Você está na página 1de 5

xxnn

HOMICÍDIOS

por certo, digna de lástima, a


Cousa é,

facilidade arrojo com que se come-


e
tem homicídios, sendo crime tão con-
trário, não só à lei divina, mas ainda à

natnreza humana.
Só o nome, ouvido, devia meter horror
(Homicidii facinus primus detestatur audi-
tus, disse Cassiodoro) e a muitos não mete
horror a obra executada.
Sendo o sexo feminino tão pusilânime, e a
sociedade conjugal tão íntima, ainda assim
não estão seguros os maridos das mulhe-
res, porquanto o que lhes falta de ânimo e
forças lhes sobra de traição e crueldade.
Egipto se chamou assim de um rei que
ali houve deste nome, irmão de Danau. Este

teve cinquenta filhas, e Egipto cinquenta fi-

lhos. Concertaram casar estas duas cáfilas


de primos e primas. Porém elas, por conse-
lho de Danau, na primeira noite mataram
H
210 ANTOLOGIA

os maridos, excepto uma, que foi liai ao


seu.

4 Pois que direi dos venenos que se teem


inventado ?

Autor há que só dos antigos conta qui-


nhentas espécies, uns tão ligeiros que, ao
abrir uma carta, ou cheirar uma rosa, ao
pôr o pé no estribo, ao calcar uma luva,
cai a pessoa desta vida na outra. Deste
último modo foi morto o imperador Otão III,
chamado o Mirabilia Mundi, sendo de vinte
e oito anos. Outros tão lentos, para se cobrir
mais a aleivosia, que, bebidos na índia, v.
g. ao embarcar-se a pessoa, vem a morrer
no fim da viagem. Outros tão sacrílegos, que
se atrevem a mistUrar-se nas espécies sa-
cramentais, fazendo do instrumento da vida
veículo da morte. Deste modo se escreve
que morreram o papa Vítor III e o impera-
dor Henrique Lucelburgense.
As barbas do tigre são tão refinadamente
venenosas que, sem remédio algum, matam
até à mesma fera, se bebeu de sorte que a
água tocasse nelas; por isso observam (1)

(l) = usam, costumam.


:

BERNARDES 211

(tendo por mestre o natural instinto) beber


da parte que a corrente desce.
O grão Mogor vedou, com severas leis,
que ninguém guarde este género todo vai ;

para seu rial tesouro, para fazer daqui pí-


lulas com que mate breve e caladamente os
que lhe não agradarem. De sorte que tem
este bárbaro os homicídios desta casta por
estanque (1), e, para matar êle só, proíbe
que os outros matem. Em-fira, que não há
inimigo pior para um homem do que outro
homem: poderá cada uma das outras cria-
turas íazer-lhe mal consigo; mas o homem
lhe pode fazer mal com todas.

Porém nada ficará impunido no Juízo de


Deus, especialmente este delito do homicídio
aleivoso, o qual ainda nesta vida castiga com
demonstrações da sua ira, terríveis e eviden-
tes. Inumeráveis são os casos que provam
esta verdade. Agora me contento com refe-
rir dois, notáveis.

O primeiro é de Popielo, rei de Polónia,


que sucedeu a seu pai Popielo I, o qual cos-
tumava praguejar nesta forma

(I)=casa de venda de artigos monopolizados;


monopólio.
212 ANTOLOGIA

— Se fôr assim, comido seja eu e meus


filhos,de ratos.
Desenfreado, pois, o filho em maldades
publicamente escandalosas, dois irmãos seus
lhe quiseram ir à mão; do que êle, indignado
os mandou matar ocultamente. Pouco de-
pois, estando em público comendo com a
rainha, que era cúmplice em seus excessos,
foi tanta a multidão de ratos que saíram dos

cadáveres dos irmãos que, sem aproveitar


diligência alguma, de ferro, água ou fogo,
ninguém finalmente lhe pôde valer, que os
ratos não comessem a êle e à rainha. Era
espectáculo verdadeiramente horrível vê-los
entrar e sair, a uns, por uma, e outros por
outra parte, daqueles miseráveis corpos e, ;

se os tiravam por força, sobrevir muitos


mais, manando perenemente da fonte dos
outros dois corpos, se mortos para criar
sevandijas (i), vivos para tomar vingança.
Cessou a praga, só quando lhes acabaram
de roer os ossos.

O outro caso é Que havendo fome em


:

uma terra, saíram dois pobres a buscar em


outra com que sustentar a vida. Encontra-

(i)« bichos, parasitas.


BERNARDES 213

ram-se com outro peregrino, que ia em


romaria a Santa Valvurga. E, fingindo que
levavam a mesma derrota, se chegaram para
o seu alforjinho, donde êle os convidou
amigávelmeute.
Logo, cobiçosos do mais que ali vinha,
determinaram de o matar quando dormisse.
Assim o fizeram, à falsa fé; e um deles car-
regou com o cadáver para o lançar em uma
barroca. Porém Deus ordenou que o defunto
se abraçasse com o vivo tão fortemente, que
ou ambos haviam de ficarem cima, ou ambos
precipitar.
O cúmplice, fugiu espantado. Estoutro, que
tinha a principal culpa, por haver sugerido
o ponto e começado a execução dele, não
sabia que fizesse. Por mais esforços e dili-

gências que repetia, morrendo vivo às


ia
mãos do morto, porque no morto estava a
Divina Justiça viva, e no vivo a humana es-
perança morta.

(Nova Floresta, Justiçai

Você também pode gostar