Objetos Selvagens

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OBJETOS SELVAGENS

editado por
Godofredo Pereira

Martin Holbraad
Graham Harman
João Maria Gusmão
Bjørnar Olsen
Eyal Weizman
Reza Negarestani
Susan Schuppli
Jonathan Saldanha
Regina de Miguel
Michael Taussig
Marcello Maggi
Ayesha Hameed
Paulo Tavares
Godofredo Pereira
O B J E T O S S E LVA G E N S

9 prefácio

i.

15 As Coisas enquanto Conceitos:


Antropologia e Pragmatologia
— Martin Holbraad

31 Das Supostas Sociedades de


Elementos Químicos, Átomos,
e Estrelas em Gabriel Tarde
— Graham Harman

45 Solilóquio, Um Anão na Estratosfera


— João Maria Gusmão

71 O Regresso das Coisas e a Selvajaria


do Objeto Arqueológico
— Bjørnar Olsen
ÍNDICE

ii.

87 Para Além dos Cálculos


— Uma Conversa com Eyal Weizman

101 Uma Iluminação Vertiginosa


(O JWST e a visão telescópica do objeto)
— Reza Negarestani

119 Matéria Impura:


Um Estudo Forense do Pó do Wtc
— Susan Schuppli

141 Mediações Vibracionais


— Jonathan Saldanha

157 Um Efeito de Verosimilitude


— Regina de Miguel
O B J E T O S S E LVA G E N S

iii.

169 Inconsciente Corporal


— Uma conversa com Michael Taussig

183 A Torre e o Seu Fantasma


Uma Narrativa Cosmopolítica do Botswana
— Marcello Maggi

199 A Petrificação da Imagem


— Ayesha Hameed

217 Sobre o Objeto-Terra


— Paulo Tavares

235 Subsolo
Feiticismo territorial na Venezuela
— Godofredo Pereira

253 créditos de imagens


257 biografias
263 agradecimentos
P R E FÁ C I O

O que se ganha com propor que os objetos falam? O que é que o


recente interesse pelas coisas e pelo não-humano têm em comum?
E que conflitos emergem no âmbito desta aparentemente con-
sensual perda da centralidade do humano para o problema do
conhecimento?
Nos últimos anos temos testemunhado um incremento de
interesse por objetos, coisas, ou mais alargadamente, atores não-
humanos - num gradual afastamento de questões ligadas ao texto,
linguagem ou discurso que dominaram as últimas décadas, ou,
como se diz também, um desaparecimento do ser humano como
o ponto de referência central para pensar o mundo. A alegação
de que se trata de uma mudança consensual é confirmada pelo
aparecimento de numerosas publicações sobre a relevância de
atores não-humanos em campos tão diversos como a arqueologia,
os estudos de ciência, antropologia, filosofia, história, arte e arqui-
tetura; investigações em que a divisão entre natureza e cultura
ou entre humanos e não-humanos é apagada, onde complexos
agenciamentos de pessoas e coisas desafiam os procedimentos do
pensamento, e onde o terreno sobre o qual a própria modernidade
foi fundada se torna objeto de disputa. No entanto, se olharmos
atentamente para as diferentes formas em que estes temas estão
a ser discutidos, desaparece imediatamente a imagem de uma
viragem uniforme, e vemos que as recentes tentativas de eman-
cipar os objetos são subordinados e diferenciadas pelas práticas

9
O B J E T O S S E LVA G E N S

nas quais emergem. Com isto em mente, o presente livro tenta


pela primeira vez reunir vários diferentes fóruns nos quais os
objetos conquistaram uma nova atenção, sugerindo que os con-
flitos decorrentes de encontros fortuitos entre investigadores
podem ser mais produtivos do que uma consensual viragem para
o pós-humanismo.
O livro toma como ponto de partida duas noções conhecidas,
objetos e selvagens, por referência a um Pensamento Selvagem
que provocativamente torcemos sobre si mesmo, trazendo à tona
não o pensamento em si, mas o seu objeto e a resistência que
este oferece ao pensamento. Solicitamos contribuições a partir
de campos muito diferentes para responder a esta provocação -
filósofos, arqueólogos, antropólogos, activistas, arquitetos ou
artistas - para incidir não só sobre o objeto em si, mas também
sobre as práticas dentro das quais são constituídos e os territó-
rios a que se referem. Enquadrando estas discussões tanto em
investigações sobre objetos, assim como em âmbitos académicos
- em áreas que vão desde a produção textual, fóruns jurídicos, a
migração de imagens, performance de estado ou explorações
acústicas – esta especulação sobre objetos e coisas torna-se tam-
bém uma discussão sobre diferentes ecologias de pensamento,
conferindo assim ao debate dimensões pragmáticas e políticas
muitas vezes postas de lado. Em última análise, nossa esperança
é que, ao reunir um conjunto tão diverso de práticas, se possam
sugerir novas linhas de pensamento e que espaços para novas
alianças possam ser forjados.

Godofredo Pereira

10
I
As Coisas enquanto Conceitos:
Antropologia e Pragmatologia
Martin Holbraad

Muito foi escrito, dentro da antropologia, sobre a possibilidade


de uma ciência social crítica pós-humanista capaz de emancipar
as ‘coisas’ (objetos, artefatos, materialidade, etc.) da armadilha
dos laços epistemológicos e ontológicos do ‘humanismo’, ‘logo-
centrismo’ e outros imaginários modernistas.1 O objetivo deste
ensaio é fazer avançar esse projeto ao explorar as possibilidades
de uma analítica antropológica que seja capaz de permitir às
coisas – com o que quero dizer algo parecido a ‘as coisas em si
mesmas’, embora apenas no estrito sentido heurístico que em
breve especificarei – para gerar os seus próprios termos do compro-
misso analítico. Poderia a festejada emancipação pós-humanista
da coisa vir a mostrar-se composta na sua peculiar capacidade de
perturbar quaisquer suposições ontológicas que, como analistas,
poderíamos fazer sobre ela (inclusive, possivelmente, as premissas
ontológicas de uma ‘reviravolta pós-humanista’)? Poderiam as
coisas decidir por si mesmas o que são, e assim se emanciparem

1
E.g. Marilyn Strathern, "Artefacts of history: events and the interpretation of ima-
ges", em Culture and History in the Pacific, ed. J. Siikala (Helsinki: Transactions
of the Finish Anthropological Society, 1990), 25-44; Alfred Gell, Art and Agency:
An Anthropological Theory (Oxford: Clarendon Press, 1998); Bruno Latour, Reas-
sembling the Social (Oxford: Oxford University Press, 2005); Daniel Miller, "Mate-
riality: an introduction, em Materiality, ed. D. Miller (Durham & London: Duke
University Press, 2005), 1-50.

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O B J E T O S S E LVA G E N S

de nós que nos havíamos atrevido a dizer-lhes? Podiam elas, de


outra forma, tornarem-se nos seus próprios teoristas da coisa,
atuando como os originadores (em vez dos objetos) das nossas
conceptualizações analíticas?2
Tais perguntas, presumo, consumariam a promessa de um
pensamento eminentemente ‘selvagem’: atuação dos objetos não
simplesmente como canais do pensamento das pessoas que o
antropólogo estuda (aqueles a que se costumava chamar ‘selva-
gens’), mas ao invés como canais do pensamento antropológico
em sí mesmo. Os objetos, então, tornam-se a base não só para ‘a
ciência do concreto’ dos selvagens, como o próprio Lévi-Strauss
diria,3 mas também para pensamentos que são selvagens o bas-
tante para perturbar a economia conceptual da própria análise,
inclusive a análise antropológica (que tomarei aqui como meu
ponto de partida). Permitam-me ilustrar o que uma tão ‘selvagem’
concreção da antropologia poderia parecer com referência ao
aché – uma das noções mais básicas implicadas na prestigiada
tradição afro-cubana da divinação de Ifá, que tenho estudado
etnograficamente em Cuba desde 1998.

O poder do pó

Muito como a notória noção de mana na Oceânia, o aché é um


termo que os babalawos, que é o que se chama aos homens ini-
ciados no culto de Ifá, usam numa grande variedade de contextos.
Mais marcadamente, usam-na para referirem tanto de forma

2
Cf. Eduardo Viveiros de Castro, And (Manchester: Manchester Papers in Social
Anthropology, 2002).
3
Claude Lévi-Strauss, The Savage Mind (Oxford: Oxford University Press, 1966).

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abstrata o seu ‘poder’ ou ‘faculdade’ de adivinhar, pela o qual


obtiveram o seu renome (‘para adivinhar deve-se ser aché’, diz-se);
como, de forma mais concreta, a certos pós que consideram para
ser um ingrediente ritual principal para fazer com que divindades
apareçam e ‘falem’ durante a divinação. Entre os muitos modos
pelos quais o pó especialmente preparado é considerado necessá-
rio para o ritual Ifá, provavelmente o mais notável é o seu papel
como um ‘registo’ das configurações divinatórias pelas quais
se diz que Orula, deus da divinação, é capaz de ‘falar’ durante
o ritual. Espalhado na superfície do tabuleiro divinatório con-
sagrado que os babalawos usam para as divinações mais ceri-
moniosas que levam a cabo para os seus clientes (em particular
durante a iniciação de neófitos), este pó torna-se o meio pelo qual
as palavras de Orula aparecem. Isto acontece sob a forma de uma
série de ‘signos’ (também mencionados no Yoruba original como
oddu) que são marcados pelo babalawo na superfície do pó, após
um complexo processo divinatório no qual as nozes de palma
consagradas são usadas para gerar configurações divinatórias
distintas, cada qual correspondendo ao seu próprio sinal. Às
vezes consideradas como aparências externas do próprio Orula
(ou os seus ‘caminhos’ ou ‘representantes), estas figuras, que
compreendem oito linhas únicas ou duplas desenhadas no pó
pelo babalawo com os dedos do meio e anular, são consideradas
como divindades potentes por seu próprio direito que ‘saem’ na
divinação: agachados em volta do tabuleiro divinatório enquanto
‘marcam o signo’, os babalawos e os que os consultam estão em
presença de um ser divino, um símbolo que a si mesmo significa,
se alguma vez tal houve.4

4
Sensu Roy Wagner, Symbols that Stand for Themselves (Chicago: University of
Chicago Press, 1986).

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O B J E T O S S E LVA G E N S

De forma crucial, os babalawos acentuam o facto de o próprio


pó ser um ingrediente indispensável para a realização de tais
elicitações do divino. Propriamente preparado segundo receitas
secretas que só os babalawos conhecem, o aché de Orula, como
o pó é referido neste contexto, tem o poder de tornar divindades
presentes. O pó Aché faz isto não só por fornecer a superfície na
qual elas possam aparecer no tabuleiro divinatório, mas também
porque é um ingrediente necessário à consagração de cada um
dos vários objetos usados na divinação, inclusive o tabuleiro
divinatório, as nozes de palma e vários outros itens que os baba-
lawos devem consagrar para o uso divinatório durante a sua
própria iniciação. Como explicam, nenhum destes itens ‘trabalha’
a menos que eles sejam propriamente consagrados, e isto deve
implicar ‘carregá-los com acheses’, isto é com o pó aché, segundo
procedimentos secretos.

Conceitos contra coisas

Numa outra situação já expliquei de que formas a noção de aché


tão gritantemente exemplifica algumas preocupações centrais
que informam a teorização de Lévi-Strauss do pensamento sel-
vagem, tais como as ‘antinomias’ que associou aos ‘significantes
flutuantes’ que podem significar qualquer coisa – por exemplo,
tanto poder como pó – porque, em si, não significam nada.5 Aqui

5
Claude Lévi-Strauss, Introduction to the Work of Marcel Mauss, trad. F. Barker
(London: Routledge & Kegan Paul, 1987). Ver Martin Holbraad, "The power of pow-
der: multiplicity and motion in the divinatory cosmology of Cuban Ifá (or mana
again), em Thinking Through Things: Theorising Artefacts Ethnographically, ed. A.
Henare et al. (London & New York: Routledge, 2007), 189-225. Ver também Matin

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podemos chamar atenção apenas para o facto de que, visto de


dentro do prisma das preocupações antropológicas que o argu-
mento de Lévi-Strauss dos significantes flutuantes exemplifica, o
caso do aché levanta problemas antropológicos clássicos sobre as
credenciais de racionalidade daquilo a que quase na brincadeira
chamou de ‘pensamento selvagem’. Muito como com controvérsias
antropológicas clássicas sobre as assim chamadas ‘crenças ao que
parece irracionais’ (os gémeos Nuer serem pássaros, os homens
Bororo serem araras vermelhas, e assim por diante), parece que
somos aqui confrontados com uma série de noções que são contra-
intuitivas, para mais não dizer. Certamente, poderia parecer que
a coincidência terminológica de aché em poder e pó corresponde
a uma coincidência ontológica, uma vez que, como afirmam os
babalawos, o poder de um adivinho para licitar a presença de
divindades é irredutivelmente uma função da sua capacidade
de usar o pó consagrado à sua disposição enquanto iniciado. O
pó, neste sentido, é poder. E isto pareceria levantar a pergunta
antropológica clássica: porque haveriam os adivinhos cubanos e
os seus clientes de ‘acreditarem’ em tal noção? Como explicamos
antropologicamente esta ‘crença ao que parece irracional’?
Deve observar-se, contudo, que este modo ‘clássico’ de
colocar a questão recebe o seu poder daquilo a que se poderia
chamar de sua própria perversidade inerente. Até mesmo para
perguntar porque é que certas pessoas poderiam acreditar que
um certo tipo de pó tem o poder de invocar a presença de certas
divindades, tem-se primeiro de acreditar que tal não pode (ou não
deve) ser o caso em primeiro lugar. Especialmente, a suposição

Holbraad, Truth in Motion: the Recursive Anthropology of Cuban Divination (Chi-


cago: University of Chicago Press, 2012).

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O B J E T O S S E LVA G E N S

de que a questão antropológica pertinente consiste no porquê


das pessoas poderem ‘acreditar’ de tal forma que o pó é poder,
ativa a suposição corolária de que tal crença pode ser analisada
como a forma particular através da qual as pessoas em questão
‘representam’ os objetos no seu meio, a saber, neste caso, repre-
sentando (significando, imaginando, construindo socialmente
etc.) o pó como poder. E isto, por sua vez, assenta naquele axioma
ontológico fundacional ao pensamento direto modernista, ou
seja, a distinção entre coisas como estão no mundo e conceitos
vários e variáveis que as pessoas possam anexar-lhes. De facto,
enquanto a análise de aché permanecer dentro dos termos de uma
distinção axiomática entre coisas e conceitos, não pode senão
fazer a pergunta em termos de representações, crenças, constru-
ções sociais e assim por diante. Desde que ‘sabemos’ que o pó é
somente a coisa poeirenta no tabuleiro do adivinho, a pergunta
não pode senão ser porque os cubanos poderiam ‘pensar’ que é
também uma forma do poder.
A mudança para a análise pós-humanista das coisas na
antropologia foi em parte motivada por um desejo de evitar preci-
samente este modo de por questões, e, especialmente, de superar
a gritante perversidade de procurar analisar alternativas à nossa
própria metafísica de conceitos contra coisas nos termos dessa
mesma metafísica (para os adivinhos cubanos o pó é poder; nós, de
outro modo, perguntamos porque é que eles podem ‘acreditar’ que
assim é, já que, segundo os primeiros princípios metafísicos, não
pode ser). Daqui a inclinação em escritos recentes sobre a cultura
material (e note-se o oximoro ontológico revelador) para assim
chamadas premissas ontológicas ‘relacionais’ que procuram, de
um modo ou outro, apagar ou de outra maneira comprometer a

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disputa conceito contra coisa6. No entanto, em vez de aplacar o


imperialismo conceptual da metafísica modernista ao ligá-las
a uma ordem ontológica (por exemplo ‘relacional’, ‘simétrico’,
‘vital’, ‘vibrante’) alternativa, o meu interesse é a possibilidade de
libertar as coisas de qualquer determinação ontológica a priori
em absoluto, para permitir-lhes ditar, por assim dizer, os seus
próprios termos do compromisso analítico. Como proponho mos-
trar, isto implica de forma crucial a elisão da disputa conceito/
coisa, não como um caso de revisão ontológica substantiva, mas
mais como apenas um ponto da metodologia analítica. Dado
constrangimentos espaciais, apresento tal perspetiva como uma
série de três movimentos metodológicos.7

6
E.g. Bruno Latour, We Have Never Been Modern, trad. C. Porter (London: Prentice
Hall, 1993); Bruno Latour, Reassembling the Social (Oxford: Oxford University
Press, 2005); Tim Ingold, Perceptions of the Environment: Essays on Livelihood,
Dwelling and Skill (London & New York: Routledge, 2000); Tim Ingold, "Materials
against materiality", Archaeological Dialogues 14, n.1 (2007): 1-16; Bjørnar Olsen,
In Defense of Things: Archaeology and the Ontology of Objects (Langham: Alta-
Mira Press, 2010); Jane Bennett, Vibrant Matter: A Political Ecology of Things
(Durham & London: Duke University Press, 2010).
7
Para uma discussão mais detalhada ver: Amiria Henare, Martin Holbraad and
Sari Wastell, "Introduction", in Thinking Through Things: Theorising Artefacts
Ethnographically, ed. Wenare et al. (London & New York: Routledge, 2007), 1-31;
Martin Holbraad, "Ontology, ethnography, archaeology: an afterword on the onto-
graphy of things", Cambridge Archaeological Journal v19 n.3 (2009 10 01): 431-
441; Martin Holbraad, ‘Can the Thing Speak?’, OAP Press, Working Paper Series
#7 (2011), disponível em: http://openanthcoop.net/press/http://openanthcoop.net/
press/wp-content/uploads/2011/01/Holbraad-Can-the-Thing-Speak2.pdf

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O B J E T O S S E LVA G E N S

Primeiro Passo: coisa-como-heurística

Se num qualquer caso etnográfico as coisas puderem ser consi-


deradas, de alguma forma, também como não-coisas (p. ex. um pó
putativamente ‘material’ que é também um poder putativamente
‘imaterial’, como no nosso exemplo),8 então, antropologicamente
falando, a noção de uma ‘coisa’ pode ter no máximo um papel heu-
rístico, em vez de analítico. Por outras palavras, a tarefa analítica
inicial, não pode ser uma de ‘acrescentar’ ao suporte teórico do
termo ‘coisa’ propondo novos modos de o pensar – e.g. como um
sítio de objetificação de seres humanos,9 um índice da agência,10
um evento contínuo de agenciamentos,11 ou o que quer que seja.
Deve antes ser desteorizá-lo efetivamente, ao esvaziá-lo das suas
muitas conotações analíticas, transformando-o numa pura ‘forma’
etnográfica pronta para ser preenchida contingentemente de
acordo apenas com as suas próprias exigências etnográficas.
Voltando ao nosso exemplo: se os babalawos, ao nomearem o

8
Para argumentos clássicos neste sentido e com referência às coisas que os antro-
pólogos denominam por ‘presentes’ ver Marcel Mauss, The Gift: Forms and Func-
tions of Exchange in Archaic Societies, trad. W.D. Halls (London: Routledge, 1990);
Cf. Amiria Henare et al.,, ‘Introduction’, 16-23.
9
Daniel Miller, Material Culture and Mass Consumption (Oxford: Basil Blackwell,
1987); Daniel Miller, ‘Materiality: an introduction’, in Materiality, ed. D. Miller
(Durham & London: Duke University Press, 2005), 1-50.
10
Alfred Gell, Art and Agency: An Anthropological Theory (Oxford: Clarendon Press,
1998).
11
Bruno Latour, We Have Never Been Modern, trad. C. Porter (London: Prentice Hall,
1993); Bruno Latour, Reassembling the Social (Oxford: Oxford University Press,
2005).

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pó que usam uma ‘coisa’, implicam que ele não poderia, propria-
mente falando, também ser uma forma do poder metafísico, não
lhe chamemos então uma coisa em qualquer sentido outro do que
meramente o de um identificador heurístico ontologicamente e
analiticamente vago – não mais que uma etiqueta para identificá-
lo como um objeto do estudo, sem preconceitos metafísicos, e, em
particular, sem preconceitos quanto ao que possa ser, inclusive
questões acerca do que ele ser uma ‘coisa’ poderá significar.

Segundo Passo: conceito = coisa

Se o primeiro passo em direção a permitir às coisas que definam


os seus próprios termos do compromisso analítico implica o
esvaziamento destas de qualquer conteúdo metafísico a priori,
o segundo está orientado no sentido de permitir-lhes o serem
preenchidas por conteúdos (potencialmente) alternativos a cada
momento etnográfico. Podemos marcar esta injunção metodoló-
gica por meio de uma nova fórmula heurística, a saber ‘concei-
tos = coisas’. De acordo com este édito metodológico, em vez de
tratar todas as coisas que as pessoas dizem de e fazem a ou com
coisas como modos de as ‘representarem’ (i.e. como maneiras
de anexar vários conceitos às coisas em questão por meio de
‘construção social’, segundo a maneira de pensar antropológica
padrão), podemos tratá-los como modos de definição do que são
estas coisas. Isto causa a abertura, precisamente, de perguntas
sobre que espécie de coisas possam as ‘coisas’ ser: o que possa
ser a materialidade, a objetificação, a agência – tudo está agora
disponível, pela contingência etnográfica e o trabalho analítico
a que nos força.

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Assim, e voltando de novo ao exemplo cubano, a ideia é


tratar todas as coisas que os babalawos e os seus clientes supos-
tamente ‘acreditam’ sobre o seu aché-pó como os elementos de
uma definição conceptual do que tal ‘coisa’ poderia de facto ser:
os adivinhos cubanos não ‘acreditam’ que o pó é uma forma do
poder, mas antes assim o definem. Na medida em que a nossa
própria suposição padrão é que o pó não deve ser definido como
poder (é somente uma coisa poeirenta, presumimos), o desafio
então deve ser de reconceituar aquelas mesmas noções e muitos
dos seus corolários empíricos e analíticos (pó, poder, deidade etc.
mas também coisa, conceito, divindade etc.) de um modo que faça
da definição etnograficamente dada de pó como poder razoável,
em vez de uma ‘crença’ absurda.
Procurei especificar detalhadamente noutro lugar toda a
gama de maneiras em que diferentes tipos de dados podem inte-
grar os esforços de conceptualização analítica que os problemas
do “pó é poder” exigem dos antropólogos.12 Crucialmente, uma
sólida compreensão etnográfica é, em primeiro lugar, necessária
até mesmo para formular tais problemas, para já não falar em
resolvê-los. Por exemplo, uma vez que o que o pó possa ser na
divinação Ifá depende da noção de poder que está em jogo nesta
atividade ritual, a parte de uma tentativa de articular a pergunta
implica o desenvolvimento do enigma cosmológico que está no
seu núcleo: se o poder, neste contexto etnográfico, se refere à
capacidade do babalawo de tornar presentes divindades como

12
Martin Holbraad, "Ontology is just another word for culture: against the motion",
Debate & Discussion at the GDAT 2008, Critique of Anthropology 30, 2 (2010): 179-
185, 185-200 passim; Martin Holbraad, Truth in Motion: the Recursive Anthropo-
logy of Cuban Divination (Chicago: University of Chicago Press, 2012).

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‘signos’ durante a divinação, então não estamos de qualquer forma


pertinente a lidar com uma versão do antiquíssimo enigma teo-
ontológico, tão familiar à antropologia da religião,13 de como enti-
dades que são imaginadas como forças transcendentes possam
em certas condições – neste caso por meios rituais que implicam
o uso de pó como um componente indispensável – tornarem-se
imanentes? Conceptualizar o pó como poder, então, necessita
que nós entendamos como a divinação afro-cubana efetivamente
resolve algo parecido ao chamado ‘problema da transcendência’
na teologia judeo-cristã – embora imediatamente cada um queira
acrescentar que isto pode ser bem um erro de nomenclatura, pelo
menos na medida em que as mesmas noções de ‘transcendência’ e
‘imanência’ podem ter que ser reconceitualizadas neste contexto.
O que desejo deixar aqui explícito, contudo, é a contribuição
irredutível que, heuristicamente entendidas, ‘as coisas em si
mesmas’ podem fazer para este trabalho de conceptualização. De
facto, com referência ao caso do pó no Ifá, poder-se-ia dizer que
enquanto a informação etnográfica obtida de babalawos serve
para fundar o enigma antropológico que o aché no seu aspeto
dual, por assim dizer, coloca, é o que chamarei de informação
‘pragmatográfica’ separada das suas qualidades peculiares como
uma ‘coisa’ (viz. como pó) que entrega os elementos mais cruciais
para a sua solução.

13
E.g. Matthew Engelke, A Problem of Presence: Beyond Scripture in an African
Church (Berkeley: University of California Press, 2007); Webb Keane, Christian
Moderns: Freedom and Fetish in the Mission Encounter (Berkeley: University of
California Press, 2007).

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O B J E T O S S E LVA G E N S

Terceiro Passo: coisa = conceito

Considere-se o que o pó de facto faz nas mãos do adivinhador.


Como vimos, espalhado na superfície do tabuleiro divinatório,
fornece o suporte sobre o qual os oddu, que se pensa como sinais
da deidade, ‘aparecem’. Portanto o pó é o catalisador do poder
divinativo, onde tal poder é entendido como a capacidade de fazer
divindades ‘aparecer’ e ‘falar’. Agora, repare-se que, considerado
prosaicamente como uma ‘coisa’, o pó é capaz de o fazer devido
ao seu caráter permeável, enquanto coleção de partículas não
estruturadas – a sua pura multiplicidade, poder-se-ia dizer. Na
marcação do oddu no tabuleiro, os dedos do adivinhador são
capazes de desenhar a configuração somente até o ponto que a
capacidade ‘intensiva’ de pó a ser movido (a ser deslocado como
a água do banho de Arquimedes) lhes permite fazerem-no. O
movimento extensivo do oddu à medida que aparece no tabuleiro
pressupõe, então, a mobilidade intensiva do pó enquanto meio
sobre o qual é ‘registado’. Desta forma, o pó torna a premissa da
revelação do oddu explícita, através da motilidade inerente a estes
sinais: pela reversão figura/meio, as figuras oddu são reveladas
como uma deslocação temporária do seu meio, o pó.
Mas isto sugere igualmente uma reversão lógica que vai ao
cerne da questão que imaginamos que o aparentemente trans-
cendente oddu levanta. Se levarmos a sério a controvérsia sus-
tentada pelos babalawos de que os oddu são somente as marcas
que eles fazem no aché-pó (a ‘magia’ básica da divinação), então
a constituição de deidades como deslocações do pó diz-nos algo
bastante importante das premissas ontológicas da cosmologia
Ifá: que estas divindades devam ser pensadas não, digamos, como
‘entidades’ que podem ou não existir em estados de transcendên-

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A S C O I S A S E N Q UA N T O C O N C E I T O S : A N T R O P O L O G I A E P R A G M AT O L O G I A

cia ou imanência, mas antes como movimentos. E se os oddu são


apenas movimentos, então a descontinuidade ontológica entre
transcendência e imanência (e com ela a questão onto-teológica
que imaginamos eles levantarem) é resolvida. Num universo
lógico onde o movimento é primitivo, o que parece transcendên-
cia torna-se distância e o que parece imanência torna-se proxi-
midade. De facto: qua movimentos, as divindades têm inerente
em si a capacidade para se identificarem imanentemente com
seres humanos, através do potencial do movimento dirigido que o
aché-pó garante, como uma solução para o genuíno problema da
distância que as deidades devem atravessar para serem tornadas
presentes na divinação.
Agora, aquilo para o que desejo chamar atenção é o trabalho
que o pó realiza para esta análise, especificamente pela virtude
daquilo que heuristicamente (uma vez mais!) identificaríamos
como as suas características prosaicas, ‘materiais’. Se a etnografia
carregar com o peso do problema analítico, neste argumento, é a
qualidade material do pó que fornece os elementos mais cruciais
para a sua solução. Se as deidades são conceptualizadas como
movimentos de forma a dissolver o problema da ‘transcendência’,
é só porque, ao fim e ao cabo, as suas manifestações materiais
são somente isso, movimentos. E esses movimentos, por sua vez,
só emergem como analiticamente significantes por causa da
constituição material do pó sobre o qual são fisicamente marca-
dos: a sua qualidade permeável enquanto pura multiplicidade de
partículas não estruturadas, recetíveis a um movimento intensivo
tal qual a deslocação de água, em reação à pressão extensiva dos
dedos do adivinhador, e assim por diante. Cada uma desta série
de qualidades materiais é inerente ao próprio pó, e é em virtude
desta inerência material que podem engendrar efeitos concep-

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O B J E T O S S E LVA G E N S

tuais, definindo os parâmetros da análise antropológica que


eles ‘permitem’ o argumento. Enquanto elemento irredutível da
análise ao aché, é o pó que impõe os conceitos fundamentais de
permeabilidade, multiplicidade, movimento, direção, potencial e
assim por diante na batalha da sua própria análise, fornecendo
a sua própria resposta ao seu próprio problema – o seu, se assim
quisermos, poder selvagem de analiticamente (conceptualmente,
ontologicamente) perturbar.
Portanto o que está em jogo neste modo de análise é a
capacidade que as coisas têm para engendrar transformações
conceptuais em si mesmas, em virtude das diferenças conceptu-
ais que as suas características materiais podem fazer. De facto,
este irredutivelmente pragmatológico elemento, como podemos
chamá-lo,14 da análise antropológica não é nada mais do que a
inversão-corolário da nossa anterior fórmula ‘conceitos = coisas’,
ou seja: ‘coisas = conceitos. Se a fórmula ‘conceito = coisa’ indi-
cou a possibilidade de tratar o que as pessoas dizem e fazem em
volta de coisas como modos de definir o que tais coisas são, a sua
interpretação simétrica ‘coisa = conceito’ levanta a perspetiva de
tratar coisas como um modo de definir aquilo que enquanto ana-
listas somos capazes de dizer e fazer em volta delas. Na questão,
para cunhar um termo, são permissões conceptuais de uma coisa:
como as características materiais de coisas podem dar a origem a
determinadas formas da sua conceptualização. Em questão, para
cunhar um termo, estão as permissões conceptuais de uma coisa:

14
Cf. Christopher Witmore, “The realities of the past: Archaeology, Object-Orien-
tations, Pragmatology”, in Modern Materials: Proceedings from the Contempo-
rary and Historical Archaeology in Theory Conference, eds. B.R. Fortenberry and
L. McAtackney (Oxford: Archaeopress, 2009), 25-36.

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A S C O I S A S E N Q UA N T O C O N C E I T O S : A N T R O P O L O G I A E P R A G M AT O L O G I A

como as características materiais de coisas podem dar a origem


a determinadas formas da sua conceptualização. Poder-se-ia até
imaginar esta espécie de movimento de transformação como uma
forma de abstração, contanto que a noção seja desenredada de
distinções habituais entre coisas concretas e conceitos abstratos.15
De facto, isto é somente o que a cláusula ‘coisa = conceito’ do nosso
método analítico sugeriria. Onde a ontologia analítica das coisas
contra conceitos colocaria a abstração como a capacidade de um
dado conceito para conter uma determinada coisa, externa a si
mesma, na sua extensão, a continuidade heurística de ‘coisa =
conceito’ torna este um movimento interno à ‘a coisa em si mesma’:
a coisa diferencia-se, não mais como uma instanciação ‘de’ um
conceito, mas como uma autotransformação enquanto conceito.
O pensamento selvagem a pensar-se a si mesmo.

15
Ver também Martin Holbraad e Morten A. Pedersen, "Planet M: the intense abs-
traction of Marilyn Strathern", Anthropological Theory 9, 4 (2009): 371-94.

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