No dor Otão III para Roma, se aposentou em uma vila por nome Amula, perto da cidade de Módena, que é na Gália Cisal- pina, onde o hospedou magnificamente um conde, que era senhor daquele lugar ca- — valheiro casado, em quem com rara e admi- rável concórdia se uniam o ilustre do sangue, o copioso das riquezas, o florido da gentileza e o ajustado dos bons procedimentos. Neste empregou os olhos a imperatriz Ma- ria, filha del-rei de Aragão os olhos, digo, ;
tão mal intencionados, que ninguém o
tais
pudera esperar daquele estado tão alto, nem
daquele nome tão puro, nem daquela geração tão ilustre. Não duvidou (soprada daquele in- fernal álito que acende os carvões em brasa) declarar-se, como outra mulher de Putifar com outro José. Da parte deste se pôs o horror do pecado, que não achara lugar onde 100 ANTOLOGIA
o devera ter mais certo. E, assim, com toda
a inteireza guardou de um heróico lanço três fés: aDeus, ao imperador e a sua mulher pró- pria, à qualdepois ajudou aquele Senhor do Céu, para convencer estoutro da terra, como já vamos a referir. l Que faria a imperatriz neste caso, mulher, e senhora, e desprezada de seu inferior em tal matéria? Ardeu, de repente, em ódio, como ardera em concupiscência; e prosseguiu a imitação começada, da mulher de Putifar. De provo- cante se fingiu provocada, e a inteireza alheia vestiu como própria, delatando o inocente conde ao crédulo imperador. Viu-se aqui como é certo o que disse o filósofo estóico :Que o que ouvimos de má vontade, de boa o cremos, e a ira se nos an- tecipa ao juízo. As causas deste género não são para muito discutidas, principalmente onde a honra, como vidro, igualmente é nítida que frágil. Em-fim o cutelo se pôs na garganta do conde, antes que pudesse formar vozes para sua defensa. Sabendo isto a condessa, que já estava no- ticiosa de inocência de seu marido, correu como furiosa ao lugar onde a pena se exe- cutara; e, levando nas mãos a cabeça de seu ! :
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liai e amado consorte (nisto parecida com a
do grande Baptista, pois era também vítima da castidade), tornou a correr onde o impe- rador estava dando audiência e administran- do justiça; e, arremessando lha aos pés em presença de todos, clamou, com força e alen- tos que lhe dava a sua dor vivíssima — j Justiça, justiça sobre o mesmo juiz, pois èle mesmo é o réu Estremeceu o imperador e admiraram-se todos. Faltavam testemunhas; e os clamores de uma viúva sempre fazem lástima, mas nem sempre fé; porem em faltarem testemunhas humanas consistiu a ventura de provar o de- lito- Ofereceu a autora de o provar com fogo
(género de prova irrefragável, naqueles tem-
pos usada). Não pôde o imperador publica- mente negar este ádito (1), porque seria con- fessar o seu arrojo, (2) o qual ainda não cria. Aparelham-se todas as cousas; concorre numerosa plebe e nobreza; põe-se em viva brasa uma barra de ferro. Deseja Otão ver
(1) — entrada, vestíbulo. Aqui significará antes
caminho ou processo. (2) Talvez : o arrastamento da sua honra ; a sua desonra. 192 ANTOLOGIA
naquele verídico exame antes repetido o va-
lorde Scévola, do que o milagre da fornalha de Babilónia. A varonil matrona, chamando a si com os olhos os de todos, pega com mãos intrému- las do metal abrasado ; aperta-o nelas tão ilesa, como se tratara flores, queimando-se entretanto as entranhas do imperador, ató- nito com a maravilha. Levanta se um confuso murmurinho nos circunstantes, voltando as cabeças uns para os outros e repreguntando o mesmo que vi-
ram com os seus olhos. Animada a matrona
com o aplauso do teatro e com a clareza do testemunho do Céu, solta a voz e não duvida pedir confiadamente à espada do imperador a execução da pena de talião contra êle mesmo. Tão diferentes eram destes aqueles tem- pos que Otão, ou envergonhado da publici- dade do seu erro, ou zeloso de dar satisfação à parte ofendida e alívio à sua consciência gravada (1), prometeu pagar o que se lhe de- mandava, Õ raro amor da justiça! Só esta j
sentença tua podia igualar os braços da sua
(1) = oprimida, carregada.
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balança. Pediu, todavia, breves tréguas, para
dispor algumas cousas precisas. As mãos do tempo que se prorrogava teem força para afrouxar o garrote das mais apertadas dificuldades; e entretanto os prin- cipais senhores instaram à viúva pelo perdão. Ela se fechava dentro dos muros da sua dor recente, presidiados (1) com o testemunho claro da justiça. Muitos assaltos foram ne- cessários para entrá-la (2) até que se rendeu a partido (3) isto é, que a autora da calúnia, Maria adúltera, imperatriz indigna, fosse di-
gno pasto de uma fogueira.
O tão, uma vez que ardera a sua honra, veio em que ardesse a sua infâmia: só com os fumos dôste incêndio podia afugentar os daqueloutro. Raro espectáculo, cuja miséria puxava pelas lágrimas de todos, cuja recti- dão logo as secava. Ardeu, em-fim, a infeliz Maria, porventura mais infeliz, se não ardesse; porque, quanto nesta vida pagamos, tanto na outra não de- vemos. E nas suas cinzas, tantas vezes re
nos deixou achar as doutrinas de que a car- ne dos poderosos não deve tratar-se como isenta de padecer fraquezas; de que a ino- cência e verdade teem por si a Deus, autor delas; de que a calúnia deve ser dificilmen- te crida e severamente castigada de que a ;