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XXIY

CALÚNIA BIS IMPERATRIZ

ano de 998, caminhando o impera-


No dor Otão III para Roma, se aposentou
em uma vila por nome Amula, perto
da cidade de Módena, que é na Gália Cisal-
pina, onde o hospedou magnificamente um
conde, que era senhor daquele lugar ca- —
valheiro casado, em quem com rara e admi-
rável concórdia se uniam o ilustre do sangue,
o copioso das riquezas, o florido da gentileza
e o ajustado dos bons procedimentos.
Neste empregou os olhos a imperatriz Ma-
ria, filha del-rei de Aragão os olhos, digo,
;

tão mal intencionados, que ninguém o


tais

pudera esperar daquele estado tão alto, nem


daquele nome tão puro, nem daquela geração
tão ilustre. Não duvidou (soprada daquele in-
fernal álito que acende os carvões em brasa)
declarar-se, como outra mulher de Putifar
com outro José. Da parte deste se pôs o
horror do pecado, que não achara lugar onde
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o devera ter mais certo. E, assim, com toda


a inteireza guardou de um heróico lanço três
fés: aDeus, ao imperador e a sua mulher pró-
pria, à qualdepois ajudou aquele Senhor do
Céu, para convencer estoutro da terra, como
já vamos a referir.
l Que faria a imperatriz neste caso, mulher,
e senhora, e desprezada de seu inferior em
tal matéria?
Ardeu, de repente, em ódio, como ardera
em concupiscência; e prosseguiu a imitação
começada, da mulher de Putifar. De provo-
cante se fingiu provocada, e a inteireza alheia
vestiu como própria, delatando o inocente
conde ao crédulo imperador.
Viu-se aqui como é certo o que disse o
filósofo estóico :Que o que ouvimos de má
vontade, de boa o cremos, e a ira se nos an-
tecipa ao juízo.
As causas deste género não são para muito
discutidas, principalmente onde a honra, como
vidro, igualmente é nítida que frágil. Em-fim
o cutelo se pôs na garganta do conde, antes
que pudesse formar vozes para sua defensa.
Sabendo isto a condessa, que já estava no-
ticiosa de inocência de seu marido, correu
como furiosa ao lugar onde a pena se exe-
cutara; e, levando nas mãos a cabeça de seu
! :

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liai e amado consorte (nisto parecida com a


do grande Baptista, pois era também vítima
da castidade), tornou a correr onde o impe-
rador estava dando audiência e administran-
do justiça; e, arremessando lha aos pés em
presença de todos, clamou, com força e alen-
tos que lhe dava a sua dor vivíssima
— j Justiça, justiça sobre o mesmo juiz, pois
èle mesmo é o réu
Estremeceu o imperador e admiraram-se
todos.
Faltavam testemunhas; e os clamores de
uma viúva sempre fazem lástima, mas nem
sempre fé; porem em faltarem testemunhas
humanas consistiu a ventura de provar o de-
lito- Ofereceu a autora de o provar com fogo

(género de prova irrefragável, naqueles tem-


pos usada). Não pôde o imperador publica-
mente negar este ádito (1), porque seria con-
fessar o seu arrojo, (2) o qual ainda não cria.
Aparelham-se todas as cousas; concorre
numerosa plebe e nobreza; põe-se em viva
brasa uma barra de ferro. Deseja Otão ver

(1) — entrada, vestíbulo. Aqui significará antes


caminho ou processo.
(2) Talvez : o arrastamento da sua honra ; a
sua desonra.
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naquele verídico exame antes repetido o va-


lorde Scévola, do que o milagre da fornalha
de Babilónia.
A varonil matrona, chamando a si com os
olhos os de todos, pega com mãos intrému-
las do metal abrasado ; aperta-o nelas tão
ilesa, como se tratara flores, queimando-se
entretanto as entranhas do imperador, ató-
nito com a maravilha.
Levanta se um confuso murmurinho nos
circunstantes, voltando as cabeças uns para
os outros e repreguntando o mesmo que vi-

ram com os seus olhos. Animada a matrona


com o aplauso do teatro e com a clareza do
testemunho do Céu, solta a voz e não duvida
pedir confiadamente à espada do imperador
a execução da pena de talião contra êle
mesmo.
Tão diferentes eram destes aqueles tem-
pos que Otão, ou envergonhado da publici-
dade do seu erro, ou zeloso de dar satisfação
à parte ofendida e alívio à sua consciência
gravada (1), prometeu pagar o que se lhe de-
mandava, Õ raro amor da justiça! Só esta
j

sentença tua podia igualar os braços da sua

(1) = oprimida, carregada.


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balança. Pediu, todavia, breves tréguas, para


dispor algumas cousas precisas.
As mãos do tempo que se prorrogava
teem força para afrouxar o garrote das mais
apertadas dificuldades; e entretanto os prin-
cipais senhores instaram à viúva pelo perdão.
Ela se fechava dentro dos muros da sua dor
recente, presidiados (1) com o testemunho
claro da justiça. Muitos assaltos foram ne-
cessários para entrá-la (2) até que se rendeu
a partido (3) isto é, que a autora da calúnia,
Maria adúltera, imperatriz indigna, fosse di-

gno pasto de uma fogueira.


O tão, uma vez que ardera a sua honra,
veio em que ardesse a sua infâmia: só com
os fumos dôste incêndio podia afugentar os
daqueloutro. Raro espectáculo, cuja miséria
puxava pelas lágrimas de todos, cuja recti-
dão logo as secava.
Ardeu, em-fim, a infeliz Maria, porventura
mais infeliz, se não ardesse; porque, quanto
nesta vida pagamos, tanto na outra não de-
vemos. E nas suas cinzas, tantas vezes re

(i) = guarnecidos, como as muralhas de uma


fortaleza; defendidos.
(2) = demovê-la vencê-la.
;

(3) = transigência, composição.


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194 ANTOLOGIA

volvidas quantas este exemplar caso se refere,


nos deixou achar as doutrinas de que a car-
ne dos poderosos não deve tratar-se como
isenta de padecer fraquezas; de que a ino-
cência e verdade teem por si a Deus, autor
delas; de que a calúnia deve ser dificilmen-
te crida e severamente castigada de que a
;

virtude tudo vence, e de que a maldade em


nenhuma parte está segura.

(Nova Floresta, Calúnia).

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