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Afonso Bezerra
Brasil de Fato | Recife (PE) |
03 de abril de 2024 às 17:20
"Não foi na Sorbonne nem em qualquer outra universidade sábia que travei conhecimento
com o fenômeno da fome. O fenômeno se revelou espontaneamente a meus olhos nos
mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis da cidade do Recife: Afogados, Pina,
Santo Amaro, Ilha do Leite. Esta é que foi a minha Sorbonne: a lama dos mangues do
Recife fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos".
Vamos detalhar o que Josué pensava, o que ele defendeu no parlamento e o que os
militares fizeram com toda a obra dele.
Um olhar inovador
Ao longo da carreira como médico, Josué se esforçou para revelar as causas políticas,
concretas e sociais da fome. Naquele período, entre os anos 1940 e 1950, a tese dele foi
revolucionária.
Josué de Castro nasceu no Recife, em 1908, filho do casamento de um sertanejo com uma
herdeira de grandes plantações de cana. Cresceu, como ele mesmo falou, cercado da lama
dos manguezais.
Formado em medicina, Josué se destacou pelo trabalho com a nutrição, ao longo dos anos
1930 e 1940. Foi convidado pelo presidente Getúlio Vargas para elaborar um inquérito
social, cujos dados embasariam a política do salário mínimo.
"Se falava muito em fome, tem fome aqui, tem fome acolá, mas ninguém via onde era, e
ele aponta onde era: é aqui. Isso que é muito inovador na obra dele", analisa Marina
Gusmão, pesquisadora e autora do livro O combatente da fome: Josué de Castro: 1930-
1973.
"A culpa era do clima, a culpa era do solo, a culpa, ou seja, a culpa não é de ninguém, é de
Deus. Era isso que se dizia", complementa.
A primeira vez que Josué de Castro apontou a fome como um problema social foi numa
fábrica, no Recife. Ele havia sido contratado para averiguar os motivos da suposta
improdutividade dos funcionários. A resposta dele foi surpreendente e causou alvoroço
entre os industriais.
"Ele fez um estudo e concluiu que era impossível aumentar a produtividade dos operários,
porque o problema deles era fome. Não havia possibilidade. E ele falou isso para os
diretores, que ele era médico, não era diretor da empresa, então ele não tinha solução para
o problema", conta Marina Gusmão.
A Geografia da Fome
Em 1946, Josué de Castro publica o livro Geografia da Fome, uma obra clássica e
referência para estudiosos sobre as causas da fome no mundo. Com este livro, ele
colocou, literalmente, no mapa as regiões que viviam, de fato, em condições de fome.
Diante disso, ofereceu soluções políticas para o problema.
"Geografia da Fome divide o Brasil em áreas geográficas, mas segundo critérios que ele
estabeleceu, não critérios oficiais. Divide em áreas geográficas, em que ele aponta as
áreas em que há fome aguda, as áreas onde há fome crônica, áreas em que há
insuficiência alimentar, e assim por diante", relembra Marina Gusmão.
"Eu creio que o Josué tenha dois papéis importantes: primeiro, mostrar a generalidade do
fenômeno da fome e, ao mesmo tempo, como ela se dava em diferentes áreas."
Na região, a renda per capita era de 96 dólares, muito inferior à aplicada no centro-sul, que
era de 303 dólares, segundo dados citados por Vandeck Santiago no livro Pernambuco em
chamas - a intervenção dos EUA e o golpe de 1964.
A industrialização havia caído bruscamente, saindo dos 30% do PIB da década de 1930
para apenas 11% do PIB na década de 1950, assim permanecendo por longas décadas.
Do ponto de vista da saúde, o nível de desnutrição era altíssimo. As crianças com idade
entre cinco e dez anos tinham apenas 10% do peso e altura daquelas com mesma faixa
etária nos Estados Unidos. O consumo diário de calorias era abaixo das condições
mínimas recomendadas na época, segundo levantamento feito pela Organização das
Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), em 1957. Apenas
4% das crianças amamentavam após os seis meses de idade, segundo dados presentes
no livro A Revolução que nunca houve, de Joseph Page.
"Ele diz que a história da humanidade é uma história de fome. E ele vai mostrar que, então,
a fome sempre ficou escondida, as pessoas fingiam que o problema não existia. E que só
apareceu escandalosamente com o fim da Segunda Guerra, quando libertaram os campos
de concentração e viram aquelas pessoas, em estado catatônico já de fome", descreve
Marina Gusmão.
Reconhecimento internacional
Nos anos 1950, Josué assumiu cargos de relevância internacional. Foi um dos
idealizadores da FAO. No Brasil, foi eleito deputado federal pelo PTB. No parlamento, fez
incisivas defesas da reforma agrária e denunciou o latifúndio como um dos maiores
promotores da fome ao longo da história. Neste front, ele fez parcerias políticas com
Francisco Julião, parlamentar pernambucano e integrante das Ligas Camponesas que
ganhou notoriedade pela radical defesa da reforma agrária
"Ele atuava no campo progressista, daqueles que entendiam que os governos deviam atuar
no sentido de favorecer os segmentos mais excluídos, social e economicamente. E,
sobretudo, aquele que tem fome", descreve o cientista político Túlio Velho Barreto.
"A atuação de Josué de Castro era algo que incomodaria os militares. Ele permanecendo
no Brasil, seria uma voz para denunciar políticas elitistas, excludentes, de manutenção do
status, do ponto de vista da elite, e a permanência da fome, e a dependência da população
esfomeada em relação aos governantes", analisa o cientista político Túlio Velho Barreto.
Referência permanente
Apesar do silenciamento imposto pelos militares, Josué de Castro seguiu sendo estudado
por muitos pesquisadores nas Universidades, lido por artistas e adotado como referência
política para os movimentos populares, sobretudo aqueles que lutam pela reforma agrária.
"Um brasileiro como ele nunca deveria ter sido punido, mas deveria ter sido premiado
porque se preocupava com uma coisa que era o Estado que deveria se preocupar",
discursou.
Cozinhas Populares têm recebido apoio do Governo Federal e servido como ponto de
arrecadação de donativos / Divulgação/Mãos Solidárias
"Ainda tem muita fome, tem muita miséria, tem muito descaso. São pessoas que moram
praticamente dentro da lama, não têm saneamento, não tem uma moradia", denuncia.
"A gente vê que o problema da fome não é simplesmente um problema de falta de comida,
porque tem. Se você for nos supermercados, a produção, o agronegócio, cada vez mais
tendo maiores lucros, mas a gente vê a fome cada vez mais no Brasil, como no mundo.
Hoje não é um problema. por exemplo, de tecnologia, de produção, para que esse alimento
chegue nas pessoas, mas é um problema mais de organização, um problema político de
organização social", explica Tomás Agra, coordenador da Campanha, no Recife.
Edição: Matheus Alves de Almeida
Fonte: https://www.brasildefato.com.br/2024/04/03/futuro-interrompido-como-a-ditadura-militar-
silenciou-as-ideias-de-josue-de-castro-sobre-a-fome