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ANJO NEGRO
Virginia C. Andrews
V. C. ANDREWS
ANJO NEGRO
1 REGRESSO A CASA
2 A MANSÃO FARTHINGGALE
O Tony tomou conta da minha vida logo no dia a seguir, como se nem eu nem
a Jillian tivéssemos algo a dizer sobre o assunto. Estabeleceu horários
que incluíam todos os minutos do meu dia e roubou-me parte do entusiasmo
que eu poderia ter sentido se ele tivesse agido com mais calma no seu
processo de transformar uma serva de copa em princesa. Eu precisava de
tempo para me habituar a estar rodeada de criados por todos os lados;
tempo para aprender a movimentar-me numa casa de concepção quase tão
complicada como o labirinto do jardim. Não gostava que a Percy preparasse
o meu banho e escolhesse a minha roupa, não me deixando decidir sobre a
matéria. Não me agradava a ordem que, implicitamente, determinava que eu
não podia servir-me do telefone para ligar a qualquer membro da minha
família.
- Não - declarou o Tony terminantemente, desviando os olhos da página do
jornal onde vinham os câmbios que estivera a analisar. - Não precisas de
te despedir outra vez do tom. Disseste-me que já o tinhas feito.
Sentia-me atordoada por acontecimentos que se sucediam demasiado
rapidamente para eu os controlar e, quando murmurava algumas palavras de
queixa, o Tony fitava-me com surpresa.
- Porque dizes que ajo com demasiada rapidez? É o que tu queres, ou não?
Foi para isso que vieste para cá, não? Bem, agora dispões daquilo com que
sonhaste, do melhor que há. Terás de começar imediatamente as aulas. E se
achas que estou a fazer-te andar demasiado depressa, é assim que a vida
é. Não está no meu feitio ir devagar ou cuidadosamente e se queres que
nos dêmos bem será melhor adaptares-te ao meu ritmo.
Ao vê-lo sorrir-me, esforcei-me por não me sentir ressentida.
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Enquanto a Jillian passava as manhãs a dormir e outras quantas horas nos
seus "rituais de beleza secretos", o Tony levava-me a pequenas lojas onde
roupa e sapatos custavam pequenas fortunas. Não perguntou, nem uma vez, o
preço de camisolas, saias, vestidos, casacos, botas, nada! Assinou
facturas com o ar descuidado de quem nunca tem falta de dinheiro.
- Não - retorquiu-me ele quando lhe perguntei, num sussurro, se podia ter
sapatos com as cores a condizer com todos os fatos.
- Bastam cores como o preto, castanho, creme, azul e um par em tons de
cinzento e vermelho, até precisares dos brancos de Verão. Deixarei alguns
dos teus desejos por satisfazer. Ninguém deve ver todos os seus sonhos
concretizados de uma só vez. Vivemos de sonhos, sabes, e quando deixamos
de os ter, morremos. - Uma sombra toldou-lhe o olhar.
- Eu cometi uma vez o erro de dar demasiado e cedo de mais, nada
recusando. Desta vez não será assim.
No princípio dessa tarde voltámos para casa com o banco de trás do carro
atafulhado de embrulhos contendo roupa suficiente para três raparigas. O
Tony parecia não se dar conta de que já dera demasiado e cedo de mais.
Eu, que toda a vida sonhara com roupa cara e bonita, sentia-me aturdida.
Mas ele achava que eu ainda não tinha o suficiente. Certamente comparava
o meu guarda-roupa ao da Jillian.
A maneira como, muitas vezes, a Jillian me ignorava ou me inundava de
entusiasmo, era dolorosa para mim, pois nunca me sentia à vontade na sua
presença. Era frequente ter a sensação de que ela preferiria que eu nunca
tivesse aparecido. Noutras alturas, via-a tranquilamente sentada no sofá
do seu quarto, entretida com uma das suas eternas paciências solitárias,
olhando, de vez em quando, na minha direcção.
- Jogas às cartas, Heaven?
Reagi, ansiosa e prontamente, ao desafio, feliz por vê-la disposta a
gastar tempo comigo.
- Sim, faz já muito tempo um amigo ensinou-me a jogar gin rummy.
O mesmo amigo que também me presenteara com um baralho de cartas por
estrear, que pedira "emprestadas" na loja do pai.
- Gin rummyl - perguntou a Jillian com ar vago, como se nunca tivesse
ouvido falar no jogo. - Só conheces esse?
- Eu aprendo depressa!
Começou, nesse mesmo dia, a ensinar-me a jogar brídege,
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a sua modalidade preferida. Explicou-me os pontos de cada face de carta,
forneceu-me explicações pormenorizadas sobre quantos eram necessários
para responder ao lance de abertura do parceiro; depressa percebi que
teria de comprar um livro sobre brídege e estudar à parte, pois a Jillian
ia demasiado depressa.
No entanto, ela estava a gostar de me ensinar e, ao longo de toda a
semana, rejubilou diante das minhas derrotas. Até que chegou o dia
fatídico em que nos vimos sentadas diante do nosso pequeno tabuleiro
computorizado que faria a partida com um, dois ou três jogadores (ou
absolutamente nenhum - apenas contra si próprio) e, para profundo
desgosto da Jillian, eu ganhei.
- Oh, tiveste apenas sorte! - exclamou, levando as mãos às maçãs do
rosto. - Depois de almoço faremos nova jogada e aí veremos quem ganha.
A Jillian estava a começar a precisar de mim, a querer a minha companhia,
a gostar de mim. Era a primeira vez que tomávamos uma refeição juntas
além dos jantares servidos na sala de jantar. Era uma das mulheres mais
ricas do mundo e, certamente, uma das mais belas; no entanto, almoçava
minúsculas sanduíches de pepino ou agriões e beberricava champanhe.
- Mas estes almoços não são nem saudáveis nem nutritivos, ou até mesmo
satisfatórios, Jillian! - exclamei depois do nosso terceiro almoço
juntas. - com toda a franqueza, mesmo depois de comer seis das suas
sanduíches em miniatura, continuo com fome, além de não ser grande
apreciadora de champanhe.
Ergueu as sobrancelhas delicadas em sinal de exasperação.
- Que tipo de comida tu e o Tony ingerem quando almoçam juntos?
- Oh, ele deixa-me escolher entre o que houver. Na verdade encoraja-me a
provar alimentos que nunca experimentei antes.
- Ele estraga-te com mimos, tal como fazia com a Leigh.
- A Jillian deixou-se ficar sentada durante um longo momento de cabeça
baixa sobre a refeição frugal e depois agitou a mão, como que pondo o
assunto de parte.
- Se há algo que me desagrade verdadeiramente prosseguiu - é ver uma
jovem comer como se estivesse sempre esfomeada... E tu tens noção,
Heaven, de que só assim é que sabes alimentar-te, não é verdade? Enquanto
não souberes controlar a necessidade de tanta comida, acho melhor
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não voltarmos a almoçar juntas. E quanto estivermos na sala de jantar,
esforçar-me-ei por reparar o menos possível nos teus hábitos alimentares.
A Jillian cumpria o que prometia. Nunca mais voltou a convidar-me para
jogar brídege com ela. Não voltámos a partilhar outro almoço e, quando
nos sentávamos na elegante sala de jantar com o Tony, era a este que ela
dirigia todas as suas observações. E quando não podia deixar de me dizer
algo, não virava a cabeça na minha direcção. Como eu desejava imensamente
agradar-lhe, tentei evitar servir-me pela segunda e terceira vez e
colocava apenas pequenas porções no prato. Comecei a andar
permanentemente com fome, de modo que dei em roubar na enorme cozinha
onde Ryse Williams, o corpulento cozinheiro-chefe, me deu as boas-vindas
ao seu domínio.
- Ora esta, rapariga, és tal qual a tua mãe. Santo Deus, nunca vi uma
filha tão parecida com a mãe... Apesar de teres o cabelo escuro.
Passei muitas horas naquela cozinha reluzente, cheia de tachos e panelas
de cobre e milhares de utensílios próprios que eu nunca vira, a ouvir
Ryse Williams contar histórias sobre os Tatterton, e embora tentasse,
várias vezes, levá-lo a falar sobre a minha mãe, ele mostrava-se sempre
incomodado e atarefava-se com os seus cozinhados. O rosto moreno e liso
empalidecia e mudava rapidamente de assunto. Mas um dia, um dia não muito
longínquo, Rye whiskey contar-me-ia tudo o que sabia, pois eu já
desconfiava, pelas suas expressões de constrangimento e embaraço, que ele
sabia muito.
Escrevi ao tom, na privacidade do meu quarto, a falar do assunto. Até ali
já lhe dirigira três cartas, alertando-o para que não me respondesse até
eu poder indicar-lhe um endereço "seguro". (Magoava-me pensar o que ele
estaria a imaginar.) Nessas cartas, descrevi a Mansão Farthinggale, a
Jillian, o Tony; porém, não disse uma palavra sobre o Troy. Este não me
saía da cabeça. Demasiadamente. Queria voltar a vê-lo, mas sentia receio.
Tinha mil perguntas para fazer ao Tony sobre o irmão, mas ele ficava de
má catadura sempre que eu abordava o tema do homem que vivia na casa por
trás do labirinto. Tentei, por três vezes, falar do Troy à Jillian, que
virou a cabeça e esboçou um sinal de indiferença com a mão.
- Oh, o Troy! É pessoa que não interessa. Esquece-o. Sabe demasiado sobre
tudo para conseguir apreciar as mulheres.
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E apesar de pensar excessivamente no Troy, resolvi que era tempo de
escrever a carta mais difícil àquele que pertencia verdadeiramente ao meu
futuro, a fim de saber se ele me permitiria regressar de novo ao seu.
No entanto, como poderia eu escrever a alguém que um dia me amara e
confiara em mim e que depois me repudiara? Faria bem em ignorar o que
havia desencadeado o fim da nossa relação? Deveria discutir o assunto
abertamente? Não, não, decidi, teria de me encontrar com o Logan e ver a
sua expressão antes de entrar em mais pormenores em relação ao Cal
Dennison.
Por fim consegui escrever algumas palavras que não me pareciam adequadas.
"Querido Logan,
Estou finalmente a viver com a família da minha mãe, como sempre desejei.
Em breve irei para um colégio particular de raparigas chamado
Winterhaven. Se ainda sentes algo por mim, o que espero, tenta, por
favor, perdoar-me. Talvez então possamos começar de novo.
com amor,
Heaven"
O remetente que pus no envelope era o da posta-restante que, em segredo,
abrira na véspera, enquanto o Tony comprava roupa para si próprio numa
loja da mesma rua. Mordisquei a ponta da minha caneta antes de resolver
enfiar a única folha de papel dentro do envelope, fazendo-o com uma
pequena oração. Se o Logan ainda gostasse o suficiente de mim, poderia
poupar-me, com a sua força e fidelidade, a muitas agruras.
Tive oportunidade para despachar as minhas cartas logo no dia a seguir.
Disse ao Tony que precisava de ir aos lavabos, depois escapuli-me pela
porta das traseiras da loja e corri até um marco de correio, onde enfiei
as cartas. Feito isto, suspirei de alívio. Estabelecera contacto com o
meu passado. O meu passado proibido.
Depois voltámos para Farthy, que eu já começara a considerar como um lar,
agora que possuía objectos pessoais. Todas as manhãs levantava-me cedo,
ia nadar com o Tony na piscina interior e, depois de me secar e vestir,
tomava o pequeno-almoço na sua companhia, tendo-me já acostumado ao
Curtis, o mordomo, ao ponto de conseguir ignorar a sua presença quase tão
bem como o Tony, até precisar de algo.
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Raramente via a Jillian, que permanecia metade do dia no seu quarto,
antes de o abandonar, passando por nós rapidamente, com um ar adorável, a
caminho do seu cabeleireiro ou de algum almoço social (onde eu esperava
que comesse algo mais substancial do que minúsculas sanduíches
acompanhadas com champanhe).
Quanto ao Tony, partia para Boston logo a seguir ao pequeno-almoço, para
conduzir os seus negócios na Companhia de Brinquedos Tatterton. De vez em
quando telefonava-me do escritório e convidava-me para almoçar com ele
nalgum restaurante elegante, onde eu me sentia como uma princesa. Adorava
a maneira como as pessoas voltavam a cabeça à nossa passagem, como se
fôssemos pai e filha. "Oh, pai, se ao menos tivesses metade dos modos do
Tony..."
Depois vieram os dias difíceis, os dias surpreendentes, em que eu tinha
de sair de carro com o Tony todas as manhãs, bem cedo, aproveitando a sua
ida para o trabalho para ficar em frente de um edifício, de escritórios
de aspecto austero, onde era suposto submeter-me a testes para ser
admitida em Winterhaven.
- Os primeiros testes facultar-te-ão a entrada em Winterhaven - explicou
o Tony. - Os outros determinarão se estás apta, ou não, a frequentar as
melhores universidades. Espero que tenhas notas altas, não medianas.
Certa tarde, sentei-me junto da Jillian, no quarto desta, a vê-la
maquilhar-se e cheia de vontade de lhe falar como a uma mãe, ou até mesmo
como a uma avó; porém, mal referi os testes difíceis que tinha feito
naquele dia, ela ergueu impacientemente a mão direita.
- Por amor de Deus, Heaven, não me aborreças com conversas sobre estudos!
Eu detestava livros e a Leigh não sabia falar de outra coisa. Seja como
for, não sei que diferença faz, pois as raparigas bonitas como tu são
arrebanhadas do mercado com tanta rapidez que raramente dão uso aos
ensinamentos que receberam.
Ouvi-la proferir aquelas palavras fez-me arregalar os olhos de espanto...
Em que século viveria a Jillian? Nos dias de hoje, ambos os membros do
casal trabalhavam. Depois, olhando de novo para ela com mais percepção,
convenci-me de que sempre tivera como ponto assente o facto de a sua
beleza lhe conseguir uma fortuna, o que se revelara verdade.
- Além disso, Heaven, quando finalmente entrares para esse malfadado
colégio, tenta não trazer para casa as amigas que por lá fizeres... Ou,
se achares que isso não pode deixar
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de ser, avisa-me com três dias de antecedência para eu poder fazer outros
planos para mim.
Deixei-me ficar sentada, sem fala e profundamente magoada.
- Nunca me deixará fazer parte da sua vida, pois não?
- perguntei com voz lamentosamente sumida. - Quando eu vivia nos Willies
pensava que, quando finalmente conhecesse, a mãe da minha mãe, a senhora
gostaria muito de mim, precisaria de mim e quereria que formássemos uma
família amiga e unida.
A Jillian fitou-me com um ar muito estranho, como se eu fosse alguma
raridade de circo.
- Família amiga e unida? De que estás a falar? Eu tive duas irmãs e um
irmão e nunca nos demos bem. Passávamos a vida a barafustar uns com os
outros. E já te esqueceste do que a tua mãe me fez? Não tenciono permitir
que conquistes o meu afecto para depois eu voltar a ter um desgosto
quando te fores embora.
O modo como me olhava, com as ténues sobrancelhas ligeiramente erguidas,
deu-me a entender que não seria preciso nada de extraordinariamente grave
para me afastar daquela casa... e da sua vida. A Jillian queria viver tal
qual como antes da minha chegada. Eu não estava a representar
absolutamente nada para ela. Nunca me sentira tão deprimida.
Porém, compensava largamente a falta de entusiasmo e interesse da
Jillian. Passei nos meus testes, o primeiro obstáculo a vencer, com
pontuações muito elevadas. A partir dali, o Tony só precisou de olear
todos os mecanismos necessários para a administração de Winterhaven me
fazer passar à frente das centenas de outras raparigas que compunham a
lista de espera.
Encontrávamo-nos no seu elegante escritório quando me deu a notícia,
observando-me atentamente.
- Fiz tudo o que pude para te meter em Winterhaven. Agora é a tua vez de
mostrares o que vales. Tiveste notas muito altas nos testes e irás para a
classe das mais adiantadas. Mas temos de te inscrever já na faculdade,
juntando as tuas notas ao pedido de entrada. Winterhaven é um colégio
altamente académico. Far-te-ão trabalhar. Proporcionar-te-ão professores
inteligentes. Recompensam as suas melhores estudantes com o que
consideram útil para elas, como é o caso de determinadas actividades
sociais que poderás apreciar ou não. Se chegares ao topo das listas
académicas, levar-te-ão a chás onde travarás conhecimento com as pessoas
que são
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verdadeiramente importantes na sociedade bostoniana. Irás a concertos,
óperas e peças de teatro. Lamento que o desporto não seja tido em linha
de conta em Winterhaven. Praticas algum em especial?
Quando vivia nos Willies estudava muito para ter boas notas. Depois de
caminhar, todos os dias, cerca de doze quilómetros para ir para a escola
e outros tantos para voltar para os montes, não me restava tempo ou
energia para praticar desporto. Quando chegava a casa, tinha roupa para
lavar, a horta para cuidar e era preciso ajudar a Sarah e a avó. A vida
com os Dennison, em Candlewick, não fora muito melhor, pois a Kitty
considerara-me sua escrava. E o Cal só quisera ter uma companheira de
folguedos dentro de casa.
- Que tens? Não respondes? Gostas de desporto?
- Ainda não sei - sussurrei, mantendo os olhos baixos.
- Nunca tive possibilidade de os praticar.
Apercebi-me demasiado tarde que, em relação ao Tony, pessoa muito
observadora, manter o olhar desviado não era suficiente. Também tinha de
conservar uma expressão facial calma e impassível. Olhei-o de relance e
reparei que tinha um brilho de piedade nos olhos, como se adivinhasse
bastante mais sobre os meus antecedentes miseráveis do que aquilo que lhe
contara. No entanto, nem num milhão de anos ele seria capaz de imaginar
todo o horror que era ser pobre. Apressei-me a sorrir, antes que ele
soubese demasiado.
- Sou muito boa nadadora.
- Nadar faz bem à figura. Espero que este Inverno continues a utilizar a
nossa piscina coberta.
Constrangida, acenei afirmativamente com a cabeça.
Do piso de cima chegava até nós o leve bater das chinelas de cetim da
Jillian, entregue ao complicado regime de beleza que antecedia o início
do seu dia. Quando se tratava de uma festa, os preparativos eram de outro
tipo, sendo o mais demorado e enfadonho aquele a que se submetia antes de
se deitar.
- Já disse à Jillian que fico? - perguntei, mantendo o olhar fixo no
tecto.
- Não. com a Jillian não é necessário ser muito específico nem dar
grandes explicações. A sua capacidade de atenção é muito limitada.
Bastam-lhe os seus próprios pensamentos. Deixaremos simplesmente que
aconteça.
O Tony recostou-se e juntou as mãos debaixo do queixo. Naquela altura, já
eu sabia que aquela era a sua linguagem gestual para demonstrar que a
situação estava sob o seu controlo.
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- A Jillian habituar-se-á a ver-te por aqui, a dar pelas tuas idas e
vindas aos fins-de-semana, do mesmo modo como tu já nem reparas no
barulho das ondas a bater na costa. Insinuar-te-ás, a pouco e pouco, nos
seus dias, no seu consciente. Conquistá-la-ás com a tua doçura, com a tua
vontade de lhe agradar. Mas nunca te esqueças de que não deves entrar em
competição com ela. Nunca lhe dês motivos para desconfiar de que troças
das suas tentativas para disfarçar a idade. Pensa antes de falar, de
agir. A Jillian tem toda uma corte de amigos que sabem como realizar o
jogo da "idade" tão bem como ela, mas depressa verás que os ultrapassa a
todos. Fiz-te uma lista dos seus amigos e respectivas esposas e filhos,
assim como dos respectivos passatempos, do que gostam e detestam. Estuda-
a bem. Não te mostres demasiado em agradar. Sê esperta e elogia apenas
quem o merecer. Se falarem sobre questões de que nada sabes, fica calada
e escuta atentamente. Se soubesses a quantidade de gente que aprecia um
bom ouvinte, ficarias admirada. Mesmo que não digas nada de especial, se
pronunciares as frases certas tais como "conte-me mais", considerar-te-ão
uma conversadora brilhante.
Esfregou a palma das mãos, mirando-me dos pés à cabeça.
- Sim, agora que já estás vestida como deve ser, serás aceite. Ainda bem
que não tens de te livrar de um desses horríveis dialectos regionais.
No entanto, estava a pôr-me em pânico com a longa lista de amigos da
Jillian, que representavam obstáculos que eu tinha de vencer. Cada
palavra sua dava a impressão de me afastar cada vez mais dos meus irmãos
e irmãs. Iria eu ficar sem eles agora que alcançava uma vida estável para
mim? Nem a Fanny nem o tom poderiam passar por amigos meus de Boston, por
causa do forte sotaque com que falavam. Depois também era eu que, se
viesse a sentir-me demasiado vulnerável, poderia ser impelida a cometer
algum erro. Só havia uma pessoa do meu passado que não levantaria
desconfianças ao Tony: o Logan, com o seu aspecto sadio e bem-parecido e
os olhos sinceros e firmes. O Logan, porém, não era pessoa para disfarçar
as suas origens. Era um Stonewall e tinha orgulho em sê-lo, não se
envergonhando, como eu, do meu apelido e dos meus antepassados.
O Tony observava-me. Agitei-me, na poltrona de abas.
- Agora, antes que a Jillian desça e nos interrompa ao falar do sítio
aonde vai e do que leva vestido, examina este mapa da cidade. O Miles
levar-te-á ao colégio às segundas-
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-feiras de manhã e eu irei buscar-te às sextas-feiras, por volta das
quatro horas da tarde. Posteriormente, quando tiveres idade, poderás ir
tu mesma a guiar de um lado para o outro. Que automóvel gostarias de
receber, digamos, no teu décimo oitavo aniversário?
Fiquei tão entusiasmada ao pensar em ter um carro só para mim que
estremeci e fui incapaz de responder durante todo um longo minuto.
- Ficaria grata por qualquer um que quisesse oferecer-me - respondi com
um sussurro.
- Ora, deixa-te disso. O teu primeiro automóvel é um grande
acontecimento. Tornemo-lo especial. Vai pensando nisso. Repara nos carros
que circulam. Passa por lojas de automóveis e observa os que estão
expostos. Aprende a saber discriminar e, acima de tudo, desenvolve o teu
próprio estilo. Afirma-te nas tuas preferências pessoais.
Eu não fazia a menor ideia do que ele pretendia dizer; ainda assim,
seguiria o seu conselho e tentaria saber "discriminar". Deixei-me ficar
sentada, ainda entusiasmada com a ideia de vir a ter carro próprio,
enquanto o Tony abria um mapa da cidade em cima da secretária.
- Aqui está Winterhaven - declarou, apontando com o dedo para um local
sobre o qual traçara um círculo vermelho. - E isto aqui é Farthy.
Chegou até nós o bater destacado dos saltos dos sapatos da Jillian na
escadaria de mármore. O Tony começou a dobrar o mapa. Quando a Jillian
chegou à porta da biblioteca, já ele o guardara numa gaveta. O perfume
que ela usava fez-se sentir na sala antes de entrar. Òh, como ela parecia
mundana e confiante ao deslizar para dentro do aposento, sorrindo para
mim e para o Tony, envergando o seu fato de saia e casaco em crepe de lã
preto, com pele de marta na gola e nas mangas. Por baixo do casaco
entrevia-se uma blusa de chiffon preto que brilhava. A pele e os cabelos
muito claros da Jillian contrastavam deslumbrantemente com todo aquele
tom negro. Fazia lembrar um diamante tendo por fundo veludo negro.
O impacto da impressão recebida talvez me tenha feito inalar o ar
demasiado depressa. O cheiro adocicado do seu perfume floral não só
encheu as minhas narinas como também deu a impressão de invadir os meus
pulmões, fazendo-me engasgar, quase sufocar, antes de eu me entregar a um
paroxismo de tosse que me fez estremecer violentamente o corpo e ficar
com o rosto muito vermelho.
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- Que tosse é essa, Heaven? - perguntou a Jillian, dando imediatamente
meia volta para me fitar com um olhar alarmado. - Estarás a ficar
constipada? Será gripe? Se for, agradeço que não te aproximes de mim!
Detesto estar doente! E não tenho jeito para gente que esteja mal, fico
impaciente! Nunca sei o que dizer ou fazer. Nunca estive doente um dia da
minha vida... excepto quando a Leigh nasceu.
- Dar à luz não é considerado doença, Jill - corrigiu o Tony com voz
serena e paciente.
Pusera-se de pé quando a mulher entrara. Eu não sabia que os homens o
faziam com as esposas nas suas próprias casas. Fiquei então impressionada
que estremeci com o deslumbramento de viver com pessoas com maneiras tão
elegantes.
- Estás perfeitamente deslumbrante, Jillian - declarou o Tony. - Não há
cor que te assente melhor que o preto.
A Jillian gostou, aparentemente, do que viu nos olhos do marido.
Esqueceu-se dos meus micróbios e voltou-se para ele. Dando a impressão de
deslizar, entrou nos braços que ele lhe abria, rodeando-lhe ternamente o
rosto com as mãos enluvadas.
- Oh, querido, como o tempo passa. Tenho sempre a impressão de que nos
vemos muito pouco. Ultimamente, sempre que preciso de ti, não estás por
cá. Não tarda que o Natal chegue com as suas exigências e eu já saturada
do Inverno e de planear festas. - Fez deslizar as mãos dele do rosto para
a cintura. - Amo-te muito, querido, e quero-te todo só para mim. Não
seria maravilhoso termos outra lua-de-mel? Por favor, tenta descortinar
uma maneira de fugirmos ao tédio e à tristeza que será ficarmos nesta
casa destestavelmente fria até Janeiro.
Deu-lhe dois beijos e depois continuou, em voz muito branda:
- O Troy pode encarregar-se dos negócios, não pode? Estás sempre a gabar
o génio dele para o trabalho. Portanto, dá-lhe uma oportunidade de
mostrar o que vale.
Estranhamente, senti o coração acelerar ao ouvir o nome do Troy,
apetecendo-me, ao mesmo tempo, gritar em protesto. Eles tinham de ficar!
Não podiam deixar-me sozinha, a passar as férias num colégio estranho,
com colegas que ainda nem conhecia!
E tudo o que a Jillian estava a fazer ao Tony trouxe-me à lembrança a
Kitty, que soubera exactamente como manobrar o Cal, o marido, ao sabor
dos seus desejos! Seriam todos os
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homens assim tão dependentes da sua vida sexual para perderem o controlo
do bom senso quando uma mulher bonita os lisonjeava? Oh, era certo que o
Tony não parecia o mesmo homem que, ainda há pouco, apoiara o queixo nos
dedos juntos. Observava a Jillian com suave intensidade, e esta
conseguira, de uma forma subtil e misteriosa, apoderar-se das rédeas do
marido, ficando ela no controlo. A facilidade com que a via obter o que
queria do Tony, assustava-me.
- Verei o que se pode fazer - disse o Tony indolentemente, tirando do
ombro do fato um longo cabelo louro. Fê-lo balançar cuidadosamente sobre
um cesto de papéis, antes de o deixar cair. Aquele gesto insignificante
fez-me compreender que nunca nenhuma mulher seria capaz de controlá-lo...
Ele apenas lhes permitia ter essa ilusão.
Desprendeu-se brandamente das mãos com que a Jillian se prendera à lapela
do seu casaco.
- A Heaven e eu tencionamos comprar a roupa que falta para o colégio hoje
à tarde. Seria muito agradável vires connosco, seria um dia em grande,
jantaríamos e poderíamos ir ao teatro ou ao cinema...
- Ohhh... - murmurou a Jillian, fitando-o nos olhos com ternura -, não
sei...
- Claro que sabes - observou o Tony. - Os teus amigos podem passar sem
ti. Afinal de contas, há anos que os conheces, enquanto a Heaven ainda
tem muito para nos mostrar.
A Jillian ficou imediatamente enfastiada. Os seus olhos azuis desviaram-
se para mim, como se tivesse esquecido a minha presença.
- Oh, querida, não te tenho ligado muita atenção, pois não? Porque é que
um de vocês não me avisou a tempo? Realmente adoraria ir às compras
contigo e com o Tony, mas pensei que já tinham terminado e fiz planos.
Agora é demasiado tarde para cancelar. E se não aparecer no meu clube de
brídege, aquelas mulheres traiçoeiras ainda me fazem em pedaços, o que
não acontecerá se eu não faltar.
Fez menção de se aproximar de mim e beijar-me, mas lembrou-se, a tempo,
da minha tosse. Estacou por um momento, aparentemente intrigada por algo.
O que lhe chamou a atenção foi a minha cabeleira, que era difícil de
controlar.
- Estás a precisar de um bom cabeleireiro - murmurou com ar distraído,
baixando a cabeça para remexer no fundo da sua bolsa. Tirou desta um
pequeno cartão. - Cá está,
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querida, é deste homem que precisas. É um génio em matéria de cabelos. O
Mário é a única pessoa a quem permito que toque no meu. - Olhou de
relance para um espelho de parede, levando a mão ao penteado, que
ajeitou. - Nunca sejas atendida por uma cabeleireira. Os homens apreciam
muito mais a beleza de uma mulher e parece saberem exactamente aquilo que
é necessário para a realçar.
Lembrei-me da Kitty Dennison, que tivera um salão de cabeleireiro. A
Kitty considerara-se a melhor em tudo e, na minha modesta opinião, tinha
muita habilidade. No entanto, o seu cabelo grosso e arruivado fazia
lembrar a cauda de um cavalo quando comparado com as madeixas sedosas da
Jillian.
A Jillian sorriu e lançou mais um beijo ao Tony antes de flutuar porta
fora, cantarolando a mesma melodia sem sentido que lhe saía quando se
sentia feliz.
Os olhos do Tony estavam sombrios ao aproximar-se de uma janela para ver
a Jillian afastar-se no automóvel conduzido pelo Miles, o jovem e bem-
parecido motorista.
Ainda de costas para mim, principiou:
- Um dos aspectos que mais aprecio no Inverno é a neve e a prática do
esqui. Estava a pensar em ensinar-te esse desporto quando a época
começasse, tendo assim companhia. A Jillian não aprecia exercícios
esforçados, os quais podem quebrar-lhe algum osso e provocar-lhe dor. O
Troy gosta de esquiar, mas está sempre ocupado com as suas próprias idas
e vindas.
Aguardei, ansiosa, que continuasse. O Tony pôs de parte o Troy e voltou à
Jillian.
- A Jillian desiludiu-me com a sua falta de entusiasmo por tudo o que
seja ao ar livre. Quando a conheci, fazia de conta que apreciava o golfe
e o ténis, a natação e o futebol. Usava lindos fatos de ténis, embora eu
nunca lhe visse uma raqueta na mão, e nem lhe passasse pela cabeça correr
atrás de uma bola e ficar transpirada.
Naquele momento específico a visão da Jillian no seu fato preto era tão
vívida que não fui capaz de a censurar por não querer prejudicar a sua
perfeição frágil que, sem dúvida, não seria eterna. Eu não duvidava nem
receava, limitava-me a não perder de vista um sonho que haveria de
concretizar-se... e, se acreditasse com suficiente convicção, um dia a
Jillian acabaria por olhar de verdade para mim, os seus olhos sorririam
sinceramente e diria que me perdoava por ter posto termo à vida da minha
mãe...
72
Duas semanas depois de chegar a Boston, estava inscrita em Winterhaven.
Não voltara a ver o Troy mas era nele que pensava quando o Tony me abriu
a porta do carro para eu sair e me indicou, com um gesto amplo, a
elegante escola que era Winterhaven, aninhada no seu pequeno campus
privativo de árvores despidas, cuja desolação as sempre-vivas atenuavam.
O edifício principal, que era revestido por rijas tábuas de madeira
pintada de branco, brilhava ao sol do princípio da tarde. Eu contara com
uma construção em pedra ou tijoleira, não daquele género.
- Tony - exclamei -, Winterhaven faz lembrar uma igreja!
- Não cheguei a dizer-te que já o foi? - perguntou o Tony com um brilho
divertido nos olhos. - Os sinos da torre anunciavam o passar de cada hora
e os carrilhões tocavam melodias ao cair da noite. Às vezes, tem-se a
impressão de que, quando o vento sopra de feição, aqueles sinos se ouvem
em~toda a Boston. Imaginação, presumo.
Fiquei impressionada com Winterhaven, a sua torre com sinos, a série de
edifícios mais pequenos, no mesmo estilo do principal.
- Estudarás inglês e literatura em Beecham Hall - informou o Tony,
apontando para o edifício branco à direita do maior. - Todas as casas têm
nomes e, como podes ver, formam um semicírculo. Ouvi dizer que existe uma
passagem subterrânea que liga as cinco construções, para ser utilizada
nos dias em que a neve dificulta a deslocação no exterior. Ficarás
instalada no edifício principal, onde se encontram os dormitórios e os
refeitórios, assim como a sala das assembleias... Quando entrarmos, todas
as raparigas que ali se encontram mirar-te-ão da cabeça aos pés e
formarão uma opinião. Portanto, mantém a cabeça bem erguida. Não lhes dês
a impressão de que te sentes vulnerável, desajustada ou intimidada. A
família VanVoreen vem do tempo de Plymouth Rock.
Naquela altura eu já sabia que VanVoreen era um apelido holandês, muito
antigo e respeitado... mas eu nunca fora uma VanVoreen mas sim uma reles
Casteel da Virgínia Ocidental. Os meus antecedentes perseguiam-me,
lançando longas sombras que ameaçavam obscurecer o meu futuro. Bastar-me-
ia cometer um erro para ter aquelas raparigas, dotadas de antecedentes
"correctos", a troçar da minha verdadeira identidade. Nesse momento,
pensei nas imperfeições que sempre achara em mim, ao ponto de me sentir
ansiosa e começar a
73
suar. Vestia demasiada roupa, camadas de roupa nova, uma blusa debaixo de
uma camisola de lã, uma saia de lã e, por cima de tudo isso, um casaco de
lã, que custara mil dólares! Cortara o cabelo num estilo moderno;
portanto, usava-o agora mais curto do que nunca e, naquela manhã, os
espelhos tinham-me mostrado que estava muito bonita. Mas então porque
tremia?
Era por causa dos rostos que espreitavam das janelas, tinha de ser. Eram
todos aqueles olhos a fixarem-se em mim, a observarem a recém-chegada. Vi
o Tony fitar-me de relance antes de se apear e dar a volta ao automóvel
para me abrir a porta.
- Mas que vejo eu? Vá, Heaven, apela ao teu orgulho. Não tens nada de que
te envergonhar. Basta manteres o sangue-frio e pensares antes de
responder para tudo correr bem.
No entanto, eu sentia-me demasiado em evidência, ali de pé, enquanto o
Tony tirava as doze peças da minha bagagem do banco de trás e do porta-
bagagens, de modo que virei-me e comecei a ajudá-lo.
- Que explicação deu à Jillian sobre isto? - perguntei-lhe, agarrando com
ambas as mãos na minha malinha de cosméticos, a transbordar de materiais
que eu nunca usara até ali.
O Tony sorriu, como se a Jillian fosse uma criança fácil de controlar.
- Na verdade, foi muito simples. Ontem à noite, disse-lhe que ia fazer
por ti o que ela gostaria que eu fizesse por uma filha sua. A Jillian
fechou a boca e afastou-se. Mas não fiques demasiado confiante pelo facto
de ela estar mais ou menos resignada em ter uma neta que se intitula
sobrinha. Ainda precisas de a conquistar. E quando ganhares aceitação
neste colégio e junto dos seus amigos, ela quererá que fiques, que fiques
eternamente, como tu tão poeticamente dizes.
Era muito estranho estar diante da concretização do segundo passo do meu
sonho, ciente de que o primeiro ainda não se realizara totalmente. A
minha avó de verdade ainda não me aceitara completamente. Sentia-se
ludibriada porque eu viera lembrar-lhe o que queria esquecer... Mas um
dia gostaria de mim. Eu iria fazer por isso. Um dia daria graças a Deus
por eu ter transformado num dos objectivos da minha vida a minha intenção
de ficar junto dela.
- Anda, Heaven - chamou o Tony, interrompendo os meus pensamentos,
enquanto um empregado do colégio vinha
74
buscar a minha bagagem num carrinho de mão. - Entremos e enfrentemos os
dragões. Todos nós temos de dar cabo de uns quantos ao longo da nossa
vida. Na sua maioria, são criados pela nossa imaginação. - Agarrou-me na
mão e puxou-me pelos degraus íngremes acima. - Já te disse que estás
linda? O teu novo corte de cabelo fica-te muito bem, Heaven Leigh
Casteel. Estás uma rapariga muito bonita. Desconfio que também és
bastante inteligente. Não me desiludas.
O Tony transmitiu-me confiança. O seu sorriso deu-me forças para subir
aquela escadaria como se eu não tivesse feito outra coisa, ao longo da
vida, senão frequentar colégios particulares ricos. Quando me vi dentro
do edifício principal e olhei em volta, estremeci. Esperara algo
semelhante a um elegante vestíbulo de hotel, mas o que tinha na minha
frente era austero. Estava tudo muito limpo e os soalhos apresentavam-se
impecavelmente encerados. As paredes, muito brancas,, exibiam frisos
intrincadamente trabalhados em tom mais escuro. Para atenuar a rigidez
das paredes brancas e espalhadas por aqui e ali, em cima de mesas e ao
lado de cadeiras de costas altas de aspecto pouco cómodo, viam-se fetos
envasados e outras plantas domésticas. Dali, via-se uma sala de recepção
que era um pouco mais acolhedora, com uma lareira, sofás e cadeiras
forradas em tecido de algodão estampado, cuidadosamente dispostas.
O Tony não tardou a conduzir-me ao gabinete da directora, uma mulher
robusta e afável, que nos presenteou a ambos com um sorriso rasgado e
simpático.
- Bem-vinda a Winterhaven, Miss Casteel. É uma honra e um privilégio ter
uma neta do Cleave VanVoreen no nosso colégio. - Piscou conspirativamente
o olho ao Tony. - Não se preocupe, querida, eu manterei a sua identidade
secreta, não direi a ninguém quem realmente é. Referirei apenas que o seu
avô era um homem notável. Um privilégio para quem, de entre nós, o
conheceu.
Acolheu-me, por breves instantes, nos braços maternais, antes de me
afastar e mirar.
- Tive oportunidade de conhecer a sua mãe, quando Mister VanVoreen a
trouxe cá para se inscrever. Lamento muito que já não esteja entre nós.
- Agora passemos à fase seguinte - urgiu o Tony, olhando de relance para
o relógio. - Tenho um compromisso para daqui a meia hora e faço questão
em acompanhar a Heaven ao seu quarto.
75
Soube bem tê-lo ao meu lado enquanto descíamos as escadas altas, sentindo
os passos suavizados por uma passadeira verde-escura. Ao longo da parede
alinhavam-se retratos emoldurados de antigos professores, atraindo
ocasionalmente o meu olhar atónito. Como todos pareciam frios,
puritanos... e como os seus olhos se assemelhavam, dando a impressão de
poderem ver, mesmo então, todo o mal naqueles que passavam.
Por trás de nós, ou melhor, a toda a nossa volta, ouviam-se ténues e
inúmeras risadas femininas. Contudo, sempre que olhava para trás, não via
ninguém.
- Cá estamos! - exclamou a Helen Mallory alegremente, abrindo uma porta
que dava acesso a um lindo quarto. É o melhor quarto do colégio, Miss
Casteel. Escolhido para si pelo seu "tio". Quero que saiba que poucas
alunas podem dar-se ao luxo de dispor de um quarto privativo, ou mesmo de
o desejarem, mas Mister Tatterton fez questão. A maioria dos familiares
acha que as raparigas novas preferem ficar em grupo, mas ao que parece
não é o que acontece consigo.
O Tony entrou no quarto e passou uma vista de olhos por todos os
pormenores, abrindo gavetas de cómodas, inspeccionando o guarda-roupa
amplo, sentando-se nas duas poltronas antes de se instalar a uma
secretária de estudante e sorrir-me.
- Bem, que tal achas, Heaven?
- É uma maravilha - sussurrei, olhando, completamente deslumbrada, para
as prateleiras de livros que em breve esperava encher. - Não contava com
um quarto só para mim.
- Do bom e do melhor - brincou o Tony. - Não foi o que te prometi? - Pôs-
se de pé e acercou-se rapidamente de mim, inclinando-se para me depositar
um beijo na face. Boa sorte. Trabalha bastante. Se precisares de alguma
coisa, liga para o meu escritório ou lá para casa. Já disse à minha
secretária para passar sempre as tuas chamadas. Chama-se Amélia.
Dito isto, puxou da sua carteira e, para grande surpresa minha, colocou-
me várias notas de vinte dólares na mão.
- Dinheiro de bolso.
Fiquei pregada no mesmo sítio com o dinheiro na mão, vendo-o sair porta
fora. Verifiquei, admirada, que sentia um baque no coração e uma sensação
de enjoo no estômago. Assim que a Helen Mallory teve a certeza de que o
Tony já não nos podia ouvir, a sua expressão perdeu a brandura, os
76
seus modos maternais desapareceram, e examinou-me com um olhar duro e
calculista, analisando-me, calculando o meu carácter, as minhas fraquezas
e pontos fortes; a julgar pelo seu ar desdenhoso, não me considerou à
altura das suas expectativas. O facto não devia ter-me chocado; no
entanto, foi o que aconteceu. Até mesmo o seu tom de voz baixo e macio
ganhou rudeza e aumentou de volume.
- Contamos com que as nossas alunas tenham excelente aproveitamento
académico e obedeçam religiosamente às nossas regras, que são muito
rígidas. - Tirou-me o dinheiro da mão sem a menor cerimónia e contou
rapidamente as notas. - Guardar-lhe-ei este dinheiro no cofre, de onde
pode retirá-lo às sextas-feiras. Não gostamos que as nossas alunas tenham
dinheiro no quarto, onde pode ser roubado. A sua posse cria muitos
problemas.
Os meus duzentos dólares desapareceram dentro do seu bolso.
- Quando a sineta tocar às sete da manhã dos dias de semana - prosseguiu
-, terá de se levantar e vestir o mais rapidamente possível. Se tomar
banho ou duche na véspera à noite, não precisará de o fazer de manhã.
Sugiro-lhe que adopte esse hábito. O pequeno-almoço é às sete e meia, no
piso principal. Encontrará tabuletas a indicar-lhe os vários destinos.
Tirou um pequeno cartão do bolso da saia de lã escura, que me entregou.
- Tem aí o seu horário de aulas. Fui eu própria a organizá-lo, mas se o
achar demasiado difícil de seguir, basta falar comigo. Nós aqui não temos
favoritismos. Terá de conquistar o respeito dos seus professores e
colegas. Há uma passagem subterrânea que liga os edifícios entre si. Só
deverá utilizar esse túnel nos dias em que estiver muito mau tempo. Caso
contrário, irá lá por fora, onde o ar fresco lhe fará bem aos pulmões.
Chegou cá durante a hora de almoço, mas o seu tutor disse que almoçaram
antes de vir.
Fez uma pausa, olhando para o topo da minha cabeça enquanto esperava pela
minha confirmação.
Só depois de a ter é que se virou e olhou para as doze dispendiosas peças
de bagagem. Pareceu-me ver desprezo no seu rosto... Ou talvez inveja, não
saberia dizer.
- Em Winterhaven ninguém ostenta a sua riqueza usando roupa cara -
continuou. - Espero que tenha isso presente. Até há bem poucos anos, as
nossas alunas eram obrigadas a andar de uniforme. Isso tornava tudo mais
simples.
77
Mas as raparigas protestaram e os patronos do nosso estabelecimento
deram-lhes razão, de modo que agora usam o que lhes apetece. - Voltou a
fitar-me com olhar distante e cauteloso. - O almoço é servido ao meio-dia
para as duas classes mais atrasadas e as restantes alunas comem ao meio-
dia e meia. Deve apresentar-se pontualmente a todas as refeições, caso
contrário, ficará sem elas. Foi-lhe atribuída uma mesa, mas só mudará de
lugar se as ocupantes de alguma outra a convidarem para junto delas ou
lhes pedir que façam ao contrário. Cada estudante servirá às mesas uma
semana em cada semestre. O serviço é rotativo e a maioria das estudantes
não levanta objecções.
Aclarou a voz a fim de poder prosseguir.
- Não queremos que as nossas alunas guardem alimentos nos seus quartos ou
levem a cabo festas secretas à meia-noite. Tem autorização para ter um
rádio, um gira-discos ou um leitor de cassetes, mas não uma televisão. Se
for apanhada com bebidas alcoólicas, e isso inclui a cerveja, receberá
uma repreensão. Três repreensões num semestre e será expulsa,
reembolsando-se apenas um quarto das propinas. A hora de estudo é das
sete às oito da noite. Das oito às nove podem ver televisão na nossa sala
de convívio. Não verificamos as vossas leituras mas não aprovamos a
pornografia, de modo que receberá uma repreensão se lhe encontrarmos
algum material desse tipo. Algumas das nossas alunas gostam de se
entreter com jogos como o brídege e o gamão, mas as apostas em dinheiro
não são permitidas. Se for encontrado dinheiro nalguma mesa de jogo,
todas as participantes receberão castigos e repreensões. Oh, já me
esquecia de informar que todas as repreensões são acompanhadas de
castigos condizentes. Determinamo-los de acordo com as faltas. O seu
sorriso passou de azedo a afectuoso. - Espero que nunca seja necessário
castigá-la, Miss Casteel. E as luzes apagam-se às dez em ponto.
Dito isto, deu meia volta e saiu do quarto.
E não me dissera onde ficava a casa de banho!
Mal a vi pelas costas, inspeccionei o quarto à procura de uma casa de
banho, começando por uma porta à qual ela não se referira. Estava fechada
à chave. Sentei-me a ler o horário das aulas. Aula de inglês às oito, em
Elmhurst Hall. Porém, a necessidade de ir à casa de banho tornou-se
imperiosa.
Deixei todas as malas no chão do quarto, saindo pelo corredor em busca de
indicações. Os sussurros e as risadinhas que anteriormente ouvira haviam
desaparecido. Sentia-me
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completamente sozinha no segundo andar. Tentei três corredores antes de,
por fim, avistar uma pequena placa metálica que dizia "Lavabos".
Empurrei a porta de balanço e entrei numa vasta divisão onde se viam
lavatórios brancos alinhados ao longo de toda uma parede, com espelhos em
frente. O pavimento era em mosaicos pretos e brancos. As paredes, em
cinzento-claro, amenizavam todo aquele branco e preto; quando saí de um
dos reservados, de tive-me a observar o que me rodeava. Num outro
compartimento havia doze banheiras, ao lado umas das outras. A seguir
havia outra sala com chuveiros alinhados em pequenos espaços individuais
sem porta, com excepção de um. Por trás de portas envidraçadas, viam-se
prateleiras com centenas de toalhas brancas impecavelmente dobradas.
Decidi, naquele mesmo instante, passar a tomar duches, não banhos de
imersão.
Antes de sair dos lavabos, apalpei a terra das plantas envasadas e, como
a achei ressequida, reguei-as a todas com um pouco de água, hábito que
ganhara quando vivera com a Kitty Dennison.
Voltei ao meu quarto e desfiz rapidamente as malas, arrumando
cuidadosamente a minha linda roupa interior na cómoda. A seguir, dei nova
vista de olhos ao meu horário. Às duas e meia da tarde deveria
apresentar-me no Sholten Hall para a minha aula de sociologia. A primeira
aula que teria em Winterhaven.
Não tive grande dificuldade em encontrar o Sholten Hall, de modo que,
envergando a fatiota que o Tony me sugerira para a minha primeira aula,
só hesitei em frente da porta da sala; depois, sustendo a respiração e
erguendo bem a cabeça, empurrei-a e entrei. Tive a impressão de que
estavam à minha espera. Todas as raparigas se viraram na minha direcção,
e os quinze pares de olhos fixaram-se em todos os pormenores da minha
roupa, antes de se deterem no meu rosto; depois voltaram a desviar-se
para a professora, que se encontrava sentada à sua secretária.
- Entre, Miss Casteel. Temos estado à sua espera. Olhou de relance para o
seu relógio. - Por favor, amanhã tente ser pontual.
Somente as carteiras da frente estavam desocupadas e eu senti que era o
centro de todas as atenções ao dirigir-me para a mais próxima, na qual me
sentei.
- Chamo-me Powatan Rivers, Miss Casteel. Miss Bradley, agradeço que
forneça a Miss Casteel os livros de que
79
precisamos para esta aula. Espero, Miss Casteel, que tenha vindo equipada
com as suas próprias canetas, lápis, cadernos, e tudo aquilo de que
precisa...
O Tony dera-me tudo o que era necessário, de modo que pude acenar
afirmativamente com a cabeça e aceitar os livros de sociologia, que
coloquei em cima do meu material impecavelmente arrumado. Sempre tivera
muito orgulho nos livros e na diversidade de objectos que fazem parte da
vida escolar e, pela primeira vez na minha vida, dispunha de tudo quanto
um estudante poderia desejar.
- Gostaria de falar um pouco de si aos seus colegas, Miss Casteel?
A minha mente ficou completamente em branco. Não! O que eu menos queria
era colocar-me em frente da classe e contar-lhes o que quer que fosse!
- É costume, Miss Casteel. As nossas caloiras fazem-no. Especialmente
aquelas que provêm de outras áreas do nosso vasto e belo país. Ajuda
todos nós a compreendê-la melhor.
A professora aguardou com expectativa, enquanto todas as raparigas se
inclinavam para a frente, fazendo-me sentir os seus olhos cravados nas
minhas costas. Levantei-me cheia de relutância, dei os poucos passos que
me levaram até à frente da sala e foi então que, ao ver as outras
raparigas, me apercebi do erro em que o Tony caíra ao escolher o tipo de
roupa para eu usar! Ninguém andava de saias! Todas tinham calças ou blue
jeans e, na parte de cima, camisas ou blusões descuidados e largueirões.
O coração caiu-me aos pés, pois aquele era o género de roupa que todos os
jovens costumavam usar na escola em Winterhaven! Eu contara que ali,
naquele colégio elegante, as coisas fossem mais delicadas e bonitas.
Tive de passar várias vezes a língua pelos lábios, que tinham ficado
ressequidos. As minhas pernas traíram-me e começaram a tremer. Recordei
as instruções do Tony.
- Nasci no Texas - principiei com voz trémula e hesitante. - Mais tarde,
aos dois anos, mudei-me para a Virgínia Ocidental com o meu pai. Fui
criada lá. O meu pai adoeceu e a minha tia convidou-me a ir viver com ela
e o marido.
Voltei apressadamente para o meu lugar e sentei-me. Miss Rivers aclarou a
voz.
- Miss Casteel, antes da sua chegada, deram-me o seu nome para eu o
inscrever nos nossos registos. Importa-se de nos contar a origem do seu
extraordinário nome próprio?
- Não compreendo o que quer saber...
- As meninas estão interessadas em saber se tem algum parente com esse
nome...
80
- Não, miss Rivers, puseram-me um nome igual ao daquele lugar para onde
todos nós esperamos ir mais tarde ou mais cedo...
Atrás de mim, várias raparigas começaram a bichanar. O olhar de miss
Rivers endureceu.
- Muito bem, Miss Casteel. Desconfio de que só na Virgínia Ocidental é
que há pais com ousadia suficiente para desafiar os poderes supremos. E
agora abramos o nosso livro oficial do governo na página duzentos e doze
e prossigamos a lição de hoje. Miss Casteel, como este semestre iniciou
as suas aulas mais tarde, contamos que se ponha em dia até ao final da
semana. Todas as sextas-feiras farão um exame para provar o que
aprenderam. E agora, meninas, comecemos a aula de hoje com a leitura das
páginas duzentos e doze a duzentos e quarenta e dois, e quando
terminarem, fechem os livros e guardem-nos dentro das carteiras.
Iniciaremos então o debate.
O ensino era mais ou menos o mesmo em todo o lado, como depressa
descobri. Páginas para ler, perguntas no quadro para copiar. Excepto que
aquela professora estava muito bem informada sobre a maneira como o nosso
Governo funcionava, mostrando-se igualmente bem inteirada sobre aquilo
que não estava bem. Escutei-a com interesse, dominada pela paixão que
manifestava por aquele tema e quando, de repente, se calou, senti vontade
de aplaudir. Era fantástico que soubesse tanto acerca da pobreza! Sim, no
nosso país rico e abundante havia pessoas que iam para a cama com fome.
Sim, milhares de crianças eram privadas de direitos que lhes deviam ser
inerentes: o direito de dispor de alimentos suficientes tanto para o
corpo como para o espírito; roupa suficiente para não passar frio;
habitação que as abrigasse das intempéries; repouso suficiente em camas
confortáveis, para que não se levantassem com olheiras depois de dormir
no chão duro, sem cobertores suficientes; e, acima de tudo, pais com
idade e capacidade de discernimento suficientes para lhes proporcionar
tudo isso.
- Portanto, como é que começamos a corrigir tudo o que está errado? Como
é que sustemos a ignorância, quando os ignorantes não parece importarem-
se com o facto de os filhos ficarem prisioneiros, ou não, nas mesmas
circunstâncias miseráveis? Como agir para que aqueles que se encontram em
lugares de chefia olhem pelos carenciados? Reflictam sobre isso esta
noite e, se encontrarem soluções, transponham-nas para o papel e
apresentem-nas amanhã na aula.
81
O dia acabou por passar sem problemas. Nenhuma das raparigas me abordou
para fazer perguntas, embora todas me fitassem, desviando apressadamente
o olhar quando este se cruzava com o meu. Às seis horas dessa tarde,
sentei-me a uma mesa redonda coberta por uma impecável toalha branca, e
vi no centro da mesa um pequeno jarro em prata contendo uma única rosa
vermelha. Uma das raparigas de serviço tomou nota do que eu pedi depois
de consultar uma pequena ementa, e afastou-se a fim de atender uma das
outras mesas, onde jovens, em grupos de quatro ou cinco, tagarelavam
animadamente, fazendo o refeitório ressoar com as vozes alegres. Eu era a
única rapariga na sala com uma rosa vermelha na mesa e só quando me
apercebi do facto é que reparei num pequeno cartão junto da flor, que
dizia: "Boa-sorte. Tony."
Todos os dias, de segunda a sexta, havia uma rosa vermelha na minha mesa.
E todos os dias aquelas raparigas ignoravam a minha existência. Que erro
estaria eu a cometer além de vestir um tipo de roupa diferente? Não
trouxera jeans, calças, camisas ou camisolões velhos comigo. Tentei
sorrir, corajosamente, às jovens que olhavam para mim, na esperança de
atrair a sua atenção. Mal reparavam nos meus esforços; todas faziam de
conta que não me viam! Foi então que imaginei o que acontecera. Fora
traída pelas minhas ideias sobre a fome na América. A paixão que eu tinha
pelo tema da pobreza dera-lhes mais informações sobre mim do que eu
alguma vez poderia fazer. Eu estava excessivamente bem informada. Ficara
demasiadas noites acordada em certa cabana nos montes a tentar encontrar
respostas para salvar todos os pobres do mesmo destino miserável dos seus
antepassados.
Recebi um "bom" pelo meu trabalho sobre a pobreza na América. Um começo
muito auspicioso. Porém, traíra-me. Agora, todos estavam a par dos meus
antecedentes, caso contrário, eu não poderia saber tanto sobre a matéria.
Desejei mil vezes não ter sido tão factual e ter optado por uma solução
como a de uma outra rapariga, que sugeriu: "Todos os ricos deviam
adoptar, pelo menos, uma criança pobre."
Sozinha no meu lindo quarto, na minha cama estreita, escutava as
risadinhas que chegavam dos outros quartos. Sentia o cheiro a torradas e
a queijo fundido; ouvia o entrechocar de copos de vidro, de talheres e
das gargalhadas "enlatadas" das comédias ao vivo da televisão. Nenhuma
das raparigas tomou a iniciativa, nem uma vez, de bater à minha porta
fechada
82
a convidar-me para participar numa das festas proibidas. Tão-pouco alguma
delas foi interrompida por professoras iradas com a quebra das regras.
A julgar pelas histórias fantásticas que ouvira, a maioria daquelas
jovens já passeara fartamente por todo o mundo, sentindo-se já entediadas
com cidades que ainda me faltava conhecer. Três delas tinham sido
expulsas de colégios particulares na Suíça devido a romances amorosos,
duas tinham sido afastadas de escolas americanas por tomarem bebidas
alcoólicas, duas outras por se drogarem. Todas diziam palavrões piores do
que aqueles que eram habituais nos pacóvios embriagados dos bailaricos de
celeiro, e eu ia recebendo, através da parede, um género diferente de
educação sexual, dez vezes mais chocante do que tudo o que a Fanny alguma
vez fizera.
Depois, certo dia, quando eu me encontrava nos lavabos, no único cubículo
que tinha porta, ouvi-as falar sobre mim. Não me queriam na "sua" escola.
Eu não era do seu "nível".
- Ela não é quem faz de conta que é - sussurrou uma voz que eu aprendera
a reconhecer como pertencendo à Faith Morgantile.
Não pretendia passar por outra pessoa que não fosse uma rapariga em busca
de educação. Fiquei, portanto, cheia de ressentimento. Só esperava que,
quando a minha provação chegasse, eu conseguisse sobreviver com a
dignidade e o orgulho intactos.
De modo que ali, em Winterhaven, não obstante os meus antepassados
VanVoreen, os meus laços com os Tatterton, a minha roupa excelente, o meu
elegante corte de cabelo, os sapatos bonitos e as boas notas para as
quais trabalhava afincadamente, eu era, como sempre me acontecera, uma
estranha, desprezada e escarnecida. E o pior era que eu, logo desde o
princípio, me traíra a mim mesma e ao Tony.
5 ESTAÇÕES EM MUDANÇA
6 TRAIÇÃO
8O BAILE
12 PECADO E PECADORES
SEGUNDA PARTE
13
JANEIRO EM JULHO
Troy tentou contar-me a sua triste história do Inverno, de fraqueza e
morte. Porém, eu queria defender a nossa felicidade e paixão; portanto,
abafava-lhe as palavras beijando-o com paixão, vezes sem conta. Durante
três dias e três noites fomos amantes ardentes que não suportavam ficar
afastados um do outro mais do que uns minutos de cada vez. Não íamos além
dos jardins que rodeavam Farthy, desistíramos mesmo de cavalgar pelos
bosques. Escolhíamos caminhos seguros para os nossos cavalos, sem nunca
irmos demasiado longe, ansiosos por voltarmos à casa de pedra e à
segurança dos braços um do outro. Até que, certo fim de tarde, já a chuva
se afastara para o lado do mar e o Sol voltara a aparecer, finalmente, no
horizonte, o Troy e eu encontrávamo-nos no chão, em frente da lareira
acesa, abraçados. Dessa vez mostrou-se muito insistente.
- Tens de me escutar. Não tentes calar-me outra vez. Não quero arruinar a
tua vida só porque há uma sombra a pairar sobre a minha.
- A tua história deitará a perder o que agora existe entre nós?
- Não sei. Dependerá de ti.
- E estás disposto a correr o risco de me perder?
- Não, espero nunca te perder, mas se tiver de ser, assim será.
- Não! - exclamei, pondo-me de pé com um pulo e correndo para a porta. -
Deixa-me ter este Verão todo sem pensar no Inverno!
Saí de sua casa e penetrei no labirinto, atravessando a névoa fria que
começara a acumular-se nas passagens estreitas entre as sebes. Para minha
grande consternação, quase dei de caras com o pequeno grupo que se
encontrava em frente das escadarias da Mansão Farthinggale a descarregar
a bagagem da comprida limusina negra do Tony.
191
A Jillian e o Tony tinham voltado! Recuei rapidamente e voltei a entrar
no labirinto. Não queria que me vissem, naquele momento, a voltar de casa
do Troy.
Enquanto o motorista descarregava a bagagem, ouvi o Tony a censurar a
Jillian por não me ter avisado.
- Queres dizer que não telefonaste à Heaven ontem, como prometeste?
- É verdade, Tony. Pensei várias vezes em fazê-lo mas houve interrupções,
e além disso o nosso regresso inesperado far-lhe-á uma surpresa e dar-
lhe-á satisfação. Sei que, na idade dela, eu teria ficado encantada com
os lindos presentes que lhe trouxemos de Londres.
Mal desapareceram dentro de casa, corri para uma porta lateral, galguei
as escadas que conduziam aos meus aposentos e, uma vez ali, atirei-me
para cima da cama e rompi a chorar copiosamente, limpando
precipitadamente as lágrimas ao ouvir o Tony bater à porta e chamar pelo
meu nome.
- Já chegámos, Heaven. Posso entrar?
De certo modo sentia-me satisfeita por vê-lo de novo, tão sorridente e
animado a encher-me de perguntas sobre como eu estava, como me conseguira
manter satisfeita, ocupada e entretida.
Oh, as mentiras que disse teriam feito com que a minha avó desse várias
voltas na sua tumba. Cruzei os dedos nas costas. Quis saber pormenores
sobre a cerimónia da entrega de diplomas, repetiu que lamentava muito não
ter podido estar presente. Quis saber a que festas fora, com quem, se
conhecera algum jovem. Nem uma só vez se mostrou desconfiado com as
mentiras que me saíam da boca. Porque não desconfiaria que a minha
preferência recairia sobre o Troy? Teria esquecido todas as regras que me
impusera?
- Óptimo - disse. - Ainda bem que gostaste dos programas de televisão que
passaram este Verão. Eu acho a televisão uma chatice, mas enfim, não
cresci nos Willies. Dirigiu-me um sorriso esfuziante e carregado de
charme, embora parecesse trocista. - Espero que tenhas tido tempo para
ler alguns bons livros.
- Arranjo sempre tempo para ler.
Ao inclinar-se para me dar um abraço rápido antes de se dirigir para a
porta, os seus olhos estreitaram-se.
- Eu e a Jillian queremos entregar-te todos os presentes que escolhemos
cuidadosamente para ti. E agora é melhor limpares os sinais de lágrimas
da cara antes de mudares de roupa para a noite. - Eu não o enganara,
apenas quisera
192
convencer-me a mim mesma de que não continuava tão arguto como antes.
No entanto, não me perguntou por que motivo eu chorara quando, na
biblioteca, com a Jillian envergando um belo vestido comprido, sorria
para mim ao ver-me abrir os presentes vindos de Londres.
- Gostas de tudo? - perguntou a Jillian, que me trouxera roupa, roupa e
mais roupa. - As camisolas servem, não é?
- É tudo lindo e não há dúvida de que as camisolas servem.
- E que dizes aos meus presentes? - quis saber o Tony. Oferecera-me
bijutaria cara e extravagante e uma caixa pesada forrada de veludo azul.
- Hoje em dia já não fazem arti- gos de toilette como no tempo da rainha
Vitória. Esse conjunto de toucador é antigo e muito valioso.
Peguei cuidadosamente na caixa que continha um pesado espelho de mão em
prata, uma escova de cabelo, um pente, duas caixas de pó-de-arroz em
cristal com as tampas em prata trabalhada, e dois frascos para perfume a
condizer com o conjunto. Ao olhar para eles, recuei até aos meus dez
anos, a altura em que abrira, pela primeira vez, a mala da minha mãe. No
andar de cima, escondida no fundo de um dos meus armários estava a velha
mala que a minha mãe levara consigo para os Willies e, dentro desta, um
outro conjunto de toucador em prata, embora não tão completo como aquele
em que eu segurava naquele momento.
De repente, senti-me indefesa, aprisionada numa cilada do tempo. O Tony
já reparara, certamente, no conjunto de toucador que a Jillian me
oferecera. Eu não precisava de mais nenhum. Veio-me à mente um pensamento
extremamente peculiar, pois nesse instante apercebi-me de quão injusta
fora em não escutar o que o Troy tinha para me contar. Injusta para ele e
para mim.
Nessa mesma noite, a altas horas, muito depois do jantar e de a Jillian e
o Tony se retirarem, escapuli-me por entre o labirinto, até a casa do
Troy, encontrando este a andar de um lado para o outro na sala de estar,
com ar taciturno. Ao ver-me, brindou-me imediatamente com um sorriso
radioso de boas-vindas, o que me animou um pouco mais.
- Voltaram - informei, ofegante, fechando a porta e encostando-me a esta.
- Devias ter visto todas as coisas que me trouxeram. Tenho roupa
suficiente para uma dúzia de universitárias.
193
O Troy não pareceu escutar as minhas palavras, mas sim apenas aquilo que
eu deixara por dizer.
- Porque estás assim tão perturbada? - perguntou, estendendo-me os
braços, entre os quais corri a refugiar-me.
- Troy, estou pronta para ouvir o que tens a contar, seja o que for.
- Que foi que o Tony te disse?
- Nada. Fez-me algumas perguntas sobre como eu passara o tempo durante a
sua ausência, mas não se referiu a ti. Achei esquisito ele não perguntar
como tu estavas, se nos encontráramos. Foi quase como se não existisses,
o que me assustou.
O Troy premiu, por breves instantes, a testa contra a minha, com uma
expressão completamente impenetrável, mas agora que eu estava
preparadíssima para o ouvir, ele parecia relutante em principiar. Beijou-
me mais com meiguice do que paixão, e afagou-me os cabelos. Passou o
indicador pela minha face e depois, apertando-me contra ele, virou-se
para a sua ampla janela panorâmica que deitava para o mar. Rodeou-me a
cintura com o braço, de maneira a que as minhascostas ficassem bem
encostadas ao seu peito.
- Não me faças perguntas até eu chegar ao fim. Escuta-me com atenção,
pois o que eu vou dizer é muito sério.
Quando começou a falar, senti que cada molécula do seu corpo se esforçava
por obrigar-me a compreender o que até ele mesmo devia achar
inexplicável.
- Não é por não te amar, Heavenly, que insisto em dizer o que tenho a
dizer. Amo-te muito. Não se trata de arranjar uma desculpa para não casar
contigo. É apenas uma débil tentativa para te ajudar a encontrares uma
maneira de te salvares.
Eu não entendia; no entanto, já naquela altura sabia que tinha de ser
paciente e permitir-lhe que fizesse o que considerava estar "certo".
- Tu possuis o tipo de carácter e força que eu simultaneamente admiro e
invejo. És uma sobrevivente, e tudo aquilo que já me aconteceu mostra-me
que eu não o sou. Não te ponhas a tremer. O estilo de vida forma-nos e
molda-nos quando somos novos, e a mim não sobram dúvidas de que tanto tu
como o teu irmão tom demonstraram ser feitos de uma matéria muito mais
forte do que a minha.
Virou-me para si e fixou o olhar profundo, escuro e desesperado em mim.
Mordi a língua para não lhe fazer perguntas... Ainda era
194
Verão; o Outono ainda nem tingira as árvores de verde-intenso. O Inverno
continuava a parecer muito longe. "Eu estou aqui, se quiseres nunca mais
voltarás a passar uma noite solitária..." Mas não disse nada disto.
Deixa-me que te fale na minha meninice - continuou.
A minha mãe morreu pouco depois de eu fazer um ano. Ainda não completara
dois anos, o meu pai também morria, de modo que o único parente de que me
consigo lembrar na vida é o meu irmão Tony. Ele era o meu mundo, tudo
para mim. Adorava-o. Para mim, o Sol punha-se quando Tony saía pela
porta, e nascia quando voltava a entrar. Imaginava-o como um deus
dourado, capaz de me dar tudo o que eu desejasse, se o desejasse com
força suficiente. Ele tinha mais dezassete anos do que eu e ainda mesmo
antes de o meu pai morrer, assumira a responsabilidade de tudo fazer para
me ver feliz. Eu fui sempre uma criança doente. O Tony contou-me que a
minha mãe tivera um parto muito difícil comigo. Estive sempre à beira da
morte por causa de uma doença ou outra, fazendo o Tony passar muitos
momentos difíceis, ao ponto de vir de noite ao meu quarto para ver se eu
ainda respirava. Quando estava no hospital, o Tony visitava-me três ou
quatro vezes por dia, levando-me gulodices, brinquedos, jogos e livros.
Portanto, quando cheguei aos três anos, habituara-me a tê-lo quase
constantemente ao meu lado. Ele era meu. Não precisávamos de mais
ninguém. Até chegar aquele dia horrível em que ele conheceu a Jillian
VanVoreen. Nessa altura eu nada sabia sobre ela. O Tony manteve-a sempre
secreta em relação a mim. Quando, por fim, me comunicou que ia casar com
a Jillian, deu-me a entender que o fazia apenas para me poder dar uma mãe
nova e meiga. E também uma irmã. Fiquei simultaneamente entusiasmado e
zangado. Uma criança de três anos é capaz de se sentir muito possessiva
em relação à única pessoa de quem gosta na vida. Senti ciúmes. Mais tarde
contou-me, a rir, que eu fiz birras terríveis. É que eu não queria que o
Tony casasse com a Jillian, sobretudo depois de ela me conhecer. Eu
estava doente e de cama, de modo que o Tony achou que a Jillian ficaria
comovida com a imagem de um rapazinho tão frágil e lindo que iria
precisar verdadeiramente dela. Ele não viu o que eu vi. As crianças
parece terem um jeito especial para ver o que vai no íntimo dos
adultos... Eu percebi que ela estava aterrorizada pela ideia de tomar
conta de mim... Mas isso não a impediu de consumar o seu divórcio e
casar-se com o Tony, mudando-se para Farthy com a filha de doze anos.
Lembro-me
195
muito vagamente do casamento, não de pormenores, apenas de impressões.
"Eu sentia-me infeliz, e a tua mãe também. Tenho outras recordações da
Leigh a esforçar-se por ser uma irmã para mim e a passar muito do seu
tempo livre à minha cabeceira, tentando distrair-me. No entanto, o que
ficou gravado mais profundamente no meu cérebro foi o nítido
ressentimento da Jillian em relação a cada momento que o Tony me dedicava
a mim, não a ela.
O Troy falou durante uma hora, fazendo-me compreender toda a situação: a
solidão de um menino e de uma rapariguinha, que circunstâncias alheias à
sua vontade tinham atirado para junto um do outro, fazendo-os crescer
numa dependência mútua... até, um dia, algo de horrendo acontecer, algo
que ele jamais compreendera... A nova irmã, que ele aprendera a amar,
fugira.
- O Tony estava na Europa quando a Leigh fugiu daqui. Em resposta ao
apelo desesperado da Jillian, apanhou imediatamente o avião para cá. Sei
que contrataram detectives para descobrir o paradeiro da Leigh, mas esta
como que desaparecera da face da terra. Ambos contavam que ela fosse para
o Texas, onde viviam a avó e as tias, mas isso nunca chegou a acontecer.
A Jillian passava a vida a chorar e hoje sei que o Tony a culpou pelo
desaparecimento da tua mãe. Soube da morte da Leigh muito antes de tu cá
chegares com a notícia. Tive conhecimento no próprio dia em que
aconteceu, pois sonhei com isso e tu apenas vieste confirmar que o meu
sonho fora verdadeiro. São-no sempre.
"Depois de a Leigh partir, tive febre reumática e fiquei confinado à cama
durante quase dois anos. O Tony ordenou à Jillian que abdicasse das suas
funções sociais e dedicasse todo o seu tempo a cuidar de mim, apesar de
eu ter uma ama inglesa chamada Bertie que adorava. Preferia dez vezes
mais ficar sozinho com a Bertie do que com a Jillian. Esta assustava-me
com as suas longas unhas e os movimentos rápidos e descuidados. Eu sentia
a impaciência que ela tinha com um rapazito que não havia meio de se pôr
bom.
""Nunca estive doente um único dia da minha vida", costumava dizer-me.
Comecei a compenetrar-me de que era uma criança defeituosa e desajeitada,
que estragava a vida dos outros... E foi aí que os meus sonhos começaram.
Às vezes, eram maravilhosos, mas o mais frequente era transformarem-se em
pesadelos aterradores que me levavam a acreditar que jamais seria feliz,
saudável, que nunca teria nada
196
que os outros não tinham dificuldades em conseguir... Coisas vulgares que
todos esperam ter na vida assim como amigos, sair com raparigas, ficar
apaixonado e viver tempo suficiente para ver os próprios filhos crescer.
Comecei a sonhar com a minha própria morte... a minha própria morte em
jovem. E quando fiquei mais crescido e fui para a escola afastava-me
daqueles que tentavam travar amizade comigo pois receava que acabassem
por me fazer sofrer se alguma vez eu me tornasse demasiado vulnerável. Só
e diferente, fazia uma vida à parte... Sabia que esta não se prolongaria
por muito tempo. Não permitiria que ninguém se envolvesse na minha
infelicidade e saísse magoado, como acontecia comigo por saber que tinha
o destino contra mim.
Incapaz de me conter, exclamei:
- Troy, não me digas que um homem com a tua inteligência acredita que
tudo está nas mãos do destino?!
- Eu acredito naquilo que fui forçado a acreditar. Nada do que previ nos
meus pesadelos deixou alguma vez de se concretizar.
Ventos de Verão que sopravam do lado do oceano faziam entrar frio e
humidade pelas suas janelas abertas. Gaivotas e alcatrazes guinchavam
lamentosamente, enquanto as ondas embatiam na costa. Eu tinha a cabeça
apoiada no peito dele e ouvia, através do pijama fino, o som das batidas
do seu coração.
- Eram apenas sonhos de um menino doente - murmurei, já certa de que o
Troy alimentava aquelas certezas há demasiado tempo para eu naquela
altura as mudar.
Não deu mostras de me escutar.
- Ninguém jamais teve um irmão mais dedicado do que eu, mas no entanto
havia a Jillian, que utilizava a sua dor pela perda da filha para afastar
cada vez mais o Tony de mim. Ela teve de viajar para esquecer o seu
desgosto. Precisou de fazer compras em Paris, Londres, Roma e fugir às
recordações da Leigh. O Tony mandava-me postais e pequenos presentes de
todo o mundo, instilando em mim a decisão de um dia, assim que fosse
adulto, também ver o Sara, subir as pirâmides e daí por diante. A escola
não representava nenhum desafio real para mim. Atingia notas altas com
toda a facilidade. Portanto, os amigos que pudesse ter afastavam-se de
quem os professores consideravam uma criança-prodígio. Passei pela
faculdade sem chegar a ser aceite por quem quer que fosse. Era anos mais
novo e um embaraço para os rapazes mais velhos. As raparigas troçavam de
mim por não passar
197
de um miúdo. Ficava sempre de fora, a olhar, até que, aos dezoito anos,
formei-me com distinção em Harvard e fui ter com o Tony logo a seguir e
disse-lhe que ia conhecer o mundo tal como ele já fizera.
"Ele não queria que eu partisse. Implorou-me que esperasse até poder
acompanhar-me... Mas tinha negócios a tratar e o tempo urgia,
aconselhando-me a que me apressasse antes que fosse demasiado tarde.
Portanto, é natural que tenha montado os mesmos camelos, passeado sobre
as mesmas areias do Sara que o Tony e a Jillian e subido os mesmos
degraus agrestes das pirâmides; e descobri, para grande pesar meu, que as
viagens exóticas que eu fizera na minha imaginação, deitado na minha
cama, superavam, de longe, os melhores passeios.
Naquela altura, já a sua voz me prendera numa laçada apertada de medo.
Quando parou de falar, voltei a mim mesma com um safanão de sobressalto.
Sentia-me perturbada por tudo o que deixara por dizer. Ele tinha tudo à
sua disposição, uma fortuna enorme para partilhar, inteligência, boa
aparência... No entanto, permitia que sonhos infantis lhe roubassem a
esperança de um futuro longo e feliz! Era aquela casa, disse de mim para
mim, aquela casa enorme com os seus numerosos corredores ressoantes e os
quartos fantasmagóricos que ninguém usava. Não passava de um menino
solitário com muito pouco com que se ocupar. No entanto, como era isso
possível, quando os parentes Casteel, que tão pouco possuíam, sempre se
tinham apegado tenazmente à crença de que o futuro tudo tinha?
Ergui a cabeça e tentei dizer com beijos tudo o que não sabia como
expressar em palavras.
- Oh, Troy, ainda temos tanta coisa para viver... Se tivesses tido uma
companhia quando viajavas, terias achado todos os lugares tão fantásticos
como imaginavas. Tenho a certeza disso. Recuso-me a acreditar que todos
os sonhos de conhecer o mundo que o tom e eu alimentámos, enquanto
crescíamos, serão uma desilusão quando realizados.
Os olhos do Troy transformaram-se em poças escuras de floresta,
abrangendo o infinito dos tempos.
- Tu e o tom não estão condenados como eu. Têm o mundo à vossa
disposição. O meu será sempre ensombrado pelos sonhos que tive e se
tornaram realidade, e pelo meu conhecimento dos outros que estão para
acontecer. É que eu já sonhei com a minha morte muitas vezes. Já vi a
lápide que me porão, apesar de nunca ter conseguido ler mais do que o
198
meu nome gravado nela. Sabes, Heavenly, na verdade eu nunca fui destinado
a este mundo. Andei sempre doente e melancólico. A tua mãe era como eu...
Por isso nos tornámos tão importantes um para o outro. E quando ela
desapareceu, quando eu sonhei com a sua morte e soube que o meu sonho se
concretizara, não percebi porque continuei a viver. É que eu, tal como a
Leigh, anseio por coisas que não podem ser encontradas neste mundo. Tal
como ela, morrerei jovem. É verdade, Heaven, eu não tenho futuro. Como
posso aceitar que alguém tão jovem, brilhante e adorável como tu,
percorra este caminho sombrio que é o meu? Como posso casar contigo para
te fazer viúva? Como poderei dar-te um filho que em breve ficará órfão,
assim como aconteceu comigo? Queres mesmo amar um homem que está
condenado, Heaven?
Condenado? Estremeci e apertei-me contra ele, inesperadamente arrasada
pelo conhecimento devastador do tema sobre o qual a sua poesia falava:
mortalidade! Insegurança! O desejo de uma morte prematura porque a vida
era uma desilusão!
Mas agora eu estava ali!
O Troy nunca mais voltaria a sentir-se carente, só ou desiludido; comecei
a desabotoar-lhe o casaco com paixão desesperada, enquanto os meus lábios
se premiam contra os dele, até ficarmos os dois nus e transpirados,
completamente dominados pela sensualidade. Mesmo que lá fora caísse neve
em vez dos chuviscos ligeiros, sem dúvida a nossa ânsia ardente de nos
possuirmos um ao outro vezes sem conta o conduziriam ao futuro, até
ficarmos ambos tão velhos que a morte seria bem-vinda.
Nessa noite, apesar do regresso do Tony e da Jillian, fiquei junto do
Troy. Não permitiria que ele se deixasse mergulhar nas suas fantasias
mórbidas. Não me importaria com o Tony, ficaria com o Troy e convencê-lo-
ia a casar comigo, e ao irmão não caberia outro remédio senão aceitar. Na
manhã seguinte, acordei tarde, certa de que o Troy decidira, finalmente,
confiar em mim e casar comigo. Ouvia-o a remexer na cozinha. O aroma do
pão acabado de fazer fez-me tremer as narinas... Nunca me sentira tão
viva como naquele momento, tão bonita, feminina e perfeita. Fiquei
deitada com os braços cruzados sobre o peito, escutando o som dos
armários da cozinha a serem abertos e fechados como se fosse a Serenata
de Schubert. O bater da porta do frigorífico assemelhava-se ao bater de
pratos mesmo no tempo exacto. Aquele
199
arremedo de música punha-me os cabelos e pêlos em pé. Toda a vida
procurara o que sentia naquele momento e, de repente, dei comigo a chorar
de alívio por saber que a busca terminara.
O Troy ia casar comigo! Dava-me a possibilidade de colorir o resto da sua
vida com um arco-íris, em vez de cinzento. Fui até à cozinha, lânguida e
de olhos ensonados, cheia de uma felicidade que quase roçava o delírio. O
Troy, que estava diante do fogão, virou-se para mim e sorriu.
- Teremos de informar o Tony de que tencionamos casar, e depressa.
Senti um baque de pânico no coração; porém, naquele momento, a falta do
apoio do Tony já não me fazia diferença. Assim que o Troy e eu fôssemos
marido e mulher, tudo correria bem... para ambos.
Nessa mesma tarde atravessámos, de mãos dadas, o labirinto até à Mansão
Farthinggale e entrámos na biblioteca onde o Tony estava sentado à sua
secretária. Os últimos raios de sol da tarde entravam pelas janelas,
traçando faixas brilhantes no tapete colorido. O Troy telefonara-lhe a
avisar que íamos a caminho, e eu tive a impressão de lhe ver no rosto uma
prudência dissimulada e não um sorriso de verdadeiro prazer.
- Bem - observou o Tony ao ver-nos de mãos dadas -, ao que vejo não
obedeceram ambos às minhas recomendações e agora vêm ter comigo com ar de
pessoas que estão muito apaixonadas.
O Tony abrandou o meu entusiasmo, se não o do Troy, e eu soltei
nervosamente a minha mão da do Troy.
- Simplesmente aconteceu - sussurrei em voz débil.
- Vamos casar no meu aniversário - declarou o Troy desafiadoramente. - No
dia nove de Setembro.
- Calma aí! - ordenou o Tony com voz forte, levantando-se e apoiando a
palma das mãos sobre o tampo da secretária. Tu sempre me garantiste,
Troy, depois de seres adulto, que jamais casarias! E que não querias
filhos!
O Troy pegou-me na mão e puxou-me para junto dele.
- Não contava encontrar alguém como a Heaven. Ela tem-me dado esperança e
inspiração para continuar, apesar das minhas convicções.
Apertei-me contra o Troy, enquanto o Tony sorria de maneira muito
estranha.
- Imagino que nem valha a pena objectar e dizer que a Heaven é demasiado
jovem e os seus antecedentes demasiado diferentes dos teus para se tornar
uma esposa adequada.
200
Exactamente - disse o Troy firmemente. - Antes de as folhas de Outono
caírem, eu e a Heaven estaremos a caminho da Grécia.
Voltei a sentir um baque no coração. O Troy e eu faláramos apenas
vagamente numa lua-de-mel. Eu pensara nalguma estância onde pudéssemos
passar uns dias, seguindo depois para Radcliffe, onde iniciaria os meus
estudos universitários. Pouco depois, para meu espanto, encontravamo-nos
os três sentados num comprido sofá de cabedal a traçar planos para o
casamento. Jamais me passara pela cabeça que o Tony fosse consentir
naquele enlace, especialmente ao vê-lo sorrir-me repetidas vezes.
- A propósito, minha querida - disse o Tony com delicadeza -, Winterhaven
enviou-te algumas cartas sem remetente que lá chegaram para ti.
A única pessoa que me escrevia era o tom.
- Agora mandemos chamar a Jillian para lhe darmos a boa-nova.
Aquilo que se notava por trás do seu sorriso seria sarcasmo? Eu não
saberia dizer, pois o Tony não era pessoa que eu conseguisse ler.
- Obrigada por aceitares esta decisão tão bem, Tony. Sobretudo depois de
me falares do comportamento que eu tive quando me anunciaste o teu
casamento com a Jillian.
Nesse momento, a Jillian entrou na sala e sentou-se graciosamente numa
poltrona.
- Que novas são estas que ouvi?... Alguém vai casar?
- O Troy e a Heaven - explicou o Tony, virando um olhar firme para a
mulher, como que a ordenar-lhe que não dissesse algo que nos pudesse
alarmar. - Não são notícias maravilhosas para se receber ao fim de um dia
de Verão perfeito?
A Jillian não respondeu, não disse uma única palavra. Virou os olhos
azul-claros para mim e eu vi que estavam inexpressivos, alarmantemente
inexpressivos.
Os planos do casamento e as listas dos convidados foram feitos nessa
mesma noite, e a rapidez com que o Tony e a Jillian aceitaram uma
situação à qual eu acreditava irem ambos levantar grandes objecções,
deixou-me sem fala. Quando o Troy e eu demos um beijo de boas-noites em
frente do vestíbulo da frente, sentíamo-nos os dois emocionados com a
dinâmica dos planos do Tony.
- O Tony não é maravilhoso? - perguntou o Troy. Eu estava francamente
convencido de que ele levantaria todo
201
o tipo de objecções e, afinal, não houve nenhuma. Toda a vida quis sempre
dar-me aquilo que eu desejei.
Despi-me, alheada, e só depois é que me lembrei das duas cartas que o
Tony colocara em cima da minha pequena secretária. Ambas eram do tom, que
tivera notícias da Fanny.
"Está a viver numa casa modesta em Nashville e quer que eu te escreva a
pedir dinheiro. Podes crer que ela própria te telefonaria, mas perdeu a
agenda e tu sabes que nunca teve cabeça para memorizar números. Além
disso, mantém-se em contacto com o pai, sempre a implorar-lhe que lhe
mande dinheiro. Não quis voltar a dar-lhe a tua morada sem antes saber se
o permites. Ela poderá deitar tudo a perder para ti, Heavenly, tenho a
certeza. Quer apossar-se de parte do que tu tens e não hesitará em
consegui-lo pois parece que já gastou os dez mil dólares que os Wise lhe
deram."
Era o que eu mais receava: a Fanny não sabia gastar dinheiro.
A carta que me escreveu a seguir trouxe-me notícias ainda mais
perturbadoras:
"Não me parece que vá para a faculdade, Heavenly. Sem ti ao meu lado para
me incentivar, falta-me a vontade ou o desejo de continuar a estudar. O
pai está a sair-se muito bem em termos financeiros e nunca chegou a
terminar o liceu. Portanto, andei a pensar em entrar para o negócio dele
e casar assim que encontrar a rapariga certa. Aquela conversa de vir a
tornar-me presidente deste país era só uma brincadeira para te agradar.
Nunca ninguém votaria por um tipo como eu, com sotaque de pacóvio."
E nem uma palavra, nem mesmo um palpite, sobre o género de negócios em
que o pai andava metido!
Li a carta do tom três vezes. Comigo estava a acontecer tudo o que havia
de mais maravilhoso, enquanto o tom continuava preso numa cidade
insignificante qualquer no Sul da Jórgia, a desistir do sonho de se
tornar alguém importante... Não estava certo nem era justo. Eu tinha
dificuldade em acreditar que o nosso pai pudesse obter sucesso em algo
verdadeiramente importante. Ora, pois se eu o ouvira dizer que nunca lera
um livro até ao fim, além de que levava horas a fazer as contas mais
simples de somar. Que tipo de trabalho
202
rentável poderia fazer? O tom estava a sacrificar-se para o ajudar! Era
essa a conclusão a que eu chegava.
Voltei a correr pelas veredas tortuosas do labirinto que o luar
iluminava, acordando o Troy, sobressaltado ao chamá-lo pelo nome.
Despertou dos seus sonhos com ar juvenilmente confuso, antes de sorrir.
Que bom teres vindo - declarou com um ar ensonado.
- Desculpa acordar-te mas não podia esperar pela manhã. - Acendi o
candeeiro da mesa-de-cabeceira e entreguei-lhe as duas cartas do tom. -
Agradeço que as leias e depois me digas o que pensas.
Terminou as duas cartas em segundos.
- Não vejo nada de suficientemente alarmante para estares com essa
expressão desesperada. Basta que enviemos à tua irmã o dinheiro de que
ela precisa, e podemos ajudar o tom da mesma maneira.
- O tom não aceitará dinheiro de ti ou de mim. A Fanny ficará toda
contente, claro. Mas é com o tom que estou mais preocupada. Não o quero
enfiado lá em baixo a fazer aquilo em que porventura o nosso pai anda
ocupado, a desistir da sua vida para ajudá-lo a sustentar a sua nova
família.
"Troy - continuei, atrevendo-me a desiludi-lo com o meu novo plano -,
tenho de ir visitar a minha família antes do nosso casamento. - Agarrei-
lhe nas mãos e beijei-as repetidas vezes. - Compreendes, querido? Estou
tão feliz, corre-me tudo tão bem que tenho que fazer algo para os ajudar
antes de iniciar a vida maravilhosa que vou ter contigo. Sei que bastará
a minha visita para os ajudar, para lhes mostrar que continuo a
preocupar-me com eles, para fazer-lhes entender que podem sempre contar
comigo. E podem, não é, Troy? Não te importarás de que a minha família me
venha visitar depois de casarmos, pois não? Recebê-lo-ás bem na nossa
casa, não é?
Esperei que respondesse, fitando-o com olhos implorantes.
O Troy retirou as mãos do meio das minhas e puxou-me para cima dele, que
continuava deitado.
- Há dias que ando para te contar umas novidades minhas, Heaven. Espero
que me perdoes a demora mas não suportava a perspectiva de o nosso idílio
chegar ao fim, pois tinha a certeza de que, mal soubesses, irias a
correr. Beijou-me várias vezes antes de continuar. - Tive notícias
203
dos advogados. Querida, as novas que tenho para te dar são óptimas. Agora
poderás visitar toda a tua família, pois descobri o paradeiro do Lester
Rawlings! Vive em Chevy Chase, em Maryland, e tem dois filhos adoptados
chamados Keith e Jane!
Tive de me controlar para continuar a respirar, para não me deixar
sufocar por tudo o que estava a acontecer com tanta rapidez!
- Tem calma, tem calma - tranquilizou o Troy quando comecei a chorar. -
Há muito tempo, antes do casamento, para organizares tudo. Terei muito
gosto em ir contigo visitar os Rawling e ver os teus irmãos mais novos.
Depois, poderemos decidir sobre as medidas a tomar, se as houver.
- Eles são meus! - exclamei irracionalmente. - Tenho de voltar a tê-los
debaixo do meu tecto!
O Troy voltou a beijar-me.
- Mais tarde decides o que fazer. E depois de vermos o Keith e a Jane,
iremos visitar o teu irmão e o teu pai, e terminaremos a viagem passando
pelo lugar onde a Fanny vive. Entretanto mandemos-lhe alguns milhares de
dólares para ela se desenvencilhar até chegarmos.
Infelizmente, as coisas não iriam passar-se assim.
Enquanto eu dormia a são e salvo na minha cama na Mansão Farthinggale,
achando que a partir daquele momento, o Troy e eu devíamos reprimir a
nossa paixão até nos casarmos, o Troy adormeceu profundamente com todas
as janelas do seu quarto abertas. De repente, começou a soprar um vento
de nordeste, que depressa se transformou em chuva, granizo e rajadas
ciclónicas. O pico da tempestade só me acordou às seis da manhã. Ao olhar
pelas janelas do meu quarto, avistei a devastação que os relvados
impecáveis tinham sofrido, naquele momento juncados de árvores
desenraizadas, ramos partidos e outros detritos. E quando corri para a
casa de pedra do Troy, encontrei-o febril e congestionado, mal
conseguindo respirar.
Fiquei em verdadeiro pânico e telefonei ao Tony, que mandou imediatamente
uma ambulância buscar o Troy para o levar para o hospital. Na altura
precisa em que este se sentia mais feliz, era atacado por uma perigosa
pneumonia. Tê-la-ia feito recair sobre si propositadamente, incapaz de
aceitar o amor e a felicidade que merecia? Eu não permitiria que
semelhante situação voltasse a repetir-se. Quando casássemos, protegê-lo-
ia sempre dos seus receios piores, os quais parecia, naquele momento,
terem o condão de se transformar em realidade.
204
Faz-me a vontade - sussurrou o Troy no seu leito de hospital, dias mais
tarde. - O pior da pneumonia já passou e eu sei que estás ansiosa por
voltar a ver o Keith e a "Nossa" Jane. Não precisas de ficar por aqui
enquanto recupero as forças. Quando voltares, estarei completamente bem.
Eu não queria deixá-lo, apesar de o saber alvo dos melhores cuidados,
pois tinha uma enfermeira particular permanentemente junto de si, de modo
que protestei repetidas vezes. O Troy, porém, incentivou-me a partir,
asseverando-me de que ficaria bem, além de que algo me dizia que fosse
depressa, antes que se tornasse demasiado tarde.
- Vais deixá-lo! - exclamou o Tony quando lhe disse que planeava uma
pequena viagem. Não queria contar-lhe a verdade sobre a minha ida,
receando que tentasse deter-me. - Numa altura em que ele precisa tanto de
ti é que vais a Nova Iorque comprar o enxoval de noiva? Que palermice é
essa? Heaven, pensei que amavas o meu irmão! Prometeste ser a sua
salvação!
- Eu amo-o de verdade, mas o Troy faz questão em que eu não suspenda os
nossos preparativos de casamento, E já está fora de perigo, não está?
- Fora de perigo? - repetiu o Tony sombriamente. Não, ele nunca ficará
fora de perigo até ao dia em que o seu primeiro filho nascer; nessa
altura, talvez consiga deixar de acreditar que não viverá tempo
suficiente para deixar descendentes.
- O Tony gosta do seu irmão - sussurrei, estupefacta com a dor que lhe
lia nos olhos azuis. - Gosta dele de verdade.
- Sim, adoro-o. Tem sido um fardo sob a minha responsabilidade desde os
meus dezassete anos. Fiz tudo o que pude para dar ao meu irmão a melhor
vida possível. Casei com a Jillian, que era vinte anos mais velha, apesar
de me ter mentido sobre a sua idade, dizendo que tinha trinta e não
quarenta. Acreditei, com ingenuidade juvenil, que ela era o que na altura
fingia ser: a mulher mais meiga, bondosa e adorável do mundo. Só mais
tarde é que vim a descobrir que antipatizou com o Troy à primeira vista.
Mas nessa altura já era demasiado tarde para mudar de ideias, pois
apaixonara-me, apaixonara-me estúpida, louca e insanamente.
Aninhou a cabeça entre as mãos.
- Vai, Heaven, faz o que entenderes, já que isso acabará sempre por
acontecer. Mas lembra-te de uma coisa. Se queres mesmo casar com o Troy,
não tragas contigo nenhum dos
205
membros da tua família dos montes. - Levantou a cabeça e fixou em mim um
olhar de quem está a par de toda a verdade. - Sim, tolinha, sei tudo, mas
olha que não foi o Troy quem me contou. Não sou nem ingénuo nem estúpido.
Sorriu-me de maneira diabolicamente trocista. - E mais, querida menina,
sempre soube que te escapulias por entre o labirinto para ires ter com o
meu irmão.
- Mas... mas... - gaguejei, confusa, atrapalhada e cheia de embaraço. -
Porque não pôs um ponto final na situação?
Os lábios do Tony abriram-se num sorriso cínico.
- O fruto proibido é o mais apetecido. Eu estava esperançado de que o
Troy encontrasse, finalmente, em ti, uma jovem completamente diferente de
qualquer outra que já tivesse conhecido... Doce, fresca e
excepcionalmente bela... Uma boa razão para viver!
- Planeou que nos apaixonássemos? - perguntei, atónita.
- Tive esperanças nesse sentido, nada mais - respondeu o Tony com
simplicidade, parecendo, pela primeira vez, completamente honesto e
sincero. - O Troy é o filho que nunca poderei ter. É o meu herdeiro,
aquele que herdará a fortuna dos Tatterton e prosseguirá a tradição da
família. Espero ter, através dele e dos seus filhos, a família que a
Jillian nunca pôde dar-me.
- Mas o Tony não é demasiado velho! Ele estremeceu.
- Estás a sugerir que me divorcie da tua avó e case com uma mulher mais
nova? Se pudesse, fá-lo-ia, podes crer. Mas às vezes uma pessoa deixa-se
enredar de tal modo que fica sem saída. Sou o guardião de uma mulher
obcecada pelo seu desejo de permanecer jovem e gosto dela o suficiente
para não a largar num mundo onde eu sei que não sobreviveria duas semanas
sem o meu apoio. - Suspirou profundamente.
- Portanto, parte, rapariga. Certifica-te apenas de que voltas, pois se
não o fizeres, o que acontecer ao Troy fará recair sobre ti um sentimento
de culpa tão terrível para o resto da vida que talvez nunca mais consigas
voltar a ser feliz.
14 VENCEDORES E VENCIDOS
15
APOIO FAMILIAR
Não suportaria passar nem mais uma hora naquela cidade; portanto, fui
buscar as minhas coisas ao hotel, e a limusina levou-me até ao aeroporto
onde apanhei o avião que estava de saída para Atlanta. Agarrava-me
desesperadamente ao passado, do qual sempre desejara fugir... Não queria
começar a minha nova vida com o Troy descobrindo que perdera a minha
família! Iria ter com o tom e encontraria junto dele as boas-vindas por
que ansiava e o irmão gentil que me prometera sempre nunca deixar de ser
o meu mano do coração.
O telefone tocou três, quatro, cinco vezes antes de uma voz conhecida
atender; por um momento agonizante achei que o meu pai poderia ver-me
através da linha telefónica. Fiquei petrificada na cabina.
- Gostaria de falar com o tom Casteel - consegui, por fim, sussurrar com
voz enrouquecida e tão diferente que fiquei confiante de que o homem que
eu odiava não reconheceria a sua primogénita, da mesma maneira que nunca
fizera por acolher a minha presença na sua vida com qualquer afecto.
Quase podia ver o seu rosto de índio a hesitar e, por um instante
dilacerante, pensei que perguntasse: "És tu, Heaven?"
Mas não o fez.
- Pode dizer-me quem fala?
Ora, ora! Alguém andava a ensinar gramática e boas maneiras ao meu pai!
Engoli em seco e quase sufoquei.
- Uma amiga.
- Só um momento, por favor - disse, como se o fizesse centenas de vezes
por dia para o tom.
Ouvi-o pousar o auscultador, ouvi os seus passos numa superfície dura, e
depois a sua voz trovejar com o sotaque característico dos pacóvios:
- tom, tens mais uma dessas amigas anónimas ao telefone.
219
Preferia que lhes dissesses para deixarem de ligar para aqui. Não fiques
pendurado na conversa mais do que cinco minutos. Temos trabalho a fazer.
As batidas dos pés do tom a correr chegaram nitidamente aos meus ouvidos,
apesar dos muitos quilómetros que nos separavam.
- Viva! - cumprimentou ofegante.
Fiquei surpreendida com a mudança que notei na voz dele. Parecia-se
imenso com a do nosso pai. Tive dificuldade em falar, e o tom, ao ver que
eu hesitava, impacientou-se.
- Sejas tu quem fores, acho melhor que fales, pois só posso dispor de um
minuto.
- Fala a Heaven... Por favor não digas o meu nome em voz alta, para que o
pai não perceba que sou eu.
O tom susteve a respiração, surpreendido.
- Eh, estupendo! Fantástico! Caramba, estou tão contente por te ouvir! O
pai saiu para o pátio, para junto da Stacie e do bebé, por isso não
preciso de falar baixo.
Não sabia que dizer.
O tom preencheu o espaço de constrangimento.
- Heavenly, é um puto muito giro. Tem o cabelo preto, os olhos castanho-
escuros, sabes, o tipo de filho que a mãe queria dar ao pai...
Calou-se abruptamente e eu percebi logo que ele ia acrescentar: "É a
imagem cuspida e escarrada do pai." Em vez disso, perguntou:
- Não dizes nada?
- Que bom o pai conseguir sempre o que quer - comentei com amargura. - Há
pessoas que têm essa sorte.
- Vá, Heavenly, pára com isso! Não sejas injusta! O miúdo não é culpado
de nenhum crime. É uma gracinha, até mesmo tu terias de chegar a essa
conclusão.
- Que nome pôs o pai ao seu terceiro filho? - perguntei por pura vingança
malévola.
- Eh! Detesto esse teu tom de voz frio. Porque não esqueces o que ficou
para trás, tal como eu fiz? O pai e a Stacie deixaram o nome do bebé ao
meu cuidado. Lembras-te dos nossos aventureiros preferidos, já lá vão
tantos anos? Walter Raleigh e Francês Drake? Pois bem, temos um Walter
Drake. Chamamos-lhe Drake.
- Lembro-me - retorqui com voz gélida.
- Acho um nome magnífico: Drake Casteel!
Mais mercadoria para o pai vender, foi o pensamento malévolo que me
passou pela mente antes de mudar rapidamente de assunto.
220
Tom, estou em Atlanta. Tenciono alugar um carro e ir até onde moras, mas
não quero encontrar-me com o pai.
- Que bom, Heavenly, que bom! - exclamou, entusiasmado
- Não quero ver o pai quando chegar. És capaz de fazer com que ele não
esteja em casa?
O tom prometeu fazer-me a vontade, mantendo o pai afastado de casa para
que não nos encontrássemos, mas notei que estava magoado. Depois, deu-me
instruções pormenorizadas sobre como chegar à pequena cidade onde vivia,
a cerca de trinta e dois quilómetros do lugar onde um avião me deixaria,
ao sul da Jórgia.
- tom - trovejou o nosso pai à distância. - Eu disse cinco minutos, não
dez!
- Agora tenho de ir - disse o tom cheio de pressa. 'Tou muito feliz por
vires cá, mas já te vou dizer que fizeste uma grande asneira em empurrar
o Logan pr'a fora da tua vida e pôr esse tal Troy no seu lugar! Ele na' é
dos nossos. Esse Troy de que me falaste nas cartas nunca te compreenderá
como o Logan, ou amará metade sequer.
Retomara o seu dialecto provinciano, como sempre acontecia quando se
exaltava. Corrigi-o sem demora. Não fora eu a empurrar o Logan para fora
da minha vida, mas sim este a mudar de ideias.
- Até breve, Heavenly... Vemo-nos amanhã de manhã... por volta das onze
horas.
E desligou sem mais delongas.
Passei essa noite em Atlanta e no dia seguinte, de manhã bem cedo,
aluguei um carro e segui para sul, recordando tudo o que, nas cartas do
tom, me devia ter alertado: "Sempre pensei que nunca nada se interporia
entre ti e o Logan. É de viveres nessa casa rica, tenho a certeza.
Ficaste diferente, Heavenly! Pois se já nem escreves nem falas como
antigamente!"
"Tu não és a Fanny", escrevera certa vez. "As raparigas como tu
apaixonam-se só uma vez e nunca mudam de ideias."
Que pensaria ele que eu era? Um anjo? Uma santa sem fraquezas? Eu não era
nem uma coisa nem outra; tinha a cor de cabelo errada. Era um anjo negro,
uma Casteel irremediavelmente reles! A filha do meu pai! Ele é que me
fizera assim! Fosse eu como fosse.
Falara com o Troy no dia anterior, à noite, e este pedira-me que tratasse
rapidamente dos assuntos da minha família e voltasse para ele.
221
"E se conseguires convencer o tom a vir ao nosso casamento, apesar do que
o Tony disse, não acharás que só temos convidados do meu lado. E talvez a
Fanny também venha."
Oh, Troy não fazia ideia do que pedia quando sugerira que eu convidasse a
minha irmã Fanny! No início daquela manhã, ao dirigir-me para a pequena
cidade que marcara com um círculo vermelho num mapa local, passava-me
pela cabeça todo o género de pensamentos estranhos. Olhei para a terra
avermelhada que ladeava o asfalto da estrada e permiti-me regressar aos
tempos em que vivera com a Kitty e o Cal Dennison. Pela primeira vez
desde que saíra da Virgínia Ocidental, detive-me a pensar no Cal e no que
poderia ter-lhe acontecido. Continuaria a viver em Candlewick? Vendera a
casa que pertencera à Kitty? Teria voltado a casar? Fizera, sem dúvida, a
coisa certa ao meter-me num avião para Boston, deixando-me pensar que a
Kitty viveria apesar do seu tumor incurável.
Sacudi a cabeça, recusando-me a pensar no Cal quando tinha de me
concentrar no meu encontro com o tom. Precisava de encontrar um meio de o
convencer a abandonar o nosso pai e a prosseguir os seus estudos. O Troy
pagaria as propinas, a roupa e o mais que fosse necessário. Porém, não
pude esquecer o orgulho teimoso do tom, do mesmo tipo que o meu.
De repente, perdi-me nas estradas secundárias do interior. Parei numa
estação de gasolina a cair de velha e pedi indicações a um homenzinho
franzino de rosto avermelhado que lá encontrei. Este olhou-me como se me
achasse maluca por andar toda aperaltada num dia quente como aquele. Eu
levava um fato de saia e casaco fresco de Verão mas não havia dúvida de
que estava cheia de calor, embora não me passasse pela cabeça aparecer
com um vestidito vulgar. Tinha demasiados anéis nos dedos, e o pescoço
pesava-me do excesso de colares. Queria impressionar todos, mesmo que me
tomassem por excêntrica. O meu automóvel fora o mais caro que conseguira
alugar.
Tive de fazer marcha atrás e dar meia volta para encontrar a estrada
certa que me levaria até ao tom e à casa onde este vivia com a sua nova
família. Um pouco da Florida esgueirara-se para o interior da Jórgia,
conferindo à paisagem um ar vagamente tropical. Ao aproximar-me do meu
destino, parei na berma da estrada para retocar a minha maquilhagem, e,
dez minutos mais tarde, estacionava o meu comprido
222
Lincoln azul-escuro em frente de uma moderna casa de rancho de piso
único.
O facto de ter percorrido todos aqueles quilómetros, colocando-me de novo
ao alcance da crueldade do meu pai, provocava-me uma estranha sensação de
entorpecimento no peito, que me alheava da realidade. Que espécie de
louca era eu? Sacudi a cabeça, olhei-me novamente no espelho retrovisor
para verificar a minha aparência e depois voltei a mirar a moderna casa.
Era feita de telhas de madeira de cedro vermelho. O telhado baixo
projectava-se por cima das numerosa janelas largas para lhes conferir
sombra, sombra de que também o telhado desfrutava devido às muitas
árvores próximas; a casa estava rodeada de sebes impecavelmente aparadas,
entremeadas de canteiros circulares floridos, onde não se via uma única
erva daninha. Oh, não havia dúvida de que o meu pai, com aquela casa, que
devia ter quatro ou cinco quartos de dormir, estava a mostrar ao mundo
que se saía bem. O meu irmão tom, porém, não me dera o menor palpite
sobre o que o nosso pai fazia para arranjar dinheiro que chegasse para
pagar aquela casa.
Onde estaria o tom? Porque não aparecia à porta para me saudar? Por fim,
cada vez mais impaciente, saí do carro e percorri o longo carreiro que ia
dar à porta da frente. Receava que fosse o meu pai a atender quando
tocasse à campainha, apesar de o tom ter prometido manter-nos afastados
um do outro. Contudo, eu tinha razão. O meu fato, que me custara mais de
mil dólares, tinha a eficácia de uma armadura. Os meus anéis, colares e
brincos eram o meu escudo e a minha espada. Assim vestida, sentia-me
capaz de chacinar dragões. Pelo menos, era o que eu achava.
Carreguei impacientemente na campainha da porta. Ouvi um carrilhão tocar
algumas notas musicais no interior. O coração batia-me nervosamente.
Sentia picadas no estômago. Nesse momento, ouvi passos a aproximarem-se.
O nome do tom quase me saiu de entre os lábios quando a porta se abriu.
No entanto, não era o tom, como eu esperara e rezara para que
acontecesse; tão-pouco me apareceu a figura detestável do meu pai. Em vez
disso, deparou-se-me uma mulher jovem e bonita, de cabelos louros e olhos
azuis luminosos, que me sorriu como se jamais tivesse sentido receio de
desconhecidos ou antipatizado com alguém.
Fui apanhada de surpresa pelo ar de fresca inocência com que me apareceu
do lado de dentro da porta com rede, tendo
223
por fundo divisões frescas, mergulhadas na penumbra e a cheirar a limpo,
sorrindo-me e aguardando que eu me identificasse. Vestia calções brancos
e um top tricotado à mão, carregando, sem esforço num dos braços, um bebé
com ar sonolento. Oh, devia ser o Drake, o tal filho parecido com o meu
pai... o seu terceiro filho.
- Sim...? - perguntou ao ver que eu não proferia palavra.
Ali fiquei, embaraçada, a olhar para uma mulher e para o seu filho, cujas
vidas eu não teria dificuldade em destruir se o desejasse.
E agora que me via ali, o choque sentido fez-me compreender que não fora
ali só para salvar o tom; tinha um outro motivo: deitar por terra a
felicidade que o meu pai encontrara. Tudo o que eu poderia ter gritado
para levá-la a odiar o meu pai ficou-me preso na garganta como um nó, ao
ponto de até ter dificuldade em murmurar o meu nome.
- Heaven? - perguntou a jovem, com um ar encantado.
- A senhora é que é a Heaven? - O sorriso de boas-vindas alargou-se. - É
a Heavenly de quem o tom está sempre a falar? Oh, que bom conhecê-la
finalmente! Entre, entre! Abriu a porta de rede e depois pousou o menino
em cima de um sofá, puxando inconscientemente o top para baixo. Desviou o
olhar até ao espelho de parede mais próximo, verificando a sua aparência,
o que me levou a pensar que talvez o tom não a tivesse avisado de que eu
chegaria por volta das onze horas. Ao traçar os meus planos, não contara
absolutamente nada com aquela mulher.
- Infelizmente surgiu uma emergência e o tom teve de sair com o pai -
explicou, ofegantemente, olhando agora em volta para ver se a casa estava
arrumada. Levou-me do vestíbulo da entrada até uma sala de estar ampla e
agradável.
- Esta manhã reparei que o tom queria dizer-me algo em particular, mas o
pai estava sempre a mandá-lo despachar-se. Por isso, não teve tempo.
Tenho a certeza de que o segredo dele era sobre a sua visita.
Sem deixar de falar, arrumou uma pilha de revistas e dobrou rapidamente o
jornal da manhã que estivera a ler.
- Heaven, faça o favor de se sentar e estar à vontade. Deseja tomar
alguma coisa? vou começar a preparar o almoço para o Drake e para mim e
claro que está convidada. Mas deseja uma bebida fresca para já? Está um
dia muito quente.
- Pode ser uma Coca-Cola - aceitei, sentindo a garganta tão arrepanhada
pela ansiedade como pela sede.
224
Custava-me a acreditar que o tom não tivesse esperado por mim Será que
também já não queria saber de mim? Dava a impressão que nenhum dos
membros da minha família tinha tanta vontade de me ver quanto eu a eles.
Pouco depois, a jovem voltou da cozinha com dois copos. O menino de ar
tímido, que devia ter à volta de um ano, mirava-me com enormes olhos
castanhos ornados de pestanas negras. Oh, sim, era o filho parecido com o
pai pelo qual a Sarah rezara na altura em que o quinto filho lhe nascera
deformado e morto.
Pobre Sarah. Não era a primeira vez que sentia curiosidade em saber por
onde andaria naquela altura e o que faria.
Despi o casaco demasiado quente, sentindo-me ridícula e desejando ter
usado mais bom senso e menos ostentação.
A Stacie Casteel brindou-me com um dos sorrisos mais doces que eu já
vira.
- Que linda que é, Heaven. Tal e qual como o tom a descreveu tantas e
tantas vezes. Está cheia de sorte por ter um irmão que a admira tanto. Eu
sempre quis ter irmãos e irmãs, mas os meus pais acharam que um filho
chegava. Vivem a cerca de dois quarteirões daqui. Por isso, estou sempre
a vê-los e eles tomam muito bem conta do meu bebé. Por acaso, o meu avô e
o seu até estão a pescar neste momento, num lago aqui próximo.
O avô. Esquecera-me completamente dele. A Stacie continuou a tagarelar,
ansiosa por ter alguém com quem falar da sua família.
- O Luke gostaria que fôssemos para a Flórida, para poder ficar mais
perto do lugar onde trabalha, mas eu não consigo conformar-me em ir para
tão longe dos meus pais. Sei que eles não farão nenhuma mudança no seu
estilo de vida pois já estão velhos e acomodaram-se. Adoram o Drake.
Sentara-se à minha frente, deixando o filhinho encantador tomar um gole
ou dois da sua bebida fresca. A criança estava de tal modo intimidada
pela minha presença silenciosa que mal conseguia engolir. A mãe
incentivou-o ao de leve com a mão.
- Drake, querido, é a Heaven, a tua meia-irmã. Não achas que o nome
assenta mesmo bem numa senhora tão jovem e linda?
Os enormes olhos escuros do filho mais novo do meu pai franziram-se ao
tentar decidir se eu era amiga ou não, antes de baixar a cabeça e virar-
se para tentar esconder-se. Ao sentir-se seguro, espreitou-me de entre as
pernas da mãe,
225
com o polegar enfiado na boca. Como doía lembrar que era assim que o
Keith costumava comportar-se, fazendo-o entre as minhas pernas, não nas
da Sarah. Esta andara sempre demasiado atarefada ou fatigada para
"aturar" crianças envergonhadas, que precisavam de uma atenção
especial... até a "Nossa" Jane aparecer.
Apesar da decisão que eu tomara de não me afeiçoar àquela criança, dei
comigo a ajoelhar-me de modo a ficar ao seu nível. Sorri-lhe.
- Olá, Drake. O teu tio tom falou-me de ti. Disse-me que gostas de
barcos, comboios e aviões. Um dia destes vou mandar-te uma caixa enorme
cheia deles. - Olhei de relance para a Stacie com um certo embaraço. - Os
Tatterton fabricam brinquedos há séculos. Aqueles que produzem não são
vendidos em lojas vulgares, mas quando eu voltar mandarei ao Drake todos
aqueles com os quais puder brincar.
- Será muito simpático da sua parte - agradeceu a Stacie com mais um dos
seus sorrisos arrasadoramente doces, que foram como que uma facada no meu
coração, pois há muito que eu podia ter mandado brinquedos ao Drake e
jamais tal ideia me passara pela cabeça.
À medida que os minutos foram passando e a Stacie ia tagarelando enquanto
preparava o almoço, depressa descobri que ela amava o homem que eu
odiava, que o amava profundamente .
- É o marido mais bondoso e fantástico que pode haver
- declarou com entusiasmo. - Está sempre a esforçar-se o mais que pode
para que nada falte à sua família. - Lançou-me um olhar implorante. - Eu
sei que a Heaven não o deve ver assim, mas o seu pai teve uma vida muito
difícil e, para se reencontrar, teve de se afastar daqueles montes e do
seu passado como Casteel. Não é preguiçoso nem indolente. Era apenas um
revoltado por achar que estava preso no que parecia um círculo vicioso de
pobreza.
Nada do que dizia dava a entender que estava a par do quanto o meu pai me
odiara e provavelmente ainda odiava. Não fez referência à minha mãe ou à
Sarah, o que me deu a entender que não passava de mais outra Leigh
Tatterton ingénua e crédula, levando-me a descobrir inesperadamente que o
meu pai tinha uma predilecção pelo mesmo tipo de mulher delicada. Do
mesmo modo que preferia ruivas para as ligações passageiras.
E se de vez em quando levara, ou não, morenas para a cama, era algo que
eu ainda estava para saber.
226
Terminado o almoço de salada de atum sobre uma camada de alface fresca,
acompanhada por cubos de queijo e pãezinhos quentes servidos com chá
gelado, voltámos para a sala de estar. A sobremesa foi pudim de chocolate
com que o Drake lambuzou o pequeno e bonito rosto.
"Nada de pãezinhos e molho", pensei com amargura.
O meu azedume acentuou-se ainda mais quando regressámos à sala de estar
alegre e ensolarada. Olhei através das janelas largas que deitavam para o
jardim das traseiras, cheio de plantas em plena floração, e esforcei-me
por imaginar o Luke Casteel a viver numa casa agradável e moderna como
aquela, sentado no belo sofá comprido que tinha na frente uma mesinha sem
o menor vestígio de pó e dedadas. Plantas verdes atenuavam a monotonia de
todos aqueles tons de castanho e creme acentuados com toques de turquesa.
Era uma sala muito masculina, onde apenas o cesto da costura denunciava a
presença de alguém mais na casa além de um homem e de uma criança.
- É a divisão preferida do seu pai - disse a Stacie, como se reparasse no
ar pensativo com que eu ficara. Notava-se orgulho na sua voz. - O Luke
disse-me que eu podia decorá-la como quisesse, mas eu achei melhor que
tivesse uma sala onde pudesse pousar os pés onde lhe apetecesse ou deitar
no sofá sem se preocupar em amarrotar os almofadões. O tom e o seu avô
também adoram esta sala. - Deu-me a impressão de ir a acrescentar algo
mais, pois corou e, durante um segundo ou dois, ficou com uma expressão
de confusão e culpa, antes de me tocar no braço e sorrir afectuosamente.
- É mesmo maravilhoso tê-la, finalmente, aqui, em casa, Heaven. O Luke
fala pouco da sua "família dos montes", porque diz que dói demasiado.
Oh, claro, eu podia imaginar o quanto doía!
- Ele contou-lhe sobre a minha mãe, que tinha catorze anos quando ele
casou com ela?
- Sim, contou-me que se conheceram em Atlanta e que ele a amou muito...
Mas - acrescentou com ansiedade -, não fala o suficiente dela para eu
poder imaginar como era a vossa vida naquela cabana dos montes. Sei que a
morte prematura dela marcou-o para toda a vida. Também sei que casou
comigo porque lhe faço lembrar ela e, quando à noite me ajoelho para
dizer as minhas orações, peço a Deus que um dia ele deixe de pensar nela.
Sei que me ama e que o tenho feito mais feliz do que no dia em que nos
conhecemos, mas enquanto a Heaven não lhe perdoar e ele não for capaz
227
de aceitar a morte da sua mãe, não será capaz de apreciar completamente a
vida e o modesto sucesso que alcançou.
- Ele contou-lhe o que fez? - perguntei quase a gritar.
- Acha certo ele ter vendido os cinco filhos por quinhentos dólares cada?
- Não, claro que não acho certo - respondeu a Stacie calmamente,
deixando-me descoroçoada no meu ataque. Contou-me tudo. Foi uma decisão
terrível que se viu obrigado a tomar. Vocês os cinco podiam ter morrido à
fome enquanto ele não recuperava a saúde. Só posso justificar a sua acção
dizendo que fez o que na altura achou que era o melhor, e nenhum de vocês
sofreu nenhum dano permanente, pois não?
A sua pergunta ficou a pairar no ar enquanto se sentava de cabeça baixa,
esperando, calada, que eu dissesse que perdoava ao meu pai. Estaria ela
convencida de que o pior que ele fizera fora a sua traição de Natal? Não,
esse fora apenas o clímax! Contudo, nada do que eu pudesse dizer
redimiria a sua crueldade. A esperança que, por instantes, lhe iluminara
o rosto, desvaneceu-se. Olhou para o filho e ficou ainda mais triste.
- Se não é capaz de lhe perdoar hoje, não faz mal. Só espero que consiga
fazê-lo um dia, num futuro próximo. Pense nisso, Heaven. A vida não nos
dá muitas oportunidades para perdoar. Elas aparecem, ficam a pairar, o
tempo passa e depois torna-se demasiado tarde.
Levantei-me rapidamente.
- O tom disse-me que estaria aqui à minha espera. Onde posso encontrá-lo?
- O tom pediu-me que a mantivesse aqui até ele chegar, cerca das quatro e
meia. O seu pai virá um bocado mais tarde.
- Não tenho tempo para esperar até essa hora. - Tinha medo de ficar. Medo
de que ela me convencesse a perdoar a um homem que eu odiava. - Ainda
tenho de ir apanhar o avião para Nashville, para ver a minha irmã Fanny.
Portanto agradeço que me diga onde posso encontrar o tom.
A Stacie deu-me a morada com relutância, continuando a implorar-me, com
os olhos, que fosse bondosa e compreensiva, mesmo apesar de não poder
perdoar. Porém, eu despedi-me cortesmente, dei um beijo ao Drake e
afastei-me apressadamente daquela jovem esposa ingénua.
Tinha pena daquela mulher tão inocente, que devia ter procurado ver o que
estava por baixo da superfície de um
228
homem bem-parecido, quase iletrado, que se servia das mulheres e acabava
por destruí-las. Tanto quanto eu sabia, deixara uma lista de mulheres
abandonadas atrás de si: a Leigh Tatterton, a Kitty Dennison, e Deus
sabia o que acontecera à Sarah depois de esta ter saído de casa,
deixando-me a mim e aos seus quatro filhos. Só já quando seguia, a toda a
velocidade, no meu carro alugado, em direcção à fronteira com a Florida,
é que me lembrei de que devia ter feito um desvio para ir cumprimentar o
meu avô.
Uma hora depois cheguei a uma cidadezinha rural onde, segundo a Stacie me
dissera, o tom trabalhava diariamente durante as suas férias de Verão.
Mirei desaprovadoramente os casinhotos, o supermercado modesto com o seu
parque de estacionamento onde se viam escassos automóveis de último
modelo estacionados. Que espécie de lugar seria aquele para o tom e as
suas grandes ambições? Então eu, qual anjo vingador, decidida a fazer o
que pudesse para estragar os planos que o Luke Casteel tinha para o seu
filho mais velho, dirigi o meu carro luxuoso para os arredores daquela
cidade insignificante e encontrei o muro alto de que a Stacie me falara.
Ela não me preparara para pormenores como a longa linha de bandeiras
coloridas que adejavam ao vento quente. Agitavam-se de tal maneira que
não consegui ler a mensagem que transmitiam. Ao dirigir-me para um
portão, que se encontrava aberto, os insectos zumbiam-me em torno da
cabeça. Ninguém tentou impedir a minha entrada numa enorme arena coberta
de erva onde numerosos caminhos de terra batida se entrecruzavam. Que
lugar seria aquele, pensei, sentindo o coração acelerar as suas batidas,
muito desiludida por o meu irmão se contentar com... com... Foi então que
me apercebi do futuro que o tom escolhera para si, só para agradar ao
pai!
Os olhos encheram-se-me de lágrimas. Era um circo! Um circo pequeno,
barato, grosseiro e insignificante, que devia ter grande dificuldade em
sobreviver. As lágrimas começaram a escorrer-me pelo rosto. tom, pobre
tom!
Enquanto ali estava, do lado de dentro do portão, sob o sol quente da
tarde, ouvindo o som de muita gente a trabalhar, alguns a martelar,
outros a cantar e a assobiar, uns quantos a gritar ordens e outros a
responder em voz irritada, também ouvi risadas e vi crianças a correr, na
brincadeira, e confesso que devia parecer muito esquisita na minha
fatiota bostoniana de princípio de Outono, completamente imprópria
229
para a Florida. Pessoas de ar esquisito e fatos bizarros deambulavam pelo
recinto. Mulheres em calções lavavam a cabeça sobre tinas de água. Outras
faziam de cabeleireiras. Havia roupa pendurada a secar ao sol quente.
Umas quantas palmeiras proporcionavam sombra, e eu, se fosse menos
preconceituosa, poderia ter achado a cena pitoresca e encantadora. Porém,
não estava com disposição para achar graça ao que quer que fosse. Chegou-
me às narinas um forte cheiro a animais. Uma variedade de homens,
escassamente vestidos, exibindo a pele intensamente bronzeada e os
músculos salientes, movimentava-se pela área erguendo bancas e bancadas
com letreiros que diziam: "Cachorros-Quentes", "Hamburgers" e outros
petiscos. Consertavam cartazes coloridos que faziam publicidade a um meio
homem e uma meia mulher, a dançarinas, ao casal mais pequeno do mundo e a
uma cobra que era metade crocodilo e metade jibóia. Não havia nenhum que
não me lançasse olhares.
O tom referira-me, nas suas cartas, a que o nosso pai trabalhava em algo
bonito, que toda a vida desejara fazer. Trabalhar num circo? Num circo
pequeno e de segunda categoria?
Avancei, quase entorpecida de desespero, olhando para as jaulas onde
leões, leopardos, tigres e outros felinos grandes e selvagens aguardavam,
aparentemente, transporte para outra área. Detive-me ao lado de um dos
vagões outrora utilizados para transportar animais por via férrea e olhei
para o cartaz com um tigre que estava colado num dos seus lados, onde a
tinta vermelha começara a sair.
Dei um salto no tempo e vi-me de novo na cabana. Talvez fosse o original
do cartaz do tigre que a avó me descrevera tantas vezes, aquele que o
jovem Luke roubara de uma parede em Atlanta quando fora àquela cidade,
tinha então doze anos, e o tio que lá vivia se esquecera de cumprir a sua
promessa de levar o seu sobrinho pacóvio ao circo.
De modo que o Luke Casteel, aos doze anos, percorrera cerca de vinte e
cinco quilómetros até ao terreno, nos arredores da cidade, onde estava o
circo, enfiando-se dentro da tenda sem pagar.
Agora quase cega pelas lágrimas, baixei a cabeça e servi-me de um dos
meus lenços de linho para limpar o rosto. Quando voltei a olhar para
cima, a primeira coisa que vi foi um homem jovem aproximar-se do sítio
onde me encontrava, trazendo algo que fazia lembrar uma forquilha numa
das mãos e, amparado pelo outro braço, um enorme tabuleiro
230
cheio de carne crua. Era a hora de alimentar os grandes gatos. Os leões e
os tigres, como se o soubessem, começaram a agitar as enormes cabeças
peludas, exibindo dentes longos e amarelados, farejando, roendo e
triturando ruidosamente os ossos, rasgando a carne em sangue que o jovem
lhes enfiava por entre as barras da jaula com a forquilha. Emitiam roncos
profundos com a garganta que, deduzi, serem de prazer. Oh, meu Deus! Meu
Deus! Quem enfiava cuidadosamente a carne nas grades, que as patas
selvagens arrebanhavam antes de os dentes se lançarem ao seu trabalho,
era o meu irmão tom.
- tom - gritei, correndo em frente. - Sou eu! Heavenly!
Por um momento, voltei a ser a criança que vivera, nos montes. A roupa
elegante deu lugar a um vestido andrajoso, gasto e disforme, que as
repetidas lavagens com sabão barato numa tábua de metal tinham desbotado.
Quando o tom se voltou lentamente para mim, esbugalhando os olhos cor de
esmeralda antes de estes se encherem de deleite, eu via-me descalça e
cheia de fome.
- Heavenly! És mesmo tu? Afinal das contas vieste ver-me, de tão longe!
Como acontecia sempre que se entusiasmava, o tom esquecia a boa dicção e
retomava o seu dialecto provinciano.
- Oh, que dia glorioso! Aconteceu mesmo! O que eu rezei!
Largou o tabuleiro enorme, agora já vazio de carne, e abriu os braços.
- Thomas Luke Casteel - exclamei -, sabes que não deves falar dessa
maneira. Será que Miss Deale e eu perdemos o nosso tempo a ensinar-te a
gramática?
E corri para o seu abraço de boas-vindas, lançando-lhe os braços ao
pescoço, apertando-me fortemente contra aquele irmão que era quatro meses
mais novo do que eu e a quem não via desde que me fora embora.
- Oh, Santo Deus - sussurrou o tom, emocionado, com voz enrouquecida -,
continuas a fazer cara feia e a corrigir-me como nos velhos tempos. -
Afastou-me ligeiramente dele e mirou-me dos pés à cabeça com grande
espanto. Nunca pensei que pudesses ficar mais bonita, mas o certo é que
estás mais do que isso! - Passeou o olhar pela minha roupa cara, detendo-
o no relógio de ouro, nas unhas pintadas, nos sapatos de duzentos
dólares, na bolsa de mil e duzentos dólares, antes de o fixar no meu
rosto. Soltou um suspiro
231
profundo e sibilante. - Caramba! Fazes lembrar uma daquelas raparigas
irreais que aparecem nas capas das revistas.
- Avisei-te de que vinha. Porque pareces surpreendido por me ver aqui?
- Acho que pensei que seria demasiado bom para ser verdade - respondeu, à
laia de desculpa. - Mas também acho que por outro lado, receava que
viesses estragar o que o pai está a tentar conseguir. Ele não passa de um
homem sem instrução, Heavenly, que faz o melhor que pode para sustentar a
família; sei que a sua ocupação não significa grande coisa para a pessoa
em que tu te tornaste, mas o grande sonho dele foi sempre fazer parte de
um circo como este.
Eu não queria falar do meu pai. Custava-me a acreditar que o tom tivesse
tomado o partido do pai. Parecia até que o meu irmão se preocupava mais
com o pai do que comigo. Porém, eu não queria desistir do tom, não queria
que ele se tornasse um estranho para mim.
- Pareces... pareces, bem, mais alto, mais forte - observei, tentando
abster-me de dizer que o achava ainda mais parecido com o pai, quando ele
sabia que eu odiava o rosto atraente deste. A magreza cadavérica
desaparecera da estrutura óssea do tom. Já ali não estavam os olhos
encovados e olheirentos. Tinha um ar bem alimentado, feliz e satisfeito.
Nem era preciso perguntar.
- tom, acabei de ver a nova mulher e o filho do nosso pai. Ela é que me
indicou este lugar. Porque não me contaste? - Olhei mais uma vez em
volta, para a arena onde havia tendas à mistura com edifícios
permanentes. - Que faz exactamente o pai?
No rosto do tom abriu-se um sorriso largo. Os seus olhos iluminaram-se de
orgulho.
- Ele é o apresentador, Heavenly. E dos bons! Faz um trabalho formidável
a chamar o público. Hoje isto parece-te sem graça, mas se ficares por
aqui até à noite, verás vir gente de oitocentos quilómetros de distância
para gastar o seu dinheiro a ver o número dos animais selvagens, o das
raparigas e o dos anormais que participam no espectáculo. E também temos
uma roda gigante - acrescentou com orgulho, apontando para a roda Ferris
em que eu só naquele momento reparava.
- Heavenly - prosseguiu com arroubo, agarrando-me no braço e levando-me
noutra direcção -, agora o circo é o mundo do pai. Não te passava pela
cabeça, e a mim também
232
não, que o circo fosse sempre o seu sonho quando era novo. Escapuliu-se
vezes sem conta dos montes para se enfiar no circo. Talvez fosse para
escapar à fealdade e à pobreza daquela cabana nos montes, onde foi
criado. Lembras-te do quanto ele detestava as minas de carvão,
enveredando portanto pelo contrabando de bebidas alcoólicas... Também
fugia do desprezo que todos sentiam pelos Casteel, que parecia não
saberem fazer outra coisa senão ir parar à prisão por roubos sem
importância. Os rapazes da família ao menos teriam sido admirados se
fossem parar à cadeia por coisas mais ousadas e importantes, excepto o
assassínio, evidentemente.
- Mas, tom, este não é o teu sonho! Não é! Não podes abdicar dos teus
estudos universitários só para o ajudar!
- Ele acabará por comprar o circo ao proprietário, Heavenly, passando
então ele a ser o dono. Quando descobri que era essa a intenção do pai,
podes crer que fiquei com a mesma cara de espanto com que estás agora.
Quis contar-te, a sério, mas também me sentia relutante, pois tinha a
certeza de que só sentirias e demonstrarias desprezo pelas suas ambições.
Eu agora compreendo-o melhor do que antes e quero que alcance sucesso ao
menos uma vez na vida. Não o odeio como tu. Eu não sei odiar assim. Ele
tenta encontrar o seu amor-próprio, Heavenly, e ainda que o que agora faz
te pareça reles e insignificante, é o que ele melhor já conseguiu
realizar na vida. Quando o vires, não o faças sentir-se inferiorizado.
Olhei, mais uma vez, em volta. Algumas mulheres, que tinham acabado de
tomar duche nos seus minúsculos reservados das roulottes, tinham-se
juntado em grupos, enroladas em toalhas, a olhar para onde o tom e eu nos
encontrávamos. Nunca me sentira tão em evidência. Outras trabalhavam,
envergando roupa em mau estado. Todos tagarelavam animadamente, e
raparigas bonitas, nascidas já naquele meio, lançavam ao tom e a mim
sorrisos curiosos. Acrobatas de aspecto vigoroso praticavam sobre lonas
sujas, e havia pelo menos uma dúzia de anões a cirandar de um lado para o
outro em múltiplas tarefas estranhas. Imagino que, para uma pessoa como o
meu pai, aquele poderia ser um lugar ideal onde se esconder de tudo e de
todos, pois ali ninguém indagaria sobre a sua proveniência e origem
duvidosa. No entanto, eu sabia exactamente o que o Tony pensaria se
pudesse ver o mesmo que eu, ou talvez até soubesse de tudo, sendo essa a
razão pela qual me proibira de levar comigo um só Casteel que fosse.
233
- Oh, tom, isto aqui está bem para o pai; é muito mais seguro e lucrativo
do que traficar bebidas alcoólicas. Mas não serve para ti!
Puxei-o para junto de um pequeno banco à sombra de um aglomerado de
árvores de ar tropical, onde nos sentámos. Havia comida espalhada no chão
e aves a alimentarem-se dela, atrevendo-se a pousar e a comer mesmo junto
dos nossos pés. O calor e os cheiros faziam-me sentir débil e agoniada.
As jóias que eu trazia pesavam-me incomodativamente.
- O Troy deu-me dinheiro mais do que suficiente para pagares os teus
quatro anos de faculdade - principiei, ofegando. - Não tens de desistir
dos teus sonhos só para o pai realizar os seus.
O rosto magro do tom corou intensamente antes de baixar a cabeça.
- Tu não compreendes. Já me candidatei à faculdade e não passei. Sempre
soube que os meus sonhos nunca se concretizariam. Só queria agradar-te.
Vai-te embora, tira o teu curso superior e esquece-me. Gosto da vida que
levo. Apreciá-la-ei ainda mais quando o pai e eu ganharmos dinheiro
suficiente para comprarmos este circo ao actual proprietário. Ora, um dia
poderemos até levá-lo à Jórgia e à Florida.
Eu não conseguia fazer outra coisa senão olhar para o meu irmão,
completamente estupefacta com a facilidade com que ele desistia. E,
quanto mais tempo o fitava, mais vermelho ele ficava.
- Por favor, Heavenly, não me embaraces. Nunca tive um cérebro como o
teu, tu é que te convenceste disso. Não possuo nenhuns talentos especiais
e sinto-me contente com a vida que levo aqui.
- Espera - exclamei. - Aceita o dinheiro... Faz com ele o que quiseres,
tudo o que for preciso para escapares a esta ratoeira! Abandona o pai,
ele que cuide de si próprio!
- Por favor, não digas mais nada - sussurrou o tom. O pai pode ouvir-te.
Está além, ao pé da tenda da cozinha.
Eu passara várias vezes o olhar por um homem alto e de ar poderoso, que
tinha o cabelo preto elegantemente cortado e penteado, embora os jeans
que vestia estivessem desbotados e demasiado justos e a camisa branca
largueirona fosse parecida com as que o Troy tanto apreciava. Era o meu
pai!
Era o meu pai, mais limpo, fresco e com um aspecto saudável como eu
jamais lhe vira, e àquela distância eu não saberia dizer se envelhecera
minimamente. Conversava com
234
um indivíduo robusto de ar alegre, com cabelos brancos e envergando uma
camisa vermelha e que, aparentemente, lhe dava ordens. Chegou mesmo a
olhar de relance para o tom, como que a verificar por que razão ele não
estava a alimentar os animais. Os seus olhos escuros e intensos passaram
por mim sem se deterem, embasbacados, como acontecia à maioria dos homens
quando reparavam em mim. O facto deu-me a entender que o meu pai não
andava interessado em engatar rapariguinhas novas. A sua indiferença
também me fez perceber que não me reconhecera. Sorriu ao tom com ar
paternal e aprovador; depois, continuou a conversar com o homem da camisa
vermelha.
- É Mister Windenbarron - sussurrou o tom. - O actual proprietário.
Trabalhou como palhaço para os irmãos Ringling. Nesta região todos dizem
que não há espaço para dois circos grandes, mas o Guy Windenbarron acha
que, com a ajuda do pai, os dois podem tornar-se verdadeiramente
importantes. Ele está velho, sabes, e não viverá muito mais tempo, de
modo que precisa de dez mil dólares para deixar à mulher. Nós já juntámos
sete mil. Portanto, já não falta muito, e Mister Windenbarron ajudar-nos-
á enquanto puder. Tem sido um bom amigo para o pai e para mim.
O entusiasmo do tom fez-me sentir ligeiramente maldisposta. Só nessa
altura é que me apercebi de que a sua vida prosseguira, tal como a minha,
e ele encontrara novos amigos e outras aspirações.
- Volta à noite - convidou o tom, como que ansioso por me ver fora do
alcance do pai -, e ouve o pai a chamar o público, assiste ao espectáculo
e, quando as luzes se acenderem e a música soar, quem sabe se não
experimentarás um pouco da febre do circo que tanta gente sente.
O que eu sentia era pena dele. Pena por alguém decidido a destruir-se a
si próprio.
Passei o resto da tarde num quarto de motel, a tentar descansar e a
reflectir sobre as minhas dúvidas. Tinha a impressão de que não havia
nada a fazer para que o tom mudasse de ideias, mas ainda tinha de tentar
mais uma vez.
Nessa noite, cerca das vinte e duas horas, vesti um vestido simples de
Verão e parti novamente em direcção aos terrenos onde o circo estava
instalado. Deparou-se-me uma espantosa metamorfose. A roda gigante girava
lentamente, deslumbrando os olhos com as suas fiadas triplas de luzes
coloridas. De resto, não havia edifício, tenda ou atrelado
235
da caravana que não se apresentasse brilhantemente iluminado. As luzes, a
música e as hordas de gente criavam uma espécie de magia que eu nunca
imaginara. As construções modestas e mal pintadas tinham uma aparência
impecável e bela. Os vagões que, de dia, exibiam amolgadelas e faltas de
tinta vermelha e dourada, pareciam completamente novos. A música pairava
no ar, vinda de várias fontes e, para minha grande surpresa, as centenas
de pessoas provincianas, de roupa modesta, que afluíam pelos portões
abertos, criavam uma atmosfera de grande excitação com as suas alegres
expectativas de um bocado bem passado. Eu segui no meio da multidão,
confundindo-me com ela. Reparei nas raparigas da minha idade que,
abraçadas aos namorados, tinham tão pouca roupa vestida que o Tony
acharia escandaloso. Pais de faces coradas levavam pela mão os mais
novos, cuja vontade seria correr à vontade a descobrir o lugar; no fim
dos grupos de famílias, deslocando-se com maior lentidão e dificuldade,
vinham os mais idosos que estavam, nitidamente, mais habituados a passar
os seus serões em cadeiras de baloiço nos alpendres.
Eu nunca fora, nos meus dezoito anos, uma única vez ao circo. A minha
experiência com aquele tipo de espectáculo limitava-se à televisão,
jamais tendo sentido o som, a visão, os cheiros de animais, humanos,
feno, esterco, suor e, sobrepondo-se a todos eles, o aroma delicioso dos
cachorros-quentes, hamburgers, gelados e pipocas que chegava de várias
fontes.
Enquanto deambulava pelo terreno do circo, observando as tendas laterais,
onde raparigas quase nuas e fortemente maquilhadas meneavam as ancas
provocantemente e pessoas com deformidades físicas exibiam as suas
misérias com uma espantosa indiferença, comecei a entender, pela primeira
vez, o que atraíra o pobre rapazito de doze anos saído dos Willies...
Atraíra-o de tal modo que o fizera regressar aos montes convencido de que
aquele era o melhor dos mundos possíveis: melhor que as minas frias e
escuras; melhor que fazer contrabando de bebidas alcoólicas e desafiar a
Polícia; mil vezes melhor, tudo aquilo, que aquela miserável cabana nos
montes e todas as outras como ela, onde a fama criada nunca era esquecida
e os erros do passado perseguiam o seu autor até ao fim dos seus dias. Eu
quase sentia pena daquele rapaz ignorante.
Óptimo para o pai, tudo aquilo, agora que já estava demasiado velho para
pretender chegar mais alto. Não para o
236
tom, nada daquilo, assim que se fartasse de sentir aqueles cheiros e
sabores que um dia se tornariam entediantes. Eu não fora ali para ser
seduzida.
Primeiro, precisava de um bilhete e, para o comprar, tive de ir para uma
fila indiana que se formara até junto de um homem colocado em cima de um
pedestal alto, que anunciava as virtudes do espectáculo de circo que
decorria no interior. Não precisei de o ver para saber quem era. Metida
na fila, ergui os olhos para o meu pai, vendo primeiro os seus pés
calçados com botas de cabedal pretas que lhe chegavam quase aos joelhos.
Depois, vinham as pernas musculosas, envolvidas em calças brancas o mais
justas possível. A sua virilidade era tão evidente que me trouxe à
memória os dias de escola, quando a miudagem ficava de olhos arregalados
perante as fotografias de duques, generais e outros nobres que tão
ousadamente se exibiam em calças parecidas com aquelas que o meu pai
estava a usar. O casaco de abas de grilo era enfeitado por faixas
douradas nas mangas, galões nos ombros e botões, tudo no mesmo tom, nas
frentes sobrepostas. Por cima do branco impecável da gravata, via-se o
mesmo rosto atraente de que me recordava, notavelmente igual. Não trazia
os pecados escritos na cara, tão-pouco o tempo lhe tirara aquilo de que
privara o meu avô. Não, o meu pai mantinha-se forte e poderoso como
sempre, com uma aparência saudável como nunca lhe vira, mais bem
arranjado, com a face tão impecavelmente barbeada que nem se lhe notava a
sombra. Os seus olhos negros brilhavam, conferindo-lhe um aspecto
carismático e magnético. Reparei que algumas mulheres erguiam o olhar
para ele como se de um deus se tratasse.
De vez em quando, arrancava o chapéu preto da cabeça e utilizava-o em
grandes floreados.
- Cinco dólares, senhoras e senhores, é tudo quanto custa entrar noutro
mundo, um mundo que talvez não tenham possibilidade de ver outra vez...
Um mundo onde homem e animal selvagem se desafiam um ao outro, onde
lindas mulheres e homens corajosos arriscam a vida nos ares para vosso
deleite. As crianças até aos doze anos só pagam dois dólares e meio. Os
bebés de colo entram de graça! Venham ver Lady Godiva cavalgar o seu
cavalo e saltar da sua montaria para aterrar um metro e meio acima... E
aquele cabelo move-se, senhores, move-se!
E continuou a apregoar enquanto a caixa registadora, a pouca distância
para a sua direita, tinia ruidosamente com a entrada do dinheiro. Eu ia-
me aproximando a pouco e pouco
237
do meu pai, enquanto o ouvia discorrer sobre os perigos que os reis da
selva em breve iriam fazer correr ao seu domador, valsando ao estalar do
chicote. Até ali ainda não me vira. Não tencionava permitir que tal
acontecesse. Cobrira a cabeça com um chapéu de palhinha de abas largas,
preso de baixo do queixo com um lenço de seda azul. E levara óculos
escuros para pôr. Mas como era de noite, esqueci-me de o fazer. De
repente, vi-me na frente da fila e o meu pai olhou para baixo.
- Ora, uma jovem assim não precisa de esconder os seus méritos - declarou
e, inclinando-se, desatou-me o lenço e o chapéu saiu-me da cabeça. Os
nossos rostos ficaram a centímetros de distância.
Ouvi-o suster subitamente a respiração.
Vi que ficara chocado. Por um momento, permaneceu sem fala, paralisado...
Mas depois sorriu. Entregou-me o chapéu com o seu lenço de seda
esvoaçante.
- Isso - exclamou para todos ouvirem -, uma cara assim tão bonita não
deve ficar escondida...
Dito isto, passou à pessoa seguinte.
com que rapidez se recuperara da surpresa! Porque não conseguia eu fazer
o mesmo? Senti os joelhos fracos, as pernas a tremer; tinha vontade de
gritar, descompô-lo e dizer àquelas pessoas confiantes o tipo de monstro
maléfico que ele era! Em vez disso, fui empurrada para a frente,
ordenaram-me que me apressasse e, antes que percebesse o que estava a
acontecer, dei comigo sentada numa bancada às manchas e com o meu irmão
tom a sorrir-me.
- Caramba, aquilo é que foi, ha, a maneira como o pai te tirou o chapéu!
Sem ele não lhe terias chamado a atenção... Por favor, Heavenly, põe
outra cara! Não é preciso estares assim a tremer. Ele não pode magoar-te,
e também não o faria.
Apertou-me por instantes contra o seu peito, como costumava fazer quando
eu entrava em pânico.
- Tens aí atrás de ti uma pessoa ansiosa por te cumprimentar - sussurrou-
me.
Levei as mãos, em que os anéis que pusera para impressionar o meu pai
pesavam, à garganta, enquanto me virava lentamente, dando de caras com os
olhos azuis descorados de um velho mirrado. Era o meu avô!
O meu avô, vestido como nunca o vira, com roupa desportiva de Verão e
sapatos de cabedal nos pés. Os olhos pálidos, de expressão desconcertada,
estavam cheios de lágrimas.
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pela maneira como me fitava, estava a tentar, certamente, situar-me nos
seus pensamentos e enquanto isso, reparei que engordara. Tinha as faces
coradas de saúde.
- Oh - exclamou finalmente, ao reconhecer-me -, é a Heaven! Ela voltou
p'ra nós! Tal qual prometeu! Annie segredou, cutucando o ar ao seu lado
com o cotovelo -, ela 'tá linda, na' tá, Annie?
Fez um gesto de abraço em torno da Annie que há tantos anos estava à sua
direita e doeu, doeu muito ver que ele não conseguia viver sem fazer de
conta de que ainda tinha a sua companheira viva. Lancei-lhe os braços ao
pescoço e beijei-o na face.
- Oh, avô, é tão bom voltar a vê-lo, tão bom!
- Primeiro devias cumprimentar a tua avó, miúda, devias - admoestou.
Obedientemente, dei à figura imaginária da minha avó um abraço e beijei o
ar no sítio onde teria estado o seu rosto; chorei por tudo o que ficara
para trás e também por tudo o que ainda estava para vir. Como é que eu,
que me submetera àquele gesto imaginário, ultrapassaria a teimosia e o
orgulho que todos os Casteel tinham, fazendo com que o tom caísse em si?
A vida espalhafatosa e insignificante do circo não era para o tom,
sobretudo quando eu tinha dinheiro mais do que necessário para lhe pagar
a universidade. Ao olhar para o meu avô, pareceu-me vislumbrar um ponto
fraco na armadura de orgulho provinciano do tom.
- Ainda tem saudades dos montes, avô?
O velho rosto patético perdeu todo o fulgor. O seu ar saudável foi
ensombrado por uma melancolia dolorosa e ele pareceu encolher.
- Na' há lugar como lá, onde pertencemos. Annie está sempre a pedir-me
que a leve para lá... para o sítio donde a gente veio.
16 CAÇADORES DE SONHOS
18 PARTIDAS DO DESTINO
21 A PASSAGEM DO TEMPO
O Troy fora-se embora. Todos os dias aguardava por carta sua. Carta que
nunca veio. Todos os dias, atravessava o labirinto até sua casa,
esperançada em vê-lo de volta para que fôssemos, pelo menos, grandes
amigos. A casa de pedra e o seu lindo jardim começaram a ficar com ar
abandonado, por isso mandei os jardineiros de Farthy restituir-lhe o
aspecto original. Até que um dia, ao pequeno-almoço, ainda a Jillian
dormia, o Tony contou-me que soubera, através de um dos seus gerentes,
que o Troy andava a visitar as fábricas da Europa, uma a uma.
- É um bom sinal - disse o Tony com satisfação, esforçando-se por sorrir.
- Enquanto andar aí pelo mundo é porque não está deitado numa cama
qualquer à espera da morte.
O Tony e eu éramos, de certo modo, aliados numa causa comum, que era a de
trazer o Troy de volta a casa e ajudá-lo a sobreviver. Apesar do acto
terrível que o Tony cometera contra a minha mãe, quer ela o tivesse
induzido a isso ou não, este ia perdendo parte da sua importância a cada
dia que passava, enquanto eu me esforçava por seguir a rotina de ir à
faculdade e estudar com tanto afinco que, por vezes, caía na cama,
exausta. Era nessas alturas que o Tony me era muito prestável, ajudando-
me a vencer dificuldades académicas que me parecia impossível ultrapassar
sozinha. Quanto à Jillian, esta tornara-se uma sombra de si mesma. Trazer
toda a verdade sobre a filha para a luz do dia remeteu-a, a ela, para a
sombra. Todas as festas e iniciativas de caridade que tanto gostara de
frequentar ficaram esquecidas na automortificação que a mantinha de cama.
Deixou de cuidar da sua aparência. Chorava constantemente pela Leigh,
para que voltasse e a perdoasse por não a ter escutado, compreendido, por
ter negligenciado o seu papel de mãe. Mas claro que era demasiado tarde
para a Leign voltar.
315
No entanto, a vida continuava. Voltei a comprar roupa nova. Escrevi ao
tom e à Fanny, incluindo sempre um cheque para cada um. Atingir notas
altas tornou-se o meu principal objectivo na vida. Muitas vezes, quando o
Tony e eu éramos forçados a juntar-nos para que não nos sentíssemos sós
numa casa enorme, eu via os olhos azuis dele fixos em mim, como se
quisesse dizer-me algo que deitasse abaixo a minha muralha de
hostilidade; porém, eu sentia-me relutante em permiti-lo. Ele que
sofresse, pensava. Se não fosse ele, a minha mãe não teria fugido. Não
teria terminado numa cabana de montanha onde a miséria a matou. Depois,
lembrava-me dos dias felizes de convívio passados nos Willies, entre nós,
os cinco filhos Casteel, e o Logan Stonewall.
Certo dia de Novembro, quando o céu ameaçava nova queda de neve, chegou
uma carta da Fanny.
"Querida Heaven,
O teu egoísmo obrigou-me a casar com o Mallory, o meu ricaço. Agora já
não preciso das tuas esmolas pra nada. O Mallory tem uma casa enorme,
bonita que nem aquelas que aparecem nas revistas chiques, mas a velhota
dele é ta' danada de má que gostaria de me ver morta, na que me rale. A
velha não tarda a esticar o pernil, por isso tanto se me dá que me grame
ou na. O Mallory anda a tentar ensinar-me a portar e falar como uma
senhora. Eu na perderia o me tempo com uma cousa ta estúpida se na
tivesse a esprança dum dia dar outra vez de caras com o Logan Stonewall e
se aí já souber falar e portar-me como uma madama, talvez ele goste de
mim. Que me ame como eu sempre quis que me amasse. E quando ele for meu,
podes dizer-lhe adeusinho pra sempre.
Beijos da tua mana amiga
Fanny"
A carta da Fanny perturbou-me. Quem teria pensado que a Fanny, que já
vivera bastante e tratara todos os homens mais ou menos como máquinas em
cujos botões sabia carregar para obter o que queria, se iria apaixonar
pelo Logan, precisamente aquele que mais a desprezara.
Enquanto a Fanny escrevera só uma carta, o tom enviara várias.
"Encontrei o maço de notas que entregaste ao avô. Francamente, Heavenly,
onde é que tinhas a cabeça? Ele enfiou-o
316
dentro de uma caixa velha que meteu por baixo da lenha. O pobre velhote
já não está muito bom do juízo, sempre a querer o que não tem, de modo
que quando fica aqui connosco, está a suspirar pelos montes, onde a sua
Annie quer viver. E duas semanas depois de estar nos montes, tem vontade
de vir para junto dos "filhos." Acho que acaba por se sentir só por lá,
onde só tem a companhia da mulher que lá vai de manhã preparar a comida
para o dia todo. Caramba, Heavenly, o que é que uma pessoa há-de fazer
com alguém assim?"
Sem o Troy, Farthy passou a ser apenas um lugar onde passar os fins-de-
semana. Eu falava o menos possível com o Tony, ainda que por vezes
sentisse pena dele, pois deambulava sozinho pelos intermináveis
corredores vazios onde já não ressoavam os risos e a alegria de numerosos
convidados. Porém, eu prosseguia os meus estudos, lembrando a mim mesma,
a cada dia que passava, que viera para Boston com o objectivo em mente.
Portanto, era nele que me concentrava, pensando que um dia encontraria a
felicidade a que tinha direito.
Os anos passaram rapidamente depois do dia trágico em que o Troy achara
que era melhor afastar-se para bem longe de mim. Só muito de vez em
quando é que escrevia para casa, fazendo-o sempre e apenas para o Tony.
Eu sofri durante muito tempo, mas, quando o sol brilha, o vento sopra, a
chuva refresca a relva e vemos despontar na Primavera as flores que
plantámos no Outono, a dor e a infelicidade vão-se diluindo
progressivamente. Eu naquele momento tinha o meu sonho, os meus dias na
universidade. A maravilhosa área onde esta se situava, os rapazes que me
convidavam para sair, tudo isso ajudava. Um dia levei a casa um rapaz
muito pacato e discreto mas bem-parecido, que apresentei ao Tony. Sim, o
filho de um senador estatal era perfeito, embora eu o achasse um pouco
entediante de mais. Encontrei o Logan perto da universidade uma vez ou
duas, sorri-lhe e cumprimentei-o, perguntei-lhe se tinha notícias do tom,
mas ele nunca me convidou a sair.
Cheia de pena da Jillian, fiz questão em visitá-la sempre que o meu
horário rígido mo permitia. Comecei a tratá-la por avó. Ela pareceu não
dar por isso. Era quanto bastava para eu perceber até que ponto fora
drástica a mudança ocorrida no seu íntimo. Escovava-lhe e penteava-lhe o
cabelo
317
e prestava-lhe muitos outros pequenos cuidados nos quais ela parecia nem
reparar. E, sentada sempre no canto mais afastado, o mais discretamente
possível, estava a enfermeira que o Tony contratara para ter a certeza de
que Jillian não atentava contra a própria vida.
Sempre que eu tinha férias, o Tony planeava algo de especial para
fazermos juntos. Visitámos Londres, Paris e Roma, cidades que,
finalmente, tive oportunidade de ver. Viajámos até à Dinamarca, Islândia
e Finlândia, onde pude conhecer a pequena cidade onde a minha mãe
nascera. Não fomos uma única vez ao rancho, no Texas, onde vivia a mãe da
Jillian com duas irmãs mais velhas. Era frequente eu ter a sensação de
que ele tentava compensar as privações por que eu passara na minha
juventude. Creio que tanto um como o outro albergávamos a esperança
constante de encontrar o Troy nalguma das nossas férias na Europa.
Pensei muitas vezes em visitar o meu avô, que fizera várias idas e vindas
entre a Jórgia e os Willies; porém havia sempre a ameaça de o pai estar
com ele, e esse, eu não estava ainda preparada para enfrentar. Quando
pensava na Stacie, lembrava-me daquele lindo rapazinho chamado Drake e
enviava-lhe toda a espécie de belos presentes pelo correio. A Stacie
escrevia-me sempre alguns dias depois a agradecer-me por me lembrar do
filho, que se achava cheio de sorte por receber brinquedos durante o ano
inteiro, sem ter de esperar pelo Natal.
- Tu podias dar-me uma enorme ajuda nos Brinquedos Tatterton - dizia-me o
Tony de vez em quando. - Ou seja, se perdeste a ambição de te tornares
outra Miss Marianne Deale. - Fitava-me penetrantemente. - Dar-me-ias um
prazer enorme se mudasses legalmente o teu apelido para Tatterton.
A minha reacção era deveras estranha. Eu, que nunca tivera orgulho em ser
uma Casteel, fazia questão em regressar a Winnerrow com um diploma
universitário passado em nome de uma Casteel. Desejava provar-lhes que os
reles e pacóvios Casteel não eram assim tão ignorantes e estúpidos que
tivessem de ir parar sempre à prisão. Ao reflectir sobre a proposta do
Tony, concluí que, naquele momento, não sabia ainda exactamente o que
desejava para mim. Eu estava a mudar, a mudar em variados aspectos e de
forma subtil.
O Tony esforçava-se ao máximo por compensar os danos que causara no
passado. Fazia por mim tudo aquilo que eu sonhara que fosse o meu pai a
fazer. O Tony tornou-me o
318
centro da sua vida, concedendo-me toda a atenção, amor e carinho, que eu
costumava achar que me eram devidos pelo pai. Durante um cruzeiro até às
Caraíbas, cheguei mesmo a ficar suficientemente descontraída para sorrir
e namoriscar com vários rapazes de aspecto agradável e, por um momento,
não me preocupei com o Troy. O que porventura lhe tivesse acontecido não
fora, de modo algum, por culpa minha.
Todavia, quando sonhava, era com o Troy que o fazia. O Troy algures a
precisar de mim, a amar-me; de manhã acordava com a cara molhada de
lágrimas. Quando conseguia deitar as preocupações com o Troy para trás
das costas, aceitava, de certo modo, a vida e o pouco controlo que tinha
sobre ela. Até que, certo dia, o Tony me entregou algo completamente
inesperado e maravilhoso.
Aconteceu no dia quatro de Julho. Faltava-me um ano para finalizar a
universidade.
- Vamos fazer um fabuloso piquenique à beira da piscina, com convidados
de fim-de-semana que desconfio que te vão dar imenso prazer. - O sorriso
do Tony era largo e esfuziante. - A Jillian parece um pouco melhor e
também estará presente, assim como outros convidados especiais.
- Quem são os convidados especiais?
- Ficarás contente - assegurou-me ele, sorrindo com ar misterioso.
As bandeiras decorativas das festas, todas vermelhas, brancas e azuis,
foram colocadas. Penduraram-se lanternas japonesas nas árvores, nos
postes de iluminação, contrataram-se empregados adicionais e o Tony, que
não suportava rock and roll, arranjou um grupo de músicos havaianos para
providenciar a música de fundo.
Quando desci do meu quarto, envergando um fato de banho azul-vivo que me
deixava um pouco embaraçada pelo decote ousado nas pernas, depararam-se-
me cerca de vinte convidados. Por cima, levava um casaco branco curto
pontilhado de minúsculos orifícios. Alguns dos convidados já se
encontravam dentro da piscina, outros tomavam banhos de sol, rindo e
conversando com a melhor das disposições. Alguns nadadores tinham já
ousado enfrentar as ondas agitadas do mar. Primeiro fui ter com a Jillian
para lhe dar um beijo na face, e esta sorriu-me de maneira vaga e
desorientada.
- Que estamos a celebrar, Heaven? - perguntou-me, olhando para velhos
amigos como se fossem desconhecidos.
Noutro lado do espaçoso terraço da piscina, vi o Tony a falar com uma
mulher baixa e bastante roliça que tinha ao lado
319
o marido ainda mais rotundo. Não me eram estranhos e o meu coração
começou a bater nervosamente. Oh, não, não! Ele não podia ter organizado
aquela espécie de reconciliação sem me avisar primeiro.
E, no entanto, fizera-o.
Ali, na Mansão Farthinggale, onde podia estender a mão e tocar neles se
quisesse, estavam a Rita e o Lester Rawlings de Chevy Chase. E a sua
presença significava que... o Keith e a "Nossa" Jane também não podiam
deixar de estar ali. O meu coração deu um pulo. Olhei ansiosamente em
volta à procura dos dois jovens Casteel. Depressa vi a "Nossa" Jane e o
Keith afastados das outras crianças e, a certa altura, reparei que a
"Nossa" Jane despia o roupão de praia, atirava as sandálias para o lado
e, seguida de perto pelo Keith, corria para a piscina. Sabiam nadar e
mergulhar muito bem, e fazer amigos entre desconhecidos.
- Heaven! - chamou o Tony do outro lado do terraço.
- Vem cá, temos aqui convidados especiais que me parece que já conheces.
Aproximei-me do Lester Rawlings e da Rita, a sua mulher, com precaução,
relembrando cenas daquele terrível dia de Natal nos Willies. Lembranças
daquela noite horrível, depois de a "Nossa" Jane e o Keith partirem,
trouxeram-me lágrimas aos olhos. E tinha recordações e culpas mais
recentes que me faziam nervosa, pois traíra a promessa feita na altura em
Chevy Chase ao dar a minha palavra de que não falaria com os meus irmãos
mais novos nem permitiria que me vissem. E depois havia a maneira como as
duas crianças me haviam rejeitado, uma dor que ainda estava bem viva e
dolorosa dentro de mim.
A Rita Rawlings abriu-me imediatamente os braços num gesto maternal.
- Oh, minha querida, minha querida, lamento muito o modo como as coisas
se passaram na última vez. O Lester e eu receávamos imenso que se os
nossos meninos voltassem a vê-la começassem a ter novamente aqueles
pesadelos e ataques de choro. Mas, apesar de não a vermos naquele
domingo, o comportamento deles mudou ligeiramente, deixaram de se mostrar
tão felizes e contentes por estarem connosco. Se ao menos nos tivesse
contado até que ponto a sua vida mudara... Naquele dia, quando apareceu
inesperadamente, pensámos que voltara para levá-los de novo para os
montes e para aquela pavorosa cabana. Mas Mister Tatterton já nos
esclareceu tudo. - Fez uma pausa, unindo os dedos papudos
320
e enfeitados de anéis e recuperando o fôlego. - O Lester e eu não
conseguíamos compreender o que aconteceu aos nossos felizes filhos depois
daquela chuvosa tarde de domingo. Mudaram como que por magia. Acordaram a
gritar, a chamar: "Hev... lee, volta, volta! Não fizemos por mal, não
fizemos por mal!" Só várias semanas depois é que nos contaram o que
acontecera, que se tinham recusado a reconhecê-la, e que a tinham mandado
embora, caso contrário, chamariam a Polícia. Querida Heaven, eles foram
muito cruéis, mas estavam aterrorizados com a perspectiva de terem de
regressar àquele sofrimento, pobreza e fome de que se lembravam muito
bem.
À minha volta todos estavam a divertir-se muito, dando mergulhos na
piscina. Criados andavam de um lado para o outro de tabuleiros com
aperitivos e bebidas na mão... Foi então que, de repente, os meus olhos
se detiveram na adolescente mais bonita que eu já vira. A "Nossa" Jane
encontrava-se a cerca de quatro metros de distância, com os olhos azuis
cor de turquesa pousados em mim com ar imensamente condoído e implorante.
Tinha então treze anos e os pequenos seios túrgidos começavam a despontar
por baixo do fato de banho. O cabelo ruivo-dourado flamejava-lhe em torno
do pequeno rosto oval, onde os olhos franjeados de pestanas mais escuras
imploravam o meu perdão. Perto dela, estava o Keith, um ano mais velho.
Crescera mais uns centímetros, e o seu cabelo cor de âmbar era farto e
brilhante. Também ele olhava, tremendo. Naquele momento estavam
nitidamente com medo de mim, não da mesma maneira como quando eu os
abordara na sua própria casa. Ali, pareciam receosos de que eu os odiasse
por me terem renegado.
Eu não sabia que dizer. Limitei-me a abrir-lhes os braços e a sorrir,
sentindo o coração aos pulos; depois vi-os hesitar, olharem de relance um
para o outro antes de deitarem a correr para se virem aninhar contra mim.
- Oh, Hev.., lee, Hev... lee - exclamou a "Nossa" Jane. - Por favor não
nos odeies pelo que fizemos! Desculpa termos-te mandado embora. Assim que
vimos a tua cara tão triste e desiludida ficámos logo arrependidos. -
Comprimiu o rosto contra o meu peito e começou a chorar. - Não era a ti
que não queríamos. Era voltar àquela cabana, à fome e ao frio. Pensámos
que nos levarias para tudo isso. E já não temos o papá e a mamã, que
gostavam tanto de nós.
- Eu compreendo - ciciei, beijando-a repetidas vezes antes de me voltar
para o Keith, que abracei com mais força,
321
altura em que comecei realmente a chorar perdidamente. Até que enfim
abraçava de novo os meus pequeninos! As vozes da Rita e do Lester
Rawlings chegaram até mim do sítio onde se tinham sentado, à sombra de um
dos enormes guarda-sóis às riscas verdes e brancas, enquanto beberricavam
bebidas frescas e falavam ao Tony da carta maravilhosamente enternecedora
que um dia tinham recebido, cerca de duas semanas antes.
- Era uma carta do seu irmão Troy, Mister Tatterton. Ele queria corrigir
algumas falhas e, quando acabámos de a ler, estávamos os dois a chorar.
Não nos disse que cometêramos um acto terrível, apenas nos agradeceu por
tomarmos tão bem conta dos irmãos mais novos da Heaven, pois ela amava-os
muito. E não pudemos deixar de contactar consigo, pois agora sabemos que
não está certo tentarmos separar irmãos.
- Tratem-me por Tony - sugeriu ele encantadoramente -, já que agora somos
praticamente família.
- A carta que recebemos do seu irmão clarificou completamente as
circunstâncias que rodearam a Heaven.
O Troy fizera aquilo por mim! O Troy ainda pensava em mim e fazia o que
estava ao seu alcance para me tornar feliz e eu teria de obter a sua
carta, nem que fosse uma fotocópia.
- com certeza, com certeza - concordou a Rita Rawlings. - Está tão bem
escrita que tencionava guardá-la para sempre, mas, minha querida, pode
ficar com o original. A mim basta-me uma cópia.
Nos dez dias em que os Rawlings ficaram connosco naquele Verão, a Jane
(que já não queria que a tratássemos por "Nossa" Jane), o Keith e eu
reencontramo-nos. Fizeram perguntas sobre o tom e a Fanny, sobre o pai.
Davam a impressão de nutrir o mesmo ressentimento por este que eu.
- A mamã e o papá disseram que podíamos vir visitar-te uma ou duas vezes
por ano! Oh, Hev... lee, vai ser maravilhoso! Talvez um dia possamos
voltar a ver o tom, a Fanny e o avô. Mas nunca quereremos deixar a mamã e
o papá.
Não houve a menor dificuldade em combinar tudo. A Mansão Farthinggale
deixou as suas impressões, assim como o Tony... E, se a Jillian lhes
causou alguma estranheza, eram demasiado delicados para o referirem.
Depois entraremos em contacto - prometeu a Rita Rawlings, enquanto o
Lester apertava a mão ao Tony como se fossem grandes amigos. - O Natal
será uma ocasião óptima
322
para nos juntarmos, pois queremos que os nossos filhos desfrutem dos
prazeres de uma família grande.
Sim, já era altura de os meus irmãos me virem ver. Eu já não vivia numa
cabana aninhada na vertente de um monte; já não era uma mendiga
esfaimada, objecto de piedade, embora não mencionassem o tom, a Fanny ou
o pai. Ou o avô, como a Jane e o Keith tinham feito.
A Rita Raylings cumpriu a sua palavra e, quando me mandou a carta que o
Troy lhes escrevera, fazendo um apelo tão veemente e apaixonado em meu
favor, os meus olhos encheram-se de lágrimas. Ele amava-me. Ainda me
amava! Continuava a pensar em mim. Oh, Troy, Troy, volta para casa, volta
para casa! Vive por perto e deixa-me ver-te de vez em quando... Isso
bastará!
De tempos a tempos, eu saía com jovens aprovados pelo Tony. Não conheci
ninguém tão único como o Troy nem tão leal e dedicado como o Logan. Via-
me obrigada a concluir que este encontrara alguém. Tal como me
aconteceria... um dia. E quando pensava longa e reflectidamente no Logan,
sabia que queria voltar a vê-lo e, quando o fizesse, teria de tomar
medidas para incentivar o nosso relacionamento.
O tom escrevia com frequência, dizendo-me que resolvera, afinal, aceitar
o dinheiro que eu lhe mandava e, enquanto ajudava o pai durante o dia, ia
frequentando cursos na faculdade. "Estamos a atingir os nossos
objectivos, Heavenly. Apesar de tudo vamos conseguir!"
22 SONHOS CONCRETIZAM-SE
No ano em que fiz vinte e dois anos, num lindo dia dos finais de Junho,
altura em que todas as flores tinham desabrochado, recebi o meu diploma.
Tanto o Tony como a Jillian estiveram presentes para me representar e
embora eu perscrutasse o público para ver se o Troy viera, não o vi.
Esperara e rezara sempre para que ele aparecesse para me aplaudir. Porém,
vi a Jane e o Keith sentados ao lado dos pais, perto da Jillian e do
Tony... mas nem o tom nem a Fanny, a quem enviara convites, se
encontravam ali.
"Sê esperta e faz os possíveis por manter a Fanny afastada da tua vida",
advertira-me o tom na sua última carta. "Se pudesse, ia, a sério que ia,
mas estou atrapalhado a tentar passar nos meus exames e ainda tenho de
ajudar o pai. Perdoa-me e tem a certeza de que estarei contigo em
pensamento."
Depois da festa de formatura, fomos até à Mansão Farthinggale.
Estacionado em frente da porta da frente estava um Jaguar branco que o
Tony encomendara especialmente para mim.
- É para o dia em que voltares a Winnerrow. Se eles não se deixarem
impressionar pela tua roupa e pelas jóias, este automóvel certamente não
deixará de o fazer.
Era um carro fabuloso, assim como todos os meus presentes de formatura.
No entanto, estranhamente, agora que já deixara de ser estudante e
dispunha de muito tempo livre, não sabia o que fazer comigo mesma.
Atingira o meu objectivo. Poderia tornar-me, se o desejasse, noutra Miss
Marianne Deale. Naquele momento tinha a certeza de que não era isso o que
eu queria. Nesse Verão senti uma inquietação crescer dentro de mim, uma
agitação que não me deixava dormir à noite e me tornava irritável.
- Vai dar uma volta sozinha - sugeria-me o Tony. -
324
Era o que eu costumava fazer quando tinha a tua idade e não conseguia
encontrar tranquilidade dentro de mim mesmo.
No entanto, nem mesmo uma ida à costa do Maine, onde fiquei dez dias numa
aldeia de pescadores, me sossegou. Eu tinha de fazer algo. Algo
importante.
Dessa vez, ao regressar das minhas férias e ao passar sob os portões
ornados da Mansão Farthinggale, cheguei como uma desconhecida, com novos
olhos, ao longo caminho serpenteante que conduzia à enorme mansão
encantada.
Não mudara. Continuava impressionante, assustadora e bela. Tudo estava na
mesma como quando eu ali chegara com dezasseis anos. A minha intuição
dizia-me que o Troy estava ali. O Tony dissera que ele não podia ficar
fora eternamente.
As batidas do meu coração aceleraram; a minha alma pareceu despertar e
espreguiçar-se antes de respirar fundo e correr de novo para o amor que
encontrara naquela casa. Eu quase podia ver o Troy, senti-lo algures, por
perto. Antes de me apear e aproximar do pórtico de pedra alto, deixei-me
ficar dentro do carro por instantes, inalando o ar especialmente
perfumado da Mansão Farthinggale.
O Curtis respondeu aos meus toques impacientes de campainha sorrindo
afectuosamente ao ver de quem se tratava.
- Que bom tê-la de volta, Miss Heaven - disse em voz baixa e educada. -
Mister Tatterton foi dar um passeio pela praia, mas a sua avó encontra-se
na sua suite.
A Jillian fechara-se nos aposentos que ocupava naquela mansão gloriosa,
que voltara a viver num silêncio quase tão denso e profundo como o de uma
sepultura.
Encontrei-a sentada como eu a vira muitas vezes quando não estava bem
consigo mesma, de pernas cruzadas sobre o seu sofá cor de marfim,
envergando uma daquelas túnicas cremes largas, desta vez debruada a renda
em tom pêssego.
O som suave da porta a abrir e a fechar, quando eu entrei, fê-la
despertar de alguma meditação profunda. A disposição das cartas, com que
jogava a uma paciência sobre o tampo da mesinha à sua frente, era preciso
e uniforme, enquanto as que tinha nas mãos estavam desordenadas,
esquecidas. Desviou os olhos azuis desfocados para mim, quase como se não
me visse. Quando vi a Jillian fitar-me quase com pavor, tentei sorrir. Se
a minha aparência a chocara, a dela representara um choque ainda maior
para mim.
A sua pele fazia agora lembrar porcelana rachada, exibindo um branco
pouco saudável. Ao vê-la fitar-me fixamente,
325
fiquei apavorada com a desorientação que se lhe lia nos olhos, a maneira
como contorcia as mãos e o cabelo lhe pendia sobre a cara, pouco limpo e
desmazelado...
Só ao virar-lhe as costas para que não visse a minha perturbação é que
reparei numa mulher que, sentada no canto mais afastado, fazia renda
tranquilamente, envergando um uniforme branco de enfermeira. Ergueu os
olhos para mim e sorriu-me.
- Chamo-me Martha Goodman - informou-me. - Tenho muito prazer em conhecê-
la, Miss Casteel. Mister Tatterton disse-me que devia estar a chegar.
- Onde está Mister Tatterton? - perguntei, dirigindo-me a ela.
- Foi dar uma volta pela praia - respondeu em voz muito ténue e baixa,
como se não quisesse chamar a atenção da Jillian para a sua presença no
quarto. Levantou-se e indicou-me a direcção, e eu virei-me para me
retirar.
A Jillian pôs-se de pé, descalça, e começou a girar sobre si, fazendo com
que a saia da sua túnica rodasse.
- Leigh - chamou em voz cantarolada e infantil -, quando vires o Cleave
diz-lhe que eu mando um abraço! Às vezes, lamento tê-lo trocado pelo
Tony. O Tony não me ama. Nunca ninguém me amou, nem muito nem pouco. Nem
mesmo tu. Tu gostas mais do Cleave, sempre foi assim... mas eu não me
importo. Pareces-te imenso com ele, comigo é só por fora. Leigh, porque
estás a olhar para mim dessa maneira? Porque será que tens de levar tudo
tão a sério!
Recuei para a porta arquejando violentamente; saí, seguida pelo seu riso
insano, que estilhaçava o ar.
Quando, finalmente, cheguei à porta, não resisti a lançar-lhe um último
olhar; vi-a enquadrada diante de uma das suas janelas de sacada
arqueadas, com o sol a filtrar-se através do seu cabelo, traçando-lhe a
silhueta esguia através do tecido transparente da túnica comprida e
larga. Era velha e, paradoxalmente, também era jovem; era bela e
grotesca; mas, acima de tudo, estava louca e inspirava pena.
Fui-me embora com a certeza de que não tencionava voltar a vê-la.
Ao chegar à orla rochosa da praia, dirigi-me para o sítio aonde o Troy
nunca quisera acompanhar-me, pois tinha pavor do mar e do seu portento.
Havia rochas e pedras enormes, mais altas do que eu, e caminhar por ali
não era fácil. Nessa altura, também eu tivera medo do mar com o seu bater
constante, as suas vagas altas que se esmagavam sobre a costa, deixando
livre apenas uma pequena faixa de areal.
326
As pedrinhas entravam-me nos sapatos, e não tardei a tirá-los para melhor
poder correr a fim de apanhar o Tony. Não tencionava ficar mais de uma
hora ou duas, pois naquele momento levava um destino em mente.
Ao dar uma curva para a praia, encontrei-me subitamente com ele.
Encontrava-se sentado no cimo de um amontoado alto de pedras, a olhar
para o mar; foi com alguma dificuldade que subi para me ir sentar junto
dele. Contei-lhe o que tencionava fazer.
- Portanto, vais regressar a Winnerrow - disse o Tony melancolicamente,
sem virar a cabeça. - Sempre soube que acabarias por regressar a esses
montes malditos que devias não querer ver nunca mais.
- Fazem parte de mim - repliquei, sacudindo a poeira dos pés e das
pernas. - Sempre tencionei voltar a ensinar ali, na mesma escola onde
Miss Deale foi minha professora e do tom. São poucos os professores que
têm vontade de ir para aquela zona pobre. Portanto, aceitar-me-ão, e
assim poderei dar continuidade à tradição iniciada por Miss Deale. O meu
avô Toby quer que eu fique com ele enquanto lá estiver. E se o Tony ainda
quiser ver-me, passarei aqui algum tempo consigo. Mas não quero voltar a
ver a Jillian, nunca mais.
- Heaven - principiou o Tony, calando-se logo a seguir e fitando-me com
uma dor imensa no olhar.
Tentei ignorar o acesso de comiseração que senti ao ver-lhe as olheiras
em redor dos olhos encovados. Estava mais magro, vestindo menos
cuidadosamente. As calças, que em tempos usara sempre impecavelmente
engomadas, já nem sequer vinco tinham. Saltava à vista que os melhores
anos do Ânthony Townsend Tatterton já tinham ficado para trás.
Suspirou antes de responder.
- Não soubeste do que aconteceu pelos jornais?
- Que aconteceu?...
O Tony voltou a suspirar profunda e longamente, sem desviar os olhos do
mar.
- Como sabes, o Troy tem andado aí pelo mundo. A semana passada voltou
para casa. Dava a impressão de que sabia da tua partida.
O meu coração deu um pulo.
- Ele está cá? O Troy encontra-se aqui? Voltaria a vê-lo! Troy, oh, Troy!
O Tony sorriu enviesadamente. Era o tipo de sorriso que me arrepanhava o
coração e fazia com que este me doesse.
327
Afundou a cabeça entre os ombros, sem desviar nunca os olhos do mar, o
que me obrigou a olhar de relance para este, a fim de perceber para o que
olhava ele tão insistentemente. Consegui então distinguir, com uma certa
dificuldade, uma grinalda de flores a balançar, ao longe, sobre as ondas.
O reflexo dourado que a luz do Sol arrancava às águas profundas cor de
safira, compunha um espectáculo esplendoroso. A grinalda de flores não
passava de um ponto colorido. As batidas do meu coração voltaram a
acelerar. O mar, o mar sempre perseguira o Troy. Senti um peso inesperado
no peito.
O Tony inspirou o vento frio que soprava sempre do lado do oceano.
- O Troy voltou para casa muito deprimido. Ficou contente em saber do
reencontro entre ti, a Jane e o Keith. Mas o seu vigésimo oitavo
aniversário aproximava-se. Foram sempre ocasiões que o deprimiram.
Acreditava firmemente que não ultrapassaria os trinta. "Espero que não
seja uma doença dolorosa", dizia de vez em quando, como se isso o
preocupasse mais que tudo. "Não é que eu tenha medo de morrer, o que me
aterra é a estrada até lá, que às vezes pode ser muito tortuosa." Eu
disse-lhe que ainda tinha mais dois anos, mesmo que a sua precognição se
revelasse verdadeira. Se assim não acontecesse, chegaria aos cinquenta,
sessenta ou setenta. Ele olhou para mim como se eu não soubesse o que
dizia. Mantive-me perto, só para o ajudar, receoso de que algo pudesse
acontecer. Ficávamos sentados no quarto dele a conversar sobre ti, sobre
a coragem que tiveste para cuidar dos teus irmãos depois de a tua
madrasta e de o teu... de o teu pai se irem embora. Contou-me que,
durante o último semestre, costumava visitar a tua universidade e
esconder-se perto só para poder ver-te.
Desviou de novo os olhos para o mar. Dessa vez a grinalda desaparecera e
eu senti-me assustada, terrivelmente assustada.
- Estou a contar-te esta história ciente de que ainda o amas. Peço-te que
me perdoes, Heaven. Para afastar o pensamento do Troy do temido dia de
anos, organizei uma festa que durasse todo o fim-de-semana. Obriguei
todos a prometer que nunca o deixariam um segundo sozinho. Estava
presente uma rapariga com quem ele saíra uma vez ou duas. Já fora casada
e divorciara-se. Era o tipo de jovem risonha, inteligente e espirituosa
que eu achei que o animaria e talvez ajudasse a deixar de pensar em ti.
Ela tinha sempre muitas histórias para contar sobre as celebridades que
conhecera,
328
sobre a roupa que comprava, a enorme mansão que ia mandar construir para
si numa ilha do mar do Sul que lhe pertencia... se encontrasse o homem
certo com quem viver. E ao dizê-lo olhava para o Troy, mas este não
parecia vê-la nem ouvi-la. Nenhuma mulher gosta de ser assim ignorada.
Portanto, o estado de espírito dela mudou. Tornou-se zombeteira e
indelicada. A certa altura, o Troy deixou de poder continuar a suportar o
seu sarcasmo e, levantando-se rapidamente, saiu de casa. Vi-o dirigir-se
para os estábulos. Eu não o queria ali e, se a idiota da rapariga não
tivesse corrido atrás de mim, teria chegado junto dele muito a tempo de
impedi-lo de fazer o que fez. Mas ela agarrou-me na mão e troçou de mim
por ser o protector do meu irmão.
"Quando, finalmente, me livrei dela, o Troy selara o Abdulla Bar, segundo
um dos moços da estrebaria, e saíra a galope através do labirinto, dando
voltas incessantes neste. Não era lugar que um cavalo sensível apreciasse
e não tardou que saltasse por cima da última sebe, enlouquecido pelas
voltas e reviravoltas do labirinto que nunca vira... E dirigiu-se para a
costa!
- O Abdulla Bar... - repeti, mal me recordando do nome.
- Sim, o garanhão preferido da Jill. Aquele que só ela podia montar.
Selei o meu cavalo e corri a tentar alcançá-lo, mas o vento aqui na costa
é muito forte. À minha frente, a uns trezentos e tal metros, vi um bocado
de papel voar até ao focinho do Abdulla Bar. Levantou-se nas patas
traseiras e relinchou como se estivesse aterrorizado e, dando meia volta,
correu direito ao oceano! Senti-me enlouquecer, ali montado no meu
cavalo, que se recusava a correr contra o vento, a ver o meu irmão
esforçar-se por trazer o animal tresloucado para terra! Atrás de nós, o
Sol estava vermelho e baixo no horizonte... e o mar transformara-se em
sangue... e tanto cavalo como cavaleiro desapareceram.
Levei as mãos à testa e conservei-as aí.
- O Troy? Oh, não, Tony!
- Chamámos a Guarda Costeira. Todos os homens presentes na festa meteram-
se nos barcos que eu tenho e procurámo-lo durante horas. O Abdulla Bar
voltou para a praia a nado e trazia a sela vazia; o corpo do Troy foi
depois encontrado, perto da madrugada. Afogara-se.
Não! Não! Não podia ser verdade. O Tony continuou a falar, envolvendo-me
os ombros com um braço e atraindo-me a si.
329
- Tentei desesperadamente descobrir o teu paradeiro no Maine, mas os meus
esforços foram infrutíferos. Todos os dias tenho efectuado o meu próprio
pequeno serviço fúnebre, à espera de que regressasses e fizesses as tuas
despedidas.
Eu achara que já esgotara todas as minhas lágrimas pelo amor que tivera
pelo Troy. No entanto, ali de pé, a olhar para o mar, tive a certeza de
que toda a vida choraria muitas vezes por ele.
O tempo foi passando enquanto eu, ao lado do Tony, esperava ver
reaparecer a grinalda de flores a flutuar.
"Oh, Troy, os anos que podíamos ter tido juntos! Quase quatro anos que te
dariam uma boa parcela de vida, de amor e normalidade, e quem sabe se
então tu passarias a amar a vida o suficiente para ficar!"
Sentia-me entorpecida, cega por lágrimas que não queria partilhar com o
Tony. Depois de regressarmos à mansão, despedi-me rapidamente deste,
embora se agarrasse às minhas mãos e tentasse obrigar-me a prometer que
voltaria.
- Por favor, Heaven, por favor! Tu és a minha filha, a minha única
herdeira. O Troy morreu. Preciso de ter um herdeiro que dê significado à
minha vida! De que serviu tudo o que acumulámos ao longo de séculos se a
linha de sucessão for quebrada agora? Não vás! O Troy teria gostado que
ficasses! Tudo o que ele foi está aqui na sua casa, que te deixou. Ele
amava-te... Por favor, Heaven, por favor, por mim e pelo Troy! Tudo o que
vês à tua volta virá a ser teu. É a tua herança. Aceita-a, quanto mais
não seja para depois a passares aos teus filhos.
Retirei as minhas mãos.
- Mas o Tony pode ir para onde quiser sem levar a Jillian - disse-lhe
asperamente, entrando no meu elegante automóvel. - Pode contratar pessoal
especializado para cuidar dela e só voltar depois da sua morte. Não
precisa de mim, nem eu de si ou do dinheiro dos Tatterton. Agora tem
exactamente o que merece... Nada!
O vento enfunou-me o cabelo. O Tony ficou a ver-me afastar, e era o homem
mais triste que eu já vira. Eu não me importava. O Troy morrera, eu
formara-me e a vida continuaria, apesar do Tony, que agora precisava de
mim, e da Jillian, que nunca necessitara de algo que não fosse juventude
e beleza.
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23 VINGANÇA
fim