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ELAS AMAM DEMAIS

DE
SIMONE DE BELLAVISTA
2.

FADE IN

INT. STUDIO DE TV-DIA

Assistentes preparam a repórter MARY, uma linda mulher


morena, típica brasileira, alta, de 36 anos, e HELENA, uma
dona de casa de 53 anos, que está posicionada no escuro
para manter seu anonimato para gravar uma entrevista.

MARY
Pronta?
HELENA
Sim.
MARY
É só dar seu depoimento normalmente como na
sala. Vou fazendo algumas perguntas, tá? Tá gravando...
HELENA
Então... não vou dizer meu nome como na
sala...
MARY
(rindo)

Não...claro que não. É só contar sua


história...
HELENA
Então... fui casada com um homem por muitos
anos que me batia e me tratava muito mal. Ele foi meu
primeiro e único homem. Casei muito cedo e logo engravidei.
Tive três filhos com ele, três meninos. Ele me batia pelos
motivos mais banais, me proibiu de trabalhar e de estudar.
Me tratava como uma propriedade dele, sabe? Dizia que lugar
de esposa e mãe era em casa. O pior eram as humilhações
constantes. Quando os meninos já eram adultos e já tinham
saído de casa, eu já não aguentava mais. Aturei coisas
daquele homem que ainda nem tenho nem coragem de contar,
nem na sala... quero dizer, no grupo. Eu engolia e
aguentava, pois dependia dele...me afastei da minha família
e dos amigos, porque tinha muita vergonha... eles percebiam
a situação e tentavam interceder, aí eu me afastava...
MARY
Conta como você descobriu o grupo MADA.
HELENA
Com os meninos já criados e fora de casa
comecei a querer me separar.
3.

INT. CASA DE HELENA-COZINHA

Helena serve o jantar para o MARIDO.

HELENA (VO)
Meu pai, que era militar, tinha morrido e me
deixou uma pensão que daria para eu finalmente sair daquele
casamento...tormento. Era um tormento, um inferno. Tinha
tentado me separar outras vezes, mas voltei por causa dos
meninos. Ele dizia que ia tirar meus filhos de mim.
MARIDO
Hmm, a comidinha hoje até que tá boa... me
serve mais um pouco dessa carne moída aí...

Helena se levanta para servi-lo. Pega a panela e o serve.


Ele alisa o traseiro dela.

MARIDO
Comida gostosa, bunda gostosa... você já tá
ficando velha, mas eu continuo com tesão nessa bunda.
HELENA
Quero me separar de você.
MARIDO
Quer morrer, mulher?

(O marido se levanta
agressivo da mesa, crescendo para cima dela.
Helena fica aterrorizada. Black out)
INT. HOSPITAL-DIA

Helena está deitada numa cama de hospital com hematomas e


o olhar perdido direcionado para janela. O médico está de
pé ao lado da sua cama.

MÉDICO
A senhora ficou dez dias em coma. Teve
traumatismo craniano. Seu marido está na cadeia. Ele foi
preso em flagrante.

INT. STUDIO DE TV
Mary, posicionada sob uma luz olha compassivamente para
Helena posicionada no lado escuro do estúdio. Há
cumplicidade entre elas. Helena faz uma pausa no seu
depoimento, e respira fundo.
4.

HELENA
Mulher cresce acreditando em príncipe
encantado e o que mais encontra nesse mundo é príncipe
malvado. Dou graças a Deus por não ter tido filha mulher...
de sofrimento basta o meu, sabe? O meu marido era na maior
parte do tempo um príncipe encantado, um cara legal, por
isso que eu ficava. Era apaixonada por ele também, vai
entender... masoquismo? Não. Coisa de Mada... Madice mesmo.
Se você conhecesse, ia até gostar dele, nem imaginaria que
ele tem esse outro lado. Tinha sempre a esperança que
aquele príncipe malvado que surgia nele de vez em quando,
um dia ia sumir de vez, e que se eu fosse boa pra ele, eu
ia conseguir ajudar meu marido a ficar bom. Achava que meu
amor ia muda-lo. Só que não...na irmandade eu aprendi que
não rola, que isso é madice...que isso é morar no outro e
se abandonar. Ficar querendo mudar o homem é doença, a gente
tem que aprender é a mudar a si mesma. Quando a gente muda
o outro muda, o mundo muda.
INT.STUDIO DE TV-DIA

Mary grava olhando para a câmera.

MARY
Descobrir que ama demais é uma das piores e
melhores coisas que podem acontecer a uma mulher. É uma das
piores, pois ela geralmente faz essa descoberta em um
momento de dor insuportável, e uma das melhores, pois é o
momento em que ela começa a se libertar de uma forma
literalmente divina, mas essa libertação só acontece se ela
busca a recuperação.

(cenas das personagens que


irão aparecer ao longo da história em cenas do
dia a dia)

MARY (VO)
Amar demais é uma doença que exige
tratamento, pois a mulher que ama demais usa o
relacionamento como um viciado usa drogas, ou um alcóolatra
usa a bebida. Por trás do vício há traumas, e comorbidades
como a depressão, ansiedade e outros distúrbios mentais. A
doença é progressiva, e quando não tratada pode acabar no
cemitério ou na cadeia. O programa de 12 passos dos
Alcóolicos Anônimos vem salvando muitas vidas há décadas,
e foi adaptado para outros tipos de dependências: de
narcóticos, jogos de azar, comida, sexo, pornografia,
compras, e também para o mal de amar demais. Todo dependente
é um ser humano originalmente ferido, geralmente na
infância, que precisa de amor, suporte e compreensão, além
de ajuda psiquiátrica e psicológica em muitos casos. Numa
irmandade de ajuda mútua baseada em 12 passos o dependente
encontra no próximo, ou no companheiro, como costumam se
chamar, o olhar de quem sabe realmente o que ele passa.
Nesse acolhimento, nessa cumplicidade e companheirismo, o
5.

dependente encontra seu mais poderoso instrumento de


recuperação: a companhia e a fraternidade de quem sofre
como ele.

EXT.PRAIA DE IPANEMA-FIM DE TARDE

Mary corre na areia da praia em direção ao Arpoador, ouvindo


a música tema do filme (animada e alto astral, algo como
um hino de libertação do feminino a ser encomendado ou
escolhido) É fim de tarde. Pessoas aplaudem o pôr do sol
na praia, namorados se beijam na pedra do Arpoador. Entra
o título “Elas amam demais” e os créditos. No Arpoador,
Mary pega sua bicicleta e vai pedalando pela ciclovia. Cenas
de drone da praia, do Arpoador, de Mary na bicicleta, do
Rio de Janeiro e suas paisagens.

INT. IGREJA/SALA DE REUNIÃO DO MADA- FIM DE TARDE

A música tema continua tocando. Mulheres preparam a sala


para a reunião. Penduram banners, arrumam uma mesa com a
tradicional toalha cor de rosa bordada com o logo da
irmandade, preparam os biscoitos e cafezinho, colocam
apostilas sobre as cadeiras.

EXT. RUAS- NOITE

Mary de bicicleta nas ruas do Rio.

INT. IGREJA/SALA DE MADA

As mulheres já estão sentadas em círculo. FABIANA, 65 anos,


dona de casa, é a coordenadora da reunião.

FABIANA
Inicia-se nesse momento mais uma reunião do
grupo Mada...

EXT.IGREJA-NOITE

Mary vem chegando de bicicleta, procurando um lugar para


trancá-la. Ela para e tranca a bicicleta num poste, grade
ou bicicletário, dependendo da locação, e entra na igreja
por uma porta lateral.

INT. IGREJA/SALA DE MADA

As mulheres começam a oração da serenidade.

TODAS
Concedei-nos senhor a serenidade necessária
para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem
para modificar aquelas que eu posso e sabedoria para
distinguir umas das outras.
6.

INT-IGREJA-NOITE

Vemos a nave da igreja vazia, mas Mary não passa pela


nave. Ela vai andando por corredores vazios, até chegar na
sala de reunião do Mada. Ela entra com a reunião já
iniciando.

INT.IGREJA-SALA DE MADA-NOITE

Fabiana está começando uma partilha. Mary entra


silenciosamente e se senta cumprimentando as outras com o
olhar.

FABIANA
Oi, meu nome é Fabiana, sou uma Mada em
recuperação.
TODAS
OI FABIANA!!!
FABIANA
Muita gratidão por essa sala aberta, e por
mais 24 horas de paz e serenidade. Só por hoje estou em paz
com meu marido...
(As mulheres prestam toda
atenção ao depoimento de Fabiana, Mary olha
pra Fabiana, e depois olha para o lado
pensativa, reflexiva, enquanto Fabiana
continua sua partilha).

MARY (VO)
A Fabiana, como todas essas mulheres aqui
tem uma história dramática e incrível. É fascinante ela ter
essa serenidade e essa paz hoje depois do inferno que
passou. Ela largou o marido e a família por um parceiro de
jogo. Além de ser Mada, ela também tem vício em aposta de
corrida de cavalo. Pesado... ficou devendo rios de dinheiro
por causa disso e por causa do cara. Bancava o cara no
jogo. Foi ficando tão obsessiva com ele, que o excesso de
ciúmes chegou ao ponto de ela contratar um detetive para
vigiar o amante. Dava dinheiro para todo mundo vigiar o
cara. Surtou de um jeito absurdo. Sofreu de uma forma que
as pessoas não entendem. Se pudessem enxergar a infância
dela iriam entender.
FABIANA
... o carinho e amor do meu marido ao me
aceitar de volta e ainda por cima me ajudar na recuperação
foi a mão de Deus. Que homem bom... é um brócolis, mas...
MARY
(Olhando para câmera, a reunião congela ao
fundo)
7.

Brócolis é como a Mada chama os homens


emocionalmente saudáveis e disponíveis. Na verdade, quem
fez essa comparação foi Robin Norwood, a autora do livro
Mulheres que Amam Demais, e terapeuta que identificou a
doença. Homens brócolis não dão adrenalina, pois são um
alimento saudável, por assim dizer...por isso são tediosos
e a Mada, por ter na base de sua alma uma depressão crônica,
precisa dessa adrenalina que o homem emocionalmente
adoecido e indisponível como ela provoca. Assim ela se sente
viva. Esse, aliás, é o princípio de todo vício na verdade.
A gente brinca dizendo que esse tipo de homem que vicia, é
o homem chocolate.
FABIANA (CONT.)
A gente também já está com mais idade né?
Tem que ser parceiro um do outro mesmo. Às vezes me lembro
daquele tesão que o outro me dava, aquele frio constante
na barriga, mas hoje tenho horror daquele frio na barriga!
No começo é bom, mas depois esse frio vira um inferno. Esse
frio vicia, né? Não desejo isso para ninguém. É um inferno
de sofrimento. Sabia que tinha de parar, que estava tudo
errado, mas não conseguia. É uma sensação horrível. Tive
que chegar ao fundo do poço, e graças a essa irmandade eu
consegui sair desse horror. Mada salvou minha vida, pois
cheguei a pensar em suicídio. Chegar nessa sala é um
milagre. Continuar é trabalho. É muito trabalho e muito
esforço, mas funciona. Vamos aos doze passos, lembrando que
entre um depoimento e outro lemos um passo. Hoje temos uma
companheira nova.
Fabiana olha para LUCIA, 21 anos, olhos
mareados e vermelhos de quem andou chorando
muito.

Você poderia ler o primeiro passo?


LUCIA
Admitimos que éramos impotentes perante os
relacionamentos e que tínhamos perdido o domínio sobre
nossas vidas. Bem eu. Muito eu, nesse momento.
FABIANA
Você é hoje a pessoa mais importante dessa
reunião. Seja muito benvinda. Você gostaria de se
apresentar e dizer o que te trouxe aqui? Pode ficar à
vontade.
LUCIA
(Respirando fundo tentando
prender o choro)

Meu nome é Lucia...


TODAS
OI LUCIA!!!
8.

LUCIA
(Não conseguindo controlar
o choro)

Desculpa, eu tenho chorado muito.


Uma das mulheres se levanta, pega uma caixa de lenços e dá
para Lucia.

LUCIA
(Pegando o lenço e
enxugando as lágrimas)

Obrigada...
FABIANA
Isso é normal... eu devo ter chorado uns
dois meses sem parar quando cheguei aqui. Não tem lugar
melhor para chorar do que aqui. Chorar faz muito bem e
alivia. Você não está mais sozinha.

Todas ficam em silencio por alguns momentos. Só se ouve o


choro de Lucia, que assoa o nariz no lenço e enxuga as
lágrimas, tomando fôlego para começar a falar.

LUCIA
(Tentando controlar o
choro)

Minha psiquiatra me mandou aqui. Fiquei


obcecada por um homem casado.... Meu professor da
faculdade. A gente se envolveu quando a mulher dele tava
grávida. Agora ele tá com um bebê pequeno. Essa história
tirou minha vida do prumo. Fiquei achando que ele ia largar
a mulher pra ficar comigo. Ele dizia que ela era uma pessoa
horrível, eu até ficava com pena dele. A paixão que eu
senti por ele... era uma química absurda, coisa de outras
vidas, sei lá...
MARY
(Olhando pra câmera)
Ilusão, tadinha.... Falou em química, não
sacou que o cara é literalmente uma droga e não sabe o
quanto já andou se drogando com ele. Mada toma o cara que
nem droga..., mas, a vida é feita dessas ilusões também,
né? Como é difícil para um ser humano diferenciar o que é
real e o que é fantasia! Outras vidas, química, alma gêmea,
príncipes e princesas... seria a realidade algo tão
insuportável assim, por isso a gente fantasia tanto? A
realidade nua e crua é mesmo muito insuportável. Dependendo
da história da pessoa então, a realidade pode ser um filme
de terror, e mortalmente insuportável. Como ser feliz,
9.

sonhar e ter os pés no chão ao mesmo tempo? Trazer os sonhos


para a realidade, essa é a busca que move todo mundo.
Realizar sonhos. Sonho e realidade são dois lados de uma
mesma moeda. Essa menina parece que não mora mais nela,
mora no cara, se abandonou. No cara já mora outra pessoa,
e ela fica que nem mendiga morando na rua. É uma pedinte.
O vazio que ela sente é de alguém que abandonou a própria
casa.

Mary para de olhar para a câmera e olha para as


companheiras. Tudo se move lentamente. Lucia partilha e
seus lábios se movimentam em câmera lenta.

MARY (VO)
Sonho e realidade. Muito
do que é real, foi sonhado, mas nem todo sonho
vira realidade. Isso é uma dicotomia ou um
paradoxo?
Mary está confusa em câmera lenta.

VISUAIS- imagens de crianças brincando num jardim, meninas


vestidas de princesas, meninos de super-heróis,
adolescentes se paquerando num posto de gasolina, homens
vendo pornografia na internet e mulheres vendo revistas
femininas com dizeres do tipo “como consquistar seu homem”,
“como agradar na cama”, “orgasmos múltiplos”, “truques de
beleza”.

MARY (CONT.)
Mas como saber se um sonho é realizável ou
se é só ilusão? Só se ilude quem quer? Ou será que só se
ilude quem precisa? Ás vezes a vida parece um sonho, e em
outros momentos vira um pesadelo. Qual a diferença entre
sonho e fantasia? É tudo muito louco. Como não enlouquecer?
Também pudera... a gente cresce acreditando em Papai Noel,
Coelhinho da Páscoa, Fada do Dente, príncipe encantado,
bruxa, monstro, e segue como adulto acreditando em
políticos, em cinema e TV, em publicidade, imprensa,
indústria farmacêutica... é tudo tão cheio de enganação!
Só se decepciona quem se ilude mesmo. Como distinguir o
certo do errado, o verdadeiro do falso? A gente cresce e
dá de cara com esse mundo, digamos assim... duro, difícil.
Vem tanta desilusão. É tanta luta para realizar sonhos...
e tem isso de ser mulher nesse mundo tão masculino. É muito
complicado ser mulher num mundo onde meninas crescem
sonhando com romances açucarados de comédias românticas e
meninos sonhando com o sexo de filmes pornográficos.
Vivemos numa época em que meninas querem sexo romântico, e
meninos um romance pornográfico, tinha que acabar dando
muita confusão mesmo. O problema é o quanto essa confusão
adoece as pessoas. É tão difícil saber até onde sonhar para
realizar e onde fica a fronteira da ilusão...fico muito
confusa com tudo isso. É como se a mulher fosse um
recipiente que precisa se preencher com um homem e para
10.

isso ela se esvazia. Essa visão não deixa de ser anatômica


e biológica também. O problema é que, por vários motivos
complexos, a mulher muitas vezes acaba virando uma casa
vazia, abandonada de tanto se esvaziar querendo criar
espaço para o outro. O outro quando vê que a casa é vazia,
não quer entrar nela, morar nela. Ela fica tão vazia, que
se abandona, fica sem casa querendo morar no outro, e quando
o outro não abre suas portas. A Mada vai aos poucos virando
uma mendiga pedinte morando na rua, pois apesar de ter uma
casa, ela é abandonada e vazia, e ninguém quer morar nela,
nem ela mesma.
EXT. AEROPORTO

Aviões decolam e pousam. Mary chega num taxi e desembarca.


Ela anda em direção ao check-in.

INT.AEROPORTO-DIA

Mary está na fila do check-in. Ela vê um COMANDANTE vindo


em direção ao check-in. É um homem muito bonito e charmoso
de 40 e poucos anos. Ele vem andando em câmera lenta. Mary
fica de queixo caído. Ele vem em direção a ela, a pega pela
cintura e lhe dá um beijo intenso na boca. Mary desabotoa
a camisa dele e a tira, depois começa a abrir a calça dele.
Corta para o comandante fazendo o check in e olhando para
ela. Ela estava fantasiando.

INT. AVIÃO-DIA

O comandante está na porta do avião para receber os


passageiros junto com a tripulação. Mary entra no avião e
deixa sua echarpe cair aos pés do comandante. Ela carrega
o casaco e jornal numa mão e a bolsa e celular na outra,
vai ser difícil pegar a echarpe. Ela se faz de atrapalhada,
para por um instante, e olha para ele com olhar pidão.

MARY
Bom dia, comandante.
COMANDANTE
(Sorrindo sedutoramente)

Deixa que eu pego.


MARY
Obrigada por me pegar, digo pegar...
COMANDANTE
Você não é aquela repórter? Mary Caetano,
não é?
Mary sorri confirmando.
11.

INT. RESTAURANTE-NOITE

Mary e o Comandante jantam, tomam vinho e conversam.

COMANDANTE
Me separei porque traía muito. Essa é a
verdade. Sabe... não vou mentir pra você. Homem trai mesmo.
Quando a mulher não dá pra ele, é certo o cara trair. Mesmo
quando a mulher dá, ele trai. Pra não ser traída, a mulher
tem que ser muito foda, mas mesmo assim, não é garantido...
MARY
(Para a câmera)

Nessa hora uma mulher saudável faz o que?

Mary se levanta da mesa, estende o braço para um aperto de


mão.

MARY
Foi um prazer conhecê-lo, mas não vai rolar.
A gente se esbarra por aí.

Ela sai andando para ir embora e para olhando para a câmera.

MARY (CONT)
(Olhando para câmera)
Faz o que? Pula fora, né? Claro! Só que não
vai ser o meu caso. Sei que vocês já perceberam que eu sou
uma Mada. Só que não sei disso ainda. A verdade é que nessa
hora eu pensei “essa mulher foda sou eu”. Claro! Porque é
isso que uma Mada faz, ela está atrás de adrenalina, de
desafio, de controlar, de dominar, de conseguir mudar as
coisas que a machucaram no passado através dos
relacionamentos do presente... ela está atrás de qualquer
coisa que a distraia do vazio e da dor existencial dela.
Só que esse é um mecanismo inconsciente para que ela fique
se drogando de romance e drama, o que acaba dando merda...,
mas o golpe de misericórdia para me engatilhar na obsessão
foi quando ele disse isso aqui.
COMANDANTE
Sou doido pra ser pai mais uma vez.
MARY
(Sarcástica)

E isso aqui...
12.

COMANDANTE
Você é muito especial mesmo, é muito difícil
encontrar uma mulher bonita e inteligente assim. Você é
mulher pra casar. Tô muito atraído por você.

INT. CARRO- NOITE.

O comandante está deixando Mary em casa.

COMANDANTE
Bom... foi muito bom. Adorei sua companhia.
Vamos sair mais vezes.
MARY (VO)
Ele vai me beijar, será? Ai, ele não vai me
beijar? Será que...não sei... ele não parece estar numas
de me beijar. Que estranho... Meu Deus, ele não vai me
beijar, não pode ser...
COMANDANTE
A gente se fala.
MARY
Tá bom, boa noite. Foi ótimo. Obrigada.
Tchau...

Mary sai do carro muito intrigada por não ter sido beijada.

MARY
(Para a câmera)

Pronto. Entrei no elevador que leva pro


inferno. Re-jei-ção. Esse é o botãozinho do elevador que o
capiroto aperta que leva uma mada para o quinto andar...
dos infernos. Pronto, tô apaixonada. Ele ganhou a controle
da situação, me atiçou. Preciso ter controle dessa
situação. Preciso dominar esse homem. Pronto! Esse é o homem
da minha vida. Bem que a taróloga falou.
INT-CONSULTÓRIO DA TARÓLOGA

A TARÓLOGA abre as cartas. Mary presta atenção.

TARÓLOGA
Vejo um homem, acho que é sua alma gêmea,
ele está próximo. É um homem que viaja muito. Ele vai mexer
muito com você. Vocês vão se casar e ter um filho. Só que
esse é um relacionamento kármico, não vai ser fácil, ele é
um homem muito complicado...ele vem para trazer grandes
transformações na sua vida, e vai mexer muito fundo com
13.

você, lá no fundo do seu inconsciente, vai trazer à tona


questões muito profundas mesmo...
MARY
(Para a câmera)

É claro que eu só prestei atenção na parte


do felizes para sempre. Ela disse alguma coisa sobre ser
difícil? Ah... dane-se.

INT. QUARTO DE MARY-NOITE

Mary e o comandante transam. Ela está por cima, ele a vira


e agora Mary está debaixo dele.

MARY
(Para a câmera, entre um
gemido e outro, delirando)

Camisinha? Claro que não botamos... Ele é o


homem da minha vida... A taróloga disse... É ele, tenho
certeza... A gente vai casar e ter um filho... de repente
eu engravido agora mesmo até... só comigo ele transa sem
camisinha, claro... ele sabe que eu sou a mulher da vida
dele também...
COMANDANTE
Ai, vou gozar...
MARY
(Caindo em si,
desesperada, empurrando ele)
Goza fora! Goza fora! Goza fora!
Eles terminam esbaforidos, felizes e satisfeitos.

MARY
Achava melhor a gente usar camisinha.
Ficaria mais tranquila. Tá muito cedo pra encomendar um
bebê...
COMANDANTE
Camisinha, nunca usei na vida. Detesto. Você
não toma pílula? Achei que tomava! Bebê... pelo amor de
Deus, eu não quero ser pai agora. Fiz minha última namorada
fazer um aborto. Isso tem dois meses, cacete! Não quero
passar por isso de novo agora não... Filho agora tô fora,
não conta comigo.
MARY
O que? Você traía a sua ex-esposa sem
camisinha? Puta que pariu, achei que você não botou
camisinha comigo pois eu era, tipo... a mulher da sua vida,
14.

caralho! Você é um piranho, já deve até ter me passado


AIDS, puta que pariu, eu vou morrer, tô passando mal...
(Ficando com falta de ar)

Você disse que...sai daqui seu filho da


puta. Some da minha frente...SAAAAAAAIIIII DAQUIIIII!!!!
Sai da minha casa agoraaaaaa!!! Vai embora daqui! Seu filho
da puta!!!
Mary pega o abajur e taca nele, mas o abajur fica preso
pela tomada, ela começa a puxar para tirar da tomada, ele
bota a cueca e cata as roupas para ir embora. Ela vai atrás
dele gritando, ele está assustado com a reação de Mary. Ele
sai de cueca no hall do apartamento. Na mesa da sala está
uma garrafa de vinho vazia que eles tomaram e duas taças.
Mary está possessa e parece possuída pelo demônio. Ela vai
para janela com a garrafa na mão e vê o Comandante sair
pela porta do prédio bem debaixo da janela de seu
apartamento. Ele já está na calçada e ela taca a garrafa,
que se espatifa no chão bem perto dele. Ele para, olha para
ela estupefato e depois corre assustado.

MARY
Seu galinha, filho da puta, vai pra puta que
te pariu! Piranho, vagabundo!
COMANDANTE
Você é louca! Louca! Essa mulher é louca!
MARY
Sou mesmo!
INT.QUARTO DE MARY-NOITE

Mary está deitada na cama olhando catatônica para o teto.

MARY(VO)
Eu sou completamente louca. Louca pelo
comandante. Tava louca por ele. Louca de tacar a garrafa
nele. Eu sou louca. Eu tô louca. Fui louca de dar pra ele
sem camisinha. Meu Deus! Eu juro que se eu não tiver pego
AIDS daquele homem, eu nunca mais transo sem camisinha. Eu
prometo. Eu juro. Nenhuma doença, tá? Mas se eu tiver pego
alguma doença daquele miserável... eu, eu... não sei o que
eu faço... eu já tô com saudade dele. Tenho que pedir
desculpa pelo o que eu fiz, eu quero ele de volta. E se eu
estiver grávida? Não...ele gozou fora... Mas aquela babinha
que sai do pau antes de gozar pode engravidar! Ai, meu
Deus!!! Ele é tão gostoso... eu achei que ele era o homem
da minha vida. A cartomante disse que era ele..., mas ela
disse também que ia ser difícil. E se eu tiver pego AIDS
dele? Deus, eu te mato se fizer isso comigo! Ai, não lembro
o que a cartomante disse. O que ela disse mesmo?
(Mary faz um esforço de
memória)
15.

INT. TARÓLOGA-DIA

A taróloga faz uma cara de maus agouros, e Mary, ansiosa


quer saber o que ela está vendo.

TARÓLOGA
Olha, esse cara é uma coisa complicada. Você
vai se apaixonar com força por ele, e você vai passar por
uma prova de vida com ele. Ele vem para começar te ensinar
a amar. A vida quer isso de você, que você aprenda a amar.
MARY (VO)
Ele veio para me ensinar sobre o grande amor
da minha vida, que estava bem na minha frente, e eu não
via. Eu realmente não tinha noção do que era o amor.

INT-BANHEIRO DA CASA DE MARY.

Mary se olha no espelho e lava o rosto. Pega o celular e


olha um longo tempo para ele.

MARY (VO)
Desgraçado, me bloqueou.

Mary se olha no espelho e fala com ela mesma.

MARY
Você não tem amor próprio não? Como pode
estar querendo ficar com aquele cafajeste, depois do que
aconteceu? (pausa) É que, eu gosto dele... achei que ele
era o homem da minha vida. Tão bonito, tão inteligente, tão
gostoso, tão... filho da puta... (pausa) É... eu acho que
não tenho amor próprio mesmo. Eu amo ele, mas olho pra você
Mary, e não consigo te amar, sabe? Como você pode amar um
cafajeste e não se amar? É por isso que eu te odeio! Por
que você é burra! Burra! Eu te odeio Mary, sabe por que?
Por que eu não te amo! Mas o filho da puta você ama, né?
Sua imbecil! Sabe o que você é? Você é uma filha de uma
filha da puta de tão filha da puta que você é! Minha mãe é
uma filha da puta mesmo. Não conheci minha avó, mas devia
ser outra filha da puta também.

INT.SALA DE MADA-NOITE

Lucia termina sua partilha e é recebida na irmandade.


RENATA,24 anos, mulata, é uma pequena grande mulher, uma
mulher baixinha e doce, e ao mesmo tempo forte, inteligente
e sagaz, é a companheira que se levanta para entregar a
fita branca que representa o ingresso na irmandade para
Lúcia.
16.

LUCIA
É isso... muito obrigada.
TODAS
Obrigada Lucia!!
Renata se levanta e entrega a fita branca e um panfleto com
os endereços da irmandade para ela. As outras mulheres
aplaudem. Renata dá um forte abraço nela.

RENATA
Você não está mais sozinha, Lucia, continue
voltando que essa dor vai passar. O único requisito para
se tornar membro de mada é o desejo de se recuperar e de
evitar relacionamentos destrutivos. Você vai conseguir!
Continue voltando, o segredo está na próxima reunião.
LUCIA
Obrigada.
FABIANA
Entrar por aquela porta é um milagre, ficar
aqui é trabalho, mas vale a pena. Essa fita branca
representa seu ingresso na irmandade. Tente ir nas reuniões
de outros bairros. Vá ao máximo de reuniões que puder. A
gente chama isso de fazer CTI de sala, tipo um tratamento
intensivo quando a gente está sofrendo muito. Vai te fazer
bem.
LUCIA
Obrigada, essa força que estou sentindo aqui
com vocês já tá me fazendo muito bem. Muito bom conhecer
vocês.
RENATA
Você é muito benvinda.
FABIANA
Renata, pode ler o segundo passo?
RENATA
Viemos a acreditar que um Poder Superior a
nós mesmas poderia devolver-nos à sanidade. Oi, meu nome é
Renata, sou uma Mada em busca de recuperação.
TODAS
Oi Renata!
RENATA
Primeiro quero dar as boas vindas a nova
companheira e dizer que o programa funciona, continue
voltando, pois você não está mais sozinha. Quando cheguei
aqui estava sofrendo muito também, mas graças ao Poder
Superior, só por hoje estou em paz e com serenidade no
17.

coração. Venho de uma história muito dura, mas consegui


virar o jogo com a ajuda que eu encontrei aqui.
MARY (VO)
A Renata é minha madrinha da irmandade,
minha amiga e uma das pessoas mais incríveis, espertas e
inteligentes que eu já conheci. Ela morava na Rocinha, tem
um irmão traficante preso, e foi mãe adolescente. Apesar
das dificuldades, essa baixinha é poderosa, pois é uma
guerreira muito batalhadora. Ela é técnica de enfermagem,
e conhece o programa como ninguém. É mada de já ter
desmaiado por causa de homem ..., mas essa mulher tem uma
fé que só vendo. Ela é católica. Aliás essa coisa da
espiritualidade é um negócio muito interessante em
irmandade de 12 passos... é bonito na verdade, pois pessoas
de religiões e crenças diferentes se unem em torno de um
Poder Superior da forma que cada um o concebe, mas que é
comum a todos. A gente só chega aqui quando vai pro fundo
do poço, e nada me tira da cabeça que o fundo do poço é
quando a gente desconectou total desse Poder Superior que
tem dentro da gente, mas é justo aí que começa o caminho
para uma verdadeira conexão. Quando a gente descobre que
esse vazio que a gente sente acontece porque deixamos de
morar na gente para morar nos outros.
RENATA (CONT)
É como tá na apostila, religião é para quem
tem medo do inferno, espiritualidade é para quem já esteve
lá. O fundo de poço é o inferno, mas sem conhecer o inferno,
a gente não reconhece o paraíso. Jung dizia que para uma
árvore ter galhos que toquem o céu, ela precisa crescer
raízes que toquem o inferno...
MARY (VO)
A Renata é danada, até Jung a mulher cita.
Não foi à toa que a escolhi pra ser minha madrinha. Ela me
dá cada luz! Aliás, nem gosto de lembrar do meu fundo de
poço...fico com vergonha de mim mesma.

INT.CAMARIM DE SHOW.

MARCELO, 45 anos, é músico de uma banda famosa que acabou


de fazer um show. Rola uma festinha no camarim. Mary está
toda metida de primeira dama de pop star, enquanto Marcelo
recebe fãs, tirando fotos e dando autógrafos. Ela está com
uma amiga, DANI.

MARY
Ele é demais né? Acho que estou apaixonada.
DANI
Amei o show! Adoro eles, sempre adorei!
Adoroooo que você tá pegando o Marcelo. Miga, sua loca, tem
que tomar banho de sal grosso, hein! As fãs vão te odiar
quando souberem. Muito olho grande em cima, fica esperta.
18.

MARY
Imagina, tenho corpo fechado. Essas coisas
não pegam em mim não. Eu hein!

Marcelo termina de dar atenção aos fãs e amigos, troca


algumas palavras com os colegas e vem em direção as duas.
Marcelo dá um beijo em Mary.

MARCELO
Linda, adorei que você veio me ver, gostou
do show?
MARY
Amei! Deixa eu te apresentar a Dani, minha
amiga.
DANI
Prazer! Amei o show! Sempre adorei vocês!
Muito obrigada pelo convite.
MARCELO
Que isso... que bom que gostou. Obrigada por
fazer companhia pra Mary.
MARY
Foi ótimo mesmo! Dancei pra caramba.
MARCELO
Linda, já vou terminar aqui e a gente vai
embora pra tua casa, tá? Fiquem à vontade, se quiserem podem
pegar uma bebida... tem comida também.
MARY
Não demora, lindo.
DANI
Ai, ai... o amor é lindo.
MARY
Lindo e gostoso.

INT-QUARTO DA MARY-NOITE

Ela está na cama com Marcelo. Os dois olhando pro teto, num
clima pós-sexo sem graça.

MARY (VO)
O sexo foi uma bosta, mas eu quero namorar
com ele mesmo assim. Ele é um cara famoso que a mulherada
toda quer, e eu preciso dele pra esquecer o Comandante. Não
19.

paro de pensar no Comandante. Acordo pensando nele, faço


tudo pensando nele, até na hora de cagar eu penso nele...
penso “podia estar cagando pra ele, mas não estou, tô é
cagando pra mim mesma ficando tão obcecada com aquele
bosta”... e cá estou eu, com minha vida amorosa toda
cagada”. Faço qualquer negócio pra ficar com o Marcelo pra
esquecer o Comandante, até sexo merda.
Marcelo se levanta e começa a se vestir. Ele acende um
baseado e oferece pra Mary. Ela não aceita.

MARCELO
Olha Mary, eu quero muito namorar contigo,
mas sem anal não dá.
MARY
Como?
MARCELO
Sem dar a bundinha não dá pra te namorar...e
com camisinha, eu detesto, tem que ser sem camisinha.
MARY
Sem camisinha nem pensar. Você quer namorar
comigo ou com a minha bunda?
MARCELO
(Ele ri, mas está falando
sério)

Com a sua bunda, claro, que aliás, é muito


gostosa...
MARY
Fala sério.
MARCELO
Eu tô falando sério. Relacionamento sério,
só com a bundinha.

INT. PORTA DA CASA DE MARY-NOITE

Mary está na porta enrolada num lençol. Marcelo está indo


embora meio assustado, meio puto, vai chamar o elevador.

MARY
Babaca! Vai pra puta que te pariu! Filho da
puta! Quer namorar uma bunda? Procura uma bicha logo, seu
viado, ou então compra uma! Paga por uma, vai pegar um
traveco então, seu merda!
20.

MARCELO
Louca! Você não bate bem...procura um
psiquiatra urgente!
Mary BATE a porta com violência.

INT-CASA DE MARY-NOITE

Mary acabou de bater a porta e tenta prender o choro, mas


tem uma ideia melhor do que chorar. Ela engole o choro.
Mary pega uma caixa de ovos na geladeira e corre pra janela.
Ela espera Marcelo sair na rua e começa a tacar os ovos
nele.

EXT. RUA DE MARY-NOITE

Mary acerta Marcelo nas costas, ele se vira procurando quem


tacou, ela o acerta mais duas vezes. Ele se enfurece. Ela
taca mais no seu carro estacionado bem debaixo de sua
janela.

MARCELO
Sua louca! Você é uma doente! Você vai se
ver comigo!
MARY
Ai que medo! Estou morrendo de medo de você.
Só que não, seu babaca!

EXT.RUA DE MARY-NOITE
Marcelo está furioso tentando se limpar e limpar o carro.
Marcelo ensaia uma reação. Ele olha pra cima e Mary está
com uma cadeira nas mãos pronta para ser tacada.

MARY
Some daqui antes que eu te mate!
INT.CASA MARY-DIA

Mary ainda está enrolada no lençol deitada na sala com o


celular na mão. Agora ela chora. O telefone toca. É sua
amiga DANI.

DANI
O que houve amiga?
MARY
O Marcelo... tive uma briga surreal com ele.
21.

DANI
Mas por que??? Vocês pareciam que estavam
indo tão bem...
MARY
Vai ver fizeram macumba, você bem que
avisou.
DANI
Não deu tempo pra isso, Mary.
MARY
É sempre assim...Eu tenho esse dedo podre
amiga, só pode ser, não sei o que acontece comigo, desde
que eu me entendo por gente eu sofro por causa de homem,
mesmo quando eu não quero mais o cara eu sofro também. Não
aguento mais, é um tormento ser intensa assim, eu sinto que
se eu continuar assim eu vou morrer. Não aguento mais sofrer
assim. Ele queria namorar com a minha bunda...
DANI
Como assim?
MARY
Eu não gosto de dar a bunda.
DANI
Eu gosto.
MARY
Tem gosto pra tudo...o pau dele era muito
grande também. É ofensivo exigir a bunda de alguém com o
pau daquele tamanho. Além disso ele queria que fosse sem
camisinha!
DANI
Ah, não, sem camisinha é inaceitável!

MARY
Pois é, foi mais ou menos isso que eu disse,
mas assim... de uma forma um pouco violenta. Eu taquei ovo
nele da minha janela.
DANI
Como assim? Que louca...miga, sua louca,
literalmente.
MARY
É, sei lá, não é a primeira vez que eu faço
isso. Não te contei uma coisa. Eu taquei uma garrafa no
comandante também. Só que eu não taquei pra acertar, sabe?
Taquei só pra assustar. Os ovos eu taquei pra acertar. Ah,
22.

ovo não machuca! Quer dizer, talvez machuque um pouco, mas


não mata ninguém. Sei lá, amiga, me dá essa coisa doida,
me sobe o sangue, aí quando eu vejo, já fiz a besteira, aí
me arrependo, mas não adianta pedir desculpa, pois aí o
cara já era, mas doideira mesmo é ficar pensando no cara,
querendo ele de volta depois. Dani, eu não tô bem. Tem algo
de muito errado comigo. Preciso de ajuda. Eu já tentei falar
com o Marcelo, pedir desculpa, mas ele me bloqueou. Não
entendo como eu posso ficar querendo um cara desses de
volta. Fico muito mal com isso. Tenho a nítida sensação de
que vou morrer se continuar assim.
DANI
Mary, você já ouviu falar do Mada? Tenho uma
prima que frequentou e foi muito bom pra ela. Ela tava meio
doidinha assim que nem você tá agora.
MARY
Eu não sou Mada...Dani...será? Tá... eu sou
doidinha. Aliás, doidinha não, eu sei que eu tô muito maluca
mesmo. Mas Mada? Será?
DANI
Dá uma olhada no site, vai numa reunião, nem
que seja por curiosidade jornalística... Sabe, Mary,
descobri com essa minha prima que toda mulher é meio Mada,
assim como toda coluna é meio torta, a diferença está no
grau da questão. Quando a coisa se acentua, tem adoecimento
e dor. Aí, tem que tratar, entende?
MARY
Eu tenho uma escoliosezinha.
DANI
Te falo como fisioterapeuta. Tem que tratar,
pois se deixa rolar, acaba piorando e virando uma encrenca
muito grande. Quando uma coluna adoece, afeta tudo. É a
mesma coisa com a madice. O corpo, a mente e o espírito
entram em deterioração. A diferença é que um problema dá
no corpo e o outro dá no espírito. Busca tratamento pra
isso, Mary, não perde tempo.

INT.SALA DE MADA-NOITE

Renata está terminando sua partilha enquanto todas prestam


atenção.

MARY (VO)
E foi assim que eu vim parar aqui...pois
apesar de ter atacado os caras como uma fera enlouquecida
eu continuava pensando obsessivamente neles. Foi horrível.
Inclusive, cheguei a procurar o Comandante e o Marcelo,
pedindo desculpas, pedindo pra voltar. Imagina voltar com
aqueles caras. Eu estava muito doente mesmo.
23.

RENATA
Obrigada por me ouvirem em silêncio e por
essa sala aberta salvando vidas.
FABIANA
Suzana? Você pode ler o terceiro passo?
SUZANA
Decidimos entregar nossa vontade e nossa
vida aos cuidados de Deus, na forma em que O concebíamos.
Oi eu sou Suzana, mada em recuperação.
TODAS
Oi Suzana!
SUZANA
Engraçado cair o terceiro passo pra mim,
primeiro porque eu não entrego nada, e segundo que não
acredito em nada. Sou atéia, e isso torna essa coisa de
fazer o programa meio chato pra mim. Sendo muito
sincera...não tem que ser honesta? Mas vou falar do meu
namorado. Ele me deixa muito puta toda hora. Desculpe o
palavrão. É toda hora mulherzinha nova curtindo foto dele.
Brigo com ele, esculhambo, só falta eu quebrar tudo, ele
só pode estar de sacanagem comigo...qualquer dia não me
seguro e meto uma bifa nele...
MARY (VO)
Suzana...é doidinha. Já deu um tiro num ex-
namorado. É. Um tiro! Com revólver. Quase matou o cara. Só
não foi presa pois atirou com a arma do pai delegado e o
avô é desembargador. Coisas do Brasil... se fosse uma Maria
qualquer aí, tava mofando na cadeia. O mais engraçado é que
essa agressividade toda dela é uma armadura pra proteger
um coração mega doce e amoroso, vai entender.
SUZANA
Mas tá ficando complicado pois ele não
aguenta mais meu ciúme, e eu não consigo parar, eu surto
só de ver mulher olhar pra ele...Meu Deus do Céu... eu não
consigo parar, tô aqui falando, mas a cabeça tá na vontade
de parar pra olhar a página dele no celular, quero controlar
o cara o tempo todo...
MARY (VO)
O mais engraçado é ateu soltando “Meu Deus
do Céu”... a fé e as crenças são as fundações que podem te
fazer acontecer ou te levar à ruína, e não tô falando de
religião, tô falando sobre o que a gente acredita. Sobre
crença mesmo. O ser humano é capaz de acreditar nas coisas
mais malucas, mas tem muita dificuldade em acreditar em
outro ser humano, também pudera... Homem apronta tanto que
é mais fácil acreditar em saci Pererê. Tem homem que parece
que achou o pinto no lixo também...
24.

SUZANA
Ele definitivamente não é o brócolis que eu
imaginava. Ele é um brócolis com cobertura de chocolate.
Todas riem da piadinha, uma ou outra faz uma cara de
estranheza imaginando o que seria comer um brócolis com
cobertura de chocolate.

MARY
(Para a câmera)

Meu ex marido era um brócolis...eu acho.


INT.IGREJA-DIA

Mary caminha de noiva ao lado do PAI, um homem bem sisudo,


em direção a Nelson que a espera orgulhoso, muito feliz e
ansioso no altar junto ao padre.

MARY (VO)
Pois é eu já fui casada. Esse aí é o NELSON,
o cara mais doido por mim que eu já conheci. Não fazia
ideia do que eu tava fazendo. 23 anos! Eu tava com 23 anos!
Como é que alguém deixa uma pessoa com 23 anos se casar?
Só tem gente maluca nesse mundo mesmo. Meu pai é uma dessas
pessoas, mas isso é outra história.
Mary chega ao altar, o pai a entrega a Nelson, que parece
um cachorrinho babão, com os olhos marejando, prestes a
chorar.

NELSON
(Começando a chorar)

Minha deusa! Desde o primeiro dia que te vi


eu sonhei com esse dia. Sempre soube que você seria minha.
Mulher da minha vida.
MARY
Nelson, chorar é papel da noiva, não do
noivo... cuidado pra não borrar a maquiagem... piadinha
boba.
NELSON
Eu te amo tanto.
MARY
Nelson, por favor, não chora. Eu também te
amo. Olha o mico...
MARY
(Para a câmera)
Sabe doce de leite? Uma colher é um tesão,
um pote inteiro e você passa mal. Nelson é um doce de leite.
25.

Doce demais, tão gentil, tão apaixonado, que às vezes me


enjoa, mas tudo bem, pelo menos ele é gostoso. Eu devia
saber que esse casamento não vai dar certo, mas em algum
momento me convenceram que mulher tem que casar com homem
que goste mais dela do que ela dele... na verdade me
convenceram que mulher tem que casar e ponto. Então pronto,
tá feito. Casada. Uma coisa a menos na minha lista de
afazeres existenciais. Se eu encher o saco, dou tchau e
pronto.
INT. QUARTO- DIA

Nelson e Mary acordam. Nelson começa a beijar Mary que não


parece estar afim de sexo.

MARY
Ai Nelson, você tá com um bafo de cão.
NELSON
Você também! Eu não me importo.

Nelson beija Mary a força. Mary não gosta e tenta empurrá-


lo. Nelson ri e se diverte.

MARY
Nelson, não tô afim.
NELSON
Mas eu tô, vem cá minha gostosa, olha como
você me deixa louco, meu pau tá que não se aguenta.
MARY
Nelson, vai escovar o dente pelo menos,
vai...
NELSON
Ai, meu amor, não dá... vem cá, vem... tô
com muito tesão.
MARY
Ai Nelson, por favor...
NELSON
Ai Mary, por favor.
Mary está usando um pijama de blusa e short. Nelson levanta
a blusa e chupa seu peito, depois tira o short e faz sexo
oral nela. Mary não curte muito, mas deixa. Nelson força o
sexo com Mary, que não parece gostar muito, mas acaba
cedendo. Quando Nelson termina, Mary parece triste e
melancólica. Nelson satisfeito nem se toca, e se levanta
para ir ao banheiro tomar banho.
26.

INT. CASA DE MARY-DIA

Mary e Nelson estão sentados tomando café da manhã. Nelson


lê o jornal. Mary olha para ele tensa, põe a xícara de café
na mesa, olha pra aliança no seu dedo, a tira e põe na
mesa.

MARY
Nelson...acabou.
NELSON
Acabou o que?
MARY
Não quero mais estar casada.
NELSON
Como assim?
MARY
(Para a câmera)

Eu disse que ele era um brócolis? Não, né?


Disse que era um doce de leite. É, não sei... É brócolis
no sentido de ser um homem que me amava, me queria, e estava
muito disponível, disponível até demais, o que fez dele o
maior tédio para uma mada como eu. Parecia uma relação
saudável, mas não era. Sei lá... é que Mada precisa de
adrenalina. Ele era um doce de leite no sentido de ser
muito amoroso, tanto que eu chegava a enjoar. Doçura também
tem dose certa, sabe? Até amor em excesso enjoa... e eu
estou tendo uma overdose.Começa a dar vontade de ir em busca
de algo mais emocionante e desafiador... mais, salgado,
mais inebriante, mais excitante, essa é a meleca... Foi
depois desse dia aí, que eu comecei a me meter em uma
confusão atrás da outra, e você acredita que o Nelson ainda
continuou atrás de mim anos a fio? No começo ele quase me
matou, e me perturbava direto. Tadinho, nunca foi minha
intenção magoá-lo assim. Carrego uma culpa gigante. Mas o
que eu posso fazer? Perdi o tesão... sou uma adicta, sou
viciada em relacionamento destrutivo, tenho um pé na doença
mental, só que eu ainda não sabia disso aí. Ah! Gente! Esse
relacionamento tava demais pra uma mada. Não que eu já saiba
que sou mada..., é que já tô de saco cheio desse pau duro
me perseguindo dia e noite. É tipo doce de leite mesmo, a
primeira colher é uma delícia, depois de muitas enjoa. Pô,
nem brócolis o homem é. Nem chocolate. Porre de chocolate
não enjoa, de doce de leite, enjoa. Será que alguém já
tomou porre de brócolis? Nunca vi ninguém se entupir de
brócolis por prazer. Na verdade, depois daquele sexo
forçado, fiquei me sentindo como se tivesse sido estuprada,
como se meu corpo não pertencesse a mim, como se ele
quisesse me invadir o tempo todo, e isso foi me dando muito
bode dele. No fim estava com nojo dele, e de mim também por
ter me casado com ele.
27.

INT-SALA DE MADA-NOITE

O celular de Mary vibra, ela olha na tela, é Nelson mandando


uma mensagem. “Tudo bem querida? Tá podendo falar?”. Mary
ignora. Suzana está terminando sua partilha.

SUZANA
É isso... obrigada.
TODAS
Obrigada Suzana!
FABIANA
Heloísa, quarto passo.
HELOÍSA
Quarto passo...Fizemos um minucioso e
destemido inventário moral de nós mesmas. Oi meu nome é
Heloísa e sou uma mada buscando recuperação.
TODAS
Oi Heloísa!
HELOÍSA
Bom, gente, eu só por hoje tô bem, tô
tranquila, graças ao Poder Superior. Tem sido um pouco
difícil com minha filha só, que tem andado rebelde e
desobediente, mas acho que faz parte...
MARY (VO)
A história da Heloísa é puxada. Filha de uma
prostituta no Nordeste, foi adotada por um casal. Aí ela
cresceu e virou uma adolescente linda, o pai adotivo fez o
que? Tirou a virgindade dela. Na verdade, ele a estuprou
quando ela arrumou um namoradinho. Isso depois de bater no
pobre do rapaz até quase matá-lo. Ela fugiu sozinha e veio
pro Rio de Janeiro. Aqui virou amante de um homem mais
velho casado e teve uma filha com ele. O cara promete há
anos que vai largar a mulher para ficar com ela, e ela vive
com essa esperança.
HELOÍSA
Sei que eu errei em ter topado ser a outra
durante tantos anos, mas na época eu não tive escolha, ele
me tratava com tanto amor, e me dava aquela proteção e
segurança que toda mulher busca num homem, eu sozinha aqui
no Rio, tentando me virar, depois de tudo que eu passei...
MARY (VO)
O início da vida sexual de uma mulher acaba
mesmo dando o tom da vida afetiva dela... ou será que o
início da vida sexual dela está relacionado com o tom
afetivo da vida dela, no meu caso acho que como eu tinha
um pai distante e uma mãe narcisista, não foi à toa que meu
primeiro homem foi um narcisista distante.
28.

INT-MOTEL-NOITE

Mary e o NAMORADO vão transar pela primeira vez. Ela está


tímida, mas entusiasmada. Ele a beija, se levanta e tira a
roupa na frente dela.

NAMORADO
Gosta? Barriguinha tanquinho toda pra
você..., quer lavar roupa, gata?
MARY
Quero ... vem cá que eu lavo.
NAMORADO
Tira sua roupa.

Corta para o namorado penetrando ela por trás e se admirando


no espelho. Corta para eles terminando a transa, o namorado
virando para o lado para tirar uma soneca, e Mary com cara
de pateta.

MARY (VO)
Minha primeira vez foi uma merda, assim como
grande parte da minha vida sexo afetiva. Deviam ensinar
mais sobre sexo nas escolas. Hoje eu vejo como os homens
são... são... sei lá... tipo, podiam ser melhores. Ás vezes
tenho a sensação de que só as mulheres parecem se esforçar
para agradar.
INT. SALA DE MADA. CONT -NOITE

HELOÍSA
Fico pensando em como Deus é irônico com a
gente...

Fabiana mostra um cartão que diz “tempo esgotado”, para que


ela conclua sua partilha.

HELOÍSA
Bom, acabou meu tempo, depois falo mais se
der tempo. Obrigada!
TODAS
Obrigada Heloísa!
FABIANA
(Olha para Mary)
Quem quer partilhar agora? Mary?
29.

MARY
Depois... agora não.

AMÉLIA, um mulherão forte de quarenta e poucos anos, é


atlética e tem cara de brava.

AMÉLIA
Eu quero falar!
FABIANA
Então Amélia, lê o quinto passo.
AMÉLIA
Admitimos perante Deus, perante nós mesmas
e perante outro ser humano, a natureza exata de nossas
falhas. Meu nome é Amélia e sou uma mulher que ama demais
buscando se recuperar.
TODAS
Oi Amelia!
AMELIA
Hoje eu não tô bem. Quando a companheira
falou de curtida de rede social, me deu até um mal-estar.
Tem uma mulher que entrou na página do meu marido e
simplesmente curtiu todas as fotos dele. Fui tirar
satisfação com ele, e ele pela primeira vez na vida teve
uma reação agressiva comigo, fiquei muito assustada, e tô
muito preocupada, pois ele me ameaçou ficar com a mulher,
dá pra acreditar? Nem nos nossos piores dias ele nunca
reagiu assim...
MARY (VO)
A Amélia é uma pessoa linda, é policial
militar e foi lutadora de MMA, tem um paviozinho curto, e
já sentou a mão no marido quando ele olhou pra bunda de uma
mulher. Ela só fez o que muita mulher tinha vontade de
fazer, mas não tem coragem, ou força física para tal. Se
bem que nada justifica violência. A verdade é que mulher
só não bate em homem pois homem tem mais força física.
Mulher bate de outros jeitos... Enfim, deu um bafafá e ela
veio pro mada. Ela parece um pit bull, banca de brava e
perigosa, e é um dos corações mais generosos que eu já
conheci. Vai entender...

INT. CARRO DE POLÍCIA MILITAR- PARQUE DO FLAMENGO-NOITE

Amélia está com o PARCEIRO PM no carro fazendo a ronda.

PARCEIRO
Já deve tá doida pra ir pra casa né?
30.

AMÉLIA
Tá brabo, cara... nunca pensei que deixar
meu bebê em casa fosse doer tanto, ainda não consegui parar
de amamentar, chego em casa e vou direto ficar com ele. Não
é fácil ser mãe e trabalhar, meu amigo, mas eu sou
guerreira.
PARCEIRO
Essa ronda aqui é tranquila, aqui tem estado
bem tranquilo. Mais meia horinha só e partiu batalhão.
No rádio da polícia entra um chamado da OPERADORA.

OPERADORA
Atenção setor fox, setor fox. Bebê
abandonado na parque do aterro, na altura da Barão do
Flamengo.
PARCEIRO
É com a gente.
AMELIA
(Pegando o rádio)
Positivo. A caminho.

EXT. PARQUE DO FLAMENGO- NOITE

Amélia e o Parceiro chegam em um pequeno aglomerado de


pessoas. Há um bebê que foi abandonado chorando
desesperadamente debaixo de uma árvore. Amélia pega a
criança que não para de chorar, ela hesita, mas a leva para
o carro da PM e a amamenta. A criança se acalma.

INT- CASA DA AMELIA-NOITE

Amélia está amamentando um bebê enquanto outro bebê está


do lado. Seu MARIDO a observa sério e distante da porta do
quarto. Ele parece enciumado.

MARY (VO)
E não é que ela adotou a criança? Ficou com
dois bebês. O marido é que não aguentou perder o reinado,
acabou traindo, e ela acabou batendo nele...de novo. Bateu
mesmo dessa vez. O negócio foi feio, pois ela sabe bater,
então pega a maquininha e calcula o dano. Eles fizeram as
pazes, se perdoaram, ele por ter apanhado, ela por ter sido
traída, mas ela não esqueceu não... e o ciúme é um negócio
que consome a Amélia de um jeito horrível. Mada, né? Como
dois filhos pra criar, viraram a página e seguiram em frente
aos trancos e barrancos, ou melhor aos trancos e barracos.
Não tinha outro jeito. Muito louco o destino das pessoas.
31.

Ninguém imagina que vai esbarrar com um filho assim, mas a


gente sempre imagina que vai esbarrar num amor a qualquer
hora. Mada vive imaginando e fantasiando isso. Mulher faz
muito isso, nem precisa ser mada. A mulher só vira mada
quando passa dos limites. O problema é que a expectativa
nunca corresponde à realidade, e as frustrações naturais
da vida parecem só alimentar ainda mais o desejo de
fantasiar e tornar a fantasia real, por isso a Mada adora
um drama, pois ela faz de tudo para que a fantasia se torne
realidade, e isso acaba sendo inevitavelmente dramático.
Madas amam demais a ideia da aparição desse grande amor
prometido em filmes, músicas, novelas, poesias...amam
perseguir esse ideal que só existe na fantasia, pois se
vira realidade, acaba a busca, acaba o drama, acaba a
adrenalina, acaba a fantasia. Isso é o que vicia, essa busca
incessante da onda que isso dá. É como aquela
música...qualquer coisa que se sinta, de tantos sentimentos
deve ter algum que sirva.

EXT- PRAIA-DIA

Mary está correndo na praia. Ela termina sua corrida no


Apoador. O mar está com ondas boas e apinhado de surfistas.
Mary vai até uma barraca, compra um coco, senta na beira
do mar, tomando o coco e vendo os surfistas pegando onda,
entrando e saindo do mar, e seus corpos lindos.

MARY (VO)
Já estou sozinha há tantos meses. Nunca
fiquei tanto tempo assim, sem ninguém. No começo foi
horrível. Encarar a abstinência foi pedreira. Fazer o
exercício do “eu te amo e te aceito exatamente como você
é” no espelho era um horror.
INT. BANHEIRO DE MARY-DIA

Mary lava o rosto e se olha no espelho por um longo tempo.

MARY (VO)
Não. A verdade é que eu não te amo e não te
aceito, mas tem que falar mesmo assim.
MARY
Mary, eu te amo e te aceito exatamente como
você é, sua ridícula!

INT. QUARTO DE MARY-NOITE

Mary se olha no espelho. Espreme uma espinha.

MARY (VO)
Tá, né? Tenho que me amar e me aceitar, nem
que seja na marra. Porra de espinha escrota!
32.

MARY
Mary, eu te amo e te aceito exatamente do
jeito que você é, porra!
Mary dá risada dela mesma se olhando no espelho.

MARY
Até que eu gosto de você, mesmo com essa
espinha escrota.
INT. BANHEIRO DE MARY-DIA

Mary termina de se maquiar e se arrumar. Ela está bonita


para sair para trabalhar.

MARY
Mary, eu te amo e te aceito exatamente como
você é. Gata! Fiu, fiu!
MARY (VO)
É...acho que estou conseguindo começar a me
amar. É uma sensação boa. Vem com uma certa paz. Essa talvez
seja a tal da serenidade. É bom, é gostoso. Melhor que
adrenalina. A gente não passa mal. Tô passando bem. Será
que isso é que é ser feliz?
EXT. PRAIA -DIA

Mary continua na praia olhando os surfistas.

MARY (VO)
Estou feliz, sabe? Tô focada na minha vida,
mas homem me faz falta, e esse mar hoje tá pra peixe...
homem surfando é pura arte da natureza. Ô meu Deus, depois
dizem que a mulher é que é a tentação...querem sempre botar
a culpa na mulher, acho isso uma sacanagem. Posso ficar
aqui horas olhando esse vai e vem de ondas e homens surfando
nelas. Coisa linda esse mar, coisa mais linda esses homens.
Eu gosto muito de homem, sabe? Gosto demais. Às vezes me
sinto com os homens como uma criança numa sorveteria, quero
experimentar e tomar todos sabores, mas só dá pra tomar um
ou dois sabores no máximo de cada vez. Homem e sorvete...
me dão água na boca e medo ao mesmo tempo, pois se eu começo
não consigo parar. Pelo menos homem não engorda e agora
tenho a irmandade para me ajudar a segurar a onda da
compulsão.

Um lindo surfista, RAFAEL, vinte e poucos anos, sai da água


e vem caminhando na direção de Mary. Ele bota a prancha na
areia bem perto dela e se senta olhando na direção do mar,
dando uma parada para descansar. Eles se olham e se
cumprimentam.
33.

RAFAEL
E aí? Esse coco tá bom?
MARY
Muito bom.. tá servido?
Mary oferece o coco a Rafael e ele, cara de pau, aceita
chegando mais perto e tomando um gole. Mary ri da ousadia
dele.

RAFAEL
Valeu, muito bom! Tava morrendo de sede.
MARY
Disponha.
RAFAEL
Eu te conheço de algum lugar...
MARY
Sou repórter de televisão, deve ser daí.
RAFAEL
Jura? Não vejo TV... na verdade eu não te
conheço, só tô te dando mole mesmo, pois te achei muito
gata.
MARY
(Dando risada)

Você é uma figura... muito cara de pau.


RAFAEL
É porque eu quero te conhecer.
MARY
Você não acha que é muito novo pra mim não?
RAFAEL
Esse negócio de idade é besteira... na
verdade, eu gosto é de mulher mais velha, elas não têm
frescura. Essas novinhas são muito chatas e inseguras.
MARY
Ah é?
Rafael e Mary conversam divertidamente.

MARY (VO)
Esse é o primeiro cara que eu vou me
relacionar desde que ingressei no Mada. Rafael é 10 anos
mais novo, modelo, que homem lindo... homem ou garoto? Não
importa. Está se formando na faculdade de teatro e ainda
34.

mora com os pais. É uma figura, muito divertido, engraçado


e parece bem interessado em mim. Confesso que vou começar
a sair com ele mais por ter um gato lindo e tão novinho me
levantando a moral do que por ter alguma esperança sincera
de um relacionamento maduro. Apesar de que o garoto até é
bem maduro pra idade dele... maduro e bem inteligente. Curti
ele, mas sem expectativa nenhuma. Quero viver meu “só por
hoje”, um dia de cada vez. Ah, deixa eu ser feliz...

INT.SALA DE MADA-NOITE

Amélia está terminando sua partilha.

AMÉLIA
Agora que as crianças estão grandes, que a
gente se perdoou, que a gente podia curtir mais a vida, ele
tá assim... cara, isso me deixa muito triste. Eu queria
sair, dançar, ir ao cinema, e o cara só quer ficar em casa
tomando cerveja e vendo TV, além de ficar dando trela pra
piriguete de internet. Eu também tô ficando de saco cheio...
se for pra me trair então, que vaze logo, mas ele não vaza
por causa dos filhos, os meninões estão lindos, e ele é
apaixonado demais por eles pra largar a família. Vou
levando... é isso, paz e serenidade pra aceitar esse homem
e a vida do jeito que tá. Obrigada.
TODAS
Obrigada Amélia.

SILVIA, uma mulher de aproximadamente 70 anos, levanta a


mão para partilhar.

FABIANA
Silvia, sexto passo.
SILVIA
Prontificamo-nos inteiramente a deixar que
Deus removesse todos esses defeitos de caráter. Meu nome é
Silvia e sou uma Mada buscando recuperação.
TODAS
Oi Silvia!!!
SILVIA
Queria falar da minha visita à prisão pra
levar a mensagem de Mada. Foi muito emocionante. Quem sabe
da minha história sabe que eu podia estar presa hoje se não
fosse essa irmandade. Entrar numa prisão é como entrar num
outro mundo. Passar por aqueles corredores, e ver aquelas
mulheres... elas ficam na porta agarradas naquelas
35.

grades..., as celas são grandes, tem umas fileiras de


beliches... devem ter, sei lá, umas quarenta em cada cela
talvez. Teve uma que quando eu passei me chamou ” ei,
tia...” Gente, uma mulher adulta, me chamando de tia! Ali
eu vi a coisa da criança ferida. Era uma mulher, mas era
uma criança presa ali que eu vi, sabe? Não sei se dá pra
entender, mas naquele momento ali, eu entendi tudo. Como a
criança traumatizada, ferida, abandonada, não cresce, e
acaba se metendo em confusão. Aquela mulher parecia uma
dessas crianças abandonadas pedintes de rua. Foi muito
impactante. Fomos a Bangu. Ainda nem é verão, e aquilo lá
já tá um forno, imagina em janeiro, fevereiro... não tem
ar condicionado, tem ventilador só e olhe lá. A funcionária
que recebeu a gente, disse que no verão ainda por cima,
costuma faltar água. É pesado... a gente foi levar a
mensagem, só pra falar de mada pras presas que tinham bom
comportamento. A presença delas na palestra conta ponto lá
pra elas pra encurtar a pena. Elas são tão carentes de
atividade e atenção que começaram a partilhar. Dava pra ver
a sede delas de serem ouvidas, de não se sentirem sozinhas.
Quase todas lá estão presas por causa de seus companheiros.
Os caras que levaram pro crime. Muito caso de tráfico. Fui
lá pra ajudar e acabei sendo tocada de um jeito que é
difícil resumir numa partilha. Foi mesmo muito emocionante.
INT.PRISÃO FEMININA-DIA

Silvia e Helena caminham por um longo corredor de celas


seguindo uma FUNCIONÁRIA. Nas portas das celas,
presidiárias vem ver quem está vindo pelo corredor. Quando
Silvia passa por uma delas, uma PRESIDIÁRIA, estica sua sua
mão para fora.

PRESIDIÁRIA
Tia, você é tão bonita. Vem aqui.
SILVIA
Oi, querida, não posso.

Silvia não pode parar pois tem que seguir a funcionária.


Ao passar ela olha para a Presidiária, uma adulta, e tem
uma visão de uma criança, é uma MENINA com uma caixa de
chicletes na mão. Ela primeiro vê a menina atrás das grades,
em seguida vê a menina no corredor na frente dela.

MENINA
Tia, compra um chiclete? Tem um trocado pra
me dar?

Silvia, Helena e a Funcionária chegam a uma sala onde estão


algumas presidiárias para ouvi-las. Silvia fala, Helena
fala, as presidiárias ouvem, depois também falam. Os olhos
36.

de Silvia se enchem de lágrimas ao ouvir o que uma


presidiária fala.

MARY(VO)
A história da Silvia é muito surreal mesmo.
Realmente ela podia estar presa. Ela foi casada com um
diplomata. Abandonou a própria carreira pra seguir o marido
pelo mundo. Teve dois filhos, que hoje moram em outros
países. Ela já é avó. Ela sonhava com o dia em que o marido
se aposentaria para poderem viajar pelo mundo e passar tempo
com os filhos e netos no exterior. Ela era doida pelo
marido, mas segundo ela, envelheceu, se descuidou, e o
marido engravidou a secretária seis meses antes dele se
aposentar. O cara largou a Silvia, pediu o divórcio e foi
morar com a amante grávida. A Silvia, coitada, quase morreu,
de depressão e de ódio. Ela queria matar o ex, a mulher, e
até a criança. Foi salva por um milagre.

EXT. ROCINHA-PONTO FINAL DE VANS EM SÃO CONRADO-DIA

Silvia está chegando num taxi falando com o MOTORISTA.

SILVIA
Então tá bom, seu zé frozô, eu fico aqui e
me viro.
MOTORISTA
Desculpa, senhora, mas o bagulho é perigoso
lá em cima. Daqui eu não passo. A senhora pode pegar a van
até o topo ou então o moto taxi, que é até melhor. Os caras
podem te levar até a boca. Eu não me meto em boca de fumo.
Deus me livre. A senhora só pode estar é muito doida de
querer se meter num lugar desses...
SILVIA
(Pagando o taxi)

Ô meu filho, não pedi sua opinião. Me dá


logo esse troco aí.

Silvia desce do taxi olhando em volta e vai em direção aos


moto táxis.

SILVIA
Ô meu filho, me leva até a boca de fumo lá
em cima, e me apresenta ao traficante mais brabo e perigoso
que você conhece, faz favor.
MOTOTAXISTA
A senhora é doida, é?
37.

SILVIA
(Mostrando o dinheiro)

Eu pago bem.
MOTOTAXISTA
Então já é! Sobe aí. Vou te apresentar o Zé
da Morte.
SILVIA
Ih! Esse cara é famoso.
Silvia sobe na garupa e vai sendo levada pela estrada
sinuosa que corta a Rocinha em direção a Gavea, o
mototaxista estaciona a moto na entrada de um beco e desce
da moto.

MOTOTAXISTA
Vem por aqui.
Silvia o segue por becos e escadas. Eles chegam a uma
birosca, onde os traficantes, armados com fuzis, estão. A
birosca vende de biscoitos a cigarros, de cerveja a
salgadinhos. Renata está chegando na birosca na mesma hora.
O mototaxista aponta para um dos traficantes e deixa Silvia.
O traficante ZÉ DA MORTE,30 anos, está fumando um cigarro
e batendo papo com os outros traficantes. Silvia se
aproxima.

SILVIA
Oi...
ZÉ DA MORTE
Qual é?
SILVIA
É... queria falar contigo... te fazer uma
proposta, no particular... pode ser?
O Traficante se afasta do grupo para ouvir o que Silvia
tem a propor. Ele presta atenção ao que Silvia diz, e solta
uma gargalhada. Renata está comprando algo na birosca e se
vira para ver do que Zé está rindo.

ZÉ DA MORTE
A senhora quer que eu dê um fim no marido
dela.
SILVIA
Ex! Ex-Marido!
ZÉ DA MORTE
Ex-marido. A senhora é muito da doida de vir
aqui me pedir isso. Sou traficante, não sou assassino de
38.

aluguel. Meu negócio é droga, não é presunto. Essa grana


que tu quer me dar eu faço rapidinho aqui, véia.
SILVIA
Véia é a mãe.
ZÉ DA MORTE
Véia é maneira de falar, véio, véia... mas
é véia sim. Vai ver foi por isso que o coroa te largou.
Quem mandou embarangar? Pega essa grana aí que tu quer me
dar pra matar o cara e gasta numa academia, no salão, faz
uma plástica e arruma uma pica nova aí na vida. O mundo tá
cheio de pica querendo uma xota pra se meter. Vai dar essa
xota pruma pica nova que tu esquece o coroa. Se quiser eu
faço uma caridade pra tu. A coroa ainda dá pro gasto. Tô
bem precisado de uma foda pra aliviar.

Zé da Morte está se divertindo com a zoação, e os


traficantes também, todos dando risadas junto com ele,
enquanto Renata observa a cena do balcão do bar.

SILVIA
(Desolada, quase chorando)

Você sabe o que é ser casada com um homem


uma vida inteira... seu primeiro e único homem e esse cara
te trair, engravidar uma mulher vinte anos mais nova e te
largar?
ZÉ DA MORTE
Ihhh, tá apelando... olha dona, não sei o
que é isso não, nunca fui casado com homem, não sou viado.
Todos se divertem rindo muito. Até o balconista do bar já
está dando risada com a situação. Renata observa.

SILVIA
Então você não vai me ajudar...
ZÉ DA MORTE
Olha, posso te arrumar um baseado, vai te
deixar relax... quer?
SILVIA
Não gosto de fumar. Dá pra fazer chá de
maconha?
ZÉ DA MORTE
Chá? Fala sério... olha, tenho outra ideia
pra te dar. Você pode fazer uma macumba pra esse seu ex.
Dessas que matam um bode e tal... dizem que funciona, que
faz o cara brochar, ficar doente, e até mata. Manda uns
capeta pra cima dele com um ebó logo! Essa coisa de mandar
39.

bala eu não aconselho, sabe? Pode te dar problema, vai de


macumba que é mais jogo. Conselho de amigo, só porque fui
com a cara da dona véia. Se quiser tem jogo aqui comigo
dentro dessa calça aqui ó...
(apertando e mostrando a
genitália)

SILVIA
Não, obrigada. Já enjoei de homem nessa
vida, mas você pode me dizer onde tem essa macumba?
ZÉ DA MORTE
A dona quer mesmo matar o coroa. Enjoou de
homem e não sabe porque foi chifrada. A dona tinha nojinho
de pica?
SILVIA
Ou eu mato aquele filho da puta ou eu me
mato. Me mata logo você! Se você não me matar eu vou na
polícia dizer que vocês estão aqui vendendo droga. Me mata,
senão eu vou denunciar vocês.
ZÉ DA MORTE
(Rindo muito)

A polícia tá careca de saber que a gente tá


aqui. Olha dona, vai num psicólogo, você tá muito maluca,
e nem drogada tu é, né?
SILVIA
Nunca provei droga nenhuma, talvez devesse
provar.
RENATA
Droga não vai te ajudar. Qual o seu nome?
SILVIA
Silvia e o seu?
RENATA
Eu sou a Renata, e eu acho que sei um jeito
de te ajudar, vem comigo tomar um café. Minha casa é aqui
pertinho.
SILVIA
O que você faz? Você faz macumba?
RENATA
Sou técnica de enfermagem, e você?
40.

SILVIA
Eu não sou nada... era dentista. Larguei a
odonto pra seguir aquele traste pelo mundo. Você pode me
ajudar como?
ZÉ DA MORTE
Fala Renatinha, minha deusa, ainda tá muito
braba comigo? Você sabe que tu é a mulher da minha vida.
RENATA
Zé, me dá um tempo, larga do meu pé, vai.
Não quero, nunca quis, nem nunca vou querer nada contigo.
Vem comigo Silvia, vamos tomar um cafezinho lá em casa pra
você se acalmar. Quero que você me conte essa história,
pode ser?
SILVIA
Tá.

INT. CASA DA RENATA-DIA

Renata e Silvia entram na casa pela cozinha. Renata bota


água pra ferver e prepara o café. Silvia olha em volta
ressabiada.

RENATA
Eu gosto de café bem forte, e depois fumar
aquele cigarrinho. Ai como é bom... Você gosta? Sei que que
fumar é ruim pra saúde, mas é um dos poucos prazeres que
eu me permito. Fumo muito pouco. Me conta o que houve com
você. Porque você quer mandar matar o seu marido?
SILVIA
Gosto muito de café também... meu ex
marido... É muita sacanagem o que ele fez comigo. Ele
engravidou a secretária e me largou. A gente tem três netos,
tá pra nascer o quarto neto, e vai nascer na mesma época
que a filha dele com a piranha. A garota vai ser tia do
neto dele, vê se pode... e pra completar, o canalha ainda
quer me deixar sem nada. Ele quer o nosso apartamento, deu
sumiço no dinheiro que a gente tinha guardado. O filho da
puta me deixou sem nada. Nem dinheiro pra pagar o
advogado... Acho que meu ódio maior é porque eu sempre quis
ter uma menina. Só tive menino e meus netos também, tudo
menino.
RENATA
Mas você ia mandar matar ele com que
dinheiro?
SILVIA
Penhorei umas jóias que eu tinha.
41.

RENATA
Não é melhor usar esse dinheiro pra pagar o
advogado e conseguir seus direitos na justiça?
SILVIA
Essa era a idéia, mas eu perdi a cabeça. Tô
com muito ódio, muita vontade de me vingar. Já não me
importo com mais nada. Foi uma vida inteira dedicada a um
homem que eu não conhecia. Como pode alguém fazer uma coisa
dessas? Dei dois filhos lindos pra ele, segui o cara pelo
mundo dando suporte pra carreira diplomática dele, cuidando
dele, sendo a melhor dona de casa, melhor esposa... eu
sempre fui apaixonada por ele, sabe? Mesmo com a idade já
começando a pesar, eu ainda tinha desejo por ele. Ele é que
foi perdendo o desejo por mim, mas depois da menopausa ficou
difícil manter a forma...resseca tudo, sabe? É uma merda.
RENATA
Sei. Você não fez reposição hormonal?
SILVIA
Tem câncer de mama na família. Não pude.
RENATA
Você ainda tem uma vida inteira pela frente.
Tem seus filhos e seus netos. Aposto que tem bons amigos e
parentes. Vai querer jogar isso fora por causa de um
canalha? Vai jogar sua vida fora assim? Você sabe que pode
acabar na cadeia assim. Isso é quase a mesma coisa que se
matar.
SILVIA
Pensei muito em me matar, mas não tenho
coragem.
RENATA
Mas tem coragem de matar.
SILVIA
De mandar matar...
RENATA
Posso te ajudar a se matar.
SILVIA
Oi? Como assim?
RENATA
Matar essa Silvia que acha que a vida só tem
valor com um canalha do lado, ou que só a vingança vale a
pena.
SILVIA
Ah, tá! Me matar de forma figurada.
42.

RENATA
E posso te ajudar a renascer. Quer dizer,
posso te mostrar o caminho pra isso, pois esse tipo de
coisa só você vai poder fazer por você.
SILVIA
Como se faz isso?
RENATA
Eu também já passei pelo que você está
passando. Já ouviu falar em 12 passos?
SILVIA
Tipo 12 passos de alcoólicos anônimos?
RENATA
Isso.
SILVIA
Já ouvi falar..., mas o que tem a alça a ver
com as calças?
RENATA
Os passos te guiam em direção à paz e a
serenidade.
SILVIA
Tô muito longe disso. A minha vida virou um
inferno. É muito ódio que eu sinto... mas vem cá, eu não
sou alcoólatra.
RENATA
Primeiro passo é admitir que você é
impotente perante o outro. Você não é dona do seu ex e não
tem direito sobre ele. Você só tem direitos sobre o que
construiu com ele. Entende? Você não é viciada em álcool,
mas é viciada no seu ex marido.
SILVIA
O inferno que eu tenho vivido é tão
insuportável que eu só vejo a saída de matar ou morrer, não
consigo ver outra saída.
RENATA
Mas tem outra saída.
SILVIA
Talvez você tenha razão. Muito obrigada pelo
seu carinho. Porque você tá fazendo isso se nem me conhece?
RENATA
Porque eu já passei por uma situação muito
parecida. Engravidei do primeiro cara que eu transei na
43.

vida, na primeira vez que eu transei na vida, e o cara


duvidou que era dele, me largou e logo depois sumiu. Minha
filha nunca teve pai. Ele se mandou pra outro estado e
nunca mais deu notícias. Sumiu no mundo. Tive muito ódio e
fantasiei muito eu mandando achar e matar o filho da puta.
Te entendo perfeitamente.
SILVIA
Esse ódio passa?
RENATA
Passa. O pior é que quando passa você percebe
o quanto esse ódio é tóxico. É um veneno que pode destruir
a sua vida. Graças a Deus não destruiu a minha e não vai
destruir a sua. Se você tivesse chegado em outro traficante
talvez a morte do seu ex já estivesse encomendada. A tua
sorte é que o Zé da Morte é um traficante que não faz isso,
mas não menos perigoso por causa disso. Tem muito bandido
aqui no morro que aceitaria a sua proposta. O que você não
percebe é que o tipo de mané que aceita dinheiro pra matar
alguém, é o mesmo tipo de imbecil que acaba sendo pego, ou
seja, você tinha grande chance de acabar na cadeia se
conseguisse alguém pra matar seu ex. Entendeu?
SILVIA
Meu ex, e a mulher com o bebê dentro...muita
ruindade né? É... sabe que isso me dá mais ódio ainda?
RENATA
Isso o que?
SILVIA
Isso dessa situação me mostrar como eu sou
ruim. Sinto tanto ódio, tanta vontade de matar ou de morrer,
é o fim... é tão horrível que eu sinto mais ódio ainda, é
uma bola de neve.
RENATA
É... e matar uma mulher grávida é pesado.
SILVIA
Uma piranha grávida...desgraçada.
Desgraçado.
RENATA
É pesado... mas tenta focar em esquecer esse
seu ex. A vida vai se encarregar dele. O mundo dá muita
volta. Fé e confiança. Paz e serenidade.
SILVIA
O Zé da Morte tem razão, a macumba é a melhor
vingança. Você conhece alguma pra me indicar?
44.

RENATA
Tenho um lugar pra te indicar, mas não é
macumba... aliás, macumba de vingança também não é boa
ideia, sabe? Tenho uma tia que era mãe de santo, e não
recomendava esse tipo de trabalho. Esse tipo de coisa sempre
acaba mal; e depois, ficar nesse sentimento só te envenena.
Acho mais jogo focar em curar essa lesão, essa ferida no
seu coração. Você já ouviu falar em mulheres que amam
demais? Eu frequento a irmandade. Foi o que salvou minha
vida.

INT-SALA DE MADA-NOITE

Silvia está terminando sua partilha. Chega a vez de MARINA,


uma linda delegada de 30 e poucos anos.

SILVIA
Muito obrigada por me ouvirem companheiras.
Seja benvinda companheira nova, você não está mais sozinha,
continue voltando que o programa funciona.
TODAS
Obrigada Silvia!
FABIANA
Marina?
MARINA
Qual o passo mesmo?
FABIANA
Sétimo.
MARINA
Oi, sou a Marina, mada em recuperação.
TODAS
Oi Marina!
MARINA
Sétimo passo... Humildemente rogamos a Ele
que nos livrasse de nossas imperfeições. Tenho que rogar a
Deus pra me livrar desses trastes que eu atraio. É um atrás
do outro... ou traste ou brócolis. Conheci um cara lindo,
juiz, solteiro, gente boa, cavalheiro, atencioso, afim de
mim, saí com o cara...brócolis bagarai...desculpe o
palavrão. Pra que né? Não consigo ter tesão no cara. Não
consigo gostar de cara legal, que me trata bem. Eu gosto
mesmo é de bandido, caramba! De malandro! Como pode isso?
Eu sou muito doente, meu Deus! Alguém podia avisar pro cara,
pra ele me tratar mal, que aí eu gamo. Isso é muito ruim.
É muita indisponibilidade afetiva.
45.

MARY (VO)
Não é à toa que resolveu ser delegada. Adora
correr atrás de um bandido. Pelo menos ela reconhece a
indisponibilidade afetiva dela. Isso já é meio caminho
andando.
MARINA (CONT.)
Parece que eu gosto de ser maltratada, é
muito louco. O cara me maltrata e aí eu me revolto, brigo,
como se eu quisesse fazer o cara me tratar bem na marra,
mas se o cara já chega tratando bem, aí não interessa, é
brócolis, e eu quero cachaça, homem cachaça, eu me inebrio
com bad boy, homem bandido é cachaça pra mim. Preciso deles
pra me sentir viva. Preciso sentir que prendi o cara, aí
perco o tesão e passo pro próximo. Prender bandido é um
negócio que me dá tesão, sabe? Me dá essa sensação de
controle e dominação. Parece um vídeo game, só quero marcar
ponto, cada prisão é uma vitória, tanto profissionalmente
quanto afetivamente. Fico louca quando não consigo pegar
um cara, um bandido. Deve ter alguma coisa a ver com a
minha mãe, que foi sempre muito bandida comigo. Bandida
mesmo, merecia ter sido presa. Ela me tratou muito mal a
vida inteira, deve ser isso. A literatura não diz que a
gente reproduz a relação com os pais pra tentar mudar o que
foi ruim? Deve ser isso. É muito difícil desatar esse nó.
MARY (VO)
Esses nós existenciais herdados de pai e
mãe... quem não tem? Desconfio que madas tem nós desse tipo
em maior quantidade que a média das pessoas. Minha mãe por
exemplo, foi mais madrasta que mãe em alguns momentos.

INT-CASA MÃE DE MARY-DIA

Mary com 10 anos de idade está brincando em seu quarto. O


quarto está muito bagunçado e Mary brinca feliz no meio de
seus brinquedos todos espalhados, ouvindo aqueles
disquinhos coloridos de historinhas infantis, quando sua
MÃE entra no quarto de forma abrupta.

MÃE
Mary!!! Arruma essa bagunça já! Desliga essa
porcaria dessa musiquinha chata que você não para de ouvir.
Já te mandei guardar esses brinquedos um milhão de vezes,
se eu voltar aqui e você não tiver me obedecido vou jogar
tudo pela janela! Quero só ver essas porcarias todas caindo
do nono andar!
MARY
Mas eu ainda não terminei de brincar.
MÃE
Não quero saber, me obedece, garota!
46.

MARY
Ah mãe, por favor... que saco!
MÃE
Que saco digo eu! Vai me obedecer ou não
vai?
MARY
(Começando a choramingar)

Mas mãe, por favor, não tem nada pra fazer


hoje, tá chovendo, não tem aula, deixa eu brincar. Porque
eu não posso brincar?
MÃE
Porque eu quero que você arrume essa
bagunça. Porque eu não aguento mais tanta bagunça. Arruma
isso já!
MARY
Arruma você!
MÃE
Como é que é? Então tá... vou arrumar.

A mãe vai até seu quarto, bota tamancos de solado de


madeira, volta pro quarto de Mary e começa a pisotear em
todos os brinquedos. Ela vai quebrando o que vê pela frente
e tacando pela janela enquanto Mary vai se desesperando
chocada chorando muito.

MARY
Mãe, por favor! Não! Não!

A musiquinha continua tocando durante o ataque. Finalmente


a mãe dá um grito de ódio e destrói o toca-discos com
pisadas. Mãe e filha ficam em silêncio ofegantes. Mãe
satisfeita com sua catarse e filha chocada com o ataque de
fúria da mãe. Eles se entreolham. A mãe sai do quarto. A
filha vai até o toca-discos quebrado e em silêncio, depois
até a janela, avaliando os prejuízos assustada e em choque
chorando.

MARY (VO)
Minha mãe. Monstra. Que ódio que eu tinha
dela..., principalmente depois que meu pai foi viver com
outra mulher, mas a vida é engraçada... Quando a gente fica
com rancor de alguém, por alguma ironia da vida, a gente
acaba ficando parecido, principalmente quando esse alguém
é pai ou mãe. Não é à toa que eu também tive minha cota de
momentos catárticos tacando coisas pela janela. Na verdade,
47.

eu consegui ser mais monstra que a minha mãe, pois taquei


coisas nos caras pela janela. Na verdade, nunca tive a
intenção de machucar, só queria explodir, assustar, sei
lá... deve ser essa coisa da adrenalina..., de dominar pelo
medo. Essas explosões catárticas são tipo esporte radical,
tipo pular de para quedas, escalar montanha... é o frio na
barriga, o coração disparado, a boca seca... é um estado
bioquímico e de espírito. A Robin Norwood diz que é o
estímulo que buscamos inconscientemente para compensar o
estado depressivo basal de uma infância traumatizante.

INT. SALA DE MADA-NOITE

Marina está terminando sua partilha.

MARINA
É muito difícil e é muito louco isso. Prendo
bandido, mas não gosto de mocinho. Quando o cara é mocinho
quero que seja bandido, e quando é bandido fico querendo
transformar em mocinho botando na cadeia, peitando,
cobrando, pirando, eu sou muito louca. Só rindo de tanta
maluquice. Obrigada gente, meu tempo acabou.
Fabiana está mostrando o sinal de tempo esgotado. Todas
riem achando as contradições de Marina engraçadas.

FABIANA
(Procurando quem quer ser a próxima)
Quem é agora? Oitavo passo, Madalena.

MADALENA, 50 anos, se mexe na cadeira, olha para todas e


sorri.

MADALENA
Oi, sou Madalena, uma Mada em busca de
felicidade e de recuperação.
TODAS
(Algumas riem da introdução de Madalena)
Oi Madalena!
MADALENA
Oitavo passo. Fizemos uma relação de todas
as pessoas a quem tínhamos prejudicado e nos dispusemos a
reparar os danos a elas causados. Oi meninas. Não sei muito
bem o que falar hoje. Faz pouco tempo que cheguei aqui e
ainda tô tentando entender as coisas, sabe? Só sei que não
tenho dúvidas de que estou num relacionamento destrutivo.
Desde que eu li aquele artigo sobre Mada na revista eu
percebi isso. Meu marido é muito machista, e meus filhos
estão ficando iguais. Tenho meu trabalho fora de casa, mas
48.

sou a empregada deles em casa também, pois apesar de termos


uma empregada, eu acostumei meus homens muito mal. É como
se eu não existisse pra mim, é como se minha vida fosse
eles, e agora eles são uns mimados. A culpa é minha, eu
sei, mas acho que é uma forma de controlar eles, eu
acho...não sei, talvez seja a forma que eu encontrei de me
fazer ser amada... mas o problema não é esse, o problema é
que meu marido vem ficando abusivo, agressivo, e os meus
filhos acabam meio que copiando o pai, e eu fico de capacho
de três homens pra quem eu faço tudo... e eles não fazem
nada por mim. Eu sei que meu marido tem uma amante há muitos
anos, sempre fiz vista grossa. Meus filhos até já fazem
piada com isso. Por mim tudo bem, pois já faz muitos anos
que eu não sinto vontade de ter relação sexual com ele. Não
me importa que ele busque na rua o que não tem em casa, o
problema é ele me tratar tão mal, cada vez mais... não sou
uma escrava, mas me sinto como uma, e tenho sofrido muito
com isso. Queria ter coragem de sair desse casamento, mas
tenho muito medo de ficar sozinha, sem meus filhos, sem meu
marido. Só fico por medo mesmo, e acho que sofro tanto
quanto se estivesse sozinha. É só isso que eu queria dizer.
Obrigada!
TODAS
Obrigada Madalena.

INT. CASA DE MADALENA-NOITE

Madalena cata roupas dos filhos e do marido. Abaixa a tampa


do vaso sanitário. Fecha a tampa de uma pasta de dente,
cata cuecas e roupas. Cata uma toalha molhada de cima da
cama do casal. Seu marido está vendo TV enquanto ela
cozinha. Ela bota a mesa do jantar. Os filhos estão
esperando pela janta, FILHO UM de uns 22 anos, está no
computador em seu quarto, o FILHO DOIS, de 20 anos, está
no banheiro vendo pornografia no celular.

MARY (VO)
Ficar sozinha dá muito medo mesmo. Ruim com
eles, ruim sem eles. Às vezes eu desconfio que mulher nasceu
mesmo pra se lascar. É como se estivéssemos fadadas a não
ter individualidade. Como se o que temos que ser, tem que
ser ditado pela cultura, pela sociedade, que é tão dominada
por um masculino sem gentileza. Se tem filho padece no
paraíso, se não tem é um drama...e tem casamento, carreira,
família, forma física... mulher não descansa. Ser mulher é
um inferno mesmo. Não que ser homem seja um paraíso... só
acho que a mulher precisa de mais compaixão, a gente sofre
mais, se doa mais..., essa coisa de ser a que engravida, a
que sangra, a que amamenta, a que se arrebenta, a que sente
mais, a que chora mais... mulher com idade é velha, homem
com idade, é partido...pô, vai dizer que mulher não se lasca
mais? O pior é quando o homem não ajuda. Principalmente
quando a mulher engravida sem querer...
49.

INT- CASA DE MARY-NOITE

Mary e Rafael transam. Essa transa é diferente das outras


duas. Com o Comandante e com Marcelo, Mary estava tensa,
ansiosa, agressiva, performática, e com Rafael, ela está
entregue, mais solta, mais leve, com um homem mais novo,
ela se sente menos vulnerável, e mais no controle.

RAFAEL
Ai gata gostosa, nunca senti tanto tesão
numa mulher.
MARY
Seu gostoso...
RAFAEL
Tesão...
MARY
Não para, assim...
RAFAEL
Ai, assim?
MARY
Ai, que gostoso...
RAFAEL
Coisa linda... te adoro!
MARY
Também te adoro!

Rafael e Mary chegam ao clímax juntos e relaxam. Rafael e


Mary, ao terminarem, percebem que a camisinha sumiu. Eles
procuram pela cama e nada.

RAFAEL
Caramba... a camisinha não está no meu pau!
MARY
Como assim?
RAFAEL
Sumiu.
MARY
Cadê a camisinha? Que isso? Que mistério...
50.

RAFAEL
Que doido, cadê essa camisinha meu Deus?
MARY
Meu Deus, digo eu, você gozou dentro, e se
eu engravidar?
RAFAEL
Nem brinca, pelo amor de Deus... onde foi
parar essa camisinha? Desapareceu, foi pra outra dimensão.
MARY
Só pode estar num lugar, aqui dentro de mim.
Vou ter que botar o dedo lá dentro pra ver.
RAFAEL
(Achando divertido)

Deixa que eu acho.

Rafael busca pela camisinha dentro da vagina de Mary,


enquanto ela dá risada, se divertindo.

MARY
Tá aí?
RAFAEL
Pior que tá.
MARY
Caramba, como isso aconteceu?
RAFAEL
Arrebentou...
MARY
E se eu engravidar? O que você vai fazer?
RAFAEL
Eu não faço nada, quem vai fazer é você...
aborto, né? Pelo amor de Deus, não tenho condição de ser
pai, não agora, sou muito novo, meu amor...ainda moro com
meus pais e nem me formei. Ainda por cima sou ator!
MARY
Jamais faria um aborto.
RAFAEL
Nunca diga nunca. Tem certeza que não faria?
Nem se eu te dissesse que te deixaria se você resolvesse
ter?
51.

MARY
Nunca faria um aborto, quanto mais na minha
idade, e tendo condições de criar uma criança. Realmente
você é muito novo, mas eu não preciso de você para ter um
filho. Você me deixaria, é?
RAFAEL
Deixaria. É um direito meu não querer ser
pai.
MARY
Ah, então você terminaria comigo e me daria
as costas?
RAFAEL
Sim, se você não concordasse em tirar, eu
pularia fora e ainda te faria entrar na justiça pra botar
meu nome na criança. Ia ter que fazer exame de DNA por
ordem judicial. Simples assim. Eu sou duro na queda, meu
amor. Se não quero ser pai agora, não vou ser e acabou.
MARY
Você não é duro na queda não, você é cretino
mesmo. Sai da minha casa. Não quero mais nada de você, nem
com você, seu babaca. Sai daqui agora! Babaca, cretino!

Rafael fica chocado com a agressividade de Mary, não fala


nada e se veste com cara de muito aborrecido em silêncio.
Mary também está muito aborrecida, e também fica em
silêncio. Ele termina de se vestir e sai. Mary fica na cama
olhando Rafael ir embora. Rafael sai do apartamento, chama
o elevador, e chega na portaria para sair do prédio. Mary
levanta correndo da cama e corre para sala. Ela pega um
vaso de planta e corre para janela, e fica esperando Rafael
sair pela porta do prédio. Rafael sai. Mary olha para Rafael
saindo. Mary olha para o vaso. Ela não taca o vaso. Mary
chora melancolicamente.

MARY (VO)
E o pior é que eu engravidei mesmo naquele
dia...mas não taquei o vaso. Consegui me segurar. Pode não
parecer, mas não tacar o vaso nele foi uma vitória pra mim.

INT. SALA DE MADA-NOITE

Madalena acabou de terminar sua partilha e está com o olhar


perdido e cansado. Ela parece triste e desorientada,
prestes a chorar, com os olhos cheios d´água. Heloísa está
sentada do seu lado e percebe a dor e a angústia da
companheira. Heloísa pega na mão de Madalena com ternura,
e Madalena, deixa seu choro sair. Renata percebe que
52.

Madalena está chorando, se levanta, pega a caixa de lenços


de papel e leva até ela.

HELOÍSA
Você não está mais sozinha, companheira.
MADALENA
Obrigada.
FABIANA
Continue voltando Madalena, o programa
funciona. Você já tem uma madrinha?
MADALENA
Ainda não.
FABIANA
Ter uma madrinha vai te ajudar muito, seu
coração vai saber escolher a companheira certa, na hora
certa.

Madalena olha para Heloísa e sorri. Heloísa sorri de volta.


Mary olha para Renata.

MARY (VO)
Ter uma madrinha... como isso é importante!
A Renata virou minha melhor amiga. Ela é madrinha, irmã,
mãe, tia, filha... é tudo pra mim. Ela é minha referência
de recuperação. A baixinha é danada de tão inteligente, é
a irmã que eu não tive, mas que a vida me deu.

EXT.LAJE DA CASA NOVA DE RENATA-NOITE

Renata acaba de fazer sua mudança. Mary, com uma barriguinha


discreta de grávida de alguns meses foi visitá-la. Elas
estão relaxando na laje da casa, que foi decorada e
mobiliada de forma charmosa. Elas apreciam a belíssima
vista com a lua cheia nascendo no mar, deitadas em duas
espreguiçadeiras.

RENATA
Mary, não sei como agradecer tudo o que você
fez por mim nesses últimos dias.
MARY
Você não tem que me agradecer nada, o que eu
fiz foi para a agradecer tudo o que você tem feito por mim,
minha amiga.
RENATA
Você não tem medo mesmo de vir na favela...
53.

MARY
Não é favela, é comunidade, e depois a
Chácara do Céu é um lugar lindo e tranquilo. Adoro vir
aqui. Sempre venho caminhar no parque. Não tenho medo não.
Tinha medo lá na Rocinha com aquele Zé da Morte te
assediando, por isso te dei tanta força pra mudar pra cá.
Tá mais pertinho de mim, vizinha. Ainda tem lugar pra
estacionar. É muito tranquilo, e esse visual aqui é demais.
RENATA
Foi mais que força que você deu, né? Você
praticamente me deu essa casa. Se não fosse você, não ia
ter como fazer esse negócio.
MARY
Você tinha que se mudar de lá!
RENATA
Não é qualquer pessoa que empresta uma
quantia dessas.
MARY
Você sabe que eu confio demais em você.
RENATA
O negócio deve fechar na segunda, e assim
que o dinheiro entrar eu vou te pagar.
MARY
Relaxa. Aproveita essa vista linda. Essa
laje ficou gostosa demais. Vamo botar um chuveirão naquele
canto ali? Podia botar uma churrasqueira e fazer uma
hortinha de temperos também. Deixa comigo! Vamos curtir
muito nessa laje. Celebrar sua nova fase.
RENATA
Só de não ter que cruzar com aquele demônio
do Zé da Morte...
MARY
É... ficou surreal. O cara é perigoso.

INT.CASA DE RENATA-DIA

Renata está assistindo TV, já é tarde e sua filha NANDA,


de 9 anos, está dormindo, quando alguém bate na porta.
Renata vai abrir e é Zé da Morte.

RENATA
Oi Zé, o que você quer uma hora dessas?
54.

ZÉ DA MORTE
Você, como sempre.
RENATA
Você tá drogado e cheirando a bebida, vai
embora.
ZÉ DA MORTE
Renatinha, meu amor, por favor...

Zé entra trôpego na casa de Renata e a agarra. Ele a joga


em cima do sofá tentando currá-la. Renata luta contra ele,
mas não grita com medo de acordar a filha.

RENATA
Sai de cima de mim Zé! Você enlouqueceu? Se
você acorda minha filha e vê isso eu te mato. Sai!
ZÉ DA MORTE
Ai Renatinha, eu te quero demais...
RENATA
Sai!
Renata pega um copo ao lado do sofá e quebra na cabeça de
Zé, que se assusta, se machuca e sangra. A filha de Renata
acorda e grita do seu quarto.

NANDA
Mamãe, quem tá aí?
RENATA
(Se levantando e tentando gritar baixo)
Sai daqui agora.

Renata vai até a cozinha e pega uma faca. Zé vai atrás e


se assusta quando a vê com a faca na mão.

RENATA
Eu juro que te mato, Zé, se você não sair
daqui agora.
ZÉ DA MORTE
Tá bom, eu saio, mas eu volto. Um dia você
ainda vai ser minha. Pode anotar aí. Gostosa.
55.

EXT.LAJE DA CASA DE RENATA-NOITE

MARY
Ele viu você se mudando?
RENATA
Viu. Veio me perguntar pra onde eu ia, e eu
me fiz de ocupada, que não dava pra falar naquela hora, e
tal... ele me pediu desculpa.
MARY
Te pediu desculpa?
RENATA
Veio dizer que sempre foi louco por mim, que
perdeu a cabeça, a gente conversou numa boa. É o melhor que
dá pra fazer nessa situação, né?
MARY
O cara quase te currou, Renata.
RENATA
Mas o que eu posso fazer? O cara tem meia
polícia comprada, gente que pode me matar de uma hora pra
outra, e mesmo com a nossa companheira delegada, o próprio
Zé ainda sairia impune. Os caras matam e ninguém acha o
corpo nesse mundo mais, Mary. São uns demônios. Às vezes
chego a dar graças a Deus por meu irmão estar preso, sabe?
Acho que ele está mais seguro na prisão do que do lado
desses capetas. Espero de coração que o Zé já esteja morto
ou preso quando meu irmão sair da cadeia. Desde criança que
o Zé é esse encosto. Era esse grude com meu irmão e essa
obsessão comigo sempre. Quando eu comecei a namorar um cara
depois que tive a minha filha, foi um drama. Sabe que eu
acho que foi ali que ele inventou de ir pro tráfico? Pra
ficar poderoso, sabe? Se exibir pra mim... Foi e ainda levou
meu irmão e o meu namorado junto. Foi a pior fase da minha
vida. Eu já te contei essa história.
MARY
Eu lembro... o namorado ia pra putaria e pro
crime com o Zé e com seu irmão, e depois apareceu morto,
né?
RENATA
Foi quando a minha madice explodiu. Aturei
cada coisa daquele cara. Desconfio que ele tenha morrido
por isso. Foi até bom ele ter morrido. Você acredita que
mesmo depois de morto eu continuei obcecada com ele? Eu ia
em sessão de mesa branca pra tentar falar com ele.
INT-CENTRO ESPÍRITA-DIA
Renata está numa sessão de mesa branca. As pessoas rezam
para fazer contato com espíritos dos outros planos.
56.

EXT.LAJE DA CASA NOVA DE RENATA-NOITE.

RENATA
É muito provável que o Zé tenha algo a ver
com essa morte, claro. Na época meu irmão disse que foi
vingança de uma mulher que ele pegou...história pra boi
dormir... mas não tenho como saber. A polícia não investiga
assassinato de favelado...
MARY
É assassinato demais pra eles darem conta.
A justiça nesse país é uma porcaria mesmo. O espírito do
cara nunca falou nada a respeito disso? Sabe, eu acho que
o Zé é um homem que ama demais, não é não?
RENATA
É... faz sentido. Pena que não tem irmandade
de Homens que amam demais aqui no Rio. Já ouvi falar que
tem em São Paulo. Mesmo que tivesse, duvido que o Zé
frequentaria. O Zé é um traficante famoso. Imagina.
MARY
(Tentando imitar o Zé)
Oi, meu nome é Zé da Morte e eu sou um homem
que ama demais. Sou obcecado pela Renata desde que era
criança.
MARY (CONT.)
Ai, Re... esse cara é um encosto vivo. O que
falavam na sessão de mesa branca?
RENATA
O Zé é um psicopata, Mary, não é um homem
que ama demais. As mensagens que eles recebiam não pareciam
vir dele, mas falavam de coisas boas, sobre perdão, amor,
luz, bondade, caridade, essas coisas... Me fazia muito bem.
Na verdade, foi muito bom ter frequentado esse lugar, foi
lá que me indicaram o Mada. Essas luzinhas estão muito
lindas... Amei!
MARY
Gostou das lanterninhas japonesas? Essa laje
vai ser a mais charmosa do Rio de Janeiro se depender de
mim.
RENATA
Essas luzinhas estão um charme mesmo. E essa
lua, gente? Esse visual daqui é uma coisa mesmo... tô muito
feliz, Mary. Vou passar a vida te agradecendo.
57.

MARY
Tamo junta, companheira.
RENATA
Tamo junta pra esse bebê aí também. É essa
semana que tem ultrassom marcado? Será que já vai dar pra
saber o sexo?
MARY
É. Acho que sim. Na quinta. Você quer ir
comigo?
RENATA
Claro! Não perco por nada.
MARY
Ele nunca mais apareceu.
RENATA
Mas também você...
MARY
Nem vou procurar.
RENATA
Você botou o cara pra correr, Mary.
MARY
Mas não taquei nada nele.
RENATA
Achei isso ótimo. Sinal que o programa
funciona, e que você está se recuperando, mas o cara vai
ser pai, acho que ele tem o direito de saber. Ele nunca
mais te procurou?
MARY
Procurou muito um tempinho depois. Ligou,
mandou mensagem, mas eu ignorei.
RENATA
Você podia ter conversado com ele.
MARY
Re, as últimas palavras do Rafael pra mim
foram muito claras. Eu não posso contar com ele, e graças
a Deus eu não preciso dele pra nada.
RENATA
Você pode não precisar, mas seu bebê vai
precisar de um pai. Eu sei o quanto um faz falta. Minha
filha que o diga. Eu que o diga.
58.

MARY
Sua mãe educou você e seus irmãos sozinha e
você se saiu muito bem, tá ótima aí.
RENATA
Tô bem agora, depois de comer muito pão
amassado pelo capeta, meu amor.
MARY
Vai ser o que Deus quiser. Não vou procurar
o Rafael de jeito nenhum. Ele que se dane. Só sei que vai
ser muito bom ter você mais pertinho de mim aqui quando o
bebê nascer e ter você como enfermeira trabalhando pra mim.
Você é minha fada madrinha e vai ser fada madrinha no meu
bebê. Não preciso de mais nada, nem de mais ninguém. A
gente não precisa de pai, nem de homem. Meu pai mudou pra
outro país quando eu tinha 15 anos, praticamente não tive
pai também e tô aqui. Sobrevivi.
RENATA
E a sua mãe?
MARY
O que tem a minha mãe?
RENATA
Você não vai falar com ela também?
MARY
Não falo com ela desde que meu pai morreu.
Ela foi muito monstra quando ele morreu. Foi a gota d´água
que eu precisava pra me livrar daquela narcisista
patológica.
RENATA
Mas ela vai ser avó, era legal tentar curar
essa relação.
MARY
Renata, a minha mãe é uma megera. Uma
psicopata do cotidiano. Quero ela longe do meu filho e de
mim. Não tem jeito.
RENATA
Ela é sua mãe...
MARY
Minha mãe é você agora Renata. Mãe, irmã.
madrinha, tia, companheira, amiga e fica combinado assim.
Eu cuido de você e você de mim. OK?
RENATA
Ok, filha, irmã, companheira, sobrinha,
afilhada, mãe, tia...
59.

MARY
Isso se chama sororidade, sister!
RENATA
Ok sister!
MARY
De onde tá vindo essa música? Deve ser alguma
festa... parece animada. Vamos penetrar?
RENATA
Não precisa penetrar. É uma festa pública.
É um evento que tem aqui no mirante do parque uma vez por
mês, tem sempre show de alguma banda e aqueles
caminhõezinhos de comida. Quer dar um pulo lá pra comer
alguma coisa?
MARY
Ah! Que legal, tem um visual lindo lá. Vamos?
INT.SALA DE MADA-NOITE

Uma bolsa cor de rosa é passada de mão em mão, onde as


mulheres vão colocando suas contribuições de dinheiro
discretamente. Fabiana toca uma sineta dando início ao
intervalo. Heloísa arruma café, água e biscoitos numa mesa.

FABIANA
Intervalo de dez minutinhos. Ai, preciso de
um cafezinho.

Elas se levantam, algumas se cumprimentam e se abraçam,


conversam, pegam café, água, comem biscoito. Madalena se
aproxima de Heloísa.

MADALENA
Heloísa, queria falar com você.
HELOÍSA
Fala, flor.
MADALENA
Queria te pedir pra ser minha madrinha.
HELOÍSA
Jura?
MADALENA
Juro.
60.

HELOÍSA
Vai ser uma honra. Pode contar comigo. Você
já começou a fazer os passos?
MADALENA
Já comprei as apostilas e comecei a dar uma
lida.
HELOÍSA
Olha, não sei se vou ser a melhor madrinha
do mundo. Eu nem terminei os passos ainda, acredita? Mas
já fiz o quarto passo com a minha madrinha.
MADALENA
Quem é sua madrinha?
HELOÍSA
A Fabiana.
MADALENA
Vou aos poucos, não tenho pressa. É que eu
sinto uma afinidade com você, sabe? Hoje quando você pegou
na minha mão, eu soube que tinha que ser você.
HELOÍSA
Eu seguro minha mão na sua...
MADALENA
E uno meu coração ao seu...
(Heloísa e Madalena se
abraçam)

MARY (VO)
(observando a cena entre Heloísa e Madalena)
Para que juntas possamos fazer tudo aquilo
que eu não posso e não consigo fazer sozinha. Oração da
Unidade. Sempre me emociona.

Madalena e Heloísa sorriem uma para outra.

HELOÍSA
A gente não consegue se recuperar sozinha,
unindo forças tudo fica mais fácil, né?
MADALENA
Assim espero.
RENATA
Gente, olha, nesse fim de semana tem meu
aniversário, viu?
61.

MARY
E vai ter gandaia!
RENATA
Tem aquele evento no mirante, com show e
caminhãozinho de comida, vamo lá?
FABIANA
E se chover?
MARY
Não vai chover, já vi a previsão. Vai ser
muito legal.
RENATA
A gente tem ido sempre, é muito astral.
MARINA
O lugar é incrível mesmo, fui no mês passado.
AMÉLIA
Re, eu moro longe, pra mim fica complicado.
RENATA
Dorme lá em casa.
AMELIA
Vou falar com meu marido pra ficar com as
crianças então. Vou adorar sair com vocês. Tô precisando
dar uma espairecida.
MARY
Helô e Madá, bora lá?
HELOÍSA
Vamos. Renata, será que dá pra levar minha
filha?
RENATA
Claro! Minha filha também vai.
LUCIA
Adoro um hambúrguer que tem lá. Quem vai
tocar nesse? Qual banda?
MARY
Ainda não sei, mas sempre tem coisa boa. Faz
tempo que não vou. Ia mais quando ainda estava grávida, pra
comer e dançar. Fui muito com a Re, é pertinho de casa,
dela e da minha. Fui um dia quando minha barriga já tava
quase estourando pra dançar, pra ver se o bebê nascia logo.
62.

EXT- MIRANTE DO PARQUE PENHASCO DOIS IRMÃOS-NOITE

Lua cheia brilhando sobre o mar do Leblon. Mary grávida com


barrigão já estourando de nove meses está com Renata
comprando uma bebida num food truck. Ao fundo, o show de
uma banda num palco, vários trucks, carrocinhas e
barraquinhas, pessoas dançando, comendo, bebendo em mesas
e em pé. Mary pega um guaraná e Renata um chopp. As duas
saem andando quando se deparam com Rafael. Ele está
acompanhado de MARCIA, de uns 25 anos.

RENATA
Menina, você dançou de se acabar com a banda,
e com esse barrigão...
MARY
Tomara que ajude mesmo o bebê a nascer mais
rápido. O filho de uma conhecida minha veio assim, sabia?
Ela não aguentava mais, caminhou horas, e depois sambou a
noite inteira com as escolas de samba na TV. Aí o bebê
veio. Diz que ajuda... tomara, não aguento mais essa
barriga.
RAFAEL
Mary... quanto tempo! Caramba, que barrigão!
Você tá grávida?
MARY
Oi... não. Foi um sapo que eu engoli naquela
última noite que a gente ficou.
RAFAEL
Mary, essa é a Márcia, minha amiga.
MARCIA
Amiga? Oi Mary. Você é a ex-namorada dele,
né? Te conheço da TV. Ele me falou de você.
MARY
Oi Marcia.
MARCIA
Esse filho é do Rafael?
MARY
Oi? Essa sua amiga é bem...
RAFAEL
Indiscreta.
MARY
Você dá pra ele Marcia?
63.

MARCIA
Dou... de vez em quando.
MARY
Então ela é sua namorada, Rafael?
RAFAEL
Não.
MARY
Ah, não?
MARCIA
Rafael, acho que esse filho é seu. Ele me
contou da camisinha que ficou perdida dentro de você. Que
história hilária.
MARY
(Mal humorada)

É... muito engraçado.


RAFAEL
Quem é o pai?
MARY
Essa aqui é a Renata, minha amiga.
RENATA
Oi Rafael, oi Marcia, prazer...
MARY
Ela é o pai do meu filho.
RAFAEL
Como assim?
MARY
Ai, gente, que papo mais estranho.
RAFAEL
Você tá grávida e bebendo cerveja... que
péssimo!
MARY
Não é cerveja, é guaraná, ô mané...
RAFAEL
Desculpa. Pensei...
64.

MARY
Não pensa não, garoto, que pensar não te cai
bem. Olha, papo estranho, com gente esquisita, não tô afim,
fui.

Mary sai andando. Renata fica sem graça olhando a cena.

RENATA
Não repara, são os hormônios... e sim,
Rafael, é seu filho, é um menino, e deve nascer a qualquer
momento.

Renata sai correndo para alcançar Mary, que saiu andando


rápido e bufando.

RENATA
Ei, Mary, espera!
MARY
Inacreditável. Será que ele sacou que o
filho é dele? Nove meses sem ver esse mané, já tinha até
me esquecido desse cretino. Ele tinha que aparecer justo
agora. Que merda!
RENATA
Falei pra ele que era.
MARY
O que? Você falou pra ele que o filho é dele?
RENATA
Falei. Caramba Mary! O cara é o pai da
criança, ele tem direito de saber. E ele ter aparecido justo
agora, nada é por acaso... olha que coincidência, isso é
obra divina. É um direito dele.
MARY
Renata, você não tinha esse direito! Eu não
te pedi pra fazer isso!
RENATA
Mas eu fiz.
MARY
Bom... se fez, tá feito. Foda-se. Quero ir
embora pra casa, tô cansada. Tá me dando uma dorzinha...
RENATA
Vamo.
65.

Renata e Mary saem caminhando em direção à saída do evento.


Rafael dispensa Marcia, que vai embora meio chateada. Ele
vai atrás de Mary.

RENATA
Acho melhor a gente chamar um taxi.
MARY
Não tô me sentindo muito bem, tá me dando
uma cólica.
RENATA
Será que o bebê tá vindo?
MARY
Tomara! Não aguento mais essa barriga.
RENATA
Você dançou bastante hoje, de repente
funcionou...
MARY
Dizem que funciona, acho que funcionou sim,
olha... estourou a bolsa. Bora pro hospital.
RENATA
Você não quer aproveitar que o Rafael tá
aqui e chamar ele pra ver o filho nascer? Isso é um sinal
de Deus, Mary!
MARY
De jeito nenhum. Meu filho vai nascer sem
pai. Isso já tá decidido.

Mary está começando a se contorcer de dor, quando Rafael


vem se aproximando e escuta a conversa.

RAFAEL
Meu filho vai nascer?
MARY
Vai...aaaaaiiii...
INT.HOSPITAL-NOITE

Mary, Renata e Rafael chegam ao hospital. Mary é colocada


numa cadeira de rodas.
66.

RENATA
Vou levar seus documentos lá pra dar
entrada.
MARY
Re...
RAFAEL
Respira Mary, calma.
MARY
Eu tô calma, mané!
RAFAEL
Para de me chamar de mané.
MARY
Não me enche, mané! Aliás, o que você tá
fazendo aqui? Não te chamei pra vir pra cá! Não preciso de
um pai pro meu filho, e você disse que não queria ser pai.
RAFAEL
Não queria, mas vou ser, quer você queira ou
não.
MARY
Você NÃO VAI SER PAI DO MEU
FILHO!!!AAAAAAAIIII, contração...contração...
contraaaaaaaaiiii!!
RAFAEL
Eu sou o pai do seu filho!
MARY
Não é! Eu dei pra outro depois de você!
RAFAEL
Mentira!
MARY
Eu não quero você mais perto de mim, você me
engravidou e não quis saber mais de mim, seu moleque babaca,
mané, filho da puta!
RAFAEL
Você me botou pra correr da sua casa! Disse
que não queria mais nada comigo! Você é que devia me pedir
desculpa! Você devia ter me procurado pra me contar da
gravidez!
MARY
Pra que? Pra você me dizer que eu abortasse
ou que me virasse? Ah, Rafael, vai à merda! Vai embora!
67.

RAFAEL
Não vou a lugar nenhum, vou ficar aqui, ver
meu filho nascer e dar meu nome pra ele.
MARY
Vou dizer que o filho não é seu.
RAFAEL
Então eu entro na justiça pra provar que é
meu.
MARY
Ah, tá! Há nove meses atrás você disse que
eu é que teria que entrar na justiça pra pedir DNA. Babaca!
RAFAEL
Falei aquilo sem pensar, me desculpa! Eu fui
mesmo um mané, um babaca, tá? Me perdoa! Eu tive medo. Eu
tô com medo, Mary! Eu ainda moro com meus pais, caramba!
Mas eu adorava você! Eu adoro você... e vou adorar nosso
filho. Quero estar do seu lado.
MARY
Vai ficar com a sua namoradinha e me deixa
em paz.
RAFAEL
Ela não é minha namoradinha, a gente só
transou umas vezes, eu não gosto dela, eu gosto de você,
sempre penso em você. Transo com ela imaginando que é você!
É muito louco, pois eu andava pensando tanto em você
ultimamente, eu até pensava em te procurar, mas sempre te
achei mulher demais pra mim, achava que você ia me botar
pra correr de novo. Te procurei tantas vezes e você me
ignorou, Mary! Puxa vida!
MARY
E tô botando pra correr de novo! Por que
você ainda não foi, mané?
RAFAEL
Porque você tem um filho meu nascendo, e
eu... eu não imaginava, mas eu tô muito feliz por isso,
porque eu senti sua falta, porque eu sempre te quis de
volta, mas não tinha coragem... eu não tenho grana, ainda.
Mas em breve eu vou ter ... eu posso ser homem o suficiente
pra você, só me dá um tempo pra conquistar meu espaço no
mundo, e eu vou ser um bom homem pra você, eu juro. Me
perdoa pelas besteiras que eu falei aquele dia?
MARY
Não quero você aqui. AAAAAAIIII! Você que
fez isso comigo... filho da putaaaaaa... aaaaaaaaaaiiii
como essa merda dói, puta que pariu!!!!
68.

RAFAEL
Para de gritar palavrão, vai assustar o
bebê! Tá assustando as pessoas.
MARY
Tomara que assuste, assim ele sai mais
rápido. Fodam-se as pessoas, ninguém tá sentindo essa porra
dessa dor filha da puta.
RENATA
Calma Mary! Vai dar tudo certo.
MARY
Caraca, acho que o bebê já tá saindo,
caramba!
Mary, Rafael e Renata chegam na porta do quarto, o MÉDICO
vem, e fala olhando para Renata.

MÉDICO
Só pode entrar um acompanhante.
RENATA
Vai Rafael. Você é o pai.
MARY
Não! Quero você Renata. Não quero o Rafael.
RAFAEL
Tudo bem, eu não fico bem de ver sangue e
essas coisas... depois ela tá com muita raiva de mim, eu
espero aqui fora. É melhor.
MARY
Lembra que eu não quero anestesia. Quero
sentir a dor.
MÉDICO
Tem certeza?
MARY
Já tô acostumada a sentir dor. Já
conversamos sobre isso! Prefiro sentir tudo que há pra se
sentir e não quero que tirem isso de mim. Vou sentir a dor
do parto, ponto pacífico. Tô afim, sou maluca, me deixa.
MÉDICO
Não tem nada de pacífico nisso, mas tudo
bem. Nunca vi isso... Mary, você definitivamente não é
normal.
69.

MARY
Tá bom... e alguém é normal nesse mundo?
Ainda prefiro a dor do que uma agulha na espinha. O parto
é meu, tô pagando, vai ser assim. Você está aqui pra
assistir e me salvar se der merda e ponto, foi combinado
assim.
RENATA
Mary, você é corajosa, hein! Doutor, não
repara não, ela é intensa assim, mas no fundo só precisa
de colo.
MARY
Que mané colo, agora eu só preciso mesmo é
parir logo essa criança antes que eu enlouqueça de vez.

INT. QUARTO DE HOSPITAL- NOITE

Mary está em pleno esforço de parto, Renata segura na mão


dela.

RENATA
Vai, amada! Falta pouco, tá quase vindo! Que
loucura não querer anestesia, Mary. Por que isso? Força!
Vai nascer! Vai nascer!
MARY
Aaaaaaaiiiiiii! Meu Deus, vem meu filho,
nasce logoooo pelo amoooor de Deus!!!! Eu não aguento mais
essa dor! Parece que eu estou sendo estuprada de dentro pra
fora por mim mesma! Sai pra vida meu filho! Vaiii!
Aaaaaiiii!
RENATA
Nossa Senhora do céu, abençoe essa criança!
Seja bem vindo!

O bebê nasce chorando alto. Mary e Renata choram junto.


Mary pega seu bebê no colo.

INT.SALA DE MADA-NOITE

O grupo volta do intervalo, retornando aos seus lugares.


Elas têm cartões nas mãos.

FABIANA
Leitura da meditação do dia para mulheres
que amam demais. Sete de novembro, um dia que não volta
mais. Amar demais não significa amar muitos homens ou se
apaixonar com muita frequência ou ter por outra pessoa um
70.

amor autêntico profundo. Significa, na verdade, estar


obcecada por um homem e chamar isso de amor. Vamos fazer a
leitura das dez características de uma mulher que se
recuperou de amar demais. Quem estiver com a primeira pode
começar a ler.
MARY
Primeira característica de uma mulher que se
recuperou de amar demais. Ela se aceita completamente,
mesmo quando quer modificar partes de si. Existe uma
autoconsideração e um amor por ela mesma que são básicos,
e que devem ser alimentados.
SILVIA
Segunda característica de uma mulher que se
recuperou de amar demais. Ela aceita os outros como são,
sem tentar modifica-los para satisfazer suas necessidades.
MARINA
Terceira característica de uma mulher que se
recuperou de amar demais. Ela está ciente de seus
sentimentos e atitudes com relação a cada aspecto de sua
vida, inclusive sua sexualidade.
RENATA
Quarta característica de uma mulher que se
recuperou de amar demais. Ela cuida de cada aspecto dela
mesma: sua personalidade, sua aparência, suas crenças e
valores, seu corpo, seus interesses e realizações. Ela se
legitima, em vez de procurar um relacionamento que dê a ela
um senso de autovalor.
LUCIA
Quinta característica de uma mulher que se
recuperou de amar demais. Sua autoestima é grande o
suficiente para que possa aproveitar a companhia de outras
pessoas, principalmente de homens, que são bons exatamente
como são. Não precisa ser necessária para se sentir digna
de valor.
AMELIA
Sexta característica de uma mulher que se
recuperou de amar demais. Ela se permite ser aberta e
confiante com pessoas adequadas. Não tem medo de ser
conhecida num nível profundamente pessoal, mas também não
se abre à exploração daqueles que não estão interessados
em seu próprio bem-estar.
FABIANA
Sétima característica de uma mulher que se
recuperou de amar demais. Ela pergunta: esse relacionamento
é bom para mim? Ele me dá oportunidade de me transformar
em tudo que sou capaz de ser?
71.

MADALENA
Oitava característica de uma mulher que se
recuperou de amar demais. Quando um relacionamento é
destrutivo, ela é capaz de abandoná-lo sem experimentar uma
depressão mutiladora. Possui um círculo de amigos que a
apoiam e tem interesses saudáveis, que a ajudam a superar
crises.
HELOÍSA
Nona característica de uma mulher que se
recuperou de amar demais. Ela valoriza a própria serenidade
acima de tudo. Todos os conflitos, o drama e o caos do
passado perderam sua atração. É protetora de si mesma, de
sua saúde e de seu bem-estar.
HELENA
Décima característica de uma mulher que se
recuperou de amar demais. Ela sabe que um relacionamento
para dar certo, deve acontecer entre dois parceiros que
compartilhem valores, interesses e objetivos semelhante, e
que possuam ambos capacidade para serem íntimos. Também
sabe que é digna do melhor que a vida tem a oferecer. Agora
está de novo aberto para partilhas, quem tiver coisas
postivias Ver o texto.

Mary levanta a mão e Fabiana sinaliza para que ela fale.

FABIANA
Mary, nono passo.
MARY
Nono passo. Fizemos reparações diretas dos
danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo
quando fazê-los significasse prejudicá-las ou a outrem. Oi,
eu sou a Mary e sou uma mada em recuperação.
TODAS
Oi Mary!!
MARY
Fiz reparações, muitas. Pedi muito perdão
por tacar coisa em cima dos caras, mas só fazia isso pra
me reconciliar e começar a maluquice toda de novo, era
manipulação. Hoje penso e ajo mais no sentido de não fazer
coisas que possa me arrepender depois e ter que me
desculpar. Vivo e deixo viver, sabe? Queria agradecer essa
sala aberta e o serviço das companheiras pra que isso
aconteça. Essa sala salva vidas. Lucia, seja muito bem-
vinda, quero te dizer que esse programa funciona, continue
voltando. Salvou a minha. Cheguei aqui no fundo do poço,
querendo morrer, só chorava...cheguei a pensar em suicídio,
pois vivia obcecada com homem. Quando encontrava um cara
que me despertava interesse, eu ia pirando, ficava tão louca
72.

que arrumava um jeito de brigar com o cara pra me livrar


da obsessão e só ficava ainda mais obcecada. Brigava, botava
o cara pra correr e ainda tacava coisa pela janela em cima
dele na hora que saia do meu prédio. Muito louca. Acho que
era viciada naquela adrenalina do conflito, do escândalo,
do drama. Era uma adicta em relacionamento destrutivo. É
lógico que só arrumava cara mais louco que eu, cara
indisponível, galinha, egoísta... enfim, caras que não eram
material pra coisa saudável, serena, feliz, pois isso não
dá adrenalina, né? Brócolis... é muito mais emocionante se
atracar com um chocolate, não é? Mas o relacionamento
destrutivo de verdade era comigo mesma. Isso melhorou
muito. O programa, a literatura e as companheiras me
ensinaram sobre como me recuperar, sobre autoestima... na
verdade foi aqui que eu encontrei o amor verdadeiro. O amor
verdadeiro é o amor próprio, gente. Quando a gente tem amor
próprio, a gente nem chega perto de relacionamento que pode
ser destrutivo, a gente nem atrai, sabe? Eu via maluquice
em todo lugar. Quando cheguei aqui, olhei as companheiras
e pensei “acho que não vai dar pra fazer amizade com essa
galera...tudo doida”, mas aí depois eu me toquei que eu era
uma dessas doidas, né? Fui conhecendo as histórias, as
personalidades e posso afirmar que foi aqui que eu encontrei
as pessoas mais fantásticas e fascinantes que eu já conheci
na vida. O que é mais incrível, as mulheres de mada não são
doidas, são só mulheres feridas, e são as pessoas mais
amorosas que eu já conheci, por incrível que pareça. A gente
sabe que essa expressão amar demais tá ligada com obsessão
e paixão, mas a mada ama demais o outro e se ama de menos.
Aqui eu descobri também a importância da sororidade, e como
mada tem amor pra dar pro outro, mas não tem pra dar pra
si, aqui todas acabam muito amadas, umas pelas outras... o
amor circula aqui. É uma coisa de irmandade, de sororidade.
Aliás eu atentei pra essa palavra aqui. Sororidade é a
fraternidade entre mulheres, é irmandade. Isso aqui é uma
irmandade. Somos irmãs, companheiras. Os homens são muito
mais unidos que as mulheres nesse sentido. Acho que o que
falta no mundo é essa união entre nós mulheres. Quando eu
fui ter meu filho foi uma companheira que segurou minha mão
na hora da dor. A doença é um produto do isolamento, que é
produto dos nossos traumas, por isso, continuar voltando a
sala é tão importante, pois aqui eu saio do isolamento, eu
ajudo e sou ajudada, aqui eu faço meu amor circular pra
quem precisa e merece, aqui eu recebo de volta esse amor.
Aqui, junto com vocês eu sou mais forte, pois juntas,
unidas, somos mais fortes. Aqui eu me fortaleço. Aqui eu
vejo o que realmente tem sentido e valor nessa vida. Aqui
eu ganho mais consciência do meu Poder Superior, que é a
minha consciência. Aqui ela se expande e se fortalece. Aqui
meu poder inferior... sim, porque, se tem Poder Superior,
tem poder inferior... aqui meu poder inferior, que é o meu
inconsciente, programado com padrões negativos, de natureza
inferior do meu ego, é submetido à minha consciência, a
minha capacidade de reprogramar meu espírito com padrões
positivos, mais amorosos, honestos, humildes, bondosos,
mais de acordo com as pulsões de vida do que com as pulsões
de morte, de autodestruição. Cada dia que eu venho a essa
sala eu descubro algo novo sobre mim ou sobre a vida. Acho
73.

que é por isso que se diz que o segredo tá na próxima


reunião, porque sempre tem um segredo novo a cada encontro.
Hoje, por exemplo, minha reflexão tá na sororidade, eu fico
pensando em como vocês são especiais e importantes pra mim,
pois sem vocês não teria sala e não teria recuperação, e
eu provavelmente a essa altura estaria completamente
doente, ou morta, ou presa. Seria muito bom pro mundo se
todas as mulheres soubessem como é bom ter irmãs e fazer
parte de um círculo de mulheres que se apoiam. Me sinto
muito sortuda e abençoada por ter vocês. Obrigada por me
ouvirem, obrigada pelo silêncio, obrigada pela sala aberta.
TODAS
Obrigada Mary!

RENATA
Décimo passo. Continuamos fazendo o
inventário pessoal e, quando estávamos erradas, nós o
admitíamos prontamente.
SILVIA
Décimo primeiro passo. Procuramos através da
prece e da meditação, melhorar o nosso contato consciente
com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o
conhecimento da Sua Vontade em relação a nós, e forças para
realizar essa vontade.
HELOÍSA
Décimo segundo passo. Tendo experimentado um
despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos
transmitir esta mensagem às mulheres que ainda sofrem e
praticar estes princípios em todos os nossos
relacionamentos.

HELENA
Esse é o momento de escolhermos um lema para
essa semana. Lucia, você pode escolher um lema? Tem ali a
lista naquele banner.

Lucia olha com atenção lendo os lemas.

FABIANA
Os lemas são 12, só por hoje, viver e deixar
viver, primeiro as primeiras coisas, viver na graça de Deus,
esquecer os prejuízos, recomendar-se a Deus
incondicionalmente, devagar se vai ao longe, que comece por
mim, escute e prenda, mantenha o simples, mantenha a mente
aberta e até que ponto isso é importante.
74.

LUCIA
Nossa, difícil escolher só um.
FABIANA
Pode escolher dois então.
LUCIA
Só por hoje e viver e deixar viver.
FABIANA
Boa escolha.
Fabiana procura na apostila os lemas para ler sobre eles.

FABIANA
Só por hoje. Este lema sugere que, ao invés
de tomarmos decisões para a vida toda, limitemo-nos a fazer
propósitos por um dia apensa, justamente o dia que estamos
sempre vivendo: o dia de hoje! O de ontem já vivemos quando
ele era hoje e o de amanhã, quando chegar, será hoje
novamente. Se aplicarmos o que é sugerido, estaremos, por
assim dizer, cortando a vida em pedacinhos mastigáveis, o
que irá tornar bem mais fácil nossa caminhada através do
processo de recuperação. Viver e deixar viver. Preocupadas
em dirigir ou modificar a vida das pessoas com as quais
convivemos e nos relacionamos, podemos esquecer do mais
importante: cuidar de nossa própria vida e de nossa
recuperação. Por isso, este lema sugere que procuremos
viver a nossa própria vida e que deixemos aos outros a
tarefa de viver a deles como acharem de fazê-lo.

Corta para.
TODAS
Quem você viu aqui, o que você ouviu aqui,
deixe que fique aqui.
Corta para todas de pé em círculo de mãos dadas.

FABIANA
Vamos elevar nossos pensamentos e direcionar
nossos sentimentos a todas as mulheres que ainda sofrem,
que não tiveram a graça e o milagre de entrar por aquela
porta, as mulheres que agora estão chorando em seus quartos
escuros, que estão em depressão, obcecadas, as que não
tiveram a chance de se recuperar e adoeceram e agora estão
sofrendo nos hospitais, ou que estão nas cadeias, ou presas
em relacionamentos destrutivos. Que essas mulheres possam
ter a chance de entrar por aquela porta, ou ao menos serem
tocadas pela luz da consciência de seu Poder Superior para
terem alguma chance de recuperação. Vamos fazer a Oração
do grupo.
75.

TODAS
Deus... nos fortaleça hoje... para que o
amor em nós seja de crescimento, saúde e êxito.
FABIANA
Oração da unidade... é sugerido que a gente
faça olhando umas nos olhos das outras.
TODAS
Eu seguro a minha mão na sua... e uno meu
coração ao seu... para que juntas possamos fazer tudo aquilo
que eu não posso e não consigo fazer sozinha.
FABIANA
Oração da serenidade.
TODAS
Concedei-nos Senhor a serenidade necessária
para aceitar as coisas que eu não posso modificar, coragem
para modificar aquelas que eu posso e sabedoria para
distinguir umas das outras.
TODAS
SÓ POR HOJE FUNCIONA!!!

Todas aplaudem e depois dão um abraço grupal. A reunião


termina com umas abraçando as outras, começando a ajudar a
desmontar a sala, enrolando banners com os passos,
tradições e lemas.

MARY (VO)
Só por hoje eu estou bem, consegui me
recuperar muito nessa sala, mas recaídas acontecem. Uma
recuperação é sempre cheia de altos e baixos.

INT-CASA DE MARY/QUARTO DO BEBÊ-DIA

Mary entra no quarto e observa seu bebê no berço. Ela o


pega no colo e senta na poltrona. Ela escuta o interfone
tocar e vai até a janela ver quem é com o bebê no colo. Vê
que é Rafael e ignora.

EXT-ENTRADA DO PRÉDIO DE MARY-DIA

Rafael está na porta tocando o interfone. Ele insiste. Ele


olha para janela e vê que está aberta. Ele pega o celular
e liga para Mary. Ele toca o interfone ao mesmo tempo que
liga.
76.

INT-CASA DE MARY-DIA

O interfone e o celular tocam ao mesmo tempo. Mary vai até


o celular e o silencia. Vai até o interfone e tira do
gancho. O bebê começa a chorar.

EXT-ENTRADA DO PRÉDIO.

Rafael ouve o interfone e o celular pararem de tocar e o


bebê começar a chorar.

RAFAEL
Mary! Abre essa porta, eu quero ver meu
filho.

Rafael pausa.

RAFAEL (CONT.)
Mary... abre a porta. Eu exijo ver meu filho.
Você não tem o direito de fazer isso!
Mary vai até a janela bufando.

MARY
Rafael vai embora. Você não é bem-vindo
aqui. O filho é só meu.
RAFAEL
Tá louca? Esse filho também é meu.
MARY
Ah é? Quem disse?
RAFAEL
Mary, por favor, para com isso. Não faz isso
comigo, eu já te pedi perdão mil vezes.
MARY
É falta de educação aparecer na casa dos
outros sem avisar.
RAFAEL
Eu te liguei um milhão de vezes e você não
me atende, caramba!
MARY
Rafael, vaza! Não quero você aqui e pronto.
RAFAEL
Você vai me fazer entrar na justiça contra
você para ter direito de ver meu filho?
77.

MARY
Vou. É exatamente o que você merece.
RAFAEL
Você vai ficar me punindo pra sempre por
causa de um erro do qual eu já me arrependi e pedi perdão,
até quando? O que você quer que eu faça pra te convencer?
MARY
Eu quero que você vaze daqui agora. Não estou
afim de te receber. Vai embora!
RAFAEL
Não vou. Vou ficar aqui até você sair com o
bebê. Em algum momento você vai ter que sair.
MARY
Vai ficar mofando aí então.
RAFAEL
Vou ficar gritando aqui então. Mary! Abre
essa porta! Eu tenho o direito de ver o meu filho!
MARY
Tá bom. Espera aí.
INT. CASA DE MARY-DIA

Mary vai até a área de serviço pega um balde, enche de


água, depois vai até a janela.

MARY
Rafael, eu vou te receber.
RAFAEL
Obrigada Mary, finalmente. A gente tem que
se entender para o bem do nosso filho.
MARY
Vou te receber assim.
Mary joga água em cima de Rafael. Renata chega bem na hora
e vê a cena.

RENATA
Mary, que é isso? Para com isso, mulher!
RAFAEL
Ela não quer me deixar ver meu filho de jeito
nenhum. Faz alguma coisa Renata, por favor. Não quero ter
que lutar na justiça, vou ter que gastar uma grana que eu
não tenho.
78.

MARY
Não quero esse cara aqui.
RENATA
Ele é pai, Mary, para com isso. Essa vingança
já deu. Abre a porta e deixa a gente entrar.
MARY
Não!
RENATA
Mary, abre essa porta já, senão eu me demito.
Isso é recaída. Para com essa maluquice já e deixa o Rafael
ser pai do filho dele. Você está ficando igual a sua mãe.
Você está sendo má! Má com o Rafael e má com o seu filho
fazendo isso.
MARY
Eu não sou igual a minha mãe.
RENATA
Então prova que não é, deixando o Rafael ver
o filho dele. Abre a porta que eu esqueci a chave aí.
Mary sai da janela e vai até o interfone abrir o portão.

EXT- PORTA DO PRÉDIO-DIA.

A porta se destranca. Rafael encharcado respira aliviado.

RENATA
Vamos lá... vou te arrumar uma toalha.
RAFAEL
Renata... muito obrigado. Por que ela é tão
maluca?
RENATA
Ela não é maluca, ela é só uma mulher muito
ferida e amedrontada. Se você tiver um pouco mais de
paciência com ela, vai ver que no fundo ela é uma pessoa
maravilhosa.
RAFAEL
O pior é que eu ainda tenho sentimentos por
ela.
RENATA
Ela precisa de colo, acabou de passar por
uma gravidez e um parto, só tem a mim, não fala com a mãe,
o pai já morreu... é muito puxado.
79.

RAFAEL
Entendo. Mas ela não tem mais ninguém?
Irmãos, tias, parentes?
RENATA
Tem uma tia só, irmã da mãe. Ela se afastou
das duas.
INT.CASA DE MARY/SALA-DIA

Rafael e Renata entram na casa. Mary está no quarto do bebê


amamentando. Renata pega uma toalha para Rafael, que tira
a camisa e se enxuga.

RENATA
Vem ver seu filho.
INT.CASA DE MARY/QUARTO DO BEBÊ-DIA

Renata e Rafael entram devagar no quarto. Mary olha para


Rafael sem camisa. Rafael tem um corpo lindo de surfista.
Rafael olha encantado para o filho e mãe amamentando. Ele
fica fascinado e se emociona. O bebê para de mamar e se
vira na direção do pai, como se o visse, e sorri. Rafael
chora.

RAFAEL
Olha, ele parece que tá sorrindo pra
mim...como ele é lindo!
MARY
Quer pegar seu filho no colo?
RAFAEL
Posso?
RENATA
Passa álcool gel nas mãos. Ele é muito
pequeno ainda, não tem defesas.
RAFAEL
Claro. Tô de banho tomado também, né Mary?
MARY
Pega com cuidado, olha a cabecinha. Ele
ainda não sustenta a cabeça direito.
Rafael pega o bebê no colo meio sem jeito e com todo o
cuidado. Mary olha encantada para pai com filho no colo sem
camisa, ela chora, e ele também.

RAFAEL
Ele é lindo, parece comigo quando era bebê.
Depois vou te mostrar uma foto. Renata, tira uma foto por
80.

favor. Pega meu celular na mochila, por favor. Ainda bem


que não molhou,né?

Renata pega o celular e começa a fazer fotos dos dois.

RAFAEL
Vem Mary, entra na foto.
MARY
De jeito nenhum, tô um bagaço.
RAFAEL
Você tá linda. É uma mãe linda. Nosso filho
é lindo. Eu tô apaixonado. Deixa eu fazer parte da vida de
vocês, Mary, eu juro que vou ser o melhor pai que você já
viu na vida. Dá uma chance pra gente. Nosso filho vai
precisar de mim. Meus pais estão loucos pra conhecer o neto.
A gente pode te ajudar tanto. Eu ainda sou apaixonado por
você... a gente pode fazer essa história funcionar. Só falta
você querer. Quero tanto que você queira... Mary, eu amo
você.
MARY
Eu também... eu também me amo. Vou pensar no
seu caso. Da próxima vez avisa antes de vir.
RAFAEL
Eu tentei te avisar. Pô! Tô tentando falar
com você desde que você saiu do hospital.
RENATA
Pega meu celular e pode ligar pra mim. Eu tô
trabalhando aqui pra Mary. Todo dia eu saio pra passear com
ele na praça, você pode vir com a gente, se quiser.
RAFAEL
Claro que eu quero.
MARY (VO)
Não sei porque toda essa minha resistência
contra o pai do meu filho, talvez seja o medo de voltar a
amar demais. Só sei que esse homem sem camisa com meu bebê
no colo, todo derretido, me deixou toda derretida.

O telefone fixo toca e Renata vai atender. Mary e Rafael


se olham com ternura. Rafael se senta na poltrona e admira
o filho, enquanto Mary os admira. Renata vem com o telefone.

RENATA
É a sua tia.
81.

MARY
Minha tia? Ai, não...diz que...
RENATA
Ela disse que é urgente, sua mãe teve um
infarto.

INT.HOSPITAL-DIA

Mary chega ao hospital e encontra a TIA na entrada do CTI.

TIA
Oi Mary.
MARY
Oi tia.
TIA
Quanto tempo né?
MARY
Pois é. Como ela tá? Olha eu não sei se quero
ver minha mãe, sabe? Na verdade, não sei se queria te ver
também.
TIA
Olha, Mary, eu sei que a briga que você teve
com sua mãe foi muito feia. Até entendo suas razões, mas
ela quer muito te pedir perdão.
MARY
Só vim mesmo, pois quero ver pra crer.
TIA
A gente nunca teve a oportunidade de
conversar, e você se afastou de mim de uma forma muito
injusta.
MARY
Injusta? Você ficou do lado dela.
TIA
Mary, você tem noção do que sua mãe passou
na vida?
MARY
Você tem noção do que eu passei na mão dela?
TIA
Tenho, mas também sei que tudo que ela fez
foi consequência do que ela passou, por isso fiquei do lado
82.

dela. É claro que o que ela fez te machucou muito, e nada


justifica, mas Mary, ela é minha irmã, minha única irmã.
MARY
É...vocês sempre foram unha e carne, e você
sempre passou a mão na cabeça dela.
TIA
Mary, você sabia que sua mãe foi estuprada
por um vizinho quando era adolescente?
MARY
Não.
TIA
Você sabia que seu pai traía a sua mãe e
chegou a bater nela?
MARY
Vi meu pai ser muito agressivo com ela muitas
vezes, mas ela fazia por onde.
TIA
E ele fazia por onde também.
MARY
Não importa. Danos feitos, e em entre mortos
e feridos, eu sobrevivi, e ela também, isso é o que me
importa agora, e me parece que pra ela também.
TIA
Soube que você teve um filho.
MARY
É.
TIA
Sua mãe vai gostar de saber, conta pra ela.
MARY
Tá. Até parece que ela já não sabe se você
já sabe...
TIA
Vamos entrar que já tá na hora da visita.

Mary e a tia entram no CTI para visitar a MÃE de Mary, que


está acordada. Mary entra séria e quieta.

TIA
Oi irmã, estão te tratando bem aqui? Já soube
que você vai ficar bem.
83.

MÃE
Oi irmã! Oi filha.
MARY
Oi, como você tá?
MÃE
Agora tô bem, me colocaram dois stents,
quase bati as botas, mas vou viver um bom tempo ainda.
MARY
Vaso ruim não quebra.
MÃE
Pois é... vaso ruim. Quis que você viesse
aqui por isso. Pedi pra sua tia te chamar, pois achei que
ia morrer, mas depois ficou tudo bem e vi que foi um pouco
de drama, mas na verdade eu sinto sua falta, filha... e
também reconheço que fui mesmo muito ruim com você. A vida
não foi fácil pra mim e muitas vezes descontei em você.
Queria te pedir perdão por isso.
MARY
Tá.
MÃE
Você me perdoa?
MARY
Olha, os danos que você me causou foram
brabos mesmo, tô até hoje catando meus pedaços por aí, mas
eu entendo que você só passou pra frente o que recebeu da
vida. Consigo te perdoar sim.
MÃE
Você não tem uma novidade pra me contar?
MARY
Não é novidade se você já sabe.
MÃE
Fiquei muito feliz de saber que sou avó.
MARY
Que bom.
MÃE
Assim que eu sair daqui, gostaria de
conhecer meu neto.
MARY
A gente combina.
84.

MÃE
Obrigada por me perdoar.
MARY
Tudo bem.

EXT-EVENTO NO MIRANTE-NOITE.

É uma linda e feliz noite de lua cheia. Uma banda toca no


palco, pessoas dançam, bebem, comem nos food trucks, onde
pessoas preparam e servem comidas e bebidas, pessoas chegam
de taxi, outros apreciam a vista do mirante, namorando, se
beijando, conversando. O grupo de companheiras do Mada já
está no evento. Heloísa está com a filha BÁRBARA, 9 anos,
junto a Renata com a filha dela e mais alguns amigos e
familiares. Eles estão comendo, bebendo e conversando,
sentados numa mesa. As duas meninas brincam e conversam.
Mary está atrás numa fila conversando com Fabiana e Amélia.
Marina, Silvia, Lucia e Madalena estão assistindo ao show
da banda. Zé da Morte de boné e óculos escuros está entre
as pessoas observando Renata de longe. Mary vê Zé da Morte
olhando para Renata.

MARY
Ai, caramba, o capeta está aqui.
AMELIA
Que capeta?
MARY
Você anda sempre armada, Amélia?
AMELIA
Ando, mas que capeta?
FABIANA
Do que você está falando, Mary?
MARY
Do Zé da Morte, olha ali, ele de olho na
Renata.
AMELIA
Zé da Morte, aquele traficante famoso da
Rocinha que assedia a Re? Onde?
MARY
O próprio. Ainda bem que você vai dormir na
casa dela hoje. Esse cara tá com jeito de que está armando
pra ela. Será que ele sabia que hoje é aniversário dela?
85.

FABIANA
Tem amigos dela da Rocinha aí, alguém deve
ter mencionado pra ele ou perto dele.
MARY
Ele é muito perigoso, a Renata não teve
coragem de denunciar.
AMELIA
Ele não vai fazer nada aqui. Esses caras são
uns covardes.
FABIANA
Ele tentou currar a Renata, Amelia.
AMELIA
Aqui tem muita gente pra ele fazer alguma
coisa, ele só deve estar querendo chegar perto, ver a
Renata, dar parabéns.
MARY
Assim espero. Pelo menos temos uma delegada
e uma PM com a gente. A Marina também deve andar armada né?
Eu tenho medo desse cara.
AMELIA
Ele é amado na Rocinha.
FABIANA
Como assim, amado?
AMELIA
Ele ajuda as pessoas, dá comida, pune
ladrões, estupradores, homem que bate em mulher, tem todos
os policiais comprados. Aí fica de Robin Hood, justiceiro
da favela. Como se isso o aliviasse dos crimes que ele
comete. Ele manda matar sem dó, manda os inimigos pro micro-
ondas.
FABIANA
Como assim micro-ondas?
MARY
É um lugar no meio da mata no alto do morro
onde eles tacam fogo nos corpos em pneus. O Tim Lopes,
aquele repórter, nunca ouviu falar? Eu conhecia ele, foi
assassinado assim. Como um cara desses pode ser visto como
coisa boa, meu Deus?
AMELIA
Ouvi falar sim. É... Ele dá de volta parte
dos lucros dele pra favela e protege o povo de lá de coisas
que a polícia e a justiça não dão conta.
86.

MARY
Típico psicopata. Parece um cara legal,
salvador de fracos e oprimidos, mas é na verdade, um
monstro. Como muitos figurões por aí em todos os âmbitos
desse país.

Elas olham tensas para Zé da Morte observando Renata de


longe. Heloísa e Madalena resolvem ir até o mirante.

HELOÍSA
A gente vai dar uma olhada na vista do
mirante. Quem vem comigo?
NANDA
Vamos Bárbara?
BÁRBARA
Tem algum parquinho aqui, mãe?
MADALENA
Tem um gramado e um jardim lindo do lado do
mirante.

Madalena, Heloísa e as meninas andam até o mirante


conversando. As meninas correm e brincam.

MADALENA
Fiquei muito feliz de você ter aceitado ser
minha madrinha. Agora, o que você me sugere fazer passos
ou ler os textos?
HELOÍSA
Bom, você pode fazer os passos e se precisar
ler para alguém, pode ler para mim. Se estiver passando
algum perrengue, ou tiver dúvidas pode ligar pra mim também.
MADALENA
Tenho muita vontade de largar meu marido,
sabe? Eu sei que ele tem uma amante há anos. Finjo que não
sei de nada. Acho engraçado eu ter escolhido uma madrinha
que é amante há tantos anos de um homem casado. Não sei por
que te escolhi, mas senti muita afinidade contigo.
HELOÍSA
É, é engraçado. Às vezes durante sua
partilha passa pela minha cabeça...imagina se o marido dela
é o pai da minha filha, mas acho muito novelesco. A gente
nunca diz nomes, mas a esposa do pai da minha filha é Maria,
então não pode ser. O que eu mais quero é que ele largue a
mulher pra ficar comigo, sabe? São anos esperando por isso
e sofrendo com isso.
87.

MADALENA
Na verdade, meu nome é Maria... Madalena é
o nome que eu inventei pra irmandade, não queria dar meu
nome verdadeiro, mas meu marido só me chama de Mãe, e tem
muita Maria nesse mundo.
HELOÍSA
Você nunca disse o nome dele.
MADALENA
Nem você. Talvez seja melhor não dizer, vai
que... Já imaginou? Você vai conhecer meu marido hoje. Ele
vem me buscar. Aliás, a gente pode te dar uma carona. Você
mora em Copacabana não é?
HELOÍSA
Moro.
MADALENA
É caminho.
HELOÍSA
Vai ser ótimo. Obrigada. Seu marido sabe do
Mada?
MADALENA
Não. Eu digo que é um grupo de oração da
igreja. E o seu cara, sabe?
HELOÍSA
Não. Ele não sabe. Não digo nada.

Barbara e Nanda brincam juntas a poucos metros de Heloísa


e Madalena.

BARBARA
Vou pedir pra minha mãe pra você dormir lá
em casa, Nanda, quer? Será que sua mãe deixa?
NANDA
Ela sempre deixa. E a sua, será que vai
deixar?
BARBARA
Vai sim. Vou falar com ela.

Bárbara corre até a mãe deixando Nanda para trás entretida


com pedrinhas no chão. Zé da Morte observa a cena.
88.

BÁRBARA
Mãe, a Nanda pode dormir lá em casa hoje?
HELOÍSA
Pode, mas tem que falar com a Renata pra ver
se ela deixa.
MADALENA
O céu tá lindo né? É tão bonito aqui. Que
lua linda.
HELOÍSA
É... dá uma paz olhar pras estrelas e pra
lua.
MADALENA
Olha! Uma estrela cadente! Faz um pedido!
HELOÍSA (VO)
O que eu mais quero nessa vida é casar com
o pai da minha filha. Não aguento mais ser a outra, é muito
sofrimento, é muito destrutivo.
MADALENA (VO)
O que eu mais desejo nessa vida é sair do
meu casamento, me libertar...
BÁRBARA (VO)
Meu desejo é meu pai casado com minha mãe e
morando com a gente.

Zé da Morte se aproxima de Nanda que cata pedrinhas no


chão.

ZÉ DA MORTE
Oi Nandinha, tudo bem?
NANDA
Tio Zé!
ZÉ DA MORTE
Cadê meu beijo?
NANDA
Você trouxe jujuba?
ZÉ DA MORTE
Claro, princesa! Eu sempre trago né?
NANDA
Oba!
89.

ZÉ DA MORTE
Como está a casa nova?
NANDA
Estou adorando, tem uma vista muito linda.
Que nem aqui. A laje tem um chuveirão e uma churrasqueira,
e a mamãe e a tia Mary pintaram a casa de rosa. É a única
casa cor de rosa da rua 3 da Chácara do Céu.
ZÉ DA MORTE
Que legal! Vou visitar vocês qualquer hora.
NANDA
Porque a mamãe não gosta de você, tio Zé?
ZÉ DA MORTE
Ela gosta sim, isso é charme dela só.

Renata se aproxima e vê Heloísa, Bárbara e Madalena olhando


para o céu, procura Nanda e a vê conversando com o
traficante. Ela fica tensa e vai até eles.

RENATA
Nanda! Vai brincar com a Bárbara.
NANDA
Ela me convidou pra dormir na casa dela, eu
posso?
RENATA
Pode, mas deixa eu falar com a Heloísa
primeiro pra saber se ela concorda.
BARBARA
Ela deixou, tia.
RENATA
Vão brincar. Deixa eu dar uma palavrinha com
o tio Zé rapidinho.
NANDA
Tá.
RENATA
O que você está fazendo aqui, Zé?
ZÉ DA MORTE
Vim te dar os parabéns e te trazer um
presente.
90.

RENATA
Como você soube que eu estava aqui?
ZÉ DA MORTE
Eu sempre sei tudo sobre você.
RENATA
Zé, por favor, se você gosta mesmo de mim,
me deixa em paz, e por favor, não quero você rondando mais
a minha filha.
ZÉ DA MORTE
Mas ela me adora...
RENATA
Você vive comprando ela com doce, isso não
está certo. Zé, entende de uma vez por todas que eu não
quero proximidade com você, principalmente depois da última
que você me aprontou.
ZÉ DA MORTE
Eu vim aqui te pedir desculpas mais uma vez
e uma chance, Re. Me dá uma chance...
RENATA
Eu desculpo se você me deixar em paz de uma
vez por todas.
ZÉ DA MORTE
Você sabe que eu não vou te deixar em paz
nunca. Olha eu trouxe esse presente pra você. Eu sei que
você não vai resistir. É uma joia muito valiosa, assim como
você, que é o meu tesouro. Um dia você ainda vai ser minha.
Pode escrever, nem que eu cometa uma loucura. Você sabe que
eu sou louco... por você. Sempre fui e sempre vou ser. Não
consigo parar de pensar em você.
RENATA
Desculpe Zé, eu não posso e não vou aceitar
presente nenhum. Quer me dar um presente que vai me fazer
feliz?
ZÉ DA MORTE
Qualquer pedido seu é uma ordem.
RENATA
Vai embora e me deixa comemorar com meus
amigos em paz. Não gostei de te encontrar aqui.
ZÉ DA MORTE
Então é assim que você vai me tratar?
91.

RENATA
Você disse que qualquer pedido seria uma
ordem. Então, tchau.
ZÉ DA MORTE
Mulher não gosta quando a gente é legal, tem
que ser ruim pra ter respeito né?
RENATA
Quem não se respeita, além de não me
respeitar, é você, Zé. Um monte de mulher te dando mole
no morro e você cismado comigo desde sempre. Que saco! Larga
do meu pé! Além do mais, tu é bandido e levou meu irmão pra
esse caminho do capeta. Você não vale nada. Entende de uma
vez por todas, cara! EU-NÃO-QUERO-TER-NADA-A-VER-COM-
VOCÊ!Entendeu? Ou vai querer que eu desenhe?
ZÉ DA MORTE
Olha, você é maluca de falar assim comigo.
É você que não vale nada. Você não sabe o que eu posso
fazer com você. Vou fazer você se arrepender de cada palavra
que você acabou dizer sua piranha vagabunda.
RENATA
Não tenho mais o que conversar com você,
você é um doente que precisa procurar ajuda. Faz o seguinte,
pega essa joia, vende e paga uma terapia pra você, por
favor. Me faz esse favor, tá? Agora me deixa em paz, que
eu já estou perdendo a paciência.
ZÉ DA MORTE
Você vai se ver comigo.
RENATA
Tá bom Zé, agora me deixa em paz. Tchau.

Renata se vira nervosa, e vai em direção a Heloísa, Madalena


e as meninas. Enquanto Zé vai embora bufando.

RENATA
Helô, as meninas estão combinando de dormir
na sua casa, é isso mesmo?
HELOÍSA
Sim. Quem era aquele? É quem eu estou
pensando? Tá tudo bem Renata?
RENATA
Sim. O próprio. Espero que vá embora e me
deixe em paz.
92.

Mary se aproxima.

MARY
Tá tudo bem Renata?
RENATA
Você viu quem estava aqui?
MARY
Vi. Sinistro. O que ele queria?
RENATA
Antes eu não tinha medo dele, mas
agora...ele me dá medo, mas não creio que vá fazer nada
contra mim. Ele saiu com muita raiva, e me ameaçou. Não
aceitei uma joia que ele queria me dar de aniversário.
Imagina se vou aceitar alguma coisa daquele demônio
bandido.
MARY
Ai, Renata... a gente precisa fazer alguma
coisa pra se livrar desse cara. Só não sei o que ainda.
RENATA
É... eu também não.
MARY
Vamos cantar parabéns então. O bolo já está
na mesa te esperando.

Renata ainda tensa, Mary e a turma toda cantam parabéns.


Renata vai soprar a vela.

MARY
Faz um pedido!
RENATA (VO)
Quero ver o Zé da Morte morto.
Madalena vai até um food truck comprar uma bebida. O
atendente, MARIO, um negro bonito de 50 anos, sorri para
ela.

MARIO
Boa noite! Como vai?
MADALENA
Boa noite. Vou bem, e você?
93.

MARIO
Melhor agora.
MADALENA
Ah, é? Que bom, eu vou ficar melhor ainda
depois que você me vender uma água.
MARIO
É... não é todo dia que uma linda mulher
aparece assim. Aqui. Sua água. Presente.
MADALENA
Que isso... imagina. Deixa eu pagar.
MARIO
Posso saber o nome dessa linda mulher?
MADALENA
Maria, e o seu?
MARIO
Mario. Seu xará e seu criado.

Madalena discretamente tira sua aliança e bota no bolso


antes de pegar a água.

MADALENA
Você vem sempre aqui?
MARIO
Venho. Esse é o meu negócio. Quando quiser,
já sabe onde me encontrar. Só que isso não é justo.
MADALENA
Não é justo por que?
MARIO
Porque eu não sei onde te encontrar. E se eu
nunca te encontrar de novo?
MADALENA
Ah... você quer muito me encontrar de novo?
MARIO
Quero.
MADALENA
Então pode deixar.
MARIO
Pode mesmo?
94.

MADALENA
Pode. Tenho que ir agora, mas eu volto.

O grupo se despede. Umas pegam um taxi. Renata e Amelia


vão andando. Heloísa, Madalena e as meninas esperam o marido
de Madalena vir buscá-las. Madalena com o celular na mão,
está terminando uma ligação.

MADALENA
A gente vai dar uma carona tá? É caminho, é
uma amiga e duas crianças... Ah, tá... tô te vendo.
MADALENA (CONT.)
Ele já tá chegando. Olha ali.

O carro com RICARDO, marido de Madalena, para um pouco


distante delas. Ricardo não as vê. Madalena aponta e elas
andam na direção do carro. Ricardo desce do carro. Bárbara
avista Ricardo e corre em sua direção.

BÁRBARA
Papai, papai!

Ricardo vê Barbara seguida logo atrás por Nanda, Madalena


e Heloísa. Ele congela, assim como Heloísa e Madalena.
Bárbara corre e pula no colo do pai, que assustado olha com
olhos arregalados para a cena constrangedora.
MADALENA
Meu Deus...Meu Deus Ricardo! Meu Deus
Heloísa...
HELOÍSA
Meu Deus...
RICARDO
Cacete...
MADALENA
Que você tinha uma amante eu sabia, mas uma
filha? Meu Deus... Meu Deus...
HELOÍSA
Madalena, eu vou chamar um taxi.
95.

MADALENA
De jeito nenhum! Ele vai dar uma carona pra
vocês sim!
HELOÍSA
Madalena, eu sinto muito.
MADALENA
Amiga... tudo bem. Isso acontecer era tudo
o que eu precisava... e você também. Vamo embora pra casa,
no caminho a gente conversa. Bora! Entrem no carro. Ricardo,
imagino que você saiba bem o caminho.
INT.CARRO DE RICARDO-NOITE

Madalena, Heloísa e Ricardo estão em um silêncio sepulcral.


As meninas vão tagarelando.

BÁRBARA
Nanda, esse é o meu pai.
NANDA
Oi, pai da Bárbara. Por que a tia Madalena
tá na frente? A mãe sempre vai na frente. Tia Helô por que
você não foi na frente?
RICARDO
Quem é Madalena?
HELOÍSA
Ah... é porque eu gosto de ir atrás.
MADALENA
Nanda, eu vou na frente pois o Ricardo é meu
marido. Na verdade era, agora não vai ser mais.
RICARDO
Mãe, vamos deixar para falar sobre isso em
casa.
MADALENA
Nãnãninã NÃO!
RICARDO
Mãe, eu posso explicar.
MADALENA
Não precisa explicar nada, futuro ex-marido.
Quem vai te explicar uma coisa sou eu. Primeiro para de me
chamar de mãe, porque eu não sou sua mãe! Segundo pode
começar a me chamar de ex-mulher! Ou de Maria que também
tá bom!
96.

RICARDO
Mã... mas... Maria...
MADALENA
Cala a boca!
HELOÍSA
Madalena, vamos deixar pra conversar isso
depois. A Barbara aqui...
RICARDO
Como assim Madalena? O nome dela não é
Madalena...
BARBARA
O que tem eu mãe? Eu sabia que o papai tinha
uma mulher, e que você é a amante dele... só não sabia que
era essa tia aí. Sou criança, mas eu sei das coisas. Por
mim, podem falar à vontade...
NANDA
Não tô entendendo nada.
HELOÍSA
É melhor não entender mesmo, é confuso...
MADALENA
Pois bem, já estamos quase chegando. Tenho
uma solução muito óbvia e simples para essa situação
aparentemente complexa.
RICARDO
Olha, eu preciso dizer que...
MADALENA
Você não vai dizer nada. Eu vou mandar e
você vai obedecer, porque senão eu vou tirar tudo de você
na justiça, entendeu bem?
RICARDO
Mas...
MADALENA
Ricardo, você não está em condições de falar
nada. Fica quieto!
RICARDO
Tá... o que você quer que eu faça?
MADALENA
É o seguinte... pode ser que você ache que
estou muito chateada por ter descoberto essa situação. Na
verdade, estou feliz.
97.

RICARDO
Feliz?
MADALENA
É. Feliz. Muito feliz.
HELOÍSA
Feliz?
BARBARA
Feliz, tia? Como assim?
MADALENA
Ricardo, eu não te aguento mais. Quero me
separar de você há anos. Há anos que eu não te aguento
mais. Há anos que a gente não transa mais.
HELOÍSA
Então era verdade...
RICARDO
É verdade, viu?
MADALENA
Nisso ele foi sincero, Helô.
RICARDO
Como é que vocês se conheceram? Isso é muito
doido...
MADALENA
Não te interessa.
NANDA
Já tá chegando? Tô apertada pra fazer xixi.
HELOÍSA
Já tá quase lá, é logo ali naquele sinal.
MADALENA
Ricardo, você vai descer na casa da Helô, e
vai ficar lá, e não vai mais voltar pra minha casa,
entendeu? Vou te mandar suas coisas logo. Pode ficar
tranquilo. Se você me obedecer, a gente vai ter o divórcio
mais tranquilo que já existiu.
RICARDO
Mas eu não quero sair de casa...
MADALENA
Desculpe, querido, sinto muito, mas vai ter
que sair, e com uma filha fora do casamento...ah... mas eu
posso te ferrar muito bonito na justiça. Então trata de ser
98.

bonzinho e ficar aqui na casa da Helô e o carro é só meu


agora. Assim como o apartamento, e a casa de Cabo Frio
também... fica tranquilo, empresto pra vocês. Deixo você
ficar com as salas comerciais e não preciso de pensão, pois
pelo menos ganho meu dinheiro. Ah! E depois que sair o
divórcio, quero que você se case como a Heloísa. Posso até
ser madrinha se vocês quiserem. Combinado?
RICARDO
Mas Mã...Maria...
MADALENA
Shuu, quieto! Me obedece! Desce do carro.

Ricardo congela olhando para a cena, e fica sem ação.


Heloísa, Bárbara olham para Ricardo esperando ansiosamente
com esperança a sua reação. Ricardo olha pra elas e vê que
elas o querem muito. Madalena o olha com firmeza.

MADALENA
Anda! Tá esperando o que? Vai cuidar da sua
nova família. Ah! Ricardo, a gente acabou há muito tempo
já. Vai ser feliz! A Heloísa é louca por você, sua filha
também. Eu não te aguento mais. Vai! Me deixa em paz, vai!
RICARDO
E os meninos?
MADALENA
Que meninos, Ricardo? Seus filhos já são
homens quase feitos. Vão entender. Eu falo com eles. Pode
deixar. Vai ficar tudo bem. Estamos entre amigos, não é,
Heloísa?

Heloísa olha chocada para Madalena.

HELOÍSA
É...
MADALENA
Vai Ricardo, desce, me dá o documento do
carro.
RICARDO
Mas a gente só tem esse carro.
MADALENA
Depois você compra outro. Esse vai ficar pra
mim. Vai, sai.
99.

Ricardo estupefato dá o documento do carro para Madalena.


Heloísa e as meninas descem do carro atônitas.

MADALENA
Tchau gente! A gente se fala! Beijooooo.

Ricardo, Heloísa e Bárbara olham o carro indo embora. Nanda


se aperta segurando o xixi.

NANDA
Tia, preciso fazer xixi, não aguento mais.
HELOÍSA
Vamos subir!

EXT.FOOD TRUCK DO MARIO-NOITE

Madalena volta para o local da festa onde conheceu Mario.


O local já esvaziou e as pessoas estão encerrando seus
trabalhos. Mario está limpando o balcão do caminhão quando
vê Madalena se aproximando.

MARIO
Olá, linda Maria! Até acreditei que você
voltaria algum dia, mas não imaginava que voltaria tão
rápido.
MADALENA
Pois é ... voltei. Tive que resolver umas
pendências aí e voltei. Tá com pressa de ir pra casa?
MARIO
Estava, agora não estou mais.

EXT. CAMINHO PARA CASA DE RENATA-NOITE

Renata e Amélia caminham para casa. Elas já estão bem perto


de casa.

AMELIA
Ai, meu Deus, cadê meu celular?
RENATA
Shiii, será que você esqueceu lá?
100.

AMELIA
Acho que esqueci em cima da mesa. Deixa eu
correr lá.
RENATA
Corre. Vou deixar a porta destrancada pra
você.
AMELIA
Tá bom. Vou correndo. Vou aproveitar pra dar
uma corridinha e queimar umas gordurinhas.

Amelia sai correndo. Renata continua em seu caminho para


casa. As ruas já estão desertas, pois é tarde. Renata chega
na porta de casa, e quando ela está destrancando a porta,
é atacada por trás. Uma mão com um lenço em seu rosto a faz
desfalecer.
INT.CASA DE RENATA-NOITE

Zé da Morte carrega Renata desfalecida para sua cama. Ele


tira sua roupa, a amarra na cama e começa a violentá-la.
Renata acorda tonta. Quando Renata tenta gritar ele enfia
um pano em sua boca e continua com o estupro.

ZÉ DA MORTE
Eu te falei que você seria minha. Quem mandou
me tratar mal? Fiz de tudo por você, Renata. Te dei um
milhão de chances. Dei um jeito no pai da sua filha, aquele
filho da puta que te engravidou. Mandei seu namorado pro
inferno, e até fiz teu irmão acabar na prisão. Tudo pra
você precisar de mim, sua filha da puta, e você sempre me
ignorando. Você é o meu inferno. Hoje eu vou acabar com
você e esse vai ser o meu paraíso. Você é minha! Minha!

Amelia chega e entra na casa procurando Renata. Ela entra


no quarto e se depara com a cena de Zé estuprando Renata.
Zé deixou sua arma na mesa de cabeceira. Ele não vê Amelia
congelada por um momento decidindo o que fazer. Amelia se
aproxima, Zé a vê e levanta em direção a arma. Amelia o
impede de pegar a arma. Eles lutam. O corpo a corpo é
rápido. Amelia o empurra, Zé cai e bate com a cabeça numa
quina de móvel. Ele desmaia. Amelia desamarra Renata.
Renata parte para cima de Zé, agarra a cabeça dele e bate
no chão com violência. Ela soca o corpo desfalecido dele
com ódio. Amelia observa em choque. Renata chora e para.
Zé sangra. Uma poça de sangue se forma em torno de sua
cabeça.

AMELIA
Acho que a gente matou... ele tá morto...
será?
101.

RENATA
Se não estiver, eu tenho que matar, Amelia.
Se não matar esse homem, ele vai me matar. Ele veio aqui
pra me matar hoje. Se você não tivesse chegado, meu fim era
hoje.
AMELIA
O que a gente vai fazer agora Renata? Será
que ele tá morto?
RENATA
Espero que esteja. Se não estiver, eu
mato... ele me estuprou, Amelia! Ele disse que se livrou
do pai da minha filha, matou meu ex, mandou meu irmão pra
prisão... esse filho da puta!

Amelia vai até Zé e checa se tem pulso. Ela está assustada.


AMELIA
Renata, ele tá morto.
RENATA
O que a gente faz agora meu Deus?
AMELIA
Não sei. Só sei que uma PM envolvida no
assassinato de um traficante do porte dele, significa que
agora quem vai estar jurada de morte sou eu. A gente tem
que se livrar do corpo.
RENATA
E se a gente falasse com a Marina? Ela é
delegada, é amiga, é companheira. Ela pode ajudar.
AMELIA
Talvez. Confio nela sim... nela e na Mary.
Acho que só elas podem ajudar a gente. Vamos ligar pra
elas.

INT.CASA DE MARY-NOITE

Mary está na cozinha olhando a geladeira quando toca o


celular. Ela atende.

MARY
Oi, Rê... O que? Calma, calma, calma. Tô
indo praí.
102.

INT.CASA DE RENATA-NOITE

Mary, Marina, Renata e Amelia olham chocadas em silêncio


durante um bom tempo para o corpo de Zé da Morte.

MARINA
A gente precisa de uma mala e de sacos de
plástico.
MARY
Marina, deixa que a gente descarta o corpo.
Você não precisa ir.
MARINA
Não. Estamos todas juntas nessa agora, ou a
gente trabalha junto para encobertar isso, ou vocês
assumem. Eu só tô fazendo isso, porque eu sei que a Amelia
ficaria jurada de morte. A Renata também. Além do que, esse
cara é melhor morto mesmo, e foi legítima defesa. Por mim,
considero esse caso julgado. Uma justiça verdadeira
julgaria assim. A justiça do tráfico, não. Quanto mais com
uma PM envolvida. Pode deixar que eu dou cobertura. Minha
idéia é a seguinte... Como eu sou a delegada encarregada
da região da Vista Chinesa, a gente pode descartar esse
traste lá. Deixa o resto comigo. A gente vai colocar esse
cão sarnento numa mala, e levar até o carro da Mary. São
duas da manhã de segunda-feira. É perfeito. Agora as ruas
estão vazias. A vista chinesa deve estar deserta, nem ronda
a PM tem feito lá. Mas a gente tem que ser rápida, pois as
5 da manhã os ciclistas começam a subir. A gente leva o
corpo até o carro na mala, mas lá a gente tira da mala e
joga numa ribanceira. Depois espera encontrarem, de
preferência em estado avançado de putrefação e
irreconhecível, pra ser enterrado como indigente. Vai ser
só mais um assassinato entres outros muitos sem solução.
MARY
Você tem certeza que quer participar disso?
MARINA
Agora não tem mais jeito, já estou envolvida
até o pescoço. Se vamos fazer isso, vamos ter que ir até o
fim juntas e fazer isso direito. O cara currou e ameaçou a
Renata, ia matar ela, podia ter matado a Amelia. É o mínimo
que ele merece, e como a justiça desse país é essa vergonha,
se vocês assumirem o crime, vai ser um aborrecimento sem
fim com um longo processo, que vai expor vocês demais. Isso
sem falar da ameaça dos comparsas desse vagabundo. Ser uma
PM que matou um vagabundo pop desses é sentença de morte.
Não temos outra opção senão encobrir o crime, vocês têm o
meu apoio total. Vai ser muito fácil sair dessa. Os
investigadores são todos meus aliados e muitos me devem
sérios favores. Podem ficar tranquilas, mas a gente tem que
fazer isso já. Renata, você tem uma mala que caiba esse
cachorro dentro? Ainda bem que ele é pequeno e magro...e
ainda bem que dá pra estacionar pertinho da sua casa. A
103.

gente tem que enrolar bem o corpo com plástico para o cheiro
não chamar atenção.
RENATA
Tenho. Guardei um plástico bem grande de um
colchão e tenho uma mala grande da Mary que usei na mudança
que ainda está aqui.
MARINA
Vamos precisar de algo para amarrar o
plástico em volta dele também.
RENATA
Tenho um rolo de arame, serve?
EXT-CHÁCARA DO CÉU-NOITE

Renata, Amelia, Mary e Marina saem da casa de Renata


arrastando a mala. Elas botam a mala no porta malas do
carro. As ruas já estão desertas e ninguém vê.

EXT- REGIÃO DA ESTRADA DA VISTA CHINESA-NOITE

Mary dirige o carro com Marina no banco ao lado. Renata e


Amelia no banco de trás. Elas estão em silêncio. O carro
vai devagar pelas curvas da estrada deserta em plena
madrugada de segunda-feira. Elas procuram o lugar ideal
para jogar o corpo e estacionam na beira de uma ribanceira.
Elas saem do carro, tiram o corpo da mala e juntas jogam
ribanceira abaixo. Ninguém as vê. Elas entram no carro e
vão embora.

RENATA
Ficar com essa mala agora vai ser fogo...
MARY
Depois a gente dá um jeito nela. Agora a
gente tem que limpar sua casa antes da sua filha voltar.
Mas se viram a gente com a mala...
RENATA
Pode deixar que eu faço isso.
AMELIA
Te ajudo. Que noite mais louca...
MARINA
Fiquem tranquilas, ninguém vai descobrir
nada. Quando acharem o corpo, se acharem, o caso vem pra
mim e eu dou cabo disso em três tempos.
104.

AMELIA
Mary... Marina... vou ser eternamente grata
a vocês pelo que vocês fizeram hoje por mim.
RENATA
E por mim...
MARY
Tamo junta companheiras, somos irmãs.
MARINA
Tamo junta! Não tinha outra opção, gente. E
no fim, eu aqui me sentindo uma bandida... mas tudo bem,
foi por uma boa causa.

INT.CASA DE MARY.NOITE

Mary entra em casa tentando não fazer barulho. Ela anda pé


ante pé até seu quarto. Rafael está em sua cama e acorda
quando ela se deita.

RAFAEL
Onde você foi? Você chegou e saiu de novo?
Tentei te ligar, e o celular tava desligado...
MARY
Rafa, desculpe, tive que resolver um
problema sério na casa da Re, mas já tá tudo bem. Depois
eu te conto. Vocês ficaram bem?
RAFAEL
Foi tranquilo. Ele dormiu logo que você saiu
e não acordou. Eu ouvi você chegar e sair, não entendi
nada. Tá tudo bem? Você parece tensa, o que aconteceu?
MARY
Agora tá tudo bem... Vamos dormir, já tá
muito tarde...
RAFAEL
Vem cá...Já estava com saudade de você. A
festa foi legal?
MARY
Eu também. Foi. Pena que não deu pra você
ir, mas alguém tinha que ficar com nosso baby, né, amor?
Obrigada por ficar com ele.
RAFAEL
Tudo bem, você precisava dar uma saída mesmo
e curtir um pouco.
105.

MARY
É ... foi cansativo. Preciso descansar.
RAFAEL
Mas o que aconteceu que você saiu de novo e
só voltou agora?
MARY
Nem te conto...aliás, melhor não te contar.
RAFAEL
Então tá, vou voltar a dormir. Amanhã tenho
que acordar cedo, e você também. Boa noite.
MARY
Boa noite, amor. Tão bom ter você aqui
comigo.
(Mary se aninha em Rafael,
se encolhendo, tentando se recuperar da noite
tensa)

RAFAEL
Tão bom estar aqui com você também. Você
sabe que eu te amo, né?
MARY
Eu também te amo.
RAFAEL
Amor, queria falar contigo uma coisa.
MARY
Fala.
RAFAEL
Você quer casar comigo?
MARY
Mas, amor, a gente já tá meio casado.
RAFAEL
Eu queria casar com você na igreja, só pra
te ver toda linda de noiva.
MARY
Na igreja eu não posso amor, pois já casei
uma vez.
RAFAEL
Só queria te ver de noiva toda linda pra
mim.
106.

MARY
Sério?
RAFAEL
Homem também tem esse sonho...
MARY
É?
RAFAEL
É.
MARY
Então tá, a gente faz uma festa pra eu me
vestir de noiva e se casa no civil, serve?
RAFAEL
Pra mim tá ótimo. Eu só quero que a mãe do
meu filho seja minha esposa. Quero ser seu marido. Eu te
amo muito, Mary.
MARY
Você é demais, Rafa.
RAFAEL
Não, você que é... tudo pra mim. Você e o
nosso filho. Minha família!
MARY
É... somos uma família.
RAFAEL
Você parece tensa. Não quer casar comigo,
amor?
MARY
Eu, tensa? Não! Só tô cansada. Aconteceu uma
coisa muito tensa com a Re, só isso. Quero casar com você
sim, amor, claro!
RAFAEL
Você não quer me contar o que aconteceu?
MARY
A Amelia e a Re mataram o Zé da Morte e eu
e mais uma companheira delegada fomos ajudar a ocultar o
corpo, só isso, nada demais...
RAFAEL
Oi? Você tá brincando né?
MARY
(Rindo nervosamente)
107.

Não.

EXT.PRAIA DO LEBLON-DIA

UM ANO DEPOIS

Mary corre na praia ouvindo a mesma música do começo da


história.

MARY (VO)
Amanhã é aniversário da Renata. Hoje faz um
ano desde aquela noite fatídica. Nunca encontraram o corpo
do Zé, graças a Deus. Apodreceu sozinho e perdido no fundo
da ribanceira onde o jogamos. Ainda bem. Por um tempo fiquei
tensa com aquela situação, tive alguns pesadelos com aquele
demônio, mas depois que aprendi a rezar pela alma dele,
passou. Foi a Renata que me ensinou a rezar. Nunca tive
proximidade com a religião, mas com o batizado do meu filho,
as coisas mudaram. Orar e meditar fazem parte do programa
de 12 passos. Tinha implicância com religião, mas consegui
ver o lado bom. Tudo sempre tem um lado bom, cabe a gente
selecionar.
INT.IGREJA-DIA

Mary, Rafael, PAIS de Rafael, Renata, as companheiras,


Nanda e Bárbara estão na igreja batizando o FILHO de Mary
e Rafael. O PADRE abençoa o bebê. No final do batizado, na
porta da igreja, o padre conversa com o casal.

PADRE
Agora falta o casamento.
RAFAEL
Em breve, padre.
MARY
Pode deixar. Já estamos planejando. Pena que
não pode ser na igreja.

Mary e Rafael felizes cumprimentam os amigos. O bebê passa


sorridente de um colo para outro.

MARY (VO)
Eu tinha era muito preconceito contra a
religião. Hoje eu sei que religião e espiritualidade são
coisas diferentes. A religião é só uma maneira cheia de
defeitos, que o ser humano encontrou para tentar
desenvolver a espiritualidade. E o que é a espiritualidade?
É buscar e conhecer esse misterioso Poder Superior que rege
a vida e a felicidade, e é aprender a dominar esse poder
inferior que destrói a vida e a felicidade. É tão
108.

simples..., o complicado é entender essa simplicidade, é


conseguir produzir no coração essa alegria, esse amor, essa
paz que a gente chama de felicidade. A gente fica procurando
na matéria algo que está no espírito. Afinal, a felicidade
é um estado de espírito, não de matéria. Hoje tenho gratidão
pela igreja, a mesma que subjugou tanto as mulheres ao longo
dos séculos, hoje abriga uma irmandade que as salva e que
me salvou. Além de abrigar muitas outras de outros tipos
de dependências, que salvam muitas vidas no mundo todo.
Nada, nem ninguém é perfeito nesse mundo, nem o ser humano,
nem nenhuma religião, mas todas têm essa busca em comum por
esse Poder Superior misterioso que está em tudo, inclusive
dentro de nós. Cheguei à conclusão que esse Poder Superior
é a consciência e o amor. Amor é a força que faz a vida
acontecer. Consciência é o direcionamento que se dá a essa
força de forma construtiva. São as escolhas que fazemos,
sabe? Se as fazemos com consciência, estamos de acordo com
o Poder Superior, e no caminho da felicidade. Se fazemos
sem consciência, vamos pelo caminho destrutivo, da
infelicidade, da doença e da pobreza de espírito que acaba
virando pobreza na matéria, pois as más escolhas destroem
o corpo, a mente e o espírito de uma forma que acaba virando
pobreza material mesmo. O ser humano tem um animal, que é
seu instinto de sobrevivência e um Deus dentro de si, que
é a consciência. A consciência tem que domar esse animal,
pois se o animal não é domado, o ser humano bicho faz o
mundo virar uma selva infernal, no entanto, onde a
consciência evolui, fazendo um uso inteligente dessa força
animal, a felicidade prospera.

EXT.PRAIA-DIA.

Mary continua correndo na praia no final da tarde. Ela


encontra Rafael saindo do mar com sua prancha.

MARY
Oi amor!
RAFAEL
Oi linda! Você não ia pro grupo hoje?
MARY
Estou indo. A Renata tá esperando você pra
poder ir também.
RAFAEL
Já tô indo pra casa. Te espero em casa com
um jantarzinho hoje.
MARY
Hmmm, o que vai ter?
RAFAEL
Vou fazer uma sopa de brócolis.
109.

MARY
Hmmm, saudável...
RAFAEL
E de sobremesa... mousse de chocolate.
MARY
Hmmm, não tão saudável, mas gostoso...
RAFAEL
Te espero mais tarde então, deixa eu ir que
a Renata tá esperando.
MARY
Até mais tarde.
RAFAEL
Até mais, amor.

Mary continua sua corrida, chega na sua bicicleta trancada


no calçadão, a destranca e segue pelas ruas, indo em direção
a igreja onde há as reuniões de mada. Ela chega na igreja,
tranca a bicicleta e entra.

INT.NAVE DA IGREJA-NOITE

Mary entra pela nave da igreja, se benze e vai até o altar


fazer uma oração antes de ir para a sala. No altar tem uma
imagem da Virgem Maria. Ela fala com DEUS, que numa surpresa
irá responder e tem voz de mulher. É a voz dela mesma, com
tom calmo, sereno, angelical e com eco.
MARY (VO)
Poder Superior Divino, muito obrigada por
tudo, muito obrigada pela Graça Divina da Vida. Muito
obrigada por abrigar nossa irmandade aqui. Muito obrigada
pela saúde e felicidade da minha família. Muito obrigada
por eu continuar voltando aqui e fazer parte desse grupo
lindo de mulheres. Que as mulheres que ainda sofrem sendo
escravas e reféns de sua inconsciência e poder inferior
possam encontrar seus caminhos até aqui e juntarem-se a
nós. Que a reunião de hoje seja muito produtiva como sempre.
Perdão por eu sempre chegar suada, mas é que com essa
correria que é a vida... dá pra entender, né?
DEUS
Dá. Tá perdoada. Coisinha pouca perdoar
isso.
(Mary fica surpresa, olha
em volta, procurando de onde veio a voz.)
110.

MARY
(Meio desconfiada)

Obrigada... por me dar forças para correr e


lutar.
DEUS
Correr e lutar é ótimo, é o básico da
sobrevivência, mas quero mesmo é te ver perdoar todo mundo
que te machucou, e mais, quero ver você se perdoar por ter
machucado os outros, e por ter se maltratado tanto.
Consegue?
MARY
Oi?
DEUS
Consegue?
MARY
Vou tentar.
DEUS
Não! Tentar não. Faça ou não faça. Tentativa
não há.
MARY
Conheço essa frase...
DEUS
Mestre Yoda, Guerra nas Estrelas.
MARY
Ah, é...
Mary fecha os olhos como que buscando o sentimento de
perdão.

MARY
Não sei se consigo... é um desafio grande
demais, quando penso em quanta gente há nesse mundo que me
machuca, que me machucou, em quanto já machuquei os outros
e me machuquei também. Políticos, por exemplo...
DEUS
Luminosos seres somos nós. Todos. Somos
todos um.
MARY
Você quer o impossível.
111.

DEUS
Sinta o que eu sinto. Sinta a minha força.
Se sente as forças que te dou para correr e lutar, também
pode sentir as forças que te dou para compreender e perdoar.
MARY
(Tentando sentir)
É grande demais, não consigo.
DEUS
Sinta a minha força. Conecte-se com ela.

A nave da igreja parece ficar mais iluminada. Uma forte luz


ilumina Mary.

MARY
(Se emocionando, lágrimas brotam)
Eu estou sentindo... eu sinto, sinto mais
forte que nunca a sua força. Sim, eu perdoo. Perdoo a todos,
e principalmente a mim mesma. Essa força... essa força que
eu tô sentindo, essa força, é o amor?
DEUS
Sim. Essa força é o amor. Agora, vá, leve
esse amor por onde passar e ame demais de verdade a tudo e
a todos.
MARY
Obrigada. Amém.

Mary sai extasiante e emocionada em direção a sala. Ela vai


andando pela nave da igreja, observando seus detalhes e
imagens e tudo parece mais colorido e iluminado que antes.

MARY (VO)
E pensar que eu já odiei a igreja católica
por conta de seu histórico de queimar mulheres na
fogueira... Todo mundo erra tentando acertar. Quem nunca
pecou que atire a primeira pedra. Afinal, para acertar, a
gente tem que errar muito. É inevitável. É só pensar em
quantos tombos a gente leva até aprender a andar. Hoje essa
mesma igreja que queimou mulheres, as abriga e as salva
indiretamente. Muitas dessas mulheres nem são católicas.
São de outras religiões, atéias e agnósticas. É inspirador
e mágico ver a espiritualidade que flui nas irmandades.
Afinal, foi assim que eu concebi o meu Poder Superior, que
é essa parte de mim que reflete, que ora, que medita, que
agora fala comigo, que observa a minha jornada, e que tem
a tarefa importante de vigiar e comandar o meu poder
112.

inferior, que é esse bicho em busca da sobrevivência a


qualquer custo que eu tenho dentro de mim.

INT.SALA DE MADA-NOITE

Mary entra na sala e ajuda a prepará-la. As companheiras


vão chegando e se preparando para a reunião que está mais
cheia e tem caras novas. Lucia chega e vai cumprimentar
Mary.

LUCIA
Madrinha! Hoje vou trocar de fita! Um ano!
MARY
(Dando um forte abraço em
Lucia)

Parabéns!! Essa fita rosa de um ano de


irmandade é uma grande vitória. E é você que vai coordenar
hoje né?
LUCIA
É, hoje sou eu.
RENATA
Oi amada.
MARY
Oi! Ficou tudo tranquilo lá?
RENATA
Tudo ótimo, esperei o Rafa tomar um banho e
vim.
MARY
E a Nanda?
RENATA
Minha mãe pegou.

Todas se sentam a reunião se inicia.

LUCIA
Benvindas a mais uma reunião do Grupo Mada,
mulheres que amam demais anônimas.

As mulheres sorriem, oram, partilham, choram. Mary se


levanta para levar o lenço de papel a uma companheira nova
que chora.
113.

LUCIA
Meus primeiros meses aqui foram muito
difíceis, mas o programa realmente funciona. Só por hoje
estou serena e em paz. Cheguei aqui sofrendo muito, obcecada
por um homem casado. Fiz os passos, mergulhei na literatura
e consegui encerrar essa relação, apesar das investidas
dele e de toda tentação para continuar naquela encrenca.
Hoje sei o quanto estava doente, e se não fosse essa
irmandade, não sei o que seria de mim. Tenho muita gratidão
por essa sala, e hoje vou fazer minha troca de fita de um
ano de irmandade. Madrinha, por favor.

Mary se levanta e pega uma fita rosa em cima da mesa.

MARY
Oi, meu nome é Mary, sou uma Mada em
recuperação e madrinha da Lucia.
TODAS
Oi Mary!
MARY
Há um ano atrás, vi a Lucia chegar, sofrendo
muito, como todas nós que tivemos o milagre de entrar por
aquela porta. Ainda bem que você continuou voltando Lucia,
você é uma mulher incrível que merece ser muito feliz. Foi
muito gratificante acompanhar sua melhora e sua libertação
daquele relacionamento destrutivo que você alimentava não
só com seu professor casado, como com você mesma. É muito
lindo ver os processos de quem chega aqui nessa irmandade.
É muito divino ver o sofrimento virando libertação... ver
o desejo descontrolado virando amor próprio, ver o
despertar da consciência que salva e que leva à paz, à
serenidade e à felicidade. Por isso eu continuo voltando,
para ver outras histórias como a da Lucia acontecendo, e
continuo voltando também pois foi aqui que eu descobri que
não estou mais sozinha, e porque eu sei que não estou livre
de uma recaída e que terei que ficar vigilante pro resto
da vida. Aqui, além de ter vocês, mulheres fantásticas,
tenho a forte espiritualidade que encontro nesse
programa,tenho o Poder Superior que se manifesta aqui
nesses laços de companheirismo, de sororidade, e de amor
verdadeiro entre mulheres. Foi muito lindo, Lucia, ver você
vencer seu poder inferior, sua inconsciência, ver você
lutar e te apoiar foi muito inspirador. O amadrinhamento é
uma parte muito importante da recuperação não só para a
afilhada, mas para a madrinha também. Aprendi muito com
você, amada. Você contou comigo e eu contigo. A gente vê
como nada é por acaso. A Lucia acabou escolhendo ser
pediatra quando numa emergência com meu filho eu gritei
pelo socorro dela numa madrugada. Nessas horas a gente vê
como não está mesmo mais sozinha. Sei que que tem gente
aqui com quem eu até poderia contar pra ocultar um cadáver
se fosse preciso. Vocês são mulheres incríveis e amo muito
114.

todas você. Amo demais!!! Amo demais mesmo! Pra mim, o amor
de vocês é meu melhor final feliz.
(Mary olha para Renata com
cumplicidade)

RENATA
(Rindo nervosamente,
arregala os olhos, lembrando de Zé)

Imagina... a gente também te ama.


Todas riem. Renata, Amelia e Marina se entreolham rindo.
Mary pisca pra elas.

Mary olha pra câmera, e como uma repórter fala:

MARY
A vida é feita de muitos finais felizes. Às
vezes a gente esquece de assistir nossos próprios finais
felizes. Basta querer enxergar. Hoje eu busco encontrar
pelo menos um final feliz por dia. Seja num por de sol,
numa risada do meu filho, num abraço de uma companheira,
numa noite bem dormida... hoje olho pra trás e vejo que
tive muitos finais felizes. Meu casamento... nunca imaginei
que iria casar com um cara como o Rafa. Deus realmente é
quem manda na vida da gente.

EXT. MIRANTE - DIA.

Rafael e Mary se casam numa festa ao ar livre no mirante.


É o mesmo evento que foram muitas vezes, tem a mesma banda,
os food trucks, mas com tendas, mesas, pista de dança,
decoração de casamento e garçons. É o evento do mirante
transformado em casamento. Heloísa está com Ricardo.
Madalena com Mario, que está como convidado na festa, mas
supervisionando seu food truck que serve comida para o
casamento. Renata está acompanhada de um homem
interessante. Nanda e Bárbara brincam com outras crianças.
A mãe de Mary, com a tia cuidam do bebê de Mary sob a
supervisão de Renata. As companheiras do grupo dançam na
festa. Mary e Rafael se beijam na pista de dança.

MARY (VO)
Se a gente presta atenção, vê que a vida é
cheia de finais e começos. Nem todos são felizes, nem todos
são infelizes. Muitos, talvez a maioria, são bem felizes
sem a gente ver, pois não está prestando atenção.

INT.SALA DE MADA-NOITE

Mary entrega a fita rosa para Lucia, que se levanta. Elas


se abraçam e as outras aplaudem.
115.

MARY(VO)
E assim a gente vai vivendo, de final em
final, de começo em começo, dia após dia, transpondo
barreiras, superando obstáculos, aprendendo com os desafios
e encarando nossos destinos nesse grande mistério que é a
vida. Só por hoje, vivendo e deixando viver, focando nas
prioridades, vivendo na graça da Força Divina, entregue à
Ela e buscando deixar pra lá os prejuízos, perdoando,
alimentando a compaixão por si e pelos outros. A gente sabe
que tudo começa na gente, por isso a gente escuta e aprende,
mantém o simples e a mente aberta, só dando importância ao
que é realmente importante, quando dá e enquanto dá. O
importante é esse aqui e agora, entre irmãos, nesse milagre
que é a Criação desse Poder Superior misteriosos que nos
diz todos os dias que somos todos Um, e esse Um pode e
merece ser feliz.
FADE OUT.

FIM

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