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Título: Anjo Negro.

Autor: Virginia C. Andrews.


Título original: DARK ANGEL.
Dados da edição: Círculo de Leitores, Lisboa, 1995.
Género: romance.
Digitalização: Dores Cunha.
Correcção: Fátima Tomás.
Estado da obra: corrigida.
Numeração de página: rodapé.

ANJO NEGRO

Virginia C. Andrews

V. C. ANDREWS

ANJO NEGRO

Tradução de MARIA LUÍSA SANTOS


Círculo de Leitores
Título original: DARK ANGEL
Capa: FORTESPÓLIO
Ilustração: CARLOS ANTUNES/FORTESPÓLIO
Copyright (r) 1987 by Virgínia Andrews
Impresso e encadernado para Círculo de Leitores
por Companhia Editora do Minho, S.A.
no mês de Maio de 1995
Número de edição: 3997
Depósito legal número 88 061/95
ISBN 972-42-1126-6
PRIMEIRA PARTE

1 REGRESSO A CASA

Em meu redor, a casa erguia-se, escura, misteriosa e solitária. As


sombras sussurravam segredos e incidentes que era melhor permanecerem no
esquecimento, e prenunciavam perigos, nada dizendo, porém, da segurança e
estabilidade que eu tanto almejava. Era a casa da minha mãe, da minha mãe
já falecida. O lar pelo qual ansiara quando vivera na cabana de montanha
dos Willies, o lar que preenchera os meus sonhos de criança, imaginando
toda a felicidade que ali me aguardava quando nele fosse viver. Ali,
naqueles aposentos, que os sonhos tornados realidade enchiam de uma
espécie de arco-íris, eu encontraria o pote de ouro do amor familiar um
tipo de amor que nunca conhecera. E desfrutaria de preciosidades como a
cultura, o conhecimento e a educação, com os quais me resguardaria do
mal, do desprezo e do escárnio. Assim esperei, como uma noiva, que todas
essas maravilhas aparecessem para me enfeitar; porém, não foi o que
aconteceu. Sentada na sua cama, senti as vibrações do seu quarto
despertar os pensamentos perturbadores que enchiam sempre os cantos mais
recônditos e sombrios do meu cérebro.
Porque teria a minha mãe fugido de uma casa assim?
Nessa noite fria e invernosa, já lá iam tantos anos, a minha avó levara-
me a visitar um cemitério, revelando-me então, nessa altura, que eu não
era a filha mais velha da Sarah, e mostrando-me a campa da minha mãe. Da
minha mãe, uma linda jovem chamada Leigh, que fugira de Boston.
Pobre avó... com a sua ignorância e ingenuidade. Como fora confiante,
acreditando que o Luke, o filho mais novo, mais cedo ou mais tarde
provaria ser suficientemente valoroso para reabilitar o nome escarnecido
e ridicularizado dos Casteel. "Escumalha", tinha a impressão de ouvir a
badalar como sinos de igreja no meio da escuridão que me rodeava,
"não valem nada, nunca nenhum deles terá préstimo para o que quer que
seja..." ao ponto de eu levar as mãos aos ouvidos para abafar o som.
Um dia, eu seria o orgulho da minha avó, apesar de esta já ter morrido.
Um dia, quando completasse os meus estudos, voltaria aos Willies,
ajoelhar-me-ia diante da sua campa e dir-lhe-ia todas as palavras que a
tornariam mais feliz do que alguma vez se sentira em vida. Eu não tinha a
menor dúvida de que a minha avó, que estava no céu, me sorriria, certa de
que pelo menos uma Casteel fizera o liceu, depois a faculdade...
Que ignorante e inocente eu era por ali chegar munida de tais
esperanças...
Aconteceu tudo muito depressa: a aterragem do avião, a minha tentativa
desesperada para abrir caminho por entre a multidão que enchia o
aeroporto, até chegar junto da passadeira rolante da bagagem, toda aquela
movimentação mundana que eu imaginara muito simples mas depressa vira que
não o era. Apesar de depressa localizar as minhas duas malas azuis, que
pareciam tão espantosamente pesadas, não deixei de me sentir assustada.
Olhei em volta, atrapalhada e receosa. E se os meus avós não aparecessem?
E se tivessem mudado de ideias e já não quisessem receber a neta
desconhecida no seu mundo seguro e abastado? Tinham passado sem mim todo
aquele tempo... Porque não continuarem assim para sempre? De modo que
esperei, convencendo-me, à medida que os minutos passavam, de que não
viriam.
Nem mesmo ao ver um casal extraordinariamente elegante avançar na minha
direcção, envergando a roupa mais rica que eu alguma vez vira, fui capaz
de me mover, de acreditar que, quem sabe, afinal de contas Deus iria
conceder-me algo mais além de agruras.
O homem foi o primeiro a sorrir, a mirar-me dos pés à cabeça com muita
atenção. Nos seus luminosos olhos azuis surgiu uma luz brilhante que
fazia lembrar a de uma chama de vela vista através do vidro de uma montra
de Natal.
- Deves ser a Heaven Leigh Casteel - cumprimentou o homem louro e
sorridente. - Reconhecer-te-ia em qualquer lado. És tal e qual a tua mãe,
com excepção do cabelo escuro.
O meu coração saltou em resposta, esmorecendo logo a seguir. Lá estava a
minha maldição, o cabelo escuro. De novo, os genes do meu pai a
prejudicarem o meu futuro.
- oh, por favor, por favor, Tony - sussurrou a bela mulher ao seu lado-,
não me recordes o que perdi...
Ali estava, portanto, a avó dos meus sonhos. Dez vezes mais bonita do que
eu alguma vez imaginara. Calculara que a mãe da minha mãe fosse uma
velhinha gentil de cabelos grisalhos. Nunca me passara pela cabeça que
alguma avó pudesse ter o aspecto daquela beldade de casaco de peles,
botas altas cinzentas e luvas compridas no mesmo tom. O cabelo, de um
louro de tom claro e brilhante, penteado para trás, revelava o seu rosto
escultural e isento de rugas. Não duvidava da sua identidade, não
obstante a sua espantosa juventude, pois era demasiado parecida com a
imagem que eu via todos os dias ao espelho.
- Vem, vem - disse-me ela, fazendo sinal ao marido para que pegasse nas
minhas malas e se apressasse. - Detesto locais públicos. Poderemos
conhecer-nos uns aos outros quando estivermos sozinhos.
O meu avô pôs-se imediatamente em movimento, pegando nas minhas duas
malas, enquanto a minha avó me puxava pelo braço; não tardei a entrar
apressadamente dentro de uma limusina que nos aguardava, com motorista
fardado.
- Para casa - ordenou o meu avô ao motorista, sem sequer olhar na sua
direcção.
Sentei-me no meio dos dois e, a certa altura, a minha avó sorriu,
finalmente. Abraçou-me com meiguice e beijou-me, murmurando palavras que
escapavam, parcialmente, ao meu entendimento.
- Desculpa termos sido tão abruptos nesta recepção, mas não dispomos de
muito tempo - disse a minha avó. Temos muitos quilómetros para percorrer
daqui até casa, querida Heaven. Esperamos que não fiques triste por não
te mostrarmos Boston hoje. E esse homem bonito que vai ao teu lado chama-
se Townsend Anthony Tatterton. Eu chamo-lhe Tony. Alguns dos seus amigos
tratam-no por Townie, só para irritá-lo, mas aconselho-te a não fazê-lo.
Como se eu algum dia fosse capaz de tal!
- Eu chamo-me Jillian - continuou a minha avó, mantendo a minha mão
firmemente segura entre as suas, enquanto eu continuava encantada com a
sua juventude, beleza e com o som da sua voz doce e sussurrante, tão
diferente de qualquer outra que já ouvira. - O Tony e eu tencionamos
fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para tornarmos a tua visita
agradável.
"Visita?". Eu não viera em visita, mas sim para ficar! Para
ficar para sempre! Não tinha para onde ir! O meu pai ter-lhes-ia dito que
eu só ia visitá-los? Que outras mentiras lhes enfiara na cabeça?
Olhei ora para um, ora para outro, profundamente receosa de me debulhar
em lágrimas que o instinto dizia-me não serem de bom gosto. Porque
presumira eu que umas pessoas cultas da cidade haveriam de querer uma
neta rústica como eu? Senti um nó formar-se na garganta. E quanto aos
meus estudos universitários? Quem, a não ser eles, os pagaria? Mordi a
língua para não chorar ou dizer algo que não devia. Talvez conseguisse
trabalhar e estudar ao mesmo tempo... Sabia escrever à máquina...
Dei-me conta, completamente siderada, dentro daquela limusina negra, do
enorme engano deles.
Antes de poder recobrar do choque, o marido da minha avó começou a falar
com uma voz baixa e ligeiramente rouca, utilizando palavras que eram
inglesas mas estranhamente pronunciadas.
- Acho melhor que saibas desde já que eu não sou o teu avô biológico. A
Jillian casou primeiro com o Cleave VanVoreen, que faleceu há cerca de
dois anos, e o Cleave é que foi o pai da tua mãe, a Leigh Diane
VanVoreen.
Mais uma vez embasbacada, senti-me mirrar. Ele era o tipo de pai que eu
sempre desejara, um homem brando e de fala suave. A minha desilusão foi
tão devastadora que nem pude deleitar-me totalmente com a alegria que
imaginara vir a ter quando soubesse o nome completo da minha mãe. Voltei
a engolir em seco e mordi a língua com mais força ainda, afastando a
imagem de que aquele homem bom e bonito era do meu sangue e tentando
imaginar, com grande dificuldade, como teria sido o Cleave VanVoreen. Que
espécie de apelido era aquele? Nunca conhecera ninguém nas colinas da
Virgínia Ocidental com um nome de família tão estranho como VanVoreen.
- Sinto-me muito lisonjeado por ficares com esse ar tão desiludido ao
saberes que não sou o teu avô biológico - observou o Tony, esboçando um
pequeno sorriso de satisfação.
Intrigada pela sua voz e entoação, olhei interrogativamente para a minha
avó. Esta corou sem que eu soubesse porquê, e o afluxo de cor tornou o
seu rosto ainda mais bonito.
- Sim, querida Heaven, eu sou uma dessas mulheres modernas e
desavergonhadas que são incapazes de suportar um casamento
insatisfatório. O meu primeiro marido não me
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merecia. No início do nosso casamento eu amava-o, pois dedicava-me muito
do seu tempo. Infelizmente, durou pouco. Negligenciou-me em troca dos
seus negócios. Talvez tenhas ouvido falar na Companhia dos Navios a Vapor
VanVoreen. O Cleave orgulhava-se imensamente dela. Os seus tolos barcos e
navios exigiam toda a sua atenção. Portanto, nem os fins-de-semana e
feriados me dedicava. Comecei a sentir-me solitária, tal como aconteceu
com a tua mãe...
- Jillian, repara nesta rapariga! - interrompeu-a o Tony. - Já viste os
olhos dela? São incrivelmente azuis, tal qual os teus e os da Leigh!
A minha avó inclinou-se para a frente e lançou-lhe um olhar frio e
admoestador.
- Claro que ela não é exactamente igual à Leigh! Há também algo mais além
da cor do cabelo. Algo nos seus olhos... algo que não é, bem, tão
inocente.
Oh! Tinha de me acautelar. Devia cuidar mais com o que os meus olhos
pudessem revelar. Nunca, nunca eles deveriam imaginar, sequer, o que se
passara entre o Cal Dennisson e eu. Se descobrissem, desprezar-me-iam,
tal como acontecia com o Logan Stonewall, o meu namorado de infância.
- Sim, claro que tens razão - concordou o Tony com um suspiro. - Nunca
existiram duas pessoas exactamente iguais.
Os dois anos e dois meses que"eu passara em Candlewick, nos arredores de
Atlanta, com a Kitty e o Cal Dennison, não me haviam dado o tipo de
sofisticação de que necessitava naquele momento, ao contrário do que eu
pensara anteriormente. A Kitty tinha trinta e sete anos quando morrera e
considerara a sua idade avançada intolerável. E agora tinha ali a minha
avó, muito mais velha do que a Kitty, mas com um ar muito mais jovem e
seguro que esta. Na verdade, eu nunca vira uma avó com uma aparência tão
juvenil como aquela. E nos montes, as avós atingiam essa fase em idades
muito precoces, sobretudo quando casavam aos doze, treze ou catorze. Dei
comigo a tentar imaginar quantos anos a minha avó teria.
Eu faria dezassete anos em Fevereiro. A minha mãe tinha apenas catorze
quando eu nascera; o mesmo dia em que morrera. Se ainda fosse viva, teria
trinta e um anos. Eu estava bastante bem informada e, segundo todos os
factos de que me inteirara relativamente aos membros de sangue azul de
Boston, sabia que só casavam depois de terminarem a sua educação. Os
maridos e os bebés não eram considerados tão
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essenciais na vida das jovens de Boston como acontecia às da Virgínia
Ocidental. Aquela avó devia ter, no mínimo, uns vinte anos quando casara
pela primeira vez. Naquele momento andaria, portanto, pelo final da casa
dos cinquenta. Imaginem! A mesma idade em que eu me lembrava melhor da
avó. A avó com o seu longo cabelo branco ralo, os ombros encurvados e a
marreca de velhinha, a artrite nos dedos das mãos e nas articulações das
pernas, a escassa roupa surrada e escura, os sapatos gastos.
"Oh, avó, pensar que um dia foste tão linda como esta mulher."
O escrutínio intenso e demorado a que submeti a minha juvenil avó fez
surgir duas pequenas lágrimas brilhantes nos cantos dos seus olhos azuis,
cor de centáurea, tão parecidos com os meus. Lágrimas que tremularam sem
cair.
Encorajada pelas suas escassas lágrimas estáticas, consegui falar:
- Avó, que foi que o meu papá lhe disse acerca de mim?
Fiz a pergunta com uma voz tremulamente baixa e assustada. O meu pai
contara-me que falara com os meus avós e que estes receber-me-iam em sua
casa. Mas que mais lhes dissera? Ele sempre me desprezara, culpando-me
pela perda de Angel, a sua esposa. Ter-lhes-ia o meu pai dito tudo? Nesse
caso, eles nunca chegariam a gostar de mim, muito menos a amar-me. E eu
precisava de alguém que me amasse como eu era... com todas as minhas
imperfeições.
Os brilhantes olhos azuis desviaram-se de mim, totalmente desprovidos de
expressão. Incomodava-me ver como ela conseguia torná-los impenetráveis,
como se soubesse ligar e desligar todas as suas emoções. Não obstante a
frieza do olhar e as lágrimas que desafiavam a gravidade, quando falou
fê-lo com voz doce e afável:
- Querida Heaven, importas-te de não me tratar por avó? Tenho tido um
empenho enorme em conservar a minha juventude e sinto que vou obtendo
sucesso nas minhas diligências... De modo que ser chamada "avó" em frente
de todos os meus amigos, que me imaginam vários anos mais nova do que na
realidade sou, deitaria a perder todos os meus esforços. Sentir-me-ia
muito humilhada por ser apanhada numa mentira. Confesso que minto sempre
acerca da minha idade, às vezes até mesmo aos médicos. Portanto, peço-te
que não fiques magoada ou ofendida por te pedir que, daqui em diante, me
trates apenas por... Jillian.
Novo choque, mas naquela altura já me começava a habituar a eles.
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- Mas... mas... - gaguejei. - Como é que lhes vai explicar a minha
existência? E de onde vim? E o que estou a aqui a fazer?
- Oh, minha queridinha, por favor, não fiques com esse ar tão triste! Em
privado, talvez em ocasiões esporádicas, poderás chamar-me... Oh, não!
Pensando melhor, isso não resultaria. Se eu te permitisse... descuidavas-
te e tratavas-me por avó sem querer. Portanto, o melhor é cortarmos já o
mal pela raiz. Sabes, querida, não se trata propriamente de mentir. As
mulheres têm de fazer o que está ao seu alcance para criarem a sua
própria mística. Sugiro-te que comeces desde já a mentir sobre a tua
idade. Nunca é cedo de mais. E apresentar-te-ei simplesmente como minha
sobrinha, a Heaven Leigh Casteel.
Levei alguns momentos a interiorizar a ideia e a encontrar a pergunta
seguinte.
- Tem alguma irmã cujo apelido seja igual ao meu... Casteel?
- Ora essa, não, claro que não. Mas as minhas duas irmãs já se casaram e
divorciaram tantas vezes que é impossível alguém recordar-se de todos os
apelidos que tiveram. E tu não tens de inventar nada, não é? Dizes apenas
que não queres falar nos teus antecedentes. E se alguém for
suficientemente rude para insistir, dizes a essa pessoa detestável que o
teu querido paizinho te levou para a sua terra natal... Como é que
disseste que se chamava?
- Winnerrow, Jill - elucidou o Tony, cruzando as pernas e passando
meticulosamente os dedos por um dos vincos impecáveis das suas calças
cinzentas.
Nos Willies, a maioria das mulheres competia entre si para ver quem se
tornava avó mais cedo! Era motivo de ostentação, de orgulho. Ora, a minha
própria avó fora-o aos vinte e oito anos, embora esse primeiro neto não
chegasse a completar um ano de idade. Mas, ainda assim... Aquela avó
parecia ter, aos cinquenta anos, oitenta ou mais.
- Está bem, tia Jillian - aquiesci, mais uma vez em voz sumida.
- Não, querida, não é tia Jillian, mas apenas Jillian. Nunca gostei de
títulos: mãe, tia, irmã ou esposa. Basta o meu nome próprio.
O marido, que ia ao meu lado, riu-se.
- Nunca ouviste palavras mais verdadeiras, Heaven, mas a mim podes chamar
Tony.
Desviei o olhar sobressaltado para ele. Vi-o sorrir maliciosamente.
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- Se ela quiser pode tratar-te por avô - declarou Jillian friamente. -
Afinal de contas, querido, ter laços familiares ajuda, não é?
Havia ali um fluxo de correntes subterrâneas que eu não conseguia
entender. Olhava ora para um ora para outro, pelo que prestei muito pouca
atenção ao caminho que o carro levava até as rodovias se alargarem em
auto-estradas, altura em que vi uma placa a indicar que seguíamos para
norte. Insegura relativamente à minha situação, esbocei nova tentativa
para descobrir o que o meu pai lhes dissera no seu telefonema
interurbano.
- Muito pouco - respondeu o Tony, enquanto a Jillian baixava a cabeça e
dava a impressão de fungar... Eu não saberia dizer se de uma constipação
ou da emoção. De vez em quando levava delicadamente o lenço de renda aos
olhos. O teu pai parecia um sujeito muito simpático. Disse que tinhas
acabado de perder a tua mãe, um desgosto que te fizera mergulhar numa
depressão profunda, e nós, naturalmente, pusemo-nos à disposição para
ajudar no que fosse necessário. O facto de a tua mãe nunca ter entrado em
contacto connosco, ou dito onde estava, sempre nos entristeceu. Cerca de
dois meses depois de ter fugido, escreveu-nos um postal onde nos disse
que se encontrava bem mas, depois disso, nunca mais deu notícias. Fizemos
os possíveis por descobrir o seu paradeiro. Chegámos mesmo a contratar
detectives. O postal estava tão manchado que era quase ilegível e a
gravura era de Atlanta, não de Winnerrow, na Virgínia Ocidental. - Fez
uma pausa e cobriu a minha mão com a sua. Querida menina, estamos ambos
muito contristados por saber da morte da tua mãe. Também sentimos muito a
tua perda. Se ao menos pudéssemos ter sabido do seu estado antes de ser
demasiado tarde! Poderíamos ter feito tanto para tornar os seus últimos
dias mais felizes... Creio que o teu pai se referiu a... um cancro...
Oh, oh!
Que horror o meu pai ter mentido!
A minha mãe morrera logo cinco minutos após o meu nascimento, pouco
depois de me dar o nome. A mentira abjecta do meu pai esfriou-me o sangue
e fê-lo esvair-se até aos meus tornozelos, deixando-me um buraco doloroso
no peito, ao ponto de me sentir agoniada. Não era justo alicerçar um
futuro feliz em mentiras! Mas a vida nunca fora justa para mim. Porque
haveria de esperar algo diferente naquela altura? "Maldito sejas, pai,
por não contares a verdade!" Quem
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morrera há dias fora a Kitty Dennison! A Kitty, a mulher a quem ele me
vendera por quinhentos dólares! A Kitty, que tão cruel fora com o seu
banho a escaldar, o seu feitio temperamental e os acessos inesperados de
violência que tinha antes de a doença lhe roubar as forças.
Desesperadamente ali sentada, com os joelhos juntos e as mãos no colo a
retorcerem-se uma à outra de nervosismo, para não as cerrar em punhos,
raciocinei que, afinal de contas, se calhar o meu pai fora muito esperto
em sair-se com aquela mentira.
Se ele lhes tivesse dito a verdade, que a minha mãe morrera há todos
aqueles anos, quem sabe se eles se sentiriam tão dispostos a ajudar uma
pacóvia que crescera habituada a privações e à ausência de uma mãe...
Depois foi a vez de Jillian me consolar.
- Queridíssima Heaven, um dia destes, muito em breve, sentar-nos-emos as
duas para eu te fazer uma lista imensa de perguntas acerca da minha filha
- sussurrou com voz enrouquecida, deixando escapar um soluço e
esquecendo-se de limpar as lágrimas. - Neste momento estou demasiado
perturbada e comovida para escutar algo mais. Por favor, querida, deixa o
resto para depois.
- Mas eu gostaria de saber mais agora - declarou o Tony, apertando a
minha mão, que ainda mantinha entre as suas. - O teu pai disse que estava
a telefonar de Winnerrow e que ele e a tua mãe viveram a maior parte da
sua vida nessa cidade. Gostavas dessa cidade?
Ao princípio, a minha língua recusou-se a formar palavras. Porém, ao ver
que o silêncio se prolongava e se tornava desconfortavelmente denso,
encontrei, por fim, uma resposta que não seria propriamente mentira.
- Sim, gostava bastante de Winnerrow.
- Óptimo. Detestaríamos saber que a Leigh e a filha tinham sido
infelizes.
Permiti que os meus olhos se encontrassem com os dele por breves
instantes, antes de os desviar de novo e fixá-los, sem ver, na paisagem
que se ia desenrolando.
- Como foi que a tua mãe conheceu o teu pai? - perguntou ele.
- Por favor, Tony! - exclamou a Jillian aparentemente muito perturbada.
Não me ouviste acabar de dizer que me sentia demasiado comovida para
ouvir os pormenores? A minha filha morreu e não me escreveu durante todos
estes anos! Como queres que esqueça e perdoe semelhante comportamento?
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Esperei sempre por uma palavra e um pedido de perdão! Magoou-me muito, ao
fugir! Chorei durante meses! Detesto lágrimas. Tu sabes bem, Tony! -
Soluçou com violência, como se a sua garganta não estivesse habituada a
tal, levando, mais uma vez, o pequeno lenço de renda aos olhos. - A Leigh
sabia que eu era emotiva e sensível, mas não se importou. Nunca gostou de
mim. De quem ela gostava era do Cleave. E a verdade é que contribuiu para
a morte do pai, que nunca conseguiu recompor-se depois de ela fugir...
Portanto, acabei de tomar uma decisão: não permitirei que a Leigh me
roube a felicidade e arruine o resto da vida com mágoas!
- Ora, Jill, nem por um momento imaginei que permitisses que a tristeza
te desse cabo da vida. Além disso, não podes esquecer que a Leigh viveu
dezassete anos da sua vida com um homem que adorava. Não é verdade,
Heaven?
Continuei a olhar inexpressivamente pela janela lateral. Santo Deus, como
poderia eu responder sem prejudicar as minhas possibilidades? Se
soubessem - o que, obviamente, não acontecia -, talvez mudassem de
atitude para comigo.
- Parece que vai chover - observei com nervosismo, olhando para fora do
automóvel.
Encostei-me às costas do banco elegantemente forrado a cabedal, e tentei
descontrair-me. A Jillian fazia parte da minha vida há menos de uma hora,
mas eu já adivinhara que ela não queria saber dos problemas de ninguém,
nem meus nem da minha mãe. Mordi o lábio inferior com mais força,
esforçando-me por não mostrar as minhas emoções mas, a certa altura, o
meu orgulho regressou, de armas e bagagens. Endireitei as costas, engoli
as lágrimas, fiz desaparecer o nó que tinha na garganta, empertiguei os
ombros e, para grande surpresa minha, a minha voz soou alta, forte,
honesta e sincera:
- Os meus pais conheceram-se em Atlanta e apaixonaram-se profundamente um
pelo outro à primeira vista. O meu pai apressou-se a levar a minha mãe
para junto da família que tinha na Virgínia Ocidental, de modo a ela
poder ter um sítio decente onde passar aquela noite. A sua casa não
ficava exactamente em Winnerrow, era mais nos arredores. Casaram na
igreja, numa cerimónia adequada, com flores, testemunhas e um sacerdote
e, mais tarde, partiram em lua-de-mel para Miami. E, quando regressaram,
o meu pai mandou fazer mais uma casa de banho na casa, só para agradar à
minha mãe.
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Silêncio!
Era um silêncio de morte que se prolongava interminavelmente...
Acreditariam eles nas minhas mentiras?
- Foi um gesto simpático, realmente - murmurou o Tony, fitando-me de
maneira estranha. - Algo que nunca me ocorreria, uma casa de banho nova,
mas prático, muito prático.
A Jillian ia com a cabeça virada para a janela, como se não desejasse
ouvir quaisquer pormenores acerca da vida de casada da filha.
- Quantas pessoas viviam com os teus pais? - continuou o Tony.
- Só os avós - respondi, na defensiva. - Adoravam a minha mãe, ao ponto
de só a tratarem por Angel1. Era Angel isto, Angel aquilo. O que ela
fazia estava sempre bem. Teriam gostado da minha avó. Morreu há alguns
anos, mas o avô continua a viver com o... papá.
- Em que dia e mês nasceste? - quis saber o Tony. Tinha dedos fortes e
compridos, e as suas unhas brilhavam.
- A vinte e dois de Fevereiro - respondi, dando a data certa mas o ano
errado: a data de nascimento da Fanny, um ano depois de mim.
- Ela estava casada com o papá há mais de um ano acrescentei, achando que
pareceria melhor do que um nascimento que tivesse lugar logo oito meses
após o casamento, o que poderia ter dado a conhecer a necessidade
incontrolável que os meus pais tinham tido de não esperar...
E só depois de as palavras me saírem é que me dei conta do que acabara de
fazer.
Caíra numa ratoeira. Agora eles pensariam que eu tinha apenas dezasseis
anos. Nunca mais poderia falar-lhes dos meus meios-irmãos, o tom e o
Keith, e das minhas meias-irmãs, a Fanny e a "Nossa" Jane. E eu que
tencionara seriamente recorrer à ajuda dos meus parentes para reunir de
novo a família debaixo do mesmo tecto! Deus me perdoasse por só ter
pensado em assegurar o meu próprio lugar!
- Tony, estou cansada! Tu sabes que tenho de repousar entre as três e as
cinco se quero estar em forma para o jantar desta noite. - A sua
expressão toldou-se por momentos, antes de explicar rapidamente. -
Querida Heaven, não te importarás que o Tony e eu passemos algumas horas
fora de casa hoje à noite, pois não? Tens uma televisão no teu quarto,
1 Angel: anjo. (N. da T.)
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e no primeiro andar há uma biblioteca maravilhosa com milhares de livros.
- Inclinou-se para me depositar um beijo leve na face, sufocando-me com o
seu perfume, que já enchia o espaço fechado. - Teria cancelado, mas
esqueci-me por completo e só esta manhã é que me dei conta de que
chegarias...
Senti um formigueiro na ponta dos dedos, talvez por tê-los fechados com
tanta força. Já estavam a arranjar desculpas para não ficarem comigo. Nos
montes, ninguém seria capaz de deixar um hóspede sozinho numa casa
estranha.
- Não tem importância - retorqui debilmente. - Também me sinto um pouco
cansada.
- Estás a ver, Tony, ela não se importa. Bem te disse. Depois compensar-
te-ei, querida Heaven, a sério. Amanhã irei andar a cavalo contigo. Sabes
montar? Se não souberes, eu ensino-te. Nasci num rancho de cavalos e a
minha primeira montada foi um garanhão...
- Jillian, por favor! A tua primeira montada foi um pequeno pónei tímido.
- Óh, que desmancha-prazeres tu és, Tony! Francamente, que diferença faz?
Apenas soa melhor dizer que se aprendeu com um garanhão do que com um
pónei. E o Scuttles era um querido, um verdadeiro amorzinho.
Agora que já sabia que ela tratava tudo e todos por "querido", já não
parecia tão simpático. E, no entanto, quando me sorriu e fez uma festa na
face com a sua mão enluvada, eu tremi, tão carente estava de afecto.
Aquilo que eu mais desejava era que ela gostasse de mim, que chegasse a
amar-me, e eu iria esforçar-me para que isso acontecesse muito, muito
rapidamente!
- A única coisa que preciso que me digas é que a tua mãe foi feliz -
sussurrou-me a Jillian.
- Ela foi feliz até ao dia da sua morte - declarei, sem, na realidade,
mentir.
Segundo os meus avós, a minha mãe fora loucamente feliz, apesar de todas
as agruras por que tivera de passar num casebre ventoso e miserável nos
montes e um marido que não podia dar-lhe nada daquilo a que estava
habituada.
- Então não preciso de ouvir mais nada - disse a Jillian em voz baixa,
envolvendo-me com um braço e puxando-me a cabeça para a gola de pele
macia do seu casaco.
Que reacção teriam se soubessem a verdade acerca de mim e da minha
família?
Limitar-se-iam a sorrir e a pensar que eu em breve partiria e, portanto,
que diferença fazia?
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Não podia permitir que soubessem a verdade. Tinham de me aceitar como
alguém do seu meio; eu tinha de fazer com que precisassem de mim, facto
de que eles ainda não tinham consciência. E não me iria assustar,
deixando que se apercebessem da minha vulnerabilidade.
E, no entanto, eles falavam um tipo de inglês diferente do meu. Tinha de
escutar com muita atenção; até mesmo palavras conhecidas soavam estranhas
com o seu sotaque. Porém, eu estava decidida a fazer com que depressa me
aceitassem no seu mundo, tão diferente de tudo o que eu já conhecera. Era
esperta, aprendia depressa, de modo que arranjaria maneira, mais cedo ou
mais tarde, de encontrar o Keith e a "Nossa" Jane.
O perfume que inicialmente achara delicado, começara a sufocar-me com a
sua forte essência de jasmim, fazendo-me sentir atordoada e completamente
alheada da realidade. Lembranças da Sarah, a minha madrasta, começaram a
passar-me pela mente. Oh, se a Sarah pudesse ter tido, ao menos uma vez
na vida, um frasco do perfume da Jillian! Ou uma caixa do pó-de-arroz
sedoso que ela usava.
A chuva, que eu já antevira, principiou com chuviscos dispersos que, em
segundos, se transformaram em lençóis de água a tamborilar no asfalto. O
motorista abrandou a velocidade e deu a impressão de se tornar mais
cuidadoso, e nós três, que nos encontrávamos do outro lado da barreira de
vidro, calámo-nos e remetemo-nos aos nossos próprios pensamentos. Eu só
pensava em ir para casa, ir para casa. Ir para onde tudo era melhor, mais
bonito, onde, mais cedo ou mais tarde, me sentiria verdadeiramente bem-
vinda.
O meu sonho estava a concretizar-se demasiado depressa para que eu
pudesse absorver todas as sensações. Queria provar e saborear aquela
primeira viagem para onde quer que eles me levavam e, mais tarde, quando
estivesse sozinha, reflectir sobre as impressões recolhidas. "Sozinha,
esta noite, numa casa estranha." Surgiram, porém, pensamentos mais
alegres. Oh, assim que pudesse escreveria ao tom a falar da minha linda
avó! Ele jamais acreditaria que uma pessoa tão velha pudesse parecer
assim tão jovem. E a minha irmã Fanny ficaria cheia de inveja! Se ao
menos pudesse telefonar ao Logan, que se encontrava a poucos quilómetros
de distância, no enorme dormitório de uma faculdade qualquer... No
entanto, eu fora suficientemente crédula e ingénua para cair na teia de
sedução montada pelo Cal Dennison. O Logan já não me queria. Se
telefonasse para ele certamente desligar-me-ia o telefone na cara.
19
A certa altura, quando o motorista virou à direita, a Jillian começou a
perorar interminavelmente sobre os planos que tinha para em breve, me
distrair.
- Nós fazemos sempre do Natal um acontecimento especial. Todos nós
participamos, por assim dizer...
Agora sabia o que ela estava a dizer-me, à sua maneira... Contava comigo
para passar ali o Natal. E estávamos ainda no princípio de Outubro...
Porém, o Outubro sempre fora um mês agridoce: o adeus ao Verão e a tudo o
que era luminoso e alegre; a espera do Inverno e de tudo o que era frio,
sombrio e escuro.
Porque me ocorreriam tais pensamentos? O Inverno numa casa rica e
opulenta dificilmente poderia ser frio e desolado. Haveria fartura de
combustível, lenha ou até mesmo aquecimento eléctrico, o que
providenciaria calor suficiente. Quando o Natal chegasse e partisse, eu
já teria enchido aquela casa solitária de tanta alegria que ninguém
desejaria ver ir-me embora. Não, não desejariam. Precisariam de mim...
Oh, Deus fizesse com que precisassem de mim!
Os quilómetros foram passando e, de repente, como que para melhorar o meu
estado de espírito e fortalecer a minha confiança, um sol brilhante
espreitou por entre as nuvens lúgubres. As árvores vestidas com as cores
vivas do Outono iluminaram-se, e eu acreditei que, afinal de contas, Deus
iria proteger-me. O meu coração encheu-se, subitamente, de esperança.
Iria adorar a Nova Inglaterra. Parecia-se tanto com os Willies... Só não
tinha os montes e as cabanas.
- Não tardaremos a chegar - observou o Tony, tocando-me ao de leve na
mão. - Olha para a tua direita e espera que surja uma aberta entre as
filas de árvores. A primeira visão que se tem de Farthinggale Mannor é
inesquecível.
Uma casa com nome! Impressionada, virei-me para o Tony e sorri.
- É assim tão grandiosa como o nome dá a entender?
- Ainda mais - respondeu-me ele melancolicamente. O meu lar é muito
importante para mim. Foi construído pelo meu tetravô, e todos os
primogénitos que o herdam contribuem para a sua conservação e melhoria.
A Jillian deixou escapar um som desdenhoso, como se sentisse desprezo
pela sua casa. No entanto, eu sentia-me entusiasmada, ansiosa por saber
mais pormenores que me impressionassem. Cheia de expectativa, inclinei-me
para a frente e fiquei à espera da clareira no meio das árvores. Não
tardou a surgir. O motorista enveredou por uma estrada particular
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cujo início era marcado por portões altos em ferro forjado, e na arcada
superior lia-se, em letras belamente desenhadas, "Mansão Farthinggale".
Fiquei de boca aberta só de ver o portão, com os seus duendes, fadas e
gnomos a espreitar por entre as folhas de ferro.
- Os Tatterton referiam-se afectuosamente ao nosso lar ancestral como
"Farthy" - informou o Tony com voz nostálgica. - Nos meus tempos de
menino costumava achar que não havia no mundo casa mais bonita do que
aquela onde eu morava. Claro que existem muitas que são superiores a
Farthy, mas não para mim. Quando fiz sete anos, o meu pai mandou-me para
Eton porque achava que os Ingleses percebem mais de disciplina que as
nossas escolas privadas. E nisso tinha razão. Em Inglaterra, eu não fazia
outra coisa senão sonhar com o meu regresso a Farthy. Sempre que sentia
saudades de casa, o que acontecia frequentes vezes, fechava os olhos e
imaginava o cheiro dos abetos e dos pinheiros e, acima de tudo, a maresia
do oceano. Depois regressava à realidade, desgostoso, com vontade de
sentir o ar frio e húmido da manhã no rosto, desejando com tanto ardor a
minha casa que chegava a doer fisicamente. Aos dez anos, os meus pais
desistiram de Eton, caso contrário eu andaria sempre cheio de saudades, e
permitiram-me que voltasse e... Oh, que dia feliz foi esse!
Eu não tinha dificuldade em acreditar nas suas palavras. Nunca vira uma
casa tão bela e enorme, feita de pedra cinzenta, ao ponto de fazer
lembrar um castelo, o que provavelmente fora intencional, segundo me
parecia. O telhado era vermelho e alto, formando torreões e pequenas
pontes vermelhas que davam acesso a zonas mais altas do telhado que, de
contrário, teriam ficado inacessíveis.
A certa altura, Miles abrandou o andamento do carro, detendo-o suavemente
em frente dos amplos degraus que conduziam à porta arqueada da frente.
- Vem - convidou o Tony, mostrando um entusiasmo súbito. - Deixa-me ter o
prazer de te apresentar Farthy. Adoro ver o ar de espanto no rosto
daqueles que a vêem pela primeira vez, pois assim é como se eu próprio
voltasse a vê-la de novo.
E com Jillian a seguir-nos com ar muito pouco entusiasmado, subimos
lentamente a vasta escadaria de pedra. Ladeando a porta da entrada,
estavam urnas enormes contendo
21
graciosos pinheiros japoneses. Eu mal conseguia reprimir a ansiedade que
sentia em ver o interior. Era a casa da minha mãe. Em breve estaria
dentro dela. Em breve veria os aposentos em que vivera, e os objectos que
lhe haviam pertencido. "Oh, mãe, estou finalmente em casa!"

2 A MANSÃO FARTHINGGALE

Dentro da casa de pedra, assim que despi o casaco, virei-me lentamente,


de respiração suspensa, olhos muito abertos, a olhar, a olhar, dando-me
conta, demasiado tarde, de que reagir daquela maneira diante dos bens dos
outros era provinciano e de mau tom. A Jillian fitava-me com ar de
censura, e o Tony, de prazer.
- É tudo o que imaginaste que seria? - perguntou-me este.
Sim, era mais do que me atrevera a esperar! E, no entanto, reconheci-a
pelo que era, o objecto dos meus anseios de montanhesa, do meu imaginário
juvenil.
- Tenho de me despachar, querida Heaven - lembrou a Jillian, falando
subitamente com ar muito animado. - Olha em volta o que te apetecer e
fica à vontade no castelo do rei brinquedo. Lamento não poder ficar para
testemunhar as tuas primeiras impressões, mas tenho de me apressar para
fazer a minha sesta. Tony, mostra a tua Farthy à querida Heaven, depois
acompanha-a aos seus aposentos. - Dirigiu-me um breve sorriso implorante
que me apagou do coração parte da mágoa que sentia por ela já estar a
negligenciar-me. Querida menina, perdoa ter de me apressar para ir tratar
das minhas obrigações incessantes. No entanto, mais tarde, ver-me-ás o
suficiente para te fartares da pessoa chata que eu sou. Além disso,
acharás o Tony dez vezes mais interessante. Tem uma energia sem limites.
Não mantém nenhum regime de saúde ou beleza e veste-se num ápice -
Lançou-lhe um olhar estranho, simultaneamente de irritação e inveja.
Ainda bem que alguém aqui em casa é assim.
Jillian aparentava agora uma boa disposição que parecera ter perdido,
como se a sua sesta e o seu regime de beleza e a perspectiva de uma festa
mais tarde lhe dessem mais alento do que aquele que eu lhe poderia
proporcionar. Subiu as escadas
23
com rapidez e graciosidade, sem olhar para trás sequer uma vez, enquanto
eu me deixava ficar a ver, completamente deslumbrada.
- Vem, Heaven - disse o Tony, oferecendo-me o seu braço. - vou mostrar-te
a casa antes de ires para os teus aposentos. Ou será que precisas de te
refrescar ou algo do género?
Levei uns segundos até perceber ao que ele se referia e depois corei.
- Não, estou bem.
- Óptimo. Isso significa que dispomos de mais tempo para passar um com o
outro.
Levou-me então a ver a enorme sala de estar com o seu imponente piano
que, segundo contou, o seu irmão Troy utilizava quando aparecia...
- Embora lamente dizer que o Troy encontra poucos motivos para vir a
Farthy. Ele e a minha mulher não se dão muito bem. Acabarás por conhecê-
lo.
- Onde está ele agora? - perguntei mais por delicadeza do que por
qualquer outra razão, já que as salas, com as suas paredes e pisos de
mármore exigiam quase toda a minha atenção.
- Não sei bem. O Troy vem e vai. É muito inteligente. Sempre foi. Formou-
se aos dezoito anos e depois disso tem andado pelo mundo.
Formado aos dezoito anos? Ora essa, que espécie de cérebro teria aquele
Troy? E eu que, com dezassete anos, ain-da tinha um ano de liceu pela
frente! Foi então que, inesperadamente, comecei a sentir um forte
ressentimento contra esse tal Troy e todas as suas benesses, a tal ponto
que não quis ouvir falar mais dele. Fiz votos para nunca vir a conhecer
alguém tão brilhante que me fizesse sentir uma insignificante, eu que me
considerara sempre uma boa aluna.
- O Troy é muito mais novo do que eu - disse o Tony, fitando-me com
desprendimento. - Quando era pequeno estava tantas vezes doente que eu o
considerava uma verdadeira dor de cabeça. Depois de a nossa mãe morrer,
seguida, um pouco mais tarde, do nosso pai, o Troy passou a considerar-me
uma espécie de pai, não apenas um irmão mais velho.
- Quem pintou os murais? - perguntei, para mudar de assunto.
Nas paredes e no tecto da sala de música viam-se murais requintados
exibindo cenas de contos de fadas... Bosques sombreados, com a luz do Sol
a infiltrar-se por entre a folhagem,
24
caminhos serpenteantes a desaparecerem de vista numa cadeia montanhosa no
cimo da qual se viam castelos... O tecto abobadado executava um arco no
alto, obrigando-me a inclinar a cabeça para poder olhar para cima. Oh,
como era maravilhoso ter um céu pintado por cima, cheio de pássaros a
esvoaçar e com um homem a voar num tapete mágico e mais outro castelo
místico semioculto pelas nuvens. O Tony soltou uma risada.
- Fico contente em ver-te tão deslumbrada com os murais. Foram ideia da
Jillian. A tua avó foi uma célebre ilustradora de livros infantis. Foi
nessa altura que a conheci. Um dia, tinha eu vinte anos, voltava de um
jogo de ténis, ansioso por tomar um duche e voltar a sair antes que o
Troy me visse e exigisse ter-me a seu lado para não ficar sozinho...
quando vi, no alto de umas escadas, as pernas mais bem-feitas que alguma
vez se me deparara. E quando essa criatura encantadora desceu e eu lhe vi
o rosto, pareceu-me irreal. Era a Jillian, que viera a acompanhar uma
decoradora sua amiga, e foi ela quem sugeriu os murais. "Cenários de
histórias de fadas para o rei dos fabricantes de brinquedos", foi assim
que ela pôs a questão, e eu concordei imediatamente em género, número e
grau. Era, também, uma maneira de ela aqui voltar.
- Porque lhe chamava ela rei dos fabricantes de brinquedos? - perguntei,
sinceramente espantada. Um brinquedo era um brinquedo, embora a boneca
que a minha mãe exibia no retrato fosse realmente mais do que um simples
brinquedo.
Aparentemente, eu não poderia ter feito uma pergunta ao Tony que mais lhe
agradasse.
- Minha querida menina, então tu imaginaste que eu fabricava vulgares
brinquedos de plástico? Os Tatterton são os reis dos fabricantes de
brinquedos, mas o que fazemos destina-se a coleccionadores, pessoas ricas
que não conseguem crescer e esquecer a infância em que não puderam
encontrar algo no seu sapatínho de Natal ou nalguma festa de aniversário.
E tu ficarias admirada se soubesses a quantidade de pessoas ricas e
famosas que não tiveram oportunidade de ser crianças e que, portanto,
agora, em plena meia-idade ou até mesmo velhice, não descansam enquanto
não obtêm aquilo com que sempre sonharam. De modo que compram as
antiguidades do momento, as valiosas peças de colecção feitas pelos
nossos artesãos, os melhores do mundo. Quando tu entras numa Loja de
Brinquedos Tatterton, penetras num reino
25
de fadas. Também escolhes a época que quiseres, quer seja no passado ou
no futuro. Estranhamente, os ricos preferem o passado. Temos uma lista de
espera de cinco anos para castelos de pedra construídos à escala, com os
fossos, as pontes levadiças, o campo de actividades, as acomodações do
pessoal da cozinha, os aquartelamentos para cavaleiros e escudeiros, os
estábulos para o gado, carneiros, porcos, galinhas. Aqueles que podem
montam os seus próprios reinos, ducados ou o que quer que seja, e povoam-
nos com as pessoas adequadas, criados, camponeses, cavalheiros e damas. E
nós inventamos jogos bastante complicados que os mantenham ocupados
durante horas e horas. É que os ricos e abastados aborrecem-se muito
depressa com tudo, Heaven. Entediam-se tão incessantemente que a partir
de certa altura viram-se para as colecções, quer sejam de brinquedos,
quadros ou mulheres. Vendo bem, este tédio é uma maldição para todos
aqueles que têm tanto que já não sabem o que adquirir... e tentam
preencher o vazio.
- Há pessoas capazes de pagar centenas de dólares por uma galinha de
brinquedo? - perguntei, deixando transparecer um enorme espanto na minha
voz.
- Há pessoas capazes de pagar milhares de dólares para possuir o que mais
ninguém tem. Portanto, as peças de colecção dos Tatterton são únicas e
esse tipo de trabalho manual é muito caro.
Saber que havia pessoas no mundo com tanto dinheiro para gastar
assustava-me, e impressionava-me. Que diferença fazia possuir o cisne de
marfim e olhos de rubi único, ou o par único de galinhas esculpidas
nalguma pedra semipreciosa? O que um potentado rico pagava pelo seu jogo
de xadrez exclusivo chegaria para matar a fome a um milhar de crianças
esfaimadas dos Willies durante um ano!
Que poderia eu dizer a um homem cuja família emigrara da Europa e
trouxera consigo a sua arte, começando imediatamente a fazer fortuna?
Como não me ocorriam palavras, voltei-me para algo mais familiar.
A ideia de a Jillian pintar fascinou-me.
- Foi ela que pintou estes? - perguntei, admirada e profundamente
impressionada.
- Fez os esboços originais e depois entregou-os a vários artistas jovens
para os finalizarem. Embora tenha de admitir que ela vinha verificar o
seu trabalho todos os dias, e cheguei mesmo a apanhá-la, uma vez ou duas,
de pincel na mão. A sua voz suave adoptou um tom sonhador. - Nesse tempo,
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usava o cabelo muito comprido, chegava-lhe até ao meio das costas. Num
minuto, parecia uma mulher-criança em miniatura, no outro, uma mundana.
Era senhora de uma beleza rara e, como é evidente, tinha noção do facto.
A Jillian conhece o poder da beleza e eu, aos vinte anos, não tinha
grande jeito para disfarçar os meus sentimentos.
- Oh... Mas então, que idade tinha a Jillian? - perguntei com uma certa
ingenuidade.
O Tony soltou uma gargalhada curta, dura e inconfundivelmente amarga.
- A Jillian avisou-me desde logo que era demasiado velha para mim, mas
isso só serviu para me interessar ainda mais. Gostava de mulheres mais
velhas. Pareciam ter mais para oferecer do que as raparigas tolas da
minha idade... Portanto, quando ela me disse que tinha trinta anos,
embora eu ficasse um tanto surpreendido, continuei a querer vê-la
constantemente. Apaixonámo-nos, apesar de ela ser casada e teruma filha,
a tua mãe. Mas nada disso constituía impedimento para que não desfrutasse
de todo o divertimento para o qual o marido nunca tinha tempo.
O facto de o Tony ser dez anos mais novo de que a Jillian, tal como
acontecia com o Cal em relação à Kitty Dennison, a sua mulher, era uma
coincidência, sem dúvida.
- Imagina a minha surpresa quando um dia descobri, estava já casado com
ela há seis meses, que a Jillian tinha quarenta e não trinta.
Ele casara com uma mulher vinte anos mais velha?
- Quem lhe disse? Ela?
- A Jill, minha querida, raramente fala da idade de quem quer que seja.
Quem me atirou essa informação à cara foi a Leigh, a tua mãe.
A ideia de a minha mãe ter traído a sua própria mãe, num assunto tão
importante, incomodava-me.
- A minha mãe não gostava da sua própria mãe?
O Tony deu-me uma palmadinha afectuosa na mão, sorriu esfuziantemente e
em seguida afastou-se noutra direcção, fazendo-me sinal para que o
acompanhasse.
- Claro que a Leigh gostava da Jillian. Sentia-se infeliz com o que
acontecera ao pai... e odiava-me por ter afastado a tua mãe dele. Apesar
de tudo, como acontece com a maioria da gente nova, depressa se adaptou a
esta casa e a mim, e ela e o Troy não tardaram a tornar-se grandes
amigos.
Eu escutava com metade da atenção, pois parte de mim extasiava-se com os
luxos daquela casa esplendorosa; depressa
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descobri que dispunha de nove salas no piso de baixo e de duas casas de
banho. As acomodações dos criados ficavam por trás da cozinha, formando
uma ala própria. A biblioteca era austera e senhorial, repleta de livros
encadernados. Era aí que o Tony tinha o seu gabinete de trabalho, que me
mostrou só de passagem.
- Tenho a impressão de que sou um pouco tirano em relação ao meu
gabinete. Não gosto de ninguém por lá, a não ser que tenha sido eu a
convidar. Nem sequer me agrada que os criados limpem o pó quando não
estou presente para supervisionar esse trabalho. Compreendes, a maioria
das criadas considera a minha organização uma perfeita desarrumação e
dispõe-se imediatamente a arrumar os meus papéis, a colocar de novo os
livros que tenho abertos nas prateleiras, e eu depois vejo-me aflito para
encontrar aquilo de que preciso. Pode-se perder um tempo imenso a
procurar o que se quer.
Nem por um minuto pude imaginar aquele homem de ar bondoso como um
tirano. O meu pai é que era um tirano, com os seus berros, os seus punhos
violentos, o seu temperamento turbulento, apesar de naquela altura, ao
lembrar-me dele, as lágrimas me assomarem aos olhos contra minha vontade.
Houvera tempos em que eu necessitara muito do seu amor, que ele me negara
completamente, dedicando apenas um pouco ao tom e à Fanny. E se por acaso
nutrira algum pelo Keith e pela "Nossa" Jane, eu nunca dera por isso...
- És uma rapariga desconcertante, Heaven. Ora pareces radiante de
alegria, ora sobem-te lágrimas aos olhos e dás a impressão de estar
infelicíssima. Pensas na tua mãe? Deves conformar-te com o seu
desaparecimento e consolares-te com a ideia de que teve uma vida feliz.
Nem todos podemos dizer o mesmo.
Mas fora tão curta... embora eu não exprimisse os meus pensamentos. Teria
de ter muita paciência até ganhar um amigo naquela casa. Ao olhar para o
Tony, tive o pressentimento de que o veria muito mais do que a Jillian.
Sabia que nessa altura lhe pediria ajuda, quando ele gostasse de mim o
suficiente para...
- Pareces cansada. Anda, vamos instalar-te para poderes descontrair e
repousar um pouco. - Então, sem mais delongas, voltámos para trás e em
breve chegávamos ao segundo andar. O Tony abriu teatralmente uma porta
dupla. Quando casei com a Jillian, mandei redecorar dois quartos para a
Leigh, que nessa altura tinha doze anos. Como queria
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agradar-lhe, dei-lhe aposentos femininos sem ser infantis. Espero que
gostes...
Tinha a cabeça voltada de maneira a eu não poder ver-lhe os olhos.
A luz do Sol que entrava pelas persianas em tom de marfim era enevoada e
débil, conferindo à sala de estar um aspecto estranho e irreal. Em
comparação com as salas que vira em baixo, aquela era pequena; ainda
assim, tinha o dobro do tamanho de qualquer aposento onde eu já tivesse
vivido. As paredes estavam forradas por um delicado tecido sedoso cor de
marfim, entretecido com motivos subtilmente orientais em verde, violeta e
azul, e os dois pequenos sofás exibiam o mesmo tecido, sendo as almofadas
dos assentos em azul-claro, a condizer com o tapete chinês que cobria o
soalho. Tentei imaginar-me instalada naquela sala, aninhada em frente da
pequena lareira, mas não fui capaz. A roupa áspera arranharia um tecido
tão delicado. Teria de ter muito cuidado para não deixar dedadas nas
paredes, nos sofás e nos numerosos candeeiros. Depois, comecei a rir. Ali
eu não viveria nos montes, nem trabalharia na horta ou esfregaria
soalhos, como fizera na cabana e em casa da Kitty e do Cal Dennison, em
Candlewick.
- Anda, vem ver o teu quarto - chamou o Tony, seguindo à minha frente. -
Tenho de me apressar para ir vestir-me para a festa que a Jillian não
quer perder. Tens de a desculpar. Planeou ir, antes de saber da tua vinda
e além disso a mulher que nos convidou é a sua melhor amiga e pior
inimiga. - Deu-me um beliscão por baixo do queixo, divertido com a minha
expressão, e em seguida dirigiu-se para a porta. - Se precisares de
alguma coisa, serves-te do telefone que ali está e pedes a uma criada que
te traga aquilo de que precisas. Se preferires comer na sala de jantar,
ligas para a cozinha e dás ordens nesse sentido. A casa está à tua
disposição. Diverte-te!
Saiu e fechou a porta antes de eu poder replicar. Olhei à minha volta,
examinando a linda cama dupla de quatro colunas e dossel arqueado de
renda pesada. Azul e marfim. Como aquelas duas dependências lhe deviam
ter assentado bem... A espreguiçadeira era em cetim azul, enquanto as
outras três cadeiras do quarto condiziam com as da sala. Fui até ao
quarto de vestir e à casa de banho, fascinada com todos aqueles espelhos,
os candelabros de cristal, a iluminação oculta que permitia ver nos
amplos espaços fechados dos armários. Em cima do toucador comprido
alinhavam-se fotografias
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emolduradas. Não tardou que me sentasse a olhar para a linda menina
instalada nos joelhos do pai.
Aquela criança tinha de ser a minha mãe! E aquele homem, o meu verdadeiro
avô! Excitada e trémula, peguei na pequena moldura de prata.
Nesse preciso momento bateram suavemente à porta do quarto.
- Quem é? - perguntei.
- Beatrice Percy - respondeu uma austera voz feminina. - Mister Tatterton
mandou-me cá acima ver se eu podia ajudar a menina a desfazer as malas e
a arrumar as suas coisas. - A porta abriu-se, e uma mulher alta, em
uniforme de criada, entrou no meu quarto. Sorriu-me inexpressivamente.
- Todos me tratam por Percy. A menina também pode fazê-lo. Serei a sua
criada pessoal enquanto cá estiver. Tenho formação que me qualifica para
tratar do seu cabelo e das suas unhas, e se o desejar irei preparar-lhe
imediatamente um banho de imersão.
Aguardou pela minha resposta com ar ansioso.
- Normalmente tomo banho antes de me deitar, ou então opto por um duche
quando me levanto - declarei, com embaraço.
Não estava habituada a falar de questões íntimas com desconhecidas.
- Mister Tatterton ordenou-me que cuidasse de si.
- Obrigada, Percy, mas neste momento não preciso de nada...
- Há algum alimento que não aprecie, ou que não possa comer?
- O meu apetite é óptimo. Posso comer de tudo e não sou nada esquisita.
Não, de esquisita eu não tinha nada, caso contrário teria morrido de
fome.
- Deseja que lhe traga o seu jantar aqui acima?
- Conforme lhe der menos trabalho, Percy.
A criada franziu quase imperceptivelmente o sobrolho, como se se sentisse
constrangida diante de uma patroa tão tolerante.
- Os criados estão aqui para tornarem a vida de quem se encontra nesta
casa o mais confortável possível. Quer jante aqui ou na sala de jantar,
estaremos à sua inteira disposição.
Imaginar-me a jantar sozinha na enorme sala de jantar do piso de baixo,
sentada àquela mesa compridíssima, rodeada de todas aquelas cadeiras
vazias, provocou-me uma sensação de solidão.
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- Então, se não se importa, traga-me algo de comer aqui acima, por volta
das sete horas.
- Sim, menina - retorquiu a criada, aparentemente aliviada por poder
servir-me e retirando-se em seguida.
E eu que me esquecera de lhe perguntar se conhecera a minha mãe!
Retomei de novo a inspecção aos aposentos que haviam pertencido à minha
mãe. Tinha a impressão de que tudo permanecera tal qual como no dia em
que fugira, embora tivesse sido arejado, limpo e aspirado recentemente.
Comecei a pegar nas fotografias emolduradas uma a uma, examinando-as
pormenorizadamente, numa tentativa para descobrir o lado da minha mãe que
escapara completamente aos meus avós. Tanta fotografia! Como a Jillian
estava bonita, sentada junto da filha, com o marido dedicado atrás. Na
orla da fotografia estava escrita em letra infantil, já desbotada e
desvanecida, a seguinte frase: "O papá, a mamã e eu."
- Ao abrir uma gaveta, deparou-se-me um gordo álbum de fotografias. Virei
lentamente as páginas pesadas, ficando a olhar para as fotografias de uma
menina em crescimento, que a passagem dos anos ia tornando cada vez mais
bonita. Havia imagens de festas de aniversários coloridas, aos cinco,
seis, sete, até aos treze anos. Leigh Diane Van Voreen escrevera o seu
nome vezes sem conta, como se se deleitasse em fazê-lo. "Cleave
VanVoreen, o meu pai"; "Jillian VanVoreen, a minha mamã"; "Jennifer
Longstone, a minha melhor amiga"; "Winterhaven, o meu futuro colégio";
"Joshua John Bennington, o meu primeiro namorado. Talvez o único."
Ainda não chegara ao meio do álbum e já sentia inveja daquela linda
rapariga loura, dos seus pais ricos e da sua roupa fabulosa. Ela tivera
idas ao jardim zoológico, a museus e, até, a países estrangeiros,
enquanto eu precisara de me contentar com gravuras do Parque de
Yellowstone que encontrava em revistas sujas do National Geographic ou em
textos da escola. Ao ver a Leigh com os pais num barco a vapor, rumo a
não sabia que porto distante, senti um aperto na garganta. Ali estava
ela, a Leigh VanVoreen a acenar animadamente a quem lhe tirava a
fotografia. Mais imagens da Leigh a bordo do navio, a nadar ou com o pai
a ensiná-la a dançar ou a mamã a tirar fotografias. Em Londres, em frente
do Big Ben, ou a assistir à mudança da guarda defronte do Palácio de
Buckingham.
A certa altura, durante a fase de mudança da minha mãe da infância para a
adolescência, perdi grande parte da comiseração
31
que sentia por aquela rapariga que morrera demasiado nova. Ela
experimentara, na sua curta vida, dez vezes mais alegria e divertimento
do que eu conhecera ou viria a conhecer nos próximos vinte anos da minha
vida. Desfrutara de um pai a sério durante os seus anos mais importantes,
um homem bom e gentil, a julgar pelo ar que aparentava nas fotografias,
que lhe aconchegava os lençóis na cama ao deitar, dizia as orações em
conjunto com ela e lhe ensinava como eram as pessoas. Como é que eu fora
capaz de pensar que o Cal Dennison me amava? Como poderia eu esperar que
o Logan voltasse a querer-me, quando era mais que certo que me veria do
mesmo modo que o meu pai?
Não, não, tentei dizer a mim mesma. Quem ficara a perder com o facto de o
meu pai não me ter amado fora ele, não eu. Eu não ficara
irremediavelmente traumatizada. Um dia, eu daria uma boa esposa e mãe.
Limpei as minhas lágrimas de fraqueza e ordenei-lhes que nunca mais
aparecessem. De que servia a autocomiseração? Eu nunca mais voltaria a
ver o pai. Não queria voltar a vê-lo.
Prestei, de novo, atenção às fotografias. Nunca me apercebera de que as
meninas podiam usar roupa tão bonita, quando, aos nove, dez e onze anos,
o meu sonho era possuir algo dos saldos baratos do Sears. E a Kitty
ensinara-me a recorrer ao K Mart. Examinei as fotografias que mostravam a
Leigh montada num reluzente pónei castanho, com a sua roupa de equitação
a realçar a sua tez branca e os cabelos muito louros. E, junto dela, o
pai. Sempre ao seu lado.
Vi a Leigh em fotografias de colégio, orgulhosa da sua figura que
começava a ganhar formas. A sua postura dizia-me que era orgulhosa,
permanentemente rodeada de amigos e admiradores. A partir de certa
altura, porém, o pai desaparecia abruptamente das fotografias.
O sorriso de felicidade da Leigh acompanhou o desaparecimento do pai. O
seu olhar passou a mostrar-se perturbado e os seus lábios perderam a
capacidade de sorrir. Via-se a mamã com um novo companheiro, um homem
muito mais jovem e bonito. Percebi de imediato que aquele indivíduo muito
bronzeado e louro era o Tony Tatterton, então com vinte anos. Era
estranho, mas a linda e radiosa menina que até pouco antes sorrira
espontânea e confiantemente para a máquina fotográfica, não era capaz de
esboçar nem mesmo um sorriso falso. A partir dali apareceria apenas
ligeiramente afastada da mãe e do novo homem desta.
Virei rapidamente a última página. Oh, oh, oh! Cenas do
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segundo casamento da Jillian. A minha mãe aos doze anos, envergando um
vestido de dama de honor, cor-de-rosa, até aos pés, com um arranjo de
rosas nas mãos e, ao seu lado, um rapazito muito novo, que tentava
sorrir, embora a Leigh VanVoreen não fizesse o menor esforço nesse
sentido.
O menino devia ser o Troy, o irmão mais novo do Tony. Era uma criança
esguia, de cabelo escuro e uns olhos enormes que não deixavam
transparecer felicidade.
Já fatigada e emocionalmente esgotada, tive vontade de fugir ao
conhecimento de todos aqueles factos que caíam sobre mim com tanta
rapidez. A minha mãe não gostara nem confiara no padrasto! Como poderia
eu fazê-lo naquele momento? No entanto, era imperioso que eu ficasse e
obtivesse a licenciatura universitária que representava todo o meu
futuro.
Cheguei-me à janela e fiquei a olhar para o caminho circular que
serpenteava a perder de vista. Vi a Jillian e o Tony, em trajes de noite,
a entrarem num belo carro novo que ele conduzia. Daquela vez não iam de
limusina... Seria por não quererem que o motorista ficasse à espera?
Quando o automóvel desapareceu de vista, senti-me muito só.
Que havia de fazer até às sete da tarde? Já sentia fome. Porque não o
dissera à Percy? Que se passava comigo para ficar tão acanhada e
vulnerável quando decidira ser forte? Ficara demasiado tempo fechada no
avião, no carro, ali, disse a mim mesma. Desci então ao piso de baixo e
tirei o meu casaco azul de dentro de um armário que continha uma meia
dúzia de casacos de pele pertencentes à Jillian. Depois dirigi-me para a
porta da frente.
POR TRÁS DO LABIRINTO
Caminhei depressa e raivosamente, sem saber para onde ia, ciente apenas
de que sentia intensamente o "cheiro a maresia", como o Tony lhe chamara.
Voltei várias vezes para trás, a fim de poder admirar Farthy do exterior.
Tanta janela para limpar! Janelas altas e enormes. Como manteriam eles
todo aquele mármore assim impecável? Ao recuar lentamente, tentei
descobrir quais eram as janelas dos meus aposentos. De repente fui contra
algo e, ao virar-me rapidamente deparou-se-me não uma parede mas uma sebe
tão alta e interminável que mais parecia um muro. Fascinada com o que
imaginava ser, segui-a até descobrir que tinha razão! Tratava-se de um
labirinto inglês. Entrei nele com um certo deleite infantil, sem
imaginar, nem por um instante, que corria o risco de me perder.
Encontraria a saída. Sempre fora boa a resolver puzzles. Não era por
acaso que, nos testes de inteligência, o tom e eu soubéramos sempre como
orientar os nossos ratos em direcção ao queijo ou os nossos piratas até
ao tesouro.
Como aquele lugar era bonito, com as suas sebes altas atingindo os três
metros e desenhando ângulos rectos perfeitos, e que tranquilidade! O
gorjeio dos pássaros no jardim soava distante e desvanecido. Até os
guinchos lamurientos das gaivotas que revolteavam no alto estavam
abafados longínquos. Quando me virei para ver se ainda divisava a casa
reparei que esta desaparecera... Onde estaria? As sebes altas não
deixavam passar o calor do Sol em declínio. Em breve este ficaria
reduzido a um frio desagradável. Acelerei os passos. Talvez devesse ter
avisado a Percy de que ia dar uma volta. Olhei de relance para o meu
relógio. Eram quase seis e meia da tarde. Dali a meia hora, alguém levar-
me-ia o jantar ao quarto. Iria eu perder a primeira refeição que tomaria
na minha sala de estar privativa? E alguém pegaria fogo, sem
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dúvida, aos troncos de lenha que vira na lareira. Seria agradável ficar
sentada em frente da minha lareira exclusiva, aninhada numa poltrona
elegante, a provar iguarias que não comeria em nenhum outro lado. Virei
mais uma esquina e vi-me diante de mais um beco sem saída. Voltei para
trás. Dessa vez fui pela direita. Naquela altura, porém, já dera várias
voltas e perdera a orientação, ficando sem saber por que caminhos já
passara. Foi então que me lembrei de tirar um lenço de papel do bolso do
casaco; rasguei-lhe um pedaço, que amarrei a um ramo da sebe. Pronto, a
partir dali já disporia de um ponto de referência.
O Sol, que descia no horizonte, incendiava o céu com cores intensas,
lembrando-me de que em breve desapareceria, substituído por um manto de
frio mais intenso. Mas o que era aquela zona civilizada de Boston
comparada com um ermo como os Willies? Depressa descobri que um casaco
comprado em Atlanta não fora concebido para quem vivia a norte de Boston!
Oh, aquilo era um disparate! Eu vestia o melhor casaco que alguma vez
tivera, comprado para mim pelo Cal Dennison. Tinha uma pequena gola em
veludo azul que, ainda há um mês atrás, eu considerara elegante.
Eu, que costumava deambular pelos montes aos dois e três anos de idade
sem nunca me perder, desnorteada por um labirinto idiota, concebido para
divertir as pessoas! Não podia entrar em pânico. Devia estar a cometer
algum erro. Deparou-se-me, pela terceira vez, o pedaço de papel cor-de-
rosa que adejava ao vento. Tentei concentrar-me... Visualizei o
labirinto, o lugar por onde entrara, mas todas as faixas entre as sebes
pareciam iguais e eu receava abandonar o conforto proporcionado pelo meu
bocado de lenço de papel rasgado, que ao menos me dizia que já ali
estivera três vezes. Detive-me, hesitante, tentando escutar o som da
rebentação da costa... Porém, não ouvi as ondas a bater nas rochas mas
sim um toque-toque contínuo. Era alguém a martelar. Havia gente por
perto. Deixei que os meus ouvidos me orientassem.
A noite caiu, rápida e pesadamente, e a névoa rodopiava no solo, onde o
ar frio encontrava a terra mais quente e não havia vento para a fazer
subir e espalhar-se. Continuei a seguir o som do martelar. A certa altura
assustei-me com o barulho de uma janela a fechar-se estrondosamente!
Acabaram-se as marteladas! Fiquei aturdida com o silêncio e com o que ele
significava de assustador. Eu poderia ficar a deambular
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por ali durante toda a noite e ninguém saberia. Quem se lembraria de me
ir procurar no labirinto do jardim? Oh, porque me pusera eu a caminhar de
costas? O hábito que eu trouxera dos montes parecia-me, naquele momento,
estúpido.
Cruzando os braços sobre o peito à maneira da avó, voltei na esquina
seguinte à direita, depois de novo à direita, nunca mais voltando a virar
à esquerda até, de súbito, me ver no exterior do labirinto! Não voltara
ao sítio por onde entrara, sem dúvida, visto não reconhecer nada, mas
qualquer lado era preferível a continuar no interior do puzzle. Estava
demasiado escuro e enevoado para ver a casa. Além disso, diante de mim
estendia-se um carreiro de lajes claras que reluzia fracamente na
escuridão. Senti o cheiro dos pinheiros altos que o nevoeiro e a noite
tornavam indistintos e foi então que avistei uma pequena casa de pedra
baixa, com telhado de telhas inclinado, no meio de um aglomerado de
pinheiros. Fiquei tão surpreendida que deixei escapar um pequeno grito.
Oh, como era bom ser rico! Ter dinheiro para desperdiçar! Aquela casa
pertencia a um livro de histórias, não ali. A rodeá-la, estendia-se um
cercado de madeira torto, que não protegia contra nada, servindo de ponto
de apoio a um roseiral que eu mal distinguia. Descobrir tudo aquilo à luz
do dia teria sido encantador... Contudo, era noite, de modo que a minha
imaginação levantou voo e senti-me assustada. Parei e analisei a situação
em que me encontrava. Podia dar meia volta e voltar para trás. Olhei de
relance por sobre o ombro, e vi que o nevoeiro ficara ainda mais cerrado
e já nem sequer conseguia ver o labirinto!
O cheiro acre a madeira queimada mostrou-me que o fumo devia estar a sair
pela chaminé. Devia ser, com certeza, a casa do jardineiro! Imaginei um
velhote sentado lá dentro, junto da mulher, prestes a iniciar uma
refeição simples que, sem dúvida, agradaria mais ao meu apetite do que os
pratos requintados preparados numa cozinha que o Tony nem se dera ao
cuidado de me mostrar.
A luz que passava pelas janelas não se projectava no exterior, recaindo
sobre o carreiro para iluminar os meus passos. Era uma luz difusa,
ansiosa por desaparecer. Dirigi-me para as janelas quadradas antes que,
também elas, sumissem no meio da névoa.
Ao chegar diante da porta da casa, hesitei antes de me fazer anunciar.
Bati três ou quatro vezes na porta sólida, cuja aspereza
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magoou as mãos. Ainda assim, ninguém respondeu. Havia alguém ali dentro!
Eu tinha a certeza! Impaciente porque, quem quer que fosse, fazia de
conta que não me ouvia, e agora confiante no facto de ser um membro mais
ou menos importante da família Tatterton, rodei a maçaneta e entrei numa
sala iluminada apenas pela luz proveniente de uma lareira acesa.
Dentro da casa estava muito quente. Fechei a porta e deparou-se-me um
jovem, sentado, de costas para mim. Via pelas pernas magras e compridas,
envoltas no tecido preto justo das calças, que era alto. Tinha os ombros
largos e as chamas arrancavam reflexos acobreados ao cabelo castanho e
revolto. Fiquei a olhar para aquele cabelo, pensando que era aquela a cor
com que eu sempre imaginara que o Keith ficaria quando fosse um homem. Um
cabelo espesso, ondulado, que chegava à nuca, revirado para fora,
tocando-lhe ao de leve no colarinho da camisa branca fina que fazia
lembrar a de" um artista ou poeta, com as mangas muito largas.
O jovem voltou-se ligeiramente, como se o meu olhar prolongado o tornasse
ciente da minha presença. Já conseguia ver-lhe o perfil. Sustive a
respiração. Não era apenas a beleza. O pai, com o seu jeito forte,
sensual e selvagem, era um homem bem-parecido, e Logan, com a sua
teimosia inata, possuía uma beleza clássica; aquele indivíduo era belo de
maneira diferente, de uma maneira especial de que nunca me dera conta
antes, e a imagem do Logan veio-me à lembrança, enchendo-me de culpa. Mas
o Logan fugira de mim. Deixara-me sozinha no meio do cemitério, à chuva,
incapaz de compreender que, por vezes, uma rapariga de quinze anos não
sabia como lidar com um homem que se tornara seu amigo. Excepto cedendo,
para que a sua amizade não morresse.
No entanto, o Logan pertencia ao passado e era bem possível que eu nunca
mais voltasse a vê-lo. Portanto fiquei a olhar para aquele homem,
profundamente intrigada pela maneira inesperada como o meu corpo reagira
só de eu o ver. Bastara virar o rosto na minha direcção para me atrair
imediatamente... como se dirigisse a sua ânsia para mim... como se me
dissesse que esta também passaria a ser minha! Também me alertava para
que avançasse devagar, que fosse cuidadosa e mantivesse a distância. Eu
encontrava-me numa fase da minha vida em que aquilo de que menos
precisava era de arranjar um romance. Já me fartara de homens forçando-me
ao sexo sem que estivesse preparada para tal. E no entanto
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ali estava, trémula, sem saber o que faria quando ele se voltasse
completamente para mim, quando bastava o seu perfil para me excitar
daquele modo. Disse a mim mesma, cinicamente, que era provável que lhe
visse algum defeito quando me encarasse de frente, sendo talvez essa a
razão que o levava a dar-se a tantos cuidados para manter o rosto oculto
nas sombras. Ele continuou sentado, meio de costas. Ainda assim irradiava
sensibilidade, como o poeta romântico ideal deveria fazer... Ou talvez se
assemelhasse antes a um antílope selvagem, imóvel e à escuta, alerta,
pronto a fugir se eu me movesse demasiado repentina ou agressivamente.
Já sabia, concluí. Ele tinha medo de mim! Não me queria ali. Um homem
como o Tony jamais teria continuado sentado. O Tony levantar-se-ia,
sorriria e inteirar-se-ia da situação. Devia tratar-se de um criado, um
jardineiro ou trabalhador eventual.
A própria posição em que se encontrava, a maneira como inclinava a cabeça
deu-me a perceber que ele estava à espera, possivelmente vendo-me, até,
pelo canto do olho. Uma das suas sobrancelhas ergueu-se
interrogadoramente mas, ainda assim, continuou imóvel. Pois bem, ele que
continuasse ali sentado sem saber do que se tratava, pois assim eu
dispunha de uma oportunidade magnífica para o examinar.
Voltou a virar-se um pouco mais, de martelo pronto a desferir novo golpe,
e vi-lhe então o rosto um pouco melhor, reparando que as suas narinas
tremiam e se agitavam, dando-me a perceber que respirava tão violenta e
rapidamente como eu. Porque não falava? Que se passaria com ele? Seria
cego, surdo?
Os seus lábios esboçaram o início de um sorriso ao baixar o martelo para
bater delicadamente numa fina folha de metal prateado brilhante, como que
para alisar as pequenas protuberâncias da sua superfície. O martelo
minúsculo foi fazendo toque-toque, toque-toque.
Comecei a tremer, sentindo-me ameaçada pela relutância que ele tinha em,
pelo menos, me cumprimentar. Quem era ele para me ignorar? Que faria a
Jillian na minha situação? Certamente não se deixaria intimidar por
aquele homem! Mas eu não passava de uma reles pacóvia Casteel e ainda não
aprendera a ser arrogante. Tossi ao de leve e de propósito. Nem assim ele
se apressou a virar e a fazer-me sentir bem-vinda. Dei comigo a pensar
que o achava o jovem de aspecto e maneiras mais estranhas que jamais
encontrara.
- Desculpe - disse eu em voz baixa, tentando imitar o
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tom sussurrante da Jillian. - Ouvi-o a martelar quando andava perdida no
labirinto. Lá fora está tão escuro e enevoado que não sei se conseguirei
encontrar o caminho de volta para a casa principal.
Sei que não é a Jillian - retorquiu o jovem sem olhar para mim -, caso
contrário ainda não se teria calado um minuto, falando-me de mil coisas
que não me interessam. E como não é a Jillian, não tem nada a fazer aqui.
Lamento, mas estou ocupado e não tenho tempo para atender visitas
indesejadas.
Fiquei aturdida pelo facto de ele querer que eu me fosse embora tão
rapidamente, mesmo antes de verificar quem eu era. Que espécie de homem
seria? Olha para mim, apeteceu-me gritar! Eu não era feia, apesar de não
ser a Jillian! Ele que virasse a cabeça e falasse comigo pois eu não
tardaria a ir-me embora, tanto me fazendo que voltasse, ou não, a vê-lo!
Quem eu amava era o Logan, não aquele desconhecido com os seus modos
indiferentes! O Logan, que um dia me perdoaria por algo a que eu não
conseguira escapar.
Franziu a testa, enrugando-a.
- Por favor vá-se embora. Saia e não diga uma palavra.
- Não, não me irei embora enquanto não me disser quem é!
- Quem é que deseja saber?
- Primeiro diga-me quem é.
- Por favor, está a fazer-me perder tempo. Retire-se imediatamente e
deixe-me terminar o meu trabalho. Esta casa é particular, é a minha casa.
Terreno proibido para os empregados da Mansão Farthinggale. Agora, ponha-
se a andar.
Antes de se virar novamente de costas, lançou-me um olhar rápido e
perscrutador que não demorou em nenhum dos aspectos do meu rosto ou
figura, aqueles que faziam com que os outros homens ficasssem a mirar.
Fiquei profundamente agitada! Ser examinada superficialmente e depois
atirada para o lado como se não fosse merecedora de umas simples boas
maneiras, doía... Que estúpida eu era com o meu orgulho de pacóvia!
Sempre fora demasiado orgulhosa, o que me fizera sofrer muitas vezes
desnecessariamente, quando teria sido muito mais fácil não ligar a algo
desprovido de verdadeira importância. Porém, esse mesmo orgulho voltou a
erguer-se bem alto e indignado, como acontecia sempre que alguém como ele
olhava de cima para baixo para alguém como eu! Esforcei-me por
antipatizar com ele. Certamente não passava de um criado. Um empregado
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colocado numa casa de jardineiro para recuperar pratas antigas!
Precipitando-me ao tirar aquela conclusão improvável, perguntei com modos
completamente alheios aos da Jillian:
- É empregado da casa? - Acerquei-me dele para o obrigar a olhar-me no
rosto e ver-me realmente. - O jardineiro ou alguém contratado pelo dono
da casa?
Ele mantinha a cabeça inclinada sobre o seu trabalho.
- Por favor, a menina está em minha casa, não sou eu que estou na sua.
Não sou obrigado a responder às suas perguntas. Quem eu sou não lhe
importa. Agradeço que saia e me deixe em paz. Não é a primeira mulher a
dizer que se perdeu no labirinto, acabando por vir ter aqui. Encontrará
um carreiro que contorna o exterior das sebes e a levará até ao sítio
onde ele principia. Uma criança seria capaz de o seguir, mesmo no meio do
nevoeiro.
- Viu-me chegar!
- Ouvi-a chegar.
Não sei o que me fez gritar.
- Eu não sou nenhuma criada daqui! - Desatei a falar com o sonoro sotaque
provinciano do meu pai e da Fanny, surpreendendo-me a mim mesma. - A
Mansão Farthinggale pertence à minha a... aos meus tios, que me
convidaram para vir para cá.
Porém, todos os receios ocultos na minha mente me aconselhavam a fugir, a
fugir o mais depressa possível.
Foi então que o jovem me olhou de frente, ao ponto de eu ver e sentir
todo o impacto da sua virilidade como nunca me acontecera com nenhum
outro homem até então. Os seus olhos escuros estavam envoltos em sombras
ao mirarem-me, dessa vez lentamente, começando pelo meu rosto, descendo
pelo meu pescoço, o meu peito ofegante, cintura, ancas, pernas, depois de
novo para cima, devagar, muito devagar. E quando chegaram aos meus lábios
de tiveram-se, para depois mergulharem, longa e profundamente, nos meus
olhos. Antes de ele desviar o olhar, que ficara levemente desfocado,
senti-me desfalecer. Oh, eu estava a afectá-lo, bem podia ver; ele vira
algo que o fizera cerrar os lábios e fechar os punhos. Desviando-se de
mim, pegou de novo no maldito martelo, fazendo menção de prosseguir o seu
trabalho e não permitir que nada interferisse nele! Voltei a falar alto,
com o sotaque próprio dos Casteel, sonoro e furioso:
- Pare! Porque não é capaz de ser educado comigo? É o meu primeiro dia
aqui e os meus anfitriões foram jantar fora,
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deixaram-me sozinha com os criados e eu não sei o que hei-de fazer para
me distrair. Preciso de alguém com quem falar E eles não me disseram que
havia uma pessoa como o senhor a viver na propriedade.
- Como eu? Que quer dizer?
Jovem como o senhor. Quem é?
- Eu sei quem a menina é - retorquiu ele, como que relutante em falar. -
Preferia que não tivesse vindo. Não tencionava conhecê-la. Mas não é
demasiado tarde. Basta sair pela porta com as duas mãos estendidas para
diante, que cinquenta passos à frente encontrará a sebe. Assim que a
sentir, é só manter a mão esquerda rente à verdura enquanto caminha para
a esquerda; depressa encontrará a casa grande. A biblioteca dispõe de uma
óptima colecção de livros, se gostar de ler. E se assim não for, também
lá tem uma televisão. E na terceira prateleira do armário, a contar do
fundo, encontrará álbuns de fotografias. Diverti-la-ão. E se tudo isto
falhar, o cozinheiro é muito simpático e adora conversar. Chama-se Ryse
Williams, mas nós tratamo-lo por Rye Whiskey1.
- Quem é o senhor? - gritei, enfurecida.
- Para dizer a verdade, não vejo o que isso possa interessar-lhe. No
entanto, já que faz tanta questão em saber, chamo-me Troy Langdon
Tatterton. O seu "tio" é o meu irmão mais velho.
- Está a mentir! - exclamei. - Se é quem diz ser e está aqui, eles ter-
me-iam informado!
- Não acho necessário mentir sobre insignificâncias como a minha
identidade. Talvez eles nem sequer saibam que me encontro aqui. Afinal de
contas, sou maior de idade. Quando venho para a minha cabana e local de
trabalho, não tenho o hábito de avisá-los. Nem de lhes dizer quando
parto.
- Mas... mas porque não vive na casa grande? - insisti. Sorriu
fugazmente.
- Tenho as minhas razões para preferir ficar aqui. Terei de lhas
explicar?
- Mas aquela casa tem tantos quartos, enquanto este lugar é tão
pequeno... - murmurei, bastante embaraçada, a tal ponto que baixei a
cabeça e senti-me perfeitamente infeliz. Ele tinha razão, evidentemente.
Que direito tinha eu de querer saber das suas razões?
1 Rye whiskey: uísque de centeio. (N. da T.)
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Dessa vez, colocou o seu pequeno martelo num nicho escavado na parede,
onde se encontravam outras ferramentas impecavelmente arrumadas. Quando
olhou para mim, os seus olhos sombrios, profundamente sérios, aparentavam
tristeza e algo mais que escapava ao meu entendimento.
- Que sabe sobre mim?
Os meus joelhos dobraram-se e eu sentei-me num pequeno sofá em frente da
lareira. Ao ver-me fazer aquilo, suspirou, como se tivesse preferido que
eu saísse porta fora; porém, eu não queria acreditar que era essa a sua
verdadeira vontade.
- Sei o que o seu irmão me contou, que não foi muito. Disse que era muito
inteligente e que se formou em Harvard aos dezoito anos.
Ele levantou e veio estirar-se numa poltrona ao lado da minha, esboçando
um gesto com a mão, que dava a entender que nada daquilo tinha a menor
importância.
- Não fiz nada de importante com a minha chamada grande inteligência.
Portanto, é como se tivesse nascido com um QI de cinquenta.
Fiquei de boca aberta ao ouvi-lo declarar algo tão contrário àquilo em
que eu acreditava. Quando se possuía estudos, tinha-se o mundo na palma
da mão!
- Mas formou-se numa das mais notáveis universidades do mundo!
Fi-lo sorrir, finalmente.
- Vejo que está impressionada. Ainda bem. Agora a minha educação ganhou
algum valor, pelo menos vista através dos seus olhos.
Fez-me sentir jovem e ingénua... Uma tola...
- Que faz com os seus conhecimentos além de martelar em metal como uma
criancinha?
- Touché - declarou ele com um sorriso que o tornava duas vezes mais
atraente, e Deus sabia que já me atraía o suficiente.
Verificar como a minha inteligência se deixava dominar pelo meu lado
físico envergonhava-me. Fiz recair a minha ira sobre ele.
- Só tem isso a dizer? - perguntei intempestivamente.
- O que eu fiz, com os meus modos rudes, foi tentar insultá-lo!
Não se mostrou ofendido, levantando-se e voltando para a mesa para pegar
de novo no pequeno martelo irresistível...
- Porque não me diz quem eu sou? - desafiei. - Já que sabe tanto, diga
qual é o meu nome.
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Só um momento, por favor - retorquiu delicadamente Tenho de fazer uma
série de armaduras em miniatura
para um coleccionador muito especial que adora este tipo de objectos. -
Ergueu um bocado de prata com a forma de um g Estes bocadinhos minúsculos
irão ter orifícios em cada uma das pontas e, quando se prenderem uns aos
outros com pequenos parafusos, a malha ficará maleável, permitindo todos
os movimentos a quem a usar, ao contrário do que aconteceu com as
armaduras que vieram mais tarde.
- Mas o senhor não é um Tatterton? A empresa não é sua? Porque gasta as
suas energias em algo que outros podem fazer?
- Quer saber tanta coisa! Mas responderei a essa pergunta, pois já muitos
ma fizeram anteriormente. Gosto de trabalhar com as mãos e não tenho mais
nada em que me ocupar.
Porque estaria eu a tornar-me tão detestável aos seus olhos? O Troy era
como uma figura de fantasia que eu criara há muito; naquele momento
estava ali, em carne e osso, à espera de que eu o descobrisse. E agora
que o tinha à minha frente, levava-o a antipatizar comigo.
Ao contrário do Logan, que parecia forte e confiante como o rochedo de
Gibraltar, o Troy tinha um ar muito vulnerável, tal como eu. Não dissera
uma palavra de crítica ao meu comportamento desagradável e, no entanto,
eu sabia que estava magoado. Fazia lembrar um violino cujas cordas tinham
sido demasiado esticadas, prontas a tanger ao menor toque descuidado.
Então, sem que eu tentasse interromper o que ele fazia, pôs de lado o seu
martelo e voltou-se para mim, sorrindo-me convidativamente.
- Tenho fome. Aceita as minhas desculpas por ter sido tão malcriado e
fica a fazer-me companhia no lanche, Heaven Leigh Casteel?
- Sabe como me chamo!
- Claro que sei. Também tenho olhos e ouvidos.
- Foi... a Jillian que lhe falou de mim?
- Não.
- Então, quem?
O Troy olhou de relance para o relógio de pulso e pareceu ficar
surpreendido com as horas.
- Espantoso. Pensei que ainda só tinham decorrido uns minutos desde que
comecei a trabalhar esta manhã. - Falava em tom de desculpa. - O tempo
passa sempre tão depressa
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que fico admirado com a maneira como os minutos correm e o dia depressa
chega ao fim. - Exibia um olhar parado e pensativo. - Claro que tem
razão. Estou a desperdiçar a minha vida com algo que não são mais do que
brinquedos imaginativos. - Passou as mãos pelo cabelo, desmanchando as
ondas que depressa voltaram ao seu jeito habitual. - Alguma vez costuma
achar a vida demasiado curta? Achar que, antes de concretizar metade do
que tem em mente, já será velha e fraca e a morte baterá à porta? O Troy
não devia ter mais de vinte e dois ou vinte e três anos.
- Não! Isso nunca me passou pela cabeça.
- Tenho inveja de si. Sempre achei que travava uma corrida louca contra o
tempo, e contra o Tony. - Sorriu-me então, deixando-me completamente
deslumbrada. - Muito bem, fique. Não se vá embora. Gaste o meu tempo.
Eu já não sabia que fazer. Apetecia-me ficar; no entanto, sentia-me
embaraçada e assustada.
- Ora, deixe-se disso - instigou o Troy -, tem o que queria, não é? Eu
sou inofensivo. Gosto de estar na cozinha, apesar de não ter tempo para
preparar mais do que umas sanduíches. Não tenho horas para comer. Faço-o
quando tenho fome. Infelizmente queimo calorias com a mesma velocidade
com que as ingiro, portanto estou sempre com fome. Resumindo, Heaven,
iremos ter a nossa primeira refeição juntos.
Naquele preciso momento deveriam estar a servir o meu jantar na Mansão
Farthinggale, mas eu esqueci-me do facto no entusiasmo de acompanhar
aquele homem até à sua cozinha, que mais parecia uma daquelas que
instalam nos iates, com tudo à mão e muito eficiente. Começou a abrir
portas e a colocar pão, manteiga, alface, tomates, presunto e queijo em
cima da mesa. Assim que tirava o que pretendia dos armários, fechava-lhes
a porta com a testa, já que tinha ambas as mãos cheias, mas não antes de
eu lançar uma olhadela ao conteúdo. Todas as prateleiras estavam
impecavelmente arrumadas e muito cheias. O Troy tinha ali comida
suficiente para alimentar cinco crianças da família Casteel durante um
ano... a comerem com fartura. Enquanto preparava as sanduíches, fazendo
questão em que eu não ajudasse, visto ser sua convidada, e pedindo-me
apenas que conversasse com ele para o distrair, parecia simultaneamente
satisfeito por me ter ali e, ao mesmo tempo, pouco à vontade e
cerimonioso. Como eu tinha dificuldade em falar, sugeriu-me que pusesse
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A mesa. Fi-lo rapidamente, aproveitando a circunstância para dar uma
vista de olhos mais pormenorizada à casa. Vista do interior, não era tão
diminuta como parecera do exterior. Dispunha de alas laterais, que
deitavam para outras divisões. era a casa de um homem, escassamente
mobilada.
Senti-me mais à vontade enquanto punha a mesa, como sempre me acontecia
quando ficava ocupada. Como era estranho estar ali com ele assim, numa
casa isolada, com a escuridão e o nevoeiro a separar-nos do resto do
mundo. Atrás de mim, o fogo crepitava e as faúlhas chiavam pela chaminé
acima. Tinha o rosto quente e ruborizado. Agora que as sanduíches o
mantinham atarefado, eu sentia-me demasiado encalorada e vulnerável. A
pessoa ocupada parecia sempre controlar melhor a situação do que a que
ficava a ver. Olhei demasiado demoradamente o rosto dele, observando os
reflexos fluorescentes que a luz arrancava aos seus cabelos; fitei
demasiado longamente o seu corpo, admirada com a intensidade com que o
meu reagira à visão do dele. Enchi-me de "culpa e vergonha. Como poderia
eu sentir-me assim perante um homem, depois do que o Cal me fizera?
Reprimi as minhas emoções, calquei-as bem fundo. Não precisava de nenhum
homem na minha vida, sobretudo naquela altura!
- O jantar está na mesa, minha senhora - anunciou o Troy timidamente,
sorrindo-me.
Afastou a cadeira para eu me sentar, e a seguir retirou o guardanapo
branco de cima de uma bandeja de prata com seis sanduíches. Seis!
Enfeitavam-nas salsa e rabanetes recortados em forma de rosa; colocados
em cima de ninhos feitos de salsa, estavam ovos muito apimentados e, em
volta, queijos de vários tipos, bolachas sortidas e uma taça de prata
cheia de maçãs vermelhas reluzentes. Maçãs polidas. Tudo aquilo quando
tencionara comer sozinho?
Ora, nos Willies, aquela comida teria dado para a avó, o avô, o tom, a
Fanny, o Keith, a "Nossa" Jane... para todos nós nos alimentarmos durante
uma semana!
A seguir trouxe duas garrafas de vinho: uma de tinto, outra de branco.
Vinho! A bebida que o Cal mandara vir para mim nos restaurantes, no tempo
em que eu vivera com ele e a Kitty em Candlewick. E fora o vinho que me
deixara tonta, levando-me a aceitar o que, de outro modo, poderia ter
sido evitado.
Não! Não podia dar-me ao luxo de cometer outro erro. Pus-me de pé num
salto e agarrei no meu casaco.
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- Desculpe mas não posso ficar - declarei. - De qualquer modo não queria
que eu desse pela sua presença aqui... Portanto, farei de conta que não o
vi!
Saí rapidamente porta fora e corri em direcção à sebe, apesar de estar
uma noite tão negra que assustava. O nevoeiro húmido junto ao solo
rEvolteava entre as minhas pernas e eu ouvi o Troy chamar por mim.
- Heaven, Heaven!
Que nome estranho a minha mãe escolhera para me dar, pensei pela primeira
vez na vida. Não era de pessoa, sim de um lugar; depois, as lágrimas
vieram-me aos olhos e comecei a chorar. A chorar por nenhuma razão.

3 PARA O BEM E PARA O MAL

- Devo alertar-te - disse o Tony na manhã seguinte, ao pequeno-almoço,


enquanto a Jillian dormia no primeiro andar. - O labirinto é mais
perigoso do que parece. Eu, no teu lugar, deixava a sua exploração para
aqueles que possuem mais experiências nesse tipo de empreendimento.
Pouco passava das seis da manhã e a madrugada assemelhar-se-ia
tremendamente ao crepúsculo se não fossem os bolinhos de mirtilos mornos
e as saborosas iguarias expostas no buffet. O mordomo encontrava-se no
seu posto, ao lado da série de recipientes de prata contendo os acepipes,
pronto a entrar em acção para nos servir aos dois, que estávamos sentados
a uma mesa que teria dado para oito. Eu não me sentia bem em mim. Era
assim que eu sonhara que iria ser. A provinciana que eu fora estava ao
meu lado, tremendo de deleite, deliciando-se dez vezes mais do que aquela
em que eu me tornara... desconfiada, nervosa, temendo cometer algum acto
demasiado grosseiro para que o Tony ou a Jillian me desculpassem. Quanto
ao Troy, eu tencionava nunca mais voltar a vê-lo. Era demasiado perigoso.
Provei, hesitante, cada um dos pratos que o Curtis colocou à minha
frente; era, sem dúvida, o pequeno-almoço mais fantástico que alguma vez
tomara na vida e, de certeza, o que mais me satisfizera. Ora, com aquele
género de alimentos dentro de mim, proporcionando-me tanta energia, teria
sido capaz de correr até à escola. Depois, ocorreu-me o pensamento
sarcástico de que a comida sabia-me tão bem porque não tinha tido
trabalho nenhum a prepará-la. E não precisaria de arrumar a cozinha.
- Curtis, pode retirar-se, que nós faremos tudo sozinhos
- ordenou o Tony, repentinamente.
Eu estava convencida de que o Tony era o homem mais dependente do mundo,
incapaz de se servir sozinho. Curiosamente,
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dava a impressão de se comprazer em ter o Curtis sempre ao pé, atento ao
seu menor sinal para fazer o que fosse preciso. Depois de o mordomo se
retirar, inclinou-se para a frente.
- Que tal achas o pequeno-almoço?
- Uma delícia - respondi, com entusiasmo. - Nunca provei ovos que
soubessem tão bem.
- Minha querida, acabaste de provar uma das iguarias deste mundo: trufas.
Contudo, eu não vira nada parecido com uma trufa, fosse o que fosse.
- Não importa - disse o Tony ao ver que eu ficava a olhar para o que
restara dos meus ovos, mal passados e servidos sobre panquecas finas e
douradas. - Agora é tempo de me falares de ti. Ontem, a caminho daqui,
pareceu-me ver um certo ar de zanga nos teus olhos. Porque ficavas tão
indignada sempre que tocávamos no nome do teu pai?
- Não dei por isso - murmurei, corando e desejando gritar a verdade e, ao
mesmo tempo, receosa de falar de mais. Quem estava mais presente nos meus
pensamentos era o irmão dele do que o meu pai; era do Troy que me
apetecia falar. E no entanto não podia perder de vista os meus planos, os
meus sonhos, assim como o bem-estar do Keith e da "Nossa" Jane. Eu sabia
que o primeiro passo na sua salvação não era pôr a minha em risco.
De modo que comecei, a princípio cautelosamente, a construir uma nova
infância para mim, baseada em meias verdades; as únicas mentiras que
disse foram as de omissão.
- Portanto, como vê, a mulher que morreu de cancro não foi a minha
verdadeira mãe mas sim uma madrasta chamada Kitty Dennison, que tomou
conta de mim quando o meu pai adoeceu e eu não tinha ninguém com quem
ficar.
O Tony deixou-se ficar sentado, sem conseguir libertar-se do choque que o
conhecimento de que a minha mãe morrera no dia em que eu nascera lhe
causara. A sua expressão tornou-se melancólica, triste. A seguir veio a
raiva, dura, fria e amarga.
- Queres dizer que o teu pai mentiu? Que outra razão poderia justificar a
morte por parto de umA mulher jovem, forte e saudável como a tua mãe,
senão a negligência? Ela estava no hospital? Santo Deus, hoje em dia as
mulheres não morrem a dar à luz!
- Ela era muito nova - sussurrei eu -, talvez demasiado nova para
sobreviver à provação. Vivíamos numa casa razoável,
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mas o trabalho de carpintaria do pai nunca era fixo. Às vezes, as nossas
refeições não eram muito nutritivas. Não sei dizer se ela foi examinada
regularmente pois as pessoas que vivem nos montes não acreditam muito nos
médicos. Preferem tratar dos seus próprios problemas. Para dizer a
verdade, as velhotas como a minha avó eram mais respeitadas do que as que
tinham consultório na cidade com um letreiro de médico à porta.
Iria o Tony virar-se contra mim, tal como acontecera com o meu pai?
- Gostaria de que não me culpasse pela morte dela, como o meu pai faz...
O Tony desviou os olhos azuis e pousou-os nas janelas que subiam até ao
tecto, ladeadas de cortinados de veludo rosa, debruados a dourado.
- Porque foi que ontem ficaste calada, confirmando as mentiras do teu
pai?
- Tinha um receio louco de que me rejeitassem se soubessem do meu passado
lamentavelmente pobre.
A ira inesperada e fria que o acometeu mostrou-me imediatamente que
aquele homem não era outro Cal Dennison, fácil de enganar.
Apressei-me a continuar, agora indiferente ao tipo de impressão que
estava a causar.
- Como acha que me senti quando soube que o Tony e a Jillian só contavam
comigo de visita? O meu pai disse-me que os meus avós estavam muito
contentes por eu ir viver com eles. Depois, descubro que só cá viria de
visita! Agora não tenho para onde ir. Ninguém me quer, ninguém! Tentei
perceber porque mentia o meu pai daquela maneira, pensando, talvez, que
ficariam preocupados com o meu bem-estar se me imaginassem de luto pela
morte recente da minha mãe. E de certo modo ainda o estou. Sempre tive
muita pena de não a ter conhecido. Não queria fazer ou dizer algo que
alterasse a vossa vontade em me receber, mesmo que por pouco tempo. Por
favor, Tony, não me mande embora! Deixe-me ficar! Este é o único lar que
tenho. O papá está muito mal com uma doença de nervos que em breve o
levará deste mundo. Porém, antes de isso acontecer, quis mandar-me para
junto da família da minha mãe.
O olhar severo e penetrante do Tony pousou em mim, em profunda reflexão.
Eu encolhi-me por dentro, receosa de que o meu rosto revelasse as minhas
mentiras. O meu orgulho caíra por terra, e eu estava disposta a pôr-me de
joelhos,
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se preciso fosse, para implorar e chorar. Comecei a tremer dos pés à
cabeça.
- Que nome dão os médicos a essa doença de nervos que o teu pai tem? -
perguntou o Tony.
Que sabia eu sobre doenças de nervos? Nada! Os pensamentos passaram-me
vertiginosamente pela cabeça, até me trazerem à lembrança algo que vira
uma vez na televisão, em Candlewick. Um filme triste.
- Já houve um jogador famoso de futebol que morreu com ela. Tenho
dificuldade em pronunciar o nome dessa doença específica de nervos. -
Tentei não parecer demasiado vaga. - É uma espécie de paralisia e termina
em morte...
O Tony estreitou os olhos, desconfiado.
- Quando falei com ele ao telefone, não me pareceu minimamente doente.
- Quem vive nos montes tem a voz forte. Falam todos muito alto, para se
fazerem ouvir.
- Quem toma conta dele, agora que a tua avó morreu e, se bem te ouvi
dizer, o teu avô está senil?
- O meu avô não está bem senil! - Irritei-me. - Acontece apenas que não
aceita a morte da minha avó e faz de conta que ela continua viva. Isso
não é loucura, apenas necessidade de companhia.
- Eu diria que imaginar que os mortos estão vivos e conversar com eles é
uma verdadeira senilidade - declarou o Tony secamente e sem emoção. - E
já reparei que umas vezes tratas o teu pai por papá e, outras, por pai.
Porquê?
- Papá, quando gosto dele - sussurrei. - Pai, quando não gosto.
- Ah...
Mirou-me com interesse acrescido.
Falei em tom queixoso, como se tivesse o jeito da Fanny para representar.
- O meu pai sempre me culpou pela morte da minha mãe e por isso nunca me
senti muito à vontade com ele nem ele comigo. Ainda assim, ele gostaria
de me ver amparada, em memória da minha mãe. E o papá sempre poderá
arranjar alguma mulher dedicada que cuide dele até ao fim da vida.
Fez-se um silêncio prolongado, durante o qual o Tony pareceu reflectir
cuidadosamente sobre a informação que eu acabara de lhe dar.
- Um homem capaz de merecer a dedicação de uma mulher apesar de estar às
portas da morte, não pode ser assim
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tão mau, não é, Heaven? Eu duvido que pudesse contar com alguém que
fizesse o mesmo por mim.
- A Jillian! - exclamei de imediato.
- Ah, sim, a Jillian, evidentemente.
Olhou para mim com ar ausente, ao ponto de me fazer sentir afogueada e
inquieta. Estava a analisar-me, a pesar os prós e os contras a meu favor.
Pareceu prolongar-se indefinidamente, mesmo depois de fazer um pequeno
sinal e o Curtis aparecer, não sei de onde, para levantar a mesa e voltar
a sumir. Até que, por fim, falou.
- Imagina que nós os dois fazemos uma combinação. Não contaremos à
Jillian que a tua mãe morreu assim há tanto tempo, pois isso magoá-la-ia
demasiado. De momento, fizeste-a imaginar que a filha teve dezassete anos
de felicidade ao lado do teu pai, e é uma pena desfazer-lhe essa ilusão.
Ela é uma pessoa emocionalmente instável. Nenhuma mulher consegue ser
estável quando toda a sua felicidade depende de se manter jovem e bela,
pois isso não pode ser eterno. Mas enquanto ela ainda consegue ter um
certo controlo sobre a juventude, embora talvez seja breve, nós os dois
devemos fazer os possíveis para mantê-la feliz. - Os seus olhos
perscrutadores estreitaram-se, antes de prosseguir. - Se eu te der um lar
e tudo o que lhe é inerente... roupa adequada, estudos, e mais ainda...
conto com uma retribuição. Estás disposta a dar-me o que te pedir?
Aguardou com ar pensativo, enquanto eu ficava a olhar para ele. A
primeira ideia que me veio à cabeça fora a de que eu vencera. Iria ficar!
Depois, ao vê-lo observar-me tão atentamente, tive a sensação de que era
um enorme gato gordo e eu um ratito enfezado sobre o qual ele se
preparava para saltar.
- Que tenciona pedir-me?
O Tony sorriu breve e rigidamente, divertido.
- Fazes bem em perguntar e ainda bem que tens o sentido da realidade. É
provável que tu própria já tenhas descoberto que tudo tem o seu preço.
Não me parece que te vá pedir algo que não seja razoável. Primeiro,
exigirei total obediência da tua parte. Quando eu tomar decisões sobre o
teu futuro, não as porás em questão. Aceitá-las-ás sem discutir. Gostava
muito da tua mãe e lamento que tenha morrido, mas não permitirei que a
tua entrada na minha vida me traga complicações. Entende desde já que, se
me causares problemas ou perturbares a minha esposa, mandar-te-ei de
volta para o lugar de onde vieste sem a menor mágoa, pois considerar-te-
ei
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uma imbecil, e os imbecis não merecem uma segunda oportunidade.
Fitou-me com fixidez. Permaneci calada.
Para te dar uma ideia das decisões que tomarei por ti,
comecemos pela minha escolha do colégio e da faculdade que frenquentarás.
Também decidirei que roupa usarás. Desprezo a maneira como as raparigas
hoje se vestem, dando cabo da melhor parte da sua vida com roupa vulgar e
espalhafatosa e o cabelo despenteado e mal cuidado. Vestir-te-ás como as
meninas o faziam no tempo em que eu andava em Yale. Inspeccionarei os
livros que lês e os filmes que vês. Não que vá ser antiquado... Acho
apenas que, quando se enche a cabeça de lixo, se abafam os maravilhosos
ideais e ideias que a maioria de nós tem quando é novo. Terei a última
palavra sobre os jovens com quem sairás e quando o farás. Esperarei
sempre que sejas delicada comigo e com a tua avó. A Jillian estabelecerá
as suas próprias regras, tenho a certeza. Mas de momento vou já indicar-
te algumas.
A Jillian dorme todos os dias até ao meio-dia. É o seu "sono de beleza",
como lhe chama. Nunca a incomodes. A Jillian não gosta de estar junto de
pessoas tristes e enfadonhas. Portanto, não as trarás a esta casa. Tão-
pouco falarás de assuntos desagradáveis na sua presença... Sempre que
tiveres problemas relacionados com o colégio, a saúde ou a vida social,
falarás deles comigo, em particular. Será bom nunca te referires à
passagem dos anos, assim como a factos ocorridos em tempos ou a histórias
tristes lidas nos jornais. A Jillian conseguiu condicionar-se de modo a
viver como uma ostra, enfiando a cabeça na areia sempre que surgem
problemas com outras pessoas. Quando for necessário, caberá a mim trazê-
la à realidade... não a ti.
Ali sentada àquela mesa comprida, tive quase a certeza de que o Townsend
Anthony Tatterton era um homem cruel e impiedoso que me utilizaria, tal
como, sem dúvida, se servia da Jillian, para qualquer fim que tivesse em
vista.
Ainda assim não tencionava recusar a sua oferta para me aceitar ali e
mandar-me estudar. Ansiava profundamente pelo dia em que teria o meu
diploma universitário... De repente, apenas isso se tornara importante.
Levantei-me e tentei falar com voz firme.
- Mister Tatterton, eu sempre soube que o meu futuro estava aqui em
Boston, onde posso frequentar as melhores escolas e preparar uma vida
melhor para mim do que a minha mãe teve nos montes da Virgínia Ocidental.
Aquilo que
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mais desejo é terminar o liceu e ir para uma faculdade importante que me
faça ter orgulho em mim mesma. Tenho uma necessidade desesperada de
melhorar a minha auto-estima. Quero um dia regressar a Winnerrow e
mostrar a todos os que me conheceram pobre, aquilo em que me tornei...,
contudo, não sacrificarei a minha honra ou a minha integridade para
alcançar nenhum desses objectivos.
O Tony sorriu como se me achasse ridícula por me referir a honra e a
integridade.
- Fico contente em saber que te preocupas com esses aspectos, embora já o
soubesse pelos teus olhos. No entanto, esperas muito de mim. Eu só te
peço obediência.
- Tenho a impressão de que por trás do seu pedido único ocultam-se muitas
exigências.
- Sim, é possível - concordou o Tony, sorrindo agradavelmente. -
Compreendes, eu e a minha mulher temos influência no círculo que
frequentamos e não queremos que nada manche a nossa reputação. Poderão
aparecer aqui membros da tua família a embaraçar-nos. Sinto que tu e e o
teu pai não se davam bem, mas no entanto tens tendência a defendê-lo,
assim como ao teu avô. E, com base naquilo que já sei sobre ti, possuis
uma grande capacidade de adaptação. Desconfio que, a seu tempo, tornar-
te-ás ainda mais bostoniana que eu próprio, que nasci aqui. Mas não quero
ver pacóvios da tua família por cá, nunca. Nem nenhum dos amigos que
deixaste na Virgínia Ocidental.
Oh! Aquilo era pedir demasiado! Eu planeara, mais tarde, depois de
conquistar a sua confiança e aprovação, contar-lhe toda a verdade! Falar-
lhe que o meu pai tivera sífilis naquele Outono terrível em que a Sarah
dera à luz um nado-morto deformado, a avó morrera e a Sarah fora-se
embora, deixando-me a mim e a mais quatro filhos seus naquela cabana,
entregues a nós mesmos. E depois, ele vendera-nos naquele Inverno
horrível, vendera-nos a todos por quinhentos dólares cada um! E como
poderia alguma vez convidar o tom, ou a Fanny, muito menos o Keith e a
"Nossa" Jane, a visitar-nos... quando encontrasse estes dois últimos.
- Sim, Heaven Leigh, quero que cortes os teus laços familiares, esqueças
os Casteel e te tornes uma Tatterton, como a tua mãe devia ter feito.
Fugiu de nós. Dirigiu-nos uma única carta, uma única! Alguma vez alguém
referiu, lá onde vivias, a razão pela qual ela não escrevia para casa?
Senti-me à beira de uma explosão de nervos. Ele devia saber bem melhor do
que a avó, o avô ou até mesmo o meu pai!
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- Como é que eles poderiam saber, a não ser que ela lhes dissesse? -
retorqui com um certo ressentimento. Segundo o que ouvi, ela nunca falava
da sua casa, excepto para dizer que viera de Boston mas que nunca mais lá
voltaria. A minha avó calculava que era rica pela roupa que trazia com
ela e uma caixinha de veludo com jóias, e também por ter maneiras muito
elegantes.
E, por alguma razão, não fiz qualquer referência ao retrato da boneca
vestida de noiva que tinha escondida no fundo da única mala que possuía.
- Ela disse ao teu pai que nunca mais voltaria? - perguntou o Tony
naquele tom de voz estranhamente tenso que dava a entender que ficara
afectado. - A quem mais disse ela?
- Ora, não faço ideia. A avó costumava dizer que era bom ela poder voltar
para o lugar de onde viera antes que os montes a matassem.
- Que os montes a matassem? - perguntou o Tony, inclinando-se para a
frente e fitando-me com dureza. - Eu imaginava que o que lhe tirara a
vida haviam sido os maus cuidados de saúde.
A minha voz ganhou uma entoação que me fez lembrar a minha avó quando
falava em tom de assombração para me impressionar.
- Há quem diga que só quem nasceu e cresceu nos nossos montes é que pode
ser feliz lá. Há por lá sons que ninguém consegue explicar, como o de
lobos a uivar à lua, embora os naturalistas digam que os lobos-pardos já
desapareceram faz muito tempo da nossa área. E, no entanto, nós ouvimo-
los. Temos ursos, linces e leões-da-montanha, e os nossos caçadores
voltam com histórias que falam de indícios da existência de lobos-pardos
nos nossos montes. Não importa que vejamos ou não os lobos, pois à noite
o vento traz os seus uivos e gritos até nós, acordando-nos. Acreditamos
em toda a espécie de superstições, costume que me esforcei por ignorar.
Manias tolas como as de uma pessoa ter de se virar três vezes para trás
ao entrar em casa, para que os demónios não a sigam. No entanto, os
forasteiros que vão viver para os nossos montes adoecem facilmente e às
vezes não chegam a curar-se. Por vezes, não há nada de errado com eles,
simplesmente começam a andar calados, perdem o apetite, ficam muito
magros e acabam por morrer.
O Tony apertou de tal modo os lábios que em volta destes formou-se uma
linha branca.
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- Nos montes? Winnerrow fica nos montes?
- Winnerrow fica num vale, aquilo a que a gente dos montes chama
"fundão". Toda a vida me esforcei para não falar com eles. Mas o vale não
é diferente das vertentes. Ali, no vale e nas vertentes, o tempo parece
ter parado, mas não da maneira como o fez com a Jillian. As pessoas
envelhecem rapidamente, demasiado rapidamente. Ora, a minha avó nunca
teve uma caixa de pó-de-arroz, muito menos pintou as unhas.
- Não me contes mais nada - disse o Tony algo impacientemente. - Já ouvi
o suficiente. Agora, diz-me, por que razão quereria uma rapariga
inteligente como tu voltar para um sítio como aquele?
- Pelas minhas próprias razões - respondi teimosamente, erguendo a cabeça
e sentindo as lágrimas a assomarem-se aos olhos.
Naquele momento não lhe podia contar como desejava erguer o apelido dos
Casteel e conferir-lhe algo que, até então, nunca tivera:
respeitabilidade. Fá-lo-ia pela minha avó.
Continuei de pé e ele sentado. Durante o que pareceu uma eternidade, o
Tony manteve as mãos elegantes, de unhas muito bem cuidadas, a servirem
de apoio ao queixo, não proferindo palavra até, de repente, as baixar e
tamborilar irracionalmente sobre a impecável toalha branca do pequeno-
almoço, enervando-me.
- Sempre admirei a franqueza - declarou a certa altura, com um olhar
tranquilo e imperscrutável. - A franqueza é sempre a melhor atitude a
tomar quando não se tem a certeza se uma mentira surtirá ou não mais
efeito. Ao menos, apresentaste o teu caso e, se falhares, sempre
conservarás a tua "integridade." - Exibiu um sorriso breve e divertido.
Cerca de três anos depois de a tua mãe fugir daqui, a agência de
detectives que contratei para a encontrar descobriu-lhe, finalmente, o
paradeiro em Winnerrow. Disseram-lhes que ela vivia nos arredores e que
quem morre no campo muitas vezes não chega a constar nos registos da
cidade. Mas muitos residentes de Winnerrow recordavam-se de uma linda
rapariga que casara com o Luke Casteel. Os meus detectives tentaram
encontrar o seu túmulo para se inteirarem da data do óbito, mas nunca
descobriram nenhuma lápide com o nome dela gravado na pedra... Mas eu há
muito sabia que ela não voltaria. Cumpriu a sua palavra...
Estaria a ver-lhe lágrimas nos olhos? Tê-la-ia ele amado ao seu jeito?
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- Poderás dizer, a bem da verdade, que ela amou o teu pai, Heaven? Por
favor, pensa bem nesta questão. É importante.
Como poderia eu saber o que ela sentira excepto pelo que me tinham
contado? Sim, a avó dissera que sim, que ela o amara... Porque ele nunca
lhe mostrara o seu lado cruel e odioso!
- Pare de me fazer perguntas sobre a minha mãe! - exclamei, incomodada ao
ponto de perder a compostura. Toda a vida senti que me culpavam pela sua
morte e agora o senhor também está a tentar acrescentar-lhe algo mais!
Conceda-me a minha oportunidade, Tony Tatterton! Serei obediente.
Estudarei com afinco. Fá-lo-ei orgulhar-se de mim!
Que teria ele ouvido na minha voz que o fez meter a cabeça entre as mãos?
Por minha vontade ele detestaria, tanto quanto eu, o meu pai, por ter
morto a minha mãe. Teria gostado de que ele se empenhasse comigo numa
vingança conjunta. E foi dessa expectativa que fiquei à espera, tremendo.
- Juras acatar as minhas decisões? - perguntou, erguendo rapidamente o
olhar para mim e fitando-me com insistência.
- Juro!
- Nesse caso nunca mais voltarás ao labirinto ou a procurar oportunidades
de visitar o Troy, o meu irmão mais novo.
Sustive a respiração.
- Como é que soube? Sorriu.
- Porque ele me contou, menina. Ficou muito entusiasmado contigo, com as
parecenças que tens com a tua mãe, daquilo que consegue recordar dela.
- Porque não quer que eu volte a vê-lo?
O Tony sacudiu a cabeça, franzindo o sobrolho.
- O Troy tem os seus próprios problemas, problemas esses que poderão ser
tão fatais como a doença do teu pai. Não quero que fiques contaminada...
Não que o que ele tem seja contagioso...
- Não compreendo - declarei desamparadamente, muito perturbada por saber
que o Troy poderia estar doente... e às portas da morte.
- Claro que não compreendes, ninguém compreende o Troy. Já viste homem
mais bonito? Não, claro que não! Não tem uma aparência notavelmente
saudável? Claro que tem. E no entanto pesa menos do que devia. Desde que
nasceu,
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tinha eu dezassete anos, que anda sempre doente. Portanto, faz como te
digo. Para teu bem, deixa o Troy em paz. Não podes salvá-lo. Ninguém
pode.
- Que quer dizer com essa de eu não poder salvá-lo? Salvá-lo de quê?
- Dele próprio - respondeu o Tony concisamente, agitando a mão para dar o
assunto por encerrado. - Muito bem, Heaven, senta-te. Falemos do que nos
interessa. Eu proporcionar-te-ei um lar, vestir-te-ei como uma princesa,
mandar-te-ei para os melhores estabelecimentos de ensino e, em troca de
tudo isto, pouco terás de me dar. Um... Como já te disse nunca falarás de
nada à tua avó que a incomode. Dois... Não te encontrarás com o Troy às
escondidas. Três... Nunca mais te referirás ao teu pai, nem pelo nome nem
por referência. Quatro... Farás o possível por esquecer os teus
antecedentes e concentrar-te-ás apenas no teu progresso. E, quinto... A
troco de todo o dinheiro que vou investir em ti e para teu benefício,
dar-me-ás o direito de tomar todas as decisões importantes na tua vida.
Concordas?
- Que... que tipo de decisões importantes?
- Concordas ou não concordas?
- Mas...
- Muito bem, não concordas. Estás com dúvidas. Prepara-te para partir a
seguir ao dia de Ano Novo.
- Mas eu não tenho para onde ir! - exclamei, desconcertada.
- Tens estes dois meses para te divertires, antes de te ires embora. Mas
não penses que nessa altura já não serás obrigada a partir por já teres
conseguido convencer a tua avó a dar-te o dinheiro suficiente para
tirares um curso superior, pois ela não controla o dinheiro que o Cleave
lhe deixou... Quem o faz sou eu. Dispõe de tudo o que deseja, cuido de
que nada lhe falte, mas não tem jeito nenhum para lidar com o dinheiro.
Eu não podia concordar com algo tão exorbitante como ele tomar decisões
por mim! Não podia!
- A tua mãe tencionava frequentar um colégio para raparigas que é o
melhor desta zona. Todas as meninas de famílias importantes vão para lá,
na esperança de encontrarem o jovem certo com quem possam casar mais
tarde. Também conto que encontres o teu "príncipe encantado" por lá.
Há muito que eu encontrara o meu "príncipe encantado", o Logan Stonewall.
Mais cedo ou mais tarde, o Logan viria buscar-me. Perdoar-me-ia.
Perceberia que eu fora uma vítima das circunstâncias...
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Do mesmo modo que o Keith e a "Nossa" Jane o eram. Mordi o lábio
inferior. A vida oferecia muito poucas oportunidades como a que o Tony me
estava a propor. Ali, naquela casa enorme, com os negócios a exigirem a
sua presença frequente na cidade, raramente nos veríamos. E o Troy
Tatterton não fazia falta nenhuma na minha vida, sobretudo porque um dia
eu voltaria a ver o Logan.
- Ficarei. Aceito as suas condições.
O Tony dirigiu-me o seu primeiro sorriso afectuoso.
- Óptimo. Eu sabia que tomarias a decisão certa. A tua mãe optou pela
errada, ao fugir. E agora, para simplificar o que poderá intrigar-te e
para que não precises de andar a bisbilhotar, a Jillian tem sessenta
anos, e eu, quarenta.
A Jillian tinha sessenta anos!
E a avó morrera apenas com cinquenta e quatro, parecendo ter noventa!
Santo Deus, como aquela verdade era triste! Fiquei sem saber que fazer ou
dizer, sentindo o meu coração a bater violenta e aceleradamente. Depois,
porém, senti um alívio que me invadiu e inundou, permitindo-me respirar,
descontrair e esboçar, até, um sorriso trémulo. No fim, tudo acabaria por
dar certo. Um dia, eu voltaria a reunir o tom, a Fanny, o Keith e a
"Nossa" Jane debaixo do meu próprio tecto. Mas isso poderia esperar até
eu me tornar senhora do meu futuro.
- Winterhaven tem uma lista de espera muito extensa. No entanto, mexerei
uns cordelinhos para te meter lá dentro; ou seja, se fores boa estudante.
Terás de te submeter a um teste para determinarem o teu grau de
aprendizagem. Há raparigas, em todo o mundo, a querer frequentar
Winterhaven. Nós dois iremos às compras juntos e deixaremos a Jillian
entregue às suas tarefas pessoais. Precisarás de mais roupa quente,
casacos, botas, chapéus, luvas, vestidos, tudo o que for necessário.
Representarás a família Tatterton, e nós temos um determinado padrão de
vida ao qual não podemos fugir. Terás uma mesada para conviver com as
tuas amigas e comprar o que te apetecer. Não te faltará nada.
Eu ficara como que em transe, presa na sua encantadora fantasia de
riquezas, onde eu podia comprar o que me apetecesse, e na educação
universitária que, sempre tão distante, de repente ficara próxima, ao meu
alcance.
- Como era essa mulher chamada Sarah, com quem o teu pai casou pouco
depois da morte da Leigh?
Porque quereria ele saber?
- Era dos montes. Alta, magra e tinha o cabelo castanho-avermelhado
brilhante e os olhos verdes.
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- O aspecto dela não me interessa, o que eu quero saber é como era de
feitio.
- Gostei muito dela até se voltar contra... - Ia a dizer "nós", mas parei
a tempo. - Gostei dela até fugir de casa, ao descobrir que o meu pai
estava a morrer.
- Deves riscar o nome da Sarah dos teus lábios e da tua memória. E
esperar nunca mais voltares a vê-la.
- Não sei onde a Sarah se encontra - apressei-me a dizer, sentindo-me
estranhamente culpada, com vontade de defendê-la, pois tentara, apesar de
ter fracassado...
- Heaven, se alguma coisa aprendi nestes quarenta anos foi que as
sementes que não prestam acabam sempre por germinar.
Fitei-o com maus presságios.
- Volto a repetir, Heaven. Se te tornares membro desta família, tens de
desistir do teu passado. De quaisquer amigos que possas ter tido. De
quaisquer primos, tias ou tios. Os teus objectivos serão superiores aos
de qualquer professorazita que se enterra nos montes onde nada evoluirá
até as pessoas que lá vivem decidirem fazê-lo. Viverás de acordo com os
padrões dos Tatterton e dos VanVoreen, que não são cidadãos vulgares, mas
sim excepcionais. Nós temos um compromisso, não apenas de palavras mas
também de acções, a que ambos os sexos ficam obrigados.
Que espécie de homem seria ele para estar com tamanhas exigências? Frio,
malévolo, pensei, esforçando-me intensamente por esconder os meus
verdadeiros sentimentos, embora a minha vontade fosse revoltar-me e
enfurecer-me, dizendo-lhe o que pensava verdadeiramente de restrições tão
cruéis.
De modo que adivinhei, ou pelo menos foi o que pensei na altura, o que
levara a minha mãe a fugir. Fora aquele homem impiedoso e autoritário!
Depois, fazendo jus à verdadeira Casteel reles que eu era, um pensamento
insinuou-se furtivamente no meu cérebro. Nem mesmo o Tony Tatterton seria
capaz de ler os meus pensamentos. Não saberia das cartas que eu
escreveria ao tom e à Fanny. Se ele queria ser um ditador, pois bem, que
o fosse. Eu jogaria as minhas próprias cartadas.
Inclinei humildemente a cabeça.
- Como quiser, Tony.
Depois, empertiguei-me e subi as escadas. Os meus passos iam acompanhados
por pensamentos amargos. Quanto mais as coisas mudavam, mais ficavam na
mesma. Eu era indesejada, até mesmo ali.
59
4 WINTERHAVEN

O Tony tomou conta da minha vida logo no dia a seguir, como se nem eu nem
a Jillian tivéssemos algo a dizer sobre o assunto. Estabeleceu horários
que incluíam todos os minutos do meu dia e roubou-me parte do entusiasmo
que eu poderia ter sentido se ele tivesse agido com mais calma no seu
processo de transformar uma serva de copa em princesa. Eu precisava de
tempo para me habituar a estar rodeada de criados por todos os lados;
tempo para aprender a movimentar-me numa casa de concepção quase tão
complicada como o labirinto do jardim. Não gostava que a Percy preparasse
o meu banho e escolhesse a minha roupa, não me deixando decidir sobre a
matéria. Não me agradava a ordem que, implicitamente, determinava que eu
não podia servir-me do telefone para ligar a qualquer membro da minha
família.
- Não - declarou o Tony terminantemente, desviando os olhos da página do
jornal onde vinham os câmbios que estivera a analisar. - Não precisas de
te despedir outra vez do tom. Disseste-me que já o tinhas feito.
Sentia-me atordoada por acontecimentos que se sucediam demasiado
rapidamente para eu os controlar e, quando murmurava algumas palavras de
queixa, o Tony fitava-me com surpresa.
- Porque dizes que ajo com demasiada rapidez? É o que tu queres, ou não?
Foi para isso que vieste para cá, não? Bem, agora dispões daquilo com que
sonhaste, do melhor que há. Terás de começar imediatamente as aulas. E se
achas que estou a fazer-te andar demasiado depressa, é assim que a vida
é. Não está no meu feitio ir devagar ou cuidadosamente e se queres que
nos dêmos bem será melhor adaptares-te ao meu ritmo.
Ao vê-lo sorrir-me, esforcei-me por não me sentir ressentida.
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Enquanto a Jillian passava as manhãs a dormir e outras quantas horas nos
seus "rituais de beleza secretos", o Tony levava-me a pequenas lojas onde
roupa e sapatos custavam pequenas fortunas. Não perguntou, nem uma vez, o
preço de camisolas, saias, vestidos, casacos, botas, nada! Assinou
facturas com o ar descuidado de quem nunca tem falta de dinheiro.
- Não - retorquiu-me ele quando lhe perguntei, num sussurro, se podia ter
sapatos com as cores a condizer com todos os fatos.
- Bastam cores como o preto, castanho, creme, azul e um par em tons de
cinzento e vermelho, até precisares dos brancos de Verão. Deixarei alguns
dos teus desejos por satisfazer. Ninguém deve ver todos os seus sonhos
concretizados de uma só vez. Vivemos de sonhos, sabes, e quando deixamos
de os ter, morremos. - Uma sombra toldou-lhe o olhar.
- Eu cometi uma vez o erro de dar demasiado e cedo de mais, nada
recusando. Desta vez não será assim.
No princípio dessa tarde voltámos para casa com o banco de trás do carro
atafulhado de embrulhos contendo roupa suficiente para três raparigas. O
Tony parecia não se dar conta de que já dera demasiado e cedo de mais.
Eu, que toda a vida sonhara com roupa cara e bonita, sentia-me aturdida.
Mas ele achava que eu ainda não tinha o suficiente. Certamente comparava
o meu guarda-roupa ao da Jillian.
A maneira como, muitas vezes, a Jillian me ignorava ou me inundava de
entusiasmo, era dolorosa para mim, pois nunca me sentia à vontade na sua
presença. Era frequente ter a sensação de que ela preferiria que eu nunca
tivesse aparecido. Noutras alturas, via-a tranquilamente sentada no sofá
do seu quarto, entretida com uma das suas eternas paciências solitárias,
olhando, de vez em quando, na minha direcção.
- Jogas às cartas, Heaven?
Reagi, ansiosa e prontamente, ao desafio, feliz por vê-la disposta a
gastar tempo comigo.
- Sim, faz já muito tempo um amigo ensinou-me a jogar gin rummy.
O mesmo amigo que também me presenteara com um baralho de cartas por
estrear, que pedira "emprestadas" na loja do pai.
- Gin rummyl - perguntou a Jillian com ar vago, como se nunca tivesse
ouvido falar no jogo. - Só conheces esse?
- Eu aprendo depressa!
Começou, nesse mesmo dia, a ensinar-me a jogar brídege,
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a sua modalidade preferida. Explicou-me os pontos de cada face de carta,
forneceu-me explicações pormenorizadas sobre quantos eram necessários
para responder ao lance de abertura do parceiro; depressa percebi que
teria de comprar um livro sobre brídege e estudar à parte, pois a Jillian
ia demasiado depressa.
No entanto, ela estava a gostar de me ensinar e, ao longo de toda a
semana, rejubilou diante das minhas derrotas. Até que chegou o dia
fatídico em que nos vimos sentadas diante do nosso pequeno tabuleiro
computorizado que faria a partida com um, dois ou três jogadores (ou
absolutamente nenhum - apenas contra si próprio) e, para profundo
desgosto da Jillian, eu ganhei.
- Oh, tiveste apenas sorte! - exclamou, levando as mãos às maçãs do
rosto. - Depois de almoço faremos nova jogada e aí veremos quem ganha.
A Jillian estava a começar a precisar de mim, a querer a minha companhia,
a gostar de mim. Era a primeira vez que tomávamos uma refeição juntas
além dos jantares servidos na sala de jantar. Era uma das mulheres mais
ricas do mundo e, certamente, uma das mais belas; no entanto, almoçava
minúsculas sanduíches de pepino ou agriões e beberricava champanhe.
- Mas estes almoços não são nem saudáveis nem nutritivos, ou até mesmo
satisfatórios, Jillian! - exclamei depois do nosso terceiro almoço
juntas. - com toda a franqueza, mesmo depois de comer seis das suas
sanduíches em miniatura, continuo com fome, além de não ser grande
apreciadora de champanhe.
Ergueu as sobrancelhas delicadas em sinal de exasperação.
- Que tipo de comida tu e o Tony ingerem quando almoçam juntos?
- Oh, ele deixa-me escolher entre o que houver. Na verdade encoraja-me a
provar alimentos que nunca experimentei antes.
- Ele estraga-te com mimos, tal como fazia com a Leigh.
- A Jillian deixou-se ficar sentada durante um longo momento de cabeça
baixa sobre a refeição frugal e depois agitou a mão, como que pondo o
assunto de parte.
- Se há algo que me desagrade verdadeiramente prosseguiu - é ver uma
jovem comer como se estivesse sempre esfomeada... E tu tens noção,
Heaven, de que só assim é que sabes alimentar-te, não é verdade? Enquanto
não souberes controlar a necessidade de tanta comida, acho melhor
62
não voltarmos a almoçar juntas. E quanto estivermos na sala de jantar,
esforçar-me-ei por reparar o menos possível nos teus hábitos alimentares.
A Jillian cumpria o que prometia. Nunca mais voltou a convidar-me para
jogar brídege com ela. Não voltámos a partilhar outro almoço e, quando
nos sentávamos na elegante sala de jantar com o Tony, era a este que ela
dirigia todas as suas observações. E quando não podia deixar de me dizer
algo, não virava a cabeça na minha direcção. Como eu desejava imensamente
agradar-lhe, tentei evitar servir-me pela segunda e terceira vez e
colocava apenas pequenas porções no prato. Comecei a andar
permanentemente com fome, de modo que dei em roubar na enorme cozinha
onde Ryse Williams, o corpulento cozinheiro-chefe, me deu as boas-vindas
ao seu domínio.
- Ora esta, rapariga, és tal qual a tua mãe. Santo Deus, nunca vi uma
filha tão parecida com a mãe... Apesar de teres o cabelo escuro.
Passei muitas horas naquela cozinha reluzente, cheia de tachos e panelas
de cobre e milhares de utensílios próprios que eu nunca vira, a ouvir
Ryse Williams contar histórias sobre os Tatterton, e embora tentasse,
várias vezes, levá-lo a falar sobre a minha mãe, ele mostrava-se sempre
incomodado e atarefava-se com os seus cozinhados. O rosto moreno e liso
empalidecia e mudava rapidamente de assunto. Mas um dia, um dia não muito
longínquo, Rye whiskey contar-me-ia tudo o que sabia, pois eu já
desconfiava, pelas suas expressões de constrangimento e embaraço, que ele
sabia muito.
Escrevi ao tom, na privacidade do meu quarto, a falar do assunto. Até ali
já lhe dirigira três cartas, alertando-o para que não me respondesse até
eu poder indicar-lhe um endereço "seguro". (Magoava-me pensar o que ele
estaria a imaginar.) Nessas cartas, descrevi a Mansão Farthinggale, a
Jillian, o Tony; porém, não disse uma palavra sobre o Troy. Este não me
saía da cabeça. Demasiadamente. Queria voltar a vê-lo, mas sentia receio.
Tinha mil perguntas para fazer ao Tony sobre o irmão, mas ele ficava de
má catadura sempre que eu abordava o tema do homem que vivia na casa por
trás do labirinto. Tentei, por três vezes, falar do Troy à Jillian, que
virou a cabeça e esboçou um sinal de indiferença com a mão.
- Oh, o Troy! É pessoa que não interessa. Esquece-o. Sabe demasiado sobre
tudo para conseguir apreciar as mulheres.
63
E apesar de pensar excessivamente no Troy, resolvi que era tempo de
escrever a carta mais difícil àquele que pertencia verdadeiramente ao meu
futuro, a fim de saber se ele me permitiria regressar de novo ao seu.
No entanto, como poderia eu escrever a alguém que um dia me amara e
confiara em mim e que depois me repudiara? Faria bem em ignorar o que
havia desencadeado o fim da nossa relação? Deveria discutir o assunto
abertamente? Não, não, decidi, teria de me encontrar com o Logan e ver a
sua expressão antes de entrar em mais pormenores em relação ao Cal
Dennison.
Por fim consegui escrever algumas palavras que não me pareciam adequadas.
"Querido Logan,
Estou finalmente a viver com a família da minha mãe, como sempre desejei.
Em breve irei para um colégio particular de raparigas chamado
Winterhaven. Se ainda sentes algo por mim, o que espero, tenta, por
favor, perdoar-me. Talvez então possamos começar de novo.
com amor,
Heaven"
O remetente que pus no envelope era o da posta-restante que, em segredo,
abrira na véspera, enquanto o Tony comprava roupa para si próprio numa
loja da mesma rua. Mordisquei a ponta da minha caneta antes de resolver
enfiar a única folha de papel dentro do envelope, fazendo-o com uma
pequena oração. Se o Logan ainda gostasse o suficiente de mim, poderia
poupar-me, com a sua força e fidelidade, a muitas agruras.
Tive oportunidade para despachar as minhas cartas logo no dia a seguir.
Disse ao Tony que precisava de ir aos lavabos, depois escapuli-me pela
porta das traseiras da loja e corri até um marco de correio, onde enfiei
as cartas. Feito isto, suspirei de alívio. Estabelecera contacto com o
meu passado. O meu passado proibido.
Depois voltámos para Farthy, que eu já começara a considerar como um lar,
agora que possuía objectos pessoais. Todas as manhãs levantava-me cedo,
ia nadar com o Tony na piscina interior e, depois de me secar e vestir,
tomava o pequeno-almoço na sua companhia, tendo-me já acostumado ao
Curtis, o mordomo, ao ponto de conseguir ignorar a sua presença quase tão
bem como o Tony, até precisar de algo.
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Raramente via a Jillian, que permanecia metade do dia no seu quarto,
antes de o abandonar, passando por nós rapidamente, com um ar adorável, a
caminho do seu cabeleireiro ou de algum almoço social (onde eu esperava
que comesse algo mais substancial do que minúsculas sanduíches
acompanhadas com champanhe).
Quanto ao Tony, partia para Boston logo a seguir ao pequeno-almoço, para
conduzir os seus negócios na Companhia de Brinquedos Tatterton. De vez em
quando telefonava-me do escritório e convidava-me para almoçar com ele
nalgum restaurante elegante, onde eu me sentia como uma princesa. Adorava
a maneira como as pessoas voltavam a cabeça à nossa passagem, como se
fôssemos pai e filha. "Oh, pai, se ao menos tivesses metade dos modos do
Tony..."
Depois vieram os dias difíceis, os dias surpreendentes, em que eu tinha
de sair de carro com o Tony todas as manhãs, bem cedo, aproveitando a sua
ida para o trabalho para ficar em frente de um edifício, de escritórios
de aspecto austero, onde era suposto submeter-me a testes para ser
admitida em Winterhaven.
- Os primeiros testes facultar-te-ão a entrada em Winterhaven - explicou
o Tony. - Os outros determinarão se estás apta, ou não, a frequentar as
melhores universidades. Espero que tenhas notas altas, não medianas.
Certa tarde, sentei-me junto da Jillian, no quarto desta, a vê-la
maquilhar-se e cheia de vontade de lhe falar como a uma mãe, ou até mesmo
como a uma avó; porém, mal referi os testes difíceis que tinha feito
naquele dia, ela ergueu impacientemente a mão direita.
- Por amor de Deus, Heaven, não me aborreças com conversas sobre estudos!
Eu detestava livros e a Leigh não sabia falar de outra coisa. Seja como
for, não sei que diferença faz, pois as raparigas bonitas como tu são
arrebanhadas do mercado com tanta rapidez que raramente dão uso aos
ensinamentos que receberam.
Ouvi-la proferir aquelas palavras fez-me arregalar os olhos de espanto...
Em que século viveria a Jillian? Nos dias de hoje, ambos os membros do
casal trabalhavam. Depois, olhando de novo para ela com mais percepção,
convenci-me de que sempre tivera como ponto assente o facto de a sua
beleza lhe conseguir uma fortuna, o que se revelara verdade.
- Além disso, Heaven, quando finalmente entrares para esse malfadado
colégio, tenta não trazer para casa as amigas que por lá fizeres... Ou,
se achares que isso não pode deixar
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de ser, avisa-me com três dias de antecedência para eu poder fazer outros
planos para mim.
Deixei-me ficar sentada, sem fala e profundamente magoada.
- Nunca me deixará fazer parte da sua vida, pois não?
- perguntei com voz lamentosamente sumida. - Quando eu vivia nos Willies
pensava que, quando finalmente conhecesse, a mãe da minha mãe, a senhora
gostaria muito de mim, precisaria de mim e quereria que formássemos uma
família amiga e unida.
A Jillian fitou-me com um ar muito estranho, como se eu fosse alguma
raridade de circo.
- Família amiga e unida? De que estás a falar? Eu tive duas irmãs e um
irmão e nunca nos demos bem. Passávamos a vida a barafustar uns com os
outros. E já te esqueceste do que a tua mãe me fez? Não tenciono permitir
que conquistes o meu afecto para depois eu voltar a ter um desgosto
quando te fores embora.
O modo como me olhava, com as ténues sobrancelhas ligeiramente erguidas,
deu-me a entender que não seria preciso nada de extraordinariamente grave
para me afastar daquela casa... e da sua vida. A Jillian queria viver tal
qual como antes da minha chegada. Eu não estava a representar
absolutamente nada para ela. Nunca me sentira tão deprimida.
Porém, compensava largamente a falta de entusiasmo e interesse da
Jillian. Passei nos meus testes, o primeiro obstáculo a vencer, com
pontuações muito elevadas. A partir dali, o Tony só precisou de olear
todos os mecanismos necessários para a administração de Winterhaven me
fazer passar à frente das centenas de outras raparigas que compunham a
lista de espera.
Encontrávamo-nos no seu elegante escritório quando me deu a notícia,
observando-me atentamente.
- Fiz tudo o que pude para te meter em Winterhaven. Agora é a tua vez de
mostrares o que vales. Tiveste notas muito altas nos testes e irás para a
classe das mais adiantadas. Mas temos de te inscrever já na faculdade,
juntando as tuas notas ao pedido de entrada. Winterhaven é um colégio
altamente académico. Far-te-ão trabalhar. Proporcionar-te-ão professores
inteligentes. Recompensam as suas melhores estudantes com o que
consideram útil para elas, como é o caso de determinadas actividades
sociais que poderás apreciar ou não. Se chegares ao topo das listas
académicas, levar-te-ão a chás onde travarás conhecimento com as pessoas
que são
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verdadeiramente importantes na sociedade bostoniana. Irás a concertos,
óperas e peças de teatro. Lamento que o desporto não seja tido em linha
de conta em Winterhaven. Praticas algum em especial?
Quando vivia nos Willies estudava muito para ter boas notas. Depois de
caminhar, todos os dias, cerca de doze quilómetros para ir para a escola
e outros tantos para voltar para os montes, não me restava tempo ou
energia para praticar desporto. Quando chegava a casa, tinha roupa para
lavar, a horta para cuidar e era preciso ajudar a Sarah e a avó. A vida
com os Dennison, em Candlewick, não fora muito melhor, pois a Kitty
considerara-me sua escrava. E o Cal só quisera ter uma companheira de
folguedos dentro de casa.
- Que tens? Não respondes? Gostas de desporto?
- Ainda não sei - sussurrei, mantendo os olhos baixos.
- Nunca tive possibilidade de os praticar.
Apercebi-me demasiado tarde que, em relação ao Tony, pessoa muito
observadora, manter o olhar desviado não era suficiente. Também tinha de
conservar uma expressão facial calma e impassível. Olhei-o de relance e
reparei que tinha um brilho de piedade nos olhos, como se adivinhasse
bastante mais sobre os meus antecedentes miseráveis do que aquilo que lhe
contara. No entanto, nem num milhão de anos ele seria capaz de imaginar
todo o horror que era ser pobre. Apressei-me a sorrir, antes que ele
soubese demasiado.
- Sou muito boa nadadora.
- Nadar faz bem à figura. Espero que este Inverno continues a utilizar a
nossa piscina coberta.
Constrangida, acenei afirmativamente com a cabeça.
Do piso de cima chegava até nós o leve bater das chinelas de cetim da
Jillian, entregue ao complicado regime de beleza que antecedia o início
do seu dia. Quando se tratava de uma festa, os preparativos eram de outro
tipo, sendo o mais demorado e enfadonho aquele a que se submetia antes de
se deitar.
- Já disse à Jillian que fico? - perguntei, mantendo o olhar fixo no
tecto.
- Não. com a Jillian não é necessário ser muito específico nem dar
grandes explicações. A sua capacidade de atenção é muito limitada.
Bastam-lhe os seus próprios pensamentos. Deixaremos simplesmente que
aconteça.
O Tony recostou-se e juntou as mãos debaixo do queixo. Naquela altura, já
eu sabia que aquela era a sua linguagem gestual para demonstrar que a
situação estava sob o seu controlo.
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- A Jillian habituar-se-á a ver-te por aqui, a dar pelas tuas idas e
vindas aos fins-de-semana, do mesmo modo como tu já nem reparas no
barulho das ondas a bater na costa. Insinuar-te-ás, a pouco e pouco, nos
seus dias, no seu consciente. Conquistá-la-ás com a tua doçura, com a tua
vontade de lhe agradar. Mas nunca te esqueças de que não deves entrar em
competição com ela. Nunca lhe dês motivos para desconfiar de que troças
das suas tentativas para disfarçar a idade. Pensa antes de falar, de
agir. A Jillian tem toda uma corte de amigos que sabem como realizar o
jogo da "idade" tão bem como ela, mas depressa verás que os ultrapassa a
todos. Fiz-te uma lista dos seus amigos e respectivas esposas e filhos,
assim como dos respectivos passatempos, do que gostam e detestam. Estuda-
a bem. Não te mostres demasiado em agradar. Sê esperta e elogia apenas
quem o merecer. Se falarem sobre questões de que nada sabes, fica calada
e escuta atentamente. Se soubesses a quantidade de gente que aprecia um
bom ouvinte, ficarias admirada. Mesmo que não digas nada de especial, se
pronunciares as frases certas tais como "conte-me mais", considerar-te-ão
uma conversadora brilhante.
Esfregou a palma das mãos, mirando-me dos pés à cabeça.
- Sim, agora que já estás vestida como deve ser, serás aceite. Ainda bem
que não tens de te livrar de um desses horríveis dialectos regionais.
No entanto, estava a pôr-me em pânico com a longa lista de amigos da
Jillian, que representavam obstáculos que eu tinha de vencer. Cada
palavra sua dava a impressão de me afastar cada vez mais dos meus irmãos
e irmãs. Iria eu ficar sem eles agora que alcançava uma vida estável para
mim? Nem a Fanny nem o tom poderiam passar por amigos meus de Boston, por
causa do forte sotaque com que falavam. Depois também era eu que, se
viesse a sentir-me demasiado vulnerável, poderia ser impelida a cometer
algum erro. Só havia uma pessoa do meu passado que não levantaria
desconfianças ao Tony: o Logan, com o seu aspecto sadio e bem-parecido e
os olhos sinceros e firmes. O Logan, porém, não era pessoa para disfarçar
as suas origens. Era um Stonewall e tinha orgulho em sê-lo, não se
envergonhando, como eu, do meu apelido e dos meus antepassados.
O Tony observava-me. Agitei-me, na poltrona de abas.
- Agora, antes que a Jillian desça e nos interrompa ao falar do sítio
aonde vai e do que leva vestido, examina este mapa da cidade. O Miles
levar-te-á ao colégio às segundas-
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-feiras de manhã e eu irei buscar-te às sextas-feiras, por volta das
quatro horas da tarde. Posteriormente, quando tiveres idade, poderás ir
tu mesma a guiar de um lado para o outro. Que automóvel gostarias de
receber, digamos, no teu décimo oitavo aniversário?
Fiquei tão entusiasmada ao pensar em ter um carro só para mim que
estremeci e fui incapaz de responder durante todo um longo minuto.
- Ficaria grata por qualquer um que quisesse oferecer-me - respondi com
um sussurro.
- Ora, deixa-te disso. O teu primeiro automóvel é um grande
acontecimento. Tornemo-lo especial. Vai pensando nisso. Repara nos carros
que circulam. Passa por lojas de automóveis e observa os que estão
expostos. Aprende a saber discriminar e, acima de tudo, desenvolve o teu
próprio estilo. Afirma-te nas tuas preferências pessoais.
Eu não fazia a menor ideia do que ele pretendia dizer; ainda assim,
seguiria o seu conselho e tentaria saber "discriminar". Deixei-me ficar
sentada, ainda entusiasmada com a ideia de vir a ter carro próprio,
enquanto o Tony abria um mapa da cidade em cima da secretária.
- Aqui está Winterhaven - declarou, apontando com o dedo para um local
sobre o qual traçara um círculo vermelho. - E isto aqui é Farthy.
Chegou até nós o bater destacado dos saltos dos sapatos da Jillian na
escadaria de mármore. O Tony começou a dobrar o mapa. Quando a Jillian
chegou à porta da biblioteca, já ele o guardara numa gaveta. O perfume
que ela usava fez-se sentir na sala antes de entrar. Òh, como ela parecia
mundana e confiante ao deslizar para dentro do aposento, sorrindo para
mim e para o Tony, envergando o seu fato de saia e casaco em crepe de lã
preto, com pele de marta na gola e nas mangas. Por baixo do casaco
entrevia-se uma blusa de chiffon preto que brilhava. A pele e os cabelos
muito claros da Jillian contrastavam deslumbrantemente com todo aquele
tom negro. Fazia lembrar um diamante tendo por fundo veludo negro.
O impacto da impressão recebida talvez me tenha feito inalar o ar
demasiado depressa. O cheiro adocicado do seu perfume floral não só
encheu as minhas narinas como também deu a impressão de invadir os meus
pulmões, fazendo-me engasgar, quase sufocar, antes de eu me entregar a um
paroxismo de tosse que me fez estremecer violentamente o corpo e ficar
com o rosto muito vermelho.
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- Que tosse é essa, Heaven? - perguntou a Jillian, dando imediatamente
meia volta para me fitar com um olhar alarmado. - Estarás a ficar
constipada? Será gripe? Se for, agradeço que não te aproximes de mim!
Detesto estar doente! E não tenho jeito para gente que esteja mal, fico
impaciente! Nunca sei o que dizer ou fazer. Nunca estive doente um dia da
minha vida... excepto quando a Leigh nasceu.
- Dar à luz não é considerado doença, Jill - corrigiu o Tony com voz
serena e paciente.
Pusera-se de pé quando a mulher entrara. Eu não sabia que os homens o
faziam com as esposas nas suas próprias casas. Fiquei então impressionada
que estremeci com o deslumbramento de viver com pessoas com maneiras tão
elegantes.
- Estás perfeitamente deslumbrante, Jillian - declarou o Tony. - Não há
cor que te assente melhor que o preto.
A Jillian gostou, aparentemente, do que viu nos olhos do marido.
Esqueceu-se dos meus micróbios e voltou-se para ele. Dando a impressão de
deslizar, entrou nos braços que ele lhe abria, rodeando-lhe ternamente o
rosto com as mãos enluvadas.
- Oh, querido, como o tempo passa. Tenho sempre a impressão de que nos
vemos muito pouco. Ultimamente, sempre que preciso de ti, não estás por
cá. Não tarda que o Natal chegue com as suas exigências e eu já saturada
do Inverno e de planear festas. - Fez deslizar as mãos dele do rosto para
a cintura. - Amo-te muito, querido, e quero-te todo só para mim. Não
seria maravilhoso termos outra lua-de-mel? Por favor, tenta descortinar
uma maneira de fugirmos ao tédio e à tristeza que será ficarmos nesta
casa destestavelmente fria até Janeiro.
Deu-lhe dois beijos e depois continuou, em voz muito branda:
- O Troy pode encarregar-se dos negócios, não pode? Estás sempre a gabar
o génio dele para o trabalho. Portanto, dá-lhe uma oportunidade de
mostrar o que vale.
Estranhamente, senti o coração acelerar ao ouvir o nome do Troy,
apetecendo-me, ao mesmo tempo, gritar em protesto. Eles tinham de ficar!
Não podiam deixar-me sozinha, a passar as férias num colégio estranho,
com colegas que ainda nem conhecia!
E tudo o que a Jillian estava a fazer ao Tony trouxe-me à lembrança a
Kitty, que soubera exactamente como manobrar o Cal, o marido, ao sabor
dos seus desejos! Seriam todos os
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homens assim tão dependentes da sua vida sexual para perderem o controlo
do bom senso quando uma mulher bonita os lisonjeava? Oh, era certo que o
Tony não parecia o mesmo homem que, ainda há pouco, apoiara o queixo nos
dedos juntos. Observava a Jillian com suave intensidade, e esta
conseguira, de uma forma subtil e misteriosa, apoderar-se das rédeas do
marido, ficando ela no controlo. A facilidade com que a via obter o que
queria do Tony, assustava-me.
- Verei o que se pode fazer - disse o Tony indolentemente, tirando do
ombro do fato um longo cabelo louro. Fê-lo balançar cuidadosamente sobre
um cesto de papéis, antes de o deixar cair. Aquele gesto insignificante
fez-me compreender que nunca nenhuma mulher seria capaz de controlá-lo...
Ele apenas lhes permitia ter essa ilusão.
Desprendeu-se brandamente das mãos com que a Jillian se prendera à lapela
do seu casaco.
- A Heaven e eu tencionamos comprar a roupa que falta para o colégio hoje
à tarde. Seria muito agradável vires connosco, seria um dia em grande,
jantaríamos e poderíamos ir ao teatro ou ao cinema...
- Ohhh... - murmurou a Jillian, fitando-o nos olhos com ternura -, não
sei...
- Claro que sabes - observou o Tony. - Os teus amigos podem passar sem
ti. Afinal de contas, há anos que os conheces, enquanto a Heaven ainda
tem muito para nos mostrar.
A Jillian ficou imediatamente enfastiada. Os seus olhos azuis desviaram-
se para mim, como se tivesse esquecido a minha presença.
- Oh, querida, não te tenho ligado muita atenção, pois não? Porque é que
um de vocês não me avisou a tempo? Realmente adoraria ir às compras
contigo e com o Tony, mas pensei que já tinham terminado e fiz planos.
Agora é demasiado tarde para cancelar. E se não aparecer no meu clube de
brídege, aquelas mulheres traiçoeiras ainda me fazem em pedaços, o que
não acontecerá se eu não faltar.
Fez menção de se aproximar de mim e beijar-me, mas lembrou-se, a tempo,
da minha tosse. Estacou por um momento, aparentemente intrigada por algo.
O que lhe chamou a atenção foi a minha cabeleira, que era difícil de
controlar.
- Estás a precisar de um bom cabeleireiro - murmurou com ar distraído,
baixando a cabeça para remexer no fundo da sua bolsa. Tirou desta um
pequeno cartão. - Cá está,
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querida, é deste homem que precisas. É um génio em matéria de cabelos. O
Mário é a única pessoa a quem permito que toque no meu. - Olhou de
relance para um espelho de parede, levando a mão ao penteado, que
ajeitou. - Nunca sejas atendida por uma cabeleireira. Os homens apreciam
muito mais a beleza de uma mulher e parece saberem exactamente aquilo que
é necessário para a realçar.
Lembrei-me da Kitty Dennison, que tivera um salão de cabeleireiro. A
Kitty considerara-se a melhor em tudo e, na minha modesta opinião, tinha
muita habilidade. No entanto, o seu cabelo grosso e arruivado fazia
lembrar a cauda de um cavalo quando comparado com as madeixas sedosas da
Jillian.
A Jillian sorriu e lançou mais um beijo ao Tony antes de flutuar porta
fora, cantarolando a mesma melodia sem sentido que lhe saía quando se
sentia feliz.
Os olhos do Tony estavam sombrios ao aproximar-se de uma janela para ver
a Jillian afastar-se no automóvel conduzido pelo Miles, o jovem e bem-
parecido motorista.
Ainda de costas para mim, principiou:
- Um dos aspectos que mais aprecio no Inverno é a neve e a prática do
esqui. Estava a pensar em ensinar-te esse desporto quando a época
começasse, tendo assim companhia. A Jillian não aprecia exercícios
esforçados, os quais podem quebrar-lhe algum osso e provocar-lhe dor. O
Troy gosta de esquiar, mas está sempre ocupado com as suas próprias idas
e vindas.
Aguardei, ansiosa, que continuasse. O Tony pôs de parte o Troy e voltou à
Jillian.
- A Jillian desiludiu-me com a sua falta de entusiasmo por tudo o que
seja ao ar livre. Quando a conheci, fazia de conta que apreciava o golfe
e o ténis, a natação e o futebol. Usava lindos fatos de ténis, embora eu
nunca lhe visse uma raqueta na mão, e nem lhe passasse pela cabeça correr
atrás de uma bola e ficar transpirada.
Naquele momento específico a visão da Jillian no seu fato preto era tão
vívida que não fui capaz de a censurar por não querer prejudicar a sua
perfeição frágil que, sem dúvida, não seria eterna. Eu não duvidava nem
receava, limitava-me a não perder de vista um sonho que haveria de
concretizar-se... e, se acreditasse com suficiente convicção, um dia a
Jillian acabaria por olhar de verdade para mim, os seus olhos sorririam
sinceramente e diria que me perdoava por ter posto termo à vida da minha
mãe...
72
Duas semanas depois de chegar a Boston, estava inscrita em Winterhaven.
Não voltara a ver o Troy mas era nele que pensava quando o Tony me abriu
a porta do carro para eu sair e me indicou, com um gesto amplo, a
elegante escola que era Winterhaven, aninhada no seu pequeno campus
privativo de árvores despidas, cuja desolação as sempre-vivas atenuavam.
O edifício principal, que era revestido por rijas tábuas de madeira
pintada de branco, brilhava ao sol do princípio da tarde. Eu contara com
uma construção em pedra ou tijoleira, não daquele género.
- Tony - exclamei -, Winterhaven faz lembrar uma igreja!
- Não cheguei a dizer-te que já o foi? - perguntou o Tony com um brilho
divertido nos olhos. - Os sinos da torre anunciavam o passar de cada hora
e os carrilhões tocavam melodias ao cair da noite. Às vezes, tem-se a
impressão de que, quando o vento sopra de feição, aqueles sinos se ouvem
em~toda a Boston. Imaginação, presumo.
Fiquei impressionada com Winterhaven, a sua torre com sinos, a série de
edifícios mais pequenos, no mesmo estilo do principal.
- Estudarás inglês e literatura em Beecham Hall - informou o Tony,
apontando para o edifício branco à direita do maior. - Todas as casas têm
nomes e, como podes ver, formam um semicírculo. Ouvi dizer que existe uma
passagem subterrânea que liga as cinco construções, para ser utilizada
nos dias em que a neve dificulta a deslocação no exterior. Ficarás
instalada no edifício principal, onde se encontram os dormitórios e os
refeitórios, assim como a sala das assembleias... Quando entrarmos, todas
as raparigas que ali se encontram mirar-te-ão da cabeça aos pés e
formarão uma opinião. Portanto, mantém a cabeça bem erguida. Não lhes dês
a impressão de que te sentes vulnerável, desajustada ou intimidada. A
família VanVoreen vem do tempo de Plymouth Rock.
Naquela altura eu já sabia que VanVoreen era um apelido holandês, muito
antigo e respeitado... mas eu nunca fora uma VanVoreen mas sim uma reles
Casteel da Virgínia Ocidental. Os meus antecedentes perseguiam-me,
lançando longas sombras que ameaçavam obscurecer o meu futuro. Bastar-me-
ia cometer um erro para ter aquelas raparigas, dotadas de antecedentes
"correctos", a troçar da minha verdadeira identidade. Nesse momento,
pensei nas imperfeições que sempre achara em mim, ao ponto de me sentir
ansiosa e começar a
73
suar. Vestia demasiada roupa, camadas de roupa nova, uma blusa debaixo de
uma camisola de lã, uma saia de lã e, por cima de tudo isso, um casaco de
lã, que custara mil dólares! Cortara o cabelo num estilo moderno;
portanto, usava-o agora mais curto do que nunca e, naquela manhã, os
espelhos tinham-me mostrado que estava muito bonita. Mas então porque
tremia?
Era por causa dos rostos que espreitavam das janelas, tinha de ser. Eram
todos aqueles olhos a fixarem-se em mim, a observarem a recém-chegada. Vi
o Tony fitar-me de relance antes de se apear e dar a volta ao automóvel
para me abrir a porta.
- Mas que vejo eu? Vá, Heaven, apela ao teu orgulho. Não tens nada de que
te envergonhar. Basta manteres o sangue-frio e pensares antes de
responder para tudo correr bem.
No entanto, eu sentia-me demasiado em evidência, ali de pé, enquanto o
Tony tirava as doze peças da minha bagagem do banco de trás e do porta-
bagagens, de modo que virei-me e comecei a ajudá-lo.
- Que explicação deu à Jillian sobre isto? - perguntei-lhe, agarrando com
ambas as mãos na minha malinha de cosméticos, a transbordar de materiais
que eu nunca usara até ali.
O Tony sorriu, como se a Jillian fosse uma criança fácil de controlar.
- Na verdade, foi muito simples. Ontem à noite, disse-lhe que ia fazer
por ti o que ela gostaria que eu fizesse por uma filha sua. A Jillian
fechou a boca e afastou-se. Mas não fiques demasiado confiante pelo facto
de ela estar mais ou menos resignada em ter uma neta que se intitula
sobrinha. Ainda precisas de a conquistar. E quando ganhares aceitação
neste colégio e junto dos seus amigos, ela quererá que fiques, que fiques
eternamente, como tu tão poeticamente dizes.
Era muito estranho estar diante da concretização do segundo passo do meu
sonho, ciente de que o primeiro ainda não se realizara totalmente. A
minha avó de verdade ainda não me aceitara completamente. Sentia-se
ludibriada porque eu viera lembrar-lhe o que queria esquecer... Mas um
dia gostaria de mim. Eu iria fazer por isso. Um dia daria graças a Deus
por eu ter transformado num dos objectivos da minha vida a minha intenção
de ficar junto dela.
- Anda, Heaven - chamou o Tony, interrompendo os meus pensamentos,
enquanto um empregado do colégio vinha
74
buscar a minha bagagem num carrinho de mão. - Entremos e enfrentemos os
dragões. Todos nós temos de dar cabo de uns quantos ao longo da nossa
vida. Na sua maioria, são criados pela nossa imaginação. - Agarrou-me na
mão e puxou-me pelos degraus íngremes acima. - Já te disse que estás
linda? O teu novo corte de cabelo fica-te muito bem, Heaven Leigh
Casteel. Estás uma rapariga muito bonita. Desconfio que também és
bastante inteligente. Não me desiludas.
O Tony transmitiu-me confiança. O seu sorriso deu-me forças para subir
aquela escadaria como se eu não tivesse feito outra coisa, ao longo da
vida, senão frequentar colégios particulares ricos. Quando me vi dentro
do edifício principal e olhei em volta, estremeci. Esperara algo
semelhante a um elegante vestíbulo de hotel, mas o que tinha na minha
frente era austero. Estava tudo muito limpo e os soalhos apresentavam-se
impecavelmente encerados. As paredes, muito brancas,, exibiam frisos
intrincadamente trabalhados em tom mais escuro. Para atenuar a rigidez
das paredes brancas e espalhadas por aqui e ali, em cima de mesas e ao
lado de cadeiras de costas altas de aspecto pouco cómodo, viam-se fetos
envasados e outras plantas domésticas. Dali, via-se uma sala de recepção
que era um pouco mais acolhedora, com uma lareira, sofás e cadeiras
forradas em tecido de algodão estampado, cuidadosamente dispostas.
O Tony não tardou a conduzir-me ao gabinete da directora, uma mulher
robusta e afável, que nos presenteou a ambos com um sorriso rasgado e
simpático.
- Bem-vinda a Winterhaven, Miss Casteel. É uma honra e um privilégio ter
uma neta do Cleave VanVoreen no nosso colégio. - Piscou conspirativamente
o olho ao Tony. - Não se preocupe, querida, eu manterei a sua identidade
secreta, não direi a ninguém quem realmente é. Referirei apenas que o seu
avô era um homem notável. Um privilégio para quem, de entre nós, o
conheceu.
Acolheu-me, por breves instantes, nos braços maternais, antes de me
afastar e mirar.
- Tive oportunidade de conhecer a sua mãe, quando Mister VanVoreen a
trouxe cá para se inscrever. Lamento muito que já não esteja entre nós.
- Agora passemos à fase seguinte - urgiu o Tony, olhando de relance para
o relógio. - Tenho um compromisso para daqui a meia hora e faço questão
em acompanhar a Heaven ao seu quarto.
75
Soube bem tê-lo ao meu lado enquanto descíamos as escadas altas, sentindo
os passos suavizados por uma passadeira verde-escura. Ao longo da parede
alinhavam-se retratos emoldurados de antigos professores, atraindo
ocasionalmente o meu olhar atónito. Como todos pareciam frios,
puritanos... e como os seus olhos se assemelhavam, dando a impressão de
poderem ver, mesmo então, todo o mal naqueles que passavam.
Por trás de nós, ou melhor, a toda a nossa volta, ouviam-se ténues e
inúmeras risadas femininas. Contudo, sempre que olhava para trás, não via
ninguém.
- Cá estamos! - exclamou a Helen Mallory alegremente, abrindo uma porta
que dava acesso a um lindo quarto. É o melhor quarto do colégio, Miss
Casteel. Escolhido para si pelo seu "tio". Quero que saiba que poucas
alunas podem dar-se ao luxo de dispor de um quarto privativo, ou mesmo de
o desejarem, mas Mister Tatterton fez questão. A maioria dos familiares
acha que as raparigas novas preferem ficar em grupo, mas ao que parece
não é o que acontece consigo.
O Tony entrou no quarto e passou uma vista de olhos por todos os
pormenores, abrindo gavetas de cómodas, inspeccionando o guarda-roupa
amplo, sentando-se nas duas poltronas antes de se instalar a uma
secretária de estudante e sorrir-me.
- Bem, que tal achas, Heaven?
- É uma maravilha - sussurrei, olhando, completamente deslumbrada, para
as prateleiras de livros que em breve esperava encher. - Não contava com
um quarto só para mim.
- Do bom e do melhor - brincou o Tony. - Não foi o que te prometi? - Pôs-
se de pé e acercou-se rapidamente de mim, inclinando-se para me depositar
um beijo na face. Boa sorte. Trabalha bastante. Se precisares de alguma
coisa, liga para o meu escritório ou lá para casa. Já disse à minha
secretária para passar sempre as tuas chamadas. Chama-se Amélia.
Dito isto, puxou da sua carteira e, para grande surpresa minha, colocou-
me várias notas de vinte dólares na mão.
- Dinheiro de bolso.
Fiquei pregada no mesmo sítio com o dinheiro na mão, vendo-o sair porta
fora. Verifiquei, admirada, que sentia um baque no coração e uma sensação
de enjoo no estômago. Assim que a Helen Mallory teve a certeza de que o
Tony já não nos podia ouvir, a sua expressão perdeu a brandura, os
76
seus modos maternais desapareceram, e examinou-me com um olhar duro e
calculista, analisando-me, calculando o meu carácter, as minhas fraquezas
e pontos fortes; a julgar pelo seu ar desdenhoso, não me considerou à
altura das suas expectativas. O facto não devia ter-me chocado; no
entanto, foi o que aconteceu. Até mesmo o seu tom de voz baixo e macio
ganhou rudeza e aumentou de volume.
- Contamos com que as nossas alunas tenham excelente aproveitamento
académico e obedeçam religiosamente às nossas regras, que são muito
rígidas. - Tirou-me o dinheiro da mão sem a menor cerimónia e contou
rapidamente as notas. - Guardar-lhe-ei este dinheiro no cofre, de onde
pode retirá-lo às sextas-feiras. Não gostamos que as nossas alunas tenham
dinheiro no quarto, onde pode ser roubado. A sua posse cria muitos
problemas.
Os meus duzentos dólares desapareceram dentro do seu bolso.
- Quando a sineta tocar às sete da manhã dos dias de semana - prosseguiu
-, terá de se levantar e vestir o mais rapidamente possível. Se tomar
banho ou duche na véspera à noite, não precisará de o fazer de manhã.
Sugiro-lhe que adopte esse hábito. O pequeno-almoço é às sete e meia, no
piso principal. Encontrará tabuletas a indicar-lhe os vários destinos.
Tirou um pequeno cartão do bolso da saia de lã escura, que me entregou.
- Tem aí o seu horário de aulas. Fui eu própria a organizá-lo, mas se o
achar demasiado difícil de seguir, basta falar comigo. Nós aqui não temos
favoritismos. Terá de conquistar o respeito dos seus professores e
colegas. Há uma passagem subterrânea que liga os edifícios entre si. Só
deverá utilizar esse túnel nos dias em que estiver muito mau tempo. Caso
contrário, irá lá por fora, onde o ar fresco lhe fará bem aos pulmões.
Chegou cá durante a hora de almoço, mas o seu tutor disse que almoçaram
antes de vir.
Fez uma pausa, olhando para o topo da minha cabeça enquanto esperava pela
minha confirmação.
Só depois de a ter é que se virou e olhou para as doze dispendiosas peças
de bagagem. Pareceu-me ver desprezo no seu rosto... Ou talvez inveja, não
saberia dizer.
- Em Winterhaven ninguém ostenta a sua riqueza usando roupa cara -
continuou. - Espero que tenha isso presente. Até há bem poucos anos, as
nossas alunas eram obrigadas a andar de uniforme. Isso tornava tudo mais
simples.
77
Mas as raparigas protestaram e os patronos do nosso estabelecimento
deram-lhes razão, de modo que agora usam o que lhes apetece. - Voltou a
fitar-me com olhar distante e cauteloso. - O almoço é servido ao meio-dia
para as duas classes mais atrasadas e as restantes alunas comem ao meio-
dia e meia. Deve apresentar-se pontualmente a todas as refeições, caso
contrário, ficará sem elas. Foi-lhe atribuída uma mesa, mas só mudará de
lugar se as ocupantes de alguma outra a convidarem para junto delas ou
lhes pedir que façam ao contrário. Cada estudante servirá às mesas uma
semana em cada semestre. O serviço é rotativo e a maioria das estudantes
não levanta objecções.
Aclarou a voz a fim de poder prosseguir.
- Não queremos que as nossas alunas guardem alimentos nos seus quartos ou
levem a cabo festas secretas à meia-noite. Tem autorização para ter um
rádio, um gira-discos ou um leitor de cassetes, mas não uma televisão. Se
for apanhada com bebidas alcoólicas, e isso inclui a cerveja, receberá
uma repreensão. Três repreensões num semestre e será expulsa,
reembolsando-se apenas um quarto das propinas. A hora de estudo é das
sete às oito da noite. Das oito às nove podem ver televisão na nossa sala
de convívio. Não verificamos as vossas leituras mas não aprovamos a
pornografia, de modo que receberá uma repreensão se lhe encontrarmos
algum material desse tipo. Algumas das nossas alunas gostam de se
entreter com jogos como o brídege e o gamão, mas as apostas em dinheiro
não são permitidas. Se for encontrado dinheiro nalguma mesa de jogo,
todas as participantes receberão castigos e repreensões. Oh, já me
esquecia de informar que todas as repreensões são acompanhadas de
castigos condizentes. Determinamo-los de acordo com as faltas. O seu
sorriso passou de azedo a afectuoso. - Espero que nunca seja necessário
castigá-la, Miss Casteel. E as luzes apagam-se às dez em ponto.
Dito isto, deu meia volta e saiu do quarto.
E não me dissera onde ficava a casa de banho!
Mal a vi pelas costas, inspeccionei o quarto à procura de uma casa de
banho, começando por uma porta à qual ela não se referira. Estava fechada
à chave. Sentei-me a ler o horário das aulas. Aula de inglês às oito, em
Elmhurst Hall. Porém, a necessidade de ir à casa de banho tornou-se
imperiosa.
Deixei todas as malas no chão do quarto, saindo pelo corredor em busca de
indicações. Os sussurros e as risadinhas que anteriormente ouvira haviam
desaparecido. Sentia-me
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completamente sozinha no segundo andar. Tentei três corredores antes de,
por fim, avistar uma pequena placa metálica que dizia "Lavabos".
Empurrei a porta de balanço e entrei numa vasta divisão onde se viam
lavatórios brancos alinhados ao longo de toda uma parede, com espelhos em
frente. O pavimento era em mosaicos pretos e brancos. As paredes, em
cinzento-claro, amenizavam todo aquele branco e preto; quando saí de um
dos reservados, de tive-me a observar o que me rodeava. Num outro
compartimento havia doze banheiras, ao lado umas das outras. A seguir
havia outra sala com chuveiros alinhados em pequenos espaços individuais
sem porta, com excepção de um. Por trás de portas envidraçadas, viam-se
prateleiras com centenas de toalhas brancas impecavelmente dobradas.
Decidi, naquele mesmo instante, passar a tomar duches, não banhos de
imersão.
Antes de sair dos lavabos, apalpei a terra das plantas envasadas e, como
a achei ressequida, reguei-as a todas com um pouco de água, hábito que
ganhara quando vivera com a Kitty Dennison.
Voltei ao meu quarto e desfiz rapidamente as malas, arrumando
cuidadosamente a minha linda roupa interior na cómoda. A seguir, dei nova
vista de olhos ao meu horário. Às duas e meia da tarde deveria
apresentar-me no Sholten Hall para a minha aula de sociologia. A primeira
aula que teria em Winterhaven.
Não tive grande dificuldade em encontrar o Sholten Hall, de modo que,
envergando a fatiota que o Tony me sugerira para a minha primeira aula,
só hesitei em frente da porta da sala; depois, sustendo a respiração e
erguendo bem a cabeça, empurrei-a e entrei. Tive a impressão de que
estavam à minha espera. Todas as raparigas se viraram na minha direcção,
e os quinze pares de olhos fixaram-se em todos os pormenores da minha
roupa, antes de se deterem no meu rosto; depois voltaram a desviar-se
para a professora, que se encontrava sentada à sua secretária.
- Entre, Miss Casteel. Temos estado à sua espera. Olhou de relance para o
seu relógio. - Por favor, amanhã tente ser pontual.
Somente as carteiras da frente estavam desocupadas e eu senti que era o
centro de todas as atenções ao dirigir-me para a mais próxima, na qual me
sentei.
- Chamo-me Powatan Rivers, Miss Casteel. Miss Bradley, agradeço que
forneça a Miss Casteel os livros de que
79
precisamos para esta aula. Espero, Miss Casteel, que tenha vindo equipada
com as suas próprias canetas, lápis, cadernos, e tudo aquilo de que
precisa...
O Tony dera-me tudo o que era necessário, de modo que pude acenar
afirmativamente com a cabeça e aceitar os livros de sociologia, que
coloquei em cima do meu material impecavelmente arrumado. Sempre tivera
muito orgulho nos livros e na diversidade de objectos que fazem parte da
vida escolar e, pela primeira vez na minha vida, dispunha de tudo quanto
um estudante poderia desejar.
- Gostaria de falar um pouco de si aos seus colegas, Miss Casteel?
A minha mente ficou completamente em branco. Não! O que eu menos queria
era colocar-me em frente da classe e contar-lhes o que quer que fosse!
- É costume, Miss Casteel. As nossas caloiras fazem-no. Especialmente
aquelas que provêm de outras áreas do nosso vasto e belo país. Ajuda
todos nós a compreendê-la melhor.
A professora aguardou com expectativa, enquanto todas as raparigas se
inclinavam para a frente, fazendo-me sentir os seus olhos cravados nas
minhas costas. Levantei-me cheia de relutância, dei os poucos passos que
me levaram até à frente da sala e foi então que, ao ver as outras
raparigas, me apercebi do erro em que o Tony caíra ao escolher o tipo de
roupa para eu usar! Ninguém andava de saias! Todas tinham calças ou blue
jeans e, na parte de cima, camisas ou blusões descuidados e largueirões.
O coração caiu-me aos pés, pois aquele era o género de roupa que todos os
jovens costumavam usar na escola em Winterhaven! Eu contara que ali,
naquele colégio elegante, as coisas fossem mais delicadas e bonitas.
Tive de passar várias vezes a língua pelos lábios, que tinham ficado
ressequidos. As minhas pernas traíram-me e começaram a tremer. Recordei
as instruções do Tony.
- Nasci no Texas - principiei com voz trémula e hesitante. - Mais tarde,
aos dois anos, mudei-me para a Virgínia Ocidental com o meu pai. Fui
criada lá. O meu pai adoeceu e a minha tia convidou-me a ir viver com ela
e o marido.
Voltei apressadamente para o meu lugar e sentei-me. Miss Rivers aclarou a
voz.
- Miss Casteel, antes da sua chegada, deram-me o seu nome para eu o
inscrever nos nossos registos. Importa-se de nos contar a origem do seu
extraordinário nome próprio?
- Não compreendo o que quer saber...
- As meninas estão interessadas em saber se tem algum parente com esse
nome...
80
- Não, miss Rivers, puseram-me um nome igual ao daquele lugar para onde
todos nós esperamos ir mais tarde ou mais cedo...
Atrás de mim, várias raparigas começaram a bichanar. O olhar de miss
Rivers endureceu.
- Muito bem, Miss Casteel. Desconfio de que só na Virgínia Ocidental é
que há pais com ousadia suficiente para desafiar os poderes supremos. E
agora abramos o nosso livro oficial do governo na página duzentos e doze
e prossigamos a lição de hoje. Miss Casteel, como este semestre iniciou
as suas aulas mais tarde, contamos que se ponha em dia até ao final da
semana. Todas as sextas-feiras farão um exame para provar o que
aprenderam. E agora, meninas, comecemos a aula de hoje com a leitura das
páginas duzentos e doze a duzentos e quarenta e dois, e quando
terminarem, fechem os livros e guardem-nos dentro das carteiras.
Iniciaremos então o debate.
O ensino era mais ou menos o mesmo em todo o lado, como depressa
descobri. Páginas para ler, perguntas no quadro para copiar. Excepto que
aquela professora estava muito bem informada sobre a maneira como o nosso
Governo funcionava, mostrando-se igualmente bem inteirada sobre aquilo
que não estava bem. Escutei-a com interesse, dominada pela paixão que
manifestava por aquele tema e quando, de repente, se calou, senti vontade
de aplaudir. Era fantástico que soubesse tanto acerca da pobreza! Sim, no
nosso país rico e abundante havia pessoas que iam para a cama com fome.
Sim, milhares de crianças eram privadas de direitos que lhes deviam ser
inerentes: o direito de dispor de alimentos suficientes tanto para o
corpo como para o espírito; roupa suficiente para não passar frio;
habitação que as abrigasse das intempéries; repouso suficiente em camas
confortáveis, para que não se levantassem com olheiras depois de dormir
no chão duro, sem cobertores suficientes; e, acima de tudo, pais com
idade e capacidade de discernimento suficientes para lhes proporcionar
tudo isso.
- Portanto, como é que começamos a corrigir tudo o que está errado? Como
é que sustemos a ignorância, quando os ignorantes não parece importarem-
se com o facto de os filhos ficarem prisioneiros, ou não, nas mesmas
circunstâncias miseráveis? Como agir para que aqueles que se encontram em
lugares de chefia olhem pelos carenciados? Reflictam sobre isso esta
noite e, se encontrarem soluções, transponham-nas para o papel e
apresentem-nas amanhã na aula.
81
O dia acabou por passar sem problemas. Nenhuma das raparigas me abordou
para fazer perguntas, embora todas me fitassem, desviando apressadamente
o olhar quando este se cruzava com o meu. Às seis horas dessa tarde,
sentei-me a uma mesa redonda coberta por uma impecável toalha branca, e
vi no centro da mesa um pequeno jarro em prata contendo uma única rosa
vermelha. Uma das raparigas de serviço tomou nota do que eu pedi depois
de consultar uma pequena ementa, e afastou-se a fim de atender uma das
outras mesas, onde jovens, em grupos de quatro ou cinco, tagarelavam
animadamente, fazendo o refeitório ressoar com as vozes alegres. Eu era a
única rapariga na sala com uma rosa vermelha na mesa e só quando me
apercebi do facto é que reparei num pequeno cartão junto da flor, que
dizia: "Boa-sorte. Tony."
Todos os dias, de segunda a sexta, havia uma rosa vermelha na minha mesa.
E todos os dias aquelas raparigas ignoravam a minha existência. Que erro
estaria eu a cometer além de vestir um tipo de roupa diferente? Não
trouxera jeans, calças, camisas ou camisolões velhos comigo. Tentei
sorrir, corajosamente, às jovens que olhavam para mim, na esperança de
atrair a sua atenção. Mal reparavam nos meus esforços; todas faziam de
conta que não me viam! Foi então que imaginei o que acontecera. Fora
traída pelas minhas ideias sobre a fome na América. A paixão que eu tinha
pelo tema da pobreza dera-lhes mais informações sobre mim do que eu
alguma vez poderia fazer. Eu estava excessivamente bem informada. Ficara
demasiadas noites acordada em certa cabana nos montes a tentar encontrar
respostas para salvar todos os pobres do mesmo destino miserável dos seus
antepassados.
Recebi um "bom" pelo meu trabalho sobre a pobreza na América. Um começo
muito auspicioso. Porém, traíra-me. Agora, todos estavam a par dos meus
antecedentes, caso contrário, eu não poderia saber tanto sobre a matéria.
Desejei mil vezes não ter sido tão factual e ter optado por uma solução
como a de uma outra rapariga, que sugeriu: "Todos os ricos deviam
adoptar, pelo menos, uma criança pobre."
Sozinha no meu lindo quarto, na minha cama estreita, escutava as
risadinhas que chegavam dos outros quartos. Sentia o cheiro a torradas e
a queijo fundido; ouvia o entrechocar de copos de vidro, de talheres e
das gargalhadas "enlatadas" das comédias ao vivo da televisão. Nenhuma
das raparigas tomou a iniciativa, nem uma vez, de bater à minha porta
fechada
82
a convidar-me para participar numa das festas proibidas. Tão-pouco alguma
delas foi interrompida por professoras iradas com a quebra das regras.
A julgar pelas histórias fantásticas que ouvira, a maioria daquelas
jovens já passeara fartamente por todo o mundo, sentindo-se já entediadas
com cidades que ainda me faltava conhecer. Três delas tinham sido
expulsas de colégios particulares na Suíça devido a romances amorosos,
duas tinham sido afastadas de escolas americanas por tomarem bebidas
alcoólicas, duas outras por se drogarem. Todas diziam palavrões piores do
que aqueles que eram habituais nos pacóvios embriagados dos bailaricos de
celeiro, e eu ia recebendo, através da parede, um género diferente de
educação sexual, dez vezes mais chocante do que tudo o que a Fanny alguma
vez fizera.
Depois, certo dia, quando eu me encontrava nos lavabos, no único cubículo
que tinha porta, ouvi-as falar sobre mim. Não me queriam na "sua" escola.
Eu não era do seu "nível".
- Ela não é quem faz de conta que é - sussurrou uma voz que eu aprendera
a reconhecer como pertencendo à Faith Morgantile.
Não pretendia passar por outra pessoa que não fosse uma rapariga em busca
de educação. Fiquei, portanto, cheia de ressentimento. Só esperava que,
quando a minha provação chegasse, eu conseguisse sobreviver com a
dignidade e o orgulho intactos.
De modo que ali, em Winterhaven, não obstante os meus antepassados
VanVoreen, os meus laços com os Tatterton, a minha roupa excelente, o meu
elegante corte de cabelo, os sapatos bonitos e as boas notas para as
quais trabalhava afincadamente, eu era, como sempre me acontecera, uma
estranha, desprezada e escarnecida. E o pior era que eu, logo desde o
princípio, me traíra a mim mesma e ao Tony.

5 ESTAÇÕES EM MUDANÇA

Foi o Tony quem me foi buscar naquela primeira sexta-feira, encontrava-me


eu no cimo da escadaria da frente de Winterhaven, rodeada de quinze
raparigas que se fingiam muito amigas só para ele ver. Observaram-no
enquanto estacionava o carro, soltaram variadas exclamações de admiração,
ficaram de boca aberta, sussurraram e interrogaram-se, uma vez mais, por
onde andaria o Troy.
- Quando é que nos convidas para ir a tua casa, Heaven?
- perguntou a Prudence Carraway, a quem todos tratavam por Pru. - Ouvimos
dizer que é perfeitamente fabulosa!
Ainda o Tony não saíra do carro para me abrir a porta, já eu descia as
escadas para fugir àquelas raparigas.
- Até segunda, Heaven! - entoou um coro de vozes, a primeira vez que
alguém, além das professoras, pronunciava o meu nome.
- Bem - observou o Tony sorrindo para mim e arrancando -, ao que vejo já
fizeste muitas amigas. Isso é óptimo. Mas detesto os trapos desmazelados
com que aquelas raparigas se vestem para as aulas. Porque farão tanto
esforço para parecerem feias durante os melhores anos das suas vidas?
Percorremos vários quilómetros sem que eu proferisse uma palavra.
- Então, Heaven, fala-me do colégio - incitou o Tony.
- As tuas caxemiras fizeram sucesso? Ou troçaram de ti por usares o tipo
de roupa que as mães compram para elas mas que deixam em casa ou trocam
por trapos em segunda mão?
- Elas fazem isso? - perguntei, sinceramente espantada.
- Foi o que ouvi dizer. Em Winterhaven, desafiar as professoras e
contrariar os pais ou quem tiver autoridade é uma espécie de causa. É
como uma das festas que se realizam em Boston para adolescentes, em que
estes se esforçam por asseverar a sua independência.
84
Portanto, ele soubera exactamente, ao escolher todas as minhas saias,
camisolas, blusas e camisas, o que me estava a fazer, ou seja, que eu
sobressairia de entre as minhas colegas, tornando-me diferente. Ainda
assim, continuei a abster-me de comentários.
Os seus modos fizeram-me perceber que não queria que eu me queixasse
sobre algo que se tivesse passado. Eu fora atirada às feras e agora
cabia-me a mim vencê-las. Não me incentivou a continuar a usar o que me
comprara. Deixou nas minhas mãos desistir ou lutar contra a enorme
pressão. Ao aperceber-me do facto, decidi jamais referir nenhuma das
minhas dificuldades ao Tony. Enfrentá-las-ia sozinha, fossem quais
fossem.
O Tony conduziu com rapidez até à Mansão Farthinggale e estávamos quase a
chegar quando deixou cair a bomba.
- Surgiram-me uns negócios urgentes na Califórnia, de modo que partirei
para lá domingo de manhã. A Jillian irá comigo. Se não estivesses já no
colégio, levar-te-íamos connosCo. Assim, o Miles levar-te-á à escola na
segunda-feira de manhã e irá buscar-te na sexta à tarde. A Jillian e eu
tencionamos voltar deste sábado a uma semana.
A notícia deixou-me de rastos! Não me apetecia nada ficar sozinha numa
casa cheia de empregados que mal conhecia. Esforcei-me por não deixar que
o Tony visse as lágrimas que, inesperadamente, me saltaram aos olhos. Que
haveria de errado comigo para as pessoas me abandonarem com tanta
facilidade?
- A Jill e eu compensaremos a negligência desta semana no dia de Acção de
Graças e no Natal, que estão para breve
- disse com o encantador ar de alegria que raramente exibia. - E eu dou-
te a minha palavra de honra que vamos àquele concerto dos Pops quando eu
voltar.
- Não precisa de se preocupar comigo - retorqui com determinação, não
querendo que ele me achasse um empecilho, como acontecia com a Jillian. -
Sei como me entreter.
O que, de facto, não correspondia à realidade. A Mansão Farthinggale
ainda me intimidava. O único empregado com quem estava à vontade era o
Rye whiskey. Mas se o visitasse demasiadas vezes na sua cozinha, talvez
também se tornasse frio e indiferente. Quando chegasse a casa na sexta-
feira à tarde e terminasse os meus trabalhos de casa, como me distrairia?
A manhã de sábado chegou, por fim, à Mansão Farthinggale, com os criados
a correrem agitadamente de um lado
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para o outro no esforço de ajudarem a Jillian a preparar a bagagem para a
viagem de uma semana. Ao encontrá-la no corredor do piso de cima,
precipitou-se para mim a rir, abraçou-me e beijou-me, fazendo-me
acreditar que talvez eu estivesse enganada, e ela, na verdade, gostasse e
precisasse de mim. Depois desatou a bater palmas como uma criança
radiante enquanto descíamos as escadas que iam dar à sala de estar.
- É uma pena não poderes vir connosco, mas quem pediu uns meses de
escolaridade foste tu. Por isso deitaste a perder todos os planos
deliciosos que eu tinha para ti.
Uns meses de escolaridade? Estaria ela a planear mandar-me embora? Não se
importaria comigo nem um bocadinho? Ir até à Califórnia teria sido a
concretização de mais um dos meus sonhos, mas naquela altura já me
cansara daqueles que tivera quando era nova, ingénua e tola.
- Eu ficarei bem, Jillian, não se preocupe comigo. Esta casa é
maravilhosa, e tão grande que ainda não tive possibilidade de a conhecer
em pormenor.
Nem a Jillian nem o Tony me estavam a ligar a menor atenção e eu sentia-
me tão magoada no meu íntimo que tive vontade de retribuir um pouco na
mesma moeda; portanto, precipitei-me e fui estúpida: resolvi ir visitar o
Logan.
- Além disso - acrescentei -, esta tarde tenciono ir a Boston.
- Que planos fizeste para esta tarde? - perguntou a Jillian. -
Francamente, Heaven, então tu não sabes que o sábado é o nosso dia, a
altura em que podemos estar todos juntos?
Até ali ainda não dera por nada disso pois só convivera com pessoas muito
mais velhas do que eu, cujos temas de conversa nada tinham a ver comigo.
Sentira-me tão necessária como um candeeiro ao meio-dia.
- Achei que hoje à noite podíamos dar uma espécie de festa de despedida
naquele pequeno cinema encantador que restaurámos há pouco, mesmo à
direita da piscina. Podíamos passar um filme antigo. Detesto as fitas
modernas. A maneira como mostram pessoas despidas a fazer amor embaraça-
me. Para tornar tudo mais agradável, até não seria má ideia convidarmos
alguns amigos.
Porém, a Jillian não devia ter falado em convidar terceiros. Estes só
viriam estragar o carácter especial da nossa última noite juntos em toda
a semana.
- Desculpe, Jillian, mas realmente pensei que hoje à
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noite preferisse recolher cedo, para estar repousada quando chegasse à
Califórnia. Eu estarei bem e, se chegar a casa cedo, ainda cá encontrarei
os seus convidados.
- Onde vais? - perguntou o Tony secamente. Estivera a dar uma vista de
olhos pelo jornal da manhã; naquele momento olhava por cima deste com um
ar muito desconfiado.
- As únicas pessoas que conheces em Boston somos nós e os poucos amigos
mais velhos que te apresentámos... Ou terão as raparigas de Winterhaven
passado a considerar-te como amiga? Isso parece improvável. - Ergueu uma
sobrancelha. - Ou será que tencionas encontrar-te com algum rapaz?
Como acontecia sempre que me magoavam, o meu orgulho corria imediatamente
para a linha da frente. Claro que fizera muitas amigas em Winterhaven...
Ou pelo menos sê-lo-iam mais cedo ou mais tarde.
- Uma das minhas colegas convidou-me para a sua festa de aniversário. Vai
ser no Red Feather.
- Como se chama ela?
- Faith Morgantile.
- Conheço o pai. É um malandro, embora a mãe não pareça má pessoa...
Ainda assim, o Red Feather não é o tipo de lugar que eu escolheria para a
festa de anos de uma filha minha.
Continuou a mirar-me da cabeça aos pés, até eu sentir o suor a despontar-
me nas axilas.
- Não me desiludas, Heaven - advertiu, voltando ao seu jornal. - Ouvi
falar do Red Feather e das festas que lá dão. Os teus dezasseis anos
tornam-te demasiado nova para começares a beber cerveja ou vinho ou de te
lançares nalguma das iniciativas dos outros adultos que começam por
brincadeiras inofensivas. Lamento mas não acho boa ideia tu ires.
O coração caiu-me aos pés.
O Red Feather ficava bastante perto da Universidade de Boston, onde o
Logan Stonewall estudava.
- Além disso - continuou o Tony, que ainda não se calara -, dei ordens ao
Miles para que não saísse contigo do recinto da propriedade antes de
segunda-feira de manhã. Os empregados satisfarão todas as tuas
necessidades. Se te fartares de estar dentro de casa, sempre podes dar
uma volta por aí.
Nesse momento, a Jillian ergueu a cabeça, como se apenas tivesse ouvido a
menção à volta fora de casa.
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- Não vás às cavalariças! - exclamou. - Quero ser eu a apresentar-te os
meus cavalos... os meus magníficos árabes. Fá-lo-emos quando eu voltar.
Há dias e dias que o prometia. Eu já deixara de acreditar nela.
Fora minha intenção escapulir-me e ir ao encontro do Logan, mas não
poderia ser por ali. E se eles reunissem os amigos e passassem o filme,
nunca dariam pela minha falta, nunca.
Os convidados começariam a chegar por volta das quatro da tarde para
aquilo que a Jillian designou com o seu "Arranque para a festa da
Califórnia". Eu sabia que ela continuava a pôr-me à prova, e muita coisa
dependia da maneira como eu me saísse com aquele grupo em particular,
visto incluir pessoas com maior influência que as outras que eu já
conhecera até ali. Nessa altura, o Tony adiantou um dado. Todos tinham de
ter um par na festa, o que me deixava de parte.
- Gostaria de te apresentar um jovem meu conhecido disse o Tony.
- Vais simpatizar com ele, querida - acrescentou a Jillian com a sua voz
sussurrante, enquanto um homem extremamente bem-parecido lhe fazia um
novo penteado.
Empoleirei-me numa cadeira delicada a observar as maravilhas que o
cabeleireiro conseguia fazer com um pente, uma escova e a sua laca.
- Chama-se Ames Colton e tem dezoito anos. O pai foi eleito para o
parlamento o ano passado. O Tony está convencido de que o John Colton
acabará por chegar à Casa Branca.
Ouvir aquilo trouxe-me à lembrança o tom e o seu desejo de, um dia,
também chegar à Casa Branca.
Porque não teria o tom respondido nem sequer a uma das minhas cartas?
Estaria o meu pai a impedi-lo de o fazer? Ou ter-se-ia o tom
desinteressado, agora que me sabia rica e muito bem entregue? O meu
sustento sempre me fora dado pela minha família, razão para não me fazer
desistir. Naquele momento sentia todos esses laços de afecto tornarem-se
cada vez mais ténues e com tendência para desaparecer.
- Sê simpática com o Ames - sugeriu a Jillian com um toque de autoridade
na voz. - E por favor esforça-te por não fazeres ou dizeres algo que nos
embarace diante dos nossos amigos.
Era a primeira festa a sério da minha vida. Levei um belo
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vestido comprido novo até aos pés, de um azul-intenso, com o corpete
bordado a pérolas azuis. Detive-me à porta, ladeada pela Jillian e pelo
Tony. Este envergava um fraque e a Jillian um vestido branco refulgente,
que me deixou deslumbrada.
- Não te esqueças de sorrir muito - aconselhou o Tony, quando os
primeiros convidados começaram a entrar, acompanhados pelo Curtis.
O Ames Colton era razoavelmente simpático, muito ao contrário do Logan.
Não tão excitante como o Tony. Na verdade, achei-o demasiado delicado
para o meu gosto, e embaraçadoramente impressionado para uma pessoa como
eu que estava meio morta de medo e tinha coisas a esconder. Se por acaso
fiz algo de certo nessa noite, não consegui lembrar-me mais tarde. Deixei
cair o guardanapo, e o meu garfo foi parar ao chão duas vezes! Quando me
faziam perguntas sobre o meu passado e sobre os meus planos para
continuar naquela casa, gaguejava. Como poderia eu responder se a Jillian
estava sempre a olhar para mim com um ar receoso?
Para dar festas como aquela eram necessários muitos pratos e grande
quantidade de talheres; a certa altura, quando a refeição chegou ao fim,
o Curtis trouxe-me um tabuleiro de prata com uma pequena e elegante taça
em cima. Aguardou em silêncio, enquanto eu ficava a olhar para o que
parecia ser água com uma fatia de limão. Fiquei sem saber que fazer.
Desesperada, ergui o olhar para o Tony, depois corei ao reparar no seu ar
divertido e sarcástico. Vi-o então mergulhar, muito lentamente, a ponta
dos dedos na água e depois limpá-los, ao de leve, no seu guardanapo.
Consegui chegar ao fim da noite sem cometer algum erro importante que
denunciasse os meus antecedentes; apenas dei a conehcer a minha
inexperiência social. Quando me pediam um parecer sobre alguma questão
política, não sabia que dizer. Não tinha opinião formada sobre o estado
da economia da nação. Não lera nenhum dos recentes best-sellers de
Hollywood que contavam tudo; tão-pouco fora ao cinema recentemente.
Esbocei sorrisos em vez de dar respostas e dei desculpas para fugir a
assuntos e, na minha opinião, não fiz senão figura de parva.
- Saíste-te muito bem - observou o Tony, entrando no meu quarto estava eu
a escovar o cabelo. - Todos comentaram sobre as tuas parecenças com a
Jillian, o que não é de estranhar, já que as suas duas irmãs mais velhas
são iguaizinhas a ela, embora não tão "bem conservadas" como ela,
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por assim dizer. - Assumiu uma expressão séria. - Agora diz-me, o que
achaste dos nossos amigos?
Como poderia eu dizer o que pensava exactamente? Em certos aspectos,
pareciam pessoas como quaisquer outras, apesar da roupa e do vocabulário
cuidado. Algumas falavam demasiado e acabavam por revelar o pouco que
tinham por dentro. Outras só ali estavam para causar boa impressão e
tinham tão pouco para dizer quanto eu. Depois havia outras que tinham ido
para comer e beber e contar mexericos sobre quem não podia ouvi-las.
- Se eles tivessem tocado violino, banjo e batido com os pés e vestissem
roupa velha e coçada, poderiam perfeitamente passar por gente dos Willies
- respondi eu com franqueza. - Aquilo que dizem é que as torna
diferentes. Lá na terra de onde eu vim ninguém se importa com a política
nem com a economia da nação. Poucas pessoas lêem algo mais além da Bíblia
e de fotonovelas.
Pela primeira vez desde que o conhecera, o Tony riu com verdadeiro prazer
e, ao sorrir, fê-lo com ar de aprovação, o que me animou
consideravelmente.
- Quer então dizer que não ficaste impressionada com a roupa fina e os
charutos caros. Isso é bom. Tens opiniões formadas, o que também é
positivo. E dou-te toda a razão: não há homem de sucesso que não tenha as
suas falhas.
Continuei sentada em frente do meu toucador, desejando, mais uma vez, ter
tido um pai assim. O Tony compôs um ar sério antes de falar.
- Há pouco ouvi o boletim meteorológico a prever a nossa primeira queda
de neve a sério. Contamos apanhar o avião no domingo bem cedo, antes de a
tempestade se desencadear. Heaven, tem cuidado contigo durante a nossa
ausência.
A preocupação do Tony enterneceu-me. O meu pai nunca dissera nada do
género, como se pouco se importasse com o que pudesse acontecer-me.
- Desejo-vos uma boa viagem aos dois - disse, sentindo um nó na garganta.
- Obrigado. - O Tony sorriu de novo. Em seguida aproximou-se de mim e
deu-me um beijo na testa, demorando um pouco a sua mão sobre o meu ombro.
- Tens um ar muito adorável e fresco, aí sentada com essa tua camisa de
dormir azul-clara. Não permitas que nada nem ninguém o arruine.
Nessa noite dormi pouco. A festa revelara-me o grande
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fosso existente entre os amigos da Jillian e do Tony e as pessoas no seio
das quais eu fora criada. Éramos todos americanos; no entanto, dava a
impressão de que nascêramos em mundos diferentes. E todo aquele
desperdício de comida! Comida suficiente para alimentar dez das famílias
que viviam nos montes!
O Ames Colton ter-me-ia telefonado no domingo se eu o tivesse encorajado
a tal; porém, eu não o queria perto de mim. Ainda não desistira de me
encontrar com o Logan.
De manhã cedo, ouvi o motor da limusina que se afastava, levando o Tony e
a Jillian. Tentei adormecer novamente. Às seis horas continuava desperta,
de modo que esperei que os criados se levantassem. Estes, no entanto,
encontravam-se demasiado afastados para que eu os ouvisse a abrir o
chuveiro, encher a banheira ou fazer correr a água na sanita das casas de
banho. Por mais que cheirasse o ar não sentia o odor do bacon a fritar na
cozinha e o aroma do café não chegava até tão longe. Bem, reflecti, se me
sentisse demasiado só, sempre tinha o Rye whiskey.
As sete da manhã, a casa tinha um aspecto sombriamente vazio e solitário.
Enquanto me vestia, senti o ar, tentando detectar algum rasto do perfume
da Jillian, que ficava sempre a pairar nos corredores de cima. O pequeno-
almoço que tomei na mesa imensa foi solitário, piorado pela presença do
Curtis que, perto do buffet, estava preparado para se precipitar para mim
e satisfazer algum desejo meu, quando o que me apetecia, na realidade,
era ficar sozinha.
- Deseja mais alguma coisa, miss? - perguntou o Curtis, como se lesse os
meus pensamentos.
- Não, obrigada, Curtis.
- Gostaria de algum prato em especial ao almoço e ao jantar?
- Qualquer coisa serve.
- Nesse caso direi ao chefe para preparar uma das ementas habituais de
domingo.
A comida, desde que chegasse a horas, em quantidade suficiente, e com o
seu habitual sabor delicioso, deixara de ter a importância que tivera ao
princípio. O sumo de laranja espremido de fresco já deixara de me
extasiar. As bananas ou os morangos frescos a acompanhar os cereais
tinham deixado de ser novidade. No entanto as trufas, que o Tony adorava
salpicar abundantemente sobre as minhas omeletas, continuavam a deliciar-
me.
Fui até à biblioteca e deixei-me ficar, durante muito tempo,
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à janela, espraiando o olhar até ao labirinto. O vento começou a soprar
com mais força e a assobiar ao de leve, fazendo com que os ramos das
árvores arranhassem a casa. Por trás de mim, a lareira que crepitava,
acesa, tornava a biblioteca onde eu tencionava passar o dia extremamente
confortável... se não conseguisse encontrar forma de visitar o Logan.
Este não respondera à minha carta, mas eu sabia em que dormitório vivia.
Já experimentara a porta da garagem e verificara que estava fechada à
chave. O Cal Dennison ensinara-me a guiar durante as ausências da mulher.
O Logan é que devia ter vindo ter comigo, pedindo-me explicações sobre o
que acontecera com o Cal Dennison. Mas não, afastara-se rapidamente no
meio da chuva, deixando-me no meio do cemitério, sem sequer me dar a
possibilidade de explicar que o Cal fora, para mim, como um pai, o pai
que eu sempre desejara ter. E para o conservar como meu pai e meu amigo
eu seria capaz de qualquer coisa! Qualquer coisa!
Por cima das paredes do labirinto via-se subir uma fina cortina de fumo
em espiral. Significaria que o Troy se encontrava na casa de pedra
naquele dia? Sem pensar duas vezes, corri para o armário do corredor,
calcei as minhas botas e vesti um casaco quente. Escapuli-me
discretamente pela porta da frente, de modo a que nenhum dos empregados
comunicasse ao Tony que eu quebrara a minha promessa e fora visitar
propositadamente o seu irmão.
Dessa vez, foi fácil atravessar o labirinto; o que custou mais foi deter-
me em frente da porta do Troy e bater. Este mostrou-se, mais uma vez,
relutante em me deixar entrar, levando tanto tempo a atender que por
pouco não dei meia volta e me fui embora. Então, de repente, a porta
abriu-se e o Troy apareceu, não me sorrindo por me voltar a ver mas
fitando-me, antes, com tristeza, como se lamentasse alguém condenado a
cometer sempre o mesmo erro.
- Quer dizer que voltou - disse o Troy, afastando-se para o lado e
fazendo-me sinal para que entrasse. - O Tony assegurou-me de que não
voltaria a aparecer por aqui.
- Vim pedir-lhe um favor - disse eu, embaraçada pela sua indiferença. -
Preciso de ir à cidade hoje e o Tony deu ordens ao Miles para que não me
levasse a lado nenhum. Se eu pudesse utilizar o seu carro...
O Troy já se sentara e começara a manusear os pequenos objectos que tinha
em cima da sua bancada de trabalho. Lançou-me um olhar surpreendido.
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- A Heaven, uma rapariga de dezasseis anos? Quer ir a guiar até Boston?
Conhece o caminho? Tem carta de condução? Não, parece-me que, para sua
própria segurança e dos outros, o melhor que tem a fazer é manter-se
afastada das auto-estradas cobertas de gelo.
Oh, como doía deixá-lo acreditar que eu ainda tinha dezasseis anos
quando, na realidade, já completara os dezassete! Além disso eu conduzia
bem, pelo menos na opinião do Cal. Em Atlanta, as raparigas da minha
idade já podiam obter a carta de condução. Sentei-me sem esperar pelo
convite, ainda de casaco vestido, e esforcei-me por não chorar.
- Andam a fazer grandes limpezas em Farthy - observei com voz sumida. -
São os preparativos para todas as festividades que se aproximam. Limpam
os vidros e os peitoris das janelas, esfregam e enceram os soalhos,
limpam o pó e aspiram, e o cheiro a amónia chega mesmo a enfiar-se por
baixo da porta da biblioteca onde eu tencionava passar o dia todo.
- São as limpezas das festas, que decorrem nesta altura do ano - observou
ele, fitando-me com um ar divertido. Tal como a Heaven, detesto as casas
reviradas de cabeça para baixo. Um dos prazeres de quem vive numa casa
pequena como esta é não precisar de criados que invadam a sua
privacidade. Quando ponho uma coisa no sítio, sei que ficará lá até eu a
mudar.
Aclarei a voz, recompus-me e em seguida voltei a abordar o objectivo da
minha visita.
- Já que não me empresta o seu carro, importava-se de me levar à cidade?
O Troy servia-se de uma minúscula chave de parafusos para apertar pernas
em miniatura a corpos muito diminutos. A atenção que ele dedicava àqueles
bonecos!
- Porque precisa de ir à cidade?
Se eu lhe contasse a verdade, iria ele transmiti-la ao Tony mal este
voltasse? Fiquei sentada, tensa, a reflectir, enquanto analisava o rosto
do Troy, que era um dos mais sensíveis que eu já vira. E, como todas as
experiências passadas me haviam levado a concluir, somente aqueles que se
mostravam completamente insensíveis eram cruéis.
- Tenho uma confissão para lhe fazer, Troy. Sinto-me muito só. Não tenho
ninguém com quem partilhar os meus sucessos, excepto o Tony. A Jillian
não quer saber do que faço ou deixo de fazer. Tenho uma amiga que anda na
Universidade de Boston e que eu gostaria de visitar.
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O Troy voltou a olhar-me de relance, aparentemente de sobreaviso, como se
alguém estivesse a querer levá-lo mas ele não desejasse que tal
acontecesse.
- Não pode esperar por outro dia qualquer, quando estiver em Winterhaven?
A Universidade de Boston fica perto.
- Mas eu preciso de alguém que me compreenda! Alguém que se lembre dos
velhos tempos.
O Troy nada disse, limitando-se a ficar como estava, com ar pensativo,
enquanto a neve batia suavemente contra os vidros das amplas janelas da
sua casa de pedra. Depois sorriu, o que lhe iluminou os olhos escuros e
fê-los brilhar.
- Está bem, levá-la-ei aonde quer, mas dê-me meia hora para terminar o
que estou a fazer. Depois iremos... mas descanse que não direi ao Tony
que está a quebrar uma das suas regras.
- Ele contou-lhe?
- Sim, claro que me contou que a proibiu de me visitar. Mas eu também não
sou muito bem-vindo a Farthy, por causa da Jillian.
- A Jillian não gosta de si? - perguntei, pensando que a minha avó só
podia ser louca em não gostar de uma pessoa tão extraordinária como o
Troy.
- Já lá vai o tempo em que eu me preocupava muito com o que a Jillian
pensava de mim. Depois descobri que, na realidade ninguém sabe ao certo o
que se passa na cabeça dela. Nem sequer sei se ela capaz de gostar tanto
de algo como da sua imagem. Mas é esperta. Nunca subestime a sua
esperteza.
Fiquei estupefacta. E, no entanto, o Troy esclarecera muitos pontos.
- Mas porque é que o Tony não quer que nós dois nos tornemos amigos?
Dirigiu-me um sorriso melancólico e auto-escarnecedor.
- O meu irmão pensa que eu sou uma influência nociva para quem fique a
gostar demasiado de mim. E, claro, eu também acho que o sou. Portanto,
não se apegue demasiado a mim, Heavenly.
Ao ouvi-lo tratar-me por Heavenly, tal como o tom sempre fizera,
sobressaltei-me.
- Ah, o Troy é demasiado velho para que eu goste demasiado de si! -
exclamei com jovialidade. - vou num instante a casa mudar de roupa!
Antes que o Troy pudesse voltar a falar e, quem sabe, mudar de ideias,
saí porta fora e corri por entre o labirinto,
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até chegar à casa grande. O barulho das máquinas de limpeza no seu
interior disfarçaram os meus passos, permitindo-me subir as escadas sem
que ninguém desse por mim. Ao chegar ao meu quarto vesti a roupa que
achei que melhor me ficava. Passei um pouco de pó-de-arroz pelo rosto,
apliquei um pouco de bâton e pus perfume. Agora estava pronta para me
encontrar com o Logan Stonewall. Se me visse assim vestida, jamais me
reconheceria.
O Troy não deu a menor importância à maneira como eu ia vestida. Conduziu
descontraidamente o seu Porsche, falando pouco. Porém, eu perdera a
timidez e extravasava de felicidade. Ia ter com o Logan. Apesar de este
estar desiludido comigo, perdoaria e esqueceria, recordando apenas a
doçura do nosso jovem romance, os tempos em que passeáramos pelos montes,
nadáramos juntos no rio e partilháramos tantos planos para o nosso
futuro, ao lado um do outro.
Só ao chegarmos à entrada da Universidade de Boston é que o Troy falou:
- Presumo que essa sua amiga seja antes do sexo masculino, não?
Sobressaltada, olhei para ele.
- O que o leva a chegar a essa conclusão? - A sua roupa, o perfume e o
bâton.
- Não me pareceu que tivesse dado por isso.
- Não sou cego.
- Ele chama-se Logan Stonewall. Está a tirar o curso de Farmácia, para
agradar ao pai, mas o que na verdade quer ser é bioquímico.
- Espero que esteja a contar consigo. Sobressaltei-me novamente pois, de
facto, o Logan não fazia a menor ideia de que eu ia vê-lo.
Quis o acaso e a boa sorte que, mal parássemos diante do dormitório do
Logan, eu o visse a passar com dois outros rapazes da sua idade. Saí
apressadamente do carro para não o perder de vista.
- Obrigada por me ter trazido! - disse ao Troy pela janela. - Pode voltar
para casa. Tenho a certeza de que Logan me levará de carro.
- Ele tem carro? Ia a pé.
- Não faço ideia.
- Nesse caso ficarei por aqui um pouco mais, a fim de ter a certeza de
que tem boleia para casa. - Indicou, com a cabeça, um pequeno café. -
Estarei além. Assim que tiver a certeza de que ele a leva, avise-me.
95
Seguiu para o café enquanto eu caminhava em direcção ao Logan, contando
surpreendê-lo e deliciá-lo com o meu novo visual.
Vi-o entrar no drugstore que ficava no outro lado da rua para fazer uma
compra. Agora já sem saber muito bem como agir, reparei que estava a
pagar. O Logan continuava na mesma, alto, de costas direitas e ombros
empertigados, sem se virar para as raparigas que passavam e que eram
muitas. Aceitou o embrulho e depois encaminhou-se para uma porta lateral
que o conduziria ao exterior.
- Logan! - gritei, acelerando ligeiramente a passada.
- Não saias! Preciso de falar contigo!
O Logan voltou-se para trás e olhou na minha direcção... E não é que não
me reconheceu?! Olhou através de mim com uma expressão de tédio nos olhos
cor de safira. Talvez fosse o penteado curto e moderno e a maquilhagem
que eu aprendera a aplicar habilmente, ou, quem sabe, o casaco de pele de
castor que a Jillian me oferecera, que o fizera passar o olhar duas vezes
por mim sem me identificar.
E antes que eu pudesse tomar uma decisão sobre o que fazer, abriu a porta
lateral, deixando o vento forte agitar a capa das revistas, e saiu para o
meio da neve, caminhando com tanta rapidez que eu percebi imediatamente
que já não seria capaz de o apanhar. Possivelmente, até fizera de conta
que não me reconhecera.
Tomando uma atitude tola como muitas vezes me acontecia, aproximei-me do
balcão do drugstore e mandei vir uma chávena de chocolate quente. Tomei a
bebida quente em pequenos goles, acompanhando-a com duas bolachas de
baunilha. Só depois de ver que passara tempo suficiente para uma conversa
demorada e séria é que paguei a conta e preparei-me para sair.
A maneira como o Troy se levantou imediatamente, e me sorriu, foi
simpática.
- Levou imenso tempo. Já estava a ver que, afinal de contas, esse homem
do seu passado a levaria a casa.
Puxou uma cadeira para mim, ajudou-me a tirar o casaco de peles e eu, em
seguida, sentei-me.
- Teria sido simpático trazê-lo até aqui para mo apresentar.
Baixei a cabeça.
- O Logan Stonewall é de Winnerrow e o seu irmão ordenou-me que cortasse
relações com todos os meus velhos amigos.
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- Eu não sou o meu irmão. Gostaria muito de conhecer os seus amigos.
- Oh, Troy - exclamei, soltando um pequeno soluço, ao mesmo tempo que
baxava a cabeça e não conseguia conter as lágrimas. - O Logan olhou para
mim sem me ver. Teve o descaramento de fazer de conta que nem sequer me
conhecia. Fitou-me directamente nos olhos e depois voltou-se e foi-se
embora.
O Troy pegou-me nas mãos enluvadas, que apertou entre as suas, e falou-me
num tom de voz doce e meigo.
- Heaven, já lhe ocorreu que realmente mudou muito? Já não é a mesma
rapariga que chegou aqui no princípio de Outubro. Tem um penteado
diferente. Agora usa maquilhagem, o que não acontecia antigamente. E
essas botas de salto alto que traz acrescentam-lhe alguns centímetros à
altura. Além disso, o Logan devia ir a pensar noutros assuntos, não lhe
passando pela cabeça deparar-se-lhe uma velha amiga. Tome - acrescentou,
puxando de um lenço branco limpo e entregando-mo. - E quando parar de
chorar... depressa, espero, pois detesto ver uma mulher debulhada em
lágrimas... aí talvez possa falar-me mais do Logan.
Depois de limpar as lágrimas e guardar o lenço do Troy na minha bolsa com
a intenção de o lavar e passar mais tarde, chegou nova chávena de
chocolate quente. Vi tanta bondade e compreensão nos olhos do Troy que,
antes que percebesse o que estava a fazer, contei-lhe tudo desde o
começo, partindo da altura em que o Logan me vira no drugstore do pai e a
Fanny tivera a certeza de que ele estava a admirá-la a ela, não a mim;
depois seguiu-se o modo como nos encontrámos no pátio da escola em
Winnerrow; como ele fizera questão em pagar o almoço a quatro crianças
Casteel esfomeadas.
- E quando começámos a namorar e ele me levava de casa à escola, senti-me
a rapariga mais feliz do mundo. Ele não se parecia com os tipos rudes que
pairavam à volta da Fanny. Era o rapaz mais diferente que eu já
conhecera, decente e respeitador. Tencionávamos casar mal eu terminasse a
faculdade. E agora não me conhece! - A minha voz subiu de tom,
ligeiramente histérica. - E eu que precisei de tanta coragem para tomar
esta iniciativa! Terei exagerado, Troy? Estarei demasiado diferente no
casaco de pele de castor que a Jillian me deu, e com jóias a mais?
- Está linda - asseverou o Troy suavemente, pegando-me nas duas mãos. -
Agora coloquemos o dia de hoje em
97
perspectiva. O Logan não contava encontrá-la, pois não? A Heaven estava
aqui, longe do ambiente em que ele se habituou a vê-la. Tão-pouco
esperava encontrar-se consigo vestida dessa maneira. Portanto, faça-lhe
um telefonema mais tarde e conte-lhe o sucedido. Depois, podem planear um
encontro e tudo correrá bem.
- Ele não me perdoará! Nunca me perdoará! - solucei veemente e
apaixonadamente. - Eu ainda não lhe contei tudo. Quando o meu pai vendeu
os filhos por quinhentos dólares cada, aconteceu algo de muito mau.
Primeiro, o Keith e a "Nossa" Jane foram comprados por um advogado e pela
sua esposa. Seguiu-se a Fanny que, vendida ao reverendo Wayland Wise e ao
contrário do Keith e da "Nossa" Jane, ficou muito contente por ir viver
com um homem tão abastado. Depois, apareceu um lavrador rude, chamado
Buck Henry, que se acercou do tom para lhe apalpar os músculos como se
fosse um animal. O meu pai e o Buck Henry obrigaram o tom a ir à força.
Eu fui vendida à Kitty e ao Cal Dennison, que viviam em Candlewick, na
Jórgia. A casa deles em Candlewick era a mais bonita e limpa que eu já
vira e havia sempre fartura de comer. Mas a Kitty queria uma escrava para
a cozinha e uma criada que lhe mantivesse a casa impecável enquanto ela
dirigia a sua loja de produtos de beleza. Trabalhava cinco dias por
semana e, aos sábados, dava aulas de cerâmica, o que significava que o
Cal passava mais tempo comigo do que com ela. Oh, era complicado porque
eu costumava achar o Cal muito melhor pessoa do que o meu pai jamais
fora. Comecei a considerá-lo como o meu próprio pai, o tipo de pai que
sempre desejara ter e de que necessitava. Era alguém que me fazia
companhia, gostava de mim, precisava de mim. Quando me comprava roupa e
sapatos novos e muitos outros objectos que eu nem imaginava que
precisasse, eu ia muitas vezes para a minha cama agarrada aos vestidos.
Qual rio indomável desencadeado pelas minhas lágrimas, a minha história
brotou com todos os seus pormenores horríveis. Penso que a única área que
deixei por revelar foi o ano exacto do meu nascimento. E muito antes de o
meu relato chegar ao fim, dei-me conta de que o Troy se esquecera dos
seus planos para aquele dia; em breve dirigimo-nos para a estrada que nos
levaria de volta à Mansão Farthinggale. Passou sob os altos portões de
ferro arqueados da entrada, fechando-os depois com o seu controlo remoto.
Em seguida, enveredou por uma estrada que eu ainda não conhecia e
percorreu
98
um caminho serpenteante que foi dar à sua casa de pedra. A tarde cinzenta
de Outono trouxe-me saudades dos montes e da rapariga inocente e
confiante que eu fora.
O Troy não disse uma palavra até entrarmos em sua casa, indo em seguida
avivar o fogo da lareira. Depois, disse que iria preparar rapidamente uma
refeição.
- O chefe de cozinha da casa grande mantém a minha despensa abastecida -
observou, enquanto começava a preparar algo leve.
Naquela altura, já eram quatro da tarde e eu não almoçara. Não duvidei,
nem por um momento, que o Percy comunicasse o facto ao Tony.
- Vá, não pares - incentivou o Troy, entregando-me uma tábua com vegetais
crus para eu partir. - Nunca ouvi uma história como a tua. Agora fala-me
mais do Keith e da "Nossa" Jane. - Começara a tratar-me por tu.
Somente nessa altura é que me apercebi de que devia ter tido mais cuidado
e sido mais discreta, mas era demasiado tarde. Agora que o Logan me
afastara da sua vida, que me importava? Já contara ao Troy tudo o que se
passara no dia de Natal, quando o meu pai começara a vender-nos um a um.
Tive de repetir a história para que ele acreditasse nela. Fui até
suficientemente descuidada para deixar escapar a razão que levara o Logan
a perder a confiança em mim; porém, o Troy não me fitou uma única vez,
nem teceu comentários ou hesitou no que estava a fazer.
- Eu não sabia que aquelas idas ao cinema, aqueles jantares maravilhosos
em óptimos restaurantes e todas as prendas que ele me dava faziam parte
do jogo de sedução do Cal. Enquanto vivi com eles, ele proporcionou-me os
melhores momentos, e a Kitty os piores. Costumava lamentar o Cal quando,
todas as noites, a Kitty arranjava uma desculpa qualquer para lhe dizer
"não", e quando, por fim, concordava em aceitar os seus avanços, o Cal
sentava-se à mesa do pequeno-almoço com um ar muito feliz. Por minha
vontade, o Cal andaria sempre feliz. Mas quando ele começou a tocar-me
demasiado frequentemente com uma luz estranha nos olhos, e os seus beijos
deixaram de ser tão paternais como até ali, eu à noite ficava deitada na
minha cama a reflectir no tipo de sinais que estaria a enviar
inconscientemente. Nunca lhe atribuí culpas. Atirei-as todas para cima de
mim mesma, responsabilizando-me por lhe meter ideias maldosas na cabeça.
Como poderia eu continuar a considerá-lo uma figura paterna e não me
submeter à sua vontade?
99
Fiz uma pausa, recuperei o fôlego e depois continuei.
- Portanto, é como vê, não tenho ninguém! O Tony ordenou-me que afastasse
a minha família da minha vida e até mesmo dos meus pensamentos. Nem
sequer tem conhecimento da existência do tom, da Fanny, do Keith e da
"Nossa" Jane. O tom não respondeu às minhas cartas. A Fanny está à espera
de um filho do reverendo e nunca me escreve. Nem sequer sei se está
contente. Mas um dia destes terei de encontrar a "Nossa" Jane e o Keith.
- Hás-de encontrá-los - declarou o Troy com aquele tipo de sinceridade
que me fazia confiar nele. - Tenho muito dinheiro. Não consigo imaginar
maneira melhor de gastá-lo do que ajudando-te a encontrar a tua família.
- O Cal prometeu-me o mesmo mas nunca passou disso. Ele virou-se para mim
e lançou-me um olhar de censura.
- Eu não sou o Cal Dennison nem faço promessas que não possa cumprir.
As lágrimas recomeçaram a deslizar-me pelo rosto.
- Porque haveria de o fazer? Não me conhece. Nem sequer tenho a certeza
de que simpatiza comigo.
O Troy veio sentar-se à mesa, ao meu lado.
- Fá-lo-ei por ti e pela tua falecida mãe. Amanhã falarei com os meus
advogados e colocá-los-ei na trilha desse tal colega deles cujo nome
próprio é Lester. Devias trazer-me as fotografias de estúdio do Keith e
da "Nossa" Jane de que me falaste. Os fotógrafos têm sempre a vaidade de
assinar as suas fotografias nas costas. Verás que em muito pouco tempo
ficarás a saber os nomes completos do casal que comprou os teus irmãos
mais novos.
A esperança que me inundou deixou-me electrizada e ofegante. Foi uma
esperança que não tardou a esmorecer pois o Cal Dennison fizera-me a
mesma promessa e o facto é que eu não conhecia o Troy muito bem.
- Agora diz-me o que tencionas fazer quando souberes do paradeiro deles?
O que tencionava fazer?
O Tony riscar-me-ia da sua vida. Suspenderia o apoio que estava a dar à
minha educação.
Naquele momento eu ia a caminho do objectivo que tinha... mas pensaria na
resposta mais tarde, quando os advogados encontrassem o rapazinho e a
menina que me pertenciam. Arranjaria maneira de os recuperar sem que isso
significasse abdicar das minhas pretensões. Já que fora até ali, estava
decidida a não voltar para trás.
100
Oh, se ao menos as coisas tivessem sido diferentes! Se ao menos eu
tivesse podido crescer como uma rapariga normal! Senti que as lágrimas me
subiam de novo aos olhos. Esforçando-me por deitar as recordações para
trás das costas, respirei fundo.
- Pronto - disse -, agora já sabe tudo sobre mim. E eu que nem sequer
devia estar a falar consigo. O Tony ordenou-me que o deixasse em paz, que
nunca viesse a sua casa. Na verdade, disse-me, antes de se ir embora, que
o Troy nem sequer cá estava. Se souber que eu quebrei uma das suas
regras, recambiar-me-á para os Willies. Tenho um medo terrível de voltar
para lá! Em Winnerrow não há ninguém que se importe com o que me possa
acontecer. O meu pai vive algures na Jórgia ou na Florida, e o tom está a
morar com ele, mas este também nunca escreve, tal como a Fanny. Não sei
viver sem alguém que goste de mim ou se preocupe comigo. - Baixei a
cabeça para que o Troy não visse as lágrimas que eu não conseguia conter.
- Por favor, Troy, por favor! Seja meu amigo! Preciso desesperadamente de
alguém!
- Está bem, Heaven, serei teu amigo. - Parecia relutante, como se
estivesse a comprometer-se com algo difícil de cumprir. - Mas lembra-te
de que o Tony tem boas razões para não querer que te envolvas comigo. Não
o julgues demasiado duramente. Antes de decidires se eu sou o amigo de
que precisas, tens de te compenetrar de que quem manda aqui é o Tony, não
eu. Somos pessoas de personalidades completamente opostas. Ele é forte,
enquanto eu não passo de um sonhador fraco. Se caíres no desagrado do
Tony, ele pôr-te-á fora da sua vida e da da Jillian, mandando-te
imediatamente para os Willies. E fa-lo-á de maneira tal que eu não terei
possibilidade de te salvar ou sequer de te dar dinheiro.
- Eu não aceitaria dinheiro de si! - exclamei indignada, sentindo o meu
orgulho vir ao de cima.
- Aceita-lo do meu irmão - observou o Troy secamente.
- Porque está casado com a minha avó! Porque me contou que gere o que a
Jillian herdou do pai e do primeiro marido. Dinheiro que teria ido para a
minha própria mãe se esta fosse viva. Acho que aceitar dinheiro do Tony é
perfeitamente justificado.
O Troy virou a cabeça para o lado e eu não pude continuar a observar-lhe
o rosto.
101
- Heaven, a tua intensidade fatiga-me. É muito mais tarde do que eu
imaginava e estou cansado. Não te importas de continuar esta conversa na
próxima sexta-feira, quando voltares de Winterhaven, pois não? Estarei
por aqui.
Vê-lo ali tão profundamente vulnerável emocionou-me bastante. Desconfiei
ainda de que tinha um medo terrível de deixar alguém como eu penetrar na
sua vida bem organizada. Levantei-me com lentidão do chão, relutante em
abandonar o calor aconchegante da sua casa.
- Por favor, Heaven, esta noite ainda tenho mil tarefas para executar
antes de ir para a cama. E não chores por o Logan Stonewall não te ter
reconhecido. Devia ser a última coisa que lhe passava pela cabeça. Dá-lhe
outra oportunidade. Telefona-lhe para o dormitório. Propõe-lhe
encontrarem-se num sítio qualquer onde possam conversar.
O Troy não conhecia a teimosia do Logan. Este era, tal como o seu nome
indicava, uma muralha de pedra.
- Boa noite, Troy - disse-lhe da porta. - E obrigada por tudo. Esperarei,
ansiosa, a próxima sexta-feira.
Fechei suavemente a porta depois de sair. Quando me esgueirei pela porta
da casa grande, não encontrei nenhum dos criados e, ao passar pela casa
de jantar, verifiquei que havia comida em recipientes de prata aquecidos.
Eram maravilhosas fatias finas de carne, cobertas com molho francês.
Antes que pudesse dar-me conta do que fazia, servi-me para um prato, e,
em seguida, sentei-me à mesa a repetir a refeição da noite. Completamente
sozinha, numa mesa suficientemente grande para todos os Casteel.

6 TRAIÇÃO

Na segunda semana que passei em Winterhaven, as minhas colegas não se


mostraram tão distantes como na primeira. Olharam-me arrojadamente da
cabeça aos pés, mirando com particular interesse o lindo vestido em malha
que eu levava, pois não estava disposta a vestir roupa pouco melhor do
que a que usara nos Willies. Para meu deleite, nessa mesma Segunda-feira,
ao sentar-me a almoçar, vi a Pru Carraway sorrir para mim e depois
convidar-me para a sua mesa. Satisfeita, agarrei nos meus talheres, prato
e guardanapo e levei-os comigo.
- Obrigada - agradeci, ao sentar-me.
- Que lindo vestido cor-de-rosa - elogiou a Pru, adejando as pestanas.
- Obrigada. É cor de malva.
- Que lindo vestido cor de malva - corrigiu a jovem, enquanto as outras
raparigas riam à socapa. - Tenho, consciência de que não temos sido muito
simpáticas contigo, Heaven - salientando, mais uma vez, o meu nome -, mas
tentamos nunca dar demasiada confiança a qualquer estudante recém-
chegada, até termos a certeza de que merece a nossa aprovação.
Que teria eu feito para merecer essa aprovação, interroguei-me.
- Como é que sabes tanto sobre a pobreza e a fome? perguntou a Faith
Morgan tile, uma bonita rapariga de cabelos castanhos que vestia blusão e
calças brancas de aspecto limpo mas surrado.
Sobressaltei-me.
- Vocês sabem todas que sou da Virgínia Ocidental, uma zona com minas de
carvão. Também vive da indústria do algodão. Os montes estão cheios de
gente pobre que acha que estudar é uma perda de tempo... Portanto, é
natural que eu conheça a vida das pessoas que costumam rodear-me.
103
- Mas descreveste as agruras da fome tão bem na tua redacção - insistiu a
Pru -, que é quase como se tivesses passado por elas pessoalmente.
- Quando se tem olhos e ouvidos e um coração capaz de se condoer, não é
preciso passar pelas situações.
- Que bem descreveste a questão - observou uma outra rapariga, sorrindo-
me calorosamente. - Ouvimos dizer que os teus pais estão separados e que
ficaste a cargo do teu pai... Não é fora do comum? Na maioria das vezes é
a mãe que ganha a custódia dos filhos, especialmente tratando-se de uma
rapariga.
Tentei encolher os ombros com indiferença.
- Eu era demasiado pequena para fixar pormenores do divórcio. Quando
cresci, o meu pai recusou-se a falar no assunto.
Dizendo isto, dei a questão por terminada, enquanto espetava o garfo na
minha salada mista e escolhia os pedacinhos de tomate e alface que era o
que mais apreciava.
- Quando é que o teu pai vem visitar-te? Adoraríamos conhecê-lo.
Podem crer que gostariam de o conhecer! O Luke Casteel dar-lhes-ia um
choque de morte. Eu antipatizava com a Pru Carraway, que estava sempre a
tentar espicaçar-me. Sentia o poder dos seus antecedentes, da sua
família, dos seus antepassados e dos amigos que ela tinha e eu não,
formar uma barricada em torno dela, enquanto eu ficava indefesa, dispondo
apenas das minhas capacidades e da minha roupa para me escudar. Terminei
o meu almoço com entusiasmo, não deixando um pedacinho de massa e de
almôndegas no prato; tive vontade de ensopar o que restava do meu pão
italiano no saboroso molho de tomate, mas não me atrevi a tal. E elas
observavam-me com tal fascínio que senti que estava a fazer tudo errado;
mostrava demasiado entusiasmo por um alimento tão vulgar como o
esparguete. Furiosa e irada com as suas insinuações, resolvi agitá-las
com uma parte da verdade.
- O meu pai nunca virá ver-me pois não gostamos um do outro e ele está a
morrer.
As quatro raparigas ficaram a olhar para mim de boca aberta, como se eu
fosse uma aparição directamente saída de uma cena de mau gosto. Mas
acabara de proferir aquelas palavras e já a ideia de o meu pai estar
morto me inundava de um estranho e incómodo sentimento de culpa. Como se
não me coubesse o direito de o odiar ou desejar a sua morte por
104
ser meu pai. Não havia razão para me sentir envergonhada. Nenhuma! Ele
merecia todos os pensamentos maus que eu pudesse ter sobre ele.
A Pru voltou a falar, cautelosamente:
- Temos alguns clubes privados neste colégio. Ora se tu conseguisses
arranjar maneira de uma de nós sair com o Troy Tatterton... ficar-te-
íamos muito gratas.
Lembranças do meu pai interpuseram-se entre mim e elas. Fui apanhada
desprevenida. O meu último pedaço de pão italiano ficou a meio caminho da
minha boca.
- Tenho a certeza de que não conseguiria convencê-lo observei pouco à
vontade. - É um homem com ideias muito suas e é demasiado velho e
sofisticado para as raparigas de Winterhaven.
- O Troy Tatterton fez vinte e três anos apenas há duas semanas -
declarou a Faith Morgantile. - Algumas das estudantes daqui têm dezoito
anos, o que convém exactamente a um homem com a idade dele. Além disso
vimo-lo contigo no domingo e tu só tens dezasseis.
Fiquei siderada por, numa cidade tão grande como Boston, me terem visto
com o Troy!
Então era isso! A razão do seu inesperado interesse em mim! Tinham-me
visto ou alguma das suas amigas reparara em mim no café com o Troy.
Levantei-me. Atirei o meu guardanapo para a mesa delas.
- Obrigada por me terem convidado para a vossa mesa
- disse, verdadeiramente triste, pois imaginara que pudesse torná-las
minhas amigas. Eu nunca tivera outra amiga na vida além da Fanny, que
fora uma espécie de cruz de família a suportar. Ao chegar à minha mesa,
peguei nos livros que ali deixara e saí dignamente da sala de jantar.
A partir dessa altura, senti uma diferença nas atitudes das minhas
colegas. Anteriormente tinham-me encarado com desconfiança por eu ser
nova e diferente. Agora desafiara-as e, sem querer, fizera inimigas.
Logo na manhã do dia a seguir, fui a uma das gavetas da minha cómoda
buscar uma linda camisola azul em caxemira para usar com a saia a
condizer e, para meu profundo horror, vi que a peça de roupa ainda por
estrear começara a desfiar-se! E a saia de lã que colocara em cima da
cama, completamente nova, estava a perder a bainha e alguém descosera
cuidadosamente os pontos que lhe prendiam uma bonita faixa pregueada na
frente. Se estivesse nos Willies, teria usado a camisola e a saia como
estavam, mas não ali, não ali! Não
105
quando eu sabia que, ainda na véspera, a camisola e a saia estavam
impecáveis!
Fui tirando as camisolas da gaveta e passando-as em revista! Cinco delas
estavam estragadas! Corri para o armário e verifiquei as minhas saias e
blusas, vendo que estavam tal qual como as deixara. Quem porventura
cometera aquele acto não tivera tempo de dar cabo de tudo o que me
pertencia. Nessa terça-feira de manhã não tive tempo para tomar o
pequeno-almoço. Fui para as aulas apenas de saia e blusa, sem camisola.
Nenhuma das raparigas usava casaco na sala de aulas, sem recear as gripes
e as constipações, embora a maioria se mantivesse sentada com os braços
cruzados sobre o peito e tremesse de frio de vez em quando. Winterhaven
era uma instituição dirigida por espíritos rígidos e puritanos que se
esforçavam para que nenhuma de nós desfrutasse de demasiados luxos. A
sala de aulas não era muito mais quente do que a cabana nos montes em
finais de Outubro. Passei a manhã inteira a tremer de frio, ansiando pelo
meio-dia, altura em que correria ao meu quarto para ir buscar um casaco
leve.
Comi o almoço com tanta pressa que por pouco não me engasguei; depois
precipitei-me escadas acima, em direcção ao meu quarto; a porta nunca
ficava trancada. Corri ao armário para tirar do cabide um dos três
casaquinhos que o Tony escolhera para mim. Faltavam dois! O que ficara
estava ensopado em água!
Seriam tão ricas e poderosas que imaginavam sair incólumes depois de
destruírem o que me pertencia? Tremendo tanto de raiva como de frio, saí
pelo corredor levando o casaco estendido à minha frente. Irrompi
intempestivamente nos lavabos. Deparei com seis raparigas a fumar e às
risadinhas. Mal entrei, fez-se total silêncio, enquanto dos cigarros se
evolava um fumo denso e intoxicante. Ergui o casaco com ambas as mãos.
- Tinham de enfiar isto em água quente? - perguntei.
- Não bastou darem cabo das minhas camisolas? Afinal de contas, que
espécie de monstros são vocês?
- De que estás a falar? - perguntou a Pru Carraway com uma expressão de
inocência nos olhos claros.
- As minhas camisolas novas estão todas desfiadas! gritei. Sacudi o
casaco e parte dos salpicos de água atingiram-nas no rosto. Recuaram e
agruparam-se. - Vocês tiraram-me dois casacos e estragaram o terceiro!
Acham que esta barbaridade vai ficar sem castigo?
Olhei ferozmente cada uma delas nos olhos, esperançada
106
em amedrontá-las. O facto de não se mostrarem minimamente intimidadas por
mim ou pelas minhas ameaças insignificantes, enfureceu-me ainda mais. A
confiança delas aumentou, enquanto eu hesitava, sem saber como derrotá-
las.
Virei-me e atirei o casaco ensopado para dentro de uma das comportas para
a roupa suja. A pesada porta de metal possuía uma mola muito forte que a
fechava automaticamente. Em cada um dos três pisos havia um lavabo com
várias secções. O facto de haver duzentas raparigas a tomar banho
diariamente fazia com que fossem utilizadas centenas de toalhas brancas.
Todos os dias as criadas traziam-nas às pilhas, imaculadamente limpas,
arrumando-as dentro dos armários da roupa com portas de vidro. A roupa,
depois de utilizada, era atirada para dentro de comportas, descendo ao
longo de calhas até à cave, onde caíam dentro de enormes cestos.
- E agora - declarei, voltando-me rapidamente para elas e tentando
incutir-lhes algum temor -, encontrarão aquele casaco e comunicarão o
facto à directora. Não podem apoderar-se da prova e destruí-la, pois a
cave fica fora do alcance de todas vocês.
A Pru Carraway bocejou. As outras cinco raparigas imitaram-na.
- Espero que vos ponham a todas fora do colégio por destruírem
propositadamente bens que não vos pertencem!
- Fazes lembrar uma advogada - observou a Faith Morgantile com voz
lamurienta. - Estás a assustar-nos, sem dúvida. Que pode um casaco
molhado provar? Nada além de teres sido suficientemente estúpida para o
lavares em água quente.
Desconfiei que, dissesse eu o que dissesse, nada as faria aceitar culpas
pelo acto cometido. Nessa altura, veio-me à lembrança o rosto meigo de
Miss Marianne Deale e a sua voz suave sussurrou-me aos ouvidos: "Mais
vale advogar uma causa perdida em que acreditamos do que ficar calado e
nada arriscar. Nunca se sabe o efeito que as nossas palavras poderão vir
a ter."
- Assim que sair daqui vou ao gabinete de Mistress Mallory - declarei com
voz firme. - Mostrar-lhe-ei as minhas camisolas novas desfiadas e contar-
lhe-ei tudo sobre o casaco que vocês estragaram.
- Nada podes provar - disse uma rapariguita de ar insignificante chamada
Amy Luckett, agitando as mãos de maneira denunciadoramente nervosa. -
Podes ter prendido as tuas próprias camisolas nalguma saliência e
estragado o casaco sem querer.
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- Mistress Mallory viu-me usar o casaco na segunda-feira de manhã,
portanto pelo menos saberá dizer como estava. E quando o encontrarem no
cesto das toalhas molhadas, isso também provará o que vocês fizeram.
- Falas como uma advogada de segunda categoria - escarneceu a Pru
Carraway. - Este colégio não pode fazer nada contra nós. Há dois anos
pedimos aos nossos pais para deixarem de dar donativos em dinheiro a esta
escola que, sem eles, teria ido ao fundo. Nem sequer souberam apreciar o
dinheirão que lhes poupámos quando deixámos de usar aqueles horríveis
uniformes franceses. Quando nos unimos para defender a nossa causa,
ganhamos sempre. Temos os nossos pais a apoiar-nos. Pais ricos, ricos.
Pais politicamente influentes. Tu aqui não tens amigas. Não és uma das
nossas. Ninguém acreditará jamais no que dizes. Mistress Mallory olhará
de cima para baixo para ti e achar-te-á maldosa e desprezível, porque
sabe que nunca te deixaremos entrar para o nosso círculo. Achará que
foste tu mesma a dar cabo da tua roupa, só para nos atirares as culpas.
Aquelas palavras fizeram-me arrepiar! Poderia alguém acreditar em tal
possibilidade? Eu não tinha experiência e conhecimento do mundo. Não
frequentara colégios na Suíça nem aprendera a enfrentar situações daquele
tipo. Ainda assim não pude deixar de acreditar que ameaçavam em vão, pelo
que decidi fazer o mesmo.
- Veremos - declarei, voltando-me e saindo da casa de banho.
Entrei no gabinete da directora com os braços carregados de camisolas
estragadas. Mrs. Mallory ergueu os olhos do que estava a fazer com ar
nitidamente contrariado.
- A menina não deveria estar na sua aula de sociologia, Miss Casteel?
Deixei cair as camisolas no chão, depois peguei numa azul que fora linda
e ergui-a diante dos seus olhos. Tinham puxado um fio da gola, que estava
meio desmanchada.
- Não cheguei a estrear esta camisola, Mistress Mallory. No entanto, está
cheia de buracos e a desfiar-se.
A directora franziu as sobrancelhas.
- Realmente devia cuidar melhor da sua roupa. Detesto ver dinheiro
desperdiçado em jovens ingratas.
- Eu cuido muito bem da minha roupa. Esta camisola estava cuidadosamente
dobrada e arrumada na segunda gaveta da minha cómoda, juntamente com
outras que estão igualmente estragadas porque lhes puxaram fios e fizeram
buracos.
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A directora manteve-se calada durante um momento prolongado. Mostrei as
camisolas uma a uma.
- O casaco que me viu usar na segunda-feira de manhã, foi ensopado em
água quente enquanto eu estava na minha primeira aula de hoje.
Mrs. Mallory franziu os lábios. Ajustou os óculos em meia-lua que usava
na ponta do nariz.
- Está a fazer acusações, Miss Casteel?
- Estou. Aqui não gostam de mim porque sou diferente.
- Se quer que gostem de si, Miss Casteel, não é a denunciar as partidas
que as suas colegas pregam a todas as caloiras que o conseguirá.
- Isto é mais do que uma partida! - exclamei, estupefacta perante a sua
indiferença. - A minha roupa ficou estragada.
- Ora, está a dar demasiada importância ao que parece não passar de um
descuido na arrumação. As camisolas prendem-se facilmente nos fechos,
tanto das saias como das malas. Basta tentar desprendê-las com um puxão e
aparecem os buracos e as malhas soltas.
- E que me diz do casaco? Acha que caiu, sozinho, dentro de uma banheira
de água quente?
- Não vejo nenhum casaco. Se tem mais provas, porque não as trouxe
consigo?
- Atirei-o para a comporta de saída das toalhas molhadas. Poderão
encontrá-lo na lavandaria.
- Por cima dessa comporta de saída há um letreiro que diz que toda a
roupa para lavar deve ser enfiada na outra mais pequena.
- Mistress Mallory, era um casaco de tecido axadrezado! Poderia manchar a
roupa de alguém.
- É precisamente por isso que falo. Também poderá manchar as toalhas e a
outra roupa branca.
Os meus lábios começaram a tremer.
- Tinha de o pôr num sítio onde as raparigas responsáveis não o
escondessem e depois afirmassem que era tudo imaginação minha.
A directora passou os dedos pela linda camisola azul com ar pensativo.
- Porque não leva estas camisolas e tenta remendá-las com agulha e linha?
Devo confessar que, na verdade, não tenho vontade de encontrar o seu
casaco molhado. Se o fizer, isso significa que terei de tomar medidas e
interrogar todas as alunas. Já não é a primeira vez que este tipo de
ocorrência
109
tem lugar. Se ficar do seu lado, será que isso a ajudará a ser aceite
aqui? Tenho a certeza de que o seu tutor lhe comprará novas camisolas.
- Quer dizer que devo conformar-me e deixá-las sem castigo?
- Não, não exactamente. Trate simplesmente do assunto sem a nossa ajuda.
- Sorriu-me rigidamente. - Não deve esquecer, Miss Casteel, que embora
elas queiram que pense que a desprezam e consideram inferior, não há aqui
rapariga mais invejada. A Miss Casteel é muito bonita e possui um toque
de frescura que é raro. Faz lembrar alguém de há cem anos atrás, tímida,
orgulhosa, demasiado sensível e vulnerável. Essas raparigas vêem o que eu
vejo, o que todos vêem, e sentem-se assustadas. A Miss Casteel fá-las
sentirem-se inseguras sobre o que são e os valores que defendem. Além
disso está sob a tutela do Tony Tatterton, um homem muito admirado e bem
sucedido. Vive numa das casas mais belas e antigas da América. Compreendo
que tenha tido um passado que a deixou marcada, mas não permita que ele a
influencie permanentemente. Possui potencial para se tornar na pessoa que
deseja. Não deixe que umas partidas tolas das suas colegas deitem por
terra os melhores anos de aprendizagem que poderá ter na vida. E agora
vejo, pela sua expressão, que deseja algum tipo de vingança ou
compensação pela roupa que perdeu. Mas não será a roupa relativamente
pouco importante para si? Não poderá ser substituída? Ou terão aquelas
raparigas estragado algo de verdadeiro valor que tenha escondido no seu
quarto?
Oh, oh! Não pensara nisso! Eu ocultara, no fundo do meu cesto da roupa,
uma pesada caixa contendo as fotografias, emolduradas em prata, do Keith
e da "Nossa" Jane! Mal voltasse para o quarto teria de verificar se
continuavam lá ou haviam sido destruídas! Fiz menção de sair, mas depois
voltei-me e encarei o olhar severo mas compreensivo de Mrs. Mallory.
- Tenho a impressão de que está em dívida para comigo, Mistress Mallory,
por guardar o silêncio e a paz neste colégio.
A directora compôs uma expressão precavida.
- Diga-me o que acha que lhe devo?
- Esta quinta-feira à noite vai haver um baile com os rapazes de
Broadmire Hall. Sei que o pouco tempo que aqui estou ainda não me
permitiu juntar os louvores suficientes para merecer um convite. No
entanto, é precisamente isso o que eu quero.
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Mrs. Mallory fitou-me durante um bocado com as pálpebras semicerradas e
depois sorriu-me, com uma expressão divertida.
- Ora, não é pedir muito. Esforce-se apenas por não causar embaraços à
escola.
Os retratos dos meus dois pequeninos estavam a salvo. Voltei a guardá-los
para que, quando chegasse sexta-feira, pudesse levá-los ao Troy, a fim de
este os entregar aos detectives que me prometera contratar para descobrir
o paradeiro dos meus irmãos mais novos.
Pensei no tom, que sempre fora o meu herói. Sabia qual seria o seu
conselho numa altura em que as coisas me corriam de feição: "Não abuses
da sorte", diria.
Talvez fosse o facto de morar na Mansão Farthinggale, de ter o Tony como
tutor, a Leigh por avó, ainda que relutante, e o Troy por amigo, que me
dava mais audácia do que o bom senso teria aconselhado. É que eu
tencionava abusar da sorte! Não permitiria que aquelas raparigas fizessem
pouco de mim, fosse qual fosse o preço a pagar! Olhei de relance para o
espelho mais próximo e vi muito poucos vestígios da antiga Heaven Leigh
Casteel na imagem de uma rapariga de cabelos escuros e brilhantes,
elegantemente cortados pela altura dos ombros. Mas como proceder? Já
sabia que era improvável que Mrs. Mallory fizesse algo que colocasse em
risco os seus donativos em dinheiro.
Sentei-me na beira da cama, inclinei a cabeça para baixo e comecei a
escovar o cabelo, de modo que este me caía como uma cortina escura em
redor do rosto, diminuindo o fulgor dos três candeeiros. Ouvi o carrilhão
da torre dos sinos iniciar as melodias patrióticas e de teor religioso do
final do dia. Adaptei o movimento da escova ao ritmo e assim fiquei
enquanto engendrava e planeava uma maneira de me vingar das seis
raparigas que, ao que tudo indicava, estavam de atalaia nos lavabos,
certas do que eu faria com um casaco a escorrer água que daria cabo da
alcatifa verde colocada há pouco tempo, estrago que me custaria várias
repreensões.
Se eu estivesse em Winnerrow, encolher-me-ia e acobardar-me-ia dentro da
minha roupa surrada e demasiado pequena, dos meus sapatos em segunda mão
e gastos, sentindo-me demasiado debilitada pela fome constante para lutar
com eficácia. Sentia-me demasiado humilhada e envergonhada de quem era,
uma reles Casteel, para descobrir a maneira certa de provar a minha
individualidade e os meus méritos.
111
Porém, naquele momento as coisas eram diferentes. Apesar das camisolas e
do casaco estragados, sentia-me cheia de coragem. Ainda estava
suficientemente bem equipada para vacilar e recear como uma Casteel.
Enquanto continuava a escovar o cabelo, perdendo a conta do tempo, fui
arquitectando uma ideia. Era a maneira perfeita de me vingar. Daquela vez
veríamos quem ganhava. Os rapazes de Boston deviam ser, basicamente,
iguais aos de todo o mundo. Eram atraídos como abelhas para a flor mais
bonita e perfumada. Eu sabia que podia tornar-me nessa flor.

8O BAILE

Nessa mesma terça-feira à noite, quando todas as restantes raparigas da


minha ala tentavam, nitidamente, não fazer demasiado chinfrim, ouvi o meu
nome mencionado várias vezes, sempre seguido de gargalhadas. Saber-me
alvo de tantas piadas incomodou-me. Ainda assim tinha um amigo a quem
telefonar. Primeiro fechei a minha porta à chave e depois liguei para o
Troy. O telefone que ele tinha na sua casa de pedra tocou durante algum
tempo, fazendo-me temer que não estivesse lá, já que não sabia em que
outro lado encontrá-lo. Mas às tantas atendeu, com ar de quem estava
muito ocupado. E, se a sua voz não se tivesse amenizado ao saber que era
eu, não lhe teria feito o pedido que fiz.
- Queres que eu vá ao teu guarda-fatos e escolha o vestido de cerimónia
que mais sensação causará? Heaven, tens assim tantos?
- Oh, tenho alguns, Troy. O Tony fez-me experimentar pelo menos uns dez e
embora eu pensasse que só queria comprar-me dois, acabou por levar
quatro. Não trouxe nenhum comigo. Pensei que só daqui a muito tempo é que
ganharia suficientes louvores para ser convidada para um dos seus bailes,
mas na verdade já fui.
O Troy deu a impressão de soltar um murmúrio de desagrado.
- Claro, farei o que pedes, embora não saiba muito bem o que uma rapariga
de quinze anos deve levar a um desses acontecimentos sociais.
O Troy cumpriu a sua palavra, de modo que, nesse mesmo dia, já a noite ia
alta, parou um carro diante de Winterhaven, e eu, que me ocultara, à
espera, nas sombras que enchiam o átrio de entrada, enquanto as outras
raparigas dormiam, escapuli-me pela porta da frente, deixando-a encostada
graças a um pequeno livro de estudo que enfiei na abertura.
113
- Desculpe causar-lhe todo este incómodo, Troy - sussurrei, sentando-me
no banco da frente, ao seu lado. Não me contive, aproximei-me dele e dei-
lhe um beijo na face com os lábios frios.
- Obrigada! Tenho muita sorte em ter um bom amigo como o Troy. Calculo
que deva achar-me uma grande chata por lhe ter telefonado tão tarde. Sei
que tem mais que fazer mas o facto é que precisava muito deste vestido!
- Eh! - replicou o Troy, aparentemente embaraçado com os meus excessivos
pedidos de desculpa. - Não estejas demasiadamente agradecida. A verdade é
que eu não tinha nada de especial para fazer. - Afastou-se ligeiramente
de mim, chegando-se desse modo muito à porta do lado do motorista, o que
me fez recuar de novo para o meu lugar, para o deixar à vontade. -
Encontrei os quatro vestidos de que me falaste e tentei resolver qual
deles trazer. No entanto eram todos tão bonitos que não consegui decidir-
me. Agora poderás ser tu própria a fazer a escolha.
- Não preferiu nenhum - perguntei, desiludida, já que contara com o seu
parecer de homem vivido para me elucidar sobre os gostos masculinos. -
Troy, certamente há algum que ache melhor do que todos os outros, não?
- Ficarás bonita, vistas o que vestires - declarou com timidez.
Durante momentos ficámos como estávamos, com o motor em ponto morto e o
vento a empurrar para os arbustos as últimas folhas secas que juncavam o
chão.
Era meia-noite. Raramente as festas clandestinas que decorriam no colégio
ultrapassavam as onze horas da noite. Quase parecia que as alunas de
Winterhaven temiam a meia-noite e a "hora da bruxa", como lhe chamavam.
- Agora tenho de ir - disse eu, abrindo a porta e pondo uma perna de
fora. - Importa-se que lhe telefone de vez em quando?
O Troy hesitou tanto tempo que saí apressadamente do seu carro.
- Desculpe por estar de novo a abusar.
- Vemo-nos na sexta-feira - disse o Troy, sem assumir mais nenhum
compromisso. - Diverte-te no baile.
O seu carro baixo e escuro desapareceu de vista, deixando-me no meio do
vento que premia o meu pesado roupão azul contra o meu corpo. Dessa vez,
porém, ao entrar o mais silenciosamente possível no edifício principal de
Winterhaven, levava comigo um enorme saco fechado contendo roupa
114
Ao entrar, o vento empurrou a pesada porta, fazendo com que esta se
fechasse estrondosamente. Todos os vidrilhos dos candelabros de parede
tiniram e a samambaia que ficava ao fundo do corredor tombou com grande
aparato! Era no primeiro piso do edifício que os membros do corpo docente
tinham os seus aposentos, de modo que vi aparecer uma luz amarelada pela
ranhura de uma das portas fechadas. Peguei rapidamente no livro, agarrei
com maior firmeza no saco fechado com a roupa, e depois corri
silenciosamente escadas acima, só não podendo evitar o leve raspar do
material do saco enorme contra o gradeamento do corrimão. Como os
corredores mergulhados na penumbra tinham um ar fantasmagórico à noite,
apenas com os candelabros de parede acesos... O silêncio que reinava fez-
me olhar para trás de vez em quando, enquanto me dirigia, pé ante pé,
para a segurança do meu quarto.
Apesar de tudo, ao fechar a porta à chave depois de entrar, tive a
sensação incomodativa de que a minha aventura nocturna fora testemunhada
por alguém.
Tinha uma centena de tarefas a executar para que o baile tivesse o
resultado que eu pretendia, ou seja, tornar-me a sua figura central.
Contudo, para isso, tinha de descobrir o que as outras raparigas levariam
vestido. Durante o dia, todas as portas dos dormitórios ficavam abertas a
fim de inspeccionarem se as camas estavam feitas e a roupa arrumada.
Todas as persianas eram corridas até determinado nível, de maneira a
Winterhaven ficar com uma aparência simétrica quando vista do exterior.
Muito antes de os sinos tocarem ruidosamente a despertar, do alto das
suas torres, levantei-me e fui ao enorme lavabo deliciar-me com um duche
antes da chegada das primeiras colegas. Até ali, o meu hábito de "deitar
cedo e cedo erguer" permitira-me desfrutar da privacidade de que tanto
gostava. Contudo, naquele dia, eu ainda só estava parcialmente vestida
quando três ou quatro jovens de olhos ensonados entraram, cada qual
envergando o seu tipo de fatiota para dormir. Embora de dia andassem com
roupa deselegante e desmazelada, o que usavam de noite parecia saído
directamente do Frederick's de Hollywood. Ao verem-me em cuecas e soutien
ficaram paralisadas, como que estupefactas por, finalmente, me apanharem.
- Ela não usa culotes... - sussurrou a Pru Carraway à Faith Morgantile, a
sua melhor amiga.
- Tinha a certeza de que eram vermelhos - retorquiu a segunda em
resposta.
115
Tinham desatado a rir, estimuladas por alguma expressão vulnerável que me
vislumbraram no rosto ou oculta nos olhos, pois nos meus tempos nos
Willies desejara muito ter uns culotes brancos ou encarnados, tanto
quanto um casaco novo, um par de sapatos por estrear, ou algo que me
aquecesse. E enquanto as raparigas iam entrando nos lavabos, todas na
companhia de uma amiga pelo menos, eu parecia uma ilha, com o mar a
encapelar-se à minha volta, tão angustiada e infeliz que, bem vistas as
coisas, os Willies já não me pareciam um lugar tão mau. Depois, quase a
rebentar em lágrimas, agarrei no resto da minha roupa e saí daqueles
lavabos cheios de vapor de água e a cheirar a pasta dentífrica e
sabonete. As risadas continuaram a soar nas minhas costas.
A meio do caminho para o meu quarto, hesitei. Iria permitir que levassem
a melhor sobre mim? E o meu plano? Estavam todas a tomar banho, duche, a
tratarem do cabelo e da maquilhagem. A melhor altura, portanto, para
entrar nos outros três quartos, cada qual partilhado por duas raparigas.
Não se tratava de algo muito do meu gosto, mas tinha de ser. Depressa
encontrei os meus dois casacos roubados e também tentei descobrir o tipo
de vestido que as raparigas de Winterhaven levavam aos seus bailes de
confraternização.
De saia e blusa debaixo de um casaco grosso, caminhei sob a neve que
tombava suavemente em direcção a Beecham Hall. O campus do colégio dava a
impressão de ser uma pequena aldeia, encantadora e fantástica, e para mim
teria sido o paraíso na terra se ao menos pudesse enquadrar-me e
desfrutar dele.
Ao chegar à aula, as raparigas viram o casaco que eu acabara de tirar do
guarda-fato da Pru Carraway. Pela maneira como me miraram de alto a
baixo, consideravam-me mais do que descarada por desafiá-las.
- Podia fazer com que te expulsassem por teres entrado no meu quarto sem
autorização... - principiou a Pru Carraway.
- E roubado o meu próprio casaco? - perguntei. Não me ameaces, Prudence.
Vê se usas de "prudência" antes de planeares o teu próximo truque
destrutivo. Agora que conheço o caminho até aos teus armários e sei onde
guardas as tuas guloseimas, tenta escondê-las muito bem num sítio novo.
Tirei lentamente uma barra de chocolate do bolso. Ao ver-me dar-lhe uma
dentada, fitou-me com olhos arregalados. Talvez se tivesse lembrado que
tivera a caixa de chocolates
116
caros escondida por trás de uma pilha de livros com títulos com Prenhe de
Paixão, O Padre e os Seus Desvarios e A Virgem e o Pecador.
Nessa terça-feira à noite, vesti-me com maior esmero que de costume. No
guarda-fatos, por trás de mim, estavam pendurados os quatro vestidos que
o Tony me comprara, ainda resguardados dentro do saco hermético cuja
abertura só seria possível com uma chave. Podia ser cortado, mas
aparentemente as raparigas de Winterhaven não dispunham de uma faca
suficientemente forte para abrir caminho num material tão grosso. Pelo
que eu vira nos guarda-fatos dos três quartos, as meninas de Winterhaven
apreciavam muito os vestidos sem alças e justos, quanto mais brilhantes e
garridos melhor. Quanto aos quatro que o Tony me escolhera, eram
compridos. Um era em azul-forte (o que usara no jantar na Mansão
Farthinggale), o segundo era de um carmesim-vivo, o terceiro branco e o
quarto num estranho estampado floral que me levara a ficar curiosa sobre
os motivos pelos quais o Tony o escolhera. Quando vivera nos Willies,
ficara com a impressão de que todas as domésticas que moravam nos montes
e no vale levavam vestidos estampados à igreja. Adoravam a roupa
colorida, como se receassem que as cores lisas revelassem nódoas
provocadas por comida descuidadamente manuseada. Foi assim que comecei a
detestar qualquer tipo de estampagem, até mesmo as lindas cores claras e
suaves como as do vestido que o Tony escolhera: azul, verde, violeta e
rosa misturavam-se naquele vestido longo e esvoaçante, com as suas mangas
compridas à boca de sino, apertadas por fitas de veludo verdes. Porém,
quanto mais o via, ali pendurado, mais primaveril ele me parecia... e não
se estava na Primavera. Corria agora o mês de Novembro.
No piso térreo, a comissão de festejos retirara a maioria das mesas da
ampla sala de jantar. Tinham pendurado fitas coloridas e papéis festivos
no tecto, e o candelabro austero fora substituído por uma enorme bola
espelhada. Eu nunca imaginara sequer que aquele salão ensolarado e claro
durante o dia, visto estar voltado para leste e sul, pudesse converter-se
numa sala de baile bastante agradável.
Quando me dirigia para o baile, encontrei a Amy Luckett, que se deteve a
olhar fixamente para mim, sustendo um pequeno grito de admiração com as
mãos miúdas.
- Oh, oh - exclamou ofegante -, não sabia que poderias aparecer assim...
Heaven.
- Obrigada - agradeci, reconhecendo um obscuro elogio
117
nos seus olhos. - Pensei que fazias parte da lista de convidados.
Levou, mais uma vez, as mãos à boca.
- Eu no teu lugar não ia... - murmurou por trás das mãos.
Mas fui.
Naquele momento nada me impediria de ir, sobretudo com aquele vestido
carmesim que se moldava ao meu corpo a partir da gola larga e brilhante,
indo cruzar-se sobre o meu busto e dar a volta até às costas, ficando
preso por duas alças em forma de cordão fino vermelho-brilhante. Deixara
no quarto um casaquinho no mesmo tom, destinado a cobrir a pele que o
vestido deixava à mostra. Contudo, o que eu queria era provar algo aos
rapazes, raparigas e a mim própria; de modo que o modesto casaco ficou no
seu lugar. Era um vestido justo, que revelava vantajosamente a minha
figura. A vendedora ficara admirada ao ver que o Tony queria que eu o
experimentasse.
- É mais adequado a uma pessoa um pouco mais velha, não acha, Mister
Tatterton?
- Sim, realmente, é demasiado ousado. Mas os vestidos como este são
difíceis de encontrar e adoro esta tonalidade de vermelho. Este nunca
sairá de moda. Daqui a dez anos a minha pupila ainda poderá envergá-lo.
Usado pela mulher certa, fa-la-á parecer feita de fogo líquido.
Também era assim que eu me sentia ao aproximar-me do salão de baile
improvisado, de onde a música saía, ruidosa. Atrasara-me um pouco de
propósito, ansiosa por causar sensação ao ser a última a chegar... e, oh,
realmente o meu desejo foi satisfeito.
As alunas de Winterhaven mantinham-se num dos lados, em fila, à esquerda
da porta, enquanto os rapazes ficavam do outro lado da sala, igualmente
alinhados. Quando apareci à entrada, todos os rostos se voltaram para
mim. Só nessa altura compreendi o que a Amy Luckett quisera dizer. Não
havia uma única rapariga vestida a rigor, nem uma!
Vestiam, mais ou menos, o mesmo de todos os dias: saias e blusas ou
camisolas. Saias e blusas bonitas e camisolas caras, com meias de nylon e
sapatos de salto alto. Tive vontade de me enfiar num buraco no chão, tão
deslocada me senti no meu vestido de noite vermelho, comprido e justo,
que, de repente, me fez sentir como uma vadia... Oh, porque o teria o
Tony escolhido para mim, porquê?
E todos os rapazes olhavam embasbacadamente para
118
mim, começando a exibir sorrisos largos e sabedores. Por um momento breve
ainda pensei em dar meia volta e fugir, abandonando Winterhaven para
sempre. Depois, porém, como que incapaz de me virar ou escapulir, enchi-
me de forças e preparei-me para o que desse e viesse, entrando dignamente
na sala como se toda a vida me tivesse vestido a rigor, fazendo-o com
elegância. E aquela rapaziada que, de repente, mudara de ideias em
relação aos outros pares de dança, não tardou a cair sobre mim. Pela
primeira vez em toda a minha vida, fui eu, e não a Fanny, a ter os
rapazes todos apinhados à minha volta... implorando a primeira dança, ou
então a segunda ou terceira. Antes que eu percebesse o que estava a
acontecer, vi-me arrastada pelos braços de um jovem de cabelo ruivo que
me fez lembrar vagamente o tom.
- Ena! Ena! - exclamou o rapaz, ofegante, tentando puxar-me
embaraçosamente para mais perto de si. - Todos nós detestamos estes
bailes pirosos de confraternização, mas quando tu apareceste, boneca, a
coisa deixou de ser chata.
Era o vestido vermelho, claro, não eu. Tratava-se, exactamente, do tipo
de vestido que a Fanny adoraria possuir. Vermelho, a cor que a
aristocracia medieval atribuíra às prostitutas de rua. Vermelho, a cor
ainda hoje associada a mulheres de virtude perdida. Vermelho, a cor da
paixão, luxúria, violência e sangue. E eu ali, a ter de lutar para
impedir que robustos corpos masculinos se esfregassem contra mim na sua
ânsia de obter prazeres baratos. As voltas como andava, arrancada dos
braços de um rapaz para outro, mal via os rostos das outras raparigas. O
meu cabelo, que penteara no alto da cabeça, estava preso por travessas
brilhantes, mas não tardei a senti-lo escorregar. Acabou por se
desprender completamente e os caracóis ficaram a bater-me nos ombros.
Comecei a sentir-me cansada e furiosa por os meus pares não me permitirem
sentar a descansar entre as danças.
- Larguem-me! - gritei por fim, fazendo-me ouvir acima da música alta. Ao
afastar-me para tentar instalar-me num dos elegantes bancos almofadados
que tinham vindo das salas de estar das visitas para ali, reparei
indistintamente nos professores e outras pessoas presentes na sala.
Mostraram-se insistentes a oferecer-me deliciosas chávenas de ponche,
pratos cheios de sanduíches minúsculas e canapés bonitos, e dedos
masculinos conseguiram levar a bom termo a pretensão de me alimentarem.
Achei que o chá e o ponche de fruta tinham um bocado de álcool a mais.
Bastaram duas chávenas para me pôr tonta. Consegui mordiscar duas
sanduíches ínfimas
119
antes de me arrancarem as iguarias das mãos e puxarem-me de novo para a
pista de dança. As vinte raparigas de Winterhaven que tinham obtido
louvores suficientes para ir àquele baile não desviavam o olhar de mim um
instante, mirando-me com intensidade peculiar. Porque brilhariam os seus
olhos com tanta expectativa?
Eu estava a divertir-me, ou pelo menos tinha de acreditar nisso, ao ver
todos os rapazes fazerem de mim o centro das suas atenções. A divertir-me
à custa das outras raparigas, deixadas para trás. Porque me observariam
estas sem inveja? Mesmo quando outros pares dançavam, era eu quem atraía
todos os olhares. A maneira como me observavam incomodava-me. Estaria eu
a comportar-me bem ou mal? Até os membros da faculdade. Até mesmo os
membros do corpo docente da faculdade, que se conservavam à parte, de
taça na mão, não desviavam os olhos de mim. O interesse e a curiosidade
que revelavam aumentavam o meu nervosismo, quando antes me aterrorizara
passar despercebida.
- Não há dúvida de que é muito bonita - elogiou o rapaz que me fazia
rodopiar pela pista. - E adoro o seu vestido. O facto de usar vermelho
quererá transmitir alguma mensagem?
- Não compreendo por que razão as outras raparigas não trazem vestidos de
cerimónia - sussurrei ao rapaz, que parecia menos atrevido e insensível
do que os outros. Pensei que devíamos vir todas a rigor.
O rapaz retorquiu algo sobre o facto de as raparigas de Winterhaven serem
irreverentes e imprevisíveis, mas eu mal o ouvi. Senti uma cólica,
violenta e aguda, dilacerar-me o abdómen! Não estava na altura do meu
período mensal mas, mesmo nessas ocasiões, as dores nunca eram demasiado
incomodativas. A dança chegou ao fim e, antes que eu pudesse recuperar o
fôlego, o meu par seguinte dirigiu-se para mim com um sorriso demoníaco
nos lábios.
- Gostaria de ficar uma música sentada - declarei, dirigindo-me para um
banco.
- Não pode! A menina é a estrela do baile e não deve falhar uma dança.
Mais uma vez, a mesma dor horrível na barriga quase me fez dobrar sobre
mim mesma. À minha volta, tudo perdeu a nitidez. Os rostos das raparigas
que me observavam distorceram-se como as imagens dos espelhos deformados
das feiras. Um rapaz baixo, rechonchudo e de ar simpático, puxou-me pelas
mãos.
120
Por favor, ainda não dançou comigo.
E, antes que eu pudesse protestar de novo, pôs-me de pé, e eu vi-me na
pista de dança, desta vez a mover-me ao som de um tipo diferente de
música. Era música moderna, com batida forte. Toda a vida sonhara em me
tornar tão popular que não conseguisse ficar uma dança sentada.
Naquele momento só me apeteceu fugir. Algo de pavoroso se passava no meu
abdómen. A casa de banho! Precisava de ir à casa de banho!
Ao desprender-me do rapaz, fui imediatamente agarrada por outro, que
começou a movimentar-se apertando-me contra si; porém, mostrava-se tão
despropositado que eu virei-me para fugir. De repente, a música parou e
puseram um novo disco, uma valsa lenta, do género "aconchegado", aquilo
de que eu menos precisava naquele momento concreto e, mais uma vez,
alguém prendera-me nos seus braços, enquanto as dores, dores horríveis,
se faziam sentir cada vez mais violentas e próximas!
Empurrei violentamente o rapaz e deitei a correr. Pareceu-me ouvir rir
atrás de mim... Um riso de maldade e desprezo.
Os lavabos do primeiro andar tinham sido atribuídos aos nossos
convidados; portanto, foi para as escadas que lhe davam acesso que corri
o mais depressa que pude. A porta estava trancada! Oh, Santo Deus!
Precipitei-me para uns outros, numa ala afastada, sentindo-me em pânico
por estarem tão longe. Nunca os alcançaria a tempo! E, quando lá cheguei,
também estavam fechados à chave!
Naquela altura já soluçava, incapaz de entender o que estava a acontecer
comigo.
Voltei rapidamente aos meus aposentos, dobrada sobre mim mesma, gemendo e
arquejando violentamente. Assim que cheguei, atirei com a porta e
tranquei-a. Não dispunha de sanitários no meu quarto, mas não vivera
catorze anos nos Willies, detestando ter de me deslocar à horrível
casinha no exterior, sem aprender a improvisar. E depois de terminar,
continuei sentada, sentindo a iminência de algum segundo ataque.
Durante uma boa hora, os meus intestinos agitaram-se violentamente até me
deixarem trémula e debilitada, com uma camada de transpiração a cobrir-me
a pele. Entretanto, no piso de baixo, o baile terminara e as raparigas
regressaram aos seus quartos, rindo, aos cochichos, excitadíssimas com
algo.
121
Bateram à porta do meu quarto. Nunca ninguém o fazia!
- Heaven, estás aí? Não há dúvida de que foste a rainha da noite! Porque
desapareceste tão depressa, como a Cinderela?
- Sim, Heaven - disse outra voz. - Adorámos o teu vestido. Estavas tão
bem!
Tirei, com todo o cuidado, o frágil saco de plástico que colocara dentro
do meu cesto dos papéis. Enfiei-o logo de seguida num segundo saco,
prendendo fortemente a abertura com o atilho de arame forrado a plástico.
Resolvera o meu problema, mas por pouco não sujara a roupa. Naquele
momento, porém, tinha um saco cheio de porcaria no meu quarto e não sabia
como me livrar dele. Uma das soluções era a comporta de saída da roupa
suja nos lavabos; só se o plástico rebentasse é que a roupa que enchia os
cestos em baixo ficaria suja.
com o saco escondido por baixo do roupão que levava dobrado sobre os
braços, dirigi-me para os lavabos. Entrei rapidamente, embora não
precisasse de o ter feito. As vinte raparigas que tinham ido ao baile
encontravam-se na sala de convívio, onde estavam montados vários
secadores de cabelo e havia pequenos toucadores dotados de luz para a
aplicação de maquilhagem. Riam quase histericamente.
- Viste a cara dela? Ficou branca como um lençol! Por pouco não senti
pena dela.
- Pru, que quantidade daquele material deitaste no ponche dela?
- O suficiente para lhe provocar uma descarga... uma verdadeira descarga!
- E a maneira como os rapazes colaboraram não foi maravilhosa? - observou
outra rapariga cuja voz não identifiquei.
- Terá chegado a tempo à casa de banho?
- Como poderá ter chegado, se todas as portas dos lavabos estavam
fechadas à chave?
A hilaridade das minhas colegas era de tal ordem que geraria
electricidade suficiente para iluminar Nova Iorque inteira. No entanto,
eu já me sentia suficientemente enojada. Nem mesmo nos Willies as pessoas
tinham sido tão cruéis. Até mesmo os rapazes de pior índole de Winnerrow
tinham respeito por algumas coisas. Enfiei o saco de plástico no bocal
maior de escoamento das toalhas, imaginando que não rebentaria, pois
teria toda aquela roupa molhada e húmida a atenuar a sua queda. Depois,
fui tomar duche e lavar o cabelo
122
Servi-me do único reservado com porta que podia ser fechado do lado de
dentro. Passei dez minutos a esfregar-me com o sabonete e, depois de pôr
amaciador no cabelo, sequei-me com uma toalha, vesti o meu roupão de
banho branco e saí. Todas as raparigas que vira na outra sala tinham-se
juntado ali, aguardando o que iria acontecer a seguir. Dos lábios e dedos
negligentes pendiam-lhes cigarros proibidos.
- Estás com um ar tão lavado, Heaven - exclamou a Pru Carraway, que
trocara a sua roupa de colegial pelo seu baby doll transparente, com ar
jovial. - Tiveste alguma necessidade especial de ficar tanto tempo
debaixo do chuveiro?
- A mesma velha necessidade que tenho todas as noites desde que vim para
Winterhaven... Limpar-me do ambiente que se pega à minha pele e ao meu
cabelo.
- O ambiente aqui é sujo? Mais sujo do que no sítio de onde vieste?
- No sítio de onde vim há minas de carvão e descascadoras de algodão. O
vento leva o pó de carvão, que suja a roupa estendida nos varais, e as
cortinas têm de ser lavadas todas as semanas. A fibra de algodão invade
os pulmões dos operários e até mesmo de quem vive nas redondezas. Mas
desde que vim para Winterhaven não tenho feito outra coisa senão sentir a
boa e sã alegria americana. Estou ansiosa por escrever a minha tese sobre
a minha vivência em Winterhaven. Será muito esclarecedora para aqueles
que nada sabem sobre o que se passa em escolas particulares como esta.
De repente, a Pru Carraway começou a sorrir, a sorrir com quantos dentes
tinha.
- Ora, deixa-te disso, Heaven, ficaste assim tão aborrecida por causa da
roupa? Pregamos sempre essa partida às caloiras. É divertidíssimo enganá-
las para que se vistam da maneira errada. Faz parte da nossa iniciação.
Agora, se concordares em te submeter ao próximo ritual, poderás tornara-
te uma de nós e pregar as mesmas partidas à próxima caloira que entrar.
- Não, obrigada - respondi friamente, ainda bem recordada das cólicas
horríveis que me tinham deixado sem forças. - Não tenho interesse nenhum
em me tornar membro do vosso clube.
- Claro que tens! Toda a gente tem! Divertimo-nos imenso e temos montes
de comida e bebida guardada que nem te passa pela cabeça. O próximo passo
completará os nossos requisitos. Não queremos raparigas que se acobardem.
- Sorriu-me cativadoramente, com mais encanto do
123
que anteriormente imaginara que tivesse. - Basta que deslizes pela calha
de escoamento da roupa suja e depois descubras a maneira de sair da cave,
que fica sempre fechada à chave. Há uma saída, mas terás de descobri-la.
A pausa prolongou-se interminavelmente, enquanto eu reflectia sobre a
proposta.
- Mas como é que eu sei que o cano não é perigoso?
- Ora, todas nós já passámos por ele, Heaven, cada uma de nós, e não nos
aconteceu mal nenhum! - A Pru sorriu-me de novo. - Vá, sê compincha...
Além disso queremos ir visitar-te neste Natal.
Sentia aumentar dentro de mim uma raiva difícil de descrever. Podiam ter-
me pregado uma série de partidas, sem terem de recorrer à violência
física. Lá em baixo, em cima de toda aquela roupa suja estava um saco de
plástico cheio de porcaria à espera...
- Se alguém me provar que aquela passagem é segura e que existe mesmo uma
saída para fora da cave... - retorqui.
- Não quero ser apanhada lá em baixo de manhã, por uma das lavadeiras,
que daria imediatamente parte de mim por me encontrar em zona proibida...
Nesse caso, talvez eu...
- Todas nós o fizemos! - exclamou a Pru, como se considerasse a minha
precaução completamente descabida. É apenas uma corrida rápida e cais
sobre um monte de toalhas molhadas. Nada de especial.
- Mas quero ter a certeza de que encontro uma saída para fora da cave.
- Eu própria o farei, para te provar que não há problema nenhum. Quando
me voltares a ver, perceberás que sou a única pessoa corajosa aqui, pois
um dos outros membros do clube, que não a presidente, devia ter-se
oferecido voluntariamente.
O destino estava traçado. O que porventura acontecesse a seguir não seria
obra minha, pensei, ao ver a Pru Carraway empertigar-se cheia de vaidade
e depois encaminhar-se, altaneira, para a saída mais larga da roupa suja,
por onde eu atirara os meus sacos de plástico. Numa grande demonstração
de coragem, fez um floreado com a mão em jeito de despedida e, dizendo
"Até já", entrou na abertura redonda, cuja tampa fora levantada por uma
das amigas.
Depois de a Pru desaparecer de vista, a pesada porta caiu, ajustando-se
com estrondo no seu lugar. O grito agudo que ouvimos a Pru soltar em
direcção às profundezas dizia-nos que a descida era divertidíssima!
124
Sustive a respiração. Talvez os sacos de plástico aguentassem, talvez.
De repente, mais depressa do que eu calculara, soou um tipo diferente de
grito. Era de horror, nojo, angústia!
Ela exagera sempre, não acham? - observou uma voz atrás de mim, que não
me dei ao cuidado de ver a quem pertencia.
A Amy Lucket inclinou-se para me segredar:
- Desculpa o que te fizemos, Heaven, mas todas nós temos de passar por
algumas provações e eu ouvi o teu tutor dizer a Mistress Mallory que não
te ajudasse nem protegesse do que as outras raparigas fizessem. Parece
que quer pôr o teu ânimo à prova e ver como reages.
Não sabia que pensar. Ao longe, ouvia a Pru ainda a gritar e a soluçar.
Os seus lamentos começaram a diluir-se à distância, a tornar-se cada vez
mais débeis. Os segundos foram passando e as raparigas presentes
começaram, em voz cada vez mais alta, a fazer comentários, admiradas por
a Pru demorar tanto tempo a voltar.
Por fim, a Pru Carraway apareceu. Vinha pálida, trémula, e acabara de
tomar um bom banho. Até lavara o cabelo. A pele fora esfregada com tanta
força que estava brilhante e ligeiramente esfolada. Fitou-me com ar frio.
À minha volta, as raparigas calaram-se.
- Muito bem, provei que pode ser feito. Agora é a tua vez.
- Para ser franca não tenho interesse nenhum em pertencer ao vosso clube
- declarei com uma frieza e superioridade que igualava a dela. -
Brincadeira é brincadeira, mas tudo o que seja perigoso, ofensivo e
fisicamente embaraçoso, é de mau gosto e foge ao bom senso. Eu seguirei o
meu caminho e vocês o vosso.
As raparigas olharam todas para mim com expressão de grande choque;
porém, nos olhos faiscantes da Pru Carraway brilhava algo mais: alívio
por eu não ter denunciado a sua vergonha, e ressentimento e hostilidade
porque, durante a sua ausência, eu tinha conseguido arranjar algumas
amigas.
9 LOGAN
Nunca me tornei uma das eleitas de Winterhaven. No entanto, pelo menos a
maioria das raparigas aceitara-me tal como eu era, diferente e
independente, apesar de tímida e insegura. Encontrara, inconscientemente,
o mesmo velho escudo que utilizara nos Willies e em Winnerrow;
indiferente, aí estava o que eu pretendia ser. Elas que tentassem dar-me
cabo da paciência, que me importava? Estava onde queria e isso bastava.
Quando, no dia a seguir ao baile, o Troy telefonou a saber como tinha
corrido, contei-lhe que alguém me pregara uma partida horrível; no
entanto, sentia-me demasiado embaraçada para lhe dizer qual fora.
- Não ficaste magoada, pois não? - perguntou-me, aparentemente
preocupado. - Ouvi dizer que aí em Winterhaven essas raparigas são muito
más para as caloiras, sobretudo aquelas com quem não conviveram em
sociedade.
- Oh - retorqui de maneira despreocupada -, creio que desta vez o tiro
saiu-lhes pela culatra.
Nessa mesma sexta-feira à noite, a Jillian e o Tony regressaram da
Califórnia, mais cedo do que era esperado, cheios de animação. Trouxeram-
me roupa e jóias, e o facto de eu saber que o Troy, o meu amigo secreto,
estava ali perto, na sua pequena casa de pedra, representava um conforto
constante e seguro. Tinha quase a certeza de que ele não desejava a minha
presença lá, pois eu distraía-o das suas tarefas, e que se não fosse tão
delicado e sensível às minhas necessidades ter-me-ia mandado embora.
- Como é que vocês se entretém aos sábados? - perguntou-me o Tony um dia,
ao ver-me sair da biblioteca com os braços carregados de livros.
- A estudar, pois então - retorqui com uma pequena gargalhada. - Pensava
que sabia muito, mas afinal pouco é.
126
portanto, se a Jillian e o Tony não se importam, vou trancar-me no quarto
a "marrar".
Ouvi-o suspirar pesadamente.
- A Jillian costuma ir ao cabeleireiro aos sábados de manhã, depois à
tarde vai ao cinema com as amigas. Estava esperançado em ter a tua
companhia para ir até à cidade fazer umas compras de Natal.
- Oh, não precisa de repetir o convite, Tony, pois não há nada neste
mundo que eu tenha mais vontade de fazer do que visitar a loja principal
dos Brinquedos Tatterton.
Por um momento, o Tony pareceu espantado. Depois um sorriso abriu-se,
lentamente, no seu rosto agradável.
- Queres mesmo lá ir? Que maravilha! A Jillian nunca mostrou o menor
interesse nisso. E a tua mãe, sabedora de que discutíamos frequentemente
por causa dessa questão, pôs-se do lado da mãe dela e disse que era
demasiado crescida para ligar a bonecos idiotas que não tinham a menor
importância para o funcionamento do mundo nem melhoravam as condições
sociais ou políticas... Portanto, para que serviam?
- A minha mãe fez essa afirmação? - perguntei, completamente espantada.
- Repetia as ideias da tua avó, que deseja um companheiro de folguedos,
não um homem de negócios. Durante uns tempos fez linda roupa de boneca e
eu tive esperança de que um dia participasse a sério nos Brinquedos
Tatterton.
Pouco depois, escapulia-me para a casa de pedra do Troy, o meu lugar
favorito. Bastava a presença dele para me animar. Por que razão o Logan
nunca teria feito o meu pulso bater tão violentamente?
Escrevi ao tom, deitada sobre o tapete espesso que o Troy tinha em frente
da lareira, implorando-lhe que me aconselhasse sobre o modo de abordar
novamente o Logan sem parecer demasiado agressiva.
Quando já tinha a certeza de que o tom nunca responderia à minha última
carta, recebi uma sua na minha posta-restante.
"Não entendo todos esses receios. Tenho a certeza de que o Logan ficará
encantado se receber um telefonema teu e combinará um local para se
encontrarem. A propósito, será que te contei, na última carta, que a nova
esposa do nosso pai está à espera de um bebé?
127
Não tenho recebido notícias directas da Fanny, mas ainda mantenho
contacto com alguns velhos amigos em Winnerrow. Parece que a esposa do
reverendo foi aguardar a chegada do primeiro filho para casa dos pais
dele. E tu, soubeste da Fanny ou das pessoas que ficaram com a "Nossa"
Jane e o Keith?"
Não, não soubera nada. E o meu pai continuava a fazer filhos
inconsequentemente, quando nunca deveria ter mandado vir mais nenhum!
Não, depois do que fizera! Doía-me saber que podia proceder velhacamente
e nunca receber castigo, pelo menos não o suficiente! Os dois irmãozinhos
mais novos que tão importantes tinham sido na minha vida começavam a
tornar-se cada vez mais distantes na minha memória, o que me assustava.
Já não sentia aquela angústia lancinante por tê-los perdido, o que não
podia permitir que acontecesse. O Troy dissera-me que os seus advogados
de Chicago em breve iniciariam as investigações. Era preciso que eu
mantivesse a chama da raiva viva, que a conservasse bem acesa e jamais
deixasse que as feridas abertas pelo meu pai sarassem. O meu objectivo
era ter os cinco Casteel de novo juntos, debaixo do mesmo tecto.
Tal como receara, quando, por fim, ousei telefonar ao Logan, a sua voz
não transmitiu o afecto e a ternura que eu lhe conhecera quando me amara.
- Ainda bem que ligaste, Heaven - disse-me em tom frio e desprendido. -
Gostaria de me encontrar contigo este sábado, mas terá de ser rápido
porque tenho um teste importante na próxima semana.
Oh, maldito fosse! Maldito fosse duas vezes! O tom frio da sua voz fora
como uma facada para mim; era o mesmo tom que a sua mãe costumava
utilizar sempre que tinha a infelicidade de me encontrar com o seu bem-
amado filho único. A Loretta Stonewall odiava-me e fizera pouco esforço
para disfarçar as críticas que dirigia ao filho por este se dedicar à
escória do monte. E o marido seguira-lhe as pisadas, embora algumas vezes
aparentasse constrangimento pela óbvia hostilidade da mulher. Todavia, eu
não iria faltar ao encontro com o Logan naquela tarde, apesar da frieza
na sua voz. Gastei duas horas a preparar-me... Estava resolvida a
aparecer com o meu melhor aspecto.
- Mas que imagem bonita transmites, Heaven - exclamou o Tony ao ver-me. -
Adoro a cor desse teu vestido. Fica-te muito bem, embora não me recorde
de o ter escolhido.
128
Franziu as sobrancelhas enquanto reflectia, e eu sustive a respiração,
pois tratava-se de um vestido que a Jillian me dera, um que o Tony lhe
oferecera mas que ela nunca usara porque não gostava do feitio e da cor
ou do facto de o marido considerar o seu gosto superior ao dela.
- Num dia como o de hoje, minha querida menina, não podes levar um
agasalho vulgar - declarou, dirigindo-se para um guarda-fato, de onde
tirou um casaco comprido de pele de zibelina, pesado e escuro. Segurou-o
de modo a eu poder enfiar os braços nas mangas. - Esta pele já tem três
anos e a Jillian possui muitas outras. Portanto, se quiseres ficas com
ele. E agora diz-me, onde vais? Sabes que tens de me comunicar
antecipadamente os teus planos, para receberes a minha autorização.
Como poderia eu contar-lhe que tencionava encontrar-me com um rapaz do
meu passado? Ele não compreenderia que o Logan era diferente, que não
tinha nada a ver com Winneirow. Presumiria que se tratava apenas de um
jovem qualquer de uma aldeia dos montes que ele nunca vira: rude, inculto
e mal-educado.
- Fui convidada por algumas das raparigas mais simpáticas de Winterhaven
para ir lanchar com elas à cidade. E não é preciso o Miles levar-me. Nem
o Tony. Já chamei um táxi.
O meu coração bateu mais depressa e mais alto ao dizer uma mentira que
poderia ser uma verdade. O Tony detectou algo na minha expressão ou no
tom de voz que o fez semicerrar os olhos e mirar-me atentamente. Tinha um
ar arguto e sofisticado, e parecia conhecer todas as manhas do mundo. Os
segundos passaram, longos e intermináveis, durante os quais aqueles olhos
observadores avaliaram a minha tranquilidade forçada, a minha segurança
forjada, ficando aparentemente convencido, pois sorriu.
- Fico muito contente em saber que fizeste amigas em Winterhaven - disse,
com prazer. - Já ouvi contar muitas histórias sobre o que aquelas
raparigas fazem às caloiras e talvez devesse ter-te alertado. Mas quis
que aprendesses, com a experiência, a enfrentar todo o tipo de
circunstâncias difíceis.
Sorriu-me aprovadoramente, e algo me deu a certeza de que se inteirara de
todos os pormenores embaraçosos relacionados com a noite do baile. Deu-me
um apertão por baixo do queixo.
- Ainda bem que tens genica e sabes como lidar com as situações, sozinha.
Agora já tens a aprovação delas, apesar
129
de achares que isso não te faz a menor falta. Agora que foste aceite,
podes seguir o teu próprio caminho, com a minha aprovação. Sê firme. Não
permitas que te intimidem. E arranja amizades entre as raparigas... Mas,
quando se tratar de rapazes, primeiro vem ter comigo. Antes de saíres com
algum, terás de levar acompanhante e investigarei a família dele. Não
posso permitir que andes por aí com a escória.
As palavras do Tony fizeram-me tremer ligeiramente, pois dava a impressão
de que eu não poderia ter segredos para ele. Estava ainda a mirar-me com
grande aprovação, quando um certo orgulho brotou dentro de mim, fazendo-
me empertigar. Algo de afável e terno que se estabeleceu entre nós levou-
me a aproximar-me dele e a dar-lhe um beijo na face. O Tony pareceu ficar
muito surpreendido e igualmente deliciado.
- Ora, obrigado pelo gesto simpático. Se continuares assim, ainda acabo
por satisfazer todas as tuas vontades.
O meu táxi chegou. O Tony ficou à porta a dizer-me adeus e eu segui para
um dos locais mais frequentados pelos rapazes da Universidade de Boston,
o Café Boar's Head.
Antevia todo o tipo de dificuldade para encontrar o Logan. Pensei,
inclusivamente, que ele voltaria a fazer de conta que não me via ou a
fingir não me reconhecer, já que eu não fizera o menor esforço para
aparentar semelhanças com a velha rapariga miserável dos montes, da qual
me envergonhava. Foi então que o avistei, sentado junto da janela do
café. Ria e falava animadamente com uma bonita rapariga sentada à sua
frente. A possibilidade de ele andar com outra pessoa nunca me passara
pela cabeça, pelo menos não a sério. De modo que detive-me, sob a neve
que tombava ao de leve, sem saber como proceder. O mês de Outubro já lá
ia. Encontrávamo-nos naquela altura em meados de Novembro. Como teria
sido agradável convidá-lo para ir à Mansão Farthinggale, onde, em frente
de uma lareira acolhedora, ele e o Tony teriam oportunidade de se
conhecer. Suspirei melancolicamente ao pensar que os meus desejos parecia
jamais se realizariam. Então, perante os meus olhos incrédulos, o Logan
inclinou-se sobre a mesa e beijou a rapariga no rosto, terminando nos
lábios, onde se deteve interminavelmente num beijo a sério... Beijando-a
como nunca me beijara a mim!...
Odiava-o! Odiava-a! Maldito sejas, Logan Stonewall! És igualzinho aos
outros rapazes!
Dei meia volta sem me dar conta de que a neve recém-caída era
escorregadia. Não pude evitar a queda e tombei de costas, ficando
130
inesteticamente deitada a olhar para o céu, profundamente chocada por me
ter acontecido algo tão estúpido. Não me magoara. Recusei a ajuda de
quantos quiseram pôr-me de pé... Nesse momento, vi o Logan sair do café a
correr. As primeiras palavras que proferiu mostraram-me que, dessa vez,
conhecera-me.
Santo Deus, Heaven, que estás a fazer deitada no chão?
Sem me pedir licença para me ajudar, enfiou as mãos debaixo dos meus
braços e ergueu-me. Esforcei-me por recuperar o equilíbrio, o que me
obrigou a agarrar a ele, que me observava, divertido.
- Na próxima vez em que comprares botas, vê se escolhes saltos mais
baixos.
A rapariga, no interior do café, observava-nos com ar furioso.
- Olá, desconhecido - cumprimentei em voz baixa e sensual, tentando
esconder o meu embaraço. Larguei-o, já totalmente recomposta, e sacudi a
neve do meu casaco. Lancei-lhe um olhar que o teria perfurado se pudesse.
- Vi-te no café a beijar aquela que está ali a olhar para nós, com ar
furibundo. Agora manda em ti?
O Logan teve a decência de corar.
- Ela não significa nada para mim, é apenas uma maneira de passar a tarde
de sábado.
- Francamente! - exclamei com o tom mais gélido que consegui colocar na
voz. - Tenho a certeza de que não serias tão compreensivo se me
apanhasses na mesma situação.
Ficou ainda mais vermelho.
- Porque tens de tocar nesse assunto? Além disso, entre ti e o Cal
Dennison houve mais do que uns quantos beijos!
- Sim, houve. Mas tu nunca entenderias como tudo aconteceu, mesmo que
fosses suficientemente generoso para me dares a possibilidade de
explicar.
Ali, no meio da neve que começara a cair com mais força, o Logan parecia
muito forte, a linha do seu maxilar denotava firmeza e determinação. A
sua aparência distinta levava muitas das mulheres que passavam a deter-se
e a olhá-lo duas vezes... E ele fitava-me com o desinteresse de um
desconhecido.
O vento frio sibilava nas esquinas dos edifícios e açoitava o solo com
rajadas, fazendo com que o cabelo dele se agitasse violentamente no ar.
Quanto ao meu, era levantado e empurrado para a frente. Reparei que
respirava rápida e violentamente,
131
tão desejosa estava de merecer de novo a aprovação do Logan. O simples
facto de estar tão próxima da sua robustez e bondade fez-me perceber o
quanto precisava dele. Ansiava terrivelmente por ter novamente o seu
amor, o seu afecto e carinho, já que ele me amara quando eu não passava
de uma pacóvia insignificante, além de que, com ele, eu não precisava de
fazer de conta que era mais do que era na realidade.
- Heaven, foi simpático teres-me telefonado. Tenho tido vontade de o
fazer sempre que penso em ti. Uma vez passei em frente da Mansão
Farthinggale, mas fiquei tão impressionado que perdi a coragem e voltei
para trás.
Nesse momento começou a ver-me, a ver-me de verdade. Os seus olhos
espelharam incredulidade, iluminando-se brevemente de prazer.
- Estás tão diferente - declarou, movendo os braços como se fosse
abraçar-me, antes de os deixar cair ao lado do corpo e enfiar as mãos nos
bolsos, como se aí elas encontrassem um porto seguro e acolhedor.
- Espero que para melhor.
O Logan examinou-me com um ar de tão profunda censura que comecei a
tremer ligeiramente. Que teria eu feito de errado?
- Pareces muito rica, demasiado rica. Mudaste de penteado e usas
maquilhagem.
Qual seria o problema dele? Nenhuma das minhas "melhorias" parecia
agradar-lhe.
- Fazes lembrar uma dessas modelos que saem nas capas das revistas.
E isso era mau? Tentei sorrir.
- Oh, Logan, tenho tanto que te contar! Estás com óptimo aspecto! - A
neve começara a congelar-me o rosto. Partículas brancas de neve fofa
tinham ficado presas nos cabelos do Logan e nos meus, e gelavam-me a
ponta do nariz.
- Haverá algum sítio onde nos possamos sentar a conversar, onde se esteja
confortável e aquecido? Talvez nessa altura deixes de olhar para mim com
esse ar.
Continuei a falar de banalidades enquanto ele me acompanhava até ao
interior do café, levando-me até uma mesa, onde nos sentámos e mandámos
vir chocolate quente. Reparei que a rapariga continuava a fitar-nos com
raiva, mas fiz de conta que não a via e o Logan imitou-me.
O Logan passeou o olhar pelo meu casaco de peles, reparando nos fios de
ouro que eu trazia ao pescoço e, quando tirei as finas luvas de cabedal
macio, nos anéis que tinha nos dedos.
132
Tentei sorrir.
Logan - principiei de olhos baixos, decidida a não desanimar -, será que
não podemos deixar para trás o que aconteceu- e começar de novo?
O Logan levou muito tempo a responder, como se tentasse libertar-se de
uma decisão já tomada, e cada segundo que eu passava com ele trazia-me à
memória recordações dos momentos de doçura por que passáramos por nos
termos um ao outro. Oh, se ao menos eu nunca tivesse permitido que o Cal
Dennison me tocasse! Se ao menos tivesse sido mais forte, mais ponderada,
mais conhecedora dos homens e dos seus desejos físicos! Talvez nessa
altura tivesse conseguido manter à distância um homem mais velho, que era
basicamente fraco e tivera a indecência de se aproveitar de uma pacóvia
jovem e estúpida.
- Não sei - respondeu ele por fim, em voz lenta e hesitante. - Não
consigo deixar de pensar na facilidade com que me esqueceste e ao
juramento que fizemos um ao outro, mal te foste embora.
- Por favor, faz um esforço! - implorei. - Nessa altura não sabia no que
estava a meter-me e sentia-me encurralada por circunstâncias que
escapavam ao meu controlo...
Ergueu o queixo teimoso, parecendo tornar-se mais determinado.
- Não sei porquê, mas ao ver-te como estás hoje, com jóias caras e esse
casaco de peles, não me pareces a mesma rapariga que conheci. Já não sei
como lidar contigo, Heaven. Deixaste de parecer vulnerável. Dá a
impressão de que não precisas verdadeiramente de nada nem de ninguém.
O meu coração contraiu-se. O que ele via não passava de uma confiança
superficial proporcionada pela roupa e jóias caras. Bastava raspar a
superfície para logo descobrir a pacóvia Casteel dos montes. Foi então
que percebi aonde ele queria realmente chegar.
Ele gostara mais de mim quando eu despertava pena! Fora atraído pela
minha vulnerabilidade, a minha pobreza, os meus feios vestidos desbotados
e os meus sapatos andrajosos! Aquilo que eu imaginara que ele mais
admirava em mim, a minha força interior, nem sequer tinha importância
para ele naquele momento!
Fixei o olhar na camisola castanho-escura, sentindo curiosidade em saber,
não sei porquê, se ainda conservaria o horroroso boné vermelho tricotado
que lhe fizera uma vez. Senti que, mais uma vez, as circunstâncias fugiam
ao meu controlo, mas isso não significava que desistisse sem luta.
133
- Logan - principiei de novo -, neste momento estou a viver com a minha
avó verdadeira. Ela é tão diferente da avó dos montes como o dia da
noite. Nunca imaginei que uma avó na meia-idade pudesse ter um ar tão
jovem e não só fosse linda como também esplendorosa. Esta avó vive num
mundo diferente daquele que conheceste nos Willies.
Quão rapidamente ele formara a sua opinião, como se nunca tivesse dúvidas
sobre algo ou alguém. A certa altura pegou, por fim, na sua caneca e
bebeu.
- E que tal achas o teu avô? - perguntou. - Também é jovem e
fabulosamente bonito?
Tentei ignorar o sarcasmo dele.
- O Tony Tatterton não é o meu avô de verdade, Logan, mas sim o segundo
marido da minha avó. O pai da minha mãe morreu há dois anos. Lamento não
ter tido a oportunidade de o conhecer.
Os olhos intensamente azuis do Logan adoptaram um ar abstracto, ainda
presos num ponto algures atrás da minha cabeça.
- Um dia vi-te, em meados de Setembro, a fazer compras acompanhada por um
homem mais velho, que te pegava no cotovelo e guiava para onde queria ir.
Tive vontade de te chamar, mas não fui capaz. Segui estupidamente os dois
durante algum tempo e vi-te provar montanhas de vestidos através dos
vidros das montras das lojas, exibindo-os diante daquele homem. Fiquei
espantado com as mudanças que se operavam em ti consoante o que vestias.
E mais, fiquei admirado ao ver como tu própria ficavas diferente! Sempre
que ele te comprava algo, rias e sorrias como nunca te vi fazer antes.
Heaven, eu não fazia ideia de que aquele homem jovem podia ser o teu avô.
Só sentia ciúmes. Quando te amava e planeávamos o nosso futuro, queria
ser eu a encher os teus olhos daquela alegria e o teu rosto daquele
brilho.
- Mas eu precisava dos casacos quentes que ele me comprou, das botas, dos
sapatos. E quanto aos casacos de pele, não são novos, foram-me dados pela
Jillian, a minha avó, que depressa se farta da roupa e de tudo o mais.
Não tenho assim tanto como pensas. E as coisas em Farthy não são assim
tão maravilhosas. A minha avó mal fala comigo, sequer!
O Logan inclinou-se para mais perto, trespassando-me com o seu olhar
severo.
- Mas o avô por afinidade adora ter-te por perto, não é? Saltava à vista
naquele dia em que vos encontrei nas compras. A aquisição daquela roupa
deu-lhe tanto gozo a ele como a ti!
134
Aquele ciúme feroz alarmou-me.
Tem cuidado com ele, Heaven - prosseguiu. - Lembra-te do que aconteceu
quando vivias em Candlewick com a Kitty Dennison e o marido; pode voltar
a suceder.
Senti que os meus olhos se esbugalhavam de dor diante daquele ataque
inesperado. Como poderia ele pensar em semelhante possibilidade? O Tony
não tinha nada a ver com o Cal! O Tony não precisava de mim para lhe
fazer companhia enquanto a mulher trabalhava até tarde. O Tony possuía
uma esposa a tempo inteiro, uma esposa rica, atarefava-se com férias e
negócios, e tanto ele como a Jillian tinham centenas de amigos com quem
conviviam para se distrair. No entanto, saltava à vista que o Logan se
recusaria a acreditar em mim se lhe apontasse estes factos. Abanei
negativamente a cabeça, rejeitando semelhantes desconfianças, irada por
ele as ter. Desiludida por ele não ser capaz de perdoar e esquecer e já
não confiar em mim como outrora.
- Ainda costumas ter notícias dele? - perguntou-me agressivamente,
estreitando os olhos.
- De quem? - perguntei, confundida pela reviravolta súbita nas suspeitas
dele.
- Do Cal Dennison!
- Não! - exclamei. - Não sei dele desde o dia em que saí de Winnerrow!
Ele não sabe onde estou! Nunca mais quero voltar a vê-lo!
- Tenho a certeza de que ele descobrirá o teu paradeiro.
- O Logan falava agora com voz inexpressiva. Pegou na sua caneca,
esvaziou-a e pousou-a violenta e ruidosamente em cima da mesa. - Foi bom
voltar a ver-te, Heaven e saber que agora tens tudo o que desejavas.
Lamento que o teu avô verdadeiro tenha morrido antes de o veres, e fico
feliz por gostares tanto do teu novo avô. Reconheço que ficas muito
bonita com a tua roupa e no teu casaco de peles, mas já não és a mesma
rapariga por quem me apaixonei. Essa rapariga foi destruída em
Candlewick.
Estupefacta e profundamente magoada, ao ponto de me sentir mortalmente
ferida fiquei sem fala. De boca aberta, quis implorar-lhe que me desse
outra oportunidade. As lágrimas quentes que me subiram aos olhos mal me
deixavam ver. Esforcei-me por encontrar as palavras certas, mas o Logan
já se levantara e dirigia para junto da rapariga que o aguardava perto da
janela. Sentou-se ao lado dela, sem voltar a olhar uma vez, sequer, para
mim.
Portanto, todo o cuidado que pusera na preparação para
135
aquele encontro, na esperança de o impressionar, fora completamente em
vão. Devia ter vindo com os meus farrapos, com o meu cabelo comprido
desgrenhado, com olheiras de fome por baixo dos olhos... Assim talvez ele
tivesse mostrado mais compaixão por mim.
Foi então que a verdade, nua e crua, de que nunca suspeitara até àquele
dia, se abateu sobre mim!
O Logan nunca me amara de verdade! O Logan só sentira pena de uma
vagabunda dos montes e quisera fazer recair protectoramente sobre mim a
amplitude da sua generosidade! Considerara-me um caso de caridade!
Veio tudo à tona, as pastas e escovas de dentes, sabonetes e champôs
tirados das prateleiras do drugstore do pai. Oh, o embaraço que sentia
pela sua pena condescendente encheu-me de vergonha! Como estava
arrependida por me ter permitido acreditar que ele via em mim algo
admirável! Limpei impacientemente as abundantes lágrimas de raiva que me
escorriam pelo rosto; depois pus-me de pé num salto, agarrei na bolsa e
no casaco de peles e precipitei-me para a porta, movendo-me com maior
rapidez do que ele. Vi-me imediatamente na rua, a vestir o casaco ao
mesmo tempo que corria. A fugir daquele para junto de quem sempre
correra!
A neve caía obliquamente, violenta e sob a força do vento. Senti o frio
trespassar-me, pois ainda não conseguira vestir o casaco comprido. A
minha respiração formava nuvens de vapor, ao mesmo tempo que eu tossia,
soluçava e tinha vontade de morrer. Ouvi o som dos passos do Logan mesmo
atrás de mim. Virei-me para trás, com o casaco a adejar ao vento, e
lancei um olhar de ódio para a expressão preocupada que chegara tarde de
mais ao rosto dele.
- Não precisas de voltar a ter pena de mim, Logan Grant Stonewall! -
gritei ao vento, pouco me importando com quem me escutasse. - Não admira
que te tenha traído inconscientemente com o Cal Dennisson! Talvez fosse o
meu instinto a dizer-me quais eram exactamente os teus sentimentos por
mim! Nada de amor, admiração, de amizade genuína... ou algo de que eu
verdadeiramente precisasse ou quisesse para mim. Portanto, fizeste bem ao
sugerir que terminássemos! Está tudo acabado entre nós! Nunca mais quero
ver-te enquanto viver! Volta para Winnerrow e arranja outra pacóvia dos
montes nos Willies! E abençoa-a com a tua piedade execrável!
Dei meia volta e corri até à esquina mais próxima, onde apanhei
rapidamente um táxi.
136
"Adeus, Logan", pensei, soluçando, enquanto o carro se afastava "Foi
terno e amoroso quando imaginei que me amavas por mim mesma, mas de hoje
em diante nunca mais voltarei a pensar em ti!"
Até conseguira fazer com que sentisse remorsos em relação ao Troy quando
nem sequer sabia da existência deste, querido maravilhoso, talentoso e
belo Troy, que não tinha a menor parecença com o Cal Demimson, junto de
quem nada sentira.
10 PROMESSAS
Lágrimas dolorosas ainda corriam pelo meu rosto quando o táxi passou sob
os impressionantes portões negros da Mansão Farthinggale, lágrimas que
mal me permitiram dizer ao motorista que virasse de maneira a ir até à
pequena casa de pedra onde eu esperava encontrar o Troy.
Corria para junto do único amigo que me restava, quase cega pelas
lágrimas, sofrendo como se tivesse voltado a perder todos quantos já me
haviam deixado, e a dor se fosse acumulando interminavelmente. Eu tivera
sempre uma parte, em mim, pequena mas confiante, que me dissera que o
Logan jamais deixaria de ser meu e que, por causa disso, eu poderia
sempre reconquistá-lo.
Nada era eterno! Nada estava certo! A minha desilusão era do tamanho do
mundo. Nada!
- Doze dólares e quinze cêntimos - disse o motorista do táxi, aguardando
impacientemente que eu limpasse os olhos e tentasse contar a quantia
exacta.
No entanto, eu só tinha uma nota de vinte, que lhe enfiei na mão, saindo
rapidamente do calor do banco de trás.
- Fique com o troco - disse-lhe com voz enrouquecida.
A neve, cortante como minúsculas lâminas de gelo, vergastava-me o rosto.
Corri cegamente para a casa de pedra, enquanto o vento, que soprava com
violência, quase me arrancava os cabelos. Sem me preocupar com a
privacidade do Troy, esforcei-me por abrir a porta; o vento, porém,
estava por trás de mim, dificultando a operação. Quando consegui,
finalmente, abri-la e entrar, o vento fê-la bater estrondosamente logo a
seguir. Obrigada a voltar à realidade pelo barulho, encostei-me a ela e
tentei recuperar parte do controlo das minhas emoções.
- Quem está aí? - perguntou o Troy da sala ao lado, aparecendo, em
seguida, à entrada do seu quarto, nu, com
138
uma toalha enrolada à volta dos quadris e o corpo coberto de gotas de
água. Trazia o cabelo molhado e despenteado. Heaven! - exclamou, com uma
expressão de espanto nos olhos, pelo meu súbito e intempestivo
aparecimento. Levou a toalha que trazia nas mãos ao cabelo e esfregou-os
vigorosamente. Vem para aqui, senta-te, põe-te à vontade e dá-me um
minuto para vestir alguma roupa.
Nem uma palavra a dizer que não estava a contar comigo, nenhuma
reprimenda por aparecer sem avisar. Antes de se virar e desaparecer no
interior do quarto, limitou-se a sorrir-me com preocupação.
O desespero tornava as minhas pernas pesadas, dando a impressão de que se
encontravam pregadas ao chão. Eu tinha a noção de que estava a reagir com
exagero, no entanto, não conseguia recuperar suficientemente o fôlego
para controlar os arquejos que pareciam vir de outra pessoa que não eu.
Ainda me encontrava encostada à porta, com os braços apoiados à madeira,
agarrando nesta com os dedos em busca de estabilidade, quando o Troy saiu
do quarto, completamente vestido, com a sua blusa de seda branca e as
calças pretas justas. O cabelo, ainda ligeiramente húmido, emoldurava-lhe
o rosto em ondas brilhantes. O Troy, comparado com a cor avermelhada do
Logan e o bronzeado intenso, parecia extraordinariamente pálido.
Avançou para mim sem falar e, agarrando-me suavemente nas mãos, afastou-
me da porta, tirando-me a bolsa do ombro antes de me despir o pesado
casaco de peles molhado.
- Pronto, pronto - disse em tom tranquilo -, nada pode ser assim tão mau,
pois não? Num belo dia de neve como este, com o vento a ulular lá fora e
a dizer-nos que é mais sensato ficarmos dentro de casa, não há nada que
saiba melhor do que uma lareira crepitante, boa comidinha e uma companhia
agradável.
Instalou-se numa poltrona próxima do fogo; em seguida, ajoelhou-se para
me descalçar as botas, esfregando-me os pés enregelados, envolvidos em
meias de nylon, com as mãos, para os aquecer.
O meu cansaço era tão grande que fiquei como morta na poltrona, de olhos
muito abertos e hirtos, até as lágrimas acabarem por parar. Senti parte
do grande peso que me oprimia o peito, e que tanto me fazia sofrer,
desvanecer-se. Só nessa altura é que fui capaz de olhar em volta. A única
luz que reinava na sala era a que provinha do animado fogo que brilhava
na lareira, projectando-se nas paredes numa dança
139
de luzes e sombras. Enquanto reparava no que me rodeava, o Troy deixava-
se estar de joelhos a olhar para mim, enquanto puxava um tamborete para
mais perto. Levantou-me as pernas e pousou-as sobre ele, tapando-me até à
cintura com uma manta em lã de cor viva.
- Agora são horas de comer - disse com um pequeno sorriso de aprovação ao
ver-me secar a última lágrima com o meu frívolo lencinho. Todos os lenços
de papel que eu trouxera na mala já tinham sido usados. - Café, chá,
vinho, chá ou chocolate quente?
Ouvir mencionar a última bebida trouxe-me, de novo, lágrimas aos olhos.
Alarmado, o Troy apressou-se a sugerir:
- Antes de mais nada, um golo de brandy para te aquecer. Depois, que tal
um chá quente?
Sem esperar pelo meu consentimento, levantou-se e foi até à cozinha,
detendo-se para ligar a aparelhagem de som estereofónica para que pudesse
inundar aquela sala, que a luz da lareira iluminava, de música clássica
suave. Por um breve instante veio-me à lembrança a cadência barulhenta da
música folclórica de que a Kitty gostava, e estremeci.
No entanto, aquele mundo era diferente, era o mundo do Troy, onde a
realidade ficava bem do lado de lá dos portões de ferro, e ali, em
segurança, no meio do conforto e do calor, só havia beleza, bondade e o
aroma ténue do pão acabado de fazer. Fechei os olhos e lembrei-me
vagamente do Tony. Lá fora a noite caíra já quase por completo. Ele devia
estar a passear de um lado para o outro e a olhar constantemente para o
relógio, à espera de que eu chegasse, sem dúvida furioso porque eu não
cumprira o prometido. Porém, o sono desceu sobre mim como uma bênção,
apagando a imagem do Tony e todo o desespero.
Deviam ter-se passado minutos antes de eu ouvir a voz do Troy dizer:
- Vá, acorda e toma uns goles de brandy.
Ainda de olhos fechados, obedeci e entreabri os lábios, deixando o
líquido quente e ardente descer até ao meu estômago; mas, de repente,
pus-me a tossir, e endireitei-me de supetão devido ao sabor da bebida que
nunca provara antes.
- Agora já chega - disse o Troy, afastando o pequeno cálice. Sorriu, como
que divertido com a minha reacção a apenas um gole. - Não se compara com
o orvalho da montanha, não é isso que me queres dizer?
- Nunca provei o orvalho da montanha - sussurrei com voz áspera -, nem
nunca pretendo fazê-lo.
140
O rosto forte, brutal e bem-parecido do meu pai faiscou diante dos meus
olhos. Um dia, um dia eu e ele encontrar-nos-íamos de novo, quando eu
pudesse agir com a mesma crueldade que ele.
- Deixa-te ficar aí sentada a dormitar enquanto eu preparo o jantar.
Depois poderás contar-me o que te trouxe aqui mergulhada em lágrimas.
Fiz menção de falar; porém, o Troy mandou-me calar levando um dedo aos
lábios.
- Mais tarde.
Vi-o cortar o pão fresco e preparar as sanduíches com a mesma destreza
que fazia com que as suas tarefas fossem leves e agradáveis.
Colocou um tabuleiro no meu colo, depois trouxe um outro, coberto por um
guardanapo, com as sanduíches e o chá. Sentou-se no chão, de pernas
cruzadas em frente da lareira, a comer a sua refeição. Dessa vez,
mantivemo-nos em silêncio, reconfortados com a presença um do outro,
enquanto ele me ia olhando de vez em quando para se certificar de que eu
comia e bebia, sem me deixar cair no torpor que teimava em me dominar de
novo o corpo.
A neve fustigava os vidros das janelas, embranquecendo-as com gelo. O
vento competia, assobiando, com a música. Ainda assim, comparado com o
que, nos Willies, entrava por entre as frinchas da cabana de madeira,
aquele parecia brando e abafado. Aquela casa de pedra, seis vezes maior,
era confortável e bem construída, dispondo de paredes espessas e
isolamento. Na velha cabana podíamos ver o céu através das paredes.
Comecei a mordiscar na sanduíche e, antes que desse por isso, comi-a num
ápice e engoli a chávena de chá fumegante. O Troy, que fizera desaparecer
três sanduíches enquanto eu me encarregava de uma, sorriu-me
prazenteiramente.
- Outra? - ofereceu, preparando-se para se levantar e voltar à cozinha.
Recostei-me e sacudi a cabeça.
- Chega. Só depois de provar as suas sanduíches é que percebi que podiam
ser uma delícia.
- Quando se quer, pode ser uma forma de arte. Que tal uma fatia de bolo
caseiro de chocolate como sobremesa?
- Feito por si?
- Não, eu nunca me meto em bolos ou tartes, isso fica ao cuidado do Rye
whiskey, que me manda sempre um enorme pedaço de bolo quando os faz. Há
que chegue para nós dois.
141
Contudo, eu estava repleta. Sacudi a cabeça, rejeitando o bolo, embora o
Troy tenha engolido rapidamente uma fatia que me fez lamentar a minha
decisão. Eu já aprendera que o Troy nunca oferecia a mesma coisa duas
vezes. Ou se aceitava logo à primeira, ou nada feito.
- Desculpe ter irrompido pela sua casa como fiz - murmurei, sentindo-me
novamente ensonada. - Devia apressar-me a voltar para a mansão
Farthinggale antes que o Tony fique furioso comigo.
- Ele não está à espera que viajes com uma borrasca como esta. Calculará
que te enfiaste nalgum vestíbulo de hotel e que voltarás para casa assim
que puderes. Mas podias fazer-lhe um telefonema para ele ficar mais
descansado.
Quando levantei o auscultador, verifiquei que as linhas estavam cortadas.
- Não te preocupes, Heaven. O meu irmão não é nenhum louco. Compreenderá.
Perscrutou lentamente o meu rosto, apercebendo-se, possivelmente, da
fadiga emocional que deixava transparecer.
- Queres falar sobre o assunto?
Não, eu não queria falar sobre a rejeição do Logan; era demasiado
doloroso.
No entanto, apesar da vontade e necessidade que eu tinha de o manter
alheio ao meu desgosto a minha língua não me obedeceu e contou-lhe toda a
história de como eu desiludira o Logan de forma importante, levando-o a
não me perdoar.
- E o que é igualmente mau, ele está furioso por eu ter deixado de ser
pobre e desgraçada!
O Troy levantou-se e foi pôr a louça que utilizáramos na cozinha. A
seguir deixou-se cair de novo no chão, que preferia nitidamente ao seu
sofá e cadeiras confortáveis; esticou-se, de costas, sobre a sua carpete
espessa e macia e colocou as mãos atrás da cabeça antes de observar com
ar pensativo:
- Tenho a certeza de que um dia, não muito longínquo, o Logan arrepender-
se-á do que te disse hoje e voltará a dar notícias. Vocês são ambos muito
jovens.
- Eu nunca mais quero ouvir falar nele. - Engasguei-me e tentei não
chorar. - Para mim, o Logan Stonewall morreu!
Mais uma vez, um pequeno sorriso brincou nos lábios belamente torneados
do Troy. Só depois de este se desvanecer é que desviou o rosto para o
outro lado.
- Gostei que viesses até cá desabafar comigo, fosse qual fosse a razão.
Não direi nada ao Tony.
142
Porque é que ele não quer que eu venha cá? - perguntei, já não pela
primeira vez.
Por breves instantes a sua expressão toldou-se.
No começo, quando te conheci, não quis envolver-me na tua vida. Agora que
te conheço melhor, sinto-me na obrigação de te ajudar. Quando me deito a
dormir, os teus olhos aparecem à minha frente. Como é que uma rapariga de
dezasseis anos pode possuir um olhar tão profundo?
- Eu não tenho dezasseis anos! - exclamei em voz enrouquecida e
entrecortada. - Já tenho dezassete... Mas não se atreva a contar ao Tony.
Mal as palavras me saíram já me arrependera de as ter proferido. O Troy
devia lealdade ao Tony, não a mim.
- Por que razão haverias de mentir sobre algo tão inconsequente como um
ano? Dezasseis, dezassete, que diferença tem?
- No dia vinte e dois de Fevereiro farei dezoito anos dissera-lhe, um
pouco na defensiva. - Nos montes, as raparigas dessa idade normalmente já
casaram e tiveram filhos.
Ao ouvir aquilo, o Troy virou o rosto para mim.
- Ainda bem que já não vives nos montes. Agora explica-me por que razão
disseste ao Tony que tinhas dezasseis anos em vez de dezassete?
- Não sei. Quis impedir que a minha mãe parecesse demasiado insensata e
impulsiva quando casou com o meu pai, a quem conheceu poucas horas antes
de responder afirmativamente à proposta de casamento dele. A avó sempre
disse que foi amor à primeira vista. Eu não percebia o que ela queria
dizer, e ainda me custa a acreditar que uma rapariga vinda de uma família
rica e importante como ela, e tão culta, possa ter-se apaixonado por um
homem como o meu pai.
Os olhos escuros do Troy tinham a profundidade dos lagos nas florestas
densas; eu poderia afundar-me neles.
O relógio do pai do Troy começou a marcar as oito da noite, e a borrasca
mantinha-se. Uma caixa de música, que devia estar marcada para a mesma
hora, emitiu uma melodia suave e misteriosa, ao mesmo tempo que figuras
minúsculas saíam, cada uma por sua porta.
- Nunca vi um relógio assim - observei, reverentemente.
- Tenho uma colecção de relógios antigos - murmurou o Troy com ar
ausente, pondo-se de lado para me observar com ar brando e compreensivo.
- Quando se é rico como um Tatterton, nunca se sabe como gastar o
dinheiro...
143
E pensar que, durante todo este tempo, estavas nos Willies, a precisar do
que eu poderia ter dado sem a menor dificuldade. Agora, parece-me uma
obscenidade saber que eu tenho tanto enquanto outros possuem tão pouco.
Também fico chocado ao verificar que nunca me lembrei de pensar na
pobreza, talvez porque sempre vivi no meu próprio mundo e as pessoas que
conheci tinham tanto quanto eu.
Inclinei ainda mais a cabeça, apercebendo-me naquele momento de quão
diferente a vida do Troy fora da minha. E continuei sentada, mas a certa
altura o olhar do Troy em mim tornou-se incomodativo de tão fixo,
agitando-me e levando-me a levantar e a espreguiçar.
- Já o obriguei a perder muito tempo. Agora tenho de voltar para casa,
não vá o Tony fazer-me demasiadas perguntas.
A verdade é que esperara que ele objectasse, que me dissesse que ainda
era impossível sair, mas dessa vez o Troy pôs-se de pé e sorriu-me.
- Está bem. Há um caminho que eu não queria que conhecesses. Aqui, o
clima é muito frio, e. quando Farthy foi construída, rodeada de celeiros
e estábulos, os meus antepassados, que tinham espírito prático,
prepararam-se para os grandes nevões. Mandaram escavar túneis para neles
os cavalos e outros animais poderem ser tratados e alimentados. Há muito
tempo, no mesmo sítio onde esta casa de pedra agora se ergue, havia um
celeiro com um adega subterrânea. Ela é que torna, evidentemente, o
acesso à casa grande muito fácil quando o tempo está pior. Já podia ter-
te contado este pormenor, mas quis que ficasses a fazer-me companhia. -
Desviou o olhar, que ficara ligeiramente vítreo, de mim. - É estranho
como me sinto à vontade contigo, uma mera criança.
- Fixou, uma vez mais, os olhos penetrantes em mim. - Se entrares na
adega de Farthy e utilizares a porta de oeste que está pintada de verde,
o túnel levar-te-á até à cave que fica por baixo desta casa. As outras
portas, a azul e a amarela, não vão dar a parte nenhuma, pois o Tony
mandou selar esses túneis. Achou que demasiadas passagens, por muito
secretas que se mantivessem, tornavam Farthy acessível aos ladrões.
Foi buscar o meu casaco e as botas ao roupeiro das visitas e segurou na
peça de vestuário para que eu enfiasse os braços; depois de o casaco me
ficar bem aconchegado ao corpo, não tirou imediatamente as mãos. Estava
atrás de mim; portanto, não podia ver a sua expressão. Ao virar-me,
sorriu antes
144
de me pegar na mão e conduzir-me até uma porta que ficava na cozinha e
dava para umas escadas de madeira que iam ter a uma cave enorme, fria e
escura. Depois de descermos, o Troy mostrou-me a porta verde de topo
arqueado.
-Vou acompanhar-te à casa grande - disse, sem me largar a mão. - Quando
eu era menino, estes túneis subterrâneos metiam-me medo. Esperava sempre
encontrar, a cada curva, monstros, fantasmas ou algo que eu não quisesse
ver.
Compreendia perfeitamente o que ele queria dizer, apesar de me mostrar o
caminho, e o calor da sua mão na minha me proporcionar segurança. Fez-me
lembrar o túnel de uma mina de carvão em que eu e o tom uma vez
entráramos, apesar das tabuletas a dizerem: "Perigo! Não entrar!"
O Troy só largou a minha mão quando chegámos ao fim do enregelado túnel,
onde se nos deparou umas escadas íngremes e estreitas.
- Sairás no átrio da cozinha que dá para as traseiras sussurrou-me ele. -
Escuta bem antes de abrir a porta que vês ali no cimo. O Rye whiskey
costuma trabalhar até tarde.
Tocou com a mão no meu rosto e perguntou:
- Que explicação vais dar ao Tony?
- Não importa. Minto bem, lembra-se? - com estas palavras, rodeei-lhe o
pescoço com os braços. Porém, não o beijei. Apertei apenas a face fria
contra a dele. - Sem si, não sei o que faria.
O Troy apertou-me contra si por um instante breve e excitante.
- Mas tem sempre presente que é do Logan que gostas e precisas, não de
mim.
Subi as escadas a correr, magoada porque o Troy achara necessário
advertir-me de que mantivesse a distância. Que haveria de errado comigo?
Precisava de alguém como o Troy. Sentia uma falta desesperada da sua
sensibilidade e compreensão. Havia ocasiões em que olhava para o Tony,
depois obrigava-me rapidamente a esquecer o seu encanto e boa aparência.
Era demasiado dominador, como o meu pai.
Começara já a fungar quando entrei no estreito corredor que ficava por
trás da enorme cozinha da mansão Farthinggale. Apesar de já ser tarde, o
Rye whiskey encontrava-se ali, a preparar os alimentos que seriam
servidos no dia seguinte. Cantarolava para manter o ritmo do seu saco de
pasteleiro, com o qual fazia bolinhos. O rapaz negro que estava ao seu
lado a aprender a arte, acompanhava-o tocando batuque com as colheres.
Esgueirei-me pela porta da cozinha na ponta dos pés e só depois é que
acelerei a passada.
145
.
Uma hora depois, estava deitada na minha cama, a olhar para as janelas e
a escutar o vento e as batidas do meu coração. Sentia grande dificuldade
em adormecer, embora estivesse mergulhada em sonhos quando a porta do meu
quarto foi intempestivamente aberta e a voz do Tony ribombou, fazendo-me
erguer de supetão e olhos bem abertos.
- Como entraste em casa sem eu te ver? - Desorientada e amedrontada pela
sua voz, sentei-me muito direita na cama, apertando a borda do lençol
contra o peito. Dessa vez não me ocorreram as desculpas que, por vezes,
tinha tanta facilidade em proferir; por isso, limitei-me a tremer. E
desconfiava de que nem mesmo o Troy poderia proteger-me da fúria do Tony
se eu a desencadeasse.
O Tony entrou a passos largos no meu quarto e acendeu o candeeiro da
minha mesa-de-cabeceira. Olhou-me, do alto da sua estatura, longa e
duramente.
- Onde estiveste e como conseguiste voltar de Boston? Não há uma estrada
aberta ao trânsito do norte da cidade desde as três da tarde!
Enquanto eu dava voltas à cabeça, tentando fazer com que ele não visse o
quão aterrorizada me sentia com a sua ira e censura, a perspectiva do que
poderia vir a acontecer não me deixava falar. Deixando-me cair sobre as
almofadas, olhei para o Tony com olhos esbugalhados de terror. Como
parecia intimidativo e colérico ao olhar de cima para mim!
Falou com voz baixa e severa.
- Menina, não penses que me mentes e ficas impune. Fizemos um acordo, tu
e eu, e eu exijo que cumpras a tua parte.
- Eu... eu... eu não cheguei a sair - gaguejei, mentindo. - Quando o táxi
passou por baixo dos portões, perdi subitamente a coragem. Senti vergonha
de lhe mostrar que na verdade não gostava daquelas colegas de Winterhaven
e estava demasiado insegura para fingir que sim. Portanto, entrei
silenciosamente por uma porta das traseiras, voltei para o meu quarto, e
depois...
- E depois o quê? - perguntou o Tony friamente, estreitando os olhos com
desconfiança.
- Receava que viesse inspeccionar o meu quarto. Portanto, escondi-me numa
das divisões que não são usadas.
- Perdeste a coragem? - perguntou o Tony ironicamente. - Escondeste-te?
Que interessante. Em que quarto te enfiaste?
Santo Deus! A facilidade com que ele poderia encurralar-me!
146
no segundo quarto da ala norte, sabe, aquele que Jillian quer redecorar.
O cor de pêssego. O que ela considera antiquado.
O Tony franziu ainda mais as sobrancelhas.
- E a que horas decidiste sair desse quarto e voltar para este?
Agora tentava fazer-me cair na armadilha. Podia ter ido àquele quarto
durante todo aquele tempo... Duas horas atrás teria encontrado a cama
vazia.
Não me lembro, Tony, realmente não. Quando estava no quarto cor de
pêssego adormeci, e quando acordei e voltei para aqui, atarantada, não
reparei nas horas. Limitei-me a despir e a deitar.
- E nem sequer pensaste em mim, na preocupação em que eu devia estar?
- Desculpe - sussurrei -, mas como estava em falta, não sabia como
contar-lhe a verdade sem ficar malvista.
- Já ficaste malvista - retorquiu o Tony asperamente, fitando-me com
olhar irado. - A Jillian e eu tivemos uma discussão terrível hoje à
tarde. Ela tem horror de que os amigos desconfiem que tu és sua neta e
que lhe façam perguntas sobre a Leigh.
Mexi nervosamente na fitinha que debruava o colarinho da minha camisa de
noite cor-de-rosa.
O Tony dirigiu-se para a porta e deteve-se no umbral, quase bloqueando a
luz que vinha do corredor.
- Heaven - disse, de costas voltadas -, eu não gosto de cobardes. Espero
que nunca mais repitas a façanha de hoje.
Fechou a porta.

11 FÉRIAS, DIAS DE SOLIDÃO

Os preparativos para o dia de Acção de Graças principiaram uma semana


antes.
Eu tinha uma semana inteira de férias, de sexta a segunda-feira. No andar
do topo, onde ficava o reino da Jillian e do Tony, tudo decorria como de
costume, mas em baixo, na cozinha, começou a chegar tamanha variedade de
produtos que fiquei de boca aberta. Só havia seis convidados para o
jantar; no entanto, vieram três abóboras frescas. com a Jillian, o Tony,
o Troy e eu, já éramos dez. Oh, até que enfim que o Troy era incluído
como membro genuíno daquela família!
- Fale-me das pessoas que vêm - pedi ansiosamente ao Rye, empoleirada num
banco alto, muito atarefada a picar vegetais ou o que porventura ele
achasse que eu podia fazer. Ele, porém, não era nada fácil de contentar.
Bastava um sorriso ou um franzir de sobrolho seu para eu perceber se
estava, ou não, a cortar os meus vegetais com "inclinação" suficiente.
- Amigos - respondeu o Rye -, do senhor e da sua esposa. Amigos
importantes que vêm de propósito de avião só para comer na Mansão
Farthinggale. Fico vaidoso comigo mesmo por saber que também contribuo
para os atrair aqui com os belos acepipes que preparo. Mas eles não vêm
só por essa razão. Mister Tatterton tem muito jeito para lidar com as
pessoas, todos gostam dele. Mas também vêm ver Mistress Tatterton, para
verificar até que ponto envelheceu desde a última vez em que estiveram
juntos. E agora também vêm ver Mister Troy, que só aparece em ocasiões
sociais muito importantes. É um mistério para eles, assim como para todos
nós aqui. Não espere encontrar ninguém abaixo dos vinte. Mistress
Tatterton detesta crianças nas suas festas.
O dia de Acção de Graças amanheceu luminoso, ensolarado
148
e muito frio. Eu estava tão encantada com o facto de o Troy vir ao jantar
que, de vez em quando, dava comigo a cantarolar. Envergava um vestido
especial de veludo cor de vinho que o Tony me escolhera, e este ficava-me
tão bem que às vezes olhava de relance para o espelho a fim de me
admirar.
O Troy foi o primeiro convidado a chegar e, como eu estivera a vigiar o
labirinto, fui a correr abrir a porta, antecipando-me ao Curtis.
- Boa tarde, Mister Troy. É um prazer ter, finalmente, a sua presença à
nossa mesa.
O Troy ficara a olhar para mim como se fosse a primeira vez que me via. O
vestido faria assim tanto efeito?
- Nunca te vi tão linda como estás neste momento observou o Troy,
enquanto eu o ajudava a despir o sobretudo.
O Curtis, ligeiramente afastado, no amplo vestíbulo, fitava-nos com ar
vagamente sarcástico. Mas eu não me importei; ele não passava de uma
presença, raramente era uma voz.
Pendurei cuidadosamente o sobretudo num cabide, certificando-me de que as
costuras ficavam direitas e depois virei-me para o Troy e agarrei-lhe em
ambas as mãos.
- Estou quase a rebentar de contentamento por ter vindo. Agora já não
terei de me sentar a uma mesa com seis convidados que não conheço.
- Nem todos serão desconhecidos. Já encontraste alguns noutras festas...
e há uma, especial, que vem de propósito do Texas só para te conhecer.
- Quem? - perguntei, esbugalhando os olhos.
- A mãe da Jillian, que tem oitenta e seis anos. Consta que a filha
tentou disfarçar as histórias que contou sobre ti, e a tua bisavó ficou
tão curiosa que telefonou a dizer que vinha, apesar da sua fractura na
anca.
O Troy sorriu e levou-me até ao sofá do salão maior.
- Não fiques tão preocupada. A velhota é osso duro de roer, mas é a única
pessoa que não diz mentiras atrás de mentiras.
A velha senhora atraiu-me irresistivelmente desde o momento em que entrou
pela porta da frente, carregada por dois homens. Não tinha mais de um
metro e meio, era uma velha franzina cujo cabelo ainda conservava boa
parte do seu louro raiado de grisalho. Usava quatro anéis enormes nos
dedos ossudos, um de rubi, outro de esmeralda e os outros dois
149
de safira e diamante. As jóias que trazia tinham todas diamantes. O
vestido azul-claro pendia-lhe dos ombros, largueirão, e tinha na gola
deste um pesado alfinete de peito com safiras.
- Detesto roupa justa - declarou, olhando de relance para mim, que me
encolhi um pouco mais para junto do Troy.
Também detestava muletas, nas quais não confiava. As cadeiras de rodas
eram abomináveis. Foram-lhe buscar almofadas, xailes e mantas ao carro
estacionado em frente da casa. Meia hora depois, estava confortavelmente
instalada e só nessa altura é que virou os olhinhos argutos para mim.
- Olá, Troy. É um prazer ver-te, para variar - disse sem sequer olhar
para ele. - Mas eu não vim de tão longe só para falar com familiares que
já conheço. - Os seus olhos miraram-me atentamente, mais uma vez, dos pés
à cabeça.
- Sim, a Jillian tem razão. Temos aqui a filha da Leigh. Não há dúvida de
que a cor dos olhos é tal qual a que eu costumava ter antes de os anos me
roubarem a beleza. E a figura, é igualzinha à da Leigh, quando não a
escondia dentro de alguma fatiota disforme. Nunca fui capaz de
compreender como ela conseguia usar aquela roupa num Inverno tão horrível
como os daqui.
Os olhinhos, rodeados de rugas, estreitaram-se ao perguntar:
- Porque morreu a minha neta tão nova?
A Jillian desceu as escadas com graciosidade, envergando um vestido roxo
muito parecido com o meu, excepto que o dela tinha pedras preciosas
bordadas em volta do pescoço.
- Querida mãe, que prazer voltar a vê-la. Já se deu conta de que não nos
encontramos há cinco anos?
- Não tencionava cá voltar - respondeu Mrs. Jana Jankins, cujo nome me
fora delicadamente dado a conhecer pelo Troy enquanto a instalavam no seu
lugar.
Ao observar a Jillian com a mãe, não pude deixar de reparar na
animosidade que pairava entre as duas.
- Mãe, quando soubemos que vinha, apesar da sua perna engessada, o Tony
teve a bela ideia de lhe ir arranjar uma cadeira extremamente bonita que
pertenceu ao presidente de Sidney Forestry.
- Achas que eu me sentava numa cadeira usada por um assassino de árvores?
Nem sequer voltes a tocar no assunto. O que eu quero é saber desta
rapariga aqui.
Começou então a bombardear-me com perguntas e mais
150
perguntas, quase não me deixando responder: como é que a minha mãe
conhecera o meu pai, onde é que vivêramos, se o meu pai tinha dinheiro...
E se havia outros membros da família para ela conhecer.
A sineta da porta impediu-me de dizer mais mentiras. O Tony saiu do seu
gabinete fazendo lembrar um manequim masculino, e a celebração do dia de
Acção de Graças começou apesar de Mrs. Jana Jankins não conseguir falar
mais alto do que os outros.
A certa altura, para minha aflição, a Jillian reparou em mim, que me
mantivera o mais calada e reservada... e próxima de Troy... que pudera.
Esbugalhou ligeiramente os olhos.
- Heaven, o mínimo que podes fazer é informares-te da cor que usarei
sempre que recebermos visitas.
- vou mudar imediatamente de vestido! - sugeri, pondo-me de pé com a
maior rapidez possível, embora, na verdade, adorasse aquele vestido.
- Senta-te, Heaven - ordenou o Tony. - A Jillian está a ser ridícula. O
teu vestido não está adornado de pedras preciosas nem é tão requintado
como o da minha mulher. Gostei de te ver com ele e quero que o uses.
Foi um jantar de Acção de Graças estranho. Primeiro, a mãe da Jillian
teve de ser levada e sentada na ponta da mesa (no sítio da anfitriã, pois
a cadeira do Tony ficava demasiado perto da parede) e, mal assumiu o
papel de anfitriã, não permitiu que mais ninguém desse ordens. Aquela
minha bisavó era rude, excessiva e sem papas na língua. Admirava-me que o
Tony e o Troy parecesse gostarem tanto dela.
Ainda assim, foi uma refeição cansativa, um serão esgotante, durante o
qual me fizeram mil perguntas, às quais não sabia como responder sem
mentir. Quando a Jana me perguntou quanto tempo iria ficar na Mansão
Farthinggale, não soube que lhe responder. Olhei esperançadamente para o
Tony e vi ao lado deste uma Jillian de expressão rígida, que ficou com o
garfo a meio caminho da boca e se voltou para o marido com ar feroz
quando este veio em meu auxílio.
- A Heaven veio para ficar o tempo que desejar anunciou, sorrindo-me
antes de se virar para a Jillian e dirigir-lhe o seu esgar como que a
dizer: "Vê se te calas." - Já começou a frequentar aulas em Winterhaven.
Na verdade, saiu-se tão bem nos testes de admissão que entrou logo para o
grupo das mais velhas, um ano antes do tempo. E já se candidatou à
Radcliffe e à Williams para não ter de ir para muito longe ao pretender
frequentar uma universidade de
151
primeira ordem. Estamos ambos muito satisfeitos por ter a Heaven aqui. É
um pouco como se a Leigh tivesse voltado, não é, Jill?
Durante todo aquele pequeno discurso, a Jillian estivera a atafulhar a
boca de comida, como que para se abster de dizer o que não devia. Não
respondeu, limitou-se a fitar-me com animosidade. Oh, como eu desejava
que ela aprendesse a gostar de mim... A minha urgência em ter uma mãe de
verdade era enorme, alguém com quem eu pudesse abrir o coração, alguém
que me ensinasse a tornar-me uma mulher completa. Porém, começava a
aperceber-me de que a Jillian jamais o seria. Quem sabe se não seria mais
parecida com a Jana, que era rude e dominadora mas, ao menos, interessada
em me conhecer.
Felizmente, a Jana teve pouca possibilidade de o fazer. Passei a refeição
agitada, receosa de que começasse a fazer-me perguntas sobre o meu
passado, com medo de que alguma verdade me escapasse e contradissesse o
que contara ao Tony. No entanto, a refeição terminou no meio de uma
conversa inofensiva sobre questões de menor importância e, pouco depois,
a Jana retirou-se para o seu requintado hotel em Boston.
- Lamento não poder ficar e conhecer-te um pouco melhor, Heaven, mas
nunca me senti à vontade em Farthy. Lançou um olhar acusador à Jillian. -
Além disso amanhã tenho de voltar para o Texas. Talvez um dia me queiras
ir visitar.
E antes de sair deu-me um beijo em cada face, fazendo-me sentir que, pelo
menos, eu era aceite por uma das mulheres da família.
No dia seguinte, de manhã bem cedo, o Tony enfiou-me na sua
impressionante limusina, tapou-me as pernas com uma pesada coberta de
pele e partimos rumo à Companhia de Brinquedos Tatterton, para dar início
oficial à abertura da estação natalícia.
Fiquei estupefacta com a dimensão do estabelecimento. Eram seis pisos
contendo apenas brinquedos! Ainda não tinham dado as dez horas e já se
viam hordas de pessoas bem agasalhadas a olhar para as montras. O Tony
tinha uma maneira autoritária de abrir caminho por entre a multidão de
modo que, a certa altura, ele e eu não tardámos a ver-nos diante de uma
montra embaciada, com o nariz frio de tanto olharmos para dentro. Cada
montra debruçava-se sobre um
152
tema diferente e eu adorei de maneira muito especial a que exibia o Tiny
Tim sem o seu ganso; a certa altura abria-se uma portinha e o Scrooge
aparecia.1
As montras impressionaram-me de tal maneira que fiquei ofegante, qual
criança presa num sonho de encantar. As vendedoras apresentavam-se
fardadas em tons de vermelho, preto e branco, com muitos enfeites a
dourado. Para minha surpresa, até mesmo aqueles que não tinham ar
abonado, não deixavam de fazer as suas compras.
- Já não se pode medir a riqueza de uma pessoa pela maneira como se veste
- observou o Tony. - Além disso, hoje em dia não há ninguém que não goste
de coleccionar.
Só quando chegámos ao sexto piso é que eu espreitei para a armação
especial em vidro e frisos dourados contendo as bonecas-retratos da
Companhia Tatterton.
Examinei atentamente cada uma das jovens, antes de perguntar ao Tony:
- Quem é que cria as bonecas-retratos?
- Oh - respondeu ele com ar indiferente -, não são lindas? Corremos mundo
à procura de jovens dotadas de características especiais e depois os
nossos melhores artistas fazem uma boneca à sua semelhança. São precisos
meses.
- Foi a minha mãe que serviu de modelo às primeiras bonecas, não foi?
O Tony sorriu antes de virar a cabeça para mim.
- Era a rapariga mais bonita que já vi, com excepção de ti. Mas era muito
modesta e tímida, não gostava de posar. Portanto, eu perdi a oportunidade
de a imortalizar.
- Quer dizer que nunca houve nenhuma boneca a retratar a minha mãe?
Senti uma angústia enorme invadir-me o coração. Porque estaria ele a
mentir-me?
- Que eu saiba, não - respondeu o Tony afavelmente, desviando depois a
minha atenção para outros bonecos que desejava que eu visse.
Arrastou-me para a secção histórica, onde se viam bonecas envergando
fatos de outras épocas.
- Tem a certeza de que nunca nenhuma dessas bonecas foi criada tendo como
modelo a minha mãe, sem a sua autorização?
1 Referência a personagens do conto O Cântico de Natal de Charles
Dickens. (N. do T.)
153
- Ninguém faz nada sem a minha autorização. E agora, por favor, Heaven,
mudemos de assunto. Não é muito do meu gosto.
Porque estaria ele assim? Era como se o que acontecera, ou não, no
passado, não tivesse nada a ver com o presente, quando tinha... e muito!
Para mim, os acontecimentos mais importantes haviam tido lugar antes de
eu nascer, criando a minha vida, modelando o meu mundo, levando-me a
desejar fazer perguntas intermináveis às quais ninguém queria responder.
Depois de o Tony acabar de me mostrar o estabelecimento, foi até ao seu
escritório, e eu fiquei em Boston para fazer as minhas compras de Natal.
Como era excitante comprar presentes de Natal, ter dinheiro para adquirir
o que quisesse para oferecer àqueles de quem gostava. Era fantástico
andar no meio das multidões que passavam alegremente diante das lojas
decoradas e saber que podia entrar em qualquer delas sem me envergonhar.
Já não precisava de olhar avidamente para as montras, sonhando com bens
que nunca poderia possuir; naquela altura já tinha acesso a inúmeros
objectos.
Ia-me tornando mais rica a cada semana que passava. O Tony depositava
dinheiro numa conta-corrente que abrira para mim. E dava-me uma mesada
muito generosa. Eu vivia modestamente, pouco gastava, de modo que poupava
o que podia numa conta a prazo. De vez em quando, a Jillian entregava-me
notas de vinte dólares como se fossem trocos.
- Ah, não fiques assim tão profundamente agradecida!
- exclamava quando eu lhe manifestava a minha gratidão talvez com
demasiado entusiasmo. - Não passa de dinheiro!
A conta a prazo destinava-se àquele dia maravilhoso em que eu poderia
voltar a ter a minha família junto de mim. Gastava muito pouco comigo
mesma. Nesse ano, quando fui às compras, fi-las para todos nós, como se
estivéssemos juntos: uma linda camisola branca tricotada para o tom,
juntamente com uma óptima máquina fotográfica e dúzias de rolos para que
ele pudesse pedir a um amigo que lhe tirasse fotografias para me mandar.
Foi fácil encontrar o tipo de casacão de lã grossa pelo qual ele tanto
ansiara quando vivêramos nos Willies, e quando o caminho entre a casa e a
escola era dolorosamente feito com agasalhos insuficientes. Um casaco
como o que o Logan costumava usar, de cabedal verdadeiro e forrado a lã.
Tinha vontade de lhe dar tudo o que ele desejara. Fiz compras para a
Fanny, embora não soubesse
154
para onde enviar as minhas ofertas. Guardei-as na última gaveta da minha
cómoda, ao lado do que comprara para o Keith e para a "Nossa" Jane,
prometendo a mim mesma a alegria de um dia os ver abrir os meus
presentes... Um dia...
O Troy e eu encontrámo-nos na manhã de Natal bem cedo, na sua casa de
pedra, muito antes de o Tony e a Jillian se levantarem. Já tinha o
pequeno-almoço pronto e os presentes que compráramos um para o outro
arrumados de baixo da árvore que enfeitáramos juntos.
- Entra! Feliz Natal! Estás linda, assim tão corada. Tinha receio de que
te atrasasses. Fiz um pão de Natal sueco para nós, que vais achar uma
delícia.
Mais tarde, abrimos os nossos presentes como duas crianças pequenas. O
Troy deu-me uma camisola de lã num azul que igualava impecavelmente o dos
meus olhos. Eu ofereci-lhe um elegante diário encadernado a cabedal e
debruado a dourado
-,Que diabo é isto? Um diário para eu registar as minhas palavras mais
ridículas ou notáveis?
Ele brincava; eu estava muito séria.
- Quero que escreva nele, começando pela primeira vez em que ouviu o Tony
falar da Jillian. Tudo aquilo que lhe contaram sobre a minha mãe antes de
casarem. O que ela sentia pelo meu pai, sobre o divórcio. Fale sobre a
primeira vez em que a viu, sobre as palavras que trocaram. Recorde o que
vestia, as suas primeiras impressões.
O Troy acenou com a cabeça, aceitando o livro com expressão estranha.
- Está bem, farei o melhor que puder. No entanto, não te esqueças de que
eu tinha apenas três anos... Estás a ouvir, Heaven, três anos. A tua mãe
ia nos doze.
- O Tony disse-me que o Troy teve sempre idade a mais em termos de
inteligência, e a menos quando se tratava de ficar sozinho.
Ofereci-lhe outros presentes que lhe agradaram mais. Adorei o que me deu
muito mais do que tudo o que o Tony e a Jillian me puseram debaixo de uma
das enormes árvores de Natal colocadas diante de cada uma das janelas da
frente da Mansão Farthinggale.
A Jillian, o Tony e eu fomos a uma elegante festa de Natal em casa de um
dos seus amigos. Era a primeira vez que me levavam a algum lado com eles;
porém, isso não foi o suficiente para impedir que me sentisse muitíssimo
só nesse dia, assim como no resto da semana até ao dia de Ano Novo
155
e na semana seguinte, que foi a que antecedeu o meu regresso ao colégio.
O Tony ia para o trabalho de dia e saía com a Jillian quase todas as
noites. A Jillian mal se via durante o dia, e quando às vezes a
encontrava na sala de música, sozinha, não me convidava a jogar às cartas
com ela. Desde a ocasião, no dia de Acção de Graças, em que o Tony
anunciara publicamente que eu passaria a viver em Farthy, a Jillian
afastara-se por completo de mim. Para ela, eu não passava de uma
residente, não era um membro da família.
A Jillian parecia satisfeita por eu andar tão atarefada que pouco tempo
tinha para partilhar do seu estilo de vida, que incluía uma actividade
social ou de caridade atrás da outra. E toda a proximidade que eu
imaginara ter com ela em tempos desvaneceu-se perante a conclusão de que
jamais haveria intimidade entre nós. Ela nunca gostaria de mim nem
desenvolveria qualquer tipo de afeição que a levasse a sentir a minha
falta mais tarde. Oh, como eu naquela altura já a conhecia bem...
Sempre que me era possível, escapulia-me para visitar o Troy, o que não
acontecia muitas vezes, já que eu tinha a sensação de que a Jillian,
apesar de eu pouco a ver, sabia sempre do meu paradeiro exacto. Também ia
a Boston frequentemente, visitar a biblioteca e os museus. De vez em
quando passava pelo Red Feather e pela Universidade de Boston, na
esperança de encontrar o Logan "por acaso", o que não aconteceu uma vez
sequer. Talvez tivesse ido passar as férias a Winnerrow. Era nessas
alturas que as lágrimas me começavam a cair, pois o Logan nem um cartão
de boas-festas me mandara, nem ele nem ninguém da minha família. Às
vezes, sentia que na Mansão Farthinggale havia tanta pobreza como nos
Willies, apenas diferente. Nos Willies, houvera muito amor, carinho,
solidariedade e alegria. Nem mesmo a sordidez da nossa cabana nos
impedira de partilhar esses sentimentos. Ali só davam dinheiro, e eu, por
muito que o desejasse, começava a ansiar ainda mais por amor e afecto.
Fevereiro chegou com o meu décimo oitavo aniversário, que o Tony e a
Jillian acreditavam ser o décimo sétimo. O Tony encarregou-se de todos os
aspectos ligados à festa de aniversário que deu em minha honra.
- Convida todas aquelas snobes de Winterhaven para as deixarmos de olhos
arregalados.
Foi nessa ocasião que todas as meninas de Winterhaven
156
tiveram a oportunidade de ficar de boca aberta perante os esplendores da
Mansão Farthinggale. Fiquei sem respiração diante dos manjares fartos que
haviam sido colocados em cima de uma mesa. Os presentes que me deram
nesse ano deixaram-me ainda mais deslumbrada e a sentir-me estranhamente
culpada. Como estaria o resto da minha família a passar?
O sucesso da festa impressionou de tal maneira aquelas raparigas tolas,
que me consideraram, finalmente, suficientemente merecedora de ser
tratada com decência.
No princípio de Março houve uma tempestade tão terrível que fiquei presa
em casa na segunda-feira em que devia regressar a Winterhaven. O Tony e a
Jillian tinham ido à cidade, proporcionando-me a oportunidade ideal de
utilizar o túnel subterrâneo que ligava a Mansão Farthinggale à casa de
pedra do Troy. Cheguei ofegante, depois de ter percorrido todo aquele
caminho escuro e assustador, fazendo muito barulho a subir as escadas que
iam dar à cave, para assim dar a conhecer ao Troy a minha chegada. Apesar
de atarefado como sempre, deu a impressão de estar à espera da minha
visita e levantou a cabeça do trabalho para me sorrir.
- Ainda bem que chegaste. Podes ficar de olho no pão que está no forno
enquanto eu termino o que comecei.
Mais tarde, sentámo-nos em frente da lareira onde ardiam toros de lenha e
eu entreguei-lhe um dos seus livros de poemas.
- Por favor, leia-mos.
O Troy não queria e tentou pôr o livro de parte, mas eu insisti. Acabou
por ceder e leu. Eu apercebi-me da emoção e da tristeza na sua voz e
senti vontade de chorar. Pouco percebia de poesia; no entanto, o Troy
sabia juntar as palavras de uma maneira única e bela. Disse-lho.
- Isso é o que os meus poemas têm de problemático respondeu o Troy com
uma impaciência pouco habitual. Atirou o livrinho para o lado. - Tudo o
que escrevo é demasiado doce e excessivamente bonito...
- Não é doce... - objectei, levantando-me com um salto para ir buscar o
livro. - Mas eu não entendo o que está a tentar dizer. Adivinho algo
mórbido e obscuro nas entrelinhas, embora coloque maravilhosamente as
palavras. Se não me contar o que os poemas significam, ao menos deixe-me
levar o livro para o ler quantas vezes forem necessárias até compreender
o seu significado.
- Se fosses mais esperta não tentavas perceber. - Os
157
olhos escuros deixaram transparecer tormento por alguns instantes. Depois
a expressão abrandou. - É fantástico ter-te aqui, Heaven. Admito que
escondo a minha solidão no trabalho. Agora mal posso esperar pelas tuas
vindas.
E como estávamos sentados um ao lado do outro, muito próximos, obedeci a
um impulso e encostei a cabeça ao seu ombro, virando o rosto para o dele
com os lábios preparados para o seu primeiro beijo. As pupilas dos olhos
do Troy aumentaram, enquanto eu ia aguardando, tornando-me tensa com a
demora dele. Foi então que o Troy se afastou repentinamente, deixando-me
atarantada.
Senti-me rejeitada, e não tardei a dar uma desculpa pouco convincente
sobre uns trabalhos de casa que tinha para fazer. Perdera de novo! Não
conseguia agradar minimamente a um homem! Furiosa com o Troy e comigo
mesma, voltei para Farthy e fui nadar para a piscina interior de água
quente. Dei vinte voltas mas nem assim fui capaz de fazer dissipar a
minha raiva. Vesti-me e, ainda com o cabelo molhado, fui sentar-me a ler
em frente de uma lareira enorme que fora acesa só para mim. Estirada no
chão, olhei para o volume encadernado a cabedal, sentindo uma
infelicidade indefinida que não me deixava concentrar nas palavras
escritas.
À minha volta, os antepassados dos Tatterton seguiam todos os meus
movimentos com olhos atentos. Tive a impressão de ouvir os seus lábios
pintados sussurrarem que eu não pertencia ali, que tinha de me ir embora
para não manchar a sua reputação com a minha ascendência Casteel! Eu
sabia que era uma tolice, e no entanto a biblioteca, com as suas
elegantes poltronas de cabedal, tinha um ar hostil. E quando dei por mim
estava a levantar-me do chão e a dirigir-me para a escadaria e a
confortável familiaridade dos meus próprios aposentos.
Quando ia a meio do corredor da minha ala, ouvi o telefone tocar ao
longe. As batidas do meu coração aceleraram! Nunca ninguém me telefonava.
Talvez fosse o Troy! O Logan! Talvez...
Atirei com a porta atrás de mim e corri a atender o telefone antes que
desligassem.
- Heaven, és tu? És mesmo tu? - perguntou uma voz provinciana com um
sotaque fanhoso.
Senti uma sensação de alívio e felicidade invadir-me.
- Sou eu, Heaven, a tua mana Fanny! E sabes que mais, sou mãe! Pari o meu
bebé há duas horas! Veio antes do tempo, umas três semanas, mas a mim
nunca me passou pela tola
158
q'uma coisa ta normal pudesse doer tanto! Gritei que me fartei e as
enfermeiras tentaram segurar-me e Mistress Wise mandou-me calar, se não
quo mundo inteiro iria ouvir o meu berreiro... mas era fácil ela falar
porque na era ela que estava a parir o meu bebé...
Oh, Fanny, graças a Deus, telefonaste! Tenho estado tão preocupada
contigo! Porque só ligaste agora?
- Ora, já te liguei umas cem vezes mas ninguém percebe patavina do qu'eu
digo! Ou com quem eu quero falar. Aí, as gentes sã'chanfradas ou quê?
Falam de maneira esquisita, como tu agora. Já te disse que tive uma
menina?
Que entoação era aquela que lhe notava na voz? Arrependimento?
Arrependimento por ter concordado em vender a criança que desse à luz ao
reverendo e à esposa por dez mil dólares?
- Fanny, diz-me, estás bem? Onde te encontras?
- Claro que tou bem, muito bem. Uma vez acabado, já, passou. E ela é uma
moçoilinha ta bonita, c'o cabelo preto encaracolado e tudo. E é
perfeitinha. E o reverendo vai ficar contente de certeza quando a vir...
- Fanny, onde estás? Por favor, diz-me! Não é demasiado tarde para
mudares de ideias! Podes recusar-te a aceitar o dinheiro e ficas com a
tua menina, e quando fores mais velha não precisarás de te arrepender de
teres vendido a tua própria filha! Agora escuta-me, por favor! Posso
mandar-te dinheiro para apanhares o avião para Boston. O meu avô não te
receberá cá em casa, mas eu poderei instalar-te numa boa pensão e fazer o
que puder para te sustentar, mais à tua filha.
Estava a fazer perigar a minha situação já precária, mas fazia-o por puro
instinto, sentindo umas saudades enormes da Fanny.
O silêncio total que se seguiu no outro lado do fio fez-me pensar que a
Fanny estava a ponderar seriamente sobre a alternativa que eu lhe
apresentara, e a resposta não se fez esperar.
- O tom falou-me do sítio onde vocês moram. Pois se me convidas a mim e
ao meu bebé pr'a ir pr'a junto de ti, tens de me receber na tua própria
casa qu'é grande como um palácio! com mais casas de banho qu'aquelas que
se podem contar! Na me insultas a mim mais ao meu bebé com uma pensão
qualquer, ou quarto de motel! É que tu na és mais que eu...
- Fanny, sê razoável. Escrevi ao tom a contar que os
159
meus avós têm ideias excêntricas. Pois se a Jillian nem sequer deseja que
as pessoas saibam que eu sou sua neta!
- Deve ser chanfrada! - concluiu a Fanny audivelmente e sem sombra de
dúvida. - Ninguém pode parecer assim tão nova como tu disseste ao tom...
Portanto, podes convidar-me à vontade, Heaven! Gente maluca como ela nem
dará p'la diferença! Se na o fizeres, vendo o meu bebé e piro-me para
Nashville ou Nova Iorque!
Nesse momento, ouvi o barulho surdo e arrastado da voz do reverendo
Wayland Wise a entrar no quarto do hospital e a cumprimentar a Fanny. E
esta, Deus me valesse, atirou com o auscultador para cima do descanso sem
sequer se despedir!
Fiquei a ouvir o som da linha desligada, apercebendo-me de que ela não me
dera a morada. No entanto, tinha a minha, assim como o meu número de
telefone.
Fanny, oh, Fanny. Estava a fazer o mesmo que o nosso pai em tempos
fizera: vender a própria filha. Oh, como podia ser capaz de tal! Apesar
de a minha irmã ser uma rapariga egoísta e desprendida, eu sabia que
viria a arrepender-se de vender a filha. Tinha a certeza. Assim como
também estava certa de poder ajudá-la. Naquela altura, eu já dispunha de
dinheiro e podia arranjar maneira de a sustentar mais à filha, de
indemnizar os Wise pela sua devolução. Contudo, não podia convidar a
Fanny para viver ali. Se o fizesse, expor-me-ia e perderia tudo o que
conquistara. Acabara de saber que fora aceite em Radcliffe, e o Tony
garantira-me que poderia contar com ele para prosseguir os meus estudos,
além de poder escolher entre ficar na Mansão Farthinggale ou viver na
área da universidade, conforme preferisse. Poderia abdicar de tudo isso
pela Fanny? Não, de modo algum. A Fanny era uma rapariga confusa,
racionalizei, e levaria algum tempo a dar-se conta da decisão errada que
tomara. Quando tal acontecesse, viria pedir a minha ajuda. Era tão certo
como eu saber que estava a nevar naquele momento. De modo que, sentindo-
me vagamente aliviada por a Fanny ter tido um parto normal e por saber
que um dia recorreria a mim para a ajudar a recuperar a filha, fiquei a
ler até serem horas de ir para a cama.
Nessa noite, tive dificuldade em adormecer! Era tia! Tive vontade de
telefonar ao tom e contar-lhe as novas sobre a Fanny. Porém, correria o
risco de ser o meu pai a atender.
Telefonei ao tom logo no dia a seguir, arriscando-me a ouvir o meu pai no
outro lado da linha.
160
- Está? - atendeu a voz do meu irmão, o que me fez suspirar de alívio. -
Oh, caramba! - exclamou ao saber da novidade. - Folgo muito em saber que
o parto da Fanny correu bem, mas é um horror pensar que vai mesmo vender
a própria filha! É como se a história se repetisse a si mesma. Mas tu não
podes arriscar o teu futuro por ela, Heaven, não podes! Fica calada em
relação à Fanny e a todos nós. Um dia juntar-nos-emos todos, até mesmo o
Keith e a "Nossa" Jane, agora que já puseste os tais advogados no seu
encalço.
Em finais de Março, o Inverno tempestuoso começou a amainar. A neve
derreteu e os indícios da Primavera encheram-me de saudades dos Willies.
O tom escreveu-me a dizer que esquecesse os montes e a nossa vida antiga:
"Perdoa o nosso pai, Heaven, por favor. Ele agora está mudado, parece
outro homem. E a mulher deu-lhe um filho parecido com ele, de cabelos
escuros, o rapaz que a nossa mãe desejou mas não teve."
Chegado o mês de Abril consegui, pela primeira vez, abrir uma janela e
escutar o som das ondas a bater sem me sentir enervada.
O Logan não fizera o menor esforço para entrar em contacto comigo e, a
cada dia que passava, começara a transformar-se apenas numa recordação,
embora lembrar-me mais aprofundadamente da sua indiferença ainda doesse
bastante. Eu não desejava arranjar nenhum namorado e recusava a maioria
dos convites para sair que me dirigiam. Ainda fui ao cinema e jantar fora
com um rapaz, mas depressa este desistiu de mim ao ver que não conseguia
ir além disso. Eu simplesmente não queria arriscar-me a sofrer de novo.
Mais tarde, bem mais tarde, preocupar-me-ia com o amor; de momento,
contentava-me em me concentrar nos meus objectivos educacionais.
O único homem que via frequentes vezes e começara a substituir o Logan no
meu coração era precisamente aquele do qual era suposto manter-me
afastada... o Troy Tatterton. Pelo menos uma vez por semana, na altura em
que o Tony e a Jillian saíam, eu escapulia-me até casa dele e ficávamos a
conversar durante horas. Era uma delícia ter alguém com quem falar,
alguém que se preocupava de verdade comigo e sabia a verdade sobre a
minha pessoa.
Eu bem tentei falar do Troy ao Tony; no entanto, o tópico era perigoso e
trouxe imediatamente um clarão de desconfiança aos olhos dele.
161
- Espero bem que estejas atenta à minha advertência e te mantenhas
afastada do meu irmão. Ele nunca fará nenhuma mulher feliz.
- Porque faz semelhante afirmação? Porque não gosta dele?
- Porque não gosto dele? O Troy foi sempre a maior das minhas
responsabilidades e a pessoa mais importante na minha vida. Mas não é
fácil entendê-lo. Tem uma vulnerabilidade comovedora que atrai as
mulheres, como se elas se apercebessem de que o seu tipo de sensibilidade
é raro num jovem tão bem-parecido e talentoso. Mas não esqueças, Heaven,
que ele não tem nada a ver com os outros jovens. Toda a vida foi uma
pessoa agitada, em busca de algo sempre fora do seu alcance.
- De que anda ele à procura?
O Tony desistiu de ler o seu matutino e franziu o sobrolho.
- Acabemos com esta conversa sem sentido. Quando chegar a altura
apropriada, farei com que encontres o homem certo.
Não gostei nada de que me falasse assim. Eu é que encontraria o homem
certo para mim! Detestava ouvi-lo denegrir o irmão, quando eu o achava
tão digno de admiração! E que mulher não ficaria encantada por ter um
companheiro dotado de tantas capacidades domésticas? A rapariga que
casasse com o Troy Tatterton estaria, isso sim, cheia de sorte! O que
mais admirava no meio daquilo tudo era o facto de ele nem sequer ter
namorada.
Um dia, corria o mês de Maio, estava eu a vestir-me para a minha aula de
ginástica enquanto, à minha volta, as minhas colegas tomavam duche,
mudavam de roupa como eu a tagarelar incessantemente, quando uma ruiva
chamada Clancey enfiou a cabeça no cubículo onde eu me encontrava.
- Eh, Heaven, a tua mãe afinal de contas não era filha da Jillian
Tatterton e do primeiro marido? Todos comentam o facto de andares por aí
a dizer que ela é tua tia quando não há ninguém em Boston que não saiba
que isso não é possível. Gostaríamos de saber se esses boatos são
verdadeiros.
- Que boatos? - perguntei nervosamente.
- Ora, a minha mãe ouviu dizer que a Leigh VanVoreen casou com um bandido
mexicano...
Trocista, fingiu desferir um soco no estômago da melhor amiga, que viera
juntar-se a ela.
Toda a área dos lavabos e do vestiário ficou em silêncio,
162
enquanto as raparigas fechavam as torneiras e esperavam pela minha
resposta. Percebi então que aquele ataque fora planeado para me apanhar
de surpresa. Senti-me encurralada e aprisionada pelo silêncio hostil das
minhas colegas. Elas que se tinham mostrado tão amistosas depois da minha
festa de aniversário...
No entanto, dessa vez eu já estava a par de alguns truques que o Tony me
ensinara: a melhor defesa era o ataque ou então aparentar indiferença e
irreverência total.
- Sim, a tua mãe ouviu bem - admiti, ajeitando o laço da minha blusa
branca antes de dirigir a todas o que esperava ser um sorriso encantador
e confiante. - Nasci em pleno Rio Grande. Mesmo à beira da fronteira
americana,. - Ergui a voz propositadamente, como que para as despachar a
todas de uma só vez. - E, aos cinco anos, o meu pai ensinou-me a
arrancar-lhe uvas da boca a tiro, assim como as respectivas sementes de
entre a ponta dos dedos.
Servira-me de uma das fanfarronices preferidas do tom nos montes.
Ninguém proferiu palavra, nem uma única. Enfiei então os pés nos sapatos
e, em silêncio, saí porta fora, atirando com esta.
Não tardou que os preparativos para o final do curso se sobrepusessem a
quaisquer outras actividades em Winterhaven. Aproximava-me, finalmente,
da universidade e da conquista do meu amor-próprio. Tinha vontade de que
o Tony e a Jillian viessem à entrega dos diplomas, para que ouvissem
chamar pelo meu nome, que figurava no quadro de honra.
Ao ler o que vinha escrito no cartão branco do convite, a Jillian ficou
com uma expressão preocupada.
- Oh, devias ter-me avisado mais cedo, Heaven. Prometi ao Tony acompanhá-
lo a Londres nessa semana.
A desilusão quase me fez vir lágrimas aos olhos. A Jillian nunca fizera o
menor esforço para participar na minha vida. Virei a cabeça para o Tony e
lancei-lhe um olhar implorante.
- Lamento, querida - disse-me em voz branda -, mas a minha mulher tem
razão. Devias ter-nos alertado da data da entrega dos diplomas com
bastante antecedência. Pensei que fosse em meados de Junho, não na
primeira semana.
- Anteciparam o dia - sussurrei com voz embargada.
- Não podem adiar a vossa ida?
- Trata-se de uma viagem de negócios, e bem importante. Mas podes crer
que compensaremos a nossa negligência de outras maneiras que não através
de simples presentes.
163
Como eu já descobrira, claro que fazer dinheiro era sempre mais
importante do que as obrigações familiares.
- Correrá tudo bem contigo - disse o Tony confiantemente. És uma
sobrevivente, tal como eu, e farei com que nada te falte.
Eu precisava da minha família, de ter alguém entre o público que me visse
receber aquele diploma! - Mas recusei-me a suplicar mais.
Depois de saber que o Tony e a Jillian estariam ausentes num dos dias
mais importantes da minha vida, aproveitei a primeira oportunidade para
ir até à casa de pedra que ficava por trás do labirinto verdejante. O
Troy era o meu consolo, o meu alívio, de modo que foi com ele que
desabafei, sem reservas, a minha dor.
- A maioria das raparigas que vai receber o diploma em Winterhaven conta
não só com a presença dos pais como de toda a família... Tias, tios,
primos e amigos...
Nesse momento, encontrávamo-nos fora da casa de pedra, de joelhos, a
deitar sementes nos canteiros de flores do Troy. Já estivéramos a tratar
da sua pequena horta de legumes. Aquele trabalho, feito em conjunto,
trouxe-me à lembrança tempos há muito passados, em que a minha avó e eu
nos costumávamos ajoelhar sobre a terra daquela mesma maneira. Naquele
caso, porém, o Troy dispunha de todas as ferramentas de jardinagem
necessárias para tornar a tarefa mais simples e agradável. Os nossos
joelhos protegidos por pequenas almofadas, usávamos luvas, e o Troy
pusera-me um enorme chapéu de palha para que a minha pele não se
estragasse com sol em excesso.
Tínhamos agora uma relação tão familiar e à vontade um com o outro que às
vezes nem precisávamos de falar; bastava-nos comunicar mentalmente um com
o outro para que o trabalho decorresse com muito maior rapidez. Depois de
acabarmos de preparar a terra e deitar as sementes, declarei:
- Não quer dizer que não esteja profundamente grata ao Tony e à Jillian
por tudo o que têm feito por mim, pois estou. Mas sempre que algo de
especial acontece, sinto-me terrivelmente só.
O Troy lançou-me um olhar compreensivo, mas não me respondeu.
Bem poderia ter dito que teria muito gosto em estar presente na sessão;
porém, não se ofereceu. Não apreciava lugares públicos nem cerimónias.
164
Na sexta-feira, dia da entrega dos diplomas, foi o Miles quem me conduziu
a Winterhaven, e as raparigas reuniram-se todas para ficarem a olhar,
embasbacadas, para o Rolls-Royce novo que o Tony oferecera à Jillian pelo
sexagésimo primeiro aniversário. Era deslumbrantemente branco, com o
tejadilho e o interior em tom de creme.
- É teu? - quis saber a Pru Carraway, com os olhos claros muito abertos e
impressionados.
É meu até a minha tia Jillian voltar para casa.
Nessa manhã, quando entrei em Winterhaven, reinava uma atmosfera de
excitação. As raparigas deambulavam de um lado para o outro nos mais
variados graus de desnudamento, algumas ainda de rolos na cabeça; poucas
eram as que moravam a pouca distância de casa, como era o meu caso. Senti
um certo ressentimento e alguma amargura ao ver outras colegas
apresentarem as respectivas famílias. Iria ser sempre assim? A minha
família dos montes a milhares de quilómetros de distância, apenas
presente nos meus pensamentos, e a de Boston a arranjar desculpas para
não presenciar as minhas pequenas vitórias? Quem eu culpava era a
Jillian, evidentemente.
A minha avó não tinha dificuldade em me cobrir com a sua generosidade,
mas quando se tratava de me dar um pouco de si mesma e do seu tempo, eu
bem poderia morrer de fome. E às vezes o Troy, depois de iniciar algum
projecto novo que lhe dominasse os pensamentos, ficava completamente
alheado. Oh, a autocomiseração que eu sentia nesse dia ao envergar o meu
lindo vestido de seda branca com largas faixas de renda Cluny a debruar a
saia comprida e as mangas enfunadas! O exacto tipo de vestido que Miss
Marianne Deale me contara uma vez ter usado para receber o seu diploma de
liceu. Como na altura mo descrevera em pormenor, relembrei mentalmente
todos os aspectos, imaginando o Logan presente para me admirar.
Enquanto nós, as quarenta raparigas, nos alinhávamos na antecâmara a ver
se as nossas túnicas pretas e os barretes respectivos assentavam
impecavelmente, lancei uma olhadela pela porta enorme que abria e fechava
constantemente e vislumbrei o auditório, que o brilhante sol de Junho
inundava, apinhado de gente. Para mim, era como um sonho tornado
realidade, depois de ter receado tanto que aquele dia nunca chegasse, de
modo que as lágrimas ameaçaram inundar os meus olhos e escorrer pelas
minhas faces. "Oh, espero que o tom tenha falado ao meu pai neste dia!"
Se ao menos eu tivesse ali alguém...
165
Algumas das minhas colegas tinham dez ou mais parentes entre o público,
os mais novos prontos a bater com os pés, a aplaudir delirantemente e a
assobiar (o que era considerado de mau gosto mesmo em Winterhaven), mas
eu não teria ninguém que batesse palmas por mim. O almoço iria ser
servido no relvado, debaixo de chapéus-de-sol às riscas brancas e
amarelas. Quem se sentaria à minha mesa? Se eu tivesse de comer sozinha
na mesa reservada para mim, voltaria a morrer de humilhação... Mas
escapulir-me-ia sem que dessem por isso e iria chorar sozinha.
O director responsável por aquele acontecimento deu o sinal, e eu, tal
como as outras, endireitei os ombros, ergui a cabeça e, olhando em
frente, iniciei os passos lentos e medidos que nos levariam até aos
nossos lugares. Desfilámos em fila indiana. Eu era a oitava rapariga da
fila da frente, pois ficáramos dispostas por ordem alfabética. Via,
indistintamente, os rostos virarem-se, nenhum deles meu conhecido, à
procura da rapariga da família. E se não se tivesse soerguido, talvez o
meu olhar vítreo passasse por ele sem o ver. Assim, o meu coração deu um
pulo ao aperceber-me de que ele não se esquecera... Preocupava-se o
suficiente comigo para estar ali.
Eu sabia que ele detestava acontecimentos sociais como aquele. Desejava
que a gente de Boston o imaginasse num canto qualquer afastado do mundo;
no entanto, viera. Quando, por fim, chamaram pelo meu nome e eu me
levantei para ir ao pódio, o Troy não foi o único a levantar-se;
acompanhou-o uma fila inteira de homens, mulheres e crianças!
Mais tarde, depois de todas as finalistas estarem instaladas debaixo de
toldos de cores alegres, onde o sol e a sombra faziam que estivesse
simultaneamente quente e fresco, tudo muito bonito, senti uma sensação de
felicidade como poucas vezes me acontecera até então, pois o Troy pedira
a vários executivos da Companhia de Brinquedos Tatterton que estivessem
presentes, com as respectivas famílias, fazendo de conta que eu pertencia
a estas. A roupa que vestiam era de tal maneira "certa" que as raparigas
ficaram a olhar, de olhos arregalados e boca aberta, para os meus
parentes "pacóvios".
- Por favor, não voltes a agradecer-me - disse o Troy quando, já a noite
ia alta, me conduziu a casa depois de o baile do colégio terminar e todas
as raparigas ficarem a invejar o meu atraente "homem mais velho", que
também era muito admirado e considerado um óptimo partido. - Pensaste
166
mesmo que eu não vinha? - admoestou-me. - Não foi preciso grande esforço.
Fiquei calada e ele soltou uma risada antes de acrescentar:
Nunca conheci uma rapariga que precisasse tanto de uma família. Portanto,
arranjei-lhe uma bem grande. E, a propósito, eles são uma espécie de
família, não é? Toda a vida trabalharam para os Tatterton. Reparaste como
ficaram encantados em vir?
Sim, tinham ficado deliciados em vir. Repentinamente acanhada, fiquei em
silêncio, muito feliz mas, ao mesmo tempo, perturbada com o que sentia.
Tinha de reconhecer que estava a apaixonar-me pelo Troy. Seria natural o
facto de dançar com o Troy ter sido dez vezes mais excitante do que
quando o fizera com o Logan, quando este me ensinara os primeiros passos?
Lancei um olhar furtivo ao perfil dele e tive vontade de saber o que
estaria a passar-lhe pela cabeça.
- A propósito - disse o Troy sem desviar os olhos e a atenção do trânsito
-, a agência de detectives que os meus advogados contrataram para
descobrir o paradeiro dos teus irmãos mais novos, acham que encontraram
uma pista. Têm andado à procura de um advogado em Washington chamado
Lester. Existem pelo menos dez Lester e uns quarenta com a inicial "na
zona da cidade de Washington, além de vinte ou mais em Baltimore. Também
andam a investigar o "R" que a mulher dele usa... Portanto, é possível
que já não falte muito para lhes descobrir o rasto.
A minha respiração acelerou-se. Oh, voltar a abraçar a "Nossa" Jane!
Apertar o Keith contra mim e cobri-lo de beijos! Vê-los antes que se
esquecessem da irmã "Hev-lee". Mas seriam eles a verdadeira razão pela
qual toda eu tremia assim?
Sem poder conter-me, acerquei-me um pouco mais do Troy, de maneira a que
a minha coxa se premisse contra a dele e o seu ombro roçasse no meu. Tive
a impressão de que ficava tenso antes de se calar, e nessa altura saímos
da auto-estrada e enveredámos pelo caminho por onde eu já passara na
companhia da Jillian e do Tony. Fazia lembrar uma fita prateada a
serpentear em direcção aos portões altos, arqueados e negros. Aquele
percurso e a enorme casa oculta dos olhares até surgir quase de repente
diante de nós eram agora o meu lar.
Ouvi o troar do mar, o bater das ondas, senti o cheiro a maresia e a
excelência daquela noite intensificou-se.
167
- Oh, não vamos dar as boas-noites só porque já passa da uma da manhã -
disse eu, pegando na mão do Troy depois de descermos do carro. - Vamos
passear pelos jardins e conversar.
Talvez a noite cálida e aveludada também estivesse a exercer um certo
efeito sobre o Troy, pois este não se fez rogado em me dar o braço. As
estrelas pareciam tão próximas que dava a impressão de podermos tocar-
lhes. O perfume inebriante encheu-me as narinas, entontecendo-me.
- Que cheiro tão agradável é este? - perguntei.
- É dos lilases. É Verão, Heavenly, ou quase.
O Troy voltara a chamar-me Heavenly, tal como o tom costumava fazer.
Nunca ninguém me tratara assim desde que chegara ali, há cerca de um ano
atrás.
- Sabia que hoje, depois do almoço, as minhas colegas se mostraram mais
minhas amigas do que em alguma outra ocasião? Claro que queriam que eu o
apresentasse a elas... mas eu não lhes fiz a vontade. Mas gostaria de
saber como tem conseguido manter-se afastado do sexo oposto.
O Troy soltou uma risada e baixou timidamente a cabeça.
- Não sou homossexual, se é isso que queres saber. Corei, embaraçada.
- Nunca imaginei que fosse! Mas a maioria dos homens da sua idade sai o
mais que pode com raparigas, se é que já não estão noivos ou casados!
O Troy voltou a rir.
- Eu só daqui a uns meses é que farei os vinte e quatro anos - observou
com um ar despreocupado -, e o Tony sempre me aconselhou a não me
precipitar com nenhum compromisso antes dos trinta. Além disso, Heavenly,
sempre fui um perito em escapar às raparigas com ideias casadoiras.
- Tem alguma coisa contra o casamento?
- Nada. É uma instituição velha e honrada destinada aos outros homens,
não a mim.
O modo frio e distante como falou fez-me retirar a mão do seu braço.
Estaria ele a advertir-me a que não desejasse outra situação que não a de
amiga, nada mais? Seria possível que nunca nenhum homem viesse a dar-me o
tipo de amor por que eu ansiava?
Toda a magia daquela perfeita noite de Verão desapareceu; as estrelas
deram a impressão de mirrar, e nuvens escuras sobrepuseram-se às claras,
tapando a Lua.
- Parece que vai chover - observou o Troy, olhando para o céu. - Quando
eu era criança, costumava pensar que
168
todas as minhas possibilidades de ser feliz cairiam por terra
antes de terem, sequer, oportunidade de florescer. É muito difícil sentir
que somos espezinhados constantemente até chegarmos à conclusão de que
mais vale aceitar o que não pode ser mudado.
Que quereria ele dizer? Ele nascera em berço de ouro! Que saberia sobre o
tipo de desespero por que eu passara?
O Troy deu meia volta, pisando o cascalho solto sobre o carreiro de
lajes, e fazendo um certo esforço para se distanciar tacticamente de mim,
do carácter especial daquela noite; deu-me novamente os parabéns, a três
metros de distância; depois desejou-me uma boa noite. Afastou-se em
passadas rápidas em direcção ao labirinto e à casa de pedra que ficava
por trás.
- Troy - chamei, quase deitando a correr no seu encalço - porque vai já
para dentro? Ainda é cedo!.E eu não estou absolutamente nada cansada.
- Porque tu és jovem Heaven, saudável e cheia de sonhos dos quais eu não
posso partilhar. Mais uma vez, boa noite, Heaven.
- Obrigada por ter ido à entrega dos diplomas - disse-lhe, profundamente
magoada e a tremer, porque parecia que eu fizera algo de errado mas não
sabia o quê.
- Foi o mínimo que podia fazer.
E com essas palavras desapareceu no meio da escuridão. Nesse momento, as
nuvens obscureceram a lua, as estrelas desapareceram rapidamente e caiu
uma gota de chuva na ponta do meu nariz. Ali me deixei ficar, a meia-
noite já ia longe, sentada num banco de pedra frio, no meio de um jardim
de rosas deserto, deixando que a chuva que começara a cair suavemente me
ensopasse o cabelo e estragasse o vestido mais bonito que tinha no
guarda-fatos. Não importava, não importava. Eu não precisava do Troy, do
mesmo modo como acontecera com o Logan. Subiria ao topo sozinha...
sozinha.
Tinha dezoito anos e achava que o Logan nunca mais voltaria a fazer parte
da minha vida. Porém, sentia uma necessidade imperiosa de romance; em
breve o amor teria de florescer para mim, ou nunca seria capaz de
sobreviver. "Porque não eu, Troy? Porque não?"
Sozinha no jardim, a tremer violentamente e com aquela dor no coração, o
diploma que recebera deixou de parecer uma vitória importante. Era apenas
um passo na direcção certa. Ainda me faltava mostrar o meu valor na
universidade. Ainda tinha de fazer com que um homem se mantivesse
169
apaixonado por mim. Fiquei a olhar para o que restava de um vestido
branco que nenhuma das alunas de Winterhaven teria alguma vez esperança
de adquirir.
Piedade, aí estava o que todo o homem só conseguia sentir por mim, só
piedade! O Cal tivera pena de mim... e deitara por terra as minhas
possibilidades com o Logan. Este apenas tivera o prazer de atenuar a
minha vida miserável e cheia de privações com bens materiais! Agora que
já não passava miséria nem privações, os seus ímpetos filantrópicos
tinham perdido o incentivo. E o Troy... A esse, compreendia ainda menos!
Nos últimos tempos tivera a impressão de vislumbrar, várias vezes, algo
mais do que amizade nos seus olhos escuros.
Que sina maléfica era aquela que se sobrepunha a toda a beleza que via
reflectida no espelho quando me mirava nele?
Cada vez me parecia mais com a minha falecida mãe - e com a Jillian -
exceptuando o meu cabelo, o meu cabelo traiçoeiro, o meu cabelo Casteel
de índio.

12 PECADO E PECADORES

No início de uma manhã de Junho, antes de o Tony e a Jillian regressarem


de Londres, chegaram-me aos ouvidos os acordes melodiosos de uma
composição de Chopin tocada no piano. Era o tipo de música que eu apenas
ouvira na aula de iniciação musical de Miss Deale, às sextas-feiras, o
género de melodia romântica capaz de me encantar e estimular, enchendo-me
de uma ânsia que me atraiu escadas abaixo, para se me deparar o Troy
sentado ao enorme piano de cauda. Os seus dedos longos e esguios
ondulavam sobre o teclado com uma tal mestria que fiquei admirada de o
mundo não ter conhecimento de tamanho talento.
Bastou-me vê-lo para me emocionar. A curva dos seus ombros, a maneira
como inclinava a cabeça sobre as teclas, a paixão e o ardor que punha na
sua música pareciam extremamente reveladores. Ele não podia deixar de
saber que eu o ouviria. Precisava de mim, ainda que não o soubesse. Assim
como eu dele. Em camisa de noite e roupão detive-me no umbral da porta a
tremer e apoiei-me à madeira, permitindo que a música me persuadisse de
muitos aspectos. O Troy não era feliz, como eu. Possuíamos muito em
comum. Eu gostara dele desde o primeiro momento; era como o homem-
fantasia que eu criara há muito, mesmo antes de o Logan aparecer na minha
vida. Era um homem tão sensível que jamais poderia magoar-me. Eu achava o
Troy uma pessoa excepcional, muito acima das outras, demasiado perfeito
para ser real. Mas era-o.
Parecia, de certo modo, mais novo que o Logan, e dez vezes mais sensível
e vulnerável, qual rapaz à espera de ser amado à primeira vista... mas
não desejando sê-lo pela sua aparência, riqueza ou talentos. Ainda estes
pensamentos atravessavam a minha mente já o Troy sentira a minha
presença, parando imediatamente de tocar e virando-se para me sorrir com
timidez.
171
- Espero não tê-la acordado. Voltara a tratar-me por você.
- Não pare, por favor.
- Estou enferrujado, pois deixei de tocar diariamente.
- Porque parou?
- Não tenho piano na minha casa de pedra, como sabe.
- Mas o Tony disse-me que este piano era seu. O Troy esboçou um pequeno
sorriso enviesado.
- O meu irmão quer manter-me afastado de si. Já não me sirvo deste piano
desde a sua chegada.
- Porque proíbe ele a nossa amizade, Troy? Porquê?
- Oh, não falemos nisso. Deixe-me terminar o que comecei e depois
conversaremos.
O Troy tocou durante algum tempo e eu, a certa altura, comecei a sentir-
me tão débil que tive de me sentar, parando só então de tremer. Enquanto
ele tocava, caí numa divagação romântica, imaginando que estávamos a
dançar juntos, tal como na noite em que eu recebera o meu diploma.
- Está a dormir! - exclamou o Troy quando a música acabou. - Foi assim
tão mau?
Descerrei imediatamente as pálpebras. Fitei-o com ar meigo e sonhador.
- É a primeira vez que ouço música assim. Assusta-me. Porque não toca
profissionalmente?
O Troy encolheu os ombros com indiferença. A sua pele, que eu vislumbrava
através da fina camisa branca, brilhava com uma coloração mais intensa. O
colarinho estava aberto, o que me permitia ver o tufo de pêlos escuros
que tinha no peito. Voltei a fechar os olhos, perturbada por todo aquele
mar de sensações que me invadira.
- Tenho sentido a falta das suas visitas - observou o Troy em voz débil e
hesitante. - Sei que a magoei na noite da festa do final do curso e
lamento-o, mas estava apenas a tentar protegê-la.
- É a si mesmo - sussurrei com amargura. - Sabe que eu não passo de uma
reles pacóvia, e mais cedo ou mais tarde o embaraçarei a si e à sua
família. Tenho andado a pensar em me ir embora. Já tenho umas boas
economias que me permitirão aguentar o primeiro ano da universidade. E se
arranjar emprego, poderei fazer o resto do curso.
Alarmado, o Troy disse algo que não consegui perceber muito bem, embora
eu entreabrisse as pálpebras o suficiente para ver o seu ar de
preocupação e alarme.
- Não pode fazer isso! O Tony, a Jillian e eu devemos-lhe muito.
172
Vocês não me devem nada! - declarei intempestivamente, pondo-me de pé com
um salto. - Só lhe peço que daqui em diante me deixe em paz. Não voltarei
a intrometer-me na sua privacidade!
O Troy vacilou, em seguida passou os dedos compridos pela massa de cabelo
ondulado. Esboçou o seu desarmante sorriso de menino.
Recorri à música como meio de lhe pedir desculpas por tê-la deixado
sozinha no jardim. É a minha maneira de confessar que passei a gostar o
suficiente de si para não fazer um esforço para recuperar a sua amizade.
Quando não está em minha casa, fico com a impressão de a ter lá, virando-
me muitas vezes de repente na esperança de dar consigo; quando vejo que
me encontro sozinho, a desilusão é enorme. Portanto, peço-lhe que comece
a ir até lá de novo.
De modo que voltei à casa de pedra do Troy com ele e jantámos juntos.
Porém, eu estava cansada de ficar enfiada ali dentro com ele. Sentia o
impulso das minhas emoções pressionar-me de tal modo que precisava de ir
para o exterior, se não, corria o risco de fazer figura de tola. Mas,
antes de me retirar, estava decidida a certificar-me de que nos
encontraríamos no dia seguinte. Sentia-o a abrandar diante, de mim. E se
passássemos dias inteiros juntos, ele não seria capaz de lutar contra os
seus sentimentos por mim. Eu podia tornar a sua vida mais alegre e feliz
e já me resolvera a obrigá-lo a aceitar o meu amor.
- Troy, não poderemos antes ir lá para fora, para variar? Nas cavalariças
estão magníficos cavalos árabes que só os moços da estrebaria exercitam
quando o Tony e a Jillian estão fora. Ensine-me a montar. Ou venha nadar
comigo para a piscina. Façamos um piquenique no bosque, tudo menos
ficarmos encafuados na sua casa de pedra quando lá fora faz um tempo tão
bonito. A Jillian e o Tony não tardarão a voltar e estamos proibidos de
nos encontrar. Aproveitemos agora o que não poderemos fazer depois.
Os nossos olhares encontraram-se e fundiram-se um no outro. O Troy corou,
o que o obrigou a virar-se ligeiramente para o lado, quebrando o
encantamento que se gerara.
- Se é o que prefere fazer. Encontramo-nos nos estábulos amanhã às dez.
Pode aprender na égua mais mansa que lá está.
Caí sob o feitiço de algo que escapava ao meu controlo, quase como se
tivesse engolido uma poção poderosa. Na manhã
173
seguinte, pouco depois das dez horas, encontrei-me com o Troy nas
cavalariças. Este estava à minha espera, envergando roupa de montar
simples. O vento despenteara-lhe o cabelo, o sol começara já a emprestar-
lhe um tom saudável às faces, e a expressão vagamente entristecida que
estava sempre presente nas profundezas do seu olhar, desaparecera.
- Vamos ter um dia maravilhoso! - exclamei, dando-lhe um abraço rápido
antes de olhar ansiosamente para os estábulos. - Só espero que os moços
das cavalariças não contem nada ao Tony.
- Eles sabem que o melhor que têm a fazer é não andar com mexericos -
respondeu o Troy com ar despreocupado, aparentemente encantado com o meu
entusiasmo. - Está esplêndida, absolutamente esplêndida!
Dei meia volta para me mostrar melhor, abrindo os braços e ajeitando o
cabelo.
- O Tony ofereceu-me esta roupa de montar no Natal. É a primeira vez que
a visto.
O Troy deu-me lições de equitação durante uma semana, mostrando-me a
diferença entre os estilos inglês e ocidental. Aprender a correr contra o
vento, a baixar-me para escapar às ramadas pendentes e dar com os
calcanhares no flanco da minha montada quando queria parar era mais
divertido do que eu alguma vez esperara (embora todas as noites me
custasse a sentar). Em suma, perdi o medo que tinha dos cavalos e da sua
altura impressionante.
Todas as manhãs, depois da minha lição, voltávamos à casa de pedra para
almoçar, e depois o Troy mandava-me de volta à casa grande, pois dizia
que precisava de trabalhar. Eu não tinha dificuldade em ver o esforço que
ele fazia para não passar demasiado tempo comigo quando, na verdade, era
o que realmente desejava. De modo que evitava vê-lo à tarde, esperançada
em levá-lo a sentir a minha falta; de facto, pela manhã, ele mostrava um
prazer tão grande em me ver que eu tinha a certeza de que, muito em
breve, compreenderia que me amava.
Oito dias depois do início das minhas lições de equitação é que o Troy me
considerou pronta para uma corrida mais prolongada pelos bosques que
rodeavam a Mansão Farthinggale. Olhava constantemente para o céu.
- O boletim meteorológico desta manhã previa violentas tempestades com
raios e trovões. Portanto, é melhor não irmos demasiado longe.
Levávamos connosco um cesto de piquenique que o próprio
174
Troy enchera ao seu gosto, assim como uns petiscos que P Rhye whiskey
mandara da casa grande para nos deliciar. Coube ao Troy escolher o
pequeno morro sombreado, debaixo de uma das faias mais lindas que eu já
vira. Perto, corria um veio de água gorgoleante e, lá no alto, os
passarinhos saltitavam entre as ramadas que a brisa agitava docemente. O
maravilhoso dia de Verão enchia-me o coração de música e alegria; o Troy
ajoelhou-se para abrir a toalha aos quadrados vermelhos e brancos sobre a
erva. Os nossos dois cavalos, presos a curta distância, mastigavam
pacatamente tudo aquilo a que podiam deitar o dente. Atarefei-me a
esvaziar o cesto de piquenique, sentindo o zumbido das abelhas e o cheiro
dos trevos, enquanto ia afastando mosquitos minúsculos do rosto. A doçura
do dia, a beleza do lugar iluminavam-me o olhar sempre que olhava de
relance para o Troy, que não conseguia desviar o olhar fascinado do menor
movimento que que fazia, mesmo o mais trivial. Ajeitei os pratos e demais
utensílios de plástico, sentindo-me constrangida e mudei a salada de
batata, o frango e as sanduíches três vezes de sítio.
Quando, finalmente, ficou tudo impecavelmente arranjado, sentei-me sobre
os calcanhares e sorri para o Troy.
- Pronto, não está bonito? Mas não avance antes de eu dizer uma oração,
como a minha avó costumava fazer sempre que o meu pai não estava em casa.
Naquele dia, sentia-me tão feliz que não podia deixar de agradecer a
alguém.
O Troy parecia encantado. Anuiu com olhar vago e em seguida inclinou
ligeiramente a cabeça, enquanto eu proferia as palavras conhecidas.
- "Senhor, agradecemos os alimentos que temos diante de nós, as mãos
carinhosas que prepararam esta dádiva, as muitas bênçãos que fazes recair
sobre nós e as alegrias deste dia e de todos os amanhãs que nos queiras
dar. Ámen."
Baixei as mãos levantei a cabeça, olhei para cima e reparei que o Troy me
fitava com ar muito estranho.
- É a oração da sua avó?
- Sim, nós nunca tivemos bênção nem dádivas, mas a minha avó não dava a
impressão de se aperceber do facto. Afirmava sempre que viriam dias
melhores. Penso que, quando não se está habituado a nada, não se espera
demasiado. Quando ela dizia a oração, eu costumava implorar
silenciosamente a Deus que a livrasse das suas penas e sofrimentos.
175
Depois de ouvir a minha resposta, o Troy ficou em silêncio, pensativo,
enquanto ambos nos deleitávamos com o nosso sumptuoso almoço de
piquenique. O bolo amarelo com uma espessa cobertura de chocolate fora
feito por mim, na própria cozinha do Troy.
- Este é o melhor bolo que alguma vez comi! - exclamou o Troy, lambendo o
chocolate dos dedos. - Mais uma fatia, se faz favor.
- Não era bom podermos estar sempre juntos como agora? O Troy e eu. Eu
poderia ir à universidade e morar em sua casa.
Os olhos escuros do Troy ensombraram-se de tanta dor que o dia ensolarado
perdeu, repentinamente, a sua luminosidade. Ele não me amava! Não
precisava de mim! Eu estava apenas a seduzi-lo, ou a tentar fazê-lo, tal
como o Cal Dennison fizera comigo em relação aos seus anseios e desejos,
alheando-se dos meus. Passei-lhe a segunda fatia de bolo, agora demasiado
embaraçada para olhar, sequer, para ele. De cabeça baixa para que não
visse o meu desgosto, desimpedi rapidamente a toalha e, em vez de lavar a
louça usada, na torrente de água como inicialmente pensara em fazer mal a
avistara, atirei com tudo para dentro da cesta de piquenique, onde ficou
a monte, não me permitindo fechar a tampa. Furibunda, empurrei-a em
direcção ao Troy.
- Aqui está a sua cesta! - exclamei com voz embargada.
A expressão estupefacta do Troy levou a pôr-me desajeitadamente de pé e a
correr para a minha égua.
- vou para casa! - gritei, infantilmente. - Já percebi que não precisa de
alguém como eu a intrometer-se permanentemente na sua vida! Só quer
trabalho e mais trabalho! Obrigada pelos últimos dez dias e perdoe-me por
ser impulsiva. Prometo não voltar a fazê-lo perder tempo!
- Heavenly! - chamou o Troy. - Pára! Espera... Não esperei. Consegui
subir para cima da sela, sem me importar se o fiz bem ou mal. Bati com os
calcanhares nos flancos da égua, que se precipitou para a frente,
enquanto eu, cega pelas lágrimas, me sentia mais furiosa comigo mesma do
que com o Troy. Fiz tudo errado. A minha égua ficou confusa e hesitante.
Para corrigir os meus erros, puxei violentamente as rédeas. O animal
ergueu-se, ficando quase na vertical, resfolegando e agitando as patas no
ar; depois, precipitou-se para a frente, deitando a correr a galope pelo
meio do bosque. Os ramos baixos vieram contra mim, uns atrás
176
dos outros, ramos capazes de me varrer da sela e partir o pescoço,
coluna, pernas. Consegui escapar a todos eles, com mais sorte do que
perícia. E quanto mais me mexia na sela, mais irregular se tornava o
galope da égua! Os meus gritos eram como longos lenços de seda a esvoaçar
atrás de mim. Lembrei-me, quase demasiado tarde, dos conselhos do Troy
sobre como me segurar a um cavalo com o freio nos dentes. Inclinei-me
para a frente e agarrei-me à crina abundante e castanha. A égua
descontrolada saltava ravinas e fossos, e sobre árvores tombadas por
tempestades. Fechei fortemente os olhos e comecei a dizer o nome dela
repetidamente, tentando acalmá-la.
A certa altura, percebi que tropeçava; fui projectada do seu lombo, indo
parar a uma vala baixa, meio cheia de uma água lodosa e esverdeada, ali
retida depois das chuvas. A minha égua pôs-se de pé, vacilante,
relinchou, sacudiu-se e depois de me lançar um olhar descontente, virou-
se e seguiu em direcção a casa, deixando-me atordoada, trémula e magoada.
Eu também perdera a bota do pé esquerdo. Ali deitada de costas no meio da
água fétida, olhando para o dossel de folhas e com o sol a bater-me em
cheio no rosto, senti-me uma idiota.
Fora castigo de Deus, pensei sombriamente, por ter criado demasiadas
expectativas! Já tinha obrigação de saber que não devia apaixonar-me pelo
primeiro homem que fazia o meu sangue quente correr mais depressa,
sobretudo depois do que acontecera com o Cal e da rejeição do Logan.
Nunca nenhum Casteel se saíra bem alguma vez. Porque haveria eu de ter a
presunção de me considerar melhor?
Ainda me passaram pela cabeça outros pensamentos tolos antes de me
levantar e sacudir a água imunda do cabelo e depois limpar a lama do
rosto com uma das mangas da blusa. Apareceram abelhas selvagens, se
calhar atraídas pelo meu perfume ou pelo amarelo-claro da minha blusa
anteriormente bonita.
- Heaven, onde estás? - ouvi o Troy chamar à distância.
"Atrasaste-te demasiado, Troy Tatterton! Agora já não te quero!" No
entanto, o esforço que foi preciso para não responder, pôs-me a tremer.
Não queria que ele me encontrasse, não, naquele momento. Arranjaria
maneira de voltar para aquela casa enorme e solitária e nunca mais
desobedeceria ao Tony para ir até casa do Troy às escondidas.
De modo que deixei-me ficar sentada na água, muito
177
quieta, afastando com palmadas todos os insectos que, idiotamente, me
achavam atraente. O tempo pareceu nunca mais terminar até ele deixar de
me chamar e deambular pelo bosque à minha procura. O vento começou a
soprar com mais força, agitando as folhas caídas. Juntaram-se nuvens
escuras e cerradas, como parecia acontecer sempre que eu estava à beira
de descobrir algo de valioso: a minha péssima sorte!
Oh, realmente estava com tanta pena de mim mesma que mal pude reprimir os
soluços ainda antes de começar a chuviscar.
Nesse momento, ouvi um pequeno barulho atrás de mim e uma voz divertida
exclamou:
- Sempre tive vontade de salvar uma donzela em apuros.
Virei a cabeça e vi o Troy a cerca de três metros de distância. Eu não
saberia dizer há quanto tempo estava a observar-me. Tinha a roupa de
montar suja em vários sítios e um rasgão enorme numa das mangas, do ombro
ao cotovelo.
- Porque continuas sentada aí? Estás ferida?
- Vá-se embora! - gritei, virando a cabeça de maneira a ele não ver o meu
rosto sujo de lama. - Não, não estou ferida! Não preciso de ser salva!
Não preciso de si! Não preciso de ninguém]
Ele não respondeu e desceu para o fosso com água, apalpando-me as pernas
em busca de alguma fractura. Tentei afastá-lo, mas ele conseguiu pegar em
mim ao colo à terceira tentativa.
- Agora a sério, Heaven. Diz-me se te dói nalgum sítio.
- Não! Ponha-me no chão!
- Tens sorte em ainda estar viva. Se em vez de água e de um fundo
lamacento macio tivesses batido contra terra seca, muito possivelmente
estarias gravemente ferida.
- Posso andar. Por favor, ponha-me no chão.
- Está bem, se é essa a tua vontade. Obedecendo à minha ordem, colocou-me
cuidadosamente de pé. A dor aguda que senti no tornozelo esquerdo fez-me
gritar de dor. O Troy agarrou imediatamente em mim.
- Precisamos de nos apressar - disse. - Não temos tempo para
brincadeiras. Tive de desmontar para seguir a trilha que deixaste. Não
restam dúvidas de que torceste o tornozelo, a julgar pelo inchaço, que
está a aumentar.
- Isso não quer dizer que esteja incapacitada! Ainda posso andar. Não
foram poucas as vezes em que percorri quase doze quilómetros até
Winnerrow com algo mais a doer-me que não um tornozelo!
178
Nos lábios do Troy surgiu novo sorriso.
Claro que sim, doía-te o estômago em vez do tornozelo. Que sabe sobre
isso?
Apenas o que me contaste. Agora pára de te debateres e porta-te bem. Se
não encontrar depressa o meu cavalo, seremos ambos apanhados pela
tempestade que aí vem.
O cavalo do Troy esperou pacientemente que este me ajudasse a montar na
sela, em frente dele. Senti-me má e detestável quando ele se instalou
atrás de mim, guiando a sua montada com habilidade, ao mesmo tempo que me
rodeava protectoramente a cintura com um dos braços.
- Já começou a chover.
- Eu sei.
- Nunca conseguiremos chegar a casa antes de a tempestade rebentar em
toda a sua força.
- Desconfio que não. Por isso é que me dirijo para um velho celeiro
abandonado que costumava servir para guardar cereais cultivados pelos
primeiros Tatterton - afirmou ele.
- Quer dizer que os seus antepassados sabiam fazer outras coisas além de
brinquedos?
- Penso que todos os antepassados sempre souberam fazer mais do que uma
só coisa.
- Os seus, sem dúvida, tinham criados para tratar dos trabalhos da
quinta.
- É possível que tenhas razão. No entanto, fazer dinheiro para pagar aos
trabalhadores rurais exige algum talento.
- Para sobreviver numa zona inóspita e cruel é necessário mais do que
talento.
- Touché. Agora, fica quieta e deixa-me ver como hei-de resolver esta
situação.
Afastou o cabelo molhado da testa, olhou em volta e, em seguida, orientou
o cavalo rumo a leste.
O vento trazia nuvens negras de sudoeste, não tardando a seguirem-se-lhes
raios coruscantes. Eu, apesar da vontade que tinha de fugir do Troy,
sentia prazer em ter o braço dele à minha volta a segurar-me, até que, a
certa altura, o celeiro apareceu à nossa frente.
A construção em ruínas, meio cheia de feno apodrecido, exalava um cheiro
a velhice e a mofo. A penumbra permitia ver que a chuva entrava por uma
centena de sítios, caindo no chão, onde formava poças de água. As
aberturas deixavam ver o céu, naquele momento sulcado de raios
aterradores que davam a impressão de convergir directamente para cima
179
de nós, no alto. Deixei-me cair sobre os joelhos, enquanto o Troy se
encarregava do cavalo, tirando-lhe a sela e esfregando-o até o secar com
o cobertor que esta trazia; depois veio ter comigo e escolheu o lugar
onde, naquele celeiro escuro e malcheiroso, o feno estava mais seco e
menos apodrecido. Sentámo-nos ambos naquele local húmido e miserável.
Como se não tivesse havido nenhuma interrupção, prossegui com voz irada:
- Admira-me que gente rica como os Tatterton não tenha mandado deitar
abaixo este celeiro há muito tempo.
O Troy ignorou a minha observação e, reclinando-se sobre o montículo que
formara, disse com suavidade:
- Quando era menino costumava brincar neste celeiro. Tinha um amigo
imaginário ao qual chamava Stu Johnson e era com ele que saltava daquele
piso ali de cima. - Apontou-me. - Vinha parar precisamente a este monte
de feno em que estamos sentados.
- Mas que grande disparate! - exclamei, fitando, incrédula, a altura
enorme a que ficava o piso de cima. - Podia ter morrido.
- Oh, isso nem me passava pela cabeça. Na altura tinha cinco anos e
necessitava muito de um amigo, mesmo que fosse imaginário. A tua mãe
fora-se embora e deixara-me muito só. A Jillian passava a vida a chorar e
a telefonar para o Tony, que estava longe, implorando-lhe que voltasse
para casa e, depois disso acontecer, passaram a discutir todos os dias.
Agitada pelo facto de o Troy estar a recordar a minha mãe, virei-me para
ele.
- Porque fugiu a minha mãe?
O Troy, em vez de responder, endireitou-se, tirou um lenço do bolso,
mergulhou uma ponta na poça de água mais próxima e começou a limpar-me a
lama do rosto.
- Não sei - respondeu, inclinando-se para me dar um beijo na ponta do
nariz. - Era demasiado pequeno para me aperceber do que estava a
acontecer. - Beijou-me a face direita, depois a esquerda, fazendo-me
sentir a sua respiração quente e excitante no meu rosto e pescoço, ao
mesmo tempo que falava. - Só sei que, quando a tua mãe se foi embora,
prometeu escrever-me. Disse que um dia voltaria, quando eu estivesse
crescido.
- Ela disse-lhe isso?
Os seus lábios encontraram os meus com suavidade. O Logan beijara-me
várias vezes mas nem uma única vez a sua aproximação desajeitada e
juvenil me excitara como a
180
daquele homem, que sabia, nitidamente, como agir para me arrepiar toda.
Contrariamente ao que devia ter feito, reagi com demasiada rapidez e
depois recuei abruptamente.
Não precisa de ter pena de mim e inventar mentiras.
Eu nunca te mentiria sobre algo tão importante.
Agarrou-me a cabeça com ambas as mãos e inclinou-a para o ângulo que mais
jeito lhe dava; o seu beijo seguinte foi mais intenso. Eu mal podia
respirar.
Quanto mais recordo o passado, mais me lembro do quanto amava a tua mãe.
Deitou-me suavemente no feno, apertando-me contra o seu peito, enquanto
eu levantava automaticamente os braços para o rodear com eles.
- Continua. Conta-me mais coisas.
- Agora não, Heaven, agora não. Deixa-me reflectir mais acerca do que
está a acontecer entre nós. Tenho feito um esforço para não me apaixonar
por ti. Não quero ser mais um homem a magoar-te.
- Eu não tenho medo.
- Tens apenas dezoito anos. Eu já vou nos vinte e três. Mal podia
acreditar no que ouvira.
- O Jessie Shackleton tinha setenta e cinco anos quando casou com a
Lettie Joyner, que vivia a uns quilómetros de distância, nos arredores
dos Willies, e deu-lhe três filhos e duas filhas antes de morrer, aos
noventa.
O Troy gemeu e enterrou o rosto nos meus cabelos molhados.
- Não me digas mais nada. Precisamos os dois de reflectir, antes que seja
demasiado tarde para terminar aquilo que já começou.
Fiquei maravilhada! O Troy já me amava, sentia-se na sua voz, na maneira
como me abraçava, e tentava alertar-me.
Enquanto a chuva tamborilava fortemente sobre as nossas cabeças,
torrentes de água infiltravam-se pelos buracos do telhado, os trovões
ribombavam e os raios sulcavam os ares, deixámo-nos ficar agarrados um ao
outro sem falar, acariciando-nos com as mãos, beijando-nos de vez em
quando, momentos de ternura como eu jamais experimentara.
O Troy poderia ter-me possuído naquele momento e naquele lugar, e eu não
teria resistido. No entanto, conteve-se, fazendo com que o meu amor por
ele aumentasse ainda mais.
A chuva caiu durante uma hora. Depois, o Troy montou-me
181
no seu cavalo e dirigimo-nos, lentamente, para a enorme casa, cujas
chaminés e torres avistámos acima do topo das árvores. Ao chegarmos aos
degraus que conduziam à porta da frente, voltou a atrair-me para os seus
braços.
- Não achas estranho, Heavenly, teres entrado na minha vida numa altura
em que não precisava de ti nem desejava a tua presença... e que agora não
consiga imaginar-me sem ti?
- Então, não imagines. Amo-te, Troy. Não tentes afastar-me da tua vida só
por me achares demasiado nova. Não o sou. Nos montes, ninguém com a minha
idade é considerado jovem.
- Esses teus montes são extraordinários, mas eu não posso casar, nem
contigo nem com ninguém.
Aquelas palavras magoaram-me.
- Quer dizer que não me amas?
- Não foi o que eu disse.
- Se não quiseres casar comigo, não o faças. Basta que me ames o
suficiente para que eu me sinta bem comigo mesma.
Levantei-me rapidamente na ponta dos pés e premi os meus lábios contra os
dele, enfiando os meus dedos no seu cabelo húmido.
Os braços dele apertaram-se à minha volta, e eu pensei em todas aquelas
mulheres que já deviam ter povoado os seus sonhos. Mulheres ricas,
apaixonadas, belas e sofisticadas! Mulheres encantadoras, inteligentes e
cultas. Cheias de jóias, à moda, espirituosas, seguras... Que hipótese
teria uma pacóvia dos montes de atrair um homem como o Troy, quando elas
tinham fracassado?
- Até amanhã - despediu-se ele, afastando-se e descendo os degraus. -
Isto é, se a Jillian e o Tony não voltarem. Não sei o que estará a retê-
los tanto tempo.
Eu também não sabia, mas o certo é que era agradável não precisar de me
encontrar com o Troy às escondidas. E quanto mais pensava nisso, depois
de já estar deitada, mais inquieta me sentia. Queria estar com o Troy
naquele momento. Não desejava esperar mais. Chamei-o para junto de mim em
pensamento, silenciosamente.
Dormitei durante horas intermináveis, sem conseguir encontrar o tranquilo
esquecimento que procurava com tanto desespero. Virava-me de um lado para
o outro, tentava ficar de costas, sobre a barriga. A certa altura, de
repente, ouvi chamarem-me pelo nome. Abri os olhos, sobressaltada, e
olhei para o relógio eléctrico que tinha na mesa-de-cabeceira. Eram
182
duas da manhã... Ainda só passara aquele tempo? Levanteime, vesti o meu
diáfano roupão verde, a condizer com a camisa de dormir, depois desci até
ao vestíbulo e, sem pensar no que fazia, vi-me no labirinto, de pés
descalços. A erva estava fria e húmida. Não queria imaginar o que ali
estava a fazer.
A tempestade tornara a atmosfera tão límpida que o luar iluminava tudo.
As sebes altas, com os seus milhares de folhas, retinham partículas
minúsculas de luar, luzindo. A certa altura, vi-me diante da porta
fechada da casa dele, hesitante, desejando ter a coragem de bater ou de
bater e entrar. Ou a força de vontade para dar meia volta e voltar para
onde devia. Inclinei a cabeça e encostei a testa à madeira; depois,
fechei os olhos e, sentindo as forças abandonarem-me comecei a chorar
suavemente. Nesse momento a porta abriu-se, fazendo-me tombar para a
frente. Directamente para os braços do Troy.
Este não proferiu uma palavra ao amparar-me. Ergueu-me nos braços e
levou-me para o seu quarto.
Ao baixar a cabeça sobre a minha, o luar banhava-lhe o rosto mas, dessa
vez, os seus lábios foram mais sôfregos. Os seus beijos e carícias
puseram-me em brasa, de modo que tudo aconteceu entre nós de uma maneira
tão natural e bonita que não senti nenhuma da culpa e da vergonha que o
facto de fazer amor com o Cal Dennison provocara em mim. Atingimos o
clímax ao mesmo tempo, como se não pudesse deixar de ser assim e, quando
chegámos ao fim, deixei-me ficar nos seus braços, a estremecer com os
derradeiros espasmos do primeiro orgasmo da minha vida.
Quando acordámos já era madrugada e o vento entrava, húmido e frio, pelas
janelas abertas. O doce pipilar matutino das aves ensonadas trouxe-me
lágrimas aos olhos, antes de me soerguer para puxar pelo cobertor dobrado
aos pés da cama. Os braços do Troy trouxeram-me rapidamente para trás.
Encheu-me o rosto de beijos ternos e afagou-me o cabelo com a mão livre,
antes de me aninhar contra ele.
- Ontem à noite estive aqui deitado a pensar em ti.
- Tive imensa dificuldade em adormecer...
- Eu também.
- Quando estava prestes a adormecer, tive um sobressalto pois pareceu-me
ouvir-te chamar por mim.
O Troy deixou escapar um som abafado e apertou-me com mais força contra o
seu corpo quente.
- Eu ia a sair para junto de ti quando me caíste pela porta dentro, como
que em resposta a uma oração. No entanto, não devia ter permitido que
isto acontecesse. Nunca quis magoar-te.
183
- Tu nunca poderias magoar-me, jamais! Nunca conheci um homem tão bom e
meigo.
O Troy soltou uma risada baixa.
- Quantos homens já conheceste com essa tua tenra idade de dezoito anos?
- Apenas aquele de que te falei - sussurrei, escondendo o rosto quando o
Troy quis perscrutar os meus olhos.
- Queres falar-me mais dele?
O Troy escutou-me sem fazer perguntas, ao mesmo tempo que me acariciava
com as mãos magras, e quando cheguei ao fim, beijou-me os lábios e cada
uma das pontas dos meus dedos.
- Voltaste a ter notícias desse tal Cal Dennison depois de vires morar
para Farthy?
- Nunca mais quero ouvir falar nele! com que veemência fiz tal
declaração!
Tomámos a nossa primeira refeição do dia com um certo constrangimento,
como se fôssemos dois adolescentes acabados de se descobrir um ao outro.
Nunca comera nenhuma sanduíche de ovo estrelado e bacon ou soubera que o
doce, de morango acentuava o sabor de ambos.
- Descobri este petisco por simples acaso - continuou a explicar. - Tinha
sete anos e estava a recuperar de mais uma dessas maleitas infantis que
costumavam atacar-me, e a Jillian ralhava comigo por ser desajeitado à
mesa, quando deixei cair a torrada dentro do prato. "Fazes favor de comer
isso tudo!", gritou-me ela. Foi assim que descobri que gostava de ovos
com bacon...
- A Jillian costumava gritar contigo?
Senti-me profundamente admirada. Pensava que grande parte da sua má
vontade comigo derivava do facto de ter uma mulher mais jovem perto dela.
- A Jillian nunca gostou de mim... Escuta... Está a trovejar outra vez. O
meteorologista previu uma semana de tempestades, lembras-te?
Ouvi o leve tamborilar da chuva no telhado. O Troy apressou-se a acender
um fogo para afastar o frio e a humidade da manhã, enquanto eu ficava
estendida no chão, a observá-lo. A maneira ordenada como ele colocava os
ramos secos divertia-me. No entanto, era quando estava descontraído que
mais prazer me dava olhar para ele. Era maravilhoso o tempo obrigar-nos a
ficar enclausurados na sua casa de pedra.
O fogo ardia com força, brilhante. O silêncio que reinava entre nós
começou a palpitar de sensualidade. O jogo das
184
labaredas alaranjadas nos planos acentuados do seu rosto desencadeou-me
palpitações pelo corpo. Reparei que me observava a olhar para ele,
analisando-me o rosto quando lhe mirava as mãos... até que, a certa
altura, apoiou-se num dos cotovelos e ficou com a cara muito próxima da
minha. Ia fazer novamente amor comigo. As minhas pulsações aceleraram.
Em vez de beijos, deu-me palavras.
Em vez de me abraçar, deitou-se de costas e colocou as mãos atrás da
cabeça, a sua posição preferida.
- Sabes em que costumo reflectir quando é Verão? Penso que o Outono não
tardará a chegar e todos os pássaros mais coloridos e bonitos ir-se-ão
embora, deixando ficar os mais escuros e feios. Detesto a altura em que
os dias começam a encurtar. Não durmo bem durante as longas noites de
Inverno; dá a impressão de que o frio se insinua pelas paredes da casa e
invade os meus ossos, fazendo-me dar voltas e voltas na cama, com
pesadelos. No Inverno sonho demasiado. No Verão são só sonhos agradáveis.
Apesar de te ter aqui ao meu lado, ainda me pareces um sonho.
- Troy... - protestei, virando-me para ele.
- Não, por favor, deixa-me falar. Raramente tenho alguém que me escute
com tanta atenção como tu. Além disso, quero que me conheças um pouco
melhor. Estás disposta a ouvir?
Acenei afirmativamente com a cabeça, algo assustada pelo tom grave das
palavras.
- As noites invernosas são, para mim, demasiado longas. Dão tempo a que
surjam pesadelos. Tento ficar acordado quase até de madrugada, e muitas
vezes consigo. Quando assim não acontece, fico agitado e tenho de me
levantar e vestir. Depois, vou até lá fora e deixo que o ar fresco afaste
os pensamentos sombrios da minha cabeça. Percorro os carreiros por entre
os pinheiros e só depois de ter a cabeça desanuviada, nunca antes, é que
volto para casa. E no trabalho sou capaz de esquecer a chegada da noite e
dos pesadelos que me atormentam.
Não pude fazer outra coisa senão ficar a olhar para ele.
- Não admira que andasses cheio de olheiras no Inverno passado -
observei, perturbada por vê-lo tão melancólico em semelhante ocasião. Ele
agora tinha-me a mim. - Achava que eras um workaholic1.
1 Neologismo que se refere ao indivíduo cujo objectivo quase exclusivo na
vida é o seu trabalho. (N. da T.)
185
O Troy rolou para o lado e estendeu o braço comprido para a garrafa de
champanhe que pusera num balde de gelo em prata a refrescar. Deitou a
bebida borbulhante em dois cálices de cristal.
- A última garrafa da melhor colheita - murmurou, voltando-se para mim e
batendo ao de leve com o seu cálice no meu.
Eu habituara-me a champanhe durante o último Inverno, pois este estava
sempre presente nas festas da Jillian. No entanto, ainda era
suficientemente nova para me sentir tonta depois de um copo. Beberriquei
o meu champanhe incomodada, curiosa sobre o motivo que o levaria a
desviar constantemente os olhos dos meus.
- Que queres dizer? Por baixo desta casa tens uma adega com champanhe
suficiente para o próximo meio século?
- Que prosaica! - observou o Troy. - Falei em termos poéticos. Tentava
dizer-te que o Inverno e o frio trazem à tona o lado mórbido que ando
quase sempre a esconder, Gosto demasiado de ti para te permitir que te
envolvas a fundo nesta relação sem compreenderes quem e como sou.
- Eu sei quem e como tu és!
- Não, não sabes! Só conheces aquilo que eu te permiti que visses. -
Desviou os olhos escuros para mim, ordenando-me que não pusesse em dúvida
o que afirmava. - Escuta, Heaven, estou a tentar alertar-te enquanto
ainda é possível afastares-te.
Abri a boca para falar e objectar, mas ele pousou os seus dedos sobre os
meus lábios.
- Porque achas que o Tony te ordenou que te mantivesses afastada de mim?
Acho muito difícil qualquer pessoa aguentar-se com o lado alegre e
optimista que só floresce em mim quando os dias se tornam mais compridos
e o calor regressa.
- Podemos sempre ir para sul! - exclamei, detestando aquele ar grave e
soturno nos olhos dele.
- Já experimentei fazê-lo. Passei Invernos na Florida, na Itália, viajei
por todo o mundo a tentar o que para os outros é tão fácil. No entanto,
levo os meus pensamentos invernosos comigo.
Sorriu, mas eu não me senti reconfortada. Não gracejava, apesar de o seu
tom de voz se esforçar por ser ligeiro. Por trás das suas pupilas havia
um negrume mais denso que o de um poço sem fundo.
- Mas a Primavera volta sempre, seguida pelo Verão -
186
apressei-me a observar. - Era o que eu costumava dizer a mim mesma quando
tinha frio e fome... Quando a neve atingia quase dois metros de altura e
estávamos a onze quilómetros de distância.
Os seus olhos doces e escuros acariciaram-me e inundaram-me de ternura ao
fixarem-se no meu rosto. O Troy serviu-me mais champanhe.
- Gostaria de te ter conhecido nessa altura, assim como ao tom e aos
outros. Poderias ter-me dado um pouco dessa tua força.
- Troy! Pára de falar assim! - exclamei indignada, assustando-me por não
compreender o que lhe ia no espírito e furiosa porque naquele momento ele
devia estar a beijar-me e a despir-me, não a falar. - Que estás a tentar
dizer-me? Que não me amas? Bem, não me arrependo de nada do que
aconteceu. Não lamentarei que me tenhas dado, ao menos, uma noite
contigo! E se pensas que podes assustar-me, estás completamente enganado.
Entrei na tua vida, Troy, bem dentro da tua vida. E se o Inverno te torna
triste e mórbido, nesse caso iremos atrás do sol, e nessas noites
apertar-te-ei com tanta força nos meus braços que nunca mais terás um
único pesadelo!
Ao estender os braços para ele, senti o coração prestes a rebentar, tal
era o receio de ele me rejeitar de novo.
- Não quero ouvir nada! - exclamei, premindo os meus lábios contra os
dele. - Não agora, por favor, não agora!

SEGUNDA PARTE

13

JANEIRO EM JULHO
Troy tentou contar-me a sua triste história do Inverno, de fraqueza e
morte. Porém, eu queria defender a nossa felicidade e paixão; portanto,
abafava-lhe as palavras beijando-o com paixão, vezes sem conta. Durante
três dias e três noites fomos amantes ardentes que não suportavam ficar
afastados um do outro mais do que uns minutos de cada vez. Não íamos além
dos jardins que rodeavam Farthy, desistíramos mesmo de cavalgar pelos
bosques. Escolhíamos caminhos seguros para os nossos cavalos, sem nunca
irmos demasiado longe, ansiosos por voltarmos à casa de pedra e à
segurança dos braços um do outro. Até que, certo fim de tarde, já a chuva
se afastara para o lado do mar e o Sol voltara a aparecer, finalmente, no
horizonte, o Troy e eu encontrávamo-nos no chão, em frente da lareira
acesa, abraçados. Dessa vez mostrou-se muito insistente.
- Tens de me escutar. Não tentes calar-me outra vez. Não quero arruinar a
tua vida só porque há uma sombra a pairar sobre a minha.
- A tua história deitará a perder o que agora existe entre nós?
- Não sei. Dependerá de ti.
- E estás disposto a correr o risco de me perder?
- Não, espero nunca te perder, mas se tiver de ser, assim será.
- Não! - exclamei, pondo-me de pé com um pulo e correndo para a porta. -
Deixa-me ter este Verão todo sem pensar no Inverno!
Saí de sua casa e penetrei no labirinto, atravessando a névoa fria que
começara a acumular-se nas passagens estreitas entre as sebes. Para minha
grande consternação, quase dei de caras com o pequeno grupo que se
encontrava em frente das escadarias da Mansão Farthinggale a descarregar
a bagagem da comprida limusina negra do Tony.
191
A Jillian e o Tony tinham voltado! Recuei rapidamente e voltei a entrar
no labirinto. Não queria que me vissem, naquele momento, a voltar de casa
do Troy.
Enquanto o motorista descarregava a bagagem, ouvi o Tony a censurar a
Jillian por não me ter avisado.
- Queres dizer que não telefonaste à Heaven ontem, como prometeste?
- É verdade, Tony. Pensei várias vezes em fazê-lo mas houve interrupções,
e além disso o nosso regresso inesperado far-lhe-á uma surpresa e dar-
lhe-á satisfação. Sei que, na idade dela, eu teria ficado encantada com
os lindos presentes que lhe trouxemos de Londres.
Mal desapareceram dentro de casa, corri para uma porta lateral, galguei
as escadas que conduziam aos meus aposentos e, uma vez ali, atirei-me
para cima da cama e rompi a chorar copiosamente, limpando
precipitadamente as lágrimas ao ouvir o Tony bater à porta e chamar pelo
meu nome.
- Já chegámos, Heaven. Posso entrar?
De certo modo sentia-me satisfeita por vê-lo de novo, tão sorridente e
animado a encher-me de perguntas sobre como eu estava, como me conseguira
manter satisfeita, ocupada e entretida.
Oh, as mentiras que disse teriam feito com que a minha avó desse várias
voltas na sua tumba. Cruzei os dedos nas costas. Quis saber pormenores
sobre a cerimónia da entrega de diplomas, repetiu que lamentava muito não
ter podido estar presente. Quis saber a que festas fora, com quem, se
conhecera algum jovem. Nem uma só vez se mostrou desconfiado com as
mentiras que me saíam da boca. Porque não desconfiaria que a minha
preferência recairia sobre o Troy? Teria esquecido todas as regras que me
impusera?
- Óptimo - disse. - Ainda bem que gostaste dos programas de televisão que
passaram este Verão. Eu acho a televisão uma chatice, mas enfim, não
cresci nos Willies. Dirigiu-me um sorriso esfuziante e carregado de
charme, embora parecesse trocista. - Espero que tenhas tido tempo para
ler alguns bons livros.
- Arranjo sempre tempo para ler.
Ao inclinar-se para me dar um abraço rápido antes de se dirigir para a
porta, os seus olhos estreitaram-se.
- Eu e a Jillian queremos entregar-te todos os presentes que escolhemos
cuidadosamente para ti. E agora é melhor limpares os sinais de lágrimas
da cara antes de mudares de roupa para a noite. - Eu não o enganara,
apenas quisera
192
convencer-me a mim mesma de que não continuava tão arguto como antes.
No entanto, não me perguntou por que motivo eu chorara quando, na
biblioteca, com a Jillian envergando um belo vestido comprido, sorria
para mim ao ver-me abrir os presentes vindos de Londres.
- Gostas de tudo? - perguntou a Jillian, que me trouxera roupa, roupa e
mais roupa. - As camisolas servem, não é?
- É tudo lindo e não há dúvida de que as camisolas servem.
- E que dizes aos meus presentes? - quis saber o Tony. Oferecera-me
bijutaria cara e extravagante e uma caixa pesada forrada de veludo azul.
- Hoje em dia já não fazem arti- gos de toilette como no tempo da rainha
Vitória. Esse conjunto de toucador é antigo e muito valioso.
Peguei cuidadosamente na caixa que continha um pesado espelho de mão em
prata, uma escova de cabelo, um pente, duas caixas de pó-de-arroz em
cristal com as tampas em prata trabalhada, e dois frascos para perfume a
condizer com o conjunto. Ao olhar para eles, recuei até aos meus dez
anos, a altura em que abrira, pela primeira vez, a mala da minha mãe. No
andar de cima, escondida no fundo de um dos meus armários estava a velha
mala que a minha mãe levara consigo para os Willies e, dentro desta, um
outro conjunto de toucador em prata, embora não tão completo como aquele
em que eu segurava naquele momento.
De repente, senti-me indefesa, aprisionada numa cilada do tempo. O Tony
já reparara, certamente, no conjunto de toucador que a Jillian me
oferecera. Eu não precisava de mais nenhum. Veio-me à mente um pensamento
extremamente peculiar, pois nesse instante apercebi-me de quão injusta
fora em não escutar o que o Troy tinha para me contar. Injusta para ele e
para mim.
Nessa mesma noite, a altas horas, muito depois do jantar e de a Jillian e
o Tony se retirarem, escapuli-me por entre o labirinto, até a casa do
Troy, encontrando este a andar de um lado para o outro na sala de estar,
com ar taciturno. Ao ver-me, brindou-me imediatamente com um sorriso
radioso de boas-vindas, o que me animou um pouco mais.
- Voltaram - informei, ofegante, fechando a porta e encostando-me a esta.
- Devias ter visto todas as coisas que me trouxeram. Tenho roupa
suficiente para uma dúzia de universitárias.
193
O Troy não pareceu escutar as minhas palavras, mas sim apenas aquilo que
eu deixara por dizer.
- Porque estás assim tão perturbada? - perguntou, estendendo-me os
braços, entre os quais corri a refugiar-me.
- Troy, estou pronta para ouvir o que tens a contar, seja o que for.
- Que foi que o Tony te disse?
- Nada. Fez-me algumas perguntas sobre como eu passara o tempo durante a
sua ausência, mas não se referiu a ti. Achei esquisito ele não perguntar
como tu estavas, se nos encontráramos. Foi quase como se não existisses,
o que me assustou.
O Troy premiu, por breves instantes, a testa contra a minha, com uma
expressão completamente impenetrável, mas agora que eu estava
preparadíssima para o ouvir, ele parecia relutante em principiar. Beijou-
me mais com meiguice do que paixão, e afagou-me os cabelos. Passou o
indicador pela minha face e depois, apertando-me contra ele, virou-se
para a sua ampla janela panorâmica que deitava para o mar. Rodeou-me a
cintura com o braço, de maneira a que as minhascostas ficassem bem
encostadas ao seu peito.
- Não me faças perguntas até eu chegar ao fim. Escuta-me com atenção,
pois o que eu vou dizer é muito sério.
Quando começou a falar, senti que cada molécula do seu corpo se esforçava
por obrigar-me a compreender o que até ele mesmo devia achar
inexplicável.
- Não é por não te amar, Heavenly, que insisto em dizer o que tenho a
dizer. Amo-te muito. Não se trata de arranjar uma desculpa para não casar
contigo. É apenas uma débil tentativa para te ajudar a encontrares uma
maneira de te salvares.
Eu não entendia; no entanto, já naquela altura sabia que tinha de ser
paciente e permitir-lhe que fizesse o que considerava estar "certo".
- Tu possuis o tipo de carácter e força que eu simultaneamente admiro e
invejo. És uma sobrevivente, e tudo aquilo que já me aconteceu mostra-me
que eu não o sou. Não te ponhas a tremer. O estilo de vida forma-nos e
molda-nos quando somos novos, e a mim não sobram dúvidas de que tanto tu
como o teu irmão tom demonstraram ser feitos de uma matéria muito mais
forte do que a minha.
Virou-me para si e fixou o olhar profundo, escuro e desesperado em mim.
Mordi a língua para não lhe fazer perguntas... Ainda era
194
Verão; o Outono ainda nem tingira as árvores de verde-intenso. O Inverno
continuava a parecer muito longe. "Eu estou aqui, se quiseres nunca mais
voltarás a passar uma noite solitária..." Mas não disse nada disto.
Deixa-me que te fale na minha meninice - continuou.
A minha mãe morreu pouco depois de eu fazer um ano. Ainda não completara
dois anos, o meu pai também morria, de modo que o único parente de que me
consigo lembrar na vida é o meu irmão Tony. Ele era o meu mundo, tudo
para mim. Adorava-o. Para mim, o Sol punha-se quando Tony saía pela
porta, e nascia quando voltava a entrar. Imaginava-o como um deus
dourado, capaz de me dar tudo o que eu desejasse, se o desejasse com
força suficiente. Ele tinha mais dezassete anos do que eu e ainda mesmo
antes de o meu pai morrer, assumira a responsabilidade de tudo fazer para
me ver feliz. Eu fui sempre uma criança doente. O Tony contou-me que a
minha mãe tivera um parto muito difícil comigo. Estive sempre à beira da
morte por causa de uma doença ou outra, fazendo o Tony passar muitos
momentos difíceis, ao ponto de vir de noite ao meu quarto para ver se eu
ainda respirava. Quando estava no hospital, o Tony visitava-me três ou
quatro vezes por dia, levando-me gulodices, brinquedos, jogos e livros.
Portanto, quando cheguei aos três anos, habituara-me a tê-lo quase
constantemente ao meu lado. Ele era meu. Não precisávamos de mais
ninguém. Até chegar aquele dia horrível em que ele conheceu a Jillian
VanVoreen. Nessa altura eu nada sabia sobre ela. O Tony manteve-a sempre
secreta em relação a mim. Quando, por fim, me comunicou que ia casar com
a Jillian, deu-me a entender que o fazia apenas para me poder dar uma mãe
nova e meiga. E também uma irmã. Fiquei simultaneamente entusiasmado e
zangado. Uma criança de três anos é capaz de se sentir muito possessiva
em relação à única pessoa de quem gosta na vida. Senti ciúmes. Mais tarde
contou-me, a rir, que eu fiz birras terríveis. É que eu não queria que o
Tony casasse com a Jillian, sobretudo depois de ela me conhecer. Eu
estava doente e de cama, de modo que o Tony achou que a Jillian ficaria
comovida com a imagem de um rapazinho tão frágil e lindo que iria
precisar verdadeiramente dela. Ele não viu o que eu vi. As crianças
parece terem um jeito especial para ver o que vai no íntimo dos
adultos... Eu percebi que ela estava aterrorizada pela ideia de tomar
conta de mim... Mas isso não a impediu de consumar o seu divórcio e
casar-se com o Tony, mudando-se para Farthy com a filha de doze anos.
Lembro-me
195
muito vagamente do casamento, não de pormenores, apenas de impressões.
"Eu sentia-me infeliz, e a tua mãe também. Tenho outras recordações da
Leigh a esforçar-se por ser uma irmã para mim e a passar muito do seu
tempo livre à minha cabeceira, tentando distrair-me. No entanto, o que
ficou gravado mais profundamente no meu cérebro foi o nítido
ressentimento da Jillian em relação a cada momento que o Tony me dedicava
a mim, não a ela.
O Troy falou durante uma hora, fazendo-me compreender toda a situação: a
solidão de um menino e de uma rapariguinha, que circunstâncias alheias à
sua vontade tinham atirado para junto um do outro, fazendo-os crescer
numa dependência mútua... até, um dia, algo de horrendo acontecer, algo
que ele jamais compreendera... A nova irmã, que ele aprendera a amar,
fugira.
- O Tony estava na Europa quando a Leigh fugiu daqui. Em resposta ao
apelo desesperado da Jillian, apanhou imediatamente o avião para cá. Sei
que contrataram detectives para descobrir o paradeiro da Leigh, mas esta
como que desaparecera da face da terra. Ambos contavam que ela fosse para
o Texas, onde viviam a avó e as tias, mas isso nunca chegou a acontecer.
A Jillian passava a vida a chorar e hoje sei que o Tony a culpou pelo
desaparecimento da tua mãe. Soube da morte da Leigh muito antes de tu cá
chegares com a notícia. Tive conhecimento no próprio dia em que
aconteceu, pois sonhei com isso e tu apenas vieste confirmar que o meu
sonho fora verdadeiro. São-no sempre.
"Depois de a Leigh partir, tive febre reumática e fiquei confinado à cama
durante quase dois anos. O Tony ordenou à Jillian que abdicasse das suas
funções sociais e dedicasse todo o seu tempo a cuidar de mim, apesar de
eu ter uma ama inglesa chamada Bertie que adorava. Preferia dez vezes
mais ficar sozinho com a Bertie do que com a Jillian. Esta assustava-me
com as suas longas unhas e os movimentos rápidos e descuidados. Eu sentia
a impaciência que ela tinha com um rapazito que não havia meio de se pôr
bom.
""Nunca estive doente um único dia da minha vida", costumava dizer-me.
Comecei a compenetrar-me de que era uma criança defeituosa e desajeitada,
que estragava a vida dos outros... E foi aí que os meus sonhos começaram.
Às vezes, eram maravilhosos, mas o mais frequente era transformarem-se em
pesadelos aterradores que me levavam a acreditar que jamais seria feliz,
saudável, que nunca teria nada
196
que os outros não tinham dificuldades em conseguir... Coisas vulgares que
todos esperam ter na vida assim como amigos, sair com raparigas, ficar
apaixonado e viver tempo suficiente para ver os próprios filhos crescer.
Comecei a sonhar com a minha própria morte... a minha própria morte em
jovem. E quando fiquei mais crescido e fui para a escola afastava-me
daqueles que tentavam travar amizade comigo pois receava que acabassem
por me fazer sofrer se alguma vez eu me tornasse demasiado vulnerável. Só
e diferente, fazia uma vida à parte... Sabia que esta não se prolongaria
por muito tempo. Não permitiria que ninguém se envolvesse na minha
infelicidade e saísse magoado, como acontecia comigo por saber que tinha
o destino contra mim.
Incapaz de me conter, exclamei:
- Troy, não me digas que um homem com a tua inteligência acredita que
tudo está nas mãos do destino?!
- Eu acredito naquilo que fui forçado a acreditar. Nada do que previ nos
meus pesadelos deixou alguma vez de se concretizar.
Ventos de Verão que sopravam do lado do oceano faziam entrar frio e
humidade pelas suas janelas abertas. Gaivotas e alcatrazes guinchavam
lamentosamente, enquanto as ondas embatiam na costa. Eu tinha a cabeça
apoiada no peito dele e ouvia, através do pijama fino, o som das batidas
do seu coração.
- Eram apenas sonhos de um menino doente - murmurei, já certa de que o
Troy alimentava aquelas certezas há demasiado tempo para eu naquela
altura as mudar.
Não deu mostras de me escutar.
- Ninguém jamais teve um irmão mais dedicado do que eu, mas no entanto
havia a Jillian, que utilizava a sua dor pela perda da filha para afastar
cada vez mais o Tony de mim. Ela teve de viajar para esquecer o seu
desgosto. Precisou de fazer compras em Paris, Londres, Roma e fugir às
recordações da Leigh. O Tony mandava-me postais e pequenos presentes de
todo o mundo, instilando em mim a decisão de um dia, assim que fosse
adulto, também ver o Sara, subir as pirâmides e daí por diante. A escola
não representava nenhum desafio real para mim. Atingia notas altas com
toda a facilidade. Portanto, os amigos que pudesse ter afastavam-se de
quem os professores consideravam uma criança-prodígio. Passei pela
faculdade sem chegar a ser aceite por quem quer que fosse. Era anos mais
novo e um embaraço para os rapazes mais velhos. As raparigas troçavam de
mim por não passar
197
de um miúdo. Ficava sempre de fora, a olhar, até que, aos dezoito anos,
formei-me com distinção em Harvard e fui ter com o Tony logo a seguir e
disse-lhe que ia conhecer o mundo tal como ele já fizera.
"Ele não queria que eu partisse. Implorou-me que esperasse até poder
acompanhar-me... Mas tinha negócios a tratar e o tempo urgia,
aconselhando-me a que me apressasse antes que fosse demasiado tarde.
Portanto, é natural que tenha montado os mesmos camelos, passeado sobre
as mesmas areias do Sara que o Tony e a Jillian e subido os mesmos
degraus agrestes das pirâmides; e descobri, para grande pesar meu, que as
viagens exóticas que eu fizera na minha imaginação, deitado na minha
cama, superavam, de longe, os melhores passeios.
Naquela altura, já a sua voz me prendera numa laçada apertada de medo.
Quando parou de falar, voltei a mim mesma com um safanão de sobressalto.
Sentia-me perturbada por tudo o que deixara por dizer. Ele tinha tudo à
sua disposição, uma fortuna enorme para partilhar, inteligência, boa
aparência... No entanto, permitia que sonhos infantis lhe roubassem a
esperança de um futuro longo e feliz! Era aquela casa, disse de mim para
mim, aquela casa enorme com os seus numerosos corredores ressoantes e os
quartos fantasmagóricos que ninguém usava. Não passava de um menino
solitário com muito pouco com que se ocupar. No entanto, como era isso
possível, quando os parentes Casteel, que tão pouco possuíam, sempre se
tinham apegado tenazmente à crença de que o futuro tudo tinha?
Ergui a cabeça e tentei dizer com beijos tudo o que não sabia como
expressar em palavras.
- Oh, Troy, ainda temos tanta coisa para viver... Se tivesses tido uma
companhia quando viajavas, terias achado todos os lugares tão fantásticos
como imaginavas. Tenho a certeza disso. Recuso-me a acreditar que todos
os sonhos de conhecer o mundo que o tom e eu alimentámos, enquanto
crescíamos, serão uma desilusão quando realizados.
Os olhos do Troy transformaram-se em poças escuras de floresta,
abrangendo o infinito dos tempos.
- Tu e o tom não estão condenados como eu. Têm o mundo à vossa
disposição. O meu será sempre ensombrado pelos sonhos que tive e se
tornaram realidade, e pelo meu conhecimento dos outros que estão para
acontecer. É que eu já sonhei com a minha morte muitas vezes. Já vi a
lápide que me porão, apesar de nunca ter conseguido ler mais do que o
198
meu nome gravado nela. Sabes, Heavenly, na verdade eu nunca fui destinado
a este mundo. Andei sempre doente e melancólico. A tua mãe era como eu...
Por isso nos tornámos tão importantes um para o outro. E quando ela
desapareceu, quando eu sonhei com a sua morte e soube que o meu sonho se
concretizara, não percebi porque continuei a viver. É que eu, tal como a
Leigh, anseio por coisas que não podem ser encontradas neste mundo. Tal
como ela, morrerei jovem. É verdade, Heaven, eu não tenho futuro. Como
posso aceitar que alguém tão jovem, brilhante e adorável como tu,
percorra este caminho sombrio que é o meu? Como posso casar contigo para
te fazer viúva? Como poderei dar-te um filho que em breve ficará órfão,
assim como aconteceu comigo? Queres mesmo amar um homem que está
condenado, Heaven?
Condenado? Estremeci e apertei-me contra ele, inesperadamente arrasada
pelo conhecimento devastador do tema sobre o qual a sua poesia falava:
mortalidade! Insegurança! O desejo de uma morte prematura porque a vida
era uma desilusão!
Mas agora eu estava ali!
O Troy nunca mais voltaria a sentir-se carente, só ou desiludido; comecei
a desabotoar-lhe o casaco com paixão desesperada, enquanto os meus lábios
se premiam contra os dele, até ficarmos os dois nus e transpirados,
completamente dominados pela sensualidade. Mesmo que lá fora caísse neve
em vez dos chuviscos ligeiros, sem dúvida a nossa ânsia ardente de nos
possuirmos um ao outro vezes sem conta o conduziriam ao futuro, até
ficarmos ambos tão velhos que a morte seria bem-vinda.
Nessa noite, apesar do regresso do Tony e da Jillian, fiquei junto do
Troy. Não permitiria que ele se deixasse mergulhar nas suas fantasias
mórbidas. Não me importaria com o Tony, ficaria com o Troy e convencê-lo-
ia a casar comigo, e ao irmão não caberia outro remédio senão aceitar. Na
manhã seguinte, acordei tarde, certa de que o Troy decidira, finalmente,
confiar em mim e casar comigo. Ouvia-o a remexer na cozinha. O aroma do
pão acabado de fazer fez-me tremer as narinas... Nunca me sentira tão
viva como naquele momento, tão bonita, feminina e perfeita. Fiquei
deitada com os braços cruzados sobre o peito, escutando o som dos
armários da cozinha a serem abertos e fechados como se fosse a Serenata
de Schubert. O bater da porta do frigorífico assemelhava-se ao bater de
pratos mesmo no tempo exacto. Aquele
199
arremedo de música punha-me os cabelos e pêlos em pé. Toda a vida
procurara o que sentia naquele momento e, de repente, dei comigo a chorar
de alívio por saber que a busca terminara.
O Troy ia casar comigo! Dava-me a possibilidade de colorir o resto da sua
vida com um arco-íris, em vez de cinzento. Fui até à cozinha, lânguida e
de olhos ensonados, cheia de uma felicidade que quase roçava o delírio. O
Troy, que estava diante do fogão, virou-se para mim e sorriu.
- Teremos de informar o Tony de que tencionamos casar, e depressa.
Senti um baque de pânico no coração; porém, naquele momento, a falta do
apoio do Tony já não me fazia diferença. Assim que o Troy e eu fôssemos
marido e mulher, tudo correria bem... para ambos.
Nessa mesma tarde atravessámos, de mãos dadas, o labirinto até à Mansão
Farthinggale e entrámos na biblioteca onde o Tony estava sentado à sua
secretária. Os últimos raios de sol da tarde entravam pelas janelas,
traçando faixas brilhantes no tapete colorido. O Troy telefonara-lhe a
avisar que íamos a caminho, e eu tive a impressão de lhe ver no rosto uma
prudência dissimulada e não um sorriso de verdadeiro prazer.
- Bem - observou o Tony ao ver-nos de mãos dadas -, ao que vejo não
obedeceram ambos às minhas recomendações e agora vêm ter comigo com ar de
pessoas que estão muito apaixonadas.
O Tony abrandou o meu entusiasmo, se não o do Troy, e eu soltei
nervosamente a minha mão da do Troy.
- Simplesmente aconteceu - sussurrei em voz débil.
- Vamos casar no meu aniversário - declarou o Troy desafiadoramente. - No
dia nove de Setembro.
- Calma aí! - ordenou o Tony com voz forte, levantando-se e apoiando a
palma das mãos sobre o tampo da secretária. Tu sempre me garantiste,
Troy, depois de seres adulto, que jamais casarias! E que não querias
filhos!
O Troy pegou-me na mão e puxou-me para junto dele.
- Não contava encontrar alguém como a Heaven. Ela tem-me dado esperança e
inspiração para continuar, apesar das minhas convicções.
Apertei-me contra o Troy, enquanto o Tony sorria de maneira muito
estranha.
- Imagino que nem valha a pena objectar e dizer que a Heaven é demasiado
jovem e os seus antecedentes demasiado diferentes dos teus para se tornar
uma esposa adequada.
200
Exactamente - disse o Troy firmemente. - Antes de as folhas de Outono
caírem, eu e a Heaven estaremos a caminho da Grécia.
Voltei a sentir um baque no coração. O Troy e eu faláramos apenas
vagamente numa lua-de-mel. Eu pensara nalguma estância onde pudéssemos
passar uns dias, seguindo depois para Radcliffe, onde iniciaria os meus
estudos universitários. Pouco depois, para meu espanto, encontravamo-nos
os três sentados num comprido sofá de cabedal a traçar planos para o
casamento. Jamais me passara pela cabeça que o Tony fosse consentir
naquele enlace, especialmente ao vê-lo sorrir-me repetidas vezes.
- A propósito, minha querida - disse o Tony com delicadeza -, Winterhaven
enviou-te algumas cartas sem remetente que lá chegaram para ti.
A única pessoa que me escrevia era o tom.
- Agora mandemos chamar a Jillian para lhe darmos a boa-nova.
Aquilo que se notava por trás do seu sorriso seria sarcasmo? Eu não
saberia dizer, pois o Tony não era pessoa que eu conseguisse ler.
- Obrigada por aceitares esta decisão tão bem, Tony. Sobretudo depois de
me falares do comportamento que eu tive quando me anunciaste o teu
casamento com a Jillian.
Nesse momento, a Jillian entrou na sala e sentou-se graciosamente numa
poltrona.
- Que novas são estas que ouvi?... Alguém vai casar?
- O Troy e a Heaven - explicou o Tony, virando um olhar firme para a
mulher, como que a ordenar-lhe que não dissesse algo que nos pudesse
alarmar. - Não são notícias maravilhosas para se receber ao fim de um dia
de Verão perfeito?
A Jillian não respondeu, não disse uma única palavra. Virou os olhos
azul-claros para mim e eu vi que estavam inexpressivos, alarmantemente
inexpressivos.
Os planos do casamento e as listas dos convidados foram feitos nessa
mesma noite, e a rapidez com que o Tony e a Jillian aceitaram uma
situação à qual eu acreditava irem ambos levantar grandes objecções,
deixou-me sem fala. Quando o Troy e eu demos um beijo de boas-noites em
frente do vestíbulo da frente, sentíamo-nos os dois emocionados com a
dinâmica dos planos do Tony.
- O Tony não é maravilhoso? - perguntou o Troy. Eu estava francamente
convencido de que ele levantaria todo
201
o tipo de objecções e, afinal, não houve nenhuma. Toda a vida quis sempre
dar-me aquilo que eu desejei.
Despi-me, alheada, e só depois é que me lembrei das duas cartas que o
Tony colocara em cima da minha pequena secretária. Ambas eram do tom, que
tivera notícias da Fanny.
"Está a viver numa casa modesta em Nashville e quer que eu te escreva a
pedir dinheiro. Podes crer que ela própria te telefonaria, mas perdeu a
agenda e tu sabes que nunca teve cabeça para memorizar números. Além
disso, mantém-se em contacto com o pai, sempre a implorar-lhe que lhe
mande dinheiro. Não quis voltar a dar-lhe a tua morada sem antes saber se
o permites. Ela poderá deitar tudo a perder para ti, Heavenly, tenho a
certeza. Quer apossar-se de parte do que tu tens e não hesitará em
consegui-lo pois parece que já gastou os dez mil dólares que os Wise lhe
deram."
Era o que eu mais receava: a Fanny não sabia gastar dinheiro.
A carta que me escreveu a seguir trouxe-me notícias ainda mais
perturbadoras:
"Não me parece que vá para a faculdade, Heavenly. Sem ti ao meu lado para
me incentivar, falta-me a vontade ou o desejo de continuar a estudar. O
pai está a sair-se muito bem em termos financeiros e nunca chegou a
terminar o liceu. Portanto, andei a pensar em entrar para o negócio dele
e casar assim que encontrar a rapariga certa. Aquela conversa de vir a
tornar-me presidente deste país era só uma brincadeira para te agradar.
Nunca ninguém votaria por um tipo como eu, com sotaque de pacóvio."
E nem uma palavra, nem mesmo um palpite, sobre o género de negócios em
que o pai andava metido!
Li a carta do tom três vezes. Comigo estava a acontecer tudo o que havia
de mais maravilhoso, enquanto o tom continuava preso numa cidade
insignificante qualquer no Sul da Jórgia, a desistir do sonho de se
tornar alguém importante... Não estava certo nem era justo. Eu tinha
dificuldade em acreditar que o nosso pai pudesse obter sucesso em algo
verdadeiramente importante. Ora, pois se eu o ouvira dizer que nunca lera
um livro até ao fim, além de que levava horas a fazer as contas mais
simples de somar. Que tipo de trabalho
202
rentável poderia fazer? O tom estava a sacrificar-se para o ajudar! Era
essa a conclusão a que eu chegava.
Voltei a correr pelas veredas tortuosas do labirinto que o luar
iluminava, acordando o Troy, sobressaltado ao chamá-lo pelo nome.
Despertou dos seus sonhos com ar juvenilmente confuso, antes de sorrir.
Que bom teres vindo - declarou com um ar ensonado.
- Desculpa acordar-te mas não podia esperar pela manhã. - Acendi o
candeeiro da mesa-de-cabeceira e entreguei-lhe as duas cartas do tom. -
Agradeço que as leias e depois me digas o que pensas.
Terminou as duas cartas em segundos.
- Não vejo nada de suficientemente alarmante para estares com essa
expressão desesperada. Basta que enviemos à tua irmã o dinheiro de que
ela precisa, e podemos ajudar o tom da mesma maneira.
- O tom não aceitará dinheiro de ti ou de mim. A Fanny ficará toda
contente, claro. Mas é com o tom que estou mais preocupada. Não o quero
enfiado lá em baixo a fazer aquilo em que porventura o nosso pai anda
ocupado, a desistir da sua vida para ajudá-lo a sustentar a sua nova
família.
"Troy - continuei, atrevendo-me a desiludi-lo com o meu novo plano -,
tenho de ir visitar a minha família antes do nosso casamento. - Agarrei-
lhe nas mãos e beijei-as repetidas vezes. - Compreendes, querido? Estou
tão feliz, corre-me tudo tão bem que tenho que fazer algo para os ajudar
antes de iniciar a vida maravilhosa que vou ter contigo. Sei que bastará
a minha visita para os ajudar, para lhes mostrar que continuo a
preocupar-me com eles, para fazer-lhes entender que podem sempre contar
comigo. E podem, não é, Troy? Não te importarás de que a minha família me
venha visitar depois de casarmos, pois não? Recebê-lo-ás bem na nossa
casa, não é?
Esperei que respondesse, fitando-o com olhos implorantes.
O Troy retirou as mãos do meio das minhas e puxou-me para cima dele, que
continuava deitado.
- Há dias que ando para te contar umas novidades minhas, Heaven. Espero
que me perdoes a demora mas não suportava a perspectiva de o nosso idílio
chegar ao fim, pois tinha a certeza de que, mal soubesses, irias a
correr. Beijou-me várias vezes antes de continuar. - Tive notícias
203
dos advogados. Querida, as novas que tenho para te dar são óptimas. Agora
poderás visitar toda a tua família, pois descobri o paradeiro do Lester
Rawlings! Vive em Chevy Chase, em Maryland, e tem dois filhos adoptados
chamados Keith e Jane!
Tive de me controlar para continuar a respirar, para não me deixar
sufocar por tudo o que estava a acontecer com tanta rapidez!
- Tem calma, tem calma - tranquilizou o Troy quando comecei a chorar. -
Há muito tempo, antes do casamento, para organizares tudo. Terei muito
gosto em ir contigo visitar os Rawling e ver os teus irmãos mais novos.
Depois, poderemos decidir sobre as medidas a tomar, se as houver.
- Eles são meus! - exclamei irracionalmente. - Tenho de voltar a tê-los
debaixo do meu tecto!
O Troy voltou a beijar-me.
- Mais tarde decides o que fazer. E depois de vermos o Keith e a Jane,
iremos visitar o teu irmão e o teu pai, e terminaremos a viagem passando
pelo lugar onde a Fanny vive. Entretanto mandemos-lhe alguns milhares de
dólares para ela se desenvencilhar até chegarmos.
Infelizmente, as coisas não iriam passar-se assim.
Enquanto eu dormia a são e salvo na minha cama na Mansão Farthinggale,
achando que a partir daquele momento, o Troy e eu devíamos reprimir a
nossa paixão até nos casarmos, o Troy adormeceu profundamente com todas
as janelas do seu quarto abertas. De repente, começou a soprar um vento
de nordeste, que depressa se transformou em chuva, granizo e rajadas
ciclónicas. O pico da tempestade só me acordou às seis da manhã. Ao olhar
pelas janelas do meu quarto, avistei a devastação que os relvados
impecáveis tinham sofrido, naquele momento juncados de árvores
desenraizadas, ramos partidos e outros detritos. E quando corri para a
casa de pedra do Troy, encontrei-o febril e congestionado, mal
conseguindo respirar.
Fiquei em verdadeiro pânico e telefonei ao Tony, que mandou imediatamente
uma ambulância buscar o Troy para o levar para o hospital. Na altura
precisa em que este se sentia mais feliz, era atacado por uma perigosa
pneumonia. Tê-la-ia feito recair sobre si propositadamente, incapaz de
aceitar o amor e a felicidade que merecia? Eu não permitiria que
semelhante situação voltasse a repetir-se. Quando casássemos, protegê-lo-
ia sempre dos seus receios piores, os quais parecia, naquele momento,
terem o condão de se transformar em realidade.
204
Faz-me a vontade - sussurrou o Troy no seu leito de hospital, dias mais
tarde. - O pior da pneumonia já passou e eu sei que estás ansiosa por
voltar a ver o Keith e a "Nossa" Jane. Não precisas de ficar por aqui
enquanto recupero as forças. Quando voltares, estarei completamente bem.
Eu não queria deixá-lo, apesar de o saber alvo dos melhores cuidados,
pois tinha uma enfermeira particular permanentemente junto de si, de modo
que protestei repetidas vezes. O Troy, porém, incentivou-me a partir,
asseverando-me de que ficaria bem, além de que algo me dizia que fosse
depressa, antes que se tornasse demasiado tarde.
- Vais deixá-lo! - exclamou o Tony quando lhe disse que planeava uma
pequena viagem. Não queria contar-lhe a verdade sobre a minha ida,
receando que tentasse deter-me. - Numa altura em que ele precisa tanto de
ti é que vais a Nova Iorque comprar o enxoval de noiva? Que palermice é
essa? Heaven, pensei que amavas o meu irmão! Prometeste ser a sua
salvação!
- Eu amo-o de verdade, mas o Troy faz questão em que eu não suspenda os
nossos preparativos de casamento, E já está fora de perigo, não está?
- Fora de perigo? - repetiu o Tony sombriamente. Não, ele nunca ficará
fora de perigo até ao dia em que o seu primeiro filho nascer; nessa
altura, talvez consiga deixar de acreditar que não viverá tempo
suficiente para deixar descendentes.
- O Tony gosta do seu irmão - sussurrei, estupefacta com a dor que lhe
lia nos olhos azuis. - Gosta dele de verdade.
- Sim, adoro-o. Tem sido um fardo sob a minha responsabilidade desde os
meus dezassete anos. Fiz tudo o que pude para dar ao meu irmão a melhor
vida possível. Casei com a Jillian, que era vinte anos mais velha, apesar
de me ter mentido sobre a sua idade, dizendo que tinha trinta e não
quarenta. Acreditei, com ingenuidade juvenil, que ela era o que na altura
fingia ser: a mulher mais meiga, bondosa e adorável do mundo. Só mais
tarde é que vim a descobrir que antipatizou com o Troy à primeira vista.
Mas nessa altura já era demasiado tarde para mudar de ideias, pois
apaixonara-me, apaixonara-me estúpida, louca e insanamente.
Aninhou a cabeça entre as mãos.
- Vai, Heaven, faz o que entenderes, já que isso acabará sempre por
acontecer. Mas lembra-te de uma coisa. Se queres mesmo casar com o Troy,
não tragas contigo nenhum dos
205
membros da tua família dos montes. - Levantou a cabeça e fixou em mim um
olhar de quem está a par de toda a verdade. - Sim, tolinha, sei tudo, mas
olha que não foi o Troy quem me contou. Não sou nem ingénuo nem estúpido.
Sorriu-me de maneira diabolicamente trocista. - E mais, querida menina,
sempre soube que te escapulias por entre o labirinto para ires ter com o
meu irmão.
- Mas... mas... - gaguejei, confusa, atrapalhada e cheia de embaraço. -
Porque não pôs um ponto final na situação?
Os lábios do Tony abriram-se num sorriso cínico.
- O fruto proibido é o mais apetecido. Eu estava esperançado de que o
Troy encontrasse, finalmente, em ti, uma jovem completamente diferente de
qualquer outra que já tivesse conhecido... Doce, fresca e
excepcionalmente bela... Uma boa razão para viver!
- Planeou que nos apaixonássemos? - perguntei, atónita.
- Tive esperanças nesse sentido, nada mais - respondeu o Tony com
simplicidade, parecendo, pela primeira vez, completamente honesto e
sincero. - O Troy é o filho que nunca poderei ter. É o meu herdeiro,
aquele que herdará a fortuna dos Tatterton e prosseguirá a tradição da
família. Espero ter, através dele e dos seus filhos, a família que a
Jillian nunca pôde dar-me.
- Mas o Tony não é demasiado velho! Ele estremeceu.
- Estás a sugerir que me divorcie da tua avó e case com uma mulher mais
nova? Se pudesse, fá-lo-ia, podes crer. Mas às vezes uma pessoa deixa-se
enredar de tal modo que fica sem saída. Sou o guardião de uma mulher
obcecada pelo seu desejo de permanecer jovem e gosto dela o suficiente
para não a largar num mundo onde eu sei que não sobreviveria duas semanas
sem o meu apoio. - Suspirou profundamente.
- Portanto, parte, rapariga. Certifica-te apenas de que voltas, pois se
não o fizeres, o que acontecer ao Troy fará recair sobre ti um sentimento
de culpa tão terrível para o resto da vida que talvez nunca mais consigas
voltar a ser feliz.

14 VENCEDORES E VENCIDOS

A segunda vez em que andei de avião na minha vida levou-me do aeroporto


Logan, de Boston, ao da cidade de Nova Iorque, mudando aí de aparelho
para seguir directamente para Washington. O meu verniz de sofisticação
era penosamente fino. Desejava transmitir uma impressão de frieza e
controlo quando, na verdade, por baixo dele dominava-me a ansiedade,
sentindo pavor de errar. A azáfama e o alvoroço de La Guardia
desorientavam-me. Quando cheguei à sala de embarque, os passageiros já
tinham começado a sair para o avião. Queria ir sentada num lugar junto da
janela, e fiquei muito grata a um jovem executivo que se levantou
prestimosamente para me oferecer o seu assento. Depressa percebi que o
lugar tinha um preço, pois fui alvo de numerosas perguntas e de um
convite para, mais tarde, encontrar-me com ele para tomar uma bebida e
fazer-lhe companhia.
- vou ter com o meu marido - disse-lhe em tom frio e proibitivo. - Além
disso, não bebo.
Pouco depois, o sujeito saiu do seu lugar e encontrou outra mulher jovem
e sozinha ao lado da qual foi sentar-se. Senti-me muito mais velha do que
quando, em Setembro último, saíra da Virgínia Ocidental.
Entre Setembro e Agosto, ainda não se passara verdadeiramente um ano, já
terminara o liceu, fora aceite na faculdade e encontrara um homem para
amar, um homem que precisava verdadeiramente de mim, que não me lamentava
como acontecera como o Logan. Olhei em volta, para os outros passageiros,
a maioria dos quais estava vestida com bem mais simplicidade que eu, no
meu fresco fato de calça e casaco azul-claro que custara mais do que os
Casteel costumavam gastar em alimentação num ano inteiro.
Muito acima do solo, tendo apenas as nuvens enfunadas a rodear-me, tive a
estranha sensação de despertar de um sono
207
encantado que principiara no dia em que chegara à Mansão Farthinggale.
Aquele é que era o mundo real, onde as mulheres de sessenta anos não
aparentavam ter trinta. Ninguém tinha um ar enfastiado ou impecavelmente
elegante, nem mesmo os que iam sentados junto de mim, na primeira classe.
Havia bebés a chorar na secção turística. E dei-me conta pela primeira
vez de que, desde que entrara na Mansão Farthinggale, não deixara nunca
de estar sob a influência daquele lugar. Os seus tentáculos tinham
chegado até mesmo a Wintherhaven, tornando-me ciente de que controlava
totalmente a minha vida. Fechei os olhos e pensei no Troy, rezando, em
silêncio, pela sua recuperação. Teria o Troy passado demasiado tempo da
sua vida naquela casa, onde imperavam a invenção e o comércio do "faz de
conta"? Naquele momento, longe da influência de Farthy, a sua casa de
pedra do lado de lá do labirinto não parecia mais do que um prolongamento
do que, para alguns, teria parecido um castelo de contos de fadas.
Quando cheguei a Baltimore, senti-me grata ao Tony, que telefonara para o
hotel a fazer-me reservas.
Portanto, não se tratava verdadeiramente de uma viagem não programada.
Não, quando tinha uma limusina com motorista à minha espera. Até naquela
jornada destinada a encontrar os meus irmãos há muito perdidos, o
controlo e a influência da Mansão Farthinggale continuavam a manipular os
cordelinhos da Heaven Leigh Casteel.
- Terás de ser tu mesma a providenciar a visita aos Rawlings - advertira-
me o Tony no começo daquela manhã -, mas tenho a certeza de que irás
encontrar muito ressentimento de dois pais que não quererão que faças
recuar até ao passado duas crianças que talvez se tenham ajustado muito
bem ao seu novo estilo de vida. E não te deves esquecer de que agora és
uma de nós, já deixaste de ser uma Casteel.
"Eu serei sempre uma Casteel", pensei, sustendo a respiração e
levantando-me da mesa para ir à cabina telefónica. Imaginava mentalmente
como iria ser. O Keith e a "Nossa" Jane ficariam encantados por me
voltarem a ver.
"Hev...lee, Hev...lee", gritaria a "Nossa" Jane com a sua vozinha
esganiçada, uma expressão de felicidade no pequeno rosto bonito. Depois
correria para os meus braços abertos e choraria de alívio ao ver que eu
não me esquecera deles.
Atrás dela, viria o Keith, muito mais lento e tímido, mas também me
reconheceria, sentindo-se igualmente emocionado e feliz.
208
Nada mais conseguia planear além disso. A luta legal para tirar o Keith e
a "Nossa" Jane aos pais adoptivos levaria, provavelmente, anos, segundo
os advogados dos Tatterton, e o Tony não tinha vontade de me ver ganhar a
causa. Dissera-me: "Não será justo impor ao Troy dois filhos que talvez
venham a antagonizá-lo, e tu sabes como ele é sensível. Quando te
tornares sua esposa, dedica-te a ele e aos filhos que te der."
Apertei o auscultador contra o ouvido, cada vez mais apreensiva por
ninguém atender ao sinal de chamada. Teriam ido de férias? Deixei o
aparelho tocar durante algum tempo, à espera que alguém atendesse.
Esperava ouvir a voz doce da "Nossa" Jane, não a do Keith, isto se este
continuasse a ser o rapazinho acanhado que eu conhecia tão bem.
Liguei três vezes para o número que o Troy me dera, mas não havia ninguém
em casa. Mandei vir mais uma fatia de tarte de mirtilo, que me fazia
lembrar as que a minha avó dos montes costumava fazer em raras ocasiões,
e engoli o terceiro café.
Às três da tarde saí do restaurante. Um elevador levou-me até ao quinto
piso do luxuoso hotel, precisamente o tipo de lugar requintado com que o
troy e eu costumávamos sonhar, deitados nas vertentes a planear o futuro
radioso que nos esperava.
Eu tencionava ficar apenas o fim-de-semana em Baltimore; no entanto, o
Tony achara absolutamente indispensável que eu ficasse numa suite de
quartos em vez de ocupar apenas um. Dispunha de uma linda sala de estar
e, a seguir a esta, havia uma cozinha completamente equipada onde tudo
era a preto e branco e muito reluzente.
As horas passaram. Eram dez da noite quando desisti dos Rawlings e liguei
para o Troy.
- Ora, ora - tranquilizou-me ele -, talvez tenham levado as crianças a
alguma saída especial que durasse o dia inteiro, e amanhã estarão de
volta. Claro que estou bem. Na verdade, sinto-me, pela primeira vez,
verdadeiramente entusiasmado com o futuro e tudo o que ele nos reserva.
Tenho sido um tolo, não tenho, querida? Acreditar que o destino planeou,
ainda mesmo antes de eu nascer, a minha morte para antes de chegar aos
vinte e cinco anos... Felizmente entraste na minha vida a tempo de me
salvares de mim mesmo.
O meu sono foi agitado por sonhos com o Troy. De vez em quando, via-o
ficar reduzido ao tamanho de uma criança e afastar-se para longe de mim,
chamando-me ao jeito do Keith: "Hev... lee, Hev... lee!"
209
No dia seguinte levantei-me cedo, aguardando impacientemente a chegada
das oito horas. E, dessa vez, ao ligar atendeu uma voz feminina.
- Queria falar com Mistress Rawlings, por favor.
- Quem fala?
Disse o meu nome, referindo que desejava visitar os meus irmãos, o Keith
e a Jane Casteel. O arquejo súbito que ouvi mostrou-me o choque sentido.
- Oh, não! - sussurrou a mulher, desligando logo a seguir.
Liguei de novo.
O telefone tocou durante algum tempo, até a Rita Rawlings atender.
- Por favor - implorou com voz chorosa -, não perturbe a paz de duas
crianças maravilhosamente felizes que se adaptaram com grande sucesso a
uma família e a uma vida novas.
- Eles são do meu sangue, Mistress Rawlings! Foram meus muito antes de
lhe pertencerem!
- Por favor, por favor - suplicou. - Sei que os ama. Lembro-me muito bem
da sua expressão no dia em que os fomos buscar e compreendo como deve
sentir-se. Nos primeiros tempos, quando vieram viver connosco, era pelo
seu nome que estavam sempre a chamar, lavados em lágrimas. Mas já há mais
de dois anos que não choram por si. Já nos tratam por mãe ou mamã a mim,
e papá ao meu marido. Estão óptimos, física e mentalmente... Mando-lhe
fotografias, relatórios de saúde e da escola, mas, por favor, imploro-
lhe, não lhes venha lembrar as agruras por que passaram quando viviam
naquela cabana miserável nos Willies.
Foi a minha vez de implorar.
- Mas a senhora não entende, Mistress Rawlings! Tenho de os ver outra
vez! Preciso de ter a certeza de que estão felizes e com saúde, caso
contrário, eu própria não conseguirei ficar em paz. Não passou um único
dia da minha vida sem que desejasse encontrar o Keith e "Nossa" Jane.
Odeio o nosso pai pelo que fez... É um ódio que me consome dia e noite.
Tem de me deixar vê-los, mesmo que eles não me vejam a mim.
A relutância expressa na resposta demorada teria feito desistir alguém
menos persistente do que eu.
- Muito bem, já que insiste tanto. Mas tem de me prometer que se manterá
escondida dos meus filhos. E, se depois de os ver, não lhe parecerem
felizes, saudáveis e seguros,
210
o meu marido e eu faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para
remediar essa situação.
Nesse momento, percebi que tinha ali uma mulher forte e determinada,
decidida a conservar a sua família intacta e a lutar com todas as armas
para manter as crianças consigo.
Passei o sábado inteiro a percorrer as lojas, à procura dos presentes
certos para dar à Fanny, ao tom e ao avô. Cheguei mesmo a comprar vários
objectos para o Keith e para a "Nossa" Jane, que juntaria aos outros que
guardava para o dia em que voltássemos a formar uma só família de novo.
Domingo de manhã, acordei cheia de esperança e grande entusiasmo. Às dez
horas, a limusina com motorista colocada à minha disposição parou
discretamente em frente de uma igreja anglicana de desenho quase
medieval. Eu sabia exactamente onde as duas crianças que eu ansiava ver
estariam: na sua aula de catequese. A Rita Rawlings dera-me instruções
precisas sobre como encontrar a sala de aulas e o que fazer uma vez lá.
"Mas se os ama, Heaven, cumpra a sua promessa. Pense nas necessidades
deles, não nas suas, e mantenha-se escondida."
O interior da igreja, com os seus numerosos corredores compridos e
recurvos, estava frio e escuro. Pessoas bem vestidas sorriram-me. A certa
altura, num dos corredores de trás, fiquei confusa e sem saber para onde
virar... Mas nessa altura ouvi crianças a cantar. E pareceu-me
distinguir, acima de todas as outras vozes, a da "Nossa" Jane, como
quando tentava esforçadamente imitar o timbre de soprano de Miss Marianne
Deale quando esta nos entoava cânticos na única igreja, protestante,
existente em Winnerrow.
As vozinhas que cantavam guiaram-me até elas.
Detive-me ao chegar diante da porta, e abri uma pequena fresta, escutando
o canto litúrgico que aquelas crianças entoavam com tanto entusiasmo,
acompanhadas apenas ao piano. Não tardei a entrar numa vasta sala onde,
pelo menos, umas quinze crianças, com idades aproximadas entre os dez e
os doze anos, estavam de pé, de pautas de música na mão, a cantar
sonoramente.
As crianças de Winnerrow ter-se-iam sentido envergonhadas no meio daquele
agrupamento vestido com bonita roupa de Verão em tom pastel.
As duas que eu procurava encontravam-se sentadas ao lado uma da outra, o
Keith e a "Nossa" Jane, ambos a segurarem no mesmo livro de cânticos,
ambos a cantar com expressão
211
extasiada, mais pelo puro deleite de assim se exprimirem do que por
fervor religioso, pensei, enquanto eu me deixava ficar no mesmo sítio a
chorar silenciosamente, apesar de me saltar à vista a sua boa saúde e
prosperidade. Òh, graças a Deus, eu vivera tempo suficiente para os
voltar a ver.
Pernas e braços, outrora delgados, mostravam-se agora fortes e
bronzeados. Rostos empalidecidos e miudinhos tinham evoluído para outros
radiantes, cheios de brilho, de lábios que agora sabiam sorrir em vez de
fazerem beicinho, descaídos por causa da fome e do frio. Oh, vê-los como
se encontravam naquele momento desanuviou todas as sombras que eu
mantivera deliberadamente na minha cabeça.
O cântico chegou ao fim. Desloquei-me silenciosamente para trás da coluna
grossa e quadrada ao lado da qual me deveria sentar para passar
despercebida.
As crianças sentaram-se e guardaram os livros de cânticos na bolsa presa
às costas das cadeiras da frente, cadeiras que estavam vazias. As minhas
lágrimas foram contidas por um sorriso, ao ver a "Nossa" Jane ajeitar
cuidadosamente o lindo vestido branco e rosa. Deu-se a grandes trabalhos
para fazer com que a saia curta cobrisse os joelhos bronzeados, que
mantinha unidos à maneira das meninas bem-educadas. O cabelo brilhante
estava artisticamente penteado de modo a cair quase até aos ombros antes
de subir para o alto onde ficava preso, pendendo depois em lindos
caracóis naturais. E, ao voltar a cabeça de perfil, reparei que usava uma
franja impecavelmente cortada. O seu cabelo fora alvo de cuidados
profissionais que o meu e o da Fanny jamais haviam conhecido aos dez
anos. Oh, como estava linda! O rubor de saúde e vitalidade quase a faziam
brilhar!
O Keith, sentado ao seu lado, olhava solenemente para a professora que
começara a contar a história de David, o menino que matara um gigante com
uma fisga. A pedra assim atirada atingira o seu alvo, porque o poder do
Senhor estava em David, não em Golias. Fora sempre uma das minhas
histórias preferidas da Bíblia. Porém, esqueci-me de a escutar ao passear
o olhar pelo Keith, que envergava um elegante casaco azul de Verão e
calças brancas compridas. Uma camisa branca e uma pequena gravata azul
completavam o conjunto. Tive de me levantar várias vezes e aproximar-me
para melhor poder vê-los. O Keith irradiava o mesmo tipo de boa saúde e
vitalidade que a "Nossa" Jane.
Os anos que tinham decorrido desde a última vez em que os vira haviam
acrescentado alguns centímetros à altura de
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ambos e uma expressão mais madura e característica aos seus rostos. No
entanto, tê-los-ia reconhecido em qualquer lugar, pois há aspectos que o
tempo não muda. O Keith olhava constantemente para a irmã mais nova para
ver se esta estava satisfeita e bem, demonstrando uma considerável
preocupação masculina em relação ao seu bem-estar, enquanto a "Nossa"
Jane conservava os mesmos maneirismos infantis que tanta atenção lhe
haviam merecido no passado. Era pouco provável que os abandonasse.
Oh, como a avó teria ficado contente se soubesse que a sua beleza não
ficara permanentemente sacrificada nos montes, já que a Annie Brandywine
revivia na "Nossa" Jane! E o Keith, ao lado da irmã, parecia-se mais com
o avô do que com a Sarah e a sua família grande e ossuda. Eu, em tempos,
achara que as olheiras escuras por baixo dos olhos de ambos jamais
desapareceriam e que os pequenos rostos pálidos nunca teriam o aspecto
que apresentavam naquele momento, felizes da vida.
Várias das crianças sentadas à minha frente voltaram-se para me mirar com
curiosidade. Aguardei, de respiração suspensa, que vissem tudo o que
desejavam ver e se virassem de novo para escutar a sua professora. Se
algum dos meus irmãos mais novos olhasse na minha direcção, tencionava
esconder-me rapidamente. Rezei para que ninguém fosse indagar sobre a
minha permanência ali.
A história de David e Golias chegou ao fim. Assisti ao período de
perguntas e respostas que se seguiu e ouvi a vozinha doce do Keith
responder, hesitantemente, só depois de lhe dirigirem uma pergunta
directa. A "Nossa" Jane, porém, acenava constantemente a mão pequena e
bem torneada, ansiosa por apresentar a sua pergunta ou resposta. "Como é
que uma pedrinha tão pequena pôde matar um gigante tão grande?" Não ouvi
a resposta da professora.
Pouco depois, as crianças levantavam-se e as meninas vaidosas ajeitaram
as roupas. A "Nossa" Jane agarrou-se mais firmemente à sua bolsinha
branca.
O tagarelar excitado das crianças que se retiravam poderia ter abafado o
que a "Nossa" Jane disse a seguir, mas os meus ouvidos estavam ávidos da
sua voz.
- Despacha-te, Keith! - urgiu. - Hoje à tarde temos a festa de anos da
Susan e não podemos chegar atrasados.
Segui as duas crianças adoradas a uma certa distância e vi, cheia de
ciúmes, a "Nossa" Jane atirar-se para os braços da Rita Rawlings. Um
pouco mais atrás da mulher, estava o
213
Lester Rawlings, gordo e careca como sempre. Pousou uma mão possessiva no
ombro do Keith antes de virar a cabeça e olhar directamente para mim.
Haviam-se passado mais de três anos desde que me vira, encostada à parede
daquela cabana no meio dos montes, suja, andrajosa e descalça. Eu estava
muito diferente daquela maltrapilha; no entanto, deu mostras de me
reconhecer. Talvez tenham sido as lágrimas que me escorriam pelo rosto a
trair-me. Disse algo à mulher, que se apressou a mandar entrar as
crianças para dentro de um Cadillac, sorrindo-me em seguida com simpatia
sincera.
- Obrigado - agradeceu simplesmente.
Vi, pela segunda vez na minha vida, aquele advogado e a sua mulher
afastarem-se num Cadillac, levando consigo duas partes de mim mesma.
Fiquei a olhar para eles até os chuviscos se evaporarem em névoa e o sol
aparecer, quente e brilhante, e um arco-íris dar a curva no céu; somente
então é que me dirigi para o automóvel que me aguardava. "Ainda não,
ainda não", advertiu-me uma vozinha interior. Podes reclamá-los mais
tarde.
Ainda assim, ordenei ao motorista que seguisse o Cadillac azul-escuro,
pois desejava ver a casa onde os Rawlings viviam. Dez minutos depois, o
automóvel da frente virou para uma rua tranquila, ladeada de árvores, e
parou em frente de um longo carreiro curvo.
- Pare do outro lado da rua - disse ao motorista, achando que a sombra
densa e os troncos grossos das árvores ocultariam a limusina, caso os
Rawlings quisessem ver se eram seguidos. Aparentemente não o fizeram.
A casa onde moravam era agradável, ao estilo colonial, grande mas não
imensa como a Mansão Farthinggale. A tijoleira vermelha era antiga e
estava parcialmente coberta de hera, e os relvados apresentavam-se bem
cuidados, com flores e arbustos em plena floração estival. Na verdade,
quando comparada com aquela barraca torta e empoleirada no alto de uma
vertente montanhosa, era um palácio. Eu não tinha razão para lamentar. Os
meus irmãos estavam muito melhor, muito melhor. Não precisavam de mim.
Não, naquele momento. Há muito que tinham deixado de falar no meu nome,
de ter pesadelos. Óh, os gritos que eu costumava ouvir, vindos do catre
no chão, dados pelas duas crianças pequenas que um dia considerara
minhas!
"Hev... lee, Hev... lee, vais a algum lado?", perguntavam, após o
abandono da mãe, implorando-me, com os olhos olheirentos, que nunca os
abandonasse.
214
- Agora deseja voltar para o hotel, miss? - perguntou meu motorista meia
hora depois.
Não conseguia arranjar forças para me ir embora.
Obedecendo a um impulso, abri a porta e saí para o passeio sombreado.
Espere por mim aqui. Voltarei daqui a pouco.
Não podia ir-me embora sem ver e saber mais, sobretudo depois do
sofrimento que passara desde o dia em que nosso pai vendera os seus dois
filhos mais novos.
Esgueirei-me furtivamente para dentro do quintal lateral, onde havia
equipamento recreativo montado, nitidamente, para uso das crianças.
Entrei silenciosamente num amplo pátio lajeado onde havia cadeiras e uma
mesa protegida por dois chapéus-de-sol colocados o mais próximo possível
da piscina, em forma de rim. Mantive-me o mais rente que pude à casa,
ficando ao nível das várias janelas que deitavam para as traseiras, e não
tardei a ser compensada pelo som de vozes infantis que saía de uma delas,
aberta.
Baixei-me rapidamente atrás de potes de barro contendo arbustos e olhei
pelas altas janelas de vidro que deitavam para o que não podia deixar de
ser uma espécie de solário interior.
A bela divisão, que o sol inundava, tinha cadeiras e um sofá macio, com
os almofadões gordos cobertos por um lindo tecido de chita às flores.
Plantas de interior pendiam em profusão do tecto em vasos de macramé e o
chão estava coberto por belos tapetes azuis da cor do mar. O Keith e a
"Nossa" Jane encontravam-se sentados no tapete maior, a brincar com
berlindes que tinham disposto no interior do principal centro oval do
tapete. Ambas as crianças tinham tirado os seus fatos de ir à igreja e
envergado outros, de festa. O modo meticuloso como se moviam dava a
entender que tentavam manter-se limpos e arranjados para o aniversário
para o qual iam.
Não pude deixar de ficar a observá-los.
A saia franzida e aos folhos da "Nossa" Jane, em organdi branco, caía de
um corpete alto às pregas e apertado à direita do sítio onde os folhos se
juntavam à parte de cima, de onde pendiam fitas em cetim verde-pálido que
iam até à bainha da saia. Rosas minúsculas formavam um arranjo de onde as
fitas saíam. A "Nossa" Jane dera-se a grandes cuidados para dispor
elegantemente a saia à sua roda. O seu cabelo ruivo-dourado fora escovado
para trás e apanhado no alto da cabeça, onde se encontrava preso com uma
fita do mesmo
215
cetim, em forma de laço, na ponta de cujas extremidades, a caírem-lhe
pelas costas, se via uma rosinha igual às do vestido. Eu nunca vira um
vestido de menina tão bonito e que tão bem assentava a quem o usava do
que aquele que a "Nossa" Jane envergava naquele momento.
Mesmo em frente da minha irmãzinha, sentado de pernas cruzadas e calçando
uns reluzentes sapatos brancos, estava o Keith, envergando um fato de
linho branco e com um laço de cor exactamente igual à do cetim que
enfeitava o vestido e o cabelo da "Nossa" Jane. O cuidado e a reflexão
que tinham sido dados àquelas roupas saltava à vista.
Quando, finalmente, consegui desviar os olhos dos dois, durante tempo
suficiente para reparar no interior da sala, vi uma mesa comprida com um
pequeno computador em cima. Perto, estava outra mesa, com uma impressora.
Ouvia-se música de um rádio. Num canto estava um cavalete, uma mesa e um
tamborete. Eu sabia para quem se destinavam os apetrechos de pintura...
Eram para o Keith, que herdara o talento artístico do avô! Qualquer tinta
que o Keith deixasse cair ou pingasse, sujaria apenas mosaicos que podiam
ser limpos com toda a facilidade. E por todo o lado se viam bonecas, como
se a "Nossa" Jane não estivesse a atingir a maturidade tão depressa como
as outras meninas de dez anos.
Nesse momento, para meu terror, no parapeito da janela à minha frente
apareceram duas patinhas e o focinho amistoso de um cachorro. Ao ver-me
de gatas, com o nariz quase esborrachado contra o vidro, pôs-se a abanar
a cauda furiosamente. Ganiu, abriu a boca para ladrar duas vezes... e as
crianças, que eu não contara que virassem a cabeça na minha direcção,
fixaram os olhos esbugalhados de surpresa directamente em mim!
Fiquei sem saber que fazer!
O cachorro meneante começou a ladrar mais alto e eu, receosa de que os
Rawlings se assustassem, pus-me rapidamente de pé e entrei pela porta,
que não estava fechada à chave.
Nem o Keith nem a "Nossa" Jane falaram.
Pareciam paralisados, ali sentados no chão, em frente do círculo de
berlindes coloridos.
Já era demasiado tarde para me afastar sem ser vista. Tentei sorrir
confiantemente.
- Está tudo bem - disse com suavidade, detendo-me no umbral da porta. -
Não farei nada que perturbe a vossa vida. Só queria voltar a ver os dois.
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Continuaram a olhar fixamente para mim, com os lábios rosados
entreabertos e os olhos muito abertos a ficarem cada vez mais escuros, os
cor de turquesa da "Nossa" Jane a ensombrarem-se e os de tom de âmbar do
Keith a adensarem-se. O cachorro saltitava à minha volta, cheirou-me os
calcanhares e depois levantou-se nas patas traseiras e pousou as da
frente na minha saia. Os meus irmãozinhos pareciam aterrorizados. A
expressão de ambos condoeu-me.
Falei com uma suavidade imensa, pois o que menos desejava era assustá-
los.
- Keith, "Nossa" Jane, olhem para mim. Certamente não se esqueceram de
quem eu sou, pois não?
Sorri, ainda antevendo os gritos de alegria que soltariam quando me
reconhecessem, ouvindo-os exclamar, como tantas vezes me acontecera em
sonhos: "Hev...lee! Voltaste! Vieste salvar-nos!"
Porém, nenhum dos dois proferiu tais palavras. O Keith pôs-se em pé
devagar, um tanto desajeitadamente, enquanto as pupilas dos seus olhos
cor de âmbar iam aumentando a cada batida do coração. Olhou para a
"Nossa" Jane com preocupação, ajeitou o nó do seu laço verde, fechou os
lábios entreabertos, olhou novamente para mim e em seguida passou a mão
pelo rosto. Toda a vida tivera aquele hábito quando se sentia
desorientado ou perturbado.
A "Nossa" Jane não se deu a semelhantes hesitações. Pôs-se de pé com um
salto, espalhando os berlindes por tudo quanto era sítio.
- Vá-se embora! - gritou, abraçando-se ao Keith com força. - Não a
queremos aqui! - Abriu a boca para gritar.
Tinha dificuldade em acreditar no medo que ambos demonstravam, no facto
de nenhum dos dois parecer reconhecer-me. Pensavam que eu era uma
desconhecida, talvez uma vendedora de porta a porta, e estavam avisados
de que não deveriam deixar entrar quem quer que fosse.
Estupefacta, comecei a falar e a dizer-lhes o meu nome. O nó que sentia
na garganta enrouqueceu-me a voz, a tal ponto, que esta saiu-me grossa e
esquisita, quase irreconhecível.
O rosto adorável da "Nossa" Jane ficou alarmantemente branco. Surgiu nele
uma expressão de medo e histeria. Por um momento pavoroso, receei que
vomitasse, como era frequente acontecer-lhe no passado. O Keith, a olhar
para a irmã, também empalideceu. Fitou-me com os olhos a lançarem
pequenos lampejos de ira. Saberia quem eu era? Tentaria recordar-se?
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- Mamã! - gritou a "Nossa" Jane em voz aguda e fina apertando-se contra o
Keith. - Papá...!
- Chiu! - adverti-a, levando o indicador aos lábios. Não precisas de ter
medo. Eu não sou uma desconhecida, não vos farei mal. Vocês conheciam-me
muito bem, quando vivíamos nos montes. Lembram-se dos Willies?
Juro por Deus que a "Nossa" Jane empalideceu ainda mais. Parecia à beira
de um desmaio.
As minhas emoções eram um turbilhão. Vacilei, sem saber que fazer. Não
fora aquela a reacção que esperara neles. Contava que ficassem encantados
por me ver!
- Faz muito tempo, éramos uma família que vivia nos montes e íamos e
vínhamos a pé para a escola aos dias da semana, através dos bosques. Ao
domingo, íamos à igreja. Tínhamos galinhas, patos, gansos e, de vez em
quando, uma vaca. E nunca nos faltavam cães e gatos. Sou eu, a vossa irmã
Hev...lee! Só queria ver-vos e saber que estão felizes.
Os gritos da "Nossa" Jane tornaram-se ainda mais altos-e mais cheios de
pânico!
O Keith, antes de se aproximar, colocou protectoramente a irmã atrás de
si.
- Não a conhecemos - declarou com a voz rouca e insegura de adolescente.
Foi a minha vez de ficar pálida. Senti as suas palavras como bofetadas...
Uma, duas, três...
- Manda-a embora! - berrou a "Nossa" Jane. Era o pior momento da minha
vida.
Tivera umas saudades loucas deles durante anos e anos, sonhara encontrá-
los e salvá-los, e agora não me queriam.
- Vou-me embora - apressei-me a dizer, recuando pela porta aberta. -
Cometi um erro terrível, desculpem. Afinal nunca vi nenhum dos dois na
minha vida!
Deitei então a correr o mais depressa que os meus saltos altos permitiam,
dirigindo-me para a limusina que esperava e, assim que me atirei para
cima do assento de trás, comecei a chorar. A "Nossa" Jane e o Keith não
tinham ficado a perder no dia em que o nosso pai os vendera. Ambos tinham
saído vencedores nesse jogo de sorte ou azar.
218

15

APOIO FAMILIAR
Não suportaria passar nem mais uma hora naquela cidade; portanto, fui
buscar as minhas coisas ao hotel, e a limusina levou-me até ao aeroporto
onde apanhei o avião que estava de saída para Atlanta. Agarrava-me
desesperadamente ao passado, do qual sempre desejara fugir... Não queria
começar a minha nova vida com o Troy descobrindo que perdera a minha
família! Iria ter com o tom e encontraria junto dele as boas-vindas por
que ansiava e o irmão gentil que me prometera sempre nunca deixar de ser
o meu mano do coração.
O telefone tocou três, quatro, cinco vezes antes de uma voz conhecida
atender; por um momento agonizante achei que o meu pai poderia ver-me
através da linha telefónica. Fiquei petrificada na cabina.
- Gostaria de falar com o tom Casteel - consegui, por fim, sussurrar com
voz enrouquecida e tão diferente que fiquei confiante de que o homem que
eu odiava não reconheceria a sua primogénita, da mesma maneira que nunca
fizera por acolher a minha presença na sua vida com qualquer afecto.
Quase podia ver o seu rosto de índio a hesitar e, por um instante
dilacerante, pensei que perguntasse: "És tu, Heaven?"
Mas não o fez.
- Pode dizer-me quem fala?
Ora, ora! Alguém andava a ensinar gramática e boas maneiras ao meu pai!
Engoli em seco e quase sufoquei.
- Uma amiga.
- Só um momento, por favor - disse, como se o fizesse centenas de vezes
por dia para o tom.
Ouvi-o pousar o auscultador, ouvi os seus passos numa superfície dura, e
depois a sua voz trovejar com o sotaque característico dos pacóvios:
- tom, tens mais uma dessas amigas anónimas ao telefone.
219
Preferia que lhes dissesses para deixarem de ligar para aqui. Não fiques
pendurado na conversa mais do que cinco minutos. Temos trabalho a fazer.
As batidas dos pés do tom a correr chegaram nitidamente aos meus ouvidos,
apesar dos muitos quilómetros que nos separavam.
- Viva! - cumprimentou ofegante.
Fiquei surpreendida com a mudança que notei na voz dele. Parecia-se
imenso com a do nosso pai. Tive dificuldade em falar, e o tom, ao ver que
eu hesitava, impacientou-se.
- Sejas tu quem fores, acho melhor que fales, pois só posso dispor de um
minuto.
- Fala a Heaven... Por favor não digas o meu nome em voz alta, para que o
pai não perceba que sou eu.
O tom susteve a respiração, surpreendido.
- Eh, estupendo! Fantástico! Caramba, estou tão contente por te ouvir! O
pai saiu para o pátio, para junto da Stacie e do bebé, por isso não
preciso de falar baixo.
Não sabia que dizer.
O tom preencheu o espaço de constrangimento.
- Heavenly, é um puto muito giro. Tem o cabelo preto, os olhos castanho-
escuros, sabes, o tipo de filho que a mãe queria dar ao pai...
Calou-se abruptamente e eu percebi logo que ele ia acrescentar: "É a
imagem cuspida e escarrada do pai." Em vez disso, perguntou:
- Não dizes nada?
- Que bom o pai conseguir sempre o que quer - comentei com amargura. - Há
pessoas que têm essa sorte.
- Vá, Heavenly, pára com isso! Não sejas injusta! O miúdo não é culpado
de nenhum crime. É uma gracinha, até mesmo tu terias de chegar a essa
conclusão.
- Que nome pôs o pai ao seu terceiro filho? - perguntei por pura vingança
malévola.
- Eh! Detesto esse teu tom de voz frio. Porque não esqueces o que ficou
para trás, tal como eu fiz? O pai e a Stacie deixaram o nome do bebé ao
meu cuidado. Lembras-te dos nossos aventureiros preferidos, já lá vão
tantos anos? Walter Raleigh e Francês Drake? Pois bem, temos um Walter
Drake. Chamamos-lhe Drake.
- Lembro-me - retorqui com voz gélida.
- Acho um nome magnífico: Drake Casteel!
Mais mercadoria para o pai vender, foi o pensamento malévolo que me
passou pela mente antes de mudar rapidamente de assunto.
220
Tom, estou em Atlanta. Tenciono alugar um carro e ir até onde moras, mas
não quero encontrar-me com o pai.
- Que bom, Heavenly, que bom! - exclamou, entusiasmado
- Não quero ver o pai quando chegar. És capaz de fazer com que ele não
esteja em casa?
O tom prometeu fazer-me a vontade, mantendo o pai afastado de casa para
que não nos encontrássemos, mas notei que estava magoado. Depois, deu-me
instruções pormenorizadas sobre como chegar à pequena cidade onde vivia,
a cerca de trinta e dois quilómetros do lugar onde um avião me deixaria,
ao sul da Jórgia.
- tom - trovejou o nosso pai à distância. - Eu disse cinco minutos, não
dez!
- Agora tenho de ir - disse o tom cheio de pressa. 'Tou muito feliz por
vires cá, mas já te vou dizer que fizeste uma grande asneira em empurrar
o Logan pr'a fora da tua vida e pôr esse tal Troy no seu lugar! Ele na' é
dos nossos. Esse Troy de que me falaste nas cartas nunca te compreenderá
como o Logan, ou amará metade sequer.
Retomara o seu dialecto provinciano, como sempre acontecia quando se
exaltava. Corrigi-o sem demora. Não fora eu a empurrar o Logan para fora
da minha vida, mas sim este a mudar de ideias.
- Até breve, Heavenly... Vemo-nos amanhã de manhã... por volta das onze
horas.
E desligou sem mais delongas.
Passei essa noite em Atlanta e no dia seguinte, de manhã bem cedo,
aluguei um carro e segui para sul, recordando tudo o que, nas cartas do
tom, me devia ter alertado: "Sempre pensei que nunca nada se interporia
entre ti e o Logan. É de viveres nessa casa rica, tenho a certeza.
Ficaste diferente, Heavenly! Pois se já nem escreves nem falas como
antigamente!"
"Tu não és a Fanny", escrevera certa vez. "As raparigas como tu
apaixonam-se só uma vez e nunca mudam de ideias."
Que pensaria ele que eu era? Um anjo? Uma santa sem fraquezas? Eu não era
nem uma coisa nem outra; tinha a cor de cabelo errada. Era um anjo negro,
uma Casteel irremediavelmente reles! A filha do meu pai! Ele é que me
fizera assim! Fosse eu como fosse.
Falara com o Troy no dia anterior, à noite, e este pedira-me que tratasse
rapidamente dos assuntos da minha família e voltasse para ele.
221
"E se conseguires convencer o tom a vir ao nosso casamento, apesar do que
o Tony disse, não acharás que só temos convidados do meu lado. E talvez a
Fanny também venha."
Oh, Troy não fazia ideia do que pedia quando sugerira que eu convidasse a
minha irmã Fanny! No início daquela manhã, ao dirigir-me para a pequena
cidade que marcara com um círculo vermelho num mapa local, passava-me
pela cabeça todo o género de pensamentos estranhos. Olhei para a terra
avermelhada que ladeava o asfalto da estrada e permiti-me regressar aos
tempos em que vivera com a Kitty e o Cal Dennison. Pela primeira vez
desde que saíra da Virgínia Ocidental, detive-me a pensar no Cal e no que
poderia ter-lhe acontecido. Continuaria a viver em Candlewick? Vendera a
casa que pertencera à Kitty? Teria voltado a casar? Fizera, sem dúvida, a
coisa certa ao meter-me num avião para Boston, deixando-me pensar que a
Kitty viveria apesar do seu tumor incurável.
Sacudi a cabeça, recusando-me a pensar no Cal quando tinha de me
concentrar no meu encontro com o tom. Precisava de encontrar um meio de o
convencer a abandonar o nosso pai e a prosseguir os seus estudos. O Troy
pagaria as propinas, a roupa e o mais que fosse necessário. Porém, não
pude esquecer o orgulho teimoso do tom, do mesmo tipo que o meu.
De repente, perdi-me nas estradas secundárias do interior. Parei numa
estação de gasolina a cair de velha e pedi indicações a um homenzinho
franzino de rosto avermelhado que lá encontrei. Este olhou-me como se me
achasse maluca por andar toda aperaltada num dia quente como aquele. Eu
levava um fato de saia e casaco fresco de Verão mas não havia dúvida de
que estava cheia de calor, embora não me passasse pela cabeça aparecer
com um vestidito vulgar. Tinha demasiados anéis nos dedos, e o pescoço
pesava-me do excesso de colares. Queria impressionar todos, mesmo que me
tomassem por excêntrica. O meu automóvel fora o mais caro que conseguira
alugar.
Tive de fazer marcha atrás e dar meia volta para encontrar a estrada
certa que me levaria até ao tom e à casa onde este vivia com a sua nova
família. Um pouco da Florida esgueirara-se para o interior da Jórgia,
conferindo à paisagem um ar vagamente tropical. Ao aproximar-me do meu
destino, parei na berma da estrada para retocar a minha maquilhagem, e,
dez minutos mais tarde, estacionava o meu comprido
222
Lincoln azul-escuro em frente de uma moderna casa de rancho de piso
único.
O facto de ter percorrido todos aqueles quilómetros, colocando-me de novo
ao alcance da crueldade do meu pai, provocava-me uma estranha sensação de
entorpecimento no peito, que me alheava da realidade. Que espécie de
louca era eu? Sacudi a cabeça, olhei-me novamente no espelho retrovisor
para verificar a minha aparência e depois voltei a mirar a moderna casa.
Era feita de telhas de madeira de cedro vermelho. O telhado baixo
projectava-se por cima das numerosa janelas largas para lhes conferir
sombra, sombra de que também o telhado desfrutava devido às muitas
árvores próximas; a casa estava rodeada de sebes impecavelmente aparadas,
entremeadas de canteiros circulares floridos, onde não se via uma única
erva daninha. Oh, não havia dúvida de que o meu pai, com aquela casa, que
devia ter quatro ou cinco quartos de dormir, estava a mostrar ao mundo
que se saía bem. O meu irmão tom, porém, não me dera o menor palpite
sobre o que o nosso pai fazia para arranjar dinheiro que chegasse para
pagar aquela casa.
Onde estaria o tom? Porque não aparecia à porta para me saudar? Por fim,
cada vez mais impaciente, saí do carro e percorri o longo carreiro que ia
dar à porta da frente. Receava que fosse o meu pai a atender quando
tocasse à campainha, apesar de o tom ter prometido manter-nos afastados
um do outro. Contudo, eu tinha razão. O meu fato, que me custara mais de
mil dólares, tinha a eficácia de uma armadura. Os meus anéis, colares e
brincos eram o meu escudo e a minha espada. Assim vestida, sentia-me
capaz de chacinar dragões. Pelo menos, era o que eu achava.
Carreguei impacientemente na campainha da porta. Ouvi um carrilhão tocar
algumas notas musicais no interior. O coração batia-me nervosamente.
Sentia picadas no estômago. Nesse momento, ouvi passos a aproximarem-se.
O nome do tom quase me saiu de entre os lábios quando a porta se abriu.
No entanto, não era o tom, como eu esperara e rezara para que
acontecesse; tão-pouco me apareceu a figura detestável do meu pai. Em vez
disso, deparou-se-me uma mulher jovem e bonita, de cabelos louros e olhos
azuis luminosos, que me sorriu como se jamais tivesse sentido receio de
desconhecidos ou antipatizado com alguém.
Fui apanhada de surpresa pelo ar de fresca inocência com que me apareceu
do lado de dentro da porta com rede, tendo
223
por fundo divisões frescas, mergulhadas na penumbra e a cheirar a limpo,
sorrindo-me e aguardando que eu me identificasse. Vestia calções brancos
e um top tricotado à mão, carregando, sem esforço num dos braços, um bebé
com ar sonolento. Oh, devia ser o Drake, o tal filho parecido com o meu
pai... o seu terceiro filho.
- Sim...? - perguntou ao ver que eu não proferia palavra.
Ali fiquei, embaraçada, a olhar para uma mulher e para o seu filho, cujas
vidas eu não teria dificuldade em destruir se o desejasse.
E agora que me via ali, o choque sentido fez-me compreender que não fora
ali só para salvar o tom; tinha um outro motivo: deitar por terra a
felicidade que o meu pai encontrara. Tudo o que eu poderia ter gritado
para levá-la a odiar o meu pai ficou-me preso na garganta como um nó, ao
ponto de até ter dificuldade em murmurar o meu nome.
- Heaven? - perguntou a jovem, com um ar encantado.
- A senhora é que é a Heaven? - O sorriso de boas-vindas alargou-se. - É
a Heavenly de quem o tom está sempre a falar? Oh, que bom conhecê-la
finalmente! Entre, entre! Abriu a porta de rede e depois pousou o menino
em cima de um sofá, puxando inconscientemente o top para baixo. Desviou o
olhar até ao espelho de parede mais próximo, verificando a sua aparência,
o que me levou a pensar que talvez o tom não a tivesse avisado de que eu
chegaria por volta das onze horas. Ao traçar os meus planos, não contara
absolutamente nada com aquela mulher.
- Infelizmente surgiu uma emergência e o tom teve de sair com o pai -
explicou, ofegantemente, olhando agora em volta para ver se a casa estava
arrumada. Levou-me do vestíbulo da entrada até uma sala de estar ampla e
agradável.
- Esta manhã reparei que o tom queria dizer-me algo em particular, mas o
pai estava sempre a mandá-lo despachar-se. Por isso, não teve tempo.
Tenho a certeza de que o segredo dele era sobre a sua visita.
Sem deixar de falar, arrumou uma pilha de revistas e dobrou rapidamente o
jornal da manhã que estivera a ler.
- Heaven, faça o favor de se sentar e estar à vontade. Deseja tomar
alguma coisa? vou começar a preparar o almoço para o Drake e para mim e
claro que está convidada. Mas deseja uma bebida fresca para já? Está um
dia muito quente.
- Pode ser uma Coca-Cola - aceitei, sentindo a garganta tão arrepanhada
pela ansiedade como pela sede.
224
Custava-me a acreditar que o tom não tivesse esperado por mim Será que
também já não queria saber de mim? Dava a impressão que nenhum dos
membros da minha família tinha tanta vontade de me ver quanto eu a eles.
Pouco depois, a jovem voltou da cozinha com dois copos. O menino de ar
tímido, que devia ter à volta de um ano, mirava-me com enormes olhos
castanhos ornados de pestanas negras. Oh, sim, era o filho parecido com o
pai pelo qual a Sarah rezara na altura em que o quinto filho lhe nascera
deformado e morto.
Pobre Sarah. Não era a primeira vez que sentia curiosidade em saber por
onde andaria naquela altura e o que faria.
Despi o casaco demasiado quente, sentindo-me ridícula e desejando ter
usado mais bom senso e menos ostentação.
A Stacie Casteel brindou-me com um dos sorrisos mais doces que eu já
vira.
- Que linda que é, Heaven. Tal e qual como o tom a descreveu tantas e
tantas vezes. Está cheia de sorte por ter um irmão que a admira tanto. Eu
sempre quis ter irmãos e irmãs, mas os meus pais acharam que um filho
chegava. Vivem a cerca de dois quarteirões daqui. Por isso, estou sempre
a vê-los e eles tomam muito bem conta do meu bebé. Por acaso, o meu avô e
o seu até estão a pescar neste momento, num lago aqui próximo.
O avô. Esquecera-me completamente dele. A Stacie continuou a tagarelar,
ansiosa por ter alguém com quem falar da sua família.
- O Luke gostaria que fôssemos para a Flórida, para poder ficar mais
perto do lugar onde trabalha, mas eu não consigo conformar-me em ir para
tão longe dos meus pais. Sei que eles não farão nenhuma mudança no seu
estilo de vida pois já estão velhos e acomodaram-se. Adoram o Drake.
Sentara-se à minha frente, deixando o filhinho encantador tomar um gole
ou dois da sua bebida fresca. A criança estava de tal modo intimidada
pela minha presença silenciosa que mal conseguia engolir. A mãe
incentivou-o ao de leve com a mão.
- Drake, querido, é a Heaven, a tua meia-irmã. Não achas que o nome
assenta mesmo bem numa senhora tão jovem e linda?
Os enormes olhos escuros do filho mais novo do meu pai franziram-se ao
tentar decidir se eu era amiga ou não, antes de baixar a cabeça e virar-
se para tentar esconder-se. Ao sentir-se seguro, espreitou-me de entre as
pernas da mãe,
225
com o polegar enfiado na boca. Como doía lembrar que era assim que o
Keith costumava comportar-se, fazendo-o entre as minhas pernas, não nas
da Sarah. Esta andara sempre demasiado atarefada ou fatigada para
"aturar" crianças envergonhadas, que precisavam de uma atenção
especial... até a "Nossa" Jane aparecer.
Apesar da decisão que eu tomara de não me afeiçoar àquela criança, dei
comigo a ajoelhar-me de modo a ficar ao seu nível. Sorri-lhe.
- Olá, Drake. O teu tio tom falou-me de ti. Disse-me que gostas de
barcos, comboios e aviões. Um dia destes vou mandar-te uma caixa enorme
cheia deles. - Olhei de relance para a Stacie com um certo embaraço. - Os
Tatterton fabricam brinquedos há séculos. Aqueles que produzem não são
vendidos em lojas vulgares, mas quando eu voltar mandarei ao Drake todos
aqueles com os quais puder brincar.
- Será muito simpático da sua parte - agradeceu a Stacie com mais um dos
seus sorrisos arrasadoramente doces, que foram como que uma facada no meu
coração, pois há muito que eu podia ter mandado brinquedos ao Drake e
jamais tal ideia me passara pela cabeça.
À medida que os minutos foram passando e a Stacie ia tagarelando enquanto
preparava o almoço, depressa descobri que ela amava o homem que eu
odiava, que o amava profundamente .
- É o marido mais bondoso e fantástico que pode haver
- declarou com entusiasmo. - Está sempre a esforçar-se o mais que pode
para que nada falte à sua família. - Lançou-me um olhar implorante. - Eu
sei que a Heaven não o deve ver assim, mas o seu pai teve uma vida muito
difícil e, para se reencontrar, teve de se afastar daqueles montes e do
seu passado como Casteel. Não é preguiçoso nem indolente. Era apenas um
revoltado por achar que estava preso no que parecia um círculo vicioso de
pobreza.
Nada do que dizia dava a entender que estava a par do quanto o meu pai me
odiara e provavelmente ainda odiava. Não fez referência à minha mãe ou à
Sarah, o que me deu a entender que não passava de mais outra Leigh
Tatterton ingénua e crédula, levando-me a descobrir inesperadamente que o
meu pai tinha uma predilecção pelo mesmo tipo de mulher delicada. Do
mesmo modo que preferia ruivas para as ligações passageiras.
E se de vez em quando levara, ou não, morenas para a cama, era algo que
eu ainda estava para saber.
226
Terminado o almoço de salada de atum sobre uma camada de alface fresca,
acompanhada por cubos de queijo e pãezinhos quentes servidos com chá
gelado, voltámos para a sala de estar. A sobremesa foi pudim de chocolate
com que o Drake lambuzou o pequeno e bonito rosto.
"Nada de pãezinhos e molho", pensei com amargura.
O meu azedume acentuou-se ainda mais quando regressámos à sala de estar
alegre e ensolarada. Olhei através das janelas largas que deitavam para o
jardim das traseiras, cheio de plantas em plena floração, e esforcei-me
por imaginar o Luke Casteel a viver numa casa agradável e moderna como
aquela, sentado no belo sofá comprido que tinha na frente uma mesinha sem
o menor vestígio de pó e dedadas. Plantas verdes atenuavam a monotonia de
todos aqueles tons de castanho e creme acentuados com toques de turquesa.
Era uma sala muito masculina, onde apenas o cesto da costura denunciava a
presença de alguém mais na casa além de um homem e de uma criança.
- É a divisão preferida do seu pai - disse a Stacie, como se reparasse no
ar pensativo com que eu ficara. Notava-se orgulho na sua voz. - O Luke
disse-me que eu podia decorá-la como quisesse, mas eu achei melhor que
tivesse uma sala onde pudesse pousar os pés onde lhe apetecesse ou deitar
no sofá sem se preocupar em amarrotar os almofadões. O tom e o seu avô
também adoram esta sala. - Deu-me a impressão de ir a acrescentar algo
mais, pois corou e, durante um segundo ou dois, ficou com uma expressão
de confusão e culpa, antes de me tocar no braço e sorrir afectuosamente.
- É mesmo maravilhoso tê-la, finalmente, aqui, em casa, Heaven. O Luke
fala pouco da sua "família dos montes", porque diz que dói demasiado.
Oh, claro, eu podia imaginar o quanto doía!
- Ele contou-lhe sobre a minha mãe, que tinha catorze anos quando ele
casou com ela?
- Sim, contou-me que se conheceram em Atlanta e que ele a amou muito...
Mas - acrescentou com ansiedade -, não fala o suficiente dela para eu
poder imaginar como era a vossa vida naquela cabana dos montes. Sei que a
morte prematura dela marcou-o para toda a vida. Também sei que casou
comigo porque lhe faço lembrar ela e, quando à noite me ajoelho para
dizer as minhas orações, peço a Deus que um dia ele deixe de pensar nela.
Sei que me ama e que o tenho feito mais feliz do que no dia em que nos
conhecemos, mas enquanto a Heaven não lhe perdoar e ele não for capaz
227
de aceitar a morte da sua mãe, não será capaz de apreciar completamente a
vida e o modesto sucesso que alcançou.
- Ele contou-lhe o que fez? - perguntei quase a gritar.
- Acha certo ele ter vendido os cinco filhos por quinhentos dólares cada?
- Não, claro que não acho certo - respondeu a Stacie calmamente,
deixando-me descoroçoada no meu ataque. Contou-me tudo. Foi uma decisão
terrível que se viu obrigado a tomar. Vocês os cinco podiam ter morrido à
fome enquanto ele não recuperava a saúde. Só posso justificar a sua acção
dizendo que fez o que na altura achou que era o melhor, e nenhum de vocês
sofreu nenhum dano permanente, pois não?
A sua pergunta ficou a pairar no ar enquanto se sentava de cabeça baixa,
esperando, calada, que eu dissesse que perdoava ao meu pai. Estaria ela
convencida de que o pior que ele fizera fora a sua traição de Natal? Não,
esse fora apenas o clímax! Contudo, nada do que eu pudesse dizer
redimiria a sua crueldade. A esperança que, por instantes, lhe iluminara
o rosto, desvaneceu-se. Olhou para o filho e ficou ainda mais triste.
- Se não é capaz de lhe perdoar hoje, não faz mal. Só espero que consiga
fazê-lo um dia, num futuro próximo. Pense nisso, Heaven. A vida não nos
dá muitas oportunidades para perdoar. Elas aparecem, ficam a pairar, o
tempo passa e depois torna-se demasiado tarde.
Levantei-me rapidamente.
- O tom disse-me que estaria aqui à minha espera. Onde posso encontrá-lo?
- O tom pediu-me que a mantivesse aqui até ele chegar, cerca das quatro e
meia. O seu pai virá um bocado mais tarde.
- Não tenho tempo para esperar até essa hora. - Tinha medo de ficar. Medo
de que ela me convencesse a perdoar a um homem que eu odiava. - Ainda
tenho de ir apanhar o avião para Nashville, para ver a minha irmã Fanny.
Portanto agradeço que me diga onde posso encontrar o tom.
A Stacie deu-me a morada com relutância, continuando a implorar-me, com
os olhos, que fosse bondosa e compreensiva, mesmo apesar de não poder
perdoar. Porém, eu despedi-me cortesmente, dei um beijo ao Drake e
afastei-me apressadamente daquela jovem esposa ingénua.
Tinha pena daquela mulher tão inocente, que devia ter procurado ver o que
estava por baixo da superfície de um
228
homem bem-parecido, quase iletrado, que se servia das mulheres e acabava
por destruí-las. Tanto quanto eu sabia, deixara uma lista de mulheres
abandonadas atrás de si: a Leigh Tatterton, a Kitty Dennison, e Deus
sabia o que acontecera à Sarah depois de esta ter saído de casa,
deixando-me a mim e aos seus quatro filhos. Só já quando seguia, a toda a
velocidade, no meu carro alugado, em direcção à fronteira com a Florida,
é que me lembrei de que devia ter feito um desvio para ir cumprimentar o
meu avô.
Uma hora depois cheguei a uma cidadezinha rural onde, segundo a Stacie me
dissera, o tom trabalhava diariamente durante as suas férias de Verão.
Mirei desaprovadoramente os casinhotos, o supermercado modesto com o seu
parque de estacionamento onde se viam escassos automóveis de último
modelo estacionados. Que espécie de lugar seria aquele para o tom e as
suas grandes ambições? Então eu, qual anjo vingador, decidida a fazer o
que pudesse para estragar os planos que o Luke Casteel tinha para o seu
filho mais velho, dirigi o meu carro luxuoso para os arredores daquela
cidade insignificante e encontrei o muro alto de que a Stacie me falara.
Ela não me preparara para pormenores como a longa linha de bandeiras
coloridas que adejavam ao vento quente. Agitavam-se de tal maneira que
não consegui ler a mensagem que transmitiam. Ao dirigir-me para um
portão, que se encontrava aberto, os insectos zumbiam-me em torno da
cabeça. Ninguém tentou impedir a minha entrada numa enorme arena coberta
de erva onde numerosos caminhos de terra batida se entrecruzavam. Que
lugar seria aquele, pensei, sentindo o coração acelerar as suas batidas,
muito desiludida por o meu irmão se contentar com... com... Foi então que
me apercebi do futuro que o tom escolhera para si, só para agradar ao
pai!
Os olhos encheram-se-me de lágrimas. Era um circo! Um circo pequeno,
barato, grosseiro e insignificante, que devia ter grande dificuldade em
sobreviver. As lágrimas começaram a escorrer-me pelo rosto. tom, pobre
tom!
Enquanto ali estava, do lado de dentro do portão, sob o sol quente da
tarde, ouvindo o som de muita gente a trabalhar, alguns a martelar,
outros a cantar e a assobiar, uns quantos a gritar ordens e outros a
responder em voz irritada, também ouvi risadas e vi crianças a correr, na
brincadeira, e confesso que devia parecer muito esquisita na minha
fatiota bostoniana de princípio de Outono, completamente imprópria
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para a Florida. Pessoas de ar esquisito e fatos bizarros deambulavam pelo
recinto. Mulheres em calções lavavam a cabeça sobre tinas de água. Outras
faziam de cabeleireiras. Havia roupa pendurada a secar ao sol quente.
Umas quantas palmeiras proporcionavam sombra, e eu, se fosse menos
preconceituosa, poderia ter achado a cena pitoresca e encantadora. Porém,
não estava com disposição para achar graça ao que quer que fosse. Chegou-
me às narinas um forte cheiro a animais. Uma variedade de homens,
escassamente vestidos, exibindo a pele intensamente bronzeada e os
músculos salientes, movimentava-se pela área erguendo bancas e bancadas
com letreiros que diziam: "Cachorros-Quentes", "Hamburgers" e outros
petiscos. Consertavam cartazes coloridos que faziam publicidade a um meio
homem e uma meia mulher, a dançarinas, ao casal mais pequeno do mundo e a
uma cobra que era metade crocodilo e metade jibóia. Não havia nenhum que
não me lançasse olhares.
O tom referira-me, nas suas cartas, a que o nosso pai trabalhava em algo
bonito, que toda a vida desejara fazer. Trabalhar num circo? Num circo
pequeno e de segunda categoria?
Avancei, quase entorpecida de desespero, olhando para as jaulas onde
leões, leopardos, tigres e outros felinos grandes e selvagens aguardavam,
aparentemente, transporte para outra área. Detive-me ao lado de um dos
vagões outrora utilizados para transportar animais por via férrea e olhei
para o cartaz com um tigre que estava colado num dos seus lados, onde a
tinta vermelha começara a sair.
Dei um salto no tempo e vi-me de novo na cabana. Talvez fosse o original
do cartaz do tigre que a avó me descrevera tantas vezes, aquele que o
jovem Luke roubara de uma parede em Atlanta quando fora àquela cidade,
tinha então doze anos, e o tio que lá vivia se esquecera de cumprir a sua
promessa de levar o seu sobrinho pacóvio ao circo.
De modo que o Luke Casteel, aos doze anos, percorrera cerca de vinte e
cinco quilómetros até ao terreno, nos arredores da cidade, onde estava o
circo, enfiando-se dentro da tenda sem pagar.
Agora quase cega pelas lágrimas, baixei a cabeça e servi-me de um dos
meus lenços de linho para limpar o rosto. Quando voltei a olhar para
cima, a primeira coisa que vi foi um homem jovem aproximar-se do sítio
onde me encontrava, trazendo algo que fazia lembrar uma forquilha numa
das mãos e, amparado pelo outro braço, um enorme tabuleiro
230
cheio de carne crua. Era a hora de alimentar os grandes gatos. Os leões e
os tigres, como se o soubessem, começaram a agitar as enormes cabeças
peludas, exibindo dentes longos e amarelados, farejando, roendo e
triturando ruidosamente os ossos, rasgando a carne em sangue que o jovem
lhes enfiava por entre as barras da jaula com a forquilha. Emitiam roncos
profundos com a garganta que, deduzi, serem de prazer. Oh, meu Deus! Meu
Deus! Quem enfiava cuidadosamente a carne nas grades, que as patas
selvagens arrebanhavam antes de os dentes se lançarem ao seu trabalho,
era o meu irmão tom.
- tom - gritei, correndo em frente. - Sou eu! Heavenly!
Por um momento, voltei a ser a criança que vivera, nos montes. A roupa
elegante deu lugar a um vestido andrajoso, gasto e disforme, que as
repetidas lavagens com sabão barato numa tábua de metal tinham desbotado.
Quando o tom se voltou lentamente para mim, esbugalhando os olhos cor de
esmeralda antes de estes se encherem de deleite, eu via-me descalça e
cheia de fome.
- Heavenly! És mesmo tu? Afinal das contas vieste ver-me, de tão longe!
Como acontecia sempre que se entusiasmava, o tom esquecia a boa dicção e
retomava o seu dialecto provinciano.
- Oh, que dia glorioso! Aconteceu mesmo! O que eu rezei!
Largou o tabuleiro enorme, agora já vazio de carne, e abriu os braços.
- Thomas Luke Casteel - exclamei -, sabes que não deves falar dessa
maneira. Será que Miss Deale e eu perdemos o nosso tempo a ensinar-te a
gramática?
E corri para o seu abraço de boas-vindas, lançando-lhe os braços ao
pescoço, apertando-me fortemente contra aquele irmão que era quatro meses
mais novo do que eu e a quem não via desde que me fora embora.
- Oh, Santo Deus - sussurrou o tom, emocionado, com voz enrouquecida -,
continuas a fazer cara feia e a corrigir-me como nos velhos tempos. -
Afastou-me ligeiramente dele e mirou-me dos pés à cabeça com grande
espanto. Nunca pensei que pudesses ficar mais bonita, mas o certo é que
estás mais do que isso! - Passeou o olhar pela minha roupa cara, detendo-
o no relógio de ouro, nas unhas pintadas, nos sapatos de duzentos
dólares, na bolsa de mil e duzentos dólares, antes de o fixar no meu
rosto. Soltou um suspiro
231
profundo e sibilante. - Caramba! Fazes lembrar uma daquelas raparigas
irreais que aparecem nas capas das revistas.
- Avisei-te de que vinha. Porque pareces surpreendido por me ver aqui?
- Acho que pensei que seria demasiado bom para ser verdade - respondeu, à
laia de desculpa. - Mas também acho que por outro lado, receava que
viesses estragar o que o pai está a tentar conseguir. Ele não passa de um
homem sem instrução, Heavenly, que faz o melhor que pode para sustentar a
família; sei que a sua ocupação não significa grande coisa para a pessoa
em que tu te tornaste, mas o grande sonho dele foi sempre fazer parte de
um circo como este.
Eu não queria falar do meu pai. Custava-me a acreditar que o tom tivesse
tomado o partido do pai. Parecia até que o meu irmão se preocupava mais
com o pai do que comigo. Porém, eu não queria desistir do tom, não queria
que ele se tornasse um estranho para mim.
- Pareces... pareces, bem, mais alto, mais forte - observei, tentando
abster-me de dizer que o achava ainda mais parecido com o pai, quando ele
sabia que eu odiava o rosto atraente deste. A magreza cadavérica
desaparecera da estrutura óssea do tom. Já ali não estavam os olhos
encovados e olheirentos. Tinha um ar bem alimentado, feliz e satisfeito.
Nem era preciso perguntar.
- tom, acabei de ver a nova mulher e o filho do nosso pai. Ela é que me
indicou este lugar. Porque não me contaste? - Olhei mais uma vez em
volta, para a arena onde havia tendas à mistura com edifícios
permanentes. - Que faz exactamente o pai?
No rosto do tom abriu-se um sorriso largo. Os seus olhos iluminaram-se de
orgulho.
- Ele é o apresentador, Heavenly. E dos bons! Faz um trabalho formidável
a chamar o público. Hoje isto parece-te sem graça, mas se ficares por
aqui até à noite, verás vir gente de oitocentos quilómetros de distância
para gastar o seu dinheiro a ver o número dos animais selvagens, o das
raparigas e o dos anormais que participam no espectáculo. E também temos
uma roda gigante - acrescentou com orgulho, apontando para a roda Ferris
em que eu só naquele momento reparava.
- Heavenly - prosseguiu com arroubo, agarrando-me no braço e levando-me
noutra direcção -, agora o circo é o mundo do pai. Não te passava pela
cabeça, e a mim também
232
não, que o circo fosse sempre o seu sonho quando era novo. Escapuliu-se
vezes sem conta dos montes para se enfiar no circo. Talvez fosse para
escapar à fealdade e à pobreza daquela cabana nos montes, onde foi
criado. Lembras-te do quanto ele detestava as minas de carvão,
enveredando portanto pelo contrabando de bebidas alcoólicas... Também
fugia do desprezo que todos sentiam pelos Casteel, que parecia não
saberem fazer outra coisa senão ir parar à prisão por roubos sem
importância. Os rapazes da família ao menos teriam sido admirados se
fossem parar à cadeia por coisas mais ousadas e importantes, excepto o
assassínio, evidentemente.
- Mas, tom, este não é o teu sonho! Não é! Não podes abdicar dos teus
estudos universitários só para o ajudar!
- Ele acabará por comprar o circo ao proprietário, Heavenly, passando
então ele a ser o dono. Quando descobri que era essa a intenção do pai,
podes crer que fiquei com a mesma cara de espanto com que estás agora.
Quis contar-te, a sério, mas também me sentia relutante, pois tinha a
certeza de que só sentirias e demonstrarias desprezo pelas suas ambições.
Eu agora compreendo-o melhor do que antes e quero que alcance sucesso ao
menos uma vez na vida. Não o odeio como tu. Eu não sei odiar assim. Ele
tenta encontrar o seu amor-próprio, Heavenly, e ainda que o que agora faz
te pareça reles e insignificante, é o que ele melhor já conseguiu
realizar na vida. Quando o vires, não o faças sentir-se inferiorizado.
Olhei, mais uma vez, em volta. Algumas mulheres, que tinham acabado de
tomar duche nos seus minúsculos reservados das roulottes, tinham-se
juntado em grupos, enroladas em toalhas, a olhar para onde o tom e eu nos
encontrávamos. Nunca me sentira tão em evidência. Outras trabalhavam,
envergando roupa em mau estado. Todos tagarelavam animadamente, e
raparigas bonitas, nascidas já naquele meio, lançavam ao tom e a mim
sorrisos curiosos. Acrobatas de aspecto vigoroso praticavam sobre lonas
sujas, e havia pelo menos uma dúzia de anões a cirandar de um lado para o
outro em múltiplas tarefas estranhas. Imagino que, para uma pessoa como o
meu pai, aquele poderia ser um lugar ideal onde se esconder de tudo e de
todos, pois ali ninguém indagaria sobre a sua proveniência e origem
duvidosa. No entanto, eu sabia exactamente o que o Tony pensaria se
pudesse ver o mesmo que eu, ou talvez até soubesse de tudo, sendo essa a
razão pela qual me proibira de levar comigo um só Casteel que fosse.
233
- Oh, tom, isto aqui está bem para o pai; é muito mais seguro e lucrativo
do que traficar bebidas alcoólicas. Mas não serve para ti!
Puxei-o para junto de um pequeno banco à sombra de um aglomerado de
árvores de ar tropical, onde nos sentámos. Havia comida espalhada no chão
e aves a alimentarem-se dela, atrevendo-se a pousar e a comer mesmo junto
dos nossos pés. O calor e os cheiros faziam-me sentir débil e agoniada.
As jóias que eu trazia pesavam-me incomodativamente.
- O Troy deu-me dinheiro mais do que suficiente para pagares os teus
quatro anos de faculdade - principiei, ofegando. - Não tens de desistir
dos teus sonhos só para o pai realizar os seus.
O rosto magro do tom corou intensamente antes de baixar a cabeça.
- Tu não compreendes. Já me candidatei à faculdade e não passei. Sempre
soube que os meus sonhos nunca se concretizariam. Só queria agradar-te.
Vai-te embora, tira o teu curso superior e esquece-me. Gosto da vida que
levo. Apreciá-la-ei ainda mais quando o pai e eu ganharmos dinheiro
suficiente para comprarmos este circo ao actual proprietário. Ora, um dia
poderemos até levá-lo à Jórgia e à Florida.
Eu não conseguia fazer outra coisa senão olhar para o meu irmão,
completamente estupefacta com a facilidade com que ele desistia. E,
quanto mais tempo o fitava, mais vermelho ele ficava.
- Por favor, Heavenly, não me embaraces. Nunca tive um cérebro como o
teu, tu é que te convenceste disso. Não possuo nenhuns talentos especiais
e sinto-me contente com a vida que levo aqui.
- Espera - exclamei. - Aceita o dinheiro... Faz com ele o que quiseres,
tudo o que for preciso para escapares a esta ratoeira! Abandona o pai,
ele que cuide de si próprio!
- Por favor, não digas mais nada - sussurrou o tom. O pai pode ouvir-te.
Está além, ao pé da tenda da cozinha.
Eu passara várias vezes o olhar por um homem alto e de ar poderoso, que
tinha o cabelo preto elegantemente cortado e penteado, embora os jeans
que vestia estivessem desbotados e demasiado justos e a camisa branca
largueirona fosse parecida com as que o Troy tanto apreciava. Era o meu
pai!
Era o meu pai, mais limpo, fresco e com um aspecto saudável como eu
jamais lhe vira, e àquela distância eu não saberia dizer se envelhecera
minimamente. Conversava com
234
um indivíduo robusto de ar alegre, com cabelos brancos e envergando uma
camisa vermelha e que, aparentemente, lhe dava ordens. Chegou mesmo a
olhar de relance para o tom, como que a verificar por que razão ele não
estava a alimentar os animais. Os seus olhos escuros e intensos passaram
por mim sem se deterem, embasbacados, como acontecia à maioria dos homens
quando reparavam em mim. O facto deu-me a entender que o meu pai não
andava interessado em engatar rapariguinhas novas. A sua indiferença
também me fez perceber que não me reconhecera. Sorriu ao tom com ar
paternal e aprovador; depois, continuou a conversar com o homem da camisa
vermelha.
- É Mister Windenbarron - sussurrou o tom. - O actual proprietário.
Trabalhou como palhaço para os irmãos Ringling. Nesta região todos dizem
que não há espaço para dois circos grandes, mas o Guy Windenbarron acha
que, com a ajuda do pai, os dois podem tornar-se verdadeiramente
importantes. Ele está velho, sabes, e não viverá muito mais tempo, de
modo que precisa de dez mil dólares para deixar à mulher. Nós já juntámos
sete mil. Portanto, já não falta muito, e Mister Windenbarron ajudar-nos-
á enquanto puder. Tem sido um bom amigo para o pai e para mim.
O entusiasmo do tom fez-me sentir ligeiramente maldisposta. Só nessa
altura é que me apercebi de que a sua vida prosseguira, tal como a minha,
e ele encontrara novos amigos e outras aspirações.
- Volta à noite - convidou o tom, como que ansioso por me ver fora do
alcance do pai -, e ouve o pai a chamar o público, assiste ao espectáculo
e, quando as luzes se acenderem e a música soar, quem sabe se não
experimentarás um pouco da febre do circo que tanta gente sente.
O que eu sentia era pena dele. Pena por alguém decidido a destruir-se a
si próprio.
Passei o resto da tarde num quarto de motel, a tentar descansar e a
reflectir sobre as minhas dúvidas. Tinha a impressão de que não havia
nada a fazer para que o tom mudasse de ideias, mas ainda tinha de tentar
mais uma vez.
Nessa noite, cerca das vinte e duas horas, vesti um vestido simples de
Verão e parti novamente em direcção aos terrenos onde o circo estava
instalado. Deparou-se-me uma espantosa metamorfose. A roda gigante girava
lentamente, deslumbrando os olhos com as suas fiadas triplas de luzes
coloridas. De resto, não havia edifício, tenda ou atrelado
235
da caravana que não se apresentasse brilhantemente iluminado. As luzes, a
música e as hordas de gente criavam uma espécie de magia que eu nunca
imaginara. As construções modestas e mal pintadas tinham uma aparência
impecável e bela. Os vagões que, de dia, exibiam amolgadelas e faltas de
tinta vermelha e dourada, pareciam completamente novos. A música pairava
no ar, vinda de várias fontes e, para minha grande surpresa, as centenas
de pessoas provincianas, de roupa modesta, que afluíam pelos portões
abertos, criavam uma atmosfera de grande excitação com as suas alegres
expectativas de um bocado bem passado. Eu segui no meio da multidão,
confundindo-me com ela. Reparei nas raparigas da minha idade que,
abraçadas aos namorados, tinham tão pouca roupa vestida que o Tony
acharia escandaloso. Pais de faces coradas levavam pela mão os mais
novos, cuja vontade seria correr à vontade a descobrir o lugar; no fim
dos grupos de famílias, deslocando-se com maior lentidão e dificuldade,
vinham os mais idosos que estavam, nitidamente, mais habituados a passar
os seus serões em cadeiras de baloiço nos alpendres.
Eu nunca fora, nos meus dezoito anos, uma única vez ao circo. A minha
experiência com aquele tipo de espectáculo limitava-se à televisão,
jamais tendo sentido o som, a visão, os cheiros de animais, humanos,
feno, esterco, suor e, sobrepondo-se a todos eles, o aroma delicioso dos
cachorros-quentes, hamburgers, gelados e pipocas que chegava de várias
fontes.
Enquanto deambulava pelo terreno do circo, observando as tendas laterais,
onde raparigas quase nuas e fortemente maquilhadas meneavam as ancas
provocantemente e pessoas com deformidades físicas exibiam as suas
misérias com uma espantosa indiferença, comecei a entender, pela primeira
vez, o que atraíra o pobre rapazito de doze anos saído dos Willies...
Atraíra-o de tal modo que o fizera regressar aos montes convencido de que
aquele era o melhor dos mundos possíveis: melhor que as minas frias e
escuras; melhor que fazer contrabando de bebidas alcoólicas e desafiar a
Polícia; mil vezes melhor, tudo aquilo, que aquela miserável cabana nos
montes e todas as outras como ela, onde a fama criada nunca era esquecida
e os erros do passado perseguiam o seu autor até ao fim dos seus dias. Eu
quase sentia pena daquele rapaz ignorante.
Óptimo para o pai, tudo aquilo, agora que já estava demasiado velho para
pretender chegar mais alto. Não para o
236
tom, nada daquilo, assim que se fartasse de sentir aqueles cheiros e
sabores que um dia se tornariam entediantes. Eu não fora ali para ser
seduzida.
Primeiro, precisava de um bilhete e, para o comprar, tive de ir para uma
fila indiana que se formara até junto de um homem colocado em cima de um
pedestal alto, que anunciava as virtudes do espectáculo de circo que
decorria no interior. Não precisei de o ver para saber quem era. Metida
na fila, ergui os olhos para o meu pai, vendo primeiro os seus pés
calçados com botas de cabedal pretas que lhe chegavam quase aos joelhos.
Depois, vinham as pernas musculosas, envolvidas em calças brancas o mais
justas possível. A sua virilidade era tão evidente que me trouxe à
memória os dias de escola, quando a miudagem ficava de olhos arregalados
perante as fotografias de duques, generais e outros nobres que tão
ousadamente se exibiam em calças parecidas com aquelas que o meu pai
estava a usar. O casaco de abas de grilo era enfeitado por faixas
douradas nas mangas, galões nos ombros e botões, tudo no mesmo tom, nas
frentes sobrepostas. Por cima do branco impecável da gravata, via-se o
mesmo rosto atraente de que me recordava, notavelmente igual. Não trazia
os pecados escritos na cara, tão-pouco o tempo lhe tirara aquilo de que
privara o meu avô. Não, o meu pai mantinha-se forte e poderoso como
sempre, com uma aparência saudável como nunca lhe vira, mais bem
arranjado, com a face tão impecavelmente barbeada que nem se lhe notava a
sombra. Os seus olhos negros brilhavam, conferindo-lhe um aspecto
carismático e magnético. Reparei que algumas mulheres erguiam o olhar
para ele como se de um deus se tratasse.
De vez em quando, arrancava o chapéu preto da cabeça e utilizava-o em
grandes floreados.
- Cinco dólares, senhoras e senhores, é tudo quanto custa entrar noutro
mundo, um mundo que talvez não tenham possibilidade de ver outra vez...
Um mundo onde homem e animal selvagem se desafiam um ao outro, onde
lindas mulheres e homens corajosos arriscam a vida nos ares para vosso
deleite. As crianças até aos doze anos só pagam dois dólares e meio. Os
bebés de colo entram de graça! Venham ver Lady Godiva cavalgar o seu
cavalo e saltar da sua montaria para aterrar um metro e meio acima... E
aquele cabelo move-se, senhores, move-se!
E continuou a apregoar enquanto a caixa registadora, a pouca distância
para a sua direita, tinia ruidosamente com a entrada do dinheiro. Eu ia-
me aproximando a pouco e pouco
237
do meu pai, enquanto o ouvia discorrer sobre os perigos que os reis da
selva em breve iriam fazer correr ao seu domador, valsando ao estalar do
chicote. Até ali ainda não me vira. Não tencionava permitir que tal
acontecesse. Cobrira a cabeça com um chapéu de palhinha de abas largas,
preso de baixo do queixo com um lenço de seda azul. E levara óculos
escuros para pôr. Mas como era de noite, esqueci-me de o fazer. De
repente, vi-me na frente da fila e o meu pai olhou para baixo.
- Ora, uma jovem assim não precisa de esconder os seus méritos - declarou
e, inclinando-se, desatou-me o lenço e o chapéu saiu-me da cabeça. Os
nossos rostos ficaram a centímetros de distância.
Ouvi-o suster subitamente a respiração.
Vi que ficara chocado. Por um momento, permaneceu sem fala, paralisado...
Mas depois sorriu. Entregou-me o chapéu com o seu lenço de seda
esvoaçante.
- Isso - exclamou para todos ouvirem -, uma cara assim tão bonita não
deve ficar escondida...
Dito isto, passou à pessoa seguinte.
com que rapidez se recuperara da surpresa! Porque não conseguia eu fazer
o mesmo? Senti os joelhos fracos, as pernas a tremer; tinha vontade de
gritar, descompô-lo e dizer àquelas pessoas confiantes o tipo de monstro
maléfico que ele era! Em vez disso, fui empurrada para a frente,
ordenaram-me que me apressasse e, antes que percebesse o que estava a
acontecer, dei comigo sentada numa bancada às manchas e com o meu irmão
tom a sorrir-me.
- Caramba, aquilo é que foi, ha, a maneira como o pai te tirou o chapéu!
Sem ele não lhe terias chamado a atenção... Por favor, Heavenly, põe
outra cara! Não é preciso estares assim a tremer. Ele não pode magoar-te,
e também não o faria.
Apertou-me por instantes contra o seu peito, como costumava fazer quando
eu entrava em pânico.
- Tens aí atrás de ti uma pessoa ansiosa por te cumprimentar - sussurrou-
me.
Levei as mãos, em que os anéis que pusera para impressionar o meu pai
pesavam, à garganta, enquanto me virava lentamente, dando de caras com os
olhos azuis descorados de um velho mirrado. Era o meu avô!
O meu avô, vestido como nunca o vira, com roupa desportiva de Verão e
sapatos de cabedal nos pés. Os olhos pálidos, de expressão desconcertada,
estavam cheios de lágrimas.
238
pela maneira como me fitava, estava a tentar, certamente, situar-me nos
seus pensamentos e enquanto isso, reparei que engordara. Tinha as faces
coradas de saúde.
- Oh - exclamou finalmente, ao reconhecer-me -, é a Heaven! Ela voltou
p'ra nós! Tal qual prometeu! Annie segredou, cutucando o ar ao seu lado
com o cotovelo -, ela 'tá linda, na' tá, Annie?
Fez um gesto de abraço em torno da Annie que há tantos anos estava à sua
direita e doeu, doeu muito ver que ele não conseguia viver sem fazer de
conta de que ainda tinha a sua companheira viva. Lancei-lhe os braços ao
pescoço e beijei-o na face.
- Oh, avô, é tão bom voltar a vê-lo, tão bom!
- Primeiro devias cumprimentar a tua avó, miúda, devias - admoestou.
Obedientemente, dei à figura imaginária da minha avó um abraço e beijei o
ar no sítio onde teria estado o seu rosto; chorei por tudo o que ficara
para trás e também por tudo o que ainda estava para vir. Como é que eu,
que me submetera àquele gesto imaginário, ultrapassaria a teimosia e o
orgulho que todos os Casteel tinham, fazendo com que o tom caísse em si?
A vida espalhafatosa e insignificante do circo não era para o tom,
sobretudo quando eu tinha dinheiro mais do que necessário para lhe pagar
a universidade. Ao olhar para o meu avô, pareceu-me vislumbrar um ponto
fraco na armadura de orgulho provinciano do tom.
- Ainda tem saudades dos montes, avô?
O velho rosto patético perdeu todo o fulgor. O seu ar saudável foi
ensombrado por uma melancolia dolorosa e ele pareceu encolher.
- Na' há lugar como lá, onde pertencemos. Annie está sempre a pedir-me
que a leve para lá... para o sítio donde a gente veio.

16 CAÇADORES DE SONHOS

Deixei o tom e o meu avô cheia de frustração, furiosa e decidida agora a


salvar a Fanny do pior de si mesma, já que não o podia fazer por mais
ninguém. Num dos bolsos das calças do meu avô ficara um maço de notas que
ele nem sequer se dera ao trabalho de contar.
- Quando eu me for embora entregue este dinheiro ao tom - instruí-o. -
Faça com que ele o aceite e o utilize para o seu futuro.
Porém, só Deus poderia adivinhar o que um velho senil faria com tão
grande quantia.
Pus-me de novo a caminho, desta vez rumo a Nashville, para onde a Fanny
fora viver depois de vender o bebé ao reverendo Wayland Wise e à esposa.
Assim que cheguei à cidade, meti-me num táxi e dei a morada da Fanny ao
motorista, depois recostei-me e fechei os olhos. Eu parecia condenada a
fracassar em tudo o que empreendia. O Troy era o único porto seguro à
vista, e eu sentia uma falta dolorosa da sua força ao meu lado. No
entanto, aquilo era algo que eu tinha de fazer sozinha. Nunca poderia
permitir que a Fanny se intrometesse na minha vida privada, nunca.
Em Nashville, uma cidade que me pareceu graciosamente antiquada e muito
bonita, o tempo estava quente e abafado. Nuvens escuras pairavam no céu
enquanto o táxi onde eu seguia percorria lindas ruas ladeadas de árvores,
passando em frente de ostentosas e antiquadas casas vitorianas e algumas
mansões modernas cuja beleza era de tirar a respiração. No entanto,
quando o táxi se deteve em frente da morada que eu dera, a casa de quatro
andares, outrora possivelmente imponente, estava em mau estado, com a
tinta a cair e as persianas descaídas, como deviam apresentar-se todas as
habitações de uma das piores zonas daquela cidade famosa.
Os tacões dos meus sapatos soaram nos degraus inseguros,
240
fazendo com que vários jovens estiraçados em cadeiras e balouços no
alpendre virassem indolentemente a cabeça para me mirar.
- Diabos me levem! - exclamou um deles, bem-parecido, usando unicamente
uns jeans e com o peito transpirado à mostra. Pôs-se de pé num salto e
fez uma vénia trocista à minha passagem. - Olhem quem nos vem visitar! A
alta sociedade!
- Sou a Heaven Casteel - principiei, esforçando-me por não me deixar
intimidar pelos sete pares de olhos fixos em mim com aparente
hostilidade. - A Fanny Louisa é minha irmã.
- É verdade - disse o mesmo jovem que se levantara -, reconheço-a das
fotografias que ela passa a vida a mostrar da irmã rica que nunca lhe
manda dinheiro.
Empalideci. A Fanny nunca me escrevera! Se tinha fotografias, estas
deviam ter-lhe sido dadas pelo tom, para quem as enviara. Ocorreu-me
então, pela primeira vez, a possibilidade de o meu irmão me ter desviado
correspondência da Fanny que achasse desnecessário eu receber.
- A Fanny está em casa?
- Na' - respondeu uma bonita loura, de cigarro pendurado ao canto dos
lábios cheios e vermelhos, com voz arrastada. - A Fanny 'tá convencida de
que conseguiu um papel principal que devia ser p'ra mim... mas não
chegará lá. Não sabe cantar, representar ou dançar nada de jeito. Eu não
estou minimamente preocupada com a audição que vou ter amanhã.
Era mesmo da Fanny tentar passar à frente de alguém para arranjar
trabalho; porém não o disse. Telefonara antecipadamente à minha irmã a
avisá-la da minha chegada, mas ainda assim ela não tivera a delicadeza de
me esperar. A minha desilusão devia ser visível no meu rosto.
- Ela ficou tão entusiasmada que o mais certo é ter-se esquecido da sua
vinda - explicou outro rapaz de aspecto agradável que declarara já que eu
não falava como a minha irmã.
Nessa altura já se reunira um grupo de jovens à minha volta, no alpendre,
a mirarem-me com ar embasbacado e curioso; foi, pois, com alívio que
consegui, por fim, escapar-me para dentro da casa, forçada por um trovão
inesperado.
- Quarto quatrocentos e quatro - gritou uma rapariga chamada Rosemary.
A chuva que estivera a ameaçar começou a cair fortemente
241
na altura em que eu entrei no quarto da Fanny, cuja porta encontrei
aberta. Era uma divisão pequena mas razoavelmente acolhedora. Ou tê-lo-ia
sido se a Fanny se desse ao cuidado de arrumar a roupa, limpar o pó e
aspirar de vez em quando. Comecei imediatamente a fazer-lhe a cama de
lavado com uns lençóis que encontrei numa gaveta. Depois de o quarto
ficar mais apresentável, sentei-me numa cadeira ao pé da janela, a olhar
para a tempestade sem a ver, pensando no Troy, no tom, no Keith e na
"Nossa" Jane, o que foi suficiente para me fazer chorar. Como eu era
imatura e estúpida em alimentar ilusões em relação ao passado, permitindo
que a riqueza e a beleza da vida me ultrapassassem, por não ser capaz de
controlar o destino e a vida de outros. Dali em diante, aceitaria o que
me fosse oferecido e esqueceria o que ficara para trás. Ninguém estava a
sofrer mais do que eu, nem mesmo a Fanny.
Premi as têmporas latejantes com as mãos. O tamborilar da chuva, os
trovões e os relâmpagos que via do lado de fora da janela fizeram-me
dormitar. O Troy e eu corríamos lado a lado no meio das nuvens, lutando
contra vagas de névoa e cinco velhos que nos perseguiam. "Corre tu à
frente", ordenou-me o Troy, empurrando-me para diante, "enquanto eu lhes
troco as voltas indo noutra direcção."
Não! Não! Gritei silenciosamente no meu sonho. Porém, os cinco velhos não
se enganaram. Seguiram por onde ele fugira, não por onde eu seguira!
Acordei sobressaltada.
A chuva refrescara o quarto que, até ali, estivera insuportavelmente
abafado. A penumbra empoeirada do fim da tarde acentuava a paisagem,
emprestando um ar romântico às casas velhas, com os seus alpendres e
varandas extravagantes. Olhei em volta, para aquele quarto pobremente
mobilado, e senti-me desorientada. Onde estava eu?
Antes de chegar a uma conclusão, a porta abriu-se de rompante. Ensopada
até aos ossos e a queixar-se sonoramente de si para si sobre o mau tempo,
a minha irmã Fanny, de dezasseis anos, atravessou o espaço estreito que
nos separava, a correr, e atirou-se para os meus braços.
- Heaven, és tu! Vieste mesmo! Queres saber de mim!
- Um abraço rápido, um beijo repenicado na minha cara e afastou-se de
rompante, olhando para si mesma. - O raio da chuva deu-me cabo da melhor
fatiota qu'eu tenho!
A Fanny virou-se e despiu o vestido vermelho ensopado, antes de se deixar
cair numa cadeira para descalçar as meias botas de plástico perladas de
gotas de água.
242
- Diabos me levem se os pés não me doem até à cintura! Fiquei paralisada.
Vi de novo a Kitty na minha frente.
Quantas vezes a ouvira utilizar aquelas mesmas palavras; mas enfim, todos
os moradores dos montes e vales dos Willies utilizavam mais ou menos as
mesmas expressões.
- Os malfadados agentes fizeram-me ir até lá quando tencionava ficar aqui
à tua espera, e quando lá cheguei só queriam que eu me pusesse a "ler".
Disse-lhes que ainda na' era capaz de ler bem. O qu'eu queria era um
papel p'ra dançar ou cantar! Mas eles na' me dão outra coisa que na'
sejam coisas pequenas sem palavras... e eu quando a caminhar p'ra lá há
coisa d'ano e meio ou mais!
A Fanny tivera sempre o condão de se libertar das suas frustrações com
grande facilidade, e foi o que voltou a fazer naquela ocasião. Dirigindo-
me um sorriso esfuziante que me revelou os seus dentes pequenos, brancos
e iguais, ligou o seu charme. Oh, que sorte tinham tido os filhos da
família Casteel por terem dentes tão saudáveis!
- Trouxeste-me alguma coisa? Trouxeste? O tom escreveu a dizer que tens
montes de massa p'ra gastar e que lhe mandaste montes de presentes p'ra
ele e pró avô. Mas o avô na' precisa de pilim! Nem de presentes! Quem
precisa de tudo o que possas dar sou eu!
Tornara-se mais esguia e bonita desde a última vez em que a vira,
aparentemente também crescera, ou talvez a sua altura só estivesse
exagerada pela combinação preta justa que vestia, fazendo-a assemelhar-se
vagamente a um lápis. O cabelo preto caía-lhe em longas madeixas da
cabeça; contudo, apesar de molhada e com ar desalinhado, continuava a ser
suficientemente encantadora para atrair o olhar de qualquer homem.
Eu sentia-me confusa com os meus sentimentos em relação a ela... Gostava
dela por ser do meu sangue, achava que tinha obrigação de a amar e
proteger.
Ao tirar, um a um, os presentes caros que lhe trouxera de dentro de um
enorme saco de compras em cabedal, não gostei do ar de cobiça desvairada
que lhe li nos olhos. Ainda eu não lhe entregara o último embrulho do
saco já a Fanny rasgava o invólucro do primeiro volume, indiferente ao
papel bonito e às fitas vistosas e caras com que vinham, indiferente a
tudo o que não fosse o que estava dentro. Ao ver o vestido escarlate,
soltou guinchos de prazer.
- Oh, oh! Trouxeste-me mesmo aquilo de qu'eu precisava prà festa aonde
vou prà semana! Um vestido de baile encarnado!
243
Atirando o vestido para o lado, rasgou o papel do segundo presente,
deixando-se arrastar pela excitação de descobrir uma bolsa de noite
enfeitada com faixas largas de vidrilhos. Os sapatos de cetim vermelhos
ficavam-lhe um tudo-nada pequenos, mas arranjou maneira de os calçar; o
seu belo rosto exótico ficou extasiado quando, por fim, se lhe deparou a
estola branca de raposa.
- Compraste isto tudo p'ra mim? Uma pele nova só p'ra mim? Oh, Heaven,
nunca pensei que gostasses de mim, mas olha qu'é mesmo! Tinhas mesmo de
me gramar p'ra me dares assim tanta coisa!
Foi então que, creio que pela primeira vez, reparou bem em mim. Franziu
os olhos pretos até o branco destes ficar reduzido a uma nesga fina entre
as densas pestanas negras. Eu mudara muito, assim mo diziam os meus
espelhos. A beleza que fora apenas superficial nos meus tempos nos
Willies, intensificara-se, e um corte de cabelo fizera milagres que me
haviam favorecido o rosto. O meu vestido caro ajustava-se às curvas
definidas de um corpo bem delineado, e eu apercebi-me, pela maneira como
a Fanny me mirava, que me vestira com cuidado especial para aquele
encontro com a minha irmã.
Os olhos escuros da Fanny percorreram-me da cabeça aos pés, fixando-se
depois de novo no meu rosto. Assobiou de admiração.
- Vejam-me só, a minha mana mais velha 'tá com um ar mesmo sexy!
Corei, embaraçada.
- Já não vivemos nos montes. Em Boston, as raparigas não casam aos doze,
treze ou catorze... Quase poderias chamar-me solteirona.
- Falas de maneira esquisita - declarou agora com manifesta hostilidade
nos olhos. - Só me trouxeste coisas! Ao avô mandaste dinheiro, e ele sem
ter onde gastá-lo!
- Vê dentro da tua bolsa, Fanny.
Voltando a guinchar de prazer, abriu precipitadamente a delicada bolsinha
que me custara duzentos dólares e ficou a olhar para as dez notas de cem
dólares como se contasse com mais.
- Oh, Jesus Cristo na cruz! - exclamou com voz embargada, contando
atentamente o dinheiro. - Olhem-me só pró qu'ela me trouxe... Salvaste-me
a vida. Estava lisa... Só tinha que chegasse até ao fim desta semana. -
Ergueu os olhos, onde brilhavam cintilações vermelhas do vestido, e
fitou-me. - Obrigada, Heaven.
244
Sorriu e, ao fazê-lo, os seus dentes brilharam, alvos, contrastando com a
pele morena.
- Vá, conta-me o que tens feito nessa cidade onde ouço dizer que todas as
madamas usam meias azuis e os homens gostam mais de política do que de
fornicar!
Nesse dia comportei-me como uma tola... descuidada, esquecida do tipo de
rapariga que a Fanny era.
Talvez tenha sido porque era a primeira vez na vida da Fanny que esta me
escutava com atenção. Só depois é que me dei conta de que era demasiado
tarde, e amaldiçoei-me por revelar tantos aspectos que deviam ter
continuado secretos, sobretudo em relação à Fanny.
Quando caí em mim, a minha irmã enrolara-se em cima da cama, apenas de
calcinhas pretas e com um soutien cujo fecho, na frente, abria e fechava
com movimentos ininterruptos e automáticos.
- Agora deixa-me ver se percebi patavina deste imbróglio todo... A tua
avó Jillian tem sessenta e um anos e parece mais nova?... Que raio de ar
é que vocês têm lá por essas bandas?
A astúcia que lhe lia nos olhos devolveu-me de novo a sanidade e pôs-me
de sobreaviso.
- Fala-me do que tens feito - apressei-me a dizer. Tiveste notícias da
tua menina?
Ao que parecia, eu escolhera o tema de conversa mais indicado para lhe
desviar a atenção. Atirou-se avidamente ao assunto.
- A velhota istá sempre a mandar-me fotos da minha menina. Chamam-lhe
Darcy. É um nome bonito, na' achas? Tem cabelo preto... oh, caraças, é
mesmo uma coisinha fofa.
Mal acabou de falar, saltou da cama e começou a remexer agitadamente numa
gaveta cheia de roupa desalinhada, donde tirou um envelope castanho
dentro do qual estavam vinte ou mais fotografias mostrando uma menina em
vários graus de desenvolvimento.
- Vê-se mesmo de quem é filha, na' se vê? - perguntou com orgulho. -
Claro que tem algumas coisas do Waysie. Poucas, mas algumas.
Waysie? Sorri ao lembrar-me do bom reverendo chamado "Waysie". Mas a
Fanny não exagerava. A menina que eu vi nas fotografias era um bebé
lindo. Admirava-me que uma criança nascida de uma união tão pecaminosa
pudesse estar tão bem.
245
- É linda, Fanny, muito linda e, tal como disseste, herdou o que há de
melhor nas tuas feições e nas do pai.
O rosto da Fanny contorceu-se dramaticamente. Atirou-se para cima da cama
enxovalhada, sem se preocupar em afastar para o lado o vestido vermelho
novo, os sapatos e a bolsa que ali deixara, e começou a gemer e a gritar,
esmurrando as almofadas baratas com os dois punhos.
- Isto aqui na' presta, Heaven! Na' é nada como quando éramos novas lá
prós montes! Aqueles realizadores e produtores da Opry gramam o meu
aspecto mas detestam quando boto faladura! Mandam-me ter aulas de voz,
voltar prà escola e aprender a falar ou ainda melhor, dizem-me qu'é
melhor estudar dança p'ra na' ter qu'abrir a boca! Um dia fui a uma aula
pr'aprender a ter maneiras, como eles dizem, mas doeu tanto esticar os
músculos que nunca mais lá pus os cotos! Eu achava que bastava levantar
as pernas pró alto, e tu sabes que na' tenho feito outra coisa na vida!
Mas quando abro a goela, os tipos franzem a tromba como se lhes doessem
os ouvidos! Dizem que tenho demasiado sotaque. Eu 'tava convencida que
pràs cantoras de música regional isso nunca era de mais! Heaven, eles
dizem que eu tenho uma cara e um corpo porreiros, mas qu'o talento é
medíocre... Que querem eles dizer com isso? Se sou meio má, quer dizer
que sou meio boa, por isso posso fazer melhor!
"Mas eu já na' quero saber mais disso p'ra nada! Chateia-me ouvi-los rir
de mim. E agora acabou-se-me a massa toda. Houve uma altura em que ganhei
tanto dele que me habituei a gastá-lo. Costumava dormir em cima dele. com
medo que alguém mo fanasse. Se tu na' tivesses aparcido só me restavam
quinze dele até ao fim da semana e depois tinha de me pôr à rua a ganhá-
lo como pudesse.
Olhou-me de soslaio para ver qual era a minha reacção e, ao ver que não
era nenhuma, endireitou-se e esfregou os olhos com os punhos para limpar
as lágrimas. E, como se tivesse carregado num botão, estas sumiram e a
sua expressão de desalento e frustração desapareceu. Sorriu de novo. Era
um sorriso maldoso e detestável.
- Agora tu cheiras a rica, Heaven. A sério. Aposto qu'esse teu perfume
custou um balúrdio. E nunca vi um cabedal ta' macio como o dessa tua mala
e sapatos. Aposto que tens dez casacos de pele! E que tens centenas de
vestidos, milhares de sapatos, milhões de dólares p'ra gastar! E trazes
presentes que custaram uma pipa de massa. E na' te pareces comigo, nem
com o tom; 'tás aí sentada com pena de mim
246
porque tu tens tudo e eu na' tenho nada! Olha p'ra este quarto e pensa no
sítio de onde vieste tu. Oh, o tom contou-me tudo o que 'tás a querer
esconder-me. Na' te falta nada lá naquela mansão com cinquenta quartos e
casas de banho e Deus sabe para que vos serve tanta fartura! Tu tens três
quartos só p'ra ti, com quatro roupeiros cheios de roupa, malas e
sapatos, jóias e peles, e na' tarda também vais prà universidade. Eu cá
só tenho os pés doridos e estou pior que estragada com toda esta cidade
que não sabe tratar a gente como deve ser!
Voltou a esfregar rudemente os olhos com os punhos, deixando a pele à sua
volta avermelhada e com aspecto magoado.
- E ainda por cima mandaste passear o bonitão do Logan Stonewall! Se
calhar nunca te passou por essa mona estúpida qu'eu se calhar o queria
p'ra mim, pois na'? Tiraste-o de mim e eu tenho-te um pó por causa disso
que nem imaginas! De cada vez que penso no que me fizeste, odeio-te!
Mesmo quando tenho saudades tuas, odeio-te! E é tempo de fazeres mais
alguma coisa por mim do que dares-me uma mancheia de notas miseráveis
qu'ainda por cima na' te fazem difrença nenhuma! Estás cheia dele... Na'
penses que me dás umas quantas miseráveis notas de cem, porque tens muito
mais donde este veio!
Antes que eu pudesse dar-me conta do que estava a acontecer, pôs-se de pé
e atirou-se a mim!
Esbofeteei-a pela primeira vez na vida. A surpresa que teve ao sentir a
minha mão no seu rosto fê-la recuar e choramingar.
- Foi a primeira vez que me bateste - soluçou. - Ficaste má, Heaven
Casteel, má!
- Veste a roupa - ordenei rispidamente. - Tenho fome e quero comer.
Vi-a enfiar uma diminuta saia vermelha que parecia de cabedal e uma
camisola de algodão branca que lhe ficava demasiado pequena. Das orelhas
furadas pendiam-lhe argolas douradas. Os sapatos de plástico encarnado de
solas finas e ar estafado que calçou tinham saltos de doze centímetros, e
o conteúdo da mala de plástico encarnado que deixara cair ao ver-me,
estavam espalhados no chão. Vi um maço de cigarros amassado ao lado de
cinco pequenas embalagens quadradas de preservativos. Desviei o olhar.
- Lamento ter vindo, Fanny. Depois de jantarmos, ir-me-ei embora.
247
A minha irmã manteve-se calada durante o jantar num restaurante italiano
que ficava ao fundo da rua onde morava. A Fanny devorou tudo o que tinha
no prato e o que deixei, embora lhe tivesse mandado vir outra dose de bom
grado. De vez em quando fitava-me furtiva e calculistamente, e eu não
precisei de reflectir muito para saber que planeava o passo seguinte.
Ansiosa por deixá-la e voltar para junto do Troy, ainda permiti que me
convencesse a acompanhá-la de novo até ao seu pequeno quarto.
- Por favor, Heaven, por favor, em nome dos bons velhos tempos, porque és
minha mana e na' podes aparecer aqui e depois deixares-me entregue à
minha sorte.
Mal entrámos no quarto, virou-se para mim e enfrentou-me.
- Agora espera aí! - gritou, pousando os punhos nas ancas e afastando os
pés. - Quem é que tu pensas que és? Na' podes chegar aqui e pirares-te
sem fazeres alguma coisa mais do que pagares-me uma refeição, roupa
barata e umas migalhas de dinheiro!
Enfureceu-me. A Fanny nunca me dera uma palavra de afecto em toda a sua
vida, muito menos algo material.
- Porque não me perguntas pelo tom, pelo Keith e pela "Nossa" Jane?
- Não me posso dar ao luxo de me preocupar com mais ninguém senão eu! -
berrou, bloqueando-me o caminho, de maneira a eu não poder chegar à porta
sem a afastar primeiro. - Estás em dívida p'ra comigo, Heaven! Se estás!
Quando a mãe se pirou, quem devia ter ficado a cuidar de mim eras tu...
Mas estavas-te nas tintas! Deixaste-o pai vender-me ao reverendo e à
mulher, e eles agora têm a minha bebé! E tu sabias qu'eu na' devia tê-la
vendido! Podias ter-me impedido, mas na' fizeste força bastante!
Fiquei de boca aberta! Eu esforçara-me ao máximo para fazer com que a
Fanny reconsiderasse a sua decisão de vender a filha por dez mil dólares.
- Eu tentei, Fanny, eu tentei - disse com a paciência já esgotada. - E
agora é demasiado tarde.
- Nunca é demasiado tarde! E não tentaste com força suficiente! Devias
ter encontrado as palavras certas p'ra dizer e eu tiraria dali o sentido!
Agora na' tenho nada! Nem dinheiro nem bebé! Quero tanto a minha menina
que chega a doer! Na' consigo dormir só de pensar que 'tá com eles e que
eu nunca a terei... eu que gosto tanto dela, preciso dela, quero-a
comigo. Só a tive ao meu colo uma vez, pois tiraram-ma logo para a
entregar à velha senhora Wise.
248
Aturdida pela Fanny e pelos seus irracionais arroubos de temperamento,
tentei exprimir simpatia mas não era isso o que ela queria.
- Na' tentes dizer-me que devia ter tido juízo. Na' tive e agora estou a
pagá-las. Portanto, aqui vai o que podes fazer com toda essa massa que
tens enfiada não sei aonde... Voltas a Winnerrow e dás ao reverendo e à
mulher os dez mil dólares que eles pagaram pela minha filha! Ou dá-lhes o
dobro, mas compra-me a menina de volta!
Não consegui falar. O que ela pedia era impossível. Os olhos da Fanny
mergulharam, incandescentes, nos meus.
- Ouviste o qu'eu disse? Tens de me comprar a minha filha e dar-ma de
volta!
- Não podes estar a falar a sério! Não há possibilidade de recuperares a
tua filha! Disseste-me que, quando entraste no hospital, assinaste
documentos de adopção...
- Não, não assinei! Foram só uns papéis a dizer que Mister Wise podia
ficar com a menina até eu ter idade suficiente para tomar conta dela.
Eu não saberia dizer se mentia; nunca fora capaz de adivinhar o que se
passava na cabeça da Fanny, como o tom era. Ainda assim, tentei
racionalizar.
- Não posso ir até lá e tirar a menina a uns pais que a adoram e cuidam
impecavelmente dela. Tu mostraste-me as fotografias, Fanny. Salta à vista
que a amam o suficiente para lhe darem tudo. E tu, que tens tu para lhe
oferecer? Não posso colocar uma criança indefesa nas tuas mãos e no tipo
de vida que levas. - Abri os braços, abarcando o quarto miserável, onde
nem um berço caberia. - Que farias com uma criança tão pequena e a
precisar de tantas coisas? Onde a deixarias enquanto fosses trabalhar? És
capaz de me dizer?
- Eu na' tenho de te dizer nada! - exclamou com os olhos a faiscar antes
de se encherem de lágrimas. - Ou fazes o que te digo ou sirvo-me desta
massa p'ra me meter num avião e ir até Boston! E quando falar com a tua
avó Jillian, que parece uma anormal de uma rapariga, hei-de contar-lhe
tudo sobre a sua filha, a anjinha que fugiu de Boston. Darei com a língua
nos dentes, falarei daquela cabana sem canalização, do pai e do seu
contrabando, dos seus cinco irmãos na cadeia, e quando essa tal Jillian
souber o que a sua anjinha passou antes de morrer, deixará de parecer tão
nova. Dir-lhe-ei que o pai costumava visitar a "Casa" da Shirley ainda
249
eles eram casados. E falar-lhe-ei dos credores, da latrina fora de casa a
tresandar e da fome qu'a sua rica filhinha passou. E do lindo fim qu'ela
levou depois de parir a filha em casa sem médico nenhum, só com a ajuda
da avó. E quando acabar de lhe contar todas as tuas misérias, ela acabará
a odiar-te... se antes disso não perder o pouco juízo que lhe resta!
Ainda estupefacta, só conseguia olhar fixamente para a Fanny, arrasada
por ela poder odiar-me tanto, quando eu toda a vida fizera o melhor que
podia por ela. Não sabia como enfrentar uma pessoa aparentemente tão
obcecada como ela parecia estar. Passei nervosamente as mãos pelo cabelo
e depois dirigi-me para a porta.
- Nã'te pires ainda, Heaven Leigh Casteel!
O seu sarcasmo, proferido com acentuado sotaque, fez-me sentir
envergonhada. Oh, ela sabia bem como atingir-me nos pontos mais
sensíveis, lembrando-me quem eu era e de onde viera.
Senti um frio inesperado apesar de se estar a meio do Verão, e a
tempestade só refrescara o dia quente, não o esfriara.
- Farei tudo o que puder p'ra te prejudicar... a na' ser que me vás
buscar a minha filha!
- Sabes que não posso fazê-lo - repeti, tão farta da Fanny e da sua voz
estridente que desejei não ter vindo.
- Então que podes fazer por mim? Ha? Podes dar-me tudo o que tens? Um
quarto naquela casa enorme p'ra eu poder gozar o mesmo que tu? Se
gostares de mim, como 'tás sempre a dizer, hás-de querer-me ao pé de ti
todos os dias.
Eu sentia cada vez mais frio. A última pessoa que precisava de ver
diariamente durante o resto da vida era a Fanny.
- Lamento, Fanny - principiei em tom gélido -, mas não te quero na minha
vida. Enviar-te-ei dinheiro todos os meses, o suficiente para viveres com
conforto, mas nunca serás convidada para ir viver na casa onde eu estou.
compreendes, o marido da minha avó fez-me prometer que nunca permitiria
que nenhum membro da minha família Casteel a incomodasse minimamente, e
se estás a pensar em me fazeres chantagem com a ameaça de lhe ires contar
que te vim ver a ti e ao tom, esquece. É que ele pode riscar-me da sua
vida sem um cêntimo, com a mesma facilidade com que pestanejas... E
depois não terás um chavo... Muito menos com que comprar a tua filha.
Os olhos escuros, que faziam lembrar duas fendas, estreitaram-se ainda
mais.
250
- Quanto me vais mandar por mês?
- O suficiente! - respondi com secura.
- Então manda o dobro do suficiente, pois quando tiver a minha menina
comigo vou precisar de toda a massa que possas dispensar-me. E se me
desiludires, Heaven Casteel, arranjarei maneira de chegar a ti, e estar-
me-ei nas tintas p'ra que percas tudo! Seja como for, não o mereces!
O vento dos Willies entrou no quarto e gelou-me ainda mais. Tive a
impressão de ouvir os lobos a uivar à distância. Pareceu-me que a neve se
amontoava, alta, em torno da cabana nos montes, aprisionando-me. Fiz um
esforço para me concentrar no que tinha de fazer e dizer, enquanto os
segundos passavam lentamente rumo à eternidade, e as cortinas rasgadas se
agitavam quarto dentro como espectros.
Nem por um momento duvidei de que a Fanny fizesse exactamente o que
prometera, só para poder vingar-se por eu ter nascido primeiro e dispor
do que ela considerara alguma espécie de vantagem invisível, quando nunca
nada de vantajoso me acontecera até o Logan me preferir a ela..
Só nessa altura é que a verdade me atingiu em cheio no rosto. Não
acreditara nela quando mo dissera. Era por causa do Logan que ela me
odiava! Ela sempre o desejara mas ele nunca lhe dera importância, apesar
de tudo o que a Fanny fizera para atrair a sua atenção. Cobri as faces
febris com as mãos, perguntando a mim mesma o que haveria de errado com
as raparigas dos montes que cresciam demasiado depressa... e
determinavam, muito antes do tempo, qual o homem certo para elas, quando
nenhuma de nós tinha possibilidade de o saber.
A Sarah e a sua triste escolha... Amar um homem como o Luke Casteel. A
Kitty Setterton e o seu amor insano por um homem que só a usara para
satisfazer as suas necessidades fisiológicas. A Fanny, porém, ali estava
com os seus olhos escuros cheios de ódio, a tentar reduzir-me a pó,
quando o Logan já nada tinha a ver comigo... Mas diabos me levassem se
lho entregaria para que desse cabo dele!
- Está bem, Fanny, acalma-te - disse com o maior autoritarismo de que fui
capaz. - Irei até Winnerrow e conversarei com os Wise sobre a
possibilidade de voltar a comprar-lhes o bebé que lhes vendeste. Mas,
enquanto isso, ficas aqui quietinha a pensar muito bem no que precisarás
de fazer para tomares conta daquela menina e para lhe dares uma vida
saudável e onde nada lhe falte. O dinheiro não chega para fazer uma boa
mãe. Será preciso teres mais dedicação e
251
carinho pela tua filha do que por ti própria. Terás de desistir das tuas
aspirações ao palco e ficar em casa a tomar conta da Darcy.
- Na' tenho o qu'é preciso para ter sucesso no Opry, como sempre pensei -
lamentou-se penosamente, o que me fez sentir pena dela por um momento. -
Portanto, mais vale desistir. Há aqui um tipo que me pediu p'ra casar com
ele e pode ser que aceite. Tem cinquenta e dois anos e não o amo, mas tem
um bom emprego e pode sustentar-me a mim e à minha filha... com a tua
ajuda, claro. Esperarei aqui p'la tua vinda e nessa altura já terei dado
o nó mais ele. E, aqui, desta massa que me deste, na' gastarei mais qu'a
que precisar.
Talvez fosse disparate ou falta de oportunidade minha tocar no assunto,
mas não pude conter-me.
- Não cometas a estupidez de te ligar a um homem muito mais velho -
declarei. - Arranja um rapaz mais ou menos da tua idade, depois casem e
fiquem tranquilos; quando eu voltar com a tua filha, ajudar-te-ei até
deixares de precisar de mim.
A Fanny fez brilhar um bonito sorriso de satisfação.
- Claro que ficaremos. Na' contarei a ninguém. Nem mesmo ao Mallory. É o
tipo que me ama. Podes ir e fazer o que puderes... e ganhares... Tu
ganhas sempre, não é, Heaven?
E passou mais uma vez os olhos cobiçosos pela minha roupa e pelas jóias
que me habituara de tal modo a usar que já nem me lembrava que as tinha.
Contudo, não foi para Winnerrow que segui depois de deixar a Fanny
deitada na sua cama em Nashville. Telefonei ao tom.
- A Fanny quer que eu lhe compre a menina para a ter de volta, tom.
Serve-te de parte do dinheiro que deixei ao avô e apanha um avião até
Winnerrow para vires ter comigo e irmos os dois falar com os Wise.
- Heavenly, tu sabes que eu não posso fazer semelhante coisa! Foste uma
parva em dar todo aquele dinheiro ao avô, porque agora nem sequer sabe
dele! Sabes que andou sempre com muito pouco no bolso... Que foi que te
deu para lhe entregares assim tanto dinheiro?
- Porque tu não o aceitarias! - exclamei, à beira das lágrimas por causa
da teimosia do meu irmão.
- Quero abrir o meu caminho pelos meus próprios meios, não com o dinheiro
dos outros - disse o tom teimosamente. - E se fores esperta esquece a
promessa que fizeste
252
à Fanny e deixa os Wise ficar com a menina que todos pensam que é deles.
A Fanny não dará uma boa mãe, nem que lhe ofereças um milhão por mês, e
tu sabes que é assim.
- Adeus, tom - sussurrei com uma certa sensação de derradeira despedida.
O tempo e as circunstâncias tinham-me roubado o irmão que um dia fora o
meu ídolo. Agora só tinha o Troy, que não se mostrou muito bem-disposto
quando lhe telefonei.
- Gostaria que voltasses depressa, Heaven - disse-me com uma voz
estranha. - Às vezes acordo a meio da noite convencido de que não passas
de um sonho e que nunca mais voltarei a ver-te.
- Eu amo-te, Troy! Não sou um sonho! Assim que falar com os Wise, irei
imediatamente para aí e casaremos.
- Mas pareces-me distante e diferente.
- É o vento nas linhas telefónicas. Ouço-o sempre. Ainda bem que não sou
só eu.
- Heaven... - Fez uma pausa e depois disse: Deixa estar, não quero
implorar.
Esperei pelo voo seguinte que me levasse para a Virgínia Ocidental,
seguindo depois para Winnerrow e, aí chegada, para a Main Street, onde o
Logan morava, por cima do drugstore Stonewall.
Oh, eu estava a desafiar o destino a manifestar-se no seu pior, mas na
altura não o sabia. Só sabia que queria ganhar no jogo da sorte em que me
empenhara... E quem sabe se o dinheiro não conseguiria comprar de novo
uma menina, que talvez no futuro ficasse grata...

17 CONTRA TODAS AS VICISSITUDES

Quando entrei na igreja, estavam a cantar. com os rostinhos inocentes


erguidos, entoavam os gloriosos cânticos lítúrgicos que me trouxeram à
memória o tempo da minha juventude, em que a Sarah fizera de minha mãe,
em que tivera por lar a cabana nos Willies, e que o lado mais doce da
minha vida fora o meu amor pelo Logan Stonewall e as horas que ambos
passávamos na igreja aos domingos.
E as vozes, enlevadas na celebração do melhor momento das suas vidas que
se manifestava aos domingos, soavam com espantosa limpidez naquela tarde
escaldante de Verão. De vez em quando, o céu era iluminado por raios
coruscantes. Entrei na igreja atrás das últimas pessoas a chegar e
reparei que o ar era agitado por inúmeros leques de mão, como se o ar
condicionado estivesse desligado, e vi-me de novo transportada para o
tempo em que não passava de uma reles Casteel.
Oh, aquelas maviosas e sãs vozes de anjo eram as mesmas capazes de
refilar, praguejar e amaldiçoar... Naquele momento, quem poderia
acreditar em tal? Não qualquer estranho que não os conhecesse intimamente
como todos os moradores do vale e dos montes. Sentei-me discretamente na
bancada lateral do fundo e fiquei surpreendida ao verificar que havia um
número considerável de habitantes dos montes na igreja, quando não era
costume participarem nos ofícios nocturnos, principalmente numa noite
escaldante como aquela. Os citadinos envergavam os seus melhores fatos e
não se deram ao cuidado de virar a cabeça para olhar para mim, fizeram-no
apenas com os olhos. Miraram a minha roupa com ar superior e uniram-se na
sua hipocrisia colectiva para formar julgamentos precipitados que
raramente se baseavam em factos, apenas em suspeitas e no seu instinto de
rebanho.
254
Apesar do meu requinte, conheciam-me. Não obstante a minha roupa, não me
queriam no meio deles. Não precisavam sequer de dizer uma palavra; a sua
animosidade era aguda e acutilante e, se eu não estivesse tão
determinada, poderia ter sido levada a afastar-me, certa de que, por
muito rica e famosa que me tornasse, jamais conquistaria o seu respeito,
admiração ou, o que eu desejava acima de tudo, a sua inveja. Nada mudara
na ordem do que eles consideravam certo, errado ou adequado, para as
pessoas como eu.
O povo dos montes continuava a sentar-se nas bancadas de trás, o dos
vales ainda mantinha o seu lugar de superioridade nas do meio e aqueles
que gozavam de um estatuto especial, sentavam-se mais perto de Deus, nas
primeiras filas da coxia central; os que ocupavam os bancos da frente
eram os que mais contribuíam para a obra de caridade ou o fundo de
construção então a decorrer. Era aí que se encontrava a Rosalynn Wise,
aprumada e muito bem posta, fitando, com olhos inexpressivos, o marido
que naquele momento subia para o palanque. A batina preta e lustrosa
assentava-lhe tão bem que parecia ter a mesma esbeltez que eu lhe
conhecera quando o vira pela primeira vez, tinha eu dez anos. Porém,
todos sabiam que o reverendo Wayland Wise tinha um apetite tão devorador
que todos os anos ganhava, pelo menos, mais cinco quilos.
Ao entrar na igreja, fora minha intenção ocupar o meu lugar de sempre,
que era também onde se estava mais ao abrigo das rajadas de ar gelado que
entravam pela porta que era constantemente aberta. Para minha própria
surpresa, não foi aí que fiquei. Não tardei a levantar-me e fui até à
terceira fila da coxia central, com todos os olhares pousados em mim pela
minha audácia, onde encontrei um banco vazio e, depois de nele me
instalar, tirei um livro de cânticos da bolsa do lugar da frente, abri-o
automaticamente na página duzentos e dezasseis e comecei a cantar. A
cantar de verdade... com voz sonora, límpida, alta. É que todos os
Casteel sabiam cantar, mesmo quando não tinham motivos nenhuns para tal.
Conseguira atrair as atenções gerais, conseguira-o de maneira chocante.
Todos me fitavam, de boca aberta e olhos arregalados, estupefactos e
alarmados por eu, uma Casteel, me atrever a tanto! Contudo, não tentei
ignorá-los. Fixei directamente todos os olhares acusadores, e a voz não
me tremeu uma única vez ao entoar um velho e conhecido cântico de que a
"Nossa" Jane tanto gostava.
255
Enquanto cantava, quase podia captar os pensamentos deles no ar:
"Aparecera mais uma reles Casteel a meter-se no seu meio santificado!" Os
seus olhos escarnecedores passearam, mais uma vez, sobre o meu rosto, a
minha roupa, desdenhando das jóias que eu usava em excesso só para lhes
mostrar que agora tinha tudo!... Tudo!
Pela multidão perpassou um murmúrio de censura, mas eu não me importei.
Dera a todos uma boa oportunidade para examinarem as minhas jóias e o meu
fato caro.
No entanto, aqueles olhos mantinham-se inexpressivos e desinteressados
ou, se o estavam, não se abriam desmedidamente de admiração ou
estreitavam de surpresa. Para eles, havia maiores probabilidades de uma
galinha vir a ter dentes do que eu tornar-me respeitável.
As mesmas cabeças que tão abruptamente se tinham voltado para me ver
avançar para a frente, desviaram-se de novo ao mesmo tempo, quase fazendo
lembrar um leque de rostos a virar-se. Os pacóvios que estavam ao meu
lado e por trás imitaram os habitantes dos vales, ou seja, olharam
ligeiramente para o outro lado. Empertiguei os ombros, sentei-me e
aguardei. Aguardei pelo toque que porventura viesse através do sermão que
o piedoso reverendo escolhesse fazer naquela noite específica de domingo.
No ar pairava uma sensação de expectativa, um silêncio impregnado de má
vontade. Constrangida, no meu banco, pensei no Logan e nos seus pais,
curiosa em saber se teriam ido à igreja naquela noite. Simultaneamente
esperançada e receosa em ver os Stonewall, perscrutei o mais
disfarçadamente que pude à minha volta sem virar a cabeça.
Então, de repente, as cabeças voltaram a girar para um homem de idade que
se arrastava pela coxia central. Mantive os olhos fixos em frente mas tal
não impediu que o visse pelo canto do olho... Vinha sentar-se ao meu
lado!
Era o meu avô!
O meu próprio avô, com quem estivera ainda há dois dias! O avô, que
metera as notas de cem dólares no bolso, prometendo entregá-las ao tom. E
que ali estava, longe da Florida e da Jórgia, a sorrir-me timidamente,
mostrando o triste estado em que se encontrava a sua boca desdentada.
- Gosto muito de te ver, Heaven - sussurrou ao meu ouvido.
- Avô - exclamei em voz baixa. - Que está a fazer aqui? - Rodeei-lhe a
cintura com o braço e amparei-o o melhor que pude. - Entregou ao tom o
dinheiro que lhe dei?
256
- Não gosto de terras planas - murmurou à laia de explicação, baixando os
olhos descorados que parecia esconderem lágrimas, embora eu soubesse que
era frequente encherem-se de água.
- E quanto ao dinheiro?
- O tom não o quer.
Franzi a testa, sem saber como incutir algo no cérebro de um velho que
não sabia separar a realidade da fantasia.
- Foi o pai que o mandou embora?
- O Luke é bom rapaz. Não faria uma coisa dessas.
Soube-me bem tê-lo ali ao meu lado, incutindo-me coragem com a sua
presença. Ele não me rejeitara como o Keith e a "Nossa" Jane. O tom devia
ter-lhe dito que eu ia a Winnerrow e ele conseguira ir até ali para me
dar apoio moral; e não me restavam dúvidas de que o meu pai ficara com o
dinheiro destinado ao tom.
Os membros da igreja voltaram-se para trás nos seus bancos e levaram um
dedo admoestador aos lábios franzidos, fazendo com que o meu avô se
afundasse o mais possível no seu banco numa tentativa de, obedientemente,
desaparecer.
- Endireite-se - sibilei-lhe, dando-lhe uma cotovelada.
- Não os deixe intimidá-lo.
O meu avô, porém, continuou na mesma posição, agarrado ao seu velho e
gasto chapéu de palha, como se este fosse um escudo.
O reverendo Wise, em silêncio, empertigado e intimidante no alto do seu
palanque, tinha os olhos postos em mim. A distância que se interpunha
entre ele e eu devia andar à volta dos seis metros, mas ainda assim
pareceu-me ler uma espécie de advertência nos seus olhos.
Devia ter iniciado o serviço mais cedo, pois não principiou com uma das
suas enfadonhas orações que parecia nunca mais chegarem ao fim. Começou a
falar num tom suave e coloquial que era simpático e persuasivo.
- O Inverno terminou. A Primavera chegou e partiu. Já vamos a meio de
mais um Verão e não tarda que o Outono ilumine as nossas árvores, antes
de a neve voltar a cair de novo... E que fizemos nós? Ganhámos terreno ou
perdemo-lo? Sei que temos sofrido o pecado desde o dia em que nascemos e,
no entanto, o Senhor, na sua misericórdia infinita, tem-nos mantido
vivos.
"Rimos e chorámos, adoecemos e recuperámos a saúde. Alguns de nós deram à
luz e outros perderam entes queridos, pois essa é a vontade do Senhor,
dar, tirar, compensar
257
-
perdas com dádivas, renovar para depois destruir ao sabor da natureza.
"Mas por muito grandes que tenham sido as nossas agruras, a torrente do
Seu amor nunca deixou de nos acompanhar para que pudéssemos reunir-nos em
lugares de adoração como este e celebrar a vida, mesmo que a morte nos
cerque por todos os lados e a tragédia seja uma certeza no amanhã, do
mesmo modo como hoje. Esta hora é o nosso momento de júbilo. Todos nós
somos abençoados em certos aspectos e amaldiçoados noutros. Odiar,
guardar rancor e julgar sem conhecer as circunstâncias é um crime
comparável ao do assassínio. E embora ninguém possa saber o que nos vai
no íntimo, não existem segredos para Aquele que está lá em cima.
O reverendo era como a Bíblia, ambíguo, e as suas palavras poderiam nada
significar. Falava em tom monocórdico, sem jamais desviar os olhos de
mim; eu, porém, vi-me obrigada a afastar os meus para não correr o risco
de ficar paralisada de puro pavor, pois ele possuía esse tipo de poder
hipnotizador.
A certa altura deparou-se-me, no meio dos numerosos olhares furtivos, a
raiva ardente de um par de olhos verdes implacáveis que me fitavam por
baixo da aba de um chapéu de palhinha verde... Mirando-me com desprezo
estava a Reva Setterton, a mãe da Kitty Dennison!
Senti um arrepio gelado pela espinha. Como pudera voltar a Winnerrow sem
me lembrar, sequer, da família da Kitty? Só acontecera nessa altura, em
que olhei abertamente em volta para ver se o Logan ou os pais estavam
presentes. Não os vi, felizmente. Levei a mão à testa, que ficara
alarmantemente quente, me doía e latejava. Uma vaga de sensações que me
eram desconhecidas começara a deixar-me tonta, alheada da realidade.
De repente, o meu avô endireitou-se e depois levantou-se, vacilante,
pegando-me na mão para eu o imitar.
- Estás com mau aspecto - murmurou -, e o lugar da gente na' é aqui.
Eu estava tão débil que me deixei arrastar, contra vontade; apesar de
velho, ele agarrou-me com tal força na mão que os anéis magoaram-me.
Segui-o até ao fundo da igreja e, aí chegados, voltámos a sentar-nos. A
memória avassaladora dos velhos tempos invadiu-me. Voltara a ser uma
criança hipnotizada pela gente fina que vestia roupa nova e rica,
impressionada pela igreja com as suas janelas altas de vidro fumado,
258
humilhada pelo Deus que ignorava as nossas necessidades e protegia
aqueles que davam dólares de esmola em vez de trocos.
A cabeça, latejante, doía-me terrivelmente. Que estava eu a fazer ali?
Eu, uma maria-ninguém, um zero à esquerda, que viera bater-me contra um
homem que era o gladiador campeão no coliseu de domingo de Winnerrow...
Passeei desamparadamente o olhar pela igreja apinhada, na esperança de
encontrar algum par de olhos amigável... Mas que fora que o reverendo
dissera para que todos se virassem para me fitar?
Os rostos diluíram-se numa única bolha gigantesca com enormes olhos
hostis, e toda a segurança que o amor do Troy me incutira caiu por terra.
Trémula e debilitada pelo ódio que via em todo o lado, apeteceu-me
levantar e fugir, arrastando o meu avô para longe, antes que os leões se
escapulissem das jaulas!
Qual Bela Adormecida que de repente desperta no meio de um campo inimigo,
perdi o encantamento que começara a sentir no dia em que entrara na
Mansão Farthinggale. E que se intensificara quando conhecera o Troy.
Tudo isso parecia agora distante e irreal, um simples excesso da minha
imaginação. Baixei os olhos para as minhas mãos e comecei a girar o anel
de noivado com um diamante de nove quilates que o Troy fizera questão que
eu passasse a usar mesmo que nunca casássemos. A seguir, brinquei
inconscientemente com as pérolas e o pendente de diamantes e safiras, um
presente especial de noivado do Troy. Era curioso ter necessidade de
sentir a dureza daquelas jóias para me convencer de que ainda há poucos
dias vivera numa das casas mais fabulosas e ricas do mundo.
Naquele domingo, naquela igreja, o tempo deixara de ter significado.
Fiquei mais velha e mais nova. Febril e infeliz, os meus ossos ansiavam
por uma cama.
- Curvemos as nossas cabeças e oremos - instruiu o reverendo, libertando-
me, finalmente, do seu olhar fixo e deixando-me respirar com mais
facilidade. - Peçamos humildemente perdão, para que possamos iniciar este
novo capítulo da nossa vida sem os velhos pecados, mágoas e promessas
nunca cumpridas. Que cada dia nos faça respeitar aqueles que achamos que
nos prejudicaram no passado, prometendo não fazer aos outros aquilo que
não gostaríamos que nos fizessem a nós...
259
"Somos mortais vindos a este mundo para nele vivermos com humildade, sem
ressentimentos nem mágoas... - e continuou a falar, aparentemente para
mim.
Por fim, o sermão terminou e nada do que ele dissera era novidade para
mim. Portanto, porque continuaria eu a achar que ele me advertia com os
olhos para que não me manifestasse? Saberia ele que eu tinha conhecimento
de que ele era o pai da linda menina que fora levada de um berçário e
colocada, ainda a dormir, nos braços da sua mulher? Levantei-me, ajudei o
meu avô a fazer o mesmo e dirigi-me para a porta sem esperar no meu
lugar, como era suposto toda a escumalha dos montes fazer, de maneira a
serem os últimos a sair e a apertar a mão santa e piedosa do reverendo.
Mal eu e o meu avô saímos para a rua enevoada de tanta humidade, ouvi um
homem aproximar-se apressadamente de mim e chamar-me pelo nome. A
princípio supus que fosse o Logan... Depois, o coração caiu-me aos pés.
Era o Cal Dennison, de mão estendida e sorriso rasgado de contentamento
no rosto.
- Heaven, querida Heaven - exclamou com voz entrecortada -, que bom
voltar a ver-te! Estás linda, absolutamente espectacular... E agora fala-
me de ti, do que tens feito e do que achas de Boston.
Em Winnerrow, quando fazia calor nas ruas e dentro de casa ainda estava
mais quente, os residentes da cidade não tinham tendência para entrar nos
quartos, preferindo antes os alpendres, que eram tão convidativos. Ouvi o
tinir do gelo em jarros de limonada, enquanto ficava sem saber que dizer
ao Cal Dennison, que um dia fora meu amigo e meu sedutor.
- Gosto muito de Boston - observei, dando o braço ao meu avô e
encaminhando-me para o hotel onde me instalara.
Percorrer a rua principal a pé era como andar entre as fileiras do
inimigo, e a última coisa que eu desejava era ser vista na companhia do
Cal Dennison!
- Heaven, estás a tentar despachar-me? - perguntou o Cal, com uma camada
de suor a cobrir-lhe o rosto agradável.
- Por favor, não poderemos ir até um sítio qualquer tomar uma bebida e
conversar?
- Estou com uma dor de cabeça terrível e ansiosa por um banho frio antes
de me deitar - disse, com sinceridade.
Ao ouvir a minha desculpa, toda a sua expressão pareceu esmorecer.
- Fazes lembrar a Kitty - murmurou baixando a cabeça, enquanto eu ficava
imediatamente cheia de remorsos.
260
Lembrei-me então de que o meu avô continuava ao meu lado.
- Onde é que o avô está instalado? - perguntei-lhe ao chegarmos diante do
único hotel na cidade.
- O Luke preparou a cabana para a Annie e para mim. É lá que fico, claro.
- Avô, venha comigo para o hotel. Não me custa nada reservar-lhe um
quarto só para si, com televisão a cores e tudo.
- Tenho de voltar p'ra junto da Anníe... Ela 'tá à minha espera.
Conformei-me.
- Mas, avô, como é que irá para lá?
Já começara a afastar-se, mas o espanto fê-lo deter-se, vacilante.
- Apanho uma boleia do Skeeter Burl. Ele agora é meu amigo.
O Skeeter Burl? Fora o pior inimigo que o meu avô fizera nos montes... E
agora era seu amigo? Era como acreditar que os banhistas de Julho
gostavam da neve de Janeiro. E como a tola que eu muitas vezes era,
completamente alheia à realidade, peguei no braço do meu avô com brandura
e virámo-nos na direcção do hotel.
- Avô, parece que, afinal de contas, o senhor vai passar a noite no
hotel.
O meu avô mostrou-se imediatamente alarmado. Nunca dormira numa cama
"alugada". Recusava-se a ir. A Annie precisava dele! Tinha animais em
casa que sofreriam se ele não voltasse para tratar deles. Os olhos
deslavados e chorosos adoptaram uma expressão implorante.
- Vai tu pró teu hotel, Heaven. Na' te preocupes comigo. O desespero deu-
lhe a força necessária. Arrancou o braço da minha mão e, movendo-se com
maior rapidez do que eu esperaria, começou a coxear pela rua principal
abaixo.
- Vai tratar dos teus negócios. Eu cá na' gosto de camas que nã'a minha!
- Ainda bem que ele se foi embora - comentou o Cal, agarrando-me no braço
e levando-me para o vestíbulo do hotel, onde havia um pequeno bar.
- É aqui que eu também estou instalado. Vim a Winnerrow para resolver com
os pais da Kitty umas questões legais ligadas às propriedades. Têm-me
feito a vida negra, afirmando que eu não contribuí em nada para os bens
da filha, e que portanto não tenho o direito de ficar nem com a parte que
ela me deixou.
261
- Podem invalidar o testamento dela? - perguntei com ar fatigado,
desejando não ter tido o azar de o encontrar.
Sentámo-nos numa mesinha redonda, e o Cal mandou vir algo para comermos.
Agia comigo como se nada tivesse alterado a nossa relação, e era bem
possível que estivesse à espera de ir comigo para a cama. Fiquei
rigidamente sentada, pouco à vontade, ciente de que teria de o desiludir
mal fizesse a menor alusão a essa possibilidade.
Mordisquei a minha sanduíche de bacon, alface e tomate enquanto ouvia,
meio distraída, o Cal desabafar sobre as dificuldades que estava a ter
com os sogros Setterton.
- E sinto-me só, Heaven, muito só. A vida não vale a pena sem uma mulher
ao lado. Tinha direito a tudo o que a Kitty me deixou, mas como a família
dela contestou, precisei de contratar advogados e isso atrasou-me os
negócios. Perderei metade dos bens da Kitty no tribunal e nos honorários
dos advogados... Mas eles não querem saber. Estão a ter a sua vingança.
Naquela altura eu já mal conseguia manter os olhos abertos.
- Mas eles não te odeiam, Cal. Portanto, porquê tudo isso?
O Cal suspirou e aninhou a cabeça entre as mãos.
- Quem eles odeiam é a Kitty por não lhes ter deixado mais do que
saudades. - Ergueu os olhos, onde brilhavam lágrimas. - Terei a sorte de
certa rapariga bonita voltar para mim? Desta vez já podemos casar,
Heaven, formar uma família. Ambos poderíamos terminar os estudos e ir
para o ensino.
Eu sentia-me prostrada de fadiga, incapaz de resistir quando o Cal me
pegou na mão e a levou aos lábios, apertando depois a palma desta contra
a sua face. Foi nesse preciso instante que o Logan Stonewall entrou no
café acompanhado por uma linda rapariga, puxando de uma cadeira para esta
se sentar; reconheci que era a Maisie, a irmã da Kitty!
Oh, Santo Deus! Contara não ver o Logan. Tinha um ar maravilhosamente
saudável mas, em relação à última vez em que o vira, parecia um pouco
mais velho. O seu aspecto juvenil fora substituído por um certo cinismo,
que o fazia sorrir oblíqua e maliciosamente. Teria sido eu a responsável
por aquela transformação? Os seus olhos cor de safira escura encontraram
os meus por breves instantes; depois ergueu a mão à laia de cumprimento.
Só então é que reparou no Cal, o que lhe conferiu uma expressão de
surpresa e indignação.
262
A partir dessa altura, fez um esforço visível para não olhar na nossa
direcção. A Maisie, contudo, não era uma pessoa discreta.
- Logan, querido, aquela ali na' é a Heaven Casteel, a tua antiga
namorada?
O Logan não se deu ao cuidado de lhe responder. Eu pus-me rapidamente de
pé.
- Não estou a sentir-me bem, Cal. Peço-te que me desculpes. vou já para o
meu quarto deitar-me.
O rosto do Cal Dennison demonstrou bem a desilusão que o invadiu.
- Lamento que estejas assim - disse, levantando-se e pegando na conta. -
Permite-me que te acompanhe ao teu quarto.
Não era necessário nem eu queria que ele fosse comigo, mas estava com
umas dores de cabeça horríveis e sentia uma fadiga profunda no corpo. Que
se passaria de errado comigo? Apesar de todas as minhas objecções, o Cal
acompanhou-me até ao vestíbulo, depois subiu comigo no elevador que nos
levou até ao sexto piso, e a seguir insistiu em me abrir a porta. Eu
entrei apressadamente no quarto e tentei fechá-la atrás de mim; porém,
ele foi mais rápido. Antes que eu percebesse o que estava a acontecer,
ele tomou-me nos seus braços e cobriu-me o rosto com beijos escaldantes
de paixão.
Debati-me para me libertar.
- Pára! Não! Eu não quero! Deixa-me em paz, Cal! Eu não te amo! Acho que
nunca te amei! Larga-me!
Atingi-o no rosto com o punho fechado e por pouco não lhe fazia um olho
negro.
A surpresa e a fúria do meu ataque apanharam-no desprevenido. Deixou cair
os braços e recuou, aparentemente à beira das lágrimas.
- Nunca pensei que te esquecesses dos bons momentos que te proporcionei,
Heaven - observou, com tristeza. Desde que voltei a Winnerrow, faz três
dias, não fiz outra coisa senão desejar, rezar e sonhar em te encontrar.
As pessoas daqui ouviram falar na sorte que tiveste, mas recusam-se a
acreditar nela. O Logan Stonewall anda com meia dúzia de raparigas, entre
elas a Maisie.
- Não me interessa saber com quem ele anda! - solucei, tentando empurrar
o Cal para fora do quarto. - A única coisa que desejo é tomar um banho e
meter-me na cama! Agora vai-te embora e deixa-me em paz!
263
O Cal resolveu obedecer. Já no corredor, olhou-me através da porta aberta
com uma expressão profundamente triste.
- Eu estou no quarto trezentos e dez, para o caso de mudares de ideias.
Preciso de alguém como tu. Dá a ti própria a possibilidade de voltares a
amar-me.
Imagens do Cal e da Kitty juntos vieram-me à memória por breves
instantes. A Kitty a negar-se aos seus avanços nocturnos. A sua voz
implorante a chegar ao meu quarto do outro lado da parede... Óh, sim, ele
precisara de mim! Precisara de alguém jovem, ingénuo e suficientemente
estúpido para acreditar que era um amigo de verdade... Ainda assim tive
pena dele ao vê-lo ali de lágrimas nos olhos.
- Boa noite e adeus, Cal - disse, com brandura, recuando de maneira a
poder fechar-lhe lentamente a porta na cara. - Está tudo terminado entre
nós. Arranja outra pessoa.
O clique da porta a fechar quase se sobrepôs ao soluço que soltou. Fechei
a porta à chave, coloquei a corrente de segurança e corri para a casa de
banho. Tinha os pensamentos em turbilhão... Porque viera eu a Winnerrow?
Que ideia ridícula! Passei a mão pela cabeça. Depois de a banheira estar
cheia, entrei dentro de água e sentei-me cuidadosamente. Estava um pouco
quente de mais. A Kitty gostava dela quase a escaldar. Para onde fora o
avô? Seria possível que regressasse àquela cabana miserável?
Depois de terminar o meu banho, não consegui tirar o meu avô do
pensamento. Que fizera ele com todo o dinheiro que eu lhe dera? Tinha de
ir à procura dele. Não seria capaz de dormir enquanto não tivesse a
certeza de que se encontrava são e salvo na sua cabana. Quando saí do
hotel, sentia a cabeça a latejar.
A rua principal estava enevoada de tanta humidade. Quase não soprava uma
brisa sequer. Lá no cimo, nos Willies, o vento devia assobiar por entre
as folhas das árvores, vindo das montanhas, de modo que às vezes
conseguia mesmo refrescar o interior dos compartimentos minúsculos e
atravancados daquela cabana miserável. Meti-me no carro alugado e
atravessei a cidade. Eram dez e meia da noite. Todo o comércio, com
excepção do drugstore Stonewall, fechava às dez. Mal cheguei aos
arredores de Winnerrow e comecei a subir a estrada serpenteante, o meu
automóvel começou a engasgar-se, aos solavancos, acabando por parar. Sem
saber que fazer, apeei-me e abri o capot. Quem quereria eu enganar?
264
Não percebia patavina de carros. Olhei para os terrenos conhecidos que me
rodeavam e que, naquela altura, assumiam contornos de pesadelo. Podia
regressar ao hotel a pé e enfiar-me na cama, disse de mim para mim, e
esquecer o meu avô e o dinheiro. O tom jamais aceitaria ajuda minha. E na
verdade o meu avô não precisava de mim. Toda eu tremia.
Fiz várias tentativas para pôr o motor a trabalhar, mas foi em vão. O
vento aumentou e trouxe consigo o cheiro da chuva prestes a cair. E não
iria ser uma tempestade vulgar de Verão. A borrasca que se adivinhava
iria trazer ventos ciclónicos do género dos que transportavam granizo e
depois, uma boa carga de água. O vento fustigava-me o rosto, cada vez
mais forte. Não tinha outro remédio senão sentar-me dentro do carro e
esperar que alguém passasse e parasse para me ajudar. Todo o corpo me
doía, e eu comecei a pensar se não teria sido contagiada pela doença do
Troy.
Devia ali estar fazia meia hora quando apareceu um carro, inesperadamente
lento, que o motorista deteve na berma, apeando-se. Ao baixar o vidro da
janela, fiquei chocada ao reconhecer a figura familiar.
- Que estás aqui a fazer sozinha à meia-noite? - perguntou o Logan
Stonewall.
Tentei explicar o que acontecera, enquanto o Logan me mirava com um ar
desconfiado.
- Vá, eu levo-te até lá acima - disse por fim, acompanhando-me até ao seu
carro, com ar severo e autoritário.
Sentei-me no banco da frente, ao lado dele, sentindo-me uma perfeita
idiota e sem saber que dizer.
- Eu próprio ia ver como está o teu avô - declarou o Logan à laia de
explicação, ligando o motor e avançando rapidamente.
- Ele não é da tua responsabilidade - gritei como uma criança, com voz
estranha e enrouquecida.
- Faria o mesmo por qualquer pessoa daquela idade que estivesse ali em
cima sozinha.
Entre mim e o Logan desceu um silêncio denso como nevoeiro. As árvores
que ladeavam a estrada eram cruelmente fustigadas pelo vento e, a certa
altura, o granizo começou a cair, e o Logan viu-se obrigado a parar o
carro na berma e a esperar que o pior passasse. Decorreram dez minutos,
durante os quais nenhum dos dois falou.
O Logan pôs o carro de novo a trabalhar e dirigiu-o para uma estrada de
terra batida que não me era estranha e que
265
não tardaria em dividir-se em duas. Tentei controlar as minhas tremuras
fixando o olhar em frente.
Já lá ia o tempo em que considerara o único hotel existente em Winnerrow
opulentamente majestoso; naquele momento reconhecia que estava velho e
gasto. No entanto, era bem melhor do que a cabana para onde ele me
conduzia! Apeteceu-me chorar! Queria uma cama confortável, lençóis
lavados, bons cobertores e calor para afastar aquele frio inesperado que
sentia nos ossos. Contudo, só iria dispor da cabana com a sua casinha
exterior e o calor incipiente de um velho fogareiro fumacento. À medida
que a civilização ia ficando para trás, em Winnerrow, senti uma sensação
trágica de perda.
Em vez de chorar, desabafei sobre o Logan.
- com que então estás a fazer de bom samaritano com o meu avô, não é?
Imagino que isso seja falta de alguém na tua vida de quem possas ter pena
e demonstrar a tua generosidade.
O Logan lançou-me mais um dos seus olhares trocistas, e eu fitei-o tempo
suficiente para me aperceber de que não detectava uma centelha que fosse
do amor que um dia lhe vira nos olhos. Doía saber que o meu melhor amigo
se tornara no meu pior inimigo, do tipo que me mataria com olhares duros
e palavras cruéis; os punhais deixaria ele que outros me atirassem.
Recostei-me nas costas do assento e deslizei o mais possível para longe
dele, jurando a mim mesma não voltar a olhá-lo, embora o escuro não me
permitisse vê-lo muito bem. Algo de errado se passava com a minha visão.
Sentia-me oprimida por uma tremenda sensação de irrealidade. A dor nos
meus ossos espalhara-se até ao peito, por trás dos olhos e o rosto ardia-
me, além de me doer. Mover-me tornava-se ainda mais difícil.
- Eu conduzo o teu avô a Winnerrow sempre que ele mo pede - disse o Logan
rigidamente, lançando-me um olhar de relance. - Ele de vez em quando
aparece aqui, vindo da Florida ou da Jórgia, para ir ver a sua cabana.
- Disse-me que o Skeeter Burl é que lhe dava boleia até casa...
- O Skeeter Burl levou-o algumas vezes até à igreja e desta para casa,
mas foi morto num acidente de caça há cerca de dois meses atrás.
O meu avô ter-me-ia mentido? A não ser que tivesse perdido o sentido da
realidade e se esquecesse. Eu não devia esquecer
266
que o meu avô se alheara da realidade no dia em que a sua Annie
morrera...
O Logan caiu noutro silêncio prolongado, secundado por mim. O mundo
perdera um homem cruel quando o Skeeter Burl partira, mesmo que tenha
favorecido o meu avô com uma boleia ou duas.
Recorrendo a todos os atalhos, o caminho entre Winnerrow e a nossa cabana
ficava em cerca de onze quilómetros. A minha mente confusa tentou
descortinar respostas.
- Porque não estás em Boston? As tuas aulas não começam em fins de
Agosto?
- Porque não estás tu?
- Tenciono voltar para lá amanhã à tarde... - retorqui com ar vago.
- Se a chuva parar - declarou o Logan secamente.
A chuva caía torrencialmente. Só no princípio da Primavera é que eu vira
chuva assim. Era o tipo de chuva grossa e pesada que transformava
pequenos riachos em fortes caudais e estes em rios furiosos, que deitavam
pontes abaixo, desenraizavam árvores e inundavam margens. Nos Willies,
houvera ocasiões em que chovera durante uma semana ou mais e, quando
terminara, lagos de água impediam-nos de ir a qualquer lado, até mesmo à
escola.
E o Troy contava comigo no dia seguinte ao princípio da noite. Assim que
voltasse para Winnerrow, telefonar-lhe-ia. Passaram mais alguns
quilómetros.
- Como estão os teus pais? - perguntei.
- Óptimos - respondeu o Logan com secura, desencorajando-me de fazer mais
perguntas.
- Ainda bem.
Pouco depois, o Logan saiu da via principal, e a estrada ficou então
reduzida a um carreiro de terra batida, cheio de covas inundadas de água.
A chuva continuava a cair com força, açoitando o vidro da frente e as
janelas do meu lado. O Logan limpou o pára-brisas e inclinou-se para a
frente para ver se conseguia vislumbrar algo. Nunca o vira tão
determinado, tão decidido. De repente, agarrou-me na mão esquerda e
olhou, por instantes, para o enorme diamante do anel que eu tinha no dedo
anelar.
- Já percebi - disse, deixando cair a minha mão como se nunca mais
quisesse tocar em mim.
Cerrei os lábios, fechei a mente e tentei pensar em algo que não fosse a
maneira como a "Nossa" Jane e o Keith me haviam rejeitado. Aquela
horrível sensação de perda pegava-se a mim como musgo velho em
decomposição.
267
O Logan não proferiu mais palavra, dedicando toda a sua atenção ao
caminho, e foi com alívio que virou para o espaço que representava o
pátio da cabana nos montes que eu contara nunca mais ver.
Dessa vez, eu ia à cabana onde nascera com uma perspectiva bostoniana,
agora que a minha sensibilidade fora treinada para apreciar a beleza e a
boa construção, e o meu gosto cultivado para distinguir o que de melhor a
vida tinha para oferecer. Por isso, deixei-me ficar sentada, preparada
para me sentir horrorizada e enojada; pronta para me admirar de que
alguém desejasse voltar... voltar para aquilo! Revia mentalmente a
pequena construção de madeira inclinada e em risco de desmoronar, com o
alpendre da frente a cair, a madeira velha com laivos prateados e manchas
que escorriam das chapas do telhado; o pátio imundo cheio de mato e
arbustos espinhosos, embora as poças de água da chuva escondessem o pior.
Não olharia para a casinha exterior nem me preocuparia em saber como o
avô conseguiria arrastar-se de um lado para o outro. De manhã, teria de
falar com o reverendo. Depois voltaria para junto do Troy.
O Logan estacionava o carro e eu era obrigada a olhar, a enfrentar o
horror que era saber o meu avô naquele sítio, sozinho no meio da chuva,
semiprotegido por um telhado que deixava entrar água, com o fantasma da
sua mulher, numa noite em que o vento soprava, enchendo a cabana de
correntes de ar.
Fiquei imóvel, mal acreditando no que os meus olhos viam.
A cabana miserável desaparecera!
No seu lugar, estava uma cabana de toros de madeira, de ar robusto e bem
construído, do tipo daquelas a que os homens da cidade chamam "pavilhão
de caça".
A surpresa por pouco não me paralisou...
- Como? - perguntei. - Quem?
O Logan agarrou-se ao volante com força, como para se abster de me
sacudir para voltar ao normal. Tão-pouco olhou para mim, enquanto
estivemos sentados dentro do automóvel. E dentro da cabana havia luz.
Electricidade! Fiquei siderada, achando que se tratava de um sonho.
- Segundo ouvi dizer, o teu avô não gostava nada de viver na Jórgia, onde
é tudo plano e faz muito calor - explicou o Logan -, e não conhecia
ninguém por lá. Sentia saudades dos montes, de Winnerrow. E segundo o que
o tom me escreveu a contar, no último mês de Outubro mandaste-lhe
268
algumas centenas de dólares para a ajuda das "figurinhas" e foi com isso
que ele lançou mãos à obra. Queria voltar para onde pudesse ver a sua
Annie. E, como tinha aquela quantia que lhe enviaste pelo correio, voltou
para aqui. O tom também deu a sua contribuição em dinheiro, trabalha dia
e noite. A velha cabana foi demolida e construiu-se esta cabana nova. Só
foram precisos três meses, e hás-de ver que também é óptima por dentro.
Não queres entrar para ver? Ou tencionas deixar o velhote sozinho com o
fantasma que partilha a casa com ele?
De que valeria eu dizer ao Logan que tanto fazia, eu ficar ou partir,
pois o avô continuaria a viver com a sua fantasma bem-amada? Mas não fui
capaz de proferir essas palavras. Em vez disso, fiquei a olhar para a
cabana de dois pisos. Até do lado de fora se via que era bonita por
dentro. Havia dois conjuntos de janelas triplas, ao longo da frente, que
permitiam a entrada do sol em profusão. Lembrei-me dos dois pequenos
quartos, sempre escuros e enfumarados, sempre com insuficiência de luz ou
ar fresco. A diferença que seis janelas faziam!
No entanto, eu queria ver o interior, evidentemente. Todavia,
experimentava uma sensação peculiar, ora tremendo de arrepios de frio ora
corando com um acesso de calor. As minhas articulações começaram a doer-
me a sério; até o estômago andava às voltas.
Abri a porta do carro.
- Amanhã de manhã posso voltar para a cidade a pé, Logan - disse eu. -
Não precisas de esperar por mim.
Fechei a porta, perturbada pelos velhos tempos, agora que me ajustara aos
novos; corri contra a chuva fria e entrei na cabana de toros de madeira.
Para meu espanto, esta, que me parecera pequena vista de fora, dispunha
de uma ampla sala de estar, onde vi o meu avô de joelhos e mãos no chão,
muito atarefado a mexer em lenha que esperava que ardesse na lareira de
pedra que chegava o tecto, abrangendo quase uma parede inteira. A ladear
a lareira, estavam dois belos cães de chaminé em bronze maciço, um bonito
pára-fogo, uma grelha pesada, e ainda não se acendera um fósforo e já a
casa estava quente. Colocadas em frente da lareira, em cima de um enorme
tapete entrançado à mão pela minha avó com as meias de nylon que as
senhoras do bazar da igreja costumavam dar-lhe, estavam as duas cadeiras
de balouço de que os meus avós se costumavam servir no alpendre da velha
cabana. Tinham sido trazidas para dentro de casa no Inverno.
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Eram as únicas peças de mobília que restavam da construção original.
Duas cadeiras que pareciam velhas, descoradas e gastas, mas que me
emocionaram como nenhuma das outras peças da mobília nova.
- Annie... Eu não te disse que ela estava cá? - declarou o meu avô cheio
de entusiasmo, pousando a mão descarnada no braço da cadeira em melhor
estado, onde a mulher costumava sentar-se. - Ela veio para ficar, Annie.
A nossa Heaven veio para cuidar de nós em tempo de necessidade.
Santo Deus, eu não podia ficar!
O Troy estava à minha espera!
O Logan, que me seguira até dentro de casa, observava-me da porta. Tentei
recompor-me e lutar contra o que quer que estava a debilitar-me. Dei uma
volta pelos quatro quartos do piso térreo, apainelados a madeira. Na
cozinha, olhei, admirada, para os electrodomésticos novos e modernos.
Havia um lava-louça duplo em aço inoxidável e, ao lado, uma máquina de
lavar louça! Uma porta dobradiça revelou uma pequena lavandaria com
máquina de lavar e secar! Um frigorífico enorme de porta dupla! Mais
armários do que a própria Kitty tinha na sua cozinha. Cortinas de flores
nas janelas, um paninho de algodão às riscas azuis e brancas com uma
fiada de malmequeres amarelos a debruar, e bolinhas brancas penduradas na
franja. Numa mesa estava estendida uma toalha igual ao pano. Os mosaicos
do chão eram em azul-vivo e as almofadas presas às cadeiras em amarelo.
Eu nunca vira uma cozinha tão bonita e confortável.
Ora, era o tipo de cozinha com que eu costumava sonhar em criança. com
lágrimas nos olhos, acariciei a superfície macia dos armários onde antes
estivera uma prateleira nua, sobre a qual empilhávamos os nossos escassos
pratos. E os nossos poucos tachos e panelas pendiam de pregos enfiados na
parede. Eu começara a soluçar abertamente, vendo todos os utensílios que
teriam feito as delícias da Sarah e da avó, já para não falar do resto de
nós. E, voltando a ser a miúda pacóvia de outrora, abri as torneiras da
água fria e da água quente e meti a mão debaixo... Água corrente ali, nos
montes? Carreguei nos comutadores eléctricos. Sacudi a cabeça. Era tudo
um sonho. Outro sonho.
Continuando, deslumbrada, encontrei uma pequena sala de jantar com uma
bela janela panorâmica que de dia, não fora as árvores, desfrutaria de
uma bela vista do vale. O meu sonho era cortar algumas árvores para que,
no Verão, as luzes
270
de Winnerrow brilhassem na noite como pirilampos. Naquela, nada se via
além de chuva.
Um pequeno corredor por trás da salinha de jantar conduzia a uma casa de
banho ao fundo das escadas e a um quarto adjacente que não podia deixar
de ser do meu avô. Vi as suas "figurinhas" impecavelmente arrumadas em
cima de prateleiras abertas, com espelhos por trás e pequenas luzes
ocultas que acentuavam o efeito provocado pela visão da série de pequenos
animais e gente excêntrica mas engenhosamente retratada. A tapar a enorme
mesa de bronze do avô (não a antiga), via-se uma das melhores colchas
tricotadas pela avó. Havia uma mesa-de-cabeceira com um candeeiro, duas
cadeiras de descanso, uma secretária e uma cómoda. Girei várias vezes
sobre mim mesma, voltei à cozinha e, ao chegar ao meio do andar, comecei
a chorar com força.
- Porque choras? - perguntou o Logan atrás de mim, com voz branda e
estranha. - Pensei que agora isto te agradasse. Ou habituaste-te de tal
maneira a mansões imensas que uma cabana confortável nos montes te parece
demasiado pobre?
- É linda e gosto imenso dela - declarei, tentando conter as lágrimas.
- Por favor, limpa as lágrimas - disse o Logan com voz enrouquecida. -
Ainda não viste tudo. Há quartos lá em cima. Guarda algumas para quando
subires. - E, pegando-me no cotovelo, fez-me avançar, enquanto eu
procurava lenços na minha mala de mão. Sequei os olhos e assoei-me. O teu
avô tem uma certa dificuldade em subir degraus... Não
que não possa fazê-lo, mas acha que esta casa simplesmente não os devia
ter.
Alguém devia ter pensado em tudo. Eu, porém, sentia-me cansada, doente e
a precisar de me deitar, pelo que tentei esquivar-me. O Logan tornou-se
insistente, quase me empurrou escadas acima.
- Não é o tipo de cabana que desejavas quando eras uma miúda a crescer e
a sentires-te privada de tudo o que era bonito? Pois bem, aqui está!
Portanto, olha! E se for demasiado tarde para apreciares todo o trabalho
que isto deu, lamento muito... Mas dá uma vista de olhos e aprecia tudo
agora, para o caso de nunca mais aqui voltares!
No andar de cima, havia dois quartos de tamanho médio e uma enorme casa
de banho dupla.
O Logan encostou-se à porta do armário.
- Pelo que o tom me escreveu, o teu pai também investiu
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dinheiro aqui. Talvez um dia tencione vir para aqui com a família.
Algo de profundo na sua voz fez-me virar para o olhar nos olhos e, dessa
vez, vi-o realmente. Envergava roupa simples, como se já não se desse ao
cuidado de ir à igreja aos domingos. Ao que parecia, não fizera a barba
naquele dia, e esta, a despontar, dava-lhe um aspecto diferente, mais
velho, menos bonito e perfeito.
- Agora já posso ir-me embora. - Dirigi-me para as escadas. - A casa é
linda e ainda bem que o avô tem um sítio agradável onde ficar, com a
despensa bem abastecida de comida.
Dessa vez, o Logan não replicou; limitou-se a descer atrás de mim,
ficando depois a ver-me despedir do meu avô com um beijo na face ossuda e
pálida.
- Boa noite, avô. Boa noite, avó. Amanhã volto cá para vos ver outra vez.
Depois de tratar de alguns assuntos.
O meu avô acenou com a cabeça com ar ausente, os seus olhos ficaram
inexpressivos e começou a remexer nervosamente na franja do xaile que
pusera sobre os ombros. O xaile da minha avó!
- Foi bom ver-te, Heaven, mesmo muito bom. Não tencionava implorar.
- Tenha cuidado consigo, avô, 'tá bem? - Falei com sotaque provinciano
que não tive dificuldade em recordar. Precisa de alguma coisa, quer que
lhe traga algo da cidade?
- Agora não preciso de nada - murmurou o meu avô, olhando em volta com
olhos fatigados. - Há uma senhora que vem da cidade para nos preparar as
refeições. Todos os dias. A Annie diz que é muita bondade dela mas que,
se estivesse melhor da vista, poderia ela mesma cozinhar.
Toquei no braço da cadeira da minha avó, que a mão dela polira de tanto
uso. Inclinei-me e fiz de conta que lhe dava um beijo, o que fez brilhar
os olhos do meu avô.
Ao sair para o alpendre, tropecei duas vezes. O vento e a chuva
assemelhavam-se a um animal bravio, ávido de destruição. O vento era tão
intenso que me cortava a respiração e a chuva cegava-me. O Logan amparou-
me, impedindo que caísse pelas escadas.
Gritou-me algo aos ouvidos. O vento ululava, sobrepondo-se à sua voz. A
meio das escadas vacilei e os meus joelhos cederam. O Logan pegou-me
imediatamente ao colo e levou-me de novo para dentro da cabana.
272

18 PARTIDAS DO DESTINO

O tempo pregava-me partidas. Vi uma mulher idosa, que me fazia lembrar a


minha avó. Dava-me banho e alimentava-me e estava sempre a dizer que era
uma sorte morar perto, pois as pontes tinham ido abaixo e o médico não
podia vir da cidade. Via o Logan constantemente, deparando-se-me ele
sempre junto de mim, quer acordasse em plena luz do dia ou no meio da
escuridão da noite. Via, no meu delírio, o rosto do Troy e este a chamar
incessantemente pelo meu nome.
"Volta, volta", repetia sem cessar. "Salva-me, salva-me, salva-me."
Contudo, as chuvas torrenciais não paravam de cair, fazendo-me pensar,
mesmo quando tinha os olhos abertos e me sentia mais ou menos racional,
que fora apanhada numa espécie de purgatório, mais próximo do inferno que
do paraíso. Até que chegou o dia implacável em que acordei sem a mente
perturbada pela febre, e o quarto à minha volta tornou-se bem visível,
dando-me então conta, estupefacta, do sítio onde me encontrava. Estava
deitada numa das camas amplas de um dos quartos do andar de cima da
reconstruída cabana dos montes, fraca e empalidecida, apercebendo-me de
que acabara de passar por uma das doenças mais terríveis da minha vida.
Eu costumava ser mais saudável do que a "Nossa" Jane; raramente sofria de
algo que me obrigasse a ficar um dia, sequer, de cama.
O facto de jazer indefesa e sentir-me demasiado fraca para erguer a mão
ou virar a cabeça representava uma experiência completamente
desanimadora. Tão desanimadora que fechava os olhos e voltava a
adormecer. Na vez seguinte, acordei a meio da noite e vi o Logan a velar
por mim. Tinha a barba por fazer; parecia fatigado, preocupado e bastante
atormentado. Mais tarde, já o Sol ia alto, acordei e dei com ele a
passar-me um pano molhado no rosto; humilhada, tentei afastar as mãos
prestimosas.
273
- Não - fiz por sussurrar, mas tive um tal paroxismo de tosse que não
pude falar.
- Lamento muito mas a Shellíe Burl deu uma queda e torceu o tornozelo.
Portanto, não pode vir hoje. Terás de te contentar comigo - disse o Logan
com voz áspera e expressão solene.
Intimidada, não soube que fazer senão fitá-lo.
- Mas preciso de ir à casa de banho - sussurrei, corando de embaraço. -
Agradeço que vás chamar o meu avô para me amparar.
- O teu avô não consegue subir as escadas sem ficar muito aflito da
respiração e já não faz pouco para ele mesmo se manter de pé.
Dito isto, o Logan ajudou-me meigamente a levantar da cama. A cabeça
andava-me à roda, e, sem ele a segurar-me, teria caído; passo a passo,
amparando-me como se eu fosse uma criança pequena, levou-me até à casa de
banho. Agarrei-me a um suporte de toalhas até ele fechar a porta, e em
seguida deixei-me cair sobre a sanita, quase esvaída.
No decorrer dos dias seguintes, recebi uma dura lição de humildade ao ter
de aceitar a ajuda do Logan para ir e vir até à casa de banho. Aprendi a
engolir o orgulho e a aceitar o modo como ele me dava um banho de esponja
com a maior modéstia possível, resguardando a pele que ele limpava por
baixo de um lençol de flanela. Às vezes choramingava infantilmente e
tentava afastá-lo com rudeza, mas esse dispêndio de energia fatigava-me
de tal maneira que não tinha outro remédio senão submeter-me. Depois,
dei-me conta do esforço infrutífero que era eu resistir. Precisava dos
seus cuidados. De modo que, a partir daí, submeti-me sem me queixar ou
lamuriar.
Tinha consciência de que eu, no meu delírio febril, chamara pelo Troy.
Implorei repetidas vezes ao Logan que lhe telefonasse e explicasse por
que razão eu não voltara para concretizarmos os nossos planos de
casamento. Vira o Logan anuir, ouvira-o dizer que estivesse descansada
que ele andava a tentar contactar com o Troy. Mas não acreditara nele.
Nunca acreditara nele. Mal tive forças, bati-lhe nas mãos que tentavam
meter-me uma colher de remédio na boca. Arrastei-me para fora da cama por
duas vezes, numa tentativa desesperada para eu própria telefonar ao Troy,
conseguindo unicamente levantar-me e ficar de tal maneira fraca que
acabei por cair de imediato no meio do chão. O Logan, que estava deitado
na pequena cama que improvisara ao fundo do
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quarto, pôs-se de pé num salto e, pegando em mim, levou-me de novo para a
cama.
- Porque não consegues confiar em mim? - perguntou-me ao imaginar-me a
dormir, com voz terna, afastando-me com meiguice o cabelo húmido da
testa. - Vi-te com o Cal Dennison e tive vontade de o atirar contra a
parede. Uma vez também te avistei ao lado desse tal Troy por quem chamas
tanto, e odeio-o. Tenho sido um louco, Heaven, um perfeito louco, e agora
perdi-te. Mas porque tiveste sempre de ir procurar noutro lado aquilo que
eu estive tão ansioso por te dar? Nunca me deste oportunidade para ser
mais do que um amigo. Mantiveste-me à distância, resististe aos meus
beijos e aos meus esforços para me tornar teu amante.
Entreabri as pálpebras e vi-o sentado na beira da minha cama, de cabeça
melancolicamente baixa.
- Agora sei que fui um tolo em ser tão comedido... Porque tu amas-me.
Tenho a certeza de que me amas!
- Troy - gemi suavemente, vendo o Logan indistintamente e, por trás
deste, no meio das sombras, o Troy, de pé, com o rosto mergulhado na
escuridão. - Tenho de salvar o Troy...
Ao ouvir-me, afastou-se e levantou a cabeça.
- Volta a dormir - ordenou -, e deixa de te ralar com aquele homem. Ele
deve estar bem. Falaste muito nele, mas de uma coisa eu tenho a certeza:
na vida real, as pessoas não morrem de amor.
- Mas... mas tu não conheces o Troy... Não sabes como ele é... não...
como eu.
O Logan virou-se para mim, alterado e com a paciência por um fio.
- Heaven, por favor! Se não deixas de resistir ao que eu estou a tentar
fazer contigo, nunca mais ficarás boa. Não sou médico, mas sei bastante
sobre medicação e estou a aplicar todos os meus conhecimentos em ti. Há
algumas semanas atrás, trouxe ao teu avô um bom fornecimento de remédios
para as doenças do frio, sem nunca me passar pela cabeça que acabarias
por ser tu a precisar deles. Todas as estradas para a cidade estão
inundadas. Há cinco dias consecutivos que a chuva não pára de cair. Não
consigo tirar o carro para fora do pátio, porque está tudo cheio de
detritos e água. Já tive de o fazer sair três vezes do meio da lama que
lhe chegava aos tampões das rodas.
Submeti-me à sua medicação, pois não sabia que mais fazer. Tinha
pesadelos com o Troy. Estava sempre a fugir de
275
mim montado a cavalo e, quando chamava por ele, escapava-se ainda mais
depressa. Eu seguia-o noite dentro, no meio da escuridão.
De vez em quando, vislumbrava o meu avô, com a respiração a sair-lhe em
curtos haustos sibilantes, com o rosto mirrado de ancião debruçado sobre
mim, com uma expressão ansiosa e passando os dedos fracos pelos meus
cabelos longos e ensebados.
- 'tás com um ar macilento, Heaven. Mesmo macilento. A Annie vai fazer-te
um chazinho medicinal... o seu chá de ervas. E preparou-te uma sopa.
Agora come...
Por fim, chegou o dia em que a minha febre desapareceu. Os meus
pensamentos aclararam-se. Apercebi-me, pela primeira vez, do horror da
minha situação. Encontrava-me de novo nos Willies, de volta ao sítio onde
se erguera a velha cabana. Longe do Troy, que devia estar desesperado de
tanta preocupação.
Olhei debilmente para o Logan, que tirava lençóis lavados do pequeno
armário da roupa de cama e vinha na minha direcção, sorrindo-me. A barba
parecia fazê-lo mais velho e tinha um ar profundamente cansado.
Em criança, desejara muitas vezes adoecer só para pôr o meu pai à prova e
ver se ele cuidava de mim com tanto carinho como o vira, certa vez tratar
da Fanny. Mas claro que nem um copo de água ele se preocuparia em me
levar.
- Vai-te embora! - solucei quando o Logan me entregou mais uma cápsula,
junto com um copo com água. O que fizeste é embaraçante! - Encolhi-me,
tentando fugir ao toque das suas mãos. - Porque não telefonaste a mandar
vir uma enfermeira depois de Mistress Burl torcer o tornozelo? Não tinhas
o direito de fazer o que fizeste!
Impávido e sereno, o Logan não ligou a menor importância às minhas
palavras. Rolou-me para o lado, forrou o colchão com um lençol de flanela
e foi buscar uma bacia de água quente, várias toalhas, uma esponja e uma
saboneteira.
- Não!
O Logan mergulhou a esponja na água, ensaboou-a e depois entregou-ma.
- Está bem, lava tu a cara. As linhas telefónicas foram a primeira coisa
a ir abaixo. Isso aconteceu na noite em que aqui viemos. Ouvi o boletim
meteorológico num rádio a pilhas. Está previsto a chuva parar hoje à
noite. Só daqui a alguns dias é que as estradas voltarão a estar
transitáveis, e nessa altura já deverás estar suficientemente recuperada
para viajar.
276
Tirei-lhe a esponja das mãos e fitei-o colericamente até ele sair do
quarto. Atirou com a porta atrás de si e eu, cheia de determinação,
esfreguei a pele. Vesti uma camisa de dormir lavada, uma das muitas que
enviara ao meu avô pelo correio, dessa vez sem a ajuda do Logan.
Nesse dia, quando o Logan trouxe o tabuleiro com sopa e sanduíches, fiz
um esforço para comer. Evitámos olhar um para o outro.
- Como estão as estradas? - consegui perguntar, quando ele ia a sair com
o tabuleiro vazio.
- A melhorar. Já faz sol. Não devem demorar a restabelecer a
electricidade. Assim que conseguir trazer uma enfermeira para cuidar de
ti, ir-me-ei embora. Assim já ficarás satisfeita. Escusas de voltar a
ver-me.
- Agora estás com pena de mim, não estás? - gritei, com as poucas forças
que tinha. - Agora consegues gostar de mim porque estou doente e
fragilizada, mas quando estiver boa passarei a ser-te indiferente. Não
preciso do teu tipo de compaixão e piedade, Logan Stonewall! Estou noiva
de um dos homens mais maravilhosos do mundo. Nunca mais voltarei a ser
pobre! E eu amo-o, amo-o tanto que estou desgostosa por estar aqui
contigo em vez dele!
Pronto, já o dissera, da forma mais cruel possível. O Logan deteve-se,
apanhado num feixe fortuito e débil de sol, para em seguida o seu rosto
empalidecer profundamente e ele dar meia volta e sair porta fora.
Depois de ele sair, chorei. Chorei durante muito tempo. Chorei por tudo o
que existira um dia, por todos os sonhos deixados por realizar. Porém,
não tinha importância. Eu tinha o Troy. Este não sentia pena de mim.
Amava-me, precisava de mim, morreria por mim.
Nessa tarde, obriguei-me a ir até à casa de banho sozinha. Tomei banho de
imersão. Lavei o cabelo com champô. Dali a um dia ou dois, abandonaria
aquele lugar para nunca mais voltar.
As minhas forças demoraram mais tempo a voltar do que eu esperara. Do
mesmo modo que as estradas levaram mais tempo a livrar-se da água do que
o Logan previra; só depois de a lama secar é que ele partiu. Aguardou
pacientemente no piso térreo, até um dia o carteiro aparecer e informar
que todas as estradas que iam dar a Winnerrow já estavam transitáveis
para quem não se importasse de ficar meio enterrado em lama de vez em
quando. Por volta das quatro da tarde daquele dia, enquanto o Logan
passava pelas brasas no sofá
277
da sala, consegui descer as escadas sozinha e ir até à cozinha ajudar a
preparar uma refeição simples. O meu avô parecia muito contente. O Logan
nada disse quando eu o chamei para a mesa da cozinha, embora eu sentisse
os seus olhos a seguir cada movimento meu.
Eu ainda estava fraca, pálida e trémula quando o Logan me deixou em
frente do único hotel de Winnerrow, e eu mudei de roupa no quarto que
voltei a alugar, antes de fazer a minha chamada interurbana para o Troy.
Este não atendeu do telefone da sua casa de pedra. Enquanto esperava por
ouvir a sua voz do outro lado, fui-me enervando e sentindo fraca.
Desliguei e experimentei outro número. Dessa vez foi um dos empregados da
Mansão Farthinggale a atender.
- Sim, Miss Casteel, direi a Mister Troy que telefonou. Ele passará o dia
fora.
Preocupada e desconcertada por achar que o Troy não estava onde devia,
servi-me de novo do elevador e encontrei o Logan à minha espera no
vestíbulo do hotel. Levantou-se delicadamente ao ver-me, mas não sorriu.
- Precisas de mim para alguma coisa?
Levei as mãos à testa. Restavam-me quatro horas até ao meu avião partir
para Boston.
- Tenho de falar com o reverendo Wise. Mas posso ir sozinha. - Baixei os
olhos para as suas mãos, fixando-os nelas enquanto me desculpava. -
Lamento ter sido desagradável contigo. Agradeço a tua ajuda, Logan.
Desejo-te muitas felicidades. Não precisas de fazer mais nada por mim. De
agora em diante cuidarei de mim própria.
Senti que me fitava demoradamente, como que a querer ler o que me ia na
mente. Depois, sem responder com palavras, pegou-me no braço e levou-me
até ao carro que estacionara em frente e, a caminho, lentamente, tentou
responder às minhas perguntas.
- O meu pai costuma ir visitar o meu avô muitas vezes?
- Creio que vem sempre que pode.
O Logan não proferiu mais palavra até me deixar na rua principal, mesmo
em frente da paróquia onde o reverendo Wayland Wise vivia com a mulher e
a filha pequena.
- Mais uma vez obrigada - agradeci rigidamente. Mas não precisas de
esperar.
- Quem é que te levará as malas para o carro alugado... se é que ainda
está em teu poder? - perguntou o Logan com ironia.
278
Portanto, fez questão em esperar, e eu tentei não tropeçar nem perder o
equilíbrio ao subir pelo carreiro recentemente limpo dos detritos
deixados pela tempestade. Ao chegar diante do alpendre alto, virei-me e
vi o Logan pacientemente à espera, de cabeça inclinada para a frente,
como se a fadiga de ter velado por mim dia e noite o tivesse feito
adormecer ao volante.
Bati à porta e, enquanto esperava que alguém atendesse, senti-me
avassalada por uma raiva terrível que me fez desaparecer a debilidade,
dando-me novas forças.
O reverendo e a mulher não teriham o direito de roubar a filha da Fanny!
O sacerdote seduzira a minha irmã ainda esta era uma adolescente, menor
de idade! Catorze anos. Crime de violação!
Sim, eu estava ali para trazer de volta ao seio da família pelo menos uma
criança, que substituísse as duas que eu perdera. Embora eu tivesse
grandes dúvidas de que devesse ser a Fanny a criá-la.
Foi a Rosalynn Wise em pessoa quem veio ver quem batia tão
insistentemente à sua porta. Fez má cara ao ver-me, embora os seus olhos
não denotassem surpresa. Era como se soubesse que, depois da minha visita
à igreja oito dias antes-," eu acabasse por aparecer por ali. Vestia,
como de costume, um vestido escuro e sem graça, que a fazia parecer um
pau de virar tripas.
- Não temos nada para lhe dizer - declarou à laia de saudação. - Agradeço
que saia do nosso alpendre e não volte.
E, tal como fizera à Fanny no passado, preparou-se para me fechar a porta
na cara, mas dessa vez eu estava preparada. Avancei e empurrei-a para o
lado, entrando na casa.
- Vocês devem-me muitas explicações - declarei eu, no meu tom mais frio.
(Aprendera muito bem, em Boston, a agir com superioridade.) - Leve-me até
ao seu marido.
- Ele não está.
E quis impedir-me de ir mais longe.
- Saia daqui! - gritou. - A menina e a sua irmã já causaram problemas de
sobra.
O rosto comprido e ossudo assumiu o ar piedoso daqueles que contactam com
a escória humana.
- Ah, então agora admite que a Fanny é minha irmã. Que interessante...
Que aconteceu a Louisa Wise?
- Quem é que bateu à porta da frente? - perguntou o reverendo no tom de
voz vulgar que devia reservar para uso doméstico.
279
A sua voz conduziu-me até ao seu gabinete, onde a porta estava
parcialmente aberta; entrei, apesar dos esforços da mulher em me impedir
de o fazer. Naquele momento, ao enfrentar o homem mais influente de
Winnerrow, desejei estar melhor de saúde, para poder dizer-lhe todas as
palavras que trouxera preparadas para proferir antes de a febre mas
roubar da memória.
Semierguendo-se da sua cadeira, "Waysie" Wise dirigiu-me um sorriso
afável que me deixou descorçoada. Viera na expectativa de os apanhar aos
dois em desvantagem. Ainda não eram dez horas da manhã; no entanto, a
mulher do dono da casa encontrava-se vestida e este também. A única
concessão que ele dava ao conforto doméstico eram as pantufas de veludo
preto debruadas a cetim vermelho. Por alguma razão estranha, aquelas
pantufas exóticas e elegantes desconcertaram-me.
- Ah! - exclamou o reverendo, esfregando as mãos, ao mesmo tempo que o
seu rosto adoptava um ar inexpressivo e complacente. - Estou a ver que é
um dos membros do meu rebanho de volta, finalmente, ao seu redil.
Não poderia ter encontrado palavras mais eficazes para fortalecer o meu
ego conturbado. Como se aquele fosse o grande dia da minha vida, senti-me
plenamente justificada e no direito de lhe dizer qual era a minha opinião
sobre ele. Voltou a sentar-se na sua confortável cadeira de costas altas
em frente da lareira, onde flores artificiais faziam as vezes de grelha.
Escolheu cuidadosamente um charuto de entre os que enchiam uma caixinha
chapeada a cedro vermelho que tinha perto de onde estava sentado; cortou-
lhe a ponta, mirou-o com atenção e só depois é que o acendeu. Quanto a
mim, fiquei todo esse tempo de pé.
Saltava à vista que não tencionavam convidar-me a sentar. Avancei e
escolhi uma das duas cadeiras gémeas para me instalar. Cruzei as pernas e
vi-o passar os olhos por elas, lembrando-me de que o Troy estava sempre a
dizer que eram muito bem-feitas. Os meus sapatos eram novos.
O reverendo passeou indolentemente os olhos escuros por mim, de alto a
baixo. Exprimiu grande interesse e, ao pousar o seu olhar no meu rosto,
viu-se forçado a sorrir sedutoramente. Era um sorriso tão doce que não
admirava que alguém tão ingénuo como a Fanny se tivesse deixado levar.
Mesmo visto de perto, era um homem atraente. As feições eram correctas,
tinha a pele clara e uma saúde de ferro que lhe fazia a pele corada
brilhar. Chegado à meia-idade, começava
280
a ter uns quilitos em excesso, embora eu suspeitasse que, mais tarde,
depressa passaria de barrigudo a gordo.
- Sim... Acho que já a vi anteriormente - observou em tom gutural e
lisonjeiro -, embora esquecer-me do nome de uma jovem tão bonita não
esteja, de modo algum, nos meus hábitos.
Quando entrara naquela casa, não fazia a menor ideia de como iria abordá-
lo, mas foram aquelas as palavras ideais para me proporcionarem o ímpeto
de que necessitava. Ele estava com medo. Escondia-se por trás de um
disfarce de inocência.
- O senhor não se esqueceu do meu nome - observei em tom delicado,
balançando o meu pé e transformando o meu salto alto numa arma
ameaçadora. - Nunca ninguém esquece o meu nome. Heaven Leigh distingue-se
muito bem dos outros, não acha?
A tosse que tivera durante a doença alterara-me a voz, tornando-a algo
diferente, ligeiramente rouca; e o tempo passado em Boston emprestara-lhe
uma certa sensualidade que até a mim mesma surpreendia.
- A Fanny está muito bem, obrigada por perguntar, reverendo Wise. Manda-
lhe cumprimentos.
Sorri-lhe, sentindo uma espécie de poder crescer ao ver que ficara
fascinado pela minha juventude e beleza. Desconfiava que fora um alvo
fácil para a capacidade de sedução da Fanny, apesar da sua condição de
sacerdote.
- A Fanny está muito grata a si e à sua esposa por terem tomado conta da
sua filha, mas agora desistiu da sua carreira de artista e em breve
casará. Portanto, quer reaver a criança.
O reverendo não mostrou o menor indício de perturbação, embora eu ouvisse
a mulher, atrás de mim, suster a respiração e começar a soluçar.
- Porque não veio a Louisa aqui para falar pessoalmente? - perguntou o
reverendo com voz macia e sussurrante.
Tentei encontrar as palavras certas.
- A Fanny confia que eu diga o que ela não conseguiria exprimir sem
chorar. Lamenta a sua decisão apressada em vender a filha ainda por
nascer. Agora sabe que uma mulher, depois de dar à luz, nunca mais pode
voltar a ser a mesma. O seu colo anseia pela filha. Mas não vos quer
prejudicar, pois eu venho preparada para vos restituir os dez mil
dólares.
O sorriso do reverendo não desarmou. Conseguiu mesmo mantê-lo enquanto
falava.
- Para lhe ser franco não percebo do que fala. Que dez
281
mil dólares? Que temos, a minha mulher e eu, a ver com a filha da Fanny?
Temos consciência, evidentemente, de que a querida Louisa não se abstinha
de favores sexuais, malnascida, e mal preparada para a vida como estava e
comportando-se como uma cadela com o cio... Mas se ela quis vender a
filha e agora está arrependida, só nos resta lamentá-lo...
Levantei-me, acerquei-me da secretária do reverendo e peguei numa moldura
em prata que enquadrava o retrato de uma criança com cerca de quatro
meses. O bebé sorria para a máquina fotográfica com os olhos escuros da
Fanny, uns autênticos olhos de índio dos Casteel. A cabeleira da menina
não era lisa e áspera como a da Fanny, mas sim macia e encaracolada como
a do reverendo devia ter sido nos seus tempos de criança. Oh, e era linda
a criança que a minha irmã tão insensatamente vendera! Rechonchuda, mãos
com covinhas, um anel minúsculo num dos dedos. Uma filha acarinhada,
mimada e muito querida.
O retrato foi-me repentinamente arrancado das mãos!
- Saia daqui! - gritou a Rosalynn Wise. - Wayland, porque estás aí
sentado a falar com ela? Põe-na fora!
- Vim preparada para pagar pela filha da Fanny - declarei friamente. -
Podem ficar com vinte mil dólares. Dez mil por terem cuidado dela. Caso
contrário, chamarei a Polícia e dir-lhe-ei o que fez quando foi à nossa
cabana e pagou quinhentos dólares pela Fanny. Contarei às autoridades que
utilizou a minha irmã como escrava para os trabalhos domésticos, que o
bom padre abusou sexualmente de uma menina de catorze anos e a obrigou a
ter um filho seu porque a mulher era estéril...
O reverendo levantou-se.
Olhou-me do cimo da sua altura com olhos que se haviam transformado em
dois pontos escuros e cruéis.
- Sinto ameaças na sua voz, rapariga. Isso não me agrada. Uma Casteel
reles não tem o direito de me ameaçar nem com o seu tom de voz, o seu
olhar feroz ou as suas palavras tolas... Conheço muito bem os da sua
laia. - Retomou o seu sorriso confiante, tentando intimidar-me. - A
Louisa nunca nos telefonou ou escreveu, apesar de tudo o que fizemos pela
sua felicidade e bem-estar. Porém, é frequente isso acontecer com os
eleitos de Nosso Senhor... Tentarem fazer de bons samaritanos e em troca
receberem apenas rancor de quem lhes devia estar grato.
Entoou outras frases, citações da Bíblia que vinham a propósito, como se
nada no mundo pudesse perturbar o seu equilíbrio.
282
- Cale-se! - gritei. - O senhor comprou a minha irmã ao meu pai. - Referi
o dia e o ano. - E o meu irmão tom e eu estávamos presentes e podemos
testemunhar o que se passou na nossa cabana.
Fiz uma pausa, vendo-o descalçar as pantufas de veludo e enfiar os pés em
sapatos largos, antes de se sentar majestosamente à sua secretária
enorme, impecavelmente arrumada. Ao instalar-se na sua cadeira rotativa,
inclinou-se para a frente e apoiou o queixo sobre os dedos unidos nas
pontas. Depois, desviou as mãos de modo a estas taparem-lhe a boca. Só
nessa altura é que descobri que os lábios, em combinação com os olhos, é
que permitiam uma leitura mais apurada dos seus pensamentos. Agora eu só
tinha os seus olhos disponíveis, olhos que se mostravam imperscrutáveis.
- A menina não tem o direito de vir aqui fazer exigências. Pode usar
jóias e vestuário caro, mas continua a ser uma Casteel. E entre a sua
palavra e a minha... em quem acha que as autoridades acreditariam?
Consegui esboçar um sorriso confiante.
- A Darcy é a cara da mãe.
O sorriso do reverendo tornou-se untuoso e demoníaco.
- Não percamos tempo com um facto comprovado. Temos documentos que
atestam que a minha mulher deu à luz uma menina no dia três de Fevereiro
deste ano. De que prova legal dispõe a indicar que a Fanny tenha tido,
sequer, um bebé?
O meu sorriso vacilou, depois firmou-se.
- Estrias. A sua mulher também as tem? Impressões digitais. Das mãos e
dos pés. Nós, os Casteel, não somos tão imbecis como o senhor julga. A
Fanny roubou uma cópia do certificado de nascimento da filha. Nesse
documento, ela é referida como a mãe, não a sua esposa. O senhor mandou
fazer um falso... Que acharão as autoridades desse facto?
A Rosalynn Wise, atrás de mim, gemeu.
O reverendo Wise pestanejou uma ou duas vezes. Percebi então que os
apanhara! No entanto, eu mentira. Tanto quanto sabia, a Fanny não possuía
nenhuma prova. Absolutamente nenhuma.
- Nenhum homem se daria jamais ao trabalho de seduzir a sua irmã
promíscua! - gritou a Rosalynn Wise, mortalmente pálida, ao mesmo tempo
que recuava em direcção à porta.
Ergui a cabeça bem alto.
- Isso não interessa. A questão é que o reverendo Wise
283
se aproveitou de uma menina de catorze anos. Ele, um homem de batina, fez
um filho à Fanny, sendo esta de menor idade! Uma criança que agora este
venerado ministro de Deus afirma ter sido concebida no ventre da sua
esposa! Qualquer exame físico provará que a sua mulher jamais deu à luz.
A Fanny quer a sua menina. Eu quero que ela a recupere. Vim buscar a
Darcy para a levar para casa da sua mãe.
A Rosalynn Wise gemeu como um cão espancado.
Porém, o reverendo não depusera as armas.
Os seus olhos tornaram-se mais duros e frios.
- Sei quem a menina é. A sua avó do lado materno casou com um indivíduo
do clã dos Brinquedos Tatterton. Portanto, tem o apoio de milhões e pensa
que pode sobrepor-se a mim. A Darcy é minha filha e lutarei de unhas e
dentes para que ela permaneça aqui em minha casa e não na de uma vadia.
Portanto, saia daqui e nunca mais ponha aqui os pés!
- Irei à Polícia! - gritei, sentindo a minha própria ira crescer.
- Pois vá. Cumpra todas as suas ameaças. Veja se alguém acredita em si.
Não há uma pessoa nesta cidade que não saiba o que a Fanny Casteel é, foi
e será sempre. Eu terei o apoio da minha congregação. Saberão compreender
que aquela pecadora malvada se enfiou na minha cama e apertou aquele seu
corpo lascivo e nu contra o meu, seduzindo-me, a mim que não passo de um
homem, e humano... lamentável, desgraçadamente humano.
Foi o seu sorriso trocista de vitória que me fez dizer sem hesitação,
apesar da sua argumentação inteligente:
- Ou me entregam a Darcy para eu a levar à Fanny ou hoje à noite entro na
sua igreja, ponho-me em frente da sua congregação e conto-lhes o que se
passou no dia em que comprou a Fanny para satisfazer os seus apetites
sexuais! Tenho a certeza de que todos ficarão chocados e ultrajados.
Podia não tê-la assediado! Acabou de admitir que sabia o que ela era
antes de a trazer para sua casa... Mas não deixou de o fazer! Meteu
voluntariamente a tentação dentro do seu lar e não lhe resistiu! No caso
do demónio versus reverendo Wise, o demónio venceu. E eu conheço os seus
paroquianos. Não lhe perdoarão!
O reverendo fitou-me com um ar pensativo, como se eu ainda continuasse a
ser apenas um dos peões brancos no seu tabuleiro de xadrez, e que, mesmo
que ele só pudesse mover a sua rainha negra, arranjaria maneira de me
fazer frente.
284
- Ouvi dizer que esteve doente - observou em tom amigável e coloquial. -
Não está com bom aspecto, rapariga, nada bom. E, a propósito, que acha
daquela casinha agradável em que o seu avô agora vive? Acredita que as
suas ofertas miseráveis chegavam para construir uma cabana de madeira tão
boa? Depois de lançadas as fundações, tirei o dinheiro que faltava para o
resto do meu próprio bolso por pura bondade, para que o bisavô da minha
filha pudesse terminá-la. É que eu sou humano... lamentável,
desgraçadamente humano.
Passaram minutos, muitos minutos, sem que o reverendo desviasse os olhos
do meu rosto.
Ouvi um bebé chorar no piso de cima, como se tivesse repentinamente
acordado de uma sesta. Voltei-me e vi a Rosalynn Wise com a filha da
Fanny ao colo. E quando reparei nos olhos chorosos, na boquinha vermelha
a fazer beicinho, nos caracóis escuros e na pele muito branca, senti-me
profundamente enternecida pela sua beleza. Também me emocionou ver a sua
mãozinha fortemente agarrada aos dedos da única mãe que conhecia. Foi
então que a minha ira começou a abrandar e compreendi que a Fanny estava
a servir-se da Darcy unicamente como instrumento de vingança. Que estava
eu a fazer ali, perturbando aquela criança e a sua mãe? E o reverendo não
se calava, enchendo-me os ouvidos precisamente com aquilo em que eu não
queria pensar.
- Eu pressentia que um dia a Heaven Casteel viria ter comigo. Costumava
sentar-se numa das bancadas do fundo e fixar esses seus olhos azul-claros
em mim, questionando cada palavra minha. Eu podia ver, pelo seu rosto,
que queria acreditar, precisava de acreditar e esforçava-se muito por
fazê-lo. E, no entanto, eu não conseguia dizer as palavras certas para a
convencer de que há um Deus, um Deus bom e caridoso. De modo que comecei
a analisar todos os meus sermões de acordo com a sua reacção a eles... E
houve uma vez em que pareceu que eu tinha, finalmente, tocado no seu
espírito. Depois veio o dia em que a sua avó morreu e eu orei sobre a sua
sepultura e também sobre a da criança da sua madrasta que não chegou a
nascer; senti-me um perfeito fracasso. Eu sabia que nunca a alcançaria,
porque a Heaven não quer ser alcançada. Procura controlar o seu próprio
destino quando isso é completamente impossível. Não aceita qualquer ajuda
da parte dos homens e também da parte de Deus.
- Não vim aqui para ouvir um sermão sobre o que
285
pensa de mim - declarei, com secura. - O senhor não me conhece.
O reverendo veio postar-se à minha frente. As suas pálpebras reduziram-
lhe os olhos a meras fendas, fazendo-os brilhar.
- Está enganada, Heaven Leigh Casteel. Eu conheço-a muito bem. A menina
pertence ao tipo mais perigoso de mulher que o mundo jamais conheceu.
Transporta consigo as sementes da sua própria destruição e de todos
aqueles que a amarem. E muitos o farão pelo seu lindo rosto ou pelo corpo
sedutor. Mas a Heaven traí-los-á a todos porque acredita que todos o
fizeram primeiro em relação a si. É uma idealista do género mais
horrivelmente trágico: a idealista romântica. Nascida para destruir e
autodestruir-se!
Fixou os olhos solenes, odiosos e compadecidos em mim, trespassando-me
com eles como se lesse a minha mente.
- Agora passarei a falar da Darcy, a minha filha. Eu trouxe a sua irmã
para minha casa com a melhor das intenções, esperançado em ajudar, ao
livrar o seu pai de mais uma boca para alimentar em tempo de grandes
dificuldades para ele. Vejo pela sua expressão que se recusa a acreditar
nisso. A Rose e eu fizemos aquilo que pensámos que Deus desejaria de nós.
Adoptámos legalmente (e temos documentos assinados pela sua irmã) a
criança que a sua irmã deu à luz. E já que quer saber toda a verdade, se
o seu pai não nos tivesse pressionado para que ficássemos com a Fanny, eu
tê-la-ia escolhido a si! Sabia? Não! A si! Agora pergunte-me porquê.
Ao ver que eu me limitava a mirá-lo com profunda incredulidade, ele
próprio respondeu.
- Queria analisar de perto a sua resistência a Deus...
Ao vê-lo contemplar-me com expressão séria e compassiva, com olhos
largamente experientes em ocultar segundas intenções, percebi então que
eu não estava à altura de enfrentar alguém tão esperto como o reverendo
Wayland Wise. Não admirava, pois, que este se tivesse tornado no homem
mais rico da nossa região. Apesar de me dar conta de todas as jogadas que
ele utilizava para ganhar o respeito de quem era demasiado ignorante para
percebê-lo, vi que ficara tão enredada na teia como qualquer mosca
estúpida.
- Por favor, cale-se!
Inundada por um sentimento de culpa, percebi que perdera tudo. O tom já
tinha um objectivo na vida e não precisava de mim. O Keith e a "Nossa"
Jane, apesar da sua pouca idade, eram suficientemente espertos para se
manterem afastados
286
de uma irmã destrutiva. O meu avô, a viver aonde mais desejava, perto da
sua Annie, numa cabana de montanha dez vezes melhor do que tudo aquilo a
que jamais imaginara ter o direito de esperar, perderia a sua casa.
A minha febre pareceu regressar. Deixei-me cair pesadamente numa cadeira.
Senti um acesso de nervos subir-me da cintura à cabeça, provocando-me
picadas atrás das orelhas. A Fanny não precisava daquele bebé. Pois se
ela se recusara a fazer algo pelo Keith e pela "Nossa" Jane, como poderia
eu esperar que fosse uma boa mãe para a sua própria filha? A cabeça
latejava-me com uma dor mais aguda. Quem era eu para tentar tirar aquela
criança à única mãe que alguma vez conhecera? Saltava à vista que o seu
lugar era ali, com os Wise, que a amavam e estavam em posição de lhe dar
tudo do bom e do melhor. Que teria uma Casteel a oferecer àquele bebé em
comparação com aquele lar feliz? Queria ir-me embora dali o mais depressa
possível. Levantei-me, trémula, e olhei para a Rosalynn Wise.
- Não ajudarei a Fanny a tirar a criança de si, minha senhora - disse-
lhe. - Lamento ter vindo aqui. Não voltarei a incomodar-vos.
E, com as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto, virei-me para a porta e
saí a correr da sala, ouvindo o reverendo dizer atrás de mim:
- Deus abençoá-la-á por isso.
287
19 O LEVANTAR DOS VENTOS

O Logan levou-me ao aeroporto mais próximo e ficou a fazer-me companhia


até anunciarem o meu voo. Fitou-me solenemente nos olhos e voltou a
dizer-me que procedera bem ao deixar a filha da Fanny entregue à Rosalynn
Wise.
- Fizeste bem - disse-me pela primeira vez quando lhe dei conta das
dúvidas que me assaltavam quanto à lógica do meu raciocínio. - A Fanny
não é do tipo maternal e tu sabe-lo tão bem como eu.
No fundo, eu alimentara a esperança de levar a menina comigo para a
Mansão Farthinggale, esperançada de que a sua doce inocência e beleza
convencesse o Troy a criá-la como filha. Pensamento tolo e idiota. Que
imbecil eu fora em tentar, sequer, concretizar essa ideia! A Fanny não
merecia uma filha como a Darcy. Talvez nem eu.
- Adeus - despediu-se o Logan, sem me fitar. - Desejo-te muita sorte e
felicidades.
Dito isto, deu meia volta e afastou-se antes de eu poder agradecer-lhe
por ter cuidado de mim.
Olhou para trás e sorriu-me com rigidez. Entreolhámo-nos a cerca de metro
e meio um do outro, antes de eu me virar e começar a dirigir-me para o
avião.
Horas mais tarde, cheguei a Boston. Exausta, adoentada e ansiosa por me
apanhar na cama, tomei um táxi e sussurrei a morada com voz pouco
audível. A seguir caí pesadamente para o lado, sentindo-me tonta e
esvaída. Fechei os olhos e pensei no Logan e no modo como me sorrira
quando lhe contara como correra o encontro com os Wise. "Compreendo o
motivo que te levou a tomar essa decisão. Mas não te esqueças de que se a
Fanny quisesse mesmo a menina, teria arranjado uma maneira de o
conseguir. Tu tê-lo-ias feito."
Era tudo tão irreal, tão terrivelmente irreal. O sorriso com que o
Curtis, o mordomo, me recebeu quando me abriu
288
a porta, por eu não conseguir encontrar a minha chave, não era o mesmo de
sempre. Tão-pouco o eram as suas palavras de boas-vindas.
- Folgo em que tenha regressado, Miss Heaven. Espantada por ouvi-lo
tratar-me pelo meu nome próprio,
vi-o desaparecer com as minhas malas antes de me virar e deparar-se-me o
vasto espaço que a abertura de várias portas enormes, que conduziam ao
salão principal, criara. Uma festa. Senti uma vaga curiosidade em saber
qual seria o evento a festejar. Porém, quando o Tony se encontrava em
casa, todos os dias havia razão para celebrar.
Deambulei de sala em sala, olhando para os ramos de flores frescas que se
viam por todo o lado. Os cristais, as pratas, os dourados e os bronzes
brilhavam. E na cozinha principal, onde estavam a ser preparados
aperitivos, o Rye whiskey sorria como se nem sequer tivesse dado pela
minha ausência. Saí de lá sentindo-me agoniada e dirigi-me para as
escadas.
- com que então voltaste! - exclamou uma voz forte e autoritária. - O
Tony saiu do seu gabinete com uma expressão sombria na face agradável. -
Como te atreveste a fazer o que fizeste? Não cumpriste a tua palavra.
Sabes o que isso significou para o Troy, sabes?
Senti que empalidecia. Os meus joelhos começaram a tremer.
- Ele está bem, não está? Estive doente. Por minha vontade teria voltado.
O Tony acercou-se mais, de lábios rigidamente apertados.
- Desiludiste-me, rapariga. Fizeste o mesmo ao Troy e isso ainda é o mais
importante. Ele está metido em sua casa com uma depressão tão grande que
até o telefone se recusa a atender. Passa a vida na cama. Nem mesmo
terminou o trabalho iniciado.
As minhas pernas cederam e tive de me sentar num degrau.
- Estive com gripe - disse com voz débil. - Cheguei a ter quarenta graus
de febre. O médico não pôde ver-me porque choveu dia e noite e as pontes
foram abaixo e as estradas ficaram inundadas.
O Tony escutou-me pacientemente. De pé, apoiado com uma das mãos ao pilar
do corrimão, de olhos erguidos para onde eu me sentara, vi nestes algo em
que nunca reparara antes. Algo que me assustou. As minhas desculpas
estavam a ser demasiado extensas. Agitou uma das mãos, dispensando o
resto que eu tinha para lhe contar.
289
- Vai até ao teu quarto e quando estiveres pronta vem ter comigo ao meu
gabinete. Esta noite, a Jillian dá uma festa de despedida de solteira
para uma amiga. Eu e tu temos umas questões a tratar.
- Tenho de ver o Troy! - exclamei, pondo-me de pé com esforço. - Ele
compreenderá, mesmo que o Tony não consiga.
- O Troy já esperou todo este tempo. Poderá fazê-lo por mais uma hora.
Subi os restantes degraus a correr. Senti os olhos dele seguirem-me até
eu desaparecer dentro do meu quarto. Encontrei a Percy, a criada, a
arrumar a minha roupa das malas. Dirigiu-me um pequeno sorriso.
- Estou contente por vê-la novamente em casa, Miss Heaven.
Passei rapidamente o rosto por água, mudei de roupa e compus o melhor que
pude o cabelo, que ainda não fora arranjado depois de o lavar na cabana.
O espelho do meu vestiário mostrou olheiras nos meus olhos e uma
debilidade na minha expressão. No entanto, os meus lábios exprimiam
determinação.
Ia a descer as escadas, depois de maquilhar o rosto ao de leve, quando
começaram a tocar à porta. O Curtis apressou-se a responder, deixando
entrar várias mulheres que traziam presentes lindamente embrulhados.
Felizmente ficaram tão entusiasmadas com os preparativos feitos para a
festa que nem deram pela minha presença. Não queria que nenhuma das
amigas da Jillian me visse, pois tinham sempre muitas perguntas a fazer-
me.
Bati ao de leve à porta do gabinete do Tony.
- Entra, Heaven - respondeu-me.
Encontrava-se sentado à sua secretária. A fiada de janelas, por trás
dele, deixava ver as sombras da noite a expulsarem o violeta do
crepúsculo. Como o primeiro andar de Farthy ficava alto, as suas janelas
proporcionavam uma visão perfeita do labirinto que tão escondido parecia
quando se estava dentro dele. Este representava, para mim, o mistério e o
romance do Troy e o amor que encontráramos. Não conseguia desviar os
olhos das sebes de três metros.
- Senta-te - ordenou-me o Tony, com o rosto mergulhado nas sombras que se
iam adensando dentro da sala. Agora fala-me da tua ida às compras a Nova
Iorque. Descreve-me novamente os dias de chuva diluviana, as pontes
caídas, as estradas inundadas e fala no médico que não conseguia passar.
290
Felizmente o Logan falara muito sobre o tempo enquanto me lavava o rosto
e escovava o cabelo; portanto, eu não tinha dificuldade em descrever a
terrível borrasca que assolara destrutivamente toda a costa leste,
estendendo-se até ao Maine. E o Tony escutou tudo, não fazendo uma única
pergunta até eu me afundar completamente.
- Desprezo pessoas que mentem - observou quando me calei, deixando-me
ficar sentada com as mãos entrelaçadas, tentando não contorcê-las, do
mesmo modo que me esforçava para que os meus pés não se agitassem
nervosamente. - Aconteceu muita coisa desde que te foste embora. Sei que
não foste a Nova Iorque comprar o teu enxoval. Sei que apanhaste o avião
para a Jórgia para visitares o teu meio-irmão tom. Depois foste à Florida
ver o teu pai. Mais tarde, deslocaste-te a Nashville e estiveste com a
tua irmã Fanny, cujo nome artístico é Fanny Louisa.
Eu não podia ver a sua expressão. Naquela altura, já a sala ficara
completamente mergulhada numa penumbra densa, e o Tony não fez menção de
ligar nem mesmo um dos seus numerosos candeeiros. As paredes deixavam
passar um ténue rumor de muitas vozes femininas a falarem. Não se
percebia nada do que diziam. Desejei ardentemente estar lá, junto delas,
e não ali, com o Tony. Suspirei profundamente e fiz menção de me
levantar.
- Senta-te - ordenou-me ele com voz fria e autoritária.
- Ainda não terminei. Tens de me responder a várias perguntas, de me
responder com sinceridade. Antes de mais nada, quero saber qual é a tua
verdadeira idade.
- Tenho dezoito anos - respondi sem hesitação. - Não sei porque lhe menti
nesse ponto quando cheguei e afirmei que tinha dezasseis. Talvez tenha
sido por me sentir sempre embaraçada pela forma como a minha mãe casou
precipitadamente com o meu pai, quando a primeira vez em que se viram foi
no dia em que se conheceram em Atlanta.
O silêncio do Tony era tão palpável que quase fendia o ar. Eu ansiava
desesperadamente por luz.
- E que diferença faz um ano? - perguntei, atrapalhando-me com a maneira
assustadora como ele se mantinha sentado no meio da escuridão, sem
proferir palavra. - O Troy soube sempre, desde o princípio, que eu tinha
dezassete anos e não dezasseis, pois não me parecia tão crítico como o
Tony. Por favor, deixe-me ir ter com ele agora. Precisa de mim. Posso
arrancá-lo à sua depressão. Acredite em mim quando lhe afirmo que estive
muito doente. Se pudesse, teria voltado para o Troy, nem que fosse de
rastos.
291
O Tony mexeu-se para pousar os cotovelos sobre a secretária e envolver a
cabeça com as mãos. A luz que a janela deixava entrar, por trás dele,
enquadrava-o num tom violáceo-escuro e via-se a Lua, em quarto minguante,
a aparecer e a desaparecer por entre as nuvens escuras e filamentosas.
Estrelas minúsculas tremeluziam. O tempo escoava-se. Tempo que podia ser
mais bem passado com o Troy.
- Tony, por favor deixe-me ir para junto do Troy.
- Não, ainda não - disse o Tony com voz rouca e decidida. - Fica aí
sentada e conta-me o que sabes sobre o modo como a tua mãe conheceu o teu
pai: o mês, o dia e o ano. Fala-me da data do casamento dos dois. Relata-
me tudo o que os teus avós te contaram sobre a tua mãe e, depois de teres
respondido a todas as minhas perguntas, poderás ir ter com o Troy.
Perdi a noção do tempo ali sentada no escuro a falar a um homem de quem
via apenas a silhueta, a contar a história dos Casteel e da sua probreza;
da Leigh VanVoreen e do que eu sabia dela, que era lamentavelmente pouco.
Quando cheguei ao fim, o Tony tinha mil perguntas para me fazer.
- Cinco irmãos na prisão... - repetiu o Tony. - E ela amou-o o suficiente
para casar com ele. E o teu pai odiou-te desde que nasceste? Alguma vez
percebeste porquê?
- O meu nascimento foi a causa da morte da minha mãe
- respondi com simplicidade.
Toda a segurança que a minha roupa nova me proporcionava desaparecera. Na
semiescuridão e friagem daquele começo de noite, com as convivas tão
longe que já nem as suas risadas mais altas conseguia ouvir, os montes
voltaram a rodear-me, e eu fui, mais uma vez, uma reles pacóvia Casteel
que não prestava, não prestava, não prestava. Oh, Deus, porque me olhava
ele assim tão fixamente? Partículas de todas as minhas dúvidas
solidificaram-se, formando uma montanha à minha frente. Eu não estivera à
altura dos Stonewall; não poderia, de forma alguma, prestar para um
Tatterton. Portanto, deixei-me ficar sentada, constrangida, à espera, à
espera...
Tive a impressão de que passara meia hora desde que respondera à sua
última pergunta, e o Tony continuava à sua secretária, de costas voltadas
para a janela, enquanto o luar me incidia sobre o rosto e transformava o
rosa do meu vestido em cinza. Quando voltou a falar, fê-lo com voz calma,
talvez demasiado calma.
- Quando cá chegaste, pensei que vinhas em resposta às
292
minhas preces, para salvares o Troy de si próprio. Achei que lhe serias
benéfica. Ele é um jovem fechado, difícil para a maioria das raparigas,
talvez por ter medo de que o magoem. É demasiado vulnerável... e tem
aquelas ideias esquisitas sobre a morte.
Acenei com a cabeça, sentindo-me como uma cega num mundo onde só ele
podia ver. Porque falaria o Tony com tanta precaução? Não nos encorajara
a casar, nada dizendo que nos impedisse de fazer planos? E porque se
mostraria ele, pela primeira vez desde que o conhecera, completamente
desprovido do bom humor e de toda a despreocupação que aparentara?
- O Troy explicou-te os sonhos que costuma ter? - perguntou.
- Sim, falou-me deles.
- Acreditas no mesmo que ele?
- Não sei. Sou tentada a isso porque ele acha que os sonhos prevêem,
muitas vezes, o que vai acontecer. Mas recuso-me a crer, naquele segundo
o qual ele morrerá jovem.
- Ele falou-te... em quanto tempo prevê viver? Falava com voz perturbada,
como quem está parcialmente convencido, embora soubesse que não devia ser
assim.
- Quando o Troy e eu nos casarmos e as suas noites deixarem de ser
solitárias e sombrias, esquecerá essa mania de morrer. Aprenderei a
conhecê-lo bem. Inteirar-me-ei do que lhe dá prazer. Farei dele o âmago e
a essência da minha vida, para que possa libertar-se do medo que tem de
que nunca ninguém o amará o suficiente para não o abandonar, pois é nesse
aspecto que se baseiam as suas ansiedades: o medo de voltar a perder.
O Tony acendeu, finalmente, o candeeiro da sua secretária. Eu nunca vira
os seus olhos tão intensamente azuis.
- Achas que eu não fiz o melhor que pude pelo Troy, achas? Só tinha vinte
anos quando me casei apressadamente só para lhe dar uma mãe, uma mãe de
verdade e não apenas uma adolescente qualquer sem paciência para aturar
uma criança carente, que era frágil e andava constantemente doente com
gravidade. E depois também havia a Leigh, que se tornaria sua irmã.
Estava a tentar que tudo se resolvesse o melhor possível.
- Quem sabe se, quando lhe descreveu a morte da mãe, ele achou que o
paraíso seria melhor do que o que poderia esperar da vida.
- Talvez tenhas razão - observou o Tony com tristeza
293
na voz, encolhendo os ombros e reclinando-se para trás; olhou em volta à
procura de um cinzeiro e, como não viu nenhum, voltou a guardar a
reluzente cigarreira no bolso. (Eu nunca o vira fumar.) - Eu próprio
tenho pensado nisso... Mas que poderia eu fazer com uma criança que
cultivava permanentemente a dor? Depois de eu casar com a Jillian, o Troy
afeiçoou-se à Leigh ao ponto de, quando ela fugiu desta casa, ficar todas
as noites a chorar, culpando-se pela sua partida. Depois da ida dela,
ficou três meses de cama. Eu costumava ir ter com ele quando o ouvia
gritar de noite, e dizia-lhe que um dia ela voltaria, ideia à qual ele se
apegava tenazmente. Penso que começou a sonhar acordado com o dia em que
a Leigh regressaria e, como ela era só nove anos mais velha, ele poderia
amá-la como desejava... De modo, que durante todos estes anos, até o teu
pai ter telefonado, o Troy não fez outra coisa senão esperar a vinda da
tua mãe para fazer dela a mulher que pareceu nunca encontrar em lado
nenhum. Então apareceste tu, não a Leigh.
Senti a cabeça andar à roda como se tivesse sido atingida por um raio.
Foi a minha vez de estremecer e empalidecer!
- Está a tentar dizer-me que eu não passo de uma substituta da minha mãe?
- exclamei num crescendo de histerismo. - O Troy ama-me pelo que sou!
Tenho a certeza! Não é possível um menino de três, quatro ou cinco anos
apaixonar-se e ficar nesse estado durante dezassete anos! É demasiado
ridículo para se pensar, sequer, em tal!
- É possível que tenhas razão. - Os seus olhos estreitaram-se antes de
suspirar e, mais uma vez, enfiar a mão no bolso em busca da mesma
cigarreira. E voltou a olhar em volta à procura, com ar ausente, de um
cinzeiro. - Acaba de me ocorrer que se calhar o Troy colocou a Leigh num
pedestal e comparava todas as mulheres com ela, e pelos vistos só tu é
que ficaste à sua altura.
Corei intensamente. Levei as mãos à garganta.
- Está a dizer disparates. O Troy amou a minha mãe, está certo, também mo
contou. Mas não da maneira como um homem ama uma mulher. Amou-a como um
menino solitário e carente que precisava de alguém só para si. E eu estou
feliz em ser esse alguém. Darei uma boa esposa para o Troy. - Por muito
que tentasse retirar o tom suplicante à minha voz, não o consegui. - Ele
precisa de uma pessoa como eu, que não tenha vivido dentro de uma redoma
de vidro, que tenha tudo mas, apesar disso, não saiba desfrutar do facto.
Eu não tive nada, passei fome, fui espancada, humilhada
294
e espezinhada, mas continuo a considerar a vida digna de ser vivida e em
nenhuma circunstância desistiria dela. Ensiná-lo-ei a ser assim.
- Sim - disse o Tony com lentidão -, estou convencido de que tu serias
boa para ele e tens sido boa para ele. Até te ires embora e deixá-lo,
nunca o vira tão bem nem tão satisfeito. Estou-te grato por isso. No
entanto, não podes casar com ele, Heaven. Não o posso permitir.
Ali estava o que eu receava!
- Disse que gostava de mim! - exclamei, mais uma vez estupefacta. - Que
foi que descobriu? Se está a pensar no meu lado Casteel, é preciso que
também não se esqueça de que tenho genes VanVoreen!
O Tony pareceu envelhecer um pouco, ali sentado a fitar-me com uma mágoa
imensa.
- Como ficas bonita nessa tua ira trágica, que bela e sedutora. Entendo
perfeitamente por que razão o Troy te ama e quer. Vocês os dois têm muito
em comum, embora tu nem sonhes com a ligação. Não ta quero dar a
conhecer. Diz-me apenas que irás ter com ele e quebrarás o teu
compromisso com o maior cuidado possível e tendo em conta a sensibilidade
dele. Claro que não poderás continuar a viver aqui, tão acessível, mas eu
cuidarei do teu bem-estar financeiro. Nunca te faltará nada, prometo.
- O Tony quer que eu rompa o meu compromisso com o Troy? - repeti com
incredulidade. - O senhor e a sua grande preocupação com o bem-estar
dele! Então não sabe que a última coisa de que ele precisa é que eu o
desiluda? Ele sente que encontrou a única mulher no mundo que o
compreende! A única que ficará com ele e amá-lo-á até ao dia da sua
morte!
O Tony levantou-se e olhou em volta, recusando-se a fitar-me nos olhos.
- Estou a tentar fazer o que penso ser o melhor. A sua calma fazia
sobressair a paixão com que eu falara. O Troy é o único herdeiro que eu
tenho. A Companhia de Brinquedos Tatterton passará para as mãos dele por
minha morte, ou para o controlo de um filho dele. Há trezentos e
cinquenta anos que é assim, de pai para filho ou de irmão para irmão... e
é deste modo que tem de continuar a ser. O Troy tem de casar e ter um
filho, já que eu tenho uma mulher demasiado velha para os gerar.
- Eu não tenho nenhum problema físico! Posso ter filhos! O Troy e eu já
falámos sobre esse aspecto e resolvemos ter dois.
295
O ar de abstracção tornou-se mais profundo. Levantou-se, apoiando-se
pesadamente sobre a secretária.
- Eu tinha esperança em poupar um certo embaraço a mim mesmo. Rezei para
que te afastasses delicadamente. Agora vejo que isso é impossível! Mas
vou fazer mais uma tentativa. Quando te digo que não podes casar com o
Troy, acredita em mim. Porque não deixas as coisas como estão?
- Como posso fazê-lo? Dê-me uma boa razão para não casar com ele! Tenho
dezoito anos, já sou maior de idade. Ninguém me pode impedir de desposá-
lo.
O Tony voltou a sentar-se, a sentar-se pesadamente. Empurrou a cadeira
para longe da secretária, cruzou as pernas e moveu o pé de um lado para o
outro. E eu, apesar da situação complicada, não pude deixar de admirar os
seus sapatos polidos e o tipo de meias escuras que usava. Quando voltou a
falar, a sua voz parecia diferente.
- Foi a tua idade que desencadeou tudo isto. Compreendes, pensei que eras
mais nova do que és. Só soube quantos anos tinhas verdadeiramente quando,
um dia, o Troy mencionou o facto por acaso. Até essa altura, eu nunca
desconfiara. Eu olhava para ti e toda tu eras a Leigh, com excepção do
cabelo. Quando estás contente e te sentes à vontade, os teus maneirismos
são muito parecidos com os dela, mas noutras ocasiões fazes-me lembrar
outra pessoa. - Olhou de novo para o meu cabelo que, durante o Verão
ficara com madeixas de um castanho mais claro, quase avermelhado.
- Já alguma vez experimentaste usá-lo curto? - perguntou, completamente
fora de contexto.
- Que tem isso a ver com o resto? - quase gritei.
- Desconfio que o peso do teu cabelo é que o leva a encaracolar. Por
isso, "frisa", como dizes, quando apanha chuva.
- Que tem isso a ver com o resto? - gritei novamente.
- Lamento que não seja platinado como o da minha mãe e o da Jillian, mas
o Troy gosta dele assim. Disse-mo muitas vezes. Ele ama-me, Tony, e
demorou muito tempo a confessar-mo. Desistira da vida até eu aparecer,
também me contou. Eu convenci-o de que a precognição da própria morte não
tem de se concretizar.
O Tony levantou-se pela segunda vez, qual gato ondulando e esticando-se,
e a certa altura inclinou-se para vincar as calças com o polegar e o
indicador.
- Confesso que não sou muito dado a confissões dramáticas
296
como esta. Prefiro que todos os dramas fiquem confinados ao palco ou ao
ecrã. Sou uma pessoa equilibrada e não posso deixar de admirar quem, como
tu, consegue emocionar-se e explodir com tanta facilidade. Talvez não o
saibas, mas o Troy tem o mesmo tipo de temperamento e, depois de ferver
lentamente, quando rebenta, fá-lo para dentro de si mesmo. Por isso é que
estou a tentar ser tão cuidadoso. Juro por tudo o que é sagrado que amo o
meu irmão acima de mim mesmo. É como se fosse meu filho e confesso
sinceramente que foi por causa dele que não quis ter um filho meu, pois
iria deserdar o Troy. Tu sabes, ou pelo menos já desconfiaste que o génio
que está por trás dos Brinquedos Tatterton é o Troy. Ele é que os cria,
desenha e inventa, enquanto eu ando pelo mundo na qualidade de glorioso
vendedor. Sou uma figura de proa. Nem em dez anos eu seria capaz de criar
um brinquedo ou jogo novo, enquanto o Troy fá-lo sem esforço. Ele sugere
temas para jogos interiores e exteriores da mesma maneira como inventa
aquelas eternas sanduíches que adora.
Eu continuava a fitá-lo fixamente. Porque estaria a falar-me de tudo
aquilo naquele momento? Porquê naquela altura?
- O Troy é que merece ser presidente, não qualquer filho que eu possa
ter. Portanto, agradeço-te que saias da vida dele com suavidade. Eu
ficarei para o apoiar. Podes voltar para o teu namorado Logan, ou lá como
se chama, e eu porei na tua conta bancária dois... milhões... de dólares.
Pensa nisso. Dois milhões. Há pessoas que matam por esse dinheiro.
Sorriu-me, encantadora, suplicante e lamentosamente.
- Fá-lo pelo Troy - prosseguiu. - Por ti própria e pela carreira que
desejas. Fá-lo por mim. Pela tua avó. Pela tua linda mãe falecida.
Detestava o que ele estava a fazer comigo!
- O que tem ela a ver com isto? - gritei, terrivelmente irada pelo facto
de o Tony ter tido o péssimo gosto de a trazer à baila numa altura como
aquela.
- Tudo... - respondeu com uma voz que começara a ficar mais alta e
furiosa, como se a minha paixão consumisse o ar e colocasse brasas
debaixo dos pés dele.
297

20 MINHA MÃE, MEU PAI

- Eu quero saber, seja o que for! - gritei, contorcendo-me na minha


cadeira e inclinando-me para a frente.
A voz do Tony ganhou dureza.
- Isto não é fácil para mim, rapariga, absolutamente nada fácil. Estou a
tentar fazer-te um favor e isso representa ir contra mim próprio. Agora
fica calada até eu terminar... e depois podes odiar-me como eu mereço.
Os olhos frios obrigaram-me a calar. Continuei sentada, sem me mover.
- A Leigh pareceu odiar-me desde o princípio do meu casamento com a
Jillian. Nunca conseguiu perdoar-me por eu ter afastado os pais dela um
do outro. Adorava o pai. Tentei ganhar o afecto dela, mas foi em vão. Eu
não queria contrariá-la, de modo que, a partir de certa altura, desisti
de conquistá-la. Eu sabia que ela me culpava pela infelicidade e o
desespero do pai.
"Voltei da minha prolongada lua-de-mel com a Jillian, desiludido.
Terrivelmente desiludido. Esforcei-me para que ninguém percebesse. A Jill
não consegue amar ninguém além de si mesma e à sua imagem de juventude
eterna. Santo Deus, nunca vi uma mulher que goste tanto de se olhar ao
espelho!
"Comecei a ficar cada vez mais desgostoso por vê-la sempre preocupada em
ter cada fio de cabelo no seu lugar, sempre a olhar-se de relance ao
espelho para verificar se tinha o nariz transpirado ou o bâton borrado.
O sorriso do Tony era enviesado e amargo.
- E assim me dei conta, demasiado tarde, que, apesar de toda a beleza da
Jillian, nenhum homem poderia amá-la por algo mais além do seu visual. A
Jill não tem profundidade. Não passa de uma concha oca... Toda a doçura,
ponderação e bondade foram para a filha. Comecei a ter mais consciência
298
da presença da Leigh numa sala do que da mãe. Depressa comecei a reparar
numa linda rapariga adolescente que raramente se olhava ao espelho. Uma
rapariga que adorava vestir, com simplicidade, fatiotas soltas que
flutuavam quando se movia, e mantinha o cabelo comprido liso e solto. A
Leigh andava sempre com o Troy, gostava muito de lhe fazer companhia. Eu
adorava-a e admirava-a por isso.
"A Leigh era sensual sem o saber. Irradiava uma saúde que transpirava
sexo. Movia-se ondulando as ancas, com os pequenos seios a saltar,
libertos, por baixo dos vestidos largos. E a Leigh andava sempre zangada
com a mãe e ressentida comigo, até um dia descobrir que o que a mãe tinha
era um grande ciúme dela. Foi nessa altura que começou a brincar comigo.
Não creio que fosse por malícia... Era apenas a sua vingança contra uma
mãe que ela pensava ter arruinado a vida do pai.
Eu sabia o que estava para vir!
Sabia! Encolhi-me e ergui as mãos para me defender das suas palavras, com
vontade de gritar: Não! Não!
- A Leigh começou a namoriscar comigo. Atreveu-se a troçar de mim, a
provocar-me. Era frequente pôr-se a dançar à minha volta, tocando-me nas
mãos, escarnecendo de mim com palavras que muitas vezes feriam, pois
acertavam em cheio na verdade. "Casou com uma boneca de papel",
cantarolava repetidamente. "Deixe a minha mãe voltar para o meu pai",
implorava. "Se o fizer, Tony, eu ficarei! Não estou apaixonada por mim
mesma como ela." E eu, Deus me ajude, como eu a desejava! Ela só tinha
treze anos mas possuía mais sexualidade num dos seus dedos mais pequenos
do que a mãe no corpo inteiro.
- Cale-se! - gritei. - Não quero ouvir mais nada!
O Tony continuou implacavelmente, qual rio de neve derretida que tem de
inundar-e destruir.
- Até que um dia a Leigh escarneceu de mim e provocou-me tão
impiedosamente, pois era esse o seu jogo... punir-me tanto quanto-à
mãe... que eu agarrei nela por um braço e levei-a de roldão para o meu
gabinete, trancando depois a porta. Tencionava apenas assustá-la um pouco
e fazê-la compreender que não podia brincar daquela maneira com um homem.
Eu tinha apenas vinte anos e sentia-me muito revoltado, irado e
desgostoso comigo mesmo por ter caído tão ingenuamente na armadilha que a
Jill me montara. Antes de nos casarmos, a Jill mandara o seu advogado
elaborar documentos que lhe colocavam metade dos meus bens nas
299
mãos se algum dia eu quisesse divorciar-me. E isso significava que eu
jamais poderia obter o divórcio dela e esperar salvar alguma coisa para o
Troy. Portanto, quando atirei com aquela porta e a tranquei, estava a
punir a Jill por me ter atraiçoado e a Leigh por estar sempre a lembrar-
me os meus erros.
- O Tony violou a minha mãe...a minha mãe de treze anos? - perguntei com
um sussurro baixo e enrouquecido.
- O senhor, com os seus antecedentes e a sua educação, agiu como qualquer
malandro iletrado?
- Tu não entendes - disse o Tony com desespero na voz. - Eu tencionava
apenas arreliá-la, assustá-la, certo de que ela seria mais sofisticada,
rir-se-ia na minha cara e chamar-me-ia louco... E, se assim tivesse
acontecido, eu não teria sido capaz de fazer o que fiz. Mas ela excitou-
me com o seu terror, o seu pânico, a sua inocência apavorada com o que
imaginava que eu tencionava fazer. Disse a mim mesmo que era tudo fita,
pois as raparigas de Winterhaven são conhecidas pela sua liberalidade em
relação ao sexo. Sim, eu violei a tua mãe. A tua mãe de treze anos.
- Animal! Homem horrível! - gritei, pondo-me de pé com um salto e
atirando-me ao Tony, socando-o no peito. Tentei arranhá-lo no rosto mas
ele foi mais rápido. - Não admira que ela tenha fugido, não admira! E foi
o senhor que a atirou para os braços do meu pai, para que os montes, o
frio e a fome a matassem!
Dei-lhe um pontapé no tornozelo, fazendo-o soltar-me os braços para
recuar, e eu aproveitei a oportunidade para voltar a correr para ele,
atingindo-o de novo na cara.
- Odeio-o! Matou-a! Afastou-a daqui para outro tipo de inferno!
O Tony não teve dificuldade em segurar nos meus pulsos e manter-me à
distância, com o seu sorriso cínico a tornar-se irónico.
- Ela não fugiu depois da primeira vez. Também não foi da segunda ou da
terceira. Compreendes, a tua mãe descobriu que gostava do amor que
fazíamos às escondidas. Era excitante, sensacional. Para ela e para mim.
Ela vinha aqui ter, detinha-se à entrada da porta e aguardava. E, quando
eu avançava, começava a tremer. Às vezes chorava. Quando eu lhe tocava,
debatia-se e gritava, mas sabia que ninguém podia ouvi-la, e acabava por
sucumbir às minhas carícias como a criança promíscua que existia de baixo
daquela doçura angelical.
300
Dessa vez, a minha mão acertou-lhe em cheio no rosto, espalmada!
O meu estalo deixou-lhe a face marcada a vermelho. Encolhi os dedos e
tentei arrancar-lhe os olhos!
- Pára! - ordenou-me o Tony, empurrando-me, o que me fez recuar, quase me
desequilibrando. - Não admito que continues assim! Nunca foi minha
intenção contar-te.
Atirei-me novamente a ele e acertei-lhe no rosto. O Tony agarrou-me
firmemente pelos ombros e sacudiu-me até o meu cabelo esvoaçar
indomitamente.
- Só depois de saber a data do teu nascimento é que fiz as contas. A
Leigh fugiu desta casa no dia dezoito de Junho. E tu nasceste a vinte e
dois de Fevereiro. São oito meses. A Leigh estivera comigo dois meses.
Portanto, tenho de concluir que existem grandes probabilidades de tu
seres minha filha.
Parei de agitar os braços nos meus esforços vãos de o atingir ainda mais.
A cor fugiu-me do rosto. Comecei a sentir picadas atrás das orelhas, e os
meus joelhos vacilaram.
- Não acredito em si - disse com voz entrecortada. Sentia-me esmagada,
alquebrada. - Não pode ser verdade. Eu não sou sobrinha do Troy, não é
possível!
- Lamento, Heaven, lamento profundamente. Tu serias perfeita, a pessoa
ideal para o salvar de si mesmo. Mas esta noite, ao ouvir aqui a tua
história de como a Leigh conheceu o Luke Casteel e saber o dia em que se
casaram, não há possibilidade de seres filha dele, a não ser que tenhas
nascido prematura. A tua avó alguma vez deu a entender que vieste ao
mundo antes de tempo?
Afastei-me do Tony e sacudi a cabeça entorpecidamente. Eu não era filha
do meu pai. Do meu pai. Uma reles Casteel.
- Disseste que o teu pai te odiava, que foi assim desde o dia em que
nasceste. Heaven, é perfeitamente possível que a Leigh, sendo como era,
tenha confessado ao teu pai que estava grávida antes de casar com ele. E
agora já não me restam dúvidas de quem tu és. É o teu cabelo, Heaven, e
as tuas mãos. O teu cabelo tem a mesma cor e textura que o do Troy, e as
tuas mãos e dedos são do mesmo formato que os dele... Que os meus. Nós
três temos os dedos dos Tatterton.
Abriu as mãos, mostrando os dedos compridos e afilados, antes de eu
baixar os olhos, absorta, para os meus. Eram as mesmas mãos que eu vira a
vida toda, de dedos compridos e unhas ovais... E metade das mulheres do
mundo tinham o
301
cabelo da minha cor. Nada de excepcional. E eu que sempre acreditara que
as mãos da minha avó seriam como as minhas se não tivesse trabalhado com
elas como uma escrava durante a maior parte da sua vida.
Atarantada e dolorida, agoniada quase ao ponto de vomitar, virei-me e saí
do gabinete do Tony. Subi as escadas aos tropeções e, ao chegar ao meu
quarto, atirei-me para cima da cama e chorei.
Não era uma Casteel? Não era uma pelintra, uma miserável e reles Casteel
com cinco tios condenados a prisão perpétua?
O Tony entrou no meu quarto sem bater à porta e sentou-se delicadamente
aos pés da cama. Dessa vez, falou com voz suave e gentil.
- Não tornes as coisas tão difíceis, querida. Lamento ter arruinado o teu
romance com o meu irmão, embora esteja encantado por te ter como filha.
Verás que corre tudo bem. Sei que te choquei e magoei mas apesar de tudo
o que te disse, eu amei a tua mãe. Não passava de uma miúda, mas ainda
não fui capaz de a esquecer. E também gosto muito de ti, ao meu jeito.
Admiro o teu carácter e o que fizeste pelo meu irmão. Serei muito
generoso. Portanto, tem esse factor presente quando agora estiveres com o
Troy. Dá-lhe uma desculpa qualquer que pareça plausível. Não lhe causes
um desgosto que o leve a pôr termo à vida. Não percebeste ainda que é a
isso que os sonhos dele se referem? Nasceu autodestrutivo! Está
desiludido com o mundo, com todos aqueles que morreram ou partiram,
abandonando-o, por isso tenta evadir-se.
Aproximou-se de mim e pousou a mão, por breves instantes, no meu ombro;
em seguida levantou-se e dirigiu-se para a porta.
- Sê boa para ele, pois o Troy não é forte como tu, eu ou a Jillian -
disse em voz emocionada. - É um inocente num mundo de abutres. Não sabe
odiar. Só conhece o amor, daí o risco que depois corre de sofrer e
sentir-se desajustado. Portanto, dá-lhe o que de melhor há em ti,
Heavenly, o melhor que tiveres para dar. Por favor.
- Eu já o fiz! - gritei, sentando-me de súbito e atirando uma almofada ao
Tony, que já estava à porta. - Ele sabe? Já lhe contou que pode ser meu
pai?
Vi que o corpo do Tony era percorrido por um estremecimento.
- Não tive coragem para o fazer. Ele respeita-me, adora-me,
302
gosta de mim. Apesar dos problemas que deu, foi sempre o que de melhor
tive na vida. Suplico-te, encarecidamente, que arranjes alguma outra
desculpa para romper o noivado. Se souber a verdade, odiar-me-á. E será
que eu poderei censurá-lo? Tu podias tê-lo salvo... e eu sou responsável
por tê-lo tirado de ti. Só espero e rezo para que encontres as palavras
certas, já que eu não sou capaz.
Decorreu uma hora, durante a qual as minhas lágrimas se evaporaram. Uma
hora em que passei o rosto por água gelada e me maquilhei com cuidado.
Depois, sem predeterminar mentalmente palavras que o ajudassem a
sobreviver sem mim, atravessei o labirinto. Bati à porta azul do Troy.
Não houve resposta, tal como o Tony me alertara.
Já era tarde, cerca das dez horas. Nunca houvera cair de noite mais
glorioso. As aves, aconchegadas nos seus ninhos para passarem a noite,
pairavam e pipilavam sonolentamente. Centenas de roseiras exalavam um
perfume que me fazia cócegas nas narinas. Primaveras e amores-perfeitos
brilhavam junto da porta azul. Arbustos de gardénias luziam sob o luar
com as suas florescências enormes quase azuis. O ar tinha a suavidade de
um beijo de amante e o Troy ali dentro, fechado em casa.
- Troy - chamei ao abrir a porta e detendo-me, hesitante, à entrada. - É
a Heaven. Desculpa ter adoecido e não voltar no dia em que prometi...
Não houve resposta. Do fogão não vinha nenhum cheiro a pão feito há pouco
ou muito tempo. A cabana estava silenciosa, demasiado arrumada,
assustadora.
Corri para o quarto do Troy e abri a porta. Este jazia na cama, com a
cabeça voltada para a janela aberta. Uma brisa suave enfunou os
cortinados, quase derrubando uma jarra cheia de rosas.
- Troy - repeti, acercando-me mais da cama. - Peço-te que olhes para mim.
Por favor, diz que me perdoas por não ter cumprido a minha palavra; eu
queria, podes crer que bem queria.
O Troy continuou a manter a cabeça virada para o lado. Aproximei-me,
depois debrucei-me sobre a cama e virei-lhe suavemente a cabeça para mim.
O luar que entrava pela janela mostrou-me os seus olhos vítreos, a
fixidez absorta do seu olhar. Estava a milhares de quilómetros de
distância, aprisionado nalgum sonho terrível. Eu sabia, tinha a certeza!
Premi suavemente os meus lábios contra os dele. Murmurei-lhe repetidas
vezes o nome.
303
- Volta para mim, Troy, por favor, por favor. Não estás sozinho. Eu amo-
te. Sempre te amarei.
Chamei-o vezes sem conta até, por fim, os olhos perderem o aspecto vítreo
e focarem-se, lentamente, em mim. Passou-me com os dedos pelo rosto, ao
mesmo tempo que delirante de felicidade, perdia por completo o ar
alheado.
- Voltaste de verdade... Oh, Heaven, tive tanto medo de que não viesses.
Tive a estranha sensação de que ias outra vez para junto do tal Logan
Stonewall e descobrias que o amavas a ele, não a mim.
- Tu, só tu! - exclamei apaixonadamente, cobrindo o rosto enregelado e
pálido de beijos. Tive uma gripe, querido. Passei dias e dias com uma
febre muito alta. As linhas telefónicas ficaram cortadas, as pontes
ruíram e as estradas ficaram inundadas. Voltei para ti o mas depressa que
pude.
O sorriso do Troy era esvaído e débil.
- Eu sabia que estava a ser um tolo em me deixar deprimir tanto. Tinha a
certeza de que acabarias por voltar, o meu subconsciente estava certo de
que...
Aninhei-me entre os seus braços e senti as mãos dele deslizarem pelo meu
cabelo. Premi o rosto contra o peito dele. Ouvi o seu coração bater tão
devagar, tão devagar... Qual seria a velocidade normal das pulsações?
- Não quero nenhum casamento pomposo, Troy. Mudei de ideias quanto a
isso. Escapulir-nos-emos da Mansão Farthinggale e faremos uma discreta
cerimónia privada.
O Troy manteve-me abraçada a si, afagando o meu cabelo e depositando
beijos suaves no topo da minha cabeça.
- Sinto-me tão cansado, Heaven, tão cansado. Pensei que querias uma
cerimónia grande.
- Não, só te quero a ti.
- O Tony tem de estar presente no casamento - sussurrou ele, com os
lábios a roçar na minha testa. - Sem ele não pareceria a sério. É como se
fosse meu pai...
- Como quiseres - murmurei, apertando o seu corpo frágil contra mim. Como
o Troy emagrecera... - Estás completamente recuperado da tua pneumonia,
não estás?
- Tão recuperado como sempre fiquei de todas as doenças.
- Nunca mais voltarás a adoecer! Não enquanto me tiveres a cuidar de ti!
Passámos o resto da noite abraçados um ao outro. Falámos dos nossos
sonhos, da nossa vida juntos. Para mim, porém, tudo parecia fumo a
escapar-se, em espiral, pela janela
304
aberta, diluindo-se na noite. Como poderia eu agora casar com ele? E como
poderia deixar de o fazer, independentemente do nosso parentesco?
Perto da madrugada, toquei de novo na questão da boneca que retratava a
minha mãe. O Troy saberia se fora o Tony a fazer o modelo? Teria sentido,
em determinada altura, que o Tony era mais do que um padrasto para ela?
Os olhos escuros do Troy ensombraram-se.
- Não! Nem pensar! Heaven, o Tony podia ter qualquer mulher que
desejasse! Estava loucamente apaixonado pela Jillian! Não havia mulher
que o conhecesse e não tentasse seduzi-lo... Pois se nunca precisou de
tentar conquistar nenhuma mulher desde que a barba lhe começou a crescer.
Elas é que andavam atrás dele.
Percebi então, ali aninhada nos seus braços, que o Troy jamais admitiria
a si mesmo que o irmão se servia das mulheres, do mesmo modo como
utilizara a Jillian, com o seu feitio irreflectido, para proporcionar uma
mãe e uma irmã ao seu irmão mais novo, enquanto ele prosseguia a sua vida
de Don Juan atrás de tudo quanto eram saias na cidade e por toda a
Europa. Quando me virei para o beijar em despedida, antes de voltar à
casa grande, tinha os meus olhos cheios de lágrimas.
- Desculpa ser tão desconfiada. Amo-te, amo-te, amo-te... E estarei de
volta assim que puser o sono um pouco em dia. Prometes que não te vais
embora?
O Troy sentou-se e apertou-me ambas as mãos.
- Vem almoçar comigo, querida, por volta da uma. Pensei que poderia ir
para a minha cama e dormir o sono
que tanto merecia, mas fiquei sempre às voltas e finalmente acabei por
descer até à sala de jantar, no piso de baixo, onde o Tony já se
encontrava, a deleitar-se com fatias finas de meloa. Começou
imediatamente a encher-me de perguntas. Eu vira o Troy? Rompera o nosso
compromisso? Qual fora a sua reacção? Que explicação lhe dera? Fora boa,
cuidadosa e prudente, não fora?
- Falei o menos possível em si - retorqui com voz fria e hostil. Odiava-o
tanto como àquele que tomara por meu pai.
- Por consideração para com o Troy, encobri o senhor, pois se ele não
fosse tão sensível eu ter-lhe-ia dito exactamente o tipo de homem que o
seu amado irmão é e foi.
- Que razão lhe deste?
- Não lhe dei razão nenhuma. Continuamos noivos. Não sou capaz de
destruí-lo, Tony. Simplesmente não consigo!
305
- Vejo que estás a acumular ódio por mim. Talvez tenhas razão em esperar
algumas semanas até lhe dizeres que descobriste que ainda estás
apaixonada pelo teu primeiro namorado. Chama-se Logan, não é? O Troy há-
de recuperar do desgosto. Eu estarei aqui para o apoiar. Farei com que se
recomponha. E a melhor maneira é através do trabalho. Assim que o Troy
aceitar o facto de que tu amas outra pessoa e não casarás com ele,
arranjará substitutas para o teu amor. Eu farei o que puder para que
conheça outra rapariga e case com ela.
Doía tanto ouvi-lo falar assim que me apetecia uivar ao sol como um lobo
faz à lua, como a Sarah uma vez fizera quando o último filho que tivera
morrera. Sentia o coração despedaçado. E ao meu lado estava o homem que
desencadeara tudo aquilo.
- Que pessoa detestável o senhor é, Tony Tatterton! Santo Deus, se eu
tivesse a certeza de que o Troy não ficaria magoado, contar-lhe-ia tudo o
que fez à minha mãe! E ele odiá-lo-ia! O senhor perderia a única pessoa
que realmente preza na vida!
Lançou-me um olhar compadecido.
- Por favor... Lembra-te de que o destruirias. O Troy vive da fé e da
crença. Não é como tu ou eu, capaz de sobreviver sejam quais forem as
circunstâncias.
- Nunca mais se atreva a comparar-se comigo! - gritei. O Tony não
respondeu, limitou-se a pegar noutra meloa para partir às fatias.
- Promete, Heaven, promete que não contas nada disto à Jillian.
Levantei-me e passei altivamente perto da cadeira onde o Tony estava
sentado sem prometer o que quer que fosse.
- Está bem! - gritou o Tony, acabando-se-lhe a paciência de repente,
pondo-se de pé, agarrando em mim e voltando-me violentamente para ele
para me fazer ver o seu rosto, normalmente agradável e atraente mas
naquele momento deformado pela raiva. - Volta para junto do Troy! Vai! Dá
cabo dele! E quando terminares desse lado, corre para junto da Jillian e
faz o mesmo! E quando acabares com tudo em Farthy, vai ter com o teu pai
e dá cabo da vida dele! Arruina a do tom e da Fanny e não te esqueças do
Keith e da "Nossa Jane"! Tu queres vingança, Heaven Leigh Casteel! Está
bem visível nos teus olhos, nesses olhos incrivelmente azuis que falam
mais de um demónio dentro de ti do que de um anjo!
Atirei-lhe um soco ao acaso, falhando, enquanto ele me
306
largava tão abruptamente que me desequilibrei e caí no meio do chão. Pus-
me de pé e corri para as escadas com tanta rapidez que ele não foi capaz
de dizer uma palavra antes de eu as subir e alcançar a segurança da minha
cama. O meu lugar para chorar.
À uma da tarde, eu já estava de novo em casa do Troy e dessa vez
encontrei-o a pé, parecendo-me um pouco mais forte quando me sorriu.
- Entra - convidou, com ar bem-disposto. - Antes de comermos quero que
vejas este conjunto de caminho-de-ferro que terminei há pouco.
O que tinha para me mostrar enchia um enorme canto da sua oficina. Era um
pequeno palco iluminado por luzes suaves e indirectas. Comboios em
miniatura recebiam passageiros e depois largavam-nos, para a seguir os
acolherem de novo, levando-os repetidamente em torno de montanhas
íngremes e perigosas. Ao ver o minúsculo Expresso do Oriente a fazer
"pouca terra", iniciando a marcha lentamente e depois aumentando de
velocidade, sempre em direcção ao cimo, sempre a correr riscos, a tudo
ousar para alcançar as alturas e depois descer muito mais rapidamente do
que subira, pensei que o Troy estava a tentar dizer-me algo através das
suas carruagens diminutas.
Que estaria o Troy a querer dizer-me com aqueles três comboios em
miniatura que percorriam caminhos tão intrincados através de territórios
diferentes mas que chegavam sempre ao mesmo destino? Não andaria toda a
espécie humana em comboios a vida inteira, alcançando pontos altos,
afundando-se, atravessando o palco entre extremidades mais vezes do que
se magoavam ou caíam. Mordisquei pensativamente o lábio inferior, premi a
testa com a ponta dos dedos... e fiquei a olhar para uma menina que fora
acrescentada aos passageiros. Era uma rapariguinha de cabelo escuro, com
casaco azul e sapatos no mesmo tom. Era demasiado parecida comigo para
que não me fizesse sorrir. É que os comboios que, aparentemente não
conduziam a lado nenhum, faziam, ainda assim, as delícias dos
passageiros. A menina não se apeava do comboio ao chegar ao fim da
jornada, mas sim uma mulher idosa, também de casaco azul e sapatos na
mesma cor. Procurei ansiosamente o comboio, de novo, e voltei a ver a
menina de casaco e sapatos azuis a entrar para outro comboio...
Oh, como o Troy era hábil a fazer aqueles bonecos, conferindo-lhes
significado, transmitindo as suas crenças sem palavras.
307
Ao afastar-me dos brinquedos, senti o velho fascínio empurrar-me para os
seus braços.
- Troy, Troy! - chamei. - Onde estás? Temos milhares de planos a traçar!
Encontrei-o sentado na bancada de uma das suas janelas, com as pernas
compridas encolhidas contra o peito, e as hábeis e graciosas mãos
entrelaçadas abaixo dos joelhos... e todas as janelas escancaradas,
deixando entrar o frio e a humidade no seu quarto!
Alarmada, corri para ele e toquei-lhe no braço, tentando trazê-lo de
volta de onde quer que se tivesse perdido.
- Troy! Troy! - gritei, sacudindo-o, enquanto ele continuava a olhar em
frente sem pestanejar. Ainda estava eu agarrada a ele quando uma violenta
rajada de vento deitou abaixo um candeeiro da mesa. Tive de recorrer a
toda a minha força para fechar as janelas e, depois de completar essa
tarefa, corri a buscar cobertores com os quais cobri os ombros e as
pernas do Troy; este continuava sem se mexer ou falar.
Quando lhe toquei, senti-lhe, o rosto pálido e frio, mas suave, o que me
fez chorar de alívio. Não estava morto. No entanto, senti o seu pulso, ao
apalpá-lo, tão fraco que corri para o telefone dele e liguei para Farthy.
O telefone tocou repetidas vezes mas ninguém atendeu. Eu não sabia que
tipo de médico chamar directamente. Peguei na lista telefónica com os
dedos a tremer e estava a folheá-las quando ouvi o Troy espirrar.
- Troy! - exclamei, correndo para o seu lado. - Que estás a fazer, queres
matar-te?
Tinha os olhos desfocados e com uma névoa; pronunciou o meu nome em voz
débil. Quando foi capaz de me ver, agarrou-se a mim como um homem prestes
a afogar-se e vi-me fortemente apertada contra ele, ao enterrar o rosto
no meio do meu cabelo.
- Voltaste. Oh, meu Deus, pensei que nunca mais voltavas!
- Claro que voltei! - Cobri-lhe o rosto de beijos. - Troy, ontem à noite
fiquei aqui contigo, não te lembras? - Mais beijos no seu rosto, nas suas
mãos. - Não te disse que tinha voltado para podermos casar? - Afaguei-lhe
os braços, as costas, alisei-lhe o cabelo desgrenhado. - Desculpa ter
demorado tanto tempo a regressar, mas agora já aqui estou. Casaremos e
construiremos as nossas próprias tradições, faremos de cada dia uma
festa...
308
Parei de falar porque, na realidade, ele não me escutava.
O quarto enregelado fez com que começássemos os dois a espirrar de novo.
Puxei-o para a cama e enfiámo-nos debaixo de vários cobertores,
aguardando que as tremuras cessassem. Ainda ali nos encontrávamos,
estreitamente abraçados, quando os numerosos relógios começaram a emitir
aqueles ruídos e movimentos subtis que fariam as suas engrenagens dar as
horas. Algum vento errante logrou penetrar e fazer tilintar os cristais
do candelabro da sua salinha de jantar.
- Está tudo bem, querido - ciciei-lhe, alisando o cabelo escuro
despenteado. - Vim agora mesmo dar contigo mergulhado num daqueles
teus... como lhes chamas? A palavra certa será transes?
Os braços do Troy apertaram-me com tanta força que as costelas começaram
a doer-me.
- Heaven - sussurrou-me -, graças a Deus estás aqui.
- A voz faltou-lhe e soluçou, afastando-me meigamente dele. - Por muito
grato que esteja, não posso continuar a fazer de conta que posso viver
contigo. Ou casar. A tua ausência permitiu-me reflectir muito bem sobre o
que estávamos a fazer. A tua presença leva-me a pensar que sou um homem
normal, com expectativas vulgares. Mas não sou! Nunca serei! Sou
aberrante e incapaz de mudar. Nunca imaginei que regressasses depois de
chegares ao mundo real e descobrires que tinhas estado afastada da
realidade. Esta casa é imaginária, Heaven. Não é habitada por pessoas a
sério. Somos todos umas fraudes, Heaven. O Tony, a Jillian, eu... Até os
criados aprenderam as regras e se submetem ao jogo.
A dor de cabeça, que principiara à chegada, intensificou-se e aumentou.
- Que regras, Troy? Que jogo?
O Troy, rindo-se de um modo que me enregelou o sangue, rolou para o lado,
mantendo-me presa a si; depois, voltou a rolar e a rolar até cairmos no
chão, onde me arrancou a roupa freneticamente e os seus beijos ternos em
breve se tornaram apaixonados.
- Oxalá tenhamos feito um filho - exclamou, quando tudo terminou e ele se
afastou, pegando nas peças do meu vestuário rasgado. - Espero não te ter
magoado. Não desejo fazê-lo nunca. Mas gostaria de deixar algo de real
quando me for embora, feito da minha carne e sangue.
Em seguida, apertando-me contra si com violência, começou a soluçar, a
soluçar profunda, intensa e terrivelmente. Abracei-o, acariciei-o,
beijei-o inúmeras vezes antes de
309
ambos nos deixarmos cair sobre a cama e nos taparmos do frio intenso.
Ali deitada ao seu lado, ouvindo-o reprimir os soluços e alguma angústia
que porventura sentisse, apercebi-me de que o Troy era demasiado
complicado para alguma vez eu o entender. Mas eu amava-o tal como era e
talvez um dia, ao acordar de um sonho sem sonhos, sorrisse antes da
madrugada e passasse o dia sem me lembrar de que morreria jovem.
E adormeci. De vez em quando acordava ligeiramente, o suficiente para
sentir o ar a girar à minha volta. O suficiente para sentir braços
quentes a envolverem-me.
Até que o novo dia raiou e eu dei por mim no meu próprio quarto,
deparando-se-me um bilhete em cima da mesa-de-cabeceira. Um bilhete breve
do Troy.
Eu não gostava de bilhetes. Ainda não recebera nenhum que não trouxesse
más notícias.
"Meu adorado amor,
Ontem à noite encontraste-me sentado ao frio a tentar descobrir algum
sentido na minha vida.
Não podemos casar. Apesar disso, ontem à noite possuí-te e fiz o melhor
que pude para gerar um filho em ti. Perdoa o meu egoísmo. Vai ter com a
Jillian. Ela contar-te-á a verdade. Obriga-a a isso. Fá-lo-á se a
pressionares suficientemente, chamando-lhe avó e obrigando-a a abandonar
o seu disfarce.
O amor que tenho por ti foi a melhor coisa que já me aconteceu. Obrigado
por me amares e dares-me tanto de ti, apesar de conheceres todas as
minhas fraquezas. O meu maior defeito tem sido o meu amor e devoção
desmedidos pelo meu irmão. Andei cego, voluntariamente cego.
A Jillian veio ter comigo e contou-me a verdade. Para te salvar, tenho de
aceitar o que poderia ter salvo a tua mãe. É que a Jillian teve de
admitir que o Tony andava louco por possuir a tua mãe. Agora sei, depois
de tu me levares a recordar o passado, que ela odiava-o, que foi dele que
fugiu. Heaven, tu és filha do Tony, minha própria sobrinha!
vou para longe até aprender a viver sem ti. Mesmo que não fosses filha do
Tony, e minha sobrinha, eu daria cabo da tua vida. Não sei viver
complacentemente e aceitar o dia-a-dia tal como se apresenta. Todos os
meus dias têm de ser especiais e importantes, pois cada um deles parece
ser sempre o último."
310
Assinava o bilhete com um enorme TLT.
Aquela manhã trouxe-me vividamente à memória aquele dia em que eu,
mordiscando uma maçã, fora até ao quarto onde a Sarah deixara um bilhete
ao meu pai a dizer que o abandonava e nunca mais voltaria. Ao fazê-lo ao
meu pai, abandonava-nos a todos. Ali estava eu, mais uma vez deixada só
numa casa onde já não era bem-vinda.
A dor insuportável do meu amor despedaçado transformou-se em fúria! Essa
fúria fez-me correr até ao quarto da Jillian, bater estrondosamente à sua
porta, chamando-a pelo nome, exigindo que me deixasse entrar quando ainda
eram só nove da manhã, e eu sabia que dormia quase sempre até ao meio-dia
ou mesmo mais tarde.
No entanto, a Jillian já estava levantada, requintadamente vestida, como
que preparada para sair, faltando-lhe apenas envergar o casaco do seu
fato claro. Tinha o cabelo suavemente puxado para trás e era a primeira
vez que a via assim. Parecia mais velha e, ao mesmo tempo, mais bonita,
ou, melhor dizendo, menos parecida com uma boneca fantasmagórica em
tamanho natural.
- O Troy foi-se embora - disse-lhe acusadoramente, fitando-a com ira. -
Que foi que lhe contou para ele resolver partir?
A Jillian não respondeu, apenas se virou para pegar no casaco e vesti-lo,
voltando-se em seguida lentamente para me fitar. O que viu no meu rosto
fê-la arregalar os olhos de alarme. Os seus olhos azuis sobressaltados
pestanejaram como que desejando encontrar refúgio nos braços do Tony.
Mais uma vez vi neles aquela felicidade confusa e radiante que os
iluminou.
- O Troy partiu! Partiu de verdade? - sussurrou com uma alegria tão
grande que me senti mal
O Tony entrou inesperadamente nos aposentos da Jillian sem bater à porta.
Ignorou-a e dirigiu-se a mim.
- Como está o Troy esta manhã? Que foi que lhe disseste?
- Eu? Eu não lhe disse nada! A sua mulher é que achou que ele tinha de
saber a verdade, a feia verdade!
O esplendor da Jillian desapareceu. Os seus olhos ficaram baços.
O Tony deu meia volta, fitando a mulher com olhos faiscantes de fúria.
- Que lhe disseste? Que poderias ter-lhe dito? A tua filha nunca confiou
nada à mãe que desprezava!
311
A Jillian, no seu bonito fato irrepreensivelmente engomado, parecia
prestes a abrir a boca e a gritar.
- A minha mãe foi ter consigo, Jillian, para lhe contar por que razão
tinha de fugir? Foi? Foi?
- Vai-te embora. Deixa-me em paz. Insisti.
- O que levou a minha mãe a fugir desta casa? Nunca me explicou
adequadamente. Foi um menino de cinco anos? Ou foi o seu marido? A minha
mãe veio ter consigo para desabafar sobre o assédio sexual do padrasto?
Fez de conta que não percebia do que ela estava a falar?
Começou a tirar e a pôr os anéis largos que tinha nas mãos pálidas. Era a
primeira vez que a via usá-los. Deixou cair descuidadamente três deles
num cinzeiro. O tinir dos anéis no cristal fê-la abrir muito os olhos.
- Não sei do que estás a falar.
- Avó... - disse eu, em voz nítida e acutilante, fazendo-a estremecer, ao
mesmo tempo que ficava mortalmente pálida. - Terá sido o Tony a razão que
levou a minha mãe a fugir desta casa?
Os olhos azuis, tão parecidos com os meus, ficaram enormes, escuros,
gelados, como se eu lhe tivesse tirado o chão de debaixo dos pés. Pareceu
perder a sanidade, e levou as mãos ao rosto com ar indefeso. Premiu a
palma destas contra as faces com tanta força que os seus lábios abriram-
se e de entre eles escaparam-se gritos, gritos terríveis, silenciosos,
que lhe torturavam o rosto... De repente, o Tony interpôs-se, a berrar
comigo.
- Não digas mais uma palavra! - Acercou-se da Jillian e abraçou-a. - Vai
para o teu quarto, Heaven. Fica lá até eu poder falar contigo.
Levou a Jillian para o quarto desta e vi-o deitá-la cuidadosamente em
cima da cama de cetim cor de marfim; só nesse momento é que a sua
angústia muda encontrou voz para se manifestar.
Começou a gritar! Eram gritos histéricos que subiam e desciam de
intensidade, arqueando-lhe as costas, agitando-lhe os braços, enquanto eu
ficava no mesmo sítio, quase paralisada pelo que desencadeara, vendo a
sua juventude desaparecer-lhe do rosto como uma máscara de pele que cai.
Afastei-me, apavorada pelo que fizera, subjugada de desgosto por ter
destruído o que fora tão cuidadosamente cultivado.
Ao chegar aos meus aposentos, pus-me a andar de um lado
312
para o outro, esquecendo tudo menos o Troy e o seu bem-estar. De vez em
quando, pensava na Jillian e no caos que eu provocara. A certa altura, o
Tony bateu-me à porta e entrou sem esperar pela resposta. Reparou que eu
estava a fazer as malas e vacilou.
- A Jill já está a dormir - informou. - Tive de a obrigar a tomar uns
sedativos.
- Ela ficará bem? - perguntei, preocupada.
O Tony sentou-se, com uma certa indiferença, na poltrona forrada a
brocado de seda que mais folhos tinha, cruzando elegantemente as pernas
não sem antes ajeitar, com todo o cuidado, o vinco das calças. E somente
depois de cuidar de todos os pormenores que só um homem de gosto
impecável considerava importantes é que sorriu, ironicamente.
- Não, a Jill nunca ficará "bem". Não tem estado bem desde o dia em que a
tua mãe fugiu. Sempre se recusou a falar sobre esses últimos instantes...
E eu só agora é que juntei todas as peças.
Sentei-me rapidamente na poltrona em frente, que fazia par com a dele, e
inclinei-me com a respiração alterada, imaginando que já ouvira o pior,
quando talvez estivesse enganada. Enfim, eu ainda era uma inocente, não
estava habituada às complexidades da natureza humana e a todas as
maneiras tortuosas que esta tem de manobrar para salvaguardar a sua àuto-
estima quando há questões que não o permitem.
O Tony principiou a falar, baixando agora os olhos como que envergonhado,
quando era demasiado tarde.
- No ano em que a tua mãe se foi embora desta casa, eu deslocara-me à
Alemanha para falar com um fabricante que lá vive e se encarrega de parte
das pequenas peças do nosso trabalho mecânico.
- Numa altura como esta os seus brinquedos não me interessam - intervim.
O Tony ergueu os olhos, pestanejando.
- Desculpa, estou a divagar, mas queria que entendesses a razão do meu
afastamento nessa altura. Seja como for, a tua mãe tentara contar à
Jillian, várias vezes, que eu lhe estava a fazer avanços impróprios. E
nesse dia gritou à mãe, que se recusava a escutá-la, que lhe faltara um
período menstrual. "Isso quererá dizer que estou grávida, mãe, quererá?"
A Jill estava muito agitada e virou-se contra ela. "Sua depravadazinha",
gritou. "Porque haveria um homem como o Tony de querer uma rapariga como
tu quando me tem a mim? Se é assim que pensas, vou mandar-te embora
daqui."
313
"Não precisa de se incomodar", sussurrou a Leigh, ficando mortalmente
pálida. "Eu vou-me embora e a mãe nunca mais me verá! E, se estiver
grávida, serei eu a ter o herdeiro dos Tatterton!"
Fui apanhada de surpresa por aquelas palavras.
- Como é que descobriu, como?
O Tony apertou as mãos. Falou com voz infeliz e destroçada.
- Há muito tempo que eu sabia que a Jillian invejava a beleza da Leigh,
que não necessitava de maquilhagem ou realces... Mas só há pouco, quando
se foi abaixo, é que me gritou a verdade. A Leigh estava grávida quando
saiu de cá, impelida pela incapacidade da própria mãe em compreendê-la e
ajudá-la. E eu, ao amar a Leigh, não só a destruí como também acabei com
o meu irmão.
Eu continuei sentada, interiorizando o que acabara de saber. Agora tinha
a certeza. Eu não era filha do meu pai. Não era uma reles e pacóvia
Casteel, uma maltrapilha dos montes. No entanto, que benefício poderia o
facto trazer-me, agora que o Troy se fora embora?

21 A PASSAGEM DO TEMPO

O Troy fora-se embora. Todos os dias aguardava por carta sua. Carta que
nunca veio. Todos os dias, atravessava o labirinto até sua casa,
esperançada em vê-lo de volta para que fôssemos, pelo menos, grandes
amigos. A casa de pedra e o seu lindo jardim começaram a ficar com ar
abandonado, por isso mandei os jardineiros de Farthy restituir-lhe o
aspecto original. Até que um dia, ao pequeno-almoço, ainda a Jillian
dormia, o Tony contou-me que soubera, através de um dos seus gerentes,
que o Troy andava a visitar as fábricas da Europa, uma a uma.
- É um bom sinal - disse o Tony com satisfação, esforçando-se por sorrir.
- Enquanto andar aí pelo mundo é porque não está deitado numa cama
qualquer à espera da morte.
O Tony e eu éramos, de certo modo, aliados numa causa comum, que era a de
trazer o Troy de volta a casa e ajudá-lo a sobreviver. Apesar do acto
terrível que o Tony cometera contra a minha mãe, quer ela o tivesse
induzido a isso ou não, este ia perdendo parte da sua importância a cada
dia que passava, enquanto eu me esforçava por seguir a rotina de ir à
faculdade e estudar com tanto afinco que, por vezes, caía na cama,
exausta. Era nessas alturas que o Tony me era muito prestável, ajudando-
me a vencer dificuldades académicas que me parecia impossível ultrapassar
sozinha. Quanto à Jillian, esta tornara-se uma sombra de si mesma. Trazer
toda a verdade sobre a filha para a luz do dia remeteu-a, a ela, para a
sombra. Todas as festas e iniciativas de caridade que tanto gostara de
frequentar ficaram esquecidas na automortificação que a mantinha de cama.
Deixou de cuidar da sua aparência. Chorava constantemente pela Leigh,
para que voltasse e a perdoasse por não a ter escutado, compreendido, por
ter negligenciado o seu papel de mãe. Mas claro que era demasiado tarde
para a Leign voltar.
315
No entanto, a vida continuava. Voltei a comprar roupa nova. Escrevi ao
tom e à Fanny, incluindo sempre um cheque para cada um. Atingir notas
altas tornou-se o meu principal objectivo na vida. Muitas vezes, quando o
Tony e eu éramos forçados a juntar-nos para que não nos sentíssemos sós
numa casa enorme, eu via os olhos azuis dele fixos em mim, como se
quisesse dizer-me algo que deitasse abaixo a minha muralha de
hostilidade; porém, eu sentia-me relutante em permiti-lo. Ele que
sofresse, pensava. Se não fosse ele, a minha mãe não teria fugido. Não
teria terminado numa cabana de montanha onde a miséria a matou. Depois,
lembrava-me dos dias felizes de convívio passados nos Willies, entre nós,
os cinco filhos Casteel, e o Logan Stonewall.
Certo dia de Novembro, quando o céu ameaçava nova queda de neve, chegou
uma carta da Fanny.
"Querida Heaven,
O teu egoísmo obrigou-me a casar com o Mallory, o meu ricaço. Agora já
não preciso das tuas esmolas pra nada. O Mallory tem uma casa enorme,
bonita que nem aquelas que aparecem nas revistas chiques, mas a velhota
dele é ta' danada de má que gostaria de me ver morta, na que me rale. A
velha não tarda a esticar o pernil, por isso tanto se me dá que me grame
ou na. O Mallory anda a tentar ensinar-me a portar e falar como uma
senhora. Eu na perderia o me tempo com uma cousa ta estúpida se na
tivesse a esprança dum dia dar outra vez de caras com o Logan Stonewall e
se aí já souber falar e portar-me como uma madama, talvez ele goste de
mim. Que me ame como eu sempre quis que me amasse. E quando ele for meu,
podes dizer-lhe adeusinho pra sempre.
Beijos da tua mana amiga
Fanny"
A carta da Fanny perturbou-me. Quem teria pensado que a Fanny, que já
vivera bastante e tratara todos os homens mais ou menos como máquinas em
cujos botões sabia carregar para obter o que queria, se iria apaixonar
pelo Logan, precisamente aquele que mais a desprezara.
Enquanto a Fanny escrevera só uma carta, o tom enviara várias.
"Encontrei o maço de notas que entregaste ao avô. Francamente, Heavenly,
onde é que tinhas a cabeça? Ele enfiou-o
316
dentro de uma caixa velha que meteu por baixo da lenha. O pobre velhote
já não está muito bom do juízo, sempre a querer o que não tem, de modo
que quando fica aqui connosco, está a suspirar pelos montes, onde a sua
Annie quer viver. E duas semanas depois de estar nos montes, tem vontade
de vir para junto dos "filhos." Acho que acaba por se sentir só por lá,
onde só tem a companhia da mulher que lá vai de manhã preparar a comida
para o dia todo. Caramba, Heavenly, o que é que uma pessoa há-de fazer
com alguém assim?"
Sem o Troy, Farthy passou a ser apenas um lugar onde passar os fins-de-
semana. Eu falava o menos possível com o Tony, ainda que por vezes
sentisse pena dele, pois deambulava sozinho pelos intermináveis
corredores vazios onde já não ressoavam os risos e a alegria de numerosos
convidados. Porém, eu prosseguia os meus estudos, lembrando a mim mesma,
a cada dia que passava, que viera para Boston com o objectivo em mente.
Portanto, era nele que me concentrava, pensando que um dia encontraria a
felicidade a que tinha direito.
Os anos passaram rapidamente depois do dia trágico em que o Troy achara
que era melhor afastar-se para bem longe de mim. Só muito de vez em
quando é que escrevia para casa, fazendo-o sempre e apenas para o Tony.
Eu sofri durante muito tempo, mas, quando o sol brilha, o vento sopra, a
chuva refresca a relva e vemos despontar na Primavera as flores que
plantámos no Outono, a dor e a infelicidade vão-se diluindo
progressivamente. Eu naquele momento tinha o meu sonho, os meus dias na
universidade. A maravilhosa área onde esta se situava, os rapazes que me
convidavam para sair, tudo isso ajudava. Um dia levei a casa um rapaz
muito pacato e discreto mas bem-parecido, que apresentei ao Tony. Sim, o
filho de um senador estatal era perfeito, embora eu o achasse um pouco
entediante de mais. Encontrei o Logan perto da universidade uma vez ou
duas, sorri-lhe e cumprimentei-o, perguntei-lhe se tinha notícias do tom,
mas ele nunca me convidou a sair.
Cheia de pena da Jillian, fiz questão em visitá-la sempre que o meu
horário rígido mo permitia. Comecei a tratá-la por avó. Ela pareceu não
dar por isso. Era quanto bastava para eu perceber até que ponto fora
drástica a mudança ocorrida no seu íntimo. Escovava-lhe e penteava-lhe o
cabelo
317
e prestava-lhe muitos outros pequenos cuidados nos quais ela parecia nem
reparar. E, sentada sempre no canto mais afastado, o mais discretamente
possível, estava a enfermeira que o Tony contratara para ter a certeza de
que Jillian não atentava contra a própria vida.
Sempre que eu tinha férias, o Tony planeava algo de especial para
fazermos juntos. Visitámos Londres, Paris e Roma, cidades que,
finalmente, tive oportunidade de ver. Viajámos até à Dinamarca, Islândia
e Finlândia, onde pude conhecer a pequena cidade onde a minha mãe
nascera. Não fomos uma única vez ao rancho, no Texas, onde vivia a mãe da
Jillian com duas irmãs mais velhas. Era frequente eu ter a sensação de
que ele tentava compensar as privações por que eu passara na minha
juventude. Creio que tanto um como o outro albergávamos a esperança
constante de encontrar o Troy nalguma das nossas férias na Europa.
Pensei muitas vezes em visitar o meu avô, que fizera várias idas e vindas
entre a Jórgia e os Willies; porém havia sempre a ameaça de o pai estar
com ele, e esse, eu não estava ainda preparada para enfrentar. Quando
pensava na Stacie, lembrava-me daquele lindo rapazinho chamado Drake e
enviava-lhe toda a espécie de belos presentes pelo correio. A Stacie
escrevia-me sempre alguns dias depois a agradecer-me por me lembrar do
filho, que se achava cheio de sorte por receber brinquedos durante o ano
inteiro, sem ter de esperar pelo Natal.
- Tu podias dar-me uma enorme ajuda nos Brinquedos Tatterton - dizia-me o
Tony de vez em quando. - Ou seja, se perdeste a ambição de te tornares
outra Miss Marianne Deale. - Fitava-me penetrantemente. - Dar-me-ias um
prazer enorme se mudasses legalmente o teu apelido para Tatterton.
A minha reacção era deveras estranha. Eu, que nunca tivera orgulho em ser
uma Casteel, fazia questão em regressar a Winnerrow com um diploma
universitário passado em nome de uma Casteel. Desejava provar-lhes que os
reles e pacóvios Casteel não eram assim tão ignorantes e estúpidos que
tivessem de ir parar sempre à prisão. Ao reflectir sobre a proposta do
Tony, concluí que, naquele momento, não sabia ainda exactamente o que
desejava para mim. Eu estava a mudar, a mudar em variados aspectos e de
forma subtil.
O Tony esforçava-se ao máximo por compensar os danos que causara no
passado. Fazia por mim tudo aquilo que eu sonhara que fosse o meu pai a
fazer. O Tony tornou-me o
318
centro da sua vida, concedendo-me toda a atenção, amor e carinho, que eu
costumava achar que me eram devidos pelo pai. Durante um cruzeiro até às
Caraíbas, cheguei mesmo a ficar suficientemente descontraída para sorrir
e namoriscar com vários rapazes de aspecto agradável e, por um momento,
não me preocupei com o Troy. O que porventura lhe tivesse acontecido não
fora, de modo algum, por culpa minha.
Todavia, quando sonhava, era com o Troy que o fazia. O Troy algures a
precisar de mim, a amar-me; de manhã acordava com a cara molhada de
lágrimas. Quando conseguia deitar as preocupações com o Troy para trás
das costas, aceitava, de certo modo, a vida e o pouco controlo que tinha
sobre ela. Até que, certo dia, o Tony me entregou algo completamente
inesperado e maravilhoso.
Aconteceu no dia quatro de Julho. Faltava-me um ano para finalizar a
universidade.
- Vamos fazer um fabuloso piquenique à beira da piscina, com convidados
de fim-de-semana que desconfio que te vão dar imenso prazer. - O sorriso
do Tony era largo e esfuziante. - A Jillian parece um pouco melhor e
também estará presente, assim como outros convidados especiais.
- Quem são os convidados especiais?
- Ficarás contente - assegurou-me ele, sorrindo com ar misterioso.
As bandeiras decorativas das festas, todas vermelhas, brancas e azuis,
foram colocadas. Penduraram-se lanternas japonesas nas árvores, nos
postes de iluminação, contrataram-se empregados adicionais e o Tony, que
não suportava rock and roll, arranjou um grupo de músicos havaianos para
providenciar a música de fundo.
Quando desci do meu quarto, envergando um fato de banho azul-vivo que me
deixava um pouco embaraçada pelo decote ousado nas pernas, depararam-se-
me cerca de vinte convidados. Por cima, levava um casaco branco curto
pontilhado de minúsculos orifícios. Alguns dos convidados já se
encontravam dentro da piscina, outros tomavam banhos de sol, rindo e
conversando com a melhor das disposições. Alguns nadadores tinham já
ousado enfrentar as ondas agitadas do mar. Primeiro fui ter com a Jillian
para lhe dar um beijo na face, e esta sorriu-me de maneira vaga e
desorientada.
- Que estamos a celebrar, Heaven? - perguntou-me, olhando para velhos
amigos como se fossem desconhecidos.
Noutro lado do espaçoso terraço da piscina, vi o Tony a falar com uma
mulher baixa e bastante roliça que tinha ao lado
319
o marido ainda mais rotundo. Não me eram estranhos e o meu coração
começou a bater nervosamente. Oh, não, não! Ele não podia ter organizado
aquela espécie de reconciliação sem me avisar primeiro.
E, no entanto, fizera-o.
Ali, na Mansão Farthinggale, onde podia estender a mão e tocar neles se
quisesse, estavam a Rita e o Lester Rawlings de Chevy Chase. E a sua
presença significava que... o Keith e a "Nossa" Jane também não podiam
deixar de estar ali. O meu coração deu um pulo. Olhei ansiosamente em
volta à procura dos dois jovens Casteel. Depressa vi a "Nossa" Jane e o
Keith afastados das outras crianças e, a certa altura, reparei que a
"Nossa" Jane despia o roupão de praia, atirava as sandálias para o lado
e, seguida de perto pelo Keith, corria para a piscina. Sabiam nadar e
mergulhar muito bem, e fazer amigos entre desconhecidos.
- Heaven! - chamou o Tony do outro lado do terraço.
- Vem cá, temos aqui convidados especiais que me parece que já conheces.
Aproximei-me do Lester Rawlings e da Rita, a sua mulher, com precaução,
relembrando cenas daquele terrível dia de Natal nos Willies. Lembranças
daquela noite horrível, depois de a "Nossa" Jane e o Keith partirem,
trouxeram-me lágrimas aos olhos. E tinha recordações e culpas mais
recentes que me faziam nervosa, pois traíra a promessa feita na altura em
Chevy Chase ao dar a minha palavra de que não falaria com os meus irmãos
mais novos nem permitiria que me vissem. E depois havia a maneira como as
duas crianças me haviam rejeitado, uma dor que ainda estava bem viva e
dolorosa dentro de mim.
A Rita Rawlings abriu-me imediatamente os braços num gesto maternal.
- Oh, minha querida, minha querida, lamento muito o modo como as coisas
se passaram na última vez. O Lester e eu receávamos imenso que se os
nossos meninos voltassem a vê-la começassem a ter novamente aqueles
pesadelos e ataques de choro. Mas, apesar de não a vermos naquele
domingo, o comportamento deles mudou ligeiramente, deixaram de se mostrar
tão felizes e contentes por estarem connosco. Se ao menos nos tivesse
contado até que ponto a sua vida mudara... Naquele dia, quando apareceu
inesperadamente, pensámos que voltara para levá-los de novo para os
montes e para aquela pavorosa cabana. Mas Mister Tatterton já nos
esclareceu tudo. - Fez uma pausa, unindo os dedos papudos
320
e enfeitados de anéis e recuperando o fôlego. - O Lester e eu não
conseguíamos compreender o que aconteceu aos nossos felizes filhos depois
daquela chuvosa tarde de domingo. Mudaram como que por magia. Acordaram a
gritar, a chamar: "Hev... lee, volta, volta! Não fizemos por mal, não
fizemos por mal!" Só várias semanas depois é que nos contaram o que
acontecera, que se tinham recusado a reconhecê-la, e que a tinham mandado
embora, caso contrário, chamariam a Polícia. Querida Heaven, eles foram
muito cruéis, mas estavam aterrorizados com a perspectiva de terem de
regressar àquele sofrimento, pobreza e fome de que se lembravam muito
bem.
À minha volta todos estavam a divertir-se muito, dando mergulhos na
piscina. Criados andavam de um lado para o outro de tabuleiros com
aperitivos e bebidas na mão... Foi então que, de repente, os meus olhos
se detiveram na adolescente mais bonita que eu já vira. A "Nossa" Jane
encontrava-se a cerca de quatro metros de distância, com os olhos azuis
cor de turquesa pousados em mim com ar imensamente condoído e implorante.
Tinha então treze anos e os pequenos seios túrgidos começavam a despontar
por baixo do fato de banho. O cabelo ruivo-dourado flamejava-lhe em torno
do pequeno rosto oval, onde os olhos franjeados de pestanas mais escuras
imploravam o meu perdão. Perto dela, estava o Keith, um ano mais velho.
Crescera mais uns centímetros, e o seu cabelo cor de âmbar era farto e
brilhante. Também ele olhava, tremendo. Naquele momento estavam
nitidamente com medo de mim, não da mesma maneira como quando eu os
abordara na sua própria casa. Ali, pareciam receosos de que eu os odiasse
por me terem renegado.
Eu não sabia que dizer. Limitei-me a abrir-lhes os braços e a sorrir,
sentindo o coração aos pulos; depois vi-os hesitar, olharem de relance um
para o outro antes de deitarem a correr para se virem aninhar contra mim.
- Oh, Hev.., lee, Hev... lee - exclamou a "Nossa" Jane. - Por favor não
nos odeies pelo que fizemos! Desculpa termos-te mandado embora. Assim que
vimos a tua cara tão triste e desiludida ficámos logo arrependidos. -
Comprimiu o rosto contra o meu peito e começou a chorar. - Não era a ti
que não queríamos. Era voltar àquela cabana, à fome e ao frio. Pensámos
que nos levarias para tudo isso. E já não temos o papá e a mamã, que
gostavam tanto de nós.
- Eu compreendo - ciciei, beijando-a repetidas vezes antes de me voltar
para o Keith, que abracei com mais força,
321
altura em que comecei realmente a chorar perdidamente. Até que enfim
abraçava de novo os meus pequeninos! As vozes da Rita e do Lester
Rawlings chegaram até mim do sítio onde se tinham sentado, à sombra de um
dos enormes guarda-sóis às riscas verdes e brancas, enquanto beberricavam
bebidas frescas e falavam ao Tony da carta maravilhosamente enternecedora
que um dia tinham recebido, cerca de duas semanas antes.
- Era uma carta do seu irmão Troy, Mister Tatterton. Ele queria corrigir
algumas falhas e, quando acabámos de a ler, estávamos os dois a chorar.
Não nos disse que cometêramos um acto terrível, apenas nos agradeceu por
tomarmos tão bem conta dos irmãos mais novos da Heaven, pois ela amava-os
muito. E não pudemos deixar de contactar consigo, pois agora sabemos que
não está certo tentarmos separar irmãos.
- Tratem-me por Tony - sugeriu ele encantadoramente -, já que agora somos
praticamente família.
- A carta que recebemos do seu irmão clarificou completamente as
circunstâncias que rodearam a Heaven.
O Troy fizera aquilo por mim! O Troy ainda pensava em mim e fazia o que
estava ao seu alcance para me tornar feliz e eu teria de obter a sua
carta, nem que fosse uma fotocópia.
- com certeza, com certeza - concordou a Rita Rawlings. - Está tão bem
escrita que tencionava guardá-la para sempre, mas, minha querida, pode
ficar com o original. A mim basta-me uma cópia.
Nos dez dias em que os Rawlings ficaram connosco naquele Verão, a Jane
(que já não queria que a tratássemos por "Nossa" Jane), o Keith e eu
reencontramo-nos. Fizeram perguntas sobre o tom e a Fanny, sobre o pai.
Davam a impressão de nutrir o mesmo ressentimento por este que eu.
- A mamã e o papá disseram que podíamos vir visitar-te uma ou duas vezes
por ano! Oh, Hev... lee, vai ser maravilhoso! Talvez um dia possamos
voltar a ver o tom, a Fanny e o avô. Mas nunca quereremos deixar a mamã e
o papá.
Não houve a menor dificuldade em combinar tudo. A Mansão Farthinggale
deixou as suas impressões, assim como o Tony... E, se a Jillian lhes
causou alguma estranheza, eram demasiado delicados para o referirem.
Depois entraremos em contacto - prometeu a Rita Rawlings, enquanto o
Lester apertava a mão ao Tony como se fossem grandes amigos. - O Natal
será uma ocasião óptima
322
para nos juntarmos, pois queremos que os nossos filhos desfrutem dos
prazeres de uma família grande.
Sim, já era altura de os meus irmãos me virem ver. Eu já não vivia numa
cabana aninhada na vertente de um monte; já não era uma mendiga
esfaimada, objecto de piedade, embora não mencionassem o tom, a Fanny ou
o pai. Ou o avô, como a Jane e o Keith tinham feito.
A Rita Raylings cumpriu a sua palavra e, quando me mandou a carta que o
Troy lhes escrevera, fazendo um apelo tão veemente e apaixonado em meu
favor, os meus olhos encheram-se de lágrimas. Ele amava-me. Ainda me
amava! Continuava a pensar em mim. Oh, Troy, Troy, volta para casa, volta
para casa! Vive por perto e deixa-me ver-te de vez em quando... Isso
bastará!
De tempos a tempos, eu saía com jovens aprovados pelo Tony. Não conheci
ninguém tão único como o Troy nem tão leal e dedicado como o Logan. Via-
me obrigada a concluir que este encontrara alguém. Tal como me
aconteceria... um dia. E quando pensava longa e reflectidamente no Logan,
sabia que queria voltar a vê-lo e, quando o fizesse, teria de tomar
medidas para incentivar o nosso relacionamento.
O tom escrevia com frequência, dizendo-me que resolvera, afinal, aceitar
o dinheiro que eu lhe mandava e, enquanto ajudava o pai durante o dia, ia
frequentando cursos na faculdade. "Estamos a atingir os nossos
objectivos, Heavenly. Apesar de tudo vamos conseguir!"

22 SONHOS CONCRETIZAM-SE

No ano em que fiz vinte e dois anos, num lindo dia dos finais de Junho,
altura em que todas as flores tinham desabrochado, recebi o meu diploma.
Tanto o Tony como a Jillian estiveram presentes para me representar e
embora eu perscrutasse o público para ver se o Troy viera, não o vi.
Esperara e rezara sempre para que ele aparecesse para me aplaudir. Porém,
vi a Jane e o Keith sentados ao lado dos pais, perto da Jillian e do
Tony... mas nem o tom nem a Fanny, a quem enviara convites, se
encontravam ali.
"Sê esperta e faz os possíveis por manter a Fanny afastada da tua vida",
advertira-me o tom na sua última carta. "Se pudesse, ia, a sério que ia,
mas estou atrapalhado a tentar passar nos meus exames e ainda tenho de
ajudar o pai. Perdoa-me e tem a certeza de que estarei contigo em
pensamento."
Depois da festa de formatura, fomos até à Mansão Farthinggale.
Estacionado em frente da porta da frente estava um Jaguar branco que o
Tony encomendara especialmente para mim.
- É para o dia em que voltares a Winnerrow. Se eles não se deixarem
impressionar pela tua roupa e pelas jóias, este automóvel certamente não
deixará de o fazer.
Era um carro fabuloso, assim como todos os meus presentes de formatura.
No entanto, estranhamente, agora que já deixara de ser estudante e
dispunha de muito tempo livre, não sabia o que fazer comigo mesma.
Atingira o meu objectivo. Poderia tornar-me, se o desejasse, noutra Miss
Marianne Deale. Naquele momento tinha a certeza de que não era isso o que
eu queria. Nesse Verão senti uma inquietação crescer dentro de mim, uma
agitação que não me deixava dormir à noite e me tornava irritável.
- Vai dar uma volta sozinha - sugeria-me o Tony. -
324
Era o que eu costumava fazer quando tinha a tua idade e não conseguia
encontrar tranquilidade dentro de mim mesmo.
No entanto, nem mesmo uma ida à costa do Maine, onde fiquei dez dias numa
aldeia de pescadores, me sossegou. Eu tinha de fazer algo. Algo
importante.
Dessa vez, ao regressar das minhas férias e ao passar sob os portões
ornados da Mansão Farthinggale, cheguei como uma desconhecida, com novos
olhos, ao longo caminho serpenteante que conduzia à enorme mansão
encantada.
Não mudara. Continuava impressionante, assustadora e bela. Tudo estava na
mesma como quando eu ali chegara com dezasseis anos. A minha intuição
dizia-me que o Troy estava ali. O Tony dissera que ele não podia ficar
fora eternamente.
As batidas do meu coração aceleraram; a minha alma pareceu despertar e
espreguiçar-se antes de respirar fundo e correr de novo para o amor que
encontrara naquela casa. Eu quase podia ver o Troy, senti-lo algures, por
perto. Antes de me apear e aproximar do pórtico de pedra alto, deixei-me
ficar dentro do carro por instantes, inalando o ar especialmente
perfumado da Mansão Farthinggale.
O Curtis respondeu aos meus toques impacientes de campainha sorrindo
afectuosamente ao ver de quem se tratava.
- Que bom tê-la de volta, Miss Heaven - disse em voz baixa e educada. -
Mister Tatterton foi dar um passeio pela praia, mas a sua avó encontra-se
na sua suite.
A Jillian fechara-se nos aposentos que ocupava naquela mansão gloriosa,
que voltara a viver num silêncio quase tão denso e profundo como o de uma
sepultura.
Encontrei-a sentada como eu a vira muitas vezes quando não estava bem
consigo mesma, de pernas cruzadas sobre o seu sofá cor de marfim,
envergando uma daquelas túnicas cremes largas, desta vez debruada a renda
em tom pêssego.
O som suave da porta a abrir e a fechar, quando eu entrei, fê-la
despertar de alguma meditação profunda. A disposição das cartas, com que
jogava a uma paciência sobre o tampo da mesinha à sua frente, era preciso
e uniforme, enquanto as que tinha nas mãos estavam desordenadas,
esquecidas. Desviou os olhos azuis desfocados para mim, quase como se não
me visse. Quando vi a Jillian fitar-me quase com pavor, tentei sorrir. Se
a minha aparência a chocara, a dela representara um choque ainda maior
para mim.
A sua pele fazia agora lembrar porcelana rachada, exibindo um branco
pouco saudável. Ao vê-la fitar-me fixamente,
325
fiquei apavorada com a desorientação que se lhe lia nos olhos, a maneira
como contorcia as mãos e o cabelo lhe pendia sobre a cara, pouco limpo e
desmazelado...
Só ao virar-lhe as costas para que não visse a minha perturbação é que
reparei numa mulher que, sentada no canto mais afastado, fazia renda
tranquilamente, envergando um uniforme branco de enfermeira. Ergueu os
olhos para mim e sorriu-me.
- Chamo-me Martha Goodman - informou-me. - Tenho muito prazer em conhecê-
la, Miss Casteel. Mister Tatterton disse-me que devia estar a chegar.
- Onde está Mister Tatterton? - perguntei, dirigindo-me a ela.
- Foi dar uma volta pela praia - respondeu em voz muito ténue e baixa,
como se não quisesse chamar a atenção da Jillian para a sua presença no
quarto. Levantou-se e indicou-me a direcção, e eu virei-me para me
retirar.
A Jillian pôs-se de pé, descalça, e começou a girar sobre si, fazendo com
que a saia da sua túnica rodasse.
- Leigh - chamou em voz cantarolada e infantil -, quando vires o Cleave
diz-lhe que eu mando um abraço! Às vezes, lamento tê-lo trocado pelo
Tony. O Tony não me ama. Nunca ninguém me amou, nem muito nem pouco. Nem
mesmo tu. Tu gostas mais do Cleave, sempre foi assim... mas eu não me
importo. Pareces-te imenso com ele, comigo é só por fora. Leigh, porque
estás a olhar para mim dessa maneira? Porque será que tens de levar tudo
tão a sério!
Recuei para a porta arquejando violentamente; saí, seguida pelo seu riso
insano, que estilhaçava o ar.
Quando, finalmente, cheguei à porta, não resisti a lançar-lhe um último
olhar; vi-a enquadrada diante de uma das suas janelas de sacada
arqueadas, com o sol a filtrar-se através do seu cabelo, traçando-lhe a
silhueta esguia através do tecido transparente da túnica comprida e
larga. Era velha e, paradoxalmente, também era jovem; era bela e
grotesca; mas, acima de tudo, estava louca e inspirava pena.
Fui-me embora com a certeza de que não tencionava voltar a vê-la.
Ao chegar à orla rochosa da praia, dirigi-me para o sítio aonde o Troy
nunca quisera acompanhar-me, pois tinha pavor do mar e do seu portento.
Havia rochas e pedras enormes, mais altas do que eu, e caminhar por ali
não era fácil. Nessa altura, também eu tivera medo do mar com o seu bater
constante, as suas vagas altas que se esmagavam sobre a costa, deixando
livre apenas uma pequena faixa de areal.
326
As pedrinhas entravam-me nos sapatos, e não tardei a tirá-los para melhor
poder correr a fim de apanhar o Tony. Não tencionava ficar mais de uma
hora ou duas, pois naquele momento levava um destino em mente.
Ao dar uma curva para a praia, encontrei-me subitamente com ele.
Encontrava-se sentado no cimo de um amontoado alto de pedras, a olhar
para o mar; foi com alguma dificuldade que subi para me ir sentar junto
dele. Contei-lhe o que tencionava fazer.
- Portanto, vais regressar a Winnerrow - disse o Tony melancolicamente,
sem virar a cabeça. - Sempre soube que acabarias por regressar a esses
montes malditos que devias não querer ver nunca mais.
- Fazem parte de mim - repliquei, sacudindo a poeira dos pés e das
pernas. - Sempre tencionei voltar a ensinar ali, na mesma escola onde
Miss Deale foi minha professora e do tom. São poucos os professores que
têm vontade de ir para aquela zona pobre. Portanto, aceitar-me-ão, e
assim poderei dar continuidade à tradição iniciada por Miss Deale. O meu
avô Toby quer que eu fique com ele enquanto lá estiver. E se o Tony ainda
quiser ver-me, passarei aqui algum tempo consigo. Mas não quero voltar a
ver a Jillian, nunca mais.
- Heaven - principiou o Tony, calando-se logo a seguir e fitando-me com
uma dor imensa no olhar.
Tentei ignorar o acesso de comiseração que senti ao ver-lhe as olheiras
em redor dos olhos encovados. Estava mais magro, vestindo menos
cuidadosamente. As calças, que em tempos usara sempre impecavelmente
engomadas, já nem sequer vinco tinham. Saltava à vista que os melhores
anos do Ânthony Townsend Tatterton já tinham ficado para trás.
Suspirou antes de responder.
- Não soubeste do que aconteceu pelos jornais?
- Que aconteceu?...
O Tony voltou a suspirar profunda e longamente, sem desviar os olhos do
mar.
- Como sabes, o Troy tem andado aí pelo mundo. A semana passada voltou
para casa. Dava a impressão de que sabia da tua partida.
O meu coração deu um pulo.
- Ele está cá? O Troy encontra-se aqui? Voltaria a vê-lo! Troy, oh, Troy!
O Tony sorriu enviesadamente. Era o tipo de sorriso que me arrepanhava o
coração e fazia com que este me doesse.
327
Afundou a cabeça entre os ombros, sem desviar nunca os olhos do mar, o
que me obrigou a olhar de relance para este, a fim de perceber para o que
olhava ele tão insistentemente. Consegui então distinguir, com uma certa
dificuldade, uma grinalda de flores a balançar, ao longe, sobre as ondas.
O reflexo dourado que a luz do Sol arrancava às águas profundas cor de
safira, compunha um espectáculo esplendoroso. A grinalda de flores não
passava de um ponto colorido. As batidas do meu coração voltaram a
acelerar. O mar, o mar sempre perseguira o Troy. Senti um peso inesperado
no peito.
O Tony inspirou o vento frio que soprava sempre do lado do oceano.
- O Troy voltou para casa muito deprimido. Ficou contente em saber do
reencontro entre ti, a Jane e o Keith. Mas o seu vigésimo oitavo
aniversário aproximava-se. Foram sempre ocasiões que o deprimiram.
Acreditava firmemente que não ultrapassaria os trinta. "Espero que não
seja uma doença dolorosa", dizia de vez em quando, como se isso o
preocupasse mais que tudo. "Não é que eu tenha medo de morrer, o que me
aterra é a estrada até lá, que às vezes pode ser muito tortuosa." Eu
disse-lhe que ainda tinha mais dois anos, mesmo que a sua precognição se
revelasse verdadeira. Se assim não acontecesse, chegaria aos cinquenta,
sessenta ou setenta. Ele olhou para mim como se eu não soubesse o que
dizia. Mantive-me perto, só para o ajudar, receoso de que algo pudesse
acontecer. Ficávamos sentados no quarto dele a conversar sobre ti, sobre
a coragem que tiveste para cuidar dos teus irmãos depois de a tua
madrasta e de o teu... de o teu pai se irem embora. Contou-me que,
durante o último semestre, costumava visitar a tua universidade e
esconder-se perto só para poder ver-te.
Desviou de novo os olhos para o mar. Dessa vez a grinalda desaparecera e
eu senti-me assustada, terrivelmente assustada.
- Estou a contar-te esta história ciente de que ainda o amas. Peço-te que
me perdoes, Heaven. Para afastar o pensamento do Troy do temido dia de
anos, organizei uma festa que durasse todo o fim-de-semana. Obriguei
todos a prometer que nunca o deixariam um segundo sozinho. Estava
presente uma rapariga com quem ele saíra uma vez ou duas. Já fora casada
e divorciara-se. Era o tipo de jovem risonha, inteligente e espirituosa
que eu achei que o animaria e talvez ajudasse a deixar de pensar em ti.
Ela tinha sempre muitas histórias para contar sobre as celebridades que
conhecera,
328
sobre a roupa que comprava, a enorme mansão que ia mandar construir para
si numa ilha do mar do Sul que lhe pertencia... se encontrasse o homem
certo com quem viver. E ao dizê-lo olhava para o Troy, mas este não
parecia vê-la nem ouvi-la. Nenhuma mulher gosta de ser assim ignorada.
Portanto, o estado de espírito dela mudou. Tornou-se zombeteira e
indelicada. A certa altura, o Troy deixou de poder continuar a suportar o
seu sarcasmo e, levantando-se rapidamente, saiu de casa. Vi-o dirigir-se
para os estábulos. Eu não o queria ali e, se a idiota da rapariga não
tivesse corrido atrás de mim, teria chegado junto dele muito a tempo de
impedi-lo de fazer o que fez. Mas ela agarrou-me na mão e troçou de mim
por ser o protector do meu irmão.
"Quando, finalmente, me livrei dela, o Troy selara o Abdulla Bar, segundo
um dos moços da estrebaria, e saíra a galope através do labirinto, dando
voltas incessantes neste. Não era lugar que um cavalo sensível apreciasse
e não tardou que saltasse por cima da última sebe, enlouquecido pelas
voltas e reviravoltas do labirinto que nunca vira... E dirigiu-se para a
costa!
- O Abdulla Bar... - repeti, mal me recordando do nome.
- Sim, o garanhão preferido da Jill. Aquele que só ela podia montar.
Selei o meu cavalo e corri a tentar alcançá-lo, mas o vento aqui na costa
é muito forte. À minha frente, a uns trezentos e tal metros, vi um bocado
de papel voar até ao focinho do Abdulla Bar. Levantou-se nas patas
traseiras e relinchou como se estivesse aterrorizado e, dando meia volta,
correu direito ao oceano! Senti-me enlouquecer, ali montado no meu
cavalo, que se recusava a correr contra o vento, a ver o meu irmão
esforçar-se por trazer o animal tresloucado para terra! Atrás de nós, o
Sol estava vermelho e baixo no horizonte... e o mar transformara-se em
sangue... e tanto cavalo como cavaleiro desapareceram.
Levei as mãos à testa e conservei-as aí.
- O Troy? Oh, não, Tony!
- Chamámos a Guarda Costeira. Todos os homens presentes na festa meteram-
se nos barcos que eu tenho e procurámo-lo durante horas. O Abdulla Bar
voltou para a praia a nado e trazia a sela vazia; o corpo do Troy foi
depois encontrado, perto da madrugada. Afogara-se.
Não! Não! Não podia ser verdade. O Tony continuou a falar, envolvendo-me
os ombros com um braço e atraindo-me a si.
329
- Tentei desesperadamente descobrir o teu paradeiro no Maine, mas os meus
esforços foram infrutíferos. Todos os dias tenho efectuado o meu próprio
pequeno serviço fúnebre, à espera de que regressasses e fizesses as tuas
despedidas.
Eu achara que já esgotara todas as minhas lágrimas pelo amor que tivera
pelo Troy. No entanto, ali de pé, a olhar para o mar, tive a certeza de
que toda a vida choraria muitas vezes por ele.
O tempo foi passando enquanto eu, ao lado do Tony, esperava ver
reaparecer a grinalda de flores a flutuar.
"Oh, Troy, os anos que podíamos ter tido juntos! Quase quatro anos que te
dariam uma boa parcela de vida, de amor e normalidade, e quem sabe se
então tu passarias a amar a vida o suficiente para ficar!"
Sentia-me entorpecida, cega por lágrimas que não queria partilhar com o
Tony. Depois de regressarmos à mansão, despedi-me rapidamente deste,
embora se agarrasse às minhas mãos e tentasse obrigar-me a prometer que
voltaria.
- Por favor, Heaven, por favor! Tu és a minha filha, a minha única
herdeira. O Troy morreu. Preciso de ter um herdeiro que dê significado à
minha vida! De que serviu tudo o que acumulámos ao longo de séculos se a
linha de sucessão for quebrada agora? Não vás! O Troy teria gostado que
ficasses! Tudo o que ele foi está aqui na sua casa, que te deixou. Ele
amava-te... Por favor, Heaven, por favor, por mim e pelo Troy! Tudo o que
vês à tua volta virá a ser teu. É a tua herança. Aceita-a, quanto mais
não seja para depois a passares aos teus filhos.
Retirei as minhas mãos.
- Mas o Tony pode ir para onde quiser sem levar a Jillian - disse-lhe
asperamente, entrando no meu elegante automóvel. - Pode contratar pessoal
especializado para cuidar dela e só voltar depois da sua morte. Não
precisa de mim, nem eu de si ou do dinheiro dos Tatterton. Agora tem
exactamente o que merece... Nada!
O vento enfunou-me o cabelo. O Tony ficou a ver-me afastar, e era o homem
mais triste que eu já vira. Eu não me importava. O Troy morrera, eu
formara-me e a vida continuaria, apesar do Tony, que agora precisava de
mim, e da Jillian, que nunca necessitara de algo que não fosse juventude
e beleza.
330

23 VINGANÇA

Eu ia voltar para casa, para Winnerrow. Era tempo, finalmente, de virar


as costas ao passado e tornar-me a pessoa que sempre quisera ser. Agora
sabia que os nossos sonhos de infância são, muitas vezes, os mais puros;
desejava, acima de tudo, seguir as pisadas de Miss Marianne Deale, ser o
tipo de professora capaz de proporcionar a uma criança como a que eu fora
a possibilidade de progredir na vida, de lhe facultar o acesso ao mundo
dos livros e do conhecimento que lhe permitisse sair da estreiteza e
ignorância dos montes. E na verdade já não custava muito correr o risco
de perder a minha herança Tatterton - pois eu deixara de ser uma reles
Casteel, acobardada nas margens da sociedade. Não, eu era uma Tatterton,
uma VanVoreen, e mesmo que tencionasse não contar nunca à minha família a
verdade sobre o meu parentesco, ainda assim não me sentia preparada para
enfrentar o homem de cujo amor necessitara tão desesperadamente em
rapariga, e que me renegara tão implacável e brutalmente. É que naquela
altura eu já não precisava dele para nada. Porém, queria que ele, e
apenas ele, soubesse exactamente quem eu era.
Levei três dias a chegar a Winnerrow de carro, e no caminho parei em Nova
Iorque, num dos melhores cabeleireiros desta cidade, e dispus-me a algo
que andava com vontade de fazer há anos. Toda a vida desejara ter nascido
com o louro platinado do cabelo da minha mãe. Toda a vida fora o anjo
negro, traída pelo que imaginara ser o meu sangue índio dos Casteel. A
partir dali seria um verdadeiro anjo branco e refulgente, a rapariga rica
de Boston para quem nunca mais ninguém ousaria olhar de cima para baixo.
Saí daquele salão transformada numa mulher diferente - uma mulher de
esplendorosos cabelos louro-platinados. Não, eu já não era uma Casteel.
Era uma autêntica filha de minha mãe. E sabia
331
que, pelo menos para certo homem, eu já não pareceria ser a Heaven Leigh
Casteel que ele detestava... Não, ele veria o quanto eu me parecia com a
Leigh, compreenderia, finalmente, o quanto gostava de mim. Eu seria a
Heaven Leigh que ele amava, pois veria em mim o seu adorado Anjo. Quando
cheguei à cabana nova construída no meio do bosque, o meu avô quase não
me reconheceu. Ao avistar-me, mostrou-se quase receoso, como se um
fantasma tivesse regressado de entre os mortos para a vida. Foi nesse
momento que me apercebi de que, se ele visse realmente a sua "Annie",
provavelmente teria um ataque de coração.
- Avô - disse-lhe, abraçando o seu corpo rígido e assustado -, sou eu, a
Heaven. Gosta do meu cabelo?
- Oh, Heaven, pensava que eras um fantasma! - exclamou, soltando um
profundo suspiro de alívio.
E quando lhe disse que vinha viver com ele, ficou felicíssimo.
- Oh, Heaven, estão todos a voltar para casa ao mesmo tempo. O circo do
Luke vem à cidade na próxima semana. Todos os Casteel estão a regressar a
Winnerrow. Formidável!
Queria então dizer que eu não era a única Casteel a voltar para mostrar
em quem se tornara. Portanto, poderia concretizar os meus planos mais
cedo do que esperara. Agora sabia exactamente que fazer.
As pessoas de Winnerrow não falavam de outra coisa senão do circo que
estava para chegar. Detinham-se à esquina das ruas, nos cabeleireiros,
barbeiros, aglomeravam-se no único supermercado existente, a especular se
seria "decente" ou não assistir a um espectáculo onde tantos artistas
usavam tão pouca roupa. Andavam todos tão obcecados com o circo que não
tinham tempo para tagarelar sobre mim e o meu Jaguar branco às voltas
pela cidade.
Na semana que antecedia a chegada do circo, andei atarefada a tornar a
cabana o mais confortável e bonita possível; também tive de lavar um
velho vestido e de o mergulhar com cuidado em lixívia, de maneira a ficar
imaculadamente branco. Depois precisei de o passar a ferro e enfrentei as
maiores dificuldades a manejar um ferro eléctrico, apesar de ser do
melhor que havia. Ora precisamente no dia em que eu montava aquela
geringonça chamada tábua de engomar, o Logan apareceu por lá a fim de
deixar uns medicamentos ao meu avô. Ao ver-me, susteve a respiração.
- Oh - exclamou, parecendo incomodado -, quase não te reconheci.
332
- Não gostas? - perguntei com ar desprendido, decidida a manter a
distância.
- Estás linda, mas ainda o ficavas mais com a tua cor escura natural.
- Claro que irias ter essa opinião. Gostas de tudo tal e qual como Deus
fez. Mas eu sei que a natureza pode ser melhorada.
- Vais começar outra vez com discussões, ainda por cima por causa de uma
tolice como a cor do teu cabelo? Para te ser franco pouco me importa o
que faças com ele.
- Nunca pensei que fosse de outra maneira.
O Logan colocou o embrulho em cima da mesa da cozinha e olhou em volta.
- Onde está o teu avô?
- Lá em baixo, a fanfarronar sobre o pai e o seu circo. Quem o ouvisse
imaginaria que o filho se tornou presidente dos Estados Unidos.
O Logan deixou-se ficar no meio da cozinha, olhando em torno, nitidamente
sem vontade de se ir embora naquele momento.
- Gosto do que fizeste a esta cabana. Está com um ar muito confortável.
- Obrigada.
- Tencionas ficar por muito tempo?
- Talvez. Ainda não sei. Candidatei-me à escola de Winnerrow mas ainda
não recebi resposta.
Comecei a tentar passar o vestido a ferro.
- Não casaste com o Troy Tatterton. Porquê?
- Acho que não tens nada a ver com isso, pois não, Logan?
- Acho que tenho. Conheço-te há muitos anos. Cuidei de ti quando
estiveste doente. Amei-te durante muito tempo... Penso que isso me dá
alguns direitos.
Só depois de vários minutos é que consegui voltar a falar, com lágrimas
na voz.
- O Troy morreu num acidente. Era um homem maravilhoso que passou por
demasiadas tragédias na vida. Só de pensar em tudo o que poderia ter tido
e perdeu, dá-me vontade de chorar.
- Que é que os super-ricos não podem comprar? - perguntou o Logan com um
tom ligeiramente trocista na voz.
Eu virei-me abruptamente para ele, ainda de ferro na mão.
- Tu ainda pensas como eu antigamente, que o dinheiro
333
pode comprar tudo, mas olha que não pode nem nunca poderá. - Voltei-me de
novo para o vestido e recomecei a passá-lo. - Importas-te de agora te
ires embora? Tenho mil e uma tarefas. O tom vem cá ficar e eu quero ter
tudo impecável aqui em casa para o receber... Quero fazer com que se
sinta em casa.
O Logan ainda ficou mais um bocado atrás de mim, tão próximo que poderia
ter-me dado um beijo no pescoço se quisesse. Porém, não o fez. Senti a
sua presença quase como se ele me tocasse.
- Heaven, serás capaz de arranjar um pouco de tempo na tua agenda
preenchidíssima?
- Porque haveria de o fazer? Ouvi dizer que estás praticamente noivo da
Maisie Setterton.
- Andam todos a dizer que o Cal Dennison voltou a Winnerrow só para te
ver!
Virei-me de novo para ele.
- Porque estás tão ansioso por acreditar em tudo o que ouves? Se o Cal
Dennison está na cidade, não fez nenhum esforço para me contactar e, no
que me diz respeito, espero nunca mais pôr-lhe a vista em cima.
De repente, o Logan sorriu. Os seus olhos cor de safira iluminaram-se, o
que o fez voltar a parecer-se com o rapaz que me amara.
- bom, foi um prazer voltar a ver-te, Heaven. E se resolveres continuar
loura, hei-de habituar-me.
Dito isto, dirigiu-se para a porta das traseiras e saiu, deixando-me a
olhar na sua direcção, pensativa.
Quando o dia do circo amanheceu, o meu avô estava tão ansioso por ver o
filho mais novo e o tom, que quase saltava de excitação enquanto eu
tentava fazer-lhe o nó da primeira gravata que usava na vida. Resmungou,
queixou-se e disse que eu era pior que a Stacie, que andava sempre a
esforçar-se para que ele parecesse ser quem não era.
- Isto na' serve de nada, Heaven. Nã'quero roupas novas... vá, toca a
despachar. Eu sei pentear o meu próprio cabelo!
A minha intenção era fazê-lo parecer o mais possível com um cavalheiro, e
mostrar a todos aqueles snobes de Winnerrow que até mesmo os Casteel eram
capazes de mudar. O avô usava também o seu primeiro fato. Enfiei-lhe um
lenço estampado no bolso, demorando alguns minutos a ajeitá-lo, enquanto
o velhote me incentivava a que me apressasse.
- Ora, diabos me levem se na' me tornaste parecido com
334
um desses janotas das cidades grandes - disse com orgulho ao olhar-se no
espelho alto que fora encomendado para o quarto em que ele estava
instalado. Pavoneou-se como um galo de plumas coloridas, tocando no pouco
cabelo que lhe restava com dedos hesitantes.
- Tenha cuidado consigo, avô, até eu estar pronta.
- Mas agora na' sei o que hei-de fazer.
- Então eu digo-lhe. Não saia do alpendre da casa e não comece a mexer na
madeira, se não, fica cheio de serradura e lascas. Sente-se na cadeira de
balouço ao lado da que é da avó e conte-lhe o que vai acontecer hoje. E
fique lá até eu ir buscá-lo quando estiver pronta.
- Mas a Annie não vai querer ficar aqui sem a gente! exclamou
veementemente. - Também a vais vestir à maneira, na' é?
- Claro.
O meu avô fitou-me com reverência, e depois ficou com ar choroso.
- Foste sempre uma boa menina, Heaven. A melhor menina do mundo.
Oh, ser elogiada por alguém naquele lugar dos montes onde nunca ninguém
gostara o suficientemente de mim doía mais do que eu esperara.
- Então agora não saia do alpendre da frente até eu ficar pronta -
adverti-o. - Se se sujar, teremos de começar outra vez pelo princípio...
E isso significa ir para a banheira.
O velhote afastou-se a resmungar sobre a quantidade de banhos que se
tomava naquela casa e no desperdício de tanta água.
Nessa noite enverguei um fino vestido de verão azul e sandálias a
condizer. Estava a guardar o meu vestido para a segunda noite, altura em
que os artistas estariam mais à vontade e prestariam, talvez, mais
atenção ao público. Na primeira noite em que todos os Casteel se
exibiriam em Winnerrow. Na noite seguinte, eu mostraria o meu verdadeiro
eu ao pai. As minhas jóias eram verdadeiras e eu, apesar de saber que era
uma tola em levá-las a um circo, calculava que ninguém a distinguiria de
bijutaria, a não ser que também as possuíssem a sério.
Quando, por fim, saí para o alpendre, pronta para partir, o meu avô
estava a ter um trabalhão para acalmar a Annie.
- Ela 'tá bonita, na' achas, Annie - disse com ar satisfeito, embora
ficasse confuso sempre que reparava no meu cabelo louro.
335
Depois de "vestirmos" a avó a preceito, quis que o meu avô fosse sentado
ao meu lado na frente, para que eu o pudesse exibir a todos os snobes de
Winnerrow que achavam que os homens da família Casteel não sabiam
parecer-se com cavalheiros.
- Mas eu na' quero deixar a minha Annie sentada sozinha lá atrás -
queixou-se.
- Ela quer deitar-se e descansar um pouco, avô, e só o pode fazer se o
avô vier aqui para o meu lado.
Depois de eu o convencer de que tinha obrigação de a deixar descansar
quando ela queria, foi sentar-se ao meu lado. Nesse momento, abriu-se um
sorriso rasgado e feliz no velho rosto encarquilhado.
- Que raio de carro é que tu tens aqui, Heaven? Nunca na vida andei ta'
de mansinho! Nem parece que passa pó' cima de buracos. Diabos me levem se
na' dá a impressã de que 'tamos em casa na cama!
Descemos a rua principal de Winnerrow muito lentamente.
Ao chegarmos ao centro as cabeças viraram-se. Se se viraram!
Os olhos esbugalharam-se ao ver os reles Casteel a andar num Jaguar
descapotável de modelo exclusivo. E se havia assunto de que os
provincianos entendiam era de automóveis. O Toby Casteel comportou-se com
dignidade pelo menos uma vez na vida, sentando-se empertigadamente e só
se virando para sussurrar algo à mulher depois de sairmos da rua
principal.
- Annie, agora acorda. Viste-os a olhar, viste? Na' 'tavas a dormir, pois
na'? Na' achaste o máximo, eles de olhos todos arregalados a olhar prà
gente? É que agora na' há ninguém que 'teja melhor qu'à gente. Isso
porque aqui a nossa Heaven foi prà escola e voltou com tudo de bom e do
melhor. Nunca tinha reparado no que a educaçã' pode fazer, nunca.
Nunca vira o meu avô tão conversador, mesmo que não soubesse do que
falava. O dinheiro que comprara aquele carro pertencera ao Tony, não fora
ganho por mim.
Levámos mais de uma hora a chegar aos terrenos, nos arredores da cidade,
onde o circo fora montado, pois eu guiei sem pressas.
Estavam três tendas grandes armadas e uma série de outras, mais pequenas,
para os espectáculos paralelos. A enorme tenda central impressionou-me
pelas suas cores vivas e
336
pelas numerosas bandeiras que a enfeitavam, adejando alegremente ao
vento. Pessoas de cinco distritos tinham acorrido para assistir ao circo,
onde o Luke Casteel, do alto de uma plataforma, os incentivaria a entrar.
Quando o meu avô e eu nos aproximámos, as cabeças voltaram-se para nos
mirar e ouvi os sussurros.
- É o Toby Casteel, o pai do Luke.
O meu avô e eu mal tivemos tempo para nos habituar a tantos olhares
pousados em nós quando uma mulher esguia, vestida de vermelho-vivo, se
acercou de nós, por trás, gritando espalhafatosamente.
- Parem! Esperem aí! Heaven, sou eu, a tua mana Fanny! E antes que eu
tivesse tempo para me preparar, atirou-se para os meus braços na sua
saudação entusiástica.
- Oh, Santo Deus, Heaven - guinchou suficientemente alto para que uma
dúzia de pessoas se voltasse para olhar 'tás com um ar porreiro!
Abraçou-me várias vezes antes de se voltar para o avô e fazer o mesmo.
- Ora esta, avô, nunca o vi assim ta' janota! Caramba, vi-o sempre ta'
velho e mal amanhado qu'agora mal o reconheço!
Era o tipo de elogio em que a Fanny fora sempre perita. Sempre com
segundas intenções. O vestido vermelho tinha orifícios largos a pontilhá-
lo. Estava-lhe tão justo que parecia pintado sobre a pele. Ambos os
braços bronzeados exibiam numerosas pulseiras de ouro. Usava o cabelo
preto com risca ao meio e apanhado atrás das orelhas com enormes flores
de seda branca. Na verdade, fazia lembrar um belo gato exótico com a cor
de pêlo errada.
A Fanny recuou para me mirar de alto a baixo. Os olhos escuros assumiram
uma expressão assustada.
- 'tás-m'a meter medo, a sério que 'tás. Já nem pareces tu. Aposto como
pareces a tua falecida mãe. Na' t'assusta andar assim ta parcida com uma
pessoa morta e enterrada?
- Não, Fanny. Parecer-me com a minha mãe faz-me sentir bem.
- Nunca fui capaz de perceber, nunca - murmurou, sorrindo em seguida com
timidez. - Por favor na' estejas de mal comigo, Heaven. Vamos ser amigas.
Anda ver o pai e esquecer o que ficou pra trás.
Sim, naquela noite poderia fazê-lo pelo avô e pelo tom, com quem nos
encontraríamos mais tarde. No dia seguinte, o passado voltaria a
ressurgir.
337
- Livrei-me do velho Mallory, sabias. Assim que soube que ele queria
casar comigo p'ra fazer de mim a sua vaca parideira, mandei-o bugiar na
hora. Já imaginaste aquele tipo a querer qu'eu lhe desse uma criança
quando já tenho uma? Atirei-lhe logo à cara que na' tencionava dar cabo
da minha figura p'ra depois, quando ele esticasse o pernil, eu na' poder
arranjar um tipo mais novo. E sabes que mais? Ficou fulo. Perguntou-me
por que raio pensava eu que casara comigo se não era p'ra lhe dar
filhos... Caramba, ele já tem três bem grandinhos.
Sorriu-me com ar manhoso.
- Obrigada por tentares comprar a minha filha de volta p'ra mim -
prosseguiu. - Sabia que na' ias conseguir. Eles na' venderiam a minha
Darcy nem por toda a massa que os Tatterton têm guardada nos cofres.
Suspirei por ter caído na jogada dela. Nada do que o reverendo Wayland
Wise me dissera sobre mim mesma me fizera sentir bem. O meu receio era
que tivesse razão.
Durante o percurso para a tenda central, a Fanny voltava-se de vez em
quando para abraçar o avô, antes de me prodigalizar de novo uma grande
afeição.
- O velho Mallory paga-me uma rica pensão, mas caraças, não tem piada
nenhuma ter dinheiro quando na' há ninguém a quem fazer inveja. Heaven,
tu e eu vamos mostrar a estes parvos destes parolos o que o pilim pode
conseguir. Comprei uma bela casa p'ra mim num daqueles montes além
- disse, apontando -, e tu fazes outra no outro lado do vale, em frente
da minha. Depois podemos dar um berro e palrar uma c'o a outra quando o
vento estiver de feição.
Era uma ideia divertida para um dia de circo.
Era agradável estar com a Fanny quando esta se sentia bem-disposta e eu
conseguia esquecer, no meio de tanta risada e felicidade, o que ficara
para trás. A Fanny não tinha culpa de ser como era, tal como o Troy. E
quem sabe se também o Tony mereceria desculpa, se alguma vez viesse a
perdoá-lo... Mas esse roubara-me o Troy...
Dava-me grande prazer mostrar ao avô aquele lado da vida. Não se cansava
de me dizer o quanto ele e a Annie se estavam a divertir.
- Mas nós não queremos fatigá-la - alertou quando a noite começou a cair
e as luzes se acenderam, altura em que a multidão começou a engrossar
ainda mais. As suas pernas tortas começaram a fraquejar, os seus passos
não tardaram a ficar trôpegos e começou a arquejar.
338
Chegámos atrasados à plataforma onde o pai teria discursado, convidando o
público a entrar. A tenda principal já fora levantada, mas o tom mandara-
nos bilhetes e depressa nos vimos instalados em três dos melhores lugares
da tenda grande. No preciso momento em que nos íamos a sentar, a
orquestra tocou uma ária alegre e animada e, de entre as cortinas bem
afastadas, vinda dos bastidores, apareceu uma pequena fila de elefantes
vistosamente engalanados, sobre o dorso dos quais se viam bonitas
raparigas. O avô ficou todo emproado ao ver o filho ocupar o centro da
arena, de microfone em punho, sobrepondo a sua voz à música para anunciar
cada animal e cavaleiro, falando das maravilhas que iriam desenrolar-se
perante o público.
- É o meu Luke - gritou o avô, tocando com o cotovelo no Race McGee, que
estava sentado ao seu lado. - É um belo homem, na é?
- Realmente não sai a ti, Toby - respondeu um indivíduo que ganhara
muitas vezes ao meu pai em jogos de cartas.
Quando o espectáculo ia a meio, a excitação do avô era de tal ordem que
receei que não vivesse o suficiente para chegar ao fim. A Fanny estava
quase tão mal. Guinchava, gritava, aplaudia e de vez em quando punha-se
aos pulos, quase fazendo saltar o peito para fora do decote. Gostaria que
soubesse ficar sentada e sossegada sem dar tanto nas vistas, mas essa era
precisamente a sua intenção. E foi bem sucedida.
Quando os grandes felinos entraram furtivamente na arena central para
fazerem as suas habilidades às ordens do domador, comecei a ficar
nervosa. Não gostava daquele número. Os enormes gatos eram obrigados a
fazer coisas disparatadas, como sentarem-se em pedestais, o que me
constrangia. Continuava, debalde, à procura do tom. Preferiria que os
palhaços se fossem embora, pois dificultavam-me a visão com os seus
disparates, distraindo-me do que eu mais desejava ver.
Foi então que avistei o Logan.
Este nem sequer estava a apreciar o número com os leões. Sentado a cerca
de três metros de distância, nas bancadas mais manchadas, fitava-me com
expressão grave e concentrada. Assim que os nossos olhares se
encontraram, disfarçou e dirigiu-me um breve aceno de mão. Ao lado,
estava a ruiva mais bonita que eu já vira. Precisei de três ou quatro
olhadelas furtivas para reconhecer a Maisie Setterton, a irmã
339
mais nova da Kitty. Oh, oh, não havia dúvida de que ele andava a vê-la
bastante.
- Ouvi dizer que o Logan ficou noivo da Maisie - segredou-me a Fanny
odiosamente, como se pudesse ler os meus pensamentos. - Na' percebo o que
ele vê nela. Nunca suportei as ruivas naturais cuja pele deslavada se
mancha por dá cá aquela palha e nunca soube de nenhuma que na' fosse
desbocada e sacana. Até acho que sã' falsas.
- A tua mãe era ruiva... - comentei com ar distraído.
- É verdade - murmurou a Fanny.
Sorriu de novo para onde o Logan estava sentado, ao lado da Maisie, mas o
seu sorriso provocante depressa se transformou num esgar de raiva.
- Olha-me pr'àquele Logan a fazer de conta que nem sequer me vê, quando
eu sei que já me topou! Ora eu nunca casaria com um tipo ta' emproado,
façanhudo e sem graça como o Logan Stonewall nem qu'ele me pedisse de
joelhos e na' restasse outro homem vivo na face da terra além do Race
MacGee.
Dito isto, riu na cara lívida e papuda do próprio Race.
Em breve, todos os números foram apresentados, e nós continuávamos sem
ver o tom, apenas o pai. A multidão começou a sair, e o avô, a Fanny e eu
começámos a dirigir-nos cuidadosamente até onde o tom nos dissera que
estaria à nossa espera. Porém, não o encontrámos. Em frente da tenda que
servia de camarim aos artistas de circo, só vimos um palhaço magro e
alto, com um fato espalhafatoso. Tropecei num dos seus enormes sapatos
verdes às bolas amarelas e atacadores encarnados.
- Desculpe - disse, rodeando os sapatões.
Logo a seguir ele voltou a tentar passar-me uma rasteira. Virei-me para
ele, furiosa.
- Porque não põe os seus pés longe do meu caminho? Foi então que reparei
nos olhos verdes.
- tom... és tu?
- Ora, quem mais seria tão desajeitado e com os pés tão grandes? -
perguntou ele, tirando a cabeleira vermelha e sorrindo para mim. - Estás
com um aspecto óptimo, Heavenly! A sério! Mas se não me tivesses contado
que agora eras loura, não te teria reconhecido.
- E eu - gritou a Fanny, atirando-se ao irmão para o abraçar. - Na' dizes
nenhum piropo à tua mana preferida?
- Ora, Fanny, tu estás exactamente como eu já sabia, boa como o milho!
340
A Fanny gostou.
Estava muito bem-disposta. Ficou amuada ao saber que o pai já voltara
para o hotel onde tinha a mulher e o filho instalados e não esperara para
nos ver. O tom mudou de roupa e limpou o rosto numa pequena tenda a
tresandar a maquilhagem rançosa, pó-de-arroz e tintas, enquanto a Fanny
nos brindava a todos com histórias que eu ainda não conhecia.
- Têm de ir conhecer a minha casa! - declarou várias vezes. - tom, tens
que fazer com que o pai também vá. E a mulher e o miúdo também. Na' vale
de nada ter uma casa nova com piscina e tudo e a família na' pôr lá os
pés prà ver.
- Estou estoirado - disse o tom, tentando disfarçar um bocejo enquanto
ajudava o avô a levantar-se. - E o facto de o espectáculo ter chegado ao
fim não significa que o trabalho esteja terminado. Há que apanhar todo
esse lixo que ficou pelo chão. Todas as bancadas têm de ser muito bem
limpas por causa da inspecção sanitária. Os animais actuam meio
esfomeados, portanto precisam de comer. Os próprios artistas têm de
arrumar as suas coisas, e eu estou encarregado da maioria dessas
tarefas... Portanto, vemo-nos amanhã e quem sabe aí eu possa ir conhecer
a tua casa nova, Fanny. Mas por que raio haverias de querer comprar uma
casa aqui?
- Tive as minhas razões - replicou a Fanny de má catadura. - E se na'
vais c'o a gente hoje à noite, é o mesmo que dares-me um murro nas ventas
e dizeres que a ti só te interessa a Heaven... Se fizeres uma coisa
dessas eu nunca mais te poderei ver, tom! Nunca mais!
O tom lá acedeu a ir connosco. A casa da Fanny, em estilo moderno, fora
construída no alto da vertente de uma colina, mesmo em frente do monte
onde ficava a cabana de madeira; o vale, no entanto, era demasiado vasto
para se ver o outro lado, embora, quando se gritava para baixo, o eco
chegasse muito longe.
- vou viver aqui sozinha - declarou a Fanny presunçosamente. - Na' quero
marido, nem amante permanente, nem patrão de espécie nenhuma. Nunca mais
cairei na asneira de m'apaixonar... Farei apenas com que eles me amem e,
quando me fartar... toca a andar. Quando estiver p'ra chegar aos
quarenta, arranjo um tipo rico e tenho-o por aqui p'ra me fazer
companhia.
A Fanny tinha a vida bem planeada, enquanto eu já não podia dizer o
mesmo. Dois Grand Danais foram imediatamente soltos para poderem brincar
ruidosamente com a Fanny que, na verdade, nunca gostara de nenhum tipo de
animal.
341
- Agora que toda a gente sabe que o meu "ex" me manda uma pipa de massa
todos os meses, tenho de ter bons cães de guarda como estes - explicou. -
Cada estupor de homem que contrato só pensa em me arrancar o couro!
- Quem imaginaria que a Fanny Casteel acabaria por viver num sítio assim?
- observou o tom, como que falando consigo mesmo. - Heavenly, a Mansão
Farthinggale é tão grande como esta casa?
Que poderia eu dizer sem ferir os sentimentos da Fanny? Não, a casa da
Fanny caberia, inteira, numa das alas da Mansão Farthinggale. No entanto,
era confortável e dava para conhecer cada recanto.
Deambulei pela casa, observando com interesse as fotografias penduradas
nas paredes. Uma delas mostrava a Fanny acompanhada pelo Cal Dennison
numa praia qualquer! Ao fitá-la interrogativamente, vi que esboçava um
sorriso pérfido.
- Ciumenta, Heaven? Ele agora é meu, sempre que o quiser e olha que na' é
nada mau, excepto quando' tá com os pais ao pé e mete o rabo entre as
pernas. Quando me chatear dele, mando-o bugiar.
Naquela altura eu já me sentia bastante fatigada. Desejaria, e não pela
primeira vez, que a Fanny não me tivesse convencido a ir até ali.
Bocejei, levantei-me e foi nesse momento que descobri a verdadeira razão
que levara a Fanny a voltar aos Willies para ali viver.
- De vez em quando vejo o Waysie - disse de repente, a meio da conversa.
- Disse-me que ficaria todo contente se eu o recebesse aqui de visita
mais ou menos uma vez por semana. E vai trazer-me a minha Darcy p'ra eu
ver. Já 'tive com ela duas vezes, 'tá tan linda. Claro que há-de chegar o
dia em que aqui em Winnerrow todos toparão o que se passa... e aí é que
eu terei a minha vingança. A velha Wise vai passar muita noite a chorar,
muita noite.
Não era a primeira vez que me sentia dominar por uma antipatia
avassaladora pela Fanny. Ela não queria o Waysie. Não se preocupava
verdadeiramente em estar com a Darcy. O que ela desejava era vingança.
Apeteceu-me esbofeteá-la para lhe incutir um pouco de juízo. A Fanny,
porém, estava tão embriagada que se desequilibrou e caiu, e quando me viu
sair a passos largos da sua casa, gritou-me que também ainda se vingaria
de mim por tudo o que eu fizera para lhe roubar a auto-estima. Ela ali
ficou, com vinte anos, casada e divorciada
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uma vez, odiando-me porque nunca nenhum homem a amara de verdade... nem
mesmo o seu próprio pai.
Creio que a Fanny e eu tínhamos esse aspecto em comum.
Obedecendo a um impulso incontrolável, voltei ao circo na noite logo a
seguir, dessa vez vestida com o diáfano vestido branco que limpara e
passara a ferro tão meticulosamente. Mas fui sozinha, sem o avô e a
Fanny. Sentei-me, mais uma vez, no meio da multidão entusiástica e suada
que viera ver o "herói da sua terra" - o Luke Casteel, o novo
proprietário, o irresistível arengador. Contudo, naquela noite as coisas
decorreram de maneira um pouco diferente. Dessa vez, a Stacie, a bonita
esposa do pai, estava presente, retorcendo nervosamente as mãos quando o
pai entrou na arena a fazer o seu prolongado discurso de apresentação sem
hesitações ou falhas. Porque estaria ela assim? Ele era um homem
magnífico e vigoroso, irradiando sensualidade. À minha volta, mulheres e
raparigas puseram-se de pé para o saudarem e aclamarem, e algumas
chegaram mesmo a lançar-lhe flores e lenços. Vi o meu irmão tom, que
aspirara a ser presidente, reduzido a um palhaço traquina, tudo porque o
pai tinha de ter a sua vontade satisfeita, independentemente do que o tom
desejasse.
Pensei na "Nossa" Jane e no Keith, na Fanny, que as circunstâncias tinham
tornado como era, assim como eu. E as palavras do reverendo vieram-me à
lembrança: "Transporta consigo as sementes da sua própria destruição e de
todos aqueles que a amarem... É uma idealista do género mais
horrivelmente trágico: a idealista romântica... Nascida para destruir e
autodestruir-se!"
Como acontecera com a minha própria mãe!
Sentia-me condenada, tal como o Troy se imaginara.
As palavras do reverendo passaram repetidas vezes pela minha mente, até
chegar à conclusão de que o confronto que planeara com o pai era
estúpido, negativo e só acabaria por magoar. Levantei-me rapidamente e,
sem ver, abri caminho para fora das bancadas. Tanto me fazia que as
pessoas gritassem para que me sentasse e não lhes bloqueasse a visão.
Precisava de me ir embora. Era-me indiferente que os leões andassem a
correr pela jaula da arena central, completamente descontrolados. Mesmo
em frente da porta da jaula que fora destrancada, o pai estava preparado,
de pistola e espingarda em punho, para intervir se fosse preciso,
enquanto, dentro
343
da jaula, o domador tentava recuperar o controlo dos grandes gatos, que
não lhe prestavam a menor atenção.
- É o leão novo que os está a desorientar - gritou um homem qualquer. -
Deitem as bandeiras abaixo! O movimento delas é que está a enervar o
novo.
Eu nunca devia ter voltado para os Willies.
Devia ter deixado tudo como estava. Antes de regressar à cabana onde
deixara o avô aconchegado na cama com a sua esposa fantasma, detive-me a
cerca de três metros da jaula, desejando despedir-me do tom, que se
encontrava perto do pai.
- tom - chamei em voz baixa, tentando chamar-lhe a atenção.
O tom, envergando o seu fato de palhaço largueirão e com a cara pintada,
aproximou-se a correr, segurando-me nos braços e dizendo-me com voz
sibilante:
- Não digas nada ao pai, por favor, por favor! Esta noite está a
substituir o guarda pela primeira vez porque o homem apareceu bêbedo. Por
favor, Heaven, não distraias o pai.
Contudo, não precisei de dizer algo. Ou de fazer algo.
O pai vira-me.
A mim, com as luzes do cimo a fazerem brilhar o vestido que a minha mãe
usava na primeira vez em que ele a vira, na Peachtree Street... - O
dispendioso e delicado vestido branco antigo, de mangas em balão e saia
rodada. O vestido que eu lavara e passara a ferro cuidadosamente, depois
de o branquear ao de leve. O vestido mais bonito do meu guarda-roupa de
Verão. E tivera de o vestir... naquela noite pela primeira vez. O pai
olhava para mim completamente paralisado, com os olhos escuros muito
abertos. Avançou para mim, passo a passo, afastando-se da jaula dos leões
e do domador que precisava da sua atenção.
Nesse instante, aconteceu algo que me apanhou completamente desprevenida.
Nos olhos espantados e atónitos do pai surgiu, repentinamente, uma
alegria extasiada e indrédula. O meu coração reagiu em consonância,
acelerando violentamente. Enquanto eu parava, sem saber que fazer, senti
as mangas compridas e largas do meu vestido de Verão enfunarem-se,
agitadas por alguma brisa errante da tarde que entrara pela abertura da
tenda.
Finalmente, o pai ficava contente em me ver! Via-se nos seus olhos! Até
que enfim... Iria dizer-me que gostava de mim.
- Angel! - exclamou.
344
Deteve-se à minha frente, de braços estendidos; a espingarda escapou-se-
lhe dos dedos e a pistola que tirara do coldre caiu silenciosamente na
serradura.
Ela!
Ele continuava a ver apenas a minha mãe!
Como a veria sempre, jamais a mim, jamais a mim!
Virei-me e afastei-me a correr.
Ofegante e lavada em lágrimas, parei ao chegar ao lado de fora da arena
grande. Atrás de mim, gerou-se um tumulto. Os gritos! Os rugidos! Os
berros das pessoas aterrorizadas! Animais domados enlouquecidos! Fiquei
paralisada. Ouvi os tiros e virei-me ligeiramente para trás. Levei as
mãos à testa e apertei-a.
- Que aconteceu? - perguntei a dois homens que saíam da tenda a correr.
- Os felinos deitaram o domador ao chão e estão a dilacerá-lo. O Casteel
distraiu-se e eles sentiram-se suficientemente seguros para atacar. Agora
o estúpido daquele palhaço de cabelo encarnado pegou na espingarda e
entrou na jaula sozinho.
Oh, meu Deus! tom, tom!
O homem espavorido empurrou-me para o lado e continuou a correr.
Uma outra pessoa contou mais pormenores.
- Todos aqueles leões enlouquecidos atiraram-se para cima do domador, e o
filho do Luke, o homem mais corajoso que já vi, correu para dentro da
jaula para tentar salvar a vida ao amigo. Depois, o Luke viu o que estava
a acontecer e também entrou, para socorrer o filho. Só Deus sabe se
alguém irá sair dali vivo!
Oh, meu deus... A culpa era minha, minha!
Não queria saber do pai, claro que não. O pai merecia o que lhe
acontecesse.
No entanto, o amor que tinha pelo tom fez-me correr mais depressa do que
alguma vez fizera na vida, com as lágrimas a caírem-me pelo rosto.
As feridas profundas que as garras dos leões tinham deixado nas costas do
meu pai infectaram horrivelmente. Passei dois dias na cabana, junto do
meu avô, enfiada na cama, obrigando-me a mim mesma a acreditar que o
homem que estava no hospital a lutar pela vida merecia o que lhe
acontecera, e que há muito estava à espera de que aquilo lhe sucedesse ao
decidir enveredar pela vida de circo.
345
Tal como a Fanny que, na sua casa nova, se preparava para, um dia, ser
admirada pelas gentes da terra que sempre a haviam desprezado; não era
possível passar a vida a distribuir bofetadas à direita e à esquerda sem
que também chegasse a vez de o mundo lhe cair em cima.
O tom sofrera ferimentos muito mais graves do que o pai; fora o primeiro
a entrar na jaula apenas com uma pistola enfiada nas calças largueironas
e uma espingarda que conseguira disparar uma vez antes de um dos leões
lha arrancar das mãos com uma patada poderosa. E o pai correra a pegar na
arma e matara dois dos animais, mas não antes de, também ele, ficar
consideravelmente dilacerado.
O pior de tudo, porém, é que fora o tom a morrer, não o pai. tom, tom,
tom! O melhor de todos os Casteel. O tom, que me amara. O tom, que fora o
meu companheiro, a minha outra metade. O tom, que me dera a coragem
necessária para persistir e esperar pelo dia em que o pai me aceitasse
como sua filha.
Os jornais transformaram o tom num herói. Espalharam a sua fotografia de
costa a costa, e a história da sua vida foi escrita para todos lerem;
arranjaram maneira de a fazer parecer valorosa, não patética.
Só depois de saber que o pai viveria é que tive coragem de contar ao avô
o que acontecera ao tom. O velhote não sabia ler os jornais e detestava
os noticiários coloridos quando podia passar o dia a escutar os boletins
meteorológicos na rádio, ao mesmo tempo que esculpia as suas figurinhas.
As suas velhas mãos nodosas pararam, depois largaram o pequeno elefante
minúsculo em que estava a trabalhar para completar o jogo de xadrez que
iniciara fazia muito tempo, a pedido do tom.
- O meu Luke vai viver, na' vai Heaven? - perguntou quando cheguei ao
fim. Na' podemos deixar que a Annie sofra outra perda.
- Telefonei para o hospital, avô. Já não está em estado crítico e podemos
ir vê-lo.
- Tu na' me disseste, Heaven, pois não, que o tom se foi? O tom na' pode
morrer, só tem vinte e um anos... Oh, eu nunca tive muita sorte em
conservar os meus rapazes ao pé de mim.
Ao chegarmos ao hospital, deixei o avô entrar sozinho no pequeno quarto
onde o pai jazia, completamente enfeixado em ligaduras dos pés à cabeça,
a espreitar por um orifício minúsculo.
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Abalada, encostei-me a uma parede a chorar, a chorar por tudo o que
poderia ter sido diferente. Sentia-me só, terrivelmente só. Quem me
amaria agora, quem? E, quase como se Deus ouvisse a minha pergunta, uns
braços envolveram-me ternamente a cintura e fui puxada contra um peito
forte, ao mesmo tempo que a cabeça de alguém se encostava à minha.
- Não chores, Heaven - ciciou o Logan ao meu ouvido, virando-me para ele
me abraçar. - O teu pai há-de viver. É um lutador. Tem muitos motivos que
o prendam à vida: a mulher, o filho e tu. É rijo. Sempre foi. Mas já não
voltará a ser tão bonito.
- O tom morreu, já sabias? O tom morreu, Logan, morreu!
- Todos sabem que o tom teve uma morte heróica. A sua entrada na jaula
desviou a atenção dos leões que estavam a morder no domador, que tinha
quatro filhos e ele sobreviveu, Heaven, ele está vivo. Agora diz alguma
coisa ao teu pai.
Que poderia eu dizer a um homem que sempre desejara amar mas não
conseguira? Que poderia ele dizer-me, agora que era demasiado tarde para
palavras que pudessem aproximar-nos? E, no entanto, ele não parava de me
olhar através daquele orifício minúsculo por onde eu lhe via o seu único
olho cheio de tristeza. Reparei que uma das mãos ligadas e penduradas ao
alto, esboçava um pequeno gesto estranho, como se fosse sua vontade
estendê-la para mim caso pudesse.
- Perdoe-me - consegui dizer num sussurro. - Perdoe-me pelo que aconteceu
ao tom. - Limpei as lágrimas que tinham começado a escorrer-me pelo
rosto. - Lamento tudo o que correu mal entre nós dois!
Tive a impressão de o ouvir murmurar o meu nome, mas nessa altura eu já
deitara a correr para fora do hospital. A correr para um dia de calor
escaldante, atirei-me contra um poste de metal e envolvi-o com os braços,
chorando convulsivamente. Como iria eu viver sem o tom, como, como?
- Anda, Heaven - disse o Logan, aproximando-se com o avô a coxear ao
lado. - O que está feito, está feito e não tem remédio.
- A Fanny nem sequer apareceu no funeral do tom disse eu por entre
soluços, grata pelo facto de o Logan não ter relutância em me abraçar e
esquecer tanto desagravo meu.
- Que interessa o que a Fanny faça ou deixe de fazer?
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- perguntou o Logan, inclinando-me a cabeça para cima e olhando-me nos
olhos com intensidade. - Não ficámos sempre melhor com a Fanny bem longe?
Como o Logan se mostrava sensível e preocupado, como se parecia com o
Troy em tantos aspectos, ali de pé, ao sol abrasador da manhã. Encostei a
cabeça ao seu peito e esforcei-me por suster as lágrimas; depois
dirigimo-nos, os três, para o carro.
- Estavas enganada quando afirmaste que eu não precisava de ti - disse-me
o Logan quando já íamos a metade do caminho de casa.
O sussurrar das folhas, a música do vento na erva e as flores silvestres
que perfumavam o ar com um odor agradável, fizeram mais para curar a
minha alma do que quaisquer possíveis palavras. Para onde quer que
olhasse via o verde dos olhos do tom e, quando hesitava em tomar
decisões, era a voz dele que escutava na minha mente, encorajando-me a
continuar, a casar com o Logan... mas a abandonar aqueles montes e aquele
vale mal o avô partisse daquele mundo.
Sepultámos o avô no dia dezasseis de Outubro, ao lado da sua bem-amada
esposa Annie. Formávamos todos uma fila única - os Casteel: o pai, a
Stacie, o Drake, a Fanny e todos os moradores em Winnerrow. O que
conquistara o seu respeito fora a bravura do tom e não a minha riqueza ou
educação, as minhas roupas e o carro novo.
Baixei a cabeça e chorei como se o avô fosse verdadeiramente do meu
sangue. E antes de nos afastarmos da sepultura, o pai agarrou-me no
braço.
- Peço-te perdão por tudo - disse num tom de voz lento e suave que eu
nunca esperara ouvir dele. - Desejo-te muito sucesso e felicidade naquilo
que porventura decidires fazer. E espero, acima de tudo, que de vez em
quando apareças lá em casa.
Engraçado, só naquele momento é que me sentia capaz de olhar directamente
nos olhos do homem que pensara odiar para sempre e não sentir nada.
Não soube que dizer. Limitei-me a acenar com a cabeça.
Numa casa ampla e solitária, outro pai aguardava o meu regresso. Ali,
naquela vertente e olhando em redor, eu tinha a certeza de que um dia
voltaria para a Mansão Farthinggale,
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e nessa altura eu não seria nem uma Casteel nem uma Tatterton.
A meiguice com que o Logan me fitava deu-me a certeza de que ele iria
comigo e de que nessa altura não me restariam dúvidas de que era uma
Stonewall.

fim

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