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XXY

JIA17S JUÍZES
E BOIS EMPENHOS

Corria diante de D. Baltasar Moseoso,


arcebispo de Toledo, um pleito ma-
trimonial entre pessoas da primeira
nobreza; e uma das partes, que servia a
el-rei em ofício honroso, alcançou dele carta
de favor para o arcebispo, em que lhe pedia
com empenho que o amparasse. Respondeu
o arcebispo a el-rei

— Que lhe guardaria justiça, porque a.


matéria não era de graça, nem sujeita a
seu arbítrio.

Aqui teem os juízes uma boa fórmula


para responder a semelhantes cartas de
valia (1). E, se o intercessor é pessoa de

(i) = de empenho.
:

196 ANTOLOGIA

quem se entende (como deve entender-se de


todos) que não quere se corrompa a justiça,
em vão confiam os litigantes em semelhan-
tes cartas, porque não servem de abalar
o juízo em ordem à sentença, senão de
contemporizar com a pai te em ordem à sua
esperança; e, por lhe não dar um não desa-

brido, lhe dá um sim inútil. E muitas vezes


desejam que não suceda o mesmo que pedem;
ou de tal sorte pedem, que ajudam a que
lho neguem.
Mas, se algum juiz ou ministro, eclesiás-
tico ou secular, declinar das obrigações do
seu ofício por respeito de semelhantes cartas,
ou quaisquer outras dependências terrenas,
tema, que pode aquele Supremo Senhor
que se preza de julgar as justiças Ego jus-
:

titias judicabo, mandá-lo por outra carta

citar para o seu juízo do qual não há ape-


lação nem agravo.
Traslado de bons autores um terribilís-

simo exemplo, que não é forasteiro nem


mui antigo

No ano de 1614 conta o padre Vergílio


Cepário, Companhia de Jesus, o se-
da
guinte, caso,que afirma havê-lo sabido de
duas testemunhas de vista, da mesma Com-
:

BERNARDES 197

panhia, que se acharam presentes; e passou


assim
Poucos anos antes havia neste reino de
Portugal um juiz, no exterior pio e religio-
so, que comungava cada oito dias e fazia
outras obras de virtude porém tinha um ;

vício, prejudicial a si e a todos, que era


uma entranhável cobiça, tão apoderada de
sua alma que não deixava pedra por mover
para enriquecer-se e acrescentar seu cabe-
dal, fazendo quantas extorsões podia aos

que negociavam (1) no seu tribunal.


Vindo, pois, um dia, para sua casa, lhe
saiu ao encontro um homem desconhecido
e lhe pôs nas mãos uma carta com sobres-
crito para êle, e logo desapareceu. Abriu o
juiz, e leu. ^De quem seria ? ^Ou que aviso-
lhe traria?
Era uma citação peremptória do mesmo (2)
Deus para diante do seu Tribunal. Enfiou-se
de morte, areou (3) a vista, tremiam os pas-
sos, todo entrou em escuras ondas de tur-
bação, que o não deixavam formar palavra.
Levaram-no em braços para a cama, e

(1) = litigavam.
(2)= próprio.
(3) = turvou-se-lhe.
.

198 ANTOLOGIA

naquele aposento apareceram logo vinte e


sete demónios, com igual temor seu, e es-
panto dos que lhe assistiam, dos quais mui-
tos fugiram. Porém os demónios, fazendo
seu ofício, tomaram, os vinte deles, posse
daquele corpo, entrando -lhe pela boca; e os
sete ficaram fora, como fazendo escolta e
guarda aos que estavam dentro.
Os parentes e familiares do miserável ava-
rento, desejando o seu remédio, trouxeram
sacerdotes que conjurassem os demónios,
os quais começaram a defender- se e mal-
tratar de palavras aos circunstantes, desco-
brindo os pecados de cada um publicamen-
te. Os vinte que estavam acastelados no
corpo daquele miserável o atormentavam
terrivelmente.
Os sacerdotes conjuravam a uns e ou-
tros pondo maior esforço contra os sete
; e,

que estavam no aposento, fizeram despejar


seis deles. O sétimo que restava, e era mais
emperrado, disse para os vinte de dentro :


% Que vos detendes com
a presa nas

unhas ? . .

(Nova Floresta, Justiça)

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