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Delírios noturnos

na balada dos desesperados -


de Raul Franco
Renato Andrade. Morador de Brasília:
cidade-concreto a lhe perturbar, a lhe socar a cara
certeiramente, no intuito de ir minando as forças,
como um sádico que prepara um velório, sendo
ele, o responsável pela morte.
Renato! Intelectual deprimido a falar de
urbanas sensações de abandono constante. Poeta
solto na aflição dos dias tempestuosos. Um
neo-romântico, desses que tomam conhaque em
copos de requeijão, ouvindo Morrissey e suas
questões existenciais: “Why do you come here /
When you know it makes things hard for me?/
When you know, oh / Why do you come?/ Why do
you telephone?”
Amargurado, ele escreve suas dores,
batucando numa Olivetti antiga, como que
pincelando um quadro a la Edvard Munch,
reinventando o grito assustador.
Brasília havia se tornado um peso nos
ombros. Lembranças de amores desprezados, de
silêncios guardados em guardanapos sujos em
mesa de bar. Ele não pertencia mais àquela
cidade. Era hora de aproveitar a sensação de
desconforto e partir, sem deixar bilhetes ou pistas
que recriassem seu caminho.
Foi isso que fez. Um dia, de repente,
abandonou Brasília e zarpou para o Rio de Janeiro.
Escolheu a rua Nascimento Silva, no bairro de
Ipanema. Nascimento Silva! Nome propício para a
sua ânsia: um novo nascimento, já que em Brasília
ele andava se sentindo um cadáver perambulando
com as suas cicatrizes de guerra. Nascimento! Era
isso que precisava.
Da janela do quinto andar, ele avistou o mar.
E sorriu, acreditando que ele também seria parte
fundamental no seu processo de cura.
Mas depois de dias no Rio de Janeiro, a dor
continuava. Apenas havia mudado de Estado. E
nem o mar, antes visto com olhos de esperança,
conseguia extrair dos lábios murchos um sorriso
que exaltasse a vida. Renato começava a sentir
medo. E em noites de insônia, projetava imagens
na parede do quarto, como que recriando a
atmosfera caótica de um filme de Pasolini.
A morte vicia e Renato continua parado. A
lamparina do silêncio não ilumina os seus lábios
que permanecem travados - lábios que emolduram
palavras nunca ditas. O mar, ao longe, como um
horizonte perdido, não batiza mais o corpo magro,
debilitado pelos dias de solidão. O mar,
paulatinamente, torna-se uma miragem aos olhos
de Renato. Mais uma, entre tantas.
A vida já é uma cálida esperança no seu
rosto. Nos braços abertos a vontade de partir ou de
ser Cristo a olhar a cidade do alto, como que
protegendo os seres da dor de existir no meio do
fogo cruzado de um sobreviver desesperado.
A morte duela com a vida e o papel registra
aflições. No coração, um anzol fisga a angústia.
Renato nada mais tem, além de uma certeza
cruel, enfeitando os seus tristes dias, maltratando a
sua alma de poeta que espera a morte como a
única porta capaz de ser aberta.
Renato está nu diante do espelho da
vergonha. O corpo é magro, quase uma estátua
sem brilho, parada, diante da janela que convida
para saltos sem volta.
Silêncio! Um medo! Um respiro! Nascimento
Silva! Nascimento Silva! Ele precisa acreditar
nisso. Nascer e não morrer. Ser um Silva qualquer
a sobreviver, depois de murros em pontas de faca.
Sobreviver! Sobreviver! Nascimento Silva!
Nascimento Silva!
Mas depois do silêncio, o alvoroço interno.
Renato coloca na cintura um revólver calibre 22.
Tenta demonstrar bravura neste duelo insólito. Ela
chegará como um vendaval. E nada trará, além das
longas mãos brancas, escondendo obscuras
certezas.
Na verdade, ela já estava ali, mesmo sem ter
sido convidada. E Renato a fitava com a coragem
nutrida pelo hálito das manhãs em que bebia
poesia com longas doses de cointreau.
Ele a fitava! Ela nem sequer estremecia ou
titubeava diante da sua presença insignificante.
Por um instante, Renato parecia tremer. Foi aí
que tentou acender uma vela para acordar o
coração ateu.
A vela apresentava-se como um fio de luz no
meio da escuridão deste duelo. Ele não sacava o
revólver nem olhava para o relógio. Permanecia
imóvel.
Ela sorria e fumava charutos negros. Ou
melhor, nem sorria, gargalhava alto, assustando a
coragem que dormia no sofá da sala ao lado de
uma remota crença na humanidade.
Ele tremia cada vez mais. Derramava no chão
o resto de cointreau da noite anterior sobre os
lençóis de um medo antigo. E suava assustado,
banhando a testa franzida. E logo imaginava o mar
entrando em seu apartamento, invadindo o espaço
privado. E aquele mar, que antes parecia
simbolizar a liberdade, agora era mais um símbolo
opressor. E nos seus devaneios mais loucos, o mar
o engolia como se ele fosse simplesmente um
barco à deriva, sugado pela incerteza dos
caminhos.
- Nascimento Silva! Nascimento Silva! - ele
repetia, quase como uma oração, um mantra que
pudesse servir de escudo contra o seu próprio
delírio. Mas nada parecia lhe salvar. Os seus
olhos estavam vermelhos como os cabelos da
dama soturna que o olhava sem nenhuma sombra
de receio ou desejo de fugir daquele quarto.
Agora, já não havia deboche ou o cinismo de
Renato, duelando com a frieza do mundo. Havia,
sim, línguas de fumaça lambendo a cortina azul.
O vento do indecifrável derrubou a vela que
nada acordou, apenas ornamentou o temor da
alma.
O vermelho do cabelo se misturou com o
laranja do fogo. O azul da cortina, cinza ficou. As
mãos brancas, já eram transparentes. E entre
cores diferentes, antitéticas, cores que revelavam
sentimentos opostos, ele já não sabia se queria ir
ou ficar, matar ou morrer, sorrir ou chorar. Ele já
não sabia nada. E o barulho de uma tempestade
inesperada começava a ocupar as lacunas do
silêncio.
Ela cruzava as pernas, seduzia, provocava
desejo e cegava o jovem rapaz que há pouco
tempo dizia que o mundo estava apenas
começando.
Renato queria se vestir com as cortinas em
fogo, despindo-se de sua última roupa - o que não
era tão fácil assim.
Pelo chão, o livro de Lao-Tsé também era
consumido pelo fogaréu. Um vento começava a
soprar aflitamente, folheando as páginas de uma
Bíblia que se encontrava em cima da mesa. A
tempestade já se tornava evidente.
Ele já não conseguia disfarçar a aflição. E a
dama já não gargalhava, orava como que
preparando o corpo de Renato para o sacrifício
final.
O calor do corpo e o calor do fogo se fundiam,
como kamikazes doentios, aquecendo o medo,
para que ele fecunde o cinza da história.
De repente, no meio da vertigem da
madrugada, Renato consegue abrir os olhos e
apagar da mente aquela imagem da dama
segurando uma taça de cristal e gargalhando como
se estivesse num bordel.
Ele acorda e o suor frio sacode as lembranças
suicidas. Ele acorda! Anda pela sala, cansado,
como se tivesse sido sugado por uma força
estranha. Ele caminha como quem ressuscita e
passa a perceber a vida de uma outra maneira, não
mais obscura, não mais tenebrosa.
Nas pálpebras cansadas a certeza de uma
nova possibilidade de compreensão de um tempo
em que o tropeço foi inevitável. Ainda tonto, ele
caminha, como se procurasse romper a faixa de
chegada a um mundo novo.
Ele caminha, esquecendo de olhar atrás das
portas - em uma delas ainda se encontra a dama,
solitária e machucada pela coragem nascida da
abertura dos olhos que ousaram acordar.
A dama está ali. E por muito tempo ainda
ficará, à espreita, esperando a fragilidade de
Renato para que possa atacar. Por enquanto, ela
está bêbada e Renato acordado.

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