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Eu te amo como uma criança dirigindo um carro

Francisco Ramai
Direitos autorais © 2019 Francisco Ramai

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ISBN: B0891J84GV

Design da capa por: Erick Saraiva


Número de controle da Biblioteca do Congresso: 2018675309

Impresso em João Pessoa - PARAÍBA


Todos nós, seres humanos que vivemos em sociedade, somos atravessados
pela linguagem. Tudo o que conhecemos, tudo o que nos constitui, tudo o que
damos sentido e significado se manifesta através da nossa capacidade de
linguagem. Dentre as diversas possibilidades de nos expressarmos, a poesia é
uma das minhas preferidas, pois carrega em si a dor de quem a escreve, a dor
de quem a lê, e principalmente a beleza e a leveza das pequenas coisas que as
nos- sas vidas tão corridas e frágeis nos impedem de ver. É nessa perspectiva
que leio-sinto os versos do Ramai. As pequenas dores do dia a dia estão ali.
Em cada verso, em cada linha, no livro todo, num ônibus perdido, no animal
de estimação que se foi, na saudade da pessoa amada, naquela rua que você
sempre passa e num determinado dia percebe algo que nunca viu, no cantinho
da cama que você dorme, na vista panorâmica da janela do ônibus, enfim, na
beleza e na dor de estar vivo em sociedade. Boa leitura.

Kaio Bruno Dias


professor e escritor
“Naquele momento não havia criança mais ali. Todos eram grandes,
grandes e tristes, ceando a mesma tristeza aos pedaços.” (José
Mauro de Vasconscelo)
º
seus olhos castanhos
ficaram marcados na minha cabeça
como quando alguém
pisa sem querer no cimento fresco
e deixa uma pegada marcada
por toda a eternidade
ou até que alguém destrua
º
hoje passei um café
pra tomar sozinho
mas ficou forte demais.

fiquei com inveja,


queria ser forte que nem ele.
º
se um sorriso
desarmaria
uma guerra
eu não sei
mas o teu
me desarma
do pé
à cabeça.
º
quando te vejo
meu coração acelera
não é infarto
é amor em fartura
º
apelidei
todos os ônibus que pego
cada um com o nome
de algum amigo, amor ou parente
que a vida me tirou
só pra ter a chance
de todos os dias
matar um pouco
das saudades que sinto
º
hoje o lixão do meu bairro pegou fogo
e a fumaça do incêndio
se mesclou com as outras nuvens negras no céu. eu achei aquilo muito
lindo,
é impressionante!
quando o coração tá inspirado
até o desastre fica bonito.
º
fica difícil não olhar pra trás
sabendo que você tá lá
º
não lembro mais do formato dos teus olhos. nem da cor
nem do tamanho dos cílios
nem da forma como as lágrimas gotejam dele.
só lembro que sempre que via
eles brilharem de perto
tudo dentro de mim se contorcia
e meu coração se desesperava
e isso fazia o existir
ficar um pouco menos chato.
º
quando eu reclamava do calor pra você
você me abanava
ligava o ventilador
passava gelo no meu corpo
e o calor passava
agora você foi embora
e o calor não me incomoda mais
tudo ficou frio
º
muito mal educada
essa tal de saudade
que aparece sem avisar
fica tempo demais
e quando vai embora
deixa tudo bagunçado
º
eu querendo sair contigo
meu coração querendo sair pela boca
e um blues de Tim Maia
que meus vizinhos já detestam
querendo ser declamado no teu ouvido;
assim são meus domingos.
º
quando eu me canso de mim
corro pros teus braços
mas eu sempre tô cansado de mim
e nem sempre você me aceita
aí acabo ficando sem você
e sem eu.
fica só um corpo vazio
tentando entender
como o amor funciona...
º
ser adulto é contar nos dedos
quantas vezes já falei esse mês
que tudo o que eu queria
era que isso passasse logo
º
é engraçado
eu não suportar
ficar perto de algumas pessoas
nem por alguns segundos
mas querer ficar o resto da vida
com a cabeça encostada no teu ombro
º
faz dias que não me sinto bem,
mas isso não me assusta.

o problema é que faz dias


que também não me sinto mal.

a vida anda neutra


e isso sim me apavora.
º
eu juro que não entendo
como pode existir gente no mundo
com a capacidade de não suspirar
quando te vê passando
º
morro de inveja
do teto do teu quarto
que toda noite
te assiste dormir
º
desde que minha cachorrinha Luma faleceu todo latido que escuto
eu acho que é dela
º
na hora de colocar a ração
era sempre dividido
metade pra Luma metade pra Nina
mas Luma morreu
e agora a ração vai toda pra Nina.

ela fica feliz,


eu não.
º
vejo da janela
o trio do carnaval passar
e enquanto as pessoas normais mijam na porta do meu prédio
eu escuto o primeiro disco duma banda que você me indicou
enquanto me pergunto
se você teria gostado
dos poemas que te escrevi
e apaguei
º
deve haver
um código oculto
em cada outdoor
de cidade grande
que deixa todo
mundo no ônibus
meio deprimido
º
tenho certeza
que você não é
psicopata
pois me disseram
que psicopatas
não deixam rastros
e eu vejo um pedaço teu
em todo lugar
que vou
...
falando em psicopata, eu só escrevo poemas que não são sobre você pra
não parecer um maníaco.
º
eu tinha onze
quando eu disse pra mim
que ficar triste é coisa de criança
aí fiz quinze
e disse pra mim
que ficar triste
é coisa de adolescente
até que fiz vinte
e percebi que ficar triste
é coisa de quem tá vivo
e isso me deixou triste
como nunca tinha
deixado antes
º
existe uma única fotografia nossa
que não tive coragem de rasgar
deixo ela numa caixa de sapatos
definhando na poeira do tempo
e assim como você faz comigo
eu só a procuro
quando as coisas não estão indo bem
º
várias vezes nessa vida
eu tentei ter um diário
mas sempre no decorrer das páginas
tudo
vai ficando
tão igual...
º
cada vez que olho pra janela
a cidade e as pessoas
me parecem mais distantes
º
hoje senti teu cheiro
no caminho de casa
e nunca tinha imaginado
que um cheiro
machucasse desse jeito
º
às vezes me sinto tão sozinho
que acho que até meus amigos imaginários
arranjaram amigos melhores
e por isso pararam de aparecer
º
um dia morro
de saudades
daquela pessoa
que imaginei
que você fosse
º
a família que mora
no apartamento vizinho
briga quase todo dia
e eu, que hoje moro sozinho,
fico ouvindo a gritaria da janela
morrendo de inveja
e saudade do povo lá de casa.
º
eu pensei num poema ótimo
enquanto ia no mercado comprar detergente
mas ele fugiu por minha boca
junto com o ar
quando suspirei de tristeza
na fila do caixa.
só lembro que ele dizia
que tem noite que o mundo fica meio sei lá.
aí decidi escrever qualquer poema
sem pé nem cabeça ou sentido algum
só pra combinar com a vida mesmo.
preciso contar pra alguém
que no domingo eu fui sozinho ao cinema
e contei piadas péssimas sobre o filme
pra um amigo imaginário.
e que eu ando passando
muito tempo dentro do ônibus
e sinto que sempre que o trânsito faz
os passageiros chacoalharem
eu enxergo a solidão voando
de uma pessoa pra outra
se espalhando feito germe.
hoje o arroz passou do ponto
eu chorei lendo José Luís Peixoto
eu perdi meus fones
e cheguei atrasado pro trabalho.
ando distraído demais
e fico olhando pra cidade
sem pensar em nada
sentindo o cheiro de fracasso e desistência
que se espalha por toda rua que eu piso.
sei não, acho que a tristeza
tem uma queda por mim
e que a solidão
armou uma rede no meu coração
e descansa nele tranquilamente...
º
a vida me faz andar sempre apressado
mas eu de vez em quando dou um jeito
de andar devagarzinho
pra ver se encontro você pela rua.
º
você diz que tem
uma palavra na ponta da língua
e a minha língua fica
morrendo de inveja
dessa palavra sortuda
º
ela com aquele jeito doce
pediu que eu escrevesse
um poema sobre nós dois
e automaticamente
todas as palavras de amor
existentes na línguas portuguesa
surgiram numa folha em branco
intitulada com seu nome
º
tua risada
escandalosa
escandaliza tudo
aqui dentro
º
o combinado
era ficar pra sempre
mas você entendeu
pra frente
e me deixou pra trás
º
eu sou eu
aí você chega
e eu sei lá
º
tem dia que parece difícil ser feliz como se o sorriso
ficasse entalado na garganta
feito um pedaço de bolo muito grande. mas tem dia que parece tão
fácil ser feliz
que todas os dias que passei chorando parecem não fazer o menor sentido.
queria saber explicar isso,
mas é coisa que não se explica. é só meu coração moleque
tentando lidar com o tempo.
º
é muito triste
olhar o brilho dos olhos
de quem a gente amou um dia
e só sentir dor.
é como sair num dia lindo de verão
e tentar olhar pro sol.
º
a gente pra enganar a fome
come qualquer coisa
só que eu burro
fui generalizar
e tentei enganar o coração
amando qualquer pessoa
º
“apenas seja você mesmo”
é um péssimo conselho pra mim
que não faço a mínima idéia de quem sou
º
eu já beijei
tantas outras bocas
que nem lembro mais
o gosto do teu beijo

ainda assim
entre todos
prefiro o teu
º
se há quem ache muito
existirem quatro porquês
imagina se soubessem
quantos porquês existem
por dia na minha cabeça
sobre saudades

meus maiores sonhos são lembranças


paradoxo

se toda vez que eu


sentir tua falta
te procurar
vou te procurar tanto
que nem vai dar tempo
sentir sua falta
devo te procurar
assim mesmo
º
eu não compreendo muito bem
a relação que meu coração
tem com a rotação do planeta terra
mas sempre que meu coração tá doendo
o dia parece passar mais devagar
º
quando pergunto
como você vai
quero dizer sério
como você
tem coragem de ir?
º
quando o dente não dói
a dor é nas costas
quando não é nas costas
é no joelho
quando não é no joelho
é o coração que dói
mas sempre tem
alguma coisa doendo
sobre o autor

por Ramai

Eu comecei a escrever como quem se apaixona: de repente e sem


querer. Explico: como qualquer adolescente que se preze, eu fazia umas
músicas pra mostrar pros amigos. Nessa onda, uma amiga, Danielly, me
chamou pra colocar nossas letras numas folhas de ofício e sair colando
pela cidade.Topei. Nos encontramos lá em casa, aprendemos a fazer cola
pelo Youtube, subimos na Biz da minha mãe e saímos no calor do sertão
se sujando de poesia. Colando nossos versos nos postes por aí. Criamos
uma página no Instagram pra divulgar fotos do projeto, e eu nunca mais
fui o mesmo. Comecei a escrever só pra colar na cidade e publicar no
Instagram, passei a ler mais só pra aprender a escrever melhor, e fui
seguindo minha vida, embora a mesma, agora nova. Isso tudo em 2016.
Comecei a juntar dinheiro vendendo na rua e na internet uns livretinhos
com meus poemas, e em 2018, com 19 anos, peguei o notebook velho
do meu irmão e fiz a correção, a diagramação e a capa, e lancei o meu
primeiro livro, numa tiragem de 100 cópias. Criei uma loja virtual, vendi
os livros, mandei pelos Correios, e em 2019 lancei mais dois. E em 2020
mais outro. E foi as- sim, nessa indecisão entre solidão e independência,
que me tornei cada vez mais eu mesmo.

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