Você está na página 1de 110

Sandra Field Caminhos do Coração

Caminhos do Coração
(Sandra Field)
Copyright: Sanda Field
Título original: "Out of wedlock" Publicado originalmente em 1.985 pela Mills &
Boon Ltd., Londres, Inglaterra
Copyright para a língua portuguesa: 1986 Nova Cultural
Digitalização: Polyana
Revisão: Edith

RESUMO: Ela só queria de volta a paz que Michael lhe roubara!


O sol começava a dissolver os últimos vestígios de neve e cobria a cidadezinha
com sua luz quente, gostosa. Aline saiu de casa para mais um dia de trabalho,
pensando no que um homem rico e sofisticado como Michael Gault poderia querer
com ela, que passava horas metida num macacão sujo de graxa, consertando
carros na oficina do avô.
Na certa ele buscava uma aventura, e Aline jamais aceitaria ser um joguete nas
mãos do homem que amava!

1
Sandra Field Caminhos do Coração

CAPÍTULO I

O Mercedes negro cortava silenciosamente a escuridão...


"Uma frase poética, sem dúvida, pena que não seja verdadeira", pensava
Michael Gault, com um sorriso irônico nos lábios, enquanto retornava para sua
fazenda, em Starr River, onde criava ovelhas. Ele não conseguia entender como
um
carro tão luxuoso podia produzir tantos ruídos incômodos.
Seu mau humor aumentou ao chegar a um trecho da estrada, margeada por
uma floresta densa e impenetrável, que tornava o local mais escuro, Para piorar a
situação, chovia bastante, e os grossos e pesados pingos batiam com uma força
incrível contra o pára-brisa. Michael sentiu-se completamente só. Não havia
casas,
nem luzes, e muito menos outros carros passando por ali.
Repentinamente, os faróis iluminaram uma subida e, quando Michael pisou no
acelerador, o motor rateou e o carro foi perdendo velocidade, caindo
rapidamente de
noventa quilômetros por hora para oitenta, setenta. .. Irritado, ele apertou com
força
o pé no acelerador e o Mercedes conseguiu, com dificuldade, vencer a subida.
Mas Michael começou a ficar preocupado, pois o carro só mantinha a
velocidade normal nas descidas. "Maldição", pensou, arrependendo-se por não ter
usado seu velho jipe.
Por que fora dar ouvidos à sua amiga Mary? Se ela não tivesse insistido para
que ele levasse aquele carro luxuoso, Michael teria , evitado todos esses
transtornos.
"Bela amiga eu fui arrumar!", pensou, sentindo a raiva aumentar.
É
Preferia ignorar que ela havia avisado que o motor não estava funcionando
bem, ao lhe entregar as chaves. Provavelmente, Mary imaginava que ele ia dar um
jeito. "Essas mulheres. . . Pensam que, só por ser homens, temos a obrigação de
saber desmontar um motor e consertá-lo!"
Mas, apesar de tudo, o Mercedes conseguiu ultrapassar mais uma subida.
Michael Gault tentou, se localizar, pois havia percorrido aquela estrada apenas
uma
ou duas vezes. Preferia viajar pela rodovia principal, não muito longe dali.
Pensou que
5
a não ser que estivesse enganado, deveria haver uma vila ali
por perto e um posto de gasolina, onde uma vez, no verão, parara para encher o

2
Sandra Field Caminhos do Coração

tanque do jipe. Recordava-se disso porque o rapaz do posto tinha uma expressão
séria, rabugenta até, comprometendo a propaganda turística, que apresentava os
moradores daquela região como expansivos e hospitaleiros.
Nessa noite, porém, Michael não tinha outra saída senão dirigir-se para
aquele posto. Se tivesse sorte, conseguiria chegar lá antes que o maldito carro
parasse de funcionar por completo, deixando-o no meio daquele lugar deserto e
escuro. "E se o posto já estiver fechado? Já são quase oito horas!, pensou,
desanimado.
Algum tempo depois, ele vislumbrou as luzes de um vilarejo e a placa verde
que anunciava o nome do lugar: Lower Hampton. Era uma comunidade rural típica
da Nova Escócia; alguns bangalôs modernos e casas mais antigas, a igreja de
campanário branco e o conjunto de pequenas lojas. Felizmente, a placa azul,
vermelha e branca do posto ainda estava iluminada. O Mercedes entrou no pátio
cimentado com dificuldade e parou, aos solavancos.
Michael Gault desceu do carro, deixando o motor ligado, e esticou a perna
com o joelho ferido. Olhou em volta e estranhou que não houvesse ninguém por
ali,
embora as luzes internas da oficina ainda estivessem acesas. Franziu a testa e
empurrou a porta do escritório.
Viu a caixa registradora em cima do balcão e, embaixo, empilhados
cuidadosamente, pacotes de balas e de batatas fritas. Num canto, uma máquina
de
refrigerante e, no teto, uma quantidade de correias de ventilador. Notou ainda
que
nas prateleiras, colocadas em ordem, havia latas de óleo para motor, óleo de
freio e
lubrificantes.
Como Michael, durante uma boa parte de sua vida, havia dependido de
pequenos detalhes para garantir a própria sobrevivência, não pôde deixar de
reparar
na arrumação exagerada do lugar: chão e cinzeiros limpos, cesto de lixo vazio.
Uma
coisa chamou sua atenção:
a música que vinha, provavelmente, de um rádio na oficina. Uma das
sinfonias de Beethoven.
Na porta que dava acesso à garagem havia uma placa: ""Só para
funcionários". Michael não deu a mínima importância ao aviso e entrou. Desceu
dois
degraus de cimento e olhou à volta.
A primeira coisa que viu foi um par de botas gastas, com solas chapeadas,

3
Sandra Field Caminhos do Coração

debaixo de um carro parcialmente suspenso por um macaco.


Michael pigarreou para chamar a atenção justamente no momento em que a
música chegou ao auge, com o som dos violinos aumentando cada vez mais.
Quando as cordas foram substituídas pela flauta, ele resolveu indagar:
- Boa noite! Será que alguém poderia me ajudar? Estou com
um problema no carro.
As botas se movimentaram e logo começaram a surgir as pernas, enfiadas
num macacão, seguidas do corpo, apoiado numa plataforma com rodinhas.
Finalmente, apareceu a cabeça e o sorriso sumiu do rosto de Michael. Era o
mesmo
rapaz calado que o havia atendido no verão, e ele, provavelmente, não teria
condições de consertar o Mercedes.
O rapaz levantou-se da plataforma e Michael observou que ele vestia um
macacão sujo de graxa e um gorro de lã que lhe cobria as orelhas. No rosto,
também sujo de graxa, destacavam-se os olhos cinzentos e sérios e o queixo
pequeno, que demonstrava determinação.
- Pois não? - perguntou uma voz clara e melodiosa. Num movimento
brusco e inesperado, Michael arrancou o gorro da cabeça do rapaz, deixando cair
sobre os ombros cabelos da cor do trigo no verão.
Aline MacCuIloch, furiosa, olhou para ele e falou, quase num
grito:
- Por que fez isso?
- Por um instante pensei que você fosse um garoto.. .
- Bem, como pode ver, eu não sou!
- Então por que o disfarce?
Enfiando as mãos nos bolsos do macacão, ela respondeu asperamente :
- Por acaso acha que eu deveria usar um vestido numa oficina
mecânica?
Michael percorreu-a lentamente com o olhar, das botas gastas até
os cabelos brilhantes.
- Olhe aqui, o que eu quis dizer é que, obviamente, não posso consertar
carros usando renda e fitas - ela concluiu.
- Você conserta carros? - perguntou Michael, surpreso.
- Por que esse espanto? Uma mulher também é capaz de fazer este tipo de
serviço, sabia?
- Você não tem força suficiente, aposto.
- Mas não preciso da força física. Uso ferramentas. Nunca ouviu falar
nelas?
- Você é sempre tão malcriada com seus fregueses?
- Só quando eles me provocam.

4
Sandra Field Caminhos do Coração

- Está bem, está bem. Ouça, por que não me mostra a sua capacidade,
consertando o meu carro?
- Qual é o problema?
- Se eu soubesse, não estaria aqui. É que sou um dos poucos homens que
não entende absolutamente nada de carros. Nem pretendo entender.
Aline prendeu a respiração ao vê-lo sorrir. O sorriso parecia iluminar o rosto
do desconhecido, ressaltando a boca bem-feita e o queixo determinado. A
primeira
impressão que Aline tivera dele era a de um homem comum: cabelos castanhos
claros, nenhum traço marcante, em um rosto que provavelmente não chamaria a
atenção no meio de uma multidão. Os olhos, no entanto, transmitiam um certo
magnetismo e eram azuis, do mesmo tom das hortências que seu avô cultivava
atrás
da oficina.
Subitamente, Aline sentiu os olhos, que analisava tão estranhamente, fixos no
seu rosto, o que a perturbou. Recompôs-se rapidamente e indagou:
- Onde está seu carro?
- Lá fora, na chuva. A não ser que tenha sido roubado, claro. Ela ignorou a
ironia.
- Por estes lados sempre há essa possibilidade. Vou abrir a garagem e você
pode colocar seu carro no elevador.
Puxou a corrente e a porta subiu. Michael baixou a cabeça e correu para a
chuva. Aline ouviu o ruído do motor e, antes que tivesse tempo para pensar,
Michael
estava entrando com o Mercedes negro no elevador. Ela abaixou a porta
novamente
e, com facilidade, enfiou um tubo no escapamento do carro e colocou a outra
ponta
para fora, através de um orifício na porta, para evitar que os gases se
espalhassem
dentro da oficina. Só então deu uma olhada no automóvel, que devia ter uns oito
ou
nove anos de uso, mas estava em excelentes condições.
Aline ficou apreensiva, pois nunca havia lidado com um carro
daqueles. Seria humilhante se, depois de todo seu discurso, não conseguisse
resolver o problema.
Michael abaixou o vidro da janela e perguntou:
- Quer que eu desligue?
- Ainda não. Está totalmente desregulado, não é mesmo?
Ele então lhe fez uma descrição do desempenho do carro na estrada e Aline

5
Sandra Field Caminhos do Coração

ouviu-o, atenta, esforçando-se para não rir.


- O motor só começou a ratear depois que você encheu o
tanque?
- Não tenho a menor idéia. O carro é de uma amiga minha. Enquanto ele
falava, Aline reparou -num par de luvas de pelica,
largadas sobre o painel, certamente tão caras quanto o carro.
- Deve ser uma boa amiga. . . Um Mercedes destes está valendo cerca de
quarenta mil dólares.
- Isso, minha querida, não tem nada que ver com você. Dê um jeito nele,
faça-o funcionar, para que eu possa ir embora, sim?
Aline mordeu o lábio, pois sabia que tinha merecido a repreensão. Mas,
mesmo assim, não gostou da resposta e ficou aborrecida. - Por favor, abra o capo
- disse com rispidez, esforçando-se para concentrar-se no trabalho.
Podia haver água misturada à gasolina ou algum vazamento no conduto de
combustível. Mas, como ela não sentisse nenhum cheiro estranho, decidiu
verificar
primeiro a parte elétrica. Dedicou-se à tarefa com empenho, o que sempre
ocorria
quando passava a diagnosticar a causa de algum problema mecânico.
Teve sorte, pois reparou quase imediatamente no mau estado do cabo de
ignição. Seguiu até a bobina e removeu o tampo de borracha. Endireitou o corpo e
pediu:
- Ligue o drive, pise no freio e acelere.
Soltou um suspiro de satisfação quando ele seguiu as instruções: uma faísca
saiu da bobina, através de uma pequena fenda na parte superior. Ela estava certa!
- Tudo bem, já chega!
Recolocou o tampo e voltou à janela do carro, dizendo:
- A bobina está trincada.
- E o que isso significa? - Michael indagou, aborrecido.
- Que você precisa trocá-la. Posso pedir a peça amanhã cedo ao
revendedor e ela chegará no ônibus da tarde. Demora apenas meia hora para
trocá-la.
E acrescentou, com ar crítico:
- Um dos pneus da frente está com a calibragem baixa. Sua amiga não
cuida muito bem do carro.

- Vamos deixar a minha amiga de lado - ele disse, com calma, - Quer
dizer que não há jeito de arrumar este calhambeque a não
ser amanha?
- Isso mesmo. Mas não menospreze o carro. Ele está longe de ser um

6
Sandra Field Caminhos do Coração

calhambeque. ..
Michael ignorou a resposta e perguntou:
- Ainda faltam uns setenta quilômetros até eu chegar em casa. Como vou
fazer? Vou ter de ir andando?
- Com este carro você não vai a lugar algum. Talvez eu possa encontrar
alguém para lhe dar uma carona.
- A esta hora? E no meio de uma tempestade?
Michael tinha razão. Embaraçada, Aline o observou desligar o motor e sair do
carro. Reparou então que ele usava calça de veludo escuro e uma jaqueta xadrez
sobre um pulôver preto. Roupas simples, que podiam ser compradas em qualquer
loja. O estranho foi que ela percebeu, por trás da aparência comum, uma grande
força de personalidade.
- Não sei o que você vai fazer, moço.
- Acho que vou até o hotel mais próximo,
- O quê? Fica a uns cinco quilômetros daqui e pertence aos Macallum, que
viajaram, na semana passada, para a Flórida.
- Há algum outro?
- Não, não há!
- E uma pensão? Alguma viúva simpática que aceite hóspedes
abandonados?
- Não e não. Estamos em Lower Hampton, um lugar pequeno, Ninguém
pára aqui. As pessoas só vêm de passagem. . .
- É. .. Acho que não tenho saída a não ser dormir no banco traseiro do
carro.
Aline arregalou os olhos e disse, sem pensar:
- Não precisa fazer isso. Pode ficar lá em casa. Arrependeu-se na hora da
oferta, principalmente porque ele pareceu interessado;
- Em que lugar fica?
. - Aqui, pegado ao posto. Moro com o meu avô. Ele, ao contrário de todo
mundo, ficaria encantado em hospedá-lo. Havia uma nota estranha na voz de
Michael quando falou:
- Será que ouvi bem? Está me oferecendo um lugar na sua casa?
Como, se nem me conhece?
- O que mais posso fazer? Está muito frio e eu ficaria com remorso se o
deixasse dormir aqui fora.
10
- Você não acha perigoso hospedar um estranho? Posso ser um
assassino. . . ou um violentador.
- Você não leva jeito de ser nem uma coisa nem outra.
- Como a maioria das pessoas, você acha que alguém traz escrito na testa

7
Sandra Field Caminhos do Coração

que é um assassino. . , Mas posso lhe assegurar que a maioria deles é gente bem
comum.
Aline queria perguntar como é que ele sabia disso, mas limitou-se a sorrir e
falou:
- De qualquer modo, você não parece um assassino.
- Acho que você confia demais nas pessoas.
Irritada com aquele comentário, ela parou de sorrir e disse bruscamente:
- Afinal, quer ou não quer ficar lá em casa?
- Mas eu nem sei seu nome!
- Aline MacCulloch.
- Aline. . . um nome suave demais para você, que devia se chamar
Cynthia ou Jackie, algo mais atrevido. Aline soa como um
suspiro ao vento.
- Ora, pare de ser grosseiro! - e fechou o capo do carro, refletindo nas
palavras daquele estranho sem saber por que elas magoavam tanto.
Um silêncio pesado pairou no ar e, então, ela sentiu mãos fortes
em seu ombro, Ficou tensa, desejando que ele a soltasse.
- Olhe para mim - pediu Michael. - Sinto muito, eu estava brincando. Mas
magoei você, não foi?
Aline afastou-se alguns passos, um tanto perturbada.
- Não foi nada, não - disse, escondendo as emoções. - Acontece que
gosto do meu nome. Por falar nisso, você ainda não me
disse o seu.
- Michael Gault.
Ela apenas fez um gesto com a cabeça, mantendo a expressão
séria.
- Vou fechar a oficina e poderemos ir para casa.
- Eu pedi desculpas, Aline MacCulloch, lembra-se?
Algo na voz dele fez com que ela estremecesse e sentisse novamente a força
extraordinária que aquele homem transmitia.
- Sim, eu me lembro. E o que quer que lhe dê por isso? Uma
medalha?
-Não, porque, pelo seu jeito, você iria me espetar a medalha em vez de
apenas prendê-la. Ouça, detesta todos os homens ou apenas não simpatizou
comigo?
Zangada, ela achou que tinha sido tola em tentar ajudá-lo. Afinal,
ele não passaria tão mal se dormisse no carro. Parecia um homem
acostumado a cuidar de si mesmo.
- Olhe, foi um dia longo, já passou da hora de fechar e eu estou cansada -
disse Aline, tirando as luvas e jogando-as num latão de óleo que servia como

8
Sandra Field Caminhos do Coração

cesto
de lixo. Passou detergente nos dedos e os esfregou com força, enxaguando
depois
as mãos na mangueira enrolada na parede.
- Depois que você responder à minha pergunta, poderemos ir. Ele não
havia elevado a voz e estava encostado no Mercedes,
muito à vontade. Mas Aline não cedeu, indagou secamente:
- Está me ameaçando?
- Como pode imaginar uma coisa dessas? Só espero de você um pouco de
educação.
- Oh, perdoe-me - disse ela com a voz carregada de ironia. - Passei
muito tempo aqui e acho que acabei esquecendo as boas maneiras. Mas deixe-me
dizer-lhe uma coisa, Sr. Gault: desisti de me interessar por rapazes depois de
vir
para Lower Hâmpton. A maioria dos que aparecem aqui no posto só serve para
afugentar as mulheres.
- Então, por que não me exclui dessa maioria? - ele perguntou, atrevido.
Aline achou que aquela batalha verbal estava indo longe demais.
- Não tenho a mínima idéia sobre em que categoria eu o colocaria - disse,
enquanto secava as mãos numa toalha de papel. Em seguida, trancou as portas da
oficina.- Vai precisar de alguma coisa do carro?
- Não. obrigado - ele falou, enquanto a seguia para o escritório, onde Aline
desligou o rádio.
- Sabe que apreciei o seu gosto musical?
- Meu avô detesta o rádio, Diz que só tem propaganda e futebol. E também
não gosta muito de música erudita. Por isso prefiro escutar aqui, na oficina.
- Você sempre trabalha sozinha, mesmo quando escurece?
- Vovô está logo aí ao lado - ela respondeu, impaciente, trancando a
caixa registradora e ligando o alarme contra ladrões. - Vamos indo?
- Está bem, está bem, vou parar de fazer perguntas indiscretas. Não é isso
que você quer?
- Acertou, Sr. Gauft.
Ele saiu para a chuva e ficou segurando a porta para Aline.
- Se a vizinhança é assim tão perigosa, porque contínua neste trabalho?
12
- Não há outra opção - ela respondeu em tom seco. - Vamos ter de dar
uma corrida até em casa, se não quisermos ficar encharcados.
A residência era de madeira, pequena e simples. A pintura branca da parede
estava nova, como se estivesse sido pintada recentemente, e os batentes da
porta e

9
Sandra Field Caminhos do Coração

das janelas reluziam com tinta vermelha. Os canteiros no jardim da frente


pareciam
bem cuidados e no gramado não havia folhas secas, Aline correu na frente,
sentindo
a chuva fria no rosto, e abriu a porta dos fundos. Olhou para trás e viu. surpresa,
que
havia percorrido a distância muito mais depressa que Michael, e logo percebeu a
razão. Ele mancava muito e caminhava com dificuldade. Esse fato a chocou: não
combinava com o aspecto de firmeza que ele apresentava. Esperou-o sentar e
indagou, de supetão:
- Você se machucou há pouco tempo?
- Há quase três anos.
- Todo esse tempo?
- Sim. . . e não há chance de ficar melhor do que está - ele disse, e algo
em sua voz comoveu Aline.
- Oh, sinto muito!
O ar gelado havia feito com que ela ficasse com as faces coradas e, quando
se abaixou para desamarrar as botas, uma mecha de cabelo loiro escapou dos
grampos e ficou brilhando, solta, à luz da varanda, Quando Aline endireitou o
corpo,
percebeu que Michael a fitava com uma expressão indecifrável.
- O que foi? - ela perguntou. - Ficou aborrecido porque perguntei
sobre a sua perna?
- Não, não - disse ele, balançando a cabeça e fazendo um gesto com as
mãos. - Estava pensando que você fica muito melhor vestida como mulher do que
como rapaz.. ,
Aline ia começar a puxar o zíper do macacão quando ele se adiantou para
ajudá-la. Fazendo força para não ficar vermelha, ela disse:
- é muita gentileza. - E dependurou a roupa num cabide. Depois, tirou o
suéter pela cabeça, desalinhando ainda mais os
cabelos. Usava um velho jeans apertado e uma camiseta desbotada que
acentuava as curvas do busto.
- Muito melhor mesmo... - ele tornou a dizer. - É uma pena que você
não goste dos homens. . .
- Faço uma exceção ao meu avô - ela retrucou com doçura e, elevando a
voz, chamou: - Vovô! Está aí em cima? - Virou-se para Michael: - Venha, Sr. Gault.
13
Da varanda passaram para a cozinha, onde um enorme e antigo fogão a
lenha aquecia o ambiente. As paredes eram forradas com papel estampado com
pequenas folhas e flores delicadas; nas janelas, cortinas verdes, franzidas;

10
Sandra Field Caminhos do Coração

almofadas também verdes apareciam sobre duas antigas cadeiras de balanço.


Junto
a uma das paredes, havia um quadrado com uma coleção de brinquedos coloridos,
uma mesa e uma cadeira alta.
O avô de Aline entrou na sala arrastando os chinelos, enquanto ela
dependurava as chaves da oficina num gancho na parede, perto da porta.
- Vovô, este é Michael Gault. O carro dele quebrou e só posso conseguir a
peça amanhã. Será que ele pode ficar aqui esta noite? Penso em ceder-lhe o meu
quarto...
Os olhos de Matthew Stewart, debaixo das espessas sobrancelhas brancas,
analisaram o estranho, que não se abalou nem um pouco com o exame. Então o
velho estendeu a mão, dizendo:
- Como vai? É uma péssima noite para se ter algum problema. De onde
você é?
- Starr River.
- É. .. muito longe para uma caminhada. Está no negócio de geladeiras?
- Tenho uma fazenda de ovelhas lá.
- É mesmo? Então foi você quem comprou a propriedade do velho Abe
Knudsen há mais ou menos um ano? - Michael Gault assentiu. - E como vai indo?
Está dando algum lucro?
- Vovô! - Aline protestou.
Conhecia bem a curiosidade insaciável do avô, que gostava de saber os
mínimos detalhes sobre qualquer pessoa que morasse na região.
Magoado, Matthew reclamou:
- Mas Aline, eu só estava perguntando. . .
- Por que não pergunta, então, se ele aceita uma xícara de chá?
- Ah, as mulheres. . . - o velho suspirou. - Você é casado, rapaz?
- Não, senhor - disse Michael, rindo.
- Homem esperto. . . E por que não se casou?
- Vovô! - Aline protestou de novo.
- Até um ano, mais ou menos, ainda não tinha tido tempo para pensar nisso
- Michael respondeu, imperturbável. - Mas agora as coisas podem mudar.
A visão do imponente Mercedes negro com as luxuosas luvas de
14
pelica apareceu na mente de Aline, rápida e devastadora como um
relâmpago, e ela interveio, furiosa;
- Ele vai se casar por dinheiro, vovô!
- E como é que sabe disso, querida? - Dá para perceber. O Sr. Gault. . .
- Meu nome é Michael. Aline comprimiu os lábios.
- Quer um pouco de chá ou café?

11
Sandra Field Caminhos do Coração

- Chá seria ótimo, obrigado.


- E sirva também um pouco daquele bolo de chocolate, Aline - sugeriu o
avô. - O moço parece faminto. . .
Ela foi para a despensa, satisfeita em sair dali. pois havia algo em Michael
que a irritava tremendamente. Estava se esforçando para ser educada, senão
Matthew. que a conhecia bem demais, iria acabar tirando conclusões
precipitadas.
Ao contrário do que acontecia com ela, o velho estava se divertindo bastante com
a
situação.
Aline maldisse a hora em que o convidou para se hospedar em sua casa. E,
não querendo pensar muito nessa questão, cortou porções generosas do bolo de
chocolate, com movimentos rápidos e precisos. Ao voltar para a cozinha,
encontrou
os dois homens numa conversa animada sobre as diversas raças de carneiros da
região. Não se admirou de o avô também conhecer o assunto, pois, aos setenta e
dois anos, ele ainda devorava livros, que trazia da biblioteca ambulante. E se
interessava por todos os assuntos, desde criação de abelhas até bancos suíços.
Michael serviu-se de um grande pedaço de bolo enquanto gesticulava,
defendendo a raça de sua preferência, sorrindo o tempo todo, o que não
acontecia
quando encarava Aline.
Ela permaneceu quieta no seu canto, bebericando o chá e observando o avô
com afeição. O velho tinha o cabelo tão branco e espetado como as sobrancelhas,
e
os olhos eram como os de uma criança, de um azul puro e inocente. Vestia calça
marrom, bem velha, uma camisa xadrez e um suéter cor de mostarda, com
remendos
nos cotovelos.
Matthew achava que a vida era curta demais para se preocupar com detalhes
insignificantes como a roupa que vestia. Era uma pessoa que discutia, ria, comia e
bebia com gosto, e havia dias em que seu entusiasmo deixava a neta quase maluca.
Mas, depois de Juliana, ele era a pessoa que Aline mais amava no mundo.
A conversa, agora, girava sobre os problemas da criação de ovelhas, e com
uma certa relutância Aline transferiu sua atenção para Michael Gault.
15
Ele devia ter pouco mais de trinta anos. Observando-lhe a expressão, ela
ficou pensando em como podia tê-lo achado uma pessoa comum. Na verdade, era
um homem extremamente atraente. com voz profunda, mãos belas e bem
cuidadas,

12
Sandra Field Caminhos do Coração

corpo esbelto e musculoso, olhos espantosamente azuis. Além disso, estava


agüentando
firme a discussão com o avô, o que não era nada fácil.
Inquieta, levantou-se, encheu as xícaras dos homens e depois saiu dali,
dirigindo-se para os quartos. Como não tinham aposento para hóspedes, ela iria
dormir na cama de armar, no quarto de Juliana, e deixar o seu para o visitante.
Teria, portanto, que trocar os lençóis e dar uma arrumada em tudo.
Não que seu dormitório estivesse desarrumado. Contudo, já fazia mais de um
ano que morava com o avô e aquele quarto representava seu Jar, ao contrário do
aposento luxuoso que tinha tido na residência dos pais. Na casa do avô havia rido
e
chorado, odiado e se desesperado, sentira as primeiras dores do parto e para ali
levara sua filha recém-nascida há apenas seis meses.
Percorreu com os olhos as cortinas azuis, simples, a colcha de crochê, a
estante cheia de livros. .. Sim, havia amadurecido muito naquele pequeno
aposento.
E era ao avô que tinha que agradecer por isso.
Parou de pensar nessas coisas, colocou lençóis limpos na cama, tirou seus
objetos pessoais de cima da cômoda pintada de branco e a camisola e o penhoar
do
cabide. Colocou uma toalha limpa em cima da cadeira, correu as cortinas e
acendeu
a lâmpada de cabeceira.
A chuva caía forte no telhado e escorria pelas calhas. Não podia mesmo
deixar que Michael Gault dormisse lá fora numa noite daquelas, mas, ao olhar
para o
quartinho, sentiu um medo, incompreensível. Aquele era seu cantinho, seu
santuário. .. Por que estava permitindo que um estranho o invadisse? Logo, ele
estaria deitado ali, com seu corpo esbelto entre os lençóis e a cabeça no
travesseiro.
. . Estremeceu, lembrando-se de David, e apertou os braços contra o peito. Aquilo
tudo já tinha passado, estava acabado. .. Por que ficar relembrando?
Saiu do quarto, deixou mais toalhas limpas no banheiro e desceu, Ao entrar
na cozinha não pôde deixar de escutar o que Michael dizia ao telefone:
- Então, Tim comportou-se? Tudo bem, Beth, devo estar em casa amanhã à
tardinha. Ligue para cá se houver algum problema. Até logo!
Quem seria Beth? A esposa não era, pois ele havia afirmado ser
solteiro. E quem seria Tim? Esperando não demonstrar curiosidade, Aline
observou-o colocar o fone no gancho.
- Obrigado, Matthew - disse Michael. - A esta hora, eu já devia estar em

13
Sandra Field Caminhos do Coração

casa, e não queria deixar ninguém preocupado.


O velho deu um bocejo exagerado e comentou;
- Tudo bem. Agora, acho que vou para a cama. Uma pessoa na minha
idade precisa de uma boa noite de sono. Até amanhã, Michael, e fique à vontade
-
aproximou-se de Aline e deu-lhe um beijo na testa, do mesmo modo como fazia
quando a neta era apenas uma criança.
Aline sabia muito bem que o avô estava deixando-a sozinha com Michael de
propósito, pois raramente ia dormir cedo quando tinham visitas, Adorava
conversar e
era capaz de ficar acordado até bem tarde quando tinha vontade.
- Tudo bem, vovô, eu também vou subir, estou cansada. Você já trancou
tudo?
- Já. Por que não faz um pouco de sala para o nosso visitante? Seria gentil
de sua parte. . .
- Preciso abrir a oficina amanhã às oito em ponto - ela replicou, séria. -
Tommy não vai poder vir, está com gripe. - Tommy, um adolescente, cuidava da
bomba de gasolina.
- No meu tempo ninguém fugia do serviço só por causa de uma gripezinha
à-toa - resmungou o velho. - Tome mais uma xícara de chá e relaxe, garota. Boa-
noite para todos.
E, enquanto Matthew saía e fechava a porta, Aline fez uma careta às suas
costas.
- Ele gosta de manipular as pessoas - disse, meio aborrecida. - Na
verdade, precisa de menos horas de sono do que eu.
- Estou entendendo. . . E o que ele espera, deixando-nos sozinhos?
- Sabe Deus. . . - ela replicou, sem na verdade se surpreender ao notar
que Michael havia percebido o estratagema do avô.
- Ele foi bem rápido em me perguntar se eu era casado.
- Vovô é um casamenteiro inveterado, mas, pelo menos no que se refere a
mim, não tem muitas chances. Não ligue para ele. - Deu a Michael um rápido
sorriso e acrescentou: - Vou dormir. Deixei a luz acesa em seu quarto. O
banheiro
é do outro lado do
corredor.
- Espere um instante! - as palavras dele tinham aquele indiscutível toque
de autoridade que Aline já havia notado. - Estou desconfiando de que a tirei de
seu quarto. Será que não posso dormir no sofá, aqui embaixo?
17
- imagine! Se eu mal caibo no sofá, o que dirá você.. Olhou para as

14
Sandra Field Caminhos do Coração

próprias mãos, sabendo que ia ter de lhe contar sobre Juliana, antes que ele
perguntasse. Devia ter visto o quadrado cheio de brinquedos no canto da
sala.
- Mas não fique preocupado. Há uma cama sobressalente no quarto da minha
filha.
Depois de um instante de silêncio, ele comentou:
- Então a criança é sua? Imaginei que devesse ser.
Ele pegou uma das mãos de Afine e acariciou de leve os dedos sem anéis.
Ela aguardou, com o corpo tenso.
- Ninguém mencionou um marido. Ele também mora aqui?
- Não,
- Você é divorciada?
- Nunca me casei.
- Sei, sei...
No tom que ele usara para proferir aquelas duas palavras não havia nada que
indicasse o que realmente pensava a respeito. Pela mente de Aline passaram,
então, os rostos das pessoas com as diversas reações que haviam tido, ao vê-la
grávida. O olhar espantado de David, as lágrimas de sua mãe, a incredulidade e o
desprezo do pai e, mais recentemente, o desdém de alguns vizinhos de Lower
Hampton, além dos comentários maldosos dos lenhadores. Abaixando os olhos,
murmurou:
- Vai precisar de mais alguma coisa antes de subir? - Um sorriso, talvez.
Espantada, ela levantou os olhos.
- - por que quer um sorriso meu?
- Você fica melhor quando sorri. Isso acontece com a maioria das pessoas.
- Você é um homem estranho. .
- O que esperava? Que eu desmaiasse de horror ao saber que você teve
uma filha sem ser casada? Ora, Aline, deixe disso! Estamos nos anos 80 e não na
Idade Média!
- Não tenho certeza se os anos 80 já chegaram a Lower
Hampton.
- Pode ser que não, Você poderia se mudar para algum lugar menos
conservador.
- Não posso. Meu avô não vai querer sair daqui, e eu preciso trabalhar.
- Então não fique se desculpando.
Ela sentiu que aquelas palavras feriam como chicotadas,
- Você não tem sequer idéia de como é a minha vida! Por isso, guarde para
si as suas soluções mágicas!
18
- Bem, pelo jeito você prefere ficar mergulhada na auto-comiseração, não

15
Sandra Field Caminhos do Coração

é mesmo?
- Não é isso!
- Eu a vi apenas duas vezes, Aline MacCulloch, e nas duas. . .
- Duas? - ela interrompeu.
- Uma vez, neste verão, parei aqui para reabastecer o carro. E você não me
dirigiu nem duas palavras.
Ela não se lembrava disso.
- Eu devia estar preocupada com alguma coisa - disse, encerrando o
assunto. - Bem, vou dormir. Preciso levantar cedo amanhã para abrir a oficina.
Mas
não se preocupe em também acordar cedo só por causa disso.
- Em outras palavras, você prefere que eu não faça isso, não é?
- Depende só de você - disse ela amavelmente. - Em hipótese alguma
eu tentaria influenciá-lo.
- Que nada, você bem que gostaria disso, Cynthia. .. Ou seria Jackie.
- Meu nome é Aline!
- Uma, verdadeira Aline representaria esta cena de um modo bem diferente.
Mais ou menos assim. .. Dê-me sua mão. Isso! Agora sorria e diga com
sinceridade:
"Boa noite, Michael. Espero que durma bem".
Ele apertava-lhe a mão e a encarava com olhar firme.
- Ora, isso é ridículo! - replicou ela, zangada.
- Vamos, Aline, pelo menos tente. Vamos, você vai ficar surpresa! E não
vai doer nada!
Ela sabia que Michael não a soltaria enquanto não fizesse o que ele queria.
Sua memória, então, voltou ao passado, pois Michael lembrava-lhe Bob, o
preferido
de seus quatro irmãos. Bob havia duvidado que ela conseguisse andar sobre a
cerca
do jardim, há muitos anos. E tinha insistido tanto que ela resolvera tentar.
Conseguira
ir da velha macieira até o depósito, quando a mãe, horrorizada, gritou, ao vê-la
e ela, assustada, caiu. Bob a havia ajudado a se levantar, limpara a terra do
joelho
machucado e ficara orgulhoso ao ver que a irmã não chorara, nem na hora da
queda
nem depois, quando levara uma tremenda surra. ..
"Onde está aquela menina levada?", perguntou-se Aline, com uma certa
amargura. E, sentindo os olhos azuis de Michael fixos em seu rosto, pensou que
talvez aquela fosse a hora de fazê-la reaparecer.

16
Sandra Field Caminhos do Coração

Então aproximou-se dele, deu-lhe um beijo no rosto e depois afastou-se,


repetindo suas palavras:
- Boa noite, Michael. Espero que durma bem.
19
Com a maior seriedade, ele respondeu:
- Obrigado, Aline. Tenho certeza que dormirei bem.
Fez-se um momento de silêncio. Ele havia soltado-lhe a mão. mas Aline não
tinha a menor idéia do que estava pensando. Admirada consigo mesma por ter
agido
de forma tão diferente da que mandava seu temperamento, disse, baixinho:
- Se pretende subir agora, vou apagar as luzes. - Está bem,
Aline baixou a tampa do fogão e apagou a luz da cozinha. Sem olhar para
Michael, foi andando pelo pequeno hall e depois subiu a escada. A porta do quarto
do avô, no fundo do corredor, estava fechada. Indicou a ele onde deveria dormir
e
murmurou, meio confusa :
- Coloquei toalhas limpas para você. O banheiro é naquela porta a
esquerda. Deixo a luz acesa no corredor por causa da menina.
- Obrigado, Aline.
O sorriso amistoso tocou-lhe o coração. Apesar disso, ela apenas fez um
aceno com a cabeça e entrou no quarto de Juliana, fechando a porta.
A menina estava deitada de bruços, os olhos bem fechados, num sono
profundo. Tinha cabelos escuros e não se parecia nem com ela nem com David.
Aline sentia-se aliviada com isso. Beijou de leve a cabeça da filha, despiu-se,
vestiu
a camisola e enfiou-se na cama estreita, estremecendo ao contato com os frios
lençóis de algodão. Fechou os olhos com força, esquecendo tudo que havia
acontecido
naquele dia. Com a mesma rapidez de sempre, caiu no sono.

CAPÍTULO II
Aline sentou-se na cama, esfregando os olhos, estranhando o quarto
diferente. Algo a despertara. Eram três e quarenta e cinco. .. Juliana havia
acordado
e estava chorando. Ela pegou a criança no colo, preocupada. Há algumas semanas
Juliana chorava todas ás noites, por causa dos dentinhos que começavam a
aflorar.
As gengivas estavam vermelhas e inchadas.
Desceu com a filha e trocou-lhe as fraldas, enquanto a mamadeira
esquentava. Depois, sentou-se numa das cadeiras de balanço para dar-lhe o leite.

17
Sandra Field Caminhos do Coração

Logo depois, os olhos do bebê se fecharam e as mãozinhas rechonchudas


relaxaram. Aline baixou a cabeça e beijou-lhe a testa, sentindo o cheirinho
gostoso
de xampu, de pele , limpinha e de leite quente, que compensava todos os dias
trabalhosos e as noites mal dormidas.
- é uma criança linda. . . Aline levou um enorme susto.
- Eu não o ouvi descer!
- Ainda bem - disse Michael, sem se preocupar com a surpresa dela. -
Você precisa se levantar todas as noites?
Estava parado na porta, vestido apenas com a calça. Perturbada, Aline
pensou que costumava ver os irmãos andarem assim pela casa, sob os protestos
da
mãe, e que vira bem mais do corpo de David. .. Por que então se sentia inquieta,
como se nunca tivesse visto um homem semi despido antes? Embaraçada,
respondeu:
- Ela não dá trabalho nenhum, mas é que os dentes estão nascendo e isso
a incomoda muito. Desculpe-me se ela o acordou.
- Tenho sono leve, principalmente em lugares estranhos.
21
"Isto é apenas uma inocente troca de palavras", Aline pensou, aflita. Não
havia motivo para seu coração disparar e seu rosto ficar quente, corado.
Levantou-
se abruptamente, deixando cair a manta de Juliana.
- Deixe que eu pego - disse Michael, apanhando-a e ficando bem perto de
Aline. - Quer que eu segure o bebe, enquanto você ajeita as coisas?
- Ah, não precisa. Eu. . .
- Ora, Aline, prometo não deixá-la cair. . .
Confusa, ela o encarou. Á meia-luz, com o rosto nas sombras. os olhos azuis
pareciam muito mais misteriosos. . . como se guardassem todos os segredos do
universo. Trêmulas, Aline tentou manter a cabeça fria e disse, mais alto que o
necessário:
- Ela precisa arrotar,
- Como é que eu faço?
Cuidadosamente, ela passou-lhe a criança adormecida.
- Bata de leve ou esfregue as costas dela. Isso costuma dar certo.
Virou-se e começou a arrumar as coisas. Guardou a toalha e o talco e lavou a
panela onde esquentara o leite. Escutou quando Juliana soltou um arroto alto.
Ela estava habituada com isso, mas virou-se, rindo. Michael também sorria,
deliciado, as mãos grandes segurando a criança contra o peito. Juliana, os
olhinhos

18
Sandra Field Caminhos do Coração

fechados e as bochechas coradas, continuava a dormir. Parecia muito pequena e


frágil, encostada no peito largo daquele homem que, com o rosto abaixado,
mostrava-se terno e forte, capaz de amar e, ao mesmo tempo, defender com
unhas
e dentes o bebê em seus braços.
Aline sentiu uma pontada de dor. como se uma faca lhe penetrasse por
dentro, David nunca havia segurado Juliana daquele modo, ou melhor, nem sequer
a tinha conhecido. Era ele quem deveria estar aí na cozinha, não um estranho de
olhos azuis, que dentro de algumas horas desapareceria para sempre de sua vida.
Michael havia levantado o rosto e, sem dúvida, percebera a angústia na
fisionomia de Aline, o modo como apertava as mãos contra o peito.
- O que aconteceu? - perguntou, preocupado. - Algum problema?
- Eu... não... - baixou a cabeça, lutando contra as lágrimas que estavam
prestes a rolar.
Michael se aproximou rapidamente.
- Aline, quero saber o que há de errado!
22
- Não é nada, .. Preciso levá-la para a cama. Obrigada pela.
Ele se virou e com extremo cuidado colocou a criança adormecida sobre o
sofá. Depois voltou e colocou as mãos nos ombros de Aline, que usava uma
camisola de flanela, com babadinhos no pescoço e nos punhos. Certamente, não
era muito sexy, mas acentuava seus ossos miúdos e a fragilidade dos pés e das
mãos. Os cabelos cheios e lisos, muito claros, caíam soltos nas costas, e pareciam
pesados demais para aquela cabeça tão delicada.
Aline sentiu o calor das mãos dele atravessando o tecido da camisola.
Durante um instante desejou esconder o rosto naquele peito forte, onde a
cabeça de
Juliana havia descansado, e adormecer como a criança havia feito. Como seria
aconchegante... Mas que loucura pensar nisso! Um ano antes, havia procurado
aquele apoio em David, mas ele a havia desprezado. .. Depois, tinha procurado os
pais, e eles também a rejeitaram. Por isso, havia aprendido a depender apenas de
si,, descobrindo que só poderia contar com sua própria força. Agora, no entanto,
percebia-se mais exausta do que imaginava, pois chegara a ficar tentada, mesmo
que momentaneamente, a abandonar a independência que tanto lutara para
conseguir. Levantou os olhos e disse rispidamente:
- O que é isso? A cantada habitual?
- O que está querendo dizer?
- Não me venha dizer que não sabe o que é uma cantada. . . Tenho certeza
de que já passou muitas na vida.
- Não tive essa intenção, acredite.

19
Sandra Field Caminhos do Coração

- Ora, deixe disso! - ela disse, quase gritando. - Sou uma mãe solteira,
lembra-se? O que, por um estúpido conceito social, significa que sou uma
mulher
fácil, vulgar, perdida! - Irritada, imitou um comentário que ouvira na bomba de
gasolina: "Se ela fez uma vez, fará outras".
Se esperava que ele se zangasse, ficou decepcionada. Michael
disse em tom seco, lançando-lhe um olhar:
- Você não combina com o tipo de mulher que descreveu,
Aline.
- Então, tire as mãos de cima de mim!
- Nem dá a impressão de ser fácil - continuou, sem ligar para o que ela
dissera. - Na verdade, acho que você me acertaria um tapa se eu lhe desse essa
chance.
Ele ainda falava baixo e ela, espantada, repetiu, séria:
- Pedi que tirasse as mãos de cima de mim.
- - Só quando eu quiser.
23

Um momento atrás, Aline sentira raiva de si própria, pela fraqueza que


demonstrara, e também dele, mas agora o conflito se transformara em luta
aberta.
Ela repetiu mais uma vez em tom agressivo:
- Largue-me!
O rosto de Michael se abriu num sorriso.
- Para uma moça que recebeu uma boa educação, suas maneiras são
péssimas. . . Acho que já me referi a isso, não?
- Se está pensando que vou implorar,, está redondamente enganado!
- Um simples "por favor" será suficiente.
De repente já não era mais a mesma situação e Aline se recordou de uma
menina de tranças loiras e vestido cor-de-rosa que se atirara, em defesa do
irmão
Bob, contra dois garotos maiores. A mãe ficara escandalizada ao vê-la chegar em
casa com o vestido rasgado e o nariz ensangüentado, mas ela nem ligara para a
semana de castigo que amargara no quarto, quando soubera que tinha conseguido
distrair os dois arruaceiros. Essa menininha também andara escondida
ultimamente,
mas não havia razão para que não reaparecesse agora...
Repentinamente, ela virou-se, chutando a canela de Michael com os pés
descalços. A estranha batalha que se seguiu caracterizou-se mais pela brevidade
do

20
Sandra Field Caminhos do Coração

que pela violência. Aline viu-se apertada por ele contra a parede, completamente
imobilizada, e sem a menor idéia de como fora parar aí.
Reclamou, indignada:
- Ah, você não Juta limpo!
- Foi você quem começou, e não de uma maneira exatamente honesta.
Tentou chutar logo a minha perna machucada.
Michael mantinha o rosto sério, mas os olhos riam dela. Aline, tentando
mostrar-se zangada, reclamou:
- Você está me machucando!
- Acho que não. Estou apenas me certificando de que você não vai repetir o
gesto de violência.
Ela arregalou os olhos e o fitou com lábios trêmulos.
- Prometo que não.
- Pois não acredito. De qualquer modo, estou gostando desta
posição,
Aline sentiu, então, um medo muito grande. Inconscientemente, usou as
palavras que ele sugerira:
- Por favor, não. ..
24
- Não o quê, Aline? Isto, por acaso? - disse, abaixando a cabeça e tocando
bem de leve seus lábios.
Não era exatamente um beijo, mas ela sentiu o coração disparar e ficou sem
fôlego com a proximidade do corpo de Michael, do peito musculoso que a
comprimia
contra a parede e das mãos fortes que a seguravam pelos cotovelos.
Subitamente, ele a largou e deu uns passos atrás.
- Sem cantadas - disse, rápido. - Por um momento, quase
me esqueci.
"Eu também. . .", pensou Aline, enquanto engolia em seco, tentando readquirir
o controle.
- Por favor, Sr. Gault, posso ir para a cama agora?
Michael começou a rir.
- Você me intriga, mocinha. Consegue ser uma gata selvagem de unhas de
tora, prestes a arranhar qualquer um que chegue perto, e, às vezes, parece estar
carregando todo o peso do mundo em seus ombros. Mas, de repente, age como
uma ingênua e percebo outra mulher escondida, que reluta em aparecer.
"A garotinha, tateando os passos em cima da cerca, apavorada e, ao mesmo
tempo, encantada", pensou ela, nostálgica.
- Psicanálise às três da madrugada, Dr. Gault? - indagou, brincando.
- Parte do meu trabalho consistia em avaliar as pessoas, e bem

21
Sandra Field Caminhos do Coração

depressa.
Ela reparou no verbo que ele usara, no passado, e, apesar de estar
curiosíssima, não ia perguntar que trabalho tinha sido aquele.
- Então agora você pratica com suas ovelhas?
- Entre outras coisas. . . Boa noite. Aline MacCulloch, e durma
bem.
Ela abaixou-se e pegou Juliana no colo. O bebê reclamou e enfiou o polegar
na boca. Aline encarou Michael e respondeu, exagerando no formalismo:
- Boa noite, Michael. Durma bem. Será que se incomodaria de apagar a
luz? Se eu pedir por favor, claro.
- Com todo o prazer!
Ao subir a escada, ela chegava a sentir o calor do corpo de Michael, que
vinha alguns degraus atrás. Apesar do problema na perna, ele andava como um
gato. "Além disso, luta com a precisão e a velocidade de um gato", pensou ela,
lembrando do incidente na cozinha. Sentia dificuldade em visualizar um homem
daqueles como um criador de ovelhas. Era uma profissão monótona demais e não
combinava com ele.
Entrou no quarto de Juliana, deitou-a no berço e cobriu-a com um
cobertorzinho amarelo. Só então percebeu que havia sido seguida. Michael estava
ali, bem junto dela, o rosto nas sombras- Afine abriu a boca para protestar, mas
sentiu as mãos dele em seu rosto e os lábios junto aos seus, movendo-se como se
tivessem certeza de que iriam dar-lhe prazer.
Soltou-a, então.
- Foi só um beijo, Aline, não uma cantada. Quando for cantada, você vai
perceber a diferença. Boa noite!
Completamente confusa, ela ficou parada, enquanto ele saía. Escutou em
seguida uma porta se fechar e uma cama ranger. Depois, silêncio absoluto,
Sozinha no quarto, Aline levou os dedos aos lábios. Tinha sido um beijo tão
íntimo quanto inesperado, um beijo que a deixara fraca e incerta. Na verdade,
estava querendo mais. Os dedos se apertaram e ela fechou os olhos. "Nunca mais
deixe isso acontecer, Aline. . . nunca mais."
Juliana dormiu até mais tarde na manha seguinte, e com isso Aline também
perdeu a hora. Quando desceu com o bebê no colo, encontrou o avô, que já havia
preparado o chá e colocado o mingau no fogo. Michael, muito à vontade, passava
manteiga numa torrada.
- Bom dia, querida - disse Matthew. - Dormiu bastante, hein?
Deve ter ido se deitar tarde, ontem. . - Deixe que eu cuido da pequenina,
enquanto
você toma o café. Precisa abrir a oficina em alguns minutos.
- Juliana acordou no meio da madrugada, vovô. Por isso perdi a hora -

22
Sandra Field Caminhos do Coração

anunciou ela, evitando olhar para Michael..


- Bom dia, Aline - disse ele, pegando Juliana nos braços, erguendo-a,
rindo junto com ela. Abanando as mãozinhas gorduchas, a menina gritava,
deliciada,
"é próprio dela", pensou Aline com azedume. Juliana era como o bisavô:
nutria grande entusiasmo pelas pessoas e, agora, dirigia a Michael seu mais belo
sorriso. Ignorando os dois, Aline serviu-se de mingau e acrescentou bastante
creme
e açúcar. Tanto Michael quanto Juliana nem pareciam perceber que estavam
sendo
deliberadamente ignorados.
"Ora, Aline, você é uma velha mal-humorada. Sorria! O sol está brilhando!"
E estava mesmo. Pela janela, ela viu um típico dia de outono,
26
com o céu completamente azul. Gotas de chuva brilhavam na grama. As
folhas das árvores começavam a amarelar, a avermelhar, dando um colorido
maravilhoso a toda a paisagem.
Aline começava a comer a torrada quando um sininho tocou na varanda de
trás, sinal de que alguém queria gasolina. Ela saiu da mesa, dizendo que voltaria
logo.
Apanhou as chaves no gancho, destrancou a porta e saiu, respirando fundo o
ar puro da manha. Sentiu o cheiro das folhas molhadas e da fumaça de lenha, bem
melhor que o cheiro de graxa e gasolina.
Ao correr pelo gramado, de jeans e camiseta, descobriu que estava satisfeita
por escapar da cozinha. Nunca havia encontrado um homem como Michael, capaz
de mexer tanto com seus sentimentos, e não sabia se gostava daquela sensação.
Não via a hora que ele fosse embora. Rapidamente, destrancou a porta do
escritório
e destravou as bombas, correndo depois para fora.
Havia um caminhão parado para reabastecer, e ela ficou admirando o
veículo antes de reconhecer o motorista. Sem entusiasmo.
disse;
- Oi, Willie. Quer que encha?
- É, pode encher - disse o homem, abrindo a porta e saindo. Aline sempre
achava que o nome Willie Budgeon era impróprio
para ele.e soava até meio cômico. Só que Willie nada tinha de cômico: devia
ter só três ou quatro anos mais que os vinte e dois de Aline e já era capataz da
turma de madeireiros, o que mostrava ser ele um rapaz ambicioso. Além disso,
era
fisicamente forte, bom de briga e uma pessoa mesquinha, que geralmente se

23
Sandra Field Caminhos do Coração

controlava quando sóbrio, mas nunca quando bêbado.


Se Aline tivesse percebido ser Willie o motorista do caminhão vermelho, teria
vestido o macacão. Agora, sentia-se intimidada por aquele olhar, que admirava a
calça justa e a camiseta colante que usava. Colocou o bico da mangueira de
gasolina dentro do tanque e perguntou, distraída:
- Quer que verifique o óleo? Ele sacudiu a cabeça.
- Não, mas pode dar uma lavada no pára-brisa. Ela pegou o balde e a
esponja e foi fazer o serviço. Para alcançar o vidro, precisou ficar na ponta dos
pés;
Willie então se aproximou por trás, colocando as mãos em seus quadris e
movimentando-as em gestos sensuais. - Willie, pare com isso!
£ele já havia tentado outras vezes, mas Aline sempre tinha conseguido
evitá-lo.
- Você devia usar sempre essas calças. Fica muito melhor que o macacão.
Ela ficou ainda mais zangada por Willie estar usando o mesmo argumento
que Michael usara na noite anterior. Virou-.se para olhá-lo.
- Preciso lavar o outro lado. Quer fazer o favor de sair daí? Willie tinha os
olhos estranhamente claros, enquanto os cabelos eram bem negros. Usava
roupas
negras desde casaco de couro, camisa, calça e até botas; uma pulseira de cobre
num dos pulsos e, no pescoço, uma porção de correntes com medalhões. Duas
delas eram imagens de santos, o que não impressionava Aline, pois ela havia
percebido, meses atrás, que Willie não possuía o menor senso para distinguir o
bem
e o mal.
Ele moveu uma das mãos. mas apenas para agarrar-lhe um seio e apertá-lo
com força. Ela gritou de dor, de raiva, e o agrediu com a esponja cheia de sabão.
Para sua surpresa, ele largou-a imediatamente e se afastou.
Então Aline seguiu a direção do olhar assustado de Willie e percebeu o
motivo: Michael vinha caminhando pelo gramado.
- Algum problema, Aline?
Antes que ela pudesse responder, WiJíie rosnou:
- Ah, arranjou um namorado, hein? - Em seguida fez uma segunda
pergunta a Michael, referindo-se à sexualidade de Aline. em termos tão
grosseiros
que ela ficou escandalizada.
O punho de Michael avançou como um raio e Willie caiu de costas sobre o
capo do caminhão, com um fio d sangue escorrendo no canto da boca. No silêncio
que se seguiu, Michael falou com calma, enfatizando bem as palavras:
- Nunca mais encoste um dedo nela, está ouvindo? WiJHe se levantou e

24
Sandra Field Caminhos do Coração

limpou o sangue com as costas da mão.


- Escutei, garotão. Agora deixe-me dizer uma coisa. É melhor ficar longe
desta cidade, senão eu o pegarei da próxima vez, e então, você permanecerá aqui
para sempre.
Embora as palavras fossem banais, não havia nada de banal na maldade que
faiscava dos olhos injetados. Michael, entretanto, pareceu não se impressionar.
- Faço o que tenho vontade - disse calmamente. - Agora, pague a moça e
vá dando o fora.
Evitando aproximar-se de Wiilie, Aline segurou o bico da mangueira
28
e arredondou a soma a pagar. Ele atirou algumas notas na direção
dela, entrou no caminhão e bateu com força a porta. Arrancando com violência, as
rodas atirando pedrinhas para todos os lados, entrou na estrada sem olhar para
os
lados.
- Se esse moleque guia sempre desse jeito, é ele quem vai ficar aqui para
sempre - comentou Michael. - Acho que agora entendo por que você não se
entusiasma nada pelos homens.. .
Aline estava com as mãos trêmulas e demorou um pouco para conseguir
recolocar a mangueira no lugar.
- Eu não entendo você! - explodiu. - Bateu em Willie com tanta, força que
ele só não foi parar no chão porque o caminhão estava ali. Em seguida, conversa
com toda calma, como se nada tivesse acontecido. Afinal, quem é você?
- Eu já lhe disse, sou um criador de ovelhas de Starr River e também
dirijo uma casa de recuperação para jovens delinqüentes.
Ela lutou para controlar uma risada nervosa.
- E é assim que você os controla? Do jeito como fez com Willie?
- Dificilmente. Não aprovo este tipo de atitude. Não se preocupe, Aline, já
enfrentei muita gente como Willie. Comigo, isso não é problema. Já com você
é
outra história. Ele costuma aparecer freqüentemente por aqui?
- Quando precisa de gasolina. Mas geralmente é Tommy quem o atende.
- Acontece sempre esse tipo de coisa com você?
- Não muito. Willie é o pior. Ele e a turma dele,
- Esse Willie é um sujeito mesquinho, Aline. Tome cuidado, está bem? Faça
o possível para não ficar sozinha com ele.
Ela sentiu uma onda de felicidade ao ver que Michael se incomodava com sua
segurança.
- Vou fazer isso - disse e sorriu, um sorriso raro e amplo que antigamente
era de David e que agora era dirigido .apenas a Juliana e a Matthew.

25
Sandra Field Caminhos do Coração

Uma emoção indefinível apareceu nos olhos azuis.


- Sabe, você é uma mulher muito bonita. Ela afastou-se um pouco e disse,
descontraída:
- Muito obrigada, senhor! Agora vou terminar meu café, antes que chegue
algum freguês.
Por um instante, Aline achou que ele fosse dizer mais alguma coisa, mas
Michael apenas sacudiu a cabeça e a seguiu, em silêncio.
29
Ela permaneceu ocupada a manhã inteira, com as bombas de gasolina e os
serviços mecânicos rotineiros; pneus furados, balanceamento de rodas e algumas
outras verificações de segurança. Na hora do almoço, engoliu rapidamente um
sanduíche.
Quando o ônibus da tarde parou no pátio, ela recebeu a peça para o
Mercedes e depois começou a trabalhar no carro de Michael, consultando antes o
manual, livro que chamava.de sua bíblia. Em meia hora terminou o serviço. Tirou o
veículo da oficina, verificou a pressão dos pneus e, como desconfiava, o da
frente,
do lado esquerdo, estava baixo.
Aline enrolava a borracha do compressor quando viu Michael sair da casa e
dirigir-se para a oficina. Quase não o havia visto desde o episódio com
Willie. Ele
não tinha aparecido por ali para lhe fazer companhia, durante toda a manhã. E
agora, que o Mercedes estava pronto, iria embora. . . Sem saber por que, Aline
entristeceu-se com a idéia.
- Vou sair com o carro para testar. Você pode pedir ao vovô para ficar de
olho na bomba, enquanto eu estiver fora? Demoro só uns dez minutos.
- Tudo bem. Tomara que uma porção de gente queira gasolina. assim
poderei cuidar um pouco daquela criancinha mimosa!
Aline fez uma careta.
- Para alguém que nunca se casou, você parece apaixonado demais
por bebês.
- Acho que é verdade. Mais do que a maioria das pessoas, eu já vi coisas
terríveis que uns podem fazer aos outros. Por isso, quando olho para Juliana,
vejo
simplicidade, inocência e confiança. E sabe por quê? Porque até hoje ela só
conheceu o amor. Não sou tão ingênuo a ponto de imaginar que isso continuará
para sempre. Ela terá viver no mundo real e sua inocência desaparecerá. Mas, no
momento, estou admirando-a como é. Você teve muita sorte, Aline.
Ela ficou parada, os olhos cheios de lágrimas. Havia amado aquele bebê
desde o momento em que nascera, com um amor instintivo e delicado. Sabia que

26
Sandra Field Caminhos do Coração

poderia até matar para proteger a filha. Mas também tinha uma profunda
consciência
de que não agira corretamente privando Juliana de um pai e, às vezes, isso
atrapalhava o amor, enchendo-a de culpa e de dor. E agora, em poucas palavras,
Michael havia lhe mostrado que era um privilégio ser mãe de Juliana. De acordo
com
ele, Aline devia estar grata, não envergonhada.
30
- Eu tenho mesmo sorte - ela disse baixinho. - Você está certo.
. . Oh, droga, não sei por que estou chorando! - Esfregou os olhos com as mãos e
acabou sujando o rosto de graxa.
Um sorriso brilhou nos olhos de Michael, mas Aline não percebeu o motivo
e,
imaginando que ele estivesse rindo de sua demonstração de emoção, retrucou,
aborrecida:
- Vou testar o carro e depois você poderá ir embora. Apesar de estar
consciente do olhar de Michael em suas costas.
ela logo se esqueceu de tudo pelo prazer de dirigir um Mercedes. Era como
estar sentada em casa, numa confortável poltrona, tão macio e silencioso era o
carro. Mas logo um pensamento triste a assaltou: agora. Michael podia voltar às
suas ovelhas e à sua amiga rica, a dona das luvas de pelica. E isso encheu o
coração de Aline de uma dor imensa.
Acelerou na subida, escutando com atenção o ruído do motor, mas sem sentir
a costumeira satisfação que vinha sempre associada ao serviço bem-feito.
Michael ainda estava perto das bombas quando ela voltou ao pátio. Aline saiu
do carro, retirando o forro de plástico que sempre usava para evitar manchas de
graxa no estofamento.
- Está tudo em ordem. Vou fazer as contas.
Michael a seguiu até o escritório e ficou observando-a fazer a soma das
peças e da mão-de-obra. Deu uma olhada rápida no total e puxou o talão de
cheques. Tinha a tetra inclinada, cheia de personalidade, mas quase ilegível. Ao
ver
que ela olhava para o cheque com ar de dúvida, afirmou:
- Não se preocupe, não é cheque "frio" não. . .
- Eu estava estranhando a letra, não o crédito - ela disse, zangada,
jogando as chaves sobre o balcão. - Adeus!
- Adeus, Cynthia-Jackie. . .
- Meu nome é Aline! - ela respondeu, louca da vida, sem saber por
que estava tão zangada.
- Um suspiro ao vento. . . não. isso não combina. - Levantou a mão num

27
Sandra Field Caminhos do Coração

aceno e ela teve tempo de ver ainda, uma última vez. a centelha azul-celeste
brilhando nos olhos dele. Depois, sem olhar para trás, Michael entrou no
Mercedes
e foi embora.
Aline ficou quieta, parada, até o carro desaparecer de vista. Ele
não havia sugerido um novo encontro; nem mesmo dissera ter tido
. prazer em conhecê-la. Aline ficou com a sensação de ter sido apenas
31
uma pequena aventura, que logo seria esquecida. Desejou que Michael
não contasse nada para a dona do Mercedes. Só de pensar que os dois iriam rir
dela, Aline ficou furiosa, com vontade de se esconder em algum canto e chorar
até
morrer. Felizmente, o sininho tocou, indicando que havia um freguês à espera na
bomba de gasolina. Ela procurou se recompor, forçou um sorriso e foi atender.
32

CAPITULO III
Os dias agradáveis de outubro transcorriam sem nenhuma novidade. Aline
fazia o possível para esquecer Michael, mas não conseguia.
O avô havia simpatizado com ele e insistia em repetir cada detalhe da
conversa que os dois tinham tido. Mais que isso: estava curioso para saber o que
havia acontecido entre Michael e a neta. Aline teve de dar um basta.
- Vovô, não sei por que ele nunca se casou.. . não perguntei. Gostaria que
você esquecesse, de uma vez por todas, o assunto Michael Gault. Já estou cheia
disso!
Com as faces coradas e o olhar zangado, ela parecia muito mais
furiosa que aborrecida.
- Você está é louca da vida porque não teve mais notícias dele!
- Não estou, não senhor!
- É engraçado, mas eu poderia jurar que ele estava interessado
em você. . .
- Será que não podemos mudar de assunto?
- Claro, claro.. . eu não queria irritá-la. - Não estou irritada!
Matthew a olhou, divertido, e procurou acalmá-la.
- Claro que não está. Falando nisso, hoje à tarde aconteceu uma coisa
incrível: recebi a visita de Wayne McEvoy.
- Ah, é? E o que ele queria?
Wayne McEvoy era o exemplo local do rapaz que tinha tido sucesso na vida.
Como ele próprio gostava de contar, havia nascido num barraco à beira do rio e,
agora, morava na cidade próxima, a

28
Sandra Field Caminhos do Coração

33
quinze quilômetros de Lower Hampton, numa enorme mansão, com uma
esposa de gostos extravagantes e caros. Mantinha o monopólio sobre as
madeireiras de toda a região, possuía uma cadeia de supermercados e tinha a
fama
de ser dono de uma porção de cortiços em Halifax. Sua reputação, entretanto,
não
era nada boa: diziam que ele não tinha nenhum escrúpulo. Era estranho que ele
tivesse feito uma visita a Matthew Stewart.
- Você não seria capaz de adivinhar o que ele desejava! Quer comprar o
posto.
- E por quê? - Aline indagou, apreensiva, tentando controlar o pânico.
- Acho que está ficando cheio de supermercados e quer diversificar. É claro
que eu disse que não topava o negócio. Ela deixou escapar um suspiro de alívio e
perguntou:
- Por quê?
- Porque, mesmo que eu não trabalhe tanto, sou dono deste posto há mais
de quarenta anos. Vendê-lo para um sujeito como .Wayne McEvoy seria a última
coisa que faria.
- Tem certeza, vovô? Será que não está dizendo isso só porque sabe que
preciso deste trabalho?
- Claro que tenho certeza, menina - e virou o rosto, a voz emocionada
como sempre acontecia quando falava sobre a esposa falecida. - Eu trouxe Bella
para esta casa há trinta e nove anos. Ela me ajudou a pagar as prestações e a
deixar a oficina do jeito que é hoje. Sempre teve fé neste negócio.
- Vovô, ela teve fé em você, isso sim.
- Concordo. De qualquer modo, não posso vendê-lo, especialmente para
uma pessoa como Wayne McEvoy.
- Que bom que você pensa assim, querido - e deu-lhe um beijo na testa.
No dia seguinte, o movimento estava fraco e Aline resolveu caminhar até o
lugarejo para pegar a correspondência no correio. Enquanto dava uma olhada nos
diversos envelopes, escutou uma voz masculina dizer:
- Oi, Aline, você é exatamente a pessoa que eu estava querendo encontrar.
Era Wayne McEvoy. Usava óculos escuros e uma capa de chuva, abotoada e
fechada com cinto. "Que ridículo! Ele está querendo parecer um agente do
Serviço
Secreto!", pensou ela com ironia.
- Será que podemos conversar um instante?
- Preciso voltar logo...
34

29
Sandra Field Caminhos do Coração

- Não vou demorar. Por que não vamos até o meu carro? Ali poderemos
conversar melhor.
Aline sentiu uma alegria perversa ao sentar-se no banco com roupas de
trabalho. Resolveu ir direto ao assunto:
- Soube que você foi falar com o vovô sobre a compra do posto.
- É isso mesmo, estou muito interessado em fazer o negócio.
- Só que vovô não quer vender.
- Foi o que ele me disse, e é aí que você entra. Espero que consiga
persuadi-lo a mudar de idéia.
- Acho que ele não vai fazer isso, Sr. McEvoy. É muito ligado à propriedade.
Mora lá há muitos anos.
- Acho que vocês não vão deixar que a emoção prejudique um bom
negócio. Seu avô sairia lucrando muito. Ficaria rico.
- Meu avô não está interessado em enriquecer, Além disso, sempre tomou
suas próprias decisões e não é agora que vai mudar.
Durante um instante o rosto de Wayne tornou-se frio como os olhos.
- Acho que você devia se esforçar para convencê-lo, Aline. Para seu
próprio bem e pelo dele.
- O que está querendo dizer?
Ele voltou a ser novamente o homem amável.
- Nada, minha querida. Mas quero aquela propriedade, e sempre consigo o
que quero, de um jeito... ou de outro. Fale com ele. Diga que já está velho demais
para tamanha responsabilidade. Contê-lhe o que poderia comprar com
bastante
dinheiro. Um carro novo. . . sair num cruzeiro. . . O céu é o limite!
Matthew, tão cheio de curiosidade e de falta de tato, confinado por dias num
navio de cruzeiro? Aline não conseguia imaginá-lo assim e essa idéia quase a fez
cair na risada.
- Vou conversar com vovô. Só posso lhe prometer isso.
- Mas vai fazer o possível, não é mesmo? Volto a falar com vocês dentro de
alguns dias.
Aline deu-lhe adeus e saiu do carro.
Um pássaro azul cantou numa árvore próxima e o córrego espumava ao lado
da estrada. Mais calma, ela começou a raciocinar melhor sobre a conversa com
Wayne. Sob a aparente educação, tinha havido uma ameaça. Mas por que a
compra
de um pequeno posto de gasolina num vilarejo esquecido era tão importante para
Wayne McEvoy?
Aline continuou caminhando, preocupada, passando em frente das casas
simples, com os jardins bem cuidados e a floresta no

30
Sandra Field Caminhos do Coração

35
fundo. Ia falar com o avô, mas tinha certeza de que nada adiantaria,
Durante os dias seguintes não apareceu nenhuma oportunidade de conversar
com o avô sobre a venda da oficina. O tempo havia mudado, e uma chuvinha fina
caía constantemente, piorando a ar triste do velho, que passava os dias irritado,
preso dentro de casa. Juliana também vivia resmungando, esfregando as gengivas
inchadas. Aline cuidava dos dois da melhor forma possível. Andava tão atarefada
que se esqueceu completamente de Wayne.
Certa manhã, quando estava examinando a água da bateria de um carro, uma
voz soou atrás dela:
-: Olá, Cynthia-Jackie!
O coração disparou e Aline deixou cair duas tampinhas dentro do fosso.
Virando-se, disse devagar:
- Será que não vai perder a mania de me pregar sustos, Michael Gault?
Ele sorriu, ,.
- Foram só duas vezes. Isso não chega a ser mania.
- E o que há de errado com o Mercedes desta vez?
- Eu o devolvi. Estou com o meu jipe.
Pela porta de vidro, Aline viu o veículo velho e enlameado parado no pátio.
- Oh. .. aquilo é seu?
- Todinho. É o sonho de qualquer mecânico, não é? Aposto como está
com coceira nos dedos para pôr as mãos nele.
- Para levá-lo ao ferro-velho - ela disse, maldosa.
- Ah, Aline, seja boazinha comigo. , . O que está fazendo?
- Troca de óleo e engraxamento.
- Quanto tempo vai levar?
- Mais uns dez minutos.
- E depois?
- Não há nada no momento.
- Ótimo - deu-lhe um sorriso amistoso e ela sentiu que o coração
continuava descompassado. - Vamos levar Juliana para dar uma volta? Estou
apaixonado por ela.
- Juliana está dormindo.
- Não está mais. Fui dar uma espiada. Ela está aos berros. - Ah, não!
- Enquanto você acaba o serviço, eu visto a garota. Assim ela se acalma.
- Mas está chovendo!
- Já parou.
36
- Dê-me uma boa razão para irmos dar uma volta.
- Ora, pare com isso. Sei que você está contente em me ver. Antes que ela

31
Sandra Field Caminhos do Coração

pudesse dar alguma resposta à altura, ele já havia


ido embora.
Vinte minutos depois ela avisava Tommy de que ia para casa e seguiu pelo
gramado. Michael estava certo: havia parado de chover. Um vento forte sacudia
as
folhas das árvores e as nuvens corriam pelo céu, mas ainda havia um pouco de
calor do verão.
Na parte de trás da varanda, ela tirou o macacão. Não ouviu o choro de
Juliana e não se surpreendeu ao ver Michael com a criança nos joelhos, enquanto
tomava uma xícara do café horrivelmente forte de Matthew.
- Você vai acabar estragando minha filha! - Como é, podemos ir?
- Está bem. Espere um instante que vou me arrumar. . .
Foi para o quarto e tirou as roupas de trabalho; colocou o jeans mais apertado
que tinha e um suéter vermelho vivo, bem justo. Puxou o cabelo para cima e os
enfiou numa boina, também vermelha. Em seguida, passou nos lábios uma boa
camada de batom escarlate. Um blusão cereja e botas completaram o vestuário.
Com movimentos insinuantes na frente do espelho, resolveu que iriam ao correio,
ao
banco e ao armazém. Aquilo ia acabar com a vontade de Michael de dar uma volta,
.
.
Desceu a escada, batendo com os saltos nos degraus, e entrou na
cozinha rebolando.
- Preciso fazer algumas coisas na vila. O carrinho de Juliana está na
varanda dos fundos - gritou um até logo para o avô e seguiu Michael.
Ele colocou Juliana no carrinho e avisou:
- Eu é que vou empurrá-la.
"Está cada vez melhor", pensou Aline, divertida, sentindo que a garotinha, que
antigamente brincava de moleque com os irmãos, estava se libertando novamente.
Devagar, foram caminhando pela
estrada.
Pararam primeiro no armazém que vendia de tudo, desde linha de pescar até
carne moída. Michael pegou Juliana no colo e os dois
entraram.
Emma Darby, uma senhora rabugenta e preconceituosa que não aceitava a
condição de Aline, estava examinando alguns vestidos num cabide espremido
entre
uma prateleira de panelas de ágata e um mostruário de cartões de aniversário
quando os viu. Os olhos claros quase saltaram das órbitas de tanta curiosidade.
Resmungou:

32
Sandra Field Caminhos do Coração

37
- Bom-dia, Srta. MacCulloch.
- Bom-dia, Sra. Darby. Quero apresentar-lhe um amigo, Michael Gault.
Juliana, é claro, a senhora já conhece.
A Sra. Darby inclinou a cabeça educadamente.
- Acho que ainda não o conhecia, Sr. Gault. Mora por aqui?
- Não, senhora. Sou de Starr River. mas acho que vamos nos encontrar
outras vezes no futuro. Será que nos dá licença? Temos muito o que fazer.
Aline ficou um pouco desapontada. Nunca conseguira encabular a Sra. Darby
com tanta eficiência, como Michael fizera.
Do armazém seguiram para o correio, onde ele enfrentou mais olhares
curiosos. Dali, seguiram para o banco. Depois de resolver o que precisava, Aline
se
juntou a ele perto da porta e nesse instante um homem entrou. Era Wayne
McEvoy.
- Ora, Aline - disse, depois de lançar um olhar sorrateiro para Michael -,
eu estava mesmo pretendendo lhe telefonar, para falar sobre aquele assunto...
- Sinto, mas não tratei de nada.
- Sei... Mas tenho certeza de que vai tratar, não é mesmo? Posso procurá-la no
começo da semana? E não vai me apresentar seu amigo?
Aline fez as apresentações, contrariada. Não havia nenhuma razão para ficar
com medo. O posto não estava à venda e Wayne tinha de aceitar o fato. Mas
sentia
o coração disparado e a garganta seca. Precisou controlar o impulso absurdo de
tirar
Juliana do colo de Michael e agarrar-se a ela, como se isso afugentasse o medo.
Depois que Wayne se despediu, ela, Michael e Juliana saíram do banco.
Então, Aline disse abruptamente:
- Vamos para casa.
- O que aconteceu?
- Não gosto dele, só isso.
- Tenho a impressão de que não é um homem de confiança. Ela não
precisou responder, porque nesse instante cruzaram com
três senhoras da igreja, que a cumprimentaram com um, aceno de cabeça e
olharam, boquiabertas, para Michael.
- Hoje à noite, a vila inteira estará sabendo que Aline MacCulloch arranjou
um novo homem. . . - comentou ela aborrecida. - Deu para perceber isso, não é
mesmo?
- Não estou ligando a mínima. - Vão dizer que dormimos juntos.
- Mas sabemos que isso não é verdade,

33
Sandra Field Caminhos do Coração

38
- Será que não existe nada capaz de irritá-lo? - ela acabou explodindo.
- Claro que sim. Mas mexericos não me afetam.
- É fácil para você, que não mora aqui.
- Quer saber o que eu acho? Que você tem é um tremendo complexo.
- De que está falando?
- Estou me referindo a Juliana. É óbvio que algumas pessoas mais
conservadoras daqui têm dificuldade em aceitar uma mãe solteira, pois foram
educadas desse jeito. Mas aposto como você não fez nada para mudar á opinião
delas, nem procura conhecer outras, que pensam de modo diferente.
Aline sabia que havia muita verdade no que ele lhe dizia e ficou com mais
raiva ainda.
- Mas eu sou mesmo mãe solteira!
- E por que o pai de Juliana não se casou com você, Aline?
- Porque ele não me amava o bastante.
- Quem é ele? Como o conheceu?
Ela desviou o olhar para o verde e dourado da mata, mas não escutou o
farfalhar das folhas nem o assobio do vento. Na sua mente aparecia apenas o
rosto
de David: cabelos negros sempre despenteados e sorriso encantador. Não
conseguia lembrar a cor exata dos olhos nem a forma dos lábios.
- Chamava-se David Aineldáguad"águaey. Estava no segundo ano de Medicina
quando
o conheci. Eu fazia o primeiro de Engenharia e já tinha optado pela Mecânica.
Que
mais posso dizer? Conhecemo-nos em janeiro, namoramos durante a primavera e
nos apaixonamos. E no verão... fizemos amor. - Não pôde continuar: sentia um
sufoco no peito.
- Calma, Aline, não se culpe tanto. Vocês eram muito jovens e
apaixonados. O que aconteceu foi uma seqüência natural de fatos.
- Mas eu o amava!
- E depois?
- Quando descobri que estava grávida e lhe contei, ele ficou
horrorizado. Disse que só concluiria o curso dentro de três anos e que não podia
ficar amarrado a uma mulher e a uma criança. Quando me recusei a fazer
aborto, ele parou de se encontrar comigo. Nunca viu Juliana.
- Azar dele.
- Sabe, acho que todos os homens são assim. Divertem-se e depois
dispensam as mulheres. . . .
39

34
Sandra Field Caminhos do Coração

- Nem todos, Aline.


- Como é que sabe? E quanto a você? Nunca se casou, mas posso apostar
que não leva vida monástica!
- Eu não sou monge, mas pelo menos nunca iludi minhas companheiras
com promessas de amor eterno. Sempre coloquei as cartas na mesa.
- Então, deve achar que fui mesmo uma tola - disse ela ácida.
- Você era jovem demais, confiante e apaixonada.
- É, eu confiava em David - levantou os olhos, surpresa consigo mesma,
pois nunca conseguira comentar isso com ninguém. - Eu o amava, mas não sei
se era correspondida, ou se ele desejava apenas o meu corpo.
- E isso tem importância? Você o amava, e só pode assumir
responsabilidades sobre seus próprios sentimentos, não pelos dos outros.
- Está querendo dizer que agi de boa fé?
- Agora há pouco você disse que estava apaixonada por ele.
- Quando David me disse para tirar a criança, destruiu o amor que eu
sentia. Agora tenho a impressão de que nunca mais vou me apaixonar.
- Não foi o seu amor que estava errado, mas a pessoa a quem era dirigido.
- Não sei por que estou lhe contando tudo isso. . . Nunca toco no assunto.
- Você está começando a confiar em mim, Aline.
- isso não! Acabei de lhe dizer que nunca mais confiaria em homem algum!
- Nunca é um tempo longo demais, não acha? Bem, mas vamos ter de
continuar nossa conversa outro dia. Preciso ir, tenho uns negócios a resolver.
Você estará livre sábado à noite? Que tal irmos até a cidade jantar, e depois a
um
teatro?
Aline arregalou os olhos.
- O quê?
- Já está fazendo tudo errado de novo, Aline. Você deve dizer: "obrigada,
Michael, gostaria muito de sair com você.
- Em vez disso vou perguntar: afinal, o que quer comigo? - Digamos
que gosto de você.
- Não acredito. Principalmente porque me disse que sou uma mulher cheia
de complexos.
- Também acrescento que é corajosa e muito amorosa. E, debaixo dessa
aparência meio inibida, desconfio que há uma mulher
40
que adora se arriscar e se divertir. Eu gostaria de conhecer melhor essa
mulher. Já que estamos falando nisso, gostaria de vê-la usando vestido.
Ela ficou vermelha.
- Michael, eu.. . eu não sou de sair para fazer programas...

35
Sandra Field Caminhos do Coração

- Pensa que a estou convidando para sair só porque desejo ir para a cama
com você? Pois saiba que em nenhuma circunstância vou forçá-la a fazer algo que
não queira.
- Na última vez, com David. . . eu queria. . .
- Na próxima vez, vai tomar mais cuidado, não é mesmo? Então a resposta
é sim ou não?
- Sim, eu vou.
- Ótimo! Venho buscá-la um pouco depois das seis.
Aline viu os olhos dele brilharem e sentiu o calor da mão máscula em seu
rosto. O coração disparou, mas o pânico abafou a emoção que começara a nascer.
Ela deu um passo atrás, segurou a alça do carrinho e disse, sem fôlego:
- Preciso ir agora.
- Até sábado, então - Michael beijou-a suavemente nos lábios e entrou
no jipe. Com um aceno de mão, partiu.
"O que será que ele quer comigo?" - Aline pensou, distraída. O que sabia
sobre aquele homem? Muito pouco, mas mesmo assim reconhecia que era
tolerante, inteligente e muito sensível. Além disso, também estava certo em
relação
a sua atitude para com o povo do vilarejo.
Ela permaneceu pensativa o resto do dia, respondendo, distraída, às
inevitáveis perguntas do avô. Contou-lhe sobre o programa de sábado à noite,
porque era ele quem ia ficar com Juliana, mas estava tão preocupada que nem
reparou que o velho respondera com malícia:
- Ora, vejam só.. . Alguém podia adivinhar que isto fosse
acontecer?
À medida que os dias passavam, ela ia ficando mais nervosa, e no sábado,
perto das seis horas, estava a ponto de explodir. Mas, no íntimo, sentia prazer
em
cuidar da aparência, o que não acontecia há meses.
Não tinha tido oportunidade de se arrumar desde o nascimento de Juliana, e
por isso estranhou a Aline que viu no espelho grande do banheiro: esguia e
elegante, olhos cintilantes, o vestido de chifon, de um tom entre malva, cinza e
azul-
claro, realçando as curvas, e uma fivela de prata valorizando os cabelos soltos
e
brilhantes.
Enquanto colocava pequenos brincos, também de prata, escutou
41
vozes lá embaixo e percebeu que Michael já havia chegado. Sentíndo-se
como uma adolescente no primeiro encontro, contou até dez e desceu a escada.

36
Sandra Field Caminhos do Coração

Ao
abrir a porta que dava para a cozinha, deu com Michael, que virou-se para encará-
la.
Ela prendeu a respiração ao vê-lo. O terno grafite, que lhe assentava de uma
forma
magnífica, conferia-lhe uma aparência sofisticada.
- Você está linda, Aline. .. Não é verdade, Matthew?
O avô, boquiaberto com a elegância da neta, disfarçava, enfiando fumo no
cachimbo.
- Ah, querida, você está tão parecida com sua avó. . .
Ela aproximou-se, comovida, e beijou uma lágrima que corria no rosto do
velho.
- É melhor vocês irem - ele disse, mal escondendo a emoção. - Divirta-se.
Ao sentar-se no carro de Michael, Aline sentiu-se tímida, mas ele, com
habilidade, fez com que ela falasse sobre o avô- Conversaram animadamente até
chegarem à cidade.
O teatro estava lotado e Aline sentiu-se insegura no meio daquela multidão
elegante. Mas, ao reparar que os dois estavam sendo observados com admiração,
descontraiu-se e pôde apreciar a peça. Quando o espetáculo terminou, os dois
desceram, de braços dados, as ladeiras em direção ao porto, que estava repleto
de
barcos e de onde se via o farol piscando sem parar. O restaurante ficava num
edifício de pedra, sede de uma antiga destilaria.
Influenciada pela peça e pelo aperitivo que tomava, Aline contava a Michael a
história de sua família. Falou sobre o irmão preferido, Bob, e sobre o episódio da
cerca. Tentou também enfatizar as restrições que havia sofrido quando criança e
adolescente.
- Meu pai era muito severo, e minha mãe, submissa às suas vontades. Eles
me deserdaram quando engravidei. Como David, meu pai queria que eu fizesse
um aborto, enquanto minha mãe andava pelos cantos, choramingando, dizendo que
eu tinha manchado o nome da família. Não demorou muito e fui expulsa de casa. -
Estremeceu, vendo à sua frente não o copo de vinho bem vermelho, mas o rosto
severo do pai, a imagem perfeita do homem intolerante.
- E o que fez?
Ela levantou os olhos, espantada com o tom de voz dele,
- Por que está tão zangado?
- É que não suporto pessoas de mente e moral tão estreitas. E também não
admito que o ser humano não sinta emoção e amor. Agora estou começando a
entender a origem dos seus problemas. 42
- Achei que havia feito uma coisa terrível e que estava sendo punida por

37
Sandra Field Caminhos do Coração

isso, pois era assim que o mundo do meu pai funcionava. Quando Juliana nasceu,
comecei a perceber o quanto estava errada. E, quando você comentou que eu
tinha muita sorte em ter uma filha como ela, afastei de vez a idéia da punição.
Percebi que sou mesmo uma pessoa de sorte.
- Fico feliz ao ver que você finalmente parou de se culpar.
Aline estremeceu com a ternura que havia nos olhos dele. O calor das mãos
que acariciavam as suas despertava uma profunda sensação de felicidade que. por
um instante, brilhou em seu coração como uma chama viva.
Sem pressa, ele a soltou e levantou o copo para um brinde.
- À nova Aline!
Aquela conversa ia permanecer para sempre na lembrança de Aline como
uma noite mágica. Ao saírem do restaurante, andaram vagarosamente pela beira
da
praia e depois foram dançar um pouco. Caminharam sem pressa para o carro e
voltaram para casa sob o céu estrelado. Ela acabou adormecendo no ombro de
Michael, os cabelos claros caindo feito cascata no braço forte.
- Aline, acorde. .. Já chegamos.
A voz parecia vir de muito longe. Ela abriu os olhos sonolentos e sentiu,
encantada, o calor daquele corpo bonito aquecer o seu.
- Já estamos em casa?
- Você dormiu o caminho todo.
- Foi uma noite maravilhosa, Michael. Obrigada. - Virou a cabeça para
fitá-lo e, nesse instante, ganhou um beijo profundo e sensual que lhe despertou
um
desejo há muito adormecido, fazendo seu coração disparar.
"Nunca mais, Aline. . . nunca mais!", as palavras surgiram como um aviso. Ela
ficou rígida e se afastou.
- Michael, por favor. . . não.
Ele a soltou imediatamente e ela pôde ouvir-lhe a respiração entrecortada, o
que apenas serviu para aumentar seu medo,
- Desculpe-me. É que eu...
- Mas você sentiu, não sentiu, Aline? - ele a interrompeu, com voz
rouca de emoção. - Por um minuto, me desejou tanto quanto eu a desejei, não foi?
- Sim. é verdade. Mas fiquei com medo. Também senti desse jeito com
David. . .
- Comigo você não precisa ter receio algum.
Seria verdade? Ela deveria sentir muito mais medo, pois Michael, além de
sensual, a fascinava pela inteligência, pela sensibilidade.
43
- Eu não sei... - disse, confusa, endireitando o corpo. -Não sei

38
Sandra Field Caminhos do Coração

mesmo.
- Quero vê-la outras vezes. Sabe disso, não é?
"Mas por quê?", ela queria gritar. "Por que vai querer me ver de novo? Para
me passar uma cantada?"
- Pode me procurar, se quiser. - Pegou a bolsa que estava no chão do
carro. - Adeus!
- Boa noite, e não adeus. Aline, não fuja de mim. Prometo não magoá-la.
- Como pode ter certeza disso? - ela gritou, mas. envergonhada,
acrescentou; - Oh, Michael, sinto muito. Não pretendia terminar assim uma
noite tão linda. Mas... por favor... não se envolva demais comigo, sim? -
tentou sorrir. - Vai perder seu tempo.
- Deixe que eu julgue isso. Telefono para você, está bem? Aline reparou
no ar determinado do rosto dele e respondeu.
mordendo o lábio:
- Está. Mas lembre-se: posso não atender.
- Vai atender, sim. - E acrescentou, divertido: - Se não quiser
falar comigo, faço Matthew lhe passar um sermão!
Ela não resistiu e começou a rir.
- Não se atreva! Depois terá de acertar as contas comigo! - Boa noite, Aline, e
se cuide... - disse ele, com um rápido beijo de
despedida.
- Você também. - Ela deu-lhe um tênue sorriso, bateu a porta do carro o
mais suavemente possível e abriu a porta da varanda. Ao entrar em casa viu que
ele
já se dirigia para a estrada. Para não fazer barulho, tirou os sapatos e subiu a
escada na ponta dos pés, com um suspiro de satisfação.
41

CAPÍTULO IV
Na segunda-feira, Aline precisou enfrentar dois problemas que a deixaram
profundamente aborrecida.
Tommy havia saído para o almoço e ela estava cuidando das bombas, além
de tentar descobrir a causa do vazamento de água num belo Porsche branco. Era
um serviço cansativo e desconfortável, que a fez ficar com o macacão molhado e
o
rosto todo sujo. E. para piorar a situação, o sininho tocou no momento em que ela
localizou o problema e tentava solucioná-lo.
Aline correu para fora, preocupada com o conserto, e quase desmaiou de
susto ao deparar com o carro que acabava de estacionar junto à bomba: era o
Mercedes negro que Michael dirigia quando se conheceram. Só que dessa vez era

39
Sandra Field Caminhos do Coração

uma mulher quem o conduzia.


Aline sentiu-se gelar, pois estava com uma aparência péssima. Parou perto
da janela do carro e indagou:
- Em que posso servi-la?
A mulher encarou-a fixamente e, com um sorriso amistoso, perguntou:
- Será que podia encher o tanque? E também verificar o óleo? - e passou
a Aline um cartão de crédito. Usava as mesmas luvas marrom...
O nome dela estava em letras douradas no cartão: "Mary L. Gibson". Com um
movimento tão tenso quanto o sorriso em seu rosto, Aline guardou o cartão no
bolsinho do macacão e começou a encher o tanque. Ao conferir o óleo, viu que
estava um pouquinho abaixo da marca e a avisou.
- Então, não preciso me preocupar. Está um lindo dia, não é mesmo?
- é verdade. - .
45
Aline observou que Mary Gibson tinha cabelos ruivos e olhos expressivos.
Nas orelhas, víam-se pequenos brincos de ouro e, nos pulsos, tilintavam pulseiras
também de ouro. Ela usava uma jaqueta de lã e uma blusa de seda marfim.
"Michael deve estar apaixonado... ela é linda, além de educada, refinada e
rica", pensou. E, num ataque de autopiedade, concluiu, irritada: "Ela é tudo o que
você, Aline MacCulioch, não é. Você, além de uma íoirinha comum e sem atrativos,
é cheia de complexos".
Desligou a bomba e comunicou à motorista o total. Depois, correu ao
escritório para preencher a nota que Mary Gibson assinou com um floreio.
- Obrigada. Um bom-dia para você.
Apertando o suporte de plástico vermelho das fichas de crédito nas mãos,
Aline viu o Mercedes sair do pátio e dobrar à direita. A fazenda de carneiros de
Michael ficava naquela díreção e Mary Gibson provavelmente ia fazer-lhe uma
visita.
Desanimada, dirigiu-se à oficina e sentou em cima de uma pilha de pneus
usados, apoiando o queixo nas mãos. Um turbilhão de emoções a invadiu. "Na
verdade, estou com ciúmes", pensou, arrasada. Sentiu-se mal só em imaginar que
Michael iria passar o resto do dia.. . e quem sabe a noite.. . na companhia daquela
bela ruiva. Seria mais fácil suportar o fato se Mary Gibson tivesse sido rude e
grosseira, mas não; ela havia se mostrado tão, gentil e educada ...
Aline ficou ali, remoendo a sua raiva, e teria permanecido sentada a tarde
toda se Tommy não tivesse aparecido para avisar:
- Pode ir almoçar. .. Ei, você está se sentindo bem? Ela encarou-o,
aborrecida.
- A chateação de toda segunda-feira. Talvez a comida ajude. Volto em
uma hora.

40
Sandra Field Caminhos do Coração

Estava quase saindo quando o telefone tocou. Parou e ficou esperando,


enquanto Tommy atendia, imaginando o que iria dizer, se fosse Michael.
- É para você - avisou o rapaz, entregando-lhe o fone e saindo.
- Oficina MacCulioch.
- Aqui é Wayne McEvoy, Aline. Como vai?
- Estou ótima! - respondeu ela, irritada.
- Seu avô mudou de idéía?
- Ainda não falei com ele.
- Então, sugiro que faça isso imediatamente.
- Tenho certeza de que ele não vai mudar de idéia. 46

- Tente, Aline. Volto a lhe telefonar às quatro - disse Wayne secamente,


desligando em seguida.
Aline bateu o telefone. Wayne McEvoy tinha de ligar justamente naquele dia?
Foi pisando duro até a casa, tirou as roupas de trabalho e entrou na cozinha.
Juliana
a recebeu com um sorriso encantador. Batia com o chocalho de plástico na
bandeja
do caldeirão e depois o atirou no chão, gritando alegremente ao ouvir o barulho
produzido.
Por um momento, Aline esqueceu as preocupações daquele dia. Juliana
aprendera aquela brincadeira há pouco e ficaria naquilo o dia inteiro, se a
incentivassem. Aline se abaixou, pegou o chocalho e começou a dançar com ele à
volta da cadeira. Juliana gritava, feliz.
- Que bagunça é esta? - brincou Matthew, saindo da despensa com um
prato de sanduíches. - Aline, a comida está quente. Sente-se e almoce.
Com combinações estranhas de ingredientes sobre os quais Aline preferia
não indagar, Matthew fazia sopas deliciosas. Ela se serviu, depois colocou um
pouco
de papinha no prato de Juliana e disse ao avô:
- Falei com Wayne McEvoy na semana passada e esqueci de lhe contar.
Ele está querendo saber se você mudou de idéia em relação à venda da oficina.
- Eu já disse a ele e a minha resposta vai continuar sendo não! -
resmungou. Mas não conseguiu conter a curiosidade. - Por acaso, ele ofereceu
mais dinheiro?
- Não, mas acha que você devia aproveitar o dinheiro que receberia para se
divertir num cruzeiro pelo mundo.
- Mas nem pensar! Eu enjoo num bote num laguinho... Mas diga-me, que
tal a sopa?
- Maravilhosa, como sempre.

41
Sandra Field Caminhos do Coração

- Aline, você quer que eu venda o posto?


Enquanto dava uma colherada de papinha para Juliana, ela pensava numa
resposta.
- Vovô, você sabe como sou feliz aqui. Não sei o que teria feito sem sua
ajuda, neste último ano. A melhor coisa que Bob fez foi ter dado um jeito para
que eu
viesse para cá. Mas, se deseja mesmo vender a oficina, não quero interferir.
Tenho
certeza de que consigo arranjar emprego em algum outro lugar,
Mas Aline não tinha certeza. Além disso, sabia que nunca iria encontrar
alguém de tanta confiança quanto o avô para cuidar de Juliana. Só que não podia
abusar dele.
47
Matthew serviu-se de um sanduíche.
- Sou muito ligado a este lugar, querida. Fora isso, gosto de viver com você
e Juliana. É muito melhor do que morar sozinho.
- Tem certeza?
- Cfaro que tenho. Pegue um sanduíche.
Para Matthew, aquilo indicava o fim do assunto. Bem, ela havia feito o melhor
que podia. Wayne McEvoy teria de procurar um posto e uma oficina em algum
oulro
lugar.
Quando o telefone tocou, pontualmente, às quatro, Aline havia acabado de
fazer uma revisão completa nos freios de um Pomiac e ficara tão absorta na
tarefa
que atendeu distraída.
- Wayne McEvoy falando. Seu avô vai vender?
Ele não estava mais preocupado em se mostrar educado. Aline levantou o
queixo e respondeu:
- Sinto muito. Sr. McEvoy, mas vovô não mudou de idéia. . .
- Ele está querendo mais dinheiro?
- Acho que não é isso. - E acrescentou, atrevida: - Vovô não se
interessa muito por cruzeiros marítimos.
- Muito engraçado, mocinha, mas acho que você não está entendendo
direito. Pretendo comprar a oficina de qualquer jeito. Pensei que o velho
fosse
compreender a situação e cooperar, mas parece que isso não vai acontecer. Vou
ter
de fazer pressão, não é mesmo?
- Não sei se estou entendendo o que quer dizer. . .

42
Sandra Field Caminhos do Coração

- Existem diversas maneiras de forçá-los a vender. Por razões óbvias, não


quero estragar a oficina nem o seu bom nome, mas alguns lenhadores poderiam
lhe fazer uma pequena visita. . . Além disso, você tem uma filha pequena. Não ia
querer que nada de mau acontecesse a ela, não é mesmo? Ou a seu avô. .. Por que
não conversa novamente com ele? Tenho certeza de que ele vai concordar comigo.
- isso é chantagem.
- Só uma pequena persuasão amistosa.. . Se vocês tiverem bom
senso, nada acontecerá.
- Vou chamar a polícia!
- Eu não faria isso, se fosse você. Em primeiro lugar, não há testemunhas.
Depois, poderia acontecer um acidente bem desagradável a um de vocês três.
- Mas por que deseja tanto esta oficina?
- Não lhe interessa, minha querida. E. falando nisso, não vá contar nada
deste nosso assunto para aquele seu amigo detetive.
- Para quem?
48
- Michael Oault. O rapaz que estava com você outro dia. Então, ele não lhe
disse nada sobre sua profissão?
- Não sei sobre o que o senhor está falando!
- Meu Deus... Ele foi da polícia pelo menos uns dez anos, lotado como
agente do setor de Narcóticos durante muito tempo. Segundo a versão oficial,
pediu
demissão, mas a verdade é que foi mandado embora. Incompetência, rumores de
roubos e mais uma forte suspeita de ser um viciado.
Aline não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Parecia um pesadelo.
- Michael? Não podemos estar falando da mesma pessoa!
- O moço é um verdadeiro artista, minha filha. Essa era sua especialidade:
fingir. Você não seria a primeira pessoa a enganar-se com ele.
O comentário de Wayne sobre Michael não a amedrontou, mas deixou-a
louca da vida. Disse, furiosa:
- Será que já terminou? Tenho coisas mais importantes a fazer.
- Você não está me levando a sério, não é? Acho então que terei que usar
outros métodos...
Aline escutou o telefone sendo desligado e ficou encarando, atónita, o
aparelho em suas mãos. Ela, Juliana e o avô estavam sendo ameaçados por um
homem considerado um gangster de cidade pequena, que pagava jagunços para
fazer serviços sujos, enquanto ficava por trás, impune, aproveitando os
resultados
de seus golpes. Isso era intolerável! E o pior era que Wayne não estava
brincando;

43
Sandra Field Caminhos do Coração

poderia pressionar e fazer qualquer coisa para conseguir o que queria,


Lentamente, ela recolocou o fone no gancho. Então Michael havia sido um
detetive. . . Instintivamente, sabia que podia ser verdade, porque aquilo explicava
muita coisa: a primeira impressão que Aline tivera dele; seus movimentos rápidos
e
silenciosos quando do ataque a Willie e a alusão a um mundo onde a morte e a
crueldade eram a norma.
Mas por que não contara tudo a ela? Principalmente na noite de sábado,
quando haviam conversado tanto... "Porque você falou demais, Aline. Ficou
discursando sobre sua infância infeliz e sua gravidez e não lhe deu chance de
dizer
nada. ..", pensou ela, sentindo a irritação aumentar.
Mas a verdade era que ele tivera muitas oportunidades para falar sobre seu
passado. Por que então ficara calado? Por que sentia vergonha de alguns episódios
de sua carreira? Por que fora também viciado?
49

Não, aquilo não podia ser verdade. Wayne estava tentando jogá-la contra
Michael. Aline esforçou-se para afastar aqueles pensamentos de sua mente. O
Michael que conhecia não podia ser um ladrão, um mentiroso. Não podia.
Aparentando mais calma, voltou à oficina e recolocou as rodas do Pontiac,
levando depois o carro para o pátio. Em seguida, guardou as ferramentas e varreu
o
chão, movendo-se o tempo todo como um autómato. Ao voltar para casa, na hora
do
jantar, ainda não decidira se ia contar ao avô sobre o telefonema de Wayne.
Tentou se comportar normalmente, enquanto dava comida a Juliana e
contava sobre as dificuldades do serviço do dia.
Mas- depois, quando o bebê estava brincando no quadrado e os dois
tomavam café, sentados nas poltronas, Matthew indagou com diplomacia:
- Há alguma coisa aborrecendo você, Aline? Está preocupada por Michael
não ter dado notícias? Tenho certeza de que ele vai aparecer. É que é um homem
muito ocupado, querida.
Nesse instante, o episódio com Mary Gibson pareceu-lhe ter acontecido há
tanto tempo que ela apenas respondeu:
- Oh, não- . . não é isso.
- Então, o que é?
Não adiantava querer esconder nada de Matthew, pois ele enxergava longe.
- Wayne McEvoy telefonou hoje à tarde. Vovô, ele fez ameaças, caso não
aceitemos vender o posto.

44
Sandra Field Caminhos do Coração

O velho tomou um grande gole de café, não parecendo muito surpreso.


- Conte-me o que ele disse.
Quando Aiine terminou, omitindo apenas a parte sobre Michael, o avô estava
louco da vida.
- Aquele sem-vergonha! Então ele pensa que vai me obrigar a vender?
Agora é que nós vamos ver uma coisa!
- Vovô, ele falou sério!
- Lembro-me de Wayne McEvoy desde quando era um moleque de jardim
de infância! Gostava de matar passarinhos com o esti-lirigue. Você já reparou
que
ele só ataca os menores, os mais fracos? Se está pensando que vou entregar este
lugar sem lutar, está redondamente enganado!
E Matthew continuou falando sem parar por mais algum tempo. Aline deu a
mamadeira a Juliana e escutou pacientemente, sabendo que o avô logo iria se
acalmar.
Quando ele terminou, ela tentou controlar a situação.
50
- Eu disse que ia chamar a polícia.. .
- Polícia? Ela não tem nada que ver com isso! - reiniciou o falatório.
Ela o interrompeu bruscamente.
- Vovô, escute uma coisa: Wayne McEvoy é um homem perigoso, que conta
com gente do tipo de Willie Budgeon! Não quero me meter com ele!
- São todos uns grosseirões!
- Só que Willie, ao contrário de Wayne, não tem medo de enfrentar nada.
Matthew olhou, zangado, para a neta.
- Está tentando me dizer que devemos vender o posto?
- Não, mas.. .
- Ótimo. Por um momento, fiquei preocupado. Vou dizer-lhe o que vamos
fazer! Primeiro instalaremos um sistema de alarme entre a oficina e a casa e
pediremos a Tommy para ficar algumas horas a mais, para que você nunca fique
sozinha na oficina - um ar de satisfação apareceu no rosto do velho. - Vamos
mostrar a Wayne que ele não pode fazer o que quer. ..
Aline soltou um suspiro de derrota. Matthew não a estava levando a sério.
Talvez ela estivesse exagerando o perigo. Não fez mais objeções e não falou
nada
quando o avô instalou, no dia seguinte, um complicado sistema de alarme. Só
perdeu a paciência mais tarde, quando viu o velho polindo a espingarda.
- Ora, vovô! Não exagere, não estamos na selva!
- Notei que a arma estava empoeirada, só isso - ele respondeu, um ar
inocente no rosto.

45
Sandra Field Caminhos do Coração

- Acho bom guardá-la direitinho, depois de terminar de polir. Nesse


instante, o telefone tocou. Aline atendeu, mas ninguém
respondeu. Apenas escutava-se uma respiração ofegante, sibilante,
ameaçadora. A ligação foi cortada e ela recolocou o fone no gancho, as mãos
tremendo.
- Quem era?
- Acho que foi engano - respondeu, insegura. Sabia que não queria
acreditar na ameaça implícita daquele ruído estranho.
O telefone tocou mais duas vezes naquela noite. Na segunda, Matthew
estava no porão e Aline atendeu. A mesma respiração ofegante e. . . depois uma
voz
de homem começou a falar baixo. Ela desligou com força e raiva.
Na terceira chamada, Matthew estava arrumando a lenha e Aline lavava a
louça.
Deixe que eu atendo disse ela. querendo proteger o avo. Atendeu
com um "alô" em tom furioso.
- Aline? Eu a tirei da cama?
; - Michíiel? Não. . . Eu ainda não me deitei, -. Você está bem?
- Sim, estou - respondeu ela. controlando a voz.
- Quando é que vem me ver?
- Não fui convidada.
E o que digo agora? Pergunto sobre Mary? Ou a profissão de
detetive?","
pensou, aflita. - Amanhã à noite?
- Eu. . . eu não sei.
- Mas você quer vir me visitar, não"."
- Também não sei, . . - perto da caixa de lenha, Matthew fazia-lhe
sinais, e ela disse ao telefone: - Um minuto, Michael...
Vovô. o que é?
- Você não vai ficar presa em casa por causa dessa bobagem do Wayne.
Vá sossegada, que eu cuido de tudo aqui.
Ela deu uma olhada para a espingarda e comentou:
- É disso que tenho medo. Mas acho que não estou mesmo com vontade
de ir.
-- É claro que está! - Matthew atravessou a sala e agarrou o fone: -
Michael, não ligue para ela. . . Minha neta acha que não posso cuidar de Juliana,
agora que os dentes estão nascendo- As mulheres se preocupam à toa, não é
mesmo? Acham que os filhos não sobrevivem sem elas. . .
O rosto em fogo. Aline disse alto:
- Vovô, se já terminou, gostaria de continuar minha conversa com

46
Sandra Field Caminhos do Coração

Michael.
Sem pressa, Matthew ainda disse:
- Amanhã à noite? Não tem problema. E você também apareça, que é
sempre bem-vindo. Agora Aline vai falar.
- Obrigada, vovô! - ela disse, sarcástica, - Olhe, Michael, vocês
dois são ótimos. Já ajeitaram tudo para mim, não é mesmo?
- Tudo não. só uma noite. Venha antes de escurecer, para eu lhe mostrar o
lugar. Até amanhã!
Matthew olhou para a neta e disse, afastando-se;
- Acho que vou buscar mais lenha no porão.
Aline observou-o descer depressa a escada e precisou controlar o riso. Devia
estar furiosa, pois por causa dele tinha de ir visitar Michael.. . mas não estava.

CAPITULO V
No dia seguinte, o telefone tocou sets vezes na oficina. Três chamadas sobre
negócios, mas as outras três não. Aline bateu o telefone na primeira vez, pois.
tratava-se de um trote, mas nas outras duas não teve tanta sorte.
Ao voltar para terminar de consertar o farol de um Ford, reconheceu que era
extremamente vulnerável à tática usada por Wayne McEvoy. E não poderia fazer
nada para evitá-la, porque precisava do telefone por causa do serviço. Assim, em
menos de vinte e quatro horas, estava com os nervos à flor da pele e a cabeça
estourando.
Mas algo pior ainda ia acontecer. Depois do almoço, ela precisou descobrir a
causa de um vazamento de óleo no caminhão de um amigo de Matthew. Levou o
veículo para a oficina e depois desceu para o fosso. Esguichou um solvente para
limpar um pouco o óleo acumulado, antes de localizar o vazamento. A seguir,
estendeu
a mão para pegar a lâmpada, sempre dependurada num gancho.
Mas não havia nada ali. Estranhando, ela deu a volta e gritou, assustada, ao
ver Willie Budgeon no fosso, segurando a lâmpada.
- É isto que está procurando? - disse ele, com voz macia. Por causa do
compressor, Aline não o escutara chegando. Com
o coração disparado, ela ainda conseguiu dizer calmamente:
- Sim, é isso mesmo - e estendeu a mão para pegá-la.
- Você é bem fria, Aline MacCuIloch. mas acho que conheço um modo de
mudar isso - disse ele, aproximando-se mais.
- O que está querendo, Willie? Foi Wayne que o mandou, não foi? Quanto
ele está lhe pagando? Aposto que é bem pouco. Não
53
se constrói uma casa como a dele pagando bem aos empregados.!

47
Sandra Field Caminhos do Coração

- Sim, foi ele quem me mandou. Pediu-me para convencê-la a vender a


oficina e eu achei ótimo, porque achei que poderia me divertir um pouco. . .
Ele a encurralara num canto. Aline estava sem saída.
- Não sou dona da oficina. Ela é de meu avô.
- Se acontecer algo a você, talvez ele mude de idéia.
De nada adiantaria gritar, pois as portas estavam fechadas e Tommy não iria
escutá-la. Aline também não poderia utilizar o sistema de alarme que Matthew
instalara, porque este não incluía uma campainha no fosso. Ainda assim, tinha
certeza de que, se Willie a tocasse, iria berrar com todas as forças, mesmo que
fosse inútil.
Ele estava tão perto agora que ela não pôde deixar de notar uma pequena
cicatriz no lábio inferior, como se alguém o tivesse ferido com uma faca. Faca, . .
arma.. . Precisava encontrar alguma coisa que pudesse usar como arma. Abaixou-
se
e tentou agarrar a mangueira de ar comprimido, mas Willie foi mais rápido: com
uma
das mãos segurou-lhe o rosto e com o outro braço prendeu-a com força, tentando
beijá-la com brutalidade.
Aline chutou-lhe a canela com toda força, com a bota chapeada de metal.
Willie gemeu de dor e a soltou. Foi quando ela ouviu uma voz:
- Tem alguém aí?
- Já estou indo.
Willie olhou-a como se quisesse estrangulá-la. Ela foi se afastando da parede,
com os joelhos trêmulos. Então ele agarrou-lhe o pulso e o torceu com força.
- Da próxima vez, vou garantir para que ninguém apareça - grunhiu,
deixando-a ir.
Os sete degraus do fosso pareceram a Aline como uma alta montanha.
Achando que podia até desmaiar, deu a volta ao caminhão e se encontrou face a
face com o Sr. Darby.
- Desculpe-me por fazê-lo esperar, Sr. Darby. É que eu não o ouvi
chegar. , .
- Espero que não se incomode por eu ter entrado. O garoto disse que não
tinha importância,
- De modo algum - disse ela, com um sorriso. - Em que posso servi-
lo?
- é um probleminha com o pisca-pisca. Pode ser um fusível? Sabe, não
gosto de incomodá-la. ...
- Não se preocupe, vou dar uma olhada. Não demoro nem um
54
minuto para descobrir o que há. Abrirei as portas e o senhor pode colocar o

48
Sandra Field Caminhos do Coração

carro aqui dentro.


Quando ela fazia isso, Willie passou rápido, entrou no caminhão que deixara
estacionado meio escondido e foi-se embora. Aline se apoiou no batente, as
pernas
fracas. Ele havia se afastado. .. mas voltaria.
Trocou o fusível do carro do Sr. Darby e depois voltou ao fosso para continuar
o trabalho no caminhão, controlando o impulso de ficar olhando por sobre os
ombros
a cada dois minutos. Às três e meia, depois de acabar o serviço, deixou Tommy
cuidando de tudo e foi para casa. O avô e Juliana estavam no jardim: o bebê no
carrinho
e Matthew varrendo folhas secas do gramado.
Aline brincou um pouco com a filha, esperando que a tensão se atenuasse,
mas aconteceu o oposto: entrou em pânico só em pensar que Wayne ou Willie
poderiam fazer algum mal à menina.
"Talvez um banho quente ajude", pensou. Mas, apesar de todo o esforço para
relaxar no chuveiro, sentia os nervos tensos quando acabou de se vestir. Dirigiu-
se
para a cozinha, onde encontrou Matthew lavando as mãos. Ao vê-la, assobiou:
- Linda.. . muito linda mesmo!
Ela usava uma saia pregueada verde, uma blusa creme de mangas
compridas e um casaco de tricô verde-musgo. Os cabelos caíam nas costas numa
trança grossa. Usava um pouco mais de pintura, para esconder as olheiras e a
marca vermelha no rosto. Matthew não notou nada de estranho. Calçando botas
de
cano alto e uma capa de chuva, ela perguntou:
- Seus amigos vão chegar daqui a pouco, não é?
- Sim. Preciso pegar a mesinha de jogo.
Todas as semanas havia jogo de cartas, em rodízio, nas casas dos amigos.
Aparentemente, eles jogavam buraco, mas Aline desconfiava que, na hora em que
as mulheres saíam de perto, transformavam tudo em sessões de pôquer.
- Não vou chegar tarde, vovô. Ninguém vai embora antes da meia-noite,
não é mesmo?
E saiu com o carro do avó, um veículo de segunda mão que ela deixara em
estado de novo. Foi seguindo pela estrada até a fazenda de Michael, a setenta
quilômetros dali. Ainda sentia-se chocada com a agressão de Willie. Como iria se
defender? E como proteger sua família?
Estava tão imersa em seus pensamentos que quase passou a placa indicativa
de Valley View. A estradinha de terra subia, margeando um regato. Aline tentou
se

49
Sandra Field Caminhos do Coração

concentrar e prestar atenção nos


55
arredores. Abriu a janela e pode escutar o barulho das águas, o canto dos
passarinhos, o vento nas folhas das árvores. O lugar era tranquilo, lindo, e a
oficina
parecia ter ficado muito, muito longe. De repente, chegou a uma clareira e
imediatamente viu a casa, construída na encosta de uma colina, no meio de um
bosque: um sobradão típico da região, de cor cinzenta, com portas e janelas
brancas. Da chaminé saía fumaça e pelas janelas se via o interior iluminado, como
se a casa desse boas-vindas aos visitantes.
A construção era muito mais imponente do que Aline havia imaginado,
modificando a imagem que tinha de Michael, com seu jipe velho e sua jaqueta de
lenhador.
Percorreu a estradinha que levava a uma área de estacionamento sob as
árvores-. Michael saiu por uma porta lateral e desceu correndo os degraus. Devia
estar esperando por ela. Aline sentiu uma onda de felicidade ao parar o carro
perto
do jipe e descer. Nesse instante, um pássaro cantou alto e ela virou o rosto para
observá-lo: Seu coração quase parou: estacionado bem ali perto, estava o
Mercedes
preto de Mary Gibson.
Michael se aproximava rapidamente, sorrindo. Como se atrevia? Aline abriu
de novo a porta do velho carrinho do avô, atirou a bolsa no banco e procurou,
aflita,
as chaves no bolso da capa.
- Aline! Que bom vê-la! - seu tom mudou, quando ele se aproximou. - Eí!
O que há de errado?
Ela tremia, louca da vida. Gritou, com os olhos faiscando;
- Vou embora!
- Mas. . . por quê? - e segurou-lhe o braço, tentando detê-la. - Largue-
me!
- Que brincadeira é essa?
- O que é que estava planejando? Esconder sua amiguinha lá em cima,
enquanto eu ficava no andar de baixo? Ou pretendia um triângulo amoroso?
Michael
e seu harém... Ora, deixe-me fora disso!
- Aline!
Havia tanta firmeza na voz de Michael que ela ficou paralisada. . Então ele
disse, baixinho:
- Agora, quer me explicar o que está acontecendo?

50
Sandra Field Caminhos do Coração

- Mas claro... explico-lhe direitinho! Se quer flertar com Mary


Gibson, vá em frente, mas me deixe de fora. Não admito essas coisas: uma
noite Mary, outra eu! Como acha que iria me sentir ao chegar aqui e encontrar
esse maldito Mercedes parado na sua porta?
Michael olhou na direção que ela indicava, viu o carro e disse. com um leve ar
de surpresa, deixando-a mais furiosa: 56
- Ah, então Mary veio hoje? Pensei que não tivesse vindo...
- Você devia arranjar uma secretária particular para cuidar dos seus
encontros - ela disse, sarcástica. - Adeus!
- Acho que você está com ciúmes!
Já quase dentro do carro, Aline lançou-lhe um olhar carregado
de ódio:
- Ciúme? Eu? Orá, não se valorize tanto!
- Mary não é e nunca foi minha. . . bem, minha namorada. - Mas claro. . .
só que não foi isso que me disse antes.
- Eu nunca lhe disse que estava envolvido emocionalmente
com ela.
- Mas deu a entender, quando nos conhecemos!
- Você apenas imaginou uma coisa e eu não neguei.
- E por que fez isso? Mais: por que ela está aqui esta noite?
- Uma coisa de cada vez. Não neguei porque provavelmente naquele dia
eu estava meio em estado de choque. Primeiro, conheci uma garota magricela e
geniosa, com jeito de menino e que me ofereceu a hospitalidade de sua casa e me
enfeitiçou com seus cabelos de seda e seus olhos como o céu num dia de
outono. . . e, quando ela segurou a filha nos braços, seu amor brilhou como um
raio
de sol atravessando as nuvens.
- Michael. . .
- Ouça, Mary trabalha comigo. É assistente social e vem para cá duas ou
três vezes por semana, para ver dois dos garotos que estão aqui. Pelo que sei, ela
está apaixonada por um médico que está se especializando em psiquiatria.
Aline perdeu o jeito e disse, atrapalhada:
- Oh! Verdade?
- Verdade. E então, agora posso ganhar um beijo?
Ela o fitou, demonstrando no olhar uma mistura de emoções.
- Acho que sim. . .
Michael a abraçou com ternura e Aline correspondeu, confiante, ao beijo, que
se foi tornando cada vez mais envolvente e profundo. Quando as mãos fortes
acariciaram-lhe o seio, a mágica se desfez. David a tinha tocado assim tempos
atrás

51
Sandra Field Caminhos do Coração

e o que acontecera depois só trouxera dor e decepção. Afastou-se, tensa,


- Michael, não. . ,
- Desculpe-me, acho que estou indo depressa demais. . . Mas
deve saber que eu a desejo, não é?
- Ela recuou um passo, colocou as mãos nos bolsos da capa e respondeu:
- Sim, está indo rápido demais.
57
- Por que não pega a bolsa para que eu possa levá-la a conhecer os
arredores, antes que escureça?
- Ótima idéia.
Michael segurou-a pela mão e ela sentiu como era quente e firme. Esforçou-
se para ficar à vontade.
- Por onde começamos? Quero ver as tais ovelhas de raça.
- Então vamos. Por falar nisso, estou pretendendo arranjar algumas
mestiças no ano que vem.
Passaram na frente da casa e desceram por um caminho rodeado de árvores
até um conjunto de estábulos. Pastos cercados, pontilhados de carneiros,
desciam
até o vale coberto de mata e depois subiam novamente a colina do outro lado.
- As ovelhas ficam soltas a maior parte do ano, com exceção do inverno -
explicou Michael. - Os meninos que vivem aqui ajudam no serviço da fazenda. Está
vendo aquele último barracão, lá adiante? Foram eles que construíram. Também
ajudam a trazer lenha e cuidam do jardim. No verão, organizo excursões, até
mesmo
de sobrevivência na mata, e ensino-lhes a ler mapas e usar a bússola.
Era a primeira vez que Aline ouvia alguma coisa sobre esse outro lado da vida
de Michael, que a intrigava demais,
- E quantos meninos estão aqui agora?
- Onze, no momento. Com idade variando de dez a dezessete anos. Eles
vêm e vão, apesar de eu tentar mantê-los na fazenda pelo menos durante um ano.
- E por que estão aqui?
- Geralmente porque têm problemas com a lei. Alguns estão em
liberdade condicional, outros não se adaptam a nenhum lar adotivo. Não quero
que pense que aqui conseguimos milagres; Aline. A porcentagem de sucesso
equivale à de fracasso, mas, para alguns meninos, este lugar funciona. Vemos, por
exemplo, um garoto, cujo destino seria a prisão, se encaminhar para uma nova
vida.
Isso compensa todos os outros fracassos. Não sou eu que faço o trabalho.
Temos
um professor em tempo integral e duas assistentes sociais. Uma delas é Mary.

52
Sandra Field Caminhos do Coração

Temos também a encarregada, Beth Collins.


Estava escurecendo e o céu parecia pintado de vermelho. Aline comentou:
- É tudo muito mais grandioso do que eu imaginava. Michael, você deve ser
rico.
- Herdei algum dinheiro do meu pai - ele disse íaconicarnente. Já viu o
suficiente?
58
Mesmo intrigada com a resposta seca, ela não insistiu e ambos tomaram o
caminho de volta para a casa.
Uma luz brilhava num barracão coberto de telhas de zinco, à esquerda deles,
e Michael avisou:
- Espere um minuto. Parece que alguém deixou a luz acesa. - Ao abrir
a porta ele disse: - Olá, Tim. O que está fazendo?
Aline parou na porta, curiosa. Um menino pequeno, de cabelos vermelhos
como fogo e olhos cinzentos, estava agachado no chão, no meio de uma porção de
peças de motor de um cortador de grama, que havia desmontado.
- Estou tentando consertar - respondeu de modo quase insolente.
- O que aconteceu? - Aline perguntou.
O menino a olhou, dando a entender que achava a pergunta tola,
e respondeu:
- Não funcionava.
Ela se ajoelhou no chão de cimento.
- Está precisando de uma boa limpeza. O filtro de ar está sujo, mas isso não
afetária a partida. Você sabe como limpá-lo?
- Não. Você sabe? - o menino indagou com jeito rude. Obviamente
esperava por uma negativa, mas ela disse calmamente:
- Meu nome é Aline. E o seu?
- Tim.
- Bem, na verdade eu sei consertar isso, Tim. Você precisa lavar esta
esponja com detergente e água, depois espremê-la e em seguida encharcá-la de
óleo. Se a máquina funcionar com a esponja suja desse jeito, a terra vai acabar
com
o motor.
- E como é que você sabe tudo isso?
- É que trabalho numa oficina mecânica. Olhe, aqui está o problema,
- E qual é ele?
- O contato está sujo. Você tem um pedaço de lixa? Tim descobriu um
pedacinho na caixa de ferramentas.
- Se você lixar esta ferrugem do terminal, vai conseguir um
bom contato.

53
Sandra Field Caminhos do Coração

O menino esfregou a lixa com concentração por um ou dois minutos e depois


mostrou o terminal a Aline.
- Será que está bom assim?
Ele estava pedindo sua opinião e, nos poucos minutos de contato que tivera
com o garoto, Aline percebeu como aquilo era importante.
- Acho que está ótimo. Sabe, pelo jeito, esta máquina não tem
passado pela manutenção. Talvez amanhã você possa coloca-la para
funcionar no mínimo durante quarenta e cinco minutos. Isso já ajudaria a
recarregar
a bateria.
O menino olhou meio triste paru Michaeí, que disse:
- Contanto que seja depois das aulas, Tím.
Olhando para as porcas e parafusos espalhados, ela indagou;
- Você vai se lembrar de como a máquina estava montada?
- Claro que sim! - Observou-a, entre intrigado e admirado. - Mas você é
mecânica mesmo? Isso é trabalho de homem.
- Mas não há motivo para que uma mulher não possa aprender. Sabe,
tenho quatro irmãos que viviam desmontando motores. Tínhamos um calhambeque
e, quando eu estava com doze anos, já sabia tudo a respeito daquele carro velho.
- A mim nunca ensinaram isso. , .
- Se o Sr. Gault concordar, você poderá ir até a minha oficina qualquer
sábado à tarde e trabalhar comigo.
Viu um lampejo de interesse nos olhos do menino, mas foi tão rápido que ela
pensou tê-lo imaginado. - Está bem.
- Vou trancar o barracão, Tim. Está na hora do jantar. Amanhã à tarde você
pega a chave comigo.
O garoto foi saindo devagarzinho, de cabeça baixa, e, de repente, disparou
numa corrida até a casa, sem despedidas e sem agradecimentos- Aline então
virou-
se para Michael e perguntou:
- Você não se importou de eu tê-lo convidado, não é?
- Talvez seja uma coisa boa. É a primeira vez que Tim se interessa por
alguma coisa. Ele está aqui há três meses e já fugiu duas vezes. Ainda não
aprendeu que não há lugar para onde possa ir.
Aline lembrou-se do rosto sério e dos olhos agressivos de Tim.- Mas por
que ele está aqui?
- É uma história triste, A mãe nem sabe quem é o pai. Ficou com Tim até os
dois anos e meio, mas depois teve de entregá-lo, . , caso de negligência.
- Negligência? - Aline achou estranho. - Mas ele não estaria melhor
com a mãe?

54
Sandra Field Caminhos do Coração

- Acho que não. Ele estava num estado grave de desnutrição. Depois,
passou por diversos lares adotivos e começou a ter o hábito de fugir há uns
quatro
anos. Tem dez agora. Nunca conheceu algo permanente, definitivo, e por isso não
confia em quem quer que
seja.
Oh, Michael. . . Não consigo compreender como certas mães . podem
maltratar os filhos!
60
- A mãe de Tim também foi maltratada. É muito mais fácil julgar do que
tentar compreender. Mas tente enxergar a coisa sob o prisma dela. Era jovem
demais, não tinha casa, emprego fixo nem experiência alguma em ser mãe. . . Só
podemos esperar que Tim se acostume aqui e que parte do mal possa ser
reparado.
O sol já havia desaparecido e estava escurecendo. Ao se dirigirem para a
casa, Michael explicou:
- Os meninos devem estar jantando; por isso você vai conhecê-los depois.
Mas venha, há uma ala da casa que é só minha.
Ao passarem pela porta da frente, uma moça saiu correndo, os cabelos ruivos
balançando.
- Michael! - ela chamou, - Ainda bem que o alcancei! Ele passou o braço
pela cinlura de Aline e apresentou:
- Mary, gostaria que conhecesse Aline MacCulloch. Aline, esta é Mary
Gibson.
As duas se cumprimentaram com um sorriso. Mary não havia reconhecido
Aline. Trocaram algumas palavras e depois a bela ruiva disse:
- Michael, não vou poder vir durante três dias na próxima semana, Se você
precisar de alguém, chame Peter Trenhoim.
- Vai fugir com o doutor?
- Antes fosse! É que minha irmã vai se casar. - Deu uma olhada no
relógio e continuou: - Mas hoje é a folga de Roger e vou me encontrar com ele.
Preciso ir. Prazer em conhecê-la, Aline. Até, Michael - e saiu correndo para o
Mercedes.
A conversa fora simples, direta, e Aline sentiu o coração mais leve. Disse,
admirada:
- Ela é linda!
- Também acho. . . mas prefiro as loiras!
- Ora, obrigada!
- Vamos indo. .. Teremos ostras, strogonoff e musse de chocolate. Que
tal?

55
Sandra Field Caminhos do Coração

- Parece maravilhoso! - ela respondeu, entrando na casa peta porta


lateral.
A ala reservada a Michael era imensa. Uma escada em curva subia do
vestíbulo, onde o soalho de tábuas largas estava parcialmente coberto por um
tapete
persa. Na sala, em dois níveis, déstacavam-se uma grande lareira de pedra e uma
ampla janela, de onde se deveria ter uma vista lindíssima. A cozinha era moderna,
com armários de pinho e um conjunto completo de eletrodomésticos. O
strogonoff
exalava um aroma delicioso.
Michael acendeu uma lâmpada fluorescente sobre a pia e pediu:
- Será que podia pegar os copos ali do armário, enquanto sirvo o arroz?
Aline os pegou. Eram do mais fino cristal e ela os levantou contra a luz, para
admirar os reflexos. Michael disse:
- Você machucou o rosto. Ela quase deixou cair os copos.
- O que aconteceu?
"Willie me deu um apertão", pensou, mas não podia contar isso a ele. Apesar
de Wayne McEvoy estar muito distante daquela mansão, Aline não podia se
arriscar
por causa de Juliana e Matthew. Respondeu, ainda admirando os copos:
- Juliana estava sacudindo um brinquedo e acabou batendo no meu rosto.
Foi culpa minha.
- Aline, olhe para mim. Você está mentindo.
- Por que haveria de mentir? Que bobagem. . . Onde você guarda as
bebidas?
Ele encarou-a, sério, e ela percebeu uma sombra de dúvida em seu olhar.
Mas tudo o que disse foi:
- Na porta da direita, debaixo do bafcão.
Ela suspirou aliviada e, querendo distraí-lo, acrescentou:
- Sabe, você nunca me contou o que fazia antes de comprar esta fazenda.
- Eu era policial - disse, e parou por ai. - Vou querer uísque com soda.
Sirva-se do que quiser.
- Policial? É mesmo? Onde?
- Em Toronto, Montreal, Vancouver. . .
- E por que saiu?
- O problema do joelho. Oh, eles me deram um cargo burocrático, mas eu
estava ficando maluco e por isso caí fora.
Enquanto media a dose de uísque, ela insistiu:
- Quer dizer que era policial de trânsito? Multava as pessoas?
- Não exatamente - ele disse em tom seco, pegando uma bandeja de

56
Sandra Field Caminhos do Coração

ostras de dentro da geladeira. - Fui agente do Serviço de Narcóticos.


Ela acabou desistindo de preparar as bebidas.
- Foi por isso que disse que já tinha visto muita maldade e crueldade neste
mundo?
- O tráfico de drogas é um negócio sujo. Não existem heróis - explicou,
cheio de amargura.
-Por que diz isso?
- Não quero que pense em mim como um "tira" bom, do lado da lei, sempre
fazendo tudo certinho, lutando sem medo contra as
62
forças do mal. . . Acha correto prender um garoto que está desesperado por
uma dose, sabendo o inferno que ele vai ter de passar? E quanto ao pequeno
traficante, o sujeito da esquina, que na vida só conheceu a pobreza e que acha
que
esse é o único jeito de arranjar algum dinheiro? Eram os grandes que queríamos
pegar... os que dirigem o negócio. Mas isso era praticamente impossível.
- Você tentou, pelo menos - ela disse, buscando animá-lo. - Pense na
maioria, que nem sequer raciocina assim. Você se preocupou
demais com os outros, não é verdade? Os garotos viciados em
heroína, cocaína...
- Acho que foi isso mesmo.
- Eu sei que foi. - E sabia também de outra coisa: Wayne havia mentido ao
dizer que Michael tinha sido expulso da polícia. Ela já desconfiava, mas agora
tinha
certeza. - o que aconteceu com
seu joelho?
- Ora, Aline, sempre evito falar nesse assunto. Se estou conversando agora
é porque você está se tornando uma pessoa muito importante para mim, e quero
que saiba da Verdade.
Ela sentiu um misto de temor e satisfação com aquelas palavras.
- Então conte-me sobre o joelho.
- Eu me arrisquei demais e eles me pegaram. Amarraram-me e atiraram no
meu joelho. Tive sorte por não terem atirado na cabeça, pois esperavam que eu
sangrasse até morrer. Mas meu parceiro me encontrou antes disso.
Na sua imaginação, sempre tão vívida, Aline enxergava todos os detalhes que
ele omitia. Atravessou a cozinha e o abraçou apertado, o rosto escondido na
camisa
dele.
- Ainda bem que você se salvou.. .
Michael ergueu-lhe o rosto e disse, com ternura:

57
Sandra Field Caminhos do Coração

- Você está chorando?


Ela enxugou os olhos e engoliu em seco.
- Não, não estou...
Ele, então, beijou a lágrima que escorria pelo rosto bonito, antes de procurar
os lábios. Para Aline, dessa vez não houve hesitações. Entregou-se, estremecendo
com o contato daquele corpo rijo colado ao seu e sentindo, pela primeira vez, que
conseguia se libertar do
medo.
Ao se separarem, sentiu a respiração tão ofegante como a de Michael.
Colocou as mãos sobre o peito dele e se afastou um pouco, dizendo confusa:
- Eu, . . eu não entendo. . . eu não sou assim!
- Acho que você não sabe bem como é. Pelo menos, quanto a
sexo - e, como ela corasse como uma mocinha, o rosto dele ficou mais
gentil. - O homem que foi o pai de Juliana. . . foi bom com você?
Aline ficou mais vermelha ainda. Entendera o que ele quisera dizer: tinha
gostado de fazer sexo com David? Como explicar que. por ser inexperiente e
desajeitada, havia posto a perder um momento que deveria ter sido glorioso?
Michael a observava e ela procurou algo para dizer.
- Claro que ele foi bom para mim. Ele me amava.
- Duvido muito. - E, como se já tivesse obtido a resposta que esperava,
mudou de assunto: - Como é, vamos beber?
Michael logo conversava sobre as origens do uísque e ela começou a rir,
descontraída. Depois do jantar, ele acendeu a lareira e os dois ficaram ouvindo
discos e bebericando licor. Estavam sentados, lado a lado, num sofá macio, e
Aline
se pôs a imaginar se ia ter de controlar as investidas de MichaeL Ele, porém,
ficou
sentado a alguns palmos de distância, sem fazer menção de se aproximar, e ela
sentiu-se um pouco irritada com essa atitude.
Quando ele se levantou para ir buscar mais café, Aline o seguiu até a cozinha
e, ao ver os pratos sujos, perguntou se não queria que arrumasse tudo aquilo. -
Não é necessário. Tenho uma lava-louças.
- Mas ainda assim é preciso colocar a louça lá dentro - disse ela,
arregaçando as mangas e começando a limpeza.
- Juliana não fez isto aqui! - ele exclamou, examinando-lhe o braço.
Havia uma feia marca avermelhada no lugar onde Willíe a apertara.
- Michael, gostaria que não se intrometesse na minha vida.
- Mas me interesso, e muito, por você. . .
Com cuidado exagerado, Aline colocou o prato sobre a pia e virou-se para
ele.

58
Sandra Field Caminhos do Coração

- O que quer dizer com isso? Michael hesitou alguns minutos.


- Ainda não tenho certeza se posso ou se quero explicar agora. Só sei que
gosto muito de você, Aline.
- Ouça, vamos terminar de arrumar tudo isto - dísse ela, embaraçada. -
Preciso voltar para casa.
- Eu não acabei de dizer o que pretendo. . .
- Acho que não quero ouvir.
- Pior para você. O que quero dizer é que gostaria de continuar a vê-la, pois
posso até estar me apaixonando. . . - ela se afastou
64
, empalidecendo. - Mas certamente a desejo, coisa que você já
percebeu.
- Não quero escutar mais nada!
- E por que não? Do que tem medo?
- Você não me deseja! Como poderia? Não sou mais virgem, tenho uma
filha. .. Sou .material de segunda mão, Michael. Como é que ia me querer?
- Existem modos e modos de uma pessoa ser usada, pode acreditar, eu
conheço todos eles. Quando vai parar com isso? Quando vai se comportar como
uma pessoa civilizada e não como uma donzela ofendida?
- Meus pais me deserdaram... eu desgracei os dois... eles
mesmo disseram isso. ..
- E você concorda?
- Eu. .. eu não sei!
- Aline MacCulloch, deixe que eu lhe diga como enxergo essa questão. Na
minha opinião, teria sido uma desgraça se você tivesse concordado com eles e
feito
o aborto que não queria. Mas foi teimosa, corajosa e enfrentou tudo. Fez o que
achava certo. Pelo amor de Deus, pare de se culpar!
- Você está certo, É verdade que vivo me culpando.
- Claro que vive! Preste atenção: não vou negar que a desejo. Você é uma
mulher linda. Mas eu a quero não só por isso. Adoro seu jeito de ser, você é uma
lutadora. Corajosa como uma leoa, e teimosa como uma mula.
Ela deu-lhe um sorriso encantador.
- Mas que romântico!
- Oh, sei muito bem como ser romântico - Michael largou a panela que
segurava e se aproximou. Aline ficou firme. Ele desmanchou o laço que segurava a
trança e soltou os cabelos, que se espalharam graciosamente sobre ombros e
busto.
Disse, rouco: - Um dia farei isso com você nua e acariciarei seus seios com as
mãos enterradas em seus cabelos. Então você se curvará aos meus desejos como

59
Sandra Field Caminhos do Coração

o
trigo maduro se dobra ao vento.
- E não vai se incomodar por não ter sido o primeiro?
- Não. Vou fazê-la minha de um modo como ele nunca fez, e vou dar-lhe
tanto prazer que você vai explodir de felicidade,
- Mas isso não acontece comigo. ..
- Quer dizer que com David não era assim?
- Não! Eu detestava! Machucava muito e eu não sentia nada diferente. Acho
que sou frígida. - Arriscou um olhar para o rosto dele e, se esperava ver
desânimo
ou desapontamento, ficou decepcionada.
65
Michael parecia estar se controlando para não explodir. Ela tentou
se afastar, falando, triste; - Está zangado comigo?
- Não. O que gostaria mesmo de fazer era dar uma tremenda surra no seu
David!
- Ele não é o meu David!
- Sorte sua! Se ele a deixou desse jeito, devia mesmo ser um insensível.
Não sei como teve coragem de lhe dizer que a amava. Amar é se entregar e, pelo
jeito, ele não deu muita coisa.
- Ele me deu uma filha.
- Mas não a paixão e o esplendor que vêm juntos com a concepção de um
outro ser.
- É. . . é verdade. . .
- Será diferente comigo, porque dar prazer a você me deixará
profundamente feliz.
Ela continuava imóvel, estonteada. Seria verdade? O próprio David usara
aquela terrível palavra, "frígida", em relação a ela. Será que estava certo? Ou a
maneira dele fazer amor, de uma forma apaixonada e rude, é que estava errada?
Acabou dizendo, insegura:
- Michael, preciso pensar. Talvez você esteja certo. . .
- Está bem. Agora, que tal voltarmos à limpeza?
- Acho melhor. - Ela permaneceu calada enquanto acabavam de arrumar
a cozinha e nem reparou que Michael a observava. Ao guardar a última panela,
disse: - Acho melhor eu ir. Vovô vai ficar esperando e é melhor não chegar muito
tarde.
- Está bem. Será que posso ir vê-la dentro de um ou dois dias? Que tal
sábado à noite?
- Para mim, está ótimo. Eu também gostaria de encontrá-lo novamente.
- Estamos combinados. Vou buscar seu casaco.

60
Sandra Field Caminhos do Coração

Michael acompanhou-a até o carro. Estava escuro e o ar, muito frio.


- Aline, será que você me faria um favor?
- Claro!
- Gostaria que me desse um beijo de boa-noite como se estivesse
apaixonada por mim, sem pensar em David, Juliana ou nos seus pais. Pense apenas
em mim como o homem que ama e a quem quer dar prazer.
Ela encarou-o em silêncio, mas não pôde ver-lhe a expressão. Por um
instante, os velhos temores reapareceram, pois David nunca a tinha tratado com
tanta consideração. Vagarosamente, levantou os braços, passou-os pelo pescoço
dele, fechou os olhos e seima-ginou apaixonada.
66
Foi um beijo doce e provocante, e, durante certo tempo, Michael se conservou
passivo. Mas. logo gemeu, pronunciou-lhe o nome e puxou-a para bem junto, para
que ela sentisse o quanto estava excitado. Aquele era o símbolo do desejo de
Michael, mas também significava entrega total... Pensando nisso, Aline percebeu
que o breve momento de ilusão fora destruído. Afastou-se bruscamente, com os
olhos arregalados de pavor e desespero.
- Não, Michael. .. por favor, não!
Depois de um instante, que pareceu interminável, ele a soltou e falou, com a
voz descontrolada pelo desejo intenso:
- Machuquei você?
- Não. Você me assustou.
- Não precisa ter medo de mim...
Ela sentiu, nesse momento, uma mistura de emoções conflitantes: o desejo
confundindo-se com o medo. Mais uma vez percebera que Michael era capaz de
ser
terno e delicado, mas havia levado uma vida cheia de perigos e sabia muito bem
como conseguir o que
queria.
Sentindo-se invadida por um turbilhão de conflitos, murmurou:
- melhor eu ir. Muito obrigada, foi uma noite adorável! Ele respirou fundo e
disse sério:
- Um dia você vai parar de fugir.
Ela não respondeu. Afastou-se, sentou-se no carro e procurou no bolso da
capa a chave para ligar o carro, perguntando-se se Michael teria mesmo razão ou
se
ela seria uma eterna fugitiva.

CAPÍTULO VI
Às oito da manhã seguinte, Tommy apareceu na porta da casa com uma

61
Sandra Field Caminhos do Coração

expressão apreensiva, de quem tem más notícias a transmitir.


- Alguém andou roubando gasolina! Arrebentaram os cadeados!
Aline o fitou, incrédula. Todas as noites desligava os motores das bombas e
acorrentava os bicos das mangueiras para maior segurança. Mas, se o ladrão
tivesse uma bomba manual, poderia roubar litros e litros do depósito
subterrâneo.
Aline calçou as botas, vestiu a jaqueta e seguiu Tommy. Viu que o cadeado
havia sido cortado com uma serra e percebeu na hora que Wayne McEvoy estava
por trás daquilo.
Mediu a quantidade de combustível no tanque e descobriu que faltavam mais
ou menos oitocentos litros. A quantidade não era muita, mas, considerando os
preços atuais, o prejuízo não era pequeno. O objetivo do roubo, portanto, não era
levá-la à falência, mas apenas um aviso de Wayne.
Voltou para casa e informou o avô. que ficou furioso, jurando vingança.
- Vovô, de hoje em diante vou deixar as luzes acesas a noite inteira. Não
se preocupe.
- O que adianta trancar a porta, depois da casa arrombada? - gritou ele,
mais furioso ainda.
- Pelo menos vamos impedir que aconteçam novos roubos.
- Não pretendo chamar a polícia.
- Estamos fazendo exatamente o que ele quer, não é mesmo? - Aline
disse com azedume. - Vovô, você não acha que devíamos
vender antes que alguma coisa pior aconteça? Wayne tetn todos
os trunfos. . .
Nesse instante o telefone tocou e Matthew atendeu, antes de que Alne
pudesse fazê-lo. Logo depois bateu o fone com raiva.
- Não é ninguém. Ontem à noite aconteceu a mesma coisa uma
porção de vezes.
- Estão esperando que eu atenda. Telefonemas obscenos. . . Já
ouviu falar neles?
- O quê? O sem-vergonha não ia fazer uma coisa dessa!
- Mas fez. Não lhe contei antes para não aborrecê-lo.
- Aborrecer? Vou é torcer o pescoço de Wayne! Ouça, de agora em diante
você não vai mais atender ao telefone. E vamos deixar todas as luzes lá de fora
acesas. Não esconda mais nada de mim,
está bem?
- Sim. E uma outra coisa: ontem me lembrei de que não instalamos alarme
lá no fosso. É muito difícil fazer isso?
- Boa idéia! Temos de fazer o melhor possível.
- Estou desconfiada de que você está se divertindo com tudo

62
Sandra Field Caminhos do Coração

isso. . .
- Preciso admitir que essas coisas dão gosto à vida.
- Vovô, vamos parar com isso? Estou falando sério. E acho bom ficar de
olho em Juliana!
Os olhos de Matthew se dirigiram automaticamente à espingarda
pendurada num gancho, na parede.
- Claro que vou ficar.
O fato de o velho não estar dando importância aos acontecimentos deixou
Aline apreensiva. Mas não adiantava ficar argumentando com ele. Olhou-o
resignada e disse:
- Acho melhor eu ir trabalhar.
Naquele dia, o telefone tocou pelo menos dez vezes. Quatro chamadas foram
do inimigo anónimo e Aline não conseguira desligar rápido o bastante para não
escutar as bobagens, o que a deixara irritada. Mas Willie não aparecera na
oficina e
não houve problemas durante a noite.
Na sexta-feira, Aline precisou ir até a vila e, ao sair do banco, ficou parada um
instante na calçada, examinando o estrato. Havia mais dinheiro em sua conta do
que
imaginava. Não era possível! Nesse instante, sentiu mãos fortes em seus braços.
Vírou-se e deparou com os olhos embaçados de Willie. Guardou rapidamente o
papel dentro do envelope e falou, seca:
- Largue-me. Nunca mais quero vê-lo.
- Vou apenas levá-la para casa, não se preocupe.
69
- Não, obrigada - ela respondeu, tentando se controlar ao perceber que
ele ia fazer uma cena ali na rua. :
Willíe passou-lhe o braço pela cintura, quase levantando-a do chão, e
começou a empurrá-la em direção ao caminhão vermelho.
- Como tem passado? Nós nos divertimos muito outro dia, não foi?
Willie estava confiante demais, certo de que ela ia ceder para evitar alguma
cena. Mas Aline falou em tom alto, o suficiente para ser ouvida do outro lado da
rua:
- WilHe, não quero carona! Solte-me!
Já estava quase chegando ao caminhão e ela ficou apavorada, achando que
o truque do rapaz ia dar certo. Se entrasse no veículo, ele certamente não a
levaria
para a oficina. Firmou os pés no chão e gritou bem alto:
- Willie, largue-me!
- Algum problema, Aline?

63
Sandra Field Caminhos do Coração

A essa altura diversas pessoas olhavam, curiosas, e o homem que falara


havia se postado na frente dos dois. Era um fazendeiro chamado Jack Yates, do
vilarejo vizinho, com quem Aline conversara , algumas vezes no armazém.
Ela explicou, tensa:
- Willie está insistindo em dar uma volta comigo e eu não quero ir. Jack!
O fazendeiro, ex-campeão amador de box, colocou-se na frente do rapaz e
disse com voz calma:
- Largue-a, Willie.
- Você também está atrás dela? Sua mulher sabe disso? Aline está sempre
disponível, não é?
- Você escutou o que eu disse? Solte-a.
Por um momento, pairou uma tensão no ar e Aline pôde sentir a indecisão de
Willie. Depois, ele a largou. Aline se afastou, esfregando o braço, e ainda o ouviu
dizer bem alto, encaminhando-se para o caminhão:
- Jack, se deseja proteger a virtude de alguma moça, não devia começar
com Aline, pois para ela é tarde demais.
Aline nunca provara tamanha humilhação em toda a sua vida. Sentiu o
sangue fugir do rosto, mas Jack, levantando a voz, afirmou bem alto:
- Não ligue para ele, Aline- O pessoal daqui sabe muito bem que você não é
assim.
- Será que sabe mesmo, Jack? 70
- Claro que sim! Todos já perceberam que você é honesta, trabalhadora, e
faz o melhor por sua família.
Aline escutou murmúrios de aprovação e deu um sorriso trêmulo.
- Obrigada, Jack. - É melhor eu levá-la para casa.
Ela aceitou o oferecimento, agradeceu mais uma vez quando ele a deixou no
pátio da oficina. Dirigiu-se para casa, a fim de trocar a roupa, e contou o
incidente a
Matthew, pois ele ia acabar sabendo de tudo mais cedo ou mais tarde.
Recomeçou a trabalhar, sentindo-se extremamente exausta.
Aline havia convidado Michael para jantar na noite de sábado. Enquanto
coava café e arrumava as xícaras numa bandeja, escutou o avô discutindo com ele
sobre a última lei de impostos. Michael, deitado de costas no tapete, tinha
Juliana
sentada em seu peito e Aline sentiu uma emoção estranha ao ver os dois se
divertindo. "Minha filha precisa de um pai amoroso como Michael", pensou com
tristeza. Mas não era bem isso. .Ela é que precisava de alguém
como Michael.
- Será que dá tempo de eu ir buscar mais uma braçada de lenha? -
indagou Matthew, tirando Aline dos seus devaneios.

64
Sandra Field Caminhos do Coração

- Deixe que eu pego - ofereceu-se Michael, colocando Juliana no tapete.


Mas Matthew não deixou e desceu para o porão.
O café ainda não estava pronto e Aline continuou observando Michael,
tentando convencer-se de que sentia-se emocionada porque queria algo para
Juliana, e não para si mesma.
Subitamente, as mãos de Michael tocaram seus ombros. Ela o ouviu
perguntando no que estava pensando, quando o telefone tocou- Michael percebeu
o
tremor que percorreu-lhe o corpo e o olhar apavorado que lançou para o aparelho.
Ela precisava atender, pois Matthew ainda estava no porão e, se não o
fizesse, Michaeí iria desconfiar. Atravessou a sala com passos lentos e levantou o
fone. O homem óo outro lado da linha proferiu as piores obscenidades que ela já
escutara e, branca como cera, ela recolocou o fone no gancho, quase desmaiando.
Michael atravessou a sala para ampará-la, mas, sentindo-se mal com as
coisas que fora obrigada a ouvir, Aline o empurrou com
força.
- Quem era? Diga-me!
- Eu não sei! - ela gritou, tentando sufocar os soluços. -
Não sei quem é!
71
- Então era um telefonema anónimo e, pelo jeito, esta não é a primeira vez
que acontece. Disseram-lhe coisas obscenas, não foi? Notei que você ficou com
medo assim que o telefone começou a tocar.
- Você está certo.
- Não tem idéia de quem seja? Não é o tal de Willie? Creio que não. . .
ele usaria uma tática mais direta.
- Se fosse ele eu reconheceria a voz.
- Mas foi ele quem machucou seu rosto e seu pulso, não foi? Juliana não
teve nada com isso, aposto!
- Pare com isso, por favor!
Mas era tarde demais. Matthew voltava do porão e, largando a lenha na
caixa, gritou asperamente: :
- Você não me contou que Willie andou por aqui, Aline! Quando ele
veio? O que fez com você?
Como que tentando transmitir ao avô a mensagem: "Michael não pode saber
sobre Wayne, não vá dizer nada", Aline disfarçou:
Ora, vovô, você sabe como Willie é. Ele exagerou, só isso.
Dando a impressão de que entendera o recado de Aline, o velho comentou,
olhando para a espingarda:
- Aquele grosseirão! É melhor que não apronte nada na minha frente!

65
Sandra Field Caminhos do Coração

- Deixe tudo como está, por favor.


- O quê? Para vê-la violentada bem à minha frente?
- Vovô. não vou ser violentada!
Michael interrompeu a discussão, indagando com voz fria:
- E você garante isso?
- Claro que não. Não posso garantir que o sol vai nascer amanhã, mas
tenho quase certeza de que vai.
- Aline, você está brincando com as palavras e nada disso vai adiantar se
estiver errada. Willie é perverso e é capaz de violentá-la. disso pode ter certeza.
- Então, o que sugere que eu faça? Devo me mudar para a cidade e abrir
uma butjque?
- Vou arranjar um cão de guarda para você.
- Não entendi. . .
- Tenho um velho amigo que cria cães de guarda. Vou lhe arranjar
um.
Era a solução perfeita, não só para o problema de Willie como também para
todo o resto.
- Se me arrumar o cachorro, gostaria de pagar por ele.
- Isso nós veremos depois. Vou ligar para o meu amigo amanhã cedo e, com um
pouco de sorte, você terá o cão dentro de uma semana.
Um sorriso de satisfação apareceu no rosto de Matthew.
- Já li bastante sobre esses animais e sempre tive vontade de
ter um. Além disso, dá um toque de classe na casa da gente.
Aline respirou mais aliviada e começou a servir o café. Michael nem sequer
desconfiara que havia
algo mais que as intenções devassas de Willie. Matthew, satisfeito com a
possibilidade de ter um cão de guarda, sorria como uma criança. Havia esquecido
completamente o assunto Wayne McEvoy.
O cachorro foi entregue na segunda-feira. Um pastor negro, chamado Toby,
de perfil aristocrático e olhos astutos. Veio acompanhado do treinador, Don
Berrigan, um homenzinho tímido que só se descontraiu ao demonstrar o que Toby
sabia fazer e certificar-se de que Aline e Matthew haviam compreendido
bem
as palavras de ordem.
Toby não era muito amistoso nem brincalhão, mas sua eficiência trouxe uma
sensação de segurança para Aline. Willie não parecia mais uma ameaça tão grande
e até os telefonemas não a perturbavam tanto.
Ela sabia que o rapaz tomara conhecimento da presença do cão. Dois ou três
dias depois da chegada do animal, Aline escutou-o lutir e, como normalmente não
fazia isso para os fregueses, saiu da oficina para ver o que estava acontecendo.

66
Sandra Field Caminhos do Coração

Viu
Willie parado lá fora. Ele certamente tentara entrar pela porta do escritório,
mas tinha
sido barrado por Toby.
- Deseja alguma coisa, Willie?
- Você pensa que é muito espertinha, não é mesmo?
- Um cachorro é muito útil. .. Afinal, quer alguma coisa?
- Nada que não possa esperar - virou-se e foi pisando duro até o carro,
deu a partida e saiu cantando pneus. E não apareceu mais.
Os dias de outono foram passando e o inverno estava para chegar.
Normalmente, Aline não gostava daquela época, mas nesse ano tudo parecia
diferente e ela não queria admitir que era por causa de Michael, que tinha se
tornado
parte importante de sua vida. Às vezes, ia visitá-lo na fazenda, mas era ele quem
aparecia mais frequentemente em Lower Hampton.
Quando Juliana adormecia, os três se sentavam à volta da mesa, jogavam
baralho, riam e conversavam. Aline gostava daquele clima. No entanto, Michael
nunca mais falara em desejo.. . ou em amor.
73
No começo, ela gostou dessa situação, mas com o passar do tempo começou
a desejar que ele a abraçasse com ternura, que a beijase como se fosse a única
mulher do mundo... Mas Michael comportava-se como um perfeito cavalheiro, um
amigo, apenas.
Havia outro fator que unía os dois: Tini, o garoto ruivo, espicialista em fugir.
Alguns dias depois de Aline ter conhecido o menino, Michael o levara até a
oficina.
Ela o ensinou como trocar pneus e procurar furos nas câmeras depois,
como trocar o óleo, com o carro sobre o fosso, Depois mostrou-lhe os segredos
do
motor. Ia explicando tudo o que fazia e, sempre que possível, deixava o garoto
ajudar.
Ficou espantada com a atenção do menino, que não perdia uma só palavra.
No começo, ele observava tudo em silêncio, mas depois a curiosidade venceu e
Tim
começou a fazer perguntas, que Aline respondia da melhor forma possível.
Explicou
o nome de cada ferramenta que usava e a sua utilidade.
No meio da tarde, resolveu arriscar uma pergunta pessoal:
- Você gosta de morar na fazenda?
Ele lhe lançou um olhar áspero e disse, seco:

67
Sandra Field Caminhos do Coração

- Serve. Por que os pneus têm de estar frios quando se vai medir a
pressão?
"Não é esse o caminho", pensava Aline, enquanto dava a explicação.
Resolveu não insistir. Sentia vontade de abraçá-lo e protegê-lo de maiores
sofrimentos. Gostaria de lhe dizer que devia confiar e amar uma pessoa, e que
fugir
não iria resolver nada. Mas como, se ela também não confiava?
Quando Michael apareceu para levar o garoto embora, ela o olhou, séria, e
disse:
- Olhe, você pode vir sempre que puder.
O menino baixou os olhos e respondeu, apenas:
- Obrigado.
Aline sentiu a dificuldade que ele tivera em dizer aquela simples palavra,
mas era uma grande vitória. Animada, continuou:
- Está vendo aquele vidro perto da parede? Tem detergente. Coloque
um pouco na mão, esfregue bem e depois lave na mangueira. A maioria da graxa
vai sair.
Enquanto Tim a obedecia, ela disse em voz baixa para Michael:
- Espero que você o traga mais vezes,
- Está bem.
- Ouça, fiz alguma coisa que o tenha ofendido? - Aline perguntou séria.
74
- É claro que não! Por quê? - Michael respondeu, espantado.
Não sei. . . é que tive a impressão. . .
Claro que não há nada. Gosto demais da sua companhia. “Também da companhia
de
Matthew e de Juliana...”, ela pensou angustiada, dando-lhe um sorriso falso.
Bem, é melhor eu Voltar ao trabalho. Até logo, Tim - e, pegando uma chave de
fenda, debruçou-se sobre o motor do carro, tentando aparentar eficiência, mas
sentindo
os olhos cheios de lágrimas.
Escutou quando os dois saíram pela porta do escritório, ouviu o barulho do jipe
se afastando. Só então largou a chave e se recostou no pára-lama, quase
sufocada
numa onda de incertezas e pessimismo. "Por que eu me importo tanto com ele? O
que isso tem que ver comigo?", pensou, mas não encontrou a resposta.
Michael continuou com suas visitas amistosas. E Tim apareceu i mais duas
vezes. Na primeira, Aline ensinou-lhe um pouco das técinicas básicas da
manutenção
dos automóveis. Na segunda, deixou-o trabalhar um pouco mais, sob sua

68
Sandra Field Caminhos do Coração

supervisão,
e percebeu que tinha jeito para a coisa.
Você fez um bom serviço, Tim.
Ele se virou para guardar as ferramentas e murmurou alguma coisa. Aline
sentiu uma ponta de irritação e disse, com voz áspera:
- Quando se recebe um elogio, deve-se dizer muito obrigado. Ele baixou os
olhos.
- Tá. , . obrigado.
- Meu nome é Aline. Ele retrucou, aborrecido:
- Mas eu preciso chamar a governanta lá de casa de dona Beth!
- Como não sou casada, você pode me chamar de Aline mesmo. Ele ficou
todo atrapalhado, mas Aline, determinada a não ceder,
repetiu, séria:
- Você fez um bom serviço, Tim. Ele ficou vermelho e murmurou:
- Obrigado, Aline.
Ela apertou-lhe o ombro de leve, sentindo os ossos frágeis sob
a pele.
E assim os dias iam passando. Willie não a tinha incomodado mais, e os
telefonemas haviam parado. Aline começou a achar que Wayne talvez tivesse
desistido, mas, algum tempo depois, acabou descobrindo que se enganara.
75
Conversava com Donnie Yates, um primo de Jack, enqua trocava a
bateria de seu caminhão, quando ele indagou:
- Foi uma pena o que aconteceu com o parque, não é mesmo?
- Parque? Que parque?
- Então você não ouviu falar que iam abrir um novo Parque Nacional a uns
oito quilômetros daqui? Na área do Lago da Trut?
- Bem, escutei alguma coisa, mas não prestei atenção.
- Parece que desistiram da idéia. Foi pena, pois o parque ia trazer muito
dinheiro e gerar uma porção de empregos.
Aline o olhou, espantada, fazendo imediatamente a ligação: Waj ne havia
ouvido os rumores sobre o parque e por isso queria comprar a oficina. O posto, o
único local a fornecer combustível para toda aquela área. seria uma mina de ouro.
Agora, com a desistência, ele não precisava mais assustar Matthew.
Sentiu-se aliviada, como se tirassem um peso enorme das suas costas. Na
hora do almoço, correu para casa e contou tudo ao avô; Os dois dançaram de
alegria na cozinha, para divertimento de Juliana.
Agora que não havia mais perigo, Aline queria contar tudo a
Michael, mas
estava com receio, pois havia mentido para ele. De qualquer modo, ficou

69
Sandra Field Caminhos do Coração

alegre
quando o viu, à noite. Mas logo se irritou, ao notar que ele não lhe dava a menor
atenção. Só tinha olhos para juliana. E, depois que a menina foi dormir, sentou-
se
para jogar xadrez com Matthew.
Aline acomodou-se numa poltrona e ficou observando a expressão
concentrada de Michael e o modo como os dedos longos acariciavam as peças de
marfim. Furiosa, voltou a atenção para a leitura. Às onze horas, como o jogo
parecesse longe do fim. bocejou e disse;
- Vou dormir.
Matthew, concentrado, apenas resmungou um boa-noite e Michael,
com um sorriso amistoso, murmurou:
- Aline, agora vai ser sua vez de me visitar. Que tal quarta à
noite?
- Obrigada, mas não vou. Matthew levantou-se e avisou:
- Vou buscar mais lenha.
- Vovô, mas a caixa está cheia!
- Então, já que estou de pé, vou aproveitar para ir ao banheiro.
- Não precisa fingir! Eu vou mesmo dormir!
- Pelo jeito, você está louca por uma briga, não é mesmo? - e dirigiu-se
para o banheiro.
76
Sem dar atenção as palavras do avô, Aline levantou-se, dizendo:
- Boa noite, Michael.
Ele também se levantou e bloqueou-lhe a passagem. - O que há de errado
com a quarta-feira? Devo levar juliana e vovô?
Ah, então é esse o problema. . . Ciúmes! Mas os dois fazem parte da sua
família e gosto de estar com eles.
Ótimo. Então, por que não vem para cá na quarta? Está querendo brigar,
não é mesmo?
Antes que ela pudesse protestar, viu-se apertada contra o peito de
Michael e sendo beijada. Não havia ternura naquele beijo e Aline lutou com todas
as torças
contra o desejo que a invadia até que se viu correspondendo, comprimindo o
seu
corpo contra o dele, sentindo-se vibrar.
Matthew bateu a porta do banheiro e veio arrastando os chinelos o
corredor. Michael afastou-a sem pressa, os olhos cheios de paixão,
sussurrando:
Acho que na quarta você devia deixar Matthew e Juliana em casa

70
Sandra Field Caminhos do Coração

Quase sem fôlego, ela conseguiu falar com dificuldade:


Eu ainda não disse que vou. Por favor, Aline.
Ela simplesmente ficou encarando os olhos azuis, cintilantes e zombeteiros,
mas cheios de desejo, quando Matthew avisou:
- Michael, é a sua vez de jogar. Aline aproveitou a chance para escapar.
- Boa noite, Michael... Boa noite, vovô - e saiu correndo.

77
CAPÍTULO VII
No dia seguinte, quando Aline desceu com Juliana nos braços, Matthew
estava no lugar costumeiro, em frente ao fogão. Ele resmungou um bom-dia, tirou
o
mingau do fogo e disse:
- Sabe que ele está apaixonado por você, não sabe?
- Quem é que está apaixonado por mim, vovô?
- Você sabe muito bem a quem estou me referindo! E acho que ele vai pedi-
la em casamento.
- Imagino que esteja falando de Michael.
- Claro que estou! De quem mais?
Ela encarou os olhos zangados do velho e afirmou:
- Pois bem, eu não amo Michael e se ele me pedir em casamento, coisa de
que duvido muito, vou dizer não. É isso que estava querendo saber, não é?
- Então você é mesmo uma boba!
Alíne misturou a papinha de Juliana com mais força que o necessário.
- Na verdade, vovô, eu prefiro começar o dia sem discussão.
- Mas, afinal, o que tem contra ele? É um belo rapaz, tem dinheiro, é
inteligente e joga xadrez muito bem. O que mais você quer?
- Talvez eu não queira me casar com ninguém, nem mesmo com um poço
de virtudes como Michael Gault.
- Mas é claro que quer! Vocês foram feitos um para o outro! E ele adora
Juliana. ..
- Então, ele que espere mais vinte anos e se case com minha filha.
- Mas é com você que ele quer se casar!
- Ele lhe disse isso?
- Nem precisava... Eu tenho olhos; vi vocês dois ontem à noite. , .
Aline deu um pouco de papinha para Juliana esforçando-se para não ficar
vermelha.
- Vovô, você já viveu o suficiente para saber que existe uma palavra
chamada sexo, que não tem muita relação com amor nem com casamento.
- Com pessoas como Michael Gault tem relação, sim. Só porque você foi

71
Sandra Field Caminhos do Coração

enganada uma vez, não deve achar que isso sempre vai acontecer.
Uma risada.
- Vovô, ele nunca disse que me ama e também não me pediu em
casamento. Prometo que você será o primeiro a saber se ele fizer isso, mas não
fique aflito, está bem?
- Oh, está certo... Mas tenho certeza de que não vai demorar. Quer uma
torrada ou duas?
Como sempre, o avô tivera a última palavra. Aline não pôde deixar de pensar
no que ele havia dito, pois normalmente acertava suas previsões. Uma outra coisa
reforçava o que ele dissera: o ardente beijo na cozinha. Tanto isso era verdade
que
ela ficou confusa, sem saber o que vestir, quando chegou quarta-feira, pois não
queria de forma alguma ficar com uma aparência sedutora.
"Decidiu-se por uma calça jeans e um pulôver feito a mão sobre uma camisa
branca. Prendeu os cabelos num coque baixo. "Acho que está bom", pensou,
olhando-se no espelho. No entanto, o corte simples das roupas enfatizava sua
feminilidade e dava-lhe um ar gracioso.
Depois de pronta, desceu correndo a escada e Matthew a olhou sem muito
entusiasmo, comentando:
- Agora que temos Toby, você não precisa mais se preocupar com a hora.
- Não pretendo voltar tarde. Amanhã é dia de trabalho. E olhe, só para
provar que nada do que você mencionou hoje vai acontecer esta noite, aposto um
dólar!
- Se tem tanta certeza, devia apostar dez.
- Então, aposto vinte!
Jogou as notas sobre a mesa e saiu. A noite estava horrível, com
79
uma chuva fina e um vento gelado. Segurando a jaqueta impermeável
contra o corpo, ela dirigiu-se, apressada, até o carro e partiu.
Aproveitou a viagem para pensar, coisa que raramente podia fazer sossegada.
Já conhecia todos os garotos que moravam na fazenda, mas se sentia mais ligada
a
Tim.
Sabia também da grande fortuna que Michael havia herdado do pai e do
problema que isso havia causado. O velho Gault parecia lhe uma versão urbana de
Wayne McEvoy, um comerciante de cidade grande, sem grandes preocupações
com
os métodos utilizados para aumentar seus lucros. O filho era o oposto. Poderia
ter
passado a vida toda viajando e se divertindo, mas resolvera apostar na

72
Sandra Field Caminhos do Coração

recuperação
de pequenos delinquentes.
Era um homem completamente diferente de David, que chegara a lhe
confidenciar que estudara Medicina só pelo dinheiro e pelo prestígio que a
carreira
oferecia.
Estava começando a nevar e ela imaginou que, se o tempo continuasse
assim, não poderia demorar muito na casa de Michael. "Melhor", pensou, "porque
quero que meu relacionamento com ele continue exatamente como está, só na
base
da amizade, sem envolver amor e casamento. Uma companhia agradável e nada
mais. Vou usar o dinheiro da aposta com vovô para comprar uma bonita blusa." E
sorriu, divertida.
Entrou pela estradinha de terra e, ao subir a colina, arregalou os olhos de
espanto, pois todas as janelas da casa estavam iluminadas.
Parou o carro e correu para a porta da casa. Bateu, aflita, mas ninguém
atendeu. Bateu de novo e nada. Será que havia acontecido alguma coisa a
Michael?
Será que estava doente? Ou ferido? Brian, o rapaz mais velho, tinha fama de
violento. . . E se ele o tivesse atacado?
Correu para a porta da frente e entrou. O vestíbulo estava do mesmo jeito de
sempre, com um vaso com crisântemos amarelos sobre a mesa, Ao longe, ouvia-se
o som de um rock. Aline parou e gritou:
- Tem alguém em casa?
Ouviu passos se aproximando da cozinha e a Sra. CoHins apareceu.
- Oh, é você, querida! Pensei que fosse alguém com notícias.
- O que aconteceu? - perguntou ela, sentindo o coração acelerado,
- Tim fugiu outra vez, aquele danadinho. O Sr. GauEt estava
80
louco da vida e acho que você devia ir procurá-lo. Aposto como ele
ficará
contente com sua ajuda.
Aline sorriu, aliviada.
Está bem, Sra. CoHins,. já estou indo.
Ao correr pela frente da casa, ela vislumbrou umaluz no barracão
onde Tim havia desmontado o cortador de grama. Michael
devia estar lá. O vento gelado assobiava e a escuridão parecia encobrir
a luz que vinha do barracão. Será que Tim tivera a coragem
de fugir com um tempo daqueles?
Nesse instante, Michael saiu do barracão. Estava sozinho e, mesmo à

73
Sandra Field Caminhos do Coração

distância, pelo seu jeito Aline percebeu que não havia encontrado
o garoto.
Correu na direção dele, sentindo uma emoção nova, intensa.
guando se aproximou abraçou-o com força.
- Fiquei apavorada quando vi todas as luzes acesas, com medo de que tivesse
lhe acontecido alguma coisa. Ainda bem que não houve nada, mas... e Tim? Ainda
não o encontrou?
- Não. Não há sinal dele nem dentro de casa nem nos prédios vizinhos.
Acho que fugiu para a mata.
- Sozinho?
- Ele é um solitário.
- Será que não foi até a estrada pedir carona?
- Não. Tim não está fugindo para ir a algum lugar ou ver alguém, Aline.
Esse é o problema. Ele está simplesmente fugindo.
- Mas fugindo do quê?
- Bem que eu gostaria de saber. Você se lembra de Kevim, um dos
garotos mais velhos? Ele foi embora hoje, para viver com uma família de Halifax.
Acho que isso magoou Tim, foi mais uma demonstração de instabilidade. Agora, eu
me culpo por não lhe ter explicado por que Kevim se foi. . . Afinal, Tim estava
começando a dar sinais de confiança. Vamos ter de voltar à estaca zero...
Mas o que podemos fazer? - Você vai ficar em casa e eu vou até o rio.
Tenho uma idéia
de onde ele possa estar. - Vou com você.
- Aline, não seja teimosa!
- Michael, eu também me preocupo com ele!
- Está bem- Vamos primeiro até a casa pegar umas roupas para cie e duas
lanternas. Deixamos um aviso com Beth Collins para que, se não voltarmos dentro
de uma hora, ela deve chamar a polícia, Se Tim não estiver onde penso,
estaremos
com sérios problemas. Vamos!
Logo depois, saíam da casa mais uma vez, a lanterna de Aline cortando a
escuridão com um facho amarelo. Michael carregava uma mochila com roupas de
Tim e uma garrafa térmica com chá quente.
- Onde acha que ele pode estar?
- Estou pensando em dois lugares: na cabana de barcos que os meninos
construíram, seguindo a margem do rio para o norte, ou na direção oposta, onde
há algumas cavernas nas pedras da margem. Tim se interessou muito pelo local
numa de nossas excursões. Permita Deus que ele não esteja
perambulando pela mata.. .
- O que você acha de a gente se separar, quando chegarmos ao rio? Você

74
Sandra Field Caminhos do Coração

vai para um lado e eu para o outro. Assim ganhamos tempo.


Ainda estavam atravessando o campo e Aline, às vezes, tropeçava nas
touceiras de capim, pois a descida era íngreme. Apesar do medo, ia seguindo em
frente, sabendo que o tempo era precioso, Tim precisava ser encontrado, e
rápido.
- Seria mais seguro se ficássemos juntos, Aline. Não quero que você
também se perca.
- Prometo não sair da margem do rio. Ouça, está frio demais e cada minuto
é muito importante. . .
- É verdade. Então você vai para o sul, em direção às cavernas, O terreno
não é tão ruim e é mais perto. Há uma pedra grande que chega quase até a água
e as cavernas ficam atrás dela. São duas, muito bonitas no verão, pois ficam
cheias
de musgo. Agora, porém, não são nada lindas.
-..... Se ele não estiver lá, eu volto, está bem?
- Certo. Vamos marcar um ponto de encontro. Você, provavelmente,
terá de esperar um pouco, pois a cabana fica mais longe.
- É melhor eu ficar com um suéter de Tim, para o caso de o encontrar
primeiro - lembrou ela.
Haviam chegado na beira da mata e Michael avisou:
- Daqui para a frente é melhor andarmos um atrás do outro. Há uma picada
no meio das árvores, mas é muito estreita. No caso de haver problema, irei
marcando o caminho - disse ele, tirando do bolso um pedaço de fio plástico
laranja
e amarrando a uma árvore.
Aline tremia e não era só de frio. Tinha achado o campo escuro. mas ali, no
meio da floresta, a escuridão parecia assustadora. Apenas o ruído do rio, ao
longe,
quebrava o silêncio. Aline mantinha a luz da lanterna firme no chão, seguindo
Michael bem de perto,
82
quase tropeçando nele. Galhos úmidos batiam em seu rosto, em suas pernas,
e o vento gelado atravessava o tecido grosso do jeans, das luvas de lã. Mas ela
não
estava preocupada com esse desconforto, e sim com o menino que, certamente,
devia estar em pior situação.
Escutou o barulho do rio transformar-se gradualmente de um murmúrio
longínquo para um ruído turbulento. Quando Michael iluminou com a lanterna a
outra
margem, uma imagem horrível veio-lhe à cabeça: Tim escorregando das pedras da

75
Sandra Field Caminhos do Coração

margem e caindo naquelas águas agitadas e geladas, gritando sem que ninguém o
escutasse.
- Tim pode ter apenas dez anos, mas não é nada tolo. Tem tomado conta
de si há muito tempo.
Ela engoliu em seco e perguntou; Para que lado eu vou?
- Vá descendo o rio. As cavernas ficam a menos de um quilômetros, em
linha reta. Vá com cuidado, sim? Não se afaste da margem.
- Está bem. E não se preocupe, que eu vou tomar cuidado.
Michael entregou-lhe o pulôver de Tim e ela o amarrou na cintura, sob a
jaqueta. Depois, ele baixou o rosto e beijou-lhe os lábios.
- Aline, sei que está com medo, mas vai dar tudo certo. E quero que
saiba que estou contente por você estar aqui comigo.
Ela sorriu, feliz, enquanto Michael amarrava um pedaço de cordão laranja em
volta de uma árvore.
- O ponto de encontro será aqui, está bem? Boa sorte!
Decidida, Aline dirigiu o facho da lanterna rio abaixo e recomeçou a andar,
sempre perto da margem, bem devagar, passando sob galhos baixos ou dando
voltas por trás de moitas impenetráveis. A cada dois ou três minutos parava e
gritava
o nome do menino, enquanto iluminava com a lanterna os arredores. Pedia a Deus
que Michael estivesse certo em relação ao paradeiro de Tim e que ele pudesse
ser
encontrado dentro de uma hora, no máximo.
Estava caminhando há uns dez minutos quando sentiu o primeiro floco no
rosto, Levantou a lanterna, viu a neve caindo do céu negro e ficou desanimada,
pois
isso iria atrapalhar ainda mais a procura. Mas não perdeu as esperanças e
continuou
andando, chamando pelo menino. E quase foi de encontro ao rochedo que
aparecera repentinamente no meio da escuridão. Sentiu o coração disparar e
gritou:
- Tim! Tini, onde é que você está? - Mas, por mais que apurasse os
ouvidos, só escutava a queda-d'água por entre as pedras. Foi rodeando com
cuidado o rochedo e descobriu a primeira caverna. Era uma abertura em "V"
entre
duas rochas, estreita demais para esconder uma criança. Estava vazia. A segunda
ficava a uns oito metros do rio, mas era mais profunda que a primeira. Aline
sempre
tivera horror de lugares fechados, e a caverna estreita, só com um metro e meio
de

76
Sandra Field Caminhos do Coração

altura, era pior que os pesadelos que tinha. Parecia conter uma presença
estranha
e perigosa.
Ela apontou o facho da lanterna lá dentro e só viu musgo seco e gravetos. -
Conseguiu pronunciar o nome do menino com dificuldade. Ele não estava lá. Uma
pilha de pedras fechava o fundo, impedindo a saída de qualquer pessoa por trás.
Desapontada e receando pelo destino do pequeno ruivinho que já havia
aprendido a amar, Aline ficou parada, perdida, sem saber o que fazer, a neve
caindo ao redor do seu corpo. Tim devia ter ido para o outro lado, para onde
Michael fora. "Ele vai encontra-lo na cabana", pensou. E resolveu voltar logo para
o ponto de encontro.
Antes de ir embora, resolveu percorrer mais uma vez as pedras com o
farotete e gritar o nome do garoto contra o vento frio. Bem lá do alto. um grito
agudo
atravessou a escuridão e Afine ficou ímóvel como uma estátua. Escutou de novo
um
grito fino, como o de um pássaro ferido. Por um momento, ficou aterrorizada.
Agarrou
a lanterna com mãos trémulas egritou com força:
- Tim! Tim!
Não havia se enganado; seu chamado havia sido respondido, lá de cima e um
pouco à direita... Aline se esqueceu da promessa feita a Michael, de não se
afastar
da margem, e foi entrando pelo
mato.
- Tim! Onde é que você está?
- Aqui em cima. . . estou aqui!
Ela estendeu a mãona direção do som, mas viu apenas pedras, grandes e
pequenas, umas sobre as outras, formando um amontoado de uns oito metros de
altura.
Então, baixou o farolete para verificar que caminho tomar para começar a
subir, bem devagar, com cuidado. Havia frestas entre as pedras e, se ela
escorregasse, certamente quebraria o tornozelo. Além disso, a lanterna
atrapalhava
e Aline morria de medo de deixá-la cair.
Estava ofegante quando chegou ao alto. Imediatamente, iluminou toda a volta
com o farolete. Viu Tim logo adiante, encolhido
84
num lugar meio fundo, cheio de pedras pontiagudas. Os cabelos vermelhos e
o casaco azul estavam salpicados de neve. Ela parou

77
Sandra Field Caminhos do Coração

respirou, aliviada.
Aproximou-se com cuidado do menino, escorregando um pouco aqui,
rodeando uma pedra ali, até o alcançar. Colocou a lanterna numa fenda e o
abraçou
com força.
- Oh, Tim, estou tão contente por ter encontrado você! Eu stava tão
preocupada que quase não o escutei responder. Está
indo bem?
Ele havia enfiado o rosto no ombro dela e tremia. Aline percebeu que estava
chorando. Segurou-o apertado, balançando o corpo para a frente e para trás,
ninando-o, murmurando baixinho no ouvido dele palavras de carinho, protegendo-o
da melhor forma que podia.
Por fim ele se acalmou e Aline pôde ver o rostinho inundado de
lagrimas.
- Pensei que você estivesse numa das cavernas, Tim.
- Eu ia ficar na caverna, mas subi para ver como era. Cai e torci o pé. . .
Não consigo andar, e foi por isso que tive de ficar
aqui.
Aline pegou a lanterna e iluminou os pés do menino, que usava
apenas ténis bem gastos.
- Qual dos dois?
- O direito, e dói muito.
Com jeito, ela examinou o tornozelo. Estava muito inchado e não dava para
perceber se estava quebrado ou não.
- Você consegue andar com ele?
- Não, eu já tentei.
Ela procurou não pensar na dor e no medo que ele devia ter sentido. Passou
a mão nos cabelos vermelhos, para tirar a neve, e depois colocou-lhe o chapéu.
- Veja, eu trouxe um pulôver para você. Tire seu casaco e coloque-o por
baixo. Assim ficará mais quentinho. Agora vamos ver se conseguimos descer até a
caverna. Talvez Michael demore muito para chegar aqui, porque ele foi até a
cabana.
- Podemos tentar descer, Aline.
- Você segura a lanterna e vai iluminando o caminho. Eu o apoio o melhor
que puder. Está bem?
Ela conseguiu levantar Tim sem muita dificuldade, mas ele não
85
conseguia sequer encostar o pé machucado no chão. Conseguiram dar dois
passos e, então, o tornozelo ferido bateu contra uma pedra. O menino deixou
escapar um gemido de dor.

78
Sandra Field Caminhos do Coração

Aline se ajoelhou e o ajudou a sentar-se, sentindo que o garoto tremia


desconsoladamente.
- Oh, Tim.. . desculpe. .. Vamos ter de esperar por Michael, Eu não tenho
força suficiente para carregar você. Vamos nos aco modar aqui mesmo da melhor
forma que pudermos.
Sentou-se com as costas apoiadas numa pedra e pegou o garoto no colo,
abraçando-o e tentando aquecê-lo. Colocou a lanterna de modo a que o facho de
luz
iluminasse o céu. Era a única coisa que podia fazer para chamar a atenção de
Michael.
- Você está bem? - indagou, e, quando Tim assentiu com um gesto de
cabeça, ela se lembrou: - Até tinha me esquecido quê Michael me deu duas
barras de chocolate. Vamos comer.
Tirou as barras do bolso e, com os dedos quase congelados conseguiu abri-
las. Deu uma ao menino e foi comendo a sua bem devagar. Depois comentou:
- Puxa, eu comeria mais umas duas ou três.
- Eu também - disse ele, acrescentando baixinho: - Muito obrigado,
Aline.
Ela, com carinho, lembrou-se da relutância do menino em chamá-la pelo
nome.
- De nada, Tim. Agora, me diga; por que fugiu?
Houve um longo silêncio e Aline esperou. Ele podia se recusar a responder,
mas ela não se arrependeu da pergunta, pois afinal tinha o direito de saber,
depois
de todo o esforço que fizera para encontrá-lo.
- Hoje eles levaram o Kevim embora, sabe?
- Michael me contou. Ele foi adotado por uma família de Ha-lifax e irá
frequentar a escola.
- Eu não quero que isso aconteça comigo!
- Nem é preciso. Para o Kevím foi uma coisa boa, mas para você
provavelmente não seria.
- Eu quero ficar na fazenda.
- E você disse isso a Michael? Não...
- Talvez ele não saiba e ache que você detesta Valley View, porque vive fugindo.
86
- Mas eu não detesto!
- Então diga isso a ele, Tim.
- Imaginei que ele soubesse...
- Só porque Michael é adulto, não é obrigado a adivinhar o que os outros
estão pensando. Não posso falar por ele, mas tenho quase certeza de que

79
Sandra Field Caminhos do Coração

gostaria
muito de tê-lo na fazenda. Só que você não vai poder continuar fugindo, pois é
perigoso. Além disso, arrisca também a vida de outras pessoas que se preocupam
com seu bem-estar.
Houve outro longo silêncio. O vento parecia ter diminuído e um floco de neve
veio caindo bem sobre o chapéu de Tim. Aline tilou-o, fascinada com a beleza de
uma coisa tão efémera. Então o garoto desabafou;
- Você tem um bebê. .. você não o deu para ninguém. . . não fez como a
minha mãe.
Afinal, tinham chegado ao ponto-chave da questão.
- Não, Tim, eu não dei o meu bebê porque tive muita sorte. Fui morar com o
meu avô. Posso trabalhar e ele cuida de Juliana para mim. Muitas mulheres não
têm
tanta sorte; não têm dinheiro, emprego, amigos, família, nada. Então acabam
achando que a melhor coisa a fazer é dar a criancinha. Tente não culpar sua mãe..
.
talvez ela tenha feito o melhor que podia.
- Ela não gostava de mim. .. não podia gostar, se fez uma coisa
dessas!
Aline hesitou, mas achou melhor dizer:
- Nós não sabemos, Tim. Talvez ela tenha sofrido tanto, que não
consegue amar mais ninguém, nem a si mesma, Talvez tenha achado que a
melhor coisa era dá-lo para alguém, porque assim você pelo menos teria uma
chance. . . -Provavelmente nunca vamos saber a resposta. - Hesitou outra vez,
procurando as palavras certas: - Mas há outras pessoas que podem amá-lo muito,
Tim. . . se você deixar.
- Quem, por exemplo?
- Eu ainda não o conheço muito bem, mas me importo com o que lhe
acontece. Estou contente de tê-lo encontrado. Sei também que o Michael se
preocupa e a Sra. Collins ficou apavorada quando descobriu que você havia
sumido.
- Oh... - disse Tim, encostando o rosto contra a jaqueta dela. -
Sabe, me sinto contente por você estar aqui.
Em se tratando de Tim, esse era um enorme passo à frente e Aline achou
melhor não dizer mais nada. Continuou ali, amparan-dorO apenas. Pouco depois,
verificou que ele dormia.
87
Permaneceu imóvel, apenas mexendo os dedos dos pés dentro das botas para
impedir que congelassem Uma ponta de pedra lhe comprimia as costas e as
pernas doíam, mas de algum modo ela não tinha mais medo. Michael ia encontra

80
Sandra Field Caminhos do Coração

los, tinha certeza. Ele nao abandonaria a busca, enquanto não os visse a salvo.
88

CAPTTULO VIII
Aline estava sem relógio epor isso não tinha idéia da hora. Quase cochilava
quando escutou uma voz, que soava com ansiedade:
- Aline! Onde você está?
Ela endireitou o corpo e Tim perguntou, assustado:
- O que foi?
- É Michael. - E em voz alta respondeu: - Estamos aqui em cima! -
pegou a lanterna e dirigiu o facho para as pedras abaixo.
Escutou o barulho das botas de Michael e a respiração ofegante, enquanto
subia. Então ele apareceu no platô e a abraçou, junto com o menino.
- Oh, meu Deus, ainda bem que encontrei os dois! Quando não vi
ninguém na caverna, pensei que você também tivesse se perdido. Aline.
- Não, eu estou bem - ela disse com um suspiro de alivio, ao mesmo
tempo que acariciava o rosto dele com os dedos gelados. - E você?
- Tudo bem. E você, Tim?
O garoto estava mudo e ela explicou:
- Não sei se ele só torceu ou quebrou o tornozelo. Foi por isso que ficamos
aguardando aqui.
Michael examinou o garoto e Aline ficou olhando para seu rosto molhado,
cansado. De repente, ele a encarou e uma chama brilhou nos olhos azuis. Michael
cobriu os lábios de AHne, num beijo rápido. Depois sentou-se perto dela e falou:
- Acho que Tim apenas destroncou o tornozelo. Acho melhor nós irmos
andando. Está muito frio e quanto mais cedo pudermos levar Tim a um médico,
melhor.
- Tentei carregá-lo, mas não consegui - Aline explicou.
- Se você puder ajudar a colocá-lo nas minhas costas, eu o levarei. O pior
vai ser a descida. Daí para a frente, não vai haver problemas.
O que aconteceu nos minutos seguintes nunca mais iria sair da mente de
Aline. Era impossível colocar o menino nas costas de Michael sem machucá-lo. Um
orgulho teimoso e muito masculino impedia Tim de gritar; ele gemeu baixo duas
vezes e o rosto estava branco como a neve que caía.
Aline foi descendo na frente, segurando a lanterna para iluminar o caminho
para Michael e o ajudando sempre que podia. Completava prestando mais atenção
nos dois, acabou tropeçando umas duas vezes. Da primeira, bateu o joelho e o
cotovelo e, da segundaf raspou o rosto.
Michael escorregou quase no fim da descida e acabou caindo de pé no
chão, com um baque. Aline escutou quando ele gemeu e perguntou, preocupada:

81
Sandra Field Caminhos do Coração

- Você machucou o joelho?


- Está tudo bem, vamos indo.
- Acho que agora posso carregá-lo um pouco.
- Aline, vamos andando.. .
Ela apertou os lábios, contrariada, com medo de que o esforço pudesse
prejudicar ainda mais o joelho de Michael, Ajudou como pôde, levantando galhos
e
mantendo a lanterna firme.
A caminhada parecia não ter fim e Aline sentiu-se aliviada quando enxergou o
cordão laranja à volta da árvore. Depois as coisas ficaram mais fáceis, pois havia
a
picada e, gradualmente, o ruído do rio foi ficando mais alto. De repente um clarão
iluminou a noite e Aline comentou, aliviada:
- É a polícia!
Michael não disse nada e mesmo mancando foi ao encontro deles. Aline teria
preferido esperar, mas seguiu atrás, iluminando-lhe os passos.
Tim foi colocado cuidadosamente numa maca e levado por dois policiais.
Todos foram caminhando atrás, e Aline mal percebeu que Michael explicava ao
terceiro policial o que havia acontecido.
Na casa da fazenda, instalara-se a confusão: o vestíbulo cheio de homens, a
Sra. Collins andando de um lado para outro e o Sr. Parker, o professor,
oferecendo
canecas de chá para todos.
- Vamos até meus aposentos, Aline, aguardar lá as notícias sobre Tím -
convidou Michael. - Este chá está ótimo, mas preciso mesmo é de uma bebida
mais forte. Enquanto isso, vou pedir a Beth que prepare uma cama para você no
quarto de hóspedes. - Conseguiu sorrir com um ar maroto e concluiu: - Por mais
que eu queira, acho melhor você não ficar na minha ala. . .
Ele parecia exausto, com profundas olheiras e uma expressão de dor no rosto
pálido.
- Também acho que uma bebida viria a calhar - ela concordou, sorrindo.
Saíram novamente para a noite fria e Aline, sentindo uma vontade irresistível
de tocá-lo, enfiou o braço no de Michael.
- Sinto muito tê-la envolvido nisso tudo. Deve ter sido uma noite
terrível para você. Não me arrependo.
Sabe, Aline, há três anos eu poderia correr dois quilômetros com um garoto
nas costas! Agora, no entanto, olhe só para mim. . . Mal consigo ficar em pé!
Pare de sentir pena de si mesmo! - Pena? Você acha?
- Pelo amor de Deus, se vamos discutir, pelo menos façamos isso lá dentro.
Não aguento mais este frio.

82
Sandra Field Caminhos do Coração

Por um instante, Aline imaginou que ele fosse protestar, mas Michael
simplesmente deu de ombros, abriu a porta e fez um gesto para que ela entrasse
no
aposento quente e agradável. - Sente-se, Michael, e deixe que eu tire suas
botas. Sou capaz de tirar minhas próprias botas! Tenho certeza de que sim, mas
eu
gostaria que me deixasse fazer isso. Você, Michael Gault, sabe muito bem
que
seu joelho está com problemas. Por isso, pare de fingir que tudo vai bem.
O que está querendo fazer? Será que não percebe que não sirvo nem para
carregar uma criança?
- E o que é que tem isso? Pensa que eu me importo?
- Nenhuma mulher deseja um homem incapacitado!
- Então, talvez, eu não seja como as outras mulheres. - E, quase
sem perceber que se abria, continuou; - David tinha um físico maravilhoso. Sem
dúvida, ele poderia subir e descer aquelas pedras uma dúzia de vezes, com Tim
nas costas, mas também foi capaz de dizer não à criança que havíamos
concebido.
Michael, para mim é muito mais importante sua força moral do que a física.
Você
é íntegro, responsável. . . E, além disso, conseguiu salvar
Tim.
Michael olhou-a, espantado, e um sorriso iluminou-lhe o rosto.
- Minha bela e cativante Aline, que me colocou no meu devido lugar. . .
- Bem, o seu orgulho estava ferido, não é verdade? Ficou aborrecido por
não conseguir ser o machão que gostaria... e não é por isso que estou me sentindo
melhor que você. Na realidade, estou é com os pés gelados!
Ele se sentou num banco perto da porta e reclamou:
-- Por falar em pés, você não disse que ia tirar as minhas botas?
- Oh, sim! - ela respondeu, abaixando-se e escondendo o rosto para que
Michael não percebesse o rubor nas suas faces. Desamarrou
as botas, ajudou-o a descalçá-las e depois tirou também as suas. - O
que vamos beber?
- Que tal acendermos a lareira? Depois eu sugeriria
uísque quente
com mel. O que acha?
- Parece delicioso!
Michael acendeu a lareira rapidamente e Aline ficou em trent ao rogo,
tentando se aquecer. Nesse instante, ele a interrompeu. - Você machucou o
rosto? - Raspei numa pedra, quando descíamos com Tim.

83
Sandra Field Caminhos do Coração

- E parece estar morrendo de frio!


- Eu já melhoro.
Ele pegou-lhe a mão e se assustou.
- Mas está mesmo gelada! Se seu jeans estiver tão molhado quanto o
meu, você deve estar se sentindo péssima. Por que não toma um banho quente?
Use uma roupa minha, enquanto as suas secam.
Parecia divino e, receosa, arriscou.
- Sem cantada?
- Sem cantada.
- Então está bem.
Michael acompanhou-a até o quarto e, enquanto dava uma olhada no guarda-
roupas para ver o que ela poderia vestir, Aline aproveitou para estudar o
ambiente,
decorado com uma lareira, estantes e poltronas confortáveis.
- Qualquer roupa dessas vai ficar grande demais para você - ele
comentou, e Aline foi vê-las. Acabou escolhendo um robe de lã listrado e disse:
- isto serve.
Então se trancou no banheiro, encheu a banheira com água bem quente e
entrou. Sentiu-se bem logo em seguida: parou de tremer e a dor desapareceu.
Ensaboou-se e depois deixou -a água do chuveiro escorrer pelo corpo. Usou a
toalha felpuda e macia para massagear-se, passou um pouco de talco de
Michael e
vestiu o robe antes de ir ter com ele.
Ele havia vestido calça azul e um pulôver de gola olímpica. Estava deitado no
tapete em frente à lareira e levantou o copo num brinde silencioso, quando ela
entrou. Aline sentou-se e pegou seu uísque. Agora as chamas estavam mais fortes
e
aqueciam todo o ambiente.
Michael disse, quase como se estivesse sonhando:
- As chamas se refletem no seu cabelo,.. Ela retrucou, brincando:
92
- li nos seus olhos também. - -
- São as chamas da paixão, minha querida. Ela começou a rir.
- Ora, você não tem ar de apaixonado. . .
- Basta uma palavra sua e avançarei sobre você com ardor. Aline corou.
- Você disse: sem cantada.
- E disse mesmo, o que é uma pena. - Por um momento ele
ficou fitando o fogo e depois a encarou, sério. - Aline, estou
paixonado. Quero me casar com você,
.....- Você o quê?

84
Sandra Field Caminhos do Coração

Ele não fez menção de se aproximar. Apenas repetiu;


- Estou apaixonado e quero me casar com você.
- Você parece tão animado quanto um repórter dando as úl-
ninas cotações da bolsa!
- Não se preocupe, tenho muita emoção guardada. . . para ou-tius momentos
- respondeu ele, percorrendo-lhe o corpo com os
olhos, desde o cabelo sedoso até os pés pequenos e nus, como se a
se a tivesse despindo. - E também bastante paixão. Mas não quero assustá-la.
Isso
pode soar como antiquado, mas quero que saiba que minhas intenções são as
melhores possíveis.
- E quanto a Juliana?
- Eu já lhe disse que adoro sua filha. . .
- Michael, por favor, fale sério! - Aline tomou um gole grande da bebida,
enquanto ele continuou falando com calma:
- Se você concordar, gostaria de adotar Juliana e dar-lhe o meu
nome, fazer dela a minha filha. Eu a adoro mesmo, não premo repetir.
Aline pensou que estivesse sonhando. Michael como pai de Juliana. . .
Então disse em voz baixa, com toda a sinceridade:
- Eu lhe confiaria a guarda de Juliana, sem reservas. Acho que você
daria um pai magnífico. - Encarou-o com ternura e concluiu: - Eu não faria isso
com mais ninguém.
- Incluindo David?
- Sim.
Aline nunca havia visto Michael tão sem jeito. Ele a encarava como se nunca
a. tivesse visto e algo em sua expressão quase a fez
chorar.
- Essa foi a coisa mais linda que já ouvi, Aline.
- É verdadeira - ela disse, com a cabeça baixa, os cabelos escondendo o
rosto. - Mas eu não posso me casar apenas para dar um pai a Juliana.
93
- Eu tenho mais uma coisa para dizer, Aline: se nos casarmos
quero também adotar Tim,
Ela ficou atónita. Que alegria terem Tim como filho, debaixo do
mesmo teto, para sempre.
- Isso é chantagem.
- Não, não é. É apenas mais um fator a considerar.
- Você está falando outra vez como um repórter da bolsa.
- Estou procurando manter a emoção fora disso. Não vou negar que gosto
muito do menino, e quero dar-lhe um lar verdadeiro. Acho que não seria justo

85
Sandra Field Caminhos do Coração

pedir a
você para se casar comigo, sem antes esclarecer todos esses pontos.
Aline tinha a sensação de estar sendo envolvida por um torvelinho de
palavras que a prendiam, contra sua vontade.
- Michael. não posso me casar com você apenas para dar um. pai a Juliana
e um lar a Tim! Não são por esses motivos que as pessoas se casam!
Ele colocou a bebida sobre a lareira e se aproximou de Aline. Enrolou as
mangas do robe, segurou-lhe as mãos e fez com que ela se levantasse. Depois
perguntou:
- E por que é que as pessoas se casam? Ela sentia o coração acelerado.
- As pessoas se casam porque estào apaixonadas. Mas.
- Exatamente. Eu te amo e estou quase certo de que você também me
ama. Mas, por causa do que aconteceu com David, tem medo de admitir isso.
Imagina que, se disser "eu te amo", vou sumir numa nuvem de fumaça.
- Isso é ridículo! Será que não lhe ocorreu que posso estar apaixonada por
você?
- Agora há pouco, quando estava brigando comigo por causa do meu
joelho, não me parecia completamente desinteressada. . .
- Eu estava zangada, só isso! - e em vão tentava livrar as mãos.
Claro que estava zangada, mas justamente porque se preocupa comigo.
- Está certo, eu me preocupo com você. Mas isso não é o mesmo que estar
loucamente apaixonada.
- Mas não deixa de ser um bom começo - ele por fim soltou-lhe as mãos
enfiando as suas por dentro da manga do roupão para acariciar-lhe os ombros
nus.
- Você se lembra do dia em que nos despedimos no carro e lhe pedi para que me
beijasse como se estivesse apaixonada? Vamos fazer de novo. Ponha seus braços
ao redor do meu pescoço e finja que me ama. . .
94
Perturbada demais com a situação, ela respondeu, arisca:
- E para quê? Só para provar que. . . que eu o desejo? .....- Isso mesmo.
- Mas isso não é amor!
- É sim, se houver emoções envolvidas. Você acabou de dizer que confia
em mim, que se preocupa comigo, que me deseja... será que tudo isso
não significa "eu te amo"?
- Mas o que é isso, afinal? Um tratado científico sobre o amor? - Aline,
coloque os braços à volta do meu pescoço e me beije ele insistiu, sério. Só que
ela continuava em dúvida, sentindo-se
encurralada.
- Eu disse que você devia fingir que me ama, mas parece que mi verdade

86
Sandra Field Caminhos do Coração

me odeia, . .
- Vou tentar fazer o melhor possível - ela disse, caçoando.
No entanto, o beijo que se seguiu revirou o mundo de ambos. Michael devia
ter percebido que ela estava nua sob o robe e que não estava em situação de
impedir-lhe as carícias. Deitou-a no tapete, o robe aberto, e suavemente colocou
duas mechas de-cabelos sedosos sobre os seios, dizendo com voz rouca:
- Você não imagina como eu desejei fazer isto. . .
Tudo estava acontecendo rápido demais e ela, insegura, falou baixinho:
- Michael.
Sentia uma emoção deliciosa, mas ao mesmo tempo o antigo temor
recomeçava a surgir. O corpo de Michael agora comprimia o seu contra o tapete,
como David fizera há tanto tempo. . . e depois daquilo ela sentira só dor e
tristeza.
Repetiu, confusa:
- Michael, por favor. . .
Ele devia ter entendido mal, pois abriu mais o robe e deitou-se sobre ela,
fazendo com que Aline sentisse quanto era desejada. Ela agarrou-lhe os ombros e
escutou-o dizer:
- Eu te amo, minha bela Aline.
Ela o empurrou com toda a força e gritou:
- Não! Por favor, não!
Ele gelou.
- O que foi? Eu a machuquei?
- Não, não é isso. . . só quero que pare. . . - dito isso, sentou-se e fechou o
robe até o pescoço.
- Aline, eu te amo. . .
Ela cobriu as orelhas com as mãos.
- Não diga essas palavras! Eu não quero ouvir! Com força, ele baixou-lhe
as mãos.
95
- Mas vai escutar, sim!
- Você só está usando essas palavras para conseguir o que quer.
- Não estou entendendo o que quer dizer.
- Você quer o meu corpo, me deseja, e pensa que vai conseguir isso com
belas palavras. Acho que, se disser que me ama, vou cair de costas e me
entregarei. Você não me ama, só me deseja, só me quer na sua cama!
- Isso não é verdade, Aline. Eu te amo e, como você deve saber, o desejo
faz parte do amor.
Aline tremia de raiva.
- Vocês, homens, são todos iguais e os odeio!

87
Sandra Field Caminhos do Coração

- Eu não sou como Davíd! Juro que não sou!


Ela se levantou e o enfrentou, quase fora de si.
- Eu não quero seu amor, está entendendo? Também não quero seu
corpo, não quero nada!
Michael não se levantou. Ficou encolhido no tapete, nos olhos uma
expressão amargurada.
As palavras de Aline pareciam pairar no ar e ela ainda as escutava ecoando
no seu cérebro. Preferia que Michael se levantasse. "O que eu disse é a pura
verdade", pensou, desesperada. Aquele, amargo silêncio foi quebrado pelo toque
do
telefone. Automáticamente, Michael levantou-se e foi atender. Mancava mais do
que de costume. Aline escutou-o faiando e logo depois o viu voltar com a
informação:
- Tini retornou do hospital. Vou vê-lo. Enquanto isso, você pode se vestir e
pedir a Beth para lhe mostrar o seu quarto,
- Ele quebrou o tornozelo?
- Não. Só destroncou.
Inconscientemente, Aline estendeu-lhe a mão, mas ele já estava de costas e
saía. Ela ficou parada. Sentia como se houvesse matado algo vivo e vulnerável,
como se suas palavras tivessem destruído alguma coisa bela que havia sido criada
com amor. Não havia desculpa para o que havia feito a Michael.
Aline sentiu os olhos queimando com lágrimas não derramadas. Saiu da sala
e encontrou seu jeans dentro de uma secadora, na área de serviço. Pegou-o e foi
para o quarto de Michael, vestir-se. Quando ia dependurar o robe no guarda-
roupa,
viu no fundo uma pilha de quadros emoldurados. Abaixou-se para ver melhor e
notou que o de cima era a despensa de Michael do serviço policial, escrita numa
caligrafia elegante, com uma comenda especial pelos bons serviços prestados.
Ela ergueu-se e fechou a porta. Apesar de nunca ter levado a serio as
acusações de Wayne, aquele era o pior momento para lembrar da coragem e da
integridade de Michael. Apagou as luzes, foi caminhando só de meias
até o vestíbulo, onde enfiou as botas, a jaqueta e as luvas. Depois saiu.
Estava com a mão na maçaneta da frente da casa quando esta se abriu por
dentro e Michael apareceu. Beth está na cozinha- disse, seco.
- Michael, desculpe-me. Eu perdi a cabeça.
- Teve todo o direito. Eu disse que não ia haver cantada nenhuma e depois
a ataquei como um animal. Nào se preocupe, não vai acontecer novamente.
Havia uma fria decisão naquelas palavras e ela entrou em pânico.
- O que quer dizer com isso?
- Acho que seria melhor ficarmos sem nos ver por uns tempos. A última

88
Sandra Field Caminhos do Coração

coisa que quero é magoar ou assustar você e. infelizmente, foi isso que fiz esta
noite, não foi? Olhe, é melhor entrar. Beth tem horror de vento encanado.
Aline usou a única arma que tinha à mão.
- E não vou mais ver Tim? Michael deu de ombros, indiferente.
- Se ele quiser ir para a oficina, pedirei a Bob Parker para levá-lo. Adeus,
Aline.
Ele havia dito adeus e não boa-noite. Com o coração apertado,
ela murmurou:
- Adeus. - e entrou, fechando a porta com cuidado. Beth Collins vinha
se aproximando e avisou, alegre:
- Sua cama já está pronta, querida. Você deve estar morta de cansaço. Tim,
coitadinho, já pegou no sono, mas me pediu para lhe
dar boa-noite.
Aquela foi a última gota: o rude e introvertido Tim havia se preocupado
em lhe mandar um recado. Aline estremeceu.
- Acho que vou direto para a cama, estou mesmo muito cansada. Preciso
me levantar cedo para chegar a tempo ao trabalho. Pode-me indicar o caminho,
Beth?
- Querida, siga este corredor. É a segunda porta à direita. Tem certeza de
que nào quer comer nem beber nada?
Só em pensar nisso, Aline ficou enjoada e disse apenas:
- Não, obrigada. Beth. Boa noite.
- Boa noite, querida. Durma bem,
Ela entrou no quarto e fechou a porta. Despiu-se e atirou-se na cama,
pegando no sono imediatamente, deixando-se envolver numa nuvem de
esquecimento.
97

CAPITULO IX
O despertador tocou, tirando Aline de um pesadelo. Com o coração aos pulos,
ela sentou-se na cama. Pouco a pouco foi se recordando de onde estava e por quê,
mas a lembrança se fez amargurada. Levantou-se e abriu a cortina. Não nevava
mais e algumas estrelas ainda brilhavam, mas a leste já havia um leve clarão,
indicando que mais um dia ia nascer. Era tempo de se pôr a caminho.
Ela arrumou a cama e se vestiu depressa. Desceu silenciosamente, calçou as
botas perto da porta da frente e saiu. A ala de Michael estava às escuras.
Limpou a neve dos dois pára-brisas, ligou o motor e partiu imediatamente,
mesmo sabendo que, com aquele tempo frio, isso não era recomendável. Mas era
muito melhor do que correr o risco de encontrar Michael novamente.
Dirigiu com cuidado durante todo o percurso e chegou em casa na hora que

89
Sandra Field Caminhos do Coração

habitualmente se levantava. Na cozinha Matthew misturava o mingau e Juliana


sacudia o chocalho, sentada no cadeirão. Ao ver a mãe, sorriu com alegria,
mostrando os dois dentinhos surgidos naqueles dias.
- Bom-día, vovô. Oi Juliana! Dormiram bem? Já tem chá pronto?
Ah, que delícia, bem que estou precisando de uma xícara!
- Você teve uma noite e tanto, hetn?
- É verdade. - E contou o que havia acontecido, incluindo o nome de
Michael na história, enquanto comia e dava o mingau à menina. Matthew fez
algumas perguntas e por fim indagou:
- Então, com tudo isso que aconteceu, acabei não ganhando os meus vinte
dólares, não é?
Aline engasgou e ficou vermelha.
- Eu. .. eu tinha me esquecido da aposta!
- Então ele fez o pedido! - disse o avô com um ar satisfeito. - Bem que
eu desconfiava.
Ela teria mesmo de contar, senão Matthew não ia sossegar. Disse, séria:
- Vovô, vou falar apenas uma vez e depois vamos encerrar o assunto.
Michael me pediu em casamento e eu não aceitei. Não é amor. Não posso me casar
com ele apenas para dar um pai para
Juliana.
Matthew deu com a caneca na mesa e Juliana fez o mesmo com o chocalho;
Aline se preparou para o pior.
- Você fez o quê?
- Você me ouviu, e não vai saber dos detalhes. São pessoais.
- Vou telefonar para Michael.
- Não se atreva!
- Mas o que há de errado com ele, afinal?
- Nada, é uma ótima pessoa, mas eu não o amo. Só isso.
- Você não aceitaria nem o anjo Gabriel! Acho melhor acordar para o
mundo, garota!
- Acho melhor eu ir trabalhar, isso sim. Volto para tomar um
café às dez horas.
E, quando voltou, Matthew foi logo perguntando:
- Quando você vai se encontrar com ele?
- Com quem? Está se referindo a Michael?
- Você não tem tantos namorados, para que eu precise especificá-los pelo
nome.
- Não vou vê-lo durante algum tempo.
- E de quem foi essa idéia?
-Dele...

90
Sandra Field Caminhos do Coração

- Então, pelo jeito, também vou ficar sem vê-lo - disse Matthew,
aborrecido. - Eu já estava bolando certas jogadas para o próximo jogo de
xadrez.
..
Um tanto perturbada, Aline acabou pedindo:
- Vovô, será que podemos mudar de assunto?
- Bem, pelo menos você não é indiferente a ele, e isso já vale
alguma coisa.
- Lá fora dez carros me esperam. Preciso colocar neles pneus próprios
para a neve. Por isso, avozinho, não vou poder ficar conversando. Até depois.
Os dias foram passando e Aline continuou se dedicando exclusivamente ao
trabalho e à família. Antes de conhecer Michael, aquilo parecia normal, mas agora
sentia um vazio imenso. Queria ver Michael segurando Juliana no colo,
conversando
com o avô, caminhando
pelo gramado.. . Mas o pior era que queria sentir de novo seus
abraços e seus beijos.
No entanto estava naquela situação por sua própria culpa. Não podia se
queixar. Devia estar satisfeita por ele não ter insistido, importunando-a
com um
amor que não desejava, mas não estava. Sentia-se terrivelmente infeliz e as
olheiras, o ar tristonho e os raros sorrisos demonstravam isso.
Uns dez días depois do salvamento de Tim, Bob Parker lhe telefonou.
- Aline? Preciso ir até Halifax e queria saber se posso deixar Tim com você.
Na volta eu o pego, lá pelas cinco horas. Ele está louco para vê-la.
- Tudo bem, pode trazê-lo. . - Tem certeza?
- Claro, estou com saudade dele. Diga-lhe para vir com roupas velhas.
- Isso nunca é problema com Tim - comentou Bob, rindo. - Então, até
mais.
Chegaram depois de uma hora. Tim foi logo entrando na oficina e falando:
- Aline, o que está fazendo?
Ela o abraçou, emocionada, e foi explicando, debruçada sobre o motor de um
Pontiac
- O carro precisa de uma bateria nova. Você me ajuda a tirar a velha?
Aline passou o dia numa enorme confusão de sentimentos. Tim ainda
demonstrava atitudes agressivas, mas de modo geral estava muito mais aberto e
era
óbvio que a conversa que os dois tinham tido no dia da fuga havia surtido efeito.
Chegou a contar algumas piadas, segurou Juliana no colo na hora do almoço e
tomou partido de Matthew numa discussão sobre pneus radiais.

91
Sandra Field Caminhos do Coração

Aline estava comovida com a mudança e ficou angustiada ao lembrar que ele
não seria adotado por ela e por Michael exclusivamente por sua culpa. Sentiu-se
horrível ao se despedir do garoto, à tarde. Acabou chorando à noite e no dia
seguinte ainda teve de escutar Matthew reclamar:
- Acho que isso está indo longe demais. Você está sumindo a olhos vistos!
Pegue o telefone e diga-lhe que quer vê-lo!
- É ele que não quer me ver, vovô. Por favor, passe o açúcar. Matthew fez o
que ela pedia, enquanto resmungava baixinho contra as mulheres em geral e Aline
em particular.
Depois do café, ela foi trabalhar, esperando que ninguém a perturbasse,
100
senão explodiria em lágrimas. No meio da manhã, estava no
escritório somando uma nota quando viu um carro encostar perto da bomba.
Tommy
correu para atender e, quando o motorista saiu, de costas para ela, Aline quase
desmaiou de susto. Era alto, ombros largos, usava uma camisa xadrez vermelha e
tinha vindo! O dia sombrio ficou até mais claro e ela nem se incomodou por estar
toda desarrumada. O importante era que Michael estava ali.
Ele se virou. Aline reparou então que o homem era bem mais moço que
Michael e que tinha olhos escuros.
Deixou a nota sobre o balcão e correu para o banheiro, onde se trancou e
chorou à vontade.
A vida continuava. . . Dali a pouco, ela já estava resolvendo um problema de
válvula. "Aline, por que não pára de se enganar? Está apaixonada por Michael.
Tem
que estar, senão por que fica imaginando vê-lo num estranho?"
O rapaz nem era tão parecido assim; sua imaginação é que funcionara mais
do que devia. "Eu amo Michael", pensou, assustada. "Estive sempre fingindo que
não, mas a verdade é que o amo."
Entretanto, conforme o dia foi passando, a onda de emoção se acalmou.
Sabia que não tinha motivos para ficar com medo, porque Michael era bem
diferente
de David. Para Michael, amor representava compromisso, e compromisso
representava casamento.
Simples e claro.
Com a testa franzida, Aline tentava resolver seu problema emocional. Michael
encarava o sexo como expressão do amor que sentia por ela, uma coisa bonita e
natural e, na teoria, ela também pensava assim, embora na prática o repelisse
como
se fosse uma

92
Sandra Field Caminhos do Coração

virgem ultrajada.
Lembrou-se da sensação que tivera com as carícias de Michael.
Provavelmente, fazer amor com ele seria algo diferente, divino.. . mas como podia
adivinhar? E se fosse mesmo frígida, como David dizia? Como poderia dividir uma
cama com Michael se fosse incapaz de corresponder aos desejos dele?
Como não adiantasse se lamentar, ela pôs sua atenção nas tarefas que tinha
de realizar.
No dia seguinte, quando acordou, sabia exatamente o que fazer. Satisfeita
com a decisão, mas ao mesmo tempo com receio, foi para -a oficina, disse a
Tommy
que fosse arrumar as latas de óleo num display do lado de fora e pegou o
telefone,
discando o número de
Michael.
Esperava encontrá-lo em casa, mas ninguém atendeu. Então procurou
101
na lista o número da fazenda e discou novamente. Logo ouviu a voz de
Beth Collíns.
- Aqui é Aline MacCulloch, Sra. Collins. Posso falar com Mi-chael?
- Bem, acho que ele está por aqui. Um minuto que vou procurar, querida.
Oh, ei-lo... É Aline, Sr. Gault, Quer talar com o senhor.
- Michael. .. sou eu, Aline. Estava pensando... será que posso vê-lo. .. esta
noite?
Ouvia as vozes dos meninos ao fundo e a Sra. Collins pedindo silêncio.
Michael indagou, seco.
- Por quê?
- Eu preferia não falar por telefone, mas gostaria muito de conversar
com você. Se não for possível hoje, poderíamos marcar para amanhã ou qualquer
outra noite.
- Não, esta noite está bem. A que horas?
- Que tal às oito?
- Õtimo. Venha direto para a minha ala.
- Está bem. Obrigada, Michael.
- Até logo, então.
Aline colocou o fone vagarosamente no gancho, desanimada. A voz dele
soava sem emoção, era como se estivessem falando sobre negócios. Não parecia
nem de longe um homem apaixonado.
Para se distrair, escreveu a carta que mandava aos pais a cada dois meses.
Tinha dificuldade em fazer isso, mas achava importante manter aberto um canal
de

93
Sandra Field Caminhos do Coração

comunicação com a família.


Quando acabou resolveu ir até o Correio. O ar puro faria bem e qualquer
coisa era melhor do que ficar pensando em Michael. Como não havia ligado o
rádio,
desconhecia as condições meteorológicas, mas logo descobriu que o frio devia
estar
bem abaixo de zero. Ignorando-o, foi caminhando e admirando a paisagem.
O Correio estava movimentado. Aline cumprimentou os conhecidos,
despachou sua carta e pegou a correspondência na caixa postal. Na volta, parou
na
mercearia e acabou saindo com dois sacos cheios de compras.
No caminho de volta, o rosto corado, sentiu os braços doerem de tanto peso e
parou um pouco para descansar. Um sofisticado Lincoln azul-cscuro parou ao seu
lado e o motorista abriu a porta do passageiro. Ela estava tão distraída, que não
havia reconhecido o carro e se espantou ao ouvir a voz de Wayne McEvoy:
- Deixe que eu lhe dê carona, Aline. Esses sacos parecem pesados.
Ela deveria ter pego as compras, levantado o nariz e seguido
102
adiante, mas o senso de aventuras falou mnais alto. Além disso, sabia
que
não queria mais a oficina, os telefonemas haviam parado e Willie nunca mais
aparecera.
Pegou as compras, colocando-as no banco de trás, e disse:
- Está bem, só para demonstrar que mão guardei rancor.
- Õtimo, ótimo - disse ele, esperando que Aline fechasse a porta antes
de engatar a marcha do Linocoln. - é, não dá para
ganhar todas. . .
- Você conseguiu comprar outro posto?
- Os outros não tinham a localização que eu queria.
- Sei. . . será que podia dar um recaodo para mim?
- Mas claro!
- Diga àquele seu amigo dos telefonemas que ele precisa aumentar o
vocabulário. Obscenidades não precisam necessariamente ser cansativas e
repetitivas.
Ele não tirou os olhos da estrada.
- Minha jovem, sobre o que está falando? Ela resolveu deixar de lado o
fingimento.
- Sabe muito bem a que me refiro, Wayne. Foi mesmo muita sorte para
meu avô e para mim que o projeto do Parque Nacional não tenha ido adiante, não é
mesmo?

94
Sandra Field Caminhos do Coração

Ele deu-lhe um sorriso desagradável, o lh ou para o relógio e ligou


o rádio.
- Você devia escutar o noticiário e ficar por dentro do que
acontece no mundo.
Estavam chegando à oficina, mas em -vez de frear, Wayne estava
acelerando. Aline sentiu um aperto no estômago.
- Você pode me deixar aqui mesmo - pediu.
- Oh, acho que vamos dar mais uma voltinha, para que você possa ouvir as
notícias. Já está começando. . .
Zangada consigo mesma por ter sido tão ingênua, Aline viu a oficina ficar para
trás. Furiosa, gritou:
- Wayne, deixe-me descer!
Em resposta, ele aumentou o volume do rádio. Primeiro, as noticias
internacionais, depois as nacionais e, por fim, as locais. Logo. Aline ouviu o que já
esperava.
- "Autoridades federais já anunciaram a localização do novo Parque
Nacional em Nova Escócia, que provavelmente será aberto no próximo verão. O
parque vai abranger uma área de quatrocentos quilômetros quadrados, ao redor
do
Lago da Truta, nos municípios de. . ."
Wayne desligou o rádio.
- Então, Aline, como está vendo, ainda quero a oficina. Se eu conseguir o
monopólio sobre os combustíveis nesta área, vou poder ganhar, nos poucos meses
de verão, o suficiente para passar as férias de inverno no sul. Soltou uma risada
desagradável e continuou: - Minha mulher sempre quis ter uma mansão nas
Bahamas.
- Mas meu avô não quer vender!
- Oh, acho que o velho vai acabar aceitando quando perceber que você
sumiu. Logo, logo, ele vai receber um telefonema. ..
- Você não vai conseguir! Sequestro e extorsão são crimes
graves!
- Foi bom você ter mencionado isso, Aline. Deixei instruções específicas
com uma pessoa; se a polícia for envolvida ou meu nome aparecer nessa
história, seu avô ou sua filha vão sofrer um sério acidente - havia maldade na voz
de Wayne. - Por isso estou lhe aconselhando, como também farei com seu avô, a
não entrar em contato com a polícia. Você devia ter prestadoatenção. . . eu já a
havia prevenido.
Aline olhava fixamente a estrada, as mãos apertadas no colo. Só o fato de
pensar que alguém pudesse encostar um dedo em Juliana a deixava tão furiosa
que

95
Sandra Field Caminhos do Coração

não conseguia falar nada.


- Já vi que compreendeu - disse Wayne com satisfação. -Bem, e onde
estamos nós? Ah, sim, aqui está o cruzamento.
Não havia nenhum outro carro à vista. Ele brecou rápido e entrou à esquerda
numa estrada secundária, apenas coberta de cascalho e sem nenhuma placa
indicativa.
Aline procurava algum sinal. Não achou nada.
Já tinham rodado quase sete quilômetros naquela paisagem desoladora
quando Aline percebeu um fio de fumaça se elevando de um barraco de lenhador,
um pouco afastado da estrada.
Devia ficar contente com aquilo, mas sentiu foi medo. Wayne devia ter algo
em mente ao levá-la para aquele lugar. Talvez estivesse esperando um cúmplice. . .
Ela não conseguia imaginar apontando-lhe uma arma ou amarrando-a a uma árvore.
Percebeu que seus temores tinham fundamento quando viu um caminhão
todo sujo de lama parado junto ao barraco. Wayne tocou a buzina e Willie
Budgeon
apareceu na porta.
Aline não parou para pensar. Abriu a porta do carro e se atirou ao chão,
encolhendo-se para não sentir tanto o golpe, enquanto Wayne gritava alguma
coisa.
Teve a sensação de que todos os ossos do corpo estavam se deslocando quando
caiu e rolou no chão duro. Levantou-se e viu que Wayne corria em sua direção, os
olhos arregalados. Sufocando uma risada histérica, virou-se e saiu em disparada.
104

CAPÍTULO X
O medo parecia dar asas a seus pés, e Aline corria como vento pelo caminho
por onde tinham vindo. Milagrosamente, conseguiu manter o equilíbrio mesmo ao
saltar as poças de águas geladas, sentindo-se completamente indefesa na
estrada.
No entanto, se entrasse pelo mato não iria conseguir correr tão depressa. E o
pior é
que não havia árvore que a pudesse esconder.
Ouviu gritos e o som de uma porta de carro bater. Arriscou, então, um olhar
para trás e viu Wayne dirigindo o Lincoln em direção ao barraco e Willie entrando
no caminhão. Estava claro que era ele quem viria atrás dela.
Correu ainda mais depressa. Tinha de sair da estrada, senão corria o risco de
ser apanhada a qualquer momento, com facilidade. Saltou a valeta, coisa que
normalmente nem se atreveria a fazer, e começou a correr pelo terreno cheio de
tocos e mato alto. Olhou mais uma vez para trás e viu que Willie havia parado o

96
Sandra Field Caminhos do Coração

caminhão e, agora, vinha correndo atrás dela a toda velocidade. Suspirou,


apavorada,
procurando um lugar, qualquer que fosse, para se esconder. Não havia
nada, só tocos e ramos cortados. Ouviu Willie ganhando terreno. .. Juntando o
resto
de sua energia, deu mais uma corrida desesperada e chegou a um lugar mais
aberto. Virou-se de frente e esperou. Não ia deixar que Willie a apanhasse de
surpresa. Também não ia demonstrar que estava com medo!
O rapaz não esperava aquela estratégia. Parou, o peito arfanda, o rosto muito
vermelho. Tentando controlar a própria respiração, Aline disse, cáustica:
105
- Você anda fumando demais, Willie. Pode ir na frente, eu o sigo.
- Sua louca! Fazendo-me correr desse jeito!
- O que esperava que eu fizesse? Que chegasse para você, apertasse sua
mão e perguntasse: "Como vai, como tem passado?" Ora, vá para o inferno!
Os olhos dele brilharam de admiração.
- Você está precisando é de um homem que a dome, Aline Mac-Culioch, e
Wayne McEvoy não serve para isso.
- Nem você! Falando de Wayne, parece que ele está tendo um ataque. ... é
melhor voltarmos.
Aparentando descontração, passou por ele e foi caminhando em direçáo a
Wayne, que na estrada abanava os braços e gritava. Não precisou olhar para trás,
pois sentia que Willíe vinha caminhando bem junto dela. Apesar de ainda ser
prisioneira, tinha a sensação de ter ganho pelo menos aquele round. Agora,
precisava se preocupar com o próximo, que provavelmente não ia ser tão fácil.
Ao se aproximar de Wayne, disse, de cara feia:
- Você deve estar se divertindo muito!
Ele respondeu com um palavrão e ordenou a Willie:
- Leve-a para o barraco, que vou telefonar. Depois que o ve-ího assinar os
papéis, eu volto. Não vai demorar muito.
Aline viu-se tomada pela frustração, porque não podia fazer absolutamente
nada.
Wiliie agarrou-lhe a manga e a empurrou para dentro do caminhão, avisando:
- Entre logo. . . e chega de gracinhas.
Ela achou melhor obedecer e subiu no caminhão, sentindo as pernas
bambas, Willie entrou do outro lado e logo estavam sacolejando pela estradinha,
em
direção ao barraco, que mais parecia uma tapera. Mas, pelo menos, com o fogo
aceso num fogão à lenha, estava bem mais quente que lá fora.
Quando entrou, viu sobre a chapa uma chaleira que deixava escapar um fio

97
Sandra Field Caminhos do Coração

de vapor. Um catre, uma mesa rústica e dois bancos completavam o mobiliário e


Aline ficou preocupada ao ver sobre a . mesa uma garrafa de uísque. uma garrafa
térmica e- uma caixa de lanche.
Willie parecia meio perdido. Jogou mais lenha no fogão e perguntou a Aline
se queria um gole de bebida: Ela fingiu desinteresse e disse com calma: - Quero
sim, obrigada.
106
Mas tinha certeza de que Willie não ia demorar muito em molestá-la. Tudo o
que tinha a fazer era mantê-lo de bom humor.
Ele tirou duas canecas de plástico de dentro da caixa, colocou generosas
porções de uísque e adicionou água. Empurrou uma delas em direção a Aline e
sentou-se num dos bancos, bebendo de uma só vez metade do conteúdo. Ela
colocou mais água e tomou um gole grande. Uísque não era swa bebida preferida,
apesar das origens escocesas, mas até achou bom, pois lhe dava mais coragem de
enfrentar a situação. Espiando dentro da caixa, disse com voz calma:
- Posso comer alguma coisa? Tentar correr daquele jeito me
deixou com fome.
- Sirva-se.
Dentro da caixa, ela encontrou sanduíches de peru embrulhados em papel
alumínio, algumas laranjas e duas grossas fatias de bolo
de chocolate.
- Quem foi que fez o bolo? - perguntou Aline, com curiosidade. Não
conseguia imaginar Willie batendo a massa.
- A cozinheira do acampamento de lenrmdores.
- Puxa, até que vocês comem muito bem!
- Um patrão esperto sabe que uma boa cozinheira deixa a turma muito
mais satisfeita do que qualquer quantidade de bebida.
Aquela era a frase mais comprida que ela já escutara de Willie. E sem querer
isso lhe lembrou Tim, também sempre tão calado.
- Você sempre trabalhou como lenhador?
Ele tomou mais um gole de uísque, antes de dizer:
- Desde os catorze anos.
Ela tratou de extrair mais informações, pensando que detestaria ver Tim
trabalhando naquele meio aos catorze anos.
Quando acabou o sanduíche, pegou um pedaço de bolo e continuou
escutando-o. Na conversa, descobriu que Willie tivera um pai
que batia na mulher e nos filhos e uma mãe que ficara mais que
satisfeita quando ele partiu, pois isso representava uma boca a
menos para alimentar e cuidar.
Começou a descascar com as unhas uma laranja e comentou: - Meus pais

98
Sandra Field Caminhos do Coração

eram exatamente o oposto. Ficavam de olho em mim o tempo todo... - contou


sobre os irmãos e continuou: - Minha mãe gostaria de me ver sentadinha na sala,
bordando, e em vez disso eu vivia suja de graxa. . .
Passou a Willie um pedaço da laranja, enquanto reparava, apreensiva, que
ele já estava na quarta dose de uísque. Sem querer, seus ouvidos procuravam
escutar o barulho do carro de Wayne que, sem dúvida, não devia demorar muito.
107
Wiilie se levantou para colocar mais lenha no fogão. Nem
o andar,
nem seu modo de falar indicavam ter bebido tanto, mas ao voltar para perto da
mesa. encheu novamente a caneca de uisque comentando, áspero:
@gou. Pediu,
tossindo:
tentando fingir que gostava, ela tomou um gole grande e engasgou. Pediu,
tossindo:
- Ponha mais água, Wiilie, eu não consigo beber assim tão forte.
Ele pareceu não escutar. Estava de pé, bem perto dela, encarando-a.
Estendeu a mão cheia de calos e tocou-lhe os cabelos, dizendo rouco:
- Seu cabelo parece um lago ao amanhecer, da cor de ouro pálido.
Aline ficou pasma. Como é que o produto de um ambiente de violência e
pobreza tão grandes conseguia dizer coisas tão poéticas? Comovida, disse
baixinho;
- Obrigada. Wiilie. Você disse uma coisa linda.
Tudo teria dado certo se ele tivesse se sentado novamente, mas naquele
instante um pedaço de lenha caiu dentro do fogo, lançando fagulhas por todo
lado.
Wiilie deu uma olhada e, quando voltou a encará-la, havia uma nova intenção em
seu olhar.
Ela quase podia ver o álcool agindo no cérebro do rapaz. Pediu com calma:
- Quer pôr mais água na minha bebida, por favor? - mas ele já não ouvia e
repetiu, meio enrolado:
- Cabelo lindo. . .
Ele estava entre Aline e a porta. Ela então disse, com a maior autoridade que
pôde:
- Wiilie, sente-se e beba mais um pouco.
O rapaz a ignorou e tentou agarrá-la. Ela desviou e ficou entre a mesa e ele.
Fez depois a última tentativa de chamá-lo à razão:
- Não estrague tudo agora. Até um minuto atrás, eu estava
gostando de você de verdade. Não estrague isso.
- Não vou estragar. . . vou fazer coisa melhor.

99
Sandra Field Caminhos do Coração

- Não vai não.


- Ora, Aline, um beijinho não vai fazer mal algum.
Só que ele não ia parar naquilo, ela sabia. Estava apavorada como um animal
encurralado. Quando ele tentou alcançá-la novamente. Aline atirou-lhe a caixa de
lanche, atingindo-o no rosto.
Uma fúria selvagem apareceu nos olhos pálidos do rapaz, que agarrou a
garrafa de uísque pelo gargalo e rosnou:
108
- Você nao devia ter feito isso! Venha cá!
Atrás dela o fogo crepitava no fogão. Aline se virou rápido, agarrou a chaleira
e disse, com uma coragem impulsionada pelo desespero :
- Fique onde está, senão jogo isto em você!
Naquele instante, passos ecoaram lá fora e a porta do barraco foi
escancarada. WilHe e Aline íiearam paralisados, ele ainda segurando a garrafa de
uísque e ela brandindo a chaleira fervente. No meio do silêncio absoluto, Michael
entrou.
Aline largou a chaleira sobre o fogão, porque a alça lhe queimava a mão, e
Wiilie bateu com torça a garrafa no canto da mesa,
lançando estilhaços.
- Aline, fique fora do caminho - avisou Michael, que havia
entrado e fechado a porta.
Depois de dois ou três minutos de luta, Wiilie perdeu o equilíbrio e Michael lhe
acertou o olho, fazendo-o desabar no chão.
Aline devía sem dúvida agradecer aos céus ao ver Wiilie comple-tamente sem
ação, mas em vez disso reclamou:
- Puxa, não precisava acertar assim com tanta força!
- Mas que ingrata! Aqui estou eu, arriscando minha vida para salvá-la do
vilão e, em vez de me agradecer, reclama que bati com muita força. . . - Os olhos
azuis cintilavam, brejeiros, mas também havia no fundo deles uma emoção
diferente.
- Ele não é um vilão de verdade - disse ela suspirando. - Quase cheguei
a gostar do coitado. . .
- Só que, quando cheguei, você não parecia estar gostando nem um
pouquinho! Ou será que costuma jogar chaleiras com água fervendo em seus
amigos?
- Eu larguei a chaleira quando você chegou!
- É verdade, e eu preciso aproveitar a oportunidade, pois você pode mudar
de idéia... - tomou-a nos braços, e a beijou com desejo e ardor. Ela se entregou e
os dois se esqueceram de tudo. Subitamente, a porta rangeu e Matthew entrou.
- "O que está havendo aqui? Não ficou combinado que você me avisaria

100
Sandra Field Caminhos do Coração

quando não houvesse mais perigo?


Michael levantou a cabeça apenas para dizer:
- Eu me esqueci - e voltou a beijar Aline, Matthew comentou, olhando para
Wiilie;
- Ele está começando a acordar.
Isso foi o suficiente para despertar a atenção de Michael, que lar gou Aline e
disse:
- Matthew, passe-me a corda.
O velho tirou da cintura um pedaço de corda e entregou a Michael que, num
instante e com a maior eficiência, amarrou as mãos de Willie atrás das costas.
Matthew também tinha um facão preso à cintura. - Você se esqueceu da
espingarda, vovô? - indagou Aline, tentanto
brincar.
- Está no carro. Michael não me deixou trazer para cá - reH trucou ele,
meio ofendido.
Aline lembrou-se dos dois personagens ausentes e indagou com um aperto
no coração:
- Wayne não está aqui! E Juliana. . . vovô, você não a deixou sozinha, não
é? Wayne disse que, se chamássemos a polícía, ele ia mandar alguém. . . - não
conseguiu terminar a frase, o rosto branco como cera.
- Claro que eu não a deixei sozinha - disse Matthew. com um ar maroto
no rosto. - Deixei-a com Emma Darby.
- E quanto a Wayne?
- Ah, daremos um jeito nele.
Willie soltou um gemido e tentou se mexer. Michael disse, seco: - Matthew,
leve Aline para o carro. Wayne deve voltar logo. mas antes preciso dizer umas
coisinhas para este sujeitinho.
- Não vai bater nele de novo, não é? - protestou Aline.
- Não tenho o costume de bater em gente amarrada. É melhor vocês irem
andando. Não os quero aqui quando Wayne chegar.
Ela encarou-o, perplexa. Michael deixava transparecer uma incrível
competência profissional e uma dureza que Aline tinha de respeitar. Disse
lentamente:
- Acho que você está é se divertindo um bocado!
- Claro que estou! Isso me lembra meus dias de polícia. . .
- Ainda bem que você chegou na hora. Muito obrigada. Michael.
- Parece ate uma novela, não acha? O herói salva a mocinha no último
minuto e depois ela cai em seus braços, declarando amor eterno. ..
Esquecendo-se de que não estavam sozinhos, ela disse, atrevida:
- Isso vem depois.

101
Sandra Field Caminhos do Coração

- Hoje à noite?
- É isso mesmo. Marcamos um encontro, não foi?
- Claro. Já pedi a Matthew para cuidar de Juliana. Agora vá para o carro,
Aline.
Desta vez ela obedeceu sem protestar. Segurou o braço de Matthew e o
levou para fora. Escutaram o barulho de um carro que se
110
aproximava. O avô voltou e avisou Michael que Wayne já vinha chegando,
depois segurou a mão da neta e disse-.
- Venha depressa. O carro está mais adiante, depois da curva.
Michael quis que ficasse escondido.
Aline correu, embora sentisse curiosidade em saber o que aconteceria.
Depois de alguns minutos alcançaram o carro escondido atrás de uma alta moita
de
capim. Matthew entrou, fechando a porta sem ruído, e Aline fez o mesmo. A
espingarda estava mesmo no banco dee trás.
- E agora - ela disse -. quero saber direitinho o que aconteceu. Como é
que vocês chegaram até aqui tão rápido e por que
Wayne vem voltando?
Matthew se acomodou no banco e tirou o cachimbo do bolso.
enchendo-o com calma.
- Bem, parece que você telefonou a Michael hoje cedo. . .
- , telefonei, Mas o que é que isso tem a ver?
- Acho que o deixou curioso e ele apareceu na oficina, procurando-a. Só
que você não estava e Tommy só sabia que tinha ido até o Correio. Sua demora
nos
deixou preocupados. Michael procurou-a na cidade e descobriu que você tinha
saído há mais de meia hora. Puxa, como ficou nervoso! Depois o telefone tocou.
Era
Wayne, dizendo que bastava eu assinar os documentos para a venda da oficina
que
você seria devolvida sã e salva. - Matthew acendeu um fósforo e puxou uma
baforada do cachimbo. - Imagine o que
senti.
- Posso imaginar. . . Então o que fez?
- Tirei o chocalho da mão de Juliana e ela começou a berrar. Disse a
Wayne para esperar, pois a menina tinha caído e se machucado. Então contei a
Michael o que estava acontecendo e ele sugeriu que eu pedisse tempo a Wayne.
Combinei encontrá-lo na encruzilhada de New Hampton, na hora do almoço. Ele
achou ruim, pois queria me ver imediatamente, mas insisti que era impossível.

102
Sandra Field Caminhos do Coração

- E depois?
- Acho que a sorte nos ajudou. Quando Michael ia se dirigindo para a
oficina, viu o carro de Wayne passando nesta estradinha, Claro que não sabia que
era Wayne, mas reparou porque não era o tipo de carro que costuma percorrer
uma
estradinha de lenhadores. Comentou comigo e, pela descrição, reconheci o
veículo.
Levamos Juliana para a casa de Emma Darby e viemos para cá. Wayne vem vindo
para pegá-la, mas terá uma bela surpresa, não acha?
- Bem feito. Ele me assustou demais quando ameaçou Juliana.
Fiquei apavorada.
- Michael vai cuidar dele, pode deixar. Que sujeito! Ainda bem que ele
estava do meu lado, pois eu não saberia o que fazer se tivesse de enfrentar
Wayne. Michael está furioso por sua causa, por
saber que você correu perigo. Não consigo descobrir porque não secasa
com ele, Aline.
- Vovô, eu. . .
- Eu sei. . . você sofreu muito uma vez. Nunca fala sobre o pai de Juliana, e
por isso imagino que ele não servia. Mas não deve julgar o resto da humanidade
por aquele homem, especialmente Mi chael. Ele seria bom para você! - a emoção
tomou conta da voz do avô. - É uma coisa ótima casar com a pessoa certa. Foi
assim comigo durante mais de trinta anos. A solidão quase mata quando o
companheiro se vai, mas eu não trocaria aqueles anos todos por nada neste
mundo.
- Oh, vovô. . . - ela disse, comovida. - Mas, se eu me casasse, você ia
ficar sozinho outra vez.
- Eu dou um jeito. Já dei antes. . . Ia valer a pena, só para vê-la bem.
- Sou feliz vivendo com você. querido. Matthew baixou o vidro da janela e
disse;
- Psiu. . . parece que Wayne está indo embora. . .
Logo depois Michael apareceu e entrou no banco de trás do velho carrinho,
enquanto Aline dizia: - Você parece muitíssimo satisfeito.
- Bem, agora vamos livrar Juliana das garras de Emma Darby! - ele disse,
rindo.
- Talvez seja o contrário. . . mas afinal o que houve? E Willie? - Wayne
está levando Willie de volta ao acampamento. Provavelmente inventarão uma
história para explicar o olho roxo.
- Michael. não seja misterioso. . . o que foi que disse aos dois? Ele ficou
sério.
- Primeiro, eu sabia que não existia o tal cúmplice que iria judiar de

103
Sandra Field Caminhos do Coração

Juliana, que era tudo invenção. Em segundo lugar, deixei bem claro a Wayne que
ele nunca vai ser dono da oficina e que, se houver o menor problema no futuro, um
relatório detalhado do que houve hoje vai ser encaminhado à polícia. Você não vai
mais ser incomodada por Wayne McEvoy, isso eu garanto.
Aline ficou olhando para Michael, impressionada.
- Tática de guerra, não é?
- Pode-se dizer que sim - disse ele com um ar maroto. - Mas funcionou,
não foi?
- E o caminhão de Wiflie?
- Vão ter de vir pegar mais tarde. O moço não está em condições de guiar.
Aline precisou disfarçar um sorriso ao ver a cara de satisfação
que ele fazia.
- Agora preciso voltar para a fazenda. Matthew, se você der marcha a ré,
vai poder manobrar em frente ao barraco.
Aquela era a oportunidade para Aline indagar o que Michael tinha ido fazer na
oficina, mas não teve coragem. Matthew ia escutar tudo e ela ainda estava com o
plano daquela noite na cabeça. Estava começando a imaginar se ia ter coragem de
ir até o fim. O que parecia uma ótima idéia às oito da manhã, agora parecia uma
enorme loucura.
113
CAPITULO XI
Matthew deixou Michael no pátio da oficina, onde o jipe estava estacionado.
- Obrigado, Matthew. Até logo, Aline, vejo você à noite - e se foi.
O velho não esperou vê-lo partir. Tocou em frente e parou na casa dos Darby,
dizendo:
- Eu trouxe Juliana para cá. Agora você vai buscá-la.
- Ora, muito obrigada, , . - Chegara o momento de enfrentar Emma, a
mulher que sempre a desprezara. Enchendo-se de coragem. Aline atravessou o
jardim bem cuidado e bateu na porta.
O Sr. Darby abriu e a recebeu com um sorriso.
- Entre. Que menininha mais engraçadinha. . . Emma está frocando as
fraldas.
Juliana, deitada de costas na mesa da cozinha, balbuciava sons ininteligíveis.
A Sra. Darby não estava imune aos seus encantos: apresentava o rosto iluminado
por um sorriso. Ao encarar Aline, ruborizou-se e disse, meio seca:
- Já de volta?
- Sra. Darby, muito obrigada por tomar conta dela. Foi muita bondade.
- Foi um prazer. Já fazia muito tempo que eu não cuidava de um bebê e
fiquei contente por ver que não perdi a prática. - Depois acrescentou, com um ar
importante: - No verão, você deve trazê-la a uma reunião do nosso Clube de

104
Sandra Field Caminhos do Coração

Jardinagem.
Consciente da honra que recebia, ela disse, baixo:
- Muito obrigada, isso seria ótimo. - Mas já imaginava a bagunça
114
que Juliana iria fazer numa reunião só de senhoras. Entretanto, o verão
ainda estava longe e muita coisa podia acontecer até lá. Lembrou-se então do
compromisso com Michael e do que podia
suceder, ..
Com palavras de amabilidade, ela e os Darby se despediram e Matlhew
levou as duas para casa. Havia trabalho acumulado e AAline logo vestiu o
macacão, dirigindo-se para a oficina.
Na hora do jantar, muito nervosa, não conseguiu comer quase nada. Depois
colocou Juliana na cama, tomou um bom banho e se vestiu. Já tinha decidido o que
usar: saia verde e blusa de seda creme. Por baixo, um conjunto de lingerie bem
extravagante. Deixou os cabelos soltos e, para disfarçar a palidez do rosto, usou
bastante blush, o que não apagou o pânico diante do que tinha a enfrentar. Vestiu
o
casaquinho que formava conjunto com a saia e desceu.
Esforçando-se para manter a diplomacia, Matthew não lhe perguntou por que
ia sair nem a que horas estaria de volta. De olho num livro sobre criação de
ovelhas,
recomendou:
- Dirija com cuidado, está bem? Está levando a chave? Ela beijou-lhe os
cabelos rebeldes, achando que combinavam muito bem com a personalidade do
avô. -Estou sim. Não espere por mim.
O percurso até a fazenda de Michael foi rápido demais. Aline preferia que
levasse o dobro do tempo. Quando chegou, parou o carro ao lado do jipe e desceu.
Sentia o coração descompassado. As luzes do andar térreo da ala de Michael
estavam acesas e ela começou a andar naquela direção.
A porta da frente da casa se abriu repentinamente e um garotinho
ruivo saiu correndo.
- Aline! Adivinhe uma coisa!
- O quê?
- Encontrei o manual de instruções do cortador de grama e o
engraxei todinho! Quer ver?
Se ela quisesse realmente ser honesta teria dito não, pois estava preocupada
em ensaiar o que iria dizer a Michael. Apesar disso, percebeu que Tim a esperara
e
não queria apagar o brilho de orgulho dos olhos do menino.
- Claro - respondeu. - Está no barracão?

105
Sandra Field Caminhos do Coração

- Está no mesmo lugar. O Sr. Gault me deixou ficar com a chave, enquanto
eu estiver trabalhando com o cortador. Disse que era minha responsabilidade.
O cortador, agora sobre folhas de jornal, no chão do barracão,
115
estava impecável e até mesmo Aline teria sentido pena de usá-lo nu gramado.
Tim ajoelhou-se ao lado do aparelho.
- Eu reapertei todas as porcas e parafusos e engraxei os eixos. Dê uma
olhada. . .
- Na primavera ele vai funcionar com perfeição. Você fez u belo trabalho,
Tim.
- O Sr. Gault disse que vou poder cortar grama com ele no verão. Disse que
posso ficar na fazenda, que não vou ter de embora, como Kevin.
Aquela noite ia ser decisiva e determinaria se ela também ficar em Valley
View e se Tim iria fazer parte de sua vida, como Julíana. Com a garganta
apertada,
disse:
- Estou muito contente, querido. Agora preciso ir. Obrigada por ter me
mostrado o belo serviço que fez.
- Vou trancar o barracão - ele informou, sério, tirando do bolso uma chave
presa ao cinto por um barbante.
Depois de deixar Tim na porta da frente da casa, Aline seguiu adiante até a
ala de Michael. Bateu, mas ele não atendeu logo. Ela ia levantar a mão para bater
de novo quando a porta se abriu.
- Olá, Michael. .. - Entre.
Ele não sorria e os olhos azuis estavam sérios.
- Desculpe o atraso. Tim quis me mostrar o que tinha feito com o cortador
de grama e fui até o barracão com ele...
- Sei.
O que havia acontecido com o homem risonho daquela manhã? Não havia
nem sinal dele.
- Posso ir para a sala?
- Claro. Dê-me seu casaco. Quer uma bebida?
- Sim, por favor.
Michael pendurou o casaco, acompanhou-a até a sala e desapareceu na
cozinha. Aline estava muito nervosa e inquieta. Ficou mexendo nos enfeites até
vê-
lo voltar e lhe entregar o copo com a bebida que havia pedido. Então ele indagou,
com voz séria:
- Aline, por que veio?
O discurso que ela havia decorado tão cuidadosamente sumiu da memória.

106
Sandra Field Caminhos do Coração

- Eu,..
- Deve ter uma razão. Não posso acreditar que esta seja apenas uma visita
social, não depois do modo como nos separamos há duas semanas.
Ela sentiu um lampejo de raiva e passou ao ataque: 116
Por que foi à oficina hoje cedo?
- Primeiro responda à minha pergunta. Ela engoliu em seco e disse de uma
vez.:
- Michael, quero fazer amor com você. Houve um instante de silêncio pesado
e depois ele largou o copo.
- O que foi que disse?
- Foi isso mesmo que entendeu. . . - ela confirmou, tomando
um gole grande da bebida.
- Posso ao menos saber o que há por trás de tão estranho pedido? Como
deve se lembrar, da última vez que tentei fazer amor,
você se mostrou. ..
- Oh, pare com isso! Não está tornando as coisas mais fáceis. . .
- Que tipo de jogo é esse, Aline?
- Não é um jogo! - disse ela, apertando com força o copo nas mãos, -
Nunca falei tão sério na vida!
- Então pode me explicar o motivo dessa atitude?
Ela juntou toda sua coragem, largou o copo, se aproximou e segurou-lhe as
mãos.
- Você ainda me ama. Michael? Ainda quer se casar comigo?
- Nada disso mudou.
Ela havia transposto a primeira barreira. Deu um sorriso tímido.
- Ontem descobri uma coisa. Cheguei à conclusão que também
o amo.
Inconscientemente, ela havia esperado que depois disso Michael a tomasse
nos braços. Mas ele apenas apertou-lhe as mãos, murmurando:
- Seus dedos estão gelados. .. você está nervosa?
- Estou apavorada! - Foi um alívio poder admitir aquilo, e de repente as
palavras saíram aos borbotões. - Senti muito a sua falta nestes últimos dias.
Ontem, um homem apareceu para abastecer o carro e achei que era você. Quando
percebi meu engano, quase morri de tanto chorar. .. e foi assim que descobri que
o
amo.
Michael parecia meio confuso com a história, mas seu rosto estava se
suavizando e uma luz brilhava nos olhos azuis.
- Repita isso. . . a última parte.
- Eu o amo.

107
Sandra Field Caminhos do Coração

- Vai se casar comigo?


O rosto dela tornou-se sombrio.
- Por favor, tente entender o que estou querendo dizer e não me leve a mal.
- Baixou os olhos e continuou: - Você já sabe. , . que eu não gostei de fazer amor
com David. Ainda tenho receio de que a culpa tenha sido minha e que a mesma
coisa aconteça com
117
você. Não posso me casar, sem antes ter certeza. . . sem saber se. . .
se
- . ... se é diferente comigo. Mas vai ser. Aline, isso eu posso garantir.
- Mas eu não posso me casar com você sem saber! Será que não
entende?
- Foi por isso que entrou hoje pela casa anunciando que queria fazer
amor? Custou-lhe descobrir que me ama, não é?
- Michael, por favor, não caçoe de mim!
- Não estou caçoando. Acho-a corajosa, linda e a amo tanto
que até lenho medo. - Puxou-a um pouco dizendo: - Então
venha.
-- Aonde?
- Para o quarto. Geralmente é lá que se faz amor.
Era isso que ela queria, mas olhou-o hesitante. Mesmo assim o seguiu e, uma
vez no quarto, Michael acendeu a luz do banheiro, encostou a porta de modo a
deixar o ambiente banhado numa luz difusa e depois disse com carinho:
- Aline, comigo vaí ser bom, posso jurar. Eu a amo e meu único desejo
é fazê-la feliz.
Ela assentiu com um gesto de cabeça, sabendo que Michael acreditava no
que dizia e querendo desesperadamente acreditar também.
- Sabe, estou com medo. . .
- Eu sei que está. - Ele puxou as cobertas e, tão naturalmente como se
dividissem aquele leito há anos, sentou-se, tirou os sapatos, as meias e depois a
camisa, que atirou numa cadeira próxima.
Tinha um corpo atlético e atraente. Aline não conseguia dominar o temor. Viu
quando ele se levantou e chegou perto, agindo como se aquilo não fosse novidade:
começou a desabotoar a blusa dela e a tirou, depois soltou-lhe a saia. Descalçou
os
sapatos e as meias. "E agora?" pensou ela, quase entrando em pânico. "Afinal, o
que vim fazer aqui? Devo estar louca!"
Aline não percebia como seus olhos espelhavam suas emoções. Sem dizer
nada, Michael a abraçou, passando as mãos pelas costas tensas, mais para
confortá-la do que para acariciá-la.

108
Sandra Field Caminhos do Coração

Por fim dissê-lhe, baixinho:


- Não tenhamedo, eu não vou machucar você. Só vou fazer o que quiser. . .
Afastou-se um pouco para tirar a calça e a deixou no chão.-Abraçou-a
novamente e a beijou carinhosamente.
Ela estava trémula, com a mão no peito de Michael, querendo maís afastá-lo
do que tocá-lo. Em sua mente começaram a surgir
118
dúvidas. E se David tivesse razão? E se a culpa fosse dela. que não
conseguia corresponder?
Michael afastou-se, sentou-se e ia puxá-la para junto de si quando, sem
querer, os olhos de Aline, pela primeira vez, pousaram no joelho machucado. As
cicatrizes eram brancas, retorcidas, horríveis e então ela se lembrou como
Michael
havia se ferido. Com um gemido, ajoelhou-se e impulsivamente encostou o rosto
nas
marcas, os cabelos cascateando sobre as coxas dele. Brilhando como pedras
preciosas, duas lágrimas caíram sobre o joelho marcado.
E as barreiras se romperam no instante em que ela imaginou que tinha
corrido o risco de nunca chegar a conhecer Michael, a receber todo aquele amor
bonito. . . então se entregou totalmente. No auge da emoção, ele a olhou com uma
expressão carinhosa. Com os olhos rasos d'água, Aline conseguiu dizer:
- Michael, eu amo você. Estou chorando, mas é de felicidade,
- E querendo dar a ele um prazer igual ao que recebia, murmurou: -
Diga-me, o que posso fazer para agradá-lo?
Não lhe ocorreu que com aquela pergunta estava deixando à mostra toda a
frustração que guardara desde seu caso de amor com David. Viu Michael mudar
de
expressão e indagou, aflita:
- O que foi? Eu nào devia ter perguntado?
- Oh, Deus, não é isso! - Ele hesitou, mas depois continuou:
- Aline, de repente percebi como você ainda é inocente. Estou feliz com
isso, feliz por saber que vou lhe ensinar todos os caminhos do amor. Porque você
nunca os percorreu, não foi?
E daí para a frente ela penetrou num mundo até então desconhecido e gritou
o nome dele, perdida em êxtase.
Quando Michael se levantou e apoiou-se num cotovelo para admirá-la, ela
falou com ternura:
- Estou me sentindo maravilhosamente bem, querido.
- Eu também estou - ele disse, com um sorriso preguiçoso. - E, à medida
que o tempo for passando, as coisas ficarão ainda

109
Sandra Field Caminhos do Coração

melhores.
- Impossível! Diga-me. . . por que foi à oficina hoje de manhã?
- Porque não aguentei ficar esperando em casa para saber o que
você queria.
- Então por que estava tão distante na hora em que cheguei aqui?
- Achei que você fosse me dizer que não queria maís me ver e que tudo
estava acabado entre nós.
- Ah, se eu fizesse isso, seria horrível, pois teria de suportar as reclamações
de vovô o resto da vida! - E riu, bem-humorada,
119
- Andei pensando em acrescentar mais uma ala nos fundos da casa. Será que
Matthew também gostaria de vir morar aqui?
- Também? - ela indagou, fingindo inocência.
- Junto com você. E Juliana. Quer se casar comigo. Aline?
- Sim, quero.
- E eu gostaria de adotar Juliana.
- Sim.
- E Tim.
- Sim.
- E ter mais dois filhos nossos?
Ela riu.
- ísto já está ficando monótono! Mas sim, novamente. Tem cer
teza que também quer o vovô?
- Se ele quiser vir.
- Acho que sim. Ele estava lendo um livro sobre criação de
ovelhas hoje, quando saí de casa.
- Então, quantos seremos? - perguntou Michael. - Cinco,
não é? - Do jeito que estamos indo. logo, logo, vamos ser seis. .
- Amanhã mesmo vou tratar dos papéis, Aline.
- Acho que agora devíamos telefonar para vovô.
Michael puxou-a, abraaçando-a com força, de modo que os cabelos brilhantes
de Aline cobriram-lhe o peito.
- Acho melhor lhe mostrar como as coisas podem ser ainda
melhores. . .
Ela se entregou às carícias dele, agora sem medo, e descobriu que tudo
realmente podia mesmo ser muito melhor. Já passava da meia-noite quando Aline
telefonou a Matthew, convidando-o para o casamento...

FIM

110

Você também pode gostar