Você está na página 1de 71

Universidade Federal Fluminense

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia


Curso de Graduação em Filosofia

MATHEUS FERNANDES PINTO

A TEORIA DA NARRATIVA EM WALTER BENJAMIN

NITERÓI
2018

i
Universidade Federal Fluminense
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia
Curso de Graduação em Filosofia

MATHEUS FERNANDES PINTO

A TEORIA DA NARRATIVA EM WALTER BENJAMIN

Monografia apresentada ao Curso de Filosofia da


Universidade Federal Fluminense, como requisito
parcial para a obtenção do título de Bacharel em
Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Bernardo Barros Coelho de Oliveira

NITERÓI
2018
P659 Pinto, Matheus Fernandes.
A Teoria da Narrativa em Walter Benjamin / Matheus Fernandes
Pinto. – 2017.

71 f.
Orientador: Bernardo Barros Coelho de Oliveira.

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Filosofia) –


Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e
Filosofia, Departamento de Filosofia, 2017.
Bibliografia: f. 71.

1. Narrativa (Retórica). 2. Benjamin, Walter, 1892-1940.


3. Experiência. 4. Vivência. 5. Ficção. 6. Informação. I. Oliveira,
Bernardo Barros Coelho de. II. Universidade Federal Fluminense.
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. III. Título.

3
Universidade Federal Fluminense

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia

Curso de Graduação em Filosofia

MATHEUS FERNANDES PINTO

A TEORIA DA NARRATIVA EM WALTER BENJAMIN

BANCA EXAMINADORA

.............................................................
Prof. Dr. Bernardo Barros Coelho de Oliveira Nome (Orientador)
Universidade Federal Fluminense

.............................................................
Prof. Dr. Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa
Universidade Federal Fluminense

.............................................................
Prof.. Dr. Pedro Süssekind Viveiros de Castro
Universidade Federal Fluminense

NITERÓI
2018

4
Aos pilares do meu passado, presente e futuro: minha avó
Vitória da Santa Perez, minha mãe, Maria de Fátima da Santa, e
meu irmão, Pedro Gil Fernandes Pinto.

5
AGRADECIMENTOS

Ao Professor Bernardo Barros Coelho de Oliveira, cujas aulas constituiram o


elemento mais estimulante e intrigante de minha graduação e cuja orientação guiou os
caminhos do presente trabalho.
À Professora Mariana de Toledo Barbosa, cuja orientação zelosa e ponderada
marcou a minha formação intelectual.
À Professora Matildes Demétrio dos Santos, responsável por revitalizar minha
paixão pela literatura.
À minha família, maior indício da existência do amor e de sua perseverança.

6
RESUMO

Esta monografia objetiva apresentar a teoria da narrativa em Walter


Benjamin. A narrativa é uma forma de comunicação que carrega consigo as marcas da
oralidade, fazendo com que a linha que separa narrador e ouvinte seja muito tênue e
determinada por uma constante alternação de papéis. Para compreender não só a
natureza da narrativa, mas também as causas que instauram uma crise da narrativa na
modernidade, voltamo-nos aos processos cognitivos que envolvem o ato de narrar.
Notamos, então, que a narrativa é fruto de uma modalidade histórica da memória, a
experiência (Erfahrung), a qual se contrapõe a uma segunda modalidade, que por sua
vez constitui a subjetividade do homem moderno, a vivência (Erlebnis). Se a
experiência é matéria da tradição e incorpora na rememoração os elementos da vida
coletiva aos da vida privada, a vivência é o distintivo de um indivíduo ao mesmo tempo
autônomo e segregado dos laços sociais. A tenção existente entre experiência e vivência
fundamenta o conflito entre a narrativa e as principais formas de comunicação
contemporâneas, o romance e a informação. A relação entre as três formas de
comunicação completa o quadro da teoria da narrativa em Walter Benjamin.

Palavras-chave: narrativa, Walter Benjamin, experiência, vivência, romance,


informação.

7
ABSTRACT

This monography presents the theory of storytelling in Walter Benjamin.


Storytelling is a form of communication that carry along the marks of orality, turning
tenuous the line that separates the listener from the storyteller, which alternate their
roles constantly. To understand not just the nature of storytelling, but also the reasons
that establish the crisis of storytelling in modernity, we go back to the cognitive
processes that envolve the act of storytelling of narrating. In doing so, we note that
storytelling descends of a historical modality of memory called experience (Erfahrung),
that opposes itself in relation to a second modality, which in turn constitutes the
subjectivity of the modern man and is called lived experience (Erlebnis). If experience
is the matter of tradition and merges the components of private life into the collective
lives of communities, lived experience is the distinctive of the individual at the same
time autonomous and segregated from social bonds. The tensions between experience
and lived experience found the conflict between storytelling and the major
contemporary forms of communication, the novel and the information. The relation
between the three forms of communication completes the frame of the theory of
storytelling in Walter Benjamin.

Keywords: storytelling, Walter Benjamin, experience, lived experience, novel,


information.

8
SUMÁRIO

Introdução...........................................................................................................10

Capítulo 1 - Experiência e vivência: a historicidade da memória...............................14

Capítulo 2 – A arte de narrar.................................................................................37

Capítulo 3 - A crise da narrativa e as novas formas de comunicação...........................54

Conclusão............................................................................................................69

Bibliografia..........................................................................................................71

9
Introdução

“O narrador - por mais familiar que soe esse nome - não está absolutamente
presente entre nós, em sua eficácia viva” (BENJAMIN, 2012, p. 213). Esta frase inicia
“O Narrador”, ensaio de 1936 de Walter Benjamin, e fornece uma indicação precisa a
respeito do conteúdo das páginas que a sucedem. No ensaio, Benjamin realiza um
diagnóstico: um fenômeno que ainda nos é familiar, aquele pelo qual os homens contam
histórias uns aos outros e transmitem por meio delas as experiências de uma vida, está
desaparecendo e quase não encontra mais o seu lugar no mundo contemporâneo. Este
diagnóstico evidencia-nos que a narrativa, principalmente em sua forma oral e
tradicional, já não possui mais o privilégio que sempre tivera na esfera da comunicação
humana. “É cada vez mais frequente que, quando o desejo de ouvir uma história é
manifestado, o embaraço se generalize” (BENJAMIN, 2012, p. 213). Ainda que não
exista um fator único que ocasione o declínio da arte de narrar, Benjamin sugere
algumas das causas desse declínio: a influência do ambiente urbano na cognitividade
humana e a crescente segregação do indivíduo perante a tradição e a coletividade são
dois motivos de grande importância no desencadeamento deste processo. Com o
objetivo de compreender a natureza da narrativa oral e as causas de seu declínio, a
presente monografia investigará, em O narrador e outros textos relevantes de Benjamin,
o conceito benjaminiano de narrativa, assim como outros conceitos convergentes, como
os de experiência e vivência.
Em nosso primeiro capítulo, “Experiência e vivência: os dois lados da crise da
modernidade”, nos voltamos à matéria prima da narrativa, a experiência, entendida em
um sentido próprio que Benjamin assinala com a palavra alemã Erfahrung. “A
experiência que passa de boca em boca é a fonte a que recorrem todos os narradores”,
assim nos diz Benjamin em O narrador, sem adentrar profundamente na discussão
sobre o sentido particular em que emprega o conceito. Para determinar este sentido,
examinaremos o ensaio “Sobre alguns motivos em Baudelaire”, no qual o filósofo
admite que a “estrutura da memória” é “decisiva para a estrutura filosófica da
experiência” (BENJAMIN, 2015b, 107). Em contraste com a equivalência empirista
entre experiência e a recepção imediata dos dados sensoriais, a Erfahrung de Benjamin
situa-se na esfera da memória e da rememoração do passado. Em “Sobre alguns motivos

10
em Baudelaire”, nota-se que a experiência é uma modalidade histórica da memória, isto
é, corresponde a uma espécie de funcionamento particular da memória, aquele que
insere as lembranças individuais na tradição coletiva de um povo. “Sabia-se exatamente
o que era a experiência: ela sempre fora comunicada pelos mais velhos aos mais jovens”
(BENJAMIN, 2012, p. 123). As experiências, portanto, são a matéria de um processo de
conservação e transmissão que era realizado pela narrativa oral, constituindo uma fonte
de conselhos para a resolução das questões práticas que surgem no dia-a-dia das
pessoas.
Em oposição à Erfahrung, Benjamin nos apresenta uma outra modalidade da
memória, a vivência, ou Erleibnis. A vivência é a forma predominante pela qual a
memória se manifesta na modernidade. Característica dos habitantes das cidades, o qual
precisa se adaptar às constantes ameaças e transformações a que se submete a sua
percepção, a vivência é uma modalidade da memória “sujeita aos apelos da atenção”
(BENJAMIN, 2015b, p. 108), que preserva do passado apenas as lembranças
fragmentadas que haviam sido capturadas pela nossa consciência. Mais do que isso, a
vivência é marca do indivíduo moderno, que preza por sua autonomia e acredita que
começa e termina em si mesmo. Benjamin define os grandes nomes da modernidade
como “construtores (BENJAMIN, 2012, p. 125), aqueles que souberam construir um
novo destino para si sem olhar para trás, seja porque a experiência do passado já não
correspondia à sua atualidade, seja porque desejavam desprender-se das amarras da
tradição. Um importante exemplar desta estirpe de construtores é Descartes, “que
baseou sua filosofia numa única certeza - penso, logo existo, e dela partiu”
(BENJAMIN, 2012, p. 125). Ainda que admire esses construtores e esteja consciente de
que “nada seria mais tolo” do que enxergar no declínio da narrativa um “sintoma de
decadência” (BENJAMIN, 2012, p. 217), Benjamin preocupa-se com a situação do
indivíduo isolado e Ratlosigkeit, desaconselhado e privado de recomendações. Quando
se solicita que o mesmo indivíduo narre o seu passado, obtém-se como resultado casos
similares ao dos combatentes que voltavam mudos da Primeira Guerra Mundial, ou
como o de Proust, que decidido a escrever sobre sua infância, recordava-se apenas de
fragmentos isolados e desconexos.
Ciente de que a vivência pode promover o enfraquecimento dos laços que unem
os membros das comunidades humanas uns aos outros e à sua tradição, Benjamin volta-
se à narrativa e a transmissão de experiências em O narrador. A natureza da narrativa
oral é o objeto de nosso segundo capítulo, intitulado, “A arte de narrar”. Neste,

11
descobriremos que Benjamin definiu a narrativa como uma “forma artesanal de
comunicação” (BENJAMIN, 2012, p. 221), que acompanhava o ritmo do trabalho
artesanal, o qual nutria-se do esforço acumulado de meses e até mesmo de anos para a
concreção de obras. De modo semelhante, a narrativa é o produto de uma longa cadeia
de transmissões, nas quais cada narrador acrescenta a sua marca à história narrada.
Segundo Benjamin, a narrativa “não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da
coisa narrada, como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do
narrador para em seguida retirá-la dele. Assim imprime-se na narrativa a marca do
narrador, como a mão do oleiro na argila” (BENJAMIN, 2012, p. 221). É desta unidade
entre história e vida que o narrador retira a sua capacidade de dar conselhos e orientar os
seus ouvintes. Diferente do que poderia sugerir o caráter tradicional da narrativa, os
conselhos do narrador não consistem em máximas morais. Isto porque, para Benjamin,
“Aconselhar é menos responder a uma pergunta do que fazer uma sugestão sobre a
continuação de uma história que está se desenrolando” (BENJAMIN, 2012, p. 216). O
ato de continuar uma história é uma possibilidade que se apresenta com frequência ao
ouvinte de narrativas, isto porque a principal característica das mesmas é o seu caráter
lacunar e aberto a continuações. “Com efeito, não há nenhuma narrativa em que a
pergunta - e o que aconteceu depois? - não se justifique” (BENJAMIN, 2012, p. 230).
Por meio deste recurso, a narrativa obriga-nos a refletir sobre as consequências dos atos
narrados, forçando o ouvinte a tomar uma postura ativa frente a história que lhe foi
confiada.
No terceiro e último capítulo, “A crise da narrativa e as novas formas de
comunicação”, retomaremos as formulações dos capítulos anteriores para tentar
compreender, munidos das explicações de O narrador, os fatores que levam ao declínio
da narrativa. Veremos como, segundo Benjamin, as experiências se tornam
“desmoralizadas” (BENJAMIN, 2012, p. 214) pelas novas condições da modernidade.
É como se, sem a autoridade da tradição, as vivências do indivíduo perdessem
legitimidade frente à audiência dos ouvintes. Diante desse cenário, surgem novas
formas de comunicação a ocupar o lugar da narrativa, notadamente o romance e a
informação. Por um lado, o romance promete a seus leitores uma imersão completa na
qual podem “aquecer sua vida gelada” (BENJAMIN, 2012, p. 231) e os isola de
acontecimentos externos às páginas do livro. A matéria do romance não é a experiência
coletiva e tradicional, mas a reminiscência, que se dirige a personagens particulares e a
acontecimentos singulares. É por isso que, nas páginas finais do livro, o leitor de

12
romances espera encontrar um fim definitivo, que não permita mais continuação e
forneça o sentido da história. Por outro lado, a informação apresenta-se como a forma
de comunicação predominante dos tempos de Benjamin. Assim como o romance
fornece ao leitor o sentido da história, a informação deve propiciar ao seu receptor as
causas dos acontecimentos noticiados. Além disto, é importante para a informação que
referências espaciais e temporais precisas sejam comunicadas, de sorte que a notícia
pareça plausível, em contraste com o caráter por vezes místico das narrativas. Se o
ouvinte da narrativa interessa-se em retirar um conselho da história narrada, quem é
informado preocupa-se somente em averiguar a veracidade dos dados da notícia e em
conservá-los puros e livres de pontos de vista pessoais.
Nas próximas páginas, nossa monografia espera elucidar com a maior clareza
possível estes e outros temas, com o intuito de apresentar ao leitor uma porta de entrada
à teoria da narratividade oral benjaminiana.

13
Capítulo 1 - Experiência e vivência: a historicidade da memória
A história das formas de comunicação é constituída por antagonismos. Por um
lado, Benjamin busca uma retomada da narrativa oral, narrativa esta que representa um
componente vestigial das sociedades tradicionais pré-capitalistas, ao mesmo tempo em
que considera o romance e a informação, símbolos da modernidade, como fonte de
elementos perniciosos à comunicação humana. Por outro lado, Benjamin é um crítico
ferrenho dos movimentos filosóficos e políticos que objetivam o retorno a um passado
mítico e glorioso, como é o caso dos filósofos da Lebensphilosophie, criticados em
“Sobre alguns temas em Baudelaire”, e do programa fascista denunciado em “A obra de
arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. Esta faceta de Benjamin recusa sem
hesitação as promessas da tradição e celebra a pobreza de experiência moderna,
louvando os esforços artísticos de Baudelaire, cuja poesia mimetizaria a percepção do
homem das cidades, e as proezas arquitetônicas de Bauhaus, cuja arquitetura vítrea
simbolizava o ideal de transparência que deveria nortear as sociedades democráticas em
detrimento do obscurantismo das autocracias.
Diante destes antagonismos, nosso comentário corre o risco de perpetuar uma
análise simplista da obra de Benjamin, a qual se apega a um dos aspectos da teoria e
descarta o seu componente antagônico. O risco que corremos é o de parecermos
demasiado nostálgicos ou confiantes em excesso nas promessas da modernidade. Com o
intuito de evitar um reducionismo da complexidade do pensamento benjaminiano,
percorremos neste primeiro capítulo dois dos conceitos que fundamentam a análise de
Benjamin sobre a narrativa e a modernidade. Estes são os conceitos de experiência
(Erfahrung) e vivência (Erlebnis), os quais não só representam a tensão existente entre
tradição e modernidade na filosofia de Benjamin, como também constituem um fator
elementar da teoria das formas de comunicação. Bernardo Oliveira oferece uma porta de
entrada para a compreensão destes conceitos:
Acreditamos ser este um modo de compreender o sentido das palavras
experiência e vivência: modos de compreensão de nossa relação com nós
mesmos e com os outros de um ponto de vista temporal: somos continuação e
reforço dos que nos precederam e modelo para os que virão (experiência), ou
começamos em nós mesmos e tudo o que nos cerca é novidade (vivência)? Nas
sociedades tradicionais, os acontecimentos da vida do indivíduo se
interpenetram com os vida coletiva: o que outros viveram é recebido como

14
herança e modelo, e a experiência do indivíduo se nutre, deste modo, através da
dos outros, e vice-versa. O meio principal para esta transmissão, como vimos, é
a capacidade narrativa, personificada no contador de histórias mas na verdade
uma marca disseminada do homem tradicional, cuja vida é enformada por
histórias e provérbios. O homem moderno, segundo Benjamin, perde
progressivamente esta inteligência narrativa, porque as suas condições de vida o
leva de múltiplas formas ao isolamento e é, por isso, cada vez mais pobre em
experiências passíveis de transmissão” (OLIVEIRA, 2007).
Nesta passagem, Oliveira define experiência e vivência como modos de
compreensão de nossa relação com nós mesmos e com os outros de um ponto de vista
temporal. Isto significa que ambos os conceitos respondem a duas questões
fundamentais. Em primeiro, como o passado influencia o presente? O modo de
compreensão representado pela vivência responde a esta questão dizendo-nos que o
presente é uma etapa histórica independente e repleta de novidades. Já o modelo de
pensamento encarnado pela experiência vê no passado tanto um prenúncio das
armadilhas que cercam o caminho da humanidade quanto um reservatório das soluções
que os nossos antepassados encontraram para a resolução de problemas que podem
ainda ser os nossos. A segunda questão pode ser formulada da seguinte maneira: como
as ações do presente irão determinar o futuro? Diante desta pergunta, a vivência não
oferece grandes consolos. Se existe algum indício do futuro nas vivências do homem
moderno é o de que o por vir se apresentará cada vez mais livre das amarras do passado.
Já as comunidades construídas ao redor experiência acreditam que é responsabilidade
do presente construir o caminho a ser trilhado pelas gerações futuras.
Os conceitos de experiência e vivência perpassam a obra de Benjamin, mas
recebem uma determinação precisa como duas espécies históricas da memória em Sobre
alguns motivos em Baudelaire. Este ensaio se inicia com a tese de que Baudelaire
planejou para a sua poesia um leitor que não era mais o leitor tradicional de poemas,
isto é, um leitor que não possuía mais as mesmas características cognitivas necessárias à
leitura ou que tornavam interessante a leitura dos poemas de épocas passadas. Os
planos de Baudelaire para com um novo tipo de leitor de poemas teriam sido motivados
pela crença de que o interesse pela poesia se modificaria assim como se modificava a
paisagem habitada por este leitor, dado que Baudelaire fora testemunha das
transformações que se impunham sobre a Paris do século XIX, a qual era remodelada
pelo projeto urbanístico do Barão Haussmann e pela inclusão dos novos avanços

15
tecnológicos no dia-a-dia da cidade. Tendo em vista um leitor acostumado à vida nas
cidades, Baudelaire teria ambicionado uma modalidade diferente de poesia. Com o
intuito de caracterizar esta nova modalidade, Benjamin se coloca a investigar a natureza
da subjetividade do leitor por ela envisionado, principalmente no que se refere à
maneira como esse leitor armazenava os acontecimentos vividos em sua memória e se
apropriava dessas lembranças para se orientar no presente. O funcionamento da
memória deste novo leitor operaria ao redor da modalidade da vivência (Erleibnis),
enquanto que o leitor tradicional de poesia possuiria a experiência (Erfahrung) como o
núcleo de suas rememorações.
A transformação que se realiza entre a vivência e a experiência enquanto
modalidades históricas da memória é condicionada em grande parte por uma
modificação nas condições materiais da vida, modificações estas que se tornam
tangíveis quando comparamos a dinâmica da vida nas cidades com aquela característica
às comunidades tradicionais pré-capitalistas. Segundo Benjamin, a primeira tentativa de
caracterizar a diferença entre a subjetividade própria à existência nas cidades da
experiência de vida das sociedades pré-capitalistas foi o movimento filosófico que
respondia pela alcunha de Lebensphilosophie (filosofia da vida). Porém, a abordagem
destes autores, entre os quais Benjamin cita Dilthey, Klages e Jung, estaria fadada ao
fracasso devido à fonte de pesquisa na qual empregavam seus esforços De acordo com
Benjamin, a Lebensphilosophie ignorava a existência factual dos indivíduos nas
sociedades modernas, voltando-se à investigação “da literatura, mais ainda da natureza e
por fim sobretudo da idade mítica” (BENJAMIN, 2015b, p. 106). Por isso, o resultado
de seus esforços reduzia-se a exacerbação nostálgica de uma experiência idealizada,
posicionada “em contraste com uma experiência que se manifesta na vida normalizada,
desnaturada, das massas civilizadas” (BENJAMIN, 2015, p. 106). No entanto,
Benjamin enxergava na filosofia de Henri Bergson um trabalho que superava o de seus
companheiros de Lebensphilosophie, uma vez que o mesmo se distanciava da
especulação abstrata ao se “orientar pela biologia” (BENJAMIN, 2015, p. 107),
construindo uma imagem mais exata da experiência humana.
1.1.a. Erfahrung
O sucesso da empreitada de Bergson, na análise de Benjamin, se deve à
importância atribuída à memória, e a um tipo específico de memória, na constituição da
natureza da experiência humana. Se referindo à obra bergsoniana de 1986 Matéria e
Memória, Benjamin afirma-nos que:

16
O título mostra que a estrutura da memória é por ele considerada como decisiva
para a estrutura filosófica da experiência. De fato, a experiência é matéria da
tradição, na vida coletiva como na privada. Constitui-se menos a partir de dados
isolados rigorosamente fixados na memória, e mais a partir de dados
acumulados, muitas vezes não conscientes, que afluem à memória
(BENJAMIN, 2015b, p. 107).
A primeira coisa que a passagem acima nos fornece é o entendimento de que a
experiência, já em seu sentido próprio de Erfahrung, compõe-se de uma memória na
qual os elementos da vida privada e os da vida coletiva se fundem. Neste ponto, a
experiência difere essencialmente da demarcação entre público e privado que
caracteriza a vida burguesa nas cidades, a qual impõe limites à transição entre as duas
esferas e cria núcleos mais ou menos fechados para a vivência individual e para a
vivência coletiva. Já a experiência é “matéria da tradição”, e com isso entende-se que a
experiência incorpora a comunidade de ritos e símbolos que constroem a singularidade
de um povo. Segundo Benjamin: “Nas situações em que domina a experiência no
sentido estrito do termo, conjugam-se na memória determinados conteúdos do passado
individual com os do coletivo. Os cultos, com seus cerimoniais, as suas festas (...)
produziam reiteradamente a fusão entre essas duas espécies de memória” (BENJAMIN,
2015b, p. 107).
A experiência em “sentido estrito” é representada pelo termo alemão Erfahrung,
o qual, como nos lembra Jeanne Marie Gagnebin, “vem do radical fahr - usado ainda no
antigo alemão no seu sentido literal de percorrer, de atravessar uma região durante uma
viagem” (GAGNEBIN, 2009, p. 58). Ter uma experiência, portanto, significa
despreender-se do enclausuramento individual e percorrer uma distância, a qual pode
ser uma distância tanto temporal quanto espacial, conforme veremos na representação
das linhagens clássicas de narradores no Capítulo 2, tópico 1. Atravessar uma distância
temporal significa rememorar o passado, não só o passado individual, mas também o
passado coletivo, na figura das histórias que são transmitidas de geração em geração e
podem nos auxiliar na lida com os problemas do presente. A transposição das distâncias
espaciais pode acomodar uma interpretação mais literal, remetendo-nos ao tanto que
aprendemos quando viajamos e experimentamos uma cultura e hábitos diferentes dos
nossos. Neste aspecto, uma carta de Benjamin a Adorno revela que o primeiro
encontrou a inspiração para sua teoria da experiência em uma recordação de sua
infância e de suas viagens: “Os meus pais faziam conosco, nos lugares onde

17
passávamos o verão, e como era habitual, longos passeios (...) Quando regressávamos
de Freudenstadt, de Wengen ou de Schreiberhau, de um desses lugares de visita
obrigatória, o meu irmão costumava dizer: ‘Pronto, já podemos dizer que estivemos lá’.
Essa frase ficou-me, como nenhuma outra” (BENJAMIN, 2015b, p. 293). Só faz sentido
poder dizer aos outros que “estive lá” quando seus ouvintes compartilham de uma
mesma crença, a de que determinada experiência constitui um marco para a trajetória de
quem a realiza, podendo simbolizar um rito de passagem ou um protocolo que assinala
o pertencimento do indivíduo ao grupo. Os lugares citados por Benjamin, por onde
viajou com sua família na infância, não eram apenas atrações turísticas, mais faziam
parte da tradição, exibindo fortes laços culturais com a comunidade. Freudestadt era o
berço de uma das maiores e mais antigas feiras da Alemanha, a cidade suíça de Wengen
fora o cenário de criações dos poetas Byron e Percy Shelley e a antiga cidadela alemã de
Schreiberhau, que hoje pertence à Polônia e chama-se Szklarska Poreba, fora a
inspiração de pintores como Gerhart Hauptmann, Otto Mueller e Wilhelm Bölsche.
Percebemos, então, que visitar esses lugares significava participar de uma experiência
conjunta, ainda que a postura do irmão de Benjamin provavelmente indicasse a
perspectiva de um turista, o qual aborda a história dos lugares que visita não como um
vínculo a ser compartilhado, mas sim como mais um produto a ser consumido. No
entanto, é possível que a perspectiva turística de seu irmão houvesse alertado Benjamin
para uma espécie diferente de experiência, na qual a viagem aos centros da tradição ou
de adoração religiosa significava para o viajante uma oportunidade de aprendizado e
transformação pessoal.
Voltando a passagem que destacamos acima, examinaremos agora a sua segunda
parte, que trata do papel da consciência na modificação dos dados da memória.
Benjamin diz-nos, apoiado em sua leitura de Bergson, que a experiência consiste em
dados predominantemente inconscientes que “afluem” à memória, isto é, de dados que
gradualmente e sem a influência da vontade se depositam nos repositórios da memória,
ao contrário de uma atividade oposta, na qual a consciência fixa rigorosamente os dados
na memória. O primeiro processo forma as experiências (Erfahrung), enquanto que o
segundo produz as vivências (Erlebnis), no sentido preciso que Benjamin indica ao
termo e que será explorado adiante. Antes disto, devemos realizar uma ressalva: dizer
que os dados da experiência jazem na esfera do inconsciente não implica que a
experiência equivalha aos dados de uma tradição a ser recebida por um sujeito passivo,
que não possui papel decisório na formação de sua própria subjetividade. Diversamente,

18
parece-nos que a experiência, ao subtrair-se da atenção constante que a consciência
investe no momento atual e na resolução de problemas imediatos, possibilita a reflexão
e, com ela, a capacidade de alterar rumos do presente. No entanto, para que possamos
fundamentar esta conclusão, temos que nos voltar à concepção de consciência esboçada
por Benjamin em sua leitura de Freud e à descrição benjaminiana de como a vida nas
cidades altera a percepção humana, convertendo os dados da memória em vivências.
Antes de aprofundar as diferenças entre Erfahrung e Erlebnis, precisamos
indicar o ponto em que a teoria da experiência de Benjamin se afasta da de Bergson.
Benjamin critica a maneira como Bergson “rejeita toda e qualquer determinação
histórica da experiência” (BENJAMIN, 2015b, p. 107), se eximindo de apresentar as
causas históricas para a pobreza de experiências e a proeminência das vivências na
subjetividade do homem moderno. Na leitura benjaminiana de Bergson, as duas
espécies de memória constituem dois polos que, ainda que antagônicos, convivem
naturalmente na cognitividade humana, cabendo ao indivíduo a escolha de acessar a
uma das duas esferas. É o que compreendemos quando Benjamin nos diz que Bergson
“não deixa de acentuar o antagonismo que domina relação entre a vita activa e uma vita
contemplativa particular que deriva da memória. Mas ficamos com a impressão de que
em Bergson a virada para a presentificação visionária da corrente vital é questão de uma
decisão livre” (BENJAMIN, 2015b, p. 108). Segundo Benjamin, Bergson teria
associado a vivência à esfera da ação humana, ou da vita activa, uma vez que a função
da Erlebnis seria a de fixar rigorosamente os dados isolados capturados pela consciência
na memória, com o intuito de capacitar o indivíduo a reagir perante os estímulos
externos que lhe afetam. A Erfahrung estaria restringida a esfera da contemplação, ou
da vita contemplativa, cabendo a uma escolha livre do sujeito a reconstrução de seu
passado por uma “presentificação visionária da corrente vital”. É como se Bergson
tivesse, ao mesmo tempo, definido limites intransponíveis entre a experiência e
vivência, assim como entre a ação e a contemplação, e concebido uma livre altercação
entre as duas conforme a vontade do sujeito. Como veremos a seguir, o acesso à
experiência, para Benjamin, não depende de uma ação voluntária e também não envolve
apenas à mera contemplação. Neste ponto, já podemos notar a diferença entre Bergson e
Benjamin na postura metodológica de ambos, especialmente no que se refere à recusa
de Bergson em determinar historicamente as diferenças entre vivência e experiência,
como se evidencia na crítica de Benjamin::

19
de modo nenhum é intenção de Bergson atribuir um lugar histórico à memória.
Pelo contrário, rejeita toda e qualquer determinação histórica da experiência.
Com isso evita sobretudo aproximar-se daquela forma de experiência de onde
nasceu a sua própria filosofia, ou melhor, contra a qual ela se perfilou. É a
experiência inóspita e cegante da época da indústria. O olhar que se fecha a essa
experiência vê-se confrontado com uma experiência de tipo complementar que
é uma espécie de sua imagem segunda. A filosofia de Bergson é uma tentativa
de pormenorizar essa imagem e de fixá-la. Fornece, assim, de forma
mediatizada, uma alusão à experiência que se apresenta de forma natural a
Baudelaire na figura de seu leitor (BENJAMIN, 2015b, p. 107).
Vemos que a filosofia de Bergson, segundo a análise de Benjamin, renega
ingenuamente uma determinação histórica da experiência. Ingenuamente porque a
investigação de Bergson é constituída por uma rejeição implícita à “experiência inóspita
e cegante da época da indústria”, contra a qual erige a imagem de uma experiência
simetricamente oposta. Esta é a imagem da experiência das sociedades pré-industriais, a
espécie de experiência que era transmitida oralmente pelas narrativas que estudaremos
no Capítulo 2 da presente monografia. Segundo Benjamin, “A filosofia de Bergson é
uma tentativa de pormenorizar essa imagem e de fixá-la”. Parecia a Benjamin que
Bergson, ao se tornar ciente das mazelas da vida urbana, voltava sua filosofia ao
passado, em um movimento inconsciente que caracterizava o programa geral da
Lebensphilosophie, e preocupava-se em esculpir com perfeição os contornos de uma
experiência que já não correspondia à contemporaneidade da percepção humana. Em
contraponto, o objetivo de Sobre alguns temas em Baudelaire é ressaltar a ação das
condições materiais da existência moderna na percepção, e mais especificamente, na
memória humana. Nesta empreitada, são poderosos aliados de Benjamin a poesia de
Baudelaire e a literatura de autores como Proust e Poe, as quais seriam exemplares de
obras de arte direcionadas à experiência tal como ela se apresenta na modernidade,
condicionada pela vida nas cidades e por uma nova organização do trabalho e do
consumo impulsionada pelo capitalismo.
1.1.b. Erlebnis
É um desses literatos, Marcel Proust, que realiza uma “crítica imanente”
(BENJAMIN, 2015b, p. 108) à teoria da experiência de Bergson, mostrando-nos o que
significa ter uma experiência na modernidade. Proust teria percebido que o acesso à
experiência, entendida aqui como uma espécie de memória integradora tanto da

20
percepção temporal do sujeito quanto da relação entre sujeito e mundo, havia se tornado
tarefa cada vez mais difícil ao homem moderno, impondo também grandes obstáculos
ao contador de histórias. Segundo Benjamin, “A obra de Proust À la recherche du
temps perdu pode ser lida como a tentativa de reconstituir por via sintética a
experiência, tal como Bergson a entende, nas condições sociais de hoje - já que a sua
reconstituição por via natural é qualquer coisa com a qual cada vez menos poderemos
contar” (BENJAMIN, 2015b, p. 108). Vemos, então, que “nas condições sociais de
hoje” a experiência só pode ser adquirida por uma via sintética, como se os meios
naturais para o acesso a esse tipo de memória estivessem obstruídos. Para entender
como Proust concebeu uma via sintética de acesso à experiência, precisamos conhecer
um pouco melhor a obra do literato francês.
O protagonista de Em busca do tempo perdido, também chamado Marcel, inicia
a sua história relatando as dificuldades com que se deparou ao tentar escrever sobre a
sua infância, e particularmente sobre as memórias das férias que passava na casa de sua
tia na cidade de Combray. De Combray, Marcel se lembra sobretudo do sofrimento que
lhe afligia todas as noites enquanto ansiava pelo beijo de boa noite de sua mãe. Este não
era um artigo qualquer e precisava ser obtido mediante um esforço de convencimento,
uma vez que seu pai acreditava que este tipo de demonstração de afeto enfraqueceria o
menino. A aflição de Marcel só se intensifica quando seu tio Swann os visitava,
obrigando sua mãe a participar da pequena reunião familiar e ordenar que seu filho
fosse mais cedo à cama, desprovido de beijos de boa noite. Décadas mais tarde, quando
Marcel procurar rememorar os tempos de Combray, não por acaso estas são as únicas
lembranças que lhe sucedem. Como conseguir um último afago de sua mãe era o
principal objetivo do jovem Marcel, sua consciência encontrava-se particularmente
interessada em fixar na memória qualquer detalhe associado a este que representava o
seu interesse mais pessoal. Destacamos aqui um trecho da obra de Proust, com o intuito
de ilustrar a situação vivida por seu personagem:
Assim, por muito tempo, quando despertava de noite e me vinha a recordação
de Combray, nunca pude ver mais que aquela espécie de lanço luminoso,
recortado no meio das trevas indistintas, semelhante aos que o acender de um
fogo de artifício ou alguma projeção elétrica alumiam e secionam em um
edifício cujas partes restantes permanecem mergulhadas dentro da noite: na
base, bastante larga, o pequeno salão, a sala de jantar, o trilho da alameda
escura por onde chegaria o Sr. Swann, inconsciente autor de minhas tristezas, o

21
vestíbulo de onde me encaminhava para o primeiro degrau da escada, tão cruel
de subir, que constituía por si só o tronco, muito estreito, daquela pirâmide
irregular; e, no cimo, meu quarto, com o pequeno corredor de porta envidraçada
por onde entrava mamãe; em suma, sempre visto à mesma hora, isolado de tudo
o que pudesse haver em torno, destacando-se sozinho na escuridão, o cenário
estritamente necessário (como esses que se vêem indicados no princípio das
antigas peças, para as representações na província) ao drama do meu deitar;
como se Combray consistisse apenas em dois andares ligados por uma estreita
escada, e como se fosse sempre sete horas da noite. Na verdade, poderia
responder, a quem me perguntasse, que Combray compreendia outras coisas
mais e existia em outras horas. Mas como o que eu então recordasse me seria
fornecido unicamente pela memória voluntária, a memória da inteligência, e
como as informações que ela nos dá sobre o passado não conservam nada deste,
nunca me teria lembrado de pensar no restante de Combray. Na verdade, tudo
isso estava morto para mim. (PROUST, 1987, p. 47).
Havíamos visto anteriormente que uma das espécies de memória caracterizadas
por Bergson se constituía de “dados isolados rigorosamente fixados na memória”
(BENJAMIN, 2015b, p. 107). Esta definição corresponde exatamente ao que chamamos
de vivência, modalidade da memória que engloba as lembranças que Marcel preserva da
infância. Isto porque Marcel se lembra justamente de dados isoladamente, na verdade,
de um segmento específico da casa em Combray, que perfaz uma “pirâmide irregular”
integrada pela sala de jantar e seus arredores, a escada e o seu próprio quarto, deixando
todo o resto da morada na escuridão do esquecimento. Este cenário não só era composto
por dados espaciais isolados, mas também era “sempre visto à mesma hora”, isto é, no
momento em que se repetia o “drama” do deitar de Marcel, quando sofria pelos carinhos
da mãe. O escritor compara o cenário dessas memórias com o cenário de uma peça de
teatro, no qual são colocados apenas os objetos cenográficos necessários ao
desenvolvimento do enredo, e onde são reproduzidos sempre os mesmos
acontecimentos.
Proust oferece-nos uma explicação para o caráter fragmentário da experiência
que lhe advém de suas lembranças: suas memórias manifestam-se a partir de dados
isolados porque são fornecidas pela memória voluntária, a memória da inteligência, a
qual transmite informações sobre o passado sem conservar nada deste. A chave para a
compreensão desta passagem se encontra no significado do conceito de memória
voluntária. Benjamin a descreve como uma memória “sujeita aos apelos da atenção”

22
(BENJAMIN, 2015b, p. 108), indicando assim a relação existente entre a memória
voluntária e a fração de nossa percepção que se volta à recepção imediata dos dados
sensoriais. Esta relação é evidenciada por uma passagem de Paul Valery, a qual é citada
por Benjamin na construção de seu argumento: “As impressões e as percepções
sensoriais do ser humano pertencem em rigor à categoria da surpresa; são testemunho
de uma insuficiência do ser humano. A lembrança é um fenômeno elementar, e o seu
objetivo é nos proporcionar o tempo necessário para a organização da recepção dos
estímulos, que inicialmente nos faltou” (BENJAMIN, 2015b, p. 112). Valery toca em
um ponto que será importante para a teoria benjaminiana da historicidade da memória.
Referimo-nos a ideia de que a percepção humana, ou ao menos a fração da percepção
que se encontra em contato direto e imediato com as impressões sensoriais, se enquadra
“à categoria da surpresa”, enquanto que cabe à memória a função de organizar estas
impressões com o intuito de facilitar uma futura reação às mesmas. Em Sobre alguns
temas em Baudelaire, Benjamin, inspirado pela teoria psicanalítica, dirá que o trabalho
deste segmento da percepção, que será chamado de consciência, constituindo a camada
do aparelho cognitivo mais próxima ao mundo exterior e responsável por receber os
seus estímulos, é o de reparar os choques externos e que a função da memória voluntária
é servir como “um treino do controle dos estímulos” (BENJAMIN, 2015b, p. 112),
exercitando a consciência por meio da reprodução dos estímulos e pela atenuação do
choque. No entanto, para que possamos compreender melhor esta incursão de Benjamin
na psicanálise, devemos reconstruir a análise de Benjamin.
No terceiro capítulo de Sobre alguns temas em Baudelaire, Benjamin se lança a
explicar os fenômenos observados no tratamento proustiano da memória a partir de
conceitos extraídos da psicanálise. “Na busca de uma definição mais substancial daquilo
que, enquanto resto da teoria de Bergson, surge na mémoire de l’intelligence de Proust,
é recomendável recuar até Freud” (BENJAMIN, 2015b, p. 110). Interessa a Benjamin,
sobretudo, a “correlação entre a memória (no sentido da mémoire involuntaire) e a
consciência” (BENJAMIN, 2015b, p. 110) estabelecida por Freud no ensaio Para além
do princípio do prazer. Na discussão que se apresenta, a psicanálise é o meio
encontrado por Benjamin de resolver uma contradição entre as afirmações de Bergson e
de Proust acerca da memória. Isto porque ambos estão convictos de que a memória é o
fator estruturante dos fenômenos estudados por cada um: por um lado, a experiência em
Bergson e, por outro lado, a vivência e a experiência sintética de Proust. Concentrando-
nos justamente nos termos antagônicos experiência e vivência, encontramos uma

23
memória que desempenha papéis muito diferentes. No primeiro caso, ela é responsável
pela integração da percepção do indivíduo de uma perspectiva temporal, conciliando
não só a vida privada com a vida coletiva, mas enlaçando o passado, o presente e o
futuro por meio do sentimento de pertencimento a uma coletividade que perfaz seu
caminho na história. Já no que tange à vivência, a memória, a que nos referimos como
memória voluntária, contribui para o isolamento individual, fornecendo imagens
isoladas e desconexas e prestando-se a amortecer o impacto do mundo exterior na vida
particular. Havíamos visto como a verdadeira experiência só poderia ser alcançada nas
condições de vida atuais, segundo Proust, mediante uma via sintética, uma vez que a
subjetividade do homem contemporâneo inclina-se a produzir sempre vivências. Esta
via sintética, a qual não abordamos ainda, passa pelo trabalho de uma outra espécie de
memória, a memória involuntária, a qual, por incrível que pareça, se opõe ao trabalho da
consciência e só pode ser acessada mediante encontros puramente fortuitos com o
inconsciente. Benjamin, então, volta-se a psicanálise com o intuito de explorar a ideia
de duas espécies de memória, uma voltada ao trabalho da consciência, e outra associada
ao inconsciente.
A definição freudiana de consciência em Para além do princípio do prazer
revela-nos um aparelho cognitivo completamente dissociado da memória, ainda que se
sirva de uma espécie de memória, a memória voluntária, para a concretização de seus
propósitos. A discrepância existente entre consciência e memória, no entanto, é
afirmada em primeiro lugar, conforme nos informa a seguinte passagem de Freud,
citada por Benjamin, que nos diz que “a tomada de consciência e a permanência de
vestígios na memória são inconciliáveis no mesmo sistema” (BENJAMIN, 2015b, p.
111). O papel da consciência seria o de receber os estímulos externos ao aparelho
cognitivo, estando impossibilitada de registrá-los por causa de uma segunda tarefa,
associada à mera atividade de recepção. Esta tarefa seria não só a de receber os
estímulos, mas a de se proteger dos mesmos, impedindo que causem algum dano ao
aparelho cognitivo. Segundo Freud, e nos referindo mais uma vez às passagens citadas
por Benjamin, “Para o organismo vivo, a proteção contra os estímulos é uma função
quase mais importante do que a absorção deles” (Freud in BENJAMIN, 2015b, p. 111).
Benjamin, por sua vez, incorpora este argumento psicanalítico e se apropria do mesmo
em benefício de seu próprio programa filosófico. De acordo com o filósofo, “A ameaça
que vem dessas energias é a dos choques” (BENJAMIN, 2015b, p. 111). O conceito
psicanalítico de choque será fundamental à análise benjaminiana da percepção humana

24
enquanto modificada pela vida nas cidades. Esta é caracterizada pela banalização da
vivência do choque, uma vez que, em um simples passeio pelas ruas de uma cidade,
encontramo-nos expostos a diversas ameaças, como a de sermos atropelados
atravessando um cruzamento ou a de termos nossos pertences roubados ou perdidos no
meio da turba humana. Além disso, nossa percepção encontra-se exposta a constatar
tantas modificações na feição e no funcionamento da paisagem urbana que deve se
acostumar a perceber estas constantes transformações como cotidianas, ou então nos
sentiríamos atordoados diante de tanta imprevisibilidade.
O trabalho da consciência na proteção aos estímulos é auxiliado pela memória
voluntária. A função da memória neste contexto seria a de proporcionar a reiteração da
vivência do choque, com o intuito de exercitar a consciência na proteção aos estímulos e
diminuir o impacto do choque no aparelho cognitivo. Segundo Benjamin: “Quanto mais
habitual se tornar o seu registro na consciência, tanto menos se terá de contar com um
efeito traumático desses choques” (BENJAMIN, 2015b, p. 112). Como a reiteração do
registro do choque na consciência seria perigosa demais para ser experimentada pela
consciência desperta, isto é, como é ainda mais ameaçadora a ideia de deliberadamente
expor-se aos choques fatídicos, a recepção aos choques “é facilitada por um treino do
controle dos estímulos” (BENJAMIN, 2015b, p. 112), recorrendo “tanto ao sonho como
à lembrança” (BENJAMIN, 2015b, p. 112), duas estratégias que serão retratadas pelos
estudos de Freud. Atrai a atenção do psicanalista em Além do princípio do prazer uma
brincadeira realizada repetidas vezes por uma criança que adquirira o costume de lançar
seus brinquedos para o mais longe de si possível, de modo que sua recuperação quase
sempre era exaustiva. Impressionara Freud como um “bom menino” (FREUD, 1996, p.
24) havia adquirido este “hábito ocasional e perturbador” (FREUD, 1996, p. 24). Ainda
que o prazer referente a este jogo parecesse se encontrar exclusivamente no momento de
recuperação dos brinquedos lançados, quando um menino expressava um gesto de
satisfação, o psicanalista notara como o ato de lançar os brinquedos havia se tornado
autônomo em relação ao retorno dos objetos, uma vez que o primeiro “era
incansavelmente repetido como um jogo em si mesmo” (FREUD, 1996, p. 25). Por fim,
Freud chegara à conclusão de que a brincadeira da criança era uma espécie de treino de
controle dos estímulos e que, por meio do jogo, a criança exercitava a vivência de um
choque diário, o de ver sua mãe afastar-se de si. Diz-nos o psicanalista, a respeito do
comportamento da criança: “No início, achava-se numa situação passiva, era dominada
pela experiência; repetindo-a, porém, por mais desagradável que fosse, como jogo,

25
assumia papel ativo” (FREUD, 1996, p. 26). Vemos, então, que através da encenação do
jogo, a criação forçava-se a reproduzir uma sensação que lhe era desagradável, mas com
a qual se habituava, simulando até um papel ativo dentro do decorrer das ações.
A memória voluntária realiza uma tarefa semelhante, amenizando o poder
traumático dos choques através de sua rememoração. Benjamin lembra-nos que,
segundo a psicanálise, o susto associado à sensação do choque tem sua origem no que
Freud denomina “falta de predisposição para a angústia” (Freud in BENJAMIN, 2015b,
p. 112). Voltando à história da brincadeira no menino, podemos dizer que a criança
buscava assumir um papel ativo em relação aos seus sofrimentos por meio do
desenvolvimento de uma predisposição para a angústia. Simulando o afastamento de
sua mãe através do lançamento do brinquedo, o menino deixava de ser o receptor
passivo das sensações que o ameaçavam, pois a sua fantasia permitia que acreditasse
que era o único agente de seu sofrimento e que, portanto, poderia interrompê-lo quando
bem entendesse. Percebemos, então, como a memória voluntária encontra-se subjugada
aos apelos da atenção, sob a forma de um treino de controle dos estímulos que exercita a
resistência ao choque. As angústias do jovem Marcel foram recebidas como choques e,
por isso, enfrentaram o processo de resistência da consciência, que transforma os
eventos vividos em verdadeiras vivências, e não experiências. Benjamin aponta-nos
como a exposição constante aos choques relega-nos a adquirir vivências e dificulta a
aquisição de experiências, indicando o papel da consciência neste processo:
Quanto maior for a participação do momento de choque em cada uma das
impressões recebidas, quanto mais constante for a presença da consciência no
interesse da proteção contra os estímulos, quanto maior for o êxito dessa sua
operação, tanto menos essas impressões serão incorporadas na experiência e
tanto mais facilmente corresponderão ao conceito de vivência. Talvez se possa
ver o trabalho específico da resistência ao choque nos seguintes termos: atribuir
ao acontecimento, à custa da integridade do seu conteúdo, um lugar temporal
exato no plano do consciente. Seria um trabalho de ponta da reflexão, que faria
do acontecimento uma vivência. Se a reflexão não existir, instala-se
invariavelmente o agradável ou (na maior parte dos casos) desagradável
sobressalto que, segundo Freud, sanciona a ausência de resistência ao choque
(BENJAMIN , 2015b, p. 114).
A primeira parte desta passagem possui contornos de função matemática,
dizendo-nos que quanto maior for a inclusão dos choques em nossas vidas com mais
facilidade obteremos vivências e tanto menos conseguiremos incorporar os eventos

26
vividos à nossa experiência. Seguindo este fórmula, podemos concluir que a vida nas
cidades modifica a memória humana, uma vez que habitua-nos ao choque e ao processo
de resistência consciente que o sucede. Este processo fornece-nos vivências, as quais
atribuem “ao acontecimento, à custa da integridade do seu conteúdo, um lugar temporal
exato no plano do consciente”. As vivências são lembranças que não preservam a
integridade dos eventos passados, atenuando o impacto causado pelas impressões e
transmitindo dados espaciais e temporais isolados que representam o conjunto mínimo
de informações que nos permitem reagir com eficácia aos estímulos externos. É
exemplar a situação do transeunte que precisa amortecer o impacto do caos urbano e, ao
mesmo tempo, manter-se atento à mudança de cores do semáforo, desviar das pessoas
que caminham rapidamente em sua direção e evitar os desníveis do asfalto.
Em contrapartida, nos momentos em que a consciência permite-se abaixar as
suas defesas, surgem oportunidades para que as impressões sensíveis nos encontrem
desprevenidos, instalando “o agradável ou (na maior parte dos casos) desagradável
sobressalto que, segundo Freud, sanciona a ausência de resistência ao choque”. Por um
lado, a ausência de resistência ao choque pode ser responsável por traumas, como os
tratados pela psicanálise de Freud. Mas, por outro lado, a ausência de resistência ao
choque pode permitir que os estímulos externos sejam devidamente incorporados à
nossa experiência e que uma espécie de comunhão seja concretizada entre o indivíduo e
o mundo. No ensaio sobre o narrador, como veremos no capítulo 2, Benjamin afirma
que a comunidade de narradores orais depende do tédio, que acompanha o trabalho
artesanal, como a um estado de distensão psíquica, no qual cada ouvinte se esquece de
si mesmo e incorpora a história contada à sua experiência. O ouvinte que incorpora a
história narrada é aquele que possui a maior tendência a recontá-la, como nos explica
Benjamin: “Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto mais alto
da distensão psíquica. (...) Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais
profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo de trabalho se apodera
dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-
las” (BENJAMIN, 2012, p. 221).
Assim como a ausência de resistência ao choque, representada pelo tédio,
fundamenta a comunidade de narradores, um elo entre o indivíduo e o seu passado pode
ser estabelecido pela recepção integral dos estímulos exteriores. Pelo menos é esta
reflexão que Benjamin extrai da obra de Proust, o qual teria nos revelado como
momentos fortuitos e ocasionais podem nos proporcionar, mediante a memória

27
involuntária, um acesso às lembranças de um passado que permanecera restrito ao
inconsciente. A relação entre a memória voluntária e a involuntária de Proust é definida
dessa maneira por Benjamin:
A memória pura (mémoire pure) da teoria bergsoniana transforma-se nele em
mémorie involuntaire, uma forma de memória que não depende da vontade. (...)
Proust fala do modo precário como, durante anos, apresentou-se à sua
lembrança a cidade de Combray, onde, afinal, tinha passado grande parte da
infância. Até aquela tarde, diz Proust, em que o gosto da madeleine, o pequeno
bolo a que depois regressará várias vezes, transportou-o de novo para os velhos
tempo, ele estivera limitado àquilo que a memória, sujeito aos apelos da
atenção, punha à sua disposição. Essa era a memóire voluntaire, a memória
dependente da vontade, que transmite informações sobre o que se passou sem
reter nenhum traço disso. ‘O mesmo acontece com o nosso passado. É trabalho
baldado procurarmos evocá-lo, todos os esforços da nossa inteligência são
inúteis’. Por isso Proust não hesita em afirmar, em síntese, que o passado ‘está
escondido, fora do domínio e do alcance da nossa inteligência, em algum objeto
material [...] de que não suspeitamos. Depende do acaso encontrarmos esse
objeto antes de morrermos, ou não o encontrarmos’” (BENJAMIN, 2015b, p.
109).
Em “Em busca do tempo perdido”, Proust descreve-nos como o esforço de
rememoração de Marcel só se torna bem-sucedido quando o mesmo aprecia uma
madeleine, uma espécie de doce francês, mergulhando-a em sua xícara de chá. Neste
momento, o sabor da madeleine, misturado ao do chá da tarde, exerceu uma forte
impressão sobre Marcel, evocando suas memórias de quando realizava a mesma
refeição com a sua tia Léonie em Combray. Esta lembrança, que por muito tempo
restara oculta, foi suficiente para despertar uma série infindável de memórias da
infância que vivera na cidadezinha. A lembrança não fora ativada pela inteligência de
Marcel, mas arrebatou-lhe como que involuntariamente, acionada pela sensação do
sabor e do odor da madeleine, a qual provocou uma associação imediata com o seu
passado perdido. É por isto que Proust nos diz que o nosso passado “está escondido,
fora do domínio e do alcance da inteligência”, e que a sua recuperação depende de um
encontro fortuito com um objeto material. que no caso de Marcel é representado pela
madeleine. Benjamin associa a memória involuntária de Proust à memória pura de
Bergson, aquela que fundamenta a estrutura da experiência, é “matéria da tradição” e
constitui-se “mais a partir de dados acumulados, muitas vezes não conscientes”.

28
Associando a memória pura de Bergson, e com ela a experiência no sentido próprio da
Erfahrung, à memória involuntária de Proust, Benjamin evidencia como a experiência
se afastou do núcleo da vida moderna, tornando necessária para seu restabelecimento
uma via sintética como a explorada por Proust em seu romance. A literatura proustiana
representa para Benjamin, sobretudo, um sinal de que o passado coletivo da
humanidade depende de um esforço investigativo, cujo sucesso depende não tanto dos
esforços da inteligência, mas sim da análise dos testemunhos materiais sobre os quais
esse passado repousa. O ensaio “Sobre alguns motivos em Baudelaire” é um exemplar
desta postura investigativa de Benjamin, analisando os fundamentos da subjetividade
contemporânea a partir dos testemunhos históricos do século XIX, no qual as
transformações da vida urbana que iriam modificar a natureza da percepção humana
começavam a se fazer notar pela pena dos artistas e pensadores da época.
1.1.c. À procura de uma experiência da contemporaneidade
Um exemplo do método benjaminiano colocado em prática em “Sobre alguns
motivos em Baudelaire” está na reflexão acerca do modo como o fenômeno da multidão
nas cidades afeta a percepção e o comportamento de seus habitantes, reflexão esta que
encontra apoio não só na obra de literatos como Victor Hugo, Edgar Allan Poe e
Baudelaire, mas também nas impressões de pensadores como Engels e Hegel. Os
capítulos cinco e seis buscam capturar a essência do fenômeno da multidão por meio de
um tour de force de citações, as quais são organizadas pelo comentário de Benjamin,
mas preservam a sua autonomia como testemunhos históricos. Benjamin restringe a sua
investigação ao século XIX, quando o fenômeno da multidão e as transformações
provocadas pelo capitalismo ainda eram uma novidade e não tinham se naturalizado à
percepção do habitante das cidades. Os testemunhos deste período de transição se
beneficiam de uma combinação entre a proximidade e o distanciamento do objeto de
estudo, que se revela tanto no seu esplendor quanto no seu horror.
O capítulo cinco se inicia com a constatação de que um autor do se comungou
como nenhum outro às multidões, as quais se haviam se tornado no século XIV massas
de leitores que reivindicavam silenciosamente por uma literatura que compartilhasse de
sua vivência cotidiana. Este foi Victor Hugo, autor que para o qual a multidão era a “dos
clientes, do público”, multidão esta que havia feito da leitura um “hábito” e que tornara-
se “cliente da literatura, queria ver-se retratada no romance contemporâneo, como os
mecenas nas pinturas da Idade Média” (BENJAMIN, 2015b, p. 117). Vemos nestas
palavras como o romance contemporâneo pode ser o retrato do habitante urbano, que

29
deseja ver a si mesmo e os fenômenos a ele associados retratados nas páginas dos livros.
No século XIV, a arte, por meio do romance, deixa de ser a fruição de poucos
especialistas e conhecidos, dos “mecenas” que financiavam os pintores da Idade Média
e exigiam a sua representação nos quadros. Com o romance, a literatura passa a ter uma
clientela, a qual exige que a mercadoria corresponda aos seus desejos. Esse interesse de
ler e de ser representado na leitura que as massas haviam adquirido fizeram de Hugo o
“autor de maior sucesso do século (BENJAMIN, 2015b, p. 117).
Hugo, por sua vez, não só responde ao interesse da multidão, como também
ajuda a defini-la. Em ensaio intitulado “A Paris do Segundo Império em Baudelaire” o
qual antecede e prepara a escrita de “Sobre alguns motivos em Baudelaire", Benjamin
nos esclarece a relação entre Victor Hugo e as multidões. Neste trabalho, Benjamin se
admira com o modo como Hugo compara a multidão às paisagens naturais, como as
profundezas do mar ou a imensidão das florestas. Em passagem de Os Miseráveis citada
por Benjamin, Hugo escreve que “O que acontecera naquela rua não surpreenderia uma
floresta; os altos fustes e a vegetação rasteira, as plantas medicinais, os ramos
caoticamente enredados uns nos outros e a erva alta levam uma existência obscura; algo
de invisível se move entre esse formigar imenso” (Hugo in BENJAMIN, 2015b, p. 64).
O que “se move entre esse formigar imenso” é a multidão, a qual é caracterizada como
“invisível” porque não pode ser facilmente caracterizada, pertencendo ao tipo de
fenômeno que só se revela em sua “obscuridade” e “imprecisão” (BENJAMIN, 2015b,
p. 62). É impossível definir a multidão com exatidão porque as pessoas que formam a
massas das ruas não compõem um todo coeso, sendo comparáveis aos “ramos
caoticamente enredados uns nos outros” de uma floresta. Segundo Benjamin, Hugo
acertara ao deslocar a multidão da esfera das situações sociais, posicionando-a entre os
acontecimentos naturais. Isto porque a multidão é “um jogo da natureza, se é permitido
aplicar o termo a uma situação social. Uma rua, um incêndio, um acidente de trânsito
juntam pessoas que, enquanto tais, libertam-se de uma determinação de classe”
(BENJAMIN, 2015b, p. 64). O que distancia as massas urbanas da esfera do social é
ausência de deliberação por trás de sua conglomeração. As pessoas que se acotovelam
nas ruas não compartilham de interesses comuns, tendo sido juntadas ou pelo acaso ou
pelo desejo puramente individual de participar de um evento coletivo, como acontece
nas multidões que observam um acidente de trânsito ou que formam juntas a clientela
de um mercado. A peculiaridade da multidão está na forma como agrega pessoas que
não possuem laços entre si, pessoas estas que, ainda que de fato se comportem como um

30
grupo, seguem perseguindo unicamente os seus interesses individuais. Isto é o que nos
diz a seguinte passagem do ensaio:
Apresentam-se como uma aglomeração concreta; mas do ponto de vista social
permanecem abstratas, designadamente nos seus interesses privados isolados. O
seu modelo são os clientes que - cada um no seu interesse privado - se juntam
no mercado em volta de uma ‘causa comum’. Tais concentrações muitas vezes
só tem existência estatística. Sua existência oculta o que existe de realmente
monstruoso sobre elas: que tais concentrações de particulares são o resultado
acidental de seus interesses privados (Hugo in BENJAMIN, 2015b, p. 64)
Benjamin indica-nos que a ‘causa comum’ por trás das aglomerações urbanas
não está no compartilhamento de experiências e desejos, sendo fomentada pelos
interesses individuais de cada particular. A clientela de uma feira pública, por exemplo,
possui em comum o fato de desejar adquirir alguma das mercadorias à venda, mas
discorda em relação ao tipo de produto a ser adquirido, ao valor que está disposto a
pagar, etc. As pessoas que formam essas multidões “libertam-se de uma determinação
de classe” e participam de uma conjunção entre diferentes estratos sociais, muito
embora esta conjunção não resulte em um intercâmbio de lutas e ambições. Era a
indiferença que matiza as relações pessoais na turba urbana que Engels, segundo
Benjamin, pressentia de tão “ameaçador no espetáculo” das multidões (BENJAMIN,
2015b, 124). As impressões de Engels após uma visita a Londres são mencionadas por
Benjamin em Sobre alguns motivos em Baudelaire, evidenciando como o pensador não
possuía com a multidão a mesma simbiose demonstrada por Victor Hugo:
Aquelas centenas de milhares, de todas as classes e posições, que aí se
acotovelam não serão todas elas pessoas humanas com as mesmas capacidade e
qualidades e com o mesmo desejo de ser feliz?... Apesar disso, passam correndo
uns pelos outros, como se não tivessem nada em comum, nada a ver uns com os
outros; e, no entanto, o único acordo tácito entre eles é o de seguirem pelo
passeio do lado direito, para que as duas correntes da multidão não constituam
entrave uma para a outra; e, no entanto, ninguém se digna lançar ao outro um
olhar que seja. Essa indiferença brutal, o isolamento insensível do indivíduo nos
seus interesses privados é tanto mais chocante e gritante quanto mais esses
indivíduos se comprimem num espaço exíguo (Engels in BENJAMIN, 2015b,
118).
Havíamos visto que uma das características da experiência em sentido estrito é a
conjugação das memórias privada e coletiva, a qual pode ser descrita como uma

31
sensação de pertencimento a uma comunidade. Através da Erfahrung, o indivíduo
reconhece que só passou a existir devido à união de seus antepassados e que a realidade
a sua volta é produto de um mesmo trabalho conjunto. No entanto, observando a
impressão de Engels a respeito das ruas da Londres no século XIX, percebemos que a
introdução de novas tecnologias e de formas de produção modificarou a vida das
cidades de modo a coibir o sentimento de compartilhamento que envolvia as membros
de uma comunidade. Podemos discutir se o século XXI apresenta-nos uma realidade
diferente, se ultrapassamos uma época inicial e desoladora de capitalismo predatório, ou
então, constatando a ruína dos laços sociais, argumentar que uma retomada de antigas
formas de vida representaria um retrocesso ou mesmo uma impossibilidade. De fato,
algumas destas discussões serão desenvolvidas no decorrer de nossa monografia, mas
por enquanto devemos atentar para os testemunhos do século XIX como o que eles são,
isto é, documentos históricos a respeito das reações e das transformações da
humanidade durante um período de transição. Acreditamos que a declaração de Engels
citada por Benjamin tem por objetivo o de desnaturalizar a paisagem urbana que, desde
então, tornou-se o nosso ambiente cotidiano, possibilitando assim uma reflexão sobre a
mesma. Benjamin estava ciente de que o estranhamento de Engels podia ser
considerado como um signo de um temperamento provinciano mesmo para os seus
companheiros de século XIX: “Essa descrição é notoriamente diferente das que
encontramos nos pequenos mestres franceses, como Gozlan, Delvau ou Lurine. Falta-
lhe a desenvoltura e a naturalidade com que o flâneur se movimenta entre a multidão
(...). O autor vem de uma Alemanha ainda provinciana; talvez nunca tenha sentido a
tentação de se perder numa torrente humana” (BENJAMIN, 2015b, p. 118). Vemos que
Engels provinha de um cenário completamente diferente do da Paris do século XIX, de
uma Alemanha que ainda não sofrera mudanças drásticas em sua paisagem urbana. Por
este motivo, a surpresa que acometia Engels diante da multidão impedia-o de
comportar-se como um parisiense, para quem “se perder” na torrente humana havia se
tornado uma “tentação”. Esta tentação é demonstrada por um poema de Baudaleire,
chamado A uma transeunte, o qual é citado por Benjamin como um indício de como as
relações sociais, especialmente as amorosas se desenrolam nas cidades:
A rua ia gritando e eu ensurdecia.
Alta, magra, de luto, dor tão majestosa,
Passou uma mulher que, com as mãos sumptuosas,
Erguia e agitava a orla do vestido

32
Nobre e ágil, com pernas iguais a uma estátua.
Crispado como um excêntrico, eu bebia, então,
Nos seus olhos, céu plúmbeo onde nasce o tufão,
A doçura que encanta e o prazer que mata.

Um raio… e depois a noite! Efémera beldade


Cujo olhar me faz renascer tão de súbito
Só te verei de novo na eternidade?

Noutro lugar, bem longe! é tarde! talvez nunca!


Porque não sabes onde vou, nem eu onde ias,
Tu que eu teria amado, tu que bem o sabias! (Baudelaire in BENJAMIN,
2015b, p. 120).
Comentando o soneto de Baudelaire, Benjamin nos diz que, embora a multidão
não apareça explicitamente no poema, o mesmo se “desenvolve sobre ela, tal como o
andamento do veleiro depende do vento” (BENJAMIN, 2015b, p. 120). A multidão
seria o cenário implícito de A uma transeunte porque só no meio do turbilhão das ruas é
que podemos nos encontrar e nos encantar com pessoas que nunca vimos antes e que
nunca mais veremos. Benjamin descreve a paixão fugidia que arrebata o eu-lírico do
poema diante da transeunte como o encantamento de “um amor, não tanto à primeira
como à última vista” (BENJAMIN, 2015b, p. 121). Este é o encantamento pelo que é
novo, e também por aquilo que não possui antecedentes e, como tal, não nos permite
traçar previsões concretas para o futuro. O encontro com a passante se encaixa na
categoria do choque. Como vimos no tópico anterior, Benjamin acredita que o dia-a-dia
das cidades proporciona aos seus habitantes diversos choques, em relação aos quais o
indivíduo precisa se prevenir de modo a não sofrer um trauma. A percepção do citadino,
então, caracterizar-se-á pela seu caráter reativo, preocupando-se sobretudo em amenizar
o impacto dos choques, e não em incorporar as sensações que lhe acometem, adquirindo
assim experiências.
Consequentemente, Benjamin acredita que, a respeito de “um amor que só o
habitante da grande cidade conhece”, podemos dizer “não tanto que a sua realização lhe
foi negada, mas que ele foi poupado a ela” (BENJAMIN, 2015b, p. 121). Portanto, o
encanto que arrebata diariamente o membro das multidões é vivenciado por ele como
um choque, o qual deve ser prevenido, poupando o seu aparelho cognitivo das

33
constantes surpresas e das vivências fragmentárias que acompanham o seu dia-a-dia.
Diferente, porém, é o personagem do soneto de Baudelaire, que se deixa entregar ao
choque, “crispado como um excêntrico”. O personagem é um modelo do artista que
Baudelaire pretende ser, o qual, segundo Benjamin, insere “a experiência do choque no
âmago do seu trabalho artístico” (BENJAMIN, 2015b, p. 114). Não faria parte do
projeto artístico de Baudelaire, portanto, atenuar ou eclipsar a vivência do choque,
tornando a fragmentariedade e a descontinuidade que permeiam a vida contemporânea
os motivos de sua poesia. Como evidencia Bernardo Oliveira, a estética de Baudelaire
busca uma nova espécie de correspondência entre autor e leitor, a qual não se
fundamenta no compartilhamento de uma tradição comum, mas sim na afinidade entre
os que compartilham de uma mesma pobreza de experiência:
Só é possível pensar o choque, e não ser tragado por ele, se inserimos
nele a marca de uma ausência, justamente, a da aura. O papel do soneto
"A uma passante" é então decisivo. A passante emblematiza uma
experiência-limiar, espécie de umbral no qual a poética de Baudelaire
se colocou com insistência. Apesar de o soneto deixar claro que o
observador espera ainda a retribuição do olhar, marca de uma
expectativa tradicional, e que a passante de fato o retribui, a efetivação
da "promessa de felicidade" implícita nesta correspondência de olhares
é adiada para sempre, remetida a uma vida irremediavelmente perdida,
contagiando o observador com o luto que veste a agradável visão. O
luto que veste a passante vela para sempre o lugar desta
correspondência, e é esta afinidade no velar, que une a imagem da
passante e a vivência do transeunte na multidão, o que faz da "fugitive
beauté" uma experiência estética chave. O caráter fortuito do encontro
com a passante enlutada é sinal da precariedade e do risco em que se
encontra tal experiência (OLIVEIRA, 2007).
Tanto o transeunte quanto a passante enlutada do poema de Baudelaire
compartilhariam de uma “afinidade no velar”. A passante enlutada vela a morte do
amado, enquanto que o transeunte vela a impossibilidade que envolve a sua expectativa
romântica, marcada pelo “caráter fortuito do encontro”. O choque que atravessa este
encontro só não é recebido como um trauma porque nesta breve troca de olhares não há
marcas da presença de uma aura. O conceito de aura, cunhado em A obra de arte na era
de sua reprodutibilidade técnica, é definido como “a aparição única de uma distância,
por mais próxima que esteja” (BENJAMIN, 2015a, p. 57). A aura é uma modalidade da

34
percepção, na qual o objeto visualizado é percebido, por um lado como singular ou
irrepetível, e por outro lado como irredutível às explicações e aproximações de nossa
inteligência. Um objeto assim percebido permanece envolto como que numa “aura”, a
qual legitima a sua posição de culto na tradição de um povo. Feitas estas considerações,
poderíamos imaginar que o encontro entre o transeunte e a passante poderia pertencer à
categoria dos encontros com um objeto aurático e, portanto, elevar o choque que
atravessa seus participantes à categoria do choque traumático. No entanto, a ameaça do
trauma se deteriora na medida em que tanto o transeunte e a passante percebem que,
mesmo que as suas expectativas amorosas não sejam concretizadas, ainda existe a
experiência de uma correspondência entre ambos os indivíduos por meio de uma
afinidade no velar.
A imagem da mulher enlutada poderia facilmente ser caracterizada como
aurática devido ao caráter simbólico do véu que cobre o seu rosto e impede que o
transeunte a visualize com clareza. O véu também representa um costume tradicional,
que demarca um respeito pelos entes queridos que já não vivem conosco, mas que
permanecem em nossa memória. A própria figura da passante enlutada aponta para as
experiências traumáticas da perda e da morte. Porém, o choque não se transforma em
um trauma porque as marcas da aura foram retiradas do encontro. Como afirma Oliveira
“a efetivação da ‘promessa de felicidade’ implícita nesta correspondência de olhares é
adiada para sempre, remetida a uma vida irremediavelmente perdida”. Vemos que em
nenhum momento o transeunte se entrega à promessa de felicidade do amor da passante,
isto porque reconhece o caráter fortuito do seu encontro. Segundo Benjamin: “O que faz
estremecer o corpo como num espasmo - ‘crispado como um excêntrico’, diz o texto -
não é a beatitude de tudo aquilo que cede ao apelo erótico em todos os meandros do seu
ser; tem mais a ver com o choque sexual que pode acometer um solitário” (BENJAMIN,
2015b, p. 121). O transeunte, então, não estremece devido à beatitude de um sentimento
idealista, mas sim por causa do choque agradável causado pela aparição da transeunte, o
qual se encontra na categoria das vivências fragmentadas da vida contemporânea.
Através da ausência da aura, Baudelaire consegue concretizar o seu projeto, o de
promover uma “emancipação das vivências” (BENJAMIN, 2015b, p. 121), deixando de
reconhecer a pobreza de experiência que caracteriza a modernidade como um sinal de
decadência.
O tipo de correspondência que envolve a relação entre Baudelaire e seus leitores,
caracterizada por uma afinidade no velar, pode ser associada à correspondência buscada

35
pelos autores de romances que, como Proust, conseguiram reconstruir a experiência por
uma via sintética. A análise das formas de comunicação modernas que ensaiam uma
possível reconstrução da experiência na contemporaneidade será investigada em nosso
terceiro capítulo. Porém, antes disto, devemos nos voltar à análise da narrativa oral,
forma de comunicação pertencente às comunidades artesanais, a qual era a principal
responsável pelo intercâmbio de experiência e fundamentava a estrutura da Efarhrung.
Compreendendo a natureza da narrativa e as causas da crise de arte de narrar,
poderemos avaliar com mais precisão as armadilhas e os caminhos virtuosos que cercam
as tentativas de reconstrução da experiência e de sua dimensão coletiva.

36
Capítulo 2 - A arte de narrar
No capítulo que se segue, nos voltaremos a narrativa em busca de apreender as
suas características distintivas. No mais importante texto benjaminiano sobre o tema, O
narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, lemos que “a arte de narrar
está em extinção” (BENJAMIN, 2012, p. 214). Compreender o significado do predicado
“está em extinção” nessa sentença é uma das metas a que se propõe a presente
monografia. Isto porque dizer que a narrativa está em extinção é diferente de declarar
que a narrativa se extinguiu, deixou de existir. Devemos considerar, portanto, que ainda
convivemos com a narrativa, este resquício de uma sociedade artesanal, anterior à
industrialização moderna e ao capitalismo. Esta convivência, porém, é marcada pela
distância que nos separa da narrativa. Segundo Benjamin: “O narrador - por mais
familiar que nos soe esse nome - não está absolutamente presente entre nós, em sua
eficácia viva. Ele é para nós algo de distante, e que se distancia cada vez mais”
(BENJAMIN, 2012, p. 213). O narrador, o contador de história cuja experiência servia
como uma fonte de conselhos aos agrupamentos humanos construídos à sua volta, se
tornou uma figura rara na modernidade, muito embora seu nome ainda nos soe familiar.
Nas próximas páginas, veremos como esse jogo entre familiaridade e distância
caracteriza a nostalgia contemporânea perante a narrativa. Nostalgia esta que pode
torna-se uma ameaça se a encaramos como o retrocesso a um passado idealizado, e não
como um desejo ativo de restaurar e reformular as experiências do passado que ainda
correspondam as nossas necessidades atuais. Neste sentido, são esclarecedoras as
palavras de Benjamin sobre o processo de extinção da narrativa:
Mas este é um processo vem de longe. E nada seria mais tolo do que ver nele
um “sintoma de decadência”, e muito menos de uma decadência “moderna”.
Ele é muito mais um sintoma das forças produtivas seculares, históricas, que
expulsam gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo, conferindo, ao
mesmo tempo, uma nova beleza ao que está desaparecendo (BENJAMIN, 2012,
p. 217).
Ressaltamos aqui a recusa de Benjamin em caracterizar o processo de extinção
da narrativa como um “sintoma de decadência”. As formas de comunicação tornam-se
mais ou menos presentes nas sociedades humanas conforme o seu grau de
correspondência com a subjetividade dos homens e a estrutura da sociedade de um

37
determinado tempo histórico. Negar as transformações das formas de comunicação,
portanto, seria o mesmo que rejeitar a historicidade do humano. De acordo com
Benjamin: “Ao longo de grandes períodos históricos modifica-se, com a totalidade do
modo de existir da coletividade humana, também o modo de sua percepção. A maneira
pela qual a percepção humana se organiza - o meio em que ocorre - não é apenas
naturalmente, mas também historicamente determinado” (BENJAMIN, 2015a, p. 56).
No ensaio do qual retiramos esta passagem, chamado A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica Benjamin mostra-se particularmente atento para o modo como
a política fascista se apropria dos diagnósticos de decadência da modernidade,
utilizando-se da insatisfação das pessoas como mote para um projeto inviável de retorno
a um passado idealizado. Afastando-se deste tipo de análise, interessa ao filósofo, em O
Narrador, enxergar a extinção da narrativa como o resultado de “forças produtivas
seculares, históricas”, isto é, como o resultado da ação humana no mundo e decorrência
do surgimento de uma nova espécie de técnica, a qual modifica a civilização ao seu
redor.
A história das formas de comunicação proposta por Benjamin exibe-nos um
cenário de transição, onde a extinção iminente da narrativa confere “uma nova beleza ao
que está desaparecendo”. Acreditamos que Benjamin descreve uma posição limiar no
processo de transformação das formas de comunicação, posição na qual a narrativa
aparece-nos como familiar e distante, assim como a mera proximidade para com o
romance e a informação não são fatores suficientes, como demonstra o filósofo, para
que apropriemos estas novas formas de comunicação à nossa experiência. Neste ponto,
referimo-nos a Jeanne Marie Gagnebin, que indicou a importância do conceito de
limiar, em oposição ao de fronteira, na filosofia de Walter Benjamin. Por um lado,
segundo Gagnebin, o conceito de fronteira “contém e mantém algo, evitando seu
transbordar, isto é, define seus limites não só como os contornos de um território, mas
também como as limitações de seu domínio” (GAGNEBIN, 2014, p. 35). Por outro
lado, o conceito de limiar se inscreveria em um contexto mais amplo, designando as
funções de transição e de ultrapassagem:
Na arquitetura, o limiar deve preencher justamente a função de transição, isto é,
permitir ao andarilho ou ao morador que transite, sem maior dificuldade, de um
lugar determinado a outro lugar distinto, às vezes oposto. Seja ele simples
rampa, soleira de porta, vestíbulo, corredor, escadaria, sala de espera num
consultório, de recepção num palácio, pórtico, portão ou nártex numa catedral

38
gótica, o limiar não faz só separar dois territórios (como a fronteira), mas
permite a transição, de duração variável, entre esses dois territórios. Ele
pertence à ordem do espaço, mas também, essencialmente, à do tempo. Assim
como sua extensão espacial, sua duração temporal é flexível, e depende tanto do
tamanho do limiar quanto da rapidez ou da lentidão, da agilidade, da
indiferença ou do respeito do transeunte (GAGNEBIN, 2014, p. 35).
Ao contrário da fronteira, que determina limites fixos e estáticos, onde a
transposição de domínios representa uma alteração de estatutos e pode até acarretar
sanções legais, o limiar é um espaço de transição, que permite a errância entre domínios
opostos e favorece a contemplação dos mesmos. De acordo com Gagnebin, vivemos em
uma época que elimina as experiências limiares do cotidiano, encarando-as como
desperdício de tempo e produtividade: “As transições devem ser encurtadas o máximo
possível para não se ‘perder tempo’. O melhor seria poder anulá-las e passar assim o
mais rápido possível de uma cidade a outra, de um país a outro, de um pensamento a
outro, de uma atividade a outra, como passamos de um programa de televisão a outro
com um mero toque na tecla no ‘controle remoto, sem nos demorarmos inutilmente no
limiar e na transição” (GAGNEBIN, 2014, p. 38). Seguindo a mesma linha de
pensamento, se poderia criticar a maneira como Benjamin se demora em uma
consideração sobre narrativa tradicional, ao invés de realizar uma transposição imediata
em direção às novas formas de comunicação. Esta transposição imediata, no entanto,
abdicaria de uma postura reflexiva a respeito das transformações do presente,
impedindo-nos de preservar o passado e de construir um futuro promissor. Para tomar
tal postura, é necessário que nos coloquemos no limiar, “essa zona intermediária que a
filosofia ocidental - bem como o assim chamado senso comum - custa a pensar, pois
que é mais afeita às oposições demarcadas e claras (masculino/feminino,
público/privado, sagrado/profano, etc.)” (GAGNEBIN, 2014, p. 38).
A história das formas de comunicação descrita por Benjamin apresenta um
momento de transição, onde a narrativa está em extinção, o romance entre em crise e a
informação é predominante. Situando-se no limiar dessas mudanças, o filósofo lança um
olhar à narrativa, a forma de comunicação artesanal que repartia oralmente as histórias e
tradições do passado, com o intuito de pensar criticamente a respeito do romance e da
informação. Este pensar crítico caracteriza-se, por um lado, pela recusa a uma mera
resignação diante transformações que marcam o presente e, por outro lado, pelo desejo
de reformular as novas formas de comunicação e, especialmente, o romance, como

39
denotam as análises benjaminianas de Proust e Kafka. Mais do tudo, porém, uma visada
que volta-se à narrativa descobre uma espécie de experiência na qual o passado e futuro
apresentavam-se interligados, seja na conservação das tradições, seja na preparação de
modelos para o futuro. Neste quadro, o presente se revela como um momento de
passagem, e não de transposição, como um limiar onde paramos e contemplamos o
caminho, e não como uma fronteira a ser simplesmente trespassada. É por este motivo, e
outros tantos que irão se manifestam no decurso do capítulo, que Benjamin convida-nos
a investigar a narrativa e a crise da narratividade na era moderna.
2.1. A arte de narrar
Antes de debatermos a respeito do futuro da crise da narrativa, devemos tentar
definir a arte de narrar, conforme a mesma se desdobra em O narrador: considerações
sobre a obra de Nikolai Leskov. No ensaio, Benjamin descreve a narrativa como um
componente das sociedades tradicionais de um passado pré-industrial, definindo-a como
uma “forma de comunicação artesanal” (BENJAMIN, 2012, p. 221). As narrativas
parecem acompanhar os agrupamentos humanos antes mesmo da escrita, uma vez que
se manifestam predominantemente na oralidade humana. De acordo com Benjamin, “a
experiência que passa de boca em boca é a fonte a que recorrem todos os narradores”
(BENJAMIN, 2012, p. 214). Esta experiência é a Erfahrung, a qual investigamos no
capítulo 1, modalidade da memória caracterizada pelo modo como unifica passado e
presente, a esfera privada e a esfera coletiva. Imbuídos destas primeiras definições de
narrativa, arriscaremos um primeiro mergulho no texto benjaminiano, no caso uma
passagem de O narrador, à procura de esclarecimento:
A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio artesão - no campo,
no mar e na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de
comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa
narrada, como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida
do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim, imprime-se na narrativa a
marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. É uma inclinação
dos narradores começar sua história com uma descrição das circunstâncias em
que foram informados dos fatos que vão contar a seguir, isso quando não
atribuem essa história simplesmente a uma vivência própria. (...) seus vestígios
estão presentes de muitas maneiras nas coisas narradas, se não na qualidade de
quem as viveu, ao menos na de quem as relata (BENJAMIN, 2012, p. 221).
É importante para a caracterização da narrativa a ideia de que ela floresceu em
um “meio artesão - no campo, no mar e na cidade”, observação que adquire pleno
40
significado quando Benjamin nos fala sobre os arquétipos históricos do narrador. De
acordo com Benjamin, existem dois grandes grupos de narradores, os quais não
constituem figuras estanques, mas modelos em constante combinação. Podemos ilustrar
essas duas linhagens de narradores por meio de seus representantes arcaicos: “Se
quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos,
podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário, e o outro pelo
marinheiro comerciante” (BENJAMIN, 2012, p. 214). O primeiro, o camponês, é o
narrador do campo, sendo responsável pela seguinte função: narrar histórias que advém
de uma distância temporal, isto é, transmitir as tradições de seu povo. O segundo, o
marinheiro, provém dos mares e exerce a figura de narrador quando conta as histórias
dos lugares distantes pelos quais viajou. A estes representantes arcaicos, Benjamin
acrescenta mais uma linhagem de narradores, a qual é responsável pela síntese das duas
anteriores. Referimo-nos aos artífices do sistema corporativo medieval, os quais
representam os narradores da cidade, cuja dinâmica é descrita pelo filósofo da seguinte
maneira: “O mestre sedentário e os artífices viajantes trabalhavam juntos na mesma
oficina; e cada mestre tinha sido um artífice viajantes antes de se fixar em sua pátria ou
no estrangeiro” (BENJAMIN, 2012, p. 2015). O artífice medieval é o símbolo de uma
nova espécie de narrador, que comunga as distâncias temporais e espaciais, conhecendo
a tradição regional e histórias de nações estrangeiras.
Quando Benjamin classifica a narrativa como uma forma de comunicação
“artesanal”, o filósofo tem em mente diversas facetas do trabalho manual, as quais
podem ser comparadas à arte do narrador. Em primeiro lugar, Benjamin está nos
dizendo que a narrativa existia em sincronia com o ritmo da labuta do trabalhador
manual, o qual reconhecia que o produto de seu ofício demandava tempo para que fosse
aperfeiçoado e atingisse seu estágio final. Para nos oferecer uma “imagem espiritual
dessa esfera artesanal” (BENJAMIN, 2012, p. 222), Benjamin volta-se a Paul Valery e a
sua reflexão sobre como o homem fora capaz de mimetizar o trabalho da natureza,
criando obras tão perfeitas quanto aquelas oriundas do mundo natural, como “pérolas
imaculadas” e “vinhos encorpados e maduros” (BENJAMIN, 2012, p. 222). Citando
Valery:
Antigamente o homem imitava esse procedimento paciente da natureza (...)
Miniaturas, marfins cuidadosamente trabalhados, pedras perfeitas no polimento
e no acabamento, lacas e pinturas nas quais se sobrepõem uma sequência de
camadas finas e translúcidas… - todas essas produções de uma indústria tenaz e

41
plena de resignação estão desaparecendo e já passou o tempo em que o tempo
não contava. O homem de hoje não cultiva mais aquilo que pode ser abreviado
(BENJAMIN, 2012, p. 222).
Nesta passagem, o que Valery realça no trabalho manual, em sintonia com
Benjamin, é a atividade de lenta superposição de camadas, de refinamento constante da
obra até que a sua perfeição seja encontrada. Esse tipo de trabalho exige tenacidade,
resignação e, acima de tudo, paciência no reconhecimento de que a perfeição exige um
demorar-se no tempo. Tempo este que está em falta na sociedade capitalista, que exige
uma produção sempre renovada e descontínua. É por isso que o “homem de hoje não
cultiva mais aquilo que pode ser abreviado”. Em paralelo com o trabalho artesanal, a
narrativa também reclama um aperfeiçoamento lento e gradual. Ponderando sobre as
palavras de Valery, Benjamin diz-nos que a atividade de lenta superposição de camadas
finas e translúcidas “representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa
perfeita vem à luz do dia a partir das várias camadas constituídas pelas narrações
sucessivas” (BENJAMIN, 2012, p. 223). Em contraste com a informação de jornal, que
“só tem valor no momento em que é nova” (BENJAMIN, 2012, p. 220), a narrativa
somente adquire validade quando se insere em um processo de transmissão e
retransmissão. Assim como os produtos do artesão precisam ser gradualmente
refinados, a narrativa é aperfeiçoada à medida em que é recontada pelos inúmeros
narradores que a perpetuam no tempo.
Um interessante contraponto à experiência do artesão é aquela do participante de
jogos de azar, cuja vivência se assemelha à do operário não especializado na sociedade
capitalista, conforme a análise de Benjamin em “Sobre alguns temas em Baudelaire”.
Neste ensaio, o filósofo nos lembra que os conceitos de jogo e de trabalho sempre foram
opostos. Isto porque lidávamos com o conceito de trabalho artesanal, o qual era visto
como uma atividade continuada, na qual o cumprimento de cada tarefa dependia do
resultado das anteriores. O conceito de jogo propõe uma atividade muito diferente se
corroboramos da definição Alain Émile-Auguste Chartier, citada por Benjamin: “O jogo
contém em si a ideia de que nenhuma partida depende da anterior. O jogo ignora
totalmente toda e qualquer posição assegurada, não conta com os méritos conquistados
anteriormente, e nisso se distingue do trabalho” (BENJAMIN, 2015b, p. 130). O jogo,
portanto, seguiria um princípio de descontinuação, a partir do qual sempre poderíamos
apagar o registro das rodadas anteriores para dar início a uma nova partida. Se essa
definição de jogo afasta-se definitivamente do trabalho artesanal, o mesmo não é

42
verdade para o expediente do operário assalariado, para quem não falta “a vanidade, o
vazio, o nunca estar acabado, inerentes à atividade fabril” (BENJAMIN, 2015b, p. 130).
Segundo Benjamin, “a ideia regulativa do jogo (tal como do trabalho assalariado) é o
recomeçar sempre” (BENJAMIN, 2015b, p. 131). Acreditamos que a vanidade do jogo,
e portanto a do trabalhador assalariado, encontra-se justamente na sua reversibilidade,
no fato de que os méritos do passado não influem diretamente no presente, sendo
completamente reversíveis, o que se contrapõe a ideia do trabalho como um processo
contínuo no qual a lenta superposição de camadas a visa a concreção de uma perfeição
futura. Um ofício que não é o do artesão e que representa magistralmente essa espécie
de trabalho é o do escultor, cujas obras são diametralmente opostas àquelas resultantes
das técnicas de reprodução mecânica. Cada estocada do escultor modifica
irreversivelmente a obra e faz com que o resultado final seja único e irreproduzível,
muito diferente da produção em massa permitida pelo avanço das técnicas mecânicas.
Percebemos, então, como a narrativa, que é construída a partir da acumulação de
experiências através do contar e do recontar de histórias, era parente do trabalho
artesanal e começa a desaparecer exatamente quando novas formas de trabalho e de
comunicação inspiram uma diferente compreensão do tempo, aquela caracterizada pelo
conceito de vivência ou Erleibnis.
A narrativa também depende diretamente do estado de espírito que é incitado
pela rotina do artesão. Havíamos definido que a narrativa é constituída pela
“experiência que passa de boca em boca” e que o recontar é um pré-requisito da
narrativa, a qual é aprimorada toda vez em que é retransmitida, incorporando a
experiência de cada narrador. Segundo Benjamin, para que um ouvinte tenha condições
de renarrar uma história, ele precisa primeiro tê-la assimilado, conforme relata na
passagem a seguir:
Esse processo de assimilação se dá em camadas profundas e exige um estado de
distensão que se torna cada vez mais raro. Se o sono é o ponto mais alto da
distensão física, o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é o
pássaro onírico que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas
folhagens o assusta. Seus ninhos - as atividades intimamente associadas ao
tédio - já se extinguiram nas cidades, e também no campo estão em vias de
extinção. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos
ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde
quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém

43
mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de
si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo
de trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire
espontaneamente o dom de narrá-las. E assim essa rede se desfaz hoje em todas
as pontas, depois de ter sido tecida, há milênios, em torno das mais antigas
formas de trabalho manual (BENJAMIN, 2012, p. 221).
Benjamin retrata o estado de espírito que se adequa ao ato de ouvir uma história,
o qual é fundamental para a assimilação e transmissão da mesma. Este estado de espírito
é o tédio, “o ponto mais alto da distensão psíquica”. A distensão psíquica contribui para
a assimilação da narrativa porque faz com que o ouvinte se esqueça de si mesmo, isto é,
relegue as suas preocupações individuais e momentâneas à medida que se entrega à
configuração da narrativa. Dissemelhante a este estado de distensão psíquica é o que
caracteriza o homem das cidades, onde já se extinguiram os ninhos do tédio e a
consciência precisa manter-se atenta às ameaças de choque. O processo de assimilação
da narrativa, ao contrário, se dá “em camadas profundas”, as quais não se inserem no
plano da consciência, e sim no do inconsciente. O tédio pode ser compreendido como
uma ausência de choques, a qual desfavorece o trabalho da consciência e incita-nos ao
esquecimento de si de que nos fala Benjamin. Este estado de espírito favorece a
assimilação da experiência narrada, de sorte que o ouvinte “adquire espontaneamente o
dom de narrá-las” do mesmo modo que as lembranças do inconsciente afluem pela
memória involuntária.
Existe ainda um último aspecto em relação ao qual a narrativa pode ser chamada
de uma forma de comunicação artesanal. Este se manifesta na maneira como o narrador
lida com a sua matéria-prima, a narrativa, manuseando-a como um oleiro manuseia um
vaso de argila. Lembrando as palavras de Benjamin, aludidas anteriormente, o narrativa
“não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada, como uma
informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida
retirá-la dele. Assim, imprime-se na narrativa a marca do narrador, como a mão do
oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN, 2012, p. 221). Não interessa ao narrador eximir-
se dos acontecimentos que relata, isto porque não deseja fornecer um ponto de vista
imparcial a respeito da história, afastando-se do “‘puro em si’ da coisa narrada”. Ao
contrário, o narrador manuseia a narrativa porque investe a si mesmo na coisa narrada,
seja como alguém que efetivamente participou dos eventos relatados ou como alguém
que se apropriou da história narrada, conectando-a a elementos de sua própria vida. Os

44
contos de Nikolai Leskov são exemplares da manualidade do narrador, ainda que
Leskov seja um escritor e represente uma faceta contemporânea do narrador tradicional.
Como nota Benjamin, as histórias de Leskov costumam começar ou com a descrição
das circunstâncias nas quais o narrador veio a conhecer a história ou com um prelúdio
que informa ao leitor de que os fatos narrados foram vividos pelo narrador. “Leskov
começa A fraude com uma descrição de uma viagem de trem, na qual ouviu de um
companheiro de viagem os episódios que vai narrar; ou pensa no enterro de
Dostoievski, no qual travou conhecimento com a heroína de A propósito da sonata de
Kreuzer; ou evoca uma reunião em um círculo de leitura, no qual ouviu falar dos fatos
relatados em Homens Interessantes” (BENJAMIN, 2012, p. 221). Em A propósito da
sonata de Kreuzer, por exemplo, Leskov coloca-se a si mesmo como narrador e
personagem, descrevendo o enterro de Dostoiévski, onde é interceptado por uma mulher
que um dia fora aconselhada pelo autor falecido e que agora deseja um conselho do
próprio Leskov. Esta mulher, a senhora N, é personagem de uma história de Tolstoi, A
sonata de Kreuzer, que subitamente ganha vida nas páginas de Leskov. A
intertextualidade latente na conjunção de autores (Dostoiévski, Tolstoi e o próprio
Leskov) que formam o contexto de A propósito da sonata de Kreuzer pode ser
interpretado como possuindo o seguinte propósito: imergir os escritores na vida de seus
leitores, transformando personagens de ficção em pessoas de carne e osso e eventos
narrados em acontecimentos vividos.
Não é uma particularidade de Leskov dar conselhos às suas personagens e aos
seus leitores, mas é comum a todo narrador a habilidade de aconselhar os seus ouvintes.
No quarto capítulo de O Narrador, Benjamin diz-nos que a narrativa “traz sempre
consigo, de forma aberta ou latente, uma utilidade. Essa utilidade pode consistir por
vezes num ensinamento moral, ou numa sugestão prática, ou também num provérbio ou
norma de vida - de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos
ao ouvinte” (BENJAMIN, 2012, p. 216). Estas palavras dizem algo importante sobre a
teoria da narratividade oral ensaiada por Benjamin: para o filósofo, o objetivo final de
uma história não é entreter, mas orientar o ouvinte em questões práticas. Os exemplos
fornecidos por Benjamin neste capítulo podem parecer demasiado literais, mas
comprovam o que chama de “senso prático” do narrador (BENJAMIN, 2012, p. 216),
como quando lembra-nos que Gotthelf “dava conselhos de agronomia a seus
camponeses (BENJAMIN, 2012, p. 216), que Nodier “se preocupava com os perigos da
iluminação a gás” (BENJAMIN, 2012, p. 216) e que Hebel “transmitiu a seus leitores

45
pequenas informações científicas em seu Schatzkästlein (Caixinha de tesouros)”. É
curioso notar nos exemplos citados, os quais referem-se a escritores da virada do século
XVIII ao XIX, a imersão da técnica e da ciência modernas, demonstrando a
responsabilidade do narrador em transmitir ao ouvinte, de maneira acessível, tanto as
novas respostas que surgem para a resolução de velhos problemas quanto os novos
problemas advindos das novas tecnologias. Preocupação semelhante já havia sido
mencionada por Benjamin ao discutir o papel do cinema em A obra de arte na era de
sua reprodutibilidade técnica: “Fazer da monstruosa aparelhagem técnica de nossos
tempos o objeto da enervação humana - é essa a tarefa histórica que em cujo serviço o
cinema tem seu verdadeiro sentido” (BENJAMIN, 2015a, p. 102). Nos termos deste
ensaio, o cinema tem como função a de adequar a percepção humana, ou a sua
“enervação, às exigências das aparelhagens da técnica. Como em O narrador falamos
de formas de comunicação, parece-nos que é do interesse do narrador contemporâneo
tornar comuns os saberes associados à técnica mecânica. Este interesse é consequência
do rompimento da cadeia que ligava as experiências das diferentes gerações. Quando
Benjamin nos diz que “O conselho tecido na substância da vida vivida tem um nome:
sabedoria. A arte de narrar aproxima-se de seu fim porque a sabedoria - o lado épico da
verdade - está em extinção” (BENJAMIN, 2012, p. 217), percebemos que tipo de saber
pertence ao domínio da narrativa. O filósofo chama a sabedoria de o ‘“lado épico da
verdade”, sugerindo que a verdade possui um lado que se volta às histórias
compartilhadas e à dimensão prática que as envolve. Este lado da verdade, a sabedoria,
entra em extinção pelo “fato de as experiência estarem perdendo sua comunicabilidade”
(BENJAMIN, 2012, p. 216). Benjamin não assinala uma causa única que explica a crise
da experiência, mas aponta, em sua descrição da modernidade, diversos fatores que
contribuem para este processo. A incomunicabilidade da experiência parece-nos latente
quando Benjamin, em “Experiência e pobreza”, fala-nos de uma época na qual os mais
velhos são incapazes de orientar os mais jovens:
“Sabia-se também exatamente o que era a experiência; ela sempre fora
comunicada pelos mais velhos aos mais jovens. De forma concisa, com a
autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade,
em histórias, às vezes como narrativas de países longínquos, diante da laireira,
contadas a filhos e netos (...) Quem é ajudado, hoje, por um provérbio
oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua
experiência” (BENJAMIN, 2012, p. 123)

46
Parece-nos que o cenário em que a experiência da maturidade já não ressoa aos
mais jovens é marcado por um abismo de gerações provocado pelo rápido
desenvolvimento das técnica, o qual torna os saberes e habilidades do passado
absoletos. Este abismo entre gerações abala o peso da tradição e dilui a
comunicabilidade da experiência, prometendo desmantelar também o lado épico da
verdade.
O talento natural dos narradores para o aconselhamento não se reduz a uma
dimensão prática, ou ao menos aos aspectos já explicitados desta dimensão. Para dar um
conselho, o narrador precisa reconhecer as semelhanças entre a narrativa e a vida
humana, como explicita a definição benjaminiana de conselho:
Aconselhar é menos responder a uma pergunta do que fazer uma sugestão sobre
a continuação de uma história que está se desenrolando. Para obter essa
sugestão, seria necessário primeiro saber narrar a história (sem contar que um
homem só é receptivo a um conselho na medida em que verbaliza a sua
situação) (BENJAMIN, 2012, p. 217).
Como vemos na passagem, aconselhar não é responder a uma pergunta, o que
denota que dar um conselho não é dizer ao ouvinte que ele deve proceder desta ou
daquela maneira em uma dada situação. Dar um conselho é propor uma possível
continuação a uma história que se mostra incompleta, inconclusiva. Para que o narrador
possa aconselhá-lo, o ouvinte precisa primeiro saber verbalizar sua vida na forma de
uma narrativa. O ouvinte precisa encarar os eventos de sua vida como experiência, no
sentido de Erfahrung, Valendo-nos mais uma vez da definição de Oliveira, diremos que
a experiência é um modo de compreender a “nossa relação com nós mesmos e com os
outros de um ponto de vista temporal”, de modo que sejamos “continuação e reforço
dos que nos precederam e modelo para os que virão” (OLIVEIRA, 2013, 43). A
experiência, portanto, permite uma integração do tempo humano, no qual passado,
presente e futuro são originalmente antagônicos, em um tempo da narrativa, onde os
eventos temporais são configurados com o intuito de formar uma única história. Aquele
que necessita de um conselho não consegue integrar o seu presente ou a sua expectativa
de futuro com a sua história de vida. Neste quadro, o papel do conselho é justamente o
de propor uma continuação para esta história de vida, uma continuação que integre em
um tempo harmônico as experiências que a compõem.
No entanto, para que um conselho seja aceito, as histórias que contamos uns aos
outros precisam apresentar-se receptivas à diferentes possibilidades de continuações.

47
Para Benjamin, as narrativas tinham em comum o fato de permanecerem abertas a uma
diversidade de interpretações, o que incita os ouvintes e leitores de novas gerações a
ensaiarem explicações sempre renovadas aos mistérios que cercam uma narrativa.
Benjamin denota esse fenômeno quando se põe a analisar um antigo relato do
historiador grego Heródoto, a respeito das humilhações que o rei egípcio Psamético (ou
Psammenit na edição brasileira das Histórias de Heródoto) experimentou frente a
invasão do soberano persa Cambises. O que interessa a Benjamin na história de
Heródoto é, em primeiro lugar, o seu caráter enigmático, que se revelará à medida que
desdobramos o relato. Em segundo lugar, a história de Heródoto corrobora para a tese
de que o caráter aberto das narrativas favorece a sua transmissão, dado que o relato do
historiador grego continuará a desafiar os pensadores que se dispõem a interpretá-lo,
servindo de matéria prima para um ensaio de Montaigne no século XVI. Com o auxílio
do artigo de Aparecida de Fátima Bueno, “A história do rei egípcio em sucessivas
vozes: Heródoto, Montaigne e Walter Benjamin” (2001), mostraremos como o relato
original de Heródoto e a reformulação de Montaigne contribuem para uma nova
combinação da mesma história em Benjamin. Em primeiro lugar, vejamos como
Benjamin nos apresenta a história do rei egípcio:
O primeiro narrador grego foi Heródoto. No capítulo XIV do terceiro livro de
suas Histórias encontramos um relato muito instrutivo. Ele trata de Psamético.
Quando o rei egípcio Psamético foi derrotado e reduzido ao cativeiro pelo rei
persa Cambises, este resolveu humilhar seu cativo. Deu ordens para que
Psamético fosse posto na rua em que passaria o cortejo triunfal dos persas.
Organizou esse cotejo de modo que o prisioneiro pudesse ver sua filha
degradada à condição de criada, indo ao poço com um jarro, para buscar água.
Enquanto todos os egípcios se queixavam e lamentavam com esse espetáculo.
Psamético ficou silencioso e imóvel, com os olhos no chão; e quando logo em
seguido viu seu filho, conduzido pelo cortejo para ser executado, continuou
imóvel. Mas, quando viu um dos seus servos, um velho empobrecido, na fila
dos cativos, golpeou a cabeça com os punhos e mostrou os sinais do mais
profundo desespero (BENJAMIN, 2012, p. 220).
O que nos chama a atenção no relato de Heródoto, conforme é recontado por
Benjamin, é a contradição entre as reações de Psamético, que contempla impassível as
humilhações impostas aos seus filhos e se desespera ao observar a escravidão imposta a
um dos seus servos. Esta contradição desarma as expectativas do leitor, que esperava de
Psamético demonstrações de grande sofrimento diante do calvário de sua prole. Ao

48
contrário, vemos que o rei egípcio fica “silencioso e imóvel, com os olhos no chão”
enquanto sua filha é rebaixada à condição de escrava dos persas. Esta reação não condiz
nem com a expectativa do leitor nem com o comportamento do resto do povo egípcio,
que se queixava e lamentava o espetáculo. O desacordo entre o que se esperava de
Psámetico e o que demonstra o rei torna-se ainda mais evidente quando a realeza do
Egito perde o controle de suas emoções ao ver que um velho servo do seu palácio
assomava a fila dos cativos persas. Neste momento, o rei reage como se esperava que
fizesse ante aos augúrios de seus filhos, pois apreendemos que Psamético “golpeou a
cabeça com os punhos e mostrou sinais do mais profundo desespero”. Frente ao enigma
representado pela contradição entre as reações de Psamético, o leitor da narrativa
suplica por explicações sem ser atendido. Porém, segundo Benjamin, “Heródoto não
explica nada, Seu relato é dos mais secos” (BENJAMIN, 2012, p. 220), deixando a
encargo do leitor e do ouvinte a tarefa de interpretar os acontecimentos narrador.
Deste modo, Benjamin enfoca o caráter lacunar da narrativa de Heródoto,
dizendo-nos que a narrativa sobre Psamético “não explica nada”. No entanto, a
afirmação de Benjamin não é completamente verdadeira, uma vez que Heródoto relata a
explicação dada pelo próprio rei em relação à contradição latente na manifestação de
suas emoções. Quando nos voltamos ao relato do historiador grego, notamos, em
primeiro lugar, que o velho que desperta o desespero de Psamético não era um servo e
não tinha se tornado um escravo dos persas. Depois de descrever a impassividade do rei
perante aos sofrimentos impostos aos seus filhos, Heródoto diz-nos que “Após a
passagem daqueles homens, por acaso um dos companheiros de festas do rei - um
homem já idoso e outrora rico, mas agora apenas um mendigo pedindo esmolas aos
soldados - apareceu nas proximidades (...) Ao vê-lo, Psammenit começou a soluçar,
batendo com as mãos na cabeça e chamando o companheiro pelo nome”
(HERODOTOS. 1988, p. 613). Notemos que, na história original, o velho era um
homem rico que havia se transformado em mendigo e pedia esmolas aos soldados
persas. O velho tinha sido, inclusive, companheiro de festas do rei, o qual chama-lhe
pelo nome. Como estes detalhes não bastavam por si só para explicar a contradição de
reações de Psamético, que gerou a consternação dos que o observavam, o rei persa
ordena que seus subalternos questionem a realeza egípcia a respeito de seu
comportamento errático. Ao contrário do que testemunha Benjamin, Heródoto fornece
uma explicação, ainda que a mesma tenha sido proferida pelo próprio Psamético:
“Minha mágoa familiar era grande demais para ser chorada (...) mas o infortúnio de meu

49
companheiro provocava lágrimas - alguém que perdeu a riqueza e a felicidade e agora,
no limiar da velhice, chegou ao extremo de precisar mendigar” (HERODOTOS, 1988,
p. 613). Como afirma Aparecida Bueno no artigo mencionado (2001), devemos ressaltar
que Heródoto se exime de explicar por si mesmo a atitude de Psamético, utilizando-se
de uma explicação proferida pelo rei egípcio, o qual encontrava-se sob o julgo dos
persas no momento e poderia achar desvantajoso contar a verdade para seus
dominadores. Desta forma, podemos preservar o caráter lacunar da narrativa de
Heródoto e atestar a afirmação benjaminiana de que a narrativa “não se esgota jamais”
(BENJAMIN, 2012, p. 220), isto é, que a narrativa mantém-se aberta a possibilidades
futuras de interpretação.
No entanto, constatamos que Benjamin oculta a explicação de Psamético que
consta no relato original, valorizando a tese de que são as lacunas da narrativa que
instigam a sua permanência na cadeia das transmissões orais. O que motiva os
narradores a voltarem a contar uma história é a determinação de preencher as lacunas,
de fazer uma história incompleta tornar-se coesa e configurada. Podemos acreditar que
os narradores sempre regressam desta tarefa de exegese com alguma espécie de
sabedoria que poderá ser assimilada às suas vidas, como é o caso de Montaigne, que se
coloca a recontar a história de Heródoto. O fato de o relato de Heródoto ser uma
centelha de reflexão e aconselhamento para um pensador tão distante temporalmente
quanto Montaigne, é um importante indício da natureza e do valor da narrativa para
Benjamin:
Muito diferente é a narrativa. Ela não se esgota jamais. Ela conserva suas forças
e depois de muito tempo ainda é capaz de desdobramentos. Assim, Montaigne
retornou à história do rei egípcio, perguntando-se: por que ele só se lamenta
quando reconhece o seu servente? Sua resposta é que ele “já estava tão cheio de
tristeza, que uma gota a mais bastaria para derrubar as comportas”. É a
explicação de Montaigne. Mas poderíamos também dizer: “O destino da família
real não afeta o rei, porque é o seu próprio destino”. Ou: “muitas coisas que não
nos afetam na vida nos afetam no palco, e para o rei o criado era apenas um
ator”. Ou: “as grandes dores são contidas, e só irrompem quando ocorre uma
distensão. A visão desse servo foi essa distensão” - Heródoto não explica nada.
Seu relato é do mais secos. Por isso, essa história do antigo Egito ainda é capaz,
depois de milênios, de suscitar espanto e reflexão. Ela assemelha-se às
sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas

50
hermeticamente nas câmaras das pirâmides, conservando até hoje suas forças
germinativas (BENJAMIN, 2012, p. 220).
Vemos nesta passagem que a natureza da narrativa de Heródoto instiga-nos a
interpretá-la e permite que diferentes interpretações sejam tentadas, sem que nenhuma
tentativa de exegese seja eleita como a mais apropriada. Benjamin nos diz que o relato
de Heródoto é “dos mais secos”, isto é, que o relato concentra-se em transmitir o seu
enredo da forma mais direta possível. Lendo O narrador podemos imaginar que tipo de
acréscimo irrompe com a secura da narrativa. Falamos das explicações psicológicas.
Segundo Benjamin, “quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às
sutilezas psicológicas, tanto mais facilmente a história será gravada na memória do
ouvinte, tanto mais completamente ela irá assimilar-se à sua própria experiência, tanto
mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia” (BENJAMIN, 2012,
p. 220). A subtração das sutilezas psicológicas, portanto, auxilia a memorização da
história, em parte porque elimina todo elemento que não é indispensável à construção
do enredo e facilita sua sumarização, e em parte por preservar o mistério da narrativa,
incitando o ouvinte a guardá-la consigo com o intuito de elucubrar uma possível
resolução ao enigma proposto. Se Heródoto houvesse descrito os pensamentos de
Psamético, contando-nos o que se passava em sua mente no momento em que observava
o desfile de cativos dos persas, saberíamos exatamente o motivo do comportamento
insólito do rei egípcio e haveria menos espaço para a interpretação do estranho evento.
Porém, Heródoto se restringe a relatar a explicação dada pelo próprio Psamético, a qual
pode ser insincera. Podemos até mesmo duvidar da capacidade dos agentes de
reconhecer as verdadeiras motivações de suas ações, lembrando que muitas vezes não
conseguimos atinar para o porquê de termos agido de determinada maneira ou então que
convencemo-nos de que agimos segundo princípios mais honrosos dos que os realmente
impulsionaram o nosso agir.
Notamos que, para Benjamin, a sobriedade da narrativa permite a seu ouvinte
transcender os limites da situação particular relatada pelo narrador. Assim, Montaigne
se utiliza do relato de Psamético como ponto de partida a uma reflexão sobre a tristeza e
os sentimentos extremos em seu ensaio Da Tristeza. Conta-nos Montaigne que as
grandes emoções ocasionam uma debilitação da atividade humana, tornando-nos
prostrados e incapacitados de reagir. “Efetivamente, o sentimento que uma dor
ocasiona, para raiar no extremo, deve transformar a alma e impedir-lhe a liberdade de
ação” (MONTAIGNE, 1980, p. 169). Explica-nos o ensaio que Psamético se conservou

51
impassível durante a humilhação de seus filhos e desesperou-se com a miséria de seu
servo porque “só a última dor pôde exprimir-se em lágrimas; as duas primeiras
ultrapassaram em muito qualquer meio de expressão” (MONTAIGNE, 1980, p. 168).
Provido do exemplo de Psamético e do de outros acontecimentos históricos, Montaigne
chega a duas conclusões. A primeira de que a expressão destes grandes sentimentos
corre sempre o risco de ser fútil e falseada, uma vez que as grandes paixões fugiriam da
nossa capacidade de manifestá-las por meio de palavras. Deste modo, o filósofo diz-nos
que “Todas as paixões que se podem aquilatar e provar são medíocres” (MONTAIGNE,
1980, p. 170). Em segundo lugar, Montaigne pronuncia-se contra o perigo que
representam o rompante das paixões extremas, as quais nos deixam passivos e inertes,
aconselhando o leitor a endurecer a sua sensibilidade por meio da reflexão diária:
“Sinto-me distante de tão avassaladoras paixões; o meu receio não é grande e procuro
solidificá-lo e endurecê-lo todos os dias com a reflexão” (MONTAIGNE, 1980, p. 171).
Vemos, então, que Montaigne se apropria da narrativa de Heródoto, extraindo dela um
saber que lhe orienta em sua vida prática. Em Da Tristeza, a história de Psamético é
reveladora da maneira como as paixões mais profundas não são aquelas que
expressamos com efusão, uma vez que as mesmas possuem um efeito paralisante sobre
o homem, sintoma este que leva Montaigne a exercitar o domínio sobre estes
rompantes. Tal apropriação só é possível porque o filósofo ressalta o envolvimento
emocional de Psamético, suprimindo o contexto político e histórico do acontecimento
relatado. Montaigne, como um narrador, molda a narrativa segundo os contornos de sua
própria experiência, de modo que o relato de Heródoto permanece significativo para os
seus novos leitores séculos após a sua primeira aparição.
Dos muitos traços que caracterizam a narrativa e a distanciam do romance e da
informação, as formas modernas de comunicação, a capacidade da narrativa de
estabelecer comunidades efetivas de interlocutores, como a que agrega Heródoto,
Montaigne e Benjamin, é aquela que mais salta aos nossos olhos. Ao contrário da
informação, que se pretende precisa e imparcial, os acontecimentos narrados não
permanecem imaculados em sua inserção na cadeia de narradores, sendo apropriados
por cada narrador que lhe põe as mãos, dedicado a extrair-lhe uma centelha de
sabedoria. Isto porque o ouvinte da narrativa, diferente do leitor comum de romances
assinalado por Benjamin, recebe conselhos do narrador e se orienta melhor no mundo à
medida que recebe as histórias de sua tradição cultural. Com o objetivo delinear
nitidamente as diferenças entre as estas formas de comunicação, nos voltaremos ao

52
romance e a informação, para que o contraste exposto por Benjamin em O narrador seja
completado pelas instâncias contemporâneas dos modelos de contar histórias.

53
Capítulo 3 - A crise da narrativa e as novas formas de comunicação
Neste capítulo nos propomos a discutir os fatores que levam à crise da narrativa
e a natureza das novas formas que se fazem predominantes no cenário da comunicação
humana. Em O Narrador, Walter Benjamin nos apresenta a narrativa oral como uma
forma de comunicação em iminente extinção. Ainda que uma possível restauração da
narrativa por vias sintéticas seja considerada, parece a Benjamin a que a narrativa oral
tradicional é algo com o qual devemos nos ver cada vez mais dissociados, em vista dos
motivos que esperamos elucidar neste presente capítulo. Neste cenário, Benjamin não
sugere uma abolição da comunicação, mas uma alteração das formas pelas quais ela se
realiza, apontando o romance e a informação como os principais modelos de
comunicação para o homem moderno. O que não significa, porém, que as características
que distinguem o romance e a informação não houvessem convivido com a narrativa
oral em períodos primevos, ainda que disfarçadas sob um véu de indiferenciação com a
narrativa. É benéfico, para os propósitos deste capítulo, analisar a maneira como
romance e narrativa, segundo Benjamin, conviveram um com o outro na epopeia, uma
vez que esta existência conjunta já revela duas formas muito diferentes de expressão e,
principalmente, de utilização da memória.
A origem do romance estende suas raízes até a epopéia grega, diz-nos Walter
Benjamin1. Muito embora as sementes do romance estivessem presentes na epopeia, não
encontraram terreno fértil para o seu desenvolvimento independente até o surgimento da
imprensa e da reprodução mecânica de livros. Antes de seu auge, porém, o romance
teria convivido com a narrativa na zona de indiferenciação que representava a epopéia, a
qual, por representar o exemplar mais antigo dos registros escritos da épica, incorporava
elementos incipientes da transmissão escrita associados às da transmissão oral da
linguagem2. Como uma zona de indiferenciação, a epopéia deixaria transparecer o laço
que unia o romance à narrativa sob a forma da rememoração (Erinnerung), a atividade
de recordar o passado, a qual aparece às lentes de Benjamin como sendo multifacetada.
A rememoração é a “origem comum” (BENJAMIN, 2012, p. 228) do romance e
da narrativa, fundando a “cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de
geração em geração” (BENJAMIN, 2012, p. 228). A atividade de rememoração implica,

1
“Quando no decorrer dos séculos o romance começou a emergir do seio da epopéia…” (BENJAMIN,
2012, p. 228)
2
“Se o registro escrito do que foi transmitido pela rememoração - a historiografia - representa uma zona
de indiferenciação criadora com relação às várias formas épicas (...) sua forma mais antiga, a epopéia
propriamente dita, contém em si, por uma espécie de indiferenciação, a narrativa e o romance”
(BENJAMIN, 2012, p. 228)

54
portanto, a conservação de uma tradição e a sua subsequente transmissão de geração em
geração. É por isso que Benjamin vê laços estreitos entre a rememoração e a narrativa,
dado que ambas nutrem a lenta e contínua superposição de histórias que formam cultura
oral de um povo. Em alusão às Musas que inspiravam os poetas épicos, Benjamin elege
a rememoração como a musa da poesia épica:
A rememoração (...) corresponde à musa épica no sentido mais amplo. Ela
inclui todas as variedades específicas da forma épica. Entre elas, encontra-se
em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em última
instância todas as histórias constituem entre si. Uma se liga à outra, como
demonstraram todos os grandes narradores, principalmente os orientais. Em
cada um deles vive uma Sherazade, à qual ocorre uma nova história em cada
passagem da história que está contando (BENJAMIN, 2012, p. 228).
Fica evidente como, para Benjamin, a rememoração não consiste na evocação de
lembranças particulares e isoladas umas das outras . A rememoração não consiste de
lembranças isoladas, mas de recordações que se relacionam entre si, formando uma rede
que por fim entrelaça todas as histórias existentes. O processo subjetivo que enreda as
rememorações se assemelha ao processo de transmissão oral das narrativas, as quais
sempre podem ser continuadas pelo ouvinte que as recebe e as conta de novo,
acrescentando um novo relato ou uma nova perspectiva. Montaigne, por exemplo, não
se limita a recontar o caso do rei egípcio, mas retira dele um ensinamento prático que
não estava contido no relato de Heródoto
A misteriosa senhora N., atormentada pela escolha entre contar ou não ao seu
marido sobre seu caso extraconjugal, não apenas se aconselha com Leskov, mas se
reencontra casualmente com o escritor anos depois, em uma estação de águas onde
acabaria por sofrer um fim trágico.Mesmo o falecimento da senhora N. não impõe um
final irredutível sobre a história, que ainda pode ser continuada. Em primeiro lugar,
porque as circunstância da morte da mulher permanecem em suspenso, criando um
mistério: “a desaparecida N. não deixou nenhum bilhete, nenhum sinal da decisão de
suicidar-se” (LESKOV, 2012, p. 188). Em segundo, porque o conto termina com o
marido da senhora N. se aproximando inusitadamente de Leskov, o autor/personagem,
que evitava contato com o senhor N devido aos segredos confidenciados a si pela
mulher do outro, de modo que uma nova história parece prestes a se iniciar: “Eu não
tinha razão para querer me aproximar dele, mas, por um impulso a mim
incompreensível, de repente, ele se dignou a dedicar-me atenção e, nas conversas que

55
travamos, com muita frequência e de muito bom grado, tocava a memória da falecida
esposa” (LESKOV, 2012, p. 189). Estas são as últimas palavras de A propósito de A
Sonata a Kreutzer, as quais são um convite à continuação e à rememoração, pois não
sabemos se Leskov confiará ao senhor N. os segredos de sua esposa, mas temos a
certeza de que a sua memória dela permanecerá viva nas conversações entre os dois
novos amigos. Ao elencar a narrativa como uma das figuras mais proeminentes da
rememoração, acreditamos que um dos intentos de Benjamin é ressaltar a dinâmica de
conservação e transmissão que pode caracterizar a rememoração, em oposição a um
processo individualista de evocação de reminiscências.
A figura de Sherazade torna-se emblemática na estrutura da rememoração. A
personagem de As mil e uma noites inventa uma nova história todas as noites, com o
intuito de captar o interesse do xeique com quem se casara e que executava uma esposa
todos os dias. Era a habilidade de costurar uma história sobre a outra, portanto, que
mantinha a vida de Sherazade. A alcunha que Benjamin lhe atribui, aquela a quem
“ocorre uma nova história em cada passagem da história que está contando”, poderia
muito bem ser atribuída a Proust. Em ensaio sobre o romancista 3, Benjamin descreve os
estranhos hábitos de revisão de Proust. Ao receber de seu editor os textos
acompanhados dos comentários e das correções a serem feitas, Proust não apagava o
que havia feito, mas sempre acrescentava material novo à narrativa, enchendo as
margens das páginas de trechos a serem incluídos. 4
Para Benjamin, esta divertida anedota é um sinal de que “a lei de rememoração
exercia-se também no interior da obra” (BENJAMIN, 2012, p. 38) de Proust. O grande
romance de Proust, Em busca do tempo perdido, é um exemplo de como um indivíduo
que se lança a reviver suas memórias não é necessariamente alguém que se perde em
suas reminiscências pessoais. O nome do narrador-personagem da história, Marcel, é
citado apenas uma vez no decorrer de todo o romance, o que comprova que o mesmo
não é o personagem central de suas rememorações e que, à medida em que se recorda de
seu passado, Marcel se esquece de si mesmo. Proust poderia simplesmente nos ter
contado os acontecimentos vividos por um personagem, escolheu, porém, retratar os
acontecimentos como eram rememorados pelo personagem, subvertendo a dimensão

3
BENJAMIN, WALTER. “A Imagem de Proust” in Walter Benjamin: Magia e técnica, arte e política.
São Paulo: Brasiliense, 2012.
4
“os hábitos de revisão de Proust levavam os tipógrafos ao desespero. As provas eram devolvidas com as
margens completamente escritas. Mas nenhum erro de impressão era corrigido; todo espaço disponível
era preenchido com material novo” (BENJAMIN, 2012, p. 38)

56
temporal que caracteriza os romances. Isto porque “um acontecimento vivido é finito,
ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento
rememorado é sem limites, pois é apenas uma chave para tudo o que veio antes e
depois” (BENJAMIN, 2012, p. 38). A dimensão temporal que formata o enredo
romanesco é finita e nos relata os acontecimentos que foram vivenciados ou por um
personagem ou por diversos personagens durante um evento específico. Já a narrativa,
ao transmitir os acontecimentos como eles são rememorados, torna-se infinita e
inacabada, remetendo sempre a uma continuação por vir.
O trabalho específico da memória no romance é o exemplar de uma nova
espécie de rememoração, como evidencia Benjamin na passagem abaixo. Nela, o
filósofo alude novamente às Musas que inspiravam os poetas épicos, definindo as duas
espécies de rememoração que servem de musas à narrativa e ao romance:
a esta musa [a musa da narração] deve opor-se outra, igualmente mais
específica, a musa do romance que, no princípio, isto é, na epopeia, ainda se
encontra oculta, indiferenciada da musa da narrativa. Porém ela já pode ser
pressentida na poesia épica. Acima de tudo nas invocações solenes das Musas,
que abrem os poemas homéricos. O que se anuncia nessas passagens é a
memória perpetuadora do romancista, em contraste com a breve memória do
narrador. A primeira é consagrada a um herói, uma peregrinação, um combate;
a segunda, a muitos fatos dispersos. Em outras palavras, a reminiscência
(Eingedenken), musa do romance, surge ao lado da memória (Gedächtnis),
musa da narrativa, depois que a desagregação da poesia épica apagou a unidade
de sua origem comum na rememoração (Erinnerung) (BENJAMIN, 2012, p.
228).
Os termos utilizados por Benjamin para classificar as espécies de rememoração
não são utilizados de forma rígida pelo filósofo. Este traduz o termo proustiano
mémoire involuntaire, por exemplo, por das ungewollte Eingedenken, referindo-se à
memória através do termo aqui referido à reminiscência, Eingedenken. Por este motivo,
compreendemos a teoria esboçada por Benjamin no décimo terceiro capítulo de O
Narrador da seguinte maneira: a rememoração é, em primeiro lugar, um distintivo da
épica e instrumento da narrativa, designando uma forma de contar o passado
caracterizada pela continuidade infindável de sua tarefa; na medida em que o passado
começa a ser registrado por escrito, surge uma nova forma de rememoração, a qual não
corresponde ao sentido próprio do termo, implicando a necessidade de um novo
conceito, o de reminiscência. Na poesia épica, a reminiscência aparece quando a fluxo

57
infindável de histórias narrados é interrompido pela descrição de um evento particular.
Esta espécie de rememoração iria se tornar independente com o decorrer do tempo,
alimentando as duas formas de comunicação mais proeminentes do período moderno: o
romance e a informação.
Como o romance e a informação serão tratados neste capítulo, precisamos
anteriormente completar um elo ausente da história das formas de comunicação. Antes
de compreender as formas modernas da transmissão de história, devemos retratar o
modo como Benjamin estabelece a crise da narrativa. Isto porque, se o romance e a
informação representam os signos desta crise, eles também apontam caminhos para a
reconstrução da narrativa, devendo ser analisados perante a sua capacidade de preservar
ou não o compartilhamento de experiências proporcionado pelos narradores orais.
3.1. Crise da narrativa
Em ensaios como “O narrador” e “Experiência e pobreza”, Walter Benjamin nos
apresenta um fenômeno social e histórico que pode ser rotulado como a crise da
narrativa oral, a qual acompanha lado a lado a crise da experiência em seu sentido
estrito de Erfahrung. A crise da narrativa oral não denota apenas o desaparecimento de
uma certa maneira de contar histórias, mas também indica também o enfraquecimento
dos laços sociais e a diluição da sabedoria que era transmitida de geração em geração.
No início de Pobreza e Experiência, Benjamin define a experiência como aquilo que
“sempre fora comunicada pelos mais velhos aos mais jovens” (BENJAMIN, 2012, p.
123). Em outro ponto, indica que em seu tempo já não existem moribundos cujas
palavras sejam “tão duráveis” a ponto de serem transmitidas “como um anel, de geração
em geração” (BENJAMIN, 2012, p. 123). O fenômeno da crise da narrativa, portanto,
pode ser melhor compreendido como uma desvalorização dos saberes e práticas
legitimados pela tradição. Se um dos aspectos principais da tradição está na conservação
dos modelos bem-sucedidos do passado, o mundo de hoje já não encontra palavras
duráveis, isto é, palavras que detenham o seu poder de aconselhamento através da
passagem do tempo e das transformações sociais.
Não devemos, no entanto, estigmatizar a narrativa como um instrumento de
conservação da tradição. Muito pelo contrário, ao concentrar o foco de seu estudo da
narrativa no processo transmissão das histórias e não nas características intrínsecas das
mesmas, Benjamin parece ressaltar o caráter interativo deste processo, que
invariavelmente leva a transformação das narrativas. Vejamos como Benjamin
caracteriza os sintomas observáveis da crise da narrativa:

58
a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas
que sabem narrar devidamente. É cada vez mais frequente que, quando o desejo
de ouvir uma história é manifestado, o embaraço se generalize. É como se
estivéssemos sendo privados de uma faculdade que nos parecia totalmente
segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências (BENJAMIN,
2012, p. 213).
Benjamin denomina a faculdade associada à arte de narrar, a qual se deteriora à
medida em que as pessoas se mostram menos propensas a contar histórias, de
“faculdade de intercambiar experiências”. A habilidade de narrar, portanto, se revela
como uma espécie de intercâmbio. Em primeiro lugar, o narrador existe como um
ouvinte, o qual é responsável por conservar a narrativa em sua memória, registrando os
seus elementos essenciais. Para que seu ofício seja bem-sucedido, o ouvinte precisa se
encontrar em um estado de “distensão psíquica” (BENJAMIN, 2012, p. 221), no qual
“se esquece de si mesmo” (BENJAMIN, 2012, p. 221) e passa a habitar o universo da
história. O cidadão urbano, constantemente atento às ameaças que o cercam de todos os
lados, não se qualificaria, portanto, como o melhor dos ouvintes. É o que nos diz
Benjamin quando afirma a importância da figura do ouvinte para a transmissão das
narrativas e a relevância do tédio enquanto estimulante da atividade de escutar histórias:
O tédio é o passáro onírico que choca os ovos da experiência. O menor
sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos - as atividades intimamente
associadas ao tédio - já se extinguiram nas cidades, e também no campo estão
em vias de extinção. Com isso desaparece o dom de ouvir, e desaparece a
comunidade dos ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de
novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas”
(BENJAMIN, 2012, p. 221).
Como a narrativa é a arte de contar as histórias de novo, faz-se necessário que,
em primeiro lugar, que o narrador se faça de ouvinte e conserve a história. O passo
seguinte é aquele em que o narrador modela a narrativa de acordo com a sua
experiência, de modo que o contador de histórias benjaminiano não é apenas um
reprodutor das histórias que ouviu, mas também um criador, que insere a sua marca na
matéria da tradição. Segundo Benjamin, a narrativa “mergulha a coisa na vida do
narrador para em seguida retirá-la dele. Assim imprime-se na narrativa a marca do
narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN, 2012, p. 221). O
narrador, portanto, não é um mero portador da tradição, mas um agente ativo no
processo de transmissão de histórias, uma vez que insere a marca de sua vida na

59
narrativa, Podemos enxergar esta dinâmica na tríade de narradores formada por
Heródoto, Montaigne e Benjamin no caso da história de rei egípcio Psammenit. Cada
um dos três narradores acrescenta uma nova faceta à história e, desta maneira, aproxima
a narrativa de sua própria experiência.
É a comunidade entre ouvintes e contadores de história que se desarticula com a
crise da narrativa. Uma das causas desta crise já foi assinalada no Capítulo 2, quando
afirmamos a importância de um estado de distensão psíquica para a conservação da
narrativa por parte do ouvinte. Este estado de distensão tende a rarear com o
desaparecimento do trabalho artesanal e com a ascensão de uma nova experiência de
trabalho que se caracteriza pelo seu caráter fragmentário, o qual subtrai o valor do
esforço acumulado comum à experiência da atividade artesanal e enaltece a necessidade
de constante adaptação às novas demandas da técnica. A vivência das cidades também
habitua o homem urbano à presença do choque, a qual força a subjetividade do mesmo a
um estado de constante atenção que se opõe à disposição para o tédio. Estes fatores
explicam como um dos aspectos fundamentais da arte de narrar, a conservação das
histórias ouvidas, se dilui com o avanço da técnica e com a introdução de uma nova
espécie de experiência cotidiana, a qual pode ser definida como a vivência (Erlebnis)
das cidades.
Nosso estudo ainda carece, no entanto, de um apontamento que explique porque
o homem contemporâneo se sentiria menos propenso a narrar. Já havíamos destacado a
passagem de O narrador em que Benjamin nos fala sobre o embaraço que arrebata um
grupo de pessoas quando o desejo de ouvir histórias é manifestado. O que gera tal
embaraço? Para responder a essa pergunta, devemos compreender, em primeiro lugar,
que o desejo de contar histórias é impulsionado pela ânsia de intercambiar experiências.
Como vimos anteriormente, a experiência, no sentido estrito de Erfahrung, comunga a
memória privada com a coletiva, de modo que a experiência raramente possui um valor
meramente pessoal. Isto posto, a experiência inclina-se à comunicabilidade porque serve
de conselho e indicação prática àqueles que se juntam ao redor do narrador. A partir
destas reflexões, acreditamos que, para Benjamin, a experiência deixa de ser
comunicável quando torna-se uma vivência pessoal. Parece-nos que a causa do
embaraço que envolve o narrador moderno provém da ausência de legitimação de sua
experiência, a qual não é mais retificada por sua imersão pela tradição. É o que
Benjamin parece nos dizer na seguinte passagem de O narrador:

60
Uma das causas desse fenômeno é evidente; as ações da experiência estão em
baixa. E tudo indica que continuarão caindo em um buraco sem fundo. Basta
olharmos um jornal para nos convencermos de que seu nível está mais baixo do
que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior
mas também a do mundo moral sofreu transformações que antes teríamos
julgado como absolutamente impossíveis. Com a guerra mundial começou a
tornar-se manifesto um processo que desde então segue ininterrupto. Não se
notou, ao final da guerra, que os combatentes voltavam mudos do campo de
batalha; não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável? E o
que se derramou dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada
tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca. E não
havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais
radicalmente desmentidas que a experiência estratégica pela guerra de
trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela
batalha material e a experiência moral pelos governantes. Uma geração que
ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos encontrou-se desabrigada,
numa paisagem em que nada permanecera inalterada, exceto as nuvens, e,
debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões destruidoras, o
frágil e minúsculo corpo humano (BENJAMIN, 2012, p. 214).
Parte dessa passagem já constava em Experiência e pobreza, ensaio de 1933, o
que demonstra a insistência dessas ideias na teoria de Benjamin. Este parágrafo de O
narrador, pela sua riqueza e o esmero de sua escrita, poderia ser analisado sob diversos
aspectos, servindo de ponto de partida a inúmeras considerações. Por este motivo,
devemos nos contentar em esmiuçar apenas uma de suas facetas, aquela que se volta
mais diretamente ao tema de nossa monografia. Falávamos sobre os impedimentos que
aquele que deseja comunicar a sua experiência encontra no mundo moderno. No
segmento destacado, Benjamin alude para uma transformação que ocorreu, não só em
nossa imagem do mundo externo, mas também em nossa imagem do mundo moral.
Portanto, não foi só o mundo material que envolve o homem que se transformou,
modificado pelo avanço da técnica e do capitalismo, mas também a maneira como
compreendemos a nós mesmos e o nosso lugar no mundo foi profundamente
remodelada.
É significante que Benjamin se refira aos combatentes da Primeira Guerra
Mundial, que voltavam mudos do campo de batalha. Isto porque a experiência da guerra
sempre foi um objeto muito apreciado na poesia épica, onde o guerreiro valoroso

61
tornava-se um grande herói e se excedia da turba humana para se aproximar dos deuses.
Os combatentes da Primeira Guerra Mundial, no entanto, não pareciam particularmente
dispostos a compartilhar suas experiências, isto porque elas haviam sido demasiado
“desmoralizadas”. Benjamin apresenta alguns motivos para essa desmoralização. Em
primeiro lugar, porque disputaram as suas batalhas em trincheiras, onde mal podiam
visualizar o seu inimigo e nem possuir uma visão mais geral do que acontecia no campo
de batalha. Em segundo lugar, porque a inclusão de armas químicas e de um imenso
poderia mecânico diminui a participação humana nos confrontos. Em terceiro lugar,
porque, mais do que nunca, os combatentes se sentiram meros joguetes das decisões dos
governantes. A soma de todos estes fatores atesta-nos que a experiência da guerra
moderna é, ao mesmo tempo, uma experiência individualizante, onde o sentimento de
pertencimento a uma coletividade ou a uma causa honrada se esvai, e uma experiência
onde a participação individual é incapaz de alterar o rumo dos eventos. Este é um
importante motivo para que, segundo Benjamin, os combatentes da Primeira Guerra se
calassem quanto às suas memórias de guerra.
Muito embora esses combatentes manifestassem a sua pobreza de experiências
com o silêncio, não podemos dizer que a mesma alternativa pela mudez seja perpetuada
em larga escala, isto é, a comunicação humana não deixa de se realizar com a crise da
experiência, mas certamente se organiza sob formas de comunicação diferentes da
narrativa. Benjamin aponta para duas dessas novas formas: o romance e a informação.
Nas páginas que se seguem, definiremos as particularidades destas duas formas de
comunicação, em conformidade com a análise benjaminiana. Nosso objetivo é ressaltar
como a forma romanesca e a forma informativa diferem da narrativa e, se por um lado
impossibilitam a narrativa tradicional, por outro lado instigam o surgimento de novas
espécies de narrativa.
3.2. Romance e informação
As características das formas romance e informação são apresentadas em
contraste com a forma narrativa em O narrador. No ensaio, a narrativa é definida pelo
seu caráter aberto, o qual permite a continuação e retransmissão das histórias narradas.
Dizer, no entanto, que as narrativas são abertas, ou, como Benjamin, que “não há
nenhuma narrativa em que a pergunta - e o que aconteceu depois? - não se justifique”
(BENJAMIN, 2012, p. 230), não implica que as mesmas sejam incompletas e que não
comuniquem uma experiência. As experiências comunicadas são os conselhos ou as
indicações práticas de que se apropria o ouvinte ou o leitor da narrativa, utilizando-os

62
em sua vida prática. O romance e a informação, por outro lado, tendem a dissolver, cada
um à sua maneira, o caráter aberto da narrativa. No romance, veremos uma obsessão
pelo fim derradeiro da história, o qual é responsável por transmitir o sentido da mesma
ao leitor. Já a informação opera segunda os imperativos da novidade, de acordo com o
qual as informações precisam acompanhar a atualidade dos acontecimentos, e da
plausibilidade5, segundo o qual as informações devem poder ser explicadas e ter sua
validade imediatamente verificada.
3.2.a. A forma romanesca
Estas peculiaridades nos mostram que a dimensão temporal do romance e da
informação não é mesma que envolve a narrativa. A narrativa representa um tempo
continuado, no qual o presente está impregnado tanto pela memória dos acontecimentos
do passado quanto pela expectativa do futuro. Muito diferente é o tempo denotado na
frase de Mortiz Heimann, a qual, segundo Benjamin, descreve “a essência dos
personagens do romance” (BENJAMIN, 2012, p. 231): “Um homem que morre com
trinta e cinco anos é em cada momento de sua vida um homem que morre com trinta e
cinco anos”. A afirmação nos apresenta uma vida que possui um destino selado, no qual
cada evento particular representa apenas mais um passo em direção a um fim pré-
determinado. O problema da frase de Heimann, nos diz Benjamin, é o fato de que ela se
confunde quanto às dimensões do tempo 6. Não é em cada momento de sua vida,
enquanto ele é atualidade viva, que um homem é determinado pelo seu destino final. A
afirmação de Heimann, porém, faz todo sentido se a atribuímos à vida rememorada.
“Em outras palavras: a frase, que não tem nenhum sentido com relação à vida real,
torna-se incontestável com relação à vida rememorada (erinnerte)” (BENJAMIN, 2012,
p. 231). Ainda assim, não estamos completamente corretos enquanto não tipificamos a
espécie de rememoração realizada neste caso, a qual só pode ser a reminescência
(Eingedenken), a Musa do romance. No plano da reminiscência, cada momento da vida
de um homem que morreu aos trinta e cinco anos é rememorado como sendo um indício
do fim que está por vir. É a expectativa deste fim e a resolução que ele representa para a
história que alimenta o leitor de romances, como indica Benjamin:
A frase diz que o “sentido” da sua vida somente se revela a partir de sua morte.
Mas o leitor do romance procura realmente homens nos quais possa ler “o

5
“é indispensável que a informação soe plausível” (BENJAMIN, 2012, p. 219).
6
“Nada mais duvidoso. Mas apenas porque o autor se engana quanto à dimensão do tempo”
(BENJAMIN, 2012, p. 231)

63
sentido da vida”. Ele precisa, portanto, estar seguro de antemão, de um modo
ou de outro, de que participará de sua morte. Se necessário, a morte no sentido
figurado: o fim do romance. Mas de preferência a morte verdadeira. Como
esses personagens anunciam que a morte já está à sua espera, uma morte
determinada, num lugar determinado? É dessa questão que se alimenta o
interesse absorvente do leitor pelo enredo do romance (BENJAMIN, 2012, p.
231).
Podemos compreender agora porque a frase da Heimann caracteriza a essência
dos personagens do romance. Estes são homens cuja vida é portadora de um sentido. O
sentido de uma vida, nos parâmetros do romance, é a subordinação de cada evento
vivido a um destino final. Procurar o sentido da vida, portanto, significa buscar o fim
que determinará as ligações causais entre cada evento vivido. Antes de sua morte, cada
personagem encontra-se apartado do sentido de sua vida, sentido este que, na verdade,
só é conhecido pelo leitor, através da reminescência. Tal sentido é um mistério para o
próprio personagem do romance, que vivencia a sua vida com grande perplexidade,
como nos diz Benjamin: “Em meio à plenitude dessa vida e na descrição dessa
plenitude, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem a vive” (BENJAMIN,
2012, p. 217). Parece-nos, então, que para Benjamin o personagem de romance é o
espelho do moderno, que já não é guiado mais pela tradição e a sabedoria do passado e
encara o seu destino desprevenido de modelos de conduta.
O termo alemão para perplexidade é Ratlosigkeit, o qual significa justamente
“desaconselhado” ou “desorientado”. É significativo, para Benjamin, que o primeiro
grande personagem romanesco tenha sido Dom Quixote: “O primeiro grande livro do
gênero, Dom Quixote, já ensina como a grandeza de alma, a coragem e a generosidade
de um dos mais nobres heróis - de Dom Quixote, justamente - são totalmente refratárias
ao conselho e não contêm a menor centelha de sabedoria” (BENJAMIN, 2012, p. 218).
A dissensão entre as ilusões da imaginação de Dom Quixote e vida real é equiparável a
dissensão que existe entre a vida e o seu sentido no romance. O leitor de romances não é
aconselhado pelo autor e termina a história tão perplexo como os personagens que
acompanhara: “Com efeito, ‘o sentido da vida’ é o centro em torno do qual se
movimenta o romance. Mas essa questão não é outra coisa que a expressão da
perplexidade (Ratlosigkeit) do leitor quando mergulha na descrição dessa vida”
(BENJAMIN, 2012, p. 230). A metáfora de um mergulho sobre o universo fictício do
romance é perfeita para descrever o comportamento desse tipo de leitor, segundo

64
Benjamin. Chamava a atenção do filósofo a maneira como o leitor de romances pode se
encontrar profundamente imerso em seu livro. De fato, Benjamin descreve o
comportamento desse leitor como obsessivo: “o leitor do romance apodera-se da
matéria de sua leitura de uma maneira extremamente ciosa. Quer apropriar-se dela,
devorá-la, de certo modo. Sim, ele destrói, devora a substância lida, como o fogo devora
lenha na lareira” (BENJAMIN, 2012, p. 230). O leitor que deseja devorar a substância
lida é o mesmo que procura uma válvula de escape para os tormentos do cotidiano.
Diante das ameaças que a cidade apresenta ao habitante urbano, a possibilidade de
mergulhar em mundo fictício pode ser uma tentação preciosa demais para ser recusada.
Neste contexto, a leitura de romances pode ser considerada uma vivência (Erlebnis),
uma vez que tal atividade faz parte do conjunto de processos de contenção de choques
naturais ao citadino.
Existe ainda outro motivo para que a leitura de romances possa ser caracterizada
como uma vivência. As vivências podem ser definidas como modos de compreender a
nós mesmos e o mundo a nossa volta de um ponto de vista temporal, segundo o qual o
indivíduo ignora seus antecedentes culturais e elege a si mesmo como o único ponto de
referência para a compreensão do mundo à sua volta. Segundo a análise benjaminiana
em O narrador, a leitura de romances distingue-se do acompanhamento de uma
narrativa porque a primeira raramente culmina em um intercâmbio de experiências, isto
é, o leitor de romances não teria a propensão de reproduzir a história lida a um ouvinte.
A ouvinte da narrativa, ao contrário, torna-se sempre um narrador em potencial, pronto
a transmitir a história narrador. Mesmo o leitor de poemas, diz-nos Benjamin, ainda
preocupa-se em memorizar versos para recitá-los a um terceiro. A origem do romance,
porém, “é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas
preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los”
(BENJAMIN, 2012, p. 217). Vemos, então, que o romance, na visão de Benjamin em O
narrador, é produto de um processo de ensimesmamento do indivíduo que resulta de
sua desconexão da tradição transmitida de geração em geração.
3.2.b. A forma informativa
A terceira forma de comunicação a figurar em O Narrador, a informação é
descrita como também a forma predominante na época de Benjamin, tendo em vista que
o ensaio fora publicado em 1936. Segundo o filósofo, a informação adquire
independência em relação às outras formas de comunicação com a “consolidação da

65
burguesia”7 e com o estabelecimento de um dos “instrumentos mais importantes” 8 do
capitalismo, a imprensa. Pela referência à imprensa e uma referência subsequente ao
fundador do jornal francês Figaro, podemos imaginar que a informação possui um
vínculo estreito com a notícia jornalística. No entanto, como o próprio Benjamin não
associa necessariamente a informação à notícia de jornal, devemos admitir que o
filósofo concebeu um alcance mais amplo à essa forma de comunicação, ainda que não
a tenha explorado com minúcia em seus trabalhos. Ainda assim, o ensaio sobre o
narrador nos fornece algumas indicações precisas sobre como definir a informação,
passando justamente pelas diretrizes que havíamos definido no início do capítulo,
caracterizando a informação pela sua urgência de novidade e plausibilidade.
Ainda que Benjamin insista na necessidade da informação de apresentar novas
notícias9, informações sobre o que está acontecendo ou acabou de acontecer, o filósofo
constata não somente a urgência da informação por uma dimensão temporal próxima do
atual, de modo que os jornais, por exemplo, possam contar o nosso dia-a-dia enquanto
ele ainda transcorre, mas também a premência da informação pela proximidade
espacial, uma vez que as notícias de maior apelo seriam aquelas que ocorrem nas
localidades mais próximas ao convívio do receptor da informação. Benjamin retrata esta
peculiaridade da informação citando a fórmula do fundador do jornal Figaro:
Villemessant, o fundador do Figaro, caracterizou a essência da informação com
uma fórmula famosa: ‘Para meus leitores’, costumava dizer, ‘o incêndio num
sótão do Quartier Latin é mais importante que uma revolução em Madrid’. Essa
fórmula lapidar mostra claramente que o saber que vem de longe encontra hoje
menos ouvintes que a informação que forneça um ponto de apoio para o que
está próximo. O saber que vinha de longe - seja espacialmente, das terras
estranhas, ou temporalmente, da tradição - dispunha de uma autoridade que lhe
conferia validade, mesmo que não fosse subsumível ao controle.. A informação
aspira a uma verificação imediata (BENJAMIN, 2012, p. 218).
Havíamos visto no Capítulo 1 que os narradores eram depositários de um saber
das distâncias - sejam as distâncias temporais ou espaciais - e que o próprio conceito de
experiência, ou Erfahrung, continha em sua raiz etimológica, através do prefixo fahr-, a
ideia de atravessamento de distâncias. O ouvinte da narrativa era alguém que, ao mesmo

7
“verificamos que com a consolidação da burguesia - da qual a imprensa, no alto capitalismo, é um dos
instrumentos mais importantes - destacou-se uma forma de comunicação (...) Essa nova forma forma de
comunicação é a informação” (BENJAMIN, 2012, p. 218).
8
Idem
9
“A informação só tem valor no momento em que é nova” (BENJAMIN, 2012, p. 220)

66
tempo, possuía um vínculo tradicional com o narrador e com a história sendo contada e
um distanciamento em relação à origem da narrativa, que se situava em um ponto
longínquo temporal ou espacialmente. Deste modo, não era relevante para o ouvinte
perguntar-se sobre a veracidade da narrativa, de modo que o valor da mesma não estava
estreitamente atrelado à plausibilidade da história. No caso da informação, como
evidencia a passagem acima, as distância são comprimidas com o objetivo de tornar o
receptor cada vez mais próximo dos acontecimentos. Podemos inferir da afirmação de
Villemessant que o leitor parisiense do Figaro preferiria ser informado sobre um
acontecimento corriqueiro, o incêndio de um sótão, do que sobre um evento de grandes
proporções como uma revolução, caso a mesma acontecesse na Espanha e não nas
vizinhanças familiares de Paris.
Como a informação relata acontecimentos próximos temporalmente e
espacialmente de seu receptor, o mesmo passa a exercer algum controle sobre a história
contada. Isto porque o receptor da informação é sempre capaz ou se imagina capaz de
verificar a veracidade da notícia, isto é, de se dirigir até o Quartier Latin e averiguar os
indícios de incêndio. Esta ideia pode parecer-nos estranha em nossa época, uma vez que
aprendemos a conviver com uma imensidão de informações falsas, as quais raramente
chegam a ser verificadas pelos seus receptores. No entanto, devemos contrapor a
informação à narrativa, e notar que uma transformação se operou entre as duas formas
de comunicação. Enquanto que a narrativa, livre das amarras da verificação imediata,
concentrava-se nas histórias de eventos ricos em experiência, como o relato do rei
egípcio, a respeito do qual podemos retirar diversos ensinamentos, a informação extrai o
seu valor de sua proximidade com os eventos retratados. Como a informação paira sob o
crivo verificação imediata, esforça-se por ser precisa na descrição das circunstâncias em
que os fatos teriam ocorrido. Para Benjamin, no entanto, a precisão da informação pode
não passar de uma aparência, constituindo um elemento empobrecedor dos relatos
informativos: “A informação (...) precisa ser, antes de mais nada, ‘compreensível em si
e para si’. Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos. Mas enquanto esses
relatos recorriam frequentemente ao miraculoso, é indispensável que a informação soe
plausível” (BENJAMIN, 2012, p. 219).
Pertence a exigência de plausibilidade da informação a sua necessidade de
explicar os acontecimentos noticiados. Segundo Benjamin; “A cada manhã recebemos
notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A
razão para tal é que todos os fatos já nos chegam impregnados de explicações. Em

67
outras palavras: quase nada do que acontece é favorável à narrativa, e quase tudo
beneficia a informação” (BENJAMIN, 2012, p. 219). Havíamos visto que um dos
fatores que contribuia para a manutenção das cadeias de narrativas era o seu caráter
lacunar. Em primeiro lugar, a concisão das narrativas facilita o processo de
memorização do ouvinte que, um dia, voltará a narrar a mesma história. Em segundo
lugar, as narrativas nunca apresentam um final definitivo, permitindo ao ouvinte não só
continuar a história de onde o último narrador havia parado, mas também refletir sobre
as causas que definem os rumos da histórias, uma vez que as mesmas não são impostas
ao receptor da narrativa. Muito diferente é o caso da informação, a qual precisa
determinar com exatidão as causas para os eventos relatados. Nas palavras de Benjamin,
falta “amplitude” (BENJAMIN, 2012, p. 219) à informação, porque a mesma não
permite ao leitor imaginar a multiplicidade de rumos que a história poderia ter tomado e
a pluralidade de causas que podem ter sido determinantes para a concretização dos
eventos.

68
Conclusão

Com o comentário sobre a crise da narrativa e a ascensão do romance e da


informação, alcançamos o objetivo da presente monografia, que era apresentar a teoria
da narrativa oral em Walter Benjamin. Terminado o nosso percurso, podemos
compreender como “O narrador” realiza uma história das formas de comunicação:
passando da narrativa, que mimetizava o trabalho artesanal e fundamentava os laços
sociais das comunidades tradicionais, e culminando na preponderância moderna do
romance e da informação. Na verdade, Benjamin acredita que o romance e a informação
constituem como que estágios independentes da evolução das formas de comunicações,
e que a informação é tão ameaçadora ao romance quanto à narrativa. Segundo
Benjamin, a informação “é tão estranha à narrativa como o romance, mas é mais
ameaçadora que ele, e, de resto, provoca uma crise no próprio romance” (BENJAMIN,
2012, p. 218). Podemos imaginar, portanto, que a informação é a forma de comunicação
que melhor se adequa às condições materiais de existência na modernidade. Isto porque
a informação corresponde às demandas da memória voluntária, a qual deseja captar
apenas os dados necessários à resistência aos choques. A informação é a principal aliada
de um indivíduo contemporâneo forçado a viver em um cenário de constantes
mudanças. Nada melhor para caracterizar esse cenário do que a ilustre passagem de “O
narrador”: “Um geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos
encontrou-se desabrigada, numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto
as nuvens, e, debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões destruidoras,
o frágil e minúsculo corpo humano” (BENJAMIN, 2012, p. 214)
Ainda que o diagnóstico de Benjamin indique um momento de profunda crise da
narrativa, o ensaio sobre o narrador envisiona, não um retorno à narrativa tradicional,
mas a construção de uma nova espécie de narrativa, a qual pode ser precisada com mais
clareza em “Sobre alguns motivos em Baudelaire”. Neste ensaio, como vimos no
capítulo 1, Benjamin considera que a obra de Proust “pode ser lida como a tentativa de
reconstituir por via sintética a experiência (...) nas condições sociais de hoje - já que a
sua reconstituição por via natural é qualquer coisa com a qual cada vez menos
poderemos contar” (BENJAMIN, 2015b, p. 108). Logo, vemos que Benjamin não
despreza romances, mas clama por uma renovação do gênero, como a que posta em
prática por autores como Proust e Kafka. O que estes autores possuem em comum é a

69
maneira como expõem a fragilidade do indivíduo e sua subjetividade frente a forças
mais poderosas do que ele, sejam elas a rígida estrutura de castas da burguesia e nobreza
francesas nos romances proustianos, ou então as insanidades da burocracia estatal nas
histórias de Kafka. Mais importante, no entanto, é o modo como essas histórias exigem
uma postura ativa do leitor, o qual já não presenteado com um sentido fixo e
determinado, mas é estimulado a buscar suas próprias respostas às questões impostas
pelo enredo. É por meio destas empreitadas de vanguarda, e não por uma regressão
nostálgica à narrativa oral das comunidades tradicionais, que o espírito da narrativa se
mantém desperto, possibilitando uma nova espécie de correspondência entre o receptor
e o contador de histórias.

70
Bibliografia

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto


Alegre: L&PM, 2015a.

__________________. Baudelaire e a modernidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora,


2015b.

___________________. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e


história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012.

BUENO, Aparecida de Fátima. A história do rei egípcio em sucessivas vozes:


Heródoto, Montaigne e Walter Benjamin. Disponível em
http://www.cch.ufv.br/revista/pdfs/artigo7vol1-1.pdf. Visitado em 19/01/2017

FREUD, Sigmund. “Além do Princípio do Prazer” in Além do Princípio de Prazer,


Psicologia de Grupo e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo:


Perspectiva, 2013.

_______________________. Limiar, aura e rememoração. São Paulo: Editora 34,


2014.

HERÓDOTO. Livro III. In: História. 2ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1988.

LESKOV, Nikolai. A fraude e outras histórias. São Paulo: Editora 34, 2014.

MONTAIGNE. Ensaios. Rio de Janeiro: Otto Pierre Editores, 1980.

OLIVEIRA, Bernardo. Baudelaire, Benjamin e a arquitetura d’As Flores do mal.


Disponível em http://www.scielo.br/pdf/alea/v9n2/a07v09n2.pdf. Visitado em
19/01/2017.

___________________. Experiência e narrativa: entre contar e ler. Disponível em


http://dx.doi.org/10.17851/2179-8478.0.7.41-54. Visitado em 19/01/2017.

PROUST. No caminho de Swann. Rio de Janeiro: Globo, 1987.

71

Você também pode gostar