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(1970-1990)
NITERÓI
2020
VIVIANE PRADO BEZERRA
BANCA EXAMINADORA
NITERÓI
2020
Aos meus pais:
Agradeço também às professoras Maria Paula Araújo e Junielle Rabelo pela gentil
leitura do meu texto e pelas valiosas contribuições no momento da Qualificação. Assim, como
agradeço de antemão, o aceite das professoras convidadas para a banca de Defesa: Ana Maria
Mauad, Larissa Correa, Maria Paula Araújo e Adelaide Gonçalves. Sinto-me honrada.
Agradeço a Ana Rosa Ferreira da Silveira, filha de Rita de Cássia, já falecida, mas que
foi uma das camponesas mais atuantes no Movimento e fundadora da Associação de Mulheres
Rendeiras de Bilro de Juritianha. Ana Rosa me concedeu entrevista, como também,
intermediou para que eu entrevistasse seu pai Bernardo Ferreira e sua tia, Joana Maria de
Sousa Silva. Além disso, emprestou documentos referentes à Associação, como o Livro de
Atas e o Livro de Prestação de Contas, os quais também pude trazer para casa, lê e fotografar
com calma. Também agradeço pela confiança.
Meu muito obrigada a amiga Josefa Nunes e seu esposo Nilton, por terem me acolhido
em sua casa, quando precisei me hospedar no Cariri para assistir as aulas do doutorado, onde
vivenciei momentos muito agradáveis junto com sua família. Estão guardados no meu
coração.
Agradeço aos amigos e amigas de fora da universidade, mas que de perto ou de longe,
acompanham e torcem pelas minhas conquistas acadêmicas e pessoais. A Igor Alves Moreira,
todo meu carinho e agradecimento por ser meu amigo fiel, fazendo às vezes de motorista e
confidente, todas as vezes que precisei me embrenhar no meio rural para fazer entrevistas para
essa pesquisa.
A minha mãe, Maria Auxiliadora; minha irmã, Vanessa; meu cunhado, José Aguiar e
meu sobrinho, João todo o meu amor e agradecimento por serem minha fortaleza e meu porto
seguro. Ao meu pai, Vilemar, in memoria, agradeço pelo amor, dedicação e estímulo, sempre
torcendo para que eu realizasse o sonho de ser doutora e professora universitária. Sei que,
mesmo de outro plano, ele ficará muito feliz por mim. Como devota, agradeço ao Divino
Espírito Santo pela força e iluminação no percurso de escrita dessa tese.
RESUMO
Esta pesquisa tem como objeto de estudo as memórias e histórias de vida e de trabalho das
camponesas que compunham os Encontros de Esposas do Movimento do Dia do Senhor, que
se desenvolveu nas dioceses de Sobral e de Itapipoca, na zona Norte e Noroeste do estado do
Ceará, durante as décadas de 1970 a 1990. Através da análise dos documentos escritos, tais
como: Relatórios dos Encontros de Esposas Anuais, Cartas Comunitárias, Livro de Atas e
Livro de Contas da Associação de Mulheres Rendeiras de Bilros de Juritianha, bem como, da
análise de diversas entrevistas orais foi possível perscrutar a memória escrita e oral produzida
por mulheres pobres, camponesas, autodidatas que se fizeram protagonistas desse Movimento.
Com essa vasta documentação pôde-se vislumbrar a atuação dessas mulheres nas diversas
esferas de suas vidas, desde a esfera do cotidiano, passando pelo mundo do trabalho feminino
no campo, como pela forte atuação das camponesas na luta pela terra. Para a análise dos
conflitos de terras, fez-se utilização dos documentos de desapropriação das terras em litígio,
referentes ao Assentamento Maceió, em Itapipoca e ao Assentamento Lagoa do Mineiro, em
Itarema, arquivadas na sede do INCRA, em Fortaleza - CE. A dimensão da sexualidade e as
tensões presentes nas relações de gênero, tanto no interior do Movimento do Dia do Senhor,
como no interior dos seus casamentos também se tornou evidente, principalmente, nas
narrativas orais analisadas. Portanto, na experiência desse Movimento, a partir das vivências
durante os Encontros de Esposas, espaço, por excelência, do feminino, constatou-se que
muitas dessas mulheres encontraram sua voz, transformaram-se e demarcaram um espaço de
ação dentro e fora do Movimento, como em suas comunidades, nas Associações, nos
Sindicatos, na luta pela terra e por melhores condições de trabalho, assim como, em suas
casas e em seus casamentos, ao passo que conquistaram o respeito e a admiração de muitos
dos camponeses que também protagonizavam o Dia do Senhor.
The analysis of written documents, such as: Annual Wives Meetings Reports, Community
Letters, Minutes Book and Account Book of the Association of Women Lacemakers of Bilros
de Juritianha, as well as, from the analysis of several oral interviews, it was possible to
examine the written and oral memory produced by poor, peasant women, mostly illiterates
who became protagonists of this Movement. With this vast documentation, it was possible to
glimpse the performance of these women in the various spheres of their lives, from the sphere
of daily life, through the world of female labor in the countryside, as well as the strong
performance of peasants in the struggle for land. The dimension of sexuality and the tensions
present in gender relations, both within the Movement of the Lord's Day and within their
marriages, also became evident, mainly in the analyzed oral narratives. Therefore, in the
experience of this Movement, from the experiences during the Encounters of Wives, space,
par excellence, of the female, it was found that these women found their voice, were
transformed and demarcated a space of action inside and outside the Movement, as in their
communities, in Associations, in Trade Unions, in the struggle for land and for better working
conditions, as well as in their homes and in their marriages, while they won the respect and
admiration of many of the peasants who also starred in the Lord's day.
Figura 1 Foto de Rita de Cássia de Sousa Ferreira, fundadora da Associação Comunitária das
Mulheres de Rendeiras de Bilros de Juritianha. ....................................................... 149
Figura 2 Foto da antiga Associação Comunitária das Mulheres Rendeiras de Bilros de
Juritianha ................................................................................................................ 150
Figura 3 Foto da atual Associação Comunitária das Mulheres Rendeiras de Bilros de
Juritianha ................................................................................................................ 150
Figura 4 INCRA - Croqui de situação. Projeto Assentamento Maceió. Itapipoca – Ceará ... 177
Figura 5 Cartão fúnebre de João Araújo Barros ..................................................................... 185
Figura 6 MDA – INCRA - Projetos de Reforma Agrária Conforme fases de Implementação.
Projeto de Assentamento Lagoa do Mineiro / Projeto de Assentamento Maceió .................. 195
Figura 7 MDA – INCRA - Projetos de Reforma Agrária Conforme Fases de
Implementação. Projeto de Assentamento Várzea do Mundaú ............................. 196
Figura 8 Nazaré Flor em cena do filme 'Terra de Nazaré' ...................................................... 256
LISTA DE SIGLAS
Introdução ................................................................................................................................. 16
2. ―Eu sei que a gente tem uma história muito grande pra contar‖ - Mundos do trabalho
feminino ........................................................................................................................ 93
2.1. ―A gente já cresceu foi trabalhando‖: uma vida de trabalho no campo ..................... 93
2.2. ―Quando a mulher sai do mundo da cozinha dela e começa a participar das coisas,
então ela começa a ver o mundo diferente‖: trabalho pastoral e atuação política das
camponesas do Dia do Senhor.................................................................................. 111
2.3. ―RENDEIRAS DE JURITIANHA NA LUTA!‖ A Associação Comunitária das
Mulheres Rendeiras de Bilro de Juritianha .............................................................. 129
Introdução
1
Cf.: https://www.ibge.gov.br Acesso em: 28 jan. 2019.
2
Cf.: https://www.iphan.gov.br Acesso em: 28 jan. 2019.
3
De acordo com o historiador Agenor Soares e Silva Junior, a interferência de Dom José na cidade de Sobral era
parte de um projeto maior vinculado aos interesses de revitalização da fé católica que projetava um ideal de
―romanização‖ atrelado ao controle religioso, político e social da Igreja. Nesse sentido o ―pensamento
europeizante de Dom José trazia a imagem e o anseio dos papas, empreendendo a filosofia de leão XIII; a
transformação da sociedade, na sua visão, deveria ter como base a caridade, a filantropia e o amor piedoso,
aceitando que o poder civil, considerado como tal, era de Deus. Ao trabalhar pelo crescimento da diocese,
exerceu o papel de administrador da cidade, segundo alguns, ‗governador de Sobral‘[...]. Com uma política de
organização dos espaços urbanos, mostrava uma visão expansionista de obras edificadas e serviços em prol da
sociedade local‖. Cf.: SILVA JUNIOR, Agenor Soares. Cidades sagradas. Da ―Roma cearense‖ à ―Jerusalém
sertaneja‖: a Igreja Católica e o desenvolvimento urbano no Ceará (1870-1920). Sobral e Juazeiro do Norte.
Fortaleza/Sobral: Edições ECOA, 2015. pp. 262-263.
17
local, que circula, ininterruptamente, desde 1918 até os dias atuais. Tal jornal fazia parte de
projeto católico modernizador para a cidade, como também, representava o arauto da moral e
dos bons costumes pregados pelos quadros da diocese que o produzia e financiava. A diocese
de Sobral estava em completa sintonia com as orientações modernizadoras advindas do
Vaticano, o que fazia com que os bispos assumissem um compromisso com os rumos da fé,
educação, cultura e progresso das dioceses recém-criadas. Portanto, Dom José Tupinambá da
Frota deve ser compreendido como um homem e um religioso do seu tempo.
Contrapondo-se ao conservadorismo e à pompa religiosa encarnada por Dom José,
apresenta-se o terceiro bispo de Sobral4, Dom Walfrido Teixeira Vieira, de origem baiana e
que assumiu a diocese em 1965, permanecendo até 1998, quando renunciou e se tornou bispo
emérito, vindo a falecer no ano de 2001. Seu longo bispado foi marcado por uma postura
pastoral considerada ―moderada‖, tendo em vista, a alternativa conciliadora entre uma igreja
renovada pós-concílio Vaticano II (1962-1965), com ares progressistas, caracterizada pela
―opção preferencial pelos pobres‖ e o momento político ditatorial (1964-1985) que marcou o
Brasil durante sua atuação como bispo.
Compreende-se que Dom Walfrido desenvolveu uma postura moderada porque foi
durante o seu bispado que a diocese de Sobral viu o alvorecer dos movimentos de base da
Igreja Católica, com ampla participação do laicato, configurando uma reorganização da Igreja
de Sobral, pois uma parte da diocese se aproximava cada vez mais das classes populares e se
distanciava do rito e da pompa característicos da hierarquia religiosa. Dessa forma, Dom
Walfrido acolhia em sua diocese os princípios advindos do Concílio Vaticano II e
aprofundados pelas Conferencias Episcopais de Medellin (1968) e de Puebla (1979). No
entanto, se por um lado, o referido bispo era aberto aos ventos conciliares, por outro, não se
indispunha com o regime militar vigente. Mesmo em momentos de tensão, quando os
movimentos de base foram alvo de fiscalização e censura, Dom Walfrido manteve uma
relação diplomática com os militares. Nem se chocava com a ditadura, nem capitulava a ela.
Nas palavras de Padre Albani Linhares, o fundador do Movimento do Dia do Senhor:
Dom Walfrido era muito mais pra lá do que pra cá, quer dizer, era muito mais pra
socialismo do que pra ditadura. Dom Walfrido deu muita força a todos esses
movimentos, sabendo do que podia ser e ele dava força. Então como a posição dele
4
Ressalta-se que o segundo bispo de Sobral foi o pernambucano João José da Mota e Albuquerque. Dom Mota
foi nomeado bispo de Sobral pelo Papa João XXIII, tomando posse dessa diocese no dia 21 de maio de 1961.
Seu bispado durou até 15 de julho de 1964, quando foi designado para a Arquidiocese de São Luís, Maranhão.
Apesar do curto período na diocese de Sobral, Dom Mota participou do Concílio Vaticano II, o que teve um bom
acolhimento durante seu bispado.
18
era essa, mais pra frente do que pra trás, os padres que eram pra trás mesmo, num
tiveram, num tinham muita... eram poucos e tinham pouca influência. Os padres do
meio termo ficavam zanzando pra lá e pra cá sem, sem [...] quer dizer, não tivemos
brigas internas no clero por causa disso, de jeito nenhum [...]. 5
Durante o período ditatorial, a cidade de Sobral não passou despercebida aos olhos da
repressão. Tanto o MEB como o Movimento do Dia do Senhor foram constantemente
vigiados, tanto pela polícia local quanto pela polícia federal. Nos anos de 1960 o
5
Entrevista realizada com padre Albani Linhares no dia 20 de setembro de 2003, em Sobral, Ceará. (Arquivo da
autora). É importante salientar que todas as entrevistas utilizadas nessa pesquisa não se encontram de acordo
com a norma culta, pois foram transcritas respeitando os elementos identitários e culturais dos entrevistados.
6
Vale ressaltar que o MEB foi um acordo firmado em 21 de março de 1961, pelo decreto n. 50.370, no qual se
estabelecia convênio entre o MEC e a CNBB dispondo a realização de um programa educacional, via Emissoras
Católicas, voltados para a alfabetização das populações rurais das regiões Norte, Nordeste e Centro Oeste do
país. Inseria-se na política desenvolvimentista do período. Sua metodologia de alfabetização era formulada pelo
educador Paulo Freire.
7
BETTO, Frei. O que é Comunidade Eclesial de Base. São Paulo: Abril, 1985, p.16-17.
19
[...] tínhamos as fiscalizações, aí tinha... tinha, tinha o ... o ... a censura dos
programas da rádio... da rádio... todos tinham que sair, sabe? Então a gente
não podia usar a palavra luta, não se usava luta. Usava, como é que era?
Usava peleja, peleja ou... a gente tinha, a gente tinha que mudar um pouco o
vocabulário pra ter a comunicação... Porque durante o tempo da Ditadura foi
um tempo que coincidiu porque vinha vindo um processo muito grande de
conscientização anterior as Reformas de Base, não sei o quê... não sei o
quê... quer dizer, que o Exército bateu, né.9
8
Ressalta-se que o Movimento de Educação de Base – MEB/Sobral e o Movimento do Dia do Senhor foram
objeto de estudo da minha dissertação, ocasião em que tais perseguições durante a ditadura foram largamente
analisadas, inclusive, reproduzo aqui alguns dos depoimentos analisados na dissertação com o intuito de situar
melhor o leitor do contexto de perseguição desses movimentos. Posteriormente, a dissertação foi publicada em
livro: BEZERRA, Viviane Prado. ―Porque si nóis não agir o pudê não sabe si nóis isiste no mundo”: O MEB
e o Dia do Senhor em Sobral (1960-1980). Sobral - CE: Edições ECOA, 2014.
9
Entrevista realizada com padre Albani Linhares no dia 20 de setembro de 2003. Anteriormente citada.
20
O próprio padre Albani esteve na mira da ditadura, chegando a ser interrogado por
agentes da repressão. O fato se deu devido ao seu envolvimento com a Juventude Operária
Católica, a JOC do Rio de Janeiro, onde esteve atuando até o desencadear do golpe. Diante
das perseguições dos militares aos quadros que compunham as organizações católicas de
cunho progressista, o referido padre retornou à cidade de Sobral com o intuito de se proteger.
No entanto, mesmo distante do centro político do país, padre Albani não escapou da prestação
de contas com os militares. Dois agentes das Forças Armadas foram em sua busca na cidade
de Sobral. O interrogatório aconteceu na casa do então prefeito, Jerônimo Prado, cujo
mandato compreende o período de1967 a 1970. Além da presença do prefeito, o padre
também foi acompanhado pelo bispo Dom Walfrido e outras autoridades locais, que cuidaram
em não lhe deixar a sós com os agentes federais. Apesar de tenso, o fato não tomou maiores
proporções, não chegando ao ponto de detenção ou prisão. 10
Outros episódios de repressão ao MEB e ao Dia do Senhor são relatados tanto pelas
Equipes de Coordenação desses Movimentos, como também, pelos camponeses que
conviviam com as ameaças de perseguição militar. Portanto, o medo e a cautela fizeram parte
do cotidiano desse trabalho de base. Nesse sentido, evidencia-se um acontecimento
emblemático na memória dos participantes do Dia do Senhor.
[...] umas duas vezes nós tivemos medo, teve um tempo que nós tava lá... na
serra, nós tava fazendo um curso e chegou a notícia que era arriscado que
baixassem lá, então nós tivemos que, num dissemos o pessoal pra apavorar
mas nós ficamos acordados, prevenidos e resolvemos descer todo mundo de
manhã, no primeiro horário que era de madrugada, e todo mundo se
dispersar e cada qual buscar seu destino. Então quando foi de manhã cedo,
nós reunimos e explicamos... alguns ficaram meio espantados, outros não....
eles todos tiveram consciência de que podia acontecer uma coisa em cima
deles... mas nunca teve nada de concreto, sabe? 11
10
Tal fato é relatado por padre Albani Linhares em entrevista concedida no dia 20 de setembro de 2003, em
Sobral, Ceará. (Arquivo da autora)
11
Entrevista realizada com Padre Albani Linhares no dia 17 de dezembro de 2004, em Sobral - CE. Também foi
relatado na entrevista de Manuel Zenóbio Vasconcelos, realizada no dia 26 de outubro de 2004, em Sobral.
Arquivo da autora.
21
fiscalização por parte da ditadura, que alcançava até mesmo as remotas cidades do interior do
Brasil. 12
Durante todo período ditatorial duas famílias, com tradição política local, revezaram-
se na prefeitura de Sobral: os Barretos e os Prados que, diga-se de passagem, representavam
uma extensão da política estadual, que ficou denominada pela historiografia cearense como
Política dos Coronéis. Tal política, por sua vez, alinhava-se ao regime ditatorial. No período
do golpe, Cesário Barreto estava à frente da prefeitura de Sobral iniciando o ciclo que ficou
popularmente conhecido como ―dobradinha Prado-Barreto‖. Já no governo estadual estava o
coronel Virgílio Távora, iniciando o ―ciclo dos Coronéis‖. Segundo a historiadora Edvanir
Maia da Silveira,
Por esse caminho, a política local estava completamente alinhada ao governo militar
tanto que, em Sobral, chegou a se registrar a existência de duas sublegendas da Aliança
Renovadora Nacional – ARENA, partido oficial do regime. ARENA I, bloco político da
família Prado e a ARENA II, da família Barreto. Aliás, essa subdivisão da ARENA foi uma
prática relativamente comum durante esse período, pois aparece em quase todos os
municípios do Ceará. Por outro lado, o partido do Movimento Democrático Brasileiro –
MDB, considerado como oposição consentida, agrupava uma filiação inexpressiva. Ainda,
segundo Edvanir Silveira:
[...] Pelas poucas fontes a que se teve acesso, constatou-se que na maioria
dos municípios houve adesão à ditadura. Com a decretação do Ato
Institucional Nº 2 (AI-2), que extinguia os partidos políticos, foram criadas
duas agremiações: o Bloco Democrático Renovador e a União Parlamentar
12
Tais fatos foram analisados na minha dissertação de mestrado, publicada em livro. Para maior aprofundamento
lê: BEZERRA, Viviane Prado. ‗Porque si nóis não agir o pudê não sabe si nóis isiste no mundo”. Op. cit.
13
SILVEIRA, Edvanir Maia. A aliança desenvolvimentista. In: SILVEIRA, Edvanir Maia da; SILVA, João
Batista Teófilo. (Orgs.) A Ditadura civil-militar em Sobral - aliança, ―subversão‖ e repressão. Sobral - CE:
Edições UVA/SertãoCult, 2017, p. 11-43.
22
14
Ibid., p. 16.
15
Ibid., p. 17.
16
O Marechal da Revolução em Sobral. Correio da Semana. Sobral, 1º de janeiro de 1966.
23
Os grupos políticos, assim como a Igreja Católica de Sobral adotaram uma postura
diplomática para com a ditadura. Tanto que no episódio referente ao interrogatório do padre
Albani Linhares, a presença do prefeito e do bispo foi determinante para evitar a prisão do
mesmo. A dobradinha Prado-Barreto perdurou na prefeitura de Sobral até meados dos anos
1990, quando a prefeitura passou a ser assumida pelo grupo político da família Ferreira
Gomes, que se mantém no poder municipal até os dias atuais. No final dos anos 1980, com o
amplo movimento pela redemocratização do país, com as campanhas pela Anistia e pelas
Diretas Já, o Ceará também sente os ares de renovação política findando o ―ciclo dos
Coronéis‖ com a eleição de Tasso Jereissati para governador, em 1986. Iniciava-se o ―ciclo
dos empresários‖, que se caracterizavam como ―governo das mudanças‖. De acordo com a
17
Correio da Semana, Sobral, 1º de maio de 1965, p. 05.
24
18
SILVEIRA, Edvanir Maia. A aliança desenvolvimentista. Op. Cit. pp. 11-43.
19
A diocese de Itapipoca foi fundada em 1971, sob orientação do papa Paulo VI. Juntamente com essa Diocese
foram fundadas também as Dioceses de Tianguá e Quixadá, no Ceará. O bispado de Dom Paulo compreende o
período de 1971 a 1984, quando fora designado como arcebispo de São Luís, no Maranhão (1984 a 2005),
deixando a diocese de Itapipoca.
25
próprio do feminino. Nesses Encontros, as camponesas ecoavam suas vozes, pensavam sobre
sua existência, apreendiam sobre resistência e se descobriam sujeitos de sua própria história.
Através das histórias de vida dessas camponesas e de suas memórias procurou-se
realizar uma história social das mulheres, buscando uma aproximação com seu cotidiano e
com a peleja pela sobrevivência dos seus, no interior de um sistema capitalista injusto e
desumano. Pela metodologia de história oral, buscou-se ―[...] ampliar a voz desses sujeitos‖,
para lembrar Alessandro Portelli, como também, faz parte de um compromisso historiográfico
assumido com os paradigmas da história social, em voga, pelo menos, desde meados dos anos
1970.
Nesse compasso, essa pesquisa dialogou com conceitos de primeira ordem para os
estudos da História Social e Cultural, destacando-se as tensões de classe e de gênero, bem
como as relações de poder forjadas no interior do Movimento, o que impulsionava os
conflitos em torno da terra, protagonizados por camponeses e proprietários rurais e, numa
escala mais microscópica, no âmbito do privado, conflitos entre homens e mulheres, que de
um modo geral, lutavam por igualdade de direitos, justiça e pela superação das relações de
poder.
Portanto, os conceitos de classe, sujeito, experiência e cultura, largamente utilizados
nessa pesquisa, foram tomados de empréstimo da obra do historiador inglês E. P.
Thompsom.20 Também foi feita uma apropriação da noção de ―fazer-se‖ utilizada por esse
mesmo autor, quando problematizou a formação da classe operária inglesa. Nesse sentido,
utilizou-se a noção de ―fazer-se‖ para a formação do Movimento do Dia do Senhor.
Por esse caminho, a pesquisa se aproximou de uma perspectiva de gênero ao passo
que se enfatizou o aspecto relacional de gênero, de modo que as mulheres do campo
passavam a entender as questões do masculino e do feminino como construções culturais e
históricas, onde lutavam para desmistificar as diferenças tradicionalmente imposta aos
homens e às mulheres, o que se traduz na proposição: ―[...] iguais, mas não idênticos‖. Então,
a dimensão do trabalho, da memória, da sexualidade como questões especificas do feminino
foram amplamente discutidas no decorrer dos quatro capítulos. Para tanto, o conceito de
20
THOMPSON, E.P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998.
26
gênero, de Joan Scott21, bem como o de memória sexuada ou gendrada, trabalhado por
Michelle Perrot 22, dão suporte a essas discussões.
A questão dos trabalhos da memória ganhou uma maior dimensão na pesquisa,
principalmente, nos terceiro e quarto capítulos, quando se problematizou a participação da
camponesas na luta pela terra e a conquista da autonomia feminina. As reflexões de Michael
Pollak23 sobre memórias hegemônicas e memórias subterrâneas, bem como as contribuições
de Elizabeth Jelim24 sobre a constituição das ―memórias habituais‖, como também, essa
autora ajudou a pensar a tensa relação entre memória e formação de identidades. Assim,
também se utilizou dos conceitos de memória social e subjetividade aos moldes de
Alessandro Portelli.25
Como fontes, utilizou-se documentos escritos de diversa natureza, como os Relatórios
dos Encontros de Esposas e as Cartas Comunitárias enviadas ao programa radiofônico do
Movimento do Dia do Senhor, além de um significativo número de entrevistas orais. Faz-se
importante ressaltar que tanto nas citações dos documentos escritos quanto nas transcrições
das entrevistas foi mantido a originalidade da escrita e da fala camponesa, com o intuito de
respeitar e valorizar o universo cultural e a identidade dos sujeitos da pesquisa, tendo em vista
que todos os documentos escritos foram produzidos pelas próprias camponesas, escritos
manualmente, com suas letras disformes e os erros de português que também se verificava nas
suas falas, distanciando-se do universo da cultura letrada.
Analisou-se, também, o livro de História Oral, de Maria Alice MacCabe26. Nesse
livro, Maria Alice entrevistou dez camponesas que revelaram as cores, por vezes em preto e
branco, da vida dessas mulheres, sua experiência social e sua visão de mundo. Tomou-se o
livro como fonte, pois o mesmo se apresenta quase como um inventário de transcrições, onde
se observa a ênfase na própria memória das mulheres, faltando, pois, um trabalho
historiográfico que busque problematizar e atribuir sentidos às narrativas.
21
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da
História. Novas Perspectivas. São Paulo: Editora Unesp, 1998.
22
PERROT, Michelle. Práticas da Memória feminina. Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 09, n.19.
Ago/set de 1989.
23
Desse autor utilizou-se os textos: POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212, bem como, POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
24
JELIN, Elizabeth. Los Trabajos De La Memoria. Madrid: Siglo veintiuno de españa editores, S.A. Siglo
veintiuno de argentina editores. 2002. Espanhol (América Latina)
25
POTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na história oral.
Projeto História. São Paulo. (15) abril, 1997. Outros textos desse autor também ajudaram na sistematização das
reflexões presentes nessa pesquisa.
26
McCABE. Maria Alice. História na Mão. Algumas camponesas contam como se conscientizaram. (Uma
História Oral). 1994. S/e.]
27
Percebeu-se que nas entrevistas realizadas por Maria Alice ressaltavam-se temas como
a autoestima e a autonomia feminina, a conquista da independência financeira, a partir do
trabalho das camponesas e da formação de uma Associação de mulheres rendeiras, a
participação das camponesas na luta pela terra e, também, a conquista sobre seu corpo e sua
sexualidade. Perseguindo esses temas e incorporando a perspectiva das relações de gênero,
para essa pesquisa foram realizadas outras entrevistas com algumas das entrevistadas por
Maria Alice, como Rita de Cássia e Elita.
A partir dessas entrevistas foi possível compreender as relações de poder presentes no
universo do Movimento do Dia do Senhor, relações estas que se faziam explícitas quando se
observava a dinâmica de dominação/resistência presente nos quadros do sistema capitalista e
oligárquico que compunha o mundo do trabalho no campo, como relações de dominação
implícitas, sentidas na vivência cotidiana das camponesas.
Outro ponto importante que se sobressai nas entrevistas realizadas por Maria Alice e
transcritas em seu livro refere-se à interferência das mulheres do Movimento na luta em
defesa pela terra, onde tomavam a frente dos maridos e filhos e se deparavam pessoalmente
com os ricos fazendeiros e com a polícia, nos diversos conflitos de terras ocorridos nas
comunidades rurais espalhadas pelas Dioceses de Sobral e de Itapipoca. Essas estratégias de
luta foram narradas pelas entrevistadas de Maria Alice, como também foram contadas por
outras camponesas, entrevistadas pela autora dessa pesquisa.
Assim como o livro de Maria Alice, a própria equipe do movimento realizou
entrevistas com mulheres das Comunidades de Juritianha, comunidade de Acaraú e de Serra
Verde, comunidade de Sobral. Essas entrevistas foram transcritas e depositadas no arquivo do
Movimento, que também foram analisadas. O assunto chave dessas entrevistas era a
participação da mulher camponesa na organização da economia familiar, ou seja, percebe-se a
partir da narrativa dessas mulheres como se dava a manutenção da safra colhida, como se
administrava o que deveria ser comercializado e o que deveria ser guardado para consumo da
casa.
A partir de suas falas foi se percebendo a negociação que as mulheres faziam com seus
esposos, ao participar efetivamente das decisões financeiras e de cunho econômico, que via de
regra, estavam relegadas ao papel do esposo. Nesse sentido, a mulher camponesa narra as
diversas estratégias para conquistar espaços de atuação no interior da relação conjugal, da
casa, da comunidade.
Além desses documentos encontrados no Arquivo do Movimento do Dia do Senhor, a
autora dessa pesquisa realizou entrevistas com as esposas e os esposos, o que contabiliza um
28
total de quatorze entrevistas: dez esposas e quatro esposos. Tais entrevistas foram realizadas
desde 2009 e obedeceram a um roteiro de perguntas específicas para as esposas e para os
esposos a fim de que se conseguisse obter uma base de dados suficiente para poder analisar as
especificidades e as tensões da história das mulheres do Movimento do Dia do Senhor, como
também, das relações de gênero no interior desse Movimento.
Assim, a pesquisa está dividida em quatro capítulos. O primeiro capítulo intitulado:
Encontros de Esposas do Dia do Senhor: lugar de afirmação do feminino no Movimento está
subdividido em três tópicos, nos quais abordou-se a participação feminina no Movimento
através dos Encontros de Esposas. No primeiro tópico: Arquivo do Dia do Senhor: lugar de
existência e resistência das mulheres do campo analisou-se o arquivo do Movimento que, a
partir de sua organização, entendeu-se como um lugar de uma memória, tanto oficial com
relação àquilo que se quis que lembrasse sobre a história do Dia do Senhor, como também, de
memória camponesa, de registro de palavras, ações e sonhos de homens e mulheres do campo.
No segundo tópico: “Não precisa saber lê nem escrever, basta trazer a cabeça no lugar”:
Encontros de Esposas no percurso dos Relatórios, bem como no terceiro tópico intitulado:
Encontros de Esposas: reorganização e ampliação a partir da década de 1970 foi
apresentada a origem desses Encontros, os temas abordados, a dinâmica e os (re)significados
desses Encontros para as mulheres, tomando por base a análise dos Relatórios dos Encontros
de Esposas Anuais, entrevistas realizadas com os sujeitos que compunham a Equipe de
Coordenação do Dia do Senhor e com camponesas que se fizeram protagonistas no
Movimento.
O segundo capítulo com título: “Eu sei que a gente tem uma história muito grande pra
contar”. Mundos do trabalho feminino está subdividido em três tópicos em que se abordou a
relação entre mulheres, cotidiano e trabalho, sendo este último problematizado nas dimensões
do conceito de trabalho produtivo e reprodutivo. Fizeram-se protagonistas nesse capítulo as
camponesas: Rosa Pires, Rosa Marques, Fausta Marques, Rita de Cássia Sousa e Nazaré Flor.
Esse capítulo seguiu uma linha de raciocínio em que se apresentou no primeiro tópico
“A gente já cresceu foi trabalhando”: uma vida de trabalho no campo a dimensão do
trabalho como uma constante na vida dessas mulheres, que desde crianças lidam com a labuta
da agricultura e dos afazeres domésticos, o que era entendido como ―não trabalho‖, ou seja,
trabalho reprodutivo, visto que não recebiam salário para tanto, sendo naturalizado como
atividade tipicamente feminina.
No segundo tópico “Quando a mulher sai do mundo da cozinha dela e começa a
participar das coisas, então ela começa a ver o mundo diferente”: trabalho pastoral e
29
Por esse caminho, no quarto tópico “As mulheres, em ciranda, iam na frente e, se
precisasse, os homens iam atrás”: a luta pela terra de Salgado do Nicolau, em Trairi – CE
discorreu-se sobre o conflito de terra do Salgado do Nicolau, comunidade do município de
Trairi, pertencente à diocese de Itapipoca. Esse conflito também resultou na conquista da terra
pelos camponeses que se se formou em um Assentamento. Portanto, os três conflitos
analisados foram fundamentais para o entendimento do engajamento político de algumas
camponesas, pois foi na luta pela terra que reconheceram o valor da organização dos
trabalhadores e da importância que as mulheres tiveram ao lutar lado a lado de seus esposos e
filhos.
A coragem e a articulação política dessas mulheres foram evidenciadas nesses tópicos,
pois as mesmas estiveram presentes em todas as etapas do processo de conquista da terra,
pois, tais conflitos desencadearam na posse da terra pelas famílias que moravam nas
comunidades envolvidas. Ontem e hoje, essas mulheres continuam na luta por terra, por
melhores condições de trabalho e por igualdade de gênero, quebrando preconceitos e
subvertendo a ordem do patriarcado, chegando mesmo a assumir cargos de liderança no
sindicato, o que demonstra todo um percurso de conquistas femininas, como será evidenciado
pelas entrevistadas. Inclusive, em decorrência de uma presença feminina cada vez mais
atuante nos sindicatos, atualmente os mesmos assumiram uma nomenclatura com um corte de
gênero se denominando Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais.
No quarto capítulo: Relações de gênero e sexualidade: “a Última Fronteira”, foi dado
destaque às dimensões da vida privada de algumas camponesas. Está composto por três
tópicos.
No primeiro tópico, “...não era pra pegar nem na mão”: namoros, casamentos e
sexualidade no campo, destacaram-se os aspectos da relação marido x mulher, recuperando
ainda as memórias do tempo de namoro. Pretendeu-se abordar questões relacionadas ao
corpo, à sexualidade, à autonomia e à libertação feminina.
No segundo tópico intitulado: “A primeira vez que achei minha voz foi aqui”: os
Encontros de Esposas e seu programa para a questão da sexualidade, aprofundou-se a
problematização em torno da questão da sexualidade, pois nos Encontros de Esposas os temas
da sexualidade e da autonomia feminina eram o ponto alto das discussões. Muitas mulheres
compartilhavam as dificuldades, as dúvidas e os sofrimentos da vida conjugal, o que
possibilitava a criação de vínculos de amizade e de solidariedade feminina.
Nas entrevistas analisadas, algumas camponesas contaram suas próprias histórias de
sofrimento e superação, como também, recuperaram as histórias que ouviam de outras
31
conflitos entre àqueles que estavam no comando e os demais que deveriam aceitar as decisões
da ―Nata‖ que, por representarem a cúpula do Movimento, orientavam a todos, tanto no
âmbito público, no sentido da participação efetiva na agenda do Dia do Senhor, quanto no
aspecto privado, apascentando os conflitos familiares, aconselhando os casais com relação à
criação dos filhos, aos processos de separação conjugal, ajudando em momentos de maior
dificuldade financeira, etc. Às vezes, esses conselhos eram bem aceitos, outras vezes não, pois
poderiam soar como interferência na vida dos participantes.
Esse período em que as bases ou, mais propriamente, o grupo da ―Nata‖ assumiu o Dia
do Senhor coincidiu com a saída de Gustavo e Lídia, que se desengajaram e retornaram para a
região Sudeste do Brasil. O referido casal atuou no Movimento durante dez anos, morando em
Sobral e sobrevivendo com um pagamento advindo de uma verba da Misereor27, uma
organização católica alemã que financiava os movimentos de base popular no Brasil e na
América Latina.
De acordo com a avaliação da Equipe de Coordenação, os camponeses haviam
conquistado autonomia suficiente para levar adiante o Movimento, que era deles. Essa
concepção de que o Movimento era feito por camponeses e para os camponeses era uma
constante nas falas e nos escritos dos participantes. Dessa forma, com a coordenação da
―Nata‖, o Dia do Senhor ainda se manteve até meados da década de 1990, quando não teve
mais fôlego para manter o mesmo ritmo de atividades de antes e os participantes foram se
dispersando. Muitos deles se engajaram em outros movimentos sociais, surgidos com o
processo de redemocratização do país, como Sindicatos dos Trabalhadores e Trabalhadoras
Rurais, Associações Comunitárias, Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra - MST,
criado em 1984, mas que chega ao Ceará em 1989, com a conquista do Assentamento 25 de
28
Maio, considerado o berço do MST no estado, situado no município de Madalena. Na
maioria das vezes, os camponeses e as camponesas integravam esses espaços
simultaneamente.
Outro ponto relevante para a desestabilização do Movimento foi o conflito em torno
de sua sede em Itapipoca. Tal sede consistia em uma casa, construída em mutirão pelos
próprios camponeses, em um terreno cedido pelo então bispo Dom Paulo Pontes, amigo de
padre Albani Linhares e apoiador dos movimentos de base em sua diocese. No entanto, com o
27
MISEREOR é a Obra episcopal da Igreja Católica da Alemanha para a cooperação ao desenvolvimento. Desde
há mais de 50 anos, a MISEREOR está comprometida com a luta contra a pobreza na África, Ásia e América
Latina. A ajuda de MISEREOR dirige-se a todas as pessoas que sofrem necessidade – independentemente da sua
religião, raça, cor ou sexo. https://www.misereor.org/pt/ Cf.: www.misereor.org. Acesso em: 10 dez. 2018.
28
Assentamento 25 de Maio comemora 30 anos de resistência, no Ceará. Cf.: www.mst.org.br . Acesso em 29
ago. de 2020.
34
seja, o projeto pastoral progressista empregado outrora não correspondia mais aos anseios da
Igreja Católica Romana, ao contrário, tornou-se incômodo. A partir do papado de João Paulo
II, um novo projeto teológico passava a ser implementado, sendo que esse projeto passou a
minar o campo progressista e a trazer de volta o conservadorismo para a Igreja Católica do
Brasil e da América Latina. Como explica Della Cava:
33
Idem. p. 137.
36
Naquela época, fim dos anos 1960, houve um apelo do papa, nem me lembro
qual papa... mas, o apelo do papa foi para mais evangelização na América
Latina. Então, muitas congregações responderam este apelo e, nossa
congregação, respondeu. Isso Coincidiu com o Conselho de Medellín, que
foi o primeiro Conselho Episcopal da América Latina e que, foi a partir do
Conselho de Medellín que realmente a Teologia da Libertação, foi
desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina
começou a desenvolver essa metodologia e nasceu a ideia de desenvolver
Comunidades Eclesiais de Base. Isso nos anos sessenta. Então, o Movimento
do Dia do Senhor nasceu dessa inspiração. O Albani, sempre foi muito em
comunicação com pessoas que, que lia e estudava os documentos de
Medellin, e os documentos também que estavam saindo do Concílio
Vaticano. Meddelín, eu vim também por causa do Concílio Vaticano, que
era anterior. Então a nossa vinda como grupo de irmãs coincidiu com este
momento [...]. 34
Juntamente com Maria Alice, vieram as irmãs Bete e Carolina, assim lembradas pelos
camponeses. No entanto, passaram pouco tempo no Movimento. A memória de Maria Alice
recupera os rumos que parte da Igreja Católica tomou a partir da década de 1960, com o
34
Entrevista com Maria Alice MacCabe realizada em 06/06/2009, em Itapipoca – Ce. Arquivo da autora.
Religiosa norte-americana que compõe a equipe de coordenação do Movimento, desde os anos 1970, juntamente
com Padre Albani Linhares, Gustavo Lira e Lídia Ferreira. È importante salientar que, nos tempos do
Movimento, Maria Alice realizou uma série de entrevistas com 10 dessas mulheres, das quais foram organizadas
e publicadas no livro: McCABE. Maria Alice. História na Mão. Algumas camponesas contam como se
conscientizaram. (Uma História Oral). 1994. S/e. (Tal livro também compõe o acervo de fontes a serem
analisadas em minha pesquisa).
37
Concílio Vaticano II (1962-1965). Tal Concílio dialogava com os sinais do mundo pós-
segunda guerra, inserido na lógica da Guerra Fria. Do Vaticano II saiu ―a opção preferencial
pelos pobres‖, compromisso pastoral assumido por muitos religiosos da Igreja Latino-
americana a partir de então. Inicialmente, esteve à frente do Vaticano II o papa João XXIII, o
referido papa que aparece na narrativa de Maria Alice. Foi ele quem conclamou pelo
aggiornamento da Igreja e pelo compromisso missionário dos conciliares com as regiões
menos desenvolvidas do mundo.
Assim como a congregação de Notre Dame, muitas outras enviaram seus missionários
para a América Latina. Tais apelos de João XXIII se faziam texto conciliar em suas Encíclias
Mater et Magistra e Pacen in Terris. Segundo Oscar Beozzo35, o chamado para que religiosos
e religiosas viessem para a América Latina se justificava também pela necessidade
missionária de assegurar e expandir o catolicismo nessa região, posto que se encontrava
ameaçado pelo perigo comunista, tendo em vista a explosão da Revolução Cubana, em 1959.
Nesse contexto, o papa João XXIII conclamava para que religiosos e religiosas de
origem europeia, canadense, norte-americana adentrassem a realidade cultural, política e
econômica de regiões completamente diferentes das suas. Se os Estados Unidos, através da
Congregação de Notre Dame, e a Espanha37 responderam prontamente ao chamado do papa,
35
BEOZZO, Oscar. A recepção do Vaticano II na Igreja do Brasil. In:
http://www7.uc.cl/facteo/centromanuellarrain/download/beozzo.pdf. Acesso em: 21 mar. 2016.
36
Ibid., p. 5.
37
―Esta já contava, naquela ocasião, com 18.000 religiosos, religiosas e irmãos leigos, além de 650 padres
seculares e 50 missionários leigos trabalhando nos vários países da América Latina. Em 1963, João XXIII pede
aos bispos espanhóis que enviem outros 1.500 padres seculares, ao longo de três anos‖. BEOZZO, Oscar. A
recepção do Vaticano II na Igreja do Brasil. In:
http://www7.uc.cl/facteo/centromanuellarrain/download/beozzo.pdf. Acesso em: 21 mar. 2016, p. 5.
38
É interessante salientar que durante o Concílio, João XXIII falece, sendo o papa Paulo
VI o novo responsável pela condução do Vaticano II, ao que parece, seguindo a mesma opção
de Igreja. Nesse sentido, a memória de Maria Alice situa a importância desse Concílio para a
aproximação entre os mundos, naquela conjuntura, polarizados entre primeiro e terceiro
mundo. O Conselho Episcopal de Medellín, ocorrido em 1968, e a formulação de uma
Teologia da Libertação, situados por Maria Alice em sua narrativa, vieram aprofundar a
aproximação da Igreja Católica nacional e internacional com os pobres e desvalidos do mundo
de então, aproximando os contrastes entre campo e cidade; cultura formal e não formal. Ainda
com Maria Alice percebem-se as tensões e os conflitos culturais sentidos em decorrência de
tal aproximação:
38
Nos documentos do Dia do Senhor, como principalmente, nos documentos do Movimento de Educação de
Base – MEB, desenvolvidos na Diocese de Sobral, encontra-se referência à ajuda financeira e pastoral obtida
com organizações católicas internacionais, como Adveniat e Misereor, de origem alemã. Para uma discussão
mais aprofundada, cf.: BEZERRA, Viviane Prado. ‗Porque si nóis não agir o pudê não sabe si nóis isiste no
mundo”: O MEB e o Dia do Senhor em Sobral (1960-1980). Op. cit.
39
BEOZZO, Oscar. Op.cit., p. 5.
39
do que positivo. Porque a gente pode dizer besteira, pode jogar o povo numa
situação que eles não são tão prontos de assumir. Eu posso lembrar mil
questões, assim, que a gente avaliava e isso foi um processo, não foi
imediato, eu fiz muitas besteiras.( Risos) 40
Por esse caminho, quando Maria Alice MacCabe adentra o universo do Movimento do
Dia do Senhor, convidada por padre Albani Linhares, já existia um campo41 cultural, político,
pastoral e pedagógico constituído. Nesse sentido, é válido lembrar que no Movimento os
sujeitos que o compunham ocupavam diferentes lugares nesse campo, desde a equipe de
coordenação, formada por religiosos e leigos, oriundos de classe média, com uma vivência
urbana, letrados, com uma visão de mundo informada por outros valores que não somente os
do mundo rural e, no caso específico de Maria Alice e outras religiosas norte-americanas que
permearam o Dia do Senhor, destacam-se as diferenças da língua e da experiência vivenciada
em países culturalmente diferenciados.
40
Entrevista com Maria Alice MacCabe realizada em 06/06/2009, em Itapipoca – Ce. Arquivo da autora.
41
―O campo de poder (que não deve ser confundido com o campo político) não é um campo como os outros: ele
é o espaço de relações de força entre os diferentes tipos de capital, ou mais precisamente, entre os agentes
suficientemente providos de um dos diferentes tipos de capital para poderem dominar o campo correspondente e
cujas lutas se intensificam sempre que o valor relativo dos diferentes tipos de capital é posto em questão.(...)‖ In:
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas sobre a teoria da ação. Campinas – SP: Papirus, 1996. P. 52.
40
Assim, durante os anos 1970, o Movimento atinge a Diocese de Itapipoca, que chegava até
suas comunidades rurais através do programa de rádio do Movimento, Encontro das
Comunidades, transmitido pela rádio Educadora do Nordeste. No intuito de assistir tanto à
Diocese de Sobral quanto de Itapipoca, a equipe se dividiu, ficando Gustavo e Lídia,
responsáveis pela Diocese de Sobral e Padre Albani e Maria Alice, pela de Itapipoca.
Nesse ínterim, Valnê que contribuiu com o Movimento desde sua origem, trazendo do
MEB significativa experiência com trabalho de educação popular, no decorrer dos anos 1970
se desvincula do Dia do Senhor para seguir sua carreira no magistério do Ensino Superior,
inclusive, fora do Ceará. É válido informar que na Diocese de Sobral tanto o MEB como o
Movimento do Dia do Senhor atuavam nas mesmas comunidades rurais e, por vezes, tinham
os sujeitos que participavam tanto da Equipe de Coordenação desses Movimentos como,
principalmente, muitos camponeses e camponesas compunham as bases de ambos. Na
conjuntura do regime militar no Brasil, tanto o MEB como o Dia do Senhor foram
constantemente vigiados pela repressão. 42
O MEB por ser um Movimento de dimensão nacional que, tão logo se instaurou o
regime militar fora associado com subversão, sendo duramente perseguido, chamava mais
atenção que propriamente o Dia do Senhor, que atuava apenas em dimensão dos municípios
de Sobral e de Itapipoca. Na narrativa de Valnê Alves percebe-se o clima de tensão que era
trabalhar com movimentos populares naquele período, o que contribuiu para sua saída do
MEB e entrada no Dia do Senhor.
42
Alguns casos de vigilância da ditadura militar em torno do MEB e Dia do Senhor aparecem em muitas
entrevistas realizadas com os participantes dos dois Movimentos. Tais entrevistas foram amplamente analisadas
durante meu mestrado cuja intenção era entender esses Movimentos e sua atuação em Sobral durante a ditadura
militar. In: BEZERRA, Viviane Prado. ‗Porque si nóis não agir o pudê não sabe si nóis isiste no mundo”: O
MEB e o Dia do Senhor em Sobral (1960-1980).
41
Por esse caminho, a proposta político-pedagógica que compunha o MEB também foi
sendo incorporada ao Dia do Senhor, com a diferença que este último não trazia a proposta de
alfabetização em seu projeto de formação. Dom Walfrido Teixeira Vieira era o bispo da
Diocese de Sobral. Seu bispado iniciou em 1965, mesmo ano de criação do Movimento do
Dia do Senhor. Baiano, também com experiência voltada para a educação popular, pois havia
sido do Conselho Diretor Nacional do MEB, dom Walfrido oferece total apoio aos
movimentos de base de sua diocese. Seu bispado durou até 1998, sendo lembrado pelos
entrevistados como um bispo sábio, com posturas moderadas, que evitava confrontos abertos
com os militares.
Faz-se necessário considerar que o próprio Dia do Senhor estava inserido em uma
região tensionada: o meio rural do nordeste do Brasil, mais precisamente, da região norte e
noroeste do Ceará. Região fortemente marcada pela cultura patriarcalista44, bem como, pelo
latifúndio, o que propiciou para que os camponeses e as camponesas do Movimento
protagonizassem alguns conflitos de terra. São emblemáticos desse período o conflito de
Queimadas45, comunidade pertencente ao município de Coreaú, diocese de Sobral e os
conflitos no vale Salgado dos Compridos46 e outros que ocorreram no território indígena de
Varjota, pertencentes ao município de Itarema, diocese de Itapipoca. Tais conflitos marcaram
profundamente a memória de homens e mulheres que constituíram o Movimento e
demarcaram claramente o lugar que cada um dos envolvidos, camponeses e latifundiários,
ocupava nesse campo de poder.
Ressalta-se que durante os anos 1970, além dos conflitos de terras espalhados pelo
interior do Brasil, evidenciava-se também, em âmbito internacional, a efervescência de
43
Entrevista realizada com Maria Valnê Alves, no dia 18 de dezembro de 2004, em Sobral – CE. (Arquivo da
autora)
44
De acordo com o debate feminista, muitas são as interpretações que pautam o conceito de Patriarcado para
explicar a desigualdade entre os gêneros e a submissão da mulher, historicamente construída. ―Sendo o
patriarcado uma forma de expressão do poder político, esta abordagem vai ao encontro da máxima legada pelo
feminismo radical: „o pessoal é político‟”. SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo:
Expressão popular: Fundação Perseu Abramo, 2015, p. 58.
45
O conflito agrário foi noticiado pelo Jornal O POVO, em 08 de agosto de 1986. Nº. 18715. Fortaleza – CE.
Desse conflito resultou a morte de um jovem camponês, conhecido por Benetito Tonho, uma forte liderança do
Dia do Senhor. Tal episódio foi aprofundado no livro, fruto de minha dissertação: BEZERRA, Viviane Prado.
‗Porque si nóis não agir o pudê não sabe si nóis isiste no mundo”: O MEB e o Dia do Senhor em Sobral
(1960-1980).
46
Tal conflito se estendeu por mais de décadas, ocasionando mortes de trabalhadores rurais da região. Ganhou
notoriedade na imprensa na sessão de Polícia do jornal o Povo com o título: ―Itarema sob tensão‖. Jornal o Povo.
Fortaleza – CE. 20 de dezembro de 1992. Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Diocese de Sobral – CE.
42
movimentos sociais, dos quais se destacam o movimento negro e o movimento feminista, nos
Estados Unidos. Nesse sentido, a organização de mulheres se tornava uma realidade cada vez
mais presente nos Estados Unidos e na Europa, compondo, inclusive, os temas da pauta de
conferências da Organização das Nações Unidas (ONU), bem como a determinação do ano de
1975 como Ano Internacional da Mulher marcando, assim, o primeiro ano da Década da
Mulher. Alguns fatores davam visibilidade às questões femininas, como o debate em torno da
contracepção e do aborto. 47
No Brasil, o quadro não parece ter sido diferente. Formavam-se diversos grupos de
mulheres, na maioria das vezes, classe média e intelectuais, nos quais se reuniam para pensar
a ―condição feminina‖, refletir sobre direitos, discutir problemas, falar do cotidiano e de suas
48
vidas. Com esses grupos, as mulheres criavam espaços de identidade e cultura feminina,
entoando sua voz, paradoxalmente, quando o direito à liberdade de expressão fora extirpado
da população civil latino-americana, posto que, nesse momento, vivia-se sob a tensão política
das ditaduras militares ali instaladas.
No entanto, mesmo com toda essa efervescência do movimento feminista dentro e fora
do Brasil, ao que tudo indica, os Encontros de Esposas do Movimento do Dia do Senhor não
sofreu influência direta dessa onda feminista. Por ser um Movimento de cunho católico,
amparou-se no discurso religioso, tomando a bíblia como sua principal referência. Maria
Valnê Alves, que esteve ao lado de Padre Albani Linhares desde o início do Movimento e
quem começou o trabalho com as esposas, ainda em 1969, afirma que, mesmo quando fazia a
relação fé e vida, partia-se da leitura bíblica para as reflexões sociais, culturais, políticas.
Nesse sentido, a entrevistada explica o enfoque que era dado a esses Encontros:
Como feminismo não, sabe? Era muito mais como igualdade de direitos
viu... Essa influência do movimento feminista não. Tinha a descoberta da
47
Joana Pedro situa, nesse momento, a escrita de uma história das mulheres, vinculado ao movimento feminista
de ―segunda onda‖, configurado no pós - segunda guerra mundial, cujos interesses centravam-se nos direitos do
corpo, do prazer, opondo-se ao patriarcado e defendendo como idéia-força de suas reivindicações a assertiva de
que ―o privado é político‖. In: PEDRO, Maria Joana. Narrativas fundadoras do feminismo. Revista Brasileira
de História. São Paulo. v. 26, n. 52, 2006, p. 249-272.
48
Nesse sentido, situo o debate em torno do ressurgimento do Movimento Feminista de Segunda Onda no Brasil
tendo como narrativa fundadora o ano de 1975, que tem como marco um evento patrocinado pela ONU que
trazia como tema: ―O papel e o comportamento da mulher na realidade brasileira‖. Tal evento aconteceu na
Associação Brasileira de Imprensa – ABI e foi fundamental para que se fortalecesse a criação do Centro da
Mulher Brasileira - CMB, no mesmo ano, com sede no Rio de Janeiro. Por esse caminho, em São Paulo,
também, com o intuito de se criar um espaço de encontros e reflexões femininas, criou-se o Centro de
Desenvolvimento da Mulher Brasileira. Além desses Centros, outras narrativas dão conta de alguns grupos de
mulheres situados no eixo Rio/São Paulo, que se reuniam antes mesmo de 1975, formado por intelectuais como
Walnice Nogueira Galvão e Maria Odila Leite da Silva Dias, que circulavam pelos Estados Unidos e Europa e
traziam uma bibliografia atualizada para discussão sobre o feminismo, conforme especifica a historiadora Maria
Joana Pedro, em seu artigo: Narrativas Fundadoras do Feminismo. Idem.
43
mulher no mundo, quer dizer, o papel dela era muito maior do que o de ser
uma esposa daquele modelo, de ser uma mãe daquele modelo, de ser uma
pessoa parada né? [...] Eu acho que era outro enfoque: a mulher que tem um
papel social e na Igreja, quer dizer, a Igreja está na sociedade... Porque eu
mesma, naquela época, como trabalhando no Movimento, eu não tinha, nem
padre Albani também tinha essa visão feminista não... A gente tinha bíblica e
social. Assim, na sociedade, nós temos direitos. [...] 49
Nesse sentido, pelo que se percebe nas narrativas das entrevistadas e nas mudanças de
comportamento das camponesas ao longo do Movimento, pode-se dizer que, de algum modo,
o feminismo floresceu entre elas. Muitas nuances dos discursos e práticas feministas foram se
desenhando durante esse processo, alcançando as camponesas em maior ou menor medida,
mesmo sem essa ter sido uma pretensão inicial dos Encontros de Esposas e de sua Equipe de
Coordenação. Como rememora Valnê, no Movimento, além da concepção de autonomia,
também foi surgindo uma discussão em torno da igualdade do homem e da mulher:
49
Entrevista Maria Valnê Alves, realizada em 08 de dezembro de 2018. Em Fortaleza – CE. Arquivo da autora.
50
Entrevista realizada com Lídia Ferreira, em 31 de março de 2016. Entrevista via email, através de questionário
semiestruturado.
44
Em entrevista Maria Alice MacCabe rememora o teor dos temas que norteavam as
discussões nos Encontros dessas mulheres, quando passou a assumir o trabalho de
organização feminina. Os temas de cunho social e a educação dos filhos foram muito
debatidos.
Os encontros das esposas só era uma vez por ano, porém, tinha uma
articulação sobre a pergunta chave porque, como eu disse, tinha meses de
preparação e depois meses de leituras de cartas e relatórios. Os relatórios dos
encontros das esposas iam para todas as comunidades, aí tinham mais
conversas entre as mulheres e as suas comunidades sobre o que acontecia
nos encontros das esposas... Não me lembro que tinha este tipo de roteiro
não, só para mulheres não, eu acho que a maior parte do tempo as discussões
estavam em torno de problemas, problemas sociais que é o que aconteceu
nessa época... Agora, estruturado um roteiro durante o ano só para mulheres
não, mas as mulheres começaram a produzir livrinhos, produziam sobre
educação, a Conceição... a mulher do Abdias... a Fausta. Começaram a
produzir livrinhos e estes livrinhos levavam uma coisa diferente do que os
homens estavam dizendo. Servia, porque tocavam em como estamos
educando nossos filhos, será... acho que foi Conceição que puxou: será que
estamos criando nossos meninos para ser machão? Essa discussão foi por
muito tempo: como estamos criando nossos filhos?52
51
Entrevista Maria Valnê Alves, 18/12/2004. Já citada.
52
Entrevista com Maria Alice MacCabe realizada em 06/06/2009, em Itapipoca – Ce. (Arquivo da autora)
45
53
Entrevista Maria Valnê Alves, 18/12/2004. Já citada.
54
Nesse sentido, cabe situar a reflexão trazida por Cristopher Hill com relação à tradução e ao acesso à Bíblia
inglesa na Inglaterra do século XVII. O autor situa a democratização da leitura bíblica como um importante fator
no desenrolar dos processos de questionamentos das estruturas do poder absolutista, não se aceitando mais
46
passivamente o autoritarismo do rei, questionando, até mesmo, sua legitimidade. Então, ―a disponibilidade da
bíblia em inglês foi um grande estímulo ao aprendizado da leitura; e isso por sua vez assistiu ao desenvolvimento
de publicações baratas e distribuição de livros. Foi uma revolução cultural de proporções sem precedentes, cujas
proporções não podem ser superestimadas. O acesso direto ao texto sagrado deu aos leigos uma sensação de
segurança que antes lhes faltava, o que serviu para fortalecer críticas de longa data à Igreja e ao Clero. (...)‖. Cf:
HILL, Cristopher. A bíblia inglesa e as Revoluções do século XVII. Trad. Cynthia Marques. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003. p. 32. Aproximando essa reflexão à realidade do Movimento do Dia do Senhor, a
leitura ou audição da Bíblia pelos camponeses os ajudava na aprendizagem e aperfeiçoamento da leitura e
escrita, quase que de modo autodidata, como também, servia como instrumento questionador da ordem vigente,
principalmente, da ordem fundiária, partindo do princípio de que: ―na Bíblia, Deus não deu terra para ninguém.
Então, porque há uns com terra e outros sem?‖, como é comum nas narrativas dos entrevistados.
55
De acordo com os relatórios dos Encontros de Esposas de 1969-1973 vemos as pautas que marcaram os
Encontros dos respectivos anos: 1969 – Conteúdo: Valor da Mulher, sua participação no mundo. 1970 –
Conteúdo: Valor da mulher. Relacionamento: mulher x marido, pais x filhos, família x comunidade. 1971 –
Conteúdo: Valor da mulher, relacionamento e atuação no mundo. 1972 – Conteúdo: Higiene e Saúde. 1973 –
Conteúdo: Libertação da mulher; higiene e saúde. Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Diocese de Sobral.
47
56
Esse pensamento aparece na fala de Rita de Cássia, de Rosa Pires, assim como é referenciado por Maria Alice,
ao citar exemplos das questões que apareciam nas reuniões dos Encontros de Esposas do Dia do Senhor,
principalmente, nos primeiros Encontros. A entrevista com Rita de Cássia se realizou no dia 01/04/2010 e as
entrevistas com Rosa e Maria Alice, ambas no dia 06/06/2009. Arquivo da autora.
57
Rosa Pires, entrevista realizada em 06/06/2009. Itapipoca- CE. (Arquivo da autora)
48
Ai foi assim que a gente foi criando esse movimento, e para ver se se
valorizava mais os trabalho da gente. Porque tinha homem que dizia assim:
ah a minha mulher só faz as coisas em casa. E eu já acho que a gente fazer as
coisas dentro de casa, cuidar de filho já é um grande trabalho,
principalmente se a gente participar da luta lá fora, assim, com a terra,
cuidando na alimentação dos filhos mais ele. Aí é que completa mesmo. E
tem muita mulher que é forte nisso aí, ás vezes, até mais forte de que certos
homens. 58
1.1. Arquivo do Dia do Senhor: lugar de existência e resistência das mulheres do campo
58
Na narrativa de Rosa é muito forte a apropriação da palavra luta. Nesse sentido, mulheres como Nazaré Flor,
Rita de Cássia e Fausta são lembradas como fortes companheiras de luta e exemplos de sabedoria.
49
uma iniciativa de religiosos e leigos da Igreja Católica de Sobral comprometida com o ideal
pós-Concílio Vaticano II. Uma história que, diga-se de passagem, não era encampada por
todo o clero da Diocese. Tanto que, apesar do apoio do bispo de então, Dom Walfrido
Teixeira Vieira, pouquíssimos padres se envolveram diretamente no Movimento. 59
Então, o esforço de organizar toda documentação, tanto o que era produzido pela
própria Coordenação, quanto o que era produzido pelos camponeses e camponesas confere
um ar de consciência histórica e de arquivamento de si60, um ―eu coletivo‖. A grandiosidade
do Movimento do Dia do Senhor pode ser percebida pela quantidade de documentos
arquivados, nos quais se tem a dimensão territorial em que ele estava atuando. Ao mesmo
tempo, por seu arquivo, tem-se a dimensão do número de pessoas que estavam envolvidas
nesse Movimento, homens e mulheres do campo que pela quantidade de documentos
assinados com seus nomes dão indícios que dedicaram grande parte de suas vidas a esse
projeto coletivo de luta social.
Através de seu arquivo, percebe-se o projeto pedagógico do Movimento, tanto de
formação política quanto religiosa. Desde os registros dos Cursos de Conhecimentos Gerais e
Linguagem, que marcaram os primeiros anos de atuação do Movimento, voltando-se para o
estudo da história do Brasil. Tais cursos eram embasados nos livros de Nelson Werneck
Sodré. Como também, o arquivamento de todos os Relatórios dos chamados Encontrões que
passaram a acontecer na serra da Meruoca, uma vez por ano durante o mês de julho.
Ao que parece, os Encontrões vieram depois dos cursos de Conhecimentos Gerais e
Linguagem, marcando uma nova fase do Movimento. Principalmente, o arquivamento tão
minucioso desses documentos que remontam à suas fases iniciais, deixa a entrever o zelo com
tal documentação e uma preocupação desde o calor dos acontecimentos com a preservação e
organização daquilo que viria a ser a memória do Movimento do Dia do Senhor.
Ao contrário de outras experiências sociais, em que não se percebe uma preservação
deliberada da massa documental produzida, no Dia do Senhor, fica visível desde o primeiro
contato com sua documentação, que tal corpus já fora guardado com o intuito arquivístico,
embora, não estivesse ocupando um espaço físico próprio de arquivo e nem estivesse
obedecendo à lógica dos arquivos instituídos, mas a intenção de se arquivar estava ali
resguardando tanto àqueles maços de papéis almaços manuscritos quanto os papéis sem pauta
mimeografados com tinta azul, revelando para além do conteúdo dos documentos, suas
59
Houve casos em que alguns padres nem aceitaram de bom grado o Movimento em suas paróquias, como o
exemplo do padre Odésio, pároco do município de Bela Cruz, citado na entrevista de Padre Albani Linhares,
realizada em 18 de dezembro de 2004, em Sobral – Ce. (Arquivo da autora)
60
ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a Própria Vida. In: Revista Estudos Históricos, vol. 11, n. 21, 1998.
50
próprias condições de produção, para lembrar Certeau61. Documentos datados para datar a
experiência do Movimento do Dia do Senhor no arquivo pessoal de padre Albani Linhares, o
guardião dessa memória.
A noção de guardião aqui atribuída ao padre Albani remete-se ao fato dele próprio
guardar esse acervo em sua casa, na diocese de Sobral. Portanto, cabia ao padre o controle de
quem adentrava sua residência, ou metaforicamente, de quem adentrava em seu passado, um
passado coletivo impregnado de luta social, sonho e fé diluídos nos diversos documentos
organizados em pastas devidamente identificadas com a tipologia do documento e datadas,
engavetadas em armários de aço.
O acesso ao arquivo era permitido ao passo que se permitia o acesso a sua casa. Tal
casa, durante os anos de existência do Movimento servira de ponto de apoio para muitos dos
camponeses que compunham o Dia do Senhor, a ponto de àqueles participantes mais
comprometidos terem uma cópia da chave da casa e passe livre.62 Desde o falecimento do
padre Albani, em 2007, esse acervo está sob a guarda da Diocese de Sobral, ocupando o
espaço de uma das salas do setor administrativo.
O Movimento, assim como a casa do padre Albani, era um lugar coletivo tomado pelo
e para o ―povo do Movimento‖. Ser guardião dessa experiência de luta coletiva por autonomia
dos pobres e por justiça social possivelmente o deixava quite com seu compromisso político e
eclesiástico, assumido com a pastoral popular da qual era tributário. Embora não tenha
participado do Concílio Vaticano II, padre Albani mantinha-se em constante leitura dos
documentos conciliares e em contato com bispos de dioceses vizinhas de Sobral que
passavam a assumir uma abertura para a Igreja-Povo que se configurava a partir dos anos
1960.
Dentre os bispos, pode-se citar o nome de Dom Antônio Fragoso, da diocese de
Crateús, como também, o nome de Dom Paulo Ponte, da diocese de Itapipoca. Este último
deu total abertura para que o Dia do Senhor adentrasse em sua diocese. Nesse sentido, a
reflexão de Artières sobre o ―arquivamento do eu‖ é evocada aqui numa tentativa de
compreender o arquivamento da experiência do Dia do Senhor, entendido como um ―eu
coletivo‖:
61
Michel de Certeau. A Operação Historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de
Janeiro: Forense-Universitária, 1982.
62
Durante o ano de 2005 eu estive pesquisando no arquivo do Movimento, ocasião em que também recebi uma
cópia da chave da casa do padre Albani. Enquanto pesquisadora e amante da história do Dia do Senhor fiquei
completamente extasiada com o gesto de confiança e desprendimento do padre. Porém, não se passa
despercebido que tal gesto traz implícito a consciência do mesmo de que minha pesquisa daria ao Movimento
uma visibilidade e o tiraria do espaço privado e limitado de sua casa, assegurando para a posteridade essa
experiência de um passado de luta e de sonho.
51
Por esse caminho, a noção de guardiã da memória também pode ser atribuída à
religiosa Maria Alice MacCabe no que se refere à guarda do acervo relacionado aos
Encontros de Esposas, pois no momento dessa pesquisa todos os documentos estavam sob sua
posse, sendo gentilmente cedidos para digitalização. No ano de 2019, esse acervo é guardado
63
ARTIÈRES, p. 31.
64
Manuel Zenóbio Vasconcelos, dirigente de Cruz, também se animou a contar a História do Movimento do Dia
do Senhor. Organizou sua escrita em quatro páginas mimeografadas, enfatizando as conquistas dos camponeses
no plano da libertação e autonomia. Zenóbio nasceu e se criou no meio rural mas, estudou e alcançou formação
universitária. Sua História é contada com coerência, estruturada em tópicos que discorrem, brevemente, sobre a
Formação do Movimento, Cursos, O Movimento e sua caminhada, a Frieza do Movimento, Trabalho da Nova
Equipe e Movimento Atual. De maneira sucinta e com linguagem formal, sua narrativa constitui mais uma
versão, mais um registro da História do Movimento. Tanto a História gravada por Sebastião quanto a História
escrita por Zenóbio foram analisadas em minha dissertação de mestrado.
65
ARTIÈRES, p. 31.
52
66
No entanto, Valnê Alves chama atenção para o fato de que nem tudo podia ser arquivado, tendo em vista as
dificuldades e irreverências que pressupunham o trabalho de base realizado no meio rural. Se arquivar o que era
produzido nos Encontros de formação do Movimento era muito mais viável do que se arquivar o que se produzia
e vivenciava nas brenhas do sertão. O número reduzido de membros na equipe de Coordenação também é
ressaltado por Valnê, geralmente ia somente ela e um motorista para as visitas nas comunidades rurais, às vezes,
comunidades extremamente isoladas, de modo que impossibilitava os registros das atividades e,
consequentemente, o arquivamento. Entrevista com Maria Valnê Alves, realizada em 08 de dezembro de 2018.
53
67
A tabelinha é um método que se baseia no cálculo dos dias em que provavelmente estará mais apta a
engravidar, caso tenha relações sexuais desprotegidas. Assim, pode ser utilizada tanto para este fim quanto para a
contracepção. Dispensa o uso de anticoncepcionais. Cf.: http://brasilescola.uol.com.br/biologia/tabelinha.htm.
Acesso em: 12 mar. 2017.
55
Foi uma ótima reunião, uma reunião livre para se falar o que quisesse. No
inicio da reunião ninguém sabia o que falar, mas para o fim todos falaram e
falaram bem. Foi falado em sestão, bolção, economia e sobre o pobre que
morre e se acaba e leva fim e o rico que morre é saudoso... e muitos outros
assuntos.
Sobre o sestão teve vereadores que foi a favor dos patrões, mandou cancelar
os sestões a mando dos fornecimentos. Aí o povo da comunidade que é
muita gente foi falar para o vereador – ―como é que você deixa de ser por
nós que somos muita gente para ser pelos fornecedores que são poucos? Aí
eles tiveram que assinar o sestão para nós. Sim, antes dele assinar, eles
disseram – ou assina ou nós invade tudo nos fornecimentos‖
Também foi falado sobre o bolção que não está dando nem para o próprio
trabalhador, jamais para sustentar 8 ou 10 filhos, assim porque na casa que
tem 2 ou 3 alistados tem 10 ou 12 pessoas para sobreviver desse dinheiro. E
houve muito mais conversa que fica para ser lida num outro programa.
Assina as comunidades Barra do Garrote, Riacho Fundo e Lagoa do Juá. 69
68
De acordo com informações sistematizadas pela Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos -
FUNCEME, percebe-se que o índice de chuvas anual para o estado do Ceará registou um desvio negativo a partir
de 1979, com -26,8%, sendo seguido em 1980, com -16,9%; em 1981, com -23,9%; em 1982 com – 23,6% até
1983, ano que atinge um desvio máximo de -57,3 %. Os anos seguintes registraram desvios positivos indicando
uma trégua na escassez de chuvas, exceto no ano de 1987, que registrou desvio negativo de -21%. Cf.:
http://www.funceme.br/app/calendario/produto/ceara/media/anual. Acesso em: 20 dez. 2018.
69
Cartas lidas no Programa de rádio ―Encontro das Comunidades‖, 1984. Arquivo Movimento do Dia do
Senhor.
70
Durante a década de 1980 o Ceará enfrentou um severo período de seca, principalmente durante os anos de
1979 a 1983. Para aliviar as tensões sociais decorrentes da fome e da sede dos camponeses, o Governo Federal
lançou o Programa de Emergência, que destinava verbas para construções de obras, como açudes e barragens,
em médias e grandes propriedades inscritas no Programa. De fato, a intenção governamental em sanar a falta de
trabalho e a fome no campo, rapidamente passou a ser revertida em práticas clientelísticas e a servir de moeda de
troca por votos, como também, de exploração e injustiças contra os camponeses. Para uma melhor compreensão
das políticas governamentais de combate à seca, ver: CAMPOS, Nivalda Aparecida. A grande seca de 1979 a
1983: um estudo de caso das ações do governo federal em duas sub-regiões do estado do Ceará (Sertão Central e
Sertão dos Inhamuns). In: Teoria e Pesquisa 44 e 45, jan/jul 2004.
56
Renovadora Nacional (ARENA), partido do regime, passava a ser substituído pelo Partido
Democrático Social (PDS), como também, permitia-se a criação de partidos de esquerda,
justamente para desarticular a força política do Movimento Democrático Brasileiro (MDB),
único partido de oposição, consentido, que passou a ser Partido do Movimento Democrático
Brasileiro (PMDB). Nessa Reforma, criou-se o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o Partido
Democrático Trabalhista (PDT) e o Partido dos Trabalhadores (PT) com o intuito de
fragmentar a oposição para manter o equilíbrio do regime ditatorial.72 Portanto, tanto nas
capitais como nos interiores do país, essa mudança de cenário político passou a ser sentida e,
indício disso, é o que se lê nas cartas dos camponeses da zona Norte e Nordeste do Ceará.
Nesse sentido, é possível perceber essa consciência política nos camponeses e nas
camponesas que votariam nas eleições municipais de 1982. Aliás, a eleição de 1982 foi a
última ocorrida durante o Regime Militar.
Queridos camponeses
Meu cordial abraço, mais uma vez escrevo para nosso programa pois
só assim posso conversar com todos vocês. Eu quero falar sobre nossas
vidas, como é de custume, emtão vou falar um pouquinho sobre pulitica por
estar no tempo, nós estamos atormentados pelo os pultiticos, pois são muitos
com ciume uns dos outros, eles estam quase doidos sentindo já, um pouco da
nossa união, emtão começando a se avexar porque eles sabem que nós já
trabalhamos em grupo e eles não sabem o que nós comverçamos em nossas
reuniões emtão eles correm, correm na casa de um e de outro sem saber da
certeza quem vota com um ou com outro no partido ou no outro partido pois
são muitos partidos, vamos deixa-los mesmo com fuzos, nós pudemos
escolher o partido e candidato de nós votar, nós sabemos que nenhum
adianta pra nós, mas vamos ajudar Jesus botando pra baixo os mais
poderosos, vamos usar das nossas cabeças, e pençarmos juntos, devemos
votar aonde for mais da nossa vontade. Irmãos vocês comcorda com o que
falei?...
Mas um abraço para todos vocês.
Rita de Cassia
Juritianha 1º/9/1982 73
72
Sobre o processo de abertura política do regime ditatorial no Brasil, com ênfase no movimento das Diretas Já,
recomenda-se a leitura de RODRIGUES, Alberto Tosi. Diretas Já: o grito preso na garganta. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2003.
73
Cartas lidas no Programa de rádio ―Encontro das Comunidades‖. Ano de 1982. Arquivo Movimento do Dia do
Senhor.
58
tiveram que receber as visitas desses políticos em suas casas ou nos roçados, durante seu
trabalho.
No entanto, mais uma vez, percebe-se nos escritores do campo sua consciência da
força do coletivo, ao passo que a autora da carta situa a prática do povo se reunir como motivo
de ameaça aos políticos ao dizer que: ―[...] eles estam quase doidos sentindo já, um pouco da
nossa união, emtão começando a se avexar porque eles sabem que nós já trabalhamos em
grupo e eles não sabem o que nós comverçamos em nossas reuniões‖. Por fim, ainda ressalta a
consciência de que o voto é um instrumento político que deve ser usado em favor dos
interesses do povo. Desse modo, conclama aos ouvintes do Programa de rádio do Movimento
―[...] vamos usar das nossas cabeças, e pençarmos juntos, devemos votar aonde for mais da
nossa vontade‖.
Durante a década de 1990 se aprofunda nas cartas a discussão em torno da política
partidária, nos períodos de eleições. Em um contexto de democracia reconquistada desde
1985 com uma eleição indireta de um presidente civil, marcando o fim dos governos militares
e, também, com os direitos políticos restabelecidos e amparados pela Constituição de 1988, o
exercício da cidadania também tinha sido reconquistado. A escolha dos candidatos e a prática
de ir às urnas voltaram a fazer parte da vida política dos brasileiros.
Assim também, como começa a aparecer nas cartas a preferência dos camponeses e
camponesas pelas propostas do então partido de esquerda, Partido dos Trabalhadores, e pela
figura do candidato Luís Inácio, Lula, que desde 1989 vinha disputando as eleições
presidenciais. Essa preferência está explicitada na carta de Maria Hieronides Cordeiro,
enviada ao Programa radiofônico Encontro das Comunidades, no ano de 1994, diga-se de
passagem, ano de eleições presidenciais em que disputavam a presidência da República, Lula,
do PT e Fernando Henrique Cardoso, do PSDB.
A carta segue o padrão de escrita popular presente na maioria das correspondências.
Com uma linguagem informal e fugindo a norma culta, sua autora inicia saudando a equipe do
programa, informando sobre as notícias da comunidade, detalhando o trabalho de base do
Movimento, conforme se lê abaixo:
A carta não traz a indicação do mês em que foi escrita, porém faz referência às
atividades da novena realizada no mês de maio, fazendo supor que tenha sido escrita ainda no
primeiro semestre de 1994. Nota-se também, que além das queixas com a politicagem e com a
corrupção dos políticos que só se aproveitam do voto do povo com falsas promessas, queixas
muito comuns em muitas das cartas comunitárias, essa carta de Maria Hieronides chama
atenção pela análise que se faz em torno da importância do eleitor para a política brasileira,
visto que em sua análise, o eleitor é que não sabe votar, sendo ―pelego do poder‖.
Em outras palavras, pode-se interpretar que ao ser ―pelego do poder‖, o eleitor
brasileiro se deixa iludir pelo discurso de políticos que, em grande maioria, representam
projetos políticos elitistas e que quando eleitos não realizam nenhuma mudança concreta na
vida dos pobres. Em tom de manifesto, essa carta termina com um apelo aos companheiros e
companheiras para se quebrar a corrente da opressão e do sofrimento do povo sugerindo que
se escolha um candidato comprometido com um projeto político popular, que ―[...] vá olhar
para a miséria do nosso povo sofredor‖. O candidato em questão, Luís Inácio Lula da Silva,
aparece no final da carta, fora do texto, mas explicitamente completando o sentido da
mensagem manifesto.
Em âmbito mais restrito ao Movimento do Dia do Senhor, na década de 1990
aprofundou-se a discussão em torno do sindicalismo e do associativismo, bem como da
participação feminina nesses espaços. De modo que se questionava o poder, e até mesmo o
74
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Encontros de Esposas. Carta Comunitária, 1994.
60
abuso de poder, de alguns presidentes dos sindicatos dos trabalhadores rurais e das
associações. Talvez por isso, o termo ―pelego do poder‖ empregado na carta como elemento
de análise para a política partidária, de modo geral, represente também uma extrapolação das
análises feitas pelos camponeses e camponesas sobre a realidade observada em outras esferas
políticas, nos micropoderes (re)produzidos nos sindicatos e associações em que participavam.
Em âmbito mais amplo, o debate em torno da participação feminina em sindicatos
rurais, como em outras instâncias de poder, é também uma marca dos anos 1990 no Ceará e
no Nordeste do Brasil. Com o avançar dessa década se aprofundaram as reivindicações em
torno da cidadania e da participação política para as mulheres do campo, desde o direito de se
filiar ao sindicato, como o de participação paritária nas eleições sindicais, como também o
direito a documentos individuais e independentes de seus esposos, como a carteira do
sindicato.
Por esse caminho, pressupõe-se que esse debate presente no Movimento do Dia do
Senhor, principalmente, nos Encontros de Esposas, seja reflexo de uma preocupação mais
ampla manifestada por alguns movimentos de mulheres do campo, como o Movimento de
Mulheres Camponesas (MMC), Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco,
Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MTR) e ainda com o
fortalecimento de inúmeros Coletivos Estaduais de Mulheres das Federações de
Trabalhadores Rurais dos Estados. Tal debate também fora encampado por setores
progressistas da Igreja Católica, visto que sua Campanha da Fraternidade de 1990 trouxe
como tema ―Deus quer homem e mulher como companheiros, iguais nos direitos porque os
dois são imagem e semelhança d‘Ele‖.75
Tanto que no relatório do Encontro de Esposas do ano de 1993, está presente a
preocupação em quebrar ―[...] as estruturas de poder, sindicatos e associações‖, mudar ―[...] as
normas do sindicato‖ e ―[...] derrubar os Collor de Melo que existe no poder e no nosso
meio‖. E para isso as mulheres deveriam estar organizadas participando de Encontros e
reuniões de interesse da comunidade, bem como, ―lutando, reivindicando projetos para
Associações, participando na Política do Sindicato, Associações.76
Compondo o Arquivo do Movimento, também se encontram cartas que vislumbra a
experiência concreta das mulheres, verificando-se que o poder se fazia presente na relação
familiar, quando os maridos determinavam seu lugar social, relegando-a ao espaço da
75
Reflexões sistematizadas a partir da leitura de SALES, Cleciana da Maria Veras. Mulheres rurais. Tecendo
novas relações e reconhecendo direitos. Estudos Feministas. Florianópolis 15(20) maio/agosto, 2007.
76
Arquivo do Movimento do Dia do Senhor. Encontro de Esposas. Relatório, 1993.
61
cozinha, controlando seus jeitos de vestir e de falar, bem como ―seus direitos‖ no interior da
relação homem/mulher e da sociedade patriarcal, conforme as palavras de Geraldo Benício,
que pede ao Movimento que:
Valnê peço encine a minha esposa qual é o ponto que a mulher deve
cer igual ao marido pois no meu pençar uma mulher não pode cer igual ao
marido em todos os pontos. Pois a minha esposa tem razão de cer
inguinorante pois foi encinada sem diciplina e vamos ver si com a nossa
ajuda ela si torna uma serva de Deus
Agradece seu disciplo Geral Benicio 77
Ressaltando a natureza ―espontânea‖ e popular das cartas, concebe-se sua escrita como
uma ―reivindicação existencial‖, ao modo de Geneviève Bollème, sendo analisada sem perder
de vista a dimensão da ―conquista da palavra‖, com destaque para um fato duplamente
significativo, posto que se tratava não só da conquista da palavra pelos pobres, mas, enfatiza-
se a conquista da palavra feminina. Desse modo, nas cartas pode-se lê e, ao mesmo tempo,
ouvir a voz das mulheres do campo.
O valor remetido à fala e à escrita dos camponeses foi-se constituindo ideia-força do
projeto de formação do Movimento, o que evidenciava, cada vez mais, camponeses superando
o receio de falar e se comunicar com os seus, bem como, com os sujeitos de outra classe
social. Dessa forma, a prática da escrita se tornou parte integrante da vida dos homens e
mulheres do Dia do Senhor, que escreviam os livrinhos Evangelho dos Lavradores78 sobre
educação, família, comunidade, terra.
Tal valor destinado à escrita e à fala dos camponeses reflete-se no próprio arquivo do
Movimento. A guarda de inúmeras cartas, relatórios e livrinhos indica uma intenção de
arquivar a pluralidade dos sentidos que o ―povo‖ do Movimento lhe atribuía, como também,
deixar documentado a intensa participação dos camponeses de diversas comunidades rurais,
em um tempo que o acesso à escrita, à comunicação e à informação era extremamente restrito.
Nesse sentido, arquiva-se também a sede de expressão e participação política e social dos
escritores do campo.
77
Carta de Geraldo Benício ao Movimento, em 1971. Relatório de Esposas de 1971, pasta 4.1. Arquivo
Movimento do Dia do Senhor. Diocese de Sobral – Ceará.
78
Tais livrinhos foram amplamente analisados em minha dissertação. Compõem uma coleção intitulada
Evangelhos dos Lavradores e evidenciam a iniciativa da equipe de coordenação do Movimento em priorizar a
palavra escrita e falada, estimulando, assim, a escritura dos pobres do campo. Sua publicação era feita, por uma
gráfica local, sendo os livrinhos distribuídos entre o ―povo do Movimento‖, servindo como base de discussão
nos encontros e reuniões.
62
79
FRAIZ, Priscila. A Dimensão Autobiográfica dos Arquivos Pessoais: o Arquivo de Gustavo Capanema. In:
Revista Estudos Históricos, vol. 11, n. 21, 1998, p. 62.
80
Para refletir sobre as relações de gênero, trabalho e família, cf.: WOLFF, Cristina Scheibe. Mulheres da
Floresta: Uma história Alto Juruá, Acre (1890-1945). São Paulo: Editora Hucitec, 1999; PASSOS, Luana.
Conciliação entre trabalho e família e individualização das mulheres brasileiras. In: GÊNERO. Niterói, vol.16,
n.1, p. 107 – 132, 2. sem., 2015; CYRINO, Rafaela. Trabalho, temporalidade e representações sociais de gênero:
uma análise da articulação entre trabalho doméstico e assalariado. In: Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21,
jan./jun. 2009, p. 66-92.
63
81
SCHWARTZ, Joan M. e COOK, Terry. Arquivos, documentos e poder: a construção da memória moderna. In:
Revista do Arquivo Público Municipal de Indaiatuba. Fundação Pró-memória de Indaiatuba, vol. 03, n. 03,
jul. 2004, p. 15-30.
82
Ibid., p. 23-24.
64
1.2. “Não precisa saber lê nem escrever, basta trazer a cabeça no lugar”:
Encontros de Esposas no percurso dos Relatórios
mais conhecimento sobre assuntos específicos como, Valor da mulher, que se repetiu nos três
primeiros Encontros e Higiene e Saúde, que foi debatido por duas vezes.
É interessante que se diga que esses Relatórios são compostos pela programação
oficial de cada Encontro, o que geralmente era elaborado pela Equipe de Coordenação do Dia
do Senhor, primeiramente por Maria Valnê Alves e, num segundo momento, por Maria Alice
e Lídia Ferreira, de forma mimeografada. Como também, registravam-se nesses Relatórios a
repercussão das discussões temáticas entre as participantes.
Desse modo, a cada Encontro de Esposa eram escolhidas duas camponesas para
escreverem os Relatórios finais, o que era feito manualmente com o uso de folhas de papel
almaço e caneta. Essa prática era considerada muito importante tanto para a Coordenação do
Movimento quanto para as camponesas, pois significava uma participação efetiva em todos os
momentos dos Encontros de Esposas, deixando de ser apenas coadjuvantes, tornando-se
protagonistas ao ouvir, aprender, opinar e escrever sobre todos os assuntos debatidos. Aliás,
todas as camponesas participavam inteiramente da realização dos Encontros, pois as tarefas
eram todas divididas entre elas.
Assim, como algumas ficavam responsáveis pelos Relatórios finais, outras assumiam
as responsabilidades com a cozinha, limpeza, animação/recreação, liturgia, sempre se
revezando entre si. Até mesmo os mantimentos para as refeições durante o Encontro eram
trazidos pelas participantes, conforme se descreve no Relatório de 1972 em que se lê como
observação: ―Todas as esposas trouxeram ajudas das comunidades, colaboraram em dinheiro
e material alimentício. O Movimento colaborou com 98 CR$ (noventa e oito cruzeiros)‖. 83
Os Encontros obedeciam a uma programação definida pela Equipe de Coordenação, o
que incluía horários de trabalho e liturgia, bem distribuídos durante o dia todo, conforme
discriminado abaixo:
83
Arquivo Movimento Dia do Senhor. Relatório Encontro de Esposas 1972. Conteúdo: Higiene e Saúde.
84
Arquivo Movimento Dia do Senhor. Relatório Encontro de Esposas de Dirigentes da Periferia do Araras, de
20 a 26/ 11/ 1971.
66
85
Ibid.
67
Verifica-se que o trabalho de base com as camponesas foi uma constante no Dia do
Senhor, pois desde sua origem as mulheres eram animadas a participar do Movimento
assumindo a função de Orientadoras. As Orientadoras trabalhariam ao lado dos Dirigentes,
que eram os camponeses que assumiam a função de celebração da palavra de Deus nas
comunidades rurais, aos domingos, considerado o dia do Senhor. É bem verdade que desde a
origem do Movimento, estabeleceu-se certa hierarquia simbólica com relação aos papéis
assumidos por homens e mulheres, a se observar na própria nomenclatura (Dirigentes x
Orientadoras), naturalizada por todos os participantes.
Nesse sentido, Valnê Alves que atuou no Movimento desde seus primeiros anos, situa
o processo de desconstrução de uma cultura machista, patriarcal, que também se reproduzia
na estrutura organizacional do Dia do Senhor.
Ou seja, os homens dirigiam o culto dominical, dirigiam as atividades tidas com maior
importância no Movimento. As mulheres orientavam, serviam de apoio ao trabalho
masculino. Muitas dessas mulheres também assumiam a função de catequistas em suas
comunidades, portanto, realizavam um trabalho coadjuvante, em nível local. Com a criação
dos Encontros de Esposas anuais se observou uma potencialização do trabalho feminino e,
86
Entrevista realizada como Lídia Ferreira em 26/03/2016. Via e-mail. (Arquivo da autora)
87
Entrevista realizada Maria Valnê Alves em 18/12/2004, já citada.
68
Lídia teve fundamental importância para o trabalho de base com as camponesas, visto
que assume o Movimento em um período que o trabalho de organização feminina passava por
um amortecimento. Tal amortecimento do trabalho com as mulheres do Movimento é
perceptível, inclusive na documentação pesquisada, pois se encontram os Relatórios anuais
dos Encontros de Esposas até 1973, observando-se uma lacuna até o ano de 1976 quando,
novamente, os Relatórios dos Encontros aparecem organizados anualmente até 1996.
Justamente, o breve intervalo entre a saída de Valnê Alves e entrada de Lídia Ferreira no
88
Entrevista realizada como Lídia Ferreira em 26/03/2016, já citada.
69
Movimento. Valnê foi uma das precursoras do Dia do Senhor, atuando juntamente com padre
Albani Linhares. O nome de Valnê é muito recorrente nos Relatórios e cartas comunitárias,
pois sua participação marcou a memória e os corações de homens e mulheres com quem
conviveu.
Como a noção de autonomia é uma marca do Movimento do Dia do Senhor, todos os
esforços da Equipe de Coordenação foram se canalizando para que, em um determinado
momento, os próprios camponeses assumissem o Movimento e todas as atividades de
formação, incluindo sua dimensão financeira. Desse modo, com os Encontros de Esposas
aplicava-se essa mesma proposta, tanto que se encontram Relatórios em que as próprias
camponesas assumiram a coordenação desses Encontros.
No percurso dos Encontros de Esposas, vislumbram-se três momentos bem definidos.
De 1969 a 1973 que demarcam os Encontros organizados por Valnê, posteriormente a sua
saída do Movimento, Maria Alice e Lídia reanimam esses Encontros, assumindo a
coordenação de 1976 a 1980 e, a partir de 1981, as próprias camponesas assumiram a
coordenação, ou seja, a ―Nata‖ dos Encontros de Esposas, que eram àquelas mulheres mais
atuantes no Movimento. Já na década de 1990, elas se organizaram e criaram a Associação
das Mulheres do Dia do Senhor (AMDS), essa sigla aparece nos Relatórios a partir de 1992.
Um ponto interessante do período de coordenação das próprias camponesas é que
surgiu um grande debate entre elas questionando a nomenclatura ―Encontro de Esposas‖ que,
até aquele momento, vinha conferindo identidade ao grupo, que era composto,
majoritariamente, pelas esposas dos dirigentes e por outras camponesas casadas. No entanto,
àquela altura, já estavam participando dos Encontros mulheres que não eram casadas, como
solteiras, separadas, viúvas, o que não condizia mais com a ideia de esposas. Em entrevista,
dona Raimunda89 situa seu ingresso nos Encontros de Esposas e, ao mesmo tempo, chama a
atenção para seu papel no início dessa discussão:
Foi muito difícil, porque na época, foi na era de oitenta, parece que foi
oitenta e oito. Já tava acontecendo os Encontros, mas, eu não tinha muito
conhecimento. Mas, foi através de uma amiga, Socorro do Gonzaga. (...) Aí
ela me fez o convite: ―Raimunda, vombora participar dos Encontros das
Esposas em Itapipoca‖. (...) Mas, o que eu achei mais importante, porque
quando a gente começou o Encontro foi três dias. O primeiro dia a gente foi
estudar a bíblia, através do Evangelho né, que a gente encontrou o caminho.
E aí quando foi no primeiro dia, eu assistindo, a gente estudando a bíblia,
tudo direitinho, o Evangelho, aí não falava de esposa, falava de mulher, das
89
Raimunda foi participante do Movimento do Dia do Senhor, vivenciando intensamente a última etapa do
Movimento e atualmente é sindicalizada e militante do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Trairi – CE.
70
Dessa forma, pode-se inferir que foi necessário o ingresso de outras participantes,
como no caso de dona Raimunda, para que houvesse um estranhamento com o termo e com o
sentido que aqueles Encontros representavam. Tendo em vista que muitas das camponesas
eram participantes de longa data, já haviam naturalizado a ideia restrita às esposas passando,
então, a refletir sobre a possibilidade de ampliar essa nomenclatura, o que de certo modo,
ampliava o elemento identitário das participantes. Conforme se depreende da narrativa, a
leitura bíblica deve ser entendida como fundamental para a compreensão e ação das
participantes desses Encontros de Esposas. Aliás, toda dinâmica do Movimento do Dia do
Senhor baseava-se na leitura da bíblia para entendimento da leitura da vida.
Outro fator a ser observado é a diversidade temática que os Encontros vão assumindo
nesse percurso. Ao longo da coordenação de Lídia e Maria Alice, a questão do ―Trabalho da
mulher camponesa‖, ―A educação dos filhos‖ e ―O matrimônio, vida conjugal e sexualidade‖
passam a ganhar cada vez mais espaço nos debates. Por outro lado, observa-se que quando as
próprias camponesas assumem na década de 1980, os temas específicos à questão feminina,
como ―Sexualidade‖ e ―Direitos da mulher‖ passam a ser associados à discussão em torno da
realidade que se vivia no campo, naquele momento.91 Os anos 1980 foram marcados por
90
Entrevista realizada com dona Raimunda, no dia 10 de outubro de 2015, em Itapipoca – CE.
91
Através dos Relatórios podem-se mapear os temas que marcaram os Encontros de Esposas coordenados por
Maria Alice e Lídia, como pelas próprias esposas. 1976/1977 – Trabalho feminino, 1978 – Matrimônio e vida
conjugal, 1979 – Educação dos filhos, 1980 - Consciência da realidade da terra. 1981- Força da classe. 1982 –
Força da classe, ainda continuação. 1983 – Seca e Bolsão, 1984 – Direitos da mulher. A partir desse ano, os
Encontros de Esposas passam a ser realizado em Acaraú. 1985 – Balanço dos Encontros de Esposa, 1986 –
Família, sexo, autonomia da mulher. 1987- Escravidão da mulher, mulher é igual ao homem? Salienta-se que
esse tema é repetido de 1971. 1988 – Continuação de 1987. 1989 – Associação, 1990 – Mulher e terra, 1991 –
Marido, filhos, sexo, 1992 – Crise financeira da AMDS – Associação de Mulheres do Dia do Senhor. Observa-se
que nesse ano, houve uma nova mudança no local de realização dos Encontros de Esposas, que passam a se
realizar em Morrinhos. 1993 – Educação familiar, situação econômica da mulher, problemas de terra.
71
longos períodos de seca no Ceará, portanto, a discussão sobre Seca e Bolsão, ou seja, o
serviço pesado e mal pago, realizado nas frentes de trabalho oferecidas pelo governo, passa a
ser ponto de muita reflexão para essas mulheres, tanto que o primeiro Encontro assumido por
elas trouxe como tema ―A força da classe‖.
Associado a essas questões estava o problema central para mulheres e homens do
campo, que era o problema da posse de terra. É também durante a década de 1980 que o
―povo do Movimento‖ enfrenta alguns conflitos de terra, o que leva à perseguição e morte de
algumas lideranças do Dia do Senhor, como a morte de Benedito Tonho, no conflito de
Queimadas, em Coreaú. Desse modo, as questões mais gerais do Movimento, que eram
debatidas nos Encontrões, marcado pela presença masculina, também passavam a ser
assumidas enquanto debate das mulheres, basta observar o Encontro de Esposa de 1990, que
trouxe como tema ―Mulher e terra‖.
De modo geral, a partir do momento que os Encontros são assumidos pelas próprias
mulheres do Movimento, os temas passam a ser mais dispersos, chegando a ser debatidos
vários temas durante um Encontro. Importante dizer que a avaliação ou balanço dos
Encontros passa a ser recorrente entre as bases, visto que se constatou uma diminuição do
número de participantes no Encontro de 1985. Esse fato é relevante, pois o assumir das bases
marcou uma mudança na forma de condução dos Encontros, visto que quando da coordenação
da Equipe do Movimento, havia grande número de participantes, como também, os temas
eram mais definidos, debatendo-se um único tema por vez.
A exemplo disso, no Encontro de Esposa de 1969 em que se discutiu ―O valor da
mulher, sua participação no mundo‖, as camponesas tiveram contato com informações que
mesclavam conteúdos, tanto filosóficos como bíblicos, sobre o ser mulher e suas
representações92 formuladas ao longo da história. No primeiro Relatório produzido pela
Equipe de Coordenação se apresentam os temas norteadores do Encontro, tais como, ―Valor
da mulher; Relacionamento homem x mulher; Filhos‖. Esmiuçando-se os temas gerais, é
possível perceber que algumas perguntas serviam de base para que as camponesas refletissem
sobre a valorização e desvalorização da mulher, sobretudo, da mulher camponesa.
Com as perguntas ―A mulher do campo vive como gente? Por que?‖ e ―Mulher vale
igual ao homem? Por que?‖, a equipe de Coordenação suscitava reflexões em torno de
92
Nesse sentido, as artes, em suas diversas facetas, como a filosofia e a ciência criaram e fundamentaram, sob o
olhar masculino, uma infinidade de representações e discursos hierarquizantes em torno da mulher. De acordo
com Michelle Perrot: ―As Luzes e a ciência nem sempre são as melhores conselheiras. Muitos filósofos
encontraram nas ciências sociais e na medicina argumentos suplementares para demostrar a inferioridade das
mulheres‖. In: PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2012, p. 23.
72
93
Sobre esse debate, cf.: PEDRO, Maria Joana. Narrativas fundadoras do feminismo. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 26, n. 52, 2006, p. 249-272.
94
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Relatório de Esposas, 1971 – Valor da Mulher, relacionamento e
atuação no mundo.
95
Para discussão mais aprofundada em torno das diversas representações femininas, cf.: TEDESCHI, Losandro
Antônio. História das Mulheres e as representações do feminino. Campinas: Editora Curt Nimendajú, 2008.
73
que o homem temesse à mulher. Nas palavras de Michelle Perrot: ―[...] misteriosa, a
sexualidade feminina atemoriza. Desconhecida, ignorada, sua representação oscila entre dois
polos contrários: a avidez e a frigidez. No limite a histeria‖. 96
Na definição de ―Mulher instrumento de serviço para o homem‖ percebe-se uma
aproximação com o discurso construído pelo patriarcalismo, ou seja, a mulher passa a ser
vista como submissa e dependente do homem, sendo destinada a servir ao marido e aos filhos,
conforme regimentava o papel de esposa, mãe e rainha do lar. ―[...] Ter filhos, dormir com o
marido, cuidar da casa, cozinhar, lavar, engomar, cuidar do marido, etc. Não há nenhuma
preocupação com ela. Mulher significa servir como obrigação e castigo‖ era o que dizia a
explicação do Relatório. Portanto, a partir dessas duas definições, as camponesas do Dia do
Senhor, logo nos primeiros Encontros de Esposas já entravam em contato com dois
importantes discursos fundadores do feminino, o discurso bíblico e o discurso do patriarcado,
que não se excluem, se complementam, no entanto, partindo de diferentes matrizes
discursivas.
Nesse sentido, as mulheres do campo passavam a reconhecer e a refletir sobre seus
papéis desempenhados nos seus lares e nos seus casamentos, entendendo que a submissão, a
obediência e ―escravidão‖, como muitas camponesas diziam, era uma construção, um discurso
produzido ao longo do tempo. Essa tomada de conhecimento servia tanto para redimensionar
o pensamento e comportamento feminino, como também, para o masculino. Era proposta
pedagógica dos Encontros de Esposas que todos os conteúdos debatidos fossem repassados
para as demais mulheres das comunidades, que não puderam participar dos Encontros anuais.
E, com isso, tais informações pudessem servir de instrumento transformador nas vidas e nos
casamentos das camponesas. Inclusive, sendo apresentado e debatido com os próprios esposos
e filhos.
A terceira ―Fase‖ ainda traz uma explicação da mulher numa perspectiva patriarcal,
sendo tomada como objeto de usufruto masculino. ―Mulher como objeto de enfeite‖
representa a imagem da mulher vaidosa, bem cuidada pelo marido, apta a ser apresentada à
sociedade como prêmio. No Relatório, usa-se a comparação da mulher com o cavalo, ou seja,
ambos são tomados como objeto de estima e orgulho do homem. Tal definição traz uma
reflexão em torno da objetificação da mulher demarcando seus papéis, tanto sociais quanto
sexuais. No discurso do patriarcado, a mulher é tida como objeto sexual, objeto de procriação,
96
PERROT, p. 65.
74
objeto de trabalho, ―objeto de enfeite‖, enfim, percebe-se que a mulher esteve sempre em
função do masculino.
Por fim, na fase em que a ―Mulher descobre seu valor e luta pela independência‖
percebe-se uma coincidência com os discursos do Movimento Feminista dos anos 1970.
Embora, nos Relatórios não se faça menção à periodização, como também, não tenha sofrido
influência direta do feminismo é possível pressupor que a última ―Fase de Evolução da
Mulher‖ seja contemporânea ao período em que se vivia naquela altura. Portanto, a década de
1970 trazia um discurso vanguardista em relação à mulher. Era o momento de busca pela
igualdade de gênero, liberdade sexual e por direitos trabalhistas e sociais. Em certa medida,
tal discurso coincidia com o princípio norteador de toda Pedagogia do Movimento do Dia do
Senhor, que era a conquista da autonomia. Portanto, as camponesas do Movimento também
deveriam lutar para conquistar a autonomia. Para tanto, as mulheres deveriam tomar
consciência de si e de seu papel no mundo. Conforme se lê no Relatório, ―[...] passa a ser
gente, deixa de ser objeto‖.
O conteúdo apresentado nesse Relatório como, acredita-se, que em todos os demais
produzidos pela Equipe de Coordenação, deve ter sido embasado em alguma referência
específica, no entanto, não foi explicitada. Porém, no Relatório de 1978, cujo tema debatido
foi ―Matrimônio e Vida conjugal‖ aparece a referência do livro ―Limitação dos nascimentos‖,
publicado em 1965, de autoria de José Roberto Azevedo e do padre Eugênio Charbonneau.
Durante os três primeiros Encontros de Esposas, a Equipe de Coordenação elaborou
vinte perguntas, retiradas da própria vivência das camponesas, referentes à relação marido e
mulher e com relação aos filhos, que serviriam como questões de reflexão sobre o valor da
mulher, aprofundando o debate sobre ―As fases de Evolução da Mulher‖. Dentre as perguntas,
destacam-se ―A mulher do camponês é livre ou escrava? Por que?‖ e ―Mulher deve ser
submissa ao marido? Por que?‖, o que suscitariam reflexões em torno da condição feminina,
em particular da condição da mulher do campo. Escrava e submissa são termos que essas
camponesas passaram a atribuir a si e a sua situação diante dos seus maridos e dos seus
casamentos. Refletir sobre tais questões fez com que muitas das participantes dos Encontros
de Esposas redimensionassem sua forma de pensar sobre a relação marido e mulher,
entendendo que poderiam se colocar como sujeito do matrimônio, tanto quanto seus esposos.
Nesse sentido, nos Relatórios vislumbram-se repostas em que as camponesas
justificam a condição de escravidão e submissão aos maridos dizendo de sua dependência
financeira e emocional, como também, justificam pela necessidade de criação dos filhos, que
em grande maioria dos lares camponeses, são muitos os filhos. É recorrente, as mulheres
75
usarem a expressão ―dominada pelos maridos‖, ―É escrava do marido. Só faz o que ele quer.
É dominada por ele‖. Nesse sentido, os maridos controlam tudo de suas esposas, até mesmo a
liberdade de se expressar e o direito de ir e vir, como se observa na resposta: ―É escrava do
amor, do marido porque não sai sem o consentimento dele‖ ou mesmo ―É escrava. Vive para
êle e para o trabalho. A vida dela depende totalmente dele‖.97
No entanto, desde o reconhecimento de sua escravidão até a transformação de seu
pensamento e comportamento diante de suas vidas concretas leva-se um longo processo, pois
essas transformações se desenvolveram de forma lenta e heterogênea no Movimento do Dia
do Senhor. Constata-se que nem todas as participantes dos Encontros de Esposas pensavam
ser escravizadas por seus maridos. No mesmo Relatório, encontra-se a resposta que diz ―[...]
A mulher deve ser governada pelo marido, não pode ser liberta‖, reproduzindo todo
pensamento patriarcal e conservador de seu universo cultural, contrastando, por outro lado,
com o pensamento expresso na ideia de que a mulher ―[...] muitas vezes vive escrava porque
não sabe se impor, fazendo o marido conhecer seus direitos‖.98
Como também, algumas camponesas associavam a escravidão não diretamente à
dominação masculina, mas, a toda condição de miséria e privação em que viviam. A falta de
conhecimento formal, como a falta de acesso à escola, também era entendido como forma de
escravidão para as mulheres do campo. A resposta de Maiza Almeida, do município de Cariré,
sintetiza todos esses pontos quando se diz escrava porque ―[...] só vou para onde o marido
quer. Porque os filhos não tem estudos. Porque moro no interior e não sou habituada a esta
vida camponesa. Porque meu saber é pouco diante da minha vontade e inteligência. Porque
não tenho o que desejo‖.99
Através das respostas dos Relatórios, percebe-se que grande parte das camponesas
reconhece a vida de ―escravidão‖ que levam nas relações conjugais e familiares, porém,
expressam opinião de que não acham certo a mulher ser escravizada ou submissa aos homens.
A ideia de igualdade de gênero é recorrente nas respostas, justificando que ―[...] mulher deve
ser igual ao marido porque somo iguais, não tem nenhum melhor do que o outro‖. Mesmo
tendo consciência de que no universo cultural em que vivem o homem se sobrepõe, algumas
camponesas ousam em colocar à prova tal superioridade, contrariando a vontade masculina,
97
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Relatório de Esposas, 1971 – Valor da Mulher, relacionamento e
atuação no mundo.
98
Ibid.
99
Ibid..
76
reconhecendo que ―[...] ele quer mas nós não devemos deixar porque o valor dele é igual ao
meu‖.100
Todas as respostas eram pensadas e escritas pelas próprias camponesas participantes
dos Encontros de Esposas. O tema proposto no Encontro, como foi visto, era primeiramente
apresentado de maneira formal pela Equipe de Coordenação e, posteriormente, debatido
coletivamente por grupinhos de mulheres. Após o tempo de debate e reflexão, esses grupinhos
se aglutinavam formando um grupo maior em que iriam socializar todas as respostas, dúvidas
e sentimentos surgidos durante o processo de maturação das ideias. Essa metodologia foi
desenvolvida em todos os Encontros de Esposas, como também, em todas as atividades do
Movimento do Dia do Senhor.
Entende-se que tal metodologia foi fundamental para o desabrochar de homens e
mulheres que participaram do Movimento. No caso das mulheres do campo, foi
transformador, visto que muitas delas não tinham poder de voz, de decisão, no interior de seus
lares, nem na comunidade em que viviam. Portanto, nesses Encontros, as camponesas
acharam sua voz, pensavam, expressavam suas opiniões e escreviam. Nesse processo, faziam-
se sujeitos e tomavam consciência de seu valor, enquanto mulher, esposa, mãe e agente social.
De acordo com Geneviève Bollème101 o povo adquire poder ao ter conquistado a fala e a
escrita, construindo um ―itinerário sem retorno‖. No caso das mulheres, parte desse povo,
ainda mais silenciado e alijado do espaço público e político, isso se torna ainda mais
relevante. Nesse sentido, a conquista da fala e da escrita por mulheres camponesas, que se
fizeram autodidatas durante esse processo, talvez, tenha se tornado revolucionário.
Por outro lado, avalia-se que os Encontros de Esposas também tenham realizado certa
interferência na vida e na cultura tradicional das camponesas, visto que os conteúdos
ensinados traziam informações de uma cultura, muitas vezes, formal e urbanizada. No
Encontro de 1972, o tema debatido foi ―Higiene e Saúde‖.102 Com esse mote, a Equipe de
Coordenação ensinava as mulheres do campo sobre higiene corporal, alimentação saudável e
prevenção de doenças infecciosas. A questão de gênero apresentava-se nesses conteúdos ao
passo que se atentava para os cuidados com a saúde e higiene do homem e da mulher,
ressaltando as particularidades biológicas de cada um.
Nesse sentido, eram ensinados ―Os cuidados que a mulher do campo deve ter durante
a gravidez‖, como também, ―Os cuidados que a mulher do campo deve ter quando está de
100
Ibid..
101
BOLLÈME, Geneviève. O Povo por Escrito. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes,
1988.
102
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Relatório de Esposas, 1972 – Higiene e Saúde.
77
103
Idem.
104
Ibid..
105
PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2012, p. 66.
78
Em História das Mulheres, as vozes do silêncio, Del Priore106 explica que a questão da
desigualdade entre os sexos remonta aos filósofos da Antiguidade, como Platão e Aristóteles
que formulavam sua compreensão do mundo e da humanidade pautados também pela
diferenciação entre homem e mulher, entendendo-a como inferior, sem nenhum
constrangimento. Mesmo na Idade Moderna, com o aparecimento da noção de Igualdade, os
filósofos das Luzes não deixaram de justificar a desigualdade sexual pelo viés ontológico e
cosmológico, mas introduziram a noção de paixão em oposição à razão. Assim, nas palavras
da autora:
Assim, as esposas voltavam desses Encontros com a tarefa de (re)orientar todo seu
modo de vida, o que implicava até mesmo na intimidade da mulher e do casal, tendo que
repassar para a comunidade tudo que aprendeu nos cursos. Aquelas mulheres que não
participaram do Encontro receberiam tais orientações durante as reuniões comunitárias dos
clubes de mães, ou mesmo, durante as reuniões dominicais do Dia do Senhor. Caso as esposas
sentissem alguma dificuldade poderiam solicitar a ajuda dos Dirigentes e Orientadoras. O
importante era que tais ensinamentos fossem repassados para o maior número de pessoas,
com a ressalva de ―[...] falar para o povo aos poucos, para não espantá-lo‖. 109
Com a saída de Maria Valnê Alves do Movimento encerrou-se o que se pode chamar
de primeira fase dos Encontros de Esposas. A atuação de Valnê marcou profundamente a vida
e a sensibilidade das camponesas com quem conviveu. No próximo tópico, será abordada a
retomada desses Encontros com a organização de Maria Alice e Lídia Ferreira.
Os anos 1970 no Brasil foram marcados por forte repressão militar. Desde 1964 que no
Brasil vinha se configurando numa ditadura de caráter civil-militar e em 1968 havia sido
decretado o Ato Institucional nº 5 que, grosso modo, aprofundava a caça às bruxas, prendendo
e desarticulando muitos dos quadros formadores dos grupos de esquerda espalhados pelo país.
110
Segundo Marcelo Ridente, ―[...] o AI-5 oficializava o terrorismo de Estado‖. Ao lado da
Lei de Segurança Nacional, tal Ato legitimava todo autoritarismo dos governos militares.
Nesse sentido:
108
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Relatório de Esposas, 1972 – Higiene e Saúde.
109
Ibid.
110
RIDENTE, Marcelo. Esquerdas revolucionárias armadas nos anos 1960-1970. In: FERREIRA, Jorge; REIS,
Daniel Aarão. As esquerdas no Brasil. Vol. 3, Revolução e Democracia. 1964... Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007.
111
Ibid., p. 37-38.
80
112
LÖWY, Michael. As esquerdas na ditadura militar: o cristianismo da libertação. In: FERREIRA, Jorge; REIS,
Daniel Aarão. As esquerdas no Brasil. Vol. 3, Revolução e Democracia. 1964... Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007, p. 306.
113
Ibid., p. 306 (grifos do autor).
81
resultou num convite para trabalhar na Diocese de Viana, no MA, para onde
fomos em 1975.
Assim que lá chegamos o bispo, D. Hélio Campos, veio a falecer de um
câncer fulminante e quem o substituiu foi um bispo especialmente preparado
pelo Exército – ele propagava isso com orgulho – para ocupar o lugar de D.
Hélio e acabar com o trabalho de base da região. Esse caso teve muita
repercussão dentro da igreja, pois foi o primeiro sinal muito claro que
haveria uma guinada para a direita da igreja. Muitos padres e bispos
progressistas olharam para Viana querendo conhecer o que se passava por lá,
pois as versões eram muitas sobre o que ocorria na igreja de Viana. Nessa
época conhecemos muitos padres, freiras e leigos que queriam ouvir nossa
versão dos fatos e numa dessas conhecemos o Pe Albany que nos convidou
para trabalhar em Sobral , pois já não tínhamos condição de continuar em
Viana. 114
É importante que se diga que com o fechamento da repressão após AI-5, um dos
poucos canais de participação político-social foi a Igreja Católica, que com seu respaldo
internacional ainda mantinha certa autonomia diante da interferência do Estado ditatorial. No
entanto, como é sabido, essa Igreja não é uma instituição homogênea. Parte conservadora do
clero não comungava com um projeto de pastoral popular, por vezes, aliando-se ao discurso
da moral e da ordem militar. Como se observa na narrativa de Lídia com relação ao bispo
reacionário indicado para a Diocese de Viana, no Maranhão. Conforme se ressalta na
entrevista, com a chegada de um bispo alinhado aos quadros da ditadura não se teria espaço
para trabalho de base. Como o trabalho pastoral popular ficava totalmente a cargo das
dioceses e paróquias, aquelas que não o aceitasse seria solos inférteis para o florescimento de
uma nova ―missão‖ de Igreja.
Nesse sentido, cabe um realce para a postura sacerdotal de Dom Walfrido Teixeira
Vieira, então bispo de Sobral, que mesmo sem se contrapor abertamente ao regime militar,
permitiu e apoiou todo trabalho de base desenvolvido em sua diocese no decorrer dos quase
quarenta anos de existência do Movimento do Dia do Senhor. Avaliando a postura
conciliadora e moderada do bispo, Valnê Alves diz: ―[...] eu vejo mais mérito em Dom
Walfrido do que até mesmo no tempo‖. 115
Por esse caminho, a convite de Padre Albani, Lídia Ferreira e Gustavo Lira se inserem
no Movimento do Dia do Senhor em 1976. Como mencionado anteriormente, a entrada do
casal se situa no momento de reorganização do Movimento, visto que com a saída de Valnê a
Equipe de Coordenação havia ficado desfalcada. Justamente nesse período, o Movimento se
expandia para a Diocese de Itapipoca, precisando de mais pessoas para contribuir com a
recondução desse processo.
114
Entrevista com Lídia Ferreira em 26/03/2016, já citada.
115
Entrevista com Maria Valnê Alves realizada em 18/12/2004. Já citada.
82
Tão logo sua chegada, Lídia e irmã Maria Alice reanimaram o trabalho com as
camponesas, retomando a realização dos Encontros de Esposas. Maria Alice atuando na
diocese de Itapipoca e Lídia, na de Sobral. No mesmo ano o Encontro anual voltou a
acontecer no CETRESO, na serra da Meruoca, trazendo como tema: ―O trabalho da mulher‖.
O relatório de 1976 denota que o Encontro fora organizado em duas frentes. No primeiro
momento houve uma apresentação dos diversos tipos de trabalho realizado pelas mulheres do
campo. Dentre os produtos apresentados destacaram-se renda, tricô, palha, croché, costura e
bordado, cada um representando um saber-fazer demarcado pela cultura específica das regiões
de onde vinham.
Nesse sentido, percebe-se o intuito de valorização do trabalho feminino, bem como, de
socialização entre as camponesas participantes, tendo em vista o isolamento em que viviam
nas suas próprias comunidades, era necessário o compartilhamento de experiências e saberes
práticos que cada uma trazia consigo. O trabalho feminino, na maioria das vezes, passa por
um processo de aprendizagem pautado pela tradição e costume que vai sendo ensinado através
de ciclos geracionais que abarcam mães, filhas e netas. 116
Então, muitas mulheres da região sertaneja estavam habituadas ao trabalho com a
palha, com a confecção de redes ou costura. Por outro lado, as mulheres que vinham do
litoral, principalmente, das regiões de Acaraú e Itarema traziam uma grande experiência de
trabalho com a renda. Tanto o feitio desses produtos quanto o processo de venda era
compartilhado servindo de parâmetro para avaliar as relações de trabalho das mulheres do
campo.
No segundo momento, a discussão foi aprofundada em torno do ―caminho do
trabalho‖, tendo em vista o processo de produção, circulação e venda desses produtos. O que
mais aparece no Relatório são constatações sobre a ―desvalorização do trabalho da mulher‖. A
exploração do trabalho e o lugar periférico que essas trabalhadoras assumiam no sistema de
produção capitalista. Dessas reflexões, as camponesas chegavam à compreensão de que ―[...]
o trabalho da mulher é bem parecido com o do homem na exploração. No trabalho da renda -
116
Nesse sentido, situam-se as reflexões de E. P. Thompson, em torno do universo rural, como urbano
(manufatureiro) que tradicionalmente são marcados pela herança dos costumes: ―[...] O aprendizado, como
iniciação em habilitações dos adultos, não se restringe a sua expressão formal na manufatura, mas também serve
como mecanismo de transmissão entre gerações. A criança faz seu aprendizado das tarefas caseiras primeiro
junto à mãe ou avó, mais tarde (frequentemente) na condição de empregado doméstico ou agrícola. No que diz
respeito aos mistérios da criação dos filhos, a jovem mãe cumpre seu aprendizado junto às matronas da
comunidade. O mesmo acontece com os ofícios que não tem aprendizado formal‖. In: THOMPSON, E. P.
Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.
17-18.
83
A questão do ―trabalho‖ feminino foi tão profunda que desencadeou na escolha dos
temas dos Encontros de Esposas de 1979 e 1980 em que se debateu sobre a ―Educação dos
Filhos‖ e a questão da ―Terra‖, respectivamente. O tema ―Educação dos Filhos‖ teve como
material de estudo e de preparação para o Encontro de 1979 o livrinho escrito pela jovem
camponesa Conceição Araújo, da comunidade de Cauaçú, município de Acaraú. Seu texto era
composto de poucas páginas e trazia como título ―Educação e Família no processo de
Libertação‖. Posteriormente, devido à repercussão que teve para o Movimento, essa escritura
foi publicada pela Equipe de Coordenação em 1980, compondo o número onze da coleção
Evangelho dos Lavradores. Conceição era orientadora do Movimento e, assim como muitas
117
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Relatório Encontro de Esposas, 1976. Tema: O Trabalho da Mulher.
118
O Movimento do Dia do Senhor, durante todo seu fazer-se, esteve se apropriando das leituras e da práxis
inspiradas pela Teologia da Libertação, de modo que Marxismo e Cristianismo estiveram dialogando
constantemente e abrindo chaves de compreensão do mundo capitalista e imperialista em que se vivia naquele
momento. Segundo Michael Löwy, ―[...] o primeiro documento da ‗esquerda cristã‘ que pode ser considerado o
texto fundador do cristianismo da libertação no Brasil e em toda a América Latina, foi ‗Algumas diretrizes para
um ideal histórico para o povo brasileiro‘ proposto pelo Regional Centro-Oeste para a Conferência dos dez anos
da JUC em 1960.‖. In: LÖWY, Michael, As esquerdas na ditadura militar: o cristianismo da libertação. Op. Cit.
p. 307.
119
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Relatório Encontro de Esposas, 1976. Tema: O Trabalho da Mulher.
84
120
A coleção Evangelho dos Lavradores foi largamente analisada em minha dissertação de mestrado. Para
conhecimento lê o livro: BEZERRA, Viviane Prado. ‗Porque si nóis não agir o pudê não sabe si nóis isiste no
mundo”: O MEB e o Dia do Senhor em Sobral (1960-1980). Sobral - CE: Edições ECOA, 2014.
121
De acordo com as informações sistematizadas a partir dos microdados dos censos do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística - IBGE, durante as décadas de 1970/1980 para o estado do Ceará registrou-se um volume
de 150.434 imigrantes em contraposição a um volume de 464.781 emigrantes, o que evidencia um contingente
populacional muito maior de saída que de entrada no estado. Para maiores informações sobre as migrações
interestaduais a partir da segunda metade do século XX, cf.: QUEIROZ, Silvana Nunes de; BAENINGER,
Rosana. Evolução das Migrações Interestaduais Cearenses: Análise para os Decênios de 1960/1970, 1970/1980,
1981/1991, 1990/2000 e 2000/2010, p. 27-50. In: OJIMA, Ricardo; FUSCO, Wilson. Migrações Nordestinas
no Século 21 - Um Panorama Recente. São Paulo: Editora Edgard Blücher, 2015.
85
coisas faz com que os filhos saiam da terra: o estudo e a falta de terra‖. 122 Importante atentar
para o vocabulário das camponesas permeado por metáforas, em grande parte, retiradas da
natureza, mas que ajudam a compreender as relações de poder presentes na realidade do
campo, como a alusão feita ao tubarão, que no entendimento popular se associa ao rico
latifundiário que ―engole‖ os trabalhadores do campo.
Por isso, a maioria das camponesas defendia a ideia de que os filhos deveriam receber
uma ―educação da consciência‖ em complementação à educação formal. Ou seja, a educação
da libertação era aquela em que se aprendia a consciência de classe. Nesse sentido, a
experiência no Movimento do Dia do Senhor servia como exemplo desse tipo de educação,
pois ―[...] os pais devem orientar os filhos para eles serem também uma corrente dentro do
Movimento. Este estudo se torna melhor que o estudo numa escola. Eles ganham muito mais
e os pais também dentro da libertação‖. 123
Trabalho, terra e migração aparecem no Relatório como elementos proporcionais à
problemática do campo. Portanto, no Encontro de Esposas de 1980, a questão da ―Terra‖ foi
mais aprofundada. Durante a preparação das esposas para o Encontro anual, era comum a
Equipe de Coordenação enviar ―Circulares‖ para as comunidades, como também, lê esses
tipos de correspondências durante o programa de rádio Encontro das Comunidades. Para
tanto, em outubro de 1980 era lançada mais uma Circular com o intuito de estimular as
camponesas a participarem do Encontro que ocorreria, como de costume, no mês de
dezembro. Assim Lídia e Maria Alice se comunicavam com as mulheres e apresentavam as
questões-chave que norteariam o debate durante o Encontro daquele ano, conforme se lê na
Circular abaixo citada:
122
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Relatório Encontro de Esposas, 1979. Tema: ―Educação dos Filhos‖.
123
Ibid.
86
(...)
O encontro será dias 15,16 e 17 de dezembro. A parte financeira é
outro ponto importante da preparação. Mesmo sendo um ano difícil de chuva
escassa e pouca safra, e pela experiência do Encontrão, a gente acha que dá
pra confiar no esforço de vocês e das comunidades.
O encontro das esposas, como sempre, desde a parte financeira até o
conteúdo vai depender totalmente de vocês. E vocês já sabem como é né?
Não precisa saber ler nem escrever, basta trazer a cabeça no lugar.
Abraços pra vocês,
Lídia e Maria Alice 124
124
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Circular/ Encontro de Esposas, 1980.
87
embora nunca fossem vistas por essas camponesas como uma das suas. Nem a própria Equipe
tinha tal intenção. Entende-se que, tanto os religiosos, padre Albani e irmã Maria Alice, como
os leigos, Gustavo e Lidia, atuavam como intermediários culturais, na concepção de Michel
Volvelle 125, ao passo que transitavam entre o rural e o urbano, o letrado e o iletrado, o erudito
e o popular.
Assim, esses intermediários culturais permaneceram à frente do Movimento do Dia do
Senhor até o início da década de 1980. Em 1981, os Encontros de Esposas passaram a ser
organizados pelas próprias camponesas. Elas próprias assumiram as responsabilidades
pedagógicas e metodológicas, desde a escolha do tema, escrita e divulgação das Circulares até
a condução do debate nos dias do Encontro, bem como, continuaram responsáveis pela
elaboração dos Relatórios. De maneira mais abrangente, nesse mesmo período, os
camponeses considerados a ―Nata‖ do Movimento também assumiram todas as
responsabilidades do Encontrão, da parte financeira e da elaboração de projetos, enfim, da
gerência do Dia do Senhor.
Na concepção da Coordenação, os camponeses e as camponesas haviam conquistado a
autonomia, podendo continuar se organizando sem intermediação. Lídia Ferreira situa os
motivos que a fizeram sair do Movimento, como também, sua narrativa recupera a segurança
da Equipe diante do assumir das bases.
Por esse caminho, o Encontro de Esposas de 1981 trazia como tema ―A força da
Classe‖. Tal temática já vinha sendo muito discutida pelo ―povo‖ do Movimento, pois
repercutia a reflexão apresentada pelo camponês Antônio Pires em seu livrinho ―As duas
panelas‖. Tal livrinho compunha o número treze da coleção Evangelho dos Lavradores,
publicado pela Equipe de Coordenação em 1980. O mote do livrinho era a luta de classes
125
VOVELLE, Michel. Ideologias e Mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1991.
126
Entrevista com Lídia Ferreira em 26/03/2016, já citada.
88
Queridas esposas
Em Belém, na Cruz, no mês de outubro reuniu-se a Lurdinha, a
Fausta, a Terezinha, a Nega, a Mariinha e a Ana, todas elas esposas
camponesas, para conversar sobre o encontro de esposas de 81.
O tema já estava escolhido né, a força da classe, mas a gente se
perguntava: ―o que vamos tratar dentro desse tema?‖. Aí saíram várias
sugestões: o trabalho da mulher em casa, toda a luta que se tem para criar os
filhos, o trabalho em renda, bordado, chapéu, de como esse trabalho é
desvalorizado. O problema da terra que não tem para trabalhar e muitas
outras coisas. (...)
E pra terminar elas acharam bom fazer uma pergunta que é essa: se
na realidade as mulheres sabem mesmo como está pagando a renda?
Então tudo isso foi conversado lá no Belém. O encontro será dias
12,13 e 14 de dezembro e todas as esposas que tem vontade de conversar,
encontrar com as amigas, desabafar, brincar, rir, dançar, descobrir coisas
novas, vão vir a esse encontro. 127
Tanto nessa Circular como no Relatório de 1981 nota-se que a temática central do
Encontro de Esposas abriu margem para a discussão de muitas outras questões presentes na
realidade vivida por essas mulheres, evidenciando-se a discussão de classe e de gênero. Ao
passo que se refletia sobre a classe pobre e camponesa a qual pertenciam, também se pensava
sobre o papel específico da mulher dessa classe assumindo, inclusive, uma discussão
tradicionalmente masculina como a questão da renda paga aos proprietários de terra.
Porém, a quantidade de participantes no Encontro de 1981 foi bastante reduzida. Essa
redução se repetiu no encontro de 1982, sendo cada vez mais sentida nos anos posteriores.
Pelo Relatório de 1982 verifica-se que apenas 17 mulheres compareceram à serra da Meruoca
naquele ano. Percebe-se a preocupação das bases a ponto de se questionarem sobre a validade
de continuar com os Encontros anuais na Meruoca, visto a distância de algumas comunidades
e também a existência dos chamados ―Encontrinhos‖, reuniões locais que congregavam
mulheres em cada comunidade rural. Esses ―Encontrinhos‖ se realizavam no decorrer do ano
127
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Circular / Encontro de Esposas, 1981.
89
128
Arquivo Movimento Dia do Senhor. Relatório Encontro de Esposas, 1982.
129
Arquivo Movimento Dia do Senhor. Carta de Luzia, do Acaraú /Encontro de Esposas, 1981.
130
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Relatório dos Encontros de Esposas, 1991.
90
Outro aspecto dos Encontros de Esposas era sua dimensão mística, que se manifestava
nas cantorias e atividades de lazer. Como em todo movimento de pastoral popular, a presença
de cânticos religiosos com letras que mesclavam ensinamentos do evangelho e realidade de
vida dos pobres servia de combustível para reflexão e ação. Nos Encontros de Esposas,
percebe-se que essas músicas serviam tanto para a animação do grupo, como também, o
repertório cantado fazia parte da própria dinâmica dos Encontros, ao passo que se alternava
oração, cantorias e atividades de estudo.
131
Ibid.
132
Ibid..
91
Ainda no Relatório de 1991 evidencia-se que ―[...] foi cantado um cântico, feito pelas
mulheres presentes no Encontro baseado na realidade‖. Além disso, no horário de lazer
durante a noite as mulheres realizaram brincadeiras como ―Seu Gonçalo, resado, etc.‖ O
cântico citado no Relatório foi uma composição das mulheres de Serra Verde, comunidade da
Diocese de Sobral. A letra trazia elementos de encorajamento para a luta das mulheres
valorizando o papel da mulher na família e em sociedade, como também, o reconhecimento
de que a união entre as mulheres das ―praias, serras e sertão‖ era um elemento de força para
vencer a opressão. Nesse sentido, a compreensão de que a ação feminina é transformadora
aparece em versos simples que compõem o refrão:
Por esse caminho, no Relatório de 1993 encontra-se mais um cântico produzido pelo
grupo de mulheres da comunidade Poço da Onça, diocese de Itapipoca. Em ritmo de xote,
ressalta-se na letra o uso da expressão de que as mulheres precisam ―se mexer‖, expressão
comum no linguajar das bases, muito presente nas letras de outras canções produzidas pelas
mulheres do Movimento, o que mais uma vez reforça a ideia de ação feminina. Tanto no
refrão como em toda letra se reforça a conquista da liberdade das mulheres, liberdade que se
opõe ao espaço privado da casa e opressão dos maridos. Assim, cantavam e dançavam a busca
pela liberdade feminina. No canto das mulheres do Poço da Onça debater sobre esse tema
soava como ―obrigação‖:
133
Ibid..
92
134
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Relatórios Encontros de Esposas. Canto feito pelo grupo do 4º mini-
Encontro das mulheres do Poço da Onça em 16 de dezembro de 1993.
93
A mão da mulher tem olheiros nas pontas dos dedos: risca o pano, enfia a agulha,
costura, alinhava, pesponta, chuleia, cerze, caseia. Prende o tecido nos aros do
bastidor: e tece e urde e borda.
(Os trabalhos da mão - Alfredo Bosi)
135
ALVES, Maria Valnê. Interferência de Educadores de Camada Média em Educação Popular: viabilidade
teórico - prática da interferência de educadores de camada média em Educação Popular a partir de uma
experiência na área rural do nordeste brasileiro. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, (Mestrado em
Educação), 1980, p. 7.
94
136
Nos Relatórios dos Encontros de Esposas são descritos os dados básicos das participantes de cada encontro,
tais como idade, quantidade de filhos vivos, quantos filhos morreram, por vezes, informam a idade com que
casaram e em que trabalhavam. Pela leitura desses Relatórios revela-se uma realidade em que mulheres jovens
engravidavam constantemente, as vezes, salvaguardando-se somente o intervalo entre um resguardo e outro.
Como exemplo cita-se Teresa Marques de Freitas, 39 anos, que teve um total de 12 filhos, dos quais morreram 4.
Como também, o caso de Francisca Elvira Soeiro, de 45 anos, que teve 16 filhos, dos quais morreram 5.
137
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das letras, 1994, p. 475.
95
138
Ibid., p. 80.
139
Nessa perspectiva, em texto clássico, a historiadora Joan Scott chama atenção para o fato de que ―Alguns
(mas) pesquisadores (as), notadamente antropólogos(as) reduziram o uso da categoria de gênero ao sistema de
parentesco (fixando o seu olhar sobre o universo doméstico e na família como fundamento da organização
social). Precisamos de uma visão mais ampla que inclua não só o parentesco, mas também (em particular, para as
sociedades modernas complexas) o mercado de trabalho (um mercado de trabalho sexualmente segregado faz
parte do processo de construção do gênero). In: SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica.
In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História. Novas Perspectivas. São Paulo: Editora Unesp, 1998, p. 22.
140
MANESCHY. Maria Cristina. Mulheres na pesca artesanal: trajetórias, identidades e papéis em um porto
pesqueiro no litoral do estado do Pará. In: NEVES, Delma Pessanha; MEDEIROS, Leonilde Servolo de. (Orgs.)
Mulheres camponesas: trabalho produtivo e engajamentos políticos. Niterói: Alternativa, 2013.
96
trabalho, dentro e fora da família. (...) Segundo Nancy Fraser (1997), dentre
outros autores, a ordem econômica vigente assenta-se em uma ―ordem social
de gênero‖ que estrutura e legitima a separação entre trabalho produtivo e
reprodutivo, este último tradicionalmente assumido por mulheres. 141
141
Ibid., p. 43
142
Nesse momento faz-se importante esclarecer que o conceito de Gênero aplicado nessa pesquisa é tributário de
Joan Scott que o entende como uma construção social e que, historicamente, criou e legitimou hierarquias de
poder entre o feminino e o masculino. Essa concepção se contrapõe, portanto, às ideias naturalizadas pelo
determinismo biológico. Por esse caminho, para a autora é imprescindível se compreender o Gênero como uma
categoria de análise histórica que aborde igualmente as noções de sexo, classe e raça. Como também, a
construção do feminino em relação à construção do masculino, pois ambos fazem parte desse mesmo processo,
entendendo tanto o homem como a mulher como ―categorias vazias e transbordantes‖. SCOTT, Joan. Gênero:
uma categoria útil de análise histórica. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História. Novas Perspectivas. Op.
Cit.
143
Esse pensamento aparece na fala de Rosa Pires, Rita de Cássia, assim como é referenciado por Maria Alice,
ao citar exemplos das questões que apareciam nas cartas comunitárias das mulheres do Dia do Senhor. As
entrevistas com Rosa Pires e Maria Alice MacCabe se realizaram no dia 06/06/2009. A entrevista com Rita de
Cássia se realizou no dia 01/04/2010.
144
Entrevista realizada com Rosa Pires, em 06 de junho de 2009, em Itapipoca - CE.
97
Trabalho pesado feito de sol a sol, que marcava a infância, juventude e velhice de
camponeses e de camponesas, condicionando o tempo, os corpos e o saber-fazer
desempenhado conforme cada etapa da vida no campo. Esse condicionamento da vida e do
trabalho camponês remonta a um período histórico anterior à Revolução Industrial, em que o
tempo era marcado pelas tarefas diárias e não pelo relógio. A partir do texto ―Tempo,
disciplina de trabalho e capitalismo industrial‖, de E. P. Thomson 145, pode-se perceber que as
noções de tempo, trabalho e vida nas comunidades camponesas da Inglaterra pré-industrial,
guardadas as devidas proporções de tempo e espaço, ainda podem encontrar sentidos no
século XX, quando se analisa populações camponesas que ainda viviam e trabalhavam de
acordo com experiências tradicionais. Nesse sentido, segundo o autor:
A notação do tempo que surge nesses contextos tem sido descrita como
orientação pelas tarefas. Talvez seja a orientação mais eficaz nas sociedades
camponesas, e continua a ser importante nas atividades domésticas e dos
vilarejos. Não perdeu de modo algum toda a sua importância nas regiões
rurais da Grã-Bretanha de hoje. É possível propor três questões sobre as
tarefas. Primeiro, há a interpretação de que é mais humanamente
compreensível do que o trabalho de horário marcado. O camponês ou o
trabalhador parece cuidar do que é uma necessidade. Segundo, na
comunidade em que a orientação é pelas tarefas é comum parece haver
pouca separação entre o ―trabalho‖ e a ―vida‖. As relações sociais e o
trabalho são misturados – o dia de trabalho se prolonga ou se contrai
segundo a tarefa – e não há grande senso de conflito entre o trabalho e
―passar do dia‖. Terceiro, aos homens acostumados com o trabalho marcado
pelo relógio, essa atitude para com o trabalho parece perdulária e carente de
urgência. 146
145
THOMPSON, E.P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
146
Ibid., p. 271-272.
147
Ibid., p. 287.
98
Você soube da Nazaré, que era uma mulher muito forte. A Nazaré era uma
colega nossa, ela morreu nova. Ela, às vezes ia até pro Japão, ia pra todo
canto. Era uma mulher muito lutadora e muito inteligente... E aí era só
mulher mesmo batalhadora, mulher muito... que eu admirava mesmo, da
luta. Aí em Juritianha tem a Rita que é uma mulher muito, assim, a Rita
é muito sábia... eu gosto muito. A cumade Fausta é outra mulher... muito
econômica em casa. A gente conversava mais era sobre esses assuntos,
sabe?... Porque tem mulher que mais sábia que as outras, sabe coordenar
mais a família... porque a gente ensinava e aprendia também com elas.148
Assim como Rosa Pires, sua comadre, Maria Fausta Marques, também é filha de
agricultor e começou o trabalho no campo ainda criança. Fausta é reconhecida entre as
companheiras do Movimento como uma mulher econômica, com experiência em economia
doméstica, o que servia de exemplo a ser compartilhado com as outras quando dos Encontros
de Esposas. Essa experiência com a economia da casa, Fausta aprendeu com sua mãe, trazia
como um legado de família. Em sua narrativa, percebe-se certo orgulho em ter sido criada
nesse modelo, tanto que depois de casada, reproduziu-o para sua própria prática de dona de
casa e de trabalhadora rural.
Desde idade de sete anos que o que eu conheci foi agricultura, porque meus
pais agricultor né, e minha mãe era uma pessoa muito criadeira de galinha,
toda aquela criação de pena né. E meu pai era agricultor mas, não era
vaqueiro... mas, sempre teve a vaquinha... pra ter o leite de casa. Criava as
148
Entrevista com Rosa Pires, em 06/06/2009. Já citada.
99
ovelha, criava cabra, tudo pouco. Terreno era pequeno, mas ajudava muito
na parte financeira. Eu fui criada com esse, neste rumo, quando me casei
continuei porque achei que ajudava financeira em casa né. Quem conheceu
minha casa... Lídia, Valnê conheceram, viam de perto, nossa criação de
galinha, capote, pato. Isso era pra manutenção de casa, mesmo assim,
vendia. O milho que o Abdias, que a gente fazia da agricultura, era pra‘s
criação, não precisava a gente comprar. 149
149
Entrevista realizada com Maria Fausta Marques, em Sítio Alegre, comunidade de Morrinhos – Ce. Em 12 de
outubro de 2010.
150
Ibid.
151
Ibid.
100
Nesse sentido, Fausta Marques compreende a criação de animais como uma sábia
alternativa à agricultura, tendo em vista as dificuldades que passava sua família durante os
tempos de seca ou de inverno fraco, com pouca chuva. Era administrando os parcos recursos
que escapavam da fome e das privações de toda natureza. Fazer uma reserva dos alimentos
que plantavam como milho e feijão garantia a alimentação durante o ano inteiro. Com a
criação dos animais, em vez de vender a colheita, vendiam o que criavam e agregavam ao
orçamento uma renda extra e necessária.
Em toda sua narrativa, Fausta se coloca como sujeito nas decisões referentes à
economia doméstica, o que se evidencia em expressões como ―com que é que eu vou me
pegar?‖, ―eu vendia‖, ―fui educada assim‖. Seu protagonismo na relação com o esposo é
enfatizado diversas vezes durante a entrevista, mesmo quando considera a participação dele,
quando diz ―a gente‖, era ela quem tomava a frente das negociações, conforme explica: ―[...]
E essa criação era muita. A gente vendia, eu vendia pra ajudar no... comprar as coisas do
estudo dos filhos. Porque fui educada assim.‖ 152 (Grifo meu).
Outra camponesa, atuante nos Encontros de Esposas, foi Rosa Marques da Costa,
casada com o dirigente Paulo Marques da Costa, da Comunidade Serra Verde, distrito de
Sobral. Primos de primeiro grau, Paulo e Rosa tiveram treze filhos, dos quais um casal de
gêmeos morreu ainda bebê. Assim, como a maioria dos partos realizados no meio rural
durante as décadas de 1960/70, Rosa pariu seus filhos com o auxílio da única parteira da
comunidade, Maria Gabriel.
A história contada por Rosa Marques também enfatiza o mundo do trabalho camponês
e reafirma a semelhança das trajetórias de vida das mulheres que compunham o Movimento
do Dia do Senhor, ao passo que afirma: ―[...] a minha vida toda foi trabalhando desde criança
né... porque quando era na época de prantar, eu ia prantar, nós ia prantar mais o papai e a
mamãe.‖153
Rosa Marques rememora os tipos de cultivo característicos de sua região, inclusive,
quase os mesmos cultivos das demais comunidades rurais que compunham o sertão das zonas
Norte e Noroeste do Ceará. Como situa em sua narrativa: ―[...] Feijão, milho, roça pra fazer
farinha, arroz, mamona, nessa época a gente tinha uma safra boa de mamona na serra verde,
algodão, era isso aí né‖.154 Nesse sentido, a experiência familiar de Rosa fornece um modelo
152
Ibid.
153
Entrevista realizada com Rosa Marques, em 30 de abril de 2010. Em Serra Verde, Meruoca – Ce.
154
Ibid.
101
diferente do praticado por Fausta Marques. De outro modo, a economia doméstica apreendida
por Rosa não incluía o costume de guardar a produção para consumo, como explica em sua
entrevista:
A gente vendia né, porque a farinha era pro consumo da gente né, a farinha
que fazia. Agora, a mamona, o algodão já era pra vender pra comprar as
outras coisas que a gente precisava em casa. Comprar roupa, comprar
calçado pra família, que as família lá era grande né.155
Era assim, o papai levava nós pro roçado, assim quando começava a chover.
Aí ele dizia assim: amanhã nós vamos prantar. Aí nós ia. Prantar o feijão,
prantar o milho, prantar o arroz, prantar mamona... e a roça. Porque o feijão
é assim né... sempre eu ia samiano (semeando) o feijão. Eu ia com a
vasilhinha do feijão samiano e a minha mãe mais meus outros irmãos, ia dois
cavando a cova que era meu pai e outro irmão, e os outro ia prantando né. E
aí, minha mãe ia butando o milho dentro da cova junto com o feijão e ia
entupindo a cova né. E assim, nós levava... Quando era pra prantar o arroz,
era assim aquele tantim que era pra prantar. Porque de tudo a gente já tinha
uma base né, que o pai ensinava a gente. 156
155
Ibid.
156
Ibid.
102
trabalho da roça, a gente já tinha nosso trabalho de fazer rede... A gente já cresceu foi
trabalhando‖. 157
Ao se ampliar o campo de visão, em maior escala, pode-se dizer que o trabalho
marcava a infância das crianças camponesas de meados do século XX no nordeste brasileiro,
que de modo geral, se dividiam entre a hora de trabalhar, hora de estudar e as poucas horas de
brincar. Na realidade de vida das crianças pobres do mundo rural, por vezes, o trabalho
também se misturava com o lazer. Algumas das camponesas do Movimento do Dia do
Senhor, quando entrevistadas, dizem de seu aprendizado da agricultura, mas também, que
aprenderam outros ofícios ainda crianças. Aprendiam a partir da curiosidade em observar suas
avós, mães, madrinhas ou irmãs mais velhas trabalhando com a palha, com a renda, com o
artesanato, etc. Aprendiam tais ofícios com o ímpeto da brincadeira, no entanto, levavam-nos
para a vida adulta assumindo-os como trabalho sério e produtivo, gerando renda para sua
sobrevivência.
Foi assim que aconteceu com Rosa Marques que conta como aprendeu o ofício de
fazer rede de algodão, ou seja, rede utilizada para dormir, muito comum na região nordeste do
Brasil, principalmente, no meio rural. Até os dias atuais, o costume de dormir em rede
permanece nessa região, tanto no campo como na cidade, independente de classe social.
Ressalta-se que com as transformações do capitalismo, a produção de rede de algodão passou
por transformações e se inseriu no processo de produção industrial, com significativo aumento
e diversificação da produção, circulação e venda.
Muito já se aprimorou na tecnologia de produção de rede desde o período em que
Rosa Marques aprendeu esse ofício com sua irmã, que tinha apenas doze anos na época, que
por sua vez, ―[...] começou a tecer rede, fazer rede com a cumade Maria... Assim, a minha
mãe urdia a rede e a minha irmã tecia e eu fazia trancilim, fazia minhada (meada) que a gente
pra tecer o fio tem que fazer a minhada (meada)‖.158 Nesse sentido, enfatiza-se o processo
artesanal em que era realizado o feitio da rede, de acordo com o praticado nos moldes da
indústria doméstica159. O processo de produção era separado por etapas, em que as várias
157
Ibid.
158
Ibid.
159
Nesse sentido, chama-se atenção para o fato de que mesmo com o avanço do sistema de fábrica, consolidado
com as diversas fases da Revolução Industrial na sociedade moderna, foi possível ainda se observar uma
produção em pequena escala, realizada aos moldes tradicionais como formas de resistência ao processo
industrial, principalmente, por aqueles sujeitos que não tiveram condições materiais e tecnológicas de se inserir
no novo modelo de produção, o que ocasionou a existência de uma produção artesanal em paralelo à produção
industrial que vem atravessando séculos. Nesse sentido, E. P. Thompson, ao refletir sobre os novos hábitos de
trabalho e sobre as mudanças na concepção de tempo no contexto de transição para sociedade industrial diz o
seguinte: ―[...] O sistema de trabalho em domicílio [putting-out sistem] exigia muita busca, transporte e espera de
materiais. O mau tempo podia prejudicar não só a agricultura, a construção e o transporte, mas também a
103
partes da rede eram produzidas por diversos elementos do grupo familiar. Como se observa
nos detalhes da explicação da artesã:
Era rede de algodão. Urdi sabe cuma é? É assim, é uns torno que fica no
chão, a gente bota no chão assim quatro torno e aí a gente vai urdi. Com
aquela minhada (meada) que a gente tinge e um novelo de fio, uma
urdideira. Aí a gente bota, é uma urdideira com fi branco e outra com fi que
é pintado. Aí ali a gente faz a pinta do jeito que a gente quer que a rede seja
ne... Primeiro a gente urde, depois que o fi tá pintado, a gente urde aí depois
é que vai botar no tear. No tear tem o pente, tem os liço, tem as lançadeiras
que é de jogar o fi pra tampar a rede, pra ficar bem tampadinha né, a rede. E
isso é as pernas trabalhando todo tempo, é as perna e os braço viu. Pois é, aí
depois que a gente urde vai botar no tear, depois que tira do tear, era que ia
fazer os trancilim, costurar, emendar três panos de rede, fazer a rede e depois
de fazer a rede vai passar mamucaba, da mamucaba é que vai butar os
punhos. Os punhos tem que trocer no carretel viu. E aí depois que bota os
punhos que a rede tá no ponto de dormir. A pessoa que era bem ligeira pra
trabalhar passava um mês pra fazer uma saca de rede. Agora eu, toda vida eu
demorei. Principalmente, depois que eu casei, eu ainda continuei fazendo
esse trabalho um bom tempo. Aí eu demorava, as vezes, passava quase dois
meses pra fazer 12 rede, 13 rede. Era um trabalho muito pesado, mas o ramo
de vida da gente era esse... era bem baratinha... Naquele tempo era réis.
(Risos) 160
O material para confecção das redes era comprado na cidade de Mucambo, mais
próximo da Serra Verde ou, quando se precisava de mais variedade, ia-se comprar em Sobral.
De Serra Verde até Mucambo, percorria-se aproximadamente 22 km. Ia-se a pé, pelas difíceis
condições de vida, faltava o dinheiro para passagem nos carros de horário, transporte mais
comum na época. Aliás, na narrativa de Rosa Marques, a caminhada de Serra Verde para
Mucambo era muito comum, inclusive para realização dos casamentos civis e religiosos e
outras festividades realizadas pela Igreja Católica, como as novenas. Dessa forma, as redes
eram confeccionadas e vendidas para compradores certos, visto que Rosa trabalhava por
encomenda, conforme conta:
As rede era assim. Eu mesma pegava uma saca de fi... aqui no Recreio tinha
seu Mundoca que eu tecia pra ele. Aí eu levava, eu pegava aquela saca de fi,
aí eu fazia 12 rede e aí eu recebia, ele me pagava pra mim fazer aquelas 12
rede. Aí aquele dinheiro era pra mim comprar roupa, comprar calçado. Tinha
época, quando meu pai não podia comprar o querosene eu comprava né. O
tecelagem, pois as peças prontas tinham de ser estendidas sobre a rama para secar. Quando examinamos cada
tarefa mais detalhadamente, ficamos surpresos com a multiplicidade de tarefas subsidiárias que o mesmo
trabalhador ou grupo de família devia realizar numa única choupana ou oficina.‖ (THOMPSON, p. 280)
160
Entrevista com Rosa Marques, em 30 de abril de 2010. Já citada.
104
trabalho meu e da minha irmã foi todo assim. O tempo que nós morava mais
os pais foi todo assim.161
161
Ibid.
105
questão de idades e variação na composição das famílias. Dessa forma, tivemos desde recém-
casadas com ou sem filhos, até mulheres com mais de cinquenta anos de casadas com dez ou
mais filhos‖. 162
Dentre as mulheres entrevistadas estão Fausta Marques, do Sítio Alegre, em
Morrinhos e Rosa Marques da Costa, de Serra Verde, Sobral. Nesse sentido, fazendo um
paralelo entre as entrevistas realizadas por Lídia, com Fausta e Rosa, quando o Movimento
ainda se encontrava em plena atividade e as entrevistas realizadas pela autora desta pesquisa,
mais de uma década depois do fim do Dia do Senhor, percebe-se que muito do que foi
desenvolvido e praticado como economia doméstica e como organização do trabalho feminino
permaneceu na prática dessas mulheres. Importante refletir que, passados mais de dez anos do
fim Movimento, com o distanciamento temporal e com o esfriamento de sua participação no
mesmo, tanto Fausta quanto Rosa (re)significaram suas experiências e atribuíram sentidos que
reafirmavam o vivido e o praticado no tempo do Movimento.
Nesse sentido, quando a pauta da entrevista realizada por Lídia Ferreira girou em torno
da organização familiar, Fausta Marques se colocava como sujeito, como senhora de suas
decisões e atitudes com relação à economia do lar. Ou seja, apresentou uma postura muito
semelhante com a que demonstrou na entrevista realizada para esta pesquisa. Nas palavras de
Fausta para Lídia, ela dizia: ―[...] Eu me sinto dona. Agora, não sei se é porque o Abdias vê
que eu não destruo. O que eu fizer, tá feito. Porque ele sabe que não tem perigo de eu vender a
não ser pra comprar o que é preciso‖. E continuava sua explicação, associando a organização
da família com o papel da mulher como fundamental para organização do trabalho familiar e
para o controle das despesas do lar camponês, por assim dizer:
162
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Pesquisa: Conversa com as Mulheres do Campo. Transcrição das
entrevistas realizadas por Lídia Ferreira. S/d. É válido lembrar que as reuniões comunitárias eram constantes e
serviam de preparação para os grandes encontros do Movimento, como os Encontrões, em julho, e os Encontros
de Esposas, em dezembro.
106
[...] Porque a gente vê como é que é o peso do que a gente precisa e a gente
acha que se a gente não cuidar, não pelejar, não vai não... porque a mulher é
que vê toda despesa da casa, porque ela vendo ela combina com o marido e
ele com ela, mas se a mulher não sabe nem quanto gasta de feijão por dia
[...].164
esposos, à criação dos filhos, à economia da casa, e aos problemas que marcavam a vida e o
trabalho no campo. Para usar uma expressão cara nos dias de hoje, através dos Encontros de
Esposas, essas mulheres iam experimentando o empoderamento feminino, como se observa
nas narrativas transcritas:
[...] a gente se sente por exemplo mais forte do que muitas outras mulheres
que a gente vê, as vezes até vizinha da gente. Eu conheço mulher na mesma
região que nós moramos que coitadinhas, são mulheres porque a gente olha e
vê que é uma mulherezinha, mas o jeito dela é todo de criança, de menina,
mandada e dominada ali tudo, não resolve nada, vai lá uma criatura atrás e
ela diz assim: ―o meu marido não tá em casa‖... Porque às vezes a mulher se
casa e fica no domínio do marido, assim, o marido é quem manda, é ele e tal,
e ela fica acabrunhada pra acolá, achando que é mesmo, concorda, aí ela
mesmo se amarra, ela fica no cabestro, mas se ela botar o pé na parede e
disser: ―não senhor, você manda eu mando também‖. Aí nunca mais ele vai
tomar os fôlego dela, se ela quiser ela faz por aí um jeitinho e guarda o
gênero [...].165
165
Ibid.
108
casa eu passei de mês sem comer feijão. Quando tava completando um mês
que nós não comia feijão, agora porque? O litro de feijão a 130 e cadê o
dinheiro? Um litro de feijão só dava pra um almoço. 166
[...] desde quando eu nasci que eu sabia que já tinha sabão de pião... pode
quebrar ele, tem uma casca grossa, descasca ele depois de quebrar. Ele tem
uma semente dentro, depois mói ele no moinho e compra a potássia e bota
nele. Uma lata de potássia dá pra 5 litros de pião quebrado. Dá 3 a três e mei
quilo de sabão.167
166
Ibid.
167
Ibid.
109
consideravelmente inferior ao preço pago pelo trabalho desenvolvido pelos seus maridos na
agricultura. A consciência de desvalorização do trabalho feminino era percebida pela
diferença concretizada nos preços de uma diária de trabalho168, conforme se explica:
Como se vem situando, a problemática do trabalho feminino teve muito destaque nas
discussões realizadas pelas mulheres do Movimento, tanto que marcou o Encontro de Esposas
do ano de 1976. Com o tema ―O trabalho da mulher‖, nesse Encontro diversas camponesas
vindas da região da ―serra, da praia e do sertão‖, como gostavam de dizer, se reuniram no
Centro de Treinamento de Sobral - Cetreso, localizado na serra da Meruoca, durante os dias
11, 12 e 13 de dezembro de 1976 a fim de refletir sobre seu saber-fazer, que era também sua
fonte de renda para sobrevivência. Trabalhadoras artesãs dos diversos tipos como renda, tricô,
croché, bordado, costura, chapéu e bolsa de palha tiveram oportunidade de debater em grupo
sobre ―o caminho do trabalho‖, conforme proposto pela Equipe de Coordenação naquele
Encontro de Esposas. 170
Nesse debate, a dura realidade do trabalho dessas mulheres foi sendo desvelada.
Segundo o Relatório de 1976, a primeira constatação do grupo foi que a mulher ―trabalha
muito e ganha pouco‖, seguida de outra constatação muito corriqueira ao senso comum da
171
sociedade capitalista, a de que a mulher ―[...] trabalha para dar ajuda aos maridos‖ .
Percebe-se que, mesmo as mulheres refletindo sobre a desvalorização do seu trabalho em
termos de preço pago à sua mão-de-obra e à sua mercadoria em comparação ao sexo oposto,
168
Nesse sentido, concorda-se com a socióloga Maria Aparecida de Moraes Silva que em sua pesquisa situa os
diversos tipos de trabalhos assumidos pelas mulheres do Vale do Jequitinhonha, nordeste de Minas Gerais,
quando afirma que ―[...] a divisão sexual do trabalho não é causa, mas reflexo o reflexo das assimetrias entre
homens e mulheres. A diminuição do valor da força de trabalho das mulheres é produzida por essas relações, que
não se restringem, como já foi frisado à esfera do trabalho. A mulher, e não somente o seu trabalho, ‗vale
menos‘‖. Cf.; SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Camponesas, fiandeiras, tecelãs, oleiras. In: NEVES, Delma
Pessanha; MEDEIROS, Leonilde Servolo de. (Orgs.) Mulheres camponesas: trabalho produtivo e engajamentos
políticos. Op. Cit. p. 169.
169
Arquivo Movimento do Dia do Senhor. Pesquisa: Conversa com as Mulheres do Campo. Transcrição das
entrevistas realizadas por Lídia Ferreira. S/d. Já citada.
170
Arquivo do Movimento do Dia do Senhor. Relatório Encontro de Esposas. Tema - O trabalho da mulher. Ano
1976.
171
Ibid.
110
172
Nesse sentido, insere-se a pesquisa de Maria Aparecida de Moraes Silva que estuda o protagonismo de
mulheres camponesas que cresceram e envelheceram transitando entre as esferas do trabalho produtivo e
reprodutivo e que, em sua grande maioria, mesmo quando exerciam as mesmas atividades que os homens, não
consideravam seu trabalho como fonte principal de renda, e sim como ―ajuda‖. Assim, a autora explica que ―[...]
Os dados revelam ainda que as mulheres participam de todas as tarefas do processo de trabalho agrícola, ou seja,
preparam a terra, plantam, carpem e colhem. Não há, para os diferentes produtos, uma divisão, às vezes
concebida como natural, em que os homens preparam a terra, as mulheres semeiam e ‗ajudam‘ na carpa e na
colheita‖. Cf.: SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Camponesas, fiandeiras, tecelãs, oleiras. In: NEVES, Delma
Pessanha; MEDEIROS, Leonilde Servolo de. (Orgs.) Mulheres camponesas: trabalho produtivo e engajamentos
políticos. Op. cit., p. 168.
173
Interessante situar a reflexão da socióloga Maria Cristina Masneschi, ao refletir sobre as relações de gênero e
de trabalho de pescadoras artesanais no estado do Pará, mas que se encaixa perfeitamente em qualquer análise
que se debruce sobre tais relações: ―Assim, a entrada de mulheres no mercado de trabalho não altera de per si as
injustiças de gênero, como mostraram tantos estudos feministas. Faz-se necessário, igualmente, repensar a
estruturação da economia e da sociedade como um todo. Sem isso, mantém-se a necessidade de compatibilização
entre trabalho e ciclos de vida familiar, as múltiplas jornadas, a despeito nos avanços nas políticas
previdenciárias em muitos países. E, desta maneira, persistem as dependências e os obstáculos maiores à
participação na vida pública‖. MANESCHY. Maria Cristina. Mulheres na pesca artesanal: trajetórias,
identidades e papéis em um porto pesqueiro no litoral do estado do Pará. In: NEVES, Delma Pessanha;
MEDEIROS, Leonilde Servolo de. (Orgs.) Mulheres camponesas: trabalho produtivo e engajamentos políticos.
Op. cit., p. 44
111
2.2. “Quando a mulher sai do mundo da cozinha dela e começa a participar das
coisas, então ela começa a ver o mundo diferente”: trabalho pastoral e atuação
política das camponesas do Dia do Senhor
Muitas das mulheres que participaram do Movimento do Dia do Senhor ao longo dos
seus quarenta anos de existência tiveram as trajetórias de vida e de trabalho muito
semelhantes, como se observou no tópico anterior. Por esse caminho, a partir da década de
174
Arquivo do Movimento do Dia do Senhor. Relatório Encontro de Esposas. Tema - O trabalho da mulher. Ano
1976. Op. cit.
112
Eu casei com Antoim Pires, aí eu vim morar no Salgado dos Pires, aí a gente
continuou a mesma luta. Aí o Antoim começou a participar cedo das
reuniões, e eu fiquei assim, mais parada. Aí um dia ele até me cobrou. Eu
digo: ―Antoim não me cobre, que no dia que eu tiver vontade de participar
eu entro. Eu não quero entrar por influência de ninguém. Quero entrar...
quando eu tiver vontade.‖ Ai assim eu fiz. 175
Mesmo com certa pressão, cobrança do marido para que participasse, ela se manteve
resistente até se convencer da importância e utilidade do Movimento, conforme explica no
motivo que a fez decidir se engajar: ―[...] porque eu vi que valia a pena a gente conversar, a
gente discutir os problemas da gente porque se a gente ficasse aí no cantim parado era muito
mais difícil. Vinha as coisas com mais facilidade se a gente fosse buscar‖. 176
Nesse sentido, com sua formação no Dia do Senhor, Rosa foi aprofundando sua
consciência sobre a força da ação coletiva. Se resistente no primeiro momento, no decorrer de
sua atuação, fez-se militante e sujeito político, saindo da inércia social em que vivia. Depois
de vivenciar o Movimento, Rosa não se limitava mais aos espaços da casa e do roçado. Como
ela conta: ―eu não sei parar mais assim, dentro de casa não. Eu gosto muito de ficar
conversando com alguém, ajudando assim, na maneira do que eu posso, vê se as pessoas se
acordam... muita gente ainda tá assim meio parado‖. 177
No caso de Fausta Marques, parece que a proposta de um encontro somente de
mulheres foi o diferencial que fez com que se entusiasmasse. Talvez, esse também tenha sido
o caso de muitas outras camponesas, esposas dos dirigentes, que se dispuseram a participar.
Em sua narrativa Fausta situa o trabalho de dirigente do esposo e o contato com os quadros de
coordenação do Movimento como fatores que contribuíram para seu ingresso. No entanto,
diferentemente de Rosa Pires, a pressão não vinha de seu esposo. Fausta recebeu um
―convite‖ de Maria Valnê Alves, idealizadora dos Encontros de Esposas. Portanto, pode-se
deduzir que a entrada de Fausta no Movimento se deu diretamente para compor o grupo de
esposas.
175
Entrevista com Rosa Pires, em 06/06/2009. Já citada.
176
Ibid.
177
Ibid.
114
Passados os anos, a memória de Fausta não consegue precisar a data exata em que
ingressou no Dia do Senhor. Da mesma forma, sua memória também trai a sequência dos
fatos, posto que começa a contar a sua participação a partir dos anos noventa, anos finais do
Movimento. Através da interferência de seu esposo, Abdias Marques, foi possível, balizar que
Fausta participou de muitos dos Encontros de Esposas, até chegar a participar do referido
Encontrão na serra da Meruoca. Durante a entrevista, algumas vezes, a própria Fausta recorria
à memória do esposo para confirmação de algum dado. Entre risos do casal, Fausta cede seu
lugar de fala para o marido, dizendo: ―[...] Se foi antes, eu não... Abdias está olhando muito
pra mim, pode ser que não foi em noventa e cinco [...].‖. 179 (Risos).
Por seu turno, Abdias, acostumado a ser o protagonista da história do Movimento,
situa a participação da esposa duas décadas antes do ano lembrado por ela: ―[...] Você deixou
muita coisa importante, você tá se esquecendo. O Encontro das Esposas no Acaraú, no setenta
e um, que foi o ano até que o cumpade Dedé morreu, cê tinha chegado da cumade Maria do
Encontro de Esposas. Já havia os Encontros zonais.‖180 Nesse sentido, o ano de 1971 marca o
178
Entrevista realizada com Maria Fausta Marques. Em 12 de outubro de 2010. Já citada.
179
Ibid.
180
Ibid.
115
terceiro ano de existência dos Encontros de Esposas. Assim, fica subentendido se esse havia
sido o primeiro Encontro de Fausta ou não. Mas, mesmo sem precisar a data de sua primeira
participação, Fausta relembrou sua emoção e percepção quando do primeiro Encontro: ―[...]
Rapaz, era uma doidiça tão grande de medo. Era um medo danado. Ninguém falava‖. 181
Por outro lado, não passa despercebida a relação da memória de Abdias com os fatos
que quebram a rotina do cotidiano, como a morte de um compadre seu. Sabe-se que a
memória também responde a uma ordenação das diferenciações de gênero, como nesse
exemplo claro. Grosso modo, os homens guardam uma memória vinculada a elementos do
trabalho, do político, etc., enquanto as mulheres recuperam uma memória ligada aos fatos do
cotidiano, do privado. Tanto um como outro, manifestam através da memória sexuada os
182
papéis sociais que historicamente desempenharam na sociedade. Do mesmo modo,
percebe-se que, nesse caso, mesmo intencionalmente, a memória masculina se sobrepôs à
memória feminina até o momento em que Abdias Marques se afastou da entrevista, saindo da
sala.
Coisa muito semelhante aconteceu durante a entrevista com Rosa Marques, de Serra
Verde, visto que durante toda conversa, seu esposo, Paulo Marques, esteve presente, também
interferindo em alguns momentos, subliminarmente com o intuito de ordenar a narrativa de
sua esposa, principalmente, nos momentos em que ela contava sobre a organização da
comunidade para enfrentar os conflitos de terra. Isso porque, talvez, tanto Abdias como Paulo
se achassem com mais conhecimento de causa sobre o Movimento. Talvez, porque
entendessem que as histórias sobre os conflitos de terra ou sobre a formação dos sindicatos,
que estavam no domínio da participação masculina, fossem mais importantes de serem
registradas do que as ―histórias‖ das mulheres. 183
181
Ibid.
182
Nesse sentido, Michelle Perrot realça as diferenciações em torno das memórias masculina e feminina,
entendo-as de forma sexuada. Posto que tanto, a memória sobre as mulheres foi controlada por discursos e
práticas oficiais que relegaram o feminino ao silêncio historiográfico, como também, a memória das mulheres se
resguardaram aos espaços e papéis assumidos durante os séculos. Portanto é uma memória resguardada a partir
do privado, do universo particular da casa, da família, dos objetos pessoais, dos diários, das datas que marcavam
os ritos de passagem, como casamento, nascimento dos filhos, etc. Como afirma Perrot, ―[...] Forma de relação
com o tempo e com o espaço, a memória, como a existência da qual ela é o prolongamento, é profundamente
sexuada‖. PERROT, Michelle. Práticas da Memória feminina. Revista Brasileira de História. São Paulo, vol.
09, n.19, ago/set 1989, p. 09-18. p. 18.
183
Nesse sentido, outro caso merece destaque. Trata-se da entrevista realizada com Maria Socorro Teixeira,
natural do município de Amontada. Em toda entrevista, seu esposo Luís Gonzaga Teixeira, também de
Amontada, esteve sentado ao lado da esposa, diga-se de passagem, devidamente preparado para ser entrevistado
também. Durante a narrativa de Socorro, volta e meia, ele perguntava: ―posso ajudar?‖ , até que em um
determinado momento, ele toma de assalto a fala da esposa e inicia sua própria narrativa sobre sua participação
nos diversos conflitos de terras que houve em sua comunidade e em comunidades vizinhas. Interessante nesse
fato, é que se percebeu uma ânsia de fala, seu Luís Gonzaga queria contar, registrar sua história e a História do
Movimento. Ele se preparou para isso, embora, a entrevista não tivesse sido marcada com ele. Não permitiu que
116
Nesse sentido, Rosa Marques, direciona sua narrativa para o Movimento do Dia do
Senhor a partir do alerta dado pelo esposo: ―[...] aí é onde entrou a parte do Movimento do
Dia do Senhor né, que descobriu que a terra era do trabalhador... a terra era de quem
trabalhava, não era de quem dizia que era dono não‖.184 Foi a partir desse mote que Rosa
situou seu ingresso no Movimento:
Então, como rememora Rosa, a partir desse encontro, os participantes retornaram para
Serra Verde com a missão de iniciar o trabalho pastoral do Movimento. Aí sim, a palavra
―comunidade‖ passava a ser forjada e a compor o vocabulário dos camponeses e das
camponesas. Eles passaram a entender o sentido vivo de ser e viver em comunidade a partir
das leituras do evangelho relacionando-as com a vida. Nesse sentido, Rosa Pires explica como
se deu a organização para a realização das primeiras celebrações do Dia do Senhor.
somente sua esposa fosse protagonista. Tanto que ele faz questão de iniciar se apresentando, da mesma forma
que se havia pedido para sua esposa. Sua narrativa foi muito emocionante, pois ao se lembrar de tantos conflitos,
inclusive que ocasionaram a morte de seus companheiros, seu Luís embargou a voz e chorou em muitos
momentos da entrevista. Entrevista realizada com Maria Socorro Teixeira e Luís Gonzaga Teixeira, na
comunidade de Gualdrapas, município de Trairi – Ce. Em 08 de abril de 2017.
184
Entrevista com Rosa Marques, em 30 de abril de 2010. Já citada.
185
Ibid.
186
Ibid.
117
Desse modo, a partir desse Encontro, Rosa e seu esposo ingressaram ao mesmo tempo
no Movimento e ambos assumiram conjuntamente esse trabalho de reunião e celebração dos
cultos dominicais em sua comunidade. Porém, quando o trabalho pastoral exigia que se
ausentassem de suas localidades, para participarem dos Encontrões ou dos Encontros de
Esposas, realizados no CETRESO, na serra da Meruoca ou na sede do Movimento, no
município de Itapipoca, o casal se organizava para cumprir com as atividades do Movimento,
como também, para manter o ritmo do trabalho agrícola e da rotina doméstica e familiar.
É importante ressaltar que o Movimento teve duas sedes, uma na Diocese de Sobral,
que era a própria casa que padre Albani Linhares morava. E outra, na Diocese de Itapipoca,
uma casa exclusivamente para as atividades do Dia do Senhor, doada pelo então bispo Dom
Paulo Pontes, que esteve à frente da Diocese durante os anos de 1973 a 1984. Nesse sentido,
Rosa explica que ―repartia as tarefas‖ com o marido ―[...] porque a gente já tinha a turma de
filho da gente. Nós quase não pudemos participar junto. Quando ele ia, e eu ficava com os
filho. Mas, também tinha oportunidade que eu ia e ele ficava‖.187
Sendo assim, observa-se que quase todos os casais que assumiam o trabalho pastoral
enfrentavam esse problema, pois tanto os esposos quanto as esposas realizavam tarefas
específicas, mas que eram entendidas com igual importância, pois a militância desses sujeitos
era fundamental para que se mantivesse acesa a chama do Movimento. O trabalho pastoral
realizado pelas esposas ainda era mais intenso, ao passo que elas participavam das
celebrações dominicais, juntamente com seus esposos e toda gente da comunidade. E, ao
mesmo tempo, também eram responsáveis pela realização das reuniões comunitárias com as
esposas, ou dos chamados Encontrinhos, que aconteciam mensalmente durante todo o ano,
preparando as mulheres para o Encontro de Esposas anual.
Desse modo, pressupõe-se que era mais difícil para as esposas participarem dos
Encontrões, embora fosse um espaço aberto para homens e mulheres. No entanto, com a
dificuldade para se ausentar de casa, as mulheres preferiam participar dos Encontros de
Esposas. Muito embora, se tenha registro da participação de algumas dessas esposas nos
Encontrões também, mas, em escala muito menor do que a participação dos seus maridos.
Isso fica mais claro na narrativa de Rosa Marques quando ela conta que:
187
Ibid.
118
o que eu mais participei foi dos Encontros de Esposas né. Aí nessa vez eu ia
mesmo, participava em cheio. (...) Era no mês de dezembro, que até nós
colocava, assim, que era as férias das mulher, das esposas. Era no mês de
dezembro, a gente passava três dias fora de casa, fora da família da gente,
sentada discutindo...na Meruoca. O Movimento do Dia do Senhor chegou
levar mulher, assim, esposa, até pra Itapipoca. (...) Teve uma época que se
juntou quais setenta mulher na Meruoca. Ficou lá o CETRESO... ficou
mesmo completo de toda comunidade. Era da praia, era da serra, era do
sertão, tinha esposa né.188
Devido à grande repercussão que foi tomando esses Encontros, justamente, por conta
do trabalho militante de algumas participantes, principalmente as que compunham a ―Nata‖,
muitas mulheres das comunidades rurais eram convidadas e se sentiam motivadas a participar
dos Encontrinhos e dos Encontros anuais. Às vezes, algumas mulheres simplesmente ouviam
falar dessas reuniões femininas em suas comunidades e, tomadas pela curiosidade ou mesmo,
movidas por uma vontade de resolução para seus problemas se ofereciam para participar.
Com o tempo, esses Encontros de Esposas foram se abrindo cada vez mais, inclusive, para
esposas casadas com homens que nem participavam do Movimento, como também, para
mulheres de todos os tipos, até mesmo solteiras, o que fez com que, em determinada altura,
fosse alterado o nome original para Encontros de Mulheres, ampliando o sentido da
organização feminina do Movimento.
Por outro lado, desenvolvia-se um trânsito muito intenso de mulheres e, ao mesmo
tempo, muito irregular, pois nem se podia considerá-las como integrantes, visto que iam uma
ou duas reuniões comunitárias, um ou outro Encontro de Esposas anual. Mas, o que era
considerado importante era que a mensagem do Movimento do Dia do Senhor estava se
espalhando e que o trabalho pastoral feminino estava se mantendo com fôlego nas
comunidades.
Diante da repercussão que os Encontros de Esposas foram atingindo, Rosa Marques
relembra uma questão importante que redirecionou o sentido original desses Encontros. Como
ela explica:
Mas teve assim, uma época que surgiu uma dúvida, cê sabe por que? Porque
tinha mulher que queria ir participar do Movimento do Dia do Senhor, mas
ela não era, assim, uma esposa. Esta entendendo, ela não era casada... era
mãe solteira né. Aí teve esse ponto aí que foi preciso conversar também em
cima né... aí surgiu, pois agora não vamos mais fazer Encontro de Esposa e
188
Ibid.
119
sim de mulheres. Aí tanto faz, ter o esposo, ser viúva, ser solteira, é aberto o
Encontro pras mulheres. Aí eu sei ... que quase todos os anos eu ia.189
189
Ibid.
120
Vida‖, presente no Movimento. É valido situar a narrativa de Rita sobre o impacto que sentiu
logo com a primeira celebração que participou. Dessa celebração, ela ressalta a dinâmica
utilizada por padre Albani Linhares com o intuito de suscitar entre os camponeses uma
reflexão em torno das desigualdades sociais.
[...] Marcou uma reunião aqui na Juritianha, aí veio ele, o padre Albani e a
Irmã Maria Alice vieram. Quando eles chegaram, fizeram uma reunião e o
padre é muito dinâmico né? Ele foi e fez uma dinâmica assim: fez um bolo,
dizendo ele. Quando acaba, ele mandou que todo mundo fosse pegar desse
bolo pra comer. Eu achei tanta graça disso aí!(...) Aí, uma parte avançaram e
tiraram tudim e os outros ficaram sem nada. Ele foi e disse: ―Taí, uns tiraram
muito, outros tiraram pouco e outros não tiraram nada‖. ―E aí o que vocês
acham disso aí? Isso é pra ser assim, Deus quer desse jeito?‖... Aí ele foi e
disse: ―Eu vou fazer uma pergunta a vocês e vou esperar o escrito‖. ―Se
Deus quer assim, a desigualdade, uns tendo e outros não, ou se Deus quer
que seja tudo igual, como é que é?‖. (...) e eu fiquei pensando... conversando
com Bernardo aqui, é pra ser desigual mesmo, que nossos dedos não são
iguais e desde que nós se conhecemo que tem os ricos e os pobres, os
analfabetos e os sábios, essa coisa toda... Mas não é, não porque Deus é pai.
Se Deus é pai como é que ele quer nós desigual desse jeito... Aí fiz um
bilhete e mandei pra ele... Aí pronto, desse dia em diante, ele começou a me
chamar pras reuniões, eu e Bernardo, nós comecemo, engajemo no Dia do
Senhor. 190
Talvez, o mais interessante nessa história seja a repercussão que a celebração causou
em algumas pessoas de Juritianha. O simples fato de ter um padre e uma freira realizando uma
dinâmica com o povo na comunidade já era incomum, visto a postura hierárquica
característica dos religiosos, antes do Concílio Vaticano II (1962-1965). Em alguns casos,
mesmo depois do Concílio, isso permaneceu. Outro ponto inusitado era o estímulo dado para
os camponeses pensar, refletir e responder, por escrito, à pergunta geradora, bem aos moldes
da pedagogia popular.
Nesse sentido, o fato de pensar e escrever, refletir sobre o que já estava posto na
sociedade era extraordinário, pois isso não acontecia na rotina ordinária da vida no campo.
Então, a partir da celebração, isso passou a repercutir nas conversas familiares: dos casais,
entre pais e filhos, etc. De certa forma, em maior ou em menor medida, começou a mexer com
a consciência das pessoas. Por tudo isso, Rita e seu esposo engajaram-se no Dia do Senhor.
Naturalmente, Rita de Cássia também assumiu o trabalho de base com as mulheres
dessas comunidades. Sua história revela uma mulher militante, abnegada e incansável. É
190
Entrevista realizada com Rita de Cássia, em Juritianha, Acaraú – Ce. Em 01 de abril de 2010.
121
191
McCABE. Maria Alice. História na Mão. Algumas camponesas contam como se conscientizaram. (Uma
História Oral).1994. Produção Independente, financiado pela Congregação Norte-americana de Notre Dame, a
qual Maria Alice era congregada.
122
Itarema. É importante dizer que esse povo era de etnia indígena Tremembé. Os Tremembé até
hoje ocupam as localidades de Varjota e Almofala, em Itarema e outras localidades,
pertencentes aos municípios de Itapipoca e de Acaraú. Varjota fazia parte de uma região
praiana que, no início dos anos 1980 começou a ser alvo de especulação imobiliária de
empresas produtoras de derivados do coco, devido suas terras férteis para plantação desse
produto.
Tal especulação fez com que os proprietários das terras fossem negociando sua venda
para a firma Ducoco, que em 1979 plantou seu primeiro coqueiral e em 1982 inaugurou sua
primeira fábrica, em Itapipoca192. Consequentemente, esse fato fazia com que muitos
camponeses, que há cinco gerações moravam naquela terra, fossem concretamente ameaçados
de expulsão. Foi exatamente por conta desse problema que os moradores procuraram Rita, em
busca de ajuda. Em entrevista com Maria Alice MacCabe, Rita de Cássia contou como se deu
o primeiro contato com o povo de Varjota:
E deixa ver que através das cartas que a gente botava no programa, tinha um
povo mais na frente, que era o povo de Varjota. Eles ouviram falar no nome
da gente: que a gente andava reunindo assim, conversando aquilo que tinha
vontade de conversar e o que sentia... Desejaram encontrar com a gente...
Um dia eles souberam que a gente ia para Almofala. E eles mandaram dizer
que iam encontrar com a gente lá e nós ficamos aguardando... E na Almofala
a gente ia pra igreja fazer a Celebração e depois da Celebração, a reunião, a
tarde... agora, o povo de Almofala era um pessoal muito difícil... fraco. E
nesse dia, (até achei graça...) nós ia nós três, mas lá o pessoal de Almofala
não assistia. Veio pouca gente à celebração. Então, Bernardo e Manuel
Pedro queriam voltar para Juritianha. Eu digo: ―Rapaz, a gente já veio! Eu
vou ficar. Vocês podem voltar, mas eu vou ficar!‖. A gente tava também
maginando se o pessoal de Varjota viesse... que tinha prometido de vir se
encontrar com a gente... E eles: ―...eles lá vem... nós vamos embora‖. Aí,
eles foram e eu fiquei lá sozinha. 193
192
A Ducoco está há mais de 35 anos no litoral do Ceará, habitat natural do coco. Atualmente, é constituída por
7 fazendas, duas fábricas, 3 centros de distribuição, um escritório central e 1.500 funcionários. Atua na
distribuição dos produtos derivados do coco por todo o Brasil, sendo também, uma das maiores exportadoras de
água de coco. Informações retiradas do site da empresa: www.ducoco.com.br. Acesso em: 28 agost. 2018.
193
McCABE. Maria Alice. História na Mão. Algumas camponesas contam como se conscientizaram. Op. Cit.
p. 74.
123
O que revela ainda mais o compromisso missionário de Rita, visto que, mesmo reconhecendo
esse povo como ―fraco‖, insistia em fazer as visitas comunitárias e realizar as celebrações do
Movimento, mesmo para pequenos públicos. Foi graças a essa insistência que Rita finalmente
conheceu o pessoal de Varjota, seis homens foram ao seu encontro em Almofala, conforme
tinham prometido. A esperança era que aquela mulher pudesse ajuda-los a resolver o
problema de terra que se acirrava em Varjota, com a chegada da firma Ducoco. Rita, então, se
comprometeu em visitar a localidade e ajudar na organização do povo. Conforme segue sua
narrativa:
E no outro mês na frente era pra ir pra Varjota. Aí no outro mês eu fui
caminhando pra Varjota, atravessando aquele lagamar, com uma lama...
chega botava o pé e não podia tirar. Era uma dificuldade muito grande! Aí,
chegamos lá... e olhe, era tanta gente nessa reunião! Todo mundo queria
participar na reunião... aí começram a contar os problemas das terras...e a
gente pensava que num era possível uma coisa dessas. Porque a gente já
sabia que nós também tinha direito no mundo. Nós tinha os livrinhos e os
papéis, os cantos e alguma história que conta das lutas das outras
Comunidades. E a gente, nas reuniões em outras Comunidades ouvimos
como eles faziam, como enfrentavam esses problemas da terra, pra ter acesso
ao lugar onde moram. Ai a gente passava tudo isso pra eles, para o povo de
Varjota, na reunião. 194
194
Ibid., p. 77.
195
Ibid., p. 84.
124
quisesse explicitar seu protagonismo nesse trabalho. De fato, em alguns momentos, seus
companheiros também atuaram sozinhos, no entanto, o que chama a atenção é o fato de que
uma mulher camponesa sair de casa, sem a companhia do marido ou dos filhos, ou ainda, de
algum homem que pudesse lhe garantir proteção, para realizar trabalho de comunidade,
discutir assuntos como libertação e luta pela terra, hospedar-se em casas de famílias
desconhecidas e, ainda, andar na garupa de cavalos com homens que não eram seus parentes.
Tudo isso era inédito. Não só inédito, como revolucionário para a época e o lugar que Rita
vivia.
Tanto é que as convenções sociais e morais não passavam despercebidas a ela. Isso
fica evidente quando conta de sua aflição ao retornar de Varjota para Almofala, quando se
encerrava a semana de trabalho. Devido ao difícil acesso à localidade, ou se ia a pé ou a
cavalo. Sua ida tinha sido feita de forma solitária e a pé. Agora, seu retorno ficava a cargo da
comunidade. Seu Agostinho, um dos líderes da aldeia Tremembé de Varjota e esposo de
Conceição, assumiu a obrigação.
Ai, ele selou o cavalo e aí, eu fiquei pensando assim só dentro de mim
(parece uma certa timidez, né?): ―Mas eu ir com este homem uma distância
tão grande nos matos, nenhum povoado no meio! Sei lá, meu Deus! Aí, de
repente, pr‘acabar de ficar eu mais tímida, eu vi ele preparando uma faca pra
botar nos quarto. Porque os camponeses sempre, eles andam armados com
um ferro. (...) Ah! Mas aí, num prestou não... quando eu vi a faca... esse
homem com a faca no quarto, eu fiquei com muito medo... eu fiquei assim
nervosa. Pensei: ―eu não posso desistir de ir... mas eu vou com muito
medo‖... Aí montei no cavalo. Saí com ele, montada na garupa do cavalo e
fomos pra Almofala e eu imaginando que , se encontrasse alguém... que o
povo naquela época ousava que uma mulher não podia viajar com homem
assim. A gente ficava assim, pensando... Quando chegamos em Almofala, já
tinha umas pessoas me esperando pra uma Celebração. E ficaram assim tudo
olhando pra mim, perguntando donde era que eu vinha com aquele homem.
E eu falei: ―Ora, venho lá da Varjota. É uma pessoa amiga que veio comigo.
A gente trabalha juntos e ele veio me deixar‖. Pronto, tudo bem! Aí, eu fiz a
Celebração e tudo [...].196
Desse modo, Rita tinha consciência de seu comportamento subversivo para a cultura
camponesa de então, e embora sentisse o peso da tradição, não se submetia. Pelo contrário,
quebrava tabus e reinventava os papéis assumidos pelas mulheres. Do papel de dona de casa,
Rita de Cassia havia se liberado relativamente, ao passo que seus filhos e filhas, todos já
crescidos, assumiam as tarefas domésticas e cuidavam de si mesmos. Portanto, dadas às
196
Ibid., p. 79-80.
125
Eu toda vida achei isso ruim. Não adianta eu mentir. Mas era assim, mas eu
aceitava porque eu toda vida fui comprado, como dizia o Zé Vicente, por
cem grama de sorriso, eu era. E a minha mulher, ela fazia essas coisas, mas
ela me pedia com aquele jeitinho carinhosos de me pedir, e eu liberava. Cabá
(acabar) eu ia sofrer. Eu não gostava de tá apartado. A minha luta, as vez, era
só. A dela era prum lado, a minha era pra outro. Ela com mulher e eu com os
homem. Mas aceitei, achando ruim mas aceitei. Total liberdade. Tanto ela
tinha, como eu tinha também.197
197
Entrevista realizada com Bernardo da Costa Ferreira em 13 de novembro de 2018
126
social que, por muitas vezes, teve que sobrepor o trabalho político-pastoral às questões de
ordem íntima e familiar:
Ah bom, naquele tempo a minha própria família achava aquilo feio. Aquilo
foi uma coisa que eu fiz, mas os meus irmão são muito machão, muito mais
do que eu, que eu nunca fui, graças a Deus. Aquilo eu nem contava a minha
família, aquela nossa luta. Depois foi que andou, um irmão meu lá do
Maranhão... chegou: ‗cumpade tu tem cuidado na tua vida, cumpade‘... isso
dai eu nem contava a eles, eles não conhecia a luta, não valorizava. 198
198
Ibid.
199
Ibid.
127
Com isso Nazaré Flor foi uma mulher que logo percebeu que para transformar a
realidade social que lhe cercava precisava ocupar posições de destaque em muitas das
instâncias de poder. Portanto, durante a década de 1990 candidatou-se à presidência do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais que, embora não tendo sido eleita, conseguiu demarcar
seu espaço e construir uma trajetória de participação política, representando tanto a classe
camponesa como, mais especificamente, as mulheres camponesas. Com o respaldo de sua
trajetória, ainda nos anos 1990 Nazaré conquistou a presidência da Cooperativa de Produção
Agropecuária e Comercialização do Imóvel Maceió – COPAIM. Tal Cooperativa incorporava
cerca de quinhentas famílias numa terra comunitária de 5.848 hectares. Principalmente, por
ser mulher, Nazaré explica a importância de ter concorrido ao cargo de presidente do
Sindicato e de assumir o cargo de presidente da COPAIM:
200
McCABE, p. 59.
201
Ibid., p. 64.
128
202
McCABE, p. 64.
129
sentido, Nazaré situa a força do trabalho coletivo das mulheres e se coloca como relatora dos
documentos, despontando como uma das principais articuladoras dessa luta:
[...] os documentos que foram feitos pra enviar às entidades, todos foram
feitos por mulheres, nenhum homem nunca fez nenhum. Todos, todos... por
exemplo, não estou contando pra me exibir, mas nenhum documento passou,
sem ser feito pelas minhas mãos... E as ideias das mulheres? ... os palpites
delas?... muitas orientações?... e a gente juntas fazia, passava à limpa, iam
nas Comunidades, gastava tempo assim, pra fazer os abaixo-assinados. E
quando era pra juntar dinheiro pra viagem ao Incra ou outra entidade, então
as mulheres assumiam muita coisa mesmo! O peso da luta foi das mulheres.
203
Diante disso, pode-se afirmar que com a luta pela terra Nazaré fortaleceu sua
militância pastoral, mas também, se fez uma liderança de classe e de gênero. Sua participação
na eleição do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, na COPAIM e no Movimento de Mulheres
Trabalhadoras do Nordeste se deu posteriormente à luta pela terra. Talvez, a legitimação de
Nazaré Flor como uma liderança e articuladora dessa luta seja confirmada por sua
participação em um debate na rádio diocesana de Itapipoca no ano de 1985. Promovido pelo
então bispo dom Benedito de Albuquerque, que presidiu a Diocese de 1985 a 2005, o debate
objetivava atenuar o conflito e ouvir as partes envolvidas. Nazaré foi a pessoa escolhida pelos
camponeses para lhes representar, uma representação legitimamente acatada por todos os
homens e as mulheres da comunidade. Tal debate será melhor explorado no terceiro capítulo,
que abordará a questão da terra.
Nesse sentido, o trabalho pastoral e político realizado pelas camponesas do Dia do
Senhor pode ser entendido como um divisor de águas para a formação de uma consciência de
classe e de gênero, o que foi se consolidando com a participação intensa de algumas mulheres
que compunham a ―Nata‖ dos grupos de esposas e assumiam o mesmo patamar que seus
maridos e demais dirigentes no Movimento.
203
Ibid, p. 66.
130
trabalhos de cunho produtivo, gerando uma renda fundamental para o sustento de suas
famílias e para uma relativa independência dos maridos. Um exemplo disso é a experiência de
Rita de Cássia de Sousa Ferreira que fundou a Associação Comunitária das Mulheres
Rendeiras de Bilro de Juritianha, em 1988. Juritianha é uma comunidade rural do município
de Acaraú.
Assim como muitas mulheres de sua região, Rita aprendeu desde cedo, a lida com a
agricultura, como também, a arte de fazer renda. Esse saber-fazer era ensinado de geração em
geração, de modo que Rita aprendeu com sua mãe e avó e o repassou para suas filhas
formando, assim, uma tradicional família de rendeiras de bilro. Tanto Rita, como sua irmã,
Joana Maria de Sousa Silva, compartilharam o trabalho com a renda, como também, as
experiências pastorais do Movimento do Dia do Senhor. Ambas se tornaram protagonistas dos
Encontros de Esposas e da Associação Comunitária das Mulheres Rendeiras de Bilro. Sabe-
se que o surgimento da renda de bilro remonta às lendas de origem italiana e flamenga que,
com algumas variações:
Conta-se que em Veneza, certo pescador partiu para uma longa viagem aos
mares orientais. Mas antes da partida, confiara sua noiva um ramo de coral
delicadamente cortado. Para encher o vácuo de sua solidão infinda, teria a
jovem tentado imitar com a agulha, num rendilhado linho, a preciosa
lembrança. Entretanto não o conseguia porque a complexidade do desenho
dificultava-lhe a tarefa. Então, tomando os fios entre as próprias mãos,
entrelaçou-os e os dispôs de tal maneira que teceu, sem o auxílio da agulha,
as malhas e o desenho ornamental. O amor e a saudade teriam produzido a
renda maravilhosa. 204
Por outro lado, em termos de registro histórico, também aparece referências à renda de
bilro em alguns documentos que remontam às transações comerciais da Europa Moderna.
Desse modo:
204
MENDONÇA, Maria Luiza Pinto de. Algumas Considerações sobre Rendas e Rendeiras do Nordeste.
Separata do Boletim do Instituto de Antropologia da Universidade do Ceará, 1961, p.85 Apud
DRUMOND, Terezinha Bandeira Pimentel. Tecendo vidas: cultura e trabalho das rendeiras da Prainha de
Aquiraz – Ce. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2006, p. 57. (Mestrado em História)
205
Ibid., p. 57.
131
[...] porque a gente trabalhava nessa época e vendia o povo daqui mesmo
comprava e iam vender no Acaraú, em Fortaleza. E eles compravam aqui
bem baratim e a gente não tinha nem um sentido, não tirava nem um
pouquim de resultado. Era só trabalhando, pagando a linha e o nosso
trabalho era só pra isso: pra comprar a linha e pagar. [...] Nós trabalhava
praticamente de graça. 206
206
Entrevista realizada com Joana Maria de Sousa Silva no dia 13 de novembro de 2018, em Juritianha, Acaraú.
Arquivo da autora.
132
Em sua narrativa, a filha de Rita relembrou a insatisfação de sua mãe com a atuação
desses atravessadores, o que veio a contribuir para que Rita despertasse para novas formas de
comercialização de sua renda. Os questionamentos sobre o papel do atravessador vinha
inclusive do convívio direto com um deles: seu cunhado José Gonçalves, irmão de seu esposo
Bernardo. Segundo Ana Rosa: ―[...] Ficava assim aquela coisa muito manipulada. E a minha
mãe sempre se indignou com essas coisas e foi vendo, porque ela acompanhou de perto a
trajetória de um que era cunhado dela. Aí ela viu que ele ganhava bastante e as rendeiras
muito pouco‖. 207
A própria Ana Rosa, ainda menina, viu suas primeiras rendas serem levadas pelo tio para
serem vendidas em Fortaleza. Entre risos, conta que: ―[...] as filhas tinham que trabalhar junto
com a mãe, porque a mãe sentava e butava as filhas encostadas e tinham que fazer, querendo
208
ou não‖ . Em troca, por sua produção, Ana Rosa recebia uma pequena quantia, o que
geralmente era destinada para compra de um tecido para fazer uma roupa. Aliás, para as
rendeiras de Juritianha, na maioria das vezes, o vestuário e os remédios para a família eram
garantidos com o pouco dinheiro que ganhavam com a renda.
Dona Joana Maria ressalta que o dinheiro que entrava em sua casa era advindo do seu
trabalho com a renda: ―[...] nessa época, quem pegava esse trocadinho, era eu...‖, pois seu
esposo dificilmente conseguia o dinheiro em espécie, já que se dividia entre o trabalho com a
agricultura e com a pesca, conseguindo alimentar a família com muita dificuldade,
simplesmente com o que pescava ou colhia. A partir da análise de Joana, pode-se perceber
que a condição de seu esposo era comum aos demais homens da comunidade, devido às
difíceis condições de vida e escassas oportunidades de trabalho em Juritianha. Então, pode-se
sugerir que as rendeiras eram as mulheres do dinheiro, ainda que esse dinheiro fosse
minguado. Conforme explica Joana:
[...] porque aqui naquela época era uma época muito atrasada. Ninguém
tinha nada de dinheiro, aqui não funcionava nada. O homem trabalhava na
agricultura. Ele só trabalhava plantando feijão e roça e essas coisas para
butar essas coisas dentro de casa pra não faltar. E a não ser, também pescava
de tarrafa pra trazer o peixinho pra misturar o feijão. Então, não entrava
dinheiro. O dinheiro que a gente pegava era esse pouquinho da renda e era
uma coisa muito útil porque era o que entrava, a gente precisa de dinheiro
em casa, pra tudo em quanto. As vez, pra comprar um remédio, as vez pra
207
Entrevista realizada com Ana Rosa Ferreira da Silveira em 13 de novembro de 2018, em Juritianha Acaraú.
Arquivo da autora.
208
Ibid.
133
comprar uma roupa, um calçado, uma coisa pra um filho, pra outro. Até um
alimento. Então, eu sei que valeu. 209
De certo modo, antes da fundação da Associação, o trabalho das rendeiras era realizado
individualmente, em suas próprias casas, de acordo com o tempo que cada uma possuía
disponível, com seu próprio material. Quando muito, podiam contar com a solidariedade entre
si na ocasião de tomar emprestado uma linha, ou uma peça já pronta para uma venda de
urgência.
Por conseguinte, a venda dessa renda dependia da boa vontade e dos preços barganhados
pelos atravessadores, ou pelos eventuais clientes que compravam diretamente da rendeira.
Nesse modelo, marcado pela pessoalidade nas relações comerciais, o produto e o trabalho da
rendeira não alcançava o devido valor, pois estava sempre sendo relativizado pelo comprador
que oferecia um preço muito inferior ao que era pedido pelas rendeiras. Numa relação de
comércio informal, na maioria das vezes, essas rendeiras saiam prejudicadas, pois se
deixavam levar pela necessidade imediata de vender seus produtos, ao passo que precisavam
de dinheiro para as necessidades de primeira ordem como, inclusive, comprar/pagar a linha.
De acordo com as rendeiras de Juritianha, a linha fina da marca Stella era mais utilizada
na época, e os principais produtos eram os ―Barrados‖ e os ―Bicos estreitos‖. Não tinham
tanta variedade na produção. Como as próprias rendeiras produziam também seus
instrumentos de trabalho, a almofada e os espinhos eram improvisados com o que dispunham
no ambiente natural. Portanto, assim como ainda hoje, os espinhos mais utilizados eram os de
mandacaru, popularmente chamados de espinhos cardeiros, encontrados no lagamar, região
próxima a Juritianha. Segundo as memórias das rendeiras, muitas vezes, elas iam a pé e em
grupo, ―caçar‖ espinhos para fazer a renda.
Atualmente, com a diversificação da produção, muitas peças são confeccionadas com
linha grossa, sendo a marca Clara preferida. Os espinhos de mandacaru não são mais
encontrados no Lagamar e, sim, numa localidade chamada Sopé, pertencente ao município de
Santana do Acaraú. Uma distancia de 71,3 km separa os municípios de Acaraú e Santana do
Acaraú, o que faz com que algumas rendeiras fretem um carro para realizarem a coleta dos
espinhos. Dessa forma, Ana Rosa que, desde menina, acompanhou todo o processo de
organização e fortalecimento das rendeiras situa o melhoramento da produção da renda com o
209
Entrevista realizada com Joana Maria de Sousa Silva, já citada.
134
passar do tempo, o que se pode inferir que está diretamente relacionado ao advento da
Associação de Rendeiras de Juritianha. Nas palavras de Ana Rosa:
Na época, elas faziam só barrados e bicos estreitos. Com o tempo, isso foi
melhorando. Hoje a gente tem uma variedade muito grande. Fazemos roupa,
toalha de mesa, jogo americano, peças maiores, toalhas grande. Enfim,
qualquer tipo de peça, hoje as rendeiras já fazem. Na época, não tinha. 210
210
Entrevista com Ana Rosa, já citada.
211
A Associação dos Artesãos do Nordeste – ASSOCIARTE é uma Associação de natureza jurídica de direito
privado, sem fins lucrativos, com sede e foro na cidade de Olinda, Estado de Pernambuco, com área de ação em
todos os Estados do Nordeste regendo-se pelas regras legais incidentes e pelo presente Estatuto. (Estatuto da
Associação dos Artesãos do Nordeste – ASSOCIARTE. S/d. Arquivo da Associação Comunitária das Mulheres
Rendeiras de Bilro de Juritianha, sob posse de Ana Rosa Ferreira da Silveira)
135
Conjectura-se que, essa ―cartilhazinha‖ a qual Rita se refere, possa ser o Estatuto da
Associação dos Artesãos do Nordeste. O intuito de uma próxima reunião era para que as
rendeiras tivessem um tempo para pensar e decidir se aceitariam se incorporar à
ASSOCIARTE. A reunião seguinte contou com a participação de muito mais mulheres, pois
com a oportunidade de negócio trazida pelo pastor Davi, quase todas as rendeiras se
animaram em participar da reunião e conhecer melhor a proposta. As rendeiras que não
participaram da primeira reunião, aceitaram o convite de Rita para a segunda e, a partir de
então, continuaram a se reunir com frequência, pois aquela oportunidade representava uma
melhoria nas suas condições de trabalho e de vida. A importância da ASSOCIARTE para o
início do processo associativo das rendeiras está presente na memória de todas as mulheres
envolvidas, inclusive, sendo uma história contada e recontada para suas filhas e netas até os
dias de hoje.
Nesse sentido, Joana Maria, irmã de Rita, também elabora sua narrativa apontando a
ASSOCIARTE como o primeiro e principal meio que orientou a organização das rendeiras de
Juritanha. Pode-se dizer que foi através das reuniões com pastor Davi que essas mulheres
ouviram pela primeira vez a palavra Associação e aprenderam como funcionava e quais os
benefícios de estarem associadas. Dessa forma, no trecho abaixo Joana relembra sua
participação nas primeiras reuniões de rendeiras e o processo que levou até a fundação da
própria Associação de Mulheres Rendeiras de Bilros de Juritianha.
212
Entrevista com Rita de Cássia de Sousa Ferreira realizada em 01 de abril de 2010, em Juritianha, Acaraú.
(Arquivo da autora)
136
A gente entrou na Associação foi um senhor que vei de Recife. O nome dele
era pastor Davi... ele vei aqui na Juritianha e fez um tipo de uma
reuniãozinha com a minha irmã, com a Rita... aí então, eu moro um pouco
mais afastado, nesse dia eu não participei. Mas, ele deixou umas revista e ela
se interessou muito sobre isso. Que ele falou muito bem, assim com dó que
nós trabalhava muito. A gente trabalhava só assim com rendinha de dedim, a
rendinha bem fininha, bem estreitinha. Então, ele disse que tinha como
aumentar, como fazer uma renda larga, fazer outros tipos de renda e dá mais
resultado... Ai, então, ele fez essa reunião muito importante. A minha irmã
ficou muito empolgada e convidou mais amigas e foi convidando e
participou pra mim também e eu não perdi mais uma reunião. Então, a gente
se organizou conseguiu uma vaquinha e ela foi pra Recife com essa cartilha
que ele deu. Ela foi pra Recife e lá conseguiu organizar tudo e ficou lá como
registrada aqui a nossa Associação começou a participar de lá também e aí a
gente começou trabalhar levando pra lá [...]. 213
Depois dessas reuniões, as rendeiras confiaram sua renda ao pastor Davi, que retornou à
Olinda levando a mercadoria para vender na ASSOCIARTE. Devido ao isolamento da
comunidade de Juritianha e à dificuldade de comunicação no meio rural, ainda presente na
década de 1980, essas mulheres ficaram meses sem receber notícias. A narrativa de Joana
recupera a solução encontrada por Rita para resolver o problema: viajar para Olinda,
perseguindo o endereço deixado pelo pastor.
Essa viagem de Rita demostra dois aspectos importantes no processo de organização das
rendeiras. Primeiro, a dificuldade financeira, pois na realidade que viviam essas mulheres não
se tinha dinheiro para nada, quiçá para comprar passagens de ônibus para uma viagem
relativamente longa, portanto mais cara, tendo em vista o percurso interestadual. Segundo,
uma estratégia que ressalta a criatividade e a força do coletivo, que foi a ideia de fazer uma
―vaquinha‖, termo popularmente usado para definir coleta de dinheiro, representando uma
prática de resolver os problemas coletivamente.
Outro ponto que merece atenção no fato dessa viagem é a coragem de Rita, uma mulher
que até então só tinha viajado para lugares próximos de seu município, sendo a viagem mais
distante àquela que fazia para Sobral, quando das atividades do Movimento do Dia do Senhor.
De fato, essa viagem significou muito para Rita e para as demais rendeiras, todas elas
temerosas com os riscos que Rita de Cássia corria ao se aventurar em uma viagem ao
desconhecido, sem nunca ter estado numa cidade grande, desconhecendo completamente os
códigos do mundo urbano. No entanto, foi a partir dessa viagem que Rita conheceu a sede da
213
Entrevista realizada com Joana Maria de Sousa Silva, já citada.
137
Mais recentemente, no ano de 2010, a memória de Rita reelaborou essa história quando
de sua entrevista para a autora desta pesquisa. Alguns elementos permaneceram em sua
narrativa como: a consciência de que através de uma Associação as rendeiras garantiriam seus
direitos, como também, reapareceu a necessidade de se percorrer os trâmites legais para
garantir oficialidade à Associação das Rendeiras de Juritianha, com a criação do Estatuto e da
Diretoria. Como elemento novo, apareceu o objetivo de Rita e demais rendeiras em demarcar
total independência de seu trabalho e de sua Associação, distanciando-se dos interesses
políticos, tendo em vista que em regiões muito pequenas, a política partidária era e é uma
214
A Associação Comunitária das Mulheres Rendeiras de Bilro de Juritianha aparece na Base de Dados do
Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica do Brasil, com registro CNPJ 23.717.689/0001-75, datando de 20 de abril
de 1990, ainda constando com situação ativa. Retirado do site: https://www.basecnpj.com. Acesso: 30 de
novembro de 2018. É importante salientar que a data de fundação registrada no Livro de Atas da Associação se
refere a 18 de outubro de 1988, o que demostra exatamente um percurso entre a iniciativa da fundação e a
oficialização da mesma.
215
McCABE, p. 198-199.
138
constante e sua influência entre os pobres é muito utilizada para angariar votos em anos
eleitorais. Provavelmente, isso tenha aparecido em um segundo momento, porque depois de
fundada, a Associação tenha sido alvo de especulações pelos políticos locais.
Outro elemento novo é a própria participação da religiosa Maria Alice MacCabe como
uma importante incentivadora para o desenvolvimento da Associação de Juritianha, tanto
orientando as mulheres quanto às decisões burocráticas, quanto atuando como uma espécie de
vendedora voluntária, levando a renda de Juritianha para fora do país, já que enquanto
religiosa e norte-americana fazia um constate traslado entre Brasil e Estados Unidos. Aliás,
segundo Livro de Prestação de Contas da Associação216, pode-se destacar a boa vontade e a
valorosa contribuição de Maria Alice para o crescimento das vendas, pois regularmente se
registrava as mercadorias que eram destinadas a ela. Assim também, como se registrava o
lucro integral advindo com seu faturamento.
Essa parceria foi tão importante que, conforme registrado no Livro de Atas, na data de 07
de julho de 2001, realizou-se uma Assembleia Extraordinária a fim de realizar uma alteração
no Estatuto da Associação, incluindo uma cláusula referendando a exportação da renda
produzida pelas associadas. Obviamente, tal alteração esteja diretamente relacionada às
vendas realizadas por Maria Alice, pois de fato, na realidade concreta da Associação de
Juritianha, essa seria a única forma de venda internacional. De acordo com a referida Ata,
trinta e uma sócias aprovaram a seguinte proposta:
Nesse sentido, tanto o capital financeiro advindo das exportações realizadas por Maria
Alice quanto seu engajamento político-religioso com as rendeiras foi fundamental para o
fortalecimento da Associação. A narrativa de Rita é elucidativa nesse ponto:
216
Como exemplo, cito a prestação de contas referente ao mês de maio de 2001, cujas mercadorias entregues à
Maria Alice somavam um total de R$ 607,00. Já no mês de novembro de 2001, a quantidade de mercadorias
entregues à Maria Alice foi superior, alcançando um total de R$ 2.006,00. Informações retiradas do Livro de
Prestação de Contas da Associação. Arquivo da Associação Comunitária de Mulheres Rendeiras de Bilro de
Juritianha. Arquivo em Posse de Ana Rosa Ferreira da Silveira.
217
Ata do dia 07 de julho de 2001. Livro de Atas da Associação Comunitária das Mulheres Rendeiras de Bilro
de Juritianha. Arquivo em Posse de Ana Rosa Ferreira da Silveira.
139
Quando foi um tempo, eu disse vamos fazer nossa Associação? Que nós
tendo nossa Associação, nós vamos ter mais direito a algumas coisas, mais
direito ao nosso trabalho... aí fomos fazer a Associação. Se reunimo tudim...
butamo o nome de tudim, aí peguei fui lá no Acaraú... arranjei um Estatuto
de uma Associação e aí fizemos o nosso Estatuto. Aí depois que tava criada
a Associação levei pra Fortaleza, mandei registrar. Aí a irmã Maria Alice
começou a nos ajudar... engajou-se mesmo com a gente. A nossa
Associação, ela foi livre toda vida de político, de prefeitura, dessas coisas
toda... começamos desse jeito, depois a irmã começou a levar muita coisa
para os Estados Unidos, para os mercados fora. A Associação cresceu e se
expandiu desse jeito assim. De dois em dois anos a gente mudava a diretoria,
mas eu ainda fui lá bem uns quatro, ou cinco, ou seis anos. 218
218
Entrevista com Rita de Cássia de Sousa Ferreira, já citada.
140
Nesse sentido, de fato a Associação criada por Rita trouxe um fortalecimento para as
rendeiras da comunidade, que passaram a se organizar coletivamente a fim de valorizar o
trabalho com a renda e de estabelecer regras para a produção, diversificação e distribuição dos
produtos produzidos pelas associadas. De acordo com o Livro de Atas da Associação
Comunitária das Mulheres Rendeiras de Bilro de Juritianha, a Ata de Fundação, Eleição e
Posse da Diretoria data de 18 de outubro de 1988, onde se registra a primeira reunião da
Associação, em que ocorreu a eleição para diretoria, eleição esta composta por chapa única,
tendo Rita de Cássia Sousa Ferreira, como presidente; Maria Rodrigues Alves Vasconcelos,
como vice-presidente e Joana Maria de Sousa Silva, como presidente do Conselho Fiscal. A
chapa foi eleita com 17 votos a favor, no entanto, foram registrados 2 votos nulos e 1 voto em
branco.
Desde sua fundação, são trinta anos de Associação. Durante esse período, Rita de Cássia
esteve à frente da diretoria por dois mandatos consecutivos, assumindo posteriormente, os
cargos de vice-presidente, tesoureira, presidente do conselho fiscal e, quando começou a se
sentir adoentada, passou para a suplência. Rita adoeceu de Parkinson e faleceu em 2016. A
presidência da Associação e do conselho fiscal também foi assumida por sua irmã, Joana
Maria, por três mandatos, e por Ana Rosa, sua filha, por mais de um mandato, sendo a atual
presidente.
Constata-se que a Associação de Rendeiras de Juritianha nunca saiu dos cuidados de
Rita de Cassia, de Joana e de Ana Rosa, que no decorrer desses trinta anos se revezaram entre
os cargos diretivos da Associação. Em todo esse tempo, apenas em três mandatos, elas não
ocuparam os cargos de diretoria, assumindo a presidência Maria de Fátima Costa Silveira, em
1992; Maria do Livramento Rodrigues, em 2005 e Cláudia Maria de Oliveira, em 2015. Isso
porque o Estatuto previa apenas uma eleição e uma reeleição para cada chapa, de modo que
chegou um momento que Rita, Joana e Ana Rosa não podiam mais se candidatar, tendo que
abrir para outras representantes.
De acordo com o Livro de Atas, é possível perceber uma variação no número de
associadas no decorrer desse período. Percebe-se que no início, a Associação contava com
vinte sócias, conforme registrado na primeira Ata de 18 de outubro de 1988, e esse
219
Estatuto da Associação dos Artesãos do Nordeste. S/d. Arquivo Associação das Mulheres Rendeiras de Bilro
de Juritianha. Os documentos que compõem tal arquivo estão em posse de Ana Rosa Ferreira da Silveira.
Juritianha, Acaraú, Ceará.
141
220
Ata de 10 de julho de 1990. Livro de Atas da Associação Comunitária de Mulheres Rendeiras de Bilro de
Juritianha. Arquivo em posse de Ana Rosa Ferreira da Silveira
142
responsabilidade das sócias é colocada em pauta, todas teriam que assumir alguma tarefa para
realização da festa. Em todo momento, o tom de coletividade impera, pois o uso do pronome
possessivo ―nosso‖ para se referir à Associação é uma constante tanto na escrita das Atas,
como também, nas narrativas orais das rendeiras.
Diga-se de passagem, quase sempre usado de forma orgulhosa, diziam ―nossa festinha‖,
―nossa Associação‖, enfatizando-se o mérito e o valor dessa conquista que, acima de tudo, era
a conquista da autonomia feminina e da valorização de sua autoestima, como também, a
conquista de melhorias de trabalho e de vida para essas rendeiras. Através da Ata de 30 de
agosto de 1990, pode-se aproximar da atmosfera vivida por essas mulheres ao se organizarem
em torno da festa.
Nas memórias de Rita de Cássia, essa festa é colocada como um momento de festejar a
conquista da Associação entre as rendeiras, mas também, de dividir essa vitória com suas
famílias que, em boa parte também participavam do processo de produção da renda,
principalmente, as filhas. Todos participaram da festa, comeram, beberam e dançaram, afinal,
a Associação era comunitária, a conquista era coletiva. Nas palavras de Rita, percebe-se o
sentimento de valorização do seu trabalho e dos seus, pois chega a dizer que ―naquele
momento, só nós ali, nós era gente mesmo!‖. Ou seja, de tão acostumada que estava de viver
duras rotinas de trabalho e privação, que aquele momento de lazer, de fartura e de
221
Ata de 30 de agosto de 1990. Livro de Atas da Associação Comunitária de Mulheres Rendeiras de Bilro de
Juritianha. Arquivo em posse de Ana Rosa Ferreira da Silveira
143
Uma coisa que eu queria falar foi dum prazer muito grande que nós tivemos
no dia que inauguramos nossa Associação de rendeiras. Porque era um
trabalho nosso, realizado por nós, num tinha quem mandasse, num tinha
quem criticasse: foi uma coisa nossa mesmo pra nós! Nós se achamos muito
felizes nesse dia! (...) O dia da inauguração nós fizemos discursos nós
mesmas. Fizemos cantos e cartazes: RENDEIRAS DE JURITIANHA NA
LUTA! Preparamos comida e cerveja e caipirinha e uma radiola pra tocar
pra dançar: uma alegria essa festinha! Nós era mais de cinquenta rendeiras,
com os maridos e filhos. As rendeiras e os maridos, todo mundo tomando
cerveja e cantando... Como gente! Naquele momento, só nós ali, nós era
gente mesmo! [...] muito bonito, muito importante! Eu achei.222
Importante, principalmente, porque eram as próprias rendeiras que decidiam tudo, desde
a escolha da Diretoria e as normas do Estatuto, até a liberdade de decidir os preços das peças.
Tudo decidido coletivamente com o instrumento democrático do voto, sempre legitimado em
Ata. A possibilidade de ―dar o preço‖ que a Associação apresentava era uma experiência
inédita para essas trabalhadoras. A narrativa de Joana Maria evidencia a Associação como um
marco divisório nas relações de produção das rendeiras.
A gente acha que é importante porque nós é que damos os preços da nossa
renda. Eu acho isso uma coisa muito importante pra gente...que nós nunca
tivemos esse direito... de dar o valor do que é nosso. Nós poder dar o valor.
Dizer: ―minha renda custa tanto‖. Nós num podia fazer isso. Antes disso,
quando chegava um comprador na nossa casa, aí, nós dizia: ―quanto você
quer dar por esta renda?‖ aí ele dizia uma preço bem baratinho e a gente
vendia porque num tinha quem comprasse mais caro. Não tinha outro meio.
E hoje, não! A gente faz a peça de renda da gente e a gente dá o preço!223
Dar o preço do produto era muito importante para as rendeiras porque significava que
elas eram donas do seu trabalho e da sua produção. Além do preço, elas estabeleciam as
normas do trabalho, as horas trabalhadas, os tipos e quantidade de peças produzidas. A
Associação, através de seu Estatuto, garantia direitos e deveres a essas rendeiras, no entanto,
nada era imposto, tudo era votado e aprovado segundo a vontade da maioria. Isso era o
diferencial de se trabalhar sob forma de Associação. Embora, na rotina das rendeiras de
222
MACCABE, p. 201.
223
Ibid., p. 198.
144
Juritianha pouco tenha se alterado, pois diferentemente de outros modelos associativos, elas
continuaram tendo a liberdade de produzir a renda nas próprias casas, nos horários em que já
era de costume, cada uma respeitando seu ritmo.
Até porque a Associação começou sem sede própria, aproveitando uma sala da Escola
Municipal Hugo Martins dos Santos, o que era um espaço pequeno e improvisado, sendo
destinado também para outras finalidades. Isso inviabilizava que as rendeiras organizassem
um horário de trabalho coletivo na própria Associação. Tal espaço era utilizado apenas para
que elas se reunissem uma vez por mês para o balanço mensal e algumas deliberações. Além
da Escola, uma sala do Centro Comunitário também foi utilizada pelas rendeiras como ponto
de apoio para Associação, até que se conseguisse, finalmente, uma sede própria já nos anos
2000. Mesmo com essas limitações, com uma Associação, essas mulheres se sentiam
asseguradas.
A Associação abriu caminho para o contato com outras entidades além da
ASSOCIARTE, como a Cooperativa dos Produtores Artesanais do Vale do Acaraú Ltda. -
COPAVA224 e a Central de Artesanato do Ceará – CEART225, principalmente, na década de
1990 que, através de cursos de capacitações, proporcionaram trocas de experiências no
aperfeiçoamento dos trabalhos com a renda. É importante que se diga que desde a década de
1970, o estado do Ceará vinha desenvolvendo políticas de fomento aos diversos tipos de
artesanato, com o intuito de valorizar e fortalecer a cultura tradicional de produção artesanal
desse estado.
Numa visão mais ampliada, o próprio governo federal vinha favorecendo uma inserção
desse tipo de produto no circuito da cultura e do mercado comercial no Brasil desde a década
de 1950, principalmente, reforçando as atividades artesanais na região Nordeste, através de
investimentos e políticas vinculadas ao Banco do Nordeste do Brasil – BNB e à
Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE, símbolos da política
modernizadora dos anos 1950 e do intuito de desenvolvimento da região Nordeste do Brasil.
Nesse sentido, em sua pesquisa sobre as rendeiras da Prainha de Aquiraz, Ceará, a
224
A Cooperativa dos Produtores Artesanais do Vale do Acaraú Ltda – COPAVA foi fundada em 25 de maio de
1994 em Acaraú, Ceará, com número de inscrição do CNPJ 00.074.941/0001-70. Atualmente encontra-se
inativa. Cf.: https://www.basecnpj.com. Acesso em: 30 nov. 2018. Não se tem informações precisas de quanto
tempo a COPAVA esteve atuante. No entanto, segundo entrevistas com algumas rendeiras de Juritianha, elas
consideram uma boa experiência o aprendizado que adquiriram com o tempo que se incorporaram a COPAVA.
225
―A CEART (Central de Artesanato) foi criada no final dos anos de 1970, por incentivo de Luiza Távora.
Inaugurada em agosto de 1981, dois anos após a construção do Centro das Rendeiras, a sede da CEART ocupou
o espaço antigo do Palácio do Plácido189, localizado na Aldeota, bairro nobre da capital cearense.‖ In:
DRUMOND, Terezinha Bandeira Pimentel. Tecendo vidas: cultura e trabalho das rendeiras da Prainha de
Aquiraz, p. 105.
145
Por esse caminho, pode-se especular que a COPAVA também tenha surgido nesse
contexto de incentivo institucional aos artesãos cearenses, embora sua fundação seja do ano
de 1994. Ora, se essas iniciativas surgem no final dos anos 1970, é possível que durante a
década de 1990, já tivessem consolidadas em termos de políticas de estado do Ceará,
favorecendo a criação de muitas Associações e Cooperativas, sendo todas incorporadas à
CEART, principal expressão do investimento estatal no âmbito do artesanato. Tal especulação
traz como embasamento a narrativa de Joana Maria que rememora algumas das interferências
externas que as rendeiras de Juritianha receberam em sua Associação. Primeiramente com a
ASSOCIARTE e, mais tarde, com a COPAVA, essas rendeiras passaram por certo tipo de
adequação às demandas da moda que orientava o mercado da época. Desse modo, Joana
recupera o tempo de aprendizado com os cursos oferecidos pela COPAVA: de bordado, de
corte e costura, de pintura.
226
Ibid., p. 78
227
DRUMMOND, p. 79.
146
Da Ceart, de Fortaleza, vei linha, vei tecido, vei uma senhora pra ensinar a
fazer outros tipo a não ser bordado. A ser bordado, lençol, colcha de cama,
essas coisas... e assim, continuou mais trabalho, perfeiçoando as rendas e
também outros tipo de trabalho que ai vinha os caminho de mesa. E vinha
pontaju que era colocando a renda nos tecidos [...]. 229
228
Entrevista realizada com Joana Maria de Sousa Silva, já citada.
229
Entrevista realizada com Rita de Cássia, já citada.
147
230
MACCABE, p. 199-200.
231
Entrevista com Maria Valnê Alves, realizada em 08 de dezembro de 2018, em Fortaleza – CE. Arquivo da
autora.
148
No caso específico das rendeiras de Jurtianha é possível que essa verba internacional
tenha vindo da Misereor, como também, pode ter avindo de organizações vinculadas às Irmãs
de Notre Dame, por intermédio de Maria Alice MacCabe, pertencente a essa Congregação. Na
narrativa de Rita de Cássia, apenas se explicita que:
232
MACCABE, p. 200.
149
Figura 1 Foto de Rita de Cássia de Sousa Ferreira, fundadora da Associação Comunitária das
Mulheres de Rendeiras de Bilros de Juritianha.
Fonte: Fotografia cedida por Ana Rosa Ferreira da Silveira, filha de Rita de Cássia. Acervo da autora.
150
Figura 2 Foto da antiga Associação Comunitária das Mulheres Rendeiras de Bilros de Juritianha
Fonte: Fotografia produzida pela autora quando de sua visita à comunidade de Juritianha, em 13/11/2018.
Acervo da autora.
Figura 3 Foto da atual Associação Comunitária das Mulheres Rendeiras de Bilros de Juritianha
Fonte: Fotografia produzida pela autora quando de sua visita à comunidade de Juritianha, em 13/11/2018.
Acervo da autora.
151
“[...] com a luta da terra, a gente começou a lutar, começou a descobrir e começou
a se organizar e começou a trabalhar. E a gente, as mulher, ajudamos a luta”.
(Conceição, indígena Tremembé da comunidade de Varjota, Almofala)
233
Segundo Maria da Glória Ochoa, ―[...] embora devamos esperar pela década de 60 para ver o surgimento dos
primeiros sindicatos de trabalhadores rurais no Estado, desde os anos 40 desenvolvia-se no interior um paciente
esforço organizativo das massas camponesas. Neste sentido, será fundada em Camocim a primeira e única Liga
Camponesa posteriormente transformada em ‗Associação dos Pequenos Produtores de Camocim‘ sob a liderança
de Francisco Teixeira.‖ In: OCHOA, WORMALD, Maria Glória. As origens do movimento sindical de
trabalhadores rurais no Ceará: 1954-1964. Fortaleza: NUDOC, 1989, p. 63. A referência às ligas camponesas
de Camocim também aparece no livro de SANTOS, Carlos Augusto Pereira dos. Cidade Vermelha: a militância
comunista em Camocim - CE (1927-1950). 2ª ed. Sobral: Edição do autor, 2011.
234
AZZI, Riolando. A Igreja Católica na formação da sociedade brasileira. Aparecida – SP: Editora Santuário,
2008, p. 137.
152
A aproximação da Igreja Católica com os pobres, bem como, sua inflexão nos mundos
do trabalho rural e urbano foi decorrente das diretrizes traçadas pelo Concílio Vaticano II
(1962-1965), no qual se reuniu toda cúpula católica a fim de (re)pensar os rumos da
instituição. Nas palavras do papa João XXIII, bispo que iniciou os trabalhos conciliares, o
Vaticano II traria o ―aggiornamento‖ da Igreja, ou seja, sua atualização de acordo com as
demandas de seu tempo. Desse modo, em âmbito internacional, concomitantemente a esse
importante acontecimento para a Igreja Católica mundial, vivia-se em um contexto de Guerra
Fria, com acirrada disputa ideológica entre os ideais do capitalismo e do comunismo. Em
nível nacional, antes mesmo de encerrar o Concílio, no Brasil deflagrara-se um golpe de
estado de cunho civil-militar, implantando-se uma ditadura, diga-se de passagem, com apoio
oficial da Igreja Católica brasileira, através da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil -
CNBB.
Quando os bispos brasileiros retornaram do Concílio para suas dioceses, tiveram que
ponderar as orientações conciliares de acordo com a nova política militar. Muitas dessas
orientações passaram a ser reprimidas com a consolidação do regime ditatorial, tendo em vista
seu caráter progressista, atendendo à ―opção preferencial pelos pobres‖, conforme
compromisso pastoral assumido durante o Concílio. Percebe- se, com isso, que a Igreja
Católica brasileira passou por uma cisão interna, ao passo que se dividia entre uma ala
conservadora, ainda apegada à pompa da Igreja-Rito, em oposição à ala progressista, que se
abria para os pobres, delineando aquilo que viria a ser a Igreja-Povo. Esta última, em
completa sintonia com o Vaticano II. Entre um polo e outro, ainda existiam aqueles religiosos
que se posicionavam de modo moderado, ou seja, nem assumiam completamente o
compromisso com as pastorais populares, como também, não concordavam com os
desdobramentos da ditadura militar.
Portanto, a aproximação com os pobres e trabalhadores do campo e das periferias das
cidades, o esforço de formação de Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, bem como, de
organização dos camponeses e a criação de sindicatos rurais, embora estivesse em
consonância com as diretrizes conciliares, não foram assumidos por todas as dioceses com o
mesmo empenho e compromisso político-social. De fato, isso ficou a cargo dos bispos
progressistas e adeptos da Teologia da Libertação, que se fortaleceu no decorrer das décadas
de 1970/80 com a repercussão das Conferências Episcopais de Medellín (1968) e de Puebla
(1979).
Na realidade do estado do Ceará, a grande maioria dos sindicatos de trabalhadores
rurais, fundados nas décadas de 1960/70, advinha de um esforço da Igreja Católica em
154
236
Órgão administrativo da diocese de Sobral, sob a responsabilidade do padre Luiz Gonzaga de Melo. Tal órgão
tinha um espaço de comunicação no jornal Correio da Semana, denominado ―Coluna do CETRESO‖. Tudo
indica que a ―Coluna do CETRESO‖ sobreviveu durante os anos de 1963 a 1966, período que marca a existência
desse órgão na referida diocese. Vale ressaltar que nos exemplares de 1967, a coluna já havia sido extinta. Sua
extinção está relacionada ao fato de que o padre Luiz Melo fora transferido de Sobral para Camocim, onde
passou a se dedicar ao trabalho com o Serviço de Promoção Humana, outro campo de atuação da Igreja junto aos
pobres. O SPH fora criado em Camocim no ano de 1962. Para maiores informações, cf.: SILVA, Vera Lúcia;
AGUIAR, Ana Selma Silva de. “Um oásis dos menos favorecidos da sorte”: a experiência do Serviço de
Promoção Humana (SPH), Camocim/ CE. 1962-1079. 1. ed. Sobral: Editora Gráfica Universitária Sobralense –
EGHUS, 2014. 160 p.
237
Correio da Semana, Sobral, 18 de setembro de 1965, Ano 48, n.º 13.
155
reforma agrária eram temáticas com espaço garantido pelo menos até os primeiros anos da
ditadura civil-militar. De acordo com O Nordeste:
O homem do campo é um sofredor. ‗Não se pode negar que uma das grandes
causas do êxodo rural é o fato de ser o setor agrícola subdesenvolvido, tanto
no que diz respeito a produtividade da mão-de-obra, pelo que se refere ao
nível de vida‘. (João XXIII, Mater et Magistra)... Faltam-lhe meios de
industrializar seu trabalho. O cultivo do campo está alheio ao processo
técnico. Métodos primitivos para as colheitas. Falta de legislação, que deixa
abandonado aos caprichos dos fazendeiros do asfalto. O homem do campo
espera e deseja a sua promoção. Aguarda emergir do marasma de abandono
e incúria em que se encontra. [...] A reforma Agrária é questão de
sobrevivência. 238
238
Jornal O Nordeste. Fortaleza, 12 de julho de 1964, p. 03. ―O homem do Campo‖, de Luiz P. de Freitas.
239
Nesse sentido, o financiamento do golpe militar de 1964 pelos EUA e sua constante vigília com relação aos
rumos políticos do Brasil durante esse período foi bem demonstrado no artigo de GREEN, James N; JONES,
Abigail. Reinventando a história: Lincoln Gordon e as suas múltiplas versões de 1964. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 29, n. 57, 2009, p. 67-89. Do mesmo modo, a historiadora Maria do Socorro de Abreu e
Lima, em sua pesquisa sobre o sindicalismo rural em Pernambuco, recupera um encontro entre representantes do
Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Sul para aprofundar o debate sobre o
tema do sindicalismo e traçar metas de atuação sindical para todo o país. Em suas palavras: ―[...] o encontro
encerrou com a elaboração de um manifesto e contou com a presença de pessoas de destaque, como o delegado
regional do trabalho, Enoch Saraiva, pessoa de atuação bastante comprometida com os trabalhadores, e o cônsul
dos Estados Unidos no Recife, sr. Lowell Killday, demostrando a ligação do sindicalismo rural da Igreja com
setores norte-americanos desde o seu início‖. In: ABREU E LIMA. Maria do Socorro de. Construindo o
sindicalismo rural: Lutas, partidos, projetos. Recife – PE: Editora Universitária da UFPE; Editora Oito de
Março, 2005, p. 46.
156
Para tanto, alinhado com os demais meios de comunicação católicos, o Jornal Correio
da Semana parecia assumir uma verdadeira campanha de sindicalização rural, pois,
semanalmente a Coluna do CETRESO e a Coluna do MEB, veiculavam orientações acerca
dos benefícios do sindicalismo rural, como também, de outras formas de organização
camponesa, quais sejam o associativismo e o cooperativismo. Especificamente, a Coluna do
240
Maria do Socorro Abreu e Lima também enfatiza: ―[...] Já o SORPE, criado também em 1961, tinha por
objetivo a organização dos trabalhadores rurais em torno de cooperativas e sindicatos, buscando diminuir a
influência do PCB e das Ligas no campo e levar os trabalhadores rurais a uma ação que, embora questionasse o
nível de sua exploração, fosse moderada [...]‖. (p. 42-43)
241
Padre Albani Linhares. Entrevista realizada em 20 /09/ 03. Sobral – CE. (Arquivo da autora)
157
CETRESO, extinta no ano de 1967, trazia tais orientações massivamente, como se pode
observar em um dos seus artigos:
242
Correio da Semana, Sobral, 24 de abril de 1965, Ano 48, n.º 02, p. 03. (Grifos meus).
158
[...] cada um de nós temos o dever de trabalhar para que o governo apresse a
reforma agrária. Para isto é necessário que os trabalhadores rurais se unam,
findando sindicatos, cooperativas, etc... Assim organizados, poderá exigir-se
do governo o que temos direito.
Unimo-nos e venceremos! 243
Tal artigo colocava em pauta antigas práticas políticas, remanescentes de uma cultura
oligárquica, enraizadas no meio rural nordestino. Desse modo, percebe-se no artigo, um alerta
às políticas assistencialistas sustentadas pela classe política com o intuito de fazer crer a
reforma agrária ou sindicalismo, um interesse comum, a agricultores e latifundiários. A ênfase
recaía sobre a conscientização dos camponeses e de sua união, pois a luta contra a situação de
opressão em que vivam era de interesse da classe camponesa, e não dos políticos. Além do
CETRESO, o MEB também estimulava o camponês a se organizar em cooperativas, o que
resultou em algumas experiências nas dioceses de Sobral e de Itapipoca, como cooperativas
de farmácias comunitárias e de roçados comunitários.
É significativo ressaltar que, na experiência protagonizada pelos participantes do Dia
do Senhor, muitos dos camponeses e das camponesas desse Movimento também participavam
do MEB e do CETRESO, mesmo durante o curto período de atuação deste último. Desse
243
Correio da Semana, Sobral, 05 de junho de 1965, Ano 48, n.º 08 p. 05.
244
Correio da Semana, Sobral, 14 de agosto de 1965, Ano 48, n.º 18 p.05.
159
modo, esses sujeitos circulavam entre os diversos programas formativos que atuavam em sua
região, apreendendo e (re)significando as orientações que recebiam sobre sindicalismo,
associativismo, cooperativismo, reforma agrária, entre outros. Conforme salientou padre
Albani Linhares, em sua narrativa, esses programas ou Movimentos, no seu fazer-se,
receberam um teor mais crítico, comprometido com a justiça social e com a defesa dos
direitos dos trabalhadores, destoando dos objetivos de seu projeto original, como foi o caso do
CETRESO. Ressalte-se, nesse sentido, o fato do padre Luís Malo ser ―socialistíssimo‖,
segundo padre Albani.
Portanto, as regiões de atuação do Movimento do Dia do Senhor estavam em sintonia
com as demais regiões do Nordeste, e do restante do Brasil, no que correspondia à
efervescência camponesa e à explosão de conflitos de terra, mesmo durante o período
ditatorial. Nesses conflitos, as lideranças e os quadros formativos dos sindicatos, bem como
dos Movimentos de base da Igreja Católica estiveram protagonizando uma luta coletiva em
prol dos direitos dos camponeses. Nas memórias de muitos homens e mulheres participantes
do Dia do Senhor, afloram as lembranças dos confrontos contra o latifúndio e a saudade dos
companheiros que perderam suas vidas na luta pela terra.
Na Diocese de Itapipoca, são lembrados os conflitos de terras que envolveram as
comunidades rurais dos municípios de Itapipoca, Itarema e Trairi. Tais conflitos iniciaram no
correr da década de 1970 e se estenderam até meados dos anos 1990, resultando na posse da
terra pelos camponeses. Para tanto, a posse da terra decorreu do processo de desapropriação
para fins de reforma agrária, acompanhado da formação de Assentamentos rurais, como o
Assentamento de Maceió, em Itapipoca; o de Lagoa do Mineiro, em Itarema e o de Várzea do
Mundaú, em Trairi.
Os três Assentamentos foram consequência de muitos embates entre os camponeses
que moravam originariamente nas terras e àqueles que se diziam proprietários das mesmas.
Depois de muita violência física e simbólica, os conflitos foram resolvidos com o intermédio
do Instituto Nacional de Colonização de Reforma Agrária – INCRA, garantindo as terras aos
antigos moradores.
Em todos esses conflitos, os camponeses e as camponesas do Movimento do Dia do
Senhor estiveram envolvidos, ora como protagonistas lutando pela posse da terra em que
moravam e dela sobreviviam, ora como coadjuvantes, na medida em que ajudavam na luta
pela terra de outros companheiros, pois mesmo quando não moravam na terra em querela se
solidarizavam com os companheiros e assumiam a luta como se fosse sua. Como esses
conflitos ocorreram concomitantemente por um longo período, intercalados por momentos de
160
maior ou menor tensão, os camponeses do Movimento não tinham trégua, quando não
estavam ajudando na luta de uma comunidade, ajudavam em outras.
Assim, assumiam um compromisso de classe e demonstravam a força dos camponeses
contra o latifúndio. Essa força da classe camponesa é enunciada enfaticamente nas narrativas
de homens e mulheres que estiveram envolvidos nesses conflitos. A coragem, as estratégias
camponesas e o sentimento de justiça são ressaltados como características presentes tanto nos
homens quanto nas mulheres que estiveram envolvidas nessas lutas.
245
Cf.:http://www.incra.gov.br/sites/default/files/uploads/reforma-agraria/questao-agraria/reforma
agraria/projetos_criados-geral.pdf. Acesso em: 04 nov. 2019.
161
terras... então, ele tinha adquirido e, então aí, o INCRA diz: ―Vocês tem que
fazer um cadrasto‖. Isso no oitenta e cinco. E nós resistimos sem aceitar esse
cadrasto... Só viemos aceitar esse cadrasto no dia quatro do nove de mil
novecentos e oitenta e sete. Passamos dois anos sem querer aceitar o
cadrasto porque nós entendia, até naquele momento, que esse cadrasto
poderia é... levar a ser uma maneira ainda de tirar a gente da terra. Mas, tinha
dois técnicos do IDACE, no caso, o doutor Humberto e, no caso, Wilson
Brandão, que tentou conversar com a gente e esclarecer que pra nós,
realmente, garantir que aquela terra futuramente fosse nossa, nós tinha que
fazer um cadrasto pra obter alguns benefícios, alguns recursos. E aí nós
fizemos esse cadrasto. Aí, o Assentamento veio valer a partir de oitenta e
sete... Ele foi feito a imissão de posse no dia quatro do nove de mil
novecentos e oitenta e sete. 246
246
Entrevista realizada com Antônio Alves do Nascimento, conhecido por Antônio Biica, em Itapipoca, no dia
12 de novembro de 2019. Arquivo da autora.
247
A referida Portaria encontra-se anexada ao processo INCRA/SR (02)/N. 1457/87, referente ao ―Laudo de
Vistoria e Avaliação do Imóvel Tapera ou Três Irmãos‖. A Portaria é datada de 1998, no entanto, não traz a
informação do dia e do mês de sua publicação. Arquivo Superintendência Regional do INCRA/SR 02. Fortaleza
– CE.
248
Entrevista realizada com Antônio Alves do Nascimento, conhecido por Antônio Biica, em Itapipoca, no dia
12 de novembro de 2019. Entrevista citada.
162
A história que fundamenta a posse de toda essa extensão de terra aos camponeses
remonta aos tempos de seus avós e bisavós que já eram moradores do lugar. A narrativa
fundadora que predomina na memória social249 desse grupo defende que metade dessas terras
pertencia à senhora Maria Bonfim e a outra metade, ao senhor Pedro de Sousa. Contam que
com o passar dos tempos, tanto o esposo de Maria Bonfim como a esposa de Pedro de Sousa
faleceram, o que propiciou o casamento entre os dois viúvos. Ambos juntaram suas terras
tornando-se os únicos donos, legitimados pela existência de um documento de posse da terra
que, após a morte de Pedro de Sousa, ficou sob o poder de Maria Bonfim. No entanto, essa
narrativa fundadora veio sendo reproduzida e reelaborada pelos moradores ao longo dos
tempos.250
Cada narrador apresenta um modo peculiar de contar essa história, imprimindo
sentidos e interpretações de acordo com sua subjetividade e criatividade, contudo, embora
haja alguma variante nos modos de contar, os elementos principais do enredo permanecem e
legitimam a posse da terra aos camponeses, sendo aqui considerados como elementos
principais as personagens Maria Bonfim e Pedro de Sousa como verdadeiros donos da terra. A
variação narrativa se evidencia com relação ao marinheiro português que se apodera do
documento de Maria Bonfim, pois em outra versão dessa narrativa fundadora aparecem dois
marinheiros em vez de um, cujos nomes seriam Zé Maria e Major Carneiro. Nesse sentido,
apresenta-se a versão contada por Maria Nazaré de Sousa, conhecida como Nazaré Flor,
bisneta de Maria Bonfim e moradora da comunidade Apiques:
249
Com relação ao conceito de memória social, partilha-se da mesma concepção de Alessandro Portelli,
apresentada na citação a seguir: ―[...] Se considerarmos a memória um processo, e não um depósito de dados
poderemos constatar que à semelhança da linguagem, a memória é social, tornando-se concreta apenas quando
mentalizada ou verbalizada pelas pessoas. A memória é um processo individual, que ocorre em um meio social
dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados. Em vista disso as recordações
podem ser semelhantes ou contraditórias ou sobrepostas. Porém em hipótese alguma, as semelhanças de duas
pessoas são – assim como impressões digitais, ou, a bem na verdade, como as vozes exatamente iguais. ‖
POTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na história oral.
Projeto História. São Paulo. (15) abril, 1997, p. 16.
250
De acordo com o texto ―Costume, lei e direito comum‖, do historiador E. P. Thompson pode-se inferir que a
relação dos camponeses com as terras comunais, remonta, ainda, à Europa Moderna, onde se observava uma
relação marcada pelo costume e alicerçada na tradição oral. Guardadas as devidas distâncias de tempo e de
espaço, assemelha-se ao que se observa na argumentação dos camponeses do Assentamento Maceió. Dessa
forma, ―[...] A terra a que o costume estava vinculado poderia ser uma herdade, uma paróquia, o trecho de um
rio, bancos de ostras num estuário, um parque, pastos nas encostas de montanhas, ou uma unidade administrativa
maior como uma floresta. Em casos extremos, o costume era nitidamente definido, tinha força de lei, e (como
nos cercamentos) era uma propriedade: é o tema do registro dos tribunais, dos tribunais senhoriais, das
compilações dos costumes, dos levantamentos e dos regulamentos da vila. Em condições comuns, o costume era
menos exato: dependia da renovação contínua das tradições orais como na inspeção anual ou regular para
determinar os limites da paróquia‖. THOMSON, E. P. Costumes em Comum. Estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 86-87.
163
251
MACCABE, Maria Alice (Org.) “A nossa luta foi uma luta sagrada”. O povo do Assentamento Maceió
conta a história de sua luta pela terra. Fortaleza: Instituto Terramar, 2015, p. 17-18. Trata-se de um livro
composto por trechos de 62 entrevistas realizadas por Maria Alice e outras religiosas da Congregação das Irmãs
de Notre Dame em que tratam a história de luta pela terra contada pelos próprios moradores do Assentamento. A
maioria das entrevistas foi realizada pela própria Maria Alice durante o ano de 2014. É importante que se diga
que a religiosa acompanhou e apoiou visceralmente todo o processo de luta e conquista dessas terras e que,
embora, o livro seja composto por entrevistas realizadas por ela, bem como, tenha passado pelo seu crivo na
seleção dos entrevistados(as) e temas abordados, constitui um rico material de pesquisa sobre a história do
Assentamento Maceió, com entrevistas autênticas e inéditas, inclusive de personagens já falecidos, o que se
utiliza como importante fonte para esse capítulo.
164
ardiloso marinheiro português que alegava ter comprado as terras vizinhas, passando a habitar
aquele litoral.
Tal narrativa agregava um somatório dos conhecimentos de Nazaré Flor adquiridos
quando de sua formação político-cultual nos diversos movimentos sociais em que atuava,
desde o Movimento do Dia do Senhor, a partir dos anos 1970, passando pelas suas
experiências no Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, Associações Comunitárias, Movimento
de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste, até seu ingresso no Movimento dos
Trabalhadores Rurais sem Terra – MST, já nos anos dois mil, período em que a luta pela terra
do Assentamento Maceió ganha novas configurações.252 Portanto, com Nazaré, a narrativa
fundadora vai perdendo seu caráter pitoresco, lendário, ao passo que ganha uma explicação
baseada em elementos situados historicamente no tempo e no espaço, associando-se a uma
clara compreensão do modus operandi com que se desenvolveu o processo de concentração
de terras no Brasil. Os termos ―invasores‖, ―grileiros‖, ―povo cativo‖ utilizados por Nazaré
reforçam seu discurso nessa linha de consciência.
Na própria narrativa de Nazaré Flor, implicitamente, emerge uma outra versão dessa
história: àquela contada pelos patrões. Percebe-se, portanto, uma tensão entre a narrativa dos
camponeses e a do patronato. Esses patrões, oriundos das famílias Praciano e Soares, diziam
que o tal marinheiro tinha casado com sua bisavó, deixando para os herdeiros o direito sobre
as terras. Nota-se que o elemento da ancestralidade está presente nos dois lados da história,
tanto para legitimar a posse das terras para camponeses, quanto para legitimar a posse das
terras para àquelas famílias que se tornaram as mais poderosas da região. Em ambas as
narrativas a ancestralidade é invocada para legitimar os verdadeiros donos das terras no
decorrer do tempo.
A posse da terra para esses camponeses, portanto, passou a se basear no costume e no
usufruto desse território pelos seus antepassados, o que foi sendo reproduzido de geração em
geração, bem como, no fundamento memorialístico do documento que fora roubado. 253 Por
óbvio, na concepção dos moradores, o fato de terem sido roubados não anulava o direito de
serem de fato donos das terras, tanto é que na narrativa de Nazaré Flor, a mesma não
reconhece a família que se dizia herdeira do marinheiro como legítima, conforme salientou:
252
A inserção do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – MST no Assentamento Maceió data do
início dos anos dois mil, tornando-se de fundamental importância para o reforço da luta dos camponeses mesmo
depois de assentados, pois nesse período tiveram que enfrentar uma nova luta pela terra contra um português que
havia comprado uma faixa de terra que não havia sido desapropriada pelo INCRA, conforme será explicado mais
a frente.
253
Nesse sentido, recorre-se a E. P. Thompson, ainda em seu texto ―Costume, lei e direito comum‖ onde afirma
que: ―[...] Na interface da lei com a prática agrária, encontramos o costume. O próprio costume é a interface, pois
podemos considerá-lo como práxis e igualmente como lei. A sua fonte é a práxis. [...]‖. (p. 86)
165
―Esta família Soares passou a ter domínio das terras dizendo que eram os herdeiros. Não tinha
nada a ver! Os herdeiros era nós!‖. 254
Desse modo, os camponeses moradores dessas doze comunidades viviam numa
condição de miséria e exploração que perpassava toda sua existência, pois muitos deles
nasceram, cresceram e criaram seus filhos no sistema de opressão sustentado pelas famílias
que se diziam proprietárias das terras. Na narrativa citada aparecem os Pracianos e os Soares,
principais mandatários daquela região, que detinham o poder econômico e político, portanto,
dominavam e exploravam a mão de obra, bem como, o voto dos camponeses, sob pena de
expulsão das terras. Esses fatos se evidenciam nos relatos de alguns moradores, como o de
Pedro Conceição de Sousa, Pedroca, que conta:
Por esse caminho, situa-se o relato de Raimunda Rocha do Nascimento, conhecida por
Doca Bastiana, que enfatiza a pressão política que sofriam para votar nos candidatos dos
patrões:
254
MACCABE, 2015, p. 17-18.
255
Ibid., p. 31.
256
Ibid., p. 38.
166
Pedi uma morada a Ubirajara (Praciano) e ele disse que dava morada mas eu
não podia plantar nem cajueiro nem coqueiro. Quando foi um certo dia,
chegou um compadre meu com um coco nascido e ele me deu e eu plantei o
coco. Quando foi depois de uns três anos este coqueiro começou a dar coco.
Aí, quando foi um dia, Ubirajara chegou na minha casa e viu o coqueiro e
diz: ―Rapaz, eu te dei morada mas não era pra plantar coqueiro. Este
coqueiro você vai me vender!‖
Aí eu disse: ―Rapaz, como é que morando aqui eu não posso plantar um
coqueiro na minha porta pra temperar a panela ou para meus filhos poder
beber uma água de coco?‖ (...) Aí, ele foi embora e não veio mais! Ele me
respeitou! 257
No entanto, mesmo com toda opressão e exploração dos patrões, os camponeses ainda
se mantinham em seus pequenos pedaços de terra, convivendo cotidianamente com as
injustiças dos Pracianos e Soares. O ponto alto do conflito pela posse desse território se deu
com a concreta ameaça de expulsão dos moradores de suas comunidades, quando as terras
foram vendidas para a Ducoco, uma empresa produtora de derivados do coco. Segundo os
próprios moradores, o dono dessas terras passou a ser Tasso Jereissati que, na época, era um
258
jovem empresário, sendo um dos primeiros a investir no agronegócio do coco no Ceará.
Esse fato é narrado por Nazaré Flor:
257
Ibid., p. 27.
258
Tasso se tornou um eminente político, sendo governador do estado do Ceará por três mandatos, de 1987 a
1990, de 1995 a 1998 e de 1999 a 2002. Popularmente conhecido como ―o galeguinho dos olhos azuis‖, sua
gestão trazia como inovação a política dos empresários em oposição à política dos coronéis, em referência ao
período ditatorial, em que se revezaram no governo do estado os coronéis Virgílio Távora, Adauto Bezerra e
César Cals. Em outras palavras, significava uma nova política em oposição à política velha. Tasso Jereissati
inaugurava, então, o que ficou conhecido na historiografia cearense como o ―governo das mudanças‖. Esse
governo abria as portas para o empreendedorismo, aliando os interesses políticos aos interesses do capital, assim
representado nos diversos incentivos fiscais garantidos pelo governo com o intuito de atrair filiais de empresas
de médio e grande porte, assim como de multinacionais, para o Ceará. Nesse bojo, o agronegócio e a
especulação imobiliária ganharam respaldo, estando no cerne de alguns dos conflitos que atingiram o campo a
partir desse momento. Para uma leitura mais aprofundada sobre o assunto: GONDIM, Linda. Os governos das
mudanças. In: SOUSA, Simone de. Uma nova história do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000.
259
MACCABE, p. 91.
167
Segundo Antônio Alves do Nascimento, conhecido por Antônio Biica, esse senhor
chamado Carrá era o ―testa de ferro‖ de Tasso Jereissati, o verdadeiro dono das empresas
exploradoras dos cocos da região que, antes de assumir a marca Ducoco, denominava-se
260
Frutop – Produtora de Alimentos AS. Muito embora a memória de Nazaré Flor aponte o
ano de 1980 como o marco de venda das terras para Tasso, supõe-se que essa venda tenha
acontecido ainda na década de 1970, pois a Ducoco se instalou oficialmente no litoral de
Itapipoca em 1979, embora só tenha assumido essa marca a partir de 1982. O fato é que a
Ducoco expandiu sua produção agroindustrial avançando, também, sobre terras litorâneas de
Itarema, Acaraú e Camocim, tornando-se a segunda maior empresa do Brasil nesse ramo.
Sua expansão se deu sob forte resistência das populações de origem camponesa e
indígena que originariamente moravam nesses litorais, principalmente, nos casos que deram
origem ao Assentamento Maceió, em Itapipoca e ao Assentamento Lagoa do Mineiro, em
Itarema, que inclui também terras de Almofala, território indígena de etnia Tremembé. De
acordo com Leandro Vieira Cavalcante, em sua pesquisa sobre a relação do agronegócio e a
Ducoco no território de Itarema, é possível entender a trajetória dessa empresa no estado do
Ceará. Segundo o autor:
260
Antônio Alves do Nascimento, conhecido por Antônio Biica. Entrevista realizada em Itapipoca, no dia 12 de
novembro de 2019. Entrevista citada.
261
CAVALCANTE, Leandro Vieira. Agronegócio do coco e disputas por terra: a Ducoco em território
Tremembé (Itarema/CE). In: Anais do VIII Simpósio Internacional de Geografia Agrária – SINGA 2017, p.
23.
168
[...] O Carrá era como se fosse o testa de ferro dele... do Tasso. Ele era uma
pessoa que fazia as negociações. Ele era a pessoa que o Tasso dava a
confiança pra ele fazer a negociações... O Tasso era o dono da Ducoco...
- Você falou que no início da luta, que a Ducoco tinha outro nome? ―Era
Frutop‖.
- Aí quando o Incra comprou essas terras, que foi desapropriado, a
indenização foi pro Tasso? ―foi pro Tasso‖
- Aparece o nome do Tasso no documento? ―Aparece o nome dele no
documento, realmente‖. 262
No entanto, mesmo com a venda das terras para a empresa Ducoco, os camponeses
resistiram. Suas estratégias de resistência se apoiavam na força do coletivo, pois
compreendiam que a ação individual seria facilmente desmobilizada pela força do
empresariado. Portanto, com o intuito de confundir e, assim, driblar a perseguição dos
empregados da empresa, os moradores das comunidades se uniram e passaram a trabalhar em
sistema de adjutório, plantando, colhendo e protegendo os cocos em mutirão. Essa
―estratégia‖, salientada por Nazaré Flor, cujo termo fora explicitado pela mesma, impedia que
os roçados das famílias camponesas fossem destruídos para satisfazer os interesses do
agronegócio.
Tal estratégia foi ainda mais detalhada por Nazaré Flor quando fora convidada para
participar de um debate realizado pela rádio Uirapuru263, de concessão da diocese de
Itapipoca. Na ocasião, Nazaré e Benedito Gonçalves da Guia, conhecido por Benedito Rita,
enfrentaram o ―doutor‖ Juraci Teixeira, dono da fazenda Carrapato e presidente da ―União
dos Proprietários da Terra de Itapipoca‖, uma espécie de Associação dos proprietários locais.
O debate foi iniciativa do então bispo diocesano Dom Benedito Albuquerque, cujo intuito era
262
Antônio Alves do Nascimento, conhecido por Antônio Biica. Entrevista realizada em Itapipoca, no dia 12 de
novembro de 2019. Entrevista citada.
263
A rádio Uirapuru foi inaugurada em 09 de maio de 1980 com a proposta de ser uma emissora da família
católica da diocese de Itapipoca. Uma rádio de transmissão AM que continua no ar até os dias atuais.
Informações retiradas do site: http://www.radiouirapurudeitapipoca.com.br. Acesso em: 01 nov. 2019.
169
enfocar o tema da reforma agrária, tendo em vista os vários conflitos de terra ocorridos nos
limites de sua Diocese e, muito provavelmente, porque naquele mesmo ano havia sido
realizada a primeira desapropriação de terras para fins de reforma agrária do município. O
debate aconteceu em novembro de 1985, em março do mesmo ano aconteceu a
desapropriação do Assentamento Maceió. Nesse sentido, Nazaré Flor que tinha protagonizado
toda a luta pela terra situava o início do conflito:
E na realidade, sem que ninguém soubesse, quando se deu fé, a terra estava
vendida. Começou a aparecer caras diferentes que nós não conhecia,
proibindo nós de trabalhar. (...) Aí, essa empresa começou a aparecer por lá
proibindo nós de trabalhar. Alguns pararam. Então quando disse: ―vocês não
tem que trabalhar‖; a ordem era a seguinte: quem já brocou não queima,
quem já queimou não cerca, quem já cercou não planta. ... O povo, coitados,
acostumados com as pressões recuaram um pouco e então pararam para
sentar nas próprias Comunidades, convidando seus colegas de trabalho se
perguntando: ―o que vamos fazer?... Parar de trabalhar? ... e o certo é que
com oito dias de estudo... apesar de ser pessoas despreparadas, como ressalta
o doutor aí... a gente pensou que devia, havia a necessidade de se trabalhar,
né? (...) Então, vamos trabalhar de mutirão. Os homens juntaram de mutirão
e fizeram o roçado. Quando aqueles caras que era procurador ou gerente da
empresa chegavam lá e perguntava: ―De quem é este roçado? – É nosso‖.
Chegava outro, estava outro grupo: ―De quem é este roçado? – É nosso‖. 264
Importante salientar que Dom Benedito representava uma postura conservadora com
relação às pastorais populares, o que se distanciava da postura adotada pelo bispo anterior,
Dom Paulo Pontes. Na realidade, muitos dos latifundiários da região se direcionavam ao
bispo com o objetivo de conseguir o apoio da Igreja para a desarticulação da luta camponesa,
possivelmente porque compreendiam Dom Benedito como um aliado dos ricos, que restringia
a atuação dos Movimentos de base católicos. No tempo de dom Paulo, visto como um aliado
dos pobres, esses Movimentos foram amplamente estimulados, como foi o caso do
Movimento do Dia do Senhor. Muito da organização da classe camponesa e da luta pela terra
em Itapipoca foram forjadas nesse processo em que evangelho e conscientização política
andavam lado a lado.265
264
Transcrição da entrevista de Nazaré Flor concedida a rádio Uirapuru. A íntegra dessa entrevista está publicada
no livro de MACCBE, Maria Alice. História na mão. Algumas camponesas contam como se conscientizaram.
(Uma História Oral). S/e 1994, p. 131-132.
265
Antônio Biica ressalta o apoio que a ―Igreja de Dom Paulo‖ ofereceu à luta dos camponeses pela terra. Em
suas palavras: ―A Igreja foi muito forte, na época que era Dom Paulo Ponte, e tinha outros companheiros: a
Maria Alice, padre Albani... irmã Assucena, irmã Bete... padre Felipe. Tudo contribuíram no fortalecimento da
luta pelo assentamento e a gente tentou lutar no... oitenta e dois.‖ Antônio Alves do Nascimento, conhecido por
Antônio Biica. Entrevista realizada em Itapipoca, no dia 12 de novembro de 2019. Entrevista citada.
170
Era Dom Benedito que queria fazer uma entrevista sobre Reforma Agrária,
né? Até antes, Dom Benedito... ele até pensava, tinha medo, né? Porque nós
os camponeses, não sabia dizer nada, os pobres não ia saber falar. Aí ele
queria desmarcar, cancelar o debate, mas a Maria Alice disse: ―não, o
pessoal sabe falar muito bem‖. 266
266
Transcrição da entrevista de Nazaré Flor concedida a uma rádio Uirapuru. A íntegra dessa entrevista está
publicada no livro de MACCBE, Maria Alice. História na mão, p. 131.
267
Ibid., p. 126.
171
meio rural do Ceará, que tratava com desprezo os pobres, camponeses, com conhecimento de
mundo empírico e com reverência os ricos, letrados, considerados do mesmo nível social,
econômico ou cultural.
No entanto, o protagonismo de Nazaré Flor no debate da rádio repercutia sua forte
atuação no conflito pela posse da terra. A voz das muitas camponesas que estiveram na linha
de frente do conflito também foi representada por Nazaré. De fato, não foi uma escolha
aleatória. Sua escolha para esse debate demonstrava que os próprios camponeses reconheciam
a importância que as mulheres tiveram para a conquista da terra.
Por esse caminho, evidencia-se a atuação feminina no enfrentamento com os
empregados da empresa, dificultando que os mesmos avançassem nas terras e nos coqueiros,
que passavam a ser disputados um a um. Desse modo, o coco passou a ser (re)significado,
pois, na medida em que se tornou a principal matéria prima para o agronegócio, o coco
assumiu um caráter especulativo e financeiro, completamente diferente da lógica
compreendida pelas famílias camponesas que concebiam o coco como um produto de sua
subsistência. Assim, a narrativa de Nazaré ressalta o entrelaçamento entre a cultura e o
trabalho feminino nos momentos de resistência, quando as mulheres fiavam algodão enquanto
protegiam os cocos.
Nazaré Flor ainda enfatiza outras estratégias femininas, o que se permite concluir que a
atuação das mulheres ultrapassou os limites historicamente impostos pelas relações de gênero,
pois as mesmas atuavam tanto na linha de frente nos momentos de maior tensão contra os
donos e empregados da empresa, até mesmo para proteger seus esposos e filhos, como
também, desempenhando funções auxiliares, quando assumiam o papel de porta-voz de avisos
e recados para as demais comunidades. No entanto, a participação das mulheres nas
negociações com o INCRA, na produção dos abaixo assinados, na escrita e leitura de
268
Ibid., p. 119.
172
Na época que o pessoal tava brocando e que o Carrá chegou e que paralisou
todos os trabalhadores, aí os homens decidiram brocar, mas queriam a
presença das mulheres, mas nós ficava reunidas fiando algodão. Neste dia
que távamos reunidas na casa da Maria Rita, soubemos que iam derrubar os
cocos dos coqueiros que a gente tava lutando pra adquirir que os patrões
teriam tomado. E o Abner, que era o empregado da firma mandou dois
derrubadores derrubar os cocos. Nós aqui reunidas fiando e... ―olhe aí, vão
derrubar os cocos! O que nós faz? Vamos barrar? Não! Não Vamos barrar,
vamos deixar que derrubarem e aí quando tiver tudo no chão vamos
impedir.‖ Aí, assim fizemos. Eles fizeram a derruba de todos os cocos,
deixaram tudo arrumadinho e aí, saiu o mutirãozão de mulher! Aí nós
fizemos a venda dos cocos e guardamos o dinheiro. Até hoje eles nunca
cobraram. Eles ficaram com medo. 270
269
Ibid., p. 120.
270
MACCABE, 2015, p. 104.
173
As narrativas de Nazaré Flor e Graça Ana oferecem indícios de que as mulheres das
comunidades tiveram tanta participação na luta pela terra do Assentamento Maceió quanto os
homens. A presença feminina também é constatada nos inúmeros abaixo assinados enviados
ao INCRA, os quais traziam assinaturas de moradores e moradoras de todas as comunidades
envolvidas no litígio. Muitos desses nomes vinham acompanhados da marca do polegar
manchado de carbono, antiga forma de registrar as impressões digitais, o que indica o alto
índice de analfabetismo entre homens e mulheres do campo naquela época. A assinatura de
Nazaré Flor também se encontra nesses abaixo assinados. Inclusive, mesmo depois da
conquista do Assentamento Maceió, em 1985, tanto Nazaré quanto os demais camponeses
assentados continuaram em luta apoiando as famílias moradoras das fazendas Bode e Córrego
Novo que somente foram desapropriadas e incorporadas ao Assentamento em 1988.
Nesse sentido, o processo do INCRA SR (02)/ N. 1457/87 referente ao ―Laudo de
Vistoria e Avaliação do imóvel ‗Três Irmãos‘ ou ‗Tapera‘ ou ‗Bode‘ no município de
Itapipoca/Ceará‖ trazia informações sobre os aspectos físicos e sociais do imóvel em questão
indicando que o mesmo realmente pertencia a alguns membros da família Praciano. Segundo
constatado pela equipe técnica do INCRA, o imóvel foi repartido entre dez herdeiros. No
entanto, somente o senhor Juraci Carneiro de Castro e o senhor Vicente de Paulo Carneiro
moravam e exploravam as terras, sendo o senhor Juraci seu principal beneficiário porque
detinha um quinto do terreno. Destaca-se do Laudo de Vistora e Avaliação que:
271
Processo INCRA/SR (02)/N. 1457/87, referente ao ―Laudo de Vistoria e Avaliação do Imóvel Tapera ou Três
Irmãos ou Bode‖. Arquivo Superintendência Regional do INCRA/SR 02. Fortaleza – CE.
174
Terra, o Laudo do INCRA concluía que se podia ―implantar com sucesso um programa de
assentamento‖. 272
Esse mesmo processo trazia em anexo uma espécie de Memorial ou ―Histórico‖ de
toda luta dessas comunidades contra a família Praciano, como também, um abaixo assinado
de onze folhas constando os nomes dos 103 moradores das fazendas em conflito, como
também, de muitos camponeses, moradores de outras comunidades do Assentamento. O que
está se denominando de Histórico constitui um documento escrito manualmente pelos
próprios camponeses direcionando-se ao juiz responsável pelo caso, em que narram os
desmandos e perseguições dos patrões, mesmo depois da terra desapropriada pelo INCRA e
de imitida a posse aos camponeses, evidenciando o nível de tensão vivenciado no território.
Nesse sentido, reproduz-se a narrativa do documento:
Cruzando esse Histórico produzido pelos camponeses com o que consta no Laudo de
Vistoria e Avaliação do INCRA percebem-se alguns pontos convergentes nesses documentos,
como a exploração a que os moradores estavam submetidos e a improdutividade da maior
parte da terra. O próprio Laudo, datado de 30 de março de 1987, oferecia legitimidade para a
denúncia apresentada pelos moradores, pois quando escrevem ao Juiz, em 01 de setembro de
272
Ibid.
273
Ibid.
175
1988, os mesmos já tinham conhecimento de que o terreno tinha sido desapropriado para fins
de reforma agrária em 02 de março de 1988, sendo sua imissão de posse de 17 de junho de
1988. Portanto, não é aleatoriamente que o argumento que norteia a denúncia dos camponeses
é exatamente o fato de os Pracianos, que se diziam herdeiros das terras, não garantirem a
produtividade da mesma. E mais, também denunciam a tomada ou destruição de suas
benfeitorias, como seus roçados, sua produção referente aos cocos, cajus e demais gêneros
agrícolas, ou de suas habitações, muitas vezes de taipa.
Diante de tantas ameaças e opressão os moradores resolveram pedir apoio oficial para
sua luta, pois tanto na Lei quanto no aprendizado dos movimentos de base, como o Dia do
Senhor, os camponeses aprenderam que a terra é de quem nela trabalha. Nesse sentido,
concluíam seu Histórico enfatizando que os Pracianos ―não fazem a terra produzir‖, conforme
relatavam:
274
Ibid.
176
expandir seus negócios para o litoral de Itapipoca, originando o conflito com os moradores do
Assentamento Maceió.
A história de luta contra o Pirata e contra a especulação imobiliária e exploração
turística e ambiental da região coincide com a chegada e fortalecimento do MST no
Assentamento, no início dos anos dois mil. Em conflito aberto contra o empreendedor Júlio
Trindade, como estratégia de resistência, os moradores criaram o Acampamento Nossa Terra
que fica localizado dentro do Assentamento Maceió, em Itapipoca. Sua ocupação aconteceu
em 22 de fevereiro de 2007. Nesse mesmo dia, o Assentamento ―batizou‖ o MST e, em
contrapartida, o MST assumiu a luta contra o Pirata como sua. Esse Acampamento resiste até
os dias de hoje, assim como, o próprio conflito, muito embora tenha arrefecido após o
falecimento do Pirata, em 2011.
Nazaré Flor já não pôde contribuir muito com essa luta pois veio a falecer de um
câncer no útero no mesmo ano em que o acampamento Nossa Terra fora fundado. Sua
contribuição para a conquista do Assentamento Maceió está registrada nas memórias de seus
companheiros e companheiras de luta. Nesse sentido, em sua entrevista, Antônio Biica
ressalta a importância da atuação de Nazaré Flor e de outras mulheres nas lutas do
Assentamento, inclusive contra o Pirata, sendo essa a principal luta nos dias de hoje.
Uma coisa muito forte na nossa luta foi as mulheres. Que as mulheres,
Nazaré Flor, Vera, Maria Nana, Anaíde e outras, Graça Ana. Tudo foram
pessoas que de fato ficaram à frente, sempre pra evitar o conflito. Eu acho
que no Maceió não aconteceu morte por isso, porque quando era pra nós
enfrentar a empresa, tava fazendo um serviço e nós ia lá barrar, as mulher
iam na frente e os homens iam atrás e sempre as mulher tinham um
argumento muito forte e fazia com que os homens não se irritassem pra
poder brigar e eles acabavam saindo, tiravam os trator, tiravam as máquinas.
E isso tem acontecido não só na luta pelo Assentamento, como em qualquer
luta que se trava dentro do Assentamento. (...) As mulheres do Assentamento
foram umas mulheres muito guerreiras e parabéns, eu digo até pra elas, até
porque nós valorizamos a força da mulher e a coragem que as mulheres tem.
Então, foi uma luz na nossa frente. 275
275
Antônio Alves do Nascimento, conhecido por Antônio Biica. Entrevista realizada em Itapipoca, no dia 12 de
novembro de 2019. Entrevista citada.
177
3.3. “As mulher era quem primeiro chegava”: luta e conquista da terra do
Assentamento Lagoa do Mineiro.
deu no dia 26 de junho de 1986, entretanto, sua imissão de posse data de 13 de julho de
1987.276
O conflito de Lagoa do Mineiro se desenrolou no mesmo período que o conflito de
Maceió, em Itapipoca, tanto que sua desapropriação pelo INCRA ocorreu um ano depois da
desapropriação de Maceió. Porém, no conflito de Lagoa do Mineiro ocorreram três mortes de
camponeses. No caso do conflito de Maceió, não houve morte. É importante ressaltar que
durante esses conflitos, os moradores de ambos os territórios, por várias vezes, uniram forças
para lutar contra os patrões e contra a presença da empresa Ducoco, que avançava no litoral
do Ceará, comprando as terras de proprietários locais de Itapipoca e de Itarema com a
finalidade de implementar seu projeto agroindustrial.
Situa-se a narrativa de Antônio Alves do Nascimento, conhecido em toda região, como
Antônio Biica, em que o mesmo relembra o tempo de luta pela posse da terra de Maceió, mas
também, estabelece relações entre essa luta e os conflitos desencadeados em outras
comunidades rurais, de municípios próximos à Itapipoca, como o caso de Lagoa do Mineiro.
Portanto, seu Biica conta como atuavam os camponeses em algumas ações de resistência dos
moradores dessas comunidades em conflito, ou seja, uns ajudando na luta dos outros. Tratava-
se da solidariedade camponesa, pois partilhavam do mesmo sentimento, já que suas lutas eram
lutas que se desenrolavam paralelamente:
Nesse sentido, a luta pela posse da terra de Lagoa do Mineiro guarda semelhanças com a
luta pelo território do Assentamento Maceió porque os moradores da fazenda Lagoa do
Mineiro também cultivavam um vínculo com a terra, o que remontava à ancestralidade de
seus antepassados. Haviam nascido e crescido naquele lugar, mesmo lugar em que estavam
enterrados muitos de seus familiares. O território Lagoa do Mineiro significava a vida para
seus moradores, pois era dali que retiravam sua sobrevivência, assim como, a grande maioria
dos camponeses que lutavam por terra naquele período.
276
Cf.:http://www.incra.gov.br/sites/default/files/uploads/reforma-agraria/questao-agraria/reforma
agraria/projetos_criados-geral.pdf. Acesso em: 04 nov. 2019.
277
Antônio Alves do Nascimento, conhecido por Antônio Biica. Entrevista realizada em Itapipoca, no dia 12 de
novembro de 2019. Entrevista citada.
179
Na verdade, as terras de padre Aristides Andrade Sales foram herdadas de seu tio
Teófilo Andrade que, após o seu falecimento, iniciou-se o conflito entre os moradores e seus
herdeiros, Aristides Andrade Sales e Edmilson Andrade Sales, pela posse de parte do
território que hoje compõe o Assentamento Lagoa do Mineiro. Antes do falecimento de
Teófilo Andrade, os moradores viviam e trabalhavam em suas terras pacificamente, fosse
pagando a renda, fosse no modelo de troca de dias de trabalho, reproduzindo muitas das
práticas presentes no sistema coronelista e paternalista, característico do meio rural do
Nordeste do Brasil, principalmente, durante a primeira metade do século XX.
O estremecimento dessa relação se deu com a mudança de patrão, pois Edmilson
Andrade Sales e padre Aristides passaram a cobrar uma renda muito alta dos moradores, além
de não aceitarem negociação com aqueles camponeses que não tinham condições de pagar a
278
Padre Aristides Andrade Sales é natural de Acaraú, município vizinho a Itarema, onde tornou-se o primeiro
pároco da Paróquia Nossa Senhora de Fátima, desse último município, fundada em 1954. O referido padre
também atuou como político, sendo prefeito de Acaraú durante os anos 1973-1976, além de exercer a função de
suplente de deputado estadual e assessor do governador do Ceará, Coronel Virgílio Távora, durante os anos
1978-1981. Cf.: http://acarauprarecordar.blogspot.com/2011/02/padre-aristides-andrade-sales.html. Acesso em:
24 jan. 2020.
279
INCRA/CE. Processo de Desapropriação SOCIPESCA – Sociedade de Pesca do Nordeste S/A. Nº. 509/86.
Pagamento de indenização do Imóvel Rural denominado Fazenda Lagoa do Mineiro – Itarema / CE. Datado de
Julho de 1989.
180
renda. Ainda, de acordo, com Processo de Desapropriação de Nº. 509/86, evidencia-se o ano e
o motivo pelo qual se iniciou o conflito no território. Conforme se lê no laudo elaborado pela
equipe técnica responsável pela vistoria e perícia do imóvel, o ano de 1968 marca o início do
conflito:
A gente não é invasor. A vida toda trabalhou nessa terra. A diferença é que
antes se trabalhava num sistema de praga que acabava com nós. Meu marido
foi uma vítima disso. Uma vez ele não conseguiu pagar a renda do roçado ao
Padre Aristides, que aí mandou tomar o jumentinho que nós tinha. Durante
anos foi assim, até o momento que se viu que não dava mais para viver desse
jeito [...]. 282
280
Ibid.
281
Ibid.
282
Entrevista concedida ao jornal cearense ―O Povo‖, por ocasião de uma reportagem sobre os dez anos da
desapropriação das terras do Assentamento Lagoa do Mineiro. (Jornal O Povo, edição de 11 de junho de 1996)
Fonte citada na dissertação de mestrado de OLIVEIRA, Fábio da Silva. A construção da educação do campo
181
Um dia o Padre Aristides anunciou que, como nós não estava conseguindo
pagar a renda, ele iria vender as terras para DUCOCO, essa firma que tem aí
em Itarema. Exigiu que nós desocupasse o terreno e nos mandou para o
inferno. Fizemos então uma reunião com os moradores, coisa que até aí a
gente nunca tinha feito. Foi a precisão que nos obrigou a procurar a união.
Aí todo mundo falou por uma boca só: Nós também somos filhos de Deus,
daqui nós não vamos sair [...]. 283
Era um tempo em que todas as comunidades rurais daquela região se viam ameaçadas,
pois os patrões se tornavam cada vez mais propensos a vender suas terras para a Ducoco.
Nesse sentido, antes de serem agrupadas em Assentamento, todas as sete comunidades que
compõe o Lagoa do Mineiro vivenciaram fortes tensões sociais. Primeiro, contra os
proprietários das terras. Segundo, após a venda das mesmas, contra os responsáveis pela
empresa, que passaram a cercar as terras e impedir que os moradores tivessem acesso aos
cajueiros, aos coqueiros, até mesmo, à agua dos riachos que se localizavam nos limites dos
territórios comprados. Tanto padre Aristides vendeu suas terras, como outros proprietários
locais também, como foi o caso do senhor Aquino, dono das terras da comunidade de Varjota,
em Almofala. Comunidade esta que se situa muito próximo do território de Lagoa do Mineiro.
A primeira reunião com moradores, citada por dona Chiquinha Louvado, refere-se à
reunião que aconteceu na comunidade de Varjota, território indígena de etnia Tremembé, com
a presença de Rita de Cássia, moradora da comunidade de Juritianha, de Acaraú, pertencente à
no Assentamento Lagoa do Mineiro em Itarema – CE: entre disputas e conquistas. Sobral - CE (Mestrado
Acadêmico em Geografia – MAG) Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA, 2017. p. 66.
283
Ibid., p. 65.
182
diocese de Sobral. No entanto, pela proximidade com Itarema, Juritianha pertencia à diocese
de Itapipoca, estando, também, sob o paroquiato de padre Aristides Andrade Sales.
Conforme discorrido no segundo capítulo, Rita de Cássia, que integrava o Movimento
do Dia do Senhor e realizava um trabalho pastoral nas comunidades rurais fora procurada
pelos moradores de Varjota com o intuito de que com sua ajuda pudesse se estimular naquele
lugar uma organização comunitária cujo principal objetivo era fortalecer a união dos
moradores para lutar contra a opressão dos poderosos da Ducoco.
A história dessa primeira reunião e a lembrança de Rita de Cássia, mais conhecida
como Dona Ritinha, permanece nas memórias dos moradores mais idosos, como também, é
contada para seus filhos, netos e bisnetos, como forma de manter viva história de luta e de
organização do povo de Varjota e, também, dos moradores das comunidades que compõem o
assentamento Lagoa do Mineiro. Por outro lado, essa história também marcou a vida de Rita
de Cássia. A mesma contou com detalhes sua experiência com os moradores da comunidade
de Almofala, em entrevista para esta pesquisa, como também, na entrevista que compõe o
livro ―História na mão‖, de Maria Alice MacCabe, uma das coordenadoras do Movimento do
Dia do Senhor, conforme explorado no segundo capítulo.
Foi através da rádio Educadora do Nordeste, pertencente à diocese de Sobral, que os
moradores da comunidade de Varjota, em Almofala, que acompanhavam o programa do
Movimento, ―Encontro com as Comunidades‖, ouviram falar do trabalho pastoral realizado
por Rita de Cássia. Nesse sentido, Diana, pertencente à tribo indígena dos Tremembés,
moradora da comunidade relembrou a primeira reunião comunitária com a presença de Rita
de Cássia. Em sua narrativa, destaca-se a esperança dos moradores depositada na presença de
Rita e naquilo que ela representava: o Movimento do Dia do Senhor, o Evangelho, a Igreja
que estava ao lado do povo, em suma, o direito dos pobres. Conforme conta Diana, em sua
entrevista para o livro ―História na mão‖:
Até que foi indo, foi indo... Aí, a gente pensava que que a gente ia fazer. Aí,
meu padim Agustim soube que tinha uma missa lá na Almofala. Aí, ele e o
tio Raimundo foram pra lá para esta missa e depois chegaram com a notícia
que a dona Ritinha de Cássia vinha andar por aqui, por o meio da gente. Que
ela vinha para cá e tinha o Evangelho, que no Evangelho dava o direito da
gente. 284
284
MACCBE, 1994. p. 87.
183
[...] Quando a gente via eles daí da Firma, se revoltava todo mundo mesmo.
Quando a gente escutava dizer que vinha alguém por aqui, os homens
saíram, mas as mulheres ficaram promode enfrentar mesmo. Elas era quem
ficava para enfrentar mesmo, cum raiva. E a gente nunca teve medo. Quando
a gente via eles, quando eles chegavam no salão, aqui em Varjota, quem
primeiro chegava lá era as mulher. As mulher era quem primeiro chegava.
Era o pessoal da firma e a polícia que chegava no salão. Eles só vinham
arrodiados de polícia. [...]. 285
Nossa luta aqui... nós nunca tivemos medo de lutar, aqui dentro. As mulher
mais... toda vida mais corajosa. Quando eles pelejava para abrir o
sangradouro daquele açude... (eles tentaram um bocado de vezes e eles
vinham falar), as mulher é que partiam logo na frente, um cambão de mulher
pra lá. Umas ficaram nervosas, mas outras metiam coragem e aí, a gente com
coragem, ninguém num esfriava não. Fazia cada vez mais era lutar, cada vez
com coragem e com raiva. (...) A gente num era ladrão, num era criminoso,
tava era cuidando um meio de vida promode dar de comer um bocado de
filhos. E aí, seu fulano chegava atrás de expulsar a gente. Mas, pru que? E a
gente era de morar aonde? A gente tem que morar em cima da terra. 286
285
Ibid., p. 90.
286
Ibid., p. 91.
184
[...] E ainda hoje nós veve na mesma luta, nunca se cansemos de lutar e cada
vez mais ficando com coragem de ajudar nas outras Comunidades que,
quando nós soube que aquelas Comunidades dacolá dentro tava com
problemas, foi logo a força que saiu daqui de Varjota, né? (...) Nós ia pra
Chico Verão, pra dentro, pra Palmeiras, nós enfrentava pra Mineiro e toda
vida nós ajudando e ensinando cuma que a gente podia fazer. 287
287
Ibid., p. 92.
288
Segundo o Centro de Documentação Indígena da Associação para Desenvolvimento Local Co-produzido –
ADELCO: ―[...] A demanda indígena pela demarcação desta TI (Terra Indígena) começou em 1986. O
procedimento está suspenso desde 1996, com processo em andamento na 27ª Vara Federal, em Itapipoca. Essa
paralisação se dá em razão de expedientes jurídicos movidos pela empresa Ducoco Agrícola S/A‖. A ADELCO é
uma entidade civil sem fins lucrativos, foi fundada em 2001 e tem sua sede em Fortaleza – CE. Informações
retiradas do site: http://adelco.org.br. Acesso em: 01 de fevereiro de 2020.
185
Fonte: Imagem cedida pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Arquivo Jornal ―O Povo‖. 290
289
O estado do Ceará possui 8 escolas do Campo, que são escolas situadas em áreas de Assentamentos rurais,
que tenham sido organizados ou encampados pelo MST, como é o caso de Lagoa do Mineiro e, também, do
Assentamento Maceió, que tem a Escola do Campo que leva o nome de Nazaré Flor. Distinguem-se das demais
escolas situadas no meio rural ―por desenvolverem uma proposta pedagógica, no âmbito da organização
curricular, identificada com o contexto da realidade socioeconômica e cultural em que está inserida e sintonizada
com as aspirações das populações que ali habitam, buscando refletir a identidade e a cultura camponesas. As
ações desenvolvidas por essas escolas ocorrem em permanente diálogo com seus gestores, professores,
servidores e com o Setor de Educação do MST‖. Informações retiradas do site:
https://www.seduc.ce.gov.br/educacao-do-campo/ Acesso: 01 de fevereiro de 2020.
290
SILVA, p. 67.
186
291
Entrevista realizada com Luís Gonzaga Teixeira, em 08 de abril de 2017, no município de Trairi - CE.
Arquivo da autora.
292
Ibid.
188
Mesmo com todas as perseguições, derrubadas das cercas, destruição dos roçados,
ameaças de morte, os camponeses resistiram e não se retiraram da terra. O auge desse conflito
se deu no dia 09 de junho de 1986, quando do confronto direto entre os pistoleiros e os
moradores resultou no assassinato, à bala, de Manuel Veríssimo e seus dois filhos: Raimundo
Veríssimo, de quarenta e três anos, e Francisco Veríssimo, de quarenta e oito anos. Manuel
Veríssimo era um senhor de oitenta anos, muito querido e respeitado na comunidade,
considerado um homem forte na luta.
Verifica-se, pois, que os nomes e os traços físicos dos seus contendores, assim como,
as datas de assassinatos dos seus companheiros parecem inesquecíveis para o entrevistado.
Por várias vezes, durante a entrevista, seu Luís Gonzaga extravasa suas emoções. Chorou,
revivendo a dor e a indignação por tantas injustiças, assim como, pela perda dos
companheiros que tombaram nesse conflito. Outras vezes, sorria, quando contava algum
causo de astúcia ou de vitória dos camponeses. Era um riso de regozijo pela força dos seus. 293
No entanto, a força dos camponeses não conseguiu evitar o assassinato de uma das
lideranças da comunidade, o que causou grande comoção na região, tendo repercussão diante
dos sindicatos rurais e dos movimentos de base da Igreja Católica, inclusive com a
interferência do então bispo da diocese de Itapipoca, Dom Paulo Pontes, como também, de
representantes do Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador - CETRA,
que prestavam assessoria aos camponeses de toda diocese. Dom Paulo é considerado pelos
camponeses entrevistados como um bispo comprometido com os interesses dos pobres. De
fato, durante seu bispado, os sindicatos e os movimentos de base, como o Movimento do Dia
293
A socióloga argentina Elizabeth Jelin contribui com uma reflexão em torno das ―memórias habituais‖, ou
seja, aquelas que se constituem em decorrência da vida cotidiana, ordinárias, visto que não são consideradas
―memoráveis‖. No entanto, essas memórias se constituem social e individualmente, nas diversas esferas, tanto
privadas, como na família, quanto públicas, quanto no âmbito das instituições, de forma rotineira. Porém, como
salienta a autora: ―Las rupturas en esas rutinas esperadas involucran al sujeto de manera diferente. Allí se juegan
los afectos y sentimientos, que pueden empujar a la reflexión y a la búsqueda de sentido. Como señala Bal
(1999: viii) es este compromiso afectivo lo que transforma esos momentos y los hace «memorables». La
memoria es otra, se transforma. El acontecimiento o el momento cobra entonces una vigencia asociada a
emociones y afectos, que impulsan una búsqueda de sentido. El acontecimiento rememorado o «memorable»
será expresado en una forma narrativa, convirtiéndose en la manera en que el sujeto construye un sentido del
pasado, una memoria que se expresa en un relato comunicable, con um mínimo de coherencia‖. JELIN,
Elizabeth. Los Trabajos De La Memoria. Madrid: Siglo veintiuno de españa editores, S.A. Siglo veintiuno de
argentina editores, 2002, p. 27.
Aproximando essas reflexões para nossa pesquisa, pressupõe-se que nos conflitos de terras vivenciados pelos
camponeses os casos de perseguições, ameaças, assassinatos, mesmo se tornando cada vez mais presentes no
meio rural, ainda soavam como uma ruptura da vida ordinária. Talvez, por isso, Luís Gonzaga tenha
demonstrado tanta ânsia para contá-los, relembrá-los e (re)interpretá-los.
189
do Senhor, receberam carta branca para atuarem na diocese, sendo incentivados por Dom
Paulo.294
A atuação do bispo e do principal representante do CETRA, o doutor Pinheiro, como
era chamado pelos camponeses é explicitada pelo entrevistado. O mesmo ressalta o
protagonismo dos camponeses e das lideranças sindicais que cobram do bispo uma postura
mais direta na interferência do conflito, muito embora, o bispo fosse favorável às causas dos
oprimidos. Como se depreende da narrativa, por várias vezes os camponeses ―falaram forte‖
com Dom Paulo.
294
O assassinato dos três camponeses de Trairi foi registrado pela Comissão Pastoral da Terra – CPT, em seu
Caderno Conflitos de Terra no Brasil, referente ao ano de 1986. Esse mesmo Caderno informa sobre a
quantidade de conflitos de terra ocorridos por estado, sendo contabilizados 96 conflitos para o estado do Ceará
no referido ano. Entre os camponeses assassinados nesses conflitos também se encontra Benedito Antônio
Moreira, Benedito Tonho, de 27 anos, assassinado no conflito da comunidade de Queimadas, em Coreaú, zona
norte do Ceará. Assim como os Veríssimos, Benedito Tonho também integrava o Movimento do Dia do Senhor e
se tornou um mártir da luta pela terra para o povo do Movimento. Cf.:
http://www.direito.mppr.mp.br/arquivos/File/Politica_Agraria/Conflitos1986.pdf. Acesso: 18 jan. 2020.
295
Entrevista realizada com Luís Gonzaga Teixeira, em 08 de abril de 2017, no município de Trairi - CE.
Entrevista citada.
296
―Chamamos a comunidade daqui, veio umas cem pessoas... aí nós tocamos pra lá, era umas cento e cinquenta
pessoas, aí encontramos com o pistoleirão de lá pra cá, num gipão, aí a negada pegaram esse jipe, pararam ele,
mandaram ele ir embora e o caboco ficou tremendo ( risos)... Mas um dia nós resolvemos a boca de noite, se
reunimos com a comunidade e dissemos: ―vamos levar pro Incra, né?‖ Nessa época, o João Alfredo era
advogado... nós ligamos primeiro pro Pinheiro né? Depois o Pinheiro passou pra ele e nós chegamos com uma
carrada de gente lá... Chegamos lá no Incra, você sabe como é a burocracia né... então minha filha, nós passamos
um dia em negociação, quando foi duas horas da tarde eles mandaram um avião aqui fazer uma topografia aérea
190
e aí, antes da noite, chegaram lá com a topografia aí quando foi no dia seguinte, já mandaram o pessoal todo de
volta, aí ficou todo mundo lá. Até hoje continuam lá. Isso foi o começo do conflito. Foi o das Quinta, né?‖.
Idem.
297
Ibid.
298
Ibid.
299
Nesse sentido Elizabeth Jelin ajuda a pensar a tensa relação entre a constituição de identidades e a memória,
que é social e ao mesmo tempo, individual e subjetiva. ―Esta relación de mutua constitución implica un vaivén:
para fijar ciertos parámetros de identidad (nacional, de género, política o de otro tipo) el sujeto selecciona ciertos
hitos, ciertas memorias que lo ponen en relación con «otros». Estos parámetros, que implican al mismo tiempo
191
resaltar algunos rasgos de identificación grupal con algunos y de diferenciación con «otros» para definir los
límites de la identidad, se convierten en marcos sociales para encuadrar las memorias‖. (p. 25)
300
Entrevista realizada com Luís Gonzaga Teixeira, em 08 de abril de 2017, no município de Trairi - CE.
Entrevista citada.
192
Desse modo, se haviam divergências internas na comunidade, bem como, nas relações
de gênero, nos momentos de luta pela terra, tais divergências se apaziguavam em nome de
uma causa comum à própria sobrevivência de todos. Maria Elita de Sousa do Nascimento,
referenciada na entrevista de Luís Gonzaga, foi uma das participantes do Movimento do Dia
do Senhor e, também, trabalhou como tesoureira no sindicato rural de Trairi. A mesma situa a
atuação das mulheres nos conflitos de Salgado do Nicolau. Sua narrativa corrobora com as
informações de seu Luís Gonzaga, pois afirma que as mulheres participavam juntamente com
os homens da comunidade e conquistavam o respeito dos companheiros pela força e coragem
demonstradas. A narrativa de Elita recupera o início do conflito e evidencia o papel da
mulher nessa luta:
301
Entrevista realizada em 15 de outubro de 2015 com Maria Elita de Sousa do Nascimento, moradora da
Comunidade salgado dos Nicolau, Trairi. Diocese de Itapipoca. Arquivo da autora.
193
realidade do campo, não seria aceitável se confrontar com mulheres, numa luta que se
considerava desigual. 302
Nesse sentido, tanto o dono da terra, quanto os pistoleiros contratados para expulsar o
povo da comunidade, como também, a polícia acionada para garantir a legalidade do
latifundiário não teria legitimidade para se chocar contra as mulheres da comunidade, pois se
pressupunha um embate somente entre homens. Apropriando-se desses códigos simbólicos
que permeiam o universo das relações de gênero, as mulheres da Comunidade de Salgado do
Nicolau procuravam tirar vantagem na luta pela defesa de sua terra e de seus homens.
A resistência camponesa é outro aspecto que se evidencia na narrativa da entrevistada,
pois os camponeses passaram meses sem plantar e sem colher devido ao acirramento do
conflito. Esse fato também aparece no relato de Luís Gonzaga Teixeira, quando rememora as
dificuldades enfrentadas durante o processo de luta pela terra. Nesses casos, o que mais
contava era solidariedade dos pobres do campo. Conforme ressalta seu Luís Gonzaga, a ajuda
vinha de outras comunidades, dos sindicatos rurais e dos movimentos sociais. Quanto ao
período exato que os camponeses estiveram impedidos de usar a terra, a memória dos
entrevistados vacila. Enquanto Elita conta três meses, Luís Gonzaga menciona quatro.
Mas logo o proprietário veio e botou eles tudo no meio da rua, aqui no salão,
sabe? Se apropriou lá e aí minha filha foi difícil. Nós passamos, me parece,
que quatro meses com o pessoal aí, a gente arrumando recurso, pedindo as
comunidades. A gente também doando o que a gente podia, né? 303
Sim, eles chamaram a polícia. Na vez que eles queimaram a cerca que a
gente foi fazer a cerca de noite, eles chamaram a polícia e a polícia ficou lá
atirando nos pés da gente. E nessa noite... eles levavam uma pessoa, uma
pessoa da gente... Eu acredito que o confronto era o mesmo, só que eles
tinham um pouco de receio com a gente. Porque assim, a gente tinha medo,
302
Nesse sentido, o conceito de estratégia de Certeau ajuda a entender o posicionamento tomado por essas
mulheres. ―[...] Chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a
partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição
científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio a ser a
base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou
concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos e objetos da pesquisa, etc.) Como na
administração de empresas, ‗toda racionalização estratégica procura em primeiro lugar distinguir de um
‗ambiente‘ um ‗próprio‘, isto é, o lugar do poder e do querer próprios.‖. (p. 93)
303
Entrevista realizada com Luís Gonzaga Teixeira, em 08 de abril de 2017. Entrevista citada.
194
mas a gente tinha aquela confiança tão grande em Deus que você ia
espontaneamente, não queria nem saber se ia acontecer alguma coisa. Eu até
hoje fico assim me perguntando como era que a gente tinha aquela coragem
de enfrentar aquele povo? Eu tinha uma tia... a Tereza de Souza que
faleceu... que ela esculhambava eles, esculhambava. Ai eles dizia assim:
mulher vai cozinhar teu feijão. E ela esculhambava eles, afrontava assim,
botava era o dedo na cara deles. Mas foi muito bom essa experiência que a
gente teve.304
Torna-se claro na narrativa de Elita que as mulheres da comunidade sabiam dos riscos
que enfrentavam ao desafiar o poder da polícia e do latifúndio, mas apostavam no ―receio‖
que o inimigo tinha do confronto direto com elas. Ao mesmo tempo, se destaca a dimensão da
fé, talvez o elemento que norteasse toda a ação dessas mulheres contra as injustiças que
estavam sofrendo, ao passo que Elita ressalta ―mas a gente tinha aquela confiança tão grande
em Deus que você ia espontaneamente, não queria nem saber se ia acontecer alguma
coisa‖.305
A proteção divina e a crença de que as mulheres na linha de frente do conflito iriam
intimidar a truculência do confronto fazia com que mulheres comuns em que, na maioria das
vezes, seu único campo de ação era o espaço doméstico ou, quando muito, os espaços de
reflexão vivenciados no Movimento do Dia do Senhor, tomassem consciência de si e de sua
função política e social, durante conflitos dessa dimensão, assumindo papéis antes
considerados inapropriados para o feminino.
Assim como no conflito de Salgado do Nicolau, nos conflitos da comunidade de
Maceió, em Itapipoca e de Almofala, em Itarema, as mulheres também se fizeram
protagonistas das lutas pela terra. As estratégias de ação feminina se repetiam de uma
comunidade para outra, muito embora cada experiência seja única. O fato é que em todas
essas lutas se ressaltaram exemplos de mulheres fortes, registradas na memória oral e escrita
de cada uma dessas comunidades.
304
Entrevista com Maria Elita de Sousa do Nascimento, em 15 de outubro de 2015. Entrevista citada.
305
Ibid.
195
Figura 6 MDA – INCRA - Projetos de Reforma Agrária Conforme fases de Implementação. Projeto de
Assentamento Lagoa do Mineiro / Projeto de Assentamento Maceió
Figura 7 MDA – INCRA - Projetos de Reforma Agrária Conforme Fases de Implementação. Projeto
de Assentamento Várzea do Mundaú
4.1. “...não era pra pegar nem na mão”: namoros, casamentos e sexualidade no
campo
Escola, nessa época, tinha um home lá na Serra Verde que ele, finado Ze
Leão, ele começou a ensinar escola, assim: ele pegava as criança, pessoal
jovem, que isso aí, já meu esposo teve a vontade de estudar muito novo
também, aí eles conversaro com ele, com o finado Ze Leão pra ele ensinar a
escola. Que os pais de família pagava pra ele ensinar. Ai o estudo da gente lá
na Serra Verde foi assim. 306
Rosa nasceu e cresceu na Serra Verde. Casou-se aos quatorze anos com seu primo
legítimo no dia 14 de outubro de 1962. Assim como muitas das camponesas do Movimento,
casou-se muito jovem. Das entrevistadas para essa pesquisa, Rosa foi a que casou mais jovem.
Praticamente, ainda criança. No entanto, ressalta-se que a experiência desse casal traz algo
singular: o fato de que a vontade de aprender ultrapassou as limitações da falta de escola e, até
mesmo, o cansaço diário advindo das atividades laborais. O pouco aprendizado adquirido com
o ―finado Zé Leão‖ serviu de base para que Rosa e Paulo desenvolvessem uma prática
306
Entrevista com Rosa Marques, realizada em 30 de abril de 2010, na localidade de Recreio, distrito de Rafael
Arruda, Sobral – CE. Arquivo da autora. Rosa nasceu em 1948, no momento da entrevista contava com 62 anos.
198
Desse estudo que ele aprendeu, quando nós casemo, nós sabia bem pouquim
leitura. Mas, acontece que, nós dois usamo uma escola... ele ia pro roçado...
aí a horinha que eu tinha tempo, eu escrevia uma carta pra ele cuma que eu
tivesse lá no Sul, cuma que eu tivesse longe dele, tá entendendo? Aí quando
ele chegava pra almoçar eu entregava a carta pra ele. Aí, ele lia. Aí, quando
era de noite ele ia responder aquela carta pra mim... e essa maneira serviu
pra nós desenvolver [...]. 307
No meio rural cearense de meados do século XX, nem só o acesso à escola era
limitado, como também, as comunidades eram pouco desenvolvidas. Como relembra Rosa
Marques, ao falar de Serra Verde: ―[...] lá naquele tempo não tinha isso que tem hoje, não
tinha televisão, não tinha som... era só no gás mesmo... que é o querosene. A gente levava
uma luz, levava que era pra clarear nas estradas onde a gente passava‖.308 Aliás, segundo a
entrevistada, sua localidade só recebeu energia elétrica no ano de 2005. Antes disso, fora
instalado um projeto de energia solar. 309
Rosa relembra o cotidiano das famílias camponesas e as formas de sociabilidade
comunitária, os tipos de lazer que a juventude improvisava na comunidade. Sua memória dos
tempos de solteirice recupera brincadeiras comuns à realidade sertaneja de outrora:
Olha, no tempo que eu nasci já morava muita gente lá... e aí é tudo amigo...
era quase tudo uma família... sempre gostaro, os pais de família visitar as
outras família e, naquela oportunidade que os pais ia visitar as outras família,
os jovens se reunia que era pra brincar, aquilo era uma vida... porque naquele
momento, os jovens se reunia pra brincar de cirandinha, raminho de amor,
era esse o divertimento que tinha. E outra ora também, era o terço... no dia
que tinha terço nas casa, eles já convidava os amigo e a gente ia pra lá pra
rezar o terço ... No tempo da gente jovem, a animação era assim... Meu pai
tocava pife, e eu tenho uma prima... aí ela tocava numa latra... aí fazia aquele
forrozim que era pros jovem brincar.310
307
Ibid.
308
Ibid.
309
O projeto de energia solar resultou de um convênio firmado entre a Prefeitura Municipal de Sobral e o
Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Energias Renováveis – IDER, o Banco do Nordeste e o Governo do
Estado, com a finalidade de beneficiar as comunidades de Serrinha, no distrito de Taperuaba e Serra Verde, na
localidade de Recreio, no distrito de Rafael Arruda. Tal convênio se firmou na gestão do prefeito Cid Gomes e
angariou 28 mil reais. As duas comunidades foram as primeiras beneficiadas, no entanto, o projeto tinha o intuito
de levar energia solar para todas as comunidades rurais de difícil acesso. Informações retiradas do Boletim da
Prefeitura Municipal de Sobral, 05 de junho de 2000 – Ano IV. Cf.: boletim.sobral.ce.gov.br. Acesso em: 02 abr.
2019.
310
Entrevista com Rosa Marques, realizada em 30 de abril de 2010. Entrevista citada.
199
311
Pierre Bourdieu em um estudo sobre a juventude camponesa de uma cidade do sudoeste da França durante a
década de 1960 afirma que: ―[...] Em virtude da separação radical entre a sociedade masculina e a sociedade
feminina, em virtude do desaparecimento dos intermediadores e do afrouxamento dos laços sociais tradicionais,
os bailes que periodicamente se realizam no bourg ou nos vilarejos vizinhos se tornaram a única ocasião
socialmente aprovada de encontro entre os sexos. Em consequência, esses bailes oferecem uma ocasião
privilegiada para se compreender a raiz das tensões e dos conflitos.‖ Cf.: BOURDIEU, Pierre. O camponês e seu
corpo. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 26, p. 83-92, jun. 2006, p. 84. Nesse estudo, o autor oferece pistas para uma
reflexão em torno da cultura e do cotidiano camponês, tendo como ênfase as relações de gênero, demonstrando
que as condições econômicas e sociais influenciavam no comportamento camponês e na introjeção de um padrão
de corpo ―encamponizado‖ para o homem rural, que internalizava a cultura do campo. Ao ser comparado com os
padrões de cultura do homem urbano, esses camponeses eram desvalorizados pelas jovens da localidade, visto
que não tinham hábitos refinados e nem jeito para dançar nos bailes, o que ocasionava um elevado índice de
homens que se tornavam ―solteirões‖ porque não correspondiam às expectativas das mulheres do lugar.
312
Entrevista com Terezinha Santos de Oliveira Moura, realizada em 08 de abril de 2017, na comunidade de
Gualdrapas, em Trairi – CE. Nasceu em 1944, no momento da entrevista contava 73 anos. (Arquivo da autora)
200
ora ajudando a memória de Maria Socorro, quando vez por outra, era consultado pela mesma,
ora se colocando na conversa como o dono da história, principalmente, nos momentos em que
a conversa se direcionava para a temática dos conflitos de terra. No entanto, as lembranças da
juventude, compartilhadas pelo casal, fluíram entre risos e consensos:
[...] A gente namorou dois anos foi? Três anos e seis meses pra gente chegar
a casar... era quarta, sábado e domingo... embora que fosse, assim, um
pouquim de tempo. Só era até oito e meia, nove hora, era nosso horário, era
só até essas hora e quando chegava, tinha que vim pra dentro da sala, sentava
encostadinho do papai. Papai tinha uma rede, assim, perto, deitava e a gente
ficava ali debaixo de uma lamparinazinha, bem guardadim, não era pra pegar
nem na mão (risos)... Quando a gente ia uma novena em Amontada, uma
noite de natal, que era escuro, às vezes, a gente ficava um pouquim pra trás,
acontecia um beijo tão roubado, se não, podia alguém olhar pra trás. (risos)
313
A História de Antônia de Castro Sales, conhecida por Toinzinha, casada com seu
Geraldo, também da localidade de Gualdrapas, assemelha-se às demais. No momento de sua
entrevista, no ano de 2017, seu esposo sofria com Alzheimer, o que tornou suas lembranças
313
Entrevista com Maria Socorro Teixeira, realizada em 08 de abril de 2017, na comunidade de Gualdrapas, em
Trairi – CE. No momento da entrevista, dona Socorro contava 72 anos. (Arquivo da autora)
314
Entrevista com Terezinha Santos de Oliveira Moura, realizada em 08 de abril de 2017, já citada.
201
mais significativas, pois recuperou um tempo de juventude, felicidade, saúde e amor entre o
casal. A narrativa de dona Toinzinha, com 71 anos, foi marcada por um misto de risos e
lágrimas. 315
315
Nesse sentido, chama-se atenção para a especificidade da fonte oral, que por se tratar de pessoas, falam de
suas vidas, elaborando seus próprios sentidos e significados. Como afirma Portelli: ―[...] O principal paradoxo da
história oral e das memórias é, de fato, que as fontes são pessoas, não documentos, e que nenhuma pessoa, quer
decida escrever sua própria autobiografia (como é o caso de Frederick Douglass), quer concorde em responder a
uma entrevista, aceita reduzir sua própria vida a um conjunto de fatos que possam estar à disposição da filosofia
de outros (nem seria capaz de fazê-lo, mesmo que o quisesse). Pois, não só a filosofia vai implícita nos fatos,
mas a motivação para narrar consiste precisamente em expressar o significado da experiência através dos fatos:
recordar e contar já é interpretar. Cf.: PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os Fatos. Narração, interpretação e
significado nas memórias e nas fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro , vol. 1, n. 2, 1996, p. 59-72.
316
Entrevista com Antônia de Castro Sales, realizada em 08 de abril de 2017, na comunidade de Gualdrapas, em
Trairi – CE. (Arquivo da autora)
317
A discrição com relação às questões da intimidade parece ser uma marca do comportamento camponês não só
do Brasil. Pierre Bourdieu em seu referido estudo sobre a juventude camponesa, afirma que: ―[...] Tudo que é da
ordem da intimidade, da ―natureza‖, é banido das conversas. Mesmo que o camponês goste de contar ou de ouvir
as anedotas mais picantes, ele é extremamente discreto em relação a sua própria vida sexual e, sobretudo,
afetiva.‖ (p. 88)
202
Nós sem saber de nada. Até ele também não sabia de muita coisa não.
Porque quando eu fiquei grávida, aí ficou com medo eu e ele né? Aí ele foi e
perguntou a um amigo dele se ele podia ter relação com mulher grávida.
Também ele não sabia de muita coisa né? E eu não sabia era de nada. Sabia
que entre mulher e homem tinha alguma coisa, mas eu não sabia direito
como era o caminho. 318
Desse modo, mesmo depois de casadas, com a consumação da lua de mel, o que para
algumas dessas camponesas significou uma experiência traumática, visto o despreparo do
casal, ainda assim, a questão da sexualidade continuou sendo vista com pudor e restrição.
―[...] De maneira geral, os sentimentos não são temas sobre os quais o camponês fica à
vontade para falar. A inabilidade verbal, que vem se juntar à inabilidade corporal, é
vivenciada no desconforto tanto do rapaz como da moça [...]‖. 319
Fazendo um contraponto entre as narrativas das mulheres entrevistadas para essa
pesquisa e a narrativa das mulheres entrevistadas por Maria Alice MacCabe, ainda nos anos
de 1992 e 1993, mas que pertenciam à mesma geração, percebe-se uma semelhança nos
modos de educação em que essas mulheres eram criadas, principalmente, no que tange à
questão da sexualidade. 320
Tal educação correspondia e, talvez, corresponda até os dias atuais, ao modelo de
educação pautado por uma perspectiva de gênero, marcada pela cultura patriarcal que situa a
mulher em um lugar de passividade em todos os sentidos, principalmente, no âmbito sexual,
tendo que preservar sua honra e virgindade.
No Brasil, como demonstrou a historiadora Mary Del Priore, em sua obra ―Ao Sul do
Corpo‖, esse modelo de educação é tributário do processo de colonização. A forte influência
religiosa, com o discurso médico a seu favor, contribuiu para que se forjasse um projeto
normatizador do corpo e da mente femininos com o intuito de introjetar nas mulheres o
modelo Mariano de boa mulher, esposa e mãe exemplar, combatendo, assim, qualquer modelo
destoante que ameaçasse os preceitos católicos. 321
318
Entrevista com Terezinha Santos de Oliveira Moura, realizada em 08 de abril de 2017, já citada.
319
Ainda me apropriando das reflexões sobre as relações de gênero trabalhadas no texto de BOURDIEU, p. 88.
320
Refiro ao livro História na mão. Algumas camponesas contam como se conscientizaram. (uma História
Oral), de autoria da religiosa norte-americana Maria Alice MacCabe. Durante seu trabalho de Coordenação dos
Encontros de Esposas se aproximou muito de algumas camponesas e realizou entrevistas com dez mulheres
pertencentes às comunidades do litoral de Itapipoca.
321
Segundo Mary Del Priore: ―[...] A Igreja apropriou-se também da mentalidade androcêntrica presente no
caráter colonial e explorou as relações de dominação que presidiam o encontro de homem e mulher,
203
Esses aspectos se evidenciam em várias narrativas que serão analisadas daqui por
diante. Por se tratar de uma temática que envolvia a intimidade conjugal, Maria Alice preferiu
preservar o anonimato de suas entrevistadas. Desse modo, a narrativa abaixo corrobora com o
modelo normatizador do comportamento feminino. Destaca-se a participação da mãe nesse
processo, transmitindo os valores morais necessários para que sua filha correspondesse ao
modelo ideal de mulher, ou seja, recatada, virgem e honrada socialmente.
Assim, sua mãe cuidava para que a filha não fosse desrespeitada, ensinando-a a manter
distância dos rapazes. Certamente, todo esse cuidado era decorrente do receio da perda da
virgindade feminina antes do casamento, o que correspondia cair em desventura moral e
religiosa, tornando-se uma vergonha para a família, principalmente, para a mãe, sobre quem
recairia a culpa da perdição da filha. Nesse caso em questão, a entrevistada contava do medo
que introjetara devido ao controle de sua educação.
Eu era muito educada nessa parte de ter medo de home e tudo. Eu tinha
medo mesmo! E acreditava, sabe? Um dia um rapaz olhou assim pra mim e
eu percebi qu‘ele estava querendo se aproximar de mim, assim. Conversou
comigo. Que o namoro do meu tempo era só conversa mesmo. Hoje em dia
conversa num é mais namoro, né?... Depois eu comecei a namorar com este
rapaz que eu me casei. E a minha mãe ficou logo assim muito espantada. Ela
todo tempo dizendo que tivesse cuidado, que mulher não podia se aproximar
de homem, homem era como fogo e a mulher era como uma estopa. E o
homem... o fogo perto da estopa queimava. O homem perto da mulher
desrespeitava. A mulher tinha que ter toda honra, todo respeito, longe,
separada do homem. Que é engraçado né? Rá! Rá! Rá!322
Nesse sentido, ressalta-se que essa narrativa expressa uma forma de reprodução
cultural que atravessava gerações de mulheres. Inclusive, a própria entrevistada faz uma
interpretação de que essa forma de pensamento associando o homem e a mulher ao fogo e à
estopa decorria da influência religiosa que sua mãe recebeu e, assim, transmitia para as filhas.
Em suas palavras: ―Ela tinha muita informação dos padres, né?... e aí, ela botava isso na
cabeça da gente‖. 323
incentivando a última a ser exemplarmente obediente e submissa. A relação de poder já implícita no escravismo
reproduzia-se nas relações mais íntimas entre marido e mulher, condenando esta a ser uma escrava doméstica,
cuja existência se justificasse em cuidar da casa, cozinhar, lavar a roupa, servir ao chefe da família com o seu
sexo, dando-lhe filhos que assegurassem a sua descendência e servindo como modelo para a sociedade com que
sonhava a Igreja‖. DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo. Condição feminina, maternidades e mentalidades no
Brasil Colônia. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 26.
322
McCABE, 1994, p. 216.
323
Pelas informações obtidas em conversas informais com Ana Rosa Ferreira da Silveira, filha de Rita de Cássia,
conjectura-se que essa entrevista seja de sua mãe. Tal conjectura se explica porque a narrativa acima dialoga
204
De certo modo, essa influência religiosa na ordenação da vida social e, até mesmo
privada, também se configurou no Brasil desde os tempos coloniais.324 Talvez, no mundo
rural, durante o recorte temporal dessa pesquisa, a influência do discurso religioso tenha
obtido ainda mais força, pois devido à falta de outros canais de informação, a Igreja, através
dos padres e seus sermões, orientava e se mantinha vigilante do bom comportamento de seus
fiéis.
Continuando a narrativa, a entrevistada contou que casou com trinta anos. Embora
tardiamente, comparando-se à idade em que casavam as demais jovens do campo. A inocência
e a desinformação com relação ao que se sucedia durante a lua de mel também marcaram sua
experiência. O desconhecimento sobre o corpo masculino contribuía para aumentar a
vergonha e o medo nos primeiros contatos com seu esposo, conforme relembrou:
Ai chegou o dia, se casemo. Nós ficamos, fomos viver juntos. Eu era tão
inocente, que eu perguntei a ele!... Eu tinha vergonha demais dele.
Vergonha, pelo amor de Deus!... aí eu perguntei: ―... será que home é cumo a
mulher, que depois de grande, modifica também alguma coisa? No corpo
dele?‖ Rá! Rá! Rá!... Aí, eu fiquei sem saber né... mais sem saber de nada
mesmo... com toda inocência. Ele querendo se aproximar de mim e eu
morrendo de medo. E cismada e tremendo com medo. 325
Sua narrativa seguiu em tom performático e recuperou elementos que marcaram sua
subjetividade feminina, ao relatar que não sentiu prazer com a relação sexual, ao contrário,
com elementos presentes na narrativa de uma senhora de oitenta anos chamada Maria Artur de Sousa, que é mãe
de Rita e avó de Ana Rosa. A longa entrevista de Maria Artur apresenta muitos traços do discurso religioso que
defende a função procriadora da mulher. Nesse sentido, a anciã rememorou uma confissão feita ao padre
responsável pela comunidade de Juritianha, município de Acaraú, quando ainda era muito jovem, antes de ficar
viúva. A mesma enviuvou aos 28 anos de Pedro Sales de Maria, que morreu de tuberculose, deixando sua esposa
grávida. O casamento durou apenas sete anos, resultando sete filhos, dos quais morreram dois, ainda bebês. Ao
longo de sua vida, Dona Maria contou muitas vezes a história dessa confissão para suas filhas e netas, com o
intuito de repassar os ensinamentos do padre sobre o papel da mulher no casamento. Chamava a ―História dos
sete firmamentos‖ e contava que confessou ao padre que, diante do marido muito doente, evitava ter relação
sexual, justamente por medo de enviuvar e ter que cuidar de muitos filhos, sozinha. Dizia em sua narrativa: ―[...]
Meu velho, eu num quero isso mais, eu num quero esses carinhos, não. Você já tá velho, tá doente, e pode acaso
acontecer de morrer. E eu ainda hei de ficar com meninozinho bem novim, ou perto de ter um meninozinho?!
Isso é um sofrimento pra mim.‖ Diante da confissão, o conselho do padre foi o seguinte: ―[...] Ele disse assim: ‗a
mulher é do homem, a mulher não tem que se suvinar ao homem dela. Ela tando arrumada, com a roupinha
arrumada pra ir à missa, pra ir à missa, se o marido disse: venha cá, mulher!, ela tira a roupinha e vá fazer o que
ele quer. Que ela num peca mais de que se ela num for‘. Aí nosso senhor tem sete firmamentos e ele quer povoar
esses firmamentos todim... e a mulher que não tinha família Deus não queria bem. Porque ele quer povoar o céu
e a terra [...].‖
324
Nesse sentido, Del Priore chama atenção para a introjeção da Igreja Católica na vida colonial, ao passo que se
queria forjar uma sociedade colonial aos moldes da metrópole: portuguesa e cristã. Assim, segundo a autora:
―[...] do nascimento à constituição da família, da reconciliação à morte, da reza doméstica às celebrações
coletivas. E por ultimo, mas não menos importante, a Igreja exercia severa vigilância doutrinal e de costumes
pela confissão, pelo sermão e pelas devassas da Inquisição [...]‖. (p. 25)
325
McCABE. 1994, p. 217.
205
sentiu medo, pavor, assombro, arrependimento e choro. Ou seja, de suas palavras pressupõe-
se que o sexo se constituiu em uma prática negativa para sua vida, sendo enfrentada como
uma obrigação, devendo ser obedecida de acordo com os ensinamentos de sua mãe e da
Igreja. De uma maneira mais ampla, pode-se inferir que o ato sexual, da forma como era
experimentado pelas mulheres de sua geração, na maioria das vezes, era encarado com essa
conotação. Nesse sentido, sua iniciação sexual é narrada de forma crua, sem o tom romântico
que se imagina contornar o momento da lua de mel, forjado à luz da concepção moderno-
burguesa.
Quando veio o final de tudo! Aí, eu me arrependi tanto de ter casado! Disse:
―Ó, Se hoje viuvasse, não me casaria mais‖. Foi mesmo! Pensei naquele
momento. Quando terminou dele praticar o sexo comigo. Que eu fiquei
apavorada. Amedrontada. Morrendo de assombrada... mais fiquei, chorei
muito. Que prazer que dá uma coisa dessa a gente, né? Chorei demais.
Fiquei muito apavorada demais... Aí, pronto, eu fui me acostumando com a
vida com ele, né? Me acostumando assim... e fui vivendo a vida... Devia
aceitar aquilo... E tirar da cabeça, mesmo que ou gostasse ou não gostasse.
Mas tinha que viver porque tinha casado. 326
Para além de narrar o episódio traumático que foi a perda de sua virgindade, a
entrevistada ainda desenvolve um esforço narrativo para interpretar o fato. Em sua concepção,
a timidez e, até mesmo, a falta de prazer sexual estaria vinculado ao fato de que o sexo era
ensinado para as mulheres, desde cedo, como uma prática feia e suja. No caso da educação
masculina, ao contrário, era ensinado de forma natural, sem o peso do pecado que recai sobre
a consciência feminina. Tal concepção perpassa a construção histórica e cultural dos papéis de
gênero, incluindo-se a dimensão da sexualidade em que o macho deve ser viril, forte,
libidinoso, opondo-se ao comportamento atribuído às mulheres, que deveria ser frágil,
recatada, despossuída dos desejos da carne. Nesse sentido, a entrevistada demonstra
consciência de que essa sua concepção foi se construindo ao longo de sua criação, que se
desenvolveu a base dos ensinamentos religiosos e do senso comum. Em suas palavras:
Eu nem sei porque nem porque não, mas eu acho que essa parte sexual é
mais do gosto do homem do que da mulher, geralmente, eu acho que é. (...)
Eu não sei se foi por causa da educação que a gente teve, aquela doutrina de
respeito... E aquilo, hoje em dia, é uma coisa simples. Mas de primeiro era
uma coisa feia. A gente ouvia falar muito nisso: a vida sexual era uma coisa
feia, era imoral, não era certo. Mas os home ia sempre usando, que nunca
326
Ibid., p. 218.
206
botaram isso na cabeça: que era feia, imoral. (...) Eu acho que é por isso que
as mulher sempre era mais tímida e mais calma. 327
Conforme contou, casou-se para ter o sustento garantido pelo esposo. Historicamente,
esse tem sido o papel atribuído ao homem, o de macho provedor. Motivo comum a muitas
mulheres de sua época, não só do campo, como da cidade. No tempo de seu casamento,
década de 1960, via de regra, a dependência financeira feminina não só obrigava as mulheres
a casarem, como a permanecerem casadas. À proporção que narrava, também ia atribuindo
novos sentidos aos fatos vividos. Dessa forma, a entrevistada trazia à sua interpretação o fato
de que seu casamento foi uma alternativa para escapar da miséria em que vivia.
Olha o desejo deu me casar! Eu gostava dele e queria bem. Mas o meu
desejo que eu tinha de me casar era a necessidade que eu vivia dentro da
casa da minha mãe, que era muito grande. [...] Eu imaginava: ―ele é homem‖
(que num tinha home dentro de casa: meu pai tinha morrido.) ―[...] Ele é
homem e trabalha. Eu vou vê fortuna dentro da minha casa!‖. 328
nessa última década, se situa o período de realização das entrevistas, como também, o
enfraquecimento e desaparecimento do Movimento como um todo.
A própria coordenadora, quando indagada sobre a escolha das entrevistadas para a
composição de seu livro História na mão reconhece como definidor o critério da amizade e de
maior aproximação com as ―mulheres da praia‖, que compunham as comunidades litorâneas
da diocese de Itapipoca, região em que atuava mais intensamente. Desse modo, em sua
entrevista, Maria Alice esclareceu suas próprias intenções de pesquisadora e seu método de
trabalho:
Acho que era onde eu tinha uma certa intimidade de comunicação. Onde eu
pensava que eu ia pegar as coisas mais verídicas, mais autênticas. Então, era
mais por isso. E também uma mistura de, por exemplo, Diana, Conceição,
Cícera são tremembés que eu conheço bem. Rita, pra mim é uma das grandes
mulheres em nosso Movimento, uma fonte de sabedoria. Eu comecei com
ela. Era quase querendo escrever a vida dela, que eu vejo tanta riqueza na
vida dela. Mas, depois eu fui desenvolvendo e dizendo não, vamos trazer
mais pessoas para falar, mas o meu primeiro pensamento era ela... Nazaré é
outra das grandes mulheres do Movimento... era mais isso, um grupo
diversificado.329
De fato, essa aproximação de Maria Alice com as camponesas contribuiu para que as
mesmas se sentissem à vontade para expor suas questões mais íntimas, quebrando o tabu em
torno do assunto ―sexo‖. Até porque esse assunto já vinha sendo pauta de vários Encontros
de Esposas desde a década de 1980, então, muito do que foi registrado nas entrevistas, já
havia sido colocado em algum momento nas reuniões de mulheres. Nesse sentido, as dez
camponesas330 entrevistadas pela religiosa falaram abertamente sobre sua relação conjugal, o
que perpassava as questões em torno do prazer sexual.
Mesmo em narrativas anônimas, são muitos os depoimentos que deixam transparecer o
descontentamento feminino e a realidade de opressão sexual em que essas mulheres viviam.
Suas narrativas são permeadas por relatos de diversos tipos de agressões à subjetividade
feminina nas quais se observam a grosseria e o mal trato de seus esposos. Na maioria das
vezes, essas agressões cotidianas eram sentidas e silenciadas por essas mulheres. Algum
desabafo ocorria, por ventura, no momento dos Encontros de Esposas, muito embora, nem
tudo se dissesse, e nem todas as mulheres falassem.
329
Entrevista com Maria Alice MacCabe, realizada em 06 de junho de 2009, em Itapipoca – CE. (Arquivo da
Autora)
330
São elas: Rita, Joana, Gesilda, Maria, Conceição, Diana, Cícera, Elita, Teresa e Nazaré.
208
Por outro lado, essas histórias de vida que eram compartilhadas com o grupo ecoavam
entre as demais camponesas e serviam de exemplos, representando um aprendizado narrativo,
pois aprendiam umas com as outras. Quanto aos sofrimentos relatados, essas mulheres
experimentavam um sentimento de solidariedade e cumplicidade que marcavam
profundamente suas formas de encarar as relações de gênero, o que implicava em repensar
seus próprios casamentos, mesmo que não conseguissem modificar de imediato a realidade
que viviam, essas reflexões permaneciam ao longo de suas vidas e iam compondo o processo
de transformação dessas mulheres.
Por esse caminho, situa-se uma história que marcou a memória de uma das
entrevistadas de Maria Alice. A mesma conta como se impressionou quando em um dos
Encontros ouviu uma jovem de dezoito anos dizer que não sentia prazer com o sexo:
Ao que parece, sua admiração com esse fato era porque tal afirmação não vinha de
uma senhora de idade, e sim de uma jovem, saudável e recém-casada. Ou seja, constatava-se
que a opressão sexual se reproduzia nas relações dos mais jovens. Esse depoimento serviu
para a entrevistada pensar sobre o valor da mulher na relação conjugal e, principalmente,
sobre a submissão que os maridos colocavam as esposas, também, na hora do sexo. Segundo
sua própria reflexão:
São depoimentos que você aprende como as mulheres são tratadas: ―[...] já
coisou e pronto‖. Ela que usou esta palavra. E muitas coisas a gente viu
isso... que eles não tão nem ai... Porque acontece às vezes o homem quer
obrigar a mulher sem ela tá com condição. Ele quer, e quer de primeiro. E
diz assim: ―eu casei porque preciso de mulher‖. E a mulher tinha que aceitar
ou chorando ou alegre, do jeito que tiver tem que aceitar ele porque ele
casou porque precisa de mulher. 332
331
McCABE, 1994, p. 229.
332
Ibid., p. 229.
209
Através de sua narrativa, ainda se pode conhecer um pouco do que era relatado por
outras camponesas, por exemplo, com relação à reação dos maridos quando suas mulheres
não atendiam prontamente a seus desejos. Nota-se o machismo que imperava nessas relações
e a hostilidade com que tratavam suas mulheres, demonstrando sua insatisfação com o
comportamento feminino. Aliás, comportamento que destoava daquele esperado, de completa
passividade e submissão das mulheres. Muito provavelmente, a hostilidade masculina tivesse
o intuito de intimidar suas esposas e mostrar quem mandava na relação. Conforme narra a
entrevistada:
333
McCABE, 1994, p. 230.
210
como dizem, tudo... quem sabe se ele não vai pensar: ‗Ora, isso ela já aprendeu foi com
alguém! Já está usando com outra pessoa [...]‘. E a gente fica toda com vergonha‖.334
Outras entrevistadas de Maria Alice referiram-se à existência de doenças venéreas, o
que se pressupõe a infidelidade e a promiscuidade em que alguns esposos viviam. No entanto,
não se sabe precisar se tais esposos eram participantes do Movimento do Dia do Senhor, pois,
muitas das camponesas eram esposas dos Dirigentes, mas tinham muitas mulheres que os
maridos não participavam do Movimento. Juntamente com o relato sobre os desconfortos
acarretados pelas doenças, essas mulheres também revelam seus sentimentos e ressentimentos
para com seus companheiros que, mesmo vendo a esposa adoentada, sendo o culpado por tal
doença, não as dispensavam do sexo.
Mas eu vou lhe dizer: eu acho que todo homem é um estuprador. Se existe
pecado no mundo, é este. Mesmo quando eu adoeci daquela doença, ele não
dispensou de jeito nenhum. Sempre me sinto com uma raiva tão grande!
Durante... depois a raiva passa. Durante aquele negócio, se ele morresse, eu
num chorava não. Sei que eu sempre fui como um objeto pra ele... Meu
marido sofria uma doença, essa doença qu‘ele conseguiu pegar de mulher,
doença venera, que chama. Aí ele sofria disso e aí, eu peguei. Fiquei com
uma febre tão grande! Ah! Uma febre tão grande, uma dor de cabeça, uma
tristeza qu‘eu fiquei arriada. Aí, foi o arrependimento... chegou em mim ter
casado. Pra que eu me casei? Tão alegre! Aí, eu não fiquei mais alegre.
Fiquei triste. Fiquei muito sofrida. Com aquela doença tão grande! Aí,
vieram com umas injeções que eu... aquelas penicilinas que chamavam de
primeiro. Eu sei que pra encurtar a conversa eu passei seis meses doente.
Três meses sem sair de dentro de casa. Eu só saía fora para fazer xixi... se
num tivesse ninguém em casa... morrendo porque não aguentava. De três
meses em diante eu melhorei e outros três meses passei doente ainda, mas
até que melhorei. 335
Percebe-se que, durante seu relato, a entrevistada externou seus sentimentos mais
profundos. Talvez, isso tenha aflorado porque fora tomada pela emoção do momento em que
se punha a relembrar um episódio doloroso de seu passado. Suas palavras revelaram um misto
de ódio, arrependimento, dor, sofrimento, tristeza. De alguma forma, tudo isso está
relacionado aos sentimentos que foi alimentando pelo marido, a ponto de afirmar que se
―Durante aquele negócio, se ele morresse, eu num chorava não‖. Sendo o choro aqui
associado ao sofrimento, à dor da perda. Nesse sentido, pela sua fala, muito além do corpo
doente, seu esposo tinha deixado sua a alma ferida.
334
Ibid., p. 227.
335
McCABE, 1994, p. 232.
211
336
McCABE, 1994, p. 234.
212
337
McCABE, 1994, p. 222.
338
Ibid., p. 222-223
213
Em alguns casos, eu acho que houve avanço, ou pode ser um avanço por um
tempo, ou uma fase, mas, para dizer a verdade, minha análise geral é a
última fronteira e que o Movimento começou a mexer onde ninguém mexe...
Agora, seria uma ilusão muito grande dizer que houve grandes avanços. Eu
acho que nesse ponto não. 339
339
Entrevista com Maria Alice MacCabe, realizada em 06/06/2009, já citada. No período da entrevista, Maria
Alice ainda atuava como assessora pastoral da Diocese de Itapipoca e estava realizando um trabalho com as
mulheres do MST. Nesse sentido, quando relatou sobre a questão da sexualidade trabalhada no Movimento do
Dia do Senhor, a religiosa fez um paralelo com o tempo presente, em que ainda enfrentava praticamente os
mesmos problemas com relação ao comportamento feminino e dos casais do campo. Assim dizia: ―[...] Todo tipo
de análise social, as mulheres estão participando e produzindo muito pensamento sobre isso. Onde eu vejo que
não avançamos, é no aspecto sexual. Eu acho que quase não tomou nenhum passo. Estou apavorada. O próprio
Movimento Sem Terra admite que eles tem que trabalhar isso e não sabem como, e querem velhas como eu para
ajudar. (risos) ...Eu descubro isso, por exemplo, mulheres tomando remédios para infecções vaginais ou uterinas.
Aí eu digo: ah você está tomando este remédio e como vai a infecção? – Não, eu tomo e limpa e depois volta. Eu
disse: pois leia a bula para vê que homem tem que tomar também. – Ah! Irmã, ele não quer tomar não, a gente
não pode nem dizer, que ele vai dizer que eu estou dizendo que ele faz não sei o que. Quer dizer, ao meu vê
temos muito mais trabalho que precisa ser desenvolvido nessa área‖.
214
4.2. “A primeira vez que achei minha voz foi aqui”: os Encontros de Esposas e seu
programa para a questão da sexualidade
340
Entrevista realizada com Maria Valnê Alves, no dia 08 de dezembro de 2018, em Fortaleza – CE. (Arquivo da
autora)
215
Esposas que participou. De fato, o medo de falar e o silêncio entre as companheiras foi um
dos primeiros aspectos narrados.
Rapaz, houve uma doidiça tão grande de medo. Era um medo danado.
Ninguém falava. A cumade Valnê falou assim: ―olhe, desde ontem que a
gente está aqui... e a maioria não fala. Estão com medo? De quem vocês
estão com medo?‖ [...] Aí saiu voz que nem prestou. Mas isso já no segundo
dia [...] Ela já botou nós pra ficar de grupinho, de cinco em cinco. Rapaz,
saiu conversa que encheu ela de trabalho.341
A conversa era sobre a vivência da mulher em casa, como é que era mesmo.
Essa foi a maior, a maior conversa. Eu acho que todas nós que somo mãe
tem uma história. E essa história é muito ampla, mas nós temo medo de
conversar, parece que sim. Porque eu olhava assim, mulher que tinha
passado um tempo, mais de dezoito horas só assim, olhando com a cabeça
muito baixa. Mas devia ser pensando... Foi a mulher de mais história de vida
que eu já encontrei na minha vida. [...] Por apelido eu conhecia ela por Posa,
não sei nem se Posa ainda é viva... ela é do Cauaçu, lá daquelas praia.
Impressionou porque é difícil a mulher contar história de esposo e esposa
né? Esconde e como esconde... Ela disse tudo, tudo, que eu nuca disse. A
vivência esposo e esposa. Dificuldade, ela dizia que tinha bastante e a causa
era ele. O esposo dela. E ela não sentia nenhum gozo. Mas vinha um
menino. E os Encontro das Esposa, ele ajudou. Mas quem ajudou a nós a
desenvolver mesmo foi as pessoas, a própria coordenação, as próprias
pessoas que fazia com que as mulheres se abrisse pra conversar a sua
história.
Por esse caminho, Maria Alice MacCabe, religiosa norte-americana que assumiu a
coordenação do Movimento com as mulheres após a saída de Valnê, rememora que com o
fortalecimento dos grupos de esposas, nos anos 1980, ―começou a se mexer com a questão da
sexualidade‖. Em sua avaliação sobre o trabalho realizado com as esposas, explica que: ―[...]
Agora, pra mim, o ponto alto foi a sexualidade porque eu vi que, pelo amor de Deus, se ter
341
Entrevista realizada com Maria Fausta Marques, em 12 de outubro de 2010. Em Sítio Alegre, Morrinhos –
CE. (Arquivo da Autora)
216
uma população totalmente sujeita, totalmente não dona de si, não dona de seu corpo. Aí você
começa a perceber o tamanho do problema [...]‖. 342
De sua narrativa, é possível compreender a dificuldade que era para essas camponesas
falarem de sua relação conjugal, ao mesmo tempo, em que se percebe que esse tipo de
discussão era bem aceito entre o grupo, pois abria espaço para a voz feminina, seus desabafos,
suas agruras, suas dúvidas. A própria metodologia adotada no trabalho de base tinha o intuito
de estimular a fala dessas mulheres. Como ressalta Maria Alice: ―[...] Eu me lembro de uma
mulher, ela morreu logo depois, era uma mulher nova, ela disse: ‗a primeira vez que achei
minha voz foi aqui‖‘. 343
Nesse sentido, a memória da religiosa traz lembranças de muitas participantes e de
muitos causos narrados pelas mesmas, que eram compartilhados nos Encontros de Esposas,
tanto nos momentos de estudo, como nas horas de lazer, de conversa frouxa entre as
participantes que, nesse processo, tornavam-se amigas e companheiras de uma luta comum,
tanto no aspecto social, quanto na busca por transformação nas relações de gênero.
Sua memória, assim como a memória de muitas participantes desses Encontros, é
344
permeada de exemplos de histórias camponesas vivenciadas ―por tabela‖ , visto que as
participantes, aos poucos, iam compartilhando suas vidas e intimidade com o grupo e, assim,
suas histórias iam ultrapassando a dimensão do individual, do privado, e passavam a ser
sentidas, contadas e reelaboradas pelas demais mulheres que as ouviam, como no caso de
Maria Alice e de algumas camponesas entrevistadas que contavam as suas histórias e as de
outras companheiras, no bojo.
No caso de Terezinha Moura, persegue-se o relato de sua própria história, enquanto
participante dos Encontros de Esposas. A mesma relembra seu constrangimento ao falar sobre
sua vida conjugal no momento das reuniões com as esposas. Vindo de uma criação em que a
342
Entrevista realizada com Maria Alice MacCabe, já citada.
343
Entrevista realizada com Maria Alice MacCabe, já citada.
344
Nesse sentido, faço apropriação das reflexões de Michael Pollak quando o mesmo situa o processo de
constituição da memória utilizando a concepção de ―acontecimentos vividos por tabela‖, pois mesmo em sua
narrativa Maria Alice tendo clareza de que está fazendo alusão a um fato vivenciado por uma terceira pessoa, o
conhecimento de tal vivência marcou sua subjetividade e ajudou a constituir a sua memória, no sentido de
reforçar sua própria interpretação sobre o fazer dos Encontros de Esposas. Portanto, segundo o referido autor:
―[...] Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória, individual ou coletiva? Em primeiro lugar, são
os acontecimentos vividos pessoalmente. Em segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de ‗vividos
por tabela‘, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer.
São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo
que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não. Se formos mais longe, a
esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos que não se situam dentro do espaço-
tempo de uma pessoa ou de um grupo. É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da
socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte
que podemos falar numa memória quase que herdada‖. POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212, p. 201.
217
sexualidade era um assunto interdito, era natural que a mesma sentisse tanta dificuldade em
compartilhar sua intimidade com tantas mulheres desconhecidas, e até mesmo, com as
conhecidas da comunidade, visto que em sua concepção esse assunto deveria ficar ―abafado‖,
restrito às quatro paredes da alcova. No fundo, essa era uma concepção comum a muitas
mulheres de sua geração. Daí tornar-se tão significativo as falas dessas mulheres sobre tal
assunto quando, aos poucos, e com muita cerimônia, iam quebrando o silêncio sobre sua
privacidade. Segundo a entrevistada:
345
Entrevista realizada com Terezinha Santos de Oliveira Moura, em 08 de abril de 2017, já citada.
346
Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador – CETRA foi criado oficialmente em 30 de
dezembro de 1981, no estado do Ceará. Desde então, vem desenvolvendo intenso trabalho na região do Maciço
do Baturité, Serra da Ibiapaba e diocese de Itapipoca. O CETRA presta assistência jurídica e social para os
trabalhadores rurais com a finalidade de contribuir com suas lutas pela posse da terra. Para maiores informações
consultar o site: www.cetra.org.br.
218
com tanta intimidade pela entrevistada, demonstra que a presença de Margarida não era
pontual, e sim que havia uma maior participação da mesma, tanto nos Encontros de Esposas,
como nas demais atividades do Movimento do Dia do Senhor.
Na verdade, nesse momento, vários setores realizavam trabalhos com a população
rural, como o MEB, os sindicatos rurais, e as demais pastorais católicas, o que significa que,
guardadas as especificidades de trabalho de cada um, visavam o mesmo público com o intuito
de contribuir com o processo de conscientização e desenvolvimento das populações do
campo. Portanto, o Movimento realizava parcerias com esses setores, tanto na diocese de
Itapipoca, como na diocese de Sobral.
Faz-se importante ressaltar que, tanto nas questões dos conflitos de terra o ―dr.
Pinheiro‖ intervinha ao lado dos camponeses, quanto nas necessidades da vida camponesa,
como por exemplo, no caso de dona Terezinha, que precisou fazer uma cirurgia de
histerectomia com urgência, contou com todo apoio do casal, inclusive financeiro, o que
facilitou sua estadia no hospital em Fortaleza, capital do estado, sendo posteriormente,
hospedada na casa dos mesmos, até que se recuperasse para voltar a sua comunidade.
Certamente, por esses motivos, eram estabelecidos vínculos de amizade e respeito, que
perduraram mesmo com o fim do Movimento.
Outro aspecto da entrevista a ser destacado é o reconhecimento de dona Teresinha
sobre o aprendizado adquirido através dos Encontros de Esposas. Ao relembrar desses
momentos, a mesma elabora uma avaliação sobre seu crescimento enquanto mulher e sujeito
social. Percebe-se isso quando são utilizadas as expressões: ―eu me libertei dum bocado de
coisa‖ ou ―a gente não fica mais inocente‖.
Nesse processo de aprendizagem com o Movimento, algumas dessas camponesas iam
se descobrindo sujeitos da relação, com vontades e desejos próprios, com direitos sobre seu
corpo, seu prazer e, principalmente, passaram a refletir mais sobre a relação com os maridos.
Isso significava, em grande parte, perceber a opressão masculina, que se manifestava
veladamente no âmbito da sexualidade, no sentido em que muitas das mulheres do campo não
tinham autonomia sobre seu corpo, viam-se subjugadas à vontade do marido, pois de certo
modo, entendiam o sexo como sua obrigação de esposa.
Desse modo, a religiosa Maria Alice, que esteve à frente desses Encontros desde 1976
até o seu fim, na década de 1990, relata como era tratada a questão da sexualidade pelas
próprias camponesas, que se viam na relação como ―[...] simples objeto. Nada de prazer, nada
de conhecimento e nada de participação. Só uma vasilha, que algumas delas dizem, até usam
219
essa palavra né. [...]‖.347 Tais camponesas, mesmo com vergonha ou medo de falar sobre o
assunto, aos poucos, iam-se colocando nos debates durante os Encontros de Esposas.
Na concepção de Maria Alice, o que facilitava essa abertura das camponesas sobre um
tema tão íntimo era o fato de ser um espaço do feminino e para o feminino, não corriam o
risco dos seus maridos tomarem conhecimento sobre aquelas conversas. Tanto que ―[...] para
elas, falar isso, quando elas estão só, elas falam. Agora, em grupo misto não fala. E falavam
com muito cuidado que essas conversas não espalhassem‖.348
A concepção de submissão da esposa ao marido, inclusive na relação sexual,
pensamento comum entre as mulheres do campo que começavam a participar dos grupos de
esposas, também é relatada na entrevista de Antônia de Castro Sales, dona Toizinha, quando
afirma que ―[...] a gente pensava que mulher era pra transar mesmo... Era pra cozinhar,
transar, criar minino e ir pro roçado. Pronto, era o dever da mulher! [...] O corpo da gente é
uma coisa muito linda, né?‖ 349.
Por esse caminho, na entrevista com Rosa Marques, quando interpelada sobre os
debates em torno da temática da sexualidade e vida conjugal, a mesma rememora com um
breve riso de constrangimento, talvez, por está na frente do esposo. Durante as entrevistas
realizadas com as mulheres do Movimento, foi muito comum a presença de seus maridos, ex-
dirigentes do Dia do Senhor, os quais demonstravam claramente o interesse em ser
entrevistados também. Por várias vezes, os esposos interferiram na narrativa de suas
mulheres, como também, percebeu-se que sua presença inibiu as mesmas em alguns assuntos,
notadamente, o da sexualidade.
No entanto, Rosa traz em sua narrativa uma reflexão que se aproxima da visão do
senso comum que as camponesas apresentavam sobre o papel da mulher na vida conjugal:
―[...] a mulher era pra ser mandada pelo homem‖. Por esse caminho, a entrevistada vai
situando o teor das conversas femininas que animavam as reuniões dos Encontros.
Implicitamente, com uma interrogação ―está entendendo?‖, Rosa mudava a entonação de sua
voz e dava pistas de que as mulheres eram passivas, submissas na relação sexual. Semelhante
à ideia de ―vasilha‖, que aparece na narrativa de Maria Alice e de outras participantes, Rosa
Marques traz a ideia de que a mulher ―tinha que fazer tudo o que o homem queria‖. Ou seja,
constata-se que as camponesas que participavam dos Encontros de Esposas, em grande
347
Maria Alice MacCabe, entrevista realizada no dia 06 de junho de 2009, já citada.
348
Maria Alice MacCabe, entrevista realizada no dia 06 de junho de 2009, já citada.
349
Entrevista com Antônia de Castro Sales, realizada em 08 de abril de 2017, já citada.
220
medida, não tinham vontade própria, não tinham voz na relação, como muitas mulheres dessa
época, fosse no meio rural, ou na cidade.
Quando era o tema de vida conjugal, era assim né, porque muitas mulher
dizia que ela era uma pessoa que era pra ser só mandada pelo homem, ela
tinha que fazer tudo que o homem queria, está entendendo?... aí, tinha a
palavra de Deus, conforme aquele tema ia buscado um tema da palavra de
Deus... aí, que Deus deixou os direito igual. Deus não disse que a mulher
mandasse no homem e nem que o homem mandasse na mulher... Aí, isso aí
tudo, acordou muita mulher... 350
Ora se teve mulher que disse assim: ―ora, o meu marido disse que eu tô
ficando muito sabida demais vindo pra esses Encontro de mulheres. Que as
350
Entrevista com Rosa Marques, realizada em 30 de abril de 2010, já citada.
221
351
Ibid..
352
PORTER, Roy. História do corpo. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História. Novas Perspectivas. São
Paulo: Editora Unesp, 1998, p. 326.
222
Em outras entrevistas foi citado o nome João Batista Marinho de Vasconcelos, médico
e amigo de Padre Albani Linhares, que colaborou durante muitos anos com o Movimento,
prestando assistência gratuita aos camponeses e às camponesas da Diocese de Sobral. O
doutor João Batista é citado tanto na entrevista das coordenadoras Valnê e Maria Alice, como
aparece muito nas entrevistas dos camponeses e das camponesas.
Tal médico aparece na narrativa de Rosa Marques, o que ilumina a compreensão de
como a presença de um profissional da saúde nos Encontros de Esposas ajudava as mulheres
do campo, sem muito acesso a informações, a sanar suas dúvidas sobre diversos assuntos.
Nesses Encontros, realizava-se uma dinâmica em que as camponesas escreviam bilhetinhos
com perguntas diretamente ao médico. A metodologia utilizada era baseada no anonimato,
pois as camponesas não precisavam assinar suas perguntas, o que facilitava para que as
dúvidas mais íntimas fossem externadas. Assim, essas mulheres conheciam melhor o corpo
feminino e seu funcionamento biológico, como também, aprendiam novos cuidados com a
saúde. Como conta dona Rosa:
Foi o doutor João Batista... aí foi ele que foi dar umas explicação às
mulheres, pras mulheres tomar mais experiência na vida né? ... Aí, a gente
fazia uns bilhetim e levava lá pro plenário, fazendo uma pergunta a ele e ele
explicava pra nós mulher. Aí, foi uma maneira que nós aprendemo muito,
que nós tivemo até participação de médico nos Encontros de Esposa né? Aí,
muitas dúvidas que a gente tinha... eu tive um parto gêmeo né? Aí, eu não
entendia a diferença do geramento de um filho só, pra um filho gêmeo... aí,
eu pedi pro doutor João Batista explicar pras mulheres qual era a diferença...
ele foi explicar né... Aí, por isso que eu digo que o Movimento do Dia do
Senhor deu oportunidade da gente já numa idade bem avançada aprender o
que a gente no tempo de nova não sabia. 354
353
Entrevista realizada com Maria Valnê Alves, no dia 08 de dezembro de 2018, em Fortaleza – CE, já citada.
354
Entrevista com Rosa Marques, realizada em 30 de abril de 2010, já citada.
223
355
Os Relatórios dos Encontros de Esposas compõem o Arquivo do Movimento do Dia do Senhor, guardado na
Cúria diocesana de Sobral.
224
passou a admitir o método rítmico, mais conhecido como Tabela, justamente por ser
considerado um método natural de contracepção. Já na década de 1960, a Encíclica Humanae
Vitae, do Papa Paulo VI, publicada em 25 de julho de 1968, novamente explicita a posição
conservadora da Igreja quanto ao assunto, condenando todos os métodos de contracepção
artificiais, tanto femininos quanto masculinos. 356
Portanto, a cirurgia de vasectomia entrava nesse bojo. De acordo com um documento
produzido pela Congregação para a Doutrina da Fé, de 13 de março de 1975, a prática de
intervenção cirúrgica para fins de esterilização não só era proibida, como considerada imoral
pela hierarquia católica. Assim, seu discurso deveria alcançar os fiéis, mas também, todas as
instituições católicas. Principalmente, os hospitais mantidos e administrados pela igreja, tendo
em vista, que nos hospitais laicos, a vasectomia ou laqueadura não sofriam restrições.
Talvez, por um crescente nos debates sobre os métodos contraceptivos na década de
1970 o pontificado católico tenha se manifestado mais uma vez sobre o assunto. De fato, com
o surgimento das pílulas anticoncepcionais no início da década de 1960, verificou-se um
grande investimento em sua propaganda e consumo. Devido ao momento de tensão mundial,
vivido com a Guerra Fria e com as previsões alarmantes de uma explosão demográfica no
decorrer do século XX, as políticas de controle de natalidade passaram a ser assumidas como
políticas de Estado, principalmente, nos países considerados de terceiro mundo, entre os quais
se enquadrava o Brasil e o restante da América Latina.
Atribui-se a isso, uma forte influência dos Estados Unidos, que temiam um possível
avanço do comunismo em áreas populosas e subdesenvolvidas. Não por acaso, os Estados
Unidos foram o maior interessado em desestabilizar as democracias latino-americanas,
financiando ditaduras militares, com amplo apoio civil, em vários países, inclusive no Brasil.
356
Informações sistematizadas a partir da leitura do site:
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19750313_quaecumque
-sterilizatio_po.html. Acesso em: 06 mar. 2019. Nesse sentido, a historiadora Joana Maria Pedro problematiza os
impactos dessas posturas católicas na vida e no casamento de algumas mulheres, pertencentes a duas gerações
diferentes. Basicamente mulheres da ―geração 20-30‖, assim denominadas pela autora, que vivenciaram o
período mais radical, advindo com as orientações de Pio XI, que relataram sofrer sanções de padres com
referência ao assunto, inclusive sendo-lhes negada a absolvição caso confessasse a prática de algum método
contraceptivo. E a ―geração pílula‖, nascidas na década de 1950, que viveram um momento de explosão dos
métodos anticoncepcionais no Brasil, e que não se deixaram impactar muito pelas orientações advindas de Paulo
VI, inclusive relatando que o uso de pílulas nem chegava a ser mencionado nos momentos de confissão.
Conforme explica a autora: ―[...] A partir do final do século XIX, a Igreja Católica, que até então, e desde o
Concílio de Trento, tinha sido discreta em suas perguntas no confessionário, passou a inquirir sobre o uso de
métodos contraceptivos, e a negar a absolvição aos casais que afirmavam utilizar meios para evitar a gravidez
indesejada. Em 25 de julho de 1968, a Encíclica Humanae Vitae reafirmou que qualquer ato matrimonial deveria
permanecer aberto à transmissão da vida. Assim, somente o método do ritmo continuava sendo considerado
lícito. As pílulas, ou outros métodos chamados de ―artificiais‖, foram condenados‖. PEDRO, Joana Maria. A
experiência com contraceptivos no Brasil: uma questão de geração. Revista Brasileira de História. São Paulo,
vol. 23, n. 45, 2003, p. 239-260, p. 252.
225
Tais ditaduras assumiram uma política de controle populacional, também, financiada pelo
capital norte-americano. Nesse momento, a atuação do movimento feminista também fez
aquecer esse debate. 357
Portanto, o documento de 1975 não trazia um debate inédito. Intitulado ―Resposta
sobre a esterilização realizada nos hospitais católicos‖, tal documento versava o seguinte no
seu primeiro ponto:
1. Deve-se considerar como esterilização direta aquela a qual, por sua natureza
e condição transforma a possibilidade de gerar em incapaz de procriar,
conforme se entende nas declarações do Magistério Pontifício,
especialmente de Pio XII. Tal esterilização está absolutamente proibida,
portanto, segundo a doutrina da Igreja, apesar de qualquer reta intenção
subjetiva dos autores que buscam a cura ou prevenção de um mal, tanto
físico quanto psíquico, que se prevê ou se teme que possa surgir da gravidez.
E, por uma razão mais grave, está proibida a esterilização desta referida
capacidade, mais ainda a esterilização dos casos particulares, já que aquela
produz na pessoa a quase sempre irreversível esterilidade. E não se pode
invocar nenhuma ordem da autoridade pública, que em razão de um bem
comum necessário queira impor a esterilização direta, porque lesionaria a
dignidade e inviolabilidade da pessoa humana. Igualmente, não se pode
invocar neste caso o princípio da totalidade, pelo qual se justificam as
intervenções sobre os órgãos por um bem maior da pessoa; com efeito, a
esterilidade procurada por si mesma não se dirige ao bem integral da pessoa
corretamente entendido, ―salvo à ordem das coisas e dos bens‖. Ao contrário
prejudica o próprio bem ético, que é supremo, ao deliberadamente privar de
um elemento essencial à atividade sexual prevista e livremente escolhida. Eis
que o artigo 20 do Código de Ética Médica, promulgado pela Conferência de
1971, apresenta fielmente a doutrina que se deve manter, sendo urgente a sua
observância.
357
Essas questões são exploradas por Joana Pedro em artigo já referenciado. Nesse sentido, a historiadora
esclarece a relação de interferência direta dos Estados Unidos nas políticas públicas do Brasil, apontando que:
―[...] Embora não tenha partido do Estado brasileiro qualquer iniciativa explicitamente controlista, atuaram no
país sociedades civis internacionais, principalmente nas camadas populares. Foi o caso da IPPF — International
Planning Parenthood Federation, que viria a financiar, a partir de 1965, a BEMFAM — Sociedade Civil Bem-
Estar Familiar no Brasil. [...] O comércio da pílula anticoncepcional teve início no Brasil em 1962, dois anos
após ter sido aprovada nos Estados Unidos pelo FDA — Food and Drug Administration — a pílula chamada
ENOVID, produzida pelo laboratório Searle‖. (p. 242)
226
eram os patos. Já aqueles que conseguiam alcançar o teor político e reflexivo do Movimento,
fazendo uma ligação entre fé e vida, eram os gansos.
Portanto, o sigilo era necessário, inclusive, para que não se chegasse aos ouvidos do
bispo Dom Walfrido Teixeira Vieira ou da comunidade diocesana. Nesse sentido, Valnê
Alves rememora os nomes de alguns dos camponeses que foram vasectomizados e o modo
―clandestino‖ conforme se realizava o procedimento, o que se pode considerar como uma
postura de vanguarda para um movimento de base do interior do Ceará.
Olha, o Abdias fez, o Antônio Pires fez, Chico Alexandre. Sei que uns
quatro ou cinco fizeram e teve um deles que se desfez... Primeiro, ainda
era... O João Batista fez, assim, vamos dizer meio clandestino porque a
própria Igreja não, não era contado dentro do programa da diocese. Porque o
Dia do Senhor era uma instituição, querendo ou não, ligada à diocese e
ligada aos vigários... o Batista fez tudo, como eu disse, meio clandestino, de
graça, muito ligado, sabendo da situação. Não era uma coisa muito
divulgada. 360
Tanto não era divulgado na época, como também, isso parece ter se constituído em
uma memória velada entre os camponeses que realizaram a cirurgia, pois não é um assunto
fluido em suas narrativas, ao contrário. O conhecimento desse fato foi decorrente,
primeiramente, de conversas informais com o ex-dirigente Antônio Pires, que também se
submeteu à vasectomia. Foram necessárias algumas entrevistas para que o mesmo se sentisse
à vontade para falar sobre o assunto diante do gravador e, ainda assim, de forma muito breve
como se tivesse rompendo um segredo de outrora que, aliás, não era apenas individual, mas
revelava também a experiência de outros companheiros. Certamente, Antônio Pires sabia que
aquilo que estava revelando era uma contradição do próprio Movimento, tanto que esse fato
foi vivenciado com sigilo, assim permanecendo até depois de seu fim.
Por seu turno, o ex-dirigente Francisco Alexandre que entrou no Movimento em
1974, também se submeteu à cirurgia e ao falar sobre esse assunto, observou-se também certa
cautela, tanto é que sequer menciona o nome da cirurgia. Talvez, se não fosse por intermédio
de Antônio Pires, Francisco Alexandre nem teria confiado seu segredo a essa pesquisa. No
entanto, ao contar sua história, o mesmo esclarece alguns critérios utilizados pelo médico João
Batista para realização desses procedimentos.
Através de sua narrativa, percebe-se a seriedade com que era tratada a questão, pois o
médico se reunia anteriormente com os camponeses, possivelmente, com a finalidade de
360
Entrevista realizada com Maria Valnê Alves, no dia 08 de dezembro de 2018, em Fortaleza – CE, já citada.
228
Ainda, pela fala do entrevistado, é possível conjecturar que para o doutor João Batista
a vasectomia parecia ser o método contraceptivo mais adequado, por ser considerada uma
cirurgia mais simples que a laqueadura realizada nas mulheres. De certa forma, a postura do
médico parecia estar condizente com a visão de controle populacional aplicada pelo Estado,
distanciando-se da concepção religiosa, como também, reflete o momento que vivia a ciência
médica no Brasil, que recebia como novidade o avanço nas pesquisas sobre contracepção,
visto que até a década de 1960, esse conteúdo nem mesmo era ensinado nas faculdades de
medicina do país.
Na experiência do Movimento do Dia do Senhor, além da vasectomia para os
camponeses, outros métodos contraceptivos também foram orientados para as camponesas,
como o uso da pílula anticoncepcional, em casos mais extremos, e o método da Tabela, cujo
controle se dava pela privação de relações sexuais nos períodos férteis das mulheres. Esse
último método, considerado uma contracepção natural, portanto, aceito pela Igreja foi
amplamente recomendado pela Equipe de Coordenação dos Encontros de Esposas, tanto que,
nas entrevistas realizadas é o mais citado.
No entanto, através das lembranças das entrevistadas, percebe-se que nem tudo que era
orientado pelo Movimento, de fato, era praticado por essas mulheres. Na narrativa de Socorro
Teixeira, constata-se uma fissura com relação ao uso da Tabela: ―[...] Nessa época, a irmã
Maria Alice orientou muito a gente a fazer nessas tabela, mas eu nunca fiz essa tabela porque
não acertava fazer, não controlava...‖. (Risos).362
Quando as orientações do Movimento passavam a interferir na intimidade do casal
parece que se tornava mais difícil para as esposas seguirem-nas à risca, visto que, nem todos
361
Entrevista realizada com Francisco Alexandre, no dia 10 de outubro de 2015. Em Itapipoca – CE. (Arquivo
da autora)
362
Entrevista com Maria Socorro Teixeira, realizada em 08 de abril de 2017, já citada.
229
os maridos concordavam com essas medidas restritivas à vida conjugal, como revela dona
Socorro: ―[...] Ele não concordava não... e eu não controlei e ele também não me ajudou‖.
Além da resistência dos esposos, percebe-se que as camponesas também não compreendiam
bem as orientações para realização da Tabela. Como se evidencia no exemplo acima, em tom
de riso, Socorro reconhece: ―[...] nunca fiz essa tabela porque não acertava fazer, não
controlava‖. 363
Entre as mulheres que recordaram do uso da Tabela também está Antônia de Castro,
Toinzinha, que rememora sua experiência:
Mas nessa aí, nós se perdemo tudim... A Lucimar, ela dava a reunião pra
nós, e ele pros homem, sobre a relação, essas coisas, pra evitar tanta criança,
né? Nós tudim entremos numa tabela, parece que foi seis ou foi mais... sei
que era bem umas seis ou sete mulher, na tabela. Mulher, nós embuxudemo
tudo duma vez. (risos) Fizemo errado mesmo. 364
A narrativa de dona Toinzinha corrobora com o que foi lembrado por Socorro
Teixeira. Principalmente, o fato de as camponesas não acertarem o uso da Tabela. Nesse caso,
a memória de Toinzinha recupera uma experiência coletiva de sua comunidade, que era a
mesma de dona Socorro. Isso demonstra certa fragilidade na relação entre aquilo que era
ensinado e o que era aprendido. Embora, sua fala denote consciência da importância desse
método para evitar o nascimento de muitos filhos, sua compreensão sobre o processo aparece
de forma anedótica. Nesse caso específico, o riso da narradora se deu justamente pelo
desacerto das camponesas com relação à Tabela e a coincidência de engravidarem no mesmo
período. Aliás, o riso, até mesmo de constrangimento, foi comum nas entrevistas quando se
tratava de temas que envolviam a sexualidade.
Outro ponto, é que a narrativa de Toinzinha também oferece indícios de que a Tabela
fora tomada como método contraceptivo incorporado ao programa formal dos Encontros de
Esposas, sendo debatido tanto nos Encontros anuais, como nas reuniões comunitárias, que
aconteciam regularmente nas localidades rurais. Por isso, tal método é amplamente lembrado
tanto pelas esposas quanto pelos esposos, que tiveram que ser inseridos nesse debate. Ao
contrário, da Vasectomia e das pílulas anticoncepcionais, a Tabela constitui elementos de uma
363
Entrevista com Maria Socorro Teixeira, realizada em 08 de abril de 2017, já citada.
364
Entrevista com Antônia de Castro Sales, realizada em 08 de abril de 2017, já citada.
230
memória pública, forjada de acordo com as orientações dadas pela Coordenação, repetidas
vezes.
Em contrapartida, o uso da pílula parece ter sido uma alternativa pontual para alguns
casos de maior gravidade, em que a gravidez colocaria em risco a vida daquelas camponesas
com idade mais avançada ou que já tivessem passado por complicações nos partos. Nesse
sentido, o intuito da Equipe de Coordenação era preservar a vida feminina. É o que se
depreende da narrativa de Valnê Alves sobre os casos específicos em que o Movimento
orientou o uso de pílula anticoncepcional:
Por esse relato, percebe-se que o principal intuito da Equipe de Coordenação era sanar
um problema que poderia se agravar a ponto de levar a morte da camponesa em questão.
Assim como esse caso, outros apareceram no período que Valnê esteve atuante no
Movimento, sendo tratado de forma semelhante, como rememora a entrevistada: ―Eu me
lembro bem da Rita, do caso dela... a Luzia também, depois daquele parto... ela usou
anticoncepcional. Esses dois casos eu sei porque a gente comprava o negócio [...]‖. 366
No entanto, ainda de acordo com o relatado, nota-se que a utilização dos
anticoncepcionais era falha, assim como também o era a utilização da Tabela. Talvez, isso se
explique por serem métodos estranhos ao universo cultural das camponesas, pois antes de sua
participação nos Encontros de Esposas, possivelmente, sequer tinham ouvido falar nesses
métodos. Embora existisse no país um programa de distribuição de anticoncepcionais para as
mulheres das classes populares, como visto acima, tudo indica que isso passou ao largo das
365
Entrevista realizada com Maria Valnê Alves, no dia 08 de dezembro de 2018, em Fortaleza – CE, já citada.
366
Ibid.
231
camponesas do Movimento, pois em nenhuma das entrevistas aparece menção a esse fato.
Isso, talvez, tenha se concentrado nos grandes centros urbanos.
Tanto era uma novidade para as camponesas, como era inovador para um Movimento
da igreja católica. Aparentemente, essas mulheres não apresentaram resistência ao uso da
pílula, e sim uma falta de aprendizado, o que significa, mais propriamente, um choque entre o
saber popular e saber médico/científico. A própria Valnê, em seu exercício de memória sobre
esse fato, elabora uma avaliação em torno do método utilizado pelo Movimento, em que
chama atenção para as ―lacunas‖ deixadas entre o discurso e a prática.
Ao rememorar sua experiência com o trabalho com as mulheres do campo, a ex-
coordenadora interpreta que ―[...] compreendê-las significava também lê nas entrelinhas‖. O
que nem sempre foi possível. Em outras palavras, a avaliação feita pela entrevistada diz do
choque cultural que tencionava as relações entre as camponesas e os intermediários culturais
que compunham a Equipe de Coordenação, os quais vinham de uma realidade urbana, letrada
e de classe média. A autoavaliação elaborada por Valnê é fundamental para se entender os
sentidos que foram sendo construídos durante sua experiência no Movimento, como posterior
a ele, no atual momento em que a entrevistada é estimulada a falar e (re)interpretar o que
vivenciou. 367
A partir da narrativa de Valnê identifica-se a construção de uma memória circunscrita
a um pequeno grupo que incluía a Equipe de Coordenação, o médico e os poucos camponeses
que se submeteram à cirurgia, assim como, circunscrita às camponesas que foram orientadas
ao uso das pílulas anticoncepcionais. Esses casos são aqui analisados como a exceção da
regra, que ultrapassaram os limites do ordinário, que era vivenciado com todos, e do oficial,
que era imposto pela igreja católica. Em outras palavras, assemelha-se à noção de ―memória
subterrânea‖ que destoa da memória hegemônica e homogênea construída pela maioria dos
participantes do Movimento do Dia do Senhor, tendo em vista que sequer tiveram
conhecimento de tais práticas.
Embora não constituindo uma memória traumática, como mais apropriadamente
seriam as memórias subterrâneas conceituadas por Michael Pollak, faz-se apropriação dessa
concepção por este fato se constituir numa memória velada para alguns participantes. Uma
memória que representou, em algum momento, um perigo para este Movimento e, portanto,
367
Nesse sentido, de acordo com Portelli: ―[...] A subjetividade, o trabalho através do qual as pessoas constroem
e atribuem o significado à própria experiência e à própria identidade, constitui por si mesmo o argumento, o fim
mesmo do discurso. Excluir ou exorcizar a subjetividade como se fosse somente uma fastidiosa interferência na
objetividade factual do testemunho quer dizer, em última instância, torcer o significado próprio dos fatos
narrados‖. (p. 60)
232
fez-se clandestina, deixando de aparecer nas ―versões oficiais‖ contadas pela documentação
368
escrita que compõe o seu arquivo. Não se entende como uma memória traumática
propriamente dita porque, de acordo com as entrevistas realizas com os camponeses que
realizaram a cirurgia de Vasectomia, percebeu-se que o motivo do segredo não era para
esconder um fato de sua vida pessoal, não aparentou ser vergonha, arrependimento, medo ou
outro sentimento que maculasse diretamente suas experiências individuais. Percebeu-se que
esse segredo vinha sendo guardado muito mais para a proteção da imagem do Movimento.
Ainda em sua entrevista, Valnê Alves demonstra sua autoridade narrativa ao afirmar
que as decisões da Equipe de Coordenação respondiam aos impasses que iam aparecendo com
o fazer do Movimento. Interessante salientar que a experiência da entrevistada restringe-se
aos primeiros anos do Movimento, em que atuou até o ano de 1973. Portanto a indicação da
pílula parece não ter obedecido a um programa previamente definido, diferentemente do
método da Tabela, abertamente orientado durante a década de 1980, pela Coordenação que
lhe sucedeu. O que se observa é que, principalmente, nos primeiros anos, parece que a
Equipe ousava nas resoluções dos problemas, mesmo tendo consciência dos riscos que
corriam. Por isso, nem tudo era registrado nos arquivos do Movimento, nem divulgado para
todos os participantes, conforme se depreende da narrativa abaixo:
368
Em uma análise circunscrita ao universo do Movimento do Dia do Senhor, compreendo certa semelhança com
a análise mais geral trazida por Pollak em que explica: ―[...] Ao privilegiar a analise dos excluídos, dos
marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte
integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à "Memória oficial", no caso a memória nacional.
Num primeiro momento, essa abordagem faz da empatia com os grupos dominados estudados uma regra
metodológica e reabilita a periferia e a marginalidade. Ao contrário de Maurice Halbwachs, ela acentua o caráter
destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva nacional‖. POLLAK, Michael. Memória,
esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15, p. 2.
369
Entrevista realizada com Maria Valnê Alves, no dia 08 de dezembro de 2018, em Fortaleza – CE, já citada.
233
O homem, por mais que tenha desenvolvido seu poder de domínio sôbre o mundo,
ainda não chegou a ser o senhor do processo de gerações das criaturas
humanas...saber cientificamente como se processa uma coisa e até mesmo repeti-
la em laboratórios ainda não é o domínio criador que lhe possa atribuir direitos
autorais. A geração continua com um processo que está fundamental e
essencialmente nas mãos da natureza. E como a natureza não tem mãos, é a mão
de Deus que se deve atribuir êsse processo. EVIDENTEMENTE, as célebres
pílulas estavam na mente do Papa ao afirmar tais coisas. Mesmo assim a gente
não pode dizer que o ensinamento papal seja principalmente sôbre elas. Coisa
muito importante viu Paulo VI por trás das pílulas. O papa orienta, não decide a
minha opção concreta. Diante disto, vejo a possibilidade bem real de casal,
em determinadas circunstâncias, tranquilamente tomar suas pílulas, apesar
de saber que elas frustam o processo generativo natural e que frustar êste
mesmo processo é contra a lei divina. O uso do dispositivo Intra – Uterino para
impedir a gravidez está sendo difundido amplamente em São Paulo. O trabalho
maléfico está sendo feito por entidades filantrópicas subvencionadas por
organizações internacionais e clínicas particulares. RAZÕES – As razões
apresentadas para justificar o uso do DIU são de carater assistencial levando
em conta as dficuldades econômicas para munutenção da prole e a
ignorância de como evitá-la e apontando como resultado positivo a queda do
índice de abortos criminais ou não. 370 (Grifo meu).
370
Jornal Correio da Semana, Sobral – CE. Datado de 14 de setembro de 1968, Ano 51, Nº 21, p. 02.
234
371
Nesse sentido, o Jornal católico O Nordeste, pertencente à Arquidiocese de Fortaleza, assim como o Correio
da Semana, também apresentava o debate em torno da contracepção, em sintonia com o que pregava a recém-
publicada Encíclica Humanae Vitae. Conforme se constata no artigo de MENEZES, Valderiza Almeida.
Discursos sobre contracepção: disputas pelo corpo (Fortaleza- Ceará, 1960-1980). In: Fazendo Gênero 9:
diásporas, diversidades, deslocamentos. 2010. http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais. Acesso em:
24 abr. 2019.
372
Para essa reflexão me aproprio da discussão realizada por DEL PRIORE, Mary. História das Mulheres: as
vozes do silêncio. In: FREITAS, Marcos César de. Historiografia Brasileira em Perspectiva. Op. Cit.
235
Nesse sentido, o nordestino era visto como um sujeito forte, viril, valente, que
defendia a sua honra masculina até às últimas consequências, se preciso fosse, utilizando da
violência e da força bruta que estava acostumado. Para o historiador Durval Muniz de
Albuquerque Júnior, essas características inserem o nordestino no âmbito de uma sociedade
que se constituiu falocêntrica, que reafirmava o homem/macho como elemento superior.
Aí quando foi a volta (de Varjota pra Almofala), pra voltar eu disse pra uma
amiga lá: ―conceição, eu vou voltar com quem?‖ Ela disse: ―você vai voltar
com meu marido Agustim.‖ [...] Aí, ele selou o cavalo e aí, eu fiquei
pensando assim só dentro de mim (parece uma certa timidez, né?): ―mas eu
ir com este homem uma distância tão grande nos matos, nenhum povoado no
meio! Sei lá, meu Deus!‖. Aí, de repente, pr‘acabar de ficar eu mais tímida
eu vi ele preparando uma faca pra botar no quarto. Porque os camponeses
sempre, eles andam armado com um ferro. Que eles vão pro trabalho, tem
que cortar um cipó, um espinho, uma coisa qualquer que eles precisa cortar.
374
ALBUQUERQUE JÙNIOR, Durval Muniz. Nordestino: invenção do ―falo‖. Uma História do gênero
masculino. (1920-1940). São Paulo: Intermeios, 2013, Coleção Entregêneros, p. 176.
237
[...] Ah mas aí num prestou não... quando eu vi a faca... esse homem com a
faca no quarto, eu fiquei com muito medo. 375
Embora fosse comum na cultura camponesa, naquele momento, o uso da faca por um
recém-conhecido causou desconfiança em Rita. De passagem, isso mostra outra característica
do nordestino, que é cismado, cabreiro, desconfiado, seja homem ou mulher. Numa leitura
mais profunda, esse relato mostra que a violência masculina estava presente na realidade em
que viviam as mulheres do Movimento. Caso contrário, esse medo de Rita não teria sido
cogitado. De fato, nas reuniões dos Encontros de Esposas, algumas mulheres relatavam casos
de violência que sofriam dos maridos, por vários motivos, inclusive, porque estes não
aceitavam que suas esposas participassem dos Encontros. No meio rural nordestino a
violência contra a mulher, explícita ou velada, parece ter sido uma constante.
Na verdade, essa violência, hoje caracterizada como doméstica, com uma legislação
que protege a vítima e pune o agressor, não foi privilégio de algumas mulheres camponesas,
mas atingia e, ainda atinge, muitas mulheres, independente de etnia, classe social ou geração.
Nesse sentido:
De modo geral, essa moral sexual dupla, referida acima, fora introjetada tanto pelo
masculino quanto pelo feminino, o que faz com que o machismo seja percebido e reproduzido
tanto no pensamento, como no comportamento de homens e de mulheres. A própria mulher,
na criação dos filhos, reproduziu esse pensamento durante muito tempo, inquestionavelmente.
A partir da inserção de mulheres em movimentos sociais, grupos de reflexão feminina de
375
MACCABE, 1994, p. 79.
376
LAGE, Lana; NADER, Maria Beatriz. Violência contra a mulher: da legitimação à condenação social. In:
PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (Orgs.). Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2012, p. 287.
238
natureza diversa, principalmente, feminista, essa forma de criação dos filhos passou a ser
questionada, o que se transformou num debate profícuo, se estendendo até os dias atuais.
Na experiência dos Encontros de Esposas do Movimento do Dia do Senhor não foi
diferente. O tema da criação dos filhos foi recorrente em muitos Encontros, resultando até em
reflexões cantadas, o que certamente, chegava com mais facilidade nas demais companheiras
e, mesmo, nos companheiros.
Nazaré Flor foi uma das camponesas que se destacou muito na luta pela terra e pela
igualdade entre os gêneros, se tornando respeitada por mulheres e homens do Movimento. Sua
compreensão sobre o papel da mulher na reprodução do machismo fora externada diversas
vezes, em versos. Assim, dizia seu canto ―Vem, mulher‖: ―Oh! Mulher, tua história será
refletida/ Na medida que tu a viver!/ Tens nas mãos a criança que nasce em teu lar/ É você
que a deseduca/ Porque deixou o machismo crescer‖.377
No entanto, mesmo com essas reflexões presentes nos Encontros de Esposas, e com
algumas mulheres se conscientizando e, até mesmo, assumindo uma luta contra o machismo e
a desigualdade entre os gêneros, a realidade de seu cotidiano, no interior de seus lares, nem
sempre correspondia ao que debatiam nesses Encontros. A própria Nazaré apresentou
ponderações com relação ao pensamento de sua filha, Valda, com relação à autonomia
expressa pela mãe, ao vestir um ―vestido de alça‖ sem pedir o consentimento ao marido. Ao
passo que Nazaré contava o episódio, também refletia sobre a profundidade da questão,
entendendo-a como uma ―coisa de raiz‖, cultural.
Agora um dado interessante sobre minha filha: outro dia eu fiz um vestido de
alça e fui vestir aqui pra minha sobrinha ver... e a Valda foi logo dizendo:
―mãe mostre ao papai. O pai não viu. O pai mata a mãe.‖ Olhe! Da boca das
crianças. Que a mãe deve vestir sobre o controle do pai. Eu acho que ela vai
usar sobre o controle do Manuel. Manuel vai dizer o jeito do vestido dela
que ela diz que eu não posso vestir vestido de alça: se o pai me ver me mata.
Que na cabeça da menina-mulher parece uma coisa já de raiz. Ela deve ter
dado fé de alguma coisa na sociedade que mulher deve ser assim, que
homem deve ser assim. É uma coisa que é enraizada, que é cultural... é uma
coisa da cultura da mulher. Está enraizada. 378
Das expressões utilizadas por Valda, recuperadas pela narrativa de Nazaré, explicita-se
o peso do machismo e o aspecto da violência masculina como forma de disciplinar a mulher
que foge à regra do bom comportamento. Dessa forma, a filha repreende a mãe justamente
377
MACCABE, 1994, p. 154.
378
Ibid., p. 153.
239
pelo receio da atitude do pai ao se deparar com sua esposa vestida em trajes considerados
indecentes ou impróprios para uma mulher casada, que se vestia sem o consentimento do
marido. ―O pai mata a mãe‖, dizia Valda de forma hipotética para o caso de Nazaré, que na
realidade tinha certa autonomia em seu casamento. No entanto, o pensamento reproduzido por
Valda demonstrava a naturalização da violência do homem contra a mulher, podendo
repreender, punir e, até mesmo, matar sua esposa caso não fosse devidamente respeitado pela
mesma.
Nessa mesma entrevista, concedida a Maria Alice, quando ambas ainda participavam
do Movimento, percebe-se uma profunda crítica de Nazaré ao mundo machista que vivia.
Conta que, desde muito jovem, rebelou-se contra os padrões femininos estabelecidos, o que
não era bem aceito nem por sua mãe, nem pela sociedade, sendo considerada uma ―moça
doida‖. No seu entendimento, taxavam-na de doida porque era livre, alegre, até certa medida,
era uma moça independente.
Uma das coisas que eu acho interessante que existe um grande tabu que a
mulher só deve andar acompanhada de alguém, a mulher tem que ter vigia,
seja quem for, e eu nunca admiti isso. A minha mãe brigava comigo, viu,
brigava porque eu era uma moça doida, eu queria sair por aí sozinha. (...)
Outra coisa a questão de ser alegre, de me rebolar, de me distrair... então, eu
era tida como moça doida. 379
Nazaré cresceu trabalhando. Desde os doze anos de idade que começou a trabalhar, de
variadas formas: alfabetizando as crianças de sua comunidade, costurando à mão, tanto para
fora de casa, como para vestir seus familiares, como também, trabalhava no período das
farinhadas. Trabalhava, como ela mesma disse: ―pra ganhar meu trocado‖. Dona de um
espírito independente e livre, Nazaré ―[...] tinha sonhos de viajar, quando lia, (eu gostava
muito de ler) aí eu lia histórias de outros estados do Brasil e tinha vontade de conhecer. Eu
tinha vontade de andar, de conhecer o mundo de viajar‖. Por outro lado, negava-se a abrir
mão de sua liberdade, recusava-se a se submeter ao trabalho doméstico, em casa de família.
Assim, ―Ser empregada eu não queria de jeito nenhum‖.380 Portanto, Nazaré fugia aos padrões
das jovens camponesas de sua região. Porque era diferente, era ―doida‖.
Pela sua própria narrativa e pela memória de outras camponesas sobre Nazaré se
conhece a mesma como uma mulher faceira, que gostava de se embelezar, maquiar o rosto,
379
Ibid., p. 57.
380
Ibid., p. 56.
240
colorir os lábios com batom, usar o cabelo curto, vestir roupas de alças, cada vez mais finas.
No entanto, esse comportamento não era usual para as mulheres de sua geração, justamente
pelo machismo que imperava no campo. Os pais, irmãos, namorados, maridos, enfim, os
homens a que essas mulheres estavam submetidas não consentiam essas ousadias, pois
liberdade demais não era coisa para ―mulher direita‖.
No caso de Nazaré, esse comportamento foi sendo conquistado, pois contrastava com
o modelo de roupas mais vestidas, com mangas, e com o longo cabelo que usava na época em
que se casou. Tal comportamento foi sendo conquistado, de acordo com a afirmação de sua
autoestima e de sua autonomia que, no caso de Nazaré, esses aspectos delineavam sua
personalidade desde jovem, mas foram sendo reforçados com sua atuação no Movimento, nos
Encontros de Esposas, e em outros espaços de luta que ocupou durante sua vida. Por sentir na
pele os preconceitos por ser uma mulher diferente, talvez, ousada para a época e o lugar que
vivia, Nazaré Flor tecia críticas ao mundo machista, mas também, reconhecia os limites que
esse mundo impunha à atuação das mulheres.
E a verdade é que o mundo é tão machista que a gente, mesmo querendo ser
revolucionária, a gente não é. A gente vai até certo ponto e recua... recua,
porque mesmo na cabeça da gente tendo abrido novos horizontes, para os
homens não abriu, nem tampouco pra muitas mulheres ainda continua
fechado. Por isso a gente sempre é assim um pouco dependente ainda. Muito
embora que, diante de algumas mulheres, a gente já tem uma história muito
avançada. 381
Nazaré Flor se casou com 23 anos, quando seu pai já tinha falecido. O pescador
Manoel José de Sousa é considerado pelos homens e mulheres do Movimento como um bom
esposo, justamente, por permitir que Nazaré tivesse a liberdade de ser a mulher que queria ser.
Liberdade de viajar para os Encontros de Esposas e de se engajar em muitos outros
movimentos de mulheres, como o Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR),
inclusive, chegando a ser representante das Mulheres Rurais de Maceió, sua comunidade, na
4ª Conferencia Mundial de Mulheres na China. No entanto, Nazaré reconhecia os limites que
seu esposo gostaria de lhe impor. Para manter sua autonomia, assumia uma luta fora e dentro
de casa também.
O Manuel até certo ponto, ele tem que calar a boca, porque não pode... Outro
dia, ele diz uma coisa que eu fiquei pensando que é que tem na cabeça dele.
381
Ibid., 60-61.
241
Alguém disse: ―A Nazaré faz isso, que é que o Manuel diz?‖ Aí, ele disse:
―Eu não digo nada, não, sempre eu não mando nela!‖ ―Sempre eu não
mando...‖ é como se ele tivesse a vontade de mandar, mas só que não
controla. A gente sente que dentro dele está a vontade de mandar, como
todos os homens mandam. 382
382
Ibid., p. 63.
383
Ibid., pp. 62-63.
384
Entrevista realizada com Francisco Alexandre Moura, em 10 de outubro de 2015. Em Gualdrapas, Trairi –
CE, já citada.
242
porque sua participação partira do interesse e insistência de seu próprio esposo, porque como
dizia ele: ―eu acredito no Movimento das mulher‖. Em sua narrativa, fazia questão de frisar a
quantidade de mulheres reunidas, ―[...] Foi dois dias de reunião, duzentas mulher...‖,
certamente, para mostrar a força da organização de Nazaré e demais mulheres.
Chama atenção também para a inversão de papéis de gênero durante o encontro. Por
um lado, as mulheres reunidas, debatendo, tomando decisões, do mesmo modo que acontecia
nos encontros dos dirigentes do Movimento. Por outro, os homens fazendo às vezes do
feminino, cuidando da alimentação, do banho e da casa, oferecendo o suporte necessário para
suas mulheres, como tantas vezes elas haviam feito para eles.
Esse encontro também ficou marcado na memória de Terezinha, conforme afirmou:
―[...] Eu sei que o que me marcou mais. Foi a Nazaré dizendo que a mulher não pode ser
escrava do marido‖.385 Com mais propriedade que seu esposo, pois participou efetivamente do
encontro, Terezinha conta como se iniciou no Movimento e o teor das discussões que agrupou
aquelas duzentas mulheres que tanto impressionou Francisco Alexandre.
385
Entrevista realizada com Terezinha Santos de Oliveira Moura, em 08 de abril de 2017. Em Gualdrapas, Trairi
– CE, já citada.
386
Ibid.
243
Com a autoridade de uma testemunha ocular, Antônio Pires diz daquilo que viu, não
somente do que viu nos momentos dos Encontros de Esposas que, mesmo de longe,
acompanhava pescando um ou outro debate que ocorria na plenária da casa onde morava.
Mas, também diz daquilo que viu e ouviu de seus companheiros do Movimento quando de
suas andanças nas comunidades, visitando as casas dos amigos e, ao mesmo tempo,
reforçando o trabalho de base, participando de reuniões comunitárias em sindicatos,
associações, ou realizando as celebrações do Dia do Senhor.
Portanto, seu Antônio situa a realidade vivida pela maioria dos casais camponeses, em
que a mulher não podia tomar ―qualquer iniciativa da sua livre vontade, já tinha qualquer uma
forma de repressão‖. Em contrapartida, sua narrativa também situa o processo de
transformação pelo qual passavam essas mulheres quando começavam a participar do
Movimento. Sua percepção é interessante porque traz claramente a ideia de processo, ao
passo, que traz explicações como: ―[...] as mulheres se tornavam mais... muito mais
valorizada porque participavam mais‖, ou ainda, ―as mulheres foram tomando força‖.
Percebe-se que o próprio entrevistado está sempre fazendo o uso da noção de tempo contínuo,
o que sugere dinamismo, mudança.
Outro ponto interessante é que, embora o entrevistado não considere o Movimento
feminino como ―paralelo‖, mesmo assim, reconhecia-o como criado pelas mulheres e
pertencente a elas. A narrativa não parece querer diminuir a participação feminina, no entanto,
cabe a reflexão de que as questões gerais do Movimento do Dia do Senhor pertenciam a
todos, camponeses e camponesas, inclusive com a participação de algumas mulheres nos
Encontrões e em outras atividades, como nos conflitos de terra. Agora, as questões tratadas
nos Encontros de Esposas eram somente das mulheres, nem somente porque os homens não
podiam participar, mas, talvez, por uma visão, também, dicotômica de que ali se discutia
assunto de mulher e que não alcançaria o interesse masculino. Uma visão machista, talvez.
Em sua ―análise‖, expressão utilizada na narrativa, o que denota que o ex-dirigente
não só relembrou momentos vividos durante o Movimento como que fizesse um passeio no
388
Entrevista realizada com Antônio Pires, em 10 de outubro de 2015, em Itapipoca – CE. (Arquivo da autora)
245
tempo, mas elaborou reflexões em torno dos aspectos vividos. Nem todos os entrevistados
conseguiram realizar com tanta clareza o ato de lembrar e, ao mesmo tempo, analisar ou
refletir sobre o fato lembrado. Percebe-se que esse discernimento da memória está mais
presente nas entrevistas realizadas com os sujeitos que assumiam a Coordenação dos
Encontros de Esposas. Supõe-se que, no caso de Antônio Pires, isso também se apresenta
porque, além de compor a ―Nata‖ do Movimento, o que significava uma espécie Coordenação
camponesa, que assumiu o comando já na segunda metade da década de 1980, o mesmo tinha
um comprometimento de corpo e alma.
Antônio Pires foi um dos dirigentes que viveu para o Movimento do Dia do Senhor e
essa vivência se reverbera até os dias de hoje. Quando é procurado para contar sua
experiência, o faz com muito entusiasmo, como se quisesse reviver o passado. Em algumas
vezes, serviu de guia para esta pesquisa, acompanhando e cuidando das devidas apresentações
entre a pesquisadora e os entrevistados. De certo modo, muitas das vozes que ecoam nessa
pesquisa são decorrentes de uma seleção realizada pelo ex-dirigente que, tudo indica,
estabelecia o critério de indicar aqueles sujeitos que tiveram maior engajamento no
Movimento.
Ao selecionar os entrevistados Antônio Pires contribuía para a construção de uma
memória que se pretendia verdadeira ou autêntica justamente pelo fato de ser lembrada por
sujeitos que detinham o respaldo da fala porque vivenciaram plenamente o Movimento do Dia
do Senhor e conheciam profundamente sua história. Consideravam-se uma espécie de
guardiães da memória, diga-se da passagem, de uma memória positiva, deliberada. 389 Talvez,
nesses reencontros com os companheiros e companheiras de outrora tenha alimentado o
espírito e a memória, pois segundo Antônio Pires: ―[...] Eu não tenho nada pra lembrar é antes
do Movimento. Porque pra mim, eu nasci com o Movimento... aí quando eu comecei
participar do Movimento, pronto, abriu o mundo pra mim, sabe?‖. 390
389
Nesse sentido, recorre-se a análise de POLLAK sobre os trabalhos de enquadramentos da memória, quando o
mesmo comenta o caso de sua pesquisa sobre o campo de concentração Auschwitz-Birkenau, em que uma das
dirigentes da Associação de Deportados lhe abria caminho para o contato com algumas de suas entrevistadas
alertando sobre alguns aspectos que o pesquisador deveria compreender. Assim: ―[...] Dentro da preocupação
com a imagem que a associação passa de si mesma e da historia que é sua razão de ser, ou seja, a memória de
seus deportados, é preciso portanto escolher testemunhas sóbrias e confiáveis aos olhos dos dirigentes, e evitar
que "mitômanos que nós também temos" tomem publicamente a palavra‖. (p. 10)
No caso desta pesquisa, ao selecionar os entrevistados Antônio Pires contribuía para a construção de uma
memória que se pretendia verdadeira ou autêntica justamente pelo fato de ser lembrada por sujeitos que
detinham o respaldo da fala porque vivenciaram plenamente o Movimento do Dia do Senhor e conheciam
profundamente sua história. Consideravam-se uma espécie de guardiães da memória, diga-se da passagem, de
uma memória positiva, deliberada.
390
Entrevista com Antônio Pires, realizada em 10 de outubro de 2015, já citada.
246
Porque uma coisa é a mulher acompanhar o marido, pra onde o marido for
no Movimento, em qualquer trabalho, na Igreja, no sindicato. Isso é uma
coisa, a mulher acompanhar o marido né? A outra coisa é a mulher ser ela
própria, sabe? Em qualquer discussão, em qualquer participação, sabe? E
quando elas se juntavam, eu não participava das reuniões, mas, às vezes, era
lá onde eu morava, lá no prédio, lá no Violete, eu adorava aquilo ali, sabe?
Mulher falava com coragem, falava com disposição... e aquelas que se
sentiam... porque naquele tempo ainda existia, ou existe né? Maridos que
não aceitava muito a mulher se tornar autônoma, era unido, um casal unido,
mas pra mulher seguir, obedecer e seguir como... como determinada norma,
sabe? Aí, eu via que tinha muitas que... que... que quebrava essa corrente,
sabe? Na discussão com as outras, aquelas que eram assim, com as outras,
elas quebravam essa corrente, aí, se sentiam mais independente, mais
autônoma. Não no sentido de pisar no pescoço do marido, sabe? De butar a
faca no pescoço do marido, sabe? Mas, no sentido de ajudar mesmo... pra
não ser mais só o homem, não ser mais só o marido. Ser o marido e a mulher
juntos na mesma luta, na mesma caminhada, na mesma força. 391
391
Ibid.
247
reponsabilidades domésticas durante os dias de ausência de suas esposas, mesmo que fosse
em nome do Movimento.
Outro ponto que enfatiza esse ―lugar de homem‖ é expresso na ideia de cuidado
feminino, em que a mulher deve cuidar do marido, assim como cuida dos filhos, cuida da
casa, cuida da comida, enfim, muito próxima da noção de escrava, inclusive, muitas vezes
questionada pelas próprias mulheres nos Encontros de Esposas. De acordo com a narrativa:
Tinha homens que apoiava muito, dava toda força, fazia tudo que precisasse.
Mas, tinha outros que não apoiava muito porque homem é muito... eu não sei
dizer a palavra certa.. é homem, é homem, sabe? Achava ruim ficar em casa
só pra fazer comida, sabe? Lavar prato, embora tivesse filho e tudo, mas tem
homem que é tão assim, fica tão no lugar de homem que nem pra administrar
os filhos... pra fazer o que precisa em casa ele acha que não é papel dele.
Aquilo ali é papel da mulher... não é que eles privassem das mulheres ir, só
que eles sentiam muita dificuldade né? Ficar dois dias, três dias sem a
mulher em casa pra tá cuidando dele. 392
392
Ibid.
248
ainda mais emblemático, pois ambos continuaram ativos no Movimento mesmo com as
dificuldades na esfera privada. A força de Rosa é admirada pelas companheiras e pelos
companheiros do Dia do Senhor, como também, por seu ex-marido.
Essa separação foi difícil tanto para o casal como para o Movimento que, mesmo
assumindo algumas posturas de vanguarda, primava por sua essência católica e pela tradição
da cultura camponesa, em que homens e mulheres aprendiam, desde cedo, a importância do
casamento. Inclusive, muitas vezes, esse casamento era carregado como uma ―cruz‖ por
algumas mulheres. No entanto, devido à força desse sacramento, mantinham-se casadas como
pregava o discurso religioso. Nesse sentido, a separação de Antônio e Rosa foi muito
conversada entre o povo do Movimento, como se constatou nas entrevistas do casal, sendo
também, relatado por outras camponesas. Portanto, ressalta-se que no fazer dos movimentos
sociais a máxima de que o ―privado é político‖ se torna mais evidente.
Outro exemplo de dirigente do Dia do Senhor que apoiou inteiramente a participação
da esposa no Movimento foi Bernardo da Costa Ferreira, esposo de Rita de Cássia. Em sua
entrevista, Bernardo também recupera a realidade de opressão em que viviam as mulheres da
comunidade em que moravam, Juritianha, em Acaraú. Contrapondo a autonomia e liberdade
de sua esposa Rita aos tipos de privações que as outras mulheres eram submetidas, o ex-
dirigente reconhece a importância do trabalho realizado por sua esposa para a transformação
dessa realidade. Rita de Cassia foi uma grande militante do Movimento, que compunha a
NATA dos Encontros de Esposas e que atuou incansavelmente na organização das mulheres,
inclusive, criando a Associação das Rendeiras de Juritianha.
Nesse sentido, Bernardo relembra a dificuldade de sua esposa até mesmo para
conseguir convencer às rendeiras a se engajarem na Associação, tendo em vista que os
maridos não permitiam suas esposas fora de casa. Em alguns casos, Rita teve que convencer
os próprios maridos. Segundo o entrevistado, sua esposa conseguiu ―puxar gente‖ devido ao
respeito que tinha na comunidade e a seu poder de convencimento. Apesar das dificuldades,
com o tempo, foi-se percebendo algumas mudanças no comportamento dos maridos para com
suas mulheres. Bernardo fala com um ar de orgulho sobre a autonomia de sua esposa,
ressaltando que a mesma era uma mulher ―liberta‖. Avalia a militância e o trabalho realizado
por Rita como um ―gesto santo‖, conforme se depreende da narrativa.
Pra mim era um gesto santo que ela fazia. Porque a luta dela, justamente, era
para o desenvolvimento das pessoas. Que as mulheres eram muito oprimida
naquele tempo e desenrolou muita coisa, muita coisa... Mas uma mudança
grande logo naquele tempo. Teve cidadão que pediu perdão a ela e a nós:
249
―seu Bernardo, eu peço perdão a dona Ritinha, seu Bernardo. Pelo jeito que
eu tratava minha mulher lá em casa.‖ E hoje a lição que vocês dão... Não
tinha liberdade de sair, trabalhava na Associação, mas se dissesse que tinha
que sair, eles não deixava. E a minha era liberta, ia pra Fortaleza, ia pra onde
ela queria, ia pros treinamento onde chamava. E ela começou puxando gente.
393
Respeitar a autonomia feminina também passava pela questão financeira. Sabe-se que
diante da pobreza e da falta de recursos em que os casais camponeses viviam o trabalho
produtivo das mulheres era o que gerava uma renda a mais e, até mesmo, na velhice, quando
as camponesas tiveram o direito à aposentadoria, essa aposentadoria era incorporada ao
orçamento doméstico. Portanto, era comum essa renda feminina passar quase que,
instantaneamente, para as mãos de seus maridos. Em sua narrativa, Bernardo relembra um
episódio em que fora interpelado sobre o dinheiro de sua esposa: ―[...] Aí chegou um homem
pra mim e disse: ‗na tua casa é dois dinheiro? Ah bom, meu irmão, não vai pra frente não (...)
La em casa quando a mulher chega, eu passo a mão.‘‖ 394
A concepção de que as mulheres não precisavam de dinheiro era corrente entre os
homens do campo. Talvez, isso esteja associado ao fato de que o sustento das mulheres e da
família devia ser obrigação masculina, mas, também, acredita-se que tenha a ver com a noção
de que a mulher não sabe administrar o dinheiro, porque é considerada ―gastadeira‖, no dizer
dos camponeses. Nota-se que ambas as justificativas partem de uma compreensão machista,
decorrente do modelo de sociedade patriarcal, na qual estavam inseridos. No entanto, a
compreensão de Bernardo parecia destoar do comportamento masculino padrão de sua época:
Naquele tempo era obrigação do homem sustentar a mulher, dar tudo que ela
precisava. Então, ninguém dava tudo porque ninguém tinha. Mas, só em ela
ganhar aquele dinheirim que já não dependia do meu, em determinados
momentos, vixe, era um prazer muito grande pra mim e pra ela. Tanto é que
quando ela aposentou-se, ela e eu, eu liberei o dinheiro dela. 395
393
Entrevista com Bernardo da Costa Ferreira, realizada em 13 de novembro de 2018, em Juritianha, Acaraú –
CE. (Arquivo da autora)
394
Ibid.
395
Ibid.
250
machista. Justamente, aquele discurso do qual buscou se distanciar quando se referiu a seu
conhecido que ―passava a mão‖ no dinheiro da esposa. Nesse sentido, quando Bernardo diz:
―eu liberei o dinheiro dela‖, embora se entenda que ele disse com o intuito de esclarecer que
não contava com a renda da esposa para o orçamento da casa, a forma como disse remonta à
ideia de que ele, o marido, estava no controle, e não sua mulher. Deixa implícito que a
autonomia financeira de Rita dependia de sua liberação. Não sendo, portanto, uma conquista
da mesma.
Com essa observação não se quer pôr em dúvida a narrativa do entrevistado. Até
porque, de acordo com entrevistas de outras camponesas e de sujeitos da Equipe de
Coordenação dos Encontros de Esposas, confirma-se a autonomia e a independência de Rita
de Cássia com relação ao seu esposo. Apenas se quer chamar à atenção para a força da
ideologia patriarcal, impregnada na mentalidade masculina, tão difícil dos homens se
distanciarem que, mesmo àqueles que procuram destoar desse modelo, caem nas armadilhas
do discurso machista.
Se esse desprendimento parecia difícil para os esposos que participavam do
Movimento do Dia do Senhor e que apoiavam o engajamento de suas mulheres nos Encontros
de Esposas, muito mais difícil o era para aqueles que não participavam de movimento
nenhum e que, portanto, passavam ao largo das discussões travadas sobre as relações de
gênero. No entanto, mesmo com a incompreensão e resistência de seus maridos, algumas
camponesas subverteram a ordem patriarcal que lhes era imposta e começaram a se utilizar de
396
certas ―estratégias e táticas‖ para conquistarem sua liberdade, autonomia e libertação
dentro do casamento.
Nesse sentido, o Movimento do Dia do Senhor, com seus Encontros de Esposas, vem
tocar exatamente nessa limitação historicamente imposta ao papel que a mulher representa na
sociedade, fazendo com que as mulheres camponesas extrapolassem os limites do lar, da sua
comunidade rural e da submissão aos ditos do marido. Irismar, da comunidade de Trairi,
diocese de Itapipoca foi uma das muitas mulheres do campo que tiveram que enfrentar seu
marido para participar do Movimento e demarcar sua atuação fora do espaço doméstico. Em
sua narrativa, apresenta sua trajetória no Dia do Senhor, bem como, suas artimanhas para
driblar o ciúme e a dominação de seu esposo:
396
Aqui me aproprio dos conceitos formulados por Certeau que, em linhas gerais, define que ―[...] a tática é
determinada pela ausência de poder, assim como a estratégia é organizada pelo postulado de um poder [...]‖ Cf.:
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1. As artes de fazer. Petópolis – SP: Vozes, 2012, p. 95.
251
Começei assim, foi nos anos oitenta, até antes logo, mas eu falo logo do
oitenta. Era difícil né, era difícil sair de casa, por causa do marido né. Que o
marido não queria que a gente saísse. Primeiro, eu me espelhei na Dalva, que
a Dalva foi a mais velha que começou a sair de casa. Com dificuldade
também. Aí eu já me espelhei nela, né? Aí comecei a participar deste
encontro do Dia do Senhor, através da Maria Alice, do Padre Albani. Aí veio
esses encontros de esposas através da Maria Alice, porque ela via que as
mulheres eram muito escravas do marido, e aí tinha esses encontros de
esposas pra elas ficarem mais livre... teve uns que eu nem fui, com medo,
que o marido me ameaçou se eu fosse, sabe pegou uma corda e dobrou e
disse se eu teimasse, ele me alampiava, né? E aí teve uns que eu não fui, mas
só que eu não desisti não. Continuei pra frente, não fui nesse dia, mas... fui
tentar né? Fui tentar e até que, assim, encontrei a libertação junto com as
outras. 397
397
Entrevista realizada em 12/10/2015 com Maria Irismar Vieira Linhares, conhecida como Mazinha, do
município de Trairi, Diocese de Itapipoca. Atualmente, Irismar continua casada e vive um matrimônio feliz,
posto que conseguiu demarcar seu espaço na relação e conquistar a confiança e o respeito de seu esposo.
(Arquivo da autora)
398
Ibid.
252
Entende-se que Irismar não se deixando intimidar pelas constantes ameaças do marido
se utilizava de argumentos legais, como seus direitos de esposa e mãe para demarcar seu lugar
na relação, relembrando ao esposo que a casa que lhe estava sendo negada a entrada, também
era sua. Outro ponto que se destaca na fala da entrevistada é a vontade de atuar na sociedade,
ou seja, fazer parte da Associação, ocupar um espaço público, em alguns casos,
marcadamente masculino. A fé, a providência divina, também é marcante em sua fala, o que
situa o lugar social, político e religioso em que estava inserida. Assim, Irismar desenvolvia
diversas táticas para permanecer na sua luta por autonomia e libertação feminina, driblando o
ciúme, o machismo e a violência com que convivia.
Sem enfrentar diretamente os arroubos de violência do marido, ela se ―movimentava
dentro do campo de visão do inimigo‖, se apropriando de artimanhas como o silêncio, a
oração e a proteção dos filhos e de outros familiares. Assim, a tensão acalmava e a
normalidade da rotina fazia parecer que tudo estava resolvido. Nesse ritmo, Irismar conseguia
se desdobrar entre seu papel de esposa, mãe e dona de casa e suas funções no Movimento do
Dia do Senhor e na Associação comunitária.
Desse modo, o que fica evidente é que, entre táticas e estratégias, algumas mulheres
que compunham o Movimento do Dia do Senhor ultrapassaram a dimensão da submissão e da
passividade que historicamente foram designadas ao feminino, subvertendo tais
representações a seu favor. A conquista da autonomia e da libertação feminina foi se
configurando com o fazer-se do próprio Movimento, em uma dimensão paralela à luta pela
terra e pelas demandas de trabalho e de justiça social dos camponeses sendo, inclusive,
reconhecida entre os homens do Movimento. Nessa luta, também, as mulheres se inseriam e,
ora explicitamente, ora astuciosamente, demarcavam seus espaços e garantiam ganhos de suas
lutas específicas.
253
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Socorro teve que enfrentar inclusive seu próprio esposo, que também era sindicalista.
Quando a mesma compôs uma chapa para disputar a presidência do Sindicato, em que
assumiria a tesouraria, o mesmo não aceitou que ela assumisse o cargo de tesoureira do
Sindicato, contrapondo-se até mesmo à vontade da maioria que havia votado na chapa dela.
Assim, seu esposo impunha sua dominação publicamente perante os demais companheiros,
como narra a entrevistada:
No entanto, evidencia-se em sua narrativa a resistência com que enfrentou seu esposo,
também publicamente. Enfrentamento esse não somente no discurso, mas também, na prática,
pois como explicitou, naquele momento, ela assumiu a tesouraria, como parece ter assumido o
Sindicato como um lema de vida, do qual fazia parte até o presente momento de sua vida.
Faz-se importante ressaltar que a entrevista com Socorro foi realizada justamente por ocasião
de um evento do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itapipoca. Nesse evento, participaram
filiados dos sindicatos de Itapipoca e de Trairi. Embora tenha se observado uma presença
maior de participantes do sexo masculino, algumas mulheres marcaram presença, como
Raimunda, Elita, Irismar, Dalva e Nenzinha. Todas mulheres que atuaram nos conflitos de
terras das comunidades rurais do Trairi, como se evidenciou no terceiro capítulo, e que são
sindicalizadas.
399
Entrevista realizada em 10 de outubro de 2015, em Itapipoca – CE. (Arquivo da autora).
400
Idem.
256
Como também, o protagonismo dessas mulheres não foi esquecido por seus
companheiros e companheiras do Movimento, do trabalho no campo e de luta pela terra.
Como exemplo, destaca-se a memória e a história de Nazaré flor que foi lembrada por todos
os entrevistados dessa pesquisa, como também, foi homenageada pelos moradores do
Assentamento Maceió, pelo qual lutou até conseguir a posse do território, com o seu nome em
uma escola do Assentamento, a Escola do Campo Maria Nazaré de Sousa - Nazaré Flor.
Mesmo depois de sua morte, Nazaré floresce através do seu legado de lutas e conquistas que
aparece nas histórias que contam sobre ela. Seu legado também foi recuperado para o filme
―Terra de Nazaré‖, dirigido por Shaynna Pidori, lançado no ano de 2019.
Fonte: Fotografia retirada da reportagem ―Uma semente chamada Nazaré Flor‖. Disponível no site:
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/03/politica/1556895207_173258.html
257
6. FONTES
Oral). 1994. S/e. Exemplar cedido por Maria Alice. (O livro conta com as entrevistas de Rita
de Cássia, Joana, Gesilda, Maria José, Diana, Conceição, Nazaré Flor, Cícera, Elita, Teresa).
Entrevistas realizadas por Lídia Ferreira ainda no período de existência do
Movimento do Dia do Senhor:
Grupo de Mulheres da comunidade de Serra Verde. As transcrições encontram-se no Arquivo
do Movimento.
MAcCABE, Maria Alice (Org.) ―A nossa luta foi uma luta sagrada”: O povo do
Assentamento Maceió conta a história de sua luta pela terra. Fortaleza: Instituto Terramar,
2015.
Jornais:
Correio da Semana, Sobral, 24 de abril de 1965, Ano 48, n.º 02, p. 03.
7. SITES CONSULTADOS
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CETRA www.cetra.org.br
CNPJ https://www.basecnpj.com
DUCOCO www.ducoco.com.br
FUNCEME http://www.funceme.br/app/calendario/produto/ceara/media/anual
IBGE https://www.ibge.gov.br
INCRA http://www.incra.gov.br/sites/default/files/uploads/reforma-
agraria/questao-agraria/reforma agraria/projetos_criados-geral.pdf
MISEREOR www.misereor.org
MST http://www.mst.org.br
UIRAPURU http://www.radiouirapurudeitapipoca.com.br
VATICANO
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_
con_cfaith_doc_19750313_quaecumque-sterilizatio_po.html
260
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ANEXOS
266
Fotografia do casal Abdias Marques e Maria Fausta Marques, Sítio Alegre, Morrinhos.
Arquivo da autora
Fotografia de Joana Maria de Sousa Silva, irmã de Rita de Cássia. Juritianha. Acaraú.
Arquivo da autora.