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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE – UFF

INSTITUTO DE HISTÓRIA - IHT

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

VIVIANE PRADO BEZERRA

“O MUNDO TAMBÉM ERA PARA NÓS”: CAMPONESAS DIZEM DE SUA VIDA E


TRABALHO NO MOVIMENTO DO DIA DO SENHOR EM SOBRAL – CE.

(1970-1990)

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-


graduação em História da Universidade Federal
Fluminense (PPGH-UFF), como requisito para a obtenção
do Grau de Doutora em História.

Orientadora: Profa. Dra. Samantha Viz Quadrat

NITERÓI
2020
VIVIANE PRADO BEZERRA

“O MUNDO TAMBÉM ERA PARA NÓS”: CAMPONESAS DIZEM DE SUA VIDA E


TRABALHO NO MOVIMENTO DO DIA DO SENHOR EM SOBRAL – CE. (1970-
1990)

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-


graduação em História da Universidade Federal
Fluminense (PPGH-UFF), como requisito para a obtenção
do Grau de Doutora em História.

Aprovada em: _____ / _____ / _____

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Samantha Viz Quadrat


Universidade Federal Fluminense (UFF)
(Orientadora)

Profa. Dra. Ana Maria Mauad


Universidade Federal Fluminense (UFF)

Profa. Dra. Maria Paula Araújo


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Profa. Dr. Larissa Correa


Universidade Pontifícia Católica (PUC-RJ)

Profa. Dra. Adelaide Maria Gonçalves Pereira


Universidade Federal do Ceará (UFC)

NITERÓI
2020
Aos meus pais:

Francisco Vilemar Albuquerque Bezerra (In Memoriam) e


Maria Auxiliadora Prado Bezerra, por toda uma vida de
trabalho, amor, esperança e dedicação por mim.

Às camponesas do Movimento do Dia do Senhor, que são


as protagonistas dessa pesquisa, pela coragem de lutar e
pelo sonho de viver.
AGRADECIMENTOS

Ao longo do percurso de uma pesquisa como essa sobre o Movimento do Dia do


Senhor e o protagonismo das camponesas faz-se necessário agradecer muitas pessoas e
instituições que contribuíram prestando informações, documentos escritos, fotografias,
memórias, expectativas e afetos que foram minuciosamente sistematizados no decorrer da
escrita dessa tese.

Primeiramente, agradeço às coordenadoras do Programa de Doutorado


Interinstitucional entre a Universidade Federal Fluminense – UFF e a Universidade Regional
do Cariri - URCA: Giselle Venâncio, Verônica Secretto e Sônia Meneses, pela iniciativa de
criação desse Dinter e pela competência e sensibilidade com que trataram as especificidades
desse programa, oportunizando a formação, com excelência, de quinze novos doutores para
atuarem tanto nas universidades, quanto na educação básica do estado do Ceará. Também,
agradeço aos professores (as) do Programa de Pós-Graduação em História da UFF,
principalmente, àqueles que estiveram envolvidos mais de perto com o nosso Dinter,
ministrando aulas nos primeiros semestres do curso, na URCA, como Rodrigo Bentes, Giselle
Venâncio, Carlos Addor, Ana Mauad, Mário Grynszpan e Smênia Martins, com os quais pude
ter um profícuo aprendizado. Agradeço também as professoras Verônica Secretto, Regina
Celestino, Georgina Santos e Elisa Garcia pela partilha de conhecimentos quando ministraram
aulas durante nosso estágio na própria UFF.

Agradeço também às professoras Maria Paula Araújo e Junielle Rabelo pela gentil
leitura do meu texto e pelas valiosas contribuições no momento da Qualificação. Assim, como
agradeço de antemão, o aceite das professoras convidadas para a banca de Defesa: Ana Maria
Mauad, Larissa Correa, Maria Paula Araújo e Adelaide Gonçalves. Sinto-me honrada.

Meu sincero agradecimento a minha orientadora, Samantha Viz Quadrat, pela


prontidão em aceitar a orientação de minha pesquisa, como também, pela competência e
leveza com que conduziu a orientação que, mesmo à distância e permeada por intempéries,
como o falecimento de meu pai, não me deixou perder o foco, ao mesmo tempo em que soube
respeitar o meu próprio tempo. Registro aqui o meu reconhecimento, admiração e carinho.

Agradeço imensamente a religiosa Maria Alice MacCabe, pelas entrevistas concedidas


e por ter me confiado toda a documentação sobre os Encontros de Esposas, que no momento
da pesquisa se encontrava cuidadosamente organizada em diversas pastas, datadas de 1969 a
1996 e separadas por temas como: Relatórios dos encontros anuais, Cartas Comunitárias
referente a cada camponesa participante, transcrição de entrevistas realizada pela equipe do
Movimento com algumas camponesas, entre outros documentos. Lembro-me da emoção em
conseguir o acesso a esse acervo que, me foi permitido levar para casa e passar dias
debruçada, lendo, fotografando e me encantando com as histórias das mulheres que descobria
ali. Muito obrigada pela confiança Maria Alice. Mesma confiança que recebi do padre Albani
Linhares quando, ainda em 2004, o mesmo me abriu as portas de sua casa para que eu pudesse
pesquisar o Arquivo do Movimento, inclusive, me presenteando com uma chave da casa.

Hoje tanto o arquivo do Movimento quanto o acervo sobre os Encontros de Esposas


estão arquivados em uma sala, na Diocese de Sobral, a quem agradeço na pessoa dos
funcionários Luciano e dona Zuleica, pela gentileza e presteza em me fornecer o acesso aos
documentos todas as vezes que precisei rever algum dado.

Agradeço a Ana Rosa Ferreira da Silveira, filha de Rita de Cássia, já falecida, mas que
foi uma das camponesas mais atuantes no Movimento e fundadora da Associação de Mulheres
Rendeiras de Bilro de Juritianha. Ana Rosa me concedeu entrevista, como também,
intermediou para que eu entrevistasse seu pai Bernardo Ferreira e sua tia, Joana Maria de
Sousa Silva. Além disso, emprestou documentos referentes à Associação, como o Livro de
Atas e o Livro de Prestação de Contas, os quais também pude trazer para casa, lê e fotografar
com calma. Também agradeço pela confiança.

Agradeço aos entrevistados Antônio Pires, Bernardo Ferreira, Francisco Alexandre e


Luís Gonzaga que, na condição de esposos e participantes do Movimento puderam contribuir
com suas impressões sobre o papel das mulheres na vida doméstica, no Movimento do Dia do
Senhor e na questão da luta pela terra, o que conferiu uma perspectiva de gênero a essa
pesquisa. Um agradecimento especial para Antônio Pires que, desde a pesquisa para o
mestrado, tem se mostrado sempre disponível para me esclarecer dúvidas e me auxiliar nos
contatos com outros integrantes do Movimento, algumas vezes, viajando comigo pelas
comunidades rurais para a realização das entrevistas.

Agradeço, de todo coração, a todas as camponesas entrevistadas por terem me


confiado suas histórias de vida e de trabalho, inclusive, sua intimidade conjugal. Agradeço
pelo privilégio de conhecer e de ouvir Rita de Cássia, Rosa Marques, Rosa Pires, Fausta
Marques, Elita, Irismar, Joana Maria, Antônia, Terezinha, Socorro, Toinzinha, mulheres que
se fizeram protagonistas no Movimento do Dia do Senhor e nos Grupos de Esposas, como
também, nas páginas dessa pesquisa evidenciando que o mundo também era para elas.
Infelizmente, não conheci Nazaré Flor, a camponesa mais citada em todas as entrevistas. No
entanto, pude conhecer sua força e alcançar sua memória pelas entrevistas realizadas por
Maria Alice MacCabe, que tive acesso.

Meu afetuoso agradecimento colegas de turma do Dinter: Airton, Fagno, Helonis,


Raimundo, Marcos, Jucieldo, Carlos Rafael, Priscilla, Daniele, Simone, Jaqueline, Sandra
Nancy, Rúbia Micheline e Fatima Pinho. Destaco aqui Airton de Farias e Fagno Soares, com
quem convivi mais de perto durante o período de aulas na URCA. Obrigada por nossas
conversas no caminho de ida e de volta para a universidade, compartilhando teorias e
amenidades. Também destaco Carlos Rafael, Rúbia, Helonis, Simone e Fátima, com quem
convivi durante o estágio em Niterói, dividindo apartamento, alegrias e angústias com relação
às nossas pesquisas. São amigos que levarei para a vida toda.

Agradeço aos professores do colegiado do curso de História da Universidade Estadual


Vale do Acaraú – UVA, do qual tenho a satisfação de fazer parte, pela compreensão e
disponibilidades de todos nos momentos que precisei trocar dias de aula e me ausentar para
realizar o estágio na UFF, em Niterói.

Meu muito obrigada a amiga Josefa Nunes e seu esposo Nilton, por terem me acolhido
em sua casa, quando precisei me hospedar no Cariri para assistir as aulas do doutorado, onde
vivenciei momentos muito agradáveis junto com sua família. Estão guardados no meu
coração.

Agradeço aos amigos e amigas de fora da universidade, mas que de perto ou de longe,
acompanham e torcem pelas minhas conquistas acadêmicas e pessoais. A Igor Alves Moreira,
todo meu carinho e agradecimento por ser meu amigo fiel, fazendo às vezes de motorista e
confidente, todas as vezes que precisei me embrenhar no meio rural para fazer entrevistas para
essa pesquisa.

A minha mãe, Maria Auxiliadora; minha irmã, Vanessa; meu cunhado, José Aguiar e
meu sobrinho, João todo o meu amor e agradecimento por serem minha fortaleza e meu porto
seguro. Ao meu pai, Vilemar, in memoria, agradeço pelo amor, dedicação e estímulo, sempre
torcendo para que eu realizasse o sonho de ser doutora e professora universitária. Sei que,
mesmo de outro plano, ele ficará muito feliz por mim. Como devota, agradeço ao Divino
Espírito Santo pela força e iluminação no percurso de escrita dessa tese.
RESUMO

Esta pesquisa tem como objeto de estudo as memórias e histórias de vida e de trabalho das
camponesas que compunham os Encontros de Esposas do Movimento do Dia do Senhor, que
se desenvolveu nas dioceses de Sobral e de Itapipoca, na zona Norte e Noroeste do estado do
Ceará, durante as décadas de 1970 a 1990. Através da análise dos documentos escritos, tais
como: Relatórios dos Encontros de Esposas Anuais, Cartas Comunitárias, Livro de Atas e
Livro de Contas da Associação de Mulheres Rendeiras de Bilros de Juritianha, bem como, da
análise de diversas entrevistas orais foi possível perscrutar a memória escrita e oral produzida
por mulheres pobres, camponesas, autodidatas que se fizeram protagonistas desse Movimento.
Com essa vasta documentação pôde-se vislumbrar a atuação dessas mulheres nas diversas
esferas de suas vidas, desde a esfera do cotidiano, passando pelo mundo do trabalho feminino
no campo, como pela forte atuação das camponesas na luta pela terra. Para a análise dos
conflitos de terras, fez-se utilização dos documentos de desapropriação das terras em litígio,
referentes ao Assentamento Maceió, em Itapipoca e ao Assentamento Lagoa do Mineiro, em
Itarema, arquivadas na sede do INCRA, em Fortaleza - CE. A dimensão da sexualidade e as
tensões presentes nas relações de gênero, tanto no interior do Movimento do Dia do Senhor,
como no interior dos seus casamentos também se tornou evidente, principalmente, nas
narrativas orais analisadas. Portanto, na experiência desse Movimento, a partir das vivências
durante os Encontros de Esposas, espaço, por excelência, do feminino, constatou-se que
muitas dessas mulheres encontraram sua voz, transformaram-se e demarcaram um espaço de
ação dentro e fora do Movimento, como em suas comunidades, nas Associações, nos
Sindicatos, na luta pela terra e por melhores condições de trabalho, assim como, em suas
casas e em seus casamentos, ao passo que conquistaram o respeito e a admiração de muitos
dos camponeses que também protagonizavam o Dia do Senhor.

Palavras-Chave: História das Mulheres, Gênero, Memória, Trabalho, Camponesas. Brasil.


Nordeste.
ABSTRACT

The analysis of written documents, such as: Annual Wives Meetings Reports, Community
Letters, Minutes Book and Account Book of the Association of Women Lacemakers of Bilros
de Juritianha, as well as, from the analysis of several oral interviews, it was possible to
examine the written and oral memory produced by poor, peasant women, mostly illiterates
who became protagonists of this Movement. With this vast documentation, it was possible to
glimpse the performance of these women in the various spheres of their lives, from the sphere
of daily life, through the world of female labor in the countryside, as well as the strong
performance of peasants in the struggle for land. The dimension of sexuality and the tensions
present in gender relations, both within the Movement of the Lord's Day and within their
marriages, also became evident, mainly in the analyzed oral narratives. Therefore, in the
experience of this Movement, from the experiences during the Encounters of Wives, space,
par excellence, of the female, it was found that these women found their voice, were
transformed and demarcated a space of action inside and outside the Movement, as in their
communities, in Associations, in Trade Unions, in the struggle for land and for better working
conditions, as well as in their homes and in their marriages, while they won the respect and
admiration of many of the peasants who also starred in the Lord's day.

Keywords: Women's History, Gender, Memory, Work, Peasants. Brazil. Northeast.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Foto de Rita de Cássia de Sousa Ferreira, fundadora da Associação Comunitária das
Mulheres de Rendeiras de Bilros de Juritianha. ....................................................... 149
Figura 2 Foto da antiga Associação Comunitária das Mulheres Rendeiras de Bilros de
Juritianha ................................................................................................................ 150
Figura 3 Foto da atual Associação Comunitária das Mulheres Rendeiras de Bilros de
Juritianha ................................................................................................................ 150
Figura 4 INCRA - Croqui de situação. Projeto Assentamento Maceió. Itapipoca – Ceará ... 177
Figura 5 Cartão fúnebre de João Araújo Barros ..................................................................... 185
Figura 6 MDA – INCRA - Projetos de Reforma Agrária Conforme fases de Implementação.
Projeto de Assentamento Lagoa do Mineiro / Projeto de Assentamento Maceió .................. 195
Figura 7 MDA – INCRA - Projetos de Reforma Agrária Conforme Fases de
Implementação. Projeto de Assentamento Várzea do Mundaú ............................. 196
Figura 8 Nazaré Flor em cena do filme 'Terra de Nazaré' ...................................................... 256
LISTA DE SIGLAS

ABI Associação Brasileira de Imprensa

ADELCO Associação para Desenvolvimento Local Co-produzido

AMDS Associação das Mulheres do Dia do Senhor

ARENA Aliança Renovadora Nacional

ASSOCIARTE Associação de Artesãos do Nordeste

BNB Banco do Nordeste do Brasil

CDMB Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira

CEART Central de Artesanato do Ceará

CEBs Comunidades Eclesiais de Base

CETRA Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador

CETRESO Centro de Treinamento da Diocese de Sobral

CMB Centro da Mulher Brasileira

CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

COPAIM Cooperativa de Produção Agropecuária e Comercialização do Imóvel


Maceió

COPAVA Cooperativa dos Produtores Artesanais do Vale do Acaraú Ltda.

DOPS Departamento de Ordem Policial e Social

FUNCEME Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

JOC Juventude Operária Católica

MDB Movimento Democrático Brasileiro

MEB Movimento de Educação de Base


MMC Movimento de Mulheres Camponesas

MTR Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste

ONU Organização das Nações Unidas

PDS Partido Democrático Social

PDT Partido Democrático Trabalhista

PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro

PT Partido dos Trabalhadores

PTB Partido Trabalhista Brasileiro

SEBRAE Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas

SORPE Serviço de Orientação Rural de Pernambuco

SPH Serviço de Promoção Humana

SUDENE Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste


SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................................. 16

1. Encontros de Esposas do Dia do Senhor: lugar de afirmação do feminino no


Movimento .................................................................................................................... 32
1.1. Arquivo do Dia do Senhor: lugar de existência e resistência das mulheres do
campo........................ ................................................................................................. 48
1.2. ―Não precisa saber lê nem escrever, basta trazer a cabeça no lugar‖: Encontros de
Esposas no percurso dos Relatórios ........................................................................... 64
1.3. Encontros de Esposas: reorganização e ampliação a partir da década de 1970 ......... 79

2. ―Eu sei que a gente tem uma história muito grande pra contar‖ - Mundos do trabalho
feminino ........................................................................................................................ 93
2.1. ―A gente já cresceu foi trabalhando‖: uma vida de trabalho no campo ..................... 93
2.2. ―Quando a mulher sai do mundo da cozinha dela e começa a participar das coisas,
então ela começa a ver o mundo diferente‖: trabalho pastoral e atuação política das
camponesas do Dia do Senhor.................................................................................. 111
2.3. ―RENDEIRAS DE JURITIANHA NA LUTA!‖ A Associação Comunitária das
Mulheres Rendeiras de Bilro de Juritianha .............................................................. 129

3. Conflitos de terra e protagonismo feminino ............................................................... 151


3.1. ―A reforma Agrária é questão de sobrevivência‖: organização sindical e luta pela
terra dos camponeses e das camponesas do Movimento do Dia do Senhor............. 151
3.2. ―... A desapropriação desta terra foi graças às mulheres‖: conquista do território e
formação do Assentamento Maceió ......................................................................... 160
3.3. ―As mulher era quem primeiro chegava‖: luta e conquista da terra do Assentamento
Lagoa do Mineiro. .................................................................................................... 177
3.4. ―As mulheres, em ciranda, iam na frente e, se precisasse, os homens iam atrás‖: a
luta pela terra de Salgado do Nicolau, em Trairi – CE............................................. 186

4. Relações de gênero e sexualidade: ―a Última Fronteira‖. .......................................... 196


4.1. ―...não era pra pegar nem na mão‖: namoros, casamentos e sexualidade no campo 197
4.2. ―A primeira vez que achei minha voz foi aqui‖: os Encontros de Esposas e seu
programa para a questão da sexualidade .................................................................. 214
4.3. ―... homem, é homem, sabe?‖: a autonomia feminina sob os olhares do masculino 234

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 253

6. FONTES ..................................................................................................................... 257


6.1. Fontes Orais .............................................................................................................. 257
6.2. Fontes Escritas .......................................................................................................... 258

7. SITES CONSULTADOS ........................................................................................... 259

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 260


9. ANEXOS ................................................................................................................... 265
16

Introdução

A cidade de Sobral está situada na região noroeste do estado do Ceará, com


aproximadamente 240 Km de distância de Fortaleza, capital do estado. Atualmente, apresenta
uma população estimada em 205.529 habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística - IBGE de 20171. Tal cidade teve seu conjunto arquitetônico e
urbanístico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN no
ano de 20002. Foi em Sobral que se comprovou parte da teoria da relatividade de Albert
Einstein, o que lhe rendeu a construção do Museu do Eclipse no ano de 1999, no exato lugar
onde foi observado o eclipse de 1919 pela comissão científica de Einstein. Tal fato fez com
que Sobral se tornasse conhecida tanto nacionalmente, como internacionalmente.
A diocese de Sobral foi criada em 1915, sendo o sobralense Dom José Tupinambá da
Frota nomeado o primeiro bispo diocesano em 1916, permanecendo no cargo até 1959, ano de
seu falecimento. De acordo com a historiografia3, Dom José teve grande influência na vida
religiosa e política da cidade. Durante seu bispado obras importantes foram arquitetadas com
o intuito de atribuir ares de modernidade à cidade, como a construção da Santa Casa de
Misericórdia, do Seminário Diocesano, dos colégios católicos Sant‘Anna e Sobralense,
destinados à formação dos filhos das classes abastadas da cidade, sendo o primeiro voltado
para educação feminina e o segundo, para a masculina. O Arco do Triunfo datado de 1953,
construído devido à visita da imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima a Sobral também
se deve a iniciativa do referido bispo. Por tantas obras, consideradas ―benfeitorias‖ para a
cidade, Dom José é considerado o ―segundo fundador de Sobral‖.
Sobral é considerada uma cidade com traços conservadores, sendo que muito desse
conservadorismo é atribuído aos impactos do bispado de Dom José e à sua influência
personalista. Foi esse bispo quem criou também o jornal Correio da Semana, um semanário

1
Cf.: https://www.ibge.gov.br Acesso em: 28 jan. 2019.
2
Cf.: https://www.iphan.gov.br Acesso em: 28 jan. 2019.
3
De acordo com o historiador Agenor Soares e Silva Junior, a interferência de Dom José na cidade de Sobral era
parte de um projeto maior vinculado aos interesses de revitalização da fé católica que projetava um ideal de
―romanização‖ atrelado ao controle religioso, político e social da Igreja. Nesse sentido o ―pensamento
europeizante de Dom José trazia a imagem e o anseio dos papas, empreendendo a filosofia de leão XIII; a
transformação da sociedade, na sua visão, deveria ter como base a caridade, a filantropia e o amor piedoso,
aceitando que o poder civil, considerado como tal, era de Deus. Ao trabalhar pelo crescimento da diocese,
exerceu o papel de administrador da cidade, segundo alguns, ‗governador de Sobral‘[...]. Com uma política de
organização dos espaços urbanos, mostrava uma visão expansionista de obras edificadas e serviços em prol da
sociedade local‖. Cf.: SILVA JUNIOR, Agenor Soares. Cidades sagradas. Da ―Roma cearense‖ à ―Jerusalém
sertaneja‖: a Igreja Católica e o desenvolvimento urbano no Ceará (1870-1920). Sobral e Juazeiro do Norte.
Fortaleza/Sobral: Edições ECOA, 2015. pp. 262-263.
17

local, que circula, ininterruptamente, desde 1918 até os dias atuais. Tal jornal fazia parte de
projeto católico modernizador para a cidade, como também, representava o arauto da moral e
dos bons costumes pregados pelos quadros da diocese que o produzia e financiava. A diocese
de Sobral estava em completa sintonia com as orientações modernizadoras advindas do
Vaticano, o que fazia com que os bispos assumissem um compromisso com os rumos da fé,
educação, cultura e progresso das dioceses recém-criadas. Portanto, Dom José Tupinambá da
Frota deve ser compreendido como um homem e um religioso do seu tempo.
Contrapondo-se ao conservadorismo e à pompa religiosa encarnada por Dom José,
apresenta-se o terceiro bispo de Sobral4, Dom Walfrido Teixeira Vieira, de origem baiana e
que assumiu a diocese em 1965, permanecendo até 1998, quando renunciou e se tornou bispo
emérito, vindo a falecer no ano de 2001. Seu longo bispado foi marcado por uma postura
pastoral considerada ―moderada‖, tendo em vista, a alternativa conciliadora entre uma igreja
renovada pós-concílio Vaticano II (1962-1965), com ares progressistas, caracterizada pela
―opção preferencial pelos pobres‖ e o momento político ditatorial (1964-1985) que marcou o
Brasil durante sua atuação como bispo.
Compreende-se que Dom Walfrido desenvolveu uma postura moderada porque foi
durante o seu bispado que a diocese de Sobral viu o alvorecer dos movimentos de base da
Igreja Católica, com ampla participação do laicato, configurando uma reorganização da Igreja
de Sobral, pois uma parte da diocese se aproximava cada vez mais das classes populares e se
distanciava do rito e da pompa característicos da hierarquia religiosa. Dessa forma, Dom
Walfrido acolhia em sua diocese os princípios advindos do Concílio Vaticano II e
aprofundados pelas Conferencias Episcopais de Medellin (1968) e de Puebla (1979). No
entanto, se por um lado, o referido bispo era aberto aos ventos conciliares, por outro, não se
indispunha com o regime militar vigente. Mesmo em momentos de tensão, quando os
movimentos de base foram alvo de fiscalização e censura, Dom Walfrido manteve uma
relação diplomática com os militares. Nem se chocava com a ditadura, nem capitulava a ela.
Nas palavras de Padre Albani Linhares, o fundador do Movimento do Dia do Senhor:

Dom Walfrido era muito mais pra lá do que pra cá, quer dizer, era muito mais pra
socialismo do que pra ditadura. Dom Walfrido deu muita força a todos esses
movimentos, sabendo do que podia ser e ele dava força. Então como a posição dele

4
Ressalta-se que o segundo bispo de Sobral foi o pernambucano João José da Mota e Albuquerque. Dom Mota
foi nomeado bispo de Sobral pelo Papa João XXIII, tomando posse dessa diocese no dia 21 de maio de 1961.
Seu bispado durou até 15 de julho de 1964, quando foi designado para a Arquidiocese de São Luís, Maranhão.
Apesar do curto período na diocese de Sobral, Dom Mota participou do Concílio Vaticano II, o que teve um bom
acolhimento durante seu bispado.
18

era essa, mais pra frente do que pra trás, os padres que eram pra trás mesmo, num
tiveram, num tinham muita... eram poucos e tinham pouca influência. Os padres do
meio termo ficavam zanzando pra lá e pra cá sem, sem [...] quer dizer, não tivemos
brigas internas no clero por causa disso, de jeito nenhum [...]. 5

Principalmente, dois movimentos de base marcaram todo o bispado de Dom Walfrido,


os quais se desenvolveram com total apoio do mesmo. São eles: o Movimento de Educação de
Base – MEB/Sobral6 e o Movimento do Dia do Senhor, talvez a primeira e única Comunidade
Eclesial de Base da região norte e noroeste do Ceará. Naquele momento, as CEBs surgiam
como expressão máxima da força dos oprimidos, que se congregavam em torno da ―comum
união‖ amparados pela nova eclesiologia católica característica da Teologia da Libertação,
que mesclava fé e política. Nas CEBs, procurava-se viver segundo o evangelho de cristo, no
entanto, tornaram-se o principal espaço de contestação das injustiças sociais ocasionadas pelo
capitalismo e imperialismo vigente. Segundo Frei Betto, em seu livro O que é Comunidade
Eclesial de Base:

As comunidades eclesiais de base (CEB) são pequenos grupos organizados


em torno de uma paróquia (urbana) ou da capela (rural), por iniciativa de
leigos, padres ou bispos. As primeiras surgiram por volta de 1960, em Nísia
Floresta, arquidiocese Natal, segundo alguns pesquisadores, ou em Volta
Redonda segundo outros. De natureza religiosa e caráter pastoral, as CEB
podem ter dez, vinte ou cinqüenta membros. [...] São comunidades, porque
reúnem pessoas que têm a mesma fé, pertencem a mesma Igreja essas
pessoas vivem uma comumunião em torno de seus problemas de
sobrevivência, de moradia, de lutas por melhores condições de vida e de
anseios e esperanças libertadoras. São eclesiais, porque congregadas na
Igreja, como núcleos básicos de comunidade de fé. De base, porque são
integradas por pessoas que trabalham com as próprias mãos (classes
populares). 7

Durante o período ditatorial, a cidade de Sobral não passou despercebida aos olhos da
repressão. Tanto o MEB como o Movimento do Dia do Senhor foram constantemente
vigiados, tanto pela polícia local quanto pela polícia federal. Nos anos de 1960 o

5
Entrevista realizada com padre Albani Linhares no dia 20 de setembro de 2003, em Sobral, Ceará. (Arquivo da
autora). É importante salientar que todas as entrevistas utilizadas nessa pesquisa não se encontram de acordo
com a norma culta, pois foram transcritas respeitando os elementos identitários e culturais dos entrevistados.
6
Vale ressaltar que o MEB foi um acordo firmado em 21 de março de 1961, pelo decreto n. 50.370, no qual se
estabelecia convênio entre o MEC e a CNBB dispondo a realização de um programa educacional, via Emissoras
Católicas, voltados para a alfabetização das populações rurais das regiões Norte, Nordeste e Centro Oeste do
país. Inseria-se na política desenvolvimentista do período. Sua metodologia de alfabetização era formulada pelo
educador Paulo Freire.
7
BETTO, Frei. O que é Comunidade Eclesial de Base. São Paulo: Abril, 1985, p.16-17.
19

MEB/Sobral, seguindo o modelo do MEB nacional, desenvolvia-se através de aulas


radiofônicas, transmitidas pela rádio Educadora do Nordeste, de concessão da diocese. Para
tanto, o MEB mantinha um programa radiofônico denominado Encontro com o MEB. Durante
um período da ditadura, os roteiros desse programa foram fiscalizados pela polícia local, só
podendo ir ao ar depois de carimbados pelo delegado, conforme relato dos entrevistados.
Supõe-se que essa censura aos roteiros do programa do MEB seja referente aos
primeiros anos do regime ditatorial, pois segundo os próprios entrevistados, com o decorrer
do tempo, o programa passou a ser realizado sem um roteiro prévio. É importante situar que
tanto o MEB nacional como suas células estaduais e municipais foram intensamente
ameaçados depois do golpe civil-militar de 1964 por serem associados a uma ideologia
subversiva, pois desenvolviam um método de alfabetização de adultos baseado nas ―palavras
geradoras‖, desenvolvido pelo educador Paulo Freire. Tal método alfabetizava e, também,
ajudava no processo de conscientização política dos camponeses.
O Movimento do Dia do Senhor, por sua vez, também possuía um programa
radiofônico intitulado Encontro com as comunidades, transmitido pela rádio Educadora do
Nordeste e que também sofreu fiscalização, conforme episódios relatados pelos entrevistados.
Tanto o MEB como o Dia do Senhor se voltavam para o meio rural, na maioria das vezes,
atuando nas mesmas comunidades. Portanto, os programas de rádio eram fundamentais para
se chegar mais perto dos camponeses. A memória de padre Albani recupera o clima de tensão
que permeava a atuação dos movimentos de base e as estratégias utilizadas para burlar a
censura daquele período.8

[...] tínhamos as fiscalizações, aí tinha... tinha, tinha o ... o ... a censura dos
programas da rádio... da rádio... todos tinham que sair, sabe? Então a gente
não podia usar a palavra luta, não se usava luta. Usava, como é que era?
Usava peleja, peleja ou... a gente tinha, a gente tinha que mudar um pouco o
vocabulário pra ter a comunicação... Porque durante o tempo da Ditadura foi
um tempo que coincidiu porque vinha vindo um processo muito grande de
conscientização anterior as Reformas de Base, não sei o quê... não sei o
quê... quer dizer, que o Exército bateu, né.9

8
Ressalta-se que o Movimento de Educação de Base – MEB/Sobral e o Movimento do Dia do Senhor foram
objeto de estudo da minha dissertação, ocasião em que tais perseguições durante a ditadura foram largamente
analisadas, inclusive, reproduzo aqui alguns dos depoimentos analisados na dissertação com o intuito de situar
melhor o leitor do contexto de perseguição desses movimentos. Posteriormente, a dissertação foi publicada em
livro: BEZERRA, Viviane Prado. ―Porque si nóis não agir o pudê não sabe si nóis isiste no mundo”: O MEB
e o Dia do Senhor em Sobral (1960-1980). Sobral - CE: Edições ECOA, 2014.
9
Entrevista realizada com padre Albani Linhares no dia 20 de setembro de 2003. Anteriormente citada.
20

O próprio padre Albani esteve na mira da ditadura, chegando a ser interrogado por
agentes da repressão. O fato se deu devido ao seu envolvimento com a Juventude Operária
Católica, a JOC do Rio de Janeiro, onde esteve atuando até o desencadear do golpe. Diante
das perseguições dos militares aos quadros que compunham as organizações católicas de
cunho progressista, o referido padre retornou à cidade de Sobral com o intuito de se proteger.
No entanto, mesmo distante do centro político do país, padre Albani não escapou da prestação
de contas com os militares. Dois agentes das Forças Armadas foram em sua busca na cidade
de Sobral. O interrogatório aconteceu na casa do então prefeito, Jerônimo Prado, cujo
mandato compreende o período de1967 a 1970. Além da presença do prefeito, o padre
também foi acompanhado pelo bispo Dom Walfrido e outras autoridades locais, que cuidaram
em não lhe deixar a sós com os agentes federais. Apesar de tenso, o fato não tomou maiores
proporções, não chegando ao ponto de detenção ou prisão. 10
Outros episódios de repressão ao MEB e ao Dia do Senhor são relatados tanto pelas
Equipes de Coordenação desses Movimentos, como também, pelos camponeses que
conviviam com as ameaças de perseguição militar. Portanto, o medo e a cautela fizeram parte
do cotidiano desse trabalho de base. Nesse sentido, evidencia-se um acontecimento
emblemático na memória dos participantes do Dia do Senhor.

[...] umas duas vezes nós tivemos medo, teve um tempo que nós tava lá... na
serra, nós tava fazendo um curso e chegou a notícia que era arriscado que
baixassem lá, então nós tivemos que, num dissemos o pessoal pra apavorar
mas nós ficamos acordados, prevenidos e resolvemos descer todo mundo de
manhã, no primeiro horário que era de madrugada, e todo mundo se
dispersar e cada qual buscar seu destino. Então quando foi de manhã cedo,
nós reunimos e explicamos... alguns ficaram meio espantados, outros não....
eles todos tiveram consciência de que podia acontecer uma coisa em cima
deles... mas nunca teve nada de concreto, sabe? 11

Nesse sentido, os nomes de Padre Albani Linhares e de alguns integrantes da Equipe


de Coordenação do MEB/Sobral, como Maria Valnê Alves e Leunam Gomes, aparecem nos
relatórios do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), da seção estadual, arquivados
no Arquivo Público do Estado do Ceará – APEC. Esse fato denota uma meticulosa

10
Tal fato é relatado por padre Albani Linhares em entrevista concedida no dia 20 de setembro de 2003, em
Sobral, Ceará. (Arquivo da autora)
11
Entrevista realizada com Padre Albani Linhares no dia 17 de dezembro de 2004, em Sobral - CE. Também foi
relatado na entrevista de Manuel Zenóbio Vasconcelos, realizada no dia 26 de outubro de 2004, em Sobral.
Arquivo da autora.
21

fiscalização por parte da ditadura, que alcançava até mesmo as remotas cidades do interior do
Brasil. 12
Durante todo período ditatorial duas famílias, com tradição política local, revezaram-
se na prefeitura de Sobral: os Barretos e os Prados que, diga-se de passagem, representavam
uma extensão da política estadual, que ficou denominada pela historiografia cearense como
Política dos Coronéis. Tal política, por sua vez, alinhava-se ao regime ditatorial. No período
do golpe, Cesário Barreto estava à frente da prefeitura de Sobral iniciando o ciclo que ficou
popularmente conhecido como ―dobradinha Prado-Barreto‖. Já no governo estadual estava o
coronel Virgílio Távora, iniciando o ―ciclo dos Coronéis‖. Segundo a historiadora Edvanir
Maia da Silveira,

Com o golpe civil-militar de 1964, Virgílio Távora, antigo aliado de João


Goulart, teve dificuldade de ser aceito pelo novo regime. Mas não tardou a
sua adesão ao golpe de 64, dada a sua condição de militar e a intermediação
do seu tio Juarez Távora. Durante a ditadura, três militares cearenses
assumiram altos postos na nação: o marechal Castelo Branco, na Presidência
da República; o marechal Juarez Távora, no Ministério da Viação e Obras
Públicas e o general Juraci Magalhães, no Ministério das Minas e Energia.
Os governos posteriores, Plácido Castelo, Adauto Bezerra e César Cals
mantiveram a aliança com o novo regime [...]. 13

Por esse caminho, a política local estava completamente alinhada ao governo militar
tanto que, em Sobral, chegou a se registrar a existência de duas sublegendas da Aliança
Renovadora Nacional – ARENA, partido oficial do regime. ARENA I, bloco político da
família Prado e a ARENA II, da família Barreto. Aliás, essa subdivisão da ARENA foi uma
prática relativamente comum durante esse período, pois aparece em quase todos os
municípios do Ceará. Por outro lado, o partido do Movimento Democrático Brasileiro –
MDB, considerado como oposição consentida, agrupava uma filiação inexpressiva. Ainda,
segundo Edvanir Silveira:

[...] Pelas poucas fontes a que se teve acesso, constatou-se que na maioria
dos municípios houve adesão à ditadura. Com a decretação do Ato
Institucional Nº 2 (AI-2), que extinguia os partidos políticos, foram criadas
duas agremiações: o Bloco Democrático Renovador e a União Parlamentar

12
Tais fatos foram analisados na minha dissertação de mestrado, publicada em livro. Para maior aprofundamento
lê: BEZERRA, Viviane Prado. ‗Porque si nóis não agir o pudê não sabe si nóis isiste no mundo”. Op. cit.
13
SILVEIRA, Edvanir Maia. A aliança desenvolvimentista. In: SILVEIRA, Edvanir Maia da; SILVA, João
Batista Teófilo. (Orgs.) A Ditadura civil-militar em Sobral - aliança, ―subversão‖ e repressão. Sobral - CE:
Edições UVA/SertãoCult, 2017, p. 11-43.
22

Revolucionária no Ceará, que mais tarde se denominariam MDB (registrado


em 17 de maio de 1965) e ARENA (fundada em 8 de julho de 1966),
respectivamente. Contudo, pelo menos neste momento, as duas legendas
divergiam apenas na esfera local, pois ambas apoiavam o golpe e a
instalação do regime militar.14

Dessa forma, as divergências políticas entre as oligarquias de Sobral não se chocavam


com a ditadura, ao contrário, até mesmo os partidários do MDB mantinham uma postura
condizente com o regime, visto que ora se aliavam aos Prados, ora se aliavam aos Barretos,
conforme seus interesses. ―Este era o lema: aliados na cúpula, divididos na base, um modelo
que se estenderia à política sobralense‖. 15
Durante o mandato de Cesário Barreto (1963-1966), o então presidente Castelo Branco
visitou a cidade de Sobral, ocasião em que lhe foi concedido o título de cidadania sobralense.
O jornal Correio da Semana noticiou a visita com uma reportagem intitulada: ―O Marechal da
Revolução em Sobral‖. Assim, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB,
no primeiro momento, apoiou oficialmente o golpe civil militar, encampando o discurso
salvacionista da Revolução de 1964, a Diocese de Sobral, através de seu jornal também
seguiu essa linha.

Sobral viveu das 10 às 14 horas, no dia 28, os maiores momentos de alegria


e vibração, com a visita do eminente Presidente da República Marechal
Humberto de Alencar Castelo Branco. O prefeito Cesário Barreto Lima,
marcou mais um grande tento para sua profícua administração, trazendo pela
primeira vez na história do município, um choque de nação em pleno
exercício, um chefe na nação de suas elevadas funções. Dois
pronunciamentos foram feitos pelo presidente Castelo Branco, na Princesa
do Norte. O primeiro por ocasião do lançamento da pedra fundamental do
―Centro Social Dona Argentina Castelo Branco‖, justa homenagem, da
prefeitura a saudosa memória da esposa do Marechal Castelo Branco. [...] o
ilustre visitante, em brilhante discurso falou sobre os objetivos da
Revolução, finalidade dos Atos Institucionais, da necessidade das reformas
constitucionais, terminando a sua oração com as seguintes palavras: ―O título
de Cidadão Sobralense, que agora recebo enobrecido me identifica com a
tradição deste município e com a permanente aspiração de Sobral, que é a de
todo Brasil, de viver a democracia. Uma democracia na base da realidade
brasileira, em cuja prática as lideranças atuais proporcionem o surgimento
nas gerações que seguem de líderes autênticos e renovadores. [...]. 16

14
Ibid., p. 16.
15
Ibid., p. 17.
16
O Marechal da Revolução em Sobral. Correio da Semana. Sobral, 1º de janeiro de 1966.
23

Nessa perspectiva, o Correio da Semana elaborava uma escrita mediada por um


discurso oficial, do qual tendia para uma tentativa de legitimar o regime militar através de seu
público leitor. Dessa forma, o artigo do jornalista Aurélio Martins repassava o discurso que
fora criado pelos militares ―revolucionários‖ para justificar o golpe de 31 de março de 1964,
salvando o Brasil do perigo comunista, representado pelo então governo de João Goulart.
Segundo os argumentos do jornalista:

Na lembrança de cada brasileiro ainda vivem as cenas tristes promanadas de


um govêrno colocado ao serviço do Comunismo Internacional, que não
atingiu os objetivos colimados em virtude da ação preventiva das Forças
Armadas, que num esfôrço conjunto debelaram o perigo iminente que
rondava a nacionalidade [...].
Foi instalado no Brasil um Govêrno Revolucionário de uma sensatez e de
equilíbrio notáveis, que não se deixou levar pelos justos clamores de
vingança que ecoavam de um extremo a outro da Nação, clamores que não
poderiam ser atendidos porque lançariam ao solo pátrio sangue brasileiro,
ainda que, de maus irmãos. A Revolução que foi feita sem efusão de
sangue, continua a ser consolidada sem sangue.
Os 31 dias do mês de março de 1964 ressaltam no calendário da história
nacional uma data que, em importância, se iguala e quase transcende 7 de
setembro de 1822, considerando-se para se chegar a tal conclusão a
benignidade do colonialismo português cujas restrições ocorriam no plano
econômico e, raras vêzes, no terreno religioso. Tal sistema político jamais
poderá ser comparado ao imperialismo soviético, que tolhe por completo
qualquer possibilidade de manifestação de liberdade e, portanto, de
iniciativa, seja de que caráter for, onde quer que vigore um regime cuja base
filosófica origina-se no marxismo-leninismo; Cuba aí está para
convencimento dos menos avisados. 17

Os grupos políticos, assim como a Igreja Católica de Sobral adotaram uma postura
diplomática para com a ditadura. Tanto que no episódio referente ao interrogatório do padre
Albani Linhares, a presença do prefeito e do bispo foi determinante para evitar a prisão do
mesmo. A dobradinha Prado-Barreto perdurou na prefeitura de Sobral até meados dos anos
1990, quando a prefeitura passou a ser assumida pelo grupo político da família Ferreira
Gomes, que se mantém no poder municipal até os dias atuais. No final dos anos 1980, com o
amplo movimento pela redemocratização do país, com as campanhas pela Anistia e pelas
Diretas Já, o Ceará também sente os ares de renovação política findando o ―ciclo dos
Coronéis‖ com a eleição de Tasso Jereissati para governador, em 1986. Iniciava-se o ―ciclo
dos empresários‖, que se caracterizavam como ―governo das mudanças‖. De acordo com a

17
Correio da Semana, Sobral, 1º de maio de 1965, p. 05.
24

historiadora Edvanir Silveira, ―a competência técnica, a probidade administrativa, o


personalismo e o incentivo à modernização do estado são traços desses governos‖, que se
opunham ao nepotismo, proselitismo e mandonismos locais, marcas da política anterior,
consideradas como atraso político. 18
Perpassando todos esses acontecimentos políticos, na diocese de Sobral, desenvolvia-
se o Movimento do Dia do Senhor, que teve sua experiência datada de 1965 até meados da
década de 1990. Durante esse longo período, o Movimento se consolidou e durante os anos
1970 se estendeu para a recém fundada diocese de Itapipoca, que tinha Dom Paulo Eduardo
Andrade Ponte como seu primeiro bispo.19 Nas eleições municipais do ano de 1970, Francisco
Pinheiro Alves, candidato da ARENA 2, elegia-se como prefeito. Assim, como em Sobral e
demais municípios do Ceará, em Itapipoca, o partido da ARENA se subdividia em duas
legendas. Com Dom Paulo na diocese de Itapipoca, o Movimento do Dia do Senhor foi bem
acolhido, encontrando ambiente favorável para sua inflexão nas comunidades rurais de toda
diocese.
Assim, a Equipe de Coordenação do Movimento se dividiu para atender as duas
dioceses, ficando padre Albani Linhares e Maria Alice MacCabe, uma religiosa norte-
americana, da congregação Notre Dame, responsáveis pelas comunidades da diocese de
Itapipoca, enquanto que as comunidades da diocese de Sobral foram assumidas por Gustavo
Lira e Lídia Ferreira, um casal de intelectuais que contribuiu com o Movimento durante 10
anos. Gustavo era baiano e filósofo. Lídia paulista e socióloga. No meio rural do Ceará, esse
casal, juntamente, com padre Albani e irmã Maria Alice, encontrou campo fértil para
desenvolver um trabalho pastoral que unia fé e formação política e que transformou a vida e a
visão de mundo de muitos camponeses e camponesas que se fizeram sujeitos com o fazer-se
do Movimento do Dia do Senhor. Por outro lado, é plausível afirmar que essa experiência
também transformou a vida e visão de mundo dos que compunham a Equipe de Coordenação
do Movimento.
Maria Alice MacCabe e Lídia Ferreira se destacaram pelo trabalho voltado para a
organização das mulheres que compunham o Movimento, pois com a formação e
consolidação dos Encontros de Esposas, constituiu-se um espaço de reflexão e atuação

18
SILVEIRA, Edvanir Maia. A aliança desenvolvimentista. Op. Cit. pp. 11-43.
19
A diocese de Itapipoca foi fundada em 1971, sob orientação do papa Paulo VI. Juntamente com essa Diocese
foram fundadas também as Dioceses de Tianguá e Quixadá, no Ceará. O bispado de Dom Paulo compreende o
período de 1971 a 1984, quando fora designado como arcebispo de São Luís, no Maranhão (1984 a 2005),
deixando a diocese de Itapipoca.
25

próprio do feminino. Nesses Encontros, as camponesas ecoavam suas vozes, pensavam sobre
sua existência, apreendiam sobre resistência e se descobriam sujeitos de sua própria história.
Através das histórias de vida dessas camponesas e de suas memórias procurou-se
realizar uma história social das mulheres, buscando uma aproximação com seu cotidiano e
com a peleja pela sobrevivência dos seus, no interior de um sistema capitalista injusto e
desumano. Pela metodologia de história oral, buscou-se ―[...] ampliar a voz desses sujeitos‖,
para lembrar Alessandro Portelli, como também, faz parte de um compromisso historiográfico
assumido com os paradigmas da história social, em voga, pelo menos, desde meados dos anos
1970.
Nesse compasso, essa pesquisa dialogou com conceitos de primeira ordem para os
estudos da História Social e Cultural, destacando-se as tensões de classe e de gênero, bem
como as relações de poder forjadas no interior do Movimento, o que impulsionava os
conflitos em torno da terra, protagonizados por camponeses e proprietários rurais e, numa
escala mais microscópica, no âmbito do privado, conflitos entre homens e mulheres, que de
um modo geral, lutavam por igualdade de direitos, justiça e pela superação das relações de
poder.
Portanto, os conceitos de classe, sujeito, experiência e cultura, largamente utilizados
nessa pesquisa, foram tomados de empréstimo da obra do historiador inglês E. P.
Thompsom.20 Também foi feita uma apropriação da noção de ―fazer-se‖ utilizada por esse
mesmo autor, quando problematizou a formação da classe operária inglesa. Nesse sentido,
utilizou-se a noção de ―fazer-se‖ para a formação do Movimento do Dia do Senhor.
Por esse caminho, a pesquisa se aproximou de uma perspectiva de gênero ao passo
que se enfatizou o aspecto relacional de gênero, de modo que as mulheres do campo
passavam a entender as questões do masculino e do feminino como construções culturais e
históricas, onde lutavam para desmistificar as diferenças tradicionalmente imposta aos
homens e às mulheres, o que se traduz na proposição: ―[...] iguais, mas não idênticos‖. Então,
a dimensão do trabalho, da memória, da sexualidade como questões especificas do feminino
foram amplamente discutidas no decorrer dos quatro capítulos. Para tanto, o conceito de

20
THOMPSON, E.P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998.
26

gênero, de Joan Scott21, bem como o de memória sexuada ou gendrada, trabalhado por
Michelle Perrot 22, dão suporte a essas discussões.
A questão dos trabalhos da memória ganhou uma maior dimensão na pesquisa,
principalmente, nos terceiro e quarto capítulos, quando se problematizou a participação da
camponesas na luta pela terra e a conquista da autonomia feminina. As reflexões de Michael
Pollak23 sobre memórias hegemônicas e memórias subterrâneas, bem como as contribuições
de Elizabeth Jelim24 sobre a constituição das ―memórias habituais‖, como também, essa
autora ajudou a pensar a tensa relação entre memória e formação de identidades. Assim,
também se utilizou dos conceitos de memória social e subjetividade aos moldes de
Alessandro Portelli.25
Como fontes, utilizou-se documentos escritos de diversa natureza, como os Relatórios
dos Encontros de Esposas e as Cartas Comunitárias enviadas ao programa radiofônico do
Movimento do Dia do Senhor, além de um significativo número de entrevistas orais. Faz-se
importante ressaltar que tanto nas citações dos documentos escritos quanto nas transcrições
das entrevistas foi mantido a originalidade da escrita e da fala camponesa, com o intuito de
respeitar e valorizar o universo cultural e a identidade dos sujeitos da pesquisa, tendo em vista
que todos os documentos escritos foram produzidos pelas próprias camponesas, escritos
manualmente, com suas letras disformes e os erros de português que também se verificava nas
suas falas, distanciando-se do universo da cultura letrada.
Analisou-se, também, o livro de História Oral, de Maria Alice MacCabe26. Nesse
livro, Maria Alice entrevistou dez camponesas que revelaram as cores, por vezes em preto e
branco, da vida dessas mulheres, sua experiência social e sua visão de mundo. Tomou-se o
livro como fonte, pois o mesmo se apresenta quase como um inventário de transcrições, onde
se observa a ênfase na própria memória das mulheres, faltando, pois, um trabalho
historiográfico que busque problematizar e atribuir sentidos às narrativas.

21
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da
História. Novas Perspectivas. São Paulo: Editora Unesp, 1998.
22
PERROT, Michelle. Práticas da Memória feminina. Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 09, n.19.
Ago/set de 1989.
23
Desse autor utilizou-se os textos: POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212, bem como, POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
24
JELIN, Elizabeth. Los Trabajos De La Memoria. Madrid: Siglo veintiuno de españa editores, S.A. Siglo
veintiuno de argentina editores. 2002. Espanhol (América Latina)
25
POTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na história oral.
Projeto História. São Paulo. (15) abril, 1997. Outros textos desse autor também ajudaram na sistematização das
reflexões presentes nessa pesquisa.
26
McCABE. Maria Alice. História na Mão. Algumas camponesas contam como se conscientizaram. (Uma
História Oral). 1994. S/e.]
27

Percebeu-se que nas entrevistas realizadas por Maria Alice ressaltavam-se temas como
a autoestima e a autonomia feminina, a conquista da independência financeira, a partir do
trabalho das camponesas e da formação de uma Associação de mulheres rendeiras, a
participação das camponesas na luta pela terra e, também, a conquista sobre seu corpo e sua
sexualidade. Perseguindo esses temas e incorporando a perspectiva das relações de gênero,
para essa pesquisa foram realizadas outras entrevistas com algumas das entrevistadas por
Maria Alice, como Rita de Cássia e Elita.
A partir dessas entrevistas foi possível compreender as relações de poder presentes no
universo do Movimento do Dia do Senhor, relações estas que se faziam explícitas quando se
observava a dinâmica de dominação/resistência presente nos quadros do sistema capitalista e
oligárquico que compunha o mundo do trabalho no campo, como relações de dominação
implícitas, sentidas na vivência cotidiana das camponesas.
Outro ponto importante que se sobressai nas entrevistas realizadas por Maria Alice e
transcritas em seu livro refere-se à interferência das mulheres do Movimento na luta em
defesa pela terra, onde tomavam a frente dos maridos e filhos e se deparavam pessoalmente
com os ricos fazendeiros e com a polícia, nos diversos conflitos de terras ocorridos nas
comunidades rurais espalhadas pelas Dioceses de Sobral e de Itapipoca. Essas estratégias de
luta foram narradas pelas entrevistadas de Maria Alice, como também foram contadas por
outras camponesas, entrevistadas pela autora dessa pesquisa.
Assim como o livro de Maria Alice, a própria equipe do movimento realizou
entrevistas com mulheres das Comunidades de Juritianha, comunidade de Acaraú e de Serra
Verde, comunidade de Sobral. Essas entrevistas foram transcritas e depositadas no arquivo do
Movimento, que também foram analisadas. O assunto chave dessas entrevistas era a
participação da mulher camponesa na organização da economia familiar, ou seja, percebe-se a
partir da narrativa dessas mulheres como se dava a manutenção da safra colhida, como se
administrava o que deveria ser comercializado e o que deveria ser guardado para consumo da
casa.
A partir de suas falas foi se percebendo a negociação que as mulheres faziam com seus
esposos, ao participar efetivamente das decisões financeiras e de cunho econômico, que via de
regra, estavam relegadas ao papel do esposo. Nesse sentido, a mulher camponesa narra as
diversas estratégias para conquistar espaços de atuação no interior da relação conjugal, da
casa, da comunidade.
Além desses documentos encontrados no Arquivo do Movimento do Dia do Senhor, a
autora dessa pesquisa realizou entrevistas com as esposas e os esposos, o que contabiliza um
28

total de quatorze entrevistas: dez esposas e quatro esposos. Tais entrevistas foram realizadas
desde 2009 e obedeceram a um roteiro de perguntas específicas para as esposas e para os
esposos a fim de que se conseguisse obter uma base de dados suficiente para poder analisar as
especificidades e as tensões da história das mulheres do Movimento do Dia do Senhor, como
também, das relações de gênero no interior desse Movimento.
Assim, a pesquisa está dividida em quatro capítulos. O primeiro capítulo intitulado:
Encontros de Esposas do Dia do Senhor: lugar de afirmação do feminino no Movimento está
subdividido em três tópicos, nos quais abordou-se a participação feminina no Movimento
através dos Encontros de Esposas. No primeiro tópico: Arquivo do Dia do Senhor: lugar de
existência e resistência das mulheres do campo analisou-se o arquivo do Movimento que, a
partir de sua organização, entendeu-se como um lugar de uma memória, tanto oficial com
relação àquilo que se quis que lembrasse sobre a história do Dia do Senhor, como também, de
memória camponesa, de registro de palavras, ações e sonhos de homens e mulheres do campo.
No segundo tópico: “Não precisa saber lê nem escrever, basta trazer a cabeça no lugar”:
Encontros de Esposas no percurso dos Relatórios, bem como no terceiro tópico intitulado:
Encontros de Esposas: reorganização e ampliação a partir da década de 1970 foi
apresentada a origem desses Encontros, os temas abordados, a dinâmica e os (re)significados
desses Encontros para as mulheres, tomando por base a análise dos Relatórios dos Encontros
de Esposas Anuais, entrevistas realizadas com os sujeitos que compunham a Equipe de
Coordenação do Dia do Senhor e com camponesas que se fizeram protagonistas no
Movimento.
O segundo capítulo com título: “Eu sei que a gente tem uma história muito grande pra
contar”. Mundos do trabalho feminino está subdividido em três tópicos em que se abordou a
relação entre mulheres, cotidiano e trabalho, sendo este último problematizado nas dimensões
do conceito de trabalho produtivo e reprodutivo. Fizeram-se protagonistas nesse capítulo as
camponesas: Rosa Pires, Rosa Marques, Fausta Marques, Rita de Cássia Sousa e Nazaré Flor.
Esse capítulo seguiu uma linha de raciocínio em que se apresentou no primeiro tópico
“A gente já cresceu foi trabalhando”: uma vida de trabalho no campo a dimensão do
trabalho como uma constante na vida dessas mulheres, que desde crianças lidam com a labuta
da agricultura e dos afazeres domésticos, o que era entendido como ―não trabalho‖, ou seja,
trabalho reprodutivo, visto que não recebiam salário para tanto, sendo naturalizado como
atividade tipicamente feminina.
No segundo tópico “Quando a mulher sai do mundo da cozinha dela e começa a
participar das coisas, então ela começa a ver o mundo diferente”: trabalho pastoral e
29

atuação política das camponesas do Dia do Senhor, destacou-se o trabalho pastoral e


abnegado realizado por essas mulheres no Movimento do Dia do Senhor. Será evidenciado o
processo de formação político-religiosa das mesmas ao participarem dos Encontros de
Esposas e das diversas atividades formativas do Movimento. Para essas camponesas, o fato de
saírem de casa, do âmbito de suas cozinhas, conhecerem novas mulheres, organizarem
pequenos encontros em suas comunidades, ou mesmo, na vizinhança e até chegar ao ponto de
assumirem, sozinhas, a organização dos Encontros de Esposas Anuais era extraordinário,
inédito. Considera-se que a conquista da autonomia e do protagonismo no pensar, no falar e
escrever, bem como, no agir dessas camponesas foi revolucionário para a época e lugar social
em que viviam.
Já no terceiro tópico “RENDEIRAS DE JURITIANHA NA LUTA!” A Associação
Comunitária das Mulheres Rendeiras de Bilro de Juritianha problematizou-se o processo de
fundação da Associação Comunitária de Mulheres Rendeiras de Juritianha, comunidade rural
do município de Acaraú, Ceará. Tal Associação foi fundada em 1988, portanto, em um
período que as mulheres já tinham uma longa caminhada no Movimento. Entendeu-se tal
Associação também como uma conquista que partiu de uma consciência política sobre a força
do coletivo e da organização feminina, consciência essa forjada no Movimento.
O terceiro capítulo intitula-se Conflitos de terra e protagonismo feminino e, também,
está estruturado em quatro tópicos. No primeiro tópico “A reforma Agrária é questão de
sobrevivência”: organização sindical e luta pela terra dos camponeses e das camponesas do
Movimento do Dia do Senhor situou-se algumas experiências de organização dos camponeses,
como a fundação dos sindicatos rurais das dioceses de Sobral e Itapipoca, bem como, de
outras formas organizativas, como associações comunitárias e cooperativas, antes mesmo do
surgimento do Movimento do Dia do Senhor e que contribuíram para a formação de uma
consciência de classe.
No segundo tópico “... A desapropriação desta terra foi graças às mulheres”: conquista
do território e formação do Assentamento Maceió, analisou-se a atuação das mulheres nos
conflitos de terras que marcaram as comunidades rurais do município de Itapipoca, durante as
décadas de 1970/1980, o que resultou na conquista da terra e no processo de formação do
Assentamento Maceió. No terceiro tópico “As mulher era quem primeiro chegava”: luta e
conquista da terra do Assentamento Lagoa do Mineiro apresenta-se o conflito de terra nas
comunidades rurais de Itarema, mais precisamente, na região de Almofala, onde atualmente
situa-se o Assentamento Lagoa do Mineiro, fruto dessa luta.
30

Por esse caminho, no quarto tópico “As mulheres, em ciranda, iam na frente e, se
precisasse, os homens iam atrás”: a luta pela terra de Salgado do Nicolau, em Trairi – CE
discorreu-se sobre o conflito de terra do Salgado do Nicolau, comunidade do município de
Trairi, pertencente à diocese de Itapipoca. Esse conflito também resultou na conquista da terra
pelos camponeses que se se formou em um Assentamento. Portanto, os três conflitos
analisados foram fundamentais para o entendimento do engajamento político de algumas
camponesas, pois foi na luta pela terra que reconheceram o valor da organização dos
trabalhadores e da importância que as mulheres tiveram ao lutar lado a lado de seus esposos e
filhos.
A coragem e a articulação política dessas mulheres foram evidenciadas nesses tópicos,
pois as mesmas estiveram presentes em todas as etapas do processo de conquista da terra,
pois, tais conflitos desencadearam na posse da terra pelas famílias que moravam nas
comunidades envolvidas. Ontem e hoje, essas mulheres continuam na luta por terra, por
melhores condições de trabalho e por igualdade de gênero, quebrando preconceitos e
subvertendo a ordem do patriarcado, chegando mesmo a assumir cargos de liderança no
sindicato, o que demonstra todo um percurso de conquistas femininas, como será evidenciado
pelas entrevistadas. Inclusive, em decorrência de uma presença feminina cada vez mais
atuante nos sindicatos, atualmente os mesmos assumiram uma nomenclatura com um corte de
gênero se denominando Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais.
No quarto capítulo: Relações de gênero e sexualidade: “a Última Fronteira”, foi dado
destaque às dimensões da vida privada de algumas camponesas. Está composto por três
tópicos.
No primeiro tópico, “...não era pra pegar nem na mão”: namoros, casamentos e
sexualidade no campo, destacaram-se os aspectos da relação marido x mulher, recuperando
ainda as memórias do tempo de namoro. Pretendeu-se abordar questões relacionadas ao
corpo, à sexualidade, à autonomia e à libertação feminina.
No segundo tópico intitulado: “A primeira vez que achei minha voz foi aqui”: os
Encontros de Esposas e seu programa para a questão da sexualidade, aprofundou-se a
problematização em torno da questão da sexualidade, pois nos Encontros de Esposas os temas
da sexualidade e da autonomia feminina eram o ponto alto das discussões. Muitas mulheres
compartilhavam as dificuldades, as dúvidas e os sofrimentos da vida conjugal, o que
possibilitava a criação de vínculos de amizade e de solidariedade feminina.
Nas entrevistas analisadas, algumas camponesas contaram suas próprias histórias de
sofrimento e superação, como também, recuperaram as histórias que ouviam de outras
31

participantes dos Encontros. Nessas histórias, as camponesas apresentaram casamentos


permeados por ciúmes e diversos tipos de violências, veladas ou explicitas, de seus esposos.
No entanto, ressaltaram-se as diversas estratégias de resistência dessas mulheres para driblar a
dominação de seus homens.
No terceiro e último tópico: “... homem, é homem, sabe?”: a autonomia feminina sob
os olhares do masculino problematizou-se o olhar dos maridos sobre suas mulheres e sobre si
mesmos. A partir das entrevistas realizadas com quatro esposos, foi possível perceber as
mudanças de posturas desses camponeses com relação às lutas e conquistas femininas. Os
entrevistados fizeram um balanço da sua importância e da importância da atuação feminina no
Movimento e dos desdobramentos que isso teve para suas vidas, suas famílias, casamentos,
relações de trabalho, etc., em que novas relações de gênero foram sendo forjadas no âmbito
do Movimento do Dia do Senhor.
Por fim, convida-se ao leitor para que mergulhe no universo singular de mulheres
fortes e destemidas, que tem muito a contar com suas histórias de vida, de fé, de trabalho, de
conquista da palavra e do seu lugar social, de luta pela terra e de libertação.
32

1. PRIMEIRO CAPÍTULO: Encontros de Esposas do Dia do Senhor:


lugar de afirmação do feminino no Movimento

O Movimento do Dia do Senhor foi se configurando a partir de 1965, por iniciativa de


Padre Albani Linhares, na diocese de Sobral. Tal Movimento, que assumia a feição de CEB –
Comunidade Eclesial de Base, via na capacitação de camponeses e de camponesas, uma
alternativa laica que, naquele momento, suprisse a carência de padres da Diocese, garantindo,
assim, a celebração da palavra de Deus aos domingos nas comunidades rurais. Por isso o
nome ―Dia do Senhor‖, em referência ao domingo, seguindo a tradição católica. Tal
Movimento atuou nas comunidades rurais da zona Norte e Noroeste do estado até meados dos
anos 1990, quando se fragmentou devido às mudanças estruturais do mesmo. Tinha como
princípio político-pedagógico estimular a conquista da autonomia entre camponeses e
camponesas e durante seu fazer-se contribuiu para forjar uma consciência histórica e política
nos sujeitos envolvidos.
Nesse sentido, os próprios participantes do Movimento organizaram a História do Dia
do Senhor em três fases. Primeira fase, aquela em que a coordenação era composta por padre
Albani Linhares e por Maria Valnê Alves; a segunda fase se dá com a saída de Valnê do
Movimento, em 1973 e, consequentemente, com a chegada de novos integrantes para compor
a coordenação, como o filósofo Gustavo Lira, a socióloga Lídia Ferreira e a religiosa norte-
americana Maria Alice MacCabe, momento em que o Movimento também se expande para a
diocese de Itapipoca; a terceira e última fase se dá quando as próprias bases assumem a
coordenação do Movimento, inclusive a gestão financeira, através de um grupo de
camponeses mais atuantes, denominados de ―Nata do Movimento‖, já na segunda metade dos
anos 1980.
Interessante notar que esse termo ―Nata‖ foi cunhado pelos próprios camponeses que
assumiam o Movimento do Dia do Senhor como parte de suas vidas e projeto de luta social.
Foi cunhado no decorrer de sua atuação no Movimento, sendo reconhecido pela Equipe de
Coordenação e pelos demais participantes que viam naqueles que atuavam desde o início uma
maior legitimidade na tomada de decisões. Como representantes da ―Nata‖, são lembrados os
nomes de Antônio Pires, Manuel Thiago, Francisco Alexandre, Abdias Marques, Manuel
Pedrinho, Sebastião Alves.
No entanto, não passa despercebido que com a criação da ―Nata‖ desenvolve-se,
também, certa hierarquização entre os camponeses participantes, por vezes, gerando alguns
33

conflitos entre àqueles que estavam no comando e os demais que deveriam aceitar as decisões
da ―Nata‖ que, por representarem a cúpula do Movimento, orientavam a todos, tanto no
âmbito público, no sentido da participação efetiva na agenda do Dia do Senhor, quanto no
aspecto privado, apascentando os conflitos familiares, aconselhando os casais com relação à
criação dos filhos, aos processos de separação conjugal, ajudando em momentos de maior
dificuldade financeira, etc. Às vezes, esses conselhos eram bem aceitos, outras vezes não, pois
poderiam soar como interferência na vida dos participantes.
Esse período em que as bases ou, mais propriamente, o grupo da ―Nata‖ assumiu o Dia
do Senhor coincidiu com a saída de Gustavo e Lídia, que se desengajaram e retornaram para a
região Sudeste do Brasil. O referido casal atuou no Movimento durante dez anos, morando em
Sobral e sobrevivendo com um pagamento advindo de uma verba da Misereor27, uma
organização católica alemã que financiava os movimentos de base popular no Brasil e na
América Latina.
De acordo com a avaliação da Equipe de Coordenação, os camponeses haviam
conquistado autonomia suficiente para levar adiante o Movimento, que era deles. Essa
concepção de que o Movimento era feito por camponeses e para os camponeses era uma
constante nas falas e nos escritos dos participantes. Dessa forma, com a coordenação da
―Nata‖, o Dia do Senhor ainda se manteve até meados da década de 1990, quando não teve
mais fôlego para manter o mesmo ritmo de atividades de antes e os participantes foram se
dispersando. Muitos deles se engajaram em outros movimentos sociais, surgidos com o
processo de redemocratização do país, como Sindicatos dos Trabalhadores e Trabalhadoras
Rurais, Associações Comunitárias, Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra - MST,
criado em 1984, mas que chega ao Ceará em 1989, com a conquista do Assentamento 25 de
28
Maio, considerado o berço do MST no estado, situado no município de Madalena. Na
maioria das vezes, os camponeses e as camponesas integravam esses espaços
simultaneamente.
Outro ponto relevante para a desestabilização do Movimento foi o conflito em torno
de sua sede em Itapipoca. Tal sede consistia em uma casa, construída em mutirão pelos
próprios camponeses, em um terreno cedido pelo então bispo Dom Paulo Pontes, amigo de
padre Albani Linhares e apoiador dos movimentos de base em sua diocese. No entanto, com o

27
MISEREOR é a Obra episcopal da Igreja Católica da Alemanha para a cooperação ao desenvolvimento. Desde
há mais de 50 anos, a MISEREOR está comprometida com a luta contra a pobreza na África, Ásia e América
Latina. A ajuda de MISEREOR dirige-se a todas as pessoas que sofrem necessidade – independentemente da sua
religião, raça, cor ou sexo. https://www.misereor.org/pt/ Cf.: www.misereor.org. Acesso em: 10 dez. 2018.
28
Assentamento 25 de Maio comemora 30 anos de resistência, no Ceará. Cf.: www.mst.org.br . Acesso em 29
ago. de 2020.
34

remanejamento de Dom Paulo para assumir a Arquidiocese do Maranhão, em 1985 assume a


diocese de Itapipoca Dom Benedito Albuquerque, cuja postura conservadora restringiu o
apoio ao Movimento e reivindicou a posse da casa/sede de volta para uso da diocese. Esse
episódio gerou grande revolta entre os camponeses do Movimento, que não aceitaram
passivamente a decisão do novo bispo. No entanto, como não se tinha posse da escritura da
casa, em decisão judicial perderam o caso. 29
Sabe-se que durante a segunda metade do século XX a Igreja Católica encontrou-se
internamente dividida entre um projeto ―conservador‖, dogmático e uma vertente cada vez
mais secularizada, aberta à participação efetiva de leigos e da comunidade, expressando sua
―opção preferencial pelos pobres‖. De acordo com Scott Mainwaing ―[...] a divisão
fundamental dentro da Igreja brasileira não provém de uma oposição entre a base e a
hierarquia, mas envolve, antes, diferentes concepções de missão de Igreja [...]‖.30 Thomas
Bruneau informa sobre a ―missão profética‖ assumida pelo clero ―progressista‖ quando frente
às tensões sociais, vivenciadas no contexto de ditaduras da América Latina, a Igreja Católica
representava um dos poucos canais de crítica à repressão e de reivindicação por justiça e
defesa dos direitos humanos. Momento em que diversos sacerdotes estiveram comprometidos
com o “[...] papel de falar, de denunciar e de pregar a verdade‖. 31
Por esse caminho, Ralph Della Cava recupera o propósito da Santa Sé no período do
pós-segunda guerra em que se destinava o Brasil e o restante da América Latina como áreas
de Missões. Segundo o historiador, ―três pontífices sucessivos - Pio XII, João XXIII e Paulo
VI – destinaram grandes somas de dinheiro e recursos humanos ao empreendimento‖. Nesse
empreendimento, a Igreja Católica buscava estratégias para ―combater os males do dia: o
secularismo, o socialismo e as ‗falsas‘ crenças religiosas que começavam a ganhar terreno
sobre o catolicismo‖. 32
Nesse sentido, com as transformações ocorridas no cenário mundial e brasileiro no
final da década de 1980, leia-se fim da Guerra Fria e abertura política decorrente da ditadura
civil-militar brasileira, observou-se um estrangulamento da ação progressista do clero, ao
passo que o rito, o dogma e o espiritual voltavam a imperar nas missas e na formalidade das
relações entre clero e povo, o que correspondia às novas orientações vindas do Vaticano. Ou
29
Essa História foi contada por Sebastião Alves de Melo, um camponês que compôs a ―Nata‖ do Movimento, e
compõe o acervo do Dia do Senhor, arquivado na Diocese de Sobral, Ceará.
30
MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil (1916-1985). São Paulo: Editora Brasiliense.
Trad. Heloisa Braz de Oliveira Prieto. p. 10.
31
BRUNEAU, Thomas C. O Catolicismo Brasileiro em Época de Transição. São Paulo: Edições Loyola,
1974. p. 410.
32
DELLA CAVA, Ralph. A política atual do Vaticano na Europa Central e do Leste e o ―Paradigma Brasileiro‖.
Lua Nova. N. 27, 1992. p.135.
35

seja, o projeto pastoral progressista empregado outrora não correspondia mais aos anseios da
Igreja Católica Romana, ao contrário, tornou-se incômodo. A partir do papado de João Paulo
II, um novo projeto teológico passava a ser implementado, sendo que esse projeto passou a
minar o campo progressista e a trazer de volta o conservadorismo para a Igreja Católica do
Brasil e da América Latina. Como explica Della Cava:

Na verdade, a maré provocada na época pela eleição do papa João Paulo II


havia inundado as mais distantes regiões da Igreja. O novo pontífice colocou
elementos conservadores na Cúria, comandou uma reinterpretação
tendenciosa do Concílio Vaticano II, e depois de 1984, lançou a Restauração
por todo o mundo católico. Na América Latina, o Vaticano interveio tão
decisivamente quanto nos anos 50; no Brasil, arquitetou o eclipse virtual da
ala progressista da Igreja. Nesse país, muitos novos bispos – constituindo a
metade do número total de 298 – foram nomeados desde 1978, em grande
parte por sua simpatia com Roma. As duas Arquidioceses progressistas com
papel de liderança foram cirurgicamente desmembradas e as orientações que
elas adotavam foram revertidas. Proeminentes teólogos foram silenciados e
destituídos de seus postos docentes. Projetos editoriais polêmicos foram
suspensos, currículos de Seminários foram reestruturados segundo as
diretrizes da Cúria e a Conferência Nacional dos Bispos foi posta sob
cerco.33

Nesse sentido, as mudanças conjunturais advindas com a ―vitória‖ do projeto teológico


―conservador‖ da Igreja-Rito, que cada vez mais suprimia os espaços da Igreja-Povo,
conquistados desde o Concílio Vaticano II (1962-1965) também podem ser consideradas
como um fator relevante para o enfraquecimento do Movimento do Dia do Senhor. No
contexto da diocese de Sobral, em 1998, o bispo Dom Walfrido Teixeira Vieira encerra seu
bispado, passando a atuar como bispo emérito. Por conseguinte, Dom Aldo Di Cillo Pagotto
assumiu a diocese de Sobral. Diferentemente de Dom Walfrido, que encarnava uma postura
pastoral progressista, Dom Aldo apresentava uma postura dogmática, o que representava uma
aproximação com a proposta de Restauração da Igreja Católica vivenciada naquele momento,
que buscava se distanciar dos movimentos de base popular ligados à Teologia da Libertação,
incentivando e abrindo espaço para os movimentos de Renovação Carismática Católica em
sua diocese.
Por esse caminho, infere-se que o remanejamento de Dom Paulo da diocese de
Itapipoca, ainda em 1984, que também encarnava o projeto católico progressista, esteja
relacionado ao reordenamento sofrido pela Igreja desse momento que, com claro intuito
desmobilizador, passou a indicar religiosos mais conservadores para dioceses e paróquias
mais afetadas pela Teologia da Libertação. Em substituição a Dom Paulo, Dom Benedito

33
Idem. p. 137.
36

Albuquerque foi nomeado bispo da diocese de Itapipoca em 1985, com postura


ultraconservadora.
O último registro de Encontros do Movimento é do ano de 1996. Diante das
transformações da Igreja Católica, tanto em nível global quanto local, no decorrer das décadas
de 1980 e de 1990, o Dia do Senhor foi perdendo espaço na diocese de Sobral e na diocese de
Itapipoca. Portanto, o Dia do Senhor foi um Movimento se esboçou nos quadros dos
movimentos sociais do campo, embasados pelos teóricos da Teologia da Libertação e da
pedagogia de Educação Popular, característicos de sua época que, assim como outras
experiências progressistas, mesmo suprimidas pelo projeto de Restauração implantado pela
Santa Sé durante o papado de João Paulo II, deixaram marcas profundas nos religiosos e
leigos que vivenciaram esses movimentos.
Ao rememorar sua própria inserção no Dia do Senhor, a religiosa norte-americana da
Congregação de Notre Dame, Maria Alice MacCabe, nos oferece pistas sobre o momento
histórico que propiciou o surgimento desse Movimento:

Naquela época, fim dos anos 1960, houve um apelo do papa, nem me lembro
qual papa... mas, o apelo do papa foi para mais evangelização na América
Latina. Então, muitas congregações responderam este apelo e, nossa
congregação, respondeu. Isso Coincidiu com o Conselho de Medellín, que
foi o primeiro Conselho Episcopal da América Latina e que, foi a partir do
Conselho de Medellín que realmente a Teologia da Libertação, foi
desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina
começou a desenvolver essa metodologia e nasceu a ideia de desenvolver
Comunidades Eclesiais de Base. Isso nos anos sessenta. Então, o Movimento
do Dia do Senhor nasceu dessa inspiração. O Albani, sempre foi muito em
comunicação com pessoas que, que lia e estudava os documentos de
Medellin, e os documentos também que estavam saindo do Concílio
Vaticano. Meddelín, eu vim também por causa do Concílio Vaticano, que
era anterior. Então a nossa vinda como grupo de irmãs coincidiu com este
momento [...]. 34

Juntamente com Maria Alice, vieram as irmãs Bete e Carolina, assim lembradas pelos
camponeses. No entanto, passaram pouco tempo no Movimento. A memória de Maria Alice
recupera os rumos que parte da Igreja Católica tomou a partir da década de 1960, com o
34
Entrevista com Maria Alice MacCabe realizada em 06/06/2009, em Itapipoca – Ce. Arquivo da autora.
Religiosa norte-americana que compõe a equipe de coordenação do Movimento, desde os anos 1970, juntamente
com Padre Albani Linhares, Gustavo Lira e Lídia Ferreira. È importante salientar que, nos tempos do
Movimento, Maria Alice realizou uma série de entrevistas com 10 dessas mulheres, das quais foram organizadas
e publicadas no livro: McCABE. Maria Alice. História na Mão. Algumas camponesas contam como se
conscientizaram. (Uma História Oral). 1994. S/e. (Tal livro também compõe o acervo de fontes a serem
analisadas em minha pesquisa).
37

Concílio Vaticano II (1962-1965). Tal Concílio dialogava com os sinais do mundo pós-
segunda guerra, inserido na lógica da Guerra Fria. Do Vaticano II saiu ―a opção preferencial
pelos pobres‖, compromisso pastoral assumido por muitos religiosos da Igreja Latino-
americana a partir de então. Inicialmente, esteve à frente do Vaticano II o papa João XXIII, o
referido papa que aparece na narrativa de Maria Alice. Foi ele quem conclamou pelo
aggiornamento da Igreja e pelo compromisso missionário dos conciliares com as regiões
menos desenvolvidas do mundo.
Assim como a congregação de Notre Dame, muitas outras enviaram seus missionários
para a América Latina. Tais apelos de João XXIII se faziam texto conciliar em suas Encíclias
Mater et Magistra e Pacen in Terris. Segundo Oscar Beozzo35, o chamado para que religiosos
e religiosas viessem para a América Latina se justificava também pela necessidade
missionária de assegurar e expandir o catolicismo nessa região, posto que se encontrava
ameaçado pelo perigo comunista, tendo em vista a explosão da Revolução Cubana, em 1959.

João XXIII enviou Carta Apostólica ao episcopado Latino Americano,


depois que, em meados de 1961, a revolução cubana de 1959, declarou seu
caráter socialista, entrando em rota de colisão com setores importantes da
Igreja local, de modo particular com os bispos, o clero e a classe média que
frequentava os colégios de religiosos e religiosas.
Cuba, país católico e ao mesmo tempo atravessado por profundas e injustas
desigualdades sociais não era muito diferente do restante da América Latina,
onde a inquietação social colocara muitos deles na orla de uma revolução
social [...]. 36

Nesse contexto, o papa João XXIII conclamava para que religiosos e religiosas de
origem europeia, canadense, norte-americana adentrassem a realidade cultural, política e
econômica de regiões completamente diferentes das suas. Se os Estados Unidos, através da
Congregação de Notre Dame, e a Espanha37 responderam prontamente ao chamado do papa,

35
BEOZZO, Oscar. A recepção do Vaticano II na Igreja do Brasil. In:
http://www7.uc.cl/facteo/centromanuellarrain/download/beozzo.pdf. Acesso em: 21 mar. 2016.
36
Ibid., p. 5.
37
―Esta já contava, naquela ocasião, com 18.000 religiosos, religiosas e irmãos leigos, além de 650 padres
seculares e 50 missionários leigos trabalhando nos vários países da América Latina. Em 1963, João XXIII pede
aos bispos espanhóis que enviem outros 1.500 padres seculares, ao longo de três anos‖. BEOZZO, Oscar. A
recepção do Vaticano II na Igreja do Brasil. In:
http://www7.uc.cl/facteo/centromanuellarrain/download/beozzo.pdf. Acesso em: 21 mar. 2016, p. 5.
38

enviando para a América Latina uma quantidade significativa de missionários, a Alemanha se


manifestou garantindo apoio apostólico e financeiro, através da criação da Adveniat. 38

A criação da Adveniat na Alemanha é fruto desta conjuntura eclesial, assim


como a de outros organismos de solidariedade, seja no plano dos recursos
materiais, seja no dos recursos humanos, tais como o Seminário de Verona, o
Centro do Episcopado Italiano para a América latina (CEIAL) na Itália; o
Colégio para a América Latina de Louvain, na Bélgica; o Comité Episcopal
France Amérique Latine (CEFAL), na França, a Comissão Episcopal
Canadense da América Latina (C.E.C.A.L), no Canadá, o Secretariado para a
América Latina no seio da Conferência Episcopal norte-americana. 39

É interessante salientar que durante o Concílio, João XXIII falece, sendo o papa Paulo
VI o novo responsável pela condução do Vaticano II, ao que parece, seguindo a mesma opção
de Igreja. Nesse sentido, a memória de Maria Alice situa a importância desse Concílio para a
aproximação entre os mundos, naquela conjuntura, polarizados entre primeiro e terceiro
mundo. O Conselho Episcopal de Medellín, ocorrido em 1968, e a formulação de uma
Teologia da Libertação, situados por Maria Alice em sua narrativa, vieram aprofundar a
aproximação da Igreja Católica nacional e internacional com os pobres e desvalidos do mundo
de então, aproximando os contrastes entre campo e cidade; cultura formal e não formal. Ainda
com Maria Alice percebem-se as tensões e os conflitos culturais sentidos em decorrência de
tal aproximação:

Interessante. Eu diria, choque de cultura, eu tive muito mais com a classe


média do que com o povo do campo. [...] Eu diria, e eu tento dizer isso com
uma certa humildade, mas o que eu descobri em mim mesma, desde os
primeiros tempos aqui no Brasil, é que eu tinha uma comunicação boa com o
povo do campo. [...] e eu aprendi muitas coisas, eu diria, como jogo de
cintura, ah... aprendi, por exemplo, não fazer julgamentos, não usar todos os
meus pontos de referências americanos em cima deste povo... Também, nós
americanas, embora que a gente não tinha muitas brasileiras em nossa
congregação, mas nós aprendíamos muita pedagogia, em português, sempre
usamos português, não usamos inglês entre nós e a gente... nos questionamos
tanto sobre nossa... nossas limitações culturais... a parte política, por
exemplo, nós, por nascer num país em que a gente não tinha... uma ditadura,
nós não temos isso. A gente não tinha o mesmo nível de cautela e medo que
o povo aqui tinha naquela época, e ainda tem, e isso pode ser mais negativo

38
Nos documentos do Dia do Senhor, como principalmente, nos documentos do Movimento de Educação de
Base – MEB, desenvolvidos na Diocese de Sobral, encontra-se referência à ajuda financeira e pastoral obtida
com organizações católicas internacionais, como Adveniat e Misereor, de origem alemã. Para uma discussão
mais aprofundada, cf.: BEZERRA, Viviane Prado. ‗Porque si nóis não agir o pudê não sabe si nóis isiste no
mundo”: O MEB e o Dia do Senhor em Sobral (1960-1980). Op. cit.
39
BEOZZO, Oscar. Op.cit., p. 5.
39

do que positivo. Porque a gente pode dizer besteira, pode jogar o povo numa
situação que eles não são tão prontos de assumir. Eu posso lembrar mil
questões, assim, que a gente avaliava e isso foi um processo, não foi
imediato, eu fiz muitas besteiras.( Risos) 40

Por esse caminho, quando Maria Alice MacCabe adentra o universo do Movimento do
Dia do Senhor, convidada por padre Albani Linhares, já existia um campo41 cultural, político,
pastoral e pedagógico constituído. Nesse sentido, é válido lembrar que no Movimento os
sujeitos que o compunham ocupavam diferentes lugares nesse campo, desde a equipe de
coordenação, formada por religiosos e leigos, oriundos de classe média, com uma vivência
urbana, letrados, com uma visão de mundo informada por outros valores que não somente os
do mundo rural e, no caso específico de Maria Alice e outras religiosas norte-americanas que
permearam o Dia do Senhor, destacam-se as diferenças da língua e da experiência vivenciada
em países culturalmente diferenciados.

Os dirigentes, como eram chamados os camponeses, líderes comunitários, assumiam o


papel de pregar o evangelho e manter vivo o Movimento nas suas comunidades rurais. Na
maioria das vezes, eram sujeitos sem uma educação formal, cujas experiências de vida
restringiam-se à realidade rural. Tinham as orientadoras, também camponesas que se
engajavam no Movimento, inicialmente, ocupando um lugar secundário nesse campo,
exercendo a função de catequista e que, com o fazer-se do Movimento passam a assumir novo
lugar de atuação, conforme observamos com os Encontros de Esposas que passaram a
acontecer no decorrer dos anos setenta. E por fim, tinha-se a base do Movimento, ou seja,
àqueles camponeses e camponesas que participavam do Dia do Senhor, mas não ocupavam
nenhuma posição de destaque na estrutura do Movimento.
Assim, a religiosa norte-americana viria compor a Equipe de Coordenação do
Movimento, juntamente com Padre Albani Linhares, Maria Valnê Alves, Gustavo Lira e Lídia
Ferreira. Conforme já mencionado, Gustavo era filósofo e Lídia, socióloga, ambos não eram
do Ceará e foram convidados por padre Albani para contribuir com o Dia do Senhor por conta
de sua experiência em movimentos populares, já desenvolvida no estado do Maranhão.

40
Entrevista com Maria Alice MacCabe realizada em 06/06/2009, em Itapipoca – Ce. Arquivo da autora.
41
―O campo de poder (que não deve ser confundido com o campo político) não é um campo como os outros: ele
é o espaço de relações de força entre os diferentes tipos de capital, ou mais precisamente, entre os agentes
suficientemente providos de um dos diferentes tipos de capital para poderem dominar o campo correspondente e
cujas lutas se intensificam sempre que o valor relativo dos diferentes tipos de capital é posto em questão.(...)‖ In:
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas sobre a teoria da ação. Campinas – SP: Papirus, 1996. P. 52.
40

Assim, durante os anos 1970, o Movimento atinge a Diocese de Itapipoca, que chegava até
suas comunidades rurais através do programa de rádio do Movimento, Encontro das
Comunidades, transmitido pela rádio Educadora do Nordeste. No intuito de assistir tanto à
Diocese de Sobral quanto de Itapipoca, a equipe se dividiu, ficando Gustavo e Lídia,
responsáveis pela Diocese de Sobral e Padre Albani e Maria Alice, pela de Itapipoca.
Nesse ínterim, Valnê que contribuiu com o Movimento desde sua origem, trazendo do
MEB significativa experiência com trabalho de educação popular, no decorrer dos anos 1970
se desvincula do Dia do Senhor para seguir sua carreira no magistério do Ensino Superior,
inclusive, fora do Ceará. É válido informar que na Diocese de Sobral tanto o MEB como o
Movimento do Dia do Senhor atuavam nas mesmas comunidades rurais e, por vezes, tinham
os sujeitos que participavam tanto da Equipe de Coordenação desses Movimentos como,
principalmente, muitos camponeses e camponesas compunham as bases de ambos. Na
conjuntura do regime militar no Brasil, tanto o MEB como o Dia do Senhor foram
constantemente vigiados pela repressão. 42
O MEB por ser um Movimento de dimensão nacional que, tão logo se instaurou o
regime militar fora associado com subversão, sendo duramente perseguido, chamava mais
atenção que propriamente o Dia do Senhor, que atuava apenas em dimensão dos municípios
de Sobral e de Itapipoca. Na narrativa de Valnê Alves percebe-se o clima de tensão que era
trabalhar com movimentos populares naquele período, o que contribuiu para sua saída do
MEB e entrada no Dia do Senhor.

Quando a situação começou mais forte em relação a mim e a algumas outras


pessoas em termos de perseguição, algumas vezes a gente era acordado,
alguém avisando que eu tinha que sair né, daqui de Sobral, aí eu saí do MEB
e fui para o Dia do Senhor. Por que era o mesmo Coordenador Geral,
chamemos assim, que era Dom Walfrido. Aí o Dia do Senhor que era Dia do
Senhor né, mas com essa visão da Igreja comprometida com a mudança de
vida do povo, com o sofrimento do povo. Então aí, a gente tinha cursos do
mesmo jeito, Realidade Brasileira, cursos de Conhecimentos Gerais né.
Então, dá a esse povo a oportunidade dele perceber uma amplidão de mundo,
abrir os horizontes. Aí, ele passava a adquirir conhecimentos não impostos,
mas uma apropriação de novos conhecimentos, consequentemente, de uma
visão de mundo diferente. E ligando com a Igreja né, com as mensagens

42
Alguns casos de vigilância da ditadura militar em torno do MEB e Dia do Senhor aparecem em muitas
entrevistas realizadas com os participantes dos dois Movimentos. Tais entrevistas foram amplamente analisadas
durante meu mestrado cuja intenção era entender esses Movimentos e sua atuação em Sobral durante a ditadura
militar. In: BEZERRA, Viviane Prado. ‗Porque si nóis não agir o pudê não sabe si nóis isiste no mundo”: O
MEB e o Dia do Senhor em Sobral (1960-1980).
41

bíblicas, é: ―salvar o homem do nordeste é libertá-lo de sua escravidão‖, era


o slogan do programa do Dia do Senhor... 43

Por esse caminho, a proposta político-pedagógica que compunha o MEB também foi
sendo incorporada ao Dia do Senhor, com a diferença que este último não trazia a proposta de
alfabetização em seu projeto de formação. Dom Walfrido Teixeira Vieira era o bispo da
Diocese de Sobral. Seu bispado iniciou em 1965, mesmo ano de criação do Movimento do
Dia do Senhor. Baiano, também com experiência voltada para a educação popular, pois havia
sido do Conselho Diretor Nacional do MEB, dom Walfrido oferece total apoio aos
movimentos de base de sua diocese. Seu bispado durou até 1998, sendo lembrado pelos
entrevistados como um bispo sábio, com posturas moderadas, que evitava confrontos abertos
com os militares.
Faz-se necessário considerar que o próprio Dia do Senhor estava inserido em uma
região tensionada: o meio rural do nordeste do Brasil, mais precisamente, da região norte e
noroeste do Ceará. Região fortemente marcada pela cultura patriarcalista44, bem como, pelo
latifúndio, o que propiciou para que os camponeses e as camponesas do Movimento
protagonizassem alguns conflitos de terra. São emblemáticos desse período o conflito de
Queimadas45, comunidade pertencente ao município de Coreaú, diocese de Sobral e os
conflitos no vale Salgado dos Compridos46 e outros que ocorreram no território indígena de
Varjota, pertencentes ao município de Itarema, diocese de Itapipoca. Tais conflitos marcaram
profundamente a memória de homens e mulheres que constituíram o Movimento e
demarcaram claramente o lugar que cada um dos envolvidos, camponeses e latifundiários,
ocupava nesse campo de poder.
Ressalta-se que durante os anos 1970, além dos conflitos de terras espalhados pelo
interior do Brasil, evidenciava-se também, em âmbito internacional, a efervescência de

43
Entrevista realizada com Maria Valnê Alves, no dia 18 de dezembro de 2004, em Sobral – CE. (Arquivo da
autora)
44
De acordo com o debate feminista, muitas são as interpretações que pautam o conceito de Patriarcado para
explicar a desigualdade entre os gêneros e a submissão da mulher, historicamente construída. ―Sendo o
patriarcado uma forma de expressão do poder político, esta abordagem vai ao encontro da máxima legada pelo
feminismo radical: „o pessoal é político‟”. SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo:
Expressão popular: Fundação Perseu Abramo, 2015, p. 58.
45
O conflito agrário foi noticiado pelo Jornal O POVO, em 08 de agosto de 1986. Nº. 18715. Fortaleza – CE.
Desse conflito resultou a morte de um jovem camponês, conhecido por Benetito Tonho, uma forte liderança do
Dia do Senhor. Tal episódio foi aprofundado no livro, fruto de minha dissertação: BEZERRA, Viviane Prado.
‗Porque si nóis não agir o pudê não sabe si nóis isiste no mundo”: O MEB e o Dia do Senhor em Sobral
(1960-1980).
46
Tal conflito se estendeu por mais de décadas, ocasionando mortes de trabalhadores rurais da região. Ganhou
notoriedade na imprensa na sessão de Polícia do jornal o Povo com o título: ―Itarema sob tensão‖. Jornal o Povo.
Fortaleza – CE. 20 de dezembro de 1992. Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Diocese de Sobral – CE.
42

movimentos sociais, dos quais se destacam o movimento negro e o movimento feminista, nos
Estados Unidos. Nesse sentido, a organização de mulheres se tornava uma realidade cada vez
mais presente nos Estados Unidos e na Europa, compondo, inclusive, os temas da pauta de
conferências da Organização das Nações Unidas (ONU), bem como a determinação do ano de
1975 como Ano Internacional da Mulher marcando, assim, o primeiro ano da Década da
Mulher. Alguns fatores davam visibilidade às questões femininas, como o debate em torno da
contracepção e do aborto. 47
No Brasil, o quadro não parece ter sido diferente. Formavam-se diversos grupos de
mulheres, na maioria das vezes, classe média e intelectuais, nos quais se reuniam para pensar
a ―condição feminina‖, refletir sobre direitos, discutir problemas, falar do cotidiano e de suas
48
vidas. Com esses grupos, as mulheres criavam espaços de identidade e cultura feminina,
entoando sua voz, paradoxalmente, quando o direito à liberdade de expressão fora extirpado
da população civil latino-americana, posto que, nesse momento, vivia-se sob a tensão política
das ditaduras militares ali instaladas.
No entanto, mesmo com toda essa efervescência do movimento feminista dentro e fora
do Brasil, ao que tudo indica, os Encontros de Esposas do Movimento do Dia do Senhor não
sofreu influência direta dessa onda feminista. Por ser um Movimento de cunho católico,
amparou-se no discurso religioso, tomando a bíblia como sua principal referência. Maria
Valnê Alves, que esteve ao lado de Padre Albani Linhares desde o início do Movimento e
quem começou o trabalho com as esposas, ainda em 1969, afirma que, mesmo quando fazia a
relação fé e vida, partia-se da leitura bíblica para as reflexões sociais, culturais, políticas.
Nesse sentido, a entrevistada explica o enfoque que era dado a esses Encontros:

Como feminismo não, sabe? Era muito mais como igualdade de direitos
viu... Essa influência do movimento feminista não. Tinha a descoberta da
47
Joana Pedro situa, nesse momento, a escrita de uma história das mulheres, vinculado ao movimento feminista
de ―segunda onda‖, configurado no pós - segunda guerra mundial, cujos interesses centravam-se nos direitos do
corpo, do prazer, opondo-se ao patriarcado e defendendo como idéia-força de suas reivindicações a assertiva de
que ―o privado é político‖. In: PEDRO, Maria Joana. Narrativas fundadoras do feminismo. Revista Brasileira
de História. São Paulo. v. 26, n. 52, 2006, p. 249-272.
48
Nesse sentido, situo o debate em torno do ressurgimento do Movimento Feminista de Segunda Onda no Brasil
tendo como narrativa fundadora o ano de 1975, que tem como marco um evento patrocinado pela ONU que
trazia como tema: ―O papel e o comportamento da mulher na realidade brasileira‖. Tal evento aconteceu na
Associação Brasileira de Imprensa – ABI e foi fundamental para que se fortalecesse a criação do Centro da
Mulher Brasileira - CMB, no mesmo ano, com sede no Rio de Janeiro. Por esse caminho, em São Paulo,
também, com o intuito de se criar um espaço de encontros e reflexões femininas, criou-se o Centro de
Desenvolvimento da Mulher Brasileira. Além desses Centros, outras narrativas dão conta de alguns grupos de
mulheres situados no eixo Rio/São Paulo, que se reuniam antes mesmo de 1975, formado por intelectuais como
Walnice Nogueira Galvão e Maria Odila Leite da Silva Dias, que circulavam pelos Estados Unidos e Europa e
traziam uma bibliografia atualizada para discussão sobre o feminismo, conforme especifica a historiadora Maria
Joana Pedro, em seu artigo: Narrativas Fundadoras do Feminismo. Idem.
43

mulher no mundo, quer dizer, o papel dela era muito maior do que o de ser
uma esposa daquele modelo, de ser uma mãe daquele modelo, de ser uma
pessoa parada né? [...] Eu acho que era outro enfoque: a mulher que tem um
papel social e na Igreja, quer dizer, a Igreja está na sociedade... Porque eu
mesma, naquela época, como trabalhando no Movimento, eu não tinha, nem
padre Albani também tinha essa visão feminista não... A gente tinha bíblica e
social. Assim, na sociedade, nós temos direitos. [...] 49

E mesmo depois, com a saída de Valnê do Movimento, ocasião em que os Encontros


de Esposas foram reorganizados por Maria Alice e Lídia Ferreira, já na década de 1970,
também não se observou uma influência direta do movimento feminista e nem de discussões
teóricas sobre gênero. A princípio, a pesquisa partia da hipótese de que tal influência poderia
ter surgido com a chegada de Lídia, justamente, por ser socióloga e trazer experiências de fora
do estado do Ceará. Paulista que era, poderia ter vivido mais de perto com os discursos e
práticas de movimentos feministas que se faziam nos grandes centros urbanos daquele
momento. Entretanto, a própria Lídia esclarece que sua contribuição para os Encontros de
Esposas não se amparou em bases teóricas de feminismo ou de gênero. Muito embora, no
fazer-se desses Encontros essas discussões se fizessem presentes, mesmo sem fazer parte de
um programa feminista propriamente dito. Conforme explica a entrevistada:

Eu não tinha acesso a nenhuma literatura específica de gênero e também


nunca enveredei muito pelo tema de gênero, especificamente nas minhas
leituras. Mais para o final eu realizei uma pesquisa, pois queria entender o
papel das mulheres na economia camponesa. Nessa pesquisa, aprendi que, se
na produção direta dos alimentos da roça a participação não era tão
expressiva, a mulher tem um papel primordial na ―gestão‖ dos recursos que
entram em casa, ou seja, como ela administra a produção de feijão, milho e
macaxeira que se guarda em casa e que vai ―financiar‖ todas as necessidades
da família, e também como ela combina isso com a sua produção direta de
animais pequenos, frutas e alguma verdura do quintal. 50

Nesse sentido, pelo que se percebe nas narrativas das entrevistadas e nas mudanças de
comportamento das camponesas ao longo do Movimento, pode-se dizer que, de algum modo,
o feminismo floresceu entre elas. Muitas nuances dos discursos e práticas feministas foram se
desenhando durante esse processo, alcançando as camponesas em maior ou menor medida,
mesmo sem essa ter sido uma pretensão inicial dos Encontros de Esposas e de sua Equipe de
Coordenação. Como rememora Valnê, no Movimento, além da concepção de autonomia,
também foi surgindo uma discussão em torno da igualdade do homem e da mulher:

49
Entrevista Maria Valnê Alves, realizada em 08 de dezembro de 2018. Em Fortaleza – CE. Arquivo da autora.
50
Entrevista realizada com Lídia Ferreira, em 31 de março de 2016. Entrevista via email, através de questionário
semiestruturado.
44

Então dirigentes e orientadoras do Dia do Senhor. Elas passaram a ter cursos


iguais e discutir questão da igualdade, também a questão de gênero né e até
passou até pela beleza, por exemplo: eu me lembro que eu cortei muito
cabelo, as mulheres não usavam calça comprida, aí como eu usava e eu era
uma pessoa bem jovem, mas ao mesmo tempo eles tinham uma admiração
por mim, viam que era uma pessoa séria e usa calça comprida, por que
minha mulher não vai poder usar né? 51

Em entrevista Maria Alice MacCabe rememora o teor dos temas que norteavam as
discussões nos Encontros dessas mulheres, quando passou a assumir o trabalho de
organização feminina. Os temas de cunho social e a educação dos filhos foram muito
debatidos.

Os encontros das esposas só era uma vez por ano, porém, tinha uma
articulação sobre a pergunta chave porque, como eu disse, tinha meses de
preparação e depois meses de leituras de cartas e relatórios. Os relatórios dos
encontros das esposas iam para todas as comunidades, aí tinham mais
conversas entre as mulheres e as suas comunidades sobre o que acontecia
nos encontros das esposas... Não me lembro que tinha este tipo de roteiro
não, só para mulheres não, eu acho que a maior parte do tempo as discussões
estavam em torno de problemas, problemas sociais que é o que aconteceu
nessa época... Agora, estruturado um roteiro durante o ano só para mulheres
não, mas as mulheres começaram a produzir livrinhos, produziam sobre
educação, a Conceição... a mulher do Abdias... a Fausta. Começaram a
produzir livrinhos e estes livrinhos levavam uma coisa diferente do que os
homens estavam dizendo. Servia, porque tocavam em como estamos
educando nossos filhos, será... acho que foi Conceição que puxou: será que
estamos criando nossos meninos para ser machão? Essa discussão foi por
muito tempo: como estamos criando nossos filhos?52

Interpelada sobre a existência de um roteiro de temas a serem debatidos nos Encontros


de Esposas, a memória de Maria Alice não recupera tal fato. Talvez, porque essas temáticas
não fossem pensadas todas de uma só vez, previamente, como um planejamento anual, mas
fossem surgindo a cada novo momento de preparação para esses encontros com as mulheres.
No entanto, o que fica claro, a partir da documentação escrita do Movimento é que, de início,
a organização e a pauta eram responsabilidade da Equipe de Coordenação, com o tempo, de
acordo com o ideal de autonomia presente no Dia do Senhor, isso passa a compor as
atividades das próprias camponesas, orientadoras.

51
Entrevista Maria Valnê Alves, 18/12/2004. Já citada.
52
Entrevista com Maria Alice MacCabe realizada em 06/06/2009, em Itapipoca – Ce. (Arquivo da autora)
45

Seguindo o modelo mais abrangente do Movimento, com o passar do tempo, nos


grupos de mulheres também foi se formando uma ―Nata‖ agrupando aquelas camponesas
mais atuantes e que assumiram a organização dos Encontros. Representavam a ―Nata‖ as
camponesas Nazaré Flor, Rita de Cassia, Fausta Marques, Rosa Marques, Conceição Araújo,
entre outras. Assim, uma vez por ano, essas mulheres se encontravam no Encontros de
Esposas, onde somavam em torno de cem ou mais mulheres oriundas de comunidades das
duas Dioceses, reunidas no Centro de Treinamento da Diocese de Sobral (CETRESO),
localizado na serra da Meruoca, próximo de Sobral e as despesas ficavam a cargo das
comunidades.
No entanto, quando Valnê recupera sua atuação na Equipe de Coordenação do Dia do
Senhor situa a existência de um planejamento anual, elaborado em conjunto com alguns dos
camponeses mais engajados, os que compunham a ―Nata‖ do Movimento. Nas palavras de
Valnê:

Nós tínhamos um conteúdo programático, embora não aparecesse tanto


porque, é bom dizer que todo o processo do Dia do Senhor, sobretudo, foi
marcado por uma coisa muito importante que é a autonomia. A gente queria
defender dentro do Movimento que as pessoas tinham que conquistar a sua
autonomia. Autonomia do pensar, autonomia do saber né... E pra isto a gente
apresentava, se fazia um plano no começo do ano, nós reuníamos, digamos
vinte pessoas... que a gente chamava a nata do movimento. E aí, aquelas
pessoas, a gente fazia o programa do ano, do que se ia estudar, do que se ia
tratar né... e com muita avaliação... Aí nós elegíamos uns temas como
família, trabalho, educação, comunicação né, lazer, cultura que era pra vê
esses trabalhos gerais e aí se trabalhava história, tudo mas com os textos
bíblicos, então a fundamentação é tanto da ciência como da fé, ou da história
da salvação. Então a gente estudava nesse sentido. 53

De acordo com a narrativa de Valnê, a fundamentação para o programa do Movimento


vinha da união entre ciência e fé, união nem sempre pacífica, principalmente, quando se leva
em consideração que muito daquilo que é considerado possível perante a fé, é considerado
inconsistente para a ciência. No entanto, como o Dia do Senhor trazia uma metodologia de
confrontação entre fé e vida, pode-se suscitar que a palavra bíblica não era absorvida
passivamente pelos camponeses, pelo contrário, observava-se uma recepção ativa, ao passo
que era a partir da bíblia que os camponeses buscavam interpretar os conflitos reais que
viviam, entendendo-os como produtos sociais e históricos. 54

53
Entrevista Maria Valnê Alves, 18/12/2004. Já citada.
54
Nesse sentido, cabe situar a reflexão trazida por Cristopher Hill com relação à tradução e ao acesso à Bíblia
inglesa na Inglaterra do século XVII. O autor situa a democratização da leitura bíblica como um importante fator
no desenrolar dos processos de questionamentos das estruturas do poder absolutista, não se aceitando mais
46

Todos os cursos de formação do Movimento do Dia do Senhor, voltados para os


camponeses em geral, se pautavam principalmente pelos textos bíblicos, mas também, pelas
referências históricas da obra de Nelson Werneck Sodré que, diga-se de passagem, era militar,
comunista, trabalhou no Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB e foi perseguido
pela ditadura. Infere-se, pois, que a escolha de uma referência marxista para a formação dos
camponeses apontava para a própria concepção político-ideológica que a Equipe de
Coordenação assumia e caracterizava o Movimento. Portanto, fazia-se uma leitura da bíblia e
da História do Brasil justamente para fomentar o pensamento crítico daqueles que se faziam
sujeitos no decorrer desse processo.
Desse indício, pode-se suscitar que quando de sua atuação no trabalho de organização
das camponesas esse planejamento também fosse realizado. De modo que para a montagem
dos cursos ofertados durante os Encontros de Esposas também se referendasse algum autor
contemporâneo. No primeiro Encontro de Esposas, ocorrido em 1969, teve como questão
lançada pela Coordenação: ―qual o valor da mulher e sua participação no mundo‖.55
Assim, as mulheres do Movimento passavam meses discutindo esse questionamento,
reunidas em pequenos grupos comunitários, tanto na diocese de Sobral como na de Itapipoca,
bem como, escrevendo assiduamente para o programa radiofônico ―Encontro das
Comunidades‖. Essa escrita dizia do trabalho comunitário que estava sendo realizado, como
também, da tomada de posicionamento da mulher que, aos poucos, ia incorporando em seu
cotidiano conceitos como participação, libertação e autonomia, apreendidos com a prática
pedagógica e pastoral vivenciadas no Dia do Senhor, e em escala mais reduzida, nos grupos
de discussão femininos. Assim como a escrita, a fala dessas camponesas era muito valorizada.
Nas entrevistas, algumas mulheres dizem que nesses encontros ―acharam sua voz‖.

passivamente o autoritarismo do rei, questionando, até mesmo, sua legitimidade. Então, ―a disponibilidade da
bíblia em inglês foi um grande estímulo ao aprendizado da leitura; e isso por sua vez assistiu ao desenvolvimento
de publicações baratas e distribuição de livros. Foi uma revolução cultural de proporções sem precedentes, cujas
proporções não podem ser superestimadas. O acesso direto ao texto sagrado deu aos leigos uma sensação de
segurança que antes lhes faltava, o que serviu para fortalecer críticas de longa data à Igreja e ao Clero. (...)‖. Cf:
HILL, Cristopher. A bíblia inglesa e as Revoluções do século XVII. Trad. Cynthia Marques. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003. p. 32. Aproximando essa reflexão à realidade do Movimento do Dia do Senhor, a
leitura ou audição da Bíblia pelos camponeses os ajudava na aprendizagem e aperfeiçoamento da leitura e
escrita, quase que de modo autodidata, como também, servia como instrumento questionador da ordem vigente,
principalmente, da ordem fundiária, partindo do princípio de que: ―na Bíblia, Deus não deu terra para ninguém.
Então, porque há uns com terra e outros sem?‖, como é comum nas narrativas dos entrevistados.
55
De acordo com os relatórios dos Encontros de Esposas de 1969-1973 vemos as pautas que marcaram os
Encontros dos respectivos anos: 1969 – Conteúdo: Valor da Mulher, sua participação no mundo. 1970 –
Conteúdo: Valor da mulher. Relacionamento: mulher x marido, pais x filhos, família x comunidade. 1971 –
Conteúdo: Valor da mulher, relacionamento e atuação no mundo. 1972 – Conteúdo: Higiene e Saúde. 1973 –
Conteúdo: Libertação da mulher; higiene e saúde. Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Diocese de Sobral.
47

Dos Encontros de Esposas participavam, em sua maioria, as esposas dos dirigentes do


Dia do Senhor, sendo que algumas, já vinham engajadas no Movimento desde as primeiras
reuniões nas comunidades. O diferencial de um grupo de esposas veio pela necessidade de as
mulheres discutirem assuntos referentes às próprias questões femininas, coisas sequer
vislumbradas nos Encontrões ou em reuniões mistas, envolvendo homens e mulheres.
Questões delicadas como a opressão dos maridos e as formas de libertação da mulher, bem
como, a sexualidade feminina marcaram os pontos altos das discussões travadas em vários
desses encontros.
É muito forte nas narrativas das mulheres o aspecto relacional de gênero, ou seja, elas
estão constantemente fazendo comparações entre a ―realidade‖ masculina e a feminina,
ressaltando as diferenças culturais que, tradicionalmente, marcaram a criação, a visão de
mundo, as lutas de ambos os sexos. Nesse sentido, as mulheres do campo tentavam superar o
machismo e o autoritarismo de ―seus homens‖, o que se evidencia na ideia de que o ―[...]
homem precisava se libertar da opressão do patrão, enquanto, as mulheres precisavam se
libertar tanto da opressão do patrão quanto da dos maridos.‖ 56
De acordo com Rosa Pires, uma das camponesas com forte atuação no Movimento, os
Encontros de Esposas ajudavam as mulheres a se tornar mais ativas, participativas na
comunidade e na relação com os maridos, ao passo que ―[...] as mulher eram assim muito
paradas. Elas parece que tinham medo de tudo‖. A questão da opressão masculina e da
violência simbólica (por vezes, física, também) aparece na narrativa de Rosa expondo os tipos
de ―sofrimento‖ por que as mulheres passavam, pois ―[...] tinha mulher que sofria muito até
dos maridos e não tinha coragem de butar aquilo pra fora, de dizer o que sentia... As mulher
sofria muito mais do que os homem...eu achava assim, tinha homem que era muito
machão‖.57
Com os grupos de esposas, ia-se tentando romper as barreiras dos conflitos de gênero,
constituindo um novo contorno para a relação homem-mulher, em que essas mulheres
aprendiam a ultrapassar a fronteira da submissão, da passividade e segundo a entrevistada:
―[...] decidiram que elas tinham que participar e que cobrar também a parte delas‖, exigindo
respeito e a valorização de seu trabalho, conforme salienta Rosa ao definir a intenção desse
movimento de esposas:

56
Esse pensamento aparece na fala de Rita de Cássia, de Rosa Pires, assim como é referenciado por Maria Alice,
ao citar exemplos das questões que apareciam nas reuniões dos Encontros de Esposas do Dia do Senhor,
principalmente, nos primeiros Encontros. A entrevista com Rita de Cássia se realizou no dia 01/04/2010 e as
entrevistas com Rosa e Maria Alice, ambas no dia 06/06/2009. Arquivo da autora.
57
Rosa Pires, entrevista realizada em 06/06/2009. Itapipoca- CE. (Arquivo da autora)
48

Ai foi assim que a gente foi criando esse movimento, e para ver se se
valorizava mais os trabalho da gente. Porque tinha homem que dizia assim:
ah a minha mulher só faz as coisas em casa. E eu já acho que a gente fazer as
coisas dentro de casa, cuidar de filho já é um grande trabalho,
principalmente se a gente participar da luta lá fora, assim, com a terra,
cuidando na alimentação dos filhos mais ele. Aí é que completa mesmo. E
tem muita mulher que é forte nisso aí, ás vezes, até mais forte de que certos
homens. 58

De certo modo, participar dos Encontros de Esposas significava, para algumas


camponesas, a conquista da autonomia feminina, da liberdade de ir e vir, da igualdade de
direitos entre maridos e esposas, pois do mesmo modo como eles viajavam e passavam a
semana fora de casa participando das atividades do Movimento do Dia do Senhor, agora, elas
(suas mulheres) também se organizavam e dividiam o tempo entre as lutas da casa e a luta no
Movimento, reunindo-se em grupos de esposas, viajando para realizarem reuniões em outras
comunidades, passando dias na Serra da Meruoca, quando dos Encontros de Esposas anuais.
Tudo isso é percebido através dos Relatórios dos Encontros de Esposas, escritos
manualmente pelas próprias camponesas, assim como, nas suas narrativas orais, como será
evidenciado no correr dos capítulos dessa pesquisa.

1.1. Arquivo do Dia do Senhor: lugar de existência e resistência das mulheres do campo

O arquivo do Dia do Senhor foi sendo construído e preservado ao longo de quase


quarenta anos de sua existência. No decorrer de sua produção e guarda, pode-se notar
claramente uma preocupação da Equipe de Coordenação do Movimento em organizar e dar
sentido aos documentos escritos. Tal preocupação se revela na forma como os documentos
estão organizados, demonstrando um cuidado em não deixar se perder a história do
Movimento e da militância abnegada de suas lideranças, leiam-se religiosos e leigos, como
também, não deixar se perder a história de luta e de sonho dos camponeses das zonas Norte e
Noroeste do Ceará.
É válido conjecturar que a Equipe de Coordenação do Dia do Senhor tinha consciência
da importância do Movimento para a região como também para o contexto político e
eclesiástico vivenciado no Brasil. Preservar a história do Dia do Senhor era também preservar

58
Na narrativa de Rosa é muito forte a apropriação da palavra luta. Nesse sentido, mulheres como Nazaré Flor,
Rita de Cássia e Fausta são lembradas como fortes companheiras de luta e exemplos de sabedoria.
49

uma iniciativa de religiosos e leigos da Igreja Católica de Sobral comprometida com o ideal
pós-Concílio Vaticano II. Uma história que, diga-se de passagem, não era encampada por
todo o clero da Diocese. Tanto que, apesar do apoio do bispo de então, Dom Walfrido
Teixeira Vieira, pouquíssimos padres se envolveram diretamente no Movimento. 59
Então, o esforço de organizar toda documentação, tanto o que era produzido pela
própria Coordenação, quanto o que era produzido pelos camponeses e camponesas confere
um ar de consciência histórica e de arquivamento de si60, um ―eu coletivo‖. A grandiosidade
do Movimento do Dia do Senhor pode ser percebida pela quantidade de documentos
arquivados, nos quais se tem a dimensão territorial em que ele estava atuando. Ao mesmo
tempo, por seu arquivo, tem-se a dimensão do número de pessoas que estavam envolvidas
nesse Movimento, homens e mulheres do campo que pela quantidade de documentos
assinados com seus nomes dão indícios que dedicaram grande parte de suas vidas a esse
projeto coletivo de luta social.
Através de seu arquivo, percebe-se o projeto pedagógico do Movimento, tanto de
formação política quanto religiosa. Desde os registros dos Cursos de Conhecimentos Gerais e
Linguagem, que marcaram os primeiros anos de atuação do Movimento, voltando-se para o
estudo da história do Brasil. Tais cursos eram embasados nos livros de Nelson Werneck
Sodré. Como também, o arquivamento de todos os Relatórios dos chamados Encontrões que
passaram a acontecer na serra da Meruoca, uma vez por ano durante o mês de julho.
Ao que parece, os Encontrões vieram depois dos cursos de Conhecimentos Gerais e
Linguagem, marcando uma nova fase do Movimento. Principalmente, o arquivamento tão
minucioso desses documentos que remontam à suas fases iniciais, deixa a entrever o zelo com
tal documentação e uma preocupação desde o calor dos acontecimentos com a preservação e
organização daquilo que viria a ser a memória do Movimento do Dia do Senhor.
Ao contrário de outras experiências sociais, em que não se percebe uma preservação
deliberada da massa documental produzida, no Dia do Senhor, fica visível desde o primeiro
contato com sua documentação, que tal corpus já fora guardado com o intuito arquivístico,
embora, não estivesse ocupando um espaço físico próprio de arquivo e nem estivesse
obedecendo à lógica dos arquivos instituídos, mas a intenção de se arquivar estava ali
resguardando tanto àqueles maços de papéis almaços manuscritos quanto os papéis sem pauta
mimeografados com tinta azul, revelando para além do conteúdo dos documentos, suas

59
Houve casos em que alguns padres nem aceitaram de bom grado o Movimento em suas paróquias, como o
exemplo do padre Odésio, pároco do município de Bela Cruz, citado na entrevista de Padre Albani Linhares,
realizada em 18 de dezembro de 2004, em Sobral – Ce. (Arquivo da autora)
60
ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a Própria Vida. In: Revista Estudos Históricos, vol. 11, n. 21, 1998.
50

próprias condições de produção, para lembrar Certeau61. Documentos datados para datar a
experiência do Movimento do Dia do Senhor no arquivo pessoal de padre Albani Linhares, o
guardião dessa memória.
A noção de guardião aqui atribuída ao padre Albani remete-se ao fato dele próprio
guardar esse acervo em sua casa, na diocese de Sobral. Portanto, cabia ao padre o controle de
quem adentrava sua residência, ou metaforicamente, de quem adentrava em seu passado, um
passado coletivo impregnado de luta social, sonho e fé diluídos nos diversos documentos
organizados em pastas devidamente identificadas com a tipologia do documento e datadas,
engavetadas em armários de aço.
O acesso ao arquivo era permitido ao passo que se permitia o acesso a sua casa. Tal
casa, durante os anos de existência do Movimento servira de ponto de apoio para muitos dos
camponeses que compunham o Dia do Senhor, a ponto de àqueles participantes mais
comprometidos terem uma cópia da chave da casa e passe livre.62 Desde o falecimento do
padre Albani, em 2007, esse acervo está sob a guarda da Diocese de Sobral, ocupando o
espaço de uma das salas do setor administrativo.
O Movimento, assim como a casa do padre Albani, era um lugar coletivo tomado pelo
e para o ―povo do Movimento‖. Ser guardião dessa experiência de luta coletiva por autonomia
dos pobres e por justiça social possivelmente o deixava quite com seu compromisso político e
eclesiástico, assumido com a pastoral popular da qual era tributário. Embora não tenha
participado do Concílio Vaticano II, padre Albani mantinha-se em constante leitura dos
documentos conciliares e em contato com bispos de dioceses vizinhas de Sobral que
passavam a assumir uma abertura para a Igreja-Povo que se configurava a partir dos anos
1960.
Dentre os bispos, pode-se citar o nome de Dom Antônio Fragoso, da diocese de
Crateús, como também, o nome de Dom Paulo Ponte, da diocese de Itapipoca. Este último
deu total abertura para que o Dia do Senhor adentrasse em sua diocese. Nesse sentido, a
reflexão de Artières sobre o ―arquivamento do eu‖ é evocada aqui numa tentativa de
compreender o arquivamento da experiência do Dia do Senhor, entendido como um ―eu
coletivo‖:
61
Michel de Certeau. A Operação Historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de
Janeiro: Forense-Universitária, 1982.
62
Durante o ano de 2005 eu estive pesquisando no arquivo do Movimento, ocasião em que também recebi uma
cópia da chave da casa do padre Albani. Enquanto pesquisadora e amante da história do Dia do Senhor fiquei
completamente extasiada com o gesto de confiança e desprendimento do padre. Porém, não se passa
despercebido que tal gesto traz implícito a consciência do mesmo de que minha pesquisa daria ao Movimento
uma visibilidade e o tiraria do espaço privado e limitado de sua casa, assegurando para a posteridade essa
experiência de um passado de luta e de sonho.
51

O arquivamento do eu não é uma prática neutra; é muitas vezes a única


ocasião de um indivíduo se fazer ver tal como ele se vê e tal como ele
desejaria ser visto. Arquivar a própria vida, é simbolicamente preparar o
próprio processo: reunir as peças necessárias para a própria defesa, organizá-
las para refutar a representação que os outros têm de nós. Arquivar a própria
vida é desafiar a ordem das coisas: a justiça dos homens assim como o
trabalho do tempo. 63

A intenção deliberada da Coordenação do Movimento de arquivar e guardar para a


posteridade a experiência do Dia do Senhor pode ser reforçada com a gravação de uma
entrevista com um camponês chamado Sebastião Alves de Melo. Nessa gravação encontra-se
a narrativa da História do Movimento do Dia do Senhor64, em que através da memória de
Sebastião, ou seja, um sujeito que compunha a base do Movimento se recuperava e se
consagrava tanto a trajetória do Dia do Senhor quanto a trajetória do camponês que se
constituiu em uma liderança comunitária com o fazer-se desse Movimento. Tal gravação
encontra-se transcrita e também compõe o arquivo do Movimento.
Conjectura-se que a consciência histórica do arquivamento dessa experiência era
manifestada tanto pela coordenação quanto pelos camponeses mais comprometidos com o
Movimento. Na narrativa de Sebastião isso aparece claramente. Como defende Artières

Sempre arquivamos as nossas vidas em função de um futuro leitor


autorizado ou não (nós mesmos, nossa família, nossos amigos ou ainda
nossos colegas). Prática íntima, o arquivamento do eu muitas vezes tem uma
função pública. Pois arquivar a própria vida é definitivamente uma maneira
de publicar a própria vida, é escrever o livro da própria vida que sobreviverá
ao tempo e à morte. 65

Por esse caminho, a noção de guardiã da memória também pode ser atribuída à
religiosa Maria Alice MacCabe no que se refere à guarda do acervo relacionado aos
Encontros de Esposas, pois no momento dessa pesquisa todos os documentos estavam sob sua
posse, sendo gentilmente cedidos para digitalização. No ano de 2019, esse acervo é guardado

63
ARTIÈRES, p. 31.
64
Manuel Zenóbio Vasconcelos, dirigente de Cruz, também se animou a contar a História do Movimento do Dia
do Senhor. Organizou sua escrita em quatro páginas mimeografadas, enfatizando as conquistas dos camponeses
no plano da libertação e autonomia. Zenóbio nasceu e se criou no meio rural mas, estudou e alcançou formação
universitária. Sua História é contada com coerência, estruturada em tópicos que discorrem, brevemente, sobre a
Formação do Movimento, Cursos, O Movimento e sua caminhada, a Frieza do Movimento, Trabalho da Nova
Equipe e Movimento Atual. De maneira sucinta e com linguagem formal, sua narrativa constitui mais uma
versão, mais um registro da História do Movimento. Tanto a História gravada por Sebastião quanto a História
escrita por Zenóbio foram analisadas em minha dissertação de mestrado.
65
ARTIÈRES, p. 31.
52

na diocese de Sobral, somando-se ao Arquivo do Movimento do Dia do Senhor. Nesse mesmo


ano, Maria Alice retorna, definitivamente, ao seu país de origem quebrando o último elo que
os camponeses e camponesas ainda tinham com a antiga Coordenação do Movimento.
O acervo dos os Encontros de Esposas é composto pelos Relatórios, pensados pela
equipe de Coordenação, em particular, Valnê, Maria Alice e Lídia. Estes relatórios
encontram-se datados e conservados numa sequência anual, agrupados juntamente aos
Relatórios que chegavam de cada uma das comunidades rurais em que o Movimento estava
atuando, estes produzidos pelas próprias participantes do Movimento.66 Dessa forma, as cartas
escritas pelas camponesas espalhadas pelas diversas comunidades da diocese de Sobral e de
Itapipoca, também, encontram-se arquivadas tendo como critério o nome de cada uma das
mulheres que escreviam para o programa radiofônico.
Muitas camponesas podem ser encontradas no rastro dessas cartas e Relatórios, no
Arquivo do Dia do Senhor. Nesse sentido, os Relatórios dos Encontros de Esposas dão
visibilidade às ações femininas e a seu cotidiano no mundo rural, presente nesses escritos.
Possibilitam também, conhecer a organização, os conteúdos e a estrutura desses Encontros
que, por vezes, congregavam em torno de cem mulheres vindas de diversas comunidades,
bem como, uma aproximação com a sociabilidade vivida nos momentos de (re)encontro
dessas mulheres, nas horas de lazer, das cantorias, dos risos, das discussões na hora do estudo,
das trocas de experiências entre mulheres de diferentes idades, desde recém-casadas até
mulheres com muitos anos de convivência com os maridos, mulheres que tiveram mais de um
marido, viúvas. É possível, ainda, compreender os conflitos e as relações de força entre os
gêneros.
Em uma leitura mais atenta a esses Relatórios, percebe-se que o Movimento do Dia do
Senhor registrou a atividade das mulheres do Movimento durante todos os anos que se
realizaram os chamados Encontros de Esposas, durando praticamente três décadas, de 1969 a
1996. A cada ano desses encontros que aconteciam sempre no mês de dezembro, as mulheres
debatiam um tema de seu interesse.
Percebe-se também que nas diversas comunidades rurais em que o Dia do Senhor
atuava, tanto na diocese de Sobral quanto na diocese de Itapipoca, as mulheres se reuniam

66
No entanto, Valnê Alves chama atenção para o fato de que nem tudo podia ser arquivado, tendo em vista as
dificuldades e irreverências que pressupunham o trabalho de base realizado no meio rural. Se arquivar o que era
produzido nos Encontros de formação do Movimento era muito mais viável do que se arquivar o que se produzia
e vivenciava nas brenhas do sertão. O número reduzido de membros na equipe de Coordenação também é
ressaltado por Valnê, geralmente ia somente ela e um motorista para as visitas nas comunidades rurais, às vezes,
comunidades extremamente isoladas, de modo que impossibilitava os registros das atividades e,
consequentemente, o arquivamento. Entrevista com Maria Valnê Alves, realizada em 08 de dezembro de 2018.
53

regularmente em grupinhos menores para refletirem sobre seus problemas e também


definirem o tema do grande Encontro de Esposas anual, ou seja, essas mulheres passavam o
ano se preparando para o encontro de dezembro, realizando o trabalho de base nas suas
comunidades.
Esses Relatórios dos grupos de esposas de cada comunidade eram enviados para o
Programa de rádio do Movimento, Encontro das Comunidades, transmitido diariamente pela
rádio Educadora do Nordeste, de concessão da diocese de Sobral. Assim, através do rádio,
todas as companheiras espalhadas pela região da ―serra, praia e sertão‖, como ―o povo do
Movimento‖ costumava dizer, ficavam informadas sobre o andamento das atividades das
mulheres das demais comunidades.
―Participação da mulher no mundo‖, ―casamento e sexualidade‖, ―educação dos filhos
e controle de natalidade‖, a ―questão da terra‖, ―higiene e saúde da mulher‖ foram temáticas
debatidas nos Encontros de Esposas anuais. Tais encontros aconteciam na Serra da Meruoca,
próximo a Sobral, no prédio do CETRESO – Centro de Treinamento de Sobral, vinculado à
diocese. Pela leitura dos Relatórios dos anos 1970 percebe-se uma quantidade significativa de
camponesas participando desses encontros, porém, nos Relatórios da década de 1990, já se
verifica uma queda na participação de mulheres, tanto que isso passa a ser ponto de discussão
entre o grupo das camponesas mais atuantes e a equipe de coordenação do Movimento.
De uma média de oitenta a cem mulheres nos primeiros encontros, se observa um
ínfimo número de doze a vinte e poucas mulheres nos últimos encontros. Esse fato fez
também com que os Encontros de Esposas anuais deixassem de ser realizados na Serra da
Meruoca e passassem a se realizar em cidades como Morrinhos, Acaraú e Itapipoca, para
contemplar as camponesas dessas regiões que, ao que parece, são as que mais se mantiveram
firmes no propósito de organização feminina do Dia do Senhor.
Nesses Relatórios são descritos os dados básicos das participantes de cada Encontro,
tais como idade, quantidade de filhos vivos, quantos filhos morreram, por vezes, informam a
idade que casaram, em que trabalham, dizem da relação com os maridos, algumas se dizem
―escravizadas‖ pelo marido, no sentido de não terem liberdade nem de sair de casa sem a
permissão dele, etc. Pela leitura dos Relatórios, muitos deles, escritos manualmente por essas
camponesas, sem obedecer a um modelo padrão de produção da norma culta, percebe-se o
autodidatismo das mesmas, pois a maioria dessas mulheres não tiveram condições de acesso
ao estudo formal, mas, muitas delas puderam aprender e se desenvolver com o programa de
formação do Movimento do Dia do Senhor e com os Encontros de Esposas. Também, pode-se
destacar a vontade de saber, de participar politicamente da sociedade em que viviam.
54

Algumas dessas mulheres passaram a escrever assiduamente para o programa de rádio do


Movimento, pois criaram o hábito da escrita e da participação política, sentiam-se conscientes
de seu papel no mundo e nas suas comunidades. Conceição, de Acaraú; Fausta, de Morrinhos;
Rosa, da Serra Verde; Eva, do Poço da Onça; Rita, de Itarema, são alguns nomes recorrentes
nos Relatórios arquivados. Essas são algumas das escritoras do campo.
Isso tudo possibilita refletir sobre as condições de vida dessas mulheres, bem como,
refletir sobre o papel do Dia do Senhor na orientação da vida dessas mulheres, por exemplo,
informando e orientando sobre cuidados básicos de higiene e saúde, a importância do diálogo
na família e na educação dos filhos, como também, métodos de contracepção naturais, como a
―tabela‖67, visto que se observava um grande número de mulheres jovens com uma
quantidade grande de filhos, como também uma grande mortalidade infantil. As próprias
camponesas eram chamadas a pensar sobre o papel do Movimento em suas vidas.
Pela quantidade significativa de cartas que compõem o arquivo, as camponesas dizem
de suas lutas, do trabalho pastoral realizado no Movimento, dos conflitos pulsantes no dia-a-
dia do trabalho no campo, das injustiças dos patrões, da luta pela terra e pela sobrevivência,
da opressão social e familiar. De um modo geral, diziam da realidade em que estavam
atuando, descobrindo a fortaleza do coletivo e demarcando seu lugar no mundo.
Tais cartas são oriundas das seguintes comunidades: de Juritianha, município de
Itarema, somando um total de 130 cartas; de comunidades do município de Amontada, num
total de 141 cartas, da comunidade do Poço da Onça, município de Miraíma, somando 75
cartas. Todos esses municípios compõem a Diocese de Itapipoca. Já da Diocese de Sobral, as
cartas vinham da comunidade de Serra Verde, num total de 14 cartas. Conjectura-se que
muitas cartas vinham também de outras comunidades, ouvintes da Radio Educadora do
Nordeste, mas que porventura não foram devidamente arquivadas, pois nem tudo se
conseguiu arquivar. A periodização dessas cartas abarca, principalmente, as décadas de 1980
e 1990. Através de sua leitura é possível mapear os principais acontecimentos das
comunidades rurais, o que era entendido pelas camponesas como notícias importantes de
serem comunicadas ao Movimento, bem como, de serem partilhadas aos companheiros de
diversas comunidades que se conectavam pelo programa de rádio.
Nesse sentido, nas cartas da década de 1980 é muito frequente as reclamações em
torno da seca, dos Programas de Emergência do Governo Federal, das injustiças e corrupções

67
A tabelinha é um método que se baseia no cálculo dos dias em que provavelmente estará mais apta a
engravidar, caso tenha relações sexuais desprotegidas. Assim, pode ser utilizada tanto para este fim quanto para a
contracepção. Dispensa o uso de anticoncepcionais. Cf.: http://brasilescola.uol.com.br/biologia/tabelinha.htm.
Acesso em: 12 mar. 2017.
55

com as verbas destinadas a essas frentes de trabalho, da exploração e da miséria em que


estavam vivendo os camponeses. Os primeiros anos dessa década marcaram uma seca severa
68
no Nordeste e, em particular no Ceará. A exemplo disso, em uma carta de 1984 lia-se as
notícias da reunião realizada pelas comunidades rurais da Diocese de Itapipoca.

Foi uma ótima reunião, uma reunião livre para se falar o que quisesse. No
inicio da reunião ninguém sabia o que falar, mas para o fim todos falaram e
falaram bem. Foi falado em sestão, bolção, economia e sobre o pobre que
morre e se acaba e leva fim e o rico que morre é saudoso... e muitos outros
assuntos.
Sobre o sestão teve vereadores que foi a favor dos patrões, mandou cancelar
os sestões a mando dos fornecimentos. Aí o povo da comunidade que é
muita gente foi falar para o vereador – ―como é que você deixa de ser por
nós que somos muita gente para ser pelos fornecedores que são poucos? Aí
eles tiveram que assinar o sestão para nós. Sim, antes dele assinar, eles
disseram – ou assina ou nós invade tudo nos fornecimentos‖
Também foi falado sobre o bolção que não está dando nem para o próprio
trabalhador, jamais para sustentar 8 ou 10 filhos, assim porque na casa que
tem 2 ou 3 alistados tem 10 ou 12 pessoas para sobreviver desse dinheiro. E
houve muito mais conversa que fica para ser lida num outro programa.
Assina as comunidades Barra do Garrote, Riacho Fundo e Lagoa do Juá. 69

Pela carta se percebe a organicidade das reuniões quanto à liberdade de participação


dos camponeses enunciando suas falas, por vezes timidamente, mas que traziam elementos da
vida concreta e das dificuldades de sobrevivência no período de seca. Diziam da economia
doméstica dos lares camponeses que não correspondia ao ganho minguado nas Frentes de
trabalho dos Programas de Emergência, como os Bolsões. 70

68
De acordo com informações sistematizadas pela Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos -
FUNCEME, percebe-se que o índice de chuvas anual para o estado do Ceará registou um desvio negativo a partir
de 1979, com -26,8%, sendo seguido em 1980, com -16,9%; em 1981, com -23,9%; em 1982 com – 23,6% até
1983, ano que atinge um desvio máximo de -57,3 %. Os anos seguintes registraram desvios positivos indicando
uma trégua na escassez de chuvas, exceto no ano de 1987, que registrou desvio negativo de -21%. Cf.:
http://www.funceme.br/app/calendario/produto/ceara/media/anual. Acesso em: 20 dez. 2018.

69
Cartas lidas no Programa de rádio ―Encontro das Comunidades‖, 1984. Arquivo Movimento do Dia do
Senhor.
70
Durante a década de 1980 o Ceará enfrentou um severo período de seca, principalmente durante os anos de
1979 a 1983. Para aliviar as tensões sociais decorrentes da fome e da sede dos camponeses, o Governo Federal
lançou o Programa de Emergência, que destinava verbas para construções de obras, como açudes e barragens,
em médias e grandes propriedades inscritas no Programa. De fato, a intenção governamental em sanar a falta de
trabalho e a fome no campo, rapidamente passou a ser revertida em práticas clientelísticas e a servir de moeda de
troca por votos, como também, de exploração e injustiças contra os camponeses. Para uma melhor compreensão
das políticas governamentais de combate à seca, ver: CAMPOS, Nivalda Aparecida. A grande seca de 1979 a
1983: um estudo de caso das ações do governo federal em duas sub-regiões do estado do Ceará (Sertão Central e
Sertão dos Inhamuns). In: Teoria e Pesquisa 44 e 45, jan/jul 2004.
56

Também se percebe a consciência de luta coletiva desses camponeses ao questionarem


a atitude dos vereadores que deixam de defender os interesses dos trabalhadores para defender
os interesses dos donos das terras alistadas no Programa de Emergência. Como repertório do
período de secas, a ameaça de invasão e de saques dos fornecimentos fora conscientemente
utilizada para fazer pressão política a favor das necessidades desses camponeses, ou seja, a
carta demonstra claramente a organização desses trabalhadores, servindo de inspiração para a
ação direta das demais comunidades, tanto que foi uma das cartas selecionadas para ser lida
no Programa de rádio ―Encontro das Comunidades‖.
A ação direta da comunidade na reivindicação de seus direitos, subvertendo o Status
Quo com ameaças do tipo: ―[...] ou assina ou nós invade tudo nos fornecimentos‖ é
relacionada aqui com o exemplo de Economia Moral dos ingleses do século XVIII, em que
Thompson apresenta uma lógica moral para a ação dos pobres pautada pela tradição e pelo
costume que regia suas vidas em comunidade. Assim como, na Inglaterra do século XVIII a
ação popular não era ―espasmódica‖ tendo, portanto, uma ―noção legitimadora‖, a ação dos
camponeses do Dia do Senhor também era considerada legítima por parte da comunidade ao
passo que estavam lutando contra o desrespeito de um direito de primeira ordem para sua
sobrevivência. 71
Ainda durante a década de 1980, começa a aparecer nas cartas a discussão sobre
eleições e política partidária, deixando transparecer na escrita camponesa a consciência
política de que os candidatos passam a visitar as comunidades e a se aproximar dos pobres a
fim de angariar votos, mas depois das eleições esses políticos desaparecem e não cumprem
com suas promessas. Os desmandos da política local também aparecem muito na narrativa
dessas cartas. Na realidade, o conteúdo das cartas diz muito do tempo em que seus narradores
escreviam e, justamente ao longo desse período, o Brasil passava por um processo de
esgotamento da ditadura civil-militar e do seu bipartidarismo, vivenciando o retorno das
eleições diretas para governadores, como também, para prefeitos das capitais.
Nesse bojo, evidenciava-se a reorganização partidária proporcionada pela Reforma
Partidária de 1979 que, visando o processo de abertura ―lenta, gradual e segura‖, propunha o
fim do bipartidarismo com a criação de seis novos partidos, dentre os quais a Aliança
71
Como lembra Thompson: ―[...] É certamente verdade que os motins eram provocados pelo aumento dos
preços, por maus procedimentos dos comerciantes ou pela fome. Mas essas queixas operavam dentro de um
consenso popular a respeito do que eram práticas legítimas e ilegítimas na atividade do mercado, dos moleiros,
dos que faziam o pão, etc. Isso, por sua vez, tinha uma visão consistente tradicional das normas e obrigações
sociais, das funções econômicas peculiares a vários grupos na comunidade, as quais, consideradas em conjunto,
podemos dizer que constituem a economia moral dos pobres. O desrespeito a esses pressupostos morais, tanto
quanto a privação real, era o motivo habitual para a ação direta‖. In: THOMPSON, E.P. Costumes em comum.
Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. P. 152.
57

Renovadora Nacional (ARENA), partido do regime, passava a ser substituído pelo Partido
Democrático Social (PDS), como também, permitia-se a criação de partidos de esquerda,
justamente para desarticular a força política do Movimento Democrático Brasileiro (MDB),
único partido de oposição, consentido, que passou a ser Partido do Movimento Democrático
Brasileiro (PMDB). Nessa Reforma, criou-se o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o Partido
Democrático Trabalhista (PDT) e o Partido dos Trabalhadores (PT) com o intuito de
fragmentar a oposição para manter o equilíbrio do regime ditatorial.72 Portanto, tanto nas
capitais como nos interiores do país, essa mudança de cenário político passou a ser sentida e,
indício disso, é o que se lê nas cartas dos camponeses da zona Norte e Nordeste do Ceará.
Nesse sentido, é possível perceber essa consciência política nos camponeses e nas
camponesas que votariam nas eleições municipais de 1982. Aliás, a eleição de 1982 foi a
última ocorrida durante o Regime Militar.

Queridos camponeses
Meu cordial abraço, mais uma vez escrevo para nosso programa pois
só assim posso conversar com todos vocês. Eu quero falar sobre nossas
vidas, como é de custume, emtão vou falar um pouquinho sobre pulitica por
estar no tempo, nós estamos atormentados pelo os pultiticos, pois são muitos
com ciume uns dos outros, eles estam quase doidos sentindo já, um pouco da
nossa união, emtão começando a se avexar porque eles sabem que nós já
trabalhamos em grupo e eles não sabem o que nós comverçamos em nossas
reuniões emtão eles correm, correm na casa de um e de outro sem saber da
certeza quem vota com um ou com outro no partido ou no outro partido pois
são muitos partidos, vamos deixa-los mesmo com fuzos, nós pudemos
escolher o partido e candidato de nós votar, nós sabemos que nenhum
adianta pra nós, mas vamos ajudar Jesus botando pra baixo os mais
poderosos, vamos usar das nossas cabeças, e pençarmos juntos, devemos
votar aonde for mais da nossa vontade. Irmãos vocês comcorda com o que
falei?...
Mas um abraço para todos vocês.
Rita de Cassia
Juritianha 1º/9/1982 73

A carta de Rita de Cássia demonstra a efervescência da política municipal apenas dois


meses antes da eleição. A presença de candidatos nas comunidades rurais e a aproximação
com o povo é analisada por Rita como ―tormento‖, visto que muitas vezes os camponeses

72
Sobre o processo de abertura política do regime ditatorial no Brasil, com ênfase no movimento das Diretas Já,
recomenda-se a leitura de RODRIGUES, Alberto Tosi. Diretas Já: o grito preso na garganta. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2003.
73
Cartas lidas no Programa de rádio ―Encontro das Comunidades‖. Ano de 1982. Arquivo Movimento do Dia do
Senhor.
58

tiveram que receber as visitas desses políticos em suas casas ou nos roçados, durante seu
trabalho.
No entanto, mais uma vez, percebe-se nos escritores do campo sua consciência da
força do coletivo, ao passo que a autora da carta situa a prática do povo se reunir como motivo
de ameaça aos políticos ao dizer que: ―[...] eles estam quase doidos sentindo já, um pouco da
nossa união, emtão começando a se avexar porque eles sabem que nós já trabalhamos em
grupo e eles não sabem o que nós comverçamos em nossas reuniões‖. Por fim, ainda ressalta a
consciência de que o voto é um instrumento político que deve ser usado em favor dos
interesses do povo. Desse modo, conclama aos ouvintes do Programa de rádio do Movimento
―[...] vamos usar das nossas cabeças, e pençarmos juntos, devemos votar aonde for mais da
nossa vontade‖.
Durante a década de 1990 se aprofunda nas cartas a discussão em torno da política
partidária, nos períodos de eleições. Em um contexto de democracia reconquistada desde
1985 com uma eleição indireta de um presidente civil, marcando o fim dos governos militares
e, também, com os direitos políticos restabelecidos e amparados pela Constituição de 1988, o
exercício da cidadania também tinha sido reconquistado. A escolha dos candidatos e a prática
de ir às urnas voltaram a fazer parte da vida política dos brasileiros.
Assim também, como começa a aparecer nas cartas a preferência dos camponeses e
camponesas pelas propostas do então partido de esquerda, Partido dos Trabalhadores, e pela
figura do candidato Luís Inácio, Lula, que desde 1989 vinha disputando as eleições
presidenciais. Essa preferência está explicitada na carta de Maria Hieronides Cordeiro,
enviada ao Programa radiofônico Encontro das Comunidades, no ano de 1994, diga-se de
passagem, ano de eleições presidenciais em que disputavam a presidência da República, Lula,
do PT e Fernando Henrique Cardoso, do PSDB.
A carta segue o padrão de escrita popular presente na maioria das correspondências.
Com uma linguagem informal e fugindo a norma culta, sua autora inicia saudando a equipe do
programa, informando sobre as notícias da comunidade, detalhando o trabalho de base do
Movimento, conforme se lê abaixo:

Marco Ceará de 31 de 1994.


Estou escrevendo para este maravilhozo programa encontro das
comunidades vai meu cordial abraço para toda a Equipe que faz este
importante programa voar no ar. Pois sou ouvinte deste programa todos os
dias, adoro ouvir. Vou dar nuticias de nossa comunidade como vai
caminhando sempre. Temos as celebrações todos os domingos temos reunião
da associação 2 vezes por meis vai mais ou menos.
59

Fizemos as novenas do meis de maio nas casas das famílias em


caminhada foi bem animado. Uma criança levava a imagem e a posição
cantando até u local da novena foi bem animado. O encerramento do dia
31foi na capela de nossa comunidade foi bem participado com muita gente
graça a Deus.
Meus companheiros agora vou falar sobre a política pra muita gente
é uma politicagem não é mesmo uma política concreta. Mais cada um de nós
que bote a cabeça no lugar para saber votar. Porque agente já vivi cançado
de esperar por tantas promeças falsas dos políticos corupitos que governam o
Brasil. Cada um que entra mais ladrão mais a culpa é nossa. Porque não
sabemos votar só sabemos ser é pelegos o poder. Eu sou irritada com isso
porque desde de eu muito nova que venho votando hoje estou com 56 anos e
nunca politico nem um me deu condição pra nada. Nem a mim nem a meu
esposo nem a meus filhos por isso já não estou mais aguentando a dor. Aqui
eu pergunto será que não podemos escolher um candidato que va olhar para
a miséria de nosso povo sofredor? Companheiros e companheiras vamos ser
fortes e vamos quebrar essa corente tão forte que esta ahi nos massacrando
todos os dias de nossa vida. LuLa
Ascina MARIA HIERONIDES CORDEIRO
Em baita do meio Marco esposa do Raimundo Cordeiro 74

A carta não traz a indicação do mês em que foi escrita, porém faz referência às
atividades da novena realizada no mês de maio, fazendo supor que tenha sido escrita ainda no
primeiro semestre de 1994. Nota-se também, que além das queixas com a politicagem e com a
corrupção dos políticos que só se aproveitam do voto do povo com falsas promessas, queixas
muito comuns em muitas das cartas comunitárias, essa carta de Maria Hieronides chama
atenção pela análise que se faz em torno da importância do eleitor para a política brasileira,
visto que em sua análise, o eleitor é que não sabe votar, sendo ―pelego do poder‖.
Em outras palavras, pode-se interpretar que ao ser ―pelego do poder‖, o eleitor
brasileiro se deixa iludir pelo discurso de políticos que, em grande maioria, representam
projetos políticos elitistas e que quando eleitos não realizam nenhuma mudança concreta na
vida dos pobres. Em tom de manifesto, essa carta termina com um apelo aos companheiros e
companheiras para se quebrar a corrente da opressão e do sofrimento do povo sugerindo que
se escolha um candidato comprometido com um projeto político popular, que ―[...] vá olhar
para a miséria do nosso povo sofredor‖. O candidato em questão, Luís Inácio Lula da Silva,
aparece no final da carta, fora do texto, mas explicitamente completando o sentido da
mensagem manifesto.
Em âmbito mais restrito ao Movimento do Dia do Senhor, na década de 1990
aprofundou-se a discussão em torno do sindicalismo e do associativismo, bem como da
participação feminina nesses espaços. De modo que se questionava o poder, e até mesmo o
74
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Encontros de Esposas. Carta Comunitária, 1994.
60

abuso de poder, de alguns presidentes dos sindicatos dos trabalhadores rurais e das
associações. Talvez por isso, o termo ―pelego do poder‖ empregado na carta como elemento
de análise para a política partidária, de modo geral, represente também uma extrapolação das
análises feitas pelos camponeses e camponesas sobre a realidade observada em outras esferas
políticas, nos micropoderes (re)produzidos nos sindicatos e associações em que participavam.
Em âmbito mais amplo, o debate em torno da participação feminina em sindicatos
rurais, como em outras instâncias de poder, é também uma marca dos anos 1990 no Ceará e
no Nordeste do Brasil. Com o avançar dessa década se aprofundaram as reivindicações em
torno da cidadania e da participação política para as mulheres do campo, desde o direito de se
filiar ao sindicato, como o de participação paritária nas eleições sindicais, como também o
direito a documentos individuais e independentes de seus esposos, como a carteira do
sindicato.
Por esse caminho, pressupõe-se que esse debate presente no Movimento do Dia do
Senhor, principalmente, nos Encontros de Esposas, seja reflexo de uma preocupação mais
ampla manifestada por alguns movimentos de mulheres do campo, como o Movimento de
Mulheres Camponesas (MMC), Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco,
Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MTR) e ainda com o
fortalecimento de inúmeros Coletivos Estaduais de Mulheres das Federações de
Trabalhadores Rurais dos Estados. Tal debate também fora encampado por setores
progressistas da Igreja Católica, visto que sua Campanha da Fraternidade de 1990 trouxe
como tema ―Deus quer homem e mulher como companheiros, iguais nos direitos porque os
dois são imagem e semelhança d‘Ele‖.75
Tanto que no relatório do Encontro de Esposas do ano de 1993, está presente a
preocupação em quebrar ―[...] as estruturas de poder, sindicatos e associações‖, mudar ―[...] as
normas do sindicato‖ e ―[...] derrubar os Collor de Melo que existe no poder e no nosso
meio‖. E para isso as mulheres deveriam estar organizadas participando de Encontros e
reuniões de interesse da comunidade, bem como, ―lutando, reivindicando projetos para
Associações, participando na Política do Sindicato, Associações.76
Compondo o Arquivo do Movimento, também se encontram cartas que vislumbra a
experiência concreta das mulheres, verificando-se que o poder se fazia presente na relação
familiar, quando os maridos determinavam seu lugar social, relegando-a ao espaço da

75
Reflexões sistematizadas a partir da leitura de SALES, Cleciana da Maria Veras. Mulheres rurais. Tecendo
novas relações e reconhecendo direitos. Estudos Feministas. Florianópolis 15(20) maio/agosto, 2007.
76
Arquivo do Movimento do Dia do Senhor. Encontro de Esposas. Relatório, 1993.
61

cozinha, controlando seus jeitos de vestir e de falar, bem como ―seus direitos‖ no interior da
relação homem/mulher e da sociedade patriarcal, conforme as palavras de Geraldo Benício,
que pede ao Movimento que:

Valnê peço encine a minha esposa qual é o ponto que a mulher deve
cer igual ao marido pois no meu pençar uma mulher não pode cer igual ao
marido em todos os pontos. Pois a minha esposa tem razão de cer
inguinorante pois foi encinada sem diciplina e vamos ver si com a nossa
ajuda ela si torna uma serva de Deus
Agradece seu disciplo Geral Benicio 77

Ressaltando a natureza ―espontânea‖ e popular das cartas, concebe-se sua escrita como
uma ―reivindicação existencial‖, ao modo de Geneviève Bollème, sendo analisada sem perder
de vista a dimensão da ―conquista da palavra‖, com destaque para um fato duplamente
significativo, posto que se tratava não só da conquista da palavra pelos pobres, mas, enfatiza-
se a conquista da palavra feminina. Desse modo, nas cartas pode-se lê e, ao mesmo tempo,
ouvir a voz das mulheres do campo.
O valor remetido à fala e à escrita dos camponeses foi-se constituindo ideia-força do
projeto de formação do Movimento, o que evidenciava, cada vez mais, camponeses superando
o receio de falar e se comunicar com os seus, bem como, com os sujeitos de outra classe
social. Dessa forma, a prática da escrita se tornou parte integrante da vida dos homens e
mulheres do Dia do Senhor, que escreviam os livrinhos Evangelho dos Lavradores78 sobre
educação, família, comunidade, terra.
Tal valor destinado à escrita e à fala dos camponeses reflete-se no próprio arquivo do
Movimento. A guarda de inúmeras cartas, relatórios e livrinhos indica uma intenção de
arquivar a pluralidade dos sentidos que o ―povo‖ do Movimento lhe atribuía, como também,
deixar documentado a intensa participação dos camponeses de diversas comunidades rurais,
em um tempo que o acesso à escrita, à comunicação e à informação era extremamente restrito.
Nesse sentido, arquiva-se também a sede de expressão e participação política e social dos
escritores do campo.

77
Carta de Geraldo Benício ao Movimento, em 1971. Relatório de Esposas de 1971, pasta 4.1. Arquivo
Movimento do Dia do Senhor. Diocese de Sobral – Ceará.
78
Tais livrinhos foram amplamente analisados em minha dissertação. Compõem uma coleção intitulada
Evangelhos dos Lavradores e evidenciam a iniciativa da equipe de coordenação do Movimento em priorizar a
palavra escrita e falada, estimulando, assim, a escritura dos pobres do campo. Sua publicação era feita, por uma
gráfica local, sendo os livrinhos distribuídos entre o ―povo do Movimento‖, servindo como base de discussão
nos encontros e reuniões.
62

Não é preciso insistir no fato de que a construção de um arquivo pressupõe o


ato da escrita ou que a escrita precede o arquivo. Contudo, convém lembrar
que um arquivo implica não só a produção de discursos de seu titular, como
também acumulação de discursos de outros. 79

No arquivo do Movimento do Dia do Senhor, ainda se encontra a transcrição de


entrevistas com mulheres das comunidades rurais de Serra Verde, realizadas pela Equipe de
Coordenação do Movimento, em que eram abordadas exatamente sobre a dimensão do
trabalho feminino dentro e fora de casa. Esses documentos ajudam a pensar as relações de
trabalho feminino no meio rural, visto o campo ser um espaço cultural ainda mais marcado
pela cultura patriarcal, em que a condição da mulher camponesa historicamente está ligada à
submissão e ao sustento pelos maridos. Não raro, o trabalho feminino no campo é entendido
como uma extensão do trabalho doméstico, principalmente, no período que remonta às
décadas de 1970 a 1990.80
Nesse sentido, o trabalho da mulher camponesa está muito associado à noção de um
trabalho reprodutivo, de cuidados, que chega a ser tomado como um trabalho complementar
ao do esposo. Mesmo se essas camponesas assumissem tarefas de peso nos roçados, sua
participação era vista pelos esposos e, em alguns casos, por elas próprias como uma ajuda ao
trabalho dos homens.
Pelas falas femininas que ecoam desse arquivo, é possível perceber que apesar da
―luta da casa‖, que era assumida naturalmente como uma tarefa sua, essas mulheres
conseguiram demarcar um espaço, chegando a interferir nas decisões econômicas e
financeiras da casa, fosse porque exerciam algum trabalho produtivo, como fazer chapéus,
rendas, costuras, artesanatos, e ganhavam seu próprio dinheiro, fosse porque a partir da
participação do casal no Dia do Senhor, e dessas mulheres nos grupos de esposas, as relações
entre o casal passavam a ter mais diálogo, e a mulher passava a conquistar uma margem de
negociação com seus esposos. Para tais mulheres, essa ―negociação‖ era conquistada pela
astúcia feminina e pelo controle com relação aos gastos do lar que a mulher detinha. Assim,
elas iam ganhando a confiança dos esposos e o respeito às suas opiniões e decisões. A
dimensão do trabalho feminino será mais aprofundada no quarto capítulo.

79
FRAIZ, Priscila. A Dimensão Autobiográfica dos Arquivos Pessoais: o Arquivo de Gustavo Capanema. In:
Revista Estudos Históricos, vol. 11, n. 21, 1998, p. 62.
80
Para refletir sobre as relações de gênero, trabalho e família, cf.: WOLFF, Cristina Scheibe. Mulheres da
Floresta: Uma história Alto Juruá, Acre (1890-1945). São Paulo: Editora Hucitec, 1999; PASSOS, Luana.
Conciliação entre trabalho e família e individualização das mulheres brasileiras. In: GÊNERO. Niterói, vol.16,
n.1, p. 107 – 132, 2. sem., 2015; CYRINO, Rafaela. Trabalho, temporalidade e representações sociais de gênero:
uma análise da articulação entre trabalho doméstico e assalariado. In: Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21,
jan./jun. 2009, p. 66-92.
63

Por esse caminho, ressalta-se a importância do arquivo do Movimento do Dia do


Senhor, por toda memória e história de homens e mulheres pobres do campo, mas também,
pela guarda de uma experiência progressista da Igreja de Sobral. Uma experiência datada.
Nesse sentido, entende-se os diversos tipos de arquivos, enquanto registros de um passado,
como detentores de poder. Na concepção de Schwartz e Cook 81, os arquivos detém poder
sobre conhecimento histórico, formação de memória coletiva e identidade individual, coletiva
e nacional.
Assim, os arquivistas ou gestores de arquivos exercem poder sobre os próprios
documentos, sobre o processo de seleção, guarda e descarte dos mesmos. São eles quem
define o que se considera relevante ou não de ser preservado para a posteridade, construindo
um sentido para a guarda desses documentos. De algum modo, controlam o que se guarda
como memória de um grupo, sociedade ou época, como também, os documentos que servirão
como fontes de pesquisa histórica, tendo em vista que aquilo que foi descartado, dificilmente
sobreviverá aos estragos do tempo e chegará às mãos de historiadores de gerações futuras.
Seguindo o raciocínio de Schwartz e Cook, os arquivos não são neutros, são
―construções sociais‖. Sendo assim, historicamente, os arquivos têm servido como
ferramentas de controle sobre a sociedade moderna. De certa forma, são seus gestores, que,
deliberadamente ou não, determinam os vencedores e perdedores da história. Um exemplo de
que a neutralidade dos arquivos é ilusória, está no fato de que os arquivos modernos oficiais
baniram as mulheres de seu espaço. Noções sexistas, racistas ou classicistas são intrínsecas
aos modos de seleção de documentos e de organização de acervos e arquivos, oficiais ou não.
Para tanto, enfatiza-se a relação entre arquivos, documentos e poder elucidada por Schwartz e
Cook:

Os arquivos sempre foram sobre o poder, seja o do estado, da igreja, da


corporação, da família, do público ou do indivíduo. Os arquivos têm o poder
de privilegiar ou de marginalizar. Podem ser uma ferramenta de hegemonia
ou de resistência. Ambos refletem e constituem relações de poder. São um
produto da necessidade de informação da sociedade, que se reflete na
abundância e circulação de documentos. Eles são a base e a validação das
histórias que nós contamos, das narrativas que dão coesão e significados aos
indivíduos grupos e sociedades. 82

81
SCHWARTZ, Joan M. e COOK, Terry. Arquivos, documentos e poder: a construção da memória moderna. In:
Revista do Arquivo Público Municipal de Indaiatuba. Fundação Pró-memória de Indaiatuba, vol. 03, n. 03,
jul. 2004, p. 15-30.
82
Ibid., p. 23-24.
64

Perseguindo esse raciocínio, entende-se o arquivo do Movimento do Dia do Senhor


não como um arquivo hegemônico, visto o lugar social em que se forjou o Movimento, leia-se
o meio rural, com os pobres do campo. Bem como, seu lugar eclesiástico, no interior da Igreja
Progressista, com as experiências das pastorais populares. Longe de hegemônico, o arquivo
do Dia do Senhor se constitui um arquivo de resistência, por excelência, por resistir ao
esquecimento dos de baixo, por resistir à pompa da Igreja Rito conservadora e por resistir ao
silêncio imposto às vozes de mulheres, pobres e camponesas.
Nesse sentido, o arquivo em questão, se contrapõe aos inúmeros arquivos oficiais
modernos que, de uma maneira ou de outra, elegeram a memória das classes dominantes e
elaboraram um sentido glorioso para o passado nacional. O arquivo do Dia do Senhor
guardou a vivência e existência de homens e mulheres do povo. Atenta-se ainda para o fato de
a presença dessas mulheres no arquivo partir também de uma seleção que não se considera
neutra, pois partiu das próprias mulheres que estiveram à frente da Coordenação do
movimento, leia-se Maria Valnê Alves, Maria Alice MacCabe e Lídia Ferreira. Conjectura-se
que, se não houvesse a presença de mulheres compondo a Equipe de Coordenação, as
camponesas do dia do Senhor não constassem no Movimento, quiçá em seu arquivo.

1.2. “Não precisa saber lê nem escrever, basta trazer a cabeça no lugar”:
Encontros de Esposas no percurso dos Relatórios

De acordo com o arquivo do Dia do Senhor a documentação referente aos Encontros


de Esposas data de 1969. O primeiro Relatório trazia como tema do Encontro ―O valor da
mulher, sua participação no mundo‖. Através dos Relatórios arquivados vemos as pautas que
marcaram os Encontros dos anos 1970 com a discussão sobre o ―Valor da mulher.
Relacionamento: mulher x marido, pais x filhos, família x comunidade‖, durante 1971
discutiu-se sobre ―Valor da mulher, relacionamento e atuação no mundo‖. O Encontro de
Esposas de 1972 trouxe como conteúdo ―Higiene e Saúde‖ e o ano de 1973 associou o tema
da Libertação da mulher ao conteúdo de higiene e saúde.
Percebe-se que os temas debatidos nos Encontros de Esposas eram reincidentes.
Talvez, pela própria metodologia de Educação Popular utilizada pelo Movimento, que
elaboravam os Programas dos Encontros objetivando fixar certos conteúdos que surtissem
efeitos na vida cotidiana das camponesas, como também, respeitava a escolha temática das
participantes. Desse modo, os temas eram pedidos pelas camponesas para que se obtivesse
65

mais conhecimento sobre assuntos específicos como, Valor da mulher, que se repetiu nos três
primeiros Encontros e Higiene e Saúde, que foi debatido por duas vezes.
É interessante que se diga que esses Relatórios são compostos pela programação
oficial de cada Encontro, o que geralmente era elaborado pela Equipe de Coordenação do Dia
do Senhor, primeiramente por Maria Valnê Alves e, num segundo momento, por Maria Alice
e Lídia Ferreira, de forma mimeografada. Como também, registravam-se nesses Relatórios a
repercussão das discussões temáticas entre as participantes.
Desse modo, a cada Encontro de Esposa eram escolhidas duas camponesas para
escreverem os Relatórios finais, o que era feito manualmente com o uso de folhas de papel
almaço e caneta. Essa prática era considerada muito importante tanto para a Coordenação do
Movimento quanto para as camponesas, pois significava uma participação efetiva em todos os
momentos dos Encontros de Esposas, deixando de ser apenas coadjuvantes, tornando-se
protagonistas ao ouvir, aprender, opinar e escrever sobre todos os assuntos debatidos. Aliás,
todas as camponesas participavam inteiramente da realização dos Encontros, pois as tarefas
eram todas divididas entre elas.
Assim, como algumas ficavam responsáveis pelos Relatórios finais, outras assumiam
as responsabilidades com a cozinha, limpeza, animação/recreação, liturgia, sempre se
revezando entre si. Até mesmo os mantimentos para as refeições durante o Encontro eram
trazidos pelas participantes, conforme se descreve no Relatório de 1972 em que se lê como
observação: ―Todas as esposas trouxeram ajudas das comunidades, colaboraram em dinheiro
e material alimentício. O Movimento colaborou com 98 CR$ (noventa e oito cruzeiros)‖. 83
Os Encontros obedeciam a uma programação definida pela Equipe de Coordenação, o
que incluía horários de trabalho e liturgia, bem distribuídos durante o dia todo, conforme
discriminado abaixo:

Horário de trabalho - Responsável: Maísa


8:00h – Trabalho 9:30h – Merenda 9:50h – Trabalho 11:00h – Livre
13:00h – Trabalho 14:30h – Merenda 14:50 – Trabalho 17:00h –
Livre
19:00h – Terço 20:00h – Recreação
Liturgia:
Manhã 27: Lurdes Cunha Tarde 27: Rita Pereira
Manhã 28: Maíza Tarde 28: Terezinha
Arrumação: Zezé, Marizô 84

83
Arquivo Movimento Dia do Senhor. Relatório Encontro de Esposas 1972. Conteúdo: Higiene e Saúde.
84
Arquivo Movimento Dia do Senhor. Relatório Encontro de Esposas de Dirigentes da Periferia do Araras, de
20 a 26/ 11/ 1971.
66

Conforme já mencionado, durante esses Encontros, as participantes passavam dias


fora de casa e assumiam suas despesas. O cardápio era elaborado de acordo com os
mantimentos trazidos, somente as carnes, o que popularmente se chamava de ―mistura‖, eram
compradas com a parca verba do Movimento. Desse modo, nem todos os dias do Encontro se
comia carne no almoço e no jantar. Por exemplo, se na segunda feira no almoço fosse servido
―arroz, feijão e farinha e no jantar, sopa de arroz, feijão e tomate‖, na terça feira, seria servido
―frango cozido, arroz e salada de verdura‖ no almoço, com direito a rapadura de sobremesa. E
no jantar, ―sopa do caldo do frango, feijão e restos do almoço‖. 85 O que diariamente se repetia
era o cardápio das merendas que trazia sempre as opções de suco, leite, cuscuz e bolachas.
Mesmo estando fora de casa, a rotina de trabalho e de hábitos alimentares parecia não
se alterar, pois nos Encontros, as camponesas também assumiam tarefas domésticas e comiam
os mesmos alimentos que consumiam em casa. Como se percebe, esses alimentos são, em
grande parte, produzidos pelas famílias do campo, até as carnes eram de animais de criação,
como galinhas. Pouco se consumia de produtos industrializados.
A grande novidade desses Encontros era exatamente a oportunidade de saída dessas
camponesas do ambiente doméstico. Muitas dessas mulheres nunca tinham saído de suas
comunidades nem de suas casas, nem mesmo tido folga de suas responsabilidades diárias de
mãe e esposa. De repente, terem a oportunidade de viajar de uma região para outra, de ônibus
ou de carro de horário, fez muita diferença nas suas vidas e visão de mundo. Como o
Movimento do Dia do Senhor se expandiu por toda diocese de Sobral e por grande parte da
Diocese de Itapipoca, o ―povo do Movimento‖ costumava dizer com orgulho que o Dia do
Senhor abrigava pessoas de todos os lugares, como ―praia, serra e sertão‖. Desse modo, para
os Encontros de Esposas realizados na serra da Meruoca anualmente, essas camponesas saíam
de sua rotina caseira e atravessavam fosse o litoral, fosse o interior das regiões Norte e
Noroeste do Ceará, conhecendo novas paisagens, novas culturas, fazendo novas amizades e
ampliando seu conhecimento com conteúdos, antes, nunca vistos.
Lídia Ferreira, que integrou a Equipe de Coordenação do Dia do Senhor a partir de
1975 situa o processo de seleção dos temas dos Encontros que coordenava, como também,
avalia como novidade para a vida das mulheres do campo a participação em algo que lhes
tirasse do espaço privado da casa e do isolamento em suas comunidades.

85
Ibid.
67

Os temas surgiam muito em função das conversas que eu tinha com as


mulheres... Talvez pelo fato de eu ser casada também elas se abriam e
conversavam os temas que lhes interessavam, com isso eu ia entendendo o
que elas queriam conversar. Também procurava fazer ponte com o que
estava acontecendo no movimento de forma geral, através desses 2 vieses os
temas iam se formando. Depois, com o tempo foi se consolidando uma
espécie de coordenação das mulheres para preparar o encontro e essa
coordenação passou a escolher e coordenar os encontros.
Mais além de qualquer tema, o grande sucesso dos encontros era a
oportunidade de sair de casa, viajar em grupo ou sozinhas.....vir se encontrar
com outras mulheres, ficarem num ambiente tranquilo, seguro, sem aperreio
para poder trocar ideias. Esse que, a meu ver, era o grande ―barato‖. 86

Verifica-se que o trabalho de base com as camponesas foi uma constante no Dia do
Senhor, pois desde sua origem as mulheres eram animadas a participar do Movimento
assumindo a função de Orientadoras. As Orientadoras trabalhariam ao lado dos Dirigentes,
que eram os camponeses que assumiam a função de celebração da palavra de Deus nas
comunidades rurais, aos domingos, considerado o dia do Senhor. É bem verdade que desde a
origem do Movimento, estabeleceu-se certa hierarquia simbólica com relação aos papéis
assumidos por homens e mulheres, a se observar na própria nomenclatura (Dirigentes x
Orientadoras), naturalizada por todos os participantes.
Nesse sentido, Valnê Alves que atuou no Movimento desde seus primeiros anos, situa
o processo de desconstrução de uma cultura machista, patriarcal, que também se reproduzia
na estrutura organizacional do Dia do Senhor.

No começo se trabalhava, como todo processo nosso é muito machista, as


lideranças... lá no Dia do Senhor era dirigente e orientadora. O homem era
mais, sabe? O homem era o que dirigia, a mulher que orientava... Mas havia,
assim, uma preocupação muito grande de igualar né, de mostrar os direitos
iguais homem e mulher e aí as mulheres foram entendendo. Porque quando
eu entro com o padre Albani né, o padre Albani já estava antes de mim no
Dia do Senhor né, aí a gente ampliou o trabalho [...]. 87

Ou seja, os homens dirigiam o culto dominical, dirigiam as atividades tidas com maior
importância no Movimento. As mulheres orientavam, serviam de apoio ao trabalho
masculino. Muitas dessas mulheres também assumiam a função de catequistas em suas
comunidades, portanto, realizavam um trabalho coadjuvante, em nível local. Com a criação
dos Encontros de Esposas anuais se observou uma potencialização do trabalho feminino e,

86
Entrevista realizada como Lídia Ferreira em 26/03/2016. Via e-mail. (Arquivo da autora)
87
Entrevista realizada Maria Valnê Alves em 18/12/2004, já citada.
68

também, uma ampliação do número de mulheres se envolvendo no Movimento, pois agora,


não seriam apenas as Orientadoras a participar, mas sim o maior número de camponesas que
se pudesse sensibilizar para integrar o Movimento do Dia do Senhor.
Tanto que muitas dessas mulheres participavam dos Encontros de Esposas, em
dezembro, como também, dos Encontrões, realizados no mês de julho, que abrangiam homens
e mulheres. Por outro lado, devido à dificuldade de se ausentar de seus lares, algumas delas
priorizavam a participação dos Encontros de Esposas, lugar por excelência do feminino. De
acordo com a narrativa de Lídia Ferreira pode-se resgatar o percurso de incursão das
camponesas no Movimento ou, o contrário, de incursão do Movimento no universo das
mulheres do campo:

O trabalho com as mulheres sempre existiu no movimento e isso em 2


formas: ao incentivar a participação das orientadoras, ao lado do dirigente da
comunidade , e também em encontros anuais, só de mulheres, que Valnê
organizava. Sempre no Movimento se incentivou a participação das
mulheres, em qualquer encontro, em qualquer curso ou atividade deveria
haver um homem e uma mulher representando determinada comunidade.
Isso de certa forma, criava uma representação um pouco formal das
mulheres, pois geralmente eram moças que assumiam esse papel, pois havia
a ideia de que mulheres casadas não teriam tempo, nem conseguiriam
assumir uma tarefa na comunidade. Se alguma coisa diferente foi feita, a
meu ver, na nossa época foi incentivar as mulheres casadas a participar...
Desenvolver a confiança de que elas poderiam sair, viajar, participar de
cursos, encontros, etc... Quando eu e Gustavo chegamos o trabalho com as
mulheres estava um pouco parado, pois Valnê já tinha saído há alguns anos.
O que eu fiz foi retomar os encontros anuais de mulheres incentivando,
através de contato pessoal, as mulheres – principalmente as casadas a
participar. Nessa época criamos o slogan ―não precisa saber nem ler nem
escrever, basta trazer a cabeça no lugar‖ que foi um sucesso de
comunicação, pois conseguiu passar a ideia, de forma simples, que não
precisava nenhuma habilidade especial para participar do encontro das
mulheres, bastava ser. 88

Lídia teve fundamental importância para o trabalho de base com as camponesas, visto
que assume o Movimento em um período que o trabalho de organização feminina passava por
um amortecimento. Tal amortecimento do trabalho com as mulheres do Movimento é
perceptível, inclusive na documentação pesquisada, pois se encontram os Relatórios anuais
dos Encontros de Esposas até 1973, observando-se uma lacuna até o ano de 1976 quando,
novamente, os Relatórios dos Encontros aparecem organizados anualmente até 1996.
Justamente, o breve intervalo entre a saída de Valnê Alves e entrada de Lídia Ferreira no

88
Entrevista realizada como Lídia Ferreira em 26/03/2016, já citada.
69

Movimento. Valnê foi uma das precursoras do Dia do Senhor, atuando juntamente com padre
Albani Linhares. O nome de Valnê é muito recorrente nos Relatórios e cartas comunitárias,
pois sua participação marcou a memória e os corações de homens e mulheres com quem
conviveu.
Como a noção de autonomia é uma marca do Movimento do Dia do Senhor, todos os
esforços da Equipe de Coordenação foram se canalizando para que, em um determinado
momento, os próprios camponeses assumissem o Movimento e todas as atividades de
formação, incluindo sua dimensão financeira. Desse modo, com os Encontros de Esposas
aplicava-se essa mesma proposta, tanto que se encontram Relatórios em que as próprias
camponesas assumiram a coordenação desses Encontros.
No percurso dos Encontros de Esposas, vislumbram-se três momentos bem definidos.
De 1969 a 1973 que demarcam os Encontros organizados por Valnê, posteriormente a sua
saída do Movimento, Maria Alice e Lídia reanimam esses Encontros, assumindo a
coordenação de 1976 a 1980 e, a partir de 1981, as próprias camponesas assumiram a
coordenação, ou seja, a ―Nata‖ dos Encontros de Esposas, que eram àquelas mulheres mais
atuantes no Movimento. Já na década de 1990, elas se organizaram e criaram a Associação
das Mulheres do Dia do Senhor (AMDS), essa sigla aparece nos Relatórios a partir de 1992.
Um ponto interessante do período de coordenação das próprias camponesas é que
surgiu um grande debate entre elas questionando a nomenclatura ―Encontro de Esposas‖ que,
até aquele momento, vinha conferindo identidade ao grupo, que era composto,
majoritariamente, pelas esposas dos dirigentes e por outras camponesas casadas. No entanto,
àquela altura, já estavam participando dos Encontros mulheres que não eram casadas, como
solteiras, separadas, viúvas, o que não condizia mais com a ideia de esposas. Em entrevista,
dona Raimunda89 situa seu ingresso nos Encontros de Esposas e, ao mesmo tempo, chama a
atenção para seu papel no início dessa discussão:

Foi muito difícil, porque na época, foi na era de oitenta, parece que foi
oitenta e oito. Já tava acontecendo os Encontros, mas, eu não tinha muito
conhecimento. Mas, foi através de uma amiga, Socorro do Gonzaga. (...) Aí
ela me fez o convite: ―Raimunda, vombora participar dos Encontros das
Esposas em Itapipoca‖. (...) Mas, o que eu achei mais importante, porque
quando a gente começou o Encontro foi três dias. O primeiro dia a gente foi
estudar a bíblia, através do Evangelho né, que a gente encontrou o caminho.
E aí quando foi no primeiro dia, eu assistindo, a gente estudando a bíblia,
tudo direitinho, o Evangelho, aí não falava de esposa, falava de mulher, das
89
Raimunda foi participante do Movimento do Dia do Senhor, vivenciando intensamente a última etapa do
Movimento e atualmente é sindicalizada e militante do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Trairi – CE.
70

mulheres sofredoras. Até que um dos Evangelhos, eu lembro como se fosse


hoje, foi aquele Evangelho das moeda, e outros mais que, agora no
momento, eu não estou bem lembrada... O segundo dia, a gente foi pro
grupinho, quando foi o momento que a gente foi participar do plenário né, aí
aquilo estava dentro de mim, que eu não aceitava aquela palavra esposa,
porque o Evangelho não falava de esposa, falava de mulher. Aí eu fui e fiz a
pergunta: ―porque era que aquele Encontro falava de esposa, e não de
mulher?‖ Então, eu queria uma resposta. Porque quando falava de esposa, e
não de mulher, estava excluindo as mulheres... porque aí vinha a jovem, a
viúva, a separada, a mulher solteira, juntava tudo. Porque o Evangelho fala
muito desse tipo de mulher, das mulheres discriminadas. (...) A resposta que
me deram foi que no ano seguinte foi o convite de Encontro de Mulher, não
foi mais Encontro de Esposa.90

Dessa forma, pode-se inferir que foi necessário o ingresso de outras participantes,
como no caso de dona Raimunda, para que houvesse um estranhamento com o termo e com o
sentido que aqueles Encontros representavam. Tendo em vista que muitas das camponesas
eram participantes de longa data, já haviam naturalizado a ideia restrita às esposas passando,
então, a refletir sobre a possibilidade de ampliar essa nomenclatura, o que de certo modo,
ampliava o elemento identitário das participantes. Conforme se depreende da narrativa, a
leitura bíblica deve ser entendida como fundamental para a compreensão e ação das
participantes desses Encontros de Esposas. Aliás, toda dinâmica do Movimento do Dia do
Senhor baseava-se na leitura da bíblia para entendimento da leitura da vida.
Outro fator a ser observado é a diversidade temática que os Encontros vão assumindo
nesse percurso. Ao longo da coordenação de Lídia e Maria Alice, a questão do ―Trabalho da
mulher camponesa‖, ―A educação dos filhos‖ e ―O matrimônio, vida conjugal e sexualidade‖
passam a ganhar cada vez mais espaço nos debates. Por outro lado, observa-se que quando as
próprias camponesas assumem na década de 1980, os temas específicos à questão feminina,
como ―Sexualidade‖ e ―Direitos da mulher‖ passam a ser associados à discussão em torno da
realidade que se vivia no campo, naquele momento.91 Os anos 1980 foram marcados por

90
Entrevista realizada com dona Raimunda, no dia 10 de outubro de 2015, em Itapipoca – CE.
91
Através dos Relatórios podem-se mapear os temas que marcaram os Encontros de Esposas coordenados por
Maria Alice e Lídia, como pelas próprias esposas. 1976/1977 – Trabalho feminino, 1978 – Matrimônio e vida
conjugal, 1979 – Educação dos filhos, 1980 - Consciência da realidade da terra. 1981- Força da classe. 1982 –
Força da classe, ainda continuação. 1983 – Seca e Bolsão, 1984 – Direitos da mulher. A partir desse ano, os
Encontros de Esposas passam a ser realizado em Acaraú. 1985 – Balanço dos Encontros de Esposa, 1986 –
Família, sexo, autonomia da mulher. 1987- Escravidão da mulher, mulher é igual ao homem? Salienta-se que
esse tema é repetido de 1971. 1988 – Continuação de 1987. 1989 – Associação, 1990 – Mulher e terra, 1991 –
Marido, filhos, sexo, 1992 – Crise financeira da AMDS – Associação de Mulheres do Dia do Senhor. Observa-se
que nesse ano, houve uma nova mudança no local de realização dos Encontros de Esposas, que passam a se
realizar em Morrinhos. 1993 – Educação familiar, situação econômica da mulher, problemas de terra.
71

longos períodos de seca no Ceará, portanto, a discussão sobre Seca e Bolsão, ou seja, o
serviço pesado e mal pago, realizado nas frentes de trabalho oferecidas pelo governo, passa a
ser ponto de muita reflexão para essas mulheres, tanto que o primeiro Encontro assumido por
elas trouxe como tema ―A força da classe‖.
Associado a essas questões estava o problema central para mulheres e homens do
campo, que era o problema da posse de terra. É também durante a década de 1980 que o
―povo do Movimento‖ enfrenta alguns conflitos de terra, o que leva à perseguição e morte de
algumas lideranças do Dia do Senhor, como a morte de Benedito Tonho, no conflito de
Queimadas, em Coreaú. Desse modo, as questões mais gerais do Movimento, que eram
debatidas nos Encontrões, marcado pela presença masculina, também passavam a ser
assumidas enquanto debate das mulheres, basta observar o Encontro de Esposa de 1990, que
trouxe como tema ―Mulher e terra‖.
De modo geral, a partir do momento que os Encontros são assumidos pelas próprias
mulheres do Movimento, os temas passam a ser mais dispersos, chegando a ser debatidos
vários temas durante um Encontro. Importante dizer que a avaliação ou balanço dos
Encontros passa a ser recorrente entre as bases, visto que se constatou uma diminuição do
número de participantes no Encontro de 1985. Esse fato é relevante, pois o assumir das bases
marcou uma mudança na forma de condução dos Encontros, visto que quando da coordenação
da Equipe do Movimento, havia grande número de participantes, como também, os temas
eram mais definidos, debatendo-se um único tema por vez.
A exemplo disso, no Encontro de Esposa de 1969 em que se discutiu ―O valor da
mulher, sua participação no mundo‖, as camponesas tiveram contato com informações que
mesclavam conteúdos, tanto filosóficos como bíblicos, sobre o ser mulher e suas
representações92 formuladas ao longo da história. No primeiro Relatório produzido pela
Equipe de Coordenação se apresentam os temas norteadores do Encontro, tais como, ―Valor
da mulher; Relacionamento homem x mulher; Filhos‖. Esmiuçando-se os temas gerais, é
possível perceber que algumas perguntas serviam de base para que as camponesas refletissem
sobre a valorização e desvalorização da mulher, sobretudo, da mulher camponesa.
Com as perguntas ―A mulher do campo vive como gente? Por que?‖ e ―Mulher vale
igual ao homem? Por que?‖, a equipe de Coordenação suscitava reflexões em torno de

92
Nesse sentido, as artes, em suas diversas facetas, como a filosofia e a ciência criaram e fundamentaram, sob o
olhar masculino, uma infinidade de representações e discursos hierarquizantes em torno da mulher. De acordo
com Michelle Perrot: ―As Luzes e a ciência nem sempre são as melhores conselheiras. Muitos filósofos
encontraram nas ciências sociais e na medicina argumentos suplementares para demostrar a inferioridade das
mulheres‖. In: PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2012, p. 23.
72

questões pungentes ao universo feminino, como igualdade de gênero e participação social


para as mulheres. Tais questões eram pontos de relevo na pauta do Movimento Feminista93
que agitou o final dos anos 1960, atingindo seu ápice na década de 1970. Com tais perguntas,
a Equipe de Coordenação objetivava atiçar o pensamento e a participação das camponesas.
Como a timidez e a falta de costume de falar e de expressar suas opiniões e sentimentos era
uma característica das mulheres do campo, fazia-se necessário estimulá-las através de técnicas
de comunicação popular, tais como círculos de estudo, entrevistas, cochicho, amplamente
utilizado nesses Encontros.
Outra problemática apresentada pela Equipe de Coordenação no Encontro de 1969 foi
o que denominaram de ―As fases de evolução da mulher‖, uma espécie de cronologia que o
feminino aparece representado por diversos papéis e funções desenvolvidas ao longo do
tempo e em função do masculino. É importante salientar que o debate em tono dessas ―fases
de evolução‖ foi retomado nos Encontros de 1970 e 1971, mexendo profundamente com o
pensamento e comportamento das mulheres do Movimento. O próprio termo utilizado,
―evolução‖, já pressupõe um sentido linear e teleológico, o que se pode perscrutar a partir da
descrição posta no Relatório: ―Mulher mistério, Mulher instrumento de serviço para o
homem, Mulher objeto de enfeite, Mulher descobre o seu valor e luta por sua independência e
afirmação. Elevação – Promoção da mulher‖.94
Segundo a explicação apresentada no Relatório de 1971, a definição de ―Mulher
Mistério‖ trazia elementos bíblicos, o que remontava a história de Eva e Adão, associando a
imagem da mulher ao pecado. Interessante notar que tal explicação fazia uma leitura crítica
dos discursos criados pela Igreja Católica, salientando sua influência para a disseminação da
noção de mulher vinculada ao pecado, como também, do trabalho feminino vinculado ao
castigo. Diante das representações em torno do feminino se destacam no discurso religioso a
oposição entre os modelos de Eva e de Maria, sendo essa última, a detentora do recato, do
respeito e da obediência, portanto, exemplo a ser seguido. Já o modelo de Eva associado à
desobediência, à persuasão e ao pecado deveria ser combatido.95
Outro ponto que se destaca na explicação desta ―Fase de Evolução da Mulher‖ é a
sexualidade, tomada como elemento desencadeador para o pecado. A partir dessa leitura,
entendia-se que a mulher estava associada ao mistério, a sedução, a lascívia, o que fazia com

93
Sobre esse debate, cf.: PEDRO, Maria Joana. Narrativas fundadoras do feminismo. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 26, n. 52, 2006, p. 249-272.
94
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Relatório de Esposas, 1971 – Valor da Mulher, relacionamento e
atuação no mundo.
95
Para discussão mais aprofundada em torno das diversas representações femininas, cf.: TEDESCHI, Losandro
Antônio. História das Mulheres e as representações do feminino. Campinas: Editora Curt Nimendajú, 2008.
73

que o homem temesse à mulher. Nas palavras de Michelle Perrot: ―[...] misteriosa, a
sexualidade feminina atemoriza. Desconhecida, ignorada, sua representação oscila entre dois
polos contrários: a avidez e a frigidez. No limite a histeria‖. 96
Na definição de ―Mulher instrumento de serviço para o homem‖ percebe-se uma
aproximação com o discurso construído pelo patriarcalismo, ou seja, a mulher passa a ser
vista como submissa e dependente do homem, sendo destinada a servir ao marido e aos filhos,
conforme regimentava o papel de esposa, mãe e rainha do lar. ―[...] Ter filhos, dormir com o
marido, cuidar da casa, cozinhar, lavar, engomar, cuidar do marido, etc. Não há nenhuma
preocupação com ela. Mulher significa servir como obrigação e castigo‖ era o que dizia a
explicação do Relatório. Portanto, a partir dessas duas definições, as camponesas do Dia do
Senhor, logo nos primeiros Encontros de Esposas já entravam em contato com dois
importantes discursos fundadores do feminino, o discurso bíblico e o discurso do patriarcado,
que não se excluem, se complementam, no entanto, partindo de diferentes matrizes
discursivas.
Nesse sentido, as mulheres do campo passavam a reconhecer e a refletir sobre seus
papéis desempenhados nos seus lares e nos seus casamentos, entendendo que a submissão, a
obediência e ―escravidão‖, como muitas camponesas diziam, era uma construção, um discurso
produzido ao longo do tempo. Essa tomada de conhecimento servia tanto para redimensionar
o pensamento e comportamento feminino, como também, para o masculino. Era proposta
pedagógica dos Encontros de Esposas que todos os conteúdos debatidos fossem repassados
para as demais mulheres das comunidades, que não puderam participar dos Encontros anuais.
E, com isso, tais informações pudessem servir de instrumento transformador nas vidas e nos
casamentos das camponesas. Inclusive, sendo apresentado e debatido com os próprios esposos
e filhos.
A terceira ―Fase‖ ainda traz uma explicação da mulher numa perspectiva patriarcal,
sendo tomada como objeto de usufruto masculino. ―Mulher como objeto de enfeite‖
representa a imagem da mulher vaidosa, bem cuidada pelo marido, apta a ser apresentada à
sociedade como prêmio. No Relatório, usa-se a comparação da mulher com o cavalo, ou seja,
ambos são tomados como objeto de estima e orgulho do homem. Tal definição traz uma
reflexão em torno da objetificação da mulher demarcando seus papéis, tanto sociais quanto
sexuais. No discurso do patriarcado, a mulher é tida como objeto sexual, objeto de procriação,

96
PERROT, p. 65.
74

objeto de trabalho, ―objeto de enfeite‖, enfim, percebe-se que a mulher esteve sempre em
função do masculino.
Por fim, na fase em que a ―Mulher descobre seu valor e luta pela independência‖
percebe-se uma coincidência com os discursos do Movimento Feminista dos anos 1970.
Embora, nos Relatórios não se faça menção à periodização, como também, não tenha sofrido
influência direta do feminismo é possível pressupor que a última ―Fase de Evolução da
Mulher‖ seja contemporânea ao período em que se vivia naquela altura. Portanto, a década de
1970 trazia um discurso vanguardista em relação à mulher. Era o momento de busca pela
igualdade de gênero, liberdade sexual e por direitos trabalhistas e sociais. Em certa medida,
tal discurso coincidia com o princípio norteador de toda Pedagogia do Movimento do Dia do
Senhor, que era a conquista da autonomia. Portanto, as camponesas do Movimento também
deveriam lutar para conquistar a autonomia. Para tanto, as mulheres deveriam tomar
consciência de si e de seu papel no mundo. Conforme se lê no Relatório, ―[...] passa a ser
gente, deixa de ser objeto‖.
O conteúdo apresentado nesse Relatório como, acredita-se, que em todos os demais
produzidos pela Equipe de Coordenação, deve ter sido embasado em alguma referência
específica, no entanto, não foi explicitada. Porém, no Relatório de 1978, cujo tema debatido
foi ―Matrimônio e Vida conjugal‖ aparece a referência do livro ―Limitação dos nascimentos‖,
publicado em 1965, de autoria de José Roberto Azevedo e do padre Eugênio Charbonneau.
Durante os três primeiros Encontros de Esposas, a Equipe de Coordenação elaborou
vinte perguntas, retiradas da própria vivência das camponesas, referentes à relação marido e
mulher e com relação aos filhos, que serviriam como questões de reflexão sobre o valor da
mulher, aprofundando o debate sobre ―As fases de Evolução da Mulher‖. Dentre as perguntas,
destacam-se ―A mulher do camponês é livre ou escrava? Por que?‖ e ―Mulher deve ser
submissa ao marido? Por que?‖, o que suscitariam reflexões em torno da condição feminina,
em particular da condição da mulher do campo. Escrava e submissa são termos que essas
camponesas passaram a atribuir a si e a sua situação diante dos seus maridos e dos seus
casamentos. Refletir sobre tais questões fez com que muitas das participantes dos Encontros
de Esposas redimensionassem sua forma de pensar sobre a relação marido e mulher,
entendendo que poderiam se colocar como sujeito do matrimônio, tanto quanto seus esposos.
Nesse sentido, nos Relatórios vislumbram-se repostas em que as camponesas
justificam a condição de escravidão e submissão aos maridos dizendo de sua dependência
financeira e emocional, como também, justificam pela necessidade de criação dos filhos, que
em grande maioria dos lares camponeses, são muitos os filhos. É recorrente, as mulheres
75

usarem a expressão ―dominada pelos maridos‖, ―É escrava do marido. Só faz o que ele quer.
É dominada por ele‖. Nesse sentido, os maridos controlam tudo de suas esposas, até mesmo a
liberdade de se expressar e o direito de ir e vir, como se observa na resposta: ―É escrava do
amor, do marido porque não sai sem o consentimento dele‖ ou mesmo ―É escrava. Vive para
êle e para o trabalho. A vida dela depende totalmente dele‖.97
No entanto, desde o reconhecimento de sua escravidão até a transformação de seu
pensamento e comportamento diante de suas vidas concretas leva-se um longo processo, pois
essas transformações se desenvolveram de forma lenta e heterogênea no Movimento do Dia
do Senhor. Constata-se que nem todas as participantes dos Encontros de Esposas pensavam
ser escravizadas por seus maridos. No mesmo Relatório, encontra-se a resposta que diz ―[...]
A mulher deve ser governada pelo marido, não pode ser liberta‖, reproduzindo todo
pensamento patriarcal e conservador de seu universo cultural, contrastando, por outro lado,
com o pensamento expresso na ideia de que a mulher ―[...] muitas vezes vive escrava porque
não sabe se impor, fazendo o marido conhecer seus direitos‖.98
Como também, algumas camponesas associavam a escravidão não diretamente à
dominação masculina, mas, a toda condição de miséria e privação em que viviam. A falta de
conhecimento formal, como a falta de acesso à escola, também era entendido como forma de
escravidão para as mulheres do campo. A resposta de Maiza Almeida, do município de Cariré,
sintetiza todos esses pontos quando se diz escrava porque ―[...] só vou para onde o marido
quer. Porque os filhos não tem estudos. Porque moro no interior e não sou habituada a esta
vida camponesa. Porque meu saber é pouco diante da minha vontade e inteligência. Porque
não tenho o que desejo‖.99
Através das respostas dos Relatórios, percebe-se que grande parte das camponesas
reconhece a vida de ―escravidão‖ que levam nas relações conjugais e familiares, porém,
expressam opinião de que não acham certo a mulher ser escravizada ou submissa aos homens.
A ideia de igualdade de gênero é recorrente nas respostas, justificando que ―[...] mulher deve
ser igual ao marido porque somo iguais, não tem nenhum melhor do que o outro‖. Mesmo
tendo consciência de que no universo cultural em que vivem o homem se sobrepõe, algumas
camponesas ousam em colocar à prova tal superioridade, contrariando a vontade masculina,

97
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Relatório de Esposas, 1971 – Valor da Mulher, relacionamento e
atuação no mundo.
98
Ibid.
99
Ibid..
76

reconhecendo que ―[...] ele quer mas nós não devemos deixar porque o valor dele é igual ao
meu‖.100
Todas as respostas eram pensadas e escritas pelas próprias camponesas participantes
dos Encontros de Esposas. O tema proposto no Encontro, como foi visto, era primeiramente
apresentado de maneira formal pela Equipe de Coordenação e, posteriormente, debatido
coletivamente por grupinhos de mulheres. Após o tempo de debate e reflexão, esses grupinhos
se aglutinavam formando um grupo maior em que iriam socializar todas as respostas, dúvidas
e sentimentos surgidos durante o processo de maturação das ideias. Essa metodologia foi
desenvolvida em todos os Encontros de Esposas, como também, em todas as atividades do
Movimento do Dia do Senhor.
Entende-se que tal metodologia foi fundamental para o desabrochar de homens e
mulheres que participaram do Movimento. No caso das mulheres do campo, foi
transformador, visto que muitas delas não tinham poder de voz, de decisão, no interior de seus
lares, nem na comunidade em que viviam. Portanto, nesses Encontros, as camponesas
acharam sua voz, pensavam, expressavam suas opiniões e escreviam. Nesse processo, faziam-
se sujeitos e tomavam consciência de seu valor, enquanto mulher, esposa, mãe e agente social.
De acordo com Geneviève Bollème101 o povo adquire poder ao ter conquistado a fala e a
escrita, construindo um ―itinerário sem retorno‖. No caso das mulheres, parte desse povo,
ainda mais silenciado e alijado do espaço público e político, isso se torna ainda mais
relevante. Nesse sentido, a conquista da fala e da escrita por mulheres camponesas, que se
fizeram autodidatas durante esse processo, talvez, tenha se tornado revolucionário.
Por outro lado, avalia-se que os Encontros de Esposas também tenham realizado certa
interferência na vida e na cultura tradicional das camponesas, visto que os conteúdos
ensinados traziam informações de uma cultura, muitas vezes, formal e urbanizada. No
Encontro de 1972, o tema debatido foi ―Higiene e Saúde‖.102 Com esse mote, a Equipe de
Coordenação ensinava as mulheres do campo sobre higiene corporal, alimentação saudável e
prevenção de doenças infecciosas. A questão de gênero apresentava-se nesses conteúdos ao
passo que se atentava para os cuidados com a saúde e higiene do homem e da mulher,
ressaltando as particularidades biológicas de cada um.
Nesse sentido, eram ensinados ―Os cuidados que a mulher do campo deve ter durante
a gravidez‖, como também, ―Os cuidados que a mulher do campo deve ter quando está de

100
Ibid..
101
BOLLÈME, Geneviève. O Povo por Escrito. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes,
1988.
102
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Relatório de Esposas, 1972 – Higiene e Saúde.
77

resguardo‖, o que implicava em ensinamentos gerais acerca de alimentação, asseio, vestuário


e repouso. Para a mulher considerada sadia, a orientação seguia incluindo uma ―educação
sexual e conjugal‖, de modo que se constituísse compreensão e respeito entre o casal, que não
ocasionasse traumas na mulher, caso contrário, ela ―[...] sempre terá a cópula como um
castigo, um sofrimento‖. 103
―Educação sexual e conjugal‖ também fazia parte dos ensinamentos voltados para o
homem do campo, assim como, ―[...] não ter relações com prostitutas e assear os órgãos
genitais‖. Tais cuidados, para além de uma orientação religiosa em que se prega a fidelidade
do homem para com sua esposa, parecem estar fundamentados na prevenção da
promiscuidade masculina, o que poderia ocasionar doenças venéreas. Nesse mesmo relatório,
aparece a orientação para o tratamento de corrimento feminino, como também, a sugestão de
exames para sífilis.
―Os cuidados que a mulher do campo deve ter durante a menstruação‖ também são
ressaltados no Relatório, tais como: ―[...] tomar banho parcial e geral, depilação parcial da
parte externa dos órgãos genitais, evitar peso exagerado, evitar quentura e sereno, forros e
calças bem limpas, evitar frutas azedas, andar calçada, evitar trabalhos pesados, evitar raiva,
susto prejudiciais ao sistema nervoso [...]‖.104 De certo modo, nessa listagem de cuidados,
evidencia-se o discurso médico que define o que deve ser considerado sadio para o corpo e a
mente femininos. Não passa despercebido, o cuidado com o sistema nervoso da mulher, visto
que uma raiva ou um susto poderia ocasionar uma desestabilização do seu equilíbrio
emocional, deixando-a nervosa ou histérica.
A preocupação com o sistema nervoso feminino, de maneira mais específica, com a
histeria está vinculada aos discursos médico e filosófico elaborados durante os séculos XVIII
e XIX que associam o feminino à natureza, à emoção, à fragilidade e ao espaço privado. Em
contrapartida, o masculino está associado à razão, à civilização, à força e ao espaço público.
―[...] A histérica é a mulher doente de seu sexo, sujeita a furores uterinos que a tornam quase
louca, objeto da clínica dos psiquiatras [...]‖, situa Michelle Perrot, resumindo que a histeria
associada à representação da mulher de sexualidade aflorada, desviada do padrão de recato
feminino está presente nos discursos médicos como uma extensão da doença que vai do útero
ao cérebro, tornado a mulher doente dos nervos. Dessa forma, ―[...] a histeria abre o caminho
para as ‗doenças das mulheres‘ e para a psiquiatrização e psicanálise dessas doenças‖. 105

103
Idem.
104
Ibid..
105
PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2012, p. 66.
78

Em História das Mulheres, as vozes do silêncio, Del Priore106 explica que a questão da
desigualdade entre os sexos remonta aos filósofos da Antiguidade, como Platão e Aristóteles
que formulavam sua compreensão do mundo e da humanidade pautados também pela
diferenciação entre homem e mulher, entendendo-a como inferior, sem nenhum
constrangimento. Mesmo na Idade Moderna, com o aparecimento da noção de Igualdade, os
filósofos das Luzes não deixaram de justificar a desigualdade sexual pelo viés ontológico e
cosmológico, mas introduziram a noção de paixão em oposição à razão. Assim, nas palavras
da autora:

[...] O humanista colocava-se no centro de tudo, desqualificando a razão


feminina, agora, não mais pelo jogo das binaridades, mas por outro registro:
aquele dos limites. A razão das mulheres não lhe parecia lógica. Por faltar-
lhes o controle, atribuído ao homem moderno, sua razão era considerada
fraca, frágil, sem parâmetros, o que a dobrava obrigatoriamente à
dependência da razão masculina. 107

Interessante observar que o conteúdo do Encontro de Esposas de 1972 mesclava tanto


os elementos do conhecimento médico formal quanto do universo cultural tradicional do
campo. As camponesas aprendiam informações básicas sobre alimentação saudável, com o
intuito de integrar em suas refeições nutrientes como vitaminas, proteínas, carboidratos e sais
minerais, sabendo reconhecer tais nutrientes nos seu próprio cotidiano, muitas vezes retirando
do seu próprio roçado. Como também, eram informadas sobre as principais vacinas para seus
filhos, desde o nascimento até um ano de vida. Associado a isso, forneciam-se indicações de
remédios para dores e mal estar retirados da medicina dita popular. A exemplo disso, para os
problemas menstruais são citados variados tipos de chás, preparados com ervas medicinais,
que servem tanto para os casos de menstruação atrasada quanto ―adiantada‖. Assim se lê no
Relatório:

Se a menstruação (regra) não vier normalmente, procurar um médico


ou tomar remédio como:
Se faltar: Chá de hortelã (folhas em infusão), café (folhas em
cozimento), arruda do mato (folhas em infusão), abacateiro (folhas sêcas em
infusão), batata de purga (a batata em infusão), cabeça de negro (o bulbo da
raiz em infusão), girassol (folhas em infusão), ameixa da terra (cascas em
cozimento para lavagens bem demoradas).
Se for pouca: batata de purga (uma colher de chá do pó dissolvido
em um copo de água ou vinho).
106
DEL PRIORE, Mary. História das Mulheres: as vozes do silêncio. In: FREITAS, Marcos César de.
Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 2000; SOIHET, Rachel. História das mulheres.
In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História. Rio de Janeiro: Editora Campus,
1997.
107
Ibid., p. 219.
79

Se for adiantada: canela (casca em infusão), velame do campo (raiz


em infusão), Artemísia (flores em infusão), arruda do mato (folhas em
infusão). 108

Assim, as esposas voltavam desses Encontros com a tarefa de (re)orientar todo seu
modo de vida, o que implicava até mesmo na intimidade da mulher e do casal, tendo que
repassar para a comunidade tudo que aprendeu nos cursos. Aquelas mulheres que não
participaram do Encontro receberiam tais orientações durante as reuniões comunitárias dos
clubes de mães, ou mesmo, durante as reuniões dominicais do Dia do Senhor. Caso as esposas
sentissem alguma dificuldade poderiam solicitar a ajuda dos Dirigentes e Orientadoras. O
importante era que tais ensinamentos fossem repassados para o maior número de pessoas,
com a ressalva de ―[...] falar para o povo aos poucos, para não espantá-lo‖. 109
Com a saída de Maria Valnê Alves do Movimento encerrou-se o que se pode chamar
de primeira fase dos Encontros de Esposas. A atuação de Valnê marcou profundamente a vida
e a sensibilidade das camponesas com quem conviveu. No próximo tópico, será abordada a
retomada desses Encontros com a organização de Maria Alice e Lídia Ferreira.

1.3. Encontros de Esposas: reorganização e ampliação a partir da década de 1970

Os anos 1970 no Brasil foram marcados por forte repressão militar. Desde 1964 que no
Brasil vinha se configurando numa ditadura de caráter civil-militar e em 1968 havia sido
decretado o Ato Institucional nº 5 que, grosso modo, aprofundava a caça às bruxas, prendendo
e desarticulando muitos dos quadros formadores dos grupos de esquerda espalhados pelo país.
110
Segundo Marcelo Ridente, ―[...] o AI-5 oficializava o terrorismo de Estado‖. Ao lado da
Lei de Segurança Nacional, tal Ato legitimava todo autoritarismo dos governos militares.
Nesse sentido:

O AI-5 pôs em recesso, por tempo indeterminado, o Congresso Nacional e as


Assembleias Legislativas estaduais, dando ao governo militar plenos poderes
para cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos dos cidadãos,
demitir ou aposentar juízes e outros funcionários públicos, suspender o
habeas corpus em crimes contra a segurança nacional, legislar por decreto,
julgar crimes políticos em tribunais militares, entre outras medidas
autoritárias. 111

108
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Relatório de Esposas, 1972 – Higiene e Saúde.
109
Ibid.
110
RIDENTE, Marcelo. Esquerdas revolucionárias armadas nos anos 1960-1970. In: FERREIRA, Jorge; REIS,
Daniel Aarão. As esquerdas no Brasil. Vol. 3, Revolução e Democracia. 1964... Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007.
111
Ibid., p. 37-38.
80

Nesse mesmo período, em âmbito internacional, se vivenciava o contexto de


renovação da Igreja católica pós-Concílio Vaticano II (1962-1965). No Brasil, a vivência da
ala Progressista dessa Igreja renovada coincidiu tanto com o período ditatorial como,
paradoxalmente, com a efervescência da participação política de jovens de classe média e de
classe popular que se engajavam em diversas frentes de luta e combate a essa ditadura. O
protagonismo juvenil se desenvolvia fosse no movimento estudantil, completamente
esfacelado depois do AI-5, fosse por vias mais radicais, como a luta armada, ou ainda, pela
atuação em pastorais progressistas de defesa dos oprimidos e da justiça social, compondo o
que se convencionou chamar de esquerda católica.
Tal esquerda aparecia como um canal aberto que se fortalecia no Brasil e na América
Latina. Nesse sentido, Michael Löwy chama atenção para a constituição de um ―[...]
cristianismo da libertação, que é bem anterior - e bem mais amplo em suas manifestações – à
Teologia do mesmo nome‖.112 A partir desse ―novo‖ cristianismo nascem as Comunidades
Eclesiais de Base que situam o pobre, oprimido em todas as suas dimensões, como centro de
suas reflexões e ações. Ainda com Lowi, ―[...] já não se trata de considerar o pobre como
objeto de ajuda, proteção ou caridade, mas como sujeito histórico, como ator de sua própria
libertação‖. 113
Foi nesse contexto que a jovem Lídia Ferreira, juntamente com seu esposo, Gustavo
Lira, adentraram o universo das CEBs, de modo geral, e do Movimento do Dia do Senhor, em
particular, na década de 1970. Em entrevista, Lídia recupera sua inquietação para participar
política e socialmente daquele momento que vivia o país.

Eu estava terminando a graduação do curso de Ciencias Sociais, na USP, e


queria trabalhar em projetos sociais que, na época não existiam. A própria
palavra – social- era considerada subversiva, veja só. De uma vez, na
Pontifícia Universidade Católica, PUC, alguns bispos fizeram uma palestra
relatando o trabalho social que desenvolviam em suas regiões, com isso se
concretizou para mim a idéia de trabalhar junto a igreja, com as
comunidades eclesiais de base.
Eu não era católica praticante nem conhecia ninguém ligada a ala
progressista da igreja, por isso foi um longo caminho até chegar num bispo
que nos aceitasse. Nessa minha procura conheci meu marido, Gustavo Lyra,
que se incorporou ao meu projeto e conseguiu vários contatos na igreja, que

112
LÖWY, Michael. As esquerdas na ditadura militar: o cristianismo da libertação. In: FERREIRA, Jorge; REIS,
Daniel Aarão. As esquerdas no Brasil. Vol. 3, Revolução e Democracia. 1964... Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007, p. 306.
113
Ibid., p. 306 (grifos do autor).
81

resultou num convite para trabalhar na Diocese de Viana, no MA, para onde
fomos em 1975.
Assim que lá chegamos o bispo, D. Hélio Campos, veio a falecer de um
câncer fulminante e quem o substituiu foi um bispo especialmente preparado
pelo Exército – ele propagava isso com orgulho – para ocupar o lugar de D.
Hélio e acabar com o trabalho de base da região. Esse caso teve muita
repercussão dentro da igreja, pois foi o primeiro sinal muito claro que
haveria uma guinada para a direita da igreja. Muitos padres e bispos
progressistas olharam para Viana querendo conhecer o que se passava por lá,
pois as versões eram muitas sobre o que ocorria na igreja de Viana. Nessa
época conhecemos muitos padres, freiras e leigos que queriam ouvir nossa
versão dos fatos e numa dessas conhecemos o Pe Albany que nos convidou
para trabalhar em Sobral , pois já não tínhamos condição de continuar em
Viana. 114

É importante que se diga que com o fechamento da repressão após AI-5, um dos
poucos canais de participação político-social foi a Igreja Católica, que com seu respaldo
internacional ainda mantinha certa autonomia diante da interferência do Estado ditatorial. No
entanto, como é sabido, essa Igreja não é uma instituição homogênea. Parte conservadora do
clero não comungava com um projeto de pastoral popular, por vezes, aliando-se ao discurso
da moral e da ordem militar. Como se observa na narrativa de Lídia com relação ao bispo
reacionário indicado para a Diocese de Viana, no Maranhão. Conforme se ressalta na
entrevista, com a chegada de um bispo alinhado aos quadros da ditadura não se teria espaço
para trabalho de base. Como o trabalho pastoral popular ficava totalmente a cargo das
dioceses e paróquias, aquelas que não o aceitasse seria solos inférteis para o florescimento de
uma nova ―missão‖ de Igreja.
Nesse sentido, cabe um realce para a postura sacerdotal de Dom Walfrido Teixeira
Vieira, então bispo de Sobral, que mesmo sem se contrapor abertamente ao regime militar,
permitiu e apoiou todo trabalho de base desenvolvido em sua diocese no decorrer dos quase
quarenta anos de existência do Movimento do Dia do Senhor. Avaliando a postura
conciliadora e moderada do bispo, Valnê Alves diz: ―[...] eu vejo mais mérito em Dom
Walfrido do que até mesmo no tempo‖. 115
Por esse caminho, a convite de Padre Albani, Lídia Ferreira e Gustavo Lira se inserem
no Movimento do Dia do Senhor em 1976. Como mencionado anteriormente, a entrada do
casal se situa no momento de reorganização do Movimento, visto que com a saída de Valnê a
Equipe de Coordenação havia ficado desfalcada. Justamente nesse período, o Movimento se
expandia para a Diocese de Itapipoca, precisando de mais pessoas para contribuir com a
recondução desse processo.

114
Entrevista com Lídia Ferreira em 26/03/2016, já citada.
115
Entrevista com Maria Valnê Alves realizada em 18/12/2004. Já citada.
82

Tão logo sua chegada, Lídia e irmã Maria Alice reanimaram o trabalho com as
camponesas, retomando a realização dos Encontros de Esposas. Maria Alice atuando na
diocese de Itapipoca e Lídia, na de Sobral. No mesmo ano o Encontro anual voltou a
acontecer no CETRESO, na serra da Meruoca, trazendo como tema: ―O trabalho da mulher‖.
O relatório de 1976 denota que o Encontro fora organizado em duas frentes. No primeiro
momento houve uma apresentação dos diversos tipos de trabalho realizado pelas mulheres do
campo. Dentre os produtos apresentados destacaram-se renda, tricô, palha, croché, costura e
bordado, cada um representando um saber-fazer demarcado pela cultura específica das regiões
de onde vinham.
Nesse sentido, percebe-se o intuito de valorização do trabalho feminino, bem como, de
socialização entre as camponesas participantes, tendo em vista o isolamento em que viviam
nas suas próprias comunidades, era necessário o compartilhamento de experiências e saberes
práticos que cada uma trazia consigo. O trabalho feminino, na maioria das vezes, passa por
um processo de aprendizagem pautado pela tradição e costume que vai sendo ensinado através
de ciclos geracionais que abarcam mães, filhas e netas. 116
Então, muitas mulheres da região sertaneja estavam habituadas ao trabalho com a
palha, com a confecção de redes ou costura. Por outro lado, as mulheres que vinham do
litoral, principalmente, das regiões de Acaraú e Itarema traziam uma grande experiência de
trabalho com a renda. Tanto o feitio desses produtos quanto o processo de venda era
compartilhado servindo de parâmetro para avaliar as relações de trabalho das mulheres do
campo.
No segundo momento, a discussão foi aprofundada em torno do ―caminho do
trabalho‖, tendo em vista o processo de produção, circulação e venda desses produtos. O que
mais aparece no Relatório são constatações sobre a ―desvalorização do trabalho da mulher‖. A
exploração do trabalho e o lugar periférico que essas trabalhadoras assumiam no sistema de
produção capitalista. Dessas reflexões, as camponesas chegavam à compreensão de que ―[...]
o trabalho da mulher é bem parecido com o do homem na exploração. No trabalho da renda -

116
Nesse sentido, situam-se as reflexões de E. P. Thompson, em torno do universo rural, como urbano
(manufatureiro) que tradicionalmente são marcados pela herança dos costumes: ―[...] O aprendizado, como
iniciação em habilitações dos adultos, não se restringe a sua expressão formal na manufatura, mas também serve
como mecanismo de transmissão entre gerações. A criança faz seu aprendizado das tarefas caseiras primeiro
junto à mãe ou avó, mais tarde (frequentemente) na condição de empregado doméstico ou agrícola. No que diz
respeito aos mistérios da criação dos filhos, a jovem mãe cumpre seu aprendizado junto às matronas da
comunidade. O mesmo acontece com os ofícios que não tem aprendizado formal‖. In: THOMPSON, E. P.
Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.
17-18.
83

no tecido da rede – na esteira do junco – no chapéu de palha etc. A mulher é explorada na


venda de seu produto‖. 117
O ganho das mulheres era calculado por produção diária, sendo seus produtos
vendidos por preços muito baixos se calculados na moeda da época. Assim, lê-se no Relatório
que o trabalho de costureira alcançava um valor entre oito e dez cruzeiros, enquanto o
sapatinho de tricô era vendido a oito cruzeiros e o trabalho com a renda saía a três cruzeiros
por dia. A partir da leitura do Relatório, não passa despercebido que o debate em torno do
tema ―trabalho‖ se aproximava de uma concepção marxista sobre o processo produtivo. 118 As
camponesas que vivenciavam concretamente a exploração do seu trabalho e do trabalho dos
seus esposos, no Encontro de Esposas passavam a entender a lógica do sistema, associando
teoria e empiria. Nesse sentido, sistematizavam sua compreensão relatando que:

A mulher é explorada na venda do seu produto vendendo para os ricos


comerciantes por preço baixo onde desse mesmo rico ou de outro do mesmo
tipo compram o material para os feitios dos produtos.
A mulher ver-se obrigada a vender seu produto por pouco preço divido a
necessidade de matutenção para sustento da família.
Viu-se que a mulher está numa situação, imprensada entre o comerciante que
explora na compra do produto e do outro que vende a mercadoria e ou
material para o trabalho. 119

A questão do ―trabalho‖ feminino foi tão profunda que desencadeou na escolha dos
temas dos Encontros de Esposas de 1979 e 1980 em que se debateu sobre a ―Educação dos
Filhos‖ e a questão da ―Terra‖, respectivamente. O tema ―Educação dos Filhos‖ teve como
material de estudo e de preparação para o Encontro de 1979 o livrinho escrito pela jovem
camponesa Conceição Araújo, da comunidade de Cauaçú, município de Acaraú. Seu texto era
composto de poucas páginas e trazia como título ―Educação e Família no processo de
Libertação‖. Posteriormente, devido à repercussão que teve para o Movimento, essa escritura
foi publicada pela Equipe de Coordenação em 1980, compondo o número onze da coleção
Evangelho dos Lavradores. Conceição era orientadora do Movimento e, assim como muitas

117
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Relatório Encontro de Esposas, 1976. Tema: O Trabalho da Mulher.
118
O Movimento do Dia do Senhor, durante todo seu fazer-se, esteve se apropriando das leituras e da práxis
inspiradas pela Teologia da Libertação, de modo que Marxismo e Cristianismo estiveram dialogando
constantemente e abrindo chaves de compreensão do mundo capitalista e imperialista em que se vivia naquele
momento. Segundo Michael Löwy, ―[...] o primeiro documento da ‗esquerda cristã‘ que pode ser considerado o
texto fundador do cristianismo da libertação no Brasil e em toda a América Latina, foi ‗Algumas diretrizes para
um ideal histórico para o povo brasileiro‘ proposto pelo Regional Centro-Oeste para a Conferência dos dez anos
da JUC em 1960.‖. In: LÖWY, Michael, As esquerdas na ditadura militar: o cristianismo da libertação. Op. Cit.
p. 307.
119
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Relatório Encontro de Esposas, 1976. Tema: O Trabalho da Mulher.
84

outras camponesas e outros camponeses que também escreveram livrinhos e cartas


comunitárias, é entendida aqui como escritora do campo. 120
De maneira geral, o livrinho de Conceição Araújo trazia como mote para sua reflexão
o problema da migração camponesa. Por consequência, o Relatório de 1979 apresenta o
debate das camponesas em torno da polarização campo-cidade, tendo em vista o receio que
seus filhos abandonem o meio rural em busca de trabalho e melhores condições de vida nos
centros urbanos. Sabe-se que tal receio se fundamenta a partir do processo migratório que se
desencadeou na segunda metade do século XX no Brasil. Verifica-se que grande número de
trabalhadores do campo e de cidades de interior do Nordeste, tido como atrasado
economicamente, migrou para regiões industrializadas, como Sudeste.
No caso do Ceará, o movimento migratório referente à segunda metade do século XX
se caracteriza tendo dois principais destinos. Em um primeiro momento, décadas de
1950/1960, os cearenses se deslocavam, principalmente, para o chamado meio norte,
Maranhão e Piauí. Posteriormente, com o surto industrial vivenciado pelo eixo Rio de
Janeiro/São Paulo, acentuado na década de 1970, período do chamado ―Milagre Econômico‖,
cearenses de diversas cidades passaram a migrar em massa para o Sudeste. Com a crise
econômica que se desencadeia na década de 1980, observa-se um gradual movimento de
121
retorno desses emigrados, o que aumenta nos anos 1990. De todo modo, para as esposas e
mães do campo se dispensavam os dados estatísticos, visto que a realidade concreta de
migração campo-cidade ou Norte-Sul estava presente nos seus lares e nos de seus conhecidos
em decorrência, principalmente, da falta terra e dos períodos de seca prolongados.
Além desses fatores, a educação formal, para algumas camponesas, era tomada como
mais um motivo para a migração de seus filhos, tendo em vista que depois de escolarizados
não se contentariam com o trabalho na roça. Por isso aparecia no Relatório a ideia de que ―[...]
a gente tem que botar os filhos pra estudar mas só até o primário porque se eles vão trabalhar
pra longe eles pode virar um tubarão‖. Assim, na concepção das mães do campo ―[...] Duas

120
A coleção Evangelho dos Lavradores foi largamente analisada em minha dissertação de mestrado. Para
conhecimento lê o livro: BEZERRA, Viviane Prado. ‗Porque si nóis não agir o pudê não sabe si nóis isiste no
mundo”: O MEB e o Dia do Senhor em Sobral (1960-1980). Sobral - CE: Edições ECOA, 2014.
121
De acordo com as informações sistematizadas a partir dos microdados dos censos do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística - IBGE, durante as décadas de 1970/1980 para o estado do Ceará registrou-se um volume
de 150.434 imigrantes em contraposição a um volume de 464.781 emigrantes, o que evidencia um contingente
populacional muito maior de saída que de entrada no estado. Para maiores informações sobre as migrações
interestaduais a partir da segunda metade do século XX, cf.: QUEIROZ, Silvana Nunes de; BAENINGER,
Rosana. Evolução das Migrações Interestaduais Cearenses: Análise para os Decênios de 1960/1970, 1970/1980,
1981/1991, 1990/2000 e 2000/2010, p. 27-50. In: OJIMA, Ricardo; FUSCO, Wilson. Migrações Nordestinas
no Século 21 - Um Panorama Recente. São Paulo: Editora Edgard Blücher, 2015.
85

coisas faz com que os filhos saiam da terra: o estudo e a falta de terra‖. 122 Importante atentar
para o vocabulário das camponesas permeado por metáforas, em grande parte, retiradas da
natureza, mas que ajudam a compreender as relações de poder presentes na realidade do
campo, como a alusão feita ao tubarão, que no entendimento popular se associa ao rico
latifundiário que ―engole‖ os trabalhadores do campo.
Por isso, a maioria das camponesas defendia a ideia de que os filhos deveriam receber
uma ―educação da consciência‖ em complementação à educação formal. Ou seja, a educação
da libertação era aquela em que se aprendia a consciência de classe. Nesse sentido, a
experiência no Movimento do Dia do Senhor servia como exemplo desse tipo de educação,
pois ―[...] os pais devem orientar os filhos para eles serem também uma corrente dentro do
Movimento. Este estudo se torna melhor que o estudo numa escola. Eles ganham muito mais
e os pais também dentro da libertação‖. 123
Trabalho, terra e migração aparecem no Relatório como elementos proporcionais à
problemática do campo. Portanto, no Encontro de Esposas de 1980, a questão da ―Terra‖ foi
mais aprofundada. Durante a preparação das esposas para o Encontro anual, era comum a
Equipe de Coordenação enviar ―Circulares‖ para as comunidades, como também, lê esses
tipos de correspondências durante o programa de rádio Encontro das Comunidades. Para
tanto, em outubro de 1980 era lançada mais uma Circular com o intuito de estimular as
camponesas a participarem do Encontro que ocorreria, como de costume, no mês de
dezembro. Assim Lídia e Maria Alice se comunicavam com as mulheres e apresentavam as
questões-chave que norteariam o debate durante o Encontro daquele ano, conforme se lê na
Circular abaixo citada:

Sobral, outubro de 1980.


Queridas esposas,
Interessante o tema que vocês escolheram para o Encontro das
Esposas esse ano: Terra.
Vocês se lembram? Foi conversando sobre a educação dos filhos que
vocês chegaram na terra. Mas aí pelo meio surgiu uma dúvida em algumas
esposas. Foi lá na comunidade de Queimada que elas levantaram: será que
essa conversa de TERRA interessa à mulher? Ou isso é só assunto para os
homens?
Será que a mulher deve se interessar pelo problema da terra?
Se sim, por que? Se não, por que?
Seria bom todo mundo conversar em cima dessa pergunta,
principalmente as esposas. É um jeito bom de se preparar para o encontro
esse ano.

122
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Relatório Encontro de Esposas, 1979. Tema: ―Educação dos Filhos‖.
123
Ibid.
86

(...)
O encontro será dias 15,16 e 17 de dezembro. A parte financeira é
outro ponto importante da preparação. Mesmo sendo um ano difícil de chuva
escassa e pouca safra, e pela experiência do Encontrão, a gente acha que dá
pra confiar no esforço de vocês e das comunidades.
O encontro das esposas, como sempre, desde a parte financeira até o
conteúdo vai depender totalmente de vocês. E vocês já sabem como é né?
Não precisa saber ler nem escrever, basta trazer a cabeça no lugar.
Abraços pra vocês,
Lídia e Maria Alice 124

Embora extensa, a citação da Circular quase na íntegra exemplifica o tipo de escrita


presente em quase todos os documentos produzidos pela Equipe de Coordenação. É
importante que se diga que era esse tipo de comunicação que repercutia e garantia a
participação das mulheres nos Encontros. Diga-se de passagem, em um tempo que o rádio e
os correios eram os principais meios de circulação de notícias, Circulares como essa eram
ansiosamente esperadas pelas camponesas espalhadas em muitas comunidades rurais da
Diocese de Sobral e de Itapipoca.
Uma característica do Movimento do Dia do Senhor era a perspectiva missionária dos
seus participantes. Muitos desses, homens e mulheres, circulavam entre as diversas
comunidades e a sede do Movimento, situada na própria casa do padre Albani Linhares, na
Cúria Diocesana de Sobral. Em missão itinerante, se deslocavam muitas vezes a pé ou no
lombo de algum animal para participar de reuniões comunitárias ou celebrações dominicais
em comunidades vizinhas, mesmo sendo a noção de vizinhança no meio rural marcada pelo
isolamento e considerável distância entre as comunidades. Por vezes, nessas andanças, as
Circulares também eram distribuídas.
Ressalta-se uma escrita em tom informal utilizado para a comunicação popular. A
Equipe de Coordenação retirava do próprio repertório dos camponeses as palavras e metáforas
para serem incorporadas ao programa formativo do Movimento. Esse tom informal
aproximava a Coordenação das participantes, bem como, fazia com que tais participantes se
identificassem com aquilo que era parte de sua realidade e modo de ser e falar.
Outro ponto a ser ressaltado é o controle pedagógico da Equipe, visto que mesmo se
comunicando aos moldes populares, não passam despercebidas as orientações repassadas em
torno da temática a ser debatida e da preparação financeira para o Encontro. Em outras
Circulares é comum a Coordenação orientar que as camponesas tragam redes e também
cubram os gastos com suas passagens. Com a apropriação do vocabulário do campo, a
Equipe de Coordenação ultrapassava a fronteira cultural que a separava das camponesas,

124
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Circular/ Encontro de Esposas, 1980.
87

embora nunca fossem vistas por essas camponesas como uma das suas. Nem a própria Equipe
tinha tal intenção. Entende-se que, tanto os religiosos, padre Albani e irmã Maria Alice, como
os leigos, Gustavo e Lidia, atuavam como intermediários culturais, na concepção de Michel
Volvelle 125, ao passo que transitavam entre o rural e o urbano, o letrado e o iletrado, o erudito
e o popular.
Assim, esses intermediários culturais permaneceram à frente do Movimento do Dia do
Senhor até o início da década de 1980. Em 1981, os Encontros de Esposas passaram a ser
organizados pelas próprias camponesas. Elas próprias assumiram as responsabilidades
pedagógicas e metodológicas, desde a escolha do tema, escrita e divulgação das Circulares até
a condução do debate nos dias do Encontro, bem como, continuaram responsáveis pela
elaboração dos Relatórios. De maneira mais abrangente, nesse mesmo período, os
camponeses considerados a ―Nata‖ do Movimento também assumiram todas as
responsabilidades do Encontrão, da parte financeira e da elaboração de projetos, enfim, da
gerência do Dia do Senhor.
Na concepção da Coordenação, os camponeses e as camponesas haviam conquistado a
autonomia, podendo continuar se organizando sem intermediação. Lídia Ferreira situa os
motivos que a fizeram sair do Movimento, como também, sua narrativa recupera a segurança
da Equipe diante do assumir das bases.

Nós ficamos durante 9 anos de 1976 a 1985. Depois de 9 anos morando em


Sobral, com os limites da comunicação da época (não havia computador, os
jornais quase não chegavam, etc...) sentimos a necessidade de procurar
novos ares.......por essa época estavam se fortalecendo mais as ONGs, o que
representava uma alternativa de trabalho. O Movimento também, por seu
lado, já contava com uma coordenação e outras instâncias de
participação/decisão que já assumiam plenamente a condução do processo,
por isso nos sentimos seguros em sair confiantes que o Movimento iria
permanecer, como ocorreu até um determinado período. 126

Por esse caminho, o Encontro de Esposas de 1981 trazia como tema ―A força da
Classe‖. Tal temática já vinha sendo muito discutida pelo ―povo‖ do Movimento, pois
repercutia a reflexão apresentada pelo camponês Antônio Pires em seu livrinho ―As duas
panelas‖. Tal livrinho compunha o número treze da coleção Evangelho dos Lavradores,
publicado pela Equipe de Coordenação em 1980. O mote do livrinho era a luta de classes

125
VOVELLE, Michel. Ideologias e Mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1991.
126
Entrevista com Lídia Ferreira em 26/03/2016, já citada.
88

explicada em linguagem simples e a partir da interpretação dura e crua de um trabalhador do


campo. ―As duas panelas‖ representava a panela do rico em oposição à panela do pobre.
Desse modo, na Circular escrita pelas esposas percebe-se a preparação para o
Encontro, como também, se destacam alguns dos nomes das camponesas que assumiram de
fato o trabalho de organização feminina e de continuidade dos Encontros de Esposas. Para
usar uma definição cara aos participantes do Dia do Senhor, pode-se dizer que tais mulheres
compunham parte da ―Nata‖ dos grupos de Esposas.

Queridas esposas
Em Belém, na Cruz, no mês de outubro reuniu-se a Lurdinha, a
Fausta, a Terezinha, a Nega, a Mariinha e a Ana, todas elas esposas
camponesas, para conversar sobre o encontro de esposas de 81.
O tema já estava escolhido né, a força da classe, mas a gente se
perguntava: ―o que vamos tratar dentro desse tema?‖. Aí saíram várias
sugestões: o trabalho da mulher em casa, toda a luta que se tem para criar os
filhos, o trabalho em renda, bordado, chapéu, de como esse trabalho é
desvalorizado. O problema da terra que não tem para trabalhar e muitas
outras coisas. (...)
E pra terminar elas acharam bom fazer uma pergunta que é essa: se
na realidade as mulheres sabem mesmo como está pagando a renda?
Então tudo isso foi conversado lá no Belém. O encontro será dias
12,13 e 14 de dezembro e todas as esposas que tem vontade de conversar,
encontrar com as amigas, desabafar, brincar, rir, dançar, descobrir coisas
novas, vão vir a esse encontro. 127

Tanto nessa Circular como no Relatório de 1981 nota-se que a temática central do
Encontro de Esposas abriu margem para a discussão de muitas outras questões presentes na
realidade vivida por essas mulheres, evidenciando-se a discussão de classe e de gênero. Ao
passo que se refletia sobre a classe pobre e camponesa a qual pertenciam, também se pensava
sobre o papel específico da mulher dessa classe assumindo, inclusive, uma discussão
tradicionalmente masculina como a questão da renda paga aos proprietários de terra.
Porém, a quantidade de participantes no Encontro de 1981 foi bastante reduzida. Essa
redução se repetiu no encontro de 1982, sendo cada vez mais sentida nos anos posteriores.
Pelo Relatório de 1982 verifica-se que apenas 17 mulheres compareceram à serra da Meruoca
naquele ano. Percebe-se a preocupação das bases a ponto de se questionarem sobre a validade
de continuar com os Encontros anuais na Meruoca, visto a distância de algumas comunidades
e também a existência dos chamados ―Encontrinhos‖, reuniões locais que congregavam
mulheres em cada comunidade rural. Esses ―Encontrinhos‖ se realizavam no decorrer do ano

127
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Circular / Encontro de Esposas, 1981.
89

nas diversas paróquias, principalmente em Acaraú e Morrinhos. Inicialmente, tinham intuito


preparatório para o grande Encontro de Esposas anual.
De acordo com a avaliação das camponesas, dentre os motivos apontados para
tamanha redução estão: ―[...] falta de condição financeira, doença, preocupação para moradia,
falta de liberdade dos esposos a deixarem suas esposas a participar, falta de interesse etc.‖.128
Nesses encontros não havia mais a presença da Equipe de Coordenação e a metodologia
utilizada foi adaptada à criatividade das camponesas, dispensando maiores preocupações
pedagógicas, se distanciando do modelo assumido por Valnê ou Maria Alice e Lídia. Para
tanto, era comum aparecer nas correspondências das esposas o pensamento de que: ―[...] a
maioria das esposa dizeram ninguém vai preparar encontro. O conteúdo está na cabeça de
cada esposa que for participar do encontro‖.129
Essa metodologia mais independente de planejamentos e tarefas pré-estabelecidas que
fora adotada pelas bases se tornou comum em todos os Encontros desde 1981 até a década de
1990. No Relatório de 1991 evidencia-se que não foram determinadas nem as distribuições
das funções e nem dos horários, pelo fato de todas as participantes se sentirem responsáveis
pela totalidade do Encontro. De certa forma, esse ponto denota a plena conquista da
autonomia pelas camponesas, visto que não precisavam mais de que tarefas ou horários
fossem discriminados, como eram no tempo da Equipe de Coordenação, porque a dinâmica
desses Encontros já tinha sido assimilada pelas participantes. Mais do que assimilada, essa
dinâmica tinha sido ressignificada de acordo com o entendimento da nova coordenação, que
não era uma. Portanto, a nova metodologia se construía conforme a pluralidade das bases que
assumiam.
Nesse sentido, lê-se no Relatório de 1991 que foi feito ―[...] somente apresentação das
novatas e um bate papo livre e profundo sobre: Marido, Filhos, Sexo, etc.‖ 130 Nessa altura, a
discussão em torno da sexualidade feminina já se mostrava assunto recorrente nos Encontros
de Esposas, de forma que não precisava constar como tema para que surgissem as conversas
sobre esse assunto. Na verdade, muitas mulheres esperavam por esses Encontros para falar e
desabafar sobre isso, espontaneamente. Inclusive, muitos dos conhecimentos sobre o corpo
feminino e saúde da mulher foram adquiridos nesses Encontros pelas camponesas. Desde a
coordenação da Equipe do Movimento, quando o tema se relacionava a Sexualidade, era
comum a presença de um médico, dr. João Batista, nos Encontros de Esposas. Era uma

128
Arquivo Movimento Dia do Senhor. Relatório Encontro de Esposas, 1982.
129
Arquivo Movimento Dia do Senhor. Carta de Luzia, do Acaraú /Encontro de Esposas, 1981.
130
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Relatório dos Encontros de Esposas, 1991.
90

oportunidade em que as camponesas aproveitavam para aprender e esclarecer dúvidas sobre


sua intimidade.
Especificamente no Encontro de 1991 relata-se a presença de um convidado para falar
sobre ―alimentação da mulher‖, além disso, houve uma ―[...] discurssão em plenária sobre os
131
remédios caseiros para os problemas genitais da mulher, diarreia, vômitos, etc.‖. A saúde
íntima das camponesas parece ter sido uma questão bastante debatida nos Encontros, levando
em consideração que tanto nos Relatórios como nas entrevistas orais, aparecem indícios de
que essa era uma questão-problema que atingia as participantes. Nesse sentido, as
informações de um profissional da saúde serviam de aprendizado, mas também, abria margem
para consultas e receitas de remédios. O dr. João Batista é lembrado pelos entrevistados como
um amigo e médico do Movimento.
Nesse Relatório, ressalta-se a autonomia das camponesas tanto na metodologia de
Coordenação, como também, na compreensão que fazem de sua atuação enquanto
protagonistas no Movimento e no mundo, ao passo que ―[...] hoje as mulheres se sentem mais
livres, mais independentes e mais compromissadas com a luta‖. Segundo as reflexões
expostas no Relatório, as mulheres aprenderam a conquistar seu espaço e seus direitos na
relação conjugal. Desse modo, a astúcia feminina é indicada implicitamente como elemento
de conquista para a liberdade. Na citação essa astúcia aparece escrita de maneira popular
como aquele ―jeito‖ que as mulheres usam para ―dobrar‖ os maridos.

- Hoje não é desculpa se dizer, que nossos maridos não deixam, ou


não aceitam a saída das mulheres para os Encontros, pois a liberdade não se
dar para arranjar ela, é preciso muita conquista.
- No lar se consegue tudo que se quer, depende do jeito, técnica,
momento e necessidade.‖ 132

Outro aspecto dos Encontros de Esposas era sua dimensão mística, que se manifestava
nas cantorias e atividades de lazer. Como em todo movimento de pastoral popular, a presença
de cânticos religiosos com letras que mesclavam ensinamentos do evangelho e realidade de
vida dos pobres servia de combustível para reflexão e ação. Nos Encontros de Esposas,
percebe-se que essas músicas serviam tanto para a animação do grupo, como também, o
repertório cantado fazia parte da própria dinâmica dos Encontros, ao passo que se alternava
oração, cantorias e atividades de estudo.

131
Ibid.
132
Ibid..
91

Ainda no Relatório de 1991 evidencia-se que ―[...] foi cantado um cântico, feito pelas
mulheres presentes no Encontro baseado na realidade‖. Além disso, no horário de lazer
durante a noite as mulheres realizaram brincadeiras como ―Seu Gonçalo, resado, etc.‖ O
cântico citado no Relatório foi uma composição das mulheres de Serra Verde, comunidade da
Diocese de Sobral. A letra trazia elementos de encorajamento para a luta das mulheres
valorizando o papel da mulher na família e em sociedade, como também, o reconhecimento
de que a união entre as mulheres das ―praias, serras e sertão‖ era um elemento de força para
vencer a opressão. Nesse sentido, a compreensão de que a ação feminina é transformadora
aparece em versos simples que compõem o refrão:

Cântico de autoria das mulheres da Comunidade Serra Verde (Sobral)


Eu quero vê, eu quero vê, eu quero vê,
Eu quero vê, o que é que vão fazer,
Eu quero vê, se a mulher não se mexe,
Eu quero vê, quem se mexe por você. 133

Por esse caminho, no Relatório de 1993 encontra-se mais um cântico produzido pelo
grupo de mulheres da comunidade Poço da Onça, diocese de Itapipoca. Em ritmo de xote,
ressalta-se na letra o uso da expressão de que as mulheres precisam ―se mexer‖, expressão
comum no linguajar das bases, muito presente nas letras de outras canções produzidas pelas
mulheres do Movimento, o que mais uma vez reforça a ideia de ação feminina. Tanto no
refrão como em toda letra se reforça a conquista da liberdade das mulheres, liberdade que se
opõe ao espaço privado da casa e opressão dos maridos. Assim, cantavam e dançavam a busca
pela liberdade feminina. No canto das mulheres do Poço da Onça debater sobre esse tema
soava como ―obrigação‖:

Canto feito pelo grupo do 4º mini-Encontro das mulheres do Poço da Onça


em 16 de dezembro de 1993.

Nós estamos reunidas com grande animação
Para debater um tema que é de nossa obrigação
Falar sobre liberdade hoi colega que não temos ainda
Falar sobre liberdade hoi colega que não temos ainda não (bis)

Pois é aqui que eu quero me engajar
Nessa luta das mulheres para a gente conversar
Pra nós sentir que a nossa liberdade
Tá cheirando um pouquinho no meio da sociedade (bis)

A mulher só na cozinha não sabe de nada não

133
Ibid..
92

Ela tem que se mexer sair do pé do fogão


Queremos entrar na luta
Tá tá tá trazer a libertação (bis)
[...]
Assina as mulheres do Poço da Onça. 134

Ao perscrutar os Relatórios arquivados tentou-se reconstituir os caminhos trilhados


pelas esposas do Movimento do Dia do Senhor ao longo de quase trinta anos de existência dos
Encontros de Esposas. Também foi possível encontrar nesses Relatórios a letra, a
sensibilidade e o pensamento de mulheres que se fizeram leitoras, escritoras e compositoras
do campo, ao passo que escreviam e liam Relatórios, Circulares e Cartas Comunitárias,
compunham músicas e poesias que retratavam suas lutas, suas vidas e seus costumes comuns.
Não somente nos Relatórios, mas todos os documentos arquivados indicam para uma
profunda transformação das mulheres que participaram dos Encontros de Esposas, tanto que
muitas dessas mulheres, mesmo com o fim do Movimento do Dia do Senhor nos anos 1990,
ainda se fazem militantes em Associações, Sindicatos Rurais, Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra.
Entre o sabor e o dissabor de uma documentação árida como se caracterizam os
Relatórios foi possível conhecer o interior desses Encontros, o cotidiano e o protagonismo das
mulheres do Movimento. No percurso dos Relatórios foi possível reconstituir a existência e a
resistência feminina para se manterem em Movimento durante tanto tempo atuando, ora em
conjunto com seus esposos na luta pela terra, por melhores condições de trabalho e de vida,
ora em paralelo, pela autonomia e libertação feminina e pelo direito de igualdade entre
homem e mulher, conforme será esmiuçado nos próximos capítulos.

134
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Relatórios Encontros de Esposas. Canto feito pelo grupo do 4º mini-
Encontro das mulheres do Poço da Onça em 16 de dezembro de 1993.
93

2. SEGUNDO CAPÍTULO: “Eu sei que a gente tem uma história


muito grande pra contar” - Mundos do trabalho feminino

A mão da mulher tem olheiros nas pontas dos dedos: risca o pano, enfia a agulha,
costura, alinhava, pesponta, chuleia, cerze, caseia. Prende o tecido nos aros do
bastidor: e tece e urde e borda.
(Os trabalhos da mão - Alfredo Bosi)

2.1. “A gente já cresceu foi trabalhando”: uma vida de trabalho no campo

Tanto o espaço geográfico do Movimento do Dia do Senhor, quanto seu universo


cultural remontam ao mundo rural das regiões Norte e Noroeste do Ceará, característico do
período situado entre as décadas de 1960 a 1990. Sabe-se que o Movimento atuava em
diversas comunidades rurais espalhadas pelas Dioceses de Sobral e de Itapipoca. Portanto,
suas bases eram formadas exclusivamente por camponeses e camponesas que, nesse período,
tinham como principal fonte de trabalho e de renda a agricultura e a criação de animais, bem
como, a pesca tradicional nas regiões do litoral. A sobrevivência desses sujeitos estava
relacionada à sorte de um bom inverno, o que favoreceria uma boa safra dos produtos
plantados. De acordo com Maria Valnê Alves, em pesquisa pioneira sobre o Movimento do
Dia do Senhor,

A experiência situa-se na área rural do nordeste brasileiro, região do sertão,


litoral e serra, onde encontram-se os vários tipos de propriedades rurais-
latifúndio, propriedades médias e minifúndios – cobrindo uma área de
20.000 Km ², com uma população de aproximadamente 500.000 habitantes.
Todos os que trabalham diretamente na relação produtiva desenvolvem uma
economia de subsistência. Nessa área geográfica os produtos básicos são:
feijão, mandioca, milho, algodão, mamona e castanha de cajú. 135

Evidencia-se que a realidade da vida no campo durante o período de atuação do


Movimento era difícil. Uma dura vida de privações, marcada pela falta de terra, pela
desigualdade social e pela exploração do trabalho camponês. Nesse sentido, para garantir a

135
ALVES, Maria Valnê. Interferência de Educadores de Camada Média em Educação Popular: viabilidade
teórico - prática da interferência de educadores de camada média em Educação Popular a partir de uma
experiência na área rural do nordeste brasileiro. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, (Mestrado em
Educação), 1980, p. 7.
94

sobrevivência, a maioria dos camponeses trabalhavam em terras de outros, exercendo


jornadas exaustivas, se desdobrando entre os cuidados com a roça do patrão e com a sua. Em
menor escala, podiam-se encontrar alguns camponeses que trabalhavam autonomamente,
plantando seu roçado em pequenos lotes de terras, valendo-se da força de trabalho de toda sua
família. Nesse processo, entravam no circuito da produção, esposa e filhos, aliás, muitos
filhos conforme se caracterizavam as famílias camponesas da época.136 No entanto, é bom
ressaltar que esse trabalho autônomo só durava enquanto não chegassem os supostos donos
das terras com alguma documentação forjada em cartório reivindicando a posse da terra, pois
a grilagem era comum de acontecer no meio rural, conforme se evidencia nas narrativas dos
entrevistados, e que será discutido no terceiro capítulo.
As camponesas do Movimento nasceram, cresceram e envelheceram nesse universo do
campo, sendo inseridas no mundo do trabalho rural desde tenra idade. As histórias de vida
dessas mulheres são muito semelhantes, pois são marcadas pela dura rotina de trabalho que se
adaptavam desde cedo, ainda crianças. Quando adultas, que assumiam o papel de esposa e
mãe, tal rotina se asseverava e se iniciava com o raiar do sol, só terminando com a lua
iluminando o céu, muitas das vezes quando todos da casa já estavam acomodados para o sono
da noite. Essa vida de labuta doméstica diuturna é narrada pelas mulheres que compunham o
Dia do Senhor, tanto pelas que viviam no interior sertanejo como pelas que viviam no litoral.
Representa, pois, ―[...] A fusão do trabalho com a própria substância da vida [...]‖, conforme
ressalta Ecléa Bosi. 137
Nas memórias das camponesas entrevistadas ressalta-se a lida com a casa misturando-
se ao trabalho realizado no roçado, juntamente com os homens. Como também, em alguns
casos, ressalta-se o trato com a palha, a renda, a costura, o feitio de redes. As mulheres da
região do litoral ressaltam ainda o trabalho com búzios. Nesse sentido, percebe-se a existência
de um trabalho doméstico atrelado a um ofício apreendido tradicionalmente com as mulheres
da família, como avós, mães, tias, madrinhas, que as ensinavam a fazer renda de bilros,
chapéus, redes, artesanato, etc. O que, na maioria das vezes, também foi utilizado por elas
como fonte de renda.

136
Nos Relatórios dos Encontros de Esposas são descritos os dados básicos das participantes de cada encontro,
tais como idade, quantidade de filhos vivos, quantos filhos morreram, por vezes, informam a idade com que
casaram e em que trabalhavam. Pela leitura desses Relatórios revela-se uma realidade em que mulheres jovens
engravidavam constantemente, as vezes, salvaguardando-se somente o intervalo entre um resguardo e outro.
Como exemplo cita-se Teresa Marques de Freitas, 39 anos, que teve um total de 12 filhos, dos quais morreram 4.
Como também, o caso de Francisca Elvira Soeiro, de 45 anos, que teve 16 filhos, dos quais morreram 5.
137
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das letras, 1994, p. 475.
95

Em algumas entrevistas, as artes do saber/fazer são narradas pelas camponesas com


precisão de detalhes. Como chama atenção Ecléa Bosi, ―[...] Quanto mais a memória revive o
trabalho que se fez com paixão, tanto mais se empenha o memorialista em transmitir ao
confidente os segredos do ofício‖.138
Na realidade de vida das camponesas, tais ofícios são entendidos aqui de acordo com a
fluidez que perpassa a lógica do trabalho produtivo versus reprodutivo. Sabe-se que
historicamente as relações de trabalho também estruturaram hierarquias de gênero, visto que,
de acordo com a divisão sexual do trabalho, convencionou-se que os homens assumiriam a
função de provedor do lar, ocupando os espaços públicos, enquanto às mulheres destinava-se
o domínio dos espaços privados, onde poderiam exercer plenamente as funções de esposas,
mães e rainhas do lar139.
Nessa perspectiva, o trabalho masculino se inseria no circuito do trabalho produtivo,
portanto, reconhecidamente um trabalho valorizado e remunerado, com o qual garantiria o
sustento de toda família. Enquanto, o trabalho feminino, entendido como doméstico e
vinculado à noção de cuidados com a casa, com o esposo e com os filhos, diga-se de
passagem, horas de trabalho não contabilizadas, inseria-se na esfera do trabalho reprodutivo,
não remunerado e desvalorizado socialmente.
Nesse momento, faz-se apropriação das reflexões da socióloga Maria Cristina
Maneschy140 com relação a esse binarismo entre trabalho produtivo e reprodutivo, tomado
como discurso legitimador das hierarquias de poder presentes nas relações de gênero. Tais
reflexões se desenvolvem em decorrência de sua pesquisa que aborda a experiência de
mulheres pescadoras em um porto pesqueiro do estado do Pará.

Não obstante as mudanças em curso, a análise sob a ótica das relações


sociais de gênero e da economia política é suscetível de revelar uma série de
continuidades a marcar as práticas laborais das mulheres. Com efeito, essa
perspectiva ressalta como as construções socioculturais relativas a papeis e
identidades de gênero incidem nas experiências de trabalho de mulheres e
homens. Especialmente o peso dos valores pertinentes à divisão sexual do

138
Ibid., p. 80.
139
Nessa perspectiva, em texto clássico, a historiadora Joan Scott chama atenção para o fato de que ―Alguns
(mas) pesquisadores (as), notadamente antropólogos(as) reduziram o uso da categoria de gênero ao sistema de
parentesco (fixando o seu olhar sobre o universo doméstico e na família como fundamento da organização
social). Precisamos de uma visão mais ampla que inclua não só o parentesco, mas também (em particular, para as
sociedades modernas complexas) o mercado de trabalho (um mercado de trabalho sexualmente segregado faz
parte do processo de construção do gênero). In: SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica.
In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História. Novas Perspectivas. São Paulo: Editora Unesp, 1998, p. 22.
140
MANESCHY. Maria Cristina. Mulheres na pesca artesanal: trajetórias, identidades e papéis em um porto
pesqueiro no litoral do estado do Pará. In: NEVES, Delma Pessanha; MEDEIROS, Leonilde Servolo de. (Orgs.)
Mulheres camponesas: trabalho produtivo e engajamentos políticos. Niterói: Alternativa, 2013.
96

trabalho, dentro e fora da família. (...) Segundo Nancy Fraser (1997), dentre
outros autores, a ordem econômica vigente assenta-se em uma ―ordem social
de gênero‖ que estrutura e legitima a separação entre trabalho produtivo e
reprodutivo, este último tradicionalmente assumido por mulheres. 141

Na experiência do Movimento do Dia do Senhor, observam-se reflexões das


camponesas participantes com relação ao aspecto relacional de gênero142 em todos os níveis,
incluído as relações de trabalho. A questão do trabalho dos seus esposos era um ponto que
servia de comparação para essas mulheres, ou seja, elas entendiam o sistema de exploração do
trabalho pelo qual passavam os seus maridos, submetidos à opressão do patrão. No entanto, se
julgavam também oprimidas, no caso, duplamente oprimidas, visto que em suas narrativas é
muito comum a ideia-força de que o ―homem precisava se libertar da opressão do patrão,
enquanto, as mulheres precisavam se libertar tanto da opressão do patrão quanto da dos
maridos‖, como se evidencia na narrativa de Rosa Pires, ex-esposa do dirigente Antônio Pires,
com forte atuação no Movimento na região de Itapipoca. 143
Rosa Pires recupera sua trajetória de trabalho camponês, desde muito nova, quando
ainda morava na casa dos pais, até quando passou a assumir a própria sobrevivência e a de sua
família, depois de casada e de separada. Sua narrativa diz do labor com o preparo da terra,
com a plantação e colheita.

Eu sou filha do Camilo Pereira, lá do São Tomé. A gente trabalhava mesmo


rapando mandioca, era plantando, a gente ajudava a colher. Campinar, a
gente capinou pouco, mas de tudo isso, eu cheguei até a cavar cova pra
maniva. Plantar roça, às vezes, eu fazia isso. Mas isso aí já foi depois d‘eu
casada. D‘eu separada, foi. E aí, eu sei que a gente tem uma história muito
grande pra contar. 144

141
Ibid., p. 43
142
Nesse momento faz-se importante esclarecer que o conceito de Gênero aplicado nessa pesquisa é tributário de
Joan Scott que o entende como uma construção social e que, historicamente, criou e legitimou hierarquias de
poder entre o feminino e o masculino. Essa concepção se contrapõe, portanto, às ideias naturalizadas pelo
determinismo biológico. Por esse caminho, para a autora é imprescindível se compreender o Gênero como uma
categoria de análise histórica que aborde igualmente as noções de sexo, classe e raça. Como também, a
construção do feminino em relação à construção do masculino, pois ambos fazem parte desse mesmo processo,
entendendo tanto o homem como a mulher como ―categorias vazias e transbordantes‖. SCOTT, Joan. Gênero:
uma categoria útil de análise histórica. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História. Novas Perspectivas. Op.
Cit.
143
Esse pensamento aparece na fala de Rosa Pires, Rita de Cássia, assim como é referenciado por Maria Alice,
ao citar exemplos das questões que apareciam nas cartas comunitárias das mulheres do Dia do Senhor. As
entrevistas com Rosa Pires e Maria Alice MacCabe se realizaram no dia 06/06/2009. A entrevista com Rita de
Cássia se realizou no dia 01/04/2010.
144
Entrevista realizada com Rosa Pires, em 06 de junho de 2009, em Itapipoca - CE.
97

Trabalho pesado feito de sol a sol, que marcava a infância, juventude e velhice de
camponeses e de camponesas, condicionando o tempo, os corpos e o saber-fazer
desempenhado conforme cada etapa da vida no campo. Esse condicionamento da vida e do
trabalho camponês remonta a um período histórico anterior à Revolução Industrial, em que o
tempo era marcado pelas tarefas diárias e não pelo relógio. A partir do texto ―Tempo,
disciplina de trabalho e capitalismo industrial‖, de E. P. Thomson 145, pode-se perceber que as
noções de tempo, trabalho e vida nas comunidades camponesas da Inglaterra pré-industrial,
guardadas as devidas proporções de tempo e espaço, ainda podem encontrar sentidos no
século XX, quando se analisa populações camponesas que ainda viviam e trabalhavam de
acordo com experiências tradicionais. Nesse sentido, segundo o autor:

A notação do tempo que surge nesses contextos tem sido descrita como
orientação pelas tarefas. Talvez seja a orientação mais eficaz nas sociedades
camponesas, e continua a ser importante nas atividades domésticas e dos
vilarejos. Não perdeu de modo algum toda a sua importância nas regiões
rurais da Grã-Bretanha de hoje. É possível propor três questões sobre as
tarefas. Primeiro, há a interpretação de que é mais humanamente
compreensível do que o trabalho de horário marcado. O camponês ou o
trabalhador parece cuidar do que é uma necessidade. Segundo, na
comunidade em que a orientação é pelas tarefas é comum parece haver
pouca separação entre o ―trabalho‖ e a ―vida‖. As relações sociais e o
trabalho são misturados – o dia de trabalho se prolonga ou se contrai
segundo a tarefa – e não há grande senso de conflito entre o trabalho e
―passar do dia‖. Terceiro, aos homens acostumados com o trabalho marcado
pelo relógio, essa atitude para com o trabalho parece perdulária e carente de
urgência. 146

Ainda segundo as reflexões de E. P. Thompson, no contexto europeu de transição para


uma sociedade industrial, o trabalho das camponesas aparecia como o mais exaustivo,
também por ser considerado ininterrupto, como afirma: ―o trabalho mais árduo e prolongado
de todos era o da mulher do trabalhador na economia rural. Parte desse trabalho –
especialmente o cuidado dos bebês – era o mais orientado pelas tarefas. Outra parte se dava
nos campos, de onde ela retornava para novas tarefas domésticas‖.147
O que não soaria descontextualizado se fosse relacionado às experiências de vida e de
trabalho das camponesas participantes do Movimento do Dia do Senhor, ou seja, mesmo

145
THOMPSON, E.P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
146
Ibid., p. 271-272.
147
Ibid., p. 287.
98

vivendo em outra temporalidade e em uma sociedade capitalista industrial consolidada, as


jornadas de trabalho das camponesas ainda podem ser consideradas mais árduas e
prolongadas, tendo em vista que são justapostas. Talvez por ter consciência do valor que tem
o trabalho feminino, na narrativa de Rosa Pires é muito forte a apropriação da palavra luta.
Nesse sentido, mulheres como Nazaré Flor, de Itapipoca; Rita de Cássia, de Juritianha,
em Acaraú, e Fausta Marques, de Sítio Alegre, em Morrinhos, são lembradas por Rosa como
fortes companheiras de luta e exemplos de sabedoria. É importante ressaltar que na
experiência dos Encontros de Esposas, muitas amizades foram feitas e consolidadas com o
tempo e com o engajamento no trabalho pastoral e na luta social. Nesse sentido, uma das
mulheres citadas por Rosa Pires, Fausta, se tornou sua amiga, comadre e confidente, a ponto
de trocar experiências de vida e pedir conselhos nos momentos difíceis, como no de sua
separação.

Você soube da Nazaré, que era uma mulher muito forte. A Nazaré era uma
colega nossa, ela morreu nova. Ela, às vezes ia até pro Japão, ia pra todo
canto. Era uma mulher muito lutadora e muito inteligente... E aí era só
mulher mesmo batalhadora, mulher muito... que eu admirava mesmo, da
luta. Aí em Juritianha tem a Rita que é uma mulher muito, assim, a Rita
é muito sábia... eu gosto muito. A cumade Fausta é outra mulher... muito
econômica em casa. A gente conversava mais era sobre esses assuntos,
sabe?... Porque tem mulher que mais sábia que as outras, sabe coordenar
mais a família... porque a gente ensinava e aprendia também com elas.148

Assim como Rosa Pires, sua comadre, Maria Fausta Marques, também é filha de
agricultor e começou o trabalho no campo ainda criança. Fausta é reconhecida entre as
companheiras do Movimento como uma mulher econômica, com experiência em economia
doméstica, o que servia de exemplo a ser compartilhado com as outras quando dos Encontros
de Esposas. Essa experiência com a economia da casa, Fausta aprendeu com sua mãe, trazia
como um legado de família. Em sua narrativa, percebe-se certo orgulho em ter sido criada
nesse modelo, tanto que depois de casada, reproduziu-o para sua própria prática de dona de
casa e de trabalhadora rural.

Desde idade de sete anos que o que eu conheci foi agricultura, porque meus
pais agricultor né, e minha mãe era uma pessoa muito criadeira de galinha,
toda aquela criação de pena né. E meu pai era agricultor mas, não era
vaqueiro... mas, sempre teve a vaquinha... pra ter o leite de casa. Criava as

148
Entrevista com Rosa Pires, em 06/06/2009. Já citada.
99

ovelha, criava cabra, tudo pouco. Terreno era pequeno, mas ajudava muito
na parte financeira. Eu fui criada com esse, neste rumo, quando me casei
continuei porque achei que ajudava financeira em casa né. Quem conheceu
minha casa... Lídia, Valnê conheceram, viam de perto, nossa criação de
galinha, capote, pato. Isso era pra manutenção de casa, mesmo assim,
vendia. O milho que o Abdias, que a gente fazia da agricultura, era pra‘s
criação, não precisava a gente comprar. 149

Fausta é esposa do dirigente Abdias Marques, da comunidade de Sítio Alegre,


município de Morrinhos. Como era comum na cultura camponesa, Fausta e Abdias se casaram
muito jovens, pela faixa dos vinte anos, já eram conhecidos por serem de localidades
próximas e desse casamento tiveram onze filhos, em um curto período de onze anos e meio.
Como conta Fausta, ―[...] se criaram dez filhos... Nunca passamos fome na nossa casa, nossos
filhos. Nós nunca tivemos outro ramo, a não ser a agricultura, só que tinha o cuidado... a gente
150
sempre valorizou o nosso trabalho, nosso suor.‖. Atenta-se para a expressão ―se criaram
dez filhos‖, forma muito corriqueira no vocabulário dos camponeses para se referir aos filhos
vivos. No caso do casal Fausta e Abdias, morreu um filho, ainda bebê.
A entrevista com Fausta Marques rendeu duas horas de conversa em que ela
rememorou aspectos de sua história de vida camponesa, como também, situou a dificuldade
de sobreviver e de criar sua prole somente com o trabalho na agricultura. Nesse sentido,
Fausta explica que todas as necessidades básicas da família, desde a alimentação até as
despesas com a escolarização e vestimenta dos filhos dependiam da safra de cada inverno,
como é comum se denominar no Ceará o período de chuvas. Conforme narra a entrevistada, o
período chuvoso dessa região dura em média 3 meses, isso quando se tem chuvas regulares e
não se corre o risco de seca.

Porque eu tinha muita dificuldade sobre o colégio. Primeiro que o inverno é


três mês, então a gente planta milho, feijão e maniva que é da maniva vira
mandioca, que já faz a farinha. Isso a safra era pouca. Pra ter outra parte
dessa alimentação é... não é só um ano... porque a gente planta, com três mês
é que tem, tendo inverno... por exemplo, se planta o milho, com três mês tem
milho... e quando não tinha o inverno, aí era difícil. Esses anos era muito
difícil pra tudo. Pro colégio dos nossos filhos... e a situação da farda. E o
menino pula na frente da mãe: mamãe é nesse mês. Eu olhava assim: com
que é que eu vou me pegar? Pra butar farda em cinco menino de colégio e
cinco dentro de casa pra alimentação, assim mais né? Pesada.151

149
Entrevista realizada com Maria Fausta Marques, em Sítio Alegre, comunidade de Morrinhos – Ce. Em 12 de
outubro de 2010.
150
Ibid.
151
Ibid.
100

Nesse sentido, Fausta Marques compreende a criação de animais como uma sábia
alternativa à agricultura, tendo em vista as dificuldades que passava sua família durante os
tempos de seca ou de inverno fraco, com pouca chuva. Era administrando os parcos recursos
que escapavam da fome e das privações de toda natureza. Fazer uma reserva dos alimentos
que plantavam como milho e feijão garantia a alimentação durante o ano inteiro. Com a
criação dos animais, em vez de vender a colheita, vendiam o que criavam e agregavam ao
orçamento uma renda extra e necessária.
Em toda sua narrativa, Fausta se coloca como sujeito nas decisões referentes à
economia doméstica, o que se evidencia em expressões como ―com que é que eu vou me
pegar?‖, ―eu vendia‖, ―fui educada assim‖. Seu protagonismo na relação com o esposo é
enfatizado diversas vezes durante a entrevista, mesmo quando considera a participação dele,
quando diz ―a gente‖, era ela quem tomava a frente das negociações, conforme explica: ―[...]
E essa criação era muita. A gente vendia, eu vendia pra ajudar no... comprar as coisas do
estudo dos filhos. Porque fui educada assim.‖ 152 (Grifo meu).
Outra camponesa, atuante nos Encontros de Esposas, foi Rosa Marques da Costa,
casada com o dirigente Paulo Marques da Costa, da Comunidade Serra Verde, distrito de
Sobral. Primos de primeiro grau, Paulo e Rosa tiveram treze filhos, dos quais um casal de
gêmeos morreu ainda bebê. Assim, como a maioria dos partos realizados no meio rural
durante as décadas de 1960/70, Rosa pariu seus filhos com o auxílio da única parteira da
comunidade, Maria Gabriel.
A história contada por Rosa Marques também enfatiza o mundo do trabalho camponês
e reafirma a semelhança das trajetórias de vida das mulheres que compunham o Movimento
do Dia do Senhor, ao passo que afirma: ―[...] a minha vida toda foi trabalhando desde criança
né... porque quando era na época de prantar, eu ia prantar, nós ia prantar mais o papai e a
mamãe.‖153
Rosa Marques rememora os tipos de cultivo característicos de sua região, inclusive,
quase os mesmos cultivos das demais comunidades rurais que compunham o sertão das zonas
Norte e Noroeste do Ceará. Como situa em sua narrativa: ―[...] Feijão, milho, roça pra fazer
farinha, arroz, mamona, nessa época a gente tinha uma safra boa de mamona na serra verde,
algodão, era isso aí né‖.154 Nesse sentido, a experiência familiar de Rosa fornece um modelo

152
Ibid.
153
Entrevista realizada com Rosa Marques, em 30 de abril de 2010. Em Serra Verde, Meruoca – Ce.
154
Ibid.
101

diferente do praticado por Fausta Marques. De outro modo, a economia doméstica apreendida
por Rosa não incluía o costume de guardar a produção para consumo, como explica em sua
entrevista:

A gente vendia né, porque a farinha era pro consumo da gente né, a farinha
que fazia. Agora, a mamona, o algodão já era pra vender pra comprar as
outras coisas que a gente precisava em casa. Comprar roupa, comprar
calçado pra família, que as família lá era grande né.155

Na narrativa de Rosa Marques é possível vislumbrar a divisão social do trabalho de


uma família do campo. Conforme explica, havia uma diferenciação das tarefas realizadas
pelos adultos e pelas crianças, como também, uma diferença entre as atividades destinadas aos
homens e às mulheres, representando também uma divisão sexual do trabalho, visto que os
trabalhos entendidos como mais pesados, como capinar, preparar a terra para o plantio ou
fazer cercas eram assumidos majoritariamente pelos homens da família. Por outro lado, as
tarefas ditas mais leves eram feitas pelas mulheres e crianças. Nesse sentido, Rosa rememora
que quando se anunciava o inverno:

Era assim, o papai levava nós pro roçado, assim quando começava a chover.
Aí ele dizia assim: amanhã nós vamos prantar. Aí nós ia. Prantar o feijão,
prantar o milho, prantar o arroz, prantar mamona... e a roça. Porque o feijão
é assim né... sempre eu ia samiano (semeando) o feijão. Eu ia com a
vasilhinha do feijão samiano e a minha mãe mais meus outros irmãos, ia dois
cavando a cova que era meu pai e outro irmão, e os outro ia prantando né. E
aí, minha mãe ia butando o milho dentro da cova junto com o feijão e ia
entupindo a cova né. E assim, nós levava... Quando era pra prantar o arroz,
era assim aquele tantim que era pra prantar. Porque de tudo a gente já tinha
uma base né, que o pai ensinava a gente. 156

Como era comum na realidade do campo, a aprendizagem da agricultura para Rosa


Marques começou bem cedo, como ela mesma relembra: ―[...] Ah eu tinha uns oito anos
quando eu já ia pro roçado ajudar... Agora, já pra capinar o papai já não levava nós... porque
ele dizia que era um trabalho pesado. Ele levava pra prantar e pra colher‖. Nesse sentido, o
trabalho marcou a infância de Rosa e atravessou toda sua trajetória de vida enquanto mulher,
pobre e camponesa, como se evidencia em sua explicação: ―[...] Porque independente do

155
Ibid.
156
Ibid.
102

trabalho da roça, a gente já tinha nosso trabalho de fazer rede... A gente já cresceu foi
trabalhando‖. 157
Ao se ampliar o campo de visão, em maior escala, pode-se dizer que o trabalho
marcava a infância das crianças camponesas de meados do século XX no nordeste brasileiro,
que de modo geral, se dividiam entre a hora de trabalhar, hora de estudar e as poucas horas de
brincar. Na realidade de vida das crianças pobres do mundo rural, por vezes, o trabalho
também se misturava com o lazer. Algumas das camponesas do Movimento do Dia do
Senhor, quando entrevistadas, dizem de seu aprendizado da agricultura, mas também, que
aprenderam outros ofícios ainda crianças. Aprendiam a partir da curiosidade em observar suas
avós, mães, madrinhas ou irmãs mais velhas trabalhando com a palha, com a renda, com o
artesanato, etc. Aprendiam tais ofícios com o ímpeto da brincadeira, no entanto, levavam-nos
para a vida adulta assumindo-os como trabalho sério e produtivo, gerando renda para sua
sobrevivência.
Foi assim que aconteceu com Rosa Marques que conta como aprendeu o ofício de
fazer rede de algodão, ou seja, rede utilizada para dormir, muito comum na região nordeste do
Brasil, principalmente, no meio rural. Até os dias atuais, o costume de dormir em rede
permanece nessa região, tanto no campo como na cidade, independente de classe social.
Ressalta-se que com as transformações do capitalismo, a produção de rede de algodão passou
por transformações e se inseriu no processo de produção industrial, com significativo aumento
e diversificação da produção, circulação e venda.
Muito já se aprimorou na tecnologia de produção de rede desde o período em que
Rosa Marques aprendeu esse ofício com sua irmã, que tinha apenas doze anos na época, que
por sua vez, ―[...] começou a tecer rede, fazer rede com a cumade Maria... Assim, a minha
mãe urdia a rede e a minha irmã tecia e eu fazia trancilim, fazia minhada (meada) que a gente
pra tecer o fio tem que fazer a minhada (meada)‖.158 Nesse sentido, enfatiza-se o processo
artesanal em que era realizado o feitio da rede, de acordo com o praticado nos moldes da
indústria doméstica159. O processo de produção era separado por etapas, em que as várias

157
Ibid.
158
Ibid.
159
Nesse sentido, chama-se atenção para o fato de que mesmo com o avanço do sistema de fábrica, consolidado
com as diversas fases da Revolução Industrial na sociedade moderna, foi possível ainda se observar uma
produção em pequena escala, realizada aos moldes tradicionais como formas de resistência ao processo
industrial, principalmente, por aqueles sujeitos que não tiveram condições materiais e tecnológicas de se inserir
no novo modelo de produção, o que ocasionou a existência de uma produção artesanal em paralelo à produção
industrial que vem atravessando séculos. Nesse sentido, E. P. Thompson, ao refletir sobre os novos hábitos de
trabalho e sobre as mudanças na concepção de tempo no contexto de transição para sociedade industrial diz o
seguinte: ―[...] O sistema de trabalho em domicílio [putting-out sistem] exigia muita busca, transporte e espera de
materiais. O mau tempo podia prejudicar não só a agricultura, a construção e o transporte, mas também a
103

partes da rede eram produzidas por diversos elementos do grupo familiar. Como se observa
nos detalhes da explicação da artesã:

Era rede de algodão. Urdi sabe cuma é? É assim, é uns torno que fica no
chão, a gente bota no chão assim quatro torno e aí a gente vai urdi. Com
aquela minhada (meada) que a gente tinge e um novelo de fio, uma
urdideira. Aí a gente bota, é uma urdideira com fi branco e outra com fi que
é pintado. Aí ali a gente faz a pinta do jeito que a gente quer que a rede seja
ne... Primeiro a gente urde, depois que o fi tá pintado, a gente urde aí depois
é que vai botar no tear. No tear tem o pente, tem os liço, tem as lançadeiras
que é de jogar o fi pra tampar a rede, pra ficar bem tampadinha né, a rede. E
isso é as pernas trabalhando todo tempo, é as perna e os braço viu. Pois é, aí
depois que a gente urde vai botar no tear, depois que tira do tear, era que ia
fazer os trancilim, costurar, emendar três panos de rede, fazer a rede e depois
de fazer a rede vai passar mamucaba, da mamucaba é que vai butar os
punhos. Os punhos tem que trocer no carretel viu. E aí depois que bota os
punhos que a rede tá no ponto de dormir. A pessoa que era bem ligeira pra
trabalhar passava um mês pra fazer uma saca de rede. Agora eu, toda vida eu
demorei. Principalmente, depois que eu casei, eu ainda continuei fazendo
esse trabalho um bom tempo. Aí eu demorava, as vezes, passava quase dois
meses pra fazer 12 rede, 13 rede. Era um trabalho muito pesado, mas o ramo
de vida da gente era esse... era bem baratinha... Naquele tempo era réis.
(Risos) 160

O material para confecção das redes era comprado na cidade de Mucambo, mais
próximo da Serra Verde ou, quando se precisava de mais variedade, ia-se comprar em Sobral.
De Serra Verde até Mucambo, percorria-se aproximadamente 22 km. Ia-se a pé, pelas difíceis
condições de vida, faltava o dinheiro para passagem nos carros de horário, transporte mais
comum na época. Aliás, na narrativa de Rosa Marques, a caminhada de Serra Verde para
Mucambo era muito comum, inclusive para realização dos casamentos civis e religiosos e
outras festividades realizadas pela Igreja Católica, como as novenas. Dessa forma, as redes
eram confeccionadas e vendidas para compradores certos, visto que Rosa trabalhava por
encomenda, conforme conta:

As rede era assim. Eu mesma pegava uma saca de fi... aqui no Recreio tinha
seu Mundoca que eu tecia pra ele. Aí eu levava, eu pegava aquela saca de fi,
aí eu fazia 12 rede e aí eu recebia, ele me pagava pra mim fazer aquelas 12
rede. Aí aquele dinheiro era pra mim comprar roupa, comprar calçado. Tinha
época, quando meu pai não podia comprar o querosene eu comprava né. O

tecelagem, pois as peças prontas tinham de ser estendidas sobre a rama para secar. Quando examinamos cada
tarefa mais detalhadamente, ficamos surpresos com a multiplicidade de tarefas subsidiárias que o mesmo
trabalhador ou grupo de família devia realizar numa única choupana ou oficina.‖ (THOMPSON, p. 280)
160
Entrevista com Rosa Marques, em 30 de abril de 2010. Já citada.
104

trabalho meu e da minha irmã foi todo assim. O tempo que nós morava mais
os pais foi todo assim.161

Além da produção artesanal de redes, em Serra Verde, também se realizava o trabalho


com a palha, principalmente na confecção de chapéu, produzido pelas vizinhas de Rosa. O
que se observa é que em paralelo à agricultura, as mulheres camponesas apreendiam e
desenvolviam diversas atividades laborais que as inseriam no mercado de trabalho produtivo,
assegurando-as relativa autonomia financeira, mesmo sendo esse trabalho socialmente
desvalorizado e seus produtos barateados. De forma abrangente, a concepção do trabalho
feminino está atrelada às suas dimensões produtivas e reprodutivas.
Por esse caminho, na experiência do Movimento do Dia do Senhor, a socióloga Lídia
Ferreira que, juntamente com seu esposo Gustavo Lyra, compôs a Equipe de Coordenação
durante dez anos, realizou uma pesquisa com camponesas das diferentes regiões que o
Movimento abarcava com o intuito de entender o papel da mulher na economia camponesa.
Essa pesquisa, intitulada Conversa com as mulheres do campo, também representava uma
preocupação da própria Coordenação em registrar as experiências femininas como conquistas
da autonomia dessas mulheres. É bom lembrar que a conquista da autonomia era uma
premissa do Dia do Senhor e todos os seus indícios foram registrados pela Equipe de
Coordenação, fosse em forma de entrevistas orais com os camponeses e camponesas, fosse
em forma de escrita, como os livrinhos Evangelho dos Lavradores, contendo as letras e os
pensamentos dos participantes e das participantes do Movimento.
Com esse intuito, a pesquisa realizada por Lídia Ferreira durou oito meses e consta da
realização de entrevistas gravadas em fitas cassete, que foram transcritas e incorporadas ao
arquivo do Movimento, o qual fora apresentado no capítulo anterior. Apesar de não ser
possível identificar as datas de realização dessas entrevistas, por não constarem nas
transcrições, as mesmas foram arquivadas na íntegra. No entanto, pode-se inferir que tal
pesquisa tenha sido realizada entre 1976/1986, que foram os dez anos que Lídia e Gustavo
integraram o Movimento.
Nos manuscritos de Lídia, a mesma explica que tal pesquisa foi realizada com três
grupos de mulheres de diferentes regiões que se organizaram de forma autônoma,
considerando a afinidade e o costume que já tinham de se reunir em suas comunidades. Como
a própria Lídia definiu: ―[...] a composição dos grupos se revelou bastante heterogênea na

161
Ibid.
105

questão de idades e variação na composição das famílias. Dessa forma, tivemos desde recém-
casadas com ou sem filhos, até mulheres com mais de cinquenta anos de casadas com dez ou
mais filhos‖. 162
Dentre as mulheres entrevistadas estão Fausta Marques, do Sítio Alegre, em
Morrinhos e Rosa Marques da Costa, de Serra Verde, Sobral. Nesse sentido, fazendo um
paralelo entre as entrevistas realizadas por Lídia, com Fausta e Rosa, quando o Movimento
ainda se encontrava em plena atividade e as entrevistas realizadas pela autora desta pesquisa,
mais de uma década depois do fim do Dia do Senhor, percebe-se que muito do que foi
desenvolvido e praticado como economia doméstica e como organização do trabalho feminino
permaneceu na prática dessas mulheres. Importante refletir que, passados mais de dez anos do
fim Movimento, com o distanciamento temporal e com o esfriamento de sua participação no
mesmo, tanto Fausta quanto Rosa (re)significaram suas experiências e atribuíram sentidos que
reafirmavam o vivido e o praticado no tempo do Movimento.
Nesse sentido, quando a pauta da entrevista realizada por Lídia Ferreira girou em torno
da organização familiar, Fausta Marques se colocava como sujeito, como senhora de suas
decisões e atitudes com relação à economia do lar. Ou seja, apresentou uma postura muito
semelhante com a que demonstrou na entrevista realizada para esta pesquisa. Nas palavras de
Fausta para Lídia, ela dizia: ―[...] Eu me sinto dona. Agora, não sei se é porque o Abdias vê
que eu não destruo. O que eu fizer, tá feito. Porque ele sabe que não tem perigo de eu vender a
não ser pra comprar o que é preciso‖. E continuava sua explicação, associando a organização
da família com o papel da mulher como fundamental para organização do trabalho familiar e
para o controle das despesas do lar camponês, por assim dizer:

Outra organização que eu vejo é a do trabalho. A gente é camponês e se não


tiver uma organização morre de trabalhar e não tem o que comer. O
camponês tem o terreno de roça, tem o terreno de algodão e no inverno tem
o terreno de feijão e milho. Então, se na época de capinar o feijão e o milho
vai capinar o algodoeiro, então tá perdendo tempo. Em vez de capinar o
feijão e o milho perde o tempo daquela cultura ir pra frente. Tem muitas
famílias que faz isso, por causa de não ter organização. Não sabe.
Principalmente, na época de hoje os invernos como são. Umas dizem assim:
pelo meu gosto se fazia assim, mas meu marido acha que não é isso. Então
eu sinto o acordo da mulher caminhando. Mostrando: olhe a família de
fulano faz assim, assim no legume e a cultura lá prosperou e a nossa não deu

162
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Pesquisa: Conversa com as Mulheres do Campo. Transcrição das
entrevistas realizadas por Lídia Ferreira. S/d. É válido lembrar que as reuniões comunitárias eram constantes e
serviam de preparação para os grandes encontros do Movimento, como os Encontrões, em julho, e os Encontros
de Esposas, em dezembro.
106

nada. A organização depende muito se partir das mulheres. Muitos homens


dizem: o que que a mulher quer dando opinião?163

Nas entrevistas com o grupo de mulheres da Serra Verde, também aparece a


consciência de que a mulher deve se tornar responsável pela economia da casa. Por isso
entendia-se como importante a participação feminina no Movimento do Dia do Senhor,
através dos Encontros de Esposas, visto que nesses espaços discutiam a realidade de suas
vidas, a carestia dos preços, debatiam sobre a renda da terra paga ao patrão, questionavam a
desvalorização do trabalho camponês e, em particular, do trabalho feminino. Com tudo isso,
essas mulheres se conscientizavam da dimensão política que tinha o papel feminino tanto nas
instâncias domésticas, como fora dela.
Faz-se importante esclarecer que as mulheres que foram entrevistadas fazem parte da
mesma família de Rosa Marques, como suas irmãs e cunhadas. Ou seja, todas compunham a
família Marques da Costa, uma família endógena, em que o dirigente Paulo Marques da Costa
era irmão do dirigente Domingos Marques da Costa que, por sua vez, eram casados com Rosa
Marques da Costa e com sua irmã, Maria Marques da Costa, respectivamente. Tanto os dois
irmãos quanto as duas irmãs tiveram expressiva atuação no Movimento do Dia do Senhor por
toda sua existência. Porém, não é possível especificar de quem são as narrativas transcritas,
pois no documento de transcrição isso não está explicito. Ao que parece, Lídia Ferreira optou
por registrar a experiência em âmbito coletivo. Portanto, para o grupo de mulheres da Serra
Verde, ―[...] quem faz o controle do lar é a mulher‖.

[...] Porque a gente vê como é que é o peso do que a gente precisa e a gente
acha que se a gente não cuidar, não pelejar, não vai não... porque a mulher é
que vê toda despesa da casa, porque ela vendo ela combina com o marido e
ele com ela, mas se a mulher não sabe nem quanto gasta de feijão por dia
[...].164

Dessa forma, aprendiam na experiência coletiva dos Encontros de Esposas que a


autonomia feminina era fundamental para seu fortalecimento com relação ao domínio dos
maridos, tendo em vista que na cultura camponesa era comum a mulher ser dependente
financeiramente e emocionalmente dos seus companheiros. A participação nos Encontros
ajudava o grupo de mulheres da Serra Verde a se distinguir das demais, inclusive suas
vizinhas, pela tomada de consciência que ia modificando sua postura com relação aos
163
Ibid.
164
Ibid.
107

esposos, à criação dos filhos, à economia da casa, e aos problemas que marcavam a vida e o
trabalho no campo. Para usar uma expressão cara nos dias de hoje, através dos Encontros de
Esposas, essas mulheres iam experimentando o empoderamento feminino, como se observa
nas narrativas transcritas:

[...] a gente se sente por exemplo mais forte do que muitas outras mulheres
que a gente vê, as vezes até vizinha da gente. Eu conheço mulher na mesma
região que nós moramos que coitadinhas, são mulheres porque a gente olha e
vê que é uma mulherezinha, mas o jeito dela é todo de criança, de menina,
mandada e dominada ali tudo, não resolve nada, vai lá uma criatura atrás e
ela diz assim: ―o meu marido não tá em casa‖... Porque às vezes a mulher se
casa e fica no domínio do marido, assim, o marido é quem manda, é ele e tal,
e ela fica acabrunhada pra acolá, achando que é mesmo, concorda, aí ela
mesmo se amarra, ela fica no cabestro, mas se ela botar o pé na parede e
disser: ―não senhor, você manda eu mando também‖. Aí nunca mais ele vai
tomar os fôlego dela, se ela quiser ela faz por aí um jeitinho e guarda o
gênero [...].165

Como se depreende da narrativa, a mulher é sempre capaz de fazer ―um jeitinho‖.


Portanto, na administração do lar, na economia doméstica, no controle dos gêneros agrícolas e
no controle do orçamento para gastar com o necessário e com o supérfluo é a dona de casa
que deve estar à frente dando o seu ―jeitinho‖, controlando tudo com sabedoria e prudência,
adjetivos tipicamente atribuídos ao feminino. Embora nas transcrições produzidas por Lídia
Ferreira, a fala das entrevistadas não esteja explicitada, pelas entrelinhas das narrativas, às
vezes, é possível supor que alguns trechos pertencem à Maria Marques da Costa, esposa do
dirigente Domingos Marques da Costa, visto que ela se refere ao nome do esposo. Nesse
sentido, Maria Marques narra sua própria experiência, contando o ―jeitinho‖ que encontrou
para driblar a fome de sua família e administrar os parcos recursos que tinha em um período
difícil, em que faltava chuva, faltava emprego, faltava dinheiro, faltava tudo.

Na época eu estava esperando o neném em fevereiro nós já tava em compra


de feijão, acontece que nessa época eu tinha um bocado de galinha no
terreiro [...] Domingo ia para o Mucambo e quando faltou o dinheiro a gente
ficou parado, não tinha ainda quem vendesse fiado e não tinha arrumado
patrão. A gente precisando comer feijão que é a panela do pobre. Eu peguei
logo a pensar: eu tenho um bocado de galinha pro meu resguardo e peguei a
matar, quando eu tiver de resguardo já tem feijão novo e aí com dois ou três
frangos dá pra ir misturando com o feijão. É muito mais melhor chegar a
época do meu resguardo com pouca galinha do que eu guardar as galinha
agora e se acabar o milho e nós vamos comer o que? Nessa arrumação lá em

165
Ibid.
108

casa eu passei de mês sem comer feijão. Quando tava completando um mês
que nós não comia feijão, agora porque? O litro de feijão a 130 e cadê o
dinheiro? Um litro de feijão só dava pra um almoço. 166

A narrativa de Maria ilumina também aspectos em torno do trabalho artesanal feito


pelo grupo de mulheres da Serra Verde. Na entrevista realizada para esta pesquisa com Rosa
Marques, a mesma mencionou o trabalho feminino com redes e com a palha, o que aqui se
entende como atividades produtivas. Em contrapartida, na entrevista realizada por Lídia
Ferreira, evidencia-se a produção de sabão, o que constitui uma experiência específica das
mulheres de Serra Verde. Nesse caso, o sabão era para consumo familiar, não era vendido,
porém, não gerava renda. No entanto, constava como subsídio para economia doméstica.
O sabão caseiro era produzido à base do pião, que de acordo com o narrado, dava
muito trabalho para fazer, porém ajudava nas despesas, pois, ―[...] se é da gente comprar um
quilo de sabão, a gente compra a potássia e faz dois, três quilos de sabão‖. Por esse caminho,
o relato de Maria Marques esmiúça o passo a passo da produção do sabão como uma antiga
prática realizada de modo artesanal. Segundo tradição de família, esse labor era observado e
apreendido desde cedo, desde a matéria prima usada para a feitura do sabão, as quantidades
adequadas, o modo de fazer, enfim, tudo era medido e provado de acordo com a prática de
quem nasceu e cresceu vendo essa engenhosidade:

[...] desde quando eu nasci que eu sabia que já tinha sabão de pião... pode
quebrar ele, tem uma casca grossa, descasca ele depois de quebrar. Ele tem
uma semente dentro, depois mói ele no moinho e compra a potássia e bota
nele. Uma lata de potássia dá pra 5 litros de pião quebrado. Dá 3 a três e mei
quilo de sabão.167

A questão da valorização do trabalho feminino também foi levantada na pesquisa


realizada por Lídia Ferreira. Pelas transcrições das entrevistas, percebe-se que o aspecto
relacional de gênero também aparece na compreensão das mulheres de Serra Verde no que diz
respeito às relações de trabalho, ao passo que faziam relação entre o valor socialmente
atribuído ao trabalho masculino, em detrimento do feminino. Ou seja, a partir das falas de
algumas mulheres entrevistadas, pode-se vislumbrar que mesmo envolvidas em atividades
ditas produtivas, como a produção do chapéu, o preço pago pelo seu trabalho era

166
Ibid.
167
Ibid.
109

consideravelmente inferior ao preço pago pelo trabalho desenvolvido pelos seus maridos na
agricultura. A consciência de desvalorização do trabalho feminino era percebida pela
diferença concretizada nos preços de uma diária de trabalho168, conforme se explica:

Isso é porque o homem dá um dia de serviço e recebe C$ 300,00; 400,00;


500,00 e a mulher vai pro chapéu. Ela não vai se incomodar de lutar mais o
homem no roçado. Mas se ela se empregasse mais ele, ela valorizava. Eu não
dou um dia meu por C$ 400,00 e se eu fosse pro chapéu fazia 20,00; 30,00
por dia. É por isso que se diz que o trabalho da mulher não tem valor, é
porque não tem mesmo. 169

Como se vem situando, a problemática do trabalho feminino teve muito destaque nas
discussões realizadas pelas mulheres do Movimento, tanto que marcou o Encontro de Esposas
do ano de 1976. Com o tema ―O trabalho da mulher‖, nesse Encontro diversas camponesas
vindas da região da ―serra, da praia e do sertão‖, como gostavam de dizer, se reuniram no
Centro de Treinamento de Sobral - Cetreso, localizado na serra da Meruoca, durante os dias
11, 12 e 13 de dezembro de 1976 a fim de refletir sobre seu saber-fazer, que era também sua
fonte de renda para sobrevivência. Trabalhadoras artesãs dos diversos tipos como renda, tricô,
croché, bordado, costura, chapéu e bolsa de palha tiveram oportunidade de debater em grupo
sobre ―o caminho do trabalho‖, conforme proposto pela Equipe de Coordenação naquele
Encontro de Esposas. 170
Nesse debate, a dura realidade do trabalho dessas mulheres foi sendo desvelada.
Segundo o Relatório de 1976, a primeira constatação do grupo foi que a mulher ―trabalha
muito e ganha pouco‖, seguida de outra constatação muito corriqueira ao senso comum da
171
sociedade capitalista, a de que a mulher ―[...] trabalha para dar ajuda aos maridos‖ .
Percebe-se que, mesmo as mulheres refletindo sobre a desvalorização do seu trabalho em
termos de preço pago à sua mão-de-obra e à sua mercadoria em comparação ao sexo oposto,

168
Nesse sentido, concorda-se com a socióloga Maria Aparecida de Moraes Silva que em sua pesquisa situa os
diversos tipos de trabalhos assumidos pelas mulheres do Vale do Jequitinhonha, nordeste de Minas Gerais,
quando afirma que ―[...] a divisão sexual do trabalho não é causa, mas reflexo o reflexo das assimetrias entre
homens e mulheres. A diminuição do valor da força de trabalho das mulheres é produzida por essas relações, que
não se restringem, como já foi frisado à esfera do trabalho. A mulher, e não somente o seu trabalho, ‗vale
menos‘‖. Cf.; SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Camponesas, fiandeiras, tecelãs, oleiras. In: NEVES, Delma
Pessanha; MEDEIROS, Leonilde Servolo de. (Orgs.) Mulheres camponesas: trabalho produtivo e engajamentos
políticos. Op. Cit. p. 169.
169
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Pesquisa: Conversa com as Mulheres do Campo. Transcrição das
entrevistas realizadas por Lídia Ferreira. S/d. Já citada.
170
Arquivo do Movimento do Dia do Senhor. Relatório Encontro de Esposas. Tema - O trabalho da mulher. Ano
1976.
171
Ibid.
110

em algum momento, essas mulheres também subvalorizavam o sentido de seu labor,


entendendo-o como ―ajuda‖ que complementava a renda dos maridos.
Na realidade, esse entendimento das trabalhadoras do campo em relação à suas lides
aparece em muitas pesquisas que se dedicam a refletir sobre as relações de trabalho e de
gênero, que perpassam também pelas relações de poder, tanto no meio rural como no
urbano.172 Talvez, essa noção limitada do trabalho feminino seja justificada pelo fato de ser
um trabalho realizado dentro da esfera doméstica, em que as camponesas se dedicavam nas
horas de intervalo entre o trabalho na roça e o trabalho com os afazeres da casa. Sendo assim,
como é um trabalho em que as mulheres não precisavam sair de casa, portanto, não recebiam
salários, o que acabava sendo entendido como uma extensão das muitas atividades em que a
dona de casa estava envolvida, sendo incorporado à logica do trabalho reprodutivo, e não, do
trabalho produtivo, como deveria ser.
A ideia do trabalho feminino como coadjuvante ao trabalho masculino, numa
perspectiva auxiliar que retira a importância e a centralidade da mulher na esfera produtiva do
mercado de trabalho se deve a uma construção histórica que se fortalece com os padrões
sociais e culturais característicos da moderna sociedade industrial, que negava e, em certa
medida, ainda nega à mulher condições paritárias de inserção no mundo do trabalho.173
De fato, nem todas as camponesas do Dia do Senhor entendiam seu trabalho em pé de
igualdade com o trabalho dos seus esposos, talvez, por conta da própria desvalorização
socialmente construída com relação ao trabalho feminino, como também, porque não
dependiam somente de sua renda para a sobrevivência. Embora, esta renda fosse fundamental,

172
Nesse sentido, insere-se a pesquisa de Maria Aparecida de Moraes Silva que estuda o protagonismo de
mulheres camponesas que cresceram e envelheceram transitando entre as esferas do trabalho produtivo e
reprodutivo e que, em sua grande maioria, mesmo quando exerciam as mesmas atividades que os homens, não
consideravam seu trabalho como fonte principal de renda, e sim como ―ajuda‖. Assim, a autora explica que ―[...]
Os dados revelam ainda que as mulheres participam de todas as tarefas do processo de trabalho agrícola, ou seja,
preparam a terra, plantam, carpem e colhem. Não há, para os diferentes produtos, uma divisão, às vezes
concebida como natural, em que os homens preparam a terra, as mulheres semeiam e ‗ajudam‘ na carpa e na
colheita‖. Cf.: SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Camponesas, fiandeiras, tecelãs, oleiras. In: NEVES, Delma
Pessanha; MEDEIROS, Leonilde Servolo de. (Orgs.) Mulheres camponesas: trabalho produtivo e engajamentos
políticos. Op. cit., p. 168.
173
Interessante situar a reflexão da socióloga Maria Cristina Masneschi, ao refletir sobre as relações de gênero e
de trabalho de pescadoras artesanais no estado do Pará, mas que se encaixa perfeitamente em qualquer análise
que se debruce sobre tais relações: ―Assim, a entrada de mulheres no mercado de trabalho não altera de per si as
injustiças de gênero, como mostraram tantos estudos feministas. Faz-se necessário, igualmente, repensar a
estruturação da economia e da sociedade como um todo. Sem isso, mantém-se a necessidade de compatibilização
entre trabalho e ciclos de vida familiar, as múltiplas jornadas, a despeito nos avanços nas políticas
previdenciárias em muitos países. E, desta maneira, persistem as dependências e os obstáculos maiores à
participação na vida pública‖. MANESCHY. Maria Cristina. Mulheres na pesca artesanal: trajetórias,
identidades e papéis em um porto pesqueiro no litoral do estado do Pará. In: NEVES, Delma Pessanha;
MEDEIROS, Leonilde Servolo de. (Orgs.) Mulheres camponesas: trabalho produtivo e engajamentos políticos.
Op. cit., p. 44
111

a percepção que se tinha enraizada era a de que a agricultura e a criação de animais


costumavam suprir as necessidades de primeira ordem.
Por outro lado, nesse processo, as mulheres também tomavam consciência de que a
desvalorização não era restrita ao aspecto de gênero, pois entendiam que o trabalho dos seus
esposos também era desvalorizado, mesmo ganhando mais pelo seu dia de trabalho e pela sua
produção. Ou seja, elas se conscientizavam que a desvalorização do trabalho tinha, sobretudo,
um corte de classe, pois era o trabalho camponês que era desvalorizado como um todo. No
Relatório, afirmavam que ―o trabalho da mulher é bem parecido com o do homem na
exploração. No trabalho da renda, no tecido da rede, na esteira do junco, no chapéu de palha‖.
Assim, como acontecia com o trabalho dos homens, ―[...] a mulher ver-se obrigada a vender
seu produto por pouco preço, devido a necessidade de manutenção para sustento da
família‖.174
Nesse sentido, acredita-se que a consciência da valorização da mulher e da relevância
de seu trabalho, assim como, a conquista da autonomia feminina devem ser entendidas como
um processo que veio se constituindo através da participação e do engajamento dessas
camponesas no Movimento e com o desvelamento de sua realidade de vida. Assim, pode-se
afirmar que a dimensão do trabalho feminino, tanto na esfera produtiva, quanto reprodutiva,
passou a ser (re)significado. Como também, foi possível encontrar essas mulheres ampliando
ainda mais suas jornadas de trabalho ao acrescentar o serviço pastoral que desempenhavam no
Movimento e, no caso das mulheres da comunidade de Juritianha, Acaraú, destaca-se a
profissionalização do trabalho com a renda de bilro, fortalecida com a criação da Associação
de rendeiras, como se discutirá nos próximos tópicos do capítulo.

2.2. “Quando a mulher sai do mundo da cozinha dela e começa a participar das
coisas, então ela começa a ver o mundo diferente”: trabalho pastoral e atuação
política das camponesas do Dia do Senhor

Muitas das mulheres que participaram do Movimento do Dia do Senhor ao longo dos
seus quarenta anos de existência tiveram as trajetórias de vida e de trabalho muito
semelhantes, como se observou no tópico anterior. Por esse caminho, a partir da década de

174
Arquivo do Movimento do Dia do Senhor. Relatório Encontro de Esposas. Tema - O trabalho da mulher. Ano
1976. Op. cit.
112

1970, com o fortalecimento dos Encontros de Esposas do Movimento, essas mulheres


passaram também a desempenhar outro tipo de trabalho, um trabalho dito abnegado, militante
e missionário. Ou seja, no decorrer dos anos de 1969 a 1996, período de realização anual dos
Encontros de Esposas, muitas camponesas das Dioceses de Sobral e de Itapipoca tiveram a
oportunidade de não apenas participar desses Encontros, como também, assumi-los como
parte de sua vida e luta social.
É importante situar que com a proposta de autonomia do Movimento do Dia do
Senhor, ao longo de sua existência, a Equipe de Coordenação foi trabalhando com os
camponeses no sentido de que eles próprios assumissem todas as funções do Movimento,
inclusive a Coordenação e as questões financeiras. Para tanto, no decorrer dos anos, foi-se
formando um grupo mais atuante e comprometido com o Movimento, o que fora denominado
de ―Nata‖, significando no sentido popular, o suprassumo dos participantes. Portanto, durante
os anos 1980, a Equipe de Coordenação se retira de cena para que a ―Nata‖ pudesse assumir
plenamente o Movimento, o que perdurou até os anos finais do Dia do Senhor.
Dessa forma, o assumir de uma Coordenação de camponeses se deu em conformidade
com a saída do casal Gustavo Lyra e Lídia Ferreira, que depois de contribuírem dez anos com
o Movimento, retornaram para a região sudeste do Brasil. Neste mesmo ínterim, Padre Albani
Linhares e a religiosa Maria Alice MacCabe também se distanciaram deixando os camponeses
se organizarem autonomamente. Na experiência com a organização das camponesas, a
proposta era a mesma, visto que também se formou a ―Nata‖ do Grupo de Esposas, com
aquelas que participavam assiduamente e assumiam o trabalho pastoral. É o caso de todas as
mulheres entrevistadas para esta pesquisa, que aparecem como protagonistas dessa história.
Algumas dessas mulheres começaram a participar do Dia do Senhor juntamente com
seus maridos, antes mesmo do surgimento dos Grupos de Esposas. Muito embora, tenha sido
com a criação desse espaço de organização feminina, que a participação de mulheres se
consolidou no Movimento. Nas entrevistas, as camponesas contam de sua entrada no
Movimento e do seu engajamento nos Encontros de Esposas. No caso de Rosa Pires, de
Itapipoca, e de Maria Fausta Marques, de Morrinhos, ambas aprofundaram sua participação
por conta da organização com as esposas. Tanto, Antônio Pires como Abdias Marques, seus
respectivos esposos, já realizavam trabalho pastoral no Movimento, participando dos
Encontrões anuais na serra da Meruoca, em Sobral, como também, assumindo função de
dirigente, realizando reuniões dominicais para celebração do Dia do Senhor nas comunidades
rurais.
113

Portanto, Rosa e Fausta já conheciam de perto o trabalho realizado pelos maridos e,


embora sendo constantemente convidadas para se engajarem, elas demoraram a se sentirem
atraídas. Nesse sentido, Rosa Pires rememora:

Eu casei com Antoim Pires, aí eu vim morar no Salgado dos Pires, aí a gente
continuou a mesma luta. Aí o Antoim começou a participar cedo das
reuniões, e eu fiquei assim, mais parada. Aí um dia ele até me cobrou. Eu
digo: ―Antoim não me cobre, que no dia que eu tiver vontade de participar
eu entro. Eu não quero entrar por influência de ninguém. Quero entrar...
quando eu tiver vontade.‖ Ai assim eu fiz. 175

Mesmo com certa pressão, cobrança do marido para que participasse, ela se manteve
resistente até se convencer da importância e utilidade do Movimento, conforme explica no
motivo que a fez decidir se engajar: ―[...] porque eu vi que valia a pena a gente conversar, a
gente discutir os problemas da gente porque se a gente ficasse aí no cantim parado era muito
mais difícil. Vinha as coisas com mais facilidade se a gente fosse buscar‖. 176
Nesse sentido, com sua formação no Dia do Senhor, Rosa foi aprofundando sua
consciência sobre a força da ação coletiva. Se resistente no primeiro momento, no decorrer de
sua atuação, fez-se militante e sujeito político, saindo da inércia social em que vivia. Depois
de vivenciar o Movimento, Rosa não se limitava mais aos espaços da casa e do roçado. Como
ela conta: ―eu não sei parar mais assim, dentro de casa não. Eu gosto muito de ficar
conversando com alguém, ajudando assim, na maneira do que eu posso, vê se as pessoas se
acordam... muita gente ainda tá assim meio parado‖. 177
No caso de Fausta Marques, parece que a proposta de um encontro somente de
mulheres foi o diferencial que fez com que se entusiasmasse. Talvez, esse também tenha sido
o caso de muitas outras camponesas, esposas dos dirigentes, que se dispuseram a participar.
Em sua narrativa Fausta situa o trabalho de dirigente do esposo e o contato com os quadros de
coordenação do Movimento como fatores que contribuíram para seu ingresso. No entanto,
diferentemente de Rosa Pires, a pressão não vinha de seu esposo. Fausta recebeu um
―convite‖ de Maria Valnê Alves, idealizadora dos Encontros de Esposas. Portanto, pode-se
deduzir que a entrada de Fausta no Movimento se deu diretamente para compor o grupo de
esposas.

175
Entrevista com Rosa Pires, em 06/06/2009. Já citada.
176
Ibid.
177
Ibid.
114

De fato, é possível vislumbrar que os primeiros convites para participar desses


encontros tenham sido direcionados às esposas dos dirigentes, visto que eram os camponeses
mais atuantes e que tinham um contato direto com a Equipe de Coordenação. Nesse contato,
tanto a casa-sede do Movimento estava aberta aos dirigentes, como a casa dos dirigentes
estava aberta ao ―povo‖ do Movimento. O fluxo era de mão dupla e, consequentemente, suas
esposas acabavam por conhecer e fazer amizade com a Coordenação, como com os
participantes de modo geral, conforme aconteceu com Fausta.

Eu comecei participar do Movimento do Dia do Senhor pelo trabalho do


Abdias e o conhecimento assim com pessoas que ficavam mais próximas,
isso sendo como seja, naquela época, acho que coordenação. Acho que o
nome seria este. Isto era Valnê e padre Albani. E através do conhecimento,
eles vinham lá em casa e um dia a Valnê disse assim: ―por que você não
participa dum encontro?‖... Eu disse: ―eu vou fazer uma tentativa.‖ O
primeiro encontro que eu fui foi o Encontrão na Meruoca em mil
novecentos, não, em dois mil, não, foi... em noventa e sete. Em noventa e
cinco, não foi Abdias? O Encontrão na Meruoca, eu não tô muito certa o
ano. 178

Passados os anos, a memória de Fausta não consegue precisar a data exata em que
ingressou no Dia do Senhor. Da mesma forma, sua memória também trai a sequência dos
fatos, posto que começa a contar a sua participação a partir dos anos noventa, anos finais do
Movimento. Através da interferência de seu esposo, Abdias Marques, foi possível, balizar que
Fausta participou de muitos dos Encontros de Esposas, até chegar a participar do referido
Encontrão na serra da Meruoca. Durante a entrevista, algumas vezes, a própria Fausta recorria
à memória do esposo para confirmação de algum dado. Entre risos do casal, Fausta cede seu
lugar de fala para o marido, dizendo: ―[...] Se foi antes, eu não... Abdias está olhando muito
pra mim, pode ser que não foi em noventa e cinco [...].‖. 179 (Risos).
Por seu turno, Abdias, acostumado a ser o protagonista da história do Movimento,
situa a participação da esposa duas décadas antes do ano lembrado por ela: ―[...] Você deixou
muita coisa importante, você tá se esquecendo. O Encontro das Esposas no Acaraú, no setenta
e um, que foi o ano até que o cumpade Dedé morreu, cê tinha chegado da cumade Maria do
Encontro de Esposas. Já havia os Encontros zonais.‖180 Nesse sentido, o ano de 1971 marca o

178
Entrevista realizada com Maria Fausta Marques. Em 12 de outubro de 2010. Já citada.
179
Ibid.
180
Ibid.
115

terceiro ano de existência dos Encontros de Esposas. Assim, fica subentendido se esse havia
sido o primeiro Encontro de Fausta ou não. Mas, mesmo sem precisar a data de sua primeira
participação, Fausta relembrou sua emoção e percepção quando do primeiro Encontro: ―[...]
Rapaz, era uma doidiça tão grande de medo. Era um medo danado. Ninguém falava‖. 181
Por outro lado, não passa despercebida a relação da memória de Abdias com os fatos
que quebram a rotina do cotidiano, como a morte de um compadre seu. Sabe-se que a
memória também responde a uma ordenação das diferenciações de gênero, como nesse
exemplo claro. Grosso modo, os homens guardam uma memória vinculada a elementos do
trabalho, do político, etc., enquanto as mulheres recuperam uma memória ligada aos fatos do
cotidiano, do privado. Tanto um como outro, manifestam através da memória sexuada os
182
papéis sociais que historicamente desempenharam na sociedade. Do mesmo modo,
percebe-se que, nesse caso, mesmo intencionalmente, a memória masculina se sobrepôs à
memória feminina até o momento em que Abdias Marques se afastou da entrevista, saindo da
sala.
Coisa muito semelhante aconteceu durante a entrevista com Rosa Marques, de Serra
Verde, visto que durante toda conversa, seu esposo, Paulo Marques, esteve presente, também
interferindo em alguns momentos, subliminarmente com o intuito de ordenar a narrativa de
sua esposa, principalmente, nos momentos em que ela contava sobre a organização da
comunidade para enfrentar os conflitos de terra. Isso porque, talvez, tanto Abdias como Paulo
se achassem com mais conhecimento de causa sobre o Movimento. Talvez, porque
entendessem que as histórias sobre os conflitos de terra ou sobre a formação dos sindicatos,
que estavam no domínio da participação masculina, fossem mais importantes de serem
registradas do que as ―histórias‖ das mulheres. 183

181
Ibid.
182
Nesse sentido, Michelle Perrot realça as diferenciações em torno das memórias masculina e feminina,
entendo-as de forma sexuada. Posto que tanto, a memória sobre as mulheres foi controlada por discursos e
práticas oficiais que relegaram o feminino ao silêncio historiográfico, como também, a memória das mulheres se
resguardaram aos espaços e papéis assumidos durante os séculos. Portanto é uma memória resguardada a partir
do privado, do universo particular da casa, da família, dos objetos pessoais, dos diários, das datas que marcavam
os ritos de passagem, como casamento, nascimento dos filhos, etc. Como afirma Perrot, ―[...] Forma de relação
com o tempo e com o espaço, a memória, como a existência da qual ela é o prolongamento, é profundamente
sexuada‖. PERROT, Michelle. Práticas da Memória feminina. Revista Brasileira de História. São Paulo, vol.
09, n.19, ago/set 1989, p. 09-18. p. 18.
183
Nesse sentido, outro caso merece destaque. Trata-se da entrevista realizada com Maria Socorro Teixeira,
natural do município de Amontada. Em toda entrevista, seu esposo Luís Gonzaga Teixeira, também de
Amontada, esteve sentado ao lado da esposa, diga-se de passagem, devidamente preparado para ser entrevistado
também. Durante a narrativa de Socorro, volta e meia, ele perguntava: ―posso ajudar?‖ , até que em um
determinado momento, ele toma de assalto a fala da esposa e inicia sua própria narrativa sobre sua participação
nos diversos conflitos de terras que houve em sua comunidade e em comunidades vizinhas. Interessante nesse
fato, é que se percebeu uma ânsia de fala, seu Luís Gonzaga queria contar, registrar sua história e a História do
Movimento. Ele se preparou para isso, embora, a entrevista não tivesse sido marcada com ele. Não permitiu que
116

Nesse sentido, Rosa Marques, direciona sua narrativa para o Movimento do Dia do
Senhor a partir do alerta dado pelo esposo: ―[...] aí é onde entrou a parte do Movimento do
Dia do Senhor né, que descobriu que a terra era do trabalhador... a terra era de quem
trabalhava, não era de quem dizia que era dono não‖.184 Foi a partir desse mote que Rosa
situou seu ingresso no Movimento:

Eu mesmo comecei a participar do Movimento do Dia do Senhor, assim né,


porque eu já ouvia falar que tava surgindo um Movimento de juntar as
comunidades pra conversar né. Mas, não tinha tido a oportunidade. Ai
quando foi em setenta e sete, deixa eu vê. Assim... no inverno de setenta e
seis pra setenta e sete, pelo mês de janeiro, teve um curso no Carqueijo viu...
que o nome do curso foi Evangelho e Vida. Ai a Serra Verde foi convidada
pra se reunir três dia. A Serra Verde, que lá nós não tinha essa palavra
comunidade não. Serra Verde, Carqueijo e, parece que o Recreio. Eu sei que
foi assim, na base de umas dez pessoas da Serra Verde que foi participar
desse curso... aí quem foi coordenar esse Encontro foi o Gustavo... a Lídia,
que foi um casal que trabalhou no Movimento do Dia do Senhor e o Padre
Albani viu.185

Então, como rememora Rosa, a partir desse encontro, os participantes retornaram para
Serra Verde com a missão de iniciar o trabalho pastoral do Movimento. Aí sim, a palavra
―comunidade‖ passava a ser forjada e a compor o vocabulário dos camponeses e das
camponesas. Eles passaram a entender o sentido vivo de ser e viver em comunidade a partir
das leituras do evangelho relacionando-as com a vida. Nesse sentido, Rosa Pires explica como
se deu a organização para a realização das primeiras celebrações do Dia do Senhor.

A partir daquele Encontro que nós participemo, aí a gente foi... começar


fazer celebração do culto na nossa comunidade. Que nós não sabia. E aí ele
repassou os roteiros, tá entendendo? Os roteirozim ensinando como era pra
gente fazer celebração... quando vei pra gente fazer a primeira reunião na
comunidade ne... a gente chamou as outras pessoas, as outras famílias que
não tava no curso né... aí a gente foi repassar aqueles três dias que nós
passamos conversando no Carqueijo praquelas outras pesssoas que tinha
ficado né. Ai a gente ficou marcando. De oito em oito dia a gente se reuni...
Nessa época a gente já tinha um salão comunitário... aí acontece que a gente
se reunia era lá.186

somente sua esposa fosse protagonista. Tanto que ele faz questão de iniciar se apresentando, da mesma forma
que se havia pedido para sua esposa. Sua narrativa foi muito emocionante, pois ao se lembrar de tantos conflitos,
inclusive que ocasionaram a morte de seus companheiros, seu Luís embargou a voz e chorou em muitos
momentos da entrevista. Entrevista realizada com Maria Socorro Teixeira e Luís Gonzaga Teixeira, na
comunidade de Gualdrapas, município de Trairi – Ce. Em 08 de abril de 2017.
184
Entrevista com Rosa Marques, em 30 de abril de 2010. Já citada.
185
Ibid.
186
Ibid.
117

Desse modo, a partir desse Encontro, Rosa e seu esposo ingressaram ao mesmo tempo
no Movimento e ambos assumiram conjuntamente esse trabalho de reunião e celebração dos
cultos dominicais em sua comunidade. Porém, quando o trabalho pastoral exigia que se
ausentassem de suas localidades, para participarem dos Encontrões ou dos Encontros de
Esposas, realizados no CETRESO, na serra da Meruoca ou na sede do Movimento, no
município de Itapipoca, o casal se organizava para cumprir com as atividades do Movimento,
como também, para manter o ritmo do trabalho agrícola e da rotina doméstica e familiar.
É importante ressaltar que o Movimento teve duas sedes, uma na Diocese de Sobral,
que era a própria casa que padre Albani Linhares morava. E outra, na Diocese de Itapipoca,
uma casa exclusivamente para as atividades do Dia do Senhor, doada pelo então bispo Dom
Paulo Pontes, que esteve à frente da Diocese durante os anos de 1973 a 1984. Nesse sentido,
Rosa explica que ―repartia as tarefas‖ com o marido ―[...] porque a gente já tinha a turma de
filho da gente. Nós quase não pudemos participar junto. Quando ele ia, e eu ficava com os
filho. Mas, também tinha oportunidade que eu ia e ele ficava‖.187
Sendo assim, observa-se que quase todos os casais que assumiam o trabalho pastoral
enfrentavam esse problema, pois tanto os esposos quanto as esposas realizavam tarefas
específicas, mas que eram entendidas com igual importância, pois a militância desses sujeitos
era fundamental para que se mantivesse acesa a chama do Movimento. O trabalho pastoral
realizado pelas esposas ainda era mais intenso, ao passo que elas participavam das
celebrações dominicais, juntamente com seus esposos e toda gente da comunidade. E, ao
mesmo tempo, também eram responsáveis pela realização das reuniões comunitárias com as
esposas, ou dos chamados Encontrinhos, que aconteciam mensalmente durante todo o ano,
preparando as mulheres para o Encontro de Esposas anual.
Desse modo, pressupõe-se que era mais difícil para as esposas participarem dos
Encontrões, embora fosse um espaço aberto para homens e mulheres. No entanto, com a
dificuldade para se ausentar de casa, as mulheres preferiam participar dos Encontros de
Esposas. Muito embora, se tenha registro da participação de algumas dessas esposas nos
Encontrões também, mas, em escala muito menor do que a participação dos seus maridos.
Isso fica mais claro na narrativa de Rosa Marques quando ela conta que:

187
Ibid.
118

o que eu mais participei foi dos Encontros de Esposas né. Aí nessa vez eu ia
mesmo, participava em cheio. (...) Era no mês de dezembro, que até nós
colocava, assim, que era as férias das mulher, das esposas. Era no mês de
dezembro, a gente passava três dias fora de casa, fora da família da gente,
sentada discutindo...na Meruoca. O Movimento do Dia do Senhor chegou
levar mulher, assim, esposa, até pra Itapipoca. (...) Teve uma época que se
juntou quais setenta mulher na Meruoca. Ficou lá o CETRESO... ficou
mesmo completo de toda comunidade. Era da praia, era da serra, era do
sertão, tinha esposa né.188

Devido à grande repercussão que foi tomando esses Encontros, justamente, por conta
do trabalho militante de algumas participantes, principalmente as que compunham a ―Nata‖,
muitas mulheres das comunidades rurais eram convidadas e se sentiam motivadas a participar
dos Encontrinhos e dos Encontros anuais. Às vezes, algumas mulheres simplesmente ouviam
falar dessas reuniões femininas em suas comunidades e, tomadas pela curiosidade ou mesmo,
movidas por uma vontade de resolução para seus problemas se ofereciam para participar.
Com o tempo, esses Encontros de Esposas foram se abrindo cada vez mais, inclusive, para
esposas casadas com homens que nem participavam do Movimento, como também, para
mulheres de todos os tipos, até mesmo solteiras, o que fez com que, em determinada altura,
fosse alterado o nome original para Encontros de Mulheres, ampliando o sentido da
organização feminina do Movimento.
Por outro lado, desenvolvia-se um trânsito muito intenso de mulheres e, ao mesmo
tempo, muito irregular, pois nem se podia considerá-las como integrantes, visto que iam uma
ou duas reuniões comunitárias, um ou outro Encontro de Esposas anual. Mas, o que era
considerado importante era que a mensagem do Movimento do Dia do Senhor estava se
espalhando e que o trabalho pastoral feminino estava se mantendo com fôlego nas
comunidades.
Diante da repercussão que os Encontros de Esposas foram atingindo, Rosa Marques
relembra uma questão importante que redirecionou o sentido original desses Encontros. Como
ela explica:

Mas teve assim, uma época que surgiu uma dúvida, cê sabe por que? Porque
tinha mulher que queria ir participar do Movimento do Dia do Senhor, mas
ela não era, assim, uma esposa. Esta entendendo, ela não era casada... era
mãe solteira né. Aí teve esse ponto aí que foi preciso conversar também em
cima né... aí surgiu, pois agora não vamos mais fazer Encontro de Esposa e

188
Ibid.
119

sim de mulheres. Aí tanto faz, ter o esposo, ser viúva, ser solteira, é aberto o
Encontro pras mulheres. Aí eu sei ... que quase todos os anos eu ia.189

Nesse sentido, esse redirecionamento aconteceu durante o período de coordenação das


próprias camponesas, nas décadas de 1980 e de 1990. O Relatório referente ao Encontro de
1990 já trazia como título Encontro de Mulheres do Movimento do Dia do Senhor. Uma
particularidade com relação à mudança de nomenclatura dos Encontros é que de todas as
entrevistas realizadas, somente duas camponesas se remontaram a essa questão: dona
Raimunda, que se assume como a precussora desse debate, conforme explicado no primeiro
capítulo e, agora, dona Rosa. O fato é que, o conceito de ―Mulheres‖, mais amplo e mais
democrático, passou a substituir o de ―Esposas‖, restritivo. Isso ampliava a identidade do
grupo. A nova nomenclatura passou a ser incorporada em todos os Relatórios, Circulares
comunitárias, como também, nas cartas das mulheres para o Programa radiofônico do
Movimento, Encontro com as Comunidades.
Dentre todas as mulheres que participavam do Dia do Senhor, incluindo aquelas que
compunham a ―Nata‖ dos Encontros de Esposas, duas são consensualmente mais
representativas pelo seu trabalho pastoral e atuação política. São elas: Rita de Cássia Sousa
Ferreira, da comunidade de Juritianha, Acaraú, e Maria Nazaré de Sousa, mais conhecida por
Nazaré Flor, da comunidade de Apiques, Itapipoca. Importante dizer Apiques era uma das dez
comunidades que, no final dos anos 1980, viriam a compor o Assentamento Maceió,
conquistado através da luta camponesa. Nazaré Flor teve forte atuação nessa luta.
Rita de Cassia, casada com Bernardo Ferreira, iniciou no Movimento juntamente com
seu esposo. Ambos participaram da primeira reunião realizada por padre Albani e irmã Maria
Alice na comunidade de Juritianha. Ritinha, como ficou sendo conhecida, tinha, então,
quarenta anos quando assumiu o trabalho pastoral de Acaraú e de Itarema, município vizinho.
Embora, Juritianha pertencesse ao município de Acaraú, que compunha a Dioceses de Sobral,
devido à sua localização geográfica muito próxima ao território de Itapipoca, essa
comunidade estava inserida na Diocese de Itapipoca.
Desse modo, Rita, juntamente com seu esposo e com outro companheiro, Manuel
Pedro, compunha a equipe de animação das comunidades dessas regiões. Como o próprio
nome diz, tinham a missão de organizar e animar o povo do campo, realizando cultos
dominicais juntamente com a celebração da palavra, de acordo com a metodologia ―Fé e

189
Ibid.
120

Vida‖, presente no Movimento. É valido situar a narrativa de Rita sobre o impacto que sentiu
logo com a primeira celebração que participou. Dessa celebração, ela ressalta a dinâmica
utilizada por padre Albani Linhares com o intuito de suscitar entre os camponeses uma
reflexão em torno das desigualdades sociais.

[...] Marcou uma reunião aqui na Juritianha, aí veio ele, o padre Albani e a
Irmã Maria Alice vieram. Quando eles chegaram, fizeram uma reunião e o
padre é muito dinâmico né? Ele foi e fez uma dinâmica assim: fez um bolo,
dizendo ele. Quando acaba, ele mandou que todo mundo fosse pegar desse
bolo pra comer. Eu achei tanta graça disso aí!(...) Aí, uma parte avançaram e
tiraram tudim e os outros ficaram sem nada. Ele foi e disse: ―Taí, uns tiraram
muito, outros tiraram pouco e outros não tiraram nada‖. ―E aí o que vocês
acham disso aí? Isso é pra ser assim, Deus quer desse jeito?‖... Aí ele foi e
disse: ―Eu vou fazer uma pergunta a vocês e vou esperar o escrito‖. ―Se
Deus quer assim, a desigualdade, uns tendo e outros não, ou se Deus quer
que seja tudo igual, como é que é?‖. (...) e eu fiquei pensando... conversando
com Bernardo aqui, é pra ser desigual mesmo, que nossos dedos não são
iguais e desde que nós se conhecemo que tem os ricos e os pobres, os
analfabetos e os sábios, essa coisa toda... Mas não é, não porque Deus é pai.
Se Deus é pai como é que ele quer nós desigual desse jeito... Aí fiz um
bilhete e mandei pra ele... Aí pronto, desse dia em diante, ele começou a me
chamar pras reuniões, eu e Bernardo, nós comecemo, engajemo no Dia do
Senhor. 190

Talvez, o mais interessante nessa história seja a repercussão que a celebração causou
em algumas pessoas de Juritianha. O simples fato de ter um padre e uma freira realizando uma
dinâmica com o povo na comunidade já era incomum, visto a postura hierárquica
característica dos religiosos, antes do Concílio Vaticano II (1962-1965). Em alguns casos,
mesmo depois do Concílio, isso permaneceu. Outro ponto inusitado era o estímulo dado para
os camponeses pensar, refletir e responder, por escrito, à pergunta geradora, bem aos moldes
da pedagogia popular.
Nesse sentido, o fato de pensar e escrever, refletir sobre o que já estava posto na
sociedade era extraordinário, pois isso não acontecia na rotina ordinária da vida no campo.
Então, a partir da celebração, isso passou a repercutir nas conversas familiares: dos casais,
entre pais e filhos, etc. De certa forma, em maior ou em menor medida, começou a mexer com
a consciência das pessoas. Por tudo isso, Rita e seu esposo engajaram-se no Dia do Senhor.
Naturalmente, Rita de Cássia também assumiu o trabalho de base com as mulheres
dessas comunidades. Sua história revela uma mulher militante, abnegada e incansável. É
190
Entrevista realizada com Rita de Cássia, em Juritianha, Acaraú – Ce. Em 01 de abril de 2010.
121

devidamente reconhecido pela Equipe de Coordenação do Dia do Senhor que muitas


comunidades foram organizadas pelo compromisso missionário de Rita, juntamente com
Bernardo e Manuel Pedrinho, que formaram uma equipe volante do Movimento. Portanto,
para organizar e animar as comunidades era imprescindível que fossem realizadas visitas,
reuniões, cultos dominicais, enfim, celebrações do Dia do Senhor. Como dito em outros
momentos, devido às dificuldades de transporte e ao isolamento do meio rural, na época,
muitas vezes, a equipe ia e vinha dessas visitas a pé.
Assim, o trabalho pastoral desses ―animadores‖ também buscava identificar novas
lideranças comunitárias. O contato se mantinha até a comunidade assumir o controle, com
suas próprias lideranças à frente das reuniões e das celebrações do Dia do Senhor. Muito da
história de Rita de Cassia foi contada por ela mesma, ainda quando atuava no Movimento
para a religiosa Maria Alice MacCabe que, como se sabe, compunha a Equipe de
Coordenação do Dia do Senhor e, a partir da década de 1970, foi responsável pela
Coordenação dos Encontros de Esposas na Diocese de Itapipoca.
Maria Alice realizou entrevistas com dez camponesas dessa região, diga-se de
passagem, as mais engajadas, com o intuito deliberado de registrar diversos aspectos da
participação feminina no Movimento. Tais entrevistas foram publicadas em livro, com o
191
título: ―História na mão‖ , quase sem interferência da autora. Nesse livro, as camponesas
falam por si mesmas sobre a importância da autoestima, a luta pela terra, a conquista da
autonomia, independência financeira e sexualidade. Dentre as dez entrevistadas estão Rita de
Cássia e Nazaré Flor. O livro, portanto, é uma rica fonte histórica que será bastante explorada
nas páginas que seguem.
No trabalho de base com os camponeses e com as camponesas, Rita passou a ser uma
referência não só para o pessoal conhecido do Movimento, mas também, para o povo de
outras áreas que sequer estavam organizadas em comunidade. Como o Movimento mantinha
no ar o programa ―Encontro com as comunidades‖, transmitido duas vezes por semana pela
Rádio Educadora do Nordeste, Rita ficava conhecida através das cartas enviadas ao programa
e, algumas vezes, por sua participação presencial. A rádio pertencia à Diocese de Sobral, mas
tinha um grande alcance, o que garantia uma forte audiência no meio rural.
E assim, Rita de Cássia foi se tornando conhecida pela sua liderança e força militante,
a ponto de ser procurada pelos moradores de Varjota, uma localidade do município de

191
McCABE. Maria Alice. História na Mão. Algumas camponesas contam como se conscientizaram. (Uma
História Oral).1994. Produção Independente, financiado pela Congregação Norte-americana de Notre Dame, a
qual Maria Alice era congregada.
122

Itarema. É importante dizer que esse povo era de etnia indígena Tremembé. Os Tremembé até
hoje ocupam as localidades de Varjota e Almofala, em Itarema e outras localidades,
pertencentes aos municípios de Itapipoca e de Acaraú. Varjota fazia parte de uma região
praiana que, no início dos anos 1980 começou a ser alvo de especulação imobiliária de
empresas produtoras de derivados do coco, devido suas terras férteis para plantação desse
produto.
Tal especulação fez com que os proprietários das terras fossem negociando sua venda
para a firma Ducoco, que em 1979 plantou seu primeiro coqueiral e em 1982 inaugurou sua
primeira fábrica, em Itapipoca192. Consequentemente, esse fato fazia com que muitos
camponeses, que há cinco gerações moravam naquela terra, fossem concretamente ameaçados
de expulsão. Foi exatamente por conta desse problema que os moradores procuraram Rita, em
busca de ajuda. Em entrevista com Maria Alice MacCabe, Rita de Cássia contou como se deu
o primeiro contato com o povo de Varjota:

E deixa ver que através das cartas que a gente botava no programa, tinha um
povo mais na frente, que era o povo de Varjota. Eles ouviram falar no nome
da gente: que a gente andava reunindo assim, conversando aquilo que tinha
vontade de conversar e o que sentia... Desejaram encontrar com a gente...
Um dia eles souberam que a gente ia para Almofala. E eles mandaram dizer
que iam encontrar com a gente lá e nós ficamos aguardando... E na Almofala
a gente ia pra igreja fazer a Celebração e depois da Celebração, a reunião, a
tarde... agora, o povo de Almofala era um pessoal muito difícil... fraco. E
nesse dia, (até achei graça...) nós ia nós três, mas lá o pessoal de Almofala
não assistia. Veio pouca gente à celebração. Então, Bernardo e Manuel
Pedro queriam voltar para Juritianha. Eu digo: ―Rapaz, a gente já veio! Eu
vou ficar. Vocês podem voltar, mas eu vou ficar!‖. A gente tava também
maginando se o pessoal de Varjota viesse... que tinha prometido de vir se
encontrar com a gente... E eles: ―...eles lá vem... nós vamos embora‖. Aí,
eles foram e eu fiquei lá sozinha. 193

De sua narrativa, se depreende a coragem e a autonomia ao decidir ficar sozinha em


uma localidade que não era a sua e que não era de todo bem acolhida, visto que muitos dos
moradores de Almofala não se interessavam em participar do Movimento do Dia do Senhor.

192
A Ducoco está há mais de 35 anos no litoral do Ceará, habitat natural do coco. Atualmente, é constituída por
7 fazendas, duas fábricas, 3 centros de distribuição, um escritório central e 1.500 funcionários. Atua na
distribuição dos produtos derivados do coco por todo o Brasil, sendo também, uma das maiores exportadoras de
água de coco. Informações retiradas do site da empresa: www.ducoco.com.br. Acesso em: 28 agost. 2018.
193
McCABE. Maria Alice. História na Mão. Algumas camponesas contam como se conscientizaram. Op. Cit.
p. 74.
123

O que revela ainda mais o compromisso missionário de Rita, visto que, mesmo reconhecendo
esse povo como ―fraco‖, insistia em fazer as visitas comunitárias e realizar as celebrações do
Movimento, mesmo para pequenos públicos. Foi graças a essa insistência que Rita finalmente
conheceu o pessoal de Varjota, seis homens foram ao seu encontro em Almofala, conforme
tinham prometido. A esperança era que aquela mulher pudesse ajuda-los a resolver o
problema de terra que se acirrava em Varjota, com a chegada da firma Ducoco. Rita, então, se
comprometeu em visitar a localidade e ajudar na organização do povo. Conforme segue sua
narrativa:

E no outro mês na frente era pra ir pra Varjota. Aí no outro mês eu fui
caminhando pra Varjota, atravessando aquele lagamar, com uma lama...
chega botava o pé e não podia tirar. Era uma dificuldade muito grande! Aí,
chegamos lá... e olhe, era tanta gente nessa reunião! Todo mundo queria
participar na reunião... aí começram a contar os problemas das terras...e a
gente pensava que num era possível uma coisa dessas. Porque a gente já
sabia que nós também tinha direito no mundo. Nós tinha os livrinhos e os
papéis, os cantos e alguma história que conta das lutas das outras
Comunidades. E a gente, nas reuniões em outras Comunidades ouvimos
como eles faziam, como enfrentavam esses problemas da terra, pra ter acesso
ao lugar onde moram. Ai a gente passava tudo isso pra eles, para o povo de
Varjota, na reunião. 194

Do primeiro contato em diante, Rita intensificou o trabalho de base com a comunidade


de Varjota a ponto de passar uma semana inteira conhecendo as pessoas e a realidade do
lugar. Mesmo com certa timidez, desafiou-se a conviver com pessoas desconhecidas, sem
nenhuma intimidade. De certa forma, fazia parte do trabalho pastoral exatamente o
conhecimento de novas pessoas, a formação de novos vínculos, o reconhecimento das lutas de
uns nas lutas de outros. Porém, o que se destaca nesse caso, é o desprendimento de Rita que
mesmo ―tímida‖, colocava sua experiência militante à disposição, semeava novos frutos para
o Movimento e contribuía com a luta daquele povo. Como disse: ―[...] Eu sou muito prazerosa
e feliz em saber que comecei no começo da história deles [...] Que tinha sido uma luta e que a
gente tinha começado juntos. E eles continuaram pra frente, nunca pararam de lutar‖. 195
Outro ponto que se destaca do trabalho pastoral realizado por Rita de Cássia é que,
embora ela formasse uma equipe de animadores volantes, juntamente com Bernardo e Manuel
Pedrinho, em grande parte, sua narrativa seleciona situações em que ela atuou sozinha:
viajando, realizando celebrações e reuniões, sozinha. Com isso, talvez, subliminarmente,

194
Ibid., p. 77.
195
Ibid., p. 84.
124

quisesse explicitar seu protagonismo nesse trabalho. De fato, em alguns momentos, seus
companheiros também atuaram sozinhos, no entanto, o que chama a atenção é o fato de que
uma mulher camponesa sair de casa, sem a companhia do marido ou dos filhos, ou ainda, de
algum homem que pudesse lhe garantir proteção, para realizar trabalho de comunidade,
discutir assuntos como libertação e luta pela terra, hospedar-se em casas de famílias
desconhecidas e, ainda, andar na garupa de cavalos com homens que não eram seus parentes.
Tudo isso era inédito. Não só inédito, como revolucionário para a época e o lugar que Rita
vivia.
Tanto é que as convenções sociais e morais não passavam despercebidas a ela. Isso
fica evidente quando conta de sua aflição ao retornar de Varjota para Almofala, quando se
encerrava a semana de trabalho. Devido ao difícil acesso à localidade, ou se ia a pé ou a
cavalo. Sua ida tinha sido feita de forma solitária e a pé. Agora, seu retorno ficava a cargo da
comunidade. Seu Agostinho, um dos líderes da aldeia Tremembé de Varjota e esposo de
Conceição, assumiu a obrigação.

Ai, ele selou o cavalo e aí, eu fiquei pensando assim só dentro de mim
(parece uma certa timidez, né?): ―Mas eu ir com este homem uma distância
tão grande nos matos, nenhum povoado no meio! Sei lá, meu Deus! Aí, de
repente, pr‘acabar de ficar eu mais tímida, eu vi ele preparando uma faca pra
botar nos quarto. Porque os camponeses sempre, eles andam armados com
um ferro. (...) Ah! Mas aí, num prestou não... quando eu vi a faca... esse
homem com a faca no quarto, eu fiquei com muito medo... eu fiquei assim
nervosa. Pensei: ―eu não posso desistir de ir... mas eu vou com muito
medo‖... Aí montei no cavalo. Saí com ele, montada na garupa do cavalo e
fomos pra Almofala e eu imaginando que , se encontrasse alguém... que o
povo naquela época ousava que uma mulher não podia viajar com homem
assim. A gente ficava assim, pensando... Quando chegamos em Almofala, já
tinha umas pessoas me esperando pra uma Celebração. E ficaram assim tudo
olhando pra mim, perguntando donde era que eu vinha com aquele homem.
E eu falei: ―Ora, venho lá da Varjota. É uma pessoa amiga que veio comigo.
A gente trabalha juntos e ele veio me deixar‖. Pronto, tudo bem! Aí, eu fiz a
Celebração e tudo [...].196

Desse modo, Rita tinha consciência de seu comportamento subversivo para a cultura
camponesa de então, e embora sentisse o peso da tradição, não se submetia. Pelo contrário,
quebrava tabus e reinventava os papéis assumidos pelas mulheres. Do papel de dona de casa,
Rita de Cassia havia se liberado relativamente, ao passo que seus filhos e filhas, todos já
crescidos, assumiam as tarefas domésticas e cuidavam de si mesmos. Portanto, dadas às

196
Ibid., p. 79-80.
125

condições objetivas, Rita se engajou de corpo e alma no Movimento do Dia do Senhor,


assumindo-o como seu trabalho. Trabalho esse que justificava, inclusive, o fato de andar na
garupa de um homem que não fosse seu marido.
Por fim, a narrativa de Rita evidencia a dinamicidade e articulação do seu trabalho
pastoral. Pois, não passa despercebido o fato de chegar de uma semana intensa de organização
das bases em Varjota e, na sequência, realizar celebração em Almofala. Rita de Cássia
também foi personagem principal para a criação da Associação de Mulheres Rendeiras de
Bilro de Juritianha, sendo a primeira presidente dessa Associação, como será apresentado no
próximo tópico.
Por outro lado, por realizar o mesmo trabalho, seu esposo, Bernardo Ferreira
procurava entender as ausências e andanças de sua esposa. De fato, Rita de Cássia, por
assumir muitas atividades pastorais com as comunidades e ainda assumir a frente de uma
Associação de Rendeiras, desenvolveu um ritmo de vida e de trabalho muito diferente daquele
que tinha antes de sua entrada no Movimento do Dia do Senhor. De certa forma, isso era
sentido por Bernardo, enquanto marido que sentia falta da companhia e dos cuidados de sua
mulher. No entanto, em nome da causa maior que o casal assumira, o Movimento, ambos
abdicavam das pequenezas relacionadas ao machismo e ao ciúme. Nesse sentido, a narrativa
de Bernardo aponta elementos para a compreensão de seu perfil, enquanto dirigente do Dia do
Senhor com relação às ausências de sua esposa:

Eu toda vida achei isso ruim. Não adianta eu mentir. Mas era assim, mas eu
aceitava porque eu toda vida fui comprado, como dizia o Zé Vicente, por
cem grama de sorriso, eu era. E a minha mulher, ela fazia essas coisas, mas
ela me pedia com aquele jeitinho carinhosos de me pedir, e eu liberava. Cabá
(acabar) eu ia sofrer. Eu não gostava de tá apartado. A minha luta, as vez, era
só. A dela era prum lado, a minha era pra outro. Ela com mulher e eu com os
homem. Mas aceitei, achando ruim mas aceitei. Total liberdade. Tanto ela
tinha, como eu tinha também.197

Bernardo também tinha consciência de que o comportamento vanguardista de Rita


gerava especulações entre seus familiares, o que em sua compreensão, era justificado pelo
machismo de seus irmãos e pela total falta de entendimento sobre a luta social e o trabalho de
base comunitário que realizava com sua esposa. Dessa forma, quando interpelado sobre o
episódio de Rita na garupa do cavalo de outro homem, Bernardo evidencia sua compreensão
de militante, evidentemente, forjada na experiência concreta de participação em movimento

197
Entrevista realizada com Bernardo da Costa Ferreira em 13 de novembro de 2018
126

social que, por muitas vezes, teve que sobrepor o trabalho político-pastoral às questões de
ordem íntima e familiar:

Ah bom, naquele tempo a minha própria família achava aquilo feio. Aquilo
foi uma coisa que eu fiz, mas os meus irmão são muito machão, muito mais
do que eu, que eu nunca fui, graças a Deus. Aquilo eu nem contava a minha
família, aquela nossa luta. Depois foi que andou, um irmão meu lá do
Maranhão... chegou: ‗cumpade tu tem cuidado na tua vida, cumpade‘... isso
dai eu nem contava a eles, eles não conhecia a luta, não valorizava. 198

Posteriormente ao engajamento de sua esposa, Bernardo também atuou no processo de


organização comunitária de Varjota. Dessa forma, situando o trabalho político-pastoral de
Rita com a comunidade, o dirigente avalia que a luta das mulheres ―[...] era o que tinha mais
bonito... Era o machado comendo nas estacas e elas cantando as musicas do Zé Vicente
pulando na frente cantando, em pleno sol, na terra quente e elas cantando as musicas do Zé
Vicente [...]‖. Nessa narrativa, percebem-se momentos de muita tensão vividos entre os
camponeses e os pistoleiros daqueles que se diziam donos da terra. Com relação aos conflitos
armados, embora, sem pegar efetivamente em armas, a presença feminina era constante como
parte integrante da luta pela terra de Varjota e pela sobrevivência dos seus. Bernardo destaca a
coragem dessas mulheres: ―[...] Teve não, delas assim armadas enfrentar não. Agora, a
presença delas dento tava, elas iam, elas tinham coragem, elas não tinham medo não‖. 199
Embora, Bernardo e Rita de Cássia não tenham permanecido na luta pela terra de
Varjota até o fim, quando a terra foi conquistada com a finalidade de reforma agrária,
principalmente, a participação de Rita foi fundamental para o início da organização não só das
mulheres, como de toda comunidade. O conflito de terras na comunidade de Varjota, como
outros conflitos serão analisados no terceiro capítulo.
Por sua vez, quando Nazaré flor iniciou sua participação no Movimento do Dia do
Senhor, já contava três anos de casada com pescador Manoel José de Sousa. Não tendo filhos
legítimos, o casal resolveu adotar dois filhos: Valda e Diozélio. Segundo relato de Maria
Alice MacCabe, quando conheceu Nazaré, a mesma era uma jovem de cabelos longos que não
cortava porque cabelo curto era um tabu para o marido e para o povo da região onde morava.
Para Nazaré seu engajamento no Movimento foi fundamental para o seu ―despertar‖
enquanto mulher e enquanto sujeito social. Mas, foi no processo de luta pela terra que ela se

198
Ibid.
199
Ibid.
127

formou politicamente e se fortaleceu enquanto liderança feminina de sua região. Seu


protagonismo na luta pela posse das terras que viriam constituir o Assentamento Maceió fez
com que Nazaré assumisse um lugar social na comunidade que a tornou respeitada por
homens e mulheres e serviu, também, como um marcador social em sua vida. Nazaré nunca
mais deixou de participar ativamente das questões políticas e sociais de sua comunidade,
como se percebe em sua narrativa:

Aí é que eu comecei a despertar de um bocado de coisa: ... fui me


descobrindo assim mais... como mulher... sentindo a necessidade de
participar melhor das coisas na Comunidade. Eu não era mais aquela mulher
que devia ficar submissa a tudo, obediente, sei lá... de só fazer o que os
outros quisesse... mas eu também tinha que participar lá fora na sociedade,
ajudar. Aí logo em seguida, veio a questão da luta pela terra, setenta e sete
por aí assim... setenta e oito. Então, foi que começou a história da luta pela
terra e eu comecei a participar ativamente. 200

Com isso Nazaré Flor foi uma mulher que logo percebeu que para transformar a
realidade social que lhe cercava precisava ocupar posições de destaque em muitas das
instâncias de poder. Portanto, durante a década de 1990 candidatou-se à presidência do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais que, embora não tendo sido eleita, conseguiu demarcar
seu espaço e construir uma trajetória de participação política, representando tanto a classe
camponesa como, mais especificamente, as mulheres camponesas. Com o respaldo de sua
trajetória, ainda nos anos 1990 Nazaré conquistou a presidência da Cooperativa de Produção
Agropecuária e Comercialização do Imóvel Maceió – COPAIM. Tal Cooperativa incorporava
cerca de quinhentas famílias numa terra comunitária de 5.848 hectares. Principalmente, por
ser mulher, Nazaré explica a importância de ter concorrido ao cargo de presidente do
Sindicato e de assumir o cargo de presidente da COPAIM:

Muita gente pergunta: ―Porque uma mulher como presidente da


Cooperativa?‖ pela primeira vez em todo nordeste, tem uma mulher
presidente de uma cooperativa agrícola. Estou fazendo a história. Quero
mostrar que a mulher pode fazer esse trabalho. Porque tem gente que diz que
isso não é trabalho de mulher. Que trabalho de mulher é na casa! Quatro
anos atrás me candidatei para presidente do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais e perdi, justamente por isso: que lugar de mulher é na casa, que
mulher não pode sair de casa, que mulher não anda só, que mulher não sei o
que...201

200
McCABE, p. 59.
201
Ibid., p. 64.
128

Nazaré também representava as camponesas da região no Movimento de Mulheres


Trabalhadoras do Nordeste, de maneira que sua experiência em grupos de mulheres era
significativamente ampliada para além de sua participação nos Encontros de Esposas do
Movimento do Dia do Senhor. Desse modo, Nazaré circulava pela região Nordeste e por
outras regiões do Brasil, viajando e conhecendo lideranças e demais participantes de diversos
movimentos femininos e feministas, como os que se aglutinavam no referido Movimento de
Mulheres Trabalhadoras do Nordeste. No que diz respeito às participantes do Dia do Senhor,
as pautas feministas, particularmente, àquelas que giravam em torno da paridade de gênero
nas esferas da política e do trabalho, ganham força somente a partir dos anos 1990, sendo
possível inferir que a própria experiência de Nazaré tenha tido influência para isso.
Esse contato favorecia uma circularidade de ideias em que ajudava Nazaré a ampliar
sua visão de mundo e a questionar o lugar social da mulher. Conforme se evidencia na
narrativa acima, Nazaré Flor tinha consciência de que sua presença nos órgãos de
representação de classe, como Sindicato e Associação era de caráter inédito, portanto,
histórico. Representando o feminino, ela rompia com o senso comum marcado pelo
machismo sobre o tipo de trabalho e sobre o comportamento que era esperado pelas mulheres
de sua comunidade. Assim, Nazaré defendia que as mulheres precisavam superar a ―[...] ilha
da cozinha e das quatro paredes‖.
A trajetória militante de Nazaré iniciou-se nos Encontros de Esposas do Dia do
Senhor, mas se fortaleceu de fato com sua participação na luta pela terra. Aliás, muitas das
mulheres que participavam do Grupo de Esposas reconheceram que foi na luta pela terra que
se concretizou sua formação política e de classe. De acordo com Nazaré, foi na luta pela terra
que os homens ―[...] descobriram que as mulheres têm a capacidade de enfrentar [...] todo
homem dizia que a força da desapropriação desta terra foi graças às mulheres‖. 202
De fato, Nazaré e outras mulheres das comunidades que hoje formam o assentamento
Maceió, em Itapipoca, envolveram-se diretamente na luta pela posse da terra. Essas mulheres
estiveram presentes tanto nos enfrentamentos físicos e verbais com os pistoleiros do
latifúndio, algumas vezes, enfrentando até mesmo a polícia como, principalmente, na
articulação política para a conquista da terra, produzindo os documentos, coletando as
assinaturas dos abaixo-assinados para enviar ao INCRA, arrecadando dinheiro para garantia
das viagens a Fortaleza, capital do estado e sede do INCRA e de outras entidades. Nesse

202
McCABE, p. 64.
129

sentido, Nazaré situa a força do trabalho coletivo das mulheres e se coloca como relatora dos
documentos, despontando como uma das principais articuladoras dessa luta:

[...] os documentos que foram feitos pra enviar às entidades, todos foram
feitos por mulheres, nenhum homem nunca fez nenhum. Todos, todos... por
exemplo, não estou contando pra me exibir, mas nenhum documento passou,
sem ser feito pelas minhas mãos... E as ideias das mulheres? ... os palpites
delas?... muitas orientações?... e a gente juntas fazia, passava à limpa, iam
nas Comunidades, gastava tempo assim, pra fazer os abaixo-assinados. E
quando era pra juntar dinheiro pra viagem ao Incra ou outra entidade, então
as mulheres assumiam muita coisa mesmo! O peso da luta foi das mulheres.
203

Diante disso, pode-se afirmar que com a luta pela terra Nazaré fortaleceu sua
militância pastoral, mas também, se fez uma liderança de classe e de gênero. Sua participação
na eleição do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, na COPAIM e no Movimento de Mulheres
Trabalhadoras do Nordeste se deu posteriormente à luta pela terra. Talvez, a legitimação de
Nazaré Flor como uma liderança e articuladora dessa luta seja confirmada por sua
participação em um debate na rádio diocesana de Itapipoca no ano de 1985. Promovido pelo
então bispo dom Benedito de Albuquerque, que presidiu a Diocese de 1985 a 2005, o debate
objetivava atenuar o conflito e ouvir as partes envolvidas. Nazaré foi a pessoa escolhida pelos
camponeses para lhes representar, uma representação legitimamente acatada por todos os
homens e as mulheres da comunidade. Tal debate será melhor explorado no terceiro capítulo,
que abordará a questão da terra.
Nesse sentido, o trabalho pastoral e político realizado pelas camponesas do Dia do
Senhor pode ser entendido como um divisor de águas para a formação de uma consciência de
classe e de gênero, o que foi se consolidando com a participação intensa de algumas mulheres
que compunham a ―Nata‖ dos grupos de esposas e assumiam o mesmo patamar que seus
maridos e demais dirigentes no Movimento.

2.3. “RENDEIRAS DE JURITIANHA NA LUTA!” A Associação Comunitária


das Mulheres Rendeiras de Bilro de Juritianha

Algumas das camponesas que compunham a ―Nata‖ dos grupos de esposas do


Movimento do Dia do Senhor, além dos trabalhos domésticos e pastorais, ainda realizavam

203
Ibid, p. 66.
130

trabalhos de cunho produtivo, gerando uma renda fundamental para o sustento de suas
famílias e para uma relativa independência dos maridos. Um exemplo disso é a experiência de
Rita de Cássia de Sousa Ferreira que fundou a Associação Comunitária das Mulheres
Rendeiras de Bilro de Juritianha, em 1988. Juritianha é uma comunidade rural do município
de Acaraú.
Assim como muitas mulheres de sua região, Rita aprendeu desde cedo, a lida com a
agricultura, como também, a arte de fazer renda. Esse saber-fazer era ensinado de geração em
geração, de modo que Rita aprendeu com sua mãe e avó e o repassou para suas filhas
formando, assim, uma tradicional família de rendeiras de bilro. Tanto Rita, como sua irmã,
Joana Maria de Sousa Silva, compartilharam o trabalho com a renda, como também, as
experiências pastorais do Movimento do Dia do Senhor. Ambas se tornaram protagonistas dos
Encontros de Esposas e da Associação Comunitária das Mulheres Rendeiras de Bilro. Sabe-
se que o surgimento da renda de bilro remonta às lendas de origem italiana e flamenga que,
com algumas variações:

Conta-se que em Veneza, certo pescador partiu para uma longa viagem aos
mares orientais. Mas antes da partida, confiara sua noiva um ramo de coral
delicadamente cortado. Para encher o vácuo de sua solidão infinda, teria a
jovem tentado imitar com a agulha, num rendilhado linho, a preciosa
lembrança. Entretanto não o conseguia porque a complexidade do desenho
dificultava-lhe a tarefa. Então, tomando os fios entre as próprias mãos,
entrelaçou-os e os dispôs de tal maneira que teceu, sem o auxílio da agulha,
as malhas e o desenho ornamental. O amor e a saudade teriam produzido a
renda maravilhosa. 204

Por outro lado, em termos de registro histórico, também aparece referências à renda de
bilro em alguns documentos que remontam às transações comerciais da Europa Moderna.
Desse modo:

A referência histórica mais antiga que se conhece às rendas de bilro está em


documento de partilha, feita em Milão, de duas irmãs, em 1543, onde se fala,
no italiano da época, em uma ‗binda lavrorata a poncto de dói fuxi per uno
lenzolo‘ (uma faixa trabalhada a ponta de doze bilros para bordar um lençol).
Noutro documento, conservado na Biblioteca Real de Munique, há a
referência que renda de bilros foi introduzida na Alemanha no ano de 1536
por negociantes provenientes da Itália e Veneza. 205

204
MENDONÇA, Maria Luiza Pinto de. Algumas Considerações sobre Rendas e Rendeiras do Nordeste.
Separata do Boletim do Instituto de Antropologia da Universidade do Ceará, 1961, p.85 Apud
DRUMOND, Terezinha Bandeira Pimentel. Tecendo vidas: cultura e trabalho das rendeiras da Prainha de
Aquiraz – Ce. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2006, p. 57. (Mestrado em História)
205
Ibid., p. 57.
131

Resistindo ao tempo e ultrapassando os limites europeus, o fato é que a renda de Bilro


chegou ao Brasil desde tempos imemoriais, tornando-se uma prática tradicional da cultura
feminina do Nordeste do Brasil, principalmente, em regiões do litoral. Em muitos estados
nordestinos se detecta a produção artesanal da renda de Bilro, assim como, em diversas
localidades praianas do estado do Ceará, como é o caso das rendeiras da Prainha de Aquiraz,
pesquisado pela historiadora Teresinha Drumond, e que se encontra muita semelhança com as
vivências das rendeiras de Juritianha.
Nesse sentido, em Juritianha, assim como a família de Rita, existiam outras famílias que
produziam renda. Essa renda era vendida isoladamente, por baixos preços, sem o devido
reconhecimento do produto e do trabalho envolvido. Nesse sentido, uma realidade comum a
todas as rendeiras era a comercialização da renda por meio dos ―atravessadores‖, ou seja,
alguns comerciantes locais que forneciam tanto a matéria prima necessária para a produção da
renda, como também, intermediavam a venda dos produtos. Na lembrança das rendeiras de
Juritianha, a equação entre rendeira – atravessador – lucro era quase nula, pois muitas
afirmam que a maior parte do lucro ficava com o atravessador, enquanto que para as rendeiras
não sobrava quase nada. Como explica Joana Maria:

[...] porque a gente trabalhava nessa época e vendia o povo daqui mesmo
comprava e iam vender no Acaraú, em Fortaleza. E eles compravam aqui
bem baratim e a gente não tinha nem um sentido, não tirava nem um
pouquim de resultado. Era só trabalhando, pagando a linha e o nosso
trabalho era só pra isso: pra comprar a linha e pagar. [...] Nós trabalhava
praticamente de graça. 206

Dentre os ditos atravessadores, de acordo com a memória das rendeiras, se destacaram,


principalmente, José Buriti, Francisco Miguel e José Goçalves que fortaleceram seu negócio
vendendo toda produção das rendeiras de Juritianha. Segundo Ana Rosa Ferreira da Silveira,
filha de Rita de Cássia e atual presidente da Associação de Rendeiras de Juritianha, esses
atravessadores locais detinham todo controle, pois eram eles quem ditava o preço da renda e a
porcentagem que se destinava às rendeiras. Segundo análise de Ana Rosa, essa relação se
constituía de modo ―manipulado‖ e as rendeiras ficavam dependentes das condições impostas
pelos atravessadores, visto que muitas das vezes, essas rendeiras já estavam endividadas por
conta da linha que compravam dos mesmos.

206
Entrevista realizada com Joana Maria de Sousa Silva no dia 13 de novembro de 2018, em Juritianha, Acaraú.
Arquivo da autora.
132

Em sua narrativa, a filha de Rita relembrou a insatisfação de sua mãe com a atuação
desses atravessadores, o que veio a contribuir para que Rita despertasse para novas formas de
comercialização de sua renda. Os questionamentos sobre o papel do atravessador vinha
inclusive do convívio direto com um deles: seu cunhado José Gonçalves, irmão de seu esposo
Bernardo. Segundo Ana Rosa: ―[...] Ficava assim aquela coisa muito manipulada. E a minha
mãe sempre se indignou com essas coisas e foi vendo, porque ela acompanhou de perto a
trajetória de um que era cunhado dela. Aí ela viu que ele ganhava bastante e as rendeiras
muito pouco‖. 207
A própria Ana Rosa, ainda menina, viu suas primeiras rendas serem levadas pelo tio para
serem vendidas em Fortaleza. Entre risos, conta que: ―[...] as filhas tinham que trabalhar junto
com a mãe, porque a mãe sentava e butava as filhas encostadas e tinham que fazer, querendo
208
ou não‖ . Em troca, por sua produção, Ana Rosa recebia uma pequena quantia, o que
geralmente era destinada para compra de um tecido para fazer uma roupa. Aliás, para as
rendeiras de Juritianha, na maioria das vezes, o vestuário e os remédios para a família eram
garantidos com o pouco dinheiro que ganhavam com a renda.
Dona Joana Maria ressalta que o dinheiro que entrava em sua casa era advindo do seu
trabalho com a renda: ―[...] nessa época, quem pegava esse trocadinho, era eu...‖, pois seu
esposo dificilmente conseguia o dinheiro em espécie, já que se dividia entre o trabalho com a
agricultura e com a pesca, conseguindo alimentar a família com muita dificuldade,
simplesmente com o que pescava ou colhia. A partir da análise de Joana, pode-se perceber
que a condição de seu esposo era comum aos demais homens da comunidade, devido às
difíceis condições de vida e escassas oportunidades de trabalho em Juritianha. Então, pode-se
sugerir que as rendeiras eram as mulheres do dinheiro, ainda que esse dinheiro fosse
minguado. Conforme explica Joana:

[...] porque aqui naquela época era uma época muito atrasada. Ninguém
tinha nada de dinheiro, aqui não funcionava nada. O homem trabalhava na
agricultura. Ele só trabalhava plantando feijão e roça e essas coisas para
butar essas coisas dentro de casa pra não faltar. E a não ser, também pescava
de tarrafa pra trazer o peixinho pra misturar o feijão. Então, não entrava
dinheiro. O dinheiro que a gente pegava era esse pouquinho da renda e era
uma coisa muito útil porque era o que entrava, a gente precisa de dinheiro
em casa, pra tudo em quanto. As vez, pra comprar um remédio, as vez pra

207
Entrevista realizada com Ana Rosa Ferreira da Silveira em 13 de novembro de 2018, em Juritianha Acaraú.
Arquivo da autora.
208
Ibid.
133

comprar uma roupa, um calçado, uma coisa pra um filho, pra outro. Até um
alimento. Então, eu sei que valeu. 209

De certo modo, antes da fundação da Associação, o trabalho das rendeiras era realizado
individualmente, em suas próprias casas, de acordo com o tempo que cada uma possuía
disponível, com seu próprio material. Quando muito, podiam contar com a solidariedade entre
si na ocasião de tomar emprestado uma linha, ou uma peça já pronta para uma venda de
urgência.
Por conseguinte, a venda dessa renda dependia da boa vontade e dos preços barganhados
pelos atravessadores, ou pelos eventuais clientes que compravam diretamente da rendeira.
Nesse modelo, marcado pela pessoalidade nas relações comerciais, o produto e o trabalho da
rendeira não alcançava o devido valor, pois estava sempre sendo relativizado pelo comprador
que oferecia um preço muito inferior ao que era pedido pelas rendeiras. Numa relação de
comércio informal, na maioria das vezes, essas rendeiras saiam prejudicadas, pois se
deixavam levar pela necessidade imediata de vender seus produtos, ao passo que precisavam
de dinheiro para as necessidades de primeira ordem como, inclusive, comprar/pagar a linha.
De acordo com as rendeiras de Juritianha, a linha fina da marca Stella era mais utilizada
na época, e os principais produtos eram os ―Barrados‖ e os ―Bicos estreitos‖. Não tinham
tanta variedade na produção. Como as próprias rendeiras produziam também seus
instrumentos de trabalho, a almofada e os espinhos eram improvisados com o que dispunham
no ambiente natural. Portanto, assim como ainda hoje, os espinhos mais utilizados eram os de
mandacaru, popularmente chamados de espinhos cardeiros, encontrados no lagamar, região
próxima a Juritianha. Segundo as memórias das rendeiras, muitas vezes, elas iam a pé e em
grupo, ―caçar‖ espinhos para fazer a renda.
Atualmente, com a diversificação da produção, muitas peças são confeccionadas com
linha grossa, sendo a marca Clara preferida. Os espinhos de mandacaru não são mais
encontrados no Lagamar e, sim, numa localidade chamada Sopé, pertencente ao município de
Santana do Acaraú. Uma distancia de 71,3 km separa os municípios de Acaraú e Santana do
Acaraú, o que faz com que algumas rendeiras fretem um carro para realizarem a coleta dos
espinhos. Dessa forma, Ana Rosa que, desde menina, acompanhou todo o processo de
organização e fortalecimento das rendeiras situa o melhoramento da produção da renda com o

209
Entrevista realizada com Joana Maria de Sousa Silva, já citada.
134

passar do tempo, o que se pode inferir que está diretamente relacionado ao advento da
Associação de Rendeiras de Juritianha. Nas palavras de Ana Rosa:

Na época, elas faziam só barrados e bicos estreitos. Com o tempo, isso foi
melhorando. Hoje a gente tem uma variedade muito grande. Fazemos roupa,
toalha de mesa, jogo americano, peças maiores, toalhas grande. Enfim,
qualquer tipo de peça, hoje as rendeiras já fazem. Na época, não tinha. 210

No entanto, até se chegar à fundação da Associação Comunitária das Mulheres


Rendeiras de Bilro de Juritianha, no ano de 1988, sua fundadora, Rita de Cássia passou por
algumas experiências de negócio com a renda, o que foi fundamental para sua entrada no
mundo do comércio, tanto interno ao seu município, como externamente, levando a renda
produzida para fora do Ceará.
A primeira dessas experiências foi o contato com o pastor Davi, da Igreja Metodista, um
pernambucano, que percorria o interior do Ceará, possivelmente em missão evangelizadora,
mas que serviu de ponte entre Rita e a Associação de Artesãos do Nordeste - ASSOCIARTE,
com sede em Olinda, no estado de Pernambuco.211 Através desse pastor, a primeira leva dos
tradicionais produtos de renda de bilro das rendeiras de Juritianha atravessou as fronteiras
municipais e estaduais para serem comercializados de acordo com a lógica impessoal do
mercado.
De acordo com a parceria proposta pelo pastor Davi às rendeiras, a renda seria vendida
seguindo o modelo de venda consignada, ou seja, os produtos seriam expostos na
ASSOCIARTE para venda e, posteriormente, conforme fossem vendidos, o lucro seria
repassado para as rendeiras, não havendo prejuízo para nenhuma das partes envolvidas. A
renda que não fosse vendida poderia retornar para as rendeiras, se assim quisessem, e a
ASSOCIARTE também lucrava com uma porcentagem em cima das peças de renda vendidas.
A memória de Rita de Cassia recupera a importância dessa experiência com a
ASSOCIARTE como o início da trajetória da Associação de Rendeiras. Em sua compreensão,
essa foi a primeira etapa da Associação:

210
Entrevista com Ana Rosa, já citada.
211
A Associação dos Artesãos do Nordeste – ASSOCIARTE é uma Associação de natureza jurídica de direito
privado, sem fins lucrativos, com sede e foro na cidade de Olinda, Estado de Pernambuco, com área de ação em
todos os Estados do Nordeste regendo-se pelas regras legais incidentes e pelo presente Estatuto. (Estatuto da
Associação dos Artesãos do Nordeste – ASSOCIARTE. S/d. Arquivo da Associação Comunitária das Mulheres
Rendeiras de Bilro de Juritianha, sob posse de Ana Rosa Ferreira da Silveira)
135

A primeira etapa da Associação, foi um dia, veio um rapaz, um pastor, pastor


Davi, de Olinda. Veio ele e a esposa dele, que eu não me lembro o nome
dela agora... eles vieram trabalhar nessa área né, trabalhar com artesãs, com
as mulheres, trabalhar com esse povo... Até que um dia, ele sabia que a gente
trabalhava com o Movimento do Dia do Senhor né, sabia que a gente do Dia
do Senhor era mais agrupado... porque o difícil foi agrupar o povo... aí nós
se reunimos com o pastor Davi de Olinda, ele era um pastor crente,
protestante. Nos fizemos uma reunião na minha casa mesmo, na Juritianha...
ai ele foi e contou pra nós, que lá em Olinda tinha um lugar que a gente
podia se associar e a gente podia levar nosso trabalho pra lá, lá pagava
melhor, podia deixar nossos produtos lá, que lá tinha uma equipe que vendia
e passava pra nós o dinheiro... também a linha nós trazia pelo preço justo.
Tinha muito mais chance pra nós do que do jeito que nós vivia né. Aí deixou
comigo uma cartilhazinha... e marcou outra reunião.212

Conjectura-se que, essa ―cartilhazinha‖ a qual Rita se refere, possa ser o Estatuto da
Associação dos Artesãos do Nordeste. O intuito de uma próxima reunião era para que as
rendeiras tivessem um tempo para pensar e decidir se aceitariam se incorporar à
ASSOCIARTE. A reunião seguinte contou com a participação de muito mais mulheres, pois
com a oportunidade de negócio trazida pelo pastor Davi, quase todas as rendeiras se
animaram em participar da reunião e conhecer melhor a proposta. As rendeiras que não
participaram da primeira reunião, aceitaram o convite de Rita para a segunda e, a partir de
então, continuaram a se reunir com frequência, pois aquela oportunidade representava uma
melhoria nas suas condições de trabalho e de vida. A importância da ASSOCIARTE para o
início do processo associativo das rendeiras está presente na memória de todas as mulheres
envolvidas, inclusive, sendo uma história contada e recontada para suas filhas e netas até os
dias de hoje.
Nesse sentido, Joana Maria, irmã de Rita, também elabora sua narrativa apontando a
ASSOCIARTE como o primeiro e principal meio que orientou a organização das rendeiras de
Juritanha. Pode-se dizer que foi através das reuniões com pastor Davi que essas mulheres
ouviram pela primeira vez a palavra Associação e aprenderam como funcionava e quais os
benefícios de estarem associadas. Dessa forma, no trecho abaixo Joana relembra sua
participação nas primeiras reuniões de rendeiras e o processo que levou até a fundação da
própria Associação de Mulheres Rendeiras de Bilros de Juritianha.

212
Entrevista com Rita de Cássia de Sousa Ferreira realizada em 01 de abril de 2010, em Juritianha, Acaraú.
(Arquivo da autora)
136

A gente entrou na Associação foi um senhor que vei de Recife. O nome dele
era pastor Davi... ele vei aqui na Juritianha e fez um tipo de uma
reuniãozinha com a minha irmã, com a Rita... aí então, eu moro um pouco
mais afastado, nesse dia eu não participei. Mas, ele deixou umas revista e ela
se interessou muito sobre isso. Que ele falou muito bem, assim com dó que
nós trabalhava muito. A gente trabalhava só assim com rendinha de dedim, a
rendinha bem fininha, bem estreitinha. Então, ele disse que tinha como
aumentar, como fazer uma renda larga, fazer outros tipos de renda e dá mais
resultado... Ai, então, ele fez essa reunião muito importante. A minha irmã
ficou muito empolgada e convidou mais amigas e foi convidando e
participou pra mim também e eu não perdi mais uma reunião. Então, a gente
se organizou conseguiu uma vaquinha e ela foi pra Recife com essa cartilha
que ele deu. Ela foi pra Recife e lá conseguiu organizar tudo e ficou lá como
registrada aqui a nossa Associação começou a participar de lá também e aí a
gente começou trabalhar levando pra lá [...]. 213

Depois dessas reuniões, as rendeiras confiaram sua renda ao pastor Davi, que retornou à
Olinda levando a mercadoria para vender na ASSOCIARTE. Devido ao isolamento da
comunidade de Juritianha e à dificuldade de comunicação no meio rural, ainda presente na
década de 1980, essas mulheres ficaram meses sem receber notícias. A narrativa de Joana
recupera a solução encontrada por Rita para resolver o problema: viajar para Olinda,
perseguindo o endereço deixado pelo pastor.
Essa viagem de Rita demostra dois aspectos importantes no processo de organização das
rendeiras. Primeiro, a dificuldade financeira, pois na realidade que viviam essas mulheres não
se tinha dinheiro para nada, quiçá para comprar passagens de ônibus para uma viagem
relativamente longa, portanto mais cara, tendo em vista o percurso interestadual. Segundo,
uma estratégia que ressalta a criatividade e a força do coletivo, que foi a ideia de fazer uma
―vaquinha‖, termo popularmente usado para definir coleta de dinheiro, representando uma
prática de resolver os problemas coletivamente.
Outro ponto que merece atenção no fato dessa viagem é a coragem de Rita, uma mulher
que até então só tinha viajado para lugares próximos de seu município, sendo a viagem mais
distante àquela que fazia para Sobral, quando das atividades do Movimento do Dia do Senhor.
De fato, essa viagem significou muito para Rita e para as demais rendeiras, todas elas
temerosas com os riscos que Rita de Cássia corria ao se aventurar em uma viagem ao
desconhecido, sem nunca ter estado numa cidade grande, desconhecendo completamente os
códigos do mundo urbano. No entanto, foi a partir dessa viagem que Rita conheceu a sede da

213
Entrevista realizada com Joana Maria de Sousa Silva, já citada.
137

ASSOCIARTE, viu de perto o funcionamento de uma Associação, conheceu alguns dos


sujeitos envolvidos, e teve contato com artesãos e artesãs de outros estados do Nordeste.
Rita ficou hospedada na própria sede da ASSOCIARTE, que servia também como ponto
de apoio para todos os associados. É importante que se diga que, desde essa primeira viagem,
muitas outras viriam, inclusive, nas viagens seguintes, outras rendeiras se dispuseram a
acompanhar Rita. Com o tempo, outras se encorajaram a viajar sozinhas também, como sua
irmã, Joana, e sua filha, Ana Rosa.
Tudo isso porque Rita retornou à Juritianha com o apurado das rendas, o que foi
considerado um lucro satisfatório para as rendeiras, e convencida da necessidade de fundar
uma Associação de fato e de direito.214 Desse modo, a história da fundação da Associação está
diretamente ligada à figura do pastor Davi e a essa viagem. Essa história foi registrada, pela
primeira vez, ainda na década de 1990 pela religiosa Maria Alice MacCabe, em seu livro
―História na mão‖. Nesse livro, Rita conta que:

Lá em Recife, conversamos com outros grupos de artesãos de todo Nordeste


e vimos que os outros grupos se formavam em associações para ter mais
direitos. Aí eu trouxe esta história pra cá para as rendeiras daqui: ―porque
nós não fazemos uma associação aqui? Sabemos que é difícil, mas com a
luta da gente, nós vamos conseguir‖ ... E até foi com muita dificuldade
porque a gente é rendeira e nosso conhecimento é pouco. Mas conseguimos
fazer os nossos estatutos e escolhemos a nossa diretoria e fomos registrar,
que foi uma luta medonha. Aí ficamos muito feliz com nossa associação
porque é nossa.215

Mais recentemente, no ano de 2010, a memória de Rita reelaborou essa história quando
de sua entrevista para a autora desta pesquisa. Alguns elementos permaneceram em sua
narrativa como: a consciência de que através de uma Associação as rendeiras garantiriam seus
direitos, como também, reapareceu a necessidade de se percorrer os trâmites legais para
garantir oficialidade à Associação das Rendeiras de Juritianha, com a criação do Estatuto e da
Diretoria. Como elemento novo, apareceu o objetivo de Rita e demais rendeiras em demarcar
total independência de seu trabalho e de sua Associação, distanciando-se dos interesses
políticos, tendo em vista que em regiões muito pequenas, a política partidária era e é uma

214
A Associação Comunitária das Mulheres Rendeiras de Bilro de Juritianha aparece na Base de Dados do
Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica do Brasil, com registro CNPJ 23.717.689/0001-75, datando de 20 de abril
de 1990, ainda constando com situação ativa. Retirado do site: https://www.basecnpj.com. Acesso: 30 de
novembro de 2018. É importante salientar que a data de fundação registrada no Livro de Atas da Associação se
refere a 18 de outubro de 1988, o que demostra exatamente um percurso entre a iniciativa da fundação e a
oficialização da mesma.
215
McCABE, p. 198-199.
138

constante e sua influência entre os pobres é muito utilizada para angariar votos em anos
eleitorais. Provavelmente, isso tenha aparecido em um segundo momento, porque depois de
fundada, a Associação tenha sido alvo de especulações pelos políticos locais.
Outro elemento novo é a própria participação da religiosa Maria Alice MacCabe como
uma importante incentivadora para o desenvolvimento da Associação de Juritianha, tanto
orientando as mulheres quanto às decisões burocráticas, quanto atuando como uma espécie de
vendedora voluntária, levando a renda de Juritianha para fora do país, já que enquanto
religiosa e norte-americana fazia um constate traslado entre Brasil e Estados Unidos. Aliás,
segundo Livro de Prestação de Contas da Associação216, pode-se destacar a boa vontade e a
valorosa contribuição de Maria Alice para o crescimento das vendas, pois regularmente se
registrava as mercadorias que eram destinadas a ela. Assim também, como se registrava o
lucro integral advindo com seu faturamento.
Essa parceria foi tão importante que, conforme registrado no Livro de Atas, na data de 07
de julho de 2001, realizou-se uma Assembleia Extraordinária a fim de realizar uma alteração
no Estatuto da Associação, incluindo uma cláusula referendando a exportação da renda
produzida pelas associadas. Obviamente, tal alteração esteja diretamente relacionada às
vendas realizadas por Maria Alice, pois de fato, na realidade concreta da Associação de
Juritianha, essa seria a única forma de venda internacional. De acordo com a referida Ata,
trinta e uma sócias aprovaram a seguinte proposta:

Ata de uma assembléia extraordinária da Associação Comunitária das


mulheres rendeiras de bilro de Juritianha.
Aos sétimo dias do mês de julho do ano de dois mil e um foi realizada uma
assembleia na sede da Associação com a participação de trinta e uma sócias,
a qual tratou do melhoramento e da mudança do estatuto para incluir como
uma finalidade da Associação a produção e comercialização e exportação de
artigos de artesanato. Essa proposta foi aprovada e segue as assinaturas das
presentes. 217

Nesse sentido, tanto o capital financeiro advindo das exportações realizadas por Maria
Alice quanto seu engajamento político-religioso com as rendeiras foi fundamental para o
fortalecimento da Associação. A narrativa de Rita é elucidativa nesse ponto:
216
Como exemplo, cito a prestação de contas referente ao mês de maio de 2001, cujas mercadorias entregues à
Maria Alice somavam um total de R$ 607,00. Já no mês de novembro de 2001, a quantidade de mercadorias
entregues à Maria Alice foi superior, alcançando um total de R$ 2.006,00. Informações retiradas do Livro de
Prestação de Contas da Associação. Arquivo da Associação Comunitária de Mulheres Rendeiras de Bilro de
Juritianha. Arquivo em Posse de Ana Rosa Ferreira da Silveira.
217
Ata do dia 07 de julho de 2001. Livro de Atas da Associação Comunitária das Mulheres Rendeiras de Bilro
de Juritianha. Arquivo em Posse de Ana Rosa Ferreira da Silveira.
139

Quando foi um tempo, eu disse vamos fazer nossa Associação? Que nós
tendo nossa Associação, nós vamos ter mais direito a algumas coisas, mais
direito ao nosso trabalho... aí fomos fazer a Associação. Se reunimo tudim...
butamo o nome de tudim, aí peguei fui lá no Acaraú... arranjei um Estatuto
de uma Associação e aí fizemos o nosso Estatuto. Aí depois que tava criada
a Associação levei pra Fortaleza, mandei registrar. Aí a irmã Maria Alice
começou a nos ajudar... engajou-se mesmo com a gente. A nossa
Associação, ela foi livre toda vida de político, de prefeitura, dessas coisas
toda... começamos desse jeito, depois a irmã começou a levar muita coisa
para os Estados Unidos, para os mercados fora. A Associação cresceu e se
expandiu desse jeito assim. De dois em dois anos a gente mudava a diretoria,
mas eu ainda fui lá bem uns quatro, ou cinco, ou seis anos. 218

Portanto, o intuito de Rita de Cássia ao fundar a Associação era de fortalecer o trabalho


das rendeiras de Juritianha e, principalmente, romper com a dependência e exploração dos
atravessadores. De certa forma, naquele momento, a ASSOCIARTE oferecia possibilidade de
mais autonomia para as rendeiras, como para os demais artesãos e artesãs que estivessem a ela
vinculados. Nesse sentido, ―o afastamento do intermediário‖ era o primeiro objetivo da
ASSOCIARTE. Outro objetivo que chama a atenção era ―formar uma consciência de classe
entre os artesãos‖. De acordo com a experiência da Associação de Juritianha, pode-se
vislumbrar que, se esses dois objetivos não tiverem sido de todo atingidos, pelo menos foram
se constituindo como pontos fortes no processo de conscientização e organização das
rendeiras. Conforme o texto do Estatuto:

Art. 2º - São objetivos da ASSOCIARTE:


a) Proporcionar melhoria de vida econômica dos artesãos, contribuindo
para o afastamento do intermediário;
b) Atuar socialmente na vida do artesão, de modo a integrá-lo na
comunidade, baseando-se nos princípios de solidariedade, fraternidade e
união;
c) Promover o melhor relacionamento social e cultural entre o grupo de
artesãos e trabalhadores de outras categorias;
d) Ajudar os artesãos ainda não associados a se conscientizarem de sua
importância de viver em sociedade e de participar de sua associação;
e) Formar uma consciência de classe entre os artesãos;
f) Participar de encontros relativos a categoria e de outras atividades que
possam contribuir para o desenvolvimento tanto da associação quanto da
classe;
g) A venda em comum da produção dos associados;
h) A compra em comum da matéria prima para as atividades econômicas;

218
Entrevista com Rita de Cássia de Sousa Ferreira, já citada.
140

i) Criar postos de serviço onde for viável e necessário. 219

Nesse sentido, de fato a Associação criada por Rita trouxe um fortalecimento para as
rendeiras da comunidade, que passaram a se organizar coletivamente a fim de valorizar o
trabalho com a renda e de estabelecer regras para a produção, diversificação e distribuição dos
produtos produzidos pelas associadas. De acordo com o Livro de Atas da Associação
Comunitária das Mulheres Rendeiras de Bilro de Juritianha, a Ata de Fundação, Eleição e
Posse da Diretoria data de 18 de outubro de 1988, onde se registra a primeira reunião da
Associação, em que ocorreu a eleição para diretoria, eleição esta composta por chapa única,
tendo Rita de Cássia Sousa Ferreira, como presidente; Maria Rodrigues Alves Vasconcelos,
como vice-presidente e Joana Maria de Sousa Silva, como presidente do Conselho Fiscal. A
chapa foi eleita com 17 votos a favor, no entanto, foram registrados 2 votos nulos e 1 voto em
branco.
Desde sua fundação, são trinta anos de Associação. Durante esse período, Rita de Cássia
esteve à frente da diretoria por dois mandatos consecutivos, assumindo posteriormente, os
cargos de vice-presidente, tesoureira, presidente do conselho fiscal e, quando começou a se
sentir adoentada, passou para a suplência. Rita adoeceu de Parkinson e faleceu em 2016. A
presidência da Associação e do conselho fiscal também foi assumida por sua irmã, Joana
Maria, por três mandatos, e por Ana Rosa, sua filha, por mais de um mandato, sendo a atual
presidente.
Constata-se que a Associação de Rendeiras de Juritianha nunca saiu dos cuidados de
Rita de Cassia, de Joana e de Ana Rosa, que no decorrer desses trinta anos se revezaram entre
os cargos diretivos da Associação. Em todo esse tempo, apenas em três mandatos, elas não
ocuparam os cargos de diretoria, assumindo a presidência Maria de Fátima Costa Silveira, em
1992; Maria do Livramento Rodrigues, em 2005 e Cláudia Maria de Oliveira, em 2015. Isso
porque o Estatuto previa apenas uma eleição e uma reeleição para cada chapa, de modo que
chegou um momento que Rita, Joana e Ana Rosa não podiam mais se candidatar, tendo que
abrir para outras representantes.
De acordo com o Livro de Atas, é possível perceber uma variação no número de
associadas no decorrer desse período. Percebe-se que no início, a Associação contava com
vinte sócias, conforme registrado na primeira Ata de 18 de outubro de 1988, e esse

219
Estatuto da Associação dos Artesãos do Nordeste. S/d. Arquivo Associação das Mulheres Rendeiras de Bilro
de Juritianha. Os documentos que compõem tal arquivo estão em posse de Ana Rosa Ferreira da Silveira.
Juritianha, Acaraú, Ceará.
141

quantitativo foi crescendo no decorrer de sua consolidação, chegando a se registrar a presença


de sessenta sócias na Ata da reunião de 06 de janeiro de 2001, tendo decrescido nas reuniões
seguintes.
O Livro de Atas também registra o espaço físico que serviu de sede improvisada para
Associação por muitos anos, pois as rendeiras se reuniam numa sala do prédio escolar Hugo
Martins dos Santos. Logo nas primeiras Atas, registram-se também as diretrizes estabelecidas
pelo Estatuto, como a contribuição de 10% do valor da renda destinado à manutenção da
Associação, manutenção esta que incluía as despesas com compra de material de escritório,
telefone e custos com os Correios, já que o principal destino de vendas da renda era Olinda,
então, as peças eram levadas pelas rendeiras, mas, os pagamentos e as informações, em geral,
eram realizados, principalmente, via Correios.
Orientava-se também que as rendeiras estabelecessem uma ―combinação nos preços‖
para que houvesse um melhor controle das peças e dos lucros. Observa-se uma preocupação
da presidente Rita de Cássia em garantir a transparência das negociações e, também,
desenvolver um senso de responsabilidade em cada sócia. Talvez, seu intuito fosse de
fortalecer a consciência de classe e de que cada uma deveria assumir plenamente seus direitos
e deveres de associadas. Dessa forma, se lê na Ata de 10 de julho de 1990:

Aos 10 dias do mês de julho de 1990


Reuniram-se as rendeiras para planejarem mais algumas coisas que não está
no eixo quando vai a renda a dona da péssa tem por direito colocar o nome e
o preço em cada péssa para que não haja dúvida, também deve ter uma nota
datando o dia da entrega dia mez e ano, a Presidente não dispensa essa
obrigação de cada uma, pois todas nós tem que saber como está também
pricisa haver uma combinação de preços entre as rendeiras para que não
coloque preços disiguais que assim fica mais fácil para resolver, enquanto
isso pricisa reunir-se sempre que vá colocar renda no correio já que está
certo como fazerem vamos encerrar a reunião por motivo justo. Lavrada a
ata vai ser lida na prócima reunião e de acordo o que se fala temo pessôa que
pode anotar tudo mas é importante que cada uma faça um caderno pra suas
anotações que assim fica melhor pra todas.
Juritianha 10 de julho de 1990 220

Outro ponto de destaque no Livro de Atas é o registro da preparação para a festa de


inauguração da Associação. Passados os trâmites de oficialização no cartório de Acaraú e
estabelecidas as primeiras diretrizes conforme regia o Estatuto, Rita de Cássia e as demais
associadas se mobilizaram para festejar de fato a conquista da Associação. Mais uma vez a

220
Ata de 10 de julho de 1990. Livro de Atas da Associação Comunitária de Mulheres Rendeiras de Bilro de
Juritianha. Arquivo em posse de Ana Rosa Ferreira da Silveira
142

responsabilidade das sócias é colocada em pauta, todas teriam que assumir alguma tarefa para
realização da festa. Em todo momento, o tom de coletividade impera, pois o uso do pronome
possessivo ―nosso‖ para se referir à Associação é uma constante tanto na escrita das Atas,
como também, nas narrativas orais das rendeiras.
Diga-se de passagem, quase sempre usado de forma orgulhosa, diziam ―nossa festinha‖,
―nossa Associação‖, enfatizando-se o mérito e o valor dessa conquista que, acima de tudo, era
a conquista da autonomia feminina e da valorização de sua autoestima, como também, a
conquista de melhorias de trabalho e de vida para essas rendeiras. Através da Ata de 30 de
agosto de 1990, pode-se aproximar da atmosfera vivida por essas mulheres ao se organizarem
em torno da festa.

Aos trinta dias do mês de agosto de 1990


No prédio Escolar Hugo Martins dos Santos em Juritianha município de
Acaraú Ceará, reuniram-se 37 mulheres rendeira de bilro associadas com a
participação de 3 mulheres não associadas feito uma seção que nesta
programaram a inauguração da nossa associação ficando para realizar-se no
mês de dezembro do mesmo ano em frente o Centro Comunitário, logo ahi
para caminha dividiram tarefa para as mulheres, isso é importante, todas vai
se mecher, umas decidiram fazer cartões, outras prepararam discurso, outros
cânticos, outros bolos, outros faças (faixas) com frases adequadas, outras
cartazes com desenhos de rendeiras e assim vai todas se preocupando com
este dia de nossa festinha. Terminada a reunião a presidente Rita de Cássia
Sousa Ferreira ordenou que logo haviam de se reunirem já pensando na nova
diretoria, que esta em tempo. Eu Maria Alves Vasconcelos lavrei esta ata, de
forma que em poucos dias haverá outra reunião e haverá o dia marcado para
a inauguração.
Jurutianha 30 de agosto de 1990. 221

Nas memórias de Rita de Cássia, essa festa é colocada como um momento de festejar a
conquista da Associação entre as rendeiras, mas também, de dividir essa vitória com suas
famílias que, em boa parte também participavam do processo de produção da renda,
principalmente, as filhas. Todos participaram da festa, comeram, beberam e dançaram, afinal,
a Associação era comunitária, a conquista era coletiva. Nas palavras de Rita, percebe-se o
sentimento de valorização do seu trabalho e dos seus, pois chega a dizer que ―naquele
momento, só nós ali, nós era gente mesmo!‖. Ou seja, de tão acostumada que estava de viver
duras rotinas de trabalho e privação, que aquele momento de lazer, de fartura e de

221
Ata de 30 de agosto de 1990. Livro de Atas da Associação Comunitária de Mulheres Rendeiras de Bilro de
Juritianha. Arquivo em posse de Ana Rosa Ferreira da Silveira
143

protagonismo significava uma afirmação da existência e da resistência das mulheres


rendeiras, tanto que essa inauguração foi um fato que ela fez questão em registrar:

Uma coisa que eu queria falar foi dum prazer muito grande que nós tivemos
no dia que inauguramos nossa Associação de rendeiras. Porque era um
trabalho nosso, realizado por nós, num tinha quem mandasse, num tinha
quem criticasse: foi uma coisa nossa mesmo pra nós! Nós se achamos muito
felizes nesse dia! (...) O dia da inauguração nós fizemos discursos nós
mesmas. Fizemos cantos e cartazes: RENDEIRAS DE JURITIANHA NA
LUTA! Preparamos comida e cerveja e caipirinha e uma radiola pra tocar
pra dançar: uma alegria essa festinha! Nós era mais de cinquenta rendeiras,
com os maridos e filhos. As rendeiras e os maridos, todo mundo tomando
cerveja e cantando... Como gente! Naquele momento, só nós ali, nós era
gente mesmo! [...] muito bonito, muito importante! Eu achei.222

Importante, principalmente, porque eram as próprias rendeiras que decidiam tudo, desde
a escolha da Diretoria e as normas do Estatuto, até a liberdade de decidir os preços das peças.
Tudo decidido coletivamente com o instrumento democrático do voto, sempre legitimado em
Ata. A possibilidade de ―dar o preço‖ que a Associação apresentava era uma experiência
inédita para essas trabalhadoras. A narrativa de Joana Maria evidencia a Associação como um
marco divisório nas relações de produção das rendeiras.

A gente acha que é importante porque nós é que damos os preços da nossa
renda. Eu acho isso uma coisa muito importante pra gente...que nós nunca
tivemos esse direito... de dar o valor do que é nosso. Nós poder dar o valor.
Dizer: ―minha renda custa tanto‖. Nós num podia fazer isso. Antes disso,
quando chegava um comprador na nossa casa, aí, nós dizia: ―quanto você
quer dar por esta renda?‖ aí ele dizia uma preço bem baratinho e a gente
vendia porque num tinha quem comprasse mais caro. Não tinha outro meio.
E hoje, não! A gente faz a peça de renda da gente e a gente dá o preço!223

Dar o preço do produto era muito importante para as rendeiras porque significava que
elas eram donas do seu trabalho e da sua produção. Além do preço, elas estabeleciam as
normas do trabalho, as horas trabalhadas, os tipos e quantidade de peças produzidas. A
Associação, através de seu Estatuto, garantia direitos e deveres a essas rendeiras, no entanto,
nada era imposto, tudo era votado e aprovado segundo a vontade da maioria. Isso era o
diferencial de se trabalhar sob forma de Associação. Embora, na rotina das rendeiras de
222
MACCABE, p. 201.
223
Ibid., p. 198.
144

Juritianha pouco tenha se alterado, pois diferentemente de outros modelos associativos, elas
continuaram tendo a liberdade de produzir a renda nas próprias casas, nos horários em que já
era de costume, cada uma respeitando seu ritmo.
Até porque a Associação começou sem sede própria, aproveitando uma sala da Escola
Municipal Hugo Martins dos Santos, o que era um espaço pequeno e improvisado, sendo
destinado também para outras finalidades. Isso inviabilizava que as rendeiras organizassem
um horário de trabalho coletivo na própria Associação. Tal espaço era utilizado apenas para
que elas se reunissem uma vez por mês para o balanço mensal e algumas deliberações. Além
da Escola, uma sala do Centro Comunitário também foi utilizada pelas rendeiras como ponto
de apoio para Associação, até que se conseguisse, finalmente, uma sede própria já nos anos
2000. Mesmo com essas limitações, com uma Associação, essas mulheres se sentiam
asseguradas.
A Associação abriu caminho para o contato com outras entidades além da
ASSOCIARTE, como a Cooperativa dos Produtores Artesanais do Vale do Acaraú Ltda. -
COPAVA224 e a Central de Artesanato do Ceará – CEART225, principalmente, na década de
1990 que, através de cursos de capacitações, proporcionaram trocas de experiências no
aperfeiçoamento dos trabalhos com a renda. É importante que se diga que desde a década de
1970, o estado do Ceará vinha desenvolvendo políticas de fomento aos diversos tipos de
artesanato, com o intuito de valorizar e fortalecer a cultura tradicional de produção artesanal
desse estado.
Numa visão mais ampliada, o próprio governo federal vinha favorecendo uma inserção
desse tipo de produto no circuito da cultura e do mercado comercial no Brasil desde a década
de 1950, principalmente, reforçando as atividades artesanais na região Nordeste, através de
investimentos e políticas vinculadas ao Banco do Nordeste do Brasil – BNB e à
Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE, símbolos da política
modernizadora dos anos 1950 e do intuito de desenvolvimento da região Nordeste do Brasil.
Nesse sentido, em sua pesquisa sobre as rendeiras da Prainha de Aquiraz, Ceará, a

224
A Cooperativa dos Produtores Artesanais do Vale do Acaraú Ltda – COPAVA foi fundada em 25 de maio de
1994 em Acaraú, Ceará, com número de inscrição do CNPJ 00.074.941/0001-70. Atualmente encontra-se
inativa. Cf.: https://www.basecnpj.com. Acesso em: 30 nov. 2018. Não se tem informações precisas de quanto
tempo a COPAVA esteve atuante. No entanto, segundo entrevistas com algumas rendeiras de Juritianha, elas
consideram uma boa experiência o aprendizado que adquiriram com o tempo que se incorporaram a COPAVA.
225
―A CEART (Central de Artesanato) foi criada no final dos anos de 1970, por incentivo de Luiza Távora.
Inaugurada em agosto de 1981, dois anos após a construção do Centro das Rendeiras, a sede da CEART ocupou
o espaço antigo do Palácio do Plácido189, localizado na Aldeota, bairro nobre da capital cearense.‖ In:
DRUMOND, Terezinha Bandeira Pimentel. Tecendo vidas: cultura e trabalho das rendeiras da Prainha de
Aquiraz, p. 105.
145

historiadora Teresinha Drumond situa o percurso de criação e implementação das políticas


públicas destinadas ao artesanato cearense:

Nos anos de 1970, a ação de fomento às atividades artesanais era exercida


pelo Departamento de Artesanato e Turismo da Secretaria de Indústria e
Comércio. Assim sendo, através da Empresa Cearense de Turismo
(ENCETUR), foi elaborado, em 1975, o Primeiro Plano Piloto do Artesanato
Cearense. Em 1976, apoiado pela Secretaria de Planejamento do Estado,
pelo INCRA e pela SUDENE, deu-se início ao Programa Integrado do
Desenvolvimento Artesanal (PIDART). 226

Como parte dessas políticas públicas, surgiram os incentivos à formação de Cooperativas


de artesãos, organizados por setores regionais, destacando, assim, a diversidade do artesanato
cearense, culminando com a criação da CEART, no final dos anos 1970. Ainda, segundo
Terezinha Drumond,

Na prática, os artesãos cearenses só se beneficiaram dessas ações


governamentais, a partir de 1979, quando o governador Virgílio Távora,
apoiado pelo Governo Federal através do Programa Nacional de
Desenvolvimento do Artesanato (PNDA), elaborou, sob a coordenação de
Luiz de Gonzaga Fonseca Mota, o II Plano de Metas Governamentais do
Estado do Ceará. 227

Por esse caminho, pode-se especular que a COPAVA também tenha surgido nesse
contexto de incentivo institucional aos artesãos cearenses, embora sua fundação seja do ano
de 1994. Ora, se essas iniciativas surgem no final dos anos 1970, é possível que durante a
década de 1990, já tivessem consolidadas em termos de políticas de estado do Ceará,
favorecendo a criação de muitas Associações e Cooperativas, sendo todas incorporadas à
CEART, principal expressão do investimento estatal no âmbito do artesanato. Tal especulação
traz como embasamento a narrativa de Joana Maria que rememora algumas das interferências
externas que as rendeiras de Juritianha receberam em sua Associação. Primeiramente com a
ASSOCIARTE e, mais tarde, com a COPAVA, essas rendeiras passaram por certo tipo de
adequação às demandas da moda que orientava o mercado da época. Desse modo, Joana
recupera o tempo de aprendizado com os cursos oferecidos pela COPAVA: de bordado, de
corte e costura, de pintura.

226
Ibid., p. 78
227
DRUMMOND, p. 79.
146

E aí a gente começou a trabalhar levando pra lá (ASSOCIARTE). E a gente


começou a aprender, alguém, eu não lembro muito bem quem ensinou a
gente a fazer a renda lá. Não tô muito bem lembrada. Mas, depois disso ai,
veio um senhor, de Fortaleza, acredito que sim, e um grupo de gente... até
fizeram uma casa muito grande, bonita, boa, cheia de muita coisa e
organizou pra gente ir pra lá aprender. No Acaraú, a casa chamava-se a
COPAVA. Eu não sei hoje o que foi feito dessa casa. Então, ela Tinha
(Ritinha) ficou lá sendo como a vice-presidente da casa lá... da COPAVA.
Ela permaneceu um tempo, junto com um grupo lá. E a gente ia daqui, vinha
um carro buscar a gente, também por conta deles lá, e ia muita gente pra
aprender... A gente ia toda noite... sábado e domingo não, só a semana.228

Ressalta-se na narrativa de Joana, inclusive, o estreitamento entre a Associação de


Rendeiras de Juritianha e a COPAVA, a ponto de Rita de Cássia assumir cargo diretivo nessa
Cooperativa. Através da COPAVA, a Associação de Juritianha se incorporou à CEART a ao
Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE, por um determinado
período. Segundo relembra a rendeira Joana,

Da Ceart, de Fortaleza, vei linha, vei tecido, vei uma senhora pra ensinar a
fazer outros tipo a não ser bordado. A ser bordado, lençol, colcha de cama,
essas coisas... e assim, continuou mais trabalho, perfeiçoando as rendas e
também outros tipo de trabalho que ai vinha os caminho de mesa. E vinha
pontaju que era colocando a renda nos tecidos [...]. 229

Embora estreita, a relação da Associação com a COPAVA e, por consequência, com a


CEART não durou muito tempo, pois as associadas teriam que se adequar às condições da
Cooperativa, que se sobrepunham ao Estatuto elaborado pelas próprias rendeiras para a
Associação de Juritianha. Dessa forma, essa relação significou para as rendeiras uma espécie
de ―sujeição‖ à COPAVA e à CEART, pois, a liberdade de venda e a autonomia de poder
definir os preços da renda passariam a ser ditados pela Central de Artesanato. Segundo a
narrativa de Rita de Cásia, esses foram os principais motivos que fizeram com que as
rendeiras de Juritianha rompessem com COAPAVA e com a CEART.

De repente chegou aqui uma comissão de Ação Social de Fortaleza, com


uma cooperativa de artesãos. E queria engajar todas as associações... Aí lá na
Cooperativa se estabeleceu, dizendo que ia apoiar os artesãos: que dava linha
e ainda pagava a mão de obra, no preço que fosse possível. Eu sei que muita
gente queria engajar lá e eu sempre com a preocupação que assim ia
enfraquecer a nossa associação que lutamos pra fazer, que é nossa. [...] Aí lá

228
Entrevista realizada com Joana Maria de Sousa Silva, já citada.
229
Entrevista realizada com Rita de Cássia, já citada.
147

na Cooperativa descobrimos uma sujeição grande. Porque lá é eles que dão


os preços e os sócios tem que vender o produto só pra eles. Só vende lá e não
pode vender fora. E a lei dessa Cooperativa, os estatutos, já vem feita lá de
Fortaleza, não é coisa feita por nós. E com tudo isso a gente acha que não
seja da gente: não decidimos nada... nem o preço da renda.230

A recusa em se submeterem a uma Cooperativa estatal denota a importância que essas


mulheres davam à autonomia conquistada com seu trabalho e com sua própria Associação, da
qual se sentiam donas. Durante todo esse percurso, até o final dos anos 1990, as rendeiras de
Juritianha continuaram mantendo relação com a ASSOCIARTE, mas mesmo depois de tantos
anos, também romperam com ela porque discordaram das novas regras, em que se passou a
cobrar uma mensalidade de todos os artesãos e artesãs vinculados. O que reforça a noção de
autonomia e independência dessas rendeiras.
De acordo com a narrativa de Rita, entende-se que, nas circunstancias em que as
rendeiras de Juritianha se encontravam, submeterem-se à COPAVA ou à CEART era abrir
mão de sua autonomia e de outras possibilidades de negócio, como a venda da renda para
mercados em Teresina e na própria capital, Fortaleza.
Isso era possível porque, algumas vezes, a Associação de Juritianha recebeu verbas
advindas de organizações católicas que financiavam projetos populares para o
desenvolvimento do terceiro mundo. A exemplo disso, o Movimento do Dia do Senhor
recebia uma verba advinda da Misereor, uma organização da Igreja Católica alemã. Nesse
sentido, Maria Valnê Alves esclarece que o Movimento recebeu essa verba durante toda sua
existência. Em sua narrativa, compreende-se que a Misereor colaborava em termos
institucionais com muitas dioceses do Brasil, incluindo a diocese de Sobral. A verba chegava
via diocese e era repassada para os trabalhos de base desenvolvidos pelas pastorais populares,
MEB e Dia do Senhor. Conforme Valnê, o bispo Dom Walfrido destinava maior parte dessa
verba ao Dia do Senhor.

A gente recebia o dinheiro da Misereor... e era a maior verba, e isso é


importante dizer. Eu tenho muita admiração por Dom Walfrido, muita viu.
Dom Walfrido, o maior dinheiro era para o Dia do Senhor. Naquele tempo,
era um carro, aí depois os vigários todos ganharam carro da Alemanha, da
Misereor, não só a diocese de Sobral. Mas, pra poder se fazer encontro, pra
poder esses dirigentes se deslocarem. Porque, como é que podiam pagar
passagem... depois eles ficaram gerindo [...].231

230
MACCABE, p. 199-200.
231
Entrevista com Maria Valnê Alves, realizada em 08 de dezembro de 2018, em Fortaleza – CE. Arquivo da
autora.
148

No caso específico das rendeiras de Jurtianha é possível que essa verba internacional
tenha vindo da Misereor, como também, pode ter avindo de organizações vinculadas às Irmãs
de Notre Dame, por intermédio de Maria Alice MacCabe, pertencente a essa Congregação. Na
narrativa de Rita de Cássia, apenas se explicita que:

Aí, conseguimos um dinheiro de uma organização religiosa que ajuda as


mulheres que estão se organizando. E com isso, podemos viajar para vender
a peças em outros lugares como Teresina e Fortaleza. E também, com esse
dinheiro, podemos comprar a linha em quantidade maior, que é mais barato
para nós. 232

Através do intermédio de Maria Alice também se conseguiu uma verba no valor de


cinco mil reais para a construção da sede da Associação Comunitária das Mulheres Rendeiras
de Bilro de Juritianha, verba essa, possivelmente, adquirida com a Congregação de Notre
Dame. Na Ata de 06 de janeiro de 2001, registra-se que a reunião acontece na sede própria da
Associação. Tal sede se constitui uma casa com poucos cômodos que servia tanto como lugar
de trabalho e reuniões das rendeiras, quanto como lugar de apoio para Rita de Cássia, que
passou seus últimos dias de vida morando na sede da Associação. Embora tendo sua casa em
um sítio, Rita escolheu morrer no lugar-símbolo de sua maior luta em vida.
A conquista de uma sede foi o ápice da luta organizativa das rendeiras, pois, muito
embora, a verba tenha sido intermediada por uma religiosa, externa à classe das rendeiras,
foram essas mulheres pobres e despossuídas de qualquer conhecimento formal que
protagonizaram a experiência de se organizar e de lutar por melhores condições de vida e de
trabalho. Tanto que o projeto elaborado para solicitação de verba destinada à construção da
sede da Associação contou com a participação efetiva de Rita de Cássia e demais rendeiras,
que o pensaram e o escreveram, juntamente com Maria Alice.
Dessa forma, percebe-se que a autonomia conquistada pelas rendeiras ultrapassava os
limites do trabalho e da produção, que passou a ser inteiramente livre da figura do
atravessador e da ―sujeição‖ a políticos ou à interferência de cooperativas estatais, como a
CEART. Tal autonomia perpassava também a completa gestão da Associação, desde a
gerência financeira, controlando o capital que circulava, incluindo lucros e custos, até as
atividades burocráticas como registros no Livro de Atas e no Livro de Prestação de Contas,

232
MACCABE, p. 200.
149

como também, colaborando na elaboração de projetos para organizações católicas


internacionais em busca de financiamentos. De fato, essas mulheres se fizeram protagonistas
de sua história de vida e da história da Associação Comunitária das Mulheres Rendeiras de
Bilro de Juritianha, compondo uma experiência inédita no âmbito da organização de
mulheres do Movimento do Dia do Senhor.

Figura 1 Foto de Rita de Cássia de Sousa Ferreira, fundadora da Associação Comunitária das
Mulheres de Rendeiras de Bilros de Juritianha.

Fonte: Fotografia cedida por Ana Rosa Ferreira da Silveira, filha de Rita de Cássia. Acervo da autora.
150

Figura 2 Foto da antiga Associação Comunitária das Mulheres Rendeiras de Bilros de Juritianha

Fonte: Fotografia produzida pela autora quando de sua visita à comunidade de Juritianha, em 13/11/2018.
Acervo da autora.

Figura 3 Foto da atual Associação Comunitária das Mulheres Rendeiras de Bilros de Juritianha

Fonte: Fotografia produzida pela autora quando de sua visita à comunidade de Juritianha, em 13/11/2018.
Acervo da autora.
151

3. TERCEIRO CAPÍTULO: Conflitos de terra e protagonismo


feminino

“[...] com a luta da terra, a gente começou a lutar, começou a descobrir e começou
a se organizar e começou a trabalhar. E a gente, as mulher, ajudamos a luta”.
(Conceição, indígena Tremembé da comunidade de Varjota, Almofala)

3.1. “A reforma Agrária é questão de sobrevivência”: organização sindical e luta


pela terra dos camponeses e das camponesas do Movimento do Dia do Senhor

A região Nordeste do Brasil foi, historicamente, marcada por intensa concentração de


terras e profunda desigualdade social. Em decorrência disso, essa região foi e ainda é um
lugar de muitos conflitos sociais e de luta pela terra. Tais conflitos acirraram-se,
principalmente, durante a segunda metade do século XX. Nesse sentido, as Ligas
Camponesas, características dos anos 1950, surgiram como um fator propulsor para as
primeiras formas de organização dos camponeses e para a reivindicação da reforma agrária,
que deveria ser conquistada na ―lei ou na marra‖, conforme defendia o advogado Francisco
Julião, principal liderança das Ligas Camponesas de Pernambuco. Além desse estado, a
Paraíba, Rio Grande do Norte, o Ceará233, em maior ou menor proporção, também foram
palcos de atuação dos camponeses organizados em Ligas. As Ligas, de acordo com Riolando
Azzi, ―era um movimento de organização dos trabalhadores rurais, a fim de obterem o
reconhecimento de seus direitos, com marcada tendência socialista‖. 234
Além das Ligas Camponesas, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), bem como,
setores progressistas da Igreja Católica desenharam outras formas de organização dos
trabalhadores do campo, principalmente, a partir da década de 1960. Nesse período, a
organização camponesa vinha crescendo e o debate político em torno da garantia dos direitos

233
Segundo Maria da Glória Ochoa, ―[...] embora devamos esperar pela década de 60 para ver o surgimento dos
primeiros sindicatos de trabalhadores rurais no Estado, desde os anos 40 desenvolvia-se no interior um paciente
esforço organizativo das massas camponesas. Neste sentido, será fundada em Camocim a primeira e única Liga
Camponesa posteriormente transformada em ‗Associação dos Pequenos Produtores de Camocim‘ sob a liderança
de Francisco Teixeira.‖ In: OCHOA, WORMALD, Maria Glória. As origens do movimento sindical de
trabalhadores rurais no Ceará: 1954-1964. Fortaleza: NUDOC, 1989, p. 63. A referência às ligas camponesas
de Camocim também aparece no livro de SANTOS, Carlos Augusto Pereira dos. Cidade Vermelha: a militância
comunista em Camocim - CE (1927-1950). 2ª ed. Sobral: Edição do autor, 2011.
234
AZZI, Riolando. A Igreja Católica na formação da sociedade brasileira. Aparecida – SP: Editora Santuário,
2008, p. 137.
152

trabalhistas para os camponeses estava em voga, mais acentuadamente, a partir da


promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural, em 1963, o que possibilitou a sindicalização
rural. Com isso, o Nordeste foi marcado por uma avalanche de criação de sindicatos e de
associações dos trabalhadores rurais, tanto de orientação comunista como católica
progressista. Dessa forma, a organização dos camponeses passava a ser alvo de disputas tanto
da esquerda quanto da direita que, intentava controlar as influências comunistas através da
criação de sindicatos católicos.

O partido disputava com a igreja a fundação e, mais tarde, o reconhecimento


pelo Estado dos sindicatos dos trabalhadores rurais. O empenho, entretanto,
do Partido parece ter se localizado mais na organização de federações e da
Confederação sindical do que nas bases sindicais propriamente. Nisso se
diferenciava a posição da Igreja e a posição do Partido Comunista, aquela
mais envolvida na organização de sindicatos propriamente ditos. 235

Com o Estatuto do Trabalhador Rural estendia-se aos camponeses alguns direitos


previstos na legislação trabalhista e previdenciária dos trabalhadores urbanos, garantidos
desde a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943. No entanto, no
bojo desses direitos não se incluía o direito à posse da terra, o que consistia na principal
reivindicação dos camponeses. Em contrapartida, no governo de João Goulart (1961/64) a
bandeira da reforma agrária ocupou destaque dentre as ―Reformas de Base‖, o que não fora
bem recebido pelos setores conservadores da economia e da política brasileira,
principalmente, por acolher a tão temida reforma agrária.
A proposta das ―Reformas de Base‖ foi um dos motivos de desestabilização do
governo Goulart, aprofundando ainda mais a crise política que precedeu o Golpe Civil-Militar
de 1964 e que culminou com a deposição de Jango. A reforma agrária vinha sendo fortemente
reivindicada, com intensa pressão advinda do meio rural, desde o tempo das Ligas
Camponesas. Então, durante a década de 1960, o campo se tornou um vulcão em erupção de
onde explodiam conflitos de terra. Com a implantação da ditadura civil-militar que vigorou no
Brasil entre os anos 1964 a 1985, a organização dos sindicatos rurais de orientação comunista
passou a ser ilegal, momento em que o PCB passou a atuar na ilegalidade e clandestinidade,
porém, a luta pela terra, mesmo arrefecida com a repressão ditatorial, continuou sendo a
grande motivação para a união dos camponeses e sua associação em sindicatos, desta feita, de
orientação católica, tolerados pelos governos militares.
235
MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 87.
153

A aproximação da Igreja Católica com os pobres, bem como, sua inflexão nos mundos
do trabalho rural e urbano foi decorrente das diretrizes traçadas pelo Concílio Vaticano II
(1962-1965), no qual se reuniu toda cúpula católica a fim de (re)pensar os rumos da
instituição. Nas palavras do papa João XXIII, bispo que iniciou os trabalhos conciliares, o
Vaticano II traria o ―aggiornamento‖ da Igreja, ou seja, sua atualização de acordo com as
demandas de seu tempo. Desse modo, em âmbito internacional, concomitantemente a esse
importante acontecimento para a Igreja Católica mundial, vivia-se em um contexto de Guerra
Fria, com acirrada disputa ideológica entre os ideais do capitalismo e do comunismo. Em
nível nacional, antes mesmo de encerrar o Concílio, no Brasil deflagrara-se um golpe de
estado de cunho civil-militar, implantando-se uma ditadura, diga-se de passagem, com apoio
oficial da Igreja Católica brasileira, através da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil -
CNBB.
Quando os bispos brasileiros retornaram do Concílio para suas dioceses, tiveram que
ponderar as orientações conciliares de acordo com a nova política militar. Muitas dessas
orientações passaram a ser reprimidas com a consolidação do regime ditatorial, tendo em vista
seu caráter progressista, atendendo à ―opção preferencial pelos pobres‖, conforme
compromisso pastoral assumido durante o Concílio. Percebe- se, com isso, que a Igreja
Católica brasileira passou por uma cisão interna, ao passo que se dividia entre uma ala
conservadora, ainda apegada à pompa da Igreja-Rito, em oposição à ala progressista, que se
abria para os pobres, delineando aquilo que viria a ser a Igreja-Povo. Esta última, em
completa sintonia com o Vaticano II. Entre um polo e outro, ainda existiam aqueles religiosos
que se posicionavam de modo moderado, ou seja, nem assumiam completamente o
compromisso com as pastorais populares, como também, não concordavam com os
desdobramentos da ditadura militar.
Portanto, a aproximação com os pobres e trabalhadores do campo e das periferias das
cidades, o esforço de formação de Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, bem como, de
organização dos camponeses e a criação de sindicatos rurais, embora estivesse em
consonância com as diretrizes conciliares, não foram assumidos por todas as dioceses com o
mesmo empenho e compromisso político-social. De fato, isso ficou a cargo dos bispos
progressistas e adeptos da Teologia da Libertação, que se fortaleceu no decorrer das décadas
de 1970/80 com a repercussão das Conferências Episcopais de Medellín (1968) e de Puebla
(1979).
Na realidade do estado do Ceará, a grande maioria dos sindicatos de trabalhadores
rurais, fundados nas décadas de 1960/70, advinha de um esforço da Igreja Católica em
154

assumir a missão de organizar a classe camponesa. Esse esforço, portanto, estava em


completa sintonia com a nova doutrina social da Igreja pós- Vaticano II. No caso das cidades
que compunham a Diocese de Sobral, onde atuava o Movimento do Dia do Senhor, todos os
sindicatos surgiram através do trabalho de base iniciado pelo Centro de Treinamento de
Sobral – CETRESO, sendo posteriormente encampado pelo Movimento de Educação de Base
236
– MEB, tendo em vista o curto período de existência do CETRESO. No caso da Diocese
de Itapipoca, os sindicatos rurais também foram fundados pelo MEB ou por outras entidades
de cunho católico, em esforço conjunto.
Compreende-se que, tanto o Movimento do Dia do Senhor, quanto o MEB e o
CETRESO representaram expressões de renovação da diocese de Sobral com o intuito de se
alinhar aos novos ventos conciliares. Por esse caminho, o Jornal Correio da Semana,
pertencente à diocese de Sobral desde 1918, enquanto Meio de Comunicação Social católico,
também passou por uma adequação com a finalidade de servir à nova Doutrina Social da
Igreja. Para tanto, tal jornal mantinha a Coluna do CETRESO, a Coluna do MEB, entre outras
notícias informando sobre a atuação das coordenações das pastorais populares. De acordo
com o jornal Correio da Semana:

O Centro de Treinamento de Sobral (CETRESO) foi criado e vive em função


de uma causa nobre: a redenção do homem do campo. Integrante de Nosso
Secretariado Diocesano – Setor de Justiça Social - nos esforçamos para levar
a tôda diocese a Doutrina Social da Igreja, os ensinamentos nas encíclicas do
papa e nas Sagradas Escrituras. 237

Desse modo, o Correio da Semana estava em consonância com o Jornal O Nordeste,


pertencente à arquidiocese de Fortaleza, em que a problemática do homem do campo também
passou a constituir matéria de artigos e colunas desse jornal. Sindicalismo, cooperativismo e

236
Órgão administrativo da diocese de Sobral, sob a responsabilidade do padre Luiz Gonzaga de Melo. Tal órgão
tinha um espaço de comunicação no jornal Correio da Semana, denominado ―Coluna do CETRESO‖. Tudo
indica que a ―Coluna do CETRESO‖ sobreviveu durante os anos de 1963 a 1966, período que marca a existência
desse órgão na referida diocese. Vale ressaltar que nos exemplares de 1967, a coluna já havia sido extinta. Sua
extinção está relacionada ao fato de que o padre Luiz Melo fora transferido de Sobral para Camocim, onde
passou a se dedicar ao trabalho com o Serviço de Promoção Humana, outro campo de atuação da Igreja junto aos
pobres. O SPH fora criado em Camocim no ano de 1962. Para maiores informações, cf.: SILVA, Vera Lúcia;
AGUIAR, Ana Selma Silva de. “Um oásis dos menos favorecidos da sorte”: a experiência do Serviço de
Promoção Humana (SPH), Camocim/ CE. 1962-1079. 1. ed. Sobral: Editora Gráfica Universitária Sobralense –
EGHUS, 2014. 160 p.
237
Correio da Semana, Sobral, 18 de setembro de 1965, Ano 48, n.º 13.
155

reforma agrária eram temáticas com espaço garantido pelo menos até os primeiros anos da
ditadura civil-militar. De acordo com O Nordeste:

O homem do campo é um sofredor. ‗Não se pode negar que uma das grandes
causas do êxodo rural é o fato de ser o setor agrícola subdesenvolvido, tanto
no que diz respeito a produtividade da mão-de-obra, pelo que se refere ao
nível de vida‘. (João XXIII, Mater et Magistra)... Faltam-lhe meios de
industrializar seu trabalho. O cultivo do campo está alheio ao processo
técnico. Métodos primitivos para as colheitas. Falta de legislação, que deixa
abandonado aos caprichos dos fazendeiros do asfalto. O homem do campo
espera e deseja a sua promoção. Aguarda emergir do marasma de abandono
e incúria em que se encontra. [...] A reforma Agrária é questão de
sobrevivência. 238

Portanto, o que se veiculava nos jornais Correio da Semana e O Nordeste


correspondia a um novo projeto político-ideológico assumido pela Igreja Católica, inclusive,
orientado pela Santa Sé e presente nas encíclicas dos papas que conduziram o Concílio
Vaticano II, João XXIII e Paulo VI, como resposta à conjuntura de seu tempo.
Nesse sentido, em entrevista, padre Albani Linhares, fundador do Movimento do Dia
do Senhor, conceitua o CETRESO como um sistema ―macroeconômico‖, do qual serviria
como instrumento mediador para a institucionalização dos sindicatos dos trabalhadores rurais,
oferecendo ao Estado um maior controle da ação dos camponeses, evitando, assim, a
influência comunista. A análise de padre Albani recupera o contexto político que se vivia
durante a Guerra Fria, situando o Brasil como um território de disputa ideológica dos Estados
Unidos, que de fato recebeu muito capital norte-americano com a finalidade de combater a
expansão da ideologia comunista, principalmente depois de 1959, com a Revolução Cubana.
239

238
Jornal O Nordeste. Fortaleza, 12 de julho de 1964, p. 03. ―O homem do Campo‖, de Luiz P. de Freitas.
239
Nesse sentido, o financiamento do golpe militar de 1964 pelos EUA e sua constante vigília com relação aos
rumos políticos do Brasil durante esse período foi bem demonstrado no artigo de GREEN, James N; JONES,
Abigail. Reinventando a história: Lincoln Gordon e as suas múltiplas versões de 1964. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 29, n. 57, 2009, p. 67-89. Do mesmo modo, a historiadora Maria do Socorro de Abreu e
Lima, em sua pesquisa sobre o sindicalismo rural em Pernambuco, recupera um encontro entre representantes do
Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Sul para aprofundar o debate sobre o
tema do sindicalismo e traçar metas de atuação sindical para todo o país. Em suas palavras: ―[...] o encontro
encerrou com a elaboração de um manifesto e contou com a presença de pessoas de destaque, como o delegado
regional do trabalho, Enoch Saraiva, pessoa de atuação bastante comprometida com os trabalhadores, e o cônsul
dos Estados Unidos no Recife, sr. Lowell Killday, demostrando a ligação do sindicalismo rural da Igreja com
setores norte-americanos desde o seu início‖. In: ABREU E LIMA. Maria do Socorro de. Construindo o
sindicalismo rural: Lutas, partidos, projetos. Recife – PE: Editora Universitária da UFPE; Editora Oito de
Março, 2005, p. 46.
156

A narrativa de padre Albani localiza as tensões vivenciadas no campo como alvo de


políticas de Estado que buscavam neutralizá-las. Nesse sentido, a criação de sindicatos rurais
católicos espalhados por todo território nacional era visto com um viés neutralizador adotado,
principalmente, para a região Nordeste. De fato, semelhante ao trabalho desenvolvido pelo
CETRESO na diocese de Sobral, desenvolveu-se o Serviço de Orientação Rural de
Pernambuco - SORPE, que atuou na arquidiocese de Olinda e Recife, sob a orientação do
padre Crespo, também com o propósito de organizar os camponeses e fundar sindicatos
rurais.240 No Rio Grande do Norte, a partir de 1958, o Serviço de Assistência Rural (SAR)
também se empenhou nessa tarefa. Sem mencionar diretamente o SORPE, padre Albani faz
referência a sua atuação, situando-o na mesma linha do CETRESO:

[...] o trabalho do CETRESO foi assim... bastante macroeconômico, macro.


Os Estados Unidos perceberam que o Nordeste era uma... um ponto muito
perigoso, inclusive por causa das ligas camponesas do Recife, aí então, a
tática do Rockfeller, do pessoal de lá era... esvaziar... as Ligas Camponesas,
e pra esvaziar as Ligas camponesas soltaram muito dinheiro pra fazer
sindicato dos trabalhadores rurais...que o Virgílio Távora foi quem contratou
o CETRESO... tal...tal... quer dizer, pelas histórias eu sei... que ele foi
financiado, esse movimento no Nordeste todinho... no Piauí, agora só que
quando chegou aqui, o pessoal que assumiu deu mais cor... mais séria... do
que o que os Estados Unidos queriam, quer dizer, não cumpriu, não
cumpriu... totalmente os objetivos da Aliança do Progresso, porque o pessoal
que trabalhou, sabotou. Tanto no recife, o menino do Recife como... Ah, e
aqui era o Luís Melo é que era o encarregado disso aí, e o padre Luís Melo
era socialistíssimo, entendeu? Mas... Agora, os sindicatos todinhos da região
foram fundado... sindicato dos trabalhadores rurais foram fundados a base,
com a ajuda do CETRESO, né. Na Ibiapaba, aqui na região, tudo, tudo, tudo
foi o CETRESO que encaminhou. 241

Para tanto, alinhado com os demais meios de comunicação católicos, o Jornal Correio
da Semana parecia assumir uma verdadeira campanha de sindicalização rural, pois,
semanalmente a Coluna do CETRESO e a Coluna do MEB, veiculavam orientações acerca
dos benefícios do sindicalismo rural, como também, de outras formas de organização
camponesa, quais sejam o associativismo e o cooperativismo. Especificamente, a Coluna do

240
Maria do Socorro Abreu e Lima também enfatiza: ―[...] Já o SORPE, criado também em 1961, tinha por
objetivo a organização dos trabalhadores rurais em torno de cooperativas e sindicatos, buscando diminuir a
influência do PCB e das Ligas no campo e levar os trabalhadores rurais a uma ação que, embora questionasse o
nível de sua exploração, fosse moderada [...]‖. (p. 42-43)
241
Padre Albani Linhares. Entrevista realizada em 20 /09/ 03. Sobral – CE. (Arquivo da autora)
157

CETRESO, extinta no ano de 1967, trazia tais orientações massivamente, como se pode
observar em um dos seus artigos:

Hoje, iremos falar sobre o direito de sindicalizar-se porque,


principalmente depois da Revolução, devido às intervenções sindicais,
muitos são levados, por ignorância a pensar que é proibido sindicalizar-
se.
O direito sindical é negado por grande parte da classe patronal e da classe
burguesa, que aceita o sindicato operário teoricamente, mas que – por seu
comportamento prático - chega a negá-lo.
O próprio operário levado pela ignorância – que muitas vezes gera medo
– se constitui em forte empecilho ao uso desse direito.
Os Estados Totalitários em geral, quando não fazem do sindicato um
instrumento de sua política, proíbem o funcionamento do mesmo ou
limita-lhe a ação.
É dever do Estado, principalmente daqueles que se dizem democráticos
reconhecer e respeitar o direito de associação. 242

Como se evidencia, o CETRESO trazia para seu foco de atuação, não só a


preocupação com o trabalhador rural, mas também os problemas enfrentados pelo trabalhador
urbano. A oposição dos interesses entre burguesia / classe operária era colocada como um
fator significativo para o acanhamento dos trabalhadores quanto ao processo de
sindicalização. Assim, por medo, devido a todo o discurso pejorativo construído em cima da
ideia de sindicalismo associando-o, a uma leitura mal interpretada de comunismo, os
operários, muitas vezes, deixavam de se sindicalizar. Desse modo, a discussão sobre o direito
de se sindicalizar alcança a experiência dos Estados Totalitários que proibiam a
sindicalização. Opondo-se a esse modelo, o CETRESO pregava um sindicalismo livre do
atrelamento estatal, o que deveria ser característico dos estados democráticos.
Não passa despercebido, a menção feita ao que se chamou de Revolução e de suas
interferências nos sindicatos, sendo interpretadas como mais um motivo para a classe
trabalhadora temer ao sindicalismo. Implicitamente, o artigo, que data de 24 de abril de 1965,
ou seja, apenas um ano após do Golpe, lança luz sobre a repressão ditatorial que já estava
alcançando o campo e a cidade.
Por esse caminho, em 05 de junho de 1965, encontra-se nessa coluna um artigo sobre
reforma agrária. Observa-se, através desse artigo, um esforço de conscientização sobre a
importância da reforma agrária para os interesses da classe camponesa. Nesse sentido, a
orientação proposta pelo CETRESO era sempre a partir de uma luta consciente e conjunta à

242
Correio da Semana, Sobral, 24 de abril de 1965, Ano 48, n.º 02, p. 03. (Grifos meus).
158

ação dos camponeses organizados e sindicalizados. Dessa forma, o CETRESO cobrava


urgência na atuação do Estado:

[...] cada um de nós temos o dever de trabalhar para que o governo apresse a
reforma agrária. Para isto é necessário que os trabalhadores rurais se unam,
findando sindicatos, cooperativas, etc... Assim organizados, poderá exigir-se
do governo o que temos direito.
Unimo-nos e venceremos! 243

O cooperativismo também fora bastante estimulado como forma de organização dos


trabalhadores. Em 14 de agosto de 1965, encontra-se um artigo que trazia claramente, sob a
perspectiva cooperativista, a proposta de conscientização político-social, defendida pelo
CETRESO.

[...] a cooperativa como acabamos de ver, deseja manter os trabalhadores


unidos para faze-los mais fortes na luta contra a pobreza e a miséria.
Também o homem do campo só poderá melhorar de vida pelo seu próprio
esfôrço num só sentimento de união, através de fôrças extraordinárias como
a cooperativa. Não poderá o camponês esperar por promessas baratas de
políticos manhosos e interesseiros. O lavrador não deve poupar esforços, não
deve enxergar barreiras nem sacrifícios, avançando sempre, pois não há
obstáculos nem dificuldades que a fôrça de vontade não consiga remover. 244

Tal artigo colocava em pauta antigas práticas políticas, remanescentes de uma cultura
oligárquica, enraizadas no meio rural nordestino. Desse modo, percebe-se no artigo, um alerta
às políticas assistencialistas sustentadas pela classe política com o intuito de fazer crer a
reforma agrária ou sindicalismo, um interesse comum, a agricultores e latifundiários. A ênfase
recaía sobre a conscientização dos camponeses e de sua união, pois a luta contra a situação de
opressão em que vivam era de interesse da classe camponesa, e não dos políticos. Além do
CETRESO, o MEB também estimulava o camponês a se organizar em cooperativas, o que
resultou em algumas experiências nas dioceses de Sobral e de Itapipoca, como cooperativas
de farmácias comunitárias e de roçados comunitários.
É significativo ressaltar que, na experiência protagonizada pelos participantes do Dia
do Senhor, muitos dos camponeses e das camponesas desse Movimento também participavam
do MEB e do CETRESO, mesmo durante o curto período de atuação deste último. Desse

243
Correio da Semana, Sobral, 05 de junho de 1965, Ano 48, n.º 08 p. 05.
244
Correio da Semana, Sobral, 14 de agosto de 1965, Ano 48, n.º 18 p.05.
159

modo, esses sujeitos circulavam entre os diversos programas formativos que atuavam em sua
região, apreendendo e (re)significando as orientações que recebiam sobre sindicalismo,
associativismo, cooperativismo, reforma agrária, entre outros. Conforme salientou padre
Albani Linhares, em sua narrativa, esses programas ou Movimentos, no seu fazer-se,
receberam um teor mais crítico, comprometido com a justiça social e com a defesa dos
direitos dos trabalhadores, destoando dos objetivos de seu projeto original, como foi o caso do
CETRESO. Ressalte-se, nesse sentido, o fato do padre Luís Malo ser ―socialistíssimo‖,
segundo padre Albani.
Portanto, as regiões de atuação do Movimento do Dia do Senhor estavam em sintonia
com as demais regiões do Nordeste, e do restante do Brasil, no que correspondia à
efervescência camponesa e à explosão de conflitos de terra, mesmo durante o período
ditatorial. Nesses conflitos, as lideranças e os quadros formativos dos sindicatos, bem como
dos Movimentos de base da Igreja Católica estiveram protagonizando uma luta coletiva em
prol dos direitos dos camponeses. Nas memórias de muitos homens e mulheres participantes
do Dia do Senhor, afloram as lembranças dos confrontos contra o latifúndio e a saudade dos
companheiros que perderam suas vidas na luta pela terra.
Na Diocese de Itapipoca, são lembrados os conflitos de terras que envolveram as
comunidades rurais dos municípios de Itapipoca, Itarema e Trairi. Tais conflitos iniciaram no
correr da década de 1970 e se estenderam até meados dos anos 1990, resultando na posse da
terra pelos camponeses. Para tanto, a posse da terra decorreu do processo de desapropriação
para fins de reforma agrária, acompanhado da formação de Assentamentos rurais, como o
Assentamento de Maceió, em Itapipoca; o de Lagoa do Mineiro, em Itarema e o de Várzea do
Mundaú, em Trairi.
Os três Assentamentos foram consequência de muitos embates entre os camponeses
que moravam originariamente nas terras e àqueles que se diziam proprietários das mesmas.
Depois de muita violência física e simbólica, os conflitos foram resolvidos com o intermédio
do Instituto Nacional de Colonização de Reforma Agrária – INCRA, garantindo as terras aos
antigos moradores.
Em todos esses conflitos, os camponeses e as camponesas do Movimento do Dia do
Senhor estiveram envolvidos, ora como protagonistas lutando pela posse da terra em que
moravam e dela sobreviviam, ora como coadjuvantes, na medida em que ajudavam na luta
pela terra de outros companheiros, pois mesmo quando não moravam na terra em querela se
solidarizavam com os companheiros e assumiam a luta como se fosse sua. Como esses
conflitos ocorreram concomitantemente por um longo período, intercalados por momentos de
160

maior ou menor tensão, os camponeses do Movimento não tinham trégua, quando não
estavam ajudando na luta de uma comunidade, ajudavam em outras.
Assim, assumiam um compromisso de classe e demonstravam a força dos camponeses
contra o latifúndio. Essa força da classe camponesa é enunciada enfaticamente nas narrativas
de homens e mulheres que estiveram envolvidos nesses conflitos. A coragem, as estratégias
camponesas e o sentimento de justiça são ressaltados como características presentes tanto nos
homens quanto nas mulheres que estiveram envolvidas nessas lutas.

3.2. “... A desapropriação desta terra foi graças às mulheres”: conquista do


território e formação do Assentamento Maceió

O Assentamento Maceió está situado na região litorânea do município de Itapipoca,


sendo composto por doze comunidades distribuídas ao longo de uma área de 5.656,8304
hectares. Com a criação e estruturação do Assentamento foram assentadas 338 famílias que
sobreviviam da agricultura, da pesca, da criação de animais e da extração dos recursos
245
naturais como a grande quantidade de cocos disponíveis na região. Em 1985, a partir da
intervenção do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, as terras
foram desapropriadas após intenso conflito entre os moradores das comunidades e os
proprietários.
Embora, a desapropriação tenha ocorrido em 1985 e a memória de grande parte dos
moradores registrem esse ano como o marco de formação do Assentamento, nos registros
oficiais publicados no site do INCRA, a data de criação do Assentamento se remete ao ano de
1987, considerando-se que a imissão de posse das terras somente foi assegurada aos
moradores em 04 de setembro de 1987. Em entrevista, Antônio Alves do Nascimento, mais
conhecido por Antônio Biica, antigo morador do Assentamento, com 62 anos de idade e
oriundo da comunidade de Humaitá explica o motivo desse desencontro de datas, o que
elucida muito bem o percurso da luta pela terra, entre o real e o oficial. Para tanto, a
desconfiança e o receio de perda do território conquistado permearam o motivo desse
intervalo, como conta seu Biica:

A luta começou no oitenta e dois e fomos até no oitenta e cinco. No oitenta e


cinco veio o comunicado que o INCRA tinha adquirido essas faixas de

245
Cf.:http://www.incra.gov.br/sites/default/files/uploads/reforma-agraria/questao-agraria/reforma
agraria/projetos_criados-geral.pdf. Acesso em: 04 nov. 2019.
161

terras... então, ele tinha adquirido e, então aí, o INCRA diz: ―Vocês tem que
fazer um cadrasto‖. Isso no oitenta e cinco. E nós resistimos sem aceitar esse
cadrasto... Só viemos aceitar esse cadrasto no dia quatro do nove de mil
novecentos e oitenta e sete. Passamos dois anos sem querer aceitar o
cadrasto porque nós entendia, até naquele momento, que esse cadrasto
poderia é... levar a ser uma maneira ainda de tirar a gente da terra. Mas, tinha
dois técnicos do IDACE, no caso, o doutor Humberto e, no caso, Wilson
Brandão, que tentou conversar com a gente e esclarecer que pra nós,
realmente, garantir que aquela terra futuramente fosse nossa, nós tinha que
fazer um cadrasto pra obter alguns benefícios, alguns recursos. E aí nós
fizemos esse cadrasto. Aí, o Assentamento veio valer a partir de oitenta e
sete... Ele foi feito a imissão de posse no dia quatro do nove de mil
novecentos e oitenta e sete. 246

Tal Assentamento foi o primeiro de Itapipoca, sendo um dos pioneiros no estado do


Ceará. Inicialmente, foi composto por dez comunidades, sendo elas: Apiques, Bom Jesus,
Mateus, Córrego da Estrada, Barra do Córrego, Sítio Coqueiro, Jacaré, Humaitá, Córrego
Novo e Maceió. Posteriormente, as fazendas Bode e Lagoa Grande, que também passavam
por conflitos de terras, foram consideradas improdutivas pelo INCRA, passaram por processo
de desapropriação e foram incorporadas ao Assentamento, no ano de 1988, completando,
assim, as doze comunidades de sua configuração atual.
Segundo uma Portaria de Incorporação de Área INCRA, a fazenda Bode, também
conhecida como Tapera ou Três Irmãos, com área de 1.554, 6952 ha, localizada no município
de Itapipoca, recebeu sua imissão de posse em 17/06/1988. Essa mesma Portaria incorpora a
fazenda Córrego Novo, também, conhecida por Sítio São José, com área de 187,8816 ha,
localizada no município de Itapipoca, que recebeu sua imissão de posse em 08/ 04/ 1988.247
Segundo Antônio Biica, a faixa de terra referente ao Sítio São José foi comprada pelo INCRA
do proprietário Antônio dos Santos Teixeira, sem passar por processo de luta, pelo fato de
estar localizada dentro do território do Assentamento e ser considerada área improdutiva. Nas
palavras do entrevistado: ―O Bode foi desapropriado. Mas, foi uma luta. Agora, a faixa do
Antônio dos Santos Teixeira, ela só foi desapropriada porque ela tava improdutiva. Então, não
tinha, assim, uma luta pra defender ela‖.248

246
Entrevista realizada com Antônio Alves do Nascimento, conhecido por Antônio Biica, em Itapipoca, no dia
12 de novembro de 2019. Arquivo da autora.
247
A referida Portaria encontra-se anexada ao processo INCRA/SR (02)/N. 1457/87, referente ao ―Laudo de
Vistoria e Avaliação do Imóvel Tapera ou Três Irmãos‖. A Portaria é datada de 1998, no entanto, não traz a
informação do dia e do mês de sua publicação. Arquivo Superintendência Regional do INCRA/SR 02. Fortaleza
– CE.
248
Entrevista realizada com Antônio Alves do Nascimento, conhecido por Antônio Biica, em Itapipoca, no dia
12 de novembro de 2019. Entrevista citada.
162

A história que fundamenta a posse de toda essa extensão de terra aos camponeses
remonta aos tempos de seus avós e bisavós que já eram moradores do lugar. A narrativa
fundadora que predomina na memória social249 desse grupo defende que metade dessas terras
pertencia à senhora Maria Bonfim e a outra metade, ao senhor Pedro de Sousa. Contam que
com o passar dos tempos, tanto o esposo de Maria Bonfim como a esposa de Pedro de Sousa
faleceram, o que propiciou o casamento entre os dois viúvos. Ambos juntaram suas terras
tornando-se os únicos donos, legitimados pela existência de um documento de posse da terra
que, após a morte de Pedro de Sousa, ficou sob o poder de Maria Bonfim. No entanto, essa
narrativa fundadora veio sendo reproduzida e reelaborada pelos moradores ao longo dos
tempos.250
Cada narrador apresenta um modo peculiar de contar essa história, imprimindo
sentidos e interpretações de acordo com sua subjetividade e criatividade, contudo, embora
haja alguma variante nos modos de contar, os elementos principais do enredo permanecem e
legitimam a posse da terra aos camponeses, sendo aqui considerados como elementos
principais as personagens Maria Bonfim e Pedro de Sousa como verdadeiros donos da terra. A
variação narrativa se evidencia com relação ao marinheiro português que se apodera do
documento de Maria Bonfim, pois em outra versão dessa narrativa fundadora aparecem dois
marinheiros em vez de um, cujos nomes seriam Zé Maria e Major Carneiro. Nesse sentido,
apresenta-se a versão contada por Maria Nazaré de Sousa, conhecida como Nazaré Flor,
bisneta de Maria Bonfim e moradora da comunidade Apiques:

249
Com relação ao conceito de memória social, partilha-se da mesma concepção de Alessandro Portelli,
apresentada na citação a seguir: ―[...] Se considerarmos a memória um processo, e não um depósito de dados
poderemos constatar que à semelhança da linguagem, a memória é social, tornando-se concreta apenas quando
mentalizada ou verbalizada pelas pessoas. A memória é um processo individual, que ocorre em um meio social
dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados. Em vista disso as recordações
podem ser semelhantes ou contraditórias ou sobrepostas. Porém em hipótese alguma, as semelhanças de duas
pessoas são – assim como impressões digitais, ou, a bem na verdade, como as vozes exatamente iguais. ‖
POTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na história oral.
Projeto História. São Paulo. (15) abril, 1997, p. 16.
250
De acordo com o texto ―Costume, lei e direito comum‖, do historiador E. P. Thompson pode-se inferir que a
relação dos camponeses com as terras comunais, remonta, ainda, à Europa Moderna, onde se observava uma
relação marcada pelo costume e alicerçada na tradição oral. Guardadas as devidas distâncias de tempo e de
espaço, assemelha-se ao que se observa na argumentação dos camponeses do Assentamento Maceió. Dessa
forma, ―[...] A terra a que o costume estava vinculado poderia ser uma herdade, uma paróquia, o trecho de um
rio, bancos de ostras num estuário, um parque, pastos nas encostas de montanhas, ou uma unidade administrativa
maior como uma floresta. Em casos extremos, o costume era nitidamente definido, tinha força de lei, e (como
nos cercamentos) era uma propriedade: é o tema do registro dos tribunais, dos tribunais senhoriais, das
compilações dos costumes, dos levantamentos e dos regulamentos da vila. Em condições comuns, o costume era
menos exato: dependia da renovação contínua das tradições orais como na inspeção anual ou regular para
determinar os limites da paróquia‖. THOMSON, E. P. Costumes em Comum. Estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 86-87.
163

No início, no tempo de nossos antepassados, de nossos bisavôs e tataravôs


que nasceram aqui, a história que os mais velhos contam é que esta terra
pertencia a Maria Bonfim, nossa bisavó.
E os mais velhos diziam que Maria Bonfim tinha todos os registros destas
terras, inclusive parte de Maceió e tinha o velho Pedro de Sousa que também
era dono de parte desta terra. Então, morreu a mulher dele, do Pedro, e
morreu o marido da Maria Bonfim. Aí os dois viúvos se casaram. E
chegaram a fazer um papel só da terra. Uma terra muito grande que vinha lá
do lado da Baleia até aqui extremando com Caetanos. Aí Pedro morreu e as
terras pertenciam a Maria Bonfim, viúva pela segunda vez. Tudo isso por aí
de 1864-69.
Nesta época, os invasores, portugueses e franceses, apareceram tomando as
terras. Aí apareceu um cara, um europeu, um tal de Marinheiro, (nome de Zé
Maria ou Major Careiro), e esse cara dizia que comprou um pedaço de terra
do lado dos Pracianos, a Tapera, um outro terreno que extrema com esta
nossa. Aí, os mais velhos contam que este Marinheiro veio na casa da minha
bisavó e disse:
―Dona Maria, eu vim aqui porque eu comprei um pedaço de terra e quero
saber se esta terra confina com a sua‖. Claro, já era cobiçada nossa terra
pelas praias – a beleza das praias. Aí, o povo à toa, né!
O cara disse: ―A senhora me dê seu papel... pra eu vê se a minha terra
confina com a sua‖. (Era um truque que ele inventou pra enrolar minha
bisavó). E ela entregou o papel! E ele levou o papel e não entregou mais.
Adeus! Nunca mais! Dizem que dona Maria Bonfim morreu por conta disto,
preocupada e com desgosto. (...) Aí, os homens, a família do Marinheiro,
foram se apoderando, foram criando força. E o povo foi criando medo e estes
grileiros agiram pra assombrar na base do ―mata-mesmo‖. E cativaram o
povo pra trabalhar pra eles.
Aí, este velho Marinheiro foi criando família por aqui. Dizem que ele se
juntou com uma mulher que era bisavó dos Pracianos e dos Soares que eram
os patrões daqui que mandavam depois desta tomada. Esta família Soares
passou a ter domínio das terras dizendo que eram os herdeiros. Não tinha
nada a ver! Os herdeiros era nós! 251

Nazaré situa sua narrativa no período de 1864-69 e insere os elementos de uma


história local no bojo dos acontecimentos históricos que marcaram a História do Brasil, pois
associa que com a chegada dos europeus, as terras do litoral brasileiro passaram a ser
cobiçadas por sua beleza e riquezas naturais, portanto, passando por processo semelhante, as
terras do litoral de Itapipoca também foram cobiçadas e roubadas de Maria Bomfim por um

251
MACCABE, Maria Alice (Org.) “A nossa luta foi uma luta sagrada”. O povo do Assentamento Maceió
conta a história de sua luta pela terra. Fortaleza: Instituto Terramar, 2015, p. 17-18. Trata-se de um livro
composto por trechos de 62 entrevistas realizadas por Maria Alice e outras religiosas da Congregação das Irmãs
de Notre Dame em que tratam a história de luta pela terra contada pelos próprios moradores do Assentamento. A
maioria das entrevistas foi realizada pela própria Maria Alice durante o ano de 2014. É importante que se diga
que a religiosa acompanhou e apoiou visceralmente todo o processo de luta e conquista dessas terras e que,
embora, o livro seja composto por entrevistas realizadas por ela, bem como, tenha passado pelo seu crivo na
seleção dos entrevistados(as) e temas abordados, constitui um rico material de pesquisa sobre a história do
Assentamento Maceió, com entrevistas autênticas e inéditas, inclusive de personagens já falecidos, o que se
utiliza como importante fonte para esse capítulo.
164

ardiloso marinheiro português que alegava ter comprado as terras vizinhas, passando a habitar
aquele litoral.
Tal narrativa agregava um somatório dos conhecimentos de Nazaré Flor adquiridos
quando de sua formação político-cultual nos diversos movimentos sociais em que atuava,
desde o Movimento do Dia do Senhor, a partir dos anos 1970, passando pelas suas
experiências no Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, Associações Comunitárias, Movimento
de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste, até seu ingresso no Movimento dos
Trabalhadores Rurais sem Terra – MST, já nos anos dois mil, período em que a luta pela terra
do Assentamento Maceió ganha novas configurações.252 Portanto, com Nazaré, a narrativa
fundadora vai perdendo seu caráter pitoresco, lendário, ao passo que ganha uma explicação
baseada em elementos situados historicamente no tempo e no espaço, associando-se a uma
clara compreensão do modus operandi com que se desenvolveu o processo de concentração
de terras no Brasil. Os termos ―invasores‖, ―grileiros‖, ―povo cativo‖ utilizados por Nazaré
reforçam seu discurso nessa linha de consciência.
Na própria narrativa de Nazaré Flor, implicitamente, emerge uma outra versão dessa
história: àquela contada pelos patrões. Percebe-se, portanto, uma tensão entre a narrativa dos
camponeses e a do patronato. Esses patrões, oriundos das famílias Praciano e Soares, diziam
que o tal marinheiro tinha casado com sua bisavó, deixando para os herdeiros o direito sobre
as terras. Nota-se que o elemento da ancestralidade está presente nos dois lados da história,
tanto para legitimar a posse das terras para camponeses, quanto para legitimar a posse das
terras para àquelas famílias que se tornaram as mais poderosas da região. Em ambas as
narrativas a ancestralidade é invocada para legitimar os verdadeiros donos das terras no
decorrer do tempo.
A posse da terra para esses camponeses, portanto, passou a se basear no costume e no
usufruto desse território pelos seus antepassados, o que foi sendo reproduzido de geração em
geração, bem como, no fundamento memorialístico do documento que fora roubado. 253 Por
óbvio, na concepção dos moradores, o fato de terem sido roubados não anulava o direito de
serem de fato donos das terras, tanto é que na narrativa de Nazaré Flor, a mesma não
reconhece a família que se dizia herdeira do marinheiro como legítima, conforme salientou:
252
A inserção do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – MST no Assentamento Maceió data do
início dos anos dois mil, tornando-se de fundamental importância para o reforço da luta dos camponeses mesmo
depois de assentados, pois nesse período tiveram que enfrentar uma nova luta pela terra contra um português que
havia comprado uma faixa de terra que não havia sido desapropriada pelo INCRA, conforme será explicado mais
a frente.
253
Nesse sentido, recorre-se a E. P. Thompson, ainda em seu texto ―Costume, lei e direito comum‖ onde afirma
que: ―[...] Na interface da lei com a prática agrária, encontramos o costume. O próprio costume é a interface, pois
podemos considerá-lo como práxis e igualmente como lei. A sua fonte é a práxis. [...]‖. (p. 86)
165

―Esta família Soares passou a ter domínio das terras dizendo que eram os herdeiros. Não tinha
nada a ver! Os herdeiros era nós!‖. 254
Desse modo, os camponeses moradores dessas doze comunidades viviam numa
condição de miséria e exploração que perpassava toda sua existência, pois muitos deles
nasceram, cresceram e criaram seus filhos no sistema de opressão sustentado pelas famílias
que se diziam proprietárias das terras. Na narrativa citada aparecem os Pracianos e os Soares,
principais mandatários daquela região, que detinham o poder econômico e político, portanto,
dominavam e exploravam a mão de obra, bem como, o voto dos camponeses, sob pena de
expulsão das terras. Esses fatos se evidenciam nos relatos de alguns moradores, como o de
Pedro Conceição de Sousa, Pedroca, que conta:

Eu vivi a escravidão aqui. Eles, os patrões, os Soares, eles chamavam a gente


pra rapar a estrada de enxada, para a estrada ficar dura, pra eles poder passar
no jipe pra cobrar a renda de nós. Rapamos a estrada de Jacaré até Bode...
De enxada! Um de um lado e outro de outro. Pagaram? Foi lá pago... e tinha
que ir ou sair da terra! Trabalho forçado! Era uma escravidão grande. De
muita gente! 255

Por esse caminho, situa-se o relato de Raimunda Rocha do Nascimento, conhecida por
Doca Bastiana, que enfatiza a pressão política que sofriam para votar nos candidatos dos
patrões:

Também, aqui em Humaitá, o compadre Antônio, e o compadre Raimundo


França não votaram no candidato dos Pracianos. Aí, mandaram eles embora,
derrubaram as casas dizendo que podia levar a telha, mas a madeira deixa!
Aí, foram embora para Campo Grande. Sim, este pessoal dos Pracianos e
Soares eram perigosos. Pois é, houve muito sofrimento aqui, mas graças a
Deus estamos aqui cotando a história. 256

A opressão dos patrões atingia inclusive os meios de sobrevivência das famílias


camponesas, pois controlavam também todos os produtos naturais que estivessem disponíveis
em suas terras. Os trabalhadores eram proibidos de plantar e de colher os frutos dos coqueiros,
cajueiros e demais recursos naturais, conforme se observa na narrativa de Minervino:

254
MACCABE, 2015, p. 17-18.
255
Ibid., p. 31.
256
Ibid., p. 38.
166

Pedi uma morada a Ubirajara (Praciano) e ele disse que dava morada mas eu
não podia plantar nem cajueiro nem coqueiro. Quando foi um certo dia,
chegou um compadre meu com um coco nascido e ele me deu e eu plantei o
coco. Quando foi depois de uns três anos este coqueiro começou a dar coco.
Aí, quando foi um dia, Ubirajara chegou na minha casa e viu o coqueiro e
diz: ―Rapaz, eu te dei morada mas não era pra plantar coqueiro. Este
coqueiro você vai me vender!‖
Aí eu disse: ―Rapaz, como é que morando aqui eu não posso plantar um
coqueiro na minha porta pra temperar a panela ou para meus filhos poder
beber uma água de coco?‖ (...) Aí, ele foi embora e não veio mais! Ele me
respeitou! 257

No entanto, mesmo com toda opressão e exploração dos patrões, os camponeses ainda
se mantinham em seus pequenos pedaços de terra, convivendo cotidianamente com as
injustiças dos Pracianos e Soares. O ponto alto do conflito pela posse desse território se deu
com a concreta ameaça de expulsão dos moradores de suas comunidades, quando as terras
foram vendidas para a Ducoco, uma empresa produtora de derivados do coco. Segundo os
próprios moradores, o dono dessas terras passou a ser Tasso Jereissati que, na época, era um
258
jovem empresário, sendo um dos primeiros a investir no agronegócio do coco no Ceará.
Esse fato é narrado por Nazaré Flor:

Em 1980, estes patrões se juntaram e combinaram a venda da terra todinha


para um cara que se chama Carrá. E Este Carrá passou a terra para o grupo
de Tasso Jereissati, que queria todas essas terras para plantação de coqueiros.
Aí, a firma chegou e logo proibiu a broca. Mas a gente se reuniu e resolveu:
―se nós ficamos parados, eles não vão nos dar de comer e nós vamos morrer
de fome. Então, vamos trabalhar juntos.‖ Aí, se organizou muita gente.
Nossa estratégia foi muita gente trabalhar juntas.
Aí, vieram perguntar: ―de quem é esta broca?‖ Respondemos: ―é nossa!‖.
Era muita gente sempre trabalhando juntas e sempre respondendo: ―é
nossa‖! 259

257
Ibid., p. 27.
258
Tasso se tornou um eminente político, sendo governador do estado do Ceará por três mandatos, de 1987 a
1990, de 1995 a 1998 e de 1999 a 2002. Popularmente conhecido como ―o galeguinho dos olhos azuis‖, sua
gestão trazia como inovação a política dos empresários em oposição à política dos coronéis, em referência ao
período ditatorial, em que se revezaram no governo do estado os coronéis Virgílio Távora, Adauto Bezerra e
César Cals. Em outras palavras, significava uma nova política em oposição à política velha. Tasso Jereissati
inaugurava, então, o que ficou conhecido na historiografia cearense como o ―governo das mudanças‖. Esse
governo abria as portas para o empreendedorismo, aliando os interesses políticos aos interesses do capital, assim
representado nos diversos incentivos fiscais garantidos pelo governo com o intuito de atrair filiais de empresas
de médio e grande porte, assim como de multinacionais, para o Ceará. Nesse bojo, o agronegócio e a
especulação imobiliária ganharam respaldo, estando no cerne de alguns dos conflitos que atingiram o campo a
partir desse momento. Para uma leitura mais aprofundada sobre o assunto: GONDIM, Linda. Os governos das
mudanças. In: SOUSA, Simone de. Uma nova história do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000.
259
MACCABE, p. 91.
167

Segundo Antônio Alves do Nascimento, conhecido por Antônio Biica, esse senhor
chamado Carrá era o ―testa de ferro‖ de Tasso Jereissati, o verdadeiro dono das empresas
exploradoras dos cocos da região que, antes de assumir a marca Ducoco, denominava-se
260
Frutop – Produtora de Alimentos AS. Muito embora a memória de Nazaré Flor aponte o
ano de 1980 como o marco de venda das terras para Tasso, supõe-se que essa venda tenha
acontecido ainda na década de 1970, pois a Ducoco se instalou oficialmente no litoral de
Itapipoca em 1979, embora só tenha assumido essa marca a partir de 1982. O fato é que a
Ducoco expandiu sua produção agroindustrial avançando, também, sobre terras litorâneas de
Itarema, Acaraú e Camocim, tornando-se a segunda maior empresa do Brasil nesse ramo.
Sua expansão se deu sob forte resistência das populações de origem camponesa e
indígena que originariamente moravam nesses litorais, principalmente, nos casos que deram
origem ao Assentamento Maceió, em Itapipoca e ao Assentamento Lagoa do Mineiro, em
Itarema, que inclui também terras de Almofala, território indígena de etnia Tremembé. De
acordo com Leandro Vieira Cavalcante, em sua pesquisa sobre a relação do agronegócio e a
Ducoco no território de Itarema, é possível entender a trajetória dessa empresa no estado do
Ceará. Segundo o autor:

Segundo informações obtidas no decorrer do nosso processo de investigação,


desde 1979 essa empresa vinha investindo na produção agrícola de coco,
cujos frutos eram revendidos para outras empresas de alimentos.
Posteriormente, em 1982, é lançada a marca ―Ducoco‖ e se passou a investir
também no ramo industrial, com a inauguração de sua primeira indústria, no
município de Itapipoca. Trata-se de um empreendimento familiar, ligado à
família Pinheiro, fundadora e administradora da empresa, que também
possui negócios no setor financeiro e detém o controle de inúmeros bancos,
como o Banco Pine, o Banco Brickell e o FPB Bank. Desde sua fundação, a
Ducoco vem passando por inúmeras reestruturações, mediante investimentos
na aquisição de empresas concorrentes (como a Cocesa e a Menina, de posse
dos ex-governadores cearenses Adauto Bezerra e Tasso Jereissati,
respectivamente) e na construção de novas unidades industriais,
incorporação de fazendas, desenvolvimento de novos produtos, inserção em
mercados distribuídos por todo o país e também no exterior, consolidando
seu projeto de territorialização do capital também na atividade produtiva do
coco. 261

260
Antônio Alves do Nascimento, conhecido por Antônio Biica. Entrevista realizada em Itapipoca, no dia 12 de
novembro de 2019. Entrevista citada.
261
CAVALCANTE, Leandro Vieira. Agronegócio do coco e disputas por terra: a Ducoco em território
Tremembé (Itarema/CE). In: Anais do VIII Simpósio Internacional de Geografia Agrária – SINGA 2017, p.
23.
168

Segundo as informações de Cavalcante, outra empresa também pertencia a Tasso


Jereissati, a marca Menina. Nas entrevistas realizadas para essa pesquisa, tal marca não fora
mencionada, de modo que não ficou muito esclarecido o imbróglio com relação as empresas
de Tasso Jereissati e a Ducoco, muito embora, na entrevista com Antônio Biica, o mesmo
afirme que no ato da primeira desapropriação das terras que deram origem ao Assentamento
Maceió a indenização paga pelo INCRA tenha sido ao então proprietário Tasso Jereissati.
Segundo o diálogo com o entrevistado:

[...] O Carrá era como se fosse o testa de ferro dele... do Tasso. Ele era uma
pessoa que fazia as negociações. Ele era a pessoa que o Tasso dava a
confiança pra ele fazer a negociações... O Tasso era o dono da Ducoco...
- Você falou que no início da luta, que a Ducoco tinha outro nome? ―Era
Frutop‖.
- Aí quando o Incra comprou essas terras, que foi desapropriado, a
indenização foi pro Tasso? ―foi pro Tasso‖
- Aparece o nome do Tasso no documento? ―Aparece o nome dele no
documento, realmente‖. 262

No entanto, mesmo com a venda das terras para a empresa Ducoco, os camponeses
resistiram. Suas estratégias de resistência se apoiavam na força do coletivo, pois
compreendiam que a ação individual seria facilmente desmobilizada pela força do
empresariado. Portanto, com o intuito de confundir e, assim, driblar a perseguição dos
empregados da empresa, os moradores das comunidades se uniram e passaram a trabalhar em
sistema de adjutório, plantando, colhendo e protegendo os cocos em mutirão. Essa
―estratégia‖, salientada por Nazaré Flor, cujo termo fora explicitado pela mesma, impedia que
os roçados das famílias camponesas fossem destruídos para satisfazer os interesses do
agronegócio.
Tal estratégia foi ainda mais detalhada por Nazaré Flor quando fora convidada para
participar de um debate realizado pela rádio Uirapuru263, de concessão da diocese de
Itapipoca. Na ocasião, Nazaré e Benedito Gonçalves da Guia, conhecido por Benedito Rita,
enfrentaram o ―doutor‖ Juraci Teixeira, dono da fazenda Carrapato e presidente da ―União
dos Proprietários da Terra de Itapipoca‖, uma espécie de Associação dos proprietários locais.
O debate foi iniciativa do então bispo diocesano Dom Benedito Albuquerque, cujo intuito era

262
Antônio Alves do Nascimento, conhecido por Antônio Biica. Entrevista realizada em Itapipoca, no dia 12 de
novembro de 2019. Entrevista citada.
263
A rádio Uirapuru foi inaugurada em 09 de maio de 1980 com a proposta de ser uma emissora da família
católica da diocese de Itapipoca. Uma rádio de transmissão AM que continua no ar até os dias atuais.
Informações retiradas do site: http://www.radiouirapurudeitapipoca.com.br. Acesso em: 01 nov. 2019.
169

enfocar o tema da reforma agrária, tendo em vista os vários conflitos de terra ocorridos nos
limites de sua Diocese e, muito provavelmente, porque naquele mesmo ano havia sido
realizada a primeira desapropriação de terras para fins de reforma agrária do município. O
debate aconteceu em novembro de 1985, em março do mesmo ano aconteceu a
desapropriação do Assentamento Maceió. Nesse sentido, Nazaré Flor que tinha protagonizado
toda a luta pela terra situava o início do conflito:

E na realidade, sem que ninguém soubesse, quando se deu fé, a terra estava
vendida. Começou a aparecer caras diferentes que nós não conhecia,
proibindo nós de trabalhar. (...) Aí, essa empresa começou a aparecer por lá
proibindo nós de trabalhar. Alguns pararam. Então quando disse: ―vocês não
tem que trabalhar‖; a ordem era a seguinte: quem já brocou não queima,
quem já queimou não cerca, quem já cercou não planta. ... O povo, coitados,
acostumados com as pressões recuaram um pouco e então pararam para
sentar nas próprias Comunidades, convidando seus colegas de trabalho se
perguntando: ―o que vamos fazer?... Parar de trabalhar? ... e o certo é que
com oito dias de estudo... apesar de ser pessoas despreparadas, como ressalta
o doutor aí... a gente pensou que devia, havia a necessidade de se trabalhar,
né? (...) Então, vamos trabalhar de mutirão. Os homens juntaram de mutirão
e fizeram o roçado. Quando aqueles caras que era procurador ou gerente da
empresa chegavam lá e perguntava: ―De quem é este roçado? – É nosso‖.
Chegava outro, estava outro grupo: ―De quem é este roçado? – É nosso‖. 264

Importante salientar que Dom Benedito representava uma postura conservadora com
relação às pastorais populares, o que se distanciava da postura adotada pelo bispo anterior,
Dom Paulo Pontes. Na realidade, muitos dos latifundiários da região se direcionavam ao
bispo com o objetivo de conseguir o apoio da Igreja para a desarticulação da luta camponesa,
possivelmente porque compreendiam Dom Benedito como um aliado dos ricos, que restringia
a atuação dos Movimentos de base católicos. No tempo de dom Paulo, visto como um aliado
dos pobres, esses Movimentos foram amplamente estimulados, como foi o caso do
Movimento do Dia do Senhor. Muito da organização da classe camponesa e da luta pela terra
em Itapipoca foram forjadas nesse processo em que evangelho e conscientização política
andavam lado a lado.265

264
Transcrição da entrevista de Nazaré Flor concedida a rádio Uirapuru. A íntegra dessa entrevista está publicada
no livro de MACCBE, Maria Alice. História na mão. Algumas camponesas contam como se conscientizaram.
(Uma História Oral). S/e 1994, p. 131-132.
265
Antônio Biica ressalta o apoio que a ―Igreja de Dom Paulo‖ ofereceu à luta dos camponeses pela terra. Em
suas palavras: ―A Igreja foi muito forte, na época que era Dom Paulo Ponte, e tinha outros companheiros: a
Maria Alice, padre Albani... irmã Assucena, irmã Bete... padre Felipe. Tudo contribuíram no fortalecimento da
luta pelo assentamento e a gente tentou lutar no... oitenta e dois.‖ Antônio Alves do Nascimento, conhecido por
Antônio Biica. Entrevista realizada em Itapipoca, no dia 12 de novembro de 2019. Entrevista citada.
170

Na narrativa de Nazaré sobre o debate na rádio, fez-se evidente o descrédito do bispo


com relação aos camponeses, a ponto de cogitar a possibilidade de cancelar o debate. De
outro lado, também se evidencia o apoio da religiosa Maria Alice, uma das coordenadoras do
Movimento do Dia do Senhor, como fator decisivo para a realização do mesmo. Percebe-se
que a presença dos camponeses, sua fala e sua cultura soavam inconvenientes para o espaço
do estúdio radiofônico, por serem pobres, autodidatas e se expressarem por um vocabulário
popular. Nazaré explica:

Era Dom Benedito que queria fazer uma entrevista sobre Reforma Agrária,
né? Até antes, Dom Benedito... ele até pensava, tinha medo, né? Porque nós
os camponeses, não sabia dizer nada, os pobres não ia saber falar. Aí ele
queria desmarcar, cancelar o debate, mas a Maria Alice disse: ―não, o
pessoal sabe falar muito bem‖. 266

Nesse sentido, a demarcação do espaço social e a conquista da fala foram importantes


aprendizados dos camponeses e das camponesas que se fizeram com o Movimento. O próprio
programa do Movimento do Dia do Senhor, ―Encontro das Comunidades‖, transmitido pela
Radio Educadora do Nordeste, pertencente à diocese de Sobral aponta para isso, pois durante
todo o fazer-se do Movimento esse programa serviu como um espaço de fala camponesa.
Ainda sobre o debate na rádio, a participação de Nazaré Flor enquanto representante
da luta camponesa pela terra merece destaque, pois a mesma fora escolhida pelos próprios
camponeses para falar na rádio, juntamente com Benedito Rita. Compreende-se a escolha de
Nazaré como emblemática. Primeiramente, porque a mesma levou a voz feminina para um
espaço público, como também, para falar sobre luta pela terra e reforma agrária, temas
característicos do interesse masculino e, por último, porque debateu em pé de igualdade com
um homem e latifundiário, indicando um enfrentamento de gênero e de classe.
A memória de Nazaré recupera suas primeiras impressões com relação ao Dr. Juraci.
A indiferença com que foi tratada marcou profundamente sua sensibilidade, sendo ressaltada
em sua narrativa: ―[...] Eu vi o Dr. Juraci neste dia. Eu não gosto nem de lembrar do jeito
daquele homem. Ele chegou, não falou comigo nem com Benedito Rita, de jeito nenhum. Só
falou com Zé Ivo (locutor) e com Dom Benedito‖.267 A postura do referido latifundiário
representa traços da cultura oligárquica, coronelística, que permeava as relações de classe no

266
Transcrição da entrevista de Nazaré Flor concedida a uma rádio Uirapuru. A íntegra dessa entrevista está
publicada no livro de MACCBE, Maria Alice. História na mão, p. 131.
267
Ibid., p. 126.
171

meio rural do Ceará, que tratava com desprezo os pobres, camponeses, com conhecimento de
mundo empírico e com reverência os ricos, letrados, considerados do mesmo nível social,
econômico ou cultural.
No entanto, o protagonismo de Nazaré Flor no debate da rádio repercutia sua forte
atuação no conflito pela posse da terra. A voz das muitas camponesas que estiveram na linha
de frente do conflito também foi representada por Nazaré. De fato, não foi uma escolha
aleatória. Sua escolha para esse debate demonstrava que os próprios camponeses reconheciam
a importância que as mulheres tiveram para a conquista da terra.
Por esse caminho, evidencia-se a atuação feminina no enfrentamento com os
empregados da empresa, dificultando que os mesmos avançassem nas terras e nos coqueiros,
que passavam a ser disputados um a um. Desse modo, o coco passou a ser (re)significado,
pois, na medida em que se tornou a principal matéria prima para o agronegócio, o coco
assumiu um caráter especulativo e financeiro, completamente diferente da lógica
compreendida pelas famílias camponesas que concebiam o coco como um produto de sua
subsistência. Assim, a narrativa de Nazaré ressalta o entrelaçamento entre a cultura e o
trabalho feminino nos momentos de resistência, quando as mulheres fiavam algodão enquanto
protegiam os cocos.

As mulheres fizeram muita coisa para defender as propriedades da gente. Por


exemplo, elas não deixaram os caras da empresa tirar cocos porque eles
queriam tomar conta dos coqueiros da gente. Mas de 30 mulheres se reuniam
fiando algodão e vigiando os coqueiros. Quando os derrubadores vinham
para tirar os cocos, elas cercavam os coqueiros e levavam e escondiam os
cocos derrubados, com os derrubador ainda trepado lá em cima e com medo
de descer. As depois de um tempo, desistiram de roubar os cocos do povo.
268

Nazaré Flor ainda enfatiza outras estratégias femininas, o que se permite concluir que a
atuação das mulheres ultrapassou os limites historicamente impostos pelas relações de gênero,
pois as mesmas atuavam tanto na linha de frente nos momentos de maior tensão contra os
donos e empregados da empresa, até mesmo para proteger seus esposos e filhos, como
também, desempenhando funções auxiliares, quando assumiam o papel de porta-voz de avisos
e recados para as demais comunidades. No entanto, a participação das mulheres nas
negociações com o INCRA, na produção dos abaixo assinados, na escrita e leitura de

268
Ibid., p. 119.
172

documentos oficiais referentes às negociações, talvez, tenha significado o principal papel


assumido por essas mulheres.

Outra coisa, as mulheres proibiam que eles passassem os travessões por


dentro das plantações e fazer a derruba dos pés de coqueiro. Elas proibiam
os caras que vinha fazer, né? Aqui não passa! E não passavam mesmo,
porque elas não deixavam passar. Elas fizeram muito isso. Graça Ana foi
uma que enfrentava cara a cara e proibia que passassem. Muitas vezes,
quando era assim para evitar um conflito com os homens, elas ficavam na
frente. E para dar recados, elas corriam de uma comunidade a outra, de
repente. E nas negociações do INCRA, sempre as mulheres participaram. Eu
e a Vera fomos muitas vezes com os homens e enfrentamos mesmo... logo
depois da desapropriação, todo homem dizia isso: que a força da
desapropriação desta terra foi graças às mulheres! 269

O ―mutirão das fiandeiras‖, relembrado por Nazaré ficou registrado na memória e na


história do Assentamento. Essas mulheres fiandeiras eram Maria da Paz, Jesa, Anaíde, Maria
Loura, Joana Loura, Maria Rita, Mirtes Rita, Ana Rita, Graça Rita, Graça Ana, Joana Ana,
Doca Bastiana, Maria Nana, Maria Ferreira, Júlia, Maria Salustiana, Chica Néu, Maria Biria,
Mana e Zefa Chichica. Todas elas lembram episódios específicos do período em que
defendiam não só os cocos, mas também os roçados e as casas das comunidades. Todas
sempre trabalhando em mutirão, como conta Maria das Graças de Sousa, Graça Ana:

Na época que o pessoal tava brocando e que o Carrá chegou e que paralisou
todos os trabalhadores, aí os homens decidiram brocar, mas queriam a
presença das mulheres, mas nós ficava reunidas fiando algodão. Neste dia
que távamos reunidas na casa da Maria Rita, soubemos que iam derrubar os
cocos dos coqueiros que a gente tava lutando pra adquirir que os patrões
teriam tomado. E o Abner, que era o empregado da firma mandou dois
derrubadores derrubar os cocos. Nós aqui reunidas fiando e... ―olhe aí, vão
derrubar os cocos! O que nós faz? Vamos barrar? Não! Não Vamos barrar,
vamos deixar que derrubarem e aí quando tiver tudo no chão vamos
impedir.‖ Aí, assim fizemos. Eles fizeram a derruba de todos os cocos,
deixaram tudo arrumadinho e aí, saiu o mutirãozão de mulher! Aí nós
fizemos a venda dos cocos e guardamos o dinheiro. Até hoje eles nunca
cobraram. Eles ficaram com medo. 270

269
Ibid., p. 120.
270
MACCABE, 2015, p. 104.
173

As narrativas de Nazaré Flor e Graça Ana oferecem indícios de que as mulheres das
comunidades tiveram tanta participação na luta pela terra do Assentamento Maceió quanto os
homens. A presença feminina também é constatada nos inúmeros abaixo assinados enviados
ao INCRA, os quais traziam assinaturas de moradores e moradoras de todas as comunidades
envolvidas no litígio. Muitos desses nomes vinham acompanhados da marca do polegar
manchado de carbono, antiga forma de registrar as impressões digitais, o que indica o alto
índice de analfabetismo entre homens e mulheres do campo naquela época. A assinatura de
Nazaré Flor também se encontra nesses abaixo assinados. Inclusive, mesmo depois da
conquista do Assentamento Maceió, em 1985, tanto Nazaré quanto os demais camponeses
assentados continuaram em luta apoiando as famílias moradoras das fazendas Bode e Córrego
Novo que somente foram desapropriadas e incorporadas ao Assentamento em 1988.
Nesse sentido, o processo do INCRA SR (02)/ N. 1457/87 referente ao ―Laudo de
Vistoria e Avaliação do imóvel ‗Três Irmãos‘ ou ‗Tapera‘ ou ‗Bode‘ no município de
Itapipoca/Ceará‖ trazia informações sobre os aspectos físicos e sociais do imóvel em questão
indicando que o mesmo realmente pertencia a alguns membros da família Praciano. Segundo
constatado pela equipe técnica do INCRA, o imóvel foi repartido entre dez herdeiros. No
entanto, somente o senhor Juraci Carneiro de Castro e o senhor Vicente de Paulo Carneiro
moravam e exploravam as terras, sendo o senhor Juraci seu principal beneficiário porque
detinha um quinto do terreno. Destaca-se do Laudo de Vistora e Avaliação que:

A relação de parceria e a renda cobrada pelo Sr. Juraci os moradores


contraria o art. 96 da Lei 4.504, de 30. 11. 64 – cobra 20% da cultura do
coco quando deveria ser pago apenas 10%, inciso VI, letra A. Repetimos,
não há o mínimo respeito à Lei 4.504 e esta ilegalidade provoca tensão
social, bem como intensa apreensão nos familiares residentes na área
administrada pelo Sr. Juraci Carneiro.271

O referido Laudo enfatizava que ―[...] a propriedade da terra não desempenha,


integralmente, sua função social, contrariando o art. 2º da lei 4.504 de 30/11/64‖. Tal lei
constitui no Estatuto da Terra, que fora criado logo no início dos governos militares, diga-se
de passagem, com o intuito de amortecer os movimentos camponeses e conflitos de terra que
cresciam ao longo dos anos 1950/1960 no Brasil. Portanto, fundamentado no Estatuto da

271
Processo INCRA/SR (02)/N. 1457/87, referente ao ―Laudo de Vistoria e Avaliação do Imóvel Tapera ou Três
Irmãos ou Bode‖. Arquivo Superintendência Regional do INCRA/SR 02. Fortaleza – CE.
174

Terra, o Laudo do INCRA concluía que se podia ―implantar com sucesso um programa de
assentamento‖. 272
Esse mesmo processo trazia em anexo uma espécie de Memorial ou ―Histórico‖ de
toda luta dessas comunidades contra a família Praciano, como também, um abaixo assinado
de onze folhas constando os nomes dos 103 moradores das fazendas em conflito, como
também, de muitos camponeses, moradores de outras comunidades do Assentamento. O que
está se denominando de Histórico constitui um documento escrito manualmente pelos
próprios camponeses direcionando-se ao juiz responsável pelo caso, em que narram os
desmandos e perseguições dos patrões, mesmo depois da terra desapropriada pelo INCRA e
de imitida a posse aos camponeses, evidenciando o nível de tensão vivenciado no território.
Nesse sentido, reproduz-se a narrativa do documento:

Fazenda Bode 01-09-88


Senhor Juiz, todos nós que moramos nesta fazenda, vem até o senhor por
meio deste documento que também é acompanhado por este abaixo assinado,
para fazer o senhor tomar conhecimento, dos atos de terrorismo, que há seis
(06) anos todos nós que aqui moramos vem sendo vítima, atos estes
praticados pelos pracianos. Que se dizem ser os donos desta terra. Mas que
nela nunca plantaram nada nesta terra. Alguma benfeitoria que existe neste
imóvel é feito pelos trabalhadores. Se hoje eles estam de posse de alguma
dessas benfeitorias é porque eles tomaram das pessoas que as fizeram,
muitas dessas benfeitorias se encontram abandonadas por eles, pois tomam e
depois abandonam, só para fazer o mal. (...) No 81 derrubaram a casa de
Joaquina Pinto Caitano e foi aí que comesso o conflito no imóvel Maceió.
Queimaram todas as cercas de um cercado de João Manuel Pinto e
distruiram todas as suas plantações. Hora por outra cercavam a casa do
mesmo com policiais. Levaram o para a Delegacia de polícia Civil de
Itapipoca e lá o obrigaram a entregar sua benfeitoria. O ameaçaram de morte
com revólver em punho e o agrediram fisicamente de coronhada com o cabo
do revólver. E desde este tempo a gente vem denunciando estas barbaridades
praticadas pelos famosos Pracianos. E desde 1985 que os mesmos vem
fazendo a mais perversas ameaças a famílias que moram nestas fazendas
Bode, Tapera e Três Irmãos tomam todos os produtos que produzimos.273

Cruzando esse Histórico produzido pelos camponeses com o que consta no Laudo de
Vistoria e Avaliação do INCRA percebem-se alguns pontos convergentes nesses documentos,
como a exploração a que os moradores estavam submetidos e a improdutividade da maior
parte da terra. O próprio Laudo, datado de 30 de março de 1987, oferecia legitimidade para a
denúncia apresentada pelos moradores, pois quando escrevem ao Juiz, em 01 de setembro de

272
Ibid.
273
Ibid.
175

1988, os mesmos já tinham conhecimento de que o terreno tinha sido desapropriado para fins
de reforma agrária em 02 de março de 1988, sendo sua imissão de posse de 17 de junho de
1988. Portanto, não é aleatoriamente que o argumento que norteia a denúncia dos camponeses
é exatamente o fato de os Pracianos, que se diziam herdeiros das terras, não garantirem a
produtividade da mesma. E mais, também denunciam a tomada ou destruição de suas
benfeitorias, como seus roçados, sua produção referente aos cocos, cajus e demais gêneros
agrícolas, ou de suas habitações, muitas vezes de taipa.
Diante de tantas ameaças e opressão os moradores resolveram pedir apoio oficial para
sua luta, pois tanto na Lei quanto no aprendizado dos movimentos de base, como o Dia do
Senhor, os camponeses aprenderam que a terra é de quem nela trabalha. Nesse sentido,
concluíam seu Histórico enfatizando que os Pracianos ―não fazem a terra produzir‖, conforme
relatavam:

Resolvemos pedir apoio aos órgãos competentes como ao MIRAD, ao


governo do estado e demais órgãos, de tantas viagens feitas para Itapipoca,
para Delegacia de polícia intimados a mando dos mesmos e também de tanto
viajarmos para Fortaleza já não temos mais nem um recurço. Mas estávamos
contentes e muito contentes pois a terra foi desapropriada. (...) Fomos
imitidos na posse e estávamos já fazendo o nosso plano de trabalho quando
de repente os praciano colocam notícia no rádio dizendo que desfizeram tudo
que tinha cido feito. Que o Tasso Jereissati colocou a disposição dele seu
melhor advogado para que eles conseguissem suspender essa imissão...
voltaram a nos ameaçar e com sérias ameaças. Não sabemos como eles
conseguiram isso pois não fazem a terra produzir estão inventando uma
herança sem essa terra ser dividida [...]. 274

De fato, o Incra considerou as terras improdutivas e viabilizou a desapropriação,


garantindo mais uma vitória para os camponeses. No entanto, após cerca de 15 anos depois de
conquistado o Assentamento, os moradores enfrentaram uma nova disputa por seu território.
Tratava-se da disputa por uma faixa de terra próxima ao mar que não havia sido
incorporada no ato das desapropriações realizadas pelo INCRA e que havia sido comprada
para fins de exploração turística por um empresário português chamado Antônio Júlio
Trindade de Jesus, mais conhecido como Pirata. Tal empresário havia centralizado seus
primeiros negócios na praia de Iracema, em Fortaleza, criando em 1986, o Pirata Bar & Restô,
em sociedade com seu filho Rodolphe Trindade. No início dos anos dois mil, intentava

274
Ibid.
176

expandir seus negócios para o litoral de Itapipoca, originando o conflito com os moradores do
Assentamento Maceió.
A história de luta contra o Pirata e contra a especulação imobiliária e exploração
turística e ambiental da região coincide com a chegada e fortalecimento do MST no
Assentamento, no início dos anos dois mil. Em conflito aberto contra o empreendedor Júlio
Trindade, como estratégia de resistência, os moradores criaram o Acampamento Nossa Terra
que fica localizado dentro do Assentamento Maceió, em Itapipoca. Sua ocupação aconteceu
em 22 de fevereiro de 2007. Nesse mesmo dia, o Assentamento ―batizou‖ o MST e, em
contrapartida, o MST assumiu a luta contra o Pirata como sua. Esse Acampamento resiste até
os dias de hoje, assim como, o próprio conflito, muito embora tenha arrefecido após o
falecimento do Pirata, em 2011.
Nazaré Flor já não pôde contribuir muito com essa luta pois veio a falecer de um
câncer no útero no mesmo ano em que o acampamento Nossa Terra fora fundado. Sua
contribuição para a conquista do Assentamento Maceió está registrada nas memórias de seus
companheiros e companheiras de luta. Nesse sentido, em sua entrevista, Antônio Biica
ressalta a importância da atuação de Nazaré Flor e de outras mulheres nas lutas do
Assentamento, inclusive contra o Pirata, sendo essa a principal luta nos dias de hoje.

Uma coisa muito forte na nossa luta foi as mulheres. Que as mulheres,
Nazaré Flor, Vera, Maria Nana, Anaíde e outras, Graça Ana. Tudo foram
pessoas que de fato ficaram à frente, sempre pra evitar o conflito. Eu acho
que no Maceió não aconteceu morte por isso, porque quando era pra nós
enfrentar a empresa, tava fazendo um serviço e nós ia lá barrar, as mulher
iam na frente e os homens iam atrás e sempre as mulher tinham um
argumento muito forte e fazia com que os homens não se irritassem pra
poder brigar e eles acabavam saindo, tiravam os trator, tiravam as máquinas.
E isso tem acontecido não só na luta pelo Assentamento, como em qualquer
luta que se trava dentro do Assentamento. (...) As mulheres do Assentamento
foram umas mulheres muito guerreiras e parabéns, eu digo até pra elas, até
porque nós valorizamos a força da mulher e a coragem que as mulheres tem.
Então, foi uma luz na nossa frente. 275

275
Antônio Alves do Nascimento, conhecido por Antônio Biica. Entrevista realizada em Itapipoca, no dia 12 de
novembro de 2019. Entrevista citada.
177

Figura 4 INCRA - Croqui de situação. Projeto Assentamento Maceió. Itapipoca – Ceará

Fonte: Arquivo pessoal de Antônio Alves do Nascimento,


Morador do Assentamento Maceió. A divisão do território, constando os nomes das comunidades foi feita
manualmente pelo próprio morador.

3.3. “As mulher era quem primeiro chegava”: luta e conquista da terra do
Assentamento Lagoa do Mineiro.

O assentamento Lagoa do Mineiro situa-se no litoral norte do estado do Ceará, mais


precisamente, na microrregião de Almofala, no município de Itarema, sendo composto pelas
comunidades Lagoa do Mineiro, Saguim, Mineiro Velho, Corrente, Barbosa, Cedro e Córrego
das Moças. Estas sete comunidades estão distribuídas em um território de 5.763,6271
hectares, no qual se encontram 128 famílias assentadas. A desapropriação desse território se
178

deu no dia 26 de junho de 1986, entretanto, sua imissão de posse data de 13 de julho de
1987.276
O conflito de Lagoa do Mineiro se desenrolou no mesmo período que o conflito de
Maceió, em Itapipoca, tanto que sua desapropriação pelo INCRA ocorreu um ano depois da
desapropriação de Maceió. Porém, no conflito de Lagoa do Mineiro ocorreram três mortes de
camponeses. No caso do conflito de Maceió, não houve morte. É importante ressaltar que
durante esses conflitos, os moradores de ambos os territórios, por várias vezes, uniram forças
para lutar contra os patrões e contra a presença da empresa Ducoco, que avançava no litoral
do Ceará, comprando as terras de proprietários locais de Itapipoca e de Itarema com a
finalidade de implementar seu projeto agroindustrial.
Situa-se a narrativa de Antônio Alves do Nascimento, conhecido em toda região, como
Antônio Biica, em que o mesmo relembra o tempo de luta pela posse da terra de Maceió, mas
também, estabelece relações entre essa luta e os conflitos desencadeados em outras
comunidades rurais, de municípios próximos à Itapipoca, como o caso de Lagoa do Mineiro.
Portanto, seu Biica conta como atuavam os camponeses em algumas ações de resistência dos
moradores dessas comunidades em conflito, ou seja, uns ajudando na luta dos outros. Tratava-
se da solidariedade camponesa, pois partilhavam do mesmo sentimento, já que suas lutas eram
lutas que se desenrolavam paralelamente:

A luta de Lagoa do Mineiro foi paralela a nossa, participamos também, em


alguns momentos. Não, dos conflitos maior, mas daqueles conflitos menor
nós participamos, como também, eles participaram dos conflitos junto
conosco. Recebemos gente de Quixadá também, que houve conflito pesado
lá e recebemos também. 277

Nesse sentido, a luta pela posse da terra de Lagoa do Mineiro guarda semelhanças com a
luta pelo território do Assentamento Maceió porque os moradores da fazenda Lagoa do
Mineiro também cultivavam um vínculo com a terra, o que remontava à ancestralidade de
seus antepassados. Haviam nascido e crescido naquele lugar, mesmo lugar em que estavam
enterrados muitos de seus familiares. O território Lagoa do Mineiro significava a vida para
seus moradores, pois era dali que retiravam sua sobrevivência, assim como, a grande maioria
dos camponeses que lutavam por terra naquele período.

276
Cf.:http://www.incra.gov.br/sites/default/files/uploads/reforma-agraria/questao-agraria/reforma
agraria/projetos_criados-geral.pdf. Acesso em: 04 nov. 2019.
277
Antônio Alves do Nascimento, conhecido por Antônio Biica. Entrevista realizada em Itapipoca, no dia 12 de
novembro de 2019. Entrevista citada.
179

De acordo com o Processo de Desapropriação de Nº. 509/86, referente à desapropriação


de terras pertencentes à Sociedade de Pesca do Nordeste S/A – SOCIPESCA é possível tomar
conhecimento sobre quem eram os proprietários das terras limítrofes de parte do território que
estava sendo disputado pelos moradores. Destaca-se Tasso Jereissati, suposto dono da
Ducoco, como também, Aristides Andrade Sales, o ―padre Aristides‖278. Esses dois nomes
correspondiam aos principais antagonistas dos camponeses que, no momento do conflito,
moravam nas terras do padre Aristides, sendo que o mesmo ameaçava vender suas terras para
a empresa Ducoco.

A área desapropriada está situada no município de Itarema, na microrregião


homogênea (56) do Estado do Ceará, formando um só corpo de terras,
limitando-se ao Norte, com terras de Henrique Gomes de Souza, Geraldo
Alves da Costa, Patriarca Alves da Costa, Tasso Jereissati, Companhia
industrial Do Côco, José Frederico Paula Miranda e outros; ao Leste, com
terras de José Frederico Paula Miranda e outros, Aristides Andrade Sales,
Marco Aurélio Sales, Edmilson Andrade Sales, Aristides Andrade Sales; ao
Sul com terras do Espólio de Francisco Magno de Oliveira e Silvestre Sousa
Costa; ao Oeste com terras da Fazenda Macacos, Espólio de Francisco
Magno de Oliveira e Adonias Alves da Costa. 279

Na verdade, as terras de padre Aristides Andrade Sales foram herdadas de seu tio
Teófilo Andrade que, após o seu falecimento, iniciou-se o conflito entre os moradores e seus
herdeiros, Aristides Andrade Sales e Edmilson Andrade Sales, pela posse de parte do
território que hoje compõe o Assentamento Lagoa do Mineiro. Antes do falecimento de
Teófilo Andrade, os moradores viviam e trabalhavam em suas terras pacificamente, fosse
pagando a renda, fosse no modelo de troca de dias de trabalho, reproduzindo muitas das
práticas presentes no sistema coronelista e paternalista, característico do meio rural do
Nordeste do Brasil, principalmente, durante a primeira metade do século XX.
O estremecimento dessa relação se deu com a mudança de patrão, pois Edmilson
Andrade Sales e padre Aristides passaram a cobrar uma renda muito alta dos moradores, além
de não aceitarem negociação com aqueles camponeses que não tinham condições de pagar a

278
Padre Aristides Andrade Sales é natural de Acaraú, município vizinho a Itarema, onde tornou-se o primeiro
pároco da Paróquia Nossa Senhora de Fátima, desse último município, fundada em 1954. O referido padre
também atuou como político, sendo prefeito de Acaraú durante os anos 1973-1976, além de exercer a função de
suplente de deputado estadual e assessor do governador do Ceará, Coronel Virgílio Távora, durante os anos
1978-1981. Cf.: http://acarauprarecordar.blogspot.com/2011/02/padre-aristides-andrade-sales.html. Acesso em:
24 jan. 2020.
279
INCRA/CE. Processo de Desapropriação SOCIPESCA – Sociedade de Pesca do Nordeste S/A. Nº. 509/86.
Pagamento de indenização do Imóvel Rural denominado Fazenda Lagoa do Mineiro – Itarema / CE. Datado de
Julho de 1989.
180

renda. Ainda, de acordo, com Processo de Desapropriação de Nº. 509/86, evidencia-se o ano e
o motivo pelo qual se iniciou o conflito no território. Conforme se lê no laudo elaborado pela
equipe técnica responsável pela vistoria e perícia do imóvel, o ano de 1968 marca o início do
conflito:

O surgimento da tensão social do referido imóvel, data do ano de 1968, após


o falecimento do SR. Francisco Teófilo de Andrade, quando o DR. Edmilson
Sales Andrade, Promotor de Justiça, já falecido, tentou impor renda sobre a
produção de castanha dos cajueiros dos moradores, provocando na ocasião,
lamentável conflito onde resultou na morte de três homens e ferimentos em
duas mulheres. 280

O referido Processo também apontava que a chegada da empresa Ducoco havia


intensificado os conflitos no território. Com a possibilidade de venda das terras para tal
empresa, os moradores tiveram que se organizar para lutar contra novos patrões que, no caso,
não se interessavam mais pela renda. Na verdade, o que eles queriam era a completa expulsão
dos camponeses das terras. De acordo com o laudo: ―Outros conflitos foram registrados, em
razão da vedação de antigos caminhos que dão acesso às glebas Ribeira e Córrego das Moças,
pela Firma Cia. Industrial do Côco – DUCOCO, proprietária da fazenda Gabriel, confinante
do Imóvel em questão‖.281 Dessa forma, a resistência aos novos patrões necessitava de uma
nova atuação, com novas estratégias de luta.
Por outro lado, a exploração de padre Aristides para com os camponeses ficou marcada
na memória e nas narrativas dos moradores e moradoras de Lagoa do Mineiro. Nesse sentido,
dona Francisca Martins, conhecida como Chiquinha Louvado, uma das moradoras mais
antigas da comunidade de Barbosa, que lutou pela conquista da terra e pela formação do
Assentamento relembra o tempo em que os camponeses viviam sob o domínio e a exploração
do referido padre:

A gente não é invasor. A vida toda trabalhou nessa terra. A diferença é que
antes se trabalhava num sistema de praga que acabava com nós. Meu marido
foi uma vítima disso. Uma vez ele não conseguiu pagar a renda do roçado ao
Padre Aristides, que aí mandou tomar o jumentinho que nós tinha. Durante
anos foi assim, até o momento que se viu que não dava mais para viver desse
jeito [...]. 282

280
Ibid.
281
Ibid.
282
Entrevista concedida ao jornal cearense ―O Povo‖, por ocasião de uma reportagem sobre os dez anos da
desapropriação das terras do Assentamento Lagoa do Mineiro. (Jornal O Povo, edição de 11 de junho de 1996)
Fonte citada na dissertação de mestrado de OLIVEIRA, Fábio da Silva. A construção da educação do campo
181

Apesar de toda exploração, os camponeses ainda se submetiam ao subjugo dos


herdeiros, Padre Aristides e Edmilson Andrade Sales, pois dependiam das terras para
sobreviver. De acordo com a memória dos moradores, o que marcou o processo de
organização e resistência desses camponeses foi a concreta ameaça de perda das terras onde
moravam quando durante uma missa celebrada pelo padre Aristides, o mesmo anunciou que
iria vender as terras para a empresa Ducoco, que já havia se instalado em algumas regiões do
litoral cearense e visava a compra de suas terras. Esse fato fica evidenciado na narrativa de
dona Chiquinha Louvado:

Um dia o Padre Aristides anunciou que, como nós não estava conseguindo
pagar a renda, ele iria vender as terras para DUCOCO, essa firma que tem aí
em Itarema. Exigiu que nós desocupasse o terreno e nos mandou para o
inferno. Fizemos então uma reunião com os moradores, coisa que até aí a
gente nunca tinha feito. Foi a precisão que nos obrigou a procurar a união.
Aí todo mundo falou por uma boca só: Nós também somos filhos de Deus,
daqui nós não vamos sair [...]. 283

Era um tempo em que todas as comunidades rurais daquela região se viam ameaçadas,
pois os patrões se tornavam cada vez mais propensos a vender suas terras para a Ducoco.
Nesse sentido, antes de serem agrupadas em Assentamento, todas as sete comunidades que
compõe o Lagoa do Mineiro vivenciaram fortes tensões sociais. Primeiro, contra os
proprietários das terras. Segundo, após a venda das mesmas, contra os responsáveis pela
empresa, que passaram a cercar as terras e impedir que os moradores tivessem acesso aos
cajueiros, aos coqueiros, até mesmo, à agua dos riachos que se localizavam nos limites dos
territórios comprados. Tanto padre Aristides vendeu suas terras, como outros proprietários
locais também, como foi o caso do senhor Aquino, dono das terras da comunidade de Varjota,
em Almofala. Comunidade esta que se situa muito próximo do território de Lagoa do Mineiro.
A primeira reunião com moradores, citada por dona Chiquinha Louvado, refere-se à
reunião que aconteceu na comunidade de Varjota, território indígena de etnia Tremembé, com
a presença de Rita de Cássia, moradora da comunidade de Juritianha, de Acaraú, pertencente à

no Assentamento Lagoa do Mineiro em Itarema – CE: entre disputas e conquistas. Sobral - CE (Mestrado
Acadêmico em Geografia – MAG) Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA, 2017. p. 66.
283
Ibid., p. 65.
182

diocese de Sobral. No entanto, pela proximidade com Itarema, Juritianha pertencia à diocese
de Itapipoca, estando, também, sob o paroquiato de padre Aristides Andrade Sales.
Conforme discorrido no segundo capítulo, Rita de Cássia, que integrava o Movimento
do Dia do Senhor e realizava um trabalho pastoral nas comunidades rurais fora procurada
pelos moradores de Varjota com o intuito de que com sua ajuda pudesse se estimular naquele
lugar uma organização comunitária cujo principal objetivo era fortalecer a união dos
moradores para lutar contra a opressão dos poderosos da Ducoco.
A história dessa primeira reunião e a lembrança de Rita de Cássia, mais conhecida
como Dona Ritinha, permanece nas memórias dos moradores mais idosos, como também, é
contada para seus filhos, netos e bisnetos, como forma de manter viva história de luta e de
organização do povo de Varjota e, também, dos moradores das comunidades que compõem o
assentamento Lagoa do Mineiro. Por outro lado, essa história também marcou a vida de Rita
de Cássia. A mesma contou com detalhes sua experiência com os moradores da comunidade
de Almofala, em entrevista para esta pesquisa, como também, na entrevista que compõe o
livro ―História na mão‖, de Maria Alice MacCabe, uma das coordenadoras do Movimento do
Dia do Senhor, conforme explorado no segundo capítulo.
Foi através da rádio Educadora do Nordeste, pertencente à diocese de Sobral, que os
moradores da comunidade de Varjota, em Almofala, que acompanhavam o programa do
Movimento, ―Encontro com as Comunidades‖, ouviram falar do trabalho pastoral realizado
por Rita de Cássia. Nesse sentido, Diana, pertencente à tribo indígena dos Tremembés,
moradora da comunidade relembrou a primeira reunião comunitária com a presença de Rita
de Cássia. Em sua narrativa, destaca-se a esperança dos moradores depositada na presença de
Rita e naquilo que ela representava: o Movimento do Dia do Senhor, o Evangelho, a Igreja
que estava ao lado do povo, em suma, o direito dos pobres. Conforme conta Diana, em sua
entrevista para o livro ―História na mão‖:

Até que foi indo, foi indo... Aí, a gente pensava que que a gente ia fazer. Aí,
meu padim Agustim soube que tinha uma missa lá na Almofala. Aí, ele e o
tio Raimundo foram pra lá para esta missa e depois chegaram com a notícia
que a dona Ritinha de Cássia vinha andar por aqui, por o meio da gente. Que
ela vinha para cá e tinha o Evangelho, que no Evangelho dava o direito da
gente. 284

284
MACCBE, 1994. p. 87.
183

Mesmo com a organização e resistência dos camponeses, os proprietários venderam


suas terras para a empresa Ducoco. Com isso, os moradores passaram a conviver com
ameaças concretas de perda do território onde moravam. Os donos da ―firma‖, como os
camponeses se referiam à Ducoco, passaram a se utilizar da força do dinheiro e do poder da
lei que estava a seu favor, visto que detinham a posse do documento de compra e venda das
terras e, diante disso, também tinham o apoio dos governantes e da polícia locais.
De acordo com a narrativa de Diana, descortina-se a atmosfera dos conflitos que se
acirravam a cada tentativa da Ducoco de expulsão dos moradores. O sentimento de revolta
contra a firma pairava sobre a comunidade e, assim, como nas experiências de luta pelo
Assentamento de Maceió, as mulheres também se fizeram protagonistas na defesa do
território de Varjota e das comunidades que comporiam o Assentamento Lagoa do Mineiro.
Nesse sentido, a coragem das camponesas é enfatizada por Diana:

[...] Quando a gente via eles daí da Firma, se revoltava todo mundo mesmo.
Quando a gente escutava dizer que vinha alguém por aqui, os homens
saíram, mas as mulheres ficaram promode enfrentar mesmo. Elas era quem
ficava para enfrentar mesmo, cum raiva. E a gente nunca teve medo. Quando
a gente via eles, quando eles chegavam no salão, aqui em Varjota, quem
primeiro chegava lá era as mulher. As mulher era quem primeiro chegava.
Era o pessoal da firma e a polícia que chegava no salão. Eles só vinham
arrodiados de polícia. [...]. 285

Desse modo, para justificar a luta da comunidade, a narrativa de Diana se vale do


direito à dignidade humana, à moradia, à alimentação e à sobrevivência. Por isso, as mulheres
buscavam coragem e união. A raiva tornava-se o combustível para superar o medo e para
enfrentar as injustiças contra os moradores, como conta Diana:

Nossa luta aqui... nós nunca tivemos medo de lutar, aqui dentro. As mulher
mais... toda vida mais corajosa. Quando eles pelejava para abrir o
sangradouro daquele açude... (eles tentaram um bocado de vezes e eles
vinham falar), as mulher é que partiam logo na frente, um cambão de mulher
pra lá. Umas ficaram nervosas, mas outras metiam coragem e aí, a gente com
coragem, ninguém num esfriava não. Fazia cada vez mais era lutar, cada vez
com coragem e com raiva. (...) A gente num era ladrão, num era criminoso,
tava era cuidando um meio de vida promode dar de comer um bocado de
filhos. E aí, seu fulano chegava atrás de expulsar a gente. Mas, pru que? E a
gente era de morar aonde? A gente tem que morar em cima da terra. 286
285
Ibid., p. 90.
286
Ibid., p. 91.
184

A memória de Diana também recuperou o tempo em que os moradores de Varjota se


uniram às comunidades que formam o Assentamento Lagoa do Mineiro com o propósito de
ensinar os caminhos da luta, já que tinham sido pioneiros no processo de organização
comunitária e de luta pela terra indígena, inclusive, passaram a integrar o Movimento do Dia
do Senhor depois da referida reunião com Rita de Cássia. Segundo Diana:

[...] E ainda hoje nós veve na mesma luta, nunca se cansemos de lutar e cada
vez mais ficando com coragem de ajudar nas outras Comunidades que,
quando nós soube que aquelas Comunidades dacolá dentro tava com
problemas, foi logo a força que saiu daqui de Varjota, né? (...) Nós ia pra
Chico Verão, pra dentro, pra Palmeiras, nós enfrentava pra Mineiro e toda
vida nós ajudando e ensinando cuma que a gente podia fazer. 287

Contudo, a comunidade de Varjota não se integrou ao Assentamento Lagoa do


Mineiro, mesmo tendo participado do início desse processo de luta pela terra, pois assim
como as demais comunidades que compõem a área de terras indígenas Tremembé não
conseguiram a demarcação pela qual lutam desde 1986. Toda essa extensão de terra indígena
ainda se encontra em questão judicial com a Ducoco. 288
Portanto, torna-se claro que, durante esses conflitos as mulheres assumiram um novo
papel social, pois, como apontam as narrativas, a coragem, as estratégias de luta ao assumir a
linha de frente durante os embates com a polícia e com os representantes da Ducoco faziam
com que essas mulheres assumissem um papel ativo na comunidade. Faz-se importante
enfatizar que a terra para essas pessoas era questão de vida ou morte.
Ao longo do conflito Lagoa do Mineiro, até se garantir a desapropriação e a posse das
terras, tombaram três camponeses, todos no ano de 1987. Francisco Carneiro de Sousa,
conhecido por Chico, foi assassinado à faca, sendo encontrado com várias perfurações no
corpo; Francisco Araújo Barros, foi assassinado à bala sendo, posteriormente, degolado; e
Francisco Izaquiel Ferreira, conhecido por Ciço, também assassinado à bala. Nos Três casos,

287
Ibid., p. 92.
288
Segundo o Centro de Documentação Indígena da Associação para Desenvolvimento Local Co-produzido –
ADELCO: ―[...] A demanda indígena pela demarcação desta TI (Terra Indígena) começou em 1986. O
procedimento está suspenso desde 1996, com processo em andamento na 27ª Vara Federal, em Itapipoca. Essa
paralisação se dá em razão de expedientes jurídicos movidos pela empresa Ducoco Agrícola S/A‖. A ADELCO é
uma entidade civil sem fins lucrativos, foi fundada em 2001 e tem sua sede em Fortaleza – CE. Informações
retiradas do site: http://adelco.org.br. Acesso em: 01 de fevereiro de 2020.
185

os assassinatos decorreram de emboscadas realizadas pelos pistoleiros, com a suspeita de que


tenham sido mandados por padre Aristides Andrade Sales. Tanto o padre como os pistoleiros
permaneceram impunes.
Os três camponeses assassinados foram tomados pelos moradores das comunidades que
compõem o Assentamento Lagoa do Mineiro como mártires da luta pela terra. São lembrados
nas narrativas orais dos mais velhos, como também, nos registros escritos que contam a
história de conquista e formação do Assentamento. No caso de Francisco Araújo Barros, seu
nome foi posto em evidência, pois dá nome à Escola de Ensino Médio Francisco Araújo
Barros, a única escola de ensino médio do Assentamento, que se enquadra na modalidade de
Escola do Campo289. Essa escola também recebe alunos de comunidades próximas que não
compõem o Assentamento, como é o caso de alunos oriundos de Varjota, o que demonstra
uma continuidade nas relações entre os moradores desses territórios, que outrora, lutaram
juntos pela terra.
Assim, a história de luta de homens e mulheres do Assentamento Lagoa do Mineiro
constitui também conteúdo ensinado e apreendido na escola, para que os mais novos
valorizem seu território, sua história, sua identidade e o seu lugar social no campo.

Figura 5 Cartão fúnebre de João Araújo Barros

Fonte: Imagem cedida pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Arquivo Jornal ―O Povo‖. 290

289
O estado do Ceará possui 8 escolas do Campo, que são escolas situadas em áreas de Assentamentos rurais,
que tenham sido organizados ou encampados pelo MST, como é o caso de Lagoa do Mineiro e, também, do
Assentamento Maceió, que tem a Escola do Campo que leva o nome de Nazaré Flor. Distinguem-se das demais
escolas situadas no meio rural ―por desenvolverem uma proposta pedagógica, no âmbito da organização
curricular, identificada com o contexto da realidade socioeconômica e cultural em que está inserida e sintonizada
com as aspirações das populações que ali habitam, buscando refletir a identidade e a cultura camponesas. As
ações desenvolvidas por essas escolas ocorrem em permanente diálogo com seus gestores, professores,
servidores e com o Setor de Educação do MST‖. Informações retiradas do site:
https://www.seduc.ce.gov.br/educacao-do-campo/ Acesso: 01 de fevereiro de 2020.
290
SILVA, p. 67.
186

3.4. “As mulheres, em ciranda, iam na frente e, se precisasse, os homens iam


atrás”: a luta pela terra de Salgado do Nicolau, em Trairi – CE

Outro conflito de terra vivenciado pelos camponeses e pelas camponesas do


Movimento do Dia do Senhor foi a luta pela posse da terra de Salgado do Nicolau, no
município de Trairi. Esse conflito se desenrolou já na década de 1990, período que o Brasil já
vivia em democracia. No entanto, as características desse conflito não se diferenciaram muito
daquelas que marcaram os conflitos ocorridos durante o período de ditadura militar:
violência, perseguição e morte continuavam presentes.
Atualmente, essa comunidade, juntamente com as comunidades Jandaíra, Vieira dos
Carlos e Várzea do Mundaú integram o Assentamento denominado Várzea do Mundaú, que
resultou da desapropriação da terra no ano de 1995. A propriedade em questão pertencia a
Hermenegildo Firmeza Neto. No entanto, várias famílias camponesas ocupavam a terra há
muitos anos, sendo cultivada tradicionalmente perpassando gerações. De acordo com as
narrativas camponesas, o conflito se inicia em 1981, quando o proprietário requer a expulsão
dos trabalhadores de sua terra.
Luís Gonzaga Teixeira, participante do Movimento do Dia do Senhor, que na época
que esteve ocupando a presidência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Trairi
acompanhou de perto esse conflito, conta como se deu o início da organização dos moradores
de Salgado do Nicolau. Percebe-se pela narrativa de seu Luís Gonzaga, que essa organização
resultou de um processo de muitas visitas à comunidade e de muita conversa para que os
moradores se conscientizassem e se organizassem. No entanto, a atuação feminina é situada
como a vanguarda dessa luta, ao passo que as mulheres enfrentavam o conflito, até mesmo
encorajando os homens da comunidade. Como se depreende da narrativa:

Aí começou o conflito no Salgado do Nicolau... ficava lá naquela região de


Amontada do... do Hermenegildo. Era o dono lá. Ele era um cara que era
muito malvado né? Mas, nós começamos um trabalho. A gente ia lá do meio
dia pra tarde, conversava com o pessoal, com as mulheres. Os homens
ficavam meio... Coitados dos trabalhadores, chegavam do roçado cansados.
Eles entravam na conversa, mas as mulheres é que eram mais assim...
Enfrentavam né? Mas nós fomos também começando a conversar com os
trabalhadores. Aí a gente uniu homens e mulheres... E aí de repente chegou
lá um Cobra d‘água. Um Cobra d‘água que eles trouxeram lá do Quixadá.
Um senhor coxo de uma perna. E trouxeram dois trator... trator de esteira e
aí começou o conflito lá. Foi muito complicado. A gente ia lá várias vezes. A
gente ia lá de noite...e nós conversava com o pessoal. Aí os homens também
187

já estavam tomando a frente. As mulheres, quando os homens não iam, a


mulheres iam. E a gente foi fazendo aquela organização. Foi crescendo, foi
crescendo. 291

Nas entrelinhas da narrativa, vislumbra-se que a conscientização chegou de fato para a


maior parte dos camponeses quando se viram concretamente ameaçados pelo pistoleiro, que
atendia pela alcunha de Cobra D‘água. Ressaltam-se nas lembranças do entrevistado as
características físicas desse sujeito, que era ―um senhor coxo de uma perna‖. Possivelmente,
tenha ficado coxo devido a algum tiro de arma de fogo ou a algum acidente, decorrente dos
riscos advindos com o ofício da pistolagem. O fato é que nem o tempo conseguiu apagar da
memória de seu Luís Gonzaga os traços daquele pistoleiro que praticou tanta maldade e
sofrimento para sua classe.
Tal pistoleiro fora contratado pelo proprietário das terras, que se utilizou de todos os
meios para amedrontar e perseguir os moradores. A memória de Luís Gonzaga recupera as
estratégias de perseguição usadas pelo Cobra D‘água. Aliás, muitas dessas estratégias se
repetiam nas ações de outros pistoleiros, atuando nas lutas de outras comunidades rurais.
Conforme se evidencia na narrativa, essas estratégias resultavam em ataques à própria
sobrevivência dos camponeses, pois, os pistoleiros atuavam de forma traiçoeira destruindo os
roçados e queimando as cercas. Na realidade, esses eram métodos de expulsar os moradores
que, impedidos de plantar, não teriam o que comer naquelas terras.

E aí o Cobra d‘água chegou lá, acabando com o cercado dos trabalhadores,


tudo cheio de roça: cajueiro, mangueiro, limão, todo tipo de planta que os
trabalhadores gostam de plantar né? O Cobra d‘água metia o trator durante o
dia, quando era de tardezinha esse monte de madeira. Quando era a noite ele
vinha com os trabalhadores butando gasolina e queimando as cercas dos
trabalhadores. E a gente não podia fazer nada. Quando a gente tinha uma
escapulidinha a gente chegava lá. E o pessoal, coitados, quando a gente
chegava lá, parecia que chegavam umas pessoas, assim, que traziam
coragem né? A gente sentia aquilo no pessoal, que eles reclamando,
lastimando, pedindo socorro né? E a gente sem saber por onde começar... Eu
sei que teve um dia que nós chegamos lá, eles tinham terminado de derrubar
toda cerca daquela comunidade. Não tinham mais um pau de cerca né? ... E
aí o pessoal perguntando o que fazia. O Cobra d‘água já tinha pegado um
trabalhador, já tinha amarrado e eles correram pra socorrer o trabalhador.
Soltaram né? E era aquele conflito. Só não estava havendo sangue ainda. 292

291
Entrevista realizada com Luís Gonzaga Teixeira, em 08 de abril de 2017, no município de Trairi - CE.
Arquivo da autora.
292
Ibid.
188

Mesmo com todas as perseguições, derrubadas das cercas, destruição dos roçados,
ameaças de morte, os camponeses resistiram e não se retiraram da terra. O auge desse conflito
se deu no dia 09 de junho de 1986, quando do confronto direto entre os pistoleiros e os
moradores resultou no assassinato, à bala, de Manuel Veríssimo e seus dois filhos: Raimundo
Veríssimo, de quarenta e três anos, e Francisco Veríssimo, de quarenta e oito anos. Manuel
Veríssimo era um senhor de oitenta anos, muito querido e respeitado na comunidade,
considerado um homem forte na luta.
Verifica-se, pois, que os nomes e os traços físicos dos seus contendores, assim como,
as datas de assassinatos dos seus companheiros parecem inesquecíveis para o entrevistado.
Por várias vezes, durante a entrevista, seu Luís Gonzaga extravasa suas emoções. Chorou,
revivendo a dor e a indignação por tantas injustiças, assim como, pela perda dos
companheiros que tombaram nesse conflito. Outras vezes, sorria, quando contava algum
causo de astúcia ou de vitória dos camponeses. Era um riso de regozijo pela força dos seus. 293
No entanto, a força dos camponeses não conseguiu evitar o assassinato de uma das
lideranças da comunidade, o que causou grande comoção na região, tendo repercussão diante
dos sindicatos rurais e dos movimentos de base da Igreja Católica, inclusive com a
interferência do então bispo da diocese de Itapipoca, Dom Paulo Pontes, como também, de
representantes do Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador - CETRA,
que prestavam assessoria aos camponeses de toda diocese. Dom Paulo é considerado pelos
camponeses entrevistados como um bispo comprometido com os interesses dos pobres. De
fato, durante seu bispado, os sindicatos e os movimentos de base, como o Movimento do Dia

293
A socióloga argentina Elizabeth Jelin contribui com uma reflexão em torno das ―memórias habituais‖, ou
seja, aquelas que se constituem em decorrência da vida cotidiana, ordinárias, visto que não são consideradas
―memoráveis‖. No entanto, essas memórias se constituem social e individualmente, nas diversas esferas, tanto
privadas, como na família, quanto públicas, quanto no âmbito das instituições, de forma rotineira. Porém, como
salienta a autora: ―Las rupturas en esas rutinas esperadas involucran al sujeto de manera diferente. Allí se juegan
los afectos y sentimientos, que pueden empujar a la reflexión y a la búsqueda de sentido. Como señala Bal
(1999: viii) es este compromiso afectivo lo que transforma esos momentos y los hace «memorables». La
memoria es otra, se transforma. El acontecimiento o el momento cobra entonces una vigencia asociada a
emociones y afectos, que impulsan una búsqueda de sentido. El acontecimiento rememorado o «memorable»
será expresado en una forma narrativa, convirtiéndose en la manera en que el sujeto construye un sentido del
pasado, una memoria que se expresa en un relato comunicable, con um mínimo de coherencia‖. JELIN,
Elizabeth. Los Trabajos De La Memoria. Madrid: Siglo veintiuno de españa editores, S.A. Siglo veintiuno de
argentina editores, 2002, p. 27.
Aproximando essas reflexões para nossa pesquisa, pressupõe-se que nos conflitos de terras vivenciados pelos
camponeses os casos de perseguições, ameaças, assassinatos, mesmo se tornando cada vez mais presentes no
meio rural, ainda soavam como uma ruptura da vida ordinária. Talvez, por isso, Luís Gonzaga tenha
demonstrado tanta ânsia para contá-los, relembrá-los e (re)interpretá-los.
189

do Senhor, receberam carta branca para atuarem na diocese, sendo incentivados por Dom
Paulo.294
A atuação do bispo e do principal representante do CETRA, o doutor Pinheiro, como
era chamado pelos camponeses é explicitada pelo entrevistado. O mesmo ressalta o
protagonismo dos camponeses e das lideranças sindicais que cobram do bispo uma postura
mais direta na interferência do conflito, muito embora, o bispo fosse favorável às causas dos
oprimidos. Como se depreende da narrativa, por várias vezes os camponeses ―falaram forte‖
com Dom Paulo.

[...] Doutor Pinheiro também já estava no trabalho e começou a falar com o


bispo pra entrar na discussão. Dom Paulo. Dom Paulo ajudou muito. Fez
várias reuniões com a gente lá na Itapipoca. Várias vezes a gente falou forte
pra Dom Paulo né? Dizendo que a igreja com a verdade na mão e não queria
fazer nada... mas, Dom Paulo foi acordando, foi melhorando e foi também
ajudando no conflito.295

A narrativa de Luís Gonzaga, frequentemente, remetia-lhe ao seu lugar de fala


camponesa, mas também, ao seu lugar de fala enquanto representante sindical. Sua afirmação
de que: ―Várias vezes a gente falou forte pra Dom Paulo né?‖, denota uma ação coletiva, mas
sob sua iniciativa, que atuava como presidente do sindicato. Não obstante, em toda sua
narrativa, seu Luís vai enfatizando as dificuldades e as vitórias que conseguiu enquanto estava
à frente do sindicato dos trabalhadores rurais de Trairi. Para além desse conflito de Salgado
do Nicolau, também conta detalhadamente o conflito ocorrido na comunidade das Quinta,
também pertencente ao município de Trairi, que resultou em outro assentamento, decorrente
da desapropriação via INCRA. 296

294
O assassinato dos três camponeses de Trairi foi registrado pela Comissão Pastoral da Terra – CPT, em seu
Caderno Conflitos de Terra no Brasil, referente ao ano de 1986. Esse mesmo Caderno informa sobre a
quantidade de conflitos de terra ocorridos por estado, sendo contabilizados 96 conflitos para o estado do Ceará
no referido ano. Entre os camponeses assassinados nesses conflitos também se encontra Benedito Antônio
Moreira, Benedito Tonho, de 27 anos, assassinado no conflito da comunidade de Queimadas, em Coreaú, zona
norte do Ceará. Assim como os Veríssimos, Benedito Tonho também integrava o Movimento do Dia do Senhor e
se tornou um mártir da luta pela terra para o povo do Movimento. Cf.:
http://www.direito.mppr.mp.br/arquivos/File/Politica_Agraria/Conflitos1986.pdf. Acesso: 18 jan. 2020.
295
Entrevista realizada com Luís Gonzaga Teixeira, em 08 de abril de 2017, no município de Trairi - CE.
Entrevista citada.
296
―Chamamos a comunidade daqui, veio umas cem pessoas... aí nós tocamos pra lá, era umas cento e cinquenta
pessoas, aí encontramos com o pistoleirão de lá pra cá, num gipão, aí a negada pegaram esse jipe, pararam ele,
mandaram ele ir embora e o caboco ficou tremendo ( risos)... Mas um dia nós resolvemos a boca de noite, se
reunimos com a comunidade e dissemos: ―vamos levar pro Incra, né?‖ Nessa época, o João Alfredo era
advogado... nós ligamos primeiro pro Pinheiro né? Depois o Pinheiro passou pra ele e nós chegamos com uma
carrada de gente lá... Chegamos lá no Incra, você sabe como é a burocracia né... então minha filha, nós passamos
um dia em negociação, quando foi duas horas da tarde eles mandaram um avião aqui fazer uma topografia aérea
190

Luís Gonzaga também ressalta as querelas que se resolveram pacificamente, através


das negociações entre os camponeses e os proprietários, durante seu mandato de presidente
sindical. Como afirma: ―Nós conseguimos arrancar do patrão 114 hectares do patrão e
colocar na mão de um trabalhador. Mas, isso nos custou muito caro né?!‖.297 Outro legado de
seu mandato foi o estímulo à sindicalização feminina. Sua própria esposa, Socorro Teixeira,
passou a ser sindicalizada e a atuar no trabalho de conscientização e organização das mulheres
de diversas comunidades rurais. Conforme se evidencia em sua narrativa:

Eu entrei no sindicato em oitenta e nove. Eu me lembro que o sindicato era


muito pelego, principalmente, o de Trairi, nessa época. Em noventa, as
mulheres aqui do trairi, não tinha nenhuma associada. Todas, o marido era
associado e elas eram dependentes do marido. Quando foi no noventa e um,
um ano que eu era presidente lá, eu fiz uma assembleia e abri para todas as
mulheres que tivessem naquela assembleia dali em diante começar a se
associar no sindicato... As mulheres começaram a participar, a se organizar.
Socorro também foi uma que organizou várias reuniões nas regiões fazendo
documentos, coitadinhas. Naquela época tinha um documento que as mulher
tinham que eu não me lembro agora... que o cartório fazia um documento.
Como era filha aquele documento? Socorro me ajude aqui. Como era aquele
documento que não valia pra aposentadoria? Doméstica. Pronto. Então, os
cartórios faziam um documento de doméstica né, e quando chegava na hora
da aposentadoria não tinha condições de aposentar. E aí nós começamos a
fazer um trabalho em cima desse documento... aí o documento da doméstica
já valeu a pena e quando nós saímos no noventa e cinco eu deixei mais
mulheres associadas do que homem no Trairi. 298

Percebe-se em todo momento, o prazer do entrevistado ao narrar sua história de vida e


de luta. Juntamente com sua história, conta a história de outros companheiros e companheiras.
Uma experiência que se construiu individual e coletivamente. Nesse sentido, infere-se que o
modo como o entrevistado narra sua história de vida, sempre se remetendo ao seu lugar social
e com regozijo ao contar suas lutas, portanto, suas vitórias, que são contadas também como as
lutas e vitórias da classe camponesa remete-lhe a elementos constitutivos de sua própria
identidade, ou àquilo que representaria a identidade camponesa.299

e aí, antes da noite, chegaram lá com a topografia aí quando foi no dia seguinte, já mandaram o pessoal todo de
volta, aí ficou todo mundo lá. Até hoje continuam lá. Isso foi o começo do conflito. Foi o das Quinta, né?‖.
Idem.
297
Ibid.
298
Ibid.
299
Nesse sentido Elizabeth Jelin ajuda a pensar a tensa relação entre a constituição de identidades e a memória,
que é social e ao mesmo tempo, individual e subjetiva. ―Esta relación de mutua constitución implica un vaivén:
para fijar ciertos parámetros de identidad (nacional, de género, política o de otro tipo) el sujeto selecciona ciertos
hitos, ciertas memorias que lo ponen en relación con «otros». Estos parámetros, que implican al mismo tiempo
191

Faz-se necessário registrar um fato peculiar à entrevista de Luís Gonzaga Teixeira,


pois o mesmo se ofereceu para falar durante a entrevista realizada com sua esposa, Maria do
Socorro Teixeira. Na verdade, a intenção da pesquisadora era ouvir a história das mulheres
camponesas. Diante desse fato, pressupõe-se uma sutil disputa de memórias travada entre seu
Luís Gonzaga e sua esposa, mais precisamente, uma disputa de memórias gendradas, pois nos
trabalhos da memória também se verificam elementos constitutivos das relações de gênero.
Por esse caminho, seu Luís colocou sua cadeira de balanço ao lado da esposa, e ali no
alpendre de sua casa, ficou desde o início da entrevista até o fim, interferindo na narrativa de
dona Socorro, constantemente, até tomar a palavra completamente para si. A todo o momento,
o esposo se colocava na entrevista da mulher, perguntando: ―eu posso ajudar?‖. Sua ajuda
vinha no intuito de contribuir com algumas informações, principalmente, àquelas voltadas ao
tema da luta pela terra, como se esse assunto fosse monopólio do masculino.
Entretanto, é interessante notar que no trecho supracitado, por uma única vez durante a
entrevista, o comportamento de Luís Gonzaga se inverte quando o mesmo diz: ―Socorro me
ajude aqui‖. Nesse momento, o esposo solicita a ajuda da esposa para esclarecimento de um
dado referente ao trabalho de organização feminina que era realizado por dona Socorro. Pode-
se inferir que, com relação a esse tema, ele tinha consciência de que adentrava em um
território de domínio de sua mulher.
De fato, sua esposa e muitas outras camponesas das comunidades rurais de Trairi
participavam dos Grupos de Esposas do Movimento do Dia do Senhor, como também,
estiveram ativas nas lutas pelas terras onde moravam, atuando juntamente com os homens, às
vezes, até assumindo a linha de frente dos conflitos. Pressupõe-se que associação feminina no
sindicato de Trairi muito se deve à participação das mulheres nas lutas pela terra, de onde
conseguiram o respeito e o reconhecimento masculino. Nesse sentido, Luís Gonzaga Teixeira
relembra a força feminina ao enfrentar as ameaças do pistoleiro Cobra D‘água:

As mulheres... teve várias agressões com as mulheres. Teve mulher que


sofreu... Eu sei que a Elita foi uma delas que sofreu. A Elita que trabalhou no
sindicato comigo. Eu me lembro de duas que sofreu agressão dele. Não
bateram, mas agressões, assim, de palavrões e agressões, assim, de fazer
medo né? Mas, elas sempre forte. 300

resaltar algunos rasgos de identificación grupal con algunos y de diferenciación con «otros» para definir los
límites de la identidad, se convierten en marcos sociales para encuadrar las memorias‖. (p. 25)
300
Entrevista realizada com Luís Gonzaga Teixeira, em 08 de abril de 2017, no município de Trairi - CE.
Entrevista citada.
192

Desse modo, se haviam divergências internas na comunidade, bem como, nas relações
de gênero, nos momentos de luta pela terra, tais divergências se apaziguavam em nome de
uma causa comum à própria sobrevivência de todos. Maria Elita de Sousa do Nascimento,
referenciada na entrevista de Luís Gonzaga, foi uma das participantes do Movimento do Dia
do Senhor e, também, trabalhou como tesoureira no sindicato rural de Trairi. A mesma situa a
atuação das mulheres nos conflitos de Salgado do Nicolau. Sua narrativa corrobora com as
informações de seu Luís Gonzaga, pois afirma que as mulheres participavam juntamente com
os homens da comunidade e conquistavam o respeito dos companheiros pela força e coragem
demonstradas. A narrativa de Elita recupera o início do conflito e evidencia o papel da
mulher nessa luta:

Começou a luta da terra lá nos anos oitenta, começou a luta da terra e eu


fiquei nessa luta diretamente, era vinte e quatro horas. A gente lutou uns dez
anos, mais de dez anos, pra gente conseguir a terra que nós tem hoje lá no
Salgado dos Nicolau, município do Trairi. E assim, morreu gente, três
pessoas duma casa. Um pai e dois filhos na luta pela terra; e a gente fazia
cerca e eles queimavam e a gente se juntava... a comunidade, as mulheres em
ciranda iam na frente e, se precisasse, os homens iam atrás. Eu sei que foi
uma luta de muita coragem que nós tinha e mais era as mulher... Era do
fazendeiro chamado Hermenegildo, ele chegou lá dizendo que a terra era
dele, nós dissemos que a terra era nossa, nós dissemos que não tinha
documento de terra, ele disse que tinha e a gente continuou, ele derrubando
as cercas e nós fazendo... Lá tinha um cobra d‘água, que eles mandaram esse
cobra d‘água ir pra lá pra expulsar a gente da terra porque se o cobra d‘água
conseguisse queimar essa cerca, botar gado dentro do nosso roçado, aí eles
sabiam que a gente ia embora. E mesmo com isso nós ficamos lá e eles
tocaram fogo no cercado, mas mesmo assim a gente não saiu de lá, ficamos
três meses sem nada...na época, era quarenta e cinco famílias. 301

Em sua narrativa, Elita demonstra um enfrentamento direto das mulheres contra o


poder do latifúndio. Desse modo, entende-se que as mulheres de Salgado do Nicolau
desenvolveram estratégias próprias para lidar com o inimigo. A tomada da linha de frente
pelas mulheres, ―em ciranda‖, significa um posicionamento consciente sobre o poder
simbólico que o gênero feminino exercia. Ou seja, tomava-se o lugar dos homens, pois
sabiam que as representações, historicamente ensinadas sobre o feminino, de fragilidade,
emoção e irracionalidade, de alguma forma iriam contar a seu favor, já que, moralmente, na

301
Entrevista realizada em 15 de outubro de 2015 com Maria Elita de Sousa do Nascimento, moradora da
Comunidade salgado dos Nicolau, Trairi. Diocese de Itapipoca. Arquivo da autora.
193

realidade do campo, não seria aceitável se confrontar com mulheres, numa luta que se
considerava desigual. 302
Nesse sentido, tanto o dono da terra, quanto os pistoleiros contratados para expulsar o
povo da comunidade, como também, a polícia acionada para garantir a legalidade do
latifundiário não teria legitimidade para se chocar contra as mulheres da comunidade, pois se
pressupunha um embate somente entre homens. Apropriando-se desses códigos simbólicos
que permeiam o universo das relações de gênero, as mulheres da Comunidade de Salgado do
Nicolau procuravam tirar vantagem na luta pela defesa de sua terra e de seus homens.
A resistência camponesa é outro aspecto que se evidencia na narrativa da entrevistada,
pois os camponeses passaram meses sem plantar e sem colher devido ao acirramento do
conflito. Esse fato também aparece no relato de Luís Gonzaga Teixeira, quando rememora as
dificuldades enfrentadas durante o processo de luta pela terra. Nesses casos, o que mais
contava era solidariedade dos pobres do campo. Conforme ressalta seu Luís Gonzaga, a ajuda
vinha de outras comunidades, dos sindicatos rurais e dos movimentos sociais. Quanto ao
período exato que os camponeses estiveram impedidos de usar a terra, a memória dos
entrevistados vacila. Enquanto Elita conta três meses, Luís Gonzaga menciona quatro.

Mas logo o proprietário veio e botou eles tudo no meio da rua, aqui no salão,
sabe? Se apropriou lá e aí minha filha foi difícil. Nós passamos, me parece,
que quatro meses com o pessoal aí, a gente arrumando recurso, pedindo as
comunidades. A gente também doando o que a gente podia, né? 303

Elita rememora outro episódio, em que se evidencia a coragem de uma mulher ao


enfrentar o policial, ao mesmo tempo em que, percebe-se um desdém da coragem feminina ao
passo que o policial lhe diz para ―cozinhar seu feijão‖ numa clara associação da mulher ao
espaço do lar e da passividade, espaços historicamente associados ao feminino.

Sim, eles chamaram a polícia. Na vez que eles queimaram a cerca que a
gente foi fazer a cerca de noite, eles chamaram a polícia e a polícia ficou lá
atirando nos pés da gente. E nessa noite... eles levavam uma pessoa, uma
pessoa da gente... Eu acredito que o confronto era o mesmo, só que eles
tinham um pouco de receio com a gente. Porque assim, a gente tinha medo,
302
Nesse sentido, o conceito de estratégia de Certeau ajuda a entender o posicionamento tomado por essas
mulheres. ―[...] Chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a
partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição
científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio a ser a
base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou
concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos e objetos da pesquisa, etc.) Como na
administração de empresas, ‗toda racionalização estratégica procura em primeiro lugar distinguir de um
‗ambiente‘ um ‗próprio‘, isto é, o lugar do poder e do querer próprios.‖. (p. 93)
303
Entrevista realizada com Luís Gonzaga Teixeira, em 08 de abril de 2017. Entrevista citada.
194

mas a gente tinha aquela confiança tão grande em Deus que você ia
espontaneamente, não queria nem saber se ia acontecer alguma coisa. Eu até
hoje fico assim me perguntando como era que a gente tinha aquela coragem
de enfrentar aquele povo? Eu tinha uma tia... a Tereza de Souza que
faleceu... que ela esculhambava eles, esculhambava. Ai eles dizia assim:
mulher vai cozinhar teu feijão. E ela esculhambava eles, afrontava assim,
botava era o dedo na cara deles. Mas foi muito bom essa experiência que a
gente teve.304

Torna-se claro na narrativa de Elita que as mulheres da comunidade sabiam dos riscos
que enfrentavam ao desafiar o poder da polícia e do latifúndio, mas apostavam no ―receio‖
que o inimigo tinha do confronto direto com elas. Ao mesmo tempo, se destaca a dimensão da
fé, talvez o elemento que norteasse toda a ação dessas mulheres contra as injustiças que
estavam sofrendo, ao passo que Elita ressalta ―mas a gente tinha aquela confiança tão grande
em Deus que você ia espontaneamente, não queria nem saber se ia acontecer alguma
coisa‖.305
A proteção divina e a crença de que as mulheres na linha de frente do conflito iriam
intimidar a truculência do confronto fazia com que mulheres comuns em que, na maioria das
vezes, seu único campo de ação era o espaço doméstico ou, quando muito, os espaços de
reflexão vivenciados no Movimento do Dia do Senhor, tomassem consciência de si e de sua
função política e social, durante conflitos dessa dimensão, assumindo papéis antes
considerados inapropriados para o feminino.
Assim como no conflito de Salgado do Nicolau, nos conflitos da comunidade de
Maceió, em Itapipoca e de Almofala, em Itarema, as mulheres também se fizeram
protagonistas das lutas pela terra. As estratégias de ação feminina se repetiam de uma
comunidade para outra, muito embora cada experiência seja única. O fato é que em todas
essas lutas se ressaltaram exemplos de mulheres fortes, registradas na memória oral e escrita
de cada uma dessas comunidades.

304
Entrevista com Maria Elita de Sousa do Nascimento, em 15 de outubro de 2015. Entrevista citada.
305
Ibid.
195

Figura 6 MDA – INCRA - Projetos de Reforma Agrária Conforme fases de Implementação. Projeto de
Assentamento Lagoa do Mineiro / Projeto de Assentamento Maceió

Fonte: site: http://www.incra.gov.br/sites/default/files/uploads/reforma-agraria/questao-agraria/reforma


agraria/projetos_criados-geral.pdf.
196

Figura 7 MDA – INCRA - Projetos de Reforma Agrária Conforme Fases de Implementação. Projeto
de Assentamento Várzea do Mundaú

Fonte: site: http://www.incra.gov.br/sites/default/files/uploads/reforma-agraria/questao-agraria/reforma


agraria/projetos_criados-geral.pdf.
4. QUARTO CAPÍTULO: Relações de gênero e sexualidade: “a
Última Fronteira”
197

“Que possamos ter um mundo onde homens e mulheres,


sonhem o mesmo sonho, o sonho da igualdade e da paz.” (Nazaré Flor.
Assentamento Maceió. Itapipoca - CE)

4.1. “...não era pra pegar nem na mão”: namoros, casamentos e sexualidade no
campo

As camponesas que compunham os grupos de esposas do Movimento do Dia do


Senhor não tiveram uma escolarização formal, tendo em vista que não frequentaram escolas.
Receberam um pouco aprendizado das letras, ainda na infância, sendo ensinadas em suas
próprias casas por professores ou professoras particulares, pertencentes à comunidade, que
recebiam parcas quantias pelo seu trabalho, ou sendo o pagamento realizado em espécie, com
algum animal ou gênero alimentício. Na maioria das vezes, era um ensino irregular, visto que
o grau de escolarização, até mesmo, desses mestres era limitado. Nesse sentido, situa-se a
experiência escolar de Rosa Marques e de seu esposo, Paulo Marques da Costa, na
comunidade de Serra Verde, localidade pertencente ao município de Sobral. Segundo as
memórias de Rosa:

Escola, nessa época, tinha um home lá na Serra Verde que ele, finado Ze
Leão, ele começou a ensinar escola, assim: ele pegava as criança, pessoal
jovem, que isso aí, já meu esposo teve a vontade de estudar muito novo
também, aí eles conversaro com ele, com o finado Ze Leão pra ele ensinar a
escola. Que os pais de família pagava pra ele ensinar. Ai o estudo da gente lá
na Serra Verde foi assim. 306

Rosa nasceu e cresceu na Serra Verde. Casou-se aos quatorze anos com seu primo
legítimo no dia 14 de outubro de 1962. Assim como muitas das camponesas do Movimento,
casou-se muito jovem. Das entrevistadas para essa pesquisa, Rosa foi a que casou mais jovem.
Praticamente, ainda criança. No entanto, ressalta-se que a experiência desse casal traz algo
singular: o fato de que a vontade de aprender ultrapassou as limitações da falta de escola e, até
mesmo, o cansaço diário advindo das atividades laborais. O pouco aprendizado adquirido com
o ―finado Zé Leão‖ serviu de base para que Rosa e Paulo desenvolvessem uma prática

306
Entrevista com Rosa Marques, realizada em 30 de abril de 2010, na localidade de Recreio, distrito de Rafael
Arruda, Sobral – CE. Arquivo da autora. Rosa nasceu em 1948, no momento da entrevista contava com 62 anos.
198

pedagógica a partir da escrita de cartas de amor e da livre imaginação, como se evidencia na


narrativa abaixo:

Desse estudo que ele aprendeu, quando nós casemo, nós sabia bem pouquim
leitura. Mas, acontece que, nós dois usamo uma escola... ele ia pro roçado...
aí a horinha que eu tinha tempo, eu escrevia uma carta pra ele cuma que eu
tivesse lá no Sul, cuma que eu tivesse longe dele, tá entendendo? Aí quando
ele chegava pra almoçar eu entregava a carta pra ele. Aí, ele lia. Aí, quando
era de noite ele ia responder aquela carta pra mim... e essa maneira serviu
pra nós desenvolver [...]. 307

No meio rural cearense de meados do século XX, nem só o acesso à escola era
limitado, como também, as comunidades eram pouco desenvolvidas. Como relembra Rosa
Marques, ao falar de Serra Verde: ―[...] lá naquele tempo não tinha isso que tem hoje, não
tinha televisão, não tinha som... era só no gás mesmo... que é o querosene. A gente levava
uma luz, levava que era pra clarear nas estradas onde a gente passava‖.308 Aliás, segundo a
entrevistada, sua localidade só recebeu energia elétrica no ano de 2005. Antes disso, fora
instalado um projeto de energia solar. 309
Rosa relembra o cotidiano das famílias camponesas e as formas de sociabilidade
comunitária, os tipos de lazer que a juventude improvisava na comunidade. Sua memória dos
tempos de solteirice recupera brincadeiras comuns à realidade sertaneja de outrora:

Olha, no tempo que eu nasci já morava muita gente lá... e aí é tudo amigo...
era quase tudo uma família... sempre gostaro, os pais de família visitar as
outras família e, naquela oportunidade que os pais ia visitar as outras família,
os jovens se reunia que era pra brincar, aquilo era uma vida... porque naquele
momento, os jovens se reunia pra brincar de cirandinha, raminho de amor,
era esse o divertimento que tinha. E outra ora também, era o terço... no dia
que tinha terço nas casa, eles já convidava os amigo e a gente ia pra lá pra
rezar o terço ... No tempo da gente jovem, a animação era assim... Meu pai
tocava pife, e eu tenho uma prima... aí ela tocava numa latra... aí fazia aquele
forrozim que era pros jovem brincar.310

307
Ibid.
308
Ibid.
309
O projeto de energia solar resultou de um convênio firmado entre a Prefeitura Municipal de Sobral e o
Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Energias Renováveis – IDER, o Banco do Nordeste e o Governo do
Estado, com a finalidade de beneficiar as comunidades de Serrinha, no distrito de Taperuaba e Serra Verde, na
localidade de Recreio, no distrito de Rafael Arruda. Tal convênio se firmou na gestão do prefeito Cid Gomes e
angariou 28 mil reais. As duas comunidades foram as primeiras beneficiadas, no entanto, o projeto tinha o intuito
de levar energia solar para todas as comunidades rurais de difícil acesso. Informações retiradas do Boletim da
Prefeitura Municipal de Sobral, 05 de junho de 2000 – Ano IV. Cf.: boletim.sobral.ce.gov.br. Acesso em: 02 abr.
2019.
310
Entrevista com Rosa Marques, realizada em 30 de abril de 2010. Entrevista citada.
199

Assim, como na Serra Verde, em outras comunidades rurais, a diversão para a


juventude estava restrita ao improviso ou, na maioria das vezes, ao calendário das festividades
religiosas, momentos em que essas comunidades recebiam a visita de diversos padres e do
pároco, bem como, de muitos fiéis, vindos de localidades vizinhas. Essas festas alteravam a
rotina da população local e ocasionavam uma efervescência que mesclava as dimensões do
sagrado e do profano, ao passo que a juventude se dividia entre os momentos de oração na
capela e o baile dançante.311 Dessa forma, as mulheres das comunidades rurais do município
de Trairi, pertencente à diocese de Itapipoca, relembram que durante as festas de sua
juventude: ―[...] Ora, fazia um vestidão de chita muito bonitão, pois era, aí tinha aquelas
bandas, só sanfona, coisinha pouca né?‖312
As festas que marcaram a memória das entrevistadas são referentes ao carnaval, São
João e natal, assim como, as novenas dos padroeiros. É possível vislumbrar que, algumas das
festas relembradas fossem frequentadas comumente pelas entrevistadas, como as festas ―nas
Lage‖, que aparecem nas narrativas abaixo, o que suscita uma rede de sociabilidade a qual
essas mulheres pertenciam antes mesmo de se engajarem no Movimento do Dia do Senhor,
tendo em vista que já se conheciam e que moravam na mesma localidade.
Tais festas se apresentavam como eventos propícios para a paquera, para o início de
um namoro, ou mesmo, para se roubar um beijo da amada, visto que nos tempos de juventude
das camponesas do Movimento, o recato e o pastoreio dos pais eram características marcantes
dos modos de namoro. Portanto, beijo na boca, só se fosse roubado.
Nesse sentido, Maria Socorro Teixeira, esposa do ex-dirigente do Dia do Senhor, Luís
Gonzaga Teixeira, da comunidade de Gualdrapas, em Trairi, recupera sua experiência de
namoro. Importante ressaltar que durante toda entrevista, o esposo ficou sentado ao seu lado,

311
Pierre Bourdieu em um estudo sobre a juventude camponesa de uma cidade do sudoeste da França durante a
década de 1960 afirma que: ―[...] Em virtude da separação radical entre a sociedade masculina e a sociedade
feminina, em virtude do desaparecimento dos intermediadores e do afrouxamento dos laços sociais tradicionais,
os bailes que periodicamente se realizam no bourg ou nos vilarejos vizinhos se tornaram a única ocasião
socialmente aprovada de encontro entre os sexos. Em consequência, esses bailes oferecem uma ocasião
privilegiada para se compreender a raiz das tensões e dos conflitos.‖ Cf.: BOURDIEU, Pierre. O camponês e seu
corpo. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 26, p. 83-92, jun. 2006, p. 84. Nesse estudo, o autor oferece pistas para uma
reflexão em torno da cultura e do cotidiano camponês, tendo como ênfase as relações de gênero, demonstrando
que as condições econômicas e sociais influenciavam no comportamento camponês e na introjeção de um padrão
de corpo ―encamponizado‖ para o homem rural, que internalizava a cultura do campo. Ao ser comparado com os
padrões de cultura do homem urbano, esses camponeses eram desvalorizados pelas jovens da localidade, visto
que não tinham hábitos refinados e nem jeito para dançar nos bailes, o que ocasionava um elevado índice de
homens que se tornavam ―solteirões‖ porque não correspondiam às expectativas das mulheres do lugar.
312
Entrevista com Terezinha Santos de Oliveira Moura, realizada em 08 de abril de 2017, na comunidade de
Gualdrapas, em Trairi – CE. Nasceu em 1944, no momento da entrevista contava 73 anos. (Arquivo da autora)
200

ora ajudando a memória de Maria Socorro, quando vez por outra, era consultado pela mesma,
ora se colocando na conversa como o dono da história, principalmente, nos momentos em que
a conversa se direcionava para a temática dos conflitos de terra. No entanto, as lembranças da
juventude, compartilhadas pelo casal, fluíram entre risos e consensos:

[...] A gente namorou dois anos foi? Três anos e seis meses pra gente chegar
a casar... era quarta, sábado e domingo... embora que fosse, assim, um
pouquim de tempo. Só era até oito e meia, nove hora, era nosso horário, era
só até essas hora e quando chegava, tinha que vim pra dentro da sala, sentava
encostadinho do papai. Papai tinha uma rede, assim, perto, deitava e a gente
ficava ali debaixo de uma lamparinazinha, bem guardadim, não era pra pegar
nem na mão (risos)... Quando a gente ia uma novena em Amontada, uma
noite de natal, que era escuro, às vezes, a gente ficava um pouquim pra trás,
acontecia um beijo tão roubado, se não, podia alguém olhar pra trás. (risos)
313

O distanciamento entre as casas no meio rural facilitava o isolamento entre as famílias,


tanto que visitar algum vizinho era considerado ―um passeio‖, tendo em vista a distância que
se percorria. Muitas vezes, ia-se a pé. Mas, também, era comum utilizar-se de alguns animais
de carga como burros ou cavalos. Isso implicava também na rotina dos namoros, pois o rapaz
só podia frequentar a casa da namorada uma vez por semana, ou com um intervalo de quinze
dias. Talvez, por isso, os períodos de namoro fossem tão curtos, restringindo-se a poucos
meses de convivência antes do casamento. Assim, Terezinha Santos de Oliveira Moura,
esposa do ex-dirigente Francisco Alexandre, ambos de Gualdrapas, Trairi, relembra o início
do seu namoro:

Ele ia de burra, ele tinha uma burra e ia amuntado, né? Ia de quinze em


quinze dia, de oito em oito dia... Teve um evento nas Lage, São João, ai eu
fui e ele tava lá. Aí a gente dançou. Eu também nem me preocupei de vê
mais ele. Pensei que tinha sido só naquele dia. Mas, depois eu tava numa
farinhada aqui em Gualdrapas na casa dos meus padrim, aí ele tava por lá, aí
gente começou a conversar de novo... com pouco tempo nós casemo.314

A História de Antônia de Castro Sales, conhecida por Toinzinha, casada com seu
Geraldo, também da localidade de Gualdrapas, assemelha-se às demais. No momento de sua
entrevista, no ano de 2017, seu esposo sofria com Alzheimer, o que tornou suas lembranças

313
Entrevista com Maria Socorro Teixeira, realizada em 08 de abril de 2017, na comunidade de Gualdrapas, em
Trairi – CE. No momento da entrevista, dona Socorro contava 72 anos. (Arquivo da autora)
314
Entrevista com Terezinha Santos de Oliveira Moura, realizada em 08 de abril de 2017, já citada.
201

mais significativas, pois recuperou um tempo de juventude, felicidade, saúde e amor entre o
casal. A narrativa de dona Toinzinha, com 71 anos, foi marcada por um misto de risos e
lágrimas. 315

O Geraldo, eu conheci ele de pequeno... Aí desde pequeno a gente se via,


mas era assim... Aí ele tinha uma namorada, que ele era mais velho, ne?
Noivou... Ai sei que se acabou o casamento. Aí, ele tava fazendo uma casa,
que nós moramo, pra casar com essa jovem. Ai todo dia que o pedreiro
passava eu mandava dizer assim: ―diga o Geraldo que faça minha casa bem
feita‖. Olha o meu inxirimento... Ai um dia nas Lage, festa de carnaval. Ah
foi só nós se olhar, e foi só seis mês de namoro... Era de oito em oito dia. Dia
de quarta-feira... eu peguei na mão do Geraldo na semana de nós casar.
Quando ele pegou, eu tirei... E mais, com oito dia era que ia pra casa. E eu
tive uma sorte, no dia que casei, menstruei. (risos).316

A narrativa de dona Antônia traz implícito o aspecto da sexualidade, experimentada


com o matrimônio. No seu entender, teve sorte ao menstruar no dia do casamento, porque
pôde adiar por mais um tempo sua lua de mel. Assim como dona Antônia, muitas das
entrevistadas relataram que antes do casamento desconheciam qualquer assunto sobre relação
sexual. Nem mesmo, durante a preparação para o casamento, eram orientadas por suas mães,
madrinhas ou irmãs mais velhas. Esse era um tema tabu para as famílias camponesas, das
quais as mulheres do Movimento eram oriundas. 317
Por seu turno, a narrativa de dona Terezinha sugere que nem só as jovens virgens eram
desinformadas sobre tal assunto. No seu caso, seu próprio esposo, Francisco Alexandre,
também demonstrou inexperiência no início da vida conjugal. Ambos descobriram e
experimentaram vivências em torno da sexualidade no matrimônio juntos, tendo em vista, que
se casaram ―sem saber de nada‖. Segundo a entrevistada:

315
Nesse sentido, chama-se atenção para a especificidade da fonte oral, que por se tratar de pessoas, falam de
suas vidas, elaborando seus próprios sentidos e significados. Como afirma Portelli: ―[...] O principal paradoxo da
história oral e das memórias é, de fato, que as fontes são pessoas, não documentos, e que nenhuma pessoa, quer
decida escrever sua própria autobiografia (como é o caso de Frederick Douglass), quer concorde em responder a
uma entrevista, aceita reduzir sua própria vida a um conjunto de fatos que possam estar à disposição da filosofia
de outros (nem seria capaz de fazê-lo, mesmo que o quisesse). Pois, não só a filosofia vai implícita nos fatos,
mas a motivação para narrar consiste precisamente em expressar o significado da experiência através dos fatos:
recordar e contar já é interpretar. Cf.: PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os Fatos. Narração, interpretação e
significado nas memórias e nas fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro , vol. 1, n. 2, 1996, p. 59-72.
316
Entrevista com Antônia de Castro Sales, realizada em 08 de abril de 2017, na comunidade de Gualdrapas, em
Trairi – CE. (Arquivo da autora)
317
A discrição com relação às questões da intimidade parece ser uma marca do comportamento camponês não só
do Brasil. Pierre Bourdieu em seu referido estudo sobre a juventude camponesa, afirma que: ―[...] Tudo que é da
ordem da intimidade, da ―natureza‖, é banido das conversas. Mesmo que o camponês goste de contar ou de ouvir
as anedotas mais picantes, ele é extremamente discreto em relação a sua própria vida sexual e, sobretudo,
afetiva.‖ (p. 88)
202

Nós sem saber de nada. Até ele também não sabia de muita coisa não.
Porque quando eu fiquei grávida, aí ficou com medo eu e ele né? Aí ele foi e
perguntou a um amigo dele se ele podia ter relação com mulher grávida.
Também ele não sabia de muita coisa né? E eu não sabia era de nada. Sabia
que entre mulher e homem tinha alguma coisa, mas eu não sabia direito
como era o caminho. 318

Desse modo, mesmo depois de casadas, com a consumação da lua de mel, o que para
algumas dessas camponesas significou uma experiência traumática, visto o despreparo do
casal, ainda assim, a questão da sexualidade continuou sendo vista com pudor e restrição.
―[...] De maneira geral, os sentimentos não são temas sobre os quais o camponês fica à
vontade para falar. A inabilidade verbal, que vem se juntar à inabilidade corporal, é
vivenciada no desconforto tanto do rapaz como da moça [...]‖. 319
Fazendo um contraponto entre as narrativas das mulheres entrevistadas para essa
pesquisa e a narrativa das mulheres entrevistadas por Maria Alice MacCabe, ainda nos anos
de 1992 e 1993, mas que pertenciam à mesma geração, percebe-se uma semelhança nos
modos de educação em que essas mulheres eram criadas, principalmente, no que tange à
questão da sexualidade. 320
Tal educação correspondia e, talvez, corresponda até os dias atuais, ao modelo de
educação pautado por uma perspectiva de gênero, marcada pela cultura patriarcal que situa a
mulher em um lugar de passividade em todos os sentidos, principalmente, no âmbito sexual,
tendo que preservar sua honra e virgindade.
No Brasil, como demonstrou a historiadora Mary Del Priore, em sua obra ―Ao Sul do
Corpo‖, esse modelo de educação é tributário do processo de colonização. A forte influência
religiosa, com o discurso médico a seu favor, contribuiu para que se forjasse um projeto
normatizador do corpo e da mente femininos com o intuito de introjetar nas mulheres o
modelo Mariano de boa mulher, esposa e mãe exemplar, combatendo, assim, qualquer modelo
destoante que ameaçasse os preceitos católicos. 321

318
Entrevista com Terezinha Santos de Oliveira Moura, realizada em 08 de abril de 2017, já citada.
319
Ainda me apropriando das reflexões sobre as relações de gênero trabalhadas no texto de BOURDIEU, p. 88.
320
Refiro ao livro História na mão. Algumas camponesas contam como se conscientizaram. (uma História
Oral), de autoria da religiosa norte-americana Maria Alice MacCabe. Durante seu trabalho de Coordenação dos
Encontros de Esposas se aproximou muito de algumas camponesas e realizou entrevistas com dez mulheres
pertencentes às comunidades do litoral de Itapipoca.
321
Segundo Mary Del Priore: ―[...] A Igreja apropriou-se também da mentalidade androcêntrica presente no
caráter colonial e explorou as relações de dominação que presidiam o encontro de homem e mulher,
203

Esses aspectos se evidenciam em várias narrativas que serão analisadas daqui por
diante. Por se tratar de uma temática que envolvia a intimidade conjugal, Maria Alice preferiu
preservar o anonimato de suas entrevistadas. Desse modo, a narrativa abaixo corrobora com o
modelo normatizador do comportamento feminino. Destaca-se a participação da mãe nesse
processo, transmitindo os valores morais necessários para que sua filha correspondesse ao
modelo ideal de mulher, ou seja, recatada, virgem e honrada socialmente.
Assim, sua mãe cuidava para que a filha não fosse desrespeitada, ensinando-a a manter
distância dos rapazes. Certamente, todo esse cuidado era decorrente do receio da perda da
virgindade feminina antes do casamento, o que correspondia cair em desventura moral e
religiosa, tornando-se uma vergonha para a família, principalmente, para a mãe, sobre quem
recairia a culpa da perdição da filha. Nesse caso em questão, a entrevistada contava do medo
que introjetara devido ao controle de sua educação.

Eu era muito educada nessa parte de ter medo de home e tudo. Eu tinha
medo mesmo! E acreditava, sabe? Um dia um rapaz olhou assim pra mim e
eu percebi qu‘ele estava querendo se aproximar de mim, assim. Conversou
comigo. Que o namoro do meu tempo era só conversa mesmo. Hoje em dia
conversa num é mais namoro, né?... Depois eu comecei a namorar com este
rapaz que eu me casei. E a minha mãe ficou logo assim muito espantada. Ela
todo tempo dizendo que tivesse cuidado, que mulher não podia se aproximar
de homem, homem era como fogo e a mulher era como uma estopa. E o
homem... o fogo perto da estopa queimava. O homem perto da mulher
desrespeitava. A mulher tinha que ter toda honra, todo respeito, longe,
separada do homem. Que é engraçado né? Rá! Rá! Rá!322

Nesse sentido, ressalta-se que essa narrativa expressa uma forma de reprodução
cultural que atravessava gerações de mulheres. Inclusive, a própria entrevistada faz uma
interpretação de que essa forma de pensamento associando o homem e a mulher ao fogo e à
estopa decorria da influência religiosa que sua mãe recebeu e, assim, transmitia para as filhas.
Em suas palavras: ―Ela tinha muita informação dos padres, né?... e aí, ela botava isso na
cabeça da gente‖. 323

incentivando a última a ser exemplarmente obediente e submissa. A relação de poder já implícita no escravismo
reproduzia-se nas relações mais íntimas entre marido e mulher, condenando esta a ser uma escrava doméstica,
cuja existência se justificasse em cuidar da casa, cozinhar, lavar a roupa, servir ao chefe da família com o seu
sexo, dando-lhe filhos que assegurassem a sua descendência e servindo como modelo para a sociedade com que
sonhava a Igreja‖. DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo. Condição feminina, maternidades e mentalidades no
Brasil Colônia. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 26.
322
McCABE, 1994, p. 216.
323
Pelas informações obtidas em conversas informais com Ana Rosa Ferreira da Silveira, filha de Rita de Cássia,
conjectura-se que essa entrevista seja de sua mãe. Tal conjectura se explica porque a narrativa acima dialoga
204

De certo modo, essa influência religiosa na ordenação da vida social e, até mesmo
privada, também se configurou no Brasil desde os tempos coloniais.324 Talvez, no mundo
rural, durante o recorte temporal dessa pesquisa, a influência do discurso religioso tenha
obtido ainda mais força, pois devido à falta de outros canais de informação, a Igreja, através
dos padres e seus sermões, orientava e se mantinha vigilante do bom comportamento de seus
fiéis.
Continuando a narrativa, a entrevistada contou que casou com trinta anos. Embora
tardiamente, comparando-se à idade em que casavam as demais jovens do campo. A inocência
e a desinformação com relação ao que se sucedia durante a lua de mel também marcaram sua
experiência. O desconhecimento sobre o corpo masculino contribuía para aumentar a
vergonha e o medo nos primeiros contatos com seu esposo, conforme relembrou:

Ai chegou o dia, se casemo. Nós ficamos, fomos viver juntos. Eu era tão
inocente, que eu perguntei a ele!... Eu tinha vergonha demais dele.
Vergonha, pelo amor de Deus!... aí eu perguntei: ―... será que home é cumo a
mulher, que depois de grande, modifica também alguma coisa? No corpo
dele?‖ Rá! Rá! Rá!... Aí, eu fiquei sem saber né... mais sem saber de nada
mesmo... com toda inocência. Ele querendo se aproximar de mim e eu
morrendo de medo. E cismada e tremendo com medo. 325

Sua narrativa seguiu em tom performático e recuperou elementos que marcaram sua
subjetividade feminina, ao relatar que não sentiu prazer com a relação sexual, ao contrário,

com elementos presentes na narrativa de uma senhora de oitenta anos chamada Maria Artur de Sousa, que é mãe
de Rita e avó de Ana Rosa. A longa entrevista de Maria Artur apresenta muitos traços do discurso religioso que
defende a função procriadora da mulher. Nesse sentido, a anciã rememorou uma confissão feita ao padre
responsável pela comunidade de Juritianha, município de Acaraú, quando ainda era muito jovem, antes de ficar
viúva. A mesma enviuvou aos 28 anos de Pedro Sales de Maria, que morreu de tuberculose, deixando sua esposa
grávida. O casamento durou apenas sete anos, resultando sete filhos, dos quais morreram dois, ainda bebês. Ao
longo de sua vida, Dona Maria contou muitas vezes a história dessa confissão para suas filhas e netas, com o
intuito de repassar os ensinamentos do padre sobre o papel da mulher no casamento. Chamava a ―História dos
sete firmamentos‖ e contava que confessou ao padre que, diante do marido muito doente, evitava ter relação
sexual, justamente por medo de enviuvar e ter que cuidar de muitos filhos, sozinha. Dizia em sua narrativa: ―[...]
Meu velho, eu num quero isso mais, eu num quero esses carinhos, não. Você já tá velho, tá doente, e pode acaso
acontecer de morrer. E eu ainda hei de ficar com meninozinho bem novim, ou perto de ter um meninozinho?!
Isso é um sofrimento pra mim.‖ Diante da confissão, o conselho do padre foi o seguinte: ―[...] Ele disse assim: ‗a
mulher é do homem, a mulher não tem que se suvinar ao homem dela. Ela tando arrumada, com a roupinha
arrumada pra ir à missa, pra ir à missa, se o marido disse: venha cá, mulher!, ela tira a roupinha e vá fazer o que
ele quer. Que ela num peca mais de que se ela num for‘. Aí nosso senhor tem sete firmamentos e ele quer povoar
esses firmamentos todim... e a mulher que não tinha família Deus não queria bem. Porque ele quer povoar o céu
e a terra [...].‖
324
Nesse sentido, Del Priore chama atenção para a introjeção da Igreja Católica na vida colonial, ao passo que se
queria forjar uma sociedade colonial aos moldes da metrópole: portuguesa e cristã. Assim, segundo a autora:
―[...] do nascimento à constituição da família, da reconciliação à morte, da reza doméstica às celebrações
coletivas. E por ultimo, mas não menos importante, a Igreja exercia severa vigilância doutrinal e de costumes
pela confissão, pelo sermão e pelas devassas da Inquisição [...]‖. (p. 25)
325
McCABE. 1994, p. 217.
205

sentiu medo, pavor, assombro, arrependimento e choro. Ou seja, de suas palavras pressupõe-
se que o sexo se constituiu em uma prática negativa para sua vida, sendo enfrentada como
uma obrigação, devendo ser obedecida de acordo com os ensinamentos de sua mãe e da
Igreja. De uma maneira mais ampla, pode-se inferir que o ato sexual, da forma como era
experimentado pelas mulheres de sua geração, na maioria das vezes, era encarado com essa
conotação. Nesse sentido, sua iniciação sexual é narrada de forma crua, sem o tom romântico
que se imagina contornar o momento da lua de mel, forjado à luz da concepção moderno-
burguesa.

Quando veio o final de tudo! Aí, eu me arrependi tanto de ter casado! Disse:
―Ó, Se hoje viuvasse, não me casaria mais‖. Foi mesmo! Pensei naquele
momento. Quando terminou dele praticar o sexo comigo. Que eu fiquei
apavorada. Amedrontada. Morrendo de assombrada... mais fiquei, chorei
muito. Que prazer que dá uma coisa dessa a gente, né? Chorei demais.
Fiquei muito apavorada demais... Aí, pronto, eu fui me acostumando com a
vida com ele, né? Me acostumando assim... e fui vivendo a vida... Devia
aceitar aquilo... E tirar da cabeça, mesmo que ou gostasse ou não gostasse.
Mas tinha que viver porque tinha casado. 326

Para além de narrar o episódio traumático que foi a perda de sua virgindade, a
entrevistada ainda desenvolve um esforço narrativo para interpretar o fato. Em sua concepção,
a timidez e, até mesmo, a falta de prazer sexual estaria vinculado ao fato de que o sexo era
ensinado para as mulheres, desde cedo, como uma prática feia e suja. No caso da educação
masculina, ao contrário, era ensinado de forma natural, sem o peso do pecado que recai sobre
a consciência feminina. Tal concepção perpassa a construção histórica e cultural dos papéis de
gênero, incluindo-se a dimensão da sexualidade em que o macho deve ser viril, forte,
libidinoso, opondo-se ao comportamento atribuído às mulheres, que deveria ser frágil,
recatada, despossuída dos desejos da carne. Nesse sentido, a entrevistada demonstra
consciência de que essa sua concepção foi se construindo ao longo de sua criação, que se
desenvolveu a base dos ensinamentos religiosos e do senso comum. Em suas palavras:

Eu nem sei porque nem porque não, mas eu acho que essa parte sexual é
mais do gosto do homem do que da mulher, geralmente, eu acho que é. (...)
Eu não sei se foi por causa da educação que a gente teve, aquela doutrina de
respeito... E aquilo, hoje em dia, é uma coisa simples. Mas de primeiro era
uma coisa feia. A gente ouvia falar muito nisso: a vida sexual era uma coisa
feia, era imoral, não era certo. Mas os home ia sempre usando, que nunca

326
Ibid., p. 218.
206

botaram isso na cabeça: que era feia, imoral. (...) Eu acho que é por isso que
as mulher sempre era mais tímida e mais calma. 327

Conforme contou, casou-se para ter o sustento garantido pelo esposo. Historicamente,
esse tem sido o papel atribuído ao homem, o de macho provedor. Motivo comum a muitas
mulheres de sua época, não só do campo, como da cidade. No tempo de seu casamento,
década de 1960, via de regra, a dependência financeira feminina não só obrigava as mulheres
a casarem, como a permanecerem casadas. À proporção que narrava, também ia atribuindo
novos sentidos aos fatos vividos. Dessa forma, a entrevistada trazia à sua interpretação o fato
de que seu casamento foi uma alternativa para escapar da miséria em que vivia.

Olha o desejo deu me casar! Eu gostava dele e queria bem. Mas o meu
desejo que eu tinha de me casar era a necessidade que eu vivia dentro da
casa da minha mãe, que era muito grande. [...] Eu imaginava: ―ele é homem‖
(que num tinha home dentro de casa: meu pai tinha morrido.) ―[...] Ele é
homem e trabalha. Eu vou vê fortuna dentro da minha casa!‖. 328

Infere-se que a própria experiência de participação nos Encontros de Esposas já havia


lhe proporcionado momentos de reflexão sobre sua vida, seu casamento, sua intimidade
conjugal, o que, possivelmente, influenciou sua visão de mundo e sua forma de pensar sobre
sua vida. Dessa forma, acredita-se que, no momento da entrevista, o acúmulo de toda essa
bagagem simbólica adquirida contribuiu para reorganizar sua memória.
O exercício de lembrar e (re)significar suas experiências sexuais, trouxe à tona
sentimentos e sensações que dão conta de sua intimidade e da singularidade com que
vivenciou essa intimidade com seu esposo, construindo ao longo do seu casamento, um modo
consensual de convivência, respeito, paciência e, talvez, até amor. De fato, essa era uma
realidade comum para as mulheres de antigamente. Muitas vezes, o amor ia se construindo
com a convivência. Em outros casos, quando essa convivência se tornava um fardo muito
pesado, o amor ia se destruindo com ela.
No entanto, ressalta-se que o relato de tal intimidade somente foi possível, de forma
tão genuína, porque sua interlocutora, irmã Maria Alice, além de coordenadora dos Encontros
de Esposas, assumiu uma postura de amizade e respeito para com as camponesas do
Movimento, o que foi sendo aprofundado no decorrer das décadas de 1970 até 1990 quando,
327
Ibid., p. 219.
328
Ibid., p. 220-221.
207

nessa última década, se situa o período de realização das entrevistas, como também, o
enfraquecimento e desaparecimento do Movimento como um todo.
A própria coordenadora, quando indagada sobre a escolha das entrevistadas para a
composição de seu livro História na mão reconhece como definidor o critério da amizade e de
maior aproximação com as ―mulheres da praia‖, que compunham as comunidades litorâneas
da diocese de Itapipoca, região em que atuava mais intensamente. Desse modo, em sua
entrevista, Maria Alice esclareceu suas próprias intenções de pesquisadora e seu método de
trabalho:

Acho que era onde eu tinha uma certa intimidade de comunicação. Onde eu
pensava que eu ia pegar as coisas mais verídicas, mais autênticas. Então, era
mais por isso. E também uma mistura de, por exemplo, Diana, Conceição,
Cícera são tremembés que eu conheço bem. Rita, pra mim é uma das grandes
mulheres em nosso Movimento, uma fonte de sabedoria. Eu comecei com
ela. Era quase querendo escrever a vida dela, que eu vejo tanta riqueza na
vida dela. Mas, depois eu fui desenvolvendo e dizendo não, vamos trazer
mais pessoas para falar, mas o meu primeiro pensamento era ela... Nazaré é
outra das grandes mulheres do Movimento... era mais isso, um grupo
diversificado.329

De fato, essa aproximação de Maria Alice com as camponesas contribuiu para que as
mesmas se sentissem à vontade para expor suas questões mais íntimas, quebrando o tabu em
torno do assunto ―sexo‖. Até porque esse assunto já vinha sendo pauta de vários Encontros
de Esposas desde a década de 1980, então, muito do que foi registrado nas entrevistas, já
havia sido colocado em algum momento nas reuniões de mulheres. Nesse sentido, as dez
camponesas330 entrevistadas pela religiosa falaram abertamente sobre sua relação conjugal, o
que perpassava as questões em torno do prazer sexual.
Mesmo em narrativas anônimas, são muitos os depoimentos que deixam transparecer o
descontentamento feminino e a realidade de opressão sexual em que essas mulheres viviam.
Suas narrativas são permeadas por relatos de diversos tipos de agressões à subjetividade
feminina nas quais se observam a grosseria e o mal trato de seus esposos. Na maioria das
vezes, essas agressões cotidianas eram sentidas e silenciadas por essas mulheres. Algum
desabafo ocorria, por ventura, no momento dos Encontros de Esposas, muito embora, nem
tudo se dissesse, e nem todas as mulheres falassem.

329
Entrevista com Maria Alice MacCabe, realizada em 06 de junho de 2009, em Itapipoca – CE. (Arquivo da
Autora)
330
São elas: Rita, Joana, Gesilda, Maria, Conceição, Diana, Cícera, Elita, Teresa e Nazaré.
208

Por outro lado, essas histórias de vida que eram compartilhadas com o grupo ecoavam
entre as demais camponesas e serviam de exemplos, representando um aprendizado narrativo,
pois aprendiam umas com as outras. Quanto aos sofrimentos relatados, essas mulheres
experimentavam um sentimento de solidariedade e cumplicidade que marcavam
profundamente suas formas de encarar as relações de gênero, o que implicava em repensar
seus próprios casamentos, mesmo que não conseguissem modificar de imediato a realidade
que viviam, essas reflexões permaneciam ao longo de suas vidas e iam compondo o processo
de transformação dessas mulheres.
Por esse caminho, situa-se uma história que marcou a memória de uma das
entrevistadas de Maria Alice. A mesma conta como se impressionou quando em um dos
Encontros ouviu uma jovem de dezoito anos dizer que não sentia prazer com o sexo:

Elas colocaram um bocado de coisa, e quando entrou na questão da vida


sexual e falou uma menina de dezoito anos e ela diz que não sentia prazer, aí
a gente quis saber porque uma menina de dezoito anos... Ela diz assim: ―é
porque meu marido é pescador, aí, ele vai pro mar. Quando chega...‖ (uma
menina nova dizer assim!) ―aí, quando ele chega do mar manda o peixe pra
casa, fica bebendo. Quando chega em casa é bêbado. Aí, chega. Ás vezes, eu
estou dormindo ou se eu não estou dormindo... e muitas vezes quando a
gente se encontra, ele vai lá... às pressas e até as vezes eu sinto vontade, mas
ele diz que já coisou e pronto!‖. 331

Ao que parece, sua admiração com esse fato era porque tal afirmação não vinha de
uma senhora de idade, e sim de uma jovem, saudável e recém-casada. Ou seja, constatava-se
que a opressão sexual se reproduzia nas relações dos mais jovens. Esse depoimento serviu
para a entrevistada pensar sobre o valor da mulher na relação conjugal e, principalmente,
sobre a submissão que os maridos colocavam as esposas, também, na hora do sexo. Segundo
sua própria reflexão:

São depoimentos que você aprende como as mulheres são tratadas: ―[...] já
coisou e pronto‖. Ela que usou esta palavra. E muitas coisas a gente viu
isso... que eles não tão nem ai... Porque acontece às vezes o homem quer
obrigar a mulher sem ela tá com condição. Ele quer, e quer de primeiro. E
diz assim: ―eu casei porque preciso de mulher‖. E a mulher tinha que aceitar
ou chorando ou alegre, do jeito que tiver tem que aceitar ele porque ele
casou porque precisa de mulher. 332

331
McCABE, 1994, p. 229.
332
Ibid., p. 229.
209

Através de sua narrativa, ainda se pode conhecer um pouco do que era relatado por
outras camponesas, por exemplo, com relação à reação dos maridos quando suas mulheres
não atendiam prontamente a seus desejos. Nota-se o machismo que imperava nessas relações
e a hostilidade com que tratavam suas mulheres, demonstrando sua insatisfação com o
comportamento feminino. Aliás, comportamento que destoava daquele esperado, de completa
passividade e submissão das mulheres. Muito provavelmente, a hostilidade masculina tivesse
o intuito de intimidar suas esposas e mostrar quem mandava na relação. Conforme narra a
entrevistada:

Quando acontecia isto, o homem amanhecia o dia era quebrando o pote,


quebrando panela, quebrando colher, chutando uma coisa! Na maior
barafunda porque a mulher não tinha aceitado ele no momento que ele
precisava. Que ele tinha casado porque precisava de mulher, então a mulher
não tava aceitando ele. Agora, acontece que tem várias mulheres que só
servem para o homem como uma vasilha. Não têm direitos, não têm voz nem
vez. Ela era como se fosse uma vasilha pra servir o homem. Era mesmo que
ser uma bacia pra você botar a água dentro e lavar as mãos na hora que
quiser! Um objeto! Nada Mais! 333

Interessante observar que, durante toda sua argumentação, a entrevistada se utilizou do


verbo ―precisar‖ quando se referia aos desejos sexuais masculinos. Assim, deixa transparecer
que a questão do prazer era tratada pelos seus esposos como uma simples necessidade
fisiológica, instintivamente, quase se aproximando do mundo animal, em que o cuidado, o
carinho e o consenso entre o casal era algo dispensável. Tanto que, durante seu depoimento,
registrou-se que as mulheres relatavam que, às vezes, sentiam desejo, no entanto, devido ao
despreparo dos esposos e às pressas com que eram realizadas as relações sexuais, sua vontade
se transformava em frustrações. Talvez, por isso, a entrevistada faça uma comparação entre a
mulher e uma vasilha, chamando a atenção para a função de objeto sexual.
Quando isso ocorria, as mulheres silenciavam e anulavam seus desejos porque sentiam
vergonha de revelar para seus maridos. Como se evidencia em outra narrativa: ―[...] eu até
chorei de vontade [...] Mas eu nunca digo pra ele, eu nego. A culpada sou eu porque eu não
digo. Eu tenho vergonha. Isso é de mim mesma‖. Talvez, essa vergonha esteja
intrinsecamente vinculada àquela noção de que o sexo era pecado, sendo reservado aos
instintos masculinos. Também não revelavam, até mesmo, por medo de serem
incompreendidas diante do machismo de seus homens: ―[...] Quem sabe se a gente se abria,

333
McCABE, 1994, p. 230.
210

como dizem, tudo... quem sabe se ele não vai pensar: ‗Ora, isso ela já aprendeu foi com
alguém! Já está usando com outra pessoa [...]‘. E a gente fica toda com vergonha‖.334
Outras entrevistadas de Maria Alice referiram-se à existência de doenças venéreas, o
que se pressupõe a infidelidade e a promiscuidade em que alguns esposos viviam. No entanto,
não se sabe precisar se tais esposos eram participantes do Movimento do Dia do Senhor, pois,
muitas das camponesas eram esposas dos Dirigentes, mas tinham muitas mulheres que os
maridos não participavam do Movimento. Juntamente com o relato sobre os desconfortos
acarretados pelas doenças, essas mulheres também revelam seus sentimentos e ressentimentos
para com seus companheiros que, mesmo vendo a esposa adoentada, sendo o culpado por tal
doença, não as dispensavam do sexo.

Mas eu vou lhe dizer: eu acho que todo homem é um estuprador. Se existe
pecado no mundo, é este. Mesmo quando eu adoeci daquela doença, ele não
dispensou de jeito nenhum. Sempre me sinto com uma raiva tão grande!
Durante... depois a raiva passa. Durante aquele negócio, se ele morresse, eu
num chorava não. Sei que eu sempre fui como um objeto pra ele... Meu
marido sofria uma doença, essa doença qu‘ele conseguiu pegar de mulher,
doença venera, que chama. Aí ele sofria disso e aí, eu peguei. Fiquei com
uma febre tão grande! Ah! Uma febre tão grande, uma dor de cabeça, uma
tristeza qu‘eu fiquei arriada. Aí, foi o arrependimento... chegou em mim ter
casado. Pra que eu me casei? Tão alegre! Aí, eu não fiquei mais alegre.
Fiquei triste. Fiquei muito sofrida. Com aquela doença tão grande! Aí,
vieram com umas injeções que eu... aquelas penicilinas que chamavam de
primeiro. Eu sei que pra encurtar a conversa eu passei seis meses doente.
Três meses sem sair de dentro de casa. Eu só saía fora para fazer xixi... se
num tivesse ninguém em casa... morrendo porque não aguentava. De três
meses em diante eu melhorei e outros três meses passei doente ainda, mas
até que melhorei. 335

Percebe-se que, durante seu relato, a entrevistada externou seus sentimentos mais
profundos. Talvez, isso tenha aflorado porque fora tomada pela emoção do momento em que
se punha a relembrar um episódio doloroso de seu passado. Suas palavras revelaram um misto
de ódio, arrependimento, dor, sofrimento, tristeza. De alguma forma, tudo isso está
relacionado aos sentimentos que foi alimentando pelo marido, a ponto de afirmar que se
―Durante aquele negócio, se ele morresse, eu num chorava não‖. Sendo o choro aqui
associado ao sofrimento, à dor da perda. Nesse sentido, pela sua fala, muito além do corpo
doente, seu esposo tinha deixado sua a alma ferida.

334
Ibid., p. 227.
335
McCABE, 1994, p. 232.
211

Em outra entrevista também apareceu um caso de doença sexualmente transmissível.


Nesse caso, o relato não é pessoal. Trata-se de uma das histórias contadas e ouvidas durante
os encontros de mulheres. Mais uma vez, esse exemplo demonstra como as vivências
femininas compartilhadas nos Encontros de Esposas ajudaram a constituir uma memória que
ficou marcada nas camponesas e que, de variadas formas foram sendo reconstituídas e
(re)significadas. No exercício de lembrar sua própria vida, lembravam também das muitas
histórias e experiências de suas companheiras do Movimento.

Algumas contaram um depoimento de doenças que sentiu. Como é que era, o


que elas sentiu mais. E teve até uma mulher, que a gente... pelo que ela
contou nós tivemos suspeita que fosse a sífilis que ela tinha. E ela contou
muito sofrimento dela, de muitos anos já. Ela tem manchas e um bocado de
coisas que dá a impressão que é. E ela disse que tem uma coceira na vagina e
é seca essa coceira: não tem corrimento. E é uma coceira tão grande que
fere. Ela é mulher de idade! Porque ela se encontra tão doente! Disse que é
de ficar prostrada. Ela acha que o marido não tem nenhuma viagem fora. E
nós pensamos que a sífilis pode ser uma questão de herança também de
família. 336

Fazendo um cruzamento entre as narrativas, é possível inferir que tratam do mesmo


fato. Tendo em vista que o primeiro depoimento relata uma doença venérea que foi tratada
com injeções de penicilina, um tipo de antibiótico usado para tratamento de sífilis, entre
outras infecções bacterianas. Enquanto que, no segundo depoimento, a entrevistada menciona
uma suspeita de que a doença contada fosse exatamente sífilis. Ao que parece, tal suspeita
surgiu entre as mulheres do grupo, e talvez, tenha partido das próprias coordenadoras dos
Encontros de Esposas, tendo em vista o maior grau de instrução que obtinham. Esse fato
demonstra que esses Encontros, além de servir como lugar de fala das mulheres, para
conquista de autonomia, por vezes, assumia um papel de orientação, de cuidados e de amparo
para as mulheres do campo, visto que, na realidade em que viviam era muito escasso o acesso
a médico e a medicamentos.
Muito provavelmente essas injeções de penicilina tenham sido compradas e fornecidas
pela própria Equipe de Coordenação, pois em algumas entrevistas realizadas com membros da
Coordenação do Movimento, são relatados exemplos em que providenciavam médicos e
remédios para os participantes. Se por um lado, isso poderia soar como uma interferência na
intimidade do casal ou mesmo na cultura camponesa, nos seus modos de viver e no seu
cotidiano. Por outro, considera-se que nos Encontros de Esposas foram transmitidas

336
McCABE, 1994, p. 234.
212

orientações importantes que, em alguma medida, ajudaram a transformar o comportamento e


a visão de mundo de homens e mulheres do campo.
Isso se confirma na própria concepção das entrevistadas por Maria Alice, como
também, nas entrevistas realizadas para esta pesquisa, muito tempo depois do fim do
Movimento. Ou seja, em maior ou menor medida, as mulheres que vivenciaram o Movimento
do Dia do Senhor e compuseram seus Encontros de Esposas reconhecem a importância disso
para suas vidas, conforme narram: ―[...] E primeiro de tudo, eu agradeço aquelas reuniões de
mulheres, de esposas, que a gente se encontrava, que eu vinha também na marra, que eu
aprendi muita coisa naquela época‖. 337
Com o passar do tempo, essas mulheres foram conseguindo balizar as transformações
alcançadas em sua vida e, também, os limites dessas transformações, principalmente, na
dimensão das relações de gênero e no que se refere à sexualidade. Nesse sentido, reporta-se à
narrativa abaixo:

Agora, com as reuniões as coisas mudaram, melhoraram um pouco. Eu acho


que foi das reuniões que eu senti essas coisas. Houve reuniões de casais
nesta Comunidade sobre esses problemas entre homem e mulher. Houve
reunião bem moderna, bem calma. Depois houve outra mais quente. Agora, a
gente nota que o povo são muito sem formação pra falar essas coisas e tem
gente que fica cismada. Mesmo assim aquelas reuniões com casais ajuda
muito as pessoas. É por causa das reuniões que os homens aprenderam a ser
mais igual com a mulher e sentir que a mulher é gente como eles são. 338

Como relativizou a entrevistada, ―[...] com as reuniões as coisas mudaram,


melhoraram um pouco‖. Isso não quer dizer que, no cotidiano de seus casamentos, grandes
mudanças fossem sentidas por essas mulheres, nem quer dizer que tais mudanças atingiram da
mesma forma todas as participantes dos Encontros de Esposas. Outras entrevistadas de Maria
Alice relataram que continuavam no mesmo sofrimento com os esposos, tanto no aspecto
sexual, quanto nos aspectos gerais, sem nenhum direito na relação marido/mulher. Até
porque, como já foi dito, nem todos os esposos participavam do Movimento, portanto, o
processo de conscientização, no sentido das relações de gênero, era mais dificultado. Aliás,
nesse aspecto, era difícil até para os casais participantes.
Outro ponto a ser considerado era que, embora alguns maridos fossem inseridos em
uma ou outra reunião, como nas reuniões de casais, mencionadas acima, o grande alvo eram

337
McCABE, 1994, p. 222.
338
Ibid., p. 222-223
213

as esposas. Então, em certa medida, as camponesas se transformavam, mas conseguir


transformar seus esposos e seus casamentos era um processo mais complexo.
Nesse sentido, situa-se a entrevista da coordenadora Maria Alice que reconhece a
dificuldade em trabalhar a questão da sexualidade. A partir de sua narrativa, compreende-se o
caráter de vanguarda do Movimento que, mesmo sendo de cunho religioso, no seu fazer,
trouxe para o debate público/político as questões do privado. No entanto, a entrevistada expõe
as contradições do processo.
Em sua análise, a questão sexual é a última fronteira a ser ultrapassada para uma
transformação das relações de gênero. Muito embora a experiência com os Encontros de
Esposas tenha iniciado esse debate, os comportamentos e os discursos dos camponeses pouco
se modificaram. Conforme constata Maria Alice:

Em alguns casos, eu acho que houve avanço, ou pode ser um avanço por um
tempo, ou uma fase, mas, para dizer a verdade, minha análise geral é a
última fronteira e que o Movimento começou a mexer onde ninguém mexe...
Agora, seria uma ilusão muito grande dizer que houve grandes avanços. Eu
acho que nesse ponto não. 339

Por outro lado, mesmo com as limitações e contradições observadas, o Movimento do


Dia do Senhor significou um rastro de esperança para a mudança de vida camponesa, para a
libertação e autonomia de homens e mulheres pobres que lutavam pela sobrevivência, por
melhores condições de trabalho e pelo acesso à posse da terra. De modo semelhante, os
Encontros de Esposas também representaram uma esperança feminina para a conquista de sua
autonomia, como diziam: ―de sua voz e vez‖ tanto na sociedade como no interior de seus
casamentos, na intimidade de seus leitos, como se constatou em alguns relatos.

339
Entrevista com Maria Alice MacCabe, realizada em 06/06/2009, já citada. No período da entrevista, Maria
Alice ainda atuava como assessora pastoral da Diocese de Itapipoca e estava realizando um trabalho com as
mulheres do MST. Nesse sentido, quando relatou sobre a questão da sexualidade trabalhada no Movimento do
Dia do Senhor, a religiosa fez um paralelo com o tempo presente, em que ainda enfrentava praticamente os
mesmos problemas com relação ao comportamento feminino e dos casais do campo. Assim dizia: ―[...] Todo tipo
de análise social, as mulheres estão participando e produzindo muito pensamento sobre isso. Onde eu vejo que
não avançamos, é no aspecto sexual. Eu acho que quase não tomou nenhum passo. Estou apavorada. O próprio
Movimento Sem Terra admite que eles tem que trabalhar isso e não sabem como, e querem velhas como eu para
ajudar. (risos) ...Eu descubro isso, por exemplo, mulheres tomando remédios para infecções vaginais ou uterinas.
Aí eu digo: ah você está tomando este remédio e como vai a infecção? – Não, eu tomo e limpa e depois volta. Eu
disse: pois leia a bula para vê que homem tem que tomar também. – Ah! Irmã, ele não quer tomar não, a gente
não pode nem dizer, que ele vai dizer que eu estou dizendo que ele faz não sei o que. Quer dizer, ao meu vê
temos muito mais trabalho que precisa ser desenvolvido nessa área‖.
214

De fato, através de seu trabalho com as mulheres do campo, o Movimento conseguiu


alcançar as questões de gênero, que mexiam com a sexualidade e com os conceitos de corpo,
saúde e contracepção, como será apresentado no próximo tópico.

4.2. “A primeira vez que achei minha voz foi aqui”: os Encontros de Esposas e seu
programa para a questão da sexualidade

Se antes do casamento, as esposas do Movimento do Dia do Senhor não falavam sobre


tal assunto com as mulheres que lhe cercavam, depois de casadas, com seus esposos, também
não encontraram brechas para esse tipo de assunto. De acordo com as entrevistadas, somente
a partir de sua participação no Movimento é que encontraram espaço e estímulo para
conversarem sobre essa temática, especificamente, com os Encontros de Esposas.
Esses Encontros abriram espaço para se tocar numa discussão sobre a intimidade
feminina, e mesmo, do casal. No entanto, nos primeiros anos dos Encontros de Esposas,
quando esse tema ainda era apresentado de forma coadjuvante, a timidez e o medo de falar
imperavam entre as mulheres. Maria Valnê Alves, idealizadora desses Encontros, enfatiza
esses aspectos do comportamento feminino desde o início, nem somente com relação ao tema
da sexualidade, mas em geral, as camponesas quando começaram a participar dos Encontros
eram muito caladas, envergonhadas.
Como a temática que marcou o primeiro Encontro de Esposas, no ano de 1969 foi o
―Valor da Mulher, sua participação no mundo‖, debateu-se muito sobre a opressão feminina,
avaliando-se a condição de ―mulher escrava‖ versus ―mulher liberta‖, inclusive essa condição
perante os maridos. Então, embora não fosse a pauta principal, como veio a ser nos anos
1980, a questão da sexualidade entrava no bojo da discussão. Valnê Alves comenta sobre a
complexidade de trabalhar tal assunto: ―[...] Foi se sentindo aos poucos, porque no começo,
elas eram muito caladas, a gente ia, como se diz, comendo pela beiradas né... aí você vê aí a
história dos filhos, a mulher, a vida conjugal dela, ela se sentia, tinha que obedecer, entre as
aspas‖. 340
Nesse sentido, a entrevista de Fausta Marques corrobora com a realidade relatada por
Valnê, ao passo que a camponesa recupera suas lembranças sobre os primeiros Encontros de

340
Entrevista realizada com Maria Valnê Alves, no dia 08 de dezembro de 2018, em Fortaleza – CE. (Arquivo da
autora)
215

Esposas que participou. De fato, o medo de falar e o silêncio entre as companheiras foi um
dos primeiros aspectos narrados.

Rapaz, houve uma doidiça tão grande de medo. Era um medo danado.
Ninguém falava. A cumade Valnê falou assim: ―olhe, desde ontem que a
gente está aqui... e a maioria não fala. Estão com medo? De quem vocês
estão com medo?‖ [...] Aí saiu voz que nem prestou. Mas isso já no segundo
dia [...] Ela já botou nós pra ficar de grupinho, de cinco em cinco. Rapaz,
saiu conversa que encheu ela de trabalho.341

Outras lembranças de Fausta recuperaram as conversas compartilhadas pelas mulheres


nos momentos de debate. Em particular, relembrou a história de ―Posa‖, uma companheira
que marcou sua memória com seus relatos de sofrimento de vida e do marido. Ao mesmo
tempo em que Fausta vai narrando suas lembranças, possibilita que se tenha a dimensão do
processo de inserção das camponesas nesses Encontros.

A conversa era sobre a vivência da mulher em casa, como é que era mesmo.
Essa foi a maior, a maior conversa. Eu acho que todas nós que somo mãe
tem uma história. E essa história é muito ampla, mas nós temo medo de
conversar, parece que sim. Porque eu olhava assim, mulher que tinha
passado um tempo, mais de dezoito horas só assim, olhando com a cabeça
muito baixa. Mas devia ser pensando... Foi a mulher de mais história de vida
que eu já encontrei na minha vida. [...] Por apelido eu conhecia ela por Posa,
não sei nem se Posa ainda é viva... ela é do Cauaçu, lá daquelas praia.
Impressionou porque é difícil a mulher contar história de esposo e esposa
né? Esconde e como esconde... Ela disse tudo, tudo, que eu nuca disse. A
vivência esposo e esposa. Dificuldade, ela dizia que tinha bastante e a causa
era ele. O esposo dela. E ela não sentia nenhum gozo. Mas vinha um
menino. E os Encontro das Esposa, ele ajudou. Mas quem ajudou a nós a
desenvolver mesmo foi as pessoas, a própria coordenação, as próprias
pessoas que fazia com que as mulheres se abrisse pra conversar a sua
história.

Por esse caminho, Maria Alice MacCabe, religiosa norte-americana que assumiu a
coordenação do Movimento com as mulheres após a saída de Valnê, rememora que com o
fortalecimento dos grupos de esposas, nos anos 1980, ―começou a se mexer com a questão da
sexualidade‖. Em sua avaliação sobre o trabalho realizado com as esposas, explica que: ―[...]
Agora, pra mim, o ponto alto foi a sexualidade porque eu vi que, pelo amor de Deus, se ter

341
Entrevista realizada com Maria Fausta Marques, em 12 de outubro de 2010. Em Sítio Alegre, Morrinhos –
CE. (Arquivo da Autora)
216

uma população totalmente sujeita, totalmente não dona de si, não dona de seu corpo. Aí você
começa a perceber o tamanho do problema [...]‖. 342
De sua narrativa, é possível compreender a dificuldade que era para essas camponesas
falarem de sua relação conjugal, ao mesmo tempo, em que se percebe que esse tipo de
discussão era bem aceito entre o grupo, pois abria espaço para a voz feminina, seus desabafos,
suas agruras, suas dúvidas. A própria metodologia adotada no trabalho de base tinha o intuito
de estimular a fala dessas mulheres. Como ressalta Maria Alice: ―[...] Eu me lembro de uma
mulher, ela morreu logo depois, era uma mulher nova, ela disse: ‗a primeira vez que achei
minha voz foi aqui‖‘. 343
Nesse sentido, a memória da religiosa traz lembranças de muitas participantes e de
muitos causos narrados pelas mesmas, que eram compartilhados nos Encontros de Esposas,
tanto nos momentos de estudo, como nas horas de lazer, de conversa frouxa entre as
participantes que, nesse processo, tornavam-se amigas e companheiras de uma luta comum,
tanto no aspecto social, quanto na busca por transformação nas relações de gênero.
Sua memória, assim como a memória de muitas participantes desses Encontros, é
344
permeada de exemplos de histórias camponesas vivenciadas ―por tabela‖ , visto que as
participantes, aos poucos, iam compartilhando suas vidas e intimidade com o grupo e, assim,
suas histórias iam ultrapassando a dimensão do individual, do privado, e passavam a ser
sentidas, contadas e reelaboradas pelas demais mulheres que as ouviam, como no caso de
Maria Alice e de algumas camponesas entrevistadas que contavam as suas histórias e as de
outras companheiras, no bojo.
No caso de Terezinha Moura, persegue-se o relato de sua própria história, enquanto
participante dos Encontros de Esposas. A mesma relembra seu constrangimento ao falar sobre
sua vida conjugal no momento das reuniões com as esposas. Vindo de uma criação em que a
342
Entrevista realizada com Maria Alice MacCabe, já citada.
343
Entrevista realizada com Maria Alice MacCabe, já citada.
344
Nesse sentido, faço apropriação das reflexões de Michael Pollak quando o mesmo situa o processo de
constituição da memória utilizando a concepção de ―acontecimentos vividos por tabela‖, pois mesmo em sua
narrativa Maria Alice tendo clareza de que está fazendo alusão a um fato vivenciado por uma terceira pessoa, o
conhecimento de tal vivência marcou sua subjetividade e ajudou a constituir a sua memória, no sentido de
reforçar sua própria interpretação sobre o fazer dos Encontros de Esposas. Portanto, segundo o referido autor:
―[...] Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória, individual ou coletiva? Em primeiro lugar, são
os acontecimentos vividos pessoalmente. Em segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de ‗vividos
por tabela‘, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer.
São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo
que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não. Se formos mais longe, a
esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos que não se situam dentro do espaço-
tempo de uma pessoa ou de um grupo. É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da
socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte
que podemos falar numa memória quase que herdada‖. POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212, p. 201.
217

sexualidade era um assunto interdito, era natural que a mesma sentisse tanta dificuldade em
compartilhar sua intimidade com tantas mulheres desconhecidas, e até mesmo, com as
conhecidas da comunidade, visto que em sua concepção esse assunto deveria ficar ―abafado‖,
restrito às quatro paredes da alcova. No fundo, essa era uma concepção comum a muitas
mulheres de sua geração. Daí tornar-se tão significativo as falas dessas mulheres sobre tal
assunto quando, aos poucos, e com muita cerimônia, iam quebrando o silêncio sobre sua
privacidade. Segundo a entrevistada:

Me lembro demais. A Margarida do dr. Pinheiro... eu participei de várias


reuniões que ela fazia falando só sobre isso aí. Eu tinha uma dificuldade pra
falar, porque pra mim aquilo ali só era coberto com um pano e pronto! Ali
fica abafado. Mas graças a Deus, através dela também, eu me libertei dum
bocado de coisa. Que eu também nem sabia, aí fiquei sabendo. E é muito
bom a gente tá no Movimento porque a gente não fica mais inocente não...
minha mãe nunca disse a mim nada, nada, nada. Nem sobre a minha
primeira menstruação, a minha mãe não chegou a explicar pra mim.
[...] A Margarida me fazia pergunta... eu ficava gelada sem querer
responder... sobre mesmo sexo, né? E tanta coisa, chega eu suava pra
responder uma palavra. (risos) 345

Dessa narrativa, destacam-se dois aspectos interessantes. Primeiro, a relação


intercultural que esses Encontros de Esposas proporcionavam, tendo em vista que além do
contato com aqueles que compunham a Coordenação, as camponesas participantes ainda
conheciam e estreitavam laços com outros sujeitos que compunham as organizações que
estabeleciam certa parceria com o Movimento do Dia do Senhor. Nesse caso, voltando-se para
a diocese de Itapipoca, que abarcava as comunidades rurais de Trairi, a partir da década de
1980, foi fundamental a colaboração do advogado Antônio Pinheiro Freitas que, juntamente
com sua esposa Margarida Pinheiro, foi um dos fundadores do Centro de Estudos do Trabalho
e de Assessoria ao Trabalhador - CETRA346. O Dr. Pinheiro, como era conhecido, teve papel
fundamental na orientação dos camponeses quando dos conflitos de terras na região.
Pela narrativa, percebe-se a atuação dos integrantes do CETRA para além das questões
em torno da terra. A participação de Margarida Pinheiro contribuía também no sentido das
questões de gênero, da família, da saúde das mulheres e dos homens do campo. Referendada

345
Entrevista realizada com Terezinha Santos de Oliveira Moura, em 08 de abril de 2017, já citada.
346
Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador – CETRA foi criado oficialmente em 30 de
dezembro de 1981, no estado do Ceará. Desde então, vem desenvolvendo intenso trabalho na região do Maciço
do Baturité, Serra da Ibiapaba e diocese de Itapipoca. O CETRA presta assistência jurídica e social para os
trabalhadores rurais com a finalidade de contribuir com suas lutas pela posse da terra. Para maiores informações
consultar o site: www.cetra.org.br.
218

com tanta intimidade pela entrevistada, demonstra que a presença de Margarida não era
pontual, e sim que havia uma maior participação da mesma, tanto nos Encontros de Esposas,
como nas demais atividades do Movimento do Dia do Senhor.
Na verdade, nesse momento, vários setores realizavam trabalhos com a população
rural, como o MEB, os sindicatos rurais, e as demais pastorais católicas, o que significa que,
guardadas as especificidades de trabalho de cada um, visavam o mesmo público com o intuito
de contribuir com o processo de conscientização e desenvolvimento das populações do
campo. Portanto, o Movimento realizava parcerias com esses setores, tanto na diocese de
Itapipoca, como na diocese de Sobral.
Faz-se importante ressaltar que, tanto nas questões dos conflitos de terra o ―dr.
Pinheiro‖ intervinha ao lado dos camponeses, quanto nas necessidades da vida camponesa,
como por exemplo, no caso de dona Terezinha, que precisou fazer uma cirurgia de
histerectomia com urgência, contou com todo apoio do casal, inclusive financeiro, o que
facilitou sua estadia no hospital em Fortaleza, capital do estado, sendo posteriormente,
hospedada na casa dos mesmos, até que se recuperasse para voltar a sua comunidade.
Certamente, por esses motivos, eram estabelecidos vínculos de amizade e respeito, que
perduraram mesmo com o fim do Movimento.
Outro aspecto da entrevista a ser destacado é o reconhecimento de dona Teresinha
sobre o aprendizado adquirido através dos Encontros de Esposas. Ao relembrar desses
momentos, a mesma elabora uma avaliação sobre seu crescimento enquanto mulher e sujeito
social. Percebe-se isso quando são utilizadas as expressões: ―eu me libertei dum bocado de
coisa‖ ou ―a gente não fica mais inocente‖.
Nesse processo de aprendizagem com o Movimento, algumas dessas camponesas iam
se descobrindo sujeitos da relação, com vontades e desejos próprios, com direitos sobre seu
corpo, seu prazer e, principalmente, passaram a refletir mais sobre a relação com os maridos.
Isso significava, em grande parte, perceber a opressão masculina, que se manifestava
veladamente no âmbito da sexualidade, no sentido em que muitas das mulheres do campo não
tinham autonomia sobre seu corpo, viam-se subjugadas à vontade do marido, pois de certo
modo, entendiam o sexo como sua obrigação de esposa.
Desse modo, a religiosa Maria Alice, que esteve à frente desses Encontros desde 1976
até o seu fim, na década de 1990, relata como era tratada a questão da sexualidade pelas
próprias camponesas, que se viam na relação como ―[...] simples objeto. Nada de prazer, nada
de conhecimento e nada de participação. Só uma vasilha, que algumas delas dizem, até usam
219

essa palavra né. [...]‖.347 Tais camponesas, mesmo com vergonha ou medo de falar sobre o
assunto, aos poucos, iam-se colocando nos debates durante os Encontros de Esposas.
Na concepção de Maria Alice, o que facilitava essa abertura das camponesas sobre um
tema tão íntimo era o fato de ser um espaço do feminino e para o feminino, não corriam o
risco dos seus maridos tomarem conhecimento sobre aquelas conversas. Tanto que ―[...] para
elas, falar isso, quando elas estão só, elas falam. Agora, em grupo misto não fala. E falavam
com muito cuidado que essas conversas não espalhassem‖.348
A concepção de submissão da esposa ao marido, inclusive na relação sexual,
pensamento comum entre as mulheres do campo que começavam a participar dos grupos de
esposas, também é relatada na entrevista de Antônia de Castro Sales, dona Toizinha, quando
afirma que ―[...] a gente pensava que mulher era pra transar mesmo... Era pra cozinhar,
transar, criar minino e ir pro roçado. Pronto, era o dever da mulher! [...] O corpo da gente é
uma coisa muito linda, né?‖ 349.
Por esse caminho, na entrevista com Rosa Marques, quando interpelada sobre os
debates em torno da temática da sexualidade e vida conjugal, a mesma rememora com um
breve riso de constrangimento, talvez, por está na frente do esposo. Durante as entrevistas
realizadas com as mulheres do Movimento, foi muito comum a presença de seus maridos, ex-
dirigentes do Dia do Senhor, os quais demonstravam claramente o interesse em ser
entrevistados também. Por várias vezes, os esposos interferiram na narrativa de suas
mulheres, como também, percebeu-se que sua presença inibiu as mesmas em alguns assuntos,
notadamente, o da sexualidade.
No entanto, Rosa traz em sua narrativa uma reflexão que se aproxima da visão do
senso comum que as camponesas apresentavam sobre o papel da mulher na vida conjugal:
―[...] a mulher era pra ser mandada pelo homem‖. Por esse caminho, a entrevistada vai
situando o teor das conversas femininas que animavam as reuniões dos Encontros.
Implicitamente, com uma interrogação ―está entendendo?‖, Rosa mudava a entonação de sua
voz e dava pistas de que as mulheres eram passivas, submissas na relação sexual. Semelhante
à ideia de ―vasilha‖, que aparece na narrativa de Maria Alice e de outras participantes, Rosa
Marques traz a ideia de que a mulher ―tinha que fazer tudo o que o homem queria‖. Ou seja,
constata-se que as camponesas que participavam dos Encontros de Esposas, em grande

347
Maria Alice MacCabe, entrevista realizada no dia 06 de junho de 2009, já citada.
348
Maria Alice MacCabe, entrevista realizada no dia 06 de junho de 2009, já citada.
349
Entrevista com Antônia de Castro Sales, realizada em 08 de abril de 2017, já citada.
220

medida, não tinham vontade própria, não tinham voz na relação, como muitas mulheres dessa
época, fosse no meio rural, ou na cidade.

Quando era o tema de vida conjugal, era assim né, porque muitas mulher
dizia que ela era uma pessoa que era pra ser só mandada pelo homem, ela
tinha que fazer tudo que o homem queria, está entendendo?... aí, tinha a
palavra de Deus, conforme aquele tema ia buscado um tema da palavra de
Deus... aí, que Deus deixou os direito igual. Deus não disse que a mulher
mandasse no homem e nem que o homem mandasse na mulher... Aí, isso aí
tudo, acordou muita mulher... 350

Assim como na concepção de dona Rosa, é consenso entre as camponesas


entrevistadas que os Encontros de Esposas serviram para ―acordar‖ as mulheres, numa alusão
ao processo de conscientização, tanto na dimensão política, quanto na perspectiva das
relações de gênero. Dessa forma, essa concepção era baseada ―na palavra de Deus‖, de acordo
com tudo que era debatido no Movimento do Dia do Senhor, refletindo sobre a realidade da
vida à luz do evangelho. De certo modo, realizava-se uma nova leitura que colocava em xeque
os ensinamentos de subserviência feminina presentes nos textos bíblicos.
Isso foi se estendendo até mesmo para fora das relações travadas no Movimento,
alcançando a dimensão da casa, do sindicato, das associações, na sociedade em geral. As
camponesas mais engajadas começaram a questionar a condição de submissão feminina,
mesmo que o resultado desse questionamento não obtivesse um impacto de imediato, a
mentalidade dessas mulheres estava se transformando.
Nesse processo, com tantos ensinamentos, que reorientavam o comportamento
feminino, alguns maridos também assumiam uma nova postura. Ainda com a narrativa de
dona Rosa, percebe-se que existiram maridos que apoiaram suas companheiras, como
também, tinham aqueles que não entenderam e não aceitaram os novos pensamentos e
atitudes das esposas. O fato é que os Encontros de Esposas causaram muita curiosidade e
especulação por parte dos esposos, mesmo para aqueles dirigentes entusiasmados, que
apoiavam suas esposas. Por outro lado, gerou muita incompreensão por parte daqueles
esposos que eram menos engajados no Movimento, ou que não faziam parte do Dia do
Senhor. Conforme relata Rosa Marques:

Ora se teve mulher que disse assim: ―ora, o meu marido disse que eu tô
ficando muito sabida demais vindo pra esses Encontro de mulheres. Que as

350
Entrevista com Rosa Marques, realizada em 30 de abril de 2010, já citada.
221

mulheres mais experientes estavam conversando com aquelas mulheres


mais... que não entendiam muito né? (risos) Aí, teve homem que disse que
não tava gostando das mulheres irem pros Encontro de mulher não porque as
mulheres já não estava mais aceitando fazer só o que eles queriam. Porque a
gente sabe que tem muita... hoje, acho que hoje é mais pouco né? Mas,
antigamente, tinha muita mulher que não tinha vez de nada. Só tinha vez de
ter filho, de cuidar dos filhos, né? 351

Em sua rememoração, a entrevistada também realiza uma análise em torno das


relações de gênero do passado e do presente, assumindo uma autoridade narrativa visto que,
tanto testemunhou como ouviu de muitas participantes do Movimento os exemplos de
opressão e de tensão entre os casais. Nesse sentido, Rosa Marques organiza sua narrativa a
partir do tempo presente em que fala e relativiza os direitos das mulheres de ―antigamente‖.
Na medida em que se debatia sobre sexualidade e vida conjugal, também se abria uma
discussão sobre o corpo feminino, ao passo que as camponesas diziam de suas dúvidas sobre
as especificidades da biologia feminina, sobre os partos, sobre sua relação com a higiene
corporal, sobre as doenças das quais eram acometidas, inclusive, doenças ginecológicas e
venéreas, como também, comentava-se sobre os modos de vestir e de se embelezar. Assim
como ressalta Roy Porter é importante ―[...] produzir uma recordação de como o corpo é uma
presença suprimida – muito frequentemente ignorada ou esquecida – em muitos outros ramos,
mais prestigiosos, do saber‖. Apontando, então, para uma ―[...] consciência mais alerta de sua
existência.‖. 352
Nesse sentido, como os Encontros de Esposas realizavam-se anualmente com uma
temática específica, previamente escolhida pelas camponesas que participavam dos chamados
Encontrinhos, que se realizavam nas suas próprias comunidades no decorrer do ano, até a data
do grande Encontro, que ocorria sempre em dezembro, a Equipe de Coordenação tinha tempo
suficiente para organizar a programação do evento. Percebe-se, através dos Relatórios dos
Encontros de Esposas, como também, das entrevistas realizadas, que em alguns Encontros
anuais, no ano em que a temática escolhida alcançava a questão da sexualidade ou a temática
da higiene e saúde, a Coordenação contava com a parceria de alguns profissionais da saúde.
Como esclarece Maria Valnê Alves ao relembrar a presença do ―doutor Ângelo‖, um dos
primeiros médicos a colaborar com os Encontros de Esposas, ainda sob a coordenação de
Valnê:

351
Ibid..
352
PORTER, Roy. História do corpo. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História. Novas Perspectivas. São
Paulo: Editora Unesp, 1998, p. 326.
222

Eu diria que a gente ia percebendo essas coisas e se ia falando. Até sobre


saúde. Doutor Ângelo... ele era de endemias rurais. Pra tudo a gente contava
com esses apoios. Aí, nós pedimos pra ele fazer um dia de encontro lá na
Meruoca, sobre saúde... João Batista Marinho de Vasconcelos. Mas no
começo era doutor Ângelo. Ele era tão bom que ele topava. Foi umas três
vezes sabe, assim... porque um médico falando tem um peso maior né...
porque ele trabalhava com endemias, doenças de pele, de tudo e por essas
coisas, por falta de cuidado. 353

Em outras entrevistas foi citado o nome João Batista Marinho de Vasconcelos, médico
e amigo de Padre Albani Linhares, que colaborou durante muitos anos com o Movimento,
prestando assistência gratuita aos camponeses e às camponesas da Diocese de Sobral. O
doutor João Batista é citado tanto na entrevista das coordenadoras Valnê e Maria Alice, como
aparece muito nas entrevistas dos camponeses e das camponesas.
Tal médico aparece na narrativa de Rosa Marques, o que ilumina a compreensão de
como a presença de um profissional da saúde nos Encontros de Esposas ajudava as mulheres
do campo, sem muito acesso a informações, a sanar suas dúvidas sobre diversos assuntos.
Nesses Encontros, realizava-se uma dinâmica em que as camponesas escreviam bilhetinhos
com perguntas diretamente ao médico. A metodologia utilizada era baseada no anonimato,
pois as camponesas não precisavam assinar suas perguntas, o que facilitava para que as
dúvidas mais íntimas fossem externadas. Assim, essas mulheres conheciam melhor o corpo
feminino e seu funcionamento biológico, como também, aprendiam novos cuidados com a
saúde. Como conta dona Rosa:

Foi o doutor João Batista... aí foi ele que foi dar umas explicação às
mulheres, pras mulheres tomar mais experiência na vida né? ... Aí, a gente
fazia uns bilhetim e levava lá pro plenário, fazendo uma pergunta a ele e ele
explicava pra nós mulher. Aí, foi uma maneira que nós aprendemo muito,
que nós tivemo até participação de médico nos Encontros de Esposa né? Aí,
muitas dúvidas que a gente tinha... eu tive um parto gêmeo né? Aí, eu não
entendia a diferença do geramento de um filho só, pra um filho gêmeo... aí,
eu pedi pro doutor João Batista explicar pras mulheres qual era a diferença...
ele foi explicar né... Aí, por isso que eu digo que o Movimento do Dia do
Senhor deu oportunidade da gente já numa idade bem avançada aprender o
que a gente no tempo de nova não sabia. 354

353
Entrevista realizada com Maria Valnê Alves, no dia 08 de dezembro de 2018, em Fortaleza – CE, já citada.
354
Entrevista com Rosa Marques, realizada em 30 de abril de 2010, já citada.
223

Ao cruzar essa narrativa com os Relatórios dos Encontros de Esposas pressupõe-se


que, possivelmente, a memória de dona Rosa recuperou momentos vividos nos Encontros
referentes aos anos de 1971, 1972 ou 1973, quando se debateram temas que tocavam na
questão da sexualidade como: ―Valor da mulher, relacionamento e atuação no mundo‖,
―Higiene e Saúde‖ e ―Libertação da mulher, higiene e saúde‖, respectivamente. 355
De fato, o doutor João Batista é muito lembrado. Talvez, isso se explique pela relação
de amizade, carinho e respeito que o médico tinha com padre Albani Linhares. Por ser um
―discípulo‖ fiel, fora considerado como um dos ―filhos‖ do padre. Sua colaboração para com
o Movimento ultrapassou ao reforço que dava aos Encontros de Esposas quando da realização
de palestras, mas, quando necessário, prestava serviços gratuitos como consultas e
medicamentos aos participantes do Dia do Senhor.
Era um médico e um amigo de total confiança do padre e, por consequência, do
―povo‖ do Movimento, tanto que, chegou a realizar cirurgias de vasectomia em alguns dos
dirigentes do Movimento, particularmente naqueles que compunham a ―Nata‖. A grande
quantidade de filhos, realidade comum aos casais do meio rural, parecia causar preocupação
na Equipe de Coordenação. Então, de modo consensual, alguns camponeses se submeteram a
esse procedimento a fim de controlar o crescimento de suas famílias.
No entanto, a vasectomia é um método contraceptivo artificial que, assim como todos
os outros, no período de existência do Movimento, não era aceito pelo discurso religioso, o
que denota uma fissura entre o discurso oficial do catolicismo e as práticas vivenciadas no
interior do Movimento do Dia do Senhor. Talvez por sua base vinculada à Teologia da
Libertação, essa medida fosse tomada como alternativa para sanar um mal social. Nesse
momento, a corrente católica que seguia uma visão de Igreja libertadora realizava duras
críticas à desigualdade social. Nesse caso, pode-se supor que a leitura da realidade cultural e a
questão da sobrevivência no campo se sobrepunham, até mesmo, às orientações oficiais do
Vaticano.
Os métodos contraceptivos e o aborto são condenados pela doutrina católica desde
tempos imemoriais. No entanto, no século XX, essa postura aparece explicitamente ainda na
década de 1930, com a Encíclica Casti Connubii, do Papa Pio XI que se posicionou
radicalmente contra qualquer forma de contracepção, inclusive a Tabela e o Coito
Interrompido, sendo permitida apenas a abstinência sexual. Pio XII reafirmou a proibição dos
métodos de contracepção artificiais, contudo, já na década de 1950, no final de seu papado,

355
Os Relatórios dos Encontros de Esposas compõem o Arquivo do Movimento do Dia do Senhor, guardado na
Cúria diocesana de Sobral.
224

passou a admitir o método rítmico, mais conhecido como Tabela, justamente por ser
considerado um método natural de contracepção. Já na década de 1960, a Encíclica Humanae
Vitae, do Papa Paulo VI, publicada em 25 de julho de 1968, novamente explicita a posição
conservadora da Igreja quanto ao assunto, condenando todos os métodos de contracepção
artificiais, tanto femininos quanto masculinos. 356
Portanto, a cirurgia de vasectomia entrava nesse bojo. De acordo com um documento
produzido pela Congregação para a Doutrina da Fé, de 13 de março de 1975, a prática de
intervenção cirúrgica para fins de esterilização não só era proibida, como considerada imoral
pela hierarquia católica. Assim, seu discurso deveria alcançar os fiéis, mas também, todas as
instituições católicas. Principalmente, os hospitais mantidos e administrados pela igreja, tendo
em vista, que nos hospitais laicos, a vasectomia ou laqueadura não sofriam restrições.
Talvez, por um crescente nos debates sobre os métodos contraceptivos na década de
1970 o pontificado católico tenha se manifestado mais uma vez sobre o assunto. De fato, com
o surgimento das pílulas anticoncepcionais no início da década de 1960, verificou-se um
grande investimento em sua propaganda e consumo. Devido ao momento de tensão mundial,
vivido com a Guerra Fria e com as previsões alarmantes de uma explosão demográfica no
decorrer do século XX, as políticas de controle de natalidade passaram a ser assumidas como
políticas de Estado, principalmente, nos países considerados de terceiro mundo, entre os quais
se enquadrava o Brasil e o restante da América Latina.
Atribui-se a isso, uma forte influência dos Estados Unidos, que temiam um possível
avanço do comunismo em áreas populosas e subdesenvolvidas. Não por acaso, os Estados
Unidos foram o maior interessado em desestabilizar as democracias latino-americanas,
financiando ditaduras militares, com amplo apoio civil, em vários países, inclusive no Brasil.

356
Informações sistematizadas a partir da leitura do site:
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19750313_quaecumque
-sterilizatio_po.html. Acesso em: 06 mar. 2019. Nesse sentido, a historiadora Joana Maria Pedro problematiza os
impactos dessas posturas católicas na vida e no casamento de algumas mulheres, pertencentes a duas gerações
diferentes. Basicamente mulheres da ―geração 20-30‖, assim denominadas pela autora, que vivenciaram o
período mais radical, advindo com as orientações de Pio XI, que relataram sofrer sanções de padres com
referência ao assunto, inclusive sendo-lhes negada a absolvição caso confessasse a prática de algum método
contraceptivo. E a ―geração pílula‖, nascidas na década de 1950, que viveram um momento de explosão dos
métodos anticoncepcionais no Brasil, e que não se deixaram impactar muito pelas orientações advindas de Paulo
VI, inclusive relatando que o uso de pílulas nem chegava a ser mencionado nos momentos de confissão.
Conforme explica a autora: ―[...] A partir do final do século XIX, a Igreja Católica, que até então, e desde o
Concílio de Trento, tinha sido discreta em suas perguntas no confessionário, passou a inquirir sobre o uso de
métodos contraceptivos, e a negar a absolvição aos casais que afirmavam utilizar meios para evitar a gravidez
indesejada. Em 25 de julho de 1968, a Encíclica Humanae Vitae reafirmou que qualquer ato matrimonial deveria
permanecer aberto à transmissão da vida. Assim, somente o método do ritmo continuava sendo considerado
lícito. As pílulas, ou outros métodos chamados de ―artificiais‖, foram condenados‖. PEDRO, Joana Maria. A
experiência com contraceptivos no Brasil: uma questão de geração. Revista Brasileira de História. São Paulo,
vol. 23, n. 45, 2003, p. 239-260, p. 252.
225

Tais ditaduras assumiram uma política de controle populacional, também, financiada pelo
capital norte-americano. Nesse momento, a atuação do movimento feminista também fez
aquecer esse debate. 357
Portanto, o documento de 1975 não trazia um debate inédito. Intitulado ―Resposta
sobre a esterilização realizada nos hospitais católicos‖, tal documento versava o seguinte no
seu primeiro ponto:

1. Deve-se considerar como esterilização direta aquela a qual, por sua natureza
e condição transforma a possibilidade de gerar em incapaz de procriar,
conforme se entende nas declarações do Magistério Pontifício,
especialmente de Pio XII. Tal esterilização está absolutamente proibida,
portanto, segundo a doutrina da Igreja, apesar de qualquer reta intenção
subjetiva dos autores que buscam a cura ou prevenção de um mal, tanto
físico quanto psíquico, que se prevê ou se teme que possa surgir da gravidez.
E, por uma razão mais grave, está proibida a esterilização desta referida
capacidade, mais ainda a esterilização dos casos particulares, já que aquela
produz na pessoa a quase sempre irreversível esterilidade. E não se pode
invocar nenhuma ordem da autoridade pública, que em razão de um bem
comum necessário queira impor a esterilização direta, porque lesionaria a
dignidade e inviolabilidade da pessoa humana. Igualmente, não se pode
invocar neste caso o princípio da totalidade, pelo qual se justificam as
intervenções sobre os órgãos por um bem maior da pessoa; com efeito, a
esterilidade procurada por si mesma não se dirige ao bem integral da pessoa
corretamente entendido, ―salvo à ordem das coisas e dos bens‖. Ao contrário
prejudica o próprio bem ético, que é supremo, ao deliberadamente privar de
um elemento essencial à atividade sexual prevista e livremente escolhida. Eis
que o artigo 20 do Código de Ética Médica, promulgado pela Conferência de
1971, apresenta fielmente a doutrina que se deve manter, sendo urgente a sua
observância.

No segundo ponto do documento é mencionada a existência de uma possível


divergência teológica sobre tal questão, no entanto, reafirma-se a doutrina tradicional da
igreja católica e renega a postura de religiosos que discordem do posicionamento da
Congregação. Em seu terceiro ponto, o documento traz uma resposta de como os hospitais
católicos devem se posicionar diante da questão da esterilização:

357
Essas questões são exploradas por Joana Pedro em artigo já referenciado. Nesse sentido, a historiadora
esclarece a relação de interferência direta dos Estados Unidos nas políticas públicas do Brasil, apontando que:
―[...] Embora não tenha partido do Estado brasileiro qualquer iniciativa explicitamente controlista, atuaram no
país sociedades civis internacionais, principalmente nas camadas populares. Foi o caso da IPPF — International
Planning Parenthood Federation, que viria a financiar, a partir de 1965, a BEMFAM — Sociedade Civil Bem-
Estar Familiar no Brasil. [...] O comércio da pílula anticoncepcional teve início no Brasil em 1962, dois anos
após ter sido aprovada nos Estados Unidos pelo FDA — Food and Drug Administration — a pílula chamada
ENOVID, produzida pelo laboratório Searle‖. (p. 242)
226

3. No que concerne à gestão de hospitais católicos:


a) Qualquer cooperação destes, institucionalmente aprovada ou admitida
para ações por si mesmas (ou seja, por sua natureza e condição) ordenadas a
um fim anticoncepcional, quer dizer, para que se impeçam os efeitos naturais
dos atos sexuais deliberadamente realizados por um sujeito esterilizado, é
absolutamente proibida. Pois a aprovação oficial da esterilização direta e,
ainda mais, sua regulamentação e execução autorizada nos estatutos do
hospital, é um fato concreto em virtude de sua natureza, intrinsecamente má,
com o qual um hospital católico por nenhuma razão pode cooperar, Toda
cooperação assim prestada seria totalmente incompatível com a missão
confiada a tais instituições, e contrária à necessária proclamação e defesa da
ordem moral.
Roma, na sede da S. Congregação para a Doutrina de Fé, 13 de
março de 1975. 358

Portanto, como se observa, o Movimento do Dia do Senhor destoou deliberadamente


daquilo que previa a igreja oficial. Tanto que a Equipe de Coordenação, assim como, o doutor
João Batista e os camponeses operados tinham consciência disso. Pressupõe-se que tal
operação só poderia ser realizada na Santa Casa de Misercórdia ou na Casa de saúde e
maternidade Pérpetuo Socorro, mais conhecida pelo nome de seu proprietário, ―doutor
Estevam‖ 359 porque esses eram os únicos hospitais da cidade durante o período de atuação do
Movimento. A Santa Casa tinha administração católica, sob a responsabilidade da diocese de
Sobral.
De acordo com os entrevistados, a cirurgia de vasectomia era realizada em sigilo,
inclusive para a grande maioria dos participantes do Movimento. Diante dos diversos perfis
de dirigentes do Dia do Senhor, nem todos compreenderiam tal prática que, pode-se dizer
―subversiva‖ para a doutrina católica. Alguns dirigentes eram demasiadamente presos ao
aspecto religioso, levando ao pé da letra o discurso que pregava a igreja.
Com relação a essa diferença no perfil dos participantes, os próprios dirigentes que
compunham a NATA do Movimento costumavam distinguir os demais entre patos e gansos,
ou seja, buscavam referências no seu próprio universo cultural rural para identificar as
atitudes dos companheiros. Aqueles que ficavam presos somente à dimensão religiosa, da fé,
358
Documento encontrado no site
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19750313_quaecumque
-sterilizatio_po.html. Acesso em: 06 mar. 2019.
359
O Correio da Semana, jornal católico pertencente à dioceses de Sobral, traz uma notícia no dia18 de julho de
1970 que anuncia a equipe diretora da Casa de saúde e maternidade Pérpetuo Socorro: ―[...] O novo hospital
tem como diretora proprietária a sra. Doralúcia Azevedo Ponte e diretor técnico o conhecido e estimado médico
conterrâneo Dr. Estevam Ferreira da Ponte‖. In: Jornal Correio da Semana de 18 de julho de 1970, Ano 53, Nº
15, p. 6.
No mês seguinte, a inauguração do Hospital foi noticiada pelo jornal nesses temos: ―O moderno hospital
construído em área de 1.750 metros quadrados, dispõe de linhas funcionais de maior bom gosto, com dois
pavimentos, 57 leitos, centro cirurgico, duas salas de parto, apartamentos particulares e para segurados INPS e,
já está franqueado aos médidos do Munícipio de toda a Zona norte‖. In: Jornal Correio da Semana de 08 de
agosto de 1970, Ano 53, Nº 18, p. 2.
227

eram os patos. Já aqueles que conseguiam alcançar o teor político e reflexivo do Movimento,
fazendo uma ligação entre fé e vida, eram os gansos.
Portanto, o sigilo era necessário, inclusive, para que não se chegasse aos ouvidos do
bispo Dom Walfrido Teixeira Vieira ou da comunidade diocesana. Nesse sentido, Valnê
Alves rememora os nomes de alguns dos camponeses que foram vasectomizados e o modo
―clandestino‖ conforme se realizava o procedimento, o que se pode considerar como uma
postura de vanguarda para um movimento de base do interior do Ceará.

Olha, o Abdias fez, o Antônio Pires fez, Chico Alexandre. Sei que uns
quatro ou cinco fizeram e teve um deles que se desfez... Primeiro, ainda
era... O João Batista fez, assim, vamos dizer meio clandestino porque a
própria Igreja não, não era contado dentro do programa da diocese. Porque o
Dia do Senhor era uma instituição, querendo ou não, ligada à diocese e
ligada aos vigários... o Batista fez tudo, como eu disse, meio clandestino, de
graça, muito ligado, sabendo da situação. Não era uma coisa muito
divulgada. 360

Tanto não era divulgado na época, como também, isso parece ter se constituído em
uma memória velada entre os camponeses que realizaram a cirurgia, pois não é um assunto
fluido em suas narrativas, ao contrário. O conhecimento desse fato foi decorrente,
primeiramente, de conversas informais com o ex-dirigente Antônio Pires, que também se
submeteu à vasectomia. Foram necessárias algumas entrevistas para que o mesmo se sentisse
à vontade para falar sobre o assunto diante do gravador e, ainda assim, de forma muito breve
como se tivesse rompendo um segredo de outrora que, aliás, não era apenas individual, mas
revelava também a experiência de outros companheiros. Certamente, Antônio Pires sabia que
aquilo que estava revelando era uma contradição do próprio Movimento, tanto que esse fato
foi vivenciado com sigilo, assim permanecendo até depois de seu fim.
Por seu turno, o ex-dirigente Francisco Alexandre que entrou no Movimento em
1974, também se submeteu à cirurgia e ao falar sobre esse assunto, observou-se também certa
cautela, tanto é que sequer menciona o nome da cirurgia. Talvez, se não fosse por intermédio
de Antônio Pires, Francisco Alexandre nem teria confiado seu segredo a essa pesquisa. No
entanto, ao contar sua história, o mesmo esclarece alguns critérios utilizados pelo médico João
Batista para realização desses procedimentos.
Através de sua narrativa, percebe-se a seriedade com que era tratada a questão, pois o
médico se reunia anteriormente com os camponeses, possivelmente, com a finalidade de

360
Entrevista realizada com Maria Valnê Alves, no dia 08 de dezembro de 2018, em Fortaleza – CE, já citada.
228

conscientizá-los sobre o procedimento cirúrgico e suas consequências. Conforme narra


Francisco Alexandre:

Nesse movimento de fazer aquela operação, né? Nos homem... quando


queria um fazer, ele chamava o grupo pra fazer a reunião. Aí dizia tudim
como é que era e tal. Ele chegou até dizer que se ele tivesse condições, ele
mandava prender todo médico que fizesse na mulher né? Porque não é pra
fazer na mulher não, é pra fazer no homem. Porque é muito simples né? ...
Eu sei que eu me encontrei com ele essas duas vezes: pra fazer a reunião e
pra fazer a operação. 361

Ainda, pela fala do entrevistado, é possível conjecturar que para o doutor João Batista
a vasectomia parecia ser o método contraceptivo mais adequado, por ser considerada uma
cirurgia mais simples que a laqueadura realizada nas mulheres. De certa forma, a postura do
médico parecia estar condizente com a visão de controle populacional aplicada pelo Estado,
distanciando-se da concepção religiosa, como também, reflete o momento que vivia a ciência
médica no Brasil, que recebia como novidade o avanço nas pesquisas sobre contracepção,
visto que até a década de 1960, esse conteúdo nem mesmo era ensinado nas faculdades de
medicina do país.
Na experiência do Movimento do Dia do Senhor, além da vasectomia para os
camponeses, outros métodos contraceptivos também foram orientados para as camponesas,
como o uso da pílula anticoncepcional, em casos mais extremos, e o método da Tabela, cujo
controle se dava pela privação de relações sexuais nos períodos férteis das mulheres. Esse
último método, considerado uma contracepção natural, portanto, aceito pela Igreja foi
amplamente recomendado pela Equipe de Coordenação dos Encontros de Esposas, tanto que,
nas entrevistas realizadas é o mais citado.
No entanto, através das lembranças das entrevistadas, percebe-se que nem tudo que era
orientado pelo Movimento, de fato, era praticado por essas mulheres. Na narrativa de Socorro
Teixeira, constata-se uma fissura com relação ao uso da Tabela: ―[...] Nessa época, a irmã
Maria Alice orientou muito a gente a fazer nessas tabela, mas eu nunca fiz essa tabela porque
não acertava fazer, não controlava...‖. (Risos).362
Quando as orientações do Movimento passavam a interferir na intimidade do casal
parece que se tornava mais difícil para as esposas seguirem-nas à risca, visto que, nem todos

361
Entrevista realizada com Francisco Alexandre, no dia 10 de outubro de 2015. Em Itapipoca – CE. (Arquivo
da autora)
362
Entrevista com Maria Socorro Teixeira, realizada em 08 de abril de 2017, já citada.
229

os maridos concordavam com essas medidas restritivas à vida conjugal, como revela dona
Socorro: ―[...] Ele não concordava não... e eu não controlei e ele também não me ajudou‖.
Além da resistência dos esposos, percebe-se que as camponesas também não compreendiam
bem as orientações para realização da Tabela. Como se evidencia no exemplo acima, em tom
de riso, Socorro reconhece: ―[...] nunca fiz essa tabela porque não acertava fazer, não
controlava‖. 363
Entre as mulheres que recordaram do uso da Tabela também está Antônia de Castro,
Toinzinha, que rememora sua experiência:

Mas nessa aí, nós se perdemo tudim... A Lucimar, ela dava a reunião pra
nós, e ele pros homem, sobre a relação, essas coisas, pra evitar tanta criança,
né? Nós tudim entremos numa tabela, parece que foi seis ou foi mais... sei
que era bem umas seis ou sete mulher, na tabela. Mulher, nós embuxudemo
tudo duma vez. (risos) Fizemo errado mesmo. 364

A narrativa de dona Toinzinha corrobora com o que foi lembrado por Socorro
Teixeira. Principalmente, o fato de as camponesas não acertarem o uso da Tabela. Nesse caso,
a memória de Toinzinha recupera uma experiência coletiva de sua comunidade, que era a
mesma de dona Socorro. Isso demonstra certa fragilidade na relação entre aquilo que era
ensinado e o que era aprendido. Embora, sua fala denote consciência da importância desse
método para evitar o nascimento de muitos filhos, sua compreensão sobre o processo aparece
de forma anedótica. Nesse caso específico, o riso da narradora se deu justamente pelo
desacerto das camponesas com relação à Tabela e a coincidência de engravidarem no mesmo
período. Aliás, o riso, até mesmo de constrangimento, foi comum nas entrevistas quando se
tratava de temas que envolviam a sexualidade.
Outro ponto, é que a narrativa de Toinzinha também oferece indícios de que a Tabela
fora tomada como método contraceptivo incorporado ao programa formal dos Encontros de
Esposas, sendo debatido tanto nos Encontros anuais, como nas reuniões comunitárias, que
aconteciam regularmente nas localidades rurais. Por isso, tal método é amplamente lembrado
tanto pelas esposas quanto pelos esposos, que tiveram que ser inseridos nesse debate. Ao
contrário, da Vasectomia e das pílulas anticoncepcionais, a Tabela constitui elementos de uma

363
Entrevista com Maria Socorro Teixeira, realizada em 08 de abril de 2017, já citada.
364
Entrevista com Antônia de Castro Sales, realizada em 08 de abril de 2017, já citada.
230

memória pública, forjada de acordo com as orientações dadas pela Coordenação, repetidas
vezes.
Em contrapartida, o uso da pílula parece ter sido uma alternativa pontual para alguns
casos de maior gravidade, em que a gravidez colocaria em risco a vida daquelas camponesas
com idade mais avançada ou que já tivessem passado por complicações nos partos. Nesse
sentido, o intuito da Equipe de Coordenação era preservar a vida feminina. É o que se
depreende da narrativa de Valnê Alves sobre os casos específicos em que o Movimento
orientou o uso de pílula anticoncepcional:

Por exemplo, tem um caso que eu me lembrei... da Rita, que era lá de


Santana do Acaraú. Então, a Rita, ela achava que filho você... aí ela quase
tinha morrido no último parto. Então, nós levamos a Rita ao doutor Neves,
porque foi no doutor Neves eu não sei... o doutor Neves passou um
anticoncepcional, isso é importante pra nós, educadores, o médico não
explicou direito que o anticoncepcional você tem que tomar todo dia. Aí ele
disse que se ela tivesse outro filho, ela ia morrer. Aí a gente: ―olha Rita você
vai levar esse remédio‖. Naquele tempo não se dava anticoncepcional, então
nós compramos... e ela levou. Aí, com uns quatro meses depois, chega a Rita
na Diocese e diz: ―pois é Valnê, eu tô gravida... não teve chico‖. Chico era a
menstruação... ―Mas Rita, você não tomou o remédio? Tomava. O Remédio
que não presta‖. Eu digo: ―como é Rita, você tomava esse remédio? - Toda
vez que a gente ia conversar, eu tomava o remédio‖. Aí a gente ia
percebendo essas lacunas que a gente tinha que... a gente pensava o discurso
né. Compreendê-las significava também lê nas entrelinhas. 365

Por esse relato, percebe-se que o principal intuito da Equipe de Coordenação era sanar
um problema que poderia se agravar a ponto de levar a morte da camponesa em questão.
Assim como esse caso, outros apareceram no período que Valnê esteve atuante no
Movimento, sendo tratado de forma semelhante, como rememora a entrevistada: ―Eu me
lembro bem da Rita, do caso dela... a Luzia também, depois daquele parto... ela usou
anticoncepcional. Esses dois casos eu sei porque a gente comprava o negócio [...]‖. 366
No entanto, ainda de acordo com o relatado, nota-se que a utilização dos
anticoncepcionais era falha, assim como também o era a utilização da Tabela. Talvez, isso se
explique por serem métodos estranhos ao universo cultural das camponesas, pois antes de sua
participação nos Encontros de Esposas, possivelmente, sequer tinham ouvido falar nesses
métodos. Embora existisse no país um programa de distribuição de anticoncepcionais para as
mulheres das classes populares, como visto acima, tudo indica que isso passou ao largo das

365
Entrevista realizada com Maria Valnê Alves, no dia 08 de dezembro de 2018, em Fortaleza – CE, já citada.
366
Ibid.
231

camponesas do Movimento, pois em nenhuma das entrevistas aparece menção a esse fato.
Isso, talvez, tenha se concentrado nos grandes centros urbanos.
Tanto era uma novidade para as camponesas, como era inovador para um Movimento
da igreja católica. Aparentemente, essas mulheres não apresentaram resistência ao uso da
pílula, e sim uma falta de aprendizado, o que significa, mais propriamente, um choque entre o
saber popular e saber médico/científico. A própria Valnê, em seu exercício de memória sobre
esse fato, elabora uma avaliação em torno do método utilizado pelo Movimento, em que
chama atenção para as ―lacunas‖ deixadas entre o discurso e a prática.
Ao rememorar sua experiência com o trabalho com as mulheres do campo, a ex-
coordenadora interpreta que ―[...] compreendê-las significava também lê nas entrelinhas‖. O
que nem sempre foi possível. Em outras palavras, a avaliação feita pela entrevistada diz do
choque cultural que tencionava as relações entre as camponesas e os intermediários culturais
que compunham a Equipe de Coordenação, os quais vinham de uma realidade urbana, letrada
e de classe média. A autoavaliação elaborada por Valnê é fundamental para se entender os
sentidos que foram sendo construídos durante sua experiência no Movimento, como posterior
a ele, no atual momento em que a entrevistada é estimulada a falar e (re)interpretar o que
vivenciou. 367
A partir da narrativa de Valnê identifica-se a construção de uma memória circunscrita
a um pequeno grupo que incluía a Equipe de Coordenação, o médico e os poucos camponeses
que se submeteram à cirurgia, assim como, circunscrita às camponesas que foram orientadas
ao uso das pílulas anticoncepcionais. Esses casos são aqui analisados como a exceção da
regra, que ultrapassaram os limites do ordinário, que era vivenciado com todos, e do oficial,
que era imposto pela igreja católica. Em outras palavras, assemelha-se à noção de ―memória
subterrânea‖ que destoa da memória hegemônica e homogênea construída pela maioria dos
participantes do Movimento do Dia do Senhor, tendo em vista que sequer tiveram
conhecimento de tais práticas.
Embora não constituindo uma memória traumática, como mais apropriadamente
seriam as memórias subterrâneas conceituadas por Michael Pollak, faz-se apropriação dessa
concepção por este fato se constituir numa memória velada para alguns participantes. Uma
memória que representou, em algum momento, um perigo para este Movimento e, portanto,

367
Nesse sentido, de acordo com Portelli: ―[...] A subjetividade, o trabalho através do qual as pessoas constroem
e atribuem o significado à própria experiência e à própria identidade, constitui por si mesmo o argumento, o fim
mesmo do discurso. Excluir ou exorcizar a subjetividade como se fosse somente uma fastidiosa interferência na
objetividade factual do testemunho quer dizer, em última instância, torcer o significado próprio dos fatos
narrados‖. (p. 60)
232

fez-se clandestina, deixando de aparecer nas ―versões oficiais‖ contadas pela documentação
368
escrita que compõe o seu arquivo. Não se entende como uma memória traumática
propriamente dita porque, de acordo com as entrevistas realizas com os camponeses que
realizaram a cirurgia de Vasectomia, percebeu-se que o motivo do segredo não era para
esconder um fato de sua vida pessoal, não aparentou ser vergonha, arrependimento, medo ou
outro sentimento que maculasse diretamente suas experiências individuais. Percebeu-se que
esse segredo vinha sendo guardado muito mais para a proteção da imagem do Movimento.
Ainda em sua entrevista, Valnê Alves demonstra sua autoridade narrativa ao afirmar
que as decisões da Equipe de Coordenação respondiam aos impasses que iam aparecendo com
o fazer do Movimento. Interessante salientar que a experiência da entrevistada restringe-se
aos primeiros anos do Movimento, em que atuou até o ano de 1973. Portanto a indicação da
pílula parece não ter obedecido a um programa previamente definido, diferentemente do
método da Tabela, abertamente orientado durante a década de 1980, pela Coordenação que
lhe sucedeu. O que se observa é que, principalmente, nos primeiros anos, parece que a
Equipe ousava nas resoluções dos problemas, mesmo tendo consciência dos riscos que
corriam. Por isso, nem tudo era registrado nos arquivos do Movimento, nem divulgado para
todos os participantes, conforme se depreende da narrativa abaixo:

Mas o anticoncepcional... a gente fazia sem a divulgação. Por isso que eu


estou lhe dizendo muita coisa não era documentado porque a nossa ação ela
vinha, não é que é espontânea, ela vinha como uma resposta a um problema
né? Então, se a comadre Luzia não podia mais ter filhos e tinha uma
dificuldade de fazer tabela, porque tabela é pra quem tem uma vida mais
programada... Aí, nesses casos, se aconselhava mesmo os comprimidos, o
anticoncepcional. Mas não era uma coisa, assim, da gente está fazendo a
divulgação. E a mesma coisa da vasectomia. 369

Ao cruzar as narrativas sobre os métodos contraceptivos supracitados com um artigo


jornalístico produzido por padre Albani Linhares publicado no Jornal Correio da Semana,
ainda no ano de 1968, mesmo ano de publicação da Encíclica Humanae Vitae, que condenava

368
Em uma análise circunscrita ao universo do Movimento do Dia do Senhor, compreendo certa semelhança com
a análise mais geral trazida por Pollak em que explica: ―[...] Ao privilegiar a analise dos excluídos, dos
marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte
integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à "Memória oficial", no caso a memória nacional.
Num primeiro momento, essa abordagem faz da empatia com os grupos dominados estudados uma regra
metodológica e reabilita a periferia e a marginalidade. Ao contrário de Maurice Halbwachs, ela acentua o caráter
destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva nacional‖. POLLAK, Michael. Memória,
esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15, p. 2.
369
Entrevista realizada com Maria Valnê Alves, no dia 08 de dezembro de 2018, em Fortaleza – CE, já citada.
233

as práticas de contracepção, pressupõe-se que a postura do padre fosse condizente com a


prática orientada pelo Movimento. Intitulado ―E agora, as pílulas?‖, tal artigo traz uma
argumentação que dá indícios de que padre Albani entendia os métodos contraceptivos,
talvez, como um mal necessário, pois embora evitassem a procriação natural, como
condenava a igreja, por outro lado, ajudava a controlar as taxas de natalidade e os abortos.
No sentido de sua argumentação, tais métodos ajudariam a sanar um problema que
assolava, principalmente, as famílias pobres, ―[...] que tinham dificuldade econômica para
manutenção da prole‖. Portanto, padre Abani divergia da postura conservadora da igreja
oficial e expunha que o posicionamento do Papa Paulo VI sobre o assunto devia ser tomado
como orientação, não implicando na decisão individual ou ―opção concreta‖ de cada um e,
ainda, defendia abertamente a possibilidade de casais optarem pelo uso da pílula, conforme
explicitado no artigo: ―em determinadas circunstâncias‖.
Com essa ressalva, feita pelo padre, analisa-se a coerência com que os métodos
contraceptivos foram orientados para os camponeses e as camponesas do Movimento, pois
nos casos excepcionais, citados acima, seu uso respondiam a circunstâncias específicas que
envolviam certa gravidade, inclusive risco de vida para as mulheres. Diante do exposto, cita-
se o artigo na íntegra:

O homem, por mais que tenha desenvolvido seu poder de domínio sôbre o mundo,
ainda não chegou a ser o senhor do processo de gerações das criaturas
humanas...saber cientificamente como se processa uma coisa e até mesmo repeti-
la em laboratórios ainda não é o domínio criador que lhe possa atribuir direitos
autorais. A geração continua com um processo que está fundamental e
essencialmente nas mãos da natureza. E como a natureza não tem mãos, é a mão
de Deus que se deve atribuir êsse processo. EVIDENTEMENTE, as célebres
pílulas estavam na mente do Papa ao afirmar tais coisas. Mesmo assim a gente
não pode dizer que o ensinamento papal seja principalmente sôbre elas. Coisa
muito importante viu Paulo VI por trás das pílulas. O papa orienta, não decide a
minha opção concreta. Diante disto, vejo a possibilidade bem real de casal,
em determinadas circunstâncias, tranquilamente tomar suas pílulas, apesar
de saber que elas frustam o processo generativo natural e que frustar êste
mesmo processo é contra a lei divina. O uso do dispositivo Intra – Uterino para
impedir a gravidez está sendo difundido amplamente em São Paulo. O trabalho
maléfico está sendo feito por entidades filantrópicas subvencionadas por
organizações internacionais e clínicas particulares. RAZÕES – As razões
apresentadas para justificar o uso do DIU são de carater assistencial levando
em conta as dficuldades econômicas para munutenção da prole e a
ignorância de como evitá-la e apontando como resultado positivo a queda do
índice de abortos criminais ou não. 370 (Grifo meu).

370
Jornal Correio da Semana, Sobral – CE. Datado de 14 de setembro de 1968, Ano 51, Nº 21, p. 02.
234

Se nas narrativas orais não apareceu menção à política de controle de natalidade


realizada pelo regime militar, em seu artigo, padre Albani oferece indícios de ser conhecedor
do que estava se passando no país. Muito provavelmente, o clero da diocese de Sobral, como
das demais dioceses do Ceará, partindo da arquidiocese de Fortaleza, acompanharam os
debates em torno da institucionalização dessa política controlista devido esta ser uma questão
da ordem do dia para a igreja católica nacional e internacional, tendo em vista o
posicionamento contrário do Papa Paulo VI.371 Em âmbito regional, devido ao
posicionamento destoante de padre Albani, esses debates permearam o Movimento do Dia do
Senhor, mesmo que clandestinamente.
Portanto, ressalta-se o caráter de vanguarda apresentado por esse Movimento,
aprofundado a partir dos temas abordados pelos Encontros de Esposas. Durante os trinta anos
de seu fazer, principalmente, ao longo das décadas de 1970 e 1980, observou-se uma inflexão
no universo feminino e nas questões que tocam a sexualidade, o que abarca também a
discussão em torno dos métodos contraceptivos. Embora, tal discussão não tenha atingido a
maioria dos camponeses e das camponesas participantes, demonstra-se uma experiência
inédita para o espaço-tempo em que o Movimento esteve se fazendo.

4.3. “... homem, é homem, sabe?”: a autonomia feminina sob os olhares do


masculino

A história do masculino ocupou um lugar privilegiado na historiografia oficial,


principalmente, a partir do século XIX, com o surgimento do paradigma da Escola Metódica
que, ao se dedicar a temas como política, guerras, diplomacia e religião, espaços de atuação
eminentemente masculinos, colocou os homens no cerne dos acontecimentos, relegando às
mulheres a invisibilidade histórica. 372

371
Nesse sentido, o Jornal católico O Nordeste, pertencente à Arquidiocese de Fortaleza, assim como o Correio
da Semana, também apresentava o debate em torno da contracepção, em sintonia com o que pregava a recém-
publicada Encíclica Humanae Vitae. Conforme se constata no artigo de MENEZES, Valderiza Almeida.
Discursos sobre contracepção: disputas pelo corpo (Fortaleza- Ceará, 1960-1980). In: Fazendo Gênero 9:
diásporas, diversidades, deslocamentos. 2010. http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais. Acesso em:
24 abr. 2019.
372
Para essa reflexão me aproprio da discussão realizada por DEL PRIORE, Mary. História das Mulheres: as
vozes do silêncio. In: FREITAS, Marcos César de. Historiografia Brasileira em Perspectiva. Op. Cit.
235

No fundo, esse lugar privilegiado do masculino se deve à histórica diferenciação entre


os gêneros que, embasada pela ideologia patriarcal designava o lugar social que deveria ser
ocupado pelo masculino e pelo feminino. Sendo assim, o lugar público, da razão, da força, da
virilidade seria por excelência o lugar do homem, do macho. Lugar esse, hierarquizado e
diametralmente oposto ao lugar do feminino que, deveria ser identificado com o privado, com
a pureza e o recato, assim como, com a emoção e a natureza, o que significava pensar a
mulher enquanto um ser destituído de razão. Portanto, dessa ideologia patriarcal são
tributários todos os discursos misóginos e reprodutores da desigualdade entre os gêneros até
os dias atuais.
Para tanto, os discursos religiosos reforçaram o patriarcalismo, ao passo que, desde a
concepção bíblica, inscreve a mulher em posição de submissão ao homem, cuidando para que
a esposa se mantivesse condescendentemente subjugada ao esposo. No Brasil, essa concepção
fora inserida com o processo de colonização, o que buscava instituir um controle do
comportamento feminino, principalmente, para as mulheres brancas, mas que, em certa
medida, se constituiu como um padrão a ser seguido. Tudo que dizia respeito ao
comportamento feminino deveria ser controlado, especialmente, sua sexualidade.

A todo-poderosa Igreja exercia forte pressão sobre o adestramento da


sexualidade feminina. O fundamento escolhido para justificar a repressão da
mulher era simples: o homem era superior, e portanto cabia a ele exercer a
autoridade. São Paulo, na Epístola aos Efésios, não deixa dúvidas quanto a
isso: ―As mulheres estejam sujeitas aos seus maridos como ao senhor,
porque o homem é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja...
Como a Igreja está sujeita a Cristo, estejam as mulheres em tudo sujeitas aos
seus maridos.‖ De modo que o macho (marido, pai, irmão etc.) representava
Cristo no lar. 373

Inevitavelmente, os homens, e também, as mulheres que se fizeram protagonistas do


Movimento do Dia do Senhor receberam essa concepção patriarcal, bíblica e sexista.
Somando-se a isso, os homens do Movimento devem ser entendidos à luz de um corte
regional, visto que se situavam no interior do Ceará, um dos estados que compõe a região
Nordeste. Portanto, ao que parece, ao homem nordestino, em particular ao sertanejo, fora
incorporado todas as características da ideologia patriarcal, acrescido da rusticidade que
permeava as especificidades da região, marcada pela seca e aridez da natureza. Esta aridez se
reproduzia, inclusive, nos tratos sociais.
373
ARAÚJO, Emanuel. A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia. In: DEL PRIORE, Mary (Org.)
História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2011, p. 45-46.
236

Nesse sentido, o nordestino era visto como um sujeito forte, viril, valente, que
defendia a sua honra masculina até às últimas consequências, se preciso fosse, utilizando da
violência e da força bruta que estava acostumado. Para o historiador Durval Muniz de
Albuquerque Júnior, essas características inserem o nordestino no âmbito de uma sociedade
que se constituiu falocêntrica, que reafirmava o homem/macho como elemento superior.

O nordestino, portanto, fruto de uma história e uma sociedade violenta, teria


como uma de suas mais destacadas características subjetivas a valentia, a
coragem pessoal, o destemor diante das mais difíceis situações. A literatura
de cordel e outras manifestações literárias da região, a partir dos anos 20,
não cansam de decantar homens valentes que conseguem resolver as mais
difíceis situações por uma atuação pessoal e individual. Coragem e um
apurado sentido de honra seriam características constituintes destes homens,
que não levariam desaforo pra casa. Homens que prefeririam perder a vida
do que perder a honra, serem desfeiteados publicamente. Entregar-se à
prisão seria o supremo opróbio para homens que preferiam morrer lutando.
A própria posse da arma era uma questão de honra, símbolo máximo de sua
liberdade pessoal, e só a morte os fazia entregar as armas para quem viesse
tomá-las. 374

No caso dos camponeses do Movimento do Dia do Senhor, essa arma se constituía


quase sempre numa faca, facão, foice, ou ferro, o que representavam também seus próprios
instrumentos de trabalho, além de lhes servirem como instrumento de segurança e distintivo
de honra. Isso pode ser exemplificado na história contada por Rita de Cássia, quando de sua
ida à comunidade de Varjota, em Almofala, distrito de Itarema, para ajudar na organização da
luta pela terra. Rita relembra seu medo ao montar na garupa do cavalo de ―Agustim‖, líder
indígena da tribo dos Tremembés, encarregado de levá-la de volta para Almofala, justamente
quando percebeu que o mesmo fazia uso de uma faca.

Aí quando foi a volta (de Varjota pra Almofala), pra voltar eu disse pra uma
amiga lá: ―conceição, eu vou voltar com quem?‖ Ela disse: ―você vai voltar
com meu marido Agustim.‖ [...] Aí, ele selou o cavalo e aí, eu fiquei
pensando assim só dentro de mim (parece uma certa timidez, né?): ―mas eu
ir com este homem uma distância tão grande nos matos, nenhum povoado no
meio! Sei lá, meu Deus!‖. Aí, de repente, pr‘acabar de ficar eu mais tímida
eu vi ele preparando uma faca pra botar no quarto. Porque os camponeses
sempre, eles andam armado com um ferro. Que eles vão pro trabalho, tem
que cortar um cipó, um espinho, uma coisa qualquer que eles precisa cortar.

374
ALBUQUERQUE JÙNIOR, Durval Muniz. Nordestino: invenção do ―falo‖. Uma História do gênero
masculino. (1920-1940). São Paulo: Intermeios, 2013, Coleção Entregêneros, p. 176.
237

[...] Ah mas aí num prestou não... quando eu vi a faca... esse homem com a
faca no quarto, eu fiquei com muito medo. 375

Embora fosse comum na cultura camponesa, naquele momento, o uso da faca por um
recém-conhecido causou desconfiança em Rita. De passagem, isso mostra outra característica
do nordestino, que é cismado, cabreiro, desconfiado, seja homem ou mulher. Numa leitura
mais profunda, esse relato mostra que a violência masculina estava presente na realidade em
que viviam as mulheres do Movimento. Caso contrário, esse medo de Rita não teria sido
cogitado. De fato, nas reuniões dos Encontros de Esposas, algumas mulheres relatavam casos
de violência que sofriam dos maridos, por vários motivos, inclusive, porque estes não
aceitavam que suas esposas participassem dos Encontros. No meio rural nordestino a
violência contra a mulher, explícita ou velada, parece ter sido uma constante.
Na verdade, essa violência, hoje caracterizada como doméstica, com uma legislação
que protege a vítima e pune o agressor, não foi privilégio de algumas mulheres camponesas,
mas atingia e, ainda atinge, muitas mulheres, independente de etnia, classe social ou geração.
Nesse sentido:

Legitimada pela ideologia patriarcal, institucionalizada e garantida por leis, a


dominação masculina fez do espaço do lar um locus privilegiado para a
violência contra a mulher, tida como necessária para a manutenção da
família e o bom funcionamento da sociedade. Uma moral sexual dupla –
permissiva para com os homens e repressiva com as mulheres – atrelava a
honestidade da mulher à sua conduta sexual. O comportamento feminino
considerado fora do padrão estabelecido para as ―mulheres honestas‖
justificava a violência como forma de disciplina, culpando, no fim das
contas, a mulher pelas agressões sofridas. 376

De modo geral, essa moral sexual dupla, referida acima, fora introjetada tanto pelo
masculino quanto pelo feminino, o que faz com que o machismo seja percebido e reproduzido
tanto no pensamento, como no comportamento de homens e de mulheres. A própria mulher,
na criação dos filhos, reproduziu esse pensamento durante muito tempo, inquestionavelmente.
A partir da inserção de mulheres em movimentos sociais, grupos de reflexão feminina de

375
MACCABE, 1994, p. 79.
376
LAGE, Lana; NADER, Maria Beatriz. Violência contra a mulher: da legitimação à condenação social. In:
PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (Orgs.). Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2012, p. 287.
238

natureza diversa, principalmente, feminista, essa forma de criação dos filhos passou a ser
questionada, o que se transformou num debate profícuo, se estendendo até os dias atuais.
Na experiência dos Encontros de Esposas do Movimento do Dia do Senhor não foi
diferente. O tema da criação dos filhos foi recorrente em muitos Encontros, resultando até em
reflexões cantadas, o que certamente, chegava com mais facilidade nas demais companheiras
e, mesmo, nos companheiros.
Nazaré Flor foi uma das camponesas que se destacou muito na luta pela terra e pela
igualdade entre os gêneros, se tornando respeitada por mulheres e homens do Movimento. Sua
compreensão sobre o papel da mulher na reprodução do machismo fora externada diversas
vezes, em versos. Assim, dizia seu canto ―Vem, mulher‖: ―Oh! Mulher, tua história será
refletida/ Na medida que tu a viver!/ Tens nas mãos a criança que nasce em teu lar/ É você
que a deseduca/ Porque deixou o machismo crescer‖.377
No entanto, mesmo com essas reflexões presentes nos Encontros de Esposas, e com
algumas mulheres se conscientizando e, até mesmo, assumindo uma luta contra o machismo e
a desigualdade entre os gêneros, a realidade de seu cotidiano, no interior de seus lares, nem
sempre correspondia ao que debatiam nesses Encontros. A própria Nazaré apresentou
ponderações com relação ao pensamento de sua filha, Valda, com relação à autonomia
expressa pela mãe, ao vestir um ―vestido de alça‖ sem pedir o consentimento ao marido. Ao
passo que Nazaré contava o episódio, também refletia sobre a profundidade da questão,
entendendo-a como uma ―coisa de raiz‖, cultural.

Agora um dado interessante sobre minha filha: outro dia eu fiz um vestido de
alça e fui vestir aqui pra minha sobrinha ver... e a Valda foi logo dizendo:
―mãe mostre ao papai. O pai não viu. O pai mata a mãe.‖ Olhe! Da boca das
crianças. Que a mãe deve vestir sobre o controle do pai. Eu acho que ela vai
usar sobre o controle do Manuel. Manuel vai dizer o jeito do vestido dela
que ela diz que eu não posso vestir vestido de alça: se o pai me ver me mata.
Que na cabeça da menina-mulher parece uma coisa já de raiz. Ela deve ter
dado fé de alguma coisa na sociedade que mulher deve ser assim, que
homem deve ser assim. É uma coisa que é enraizada, que é cultural... é uma
coisa da cultura da mulher. Está enraizada. 378

Das expressões utilizadas por Valda, recuperadas pela narrativa de Nazaré, explicita-se
o peso do machismo e o aspecto da violência masculina como forma de disciplinar a mulher
que foge à regra do bom comportamento. Dessa forma, a filha repreende a mãe justamente
377
MACCABE, 1994, p. 154.
378
Ibid., p. 153.
239

pelo receio da atitude do pai ao se deparar com sua esposa vestida em trajes considerados
indecentes ou impróprios para uma mulher casada, que se vestia sem o consentimento do
marido. ―O pai mata a mãe‖, dizia Valda de forma hipotética para o caso de Nazaré, que na
realidade tinha certa autonomia em seu casamento. No entanto, o pensamento reproduzido por
Valda demonstrava a naturalização da violência do homem contra a mulher, podendo
repreender, punir e, até mesmo, matar sua esposa caso não fosse devidamente respeitado pela
mesma.
Nessa mesma entrevista, concedida a Maria Alice, quando ambas ainda participavam
do Movimento, percebe-se uma profunda crítica de Nazaré ao mundo machista que vivia.
Conta que, desde muito jovem, rebelou-se contra os padrões femininos estabelecidos, o que
não era bem aceito nem por sua mãe, nem pela sociedade, sendo considerada uma ―moça
doida‖. No seu entendimento, taxavam-na de doida porque era livre, alegre, até certa medida,
era uma moça independente.

Uma das coisas que eu acho interessante que existe um grande tabu que a
mulher só deve andar acompanhada de alguém, a mulher tem que ter vigia,
seja quem for, e eu nunca admiti isso. A minha mãe brigava comigo, viu,
brigava porque eu era uma moça doida, eu queria sair por aí sozinha. (...)
Outra coisa a questão de ser alegre, de me rebolar, de me distrair... então, eu
era tida como moça doida. 379

Nazaré cresceu trabalhando. Desde os doze anos de idade que começou a trabalhar, de
variadas formas: alfabetizando as crianças de sua comunidade, costurando à mão, tanto para
fora de casa, como para vestir seus familiares, como também, trabalhava no período das
farinhadas. Trabalhava, como ela mesma disse: ―pra ganhar meu trocado‖. Dona de um
espírito independente e livre, Nazaré ―[...] tinha sonhos de viajar, quando lia, (eu gostava
muito de ler) aí eu lia histórias de outros estados do Brasil e tinha vontade de conhecer. Eu
tinha vontade de andar, de conhecer o mundo de viajar‖. Por outro lado, negava-se a abrir
mão de sua liberdade, recusava-se a se submeter ao trabalho doméstico, em casa de família.
Assim, ―Ser empregada eu não queria de jeito nenhum‖.380 Portanto, Nazaré fugia aos padrões
das jovens camponesas de sua região. Porque era diferente, era ―doida‖.
Pela sua própria narrativa e pela memória de outras camponesas sobre Nazaré se
conhece a mesma como uma mulher faceira, que gostava de se embelezar, maquiar o rosto,

379
Ibid., p. 57.
380
Ibid., p. 56.
240

colorir os lábios com batom, usar o cabelo curto, vestir roupas de alças, cada vez mais finas.
No entanto, esse comportamento não era usual para as mulheres de sua geração, justamente
pelo machismo que imperava no campo. Os pais, irmãos, namorados, maridos, enfim, os
homens a que essas mulheres estavam submetidas não consentiam essas ousadias, pois
liberdade demais não era coisa para ―mulher direita‖.
No caso de Nazaré, esse comportamento foi sendo conquistado, pois contrastava com
o modelo de roupas mais vestidas, com mangas, e com o longo cabelo que usava na época em
que se casou. Tal comportamento foi sendo conquistado, de acordo com a afirmação de sua
autoestima e de sua autonomia que, no caso de Nazaré, esses aspectos delineavam sua
personalidade desde jovem, mas foram sendo reforçados com sua atuação no Movimento, nos
Encontros de Esposas, e em outros espaços de luta que ocupou durante sua vida. Por sentir na
pele os preconceitos por ser uma mulher diferente, talvez, ousada para a época e o lugar que
vivia, Nazaré Flor tecia críticas ao mundo machista, mas também, reconhecia os limites que
esse mundo impunha à atuação das mulheres.

E a verdade é que o mundo é tão machista que a gente, mesmo querendo ser
revolucionária, a gente não é. A gente vai até certo ponto e recua... recua,
porque mesmo na cabeça da gente tendo abrido novos horizontes, para os
homens não abriu, nem tampouco pra muitas mulheres ainda continua
fechado. Por isso a gente sempre é assim um pouco dependente ainda. Muito
embora que, diante de algumas mulheres, a gente já tem uma história muito
avançada. 381

Nazaré Flor se casou com 23 anos, quando seu pai já tinha falecido. O pescador
Manoel José de Sousa é considerado pelos homens e mulheres do Movimento como um bom
esposo, justamente, por permitir que Nazaré tivesse a liberdade de ser a mulher que queria ser.
Liberdade de viajar para os Encontros de Esposas e de se engajar em muitos outros
movimentos de mulheres, como o Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR),
inclusive, chegando a ser representante das Mulheres Rurais de Maceió, sua comunidade, na
4ª Conferencia Mundial de Mulheres na China. No entanto, Nazaré reconhecia os limites que
seu esposo gostaria de lhe impor. Para manter sua autonomia, assumia uma luta fora e dentro
de casa também.

O Manuel até certo ponto, ele tem que calar a boca, porque não pode... Outro
dia, ele diz uma coisa que eu fiquei pensando que é que tem na cabeça dele.

381
Ibid., 60-61.
241

Alguém disse: ―A Nazaré faz isso, que é que o Manuel diz?‖ Aí, ele disse:
―Eu não digo nada, não, sempre eu não mando nela!‖ ―Sempre eu não
mando...‖ é como se ele tivesse a vontade de mandar, mas só que não
controla. A gente sente que dentro dele está a vontade de mandar, como
todos os homens mandam. 382

Muitos homens do Movimento aprenderam a respeitar e a admirar Nazaré como uma


forte liderança. Isso decorre de sua importante atuação nos conflitos de terra, em que Nazaré
se mostrou uma mulher de coragem e inteligência. Em vários momentos da luta, destacou-se
na articulação política dos camponeses junto a entidades como o INCRA. Nazaré se mostra
conhecedora da admiração de seus companheiros, mas, parece reconhecer que tal admiração
se restringia ao discurso, porque na prática, quando se passava do universo público para o
privado, a posição dos camponeses em relação às suas mulheres continuava conservadora.
Segundo Nazaré: ―[...] Alguns homens dizem que me admiram. Mas eu tenho plena certeza,
se eles tivessem uma mulher como eu, eles não admitiam‖. 383
Dentre os admiradores de Nazaré estão Antônio Pires e Francisco Alexandre Moura,
ambos foram dirigentes muito atuantes no Movimento do Dia do Senhor. Por serem de
comunidades abrangidas pela diocese de Itapipoca tinham uma aproximação maior com
Nazaré Flor e com a luta pela terra em Apiques, comunidade em que Nazaré morava e que,
também, pertencia à diocese de Itapipoca. Com a conquista da terra na década de 1980, essa
comunidade passou a compor o Assentamento Maceió.
O trabalho de organização feminina, realizado por Nazaré, era tão reconhecido pelo
Movimento, que o primeiro encontro de mulheres que Francisco Alexandre levou sua esposa,
Terezinha, fora em Maceió. Muito engajado no Movimento, Chico Alexandre, como era
chamado, era um daqueles maridos que incentivava muito sua esposa a ―entrar na luta‖.
Conforme sua memória: ―[...] Eu já levei ela no Movimento no Maceió, que é um lugar que as
mulher lá se reunia mesmo. Duzentas mulher, sabe, no Movimento, achei bonito lá. Os
homem foram organizar o almoço e merenda, banho e casa lá na beira da lagoa e elas
reunida‖.384
Interessante notar que Terezinha foi ―levada‖ em todos os sentidos por Francisco
Alexandre. Primeiro, literalmente levada, como não conhecia a comunidade e nunca tinha
estado por aquela região, teve que ser acompanhada por seu esposo. E levada, também,

382
Ibid., p. 63.
383
Ibid., pp. 62-63.
384
Entrevista realizada com Francisco Alexandre Moura, em 10 de outubro de 2015. Em Gualdrapas, Trairi –
CE, já citada.
242

porque sua participação partira do interesse e insistência de seu próprio esposo, porque como
dizia ele: ―eu acredito no Movimento das mulher‖. Em sua narrativa, fazia questão de frisar a
quantidade de mulheres reunidas, ―[...] Foi dois dias de reunião, duzentas mulher...‖,
certamente, para mostrar a força da organização de Nazaré e demais mulheres.
Chama atenção também para a inversão de papéis de gênero durante o encontro. Por
um lado, as mulheres reunidas, debatendo, tomando decisões, do mesmo modo que acontecia
nos encontros dos dirigentes do Movimento. Por outro, os homens fazendo às vezes do
feminino, cuidando da alimentação, do banho e da casa, oferecendo o suporte necessário para
suas mulheres, como tantas vezes elas haviam feito para eles.
Esse encontro também ficou marcado na memória de Terezinha, conforme afirmou:
―[...] Eu sei que o que me marcou mais. Foi a Nazaré dizendo que a mulher não pode ser
escrava do marido‖.385 Com mais propriedade que seu esposo, pois participou efetivamente do
encontro, Terezinha conta como se iniciou no Movimento e o teor das discussões que agrupou
aquelas duzentas mulheres que tanto impressionou Francisco Alexandre.

Meu marido entrou primeiro. Porque eu tinha muito filho pequeno, aí eu só


acompanhava aqui por perto, só mesmo assim, ir pra missa, celebração, essas
coisa. Mas aí quando meus filho cresceram, eu tive a oportunidade de ir um
encontro lá em Apiques (Itapipoca) com a Conceição, a Nazaré, que a
Nazaré era que fazia o Movimento do Dia do Senhor com muitas mulher e
eu participei. E os debate lá, foi vários debate, mas o debate mais que a gente
debateu foi sobre a libertação da mulher. Porque nós naquela época, a gente
era muito escravizada, por tudo, até pelos marido também [...].386

A narrativa de Francisco Alexandre oferece indícios de que, assim como Nazaré,


outras mulheres consideradas fortes na luta, também se tornavam respeitadas e admiradas
pelos homens do Movimento. Inclusive, essas mulheres chegavam a ser convidadas a
participar dos Encontrões que aconteciam, anualmente, no mês de julho, mas que eram
assumidos pelos dirigentes, sendo um espaço marcadamente masculino. Nos Encontrões, não
se discutiam questões de gênero. Os debates giravam, majoritariamente, em torno das
questões do trabalho e da terra. No entanto, as lideranças femininas conquistaram espaço
também nos debates de cunho político, sendo bem vindas aos Encontrões. Até porque o
trabalho e a terra significavam a própria existência tanto para os camponeses, como para as

385
Entrevista realizada com Terezinha Santos de Oliveira Moura, em 08 de abril de 2017. Em Gualdrapas, Trairi
– CE, já citada.
386
Ibid.
243

camponesas. Assim, Francisco Alexandre recupera a atuação dessas mulheres nos


Encontrões:

É interessante. E depois as que participavam das reunião só de mulher


mesmo, sempre nós se encontrava nas reunião dos homem elas iam também
porque eram convidadas pelo Movimento. Ave Maria, era só mulher forte,
sabe? Era na hora de falar. Aqui mesmo tem a mulher do Antônio Pires, que
é a cumade Rosa. Quando ela fala, aí todo mundo fica, né? ... Aí por isso que
eu digo: se tivesse um Movimento do tamanho do Movimento dos homem,
tivesse um Movimento das mulher, só que não é todas que acompanha. 387

Em diversos momentos, as palavras de Francisco Alexandre denotam não somente sua


admiração pela organização feminina, mas, mais do que admirar, ele acreditava na força das
mulheres, como expressou em sua narrativa. Entretanto, mesmo acreditando, deixa escapar
uma visão dicotômica, como se o movimento das mulheres se fizesse à parte do movimento
dos homens, inclusive, interpretando-o como menor, já que o número de mulheres era inferior
ao número de homens no Movimento do Dia do Senhor. Nesse sentido, à primeira vista, na
interpretação do entrevistado, o aspecto quantitativo superava o qualitativo. Francisco
Alexandre parecia não compreender que, independente de quantidade, para aquelas mulheres,
as questões levantadas nos debates dos Encontros de Esposas eram encaradas com o mesmo
peso que as demais questões tratadas nos Encontrões.
Percepção semelhante a essa também foi encontrada na narrativa de Antônio Pires
sobre a atuação feminina no Movimento. O ex-dirigente considera que essas mulheres
―criaram um Movimento delas‖. O mesmo acompanhou de perto a organização das mulheres
pertencentes às comunidades de Itapipoca desde o início, tendo em vista que morava na casa-
sede do Movimento nessa diocese, lugar onde aconteciam muitos dos Encontros de Esposas
anuais. Esses Encontros anuais passavam por revezamentos, sendo realizados, algumas vezes,
no Centro de Treinamento de Sobral – CETRESO, na Serra da Meruoca onde, também,
aconteciam os Encontrões e, em outras vezes na sede de Itapipoca. Assim, Antônio Pires
relembra o tempo em que a casa do Movimento era ocupada pelas mulheres:

[...] Eu vi que as mulheres se tornavam mais... muito mais valorizada porque


participavam mais. Porque a mulher sempre, até determinada época, e talvez
ainda exista essa visão, claro que tem, a mulher era pra cuidar da família, era
pra cuidar do marido, era pra fazer comida, era pra... sabe? Então, quando a
mulher levantava a voz, assim, ou tomava qualquer iniciativa da sua livre
vontade, já tinha qualquer uma forma de repressão, às vezes do marido,
porque não gostava, porque não sei quê. E quando as mulheres começaram a
387
Entrevista realizada com Francisco Alexandre Moura, em 10 de outubro de 2015, já citada.
244

se reunir... que eu considero, pra mim, eu vejo até como um Movimento a


parte, esse Movimento das mulheres quando surgiu, eu analiso, assim como
Movimento, não vou dizer paralelo, mas um Movimento que surgiu, um
Movimento a parte que ajudou, que uniu as forças do Movimento, tá
entendendo? Porque as mulheres foram tomando força... não é que elas
acompanhassem os maridos no Movimento, tá entendendo? Elas criaram o
Movimento delas. 388

Com a autoridade de uma testemunha ocular, Antônio Pires diz daquilo que viu, não
somente do que viu nos momentos dos Encontros de Esposas que, mesmo de longe,
acompanhava pescando um ou outro debate que ocorria na plenária da casa onde morava.
Mas, também diz daquilo que viu e ouviu de seus companheiros do Movimento quando de
suas andanças nas comunidades, visitando as casas dos amigos e, ao mesmo tempo,
reforçando o trabalho de base, participando de reuniões comunitárias em sindicatos,
associações, ou realizando as celebrações do Dia do Senhor.
Portanto, seu Antônio situa a realidade vivida pela maioria dos casais camponeses, em
que a mulher não podia tomar ―qualquer iniciativa da sua livre vontade, já tinha qualquer uma
forma de repressão‖. Em contrapartida, sua narrativa também situa o processo de
transformação pelo qual passavam essas mulheres quando começavam a participar do
Movimento. Sua percepção é interessante porque traz claramente a ideia de processo, ao
passo, que traz explicações como: ―[...] as mulheres se tornavam mais... muito mais
valorizada porque participavam mais‖, ou ainda, ―as mulheres foram tomando força‖.
Percebe-se que o próprio entrevistado está sempre fazendo o uso da noção de tempo contínuo,
o que sugere dinamismo, mudança.
Outro ponto interessante é que, embora o entrevistado não considere o Movimento
feminino como ―paralelo‖, mesmo assim, reconhecia-o como criado pelas mulheres e
pertencente a elas. A narrativa não parece querer diminuir a participação feminina, no entanto,
cabe a reflexão de que as questões gerais do Movimento do Dia do Senhor pertenciam a
todos, camponeses e camponesas, inclusive com a participação de algumas mulheres nos
Encontrões e em outras atividades, como nos conflitos de terra. Agora, as questões tratadas
nos Encontros de Esposas eram somente das mulheres, nem somente porque os homens não
podiam participar, mas, talvez, por uma visão, também, dicotômica de que ali se discutia
assunto de mulher e que não alcançaria o interesse masculino. Uma visão machista, talvez.
Em sua ―análise‖, expressão utilizada na narrativa, o que denota que o ex-dirigente
não só relembrou momentos vividos durante o Movimento como que fizesse um passeio no
388
Entrevista realizada com Antônio Pires, em 10 de outubro de 2015, em Itapipoca – CE. (Arquivo da autora)
245

tempo, mas elaborou reflexões em torno dos aspectos vividos. Nem todos os entrevistados
conseguiram realizar com tanta clareza o ato de lembrar e, ao mesmo tempo, analisar ou
refletir sobre o fato lembrado. Percebe-se que esse discernimento da memória está mais
presente nas entrevistas realizadas com os sujeitos que assumiam a Coordenação dos
Encontros de Esposas. Supõe-se que, no caso de Antônio Pires, isso também se apresenta
porque, além de compor a ―Nata‖ do Movimento, o que significava uma espécie Coordenação
camponesa, que assumiu o comando já na segunda metade da década de 1980, o mesmo tinha
um comprometimento de corpo e alma.
Antônio Pires foi um dos dirigentes que viveu para o Movimento do Dia do Senhor e
essa vivência se reverbera até os dias de hoje. Quando é procurado para contar sua
experiência, o faz com muito entusiasmo, como se quisesse reviver o passado. Em algumas
vezes, serviu de guia para esta pesquisa, acompanhando e cuidando das devidas apresentações
entre a pesquisadora e os entrevistados. De certo modo, muitas das vozes que ecoam nessa
pesquisa são decorrentes de uma seleção realizada pelo ex-dirigente que, tudo indica,
estabelecia o critério de indicar aqueles sujeitos que tiveram maior engajamento no
Movimento.
Ao selecionar os entrevistados Antônio Pires contribuía para a construção de uma
memória que se pretendia verdadeira ou autêntica justamente pelo fato de ser lembrada por
sujeitos que detinham o respaldo da fala porque vivenciaram plenamente o Movimento do Dia
do Senhor e conheciam profundamente sua história. Consideravam-se uma espécie de
guardiães da memória, diga-se da passagem, de uma memória positiva, deliberada. 389 Talvez,
nesses reencontros com os companheiros e companheiras de outrora tenha alimentado o
espírito e a memória, pois segundo Antônio Pires: ―[...] Eu não tenho nada pra lembrar é antes
do Movimento. Porque pra mim, eu nasci com o Movimento... aí quando eu comecei
participar do Movimento, pronto, abriu o mundo pra mim, sabe?‖. 390

389
Nesse sentido, recorre-se a análise de POLLAK sobre os trabalhos de enquadramentos da memória, quando o
mesmo comenta o caso de sua pesquisa sobre o campo de concentração Auschwitz-Birkenau, em que uma das
dirigentes da Associação de Deportados lhe abria caminho para o contato com algumas de suas entrevistadas
alertando sobre alguns aspectos que o pesquisador deveria compreender. Assim: ―[...] Dentro da preocupação
com a imagem que a associação passa de si mesma e da historia que é sua razão de ser, ou seja, a memória de
seus deportados, é preciso portanto escolher testemunhas sóbrias e confiáveis aos olhos dos dirigentes, e evitar
que "mitômanos que nós também temos" tomem publicamente a palavra‖. (p. 10)
No caso desta pesquisa, ao selecionar os entrevistados Antônio Pires contribuía para a construção de uma
memória que se pretendia verdadeira ou autêntica justamente pelo fato de ser lembrada por sujeitos que
detinham o respaldo da fala porque vivenciaram plenamente o Movimento do Dia do Senhor e conheciam
profundamente sua história. Consideravam-se uma espécie de guardiães da memória, diga-se da passagem, de
uma memória positiva, deliberada.
390
Entrevista com Antônio Pires, realizada em 10 de outubro de 2015, já citada.
246

Ainda, o que chama atenção na narrativa é o fato do entrevistado reconhecer a


autonomia feminina, ao dizer que: ―[...] não é que elas acompanhassem os maridos no
Movimento, tá entendendo? Elas criaram o Movimento delas‖. Ou seja, com essa distinção, se
demarcava um aspecto fundamental para o perfil das camponesas que conquistavam
autonomia e independência com o fazer dos Encontros de Esposas, nem somente em relação
aos seus maridos, mas em relação ao mundo em que viviam. Por esse caminho, Antônio Pires
aprofunda sua percepção sobre os diferentes perfis de mulheres, ao mesmo tempo em que
narra suas impressões:

Porque uma coisa é a mulher acompanhar o marido, pra onde o marido for
no Movimento, em qualquer trabalho, na Igreja, no sindicato. Isso é uma
coisa, a mulher acompanhar o marido né? A outra coisa é a mulher ser ela
própria, sabe? Em qualquer discussão, em qualquer participação, sabe? E
quando elas se juntavam, eu não participava das reuniões, mas, às vezes, era
lá onde eu morava, lá no prédio, lá no Violete, eu adorava aquilo ali, sabe?
Mulher falava com coragem, falava com disposição... e aquelas que se
sentiam... porque naquele tempo ainda existia, ou existe né? Maridos que
não aceitava muito a mulher se tornar autônoma, era unido, um casal unido,
mas pra mulher seguir, obedecer e seguir como... como determinada norma,
sabe? Aí, eu via que tinha muitas que... que... que quebrava essa corrente,
sabe? Na discussão com as outras, aquelas que eram assim, com as outras,
elas quebravam essa corrente, aí, se sentiam mais independente, mais
autônoma. Não no sentido de pisar no pescoço do marido, sabe? De butar a
faca no pescoço do marido, sabe? Mas, no sentido de ajudar mesmo... pra
não ser mais só o homem, não ser mais só o marido. Ser o marido e a mulher
juntos na mesma luta, na mesma caminhada, na mesma força. 391

A partir das impressões do entrevistado, nota-se que a autonomia de algumas mulheres


servia de exemplo para as outras. Principalmente, para àquelas que, devido à maior repressão
de seus maridos, ou porque ainda não se sentiam encorajadas para se engajar de fato no
Movimento, animavam-se quando viam a coragem, a independência e a liberdade de algumas
companheiras, pois como disse o ex-dirigente: ―[...] Na discussão com as outras, aquelas que
eram assim, com as outras, elas quebravam essa corrente [...]‖.
Com relação à resistência dos maridos em permitir que suas esposas participassem
dos Encontros, Antônio Pires traz um raciocínio que desnuda o machismo presente nos
homens do campo, daquele tempo e, talvez, até os dias de hoje. Raciocínio esse, muito
coerente com a realidade que vivia e conhecia de perto. Nesse sentido, o entrevistado analisa
como foi difícil para alguns camponeses sair do seu ―lugar de homem‖ e assumir as

391
Ibid.
247

reponsabilidades domésticas durante os dias de ausência de suas esposas, mesmo que fosse
em nome do Movimento.
Outro ponto que enfatiza esse ―lugar de homem‖ é expresso na ideia de cuidado
feminino, em que a mulher deve cuidar do marido, assim como cuida dos filhos, cuida da
casa, cuida da comida, enfim, muito próxima da noção de escrava, inclusive, muitas vezes
questionada pelas próprias mulheres nos Encontros de Esposas. De acordo com a narrativa:

Tinha homens que apoiava muito, dava toda força, fazia tudo que precisasse.
Mas, tinha outros que não apoiava muito porque homem é muito... eu não sei
dizer a palavra certa.. é homem, é homem, sabe? Achava ruim ficar em casa
só pra fazer comida, sabe? Lavar prato, embora tivesse filho e tudo, mas tem
homem que é tão assim, fica tão no lugar de homem que nem pra administrar
os filhos... pra fazer o que precisa em casa ele acha que não é papel dele.
Aquilo ali é papel da mulher... não é que eles privassem das mulheres ir, só
que eles sentiam muita dificuldade né? Ficar dois dias, três dias sem a
mulher em casa pra tá cuidando dele. 392

Depreende-se que, em uma cultura fortemente marcada pela definição papéis de


gênero, principalmente, o que é papel do homem-macho, não cabia a presença masculina na
cozinha fazendo o trabalho feminino, mesmo que esse mesmo homem-macho aceitasse e, até
mesmo reivindicasse, a presença feminina no roçado, fazendo o trabalho masculino. Em
alguns aspectos, a definição dos papéis de gênero no universo rural parece ter sido muito mais
rígida para o lugar assumido pelos camponeses do que pelas camponesas.
No entanto, evidentemente, na complexidade do fazer-se do Movimento do Dia do
Senhor, compreende-se que nem todos os homens tinham um comportamento opressor e
apresentaram resistência à autonomia de suas esposas, como também, supõe-se que com a
conquista dessa autonomia, as próprias mulheres foram conseguindo flexibilizar as amarras
dos maridos. Nesse processo, foi possível observar algumas mudanças. As narrativas de
Antônio Pires e de Francisco Alexandre apontaram para isso, sendo eles próprios exemplos de
maridos que incentivaram e apoiaram a participação de suas esposas no Movimento,
respeitando a autonomia e independência conquistadas por elas.
Terezinha Moura, esposa de Francisco Alexandre, e Rosa Pires, ex-esposa de Antônio
Pires, foram se destacando nos Encontros de Esposas, justamente por assumirem esse
compromisso de luta coletiva para transformação da vida das mulheres e da sociedade. No
caso de Antônio Pires e Rosa Pires, que passaram por uma separação conjugal, isso se torna

392
Ibid.
248

ainda mais emblemático, pois ambos continuaram ativos no Movimento mesmo com as
dificuldades na esfera privada. A força de Rosa é admirada pelas companheiras e pelos
companheiros do Dia do Senhor, como também, por seu ex-marido.
Essa separação foi difícil tanto para o casal como para o Movimento que, mesmo
assumindo algumas posturas de vanguarda, primava por sua essência católica e pela tradição
da cultura camponesa, em que homens e mulheres aprendiam, desde cedo, a importância do
casamento. Inclusive, muitas vezes, esse casamento era carregado como uma ―cruz‖ por
algumas mulheres. No entanto, devido à força desse sacramento, mantinham-se casadas como
pregava o discurso religioso. Nesse sentido, a separação de Antônio e Rosa foi muito
conversada entre o povo do Movimento, como se constatou nas entrevistas do casal, sendo
também, relatado por outras camponesas. Portanto, ressalta-se que no fazer dos movimentos
sociais a máxima de que o ―privado é político‖ se torna mais evidente.
Outro exemplo de dirigente do Dia do Senhor que apoiou inteiramente a participação
da esposa no Movimento foi Bernardo da Costa Ferreira, esposo de Rita de Cássia. Em sua
entrevista, Bernardo também recupera a realidade de opressão em que viviam as mulheres da
comunidade em que moravam, Juritianha, em Acaraú. Contrapondo a autonomia e liberdade
de sua esposa Rita aos tipos de privações que as outras mulheres eram submetidas, o ex-
dirigente reconhece a importância do trabalho realizado por sua esposa para a transformação
dessa realidade. Rita de Cassia foi uma grande militante do Movimento, que compunha a
NATA dos Encontros de Esposas e que atuou incansavelmente na organização das mulheres,
inclusive, criando a Associação das Rendeiras de Juritianha.
Nesse sentido, Bernardo relembra a dificuldade de sua esposa até mesmo para
conseguir convencer às rendeiras a se engajarem na Associação, tendo em vista que os
maridos não permitiam suas esposas fora de casa. Em alguns casos, Rita teve que convencer
os próprios maridos. Segundo o entrevistado, sua esposa conseguiu ―puxar gente‖ devido ao
respeito que tinha na comunidade e a seu poder de convencimento. Apesar das dificuldades,
com o tempo, foi-se percebendo algumas mudanças no comportamento dos maridos para com
suas mulheres. Bernardo fala com um ar de orgulho sobre a autonomia de sua esposa,
ressaltando que a mesma era uma mulher ―liberta‖. Avalia a militância e o trabalho realizado
por Rita como um ―gesto santo‖, conforme se depreende da narrativa.

Pra mim era um gesto santo que ela fazia. Porque a luta dela, justamente, era
para o desenvolvimento das pessoas. Que as mulheres eram muito oprimida
naquele tempo e desenrolou muita coisa, muita coisa... Mas uma mudança
grande logo naquele tempo. Teve cidadão que pediu perdão a ela e a nós:
249

―seu Bernardo, eu peço perdão a dona Ritinha, seu Bernardo. Pelo jeito que
eu tratava minha mulher lá em casa.‖ E hoje a lição que vocês dão... Não
tinha liberdade de sair, trabalhava na Associação, mas se dissesse que tinha
que sair, eles não deixava. E a minha era liberta, ia pra Fortaleza, ia pra onde
ela queria, ia pros treinamento onde chamava. E ela começou puxando gente.
393

Respeitar a autonomia feminina também passava pela questão financeira. Sabe-se que
diante da pobreza e da falta de recursos em que os casais camponeses viviam o trabalho
produtivo das mulheres era o que gerava uma renda a mais e, até mesmo, na velhice, quando
as camponesas tiveram o direito à aposentadoria, essa aposentadoria era incorporada ao
orçamento doméstico. Portanto, era comum essa renda feminina passar quase que,
instantaneamente, para as mãos de seus maridos. Em sua narrativa, Bernardo relembra um
episódio em que fora interpelado sobre o dinheiro de sua esposa: ―[...] Aí chegou um homem
pra mim e disse: ‗na tua casa é dois dinheiro? Ah bom, meu irmão, não vai pra frente não (...)
La em casa quando a mulher chega, eu passo a mão.‘‖ 394
A concepção de que as mulheres não precisavam de dinheiro era corrente entre os
homens do campo. Talvez, isso esteja associado ao fato de que o sustento das mulheres e da
família devia ser obrigação masculina, mas, também, acredita-se que tenha a ver com a noção
de que a mulher não sabe administrar o dinheiro, porque é considerada ―gastadeira‖, no dizer
dos camponeses. Nota-se que ambas as justificativas partem de uma compreensão machista,
decorrente do modelo de sociedade patriarcal, na qual estavam inseridos. No entanto, a
compreensão de Bernardo parecia destoar do comportamento masculino padrão de sua época:

Naquele tempo era obrigação do homem sustentar a mulher, dar tudo que ela
precisava. Então, ninguém dava tudo porque ninguém tinha. Mas, só em ela
ganhar aquele dinheirim que já não dependia do meu, em determinados
momentos, vixe, era um prazer muito grande pra mim e pra ela. Tanto é que
quando ela aposentou-se, ela e eu, eu liberei o dinheiro dela. 395

Apesar de reconhecer a autonomia e a liberdade financeira de sua esposa, o ex-


dirigente constrói uma argumentação em que se deixa entrever a essência do discurso

393
Entrevista com Bernardo da Costa Ferreira, realizada em 13 de novembro de 2018, em Juritianha, Acaraú –
CE. (Arquivo da autora)
394
Ibid.
395
Ibid.
250

machista. Justamente, aquele discurso do qual buscou se distanciar quando se referiu a seu
conhecido que ―passava a mão‖ no dinheiro da esposa. Nesse sentido, quando Bernardo diz:
―eu liberei o dinheiro dela‖, embora se entenda que ele disse com o intuito de esclarecer que
não contava com a renda da esposa para o orçamento da casa, a forma como disse remonta à
ideia de que ele, o marido, estava no controle, e não sua mulher. Deixa implícito que a
autonomia financeira de Rita dependia de sua liberação. Não sendo, portanto, uma conquista
da mesma.
Com essa observação não se quer pôr em dúvida a narrativa do entrevistado. Até
porque, de acordo com entrevistas de outras camponesas e de sujeitos da Equipe de
Coordenação dos Encontros de Esposas, confirma-se a autonomia e a independência de Rita
de Cássia com relação ao seu esposo. Apenas se quer chamar à atenção para a força da
ideologia patriarcal, impregnada na mentalidade masculina, tão difícil dos homens se
distanciarem que, mesmo àqueles que procuram destoar desse modelo, caem nas armadilhas
do discurso machista.
Se esse desprendimento parecia difícil para os esposos que participavam do
Movimento do Dia do Senhor e que apoiavam o engajamento de suas mulheres nos Encontros
de Esposas, muito mais difícil o era para aqueles que não participavam de movimento
nenhum e que, portanto, passavam ao largo das discussões travadas sobre as relações de
gênero. No entanto, mesmo com a incompreensão e resistência de seus maridos, algumas
camponesas subverteram a ordem patriarcal que lhes era imposta e começaram a se utilizar de
396
certas ―estratégias e táticas‖ para conquistarem sua liberdade, autonomia e libertação
dentro do casamento.
Nesse sentido, o Movimento do Dia do Senhor, com seus Encontros de Esposas, vem
tocar exatamente nessa limitação historicamente imposta ao papel que a mulher representa na
sociedade, fazendo com que as mulheres camponesas extrapolassem os limites do lar, da sua
comunidade rural e da submissão aos ditos do marido. Irismar, da comunidade de Trairi,
diocese de Itapipoca foi uma das muitas mulheres do campo que tiveram que enfrentar seu
marido para participar do Movimento e demarcar sua atuação fora do espaço doméstico. Em
sua narrativa, apresenta sua trajetória no Dia do Senhor, bem como, suas artimanhas para
driblar o ciúme e a dominação de seu esposo:

396
Aqui me aproprio dos conceitos formulados por Certeau que, em linhas gerais, define que ―[...] a tática é
determinada pela ausência de poder, assim como a estratégia é organizada pelo postulado de um poder [...]‖ Cf.:
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1. As artes de fazer. Petópolis – SP: Vozes, 2012, p. 95.
251

Começei assim, foi nos anos oitenta, até antes logo, mas eu falo logo do
oitenta. Era difícil né, era difícil sair de casa, por causa do marido né. Que o
marido não queria que a gente saísse. Primeiro, eu me espelhei na Dalva, que
a Dalva foi a mais velha que começou a sair de casa. Com dificuldade
também. Aí eu já me espelhei nela, né? Aí comecei a participar deste
encontro do Dia do Senhor, através da Maria Alice, do Padre Albani. Aí veio
esses encontros de esposas através da Maria Alice, porque ela via que as
mulheres eram muito escravas do marido, e aí tinha esses encontros de
esposas pra elas ficarem mais livre... teve uns que eu nem fui, com medo,
que o marido me ameaçou se eu fosse, sabe pegou uma corda e dobrou e
disse se eu teimasse, ele me alampiava, né? E aí teve uns que eu não fui, mas
só que eu não desisti não. Continuei pra frente, não fui nesse dia, mas... fui
tentar né? Fui tentar e até que, assim, encontrei a libertação junto com as
outras. 397

Mazinha, como era conhecida no Movimento, recupera alguns dos momentos de


tensão e as ameaças que sofria do marido quando o assunto era sua ausência de casa. O ciúme,
a força física masculina, o porte de arma, como uma faca, e o apelo ao poder aquisitivo do
macho provedor, dono da casa e da família, se impunham como argumentos na tentativa de
despertar o medo e a obediência feminina. Na experiência vivida por Mazinha, isso se revela
claramente, conforme se evidencia em sua narrativa:

Tinha ciúme de mim, queria que eu vivesse só em casa né. Só fazendo as


coisas pros filhos e cuidando de casa e eu não queria só assim. Queria
participar das coisas fora, da associação também na comunidade. Assim, eu
não desisti, fui em frente... quando eu chegava, tinha vez que ele fechava até
as portas sabe. Aqui tu não entra mais não, aí eu dizia: eu entro, que eu não
fiz nada demais... teve vez que a porta era fechada mesmo e eu batia: abre a
porta, mas assim, rezando e me encomendando a Deus né. Sei que nas três
vezes ele abria a porta, aí eu entrava, ficava ali. ...Só ameaçava, mas
ameaçou foi muitas vezes, foi só uma vez não. Teve um dia que ele pegou
uma faca, eu andava pra uma reunião aqui da Itapipoca, uma reunião da
Associação...aí quando eu cheguei... aí ele foi e disse assim: aqui tu não
entra mais não, eu vou vender essa casa e vou mi‘mbora pra São Paulo. Aí
eu fui e ri, com sangue quente mesmo e disse assim: rapaz, quem comprar
ela vai perder porque aqui nós somos casados, eu tenho direito, eu tenho
meus filhos e eu não fiz nada demais. Aí quando eu disse isso, pegou uma
faca e deu uma carreira atrás de mim, sabe? Aí ficou assim bem pertinho:
fala, fala... eu me calei... e assim, eu vencia sabe? Chegava, ficava na minha,
rezando, me encomendando a Deus e não tocava mais naquele assunto mais.
398

397
Entrevista realizada em 12/10/2015 com Maria Irismar Vieira Linhares, conhecida como Mazinha, do
município de Trairi, Diocese de Itapipoca. Atualmente, Irismar continua casada e vive um matrimônio feliz,
posto que conseguiu demarcar seu espaço na relação e conquistar a confiança e o respeito de seu esposo.
(Arquivo da autora)
398
Ibid.
252

Entende-se que Irismar não se deixando intimidar pelas constantes ameaças do marido
se utilizava de argumentos legais, como seus direitos de esposa e mãe para demarcar seu lugar
na relação, relembrando ao esposo que a casa que lhe estava sendo negada a entrada, também
era sua. Outro ponto que se destaca na fala da entrevistada é a vontade de atuar na sociedade,
ou seja, fazer parte da Associação, ocupar um espaço público, em alguns casos,
marcadamente masculino. A fé, a providência divina, também é marcante em sua fala, o que
situa o lugar social, político e religioso em que estava inserida. Assim, Irismar desenvolvia
diversas táticas para permanecer na sua luta por autonomia e libertação feminina, driblando o
ciúme, o machismo e a violência com que convivia.
Sem enfrentar diretamente os arroubos de violência do marido, ela se ―movimentava
dentro do campo de visão do inimigo‖, se apropriando de artimanhas como o silêncio, a
oração e a proteção dos filhos e de outros familiares. Assim, a tensão acalmava e a
normalidade da rotina fazia parecer que tudo estava resolvido. Nesse ritmo, Irismar conseguia
se desdobrar entre seu papel de esposa, mãe e dona de casa e suas funções no Movimento do
Dia do Senhor e na Associação comunitária.
Desse modo, o que fica evidente é que, entre táticas e estratégias, algumas mulheres
que compunham o Movimento do Dia do Senhor ultrapassaram a dimensão da submissão e da
passividade que historicamente foram designadas ao feminino, subvertendo tais
representações a seu favor. A conquista da autonomia e da libertação feminina foi se
configurando com o fazer-se do próprio Movimento, em uma dimensão paralela à luta pela
terra e pelas demandas de trabalho e de justiça social dos camponeses sendo, inclusive,
reconhecida entre os homens do Movimento. Nessa luta, também, as mulheres se inseriam e,
ora explicitamente, ora astuciosamente, demarcavam seus espaços e garantiam ganhos de suas
lutas específicas.
253

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os Encontros de Esposas do Movimento do Dia do Senhor significaram um divisor de


águas na vida de muitas mulheres camponesas que participaram e se transformaram com o
fazer-se dessa experiência. No decorrer das décadas de 1970, 1980 e 1990, muitas mulheres se
engajaram no Movimento e vivenciaram uma realidade bem diferente daquela que viviam,
antes de seu engajamento. Principalmente, porque elas eram donas de casa, acostumadas a
viver para a casa e para a família, na maioria das vezes, nunca tinham saído do espaço
doméstico ou do convívio com o esposo e com os filhos. Com a participação no Dia do
Senhor, essas mulheres puderam sair de suas casas, viajar para participar de Encontros ou
realizar um trabalho pastoral. Com isso, passaram a ultrapassar as suas comunidades,
desvencilhar-se de seus maridos, filhos e afazeres domésticos para experimentar o novo, o
desconhecido, o inédito.

No decorrer dessa experiência, algumas dessas camponesas colocaram em xeque a


realidade de opressão em que viviam. Uma vida duplamente oprimida, tendo em vista as
relações de classe e de gênero, pois tanto eram oprimidas pelo patrão/dono da terra, numa
conjuntura de exploração do trabalho camponês, como também, se descobriram oprimidas
pelos esposos no interior de suas relações domésticas e matrimoniais. Através da participação
dos Encontros de Esposas, abria-se o debate sobre diversos temas candentes ao universo
feminino que proporcionava a essas mulheres uma reflexão e questionamento sobre sua vida,
seu trabalho, seu casamento, seu corpo e sua sexualidade. Nesse sentido, muitas dessas
camponesas (re)significaram sua visão de mundo e seu comportamento, inclusive, passando a
assumir novos papeis sociais como protagonistas de diversos conflitos, nas esferas pública e
privada de suas vidas. Evidencia-se aqui a forte atuação das mulheres na luta pela terra em
que moravam, enfrentando os patrões, os pistoleiros, a polícia, a firma Ducoco. Foi,
principalmente, pela coragem e força feminina demonstradas nessa luta que algumas mulheres
do Movimento conquistaram o respeito e a admiração masculina, mesmo que permeada por
tensões de gênero.

Tais tensões se evidenciaram no momento em que essas mulheres começaram a


conquistar sua autonomia e a reivindicar seu espaço de atuação política, em pé de igualdade
com os homens com os quais conviviam, fosse em casa, no Movimento, na Associação, na
Cooperativa, no Sindicato, enfim, em qualquer lugar onde fosse convencionalmente ocupado
pelo masculino. Desse modo, mulheres como Rita de Cássia e Nazaré Flor despontaram como
254

pioneiras na experiência do Movimento, ao passo que foram as primeiras a disputar e assumir


cargos eletivos em espaços-chave para a organização dos trabalhadores camponeses, como
Associações, Cooperativas e Sindicatos. No caso de Rita, fundou a Associação de Mulheres
Rendeiras de Bilro de Juritianha, que organizou as rendeiras e resistiu à figura do
atravessador, rompendo com a lógica da exploração do seu trabalho. Já Nazaré foi a primeira
mulher de sua comunidade a ser presidente de uma Cooperativa – a COPAIM, como também,
foi a primeira a disputar as eleições para a presidência do Sindicato, perdendo por ser mulher,
conforme se discutiu no segundo capítulo.

Principalmente, era na disputa pelo espaço do Sindicato que se evidenciavam as


tensões de gênero, visto que para os homens a direção daquele lugar não caberia às mulheres.
Já na década de 1990 até se concebia a filiação de mulheres, como sua presença nas reuniões
e atividades de luta. No entanto, a presença feminina na cúpula, ocupando cargos estratégicos
para o Sindicato, como presidência, vice-presidência, tesouraria, entre outros, não era bem
aceito.

Por esse caminho, situa-se a experiência de dona Raimunda, de Trairi, diocese de


Itapipoca que, se engajou no Movimento na década de 1980, em 1988, através do convite de
Socorro, esposa de Luís Gonzaga Teixeira, da comunidade de Salgado do Nicolau. Raimunda
narra sua dificuldade em trabalhar como tesoureira do Sindicato justamente por ser mulher.
Sua narrativa ainda recupera o percurso que trilhou até se tornar sócia e aceita pelos homens
do sindicato. Nesse percurso, dona Socorro teve que estudar sobre sindicato, participar de
reuniões sindicais, associar-se. Evidencia-se que todas essas ações eram inéditas para ela que,
com isso, foi se formando politicamente até conseguir demarcar seu espaço no sindicato,
―com garra‖, como ela mesma disse:

Aí a gente começou a participar do movimento sindical não é? Que não


existia o trabalho de mulher no sindicato não. Não existia trabalho de mulher
no sindicato. O sindicato era só homem. Era só homem. No noventa eu
trabalhei e eles me escolheram como tesoureira do sindicato. Pra mim ser
tesoureira foi um pouco difícil. Porque eu comecei a participar do sindicato e
eles não aceitaram porque eu não era sócia. Como eu não era sócia, eles
aceitavam eu participar das reuniões. Mas eu entrei através de uma
comissão, que através dessa comissão entrou através de advogado né, aí me
colocou numa comissão pra mim poder participar. Aí eu fui participar dos
encontros do sindicato e estudar o que era sindicato. E graças a Deus,
ninguém ganhou a primeira vez, o primeiro ano, mas no segundo ano, a
gente foi eleito, meu esposo né, com um segundo grupo, e eu fiquei
255

acompanhando. Aí quando foi em julho do noventa, do oitenta e nove, ai eu


me associei no sindicato e comecei a entrar com garra mesmo. 399

Socorro teve que enfrentar inclusive seu próprio esposo, que também era sindicalista.
Quando a mesma compôs uma chapa para disputar a presidência do Sindicato, em que
assumiria a tesouraria, o mesmo não aceitou que ela assumisse o cargo de tesoureira do
Sindicato, contrapondo-se até mesmo à vontade da maioria que havia votado na chapa dela.
Assim, seu esposo impunha sua dominação publicamente perante os demais companheiros,
como narra a entrevistada:

Aí quando foi no dia da votação, os companheiros, mais de cento e cinquenta


pessoas estavam reunidos e aí me escolheram pra ser a tesoureira do
sindicato né? E aí meu esposo estava presente, que ele já era da diretoria, e aí
ele foi abriu a boca perante aquele monte de gente que não aceitava eu ser a
tesoureira. Eu não era, porque ele não deixava. Então, aquilo ali eu não
fiquei com vergonha não, eu fiquei foi com raiva. Ai eu me levantei perante
esses cento e cinquenta companheiros que estavam lá, aí fui e disse, virei pra
ele e disse: o nosso problema pessoal a gente resolve em casa, o problema
social, a gente está aqui pra resolver, eu respondo por mim e você responde
por você e se vocês acreditarem em mim e me derem um voto de confiança
podem colocar meu nome que eu vou assumi. E assumi. Passei os três anos
trabalhando lá de tesoureira do sindicato. E até hoje não saí e nem vou sair.
400

No entanto, evidencia-se em sua narrativa a resistência com que enfrentou seu esposo,
também publicamente. Enfrentamento esse não somente no discurso, mas também, na prática,
pois como explicitou, naquele momento, ela assumiu a tesouraria, como parece ter assumido o
Sindicato como um lema de vida, do qual fazia parte até o presente momento de sua vida.
Faz-se importante ressaltar que a entrevista com Socorro foi realizada justamente por ocasião
de um evento do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itapipoca. Nesse evento, participaram
filiados dos sindicatos de Itapipoca e de Trairi. Embora tenha se observado uma presença
maior de participantes do sexo masculino, algumas mulheres marcaram presença, como
Raimunda, Elita, Irismar, Dalva e Nenzinha. Todas mulheres que atuaram nos conflitos de
terras das comunidades rurais do Trairi, como se evidenciou no terceiro capítulo, e que são
sindicalizadas.

399
Entrevista realizada em 10 de outubro de 2015, em Itapipoca – CE. (Arquivo da autora).
400
Idem.
256

Portanto, mesmo a contragosto de alguns homens, talvez da maioria, algumas das


mulheres que protagonizaram o Movimento do Dia do Senhor e seus Encontros de Esposas
conseguiram romper com a dominação em que vivam, conquistaram a autonomia e passaram
a ocupar espaços antes nunca vislumbrados por elas. É certo dizer que isso se desenvolveu em
forma de processo, que se aprofundou mais na vivência de umas do que de outras. No entanto,
acredita-se que nenhuma dessas camponesas participantes do Movimento e dos Encontros de
Esposas tenha saído intacta dessa experiência.

Como também, o protagonismo dessas mulheres não foi esquecido por seus
companheiros e companheiras do Movimento, do trabalho no campo e de luta pela terra.
Como exemplo, destaca-se a memória e a história de Nazaré flor que foi lembrada por todos
os entrevistados dessa pesquisa, como também, foi homenageada pelos moradores do
Assentamento Maceió, pelo qual lutou até conseguir a posse do território, com o seu nome em
uma escola do Assentamento, a Escola do Campo Maria Nazaré de Sousa - Nazaré Flor.
Mesmo depois de sua morte, Nazaré floresce através do seu legado de lutas e conquistas que
aparece nas histórias que contam sobre ela. Seu legado também foi recuperado para o filme
―Terra de Nazaré‖, dirigido por Shaynna Pidori, lançado no ano de 2019.

Figura 8 Nazaré Flor em cena do filme 'Terra de Nazaré'

Fonte: Fotografia retirada da reportagem ―Uma semente chamada Nazaré Flor‖. Disponível no site:
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/03/politica/1556895207_173258.html
257

6. FONTES

6.1. Fontes Orais


 Entrevistas realizadas pela autora
1. Albani Linhares. 20/09/2003 e 17/12/2004. Sobral – CE. Arquivo da autora.
2. Maria Valnê Alves. 18/12/2004, em Sobral – CE e 08/12/18, Fortaleza – CE. Arquivo da
autora.
3. Conceição Araújo. 22/05/2008. Acaraú- CE. Arquivo da autora.
4. Maria Alice MacCabe. 06/06/2009. Itapipoca – CE. Arquivo da autora.
5. Rosa Pires. 06/06/2009. Itapipoca – CE. Arquivo da autora.
6. Lúcia Vasconcelos. 26/03/2010. Sobral – CE. Arquivo da autora.
7. Rita de Cássia. 01/04/2010. Juritianha, Acaraú – CE. Arquivo da autora.
8. Rosa Marques. 28/04/2010. Serra Verde, distrito de Sobral – CE. Arquivo da autora.
9. Dalva, Irismar, Raimunda, Nenzinha e Elita. 08/04/2017. Itapipoca – Ce. Arquivo da
autora.
10. Maria Socorro Teixeira. 08/04/2017. Trairi – CE. Arquivo da Autora.
11. Terezinha Santos de Oliveira Moura. 08/04/2017. Trairi – CE. Arquivo da Autora.
12.Antônia de Castro Sales, Toinzinha. 08/04/2017. Trairi – CE. Arquivo da Autora.
13. Joana Maria de Sousa Silva. 13/11/2018. Juritianha, Acaraú – CE. Arquivo da autora.
14. Ana Rosa Ferreira da Silveira. 13/11/2018. Juritianha, Acaraú – CE. Arquivo da autora.
15. Maria Fausta Marques, em 12 de outubro de 2010. Em Sítio Alegre, Morrinhos – CE.
Arquivo da Autora.
16. Antônio Pires. 18/04/ 2008; 10/10/2015 . Itapipoca – CE. Arquivo da autora

17. Francisco Alexandre. 10/10/2015. Itapipoca – CE. Arquivo da autora


18. Zenóbio Vasconcelos. 26/10/2004; 15/08/2007 e 26/03/2010. Sobral – CE. Arquivo da
autora.
19. Luís Gonzaga. 08/04/2017. Trairi – CE. Arquivo da Autora.
20. Bernardo da Costa Ferreira.13/11/2018. Juritianha, Acaraú – CE. Arquivo da autora.

 Entrevistas realizadas por Maria Alice MacCabe ainda no período de existência


do Movimento do Dia do Senhor:
Dez entrevistas realizadas por Maria Alice e organizadas no livro: McCABE. Maria Alice.
História na Mão. Algumas camponesas contam como se conscientizaram. (Uma História
258

Oral). 1994. S/e. Exemplar cedido por Maria Alice. (O livro conta com as entrevistas de Rita
de Cássia, Joana, Gesilda, Maria José, Diana, Conceição, Nazaré Flor, Cícera, Elita, Teresa).
 Entrevistas realizadas por Lídia Ferreira ainda no período de existência do
Movimento do Dia do Senhor:
Grupo de Mulheres da comunidade de Serra Verde. As transcrições encontram-se no Arquivo
do Movimento.

6.2. Fontes Escritas


Arquivo do Movimento do Dia do Senhor. Diocese de Sobral, CE
Relatórios dos Encontros de Esposas (1969-1995)
Cartas Comunitárias. (As cartas não estão arquivadas por ano, mas pelo nome das
participantes do Movimento. Cada uma possui uma pasta com suas correspondências, sendo
essas pastas numeradas de 1 a 1354).
Folhinhas Evangelho e Vida, escritas por homens e mulheres (1977-1985)
Circulares (1970-1977)
Relatórios dos Encontrões realizados na Serra da Meruoca, onde participavam homens e
mulheres. (1970-1995)
Relatório dos Encontros Paroquiais (1968-1978)
Relatórios das Comunidades (1968-1998)
Arquivo da Associação de Mulheres Rendeiras de Bilro de Juritianha. Itarema-CE (Data de
fundação 1988)
Arquivo do INCRA – Superintendência Regional do Ceará – SR02
Livros:
MAcCABE. Maria Alice. História na Mão: algumas camponesas contam como se
conscientizaram. (Uma História Oral), 1994.

MAcCABE, Maria Alice (Org.) ―A nossa luta foi uma luta sagrada”: O povo do
Assentamento Maceió conta a história de sua luta pela terra. Fortaleza: Instituto Terramar,
2015.

Jornais:

Correio da Semana, Sobral, 1º de maio de 1965, p. 05.

Correio da Semana, Sobral, 18 de setembro de 1965, Ano 48, n.º 13.

Correio da Semana, Sobral, 24 de abril de 1965, Ano 48, n.º 02, p. 03.

Correio da Semana. Sobral, 1º de janeiro de 1966.


259

7. SITES CONSULTADOS

BOLETIM boletim.sobral.ce.gov.br

BRASIL ESCOLA http://brasilescola.uol.com.br/biologia/tabelinha.htm

CETRA www.cetra.org.br

CNPJ https://www.basecnpj.com

DUCOCO www.ducoco.com.br

FUNCEME http://www.funceme.br/app/calendario/produto/ceara/media/anual

IBGE https://www.ibge.gov.br

INCRA http://www.incra.gov.br/sites/default/files/uploads/reforma-
agraria/questao-agraria/reforma agraria/projetos_criados-geral.pdf

MISEREOR www.misereor.org

MST http://www.mst.org.br

UIRAPURU http://www.radiouirapurudeitapipoca.com.br

VATICANO
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_
con_cfaith_doc_19750313_quaecumque-sterilizatio_po.html
260

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXOS
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Fotografia do casal Abdias Marques e Maria Fausta Marques, Sítio Alegre, Morrinhos.
Arquivo da autora

Fotografia de Rosa Marques da Costa, Serra Verde, Sobral. Arquivo da autora.


267

Fotografia de Antônio Pires, Itapipoca. Arquivo da Autora.

Fotografia de Bernardo da Costa Ferreira, esposo de Rita de Cássia. Juritianha, Acaraú.


Arquivo da autora.
268

Fotografia de Joana Maria de Sousa Silva, irmã de Rita de Cássia. Juritianha. Acaraú.
Arquivo da autora.

Fotografia de Ana Rosa Ferreira da Silveira, filha de Rita de Cássia. Juritianha,


Acaraú. Arquivo da Autora.

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