nem sebes, nada; apenas a
grama e os juncos curvados pela neve, as poças negras e farrapos de névoa presos
na grama espetada do pântano. Thaniel pensou que se sentiria melhor saindo da
água, mas não o fez. Ele era a coisa mais alta aqui. Foi uma exposição como
nada mais.
A neve estava imaculada e estalava sob suas botas. Thaniel continuou
olhando para Seis e logo descobriu que não sabia a que distância ela estava.
Desconforto se formou em seu estômago novamente. Ele gritou para ter
cuidado, que nem todas as coisas de aparência sólida eram sólidas, mas ela já
havia encontrado um pedaço de pau para testar o caminho. Ela saltou com vara
sobre uma piscina.
Mori tocou seu braço, lançou-lhe um olhar inocente, jogou uma bola de neve
nele e saiu correndo. Com o coração levantado novamente, Thaniel o perseguiu,
o que foi muito mais difícil do que ele imaginara, porque Mori era uma frota de
raposas e sem escrúpulos quando se tratava de armar emboscadas atrás de
bancos de junco.
Eles diminuíram a velocidade quando ouviram o canto.
Havia uma estação de pesca, cinza na névoa.
A estação era composta por alguns barcos e algumas pessoas acomodadas em
um cais de madeira, penduradas com velhas estrelas enroladas em estofamento
para amortecer os barcos quando eles batiam nas amarras. Havia armações altas
de madeira dentro de um galpão semi-coberto, onde fumavam ou salgavam o
peixe ou ambos, e uma fileira de meninos e meninas mais novos fatiando a pesca
nova. As facas fizeram um barulho escorregadio. Eram as crianças que
cantavam, a mesma música da zeladora e do marido.
Todos notaram Thaniel e Mori ao mesmo tempo, e todos olharam ao mesmo
tempo. Thaniel sentiu aquela pressão de pânico da noite contra sua caixa
torácica novamente. Ele esteve lá duas vezes quando as pessoas brigaram com
Mori na rua. Nunca pareceu incomodar MoriIV, mas se enroscou no esterno de
Thaniel.
Todo mundo sorriu.
— Bom dia! — Foi um refrão perfeito.
— Vocês estão ficando na casa de hóspedes? — alguém disse.
— Só por uma semana — disse Thaniel, chocado consigo mesmo, porque
pela primeira vez entendia a desconfiança de Mori em relação a pessoas que
eram boas demais. Ele sentiu como se eles quisessem alguma coisa. Ele ordenou
a si mesmo para ter um controle. — Feliz Natal.
— Feliz Natal — todos concordaram juntos. Pode ter sido a névoa, mas,
como a zeladora, suas cores estavam todas desbotadas. Eles tinham cabelo preto,
mas era um preto diluído, nada parecido com o de Mori.
Seis apareceu em seu cotovelo. Ligeiramente à sua frente, ele notou. Ele
segurou seu ombro para tentar prometer que estava tudo bem.
— Venha experimentar nossa famosa água — disse uma das mulheres, ainda
sorrindo. Quando ela se aproximou, havia algo de faminto no sorriso. — Bom
para a sua saúde.
— Eu... absolutamente não vou fazer isso — Seis disse, e voltou pelo
caminho de onde viera.
Thaniel estremeceu.
— Seis, não seja rude, volte — disse ele, inteiramente para mostrar. Seis não
se ofendia com as mesmas coisas que as outras pessoas se ofendiam, ela
observou, então, sem esse quadro de referência, era como um jogo de
adivinhação e, pessoalmente, ela não achava que deveria ser o principal negócio
de sua vida tentar resolvê-lo. Thaniel concordava.
A senhora apenas riu.
— Gostaríamos, no entanto — disse Mori e, novamente, todos pareciam
extasiados.
Enquanto a senhora os conduzia até o cais, Mori estudou os barris de sal e
peixe, parecendo tão fascinado por eles quanto pela neve. Facas brilharam
quando os outros começaram a trabalhar novamente. Eram todos canhotos.
Thaniel engoliu em seco. O estalido das facas estava começando a fazer as raízes
de seus dentes arderem, assim como o estalido úmido das novas vísceras ao
bater nas pilhas nos baldes. E a maneira como todos olhavam para Mori –
estavam morrendo de fome.
Eles não estavam apenas pescando, ele via agora. As redes se contorciam com
enguias. Uma subiu pelo braço de uma garota.
A senhora afundou um jarro na água e serviu duas xícaras lascadas.
— Aí estão vocês, rapazes. À sua estadia.
Todo o corpo de Thaniel reagiu como se ela tivesse lhe dado uma xícara de
larvas. Ele não esperava por isso, e deve ter sido visível, porque Mori deu a ele
um olhar inquisitivo. Ele balançou sua cabeça. Incrível o que uma noite de sono
ruim pode fazer.
A água estava gelada e amarga. Não havia nada de ruim nisso, mas Thaniel
quase engasgou ao senti-la descer.
Ambos disseram que estava excelente, agradeceram à senhora e se
desculparam caso perdessem Seis.
Thaniel pegou o braço de Mori assim que eles estavam bem dentro da névoa,
querendo estar perto de alguém que não estivesse com aquele olhar faminto.
— Há algo estranho neles. O jeito que todos eles... eles eram todos canhotos,
você viu isso?
Mori assentiu.
— Talvez seja hereditário. Num lugar como este, todos serão parentes.
Thaniel tentou descobrir por que se sentia – ainda se sentia – tão arisco. Ele
queria dizer a Mori que não gostava do pântano, que parecia morto ou doente,
mas não tinha nada para explicar por que se sentia assim e, mesmo que tivesse,
Mori interpretaria isso como um pedido para ir para casa. E então,
independentemente do que Thaniel tentasse dizer, eles estariam de volta no
trem amanhã. Ele não ia deixar Mori voltar para Londres só por causa de um
pressentimento.
Ele tinha ficado quieto por muito tempo. Mori o observava.
Ele agarrou o primeiro pensamento que se apresentou.
— Ou talvez eu não esteja acostumado a receber sorrisos tão maníacos.
— Estou feliz que você disse isso — disse Mori. — Eu não gostava de dizer
nada, todas as pessoas brancas parecem meio lunáticas-albinas-trolls, então é
difícil dizer quando esse é particularmente o caso.
Thaniel o empurrou, ciente de que Mori estava provocando-o para distrair as
coisas, e feliz por isso, porque estava funcionando. Ao redor deles, a neve se
espalhava.
Ele acordou na costa da ilha no meio da noite.
Quando olhou para trás, o portão do jardim estava a cerca de cinquenta
metros atrás dele e, novamente, teve quase certeza de que foi o frio que o
acordou. A neve era espessa e a escuridão era profunda; ele mal conseguia ver o
barco ao lado dele. Em Londres, sempre havia luz; os postes de luz, as luzes
elétricas ao longo de Knightsbridge, lanternas e velas nas janelas, e naqueles
dias estranhos e densos que antecederam a estação do nevoeiro, toda a cidade
tornava a parte inferior das nuvens laranja à noite. Nada disso aqui. Parecia
selvagem, aqui. As estrelas eram enormes e brilhantes, mais claras do que ele já
tinha visto; tão clara quanto aquelas moedas e ossos na água.
Ele não tinha casaco, mas desta vez estava de sapatos. Ele conseguiu rir. Pelo
menos seu subconsciente, ou o que quer que fosse que queria fazer caminhadas à
meia-noite, tinha algum bom senso. Ele pressionou um punho contra o coração
e empurrou com força enquanto começava a voltar para casa, tentando persuadir
aquele aperto de pânico a diminuir.
Não diminuía.
Ele se pegou imaginando onde teria ido parar, se sua mente adormecida
tivesse vencido. Talvez ele estivesse tentando ir embora.
Ele passou a mão no rosto. Ele teve que se perguntar se tudo isso não eram
apenas anos de constante mal-estar surgindo agora que ele relaxou. Ele amava
sua casa, amava a Rua Filigree, em Londres, mas sempre havia aquela voz podre
em sua cabeça que dizia para ter cuidado, nunca tocar em Mori quando alguém
pudesse ver, nunca olhar para ele por muito tempo ou falar com muita
delicadeza. Ele nunca tinha visto o interior de um asilo e nunca quis, mas o
asilo esperava no final desta estrada, portões de ferro abertos.
E agora, pela primeira vez em anos, apesar de todo aquele vasto espaço
aberto, não havia ninguém para vigiar.
Tudo isso, o sonambulismo e a estúpida ansiedade sobre o lago, era como ter
uma dor de cabeça quando você chegava em casa depois de um dia cansativo de
trabalho.
Em algum lugar do pântano, alguém cantava a mesma música que a
zeladora.
O dia seguinte era véspera de Natal. Havia um piano na sala de estar, então
Thaniel ficava lá de manhã e tocava canções de natal enquanto Mori e Seis
faziam um pequeno bolo de Natal. Eles estavam discutindo se os humanos
realmente deveriam ou não ingerir moeda (ele perguntou se ela queria mexer na
moeda de sixpence1). Thaniel estava em um novo estado de espírito meio
meditativo, no qual podia ouvi-los e tocar a música ao mesmo tempo. Entre
essas duas coisas, seus pensamentos pareciam estar finalmente se equilibrando.
Ele não tinha contado a Mori sobre sonambulismo novamente, e ele estava feliz
agora. Ele passou bastante tempo em pânico inutilmente com Mori, que devia
estar se sentindo mais como seu pai do que como seu amigo.
Houve uma pausa. Então:
— Pai — disse Seis, com a voz monótona e estranha.
— Estou ouvindo, pétala — Thaniel prometeu.
— O que você está tocando agora?
— É uma canção de natal.
— Não, não é.
Ele não entendeu, mas então, como se estivesse acordando, ouviu; ele estava
tocando a música que o zeladora havia cantado, e que o estranho também
cantava durante a noite. Em sua cabeça, as palavras também tocavam. Eram
sobre uma garota cuja irmã havia se transformado em enguia. Ele não poderia
dizer como ele sabia disso. A linguagem era muito diferente para adivinhar.
— Devo ter aprendido — disse ele, mas era mentira. Ele não poderia ter
aprendido tão bem.
Seis olhou para ele por um longo tempo, sem expressão, depois saiu sem dar
uma explicação. Mori se inclinou para o lado para ver onde ela estava indo. A
porta da frente abriu e fechou.
— Eu a aborreci? — Thaniel perguntou impotente.
— Acho que ela não queria que a música ficasse na cabeça dela — disse
Mori. Ele sorriu um pouco. — Ela tem que tomar cuidado com o que escuta,
não é? Tudo fica tão alto, uma vez que está lá.

Tendo decidido que Seis voltaria quando ela quisesse vê-los novamente, eles
foram colocar o bolo no forno e lavar a louça. Mori colocou a mão embaixo da
torneira enquanto a água quente começava a sair do fogão, esperando sentir a
diferença, como se fosse uma espécie de mágica. Claro que ele só saberia quando
estava quente, normalmente. Thaniel assistiu ele e pensou, novamente, como
ele parecia muito mais feliz e muito menos quebradiço.
Ele estava até cantarolando. Era a canção do zeladora novamente.
— O que isso significa, você acha? — Thaniel disse depois de um tempo. —
Quero dizer que é sobre uma garota e uma enguia, mas não sei por que penso
isso.
— Hm?
— A letra da música.
— Que música?
— A que você estava cantando agora há pouco.
Mori parecia inquieto.
— Eu não... sabia que estava. Desculpe. — Ele piscou duas vezes por causa
da água com sabão, então se afastou da pia, os ossos dos ombros endurecendo.
Então ele era seu eu normal, quebradiço como vidro. — Há quanto tempo você
está parado aí?
Thaniel olhou para ele por muito tempo e se pegou tarde demais.
— Um tempo. Você está…?
— Desculpe. Desculpe. Estou apenas... confuso. — Mori puxou a manga
sobre os olhos como se houvesse gaze sobre eles. — Pode ser que estar aqui no
calor esteja me transformando em um vegetal.
Thaniel ainda sentia arrepios nas costas.
— Bem, vamos lá fora um minuto.
Mori deve ter percebido que ele estava inquieto porque, horrivelmente,
guardou seu próprio mal-estar e brilhou. Thaniel nunca soube que era um
mentiroso tão bom.
— É hora de construir um boneco de neve, eu acho.

Eles construíram um, bem perto da horta onde a neve estava amontoada no alto
do muro do jardim. Além dela, as pegadas de Seis levavam à calçada. Mori o viu
olhando naquela direção e tocou seu ombro.
— Ela está bem.
— Eu sei — disse Thaniel. Ele balançou sua cabeça. Ele queria, novamente,
dizer que o lago parecia errado, que ele não queria deixar Seis brincar perto dele
e, novamente, ele sabia que Mori o levaria direto para casa, e ele se sentiria
envergonhado e estúpido. — Eu, hum... eu não dormi, acabei do lado de fora de
novo.
Mori assentiu ligeiramente. Não era nada tão doentio quanto pena, apenas
reconhecimento. Ele deixou o silêncio ficar aberto. Ele estava descansando um
ombro amigavelmente contra o boneco de neve.
— Acho que sou mais um rato doméstico do que pensava — disse Thaniel,
fazendo o possível para rir. — Parece que entrei em profundo choque psíquico
agora que saímos de casa. Vergonhoso. — Ele colocou outro punhado de neve
no boneco de neve para suavizar um amassado.
Mori chutou seu tornozelo, bem de leve.
— Thaniel. Algo estranho deve estar aqui, nós sabemos disso. Eu não tenho
ideia do que é. Tudo o que sei é que desliga a metade superior do meu cérebro.
Talvez esteja fazendo algo com você também. Algo sério o suficiente para fazer
você sonâmbula. Se for esse o caso, então dane-se tudo isso. Quer voltar para
Londres?
— Não! Não, não se atreva. Estou apenas nervoso. De qualquer forma, não
haverá mais trens. Amanhã é Natal.
— Seis está de volta — disse Mori, passando pelo boneco de neve.
Como um cachorrinho, seu ritmo natural era uma corrida rápida. Em vez de
abrir o portão baixo, ela saltou, e então parou quando os viu.
— Bom salto — disse Thaniel, caso ela estivesse preocupada que eles
desaprovassemV.
— Por que você fez isso? — ela perguntou. Ela estava olhando além deles,
para o boneco de neve.
— Pessoas... fazem bonecos de neve, pétala. — Ele realmente nunca fez um
com ela?
— Sim — ela concordou — mas isso não é um boneco.
Thaniel olhou para trás.
Ela estava certa. Não era um boneco. Era algo que ele nunca tinha visto
antes. Uma grande aranha se inclinava sobre eles, uma forma que ele não
conhecia, mas também conhecia, na mesma parte de sua mente que conhecia a
canção do zeladora.
Ele não era um covarde, ele sabia disso. Mas ele nunca tinha visto uma coisa
que não pudesse entender, e um terror como ele nunca havia sentido antes
serpenteou em torno de todos os seus órgãos e apertou mais forte do que ele
sabia que poderia.
Mori cortou um braço na perna mais próxima e ela desabou. Mas partes dela
ainda mantinham aquela forma horrível. A neve fez um barulho de relincho ao
se assentar, estalando e viva.
Seis levou os dois para dentro.

Ele encontrou um panfleto com os horários dos trens no escritório, mas havia
apenas um trem por dia, e partia às nove horas da manhã. Certo de que não
queria passar mais uma noite ali, encontrou o mapa e procurou a próxima casa.
Quão grande Mori disse que o efeito deste lugar era? Alguns quilômetros
quadrados – eles não teriam que ir muito longe para fugir dela.
Uma aldeia foi marcada, um pouco além de onde eles encontraram a estação
de pesca, mas isso estava definitivamente dentro dos poucos quilômetros
quadrados.
A única outra casa no mapa era um lugar minúsculo no pântano; a casa de
um caçador ou de um carvoeiro. Mas ficava a dez quilômetros de distância, na
neve cada vez mais profunda, e não havia estradas nem pontos de referência. O
mapa não marcava as poças pantanosas. Eles não devem ter sido permanentes o
suficiente.
Lentamente, ele percebeu que alguém estava cantarolando, e então que era
ele. Era a canção da enguia de novo. Ele sabia qual palavra significava enguia
agora, qual palavra significava floresta, embora nunca tivesse ouvido a língua
até que eles chegaram aqui. Ele também sabia qual era o idioma. Era inglês
como quando os vikings chegaram.
Ele levou o mapa até a cozinha, onde Mori e Seis estavam perto do fogão
aberto.
— Acho que devemos tentar — disse ele depois de mostrar a casa no mapa.
— É longe, mas ainda há luz do dia.
Mori estava balançando a cabeça.
— Na neve, através do pântano, sem estrada; como vamos encontrá-lo? Só
vou me lembrar de como chegar lá quando estivermos bem longe daqui.
— Mas algo está errado. Realmente errado.
— Concordo. Mas nada aqui nos machucou. Mesmo que não nos percamos,
quase dez quilômetros com este tempo não será seguro. Não sei até onde Seis
pode ir, e se ultrapassarmos aquela casa... escurece antes das quatro agora. Já é
uma hora. Acho que seria mais seguro passar a noite aqui e ir embora pela
manhã. Isso nos dá muito mais tempo com a luz. — Ele olhou para Thaniel. —
A menos que você pense...?
Thaniel afundou em uma cadeira.
— Não. Não, você está certo. Nada nos machucou aqui.

Todos eles ficaram no mesmo quarto naquela noite. Eles jogaram cartas até
tarde da noite, as lâmpadas acesas e um fogo aceso, todos sentados na cama de
Thaniel, Seis enrolada em um cobertor. Ela adorou; eles normalmente não
podiam jogar cartas com Mori, porque ele sempre sabia quais cartas viriam,
então ele estava entediado até os fins dos tempos. Thaniel se viu relaxando nisso
também. Mori estava certo, nada de perigoso havia acontecido e, apesar
daqueles lapsos, da música, da aranha da neve, ainda era bom vê-lo rir das cartas
e perder para uma Seis triunfante.
Ele adormeceu com uma mão fechada sobre a de Mori. A noite tinha sido
tranquila e todos tinham acertado o relógio para tocar às sete da manhã.
Enquanto ele se afastava do pensamento normal, uma parte afiada dele exigia
saber por que ele não estava amarrando o pulso em algo para evitar.
sonambulismo, mas a lógica do sonho já havia assumido o controle e ele não
conseguia se lembrar por que estava preocupado com o sonambulismo.

Ele acordou com a água do lago congelada até os ombros.


Estava tão frio que queimava, o ar acima da água parecia uma sauna quente,
e cada átomo dele ficou rígido com o choque. A superfície estava congelada com
uma polegada de profundidade; ele estava em uma piscina irregular. Ele pegou
as bordas e se arrastou para fora, o que foi muito mais difícil do que ele pensava
porque a força em seus braços havia morrido. Ele teve que se deitar no gelo e
tentar respirar. De alguma forma, o gelo parecia quente. Quando ele ficou de
quatro, seu coração estava martelando.
Estava tentando afogá-lo. Fosse o que fosse – ele estava a quinze centímetros
de afundar.
Ele se levantou e tropeçou, e teve que parar porque o gelo rangeu. Demorou
muito para chegar à margem, e mais ainda para voltar para casa no escuro. Suas
roupas começaram a congelar no caminho, os vincos se tornando sólidos em seus
cotovelos.
A porta da frente estava entreaberta.
Ele correu e quase se chocou contra Mori, que era rápido mesmo quando não
conseguia se lembrar à frente, e deu um passo brusco para o lado. Sua lâmpada
balançou.
— Thaniel! Estávamos prestes a procurá-lo — disse ele, curvado. — Cristo,
você está encharcado... o que...?
— O lago, acordei no maldito… olá — acrescentou Thaniel rigidamente,
porque a zeladora acabava de chegar da cozinha, com outra lâmpada.
— Ela veio verificar se estávamos bem — disse Mori. — Oportunamente.
— No meio da noite? — Thaniel perguntou, ouvindo sua própria voz virar
vapor.
— É quando o sonambulismo pode te afetar um pouco — ela disse
gentilmente. — Eu teria vindo ontem, mas esqueci completamente. Você
deveria se aquecer.

Thaniel desceu até eles depois de se lavar e trocar de roupa. Ele ainda estava
congelado, mas queria saber o que ela tinha a dizer mais do que queria se
aquecer. Mori, porém, pendurou um cobertor perto do fogão e o entregou
quando Thaniel ocupou a cadeira sobressalente à mesa.
— É sempre assim — disse a zeladora, não como se isso a incomodasse. Ela
estava segurando uma xícara de chá. Mori colocou um nas mãos de Thaniel
também. — Este lugar leva as pessoas de forma estranha. Devia ter deixado um
bilhete, mas não queria assustar vocês. Não é nada para se preocupar. Alguma
coisa na água, sabe?
Thaniel olhou para baixo em seu chá.
— Não é apenas sonambulismo — disse ele. — Nós, ah… — Ele olhou
para Mori, sem saber como continuar.
— Parece que estamos esquecendo muita coisa — afirmou Mori.
— Oh, sim. Mas não foi por isso que você veio? — ela disse. — As pessoas
vêm aqui para esquecer. — Seus olhos azul-água deslizaram para Thaniel. —
Mas você não fez isso, não é? É melhor não vir aqui se não quiser dar algumas
lembranças ao lugar. — Ela parecia severa.
Ele não sabia o que queria dizer.
— Mas todas as memórias deste aqui! Que banquete. — Ela sorriu para
Mori. — Há muito mais futuro do que passado. Um milagre que caiba tudo em
uma cabeça. Não vemos um de vocês há... ah, mil anos. — Ela ainda estava
sorrindo, e era o mesmo sorriso faminto que a senhora enguia havia dirigido a
eles. Eles não. Mori. — Desde que o santo veio.
Thaniel se levantou rápido e parou quando viu que Mori não tinha. Mori
ainda estava sentado, apenas observando-a como se ela estivesse falando
normalmente.
— Achamos — disse o zeladora a Thaniel — que você deveria voltar a
dormir e parar de tentar levá-lo embora. — Ela inclinou a cabeça para ele. —
Achamos que você deveria voltar a dormir e se afogar no lago.
Thaniel respirou fundo para dizer que ela estava louca, mas o que quer que
ela fosse, o que quer que fosse, as palavras tinham peso. Ele estava com sono. Ele
estava desesperadamente cansado, e agora que ela havia dito isso, dormir parecia
uma ideia maravilhosa.
Houve um baque surdo que era Seis descendo as escadas.
A zeladora sorriu para ela.
— Achamos que você também deveria ficar conosco, pequenina. Você se
lembra de tudo muito bem, não é? Tudo alto e agudo. Essas são memórias com
as quais se pode cortar um homem.
A voz soava errada e, em estágios graduais, como gema de ovo escorrendo
por sua espinha, Thaniel percebeu que era porque ela estava falando em perfeita
sintonia com Mori agora. Ambos estavam observando Seis.
Seis olhou para todos eles. Thaniel estava paralisado e em algum lugar no
fundo de sua alma, ele poderia dizer que precisava se mover e correr e levar
Mori e Seis para longe agora, mas ele não podia. Um peso imenso se arrastava
por toda a sua mente. Ele podia sentir que estava prestes a cair no sono bem
aqui na cozinha, e então, Deus, depois disso – depois disso, essa coisa o levaria
de volta ao lago.
— Não, nós não estamos fazendo isso. Vista o casaco — Seis disse a Thaniel.
— E traga Mori.
— Não — disseram a zeladora e Mori. — Você deveria ficar conosco.
— Não — Seis disse solenemente. — Eles são meus e você não pode ficar
com eles, então cai fora.
Thaniel sentiu o que quer que o estivesse puxando vacilar. Foi o suficiente
para se sacudir e colocar a mão na lateral da chaleira. A queimadura o acordou
como um foguete e, enquanto ele sibilava de dor, a zeladora gritou e apertou a
mão também.
Mori voltou. Thaniel viu isso acontecer. Ele voltou aos seus próprios olhos.
Seis empurrou o casaco de Thaniel em suas mãos e puxou Mori para a porta.
A zeladora apenas ficou sentada e os observou, cantarolando.

Eles estavam certos antes; era difícil andar na neve, mesmo com roupas pesadas.
A neve os arrastava, assim como a coisa do lago. A zeladora não os seguiu; ela
não precisava. Fosse o que fosse, estava na neve e na água. Thaniel sentiu como
se estivesse tentando pensar através do melaço. Ele emergiu e não conseguia se
lembrar do que estava fazendo aqui no escuro. Seis colocou um diamante aceso
em sua mão.
— Concentre-se ou vai queimar você — ela disse a ele.
Ele olhou para a chama crepitante.
— Seis, como é que você não… — ele perguntou, e até para si mesmo,
parecia grogue.
— Sou conectada de forma errada — disse ela. Era a voz mais velha que ela
já soara, e não era orgulhosa, apenas triste. Parte de seu coração partiu. — Fui
mal feita, no abrigo.
— Seis, você parece exatamente certa para mim — Mori disse a ela. Ele
estava tremendo.
— Se não chegarmos a algum lugar quente logo… — Thaniel sussurrou.
Ele não conseguia sentir as mãos. Uma partícula de cinza quente do diamante
pousou em seu pulso e, novamente, a pequena queimadura o acordou ainda
mais.
— Assim que eu me lembrar direito de novo, ficaremos bem — disse Mori,
mas parecia assustado, e nenhum dos dois disse em voz alta que, pelo que
podiam dizer, estavam andando em círculos. Aqui e ali no pântano agora, outras
pessoas cantavam, todas perfeitamente no tempo. Alguns estavam muito
próximos.

Thaniel não sabia o quão longe eles foram, no final. Eles saíram em uma
estrada, com meio metro de neve, e ele sentiu como se não pudesse andar mais –
tinha se sentido assim pelo que pareceram horas – quando Mori lembrou para
onde ir. Havia uma casa de campo na alameda seguinte. Eles nunca teriam visto
da estrada, porque não havia luzes e ninguém estava lá. Mori arrombou a
fechadura e apressou Thaniel e Seis para dentro e, em um minuto, as fogueiras
estavam acesas e duas chaleiras foram colocadas para ferver.
— Nunca me senti tão estúpido — disse Mori quando todos estavam
sentados com as mãos na água quente.
— Eles vão nos seguir?
— Eles não podem — disse Mori, com uma risada ácida. — Se eles
partirem, eles perceberão que suas memórias se foram. Eles vão fugir. Não
haverá mais comida para essa coisa.
— É como uma armadilha de mel — disse Thaniel calmamente. A sensação
estava queimando em suas mãos, e o bom senso estava queimando em sua
cabeça. — O esquecimento. Para... pessoas como você. Por que você não
conseguia se lembrar disso, antes? Quando você ainda podia...?
— Não sei. Eu sinto muito. — Mori olhou para Seis. — Obrigado — ele
disse a ela. — Você foi espetacular.
Ela balançou as pernas e chutou os calcanhares contra a barra da cadeira e
deu de ombros alegremente. Mori deu a ela seu relógio. Ela o abraçou, radiante.

A casa era inteiramente ele mesmo. O azevinho ainda estava lá, as lâmpadas, e
pregado na porta da frente havia um bilhete irado da sra. Haverly, dizendo que
o polvo de estimação de Mori havia passado pela porta do gato de novo e
roubado todas as colheres de chá. Sentindo-se como se nunca mais quisesse sair
de casa, Thaniel ficou até o Ano Novo e então, relutantemente, teve que voltar
ao trabalho. Após a amistosa inclinação das madeiras medievais em casa,
Whitehall era sombria e fria.
— Bom Natal? — o chefe de seção sorriu ao entrar.
Thaniel teve que fazer uma pausa. Ele estava prestes a dizer "agitado", mas
agora que estava pensando nisso, não conseguia se lembrar por que queria dizer
isso. Tinha sido o oposto. Na verdade, ele não conseguia identificar nenhuma
lembrança particular do Natal. Os dias em casa correram juntos em um brilho
geral de vinho quente e luz do fogo. Ele tinha uma estranha eco-memória de
um trem e uma longa viagem, mas devia estar confundindo isso com algum
outro Natal.
— Adorável — disse ele. — Não fizemos nada.

Nota I da autora. Eles eram um tipo acidental de família. Ela costumava trabalhar para Mori,
contratada pelo asilo local, mas um dia ele simplesmente não a levou de volta para lá e agora ela
morava no sótão. Ela disse que ficaria feliz em adotar os dois permanentemente, se
permanecessem educados e quietos.

Nota II da autora. O que Mori lembrava eram futuros possíveis. A princípio, Thaniel pensou que
isso deveria ter sido reconfortante, porque o próprio fato de futuros possíveis significava que
nada estava gravado em pedra. Se Mori se lembrava de ter sido atropelado por uma carruagem,
isso não significava que certamente seria; apenas que havia uma chance vívida disso. Mas a
perspectiva de Mori era que, se você tivesse que passar a vida lembrando como era ter caído da
escada naquele instante, sido assassinado ou gravemente incomodado de outra forma, seria um
milagre se você não estivesse com os nervos em frangalhos. final de uma semana. Mori não era
propenso a ser destruído e, geralmente, era impossível dizer se algo terrível acabara de atingir
sua memória; ele tinha uma daquelas almas de ferro que tinham muito mais em comum com
um transatlântico de luxo inafundável do que com as frágeis escunas nas quais a maioria das
pessoas estava presa, mas ele disse sombriamente que, mesmo assim, sempre havia icebergs.
Nota III da autora. A tabela das Coisas Significativas era uma das vantagens de viver com um
clarividente. Mori anotou as coisas conforme se lembrava delas — um possível suicídio no
metrô amanhã de manhã, sob chuva torrencial. Havia uma coluna separada para preocupações
de apenas seis. Terça-feira: a senhora Jenkins pode anunciar uma visita escolar espontânea ao
biotério.
Seis pensaram que a senhora Jenkins deveria ser morta por causa da viagem espontânea.
Demorou um pouco para Mori negociá-la para uma brincadeira de vingança com um pouco de
açúcar de confeiteiro. Thaniel provavelmente deveria ter intervindo e apontado que a fabricação
primitiva de bombas não era algo que as pessoas normais ensinavam a seus filhos, mas ele
gostou demais dos experimentos no jardim.
Nota IV da autora. Que arranjou o futuro do ofensor de tal forma que envolvesse cair
imediatamente no Tâmisa.

Nota V da autora. A professora Jenkins na escola parecia acreditar que qualquer tipo de
condicionamento físico era impróprio para uma dama. Isso deixou Mori perplexa, cuja avó havia
cavalgado para a batalha com suas irmãs e decapitou uma delas em vez de deixá-la ser tomada
pelo inimigo. Thaniel suspeitava que Mori ficaria secretamente orgulhoso se Seis tivesse
decapitado a Senhora Jenkins.
1. É uma pequena moeda de prata que foi usada na Grã-Bretanha antes do dinheiro decimal.
LILY WILT

Jess Kidd
O jovem Walter Pemble, o melhor fotógrafo memorial atualmente empregado
pela Sturge & Sons (estúdio fotográfico, retratos de primeira classe tirados em
todos os climas, cartões postais, armários, lisos ou coloridos na mais alta forma
de arte. Todas as fotos permanentes e garantidas para durar o teste do Tempo,
Grupos Teatrais, Inválidos, Os Recentemente Expirados, Crianças, Residências,
Hipismo, etc., Mestres de Todos os Avanços Conhecidos e Desconhecidos em
Moda e Método), apresenta-se em uma casa em Hanover Square na hora
marcada.
Ele é levado perante o dono da casa.
O Sr. Wilt franze a testa de sua mesa. Pemble se curva e sorri
vitoriosamente. O Sr. Wilt encara Pemble com um olhar frio.
— Sem brincadeiras — diz o Sr. Wilt. — Sem tocar, olhar de soslaio ou se
esfregar contra o caixão. A Sra. Wilt pode acreditar que nossa querida filha
falecida é um objeto de casta veneração, mas eu sei o efeito que minha querida
Lily tem sobre as pessoas. Os fanáticos por dinheiro, como você, acima de tudo.
Pemble fica horrorizado. Ele cora até a raiz da barba.
O Sr. Wilt está satisfeito.
— E tira algumas dos visitantes, para posteridade.
— Visitantes, senhor?
— Abrimos às nove. Vá, vá.

Em uma moldura dourada, em um cavalete, do lado de fora da entrada da sala


de estar, Pemble vê a página do jornal da noite anterior com o obituário de Lily
Wilt. É escrito por um autor preeminente e convidado frequente para jantares
do Sr. e da Sra. Rumold Wilt. O preeminente autor transmite, em linguagem
evocativa, os arrebatamentos de admiração que experimentou enquanto
admirava a falecida. Em vida, Miss Lily Wilt tinha sido uma boneca. Na morte,
ela é nada menos que um milagre. Sua beleza grave e sublime. Sua expressão
enigmática. Sua casca mortal requintada e imaculada por processos naturais.
O preeminente autor declara que a falecida Miss Wilt é uma inspiração – a
perfeição, mesmo na morte, é possível! O poema impresso compara Lily a um
floco de neve, uma pomba aninhada, um cordeiro sonhador.
Uma visão que vale a pena ver, de fato.

No momento em que a vê, Pemble chora. Pemble nunca chorou antes, nem
mesmo quando bebê, nem mesmo um choro de parto.
Não é a tristeza que provoca as lágrimas do jovem, nem o medo, nem
mesmo a pena. Pemble viu sua cota de cadáveres. Pequeninos em caixões
vestidos de renda. Veneráveis anciãos em puro repouso. Pilares duros e próprios
da comunidade. Polidos e aninhados, os mortos são como as melhores colheres
guardadas até domingo.
Não, Pemble derrama suas lágrimas de admiração.
Sua visão fica borrada de modo que a aparição diante dele flutua, e até
mesmo brilha. Pemble ajusta algum mecanismo complicado em sua câmera e
observa novamente. Ele leva um momento ou dois para perceber que não é o
equipamento queestá com defeito; é ele mesmo.
Agora ele observa a pessoa não através da lente, mas a olho nu.
Sua auréola de cabelos dourados, seu corpo de flancos estreitos e vestido
branco. Suas palmas pressionadas juntas, como as de um mártir. Seu rosto –
uma santa em repouso! Embora não seja exatamente uma santa. Pois sua boca
ostenta o fantasma de um sorriso astuto e tem uma certa voluptuosidade de
lábios carnudos (as almas santas geralmente têm lábios finos com tendência a
bocas viradas para baixo).
Nan Hooley, empregada doméstica, observa da janela. Ela está esperando o
fotógrafo terminar, para que ela possa soltar as cortinas de veludo (escarlate
profundo, com borlas, oito vezes o peso dela) e devolver o quarto ao seu estado
de dia-noite. Então ela deve rolar o tapete para trás, assumir sua posição e
abaixar a cabeça enquanto o público mastigador de nozes passa para olhar
boquiaberto o caixão. Ela deve chamar o lacaio se alguém ficar emocionado. Então
ela deve cuidar do fogo, pôr a mesa para o almoço dos empregados, ouvir as
canções de natal e beber uma gota de alguma coisa e um pedaço de pudim de
figo, já que o Natal se aproxima e tudo mais.
Pemble tira o lenço do bolso e enxuga o rosto. Ele está suando, embora esteja
frio no quarto. Ártico. Apesar da inclinação melosa do sol de inverno entrando
pelas vidraças da janela aberta e da conflagração de uma centena de velas
brancas afiladas.
O ar é sólido e enjoativo com o perfume de lírios. Legiões deles. Eles chegam
enfaixados, aos montes, à porta do porão todas as manhãs, vindos de estufas de
todo o país. Lírios no auge do inverno! Com geada no chão e gelo nas janelas!
Suas flores homônimas exercem a mesma magia pura e inebriante da falecida
Lily, filha única do Sr. Rumold e da Sra. Guinevere Wilt, residentes de uma casa
de alto nível em Hanover Square, Londres. Uma casa afundada em luto. Os
espelhos estão cobertos e os pêndulos parados. As janelas estão fechadas e a
aldrava amarrada com crepe. A família fala em sussurros e os criados falam em
revirar de olhos.
Pemble mergulha e gira em sua câmera, avança e recua, e fica parado para
olhar. E olhar. E olhar.
A empregada dá uma tosse educada. Pemble pisca e retoma seu trabalho.
Nan nunca viu nada parecido, a estranha dança do Sr. Pemble com sua
engenhoca. Ele o toca com dedos cautelosos, como se ele pudesse morder ou sair
correndo da sala de estar. Com ar apologético, ele remexe em suas saias, às vezes
desaparecendo por baixo. Reaparecendo para franzir a testa, mover uma flor ou
uma mesa ocasional. Ela não deve saber que o Sr. Pemble é um artista e um
alquimista. Este jovem é capaz de captar a essência do falecido. O próprio corte
de sua bujarrona enquanto partem para sua última aventura. Aqui é um jovem
que lida diariamente com placas de vidro e luz, química e poeira cada vez
menores. Criar imagens milagrosas nas quais os mortos revivem, repousando
com um fino brilho de saúde, capturados em um estado de frescor, plenitude,
no auge da vida (qualquer idade que tenham) por toda a eternidade. Pemble
poderia capturar a última vibração da alma e preservá-la para a posteridade.
Só não hoje.
Hoje as mãos de Pemble tremem e sua cabeça gira e sua respiração é feita em
goles.
— Você poderia fazer a gentileza — diz ele à criada pendurada nas cortinas
— de me trazer um copo d’água?
Mesmo sem a empregada e com o quarto completamente vazio, ele sente: a
sensação enervante de que alguém o está observando.

Nan Hooley atravessa o chão da sala de estar de joelhos, varrendo folhas de chá
gastas. Essas coisas acontecem: um porta-retrato tomba, a sarjeta das chamas
das velas, uma brisa invernal bate em seus joelhos. Nan se agacha, escova na
mão. Ela franze a testa para o caixão, enfeitado com crepe preto. A madeira
polida embaça, como se com respiração. As letras aparecem, como se fossem
traçadas por um dedo.

L. I. L. Y

Nan se levanta e lança um olhar severo sobre o cadáver. Luminosa, mãos


juntas, oh, santa. Só que Miss Wilt nunca foi uma santa, não com aquela boca –
a sujeira que saía dela. Nan detecta um olhar astuto sob as pálpebras fechadas.
— Agora, fique quieta, senhorita — ela diz com firmeza. — Não vá
perambular.

Lá fora a luz faz questão de morrer. Telhados tatuados contra um céu laranja
esfumado. As ruas são uma gloriosa confusão festiva, castanhas quentes,
vendedores de laranja, lojas iluminadas à luz de gás, o tráfego interminável de
carruagens e ônibus, carroças e carrinhos de mão.
A casa de hóspedes da Sra. Peach, no entanto, está tão triste como sempre.
Uma casa alta, magra e cansada, com empenas franzidas e janelas com
correntes de ar. O hall de entrada está escuro e alguns graus mais frio que o
exterior.
Pemble sobe a escada rapidamente, seu equipamento amarrado às costas para
facilitar a subida. Ele pretende evitar a Sra. Peach esta noite.
A porta de seu quarto está aberta, seus pés batem no corredor.
— Sr. Pemble, uma palavra...
Pemble começa a andar rápido, chega a seus aposentos, e tranca a porta atrás
de si.
Ele tem uma pergunta ardente em sua mente. Ele acendeu o momento em
que ele deixou o lado da jovem morta e rugiu no inferno.
Como ele pode esperar fazer justiça a ela? Com suas claras de ovos e seus
banhos de nitrato de prata.
Ele pode capturar a beleza sobrenatural de Lily Wilt?
O domínio do sótão de dois cômodos de Pemble é assombrado pelo cheiro de
tripas e cebolas e afligido por inclinações erráticas do teto. Em casa, ele adota
uma inclinação, pois bate com a cabeça com frequência, nunca se acostumando
com a ponta e a inclinação das vigas nem com o enjoo das tábuas do assoalho. A
menor das duas salas é sua câmara escura.
É aqui que ele trabalha.
O papel embaça. Os químicos fazem uma nuvem.
Finalmente, ao romper da aurora, uma semelhança!
Pemble olha para a fotografia. Os lírios se arqueiam em seus vasos. As velas
diminuem. O adorável cadáver repousa–
Mas espere!
Pemble pega uma lupa, aumenta a luz do gás, examina a imagem.
Encostado na lareira, olhando exatamente para a câmera com um sorriso
torto, fica de pé…
Um truque de luz certamente? Um estranho acidente dos químicos?
Mas é ela. O narizinho perfeito e arrebitado, os lábios carnudos, a auréola de
cabelos louros!
Lily Wilt.
E não exatamente Lily Wilt.
Pemble respira fundo. A lupa treme em sua mão. Ele vê um rosto bonito.
Ele vê um corpo gracioso. Ele também vê um relógio de ormolu e um vaso
cheio de flores através daquele rosto e corpo.

Pemble retorna para a casa em Hanover Square. Ele luta em meio à multidão
que se aglomera e ganha acesso aos degraus da frente, onde admite ao mordomo
que, devido às complexidades e desafios do processo fotográfico, ele não
conseguiu capturar uma imagem satisfatória da Srta. Wilt.
Pemble é levado perante o dono da casa.
Pemble se curva e sorri fracamente. O Sr. Wilt olha para cima de sua mesa.
Ele ouve as desculpas de Pemble. Tal é a reputação de Sturge & Sons (por
nomeação para vários nobres e pessoas de alta qualidade) que outra sessão é
concedida.
— Esta é sua última chance, Pemble. Não vou interromper as exibições.
Pessoas ilustres vêm de longe para ver nossa querida Lily morta.
Pemble agradece profusamente ao Sr. Wilt.
O Sr. Wilt, com um rosnado, volta para seus cálculos.
Como a fama de Lily cresceu!
Uma fila constante de pessoas passa pelo pequeno caixão. Nan está pronta
para cutucar os enlutados se eles ficarem excessivamente emocionados.
Até Nan, com toda a sua sabedoria prática, admitirá que Miss Wilt
certamente parece milagrosa. Milagrosa da maneira que nenhum dos processos
naturais que você esperaria que ocorresse com um cadáver ocorreu. As
mudanças para a palidez, a coleção tempestuosa e a liberação de gases corporais,
o estalar dos olhos, o empurrar para fora da língua e todos os horrores que a
morte traz.
Uma velha permanece diante do caixão.
— Deus a abençoe! Ora, ela é uma santinha!
Atrás dela as pessoas se acotovelam, esticando a cabeça para ver.
A velha se lança para a frente com uma tesoura para cortar uma relíquia.
Nan chama o lacaio.

A sala de estar está vazia. O público foi conduzido para o retrato final de
Pemble. Nan trocou as velas, arrumou as flores e endireitou as borlas no tapete
turco. O Sr. Pemble monta sua engenhoca. Nan assume sua posição perto das
cortinas.
Pemble limpa a garganta.
— Você poderia fazer a gentileza de me trazer um copo d’água?
Pemble espera. Seu olhar fixou-se na lareira. Mas nenhuma visão espectral de
Lily Wilt aparece. Ele dá alguns passos até o caixão e olha para dentro. Ele toca
a ponta de sua colcha, então suas mãos, palma com palma em oração, como uma
criança. Elas são gelo. Ele se inclina e beija sua testa, enfeitiçado por sua beleza
polar. Seus lábios tremem com o contato.
Várias coisas acontecem: um porta-retratos racha na mesa ocasional, as velas
brilham em azul, risos tão frios e brilhantes quanto o início da primavera
enchem a sala.
E uma voz doce em seu ouvido.
— Olhe através de sua engenhoca.
Pemble assume sua posição em frente à câmera, enredando-se nas saias,
atrapalhando-se com o foco, quase desmaiando de medo e desejo.
Pemble não consegue parar para considerar os se’s, os porquê’s e os quê’s –
não com um espectro tão adorável se manifestando diante de suas lentes.
Oh, como ela se manifesta!
Desta vez ela não está perto da lareira, ela está inclinada alegremente sobre a
borda do caixão, soprando um beijo para ele, como uma garota em um
comercial de novela. Só que Lily Wilt é perfeitamente translúcida,
perfeitamente bonita.
Pemble corre para criar imagem após imagem.
O fantasma de Lily Wilt pairava diáfana sobre um sofá de dois lugares.
O fantasma de Lily Wilt parecendo radiante na palmeira da sala.
O fantasma de Lily Wilt, perto o suficiente para embaçar a lente da câmera,
se ela tivesse fôlego.
O fantasma de Lily Wilt, no escuro, atrás da lente, bem ao lado dele. Uma
explosão mineral congelante, ele estremece deliciosamente.
— Você parece saber lidar com essa engenhoca — ela sussurra. — Você deve
ser um homem de ciência e aprendizado.
Pemble fica lisonjeado.
— A fotografia também é uma arte, senhorita Wilt. A própria palavra
fotografia é derivada dos termos gregos para luz e representação por meio de...
— Sim, sim. Olha, eu tenho uma proposta para você. Se você puder colocar
meu espírito de volta em meu corpo, eu sou sua.
Pemble geme no escuro.
— Lily, querida!
— Estou cansada de ser um espetáculo. — Uma pequena falha na voz. —
Tem tanta coisa que eu nunca consegui fazer. — A voz fica tímida. — Como ser
uma esposa.
Os olhos de Pemble se enchem de lágrimas, desta vez de alegria.
Mas então a enormidade de seu pedido o atinge.
— Mas como?
— Algum truque com relâmpagos, idas a cemitérios, esse tipo de coisa, você
pode descobrir. Prometa que vai me salvar, querido, erm...
— Walter.
— Querido Walter.
Pemble assente.
— Eu prometo.
Começou a nevar. Grandes flocos gordos iluminados pela luz do gás, dançando e
girando. A neve roça nas vidraças. A neve cai nos telhados. A neve cai nos cílios
e narizes de crianças felizes. Pemble vira o rosto para o céu e é abençoado com
beijos suaves e gelados – como se saíssem dos lábios de sua querida amada
morta! Ele caminha levemente pela agitação das ruas de Londres. Como todos
os jovens amantes, ele se sente feliz e condenado, emocionado e apavorado. Ele
se delicia nas janelas decoradas com bugiganga e ramo. Ele se delicia com a
agitação dos meninos de rua roubando tortas quentes. Ele se delicia com a
procissão arbórea de pinheiros sendo transportados pelas ruas movimentadas.
Ele se delicia com as pessoas que passam, carregadas de pacotes e embrulhos.
O Natal está apenas a uma semana de distância.
Natal com Lily Wilt.
Passeando, conversando, compartilhando uma laranja, andando de ônibus,
caindo como cachorrinhos na cama (como Pemble cora com esse pensamento!).
Ele só tem a pequena, e possivelmente profana, questão de reunir o espírito
de Lily com seu corpo.

Ele começa cedo na manhã seguinte na biblioteca de empréstimos de Mudie.


Impulsionado por sua paixão por salvar sua amada, ele mal se deixa intimidar
pelo sagrado salão principal ou pelos funcionários da biblioteca com suas
sobrancelhas erguidas e olhares arrogantes. Ele ferve a cada tique-taque do
relógio. Ele fica irritado com cada solteirona hesitante. Assassinato em relação a
cada lacaio vagaroso que transportava reservas para as carruagens que
esperavam.
Finalmente, o livro está em suas mãos.
Como ressuscitar os mortos.
Em um beco próximo, Pemble arranca o embrulho de papel pardo e fica
consternado. Este não é um guia útil, é uma história sobre um capitão do mar
que retorna e uma viúva corajosa, mas solitária, ambientada principalmente em
Portsmouth.
Pemble poderia chorar de frustração. Então... revelação! Ele segue para Seven
Dials.
Pemble compra um Hot Toddy de uma garçonete maliciosa, acena com a
cabeça nervosamente para os clientes regulares e vai até uma mesa. Diz-se que
neste pub (que permanecerá anônimo) qualquer coisa no mundo pode ser obtida
por um preço. Qualquer coisa.
Atualmente, um homem astuto e um tanto sujo desliza para o assento à sua
frente e toca seu boné.
Em voz baixa, Pemble dá uma ideia de seu esforço não natural. Ele é
direcionado para Camden Town.
Em uma viela escura, em um corredor escuro, em um recesso escuro, está a
fachada de uma livraria sombria. A placa acima da porta diz:

NARCISSUS P. THOOMS
VENDEDOR DE LIVROS
CIENTÍFICO E ESOTÉRICO
TAXONOMIA E TAXIDERMIA

Pemble hesita um momento, fecha os olhos e evoca a adorável forma de Lily


Wilt. Fortalecido, ele entra.
A campainha da loja toca. Partículas de poeira dançam na súbita entrada de
ar.
À primeira vista, a loja parece vazia de proprietário. Pilhas de livros antigos
cobertos de teias de aranha cobrem todas as superfícies disponíveis. As
prateleiras sobem empoeiradas do chão ao teto. Atrás da mesa está uma coruja
de pelúcia usando um monóculo.
Pemble limpa a garganta várias vezes.
Movimento em um canto sombrio, e de uma verdadeira montanha de livros
surge um homem nu com uma barba impressionante.
— Suas roupas, senhor! — exclama Pemble.
— Estou absorvendo conhecimento — diz o homem serenamente. — Você
está procurando algo em particular?
Pemble retransmite sua busca nada invejável. O Sr. Thooms escuta com um
brilho doentio em seus olhos escuros. Vestido agora com um quimono de seda,
ele coça distraidamente a pele de animal de seu peito. De vez em quando, ele
balança a cabeça de forma encorajadora.
Quando Pemble conclui, o Sr. Thooms aperta sua mão com um aperto de
punição.
— Meu querido menino! — ele diz. — Você se desviou do caminho bem
iluminado para um mundo de ladrões e vendedores ambulantes, prostitutas e
trabalhadores, artistas, visionários e palácios de gim. Cheio de fedor, mesmo no
inverno rigoroso. Rico em clamores, todas as horas, com apelos e provocações,
lutas e amor.
— Para Camden, sim.
— Você veio em busca de conhecimento. Desejando sondar os próprios
segredos da natureza, dedilhar os mistérios da vida e da morte, em verdade,
assumir o papel de Deus. Você quer colocar suas mãos trêmulas em tomos
antigos e ocultos!
— Se não for muito incômodo.
Thooms parece estar imerso em pensamentos. Sua voz, quando chega, é
grave.
— Há uma maneira. Uma maneira profundamente perversa e perigosa. O
que é contra todas as leis de decência, moralidade e natureza.
Pemble emociona.
— Uma maneira que… — continua Thooms — quando combinada com
um pouco de truque cirúrgico, fará aquele adorável pequeno cadáver respirar e
suspirar e corar e tocar piano para deleite do seu coração.
— É realmente possível? — empreendimentos Pemble.
— É totalmente possível, meu caro, trazer Lily Wilt de volta à vida.

Enquanto o Sr. Thooms procura a edição exata do livro com os segredos da vida
e da morte, ele compartilha com Pemble sua própria história trágica.
Era uma vez, o Sr. Thooms tinha uma carreira muito diferente pela frente.
Seu tio-avô Thaddeus “Red” Thooms podia arrancar uma perna em menos
de dois minutos; seu pai, Theodore, poderia eliminar um tumor em um
minuto. Tal era o talento dessa ilustre família de médicos que, se você desse
uma faca de manteiga à avó de Thooms, ela arrancaria seus cálculos biliares
antes de servir o chá. A promissora carreira cirúrgica de Thooms foi
interrompida por um trágico caso do coração.
Ele se apaixonou pela mesa de dissecação.
Thooms faz uma pausa em suas lembranças e lança um olhar angustiado para
Pemble. Tal é a miséria, o horror e a angústia no rosto de Thooms que Pemble
não pode deixar de estremecer.
— O cadáver era de rara beleza, eu era um corajoso e ousado jovem. — Os
olhos de Thoms se enchem de lágrimas. — Algumas paisagens você não pode
deixar de ver, Pemble. Alguns atos você não pode desfazer.
Quando o volume em questão é encontrado, os homens compartilham uma
garrafa de clarete decente. Thooms embrulha em papel preto o livro
encadernado em couro de proporções monumentais e o entrega nas mãos de
Pemble.
Ele abre mão do dinheiro que Pemble conta para ele.
— Tenho apenas uma última pergunta antes de você partir. — Thooms
aperta o cinto de seu quimono e olha Pemble nos olhos. — O que você está
prestes a fazer não é para os fracos de coração, você deve ter certeza. É ela quem
você quer?
Pemble embala em seus braços o livro monstruosamente pesado contendo
todos os segredos da vida e da morte.
Lily Wilt. Lily Wilt. Lily Wilt.
A feitiçaria em seu nome e nela toda!
Lily Wilt é cativante.
Pemble evoca diante dele seu corpo deitado em doce repouso. Seus cabelos
dourados, o botão do nariz arrebitado, o seio esguio sob renda branca. Seus
braços macios, cílios pesados e unhas peroladas.
Ele evoca a voz dela, doce, doce e feminina.
Ele evoca seu espírito, brilhante e alegre.
Pemble é repentinamente atingido pelo sentimento indescritível de que
sempre amou Lily Wilt, sempre a adorou! Ela foi feita para ele e ele para ela.
— Sim — Pemble responde. — Lily é a única.

O trabalho é longo e difícil. O antigo tomo está aberto em sua mesa. Pemble
persegue segredos terríveis através de suas páginas amareladas. Os insights que
ele busca são ninfas escuras, eles flutuam para longe, assim como ele está perto
de agarrá-los.
Pemble não sai de seus aposentos por dias, falhando até mesmo em cumprir
seus compromissos fotográficos. Quando ele dorme, ele é atormentado pelo
mesmo sonho.
Não é um sonho bom.
Ele está em um lugar lotado em meio à multidão de jovens maltrapilhos. Há
um barulho de gritos, zombarias e zombarias. Há o cheiro de álcool velho,
tabaco usado e óleo de cabelo barato. Vagamente, Pemble começa a entender o
que está testemunhando; os homens que o cercam são estudantes de medicina,
este é um teatro de dissecação.
O silêncio cai.
Portas duplas são escancaradas e um corpo é colocado em maca no teatro por
duas cômodas corpulentas. Na maca está Lily Wilt. Pernas nuas, pés descalços,
o tronco coberto com um lençol, o rosto encovado e os cabelos emaranhados
como depois de uma longa doença.
Um cirurgião, de cabeça baixa, aba da cartola puxada para baixo, segue a
maca, pisando no ritmo. Os estudantes de medicina cantarolam um réquiem.
Lily é manobrada para a mesa, um braço branco cai, seu cabelo dourado se
espalha. Todos os jovens cavalheiros esfarrapados na sala suspiram e se inclinam
para a frente simultaneamente.
O cirurgião acena para seu assistente, que dá um passo à frente e arregaça as
mangas do cavalheiro. Um avental de açougueiro, duro, sangrento e terrível de
se ver, é solenemente apresentado e amarrado.
O cirurgião se despoja de sua cartola. Narcissus P. Thooms, sorrindo
benignamente, examina o público reunido.
Ele se vira para inspecionar a mesa posta com instrumentos, passando os
dedos na ponta dos pés ao longo deles, ele seleciona uma serra longa e de dentes
brutais. Com uma piscadela obscena, o Sr. Thooms vai até a mesa de operação e
coloca a mão na bochecha de Lily.
Os olhos dela se abrem–

É noite na casa em Hanover Square. O Sr. Wilt está dormindo profundamente,


seu grande bigode esvoaça a cada ronco frutado. A Sra. Wilt se aninha
lindamente com uma bebida antes de dormir, tagarelando através de seus
sonhos de cachorros pug e bules de prata. No andar de baixo, Santa Lily jaz na
sala de estar, enfeitada com gaze, renda e seda, com as mãos colocadas em oração
eterna. O cozinheiro, o mordomo, o lacaio, os ratos na despensa, os cachorros no
canil – todos estão dormindo. Apenas Nan Hooley está acordada. Ela acende
uma vela e caminha pela casa silenciosa.
Ela fecha a porta da sala de estar suavemente e acende as luzes a gás. O ar
ainda está fresco na sala e o caixão está polido, mas há um cheiro doce de
podridão no ar. Os lírios estão girando, suas trombetas caem, suas pétalas se
enrolam.
Nan puxa uma cadeira ao lado do caixão. O rosto de Lily parece o mesmo da
manhã de sua morte. Nan estreita os olhos e olha de perto. Depois de um
tempo ela vê que Lily, na verdade, mudou. Sua beleza vacilou. Há um
adelgaçamento dos lábios carnudos e a sugestão de um estrabismo ao redor dos
olhos, de modo que o cadáver tem uma aparência azeda, rabugenta. A pele tem
uma palidez esverdeada e há uma frouxidão nos cabelos ao redor das têmporas.
Lily pode estar fazendo alguma mágica não natural no mundo – mas
ninguém pode enganar a morte.
— O que você está fazendo, senhorita? — Nan sussurra.
Várias coisas acontecem: o porta-retrato pula sobre a mesa, o relógio parado
sobre a lareira começa a tiquetaquear, as borlas do tapete peru se franzem.
Nan espera. A madeira polida na lateral do caixão embaça, aparecem letras.

L. I. L. Y. V. I. V. E.

— Não fique tendo ideias — Nan repreende. — O que você precisa,


senhorita, é de um bom enterro tranquilo. Não ser exibida e admirada por
metade de Londres. Não é natural!
Nan imagina ter visto uma sombra de irritação cruzar as feições finas e
imóveis de Lily.
Ela pondera por um tempo, seus olhos no rosto adormecido de Lily Wilt.
Aos poucos, ela resolve buscar o conselho de um determinado autor
preeminente e convidado regular para jantar do Sr. e da Sra. Rumold Wilt.
Afinal, seu obituário começou tudo isso. Nan está confiante de que obterá uma
audiência com o ilustre cavalheiro, pois ele não esboçou uma imagem dela em
uma de suas histórias populares?
— Vou ter uma conversa com o Sr. D____, veja se não vou. Ele vai colocar o
bom senso em seus queridos mamãe e papai.
Várias coisas acontecem: as lâmpadas a gás brilham, os lírios murcham em
seus vasos e um vento ártico uiva nos ouvidos de Nan.
Nan, destemida, fecha a tampa do caixão com ar de boa viagem.

Pemble acorda com uma batida persistente na porta. Ele abre os olhos. As
páginas do livro da vida e da morte estão amarrotadas sob sua bochecha.
As batidas param e são substituídas por uma batida determinada. Ele se
senta em sua mesa.
A maçaneta da porta é tentada. Chocalhou. Uma voz chama; um ganido
nasal insidioso.
— Sr. Pemble, por acaso você estaria lá dentro?
Pemble fecha o livro, esconde-o e consegue vestir as calças antes que a Sra.
Peach entra pela porta, fazendo um trabalho leve na fechadura. A senhoria de
Pemble está diante dele, uma mulher assustadora, magra como uma corda, toda
cotovelos e clavículas e uma surpreendente cabeça de cabelos negros (não dela).
— Desculpe minha intromissão, Sr. Pemble. — Ela lhe dá um sorriso
amargo. — Eu não te vi a semana toda e por ser dia de aluguel… — Ela olha ao
redor do quarto, para a cama que não foi dormida, para os restos de repastos
comidos pela metade.
— Você pretende chamar ratos para minha casa de hóspedes, Sr. Pemble?
— Desculpe, não.
— Eu dirijo um estabelecimento limpo, Sr. Pemble.
— Vou trazer o dinheiro diretamente — oferece Pemble com toda a polidez
que pode reunir.
A Sra. Peach cruza a sala. Ela levanta a cortina da câmara escura de Pemble e
olha para dentro.
— Sr. Pemble, pensei que tínhamos concordado que este deveria ser o seu
quarto.
— Desculpe, sim.
A Sra. Peach volta sua atenção para as gravuras que estão penduradas pela
sala.
Pemble sente uma onda de raiva ao ver a Sra. Peach espiando e bisbilhotando
as gloriosas semelhanças do cadáver de Lily Wilt.
— Morta, não é?
— Tristemente.
— Pobrezinha, doze anos?
— Dezessete.
— Consumo, foi? Aquele grande flagelo de jovens adoráveis.
— Não. Não consumo.
Ela aperta os olhos para a foto.
— Um acidente, então? Uma forma estranha na cabeça, um pouco amassada
na têmpora ali.
— A cabeça dela é perfeita. Lily Wilt faleceu enquanto dormia.
— Esta é Lily Wilt?
— Sim.
— A famosa Lily Wilt?
Pemble concorda.
— “A Eterna Bela Adormecida!”, os jornais a chamam de “o melhor
espetáculo festivo de Londres!” — A Sra. Peach lança-lhe um olhar malicioso.
— Só não por muito tempo.
Pemble tem um mau pressentimento.
— O que você quer dizer?
— Ela foi vendida para um artista. Lily Wilt será enviada para o exterior,
nada menos que a América.
Pemble se assusta.
— Imagine! — chocalha a Sra. Peach. — Aquela coisinha tem um sabonete
com o nome dela!
Pemble pega seu chapéu e sobretudo e corre para a porta.
— Sr. Pemble, o aluguel, por favor!
Pemble corre para a casa da família Wilt em Hanover Square. À porta, o
mordomo nota estas coisas: uma aparência desgrenhada, uma selvageria nos
olhos, um tremor significativo nas mãos e nos lábios. O mordomo informa a
Pemble que, em sua ausência, seus estimados empregadores, Sturge & Sons,
despacharam seu segundo melhor fotógrafo memorial, o Sr. Stickles. O Sr.
Stickles visitou prontamente, conduziu a sessão discretamente e forneceu ao Sr.
e à Sra. Wilt uma seleção de imagens que os deixaram totalmente encantados.
— Posso apenas?... Por favor, um momento com a Srta. Wilt...
— Receio que não, senhor. — O mordomo fecha a porta, com firmeza.
Pemble segue em frente. Ele mal nota que é véspera de Natal. As multidões
alegres e a neve dançante, os meninos alegres e os vendedores de laranja, as
castanhas quentes e as vitrines enfeitadas – tudo se perde para ele. Mas então,
oh, um feixe de luz brilha através da escuridão. Ele é atingido por uma
lembrança de sua amada. Em sua mente, ele invoca seu espectro alegre, seu
sublime corpo de santo.
Ele ouve sua voz querida novamente.
— Tire o dedo, Walter, querido. Estou esperando.
Com vigor renovado, Pemble volta para Seven Dials.
Pemble compra um Hot Toddy de uma garçonete mal-humorada, acena com
a cabeça para os clientes regulares e vai até uma mesa. Nesse momento, o
personagem astuto e um tanto sujo desliza para o assento oposto e toca seu
boné.
Em voz baixa, Pemble dá uma ideia de seus requisitos criminais.
O Homem Sujo suga o ar pelos dentes restantes.
— Vai custar. Horário duplo. Véspera de Natal e tudo mais.
— Apenas certifique-se de que ela seja tratada com cuidado. — Pemble se
lembra das regras para lidar com indesejáveis. — Um bônus para entrega
segura.
O Homem Sujo sorri e inclina o boné.
— Vamos tratá-la como um floco de neve.

Meia-noite. Um pacote é cuidadosamente puxado pelas escadas da casa de


hóspedes da Sra. Peach e para os quartos do sótão de Pemble. A entrega ocorre
sem incidentes, pois a dona da casa fica insensível com o gim adulterado.
Pemble leva o pacote para a câmara escura. O lugar que ele preparou para o
reencontro do corpo e do espírito de Lily Wilt. Ele está sem fôlego de
empolgação esperando que os homens mascarados saiam. Ele tranca a porta
atrás deles.
As mãos de Pemble tremem enquanto ele desembrulha o pacote. Ele está
pasmo, dificilmente ousando olhar para a forma física de sua amada em sua
totalidade. Em vez disso, ele toma pequenos goles. Seus dedos delicados, canelas
adoráveis, o belo arco de sua sobrancelha, sua querida bochecha de pedra...
— Walter, querido — diz uma voz rabugenta — já estou farta de ser
observada. Que tal você me trazer de volta à vida?
Pemble consulta o tomo de Thooms sobre a vida e a morte. Ele verifica o
equipamento necessário e repassa o procedimento mentalmente. Ele tenta
acalmar seu coração batendo.
O espírito de Lily Wilt vagueia pela sala, brilhando em sua mortalha justa,
inspecionando as imagens de si mesma.
— Eu dou uma boa fotografia, não é?
Pemble enxuga a testa.
— Sim, querida. — Ele hesita. — Poderíamos simplesmente manter as
coisas como estão. Não me importo se você for um pouco, sabe, incorpórea.
O olhar de Lily é gelado.
— Bem, eu me importo. Você me fez uma promessa, Walter. Quero comer
bombons e sair para dançar. — Uma nota lasciva se insinua em sua voz. —
Quero provar os aspectos físicos da vida novamente.
Walter cora e desvia o olhar.
— Vou ver o que posso fazer, querida.
Os restos mortais de Lily Wilt jazem em um banco resistente. Ao redor do
corpo, lanternas são acesas. Ao lado da bancada há uma mesa – Pemble
estremece ao olhar para ela – com instrumentos cirúrgicos. Sob a bancada há
uma banheira de estanho e vários garrafões de vidro. A serragem está espalhada
pelo chão. No canto da sala há um lavatório com uma misteriosa coleção de
objetos. Entre eles, uma asa de pintarroxo, um espelho, um prato de giz e um
cálice.
As horas passam. Os sinos da igreja tocam. É dia de Natal.
Lily Wilt, espírito e corpo reunidos, senta-se em uma cadeira perto da
janela. Ela tem uma xícara cheia de gim no cotovelo direito e está segurando
um rolo de cotonete no ouvido. Ela está vestindo a camisola de Pemble. Pemble
desvia os olhos dos pontos raivosos que atravessam seu decote.
A câmara escura está uma bagunça. O banho de estanho está cheio de sangue
coagulado e a serragem está amontoada no chão. As ferramentas cirúrgicas estão
embrulhadas na mortalha de Lily e a asa do linnet está presa na parede.
Os olhos de Lily Wilt giram para encontrar os de Pemble.
— Quero sorvete — ela diz, com toda a impaciência chorosa de uma criança.
Lily gosta de sentar perto da janela observando as pessoas passarem na rua
abaixo.
Principalmente, ela é apática. Ela passa o dia mastigando nozes e cuspindo as
cascas. Ocasionalmente, ela começa a cantar coisas obscenas.
Pemble anda esfarrapado, trazendo a Lily tudo o que ela pede: livros, fitas,
um pião, um pássaro em uma gaiola e um bandolim.
— Eu quero sair para dançar — ela lamenta.
— Você precisa se recuperar, querida.
— Estou me sentindo pior, não melhor! O que você fez comigo?
Pemble se faz a mesma pergunta.
Lily mudou, ela está mudando diariamente. Ela perdeu a tez de alabastro
que tinha na morte. Sua pele cede e seus dentes tremem, seus olhos afundam e
seus cabelos dourados embaçam.

Pemble caminha até o rio e olha para ele. Mais neve cai e se transforma em lama
negra nas movimentadas estradas de Londres. Nas bancas de jornal, grita-se a
notícia do desaparecimento do corpo de Lily Wilt. A dor de seus pais amorosos
é de partir o coração. A recompensa por seu retorno surpreendente. Pemble
passa cambaleando, abaixando a aba do chapéu. Está muito frio para sentar no
parque, então Pemble busca refúgio nas tabernas. Ele toma bebidas fortes. Ele
teme dormir, acordar e, acima de tudo, ir para casa.

Lily tem a cama arrastada para a janela para que ela possa olhar para fora
durante sua recuperação. Ela esculpe padrões no gelo dentro da janela com as
unhas. Ela gosta do som.
Com a recuperação de Lily, vêm os desejos. Costeletas de cordeiro dão lugar
ao fígado de bezerro. O fígado de bezerro dá lugar à carne de gato. A carne de
gato dá lugar à carne de gato. Pemble percorre as ruas à noite em busca de
felinos. Ele estremece ao entregar o saco que se contorce. Lily sorri e fecha as
cortinas da cama. Em um momento Pemble ouve os sons abomináveis de
mastigação e ossos. Pouco depois, ele pega as peles descartadas e as joga no
fogo. Os quartos cheiram a pelo chamuscado. Um dia, os pés de Pemble se
desviam em direção a Camden Town. Por uma viela escura, por uma passagem
escura, até um recesso escuro. Ele está diante da fachada de uma livraria
abandonada. A placa acima da porta está muito desbotada para ser lida. As
prateleiras vazias sobem empoeiradas do chão ao teto.
Os gatos ficam mais astutos, Pemble deve caçar por toda parte. Ele volta
tarde para a pensão. Ele sobe as escadas cansado, um saco sibilante sobre o
ombro. A porta de seus quartos no sótão está aberta. A Sra. Peach está de pé,
com os olhos arregalados, falando coisas sem sentido, ao lado da cama de
Pemble.
Pemble não precisa apresentar sua senhoria a Lily Wilt, as cortinas da cama
já foram abertas.
Felizmente, ele ainda tem o banho de estanho e os instrumentos cirúrgicos.

Nan Hooley assombra a rua em frente à casa de hóspedes da Sra. Peach.


Refugiando-se sob o dossel de uma loja em frente, segurando sua cesta de
mercado e franzindo a testa para as janelas do sótão. O varredor tem anotado as
idas e vindas do Sr. Pemble. Nan coloca uma moeda na mão do menino e ele
relata um curioso estado de coisas. Às vezes, o Sr. Pemble está na rua para
comprar mercadorias. Uma caixa de música, um abacaxi, um canário enjaulado.
Outras vezes, o Sr. Pemble fica fora metade da noite e volta com um saco se
contorcendo.
E agora aqui está o próprio Sr. Pemble. Com um olhar furtivo sai para a rua,
levanta a gola do sobretudo e segue em bom ritmo.
Nan fica chocada com a mudança do jovem. Seus olhos vidrados e injetados,
sua barba rala, suas roupas manchadas, suas botas imundas.
Ela se apressa em seguí-lo.

Em uma taverna de má reputação em Seven Dials, Nan observa Pemble pedir


uma bebida, sentar-se em uma mesa e olhar para o copo. Seu rosto mostra o
semblante dos condenados.
Nan senta-se na cadeira em frente e pousa o cesto.
Pemble olha para ela e franze a testa. Ele conhece o rosto dela, mas não sabe
de onde.
— Sr. Pemble, por acaso você sabe o paradeiro da Srta. Wilt?
O reconhecimento acende em seus olhos.
— Você é a empregada doméstica.
— Sim, senhor.
Pemble tira, do bolso do sobretudo, uma fotografia. Ele o coloca sobre a
mesa.
— Tirei esta imagem de Lily ontem. Por favor, diga-me exatamente o que
você vê.

Nan oferece o braço a Pemble no caminho de volta para sua pensão.


Inicialmente ele tropeça, mas o ar frio e a presença forte e silenciosa de Nan
parecem reanimá-lo. Na porta ele sorri tristemente.
— Você sabe o que precisa fazer agora, senhor? — sussurra Nan.
Pemble assente.
— Recomponha-se, então.
Pemble entra com passos pesados.
Por um tempo, Nan fica olhando para a janela do sótão, depois aperta o nó
do xale e segue para casa.

O dia do funeral de Lily Wilt é de muito frio e céu azul. Os coveiros


trabalharam longas horas escavando o solo congelado. O carro funerário se move
calmamente. Pelas janelas da carruagem vislumbra-se um caixão, encimado por
um tapete de flores. Seis belos cavalos negros galopam através das nuvens
ondulantes de seu próprio hálito quente. Os enlutados seguem, abafados em
bombazina preta, crepe e renda pesada.
O carro funerário pega seguidores enquanto se move por Londres, de modo
que, quando o cortejo chega ao cemitério, o número aumenta. Lily Wilt
continua a intrigar. Na história desta Bela Adormecida há um misterioso final.
Seu corpo reapareceu na sala de estar em Hanover Square de forma tão
desconcertante quanto desapareceu. O público ficou aliviado. Até que
descobriram que Lily Wilt não estaria mais em exibição. Rumores sombrios
abundavam. Ela esteve nas mãos de um depravado. Ela havia sido modificada de
alguma forma sobrenatural. A polícia não tinha liberdade para dizer. A família
não fez comentários.
No cemitério, um estranho que espera ouve o som da carruagem funerária
que se aproxima. Seu coração bate mais rápido quando ele vê os cavalos da
frente, eles acenam com suas penas pretas e passam por ele em um passo firme.
Atrás da carruagem a multidão se arrasta, farejando e gemendo. Nas árvores os
corvos, sempre irreverentes, xingam e importunam.
E assim, Lily Wilt está comprometida com seu local de descanso final, um
notável terreno familiar na via principal. Com o tempo, um anjo esculpido será
colocado lá, rivalizando até com a beleza de mármore de Lily. Os enlutados
partem, abaixando a aba do chapéu, enrolando-se nas capas e aconchegando-se
nos regalos, deixando os coveiros com seu trabalho.
Nan Hooley fica até o final. Só pra ter certeza.
O crepúsculo cai e Walter Pemble se ajoelha ao lado do túmulo de sua
amada.
Ele espera. Atualmente ele ouve a voz dela. Um pouco irritada.
— Este não é bem o final que eu planejei, Walter.
Pemble olha para cima, Lily Wilt está diante dele, sua beleza glacial
restaurada.
— Querida Lily.
Ela dá a ele um sorriso melancólico.
— Suponho que haja uma maneira de ficarmos juntos.
Pemble acena com a cabeça, enxugando os olhos. Pemble faz o seu caminho
para fora do cemitério e se entrega ao primeiro policial que encontra.

É de manhã na casa geminada em Hanover Square. Na cozinha, o mordomo lê o


jornal em voz alta e a governanta passa manteiga numa torrada. Nan traz um
bule de chá para a mesa.
— Então, aí está — diz o mordomo.
— Ele era um demônio. — A governanta aplica um pouco de marmelada.
— Um demônio de fato.
Nan ajeita os talheres e junta as migalhas.
— Walter Pemble, empregado recentemente como fotógrafo — o mordomo
lê em voz alta —, é condenado pelo roubo dos restos mortais de Miss Lily Wilt
“A Eterna Bela Adormecida”, da casa de sua família em Hanover Square. O Sr.
Pemble também se declarou culpado do assassinato ilegal de sua senhoria, que
havia descoberto seu crime.
A governanta tuts.
O mordomo bebe seu chá.
— Depravação e dissolução.
— Um lugar comum demais — diz a governanta. — Dissolução, isso sim.
— O homem perdeu a cabeça — diz o mordomo, num tom que sugere
descuido por parte do Sr. Pemble.
A governanta franze a testa.
— Mesmo assim.
— Realmente.

Multidões se reúnem do lado de fora da Prisão de Newgate. Não que o


enforcamento seja público, mas o clima é ameno para janeiro e é um dia de
folga. Nan Hooley está entre eles. Quando chega a hora, ela derrama algumas
lágrimas pelo Sr. Pemble.
No final da tarde, Nan pega a velha caixa de charutos que guarda debaixo da
cama. Dentro há um dedal de prata, uma mecha de cabelo grisalho, algumas
flores desbotadas e uma fotografia.
Ela olha para a fotografia por um longo tempo. Então ela risca um fósforo e a
queima. O papel torce e explode em chamas e, com ele, o sorriso de Lily Wilt.
Nan o joga na grade. Ela fica parada por um tempo, imersa em pensamentos
sobre a vida e a morte e aquela coisa horrível no meio. Um pouco depois, ela
come meia torta de coelho.
A CADEIRA CHILLINGHAM

Laura Purcell
A primeira sensação foi um formigamento na bochecha. Então Evelyn percebeu
seus ouvidos: estavam zumbindo, ardendo. Seus membros estavam dormentes.
Ela parecia estar em algum lugar úmido e extremamente frio. Quando ela
tentou se mover, a dor atravessou sua perna e a fez ofegar. Suas pálpebras se
abriram, revelando... nada. Uma grande extensão sem cor.
Talvez ela tivesse morrido. Ela estava no purgatório, e as agulhas que
corriam por sua espinha eram o pagamento por seus pecados.
Assim que o pensamento cruzou sua mente, o silêncio ao seu redor se
quebrou. Um animal ofegava, em algum lugar próximo. Evelyn ficou tensa,
incapaz de erguer a cabeça e olhar. A criatura respirava pesadamente, suas patas
esmagando a neve enquanto se aproximava.
Tudo o que ela podia fazer era choramingar e fechar os olhos. O animal
estava procurando mais perto, fungando ao lado de sua orelha. Provou sua testa
com sua língua quente e viscosa.
— Vá embora — gemeu ela.
Mas, em vez disso, a besta peluda se esticou em sua caixa torácica;
guardando-a, reivindicando-a para si. Toda a respiração foi pressionada para fora
dela quando o ar frio ecoou com um uivo terrível.
Houve baques e triturações à distância. Alguém chamou o nome dela.
— Boa menina! — disse um homem. — Boa cachorrinha.
Lentamente, Evelyn permitiu que seus olhos se abrissem e tudo ficou claro.
A extensão acima dela não era perdição, mas o céu, carregado de neve, e
nenhum monstro jazia sobre seu peito; era simplesmente uma beagle,
convocando seu mestre.
Rostos se aglomeraram em seu campo de visão; cavalheiros que ela
reconhecia vagamente e as feições amadas de sua irmã, Susan.
— Evelyn! — ela chorou. — Evelyn, você está ferida?
— Acho... que estou — resmungou Evelyn. — Não consigo lembrar... o que
aconteceu.
— A neve caiu de um galho e seu cavalo se assustou — explicou um belo
cavalheiro. — Ele correu em direção aos estábulos com a sela pendurada na
barriga.
Era isso mesmo: eles estavam caçando. Não em casa, mas em outra
propriedade, Chillingham Grange. O homem que se dirigia a ela era o próprio
Victor Chillingham. Ele se inclinou sobre ela. Olhos gentis e solícitos
percorriam seu corpo de cima a baixo, procurando ferimentos.
Evelyn mal conseguia respirar sob o peso de sua vergonha. Ela não só tinha
levado um tombo em público, como também tinha caído enquanto estava
hospedada na casa desse cavalheiro.
O cavalheiro cuja proposta de casamento ela rejeitara firmemente.
— Precisamos levá-la para dentro antes que você pegue um resfriado —
Susan se preocupou. — Você acha que consegue ficar de pé?
Evelyn ergueu a mão para afastar o beagle. Mesmo isso lhe custou dor.
— Lamento incomodar, mas... não acredito que consigo.

O médico olhou profundamente em seus olhos. Ele cheirava a láudano e


sanguessugas.
— Um golpe desagradável, com certeza. Sem ferimentos no crânio, mas haverá
sintomas de concussão. Náusea, vertigem. Eu não a moveria de forma alguma.
Mamãe levou o lenço à boca.
— Como você conseguiu, Evelyn? Você nunca sofreu uma queda em sua
vida. Agora, justo na única ocasião que precisamos que tudo corra
perfeitamente...
Evelyn ajustou sua posição no sofá longo. Seu pé quebrado foi elevado,
envolto em bandagens e fixado com uma tala. Coçava como uma cama infestada
de pulgas.
— Sinto muito, mamãe. Não foi minha culpa. Mercúrio se assustou.
O médico abriu a bolsa e começou a escrever um roteiro para o boticário.
— Tome isso duas vezes ao dia. Ligarei novamente para verificar seu
progresso. Enquanto isso, meu pedido é repouso na cama. Pouco movimento e
absolutamente nenhuma excitação.
— Isso é impossível! — Mamãe explodiu. — A irmã dela vai se casar na
Noite de Reis e Evelyn é a dama de honra.
— Sinto muito por isso, madame, mas não há como evitar. A saúde deve vir
sempre em primeiro lugar. Evitar que sua filha contraia uma febre cerebral é
minha principal preocupação.
Claramente, não era a da mamãe. Ela lançou a Evelyn um olhar de fúria
absoluta.
— Devo enviar minha conta ao Sr. Chillingham, madame, ou...?
— Deus do céu, não! — Mamãe chorou. — Já o incomodamos o bastante
por um dia. Fale com o meu marido. Ele está na sala de bilhar.
O médico fez uma reverência e se retirou, fechando a porta atrás de si.
Mamãe respirou fundo e ajeitou seu gorro de renda de volta à forma.
— Sei que sua situação não é fácil, Evelyn — começou ela, tensa. — Casar
sua irmã mais nova antes de você é uma experiência um tanto humilhante. Mas
você teve sua chance de ser a noiva. É uma pena que você se arrependa de sua
decisão agora.
— Perdão?
— Você cometeu um erro tolo ao recusar o Sr. Chillingham. Não estou
surpreso se você repensou melhor. Mas, invejando sua irmã, o casamento está
abaixo de você. Considere que, quando Susan for a Sra. Chillingham e subir na
alta sociedade, ela pode encontrar outro pretendente para você. Uma que você
terá o bom senso de aceitar. — Ela franziu os lábios, olhando para o pé
machucado. — Se, de fato, você conseguir dançar em um baile novamente.
Evelyn precisou de todo o seu controle para não pegar a almofada e jogá-la
na mãe.
— O que… você acha que eu fiz isso de propósito? Para estragar o
casamento de Susan? Mamãe! Como você pode suspeitar de tamanha
mesquinhez?
A neve caía pela chaminé. O fogo cuspiu na grelha.
— Não importa, de qualquer maneira — insistiu mamãe. — Você não
alcançou seu objetivo. O casamento acontecerá, com ou sem você.
Houve uma batida na porta. Evelyn se encolheu, enviando flechas quentes
através de sua perna.
— Por favor, entre — chamou mamãe, com uma voz bem mais agradável.
Eram Susan e o Sr. Chillingham. Evelyn corou, esperando que eles não
tivessem ouvido, mas eles estavam sorrindo daquele jeito ansioso e ligeiramente
desagradável que as pessoas fazem quando se deparam com um inválido.
— Pobre Evie! — Susan sussurrou. — Que decepção, estar deitada assim!
Mas não tema, temos uma surpresa para você. Ou melhor, Victor tem. Foi ideia
dele.
Com muito floreio, o casal se separou para revelar a empregada, Biddy, atrás
deles, arrastando uma estranha engenhoca pela soleira.
Era uma cadeira grande e acolchoada, como as que se encontram em
qualquer sala de estar, só que os braços eram empalados por hastes verticais de
latão. Três rodas a impulsionavam, duas na frente e uma atrás. Elas gemiam
como um animal de dor.
— Isto pertenceu ao meu pai — disse-lhes o Sr. Chillingham, enquanto
Biddy manobrava a cadeira para o lado da sofá. Ela baixou o estribo com um
estalo que fez Evelyn pular. — Já lhe contei o quanto ele sofreu com a saúde no
final da vida?
Evelyn olhou para a peça de mobiliário com desgosto. Ninguém no condado
precisava saber sobre o velho incorrigível, as histórias circulavam livremente.
Seu temperamento ruim e modos mesquinhos haviam dado uma reputação ao
“Velho Chillingham”. Havia um retrato dele pendurado na galeria, um homem
de aparência oleosa com olhos pequenos e cruéis.
Mas seu filho Victor estava olhando para ela com ternura, o completo oposto
de seu pai.
— Você contou — Evelyn respondeu. — Acho que você disse que seu pai
ficou mudo e não podia usar as pernas?
— Precisamente. Então comprei esta cadeira para ele.
— Não qualquer cadeira, Evie. — Susan avançou e girou uma das maçanetas
que se projetavam do braço. Fez um barulho e as rodas giraram. — Olha, você
pode dirigi-la. E toda a máquina é automotora!
— Eles a chamam de “Cadeira Mecânica do Sr. Merlin” — informou o Sr.
Chillingham. — A invenção mais recente. Não economizei despesas.
— Que consolo deve ter sido — suspirou mamãe — para seu pai ter um
filho tão obediente.
— Espero que saiba, Srta. Lennox — continuou o Sr. Chillingham — que
farei tudo ao meu alcance para ajudá-la também em sua doença. Você é um
membro da minha família tanto quanto meu pai era. Infelizmente, a cadeira
dele não será útil para você ao ar livre, mas deve ajudá-lo a navegar pela casa.
— Então você não terá que perder tudo, afinal! — Susan sorriu.
Evelyn tentou retribuir seus sorrisos, mas a ideia de sentar na engenhoca era
repugnante. Mesmo dessa distância, ela detectou o cheiro rançoso e azedo do
estofamento e vislumbrou uma mancha escura no assento.
Felizmente, a gratificação de mamãe não tinha limites.
— Que infinitamente gentil! Minha filha deve muito a você, Sr.
Chillingham. Você vê que ela fica muda com a honra. Ela tem sido tão
descuidada. Ela deve aprender a cavalgar com mais moderação no futuro.
— Por favor, não a censure, madame. A culpa não foi da senhorita Lennox,
mas de meus cavalariços. A sela lateral não foi mantida em boas condições e a
cilha não foi presa corretamente. Tais erros são inaceitáveis. Tenha certeza de
que o homem responsável será demitido imediatamente.
Mamãe e Susan concordaram com a cabeça. Apenas Biddy se encolheu atrás
da cadeira.
Naturalmente, a criada sentiria pena por um colega de trabalho. Parecia
bastante cruel mandar um empregado embora por um único erro, especialmente
enquanto a lareira ainda estava enfeitada com azevinho, hera e visco.
— Oh, por favor, não o prive de sua posição, senhor — disse Evelyn. — Não
por minha causa. Eu não conseguiria dormir se um homem perdesse o emprego
nessa época do ano. Vamos perdoá-lo, no espírito da época.
O Sr. Chillingham baixou a cabeça.
— Seu coração terno lhe dá crédito, Srta. Lennox. Você é quase tão
benevolente quanto sua irmã. — Ele pegou a mão de Susan. — Muito bem.
Será exatamente como você deseja.
Susan o recompensou com um sorriso doce. Eles pareciam o casal perfeito e
domesticado. Evelyn sentiu o estômago revirar. Deveria ser ela.
Ela não deveria ter ouvido as fofocas sobre o Sr. Chillingham. Este dócil
senhor do feudo não tinha semelhança com o viciado em dados e cartas sobre o
qual seus amigos sussurravam. Os rumores eram claramente infundados: Victor
Chillingham era um bom homem e ela o rejeitou.
— Esta cadeira excelente não vai fazer você subir e descer a escada —
observou mamãe. — Sério, Evelyn, incomodaria menos a todos se você dormisse
aqui. Biddy pode buscar seus baús e ficar com você em uma cama dobrável, caso
precise dela. Isso parece um plano razoável, Sr. Chillingham? Eu não gostaria
que minha filha causasse qualquer inconveniência...
— De jeito nenhum — ele concordou facilmente. — Não tenho objeções.
Esta pequena sala raramente é usada. Espero que a Srta. Lennox a considere sua
durante sua estadia.
Tudo poderia ter sido dela: Chillingham Grange. O parque de veados e a
floresta, um lago cristalino, hortas para ervas de todos os tipos. Ela poderia ter
sido a dona desta imponente mansão com suas amplas escadarias até a entrada
principal, mas agora seria de sua irmã mais nova.
Susan avançou ansiosamente.
— Agora vamos tentar a cadeira! Anseio por vê-la em ação.
Evelyn não podia recusar. Biddy a puxou para fora de sua poltrona e a
colocou no dispositivo. As almofadas a receberam com um suspiro. Sua coxa
encontrou uma cavidade no assento. O Velho Chilligham deve ter deixado uma
marca dos dias que passou ali entronizado.
— Gire as alavancas para avançar — insistiu Susan.
Cautelosamente, Evelyn empurrou ambas as maçanetas de latão manchado.
Um ruído metálico estremeceu pela estrutura; ela sentiu na base da espinha.
Com um guincho agudo, a cadeira começou a se mover.
Susan bateu palmas, encantada.
— Olhe só para você!
Ele rolou no ritmo de um caracol. Mesmo assim, Evelyn se preocupava por
não saber como parar. Lenta mas seguramente, ela foi avançando em direção às
chamas da lareira.
Ela tentou não entrar em pânico, mas já podia sentir o calor em sua pele.
— Como eu… — ela perguntou. Por pura sorte, sua mão atingiu uma
alavanca no braço direito e uma haste caiu, fazendo as rodas pararem. O barulho
que elas fizeram deixou seus dentes tensos.
Seu pé enfaixado latejava, a apenas alguns dedos da grade.
Os outros aplaudiram.
— Tão gentil! Tão útil. — Mamãe sorriu afetadamente para o anfitrião. —
Bem, Evelyn, o que você diz?
A mandíbula de Evelyn se apertou em um sorriso. Ela o havia decepcionado
bastante; o mínimo que ela podia fazer era parecer grata agora.
— Obrigada, Sr. Chillingham — ela forçou.

Naquela noite, Evelyn se contorceu na sofá, incapaz de dormir. A dor em seu pé


pulsava tão firmemente quanto uma batida de coração.
Não era apenas seu desconforto que a mantinha acordada; aqui embaixo, o
mundo lá fora soava mais alto. Ela ouviu o vento gritando pela casa, testando as
janelas e o pingar constante de gelo derretendo nos beirais.
Não havia nada a fazer a não ser ficar acordada e alimentar seus remorsos.
Ela perdera o juízo para recusar Victor Chillingham? Seus amigos haviam
dito que ele era um apostador, mas agora lhe ocorreu o quão improvável era
aquilo ser verdade. Ele havia recebido os convidados do casamento com luxo
durante os doze dias do Natal. Ele devia estar recebendo uma renda estável de
algum lugar.
Não que sua rejeição a ele tivesse sido inteiramente mercenária. Também
havia preocupações familiares. Ela temia que ele pudesse mudar com a idade
para se tornar cruel como seu pai tinha sido. E depois havia o irmão mais velho,
que ela nunca conheceu. As pessoas diziam que ele estava deformado, degradado
e fora totalmente excluído do testamento. Mas ela não deveria ter julgado
Victor pelos defeitos de seus pais. Afinal, ela não gostaria que as pessoas a
avaliassem pelo comportamento de mamãe.
O único consolo era que a querida Susan ficaria feliz. Sua irmã teria uma bela
casa e um marido encantador para chamar de seu. Ainda assim, mamãe não
estava exagerando quando disse que parecia estranho que a filha mais nova se
casasse primeiro. Isso faria Evelyn parecer estranha, indesejável – especialmente
se ela agora estivesse condenada a andar mancando.
Ela virou a cabeça no travesseiro, desconsolada. A horrível cadeira espreitava
ao seu lado como um lembrete de seu acidente. Ela precisava usar o penico, mas
a única maneira de fazer isso seria chamar Biddy para pedir ajuda, e ela preferia
esperar. Já havia passado humilhação suficiente para um dia.
Estranhamente, Biddy não fez nenhum som durante o sono, nem houve
movimentos dos convidados no andar de cima. Enquanto o vento soprava forte
do lado de fora, a atmosfera interna permanecia opressivamente imóvel.
Evelyn tentou adormecer com todos os outros. Imagens desconexas surgiram
atrás de suas pálpebras; árvores contornadas de branco, cascos batendo na neve
em pó, cães no rastro com as caudas erguidas. Ela se lembrou de trechos
estranhos do dia. Como o lago congelou como uma placa de marzipã. Susan
dizendo a ela que havia um jardim venenoso em algum lugar no terreno. Ela
imaginou todas aquelas plantas tóxicas, enterradas em uma mortalha de neve,
quando ouviu um rangido repentino.
O som a fez estremecer, enviando agonia por sua perna. Foi uma tolice; o
barulho só poderia ter sido Biddy, rolando em sua cama dobrável. Ela ignorou e
tentou mover o pé de volta para uma posição confortável, mas então o rangido
se repetiu, mais alto, perto de sua orelha.
Era uma acomodação, uma expiração; o barulho que uma mobília fazia ao
suportar o peso de alguém. No entanto, ela percebeu que não poderia ter vindo
da cama de Biddy, do outro lado do quarto; estava mais perto do que isso.
O barulho vinha da cadeira.
Abrindo lentamente as pálpebras, Evelyn olhou através do curto distância
entre seu travesseiro e o volume sombrio da engenhoca. Nada parecia ter
mudado. A luz do fogo tremeluzia nos encaixes de latão. Mesmo na penumbra,
ela podia ver entalhes nas almofadas; os sulcos usados por longa ocupação.
Bem, era um dispositivo velho e decrépito, fadado a gemer e se acomodar.
Ela tentou se agarrar a esse pensamento quando o estofamento rangeu, soando
para todo o mundo como alguém ajustando sua posição no assento.
Não era bom; ela puxou as cobertas sobre a cabeça e se escondeu.
— Biddy — sussurrou ela. — Biddy, você está dormindo?
Nenhuma resposta veio.
Algo ganiu, agudo como o beagle de antes, só que não era um animal; era a
moagem crua das rodas. Certamente, certamente, Biddy os ouviria? Esse
barulho iria acordá-la.
Levou toda a coragem que Evelyn possuía para puxar para baixo a coberta e
espiar através da sala de estar, onde a criada havia montado sua cama de
rodinhas.
Estava plana. Não havia ninguém deitado sob os lençóis e ela estava sozinha.
Ou talvez não.
Outro rangido veio da cadeira mecânica. Engasgando de terror, Evelyn
deixou seu olhar vagar na direção dele. A engenhoca ainda estava à sua
esquerda, ao lado da poltrona, mas não estava mais virada para o lado.
Agora estava de frente para ela.
— Não — ela respirou. — Não, isso não é possível.
Ela olhou para os braços, como se pudesse forçá-los de volta ao seu devido
lugar. De alguma forma, sem qualquer intervenção humana, a engenhoca girou
noventa graus.
O pânico se formou em sua garganta. Ela não deve ceder a isso. Claramente,
isso era um sonho. O médico havia lhe dado láudano e esse remédio sempre
causava pesadelos.
Mas este era extraordinariamente vívido. Ela podia sentir as pontadas de seu
pé quebrado e ver o jogo do fogo. Quando ela empurrou uma contusão em seu
braço, doeu.
— Acorde — ela ordenou a si mesma.
A cadeira respondeu. Evelyn olhou horrorizada quando a manivela no braço
direito começou a girar lentamente.
— Não — ela gritou. — Não, eu não tolerar isso.
Desesperadamente, ela procurou por algo, qualquer coisa para acabar com o
sonho. Havia apenas um remédio à mão. Preparando-se, ela tirou as pernas da
poltrona e ficou em pé sobre os pés feridos.
A agonia foi pior do que ela esperava; gritando dentro de sua cabeça até
abafar o barulho da cadeira. Se tal dor não a acordasse, certamente nada o faria.
Mas sua consciência não estava subindo à superfície, na verdade, começou a
recuar. A sala de estar, o fogo e até a cadeira estavam todos se afastando...
Tudo se transformou em preto.

Evelyn acordou com um baque frenético.


— Me deixe entrar! — Era a voz de Biddy, abafada, mas em pânico. — Por
favor, senhorita. Abra a porta.
Desorientada, Evelyn ergueu a cabeça. Uma luz pálida varreu o salão. O fogo
havia se reduzido a cinzas há muito tempo, mas as cortinas estavam abertas para
outro dia pitoresco e gelado. Ela estava deitada onde havia caído, encolhida ao
pé da poltrona.
A cadeira estava perto da porta.
Estava posicionada de forma que ninguém pudesse entrar ou sair da sala.
Apesar de Biddy mexer na maçaneta da porta, ela estava presa no grosso braço
mecânico da cadeira.
— Senhorita Lennox!
A maior parte da dor havia desaparecido. Na verdade, Evelyn mal conseguia
sentir os pés; isso não foi animador. Ela cerrou os dentes e se arrastou pelo
carpete, agarrando-se com as mãos, até chegar à cadeira.
Ela nunca havia sentido uma aversão tão poderosa por um objeto antes.
Desse ângulo ela podia ver as rodas, gastas e gastas. Como eles poderiam ter
rolado por conta própria, por todo o salão? Ela se apoiou em um braço e
empurrou a engenhoca miserável com toda a força. Rolou para trás.
Biddy meio que caiu no quarto.
— Senhorita! Como você... Você está ferida?
Evelyn não tinha uma resposta. Falar dos acontecimentos da noite anterior
seria absurdo.
Silenciosamente, ela deixou a empregada ajudá-la a sair do chão e sentar na
cadeira. Ela preferia ter se sentado no sofá, mas era muito longe, e talvez assim
fosse melhor, afinal. Se Evelyn ocupasse o assento, pelo menos ninguém mais –
ou nada mais – poderia.
— Onde você estava? — ela perguntou a sua criada, lembrando-se da cama
vazia no meio da noite. — Como você foi parar lá fora?
As bochechas de Biddy coraram.
— Eu estava no café da manhã dos criados, senhorita. — Ela começou a se
ocupar com os baús que os empregados trouxeram. — E agora é hora de
vestirmos você como você quiser.
Evelyn não estava convencida.
— Não. Eu quis dizer, onde você estava antes? Acordei durante a noite e
nem sinal de você! Tentei me levantar... A dor deve ter me feito desmaiar.
Biddy abriu a boca.
— Eu... me desculpe, senhorita.
Enquanto a criada se atrapalhava, Evelyn viu um fio de palha em seu gorro;
lembrou-se de como ela se encolheu ontem quando o Sr. Chillingham ameaçou
demitir alguém dos estábulos. Não foi preciso muita inteligência para juntar os
dois.
— Meu deus, Biddy! — Evelyn engasgou. — Você arranjou um namorado?
Biddy corou profundamente.
— Pelo Senhor, senhorita! — ela repreendeu, inclinando a cabeça sobre o
tronco. — Você sabe que não posso ter pretendentes, na minha posição.
O que não era estritamente uma negação.
Bem, deixe Biddy manter seus segredos, Evelyn tinha o seu próprio.
Durante toda a longa provação de se vestir, ela pensou em contar à criada o que
realmente havia acontecido durante a noite, mas ela não conseguia encontrar as
palavras. O médico não havia dito que ela tinha levado uma pancada feia na
cabeça? Talvez a confusão a tivesse feito ver as coisas. Tal explicação não era
satisfatória, mas era preferível à alternativa: que o Velho Chilligham não estava
pronto para largar sua cadeira.
Finalmente, Biddy se agachou para ajustar o estribo. O tornozelo machucado
de Evelyn tinha inchado quase o dobro do tamanho.
— Não vou repreendê-la, Biddy. E não direi a ninguém que sofri um
acidente na sua ausência. Mas você deve ficar comigo esta noite. — Biddy
assentiu. — Jure — ordenou Evelyn, com a voz embargada de medo. —
Aconteça o que acontecer, não me deixe sozinha depois de escurecer.
Os olhos de Biddy se arregalaram.
— Eu prometo, senhorita.
Todos os convidados estavam reunidos para o café da manhã em um grande e
arejado salão decorado com tapeçarias. Janelas arqueadas davam para o terreno,
que brilhava sob a neve fresca. Evelyn viu os pequenos jardins murados onde o
pessoal da cozinha cultivava suas ervas: algumas para cozinhar, algumas para
remédios e algumas para envenenar vermes, como Susan dissera.
— Senhorita Lennox! — O Sr. Chillingham interrompeu a conversa e correu
para cumprimentá-la. — Como você se sente hoje? Melhor? Espero que esteja
bem descansada?
Evelyn se assustou e deu uma resposta vaga e desonesta. Ela não tinha
percebido que o cavalheiro realmente se importava com ela, mas ele devia. Ele
empurrou a cadeira dela e a ajudou a ocupar um lugar vazio na mesa, enquanto
sua própria família não a notou completamente.
Houve um pouco de dificuldade para encaixar os braços mecanizados da sua
cadeira debaixo da mesa de jantar. O Sr. Chillingham começou a se preocupar.
— Em vez disso, posso levar uma bandeja para o seu quarto — ofereceu. —
Devo levá-la de volta para a sala?
— Oh, não! Não há necessidade disso. Vou me virar perfeitamente,
obrigada, senhor. — Ela olhou para o cenário, o prato e seus talheres, para
esconder o rubor. O Sr. Chillingham estava falando muito sério para um
homem destinado a se casar com sua irmã em poucos dias.
Por fim, papai demorou-se para ver como ela estava.
— Bem, Evelyn, minha querida, ainda bem que você conseguiu quebrar
apenas o pé e não o pescoço — disse ele com seu jeito jocoso. — Teríamos sido
forçados a adiar o casamento. Sua mãe nunca teria perdoado você.
Ela tentou rir de volta, mas sua cabeça estava girando e não era inteiramente
por causa de sua concussão. Por que o Sr. Chillingham estava olhando para ela
daquele jeito?
— Susan teria se lembrado de você com mais carinho, no entanto — papai
acrescentou com uma piscadela. — Ela perderia uma dama de honra, mas acho
que não se importaria do dote dobrar de tamanho.
A brincadeira foi de mau gosto, mas ela esboçou um sorriso. Seu pai não
tinha a intenção de fazer mal – era apenas sua maneira. No entanto, ela notou
que o semblante do Sr. Chillingham escureceu com desgosto antes que ele
voltasse para seus outros convidados.
A festa planejava patinar no lago assim que o café da manhã terminasse.
Claro que Evelyn não poderia participar. Na verdade, ela estava feliz; a provação
da noite anterior a deixara exausta.
Susan se agitou, acariciando seu cabelo.
— Eu não gosto de te deixar, Evie. Como conseguirei me equilibrar no gelo,
sem você para segurar minha mão?
— O Sr. Chillingham deve segurá-la para você agora.
Mas o Sr. Chillingham parecia mais preocupado com Evelyn. Ele se agachou
até o nível da cadeira dela.
— Farei com que os criados tragam todas as nossas coleções para entretê-la.
Há medalhas e conchas, um belo livro de gravuras também. Vou buscá-la eu
mesmo. Tudo no Grange está à sua disposição, Srta. Lennox. Se precisar de mais
alguma coisa, basta pedir.
Evelyn sentou-se estupefata. Depois da maneira como ela o recusou, essa
gentileza parecia quase opressiva. Será que ele sentia que ela nutria remorsos?
Ela esperava fervorosamente que não. Era tarde demais; eles devem pensar em
Susan agora.
A pobre Susan ainda sorria, alheia ao frisson entre a irmã e o noivo, mas era a
única. Os olhos de mamãe estavam cravados em ambos com um brilho mortal.

Fogos ardiam alegremente em todas as lareiras. Deliciosos aromas de canela e


carne assada subiam das cozinhas, e todas as janelas estavam cobertas de gelo.
Parecia impossível acreditar que esta casa, esta mesma cadeira, parecesse tão
ameaçadora à noite.
— Acho que vou comer um pouco de casca peruana para ajudar minha
cabeça — disse Evelyn a Biddy enquanto jogavam gamão na biblioteca. —
Sinto uma dor surda em minhas têmporas. Isso me deu os sonhos mais
estranhos, não quero repeti-los esta noite.
Talvez o impacto realmente tenha desordenado seus pensamentos. Foi por
isso que ela viu a cadeira se movendo, e isso explicava por que ela estava se
sentindo diferente em relação ao Sr. Chillingham. Era simplesmente uma
doença temporária, como um resfriado.
Biddy se levantou da cadeira.
— Vou buscar o pó agora, senhorita. Os outros devem voltar da patinação
em breve.
Quando Biddy saiu da sala, Evelyn notou um retrato emoldurado em ouro
na parede oposta que ela não tinha visto antes. Era a pintura de um jovem com
olhos semicerrados e tristes. As cores da tela eram escuras e pareciam ainda mais
escuras devido à má posição em que o quadro fora pendurado.
Ela se aproximou e soltou a haste para travar as rodas no lugar e inspecionar
a foto. O artista abrandou, mas ainda incluiu uma elevação decidida em um dos
ombros do modelo. Havia uma inscrição na moldura: Alfred Chillingham.
Biddy voltou com a casca peruana.
— Ah — ela disse — você o encontrou, não é senhorita? O filho pródigo.
Vamos esperar, pelo bem de Senhorita Susan, que ele nunca volte.
— Então é ele! O irmão mais velho que fugiu há tantos anos. Eu não sabia
que ele sofria de...
— Ele era um corcunda — Biddy terminou sem rodeios. — Como o
malvado Rei Ricardo.
Evelyn balançou a cabeça com as palavras indelicadas. Alfred certamente não
era bonito como Victor Chillingham, mas não tinha nada a ver com suas costas
disformes.
— Eu me pergunto por que ele desapareceu tão de repente. O que pode ter
acontecido com ele?
Biddy aproximou-se dela e olhou para o retrato.
— Acho que é verdade o que dizem, senhorita. Basta olhar para ele. Ele não
é bom. Você pode ver nos olhos.
— O que eles dizem, Biddy?
— Ora, que ele atacou o Velho Chillingham. Como vingança, por todos os
maus-tratos ao longo dos anos.
— O quê? Eu não ouvi nada sobre isso. Quem lhe conta esses boatos
malucos?
— Não é apenas um boato. — Biddy respondeu com veemência. — Olhe
onde você está sentada, senhorita. Por que você acha que eles tiveram que pegar
aquela cadeira para o velho? Seu colapso veio muito rápido. Uma semana ele
estava tão bem quanto a chuva e na outra ele mal conseguia se mover.
Evelyn se encolheu em si mesma. De repente, ela não queria que sua coluna
tocasse o encosto da cadeira.
— Absurdo. O Sr. Chillingham mais velho teve um ataque apoplético.
— Mas então por que seu herdeiro fugiu, poucos dias depois? Isso não faz
sentido. O ataque é apenas uma história que a família conta para as aparências.
Mas, na verdade, o corcunda atacou o pai e o machucou. É o que dizem os
criados.
Evelyn estreitou os olhos.
— Um membro da equipe dos empregados lhe disse isso? Mas certamente
eles não confiariam os segredos da família a um parente estranho! — Biddy
encolheu os ombros e voltou-se para o tabuleiro de gamão. — Vamos, Biddy.
Admita. Você tem um namorado... e ele trabalha aqui nos estábulos, não é?
— Tenho certeza de que não entendo o que quer dizer, senhorita.
Evelyn olhou para sua mão, apoiada no braço da cadeira. Ela não deveria dar
ouvidos a meras fofocas de criados, mas não podia deixar de se lembrar da noite
passada e da maneira repugnante com que a alavanca começou a girar. Se o
Velho Chillingham tivesse sido morto por seu filho mais velho... ele não estaria
descansando.
Eles disseram que os assassinados vagavam, como fantasmas, até que a
justiça finalmente fosse concedida. No entanto, como esse cavalheiro não
conseguia usar as pernas, talvez as regras do submundo tivessem sido alteradas
para ele.
Talvez o espírito do Velho Chilligham tenha rolado.

Com Biddy ao seu lado na sala, Evelyn finalmente conseguiu cair no sono por
volta de uma hora da manhã. Mesmo assim, sua mente dolorida não relaxava.
Ela sonhou.
Ela sonhou com o Velho Chilligham com seus olhos pequenos e redondos,
contando as moedas que seus filhos herdariam. Uma pilha de dinheiro encolheu
enquanto a outra cresceu, fazendo um constante chink, chink.
Então ela sonhou com Alfred, o vilão, fugindo na calada da noite. Ele não
carregava bagagem, não usava casaco, não havia nem mesmo um cavalo para
carregá-lo. Seus movimentos eram os de um louco. Ele atravessou a floresta
onde ela havia caído, liberando aromas verdes úmidos da vegetação rasteira.
Suas mãos arranhavam e arranhavam, despedaçadas pelas amoreiras. Se ela não
soubesse melhor, ela diria que ele estava fugindo para salvar sua vida.
Gradualmente, os aromas da floresta se tornaram algo doce enjoativo, quase
repugnante, O tempo todo as árvores ecoavam com um incessante chink, chink.
— Senhorita? Senhorita! — A voz de Biddy vacilou ao longe. Evelyn
agarrou-se a isso, tentou arrancar sua mente dos movimentos selvagens de
Alfred. — Senhorita, não se mexa!
Uma brisa passou ondulando, levantando os cachos curtos de sua testa. Ou
eram as mãos ensanguentadas de Alfred, acariciando seu rosto?
— Pare. Não! — Ela se contorceu em seu sono. Seu pé quebrado provocou
uma onda de dor e ela acordou repentinamente.
Ela estava do lado de fora, de frente para uma cama de galhos congelados.
Folhas finas e pontiagudas brilhavam aqui e ali; não pertenciam a nenhuma flor
que ela conhecesse. Além deles, erguia-se uma parede de pedra, encimada por
trilhos de ferro preto e parecia – ou talvez fosse sua imaginação amedrontada –
que as torres estavam cobertas por pequenos crânios de metal.
— Senhorita Lennox! — O alívio a inundou quando Biddy apareceu e se
arremessou por um caminho em sua direção, com o rosto vermelho. — O que
você está fazendo?
— Eu… — Evelyn começou. Olhando para baixo, ela viu sua figura esbelta
vestida com uma camisola, amassada entre os braços da cadeira mecânica.
A memória veio a ela vagamente; os cheiros de ar livre de seu sonho e o
clique metálico regular de moedas – só que não eram moedas. O que ela ouviu
foram as rodas, com dificuldades no caminho.
Ela estremeceu. As pessoas caminhavam durante o sono, mas certamente ela
não poderia ter se colocado em uma cadeira, andado por corredores e através de
portas sem perceber? Se ela tivesse feito isso... ela deveria ter batido a cabeça
com muito mais força do que pensava.
Biddy examinou suas mãos.
— Você tocou em alguma coisa, senhorita? — ela perguntou com urgência.
— Nada mesmo?
— Eu não acredito. Por que?
— Você não sabe o que é isso? — Biddy apontou com o polegar para as
camas emaranhadas. — Acônito. Vai danificar seus nervos, deixá-la entorpecida
e congelada. E aquela parece cicuta, paralisa você de baixo para cima. O que deu
em você para vir aqui? Você nem está vestida!
— Eu... eu não, Biddy. Não sei como...
A criada parecia tão amedrontada quanto Evelyn.
— Precisamos levá-la de volta antes que os outros convidados acordem.
Como o Sr. Chillingham as havia advertido, a cadeira não foi projetada para
o exterior. As rodas emperraram e se recusaram a virar nos caminhos gelados.
Como elas conseguiram carregá-la para fora de casa, através do terreno? Apenas
a força total do corpo de Biddy as colocou em movimento agora.
Espasmódica, a cadeira passou por um portão aberto. O cadeado que o
prendia estava jogado na grama. Evelyn leu uma placa e finalmente entendeu de
onde Biddy a achou.
A cadeira a levou para dentro do Jardim Venenoso.

Evelyn não estava com humor para participar dos jogos, mesmo como
espectadora. Ela dirigiu-se sozinha para o conservatório, onde um fogão aquecia
as delicadas palmeiras, samambaias e suculentas. Não conseguia descongelar a
frigidez que se instalara profundamente em seus ossos.
Havia apenas duas explicações para o evento desta manhã: ou a queda
causara uma fratura em sua mente, ou o espírito assassinado do Velho
Chilligham ainda estava aqui, controlando sua cadeira.
Ele tinha sido um homem horrível em geral, mas o que ele poderia ter
contra ela? Por que jogar esses truques terríveis e levá-la para ervas tóxicas?
Evelyn inspecionou as hastes e alavancas, bateu nos braços de madeira
arranhados.
— Onde você está se escondendo? — ela murmurou. — O que você quer de
mim? — Inclinando-se para trás, ela começou a se mexer em seu assento,
tentando moldá-lo à sua forma, ao invés da forma do velho. Não adiantou. Tudo
o que conseguiu foi emaranhar as saias nas rodas.
Ao se curvar dolorosamente para soltá-las, ela avistou um fio solto saindo do
assento estofado. Cautelosamente, ela passou a mão por baixo da moldura.
Havia algo ali. Uma protuberância.
Seus dedos sondaram, encontrando um rasgo no tecido. Tinha talvez dois
centímetros de comprimento e era perfeitamente reto. Quando ela deslizou o
polegar para dentro, percebeu que não era um rasgo acidental, mas um corte
feito de propósito para esconder algo.
Ela retirou uma dobra amarelada de papel que exalava um odor fétido, como
um ninho de ratos. Com infinito cuidado, ela o desdobrou e encontrou flores
secas.
Havia uma flor roxa em forma de sino e uma espécie de espuma spray, cada
um de uma planta diferente. Junto com eles, amassados nos vincos do papel
estavam o que pareciam ser ervas, retiradas de uma tigela de sopa.
Evelyn franziu a testa, olhando de uma casca para a outra. Por que isso foi
escondido? Com um lápis trêmulo, o Velho Chillingham havia rabiscado uma
única palavra no papel: Prova.
Foi claramente um esforço para ele escrever. Ele usou todas as suas forças
para proclamar que isso era evidência – mas e daí?
As palavras de Biddy voltaram para ela: “dormente e congelada... paralisa você de
baixo para cima”. O Velho Chilligham estava paralítico. No entanto, certamente
isso não significava...
Ela olhou para as plantas novamente. As folhas eram pontiagudas,
exatamente como as que ela vira dentro do Jardim Venenoso.
— Você estava me mostrando — ela engasgou. — Alfred não atacou você
antes de fugir, ele envenenou você!
— Senhorita Lennox? — A voz do Sr. Chillingham dispersou seus
pensamentos. Ele ficou na porta do conservatório, olhando com solicitude. —
Você está se sentindo bem?
Ela ficou boquiaberta com ele. Era tarde demais para esconder as flores: elas
estavam espalhadas em seu colo.
— Eu estou... um pouco instável — ela admitiu.
O Sr. Chillingham entrou lentamente, fechando a porta atrás de si para
conservar o calor. Mais uma vez, ele se aproximou e se agachou ao lado da
cadeira dela. Seu rosto era uma imagem de preocupação.
— Sua mãe está procurando por você, Srta. Lennox. Meu jardineiro disse que
você estava vagando pelos jardins esta manhã, meio delirante. Isso pode ser
verdade?
Evelyn vacilou. A última coisa que ela queria era perturbar o Sr.
Chillingham na véspera de seu casamento, mas não podia esconder o que
acabara de descobrir.
— Eu estava no jardim, senhor. Mas não foi em delírio... não sei te explicar.
A verdade é que outra pessoa me levou lá, de propósito, para me mostrar alguma
coisa.
Ele franziu a testa.
— Quem iria–
Ela passou a ele o pequeno pacote de ervas e papel.
— Eu também não pude acreditar, a princípio. Mas então encontrei isto,
enfiado na cadeira de seu pai. — Ela molhou os lábios. — Eu vi essas plantas,
Sr. Chillingham. Lá fora, esta manhã, no Jardim Venenoso.
Ele viu o pacote como se ela tivesse passado para ele um pássaro morto. À
luz do fogão, seus olhos pareciam mais profundos, afundados nas órbitas.
— Tóxicas? — ele repetiu sem entender. — O Jardim Venenoso é mantido
trancado o tempo todo. Por segurança.
— Sim, tenho certeza que é, mas não estava trancado hoje. Eu encontrei–
— Bom Deus! — ele chorou. — Eu entendi você corretamente? Está
tentando me dizer que alguém a levou para fora de propósito e tentou envenená-
la, Srta. Lennox?
— Oh, não! Não estou falando de mim. Veja… — Estava saindo tudo
errado, mas como você contaria a um cavalheiro que tinha sido visitada pelo
fantasma de seu pai? — É difícil explicar, mas estou tentando falar sobre o
Senhor Chillingham. Esta era a cadeira de seu pai, não era? Bem, eu encontrei
aquelas ervas escondidas lá dentro e você vê que ele escreveu a prova no papel...
Não pense que estou me intrometendo nos assuntos de sua família. Não direi
isso a ninguém. Mas achei certo que você visse o que eu descobri. Você deve
pegar as evidências e fazer com elas o que quiser.
— Você está confusa, Srta. Lennox.
Ela estava. Ela tinha um pressentimento ruim e profundo; o único objeto
sólido era a cadeira sob suas pernas.
— Sim. Não estou me expressando direito. Só quis dizer que seu pai
escondia aquelas plantas dentro da cadeira. Ele pode ter acreditado que estava
sendo envenenado. — Ele a encarou. Rapidamente, ela acrescentou: — Mas as
pessoas idosas colocam fantasias tão estranhas em suas cabeças. Suas mentes
podem vagar, no final...
O Sr. Chillingham estragou o pacote e jogou-o no fogão.
— Pobre senhorita Lennox — disse ele suavemente. — Você deve ter
machucado a cabeça muito pior do que pensávamos inicialmente.
— Isso é ridículo, mamãe! Pelo menos deixe-me ver Susan! Não devemos nos
separar hoje!
Mamãe estava diante da porta com uma chave na mão. Ela usava seu melhor
vestido e tinha flor de laranjeira enfiada na aba da boina.
— Susan já está chateada o suficiente. Consultei seu pai e o Sr. Chillingham
sobre como proceder, e todos concordamos que é melhor você ficar aqui.
— É o dia do casamento da minha irmã!
— Sim! — Mamãe chorou, com lágrimas em sua voz. — Deus sabe que não
imaginávamos que acabaria assim! Mas participar da cerimônia vai te
emocionar demais. Isto é para o seu próprio bem, Evelyn. Não posso arriscar
que você fique com febre no cérebro.
Evelyn tremeu. O tremor machucou seu pé e fez a cadeira ranger. Ela
desejou de todo o coração ter mantido a boca fechada. Por que ela contou ao Sr.
Chillingham? O velho estava morto e Alfredo havia partido há muito tempo;
não importava quais erros haviam sido cometidos no passado.
— Por favor, mamãe! Eu estou te implorando. Eu vou me comportar.
— Desculpa, querida. Este é a única coisa que posso fazer. Devo mantê-la
bem e proteger Susan do escândalo... Haverá muito para diverti-la aqui na
biblioteca. Um empregado ficará com você e deixará o médico entrar quando ele
chegar.
— Mamãe... Pelo menos me ajude a sentar naquele lugar. Não quero ficar
presa nesta maldita cadeira mecânica!
Mamãe não olhava nos olhos dela.
— Adeus, Evelyn. Sinta-se melhor, querida. — Com isso ela saiu e fechou a
porta atrás de si.
Evelyn abafou um soluço. Ela não podia acreditar que isso estava
acontecendo. Tudo tinha dado tão terrivelmente, tão terrivelmente errado.
Ela estava prestes a desabafar sua dor quando percebeu que mamãe não havia
girado a chave na fechadura. Alguém a havia parado do lado de fora da porta.
— Biddy! Vista-se para a cerimônia imediatamente! Os convidados já estão
na igreja... Meu Deus, você fede a cavalo, menina!
— Tenho algo importante para lhe dizer, madame. — Biddy parecia tensa.
— Por favor escute.
— Não me incomode, hoje de todos os dias...
— É sobre o acidente da srta. Evelyn, madame. Sua sela lateral. Um dos
cavalariços deu uma olhada para mim e acha que foi adulterada, quebrada de
propósito!
— Sim, o Sr. Chillingham nos disse que a sela nunca deveria ter sido usada.
Agora, siga em frente. A carruagem estará pronta para Susan a qualquer
momento.
— Mas senhora... espere!
Suas vozes desapareceram. Evelyn ficou confusa e alarmada. O que Biddy
havia descoberto?
Ela poderia ir e perguntar a sua criada, se não tivesse passado seu tempo
tentando apaziguar o fantasma do Velho Chillingham. Ela não estaria sozinha
em um quarto, prestes a perder o casamento de sua irmã. E porque? Tudo
porque o velho queria contar sua história!
Ela bateu no braço da cadeira.
— Eu te odeio — sibilou ela. — Você arruinou tudo. Por que você me
incomodou? Eu não me importo com como você morreu!
A haste que travava suas rodas estava desengatada. Evelyn só teve tempo de
ofegar antes da cadeira começar a se mover para trás. Ela tentou pressionar a
haste novamente, mas emperrou. Suas mãos puxaram as alavancas sem sucesso.
Pareciam frouxos e sem peso, como se os fios tivessem sido cortados.
— Não! — ela gaguejou. — Peço desculpas. Eu não devia ter falado aquilo.
Por favor, pare!
A cadeira não parou. No mínimo, ganhou velocidade, invertendo até que ela
sentiu uma estante de livros bater na parte de trás de sua cabeça. Houve um
momento de tensão, de concentração; como um cavalo se preparando para pular.
Então ela disparou para frente.
Evelyn gritou, agarrando os braços para salvar sua vida. Pouco antes de
chegar ao retrato de Alfredo, houve um clique e as rodas desviaram para a
esquerda. A cadeira bateu na porta, saiu da biblioteca e continuou andando.
Isso foi pior do que quando Mercúrio fugiu. Pelo menos um cavalo poderia
ser falado, acalmado, mas a cadeira era implacável. Suas rodas giravam mais
rápido do que deveriam. Ela ouviu rangidos e estalos, como se a coisa toda
pudesse se despedaçar.
Ele foi cada vez mais rápido, ganhando impulso. Enquanto a casa passava por
seus olhos, Evelyn percebeu para onde eles estavam indo. A cadeira estava indo
direto para a sala onde ela dormia. Ela se lembrou de como a cadeira havia se
arrastado em direção àquela lareira logo no primeiro dia e uma terrível
premonição tomou conta dela.
— Pare! Desculpe!
A porta estava aberta. As rodas quase saíram do chão quando bateram na
soleira, mas não mostraram sinais de desaceleração. Seu primeiro medo estava
certo: Velho Chillingham estava mirando direto na lareira.
De repente, o assento pareceu balançar. Evelyn foi jogada no chão, caindo
dolorosamente e soltando o grito que vinha crescendo dentro dela o dia todo.
Houve um som estrondoso. A cadeira estremeceu em pedaços, madeira e
metal voando em todas as direções. Atingiu o batente da parede ao lado da
lareira, deixando um buraco do tamanho de um prato.
Biddy voou para dentro do quarto.
— Senhoritas! — Ela correu para se ajoelhar ao lado de Evelyn e puxou sua
cabeça para o colo. — O que aconteceu com você? Foi ele?
Manchas pretas passaram rapidamente pela visão de Evelyn. Ela distinguiu
as botas incrustadas de neve de Biddy e uma mancha de sujeira na bochecha da
criada.
— O que... Ele? Quem é que quer dizer?
Biddy mordeu os lábios.
— Senhorita, alguém está tentando machucá-la. Eu tenho dito à sua mãe o
dia todo, mas ela não quer ouvir. A cilha da sua sela foi cortada e o monte de
neve que assustou seu cavalo não aconteceu por acaso. Um menino no estábulo
foi pago para assustar a fera!
Sua cabeça girava. Ela tinha uma desculpa para estar delirando – mas
certamente Biddy não?
— Isso não pode ser verdade! Quem diabos iria me querer morta?
Biddy ergueu as sobrancelhas.
— Quem você acha? Para quem iria o dinheiro do Sr. Lennox, se ele tivesse
apenas uma filha?
Dedos de gelo subiram pelas costas de Evelyn. Ela se lembrou da piada de
seu pai sobre o dote. Se ela tivesse morrido no acidente, teria sido o marido de
Susan quem ficaria rico.
Rumores sobre os hábitos de jogo de Victor Chillingham voltaram com força
total. Os jogadores podem ser desesperados…
Ela lutou para se sentar.
— Não — ela declarou. — Não, ele não faria isso comigo. Ele se importa
conosco. Nós somos família. — Algo atrás delas rachou. Desajeitadamente,
Evelyn virou a cabeça para ver a argamassa desmoronando do buraco que a
cadeira havia feito.
— Eca! — exclamou Biddy. — Que cheiro é esse?
De repente, algo cedeu. O gesso quebrou, houve um barulho e detritos
saíram do buraco como uma placenta. Levada pela maré de poeira e entulho,
havia uma coleção de ossos humanos.
Biddy gritou.
A peça mais longa e grisalha era uma espinha curvada suavemente em uma
foice.
— É Alfred — suspirou Evelyn.
Mas como poderia ser?
Se Alfred estava morto... então ele não havia machucado o Velho
Chillingham. Ele nem teria fugido. Seu corpo havia sido escondido e só havia
uma pessoa que poderia lucrar com seu desaparecimento: o mesmo homem que
havia jogado as evidências do veneno no fogão.
Agora ela entendia por que o fantasma do Velho Chillingham tinha insistido
tanto para ser ouvido. Victor Chillingham era um assassino – e ele estava se
casando com uma jovem inocente.
— Deus nos Céus! Onde está Susan?
— Ela já estava na carruagem — lamentou-se Biddy. — Sua família deve
estar toda lá fora, ou eles teriam vindo correndo, como eu fiz, quando você
gritou.
Evelyn não conseguia parar de tremer. Haveria tempo suficiente para
absorver o choque e o horror mais tarde – tudo o que importava agora era
Susan. Ela tentou mover a perna, mas sabia que nunca conseguiria ficar de pé.
— Biddy, você deve parar essa carruagem! Ela não pode se casar com ele.
Corra, Biddy, corra!
Com um soluço, a empregada saiu do quarto.
Evelyn sentou-se tremendo, olhando para os restos mortais de Alfred e da
cadeira. Ela havia prejudicado os dois. Os Chillinghams mortos não
trabalhavam com ódio, como ela pensava, mas com bondade. Tentando avisá-la.
Ela ouviu a porta da frente abrir. O grito estrangulado de Biddy ecoou pelo
pátio, mas nenhuma voz se ergueu em resposta.
Em vez disso, veio o estalo de um chicote atravessando o ar gelado. Couro
rangeu, cascos fizeram um som oco e Evelyn percebeu que a carruagem já havia
começado a se mover, puxando sua irmã cada vez mais longe.
O ENFORCAMENTO DOS GREENS

Andrew Michael Hurley


Este ano, o abeto e o azevinho apareceram nas janelas das pessoas muito mais
cedo do que o normal e, no início de dezembro, todas as casas do vilarejo
estavam enfeitadas com sempre-vivas, exceto a minha.
A maioria dos meus vizinhos me conhece há muito tempo, mas ainda devem
achar estranho que eu não monte uma árvore. Talvez suponham que estou
fazendo algum protesto puritano contra a comercialização da estação. Eu não
estou. Mal posso esperar para que tudo acabe.
Há semanas evito as lojas que vendem guirlandas de visco e recusei todos os
convites que recebi para um café ou um xerez noturno para não ter que admirar
a árvore de Natal de alguém.
É o cheiro do verde que não suporto. Ou melhor, o que o cheiro me lembra,
mesmo agora, anos depois, quando estou a quilômetros da Fazenda Salter.

David não sabia de nada disso quando apareceu ontem à noite um pouco bêbado
da festa do escritório, com uma coroa de flores para a sala e um punhado de
azevinho que trouxera do parque. Foi um gesto doce e tentei não reagir muito
fortemente, mas ele sabia que tinha feito algo para me chatear. E então eu tive
uma noite dele tentando tirar tudo a limpo.
Mesmo que eu não tenha revelado muito, acho que ele finalmente percebeu
que havia desenterrado uma memória antiga e desagradável e depois disso ele
teve a gentileza de me deixar em paz, mas sei que ele perguntará sobre isso
novamente.
Não posso simplesmente revelar meu passado como David faz com o dele.
Há certas coisas que não me fazem muito bem revisitar. Como o que aconteceu
na Fazenda Salter.
O problema é que quanto mais eu desconverso, mais ele vai querer saber o
que estou escondendo, e ele pensará que tocou exatamente no que me torna
como sou: desconfiado e distante; assombrado às vezes, diz ele.
Ele tentará me convencer de que, ao falar sobre tudo, haverá uma espécie de
liberação de qualquer retenção que a memória tenha sobre mim. E que não devo
me preocupar com o que as pessoas pensam, inclusive ele.
Apenas revele a história, Ed, ele dirá.
Tudo bem então.

Aconteceu há mais de metade da minha vida, quando eu tinha vinte e sete anos
e ainda tentava agradar a um Deus cuja existência era tão indiscutível para mim
quanto a existência do ar. Eu era insuportavelmente ambicioso, sincero como
um missionário, fingindo que as coisas que me faziam infelizes eram decisões
astutas ou sacrifícios deliberados.
Ah sim, eu escolhi não ficar pensando em namorada (ou qualquer amiga no
geral), eu escolhi não me socializar com pessoas da minha idade, eu escolhi
continuar morando com meus pais – porque significava que eu poderia me
tornar indispensável para a paróquia, como Deus queria que eu fizesse.
Naquela época, eu considerava um ato de devoção preencher meus dias até a
borda. E como se já não bastasse o que fazer numa tarde de sexta-feira – entre
uma ou outra reunião do comitê e a arrumação das cadeiras para o clube folk no
salão paroquial – iniciei um grupo de aconselhamento chamado “Fale comigo”,
que se reunia na capela lateral junto à pia batismal.
Meia dúzia de pessoas dedicadas veio por um tempo e eu me orgulhei de
ajudá-los a fazer um bom progresso com suas dificuldades por meio de discussão
e oração. Tanto que no verão eles não precisavam mais comparecer.
Fora vítima de seu próprio sucesso, como disse o Reverendo Alistair.
Gentilmente, posso ver agora, para evitar a verdade de que os havia afastado
com minha determinação de dar-lhes todas as respostas. Com uma mão solidária
em meu braço, ele sugeriu que eu recomeçasse o grupo mais perto do Advento,
quando era mais provável que uma pessoa tivesse em mente as decepções do
ano.
Eu tinha acreditado em sua palavra (bem, por que ele teria dito isso se não
fosse sério?) e por várias sextas-feiras eu esperei na igreja fria por uma hora
inteira na chance remota de que alguém pudesse aparecer. Mas foi quase na
metade de dezembro que alguém apareceu.
Seu nome era Joe Gull, um homenzinho de olhos lacrimejantes que veio
cativantemente bem vestido naquela primeira tarde, pensando apenas
respeitosamente quando, como ele mesmo admitiu, não pisava em uma igreja
há décadas. Pela maneira como ele parecia constantemente pedir permissão para
estar lá, tive a impressão de que ele se considerava um caso incomum. Mas não
era nada incomum que os enfermos voltassem para Deus.
E ele estava doente. Eu pude ver isso imediatamente. Movia-se com uma dor
que não conseguia disfarçar e tinha a palidez de quem estava doente há muito
tempo, de quem não ia melhorar. O que havia de errado com ele, ele não disse –
suspeitei que fosse câncer –, mas ficou claro que ele não achava que tinha muito
tempo de vida. Foi por isso que ele perguntou se poderíamos nos encontrar
novamente em breve.
Com ele sendo o único participante do grupo em meses e querendo
aproveitar ao máximo seu entusiasmo, fiquei muito feliz em dizer que sim. E
ele veio alguns dias depois e novamente dois dias depois disso em um padrão
que rapidamente se tornou uma rotina.
Tinha sido uma luta quando eu tinha tantos outros compromissos e estava se
aproximando do Natal, mas mesmo assim arrumei tempo para ele porque senti
(tão profundamente, tão inquestionavelmente) que Deus havia trazido Joe para
mim e que eu tinha uma parte a cumprir em seus preparativos para o final.
Não houve melhor confirmação disso do que quando ele começou a me
revelar certas ansiedades que dizia não poder compartilhar com mais ninguém.
Ele sempre foi um homem fraco, disse. Sempre cheio de maus espíritos. Ele
nem sempre fizera o suficiente para mantê-los afastados. Às vezes, na verdade,
ele os convidava a entrar.
E por causa disso, ele passou a aceitar que recebeu uma sentença bem
merecida, como ele disse. No entanto, por que fazê-la tão curta, disse ele, e lhe
dar pouco tempo para reparar o dano que havia causado em sua vida?
Apontei para o fato de que ele ainda estava aqui, e isso significava que Deus
estava dando a ele a chance de fazer as pazes. Embora ele não estivesse muito
convencido.
Não ajudou que ele pensasse em termos de retribuição o tempo todo. Não
era isso, eu disse a ele. Deus nunca repreendeu ninguém durante sua vida
terrena. Ele apenas lhes deu oportunidades de se conhecerem como mortais e
falíveis e corrigir as falhas que ambas as coisas causaram antes de chegarem ao
julgamento final. E nunca é tarde para conhecer a graça de Deus, eu disse. Pense
nos dois ladrões crucificados ao lado de Jesus.
Isso o acalmou, mas apenas um pouco, e apenas no momento. Eu já tinha
visto isso antes em pessoas como Joe, que vagavam pelo deserto há anos. Por
nunca terem buscado o perdão de Deus, seus pecados se multiplicaram e
aumentaram muito além do que era verdade.
Ele bebia, sim, e embora eu soubesse dos efeitos corrosivos do hábito por um
panfleto que peguei por acaso no consultório do médico e pelo que o próprio
Joe me contara, era difícil imaginar que isso o tivesse levado a fazer algo tão
ruim quanto seu remorso sugeria. E quanto aos maus espíritos, eu tinha certeza
de que os únicos que ele tinha dentro dele eram os que vinham em uma garrafa.
Que ele viveu uma vida difícil era bastante evidente. A primeira vez que ele
veio a St. Peter’s, notei imediatamente que suas mãos estavam cobertas de
vergões. Seu rosto também estava lascado aqui e ali. Sua orelha esquerda
machucada como a de um gato de rua.
Ele era como muitos dos homens que conheci durante as sessões de discussão
nas tardes de sexta-feira. Homens sempre se equilibrando à beira de mais uma
derrota.
No entanto, à medida que o Natal se aproximava, era bom ver o desespero
de Joe se transformar em determinação para fazer o melhor uso possível do
tempo que lhe restava. Eu trouxe papel e envelopes, ajudando-o a redigir as
cartas que queria escrever para amigos que achava ter traído e parentes que
aparentemente havia prejudicado.
E porque eu tinha sido vaidoso o suficiente para acreditar que Deus estava se
movendo através de mim e eu realmente me tornei essencial, concordei sem
questionar quando Joe me pediu para ir ver os Oxbarrows.
Sua amizade com eles havia terminado de forma desagradável há algum
tempo, disse ele, e a culpa por isso era insuportável. Mesmo depois de tudo o
que fizeram para ajudá-lo a ficar longe da bebida, ele voltou a beber, o que
causou mais danos a eles do que a ele. Ele machucou Helen gravemente e
deixou Murray ainda mais doente do que já estava.
Nada disso foi intencional, é claro, ele disse, mas eles tinham todo o direito
de desprezá-lo, no entanto. Eles foram tão gentis e ainda assim ele foi incapaz
de apreciar isso, incapaz de pensar nisso como bondade por causa da coisa
maligna dentro dele naquele momento. Se ele pudesse fazer as pazes com
alguém antes que tudo acabasse, ele queria que fosse com eles.
Embora tivesse que ser feito corretamente, disse ele. Uma carta não seria
suficiente. Só seria possível consertar as coisas indo à própria Fazenda Salter. E
só se eu fosse sem ele. Porque ele sabia que eu seria capaz de explicar como ele
se sentia para Helen e Murray muito melhor do que ele. Não pareceria um
pedido de desculpas tão direto.
Eu disse sim, é claro.

Os Oxbarrows viviam em Blakeley Cross sob as colinas de Bowland – um


daqueles lugares que não poderiam realmente ser considerados uma aldeia, mas
sim uma dispersão de edifícios entre os campos de ovelhas. No mapa, os
caminhos seguiam os antigos limites dessas pastagens e, embora Joe tivesse
circulado a casa dos Oxbarrows para mim, ainda consegui me perder no
labirinto. A neve só aumentava a confusão, fazendo com que todos os
cruzamentos parecessem iguais.
Foi por mero acaso que encontrei a casa: um pedaço de arenito em um lugar
afastado da estrada por uma trilha ladeada de faias. O caminho estava cheio de
folhas que, até eu chegar na casa, pareciam não ter sido tocadas desde o outono.
Desgastada e descascada, a Fazenda Salter fora construída em um ângulo
estranho em relação à estrada, fazendo parecer que estava sempre acostumada
com o clima. Parecia ainda mais assustadora agora que a neve estava pegando
nos cantos das telhas e nas janelas sem luz, estendendo um velo sobre o quintal
e o campo nu em frente à casa, caindo sobre a van estacionada perto do depósito
de lenha, cada pneu furado, a frente desmontada.
Se não fosse pela fumaça saindo da chaminé, o lugar pareceria abandonado.
O tempo havia se tornado quase uma nevasca quando saí do carro e fui até a
varanda da porta da frente. De um pedaço de corda pendia um grande sino,
como algo que uma vaca usaria, e mantendo minhas mãos nos bolsos, coloquei-
o para funcionar com o cotovelo.
Eram três horas da tarde alguns dias antes do Natal e nevava muito, mas
desconfiei que aqui era tão desolado assim o ano todo. Não havia nenhuma
outra casa à vista – eu não havia passado por nenhuma desde que cruzei o rio – e
a Fazenda Salter era uma fazenda apenas no nome. Não havia currais, cercados
ou galinheiros. Restava apenas o chalé, e o que imaginei ser a oficina de Murray,
e atrás dele um campo vazio que subia até uma velha plantação na encosta. Uma
extensa área de pinheiros que havia sido invadida por azevinho, cipreste e teixo.
Como estava tão quieto, eu podia ouvir vozes vindas das árvores. Vozes e o som
da vegetação sendo derrubada. Silvicultores, presumi, cortando abetos para
atender à demanda da cidade.
Eu não queria me incomodar, mas tinha certeza de que, se pudesse sentar
com os Oxbarrows, mesmo que por alguns minutos, eu poderia defender o caso
de Joe e convencê-los.
Depois de tocar a campainha novamente, não houve resposta, e tentei bater
na janela com cortina da sala da frente, chamando por Helen, imaginando que
ela provavelmente viria à porta no lugar de Murray se ele estivesse tão mal
quanto Joe havia dito, com seu coração delicado e seu sangue aguado.
Mas nenhum deles respondeu, e pensei que provavelmente estavam me
ignorando. Eu não os culpo por morar aqui. Era o conselho que sempre dava aos
idosos que visitava. A menos que esteja esperando alguém, não atenda a porta.
A última coisa que eu queria fazer era invadir, mas, novamente, eu não
queria sair sem pelo menos mais uma tentativa de falar com os Oxbarrows,
então eu atravessei o postigo ao lado da casa, pensando que eu deveria tentar
também na parte de trás da casa.
As vozes na plantação voltaram, ecoando o suficiente para enviar um par de
pombos-torcazes voando para fora dos pinheiros. Quem quer que estivesse lá
partira da Fazenda Salter, ao que parecia. Uma cadeia de pegadas saía de um
portão aberto e subia pela neve até a linha das árvores.
Eu me perguntei se a plantação pertencia aos Oxbarrows. Fazia sentido. Joe
me disse que Murray ganhava a vida fabricando e restaurando móveis e ter suas
matérias-primas tão à mão deve ter sido bom para os negócios. Talvez agora que
ele não estava bem o suficiente para trabalhar, ele teve que ganhar dinheiro
vendendo a madeira – ou os abetos nesta época do ano.
Talvez ele também cobrasse pelo uso de sua oficina, cujas portas estavam
abertas quando passei. Lá dentro, alguns passarinhos esvoaçavam ao redor da
enorme serra circular e pousaram nos móveis que Murray evidentemente estava
consertando antes de sua saúde piorar. Um grande estrado de cama, uma
cômoda galesa, uma mesa de carvalho, um relógio de pêndulo e, encostada nele,
uma bicicleta com a roda dianteira torta – a que Joe havia mencionado, aquela
em que estava andando na noite em que Murray o encontrou.
Ainda estava sem conserto, mesmo agora.
Ele saiu da estrada, ele me disse, vindo do John Barleycorn – um pub no
meio do mato onde ele podia beber em paz.
Tinha sido uma noite chuvosa de dezembro e ele não tinha faróis e nem
freios o suficiente e bebeu um cantil de uísque e conhaque, e tudo isso o fez cair
em uma vala em uma curva fechada.
Por quanto tempo ele ficou ali deitado ele não sabia – poderia ter sido cinco
minutos ou cinco horas – mas quando ele sentiu que estava sendo sacudido de
volta à consciência, ele estava encharcado pela chuva.
Ele estava vagamente consciente, ele disse, de luzes brilhantes e um motor
estremecendo, e então de ser arrastado para a estrada. Supondo que fosse a
polícia, e não tendo condições de resistir, ele se deixou levar até a van e ser
amarrado com força, enquanto o homem que o resgatou recuperou a bicicleta e
um sapato.
Murray não tinha dito nada a princípio além de se apresentar e entregar a
Joe a toalha que ele usou para limpar o pára-brisa para que ele pudesse
pressioná-la contra a cabeça. Agora, pensando que ele era um médico e que ele
estava a bordo de uma ambulância, Joe perguntou se eles estavam indo para o
hospital. Mas Murray havia sugerido um lugar mais próximo, se ele não
quisesse sangrar até a morte.
Era inevitável, disse Joe, que ele acabaria se machucando assim mais cedo ou
mais tarde. Ele estava bebendo com mais intensidade desde que o expulsaram
do albergue um ou dois meses antes e ele foi forçado a recorrer à caridade de
amigos e parentes. Aqueles para os quais ele havia escrito com a minha ajuda.
Aqueles que o ajudaram apenas para que ele os decepcionasse – chegando a todo
vapor, servindo-se de sua comida e embolsando seu dinheiro, roubando uma
bicicleta.
Não demorou muito para ele ficar sem favores e últimas chances e antes de
Murray buscá-lo algumas semanas antes do Natal, ele passou duas noites
dormindo em um velho galpão de porcos que encontrou a uma curta viagem de
bicicleta do bar.
Dado isso, e o fato de que ele estava inconsciente na lama e na chuva por
Deus sabe quanto tempo, ele deve ter fedido a cozinha, disse ele, naquela noite
em Fazenda Salter. Mas Helen não disse nada enquanto limpava os cortes em
sua testa, e Murray apenas preparou um banho para ele e o presenteou com um
conjunto de roupas secas, levando embora as velhas e queimando-as enquanto
Joe se esfregava até ficar limpo.
Assim como o médico que veio no dia seguinte para examiná-lo, os
Oxbarrows não castigaram Joe pelo modo como ele vivia ou pelo estado em que
estava quando Murray o encontrou. Mas, ao mesmo tempo, eles não haviam
simplesmente fechado os olhos para seus problemas.
Sabendo que ele que teria muito mais chances de recuperação se
permanecesse na Fazenda Salter, eles o coagiram a ficar, dando-lhe o que sabiam
que ele mais precisava: um teto sobre sua cabeça, comida na mesa, atenção e
ternura. Mas não pena, disse Joe. Murray e Helen, eles foram astutos o
suficiente para saber que homens como ele – homens que hospedavam um
espírito tão desonesto – se aproveitavam da pena. Eles foram espertos o
suficiente para fazê-lo trabalhar por sua cama e comida. Inteligente o suficiente
para fazer o único trabalho oferecido como motorista de entrega, o que significa
que não havia como eles deixarem Joe ao volante, a menos que ele estivesse
sóbrio.
Então, assim como Murray às vezes tinha que pegar os pássaros que voavam
para sua oficina e chegavam muito perto do maquinário, ele também foi preso,
disse Joe, para seu próprio bem e da maneira mais gentil possível.
Ficou claro que os Oxbarrows já tiveram muita compaixão por ele e, apesar
do que aconteceu, não pensei que tivesse se esgotado completamente. Era
possível que eles não estivessem realmente zangados com Joe, mas se culpassem
de alguma forma por sua recaída. Era um pensamento ridículo – eles eram
samaritanos perfeitos – mas, se fosse um sentimento genuíno, poderia significar
que eles estavam procurando uma maneira de lançar o fantasma da culpa. Por
sua vez, eles seriam mais receptivos à disposição de Joe de assumir a culpa e
isso, talvez, fosse o primeiro passo para aceitar seu pedido de desculpas.
Tudo isso eu seria capaz de detectar assim que os fizesse falar, pensei, e parei
sob as janelas na lateral da casa, esperando que Helen ou Murray pudessem
olhar para mim com curiosidade, pelo menos. Mas ninguém apareceu e eu
entrei no longo jardim em ruínas nos fundos.
Na neve, entre as amoreiras e as cascas de ervas-daninhas, havia um relógio
de sol rachado e vários galpões de madeira, todos dobrados sobre si mesmos.
Atrás deles havia um caramanchão podre e bem no final, um canil.
Esperando que surgisse um cachorro – algo forte e hostil em uma casa
isolada como esta – esperei um momento antes de subir os degraus até a porta
dos fundos e bater no vidro.
Lá dentro, um fogão a lenha ardia e pude ver que a cozinha fora enfeitada
com maciços de sempre-vivas e três ou quatro abetos encostados à parede.
Quando ninguém se materializou, segui pelo caminho nos fundos da casa,
batendo na janela de outro quarto e depois no próximo, ambos com as cortinas
fechadas.
No caso de um ou outro dos Oxbarrows estar lá dentro, inclinei-me para
mais perto do vidro e disse:
— Sou de St. Peter’s. Na cidade. Eu poderia falar com vocês? Eu não ficaria
com você por muito tempo.
Isso era verdade. Eu teria que partir mais cedo ou mais tarde. Refazer a rota
que fiz por aquela rede de vielas estreitas já seria bastante difícil, já que eu não
tinha ideia de como cheguei aqui. No escuro, seria ainda mais difícil.
Bati de novo e, como não houve resposta, comecei a me conformar com o
fato de que teria de voltar para Joe sem ter feito muito progresso.
Ele ficaria desapontado – até mesmo ansioso por não viver para ver outra
chance de reconciliação –, mas eu me senti mais do que capaz de convencê-lo de
que, se consertar as coisas com os Oxbarrows era importante, então Deus
concederia tempo para que isso pudesse acontecer. Simplesmente não podia ser
apressado. Se fosse a vontade de Deus que Joe tivesse paciência para ganhar a
confiança deles, então era isso. E ele podia ter certeza de que seria ainda mais
precioso quando se tratasse dele.

Voltando à porta da cozinha e batendo no vidro uma última vez, olhei pela sala
até o corredor, esperando pegar Helen ou Murray andando pela casa.
Na luz acastanhada que entrava pela janela acima da porta da frente, vi uma
escada caída de lado e o chão coberto de sempre-vivas.
Bati de novo no vidro com mais força, levantei a voz e, como parecia
provável que Murray ou Helen tivessem caído, parecia certo, já que eu estava lá,
garantir que eles não estivessem feridos.
Felizmente (ou pelo menos foi o que pensei na época), a porta não estava
trancada e, uma vez lá dentro, pude ver toda a extensão das decorações que os
Oxbarrows haviam colocado. As vigas baixas foram enfeitadas com vários ramos
de azevinho e pinheiro, as janelas emolduradas com hera, nas quais dezenas de
pequenas velas foram entrelaçadas. As árvores que eu tinha visto pela janela
estavam agrupadas, suas pontas dobradas contra o teto, seu cheiro cítrico
xaroposo avassalador e enjoativo no calor do fogão.
Eu gritei ‘olá’ e, sem obter resposta, fui para o corredor, passando por cima
da escada caída e pegando um pouco da folhagem. Todo o corredor estava
coberto de visco e abeto, e as coroas de teixo e abeto que haviam sido arrancadas
das paredes. A hera que havia sido enrolada nas hastes da escada agora pendia
em farrapos, e as velas que haviam sido amarradas nas hastes estavam quebradas
no chão.
A porta da sala da frente estava entreaberta, mas como estava frio e escuro lá
dentro, olhei sem esperar que Murray ou Helen estivessem lá. Pelo cheiro
percebi que tinha sido decorada como a cozinha e, acendendo a luz, vi montes
de abetos e ciprestes cobrindo a lareira, o topo da lareira, o piano fechado contra
a parede. As fotografias de Helen e Murray na cômoda estavam quase
escondidas em moitas de azevinho.
Voltando para fora, parei na parte inferior da escada e chamei para o próximo
andar.
— Eu não queria simplesmente entrar — eu disse. — Vocês dois estão bem?
Eu sou de St. Peter's. Na cidade. Eu sou Edward Clarke.
Não ouvindo nada, subi os degraus de madeira, ainda falando para que eles
pudessem me ouvir chegando e eu teria menos chances de alertá-los.
— Joe Gull me pediu para passar por aqui — eu disse, olhando para os
quartos que encontrei no patamar, um era um banheiro, o segundo dava para a
escada que levava ao último andar. — E aconteceu de eu esteja por perto — eu
disse, tentando abrir a porta do terceiro quarto e descobrindo que havia uma luz
acesa lá dentro.
— Posso entrar? — Eu disse. — Está tudo certo? Sou de St. Peter’s.

Murray estava deitado de barriga para baixo na cama de casal, uma mão torcida
para descansar na parte inferior das costas, o outro braço pendurado na beirada
do colchão, os nós dos dedos tocando o chão. As cortinas estavam fechadas e a
luz da lâmpada na mesa ao lado dele refletia em um copo de água, cujo fundo
estava espesso com o sedimento de comprimidos dissolvidos; ao lado, um
cigarro jazia como um pedaço de cinza em um pires.
Estava frio no quarto, e isso pode ter explicado, mas não havia nada do
cheiro que eu pensei que um corpo deveria exalar. Murray não poderia estar
morto há muito tempo. E eu não tinha dúvidas de que ele estava. Meu avô
estava exatamente igual em sua cama em casa; ele havia passado pela mesma
completa evaporação de cor.
Imaginei que Murray devia estar pendurando as sempre-vivas e caído da
escada, arrastando para baixo o que havia pregado no corrimão enquanto
tentava agarrar-se a algo. Então ele subiu as escadas para acalmar os nervos com
suas pílulas e um cigarro e foi tomado por algum tipo de convulsão, ou talvez
um ataque cardíaco.
Ele parecia tão doente quanto Joe o descrevera. Como alguém que havia
perdido muito peso rapidamente e recentemente. Suas roupas eram grandes
demais para ele e o excesso de pele de suas bochechas dava a impressão de que
seu rosto estava gradualmente escorregando para o travesseiro.
O que quer que tenha acontecido com o pobre Murray, ele suportou sozinho.
Helena não estava aqui. E agora ela voltou para casa com a pior notícia possível.
Como era perto do Natal, as chances eram de que ela tivesse saído para
visitar a família (embora eu não soubesse com qual meio; certamente não a pé?)
e não havia como saber quanto tempo ela demoraria. Pensei em ligar para a
delegacia de polícia em Clitheroe, mas temi que apenas aumentaria a angústia
de Helen encontrar um carro panda e uma ambulância no quintal quando ela
voltasse. E, naturalmente, eles iriam querer saber por que eu tinha entrado em
casa sem ser convidado.
Claro, em algum momento eu teria que admitir que havia entrado, mas
achava que Helen, se não a polícia, seria capaz de ver que havia uma
justificativa razoável para isso. Ela poderia até me agradecer no final por minha
determinação, pensei, então desci para dar uma olhada na agenda de endereços
ao lado do telefone no corredor. Se eu pudesse encontrar um irmão ou uma
irmã, talvez, mesmo que ela não estivesse com eles, eles pelo menos seriam
capazes de divulgar.
Embora eu não soubesse o que diria, e ao discar o primeiro número do livro
tentei formular minhas linhas iniciais da maneira que parecesse menos provável
de criar confusão ou pânico.
Mas nada parecia certo, até a verdade parecia transigindo, e fiquei aliviado
quando alguém começou a tocar a sineta na varanda e pude desligar o telefone.
Demorei tanto para destrancar os ferrolhos que quem estava do lado de fora
desistiu quando abri a porta. Pegadas deram a volta na lateral da casa até o
postigo e de lá eu chamei, antes de ir até a oficina e chamar de novo, apenas
para a campainha soar mais uma vez.
Mas quando voltei para a porta da frente, quem tocou pela segunda vez não
esperou. Não havia ninguém lá.
E meu carro sumiu.
Não era possível que tivesse sido roubado, eu teria ouvido o motor girando
para ligá-lo, e não poderia ter sido removido tão completamente de vista tão
rapidamente. De qualquer forma, não havia ninguém por perto, não por
quilômetros, além das pessoas na floresta. A menos que tenham sido eles que
tocaram a campainha, pensei, querendo que eu movesse o carro por algum
motivo e eles mesmos o fizeram quando não atendi. Mas eu só tinha saído por
um minuto e não havia estacionado no caminho de ninguém; não havia outro
veículo para atrapalhar, além da van de entrega de Murray. O carro
simplesmente não poderia ter sido levado. Não havia marcas de pneus saindo do
pátio.
E, no entanto, também não havia vestígios das pegadas que esculpi na neve
quando cheguei.
Eu me perguntei se quem havia tocado a campainha havia entrado na casa e,
olhando para cima, vi que alguém devia ter feito isso porque as cortinas do
quarto dos Oxbarrows estavam abertas. E entrando pela porta da frente, ouvi
vozes na cozinha e encontrei a escada de pé novamente, as sempre-vivas
penduradas nas paredes, mais exuberantes e perfumadas do que antes.
Eles pendiam do lintel da porta da cozinha em cachos tão pesados que tive
que varrer a vegetação para passar, demorando muito mais do que deveria para
cruzar a soleira – como se estivesse abrindo caminho através de algum
especialmente coberto de mato parte da plantação.
Coloquei-o na espessura da folhagem, mas quando tentei anunciar minha
presença, quando perguntei sobre o carro, minha voz só soou dentro da minha
cabeça, como se eu estivesse pensando em vez de falar. E foi como se eu fosse
mais um espectador do que um participante quando, saindo arranhado do
azevinho e das agulhas dos pinheiros, me vi despercebido pelas três pessoas ali
presentes.
Nenhum deles olhou para mim. Não Murray, Helen ou Joe, que estavam
sentados perto do fogão a lenha, enrolados em um cobertor com uma caneca de
café a seus pés. O cachorro que eu esperava que viesse me assustar para ir
embora, um Dobermann de aparência afiada, estava deitado no avental de calor,
atento às rajadas de chuva forte nas janelas e ao tranquilo monólogo de conforto
de Helen enquanto ela enxugava os cortes na testa de Joe.
— Graças a Deus você o encontrou — disse ela.
Murray olhou e voltou para a sopa que estava fervendo no fogão.
— Ele teve sorte por eu quase ter atropelado sua bicicleta — disse ele. —
Caso contrário, eu teria passado direto por ele.
Helen puxou outro tufo de algodão da bolsa e o mergulhou na tigela de água
em seu colo.
— Você acha que alguém no Barleycorn o conhece? — ela disse.
— Tenho certeza de que eles o conhecem — disse Murray. — Se eles se
importam com ele, é outra coisa.
— Por que eles deixaram ele ficar tão chateado?
— Não cabe a eles dizer a ele quando parar, certo?
— Eu sei, mas veja o estado dele, Murray. Está claro que ele não tem
dinheiro para gastar com bebida. É imoral tirar isso dele.
Ela jogou o algodão ensanguentado na lixeira e pegou a cabeça de Joe
enquanto se agachava.
— Você vai ter que segurá-lo — ela disse, e Murray se aproximou, firmando
a cabeça de Joe em suas mãos enquanto um tremor se instalava.
— Ele ainda não está descongelado, pobre coitado — disse Helen e pegou
outro cobertor de uma das cadeiras perto do fogo e abriu-o.
Só que se desdobrou em um pedaço de pano muito maior, branco e recém-
lavado, que pousou na mesa da cozinha onde Helen o alisou.
De alguma forma, era manhã agora. A sala estava cheia de sol brilhante de
inverno. Um pequeno pote de snowdrops estava no parapeito da janela.
Joe apareceu na porta da cozinha, com o rosto corado em seu sobretudo, e
ficou ali parado, indeciso, até que Helen percebeu e o chamou.
— Não se preocupe, não vamos retê-lo por muito tempo — disse ela,
puxando uma cadeira para ele se sentar. Ele tirou as luvas de trabalho, colocou-
as cuidadosamente no colo e acariciou o cachorro quando ele veio farejar suas
pernas. Ele parecia mais saudável do que eu jamais imaginara, sorrindo de um
jeito que eu nunca tinha visto antes. Havia algo diferente nele também, algo
que me escapou por um momento antes que eu percebesse o que era. Ele não
tinha cicatrizes.
— Ele está pronto — disse Helen, de pé atrás de Joe com as mãos sobre os
olhos quando Murray entrou, tomando muito cuidado para ser discreta, e
colocou sobre a mesa um pão-de-ló coberto com as palavras “Um mês sóbrio”.
A surpresa revelada, Joe aceitou o aperto de mão de Murray e o beijo de
Helen e então apagou a vela, deixando a sala na escuridão – uma escuridão
granular, pesada para respirar e de repente feroz com o som. E quando o barulho
foi diminuindo e a poeira com ele, descobri que agora estava na oficina.
Eu não estava sonhando. Não havia exatamente esse tipo de absurdo nisso.
Houve mais direção. Como se estivessem me mostrando coisas que eu não tinha
escolha a não ser assistir.
Não me lembro de ter sentido medo – isso veio depois – apenas
entorpecimento. Era uma espécie de paralisia, talvez. Eu não sei como chamá-
lo. O melhor que posso fazer é compará-lo a como eu imaginaria alguém
acordando sob anestesia para se sentir: consciente, mas imóvel; um espectador
mudo.
Observei Joe e Murray pegarem o pedaço de madeira que haviam cortado e
carregá-lo em um carrinho empilhado com outras tábuas de pinho. O disco da
serra parou, soltando fumaça levemente. Murray escancarou as portas, tirando a
máscara para acender um cigarro. As árvores do lado de fora pingavam com a
água da chuva e floresciam ao sol. Era o meio da primavera agora, abundante e
úmido. O cachorro apareceu, limpo como uma lontra, sacudiu o pelo e
acompanhou Joe e Murray enquanto eles manobravam o carrinho em direção à
van.
Quando eles se foram, pequenos pássaros voaram, pousando nos móveis ou
nos dentes da roda da serra.
Mais chegaram, em bandos, tentilhões e toutinegras, transformando o lugar
em um aviário, até que um dardo de andorinhões na face das portas abertas
pareceu atrair os pássaros para fora, como se estivessem respondendo a um
chamado.
Eu os segui – não, eu fui levado – para fora da oficina e para as brasas de uma
noite de verão. Os andorinhões exultantes ao pôr-do-sol deslizavam baixo sobre
o campo em frente à casa, a grama luxuriante como pêlo, a antiga crista e sulco
da terra abaixo dela encontrados pelas longas sombras das faias. Maduros e
cheios, eles sombreavam completamente a van quando ela subia a trilha da
estrada.
Joe estava dirigindo sem camisa e sem pressa, um cotovelo pendurado para
fora da janela. No quintal, ele girou o volante com a mão e depois voltou para a
oficina, onde Murray estava varrendo.
Os meses de trabalho, a sobriedade e a gentileza transformaram Joe. Quando
saltou do táxi, parecia magro e bronzeado pelo verão. Ele era muito mais jovem
do que eu pensava.
Fazendo Murray rir de algo que não consegui ouvir por causa do canto dos
pássaros, Joe pegou outra vassoura e juntos ergueram a serragem em uma pilha
perto da porta.
No calor da noite, ela se ergueu e se espalhou densa como a névoa. Névoa
que esfriou em garoa. Garoa que virou chuva em um dia de outono.
Agora, quase todas as folhas das faias haviam caído em um tapete encharcado
no quintal, onde Murray se agachou ao lado da van para inspecionar os danos
que haviam sido feitos na frente. O canto esquerdo havia sido esmagado, o farol
quebrado, o capô enrugado como se tivesse levado um soco forte por dentro.
A cabeça de Murray caiu e então, levantando-se e sacudindo a umidade das
mãos, ele foi até a janela da sala da frente.
Agora eu o via de dentro de casa, murmurando através do vidro para Helen
que estava ajoelhada ao lado do sofá onde Joe jazia cadavérico com a bebida, um
balde perto de sua cabeça.
E então era um dia diferente, e eu o observei deitado na mesma posição, o
balde cheio.
Outro dia.
Outro dia.
Agora ali estava ele, vasculhando os armários da cozinha, a bolsa de Helen.
Lá estava ele guiando sua bicicleta quebrada pela trilha sob as faias.
Voltando agora, furtivamente, os bolsos do sobretudo pesavam.
Lá estava Helen despejando uma garrafa de gim barato na pia.
Joe tentando desmontar a curva em U.
O cachorro latindo para ele.
Mostrando os dentes.
Joe trocando a chave por um martelo.
O cachorro mancando pelo jardim até seu canil.
Murray arrancando o martelo de Joe.
Joe fugindo escada acima para seu quarto.
A casa se encheu com seus gritos.
Desejei ir até ele, mas o tempo passou, levando-me novamente à oficina. Murray
estava ali sozinho, aplainando cachos de pinho de uma porta, com o olho roxo
por causa de um hematoma. Deixando de lado o ferimento, ele parecia
notavelmente indisposto agora. Ele estava grisalho nas bochechas, magro e
esgotado; assim como ele estava quando eu o encontrei deitado em sua cama.
A porta se abriu e Helen entrou, esfregando os braços contra o frio.
— Ele está aqui — disse ela. — Crawland.
— Já? — disse Murray. — Eu não pensei que seria hoje.
— Você disse a ele para vir assim que pudesse.
Murray pousou o avião e limpou as mãos no macacão.
— Não me olhe assim, Helen — disse ele. — Ele sabe o que está fazendo.
Eu te disse. Ele ajudou aquele amigo de Tommy Bell e a filha de Sandy
Huggan.
— O que havia de errado com ela?
— Ela não comia.
Helen colocou as mãos nos bolsos.
— O que ele é, um padre? Ele parece um.
— Ele tem algum tipo de igreja, eu acho — disse Murray. — As pessoas vão
para ouvi-lo falar, de qualquer maneira.
— Que pessoas?
— Não sei — disse Murray. — Ouvi falar, só isso.
— Então, o que ele vai fazer? — disse Helena. — Fazer uma oração? Acho
que Joe precisa de mais do que isso. E você também.
Ela o ajudou a vestir o casaco, fechando-o até a parte de cima e levantando a
gola.
— Ele está aqui agora — disse Murray. — Vamos pelo menos ouvir o que
ele tem a dizer.

Lá fora era uma tarde de inverno, com uma névoa gelada pairando sobre o
quintal e o campo. Helen e Murray voltaram para casa e eu entrei com eles pela
porta da frente e desci até a cozinha, onde um homem alto e magro – o tal de
Crawland que Murray havia convidado – estava sentado à mesa. Ele apertou a
mão de ambos e depois, colocando os óculos, inspecionou o hematoma ao redor
do olho de Murray.
— Isso parece dolorido — disse ele.
— Teria sido pior se Joe quisesse — respondeu Helen.
— Ah, foi intencional — disse Crawland. — Não há dúvida.
— Continuo pensando que deve ser algo que fizemos — disse Murray. —
Ou não fizemos.
Crawland balançou a cabeça e deixou Murray se sentar.
— Não — disse ele. — Como eu disse ao telefone, o único erro que você
cometeu foi tentar argumentar com isso, só.
— Isso? — disse Helena.
— O espírito que Joe tem dentro dele — disse Crawland.
Helen zombou e Murray olhou para ela.
— Por favor, Helen, ouça-o — disse ele.
Crawland olhou para o Dobermann deitado miseravelmente perto do fogo,
sua perna traseira enfaixada.
— Você acha que foi Joe quem fez isso com seu cachorro, Helen? — ele
disse. — Você acha que ele era capaz?
— Não é o Joe que eu conheço.
— Esse é exatamente o meu ponto — disse Crawland.
— Mas isso não significa que haja algo dentro dele — disse Helen. — Isso
significa que ele está doente.
Crawland sorriu sem esconder sua condescendência.
— Se você decidir não acreditar em mim e preferir tentar encontrar alguma
outra explicação — disse ele — é seu direito, claro. Mas você só estará
complicando as coisas para Joe e é Joe que estamos tentando ajudar. A verdade
fará muito mais sentido para ele do que qualquer coisa que você inventar, posso
garantir.
— Ele estava indo tão bem — disse Murray, acendendo um cigarro. — Faz
quase um ano. Não acredito que ele recaiu depois de tanto tempo.
— Por que, por causa de todos os bolos que você fez para ele por ele ser
bom? — disse Crawland.
— Porque ele sempre nos dizia como se sentia muito melhor sem a bebida
— disse Helen. — Por que ele de repente iria querer voltar a isso?
— É o que o espírito quer, não ele — disse Crawland. — Como Joe o está
ignorando, ele está lutando para ser ouvido.
— Mas por que ele iria ouvi-lo? — Murray disse.
Crawland tirou os óculos e colocou-os sobre a mesa. Eu podia ver que, como
o Joe que veio até mim em St. Peter’s, suas mãos e rosto também estavam
salpicados de velhas cicatrizes.
— Temos que pensar em Joe como uma criança — disse ele. — Uma criança
sob uma má influência. Ele não vai mais prestar atenção em você, não vai tentar
agradá-lo, não importa quantas recompensas você prometa a ele.
— Então, o que fazemos? — disse Helena.
— É bem simples — respondeu Crawland. — Nós removemos a influência.
— Remover como? — disse Murray.
Crawland estudou os dois.
— Existem certas coisas crescendo na floresta que serão intragáveis nesta
época do ano para o espírito que está atormentando Joe — disse ele. —
Podemos trazê-las para dentro de casa e expulsá-lo.
— Nós? — disse Helena.
— Existem pessoas a quem posso recorrer para ajudar — disse Crawland. —
Pessoas que entendem com o que você está lidando.
No andar de cima, Joe gritou, de dor ou nas agonias de um pesadelo.
— Ligue para eles — disse Murray. — Se for a melhor coisa a fazer.
— É — disse Crawland, levantando-se e apertando seu ombro.
Ele saiu e Murray e Helen discutiram.
Discutiram de novo enquanto preparavam o café da manhã em uma manhã
escura e úmida, tão desentendidos um com o outro que Murray se trancou na
oficina pelo resto do dia e Helen na cozinha.
O tempo mudou e agora Joe estava sentado à mesa enquanto Helen lhe
trazia uma tigela de sopa.
Mas ele não comia.
Ele recusou como a criança que Crawland o considerava ser.
Agora a sopa estava no chão. A tigela quebrada.
A porta dos fundos se abriu.
Lá estava Joe escalando a cerca, escapando.
Joe, algum tempo depois, desmaiado no quintal.
Helen buscando-o.
Murray segurando a cabeça sob a torneira da cozinha.
Joe trancado em seu quarto.
O Dobermann latindo do lado de fora de sua porta, cada vez mais alto.
Então, choramingando.
Aqui estava Helen gritando por Murray.
O Dobermann com a garganta cortada.
Joe mostrando a faca enquanto Helen tentava tirá-la dele.
Helen enrolando o que restava de sua mão em uma toalha.
Murray segurando a porta de Joe com força. Joe querendo ser solto,
desesperado para pedir desculpas.
Murray acertando Joe.
O braço de Helen envolto em sangue.
Murray levando-a para o hospital. A van girando ao longo da pista, seu
único farol funcionando saltando entre as árvores.
Observei-os entrar na estrada enquanto a última luz do dia era varrida pela
neve que caía pesada e como cinzas, coagulando onde caía, enterrando
rapidamente tudo o que tocava.
No andar de cima, Joe chamou por Murray e sacudiu a maçaneta da porta
antes de começar a revirar os móveis em frustração. Raiva, arrependimento,
deferência, ele cambaleou de um para o outro até que a exaustão deve tê-lo feito
dormir. Ele não se mexeu quando Murray voltou sozinho, fechou a porta
silenciosamente, acendeu um cigarro e telefonou para Crawland.

No dia seguinte: montes de neve e silêncio. Um céu cor de papel.


As portas da oficina estavam abertas e depois de um momento vi Murray sair
carregando uma escada. No caminho de volta para casa, parou para esperar os
três homens que desciam a ladeira da plantação. Crawland e dois outros que
pareciam ser seus filhos.
Percebi que foram suas vozes que ouvi quando cheguei à Fazenda Salter. E
quando eles entraram pelo portão, pude ver que cada um deles segurava um
enorme ramo de azevinho.
Vozes vieram de outra direção agora também e eu observei uma dúzia de
pessoas saindo da estrada e subindo a trilha em direção à casa. Eles estavam
vestidos como eu, enfiados dentro de chapéus e cachecóis, seus casacos
incrustados de neve como as ovelhas pelas quais eu cruzei no caminho até aqui.
Eles também carregavam braçadas de verdura que carregavam pela porta da
frente. Coisas que eles colheram nas cercas vivas e nos bosques ao redor, talvez
em seus próprios jardins. Guirlandas que eles mesmos fizeram. Rostos e animais
formados com hastes entrelaçadas.
Murray parou Crawland quando eles entraram pela porta da frente.
— Tem mesmo que ser hoje? — ele disse.
— Não podemos manter Joe trancado em seu quarto — respondeu
Crawland. — Ele já sofreu o suficiente.
— Claro — disse Murray. — Mas não podemos pelo menos esperar a alta de
Helen? Ela gostaria de estar aqui.
— Acho melhor para Joe que ela fique onde está — disse Crawland. — Se
houver alguém aqui com alguma dúvida sobre o que estamos fazendo, então o
espírito só ganhará força com isso. Você tem alguma dúvida, Murray?
Depois de um momento, Murray balançou a cabeça e colocou a escada no
corredor.
Do último andar, Joe batia em sua porta e gritava promessas de violência e
contrição. Ninguém do pessoal de Crawland prestou atenção, mas entraram e
saíram da casa com uma diligência silenciosa, subindo até a plantação e
voltando com mais arbustos. Para os mais novos parecia tão divertido como
qualquer outra tradição natalícia e embora atrapalhassem, os adultos deixavam
que ajudassem a arrastar os abetos para a cozinha.
Foi apenas Murray quem pareceu distraído pelas ameaças de Joe, olhando
para o teto enquanto subia a escada.
— Com o tempo, ele verá isso como gentileza — disse Crawland, segurando
outra coroa de flores para Murray pendurar. — Era o que eu precisava no final,
remover o espírito. Eu era um escravo, assim como Joe.
Ele olhou para seus dois filhos, que estavam enrolando hera nos balaústres da
escada, e eles concordaram com a cabeça.
Acima deles, Joe gritava e praguejava.
Crawland tocou o braço de Murray.
— Não pode ficar — disse ele. — Veja o que isso fez com Helen. Vai
machucar você também e matar Joe em pouco tempo. Vai esvaziar esta casa. É
isso que ele quer.
Murray pegou a coroa de flores de Crawland e pendurou na parede. Ao redor
dele, a Fazenda Salter gradualmente se encheu com o cheiro de resina doce e
enjoativa que parecia cobrir o interior da minha boca e nariz a cada respiração.
Depois que a casa foi arrumada, quando Joe desistiu de gritar e começou a
barganhar, Crawland e o resto começaram a encaixar pequenas velas entre os
caules e galhos e acendê-las. O brilho suave realçava o brilho das folhas e dos
frutos e os olhos das crianças, que estavam tão extasiados quanto poderiam estar
em uma gruta de Natal. Um garotinho com um chapéu de lã vermelho foi
levantado pelo pai para que pudesse acender algumas das velas enroladas na
hera na escada.
Quando o trabalho chegou ao fim, todos esperavam com expectativa como se
estivessem na igreja, Murray tentando ignorar os apelos de Joe observando a
neve enchendo a janela acima da porta da frente.
Em algum lugar, um relógio tocou e Crawland passou o peso de uma pessoa
para outra, colocando uma mão em cada cabeça, murmurando o que parecia ser
uma breve oração e distribuindo ramos de azevinho, cinco ou seis para cada um.
Seus filhos o seguiram, distribuindo pedaços de barbante para que todos
pudessem enrolar um cabo em volta de seus galhos e transformá-los em feixes.
Assim que terminaram, Crawland acenou com a cabeça para a pessoa mais
próxima da porta da frente e eles a abriram, deixando o frio entrar. Estava quase
escuro lá fora e a neve caía em penas de ganso no quintal e no campo.
Um dos filhos de Crawland entregou a Murray o martelo que ele usava para
pregar as sempre-vivas e o convidou a subir as escadas primeiro. Ele estava
relutante em fazê-lo e Crawland segurou sua cabeça gentilmente e falou perto
dele, em palavras que eram apenas para ele, até que Murray começou a acenar
com a cabeça e conceder. E então, enxugando os olhos, subiu com Crawland e
seus filhos, cada um carregando seu ramo de azevinho.
Ao ouvi-los chegando, Joe levantou a voz, agradecendo a Murray
repetidamente enquanto arrancava os pregos do batente da porta, pensando que
estava prestes a ser solto.
Eu queria agora mais do que tudo me afastar da Fazenda Salter. Mas eu
parecia compelido a ficar com os outros enquanto eles esperavam e ouviam o
som de gritos e passos se aproximando – do térreo ao patamar, do patamar ao
topo da escada, onde havia algum tipo de luta, Murray implorando a Crawland
para parar.
Então o corrimão estremeceu quando Joe caiu nele, meio escorregando, meio
caindo escada abaixo, tentando encontrar algo em que se segurar e soltando a
hera. As velas se espalharam e se apagaram, levando as crianças a correr atrás
delas enquanto seus pais avançavam com seu azevinho e espancavam Joe onde
ele estava deitado.
Um deles tentou puxá-lo na direção da porta da frente aberta, mas ele se
desvencilhou e foi para a cozinha, fazendo as crianças correrem para os braços
dos pais e derrubando o homem que tentou detê-lo. Segurando a mandíbula, o
senhor idoso tropeçou na escada, que caiu com força no chão, varrendo as coroas
e o visco que Murray havia pregado na parede.
Liderados por Crawland, aqueles que foram ousados o suficiente perseguiram
Joe e eu fui pego em seu rastro, parecia, arrastado pelos galhos de pinheiro e
abeto pendurados na porta da cozinha.
Agora Joe estava tentando sair para o jardim, puxando a maçaneta enquanto
Crawland e seus filhos chicoteavam suas costas. Quando os outros se juntaram,
Joe perdeu o controle e se envolveu em seus braços no chão, gritando por
Murray, que fez o possível para arrastá-los, mas não pôde fazer mais nada do que
agarrar nos ombros e colarinhos e cotovelos. Havia muitos deles e ele foi
facilmente empurrado para o lado, espancado com azevinho até que Crawland o
levou embora e os outros armaram Joe de volta ao corredor, derrubando mais
verduras no processo.
Acho que nunca tinha visto alguém tão verdadeiramente apavorado quando
Joe se encolheu sob os rostos verdes olhando para ele das paredes e se jogou no
chão como uma bola quando alguém o golpeou com uma cabeça de veado feita
de madeira de uma árvore espinhosa.
Eles o agarraram de novo, mas, soltando um braço, Joe conseguiu dar meia-
volta e foi arrastado para fora de casa por aqueles que esperavam na porta da
frente. Ele avançou um pouco pelo pátio, mas acabou tropeçando na neve
profunda e não conseguiu se levantar rápido o suficiente antes que aqueles que o
perseguiam o pegassem. Crawland e seus filhos galvanizaram o resto agora e os
pais carregaram seus filhos nos ombros para que pudessem passar pela neve mais
rápido.
À beira da multidão de braços agitados, o garotinho de chapéu vermelho foi
colocado no chão e depois conduzido à frente, hesitante a princípio e depois
açoitando a cabeça de Joe com mais violência do que os outros, arrancando um
pedaço de sua orelha, tentando espetar os talos de azevinho entre os dedos de
Joe e em seus olhos.
Finalmente, com alguma palavra de Crawland, Joe foi levantado e eles
bateram palmas e assobiaram para ele ir para a trilha sob as faias, atacando-o
com o azevinho quando ele tropeçou.
Murray foi atrás deles, implorando para que parassem e chamando por Joe.
Eu também fui, mas quando cheguei ao final do caminho, não havia ninguém à
vista, havia apenas vozes em algum lugar na estrada.
Eles estavam cantando agora.
Um coro de alegria e triunfo erguendo-se sobre gritos que não soavam mais
humanos. Eram mais parecidos com os que o cachorro fizera sob os golpes da
faca de cozinha.
Embora as vozes tenham diminuído, fui enviado atrás delas. Por algum
tempo segui suas pegadas, o rastro de galhos de azevinho descartados, os fios de
sangue, até que a neve cobriu seus rastros e continuei vagando cegamente. Ou
pelo menos assim me pareceu. Mas é claro que eu estava sendo guiado em cada
cruzamento, conduzido em cada esquina, incapaz de voltar ou evitar a
conclusão.
Tinha uma trilha fora do caminho. Lá tinha uma ponte sobre um riacho
congelado. Um portão aberto. Um campo escuro. Três cavalos nervosos junto à
parede. Com medo da coisa na beira do lago branco e desgastado. Um homem
morto, já meio enterrado pela neve que caía.

Pronto. Isso é tudo. Aconteceu há tanto tempo que deveria ser fácil desconfiar
das lembranças daquela tarde, mas elas vêm a mim com mais vivacidade do que
qualquer outra – especialmente na época do Natal.
Se eu contar a David, ele simplesmente atacará com lógica, eu sei, e prefiro
aproveitar o processo de filtrar meus sentimentos e conjecturas dos fatos.
Ele estará direto na internet e descobrirá que realmente havia um lugar
chamado Fazenda Salter, que um homem chamado Murray Oxbarrow foi
encontrado morto lá por sua esposa; que eles não conseguiam decidir se ele
pretendia tomar tantos comprimidos. Ele lerá sobre os rumores que ligam
Murray à morte de um Joe Gull cujo corpo foi descoberto nas proximidades,
mas descobrirá que são apenas rumores.
David não vai discordar que eu fui para Fazenda Salter, mas ele vai dizer que
minha lembrança dela é falsa, que foi construída apenas com o que li sobre o
lugar. É a única conclusão racional, ele dirá. Mas e Crawland? Não há menção a
ele em lugar nenhum. Helen deve ter mantido silêncio sobre ele, para o bem
dela. Como eu sei sobre Crawland?
David dirá que o tirei de outra história que ouvi. A mente é uma pega, Ed.
Mas o problema é que sei que nada disso é mentira. Todos os detalhes que
David descarta como improváveis e implausíveis ainda estarão lá como simples
fatos para mim. A principal delas é que Joe Gull estava morto, e já fazia vários
anos, quando apareceu em seu melhor terno em St. Peter’s e pediu minha ajuda.
Nos dias que se seguiram à minha volta da Fazenda Salter, sem saber o que
era real, com medo de estar enlouquecendo, a única coisa que fazia sentido para
mim era pensar nisso tudo como uma grande parábola de humildade. Ou
honestidade. Porque se eu fosse honesto comigo mesmo, então eu queria que
Joe confiasse em mim, ao invés de Deus. Nesse caso, eu nunca tive um
chamado, eu só ouvia minha própria voz. E assim, fui enviado para a Fazenda
Salter para aprender meu lugar, para saber que nada mais era do que uma
testemunha ocular do desígnio de Deus.
Então, em outras ocasiões, eu me perguntava se, vagando em algum tipo de
purgatório, Joe me via como seu emissário, sua chance de libertação. Talvez seu
arrependimento tivesse sido tão forte que o trouxesse de volta para buscar uma
última e breve oportunidade de pedir perdão aos Oxbarrows, sem saber que
Murray estava morto e Helen não morava mais na Fazenda Salter.
Ou será que ele só queria que alguém soubesse o que havia acontecido com
ele, que Crawland e os outros o mataram, querendo ou não?
Todos os anos, nesta época, sou forçado a tentar entender tudo e não chego a
lugar nenhum. Eu só sei que isso aconteceu.
Aconteceu. E isso é tudo o que há para dizer. Mas não é o suficiente, eu sei.
Dizer que aconteceu não estabelece conclusão de nada.
Você pode imaginar como é nunca mais ter certeza de nada? Eu direi.
Mas David não vai entender o que quero dizer.
E Deus não ajuda. Ele nunca ajudou. Ele só me fez de garotinho bobo
tentando encaixar o céu em uma caixa de fósforos.
CONFINAMENTO

Kiran Millwood Hargrave


Escrevo este registro como se fosse um testemunho dado diante de Deus, uma
oração derramada diretamente nos ouvidos dos anjos, pois agora não há
ninguém em quem eu possa confiar além de mim mesma: meu próprio coração,
minha própria pena. Não tenho o hábito de escrever um diário, então confesso
que tudo o que se segue é lembrança: mas juro por minha alma que foi
exatamente assim que aconteceu. Como ainda está acontecendo.
Deve ser entendido nos termos mais claros possíveis que eu, Catherine
Elizabeth Mary Blake, neste dia, 24 de dezembro de 1898, estou em mente sã,
digam o que disserem.
Sei que sou filha de Sophie Mary Winsome e John Albert Winsome, já
falecido, e esposa de um ano de Richard Arthur Charles Blake. Sei que moro na
Mansão Blake, a poucos passos de Tenbury Wells, no condado de Shropshire.
Posso nomear nossa rainha, nosso primeiro-ministro, nossas colônias, a extensão
de nosso império. Eu conheço meus mandamentos. Vou escrever tudo em
detalhes para tentar transportar você direto na minha memória, de como cada
coisa aconteceu.
Digo tudo isso para demonstrar o que você deve acreditar que é a verdade:
embora meu corpo seja fraco e minha mente muito atacada, não estou louca.
Embora quando você ouvir o que se segue, você entenderá por que eu gostaria
de ser.

Eu estava confinada no quarto carmim. Foi preparado no momento em que


perdi sangue. Era um lugar simples, fora de moda, com papel de parede de seda
amarela devastado por traças e pesadas cortinas de veludo verde forradas com
seus ovos, que me faziam espirrar sempre que as jogava para trás. Eu adorava
aquele quarto de qualquer maneira, por causa da vista.
A Mansão Blake fica no cruzamento da floresta e do rio, no topo de uma
colina que oferece uma vista suave e encantadora de ambos. Se você ficar nesta
janela e fechar um olho – ou se, como eu, não conseguir piscar e, em vez disso,
cobrir um olho com a palma da mão – dois mundos bastante diferentes se
tornarão aparentes. O primeiro, familiar para mim desde minhas visitas de
infância às colinas de Mussoorie, de verde verdejante e ondulado e o rio
cortando prata em suas bases. Quando você troca para cobrir o outro olho, o
segundo é revelado. Este é o vale da floresta densa, selvagem, marrom e
sombreado, como algo saído de um conto de fadas.
Apesar do apelo neste aspecto, a casa está virada, como uma criança
grosseira, de costas para o vale. Sua frente, belos portões e fachada dão para um
trecho bastante comum de jardim ornamental, disposto como um tabuleiro de
xadrez não jogado, em quadrados de rosas no verão e rosas no outono. Este
arranjo perfumado, embora sem alma, é zelosamente cuidado por Noakes, que
Richard me disse que veio com a casa. Como acontece com as casas antigas, ele
e sua esposa, a governanta Sra. Noakes, fazem parte de Mansão Blake tanto
quanto o piano de cauda ou a própria família Blake.
Talvez seja por isso que a selva nos fundos da casa foi negligenciada em favor
das flores encomendadas por Noakes. Essa terra não é dos Blakes, embora eles
tenham tentado comprá-la várias vezes. Em vez disso, pertence a um fazendeiro
chamado Bright, um viúvo, que não a cultivara e nem a vendera. Sua
propriedade remonta ao Domesday Book1. Mas este não é o lugar para falar
mais sobre os Brights. Tudo o que importa por enquanto é o quarto, a vista que
me trouxe até aqui e minha insistência para que fosse pintado de vermelho.
O Dr. Harman foi totalmente contra isso desde o primeiro momento. Seus
ensinamentos diziam que uma sala de parto deveria ser branca, ou pelo menos
de uma cor pálida: azul como água derretida ou verde como musgo. Mas tinha
que ser vermelho, eu disse a Richard, porque era a cor da sala de parto de minha
mãe em Bombaim, onde nasci. Fiquei bastante chateada, pois mamãe morreu
há menos de dois anos, e parecia importante tê-la de alguma forma lá. Richard
beijou minha testa daquele jeito que sempre me acalma, e só perguntou se
deveria ser o vermelho sala de leitura ou carmim. Eu disse o último, porque
tinha um gosto melhor em meus lábios, como o cilindro de cera do meu batom
favorito.
Eles enviaram um grande tonel de Hull, os pigmentos das asas dos besouros
trazidos não da Índia, mas do Peru, e misturados com ácido nas docas. Quando
o criado abriu a cuba, Richard me perguntou novamente se eu tinha certeza.
Na verdade, eu não tinha. A cor não era nada como a mamãe havia descrito,
algo quente, picante e reconfortante, como tomar leite com cardamomo. Mas a
Sra. Noakes estava por perto com sua reprovação reprimida clara em seu rosto
cinza, então eu sorri largamente e disse que tinha certeza.
Fiz muitas coisas de maneira diferente sob o olhar da Sra. Noakes. Fiquei
exausta nos primeiros cinco meses, meus tornozelos inchando e meu espartilho
parecendo encolher a cada momento que eu os usava, mas não deixei que ela
visse como eu desejava dormir, como estava desconfortável. Era uma espécie de
competição entre nós, pois ela não é o tipo de mulher que gosta de confusão, e
eu sou. Mas eu estava estupidamente orgulhosa de tudo isso e queria
impressioná-la. Por que isso? Uma governanta, com um rosto longo e rombudo
como uma espátula ou um terrier. Eu poderia rir pensando nisso se não
precisasse tanto gritar.
Eu deveria ter dito não, no dia em que eles abriram o tonel e me mostraram
uma cor que só poderia ter sido formada sob a vigilância do Diabo. Uma cor
que me fazia pensar em feridas, nas entranhas abertas dos porcos. Achei que
estaria tudo bem, que pelo menos eu teria a vista. Mesmo quando eles vieram
com cortinas novas, de veludo púrpura mais profundo e mais pesado ainda que
o verde, eu não entendi, verdadeiramente, o que estava diante de mim. Não
quando consertaram o botão conectado a uma campainha na cozinha. Nem
mesmo quando a fechadura, de latão e mais grossa que meu polegar, foi
instalada na pesada porta de carvalho, e a chave, sólida e intrincada e sem cópia,
apareceu no cinto na cintura estreita da Sra. Noakes.

Qualquer pessoa com algum conhecimento dessas coisas entenderá por que
detesto compartilhar os detalhes do nascimento, ou melhor, o que consigo
lembrar. Mas as circunstâncias em que começou são, creio eu, significativas.
É costume nessas partes ir à igreja em cada um dos dias do Último Advento.
Também é costume nessas partes nevar durante a maior parte do inverno. Eu
tinha ouvido falar de neve, é claro, até mesmo visto nos cartões-postais que meu
pai enviou de seu posto missionário em Ladakh, as montanhas brancas e
enormes como nuvens. Mas uma coisa é saber o que é a neve e outra é entendê-
la. Vê-la cobrir todo o mundo durante a noite, senti-la almofadando seus passos,
rastejando sobre suas botas e inundando suas meias com sua mordida gelada. A
maneira como ele brinca com o som, batendo como um gato com um rato, e a
trituração assustadora como minúsculos ossos sob seus pés.
Eu já estava instável, minha barriga grande demais para envolver com os
braços, atrapalhando meu sono e minhas horas de vigília. Mas era tradição
caminhar um quilômetro até a igreja, independentemente do tempo, a Sra.
Noakes me informou, e como a quase nova Sra. Blake, fui compelido a
acompanhá-lo.
Tínhamos feito o percurso nos dias anteriores sem grandes delongas, mas
este dia foi diferente. Noakes havia limpado o caminho com pá, como de
costume, o que nos leva pela longa e bem cuidada entrada até a estrada rural
que serpenteia ao redor da parede externa de Mansão Blake. Mas estava tão frio,
nossa respiração instantaneamente se transformava em névoa quando saía de
nossos lábios enquanto espreitávamos pela porta da frente, o gelo já havia feito
um rinque com aquela abordagem. Richard insistiu que devíamos pegar o
caminho mais curto dos fundos da casa, através da neve fresca. A Sra. Noakes
discutiu brevemente, mas foi intimidada por uma palavra curta de meu marido.
Senti um arrepio com a raiva dela quando fui apropriadamente embrulhada em
várias camadas de meias de lã e um cachecol muito impróprio que cheirava a
naftalina.
Saímos da proteção das portas e mergulhamos na neve que chegava até a
panturrilha. A lã em volta das minhas pernas servia apenas para absorver neve
derretida, mas a Sra. Noakes vinha logo atrás e por isso não reclamei. Richard
me deu o braço e eu me agarrei a ele, aproveitando seu calor, sua solidez,
enquanto minhas pernas ficavam pesadas e mais incômodas ainda do que já
estavam. Diante de nós estendia-se a vista que eu tanto amava, vista ao nível
dos olhos: a floresta colorida em preto e branco pelo ar frio e brilhante, o rio
brilhando como uma lâmina e apenas audível sob sua camada de gelo cristalino.
A neve arrepiava-se sob nossas botas enquanto caminhávamos pela encosta
suave que nos levaria à via pública que saía da fazenda de Bright, correndo entre
a fronteira deles e a nossa até a igreja.
Agora me pergunto se imaginei a hesitação de meu marido no portão que
delimitava as terras do viúvo Bright. Certamente alguma coisa aconteceu: uma
forte inspiração, ou então um tremor no antebraço tenso de Richard. Foi o
suficiente para me fazer parar minha atenção feroz em meus pés encharcados e
olhar para o rosto dele. É um rosto bonito, embora com um queixo um pouco
fraco, mas ele o esconde bem com seus bigodes. Seus olhos, normalmente
redondos e querubicamente alegres, estavam semicerrados. Seus bigodes
tremeram. Ele parecia uma raposa, farejando uma caçada. Ele parecia com
medo.
Mas então ele percebeu que eu estava olhando e abriu o portão, passando sem
mais delongas e segurando-o aberto primeiro para mim, depois para os Noakes
que o seguiam. O que tenho certeza de que não imaginei é que, antes de
Noakes passar pelo portão, eles se benzeram.
Richard permitiu que eles andassem na frente, ambos curvados, até mesmo a
Sra. Noakes que tinha as costas retas, e correndo mais rápido do que eu
imaginava ser possível para pessoas de sua idade avançada.
— Qual é o problema com eles? — perguntei a Ricardo.
Ele riu, um pouco alto demais.
— Você sabe como esses camponeses são supersticiosos.
Richard se imagina suburbano, você vê.
— Supersticiosos de quê? — Eu perguntei, focando em não tropeçar nas
minhas pernas dormentes, nem permitir que meus dentes batessem.
Richard fez um gesto com o braço livre. Segui seu caminho até as árvores em
seu brilho, o rio envolto em colinas brancas.
— A Bruxa Bright.
— Bruxa? — Eu pisquei para ele. — O viúvo?
— A esposa dele.
— Mas ela está morta.
— É assim que você fica viúvo.
— Então, por que eles têm medo dela?
— Não é a melhor ideia divulgar tal informação para uma mulher em sua
condição. Na verdade, nunca há um bom momento.
— Nesse caso — insisti — é melhor você me contar de qualquer maneira.
— Se você quer — ele deu de ombros, mas seu ritmo aumentou um pouco,
então eu tive que pular para acompanhá-lo. — Existem muitas histórias sobre
ela. Mas é amplamente aceito que seu marido era um homem forte, um homem
viril segundo todos os relatos, que ao se casar com ela, ele se sentiu diminuído.
— Essa não é uma reclamação comum? — Eu provoquei, mas Richard não
sorriu da minha esperteza.
— Quero dizer isso literalmente. Eu não o vi pessoalmente, mas a Sra.
Noakes me disse que, quando o viu pela última vez, ele estava... — ele torceu o
nariz. — Não é uma imagem agradável.
— Eu não me importo — eu disse.
— Enrugado — disse ele. — Eu acredito que essa era a palavra. Todo o seu
corpo encolheu e suas bochechas encolheram, suas pernas foram perdidas. Ele
permanece assim até hoje.
— Parece com poliomielite. Vimos muitos casos em Bombaim.
— Não é poliomielite, nem qualquer outra preocupação terrena.
Eu teria brincado com ele sobre como ele soava bastante supersticioso, mas
eu estava sem fôlego agora, e feliz por ele ter nos falado durante todo o caminho
para a igreja.
— Um dos piores efeitos foi que seu declínio o deixou incapaz de ter filhos.
Meu próprio pai ofereceu o nosso médico da família a eles, mas recusaram.
Confesso que não estou surpresa. O Dr. Harman é um homem enérgico, com
mãos muito frias.
— Ou melhor — disse Richard, baixando a voz, embora os Noakes
estivessem muito à frente e não houvesse ninguém para nos ouvir além das
árvores — a Sra. Bright o mandou recusar. Nós, eles acreditam… que ele foi
dominado por ela. Não por amor ou paixão. Corpo e alma, levados e
comandados por ela. Possuído.
Eu bufei, um som muito impróprio para uma dama, e Richard se encolheu.
Encontrei fôlego suficiente para um pedido de desculpas, e ele deu um tapinha
na minha luva.
— Está tudo bem, minha querida. O Dr. Harman avisou que seus humores
estariam alterados. Seja qual for o caso, eles decidiram fazer uma “criação de
bebês”.
Uma imagem de cabecinhas rechonchudas alinhadas em um campo sulcado
como nabos surgiu totalmente formada em minha mente.
— Sabe — continuou Richard — comprar bebês de gente desagradável que
nem consegue encontrar um lugar em uma casa de trabalho. A princípio
ninguém notou, a fazenda é tão isolada, mas logo chamou a atenção da polícia
já que cerca de uma dúzia de bebês foram comprados pelos Bright.
— É gentil da parte deles — eu disse, esfregando minha barriga
suavemente.
Ele estremeceu.
— Exceto que quando um detetive começou a investigar, eles não
encontraram vestígios de uma criança na casa.
Instantaneamente, a náusea encheu minha garganta. Eu não queria que ele
continuasse, mas como se estivesse nas garras de um pesadelo, não pude evitar.
— Ela os estava matando — disse Richard energicamente. — Enterrando-os
na floresta. Eles encontraram a maioria deles. Ela foi enforcada como assassina,
mas muitos acreditam que ela também era uma bruxa, pois o Sr. Bright não
sabia dos bebês, estando acamado. Vendo a foto dela no jornal, eu acredito. Ela
tinha olhos negros, para combinar com seu coração.
Olhei mais uma vez para a floresta, movimentada perto do meu lado direito.
Percebi pela primeira vez que Richard havia me colocado entre ele e a terra
brilhante. A neve no caminho diante de nós era um deslumbramento, mas os
galhos da floresta eram tão espessos que a neve parou abruptamente na linha das
árvores, como se uma borda tivesse sido desenhada e as cores divididas entre
preto e branco.
Sempre adorei o cheiro das florestas. Em nossas viagens pela Índia, eram
aromas doces e fortes de chiclete e flores, tudo fumado pelo calor, perseguido
por tigres. Eu sabia que as florestas inglesas tinham um cheiro diferente e que a
gravidez havia feito algo com meu nariz, transformando maçãs em podridão e
carvão em muffins recém-assados.
Mas esta floresta, sobre a lã de naftalina enrolada em minha garganta,
cheirava a algo profundo e opaco. A terra, sim, mas também o ar, o ar da noite
rareando sobre os picos das montanhas, algo metálico, fresco tirado das nuvens
ou da rocha. Cheirava, e tenho vergonha de dizer, como eu, aquele lugar onde
sangrei e de onde logo nasceria, onde Richard entrou em mim e nosso bebê iria
embora. Um cheiro familiar e animal que enviou algo emocionante através do
meu sangue.
As sombras pareciam pastosas e texturizadas sob as árvores. Minha visão
piscou, incapaz de pousar em qualquer coisa em particular, a escuridão
formando túneis próximos e distantes um contra o outro e meus olhos, tensos
pela neve, doíam. Fechei-os brevemente, voltei para a casa. Lá estava sentado
em seu lugar perfeito montado na colina. Lá estava a estufa peneirada pela neve,
a geada brilhava nas telhas. E ali, na janela do quarto carmim, as pesadas
cortinas púrpura se contraíram.
— Você está bem?
Eu semicerrei os olhos. Tinha sido um pequeno movimento, como se alguém
os estivesse abrindo por um momento para verificar o tempo. Um movimento
habitual. Mas não havia ninguém na sala carmim. Eu sabia disso porque a sra.
Noakes a mantinha trancado como uma prevenção contra sujeira e poeira, de
modo que tudo o que ela precisaria fazer quando o bebê chegasse seria apenas
afastar o lençol. Ela também manteve a janela entreaberta, para permitir que o
ar fresco a limpasse. Deve ter sido uma brisa, agitando o tecido.
Essa conclusão sensata me animou tanto que ignorei seu primo mais quieto.
Essas cortinas exigiram dois homens cada para pendurá-las, e novas grades de
ferro presas à parede. Eram tão pesadas que tive de usar as duas mãos para puxá-
las para o lado. Apertei os olhos para as árvores. Nem um murmúrio de vento
agitava a poeira da neve no topo de seus galhos mais altos. Então, abaixo deles,
nas sombras diretamente à minha direita, algo se moveu.
Eu parei, e Richard se virou para mim, impaciente em seu tom.
— Eu não deveria ter contado a você sobre os Brights. Você está chateada?
Eu não tinha fôlego para respondê-lo. O pavor se apertou com força em
minha garganta.
Havia alguém na floresta, alguém nos observando.
O branco de dois olhos. O brilho de uma boca aberta e fechada. O ruído
úmido de uma andorinha.
Minhas narinas se inundaram de repente com o cheiro de animal, e ele
assumiu outra coisa, uma respiração quente, embora não houvesse ninguém
perto de mim, respirando em meu rosto.
— Catherine?
A voz de Richard estava distante, assim como seu braço do meu. Todo o meu
corpo parecia ter desaparecido de mim, então eu era apenas olhos fixos na
floresta sombria, apenas um coração batendo alto o suficiente para fazer minha
visão tremer. Na floresta, a boca se abriu novamente, e agora eu vi o rosto ao
redor da boca como se estivesse iluminado por dentro, os ossos aparecendo
escuros contra a pele, e do fundo da garganta veio, súbito e agudo, um som
como uma raposa presa. Era minha voz, meu rosto.
Richard estava me sacudindo agora, e eu senti algo se soltar. Voltei para o
meu corpo, e meu corpo estava em chamas, minha barriga apertada em um
torno.
— Sra. Noakes! — Eu o ouvi chamar. — Está na hora! Sra. Noakes!
Enquanto eu afundava na neve e Richard se inclinava sobre mim, o cheiro
animal encheu meu nariz e minha garganta. A torção na minha barriga piorou,
e eu deixei isso me levar para baixo. Não consegui nem avisar Richard, nem
mesmo dizer a ele para se virar para vê-la, de pé ao lado dele. Uma mulher, com
olhos negros.

O PRIMEIRO DIA
Levantei-me em uma onda de agonia, ofegante e chorando. Minha mandíbula
estava presa entre dois dedos frios, e algo metálico encheu minha boca, então o
gosto branco e azedo de amla, que eu sabia que não era amla, mas láudano, e eu
sabia que se engolisse eu dormiria novamente e não seria capaz de dizer eles.
Mas a mão fria, a mão do Dr. Harman, agora mantinha meus lábios fechados, e
eu estava sufocando com ela, e não pude mais lutar.
O láudano queimou minha garganta e todo o meu corpo caiu pesado como
veludo roxo, fustigado por ondas invisíveis de dor, tão distantes que eu só podia
senti-lo em fragmentos. Havia dedos rastejando dentro do meu crânio,
sondando o lado de baixo da minha mente. Naquele momento vertiginoso de
confusão, ela estava lá dentro, de olhos negros, coração negro. Eu a senti, e senti
seu cheiro. E em outro momento os dedos empurraram ao redor, sobre meu
crânio, puxando meu cabelo com força. Tentei me afastar, mas os dedos eram
insistentes.
— Agora, Sra. Blake. Devemos manter isto limpo ou então os nós nunca
sairão.
Sra. Noakes, com as mãos trabalhando no meu penteado de parto. Foi um
estilo que escolhi, duas tranças grossas envolvendo meu crânio. Mas estava
apertando, os grampos afiados o suficiente para furar minha pele. Minha cabeça
estava pesada como uma âncora na corrente inútil do meu pescoço, mas
consegui me virar para a voz dela. Não, pensei, o horror enorme e esmagador
como uma pedra. Não.
Os olhos da Sra. Noakes eram dois buracos negros.
Lutei como um homem se afogando, mais água do que respiração. Mais uma
vez, amla amargo na minha língua, e a segunda dose de láudano me fez afundar
ainda mais.
Em Bombaim, o calor era um casaco, a lambida de uma língua quente. O
barulho dos cachorros nos acordava todas as manhãs, o tuk-tuk dos ventiladores
nos fazia dormir. Minha aia aquecia leite e adoçava com açúcar. Ela até colocou
açúcar na minha amla, deixando tudo doce. Quando eu estava doente, ela
cantava para mim, embora mamãe e papai dissessem que eu estava velha demais
para essas coisas. Quando tive varíola, ela me banhou com iogurte. Eu queria
sua suavidade agora, seu calor, seu leite e remédios dahi.
A pele da minha cabeça estava rasgando, e entre minhas pernas eu rasguei
também. As mãos do Dr. Harman estavam frias como a neve. Eu gritava sem
som, sem parar, e finalmente o grito escapou, estridente e penetrante. Um choro
ininterrupto. Mas não foi da minha boca.

O TERCEIRO DIA
A sala estava vermelha e escura como o interior das minhas pálpebras. Fiquei
muito quieta e tudo estava muito quieto. Por um bom tempo não tive certeza
se estava acordada ou dormindo. O láudano estava libertando lentamente meus
membros, minha língua, que doíam enquanto eu me mexia. E então a dor entre
minhas pernas, e mais, apertando meu crânio, chegou e eu sabia que não estava
sonhando, e o mundo mudou. Eu era mãe.
— Acordada, senhora? — A Sra. Noakes estava sentada na poltrona ao lado
da cama, iluminada pelo lampião a gás. Seus olhos eram dela mesma, e em seus
braços havia uma trouxa de tecido branco e engomado. — Você dormiu dois
dias inteiros. O Dr. Harman achou melhor deixá-la.
— Meu bebê? — Minha garganta estava seca o suficiente para minha voz
arranhada.
— Uma garota.
— Uma garota? — Senti lágrimas brotarem em meus olhos e estendi meus
braços para ela.
A Sra. Noakes se levantou e colocou o pacote em meus braços. Um rosto
rosado, um nariz arrebitado, pálpebras de madrepérola, lábios limpos e rosados
como um botão de rosa, um cheiro de pão fresco e lavanda. E o amor, tão forte e
quente que queimava. Minha filha. A alegria e o choque disso me fizeram
suspirar.
— Pronto, madame — disse a sra. Noakes, e sua voz estava mais suave do
que o normal, o latido terrier mais suave. — Não devemos deixar você ficar
excitada.
Ela pegou minha filha dos meus braços e eu a segurei.
— Mas–
— Há muito tempo para isso — disse ela. — Foi um parto difícil, como
você sabe melhor do que ninguém. O Dr. Harman aconselhou repouso total
durante o seu confinamento. — A Sra. Noakes estalou a língua com a minha
expressão confusa. — É o costume, e o Dr. Harman concorda que é melhor
assim.
— Eu nunca–
— Você vindo de partes estrangeiras, você não faria. Mas é uma prática
bastante comum — disse a sra. Noakes, curvando-se e colocando meu bebê no
berço que Richard encomendara na cidade. — Nove dias de descanso.
— Nove?
— Você deve beber isso. — Ela levantou uma xícara fumegante da mesa de
cabeceira. Engoli o caldo, morno. — Bom. Não deve haver emoção, nem
conversa. Silêncio perfeito.
— Ricardo–
— Não por alguns dias. Você e o bebê devem descansar até que o médico
diga que você está curada.
Ela puxou uma camisola limpa da cômoda. Ergui os braços, obediente como
uma criança, e ela tirou a velha, ensopada de suor e sangue e enfiou algodão
limpo na minha cabeça.
— As tranças ficaram bem — disse ela com aprovação. — Vamos mantê-los
presos enquanto durar. Até lá, você deve apertar a campainha se quiser
alimentá-la ou usar o penico.
Ela apontou para o botão de chamada que consertamos durante a
redecoração.
— Penico? — Eu repeti fracamente.
— E há láudano para controlar a dor. — Ela bateu em uma garrafa de vidro
colocada na cômoda. — Você deve tomar alguns agora.
— Por favor, posso segurar...
— Ela está dormindo — disse a Sra. Noakes rapidamente. — E se ela está
dormindo, você certamente deve. Deite-se.
Eu balancei minha cabeça.
— Por favor, posso falar com Richard?
— Não, senhora — diz a sra. Noakes. — Ordens do médico. Posso trazê-lo
para explicar diretamente a você?
Sem desejo de ver ninguém além de meu bebê ou Richard, e a Sra. Noakes
resoluta, afundei nos travesseiros. A Sra. Noakes desenroscou o frasco de vidro e
derramou o remédio em uma colher rasa. Engoli sem reclamar, acolhendo o
cansaço, o desfiar instantâneo do láudano trazido ao meu corpo. Meu bebê
nasceu e eu estava viva. Era melhor do que muitas mulheres conseguiam.
A Sra. Noakes ajeitou as pesadas cortinas, e o som era como o farfalhar de
folhas. Um trinado de medo subiu pelo meu pescoço, mas era tarde demais. O
láudano estava muito firme. A chave raspou na fechadura. Enquanto caía no
esquecimento abafado, lembrei-me das cortinas, contraindo-se em uma brisa
inexistente, hálito quente em meu rosto. Olhos negros em sombras negras. O
clique úmido de uma boca se abrindo.

O QUARTO DIA
Eu me levantei, minha barriga e pernas parecendo soltas como nós desfeitos. Ao
pé da cama, algo estava agachado sobre o berço. Minha respiração falhou. A
forma era curva e baixa, como se estivesse ajoelhada, e procurei um objeto
pontiagudo que pudesse derrubar sobre ela, furar a curvatura de suas costas. As
costas dela.
Movendo-me devagar, estendi a mão para o meu cabelo e retirei um grampo
das tranças apertadas da Sra. Noakes. A tensão entre minhas pernas me disse
que os pontos que o Dr. Harman temia haviam passado, e eu tive que
engatinhar como uma criança até a borda. Eu trouxe o grampo para cima, e para
cima, sobre a mulher agachada.
Olhos se abriram em suas costas, de cada lado do arco de sua espinha.
Eu cambaleei para trás, gritando, e de repente a sala se encheu de luz tão
brilhante que parecia vibrar ao meu redor.
— Catherine! — Braços em volta de mim, me levantando de volta para o
centro da cama. Ricardo. — Catherine, você deve ficar quieta.
— Senhor, você não pode estar aqui. — Dr Harman substituiu meu marido,
suas mãos frias em meus ombros, levantando minha pálpebras. Seu rosto
bigodudo aproximou-se do meu e, atrás dele, vi Richard andando de um lado
para o outro. — Sra. Blake, acalme-se. É a dor?
— Não! — Eu gritei, apontando para o pé da cama. — Lá!
Os dois homens olharam e Richard começou a rir. Ele se moveu para o meu
outro lado, sentou-se na cama da maneira sincera pela qual eu o amava e pegou
minha mão trêmula.
— Essa é a nossa bebê, Catherine. Certamente você se lembra disso?
— Não é o bebê — retruquei. Meus olhos estão ardendo com a luz, pois
ficaram presos entre a neve e as sombras. — Ela está lá!
— A Sra. Noakes está lá embaixo. Você só precisa usar a campainha–
— Lá! — Eu insisti, mas desta vez não precisava que Richard me
interrompesse. Eu podia ver por mim mesma, na luz brilhante que emanava da
porta aberta, ver claramente. Não havia nenhuma mulher agachada sobre o
berço do nosso bebê. Apenas a sombra em leque, trazida para proteger o rosto
da criança. A Sra. Noakes deve tê-lo puxado para cima para ajudá-la a dormir
melhor. Os olhos então – os olhos do nosso bebê. Estremeci com o que quase
aconteceu e deixei o grampo escapar de meus dedos.
Um gemido fino veio do berço, e Richard se levantou e pegou nossa filha,
trazendo-a para mim.
— Senhor, isso não é–
— Só um momento — diz Richard, impaciente. — Ela está aflita, não está
vendo?
— Exatamente por isso que o quarto deve ser mantido escuro, senhor —
disse o Dr. Harman. Eles trocavam farpas, mas eu não me importava, porque ela
estava em meus braços e eu me sentia tonta de amor. Ela se acalmou
imediatamente, as pequenas conchas de suas pálpebras mal se contraindo.
Richard bufou, evidentemente tendo perdido a discussão.
— Aguente, Catherine. — Ele pressionou um beijo de bigode em minha
testa e gentilmente tirou o bebê de minhas mãos. — Apenas mais uma semana,
e será Natal, e você ficará bem.
— Você pode trazê-la para mais perto?
Richard olhou para o Dr. Harman, que estreitou os olhos.
— Se isso impedir você de se levantar para olhar para ela?
— Claro — eu disse. — Só desejo tê-la por perto.
O Dr. Harman assentiu com desaprovação. Richard ergueu o berço inteiro e
colocou-o delicadamente ao lado da cama. Abaixei-me de volta com um suspiro,
e o Dr. Harman se aproximou com sua colher com a medicação, e eu engoli,
convocando meu ayah para mim, e bagas de amla, a bochecha de meu bebê
apenas visível, o suave subir e descer de seu peito, como a porta é mais uma vez
fechado e a sala mergulha na escuridão rubro-negra.
O QUINTO DIA
Na sala carmim, não havia noção do que era noite e do que era dia. As cortinas
roxas eram forradas com um tecido impenetrável, e só no quinto dia, despertada
por minha bexiga cheia, reuni forças para ir até a janela.
Rolei cuidadosamente para o lado, para olhar para ela. Ela estava dormindo,
como sempre parecia, enrolada tão apertada que apenas sua cabeça aparecia,
perfeitamente redonda, seus cílios roçando sua bochecha. Resisti ao impulso de
trazê-la para o meu peito e manobrei para me endireitar. Fora necessário chamar
a Sra. Noakes pelo botão da campainha para cada coisinha, mas hoje a dor havia
diminuído um pouco e eu não queria afundar novamente em uma névoa de
láudano ainda.
Posicionei-me sobre o penico, apoiada na armação da cama, sibilando
enquanto os pontos puxavam e minha pele queimava. Estava escuro demais para
ver o conteúdo do pote, mas ultimamente minhas excreções estavam tingidas de
sangue, o que o Dr. Harman me garantiu ser normal.
Empurrando o penico para debaixo da cama mais uma vez, eu me empurrei
totalmente para cima. Foi a primeira vez que fiquei de pé em dias e quase
desmaiei, minha cabeça brilhando com láudano e caldo. É um efeito colateral de
tal coisa reduzir o apetite, e foi outro motivo para sentir falta do meu ayah,
cujas curas significavam paratha frita em ghee, dahl mexido o suficiente para
grudar na garganta e misturado com alho. Aqui, era quase como se eu estivesse
sendo punida, quase morrendo de fome e drogada, sem companhia, sem luz.
Pelo menos isso eu poderia remediar.
Minhas pernas estavam inchadas e rígidas, e eu andava como se me movesse
pela neve que causou meu trabalho de parto, tateando na escuridão sombria
como uma cega, até que finalmente senti o suave tecido das cortinas em minhas
mãos. Eu os agarrei, trazendo meu corpo para perto para me pressionar contra
seu comprimento, ligeiramente ofegante com o esforço que minha curta
travessia havia causado.
Atrás de mim, minha filha suspirou e sugou durante o sono. Suspirei em
resposta, a lança afiada do amor perfurando meu peito enquanto eu abria uma
cortina pesada para o lado, o anel de ferro rangendo levemente no corrimão.
Uma luz incerta rompeu a fresta, fraca e inconfundivelmente com a qualidade
do início da manhã, e eu me esgueirei para o espaço entre a janela e a cortina
para não deixar a luz vazar sobre o rosto de minha filha.
Mantendo meus olhos semicerrados para permitir que eles se ajustassem,
estendi a mão e coloquei as palmas das mãos no vidro. Imediatamente senti o
frio das vidraças finas, as molduras recém-pintadas sem defesa contra o inverno
inglês.
Eu abri minhas pálpebras um pouco mais, e encontrei uma névoa cinza se
pressionando com força contra o vidro. A noite demorou no raiar do dia, e eu
trouxe minha testa para a superfície gelada para que minha respiração fizesse
sua própria névoa. No espelho feito de vidro e nevoeiro, meu próprio rosto
olhou para mim. Eu não conseguia ver além da janela e tentei evocar a vista tão
amada: o rio, as colinas, a floresta...
Meu rosto ficou borrado. Eu levantei minha mão para mais uma vez limpar o
vidro da minha respiração, mas então o reflexo se separou de si mesmo,
dividindo-se. Coloquei minha mão de volta na janela para me firmar, temendo
que fosse desmaiar, mas meu corpo se manteve firme, imóvel e preso como se
amarrado pelas mãos e pela testa. Diante de mim, meu rosto recuou, recuou,
mas minha testa ainda estava pressionada contra o vidro.
Não era mais o meu.
Meu cabelo estava solto e preso, embora eu pudesse sentir o atrito das
tranças da Sra. Noakes segurando forte. Meus olhos estavam arregalados e sem
branco. Sob minhas mãos, repentinamente através da vidraça fina, surgiu um
calor feroz.
Havia outra mão, pressionando o vidro do lado de fora. Lentamente,
impossivelmente, começou a empurrar. Eu podia sentir o vidro rangendo, e o
rosto de cabelos soltos e olhos negros que se separou do meu se abriu em um
sorriso largo. Seus dentes eram brancos e uniformes, e era uma expressão de
tanta maldade que meu coração parecia parar de gelar no peito. Ela estava aqui
para me machucar, para machucar minha filha.
Eu pressionei minhas palmas para trás, e seu sorriso se abriu mais. Ela trouxe
sua testa para combinar com a minha, e estava quente como febre. Senti o
cheiro animal da floresta, o metal e a palha, e sob minhas mãos o vidro começou
a rachar, pequenas fraturas que se estilhaçaram em teias de aranha ao longo da
vidraça.
Ela ia entrar. Ela ia levar minha filha.
Eu estava fraca desde o nascimento e repouso na cama, e nas garras de um
terror tão completo que mal conseguia respirar, mas empurrei para trás,
igualando-a em força. Seu sorriso tornou-se incrivelmente largo, como se ela
fosse me engolir inteira, seus olhos eram dois poços profundos, seu fedor
sufocante, e eu empurrei e empurrei, gritando com esforço. Eu encontrei seu
olhar, e levantei todo o meu peso atrás das minhas mãos.
A janela quebrou e ela ricocheteou para trás, desaparecendo no cinza. A
névoa inundou e eu tropecei para trás, pés emaranhados nas cortinas, o corrimão
de ferro derrubando a parede e quebrando as tábuas de madeira ao meu lado.
Mas não dei atenção a nada disso, com a intenção apenas de alcançar minha
filha, agora chorando em seu berço.
Mal registrei a abertura da porta, o grito de alarme da Sra. Noakes, mal senti
o quarto se encher de frio congelante, mal notei que minhas palmas estavam
cortadas e salpicadas de vidro. Eu trouxe minha filha para o meu peito, abrindo
minha camisola para que eu pudesse sentir sua pele contra a minha, e foi preciso
que o Dr. Harman e Richard a arrancassem de minhas mãos.

O SEXTO DIA
— É impossível — disse o Dr. Harman, erguendo a voz em resposta ao silvo de
Richard. — É, na melhor das hipóteses, imprudente e, na pior das hipóteses,
inseguro para o bebê e para a mãe.
— Não permitirei que elas se separem — disse Richard, seu tom
combinando com o do médico. — Por causa do que? Um acidente?
— Acredita que foi um acidente, senhor?
— Ela diz que é sim, e eu acredito nela.
— Você está experimentando isso pela primeira vez, senhor. Tudo isso.
Casamento, filhos. Eu já vi isso centenas de vezes. Isso muda uma mulher. Sua
constituição mental é alterada de forma irreparável. Sua esposa está exibindo
sinais de grave perturbação.
— E qual é a sua resposta para isso? — disse Richard, tudo menos gritando
para que eu pudesse erguer minha orelha da parede. — Mais láudano? Mais
escuridão?
— É apoiado pela ciência — disse o Dr. Harman. — Assim como por
tradição. Sua própria mãe...
— E separar mãe e bebê, isso é ciência?
A voz do Dr. Harman caiu para um nível inaudível mais uma vez. Eu me
virei para deitar em meus travesseiros novamente. Minhas mãos descansavam
em meu colo, com bandagens irreconhecíveis, o iodo que o Dr. Harman as
tratou manchando o tecido de amarelo e ardendo mais do que os cortes.
A culpa me sufocou, ao ouvir Richard me defender assim. Mas não havia
como lhe dizer a verdade. Eu sabia como isso soava, sabia que eles tirariam o
bebê de mim e me encheriam de láudano e pior, talvez até me mandassem
embora, como Mamãe.
Mas também sabia o que tinha visto, sentido, cheirado. E o fato, embora
improvável, era de que a bruxa Bright viera buscar minha filha, e eu era tudo
que a impedia. Eu estava engajada em uma luta pela alma de minha filha. Olhei
para ela, deitada bêbada de leite em seu berço, e prometi pela centésima vez que
ela estaria segura ao meu lado. Era imperativo que não nos separássemos.
Assim, ofereci a Richard uma explicação que foi o mais sensata possível. Que
acordei confusa com o láudano e tentei abrir a janela, tropeçando nela com força
suficiente para quebrar o vidro.
A Sra. Noakes varreu os cacos que haviam caído no chão, o tilintar fazendo
meus dentes doerem, e Noakes tapou tudo com tábuas grossas. Falou-se em nos
mudar da sala carmim, mas concordamos que isso só aumentaria ainda mais
minha angústia. E agora o querido Richard defendia que ficássemos juntos e
contra qualquer outro láudano. Seria tão bom. Eu poderia suportar a dor se fosse
preciso, e precisava de toda a minha inteligência reunida perto de mim se a
bruxa Bright viesse novamente à minha janela.
O Dr. Harman foi expulso de casa em desgraça, mas a Sra. Noakes e o
próprio Richard concordaram que o confinamento deveria permanecer no local.
Richard me deu outro lampião a gás e concordou em me trazer papel e caneta
quando eu estivesse com tédio, para que eu pudesse registrar o que estava
acontecendo nos termos mais claros possíveis.
A única mudança que não solicitei foi que a porta permanecesse destrancada.
No meu terror, não pensei direito. Achei que a fechadura era uma proteção tão
boa quanto qualquer outra contra os avanços da bruxa Bright. Agora sei que
esse foi meu erro fatal. Não há defesa contra o mal, exceto o bem. Ninguém
pode resistir ao Diabo, exceto Deus.
O SÉTIMO DIA
Para não dormir, coloquei-me à beira da dor. Redescobrindo o grampo de
cabelo que havia descartado nos lençóis, comecei a colocá-lo na parte inferior
das costas, de modo que, se começasse a afundar nos travesseiros, ele me
espetasse e acordasse. Mantive os lampiões a gás no máximo e nunca apertei o
botão da campainha, preferindo me causar desconforto ao alimentar minha filha
ou ao usar o penico a deixar a sra. Noakes abrir a porta.
Não sei se você já passou um dia e uma noite sem dormir, mas é o mais
próximo da tortura que posso imaginar. Minha cabeça logo assumiu um aspecto
febril e meu mijo continuou a sair quente, ardendo e sangrando. Descobri
alguns sais velhos e com cheiro de ranço na cômoda e comecei a cheirá-los a
ponto de meu nariz sangrar, salpicando minhas bandagens para que a Sra.
Noakes, trazendo mais caldo, pensasse que eu havia sangrado e substituísse por
fresco. Eu estava aprendendo que uma mulher era uma criatura de sangue,
desde as maldições mensais até o nascimento e assim por diante. Minha ayah
havia me dito isso, mas até agora eu não tinha motivos para acreditar nela.
Mas o encontro com a bruxa Bright também me fortaleceu de várias
maneiras. Eu a tinha derrotado. Eu estava agora no sétimo dia de meu
confinamento e, se pudesse ficar acordada por mais dois dias, então meu bebê e
eu estaríamos na igreja, salvas e seguras.
Claro, apenas ficar acordada não é tão simples. Especialmente quando você
está fraca pela perda de sangue, por sobreviver no caldo e na escuridão – a
pessoa costuma murchar como uma flor faminta. Daí o grampo de cabelo, os
sais aromáticos, a determinação e o conhecimento para registrar tudo o que está
acontecendo, para me lembrar de que não é um sonho terrível, mas sim minha
própria realidade terrível.

O OITAVO DIA
Eram quase seis horas, e Richard explicara recentemente, pela porta trancada,
que ele e o Sr. Noakes iriam à igreja, tendo perdido vários cultos do Advento.
Perguntei novamente se poderia acompanhá-lo, mas ele me disse que estava fora
de questão e que a Sra. Noakes estaria na cozinha se eu precisasse dela. Eu
pressionei ligeiramente contra o grampo de cabelo e disse na minha voz mais
firme que eu ficaria bem. Nossa filha observava a luz do lampião a gás piscar no
teto, e eu a observava, o brilho úmido de seus olhos, o comprimento de seus
cílios, quando de repente as lâmpadas se apagaram.
Entre a hora tardia, a porta trancada e a janela fechada com tábuas, a
escuridão era absoluta. Minha filha choramingou e eu a segurei delicadamente,
encontrando com alívio sua bochecha macia, o cheiro de lavanda de suas roupas.
Eu a levantei sobre a curva suave da minha barriga, balançando-a suavemente
em um braço enquanto o outro tateava em busca da lâmpada.
Percebi um som sibilante e instantaneamente meu pavor voltou. Uma longa
exalação, ininterrupta e alta, saiu de dentes cerrados.
Eu girei cegamente.
— Quem está aí?
Não houve resposta. Apenas aquele silvo horrível e antinatural.
Procurei nos lençóis o grampo de cabelo, mas não consegui encontrá-lo.
Arregalei os olhos o máximo que pude, procurando por uma migalha de luz,
certo de que veria o rosto terrível da bruxa Bright, seus cabelos escorridos, seus
olhos negros – e então um cheiro chegou. Mas não era o cheiro da floresta, nem
meu próprio suor forte nem a pele fresca de meu bebê. Era amargo e familiar.
Gás, liberado das lâmpadas queimadas.
Quase chorei de alívio, ainda segurando minha filha com força contra o
peito, e contornei a cama até a mesinha de cabeceira onde ficavam os abajures.
Eu podia sentir o calor residual deles mesmo através das bandagens, o vidro
enviando calor pelo ar. Isso trouxe de volta as palmas das mãos dela nas minhas
através da janela, e eu retirei minha mão com um suspiro, segurando meu bebê
com os dois braços. O cheiro de gás estava ficando mais forte a cada momento, e
eu sabia que deveria desligar as lâmpadas para evitar que entrasse em nossos
pulmões.
Ainda meio cega, coloquei minha filha na cama e, com minhas mãos
desajeitadas, procurei os parafusos de metal. Encontrei um e virei-o com alívio,
o assobio diminuindo. Minha cabeça estava começando a girar agora, e eu me
forcei a não entrar em pânico. Tateando em busca da outra lâmpada, meus
dedos expostos encontraram o vidro quente. A pele chiou, mas senti minha
mente turva e procurei o parafuso.
Ao encontrá-lo, girei bruscamente e o assobio cessou.
— Pronto — eu disse, para acalmar meu coração acelerado. — Pronto.
Quando me virei para levantar o bebê novamente, ouvi outro som.
Respiração. Estava saindo do canto mais distante da sala, ao lado da janela com
tábuas, mas mesmo enquanto eu congelava, curvado sobre minha filha, ele se
aproximava.
Meus dentes começaram a bater. O cheiro de sujeira afastou o gás e a
respiração se aproximou ainda mais. Não havia passos, nenhum som exceto
aquela respiração, pesada e deliberada, inconfundível, terrível.
Então senti calor em meu pescoço, meu bebê choramingou e me recuperei.
Levantei minha filha e a apertei com força contra mim.
— Afaste-se — gritei. — Saia daqui!
Com a outra mão apertei o botão da campainha várias vezes, e quando o som
da respiração, o fedor de coisas há muito enterradas encheu meus ouvidos e
boca, comecei a andar, recuando até a porta. Bati na porta trancada com as
costas e os pés, gritando e chorando, e a bruxa Bright estava diante de mim,
invisível na escuridão, de frente para mim, meu bebê esmagado entre nós.
A porta se abriu e eu deslizei por ela. A Sra. Noakes gritou e me endireitou,
mas eu recuei dela.
— Senhora?
A Sra. Noakes parecia tão apavorada quanto eu, os olhos arregalados, a boca
aberta em estado de choque. Ela estendeu a mão para o bebê, mas atrás dela, no
quarto carmim à meia-luz, as cortinas se mexeram. A bruxa Bright estava
chegando.
Empurrei a Sra. Noakes para fora do caminho e bati a porta.
— Tranque-o! — Eu gritei acima do som do choro do bebê. — Tranque-o!
— Dê-me a criança — disse ela, com a voz trêmula.
Eu a segurei com mais força.
— Pelo amor de Deus, tranque a porta!
Atirei-me para a chave na cintura da Sra. Noakes, e ela gritou e cambaleou
para longe de mim, para a porta. A dobradiça estava presa, e a porta ricocheteou
em seu batente, abrindo-se larga e escura como uma boca.
A bruxa Bright havia saído.
Eu corri.
Meus seios estavam pesados e doíam de leite. Entre minhas pernas se doía e
repuxava. Meus pés estavam inchados, dormentes pelo desuso, mas corri com
meu bebê nos braços porque disso dependiam nossas vidas, nossas almas, a dela
e a minha.
— Sra. Blake!
Atrás de mim, a Sra. Noakes se levantava com dificuldade, mas estava
curvada e machucada, e eu ainda era jovem, embora fraca. Eu estava
enlouquecida com meu medo e minha fúria, e ninguém machucaria minha filha
enquanto eu respirasse em meus pulmões.
Eu mergulhei escada abaixo, pés descalços batendo na madeira, e corri pela
casa até o jardim de inverno. Eu podia ver que Noakes e Richard tinham vindo
para cá – seus rastros estavam impressos na neve recém-caída.
Não havia tempo para um casaco. No andar de cima ouvi passos, muito
deliberados e rápidos para serem da Sra. Noakes. Minha mente girou. E se ela
tivesse sido possuída? E se neste momento ela estivesse nas garras da bruxa
Bright? Só havia um lugar onde estaríamos a salvo dela.
Eu caí na noite branca e fria. Meus pés queimavam como se eu tivesse
atravessado o fogo, e atravessei o curto trecho até o portão.
— Sra. Blake, pare!
A silhueta da Sra. Noakes apareceu na porta. Ela parecia enorme, com os
cabelos soltos em volta do rosto e com rapidez impossível ela me seguiu noite
adentro. Eu me joguei pelo portão. Os passos de meu marido brilharam à luz
das estrelas, um caminho para a salvação.
Eu tropecei, sem fôlego para silenciar minha filha, sem maneira de fazê-la
entender que era por ela que corri na noite gelada, então tive que suportar seus
gritos, seus lamentos, cada um deles uma pontada em meu coração.
— Pare!
A bruxa Bright nem disfarçou a voz agora. Foi profundo e terrível, um
berro. Mas eu não obedeceria, não pararia, salvaria a alma da minha filha,
mesmo que isso significasse destruir meu corpo. Dei uma olhada para trás e ela
estava impossivelmente perto. À minha direita, a floresta ondulava com malícia,
as sombras cheias de almas enterradas, perdidas e vagando.
— Você não vai tê-la — eu chorei. — Você não vai levá-la!
Adiante, a aproximação final à igreja estava alinhada com velas. Uma árvore
de Natal carregada de neve e encimada por uma estrela prateada tornava a
estrutura de pedra pequena. Mas lá estava: a cruz. Segurança. Santuário.
O serviço religioso terminou e a porta se abriu, deixando vazar uma luz
dourada sobre a neve. Sombras se alinhavam nos degraus, e eu as forcei para o
lado, fazendo com que se esparramassem, e me joguei pela soleira.
Ofegante, caí de joelhos diante do altar. Vi o rosto do padre congelado em
estado de choque, ouvi a voz de Richard dizer meu nome, senti mãos fortes e
quentes terrivelmente quentes em minha pele gelada, tentando pegar a criança.
— Por favor — eu disse, segurando com as forças que me restavam. —
Abençoe ela. Por favor.
O padre se ajoelhou diante de mim, seu rosto enrugado gentil. Todo o meu
corpo tremia de alívio e frio. Ele colocou a mão na cabeça do meu bebê e
murmurou uma bênção.
Seus gritos desapareceram e seu rosto contorcido relaxou. Eu limpei as
lágrimas de suas bochechas macias e beijei seu nariz.
— Salva agora — sussurrei. — Segura.
Suas pálpebras rosadas e perfeitas se abriram. E na luz sagrada, os olhos do
meu bebê brilharam negros.

Este registro é mantido nos arquivos do Manicômio Shropshire e Wenlock Borough.


1. Domesday Book foi o registo de um grande levantamento da Inglaterra finalizado em 1086, e
executado por Guilherme I de Inglaterra. O levantamento era similar a um censo realizado
pelos governos de hoje em dia. Guilherme precisava de informações sobre o país que acabara de
conquistar, de modo a poder administrá-lo.
NOTA DA AUTORA

Mrs Bright é baseado no caso real da Sra. Amelia Dyer, a assassina de bebês
vitoriana. Os sintomas audio-alucinatórios de Catherine Blake são influenciados
por minhas próprias experiências de depressão psicótica e por pesquisas sobre
psicose pós-parto, uma condição que até hoje é muito maltratada, mal
compreendida e difamada. Para ler mais sobre esta doença, leia “O que eu fiz?”
por Laura Lee Dockrill.
MONSTRO

Elizabeth Macneal
LYME REGIS, SETEMBRO DE 1838
Toda a Grã-Bretanha, pensa Victor, está sendo exumada. De volta a Londres, as
unhas de seu irmão estão cheias de terra, suas estufas cheias de pequenos brotos
que formarão o arboreto de um novo cemitério em Stoke Newington. Seu pai
supervisionou a escavação das novas hidrovias – linhas retas e cirúrgicas
dividindo a cidade – fazendo, como ele costumava dizer, dinheiro suficiente para
encher todo o Regent’s Canal com barras de ouro. E aqui está Victor, o outrora
brilhante filho, nesta miserável cidade de Dorset, tremendo em seu casaco de
oleado, enquanto um garotinho ruivo salta pela praia e tenta apontar pedras de
serpente e unhas do pé do diabo. Acima deles, os penhascos são altos como
montanhas, com bordas irregulares.
— Tem um — diz o menino, cutucando uma pilha de areia amarelada.
Victor olha mais de perto. Ele não consegue discernir nada além de pedras e
um parafuso velho. Talvez este seja o trabalho das mulheres, afinal – seus olhos
pequenos e rápidos podem achar os fósseis, enquanto homens como ele podem
desenterrá-los e categorizá-los.
A criança repete:
— Aqui, aqui — e uma raiva quente vem sobre Victor, e ele balança sua
bengala e a acerta no pequeno ninho.
— Não há nada aqui — ele berra, e o menino corre para trás, assustado.
Eles se apressam, a chuva quase horizontal, as nuvens tão baixas e negras que
pode ser o crepúsculo. Ele poderia estar na pousada com sua esposa, comendo
um bolinho grosso coberto com creme, suas meias quentes perto do fogo. Ele
poderia estar em casa, na civilizada Londres. Ele odeia esta cidade infernal, suas
casas curvadas como uma fileira de bêbados, suas colinas íngremes o suficiente
para tirar o fôlego do mais ágil dos homens. A chuva caía em lençóis grossos
todos os dias, deixando até mesmo suas roupas íntimas úmidas e molhadas.

Lyme Regis foi ideia dele, uma promessa sussurrada nos primeiros dias de
namoro, quando Mabel disse que ansiava por ver o oceano. Lembrou-se de um
artigo que encontrara recentemente no White’s, sobre Gideon Mantell e seu
Iguanodonte. Havia um trecho da costa, ele lembrou, onde todos os tipos de
criaturas curiosas foram desenterradas. Ele ajeitou a gravata.
— Bem, minha querida, você terá seu desejo. Um dia, levarei você a esta
pequena aldeia na costa de Dorset. — Acrescentou, com afetação teatral: — E
lá, enquanto você admira o mar, farei meu nome, desenterrando uma besta
peculiar. E vou chamá-lo de Prodigium Mabelius.
Mabel sorriu, timidamente sem mostrar os dentes, e ele se convenceu de que
ela era o espécime adequado de feminilidade, uma pessoa que poderia
facilmente impressionar. Aqui, ele percebeu, estava uma garota que acreditava
nele, e com esse encorajamento – ora, ele poderia conseguir qualquer coisa!
E então ela olhou para ele, seus olhos tão grandes e pálidos.
— Li que seu irmão descobriu recentemente um novo tipo de orquídea. Este
monstro o deixará igualmente impressionante.
Ela não pretendia feri-lo, disse Victor a si mesmo, mas tocou a testa como se
ela o tivesse golpeado.
Quando criança, ele tinha sido brilhante. Quando criança, ele era dourado,
cheio de promessas, destacando-se em tudo o que fazia. Críquete, latim,
matemática – ele era reverenciado e temido por professores e alunos. Ao lado
dele, seu irmão estava pálido como um arbusto murcho e não conseguia pensar
em nada além de malditas flores. Ele as pressionou, catalogou e cultivou a partir
de pequenos bulbos. Victor o chamava de “Margarida” e colhia suas orquídeas
raras para fazer as casas dos botões.
— São apenas flores — protestou ele quando o irmão chorou. Mas então os
anos passaram e Victor, a maravilha versátil, o dux do ano, descobriu que sua
mente era um pássaro em uma gaiola, nunca satisfeito. Ele esvoaçou contra as
grades das finanças, da política, do comércio, nunca se estabelecendo por tempo
suficiente para se estabelecer.
Um dia, ele olhou para cima e percebeu que seu irmão havia passado décadas
cultivando sua única paixão e se transformado em um renomado horticultor.
Margarida estava sendo consultado sobre planos de plantio em todos os lugares,
desde o Palácio de Buckingham até a nova onda de cemitérios. Margarida tinha
uma casa geminada em Mayfair e uma casa de campo em Richmond com sua
própria estufa. Margarida era o assunto da cidade. Uma certeza fria se alojou no
peito de Victor, de que um grave erro havia sido cometido e o mundo estava
celebrando o irmão errado.
E então ele e Mabel se casaram e partiram para Lyme Regis em uma
tempestade de baús e caixas de chapéus, Mabel segurando seu livro de colagem
de spaniels e sua afiada tesoura de prata. O raspar das lâminas de Mabel o
irritou apenas um pouco, a lambida do pote de pasta. Ele sorriu para ela e não
disse nada. Era um novo começo, disse a si mesmo, enquanto passavam por
aldeias e rodovias, o campo já escurecendo com o início do outono. Cinco dias
de viagem, de noites em pousadas em ruínas. Quatro noites até que ele reunisse
coragem para finalmente tocá-la, para ter seu corpo sob o dele.
Enquanto o treinador avançava, ele tentou ler os livros que havia adquirido
sobre plesiossauros e iguanodontes. As palavras dançaram e se reorganizaram,
mas uma frase brilhou, página após página. Sociedade Real. Uma grande
instituição, dourando tudo o que entrou em sua órbita. O experimento da pipa
de Benjamin Franklin. A jornada de James Cook ao Taiti para rastrear o trânsito
de Vênus. Principia Mathematica de Isaac Newton. Todos esses relatórios foram
publicados dentro de suas paredes, todos esses homens ilustres passando sob seu
grande arco de pedra. Logo, ele pensou, ele estaria tropeçando em criaturas
fossilizadas, as praias cheias de costelas e espinhos e crânios longos e lisos. Ele
imaginou os aplausos que sua própria descoberta iria receber, a percepção de
que finalmente ele, Victor Crisp, era um homem de ciência, de renome, de
absoluta grandeza...
Ele caiu para a frente quando eles subiram uma colina íngreme, seu livro
esparramado no chão.
— Tudo bem — disse ele, recompondo-se, embora Mabel não tivesse dito
nada. Ele amaldiçoou, limpando as mãos contra as calças. — Tudo bem —
repetiu ele.
Snip, snip, snip. Um poodle com um laço rosa estava sendo retirado
lentamente de um livro infantil.
Ele olhou pela janela.
— Ali está o mar, como você queria. Devemos estar quase lá.
Mabel não ergueu os olhos. Houve um tremor em seus pulsos. Ele se
perguntou, brevemente, se ela estava com medo dele. A lembrança da noite
anterior – suas coxas brancas como leite, seu corpo fechado e mal cedendo sob
ele, aquele surpreendente ninho de cabelo escuro (ele havia perseverado
independentemente) – trouxe uma pequena pontada de remorso. Ele tentou
sorrir.
— Ah, aqui estamos nós — disse ele.
Mesmo assim, as chuvas estavam começando. Gotas gordas que caíam na
calçada como manchas de graxa. Nuvens grossas como lã. As gaivotas gritavam.
Victor saiu da carruagem e olhou em volta. A pousada era um estabelecimento
mais barato do que ele havia sido levado a acreditar – uma espinha fina e torta
subindo pelo meio do prédio onde estava diminuindo lentamente – e ele
verificou a expressão de Mabel em busca de qualquer desagrado.
— Vamos esperar que o teto não caia sobre nós durante a noite — disse ele,
esperando pelo menos fazê-la sorrir, mas ela manteve o olhar fixo na calçada.
O estalajadeiro os cumprimentou, duas crianças ruivas brincando a seus pés.
O menino rolava fósseis pela soleira. A garota agarrada a uma canela de boi
enrolada como uma boneca e falava:
— Não chore — ela sussurrou.
— Bem-vindos — disse o homem, conduzindo-os ao hotel. Velas de sebo
escorriam pelas paredes, o ar denso com o fedor de carne crua. Armadilhas
ornamentais e foices pendiam do teto, com as mandíbulas enferrujadas. Ele se
virou para Victor com um olhar estranho e estreito. — Devo avisá-lo agora,
antes que seja tarde demais.
— Oh?
— Dizem que a pousada é mal-assombrada.
Victor riu e Mabel disse:
— Oh.
— Assim como naqueles romances que você lê — disse Victor. — Tenho
certeza de que aqui é tudo igual. Sepulturas bocejantes, monges acorrentados e
todas essas bobagens.
— Não — disse o homem, conduzindo-os por um corredor estreito até o
quarto. Victor se abaixou sob uma lâmina baixa e cega. — As coisas têm o
hábito de ser diferentes de como parecem. Se transformam. Selkies escoceses,
você conhece a história?
Victor balançou a cabeça.
— Focas que se transformam em mulheres. Mulheres que se transformam
em focas. Frequentemente somos visitados pelo fantasma de uma foca que foi
capturada nesta costa e espancada até a morte por um grupo de marinheiros. No
dia seguinte, eles encontraram o corpo de uma mulher espancada onde a
criatura do mar havia sido colocada para descansar.
O homem roçou os dedos no pulso de Mabel. Victor notou como o
estalajadeiro estava perto dela, com a cabeça inclinada para o pescoço dela.
Mabel, notou ele, não se afastou. Ele riu, uma pousada assombrada, um
proprietário lascivo. Qual seria o próximo? Uma série de moleques cantando?
— As velas se apagam à noite — continuou o homem. — São pequenas
respirações de focas, apagando-as.
Victor sorriu novamente.
— Muitas vezes há um barulho de passos depois da meia-noite —
acrescentou o menino, seguindo-os até o quarto.
A sala era pequena, o assoalho inclinado, a janela tão pequena quanto um
olho semicerrado. Victor teria preferido dividir a cama, mas viu que Mabel teria
seu próprio quartinho ao lado do dele, entrando por uma porta adjacente.
— Ouça o tapa das nadadeiras — continuou o menino. Ele fez um som
agudo de ark, ark, curiosamente próximo a um gemido de prazer feminino. —
Limo encontrado nos lençóis.
— Camas gemendo.
Muito bem, pensou Victor. Até Mabel sabia do que se tratava, com as
bochechas rosadas.
Nesse momento, a cama pareceu tornar-se monstruosa, enchendo o quarto.
Cortinas roxas lustrosas como cortes de vísceras. Uma covinha nos travesseiros,
como se já amassada pelo crânio de um estranho. Todos os fantasmas daqueles
que foderam aqui antes deles. Victor mexeu em seu cachimbo, esperando que o
homem e o menino fossem embora.
— Aqui está ela — disse o homem, apontando para uma pequena pintura
pendurada acima da cômoda. — Não tão bela quanto você, é claro — disse ele,
e Victor viu como ele colocou a mão no ombro de Mabel. Ele tossiu e fingiu
inspecionar a foto.
A arte era tosca, pouco mais que o trabalho de uma criança. Mas, na verdade,
a imagem o perturbou. O corpo de uma foca com o rosto passivo de uma garota,
a pele descascando de seus ombros tão perfeitamente quanto uma tangerina
meio aparada. Tanta pele. Isso o lembrou das xilogravuras que ele mantinha
pressionadas entre as páginas de sua Bíblia – as mulheres com seios firmes, suas
pudendas lisas e sem traços característicos como mármore.
— Céus — disse Mabel. — Ela é bem assustadora.
— É tudo bobagem, querida — disse Victor, levando-a para longe.
Mas Mabel não o seguiu. Ela se curvou à altura da criança.
— São fósseis? — Ela perguntou a ele. — Meu marido vai encontrar uma
criatura fantástica e nos deixar ricos. Ele vai chamá-la de Prodigium Mabelius.
O estalajadeiro exalou com o que soou suspeitosamente como uma risada. A
mortificação atraiu os olhos de Victor para o chão. Se alguém além de Mabel
tivesse dito isso, ele pensaria que estavam zombando dele. Mas de sua esposa –
ele desejava apenas que ela soubesse o que manter em segredo e o que
compartilhar.
— Meu sobrinho pode levar você para os penhascos de Ven Negro — disse o
homem, apontando para a criança ruiva. — Ele tem faro para isso, como um
porco para cerejas. Não que haja achados espetaculares há anos.
— Quando a chuva parar, eu ficaria encantado — disse Victor.
— É mais fácil ver os fósseis quando está molhado. Elas brilham negras por
causa da lama — balbuciou o menino. Ele estava sem os dois dentes da frente e
balançava o incisivo inferior com a língua.
Mabel inclinou a cabeça para Victor.
— Você não tem medo de um pouco de chuva, não é querido? — ela disse.
— Tenho certeza de que você me achará uma fera maravilhosa se for se
aventurar todos os dias.
— Mas–
— Acho — disse ela, girando sua tesourinha de prata na mão — de todas as
suas qualidades, a que mais admiro é a sua dedicação. Eu sei que você consegue.
Ela sorriu para ele e acrescentou que não poderia se juntar a ele, não quando
seus pulmões estavam tão fracos depois de um surto de gripe três anos antes.

Seus sonhos de glória estão extintos, de desenterrar uma criatura mítica.


Acabaram-se seus sonhos de qualquer coisa, exceto um jantar de cavala1 fria,
regado com jarrete, e mesmo assim ele teme a decepção de Mabel quando ele
diz a ela – mais uma vez – que não encontrou nada. Oito dias e nada além de
chuva! Exausto demais até para assistir aos bailes nas salas de reunião. Uma
gota de água serpenteia por suas costas. Seus dentes estão começando a bater,
suas calças estão encharcadas até o joelho. O menino está tão à frente que Victor
mal consegue vê-lo na névoa. Victor faz uma pausa para ver pelo que três
gaivotas estão brigando, seus bicos afiados bicando a carne de algo macio. Uma
água-viva encalhada, sangrando na areia.
E então ele ouve. O som de uma garganta limpando e, em seguida, a ruptura
longa e baixa de algo fundamental se partindo em dois. Ele o vê vagamente,
como se através de uma janela embaçada, os penhascos cedendo, toneladas de
terra negra desabando.
— Por favor — ele grita, como se estivesse tentando contar com alguém,
com o quê? As próprias rochas, com Deus? Ele não poderia imaginar como suas
pernas podiam ser líquidas, como sua visão era disforme. Ele estava ciente de
pouco, exceto uma dor no peito, o gosto forte de moedas de um centavo. Ele
tenta correr, mas escorrega, cai em algo macio e molhado. É a água-viva, ele
percebe, seu lodo cobrindo suas mãos, macio e frio. Ele está paralisado, colado
ao chão, com as pernas pesadas como vigas, esperando que a terra o devore. É
estranho, ele pensa, como ele não pensa em nada particularmente importante –
apenas em Mabel, ontem à noite, sentada à sua frente no jantar. O conforto
disso. Ela estava dissecando uma sardinha com uma faca de prata, soltando as
costelas da espessura de um cabelo. Ela é minha, ele pensou. Nós somos um do
outro.
O que ela vai dizer quando souber da notícia? Ele imagina a queda suave das
lágrimas, e depois anos de devoção constante ao seu túmulo. Mas quem mais vai
chorar por ele? Seu funeral só pode ser tranquilo, modesto, não a grande
procissão que ele imaginou que fosse. Trinta anos nesta terra e ele não tem nada
para mostrar. Nada da riqueza e fama que seus mestres lhe deram. Já se
passaram anos desde que alguém disse:
— Se alguém pode fazer isso, Victor também pode! — Seu nome, antes uma
fonte de orgulho, começou a parecer uma provocação.
O fedor dos fornos de cal acima da cidade, de cordite, de terra recém-
revolvida. Ele está vagamente ciente de que alguém está gritando, embora não
consiga discernir as palavras. Apenas um lamento longo e baixo, o som que uma
dobradiça pode fazer quando precisa ser lubrificada. E então, o som começa a
diminuir. Ele bate nas pernas, no lado, nos braços. Sem dor, nada. Ele fica,
trêmulo, tirando a areia do casaco, enxugando as mãos nas calças. Ele se sente
absurdo, tolo. O deslizamento de terra parou. Uma massa espessa de terra entra
no mar. As falésias estão amassadas. Ele deveria sair, correr. Mais podem cair.
Toda a costa pode ser transformada em nada além de escombros. Mas ele se vê
caminhando em direção a ela. O céu é tão prateado quanto o interior de uma
concha, a chuva é uma borrifada fraca. Parece que é só ele no mundo–
O menino, ele pensa. O menino com os dois dentes faltando cujo nome ele
não consegue lembrar. Ele estava à frente, seu cabelo ruivo desaparecendo na
névoa, bem quando o deslizamento de terra começou.
— Criança — ele chama, mas sabe que não adianta. O menino certamente
está morto.
E então ele o vê, preto e brilhante. Brilhando na luz cinzenta da tarde, no
alto do monte de terra. Uma forma quase de caveira. Victor pisca, dá um passo
à frente e outro. Ele está correndo em direção a ela, a dor no tornozelo quase
desaparecendo. A euforia canta dentro dele. Ele observa esse momento como se
já o preparasse para a anedota, para a história. O momento da descoberta, o
choque da epifania. Um homem alto e encharcado, escalando o deslizamento de
terra, avançando em direção ao avanço científico. A lama, tão viscosa! Agarra-se
às suas coxas, espremendo-se a cada pisada.
Eu soube no segundo em que vi. Isso é o que ele dirá ao se dirigir a uma grande
audiência na Sociedade Real. Um instinto de descoberta, eu diria.
Seus dedos arranharam a rocha. Como ele deve parecer triunfante! Suas mãos
doíam de frio, escurecidas pela terra até o cotovelo. Os trovões soam como
aplausos. Uma forquilha de relâmpago ilumina a tarde. Uma caixa torácica.
Uma barbatana. Um monstro intocado. Por milhares de anos ela esteve
adormecida, apenas esperando que ele a descobrisse.
Todo mundo está cavando, ele pensa de novo, sua alegria vindo em ganidos
curtos e encantados. Seu pai com seus canais. Seu irmão com suas plantas e
cemitérios. E ele, Victor, por uma criatura magnífica que certamente fará seu
nome.

Está quase escuro quando os cavalos de carroça chegam. Ele os cheira quase
antes de ouvi-los, o fedor de peixe podre de lamparinas de óleo de baleia. Ele
gesticula descontroladamente. Lá está o estalajadeiro e a garotinha com sua
boneca de osso, correndo pela praia. A maré está subindo, ofegante enquanto
rola sobre as pedras.
— Aqui! — ele chama, de seu lugar no monte. — Aqui! Eu preciso de
cordas. Pás. Martelos. Precisamos trabalhar rápido para salvá-lo.
— Graças a Deus — grita o estalajadeiro, e eles escalam a terra em sua
direção. O homem olha em volta, semicerrando os olhos na escuridão. — Mas
onde ele está?
— Ali — diz Victor. — Olhe para ele! — O crânio de focinho comprido. As
patas pretas. Ele espera por sua admiração, sua inveja.
O homem olha em volta descontroladamente.
— Mas Wilbur. Onde está Wilbur?
Victor morde o lábio. Ele havia esquecido tudo sobre o menino, esquecido
que em algum lugar sob esta massa fedorenta de terra jazia o corpo de uma
criança pequena.
— Sinto muito... — Victor gagueja. — Ele não teve chance, você deveria ter
visto! Desceu tão rápido...
O estalajadeiro dá um passo à frente. Por um segundo, Victor pensa que o
homem está prestes a bater nele. Mas suas mãos estão flácidas ao lado do corpo,
sua mandíbula frouxa e há dor estampada em seu rosto. Victor dá um passo para
o lado e os observa, o homem e a menina, enquanto rastejam sobre a terra,
chamando o nome da criança, cutucando o solo, arranhando-o, cravando paus.
Ele quer dizer a eles que é inútil, que o menino certamente está morto. Ele olha
em volta, observando o movimento da maré. Quanto tempo ele tem? Se
ninguém o ajudar, sua descoberta será arrastada pelo mar, perdida para sempre.
Um pequeno grito sai de sua garganta. Sua única chance de fama e glória já está
diminuindo.
Ele procura no bolso uma caneta e um papel, acena com a promessa de dez,
vinte libras diante de dois homens de braços grossos. Eles se movem de um pé
para o outro, mas finalmente acenam com a cabeça e seguem para onde ele os
leva. Martelos lascam pedras, cordas rangem e puxam. Enquanto a chuva lava a
sujeira, Victor vê que a criatura é perfeita, mais intocada do que ele jamais
poderia imaginar: costelas, espinha, patas. Eles cavam estacas, prendem mais
cordas, embora Victor se preocupava, temendo que eles o partissem em dois. Os
cavalos chutam grandes torrões de barro, veias retesadas, cabeças horrivelmente
sombreadas à luz da lamparina. Um gemido, se humano ou animal, ele não
sabia dizer. Ondas trovejando, batendo.
— Temos que ir embora. As marés — gritam os homens, e as águas se
agitam ao redor de seus tornozelos. O estalajadeiro e sua filha voltam para a
cidade, de mãos vazias, cabeça baixa. Ele observa suas lamparinas reduzirem-se
a pequenas chamas.
Mas Victor não vai embora e convence um dos homens quando ele tenta
amarrar os cavalos. Ele pega sua carteira mais uma vez, rabisca somas horríveis,
e os homens batem seus chicotes contra as carroças, até que finalmente –
finalmente, com um estalo feroz, a criatura se solta. Victor dança de um pé para
o outro enquanto eles o prendem a carroça, a madeira balançando sob o peso.
— Depressa — ele sussurra. Então, mais alto: — Rápido! — As marés
atingem as coxas de Victor, a corrente quase puxando-o para o lado. Espuma
troveja contra sua cintura.
— Vou amarrar — diz aos homens, e só agora vê como estão assustados,
como os cavalos estão inquietos, o branco dos olhos brilhando.
Eles atravessam as ondas quebrando, e Victor se senta na carroça, a água
borbulhando contra as tábuas. A noite é tão negra e fria. Ele está tremendo,
todo o seu corpo convulsionado com o frio do mar. Há lama em seu cabelo, em
suas orelhas. Ele inclina a cabeça e segura sua criatura como uma mãe abraça
um filho.

Talheres rangem na porcelana. A torta de peixe está morna, com espinhas.


Victor pega uma pequena espinha translúcida de suas gengivas e a coloca ao
lado de seu prato. Mabel não olha para ele, não fala. Ela mal falou desde que ele
entrou, encharcado até os ossos, pingando lama. Ele esperava que ela se juntasse
a ele para ver o animal sendo descarregado na casa de um lojista perto do
prédio, mas ela se afastou dele e balançou a cabeça. Foi ele quem ficou nas ruas
molhadas, quem negociou com o proprietário, quem instruiu dez homens a
carregá-lo pelos degraus mofados até o porão. Se pudesse, ele o teria
transportado para seu quarto ou dormido no cofre ao lado dele.
Seu joelho pula para cima e para baixo.
— Você acredita nisso? — ele sussurra. — Meu Monstro! Espere até ver. É
magnífico. Pode ser a maior descoberta desde o Plesiosaurus de William
Conybeare.
— Da Mary Anning — ela diz.
— Perdão?
— Mary Anning encontrou aquele Plesiossauro.
— Uma queixa — diz ele. — Conybeare o catalogou, não foi? — Ele aperta
a mão dela. — Em alguns dias, talvez amanhã, a imprensa estará aqui. Os
homens da ciência! Os paleontólogos. — Ele respira profundamente. — A
Sociedade Real! Oh, quando eles ouvirem!
— Repolho? — o estalajadeiro pergunta, segurando uma terrina de vegetais
amarelos murchos.
Victor bate na testa.
— E se não for seguro naquele porão? E se eles venderem?
— Repolho? — o estalajadeiro repete. Seus olhos estão vermelhos, uma
magreza em suas bochechas.
— Obrigada, James — diz Mabel, e olha para o homem com uma expressão
próxima do afeto. Quando ele se move para colocar o repolho no prato dela, os
dedos dele roçam os dela. Ele é surpreendentemente bonito, Victor observa com
alguma surpresa.
— Não para mim, James — diz Victor, acariciando sua barriga. — Isso é
tudo.
Com uma reverência, o homem se vira e desaparece. Victor observa como os
olhos de Mabel acompanham seu movimento pela sala. Ela é uma criatura de
coração mole, ele diz a si mesmo, ela apenas tem pena dele pela morte de seu
sobrinho.
— Acredito que seja uma nova espécie da família Plesiosaurus. Se estiver
correto, decidi chamá-lo de Plesiosaurus V. Crispus.
Victor espera. Sua esposa continua a ver sua comida. Nada, nem mesmo um
vacilo.
— Eu sei que prometi que iria nomeá-lo–
— Por que os homens sempre precisam cavar? — ela interrompe.
Ele nunca ouviu esse tom dela antes.
— Desculpe, querida?
— Por que os homens não podem simplesmente deixar as coisas onde estão?
Por que eles sempre têm que pegar as coisas e...
Ele enxuga o lábio.
— Isso é sobre o menino, não é?
Ela bate os talheres. Ele fica surpreso ao ver lágrimas nos cantos dos olhos
dela.
— É um negócio desagradável, admito. Decidi pagar por um funeral
magnífico, digno de um cavalheiro. Mudos2, uma carruagem negra...
— E isso o trará de volta?
Ele puxa a gravata.
— O deslizamento de terra não foi culpa minha. Você está olhando para
mim como se eu fosse algum tipo de assassino. — Ele estremece. — Foi
lamentável o que aconteceu com o menino. Mas quando você passar um pouco
de tempo no mundo, perceberá que os seres humanos costumam ser a garantia
do progresso. Os homens morrem ao construir grandes pontes, ao colonizar
novas terras. Acontece.
Sua boca está apertada, o sangue se acumulando no canto dos lábios.
Um pensamento o atinge e ele reprime uma vontade repentina de rir.
— Não é apropriado — diz ele, disfarçando sua diversão com uma tosse —
que o caçador de fósseis tenha se tornado um fóssil? Lá está ele, enterrado sob
toda aquela terra. — O mundo nada, aquele teto bizarro de foices e potes de
cerveja e armadilhas, e ele se sente afastado dele, dominado pelas gargalhadas
que partem dele. — O menino tem… — ele suspira, batendo para um copo de
água — ele tem… fossilizado… a si mesmo!... Eles… irão… desenterrá-lo…
e…
Água fria explode sobre ele.
— Que diabos… — ele começa, e então vê o copo vazio na mão de Mabel.
Seus olhos estão tão estreitos e frios que o assustam.

Victor vai às salas de reunião sozinho naquela noite. Mabel diz que está com dor
de cabeça e ele a deixa em seu álbum de recortes, a tesoura cortando em cortes
rápidos e afiados.
No momento em que ele subiu a colina, ele se sentiu sem fôlego, sua visão
nublada, uma dor aguda em seu lado. As ruas estão apagadas e ele tropeça em
escombros – uma rede velha, uma concha de ostra – desejando ter trazido uma
lamparina. Ainda está nublado, sem lua, uma coruja voando baixo sobre a
cidade. Apressado, mais rápido, o som dos violinos flutuando pelas ruas.
Ali, à sua frente, o salão arde. Civilização, ele pensa, quase correndo, se
perguntando por que não compareceu antes. A sala estará repleta de
veraneantes, pessoas da moda e do bom gosto. Ali, à luz de mil velas, as
carapaças de tartaruga brilharão como perucas. Osso de baleia vai apertar as
cinturas. As amonitas brilharão nas orelhas e gargantas, sem deixar vestígios do
solo negro e acre de onde foram arrancadas.
A princípio, ninguém percebe que ele entrou. E então, um homem pega sua
mão e a aperta. Uma cutucada começa, murmúrios passando no intervalo entre
as danças.
— Foi você, não foi? — um cavalheiro pergunta a ele. — Victor Crisp, não
é? O homem que descobriu aquela criatura magnífica.
Ele inclina a cabeça, acena com a cabeça. Vários copos são erguidos para ele.
Um homem lhe entrega um copo cheio de ponche. Ele aceita, toma um gole.
— A Sociedade Real ficará encantada em saber disso — diz um cavalheiro.
— A maior descoberta em anos, aposto.
Victor assente.
— A Sociedade Real — ele ecoa, mas sua voz soa curiosamente distante. Ele
está com frio, ele percebe, mas quente também, tão quente que enxuga o suor
da testa. — A Sociedade Real — ele repete, mais alto, com mais ênfase.
O homem o encara.
Victor balança para a frente na ponta dos pés, tentando suprimir o tremor
que o domina. Alguém dá um tapinha em suas costas. Ele deveria sorrir, aceitar
seus agradecimentos, talvez até fazer um discurso. E, no entanto, por que ele se
sente tão – tão vazio, tão sozinho? Suas entranhas giram como se ele precisasse
esvaziar seus intestinos. Lá fora, o vento sopra forte, sacudindo as janelas. Ele
bate na orelha. O uivo fica mais alto, assim como o som que ouviu na praia
quando a terra caiu – a criatura, ele se pergunta, será a criatura gritando, ou
pior – o menino?
Mas ninguém mais está olhando ao redor deles. Ninguém, neste refinado
salão de baile, expressa qualquer alarme. O som, ao que parece, troveja apenas
nos ouvidos de Victor. Ele tenta acalmar o tremor em suas mãos, acenando com
apreço para a sala. Cem dentes sorriem para ele. Um grito baixo, e o copo
escorrega da mão de Victor e cai no chão.

Através da sala com suas foices penduradas, subindo as escadas. Ninguém


deixou uma vela para ele. Sua mão tateia pelo corrimão, suas pernas confusas e
tropeçando na madeira. Em seu quarto, ele bate à porta, respirando com
dificuldade. A pintura o recebe, a garota meio foca, descascando sua pele. Seus
olhos tão redondos e azuis. Um conto tolo ele pensa; uma criatura não pode se
transformar em outra. Ele a pega e a coloca no chão, de frente para a parede. Ele
força a porta de seu pequeno quarto.
— Minha gatinha — ele sussurra — minha querida.
A princípio ele persuade, bajula, implora, e ainda assim fica satisfeito
quando ela se afasta, a vergonha corando em suas bochechas, os joelhos
apertados ao redor dela. Ele costumava visitar uma garota em Jermyn Street,
muitas vezes se viu preso em seu ninho decadente pela força de sua luxúria –
como ela o excitava, horrorizava-o! Babette, esse era o nome dela. Uma garota
parisiense, do Marais. Ele entraria em seu quarto, encontraria suas pernas
abertas em prazer arbitrário, dedos acariciando aquela coisa pequena e quente,
quadris empurrando para encontrar os dele. Como ela se preparou para o peso
de seu prazer – sua necessidade, dando lugar ao ódio, até que ele começou a
imaginá-la em um buraco, nua e se contorcendo, sua língua coberta de placas
implorando para lamber, chupar e engolir.
Que alívio, então, descobrir que sua esposa poderia ser uma espécie
totalmente diferente. Mas como ela é seca e apertada, como ele tem que forçar a
entrada! Ele não consegue olhar para ela, convencido, contra toda a lógica, de
que a enganou. Ele sente uma vontade repentina de parar, de dizer a ela que
nunca amou ninguém tanto quanto a ama, dizer “vamos começar de novo”. Mas
então ele se lembra de seu pai, sacudindo-o quando ele chorou por causa de um
corte no joelho. Uma vez que um homem perde o respeito, ele o perde para sempre.
Durante toda a noite, seus sonhos são intermitentes e incertos. Monstros se
transformam em garotos, garotos em monstros. Suas roupas de cama grudam
nele. A luz por baixo da porta de sua esposa o perturba, o estalo da tesoura dela,
o deslizar da cola contra o papel. Antes do amanhecer, ele ouve lamparinas
batendo, os habitantes da cidade correndo para o deslizamento de terra agora
que a maré está baixa.
Quando não aguenta mais, ele se senta à escrivaninha. Ele começa a carta
que já compôs centenas de vezes em sua cabeça, tentando acalmar o tremor em
seus dedos. Ele escreve o endereço primeiro, vangloriando-se do R em loop, do
jeito que ele enrola o S de Sociedade em duas linhas.
Prezados Senhores, escrevo com a notícia de uma descoberta magnífica, da qual estou
certo de que sua sociedade estará muito interessada–
A carta escrita e selada, ele se volta para a única correspondência que recebeu
na última semana. Como sempre, está cheio de bobagens de seu irmão sobre
plantas – todas as conversas sobre mudas e estacas, e o arboreto no Cemitério de
Abney que será plantado em ordem alfabética. Margarida até listou todas as
árvores como se Victor pudesse dar dois figos – Zanthoxylum será a adição final.
Você sabia que seu nome comum é árvore de dor de dente americana?
Ele pega uma folha nova e deseja escrever palavras simples e alegres: Agora
sou um grande homem, Margarida! A Sociedade Real enviará um homem para verificar
minha descoberta, e então ela será registrada em todos os livros de história. Serei o irmão
Crisp cujo nome ecoa através dos séculos! Mas ele sabe que seu irmão não se
importaria, a competição e ressentimento sempre correram em uma direção. A
única coisa que importa para Margarida é sua estufa, seu viveiro de mudas
cuidadosamente etiquetadas.
Há uma batida na porta. Victor a abre, esperando, por um momento, a
criança ruiva. E então, quando uma garota de cabelos negros o encara de volta,
Victor se lembra de que o garoto está morto. Ele pisca, se firma no batente da
porta. Sua cabeça parece nublada, como se houvesse uma fina membrana
separando-o do resto do mundo.
— Ah, arenque defumado de novo — diz Victor com falsa jovialidade,
olhando para a bandeja de prata lascada. Os corpos estão flácidos e à sombra de
gangrena, três olhos leitosos olhando para ele. Ele aponta para a mesa. —
Coloque aí, por favor.
A criança está prestes a fugir quando Victor estende a mão.
— Espere — diz ele, pegando a carteira. Ele estende uma cunha grossa. —
O menino que morreu–
— Wilbur. Meu primo. Eles o encontraram esta manhã. — Ela inclina a
cabeça.
— Maravilhoso! — Ele se pergunta onde eles o colocaram. Naquela luz da
madrugada, eles o trouxeram na mesma carroça, rasparam a lama de seu nariz e
orelhas.
Seus olhos, já pequenos e apertados de tanto chorar, parecem se estreitar
ainda mais.
— Pode ser uma misericórdia — diz ele, rapidamente — ter um corpo para
enterrar. — Ele pigarreia, pressionando as notas na mão dela. — Gostaria de
contribuir com os custos. Para não ter nenhuma despesa poupada. Contrate
mudos para ficar em sua porta. Um grande enterro. Dê a ele uma despedida
digna de um duque!
A criança está olhando para ele, protegendo o dinheiro como faria com uma
pequena e preciosa criatura. Ela fecha os dedos em punho e dá um passo para
trás. Victor ouve os passos dela recuando firmemente no início, e depois
acelerando, martelando pela pequena estalagem.
Victor se veste rapidamente e sai correndo pela rua para visitar sua criatura. É
um dia claro, as gaivotas voam como pedaços de renda. Há um fedor de
mariscos em decomposição, algas marinhas juntadas em pilhas apodrecidas e
cheias de moscas. As meninas agitam cestas de dedos do diabo e verteberries.
“Um centavo a peça” elas gritam, mas Victor passa por elas, zombando de suas
meras ninharias. Ele não poderia imaginar o monstro que iria desenterrar, a
fama que seria dele. Plesiosaurus V. Crispus. Ele levanta a aldrava, bate três vezes.
Silêncio. Ele tem um súbito pânico de que alguém tenha roubado sua besta –
que eles vão vendê-la e fazê-la se passar por sua. Ele bate com mais força, com o
punho na madeira. Um som de chaves.
— Paciência, meu amigo — diz o homem. Então o homem olha para ele. —
Está muito bem, senhor?
Victor assente, quase correndo para o porão. Ele mal pode esperar para estar
ao lado dela, para tocar seu flanco frio, para encostar a cabeça em sua caixa
torácica escura. Na penumbra, ele consegue ver pouco – as janelas estão
fechadas, apenas uma única vela acesa no canto. Ele tropeça escada abaixo, suas
mãos roçando em cristais brancos. Água pingando do teto.
— Lá está ela — ele respira. O lojista segue com uma vela.
O homem concordou em guardar a criatura em seu porão até – até o quê? Se
fosse alta temporada, haveria uma série de cavalheiros científicos que diriam a
Victor o que fazer, que poderiam até verificar se sua criatura é genuína. Mas
Victor não sabe os passos que deve seguir – ele pode esperar, apenas, por uma
resposta da Sociedade Real, pelo cavalheiro que inevitavelmente enviarão. E
então, ele tem certeza, eles providenciarão seu transporte para Londres, onde o
verdadeiro trabalho iria começar.
Victor pede um balde e uma escova e, sentado naquele porão gelado e
abafado, começa a limpar sua criatura. Para arrancar o lodo antigo entre os
dentes, para lavar a sujeira da borda quebrada de seu crânio. Ele leva um
martelo para sua espinha, lascando pedaços inúteis de pedra. O cheiro de
cordite enche a sala, seu esqueleto exposto pela primeira vez em milhares de
anos. Os ossos parecem escuros e polidos, mas mesmo assim ele molha um pano
em óleo e os esfrega em movimentos lentos e circulares. Ele nunca tocou
ninguém com tanta ternura, tão gentilmente. Ele se lembra de como se deitou
ao lado de Mabel naquela primeira noite, a respiração dela adormecida tão
estável quanto o tique-taque de um relógio. Ele não podia acreditar que ela era
dele, que eles estavam unidos para sempre. Ele passou a mão sobre o ombro
dela, desejando puxá-la para perto dele, inalá-la e abraçá-la. Mas a luxúria bruta
era a única maneira que ele conhecia. Pela manhã, ele conseguiu novamente, seu
corpo se chocando contra o dela com a força de um pistão. Quando terminou,
afundou-se no colchão e tentou acalmar a vergonha que latejava dentro dele.
Ao longo do dia, cavalheiros o visitaram em seu porão. Homens de ciência
amadores e um garoto do jornal local, e outro de um jornal social. Eles trazem
paquímetros e réguas, medindo dentes, costelas e barbatanas. Um homem
concorda que é um tipo de plesiossauro, mas uma espécie nunca antes vista. É,
todos concordam, notavelmente completo.
— Quase — alguém diz — como se tivesse morrido há apenas um ano.
Como se tivesse sido recentemente esquelético.
Victor assente. Pela primeira vez em sua vida, ele se vê sem palavras.
— Céus, você está com frio? — o homem pergunta. — Você está tremendo.
— Ela é quente o suficiente — diz Victor, o suor escorrendo da ponta do
nariz.
Uma risada.
— Que engraçado. — Então: — Senhor? Senhor Crisp? Os teus dentes. Eles
estão batendo.
Ele pula. Ele não estava brincando, ele pensou que o homem estava se
dirigindo à sua criatura. Só então ele percebe que o estalo é de seus próprios
dentes, que sua garganta está doendo. Ele tem um desejo irresistível de rastejar
até a mesa e se aninhar ao lado de sua fera.
— Senhor?
As vozes se embaçam. Ele olha novamente para ela. Para seu Plesiosaurus V.
Crispus. O nome parece muito frio. Precisa de algo mais pessoal, um nome de
animal de estimação. Wilbur explode em sua língua, mas ele não consegue se
lembrar de onde ouviu o nome antes. E então Victor recua, com a mão sobre a
boca. Como ele não tinha notado isso antes? O crânio é pequeno como o de uma
criança humana, com filamentos de ferro espalhados como cabelos avermelhados
– tem mãos, dedos minúsculos de menino! Pele, rosa pálido e–
— Qual é o problema? — O homem toca sua manga. — Sr. Crisp...
— Tem um crânio — ele sussurra — como o de uma criança...
Ele vê o homem se afastando dele, alisando o terno. Ele pega suas pinças e se
dirige a Victor com cuidado.
— O crânio — diz ele, com surpreendente uniformidade em sua voz — tem
a forma de um crocodilo. A anterior é francamente triangular. As fenestras
temporais são mais estreitas neste espécime do que em outros que descobrimos,
e os ossos palatinos são espessos. Há pouca coisa nele — ele pigarreia — pode-
se dizer, nada que tenha qualquer semelhança com o crânio de um homo sapiens
juvenil.
Victor assente. Sua respiração fica presa em seus pulmões, e ele tenta se
impedir de cair para a frente.
— Sim, eu vejo isso agora — ele suspira. — Eu estava errado. — Ele se
sente como um colegial castigado. Ele passa o dedo sobre a forma escavada,
tentando imaginar os dois incisivos ausentes, os dentes adultos posicionados
acima, esperando para descer.

— Eles estarão aqui em breve? — Victor murmura.


— Quem?
Ele não reconhece a voz.
— A Sociedade Real. — Ele é parado por um ataque de tosse, suspiros rasos
vindos de dentro dele. Ele está preso lá dentro, sobrecarregado por cobertas
pesadas e cortinas cor de carne. Vagamente, ele se lembra de homens
carregando-o de volta da loja, braços embaixo de suas axilas. Ele se sente como
se estivesse preso debaixo d’água, seus membros tão pesados quanto os de um
marinheiro afogado. Cada respiração é um esforço. Seus braços são pesados como
remos.
— Descanse. — A voz novamente. Ele abre os olhos. A garota de cabelos
pretos se levanta e sai.
— Espere… — ele gagueja, mas é tarde demais.
Ele pensa na voz de Mabel durante o jantar, seus olhos que não conseguiam
encontrar os dele.
Por que os homens não podem simplesmente deixar as coisas onde estão? Por que eles
sempre têm que pegar as coisas–
Este deve ser o momento em que ele pisa na luz do sol, o braço de Mabel no
dele. Este deveria ser o momento em que é convidado para grandes casas, para
jantares e almoços e piqueniques ao longo da costa. Seus olhos ficam borrados e
as lágrimas se acumulam em seus ouvidos.
— Mabel — ele murmura, mas nenhuma mão quente encontra a dele,
nenhuma esponja umedece sua testa. Onde ela está? Por que ela não está ao seu
lado? A porta de seu quarto está aberta. Ele anseia até mesmo pelo corte de sua
tesoura.
Quando o sol está claro e forte, um grande lamento o acorda e ele tenta se
levantar. Ele não suporta estar na periferia da vida, ele precisa ver o que está
acontecendo. O mundo toca. Em vez disso, ele se concentra em uma jarra de
metal brilhando na mesa de cabeceira. É suave e fresco ao toque, uma mosca
morta flutuando na água. Ele faz uma careta, toma um longo gole e começa a
tossir novamente. Alguém colocou a pintura selkie de volta na parede.
Ele pensa, a princípio, que vai desmaiar quando se levantar, mas consegue
tropeçar até sua mesa perto da janela. Abaixo, uma grande carruagem circula
pela cidade. Penas de avestruz balançam nas cabeças de cavalos pretos. A
carruagem é enfeitada com fitas e crepe preto ondulado. Os camponeses o
seguem. Peixeiras com mãos escamosas brilhantes. Cozinheiros, de bochechas
rosadas e em seus pinnies manchados de sopa. Mordomos e lacaios em seus
uniformes surrados. A cidade inteira apareceu para lamentar a criança.
Os mudos estão lá, exatamente como ele ordenou, suas bocas puxadas em
expressões de sombria simpatia, suas roupas escuras e bem abotoadas. Cada um
segura uma varinha. Eles são uma visão incongruente, em uma grande casa em
Mayfair eles não iriam parecer deslocados. Mas aqui, nesta rua torta – eles não
cabem de jeito nenhum.
Quanto tempo se passou, ele se pergunta, desde que o menino foi
encontrado? Um dia, dois, três? Ele imagina um cavalheiro da Sociedade Real
entrando na cidade e vislumbrando esta procissão. O que ele pensaria então?
Este espetáculo – este circo – só pode desviar a atenção de sua criatura. A
suspeita se transforma em uma certeza fria. Eles pretendem entrelaçar o menino
com o monstro, ele pensa, até que ninguém consiga pensar em sua grande
descoberta sem a lembrança desconfortável da morte de uma criança, com a dor
crua de uma cidade em luto. Enquanto ele fica lá, seus bufos de raiva
embaçando o vidro, ele esquece que este funeral foi ideia dele, ele pensa apenas
em seu plesiossauro, dormindo naquele porão úmido, encontrando-se
lentamente eclipsado.

Depois disso, Victor sabe que ele e sua criatura devem deixar esta cidade. Ele
não pode esperar mais por uma carta da Sociedade Real e um cavalheiro que
pode ou não chegar. Ele trará o monstro até eles, ele tomará providências para
que seja transportado no The Unity esta tarde, amassado na barriga do navio,
preso por cordas. E se eles tentarem detê-lo – se quiserem que a criatura seja
limpada, polida, moldada em argila antes de ser movida – bem, é sua para fazer
o que quiser.
Na rua, o suor escorre por suas costas, suas bochechas. O mundo gira com o
enjôo. Ao seu redor, ele ouve sussurros. Uma mulher desenha-se em uma porta.
A garota que vende fósseis foge dele. Ele tosse cuspe grosso em seu lenço.
Ninguém vai olhar para ele, com os olhos desviados, como se ele fosse um
assassino, um monstro – como se ele quisesse a criança morta! Ao tropeçar em
um paralelepípedo solto e se firmar, ele pensa ter visto um sussurro de cabelo
ruivo atrás dele. Ele gira. A garota com a boneca de canela o encara de volta
com olhos escuros e vazios.
Amanhã, ele diz a si mesmo, apressando-se um pouco, ele irá embora.
Amanhã, ele e Mabel estarão sentados na carruagem, as rédeas tilintando, os
cavalos relinchando, a distância se abrindo entre ele e esta cidade esquecida por
Deus. Enquanto espera que o lojista atenda a porta, ele se vira e observa o mar,
as ondas dançando com minúsculos pontinhos de luz. As máquinas de banho
são puxadas para dentro e para fora da água. Ele percebe o estalajadeiro,
remando na parte rasa, persuadindo uma mulher a descer os degraus. Ele joga
água nela e ela tropeça na água e ri. Ele a puxa para si e a beija, deixando
marcas macias em seu ombro. Victor sorri. Por um momento, ele ficou
impressionado com a semelhança da garota com sua esposa – aquele cabelo
castanho brilhante, seu jeito fácil de se mover.
— Sim? — pergunta o lojista.
Victor se vira.
— Preciso que você faça preparativos urgentes. A criatura partirá no Unity
de hoje.
— Hoje?
— Vou pagar bem — diz ele.
No porão, ele late ordens com uma certeza que ele não sente. Os outros
trabalhadores são homens brutais que podem levantar e transportar. Eles
balançam a cabeça, trocam olhares, mas obedecem. Ele observa tudo, exausto
demais para ajudar, amaldiçoando-os quando eles lidam com sua criatura
rudemente. Ele imagina hematomas surgindo onde seus dedos agarram e
apertam, a respiração do monstro prendendo onde suas costelas fraturam. Sua
mortalha é de linho novo, seu caixão é um caixote de madeira. O menino já
estará enterrado no cemitério da igreja.
Em Londres, ele não permitirá que ninguém abra antes que ele chegue. Ele
arrancará cada prego, alavancará as tábuas de madeira. Ele vai rolar o tecido
macio. A sala em que ele trabalha será ornamentada e abobadada, com os
cavalheiros ao seu lado. Um candelabro brilhará no alto. Eles estarão tão longe
deste porão úmido; tão longe desta cidadezinha tortuosa, da morte do menino
que se aninha em todos os cantos do lugar. Seu monstro será solto. Será
catalogado, nomeado, controlado. Tudo será domesticado mais uma vez, como
um touro selvagem serrado em costeletas cor-de-rosa.

Dizem que ele está muito fraco para sair, que sua febre ainda está muito alta.
Que seria uma loucura partir para uma longa viagem quando ele ainda está tão
doente. Dizem que ele precisa de uma semana de repouso na cama, talvez mais,
que muitas vezes cai em delírio, mesmo que não perceba isso em seus
momentos de lucidez. Ele dispensa os médicos com um aceno de mão. A noite
toda, a tosse o sacode. Ele se enrosca nos lençóis úmidos como um camarão,
como uma criança em oração. O sono é furtivo, rastejando sobre ele,
arrebatando-o. Quando o relógio da aldeia bate duas horas, ele tem certeza de
que ouve passos por perto – pés descalços batendo no chão de madeira. Ele tira
isso da cabeça e tenta dormir. De manhã, diz a si mesmo, ele e Mabel estarão na
carruagem. Eles irão embora. Londres será seu novo começo.
Um estalo repentino. Respiração rápida. Rangendo.
Victor se senta. Arrepios batem em seus dentes. Ele se lembra do garoto
ruivo no dia em que chegaram, seu rosto sombrio enquanto falava sobre as
assombrações.
Pequenas respirações de foca. O tapa das nadadeiras.
E aí está, o ark, ark sobre o qual ele foi avisado. Quando Victor olha para a
pintura da selkie, ele tem certeza de que pode ver seus olhos piscando, a pele
começando a descascar de sua garganta.
Ele se levanta. O som, ao que parece, vem da porta ao lado. Sua camisola
sussurra contra suas pernas. O fogo ainda está aceso e ele pega o atiçador e se
dirige para o quarto de Mabel. As dobradiças são lubrificadas e a porta não
range.
Na fenda estreita, ele não entende a princípio. Uma vela pisca. A boca de sua
esposa está aberta, brilhando, os olhos bem fechados. Um pequeno gemido
escapa dela. E então ele vê – uma criatura se movendo em sua cintura. Suas
pernas se separaram. Uma boca se banqueteando com ela, seus dedos agarrando
seu pelo escuro. É o estalajadeiro, ele percebe, com a cabeça pressionada contra a
coisa dela, lambendo-a. As mulheres diabólicas brincando nas xilogravuras –
uma Babette se contorcendo com seu corpo sedoso–
Ele se lembra da primeira vez que pegou a mão de Mabel – tão pequena,
pálida e infantil! – e ela soltou um pequeno suspiro, como se chocado com
tamanha intimidade.
Esta não pode ser sua esposa, ele diz a si mesmo, mas ele conhece aquela
covinha no queixo dela, aquela boca macia e franzida. Ele sabe o que está vendo,
e sabe, também, o que viu antes – sua esposa, no mar, rindo com isso – essa
criatura. Outro homem forçaria a entrada naquele aposento, arrancaria o
estalajadeiro pela garganta, jogaria sua esposa na rua. Mas Victor se sente apenas
esmagado, desolado. Sua garganta está sufocada com o súbito desejo de chorar.
Seus braços pendem flácidos ao lado do corpo. Ele tropeça para trás, meio
tropeçando. Em sua mesa, ele espia o álbum de recortes dela. Com que orgulho
ela uma vez o mostrou a ele! Aqueles cachorrinhos e spaniels que ela gostava de
cortar! Ele enviou a ela dezenas de cartões de terriers e cães de caça, sabendo
como ela os valorizaria.
Ele acende uma vela, vira suas páginas grossas. No final do livro, ele vê
criaturas híbridas, animais cortados. Monstros. Ele pisca, certo de que seus
olhos o estão enganando. Perna de gatinho, bico de galinha, rabo de cachorro,
patas de pato. Todos colados juntos. Ele a fecha, respirando com dificuldade.
Como é possível que ela seja tão diferente do que ele acreditava, tão perturbada?
É esta cidade úmida e miserável, abrindo caminho sob sua pele, deixando-a
enojada?
Os sons ficam mais altos, a batida inconfundível de dois corpos se chocando.
Fodendo, e não se importando com quem ouve! Os suspiros dela ficaram mais
altos – um barulho que ele nunca pensou cairia daquela garganta fina. Victor
pega a pintura e a joga pela sala, observando a vidraça quebrar, seu pé
sangrando onde o atinge. Ele cai para trás, começa a correr. Lá fora, descendo as
escadas, passando pela cozinha com suas foices penduradas. Seus pés descalços
batiam na calçada. Pela primeira vez, ele é legal. Sua camisola bate contra ele.
Ninguém está nessas ruas. Acima dele, a lua se aguça. Meio louco, ele pensa, e,
no entanto, isso parece ser a coisa certa, a única coisa que ele pode fazer.
A igreja é pequena, o cemitério é pouco maior que um jardim. Ele pensa nos
grandes Valhallas que seu irmão plantará, Highgate, Abney Park e Brompton –
suas avenidas egípcias, suas abóbadas, suas tumbas escavadas nas encostas, seus
caminhos largos com círculos de retorno de carruagens.
O solo, ele vê, é fresco, amontoado em uma grande pilha. Ainda não há uma
lápide. Ele se ajoelha como um cachorro, a sujeira voando atrás dele, cavando,
cavando, cavando. O instinto o conduz, uma certeza de que ele precisa fazer
isso, que isso é certo. Suas mãos estão cortadas e doloridas, uma unha meio
rasgada. Os minutos giram, as lápides ao seu redor como fileiras de dentes
podres. Apenas o som da terra peneirando.
E então suas mãos lutam contra ela. Sem caixote. Uma cobertura de linho
encardido. Ao tocar os pés macios do menino, sente apenas uma barbatana dura.
Em seu estado de ferida, a clavícula da criança é uma clavícula lisa. Victor
começa a gemer, para relaxar e agarrar. No casco do navio, que contorna o sopé
do país, ele tem certeza de que estará o corpo de um menino. Chegará a Londres
com grande pompa e fanfarra; sua caixa será aberta e eles encontrarão uma
criança ruiva dentro. Toda Londres vai rir dele. A Sociedade Real irá
ridicularizá-lo. Ele será satirizado em Punch, sua vida transformada em uma
piada–
O mundo borra através de suas lágrimas. Sua esposa, se transformou em um
demônio. Sua grande descoberta, arruinada. A única coisa que não foi
transformada é sua vida lamentável e decepcionante. Ele recolhe sua criatura,
aperta-a em suas mãos. Ele beija a cabeça do menino (seu crânio comprido, ele
pensa), seus dedos (suas pequenas patas). É tão pequeno em seus braços, tão
úmido e coberto de terra, ele não consegue entender como a pedra pode ser tão
macia, como pode pesar tão pouco. Nenhuma outra possibilidade entra em sua
mente. Ele cambaleia em direção aos penhascos, ao som de ondas batendo. Seus
pés se abriram em arbustos. Urtigas marcam suas pernas. Ele avança mancando,
sabe apenas que precisa devolvê-lo ao mar, que só assim os últimos dias serão
desfeitos.
Por que os homens não podem simplesmente deixar as coisas onde estão?
Focas que se transformam em mulheres. Mulheres que se transformaram em focas.
Ele não amou ninguém como amou Mabel. Durante toda a sua vida,
qualquer afeto foi cortado assim que brotou. Seu pai deu-lhe um tapa quando
ele tentou abraçá-lo aos quatro anos de idade. Sua mãe, afastando-se dele com a
boca apertada e franzida. Provocações e zombarias eram a única maneira que ele
sabia interagir com seu irmão. Querido Margarida, cheio de flores.
No topo das falésias, o vento é feroz, cortando-lhe a pele das faces, as pernas
nuas. Abaixo dele, a boca do oceano espera, sua língua estalando para frente e
para trás sobre as pedras. Victor se lança para a frente, escorregando e deslizando
na terra molhada, seus dedos agarrando o macio cabelo ruivo da criatura, seus
frios lábios azuis. Uma pedra cai debaixo dele, e ele está voando para a frente,
com os braços abertos. Pernas pedalando no ar. Momentos antes de atingir a
praia de seixos, ele e o menino morto estão voando, e Victor sente apenas
alegria, uma sensação de que é assim que sempre deveria terminar.

1. Tipo de peixe.
2. O trabalho do mudo era ficar de vigília do lado de fora da porta do falecido, depois
acompanhar o caixão, vestindo roupas escuras, com ar solene e geralmente carregando um longo
bastão (chamado de varinha) coberto de crepe preto.
SOBRE OS AUTORES

Bridget Collins é a premiada autora de vários romances para adolescentes e


dois para adultos: The Binding e The Betrayals. The Binding foi um bestseller do
Sunday Times, selecionado para vários prêmios, incluindo o Waterstones Book of
the Year, e foi o livro de ficção de estreia mais vendido de 2019.

Kiran Millwood Hargrave é poeta, dramaturga e autora de vários livros


premiados para crianças e jovens. Seu romance de estreia para adultos, The
Mercies, foi um bestseller do Sunday Times e ganhou o Betty Trask Award. Kiran
mora em Oxford com seu marido, o artista Tom de Freston, e seus gatos
resgatados, Luna e Marly.

Natasha Pulley é a autora bestseller do Sunday Times de quatro romances: The


Watchmaker of Filigree Steet, The Bedlam Stacks, The Lost Future of Pepperharrow
and The Kingdoms Seu primeiro romance ganhou um prêmio Betty Trask e foi
um bestseller internacional. Ela mora em Bristol e ensina Escrita Criativa.

Jess Kidd foi criada em Londres como parte de uma grande família do
Condado de Mayo e é autora de três romances premiados: Himself, The Hoarder e
Things in Jars. Em 2016, Jess ganhou o Costa Short Story Award e publicou seu
primeiro livro infantil, Everyday Magic, em 2021. Seu quarto romance será
lançado em 2022.

Laura Purcell é uma ex-livreira e autora bestseller de quatro romances góticos


premiados. Sua estreia, The Silent Companions, foi escolhida por Zoe Ball e Radio
2 Book Club e ganhou o WHSmith Thumping Good Read Award. Laura mora
em Colchester com o marido e porquinhos-da-índia de estimação.

Andrew Michael Hurley é o autor premiado de três romances: The Loney,


Devil's Day e Starve Acre. The Loney ganhou o Costa First Novel Award, Livro do
Ano no British Book Awards de 2016 e foi aclamado como um clássico
moderno pelo Sunday Telegraph. Andrew vive e escreve em Lancashire.

Imogen Hermes Gowar é a autora do bestseller do Sunday Times, The Mermaid


and Mrs Hancock, que ganhou um Betty Trask Award e foi indicada para o The
Women's Prize e o MsLexia First Novel Prize, entre vários outros prêmios.
Imogen vive e escreve em Bristol.

Elizabeth Macneal é autora de dois romances best-sellers do Sunday Times: The


Doll Factory, que ganhou o Caledonia Novel de 2018 e foi traduzido para vinte
e nove idiomas, e Circus of Wonders. Elizabeth também é ceramista e mora em
Londres com sua família.

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