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1.

Literatura Comentada: poesia concreta

O único livro brasileiro considerado antológico pelo site Monoskop – espécie de


arquivo online sobre o movimento internacional da poesia concreta – é Poesia
Concreta: seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e críticos e exercícios,
assinado por Iumma Maria Simon e Vinicius de Avila Dantas, publicado na coleção
Literatura Comentada, editado pela Abril Educação.
Longe de se assemelhar a outros produtos gráficos que figuram a mesma lista, –
grande parte sendo antologias internacionais com projetos gráficos próprios, livros de
divulgação sem vínculo formativo e até mesmo livros de artista – o livro, de 1982, é
uma espécie de material educativo de cunho didático que traz, ao seu final, propostas de
criação de poemas e exercícios.
Apesar da aparente simplicidade do projeto e do notório tom formativo da
publicação, a antologia pode realmente ter sido um marco importante para a divulgação
da poesia concreta ao público geral. Como notou Dalvi (2011, p. 203), a coleção
Literatura Comentada foi muito importante na disseminação de poesia contemporânea,
sendo direcionada a leitores em processo final de escolarização e, posteriormente, usada
como fonte de dados para a produção de material didático.
A pesquisadora demonstrou que a aparição de poetas concretos em livros
didáticos de duas editoras distintas, nos anos 2000, tinham como referência não os
livros do grupo Noigandres, nem os livros dos poetas concretos, mas aquilo que foi
selecionado para compor o número sobre poesia concreta da referida coleção (2011, p.
204).
Embora a análise de livros didáticos não seja objetivo desta pesquisa, são
interessantes as colocações de Dalvi (2011, p. 204-205) sobre a coleção Literatura
Comentada, pois acredita-se que ela tenha sido tomada como parâmetro para mensurar
os textos representativos das correntes/vertentes estéticas brasileiras, reafirmando a
pertinência do recorte empreendido nos manuais escolares. O que os leva a crer o
quanto a antologia da Abril foi importante para reunião e realocação dos poemas e
textos relacionados ao movimento da poesia concreta, no campo literário brasileiro.
Com os objetivos propostos para este trabalho, decidimos estudar, à maneira de
um estudo de caso, algumas seções do volume sobre o movimento da poesia concreta
(exceto exercícios e atividade de criação), a saber: 1) Percurso; 2) Cronologia do
movimento; 3) Obras dos autores; 4) Textos selecionados; 5) Poesia concreta em sua
época; 6) Cronologia histórico-cultural; 7) Bibliografia. Particularmente, focalizaremos
os textos poéticos e os elementos paradidáticos, refletindo sobre o caráter antológico e
canônico instituídos pelo procedimento editorial.
Em razão de existirem poucas antologias de poesia concreta produzida por
editoras/editores de fora do movimento, optamos por um enfoque teórico-metodológico
qualitativo, pois pretendemos estudar com aprofundamento cada uma das antologias, na
tentativa de compreender os critérios de seleção dos poemas e os textos de apresentação.

1.1 Percurso

A seção “Percurso” que abre o livro é uma espécie de introdução ao movimento


da poesia concreta. A menção à cidade (especialmente a cidade de São Paulo) e a
indicação de leitura de um ensaio de Antonio Candido (em nota de rodapé), publicado
em Literatura e Sociedade, ambienta o leitor recém-chegado. Esse preâmbulo faz alusão
a uma poética urbana, citadina. O elemento extratextual “cidade” não é fruto da
representação, mas, segundo os autores, da “tradução” da experiência com a cidade.
Levando em consideração que os escritos críticos sobre a poesia concreta eram
ainda muito incipientes na data de publicação da antologia, há aqui um movimento
muito perspicaz dos editores/autores na leitura da obra dos poetas concretos. A menção
à relação orgânica dos poetas com a cidade, passando pela tradução intersemiótica do
espaço urbano na poesia mostra-se como fruto de um aprofundamento no programa
teórico-metodológico do grupo Noigandres.
Nesta seção, há uma contextualização do momento histórico, típica nas
pesquisas histórico-documentais. O clima de São Paulo é colocado como plano de
fundo, mencionando a criação do MASP, do MAM, do Instituto dos arquitetos do Brasil
(IAB) e do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), entre outras instituições.
A descrição do encontro dos irmãos Campos com Déco Pignatari e amizade que
nasce ali vem acompanhada de relatos sobre a proposta de construção de um novo
cânone, a partir das traduções de “fontes anglogermânicas (T. S. Eliot e Rilke)” (1982,
p. 4), até então vistas em detrimento da herança cultural francesa no Brasil.
Formado o núcleo Noigandres, o texto menciona as relações entre eles e outros
grupos de vanguarda de São Paulo, como o Ruptura e os músicos do Movimento Ars
Nova. O contato de Décio Pignatari com Eugen Gomringer, em visita na Universidade
de Ulm, e as correspondências com Pound (e e.e.cummings) também são importantes
para a ideia de formação internacional que será mencionada adiante.
A questão da recepção da obra aparece no subcapítulo “O rock’n roll da poesia”
com uma longa citação de Mário Faustino, retirada do livro Poesia e Experiência. Nela,
Faustino, conhecido entusiasta do grupo Noigandres, “defende” a relevância desta nova
poesia, evidenciando que as “muitas poucas pessoas que aqui no Rio tomam a sério a
poesia levam muito tempo ainda sem ouvir falar nos três” (p. 6). A abertura com a
citação, parece-nos dizer algumas coisas: a) o problema da recepção, que tenta ser
apagado por parte da crítica1, é tratado a partir da norma e não do desvio. Faustino
atribui elogios para então nomear a falta de conhecimento por parte dos críticos
especializados; b) abre uma fresta para tratar de uma questão importante à poesia
concreta que é comentada em bastidores, mas pouco sistematizada por escrito: a falta de
trabalhos críticos sobre as obras dos poetas concretos concentrou a crítica ou aos
próprios poetas ou a entusiastas e amigos, pessoas que, dado ao ambiente da crítica
nacional, escolhiam por “defender” o projeto concreto – que estava sob constante
ataque2.
Em 1957, na ocasião da exposição Nacional de Arte Concreta, no Rio de janeiro,
é o momento em que o movimento da poesia concreta é colocado à prova. Em meio as
mais duras críticas e deboches, Ferreira Gullar decide romper com o grupo paulista e
fundar o Neo concretismo. Augusto de Campos (1986, p. x), em “The gentle art of
making enemies” reúne parte dos comentários e manchetes que procuravam deslegitimar
a nova poesia. O que parece corroborar com a ideia de que, na guerrilha cultural, era
preciso escolher um lado – dividindo os críticos da poesia concreta como os/as “a
favor”, e os/as “contra”.
Ainda nesse tópico, os autores atentam-se para evidenciar aquilo que queremos
ressaltar com esse trabalho: de que a poesia concreta brasileira se manteve em voga em
razão de sua projeção internacional.

1
A crítica que parece querer desviar
2
Segundo Aguilar (2005, p. 7), “diferente do que ocorre com outros autores (tanto anteriores como
posteriores), a valorização da obra dos escritores paulistas costuma estar acompanhada de opiniões
frequentemente impregnadas de certa violência e distribuída dicotomicamente: ou se é a favor, ou contra.
[...] Não deixa de chamar a atenção que em livros acadêmicos – em que predomina a análise distanciada e
o tom cortês – se produza de repente uma refutação cheia de ironia e violência como a que desenvolve
João Adolfo Hansen em A Sátira e o Engenho contra um texto de Augusto de Campos. Ou o modo como
Heloísa Buarque de Hollanda, em sua inteligente tese de doutoramento Impressões de Viagem, se refere
ao ‘experimentalismo de vanguarda’”.
Em 58, sai a Noigandres 4, com o “plano piloto para a poesia concreta”. Os
contatos internacionais se intensificam. A Poesia Concreta passa a ser objetos
de conferências, debates e muitas publicações (Suíça, Espanha, França,
Alemanha, Itália, Japão). Enquanto isso, os poetas continuam, aqui no Brasil,
financiando com dificuldades suas próprias publicações (SIMON; DANTAS,
1982, p. 6).

O subcapítulo que vem em seguida intitulado “Viver é defender uma forma” traz
uma citação de Hélio Oiticica: “com os concretos ou é tudo ou nada: como querer algo
pela metade?” (p.6). O “tudo ou nada” de Oiticica pode estar relacionado à radicalidade
como programa e ao ethos de seus fundadores. Se por um lado, havia uma definição de
um movimento de vanguarda ancorado na proposta de três jovens poetas marcando sua
posição no campo literário, por outro lado havia uma intensa tentativa de diálogo não só
com a contemporaneidade, mas com a tradição.
No entanto, a atitude bélica típica das vanguardas também se mostra como
resposta ao que Santaella (1986, p. 6) defende como “proposta inventiva no terreno da
arte/cultura” que “quando não é silenciada na marginália do sem importância, é
assediada pelas cobranças daqueles que ocultam um conservadorismo cultural atrás da
máscara de um pseudoprogressismo político”.
De volta ao texto de apresentação, no subcapítulo seguinte “Interessante
(con)tradição”, os autores exploram a parca recepção do movimento da poesia concreta.
Para eles, seria a posição do poeta como artista gráfico - “artesão que deseja manter as
marcas do seu trabalho” que acabara por fazê-los pouco lidos ou pouco conhecidos. Em
parte, essa fora uma das razões, como também apontou Aguilar (2006, p. 190) ao citar a
dificuldade em citar poemas concretos em textos narrativos ou acadêmicos, em razão de
sua espacialidade e tipografia, o que resultaria na impressão de que “é como se eles
resistissem e exigissem um espaço próprio, a reprodução e o respeito de suas qualidades
materiais”.
A questão da materialidade é parte fundamental da poética concreta, por isso
uma reprodução “ruim” do poema ou até a impossibilidade de reprodução podem trazer
prejuízos para sua “fruição”. O que nos gera a seguinte pergunta: a crítica não estaria
apta a reproduzir os poemas e, por isso, se sentiria desencorajada a comentá-los? Notar-
se-á que se para o elogio não haverá espaço, para o descrédito ele será profícuo.
Assim, a respeito da contradição proposta pelos autores, ainda se soma a
chegada tardia da obra dos poetas concretos para o grande público, sendo feita por meio
do referido volume, após “trinta anos de Noigandres e 25 anos de Poesia Concreta”
(Simon, Dantas, 1982, p. 7). No entanto, se sente a ausência de uma complexificação do
caso, que será sistematizada posteriormente por Aguilar (2006, p. 15) quando trata do
trauma cultural provocado pelo concretismo em seu livro, fruto de tese de doutorado.
A edição traz uma pequena biografia dos participantes do movimento, seguida
de um quadro com a cronologia do movimento de 1950 a 1981. Os poetas que
aparecerão no volume serão: Wlademir Dias-Pino (com a ressalva de sua participação
até os anos 60), José Lino Grünewald, José Paulo Paes, Ronaldo Azeredo, Edgar Braga,
Pedro Xisto e uma página dedicada aos três fundadores: Décio Pignatari, Haroldo e
Augusto de Campos.
No campo “Obra dos autores” estão mencionados os livros de poesia de Augusto
de Campos (os dois livros-objeto produzidos com Plaza e sua antologia poética editada
pela Duas Cidades), Décio Pignatari (apenas sua antologia editada pela Duas Cidades),
Edgar Braga (todos publicados pelo selo fictício Edições Invenção), Haroldo de Campos
(sua antologia poética Xadrez de estrelas e Signância quase céu publicados pela
Perspectiva), José Paulo Paes (três volumes publicados pela Cultrix) e Pedro Xisto
(publicado pela Berlendis & Vertecchia, editora que se dedicara a divulgar sua obra).
Aqui, nota-se a ausência de Dias-Pino, Azeredo e Grünewald que, à época, já haviam
publicados livros.
No campo “Revistas” consta: Noigandres, Invenção, Navilouca, Código, Polém,
Artéria, Poesia em Greve e Qorpo Estranho. Embora falte a especificação de quantos
números saíram de cada uma das revistas, a lista é bastante completa, assemelhando-se
à lista de revistas da poesia visual (e concreta, especialmente) que Omar Khouri (ano)
posteriormente investigou em sua tese de doutorado.
Na seção “Traduções e Revisões” constam apenas as traduções e revisões das
obras feitas por Augusto, Haroldo e Décio, este último assinando em coautoria o livro
Mallarmé, com os irmãos Campos, em 1974. O mesmo dá-se na seção “Teoria e
Ensaios”, onde somente há os textos dos irmãos Campos e Décio Pignatari. Aqui, sente-
se a falta da menção aos trabalhos tradutórios e teóricos de José Lino Grünewald e José
Paulo Paes. O que, de certa forma, aponta para uma predileção dos autores à divulgação
da obra do trio fundador Augusto, Haroldo e Décio. A escolha é compreensível, mas
acaba por apagar a importância dos demais participantes do grupo e a ideia de
movimento, propriamente dita.3
3
É possível notar que os trabalhos críticos sobre a obra do trio fundador são mais profícuos do que dos
demais poetas do grupo. Mesmo a revisão do movimento feita por Aguilar (2006) é incipiente no que diz
respeito às obras dos poetas concretas brasileiros, enquanto movimento de vanguarda. A crítica que
apareceu esparsa - e a mais prolífera dos últimos anos - acaba por se referir ao movimento da poesia
concreta metonimicamente citando o grupo Noigandres.
1.2 Textos selecionados

A seção de textos selecionados evoca a citação “Noigandres, eh, Noigandres”,


retirada de um dos Cantos de Pound, que por sua vez citava Arnaut Daniel – ambos
poetas que os concretos traduziram. A menção traz também o significado do termo:
“olor contra o tédio". Essa primeira apresentação traz poemas em versos, escritos pelos
poetas do trio Noigandres apenas, chamando de fase “pré-concreta”. Em nota de rodapé,
os autores problematizam um importante ponto da poesia concreta: o “diálogo e
antagonismo em relação aos recursos poéticos tradicionais” (1982, p. 15).
Entre os poemas eleitos para compor a seção estão: “O lobisomem”, de 1947, e
“O jogral e a prostitua negra”, de 1949, de Décio Pignatari; “Teoria e prática do
poema”, de 1952, assinado por Haroldo de Campos; “O coração final”, de 1952, e
“Bestiário”, de 1955, de Augusto de Campos. Os poemas foram retirados dos primeiros
livros de Haroldo e Décio e dos dois primeiros números da Revista Noigandres (1952;
1955). Embora os autores datem o início do movimento em 1956 (na primeira
exposição de arte concreta no MAM), em 1955, Augusto de Campos já tinha assumido
o uso do termo “concreto”, em consonância a Eugen Gomringer.
Para os autores, nos poemas

O humor e a ironia corroem a sempre ameaçadora nobreza dos temas líricos;


o erotismo faz alarde e penetra o sentimental-amoroso; o usual cotidiano
mistura-se ao tom poético elevado; as metáforas se esgarçam na sintaxe e
rodam livres em torno da essência do objeto. Os versos – alvo principal das
rupturas seguintes – já se quebram, se reduzem, se jogam na página contra a
medida métrica e o limite rítmico (SIMON. DANTAS, 1982, p. 16).

A escolha dos poemas, que consideramos muito acertada, mostra a tomada pré-
concreta. Convém mencionar aqui, que embora o texto do livro não faça referência, há
de se considerar nesses poemas o que há neles de Simbolistas – considerando o trio
Noigandres, assim como José Lino Grünewald, como leitores e tradutores de Mallarmé
e as revisões das obras de Sousãndrade, Pedro Kilkerry e Maranhão Sobrinho que assina
Augusto de Campos (Lins, 2007, p. 114 – o eixo e a roda).
Os poemas em versos, especialmente os de Décio e Haroldo, fazem o uso de
maiúsculas na marcação de determinadas palavras, recurso comum na poesia de veia
simbolista. Bosi (1987, p. 308) ao discorrer sobre o simbolismo, afirma que esse recurso
visa a “dar um valor absoluto a certos termos”. A ver: no poema “O Lobisomem”, de
1947, de Pignatari, há grafado em maiúscula “Tristeza”, “Dor” e “Eu”; no poema de
Haroldo “Teoria e prática do poema”, já em 1952, as palavras em maiúscula são:
“Poema” e “Tempo”4; nos poemas de Augusto presentes na antologia já não aparecem
marcações em maiúsculo.5
Macedo (2014, p. 131 - https://core.ac.uk/download/pdf/268395162.pdf) atribui
o uso de maiúsculas a um valor onomástico, indicando que os próprios substantivos
“sugerem um referente que transcende o ser imediato do mundo”. Ao eu lírico, portanto,
restaria “atribuir valor simbólico aos significados, estendendo-os semanticamente: mais
que signos, tornam-se entes, representantes da substância primordial do mundo”.
Análise essa que aponta para o desenvolvimento de um movimento ao concretismo que
radicalizará essa “representação” em “apresentação”.
No subcapítulo seguinte, intitulado “Concretismo.: mais que um ismo, um
sismo”, os autores reúnem poemas da chamada fase heroica (1956/1960). O texto
introdutório aponta para as bases teóricas do “plano piloto da poesia concreta”
(replicado na página 86 do livro) e faz uma breve análise dos procedimentos usados nos
poemas a serem apresentados.
A menção à presentificação do poema em detrimento à sua representação é um
dos pontos altos do texto, que, por vezes, abusa de lugares comuns ao criticar o
movimento. Isso se mostra, por exemplo, nos trechos: “Neles (os poemas), o que
tradicionalmente se espera do poético [...] foi liquidado”; [...] Novas relações que visam
impedir a leitura linear”; “[...] O que implica transformar a realidade”; “[...] a
composição do poema esgota as possibilidades combinatórias das palavras [...]” (p. 25,
grifo nosso). Mesmo que se trate de um texto escrito para dar ênfase ao movimento, a
hiperbolização das características dos poemas leva à uma leitura drástica do programa
concreto. É possível dizer, hoje, quarenta anos depois que o texto da antologia foi
escrito e quase setenta anos depois do plano piloto para a poesia concreta, que a
radicalidade operava de uma maneira mais difusa.
4
A transição dos termos de “sentimentos” a uma metalinguagem é sintomática, no que se refere a poesia
que virá depois.
5
Embora, há de se considerar que em “O rei menos o reino”, de 1951, aparecerão não só as primeiras
letras das palavras em maiúsculas, como “Angústia” (verso 1, parte 1), “Canto” (verso 15, parte 1) mas a
palavra inteira grafada em maiúsculo, como “ANGÚSTIA” (verso 1, 4 e 9, parte 5), “DESESPERO”
(verso 2, parte 5), “TÉDIO” (verso 3, parte 5), “ÓDIO” (verso 12, parte 5), “MEDO” (verso 16, parte 5) e
“PEDRA” (verso 29, parte 7). Há aí uma ênfase no sentimento do eu poético que vai do “valor absoluto”,
de marca purista, ao total exagero da grafia. A palavra toda maiúscula denota uma certa autonomia dos
sentidos, para além daquele que o possuí, e ganha contornos enquanto representação gráfica, semântica e
sonora: signo verbivocovisual que de fato é.
Se tomarmos, por exemplo, “Poetamenos”, de Augusto de Campos (1973),
vemos que há um sujeito lírico, um canto direcionado e uma temática clássica: o amor.
Não é possível dizer que os traços do poético foram “liquidados”. Assim como, não é
possível dizer que há impedimento da leitura linear. O espaço da linha é um dentre os
outros espaços, ele fará parte do quadro geral da composição. Ao invés do uso da
palavra “impedir”, sugerimos a ideia de multiplicar. A estrutura pode vetorizar os
modos de leitura, possibilitando a composição nas suas relações espaciais. Algo
parecido se dá no uso de “esgotar” as possibilidades de combinação das palavras. Aqui,
também, há a noção do exagero, ampliando o procedimento para um lugar que, talvez,
ele não chegue (por questões de contiguidade, nem sempre uma aproximação resultará
em enunciados analógicos) (Pignatari, 1987 – literatura e semiótica).
Sobre a “transformação da realidade” há também aí uma hipérbole. Ora, os
poetas concretos, em seu manifesto, não mencionam que a poesia alteraria a realidade,
mas a evidenciaria. Os modos do fazer poético já estavam transformados, isso se mostra
no plano piloto através da menção ao Paideuma e, dentre outras, às seguintes
colocações: “poesia concreta: produto de evolução crítica de formas”, “a poesia
concreta começa por tomar conhecimento [...]”, [...] seu problema: um problema de
funções-relações desse material (palavra) e, mais ao fim, a menção ao “realismo total”.
Essas colocações parecem evidenciar tanto uma visada propositiva para uma poesia por
vir quanto uma continuidade do que já existia, mas uma continuidade que partia de um
recorte específico e não de uma noção geral da poesia (Campos, Pignatari, Campos,
1976, p. 156-158).
No entanto, mais de uma vez houve má interpretação das intenções dos poetas
do movimento. Vilém Flusser, no artigo “Concreto e Abstrato”, de 1964, também
analisa a poesia concreta a partir da ótica da “criação de realidade”, afirmando que os
poetas concretos ficam aquém do que propõem no manifesto. Para ele, a poesia concreta
só existiria na medida que tratasse o signo de modo estrito, sem retirar dele qualquer
traço de convencionalidade (abstracionismo, para ele). Entretanto, o plano piloto da
poesia concreta, publicado em 1961, explica que a poesia concreta não abdicaria “das
virtualidades da palavra”6. Flusser acreditava que os poetas concretos não teriam
“alcançado sua meta de criar realidade”, embora isso não tivesse sido colocado por eles.
Assim, nos parece que havia um entendimento geral de que a poesia concreta seria mais
6
Campos, Pignatari, Campos. Plano piloto para a poesia concreta. In: Campos, Pignatari,
Campos. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950 – 1960. São Paulo: Duas Cidades,
1975, p. 157.
radical do que realmente era. Nossa hipótese é que os modos de fazer crítica ainda eram
incipientes para tratar do conteúdo material dos poemas, denotando um “encantamento”
pelo objeto, que poderia desencadear em uma crítica que ia da magnitude à
insignificância. (http://flusserbrasil.com/art204.pdf)
Ainda no texto de apresentação do capítulo, os autores evidenciam a “utopia
construtivista”, o que é bastante pertinente, levando em consideração a euforia com a
construção de Brasília e os pressupostos modernos e de industrialização do país,
pensado, na época, como formas de diminuição da desigualdade social e de justiça
social. Os autores apontam para o poema como mercadoria “sem valor de troca” (como
crítica ao capitalismo e suas formas de consumo), o que comunicaria também essa
visada utópica sobre as formas de produção e uma negação à cultura de massas, que será
presente, por exemplo, na poesia de Augusto de Campos e teorizada por Haroldo e
Décio, mais tarde.
O capítulo procura reunir a poesia da fase ortodoxa, caraterizada em dois
momentos, que os autores chamam equivocadamente de “orgânico-fisiognômica” e
“geométrica-isomórfica”. A ver os conceitos como aparecem no plano piloto para a
poesia concreta:
ao conflito de fundo-e-forma em busca de identificação, chamamos de
isomorfismo. paralelamente ao isomorfismo fundo-e-forma, se desenvolve o
isomorfismo espaço-tempo, que gera o movimento. O isomorfismo, num
primeiro momento da pragmática poética concreta, tende à fisiognomia, a um
movimento imitativo do real (motion); predomina a forma orgânica e a
fenomenologia da composição. num estágio mais avançado, o isomorfismo
tende a resolver-se em puro movimento estrutural (movement); nesta fase,
predomina a forma geométrica e a matemática da composição (racionalismo
sensível) (CAMPOS, PIGNATARI, CAMPOS, 1975, p. 157).

Como visto na citação do trecho do “manifesto”, a isomorfia está presente nos


dois momentos da composição de poemas concretos. A diferença é que, no primeiro
momento, a forma do poema será pautada nas características físicas/espaciais do objeto
de que ele fala – por isso o tom “orgânico” – e, no segundo momento, a forma do
poema se valerá da estrutura geométrica para estabelecer o jogo de significados. Nesta
fase, os poetas farão uso da quadricula, da tipografia, da aproximação e distanciamento
dentro do quadro, da diagramação no espaço da página, de cortes e dobras da página,
entre outras coisas, para criar o movimento/ritmo de leitura e fruição do poema.
Os poemas escolhidos pelos autores para exemplificar esse momento da história
do movimento são:
Augusto de Campos: “tensão”, de 1956; “ovonovelo”, de 1956; “uma vez”, de
1957; “terremoto”, de 1956; “caracol”, de 1960.
Haroldo de Campos: “o âmago do ômega”, de 1956; “cristal”, de 1958;
“nascemorre”, de 1958; “vernavios”, de 1958; “anamorfose”, de 1959.
Décio Pignatari: “um movimento”, de 1956; “terra”, de 1956; “organismo”, de
1960; “beba coca-cola”, de 1957; “caviar”, de 1959; “life”, de 1957.
José Lino Grünewald: “sombra”, de 1957; “petróleo”, de 1957; “a vida”, de
1958; “passatempo”, de 1959; “forma”, de 1959; “vai e vem”, de 1959.
Edgar Braga: sem título (do livro Soma), de 1963; sem título (do livro Soma), de
1963; “eram homens”, de 1963; “minha luva de ouro”, de 1963.
Ronaldo Azeredo: “tic tac”, de 1956; “ruasol”, de 1957; “comovido”, de 1957;
“solidário solitário”, de 1959; “velocidade”, de 1957.
Pedro Xisto: “espaço”, de 1960; “cheio”, de 1960; “infinito”, de 1960.
Wlademir Dias Pino: “Solida”, de 1957; “Ave”, de 1956.
As reproduções dos poemas levam em consideração as fontes, formas, cores
(fundo preto, por exemplo) e diagramação que apresentam cada um deles. São, ao todo,
36 poemas organizados em 12 páginas (frente e verso). Os poemas não apresentam
títulos, só o nome do autor e o ano de publicação. Tampouco foi dita a fonte de onde o
poema foi retirado. Isso se mostra problemático, pois, desreferencializa o objeto: sem
título, sem indicação do veículo e, por vezes, apertado num pequeno espaço da página.
Isso nos leva a crer que aos autores era mais importante reproduzir o poema, da maneira
que fosse possível, do que aprofundar uma discussão, que passasse também por
questões estéticas da composição do livro e da própria maneira de fazer livros do
movimento da poesia concreta.
Não é de todo estranho que um livro de caráter antológico queira utilizar o
espaço concedido para reproduzir o maior número de poemas possíveis, uma vez que se
trata também de veículo de divulgação de uma obra. No livro “Xadrez de estrelas:
percurso textual 1949-1974”, de Haroldo de Campos, organizado pela editora
Perpectiva, há muito mais cuidado com o poema na página, mas há ainda momentos de
aglutinação de partes de poemas, levando a uma organização do espaço da página que
desrespeita pausas gráficas (pensemos no silêncio significante, de Mallarmé), como
pode ser visto, por exemplo, em “thálassa thálassa” (CAMPOS, 2008, s/p).
Embora pareça um detalhe sem muita importância, a organização do poema na
página é um dos pilares da teoria da poesia concreta. Pensemos, por exemplo, em um
livro de divulgação de pinturas construtivistas. Quando o editor coloca diversas fotos de
quadros em uma mesma página, aquilo cria, inevitavelmente, uma composição,
colocando as imagens em perspectiva. Como bem discutiu Melot (2006, p. 130), o
códice, forma do livro que nos é mais comum, é um objeto feito de dobras, o que dita
seu ritmo. Negligenciar que a quadratura da página comporta um tempo e que isso cria
significados para a leitura é mostrar um descuido com o objeto ali reproduzido,
principalmente quando estamos falando de poemas concretos – em que o aspecto
espacial faz parte da composição.
Nesta seção há ainda um ponto importante a ser discutido: as notas de rodapé
que aparecem em alguns poemas. São dezessete notas presentes ao longo das doze
páginas da seção, funcionando como espaços de breve discussão e atuando como
elemento contextualizador da poética ali presente. Elas trarão informações sobre os
textos poéticos ou abrangerão dados biográficos dos poetas.
Optamos por reproduzir parte dos comentários das notas, a fim de analisar a
leitura que os autores fazem das obras reproduzidas na antologia. Notou-se que houve
pouca precisão nos argumentos interpretativos ou informativos sobre os poemas e sobre
os poetas. A ver: a falta de referências e contextualizações; comentários rasos, sem
embasamento direto (poucas menções às formas de análise e interpretação) e parca
relação entre os poemas apresentados e os comentários colocados em nota. Essas
características apareceram repetidamente ao longo do capítulo e serão tratadas aqui de
forma pontual, por meio de refutação e apresentação de novas informações ou distintas
análises, que se pautaram na proposição de leitura por meio da materialidade do texto e
dos textos bases da teoria da poesia concreta – que já estavam disponíveis em formato
de livro no ano da publicação da antologia de Simon e Dantas. No entanto, é preciso
contextualizar que a nota de rodapé, embora tenha um caráter expansivo, no que se
refere à informação, tem também um recurso limitador, uma vez que é um adendo ao
texto principal. Assim, não se espera que haja uma grande elucidação em forma de
comentário, mas tampouco informações imprecisas ou sem embasamento teórico.
A primeira nota de rodapé fala sobre o poema “ovonovelo”, de Augusto de
Campos, exemplificando o que seria um poema da fase orgânico-fisiognômica. A
segunda nota comenta o poema do mesmo autor “uma vez”, como exemplo do uso da
forma geométrica criando um jogo sonoro e visual, elucidando a ideia narrativa de “era
uma vez”. A terceira nota trata de “caracol”, poema de Augusto de Campos. Os autores
apontam que, para além do jogo sonoro e visual, há um aspecto semântico da
transformação de uma palavra em outra e, logo, de uma coisa em outra. O poema
permutacional começa pela composição do primeiro verso “colocar a máscara” e se
desdobra no signo “caracol”, indicado pelo uso do negrito. Para os autores, o processo
de construção é “típico de Augusto de Campos: de fora (superfície, periferia) para
dentro (centro, interior, intimidade)” (Simon, Dantas, 1986, p. 29).
No que tange à poesia de Haroldo de Campos, que vem a seguir na ordem
proposta pelos autores, há três notas de rodapé. Sobre o poema “o âmago do ômega” há
uma explicação sobre os termos usados o poema, em razão das referências ao alfabeto
grego e à língua latina. Já em “vernavios”, os autores apontam para a “fase ortodoxa” do
movimento, com o uso do procedimento combinatório e na “desarticulação de metáforas
e expressões-clichês de uso cotidiano”. Comentário parecido se dá na nota seguinte, que
fala sobre o poema “anamorfose”, porém de maneira mais genérica: “aqui, a
desmontagem do clichê (sem sombra de dúvida) combina a mesma construção dos
poemas anteriores com certa liberdade metafórica”. Comentário esse que consideramos
não acarretar nenhuma complexidade para a discussão.
Sobre a poesia de Décio Pignatari há quatro notas de rodapé. A primeira nota,
que se refere ao poema “um movimento” o aponta como o exemplo “mais puro do que é
a fisiognomia na fase orgânica”, em razão da montagem sobre o eixo vertical fixo
calcado na letra “m” (Simon, Dantas, 1982, p. 31). No entanto, aqui nos parece que há
novamente uma hipérbole. O movimento que se dá na leitura do poema, pode ser visto
como parte de uma “fenomenologia da composição”, como indicado no plano piloto
para a poesia concreta7, mas também denota uma “matemática da composição”, no que
diz respeito à estrutura comunicante. O isomorfismo, ou seja, o conflito de fundo-e-
forma, se mostra, no poema, na estrutura fixa que cria o movimento. Mais do que uma
“forma” que imita o real, o poema cria sua própria realidade, a partir de sua estrutura.
Assim, consideramos não há a pureza que os autores apontam, mas um hibridismo nos
procedimentos.
A nota que acompanha o poema “organismo” aponta para um problema de sua
reprodução, uma vez que o poema deve ser “folheado” para criar o ritmo de leitura. A
reprodução na antologia é feita a partir da sucessão dos oito quadros que compõem o
poema. Embora os autores considerem a reprodução “precária”, houve uma boa escolha
a título de ilustração para o comentário sobre a poética de Pignatari, em relação à

7
Campos, Pignatari, Campos. Plano piloto para a poesia concreta. In: Campos, Pignatari, Campos. Teoria
da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950 – 1960. São Paulo: Duas Cidades, 1975, p. 157.
“transformação do biológico em humano, em processo mental, a transformação do
animal em homem, da vida em cultura”, considerando a temática erótica de sua poética
(Simon, Dantas, 1982, p. 33).
Sobre o poema “beba coca cola”, a nota retoma parte importante da poesia de
Pignatari, ao mencionar o uso do anúncio como matéria de poesia, a partir da ironia e da
crítica e o coloca como exemplo da “fase participante”. No entanto, o poema é de 1957
e o momento da fase participante é datada de 1961. Segundo Aguilar (2003, p. 93), seria
nesse ano, com apresentação do texto de Pignatari “Situação atual da poesia no Brasil”,
no II Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária de Assis, que a fase
participante teria sido anunciada. Levando em consideração que os autores organizaram
o volume, pelo menos vinte anos depois do início do movimento, isso pode ser visto em
perspectiva, porém, como se trata de fases distintas, marcadas nos poemas e pelos
acontecimentos do país, faz-se relevante a discussão.
O poema “caviar” também aparece com nota. Para os autores, “o poema
presentifica a alienação do cotidiano: contemporalizar + temporalizar”, criando uma
crítica “às ilusões da vida moderna”. Leitura essa que parece mobilizar mais uma
análise temática do que formal, porém, não se justifica, pois não mostra no poema as
razões dessa leitura. “Caviar”, “prazer” e “porvir” se repetem ora como verbos, ora
como substantivos, performando no poema. Os jogos sonoros das vogais com o “r” ( -ar
e -or) e as consoantes “c”, “t”, “p”, “r”, “z” ganham um espelhamento na palavra do
verso final “contemporalizar”, o que daria uma noção de sucessividade, na progressão
das terminações (caviar-prazer-porvir-torpor) e revelação e presentificação, agora sim,
do tempo do poema em si. Por isso, discordamos de que as palavras estejam
“deslocadas” ou “alienadas” ou que critiquem a vida moderna, como sugerem os autores
(Simon, Dantas, 1982, p. 34).
Para o poema “Life” há uma nota afirmando seu caráter cinético. O poema está
disposto em cinco quadros, no canto direito da página e há uma instrução para que o
leitor passe o polegar, a fim de criar movimento e animação. Para os autores, a letra “I”
como traço vertical que contém, em sua forma, as outras letras “L”, “F”, “E” , mostra-se
como uma “forma de vida da linguagem”. Há também um dado muito relevante que não
foi comentado, a composição do poema culmina no ideograma chinês “sol”. Assim, por
contiguidade, a vida (Life) estaria relacionada ao sol (ideograma) e parece-nos muito
difusa a interpretação do poema como uma “forma de vida da linguagem” exatamente,
como apontam os autores (p. 35).
A nota seguinte fala sobre o poema “a vida”, de José Lino Grünewald. Dos seis
poemas reproduzidos, apenas esse traz uma nota. Grünewald foi crítico de cinema, o
que acreditamos mobilizou os autores a trazerem umas aspas do poeta sobre a obra de
Godard: “o ato de filmar (poetar) é a experiência, e, por isso, viver a vida é viver o
cinema (a poesia)”. A citação aparece sem fonte e sem contextualização, mas
acreditamos que se refira ao filme “Viver a vida”, do referido diretor, produzido no ano
de 1962. Ainda segundo os autores, a poesia de Grünewald parte de uma “busca de
sentido existencial” expressa nos movimentos de repetição que aparecem em seus
poemas. Os autores argumentam que o “conflito do poeta com sua angústia” se
mostraria em sua poesia mais como “experiência participante” do que com “intimismo
choramingas”. Nos soa raro tal comentário, uma vez que há pouco material poético,
apresentado na antologia, que justifique uma leitura sobre “angústia”, especificamente
(p. 36).
Os poemas de Edgar Braga vêm acompanhados de uma nota biográfica sobre
sua trajetória parnaso-simbolista. Braga começou a escrever nos anos 1920, passou pelo
tom classicizante dos anos 1940 e se interessou pela poesia concreta, no fim dos anos
1950. Assim, era um poeta mais experiente em meio aos mais jovens. Os autores
apontam que os poemas de Braga se constroem pela “mistura do canto folclórico,
balada, delicada musicalidade, somados à liberdade que as novas técnicas da poesia
concreta oferecem”. De fato, o uso de repetições nos poemas escolhidos pelos autores
mostra o tom musical da poesia de Braga, sendo os exemplos muito bem relacionados
aos comentários da nota (p.39).
Os cinco poemas de Ronaldo Azeredo também acompanham uma única nota,
contextualizando o leitor a respeito de sua participação no grupo Noigandres. Ao
contrário de Braga, Azeredo foi o membro mais jovem do grupo e não produziu poemas
em verso, antes de integrar o movimento, sendo sua poesia “espécie de modelo para
identificação dos procedimentos concretistas”. Os autores apontam a poesia de Azeredo
como “mera representação gráfica de uma ideia abstrata, [...] de um fenômeno natural”.
A firmação é bastante difusa, considerando que no plano piloto para a poesia concreta
há menção à presentificação da realidade e não representação, como anteriormente os
próprios autores haviam colocado. Também acreditamos que um poema não pode ser
considerado “mera representação gráfica” de uma ideia, uma vez que tal análise pode
soar muito generalista (p. 41).
Para a poesia de Pedro Xisto há uma nota de teor mais biográfico. Os autores
relacionam os interesses de Xisto pela poesia oriental e pela física moderna como
assuntos que o aproximaram do grupo Noigandres ao final da década de 1950. A poesia
de cunho experimental e suas produções de haicais são exemplos de sua participação no
movimento concretista (p. 42).
Há dois poemas de Wlademir Dias Pino reproduzidos na antologia, que são:
Solida (1957) e A Ave (1956). Cada um leva uma nota de rodapé. A primeira nota é de
teor biográfico, contextualizando a participação de Dias Pino no grupo Noigandres, até
meados dos anos 1960. A produção do poeta é considerada pelos autores como
“singular” e antecipadora dos procedimentos que serão desenvolvidos posteriormente,
como “o poema desdobrado em séries de diferentes versões gráficas, entre as quais
poemas-objetos” (p.44). De fato, após breve participação e partindo de divergências
com o núcleo de São Paulo, Dias Pino deixa o grupo Noigandres e funda o movimento
do Poema Processo. Com uma nova proposta de poesia de vanguarda, o Poema
Processo não só antecipou alguns procedimentos poéticos, como inaugurou outras
práticas diversas das do grupo paulista. A segunda nota acompanha uma versão do
poema “A ave”. Nela, os autores apontam as questões de estrutura e movimento,
demonstradas na forma de asa que o poema tem e no uso da cor e da ideia de passagem
(ave – vae). Há também a menção a algarismos romanos que não se veem no poema
reproduzido, mas tratam de uma outra versão do mesmo poema. Informação essa que
fica descontextualizada e parece ser ter sido replicada ou embasada pela leitura da outra
versão – o que não fica claro no referido texto de nota.
Acreditamos que se mostrou relevante a leitura minuciosa das notas de rodapé,
uma vez que os autores dão prioridade para a reprodução de poemas no livro. Como
notou Dalvi (2016, p. 88) “a coleção cumpriu um importante papel histórico ao trazer
para o centro da formação do leitor de literatura a leitura dos textos literários”. Com
isso, a coleção acaba por dar a maior parte de suas páginas à discussão (via notas de
rodapé), mas não aprofundam as análises críticas, tanto da atuação dos poetas no campo
literário quanto dos poemas em si. As notas trouxeram informações biográficas e
análises, mesmo que superficiais, que acreditamos possam contribuir para as discussões
em nível escolar.
No seguinte subcapítulo “O pulo da onça” os autores discutem o chamado “salto
participante” do movimento. Ele faz parte do capítulo “Textos selecionados” e tem as
mesmas características dos outros subcapítulos já analisados, sendo composto por: texto
de apresentação, reprodução de poemas e notas de rodapé. Nesse subcapítulo estão
poemas de:
Haroldo de Campos: “Servidão de passagem”, de 1961 e “Alea I: variações
semânticas, de 1963.
José Lino Grünewald: “sempre ceder”, “durassolado” e “apertar o cinto”, de
1961.
Ronaldo Azeredo: “corpo a pouco”, de 1960 e “fragmentos de fragmentos de
prosa”, de 1963.
Edgar Braga: dois poemas sem título do livro Soma, de 1963.
José Paulo Paes: “Pavloviana”, de 1962, “ocidental”, de 1964 e “Epitáfio para
um banqueiro”, de 1963.
O texto de apresentação do subcapítulo contextualiza o chamado “salto
participante” da poesia concreta, atribuindo a Décio Pignatari o anúncio, em 1961 8. O
“salto”, segundo os autores, seria uma resposta aos “acontecimentos político-sociais,
tensionados por uma intensa mobilização popular”, que demandariam da classe artística
um “compromisso de colaborar no processo de transformação da realidade brasileira”
(p. 48).
O texto de Pignatari argumenta menos a favor de uma “transformação” social e
se volta para uma elucidação sobre o “atual”, como resultado poético de uma escrita
“em situação”. O argumento principal do texto passa pela revolução industrial e a perda
do caráter artesanal da arte, indo de Flaubert a Sartre, e compara a crise do artesanato à
crise do artista (e à crise do verso, na poesia). Retomando Mallarmé como precursor de
uma superação do conflito do artesanato, Pignatari aponta para a saída do problema por
meio da relação entre a arte e a ciência. Na chamada “poesia-onça”, a “dialética do
projeto” é que conduziria a composição, trazendo “na pele as próprias pegadas”, ou seja,
é o “processo heurístico e fenomenológico da poesia-descoberta, da poesia-invenção,
que vai dizendo a sua descoberta na medida que a faz” (Pignatari, 1971, p. 95).
O poeta concreto apresenta e analisa parte da obra de Carlos Drummond e de
João Cabral de Melo Neto e os coloca “em situação”. Aos moldes da crítica-teórica de
Sartre, no texto “Situação do escritor em 1947” 9, Pignatari procura, na poesia dos dois,

8
Como já colocado anteriormente, o texto foi apresentado no II Congresso Brasileiro de Crítica e História
Literária de Assis. Pignatari, Décio. A situação atual da poesia no Brasil. In: Pignatari, Décio.
Contracomunicação. São Paulo: Perspectiva, 1971.
9
Sartre, Jean-Paul. Que é a literatura? São Paulo: Ática, 2004.
elementos que evidenciem o binômio “échec/réussite” 10 de que trata Sartre em seu livro.
Assim, embora a fase participante possa ser lida sob um viés do engajamento social, o
que Pignatari fala em seu texto é mais sobre como a poesia pode participar ativamente
daquilo que está em pauta: os avanços tecnológicos, as disputas de poder e território, as
ideias em torno da vida social e política, os movimentos culturais etc.
O texto de apresentação de Simon e Dantas aponta, ainda, que nessa nova fase
pretendia-se “revigorar a linha da crítica e da sátira sociais”, bem como a “ampliação
das possibilidades comunicativas do poema, para atingir uma faixa mais ampla de
leitores”. Se por um lado, em razão da efervescência cultural e política da época, fez-se
necessário, inclusive, um post scriptum de 1961 ao plano piloto, citando Maiakoviski
“sem forma revolucionária não há arte revolucionária”, por outro, parece-nos irreal que
os poetas concretos pensassem que seus poemas fossem “pouco comunicativos”, ou
mesmo “elitistas” a ponto de atingirem apenas parte de um público.
Havia um desentendimento entre o grupo Noigandres e a juventude artística
engajada nos CPC’s e nos outros movimentos que se organizavam antes dos anos de
chumbo que culminou, talvez, em uma poesia concreta com uma nova abordagem
temática, mas não estrutural. Alertou Pignatari (1961, p. 108) em seu texto: “a poesia
concreta vai dar, só tem de dar, o pulo conteudístico-semântico-participante”.
A ideia dos autores de que os poetas concretos partiriam para uma poesia “mais
palatável” seria um modo de negar as possibilidades comunicativas das estruturas
poéticas dentro da orientação concretista pensada até ali e, por isso, parece ilusória. Em
1957, no artigo “Evolução das formas: poesia concreta”, escreve Haroldo de Campos:

A poesia concreta responde a um certo tipo de “forma mentis”


contemporânea: aquele que impõe os cartazes, os “slogans”, as
manchetes, as dicções contidas de anedotário popular etc. O que faz
urgente uma comunicação rápida de objetos culturais. A figura
romântica, persistente no sectarismo surrealista, do poeta “inspirado”,
é submetida pela do poeta factivo, trabalhando rigorosamente sua
obra, como um operário um muro (Campos, 1975, p. 52).

É importante frisar que, como apontou Aguilar (ano, p. 89), em 1962 é impresso
o último número da revista Noigandres e, no mesmo ano, o primeiro número da revista
Invenção, que começara como uma página do jornal Correio Paulistano, mas que, a

10
“A contraposição sartreana échec/réussite (fracasso/êxito) encontra correspondência na teoria da
informação. A mensagem, entendida como carga de significados, é menos entrópica, é “maior” na prosa
(êxito), e mais entrópica, isto é, “menor” na poesia (fracasso), que é tipicamente não discursiva, ainda
mais quando incorpora elementos da comunicação não-verbal [...]” (Pignatari, 1971, p. 102).
partir de março de 1961, abandona o jornal e se transforma em um periódico pensado,
produzido e gerido pelos poetas do grupo e outros artistas. No primeiro número de
Invenção, há uma “guinada em direção à poesia engajada, a ‘poesia-para’ como a
chamou Haroldo de Campos em seu poema ‘Servidão de passagem’, de 1961”.
Assim, nos parece que há uma readaptação discursiva para uma prática já
aparente, mas porque não declaradamente política (nos termos de mobilizada em torno
de partidos ou ativismo popular, exatamente) acaba por ser vista a partir de um
descolamento daquilo que já era programático no plano piloto. Inaugura-se a fase
participante com a aposta em um engajamento que evidenciasse a ideia de “situação”,
uma vez que o grupo já a via como “totalmente contemporânea” (Campos, 1975, p.
152)11 e como “a única poesia consequente do nosso tempo” (Pignatari, 1971, p. 108).
O texto de apresentação da antologia segue com uma menção pelos autores à
aproximação dos poetas Noigandres aos integrantes do grupo Tendência, de Minas
Gerais, composto por Affonso Ávila, Rui Romão e Fábio Lucas, como um momento de
abertura das ideias do grupo. A Semana nacional de poesia vanguarda, de 1963,
realizada em Belo Horizonte, na sede da reitoria da Universidade Federal de Minas
Gerais seria o marco da relação entre os grupos.
À época, o grupo Tendência produzia uma revista de mesmo nome, com o
primeiro número lançado em 1957. No conteúdo programático do grupo pairava a ideia
de “nacionalismo crítico”, deslocando para uma atitude de “consciência crítica do
poeta”. Em 1961, Affonso Ávila colabora no primeiro número da revista Invenção,
refletindo sobre o papel da poesia de vanguarda e do fator participante. Em 1963, é ele o
grande articulador da Semana e quem divulgaria, anos depois, o manifesto em livro.
O manifesto indicava o caminho que a poesia de vanguarda pretendia travar em
meio ao contexto brasileiro, como uma “direção única no sentido da pesquisa e criação
de uma linguagem nova e de autenticidade brasileira para a poesia [...] e atribuir-lhe
função participante no contexto da realidade nacional” (Ávila, 1978, p. 136).
Assinam o manifesto: Roberto Pontual – Décio Pignatari – Augusto de Campos
– Benedito Nunes – Affonso Ávila – Haroldo de Campos – Luiz Costa Lima – Laís
Corrêa de Araújo – Affonso Romano de Sant’Anna – Frederico Morais – Pedro Xisto –
Paulo Leminski – Márcio Sampaio – Olívio Torres de Araújo – Henri Corrêa de Araújo

11
O artigo “Contexto de uma vanguarda” foi escrito por Haroldo de Campos, em 1960. Aparece como
introdução a uma antologia do grupo concreto de Fortaleza, depois é publicado no Jornal de Letras, no
Rio de janeiro, em março de 1963. Em 1962, as mesmas ideias aparecem em um texto na revista
Tendência.
– Ubirasçu Carneiro da Cunha – Haroldo Santiago – Luiz Adolfo Pinheiro – Fábio
Lucas – Libério Neves – Célio César Paduani).
Os principais pontos discutidos da Semana e sistematizados no texto do
manifesto foram: 1. “Consciência da forma”: em termos gerais, a forma do poema é
participante, pois cria um campo de comunicação na esfera nacional e internacional; 2.
“Comunicação e participação”: além da objetividade da linguagem, os poetas pensavam
nas funções das diversas mídias e em sua apropriação como forma de participação, além
de discutir a questão participante, como papel ativo do “espectador” frente ao objeto
poético; 3. “Função prática”: o poema deveria “confrontar a realidade nacional”,
mediante “a criação de novos métodos e meios de aplicação do texto”; 4. “Opção”: a
poesia relevante seria aquela que permite a descoberta, da “reformulação da realidade,
induzindo o leitor a tomar consciência de si mesmo e da sua existência social alienada”
(Ávila, 1978, p. 137-138).
Assim, tem-se novo contorno, até então um pouco obliquo, à menção à fase
participante, no texto introdutório da antologia. Relacionando os acontecimentos e os
textos apontados pelos autores como momentos que desembocam nessa nova fase, é
possível compreender que não só se imaginava uma poesia que pretendia se atentar
criticamente à situação presente, mas que exigia do público uma mesma participação.
Pode-se pensar aqui, também, na tomada de consciência do fazer poético dentro da
guerrilha cultural, que se apropriaria de outras mídias para “atingir” o público.
No entanto, o texto de apresentação do capítulo resume as discussões feitas na
Semana com a seguinte máxima: “A contribuição do poeta para a transformação da
realidade tem de basear-se no modo de ser específico da poesia como ato criador”
(Simon, Dantas, 1982, p. 49)12. A frase de teor genérico combina-se com comentários
que coloca o grupo concreto num baú de “contradições ideológicas” do momento
histórico, pois apesar de se engajarem, os autores acreditam que os poetas, ao mesmo
tempo, resistissem a “poesia como mensagem”, à palavra de ordem e a uma certa
“diluição”:

A relação dos poemas com as tarefas imediatas da participação e da


comunicação poética é, portanto, contraditória, assim como tinha sido,
na fase precedente, a relação entre o poema-objeto-útil e as exigências
do consumo. Talvez se possa dizer que a produção bem menor desta
12
A máxima fecha o texto publicado no Suplemento Literário de O estado de S. Paulo, em 7-9-63, como
consta no livro Teoria da poesia concreta (1975, p. 201). Suspeita-se que talvez seja essa a referência do
destaque à frase, uma vez que ela não resume bem a ideia geral do texto.
fase e os poucos avanços formais sejam sintomas da consciência das
contradições que a tarefa participante colocava. Parece que o
Concretismo viveu este momento como uma “servidão de passagem”,
atravessando um terreno que não era seu, pressionado mais pela
urgência das solicitações da época do que pela força das próprias
soluções que emergem de seu projeto (Simon, Dantas, 1982, p. 49).

Ao que parece, para os autores, a poesia concreta não foi participante, mesmo
quando fora, e para os poetas concretos, a poesia sempre fora participante, mesmo
quando (dissessem que) não fora. Estaria aí a contradição, afinal? Ironia à parte, como
já mencionado antes, os textos mobilizados para ilustrar o capítulo parecem criar uma
espécie de abertura no signo de “participante”, mas os autores, ao que tudo indica,
parecem querer esse mesmo signo apenas pela ótica do “engajamento”.
Saltando do texto de introdução aos poemas da coletânea, nota-se a ausência de
poemas de Augusto de Campos. “Cubagrama”, de 1960, “Greve”, de 1961, e mesmo os
popcretos, produzidos de 1963-1965, com temas notoriamente politizados (“SS”,
“Psiu”, “Olho por olho”) ficam de fora da seleção dos autores.
Os poemas de Haroldo abrem a seção da coletânea, são eles: “servidão de
passagem”, de 1961 e “Alea I – variações semânticas”, de 1963. O primeiro vem
acompanhado de nota de rodapé e o segundo não.
Se por um lado o texto de apresentação coloca em dúvida a fase participante, a
nota de rodapé para o poema “servidão de passagem”, reproduzido com todas suas
partes: proêmio/poema, aponta para o “impasse do engajamento artístico” entre poesia-
pura e poesia-para quando diz que a poesia “participa imediatamente dos problemas
sociais, sem, contudo, sacrificar o poético” (p. 51). Há na nota um dado relevante:
poesia pura, para os autores, estaria conectada a um dado universal, e, por
contraposição, a poesia impura (a poesia para) seria marcada pelo tempo (marcado no
título: passagem) e, por consequência, marcada pelo estado de “situação”.
De fato, como apontamos, quando vista no sentido estrito de engajamento
político, e mesmo Haroldo parece se aproveitar da ideia, no uso do binômio pura-para 13,
há um ganho semântico que, até então, não aparecera no programa da poesia concreta.
Corroborando com o que Pignatari propôs, em 1961, a poesia-descoberta criava
“situação” para a onça dar o pulo (“a onça vai dar o pulo”), pois, de qualquer forma,
acreditava-se que era preciso “jogar os dados novamente” (Pignatari, 1971, p. 95).

13
“a poesia é pura?/a poesia é para/de barriga vazia” – Campos, Haroldo de. Xadrez de Estrelas:
percurso textual 1949-1974. São Paulo: Perspectiva, 2008.
Os poemas apresentados em seguida são de José Lino Grünewald. Dos três
poemas, apenas “durassolado”, de 1961, é acompanhado de nota. O poema é operado
pela justaposição de palavras, formando signos híbridos. Dividido em duas colunas, a
primeira mais orientada a adjetivar, com as palavras finalizadas pelo sufixo “ado” e a
segunda formada pela justaposição de substantivos, em que as combinações aparecem
com o final “umano”, orientada talvez por “desumano” – única palavra dicionarizada da
coluna.
Aliás, é essa mesma observação que os autores trazem em nota de rodapé,
apontando “desumano” como única palavra que não apresenta “deformidades de
montagem e de significado”. Os autores creditam à escolha uma noção paradoxal, pois
em desumano estaria “a esperança da resistência humana no mundo capitalista das
relações medidas pelo capital” (p. 53).
O poema mostra, em seu sentido geral, composições que apontam para uma
crítica da posição de subalternidade do sujeito humano frente à exploração do capital,
impressa por meio da posição do adjetivo frente ao substantivo, assim como das
partículas que compõem as palavras, como em “agrusurado/servumano”,
“capitalienado/gadumao” e “massamorfado/desumano”. Assim, nos parece, que
“desumano” seria o resultado de uma lógica de exploração que, ao adicionar elementos
ao sujeito humano, acaba por tirar-lhe tudo – o fator “[h]umano” é o resto de uma
operação “des”, resultando numa negação da humanidade.
Os autores parecem entender a justaposição – criação de novas palavras por
meio de exercício combinatório – como algo que deforma o signo e tira-lhe o rastro
humano. No entanto, mais do que o amálgama de sentidos que a justaposição
possibilita, o procedimento se mostra como uma operação ideogramatica de escrita, já
prescrito no “plano piloto”, como uma referência à James Joyce. Assim, a conclusão de
que o sujeito despojado de humanidade representaria “esperança da resistência humana”
parece-nos pouca mobilizada e pouco embasada, talvez levada por a uma leitura
superficial da composição.
Os poemas que aparecem a seguir são “pouco a corpo”, de 1960, e “fragmentos
de fragmento de prosa”, de 1963, de Ronaldo Azeredo, esse último acompanhado de
nota de rodapé. Os autores comentam o poema em prosa, até então novidade para a
prática concreta, contextualizando sua produção a partir de colagens de manchetes de
jornal, apontando o poema não como uma reelaboração, mas registro da “sensibilidade e
desespero dos habitantes das grandes cidades” (p. 56).
No entanto, a prática da colagem parece mostrar mais, pois ela reverbera as
discussões que já estavam em pauta e se registram na Semana de poesia de Vanguarda,
uma vez que o texto veiculado como “manifesto” falava da necessidade de apropriação
dos meios de comunicação e mídia impressa – o que o poema faz, exatamente, retirando
da atualidade do cotidiano a carga semântica que compõe o poema. Além disso, a
prática da colagem também foi pensada por Augusto de Campos, nos seus popcretos (de
1961 a 1963), reiterando que essa era uma práxis poética do grupo, respondendo aos
novos modos de pensar a poesia “em situação”.
Em seguida, somos apresentados a dois poemas de Edgar Braga, ambos sem
título, publicados em seu livro Soma (1963). Em relação ao salto participante, talvez os
poemas de Braga sejam os que mais comunicam com a visão de poesia engajada que os
autores comentam no texto introdutório do capítulo. No entanto, os poemas não trazem
nota de rodapé ou qualquer comentário, embora coloquem a fome como tema central.
Os poemas de José Paulo Paes “Pavloviana”, de 1962, “ocidental”, de 1964, e
“Epitáfio para um banqueiro”, de 1963, são apresentados em sequência. O poeta ligou-
se ao grupo Noigandres por seu contato com Cassiano Ricardo, que era colaborador da
revista Invenção e editor na Cultrix, onde Paes também trabalhava (Melo, 2006, p. 11).
Os autores pontuam, em nota de rodapé, a aproximação de Paes ao grupo
concretista justamente na fase participante, uma vez que os poemas de Paes já tinham
um teor de “crítica social” e depois acabaram ganhando contornos “do epigrama, do
trocadilho e do humorismo tipográfico”, ampliados pelo contato com o movimento. A
outra nota traz um dado sobre o poema “Pavloviana”, contextualizando sua forma com
os experimentos de Psicologia Experimental, pautada no estímulo-resposta, do cientista
russo Ivan P. Pavlov.
Esses três poemas de Paes são os únicos a serem reproduzidos na antologia, o
que nos faz questionar a aparição dele como um poeta que fez parte do movimento. A
aproximação que se dá nos anos 1960, nesse momento de salto da poesia concreta, o
colocaria mais como um colaborador da Revista Invenção, do que como um integrante
do grupo Noigandres.
Levando em consideração os critérios de produção da antologia, tem-se dois
recortes propostos: o primeiro sendo “Literatura”, já que se trata de uma coleção de
“Literatura Comentada” e o segundo “Poesia concreta”, com seleção de textos que
façam parte desse universo14. Assim, embora tenha produzido poemas visuais, nos
questionamos se Paes fora, de fato, um poeta concretista. Coloca-se em dúvida, aqui,
não o mérito dos poemas visuais de Paes, mas questões de seleção na composição da
antologia.
O capítulo seguinte “Poesia de olho vivo./Ver com olhos livres.” traz uma
seleção de poemas que têm na visualidade seu procedimento principal. Já no início do
texto do capítulo, os autores apontam a relação dos poetas do grupo Noigandres com os
pintores concretos, a partir de 1950. Mesmo que a Noigandres 1 saia em 1952 e, em
1955, a Noigandres 2, o lançamento oficial do grupo se dá em 1956, na I Exposição
Nacional de Arte Concreta, no MAM, que reuniu poetas e artistas.

Figura 1: cartaz da I Exposição Nacional de Arte Concreta, no MAM.

Fonte: Iea Usp15

A relação dos poetas com os artistas visuais da época talvez seja o laço mais
importante para uma projeção nacional, considerando a exposição de 1956 e a de 1957,

14
Há ainda um caráter implícito de que se trata de “poesia concreta brasileira”, atuando também
como um recorte.
15
http://www.iea.usp.br/noticias/as-exposicoes-inaugurais-da-arte-concreta-e-neoconcreta
no Rio de Janeiro, assim como no campo internacional da poesia concreta, pois já
estavam estabelecidas algumas relações da pintura concreta no âmbito Brasil-Suíça.
Mary Vieira, escultora e pintora, era ligada ao grupo “Zürcher Konkreten”, junto
a Max Bill, e, no começo dos anos 1950, trabalhava em Zurique, produzindo esculturas,
fazendo exposições, publicando em revistas, tal como a spirale (número três e quatro) e
produzindo livros de artista.16
Também o brasileiro Almir Mavignier estava na Suíça, no começo dos anos
1950. Ele viveu os primeiros anos da década em Berna, aprimorando sua pesquisa sobre
a arte concreta. Amigo de Bill, conheceu Eugen Gomringer pela Galeria 33, espaço
comandado por Dieter Rot e Marcel Wyss, onde Mavignier expôs sua obra, em 1954
(Holzhausen, 1996, p. 116). Em 1955, acontece a inauguração oficial da Hochschule für
Gestaltung, em Ulm. Eugen Gomringer será assistente de Max Bill e produzirão ali o
manifesto intitulado “vom verz zur konstellation. zweck und form einer neuen
dichtung”, em 1954/1955.
Décio Pignatari conhecerá Gomringer no mesmo ano, e é possível encontrar na
fortuna crítica tanto em português quanto em alemão quais seriam os contextos da
aproximação dos dois. No entanto, deixaremos isso para um outro momento. O que nos
interessa aqui é demonstrar a relação dos poetas com a arte concreta produzida no
Brasil, mas também na Suíça alemã e na própria Alemanha, pontos de confluência do
movimento internacional da poesia concreta. Assim, nota-se que a ligação com as artes
visuais, em especial a arte concreta, sucede a formação do movimento e pode ser
considerada como referência à visualidade programática do grupo.
A relação com pintores e artistas foi primordial para a articulação social do
movimento no início dos anos 1950, sendo necessário o resgate também para essa
pesquisa, pois o que aparece como programa no “plano piloto da poesia concreta” são
apenas menções a Piet Mondrian, Max Bill, Joseph Albers e “arte concreta, em geral”
(Campos, Pignatari, Campos, 1975, p. 156).
Simon e Dantas atribuem essa aproximação das artes visuais aos poemas
produzidos a partir de 1960 e escolhem alguns poucos para ilustrar a seção. O recorte,
no entanto, traz poemas de naturezas diversas, pois, mesmo que tenham na visualidade
seu procedimento principal, correspondem a pesquisas diferentes de cada autor e
motivações distintas de produção poética.

16
Vieira, Mary. Zeiten einer zeichnung 1 + 2. Berna: Sprial Press, 1954.
Por essa razão, o texto introdutório acaba por conectar ideias distintas e
genéricas que pouco comunicam com os poemas selecionados. Se por um lado, há uma
representação de poemas que não usam palavras, por outro, há poemas em que as
palavras não só são centrais, como é o próprio signo concreto que funcionará como
estrutura do poema – é o caso do logograma “zen”, de Pedro Xisto.
Os autores defendem no texto introdutório do subcapítulo que o “não-verbal”
seria uma consequência do “momento final de um esforço sistemático e programado de
trabalho coletivo”. Eles citam o manifesto “nova linguagem, nova poesia” 17, de
Pignatari e Luiz Ângelo Pinto, como um “desejo de reformular a proposta da poesia
participante, transformando o poema sem palavras numa forma visual de comunicação
universal” (Simon, Dantas, 1982, p. 59).
O texto de Pignatari e Pinto traz uma reflexão sobre a semiótica de Pierce,
contornando aspectos linguísticos. O poeta concreto como “designer” da linguagem
buscaria a criação de “uma nova sintaxe” que estaria marcada na expressão do espaço
gráfico, no plano, em contraposição à escrita linear, derivada da linguagem oral (que
eles consideram também linear). Os poetas apontam que “em alguns casos, na poesia
concreta até o presente, foi possível a criação de textos nos quais a sintaxe deriva do
próprio desenho dos signos usados”, e que, também, na nova linguagem “o signo não
precise ser necessariamente visual ou só visual” (p. 161).
Esse dado é importante, pois denota que o manifesto visava propor não
simplesmente “relações além do código verbal”, como sugerem Simon e Dantas (1982,
p. 59), mas a criação de uma nova linguagem que criasse “novas realidades, de novas
formas-conteúdos”, que estava pautada em um aprofundamento na semiótica e em uma
nova sintaxe, como novo modo de ordenar e compor os signos (Pignatari, Pinto, 1975,
p. 162).
No entanto, consideramos acertada a ideia dos autores de que, a partir dos anos
1960, o concretismo “passava a incorporar sensivelmente novas questões” (p. 59). Esse
percurso é bem desenhado na antologia, uma vez que o subcapítulo anterior já tratava da
chamada fase participante e, no presente capítulo, há uma intenção de mostrar uma
ampliação do interesse e da pesquisa do grupo concreto.
O recorte procedimental é válido (pautando a visualidade como agente estrutural
da comunicação poética), no entanto, traz também um recorte temporal, ao mencionar

17
Pinto, Pignatari. Nova linguagem, nova poesia. In: Teoria da poesia concreta: textos críticos e
manifestos 1950 -1960. P. 159
que este seria “um momento final de um esforço sistemático” (referindo-se à publicação
do manifesto “nova linguagem, nova poesia”, que “[...] o concretismo vivia a fase
final”, que se tratava de “[...] escritos pós golpe militar de 1964” e no trecho “A
sensibilidade agora presente [...]” (p. 59). Essas expressões denotam esse recorte
temporal, mas que aparecem tímidas, descontextualizadas e de maneira muito genérica.
Acreditamos que, embora a seleção mostre alguma relação temporal e histórica
com o momento em que os poemas foram publicados, esse dado não está posto
devidamente no texto de apresentação do subcapítulo. O texto aponta para o manifesto
de Pignatari e Pinto, mas os demais comentários se referem à produção dos poetas
selecionados, distanciadas do contexto de produção. Há também, no texto introdutório,
a intenção de refletir sobre o conjunto dos poemas, englobando características gerais
que apontam mais para uma reflexão filosófica da mudança de estado do poeta do que
sobre procedimento da visualidade em si. Como na passagem:

Os poemas transam os detritos do mundo industrial; suas imagens-


marcas, irônicas e sem funcionalidade, investem contra o cotidiano e
indagam seu sentido. A sensibilidade agora presente é mais a de um
transeunte enervado que lança seu testemunho anônimo, mistura de
gesto enigmático e deboche, do que a de um poeta de gabinete a
conceber uma utopia de reconstrução da sociedade baseada no poema
e na forma. Aparece a influência Pop (por isso, os poemas de Augusto
chamam-se pop-cretos) e já se prenunciam as contradições da
realidade brasileira que serão matéria do Tropicalismo (Simon,
Dantas, 1982, p. 59).

Pensando no sentimento de época e em alguns poemas produzidos quase na


metade dos anos 1960 é possível compreender parte das reflexões dos autores. No
entanto, há um distanciamento do texto introdutório à materialidade dos poemas em si
que acaba por confundir o leitor, pois não há lastro sólido do “gesto enigmático”, do
“detrito do mundo industrial” ou do chamado “testemunho anônimo” nos poemas
selecionados.
É possível entender que os comentários tratem dos “popcretos” e dos poemas
semióticos de Pignatari e Azeredo (que apresentam chave léxica) 18. O enigmático e o

18
Apesar de assinar o texto-manifesto com Pignatari e publicar a maior parte dos poemas semióticos, não
há nenhum poema de Luis Ângelo Pinto reproduzido na antologia.
anônimo talvez apareceriam na ausência do aspecto lírico (para além do gesto criador,
que aqui envolve a operação da linguagem como manifestação do sujeito na composição
poética) e na própria ausência de sintaxe linear. Esse esforço interpretativo, no entanto,
ignora a referência ao ready-made, no caso de Campos (Aguilar, 2006, p. 108) e aos
saltos semióticos de Pignatari. Não nos parece que a “a reconstrução da sociedade” está
fora do poema e fora da forma, como afirmam os antologistas.
Passemos aos poemas escolhidos para ilustrar essa seção19. São eles:
Décio Pignatari: “pelé a pátria é a família”, de 1964.
Augusto de Campos: “Olho por olho”, de 1964.
Pedro Xisto: “Epithalamium – II” e “Zen”, ambos de 1966.
Edgar Braga: “Limite do olho”, de 1965 e “Vocábulo”, de 1966.
Ronaldo Azeredo: “Labor Torpor”, de 1964.
O primeiro poema é “pelé a pátria é a família”, de Pignatari – embora esteja
grafado apenas “Pelé” na antologia. O poema é reproduzido em página inteira e leva
uma nota de rodapé. Na nota, lê-se “estrepolias gráficas com as formas geométricas da
bandeira do Brasil, às quais são atribuídas significados satíricos que visam diretamente
as posições reacionárias da classe média no contexto do golpe de 1964” (p. 60). O
comentário situa o poema na fase participante, mas por questões sintáticas (de
composição) se mostram como “estrepolias gráficas”. Talvez a menção ao “deboche” no
texto de introdução se referia ao poema.
Neste poema, vale comentar que Pignatari demonstra como se utiliza da Teoria
dos signos, de Pierce. O poema usa símbolos (“quando a relação signo-referente é
arbitrária”), partindo da composição gráfica que se combina e recombina para criar
linguagem. A chave léxica funciona como um conteúdo semântico, no entanto, é a
operação do código que cria a mensagem. Poesia experimental em que a “lógica
simbólica, o conjunto de signos e as regras de utilização dos mesmos são estabelecidos
de modo a possibilitar, entre outras coisas, maior clareza e precisão” (Pignatari, Pinto,
1975, p. 160).
Com isso, é preciso ter em conta que a poesia semiótica se via como linguagem
direta e não enigmática. O que resta de enigma no poema é, talvez, a possibilidade de
lê-lo de muitas maneiras, uma vez que pode haver justaposição, superposição,
intraposição e outras operações sintáticas atuando nele (Pignatari, Pinto, 1975, p. 161).

19
Os antologistas acrescem um importante comentário ao fim do texto: não há poemas sem palavras na
obra de Haroldo de Campos.
O poema seguinte faz parte série popcretos, de Augusto de Campos. “Olho por
olho”, de 1964, foi exposto em grande painel e apresentado ao público na Galeria
Atrium, em São Paulo, no mesmo ano. O poema é apresentado sem notas, mas leva um
comentário no texto de apresentação do subcapítulo. Uma em relação ao contexto de
produção (golpe de 64) e outra em relação à influência pop, ambas informações já
comentadas nesse texto.
O que poderia ter sido interessante mencionar é algo que aparece também no
texto de Pignatari e Pinto, de que a experimentação visual da época se pautava nessa
nova maneira de trabalhar a sintaxe, como formas de operação dos signos. Os autores
poderiam ter recorrido também ao texto de apresentação da exposição, reproduzido na
antologia Viva Vaia, cuja primeira edição data de 1979. Embora o título do subcapítulo
(“Poesia de olho vivo. Ver com olhos livres.”) faça referência ao poema de Campos
(“ver com olhos livres (oswald)”)20 o poema leva um comentário bastante superficial.
Seguindo, há dois poemas de Pedro Xisto: “Epithalamium – II” e “Zen”, ambos
de 1966. Os dois são ótimos exemplos para algumas passagens do texto de Pignatari e
Pinto, mas aparecerem sem nota de rodapé, com exceção a um comentário que
contextualiza a palavra “epitálamo”. No texto do subcapítulo, no entanto, os autores
destacam que os logogramas de Xisto “oferecem uma percepção ampliada e mágica do
significado vivo das palavras” (p. 59).
Aqui, nota-se, mais uma vez, o tom genérico da apresentação dos poemas pelos
autores. Há um salto para fora do poema, da teoria e mesmo da própria argumentação
anterior, pois, embora haja citação dos textos críticos, pouco se recorre a eles. Os
poemas de Xisto denotam aspectos da construção visual, que não fazem referência à
“fenomenologia da composição” ou a “matemática da composição” 21, mas dialogam
com os novos pressupostos que consideram a forma virtual das letras e o espaço da
página para compor o desenho que comunicará o poema. Trata-se da “forma
informada”, ou seja, o design do signo “projetado e construído para cada situação” que
cria significado (Pignatari, Pinto, 1975, p. 160).22
20
Campos, Augusto de. Viva Vaia: poesia 1949-1979. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 123.
21
Trecho retirado do plano-piloto para poesia concreta.
22
O texto de Pignatari e Pinto é um dos mais importantes daquela década. Na segunda edição do livro
“Teoria da poesia concreta”, ele está estrategicamente colocado após o texto do plano-piloto. Na
introdução assinada por Augusto de Campos, reitera-se “Mantivemos, pois, o volume como estava,
acrescentando-lhe apenas dois textos, inéditos em livro, que nos pareceram indispensáveis para a
compreensão dos caminhos assumidos posteriormente pelos poetas do grupo: o manifesto NOVA
LINGUAGEM, NOVA POESIA, de Décio Pignatari e Luis Ângelo Pinto (1964), que originou a poesia
semiótica e os poemas sem palavras adotados, depois, cabulosamente, por defluxos concretistas como a
poesia processo, a poesia sinalística e outras [...]” (Campos, Pignatari, Campos, 1975, p. 5).
Assim, como já colocado anteriormente, há um recorte temporal na escolha dos
poemas apresentados no subcapítulo, o que não há é a mobilização efetiva de textos
críticos e teóricos que justifiquem a seleção e complexifiquem a proposta de seleção. A
ideia de trazer esse momento histórico é muito acertada, mas carece de maior
contextualização, uma vez que o texto-manifesto trata de um marco importante para o
movimento e poderia ter sido mais explorado.
Os poemas de Edgard Braga “Limite do olho”, de 1965, e “Vocábulo”, de 1966,
estão presentes no livro Tatuagens (tatopoemas), de 1976. O livro foi editado por
Augusto de Campos, Regis Bonvicino e Julio Plaza, na fictícia Edições Invenção (selo
inventado do grupo Noigandres, por onde saiam livros autoeditados). Assim, a nota de
rodapé que acompanha o poema “Vocábulo” é um comentário de Augusto de Campos
sobre a poesia de Braga e sua condição de “obstreta-poeta. Obsletra” (Simon, Dantas,
1982, p. 65), já que o poeta era médico ginecologista, tendo feito inclusive partos dos
filhos dos poetas concretos, como contou Ligia Azeredo (Bonvicino, 1984, s/p).
Edgard Braga se aproximara do grupo Concreto ainda no começo do
movimento, mas produziria poemas concretos alguns anos depois, em 1960, com
Extralunário, editado pela Martins Fontes. Em 1963, sai Soma; Algo, em 1971, e
Tatuagens, em 1976, todos pela Edições Invenção. A poesia de Braga, desde Soma, já
era bastante divergente dos postulados do plano-piloto concreto, levando-o da escrita
caligráfica ao desenho e à garatuja. A maioria de seus poemas trazem escritos, mas nem
sempre eles são identificáveis, predomina a linguagem visual e suas imbricações.
Na nota da antologia, o comentário de Campos traz: “sua (a de Braga) fantasia
visual parece surpreender a irrupção da palavra no nascedouro (...), preocupação que, se
existe em outros poetas da mesma linha, é congenial em Edgard Braga” (p. 65). Essa
colocação de Campos nos leva a crer que existia uma certa autonomia na produção de
Braga, mobilizada mais por questões “congeniais” do que programáticas.
Além da nota, os autores trazem um comentário no texto do subcapítulo,
contextualizando os dois poemas de Braga como “formas de escrita que aproveitam a
espontaneidade do traço, verdadeiros caligramas selvagens, que não explicam, mas
registram” (p. 59). Aqui, há um problema: os poemas de Braga não são caligramas.
Como bem definiu Menezes (ano, p. 36) “o método caligrâmico resulta de uma
adequação gráfica do discurso verbal à forma figurativa do tema”, ou seja, o caligrama
faz alusão à forma do objeto que ele comunica, o que não é o caso de nenhum dos
poemas de Braga.
Além disso, não é possível dizer que os poemas sejam “registros”, pois
colocações como essa deslegitimam a leitura da intencionalidade do autor, tratando o
objeto como mero significante, “inexplicável” – coisa que pouco contribui à análise ou
ao comentário analítico. Grosso modo, acreditamos que em certos momentos falta o
compromisso crítico com as obras selecionadas, o que compromete a própria construção
de uma fortuna crítica que pode partir da antologia.
O último poema do subcapítulo é “Labor torpor”, de 1964, de Ronaldo Azeredo.
O poema semiótico, também reproduzido no texto-manifesto de Pignatari e Pinto, traz
uma chave léxica para leitura, impressa no binômio que dá nome ao poema: labor -
torpor. Sobre ele, apenas um comentário no texto de apresentação: “o poema-código
brinca com a comunicação direta e funcional, levando ao paradoxo lógico com formas
visuais” (p. 59).
O comentário é bastante pertinente, pois toca no ponto comunicativo do poema
semiótico. A linguagem reduzida a sua funcionalidade é ainda mais direta do que fora
na época fisionômica e matemática, mas ainda há um jogo verbal presente, que os
autores apontam como paradoxal – talvez por conta dos pares antitéticos (labor/torpor,
preto/branco, linha/risco) que se exprimem por meio das formas geométricas e da
composição visual.
O subcapítulo seguinte “Poesia? Pois é: Poesia! Criar coisas realmente novas é
criar liberdade.” versa sobre a poesia produzida em meados dos nos 1960 até quase
1975. Partindo para a última seleção de poemas da antologia, os autores se indagam
sobre como reunir, agrupar e até mesmo chamar a poesia feita naquela época de “poesia
concreta”.
Isso se dá em razão da heterogeneidade da produção de cada um dos poetas do
grupo, embora os autores estejam mencionando apenas o núcleo duro 23 de Noigandres:
Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos. Os demais participantes ou
colaboradores seguiram suas pesquisas, a maioria com foco na visualidade, na
publicação de artista e nas novas mídias. Com tempo, novas parecerias também se
formaram.
A pesquisa de Philadelpho Menezes (1991) sobre a visualidade na poesia
contemporânea brasileira situa um pouco essa questão. O recorte de 1950 a 1970 abarca
os câmbios da ortodoxia à heterodoxia, não só do núcleo duro do grupo, mas também de

23
Menciono “núcleo duro” em razão do grupo Noigandres ter sido ampliado, em diversos momentos por
atores distintos.
outros poetas ligados a ele e de outros grupos, como o movimento neoconcreto, a poesia
práxis e o movimento do poema-processo. Embora pareçam muito similares em suas
propostas, cada grupo e cada poeta desses grupos trabalharam a visualidade de uma
maneira, e, eventualmente, na fase mais heterodoxa, a produção se dá a partir de uma
pesquisa própria e não mais comum. Para Aguilar (2006, p. 157) é a partir de uma
visada metodológica que não mais considerava o olhar progressivo sobre o tempo, mas
sincrônico, que pode se dar “por concluído o ciclo da poesia concreta como programa
coletivo de vanguarda”,
Assim, seguindo o princípio do recorte temporal, nos parece realmente difícil
contornar esses objetos tão distintos. Talvez uma abordagem pontual sobre a obra de
cada autor pudesse dar conta de remontar o critério de seleção, refletindo sobre esse
grupo ampliado que envolvia artistas, editores, jornalistas, professores, poetas e
pesquisadores.
Movimento esse que os autores fazem somente com a obra dos autores do núcleo
duro – à parte de um esforço de comentar questões procedimentais – ao mencionar a
produção de Haroldo de Campos voltada ao barroco e às suas galáxias; a obra de
Augusto de Campos com Julio Plaza e seus experimentos em livro e os exercícios de
Décio Pignatari com a prosa e com o ensaio acadêmico/literário – gênero que renderá a
publicação de muitos livros.
O texto introdutório traz, como tem sido praxe, reflexões filosóficas de caráter
diluidor, com proposições genéricas. A ver: “[...] o poema-coisa perde a contundência
da fase ortodoxa, para revelar interioridade poética” ou “o poema-coisa quer respirar e
mostra a nostalgia do orgânico, da vida, das experiências vividas” e “as palavras contam
histórias secretas de terem, um dia, representado certos sentimentos e certas ideias” (p.
67). Os objetos que remontam a esses comentários não são, no entanto, nomeados ou
comentados.
Para além desses problemas, o texto nos dá uma informação relevante: “Só nos
anos 70 surgem as primeiras edições comerciais dos poemas reunidos dos três poetas
criadores do grupo” (p. 67). Esse dado é muito relevante, pois mostra a recepção tardia
da obra dos poetas concretos pelo grande público. As primeiras publicações feitas por
casas editorais da obra do núcleo Noigandres foram antologias: Xadrez de estrelas
(1949-1974) (1976), de Haroldo de Campos, que saiu pela Perspectiva; Poesia pois é
poesia (1950-1975) (1977), de Décio Pignatari, publicada pela Duas Cidades; e Viva
Vaia (1949-1979)24 (1979), de Augusto de Campos, também publicada pela Duas
Cidades. Contando o tempo de reunião da obra dos poetas citados, são, respectivamente,
25, 25 e 30 anos de processos poéticos e de vida pública fazendo poesia.
Ao tratar de questões estilísticas, os autores trazem outra proposição importante:
“[...] nesta fase, há superação e síntese de tudo o que vimos antes. Diálogo entre o mais
moderno e o mais antigo, tradição e ruptura” (p. 67). O recorte sincrônico (assunto que
interessará teoricamente sobretudo a Haroldo) era um procedimento de leitura, tradução
e interesse para os poetas concretos, vide a ideia de Paideuma, que aparece já no plano-
piloto, em 1958. Mesmo Pignatari, alguns anos antes, já falara da poesia visual no
século III a. C25 e os irmãos Campos já mostrassem ter lido os poetas provençais, seja
por influência de Pound, seja por esforço próprio de tradução 26. No entanto, dá-se maior
destaque ao que Haroldo chamou de “leitura sincrônico-retrospectiva”, colocando a
poesia concreta como um ponto dentro das linhas de continuidade literário-históricas
(Aguilar, 2006, p. 157).
Os parágrafos finais do texto introdutório falam sobre os trabalhos teóricos,
críticos e as revisões que saíram sistematicamente nos anos seguintes. Os autores
apontam o abandono das práticas belicosas de vanguarda que vigorou nos anos 1950/60,
com uma guinada à indústria cultural e o “trabalho desinteressado, a valorização da
intimidade do poetas com seus poucos (e infinitos) recursos, como únicas e mais fortes
estratégias de luta cultural” (Simon, Dantas, 1982, p. 68).
Houve, de fato, uma mudança de paradigma. Aguilar (2006, p. 155) o
temporaliza no fim dos 1960, quando os poetas concretos começam a pensar sua própria
prática em retrospectiva. O endurecimento da ditadura minando o pensamento utópico e
revolucionário; a entrada mais enfática na academia, com Pignatari e Haroldo de
Campos realizando suas respectivas teses; o retorno ao verso, em tradução e em prática
poética e o cambio da “revolução” pela “tradição” são os motivos que Aguilar atribui ao
fim do concretismo (p.155-156).
24
Nota-se a relevância da menção às datas. A princípio, as datas serviriam para situar o leitor a respeito
do percurso dos autores – o fator tempo é crucial para a leitura das experimentações poéticas. Levanto
também a hipótese de que o uso das datas, na maioria dos textos, além de demonstrar a dedicação à
produção e pesquisa, denotava também a chegada tardia dos autores ao público. Há também a ideia de
que ao datar retroativamente, os poetas garantiriam uma certa posição de “criadores” da ideia. Coisa
importante dentro de um movimento de vanguarda e que é mencionada muitas vezes por eles, em textos e
entrevistas.
25
Pignatari, Décio. Ovo novo no velho. In: Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950-
1960. São Paulo: Duas cidades, 1975, p. 128.
26
Em 1968, Haroldo e Augusto de Campos publicam Traduzir & Trovar (poetas do século XII e XVII),
resgatando a obra dos italianos Dante Alighieri e Guido Cavalcante, os poetas provençais e o barroco
inglês.
A leitura histórica de Aguilar nos dá maior embasamento para compreender o
que levara os poetas concretos às suas pesquisas próprias, não desinteressadas, como
sugerem os antologistas, mas “pluri-interessadas”. O reconhecimento que faz surgir as
antologias comerciais nos idos dos anos 1970 começara no fim da década de 1960, mas
isso não significou uma entrada triunfante no centro do campo literário27.
Mesmo que houvesse uma entrada “na ordem do dia da indústria cultural”, como
sugerem os antologistas (p.68), isso se dá na década seguinte a do fim do movimento
(partindo de 1970), com as publicações e o recebimento de prêmios (os prêmios Jabutis,
em sua maioria, na categoria tradução). Se nos jornais eles já tinham algum espaço, para
a produção poética em livro ainda restará a autoedição, o financiamento de conhecidos
para publicação e outras práticas autogeridas (Mattar, Silva, 2018).
Os autores fecham o texto com a citação de Augusto de Campos (1975, p. 6),
que figura no fim do texto introdutório da 2ª. Edição do livro Teoria da poesia
concreta:

Como diz o Décio, é estranho: três poetas do bairro de Perdizes, aos quais se
juntaram uns poucos companheiros, sem outra força que da sua vontade, e
sem outro apoio a não ser o individual para a divulgação de seus poemas –
até este ano sempre publicamos edições não comerciais – conseguiram
aterrorizar a poesia brasileira. Ou esta era muito fraca, ou as ideias deles
eram muito fortes. O que vocês acham? (Campos, Pignatari, Campos, 1975,
p. 6)28

O trecho demonstra que o fim do movimento concretista trouxe consigo esse


período de revisão da atividade dos poetas concretos, situando sua inserção histórica,
como já havia pontuado Aguilar (2006, p. 155). O tom desafiador que aparece no trecho
e na maior parte do texto introdutório da Teoria será diluído, como sugerem os
antologistas, mas não deixará de aparecer, principalmente na fala, nos textos e nos livros
de Augusto de Campos29.
Voltando à antologia, nesse último subcapítulo foram escolhidos os poemas:
27
Os desentendimentos duraram por anos, principalmente no eixo Rio-São Paulo, com a peleja de
Augusto de Campos com Roberto Schwartz; as declarações de Heloisa Buarque de Hollanda sobre a
poesia concreta em sua tese; a defesa de Dias-Pino por Neide e Álvaro de Sá no livro Metacrítica
Augusto de Campos, em 1979; a disputa pelo resgate de Oswald de Andrade entre Augusto de Campos e
Ferreira Gullar, entre tantos outros atritos (principalmente com Augusto de Campos), alguns
sistematizados em textos, outros que se ouve falar. A respeito desse assunto, dedicaremos maior atenção
quando nos debruçarmos sobre questões de recepção.
28
Decidimos reproduzir o texto em sua fonte original e não o trecho recortado da antologia, a fim de
poder discutir integralmente o conteúdo.
29
Trato dos aspectos da negação e da recusa na vida/obra de Augusto de Campos no artigo “Do verso ao
vão: aspectos da negação em “O rei menos o reino” e “Não”, de Augusto de Campos. In ELyra: Revista
Da Rede Internacional Lyracompoetics, (17), 11–22. https://doi.org/10.21747/2182-8954/ely17a1
Haroldo de Campos: dois poemas sem título de “austin poems”, de 1971; três
poemas do livro Signância quase céu, “aproximações ao topázio”, de 1978 e outros dois
sem título, ambos de 1977; trecho do começo de galáxias, escrito de 1963 a 1976.
Augusto de Campos: poemas “Cidade”, de 1963; “Luxo”, de 1965; “O pulsar”,
de 1975; “O quasar”, de 1975; “Memos”, de 1976 e “Limite”, de 1978.
Décio Pignatari: três ideogramas verbais do livro Exercício findo”, de 1968;
poema “Stèle pour vivre n. 5”, de 1974; “Noosfera”, de 1972; “Pháneron”, de 1973 e
“Bibelô (?)”, de 1979.
Como já comentado anteriormente, só há poemas de Haroldo e Augusto de
Campos e Décio Pignatari. Os demais poetas que estiveram junto do grupo, fazendo
poesia concreta e, depois, poesia visual não tiveram poemas selecionados para essa
seção, embora tivessem continuado a produzir poemas, artigos, ensaios, traduções,
revistas e livros.
Somente na década de 1970, Ronaldo Azeredo publicara uma série de livros de
artista30: É dificílimo predizer o destino disso…(Poema-livro), em edição do autor, de
1972; Paisagem (Poema-livro), em 1973; Panagens (livro em tecido), de 1975;
Labirintexto (poema-cartaz), de 1976 e Armar (poema quebra-cabeça), de 1977. Em
1985, a editora Timbre publicou a antologia Pensamento impresso (1954/1984),
reunindo a obra do poeta. No entanto, o livro foi posteriormente recolhido por um
problema na impressão e não foi realizada nova tiragem (Leite, 2013, p.18)
(https://bit.ly/3cOXbhf)
Edgar Braga lançou Algo, em 1971 e Tatuagens, em 1976. Sua obra reunida foi
publicada em 1984, com o livro Desbragada, organizado por Regis Bonvicino. Pedro
Xisto, na mesma década, publicou Caminho, de 1974, também com tom antológico e,
mais tarde, Partículas, com edição de Massao Ohno, em 1984. José Lino Grünewald
teria oportunidade de publicar novamente poesia e ver um trabalho antológico da sua
obra somente anos mais tarde, em 1983, com o livro Escreviver, apresentado por Décio
Pignatari e editado pela Nova Fronteira.31
Voltando à seleção, há alguns poucos comentários a fazer. Os poemas de
Haroldo de Campos levam três notas de rodapé, uma meramente informativa sobre a
referência bibliográfica do texto, uma para o poema sem título de “austin poems”, de

30
Informações retiradas do site institucional “poesia concreta: o projeto verbivocovisual”. Disponível em:
https://poesiaconcreta.com.br/ra2.html . Acesso em 26 novembro 2021.
31
Anos mais tarde, em 2008, foi reeditado pela FBN/Perspectiva, com um projeto revisado e ampliado,
que obedecia as diretrizes de diagramação e espacialização dos poemas.
1971 e outro para o trecho inicial de “Galáxias”. Sobre o poema de 1971, os autores
explicam alguns termos para contextualizar a leitura, tais como “histrio” e sua relação
com Edgar Allan Poe; “fictor” e sua relação com Fernando Pessoa e o uso de
“mallarmeios”, como uma referência a Stéphane Mallarmé (p. 68).
Já sobre “Galáxias”, os antologistas apresentam um parágrafo comentando suas
características formais, tais como o número fixo de linhas e o cruzamento de referências
textuais e idiomáticas, assim como, a prodigalidade de temas que aparecem no livro. Os
autores ressaltam que, enquanto os demais poetas concretos exploravam as
características visuais do poema, Haroldo se dedicava a sua prosa (p. 71).
Os fragmentos, escritos durante os anos de 1963 a 1976, formam o livro sem
dar-lhe um começo e um fim, exceto pelas enunciações “e começo aqui” e “fecho
encerro reverbero”32. Não há amarrações na narrativa que sugiram uma linearidade
prosaica, se não pela estrutura do texto. Sua condução se dá pela criação de imagens
mobilizadas pelo poético, presentes na aglutinação de palavras, na composição
ideogramatica, na justaposição e na relação estrutural de palavra-puxa-palavra, que
constrói uma narração pluritemporal, pluriespacial, em que a localização do sujeito que
narra (sujeito que canta) é na agoridade, no espaço simultâneo.
Assim que, embora seja comum que se localize “galáxias” no gênero narrativo,
também por suas características épicas, apontadas pelo próprio autor 33, é preciso
contextualizá-la no lugar da prosa poética. Outro dado relevante é que, em 1963, início
da produção das “galáxias”, Haroldo de Campos também produzia poemas visuais,
escrevendo sua “prosa” concomitantemente.
Os poemas que seguem são de Augusto de Campos e apresentam duas notas de
rodapé. Uma para o poema “Cidade”, de 1963, e a outra em “Luxo”, de 1965. Na
primeira, os autores sugerem um guia de leitura, uma vez que o poema é composto pela
aglutinação de diversos prefixos, que, orientados antes das palavras cidade, city, cité,
em inglês e francês respectivamente, formam palavras nas três línguas.
Na segunda nota, os autores apontam para as semelhanças gráficas e sonoras (ou
o oxímoro paronomástico) nas palavras luxo e lixo, uma vez que o poema é composto
32
Sobre o marco, explica Campos: “Dois formantes, tipografados em itálico, o inicial (começo-fim: “e
começo aqui”) e o terminal (fim-começo-recomeço), balizam o jogo de palavras móveis, intercambiáveis
à leitura, onde cada fragmento isolado introduz sua “diferença”, mas contém em si mesmo, como uma
linha d’água, a imagem do livro inteiro, que através de cada um pode ser vislumbrada como por um
miradouro ‘aléfico’”. (Campos, Haroldo. Galáxias. São Paulo: 34, 2004, p. 119.
33
“Há neste livro caleidoscópico um gesto épico, narrativo [...] a imagem acaba por prevalecer, a visão, a
vocação para o epifânico. Nesse sentido, o polo poético termina por se impor ao projeto, e o resultado são
cinquenta ‘cantos galácticos’”. (Campos, Haroldo. Galáxias. São Paulo: 34, 2004, p. 119.
pela palavra lixo, construída por um excerto de jornal em que se lê a palavra luxo. A
tipografia utilizada no poema com o tom kitsch foi inspirada em um anúncio de
apartamentos de alto luxo no bairro de Higienópolis, em São Paulo, que o poeta teria
visto no jornal O Estado de São Paulo (TOSIN, 2016, s.p.).
Na nota, ainda lê-se: “[...] no momento em que esse poema era publicado (1967),
estava começando o Movimento Tropicalista que iria trabalhar exatamente esse
antagonismo lixo/luxo” (p. 73). Não encontramos, entretanto, nesta data mencionada, a
publicação mencionada no texto.
A considerar: o poema data de 1965, “realizado em um desdobrável de papel
cartonado medindo 64 x 13 cm., com quatro folhas, e tiragem de 300 exemplares”, com
reedições em 1966, na série Futura, de Hansjörg Mayer; em 1975, no livro-caixa Caixa
Preta; em 1982, em forma de videotexto, na exposição Arte pelo Telefone, no Museu
da Imagem e do Som de São Paulo e em 2007, no DVD Poesia Concreta: o Projeto
Verbivocovisual (Tosin, 2016, s.p.).
Quanto à relação com o movimento tropicalista, o breve comentário não faz
mais que pontuar as práticas coincidentes do grupo, sem adentar no mérito da crítica
presente em “lixo/luxo” e seus atravessamentos na indústria cultural. Sobre esse tópico,
convém conhecer a análise de Lúcia Santaella (1986), em seu livro Convergências, em
que ela problematiza a recepção de ambos os grupos, a partir de estudos sobre a forma e
da investigação da técnica, como plataforma de produção e divulgação dos produtos
culturais.
Os poemas de Décio Pignatari acompanham dez notas de rodapé. A maioria trata
de significados de palavras usadas nos poemas – as quais não comentaremos. A nota
sobre “Stéle pour vivre n.5”, além dos esclarecimentos sobre significados das palavras
usadas no poema, traz também a informação de que o poema faz parte de uma série,
publicada ao longo dos anos 1950-1980. Acreditamos que a contextualização é
importante para mostrar uma obra em progresso (embora apenas o número 5 tenha sido
reproduzido na antologia), que está pautada no programa de Noigandres, mas que forma
a trajetória individual do poeta.
Os ideogramas do livro Exercício Findo compostos pela palavra “homem”,
“woman” e “man” levam uma nota de rodapé definindo o procedimento dos poemas
como “variações gráfico-eróticas” (p. 78)34. Para Silva (2018, p. 27)35, “a própria
escolha da fonte tipográfica, com letras cujas hastes se encaixam perfeitamente (m/n,
m/m, u/h), evoca elementos dos corpos dos amantes, sejam as bocas, sejam os órgãos
sexuais”.
A temática erótica é muito presente na obra de Pignatari desde os primeiros
poemas da década de 1950. Dos poemas presentes nesta seção da antologia, dois deles
trazem a característica: a série comentada acima e “Bibelô (?)”, um poema sem palavras
com formato nítido de um pênis com seios no lugar do escroto. A junção das meias-
circunferências também sugerem um “jorro” (ou gozo), formado por três arestas, em
que há uma ligação analógica de forma entre o centro dos seios e o centro da glande
peniana.
Ainda sobre a seção dos poemas de Pignatari, convém mencionar a última nota
sobre “Pháneron”, espécie de poema autobiográfico, publicado na revista de número
único Navilouca, de 1974 – embora a nota não mencione. A nota sugere descolar a
palavras e passá-las a limpo, onde se verá um “texto-fantasma” (p.83). No entanto, o
texto parece evidenciar os processos de operação de leitura, em que é necessário ler e
reler (ver e rever), a fim de descodificar o código, virtualizar a língua.
“Pháneron” utiliza prosa, imagens, mapas, fotos e outras linguagens, além da
escrita experimental que deforma as palavras, ora embaralhando letras, ora operando
por meio do deslocamento das primeiras letras aglutinadas nas palavras anteriores. O
texto em prosa serviu de base para o romance Panteros, de Pignatari, publicado pela
Editora 34, em 1992.
O capítulo seguinte

34
Não está claro se a nomenclatura “gráfico-erótica” é uma proposição dos autores da antologia ou foi
retirada de outra fonte. Encontrou-se a expressão em textos de artigos que também não citam a fonte.
35
Silva, C. R. da. (2019). O risco de eros na pele do texto: a poesia erótico-concreta de Décio Pignatari.
Revista Alere, 17(1), 15–36. Disponível em
https://periodicos.unemat.br/index.php/alere/article/view/3509

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